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Hemetério Cabrinha - Frontões

Frontões
poesias

Hemetério Cabrinha

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Hemetério Cabrinha - Frontões

Aos que me repudiam; aos que me odeiam; aos meus inimigos, esses que me ensinaram a
perdoar e esquecer as ofensas:

Esta página incolor

***

À dinâmica e brava colônia lusa no Amazonas, esteio forte no desenvolvimento de nossa


civilização, irmã sentimental nas nossas dores e alegrias, na pessoa do Exmo. Sr. General Francisco Higino
Craveiro Lopes, DD. Presidente da República de Portugal,

A Homenagem do Autor

***

— “De onde vens, viajor triste e cansado ?“


— “Venho da terra estéril da ilusão.”
— “Que trazes ?“
— “A miséria do pecado,
De alma ferida e morto o coração.”

Carmen Cinira

***

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Índice

Sumário
Homenagem
Proêmio
Tortura da Glória
Pambiose
Lendo Bilac
Evocação
Resignação
Geminidade
Quem fui e o que serei
De onde venho
Convicção
Revelação
Avareza íntima
Desconhecido
Dentro da noite
Visão do passado
Muscando Deus
Benedicite
Reparação
Em busca da perfeição
Eterna trajetória
Metamorfose
Hora extrema
Vida efêmera
Canção da dor
A caridade
Conselho
Ser antes de ser
Após a morte
Aleluia
Hora lenta
Entre extremos
A aranha
O grilo
Aos que me julgam
Por enquanto, não
Relembrando
Entre cardos
Extremos
Aos que sofrem
Destino da raça
Impossível

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Desolação
Meu aniversário
O Amazonas
Canção do Amazônida
A tapera, a mulher e o cão
Parêmias
Boiúna
A pororoca
Execração
Enganoso natal
Ronda sinistra
Filosofando
Poemas do meu amor para o meu amor
Encontro
Enganos
Idílio
Regresso
Esquecer
Por que não dizes
Recordando
Tudo passou
Romance íntimo
Angustiado
Cuidado
Amor atualmente
Para que falar de amor
Término
Sem título
Caprichos
Impossível
Maldição
Alma entre escombros
Fiat-Lux
Preto-Velho
Itatiaia
Visões
Satan
Caim
O Cristo do Corcovado

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HOMENAGEM

“Venho de Hemetério Cabrinha, meu avô.


Venho do Poeta que conseguiu o supremo ideal do artista: assumiu no verso como na vida a
plenitude de suas mais elevadas convicções.
O amor cristão, que ele disseminava com seus poemas, com seus discursos em defesa dos fracos e
dos humildes, ele também o vivia no cotidiano de sua existência, plainando a madeira, na profissão de
Jesus, distribuindo çonsolo para todos em sua tenda espírita sustentada pela Caridade.
Eu, no dia em que for na vida o homem que pretendo ser no verso, terei conhecido a glória jamais
conspurcável de Hemetério Cabrinha!
Sim, Senhores, venho de um Poeta.”

Max Carphentier
(Discurso de Posse na Academia
Amazonense de Letras, em 11.09.85)

PROÊMIO

Se meus versos não têm o esplendor de obra-prima,


A pureza da forma e a nobreza da rima

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Se lhes falta fulgor;


Há neles, entretanto, agudos sentimentos
Suavizando o clamor dos grandes sofrimentos
Urdidos pela dor.

Oiro na ganga bruta em rústica batéia,


Recolhido com suor das garimpas da idéia
Em horas de emoção.
Pepitas sem lavor no cadinho da vida
Onde a alma geme, chora e canta, embevecida,
Nas malhas da ilusão.

Escada de Jacó erguida em meu destino,


Em que tento atingir, do pórtico divino,
Os rústicos degraus.
Levando em meu fardel de sonhos e quimeras
Os recalques sutis das murchas primaveras
Nos ríspidos calhaus.

A alma, na ânsia imortal de escalar o infinito,


De cada anseio arranca uma blasfêmia, um grito
De tristeza ou prazer.
E este grito ou blasfêmia em versos se transforma,
E embora sem o alvor e a pureza da forma,
Animam-lhe o viver.

Lantejoulas de sonho em vãs fosforescências,


Abrindo, vez por outra, escassas reticências
De luz em minha dor.
Vidrilhos, que ao cair das horas delirantes
Têm, para mim só, reflexos de diamantes
Em mágico esplendor.

Versos feitos sofrendo, acres, rudes, despidos


De encantos e emoção; versos tristes, urdidos
Com lágrimas e fel.
Frontões que o coração entre sonhos embuça,
Quando sobre ilusões minha alma se debruça
Tecendo o seu cairel.

Se meus versos não têm a pureza da forma;


Se lhes falta sabor, exuberância, norma,
Eloquência, expressão;
Arranquei-os da vida em dorosa porfia
E ergui-os para a luz nas horas de agonia
Sangrando o coração.

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E em como num broquei de espinhos aguçados,


Enfeixo-Os para dar aos pobres e angustiados..
Aos tristes como eu,
Que no abismo da Dor se aprofundam gemendo
Sob o peso brutal de sofrimento horrendo
Que o destino nos deu.

TORTURA DA GLÓRIA

Na bruteza do mármore gelado


Corre o cinzel em trabalhosa estréia.
E o artista, a meditar, vai, com cuidado,
Tirando arestas e imprimindo a idéia.

Surge do bloco a forma: — Eblis ou Déa;


Ashtarot ou Medusa . . . O ideado
E cada linha evoca uma epopéia
Na retidão do mármore talhado.

Na arte palpita a execução perfeita,


Mas o artista, com a alma insatisfeita,
Quer dar mais expressão e . . nuns retraços,

Foge o buril, resvala o martelo.


E o sonho, a glória, a ansiedade, o Belo
Rolam por terra em múltiplos pedaços.

PAMBIOSE

Dentro no Nada uma centelha basta


Para inundar de luz todo o universo.
Num simples grão de pó pelo ar disperso
Cabe uma vida portentosa e vasta.

Para a Eterna Expansão tudo se arrasta;


Num pingo d’agua está um mundo imerso.
E Deus, que a tudo assiste e está submerso,
Na vibração mais ínfima se engasta.

No genético Xis da alma latente,


Toda a extensão da Natureza vibra,
Desde a estrela à simplíssima semente.

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E no anseio imortal do Eterno Fito,


Tudo que num respiro se equilibra
Tem seu ponto de apoio no infinito.

LENDO BILAC

Quantas queixas de amor nos olhos das estrelas,


Transbordando de fel nas rútilas pupilas!
Bem o disse Bilac: — “Amai para entendê-las”.
E eu vos digo: — Sofrei bastante para ouvi-las”!

Quando, dentro da noite, a sós, me ponho a vê-las,


Lembrando-me de alguém nessas horas tranquilas;
Elas contam-me tudo . . . As mágoas, as querelas
Dos que sofrem de mais vão pelo azul feri-las.

Anseios, emoções, histórias esquecidas.


Uma lembrança amarga .. . Um nome, uma saudade
Tudo que ‘em do amor magoando as nossas vidas,

Elas falam do céu. Basta compreendê-las:


— Amai, sofrei, mirai, à noite, a imensidade
E ouvireis vossa dor queixando-se às estrelas.

EVOCAÇÃO

Almas feitas de luz. Libélulas doiradas,


Ninfas tontas de amor em célicos volteios;
Falenas que acendeis eternas alvoradas;
Aves de oiro aos bemós de mágicos gorgeios;

Sidéreas que habitais mansões iluminadas


E viveis no esplendor dos etéreos enleios,
Vinde trazer o amor às almas desgraçadas!
Vinde trazer a paz aos hórridos anseios!

Derramai na aflição a harmonia celeste!


Tirai rosas de luz das velhas cicatrizes
Pirilampos de céu vinde a este vale agreste!

Transformar as paixões num enlevo bendito;


Fazer dos corações e de almas infelizes

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Candelabros de sóis na concha do infinito.

RESIGNAÇÃO

O mundo me foi sempre avesso, duro, escasso:


Eu vivo como que entre tenazes de aço,
Sem direito a gemer nem desferir um grito.
O que me apraz, porém, anima-me, consola,
É ter esta amplidão azúlea por gaiola
E poder contemplar os astros no infinito.

Existem para mim só aflições extremas:


Meus punhos sentem sempre o jugo das algemas
Chumbadas à ambição dos baixos sentimentos.
Mas o que me enternece e desludra minh’alma,
É conhecer a vida e conquistar a calma
Na divina expansão dos grandes sofrimentos.

Em cada anseio meu há uma chaga aberta:


A vida me foi sempre uma vereda incerta
Não sei para onde vai nem aonde se destina!
Entre cardos cruéis, enfim, vou caminhando,
Mudo como Jesus, a minha cruz levando
Sob os apupos vis de minha própria sina.

Que importa a lama vil que se me atira ao rosto? ...


Há mais grandeza e luz nos crivos do desgosto
Que mil beijos de amor no escrínio de uma boca.
Aprendi a sonhar em noites de agonia.
O pranto para mim vale mais que a alegria,
Pois da alma desolada as ilusões destouca.

O mundo me foi sempre e será meu carrasco.


Mas no eterno escalar deste íngreme penhasco
Onde sangro meus pés em tétricos horrores,
Faço de meu sofrer um sagrado instrumento
E com ele dirijo ao mudo esquecimento
A suprema canção das minhas grandes dores.

Eu sou qual violino em leves sustenidos:


Ferido, solta no ar seus lânguidos gemidos
Que se evolam e se vão às lindas plagas cérulas...
Sou qual concha apanhada entre algas salitrosas:
Esmagada, depõe nas garras criminosas
Tesouros aurorais de cintilantes pérolas.

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Dizem que meu aspeto aos outros causa escândalo:


Não importa, porque sou semelhante ao sândalo:
— “À mão que o fere e corta impregna de perfume. —“
Se o mundo tem em si a vida ilimitada,
E vive no esplendor de uma eterna alvorada,
Que mal lhe causará um simples vaga-lume?
Noto o repúdio atroz no meio onde penetro:
Meu ser é semelhante à sombra de um espetro.
A todos causa horror, execração, labéus.
Mas de meu coração — este vaso ordinário —
A Natureza fez um rútilo sacrário,
Um escrínio de luz onde palpita Deus.

GEMINIDADE

Numa gota de orvalho escassa, cintilante,


Há um mundo a rolar latente, palpitante
Em sua pequenez etérea, cristalina,
Que à luz do sol parece estrela diamantina;
Há um beijo de Deus para exaltar a vida.
E essa gota do céu, na pétala caída,
Vivificando a planta e colorindo a flor,
Tem para a Natureza uma expansão de amor.

Assim também o pranto — a lágrima tremente —


Como a gota de orvalho, a derramar-se quente
De uns olhos cujo encanto a sombra da tristeza
Apagou, para dar emocional beleza
Que só a dor profunda esboça, plasma, imprime;
Traz em seu cintilar o que há de mais sublime
Nos refolhos sutis da alma desolada;
E num rosto ou num colo ebúrneo derramada,
Como o orvalho do céu, esplende em seu fulgor,
Um ósculo de Deus na exaltação da dor.

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QUEM FUI E O QUE SEREI

Fui húmus, fui cristal, fui pedra bruta,


E nas substâncias da matéria inerme,
Vim desde a vibração ao paquiderme,
Após milhões de séculos de luta.

Monera, larva, lama, lesma, verme


Fui, (para a expansão da causa Absoluta
De onde a vida nos corpos se transmuta)
Até sentir calor na minha derme.

Na transcendente hereditariedade,
A minha rude personalidade
Chegou a ser o que é na vida hodierna.

E daqui para além irei seguindo,


Evoluindo sempre, evoluindo
Até chegar à Perfeição Eterna.

DE ONDE VENHO?

Da Grande Força universal procedo


E venho de outras vidas, de outros mundos;
Por indizíveis dédalos profundos
Inconscientemente me enveredo.

Às minúsculas formas antecedo:


Da vibração aos corpos mais fecundos.
Transformando-me todos os segundos,
“Mergulhado no cósmico segredo”.

Sou, para os sábios da moderna ciência,


Um simples animal que tem consciência,
Vivendo apenas entre o berço e a cova.

Entretanto, através do próprio lodo,


Todo o universo se transforma, todo,
E a própria Eternidade se renova.

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CONVICÇÃO

Tenho a certeza de já ter vivido


Através de outros mundos, de outras eras;
Na rude embriogenia das moneras,
Microcosmicamente impercebido.

Grão de pó entre abismos e crateras,


Nos turvos elementos confundido.
Hei por milhões de séculos sofrido
Entre minérios, vegetais e feras.

Rolei no caos da natureza bruta,


Conseguindo, através de intensa luta,
Chegar à borda deste humano abismo.

Partícula do Todo simplesmente,


Mas já sentindo no evolver da mente
A razão deste eterno transformismo.

REVELAÇÃO

Nasci para auscultar o sofrimento alheio


E a cada alma infeliz falar de amor, no entanto,
O mundo me angustia e me tortura tanto
Que nem sei se ainda tenho um coração no seio!

Vivo para mim só. Nem amo nem odeio.


A doçura do riso e a amargura do pranto
Têm a mesma expressão, o mesmo desencanto;
Vêm do mesmo crisol, da mesma fonte ou veio.

O mundo fez-me cruel, a dor indiferente;


O amor desiludido, a ingratidão descrente...
Goze ou sofra, a ninguém minha emoção demonstro.

E no agro turbilhão da vida me enveredo,


Aos outros ocultando em íntimo segredo,
Na aparência de um santo os instintos de monstro.

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AVAREZA ÍNTIMA

No turbilhão dos agros dissabores


Plasmo, cantando, as pálidas quimeras
Com que enfeito de riso os estertores,
Transformando-os em loiras primaveras.

Abram-se em mim embora atrás crateras;


Suporte eu rindo a cruz dos sofredores.
Hei de implorar às minhas mágoas feras
Uma esmola de luz nas minhas dores.

Que importam as agruras em que vivo,


A alma imolada e o coração cativo
Ao desatino de meus sofrimentos,

As lágrimas que escondo em grossos molhos


São estrelas que guardo nos meus olhos
Para enfeitar meus últimos momentos.

DESCONHECIDO

De onde a razão de ser de minha crença


Na ventura que nunca me chegara?
Por mais que lute, nessa luta intensa
Mais aumento de dor a minha tara.

A luz mais pura, rútila e mais cara


Em tomo de meu sonho se condensa.
A alma que foi outrora uma almenara
Nunca teve do amor a recompensa.

Um dia chegarei, quem sabe, aonde?


“No começo do fim”: Eis me responde
A dúvida imortal que exalto a esmo.

E entre o fim e o começo .. . nos extremos,


Renunciarei da vida os dons supremos
No próprio incognoscível de mim mesmo.

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DENTRO DA NOITE

Contemplo o céu e tenho a fronte mergulhada


Em suave evocação de lívida tortura.
Revejo em cada estrela uma alma angustiada
A iluminar de pranto a funda noite escura.

E quanto mais contemplo a abóbada estrelada,


— Esse ninho de sóis resplendendo na altura —
Ouço queixas de amor em doida revoada
Falando da aflição de cada criatura.

Ouço, perdidos no ar, um gemido, um lamento,


Um grito, uma ânsia amarga . . . imprecações ardentes
Dos que sucumbem sós em fero esquecimento..

Uma história qualquer de enredos compungentes;


Clamor emocional de almas em sofrimento
Nas vibrações de luz das estrelas candentes.

VISÃO DO PASSADO

Na dureza dos grandes sofrimentos


Mergulho o meu espírito cansado.
Buscando novos reflorescimentos
Para aquilo que nunca me foi dado.

Se, às vezes, fecho os olhos sonolentos,


Nunca réstia de luz pelo passado;
Vejo apenas misérrimos tormentos
No meu sonho de eterno torturado.

Faltou-me sempre o sopro da bonança;


Veio a velhice, foi-se-me a esperança,
— Esta acalentadora de fadiga,

Deixando uma saudade ao desgraçado,


Iluminando os sonhos do passado
Como um trapo de sol em tela antiga.

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ANGÚSTIA

Quanto tenho sofrido ultimamente!


Como este mundo me tem sido avesso!
E por mais que me torne indiferente
Ao sofrimento, é quanto mais padeço.

Dores sem conta, sei, bem as mereço.


Mas assim é de mais! Ter sempre à frente
Escabroso Calvário onde tropeço,
Abrindo na alma uma cratera ardente!

Não terá fim, acaso, o sofrimento?


Esta angústia, esta mágoa, este tormento
Que de1e criança me torturam tanto?..

E a grande dor nesta infelicidade,


É não poder chorar na minha idade
Porque meus olhos já não têm mais pranto.

BUSCANDO DEUS
Coordenando idéia multiformes,
Nos seus anseios e impulsões enormes
O homem procura a Causa Originária
De tudo quanto no universo vibra,
Agita-se, palpita e se equilibra,
Do protoplasma à vida planetária.

Da ciência escancara as ígneas portas;


Das bactérias às cálidas retortas,
Busca encontrar o indefinido Xis
Que lhe consome os férvidos fosfatos,
Mas no evolver da lógica dos fatos
Se descontrola e perde a diretriz.

Vem-lhe a tortura do esmorecimento


Mas passada a inação do pensamento
Avassala-lhe após a teimosia.
O tempo lhe consome a paciência
Sem que descubra a Criadora Essência
De tudo quanto a idéia lhe assedia.

Há na putrefação de um corpo gasto,


Um trabalho mais lúcido, mais vasto
Que nos recessos dos laboratórios.

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É a super-ação germiniana,
Fora das normas da ciência humana
Gerando a vida em novos infusórios.

Em cada átomo que se desintegra


A consciência de uma nova regra
Esquematiza a ação de um novo ser.
Dá-lhe nova estrutura, um novo aspeto,
Que sob o impulso de um destino reto
Vai noutro corpo se desenvolver.

Seja no arbusto ou no carvalho bruto;


Na flor, no inseto ou noutro ser astuto
Se integra, vibra, freme, vive, impera.
E essa fase de vida transiforme,
O hom.m que à luz de seus estudos dorme
Não saberá dizer como se opera.

Como quer definir o Indefinido?


Encontrar Deus num ínfimo sentido
De seus estudos pueris, restritos?
O espírito, por mais que se ilumine,
Não O acha, não O vê, não O define
Na infinita luz dos infinitos.

BENEDICITE

Bendito seja.o ventre; o óvulo fecundo


Que num surto de amor, de espasmo ou de prazer,
Para expansão da vida e alegria do mundo,
Na glória de um segundo,
Fez o primeiro ser.

Bendita seja a mão cariciosa e santa


Que a terra semeou pela primeira vez.
Fazendo germinar do solo o arbusto, a planta
Que do húmus se levanta
Dando ao homem vigor e à vida esplendidez.

Benedita seja a mente em seus deslumbramentos


Que assoberbando o mundo, a máquina inventou.
Poupando o humano esforço, o suor, mil sofrimentos,
E nos seus movimentos
Novo mundo criou.

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Bendito seja quem, agrilhoado, aflito,


Quis de perto seu sonho às estrelas contar.
E imitando o albatroz, contemplando o Infinito,
Esse eterno precito
Viu a amplidão e achou que era fácil voar.
Bendito seja o olhar que, devassando o espaço
E escalando arrebóis,
Quis, um dia, sondar o estrelado regaço,
E em luminoso traço,
Da terra aproximou miríades de sóis.

Bendito seja o gênio eterno; soberano


Que orgulhoso de si,
Fez o martelo, a pena, o rádio, o aeroplano
E para o corpo humano,
A sonda e o bisturi.

Bendito seja quem, num doroso empecilho


Da vida, oculta a rir os sofrimentos seus;
Dando ao pranto o fulgor de eterno e santo brilho,
Balbucia: “Meu filho”
E em dores oferece uma alma para Deus.

REPARAÇÃO

Toda a infração às leis da Natureza


Impõe ao infrator reparação.
A alma que vive na matéria presa
Sofre as torturas da condenação.

É como a luz que na candeia acesa


Sorve do azeite a generosa ação.
A alma, no infernamento da aspereza,
Se ilumina na própria podridão.

Como a essência guardada em velho odre,


Presa à carcaça da matéria podre,
Repara o mal que no passado fez.

E depois do tormento dos tormentos,


Iluminada pelos sofrimentos
Volta esplendente à sua candidez.

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EM BUSCA DA PERFEIÇÃO

A alma que busca exílio nas clausuras


Emotivas da vida transitória,
Traz em sua odisséia, em sua história
As consequências das ações impuras.

Absorvida nas dores, nas torturas,


Nos desesperos de uma luta inglória;
Percorre amargurada trajetória
Em sucessivas existências duras.

Reparando a fraqueza de seus atos,


como o cego levado pelos tatos,
Busca a treva a meta desejada.

Até que um dia, em vestes vaporoas,


Abre no espaço as asas luminosas
E conquista a Mansão Iluminada.

ETERNA TRAJETÓRIA

Por torturosos dédalos perdida,


A alma percorre as múltiplas estâncias
Feitas de luminosas substâncias
Com que se enche de vida a própria vida.

Depois de imensa estrada percorrida


No infinito de todas as distâncias,
Mergulha na ilusão todas as ânsias
E rola, e cai nas sombras confundida.

Tomba e, na queda, o amargo da vertigem


São os transes de dor que mais a afligem
E marcam suas horas dolorosas.

E nesse abismo após tortura insana,


Quebrando os liames da carcaça humana
Abre no espaço as asas luminosas.

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METAMORFOSE

Num óvulo miserríssimo e abjeto,


Na embriogenia de uma nova vida,
A alma, dos infinitos sacudida,
Se integra e cai para a expansão do feto.

Seja a de um cão, de um homem ou a de um inseto,


Essa réstia de luz impercebida,
Nos infusórios do embrião retida
Rege a estrutura de seu novo aspeto.

No unicelular desdobramento
Experimenta um novo sentimento
E, apta torna à vida da matéria

Vive e, no elo das estreitas normas,


Após servir de base a novas formas
Regressa à sua própria vida etérea.

HORA EXTREMA

Na hora extrema, quando o frio corta


Os neurônios nas dores aguçadas
E a alma, dentro da carne, não suporta
A atrofia das células cansadas.

Das articulações paralisadas,


Rompendo o véu da natureza morta;
Na leveza das formas irisadas
À verdadeira vida se transporta.

E, liberta das dores, dos cansaços,


Na plenitude excelsa dos espaços,
Fora das exigências da matéria;

Em proporção que do orbe se desata,


Sente que a vida plena se dilata
Em sua própria natureza etérea.

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VIDA EFÊMERA

Da podridão dos úteros inchados,


dos sangrentos refolhos das placentas;
Em dores amaríssimas e lentas
Nascem milhões de seres desgraçados.

Sábios ou não; plebeus ou potentados;


Nas horas mais terríveis e violentas;
Para as lutas titânicas e cruentas
São incessantemente despejados.

Resíduos das ações fisiológicas,


Concrescências de causas biológicas
Nascem pelos mesmíssimos processos

Anjos e monstros, santos e assassinos,


Vêm na expansão da vida em seus destinos
Embuçados na túnica de Nessus.

CANÇÃO DA DOR

Tudo que nasce e morre me conhece.


A alma que vem de Deus e ao mundo desce
Em si me traz viva e silenciosa,
Para guiar-lhe os passos vacilantes,
E nos ínvios caminhos torturantes
Tomá-la pura, excelsa, luminosa.

Ninguém nasce sem mim. No próprio parto


Eu me elevo, me agarro, me reparto,
Alterando a função dos organismos.
Gerando o amor num maternal gemido,
Dando sinal de vida num vagido
E entre o berço e a tumba abrindo abismos.

Na hora extrema, quando a luz do mundo


Vai fugindo do olhar do moribundo
E a morte anestesia-lhe os sentidos;
No mudo pranto que lhe cai aos molhos,
Eu me encarrego de fechar-lhe os olhos,
Remordendo-lhe os membros doloridos.

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Eu sou suave e branda na saudade;


Forte e travosa na infelicidade,
Fecunda e quente nas desilusões
Companheira leal dos infelizes,
Na alma de cada ser crio raízes,
Afligindo seus tristes corações.

No ultraje sou qual dardo venenoso;


No remorso mordaz do criminoso
Sou luz e treva, pranto e maldição.
Provoco anseios, lágrimas e gritos,
E na aspereza extrema dos aflitos
Sou blasfêmia, labéu, execração.

No lar do pobre, na choupana escura,


Onde 13á fome, miséria, desventura,
Nudez, tristeza, angústia, desencanto;
Vivo entre queixas permanentemente,
Embutida na lágrima dolente
E acalentada num eterno pranto.

Nas órbitas sem luz do pobre cego,


Por um minuto, intérmina me apego,
Forjando sonhos e visões radiosas;
Para exaltar-lhe a paciência e a calma
E derramar nos meandros de sua alma
Meu alforje de estrelas luminosas.
Amiga inseparável no abandono;
À luz dos hospitais durmo meu sono
- Onde um minuto vale uma existência -
E nos recalques de quem se depura
Me entronizo nos risos da loucura
Em desesperações de inconsciência.

Quando em revolto mar, na imensidade,


Soltam-se os ventos, ruge a tempestade,
Quebrando mastros e rasgando velas;
Na agonia dos náufragos sem norte,
Eu me confundo com a vida e a morte
Por entre causticantes caravelas.

Fui amante do Cristo no Calvário;


De sua chagas fiz um relicário,
Para esconder as lágrimas de Jó . .
Fiz Belibet viver no mundo errante;
Fiz Lázaro gemer e, agonizante

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Hemetério Cabrinha - Frontões

Rolar por terra desgraçado e só.

Fiz de Gauthama um virtuoso, um santo;


De Mirian de Migdal eu fui o pranto
Vertido sem cessar aos pés da Cruz.
Fiz Judas justiçar-se em fortes laços
Fiz Francisco de Assis erguer os braços
Para estreitar o corpo de Jesus.
Chamo-me dor . . . Comigo tudo vibra
Dos corações conheço fibra a fibra
Em minha eterna peregrinação.
Ninguém me quer em seu carreiro rude,
No entanto, para o amor, para a virtude
Eu sou a luz da regeneração.

A CARIDADE

Não tenho lar nem pátria, a toda parte assisto;


Sou o espelho de Deus, a imitação do Cristo;
Réstia de etérea luz.
No coração dos bons eu erijo o meu templo;
Curando, aliviando e dando como exemplo,
As feridas de Jó e as chagas de Jesus.

Do Amor-Supremo sou a divina bondade;


A vida, a luz, a glória, a essência, a santidade,
O divino fulgor;
Tenho da Eterna Chama a áurea fosforescência,
Sou a consolação, a graça, a providência
Nos momentos fatais de sofrimento e dor.

Sou a chave do céu. Nas dobras de meu manto,


O vício do perverso e a virtude do santo
Encontram seu crisol.
E onde soluça e chora uma alma torturada,
Eu surjo como o albor de esplendente alvorada
Em soberbo arrebol.

Sou a visão do cego, o arrimo do aleijado;


A calma do infeliz, a paz do atormentado,
O riso do ancião.
Sou como a calmaria em meio a tempestade
A desconsolação de toda a humanidade
Cabe em meu coração.

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Hemetério Cabrinha - Frontões

Do órfão, da viúva as lágrimas enxugo;


Liberto o sofredor das garras do verdugo
Em mim Deus se compraz
Para aquele que cai em rudes embaraços
Eu estendo meus braços
Dando-lhe amor e paz.

Na batalha voraz, na luta mais cruenta;


Na mais negra aflição, na mais forte tormenta
Onde escasseia a fé;
No recanto menor de todo esse infinito,
Para acalmar a dor de um coração aflito
Eu me encontro de pé.

No seio do Senhor fiz o meu santuário;


Nos lábios de Jesus, na tarde do Calvário,
Fui amor e perdão...
Nas dúvidas do incréu, desesperado, aflito
Qual venábulo a fulgir em cárcere maldito
Esparjo meu clarão.
De Lázaro pensei as pútridas feridas;
Do lupanar arranco as cortesãs perdidas,
Alçando-as para Deus.
Nos carreiros da vida onde me labirinto,
Eu sou o loiro pão na boca do faminto .
A demência dos céus.

Sou a suave luz que em tudo resplandece;


Consolação e paz no retorno da prece,
O bálsamo na dor.
Mensageira de Deus por toda a eternidade . .
Filha do Eterno Amor . . . Eu sou a caridade,
O espelho do Senhor.

CONSELHO

Não podemos fugir dos gravames da sorte;


Cada um tem na vida a sua história amarga;
Seja bom, seja mau, pusilânime ou forte,
Tem que arrastar no mundo a sua própria carga.

Feliz de quem, a rir, vai seguindo o seu norte,


Procurando vencer a angústia que o embarga.
E em dédalos cruéis enfrenta a dor e a morte
Sem reparar se a vida ora se estreita ou alarga.

23
Hemetério Cabrinha - Frontões

Para cada aflição há sempre uma esperança;


Uma gota de luz em cada sofrimento
Atrás da,tempestade anda sempre a bonança.

Se a lágrima de fel em tua face brilha,


Faze do coração um sagrado instrumento
Para inundar de amor a alma de tua filha.

SER ANTES DE SER

No abismos da vida embrionária,


Antes da forma da matéria viva,
Todo o universo, em harmonia, ativa
O prodígio da Causa Originária.

Uma vontade real, coercitiva,


Através dessa Força Extraordinária,
Atua e plasma a forma imaginária
E do chamado “Nada” arranca e aviva.

Acende-lhe o princípio inteligente,


E a “rudimentaríssima semente”,
Sentindo a vida, para a luz se volve.

É que nos seus minúsculos aspectos


Nos fluxos e refluxos mais secretos
A vida universal se desenvolve.

APÓS A MORTE
(Lendo Leon Denis)

Ao deixarmos a forma perecível


Entregue às lutas da metamorfose;
Como quem bebe entorpecente dose,
Penetramos as malhas do Invisível.

Sem noção do que somos. Mergulhados


Na própria consciência que adormece
Dentro da alma, que a si mesma esquece
Fora dos membros desarticulados.

Antes porém de se romper o liame

24
Hemetério Cabrinha - Frontões

Que ao nosso corpo fisico nos prende,


Dentro da mesma consciência acende
A chama viva de profundo exame.

Exame crudelíssimo de tudo


Quanto no caos da vida praticamos,
E no cármico espelho transformamos
Em fantasmas de dor num assédio rudo.

Depois de uma terrível fúria de ânsias,


De decepções e arrependimentos,
Desbaraçam-se os últimos momentos
E a alma adormece em fluídicas substâncias.

Livre da carne; das neuromas mortas,


Mas à carcaça de outro corpo presa;
Corpo de imponderável natureza
E estranho ao fundo exame das retortas.

Corpo vibrátil que se identifica


Com as nossas ações, os nossos atos.
Mas que a influência dos passados fatos
Nele se plasma e se corporifica.

Com ele, no seu sono imperturbado,


Reparador das forças destruídas,
A alma desperta e, entre duas vidas
Se integra aos poucos ao seu novo estado;

Esse estado de dúbias circunstâncias,


Em que os sentimentos se dividem,
E na nossa consciência se colidem,
Abrindo abismos de emotivas ânsias.

Há uma luta ríspida, titânica


Entre a razão, a consciência e o instinto,
Até romper-se o estreito labirinto
Da vida orgânica para a inorgânica.

A qualquer lado que a vontade pomos,


Para a vida do mundo ou dos espaços,
Erguem-se logo portentosos braços
De sinceros ou pérfidos mordomos.

Se o mal buscamos, para o mal achamos


Forças potentes nessa negra meta.

25
Hemetério Cabrinha - Frontões

E se o bem em nossa alma se proteja


Iluminadas almas encontramos.

Dependendo das psíquicas tendências


Que cada qual dentro da alma gruda.
- Para qualquer ação há sempre ajuda.
De suaves ou duras consequências.

Cada um veste a túnica que escolhe:


No livre arbítrio escolhe os seus caminhos.
Sejam feitos de rosas ou de espinhos.
E ninguém os seus livres passos tolhe.

Conforme a sua íntima tendência,


Busca o bem ou o mal, a luz ou a treva.
Prática o que lhe apraz; tomba ou se eleva;
Cria o céu ou o inferno na consciência.

ALELUIA

Há plangências de sinos pelos ares,


Risos e cantos pelos céus imensos.
Espirais de odoríficos incensos
Nos turíbulos sacros dos altares.

Corações esquecidos dos pesares,


Ébrios de fé e às místicas propensos.
Pingos de orvalho nos rosais suspensos
Auristrelando aos pálidos luares.

Carícias de asas em sutis gorgeios;


Exaltações de múrmuros anseios .
Tudo m festas palpita e ao céu se irmana.

Aleluia! .. . De amor a vida estua,


Mas o Cristo desprezado continua
Na extrema angústia da miséria humana.

26
Hemetério Cabrinha - Frontões

HORA LENTA

Na áurea luz do sol-pôr. No áureo lilás do poente;


Na tristeza do céu quando a tarde fenece.
A visão do passado anima no presente
Evocações sutis na asa branca da prece.

Hora do relembrar. Hora roxa e dorente.


Hora que na viuvez do ocaso a noite desce,
Exumando emoções; a saudade do ausente
Em nossos olhos brilha e em nossa angústia cresce.

Sonhos sentimentais que o passado levara


Para longe de nós entre o pranto e o desgosto,
Ressurgem na algidez da relembrança amara.

E a dor, a desatar-se em nossos olhos rasos,


Sulca em nossa alma triste a mágoa do sol-posto
Na agonia da luz de todos os ocasos.

ENTRE EXTREMOS

Ó vós que gargalhais da vida tormentosa


Dos que escondem no seio amargas cicatrizes,
Não maculeis o alvor das almas infelizes
Que se abrem para a luz como um botão de rosa.

Na vida em que viveis, de exóticos matizes,


Exultante de gozo e de vícios dolosa,
Sois como a planta agreste, estéril, venenosa,
Vivida em falso chão sem frutos nem raízes.

E vós, que encheis de pranto os prazeres do mundo,


Sangrando o coração nos abismos sem fundo,
Não blasfemeis na dor que vos fere e atormenta,

Deus, na vossa aflição palpita e está presente:


Cada lágrima vossa é uma estrela candente;
Uma rosa de luz que em vossa dor rebenta.

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Hemetério Cabrinha - Frontões

A ARANHA

E tenho uma fidalga e loira companheira


Que, sempre a meditar, de vê-Ia não me farto.
É uma triste e sozinha aranha tecedeira,
Dia e noite a tecer labirintos no quarto.

Ora desce, ora sobe até a cumeeira;


Ora balouça no ar em seu trabalho infarto.
E, de fios de prata, a aranha fiandeira
Uma estrela bordou num ângulo do quarto.

Hoje, pela manhã, outra aranha doirada,


Num idílio de amor, de gozos saciada,
Lá morreu e ficou na teia cetinosa .

Assim mesmo acontece a todos nós, querida:


- Quem somente se entrega aos prazeres da vida,
Terá o mesmo fim da aranha desditosa.

O GRILO

Tenho um perseguidor incômodo, imprudente


Que me não deixa em paz, calmo e tranqüilo.
Esconde-se a cantar a um canto, impertinente,
E eu tenho que passar a noite inteira a ouvi-lo.

Se acaso me levanto a busco esse insolente;


Mudando de lugar, ele emudece o trilo.
Enraiveço . . . Maldigo-o e, logo, novamente
Grita mais alto ainda .. . É um desgraçado grilo.

Hoje, pensando bem nesse irritante intruso


Cujo horrente trilar é um desmedido abuso
Provocando, afinal, a minha paciência;

Concluí: A mesma cousa à nossa alma acontece:


Após um ato mau o remorso aparece
Como o grilo a gritar dentro da consciência.

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Hemetério Cabrinha - Frontões

AOS QUE ME JULGAM

Por mais que busque ser um bom, propalam


Ser eu entre os demais torpe vivente.
Infiel, desleal e de delinqüente,
Capaz de enlamear os que resvalam.

Por onde passo todos me assinalam


Como um batráquio vil e repelente.
Múmia moral; maluco, malquerente;
Nódoa dos que na vida se regalam.

Sou tudo quanto querem que enfim seja:


Lesma, chacal . . . e o mais que se deseja
Vaso de lama onde o pudor não medra.

Mas, para a glória de meu rude estado,


Quem estiver isento do pecado
Seja o primeiro a me atirar a pedra.

POR ENQUANTO, NÃO

Disseram que eu morrera. Ainda é tão cedo


Para deixar em paz o velho mundo,
Onde, por entre espinhos me enveredo,
Como um simples rafeiro vagabundo.

Bem quisera eu fugir deste degredo!


Deste terrível lupanar imundo,
Onde, hoje, a vida é simplesmente o enredo
De um romance de fel e dor fecundo.

Para que viver mais, quem sobre os ombros,


A cruz da vida tem pesado tanto,
E tr-la a tropeçar por entre escombros ?

Disseram que eu morrera. No entretanto,


Como um fantasma vil causando assombros
Ainda arrasto o cadáver por enquanto.

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Hemetério Cabrinha - Frontões

RELEMBRANDO

Quem me dera rever a minha terra!


O mar, a praia, as dunas, os coqueiros,
As várzeas, os sertões, os tabuleiros .
Tudo que esta alma na lembrança encerra!

Ouvir, nesta emoção que se me aferra,


Os aboios sem fim dos boiadeiros.
Os sabiás, as graúnas, os ferreiros
Pelas quebradas úmidas da serra!

Matar desta saudade a mágoa rude.


Revendo os riachos, os currais, o açude
Onde brinquei em minha inifincia pena . .

A casa onde morreu minha mãezinha


A sala, o corredoiro, a camarinha . .
Quem me dera rever a minha terra!

ENTRE CARDOS

Eu sinto a vida nos meus sofrimentos


Mais intensa, mais bela e mais sublime.
Cada agonia que meu seio oprime,
Cheia de dores e estremecimentos;

É uma “deixa” nos meus pensamentos,


Uma bênção do céu para o meu crime:
Uma gota de luz que me redime,
Alvoroçando novos sentimentos.

Quanto mais forte, quanto mais profundo


For o recalque dos meus dissabores,
Mais me depuro na aflição do mundo.

Na minha angústia, nos meus estertores,


De luz, de sonho e de prazer me inundo
Para a expansão e todos os amores.

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Hemetério Cabrinha - Frontões

EXTREMOS

A vida tem dois caminhos:


Para o bem e para o mal.
Ambos têm rosas e espinhos,
Palmilhamo-los sozinhos
Até à meta final.

Um, estreito e tortuoso;


Outro, de amplas proporções.
Largo é o caminho do gozo;
O do bem é doloroso
E cheio de depressões.

Quem pelo estreito envereda


Tem o mundo como algoz.
Quem do largo não se aneda
Palmilha-o de queda em queda
Para aniquilar-se empós.

São caminhos paralelos


Que nunca se unirão.
Um, cheio de sonhos belos,
Outro, de agros pesadelos;
Um, virtude, outro, emoção.

E não podemos na terra


Seguir um somente, não.
Quem, louco, ao do mal se aferra
Tem que travar dura guerra
Com a consciência e a razão.

Quem, reto, ao do bem se apega


Enfrenta o humano desdém.
De prantos a vida rega,
E a dor do mundo carrega
Ser bom demais não convém

No mal, o bem conhecemos


Entre sorrisos e ais.
Se no mal o bem não vemos
Temos que andar entre extremos:
Sem ser mau nem bom demais.

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Hemetério Cabrinha - Frontões

AOS QUE SOFREM

Deus a todos derrama a mesma graça,


E igual amor a todos oferece.
Quem, resignado, pelas dores passa,
Nas próprias dores o sofrer esquece.

A alma que sofre sem queixar-se, traça


Um carreiro de luz por onde desce
A demência dos céus em nívea taça
Que Deus envia em luminosa messe.

Sofrer a humana e bárbara injustiça


Sem murmurar, quando a aflição nos roça,
E ser como Jesus em negra liça.

E quando a dor o nosso seio aguça,


O Amor Divino o coração adoça,
Iluminando aquele que soluça.

DESTINO DA RAÇA

Qual viandante sem norte e sem pousada,


Num extenso areal quente, deserto;
A minha raça triste, desolada,
Solapa a vida sem ter rumo certo.

Como o escravo que sonha ser liberto


E um dia a liberdade é conquistada;
Ela, vencendo o seu destino incerto,
Culminará também sua jornada.

E então limpando a nódoa dos esputos,


Livre, expansiva, forte, independente,
Escoimada dos torpes atributos;

Deixará de ser triste e descontente


E enchendo as mão de pérolas e frutos,
Será a maior de todo o Continente

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Hemetério Cabrinha - Frontões

IMPOSSÍVEL

Quem poderá cantar com alma desolada


E a vida a transbordar de angústia e dissabores?
Poderá ser feliz quem só conhece horrores
De espinhos ajuncar-lhe sinuosa estrada?

Ninguém sabe sorrir com a alma estrangulada


E o triste coração quase a morrer de dores.
Pode o mundo viver de todos os amores;
Pode a vida tornar-se esplêndida jornada.

Quem nasceu para a dor, a alegria é tormento,


Um eterno desdém, um crivo, um sofrimento
Escarnando no seio a chaga tormentosa.

Que somente a tristeza alenta e balsamiza,


E a ilusão do poeta exalta e diviniza
Na emotiva expansão da vida dolorosa.

DESOLAÇÃO

A árvore que plantei, já não mais oferece


Folhagem, frutos, sombra e loiros agasalhos.
As aves que, ao nascer do sol, cantando em prece
Iam ninhos tecer em seus robustos galhos.

Esguia-se, decai . . Tristemente envelhece


Sem aquela expressão dos pomposos carvalhos.
Afeia-se afinal e esfolhada entristece,
Esgotando da vida os últimos retalhos.

Coitada! Há pouco tempo era frondosa e bela!


Quanto enredo de amor não fora ali urdido,
À sombra tropical de verdejante umbela!

Somos ambos iguais: Sem frutos e sem flores,


Ela espera tombar . . . E, no mesmo sentido,
Eu espero morrer sem sonhos nem amores.

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Hemetério Cabrinha - Frontões

MEU ANIVERSARIO

Mais um ano de dor, mais uma folha lida


No romance real e vil de minha vida.

Criança: - Em meu corcel de talo de palmeira,


Descalço, descuidado, exposto ao sol e ao vento.
Irrequieto, a rir, sem mágoa e sem canseira
Nem sonhava sequer com tanto sofrimento.

Era a vida a expansão do gozo e da alegria,


Num eterno aurorar que nunca esmaecia.

Moço: - Entraram-me na alma os sonhos e as quimeras;


Os enganos fatais . . . Um enleio qualquer .
Para o templo pagão das minhas primaveras,
Pela primeira vez, amei a uma mulher.

Mulher que nunca mais fugiu do pensamento


E foi a causa maior de todo o meu tormento.

Homem: - Quanto lutei para ajudar, cantando,


Os que sempre sorrindo a face me apedrejam!
Fui plinto, fui degrau e, sofrendo e lutando,
Fui como um vaso podre onde as flores vicejam.
Ninguém me compreendeu nas dores que consomem
Todo o meu ideal e o sacrifício de homem.

Velho: - Farto de dor, de angústia, de tortura;


A alma gemendo em vão em tormentoso açoite.
Esperando, afinal, em minha desventura,
O último badalar de minha “meia-noite”.

Em que liberto, enfim, dos sonhos, das quimeras,


Não possa mais cantar as minhas primaveras.

34
Hemetério Cabrinha - Frontões

O AMAZONAS

Beijos do Equador, sobre um chão de esmeralda,


Em tremenda caudal e indômitos arrancos;
Dos Andes se despeja e ao longe se desfralda
A gemer e a tufar nas praias e barrancos.

Nada se lhe antepõe às brutas arrancadas


Nem se atreve a mudar-lhe o curso da corrente.
E beijando, e lambendo as margens alagadas,
Desgalga o solo e vai assoberbadamente.

Em curvas e estirões, igarapés e lagos,


Matupás e igapós, cachoeiras e ressaltos.
Fecunda a terra e vai com seus rudes afagos,
Vencendo sem cessar planicies e planaltos.

Aqui, estende um braço, adiante, um furo estreito;


Além uma piroca, um remanso, um rebojo
E que mundo não há no fundo de seu leito!
Que tesouro não dorme em seu limoso bojo!

Em seu dorso barrento, ilhotas, galhos, troncos,


Numa dança pagã, monótona, cansada,
Descem e, na cachoeira, em trovejantes roncos
Rebolam-se quebrando em doida saraivada

Como um Titão raivoso, ora se encrespa e engrossa


E em doidos gorgolões as árvores arranca.
Levando, na caudal que , furiosa, destroça,
Riquezas colossais plantadas na barranca.

Vem o tempo da cheia. Em grossos repiquetes,


Cresce, transborda, alaga e agonia seis meses.
Encharcando da selva os verdosos tapetes
E impondo ao regional desgraças e revezes.

Esperdiçando à toa a hidráulica potente,


Vencendo as extensões cru seu trajeto insano;
O Amazonas, assim, rasgando o Continente,
Desce turbilhonando a procura do Oceano.

Encontra-o afinal. Numa investida infrene,


Atira-se a esturrar à gigantesca luta.
A cena é impressionante, o cenário é solene,
E o eco do Titão a mil léguas se escuta.

35
Hemetério Cabrinha - Frontões

E naquela eclosão de contínua refrega;


Naquela exaltação de luta desbragada;
o Amazonas brutal ao velho mar entrega
Tudo aquilo que traz da selva abrutalhada.

CANÇÃO DO AMAZÔNIDA

Caboclo: - Nasci na selva


Onde canta o uirapuru.
Onde, no verde da relva,
Corre a alígera inhambu.
No meu tapiri de palha,
Onde o céu, à noite, o orvalha
E a luz da lua branqueia,
Passa o rio murmurando,
Pelos barrancos cantando
Mil canções à lua cheia.

Sou feliz, nada me falta


Dentro da selva bravia.
Se uma tristeza me assalta,
Logo me vem a alegria.
De manhã, quando me acordo,
Mil aventuras recordo
Ouvindo a onça rosnar.
No cheiro agreste da mata,
Minha vida se dilata
E então me ponho a cantar.

Canto tanto que meu canto


Vai escoar muito além.
E o ardor de meu canto é tanto
Que de lá meu canto vem
Distinto, claro, fugace
Como se outro cantasse
Da outra margem do rio.
Enquanto o sol, quente e loiro,
Pincelando o espaço de oiro,
Tonifica o ar sombrio.

Quanta lindeza se encerra


No rincão onde nasci!
Se deus andou pela terra
Nasceu no meu tapiri.

36
Hemetério Cabrinha - Frontões

Decerto, porque em tudo,


Desde a relva de veludo
À sombra dos igapós;
Há tanta beleza, há tanta,
Que Deus parece que canta
No eco de nossa voz.

A TAPERA, A MULHER E O CÃO

Eu tive uma mulher, um cão e uma tapera;


Julgando-me feliz
Tinha a vida o fulgor de loira primavera,
E de triste que eu era,
Tomei-me alegre e, então, quantos castelos fiz!

Como um rico sultão, vivi de alma expansiva


Sem sombras de um labéu.
A mulher me osculava, ardente, forte, viva
E, do dever cativa,
Fazia de meu lar um pedaço do céu

O cão, fiel e bom, a saltitar ao lado,


Contente a nos lamber.
Não nos deixava sós, num expressivo agrado.
E nesse doce estado
Vivíamos os três ridentes de prazer.

A tapera, coitada! Esconsa, feia, pobre,


A se desmoronar;
Era, no entanto, como um palacete nobre,
Que em seu recinto encobre
O gosto de viver e a delícia de um lar.
Um dia, (há sempre um dia amargo e doloroso
Na existência afinal
Tudo se transformou
O lar, a vida, o gozo,
E um inferno escabroso
Abriu-se para mim, matando o meu ideal.

A mulher me traiu; o cão morreu na rua;


Um caminhão matou...
E para a grande dor que o coração apua,
A tapera de pé ainda continua...
Não se desmoronou!

37
Hemetério Cabrinha - Frontões

Hoje, apenas de tudo uma lembrança amarga


Verruma o coração.
Não da mulher que fora uma pesada carga,
Mas do meu velho cão vivido à minha ilharga
Em plácida expressão.

PARÊMIAS
(Lendo Soares Bulcão)

Busca o mundo como asilo


Das dores que te espicaçam.
A ninguém faças aquilo
Que não queres que te façam.

Procura um caminho reto


Para as tuas decisões.
Sê simples, justo, correto
Nas tuas próprias ações.

Não julgues teu semelhante


Para não seres julgado.
Ante a um deslize irritante
Busca rever teu passado.

Com a medida que medires


Serás medido também.
Se alguma blasfêmia ouvires
Não relates a ninguém.

Quem é bom já nasce feito:


Diz um antigo rifão.
Mas ninguém nasce perfeito
E isento de correção.

Se o amor ferir-te algum dia,


Faze da alma um vivo archote.
Mas não deves, na porfia,
Ir com muita sede ao pote.
O mal o mundo campeia,
A dor a todos apua.
Não fales da vida alheia
Mesmo que falem da tua.

Não deves ir à procura


De quem queira honrar teu nome.

38
Hemetério Cabrinha - Frontões

Quem com porcos se mistura


Decerto farelos come.

Não reveles tua mágoa


A quem sorrindo t’a impôs.
Não deves sujar a água
Para bebê-la depois.

Deixa que o mundo se esfole,


Deixa que o mundo padeça.
Quem com muitas pedras bole
Urna lhe vem à cabeça.

Se ninguém na dor te acode,


Não queiras mal a ninguém.
Cada um faz o que pode,
Cada qual dá o que tem.

BOIÚNA

Sob o alvor do luar, dentro de noite calma


Desce o rio lambendo os quebrados barrancos.
A tufar e a gemer, qual se tivesse uma alma
A espreguiçar-se nele em lânguidos arrancos.

Desce, levando, ao léu, no dorso reluzente,


Troncos, galhos, cipós, ilhotas flutuantes,
Embalando, girando ao sabor da corrente
Que os leva sem cessar a paragens distantes.

Rendilhando de espuma as margens lamacentas,


Sem saber de onde vem em seu louco domínio.
A enrugar, a encrespar suas águas barrentas
Que às carícias do luar parecem de alumínio.

Ora um largo estirão, ora uma curva, uma falda


Dão-lhe o aspecto pagão de uni crótalo disforme,
Raivoso, a essicolar sobre um chão de esmeralda
Que se perde de vista imensamente enorme.

Quando tudo está calmo e a noite vai a meio;


E a lua esplende mais no seu azúleo estojo.
De súbito, um rumor rebenta-lhe do seio,
Recamando-lhe o dorso em férvido rebojo.

39
Hemetério Cabrinha - Frontões

Inquietam-se os garçais, as águas em tumulto,


Rasgam-se a tatalar nas barrancas cavadas.
E, a transluzir o lombo, um monstruoso vulto
Surge do espelho ecóreo em doidas rabanadas.

É a célebre boiúna, o monstro, a cobra-grande,


Que nos afagos do luar, àquelas horas tônicas,
Vem à tona mostrar-se e, na tona se expande,
Para a eternização das lendas amazônicas.

A POROROCA

Calmo, sereno, plácido, espelhento,


Nas horas de luar, frias e brancas.
O Mearim, gargalhando nas barrancas,
Se estende, estica e perde-se distante.

O céu, como uma concha de safira


Emborcada por toda a Natureza,
Enche a paisagem de real grandeza
Enquanto o rio pelo chão se estica.

A floresta conserva-se parada;


Nenhuma folha quebra-lhe o silêncio.
E o intérmino trajeto, o rio vence-o
Calmo dentro da noite enluarada.

Mas um rumor, ao longe, de repente,


ecoando à distância, estruge, esturra
Uma invisivel força o rio empurra
De encontro as margens assombrosamente

As águas fervem, tumultuam, crescem


Alagando, destruindo, aniquilando.
Num furor infernal arrebatando
Árvores altas que nas águas descem.

As raízes do solo se deslocam


Sob a fúria dos bruscos elementos.
Ondas revoltas, vagalhões violentos,
Na agonia das margens se rebolam.

Em derredor das ribeirinhas zonas


Nada fica que o rio não ameace;
Como se no seu dorso galopasse

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Hemetério Cabrinha - Frontões

Um tropel de raivosas amazonas.

Embarcações desgarram-se, afundando,


Quebrando amarras, rebentando mastros.
E a Pororoca, em seus sinistros rastros
Rola por entre abismos esturrando.

Depois . . . Volta o silêncio. O rio desce;


Plácido e manso o curso continua.
Enquanto branca e só se esconde a lua
Como se nada acontecido houvesse .

Mesmo assim somo nós: Nas nossas trocas


De amores e emoções. Tranqüilamente
Quando mal esperamos, de repente
Rebentam n’alma doidas pororocas.

EXECRAÇÃO

Anda no meu destino horrenda sombra escura


E em vão, para onde vou os passos me acompanha
Silenciosa e má; qual venenosa aranha
Que a um pequenino inseto aniquilar procura

Se, por acaso, a luz de uma esperança banha


Os meus dias de amor; juntinho, a desventura,
Envolta no amargor de intérmina tortura,
Impiedosamente entre risos me apanha.

Não sei o que fazer para livrar-me disto!


Ser Cambizes ou Budha; ser Calígula ou Cristo,
Que interessa, se o mal gruda-se à minha sorte?

Do bem que aos outros faço a ingratidão se nutre:


O mundo é o meu eterno carniceiro abutre - - -
Sou Tântalo algemado ao Cáucaso da morte.

41
Hemetério Cabrinha - Frontões

ENGANOSO NATAL

Natal. Eu bem pequeno. A minha mãe dizia:


— Vai rezar, filho meu . . Reza e vai dormir cedo,
Porque, Papai-Noel, antes do albor do dia,
Porá no teu sapato um mimoso brinquedo.

Radiante de esperança, em breve adormecia,


Sonhando a noite inteira e, de meu sonho, o enredo
Era o brinquedo ideal que, cedo, encontraria,
Para me encher de gozo às horas de folguedo.

E assim, antes que o sol abrisse a claridade,


Erguia-me a sorrir . . Que amarga realidade!
Para mim nada havia! E, me desiludindo,

Via que o Pai-Noel nada deixara ...Entanto,


Recebia em meu lábio um presente mais santo:
— O beijo e o quente olhar de minha mãe sorrindo.

RONDA SINISTRA

Vida em tumulto, seres em delírio;


Mundo entre escombros, almas no martírio
Das dúvidas sem Deus.
E o homem, na agonia dos culpados,
Na exaltação dos sonhos perturbados
Enche a terra de pragas e labéus.

Na aspereza sinistra dos conflitos


Cego e mendigo, em lágrimas e gritos,
Num cortejo de anseios e quimeras.
Tateia a treva de hórrido deserto,
Buscando pão e luz sem rumo certo
Desde os albores das remotas eras.

Entre sombras e espetros mutilados,


Ânsias de corações angustiados
Nas emoções de tétricos gemidos;
Embuçado na clâmide dos vícios,
O homem palmilha horrendos precipícios
Nas etapas dos séculos vencidos.

Dentro da treva, caminhando a esmo,

42
Hemetério Cabrinha - Frontões

Como o próprio fantasma de si mesmo


Em vis e duras alucinações;
Semeia a dor, o crime, o sofrimento,
Para, depois, num pesadelo lento
Colher as suas próprias ilusões.

Ronda sinistra de ódios e rancores,


Desatrelando turbulentas dores,
Espalha a maldição.
E a terra, em fogo a crosta mergulhando,
Vai seus dias de fel capitulando
Na horrenda combustão.

Virtudes, emoções e sentimentos


Aniquilam-se aos ímpetos violentos
Das trágicas paixões.
O justo, na justeza de seus atos,
Humilha-se qual Cristo ante Pilatos .
Entre apupos, calúnias e baldões.

Na poeira sangrenta dos tumultos,


Erguem-se estátuas, místicas e cultos:
Templos, altares, fórmulas e ritos.
E no resíduo das paixões infames,
O mundo será sempre em seus gravames
O degredo de espíritos malditos
Alcatéia de lobos famulentos
Cobaia vil de crótalos nojentos;
Espelunca de cães famigerados.
Tasca de vícios, lúbrica mansarda,
Onde o homem se avilta e se acobarda
Na volúpia de todos os pecados.

FILOSOFANDO

De nós mesmos depende o sucesso da vida,


Não podemos agir se o cérebro não pensa
Para as nossas ações há sempre a recompensa,
E um remédio eficaz para cada ferida.

A tendência é subir. Mas nem sempre a subida


Eleva a criatura. Ao contrário. É sentença
Que condena a consciência a uma tortura intensa
E obriga a quem subiu a escabrosa descida.

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Hemetério Cabrinha - Frontões

Dizem que o coração não mente mas . . . se engana:


O mais certo é a razão. Isso quando nos fatos
A lógica se impõe altiva e soberana.

E assim vivemos nós na luta dos extremos,


Julgando-nos enfim perfeitos, bons, exatos,
Mas nascemos chorando e chorando morremos.

POEMAS DO MEU AMOR PARA O MEU AMOR


Poemas de minha vida
Urdidos na minha dor.
Filhos da alma dolorida,
Poemas de minha vida
Feitos para o meu amor.

Componho-os no sofrimento
No prazer ou no amargor.
Filhos de meu sentimentos,
Componho-os no sofrimento,
Pensando no meu amor.

Escrevo-os cheio de mágoa


Nos momentos de amargor;
Com os olhos fartos de água,
Escrevo-os cheio de mágoa
Para exaltar meu amor.

Não há neles poesia,


Alma, beleza, fulgor.
Poemas sem melodia,
Não há neles poesia,
Mas há amor de meu amor.

Aves implumes sem ninhos


Numa campina sem flor.
Rolando pelos caminhos
Aves implumes sem ninhos
Em busca de meu amor.

Inexpressivos, vazios,
Sem sal, sem luz, sem sabor;
Retalhos d’alma sombrios;
Inexpressivos, vazios,
Mas cheios de meu amor.

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Hemetério Cabrinha - Frontões

Poemas de minha vida,


Retalhos de minha dor.
Ecos d’alma dolorida,
Poemas de minha vida
Feitos para meu amor.

ENCONTRO
Propenso a terminar minha jornada
Encontrei-te na curva do caminho.
Trazias a alma triste, desolada,
E eu desolado pelo mundo vinha.
Tinhas o aspecto da ave abandonada
E eu a aflição do pássaro sem ninho.

Ao teu encontro enveredei meus passos,


Ébrio de dor e tonto de agonia.
Procurando romper os fortes laços
Com que o destino às dores me prendia.
Tu, então me estendeste os momos braços
E me amparaste em me4o a penedia.

Falei-te das angústias violentas


Que um amor infeliz me inoculara.
Tu me falaste das torturas lentas
Com que a existência te mimoseara.
Eu tinha na alma a fúria das tormentas
E tu a branda luz de uma almenara.

Olhaste-me, sorriste-me, amparaste


Em minha vida estúpida e mesquinha
Eu fora a flor arrebatada da haste
Que só desprezos e repudios tinha.
Jóia perdida que encontrara engaste,
Para viver num colo de rainha.

E depois de amainada a tempestade,


E abafado o vulcão de agras torturas,
Surge em meu sonho a infelicidade
Que se escondera em tuas próprias juras.
Meu sol perde de novo a claridade
E eis-me outra vez em funda noite escura.

Sei que jamais encontrarei repouso


No declive fatal de meu caminho.

45
Hemetério Cabrinha - Frontões

Por que buscar felicidade ouso,


Se meu destino é caminhar sozinho?
Tu foste a ave que encontrara um pouso,
E eu serei sempre o pássaro sem ninho.

ENGANOS
Porque me deste sorrindo
Tantos beijos, tanto amor?
E agora de mim fugindo,
Em meu seio vais abrindo
Uma cratera de dor!

Teu amor foi meu Calvário,


Os teus braços minha cruz.
Teu coração, meu sacrário,
Teus lábios, meu breviário
E os teus olhos minha luz.

Enleado em teu cainho


Ocupei teu coração.
Hoje, tristonho e sozinho,
Sou um pássaro sem ninho,
Às tontas pela amplidão.

Vivi no teu pensamento


Como um sol de áureo matiz.
Eras o meu firmamento
E agora, no esquecimento,
Sou vaga-lume infeliz.

Estrela, — foste meu lume


Fui a fragrância da flor
Mas no horror deste azedume
Que vale a flor sem perfume
E uma estrela sem fulgor?

Deste-me rindo teus beijos,


E eu sorrindo dei-te os meus.
E agora em nossos desejos
Há apenas vagos lampejos
De uma saudade e um adeus.

Foste a santa de meu culto;


Fui teu trono, teu altar.
Mas hoje apenas teu vulto,

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Hemetério Cabrinha - Frontões

É simplesmente um insulto
Ao meu eterno lembrar.

Entre nós ambos a vida


Teve beleza e fulgor.
Eras amada e querida .
Hoje és estrela perdida
No abismo de minha dor.

IDÍLIO
Quando nós dois a sós nos encontramos,
As nossas almas lúbricas se beijam.
Rebentam rosas no verdor dos ramos
E aves em festa pelo azul voejam.

Tudo em tomo de nós desperta e canta.


Canta e desperta anseios e desejos.
A Natureza, a rir de amor, se imanta
Na glorificação de nosso beijos.

O sol tem mais fulgor, a lua encanto;


As estrelas mais brilho, a flor, fragância
E o nosso idílio emocionante e santo
Enche os espaços de emotivas ânsias.

Verdejam campos. Há prazer em tudo:


Rumorejam de amor fontes e lagos.
Franja-se o céu de alvissimo veludo
Para testemunhar nossos afagos.

E os nossos corpos, de prazer sedentos,


Saturam-se de gozos e desejos;
Cada vez mais estreitam-se violentos
Numa explosão frenética de beijos.

REGRESSO

Depois de longa e dolorosa ausência,


Novamente escontrei-te em minha estrada.
Tinhas a mesma graça, a mesma essência,
O mesmo escanto de mulher amada.

O olhar, cheio de luz e de indulgência;


A harmonia do riso, inalterada.

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Hemetério Cabrinha - Frontões

A mesma perspicácia e inteligência


E a candidez de santa venerada.

O mesmo gosto, a mesma evaneidade,


Mas . . - um resquício leve de saudade
Na alma onde a vide em sonhos se alcandora.

Tudo trazias de ti mesma . . . Apenas,


Para meu desconsolo, às minhas penas,
Só não trouxeste o mesmo amor de outrora.

ESQUECER

Esquecer? Como pode um desgraçado,


Um grande amor que na alma se entranhara?
Amor que me foi sempre uma almenara
No oceano da vida escapelado?

Esquecer? Iludir o próprio fado!


Trancar um coração que se escancara,
Para sentir a vida amena e clara
E o mundo menos tétrico e pesado!

Como pode esquecer quem, no tormento,


Encheu o coração e o pensamento
Desse eflúvio de amor que as almas trunca?

Impossível! Esquecer amor tão forte


Nem mesmo o anestésico da morte
Faz esquecê-lo para sempre . . . Nunca!

POR QUE NÃO DIZES?

“Quero-te muito bem;” sempre m’o dizes


Com doçura na voz e um certo encanto
Nos olhos que, de me fitarem tanto,
Abriram n’alma eternas cicatrizes.

E no amor de agudissimas raízes,


Que nos provoca a dor e o desencanto,
Ouço-te . Ouço-te e creio . . No entretanto,
Por que, “amo-te muito” não m’o dizes?

No dia em que teus olhos me fitarem

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Hemetério Cabrinha - Frontões

E os teus lábios em beijos conjugarem


Este emotivo e delicado verbo;

Deixarei de chorar, nos meus poemas,


A extrema dor, as aflições extremas
E a extrema angústia do viver acerbo.

RECORDANDO
neste alpendre nu, escancarado ao vento,
Que eu passei com você as horas mais ditosas.
Confundindo nossalma e o nosso pensamento,
Estreitando a sorrir as nossas mãos nervosas.

Pontilhava-se o céu de esferas luminosas;


E a luz a deslizar no azúleo firmamento,
Polvilhava de prata as cousas silenciosas,
- Testemunhas fiéis de nosso encantamento.

Você tudo esqueceu. Foi como folha morta


Que o vento arremessou ao pântano, esquecida
Da árvore que a gemer o vendaval suporta.

E eu de tudo me lembro: A jura fementida;


A ilusão que passou . . . Tudo me fere e corta
A alma e o coração por toda a minha vida.

TUDO PASSOU
Meu coração ao teu amor trancou-se,
A alma nem mais em teus afetos fala.
Meu castelo ruiu, desmoronou-se
E em mar de fel minha ilusão resvala.

Vestal: A tua lâmpada apagou-se;


Esqueceste afinal de alimentá-la.
A claridade em treva transformou-se
E a tua voz em meu silêncio cala.

Teu amor que era luz é sombra agora,


Flor que viveu apenas uma aurora,
Sem perfume,.incolor, flor esquecida.

Gota de pranto que ao cair sumiu-se,


Corda fidalga que ao tocar partiu-se
E nunca mais há de vibrar na vida.

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Hemetério Cabrinha - Frontões

ROMANCE ÍNTIMO

Não creio que você, depois de tantos anos,


Saturada de dor, vergada aos desenganos,
Sinta a mesma paixão
Dos tempos infantis em que ambos nós fruímos
A quadra mais feliz de enamorados primos
... Não é possível, não.

Você já padeceu bastante em seu destino.


Eu bastante sofri, ao léu, desde menino
Sofrimentos brutais.
O que existe entre nós, - falidos da esperança -
É apenas do passado o recalque, a lembrança
Saudade e nada mais.

Palmilhamos o mundo em negras paralelas.


Um, em busca do amor; outro, de cousas belas .
Ambos tristes e sós.
Você a recordar tolices do passado,
Eu buscando esquecer do momento impensado
O que houve entre nós.

É melhor esquecer, ou por outra, esquecermos


As tolas ilusões que já tiveram termos
Os tempos infantis.
Não lembre o que passou, vivamos do presente.
“O que os olhos não vêem o coração não sente
Procure ser feliz.

ANGUSTIADO

Silêncio tumular, nem mesmo o voz do vento


Traz de longe um sussurro, um gemido, um queixume.
Nenhuma estrela acende o cintilante lume,
Nem mesmo um vaga-lume
Fosforesce a bailar no meu isolamento.

Tenho medo de mim, de minha sombra inquieta


Agarrada a meus pés e a arrastar-se silente
Pelo quarto deserto. A projetar-se rente
Ao chão. Indiferente
À desconsolação e à minha dor de poeta.

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Hemetério Cabrinha - Frontões

A asa negra de noite estende-se friorenta


Sobre a minha tristeza amarga e dolorosa.
E a cada instante sinto e vejo, silenciosa
A visão radiosa
De quem, longe de mim, às noites me atormenta.

De alguém que no estertor da vida foi meu sonho;


Meu amor, minha luz e também meu Calvário.
E na fase melhor de meu destino vário
Foi o meu lacrimário
E a miragem ideal onde os meus olhos ponho.

Longe está, bem o sei, nunca mais hei de vê-Ia


Na vereda sem sol de meu padecimento.
Mas, grudada à saudade, vive em meu pensamento
Enchendo o isolamento
Desta noite trevosa e sem nenhuma estrela.

Infeliz de quem ama e vê-se abandonado


Nesta desolação em que me vejo agora.
Oprimindo no seio o coração que chora
Por quem se foi embora
Deixando dentro d’alma um abismo cavado.

Noite negra e sem fim; silente, tormentosa,


Em que o céu se assemelha a uma cratera imensa,
Aberta aos que não têm do amor a recompensa
E, numa angústia intensa,
Suportam, como eu, a vida tormentosa.

CUIDADO
Não me beijes assim, toma cuidado
Com essas bocas livres, maldizentes!
Teus beijos são demais fortes, ardentes,
E eu temo as consequências do pecado.

Quando te encontras, trêmula, a meu lado,


Mordendo os lábios finos e trementes,
Eu tenho medo que meus beijos quentes
Vão macular-te o escrínio imaculado.

Não me abraces assim . . . Teus braços belos


São dois sensualíssimos cutelos
Espicaçando minha carne em fúria .

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Hemetério Cabrinha - Frontões

Não te achegues a mim! Tenho receio


Que esse calor cheiroso de teu seio
Me arremesse aos abismos da luxúria.

AMOR ATUALMENTE

O amor, antigamente, era sublime enredo


Das nossas emoções. A cristalina taça
Onde a alma absorvia em místico segredo
Vinho de Hebe a sonhar, como divina graça.

Hoje, pobre do amor! É apenas um brinquedo


Que o capricho infantil quer e, após, o espedaça.
Fruto que se repele, aciduloso, azedo;
Romance emocional destruído pela traça.

Aquele grande amor de Fausto à Margarida;


De Saulo à Abigail . . . Amor que fora vida,
Hoje causa irrisão . . . Velharia sem nexos

Pois o amor atual é muito diferente:


Um olhar, um trejeito e um ósculo somente
Bastam para a expansão genésica dos sexos.

PARA QUE FALAR DE AMOR

Falar de amor a quem nunca sentira


A alma abrasada de paixão e anelo,
É o mesmo que falar de Arte, do Belo
Ao cego que jamais uns olhos vira.

Dizem que o amor no mundo é uma mentira.


Um sonho, uma ilusão, um pesadelo.
Mas o amor de Desdémona a Otelo,
Quem poderá cantar em sua lira?

Apenas a emoção, o sentimento;


O desejo da carne, um pensamento .
Tudo que vive no meu sonho imerso,

Cantarei para que alma em dor constante,


Qual pássaro cativo a mágoa cante
Presa à cadeia lírica do verso.

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Hemetério Cabrinha - Frontões

TÉRMINO

Chegamos afinal ao termo da jornada;


Exaustos, vendo ao longe aquilo que sonhamos.
E nos tropeços nus da longa caminhada
Só gemidos e pranto apenas encontramos.

Nem uma asa a ruflar, nem um ninho nos ramos;


Uma flor, um regato, uma alameda . . . Nada . . -
E a imagem do amor que de início almejamos,
Fugia a cada passo, e sempre inalcançada.

Partimos a cantar entre sorrisos francos.


Mãos dadas, alma alegre . . - Inteiramente alheios
À vida que tornou nossos cabelos brancos.

Chegamos afinal ao término da sorte,


Trazendo o coração dentro dos nossos seios
Entre os cardos da vida e os abismos da morte.

SEM TÍTULO
A alguém presa à minha vida

Corno seu riso engana facilmente!


Como seu pranto facilmente ilude!
Julgam-na um ser de angelical virtude,
No entanto tudo em si engana e mente.

Seu coração demonstra o que não sente;


Na alma, que jaz no físico ataúde,
Através de aparente angelitude
A maldade se acoita fundamente.

Mulher de dupla personalidade -


Quanto requinte de perversidade
Nos seus gestos beatíficos e amenos!

Jóia falsa guardada em róseo estojo;


Vaso que traz no lamacento bojo
“O mais letal de todos os venenos”

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Hemetério Cabrinha - Frontões

CAPRICHOS

Tudo passou em nossa vida, apenas


Uma cousa ficou para meu fado.
E, nestas horas de saudade plenas,
O desgosto de muito tê-la amado.

E como sofre o coração, coitado!


Desse amor infeliz as duras penas!
Basta lembrar aquilo que é passado
Para sentir o fogo das geenas.

Que ingênuo fora eu na vida, crendo


Em juras de mulher, não percebendo
O veneno que todas têm no riso!

Fechando o ouvido ao que a razão ensina


Deus, criando a mulher quase divina,
Deu-lhe primor, mas não lhe deu juízo.

IMPOSSÍVEL

Tudo esquecer procuro. Embalde - - . A mente em brasa


O espírito castiga. O corpo freme e eu sinto,
Na inquietude febril que na alma em ânsias vaza,
O acidulo travor de venenoso absinto.

Apuado pela dor, meu coração se abrasa


E, preso de emoção a um negro labirinto,
Tento abafar num riso a angústia que estravaza
Em vão. Ruge em meu seio, em desespero, o instinto.

Luto, padeço e busco a paz no esquecimento.


Tento esconder cantando o atroz padecimento
Que se maltrata e ensombra a minha vida inglória.

E quanto mais procuro esquecer tudo . . . tudo,


Sinto, na infernação do sofrimento agudo,
Verdadeiros punhais cravados na memória.

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Hemetério Cabrinha - Frontões

MALDIÇÃO

Repercutem na sombra os ais desesperados


Dos que amaram demais, e em seus amores loucos,
Prenderam-se à ilusão, pensando ser amados
E, cegos de paixão, se aniquilaram aos poucos.

Almas ébrias de dor, corações enganados,


Adocicando o fel nos seus gemidos roucos,
Vivem tristes e sós - . . Na angústia mergulhados
E na treva encontrando apenas duendes loucos.

Sorvendo o agro licor dos desenganos, erram


Na solidão, buscando um lenitivo, uma alma
Que lhes acalme o anseio e os sonhos que os aterram.

E no suplício atroz das dores que os inflamam,


Vão gemendo e pedindo, exaustos e sem calma,
A eterna execração do céu para os que amam.

ALMA ENTRE ESCOMBROS

Da existência a escalar ressaltos escarpados,


Agrilhoado à dor, aos sonhos, às quimeras;
Busco, em vão, percorrer mundos iluminados
Entre pompas de sóis e rútilas esferas.

Busco, embalde, vencer infinitas distâncias,


Para esquecer cantando emocionais ressábios.
E deixar pelo céu as doloridas ânsias
Que sufocam minha alma e morrem nos meus lábios.

Evolar-me . . . Alcançar estranhos infinitos.


Confundir-me na luz que tudo vibra e inflama .
E, caindo em mim mesmo, entre aflições e gritos,
Sinto que apenas sou um batráquio na lama.

E a cantar, e a gemer entre abismos e escombros,


Há milênios de dor, num Cáucaso de brasas!
Qual Atlas a trazer o mundo sobre os ombros;
Tentando alçar-me ao céu e me faltando as asas.

Cego, - buscando ver na escuridão profunda


Horizontes sem fim rasgados para a vida.

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Hemetério Cabrinha - Frontões

Só abismos encontro em lugar de subida.


E no anelo imortal que de sonhos me inunda,

Jamais alcançarei o luminoso cume


Dos meus desejos vãos e o fim de minha mágoa
Poderá ser estrela um triste vagalume
Ou pensar ser diamante um simples pingo d’agua?

Tudo anseia subir, galgar o inatingível


Ser falena ou condor ...Alçar-se à imensidade
Em busca de emoções...Porém eu ... Ai! de mim! O impossível
Em dores me retém à eterna ansiedade.

Tudo quer elevar-se às rútilas alturas;


Chegar à perfeição, tudo afinal anseia;
Mas no caos da existência, entre gozos e agruras,
Não passarei, jamais, de um simples grão de areia.

FIAT-LUX

Rompam-se os dogmas vis, os ídolos de barro


Com que a igreja-romana a crença comercia.
Precisamos limpar a nódoa deste escarro
Que à face de Jesus se atira todo dia.

O mundo já não tem da ignorância o sarro,


Para crer afinal nesta tome heresia.
Destruamos de vez este trono bizarro
E arranquemos da lama o Filho de Maria.

Fujamos desse deus metido a sete capas,


Monopólio imoral de bispos e de papas .
Ridícula expressão de excrescência moral.

Façamos ressurgir de nossa consciência,


Um Deus – Misericórdia, Amor, Perdão, Clemência,
Na sublime expansão da vida universal.

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Hemetério Cabrinha - Frontões

PRETO-VELHO

Preto-Velho está cansado,


Trôpego, exausto, sem fé.
Vem de longe acabrunhado,
Lá de Luanda ou Guiné
Já não sabe . .. Há quantos anos,
Um magote de tiranos
O trouxera de rojão,
No bojo esconso de um barco,
Como um batráquio no charco,
Nos ferros da escravidão.

Preto-Velho era menino,


Quando, em doirada manhã,
Alheio ao rude destino,
Brincava com sua irmã;
Três caçadores de gentes,
Naquelas paragens quentes
De sua terra natal.
Sorrateiros, se acercaram
Do preto e a irmã, e os laçaram
Como a qualquer animal.

Enlaçados, sacudidos
No fundo da embarcação;
Entre gritos e gemidos
De uma negra multidão.
E quanto mais se gritava,
Duro chicote vibrava
Nos lombos nus a doer.
Era um inferno fervendo,
Uns gritando, outros gemendo
Na agonia do sofrer.

Preto-Velho nem falava


Tinha medo, tinha horror.
Mas a sua alma chorava
No meio de tanta dor.
A sua irmã, coitadinha!
Chorava a triste mãezinha
Que lá na terra ficou
A enfrentar mil empecilhos,
Chorando a falta dos filhos
Que o mundo lh’os arrancou.

57
Hemetério Cabrinha - Frontões

Lá veio o preto a estas plagas


Sem ver o céu nem o mar.
Entre gemidos e pragas
E o chicote a azorragar.
Até, que um dia, tristonho,
Qual se desperta de um sonho
Num tremente frenesi;
Nas praias de Caravelas,
Vendo estas terras tão belas,
Pediu a morte a ZAMBI.

ZAMBI nem lhe dera ouvidos,


Havia que ser assim.
Preto-Velho, entre gemidos,
Tinha que chegar ao fim.
Sofrer sempre humilde e manso,
Trabalhando sem descanso,
Para o “senhor” enricar
Enquanto o chicote estala,
No terreiro da senzala,
Fazendo a pele sangrar.

Sua irmã, pobre menina!


Sendo vendida em leilão,
Cumprindo terrível sina,
Nunca mais viu seu irmão.
Dizem, no entanto, que cedo,
Presa de vergonha e medo
E a soluçar de pudor;
Da honradez foi-se-lhe o brilho,
E logo nasceu-lhe um filho
Do filho de seu “senhor”.

Como sofreu Preto-Velho


No inferno da escravidão!
No cepo, tronco ou no relho,
Dor de cortar coração!
A irmã, depois do parto,
No seu negro seio farto,
Duas gerações nutriu.
Até que um dia, esgotada,
Com a pele cobrindo a ossada,
Na senzala sucumbiu.

Hoje lhe tecem louvores,


Só porque não vive mais.

58
Hemetério Cabrinha - Frontões

Se ainda vivesse, outras dores


Lhe trariam novos ais!
Tudo passou, é verdade,
Veio o sol da liberdade,
Na aurora da Redenção.
Mas, neste mundo sem regra,
Basta ter a pele negra
Para ter a maldição.

Preto-Velho já não presta...


Só presta para morrer.
Nada do mundo lhe resta,
Não paga a pena viver.
Teve alforria, no entanto,
Ainda o maltratam tanto
Por ter a cor negra e vil
Mas sirva de eterno espelho,
O sangue do Preto-Velho
Está na alma do Brasil.

ITATIAIA

Pés fincados no solo. A fronte no Infinito,


Engrinaldado em neve o pico de granito,
A ITATIAIA afronta o tempo e a imensidade
Soberba de verdor e suntuosidade.
E entre ocasos e albores,
Oferecendo o seio às águias e aos condores,
Assiste, indiferente, à miséria de um povo

Em plena evolução do Continente novo.


Dos seus altos platôs, o olhar identifica,
Embaixo, a vastidão da gleba verde e rica
Entravada à inação de um povo triste e pobre
Cuja vida infeliz o seu orgulho encobre.
E onde, em ondas de luz, sugando negra teta,
Castro Alves sonhou, nos braços de “Mãe-Preta”,
Que este imenso país
Nasceu para ser livre, estupendo e feliz.
Berço eterno de heróis, de gênios e de bravos,
Sem feudos imorais, sem senhores e escravos.

Galguemos, minha Musa, os ressaltos cavados


E vamos contemplar, dos píncaros enevoados,
Toda a imensa extensão da terra fértil e boa,

59
Hemetério Cabrinha - Frontões

Que à nossa ociosidade, humilde se agrilhoa.


É longa a caminhada, escarvado o caminho

Mas o ruflar de uma asa e a candidez de um ninho


Não nos devem chamar o olhar às cousas fúteis
Nem o nosso sentido ás emoções inúteis.

Subamos mais um pouco e, do alto chapadão,


Olhemos o Brasil, sangrando o coração.

Não ouves o estertor de alguém que a dor aguça?


Escuta, minha Musa, é a terra que soluça,
Aos homens implorando enérgicos cuidados -

Quantos arranha-céus e os campos deslavrados!

Quanta gente faminta e quanta terra inculta


Aos nossos olhos cresce e, esplêndida, se avulta,
Esperando, a fremir, amor e semeadura,
Para dar à Nação alegria e fartura!
Olha aquele estendal ensolarado e agreste!
Vê que desolação! Ali fica o Nordeste,
Onde um sol causticante energias consome
E uma coorte de heróis vive a morrer de fome.
Sangrando os pés na estrada e o coração nas dores
Em busca de ventura e só achando horrores.

Naquela outra porção de terras negras, feias;


Naquele ponto estão as minas de Candeias.
Ali jorra o petróleo, - o sangue brasileiro
Que estão a oferecer de esmola ao estrangeiro
Esmola que será, em nossa compreensão,
A nossa decadência, a nossa servidão.

Olha aquele volume imensurável d’água!


Despejando-se ao léu, direito nossa mágoa;
Rolando sem cessar em seu trajeto esconso
Aquilo ali, amiga, aquilo é “Paulo Afonso”;
Esperdiçando força, energia, potência
Que nos podiam dar riqueza, independência;
Qual gigante imortal à nossa inércia preso,
Ali vive a rolar num secular desprezo.
Soberbo, colossal em seu triste abandono
Esperando o acordar do criminoso sono.

Naquela sena, ao longe, erguida em chão vermelho,

60
Hemetério Cabrinha - Frontões

Estão a estrangular a alma de “Morro-Velho”.


Tesouros a granel, dados para Inglaterra
Que há tanto tempo está esburacando a serra;
Arracando de lá todo o oiro que é preciso
Em troca de um desdém, de um insulto e um sorriso
À nossa ignorância, à nossa displicência
De povo sem vontade e sem independência.

Agora olhemos bem destes saltos lavrados,


O cortejo espetral de corpos mutilados
A gritarem por Deus sem que a dor os represe
Aquilo, amiga, são os heróis de Montese;
Pedindo teto e pão aos que ficaram rindo,
Vendo, além, seus irmãos a guerra destruindo.
Numa luta infernal, qual no tempo de Tróia,
Para ganharem quê? Uma cova em Pistóia.

Aquela outra legião que na selva se agacha,


Sem norte e sem destino? É o “Exército da Borracha”:
Trapos de homens sem pão, sem saúde e sem nome
Atirados ao léu, nus e mortos de fome.
Enquanto nos bordéis, seus donos, seus patrões,
Numa orgia capril, vão gastando aos milhões.

Vê aquele planalto em nevoeiros densos ?


sob aquela cortina, há cafezais imensos,
Plantados ao rigor de estúpidos feitores,
Para encher de milhões a bolsa dos senhores

Se a produção supera a falta do mercado,


Aos olhos da Nação o café é queimado,
Para alcançar bom preço. Enquanto um povo inteiro
Se priva de prová-lo à falta de dinheiro.

xxx
Descansemos um pouco, enquanto a alma se ajusta
Às impressões sutis desta gleba robusta

A impressão, por maior que seja, exalta e aviva


A fibra emocional de nossa retentiva.

Subamos mais ainda ao ressalto mais alto,


E sob a frigidez deste céu cor-de-asfalto,
Olhemos adiante!
Além daquele mar que se agita distante . .

61
Hemetério Cabrinha - Frontões

Deixemos a visão que nos enerva e abisma...


fixemos nosso olhar agora noutro prisma

Não tremas, minha Musa! É tão suave o outono!


E agora vou mostrar-te uma terra sem dono;
Um solo tão fecundo
Que hoje devia ser o celeiro do mundo

A Amazônia...
A lendária e soberba Amazônia
Coberta de labéus, de injúria, de felônia
Onde vive a gemer na selva abrutalhada
Uma gente infeliz, exausta, atormentada
Pelo deprezo atroz e angústia impenitente
Que os lobos da Nação lhe votam rudemente.
Arracando-lhe mais O esforço que a consome,
Para empapar de gozo outras terras sem nome...

Não chores, minha Musa, o pranto não conforta


Quem de há muito sentiu toda a esperança morta.

Lá, naquele rincão de vegetais tão grandes,


arrasta-se um titão, trazendo, lá dos Andes,

Calemos, minha Musa, emudeçamos juntos


Que vale este esplendor? Estes belos conjuntos
De paisagens pagas numa gleba sublime,
Se é bárbaro, cruel e o mais acerbo crime,
Deixar ao abandono uma gente infeliz
Morrer de inanição num faustoso país!
xxx
Calemos por enquanto. A noite já se ensaia.
Deixemos a cismar a velha ITATIAIA,
Muda, impassível, só, nestas tardes de abril,
Até que um dia possa acordar-se o Brasil.

O anseio tropical de um mundo a desbravar-se


E, em seu curso eternal, a bater-se, a arrastar-se
Nas barrancas sem fim, proclama ao mundo hostil
Que a Amazônia por si vale todo o Brasil.

62
Hemetério Cabrinha - Frontões

VISÕES
A história da humanidade apresenta fases
bem terríveis que só se pode encarar com
horror ou com um sentimento de piedade.
Rossi de Giustiniani
I

Noite de angústia, tenebrosa noite


Num velho casarão abandonado.
Silvando o vento no seu frio açoite
E eu, doente, a gemer angustiado.

Forte febre violenta, aguda, ardente,


Anestesia-me a noção do mundo.
E num delírio exótico, profundo,
Visões terríveis passam pela mente.

Há no meu cérebro um vulcão tremendo


De ideias rubras, trágicas, impuras.
E na explosão de todas as torturas
Meu corpo esguio vai se entorpecendo.

Na agonia da febre, no delírio,


A garganta mordendo-me de sede;
Eu vejo, sob a ação de atroz martírio,
Sombras dançando, magras, na parede.

Sombras hienais, humanos trapos pretos;


Bocas ganindo, rubras, descamadas;
Quebradas tíbias desarticuladas;
Jogadas para um canto entre esqueletos.

Fantasmas de asas igneas, envolvendo


Formas sem luz, sinistramente hediondas,
Rompendo a treva num furor tremendo
Enchem meu quarto de sinistras rondas.

Vultos enormes, lívidos e brancos;


Corpos sem almas, nuns lascivos trotes;
Em terríveis e bárbaros arrancos
Vibram no espaço estrépitos chicotes.

Reis e profetas, sátiros e bobos,


Rasgando as vestes digladiam nus;
Numa fúria nevrótica de lobos,

63
Hemetério Cabrinha - Frontões

Em defesa de tronos e tabus.

Na ardentia das células doentes


Tenho a impressão de estar no próprio inferno,
Sorvendo em fogo o mais letal falerno,
Sentindo em brasa os olhos meus ardentes.

Vem-me à garganta aciduloso travo


Que nas esponjas salivares arde.
E na perplexidade de um cobarde
Noutras negras visões os olhos cravo.

Queima-me a febre. O corpo inteiro treme,


E no delírio trágico da febre,
Eu me comparo a um magro cão que geme
De fome e sede à porta de um casebre.

Vejo passar em procissão sinistra,


Nas perturbadas células dementes,
Almas aflitas, corações frementes,
Vultos que a história, célebres registra.

Arquejo, tremo, desespero, grito,


Enquanto em derredor tudo repousa,
E as estrelas refulgem no infinito
Como cravos de prata numa lousa.

II
Amargo transe. A febre continua
E o meu delírio é cada vez mais forte.
Intensa dor meu coração apua
Qual se tivesse me chegado a morte.

Sinto em meus nervos ríspidas torqueses;


Fortes anéis em brasa nas falanges.
E na emoção dos mórbidos reveses
Pareço estar entre milhões de alfanges.

Sinto que a morte em fortes arreganhos,


Ronda-me o leito cobiçosamente,
Dando-me ao corpo aspeto de um demente
E ao coração mil ímpetos estranhos.

Entre fantasmas e visões, volvendo


O olhar incerto na extensão do teto;
Mais uma outra ilusão, um outro aspeto,

64
Hemetério Cabrinha - Frontões

Em novos quadros continuo vendo.

Vejo, por entre catacumbas frias,


Os primeiros cristãos, de alma serenas,
Sofrendo as mais agudas agonias
Diante da morte horrível das arenas.

Lígia, sorrindo de olhos para o Alto,


Jungida a pesadíssimas galés;
Sem ver a fera que num rude salto,
Aplaca a fúria e vai lamber-lhe os pés.

Na febre, tudo em negra ronda, passa:


Figuras ancestrais que desconheço.
E de olhos vítreos que o delírio embaça
Chumbado à minha febre permaneço.

Sinto náuseas de tudo. O próprio quarto


Tem de eloaca o mesmo cheiro e aspeto.
Dando a impressãde haver ali um feto
Que há seis dias morrera após o parto.

III
A noite avança. Tudo em torno dorme.
E em minha febre estúpida, violenta,
Doi-me a cabeça e, nesta dor enorme,
Tenho a impressão que o cérebro rebenta.

Num refolgar de intérmino cançaso,


O peito, arfando, diminue e cresce.
O corpo dói-me tanto que parece
Estar passando entre dois rolos de aço.

Mais um forte torpor me envolve e mente;


A dor em meu delírio se adelgaça.
Na ardentia da febre, novamente,
Vejo uma outra legião que passa.

Nero, rasgando o ventre de Agripina


No desespero dos alucinados.
Juliano, a exprobar em altos brados,
O corpo magro para os céus empina.

Miriam de Migdal, em doida fúria,


Ébria de gozos, rodopia e cai;
Cessa o furor da carne e da luxúria,

65
Hemetério Cabrinha - Frontões

Para beijar os olhos de Talmai.


...
Dói-me a cabeça, - esse maldito odre –
E em meio das visões desengonçadas,
Eu vejo Salomé às gargalhadas
Beijando ansiosa uma cabeça podre.

Herodia, a tremer fria de espanto,


Ante a sinistra e bárbara conquista;
Cair de joelhos, num profundo pranto,
Para beijar os lábios de Batista.

Samaritana o cântaro quebrando,


Para morrer de sede e de cegueira
Iskirió, uma canção cantando
A se embalar num ramo de figueira.

Num ambiente de nuanças várias


Que só misérias e terror contém,
Simão - leproso - aliciando párias
Entre as muralhas de Jerusalém.

Simão-Pedro a estreitar de encontro ao peito


Estropiados, cegos e leprosos.
A todos dando o mesmo teto e leito
E o pão dos sentimentos caridosos.

Acabrunhado, num tremendo assédio,


Vejo Estêvão, irmão de Abigail,
Tombar perante Saulo, no Sinédrio,
Apedrejado qual rafeiro vil.

E como quem se arroja num abismo,


Rasgando o corpo em venenosos cardos;
Grudado ao meu terrível paroxismo,
Pareço estar entre milhões de fardos.

E na alta febre que meu corpo assanha,


Numa tortura de dorosas provas,
Parece que anda em mim mostruosa aranha
Desensacando mil aranhas novas.

Tal agonia que meu corpo abala


Dentro da noite tormentosa e crua .
Enquanto pelo céu palpita a lua
Como se fosse uma âmbula de opala.

66
Hemetério Cabrinha - Frontões

IV
Abatido, cansado, pesaroso,
A lucidez me vem por um momento;
Enquanto um infeliz tuberculoso
Tosse ao lado a gemer noutro aposento.

E ouvindo aquela tosse miserável


Estremecendo o casarão vazio,
A minha febre estúpida, implacável
Aumenta e vem de novo o desvario.

Delirando ainda mais, os olhos ponho


Noutras visões febris que me desolam.
E como se sonhasse horrendo sonho,
Outras cenas de horror se desenrolam.

Vejo na escuridão, qual numa ardósia,


Ventres sangrando cje luxúria e vício;
Quais fossem de Vestais em sacrifício,
No leito impuro da infeliz Marósia.

Ana Oston, agarrada a Xisto V


Sob o dossel de lúbrico zimbório,
Entronizar-se num soberbo plinto
sob o olhar de Paschino e de Marfório.

Vejo mais: Bose Sforce, salivando


A cara imunda de Alexandre VI
Júlia Farneze, renegando o incesto;
Paulo III de vergonha uivando.

Xisto IV, qual Judas, recolhendo


Os “Júlios” de oiro dos bordéis de Roma,
E licenças indignas concedendo
Para a expansão dos atos de Sodoma.

Impulsionado pelo vicio e astúcia,


Ante o mundo de escândalos perplexo:
O loiro cardeal de Santa Lúcia
De ordem papal busca inverter o sexo.

Diviso a França ensangüentada e langue,


No martírio brutal que a enrubesceu.
Vendo seu povo sobre um mar de sangue
Na noite vil de São Bartolomeu.

67
Hemetério Cabrinha - Frontões

Etiene Dolet, queimado vivo,


Injustiçado em criminosa trama.
Joana d’Arc, num gesto decisivo,
Morrer sorrindo ao crepitar da chama.

Num recanto incolor, quase apagado,


Vejo, desnudo de expressão a luz.
Dentro de um templo, bestializado,
Voltaire quebrando a imagem de Jesus.

Lábios em fel, sem ter quem os adoce;


Almas buscando o amor que as abandona;
A história a transmitir a Emilio Bóssi
As narrativas de Simão bar Jona.

Da Vince a gargalhar de Alighieri,


Numa doida e sarcástica ironia
Beatriz a se estorcer de beribéri,
Diante do riso de Madona Mia.

Sacerdotes mentindo o sacerdócio


De amor e caridade o santo misto.
E se entregando á cupidez, ao ócio,
Vão maculando a candidez do Cristo.
...
Desesperada febre, por que trazes
À minha angústia que de dor se tinge,
Estas visões terríveis e capazes
De fazerem tremer a própria Esfinge ?

V
Como um vulcão flamífero rugindo
Em minha trágica alucinação,
Ouço vozes de horror repercutindo
Nas entranhas da terra em maldição.

Vozes malditas, tenebrosas vozes


Articuladas num furor de guerra,
De almas alucinadas e ferozes
Que empaparam de sangue toda a terra.

Vozes de quem, na escuridão, procura


Um revérbero pálido de luz.
E nos crivos da angústia e da tortura
Rola entre abismos e penhascos nus.

68
Hemetério Cabrinha - Frontões

Vozes dos que morreram sem família,


Sentindo na alma venenosa farpa.
Assim como morreu Santa Cecília
Agarrada aos bordões de sua harpa.

Vozes eternas, desferidas longe,


De alguém, talvez, que na amplidão se interne,
De quem em vida celular de monge
Morrera cego como Mont’Alverne.

Sinfonia de bárbaros lamentos


De loucos Prometeus acorrentados.
Desesperos de eternos sofrimentos,
Agonia de corpos mutilados.

Ranger de guilhotinas funcionando,


E no vai-e-vem de seus cutelos finos;
Em milhares de cestos despejando
Cabeças de milhões de Girondinos.

Gritos de quem, na. fúria das tormentas,


Atira para os céus labéus profanos.
Rosnar de feras doidas, famulentas
Estraçalhando corações humanos.

Ais compungentes de milhões de escravos


No bojo esconso de veleiro imundo.
Trazendo nalma dolorosos travos
Para a maldita formação de um mundo.

Desvairamentos de almas tribuladas,


Presas a um mundo de misérias farto.
Agonia de mães envergonhadas,
Matando os filhos logo após o parto.

E todo este cortejo desgraçado


Envolvendo os espetros que contemplo,
Ecoa no meu cérebro cansado
Qual se fosse na acústica de um templo.

VI
Não mais querendo ouvir terrível onda
De ecos e gritos ensurdecedores;
Vejo, entretanto, outra sinistra ronda
De miseráveis seres sofredores.

69
Hemetério Cabrinha - Frontões

Cortejo horripilante de criaturas


Vergadas ao capricho e ao desdouro
Daqueles que, presumem, nas venturas,
Que o mundo é apenas para quem tem ouro.

Crianças cadavéricas e pálidas,


Chorando à míngua em lares desgraçados;
Mães infelizes de feições esquálidas
Morrendo a fome à porta dos Mercados.

Virgens que a fome e a desnudez consomem


E a maldade do mundo as insinua.
O corpo vendem ao primeiro homem
Que lhes acena no dobrar da rua.

Homens que no trabalho se exgotaram


E deram seus esforços mais fecundos.
Homens cujos pulmões se aniquilaram,
Gemem nos catres de hospitais imundos.

Prostituta que o vício a fez inerme,


Contagiando incautas gerações,
Com o sinete de Hansen na epiderme
E os bacilos de Koch nos pulmões.

Mãos que esculpiram finas obras de arte


E ergueram para o céu babéis imensas;
Estendem-se a pedir por toda a parte
Esmolas frias como recompensas.

Apóstolos-do-Bem, da liberdade;
Da justiça, da paz. . . almas amantes
Negam do Cristo a rútila bondade
Para matar de fome os semelhantes.

Sardanapalos capros, impudicos


Nos braços sensuais das Hetaíras;
Em leitos de cetim, alvos e ricos
Vão construindo um mundo de mentiras.

Esplêndidos trigais loiros e novos,


Incendiados na escassez do pão
Homens, pregando a paz, mostrando aos povos
Armas terríveis de destruição.

70
Hemetério Cabrinha - Frontões

Campos imensos, criminosamente


Na improdutividade conservados,
Chorando a falta de vital semente
E os primeiros afagos dos arados.

Camponeses sem lar que a fome insulta,


Morrendo à míngua em feros abandonos;
Sem poderem lavrar a terra inculta,
Por vontade e capricho de seus donos.

Sábios que consumiram a existência,


Debruçados nos livros, nas retortas,
Jazem no esquecimento, de almas mortas,
Porque os nulos lhes roubaram a ciência.

Cortejo imenso a esmo, sem destino,


Contemplo em crudelíssimas pelejas,
Chorar de fome à porta dos cassinos;
Tremer de frio no adro das igrejas.

Criaturas raquíticas, sem nome,


Gritam, cravando os dentes na parede:
“Dai de comer àquele que tem fome!
“Dai de beber àquele que tem sede”.
...
Desperto, enfim, sentindo nas artérias
Estranha pulsação que me desola.
Enquanto num cortejo de misérias
O mundo em chamas entre abismos rola.

71
Hemetério Cabrinha - Frontões

SATAN

É lei do mundo. . . Não há planta que esta geada não


creste; flor delicada que este sol não murche; árvore
robusta que este furacão não derrube; rochedo duro que
este raio não lasque!.
Francisco B. da Silva Malhão (Exéquias do Conde de
Barbacena)

Ao ilustre e generoso espírito de Ildefonso da Silva Pinheiro


a quem devo a publicação da primeira edição do presente
trabalho.
O Autor
1
Rasga-se em fundo abismo a umbela do Infinito.
Fragmenta-se no espaço um turbilhão de mundos.
No côncavo do céu, rebarbas de granito
Rolam, turbilhonando em rápidos segundos.

Ruboriza-se o azul - - Nuvens em labaredas


Passam purpurizando a abóbada candente
E o eco de mil trovões, em marteladas tredas,
Ribomba, atroa, estala e estronda impenitente.

Relâmpagos, cortando o vácuo em fúria horrível,


Retraçam na amplidão esmerilhantes rastros.
E o Espírito de DEUS, potente, inatingível,
Rege, passivo e só, o esboroamento de astros.

De súbito, a faiscar por entre as nebulosas,


Embebida no horror de estranho paroxismo;
Uma gota de luz, em chispas luminosas,
Cintila, tremeluz e vai cair no abismo.

Para o findo da Geena assoberbante e vasta,


Rebolada ao fragor de uma fúria pagã;
Essa aresta incendida em seu trajeto arrasta,
Envolta em seu destino, o gênio de SATAN.
Gênio que humana crença amolga e retempera,
E a hereditariedade endeusa e perpetua
Fluido potencial que exalça e degenera,
E vibra, e freme, e agita, e na maldade atua.

II
SATAN, - o estardalhante espírito lendário -

72
Hemetério Cabrinha - Frontões

O eterno condenado a provações tremendas;


Na terra faz-se um deus, mas um deus ordinário,
Na glorificação de uns cem milhões de lendas.

Filho do hiperbolismo e da surpotência,


Rebalsado do Céu num desespero torvo.
Na aparência possui angélica aparência,
Mas no seio retém um coração de corvo.

Rebarbativo e cruel; hediondo e furibundo;


Estorvado, grotesco, horripilante, astuto;
Penetra a humana vida e, no embrião do mundo
Lança a semente vil de apodrecido fruto.

Espalha em tudo a seiva odiosa e fecundante


Do mal que vitaliza as glórias e as torturas,
E onde, latente, viva, acesa, exuberante
Debucha-se a expressão das gerações futuras.

Protervo. canibal, preponderante, crasso,


Se arroja alapardando às almas cristalinas.
Como um gozo pagão num coração devasso,
Como um verme a crescer sob um montão de ruínas.

E lascivo, e carnal, em pensamentos loucos


Protervando o pudor de tentações enormes;
SATAN, capro e revel, vai se embebendo aos poucos
Na alma molecular das cousas multiformes.

Laçando em cada instinto a sua essência impura;


Libidinando o Bem que a alma do bom conforta.
E estardalhante, e atroz, na almas se mistura
“Como um sol tropical numa paisagem morta”.

Macula a virgindade, enodoa a inocência;


Arrasta à podridão as almas desgraçadas.
E no eterno furçr da humana efervescência,
Faz de DEUS um pierrot, cantando às gargalhadas.

Um lúbrico fremir de tentações bastardas


Retempera-lhe o instinto e os músculos vitais.
E depletivo e mau, EBLIS, nas horas tardas,
Lança-se à combustão de horrendas bacanais.

Ora fraco e humilhado, ora arrogante e forte,


Ora elevado ao Céu em mudos misereres.

73
Hemetério Cabrinha - Frontões

E assim vai pela vida a gargalhar da morte,


Lançando a maldição no ventre das mulheres.

Da alma projecial da ALTISSÍMA GRANDEZA


Surge o esboço pagão da geração primeira.
Carnaliza-se o amor, triunfa a Natureza
No corpo virginal e superbelo de Eva.

Confundem-se num abraço estreito, extasiante,


A castidade e o espasmo, o anelo e a recompensa.
Faroliza-se o amor, supremo, fecundante,
Como um cancro de luz num cérebro que pensa.

Fermenta-se o oceano em doidas bordonâncias;


Diafaniza-se o Azul no luminoso espaço;
Anda um gozo secreto em todas as distâncias,
Na agonia triunfal do espasmo e do cansaço.

Lateja o sangue em flor de um volúpia nova;


O Amor em gestação dentro da carne fica;
Na essência de Caim que a alma do Bem reprova,
SATAN se enrija e cresce e se corporifica.
Triunfa o ventre de Eva. . . A gestação termina -
Rebenta o amargo fruto estéril, venenoso.
E Satan, de alma em febre, ardente, libertina,
Se enerva e se humaniza, astuto e vitorioso.

Fuzila o olhar de abutre, horrífico, execrando,


A gargalhar de DEUS alucinado, doudo;
Renega a Vida, o Amor e, se ferificando,
Blasfema, ruge, grita e se remorde todo.

Tenta erguer para o Céu as mãos tintas de sangue;


Tenta tudo impregnar da raiva que o deprime;
E num desvairamento acabrunhante e langue,
Range os dentes, perpetra o hereditário crime.

E a boca em praga, o olhar em fogo e a mente em lava.


Conturba-se no ardor de seu sonho de lesma;
Sentindo em seus desdens a Humanidade escrava
Da eterna servidão hedionda de si mesma.

Fazendo de Jeová um divino mostrengo,


Fonte de execração, de protérvia, de injúria;
Um clow degenerado, um simples mamulengo
Movido á exaltação da carne e da luxúria.

74
Hemetério Cabrinha - Frontões

E assim, a blasfemar, luxuriante e maldito,


Estonteado ao furor de seus anelos feros;

SATANÁS, salivando a face do Infinito,


Embala-se a fremir no coração de Ahsveros.

Assiste o desdobrar da idade quaternária


Em que o homem se amolga em ascensões e quedas.
Revigora a maldade em seu prazer de pária,
Para se entronizar na exaltação dos Vedas.

Vê rebentar da lama, imorredoira, austera,


A alma das gerações em surtos soberanos
Em que seu gênio vil se labirinta e impera
Na desesperação dos crótalos humanos.

Vê Babilonia erguer-se esbelta, imperativa,


Dando ao Egito a expressão da vaidade hodierna;
A Grécia a se exaltar, vestalizada e viva,
Na concretização de uma beleza eterna.

Transcende a nostalgia eterna dos Etruscos


E, na alucinação que o próprio DEUS não doma,
Vem, desvairado e mau, seus desesperos bruscos
Lançar no coração da alucinada Roma.
E aí, permanecendo entre a loucura e o ódio,
Para a transformação de Roma rediviva,
SATANÁS interpreta o mais negro episódio
Que a alma das gerações imortaliza e aviva.

IV
Esbraseia-se o ar. . . Terríveis, bordonantes
Repercutem na terra estrondos infernais
Lavra a agonia, a dor e, aos gritos lancinantes,
Roma se desmorona em rubras espirais.

Recaldeia-se o Céu; carboniza-se a terra


E, no tonitroar desse exasperamento,
Nero, ridente e só, empunha a lira perra,
Enquanto SATANÁS, nesse desvairamento,

Gavrocha, salta, ri, Sontiboleia, freme


Na macabra expressão de um superdeus protervo.
E rende, e prostra, e abate a multidão que geme
Como um fero leão que se tomara servo.

75
Hemetério Cabrinha - Frontões

Num panteral delírio atordoativo, infrene,


SATAN, sensualizado, exulta e predomina.
Zomba da ONIPOTÊNCIA e, num raivor perene,
Retalha a cada instante o ventre de Agripina.

Ergue o punhal que há pouco o coração de Nero


Atravessou rangindo em sanguíneo prazer.
E num tom bestial, num mudo desespero,
Crucifica Jesus e fuzila Ferrer.

Floreia a espada fria, em cuja aguda ponta


Juliano tombou mordido pela fé;
Acendendo no mar da humanidade tonta
A volúpia imortal de louca Salomé.

Bestializa a dureza austera dos Augustos,


Diante da carne em flor de lascivas Frinés.
E retesando, alegre, os músculos robustos,
Condena o Justo, o Bom a pesadas galés.

Condena Zaratustra, inferna Iskariotes,


- Esse irmão de Jesus na harmonia dos céus -
E na exasperação de espertos dons Quixotes,
Faz de Lucrécia um papa e de Alexandre um deus.

E no agro turbilhão da carne e da miséria,


SATAN, concretiza em seu furor fecundo,
Transforma-se num deus, toma uma forma aérea
Na glorificação caótica do mundo.

V
Congloba-se num rir toda a maldade humana;
Leoparda-se num olhar toda a humana bondade
A alma quejulga ser potente, soberana,
É como um ponto de i dentro da imensidade.

Para sentir-se luz, é necessário sombra.


O Amor tudo produz - . . fecundos e infecundos.
Quantas vezes do pó de um mundo que se escombra
Vem a ressurreição e a glória de outros mundos ?

A dor que punge e humilha; exausta e desespera;


A alma que faz um monstro um anjo também faz.
Na hiperbolização da divina quimera
O Amor que fez Jsus, fez também SATANÁS.

76
Hemetério Cabrinha - Frontões

Molécula vital de tudo quanto o homem -


Produz e reproduz em seus anelos vãos.
E sem que os ódios cruéis de Jeová o domem,
Sente o mundo a rolar dentro de suas mãos.

Endeusando o prazer e conglobando em torno


Dos seus feros desdéns as cóleras do ETERNO.
fazendo de seu EU hiperlatente e momo
A delícia triunfal deste bendito Inferno.

Onde a moral se enrija e se soberaniza,


Confundindo o infinito aos lapsos do finito.
E em que, vinda de DEUS, a alma se camaliza,
Para se transformar num crótalo maldito.

XXX
SATAN - gênio revel que os séculos arrastam
À retransformação das gerações futuras;
Um dia sonharás os sonhos que se engastam
Na auréola divinal das grandes almas puras.

Um dia abafarás em tua transcendência


Esse horrendo vulcão que te estonteia e oprime.
Porque DEUS provará um dia de tua essência
E serás para sempre o espírito sublime.
Brilharás como o sol após uma neblina.
Viverás como DEUS - a Suprema Verdade -
No impensado prazer da harmonia divina,
Puro como Jesus por toda a Eternidade.

XXX
E tu, ó “Besta humana”, hidra que ao seio tranca
Um doido coração repleto de heresia
Tira, suspende, extrai. desatarracha, arranca
A máscara brutal da megalomania!

Concretiza em teu sonho a bondade infinita,


Ó crótalo nojento, á desgraçada lesma!
Retempera esse instinto, acalma essa alma aflita
Na manifestação grotesca de ti mesma.
...
Se DEUS lançou em tudo esse imortal resíduo,
Deixou ao Homem o Céu escancarado e nu
Se existe um gênio mau dentro em cada indivíduo,
Ó torpe Humanidade, o SATANÁS és tu.

77
Hemetério Cabrinha - Frontões

CAIM

Homem! Monera vil que raciocina e pensa!


Prometeu da ilusão nos dédalos da vida;
Para onde vás tu, nessa tortura intensa,
Engolfado no ardor pueril de tua crença
De galgar pela força a íngreme subida?

Para onde vás assim, nessa vertigem rude,


Palmilhando do ignoto as dolorosas metas?
Sem um bastão de luz que a tua sombra escude,
Tendo a ambição por guia, o crime por virtude,
E por gozo a expansão das cóleras secretas?

Onde pensas chegar, Belibé sem mansarda,


Atirado ao camarço infrene da loucura?
Despercebido enfim da hora que não tarda,
Ante a qual todo ser, perplexo, se acobarda,
Vendo que a própria sombra o estorva e desventura?

Que procuras na caos ardente em que te afundas?


No infinito escarpado horrendo que solapas?
As pérfidas visões de teu instinto oriundas,
Filtradas na explosão dessas paixões fecundas
Afogam-se no fel das avernais etapas.

Semeador de ódios, confundido


No extremo ódio que aflições semeia;
Por mais que busques do desconhecido
Transpor, de um salto, a luminosa ameia;

Jamais conseguirás! Incompreendido


Lutarás como o inseto em fina teia;
Debatendo-se em vão e, após, vencido,
Sucumbe na fragílima cadeia.

Jamais alcançarás, dentro do abismo,


As altitudes brancas do Himalaia
em seu eterno e mudo paroxismo
*
Pára, insensato! Ausculta-te primeiro;
- Grão de areia perdido em longa praia,
- Esfera doida num despenhadeiro!

78
Hemetério Cabrinha - Frontões

Parasita da luz, sombra erradia;


Gota emotiva, lúbrica, plasmada
No fermento da vida fugidia
Por uma Força Absoluta, ignorada.

Dentro de ti, o Todo se adelgaça,


Na imperceptível vibração do Cosmo
E tu, sem perceberes como passa
O Macrocosmo para o Microcosmo!
Estonteado pelos cataclismos,
Desvairado, te arrojas aos abismos
Sulcados na tua ânsia inconcebível . -
E sedento, febril, incontentado,
Qual um monstro em si mesmo encarcerado,
Tentas subir e tombas no impossível.

Por onde passas, dolorosos fulcros


De sangue e fogo pela terra ficam;
E dos berços aos gélidos sepulcros
A lama, o pó e o pus te identificam.

II
Eras remotas, trágicas, poeirentas,
Calcadas no mais bárbaro destino
Que te acompanha, célebre Beduíno,
Em cavalgadas doidas e sangrentas,
Falam de ti às gerações que passam
Atormentadas pelos teus suplícios...
Louco! Teus sonhos pelo mundo traçam
Horrorosos vulcões de dor e vícios.

Quando da velha e plácida Lemúria,


Da Australásia maldita te arrastaste,
Era tua alma um antro de luxúria
O teu destino contra o bem traçaste.
Ergueste contra Deus os teus alfanjes.
Mitigaste com sangue os teus instintos
Pelas ribeiras místicas do Ganges
Teceste os mais sangrentos labirintos.

Os simples Aborígenes escuros


Lançaste à maldição que não se estangue;
E como um capro sensual e langue
Cavalgaste os desejos mais impuros.

79
Hemetério Cabrinha - Frontões

Abriste a fonte negra das vinditas,


Exumaste os duendes dos teus ódios.
Na tua história, em páginas malditas
Esboçaste os primeiros episódios
De tua vida desvairada e dura,
De tua louca predestinação
Ahsveros - a tatear em noite escura
- Caim sorvendo o fel da maldição.

Ariano infeliz, negaste a tua raça!


Filho espúrio da Luz, rompeste o ventre de Eva,
Para espalhar a dor, a lágrima, a desgraça.

Cérbero a ganir dentro de eterna treva.

Com Kapila acendeste os folhos de tua alma;


Com Galthama enxugaste a lágrima do santo!
Com Cambises, na Pérsia, aniquilaste a calma,
Espalhando o terror, o desespero, o pranto.

Seleucos! Conquistaste a Babilônia eterna.


Licurgo! Transformaste o espírito de Sparta.
Homem! Desde o abandono à lúgubre caverna,
Tua alma em convulsões, de sangue não se farta,

XXX
Que buscas afinal nesta terrível luta,
Sem um riso de amor que tua dor consagre?
Tu, que a Sócrates deste a terrível cicuta,
E ao Cristo, a cruz, o fel e a esponja de vinagre?
Ícaro! - cortaste as tuas próprias asas
E queres te ascenderás regiões sublimes!
Debalde! . . Rolarás por este chão de brasas,
Condenado a sofrer pelos teus próprios crimes

Pois quando um gênio bom o teu humor suplanta


Apontando-te a luz para uma nova era;
Dentro do teu anseio um monstro se levanta
E ruge, e grita, e gente, e brada, e vocifera.

Levando o abnegado ao sacrifício, à morte;


Ao ínfimo degrau de tua rebeldia.
Ó bússola infiel que nunca encontra o Norte!
Desarvorada nau em meio a penedia!

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Hemetério Cabrinha - Frontões

XXX
Na voragem do acaso, entre o sonho e a quimera,
Entre o vício e a virtude, arrojas-te sedento
Ao pântano da vida, à dantesca cratera
Onde expira a razão e estruge o sofrimento.

Onde a paz e a esperança ante a ambição resvalam,


Na concretização dos bárbaros sentidos;
Onde a alma geme e chora. . . e os músculos estalam
Na epopéia infernal de gritos e gemidos.

Onde viveu Tibério, - o pérfido, o grotesco;


Onde, inerte tombou Calígula, - o perverso
E entre flocos de luz e finos arabescos,
Nero cantou sorrindo o seu primeiro verso.

Onde, na exaltação de anelos pervertidos,


No impudico prazer, em desmedidas regras,
Cultuaste a emoção dos lúbricos sentidos,
Celebrando na carne as tuas missas negras.

Sátiro! - imolaste a própria consciência!


Acendendo do crime a destruidora chama;
Erigindo a ti mesmo, ante a Divina Essência,
Uma estátua de pus num pedestal de lama.

III
Horas de desespero, horas tumultuosas;
Ninfas rubras do tempo em célicos volteios,
Bailam doidas pelo ar, graves e tenebrosas.
Atrôpos infernais em feros devaneios
Inclinam sobre a terra as lâminas malditas,
Para arrancar do mundo os últimos anseios.

Melopéias de dor, gritos de almas aflitas,


Desesperados ais, gemidos compungentes,
Ameaçam devassar as plagas infinitas,

Para acordar no Espaço as vibrações dementes


Dos que nasceram bons, dos que viveram santos,
Dos que morreram rindo, ao mundo indiferentes

Entre as larvas da dor nos copiosos prantos,


É que se sabe amar a todo o desgraçado,
Pedindo a Deus que o tenha em seus doirados mantos.

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Hemetério Cabrinha - Frontões

É na desolação, que o triste, o inconsolado


Acha o infinito estreito, o mundo pequenino
E a vida uma visão perdida no passado

Mas tu, homem sem fé, escravo do Destino,


Espírito revel de crimes saturado,
Hás de sempre vagar, - perdido Beduíno -
Num deserto sem fim, sedento, desgraçado.

XXX
Quando a hora final vibrar pelo Infinito,
Acordando em tua alma os mortos sentimentos;
De cada átomo teu há de escapar um grito
Num concerto infernal de choros e lamentos.

Hás de ver, contra a luz, em negras silhuetas,


As últimas visões de teu gênio iracundo!
Duendes imortais, abutres de asa pretas
Imolando o teu ser na emoções do mundo.

E no desvairamento eterno dos culpados,


No infindo padecer das almas assassinas;
Verás, na rapidez de um raio, aniquilados
Mil séculos de dor, sob um montão de ruínas.

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Hemetério Cabrinha - Frontões

CRISTO DO CORCOVADO
No escalavrado píncaro da serra,
Que o luar alveja e a luz do sol estanha;
E onde a cidade, abençoando a terra,
Se espreguiça na falda da montanha;
Ergue-se o Cristo-Redentor, coitado!
Braços ao ar, o triste olhar cravado
Na base de granito que o suporta
De alma apagada e a consciência morta.

O Cristo cujo busto alvinitente,


Granítico, impotente
E lavado de sol;
Aureolando de alvura o Corcovado,
Qual Prometeu, virndo
Para o horizonte, a medir o arrebol;

E, de distância imensurável, visto


Qual uma forma etérea
É apenas um Cristo
Feito à custa de angústias e miséria

Se o Cristo real, na sua pura essência,


Inebriado de amor e de demência,
Dos céus viesse e visse a sua imagem
Naquela pétrea e estúpida roupagem!
- Mostrengo exposto
Ao sol, à chuva, à neve, à ventania,
Tendo a seus pés um povo em agonia:
Em seu cândido rosto
De Santo deixaria
Mil lágrimas de fel correrem doloridas,
E de olhos para o céus,
E de mãos estendidas
Para Deus,
Numa exortante súplica sem fim,
A Escribas e Fariseus,
Calmo e sereno, falaria assim:

- Quando vim entre vós, há quase dois mil anos,


Sem ter onde pousar a fronte iluminada;
Saturando de amor os corações humanos
E chamando ao redil a ovelha tresmalhada;
Ninguém me compreendeu, ninguém quis escutar-me,
E numa sanha hostil, num tresloucado alarme

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Hemetério Cabrinha - Frontões

Levaram-me ao Calvário. . . Em hórridos baldões,


Deram-me, após magoar-me, a morte entre ladrões.

Só porque muito amei os pobres sem mansarda


Que a maldade feral do mundo os acobarda
E lança à execração - - . Em minha singeleza,
Prometi-lhes o céu em troca da pobreza;
Elevando-lhes a alma aos páramos divinos;
Ao meu seio chamando os vis, os pequeninos,
Os que vivem na terra amarguradamente
Atirados ao léu, num desprezo inclemente,
Sob o azorrague atroz dos maus, dos impudicos
Que pensam Deus haver apenas para os ricos.

Para levar a luz da fé por toda a parte,


E fazer drapejar meu celeste estandarte,
A quem fui eu buscar com infinito amor?
A uma mulher perdida e um simples pescador.

À perdida - Magdala - abri meu coração


E a minha alma ofertei ao pescador - Simão -.

Simão, que sem burel, cetro, trono ou tiara,


Iletrado e plebeu, de amor se iluminara
Por mim, na terra foi da caridade o exemplo;
Numa velha palhoça erigiu o meu templo,
Pondo, nele, em lugar de altares e esplendores,
Catres, para acolher humildes sofredores

A moeda que caia em seu fardel de esmola,


Com a bondade dos céus que os santos aureola,
Era qual grão de trigo ao bom pão ievedado,
Para matar a fome e a dor do desgraçado.
Foi assim que pedi nas horas de agonia;
Foi assim que ensinei, era assim que eu queria
Que se fizesse sempre em meu nome. Entretanto,
Dois séculos depois, meu Evangelho Santo
Sumia-se no vai dos baixos egoísmos.

E, cavando entre mim e a nova fé abismos,


Os servos da ambição, numa luta assassina,
Mancharam a pureza excelsa da Doutrina;
Perseguindo, matando e roubando em meu nome,
Levaram meus fiéis à cremalheira, à fome.
Dando aos que muito amei a cicuta, o falerno,
E em negra “Inquisição” o imaginado inferno

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Hemetério Cabrinha - Frontões

E para impressionar, abismar, deslumbrar,


Ergueram em cada canto um palácio e um altar
Fulgentes de européis e fina pedraria,
Enquanto os bons cristãos sucumbem de agonia.
Ergueram, para quê, no alto do Corcovado
Minha estátua? - se em torno há tanto desgraçado
Que se pede em meu nome a paz para aflição,
Em meu nome recebe, em troca, a maldição?

Para que o esplendor de régio monumento


Se de dor me perturba o humano sofrimento?

Não vos disse a vibrar em meu amor fecundo,


Que meu reino imortal não era deste mundo?

Das arcas arrancai o tesouro guardado


E ide! ide buscar a todo o desgraçado,
Que é filho de meu Pai e também nosso irmão,
Dando-lhe o pão do corpo, a paz do coração,
A luz da consciência! - - E onde ouvirdes um ai,
Com desmedido amor do infortúnio arrancai
Essa alma a se estorcer nos desesperos seus,
E em memória de mim, erguei-a para Deus!
E manso, humilde e bom; cheio de amor e luz,
Era assim que diria o angélico JESUS.

Os três últimos poemas: “Satan”, “Caim” e “Cristo do Carcovado”, reedito no presente volume por se
acharem esgotados as suas edições, e ser inúmeros os pedidos para reeditá-los.
H.C

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Hemetério Cabrinha - Frontões

Anexos

RESUMO E ANÁLISE DA OBRA “FRONTÕES” DO AUTOR HEMETÉRIO CABRINHA (1892-1959)

Informação Biobibliográfica

Hemetério Cabrinha (seu verdadeiro nome é Hemetério José dos Santos) nasceu na capital do
Ceará e veio para Manaus em 1916, aos vinte e quatro anos, O sobrenome Cabrinha se deve a um apelido
de infância que o poeta resolveu conservar. Escritor ativo, chegou a fundar um grêmio literário chamado
Academia dos Novos, cujo nome demonstra aquela inquietação do período que iria resultar na fundação,
em 1954, do Clube da Madrugada. Seu último livro, Frontões, foi publicado em 1958. Um ano depois
morria o poeta em Manaus,

Obras:
O meu sertão. Manaus: Palais Royal, 1920.
Satã. Manaus: Palais Royal, 1922
Vereda iluminada. Manaus; Imprensa Pública, 1932.
Caim. Manaus, s. n., 1934.
Frontões. Manaus: Sérgio Cardoso, 1958.

Contexto
O Ciclo da Borracha - O chamado Ciclo da Borracha é o período da história do Amazonas que
abrange, mais ou menos, as duas últimas décadas do século XIX e a primeira do século XX. São cerca de
trinta anos em que o Estado se transforma radical e violentamente. A exportação da borracha passou de
997 toneladas, entre 1858 e 1862, para mais de 44.000 toneladas apenas no ano de 1911. Em 1910, a
borracha atingiu seu preço máximo no mercado internacional, trazendo para Manaus a vida fácil de
riqueza e luxo repentinos. Quatro anos mais tarde a bancarrota e a falência já se estampavam sem
retoques em toda a cidade, agora reduzida á condição de província. A cidadezinha com casas de palha
que, de um instante para outro, se viu transformada numa cópia tropical das capitais européias, agora era
obrigada a sobreviver apenas com os restos do banquete.
Nem sempre se salienta o fato de que o período de esplendor econômico foi também marcado
por acidentes políticos, algumas vezes bastante sangrentos. Golpes e traições, tomadas de poder,
bombardeio nas ruas, saques aos cofres públicos, tudo isso, enfim, compôs um capítulo vivo e
movimentado da história do Amazonas. Em outubro de 1910, tropas federais bombardearm e invadiram
Manaus e, forjando documentos, depuseram o governador Antônio Bittencourt. Em 1913, ocorreu uma
rebelião na Polícia Militar. Os revoltosos dominaram o quartel e saíram pelas ruas espalhando pânico,
destruindo prédios e empastelando jornais. O governador que veio a seguir, Pedro de Alcântara Bacelar,
enfrentou outra revolta no dia mesmo de sua posse em 1917.
Com a queda do preço da borracha, a situação econômica do Estado era deplorável. Os
funcionários públicos, sem receber por vários meses, eram obrigados a vender seus salários por valor bem
mais baixo aos amigos dos governantes que, logo a seguir, conseguiam liberar a quantia exata. Foi nesse

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Hemetério Cabrinha - Frontões

clima que ocorreu a chamada Revolução de 1924, quando o tenente Ribeiro Júnior liderou a tomada do
poder e o confisco de bens e contas bancárias. A “revolução” não durou dois meses sequer.
O epílogo do período, provocado pela queda do preço da borracha no mercado internacional e
pela oferta desmedidamente mais barata do látex produzido racionalizadamente na Malásia, constitui-se
num dramalhão burguês com suicídios e lances melodramáticos daquela elite bruta, composta por
coronéis de barranco e filhos educados na Europa, incapazes de dar resposta aos problemas da região.
Sonho e Pesadelo - O Estado do Amazonas arrastou-se em crises políticas e econômicas até meados da
década de 1940, quando eclodiu a II Guerra Mundial. Com a impossibilidade de trazer a borracha da Ásia,
os Estados Unidos tentaram fazer retornar a produção da heveo brasiliensis no Amazonas. Foi nesse
período que muitos nordestinos se dirigiram ao nosso Estado, formando os Exércitos da Borracha. Mas o
que havia sido sonho no século passado logo se transformou em pesadelo e retomou o caos econômico.
Hemetério Cabrinha foi mais um dos nordestinos que para cá vieram certamente com grandes
esperanças. Como tantos outros, ele viveu os últimos dias do esplendor e a ilusão de um novo período de
fastígio.

A Obra
Frontões foi o último trabalho publicado por Hemetério Cabrinha. O poeta estava com sessenta e
seis anos e parece que tentou reunir no livro o que julgava ser o melhor de sua obra. Por isso, agregou aos
novos poemas três publicações anteriores, Satã, Caim e O Cristo do Corcovado. Já aqui se manifesta o
caráter híbrido de Frontões. Esse caráter poderá ser percebido em outras de seus aspectos, como
veremos.
Abre-se o livro com um “Proêmio”, em que o poeta descreve sua arte. A idéia central é a de que
os poemas podem ser falhos na forma e não atingirem o nível das obras-primas, mas são autênticos
porque nasceram dos sofrimentos verdadeiros do poeta. Neles os sentimentos teriam o poder de suavizar
a dor existencial que se manifesta em quase toda a obra:
Se meus versos não têm o esplendor da obra-prima,
A pureza da forma e a nobreza da rima...
Se lhes falta fulgor;
Há neles, entretanto, agudos sentimentos
Suavizando o clamor dos grandes sofrimentos
Urdidos pela dor.

O próprio título revela sua vocação ornamentalista: frontões são peças de madeira, ferro ou
mármore que adornam o alto das janelas e das portas. Assim, os poemas seriam “enfeites”, grandiosos,
mas apenas enfeites. Esse é o rastro parnasiano de Hemetério Cabrinha. Sabemos que o parnasianismo
estava profundamente imbricado com a arquitetura, de onde retira o modelo de seus versos e poemas.
Mas Hemetério Cabrinha não é um simples parnasiano. Embora lhe dê prazer o ornamentalismo da
arquitetura, ele não é impassível (avesso à dor e à paixão, como os autênticos amantes do Parnaso), bem
ao contrário, apresenta-se crispado, sofrendo tragicamente, com o mundo, ãs vezes, com o amor e,
outras vezes, com as injustiças.
O gênero - O livro inscreve-se no gênero lírico, uma vez que grande parte de seus poemas são
meditações e/ou expressões de um “eu lírico” diante de um mundo que o perturba profundamente -
observe-se a predominância do soneto (poema composto por dois quartetos e dois tercetos), muitas
vezes sob a forma de alexandrinos (versos com doze sílabas métricas). Entretanto, contrabalançando a
predominância lírica, ocorrem poemas seminarrativos que se aproximam do gênero épico. Esse é o caso
dos já citados Satã, Caim e O Cristo do Corcovado, longos poemas que fecham o livro e são precedidos por

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Hemetério Cabrinha - Frontões

“Visões”, também seminarrativo e longo. O poeta buscou fazer como que uma passagem entre o novo
livro, Frontões, e aqueles que já haviam sido publicados algum tempo antes.
Temas - Basicamente, o livro trabalha com 6 temas;

a) o inconformismo do poeta diante da incompreensão dos homens que o rodeiam, como nos exemplos
abaixo:
O mundo me foi sempre avesso, duro, escasso:
Eu vivo como que entre tenazes de aço,
Sem direito a gemer nem desferir um grito.
O que me apraz, porém, anima-me, consola,
É ter esta amplidão azúlea por gaiola
E poder contemplar os astros no infinito.
(“Resignação “)

Quanto tenho sofrido ultimamente!


Como este mundo me tem sido avesso!
Mas assim é demais!
Ter sempre à frente Escabroso Calvário onde tropeço,
Abrindo na alma uma cratera ardente!
(“Angústia”)

Por mais que busque ;er um bom, propalam


Ser eu entre os demais torpe vivente.
Por onde passo todos me assinalam
Como um batráquio vil e repelente.
(Aos que me julgam)

Além de sua incompatibilidade com os demais, o próprio mundo se torna inimigo do poeta. No poema
“Por enquanto, não”, esse mundo aparece como um terrível lupanar imundo.

b) kardecismo: a concepção kardecista do escritor se revela freqüentemente em muitos poemas. Às


vezes, essa “filosofia” transforma- se em anticatolicismo, como em “Fiat lux” e O Cristo do Corcovado,
outras, numa acirrada luta do Bem contra o Mal, como no poema longo Satã. No soneto “Em busca da
perfeição”, eie tematiza a idéia de transmigração e aperfeiçoamento das almas (note que o verbo
“reparar”, no verso 9, significa pagar, consertar, expiar os pecados):

A alma que busca exílio nas clausuras


Emotivas da vida transitória,
Traz em sua odisséia, em sua história
As conseqüências das ações impuras.

Absorvida nas dores, nas torturas,


Nos desesperos de uma luta ingória;
Percorre amargurada trajetória
Em sucessivas existénc ias duras.

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Hemetério Cabrinha - Frontões

Reparando a fraqueza de seus atos,


Como cego levados pelos tatos,
Busca na treva a meta desejada.

Até que um dia, em vestes vaporosas,


Abre no espaço as asas luminosas
E conquista a Mansão Iluminada.

c) a lírica amorosa: em que a relação aparece de duas maneiras, como realização ou como frustração,
sem predomínio de uma sobre a outra. Leiam-se os poemas “Enganos” e “Idílio”, dois exemplos.

d) a crítica social a Castro Alves: muitas vezes a crítica social de Hemetério Cabrinha se expressa em
poemas de temáticas diversas, mas há alguns que são especificamente sociais. É o caso de “Preto velho” e
de “Itatiaia”, este último, ainda que um tanto anacrônico, talvez seja o que melhor ele pôde produzir. Há
nesse grupo bons instantes e até mesmo o nacionalismo e a denúncia contra o colonialismo ainda hoje
encontram seguidores:

Quantos arranhas-céus e os campos deslavrados!


Quanta gente faminta e quanta terra inculta
Aos nossos olhos cresce e, esplêndida, se avulta,

Naquela outra porção de terras negras, feias;


Naquele ponto estão as minas de Candeias.
Ali jorra o petróleo, - o sangue brasileiro
Que estão a oferecer de esmola ao estrangeiro...
Esmola que será, em nossa compreensão,
A nossa decadência, a nossa servidão.

E agora vou mostrar-te uma terra sem dono;


Um solo tão fecundo
Que hoje devia ser o celeiro do mundo...

...A Amazônia...
A lendária e soberba Amazônia
Coberta de labéus, de injúria, de felonia
Onde vive a gemer na selva abrutalhada
Uma gente infeliz, exausta, atormentada
Pelo desprezo atroz e angústia impenitente
Que os lobos da Nação lhe votam rudemente.
Arrancando-lhe mais: O esforço que a consome,
Para empapar de gozo outras terras sem nome...

e) o regionalismo: vários poemas de Frontões são dedicados a cantar a Amazônia, seja em sua pobreza
econômica (observe-se a relação desses textos com o contexto histórico), seja na beleza natural, seja na
relação entre a vida do homem e os elementos da floresta. Representativos são os poemas “O
Amazonas”, “Canção do amazônida”, “Boiúna”, e “A pororoca”.

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Hemetério Cabrinha - Frontões

f) uma tendência de filosofia: no poema “O grilo” o poeta cria uma espécie de fábula em que o
comportamento dos animais se toma exemplo para a vida humana. Leiamos outro, “A aranha”:

Eu tenho uma fidalga e loira companheira


Que, sempre a meditar, de vê-la não me farto.
E uma triste e sozinha aranha tecedeira,
Dia e noite a tecer labirintos no quarto.

Ora desce, ora sobe até a cumeeira;


Ora balouça no ar em seu trabalho infarto.:
E, de fios de prata, a aranha fiandeira..
Uma estrela bordou no ângulo do quarto.

Hoje, pela manhã, outra aranha dourada;


Num idílio de amor, de gozos saciada
La morreu e ficou na teia cetinosa...

Assim mesmo acontece a todos nós, querida:


- Quem somente se entregue aos prazeres da vida,
Terá o mesmo fim da aranha desditosa.

Estilo - Frontões oscila entre três estilos: o Romantismo social de Castro Alves, o Parnasianiso de
Oiavo Bilac e um Simbolismo enlanguescido que reponta aqui e ali ocasionalmente. Longe de se tratar de
uma exceção, essa flutuação estilística de Cabrinha pode ser atribuída a quase todos os poetas que
escreveram entre o Ciclo da Borracha e a metade inicial de nosso século. É fácil notar ainda em seu estilo
uma influência de Augusto dos Anjos, influência nem sempre utilizada com o mesmo talento do poeta
paraibano que não tinha, como Hemetério Cabrinha, um visão religiosa da existência. As marcas de
Augusto dos Anjos aqui aparecem mais num vocabulário meio científico e meio antipoético, como em
“óvulo miserríssimo”, “embrioginia”, “podridão dos úteros inchados”, “a expansão genésica do sexo”,
entre muitos outros exemplos que podem ser selecionados.

Hibridismo - Como vimos, Frontões é um livro híbrido em vários aspectos. No gênero, vai do
lirismo ao narrativo; no estilo, oscila entre Romantismo condoreiro, Parnasianismo e Simbolismo, esse
último em menor grau. Nos temas, trata de experiências românticas, de revelações filosóficas, da
realidade amazônica, da revolta humana e da concepção espiritualista da existência. Nem sempre essas
coisas combinam harmonicamente. Por exemplo, as injustiças sociais denunciadas em vários textos
chocam-se com a idéia de que um espírito criador organiza o universo Outro exemplo, a felicidade
amorosa de alguns textos se bate contra a idéia do infeliz e desadaptado poeta que aparece em outros
textos. Tais contradições nascem da mistura um pouco incontrolada que atravessa todo o livro.

Autenticidade - Apesar de tantos problemas, algo sobressai nesse livro: a dor do sujeito lírico. Seu
sofrimento e sua incompatibilidade com o mundo parecem, de fato, autênticos, como ele advertiu no
“Proêmio”. Em alguns instantes, consegue mesmo conquistar o leitor. É possível se tornar solidário com
alguém que tanto sofre e que vê o mundo desenrolando-se numa história absurda, trágica e corrupta,

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Hemetério Cabrinha - Frontões

como em suas “Visões”. Ainda que o moralismo do poeta possa ter envelhecido, é possível comovermo-
nos com essa dor que revela sincera honestidade.

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