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Os Cismos (Guimarães Rosa)

Outra era a vez. De sorte que de novo o menino viajava para o lugar onde as muitas mil
pessoas faziam a grande cidade. Vinha, porém, só com o tio, e era uma íngreme partida.
Entrara aturdido no avião, a esmo tropeçante, enrolava-o de por dentro um estufo como
cansaço; fingia apenas que sorria, quando lhe falavam. Sabia que a mãe estava doente.
Por isso o mandavam para fora, decerto por demorados dias, decerto porque era
preciso. Por isso tinham querido que trouxesse os brinquedos, a tia entregando-lhe ainda
em mão o preferido, que era o de dar sorte: um bonequínho macaquinho, de calças
pardas e chapéu vermelho, alta pluma. O qual, o prévio lugar dele sendo na mesinha, em
seu quarto. Pudesse se mexer e viver de gente, e havia de ser o mais impagável e arteíro
deste mundo.

O menino cobrava maior medo, à medida que os outros mais bondosos para com ele se
mostravam. Se o tio, gracejando, animava-o a espiar na janelinha ou escolher as revistas,
sabia que o tio não estava de todo sincero. Outros sustos levava. Se encarasse
pensamento na lembrança da mãe, iria chorar.

A mãe e o sofrimento não cabiam de uma vez no espaço de instante, formavam avesso
— do horrível do impossível. Nem ele isso entendia, tudo se transtornando então em sua
cabecinha. Era assim: alguma coisa, maior que todas, podia, ia acontecer?

Nem valia espiar, correndo em direções contrárias, as nuvens superpostas, de longe ir.
Também, todos, até o piloto, não eram tristes, em seus modos, só de mentira no normal
alegrados? O tio, com uma gravata verde, nela estava limpando os óculos, decerto não
havia de ter posto a gravata tão bonita, se à mãe o perigo ameaçasse.

Mas o menino concebia um remorso, de ter no bolso o bonequinho macaquinho,


engraçado e sem mudar, só de brinquedo, e com a alta pluma no chapeuzinho
encarnado. Devia jogar fora? Não, o macaquinho de calças pardas se dava de também
miúdo companheiro, de não merecer maltratos. Desprendeu somente o chapeuzinho
com a pluma, este, sim, jogou, agora não havia mais.

E o menino estava muito dentro dele mesmo, em algum cantinho de si. Estava muito para
trás. Ele, o pobrezinho sentado. O quanto queria dormir. A gente devia poder parar de
estar tão acordado, quando precisasse, e adormecer seguro, salvo. Mas não dava conta.
Tinha de tornar a abrir demais os olhos, às nuvens que ensaiam esculturas efêmeras. O
tio olhava no relógio. Então, quando chegavam? Tudo era, todo-o-tempo, mais ou menos
igual, as coisas ou outras. A gente, não. A vida não parava nunca, para a gente poder
viver direito, concertado?

Até o macaquinho sem chapéu iria conhecer do mesmo jeito o tamanho daquelas
árvores, da mata, pegadas ao terreiro da casa.

O pobre do macaquinho, tão pequeno, sozinho, tão sem mãe; pegava nele, no bolso,
parecia que o macaquinho agradecia, e, lá dentro, no escuro, chorava.

Mas, a mãe, sendo só a alegria de momentos. Soubesse que um dia a mãe tinha de
adoecer, então teria ficado sempre junto dela, espiando para ela, com força, sabendo
muito que estava e que espiava com tanta força, ah. Nem teria brincado, nunca, nem
outra coisa nenhuma, senão ficar perto, de não se separar nem para um fôlego, sem
carecer de que acontecesse o nada. Do jeito feito agora, no coração do pensamento.
Como sentia: com ela, mais do que se estivessem juntos, mesmo, de verdade.

O avião não cessava de atravessar a claridade enorme, ele voava o voo — que parecia
estar parado. Mas no ar passavam peixes negros, decerto para lá daquelas nuvens:
lombos e garras. O menino sofria sofreado. O avião então estivesse parado voando — e
voltando para trás, mais, e ele junto com a mãe, do modo que nem soubera, antes, que o
assim era possível.

Aparecimento do pássaro

Na casa, que não mudara, entre e adiante das árvores, todos começaram a tratá-lo com
qualidade de cuidado. Diziam que era pena não haver ali outros meninos. Sim, daria a
eles os brinquedos; não queria brincar, mais nunca.

Enquanto a gente brincava, descuidoso, as coisas ruins já estavam armando a


assanhação de acontecer: elas esperavam a gente atrás das portas. Também não dava
vontade sair de jipe, com o tio, se para a poeira, gente e terra. Segurava-se forte,
fechados os olhos; o tio disse que ele não devia se agarrar com tão tesa força, mas
deixar o corpo no ir e vir dos solavancos do carro. Se adoecesse, grave, também, que
fosse — como ia ficar, mais longe da mãe, ou mais perto?

Ele mordeu seu coração. Nem quis falar com o macaquinho bonequinho. O dia, inteiro,
servia era para se fazer o espalhamento no cansaço.

Mesmo assim, à noite, não começava a dormir. O ar daquele lugar era friinho, mais fino.

Deitado, o menino se sentia sustoso, o coração dando muita pancada. A mãe, isto é… E
não podia logo dormir, e pela dita causa. O calado, o escuro, a casa, a noite — tudo
caminhava devagar, para o outro dia. Ainda que a gente quisesse, nada podia parar, nem
voltar para trás, para o que a gente já sabia, e de que gostava. Ele estava sozinho no
quarto. Mas o bonequinho macaquinho não era mais o para a mesa de cabeceira: era o
camarada, no travesseiro, de barriguinha para cima, pernas estendidas. O quarto do tio
ficava ao lado, a parede estreita, de madeira.

O tio ressonava. O macaquinho, quase também, feito um muito velho menino. Alguma
coisa da noite a gente estivesse furtando?

E, vindo o outro dia, no não-estar-mais-dormindo e não-estar-ainda-acordado, o menino


recebia uma claridade de juízo — feito um assopro — doce, solta.

Quase como assistir às certezas lembradas por um Qutro; era que nem uma espécie de
cinema de desconhecidos pensamentos; feito ele estivesse podendo copiar no espírito
idéias de gente muito grande. Tanto, que, por aí, desapareciam, esfiapadas.

Mas, naquele raiar, ele sabia e achava: que a gente nunca podia apreciar, direito, mesmo,
as coisas bonitas ou boas, que aconteciam.

As vezes, porque sobrevinhafli depressa e inesperadamente, a gente nem estando


arrumado. Ou esperadas, e então não tinham gosto de tão boas, eram só um
arremedado grosseiro. Ou porque as outras coisas, as ruins, prosseguiam também, de
lado e do outro, não deixando limpo lugar. Ou porque faltavam ainda outras cóisas,
acontecidas em diferentes ocasiões, mas que careciam de formar junto com aquelas,
para o completo. Ou porque, mesmo enquanto estavam acontecendo, a gente sabia que
elas já estavam caminhando, para se acabar, roídas pelas horas, desmanchadas… O
menino não podia ficar mais na cama. Estava já levantado e vestido, pegava o
macaquinho e o enfiava no bolso, estava com fome.

O alpendre era um passadiço, entre o terreirinho mais a mata e o extenso outrolado —


aquele escuro campo, sob rasgos, neblinas, feito um gelo, e os perolíns do orvalho: a ir
até a fim de vista, à linha do céu de este, na extrema do horizonte. O sol ainda não
viera.Mas a claridade. Os cimos das árvores se douravam. As altas árvores depois do
terreiro, ainda mais verdes, do que o orvalho lavara.

Entremanhã — e de tudo um perfume, e passarinhos piando. Da cozinha, traziam café.

E: — “Pst!” — apontou-se. A uma das árvores, chegara um tucano, em brando batido


horizontal. Tão perto! O alto azul, as frondes, o alumiado amarelo em volta e os tantos
meigos vermelhos do pássaro — depois de seu voo. Seria de ver-se: grande, de enfeites,
o bico semelhando flor de parasita.

Saltava de ramo em ramo, comia da árvore carregada. Toda a luz era dele, que borrifava-
a de seus coloridos, em momentos pulando no meio do ar, estapafrouxo, suspenso
esplendentemente. No topo da árvore, nas frutinhas, tuco, tuco… daí limpava o bico no
galho. E, de olhos arregaçados, o menino, sem nem poder segurar para si o embrevecido
instante, só nos silêncios de um-dois-três. No ninguém falar. Até o tio. O tio, também,
estava de fazer gosto por aquilo: limpava os óculos. O tucano parava, ouvindo outros
pássaros — quem sabe, seus filhotes — da banda da mata. O grande bico para cima,
desferia, por sua vez, às uma ou duas, aquele grito meio ferrugento dos tucanos: —
“Crrée!”…

O menino estando nos começos de chorar. Enquanto isso, cantavam os galos. O menino
se lembrava sem lembrança nenhuma. Molhou todas as pestanas.

E o tucano, o voo, reto, lento como se voou embora, xô, xô! — mirável, cores pairantes,
no garridir; fez sonho. Mas a gente nem podendo esfriar de ver. Já para o outro imenso
lado apontavam.

De lá, o sol queria sair, na região da estrela-d’alva. A beira do campo, escura, como um
muro baixo, quebrava-se, num ponto, dourado rombo, de bordas estilhaçadas.

Por ali, se balançou para cima, suave, aos ligeiros vagarinhos, o meio-sol, o disco, o liso,
o sol, a luz por tudo. Agora, era a bola de ouro a se equilibrar no azul de um fio. O tio
olhava no relógio.

Tanto tempo que isso, o menino nem exclamava. Apanhava com o olhar cada sílaba do
horizonte.

Mas não pudera combinar com o vertiginoso instante a presença de lembrança da mãe
— sã, ah, sem nenhuma doença, conforme só em alegria ela ali teria de estar. E nem a
ligeireza de idéia de tirar do bolso o companheiro bonequmho macaquinho, para que ele
visse também: o tucano — o senhorzinho vermelho, batendo mãos, à frente o bico
empinado.

Mas feito se, a cada parte e pedacinho de seu voo, ele ficasse parado, no trecho e
impossivelzinho do ponto, nem no ar — por agora, sem fim e sempre.

O trabalho do pássaro

Assim, o menino, entre dia, no acabrunho, pelejava com o que não queria querer em si.
Não suportava atentar, a cru, nas coisas, como são, e como sempre vão ficando: mais
pesadas, mais-coisas — quando olhadas sem precauções.

Temia pedir notícias; temia a mãe na má miragem da doença? Ainda que relutasse, não
podia pensar para trás. Se queria atinar com a mãe doente, mal, não conseguia ligar o
pensamento, tudo na cabeça da gente daya num borrão. A mãe da gente era a mãe da
gente, só; mais nada.

Mas, esperava; pelo belo. Havia o tucano — sem jaça — em voo e pouso e voo. De novo,
de manhã, se endereçando só àquela árvore de copa alta, de espécie chamada mesmo
tucaneira. E dando-se o raiar do dia, seu fôlego dourado. Cada madrugada, à horínha, o
tucano, gentil, rumoroso: … chégochéghégo… — em voo direto, jazido, rente, traçado
macio no ar, que nem um naviozinho vermelho sacudindo devagar as velas, puxado; tão
certo na plana como se fosse um marrequinho deslizando para a frente, por sobre a luz
de dourada água.

Depois do encanto, a gente entrava no vulgar inteiro do dia.

O dos outros, não da gente. As sacudidelas do jipe formavam o acontecer mais seguido.
A mãe sempre recomendara zelo com as roupinhas; mas a terra aqui era à. desafiada.
Ah, o bonequinho macaquinho, mesmo sempre no bolso, se sujava mais de suor e
poeira. Os mil e mil homens muitamente trabalhavam fazendo a grande cidade.

Mas o tucano, sem falta, tinha sua soêncía de sobrevir, todos ali o conheciam, no pintar
da aurora.

Fazia mais de mês que isso principiara. Primeiro, aparecera por lá uma bandada de uns
30 deles, vozeantes, mas sendo de-dia, entre dez e 11 horas. Só aquele ficara, porém,
para cada amanhecer. Com os olhos tardos tontos de sono, o bonequinho macaquinho
em bolso, o menino apressuradamente se levantava e descia ao alpendre, animoso de
amar.

O tio lhe falava, com excessivos de agrado, sem o jeito nenhum.

Saíam — sobre o se-fazer das coisas. Tudo a poeira tapava. O bonequinho macaquinho,
um dia, devia de poder ganhar algum outro chapeuzinho, de alta pluma; mas verde, da
cor da gravata, tão sobressaída, com que o tio, de camisa, agora não estava. O menino,
em cada instante, era como se fosse só uma certa parte dele mesmo, empurrado para
diante, sem querer. O jipe corria por estradas de não parar, sempre novas. Mas o menino,
em seu mais forte coração, declarava, só: que a mãe tinha de ficar boa, tinha de ficar
salva!

Esperava o tucano, que chegava, a-justo, a-tempo, a-ponto, às seis-e-vinte da manhã;


ficava, de arvoragem, na copa da tucaneira, futricando as frutas, só os dez minutos,
comidos e estrepulados. Dai, partia, sempre naquele outro-rumo, no antes do pingado
meio-instante em que o sol arrebolava redondo do chão; porque o sol era às seis-e-meia.
O tio media tudo no relógio.

De dia, não voltava lá. Se donde vinha e morava — das sombras do mato, os
impenetráveis? Ninguém soubesse seus usos verdadeiros, nem os certos horários: os
demais lugares, aonde iria achar comer e beber, sobre os pontos isolados. Mas o menino
pensava que devia acontecer mesmo assim — que ninguém soubesse. Ele vinha do
diferente, só donde. O dia: o pássaro. Entremeio, o tio, recebido um telegrama, não podia
deixar de mostrar a cara apreensiva — o envelhecimento da esperança. Mas, então,
fosse o que fosse, o menino, calado consigo, teimoso de só amor, precisava de se
repetir: que a mãe estava sã e boa, a mãe estava salva!

De repente, ouviu que, para consolá-lo, combinavam maneira de pegar o tucano: com
alçapão, pedrada no bico, tiro de espingardinha na asa. Não e não — zangou-se, aflito. O
que cuidava, que queria, não podendo ser aquele tucano, preso. Mas a fina primeira luz
da manhã, com, dentro dela, o voo exato.

O hiato — o que ele já era capaz de entender com o coração. Ao outro dia seguinte. Aí,
quando o pássaro, seu raiar, cada vez, era um brinquedo de graça. Assim como o sol:
daquela partezinha escura no horizonte, logo fraturada em fulgor e feito a casca de um
ovo — ao termo da achãada e obscura imensidão do campo, por onde o olhar da gente
avançava como no estender um braço.

O tio, entanto, diante dele, parou sem a qualquer palavra. O menino não quis entender
nenhum perigo. Dentro do que era, disse, redisse: que a mãe nem nunca tinha estado
doente, nascera sempre sã e salva! O voo do pássaro habitava-o mais. O bonequinho
macaquinho quase caíra e se perdera: já estando com a carinha bicuda e meio corpo
saídos do bolso, bisbilhotados! O menino não lhe passara pito. A tornada do pássaro era
emoção enviada, impressão sensível, um transbordamento do coração. O menino o
guardava, no fugidir, de memória, em feliz voo, no ar sonoro, até a tarde. O de que podia
se servir para consolar-se com, e desdolorir-se, por escapar do aperto de rigor —
daqueles dias quadriculados.

Ao quarto dia, chegou um telegrama. O tio sorriu, fortíssimo.

A mãe estava bem, sarada! No seguinte — depois do derradeiro sol do tucano —


voltariam para casa.

O desmedido momento

E, com pouco, o menino espiava, da janelinha, as nuvens de branco esgarçamento, o


veloz nada.

Entretempo, se atrasava numa saudade, fiel às coisas de lá. Do tucano e do amanhecer,


mas também de tudo, naqueles dias tão piores: a casa, a gente, a mata, o jipe, a poeira,
as ofegantes noites — o que se afinava, agora, no quase-azul de seu imaginar. A vida,
mesmo, nunca parava. O tio, com outra gravata, que não era a tão bonita, com pressa de
chegar olhava no relógio. Entrepensava o menino, já quase na fronteira soporosa.

Súbita seriedade fazia-lhe a carinha mais comprida.

E, quase num pulo, agoniou-se: o bonequinho macaquinho não estava mais em seu
bolso! Não é que perdera o macaquinho companheiro! … Como fora aquilo possível?
Logo as lágrimas lhe saltavam.

Mas, então, o moço ajudante do piloto veio trazer-lhe, de consolo, uma coisa: — “Espia,
o que foi que eu achei, para você”. — e era, desamarrotado, o chapeuzinho vermelho, de
alta pluma, que ele, outro dia, tanto tinha jogado fora!

O menino não pôde mais atormentar-se de chorar. Só o rumor e o estar no avião o


atontavam. Segurou o chapeuzinho sozinho, alisou-o, o pôs no bolso. Não, o
companheirinho macaquinho não estava perdido, no sem-fundo escuro no mundo, nem
nunca. Decerto, ele só passeava lá, porventuro e porvindouro, na outra-parte, aonde as
pessoas e as coisas sempre iam e voltavam.

O menino sorriu do que sorriu, conforme de repente se sentia: para fora do caos pré-
inicial, feito o desenglobar-se de uma nebulosa.

E era o inesquecível de-repente, de que podia traspassar-se, e a calma, inclusa. Durou


um nem-nada, como a palha se desfaz, e, no comum, na gente não cabe: paisagem, e
tudo, fora das molduras. Como se ele estivesse com a mãe, sã, salva, sorridente, e
todos, e o macaquinho com uma bonita gravata verde — no alpendre do terreirinho das
altas árvores.., e no jipe aos bons solavancos… e em toda-a-parte.., no mesmo instante
só… o primeiro ponto do dia.., donde assistiam, em tempo-sobre-tempo, ao sol no
renascer e ao voo, ainda muito mais vivo, entoante e existente — parado que não se
acabava — do tucano, que vem comer frutinhas na dourada copa, nos altos vales da
aurora, ali junto de casa.

Só aquilo. Só tudo.

— “Chegamos, afinal!” — o tio falou.

— “Ah, não. Ainda não…” — respondeu o menino.

Sorria fechado: sorrisos e enigmas, seus. E vinha a vida.

FIM

MISTÉRIO EM SÃO CRISTÓVÃO (Clarice Lispector)


Numa noite de maio - os jacintos rígidos perto da vidraça - a sala de jantar de uma casa
estava iluminada e tranquila. Ao redor da mesa, por um instante imobilizados, achavam-
se o pai, a mãe, a avó, três crianças e uma mocinha magra de dezenove anos. O sereno
perfumado de São Cris tóvão não era perigoso, mas o modo como as pessoas se
agrupavam no interior da casa tornava arriscado o que não fosse o seio de uma família
numa noite fresca de maio. Nada havia de especial na reunião: acabara-se de jantar e
conversava-se ao redor da mesa, os mosquitos em torno da luz. O que tornava
particularmente abastada a cena, e tão desa brochado o rosto de cada pessoa, é que
depois de muitos anos quase se apalpava afinal o progresso nessa família: pois numa
noite de maio, após o jantar, eis que as crianças têm ido diariamente à escola, o pai
mantém os negócios, a mãe trabalhou durante anos nos partos e na casa, a mocinha
está se equilibrando na delicadeza de sua idade, e a avó atingiu um estado. Sem se dar
conta, a família fitava a sala feliz, vigiando o raro instante de maio e sua abundância.

Depois cada um foi para o seu quarto. A velha esten deu-se gemendo com benevolência.
O pai e a mãe, fechadas todas as portas, deitaram-se pensativos e adormeceram. As três
crianças, escolhendo as posições mais difíceis, adorme ceram em três camas como em
três trapézios. A mocinha, na sua camisola de algodão, abriu a janela do quarto e respi
rou todo o jardim com insatisfação e felicidade. Perturbada pela umidade cheirosa,
deitou-se prometendo-se para o dia seguinte uma atitude inteiramente nova que
abalasse os ja cintos e fizesse as frutas estremecerem nos ramos - no meio de sua
meditação adormeceu.

Passaram-se horas. E quando o silêncio piscava nos vaga lumes - as crianças


penduradas no sono, a avó ruminando um sonho difícil, os pais cansados, a mocinha
adormecida no meio de sua meditação - abriu-se a casa de uma esquina e dela saíram
três mascarados. Um era alto e tinha a cabeça de um galo. Outro era gordo e vestira-se
de touro. E o terceiro, mais novo, por falta de ideias, disfarçara-se em cavalheiro antigo e
pusera máscara de demônio, através da qual surgiam seus olhos cândidos. Os três
mascarados atravessaram a rua em silêncio.

Quando passaram pela casa escura da família, aquele que era um galo e tinha quase
todas as ideias do grupo pa rou e disse:

- Olha só.

Os companheiros, tornados pacientes pela tortura da máscara, olharam e viram uma


casa e um jardim. Sentindo se elegantes e miseráveis, esperaram resignados que o outro
completasse o pensamento. Afinal o galo acrescentou:

- Podemos colher jacintos.

Os outros dois não responderam. Aproveitaram a para da para se examinar desolados e


procurar um meio de respirar melhor dentro da máscara.

- Um jacinto para cada um pregar na fantasia, concluiu o galo.

o touro agitou-se inquieto à ideia de mais um enfeite a ter que proteger na festa. Mas,
passado um instante em que os três pareciam pensar profundamente para resolver, sem
que na verdade pensassem em coisa alguma - o galo adiantou-se, subiu ágil pela grade
e pisou na terra proibida do jardim. O touro seguiu-o com dificuldade. O terceiro, apesar
de hesitante, num só pulo achou-se no próprio centro dos jacintos, com um baque
amortecido que fez os três aguar darem assustados: sem respirar, o galo, o touro e o
cavalheiro do diabo perscrutaram o escuro. Mas a casa continuava entre trevas e sapos.
E, no jardim sufocado de perfume, os jacintos estremeciam imunes.

Então, o galo avançou. Poderia colher o jacinto que es tava à sua mão. Os maiores,
porém, que se erguiam perto de uma janela - altos, duros, frágeis - cintilavam chamando-
o. Para lá o galo se dirigiu na ponta dos pés, e o touro e o cavalheiro acompanharam-no.
O silêncio os vigiava.

Mal porém quebrara a haste do jacinto maior, o galo interrompeu-se gelado. Os dois
outros pararam num suspiro que os mergulhou em sono. Atrás do vidro escuro da janela
estava um rosto branco olhando-os. O galo imobilizara-se no gesto de quebrar o jacinto.
O touro quedara-se de mãos ainda erguidas. O cavalheiro, exangue sob a máscara,
rejuvenescera até encontrar a infância e o seu horror. O rosto atrás da janela
olhava.Nenhum dos quatro saberia quem era o castigo do outro. Os jacintos cada vez
mais brancos na escuridão. Paralisados, eles se espiavam. A simples aproximação de
quatro máscaras na noite de maio parecia ter percutido ocos recintos, e mais outros, e
mais outros que, sem o instante no jardim, ficariam para sempre nesse perfume que há
no ar e na imanência de qua tro naturezas que o acaso indicara, assinalando hora e lugar
- o mesmo acaso preciso de uma estrela cadente. Os qua tro, vindos da realidade,
haviam caído nas possibilidades que tem uma noite de maio em São Cristóvão. Cada
planta tÍmida, cada seixo, os sapos roucos aproveitavam a silenciosa confusão para se
disporem em melhor lugar - tudo no es curo era muda aproximação. Caídos na cilada,
eles se olhavam aterrorizados: fora saltada a natureza das coisas e as quatro figuras se
espiavam de asas abertas. Um galo, um touro, o demônio e um rosto de moça haviam
desatado a maravilha do jardim... Foi quando a grande lua de maio apareceu.

Era um toque perigoso para as quatro imagens. Tão ar riscado que, sem um som, quatro
mudas visões recuaram sem se desfitarem, temendo que no momento em que não se
prendessem pelo olhar novos territórios distantes fossem feridos, e que, depois da
silenciosa derrocada, restassem apenas os jacintos - donos do tesouro do jardim.
Nenhum espectro viu o outro desaparecer porque todos se retiraram ao mesmo tempo,
vagarosos, na ponta dos pés. Mal, porém, se quebrara o círculo mágico de quatro, livres
da vigilância mútua, a constelação se desfez com terror: três vultos pularam como gatos
as grades do jardim, e um outro, arrepiado e engrandecido, afastou-se de costas até o
limiar de uma porta, de onde, num grito, se pôs a correr.

Os três cavalheiros mascarados que, por ideia funesta do galo, pretendiam fazer uma
surpresa num baile tão longe do carnaval, foram um triunfo no meio da festa já
começada. A música interrompeu-se e os dançarinos ainda enlaçados, entre risos, viram
três mascarados ofegantes parar como indigentes à porta. Afinal, depois de várias
tentativas, os convidados tiveram que abandonar o desejo de torná-los os reis da festa
porque, assustados, os três não se separavam: um alto, um gordo e um jovem, um
gordo, um jovem e um alto, desequilíbrio e união, os rostos sem palavras embaixo de
três máscaras que vacilavam independentes.

Enquanto isso, a casa dos jacintos iluminara-se toda. A mocinha estava sentada na sala.
A avó, com os cabelos brancos entrançados, segurava o copo d'água, a mãe alisava os
cabelos escuros da filha, enquanto o pai percorria a casa. A mocinha nada sabia explicar:
parecia ter dito tudo no grito. Seu rosto apequenara-se claro - toda a construção labo-
riosa de sua idade se desfizera, ela era de novo uma menina. Mas na imagem
rejuvenescida de mais de uma época, para o horror da família, um fio branco aparecera
entre os cabelos da fronte. Como persistisse em olhar em direção da janela, deixaram-na
sentada a repousar, e, com castiçais na mão, estremecendo de frio nas camisolas,
saíram em expedição pelo jardim. Em breve as velas se espalhavam dançando na escuri-
dão. Heras aclaradas se encolhiam, os sapos saltavam iluminados entre os pés, frutos se
douravam por um instante entre as folhas. O jardim, despertado no sonho, ora se
engrandecia ora se extinguia; borboletas voavam sonâmbulas. Finalmente a velha, boa
conhecedora dos canteiros, apontou o único sinal visível no jardim que se esquivava: o
jacinto ainda vivo quebrado no talo... Então era verdade: alguma coisa sucedera.
Voltaram, iluminaram a casa toda e passaram o resto da noite a esperar.

Só as três crianças dormiam ainda mais profundamente.

A mocinha aos poucos recuperou sua verdadeira idade. Somente ela não vivia a
perscrutar. Mas os outros, que nada tinham visto, tornaram-se atentos e inquietos. E
como o progresso naquela família era frágil produto de muitos cuidados e de algumas
mentiras, tudo se desfez e teve que se refazer quase do princípio: a avó, de novo pronta
a se ofender, o pai e a mãe fatigados, as crianças insuportáveis, toda a casa parecendo
esperar que mais uma vez a brisa da abas tança soprasse depois de um jantar. O que
sucederia talvez noutra noite de maio.

O TERCEIRO IRMÃO – Ricardo Ramos

O irmão mais velho tinha dez anos, fechou a janela e comentou maravilhado:

– Deus é muito grande. Fazer o mundo, o sol, as estrelas. É uma coisa!

O irmão mais novo, dois anos mais moço, duvidou:

– E foi Deus quem fez?

O primeiro estava escandalizado, levantou a voz:

– Então não foi? Se não foi ele, quem é que fez?

O segundo continuou só respondendo:

– Ninguém, ora!

– Como ninguém?

– Já estava feito.

– Sem se fazer, nem nada?

– É, de nada.

– Você não acredita?

– Acreditar em quê?

– Você é uma besta.

O terceiro irmão, que só tinha um olho, entrou na discussão apaziguando:

– Esperem aí, não é tão simples. Desde o começo os homens se dividem. Os que
acreditam, os que não acreditam. Foi sempre assim.

Quando fez doze anos, o irmão mais velho ganhou uma bola e jogou futebol. O irmão
mais novo ganhou um livro e leu. Às vezes, um chamava o outro.

– Vamos jogar?

– Você não quer ler?

Nenhum dos dois aceitava. O mais novo calado, abanando a cabeça. O mais velho se
irritando:

– Você não sai, não corre, não faz exercícios.

– Pra quê. Não tenho vontade.

E continuava lendo. O outro xingava:

– Bicha!

Ele respondia, sem se alterar:

– É a mãe.

O terceiro irmão, que só tinha uma pena, comentava com certa alegria:

– Vocês são diferentes como dois irmãos.

Quando chegou aos quinze anos, o irmão mais velho aprendeu a dançar. O irmão mais
novo aprendeu a ouvir música. Um saía para os bailes de sábado, onde fez do rock ao
samba, e esticava as noites com chope e violão. O outro ficava com os seus discos, o
seu gravador, quieto e de olhos fechados, apenas mexia o corpo num balanço quase de
não se perceber. Com o tempo, o primeiro decorou Chico, Edu e Lira, até cantava. O
segundo estalava os dedos, sempre num ritmo sem palavras.

– Como é que pode gostar disso?

Isso era o canto de protesto, com versos e instrumentos de fora, estrangeiro feito um
menino sozinho dentro de casa.

– Eu gosto.

– Eu sei. Há gosto pra tudo.

– É. Está aí você.

E brigavam, música pop, música popular brasileira, ambos com ar superior, que podia ser
mais agressivo, mais discreto, no entanto o mesmo tom de fácil discordância.

– Você faz questão de ser original. Pendure um disco no pescoço.

– Você é o consumidor-modelo. Continue batucando os seus sambinhas.

O terceiro irmão, o que só tinha um ouvido, levantava as mãos e dizia:

– Somos todos irmãos, consumidores. Qual é mesmo a música desse verso?

Quando alcançou a maturidade, o irmão mais velho estava no fim do curso científico e ia
fazer medicina. O irmão mais novo se iniciava no clássico e pensava em filosofia. O
primeiro tinha uma namorada firme, o segundo tinha muitas. Um se vestia com cuidado,
acertava a barba quadrada, punha água-de-colônia no lenço; o outro usava as mesmas
calças desbotadas, os cabelos despenteados e compridos, os óculos redondos. Nas
refeições, o mais velho comia muito e crescia, aumentava, forte e sólido, enquanto o
mais novo nem tanto, esquecido, alongado, meio frágil. Talvez por isso também
discutissem:

– Quando eu for rico.

– O negro é bonito.

– A guerra acabou, ninguém pensa em ninguém.

– A luta não é minha, é de todos.

– O povo está conformado.

– Eu não sei, não vejo televisão.

O terceiro irmão, o que só tinha um lado, o do meio, perdia-se no barulho, na fronteira, e


já não sabia o que dizer.

O irmão mais velho saiu e foi denunciar o irmão mais moço.

O irmão mais moço foi condenado à morte por crime de opinião.

O terceiro irmão, o que só tinha uma vida, tomou o seu lugar diante do pelotão de
fuzilamento. As balas todas acertaram o alvo. Porque ele estava um pouco maior. Não
deixou bilhete nem última vontade.

E os irmãos sobreviventes continuaram, discordando, brigando, sorrindo, até que a


cidade escureceu, o país acabou, o mundo caiu, e um grande silêncio voltou sobre todas
as coisas.

Uma vela para Dario (Dalton Trevisan)

Dario vem apressado, guarda-chuva no braço esquerdo. Assim que dobra a esquina,
diminui o passo até parar, encosta-se a uma parede. Por ela escorrega, senta-se na
calçada, ainda úmida de chuva. Descansa na pedra o cachimbo.

Dois ou três passantes à sua volta indagam se não está bem. Dario abre a boca, move os
lábios, não se ouve resposta. O senhor gordo, de branco, diz que deve sofrer de ataque.

Ele reclina-se mais um pouco, estendido na calçada, e o cachimbo apagou. O rapaz de


bigode pede aos outros se afastem e o deixem respirar. Abre-lhe o paletó, o colarinho, a
gravata e a cinta. Quando lhe tiram os sapatos, Dario rouqueja feio, bolhas de espuma
surgem no canto da boca.

Cada pessoa que chega ergue-se na ponta dos pés, não o pode ver. Os moradores da
rua conversam de uma porta a outra, as crianças de pijama acodem à janela. O senhor
gordo repete que Dario sentou-se na calçada, soprando a fumaça do cachimbo,
encostava o guarda-chuva na parede. Ma não se vê guarda-chuva ou cachimbo a seu
lado.

A velhinha de cabeça grisalha grita que ele está morrendo. Um grupo o arrasta para o
táxi da esquina. Já no carro a metade do corpo, protesta o motorista: quem pagará a
corrida? Concordam chamar a ambulância. Dario conduzido de volta e recostado à
parede não tem os sapatos nem o alfinete de pérola na gravata.

Alguém informa da farmácia na outra rua. Não carregam Dario além da esquina; a
farmácia no fim do quarteirão e, além do mais, muito peso. É largado na porta de uma
peixaria. Enxame de moscas lhe cobrem o rosto, sem que façam um gesto para espantá-
las.

Ocupado o café próximo pelas pessoas que apreciam o incidente e, agora, comendo e
bebendo, gozam as delícias da noite. Dario em sossego e torto no degrau da peixaria,
sem o relógio de pulso.

Um terceiro sugere lhe examinem os papéis, retirados com vários objetos de seus bolsos
e alinhados sobre a camisa branca. Ficam sabendo do nome, idade, sinal de nascença.
O endereço na carteira é de outra cidade.

Registra-se correria de uns duzentos curiosos que, a essa hora, ocupam toda a rua e as
calçadas: é a polícia. O carro negro investe a multidão. Várias pessoas tropeçam no
corpo de Dario, pisoteado dezessete vezes.

O guarda aproxima-se do cadáver, não pode identificá-lo os bolsos vazios. Resta na mão
esquerda a aliança de ouro, que ele próprio quando vivo só destacava molhando no
sabonete. A polícia decide chamar o rabecão.

A última boca repete Ele morreu, ele morreu. A gente começa a se dispersar. Dario levou
duas horas para morrer, ninguém acreditava estivesse no fim. Agora, aos que alcançam
vê-lo, todo o ar de um defunto.

Um senhor piedoso dobra o paletó de Dario para lhe apoiar a cabeça. Cruza as mãos no
peito. Não consegue fechar olho nem boca, onde a espuma sumiu. Apenas um homem
morto e a multidão se espalha, as mesas do café ficam vazias. Na janela alguns
moradores com almofadas para descansar os cotovelos.

Um menino de cor e descalço vem com uma vela, que acende ao lado do cadáver.
Parece morto há muitos anos, quase o retrato de um morto desbotado pela chuva.

Fecham-se uma a uma as janelas. Três horas depois, lá está Dario à espera do rabecão.
A cabeça agora na pedra, sem o paletó. E o dedo sem a aliança. O toco de vela apaga-
se às primeiras gotas da chuva, que volta a cair.

Relato de ocorrência em que qualquer semelhança não é mera coincidência


(Rubem Fonseca)

                Na madrugada do dia 3 de maio, uma vaca marrom caminha na ponte do rio


Coroado, no quilômetro 53, em direção ao Rio de Janeiro. Um ônibus de passageiros da
empresa Única Auto Ônibus, chapa RF 80-07-83 e JR 81-12-27, em direção a São Paulo.

         Quando vê a vaca, o motorista Plínio Sérgio tenta se desviar. Bate na vaca, bate no
muro da ponte, o ônibus se precipita no rio. Em cima da ponta a vaca está morta.

                Debaixo da ponte estão mortos: uma mulher vestida da calça comprida e blusa
amarela, de vinte anos presumíveis e que nunca será identificada; Ovídia Monteiro, de
trinta e quatro anos; Manuel dos Santos Pinhal, português, de trinta e cinco anos, que
usava uma carteira de sócio do Sindicato de Empregados em Fábrica de Bebidas; o
menino Reinaldo de um ano, filho de Manuel; Eduardo Varela, casado, quarenta e três
anos.

                O desastre foi presenciado por Elias Gentil dos Santos e sua mulher Lucília,
residentes nas cercanias. Elias manda a mulher apanhar um facão em casa. Um facão?
Pergunta Lucília. Um facão depressa sua besta, diz Elias. Ele está preocupado. Ah!
percebe Lucília. Lucília corre. Surge Marcílio da Conceição. Elias olha com ódio para ele.
Aparece também Ivonildo de Moura Júnior. E aquela besta que não traz o facão! Pensa
Elias. Ele está com raiva e medo de todo mundo, suas mãos tremem. Elias cospe no
chão várias vezes, com força, até que a sua boca seca.

                Bom dia, seu Elias, diz Marcílio. Bom dia, diz Elias entre dentes, olhando pros
lados. Esse mulato! Pensa Elias.

                Que coisa, diz Ivonildo, depois de se debruçar na amurada da ponte e olhar os


bombeiros e os policiais embaixo. Em cima da ponte, além do motorista de um carro da
Polícia Rodoviária, estão apenas Elias, Marcílio e Ivonildo.

                A situação não anda nada boa não, diz Elias olhando para a vaca. Ele não
consegue tirar os olhos da vaca.

         É verdade, diz Marcílio.    Os três olham para a vaca.

         Ao longe vê-se o vulto de Lucília, correndo.

         Elias recomeçou a cuspir. Se eu pudesse eu também era rico, diz Elias. Marcílio e
Ivonildo balançam a cabeça, olham para a vaca e para Lucília, que se aproxima correndo.
Lucília também não gosta de ver os dois homens. Bom dia dona Lucília, diz Marcílio.
Lucília responde balançando a cabeça. Demorei muito? Pergunta, sem fôlego, ao marido.

                Elias segura o facão na mão, como se fosse um punhal; olha com ódio para
Marcílio e Ivonildo. Cospe no chão. Corre para cima da vaca.

         No lombo é onde fica o filé, diz Lucília. Elias corta a vaca.

         Marcílio se aproxima. O senhor depois me empresta a sua faca, seu Elias? Pergunta
Marcílio. Não, responde Elias.

         Marcílio se afasta, andando apressadamente. Ivonildo corre em grande velocidade.

                Eles vão apanhar facas, diz Elias com raiva, aquele mulato, aquele corno. Suas
mãos, sua camisa e sua calça estão cheias de sangue. Você devia ter trazido uma bolsa,
uma saca, duas sacas, imbecil. Vai buscar duas sacas, ordena Elias.

         Lucília corre.

         Elias já cortou dois pedaços grandes de carne quando surgem, correndo, Marcílio e
sua mulher Dalva, Ivonildo e sua sogra Aurélia e Erandir Medrado com seu irmão Valfrido
Medrado. Todos carregam facas e facões. Atiram-se sobre a vaca.

                Lucília chega correndo. Ela mal pode falar. Está grávida de oito meses, sofre de
verminose e sua casa fica no alto de um morro, a ponte no alto de outro morro. Lucília
trouxe uma segunda faca com ela. Lucília corta a vaca.

         Alguém me empresta uma faca senão eu apreendo tudo, diz o motorista do carro
da polícia. Os irmãos Medrado, que trouxeram vários facões, emprestam um ao
motorista.

         Com uma serra, um facão e uma machadinha aparece João Leitão, o açougueiro,
acompanhado de dois ajudantes. O senhor não pode, grita Elias.

         João Leitão se ajoelha perto da vaca.

         Não pode, diz Elias dando um empurrão em João. João cai sentado.

         Não pode, gritam os irmãos Medrado.

         Não pode, gritam todos, com exceção do motorista de polícia.

                João se afasta; a dez metros de distância, para; com os seus ajudantes, fica
observando.  A vaca está semidescarnada. Não foi fácil cortar o rabo. A cabeça e as
patas ninguém conseguiu cortar. As tripas ninguém quis. Elias encheu as duas sacas. Os
outros homens usaram as camisas como se fossem sacos.

         Quem primeiro se retira é Elias com a mulher. Faz um bifão pra mim, diz ele sorrindo
para Lucília. Vou pedir umas batatas a dona Dalva, vou fazer também umas batatas fritas
para você, responde Lucília.

         Os despojos da vaca estão estendidos numa poça de sangue. João chama com um
assobio os seus dois auxiliares. Um deles traz o carrinho de mão. Os restos da vaca são
colocados no carro. Na ponte, apenas fica a poça de sangue.

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