Documenti di Didattica
Documenti di Professioni
Documenti di Cultura
e
Direito
Cancro
e
Direito
Área de Investigação “Vulnerabilidade e Direito” do Insti-
tuto Jurídico da Faculdade de Direito da Universidade de
Coimbra, integradas no Projecto “Desafios sociais, incerteza
e direito” (UID/DIR04643/2013)
V U L N E R A B I L I DA D E & D I R E I TO
Ficha Técnica
Coordenação Editorial da Coleção
João Carlos Loureiro
André Dias Pereira
Carla Barbosa
Propriedade
Centro de Direito Biomédico
Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra
Pátio das Escolas
3004-528 Coimbra
Telef./Fax: 239 821 043
cdb@fd.uc.pt
www.centrodedireitobiomedico.org
Editor
Instituto Jurídico | Faculdade de Direito da Universidade
de Coimbra
Cadernos da Lex Medicinae n.º 2 · 2018 O Centro de Direito Biomédico, fundado em 1988, é uma associação privada sem fins
lucrativos, com sede na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, que se dedica
à promoção do direito da saúde entendido num sentido amplo, que abrange designada-
Execução gráfica mente, o direito da medicina e o direito da farmácia e do medicamento. Para satisfa-
Ana Paula Silva zer este propósito, desenvolve acções de formação pós-graduada e profissional; promove
reuniões científicas; estimula a investigação e a publicação de textos; organiza uma
ISBN 978-989-8891-18-1 biblioteca especializada; e colabora com outras instituições portuguesas e estrangeiras.
Sumário
André Dias Pereira Ana Elisabete Ferreira, Carla Barbosa, André Dias Pereira
Apresentação da Obra ............................................... 5 Tema 1 — Cancro e Trabalho .....................................73
Carlos Freire de Oliveira Tema 2 — Cancro e Seguros com Cobertura de Invalidez.......... 83
“Cancer Patient Advocacy” e a Liga Portuguesa Contra o Cancro .. 7 Tema 3 — Cancro e Acesso ao Crédito à Habitação Bonificado..... 89
André Dias Pereira Tema 4 — Cancro e Acesso às Prestações do Serviço Nacional de
Direito, Saúde e Cidadania ....................................... 13 Saúde........................................................... 93
Tema 5 — Cancro e Benefícios Fiscais.................................. 99
Maria Inês Oliveira Martins
Seguros e Doença Oncológica ..................................... 21
Ana Elisabete Ferreira
Ana Paula Correia de Albuquerque da Costa Doentes Oncológicos — Que direitos e que deveres................. 103
Empoderar para Humanizar ...................................... 39
Pedro Chaparro Matamoros
Algunas Reflexiones Acerca de la Existencia Misma, 3
del Contenido y de los Límites (Con Especial Referencia
al Cáncer que Afecta a Funciones Reproductivas) del
Derecho a la Procreación en España..................................51
APRESENTAÇÃO DA OBRA CANCRO E DIREITO
O Centro de Direito Biomédico (CDB), cria- me-se, neste âmbito, um papel mais global a nível
do em maio de 1988, é um dos centros de estu- do empoderamento do doente e das suas famílias e
dos mais antigos da Europa nesta área científica. A numa perspetiva de desenvolvimento da sua cons-
Liga Portuguesa Contra o Cancro tem um trabalho ciência crítica, participação efetiva e controlo no que
ímpar na promoção dos direitos dos doentes e so- diz respeito à sua experiência de saúde e de doença e
breviventes de cancro e suas famílias, desde 1941! aos cuidados de saúde que recebe. Desta forma pro-
Neste volume apresentamos estudos teóricos move-se a chamada “patient advocacy”.
e práticos que resultam do saber do Senhor Prof. Além dos direitos gerais que visam todos os
Doutor Carlos Freire de Oliveira, que introduziu doentes, a lei prevê determinados benefícios para 5
em Portugal a temática da Patient Advocacy, da prá- os doentes oncológicos, nomeadamente, ao nível
tica das investigadoras do Centro de Direito Bio- do Serviço Nacional de Saúde, das Finanças e da
médico e das Advogadas que vêm prestando apoio Segurança Social, além de uma especial proteção
jurídico aos doentes oncológicos, associados e ao nível do emprego e das condições de trabalho,
utentes da Liga, no âmbito da doença oncológica. do apoio à habitação e à mobilidade (transporte),
O direito à proteção da saúde está consagrado entre outros.
na Constituição da República Portuguesa e assenta É desta intrincada malha legislativa e
num conjunto de valores fundamentais como a dig- jurisprudencial que esta obra trata, com estudos
nidade humana, a equidade, a ética e a solidariedade. altamente especializados e aplicados à prática.
O conhecimento dos direitos dos doentes potencia
a sua capacidade de intervenção ativa na melhoria Boa leitura!
progressiva dos cuidados e serviços de saúde. Assu-
“CANCER PATIENT ADVOCACY” E A LIGA PORTUGUESA CONTRA O CANCRO
O Núcleo Regional do Centro da Liga Por- a cada tipo de cancro, em função dos respetivos compor-
tuguesa Contra o Cancro organizou nos dias 12 e tamentos biológicos.
13 de novembro de 2015 a “I Conferência Inter- (4) A necessidade imperiosa de maior envolvimento do
nacional em Cancer Patient Advocacy”, com inter- doente nas decisões de opções diversificadas, com resul-
venientes diversificados, quer profissionalmente, tados e toxicidades diferentes.
quer em representação de instituições. Mais tarde (5) O aumento significativo do custo dos cuidados médi-
foi editado um livro com o resumo alargado das cos, incompatível com o PIB de muitas nações.”.
intervenções(1), em cujo prefácio escrevemos:
“Nos últimos anos o novo paradigma dos cuidados Definição e objetivos
7
de saúde no âmbito do cancro conferindo empode-
ramento aos doentes resulta de várias circunstâncias, Internacionalmente tem-se assistido a vários
designadamente: esforços para que os doentes com cancro possam
(1) O aumento crescente da incidência do cancro. A ní- receber informação de qualidade, apoio emocional
vel mundial previram-se, para ambos os sexos, em 2012, e social, e para que vejam a sua autonomia e direitos
cerca de 14 milhões de novos casos de cancro por ano, assegurados. Neste contexto, um novo movimento
estimando-se que em 2035 esta cifra atinja cerca de 24 de atuação tem emergido no domínio da saúde,
milhões, isto é aproximadamente mais 70%. Em Por- especificamente na área da oncologia, preocupado
tugal, em 2012, foram previstos cerca de 49.500 novos
casos e estima-se para 2035 cerca de 64.000, isto é um com o empoderamento dos doentes e procurando
aumento aproximado de 29%. agir sobre estes, as organizações e os profissionais
de saúde, com o objetivo de os cuidados serem cen-
(2) A melhoria no diagnóstico precoce do cancro e nos
tratamentos, associada ao aumento da incidência, deter- trados no doente e não na doença, na possibilidade
minou que, por exemplo, nos E.U.A., em 1970, se te- de participação do doente na decisão das condutas
nham registado cerca de 3 milhões de sobreviventes de de diagnóstico, tratamento e seguimento e na pro-
cancro e que, em 2002, se ultrapassem os 10 milhões. teção contra o erro em cuidados de saúde(2).
(3) O desenvolvimento de novas abordagens terapêuti-
cas, no âmbito de uma medicina personalizada e adaptada
1
Liga Portuguesa Contra o Cancro (2016). Cancer Patient Advocacy. Eds.
Núcleo Regional do Centro da Liga Portuguesa Contra o Cancro, Coimbra. 2
http://www.sor.org/learning/document-library/patient-advocacy
“CANCER PATIENT ADVOCACY” E A LIGA PORTUGUESA CONTRA O CANCRO
novo paradigma dos cuidados de saúde levará ainda Envolvimento do doente na investiga-
alguns anos a ser implementado em Portugal mas, ção clínica
o movimento “patient advocacy” não tem retorno.
A decisão partilhada ou a participação do doen- Na situação dos doentes com cancro os obje-
te na decisão deve partir do próprio doente, que tivos que se pretendem atingir com o seu envolvi-
tem o direito de não querer assumir essa respon- mento nos ensaios clínicos de novos medicamentos
sabilidade, quer por poder afetar negativamente são: o controlo do cancro; o desenvolvimento da
a sua qualidade de vida, quer pela complexidade investigação para tornar possível a “cura”; a melho-
da informação clínica que lhe foi transmitida, quer ria da qualidade de vida e da sobrevivência; a ga-
ainda por eventualmente poder sentir-se culpado rantia que os ensaios clínicos são bem concebidos e
se o tratamento não tiver o êxito desejado. cumprem todos os princípios éticos.
A participação do doente com cancro na deci- Desde o final da primeira década do século XXI
são da modalidade terapêutica mais adequada à sua que a EMA (Agência Europeia de Medicamentos)
situação está dependente de fatores emocionais, procura inserir o doente na conceção do ensaio clí-
logísticos e até financeiros. Além disso, as opções nico, sobretudo em doenças consideradas crónicas
terapêuticas são com frequência complexas, a co- como é o cancro, em que a qualidade de vida é um
municação doente / equipa de saúde nem sempre dos aspetos mais importantes. A Indústria Farma-
é a mais adequada e é influenciada pela falta de for- cêutica também está consciente da necessidade do
mação dos médicos em comunicação, pela literacia envolvimento dos doentes e/ou das organizações
9
em saúde limitada do doente e eventualmente até de apoio e defesa dos doentes no desenvolvimen-
pelo analfabetismo, sobretudo em doentes idosos. to dos ensaios clínicos e na sua implementação nas
O doente pode ainda apresentar dificuldades emo- instituições de saúde.
cionais face ao diagnóstico ou mesmo não se sentir Existem alguns instrumentos de medida dos
disponível para participar na decisão(5). efeitos dos novos tratamentos. Citam-se os “Patient
No âmbito deste movimento de “patient advo- Report Outcomes” (PRO) que implicam a parti-
cacy” a participação do doente na decisão é em nos- cipação direta do doente, e não do familiar ou do
so entender o tema mais complexo. Para permitir e médico/enfermeiro, no relato dos resultados ob-
incentivar esta atitude é preciso informar e educar tidos com o medicamento em ensaio. Utilizam-se
os cidadãos (particularmente os doentes), recorrer habitualmente questionários genéricos ou condi-
a diversificado material educativo e atribuir ao mé- cionados. Os questionários PRO mais comumente
dico o tempo suficiente para que, criada a empatia usados avaliam sintomas, incapacidades, estado de
verbal e não verbal, explicado o plano dos cuidados saúde, qualidade de vida e classificação dos cuida-
a prestar e conhecidas as preferências do doente, dos de saúde prestados(6).
este esteja capacitado para receber a mensagem e Nos ensaios clínicos na área do cancro obser-
emitir uma opinião. va-se uma fraca participação de adolescentes e
de adultos jovens, o que pode justificar os baixos
ganhos na sobrevivência que se encontram nestes
5
Casado A (2016) in Cancer Patient Advocacy. Eds, Núcleo Regional do
Centro da Liga Portuguesa Contra o Cancro, Coimbra. 6
https://en.wikipedia.org/wiki/Patient-reported_outcome
“CANCER PATIENT ADVOCACY” E A LIGA PORTUGUESA CONTRA O CANCRO
grupos etários. Para tentar colmatar esta situação doença como o cancro em que se usa pouco a pala-
foi proposta uma abordagem diferente denominada vra “cura” mas, “sobrevivência a longo prazo”, com
“5 A’s”, do inglês “available”, “accessible”, “aware”, qualidade de vida.
“appropriate”, e “acceptable” (em português: dis- Verifica-se nos últimos anos, no âmbito de “pa-
ponível, acessível, consciente, apropriado e acei- tient advocacy” uma tendência para mudança no
tável), com o objetivo de aumentar a participação paradigma da investigação clínica, em que esta é
de jovens com cancro. Os autores(7) propõem que centrada no doente e não na doença.
esta metodologia seja aplicada, nos ensaios clínicos A intervenção dos doentes no desenvolvimen-
de adolescentes e adultos jovens com cancro, pelos to dos ensaios clínicos levanta uma questão ética
investigadores, autoridades reguladoras, indústria, e de eventual conflito de interesses entre as orga-
decisores políticos e profissionais de saúde. nizações de doentes, a indústria farmacêutica e as
Os “ensaios clínicos adaptados”, são uma ideia entidades reguladoras. Recentemente numa carta
mais alargada dos “5 A’s”, que está a dar os primei- ao editor dos “Mayo Clinic Proceedings”(9) os subs-
ros passos no âmbito da EMA e nos quais se preten- critores concluem que a maior parte (75%) das
de abrir a porta às formas adaptativas dos ensaios organizações de doentes com cancro, nos Estados
clínicos. Nestas modalidades o ensaio vai sendo al- Unidos da América, recebem fundos da indústria
terado em função dos resultados das análises inter- farmacêutica. Também na Europa essa situação é
médias e dos resultados obtidos no estudo(8) . prática corrente e deve ser aceite, na medida em
10 O envolvimento dos doentes em todas as fases que as organizações de doentes e/ou aquelas que
do desenvolvimento de um ensaio clínico é funda- apoiam os doentes são não governamentais, que
mental. Adquirem a noção da dificuldade da inves- normalmente não recebem subsídios estatais e para
tigação clínica de novos medicamentos, participam funcionarem necessitam de diversificar os apoios,
na definição dos critérios de seleção dos doentes, as angariações de fundos e as parcerias. A Liga
contribuem ativamente para o texto (por vezes Portuguesa Contra o Cancro, à imagem de outras
complexo e longo) do consentimento informado e organizações similares europeias, desde há alguns
ainda para a divulgação mais relevante, que deve anos, que aprovou as normas éticas para o estabele-
ser partilhada com os doentes incluídos no ensaio, cimento de parcerias, nomeadamente com a indús-
bem como na publicação dos resultados obtidos. tria farmacêutica, que permitem dar transparência
A participação dos doentes bem como das suas a estas situações.
organizações, bem como daquelas que os apoiam
(ex. Liga Portuguesa Contra o Cancro) é muito im-
portante no estímulo à introdução de novos medi- Intervenção da Liga Portuguesa Contra
camentos e ao acesso fácil a estes, sobretudo numa o Cancro (LPCC)
A LPCC é uma Associação Cultural e de Servi-
7
Fern LA, Lewandowiski JA, Coxon KM, Whelan J (2014). Available,
accessible, aware, approriate, and acceptable: a strategy to improve partic- ço Social, declarada de utilidade pública, criada a
ipation of teenagers and yound adults in cancer trials. The Lancel Oncology:
15 (8): 341-350.
8
Sepulveda BM (2016) in Cancer Patient Advocacy. Eds, Núcleo Regional 9
Abola MV, Prasad V. Industry Funding of Cancer Patient Advocacy
do Centro da Liga Portuguesa Contra o Cancro, Coimbra. Organizations. Mayo Clinic Proc. 2016; 91 (11): 1968-1970.
“CANCER PATIENT ADVOCACY” E A LIGA PORTUGUESA CONTRA O CANCRO
4 de abril de 1941. A LPCC assume-se como uma e detalhadas. Também no “site” da LPCC pode ser
entidade de referência nacional no apoio ao doen- consultada informação credível sobre várias loca-
te oncológico e família, na promoção da saúde, na lizações tumorais, prevenção e estilos de vida sau-
prevenção do cancro e no estímulo à formação e dável. Neste âmbito na nossa opinião os núcleos
investigação em oncologia. da LPCC devem criar grupos de trabalho com
A LPCC prossegue os seguintes objetivos: (1) doentes que estejam disponíveis para concretizar
Divulgar informação sobre o cancro e promover áreas novas no âmbito de “patient advocacy”. No
educação para a saúde com destaque para a preven- seio da LPCC existem movimentos de entreajuda
ção; (2) Contribuir para o apoio social e a humani- que abarcam sobreviventes de cancro da mama, da
zação da assistência ao doente; (3) Cooperar com próstata, laringectomizados e ostomizados. Devem
as instituições envolvidas na área da oncologia; (4) ser criados outros movimentos e todos eles envol-
Estimular e apoiar a formação e a investigação em vidos no movimento de “cancer patient advocacy”.
oncologia; (5) Estabelecer relações com institui- Considerando a formação, a LPCC tem vá-
ções congéneres nacionais e estrangeiras; (6) De- rias ações de formação sobre o cancro, não só no
senvolver estruturas para as prevenções primária e âmbito de profissionais de saúde, mas também de
secundária, tratamento e reabilitação, isoladamen- farmacêuticos, assistentes sociais, psicólogos e pro-
te ou em colaboração; (7) Defender os direitos dos fessores. Há necessidade de desenvolver ações es-
doentes e dos sobreviventes de cancro. pecíficas sobre “cancer patient advocacy”.
Os voluntários e os profissionais que desen- No que diz respeito ao apoio aos doentes, para 11
volvem a sua atividade na LPCC regem-se pelos além do apoio social, os voluntários hospitalares
princípios da Humanização e Solidariedade e pe- procuram humanizar os cuidados de saúde pres-
los seguintes valores: sensibilidade, equidade, éti- tados e transmitirem as informações julgadas ade-
ca, respeito, compromisso, responsabilidade e quadas. Contudo, a abordagem, aos doentes, fami-
transparência. liares ou cuidadores, sobre os cuidados de saúde
No âmbito do movimento de “cancer patient e da investigação clínica centrada no doente, bem
advocacy” a LPCC, cujas atividades estão distribuí- como da participação deste na decisão, são temas
das pela sede (em Lisboa) e pelos Núcleos Regionais que normalmente não são tratados e exigem uma
do Norte (Porto), Centro (Coimbra), Sul (Lisboa), formação específica dos voluntários hospitalares.
Açores (Angra do Heroísmo) e Madeira (Funchal) O apoio jurídico é disponibilizado pela sede e
desde há mais de 75 anos que têm desenvolvida múl- pelos núcleos regionais, quer através de serviços
tiplas atividades, embora só nos últimos anos as pro- prestados com o apoio científico do Centro de Di-
cure enquadrar no âmbito do novo paradigma dos reito Biomédico da Universidade de Coimbra, quer
cuidados em saúde, mas muito há para fazer. por advogados e juristas que participam nesse apoio.
No âmbito da literacia em saúde, no que se re- Também o apoio psicológico no âmbito das
fere à divulgação da informação sobre o cancro, é consultas de psico-oncologia é disponibilizado a to-
eventualmente a área em que há mais anos se inves- dos os doentes e familiares que necessitem, através
te, quer através de sessões públicas junto da popu- de 16 psicólogos colaboradores da LPCC e 32 vo-
lação, quer de publicações mais ou menos extensas luntários que, em 2016, atenderam cerca de 1150
utentes em mais de 5000 consultas.
“CANCER PATIENT ADVOCACY” E A LIGA PORTUGUESA CONTRA O CANCRO
Quanto ao apoio social aos doentes é uma das vimento “patient advocacy; formação de voluntários
grandes prioridades da LPCC e em 2016 cifrou-se com o perfil adequado de “patient advocate”.
em cerca de 800.000 €, distribuídos por doentes Na sobrevivência do doente com cancro a “ad-
e para destinos diversificados: medicamentos não vocacy” é um processo contínuo. Pode iniciar-se a
oncológicos, deslocações, próteses, etc. nível pessoal, mas à medida que a trajetória da so-
Para além das considerações explanadas, “cancer brevivência muda, o contexto de autodefesa pode
patient advocacy” exige da LPCC um esforço e in- alargar-se, passando a abranger grupos organizados
vestimentos programados nos próximos anos para a de “advocacy” e, mais tarde, iniciativas públicas.
abordagem de temas como: ensaios clínicos; cuida- Como se referiu “cancer patient advocacy” é
dos assistenciais centrados no doente no âmbito dos um novo paradigma da abordagem dos cuidados
cuidados primários, cuidados hospitalares, cuidados médicos, que exige o envolvimento de diversas
paliativos; formação de profissionais de saúde; co- partes interessadas neste movimento e a LPCC é
laboração com as ordens profissionais médica e de obrigatoriamente uma dessas partes.
enfermagem; divulgação junto dos doentes do mo-
12
DIREITO, SAÚDE E CIDADANIA
Sumário: 1. Direito da saúde: normatividade complexa. à justa composição dos conflitos de interesses ju-
2. Princípios do direito da saúde. 3. Permanente mutação e di- ridicamente relevantes. Por seu turno, o espírito
nâmica: alguns exemplos. 4. A “Patient advocacy”. 5. O papel dos
centros de investigação e a sociedade. 6. Conclusão. seria um “conjunto de princípios jurídicos, rectius,
de princípios normativos específicos que irradiam
soluções de normatividade justa na relação entre a
1. Direito da saúde: normatividade pessoa humana e a atividade da medicina”.
complexa(1) João Loureiro, considerando o plano das fontes
O Direito da Medicina apresenta especificida- do Direito da Medicina, refere-se ao “tempo das
des de não pequena monta que levam alguns auto- redes ou o manto normativo do mundo”(3), dado 13
res a afirmar a “emergência de um ramo autónomo que aquele ramo atende, além das normas interna-
do saber jurídico: o Direito da Medicina”(2). Auto- cionais e europeias — v.g., a Convenção sobre os
nomia essa que se evidencia quer face às ciências Direitos do Homem e a Biomedicina (CEDHBio)
extrajurídicas, quer no domínio intrajurídico, em —, às diferentes deontologias médicas, aos pare-
que se faz sentir a necessidade de libertação das ceres das Comissões de Ética e à prática jurídica,
amarras tradicionais de compartimentação entre o a par das tradicionais fontes legislativas nacionais.
Direito Civil, o Direito Penal e o Direito Público. 2. Princípios do direito da saúde
Acresce que, na fundamentação dessa autono-
mia, o Direito da Medicina seria composto por um
corpo e por um espírito. O corpo traduzir-se-ia as- 2.1. O princípio da não lesão de direitos
sim num conjunto de normas diretamente atinen- fundamentais do doente
tes à prática médica, à relação médico-paciente e Referimo-nos, ao princípio da não lesão de
direitos fundamentais do doente, ao princípio da
(*)
O Autor agradece a colaboração do Dr. Mickael Martins, mestrando
validade e eficácia das normas profissionais e das
em Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e regras deontológicas, ao princípio da precaução
investigador do Centro de Direito Biomédico. nos avanços terapêuticos e ao princípio do controlo
1
Sobre os conceitos de Direito Médico, Direito da Medicina, Direito
Biomédico e Direito da Saúde, vide PEREIRA, ANDRÉ GONÇALO DIAS,
“Direitos dos pacientes e responsabilidade médica”, Coimbra Editora, 2015, pp. 36 3
LOUREIRO, JOÃO CARLOS, “Saúde no fim da vida, entre o amor,
e ss., que seguimos de perto neste tópico. o saber e o direito II — Cuidado(s)”, II, Revista Portuguesa de Bioética / (n.º
2
ANDRÉ DIAS PEREIRA, Direitos dos pacientes..., cit., p. 35. 4) / Abril-Maio 2008.
DIREITO, SAÚDE E CIDADANIA
dica(6), “a deontologia médica é o conjunto de re- ta a posteriori atestar da cabal fundamentação jurí-
gras de natureza ética que, com caráter de perma- dica. Temos defendido que o médico deve registar,
nência e a necessária adequação histórica, o médico ainda que de forma sumária, a fundamentação des-
deve observar no exercício da sua atividade pro- sa utilização no processo clínico do doente, tanto
fissional”. A deontologia médica consiste em uma mais que esta atuação será fator de ponderação na
ordem normativa complementar, onde se forma e averiguação da sua diligência numa (eventual) ação
desenvolve um ethos profissional, e que assume ex- de responsabilização.
trema relevância em sede de integração de lacunas. O princípio da precaução nos avanços tera-
2.3. O princípio da precaução nos avanços pêuticos é também evidente no domínio das ino-
terapêuticos vações terapêuticas. Com efeito, dispõe o artigo
10.º do Regulamento de Deontologia Médica que
Devendo pautar-se a atuação do médico pelo o médico se deve abster de praticar atos que não
respeito das leges artis, a par da evolução verificada estejam de acordo com as leges artis, excetuando,
no seio da medicina, com a construção da doutri- logo de seguida as situações em que se disponha de
na do consentimento informado, em que se exige, dados promissores e não haja alternativa, e ainda
v.g., a comunicação ao paciente dos riscos concre- os atos que se integrem em protocolos de investi-
tos de uma determinada intervenção, compreende- gação, “cumpridas as regras que condicionam a ex-
-se que, naqueles domínios em que essa mesma in- perimentação em e com pessoas humanas”. Neste
tervenção se desvie dos standards, as cautelas sejam domínio, exige-se, assim, além de um acentuado 15
acrescidas e se constate a exigência de verificação dever de informação, o respeito pelo princípio da
de requisitos mais apertados. Pensemos, por exem- beneficência, na exata medida em que o médico só
plo, na utilização off-label de medicamentos(7), em deve propor uma inovação terapêutica se não dis-
que, para além de um dever de obtenção de um puser de um método seguro e eficaz e após a devida
consentimento informado reforçado, deve ser leva- ponderação risco-benefício.(8)
da a cabo uma justificada análise risco-benefício da Em suma, em determinados domínios da atua-
sua utilização no paciente concreto, que nos permi- ção médica exige-se uma fundamentação acrescida
— que contribuirá igualmente para acautelar a po-
6
Deve notar-se que era alvo de discussão na doutrina o valor jurídico
sição do médico que atue naquelas circunstâncias
do Código Deontológico. Com o novo Código, esta discussão deixa de fazer —, e também um controlo procedimental justo,
sentido, atendendo a que o mesmo foi publicado em Diário da República onde podemos afirmar e constatar a construção de
(Diário da República, 2.ª Série — n.º 139 — 21 de Julho de 2016), sob a
forma de regulamento administrativo — Regulamento 707/2016, de 21 de um paradigma procedimentalista, que se relaciona
Julho. Em bom rigor, esta discussão cessou em 2009, dado que já tinha sido diretamente com o princípio a que aludiremos já
publicado em Diário da República (2.ª Série — N.º 8 — 13 de Janeiro de
2009) o Regulamento de Deontologia Médica. de seguida.
7
Em termos sucintos, diremos apenas o seguinte: via de regra, para a
entrada de um medicamento no mercado, impõe-se a sua autorização por
parte da agência do medicamento competente. Ora, a prescrição off-label
envolve precisamente a utilização de um medicamento que não foi objeto
de avaliação e/ou não foi objeto de validação por parte da referida agência.
Compreende-se, portanto, que, acarretando a utilização destes medicamen-
tos um risco acrescido para a segurança dos pacientes, a opção pelos mesmos 8
Deve notar-se que a prova da necessidade da inovação terapêutica
seja cerceada de maiores cautelas e apertados requisitos. impende sobre o médico.
DIREITO, SAÚDE E CIDADANIA
2.4 O princípio do controlo procedimental Comissão de Ética para a Investigação Clínica, que
na decisão bioética tem por principal função emitir parecer — vincu-
Constata-se de forma mais premente no seio lativo — sobre a aceitabilidade ética de um ensaio
do direito da medicina a tendência para se reme- clínico de medicamento para uso humano, a Enti-
ter cada vez menos para os tribunais a resolução de dade de Verificação da Admissibilidade da Colhei-
casos concretos. Esta situação parte do reconheci- ta para Transplante, organismo a quem compete a
mento por parte do legislador da inabilidade para emissão de parecer vinculativo em caso de dádiva e
decidir questões controversas, sobretudo neste do- colheita em vida de órgãos, tecidos ou células para
mínio em que a linha que separa o jurídico do éti- fins terapêuticos ou de transplante, etc.(10)
co é extremamente ténue, e em que o controlo da 3. Permanente mutação e dinâmica:
atuação médica em determinadas áreas passa efe- alguns exemplos legislativos
tivamente pelo crivo das instituições com compe-
tências multidisciplinares — e independentes face O Direito da Medicina encontra-se em cons-
ao poder político —, dotadas de conhecimentos tante mutação. Evidência dessa permanente di-
técnicos que só assim legitimam aquele controlo. nâmica que entretece esta área dogmática, numa
A tendência vai, assim, no sentido da criação de tentativa de acompanhar os avanços tecnológicos e
instituições de controlo e regulação administrativa, científicos da Medicina que ocorrem cada vez mais
quais sejam, a título meramente exemplificativo, amiúde, é precisamente a intensa atividade legisla-
16 o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da tiva que se desencadeou nos inícios da década de
Vida (CNECV), o Conselho Nacional de Procria- 80 e que se densifica cada vez mais. Embora não
ção Medicamente Assistida (CNPMA)(9), o Con- pretendendo ser exaustivos, pensemos nas altera-
selho Nacional de Saúde Mental, que controla a ções que se têm vindo a operar ao nível dos Direi-
realização de intervenções de psicocirurgia, as Co- tos e Deveres dos Pacientes(11), da Saúde Pública,
missões Técnicas de Certificação da Interrupção da da exclusão da ilicitude nos casos de Interrupção
Gravidez — às quais compete, entre outras com- Voluntária da Gravidez, no âmbito da Procriação
petências, definir as guidelines sobre quais as doen- Medicamente Assistida, no que concerne às Decla-
ças graves ou malformações que podem justificar a rações Antecipadas de Vontade e à nomeação de um
interrupção da gravidez em caso de fetopatia —, a Procurador de Cuidados de Saúde e, mais recente-
9
A quem compete, genericamente, pronunciar-se sobre as questões
10
A ser aprovada uma Lei que despenaliza a morte medicamente assis-
éticas, sociais e legais da PMA. De entre as prerrogativas atribuídas ao CNP- tida, nos projetos-lei apresentados à Assembleia da República pelo PAN, pelo
MA, cumpre destacar, entre outras, a de atualizar a informação cientifica BE, pelo Partido “Os Verdes” e pelo PS sobre a matéria prevê-se a criação
sobre a PMA e as respetivas técnicas e estabelecer as condições em que de- de uma Comissão de Revisão dos Procedimentos de Antecipação da Morte,
vem ser autorizados os centros onde são ministradas as técnicas de PMA, competindo-lhe, nomeadamente, emitir pareceres, por iniciativa própria ou
bem como os centros onde sejam preservados gâmetas ou embriões. O quando tal lhe for solicitado, sobre o modo como a lei está a ser aplicada,
CNPMA apresenta um relatório anual à Assembleia da República e ministé- bem como sobre os problemas que poderão surgir em torno desta temática.
rios responsáveis pelas áreas da saúde e da ciência e tecnologia sobre as suas 11
Veja-se, a este propósito, a Carta dos Direitos e Deveres do Doen-
atividades e sobre as atividades dos serviços públicos e privados, descrevendo te: que, não obstante não ter força vinculativa, elenca de forma clara e ex-
o estado de utilização das técnicas de PMA, formulando as recomendações pressiva os traços fundamentais constitutivos da relação médico-paciente.
que entender pertinentes, nomeadamente sobre as alterações legislativas ne- E acrescente-se que, atualmente, deve atender-se à Lei n.º 15/2014, de 21
cessárias para adequar a prática da PMA à evolução científica, tecnológica, de Março, que reproduz em parte o conteúdo daquela carta e cria um texto
cultural e social. único sobre a matéria, num esforço de consolidação legislativa.
DIREITO, SAÚDE E CIDADANIA
mente, os projetos-lei que foram apreciados rela- de Abril(12)), na Lei da Informação Genética Pessoal
tivamente à morte medicamente assistida e à sua e Informação de Saúde (Lei n.º 12/2005, de 26 de
despenalização. Janeiro, alterada mais recentemente pela Lei n.º
Nas últimas décadas, muita é a legislação que 26/2016, de 22 de Agosto), na Lei das Associações
versa sobre este ramo do Direito. de Defesa dos Utentes de Saúde (Decreto-Lei n.º
Na década de 80, cumpre-nos destacar a Lei 44/2005, de 29 de Agosto), na criação da Rede
da Educação Sexual e Planeamento Familiar (Lei Nacional de Cuidados Continuados Integrados (DL
n.º 03/84, de 24 de Março) e a Lei que regulava n.º 101/2006, de 06 de Junho, alterado mais re-
o acompanhamento da mulher grávida durante o centemente pelo Decreto-Lei n.º 136/2015, de 28
trabalho de parto — Lei n.º 14/85, de 06 de julho, de Julho), na Lei da Procriação Medicamente Assis-
entretanto revogada pela Lei n.º 15/2014, de 21 de tida (Lei n.º 32/2006, de 06 de Julho que, como
Março, que consolidou a legislação em matéria de veremos infra, tem sofrido diversas alterações desde
direitos e deveres do utente dos serviços de saúde. 2015, sendo a mais recente a alteração introduzida
Na década de 90, assumem especial relevância pela Lei n.º 58/2017, de 25 de Julho), na Lei da Ex-
a Lei dos Transplantes de Órgãos e Tecidos (Lei n.º clusão da ilicitude nos casos de Interrupção Volun-
12/93, de 22 de Abril, alterada mais recentemente tária da Gravidez (Lei n.º 16/2007, de 17 de Abril,
pelo Decreto-Lei n.º 168/2015, de 21 de Agosto), alterada pela Lei n.º 136/2015, de 07 de Setembro),
a Lei dos Ensaios Clínicos (Decreto-Lei n.º 97/94, no Regime do acompanhamento familiar de crian-
entretanto revogado pela Lei n.º 46/2004, de 19 ças, pessoas com deficiência, pessoas em situação de 17
de Agosto, que por sua vez, foi revogada pela Lei dependência, e pessoas com doença incurável em es-
n.º 21/2014, de 16 de Abril), a Lei da Proteção de tado avançado e em estado final de vida em hospital
Dados Pessoais (Lei n.º 67/98, de 26 de Outubro, ou unidade de saúde (Lei n.º 106/2009, de 14 de
alterada mais recentemente pela Lei n.º 103/2015, Setembro, entretanto revogada pela Lei 15/2014,
de 24/08 e pelo Regulamento Geral de Proteção de 21 de Março) e, por último, no Regulamento da
de Dados Reg. (UE) 106/679) e a Lei da Saúde Assistência Espiritual e Religiosa no SNS (DL n.º
Mental — Lei n.º 36/98, de 24 de Julho, alterada 253/2009, de 23 de Setembro).
pela Lei n.º 101/99, de 26/07. Em 2012, com a Lei das Diretivas Antecipa-
Como frisámos no início deste ponto, a ativi- das de Vontade (Lei n.º 25/2012, de 16 de Julho),
dade legislativa no âmbito do Direito da Medicina resulta hoje claro o respeito pela vontade do pa-
tem sido cada vez mais intensa, visível mais uma ciente e pelas decisões que sejam por ele tomadas
vez nas alterações legislativas que ocorreram entre em conformidade, ainda que medicamente irrazoá-
2000 e 2010, a que se seguiu um esforço de conso- veis. Neste sentido, a obrigatoriedade de fornecer
lidação legislativa a partir de 2011. Pensemos desde a necessária informação e o próprio interesse das
logo na Lei dos Ensaios Clínicos de Medicamentos pessoas em estar cientes dos prognósticos que lhes
de Uso Humano (Lei 46/2004, de 19 de Agosto, podem estar reservados, leva a que muitas delas
entretanto revogada pela Lei n.º 21/2014, de 16
12
Cfr. o Regulamento (UE) n.º 536/2014, do Parlamento Europeu e
do Conselho de 16 de abril de 2014, relativo aos ensaios clínicos de medica-
mentos para uso humano.
DIREITO, SAÚDE E CIDADANIA
procurem autodeterminar-se antecipadamente, re- avançada e em fim de vida, sendo o aspeto mais
caindo a “escolha efetiva”(13) sobre o paciente e acau- relevante desta Lei a aprovação da sedação paliativa
telando (eventuais) situações de incapacidade para no art.8.º.
consentir — referimo-nos obviamente às Declara- 3.2. Direitos dos Pacientes na Europa
ções Antecipadas de Vontade e/ou à nomeação de
um Procurador de Cuidados de Saúde. (14) Se até este ponto nos focámos ao nível nacio-
Continuando a perscrutar as alterações leva- nal, cumpre agora, ainda que de forma meramen-
das a cabo, refiram-se igualmente a Lei de Bases te tópica, percorrer alguns ordenamentos jurídicos
dos Cuidados Paliativos (Lei n.º 52/2012, de 5 de estrangeiros. Com efeito, a partir da década de 90,
Setembro) e a Lei da Investigação Clínica (Lei n.º proliferaram nos diversos países leis de direitos dos
21/2014, de 16 de Abril, alterada mais recente- doentes — pensemos, v.g., na Finlândia (1992), nos
mente pela Lei n.º 73/2015, de 27/07). Países Baixos (1994), na Lituânia (1996), na Islândia
No âmbito da Procriação Medicamente Assisti- (1997), na Letónia (1997), na Hungria (1997), na
da (PMA), devemos considerar a Lei n.º 17/2016, Grécia (1997), na Dinamarca (1998), na Noruega
de 20 de Junho (que alarga o âmbito dos beneficiá- (1999), na Geórgia (2000), na França (2002), na
rios das técnicas de PMA, procedendo à segunda Bélgica (2002), na Espanha (2002), na Suíça (2003),
alteração à Lei n.º 32/2006, de 26 de Julho)(15), na Rússia (2003) e na Alemanha (2013).
a Lei n.º 25/2016, de 22 de Agosto (que regula Percorrendo as leis destes países, é possível
18 o acesso à gestação de substituição, procedendo à identificar alguns direitos individuais, transversais
terceira alteração à Lei n.º 32/2006, de 26 de Ju- às mesmas, expressão da evolução do Direito da
lho), o Decreto Regulamentar n.º 06/2017, de 31 Medicina e da sua internacionalização, quais sejam
de Julho (regulamenta a Lei n.º 25/2016, de 22 de o direito à informação — reconhecendo-se, simul-
Agosto, que regula o acesso à gestação de substitui- taneamente, um direito a não saber, devendo o pa-
ção) e a Lei n.º 58/2017, de 25 de Julho (procede à ciente, no entanto, estar ciente de que, a qualquer
quarta alteração à Lei n.º 32/2006, de 26 de Julho momento, pode requerer a prestação dessa mesma
— destino dos espermatozoides, ovócitos, tecido informação — o direito a consentir — ou, no ou-
testicular e tecido ovárico). Em 2108, sede de “fim tro pólo, o direito à recusa de tratamento, supera-
de vida”, destaca-se a Lei n.31/2018, de 18 de Ju- da que está a conceção paternalística do Direito da
lho — Direito das pessoas em contexto de doença Medicina, admitindo-se inclusive nas situações em
que parece medicamente irrazoável a recusa —,
13
ANDRÉ DIAS PEREIRA, Direitos dos pacientes ..., cit., p. 570. Estes
‘instrumentos’ revestem-se de particular importância para aquelas situações
a representação dos menores e das pessoas com
em que, por motivos religiosos ou de consciência — v.g., o caso típico das capacidade diminuída, o dever de documentação
testemunhas de jeová —, os pacientes rejeitam determinado tipo de inter-
venção médica.
clínica, o direito de acesso ao processo clínico —
14
Existe um modelo previamente elaborado e facilmente acessível via
embora o meio como este é acessível possa variar
Internet, aprovado pela Portaria 104/2014, de 15 de Maio, à qual se encon- de país para país —, o direito ao sigilo médico e a
tra anexo o referido modelo. possibilidade de elaboração de uma declaração an-
15
Entretanto, o Acórdão do Tribunal Constitucional 225/2018 (pu- tecipada de vontade e/ou o direito à nomeação de
blicado no DR de 2018-05-07) colocou em crise a prática de gestação de
substituição, por considerar algumas das normas fundamentais do referido um procurador de cuidados de saúde.
diploma inconstitucionais.
DIREITO, SAÚDE E CIDADANIA
Por seu turno, já no que concerne aos direitos na possibilidade de aceder diretamente ao processo
coletivos, em ordem à proteção dos direitos dos pa- clínico. Além disso, torna-se cada vez mais eviden-
cientes e ao reforço dessa tutela jurídica, verifica-se te a admissibilidade da mediação de terceiros, no
o recurso a variados mecanismos, nomeadamente, reforço da confiança e solidariedade existencial na
a figura do provedor do paciente (Finlândia), o di- relação de cuidados clínicos, assim se compreendo
reito à mediação (Bélgica), o direito à informação o papel do procurador de cuidados de saúde e das
epidemiológica (Espanha) ou o reconhecimento de Comissões de Ética assistenciais. Concomitante-
um direito à indemnização, independentemente de mente, são também cada vez em maior número as
culpa em alguns casos e qualidade do sistema de entidades que intervêm na prestação de cuidados
saúde (França). de saúde, através da emissão de pareceres ou do
cumprimento de um procedimento autorização,
4. A “Patient advocacy” como o CNPMA, o Conselho Nacional de Saúde
No que concerne a este tópico, podemos des- Mental, sendo que também estas podem contribuir
trinçar do conceito uma dimensão individual, tra- para o exame e defesa dos direitos dos pacientes.
duzível no apoio à decisão e no empoderamento A democracia sanitária, em ordem à igualdade
do doente — dado que, hodiernamente, este deve e não discriminação na relação de cuidados de saú-
ser visto e compreendido como senhor do seu pró- de, acarreta o reforço da dimensão coletiva nessa
prio corpo, como um centro autónomo de decisão mesma relação: (1) com a participação do cidadão
— e, simultaneamente e em relação àquela, uma nas políticas de saúde, v.g., no debate democrático 19
dimensão coletiva, no sentido da efetivação dos di- em torno da racionalidade da gestão de saúde; (2)
reitos dos doentes, no fomento da sua autonomia com o reforço do papel das associações de doentes;
e, sobretudo, na representação dos mesmos, atra- e (3) pela criação de fundos coletivos de compensa-
vés da criação e legitimação — v.g., ao nível pro- ção de danos médicos, em que se vê ultrapassada a
cessual — das associações de doentes, das Ligas, simples relação médico-paciente e se compreende
das ONG’s, conduzindo consequentemente a um o problema indemnizatório do dano causado pelas
reforço da sociedade civil. atividades de saúde como um problema coletivo a
Este fenómeno conduz-nos à ideia de Democra- que urge dar resposta humanista.
cia Sanitária, pautando-se hoje o Direito da Medi- 5. O papel dos centros de investigação
cina — rectius, o Direito da Saúde em geral — pela e a sociedade
promoção da participação ativa dos doentes nos sis-
temas de saúde, pela consciencialização e responsa- O incremento de uma participação ativa dos
bilização cívica de todos os atores de saúde — no- cidadãos, da tutela dos seus direitos e de uma ativi-
meadamente, e em particular, dos doentes — e pela dade legislativa cada vez mais pormenorizada neste
criação de direitos e consequente alargamento aos âmbito tem sido, por um lado, o resultado de uma
mais variados domínios da saúde — toda esta dinâ- cada vez maior influência dos centros de investiga-
mica em ordem à transparência na relação de cui- ção e de variadas entidades às quais é solicitada a
dados de saúde, visível no reforço da obrigação de sua colaboração — nomeadamente, ao Centro de
informação do fornecedor de cuidados de saúde e Direito Biomédico da Universidade de Coimbra, a
DIREITO, SAÚDE E CIDADANIA
Liga Portuguesa contra o Cancro —, e, por outro, ao serviço da pessoa doente, encarada como cen-
a munição dessas mesmas entidades com unidades tro autónomo de decisão, deixando de valer aque-
de apoio jurídico que possibilitam uma mais rápi- la velha ideia de mistificação da profissão médica,
da e eficaz intervenção na efetivação dos direitos de relação não paritária entre médico e paciente.
dos pacientes. É evidente e, simultaneamente, notável a
Pensemos, a este propósito, na Unidade de evolução das últimas décadas no sentido da tutela
Apoio Jurídico da Liga Portuguesa contra o Can- dos direitos dos pacientes. Tanto mais que, segundo
cro, a funcionar no Núcleo Regional do Centro alguns autores, pelo menos de jure condendo, este
(Coimbra). Esta mesma unidade de apoio dispõe de subsistema do Direito da Medicina poderia mere-
um serviço de consulta e aconselhamento jurídico cer inclusive uma reforma da Organização Judi-
aos doentes oncológicos e às suas famílias, com o ciária, no sentido da especialização dos tribunais
intuito de auxiliar aqueles no exercício e consequen- nestes domínios tão vastos da saúde, a fim de possi-
te efetivação dos seus próprios direitos — v.g., a bilitar uma resposta cabal aos problemas derivados
lei prevê determinados benefícios para os doentes das relações de cuidados de saúde.
oncológicos, quer seja ao nível do Sistema Nacional Abstraindo-nos agora dessas considerações,
de Saúde (SNS), das Finanças e da Segurança Social, cumpre salientar, v.g., que a Lei n.º 44/2005, de
além de lhes conferir uma especial proteção ao nível 29 de Agosto (Lei das Associações de Defesa dos
do emprego e das condições de trabalho, do apoio à Utentes de Saúde) conferiu legitimidade proces-
20 habitação e à mobilidade, entre outras. A interven- sual às associações de utentes para representar
ção dessa mesma Unidade de Apoio Jurídico resulta interesses coletivos na área do Direito da Saúde,
da verificação de que muitos doentes desconhecem enfatizando a dimensão coletiva da Patient Advocacy
os seus direitos e/ou se deparam com bastantes difi- a que nos referimos supra.
culdades para os fazer valer, especialmente por força Podemos ainda destacar a criação e o funciona-
de exigências burocráticas. Assim, numa tentativa de mento dos Gabinetes do Utente, os quais permi-
ultrapassar essas mesmas dificuldades, a Unidade de tem que o doente confronte o médico com o seu
Apoio Jurídico dispõe de advogados com experiên- desagrado em que o processo é conhecido pelo Di-
cia, que garantem a consulta jurídica, o aconselha- retor de Serviço e por vezes pelo próprio Conselho
mento e a orientação dos doentes e das suas famílias, de Administração do Hospital.
no sentido de garantir a defesa e a promoção dos O Direito da Medicina sempre se deverá guiar
seus direitos. pelos referentes fundamentais de criar confiança
ou, dito de outro modo, reforçar a hospitalidade
6. Conclusão da medicina e promover a solidariedade existencial
O Direito da Medicina não deve ser um espaço na relação de cuidado-perigo a que os profissionais
de afrontamento e de crispação entre os diversos de saúde estão vinculados face às pessoas doentes.
atores da saúde. Os profissionais devem hoje estar
SEGUROS E DOENÇA ONCOLÓGICA
gurado, ou que o segurado transfere este risco para • aumento da probabilidade de morte
o segurador: porque, ao assumir o dever de prestar precoce;
caso o evento incerto ocorra, o segurador remove • necessidades acrescidas de cuidados de
total ou parcialmente as consequências desfavorá- saúde;
veis que este produziria na esfera do segurado. • incapacidade temporária ou definitiva para
O contrato de seguro delimita os termos em o trabalho;
que o segurador efectuará a sua prestação, tanto de
modo qualitativo, como quantitativo. • necessidade de assistência nas tarefas do
De modo qualitativo, o contrato descreve, pela quotidiano.
positiva, as situações em que o segurador prestará Vejamos os tipos de contrato de seguro que
(por exemplo, prevendo que o segurador efectuará se destinam a cobrir esses mesmos riscos, bem
certa prestação em caso de incapacidade perma- como duas hipóteses de particular relevo na sua
nente superior a 70%). E, pela negativa, o contrato estruturação.
determina que o segurador não deverá qualquer
prestação quando o sinistro seja causado por certas
causas (por exemplo, o segurador não cobrirá des- §2. Tipos e estruturas de contrato de se-
pesas de saúde provocadas por doenças infectocon- guro relevantes: os seguros de vida,
tagiosas, quando em situação de epidemia declara- os seguros de saúde e a cobertura do
da), ou tenha lugar fora de certo espaço territorial risco de invalidez; os seguros indivi-
22 duais e os seguros de grupo.
(por exemplo, o seguro não cobre despesas com
cuidados médicos recebidos no estrangeiro) — são
as designadas “exclusões do risco”. 2.1. Tipos de contrato de seguro relevantes
De modo quantitativo, o contrato prevê que a a) Seguro de vida com cobertura do risco de morte.
prestação do segurador, ou o somatório das presta-
ções efectuadas durante a vigência do contrato, não Relevam em primeiro lugar os seguros de vida
excederá certo montante máximo, que se designa com cobertura do risco de morte da pessoa segura.
por “capital seguro”. O contrato pode ainda prever Através deste seguro, serve-se o interesse de dotar
que o segurador apenas prestará caso e na medida de meios económicos um determinado sujeito, be-
em que os danos causados pelo sinistro superem um neficiário do seguro, no caso de ocorrer a morte da
certo montante, cabendo ao segurado sempre su- pessoa segura. Esta atribuição pode ter o sentido
portar essa parte dos danos — trata-se da “franquia”. de efectuar uma liberalidade a favor do beneficiá-
A doença oncológica corresponde na verdade rio — por exemplo, o seguro prevê que, no caso da
a uma multiplicidade de doenças, que agregamos morte de A, pessoa segura, será prestado um cer-
commumente sob a referência a “cancro”. Esta traz to montante aos seus filhos –, ou de garantir uma
riscos agravados para a vida e a saúde dos pacientes, dívida existente para com este — por exemplo,
uma vez que faz aumentar a probabilidade de cer- o seguro prevê que, no caso da morte de A, pes-
tos eventos adversos, ou a gravidade das suas con- soa segura, será prestado ao Banco X, seu credor, o
sequências potenciais: montante que estiver em dívida relativamente a um
contrato de mútuo celebrado –, ou mesmo de o re-
SEGUROS E DOENÇA ONCOLÓGICA
munerar por um serviço prestado — por exemplo, porém, potencialmente desadequado para abarcar
a sociedade X contrata com um segurador, que, no todo o período temporal em que o risco de morte
caso da morte de qualquer dos seus trabalhadores, do segurado é especialmente agravado, impedindo
os herdeiros destes terão direito a uma prestação o contrato de seguro de cumprir a função que justi-
monetária. fica o pagamento dos prémios (art. 16.º, b), RJCCG
Os seguros de vida encontram-se regulados nos — vd. infra). A este propósito, o legislador nacional
arts. 183 e ss. do RJCS. Na prática, podem ter mui- interveio na área especialmente sensível dos seguros
to variadas configurações. Nas mais relevantes, o de vida contratados por um consumidor a favor da
segurador compromete-se a efectuar uma presta- instituição de crédito que lhe tenha concedido cré-
ção ao beneficiário no momento da morte da pes- dito para aquisição de habitação, criando um regime
soa segura, o que implica que os contratos de segu- especial de protecção do consumidor(2). Este regime
ro de vida sejam geralmente contratos com certa prevê um conteúdo mínimo para o contrato de se-
duração. Tal traz consigo um afastamento à regra guro de vida, impondo que este tenha pelo menos a
geral que vale no ordenamento português, nos ter- duração correspondente à duração do contrato de
mos da qual, salvo quando do contrato conste algo di- mútuo, acompanhando o capital seguro o valor em
verso, os contratos de seguro são celebrados pelo dívida (cfr. o art. 5.º, n.º 2, do diploma).
período de um ano, renovando-se automaticamen-
te por um período de igual duração a não ser que b) Seguro de saúde
sejam expressamente feitos cessar por qualquer das Pelo seguro de saúde, o segurador obriga-se a 23
partes (arts. 40.º e 41.º do RJCS). efectuar prestações “relacionadas com a prestação
Há claro afastamento desta regra nos chamados de cuidados de saúde”. Esta expressão entre aspas
seguros de vida inteira, em que o segurador se obriga acompanha na verdade as palavras do art. 213.º do
a prestar quando a morte ocorrer, independentemen- RJCS, que são amplas o bastante para acompanhar
te do momento em que ela ocorra (a sua prestação é os vários tipos de cobertura que podem estar aqui
certa quanto ao “se”, sendo apenas incerta quanto em causa. Nas hipóteses mais comuns, o segura-
ao “quando”). Trata-se de um contrato sem dura- dor obriga-se a reembolsar o segurado pelos gastos
ção determinada, que o segurador não pode fazer com cuidados de saúde que este tenha efectuado,
cessar antes da ocorrência do evento morte, já que ou mesmo a prestar esses cuidados directamente,
tal frustraria o sentido e a finalidade deste contrato através da sua rede de prestadores. No caso dos
(art. 114. n.ºs 1 a 3, do RJCS). seguros de reembolso de despesas, o segurador
Diferentes destes são os seguros temporários, também pode limitar o seu dever de prestar aos
em que o segurador apenas prestará caso a morte casos em que a despesa tenha sido efectuada com
ocorra dentro de um certo lapso temporal — por exem- um prestador da sua rede.
plo, enquanto o segurado exerce certa profissão
de risco elevado, ou é devedor de certo montante 2
Trata-se do Decreto-Lei n.º 222/2009, de 11 de Setembro. Note-se,
mutuado. Lembre-se que, em geral, se o contra- de resto, que falamos em texto dos seguros nas suas formas mais puras — na
prática, na verdade, os seguros de vida celebrados para garantia do credor
to nada dispuser em sentido diverso, a sua duração combinam esta função com elementos de poupança, mantendo-se em relação
será apenas de um ano (renovável). Este prazo será, a outros beneficiários designados no contrato mesmo depois de extinta a
dívida para com o mutuante.
SEGUROS E DOENÇA ONCOLÓGICA
Nada sendo estipulado em sentido diverso, o cobertura se verifique durante o tempo de vigência do
contrato vale pelo prazo de um ano, renovando-se contrato ou daquela cobertura. Assim, nos termos do
automaticamente a não ser que qualquer das partes art. 217.º, n.º 2, requer-se que (5) o segurador seja
declare a sua vontade de o fazer cessar, por declara- informado da doença ou circunstância nos trinta dias
ção escrita enviada à contraparte pelo menos 30 dias subsequentes ao termo do contrato.
antes da data em que o contrato se renovaria (art. Acresce um limite temporal: o segurador só
115.º, n.º 1, do RJCS)(3). fica obrigado a efectuar prestações (6) durante os
Tal implica que, se o segurador se aperceber dois anos subsequentes ao termo do contrato ou da co-
que os riscos para a saúde do segurado se agrava- bertura. E, por último, um limite quantitativo: (6)
ram — por exemplo, porque lhe foi apresentado o segurador só prestará até que se mostre esgotado
um pedido de reembolso de despesas de tratamen- o capital seguro no último período de vigência do
to de uma patologia grave, que poderá implicar contrato. Ou seja, caso as prestações efectuadas
custos relevantes –, tratará de comunicar que não pelo segurador no último ano de duração do con-
pretende renovar o contrato(4). Nestas hipóteses, trato não tenham atingido o montante total do capi-
bem como noutras que trataremos já de seguida, tal seguro, o segurador continuará obrigado a efectuar
tem relevo o art. 217.º do RJCS; porém, como prestações até que se esgote esse remanescente.
diremos também, o alcance de tais regras é mais Trata-se, como dissemos, de uma protecção
modesto do que pareceria. modesta. Além de pressupor a verificação de vá-
24 O referido artigo vale para os casos em que (1) rios requisitos, só garante que o segurador preste
o contrato não seja renovado no seu todo, ou então dei- até ao montante do capital seguro ainda não con-
xe de incluir a cobertura do risco de certas doen- sumido pelas prestações efectuadas no último ano
ças, e (2) o risco não esteja coberto por um contrato de de vigência do contrato — e, caso se detecte uma
seguro posterior. Nesse caso, o segurador permanece patologia grave, esse remanescente tenderá a ser
obrigado a cobrir certos riscos, mesmo depois de o consumido com rapidez.
contrato cessar. Para que tal se verifique, além dos
dois requisitos já referidos, são necessários mais c) Cobertura do risco de incapacidade
Assim, é necessário que (3) o contrato cobrisse A cobertura do risco de incapacidade da pessoa
o risco em causa — se a doença que afecta agora segura surge geralmente ligada a um dever do se-
o segurado se encontrava prevista numa exclusão gurador de prestar um montante pré-estabelecido
do risco, o segurador não será obrigado a prestar. no contrato, havendo muitas vezes a previsão de
Depois, é necessário que (4) a doença ou o outro montantes diferentes em função da gravidade do
facto (por exemplo, uma gravidez) que dá lugar à estado de incapacidade.
A cobertura surge frequentemente associa-
3
Esta data da prorrogação do contrato é a que corresponde ao final do
da à cobertura de outro risco, como o de doença
prazo de um ano pelo qual o contrato foi celebrado, ou ao aniversário dessa ou de morte — por exemplo, é muito frequente
data (art. 41.º). a cobertura do risco de incapacidade permanente
4
Ao contrário do que acontece noutros seguros, o segurado não tem surgir como cobertura complementar da do risco
qualquer dever de comunicar o agravamento do risco seguro quando este
agravamento se deva a alterações no estado de saúde da pessoa segura (art. de morte num seguro de vida contratado a favor
215.º, a); porém, o segurador tem a opção de não renovar o contrato. de uma instituição de crédito que tenha financiado
SEGUROS E DOENÇA ONCOLÓGICA
7
Ac. do STJ de 24 de Abril de 2014, Processo n.º 6659/09.6TVLSB.L1.S1.
SEGUROS E DOENÇA ONCOLÓGICA
e permanentemente impossibilitada de exercer a te, e não por doença. Note-se que também estas
profissão indicada na proposta de seguro, tratando- cláusulas limitadoras podem vir a ser consideradas
-se da profissão de gerente de sociedade comercial, inválidas, se se considerar que esvaziam o contrato
o STJ considerou que havia que determinar quais do seu sentido útil.
as funções que a pessoa segura desempenhava face 2.2. Estruturas relevantes
à empresa em concreto(8).
Como se disse, a definição pode também ser a) Seguros individuais
feita por referência ou em articulação com a apli- Podemos definir o seguro individual pela ne-
cação das tabelas nacionais de mensuração das ne- gativa: será seguro individual o que não é seguro
cessidades. Estas são, actualmente, a Tabela Nacio- de grupo. Mesmo os seguros individuais podem,
nal de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e porém, ter diferentes estruturas.
Doenças Profissionais, que serve a avaliação das Numa estrutura mais simples de contrato de
incapacidades decorrentes de acidente de trabalho ou seguro, teremos um contrato entre um segurador
doença profissional; e a Tabela de Avaliação de Inca- e outro sujeito, o tomador, que ao mesmo tempo
pacidades Permanentes em Direito Civil, que avalia será o sujeito afectado pelo risco, ou seja, o titu-
a generalidade dos danos associados a lesões da integri- lar do interesse seguro ou segurado. Pense-se na
dade físico-psíquica(9). cobertura do risco de que ocorra um incêndio na
A este respeito, há que notar apenas a primei- própria casa. Estaremos aí perante um seguro por
26 ra destas tabelas, relativa aos acidentes e doenças conta própria, em que o tomador é simultanea-
profissionais, quantifica especificamente o dano re- mente segurado.
sultante de uma doença oncológica; a segunda ta- Diferente é o caso do seguro por conta de ou-
bela apenas avalia o dano por referência às sequelas trem: aqui, o tomador contrata para a cobertura de
corporais de uma lesão. Por outro lado, a primeira um risco que afecta outro sujeito, separando-se a
tabela apenas quantifica danos patrimoniais associados à qualidade de tomador e a qualidade de segurado.
perda de capacidade para o exercício de uma profissão — Pense-se no caso em que A, pai de B, contrata um
ficam de fora danos não patrimoniais (por exemplo, seguro para cobertura do risco de incêndio na casa
o prejuízo estético causado por uma intervenção ci- de sua filha, adquirindo esta o direito de exigir do
rúrgica), bem como outros danos patrimoniais pro- segurador uma prestação na medida dos danos que
vocados pela doença (por exemplo, decorrentes de venha a sofrer.
despesas com serviços de saúde ou de apoio). No caso dos seguros de pessoas, de que trata-
O contrato pode ainda limitar a definição de remos aqui, relevam ainda duas outras qualidades.
incapacidade através de outras notas caracterizado- A primeira é a de pessoa segura, que é a pessoa que
ras; por exemplo, através da referência à sua cau- pode ver a sua vida ou integridade física afectada
sa, como acontece quando a apólice determina que pelo risco. Esta pode não coincidir com o tomador
cobre riscos de invalidez causada por um aciden- ou com o segurado — pense-se no caso em que um
empresário que gere uma carteira de jogadores de
8
Ac. STJ 1237/14.0TBSTR.E1.S1, de 24 de janeiro de 2017. futebol profissional celebra um seguro pelo qual,
9
Ambas foram aprovadas pelo Decreto-Lei n.º 352/2007, de 23
de Outubro.
no caso de lesão da vida ou integridade física des-
SEGUROS E DOENÇA ONCOLÓGICA
tes jogadores, terá direito a uma prestação segura- criminação em termos gerais — no plano interno,
dora. Aqui, é o empresário o tomador e segurado de modo cimeiro, o art. 13.º da CRP(10). Tem ain-
(o interesse segurado é seu), mas são os jogadores da assento específico em diplomas legais — para o
as pessoas seguras. A segunda é a qualidade de be- que aqui releva, a Lei n.º 46/2006, de 28 de Agos-
neficiário, que surge quando o titular do interesse to, que proíbe e pune a discriminação em razão da
seguro não é o sujeito que pode exigir para si a deficiência e da existência de risco agravado de saú-
prestação seguradora. de, e o RJCS. O regime aplicável decorre, pois, da
articulação entre estes vários diplomas.
b) Seguros de grupo Em geral, são proibidas pela Lei n.º 46/2006
A estrutura é diferente no seguro de grupo, as práticas que discriminem uma pessoa portadora
que assenta num contrato celebrado entre o segu- de um risco agravado de saúde no fornecimento
rador e um tomador, enquanto sujeito ao qual os ou fruição de bens ou de serviços, entre quais se
vários segurados estão ligados por um vínculo dife- conta o contrato de seguro(11). O RJCS concretiza
rente do de segurar (art. 76.º). esta proibição genérica vedando as práticas discri-
Esta estrutura pode ser configurada de diver- minatórias em razão de risco agravado de saúde, na
sos modos, ao abrigo da liberdade negocial. Tipi- celebração, na execução, ou na cessação do contrato de se-
camente, esta exprime-se na conjugação de um guro. Em concreto, proíbe-se que sejam adoptadas
contrato-quadro entre o segurador e o tomador, acções ou omissões dolosas ou negligentes que violem
que enquadra a celebração de contratos de segu- o princípio da igualdade, implicando para aquelas 27
ro individuais entre cada segurado e o segurador; pessoas um tratamento menos favorável do que
ou exprime-se através de um contrato de seguro a aquele que seja dado a outra pessoa em situação
favor dos terceiros segurados, celebrado entre se- comparável (art. 15.º, n.ºs 1 e 2).
gurador e tomador. Para os efeitos legais, pessoas com risco agrava-
. O seguro de grupo pode ser contributivo ou do de saúde são as que sofrem de toda e qualquer
não contributivo, em função de os segurados su- patologia que determine uma alteração orgânica ou
portarem ou não, no todo ou em parte, o pagamen- funcional irreversível, de longa duração, evolutiva, po-
to do prémio que lhes corresponde; em qualquer tencialmente incapacitante, sem perspectiva de remissão
caso, porém, o dever de o pagar ao segurador per- completa e que altere a qualidade de vida do portador a
tence em princípio ao tomador (art. 80.º, n.º 1). nível físico, mental, emocional, social e económico e seja
causa potencial de invalidez precoce ou de significativa
III. Em especial, a proibição de práticas
discriminatórias em razão de risco 10
Quanto ao Direito internacional, (Maria Inês de Oliveira Martins,
agravado de saúde “Sobre a discriminação dos portadores de VIH/sida na contratação de segu-
ros de vida”, BFDUC, 2, 2013, pp. 749-800, pp. 759 e ss. Pode ainda consi-
derar-se que são aqui aplicáveis as normas que proíbem a discriminação em
§1. Introdução razão da deficiência, já que esta configura actualmente um conceito relacio-
nal, resultante da interacção entre uma incapacidade duradoura e barreiras
comportamentais e ambientais que impedem uma participação igualitária na
No ordenamento português, a proibição da dis- sociedade por parte do sujeito afectado pela deficiência. Quando os estados
criminação em razão de risco agravado de saúde patológicos em causa levem ao preenchimento destes pressupostos, tal equi-
paração parece-nos, pois, acertada (ob. cit., pp. 763 e ss.).
decorre desde logo das normas que proíbem a dis- 11
Cfr. os arts. 1.º, n.º 2, e 4.º, especialmente als. a) e c).
SEGUROS E DOENÇA ONCOLÓGICA
redução de esperança de vida (art. 3.º, c), da Lei n.º é necessário que o segurado apresente elementos
46/2006). Na medida em que a concreta forma de que directamente sustentem que assim foi; basta
doença oncológica em causa exprima estes caracte- que apresente elementos dos quais se possa razoavelmente
res, deverá então considerar-se que se está perante presumir que a discriminação aconteceu naqueles termos
um risco agravado de saúde(12). (prova indiciária)(13).
§2. Aferição da existência de discrimi- O RJCS especifica que a discriminação existe
nação ilícita independentemente do momento em que a condu-
O tratamento menos favorável pode assentar ta diferenciadora tenha lugar. Esta pode ter lugar
em discriminação directa, quando o tratamento logo aquando da celebração do contrato, se o segura-
dado à pessoa com risco agravado de saúde for di- dor se recusa a contratar com um doente oncoló-
ferente do dado a pessoa saudável em situação no gico, ou lhe oferece um contrato mais desvantajoso
demais equiparável — é o que acontece quando o — vg., com prémios mais elevados ou mais exclu-
segurador recusar liminarmente a contratação de sões de risco — do que o oferecido aos sujeitos em
um seguro, por exemplo, de vida, quando o can- situação comparável. Pode ainda ter lugar aquando
didato seja doente oncológico. E pode também da execução do contrato — por exemplo se, num
constituir discriminação indirecta, quando seja um seguro de saúde em que o segurado tenha que ob-
tratamento aparentemente neutro, mas susceptível ter autorização prévia do segurador para que possa
28 de colocar um doente ou deficiente em posição de efectuar certos tratamentos a coberto do seguro, o
desvantagem comparativamente com outras pes- doente oncológico é sistematicamente tratado de
soas — vg., não se cobre custos relacionados com modo mais desfavorável. E pode, por último, ter
certos tratamentos ou medicamentos a que apenas lugar na cessação do contrato de seguro — por exem-
os portadores doença oncológica recorram. plo, se o segurador denuncia um contrato de se-
Para que se estabeleça a existência de uma dis- guro celebrado por período determinado e auto-
criminação, deve, pois, ficar provado que o segu- maticamente renovável quando se inteira de que a
rador, com negligência ou dolosamente, tratou os pessoa segura é doente oncológico, mantendo con-
portadores de doença oncológica que configure um tratos celebrados com pessoas não portadoras dessa
risco agravado de saúde de modo menos favorável doença em situação comparável; ou se o segurador
do que aquele que confere a sujeitos não portado- considera que tal doença é fundamento para a reso-
res dessa doença e colocados em situação no restan- lução do contrato por justa causa e o faz cessar(14).
te comparável. Para que tal fique estabelecido, não Antecipamos que a questão central é geralmente a
de saber se essa discriminação foi justificada.
Cabe, por sua vez, ao segurador provar que não
12
Embora a lei exija, aparentemente, que estes pressupostos se ve- se verificou qualquer tratamento diferenciado, ou que o
rifiquem todos cumulativamente, vem-se reconhecendo que, não tem que
haver uma alteração da qualidade de vida do portador simultaneamente a tratamento diferenciado perfeitamente compatível com o
nível “físico, mental, emocional, social e económico”. Basta que a alteração princípio da igualdade, já que se tratou de uma diferen-
da qualidade de vida ocorra qualquer um destes níveis — em alternativa,
portanto (Francisco Luís Alves, “A discriminação e a avaliação do risco nos
seguros”, RDES, 3-4, 2011, pp. 213-315, p. 220; e Maria Inês de Oliveira
13
Art. 6.º, n.º 1, da Lei n.º 46/2006.
Martins, “Sobre a discriminação...”, cit., pp. 770-771). 14
Cfr. os arts. 112.º a 116.º do RJCS.
SEGUROS E DOENÇA ONCOLÓGICA
ciação justificada. A justificação do tratamento di- riscos, mesmo que elas conduzam a tratar de modo
ferenciado exige uma atenção especial em matéria diferenciado sujeitos portadores de doença, desde
de seguros. que tal assente no uso de dados rigorosos e relevan-
Com efeito, a prática seguradora assenta tradi- tes e que os cálculos do segurador sejam objectiva-
cionalmente na diferenciação entre segurados, por parte mente fundamentados. Note-se que, uma vez que o
do segurador. Para que constitua uma carteira de se- segurador não usa estes dados em estado puro, mas
gurados cujo risco consiga cobrir de modo susten- os cruza entre si e os adapta de acordo com consi-
tável, o segurador é à partida livre de excluir a co- derações prudenciais e de política comercial, não há
bertura de certos riscos. E, para efeitos de cálculo um único modo legítimo, mas sim, vários, de avaliar
do prémio, é também à partida livre de proceder ou seleccionar os riscos. Não se trata, pois, aqui de
ao cálculo em relação a grupos mais ou menos alar- um teste estrito, mas sim de um teste pelo qual se
gados de segurados, podendo optar entre distinguir controla a falta de racionalidade das práticas.
segurados portadores de riscos mais graves, a que O RJCS prevê um mecanismo de controlo
cobrará um prémio mais elevado, e segurados por- da actuação do segurador, articulando deveres de
tadores de riscos menos graves, a que cobrará um informação e direitos de reclamação. Para que o
prémio menos elevado(15). segurado possa controlar a legitimidade do trata-
Porém, quando tal tratamento diferenciado mento diferenciado, o segurador deve informá-lo,
tenha por base um risco agravado de saúde, torna-se à independente de qualquer pedido do proponente nesse
partida ilícito, apenas se podendo considerar lícito sentido, com base nos dados obtidos nas práticas 29
quando o segurador provar que cumpriu os requisitos de avaliação e selecção dos riscos, sobre a rácio entre
legais estipulados no art. 15.º, n.º 3, do RJCS. Nos os factores de risco específicos deste e os factores de risco
seus termos, para que as condutas diferenciadoras de pessoa em situação comparável mas não afectada por
se consideram justificadas, deverão corresponder a aquela deficiência ou risco agravado de saúde. Note-se
práticas e técnicas de avaliação, seleção e aceitação de que a ASF entende a este respeito que, no caso de
riscos próprias do segurador que sejam objectivamen- o segurador “não dispor de elementos estatísticos e
te fundamentadas, tendo por base dados estatísticos e actuariais suficientes, por razões de dimensão, fia-
actuariais rigorosos considerados relevantes nos termos bilidade e/ou consistência, para a determinação do
dos princípios da técnica seguradora. rácio entre os factores de risco específicos e os fac-
Daqui resulta que o segurador é livre de usar tores de risco de pessoa em situação comparável,
as suas próprias práticas de avaliação e escolha dos mas não afectada por aquela deficiência ou risco
agravado de saúde, não pode a empresa de seguros
15
É o que resulta em geral dos dados do nosso ordenamento jurídico, deixar de aceitar o risco proposto, à tarifa e nas
que reconhecem ao segurador a faculdade de adoptar práticas de recusa sis-
temática da cobertura de certos riscos (art. 26.º, nº 1, b) e n.º 4, b); arts. condições que seriam aplicadas à pessoa em situa-
93.º, n.º 2, b) e 94.º, n.º 2, do RJCS, bem como o art. 18.º do Regime do ção comparável”(16).
sistema obrigatório de contrato de seguro automóvel, aprovado pelo Decre-
to-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto, onde a recusa de riscos é vista como
facto lícito). Dá-se aqui prevalência ao entendimento de que o segurador
deve suportar apenas os riscos para os quais entenda que está em condições 16
Instituto de Seguros de Portugal, Relatório de regulação e supervi-
de calcular um prémio adequado, e que deve poder segmentar a sua carteira são da consuta de mercado 2010, 2011, disponível em http://www.isp.pt/
para tornar os prémios competitivos (cfr. Maria Inês de Oliveira Martins, NR/rdonlyres/A6C32BE2-3E00-4075-ADE4-7B794B410E3C/0/RRS-
“Sobre a discriminação...”, cit., pp. 750-754 e 778-779). CM2010.pdf (consultado pela última vez a 29.04.2013), p. 58.
SEGUROS E DOENÇA ONCOLÓGICA
O cumprimento desta obrigação deve obedecer, rar o tratamento dado ao portador de risco agrava-
com as devidas adaptações, ao regime da comunica- do de saúde com o tratamento dado a uma pessoa
ção sobre exames médicos, o que implica que tal rá- saudável e em saber se a diferença de tratamento
cio deve ser comunicada à pessoa segura ou a quem aplicada ao primeiro se justifica à luz de técnicas se-
esta expressamente indique, devendo tal comunica- guradoras aceitáveis. Porém, a jurisprudência tem
ção ser feita por um médico, salvo se as circunstân- ido mais longe e comparado o tratamento dos su-
cias forem já do conhecimento da pessoa segura ou jeitos pertencentes a certo grupo de risco — num
se puder supor, à luz da experiência comum, que as caso julgado pelo STJ, portadores de VIH — com
conhecia (art. 178.º, n.º s 3 a 6, do RJCS). o tratamento dado a sujeitos integrantes de outros
Em caso de incumprimento de tal dever de in- grupos de risco agravado — vg., os portadores de
formação, ou de discordância ou insatisfação em outra doença crónica igualmente grave(18). Ora,
relação a decisão de recusa ou de agravamento, quando um grupo de risco obtenha um tratamento
pode o proponente apresentar uma reclamação mais desfavorável que os grupos portadores de ris-
junto da ASF, que afere da observância do regime co comparável, considera-se que o tratamento em
aplicável por parte do segurador. Para esses efeitos causa é discriminatório.
quando comunica a decisão de recusa ou de agrava- Em segundo lugar, tal controlo mais estrito
mento e através do mesmo meio e suporte, deve o pode provir da aplicação do princípio da propor-
segurador informar o proponente da possibilidade cionalidade. Na verdade, o princípio da não discri-
30 de reclamar junto da ASF nos termos descritos(17). minação é concretizado em geral pela articulação
Note-se que a apresentação de reclamação junto entre o princípio da igualdade e o princípio da
da ASF pode ter considerável eficácia dissuasora de proporcionalidade nas suas três vertentes, apenas
práticas discriminatórias, já que, como veremos abai- sendo legítimo um tratamento diferenciado que se
xo, é a ASF a autoridade competente para a aplicação mostre adequado, necessário e proporcional em
de sanções contra-ordenacionais nesta matéria. sentido estrito(19).
Por último, saliente-se que o princípio da
igualdade tem um alcance potencial mais alargado Ac. do TRL de 16 de Junho de 2012, processo n.º 1269/09.0TVLSB.
18
A adequação existe quando haja conexão en- §3. Consequências jurídicas da discri-
tre a doença em causa e o tratamento diferenciado minação ilícita
conferido pelo segurador.
A necessidade postula que não exista medida A discriminação ilícita produz várias conse-
alternativa menos gravosa e igualmente eficaz no quências jurídicas.
controlo dos custos esperados, face a determinado Em primeiro lugar, produzem-se consequên-
risco, para a carteira do segurador. Assim, a adop- cias destinadas a reparar o dano causado na esfera
ção de medidas diferenciadoras mais gravosas — da vítima, atribuindo-se-lhe o direito a uma in-
recusa da contratação ou exclusão do risco — im- demnização pelos danos patrimoniais e não patri-
põe o ónus de fundamentação de que não haveria moniais que a discriminação lhe tenha causado (art
medida alternativa compatível com a prática do 7.º, n.º 1, da Lei n.º 46/2006). Tal implica que a
segurador igualmente eficaz e menos lesiva — vg., pessoa discriminada seja colocada na situação em
a previsão de uma franquia ou período de carência que estaria se não tivesse havido discriminação.
ou a determinação de um capital seguro mais baixo. Nos termos da lei, quando atribua uma indem-
Por último, o princípio da proporcionalidade nização em dinheiro, o tribunal deve fixar o seu
em sentido estrito implica que as vantagens a alcan- valor atendendo ao grau de violação dos interes-
çar com a medida — a sustentabilidade financeira ses em causa, ao poder económico do autor das
do segurador e a rentabilidade da sua actividade — infracções e às condições da pessoa alvo da práti-
sejam superiores às desvantagens que esta imponha ca discriminatória (art. 7.º, n.º 2). Porém, no que
31
ao segurado. Uma vez que o ordenamento portu- toca aos danos patrimoniais, parece-os que, quando
guês respeita nesta matéria, por via de princípio, se mostre adequado à reparação do dano causado,
as opções de política comercial do segurador, só tal reposição deve ser feita in natura, e não atra-
poderemos falar de uma violação do princípio da vés de equivalente monetário, correspondendo
proporcionalidade em sentido estrito em situações então à prática do acto negocial devido ou elimi-
de desproporção grave, quando a conduta do se- nação do acto indevido: à celebração com efeitos
gurador constitua um verdadeiro abuso do direito. retroactivos do contrato que tenha sido negado, à
Por maioria de razão, às situações de discrimi- eliminação retroactiva da cláusula de exclusão ou
nação com fundamento em doença grave que sejam do excesso de prémio exigido, ou à destruição dos
ilícitas, porquanto desprovidas de fundamentação, efeitos da declaração de cessação contratual(20).
devem ser equiparadas as situações de discrimina- Em segundo lugar, produzem-se consequências
ção com fundamento em risco agravado de saúde destinadas a punir o responsável pela prática dis-
não real, mas percebido erroneamente assim pelo criminatória, dissuadindo-o de reincidir em com-
segurador. De outro modo, permitir-se-ia aqui ao portamentos semelhantes. Em primeiro lugar, há
segurador, invocando um fundamento que a lei cen- lugar à publicação da sentença condenatória no
sura, tratar de modo diferenciado um sujeito que processo de responsabilidade civil, a expensas do
nem sequer potencialmente poderia a esse respeito segurador, numa das publicações periódicas diárias
ter efectivas circunstâncias de risco agravadas. de maior circulação do país, por extracto, do qual
20
Art. 566.º, n.º 1, do CC.
SEGUROS E DOENÇA ONCOLÓGICA
devem constar apenas os factos comprovativos da do pelo DL n.º 95/2006, de 29 de Maio). Estas
prática discriminatória, a identidade dos ofendidos normas aplicam-se cumulativamente, podendo o
— mediante consentimento expresso destes — e segurado invocar as que lhe forem mais favorá-
dos condenados e as indemnizações fixadas (art 7.º, veis(22). O alcance dos deveres preceituados é, de
n.º 1, da Lei n.º 46/2006). todo o modo, tendencialmente sobreponível, ma-
Por outro lado, há lugar à aplicação de coimas nifestando-se as diferenças no tocante à consequên-
e outras sanções acessórias de carácter contra-or- cia jurídica. Referir-nos-emos, de seguida, por ra-
denacional aos infractores, sendo competente para zões de simplicidade, apenas à articulação entre o
a sua aplicação a ASF, na qualidade de autoridade RJCS e o RJCCG, que são os diplomas mais fre-
reguladora do mercado dos seguros (arts. 9.º, e ss. quentemente invocados nesta sede.
da Lei n.º 46/2006)(21). O segurador tem o dever de informar o ade-
rente do conteúdo do clausulado (arts. 5.º do RJC-
IV. A celebração do contrato de se- CG, que designa este dever como de comunicação,
guro. Em especial, os deveres de e 18.º a 21.º do RJCS, designando este dever como
informação. de informação), levando-o ao seu conhecimento
Na celebração do contrato de seguro, devem por escrito (art. 21.º, n.º 1) e com a antecedência
ser cumpridos deveres de informação, tanto por necessária para que, tendo em conta a importância
parte do segurador, como por parte do tomador e do contrato e a extensão e complexidade das cláu-
32 do segurado. sulas, se torne possível o seu conhecimento com-
pleto e efectivo por quem use de comum diligência
§1. Deveres de informação a cargo do (art. 5.º, n.º 2, RJCCG). Tal implica a comunicação
segurador individualizada e integral do clausulado e a sua re-
dacção com clareza e lisura. Assim, não são permi-
No período que antecede a conclusão do con- tidos modelos de contratação que impliquem que
trato, o segurador enfrenta deveres de informação o segurado apenas tome conhecimento de parte do
e esclarecimento, que lhe advêm de diversas fon- conteúdo da apólice depois de se vincular (cfr. ain-
tes — apenas a titulo de exemplo, do RJCS, do da art. 21.º, n.º 5, do RJCS).
Regime Jurídico das Cláusulas Contratuais Gerais Este dever é complementado por um outro
(aprovado pelo Decreto-Lei 446/85, de 25 de Ou- dever que o RJCS designa como de esclarecimen-
tubro; adiante, RGCCG) do Regime dos contratos to (art. 18.º e 22.º) e o RJCCG designa como de
à distância relativos a serviços financeiros (aprova- informação (art. 6.º), vinculando o predisponen-
te a promover a compreensão efectiva do alcance
21
Nos termos dos arts. 3.º e 4.º do Decreto-Lei n.º 34/2007, de 15 de do clausulado, de modo a conferir ao aderente as
Fevereiro, que regulamenta a Lei n.º 46/2006, é competente para a instru- condições para ponderar sobre os termos da oferta
ção dos processos contra-ordenacionais, bem como para a graduação e apli-
cação das coimas nela previstas, a entidade reguladora cujas competências que lhe é dirigida. Tal implica que o segurador deva
incidam sobre a matéria objecto da infracção. Neste âmbito, das condutas de fazer as aclarações que se mostrarem necessárias
mercado das empresas de seguros, trata-se da ASF (arts. 20.º e ss. e 153.º
e ss. do Regime jurídico de acesso e exercício da atividade seguradora e
resseguradora; Francisco Luís Alves, “A discriminação e a avaliação do risco
nos seguros”, cit., p. 40). 22
Cfr. os arts. 3.º e 21.º do RJCS.
SEGUROS E DOENÇA ONCOLÓGICA
para impedir que, por inexperiência ou desconhe- informação previstos no RJCS, a da resolução do
cimento, o segurado celebre um contrato que não contrato no prazo de 30 dias contados da recepção
se adequa aos seus interesses. O RJCS impõe ainda da apólice(24).
um dever especial de esclarecimento acerca de que Quando esteja em causa um seguro de gru-
modalidades de seguro, entre as que o segurador po, os deveres de informação devem à partida ser
ofereça, são convenientes para a concreta cober- cumpridos por parte do tomador. Assim — em-
tura pretendida — dever que vale contudo apenas bora haja flutuações jurisprudenciais a este respei-
na medida em que a complexidade da cobertura e to –, entende-se que, em caso de incumprimento
o montante do prémio a pagar ou do capital seguro de deveres de informação, é o tomador do seguro
o justifiquem e o meio de contratação o permita de grupo quem deve ser accionado(25). Em caso de
(art. 22.º). Por último, positiva-se expressamente incumprimento deste dever, tratando-se de seguro
o dever de prestar todos os esclarecimentos razoa- de grupo contributivo, o tomador incumpridor de-
velmente solicitados pelo segurado (art. 22.º, n.º verá então, até à data da renovação do contrato ou
2, do RJCS e 6.º, n.º 2, do RJCCG). data aniversária, suportar a parte do prémio que
Quando a cláusula não tiver sido correcta- corresponde ao segurado e responder perante este
mente comunicada, em violação dos deveres de em caso de ocorrência do sinistro (art. 87.º, n.º 3).
informação “lato sensu” previstos no RJCCG, de- Quando se trate de seguro de grupo não-contri-
verá então ser expurgada do contrato (art. 8.o), butivo, o tomador deve reparar o dano que tenha
vigorando, na parte afectada, as normas supletivas causado na esfera do segurado (art. 79.º). Por sua 33
aplicáveis, com recurso, se necessário, às regras de vez, o segurador responde, com base no RJCS ou
integração dos negócios jurídicos (art. 9.º, n.º 1). no RJCCG, pelas insuficiências do modelo escrito
Todo o contrato é, contudo, havido como nulo se com base no qual são cumpridos os deveres.
tal expurgação conduzir a uma indeterminação in- Note-se que, sendo o seguro contratado com
suprível de aspectos essenciais do mesmo ou a um intervenção de mediador, é sobre este, e não sobre
desequilíbrio nas prestações gravemente atentató- o segurador, que impendem os deveres de esclare-
rio da boa fé (art. 9.º, n.º 2). Já a consequência cimento previstos no RJCS (cfr. o art. 22.º, n.º 4),
prevista para a violação dos deveres acolhidos no entendendo a doutrina que tal vale também para os
RJCS é a da responsabilidade civil (art. 23.º, n.º 1 deveres paralelos previstos no art. 6.º RJCCG, e aí
e n.º 4)(23) ou, no caso da violação dos deveres de designados por deveres de informação. Já os deve-
res de informação permanecem na esfera do segu-
23
Esta poderá ter especial interesse, como salienta Margarida Lima rador — este poderá servir-se do mediador para
Rego, “O contrato e a apólice de seguro”, in Temas de Direito dos seguros, A
propósito da nova Lei do Contrato de Seguro, Margarida Lima Rego (coord.), Rocha, Do princípio indemnizatório no seguro de danos, Almedina, Coimbra,
Almedina, Coimbra, 2012, pp. 15-37, pp. 30-31, quando o segurado tenha 2015, pp. 142-143).
sido informado de que lhe seriam atribuídos mais direitos do que aqueles
que a apólice efectivamente lhe vem a atribuir, podendo vir então requerer
24
Esta faculdade encontra-se, todavia, excluída quando a violação do
a reparação do interesse contratual positivo, tudo se passando como se essas dever não tenha razoavelmente afectado a decisão de contratar do tomador
cláusulas ampliativas efectivamente constassem do contrato. Poderá ainda ter ou quando tenha já entretanto ocorrido accionamento da cobertura por ter-
especial interesse quando o próprio regime supletivo aplicável na sequência ceiro (art. 23.º, n.ºs 2, 3 e 4) Recorde-se que se trata de deveres de conteúdo
de expurgação da cláusula (9.º RJCCG) for de difícil compreensão para o paralelo aos que o RJCCG designa por deveres de comunicação.
segurado, permitindo então obviar à sua aplicação (assim, em relação à regra 25
Cfr., com citação de muita jurisprudência anterior, o ac. do STJ de
proporcional aplicável no subseguro, Francisco Barros Ferreira Rodrigues 20 de Maio de 2015, processo n.º 17/13.5TCGMR.G1.S1.
SEGUROS E DOENÇA ONCOLÓGICA
cumprimento de tais deveres, mas não se exime à Assim, este tipo de modelos de regulação, que
responsabilidade pela actuação dos sujeitos de que colocam sobre o segurado o encargo de identificar
se sirva para o cumprimento das suas obrigações(26). aquilo que o segurador quer saber e prestar-lhe
informação em conformidade, têm vindo a ser
§2. Obtenção de informação sobre o es- considerados demasiado onerosos para o segurado
tado de saúde do segurado. A decla- e demasiado favoráveis ao segurador, tendo sido
ração inicial do risco e o regime dos substituídos, nas legislações mais recentes, por
exames médicos regimes que apenas impõe ao segurado o dever de
Para que o segurador consiga calcular um pré- responder correctamente às questões que o segu-
mio adequado ao risco que suportará, necessita de rador lhe tenha colocado. Por isso, a doutrina tem
obter informação sobre ele. No que toca às condi- considerado que, apesar da letra da lei, este dever
ções de saúde do segurado, a informação é obtida deve ser limitado por aplicação do princípio da boa
sobretudo através das declarações prestadas pelo fé e das normas sobre protecção de dados pessoais
próprio segurado e através dos exames médicos sensíveis. Note-se que os tribunais podem ou não
que o segurador lhe proponha. aceitar estas interpretações, embora haja argumen-
A prestação de informações sobre o segurado, tos sólidos a seu favor.
previamente à celebração do contrato, é enquadra- Com apoio no princípio da boa fé, parte-se de
da pelo regime da declaração inicial do risco. que o critério da relevância se refere àquele segu-
34 De acordo com a letra da lei, o segurado en- rador em concreto(27), considerando-se nessa base
contra-se obrigado a declarar todas as circuns- que a redacção do questionário fornece pelo me-
tâncias que conheça e razoavelmente deva ter por nos orientação ao segurado quanto às matérias que
significativas para a apreciação do risco pelo segu- são relevadas para o segurador (28)
; ou que apenas
rador, ainda que não especificamente perguntadas podem ser relevadas as circunstâncias em cujo con-
por este (art. 24.º, n.ºs 1 e 2). Ou seja, o segu- teúdo, ao menos de um modo implícito, o segura-
rado deve informar sobre os factos que efectiva- dor tenha mostrado interesse durante o processo
mente conheça e deva, com o cuidado normal, ter
por relevantes para a apreciação do risco, devendo Luís Poças, O dever de declaração inicial do risco no contrato de seguro,
27
responder com verdade às questões que o segura- Almedina, Coimbra, 2013, pp. 350-351.
dor lhe coloque através de questionário e fornecer Júlio Manuel Vieira Gomes, “O dever de informação do (candidato a)
28
O regime da declaração inicial do risco releva Apenas a pessoa segura ou quem esta indi-
na interpretação do art. 216.º do RJCS, que disci- que tem direito a aceder ao resultado dos exames
plina a cobertura de doenças preexistentes quando médicos — o que não podia deixar de ser, sendo
esteja em causa um seguro de saúde. Nos termos esta titular da informação relativa à sua saúde(35).
do n.º 1 do art., as doenças preexistentes, conheci- Por outro lado, o segurador não pode recusar-se a
das da pessoa segura à data da realização do contra- fornecer à pessoa segura todas as informações de
to, consideram-se abrangidas na cobertura conven- que disponha sobre a sua saúde, devendo, quando
cionada, salvo se o contrato dispuser o contrário, instado, disponibilizar tal informação por meios
de um modo especificado ou genérico. Ora, tal só adequados do ponto de vista ético e humano. A
é assim desde que não tenha havido incumprimento comunicação de tal informação deve ser feita por
do dever de declaração inicial do risco no tocante intermédio de médico, salvo se as circunstâncias
a tais doenças. forem já do conhecimento da pessoa segura ou se
O segurador pode ainda obter informação so- puder supor, à luz da experiência comum, que já as
bre o estado de saúde do segurado propondo-lhe a conhecia(36). Em todo o caso, a comunicação apenas
realização de exames médicos (arts. 177.º e 178.º). pode ter lugar caso a pessoa segura a solicite, em
É-lhe terminantemente vedado pedir ao candidato nome do direito a não conhecer o próprio estado
a realização de testes genéticos, sendo-lhe vedado de saúde.
também utilizar informação obtida através de tes- Todo este regime vale também para a comuni-
36 tes genéticos anteriormente realizados, ou pedir cação ao tomador do seguro ou segurado quanto ao
ou utilizar informação genética resultante da co- efeito do resultado dos exames médicos na deci-
lheita e registo de antecedentes familiares(33). são do segurador, designadamente no que respeite
O segurador deve entregar ao candidato, antes à não aceitação do seguro ou à sua aceitação em
da realização dos referidos exames, discriminação condições especiais (art. 178.º, n.º 5).
exaustiva dos exames, testes e análises a realizar; Note-se que o médico que realize os exames
informação sobre entidades junto das quais os re- em causa não pode comunicar livremente o seu re-
feridos actos podem ser realizados; informação sultado ao segurador. Este permanece “vinculado,
sobre o regime de custeamento das despesas com como qualquer outro médico, à deontologia pro-
a realização dos exames e, se for o caso, sobre a fissional e ao segredo médico na sua abrangência
forma como o respectivo custo vai ser reembolsa- total”(37); mas, mediante consentimento do doente,
do a quem o financie; e identificação da pessoa, ou poderá levantar este segredo e comunicar tais re-
entidade, à qual devam ser enviados os resultados sultados ao segurador. Este consentimento deve-
dos exames ou relatórios dos actos realizados(34). rá, porém, ser específico, informado, livremente
Cabe ao segurador provar que cumpriu este dever revogável e consentâneo com a cláusula da ordem
de informação.
35
Art. 178.º, n.º 3, do RJCS, e art. 3.º, n.º 1, da Lei n.º 12/2005.
33
Art. 12.º da Lei n.º 12/2005, de 26 de Janeiro, relativa à informação 36
Art. 178.º, n.º 4, do RJCS.
genética pessoal e informação de saúde. Note-se que, tratando-se de seguro 37
Maria do Céu Rueff, “Dever de informar, conflitos de interesse e
de vida é proibido utilizar qualquer tipo de informação genética para recusar deontologia na relação tripartida cidadão-médico-seguradora (A propósito
um seguro de vida ou estabelecer prémios mais elevados (art. 12.º, n.º 1). do Novo Regime Jurídico do Contrato de Seguro, aprovado pelo Decreto-
34
Art. 178.º, n.ºs 1 e 2, do RJCS -Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril)”, Lex Medicinae, 13, 2010, pp. 43-56, p. 54.
SEGUROS E DOENÇA ONCOLÓGICA
pública. Claro está que, no caso da sua recusa ou re- agravamento do risco, o não pagamento determi-
vogação, o segurador poderá daí livremente retirar na a resolução automática do contrato na data do
consequências para efeitos de recusa de celebração vencimento.
do contrato ou alteração dos termos “propostos”. A tutela do segurado face a este regime que o
deixa imediata e automaticamente sem cobertu-
V. Execução do contrato ra em caso de não pagamento é feita apenas por
§1. Prémio via informativa, nos termos do art. 60.º. Nos seus
termos (n.ºs 1 e 2), o segurador deve dirigir ao
Geralmente, os contratos de seguro prevêem segurado um aviso de pagamento com uma ante-
que o segurado proceda periodicamente ao paga- cedência de pelo menos trinta dias em relação à
mento de prémios de seguro, para contrabalançar a data em que se vence o prémio, informando sobre
cobertura do risco por parte do segurador, embora as consequências da falta de pagamento. No entan-
também sejam na prática frequentes os seguros em to, em contratos em que a periodicidade de paga-
que o segurado paga um prémio único, aquando da mento dos prémios seja de três meses ou menos, o
celebração do contrato. segurador está dispensado de fazer tal aviso antes
As consequências do não pagamento do prémio do vencimento de cada prestação, desde que preste
são, para a generalidade dos seguros, definidas por toda a informação relativa aos prémios em sede de
normas legais obrigatórias. formação do contrato.
O regime em apreciação rege-se pela máxima Face aos tipos de seguros que aqui analisamos, 37
“no premium, no risk”, determinando que a cober- este regime imperativo não vale quando esteja em
tura dependa sempre de ter sido pago o prémio re- causa um seguro de vida, valendo aí o que dispu-
lativo a esse período (art. 59.º). Uma vez chegada a ser o contrato a este respeito, podendo o contrato
data de vencimento do prémio, não se concede ao prever um regime idêntico ao que acabámos de ver
segurado qualquer período suplementar para pro- (art. 57.º, n.º 2, b), e 58.º do RJCS).
ceder ao respectivo pagamento, cessando imediata-
mente a cobertura (art. 61.º). Se o não pagamento §2. Pagamento da prestação seguradora
respeitar ao prémio inicial ou a sua primeira frac- Para que o segurador fique em condições de
ção, o contrato resolve-se automaticamente, sendo proceder à prestação convencionada, é necessário
destruídos retroactivamente os seus efeitos. que seja levada ao seu conhecimento a ocorrência
Se tal não pagamento respeitar a um prémio de um sinistro. Em princípio, é o segurado quem
subsequente, determina a cessação do contra- está em melhor posição de tomar conhecimento de
to com efeitos para o futuro: tratando-se de uma tal ocorrência, dada a sua proximidade existencial
anuidade subsequente, ou da primeira fracção de face ao risco.
uma anuidade, impede a prorrogação do contrato. Assim, o RJCS determina que o segurado e o
Tratando-se de uma fracção de prémio no decur- tomador devem notificar o segurador da ocorrên-
so de uma anuidade, de um prémio de acerto ou cia do sinistro, explicitando em tal notificação as
parte de prémio variável, ou de prémio adicional circunstâncias da verificação do sinistro, as even-
resultante de modificação do contrato fundada em tuais causas da sua ocorrência e respectivas conse-
SEGUROS E DOENÇA ONCOLÓGICA
quências. O prazo para o fazerem é de oito dias prestar logo que termine este processo, dando-
contados da tomada de conhecimento efectiva do -lhe ainda trinta dias para o fazer (art. 104.º). No
sinistro (art. 100.º, n.ºs 1 e 2). Deverão ainda pres- entanto, se o segurador protelar desrazoavelmen-
tar ao segurador todas as informações relevantes, te este processo, deve considerar-se, à luz do art.
relativas ao sinistro e às suas consequências, que 805.º, n.º 3, do CC, e do princípio da boa fé, que
por ele sejam solicitadas (n.º 3). está em demora na sua prestação, devendo pagar
O contrato pode prever a aplicação de conse- juros indemnizatórios.
quências jurídicas para o caso de não cumprimen- Note-se ainda que, quando o segurado seja
to, mas estas não podem ser(38). um consumidor, vale o Decreto-lei sobre práticas
Nos termos do art. 101.º, o contrato apenas comerciais desleais(39), que considera uma prática
pode prever, em regra, como consequência do in- comercial agressiva em qualquer circunstância a
cumprimento, a redução da prestação do segurador que obrigue o segurado que pretenda solicitar in-
atendendo ao dano que o incumprimento dos deve- demnização ao abrigo de uma apólice de seguro,
res lhe cause. Esta consequência apenas se pode pro- a apresentar documentos que, de acordo com os
duzir quando o segurado ou tomador tenham agido critérios de razoabilidade, não possam ser consi-
com negligência; porém, tal negligência presume-se, derados relevantes para estabelecer a validade do
cabendo aos obrigados provar que agiram sem culpa. pedido, ou deixar sistematicamente sem resposta
O contrato pode ainda prever a exoneração total do a correspondência pertinente, com o objectivo de
38 segurador, mas apenas quando a violação dos deveres dissuadir o consumidor do exercício dos seus direi-
seja dolosa e lhe cause dano significativo. tos contratuais (art. 12.º). Esta prática constitui o
A ocorrência do sinistro determina a constitui- segurador no dever de reparar os danos causados
ção do dever de prestar do segurador. No entanto, (art. 15.º), constituindo ainda uma contra-ordena-
para que o segurador deva efectuar a prestação, é ção (art. 21.º).
ainda necessário que confirme a ocorrência do si- Por último, quando se trate de um seguro
nistro e as suas causas, circunstâncias e consequên- de vida de poupança, é aplicável a Circular n.º
cias, e pode ser ainda necessária a prévia quanti- 10/2009 da ASF, que regula as condições de paga-
ficação das consequências do sinistro (art. 102.º). mento do valor de resgate e do valor de reembolso
Porém, a lei não considera que o segurador deva no vencimento do contrato.
38
Tal vale para os seguros que cubram riscos de massa, onde se inserem
os contratos que aqui temos em conta. 39
Decreto-Lei n.º 57/2008, de 26 de Março.
EMPODERAR PARA HUMANIZAR
considerar tais coisas como segredos sagrados. Então, se diante da inaptidão atribuída àquele para expres-
eu mantiver este juramento e não o quebrar, possa des- sar sua vontade, sentia-se obrigado a deliberar pelo
frutar honrarias na minha vida e na minha arte, entre
todos os homens e por todo o tempo; porém, se transigir cliente. Seguindo esta mesma linha, o primeiro Có-
e cair em perjúrio, aconteça-me o contrário.(2) digo de Ética Médica, elaborado por Thomas Per-
Concorda-se com Wanssa(3) quando ela afirma cival, em 1803, não atribui importância ao direi-
que o caráter sacerdotal do médico foi mantido, to de liberdade de escolha; a mesma tendência se
o que se perpetuou pelos séculos seguintes. O ju- observou na elaboração de estatuto deontológico
ramento de Hipócrates torna explícito que o pro- pela American Medical Association (AMA), em 1847,
fissional da saúde deve agir em conformidade com acentuando o caráter paternalista e autoritário ao
os princípios de beneficência e não maleficência, dispor que “não há outro tribunal senão a própria
segundo os quais deve-se procurar o bem maior ao consciência do médico”. (4)
enfermo e evitar provocar danos. Em que pese a O questionamento ao modelo paternalista de
importância destes princípios, é mister ressaltar relacionamento entre médico e paciente e a de-
que não havia espaço para autonomia individual mande pelo respeito à autonomia é recente. Wans-
do paciente, o médico, cujo poder não mais se sa afirma que a primeira ação judicializada por
fundamentava na religião, mas no conhecimento, ofensa ao princípio da autonomia data de 1914,
era o único capaz de compreender o processo de nos Estados Unidos, época em que os Tribunais
adoecimento, eleger e prescrever o tratamento que passaram a reconhecer que intervenções realizadas
julgasse mais adequado. O bom paciente deveria sem consentimento violavam o princípio da 41
manter postura submissa e obediente, da obediên- autodeterminação(5).
cia resultaria o sucesso do tratamento, não havia No pós II Guerra, notadamente em resposta às
espaço para autonomia. atrocidades cometidas contra judeus nos campos de
O fortalecimento do princípio da autonomia concentração, a Declaração Universal dos Direitos
vem se contrapor ao paternalismo exacerbado de Humanos (1948), além de documentos posteriores
outrora, cujo único objetivo era a busca da cura voltados à promoção do direito da saúde, a autono-
tendo como norte os princípios da beneficência mia do paciente, instrumentalizada através do con-
e da não maleficência. Segundo o ethos anterior, sentimento informado, assume importante papel
quem sabia mais podia mais, sendo esta lógica apli- entre os princípios da bioética e do biodireito.
cada ao relacionamento entre médicos e pacientes. A expressão “consentimento informado” ape-
O Juramento de Hipócrates não menciona a nas ganha significado em 1957, em sentença pro-
vontade do paciente, considerado incapaz para de- ferida em Corte de Apelação da Califórnia, quando
cidir sobre si, o médico sabia o que era melhor e, o magistrado decidiu pelo direito de paciente que
ficara paraplégico após procedimento médico. O
teor da decisão alertou para a necessidade de se
2
REZENDE, JM. À sombra do plátano: crônicas de história da medici-
na [online]. São Paulo: Editora 4
COSTA, Sérgio; DINIZ, Debora. Direitos dos Pacientes na Tomada
Unifesp, 2009. O juramento de Hipócrates. pp. 31-48. ISBN de Decisão. COSTA, Sérgio; DINIZ, Debora. Bioética: ensaios. Brasília: Le-
978-85-61673-63-5. tras Livres, 2001, p. 35 -39.
3
WANSSA, Maria do Carmo Demasi. Autonomia versus Beneficência. 5
WANSSA, Maria do Carmo Demasi. Autonomia versus Beneficência.
In: Rev. bioét (Impr.) 2011; 19(1): 105 — 17. In: Rev. bioét (Impr.) 2011; 19(1): 105 — 17.
EMPODERAR PARA HUMANIZAR
No mesmo norte, Dantas e Araújo(14) trazem em 1966, uma série de relatos de pesquisas desen-
um conceito de bioética que remete a um sistema volvidas com pessoas tradicionalmente tidas como
normativo: abaixo da humanidade, quais sejam, presidiários,
Em nosso entender, ao nos referirmos à Bioética, temos pacientes em manicômios, recém-nascidos, entre
de destacar o seguinte: a Biologia (bius = vida; logos= outros, mas todas teoricamente incapazes de “as-
estudo), enquanto estudo da Vida, pode ser encarada no sumir uma postura moralmente ativa diante do
sentido de ciência, ou seja, de estudo científico; contu-
do, quando se parte deste conhecimento para uma apli- pesquisador e do experimento” . Os experimen-
(17)
cação eticamente correta, portanto, valorativa, não se tos foram conduzidos sem o consentimento dos
há de falar em ciência, mas, sim, de um conjunto de pacientes, posto que o pesquisador os considerava
normas ou técnicas que devem ser respeitadas, inaptos a compreender o que se passava, e a forma
especialmente, levando-se em conta o Valor (ou como a investigação foi conduzida levou a autora
princípio) Dignidade da Pessoa Humana o que,
no caso brasileiro é, inclusive, imperativo cons- a uma conclusão que deve ser compartilhada, a de
titucional (CF 88, art. 1º, III). que imoralidade e falta de ética não era exclusiva
dos médicos nazistas, mas também presente nos
(Grifos nossos)
médicos do pós II Guerra e, com pesar, há de se
A bioética se revela como uma vontade cons- reconhecer que é existente também na atualidade.
ciente, o agir ético, tomando como valor maior o Percebeu-se então que apenas as declarações de
respeito à vida. Diniz(15) relata a história do mé- direitos não seriam suficientes, sendo necessário
dico anestesista Henry Beercher(16) que publicou, passar a tratar do assunto nos assentos da academia,
44
originando-se a disciplina bioética.
14
DANTAS, Ivo; ARAÚJO, Ionnara Vieira de. Dignidade da Pessoa Hu-
Sgreccia(18), ao elencar os princípios da bioé-
mana e Bioética. Revista da Faculdade de Direito da UFG, v. 32, n. 2, p. 85-97, tica, relaciona como princípios gerais a defesa da
jul./dez. 2008, p. 94. vida, vida digna, o que importa garantia de direito
15
DINIZ, Débora. Henry Beecher e a História da Bioética. COSTA, Sér- à saúde e assistência; liberdade e responsabilidade,
gio; DINIZ, Debora. Bioética: ensaios. Brasília: Letras Livres, 2001, p. 21-26.
16
Logo no início, o autor esclarece que o artigo se trata de relatos colocados em conjunto, como se a responsabili-
de experimentação em pacientes não em benefício destes, mas de tercei- dade fosse um parâmetro para a liberdade, o que
ros. Afirma, inicialmente, que todos concordam que violações éticas devem
ocorrer, a questão prática é com que frequência, ele realmente demonstra de fato deve acontecer; princípio da totalidade ou
com dados empíricos que comportamentos eticamente questionáveis não são princípio terapêutico, considerando o ser humano
incomuns, relatando conhecimento de pelo menos 500 artigos nesta situa-
ção. Sobre o consentimento esclarecido, Beecher (1966, p. 368 e ss.) reco- em sua completude; princípio da solidariedade e
nhece sua importância, porém afirma o fato de que em um estudo realizado subsidiariedade, o que seria a socialização da medi-
com número elevado de pessoas, provavelmente boa parte delas desconhece
os riscos que que insurgem contra a vida ou a saúde delas, e poderiam es- cina, o ideal de alcance universal.
colher não passar por eles caso lhes fossem informados, e boa parte dos Os princípios da beneficência, respeito e justi-
pesquisadores sabem disto, motivo pelo qual o médico diz que nem sempre
os perigos são revelados aos sujeitos. O artigo publicado traz uma última ça na repartição de ônus e riscos da experimenta-
crítica extremamente relevante, afirma-se que os ganhos esperados devem ção são elencados como princípios da bioética nor-
ser ponderados com os riscos envolvidos, ao mesmo tempo, os fins previstos
não justificam os meios questionáveis. Em outras palavras, a investigação não
se torna ética ao final, a mácula inicial contamina todo o procedimento. O
fato é que Beecher (1966, p. 372) reconhece a fragilidade bioética das ações
17
DINIZ, Débora. Henry Beecher e a História da Bioética. COSTA, Sér-
realizadas nos 22 (vinte e dois) estudos publicados, não propõe que tenham gio; DINIZ, Debora. Bioética: ensaios. Brasília: Letras Livres, 2001, p. 21-26.
o status moral validado ao final, mas friamente demonstra que esta pode ser 18
SGRECCIA, Elio. Manual de Bioética: fundamentos e ética biomédica.
uma prática recorrente entre os médicos. Tradução Mário Matos. Cascais: Princípia Editora, 2009, p. 18.
EMPODERAR PARA HUMANIZAR
te americana, mas crê-se que podem ser definidos mento livre e devidamente esclarecido para as in-
também como princípios universais. Cumpre ressal- tervenções que lhes são destinadas.
tar que em outubro de 2005, a Conferência Geral Não maleficência significa que o pesquisador
da Organização das Nações Unidas para Educação, deve se abster de fazer o mal, avaliar os riscos e
Ciência e Cultura — UNESCO adotou a Declaração evitar os danos previsíveis. Para cumprir este prin-
Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, que cípio, é preciso evitar situações de perigo para os
acrescentou os seguintes princípios — naturalismo sujeitos da pesquisa, avaliar se os procedimentos
(vida, religiosidade, racionalidade); contratualismo; adotados são realmente aqueles capazes de evitar
personalismo (princípio da dignidade). ou minimizar ao máximo os danos individuais ou
O princípio da beneficência e o princípio da coletivos e sempre avaliar se não existiria um pro-
não maleficência caminham juntos nas atividades tocolo de pesquisa mais seguro(22).
clínicas e de pesquisa. O primeiro, segundo Koeri- O princípio da autonomia, segundo Sgrec-
ch, Machado e Costa(19), está relacionado com o de- cia(23), traduz o respeito aos direitos fundamentais
ver de fazer bem ao outro e de promover o que for do ser humano, no qual se insere a autodetermi-
melhor para seus interesses, potencializar o bem e nação, aduz o autor que o mandamento se situa na
reduzir o mal, de modo que o pesquisador se com- máxima de não se fazer a outrem aquilo que não
prometa a avaliar os riscos e benefícios e buscar ao se deseja para si, revelando um sentido intrínse-
máximo estes últimos, minorando aqueles fatores. co de respeito mútuo. Fala ainda que se funda na
Segundo Sgreccia(20) o princípio da beneficência existência tácita de uma aliança terapêutica entre o 45
corresponde ao fim primário da medicina, promo- profissional e o doente ou sujeito da pesquisa, e no
ver o bem do paciente e evitar o mal. Aduz o autor consentimento para os protocolos a serem seguidos
que não significa apenas o dever de se abster e evi- no tratamento ou na pesquisa. Para aqueles que não
tar o dano, mas se investe em um comportamento podem expressar a vontade, Sgreccia(24) sabiamen-
positivo de praticar o bem e, inclusive, prevenir o te responde que esta será suprida com o recurso
mal. Koerich, Machado e Costa(21) observam que aos princípios da beneficência e da justiça.
o profissional da saúde, no trato com o paciente, Koerich, Machado e Costa(25) dizem que auto-
tem o vício de entender que sabem o que é melhor nomia diz respeito ao autogoverno ou o poder de
para este último, todavia, deve-se considerar que o decidir sobre si mesmo, expressa liberdade de agir
paciente sabe o que é apropriado para si, de modo e de pensar, cujos únicos limites deveriam ser im-
que deve fazer suas próprias escolhas, guiados pelo perativos legais e o dever de não causar danos a
princípio da autonomia e expressando o consenti-
22
Koerich MS, Machado RR, Costa Eliane. Ética e bioética: para dar
início à reflexão. In: Revista Texto Contexto Enfermagem, 2005 Jan-Mar;
19
Koerich MS, Machado RR, Costa Eliane. Ética e bioética: para dar 14(1):106-110.
início à reflexão. In: Revista Texto Contexto Enfermagem, 2005 Jan-Mar; 23
SGRECCIA, Elio. Manual de Bioética: fundamentos e ética bio-
14(1):106-110. médica. Tradução Mário Matos. Cascais: Princípia Editora, 2009, p. 231.
20
SGRECCIA, Elio. Manual de Bioética: fundamentos e ética bio- 24
SGRECCIA, Elio. Manual de Bioética: fundamentos e ética bio-
médica. Tradução Mário Matos. Cascais: Princípia Editora, 2009, p. 231. médica. Tradução Mário Matos. Cascais: Princípia Editora, 2009, p. 231.
21
Koerich MS, Machado RR, Costa Eliane. Ética e bioética: para dar 25
Koerich MS, Machado RR, Costa Eliane. Ética e bioética: para dar
início à reflexão. In: Revista Texto Contexto Enfermagem, 2005 Jan-Mar; início à reflexão. In: Revista Texto Contexto Enfermagem, 2005 Jan-Mar;
14(1):106-110. 14(1):106-110.
EMPODERAR PARA HUMANIZAR
terceiros. O direito moral do ser humano à autono- vontade em sua máxima potência: a vontade livre e
mia, implica aos demais o dever de respeito, moti- declarada tem força de lei entre as partes(29).
vo pelo qual as ações de investigação e tratamento De fato, grande foi a evolução em termos de
devem ser desenvolvidas mediante consentimento autonomia e liberdade alcançada à luz do liberalis-
esclarecido e, em se tratando de sujeitos com dis- mo, todos são livres e iguais perante a lei, e, salvo
cernimento reduzido, como crianças e deficientes mandamento jurídico-normativo, ninguém pode
mentais, Koerich, Machado e Costa(26) afirma que ser coagido a fazer algo contra a vontade. Koerich,
se deve agir pautando-se na responsabilidade. Machado e Costa(30) declaram que a autonomia não
Neste sentido, a ausência de capacidade para nega a existência de influências externas à forma-
expressar a própria vontade não pode ser encara- ção da vontade, mas confere ao indivíduo a possibi-
da como um cheque em branco para o médico ou lidade de refletir sobre elas e decidir conforme sua
pesquisador, conferindo a estes direitos irrestritos conveniência.
ou ilimitados na condução das ações de investiga- Todavia, o que se pretende aqui é defender que
ção ou terapêuticas. A história já demonstrou quão não basta reconhecer o direito à autonomia no pla-
perigoso isto seria, servem de exemplo os horrores no formal, é preciso capacitar ou empoderar o en-
praticados pelos cientistas alemães no holocausto fermo a exercê-la de forma plena. É necessário que
judeu e os casos de Beecher e da pesquisa sobre a a satisfação das necessidades existenciais humanas
evolução da sífilis quando já existia protocolo de seja definida como prioridade na atenção à saúde, o
46 tratamento, em Tuskegee, no Alabama. Mais do que foco não deve ser a doença, mas o homem ou a mu-
relações interindividuais, está em jogo um compor- lher, o ser humano na sua concretude. Sob este en-
tamento digno de respeito à toda humanidade(27). foque, vê-se que empoderar o indivíduo a aderir ao
Godinho(28) proclama a autonomia da vontade tratamento e participar ativamente do processo de
como “um dos mais importantes alicerces do fe- tomada de decisão, fazendo valer sua vontade, ex-
nômeno jurídico”, segundo o autor, a expressão pressa a partir do consentimento livre e esclareci-
da vontade se revela como fonte de libertação do do, é condição necessária à humanização da saúde.
indivíduo, sendo a autonomia a faculdade de ditar
as próprias regras. Sustenta ainda que o alcance da 4. Empoderamento do Paciente na
autonomia nem sempre se revelou homogêneo, Perspectiva da Humanização
fazendo alusão ao período anterior às revoluções Em linhas gerais, pode-se conceituar humani-
burguesas e aos movimentos que eclodiram nos sé- zar como o ato de tornar mais humano, benévolo,
culos XVIII e XIX, em que se primava pelo valor da acolhedor. Ao mesmo tempo, ao se falar em huma-
liberdade consagra-se o princípio da autonomia da nização de áreas do saber científico ou atividades
profissionais, atribui-se ao termo humanizar o
26
Koerich MS, Machado RR, Costa Eliane. Ética e bioética: para dar
início à reflexão. In: Revista Texto Contexto Enfermagem, 2005 Jan-Mar;
14(1):106-110. 29
GODINHO, Adriano Marteleto. Direito ao Próprio Corpo. Curitiba:
27
DINIZ, Debora. Henry Beecher e a História da Bioética. COSTA, Sér- Juruá, 2014. p. 92.
gio; DINIZ, Debora. Bioética: ensaios. Brasília: Letras Livres, 2001, p. 21-26. 30
Koerich MS, Machado RR, Costa Eliane. Ética e bioética: para
28
GODINHO, Adriano Marteleto. Direito ao Próprio Corpo. Curitiba: dar início à reflexão. In: Revista Texto Contexto Enfermagem, 2005 Jan-Mar;
Juruá, 2014. p. 92. 14(1):106-110.
EMPODERAR PARA HUMANIZAR
significado de inserir o ser humano como o centro ligado ao tema objeto deste artigo, protagonismo,
em torno do qual e para o qual devem convergir corresponsabilidade e autonomia dos sujeitos e co-
todos os interesses. Humanização da saúde é, pois, letivos, descritos nos seguintes termos:
o resgate de valores humanos e éticos e humani- PROTAGONISMO, CORRESPONSABILIDADE E AU-
tários — de respeito, solidariedade e compaixão TONOMIA DOS SUJEITOS E COLETIVOS
— nas práticas de gestão, atendimento, cuidados e Qualquer mudança na gestão e atenção é mais concre-
intervenções em saúde. ta se construída com a ampliação da autonomia e
Concorda-se com Rios quando ela afirma que a vontade das pessoas envolvidas, que comparti-
humanização tem fundamento no “respeito e valo- lham responsabilidades. Os usuários não são só
pacientes, os trabalhadores não só cumprem or-
rização da pessoa humana, e constitui um processo dens: as mudanças acontecem com o reconheci-
que visa à transformação da cultura institucional mento do papel de cada um. Um SUS humanizado
por meio da construção coletiva de compromissos reconhece cada pessoa como legítima cidadã de direitos e
éticos e de métodos para as ações de atenção à saú- valoriza e incentiva sua atuação na produção de saúde.(33)
de e de gestão dos serviços”(31). Ainda nas palavras (Grifos nossos)
de Rios, “A humanização reconhece o campo das A partir dos princípios propostos pelo Huma-
subjetividades como instância fundamental para a nizaSUS, portanto, a humanização da saúde passa
melhor compreensão dos problemas e para a bus- pela ampliação da autonomia da vontade de pes-
ca de soluções compartilhadas”(32). Compreende soas que compartilham responsabilidades, usuá-
autonomia, participação e corresponsabilidade de rios, funcionários e gestores devem exercer seus 47
todos os atores envolvidos, profissionais, gestores respectivos papeis sob a luz dos valores de igual-
e usuários. dade e autodeterminação. Fala-se em igualdade,
Por que humanizar? Pode parecer banal falar porém mediante respeito às diferenças, que devem
em humanização em relações humanas, todavia, ser percebidas, declaradas e, caso necessário, esta-
diante de frequentes relatos de violência institu- belecer estratégias de superação.
cional, maus tratos violações a direitos persona- No mesmo norte, a Lei nº 13.146/2015, que
líssimos e desrespeito a autonomia e liberdade de cria o Estatuto da Pessoa com Deficiência, contém
pacientes e familiares, vê-se claramente quão ur- regra sobre o exercício da autonomia na atenção à
gente é preciso resgatar valores humanitários nas saúde nos seguintes termos:
relações de saúde. Art. 18. É assegurada atenção integral à saúde da pes-
Nesta seara, o Ministério da Saúde lançou, em soa com deficiência em todos os níveis de complexida-
2003, a Política Nacional de Humanização (PNH), de, por intermédio do SUS, garantido acesso universal
também conhecida como HumanizaSUS, pautando- e igualitário.
-se nos princípios da transversalidade; indissociabi- § 1o É assegurada a participação da pessoa com deficiência
lidade entre atenção e gestão; e, mais intimamente na elaboração das políticas de saúde a ela destinadas.
§ 2o É assegurado atendimento segundo normas éticas e
31
RIOS, Izabel Cristina. Humanização: a essência da ação técnica e
ética nas práticas de saúde. In: Revista Brasileira de Educação Médica, 33(2): 33
Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de atenção à saúde. De-
253-261; 2009. partamento de Atenção Básica. Política Nacional de Humanização. Brasília:
32
Idem. MS; 2004.
EMPODERAR PARA HUMANIZAR
clínicos e políticas assistenciais podem não ser ple- ram determinado protocolo de tratamento,
namente eficazes. para a condição de participante do proces-
Corroborando com este entendimento, tem-se so de tomada de decisão e escolha da meto-
o seguinte depoimento de usuária de serviço pú- dologia mais adequada para si.
blico de saúde: 2. As práticas educativas aparecem como
Quando a gente vai pra consulta os doutor não tem tempo instrumento eficaz para trazer o paciente
de olhar nem pra gente, quem dirá de escutar nossos para a posição de agente ativo, de modo
medos, nossas dúvidas, mas aqui no grupo não, a gente
fala o que pensa, o que vive e entende melhor das coisas, a compreender melhor a doença que lhe
ai a gente se sente importante, passa a querer ensinar os acomete, escolher, conforme orientações
outros, a cuidar da gente, a viver melhor.(35) do profissional da saúde, a técnica médica
Médicos e demais profissionais da saúde pre- mais adequada a ser seguida. A perspectiva
cisam compreender que o enfermo não é incapaz, é que, compreendendo o protocolo adota-
ele não precisa de tutela, é sujeito autônomo e esta do para controlar sintomas e curar a doença
autonomia pode se revelar em autodeterminação e, principalmente, participando da escolha
também nos cuidados com a saúde. A ausência de do tratamento mais adequado para si, o
conhecimento específico não incapacita, deve ser paciente colabore mais facilmente e tenha
superada com práticas educativas e diálogo aberto como resultado a eficácia do tratamento.
e horizontal, recebendo os esclarecimentos neces- 3. O entendimento de empoderamento do pa-
sários, sendo respeitado em sua autonomia, com- ciente com intenção de conduzi-lo a postura 49
preendendo os procedimentos e participando das de aderência é recente e ainda sofre resistên-
decisões, o paciente perceberá sua importância e cia de grande parte dos médicos, de conduta
se sentirá corresponsável pelo êxito do tratamento, tradicionalmente paternalista e cuja forma-
como resultado, cumprirá mais facilmente as pres- ção ainda não foi capaz de superar a cultura
crições e aumentará as chances de cura. beneficente proposta na ética hipocrática.
4. Os princípios da beneficência e autonomia
5. Considerações Finais são coexistentes e harmônicos, devendo am-
bos serem observados nos respectivos âm-
Diante dos fatos analisados, pode.se chegar às bitos de competência, aquele como dever
seguintes conclusões: de o médico buscar o bem maior para o seu
1. Empoderamento do paciente é o processo cliente, este como atribuição de poder ao
de conscientização e informação através do paciente para decidir o que é melhor para si.
qual o paciente sai do estado de aceitação 5. É preciso empoderar para humanizar.
e obediência, no qual apenas segue as con- O empoderamento do paciente pode
dutas prescritas sem questionar ou mesmo ser entendido como princípio e como
compreender os motivos que condiciona- instrumento de humanização da saúde,
uma vez que conduz ao exercício do
35
TADDEO, Patrícia da Silva et. al. Acesso, prática educativa e empo- direito humano de autodeterminação nas
deramento de pacientes com doenças crônicas. In: Ciência & Saúde Coletiva.
17 (11): 2923-2930, 2012.
relações de saúde.
ALGUNAS REFLEXIONES ACERCA DE LA EXISTENCIA MISMA, DEL
CONTENIDO Y DE LOS LÍMITES (CON ESPECIAL REFERENCIA AL CÁNCER
QUE AFECTA A FUNCIONES REPRODUCTIVAS) DEL DERECHO A LA
PROCREACIÓN EN ESPAÑA
Sumario: I. Consideraciones preliminares: argumentos a natural recurran al contrato de gestación subrogada, especial-
favor de la existencia de un derecho autónomo a la procrea- mente cuando padezcan algún cáncer que afecte a las funciones
ción.- 1. El derecho a procrear implícito en la expresión “dere- reproductivas, limitando o impidiendo la gestación natural.
cho a fundar una familia”.- 2. El derecho a procrear como una
manifestación del derecho al libre desarrollo de la personali- Palabras clave: derecho a la procreación; libre desar-
dad.- 3. El derecho a procrear vinculado al más amplio con- rollo de la personalidad; cáncer; técnicas de reproducción hu-
cepto de “salud sexual y reproductiva”.- 4. El derecho a procrear mana asistida; gestación subrogada.
como presupuesto básico de la posibilidad de acudir a técnicas Abstract: The present work analyzes the right to
de reproducción humana asistida.- II. Concepto y caracteres procreation, a right whose existence as a human right has
del derecho a la procreación.- 1. Sujeto titular del derecho a been discussed in the doctrine as a result of the appear-
la procreación.- 2. Caracteres: la inalienabilidad del derecho ance of techniques of assisted reproduction, which can 51
a la procreación. Especial referencia al contrato de gestación not be used by all individuals under the same conditions.
subrogada.- 2.1. Cáncer de útero y gestación subrogada.- 2.2. In our view, it is more interesting to draw a distinction between
Cáncer de mama y gestación subrogada.- III. La pretendida exi- the right to procreation in general (which is a human right of
gibilidad frente al Estado del derecho a la procreación: con- every person), and the access to assisted reproduction techniques,
tenido y límites del mismo.- 1. Notas acerca del derecho a la which is limited to what the law provides and with the scope es-
procreación en general.- 2. El derecho de acceso a las técnicas tablished by it. On the other hand, it is not uncommon for wom-
de reproducción humana asistida.- 2.1. Caso Evans vs Reino en with problems of natural fertility to resort to the contract of
Unido.- 2.2. Caso Dickson vs Reino Unido.- 2.3. La univer- surrogacy, especially when they suffer from cancer that affects
salidad del derecho de acceso a las técnicas de reproducción reproductive functions, limiting or preventing natural gestation.
asistida: ¿puede el Estado garantizar el cumplimiento efectivo
de tal derecho para todos sus ciudadanos? Key words: right to procreation; free development of
personality; cancer; assisted reproduction techniques; surrogacy.
Resumen: El presente trabajo analiza el derecho a la
procreación, un derecho cuya existencia como derecho humano
ha sido discutida en la doctrina a raíz de la aparición de las I. Consideraciones preliminares: argu-
técnicas de reproducción asistida, las cuales no pueden ser uti- mentos a favor de la existencia de un
lizadas por todos los individuos en las mismas condiciones. A derecho autónomo a la procreación.
nuestro juicio, resulta más interesante establecer una distinción
entre el derecho a la procreación en general, derecho humano Dentro del ámbito de los derechos humanos,
predicable de todo individuo, y el acceso a las técnicas de repro- ha adquirido una importancia notoria en nuestros
ducción asistida, el cual se encuentra limitado a lo que la ley
disponga y con el alcance que ésta establezca. Por otro lado, no días el derecho a la procreación o a la reproduc-
es infrecuente que las mujeres con problemas para la fertilidad
ALGUNAS REFLEXIONES ACERCA DE LA EXISTENCIA MISMA ...
que únicamente tienen derecho a la procreación ponerse en conexión también con el art. 17.1 CE,
aquéllos que hubiesen contraído matrimonio, y no, que recoge la libertad personal general de actuar(7).
en cambio, quienes no lo hubiesen hecho. Desde este prisma, el derecho a la procreación
Por último, aunque la Constitución Española emerge como un derecho intrínseco a la propia
(CE, en adelante) no recoja dicha expresión(5), se condición o naturaleza humana, siendo una deci-
puede entender que el derecho a la procreación, sión personal del sujeto ejercitarlo, o no(8). La doc-
desde este prisma, sí que se encuentra incorpora- trina ha puesto de manifiesto la validez de esta con-
do a nuestro ordenamiento, en la medida en que cepción para justificar la existencia del derecho a la
nuestro art. 10.2 CE dispone que “Las normas re- procreación como un derecho autónomo, pues es
lativas a los derechos fundamentales y a las liberta- perfectamente predicable respecto de ambos sexos
des que la Constitución reconoce se interpretarán (hombres y mujeres), superando la posible confu-
de conformidad con la Declaración Universal de sión de atribuirlo exclusivamente a las mujeres(9).
Derechos Humanos y los tratados y acuerdos in-
ternacionales sobre las mismas materias ratificados
por España”.
2. El derecho a procrear como una ma-
nifestación del derecho al libre de- 7
Entiende Gómez Sánchez, Y.: El derecho a la reproducción humana, cit.,
sarrollo de la personalidad. p, 48, que la libertad personal del art. 17.1 CE trasciende de la mera prohi-
bición de detención arbitraria. Así, para la autora, el derecho a la reproduc- 53
ción puede tener cabida también de este precepto, entendido como un acto
Junto al argumento anterior, es también po- de autodeterminación física del sujeto.
sible considerar el derecho a procrear como una En esta línea se pronuncia también la Exposición de Motivos de la Ley
Orgánica 2/2010, de 3 de marzo, de salud sexual y reproductiva y de la
manifestación del derecho al libre desarrollo de la interrupción voluntaria del embarazo, al afirmar que “La decisión de tener
personalidad(6), derecho este último consagrado hijos y cuándo tenerlos constituye uno de los asuntos más íntimos y perso-
nales que las personas afrontan a lo largo de sus vidas, que integra un ámbito
en el art. 10.1 CE, y que, necesariamente, debe esencial de la autodeterminación individual”.
Por su parte, Vela Sánchez, A. J.: Gestación por encargo: tratamiento ju-
dicial y soluciones prácticas. La cuestión jurídica de las madres de alquiler, Reus,
5
Para Gómez Sánchez, Y.: El derecho a la reproducción humana, Marcial Colección de Derecho español contemporáneo, Madrid, 2015, pp. 211-212,
Pons, Madrid, 1994, el reconocimiento expreso del derecho a tener hijos gran defensor de la necesidad de regular la gestación subrogada, considera
en la CE habría sido “conveniente”, basando dicha opinión en el hecho de que “la libertad del art. 17.1 CE es aquí la condición del desenvolvimiento
que, al tiempo de promulgarse aquélla, “los problemas sobre la reproduc- de la vida personal, que supone asegurar la autonomía de la persona, desen-
ción humana asistida eran ya muy evidentes”. En esta línea, para la autora, la volver la plenitud de su capacidad y ofrecer oportunidades a su libertad de
configuración constitucional de un derecho a la reproducción humana habría elección, como ejercicio de su responsabilidad para escoger los medios con
resultado muy eficaz para resolver los distintos problemas de interpretación que realizar sus fines”.
que pueden surgir en materias como la maternidad de la mujer sola o la 8
De Verda y Beamonte, J. R.: “Notas sobre la gestación por sustitución
fecundación post mortem. en el Derecho español”, Actualidad Jurídica Iberoamericana, núm. 4, 2016, p.
6
Para Vidal Martínez, J.: “Acerca del derecho de la persona humana 353, afirma que “En este caso, la opción vital es concebir, o no, un hijo,
a contraer matrimonio y a fundar una familia desde la perspectiva del orde- decisión personalísima, en la que el Estado no puede inmiscuirse, ni impo-
namiento jurídico español”, Revista General de Derecho, núm. 631, 1997, p. niéndola, ni prohibiéndola, debiendo respetar lo que resulte del ejercicio de
3522, el reconocimiento del derecho a la procreación en el ordenamiento la libertad de cada ciudadano”.
jurídico español debe hacerse por la vía del art. 10.1 CE, “por cuanto, entre 9
Sobre esta cuestión, señala Igareda González, N.: “El hipotético
los derechos inherentes a la persona se encuentra el de fundar una familia derecho a la reproducción”, cit., p. 259, que “Esta consideración de la re-
que incluye implícitamente la libertad de procrear, esencial para la perpetua- producción como uno de los elementos inherentes de la libertad personal,
ción de la especie humana y que participa […] de la dignidad de la persona, otorga entonces a la reproducción el mismo valor en el caso de hombres y
debiendo ser calificada como libertad o derecho de la personalidad”. mujeres”.
ALGUNAS REFLEXIONES ACERCA DE LA EXISTENCIA MISMA ...
1. Sujeto titular del derecho a la ellos España(15). Una cosa es que la igualdad entre
procreación. sexos (art. 14 CE) determine que de las técnicas
de reproducción asistida puedan beneficiarse tanto
Se trata de un derecho que puede ser ejercita- hombres como mujeres, y otra es que, en la prácti-
do única y exclusivamente por las personas físicas. ca, y habida cuenta la naturaleza de la propia condi-
Ello es así en la medida en que hemos deducido ción de hombre y de mujer, puedan hacerlo cuando
el derecho de categorías intrínsecas al ser humano, cada uno de ellos actúa individualmente(16).
tales como su libertad personal o su intimidad(14). Ciertamente, considerando esta perspectiva, la
Ahora bien, lo anterior debe entenderse consi- de la igualdad de sexos, emerge una cuestión que
derando el derecho a la procreación desde un pun- podría dar lugar al debate: ¿debería admitirse el
to de vista abstracto y teórico. Sin embargo, en la alquiler de úteros para dar efectividad a la igual-
práctica, como bien es sabido, la propia naturaleza dad del art. 14 CE y, en consecuencia, satisfacer
humana impide a una única persona (sin mediar así las demandas de los hombres solteros o de las
técnicas de reproducción humana asistida) tener parejas homosexuales? La cuestión, desde luego,
descendencia. Ello no es óbice, no obstante, para no es baladí, y para adoptar una postura en torno
afirmar que tal derecho corresponde a toda perso- a la misma debe analizarse si los motivos que jus-
na individualmente considerada, pues la propia CE tifican la prohibición de los úteros de alquiler son
nos ofrece ejemplos de distintos derechos de titu- suficientemente razonables y proporcionados para,
laridad individual cuyo ejercicio precisa de la con- en este punto concreto, admitir un tratamiento 55
currencia de, al menos, otra parte. En esta sede,
resulta muy ilustrativo el derecho al matrimonio 15
Así, el art. 10.1 de la Ley núm. 14/2006, de 26 de mayo, sobre Téc-
consagrado en el art. 32 CE: todas las personas tie- nicas de Reproducción Humana Asistida (LTRHA, en adelante), afirma que
“Será nulo de pleno derecho el contrato por el que se convenga la gestación,
nen derecho al matrimonio, pero sin la concurren- con o sin precio, a cargo de una mujer que renuncia a la filiación materna a
cia de otra persona no puede adquirirse el estado favor del contratante o de un tercero”.
La posición del ordenamiento jurídico español contrasta con la de al-
civil de casado. gunos estados de EE.UU. (California, por ejemplo), India, Rusia, Ucrania o
Desde este prisma, desde luego, la posición México, donde la práctica está legalizada; y también con la de aquellos países
cuyos ordenamientos permiten la práctica de modo “altruista” (más adelante
del hombre para ejercitar el derecho a la procrea- matizaremos este concepto), esto es, siempre y cuando no haya precio de
ción él solo es más complicada, pues debe recur- por medio (Reino Unido, Brasil, Canadá, Grecia o Portugal). Un reciente
análisis del estado de la cuestión en el Derecho comparado puede verse en
rir al alquiler de úteros, técnica que en no pocos Albert Márquez, M.: “La explotación reproductiva de mujeres y el mito de
países actualmente se encuentra prohibida, entre la subrogación altruista; una mirada global al fenómeno de la gestación por
sustitución”, Cuadernos de Bioética, vol. XXVIII, núm. 93, 2017, pp. 186-194.
Obsérvese, en cualquier caso, y como pone de manifiesto González
Carrasco, Mª. del C.: “Gestación por sustitución: ¿regular o prohibir?”,
Revista CESCO de Derecho de Consumo, núm. 22, 2017, pp. 121-122, que la
familia, el derecho a la vida privada y familiar, el derecho a la planificación ausencia de precio no garantiza que la gestación por sustitución no se acabe
familiar, el derecho a la salud y el derecho a gozar del progreso científico, y convirtiendo en un negocio de mercantilización de mujeres, ni que no exis-
resulta protegible a través de estos derechos”. tan otro tipo de intereses económicos en el proceso.
14
Ello excluye, como pone de manifiesto, Gómez Sánchez,Y.: El derecho 16
Así, como explica Gómez Sánchez, Y.: El derecho a la reproducción hu-
a la reproducción humana, cit., p. 61, que puedan ser sujetos titulares de tal de- mana, cit., p. 69, en este caso, es decir, cuando actúan individualmente, “la
recho la entidades públicas o privadas. Admitir lo contrario sería tanto como ciencia permite cumplir las demandas de las mujeres y no las de los hom-
permitir a aquéllas la posibilidad de generar seres humanos para cualquier bres”. Ello determina que, toda vez corresponder el derecho a la reproduc-
fin, lo que, advierte la citada autora, podría conllevar “un riesgo muy severo ción por igual a ambos sexos, los hombres “pueden tener más dificultades
de cosificación del ser humano y de su posible comercialización”. para realizarlo por la necesidad de contar con un útero gestador”.
ALGUNAS REFLEXIONES ACERCA DE LA EXISTENCIA MISMA ...
templadas en la legislación laboral(34). Sin embargo, para los defensores de esta práctica, pues, en caso
este argumento se puede volver contraproducente de llevarse a cabo, también puede quedar afectado
el interés superior del menor, en la medida en que
lante), admitiendo ésta, mediante resolución de 18 de febrero de 2009, la
puede resultar difícil aceptar las circunstancias en
inscripción del nacimiento de los menores. las que fue concebido(35).
Sin embargo, para desesperación de los padres comitentes, el Ministe- Incluso, se ha llegado a afirmar que el contrato
rio Fiscal impugnó la resolución de la DGRN por considerarla contraria al
orden público español, comenzando así una vía judicial que, tanto en primera de gestación subrogada se ha implantado en la so-
como segunda instancia, consideró improcedente la inscripción. ciedad española hasta tal punto que debe ser con-
En fin, la cuestión llegó al Tribunal Supremo, quien rechazó igualmente
la inscripción, basándose para ello, principalmente, en dos argumentos. El
primero de ellos es la ineficacia en España de la decisión de la autoridad
californiana de atribuir la condición de padres a quienes contrataron la ges- mentos que legitimen la práctica a posteriori, pensando en las posibles conse-
tación, por entender que tal decisión es contraria al orden público español, cuencias que se puedan generar tras el parto.
y ello “por resultar incompatible con normas que regulan aspectos esenciales Una de estas consecuencias, las eventuales prestaciones de maternidad
de las relaciones familiares, en concreto de la filiación, inspiradas en los valo- y paternidad que proceden para los padres comitentes, es analizada, entre
res constitucionales de dignidad de la persona, respeto a su integridad moral otros, por Aragón Gómez, C..: “La legalización de facto de la maternidad
y protección de la infancia”. subrogada. A propósito de los recientes pronunciamientos de la Sala de lo
Junto al argumento anterior, el Tribunal Supremo se refiere también a Social del Tribunal Supremo con respecto a las prestaciones por maternidad”,
la pretendida conculcación del interés superior del menor, entendiendo que Revista de Información Laboral, núm. 4, 2017, pp. 23-55; Arias Domínguez, Á.:
éste tiene valor interpretativo del ordenamiento jurídico, de las reglas y va- “Maternidad subrogada y prestaciones de maternidad y paternidad”, Revista
lores establecidos, sin que pueda invocarse para “contrariar lo expresamente de Derecho de la Seguridad Social, núm. 8, 2016, pp. 75-96; Cervilla Gar-
previsto” en las normas. Afirma el Tribunal Supremo en este sentido que la zón, Mª. J.: “Gestación subrogada y derecho a prestación por maternidad. A
aplicación del interés superior del menor de otro modo al señalado podría propósito de la sentencia del Tribunal Supremo de 19 de octubre de 2016”,
suponer “la desvinculación del juez respecto del sistema de fuentes, que es Aranzadi Doctrinal, núm. 4, 2017, pp. 131-138; Hierro Hierro, F. J.: “Mater-
60 contraria al principio de sujeción al imperio de la ley que establece el art. nidad subrogada y prestaciones de la Seguridad Social”, Nueva Revista Española
117.1 de la Constitución”. de Derecho del Trabajo, núm. 190, 2016, pp. 179-222; Mercader Uguina, J.
Concluye el alto tribunal refiriéndose a la eventual desprotección en R.: “La creación por el Tribunal Supremo de la prestación por maternidad
que quedarían los menores, aportando soluciones en tal sentido. Dice, así, subrogada: a propósito de las SSTS de 25 de octubre de 2016 y de 16 de
que “El propio art. 10 de la Ley de Técnicas de Reproducción Humana Asis- noviembre de 2016”, cit., pp. 454-467; Moreno Pueyo, M. J.: “La prestación
tida, en su párrafo tercero, permite la reclamación de la paternidad respecto de maternidad en los casos de maternidad subrogada. Estado de la cuestión
del padre biológico, por lo que si alguno de los recurrentes lo fuera, podría tras los pronunciamientos del TJUE de 18/03/14”, Nueva Revista Española de
determinarse la filiación paterna respecto del mismo. Asimismo, figuras jurí- Derecho del Trabajo, núm. 172, 2015, pp. 287-294; Íd.: “Maternidad subro-
dicas como el acogimiento familiar o la adopción permiten la formalización gada y prestación de maternidad”, Revista del Ministerio de Empleo y Seguridad
jurídica de la integración real de los menores en tal núcleo familiar”. Social: Economía y Sociología, núm. 116, 2015, pp. 21-56; Moreno Sánchez-
34
Relativa al interés superior del menor como elemento que debiera -Moraleda, A.: “¿Tienen derecho las madres ‘subrogantes’ al permiso y a la
justificar la legalización de la gestación subrogada, existe una cuestión so- prestación por maternidad?”, Aranzadi Doctrinal, núm. extraordinario 9-10,
bre la cual la doctrina no ha llamado aún la atención. Y es el hecho de que diciembre 2014, pp. 141-156.
este argumento no justifica la necesidad de legalizar la gestación subrogada 35
Así, Bellver Capella, V.: “¿Nuevas tecnologías? Viejas explotaciones.
en abstracto, sino que trata de dar cobertura a un hipotético daño que se El caso de la maternidad subrogada internacional”, SCIO: Revista de filosofía,
puede causar en caso de no admitir la práctica, pero una vez ésta ya ha sido núm. 11, noviembre 2015, p. 44. Señala el autor a este respecto que “Si ya
realizada. resulta difícil asimilar una adopción, es previsible que los hijos de una subro-
El problema, a este respecto, es que, como ha señalado la doctrina, el gación internacional padezcan dificultades análogas o incluso superiores para
art. 10.1 LTRHA únicamente advierte de la nulidad del contrato de gesta- asimilar sus orígenes”. Además, añade el autor que “el bebé sufre la separa-
ción subrogada, pero no contiene ningún reproche jurídico para quienes lo ción de su madre gestante, lo que impide que sea alimentado con la leche
llevan lo cabo, lo que, desde luego, no contribuye a desincentivar o a disuadir materna y que disfrute del contacto ‘piel con piel’, medidas promovidas en la
de su práctica (sobre esta cuestión, v. Calvo Caravaca, A. L. y Carrascosa actualidad en todo el mundo por pediatría y enfermería por las evidencias de
González, J.: “Gestación por sustitución y Derecho Internacional Privado. sus magníficos resultados para el buen desarrollo del bebé” (p. 43).
Más allá del Tribunal Supremo y del Tribunal Europeo de Derechos Huma- En el mismo sentido se pronuncia Jouve de la Barreda, N.: “Perspec-
nos”, Cuadernos de Derecho Transnacional, vol. 7, núm. 2, octubre 2015, p. 58; tivas biomédicas de la maternidad subrogada”, Cuadernos de Bioética, vol. XX-
Díaz Romero, Mª. del R.: “La gestación por sustitución en nuestro ordena- VIII, núm. 93, 2017, pp. 158, quien sostiene que, “No es descabellado asumir
miento jurídico”, Diario La Ley, núm. 7527, Año XXXI, Sección Doctrina, 14 que, tras un embarazo, rota la relación con un hijo tras el nacimiento, pueda
de diciembre de 2010, p. 2); y Jiménez Muñoz, F. J.: La reproducción asistida quedar afectado el desarrollo psicológico normal del niño o la niña, particu-
y su régimen jurídico, cit., pp. 109-110. Es, precisamente, la habitualidad de larmente cuando él o ella se enteran de su origen por subrogación, si llegan
la celebración de este contrato, la que da pie a que se busquen nuevos argu- a enterarse, y también de la madre gestante”.
ALGUNAS REFLEXIONES ACERCA DE LA EXISTENCIA MISMA ...
siderado como una realidad social, y, como tal, el apoyar recurriendo a una pretendida analogía con
Derecho debe proceder a regularla y a darle una la donación de órganos inter vivos(39).
respuesta(36). Así lo ha entendido también recientemente el
Junto a los anteriores argumentos, también se Informe del Comité de Bioética de España, publi-
esgrime uno de carácter demográfico: España tiene cado el 19 de mayo de 2017, el cual detalla los ries-
una de las tasas de natalidad más bajas del mundo, gos que la denominada “gestación altruista” conlle-
por lo que hay que facilitar a los españoles la po- va. Para el Comité, y partiendo de la base de que
sibilidad de ser padres (y madres) biológicos me- la gestación altruista se desarrollará en entornos
diante la ciencia y la medicina(37). familiares, el conocimiento en el futuro por parte
Las proclamas anteriores no pueden, sin em- del menor de una posible duplicación de roles (por
bargo, legitimar la legalización del contrato de ejemplo, quien pensaba que era su abuela resulta
gestación subrogada. A nuestro juicio, los riesgos que también fue madre gestante) puede repercutir
que entraña la legalización de dicha práctica, espe- negativamente en su interés superior(40).
cialmente, para las mujeres en situación de especial
vulnerabilidad, suponen un argumento suficien- truista; una mirada global al fenómeno de la gestación por sustitución”, cit.,
p. 195, que existe una respuesta a “las exigencias de una demanda de padres
te como para mantener la prohibición en España. intencionales”, no “una altruista oferta de las madres portadoras”.
Prohibición que debe seguir comprendiendo, no Mucho más crítico con el término se muestra Serrano Ruiz-Calderón,
J. M.: “Manipulación del lenguaje, maternidad subrogada y altruismo”, Cua-
sólo los casos en que la gestación se asume a cam- dernos de Bioética, vol. XXVIII, núm. 93, 2017, p. 225. Para el autor, hablar
bio de precio, sino también aquellos otros en que de altruismo es “hipócrita”. Para explicarse, afirma ilustrativamente que
“Tenemos un problema internacional de explotación de mujeres, con una 61
ésta es, como se ha venido en denominar, “altruis- tendencia creciente, y vamos a legalizarlo altruistamente en los países de
ta”(38), práctica cuya legitimación se ha intentado recepción, donde precisamente la mayoría de los deseos reproductores no
encuentran ninguna respuesta altruista. No hay tantos sujetos kumbayá ni
tantos parientes para ello”.
36
Navarro Martínez, Mª. del M.; Jiménez González, J.; Martínez Sá- 39
Esta analogía trata de explicarse acudiendo a una hipotética semejan-
nchez, L.; Martínez Sánchez, Mª. D.; Pinillos Capel, Mª. del D.: “Comen- za entre la donación de un órgano y la “donación de la capacidad de gestar”,
tarios a la iniciativa legislativa popular de gestación subrogada”, cit., p. 3; y para hacer posible que quien carezca de ella pueda ser padre o madre. Para
Vela Sánchez, A. J.: “La gestación por sustitución o maternidad subrogada: Bellver Capella, V.: “Tomarse en serio la maternidad subrogada altruista”,
el derecho a recurrir a las madres de alquiler”, Diario La Ley, núm. 7608, Año Cuadernos de Bioética, vol. XXVIII, núm. 93, 2017, pp. 234-236, no existe
XXXII, Sección Doctrina, 11 de abril de 2011, p. 2; Íd.: “Propuesta de regu- la pretendida analogía, ya que, si bien ambas situaciones son expresiones de
lación del convenio de gestación por sustitución o de maternidad subrogada solidaridad, en las que una “una persona dona algo de extraordinario valor
en España”, cit., p. 2. (un órgano, su capacidad de gestar) asumiendo importantes riesgos por ello,
37
Vela Sánchez, A. J.: “Propuesta de regulación del convenio de gesta- para ayudar a otra persona que padece una grave carencia”, en el caso de la
ción por sustitución o de maternidad subrogada en España”, cit., p. 3. gestación subrogada existen importantes implicaciones para un tercero (el
38
Sobre los argumentos que se ofrecen para regular la gestación su- hijo), cuyo interés superior debe preservarse. A este respecto, el autor pone
brogada altruista, puede v., por todos, el estudio del Presidente de la aso- de manifiesto las diferencias que observa entre ambos casos: a) la donación
ciación “Son nuestros hijos”, Vila-Coro Vázquez, A.: “Hacia una regulación de un órgano no puede equipararse a la gestación, pues, con independencia
de la Gestación por Sustitución como Técnica de Reproducción Asistida”, en del mayor impacto negativo para la salud que pudiera tener la donación de un
Benavente Moreda, P. y Farnós Amorós, E. (coords.): Treinta años de repro- órgano vital, la huella emocional que deja el bebé en su madre puede tener
ducción asistida en España: una mirada interdisciplinaria a un fenómeno global y una trascendencia vital superior; y b) la donación de un órgano no genera
actual, Boletín del Ministerio de Justicia, Año LXIX, núm. 2179, junio 2015, dependencia alguna respecto del receptor, en cambio, la gestación subrogada
pp. 283-300. genera una serie de dependencias e intereses entre los comitentes y la ges-
A nuestro juicio, la utilización del término “altruista” no procede en tante, y, a su vez, entre la gestante y el bebé.
este caso. Según la Real Academia Española, el “altruismo” se define como 40
Así, afirma el Comité, “De este modo, la gestación subrogada al-
“Diligencia en procurar el bien ajeno aun a costa del propio”. Ahora bien, esa truista, en el caso de incorporarse a nuestro ordenamiento jurídico, va a
diligencia o tendencia en procurar el bien ajeno es espontánea, no inducida. desarrollarse con casi exclusividad en el marco de las relaciones biológicas
Aquí, sin embargo, ocurre, como acertadamente explica Albert Márquez, familiares, como de hecho ocurre en otros ámbitos como es el de la donación
M.: “La explotación reproductiva de mujeres y el mito de la subrogación al- de órganos entre vivos, lo que, necesariamente supondrá una alteración sus-
ALGUNAS REFLEXIONES ACERCA DE LA EXISTENCIA MISMA ...
de mama. Así, existen evidencias y supuestos en alcance y límites del derecho a la procreación.
los cuales la quimioterapia ha generado en algunas
pacientes la aparición de síntomas de menopausia 1. Notas acerca del derecho a la pro-
precoz(44). creación en general.
La segunda de las razones apuntadas hace refe- Así, y teniendo en cuenta que la cuestión de
rencia, no a una imposibilidad física para la gesta- la existencia de un derecho a la procreación se ha
ción, sino a una imposibilidad derivada de la ges- planteado especialmente a raíz del avance de las
tión de los tiempos y de las emociones. En efecto, técnicas de reproducción asistida, hay quien afirma
desde el punto de vista temporal, la incorporación que la imposibilidad de llevar a cabo el ejercicio de
de la mujer al mercado laboral ha conducido a un tal derecho por parte de algunas parejas (parejas
retraso en la edad para tener hijos. En este contex- heterosexuales en las que la mujer no tiene úte-
to, la aparición de un cáncer de mama a determina- ro por causas congénitas o como consecuencia de
das edades (por ejemplo, entre los 35 y los 40 años) haber sido extirpado por algún cáncer; parejas he-
puede implicar que, teniendo en cuenta el periodo terosexuales en las cuales la mujer es estéril; pare-
de tiempo necesario para la curación del mismo, jas heterosexuales en las cuales el embarazo puede
así como el periodo de tiempo recomendado para conllevar elevados riesgos para la salud de la madre
que el cuerpo se recupere del tratamiento, la mu- y/o del feto y está contraindicado; parejas homo-
jer alcance una edad en la que pueda considerarse sexuales; e, incluso, hombres solos), sustrae la nota
el embarazo como “de riesgo”, o, directamente, le de “universalidad” que caracteriza a los derechos 63
sobrevenga la menopausia. humanos y, en consecuencia, priva de la categoría
Asimismo, junto a ello, hay que tener en cuenta de “derecho” a la procreación, siendo ésta entendi-
la importancia del factor emocional. En este senti- da como una mera “función reproductiva”.
do, la práctica ha puesto de manifiesto la insegu- Ahora bien, a nuestro juicio, la existencia mis-
ridad y la falta de autoestima por parte de algunas ma del derecho a la procreación es anterior a los
mujeres en relación con su capacidad para ser ma- avances científicos que han culminado en las técni-
dres una vez producida la mastectomía(45). cas de reproducción asistida. En efecto, el derecho
a la procreación está reconocido de modo implíci-
III. La pretendida exigibilidad frente al to en la mayoría de los textos internacionales so-
Estado del derecho a la procreación: bre Derechos Humanos del s. XX, y, como hemos
contenido y límites del mismo. señalado a lo largo del presente trabajo, se encuen-
tra incorporado a nuestro ordenamiento jurídico
La prohibición contenida en el art. 10.1 por la vía del art. 10.2 CE.
LTRHA ha dado lugar a un intenso debate en Es- Partiendo de la premisa de su existencia, ¿sería
paña en torno a la existencia misma y al eventual suficiente argumento para desmentirla el hecho de
que no todas las personas puedan ejercitar el dere-
cho a la procreación? Es decir, para que se pueda
44
Blanco Sánchez, R.: “Cáncer de mama y maternidad”, Revista elec-
trónica trimestral de enfermería, núm. 22, abril 2011, p. 6. hablar de un derecho a la procreación, ¿es necesario
45
Blanco Sánchez, R.: “Cáncer de mama y maternidad”, cit., pp. 6-7. que todos los individuos, con independencia de su
ALGUNAS REFLEXIONES ACERCA DE LA EXISTENCIA MISMA ...
sexo y de su condición sexual, puedan ejercitarlo? Por otra parte, en la propia CE, encontramos
A nuestro juicio, los interrogantes anteriores derechos cuya propia idiosincrasia, como el dere-
merecen una respuesta negativa. El derecho a la cho a la procreación, hace que se requiera de otro u
procreación, como todo derecho, tiene sus lími- otros individuos para su ejercicio. Así, entre otros,
tes, y no puede ejercitarse en determinadas con- podemos citar el derecho al matrimonio (art. 32
diciones(46). En este caso, tiene unos límites que CE), el derecho de reunión (art. 21 CE) o el dere-
son evidentes, y que podríamos calificar de “natu- cho de asociación (art. 22 CE). ¿Alguien ponía en
rales”. Límites que no son exclusivos, desde luego, entredicho en España la existencia del derecho al
del derecho a la procreación. Desde luego, nadie matrimonio porque antes del año 2005(49) no pu-
pone en duda que el derecho de sufragio (activo dieran celebrarlo las parejas homosexuales? ¿Podría
y pasivo), reconocido en el art. 23.1 CE como un un individuo solo exigir al Estado que le otorgue el
derecho fundamental, es un derecho humano uni- estado civil de casado y, de no acceder éste, enten-
versal. Pero, ¿podría exigir ejercitarlo un menor de der vulnerado su derecho al matrimonio?
edad(47), o una persona incapacitada por sentencia Como conclusión de todo lo anterior, hay que
judicial firme que expresamente contemple la im- afirmar que existe un derecho a la procreación, al
posibilidad de su ejercicio(48)? Se trata de supuestos igual que existe un derecho de sufragio o un de-
en que la propia naturaleza del ser humano (en un recho al matrimonio. Lo que no es posible es afir-
caso, por no haber alcanzado la madurez suficiente, mar que ese derecho a la procreación es absoluto
64 en el otro, por estar privado de la capacidad de en- e ilimitado.
tender y querer) impide en supuestos concretos el
ejercicio del derecho de sufragio, pero no por ello 2. El derecho de acceso a las técnicas
se puede negar o poner en duda su existencia. de reproducción humana asistida.
Asentada la existencia del derecho a la pro-
Así, como explica Ruiz-Rico Ruiz, G.: “La problemática constitucio-
creación, cosa distinta es que exista un derecho
46
trucción del derecho de acceso a las técnicas de re- británica vigente en la época, debían prestar el con-
producción humana asistida se ha realizado, sobre sentimiento, consentimiento que, no obstante, po-
todo, en la jurisprudencia del Tribunal Europeo de día ser revocado en tanto en cuanto los embriones
Derechos Humanos (TEDH, en adelante), que, en no hubiesen sido implantados en el útero.
síntesis, ha venido a conectar dicho derecho con el Habiendo prestado ambos el consentimiento
derecho a la vida privada y familiar reconocido en para el inicio del procedimiento de fecundación in
el art. 8 CEDH(51). vitro, días antes de la ablación de los ovarios (en
2.1. Caso Evans vs Reino Unido. noviembre de 2001) fueron fecundados once óvu-
los, de resultas de los cuales se crearon y conser-
En lo que aquí interesa, esto es, la existencia varon seis embriones, cuya implantación en el úte-
de un derecho de acceso a las técnicas de repro- ro debía demorarse por un periodo de dos años.
ducción asistida, las resoluciones claves son las SS- Empero, en mayo de 2002, la relación sentimental
TEDH de 7 de marzo de 2006 (Sección 4ª) y de 10 finaliza, notificando el varón por escrito a la clíni-
de abril de 2007 (Gran Sala, que viene a confirmar ca la separación y solicitando la destrucción de los
la anterior), que abordan el caso Evans contra Rei- embriones(52). La clínica comunicó a la mujer que
no Unido. En la base del litigio, una mujer y su su ex compañero había retirado su consentimien-
compañero sentimental iniciaron el 12 de julio de to, por lo que debía destruirlos. A partir de dicho
2000 un tratamiento en una clínica de reproduc- momento la mujer inició un periplo judicial por
ción asistida. El 10 de octubre de ese mismo año, la diversas instancias nacionales tratando de lograr 65
mujer es informada de que padecía graves tumores la restauración del consentimiento inicial de su ex
precancerosos en los ovarios y que debía someter- compañero, alegando, principalmente, que había
se a un procedimiento conducente a la extirpación prescrito la facultad de éste de revocar el consen-
de ambos ovarios. Sin embargo, antes de iniciarse timiento, y que los embriones tenían derecho a la
este procedimiento, era posible la extracción de protección prevista en los arts. 2 y 8 CEDH. Los
algunos óvulos, al objeto de ser fecundados y pos- jueces británicos no acogieron sus argumentos,
teriormente implantados en su útero, algo para lo ante lo cual decide recurrir al TEDH para defender
que la mujer y su compañero, según la normativa sus derechos.
En la demanda interpuesta ante el TEDH, la
derecho a acceder a las TRA como una obligación negativa por parte de los mujer reitera los argumentos utilizados, incidien-
estados constituye una de las grandes diferencias entre este derecho y la do en el derecho de los embriones a la vida, con
libertad de procrear inherente a la persona humana, que resulta del artículo
12 CEDH cuando reconoce el derecho del hombre y de la mujer a formar base en el art. 2 CEDH, y en el derecho a su vida
una familia”. privada y familiar (art. 8 CEDH). Por su parte, el
51
El cual dispone que:
“1. Toda persona tiene derecho al respeto de su vida privada y familiar, TEDH, considera en su argumentación que el de-
de su domicilio y de su correspondencia. recho a la reproducción tiene cabida en el art. 8
2. No podrá haber injerencia de la autoridad pública en el ejercicio de
este derecho sino en tanto en cuanto esta injerencia esté prevista por la ley y
constituya una medida que, en una sociedad democrática, sea necesaria para
la seguridad nacional, la seguridad pública, el bienestar económico del país, 52
En relación con el destino de los embriones una vez se produce la
la defensa del orden y la prevención de las infracciones penales, la protección ruptura de una pareja, resulta muy interesante la monografía de Farnós
de la salud o de la moral, o la protección de los derechos y las libertades de Amorós, E.: Consentimiento a la reproducción asistida. Crisis de pareja y disposición
los demás”. de embriones, Atelier, Barcelona, 2011.
ALGUNAS REFLEXIONES ACERCA DE LA EXISTENCIA MISMA ...
CEDH, habida cuenta que “la ‘vida privada’ es una las eventuales actuaciones positivas exigibles a cada
noción amplia que engloba, entre otras cosas, as- Estado por parte de sus ciudadanos vendrán deter-
pectos de la identidad física y social de una perso- minadas en función de su propia normativa interna
na, concretamente el derecho a la autodetermina- de técnicas de reproducción asistida. Este margen
ción, el derecho al desarrollo personal y el derecho de apreciación, como precisa el TEDH (§82), debe
a establecer y mantener relaciones con otros seres predicarse tanto de la decisión del Estado de adop-
humanos y el mundo exterior, cubriendo asimismo tar, o no, una ley que regule el uso del tratamiento
el derecho al respeto de la decisión de tener o no de la fecundación in vitro, como del eventual alcan-
un hijo” (STEDH de 7 de marzo de 2006). ce de la misma.
Partiendo de ello, el TEDH distingue entre las Por tanto, de la decisión del TEDH se obtiene
obligaciones negativas y las obligaciones positivas una consecuencia muy clara: el acceso a las técnicas
del Estado en relación con el derecho a la vida pri- de reproducción asistida no es un derecho absoluto,
vada. Desde esta perspectiva, las obligaciones nega- sino que depende de la posición que haya adoptado
tivas del Estado se refieren a la no injerencia de los el Estado frente a la misma. Así, si no la ha regulado,
poderes públicos en la decisión personal de cada no existe la posibilidad de reclamar tales técnicas;
individuo de tener o no tener hijos, mientras que si, en cambio, la ha regulado, los ciudadanos podrán
las obligaciones positivas aluden a la posibilidad de exigir actuaciones positivas del Estado dentro del
reclamar del Estado actuaciones tendentes a garan- ámbito de lo permitido y previsto por la ley(55).
66 tizar la efectividad del derecho a la vida privada y Junto a la conclusión anterior, de la sentencia
familiar (§75 STEDH de 10 de abril de 2007), una se sigue también otra enseñanza relevante.Y es que
de cuyas manifestaciones, como hemos señalado el caso no sólo aborda la perspectiva del derecho
ya, es la decisión de tener, o no tener, hijos. de acceso a las técnicas de reproducción asistida
Así las cosas, el TEDH pasa a analizar el alcance por parte de la señora Evans, sino que también evo-
de las obligaciones positivas que competen al Esta- ca el derecho a la reproducción en sentido negativo
do, determinando que éstas no pueden establecer- (derecho a no procrear) del que era su compañe-
se con carácter general, sino que dependerá de cuál
haya sido la postura concreta del Estado frente a considera a este respecto que la discrecionalidad del Estado en la toma de
las técnicas de reproducción asistida. Es decir, cada decisiones tiene como contraparte la escasa capacidad del TEDH para con-
trolarlas. Dice, así, que “el margen de apreciación nacional entraña tanto una
Estado tiene un amplio margen de apreciación res- cierta discrecionalidad de los Estados como una regla de decisión o, mejor
pecto de esta materia(53) (lo que se traduce, como aún, de no decisión que no es sino la otra cara de la misma moneda: el Tri-
bunal Europeo puede no enjuiciar el asunto y ratificar la decisión nacional.
ha puesto de manifiesto la doctrina, en una cierta Según tal doctrina, la Corte debe autolimitarse si la solución adoptada tiene
discrecionalidad de los Estados(54)), de modo que la razonable apariencia de buen Derecho en vez de sustituir al Estado deman-
dado con sus propios puntos de vista”.
V. en el mismo sentido Redondo Saceda, L: “Asimetría reproductiva:
53
Este amplio margen de apreciación concedido por el TEDH tiene su controversias entre el derecho a la reproducción y la gestación subrogada”,
base en el hecho de que la fecundación in vitro plantea “cuestiones morales y cit., p. 57.
éticas sensibles en un contexto de rápida evolución en la ciencia y la medi- 55
En este mismo sentido, Redondo Saceda, L: “Asimetría reproducti-
cina”, lo que impide que exista una homogeneidad de posturas de todos los va: controversias entre el derecho a la reproducción y la gestación subroga-
Estados frente al fenómeno de la reproducción asistida (v. §81). da”, cit., p. 58, afirma que “Por tanto, la exigibilidad de un derecho a tener
54
García Roca, J.: “La muy discrecional doctrina del margen de apre- hijos sirviéndose de las técnicas de reproducción asistida queda supeditada
ciación nacional según el Tribunal Europeo de Derechos Humanos: soberanía a la existencia de una legislación en la materia, no tratándose de un derecho
e integración”, UNED: Teoría y realidad constitucional, núm. 20, 2007, p. 124, directamente exigible únicamente a partir del artículo 8 CEDH”.
ALGUNAS REFLEXIONES ACERCA DE LA EXISTENCIA MISMA ...
cepcionales para permitir algo (la posibilidad de cumplimiento efectivo de tal derecho
concebir un hijo estando preso) que no existe ya para todos sus ciudadanos?
como un derecho general” (§30). Es decir, en la Como hemos tenido ocasión de dejar constan-
medida en que el acceso a las técnicas de reproduc- cia a lo largo de este escrito, las técnicas de re-
ción asistida no existe como un derecho general, producción asistida, en general, suelen plantear
no se puede obligar al Estado a que adopte medidas problemas de dimensión ética y moral que nos ge-
que permitan o faciliten su ejercicio. neran rechazo a las mismas, siendo la consecuencia
Sin embargo, posteriormente, la STEDH de 4 de este rechazo, la negación de un pretendido de-
de diciembre de 2007 (Gran Sala), modificó el pa- recho de acceso a las técnicas de reproducción asis-
recer de la STEDH de 18 de abril de 2006 (Sección tida que pueda ser ejercitado por todos (hombres y
4ª). El TEDH sitúa ahora la cuestión en el conflicto mujeres) y en todo caso (con independencia de su
entre los intereses individuales (deseo de tener un situación reproductiva particular).
hijo natural) y los intereses públicos concurrentes Profundizando un poco más, cabe señalar que,
(mantenimiento de la confianza de la opinión pú- cuando se entra en el debate acerca de la existen-
blica en el sistema penitenciario), el cual resuelve cia, o no, de un derecho de acceso a las técnicas
mediante el recurso al margen de apreciación de de reproducción asistida, suele haber una cuestión
los Estados, que, considera, debe ser restringido en que se deja al margen de los términos en que aquél
aquellos casos en que se dirime un aspecto parti- se desarrolla: el coste económico del proceso. En
68 cularmente importante de la existencia o identi- efecto, las técnicas de reproducción humana asis-
dad de una persona (como la elección de ser padre tida llevan aparejadas un coste económico, gene-
genético). Ciertamente, la legislación interna nada ralmente elevado, que en principio sufraga quien
prevé acerca de la posibilidad de inseminación ar- recurre a ellas.
tificial en este supuesto tan peculiar (solicitada por Esto hace que el acceso a la reproducción asis-
un recluso), si bien, para el TEDH, el hecho de que tida cobre una dimensión económica que suele ir
la mayoría de los Estados Contratantes prevean en desligada de la dimensión moral del asunto. Desde
sus legislaciones visitas conyugales a los presos, el prisma económico, es evidente que no todo el
“podría considerarse un medio de ahorrar a las au- mundo puede permitirse el acceso a dichas técni-
toridades la necesidad de prever la posibilidad de cas, como no todo el mundo puede permitirse te-
recurrir a la inseminación artificial”. Así las cosas, ner un vehículo de gama media-alta (un BMW o un
el TEDH concluye que la desestimación por parte Audi, por ejemplo), ni un smartphone o un portátil
del Gobierno del procedimiento de inseminación de la marca “Apple”(58).
artificial solicitado, constituye una violación del
art. 8 CEDH, por no suponer una correcta pon- 58
Flores Anarte, L.: Las técnicas de reproducción asistida en España. ¿Mer-
deración de los intereses individuales y colectivos cantilización de la maternidad o empoderamiento femenino?, Tirant lo Blanch, Va-
lencia, 2016, p. 121, señala al hilo de esto que “La identificación de la mater-
en juego. nidad con un producto más de consumo de los ofertados en el mercado no
tiene nada de arbitraria si la analizamos detenidamente, pues muchas de las
2.3. La universalidad del derecho de acce- características del proceso de oferta-demanda que encontramos en el campo
so a las técnicas de reproducción asis- de las tecnologías reproductivas son totalmente asimilables a las presentes
en la comercialización de cualquier producto de mercado en la sociedad de
tida: ¿puede el Estado garantizar el consumo de masas”.
ALGUNAS REFLEXIONES ACERCA DE LA EXISTENCIA MISMA ...
“Maternità surrogata e tutela dell’interesse superiore del mi- Farnós Amorós, E.:
nore: una lettura critica alla luce di un recente interven- Consentimiento a la reproducción asistida. Crisis de pareja y disposi-
to della Corte EDU”, Actualidad Jurídica Iberoamericana, ción de embriones, Atelier, Barcelona, 2011.
núm. 3, agosto 2015.
“Inscripción en España de la filiación derivada del acceso a
Blanco Sánchez, R.: “Cáncer de mama y maternidad”, Revista la maternidad subrogada en California”, InDret, núm.
electrónica trimestral de enfermería, núm. 22, abril 2011. 1/2010, enero 2010.
Bonillo Garrido, L.: “El reconocimiento y ejecución de senten- “La reproducción asistida ante el Tribunal de Estrasbur-
cias de maternidad por sustitución”, Diario La Ley, núm. go: margen de apreciación v. necesidad de armoniza-
8070, Año XXXIV, Sección Tribuna, 25 de abril de 2013. ción”, en Benavente Moreda, P. y Farnós Amorós, E.
Calvo Caravaca, A. L. y Carrascosa González, J.: “Gesta- (coords.): Treinta años de reproducción asistida en España:
ción por sustitución y Derecho Internacional Privado. una mirada interdisciplinaria a un fenómeno global y actual,
Más allá del Tribunal Supremo y del Tribunal Europeo Boletín del Ministerio de Justicia, Año LXIX, núm.
de Derechos Humanos”, Cuadernos de Derecho Transnacio- 2179, junio 2015.
nal, vol. 7, núm. 2, octubre 2015. Flores Anarte, L.: Las técnicas de reproducción asistida en Es-
Cervilla Garzón, Mª. J.: “Gestación subrogada y derecho a paña. ¿Mercantilización de la maternidad o empoderamiento
prestación por maternidad. A propósito de la sentencia femenino?, Tirant lo Blanch, Valencia, 2016.
del Tribunal Supremo de 19 de octubre de 2016”, Aran- García Roca, J.: “La muy discrecional doctrina del margen
zadi Doctrinal, núm. 4, 2017. de apreciación nacional según el Tribunal Europeo de
De Verda y Beamonte, J. R.: Derechos Humanos: soberanía e integración”, UNED:
“Inscripción de hijos nacidos mediante gestación por sustitu- Teoría y realidad constitucional, núm. 20, 2007.
70 ción (a propósito de la Sentencia del Juzgado de Prime- Garibo Peyró, A. P.: “El interés superior del menor en los
ra Instancia número 15 de Valencia, de 15 de septiembre supuestos de maternidad subrogada”, Cuadernos de Bioé-
de 2010)”, Diario La Ley, núm. 7501, Año XXXI, Sec- tica, vol. XXVIII, núm. 93, 2017.
ción Tribuna, 3 de noviembre de 2010. Gómez Sánchez, Y.: El derecho a la reproducción humana, Mar-
“La filiación derivada de las técnicas de reproducción asistida cial Pons, Madrid, 1994.
(un análisis crítico de la experiencia jurídica española, González Carrasco, Mª. del C.: “Gestación por sustitución:
treinta años después de la aprobación de la primera re- ¿regular o prohibir?”, Revista CESCO de Derecho de Consu-
gulación legal sobre la materia)”, en Conte, G. y Lan- mo, núm. 22, 2017.
dini, S. (a cura di): Principi, regole, interpretazione. Con-
tratti e obbligazioni, famiglie e successioni. Scritti in onore Hierro Hierro, F. J.: “Maternidad subrogada y prestaciones
di Giovanni di Furgiuele, Tomo I, Universitas Studiorum, de la Seguridad Social”, Nueva Revista Española de Derecho
Mantova, 2017. del Trabajo, núm. 190, 2016.
“L’impatto dei principi costituzionali e del diritto convenzio- Igareda González, N.:
nale europeo sullo status dell’embrione e della filiazione “El hipotético derecho a la reproducción”, CEFD: Cuadernos
nel diritto spagnolo”, en Chiappetta, G. y Perlingieri, P. Electrónicos de Filosofía del Derecho, núm. 23, 2011.
(a cura di): Questioni di diritto delle famiglie e dei minori, “La inmutabilidad del principio mater semper certa est y los
Edizioni Scientifiche Italiane, Napoli, 2017. debates actuales sobre la gestación por substitución en
“Notas sobre la gestación por sustitución en el Derecho es- España”, en Universitas. Revista de Filosofía, Derecho y Po-
pañol”, Actualidad Jurídica Iberoamericana, núm. 4, 2016. lítica, núm. 21, enero 2015.
Díaz Romero, Mª. del R.: “La gestación por sustitución en Jiménez Muñoz, F. J.: La reproducción asistida y su régimen jurí-
nuestro ordenamiento jurídico”, Diario La Ley, núm. dico, Reus, Colección Jurídica General, Madrid, 2012.
7527, Año XXXI, Sección Doctrina, 14 de diciembre
de 2010.
ALGUNAS REFLEXIONES ACERCA DE LA EXISTENCIA MISMA ...
Jouve de la Barreda, N.: “Perspectivas biomédicas de la ma- Navarro Martínez, Mª. del M.; Jiménez González, J.; Mar-
ternidad subrogada”, Cuadernos de Bioética, vol. XXVIII, tínez Sánchez, L.; Martínez Sánchez, Mª. D.; Pinillos
núm. 93, 2017. Capel, Mª. del D.: “Comentarios a la iniciativa legislati-
Lamm, E.: va popular de gestación subrogada”, Bioderecho.es: Revista
Internacional de Investigación en Bioderecho, núm. 1, 2014.
“Gestación por sustitución”, InDret, núm. 3/2012, julio 2012.
Núñez Bolaños, Mª.; Nicasio Jaramillo, I. Mª., y Pizarro
“La custodia de embriones en la jurisprudencia del Tribunal Moreno, E.: “El interés del menor y los supuestos de
Europeo de Derechos Humanos. A propósito del caso discriminación en la maternidad subrogada, entre la
Evans contra el Reino Unido”, Revista catalana de dret realidad jurídica y la ficción”, Derecho Privado y Constitu-
públic, núm. 36, 2008. ción, núm. 29, enero-diciembre 2015.
Lasarte Álvarez, C.: “La reproducción asistida y la prohibi- Nuño Gómez, L.: “Una nueva cláusula del contrato sexual:
ción legal de maternidad subrogada admitida de hecho vientres de alquiler”, Isegoría: Revista de Filosofía Moral y
por vía reglamentaria”, Diario La Ley, núm. 7777, Año Política, núm. 55, julio-diciembre 2016.
XXXIII, Sección Doctrina, 17 de enero de 2012.
Pantaleón Prieto, F.: “Contra la Ley sobre Técnicas de Re-
Lema Añón, C.: “Mujeres y reproducción asistida: ¿autono- producción Asistida”, Jueces para la democracia, núm. 5,
mía o sujeción?”, en Benavente Moreda, P. y Farnós 1988.
Amorós, E. (coords.): Treinta años de reproducción asis-
tida en España: una mirada interdisciplinaria a un fenómeno Pérez Fuentes, G. Mª. y Cantoral Domínguez, K.: “La digni-
global y actual, Boletín del Ministerio de Justicia, Año dad del menor en caso de la maternidad subrogada en el
LXIX, núm. 2179, junio 2015. Derecho mexicano. Una propuesta legislativa desde la
academia”, Revista Boliviana de Derecho, núm. 17, enero
López Guzmán, J.: “Dimensión económica de la maternidad 2014.
subrogada”, Cuadernos de Bioética, vol. XXVIII, núm. 93, 71
2017. Quiñones Escámez, A.: “Doble filiación paterna de gemelos
nacidos en el extranjero mediante maternidad subroga-
Martínez-Pereda Rodríguez, J. M. y Massigoge Benegiu, J. da”, InDret, núm. 3/2009, julio 2009.
M.: La maternidad portadora, subrogada o de encargo en el
Derecho español, Dykinson, Madrid, 1994. Redondo Saceda, L: “Asimetría reproductiva: controversias
entre el derecho a la reproducción y la gestación subro-
Mercader Uguina, J. R.: “La creación por el Tribunal Supre- gada”, Anuario de la Facultad de Derecho de la Universidad
mo de la prestación por maternidad subrogada: a pro- de Alcalá, núm. 9, 2016.
pósito de las SSTS de 25 de octubre de 2016 y de 16 de
noviembre de 2016”, Cuadernos de Derecho Transnacional, Roca Trías, E.: “Dura Lex Sed Lex. O de cómo integrar el inte-
vol. 9, núm. 1, marzo 2017. rés del menor y la prohibición de la maternidad subro-
gada”, en Benavente Moreda, P. y Farnós Amorós, E.
Moreno Pueyo, M. J.: (coords.): Treinta años de reproducción asistida en España:
“La prestación de maternidad en los casos de maternidad su- una mirada interdisciplinaria a un fenómeno global y actual,
brogada. Estado de la cuestión tras los pronunciamien- Boletín del Ministerio de Justicia, Año LXIX, núm.
tos del TJUE de 18/03/14”, Nueva Revista Española de 2179, junio 2015.
Derecho del Trabajo, núm. 172, 2015. Ruiz-Rico Ruiz, G.: “La problemática constitucional deriva-
“Maternidad subrogada y prestación de maternidad”, Revista da de las Técnicas de Reproducción Humana Asistida
del Ministerio de Empleo y Seguridad Social: Economía y So- (TRHA): el caso de la maternidad subrogada”, UNED:
ciología, núm. 116, 2015. Revista de Derecho Político, núm. 99, mayo-agosto 2017.
Moreno Sánchez-Moraleda, A.: “¿Tienen derecho las ma- Sáez-Santurtún Prieto, M.: “La maternidad subrogada: esta-
dres ‘subrogantes’ al permiso y a la prestación por do actual de la cuestión a raíz de la STS de 6 de febrero
maternidad?”, Aranzadi Doctrinal, núm. extraordinario de 2014”, Diario La Ley, núm. 8293, Año XXXV, Sección
9-10, diciembre 2014. Tribuna, 15 de abril de 2014.
ALGUNAS REFLEXIONES ACERCA DE LA EXISTENCIA MISMA ...
Salazar Benítez, O.: “La gestación por sustitución desde una “Propuesta de regulación del convenio de gestación por sus-
perspectiva jurídica: algunas reflexiones sobre el con- titución o de maternidad subrogada en España”, Diario
flicto entre deseos y derechos”, UNED: Revista de Derecho La Ley, núm. 7621, Año XXXII, Sección Doctrina, 3 de
Político, núm. 99, mayo-agosto 2017. mayo de 2011.
Serrano Ruiz-Calderón, J. M.: “Manipulación del lenguaje, Verdera Izquierdo, B.: “Anotaciones a la Ley de Reproduc-
maternidad subrogada y altruismo”, Cuadernos de Bioéti- ción Asistida”, Actualidad Civil, núm. 10, 2007.
ca, vol. XXVIII, núm. 93, 2017. Vidal Martínez, J.:
Valdés Díaz, C. del C.: “La maternidad subrogada y los de- “Acerca del derecho a la protección de la salud en relación
rechos de los menores nacidos mediante el uso de esas con los avances en Biomedicina desde la perspectiva
técnicas”, Anuario de la Facultad de Derecho de la Universi- del Derecho español”, Actualidad Jurídica Iberoamericana,
dad de Extremadura, vol. XXXI, 2014. núm. 2, febrero 2015.
Vela Sánchez, A. J.: “Acerca del derecho de la persona humana a contraer matri-
“Comentario a la iniciativa legislativa popular para la regula- monio y a fundar una familia desde la perspectiva del
ción de la gestación por subrogación en España”, Diario ordenamiento jurídico español”, Revista General de Dere-
La Ley, núm. 8457, Año XXXVI, Sección Doctrina, 13 cho, núm. 631, 1997.
de enero de 2015. “La figura legal del anonimato del donante en la regulación de
Gestación por encargo: tratamiento judicial y soluciones prácticas. La las llamadas técnicas de reproducción asistida”, Revista
cuestión jurídica de las madres de alquiler, Reus, Colección General de Derecho, núm. 600, 1994.
de Derecho español contemporáneo, Madrid, 2015. Las nuevas formas de reproducción humana, Cuadernos Civitas,
“La gestación por encargo desde el análisis económico del Madrid, 1988.
72 Derecho: medidas anticrisis desde el Derecho de Fa- Vila-Coro Vázquez, A.: “Hacia una regulación de la Gesta-
milia”, Diario La Ley, núm. 8055, Año XXXIV, Sección ción por Sustitución como Técnica de Reproducción
Doctrina, 4 de abril de 2013. Asistida”, en Benavente Moreda, P. y Farnós Amorós,
“La gestación por sustitución o maternidad subrogada: el de- E. (coords.): Treinta años de reproducción asistida en Es-
recho a recurrir a las madres de alquiler”, Diario La Ley, paña: una mirada interdisciplinaria a un fenómeno global y
núm. 7608, Año XXXII, Sección Doctrina, 11 de abril actual, Boletín del Ministerio de Justicia, Año LXIX,
de 2011. núm. 2179, junio 2015.
Tema 1
CANCRO E TRABALHO
n.º 38/2004, dos princípios jurídico-la- A violação destas normas determina que o em-
borais enunciados e do disposto no artigo pregador incorra em contraordenação grave. Os
71.º da Constituição da República Portu- doentes oncológicos portadores de um grau de in-
guesa, é a aplicação de políticas ativas de capacidade igual ou superior a 60%, devidamente
inserção, por parte do empregador, que certificado por Atestado Multiusos de Incapacida-
passam necessariamente pela adaptação do de válido (cfr. Circular Normativa da DGS n.º 04/
posto de trabalho às condições e à capaci- DSPS, de 06-03-2002), beneficiam, inequivoca-
dade de trabalho do trabalhador. mente, deste regime.
e) A fiscalização das condições de traba- h) Além disso, o trabalhador portador de de-
lho dos trabalhadores com deficiência ficiência ou doença crónica não é obrigado a pres-
ou doença crónica, bem como o estrito tar trabalho suplementar, nos termos do disposto
cumprimento do regime laboral que lhe no artigo 88.º do Código do Trabalho. Conforme
é mais favorável é, nos termos da Portaria estatuído pelo n.º 1 do art. 226.º do Código do
n.º 1294-B/2007, de 28 de Setembro, da Trabalho, considera-se trabalho suplementar o que
competência da Autoridade para as Condi- é prestado fora do horário de trabalho, ou seja,
ções de Trabalho (ACT). todo o trabalho que exceda o horário de trabalho
f) A generalidade das questões complexas ao definido no contrato individual. Este é, inequivo-
nível laboral obedece ao princípio da ne- camente, o regime a aplicar também aos doentes
76 cessidade de acordo entre o empregador oncológicos, sempre que a sua incapacidade se en-
e o trabalhador. Tendo em conta a natural contre devidamente atestada.
desigualdade de forças na relação que se es-
tabelece entre ambos, quis o Legislador, ex- 2. Segurança e Saúde no Trabalho.
plicitamente, impedir que as condições de Medicina do Trabalho.
trabalho de um trabalhador possam ser mo- De acordo com o disposto na alínea j) do n.º
dificadas unilateralmente sem o acordo do 1 do artigo 4.º da Lei Geral do Trabalho em Fun-
mesmo, o que promoveria situações de abu- ções Públicas, a promoção da segurança e saúde
so sobre a parte mais frágil da convenção. no trabalho é definida pelo Código do Trabalho e
g) O trabalhador portador de deficiência ou respetiva legislação complementar. Assim, é aplicá-
doença crónica beneficia, neste âmbito, vel aos funcionários sob a alçada do Ministério da
de uma proteção acrescida (cfr. arts. 87.º Educação o disposto na Lei n.º 102/2009, de 10 de
do Código do Trabalho): é dispensado da Setembro:
prestação de trabalho, se esta puder pre- • O regime jurídico da promoção da segu-
judicar a sua saúde ou segurança no traba- rança e saúde no trabalho aplica-se a todos
lho: a) Em horário organizado de acordo os trabalhadores por conta de outrem, em
com o regime de adaptabilidade, de banco todos os ramos de atividade;
de horas ou horário concentrado; b) Entre • O trabalhador tem direito à prestação de
as 20 horas de um dia e as 7 horas do dia trabalho em condições que respeitem a sua
seguinte. segurança e a sua saúde, asseguradas pelo
CANCRO E TRABALHO
Nos termos do artigo 255.º/2/a) do Código tão no Acórdão de 02-06-2011 (relator José Eusé-
do Trabalho, as faltas por doença determinam, por bio Almeida).
via de regra, a perda de remuneração. É possível No que respeita ao regime de faltas por doen-
converter os dias de faltas em dias de férias e, além ça no setor público, dispõe o artigo 15.º da Lei
disso, o diálogo entre o trabalhador e o emprega- n.º 35/2014, de 20 de junho, que a falta por mo-
dor poderá permitir encontrar soluções alternati- tivo de doença devidamente comprovada não afe-
vas à perda de remuneração. ta qualquer direito do trabalhador, salvo quanto à
Os trabalhadores, por conta de outrem ou in- remuneração, nestes termos: a) determina a perda
dependentes, que beneficiem do regime da Segu- da totalidade da remuneração diária no primeiro,
rança Social terão direito a subsídio de doença segundo e terceiro dias de incapacidade temporá-
(“baixa médica”) a partir do 4.º dia de doença. Até ria, nas situações de faltas seguidas ou interpoladas;
aos 30 dias de faltas, este subsídio corresponderá e b) a perda de 10% da remuneração diária, a partir
a 55% da remuneração-base; dos 31 aos 90 dias, do quarto dia e até ao trigésimo dia de incapacida-
corresponderá a 60% da remuneração-base; dos de temporária. A contagem dos períodos de três e
90 aos 365 dias, corresponderá a 70% da remune- 27 dias a que se referem, respetivamente, as alíneas
ração-base; finalmente, dos 365 aos 1095 dias de a) e b) do número anterior é interrompida sempre
baixa (limite máximo), o subsídio corresponderá a que se verifique a retoma da prestação de trabalho.
75% da remuneração-base. A falta por motivo de doença não implicará a
78 Sendo embora este o regime regra, é funda- perda da remuneração base diária nos casos de in-
mental analisar a situação concreta do trabalhador, ternamento hospitalar, faltas por motivo de
designadamente no que respeita à composição do cirurgia ambulatória, doença por tubercu-
agregado familiar e à tipologia da doença, que po- lose e doença com início no decurso do período
derão alterar estas referências, de acordo com o de atribuição do subsídio parental que ultrapasse o
Decreto-Lei n.º 28/2004, de 4 de fevereiro. termo deste período.
Nas situações em que a incapacidade de traba- A perda de remuneração também não se
lho vem a determinar que o trabalhador não possa aplica às faltas por doença dadas por pessoas
continuar o exercício das suas funções laborais, ha- com deficiência, quando decorrentes da própria
verá lugar a reforma por invalidez. A invalidez deficiência.
pode ser absoluta ou relativa; não obstante, e de Além disto, a Lei Geral do Trabalho em Fun-
acordo com a alínea c) do artigo 343.º do Códi- ções Públicas estabelece, no artigo 134.º/4/b) que
go do Trabalho, a reforma por invalidez determi- as faltas motivadas pela necessidade de tratamento
na sempre a caducidade do contrato de trabalho. ambulatório, realização de consultas médicas
É certo que a pensão por invalidez relativa pode e exames complementares de diagnóstico,
acumular com rendimentos do trabalho, porém, o que não possam efetuar-se fora do período
contrato de trabalho que vinculava o trabalhador normal de trabalho e só pelo tempo estrita-
anteriormente à situação de invalidez caducará. O mente necessário; bem como as faltas motiva-
Tribunal da Relação de Coimbra teve oportunidade das por isolamento profilático e as faltas dadas para
de se pronunciar detalhadamente sobre esta ques- doação de sangue e socorrismo não determinam
CANCRO E TRABALHO
A possibilidade de faltar prevista nos números fissional e não se encontra ao mesmo tem-
anteriores não pode ser exercida simultaneamente po em situação de licença, ou que está im-
pelo pai e pela mãe. pedido ou inibido totalmente de exercer o
*
Art. 255.º/3 do Código do Trabalho: estas poder paternal;
faltas não deverão afetar a remuneração, consi- c) Que o menor vive com ele em comunhão
derando-se como prestação efetiva de trabalho. de mesa e habitação.
O exercício deste direito não garante, por si só, o Na falta de indicação em contrário por parte do
devido acompanhamento do doente oncológico duran- trabalhador, a licença tem a duração de seis meses.
te os tratamentos e convalescença, pelo que legislador Desejando gozar de tempo superior, deverá referi-
previu outros mecanismos de tutela da parentalidade: -lo expressamente na comunicação ao empregador.
i) Licença Especial Para Assistência A À prorrogação do período de licença pelo
Filho — art. 52.º do Código do Trabalho trabalhador, dentro dos limites previstos nos n.ºs 1
ii) Licença Especial Para Assistência e 2, é aplicável a mesma exigência de comunicação
A Filho Com Deficiência Ou Doen- ao empregador.
ça Crónica — art. 53.º do Código do
*
Se a doença do menor for classificável como
Trabalho deficiência ou doença crónica, o período desta li-
cença especial pode ser alargado até ao limite má-
Depois de esgotado o direito referido anterior- ximo de 4 anos.
mente (30 dias de faltas para assistência), os proge-
80
nitores têm direito a licença para assistência a filho, b) Direito A Prestar Atividade Laboral
de modo consecutivo ou interpolado, até ao limite Em Horário Flexível — art. 56.º do Có-
de dois anos. digo do Trabalho
O trabalhador só tem direito a licença se o ou- O trabalhador com filho menor de 12 anos ou,
tro progenitor também exercer alguma atividade independentemente da idade, filho com deficiência
profissional. Sendo as responsabilidades parentais ou doença crónica que com ele viva em comunhão
exercidas por ambos, a licença pode ser gozada por de mesa e habitação tem direito a trabalhar em re-
qualquer deles, ou por ambos mas em períodos su- gime de horário de trabalho flexível, podendo o
cessivos (não contemporaneamente). direito ser exercido por qualquer dos progenitores
Durante o período de licença para assistência a ou por ambos.
filho, o trabalhador não pode exercer outra ativida- Entende-se por horário flexível aquele em que
de incompatível com a respetiva finalidade, nomea- o trabalhador pode escolher, dentro de certos limi-
damente trabalho subordinado ou prestação conti- tes, as horas de início e termo do período normal
nuada de serviços fora da sua residência habitual. de trabalho diário.
Para o exercício deste direito, o trabalhador *
O horário flexível, a elaborar pelo emprega-
informa o empregador, por escrito e com a antece- dor, deve:
dência de 30 dias: a) Conter um ou dois períodos de presença
a) Do início e do termo do período em que obrigatória, com duração igual a metade do
pretende gozar a licença; período normal de trabalho diário;
b) Que o outro progenitor tem atividade pro-
CANCRO E TRABALHO
b) Indicar os períodos para início e termo do Nota: o exercício das licenças referidas pode
trabalho normal diário, cada um com du- — consoante o número efetivo de horas que o pro-
ração não inferior a um terço do período genitor faltar — determinar a perda de cerca de
normal de trabalho diário, podendo esta 35% da remuneração de referência.
duração ser reduzida na medida do ne- d) Jornada Contínua e Meia Jornada —
cessário para que o horário se contenha arts. 114.º e 114.º-A da Lei Geral do Traba-
dentro do período de funcionamento do lho em Funções Públicas:
estabelecimento; A jornada contínua consiste na prestação inin-
c) Estabelecer um período para intervalo de terrupta de trabalho, salvo um período de descanso
descanso não superior a duas horas. nunca superior a trinta minutos, que, para todos os
*
O trabalhador que opte pelo trabalho em re- efeitos, se considera tempo de trabalho.
gime de horário flexível, nos termos do presente A jornada contínua deve ocupar, predominan-
artigo, não pode ser penalizado em matéria de ava- temente, um dos períodos do dia e determinar uma
liação e de progressão na carreira. redução do período normal de trabalho diário nun-
c) Direito A Prestar Atividade Laboral ca superior a uma hora.
A Tempo Parcial — Art. 57.º do Código do O tempo máximo de trabalho seguido, em jor-
Trabalho nada contínua, não pode ter uma duração superior
a cinco horas.
O trabalhador que pretenda trabalhar a tempo par- A meia jornada consiste na prestação de traba- 81
cial deve solicitá-lo ao empregador, por escrito, com a lho num período reduzido em metade do período
antecedência de 30 dias, com os seguintes elementos: normal de trabalho a tempo completo, sem pre-
a) Indicação do prazo previsto, dentro do li- juízo da contagem integral do tempo de serviço
mite aplicável; para efeito de antiguidade. Podem dela beneficiar
b) Declaração da qual conste: os pais de doente oncológico, com menos de 12
i) que o menor vive com ele em comu- anos de idade, cuja doença seja caracterizável como
nhão de mesa e habitação; deficiência ou doença crónica.
ii) que não está esgotado o período máxi-
*
A prestação de trabalho na modalidade de
mo de duração; meia jornada não pode ter duração inferior a um
iii) que o outro progenitor tem atividade pro- ano, tendo a mesma de ser requerida por escrito
fissional e não se encontra ao mesmo tem- pelo trabalhador.
po em situação de trabalho a tempo parcial.
*
A opção pela modalidade de meia jornada im-
plica a fixação do pagamento de remuneração corres-
c) A modalidade pretendida de organização pondente a 60 /prct. do montante total auferido em
do trabalho a tempo parcial. regime de prestação de trabalho em horário completo.
*
O empregador apenas pode recusar o pedido *
A autorização para a adoção da modalidade
com fundamento em exigências imperiosas do fun- de horário de trabalho em regime de meia jorna-
cionamento da empresa, ou na impossibilidade de da cabe ao superior hierárquico do trabalhador em
substituir o trabalhador se este for indispensável. funções públicas.
Tema 2
outro lado, que há cláusulas que são, absolu- • A informação de saúde é especialmente
ta ou relativamente, proibidas neste tipo protegida por lei, segundo princípios de si-
de contratos, nomeadamente quando imponham gilo e confidencialidade, e abrange todo o
unilateralmente deveres acessórios, ajustem unila- tipo de informação direta ou indiretamente
teralmente o objeto do contrato, limitem a respon- ligada à saúde, presente ou futura, de uma
sabilidade por obrigações assumidas, ou alterem pessoa, quer se encontre com vida ou tenha
regras relativas à distribuição do risco. falecido, e a sua história clínica e familiar.
• A informação de saúde, incluindo os dados
2. Legislação complementar: regime clínicos registados, resultados de análises e
de reparação e regras sobre a infor- outros exames subsidiários, intervenções
mação de saúde e diagnósticos, é propriedade da pessoa, e
A Lei n.º 98/2009, de 04 de Setembro regula- não pode ser utilizada para outros fins que
menta o regime de reparação de acidentes de tra- não os da prestação de cuidados e a investi-
balho e de doenças profissionais, estabelecendo os gação em saúde e outros estabelecidos pela
critérios de definição da natureza, avaliação e gra- lei;
duação da incapacidade, determinando, em suma, • As companhias de seguros não podem pedir
o seguinte: a incapacidade temporária pode ser nem utilizar qualquer tipo de informação
parcial ou absoluta (artigo 19.º/2); a incapacidade genética para recusar um seguro de vida
84 permanente pode ser parcial, absoluta para o traba- ou estabelecer prémios mais elevados, não
lho habitual ou absoluta para todo e qualquer tra- podem utilizar a informação genética ob-
balho (artigo 19.º/3); tem-se por definitiva a inca- tida de testes genéticos previamente reali-
pacidade quando seja de presumir que a doença não zados nos seus clientes atuais ou potenciais
terá evolução favorável nos três anos subsequentes para efeitos de seguros de vida e de saúde,
à data do seu reconhecimento (artigo 62.º). nem podem utilizar a informação genética
Uma vez que este tipo de contratos de seguro resultante da colheita e registo dos ante-
versa, muitas vezes, sobre informação de saúde, há cedentes familiares para recusar um segu-
ainda que ter em linha de conta o preceituado na ro ou estabelecer prémios aumentados ou
Lei n.º 12/2015, de 26 de janeiro, e demais legis- para outros efeitos.
lação conexa (Lei n.º 67/98, de 26 de outubro; Lei 3. Tipologia da Invalidez. Posições
n.º 46/2007, de 24 de agosto; a Diretiva 2003/4/ jurisprudenciais
CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 28
de janeiro, e a Diretiva 2003/98/CE, do Parla- Na ausência de critérios uniformes para o efei-
mento Europeu e do Conselho, de 17 de novem- to, a Associação Portuguesa de Seguradoras, com
bro, transpostas para a ordem jurídica interna pela o apoio do ISP, emitiu em 2011 um conjunto de
Lei n.º 26/2016, de 22 de agosto). recomendações às companhias, que propunha a
Neste ponto, são de destacar as seguintes adoção das seguintes definições: invalidez absolu-
normas: ta e definitiva, invalidez definitiva para qualquer
profissão, invalidez definitiva para a profissão ou
CANCRO E SEGUROS COM COBERTURA DE INVALIDEZ
atividade compatível e invalidez definitiva para a voco o postulado pelo Supremo Tribunal
profissão habitual. de Justiça pelo Acórdão de 24-01-2017,
Esta recomendação previa igualmente a introdu- referente ao proc. n.º 1237/14.0TBSTR.
ção dos conceitos de invalidez parcial e de invalidez E1.S1.
temporária e recomendava a utilização da Tabela Na- • A segunda — a cobertura da invalidez ab-
cional de Incapacidades como referência (Decreto- soluta e definitiva (IAD) — garante o pa-
-lei n.º 352/2007, de 23 de Outubro). Todavia, ve- gamento do crédito caso o segurado fique
rificamos que as seguradoras persistem na utilização totalmente incapacitado para o trabalho,
de conceitos indeterminados e na violação dos seus podendo ou não figurar a necessidade do
deveres de informação concretos, completos e espe- auxílio de terceira pessoa, e podendo ou
cíficos aos seus clientes, no que concerne à natureza não exigir-se declaração de reforma/apo-
da incapacidade coberta pela apólice de seguro de sentação por invalidez, sendo certo que
vida com complemento de invalidez. toda e qualquer “condição extra” terá de
Encontramos na Doutrina e na Jurisprudência constar especificada na apólice de seguro.
concernentes à tipologia da cobertura das apóli- Esta cobertura corresponde, habitualmen-
ces que contemplam a invalidez relativo consenso. te, a um grau de incapacidade permanente
Existem essencialmente dois tipos de cobertura de entre 75% e 80%.
invalidez — a que supõe a invalidez total e per- De acordo com o Acórdão do Tribunal da Re-
manente (ITP), mais abrangente, e a que prevê a lação do Porto de 06-06-2013 (Relator Leonel 85
invalidez absoluta e definitiva (IAD), menos ampla. Serôdio), uma invalidez absoluta e definitiva refere-se,
• A primeira — a cobertura da invalidez to- segundo um declaratário normal, a um estado de inca-
tal e permanente (ITP) — garante o paga- pacidade para todo e qualquer trabalho e para o resto
mento do crédito caso o segurado apresente da vida.
um grau de incapacidade igual ou superior Sendo certo que — importa sublinhá-lo —
a determinada percentagem convencional- como fixou o Supremo Tribunal de Justiça por
mente estabelecida (por exemplo, 65% ou, acórdão datado de 14-12-2016 e referente ao pro-
mais comummente, a 66,6%. Inexiste cri- cesso n.º 1724/11.2TVLSB.L1.S1 (realce nosso):
tério, legal ou outro, que justifique esta ou “Uma cláusula que prevê a exigência concomi-
outra percentagem). Muito embora sejam tante da impossibilidade de realização de qualquer
comuns as tentativas de subversão do prin- atividade remunerada, aliada ao grau de incapaci-
cípio subjacente a este tipo de cobertura, é dade (inferior a 85%), à necessidade de ajuda de
atualmente perfeitamente claro que a pes- terceira pessoa para a realização (cumulativamen-
soa que atinja o grau de incapacidade míni- te) de todos os atos elementares da vida corrente
mo referido na apólice (por exemplo, 65%) descritos na cláusula, não é justificada, sendo des-
tem o direito ao pagamento antecipado do proporcionada à caracterização do estado de invali-
capital de seguro, ainda que não fique to- dez permanente que o seguro visou prevenir.
tal e permanentemente incapacitado para O segmento duma cláusula que exige, para
qualquer trabalho. É neste sentido inequí- além do apoio de terceira pessoa, que se encontre
CANCRO E SEGUROS COM COBERTURA DE INVALIDEZ
incapaz de, cumulativamente, realizar os actos ele- conceito de invalidez absoluta e definitiva de que
mentares da vida corrente (…) para efeitos de de- depende o acionamento do questionado contrato
finição de invalidez absoluta e definitiva, de modo de seguro, se o autor ficou a padecer de uma in-
a permitir a cobertura prevista no contrato de se- capacidade permanente global de 66% de nature-
guro, no caso concreto em apreciação, é contrária za motora, que o inabilita para o exercício da sua
à boa-fé, por desproporcionalmente violadora dos profissão e que o limita significativa nas activida-
interesses visados com a celebração de tal contrato, des da vida diária, dependendo inclusivamente de
sendo, consequentemente, parcialmente nula (ar- terceiros para algumas tarefas…” (cfr. Ac. STJ de
tigo 15.º do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25/10 e 29-04-2010).
artigo 292.º do Código Civil). Conforme o Acórdão do Tribunal da Relação
Impõe-se a exclusão do referido segmento, ou do Porto de 06-06-2013 (Relator Leonel Serôdio),
seja, na parte em que estabelece, para além da neces- num contrato de seguro, enquanto contrato de adesão,
sidade do segurado carecer da assistência de terceira cabe ao destinatário da cláusula que pretende afastá-la,
pessoa, que a mesma se destine assistir o segurado ou a quem beneficia desse afastamento, o ónus de ale-
a realizar “cumulativamente os actos elementares gação, competindo ao predisponente, face a tal alegação,
da vida corrente: Lavar-se, Alimentar-se, Vestir-se e alegar e provar o efetivo cumprimento dos deveres de co-
Deslocar-se no local de residência habitual. municação e informação.
Sendo ainda de considerar que o preenchimen- Ao mesmo passo, padece de nulidade a cláusula
86 to de todos os requisitos cumulativos previstos na que estabelece que a pessoa segura só é considerada
cláusula (…) é excessivamente limitativa da obri- em estado de invalidez absoluta e definitiva quando
gação assumida contratualmente pela seguradora necessite de recorrer, de modo contínuo, à assis-
(…) em relação ao risco segurado, que retira prati- tência de uma terceira pessoa para efetuar os atos
camente utilidade ao contrato de seguro, razão pela normais da vida diária, porque esta cláusula limita
qual, no segmento acima considerado, também a excessivamente as obrigações assumidas na con-
mesma se tem por proibida ao abrigo do artigo 21° tratação pela seguradora, violando o princípio da
alínea a), do regime das CCG e, por conseguinte, boa-fé. Mas já não padece daquele vício a cláusula que
nula (artigo 12.° do mesmo diploma legal).” considera a pessoa segura em estado de invalidez absoluta
Esta não é uma decisão jurisprudencial origi- e definitiva quando, em consequência de doença susceptí-
nal, mas a consequência natural de décadas de ex- vel de constatação médica objetiva, fique total e definiti-
periência judicativa nesta matéria, que inequivoca- vamente incapacitada de exercer qualquer profissão.
mente demonstra que, sistematicamente, muitas De acordo com o acórdão do Tribunal da Re-
seguradoras elaboram cláusulas contratuais mani- lação de Lisboa de 02-06-2016 (Relator António
festamente contrárias ao princípio da boa-fé, com Valente), a cláusula contratual geral, inserida num con-
exigências de tal modo desproporcionadas que trato de seguro, que, para lá da demonstrada invalidez
anulam totalmente a utilidade e a razão de ser do para o trabalho por parte do segurado, exige que a mesma
próprio seguro. atinja uma incapacidade permanente de 85% e se en-
Aliás, em 2010, já o STJ tinha ido mais longe, contre dependente de terceira pessoa para efetuar os atos
estabelecendo que “É de considerar preenchido o elementares da vida corrente, como vestir-se, alimentar-se
CANCRO E SEGUROS COM COBERTURA DE INVALIDEZ
ou cuidar da sua higiene, é uma cláusula ferida de nuli- tuários a satisfação do crédito.
dade, já que estabelecida em proveito exclusivo da segu- A impugnação de créditos reclamados pode
radora, numa flagrante violação dos princípios da boa-fé ter por fundamento qualquer das causas que extin-
e proporcionalidade. guem ou modificam a obrigação ou que impedem
Segundo o arrazoado deste Tribunal superior, a sua existência, podendo discutir-se nesta sede
a razão de ser deste tipo de seguro é proteger o matéria relacionada com um contrato de seguro de
particular que celebra um contrato de mútuo vida, que garante um contrato de mútuo para ha-
imobiliário com um Banco, vindo posteriormen- bitação, o qual além dessa garantia tem ainda a seu
te a ser acometido de doença (ou acidente) que favor uma hipoteca.
o torne inteiramente incapaz de efetuar trabalho De acordo com o Supremo Tribunal, existindo
remunerado, e assim, de angariar os rendimentos um «Atestado Médico de Incapacidade Multiuso» emitido
que lhe permitam fazer face aos pagamentos do pela Administração Regional de Saúde do Norte, onde
empréstimo contraído com a instituição bancária. se atesta que o executado apresenta deficiências que lhe
Visa o contrato igualmente a diminuição de riscos conferem uma incapacidade permanente global de 64%,
do Banco, em tais circunstâncias, de modo a que, este documento autêntico faz prova plena dos factos que
verificada a incapacidade de o segurado exercer ac- referem como praticados por aquela autoridade, pelo que
tividade remunerada e continuar a satisfazer as suas o tribunal recorrido, ao não dar como provados os factos
obrigações contratuais, possa o Banco receber esse referenciados, violou de forma expressa as regras do direito
montante da Seguradora. probatório material. Nestes termos, tal situação de in- 87
Assim, o que está em causa é a total incapaci- capacidade do executado vem definida no contrato
dade para o trabalho do sinistrado; e exigir, para lá de seguro de vida, verificando-se o sinistro coberto
disto, uma incapacidade permanente de 85% e depen- pelo âmbito daquele contrato e o banco, ao exigir
dência de terceira pessoa para os atos da vida corrente, dos executados a satisfação do crédito em vez de
é um modo de limitar drasticamente as situações em acionar o seguro de vida com vista à liquidação do
que o pagamento pela seguradora é desencadeado, crédito junto da seguradora, agiu em abuso de di-
mesmo quando a incapacidade total para o trabalho reito, não sendo de admitir o seu crédito reclamado.
é evidente. Trata-se de uma cláusula abusiva e O banco ao exigir dos executados/mutuários
como tal proibida. a satisfação do crédito em vez de acionar o segu-
ro de vida com vista à liquidação do crédito junto
4. Obrigação, por parte do banco, de da seguradora, age de modo muito censurável. O
acionamento do seguro para paga- voto de vencido na instância recorrida considerou
mento do crédito “chocante que se dê a alguém, colocado no lugar de
O Supremo Tribunal de Justiça, em acórdão da- um banco (por ter adquirido o respetivo crédito —
tado de 24-11-2016, veio estabelecer que constitui banco que, para além de uma hipoteca da casa de
abuso de direito a atuação do banco que, face à habitação dos executados, tem o crédito garantido
incapacidade permanente global do mutuário, em por uma seguradora contratada obrigatoriamente
vez de acionar o seguro de vida com vista à liquida- para tal pelos executados) — a possibilidade (bem
ção do crédito junto da seguradora, exige dos mu- contra o espírito da lei 58/2012 de 9/11) de forçar
CANCRO E SEGUROS COM COBERTURA DE INVALIDEZ
88
Tema 3
A Lei n.º 64/2014, de 26 de agosto, veio posi- agosto, considera-se pessoa com deficiên-
tivar o regime de concessão de crédito bonificado à cia aquela que, por motivo de perda ou
habitação a pessoa com deficiência, tendo revogado anomalia, congénita ou adquirida, de fun-
os decretos-leis n.º 541/80, de 10 de novembro, e ções ou de estruturas do corpo, incluindo
98/86, de 17 de maio. as funções psicológicas, apresente dificul-
Decretou-se, então, nomeadamente, o dades específicas suscetíveis de, em conju-
seguinte: gação com os fatores do meio, lhe limitar
A) Que a concessão de crédito bonifica- ou dificultar a actividade e a participação
do a pessoa com deficiência tem em vista a em condições de igualdade com as demais 89
aquisição, ampliação, construção e/ou a realização pessoas.
de obras de conservação ordinária, extraordinária • O acesso ao crédito bonificado deve ser ga-
ou de beneficiação, em habitação própria perma- rantido sempre que o grau de incapacidade
nente, conforme o disposto no n.º 1 do artigo 2.º seja igual ou superior a 60%, comprovado
do referido diploma legal; por atestado médico multiuso, de acordo
• Bem assim, o crédito pode ainda destinar- com o disposto na alínea a) do n.º 3 da Lei
-se a aquisição de terreno para habitação n.º 64/2014, de 26 de agosto.
própria permanente ou a realização de • Não pode considerar-se, em qualquer caso,
obras de conservação ordinária, quando que é necessário um grau de incapacida-
exigidas para o cumprimento de normas de superior a 60% para o acesso a crédito
técnicas, para melhorias de acessibilidade, bonificado.
no mesmo âmbito de habitação própria • A recusa de crédito bonificado a pessoa
permanente; com deficiência de grau igual a 60% é ma-
• Para os efeitos mencionados, o critério nifestamente ilegal, violando o ordena-
para definir «pessoa com deficiência» é o mento jurídico nacional e as convenções
que consta das bases gerais do regime ju- internacionais de que Portugal é parte e
rídico postulado pela Lei n.º 38/2004, de que pretendem concretizar uma proteção
18 de agosto; efetiva da pessoa com deficiência.
• Nos termos da Lei n.º 38/2004, de 18 de • Inexiste qualquer relação entre os contra-
CANCRO E ACESSO AO CRÉDITO À HABITAÇÃO BONIFICADO
92
Tema 4
1. Isenção de Taxas Moderadoras Nos termos dos n.º 7 e 8 do artigo 4.º do De-
creto-lei n.º 291/2009, de 12 de outubro, quando
Nos termos da Lei n.º 38/2004, de 18 de agos- haja lugar a reavaliação da incapacidade, o grau de
to, considera-se pessoa com deficiência aquela que, incapacidade resultante da aplicação da Tabela Na-
por motivo de perda ou anomalia, congénita ou adqui- cional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho
rida, de funções ou de estruturas do corpo, incluindo as e Doenças Profissionais vigente à data da avaliação
funções psicológicas, apresente dificuldades específicas ou da última reavaliação é mantido sempre que, de
suscetíveis de, em conjugação com os factores do meio, lhe acordo com declaração da junta médica, se mostre
limitar ou dificultar a atividade e a participação em con- mais favorável ao avaliado.
dições de igualdade com as demais pessoas. 93
De acordo com o mesmo preceito legal, con-
Nos termos dos artigos 4.º e 28.º da Conven- sidera-se que o grau de incapacidade é desfavorável ao
ção Sobre os Direitos das Pessoas com Deficiên- avaliado quando a alteração do grau de incapacidade
cia, ratificada pelo Estado português em 2009 resultante de revisão ou reavaliação implique a perda de
e, por isso, direito português vigente, o Estado direitos que o mesmo já esteja a exercer ou de benefícios
compromete-se a promover os direitos das que já lhe tenham sido reconhecidos.
pessoas com deficiência, abster-se de qualquer O art. 4.º do Decreto-lei n.º 113/2011, de
prática maleficente contra a pessoa com deficiên- 29 de novembro, republicado em 05 de agosto de
cia, e garantir um nível de vida e a proteção social 2014, estabelece que outras razões podem justificar
adequados às pessoas nesta condição. a isenção de taxas moderadoras, nomeadamente,
De acordo com a alínea c) do art. 4.º do Decre- pelo critério da insuficiência económica. Contudo,
to-lei n.º 113/2011, de 29 de novembro, republi- os critérios não são, de modo algum, cumulativos,
cado em 05 de agosto de 2014, estão isentos de pelo que a verificação da incapacidade igual ou su-
taxas moderadoras os utentes com grau de perior a 60% vale por si mesma, sendo suficiente
incapacidade igual ou superior a 60%. para justificar a isenção.
O grau de incapacidade é avaliado segun- Resulta claro que, a pessoa que detenha um
do o procedimento constante no Decreto-lei n.º grau de incapacidade igual ou superior a 60%, de-
202/96, de 23 de outubro. vidamente confirmado por Atestado de Incapacida-
de Multiusos vigente, beneficia inequivocamente
Cadernos Lex Medicinae, n.º 2 (2018)
CANCRO E ACESSO A PRESTAÇÕES DO SERVIÇO NACIONAL DE SAÚDE
pecialista ou do médico de família responsável pelo política global, integrada e transversal, de forma a
doente (1).
Estabelecendo que os sacos de colosto- compensar e a atenuar as suas limitações na ativida-
mia e ileostomia são comparticipados pelo Serviço de e restrições na participação.
Nacional de Saúde em 90% do seu custo, com o Ora, considerando que a Convenção sobre os
limite de 400$ por saco (2); que os sacos de uros- Direitos das Pessoas com Deficiência dispõe que
tomia são comparticipados pelo Serviço Nacional cabe aos Estados Partes garantir a mobilidade pes-
de Saúde em 90% do seu custo, com o limite de soal das pessoas com deficiência, com o maior ní-
500$ por cada saco (3); que os acessórios para os vel de independência possível, facilitando o aces-
sacos de ostomia são comparticipados pelo Serviço so a ajudas à mobilidade através de dispositivos e
Nacional de Saúde em 90% do seu custo (4); e que tecnologias de apoio; considerando que a Lei n.º
a comparticipação referida nos números anteriores 38/2004, de 18 de agosto, que define as bases ge-
destina-se aos utentes do Serviço Nacional de rais do regime jurídico da prevenção, habilitação,
Saúde e poderá ser anualmente ajustada atendendo reabilitação e participação das pessoas com defi-
à evolução dos preços dos sacos de ostomia (5). ciência, dispõe que compete ao Estado o forneci-
O diploma supracitado não sofre qualquer alte- mento, adaptação, manutenção ou renovação dos
ração há 20 anos, pelo que muitos dos dispositivos meios de compensação que forem adequados, com
possuem, atualmente, um preço superior ao referi- vista a uma maior autonomia e adequada integra-
do no despacho. ção por parte daquelas pessoas; e considerando que
Contudo, e não obstante os diversos problemas o supracitado Decreto-Lei n.º 93/2009, de 16 de 95
práticos que surgem, no dia-a-dia, para estes doen- abril, criou o Sistema de Atribuição de Produtos de
tes, quanto às falhas no fornecimento, em centros Apoio ao qual todas as pessoas com deficiência e
de saúde e outras instituições, e à impossibilidade pessoas com incapacidades temporárias podem re-
económica de muitos destes doentes em adquirir correr, anualmente, por Despacho governamental
os sacos de ostomia ou outros junto de farmácias são determinadas as verbas a alocar a estes produ-
para apenas muito posteriormente serem reembol- tos de apoio.
sados, na realidade é pacífico o entendimento de Posteriormente, através de despacho do Insti-
que há efetiva comparticipação destes dispositivos. tuto Nacional para a Reabilitação, I.P. são deter-
Surge, no entanto, a questão quanto a outros dis- minadas as normas regulamentadoras do Despacho
positivos que também são necessários para os doen- que determina as verbas e consequente atribuição
tes ostomizados como, por exemplo, as cânulas para de Produtos de Apoio para Pessoas com Deficiência
a laringe e que não estão incluídos neste despacho e (concretizadas, nomeadamente, através do Despa-
cuja comparticipação é, por vezes, negada. cho n.º 5212/2014, publicado em Diário da Repú-
O Decreto-Lei n.º 93/2009, de 16 de abril, blica, 2.ª série, N.º 72, de 11 de abril de 2014, e do
criou o Sistema de Atribuição de Produtos Despacho n.º 14278/2014, publicado em Diário
de Apoio, designado por SAPA, que pretende as- da República, 2.ª série — N.º 229 — 26 de no-
segurar a atribuição de produtos de apoio às pes- vembro de 2014).
soas com deficiências e com incapacidades, de na- O financiamento é de 100% quando o
tureza permanente ou temporária, realizando uma Produto de Apoio (Ajuda Técnica) não consta nas
CANCRO E ACESSO A PRESTAÇÕES DO SERVIÇO NACIONAL DE SAÚDE
razão da matéria, daqueles princípios normativos de, sempre que o doente não beneficie
fundamentais e impõem, em nosso parecer, que o de algum subsistema de saúde. Verifican-
acesso a ajudas técnicas por parte das doentes on- do-se este último caso, o financiamento
cológicas mastectomizadas seja universal, não sendo corresponde à diferença entre o custo do
admissível que a tipologia e a quantidade de ajudas produto de apoio e o valor da respetiva
técnicas a que uma doente tem direito variem em comparticipação.
função da unidade pública de saúde em que é tratada. • As substituições necessárias, medicamente
Na verdade, a referida legislação é, segundo atestadas, dos produtos de apoio regem-se
cremos, absolutamente inequívoca quanto a esta pelos mesmos pressupostos, sendo finan-
questão, e assente nas premissas seguintes: ciadas nos mesmos termos que as primei-
• O doente oncológico mastectomizado é ras ajudas técnicas fornecidas.
considerado uma pessoa com deficiência, • Sendo o apoio mamário um dispositivo ne-
nos termos e para os efeitos do disposto na cessário à manutenção da prótese mamária
Lei n.º 38/2004, de 18 de agosto, e, por- externa deve entender-se, e ainda que os
tanto, também para o efeito de acesso às visados diplomas legais não o tenham ex-
denominadas «ajudas técnicas». pressamente previsto, que este é também
• Os produtos de apoio legalmente previs- fornecido pelo Sistema Nacional de Saúde.
tos e adequadamente prescritos (de acor- 3. Transporte não urgente para
do com o propugnado no Despacho n.º tratamentos 97
14278/2014 e fazendo uso de formulário
próprio para o efeito) são financiados em De acordo com o disposto nos artigos 3.º e 4.º
100%, independentemente da quantida- da Portaria n.º 142-B/2012, de 15 de maio, são
de, exceto quando conste em tabelas de dois os critérios alternativos a ter em conta no de-
reembolso de subsistema de saúde de que ferimento do transporte não urgente:
o doente seja beneficiário. O que significa Critério a) — situação de insuficiência econó-
que, sempre que um doente não beneficie mica, a que se junta uma situação clínica incapa-
de qualquer subsistema de saúde, o finan- citante. Ao abrigo deste critério, que se subdivide
ciamento dos referidos produtos é 100% nos vários critérios enunciados pelas alíneas do
abarcado pelo Serviço Nacional de Saúde, artigo 3.º, são tidos em conta o grau de incapa-
sem limite de renovações desses mesmos cidade do doente, que deve ser superior a 60%,
produtos, nos termos do disposto no ar- nos termos gerais (n.º1/a)), a existência de condi-
tigo 12.º do Decreto-lei n.º 93/2009, de ção clínica incapacitante (n.º1/b) e n.º 2) ou outra
16 de abril. condição clínica que o justifique (n.º 3), estando
• Especificamente, as prótese mamárias – aqui abrangidas diversas situações, algumas delas
Código ISO 06 30 18 – e as cabeleiras – tipificadas. Ao abrigo deste conjunto de critérios,
Código ISSO 06 30 03 – sempre que de- o SNS custeia totalmente o transporte não urgente.
vidamente prescritas, deverão ser 100%
financiadas pelo Sistema Nacional de Saú-
CANCRO E ACESSO A PRESTAÇÕES DO SERVIÇO NACIONAL DE SAÚDE
profunda (com um grau de incapacidade pessoas com deficiência que se movam apoiadas
igual ou superior a 90%); em cadeira de rodas, sendo as emissões aumen-
• Ao uso de pessoas com deficiência moto- tadas para 180 g/km, quando, por imposição da
ra que se movam exclusivamente apoia- declaração de incapacidade, o veículo a adquirir
das em cadeiras de rodas, qualquer que deva possuir mudanças automáticas.
seja a respetiva idade; A isenção está limitada ao montante de 7.800
• Ao uso de pessoas com deficiência visual euros, e não é automática, ficando dependente
(alteração permanente no domínio da vi- de reconhecimento pela Autoridade Tributária e
são de 95%). Aduaneira, à qual deve ser remetido o pedido de
A isenção é válida apenas para os veículos que isenção, acompanhado da habilitação legal para a
possuam nível de emissão de CO (índice 2) até condução, quando a mesma não é dispensada e
160 g/km. Este limite não é aplicável aos veí- declaração de incapacidade permanente, emitida
culos especialmente adaptados ao transporte de há menos de 5 anos.
102
DOENTES ONCOLÓGICOS — QUE DIREITO E QUE DEVERES?
A Saúde e o Direito têm paralelos inesperados Não foi sempre assim: nem sempre reconhe-
mas evidentes. O primeiro está na intenção fun- cemos liberdade e autonomia aos doentes e nem
damental, que é o ato de cuidado. Um interesse sempre reconhecemos uma autonomia técnica e
genuíno pelo outro, por melhorar a sua condição, e científica diferenciada aos profissionais de saúde. E
a legítima expectativa de que as dores, tal como os porque não foi sempre assim, e tudo está em cons-
problemas, possam ser aliviadas, pela ciência e pela tante mudança, há que ficar atento ao rumo que as
força da proximidade existencial. coisas tomam.
O cuidado mútuo é uma função basilar de todas Hoje, assumimos que o doente intervém, par-
as organizações que funcionam, quer das células do ticipa e decide quanto a todos os atos que recaiam 103
nosso corpo, quer de instituições, quer de socieda- sobre a sua integridade física e psíquica, e defende-
des complexas. A dependência do outro transpor- mos a relação profissional de saúde-doente como
ta-nos para outra semelhança entre a Saúde e o Di- uma relação de respeito sobre a personalidade mo-
reito: criar ferramentas para o equilíbrio possível, ral de cada um.
que permita levar uma vida completa, adulta, viva, Assumimos que nesta relação o doente se en-
em que estejamos em estado de respirar em comunhão com contra, na maior parte das vezes, numa situação de
aquilo de que gostamos. especial vulnerabilidade, e que essa vulnerabilidade
O estado atual do Direito da Saúde, que se é assunto de relevância não apenas ética mas es-
ocupa, precisamente, dos direitos e dos deveres pecificamente jurídica, e almejamos uma autêntica
dos atores principais da saúde — os pacientes, os democracia na saúde, onde profissionais, doentes,
profissionais e as instituições — só se compreende instituições e voluntários possam contribuir ativa e
adequadamente num horizonte histórico que asso- criticamente para o melhoramento efetivo das con-
ciou uma ideia do doente como cidadão e uma ideia dições de vivência da saúde.
da medicina como ciência viva, dinâmica e rastreá- Empoderar o doente e dar-lhe voz passa, ne-
vel, compreendidas, ambas, numa relação de mu- cessariamente, por informar e acompanhar o exer-
tua autonomia e responsabilidade, contra (ambas) cício de direitos e deveres, na dinâmica triangular
o fado tradicional do “acaso”. paciente — profissionais de saúde — instituições.
Os direitos e os deveres, além de serem cor-
(1)
Mestre em Direito, Doutoranda em Bioética, Investigadora do Cen-
tro de Direito Biomédico, Advogada, anaelisabete.me@gmail.com relato uns dos outros, têm em comum o facto de
DOENTES ONCOLÓGICOS — QUE DIREITO E QUE DEVERES?
não se trazerem à evidência por si mesmos. Reco- E uma parte dessa garantia não é responsabilidade
nhecer que alguém tem um direito ou um dever de outrem, é responsabilidade nossa, e passa por
não garante, de modo nenhum, que ele possa ser informar e educar pacientemente, e consistente-
exercido. É uma banalidade, é verdade, mas fa- mente, sobre os direitos.
la-se muito em direitos e deveres e talvez pouco Os direitos fundamentais são iguais e equiva-
na criação de condições para que esses direitos e lentes para todos os doentes: o direito a que o pro-
deveres possam ser efetivos. E sim, para afirmar fissional de saúde respeite rigorosamente as boas
que alguém tem deveres também preciso dar-lhe práticas da profissão, o direito a ser informado e a
condições para os cumprir. consentir em todos os atos e tratamentos médico-ci-
O Direito da Saúde tem três preocupações: a rúrgicos, o direito de ter e de aceder a um processo
relação entre o doente e o profissional de saúde, a clínico próprio, completo, individual e sigiloso, e o
relação dos profissionais de saúde entre si, e a re- direito a ter respeitada a intimidade da sua vida pri-
lação dos doentes e dos profissionais com as várias vada. São direitos aparentemente elementares mas
instituições às quais estão vinculados. É um terreno configuram, na verdade, os verdadeiros pilares dos
amplo, onde a legislação prolifera mas não dá nem mais altos princípios, que deriavm da nossa cultura
sequer pretende dar resposta a tudo. Porque a vida e estao consagrados na Constituição da República:
é sempre original e porque há multiplos lugares a vida, a autonomia, a integridade física e psíquica,
para encontrar respostas, como as Convenções in- a proteção e a promoção da saúde, a liberdade de
104 ternacionais e a jurisprudência, onde os problemas escolha, a informação pessoal, a intimidade.
são concretos e reais, e não abstratos como a lei A estes juntam-se direitos que nasceram de-
acha que são. pois, e se sedimentaram já com a Convenção de
Hoje falamos dos doentes. E embora todas as Oviedo, no século XXI: o respeito pela vontade
dimensões da pessoa nos mereçam, naturalmente, anteriormente manifestada e um testamento vi-
respeito e consideração, não devemos ter medo de tal vinculativo, o direito a uma segunda opinião
afirmar que a situação de doença é especial. E é médica, o livre acesso e circulação no Serviço Na-
tão especial, que mexe com todas as áreas da vida cional de Saúde, a referenciação especializada, os
pública, com todas as prestações sociais desde a tempos máximos de resposta garantidos, o acesso
educação à cultura, passando pelo ambiente e pelo a cuidados de saúde transfronteiriços, a integração
trabalho, e afeta, potencialmente, tudo o que cada em cuidados continuados e paliativos.
um é e pode ser nos movimentos da sua vida. Alguns doentes, não obstante, têm direitos
A personalidade jurídica enquanto plena susce- mais específicos e é esse o caso das pessoas que
tibilidade de ser titular de direitos e deveres adqui- apresentem um grau de incapacidade igual ou su-
re-se no momento do nascimento completo e com perior a 60%, designadamente, por força da doen-
vida e cessa com a morte — no intervalo, largo ou ça oncológica. A situação de incapacidade justifica,
curto, entre uma coisa e outra, a pessoa só é pessoa ela mesma, que se formem entre o doente e deter-
se as condições políticas, económicas e culturais minadas instituições um vínculo particular:
forem capazes de garantir um primeiro princípio Desde logo com o Serviço Nacional de Saúde,
fundamental: o direito a ter direitos. na possibilidade de isenção de taxas moderadoras,
DOENTES ONCOLÓGICOS — QUE DIREITO E QUE DEVERES?
que o doente deve falar a verdade sobre a atos e decisões sobre si mesmo, e que não se
sua história clínica, compadece com nenhum tipo de paternalismo,
zelar pela sua própria saúde, nem mesmo daquele que parece beneficente, e
cumprir a prescrição médica, usa a vulnerabilidade do doente para dizer que
decidir responsavelmente sobre as alterna- ele sozinho não consegue.
tivas que lhe são apresentadas, Então, o discurso dos deveres dos doentes,
empenhar-se ativamente na resolução dos que é um discurso fundamental na literacia e
seus problemas, na prevenção, é um discurso que, no âmbito
colaborar com as instituições e com os jurídico tem de ter o cuidado de, previamente,
prestadores de cuidados. responder afirmativamente a duas questões:
Mas se a pergunta me parece provocató- 1 — o doente tem condições/ferramentas
ria, atentatória da condição de especial vulne- para cumprir os seus deveres?
rabilidade em que o doente se encontra; se é 2 — os seus direitos estão a ser respeitados?
uma pergunta que ignora que a relação entre o Se sim, então eu posso e devo exigir alguma
doente e os prestadores de saúde é uma relação coisa. Posso exigir informando, dando ferra-
de eminente e inultrapassável desigualdade, de mentas para cumprir, dando voz e fazendo eco
armas e de oportunidades, então respondo re- das reivindicações, ensinando e acompanhan-
dondamente que não. Que o doente não tem do de forma paciente e apaixonada. E nunca
106 deveres, porque nenhum deles é judicialmente usando o argumento dos deveres para atropelar
exigível; porque nenhum tribunal condenará direitos.
um doente a zelar pela sua saúde ou a cum- Aqui como em muitas esferas da vida, é
prir um tratamento médico, muito menos a ser preciso assumir que nem sempre há corres-
educado ou a abster-se de ser inconveniente, pondência entre o que se dá e o que recebe. E
recalcitrante ou desagradável. que isso é assim pela natureza das coisas, par-
A resposta correta, como está bom de ver, ticularmente num âmbito em que as situações
fica num meio caminho. Que é certo que o concretas são tão desiguais. Um sábio chamado
doente tem responsabilidades enquanto doen- Francisco de Assis, para alguns também santo,
te, e negar isso é infantilizá-lo, diminuí-lo e rezava a Deus que o fizesse consolar mais que ser
torná-lo refém de um sistema que não domina. consolado, compreender mais que ser compreendido e
Talvez um dos melhores conselhos que po- amar, mais que ser amado. E esta simplicidade é,
demos dar a alguém, doente ou não, é que não de facto, o grau último da sofisticação.
deve fazer tudo o que pode. Que nem tudo o À partida, nada parece mais dissemelhante
que é agradável é bom, que nem tudo o que é do que a prática de um médico e a de um
bom é adequado, e que nem tudo o que é lícito advogado: o primeiro, na interpretação dos
é correto. sintomas, na palpação do corpo, na urgência
É preciso não se equivocar quanto à liberda- galopante de dores alheias; o segundo, na
de do doente: a autonomia é, em primeiro lu- azáfama das representações, na meticulosidade
gar, uma forma de o responsabilizar pelos seus dos livros, na ansiedade das suas performances
DOENTES ONCOLÓGICOS — QUE DIREITO E QUE DEVERES?
intelectuais. Contudo, na sua essência, o ato acompanhar os gestos que exigem precisão;
do médico e o ato do advogado são uma e a apoiar os passos que se empederniram; acla-
mesma coisa: um ato de cuidado. E são uma e rar a visão que se tornou turva.... Ao longo
a mesma coisa também no seu objetivo último: da vida, entre o nascimento e a velhice, muitas
transformar uma situação de facto, tornando-a mais mãos serão necessárias, — para que a vida
mais equilibrada ou menos insuportável. aconteça na sua plenitude. Nos momentos mais
Quando somos muito pequenos, o mais difíceis e de maior vulnerabilidade da idade
importante das nossas vidas acontece de mãos adulta estaremos, se tivermos sorte, de mãos
dadas. Quando a juventude se desvanece, tam- dadas.
bém aí ansiamos por outras mãos — mais for- E duas mãos só podem dar-se quando duas
tes, mais seguras — que possam com carinho mãos se estendem.
107