Documenti di Didattica
Documenti di Professioni
Documenti di Cultura
1
Vilson Caetano de Sousa Júnior é Mestre em Ciências Sociais pela PUC-SP e Doutorando pela mesma
Universidade. Título da Dissertação: Usos e Abusos das Mulheres de Saia e do Povo do Azeite: Notas sobre
as comidas de Orixás no terreiro de candomblé. Membro do Grupo ATABAQUE, Cultura Negra e Teologia e
Coordenador do AGBARA - Grupo Ecumênico de Leitura da Bíblia a partir dos Afro-Americanos e
Caribenhos. Outros títulos publicados: Evangelização e Diálogo junto às comunidades afro-americanas e
caribenhas. In: Mandrágora. Ano 3- nº 3. São Bernardo do Campo, São Paulo, 1996. Em Defesa da Palavra
In: Revista Mosaicos da Bíblia, 17. P. 5-10. Rio de Janeiro, 1995. Para que a comida não se estrague.
Revista Mosaicos da Bíblia, 15. Rio de Janeiro, 1994. Celebrando a vida com os Orixás. In: Revista Sem
Fronteiras. Número Especial. Julho. P. 13-16, 1994.
2
Ebó - oferenda
3
Axé - princípio gerador de vida
2
são exibidas as maiores quantidades possíveis de comidas servidas aos Orixás da casa, e eles
próprios servem as suas comidas, distribuindo, assim, aos presentes a sua força máxima.
Por traz de cada prato ofertado há uma visão de mundo, um porque, que faz com
que o comer instaure um sistema de prestações e de contraprestações que englobam a
totalidade da vida. Comida é sempre um contra presente.
A comida de Orixá difere, assim, das comidas servidas no dia a dia do terreiro, bem
como daquelas passadas no corpo das pessoas, usadas para “descarregar”, limpar, livrar de
algum contra-axé4.
Em linhas gerais, comidas é tudo que se come. Desde a pimenta e o obí 5 que se
masca para conversar com o Orixá, ao naco de carne oferecido a este mesmo Orixá,
partilhado pelas pessoas. Nesse processo de diferenciação, em que os ingredientes, na sua
grande maioria, são os mesmos, muda-se a forma de ritualizar, a elaboração, o cuidado, “o
tratamento”, a maneira de lidar com o mesmo ingrediente, o sentido impresso e invocado
através das palavras de encantamento, cantigas e rezas.
Assim, falar sobre esta comida, suas relações, circunscrevê-la dentro de um espaço,
momento, consiste num dos nossos principais desafios. Enfrentá-lo, é o que tentamos fazer
sob o título: A Cozinha, os Orixás e os truques: entre a invenção e recriação onde o tempo
não pára...
4
Contra-axé: tudo que não gera vida dentro da comunidade
5
Obí - também chamado de noz de cola é uma espécie de semente usada nos rituais para conversar com o
Orixá.
3
Orixá com colher que não seja de pau, que a comida mexida por duas pessoas desanda, que
não se joga água no fogo e que muitas pessoas por terem o sangue ruim fazem a comida
desandar. Ou que a presença de pessoas de um determinado Orixá faz com que uma certa
comida não dê certo, como por exemplo: em cozinha onde se tem gente de Xangô o milho
de pipoca queima antes de estourar. Pela cozinha, entra as pessoas de maior prestígio na
Religião e é nela própria que, em certas ocasiões, muito antes mesmo de se chegar no peji
do Orixá, que este é consultado a fim de se saber se a comida foi bem preparada ou não.
Embora marcada por vários limites, a cozinha é mesmo escola mestra, local onde se
aprende as lições mais antigas, através do exercício longo e paciente da observação. Local
onde permanecem por maior período de tempo os iniciados, seja varrendo, lavando,
limpando, guardando, acendendo ou mantendo o fogo, cozinhando, com olhos e ouvidos
atentos a tudo que se passa nela. Daí entende-se o dizer corrente: Candomblé mesmo é
cozinha”! Talvez por ser ela mais que um local de transformação e sim de passagem e
transmissão de conhecimento, por onde transita algo essencial que ultrapassa os limites das
oposições por situar-se no mais intimo e profundo ser do homem: o comer.
onde inúmeras experiências do Novo Mundo foram acrescentadas a ela. Na cozinha dos
Orixás, ao lado das continuações, temos recriações e invenções feitas a todo o momento. O
que faz a comida de Orixá é um ritual profundamente complexo, elaborado e articulado
segundo códigos e princípios, alguns deles de “porque” perdido no tempo. Daí entender-se,
mais uma vez, a frase que diz: “ Tem gente que pensa que é só comida”.
A sacerdotisa da comida
O segredo desta culinária é comandado pela guardiã da cozinha, a Yabassê. Aquela
que “muito faz e pouco fala.” Quando se fala da sacerdotisa da comida, as formas mais
antigas de transmissão do conhecimento trazida pelas diversas etnias africanas vão ser
evocadas: a observação e a convivência. E o mestre dos mestres será mais uma vez
chamado: o tempo. O conhecimento ritual, o respeito, a criatividade e o comando
apresentam-se como o perfil da Yabassê e orientam à sua escolha, mesmo que, hoje, nos
“novos tempos,” poucas sejam as mulheres que se disponham a tal cargo; não pelo gosto,
mas pelas funções assumidas por elas na sociedade.
A imagem da Yabassê apresentada pelos sacerdotes, remonta aos primórdios, quando
Olodumaré, Deus, entregou o poder de criar e de tudo transformar às Grandes Mães. A
velha que cozinha, divide, assim com o poder ancestral feminino esta força, assim como
todas as mulheres. Daí recair sobre ela o tabu da impureza, que reflete as relações de poder,
as tensões entre homem e mulher expressas em alguns mitos da sociedade yorubá, num
ambiente onde embora sua função seja de procriar, ela goza de plena liberdade e
independência dentro do grupo. Permitir que a mulher menstruada manipule a comida é
expor toda a comunidade ao poder das Mães Ancestrais, que serve tanto para o bem,
quanto para o mal. A Yabassê é, uma das pessoas que no terreiro, mais expressa essa força,
pois trabalha com ela dia e noite, ao manipular a colher de pau para transformar grãos e
alimentar tudo e todos, conservando, recriando e inventando.
Oxossi e a fartura
Oxossi aparece intimamente ligado à Ogun. No terreiro, diz-se que é seu irmão.
Orixá caçador, Oxossi liga-se à terra virgem àquela não pisada, descoberta pelo pioneiro
prudente que enfrenta o mistério e o segredo das florestas. Além de Ogun, Oxossi liga-se a
Ossaim, às folhas, ao segredo das plantas e remédios. De acordo com alguns mitos, Ele teria
sido enfeitiçado por este Orixá, se embrenhado no mato de onde nunca mais saiu.
Oxossi representa o recolher dos grãos, a produtividade, as atividades coletoras e à
caça. A ele são oferecidas frutas, além de comidas à base de milho e feijão fradinho torrado.
Ossaim, o vegetal
6
Ossaim participa de toda a vida do terreiro, mantendo relações com todos os Orixás.
Ele é as próprias folhas (Ewé), indispensáveis à medicina.
Ao lado das comidas oferecidas a este Orixá, vão aparecer oferendas obrigatórias
como moedas: o pedaço de fumo, o mel e o vinho colocados na sua cabaça. Acredita-se que,
sem estas prendas, ninguém ousaria penetrar no seio das matas, no âmago da floresta,
domínio de Ossaim.
Ossaim vai comer pouco por ser considerado um vegetal. Em algumas casas, recebe
um prato de milho branco, temperado com cebola, dendê e camarão e enfeitado com
duas maçãs verdes, cortadas em cruz.
Ossaim também come, além de frutas, comidas à base de feijão fradinho, torrado
ou cozido, milho e batata doce cozida, amassada e refogada com azeite-de-dendê.
Come, também, farofa de mel temperada com fumo de rolo desfiado e enfeitada com
folhas da costa.
Diante da Anciã que domina os pântanos e territórios lamacentos, com seu cajado
ritual, seus passos lentos, sua sabedoria, as pessoas se curvam como se dobrasse o corpo
perante a própria morte.
No terreiro, diz-se que ela é mãe de Omolu e Oxumarê. Tiras longas de búzios caem
de seu ombro, assim como em seus filhos. Colocada sempre junto a Oxalá, Nanã guarda nas
suas cores escuras, o segredo e o mistério da existência.
Nanã come dandoró, feijão fradinho descascado um por um, após ter ficado de
molho por algum tempo. Depois se tempera com cebola, camarão e dendê. Ela gosta
também de mingaus.
Nanã também recebe milho branco temperado com azeite doce e camarão,
enfeitado com folhas de mostarda, assim como arroz bem cozido, temperado com mel,
ou arroz com casca, “estourado” no fogo como pipoca, além da sobra da pipoca,
pilada, feito, pó, refogada no azeite-de-dendê.
Diz-se ainda que a Velha é o celeiro do mundo, todos os grãos lhe pertencem. A ela
nosso respeito!
Na memória do povo de santo, guarda-se sua profunda ligação com Xangô, do qual
teria sido a terceira esposa. Traída por Oxun, a velha Obá teria sido logo abandonada por
seu marido, irritado por ver flutuando na sua sopa um pedaço de sua orelha.
A guerreira que se traja de cores fortes, come abará, mas gosta também, de
Omolocô misturado com farinha de milho com uma cebola crua em cima.
O abará é uma comida feita à base de feijão fradinho descascado e passado na
máquina com cebola e camarão. Após a massa pronta, acrescenta-se gengibre e azeite-
de-dendê. Depois enrola na folha de banana e cozinha-se no vapor.
Yemanjá e o ebô-yá
Yemanjá é a mãe de todos os Orixás. Nas estórias, Yemanjá possui vários nomes.
Todos querem dizer algo sobre a mulher cujos seios partidos deram origem aos dois
maiores oceanos e cujo ventre esfacelado a fez mãe de todos os Orixás.
A paciência é uma de suas características, o rigor sua marca; a beleza e a serenidade
lembram a grande mãe que, quando dança nos seus filhos e filhas, balançam os braços as
mãos como ondas que outrora embalaram o mundo. Yemanjá é a mãe de todos .
Princípio da fertilidade, várias passagens lembram seu trabalho ao lado de Ajalá, o
modelador do ori, a cabeça. Yemanjá encontra-se naquele período primordial de cada ser
humano, quando seu odu, destino, herança ligada aos seus ancestrais míticos e antepassados
é dado, amparando tudo e todos. A ela são consagradas todas as cabeças. A inteligência e o
equilíbrio do mundo lhe pertencem.
A principal comida dada a Yemanjá chama-se Ya Ebô, ou seja, milho branco
refogado com cebola ralada e camarão moído e um pouco de camarão inteiro. Em
determinadas casas, faz-se com azeite de oliva em razão de Yemanjá está muito próximo a
Oxalá.Yemanjá recebe também manjar, um prato feito com leite de coco e creme de arroz.
as águas imemoriais que enchiam a terra. Quando se fala em Oxalá, pensa-se em Deus, numa
coisa universal, no Universo, feminino e masculino, pois, Deus não tem sexo. É um dos
Orixás mais antigos.
Apoiado num cajado ritual, o opaxôro, ou árvore da vida, o Ancestral da Criação
surge sob duas formas. A primeira, como um ancião que se movimenta apoiado com a ajuda
das pessoas e a outra como um guerreiro, amante de inhame pilado que luta armado de
escudo, espada e exibe numa de suas mãos, sua insígnia, a mão de pilão.
Uma de suas comidas, o ebô, nomeia também a sua festa. O Ebô é uma comida feita
de milho branco simplesmente bem cozido. Oxalá come também inhame cozido
amassado, acaçá, uma pasta feita de milho, enrolada na folha de banana, e ekurú,
iguaria à base de feijão fradinho, cozida no vapor.
Um brinde às comidas
Embora fuja à nossa discussão, as bebidas exercem uma vital importância ao lado das
comidas de santo no terreiro. Não há comida sem bebida.
No terreiro, é por todos conhecidos, que um dos tabus de Oxalá é a bebida
alcóolica, obtida através da fermentação independente do método usado para isso. O
Criador teria se embriagado com o vinho de palma, extraído do dendezeiro, após furar o seu
tronco, no momento da criação. Mas é também sabida, a grande apreciação de Ossaim, pela
bebida. Ninguém ousa entrar no mato sem desejar ao lado de sua comida uma garrafa ou
cabaça contendo os elementos de sua preferência. Sem falar de Exu, que reclama todas as
bebidas. Beber é um ato que acompanha o comer e há momentos onde isso se torna
imprescindível.
Água é a bebida básica presente em tudo. Assim, é prestígio para a casa, uma pessoa
reconhecida na religião pedir água e tomar. Mesmo porque só se pede e se bebe água
quando se tem muita confiança. A água acompanha, obrigatoriamente, todas as comidas
oferecidas aos Orixás.
10
Manuel Querino é um dos poucos autores que assinalam a contribuição dos grupos
banto ao lado dos minas, à culinária chamada de africana, contrariando a tese daqueles que
insistem na predominância eminentemente nagô nesta cozinha. Diz Querino: “Entre as mais
peritas na arte culinária destacavam-se angola, jeje e congo...” 7
6
RODRIGUES, Nina. Os Africanos no Brasil. 7a Ed. São Paulo, Nacional; Brasília, Editora da
Universidade de Brasília. 1988.pág. 120.
11
Nos terreiros, esta cozinha, marcada por uma série de preceitos e interdições, vai
aparecer relacionada diretamente aos Orixás através das chamadas “comidas de santo”.
Assim, cada Ancestral recebe em dias especiais pratos de sua preferência. Não se trata,
porém só de comer: o que se come, o que não se come, quando se come, com quem,
participam de um todo integrado que diz respeito a códigos imprescindíveis dentro do
“cardápio dos Orixás”. E mais ainda, esta comida dentro da dinâmica do terreiro é um dos
veículos de vital importância para a transmissão e distribuição do Axé. Cabe, então, buscar
responder a duas questões: a primeira diz respeito ao que faz com que esta cozinha seja
“africana” e depois, o que faz com que a comida seja comida de santo.
Outro fator que deve ser considerado é a falta de mantimentos num país, desde os
seus começos, assolado pela fome. Da nova terra, o português, ao lado das caças e muitos
frutos, só pode aproveitar a mandioca e o milho, mantimentos básicos que sustentavam seus
habitantes.
7
QUERINO, Manuel. Costumes Africanos no Brasil. Recife, FJB - Massangana. 1988. Pág. 60.
8
Idem.
9
CARNEIRO, Edison. Ladinos e Crioulos. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira. 1964. pág. 4.
12
Assim, é completamente arbitrário buscar precisar datas para essa culinária, entendendo esta
como algo parado, fechado, se o próprio tempo se incumbiu de dinamizá-la.
Neste trabalho dinamizado pelo tempo, é essencial chamar a atenção para um fato de
que poucos se deram conta, além do etnólogo Pierre Verger: a participação do Oceano
como um fator de ligação, mais que de separação. 10 Não se pode esquecer que por ele,
vieram várias permutas alimentares trazidas pelos europeus para o Novo Mundo, entraram
muitos elementos africanos que voltaram abrasileirados de uma Nação onde o elemento
negro era os pés e as mãos, parafraseando Antonil, e mais ainda, onde era quase que
impossível após três séculos de convivência não impregnarem a sociedade com profundas
marcas.
As condições de possibilidade para se pensar uma “cozinha africana” não podem ser
pensadas a nível cronológico, assim como não pode prescindir desse tempo. Elas vão
acontecendo, se dando, de acordo com o tipo de situação servil ou livre e o lugar em que
vivia o africano, variando, desde o primeiro momento em que dividiu a cozinha com a
cunhã, até quando pode, ante as novas condições suscitadas pelo processo histórico,
negociar com um tabuleiro. Certamente será, sobretudo, na cidade, a partir do século XVIII
que estes usos e abusos mais poderão ser sentidos, seja nas mesas ou nas ruas como
mercadoria cantada.
10
VERGER, Pierre. Fluxo e Refluxo. São Paulo, Corrupio. 1987. Pág. 92.
11
O Psicanalista na Cozinha. In: Cultura e Alimentação Rio de Janeiro, 2 (2) : 21 e 96, dez. 1951, pág. 21.
13
autores, porém, apreender todo o sentido que estes encerram dentro de si, bem como as
visões de mundo que expressem, é tarefa quase que impossível. São elas, todavia, que
fundamentam as continuações, recriações e invenções na comida servida pelos devotos aos
Orixás, através de truques inseridos no tempo de uma tradição dinâmica onde o não saber, o
não ouvir e o não ver, cabem em qualquer lugar.
do além mar, constituem referências vivas de uma tradição que dialoga e se expressa no
tempo histórico.
A comida de Orixá, os procedimentos rituais, encontram-se fundamentados nos
ensinamentos das pessoas que plantaram, fundaram, iniciaram, reorganizaram o culto dos
Orixás no Brasil. E que, certamente, não prescindiram do limite do seu tempo.
Enquanto houver casas onde determinados procedimentos rituais de preparar as
comidas continuarem sendo feitos na sua forma mais arcaica possível, mesmo que em alguns
momentos, isso seja alterado, utilizando alguns aparelhos eletrodomésticos, é por que os
“fundamentos” não foram sucumbidos pelo processo de crescimento e mudança da cidade
como alguns supõem.
Significa dizer, que os olhares otimistas que privilegiam a mudança da Religião dos
Orixás, face às transformações da cidade, mais uma vez se enganaram, porque nem sempre o
que se diz corresponde ao que se faz. Os orikis, ofós, itãs, modos de fazer e determinadas
explicações, constituintes do segredo, são mais do que uma estratégia de sobrevivência do
grupo. Constituem uma linguagem que as teorias da sociedade moderna não conseguiram
ainda decifrar por assentar-se no não ver e não saber, nos truques e “faz de conta” . É ela
que continuará sendo o maior desafio não para os que apostam no seu desaparecimento,
mas para os que virão.