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II Congresso TeleVisões – Niterói, RJ – 16 e 17 de maio de 2019

TELEJORNAIS POLICIAIS: USOS DOS ESTEREÓTIPOS SOCIAIS NA


ATRIBUIÇÃO DO VALOR VIDA
Marcela ARCOVERDE, (PPGMC-UFF)1

Resumo:
Este trabalho pretende analisar as formas de apropriação dos estereótipos da violência a partir de
um estudo de caso. Para tanto, escolhemos a notícia da policial militar Kátia Sastre que reagiu a
um assalto e acabou matando o assaltante em frente a uma escola na saída da comemoração de
dia das mães em Suzano, Grande São Paulo. A escolha foi baseada na ênfase dada pelas
reportagens ao caráter inusitado da notícia, associada à construção narrativa das matérias, que
nos despertou questionamentos sobre a influência do jornalismo na construção de categorias de
valorização ou desvalorização da vida de indivíduos, baseadas nos estereótipos sociais usados
para representá-los. Faremos uma análise do papel do telejornalismo na vida cotidiana, tentando
compreender a utilização política do medo em programas policiais à luz da análise do discurso,
buscando identificar as formações discursivas presentes na representação da violência na TV.

Palavras-chave: Violência urbana; cotidiano; representação da morte; estereótipos sociais;


Telejornalismo

Abstract:
This paper pretend to analise the ways of apropriation of de violence stereotypes from a case
study. Therefore, we chose the news of a militay police, Kátia Sastre, who reacted to a robbery
and ended up killing the assailant in front of a school leaving the Mother's Day celebration in
Suzano, São Paulo. The choice was based on the emphasis given by the reports on the unusual
character of the news, associated with the narrative construction of the stories, which raised
questions about the influence of journalism in the construction of categories of valuation or
devaluation of the life of individuals, based on the social stereotypes used to represent them. We
will analyze the role of television journalism in everyday life, trying to understand the political
use of fear in police programs in the light of discourse analysis, seeking to identify the
discursive formations present in the depiction of violence on TV.

Keywords: Urban violence; everyday life; death representation; social stereotypes;


telejournalism.

O título de “mãe heróina” foi dado a policial militar Kátia Sastre pelo telejornal
Brasil Urgente da rede Bandeirantes. Entre os dias 12 a 15 de maio de 2018, o programa
que trata, prioritariamente, de notícias de violência, veiculou cinco reportagens sobre a
ação da policial responsável por impedir um assalto na porta de um colégio em Suzano,
Grande São Paulo, “salvando o dia das mães”, na visão do telejornal. O fato teve
tamanha proporção que a cabo se candidatou a deputada federal pelo estado de São

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Mestranda no PPGMC-UFF integra o grupo de pesquisa MULTIS, Núcleo de Estudos e Experimentação
do Audiovisual, desenvolvendo pesquisa sobre os usos dos estereótipos da violência no telejornalismo e
seu papel na disseminação da cultura do medo. Email: marcelarochettiarcoverde@gmail.com

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Paulo pelo Partido da República, PR, se elegendo. Este artigo integra uma pesquisa
maior que visa entender como a mídia se apropria dos estereótipos sociais nas narrativas
de homicídios. O estudo desse caso, em particular, foi proveitoso para fornecer uma
primeira impressão de como essas narrativas são construídas, que formações discursivas
elas recuperam e perceber o papel dos estereótipos da violência na construção de uma
diferenciação entre os valores atribuídos à vida de diferentes atores sociais.

A ESPETACULARIZAÇÃO DO COTIDIANO NA TV
O surgimento da televisão é em marco na história da humanidade. Apelidada de
“janela do mundo”, ela se estabelece como a primeira mídia a proporcionar o uso
máximo, possível, dos sentidos, combinando áudio e vídeo e fornecendo uma forma
experimentação do real, muitas vezes até em “tempo real”. Ela permite a veiculação de
imagens em alta velocidade para um público extenso em ambiente privado. E, a partir
desse consumo privado, individualizado, o telespectador é inserido dentro de uma
realidade construída pela mídia que o convida a vivenciar um real espetacularizado. Por
meio de múltiplos enquadramentos da realidade social, a mercantilização de imagens
que sustenta a televisão como negócio pode ser entendida como a materialização da
relação entre espetáculo e mercadoria, apontada por Debord (1997, p. 33), na qual “a
mercadoria é essa ilusão efetivamente real, e o espetáculo é sua manifestação geral”.
“A televisão, inserida no cotidiano doméstico disponibiliza sentidos que
compõem a convivência em comum de uma dada sociedade” (LANA, 2009, p. 45). Ela
está presente em nossas casas, seus produtos ajudam a condicionar os ritmos da vida
cotidiana. Mediamos nossas tarefas diárias de acordo com o horário do jornal ou de
nossa novela favorita. Algumas vezes, até deixamos a televisão ligada como forma de
“companhia” para nossas tarefas domésticas. Assim, televisão e o cotidiano se misturam
nas sociedades contemporâneas, compartilhando aspectos semelhantes inerentes as suas
naturezas particulares. Heller (1989, p. 43-46) aponta como características do cotidiano:
a fixação rotineira do ritmo, a imediaticidade, pouco tempo para a reflexão, a
ultrageneralização, o banal que também tem espaço para o inusitado.
As características a apontadas por Heller para descrever a vida cotidiana podem
ser utilizadas também para entendermos a forma de funcionamento da televisão. De

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modo semelhante ao cotidiano, a televisão, como forma de produção, também se baseia


em uma fixação repetitiva do ritmo, trabalhando com uma programação diária pré-
estabelecida que organiza a veiculação de seus produtos por dias e horários, adotando
uma rotina. No período da manhã são veiculados telejornais, programas de culinária,
desenhos. Durante a tarde, temos filmes e novelas e assim por diante. Dessa forma, cada
emissora vai organizando seu conteúdo de acordo com as rotinas de vida de seu público,
mas, também, ajudando a pautar práticas cotidianas na vida de seus espectadores.
Outro ponto de interseção entre a televisão e a vida cotidiana é o caráter veloz e
imediato que os orientam. Na rotina televisiva, onde o tempo dos programas é
cronometrado e os anúncios vendidos por faixa horária, o tempo se materializa como
mais uma mercadoria. Dialogando com a perspectiva proposta por Debord (1997, p.
121), o tempo nas sociedades burguesas vai assumir um caráter “consumível que
regressa à vida quotidiana da sociedade, a partir da produção determinada, como um
tempo pseudocíclico”. A ideia de tempo pseudocíclico proposta pelo autor traduz a
apropriação industrial do tempo como uma forma de insumo:

O tempo pseudocíclico é o do consumo da sobrevivência econômica


moderna, a sobrevivência aumentada, em que o vivido quotidiano continua
privado de decisão e submetido, não a ordem natural, mas à pseudonatureza
desenvolvida no trabalho alienado; e, portanto, este tempo se reencontra
muito naturalmente o velho ritmo cíclico que regulava o tempo nas
sociedades pré-industriais. O tempo pseudocíclico apoia-se ao mesmo tempo
nos traços naturais do tempo cíclico, e dele compõe novas combinações
homólogas: o dia e a noite, o trabalho e o repouso semanais, o retorno do
período de férias (DEBORD, 1997, p. 122).

Na visão de Debord (1997, p. 123), o tempo pseudocíclico que é também o


tempo espetacularizado pode ser entendido como o tempo de consumo de imagens ou
“imagem do consumo do tempo”, esse será – para ele – o mediador de todas as
mercadorias e local de atuação dos instrumentos do espetáculo. Tendo em vista que a
televisão tem como mercadoria o recorte das imagens transmitidas por um tempo pré-
determinado, o tempo gasto com televisão seria um tempo de vivência de um cotidiano
espetacularizado, reservado para o consumo de imagens fabricadas e a assimilação de
uma organização do tempo, da rotina, mediado por processos comunicacionais.

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Uma consequência do ritmo acelerado da vida das sociedades capitalistas é o


caráter ultrageneralizador do cotidiano. Heller (1989, p. 43) define o pensamento
cotidiano como “fixado na experiência, empírico e, ao mesmo tempo,
ultrageneralizador”, sendo esse pensamento relativo ao comportamento e não ao
pensamento científico ou teórico. De acordo com a autora, o caráter imediato da vida
cotidiana nos convida a tomar atitudes de forma rápida, muitas vezes não nos
permitindo uma profunda reflexão. Dessa forma, ela vê a ultrageneralização como algo
inevitável. Assim que nascemos somos inseridos em uma determinada cotidianidade,
com seus próprios sistemas simbólicos, e somos ensinados a sobreviver nesse meio a
partir “estereótipos, analogias e esquemas já elaborados” (HELLER, 1989, p. 44) que
nos previnem, num primeiro momento, de perigos e nos tornam mais adaptados à vida
social, podendo “passar muito tempo até percebermos com atitude crítica esses
esquemas recebidos, se é que chega a produzir-se uma tal atitude” (HELLER, 1989, p.
44).
O aspecto ultrageneralizar do pensamento cotidiano pode ser observado em sua
máxima potência na linguagem televisiva. A incompatibilidade entre o pensamento
crítico, e a velocidade do fluxo midiático – tanto para a mídia, quanto para quem é
exposto aos seus produtos – favorece a reprodução de estereótipos que são aceitos,
muitas vezes sem questionamentos. Nos telejornais dramáticos como o Brasil Urgente,
da Band, é comum a utilização de esquemas de representação que fragmentam a
realidade e recorrem a modelos de generalização. Nesses noticiários, imagens
espetaculares da violência simplificam as questões sociais e ajudam a disseminar o
medo e discursos de ódio.

TELEJORNALISMO DRAMÁTICO ENQUANTO LINGUAGEM


Um final feliz, esse é o desfecho das cinco reportagens que retratam a tentativa
de assalto evitada pela cabo Kátia Sastre. As narrativas contam com relatos da policial,
com gravações de câmeras de segurança, cobertura da homenagem prestada pelo
governo de São Paulo, declaração do próprio governador, Márcio França, ao vivo no
programa e até com posicionamento do apresentador do telejornal em defesa da conduta
da policial. Em nenhuma das reportagens é realmente questionada a necessidade da

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morte do assaltante, pelo contrário, ela é justificada pelo caráter “perigoso” do rapaz
que já tinha participado de um homicídio descrito como um ato com “requintes de
crueldade”. Erivelton Moreira teve sua morte apagada, assim como sua humanidade.
Nas reportagens, ele é um bandido, criminoso, ladrão, ousado, cruel, alguns adjetivos
usados pelo programa para caracterizá-lo. Seu nome é citado brevemente em duas
reportagens. Sua história e sua subjetividade não existem no relato. Para a narrativa, ele
é somente o mal eminente que deve ser evitado. Esse processo de representação é
recorrente nas reportagens policiais.
Uma vez que as notícias têm como função informar e ajudar a orientar as
pessoas em suas realidades histórico-sociais, as narrativas da violência podem ser
percebidas como manuais de identificação do “mal”, onde se ensina a evitar o “perigo”,
para que se possa preservar a vida. Matheus (2011, p. 39) afirma que “o fato de o mal
não ser personificado rapidamente em atores concretos leva essas narrativas a encenar
universos ainda mais fantásticos potencializando a capacidade de difusão do pavor”.
Talvez, por isso, Erivelton tenha perdido sua humanidade, passando a ser identificado
não só como uma ameaça passageira, mas como um profissional, um agente da
violência que “não era novato no mundo do crime”, como nos fala a repórter.
O formato utilizado na produção de notícias com temática pautada na violência
veiculadas na televisão atravessa o histórico da construção de um telejornalismo
popular, que começou a se consolidar na década de 90, sendo caracterizado por uma
linguagem “que lida com o intercâmbio e a combinação de diferentes recursos
audiovisuais” (LANA, 2009, p. 43). Lígia Lana usa o termo “telejornalismo dramático”
para classificar os jornais televisivos que, assim como o Brasil Urgente, misturam
elementos de vários gêneros – programas de auditório, jornalismo tradicional,
entrevista, documentário –, criando uma narrativa dramatizada da realidade, onde a
espetacularização, torna difícil separar o ficcional do real.

O dramático como traço fundamental do telejornalismo no programa é


construído com a busca incessante pela proximidade da realidade. Não basta
relatar o crime, é necessário aproximar-se do acusado, ver seu rosto, ouvir
sua voz, é preciso ver também de perto a cena do evento, mesmo que deserta,
os objetos encontrados, a arma usada, ver e ouvir a vítima” (LANA, 2009, p.
43)

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O telejornalismo dramático é popularmente denominado de policial. Essa


classificação tem como base o forte alinhamento da linguagem utilizada nesses
programas com o cotidiano da segurança-pública. A proximidade dos jornais televisivos
com o discurso do Estado e do poder se torna evidente não só na escolha das fontes,
como também no tempo de tela dado para os personagens das narrativas e os adjetivos
utilizados para caracterizá-los. Devido a forte mistura entre o ficcional e o real, esses
jornais televisivos se tornam palco de representações de um real que escapa a realidade
concreta. Para Baudrillard, esse problema é inerente à televisão como meio:

A televisão abole toda distinção e permite apenas uma percepção-tela,


onde a imagem só remete a si própria. Esse tipo de imagem seria ainda
uma imagem? De qualquer forma, ela coloca o problema da sua
indiferença ao mundo, e portanto o da indiferença virtual com a qual a
recebemos - o que é um problema político (BAUDRILLARD, 1993, p.
147).

Devido às limitações encontradas na tradução do real para a televisão, os


telejornais dramáticos adotam o uso indiscriminado de recursos técnicos e estéticos
como forma de apelo desesperado por uma experiência autêntica do aqui e agora para o
telespectador. Aos poucos, por causa do uso intensivo desses recursos, o público vai
assimilando esses efeitos de realidade e verossimilhança vindos de toda uma cultura do
entretenimento, da qual esses telejornais são herdeiros. Carlos Alberto de Souza (2008,
p.115) atribui essa particularidade ao processo de constituição da televisão no Brasil,
que foi influenciada pelas linguagens do “teatro, rádio, da propaganda e do circo”.
Dessa maneira, ele observa que nesses telejornais:

Como um passe de mágica, passa-se da alegria à tristeza, da


tranquilidade à tensão/medo e vice-versa. Das palhaçadas, às cenas
rotineiras e às imagens dramáticas, tal como no circo, em que o palhaço
faz o público rir, e os trapezistas e os domadores criam o estado de
tensão. Diante da tela, o emocional de cada espectador é impactado a
todo instante. São verdadeiros sobressaltos, que os levam a rir ou a se
emocionar coletivamente (...) a intenção dos apresentadores, repórteres e
da equipe de produção é criar esse clima de instabilidade, que prende a
atenção. A cada cena, uma surpresa, fragmentada, descontextualizada
(SOUZA, 2008, p. 116).

Nas reportagens analisadas essas características ficam em evidência. O ritual de


retorno ao local do crime, a encenação do ocorrido, o elemento do “ao vivo”, de uma

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narrativa real e incontestável se materializando nas imagens da câmera de segurança,


todos esses aspectos constituem o espetáculo do cotidiano de violência que,
diariamente, é encenado com diferentes atores, desfechos e características. Matheus
(2011, p. 19) afirma que “podemos perceber cada novo crime noticiado como uma
espécie de atualização de outros ocorridos anteriormente, encaixando-os como parte do
mesmo tema”.
Ao analisar as reportagens presentes no site do telejornal, podemos verificar uma
recorrência da temática da violência e da morte. Mediante nossa observação dos eixos
temáticos das reportagens disponibilizadas no site do telejornal, verificamos que, no
mês de maio de 2018 – quando ocorreu o incidente que envolveu a policial, Kátia
Sastre, e o assaltante, Erivelton –, o Brasil Urgente veiculou 150 reportagens sobre
homicídios, o que totalizou 25,08%2 da produção do veículo. A intensa cobertura de
notícias relacionadas à temática da morte parece ser bem recebida pelo público do
jornal. Ao verificar a parte de “Mais vistos” do site, observamos que de um total de sete
reportagens em destaque cinco são sobre morte, como mostra a foto abaixo:

Figura 1 – Mais vistos

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Deve-se considerar que devido à greve dos caminhoneiros essa porcentagem pode ter sido menor do
que o padrão do telejornal. Do dia 24/05 até 30/05 não subiram para o site notícias de violência, estando
disponível somente a cobertura da greve.

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Fonte: Notícias Band. Acessado em 19/12/2018

Para Lana podemos entender a procura por essas notícias que sencionalizam a
morte como um indício do sucesso do Brasil Urgente de “que suas estratégias
funcionam; o público reconhece não apenas os conteúdos levantados como as maneiras
de falar construídos por seus quadros” (LANA, 2009, p. 41). A dramatização das
notícias de violência retoma um imaginário do medo. Nelas podemos dividir os
personagens nas categorias de bem e mal, sendo facilmente identificadas a
características de cada um. Nessas narrativas os “vilões”, tradicionalmente, têm a
mesma cor, a mesma classe social e são sempre representados na mídia da mesma
forma.
Na perspectiva de Matheus (2011, p. 42) “a sensacionalização das notícias
assegura o reconhecimento do leitor com determinados personagens e rejeição de
outros, promovendo o compartilhamento de uma noção de experiência comum e
íntima”. As reportagens analisadas possuem uma narrativa que permite ao público
interpretar que Erivelton é uma pessoa vil. Dessa forma, é aceito implicitamente que seu
crime, vale mais do que a sua vida. A notícia é sobre o assalto, a morte de Erivelton é só
uma informação dada sem destaque.
Em sua análise sobre o telejornal Brasil Urgente, Lana (2009, p. 12) identifica
que o programa faz extenso uso de palavras supérfluas, redundância, improviso,
informações apresentadas com comentários do apresentador, textos confusos e matérias
com falta de dados. Para ela, “o programa propõe um tratamento editorial exagerado a
fatos que em outras circunstâncias não receberiam tanta atenção, tirando proveito de
histórias pessoais de sujeitos comuns. A exploração dessas histórias reais banaliza a dor
do outro” (LANA, 2009, p. 12). Todas essas características ajudam a orientar o
espectador para uma interpretação fragmentada da realidade social.
Todos os aspectos analisados sobre o telejornal, sua linguagem, formatos, sua
tendência à dramatização das notícias que veicula, nos dá algumas pistas sobre o
problema central que tentamos responder nesse artigo. Podemos perceber até agora que
as características do Brasil Urgente carregam em si um histórico de utilização de

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maneiras caricaturadas de representação da realidade. Agora, para melhor entendermos


se foi feito uma utilização tendenciosa ou não da linguagem, e dos estereótipos sociais
presentes nas matérias, se faz necessário entender o papel das representações da morte
em nossa sociedade, juntamente com o processo cultural de formação de estereótipos
sociais e preconceitos.

ESTEREÓTIPOS DA VIOLÊNCIA E OS USOS POLÍTICOS DO VALOR À


VIDA

Ao olharmos a programação de telejornais, dos mais populares aos tradicionais,


perceberemos que a temática da violência tem sempre o seu espaço. Para melhor
compreender a função discursiva das representações da morte nos produtos
jornalísticos, precisamos entender que papel ela ocupa na nossa sociedade. Em sua
análise das narrativas da violência, Matheus discursa sobre a problemática do
sensacionalismo e de seu uso aplicado às notícias de homicídios, como estratégia de
disseminação do medo. Para ela:

As formas com que as pessoas se relacionam com a morte são parte da


dinâmica social e constituinte da identidade de grupo. E a consciência em que
a sociedade está mergulhada hoje é tributária dessa ideia de uma morte
evitada e evitável, da morte afastada da vida social” (MATHEUS, 2011, p.
56).

Em nossa sociedade a morte é tratada com afastamento. Segundo Rezende


(2015, p. 19), “a cultura ocidental não incorpora a morte como parte da vida, mas como
castigo ou punição”. Para a autora, essa relutância tem relação com “um modelo de vida
que se projeta através da negação da ideia de impermanência” (op. cit.). Se hoje somos
tributários da concepção do fim da vida como algo evitado e evitável, como diz
Matheus, o mesmo não acontecia antigamente. Philippe Ariès (2012) em sua reflexão
sobre a História da Morte no Ocidente demonstra que nossa relação social com a morte
vai se modificando ao longo do tempo. De acordo com o autor, na Idade Média, o
homem convivia intensamente com a morte, sendo seus rituais públicos e integrantes do
cotidiano.

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O caráter público da morte participava de certa maneira do processo de


socialização dos indivíduos da época. Um exemplo dessa relação que Ariès coloca é o
deslocamento que o quarto do moribundo sofria no momento da morte, deixando de ser
um cenário íntimo e privado para se tornar um local público. “Os passantes que
encontravam na rua o pequeno cortejo do padre levando o viático, acompanhavam-no,
entrando em seguida no quarto do doente” (ARIÈS, 2012, p. 39). Assim, podemos
entender a morte como um momento de integração social, um dado natural da vida.
Ainda sobre o papel da morte na sociedade, Ariès acredita que os indivíduos encaravam
a finitude da vida como familiar e indiferente, isso pode ser obervado a partir do caráter
cerimonial, sem dramatização ou apelo emocional que os ritos adotavam (ARIÈS, 2012,
p.39-40).
No entanto, essa relação começou a se alterar a meados do século XVI, quando a
morte passou a ser ligada ao amor. Em um primeiro momento, essa associação ocorreu
de uma forma erotizada, na qual a morte era “considerada como uma transgressão que
arrebata o homem da sua vida cotidiana, de sua sociedade racional, de seu trabalho
monótono, para submetê-lo a um paroxismo e lançá-lo, então, em um mundo irracional,
violento e cruel” (ARIÈS, 2012, p. 67). Já no século XVIII, a morte vai se tornando
romantizada, sendo exaltada, dramatizada e desejada de forma arrebatadora, “mas, ao
mesmo tempo, já se ocupa menos da própria morte, e, assim, a morte romântica,
retórica, é antes de tudo a morte do outro” (ibid., p. 65). Esse fenômeno, segundo Ariés,
vai provocar o novo culto dos túmulos e cemitérios.
A relação da sociedade com a morte só vai ganhar os contornos que tem hoje, a
partir do século XIX, quando, finalmente, começa a ocorrer o desejo pelo afastamento
da morte da vida cotidiana. Ariés (2012, p. 84) atribui esse deslocamento a “uma
revolução brutal das ideias e dos sentimentos tradicionais” que, finalmente, vai tornar a
morte em vergonha e objeto de interdição. Desde então, nosso olhar diante do fim da
existência nos é apresentado de forma mistificada, repleta de imagens, medos, fantasias
e preconceitos que orientam nossa relação com a vida cotidiana.
O tipo de representação da morte presente nas reportagens que analisamos e que
trabalhamos neste artigo diz respeito à construção discursiva que a mídia, em especial
os telejornais dramáticos, veicula. De acordo com a perspectiva iluminista, o jornalismo

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teria a função de “demonstrar, no cotidiano tão acostumado à percepção do


imediatamente visível, que os fatos não são o que parecem” (MORETZSOHN, 2007, p.
26). Entretanto, ao observarmos a atividades de jornais, é perceptível que, na prática, o
que ocorre é a transmissão de uma visão fragmentada, referenciada a partir de
generalizações e reprodução de preconceitos. Mas, de onde saem os discursos,
ideologias e estereótipos difundidos pela mídia?
Nas reportagens analisadas, a narrativa promove a identificação do telespectador
com as mães e as crianças, ou seja, com o estereótipo da vítima. O apagamento de
Erivelton como indivíduo e a apresentação de somente uma faceta de sua história, não
permite que o telespectador tenha a possibilidade de criar alguma empatia com o
personagem, que foi o único a perder algo de real valor. Sua função dentro da narrativa
é ser um agente sem rosto da violência. Mais uma vez, nos é apresentado relato de um
fato sob o viés da bipolarização entre o bem e o mal, como se essas classificações
fossem objetivas e bem delimitadas.
Nas matérias é deixado de lado toda uma perspectiva da desigualdade social e
sua relação com a violência. Não é feito um esforço de situar os personagens dentro
desse contexto social. Esse deslocamento da conjuntara em que são inseridas as notícias
para uma esquematização simplista do real se torna possível a partir da reprodução de
um complexo de ideologias de dominação social, pautadas em preconceitos e
estigmatizações, que visam à perpetuação da relação de poder estabelecidas:

[...] tais ideologias capitalistas patriarcais e racistas abstraem as injustiças, as


iniquidades e o sofrimento causado pelo sistema capitalista racista e
patriarcal como flagrantes injustiças que representam o poder e a riqueza
numa sociedade supostamente igualitária e os sofrimentos dos grupos e dos
indivíduos dominados. (KELLNER, 2001, p. 84)

A história nos é contada como se fosse uma questão da condição de perversidade


que algumas pessoas carregariam. Erivelton é deslocado de sua condição de indivíduo
pertencente ao eixo menos privilegiado das hierarquias de poder. Ele era pobre e negro,
características que o insere em um conjunto de relações histórico-sociais de opressão.
No ritmo rápido e efêmero da vida cotidiana, tendemos aceitar as explicações
simplificadas para os problemas sociais por essas nos serem familiares e de fácil

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apreensão. A atribuição da problemática da violência urbana a somente a uma questão


de perversidade, é uma argumentação que se estabelece por recuperar toda uma
perspectiva histórica da maldade.
Em seus estudos sobre a evolução dos conceitos de anormalidade e
monstruosidade dentro do sistema jurídico-penal, Foucault chega à conclusão que –
com o surgimento da concepção de “monstro moral”, fim do século XVIII vai ser
considerado criminoso aquele que rompe com o pacto social em prol de um interesse
pessoal, ignorando os direitos dos outros indivíduos pertencentes à sociedade. Dessa
forma, esse indivíduo se constituiria em um “déspota”, pois todo crime seria “um abuso
de poder”, e apresentaria um risco à coesão social. Esses elementos dariam um caráter
monstruoso ao criminoso, pois ele põe em risco cada um da sociedade ao apelar para
uma liberdade “selvagem” (FOULCAUT, 2010, p. 79).
Em uma das reportagens produzidas pelo Brasil Urgente, o Governador de SP,
ao comentar sobre o caso e a validade do procedimento da policial, afirmou que: “Se
você sair armado da sua casa imaginando que vai praticar um crime, mesmo que vá
apontar para um monte de moças, senhoras e crianças, vai estar sujeito a encontrar um
profissional da segurança” (BRASIL URGENTE, 12.05.2018). Nessa declaração, dada
ao vivo no telejornal, podemos perceber um ar de casualidade dado ao ocorrido, como
se a possibilidade de se praticar um ato de violência, fosse critério somente da vontade
ou da índole de cada um. Outro elemento que é possível verificar é o tom de ameaça
subentendido na afirmação.
A utilização do sensacional como recurso discursivo a partir da bipolarização
entre bem e mal, faz com que o público se identifique com as vítimas, repudiando o
criminoso. Esse efeito de identificação apela para várias concepções presentes no senso
comum, nas quais o pobre é desvinculado de sua condição de exclusão social, sofrendo
uma rejeição por parte daqueles que não se reconhecem naquela situação. Muitas vezes
até o próprio pobre repudia as características constituintes de sua identidade por essas
estarem relacionados a estigmas sociais. Segundo Stuart Hall (2012, p. 106), a
identidade vai ser operada por meio da diferença, envolvendo “um trabalho discursivo,
o fechamento e a marcação de fronteiras simbólicas, a produção de efeitos de
fronteiras”. Ele explica que para esse processo se consolidar, é necessária a existência

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daquilo que é deixado de fora, como se o exterior ajudasse a constituir aquilo que está
sendo delimitado.
Mais do que uma classificação semântica, os estereótipos que ajudam no
processo de constituição das identidades a partir da diferenciação representam formas
ideológicas de separação dos indivíduos em critérios de valor e em hierarquias de poder.
As “unidades que as identidades proclamam são, na verdade, construídas no interior do
jogo de poder e exclusão, elas são o resultado não de uma totalidade natural inevitável
ou primordial, mas de um processo naturalizado, sobre determinado, de fechamento”
(HALL, 2012, p. 111).
Ao pensarmos sobre a forma como foram representados os personagens das
matérias, podemos perceber que existe uma clara divisão entre aqueles cujas vidas
mereciam ser salvas – para o jornal – em oposição à do agressor, que sofreu uma
desvalorização. Em suas reportagens, o Brasil Urgente fala para um público específico
que o programa chama de “cidadão”, muitas vezes sendo utilizada a expressão “cidadão
de bem”. Esse público que se considera acima da ilegalidade, em sua maioria
pertencente à classe média, seguidor de padrões morais conservadores, é também aquele
que visa uma legitimação de sua condição de superioridade e distinção através da sua
diferenciação daqueles que julgam inferiores, determinando suas identidades por meio
da estigmatização de outros atores sociais.
Em sua imersão na realidade de uma comunidade caracterizada por uma forte
bipolarização social, Nobert Elias nomeia os eixos antagônicos dessa comunidade de
“estabelecidos e outsiders” e percebe que o estabelecimento e perpetuação de uma visão
negativa daqueles considerados outsiders, assim como a exclusão social dos mesmos, só
são possíveis devido à facilidade de acesso a cargos de poder que os estabelecidos
possuíam:

A peça central dessa figuração é um equilíbrio instável de poder, com as


tensões que lhe são inerentes. Essa é também a precondição decisiva de
qualquer estigmatização eficaz de um grupo outsider por um grupo
estabelecido. Um grupo só pode estigmatizar outro com eficácia quando está
bem instalado em posições de poder das quais o grupo estigmatizado é
excluído. Enquanto isso acontece, o estigma de desonra coletiva imputado
aos outsiders pode fazer-se prevalecer (ELIAS, 2010, p. 23)

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Logo, como podemos observar a partir das conclusões de Elias, a determinação,


representação e estigmatização de indivíduos estão relacionadas à hierarquização social
do poder. Não queremos entrar nesse artigo, nas questões sobre a importância da
representatividade de indivíduos excluídos socialmente. No entanto, precisamos
destacar que esses problemas atravessam várias questões dentro das disputas sociais,
inclusive a da violência. Não queremos também aqui, polemizar sobre a culpa de
Erivelton sobre o crime que o mesmo cometeu, ou se ele era uma pessoa perversa ao
não. O importante aqui é compreender que, quando a mídia representa pessoas com as
mesmas características e formação socioculturais de Erivelton, essas aparecem sobre o
prisma da violência ou da estigmatização.

Quem tem o poder de representar, tem o poder de definir e determinar a


identidade. É por isso que a representação ocupa um lugar tão central na
teorização contemporânea sobre identidade e nos movimentos sociais ligados
à identidade. Questionar a identidade e a diferença significa, nesse contexto,
questionar os sistemas de representação que lhe dão suporte e sustentação
(SILVA, 2012, p. 91).

Tendo isso em vista, é preciso questionar o porquê da morte de Erivelton ter


passado batida em meio à riqueza de detalhes dados a outros aspectos da notícia.
Refletindo sobre os papéis sociais e seus valores dentro da hierarquia de poder,
devemos nos questionar sobre como teria sido representada a morte, caso o óbito fosse
da policial ou de outras pessoas presentes na cena do crime. Parentes seriam
entrevistados? Tentariam fazer uma recuperação da vida dessa pessoa? As respostas
para essas questões podem ser encontradas ao se assistir outras notícias de homicídios
disponibilizadas no site do jornal.

Para cada identidade assumida, existe um tratamento, um número de


possibilidades de representação já determinado. Os estereótipos de violência, dentro das
reportagens, ajudam a criar uma conexão com uma narrativa maior que é a da violência
urbana, revisitada diariamente, com novos personagens, lugares, mas sempre parte da
mesma história. Hall (1997, p. 232) acredita que existe uma intertextualidade entre as
imagens e representações difundidas pela mídia:

Eles acumulam significados, ou jogam com esses significados uns contra os


outros, atravessam uma variedade de textos e mídias. Cada imagem carrega

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seu próprio significado específico. Mas, em um nível mais amplo de como a


diferença e a alteridade estão sendo representadas em uma cultura particular
em algum momento, podemos ver práticas representacionais e figuras
similares sendo repetidas, com variações de um texto ou local de
representação para outro. (HALL, 1997, p. 232, tradução nossa) 3

Assim, revemos os mesmos vilões perversos, as mesmas vítimas de crimes


brutais, a maldade exposta de forma escancarada em nossas casas e nos perguntamos:
Como pode existir tanta maldade no mundo? Um aspecto que pudemos verificar ao
analisar as reportagens do caso da festa do dia das mães em comparação com as outras
do mesmo mês no telejornal é que, mesmo quando o crime não é próximo da narrativa
da psicopatia, ou crimes perversos, o jornal o insere nesse universo a partir de sua
linguagem. Essa inserção da violência urbana no prisma do incontrolável favorece o
pânico e esse sistema pode ser de grande valia em uma perspectiva político-ideológica.
Se quem tem o poder, também tem o poder de representar e determinar
identidades, a mídia se insere como a instituição social com maior poder nesse processo.
O potencial de exposição dos meios de comunicação, sua inserção na vida cotidiana,
possibilita a veiculação de ideologias, assim como a naturalização e cristalização de
discursos no senso comum. Para Kellner (2001, p. 79-80), “a ideologia mobiliza
sentimentos, afeições e crenças para induzir a anuência a certos pressupostos nucleares
dominantes acerca da vida social”. Dessa forma, a mídia como uma instituição
hegemônica de poder, mobiliza os afetos de seu público por meio da representação
dramatizada da realidade para perpetuar a manutenção da estrutura de poder.
Devemos lembrar que a os meios de comunicação no Brasil estão concentrados
em grandes monopólios familiares. Outra coisa importante é considerar que a mídia está
inserida na lógica do capital e trabalha com lucro e está subordinada a financiamento de
anunciantes. Todas essas características acabam orientando o direcionamento político-
ideológico desses veículos a favor daquilo que lhe trará maior favorecimento
econômico. A problemática da violência urbana envolve questões relativas à
desigualdade social que estão intimamente relacionadas com a hierarquia do poder. Esse

3
Texto original: “They accumulate meanings, or play off their meanings against one another, across a
variety of texts and media. Each image carries its own, specific meaning. But at the broader level of how
‘difference’ and ‘otherness’ is being represented in a particular culture at any one moment, we can see
similar representational practices and figures being repeated, with variations, from one text or site of
representation to another” (HALL, 1997 p. 232).

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desequilíbrio do poder se mantém como um planejamento democrático de controle


social.
ANÁLISE: O INTERDISCURSO DA VIOLÊNCIA URBANA
De acordo com Benetti (2016, p. 236), “o texto é uma materialidade discursiva
em potência, que se concretiza ao produzir sentimentos por um sujeito que enuncia e o
outro que interpreta”. Assim, os sentidos de um texto são produzidos por meio da
“relação entre sujeitos” que pensam a partir de determinadas posições e possuem
formações ideológicas determinadas. Uma notícia é produzida e interpretada dentro de
um jogo de negociação de sentidos e está subordinada a uma memória discursiva que a
insere a uma rede de discursos e ideologias vindos antes dela.
Vimos, anteriormente, que a mídia assume sua posição de instituição
hegemônica ao interferir na determinação e na representação de identidades de grupos
sociais, criando uma percepção fragmentada da realidade e potencializando a tensão
entre disputas de grupos sociais. Já abordamos também o fato de que toda notícia de
violência pode ser lida como parte de uma narrativa maior: a do medo. Para Benetti:

O interdiscurso é um processo de reconfiguração da formação discursiva,


em que ela é instada a incorporar elementos que lhe são exteriores. Esse
processo pode ser de afirmação e de retorno ao Mesmo, ou de apagamento e
esquecimento apontando em direção ao Outro. (BENETTI, 2016, p. 240).

A partir dessa conceituação de interdiscurso, analisaremos as seis reportagens


selecionadas, identificando elementos que promovem a revisitação do interdiscurso da
violência e percebendo que formações discursivas esses elementos estão inseridos.
Objetivo é tentar entender como a recuperação dessas estruturas discursivas influencia
na categorização do valor à vida.

O conceito de cidadão: a posição sujeito do telejornal e seu leitor imaginado


Benetti (2016, p. 237) define posição sujeito como sendo o “lugar de
enunciação, construído socialmente, que indivíduos diferentes vêm a ocupar de modo
sucessivo ou até mesmo simultâneo”. Portanto, todo sujeito fala a partir de um lugar que
estará condicionado a sua construção sócio-cultural. Paralelo a isso, sabemos que o
texto está subordinado a uma relação dialógica entre sujeitos (BAKHTIN, 1986) que
negociam seus sentidos. Diante disso, o primeiro passo para tentar compreender a

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construção narrativa do corpus selecionado é entender de que posição sujeito o


telejornal Brasil Urgente está falando e para qual leitor imaginado ele se direciona. Nas
reportagens, uma pista dada é a construção do estereótipo do “cidadão” que é
constantemente trabalhado a partir da oposição ao termo “bandido”.
Entendemos cidadão como sendo “aquele que se identifica culturalmente como
parte de um território, usufrui dos direitos e cumpre os deveres estabelecidos em lei”4.
No entanto, para o Brasil Urgente, cidadão é uma identidade compartilhada entre o
jornal e seu leitor imaginado, é a forma como ele tenta criar uma identificação com o
seu público e, assim, também demarcam uma relação de alteridade com aqueles que ele
determina com a identidade de bandido. Nas narrativas, podemos obervar que a posição
cidadão é relacionada com a noção de legalidade, enquanto que a posição “bandido” se
insere fora do espectro da lei.
Em uma fala do apresentador do jornal, é dito que “bandido não tem ética”. Essa
afirmação tem um duplo efeito de sentido, pois, a partir dela, entendemos que se o
bandido não tem ética, ele não respeita seus deveres e se não respeita seus deveres não
está dentro do espectro da classificação de cidadão, não sendo também merecedor de
direitos. Essa interpretação serve de validação, dentro da argumentação do jornal, para a
atitude da policial e de justificativa para a morte de Erivelton, isso pode ser evidenciado
na passagem:

Um fato lamentável é essa ocorrência de hoje que o cidadão morreu dentro da


casa dele e que o bandido, que muita gente defende por aí, ele quando entra
na sua casa, tá sozinho com você é você ou ele, entendeu? E que faz coisas
execráveis até uma maioria das vezes covardes (Brasil Urgente, 14.05.2018,
reportagem 2)

Também é feita uma forte associação da imagem do apresentador como uma voz
de autoridade na representação das opiniões do leitor imaginado. Por vezes, ele se tenta
usar seu tempo de profissão como validação de sua posição de especialista no assunto e,
portanto, legitimando suas opiniões, como acontece na fala:

Eu vejo muito crime em televisão há muito tempo, eu não sou especialista em


segurança, mas contesto o especialista em segurança que contesta a atitude da
policial. Eu, apesar de não ser especialista, não sou tão leigo não [...] Não é

4
Definição retirada do site: <http://www.brasil.gov.br/cidadania-e-justica/2010/01/direitos-e-deveres>

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possível que em 18 anos analisando esse tipo de situação, que eu não tenha o
direito de dar minha opinião (Brasil Urgente, 14.05.2018, reportagem 2)

A mãe e o bandido: as formações discursivas por trás de suas representações


A noção de formação discursiva dentro da Análise do Discurso Francesa se
refere a uma “região razoavelmente delimitada de sentidos que correspondem a
determinada perspectiva ou ideologia” (BENETTI, 2016, p. 240). Analisando as
reportagens, vemos que elas trabalharam com dois estereótipos sociais de forte apelo
emocional dentro de nossa sociedade. O Brasil é um país de forte formação cristã em
que existe uma perpetuação das noções de culpa e punição e também da sacralização da
figura materna. Na narrativa Kátia e Erivelton assumem suas identidades a partir de
processos de representação diferenciados. O rapaz se adequa na história contada ao
estereótipo que é socialmente imposto a ele. Dessa forma, ele é pouco visto como um
indivíduo, sendo ocultado no conjunto de signos que determinam o que é ser um agente
da violência. Já o processo de representação da policial se dá por meio do contraste
entre dois estereótipos: o da mãe e a do herói.
Em todas as reportagens vinha no título ou na legenda a frase: “Mãe PM
heroína”. Isso demonstra que é feita uma desvalorização do estereótipo do herói em
detrimento do estereótipo de mãe. Levando em consideração que a sociedade brasileira
é essencialmente patriarcal com valores machistas e conservadores, podemos
compreender o porquê da imagem da mãe prevalecer. Nas narrativas, ele é usado para
justificar a atitude heroica: “Ela que tem 20 anos de profissão diz que usou o instinto de
mãe e a experiência para dominar o ladrão” (Brasil Urgente, 14.05.2018, reportagem 3).
A dificuldade de aceitação do fato de uma mulher estar desempenhando o papel,
tradicionalmente masculino, do herói é evidenciado também outro momento em que a
repórter, ao descrever como Kátia rendeu o agressor, faz ênfase na palavra sozinha,
quando como se quisesse apontar para a excepcionalidade da policial superar a
fragilidade feminina: “Ela chuta a arma dele para longe e sozinha domina o ladrão”
(Brasil Urgente, 14.05.2018, reportagem 3).

A memória discursiva recuperada pelas narrativas da violência

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Falamos anteriormente que as reportagens de violência se conectam umas às


outras formando uma narrativa única e maior. Um elemento que torna possível essa
recuperação dos saberes populares existentes nas narrativas de crimes é o que a Análise
do Discurso denomina de memória discursiva que se constitui no “saber discursivo que
torna possível todo dizer e que retorna sob a forma do pré-construído, o já dito que está
na base do dizível, sustentando cada tomada da palavra” (ORLANDI, 2001, p.31).
Nas matérias fica evidente uma tentativa discursiva de conectar a narrativa da
PM a de outras notícias de violência. Diversas vezes, em passagens em off, são usadas
imagens de cobertura da câmera de segurança mostrando o crime de Erivelton,
misturadas com imagens de outros crimes. Também é feita a partir de entrevista, uma
tentativa de recuperar um imaginário de recorrência da criminalidade associada à noção
de “lugar perigoso”. Assim, a repórter retorna ao local do crime, mostra que todas as
casas tem câmeras de seguranças, entrevistas pessoas que forma assaltadas, ouve
reclamações da má iluminação da rua. Em todos esses momentos, são recuperadas todas
as noções, que se tem de identificação do perigo, normalmente disseminadas na mídia.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste artigo vislumbramos fazer uma primeira observação de como os


estereótipos podem se constituir como fortes instrumentos discursivos de valorização ou
desvalorização de determinados grupos sociais. Analisamos como o imaginário da
morte interfere na apropriação da mídia dos estereótipos sociais em sua atividade de
representação do cotidiano. A partir da análise do discurso, compreendemos que esse
processo de representação ocorre por meio da oposição de atores sociais e da
recuperação de uma memória discursiva da violência.
Percebemos, através dessa pesquisa inicial, que ainda se tem muito a explorar no
viés da recepção para melhor compreender o nível de eficiência dessas estratégias
discursivas. O podemos perceber até agora é que elas têm impacto no público que
consome esse tipo de telejornalismo. A eleição da cabo Kátia Sastre, aponta para uma
repercussão extremamente positiva da atitude da policial e demonstra, como tentamos
demonstrar no artigo, que existe uma diferenciação na atribuição do valor à vida entre
diferentes atores sociais.

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REPORTAGENS CONSULTADAS

Reportagem 1: MÃE heroína: policial à paisana atira contra assaltante. Brasil Urgente,
12.05.2018. Disponível em: < https://videos.band.uol.com.br/16441960/mae-heroina-
policial-a-paisana-atira-contra-assaltante.html>

Reportagem 2: GOVERNADOR de SP fala sobre segurança no estado. Brasil Urgente,


14.05.2018. Disponível em:
<http://noticias.band.uol.com.br/brasilurgente/videos/16442751/governador-de-sp-fala-
sobre-segurança-no-estado>

Reportagem 3: PM impede assalto em frente a escola na grande São Paulo. Brasil


Urgente, 14.05.2018. Disponível em:
<http://noticias.band.uol.com.br/brasilurgente/videos/16442723/pm-impede-assalto-em-
frente-a-escola-na-grande-sp>

Reportagem 4: SP: policial impede assalto em festa do dia das mães. Brasil Urgente,
14.05.2018. Disponível em:
<http://noticias.band.uol.com.br/brasilurgente/videos/16442706/sp-policial-impede-
assalto-em-festa-de-dia-das-mães>

Reportagem 5: POLICIAL impede assalto em frente à escola na grande SP, Brasil


Urgente, 15.05.2018. Disponível em:
<http://noticias.band.uol.com.br/brasilurgente/videos/166443363/policial-impede-
assalto-em-frente-a-escola-na-grande-sp>

Reportagem 6: LADRÃO morto por PM em frente à escola já era procurado. Brasil


Urgente, 16.05.2018. Disponível em:
<http://noticias.band.uol.com.br/brasilurgente/videos/16444008/ladrao-morto-pm-em-
frente-a-escola-ja-era-procurado>

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