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Erotismo em

Literatura

(Organizador)
Samuel Lima da Silva
Erotismo em Literatura
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Erotismo em Literatura

1ª Edição

Samuel Lima da Silva


(Organizador)

Rio de Janeiro
Mares Editores
2017
Copyright © da editora, 2017.

Capa e Editoração
Mares Editores

Os textos são de inteira responsabilidade de seus autores e não representam


necessariamente a opinião da editora.

Dados Internacionais de Catalogação (CIP)

Erotismo em literatura / Samuel Lima da Silva


(Organizador). – Rio de Janeiro: Mares Editores, 2017.
143 p.
ISBN 978-85-5927-037-2
1. Análise e crítica literária. 2. Literatura. 3. Erotismo. I.
Título.

CDD 801.95
CDU 82

2017
Todos os direitos desta edição reservados à
Mares Editores
CNPJ 24.101.728/0001-78
Contato: mareseditores@gmail.com
Sumário

A demarcação do erótico: vias para uma escrita da carne........... 9

As flechas tortas de Eros na poesia gauche do poeta Carlos


Drummond de Andrade .............................................................. 13

De tinta, Gozo e arrepio: os muros da transgressão em Contos


d´escárnio - textos grotescos, de Hilda Hilst ............................... 37

A possibilidade de amar: o erotismo como emancipação do corpo


feminino em Mia Couto .............................................................. 56

O triângulo pendular: subjacências homoeróticas em Grania, de


Lady Gregory, e Exiles, de James Joyce ...................................... 86

A sexualidade feminina em Drácula de Bram Stoker ............... 107

O sublime e a sarjeta: a percepção do excesso no romance Eu


receberia as piores notícias dos seus lindos lábios, de Marçal
Aquino ...................................................................................... 124

Sobre os autores ....................................................................... 141


A demarcação do erótico: vias para uma escrita da
carne

As representações do sexo, do corpo, mais especificamente do


fenômeno textual do erotismo, têm sido matéria de estudo nas mais
diversas áreas do conhecimento. Neste livro, no entanto, os artigos
que compõem o dossiê temático ocupam-se da percepção do erótico
enquanto elemento textual, percebendo-o como uma chave de leitura
que pode ascender a diversos caminhos, desembocando na literatura
o seu ponto de excelência. Em cada capítulo, é possível perceber uma
observância estética que valora a sexualidade, concedendo-lhe e,
sabiamente, valorando o literário como território estético a ser
investigado com extrema circunspeção.
O sexo e suas concomitâncias vêm, em nossa
contemporaneidade, obtendo um considerável espaço para
discussões e pesquisas que, independentemente da envergadura
teórica e abordagem analítica, contribuem para uma maior visibilidade
deste tema em nosso contexto social e acadêmico. A literatura, por
sua vez, ocupa um lugar de destaque nesse mosaico, representando
um forte matiz que reverbera a prática do sexo de maneira a pô-la
como uma espécie de arte maior perante a sociedade. Em solo
literário, o sexo é matéria-prima para a discussão da própria condição
humana.

-9-
Dos sonetos luxuriosos de Pietro Aretino à volúpia criminal de
Sade, da contemplação idílica das belas adormecidas de Kawabata à
poesia feroz e carnal de Roberto Piva, há sempre uma preocupação em
representar o sexo como fenômeno de ilação para a compreensão da
sociedade e de sua forte indução ao comportamento dos indivíduos.
O véu que recobre as literaturas que representam a sexualidade vai
muito além da usual dúvida sobre o que é ou não erótico ou
pornográfico, mas sim tenciona uma representatividade do corpo que
supera os muros misóginos e patriarcais da sociedade, vertendo o
desejo e a relevância do corpo por meio do verbo, presentificando
uma escrita da carne.
Nesta perspectiva, este livro compõe-se de artigos que versam
sobre diversas estruturações do erótico, plasmado na subjetividade
literária. Com uma reunião de seis artigos, as pesquisas exploram o
sexo e sua textualização, percebendo os mecanismos de composição
estético-literários que presentificam o erotismo e sua singularidade
em determinados gêneros.
No primeiro capítulo que abre nosso dossiê, “As flechas tortas
de Eros na poesia gauche do poeta Carlos Drummond de Andrade”, a
pesquisadora Luciana Bessa Silva propõe uma comparação analítica
tendo como material dois textos de Drummond: Alguma poesia (1930)
e O amor natural (1992), objetivando compreender uma espécie de
escrita de Eros, elucubrando a questão batailleana da experiência
interior. O texto é habilmente escrito, tencionando entrever o

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erotismo e o discurso poético que perpassa toda a escrita de Carlos
Drummond de Andrade.
No ousado e pertinente “De tinta, gozo e arrepio: os muros da
transgressão em Contos d´escárnio - textos grotescos, de Hilda Hilst”,
a pesquisadora Natália Marques da Silva elabora uma argumentação
que investiga a pornografia literária de Hilda Hilst. Em seu texto, há um
cuidado com o discurso pornográfico hilstiano, cujo exercício estético-
analítico recai no que autora convém denominar de erótico-
transgressor.
Em “A possibilidade de amar: o erotismo como emancipação
do corpo feminino em Mia Couto”, dos autores Kleber Kurowsky e
Yasmim Naif Amin Mahmud Kader, a atenção recai em duas obras do
escritor moçambicano Mia Couto: Antes de nascer o mundo e
Mulheres de Cinza. Os autores enfatizam a questão do erótico
feminino nas duas obras em questão, alicerçando-se nas proposições
de Georges Bataille e Luciana Bessa, primordialmente.
Raimundo Expedito dos Santos Sousa averigua Grania, de Lady
Gregory, e Exiles, de James Joyce, em capítulo intitulado “O triângulo
pendular: subjacências homoeróticas em Grania, de Lady Gregory, e
Exiles, de James Joyce”. O autor circunspeciona o homoerotismo
feminino nos referidos dramas, percebendo a figura feminina como
instrumento de poder patriarcal, bem como mediadora entre a
atração homoerótica masculina entre rivais. No jogo em que se
estabelece o duelo pelo feminino, o autor percebe que o desejo maior

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acaba por se presentificar no masculino, mais especificamente entre
os combatentes, sendo a mulher a pedra de toque para essa atração.
No penúltimo capítulo, “A sexualidade feminina em Drácula de
Bram Stoker”, dos pesquisadores Giovane Alves de Souza e Ana Paula
Pereira da Silva, há um estudo sobre a sexualidade feminina na
referida obra de Bram Stoker, notando como os acontecimentos da
era vitoriana influenciaram na produção artístico-literária da obra.
Para além do postulado, os autores também focam na dinâmica
interacional entre homem e mulher na narrativa escrita por Stoker, ao
passo que evidenciam determinados acontecimentos na prosa em
questão.
No último capítulo, “O sublime e a sarjeta: a percepção do
excesso no romance Eu receberia as piores notícias dos seus lindos
lábios, de Marçal Aquino”, a argúcia da figura do excesso, termo
sugerido pela ensaísta Eliane Robert Moraes, ocorre mediante a
astúcia do desvio. É no rastro desse desvio que o presente estudo
investiga os mecanismos narrativos que engendram o fenômeno
textual do erotismo no presente romance. A protagonista, Lavínia,
possui uma estruturação dúbia que configura uma espécie de excesso
na economia narrativa do texto. Excesso esse potencialmente ligado a
questão do erótico.
Boa leitura.
Organizador

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As flechas tortas de Eros na poesia gauche do poeta
Carlos Drummond de Andrade

Luciana Bessa Silva

Quem é Eros?

“Ah o amor... que nasce não sei onde, vem não sei
como, e dói não sei porquê” (Luís de Camões)

Em prosa ou em verso, o amor é o tema mais vasto da


Literatura, seja ele platônico, aristotélico ou erótico. O erotismo é
intrínseco ao humano, motivo pelo qual acreditamos que ele esteja na
religião e nos sistemas de crenças, bem como nas artes e na Literatura.
Na Literatura, o ‘ser erótico’ foi cantando em verso por Giovanni
Boccaccio, Decamerão, depois, pelo Marquês de Sade, Contos
Libertinos. Em verso e prosa, dos contos de fadas, Chapeuzinho
Vermelho, dos irmãos Grimm, até a atualidade, o Erotismo se faz
presente nas letras.
Eros era o termo usado pelos Gregos para se referir à paixão
aplicada ao amor e ao desejo. Em O Banquete, de Platão, texto em
forma de diálogo, ou melhor dizendo, um duelo entre sete
personagens acerca de Eros, o deus do amor é descrito de forma
multifacetada.
A primeira personagem é Fedro. Para ele, Eros é um dos deuses
mais antigos surgido depois do Caos na terra. Ele insufla os homens a
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grandes feitos, inclusive a morte, pois somente aquele que ama é
capaz de morrer pelo ser amado.
Para Agaton, para se louvar quem quer que seja, é primordial
conhecê-lo primeiro para depois elogiá-lo. O concebe como um deus
jovem e feliz, de aparência simétrica cujas virtudes são a temperança
e a justiça. Não recorre a força e a violência não o atinge. Sua
habilidade maior é a criação. Eros é criador (poietés) e mestre dos
criadores (artistas).
Em seguida, Sócrates, afirma que o amor é algo desejado, mas
que só pode ser desejado quando lhe falta e não quando possui, pois
não se deseja aquilo que não se tem. O “objeto” do amor sempre está
ausente, mas sempre é solicitado. Em suma, sempre que pensamos tê-
lo atingido, ele nos escapa.
Afinal, quem é Eros? “O mito grego nos diz que Eros é o deus
do amor, que aproxima, mescla, une, multiplica e varia as espécies
vivas” (BRANCO,1985, p. 66). Sob outra perspectiva “As várias faces de
Eros também revelam as faces de Dioniso, o deus da orgia e da
embriaguez, que é capaz de quebrar o interdito promovendo uma
transgressão pelo rito (SILVA, s.d, p. 4). A ritualística da entrega dos
corpos é marcada pelo êxtase, pelo arrebatamento, pela violência,
pela quase morte. O erotismo, assim, é uma tensão entre duas
pulsões: uma para a vida – Eros – outra para a morte – Tanatos.
Nesse sentido, é preciso que enfatize que

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[...] Eros não se limita a ser um impulso das almas
humanas para a beleza humana, sendo sim a
atração de todos os seres vivos para uma
multiplicidade de coisas, a qual atua nos corpos de
todos os animais e tudo que existe; e aprendi quão
grandioso, maravilhoso e universal é o governo
desse deus sobre todas as coisas, quer humanas,
quer divinas. (PLATÃO, 2010, p. 53)

Eros está em tudo. É o deus mais antigo? Um anjo entre o


divino e o humano? O mal disfarçado de uma rara beleza? Por que
todos o chamam? Por que ele é cantado em poesia e em verso, em
todas as culturas?
Para compreendermos o erotismo na poesia, consultamos
Guimarães para entendemos mais profundamente quem é Eros

[...] É uma força fundamental do mundo. É


considerado um deus nascido ao mesmo tempo em
que a Terra, saído diretamente do Caos primitivo
[...]. Assegura a continuação da vida e a coesão
interna dos elementos. Tradições mais recentes
dão-no como filho de Afrodite, mas não se sabe
quem é o pai. Representam-no como um menino
alado, nu, levando o arco e o carcaz cheio de
flechas, com as quais fere de amor os corações, seja
dos homens, seja dos deuses. Conta-se que amou
Psiquê. (GUIMARÃES, 1972, p. 140)

Em outras palavras, é uma força avassaladora da qual todos


nós, homens e mulheres, não podemos escapar, que vem e que vai a
seu bel-prazer dos corações humanos. Entendê-lo não é uma das
tarefas mais fáceis.

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Concebemos Eros como um deus antigo, jovem, multifacetado,
dotado de força, inteligência e sentimento elevado. É um criador por
excelência. Em suma, o homem, diferentemente dos animais, é o único
que pode transformar a sua experiência erótica, quer dos corpos, dos
corações ou do sagrado, nas palavras de Bataille (2013) em arte, em
Literatura. Conheçamos, pois, Drummond e sua experiência erótica
em sua poesia gauche nas obras Alguma Poesia (1930) e Amor Natural
(1992).

Drummond: um poeta de uma poesia gauche

“Quando nasci, um anjo torto


desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! Ser gauche na vida”
(Carlos Drummond de Andrade)

Poeta, cronista, ensaísta, contista, crítico literário, pintor e


fotógrafo. Esse é o retrato Carlos Drummond de Andrade (1902-1987),
um ser à procura de desvendar os mistérios da vida humana. Seus
poemas quase sempre iriam refletir o cotidiano do homem que sofre
por amor e, por falta deste, perde entes queridos, se angustia com as
mazelas da sociedade, não consegue suportar a dor, é sentimental em
um “mundo caduco”, quer transformar o mundo, embora se sinta
impotente.
Isso porque a única arma que o poeta dispunha era a palavra,
sua companheira inseparável. Através dela, denunciou e criticou a

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sociedade de seu tempo, convidou seus companheiros a caminharem
de “mãos dadas”, descreveu a família mineira, retratou a solidão do
homem nas grandes metrópoles, criou máscaras para se proteger de
certos horrores, exaltou o Brasil, cantou amores, escondeu segredos,
descobriu que seu coração era menor do que o mundo e que precisava
de todos para sobreviver.
Engendrou pelo conto, pela crônica, pela crítica literária,
contudo foi na poesia que se expressou de forma mais íntima e
intensa. Destituído de qualquer pudor dos grandes poetas em sua
estreia, e em tom confessional, declarou ser “gauche11”.
A gaucherie é notada, na poesia drummondiana, através das
referências ao lado esquerdo. Em “Consideração do Poema” (OC, p.
115), os poetas amados são incorporados ao seu fatal “lado
esquerdo”; em “Cemitérios” (OC, p. 405), o poeta começa a andar de
banda, porque “Do lado esquerdo” carrega seus mortos; em “Nos
Áureos Tempos”(OC, p. 136), refere-se ao “lado esquerdo” dos jardins
que povoaram sua infância; ao ficcionalizar a “Morte de Neco
Andrade” OC, p. 406), narra que o “Cadáver de Neco atravessa
canhestramente o segundo ato, da esquerda para a direita”; no poema
“A Mesa” (OC, pp. 292-300), pergunta-se “Quem senta do lado

1
Gauche. 1. Se diz da parte do corpo situada do lado esquerdo do peito (por oposição
à direita). A mão esquerda, o olho esquerdo. 2. Se diz, fora uma coisa orientada
(curso d’ água, prédio etc.: O lado esquerdo do Sena, a Ala esquerda do castelo) 3.
dito, para um coisa não orientada, da parte que faz face ao lado esquerdo daquele
que olha: o lado esquerdo de um quadro, Escrever da esquerda para direita.

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esquerdo / assim curvada?”; em “Falta Pouco” (OC, p. 697) é
demonstrado o “hábito de chegar à janela da esquerda”; em “Campo
de Flores”(OC, p. 268 ), o amor ofertado recai “na mão esquerda”.
O lado esquerdo, referenciado pelo eu lírico, simboliza o
“canto” a que fora destinado desde seu nascimento, é o lugar onde a
dor é a tônica que rege a vida, onde se vê apenas uma tonalidade, a
noite; onde a alegria é escutar Choppin. Simboliza, outrossim, o lado
do coração, onde os sentimentos pulsam mais intensamente. Nele [o
coração] estão depositadas as cenas e as recordações de fatos e
pessoas marcantes na trajetória do gauche.
Para aplacar sua dor, o eu lírico busca consolo no seu próprio
fazer poético, talvez a única maneira de não se sentir torto, pois torto
será aquele, cuja sensibilidade não permite entendê-lo. Seus versos
serão, assim, sua “consolação”, sua “cachaça”, enfim, sua “Explicação”
(OC, pp. 36-37). Conheçamos, então, as explicações do poeta sobre
uma de suas fases mais gauche: o erotismo.

As flechas tortas de Eros na poesia drummondiana


Em sua Antologia Poética, publicada em 1962, o poeta dividiu
seus poemas numa classificação temática. São elas: O indivíduo, A
terra natal, A família, Os amigos, O choque social, O conhecimento
amoroso, A própria poesia, Exercícios lúdicos, Uma visão (ou tentativa)
da existência. Na sexta parte, Drummond expõe o “ser erótico”, de
uma maneira um tanto suave, que iria acompanhá-lo em toda a sua

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poética. Mais do que um tema, o erotismo irá encarnar, de modo
intenso, os movimentos dramáticos dessa poesia.
Em sua obra O amor e outros aspectos em Drummond (2002),
Linhares Filho afirma que todo poeta que se preze paga tributo ao
amor, “a mola do mundo” (p. 29). O próprio poeta questiona-se “Mas,
se não fosse ele, também/ que graça a vida tinha?” (OC, p. 08). O
professor discorre sobre essa manifestação não como solidariedade
humana, mas como “[...] sentimento psicofísico, que marca a atração
entre as pessoas de sexos diferentes [...]” (p. 29). Na visão de Silva “É
natural a matéria do amor. Aparece na poética de Drummond não
como algo desgarrado, transcendente, descarnado. É físico o amor
porque resulta do desejo e do encontro de corpos. (SILVA, s.d, p. 3)
Conforme Dumoulié (2005), os gregos opunham corpo/alma.
Já no Cristianismo há um dualismo entre o corpo/alma. Contudo, “[...]
o corpo, criado por Deus, é originalmente tão puro quanto a alma.
Somente a queda é que faz dele lugar do pecado” (DUMOULIÉ, 2005,
p. 84). O corpo é visto como o “lugar do pecado”.
Em Alguma Poesia (1930), Eros aparece de maneira
sensualizada e diabólica. Trata-se, por excelência, um livro modernista
marcado pela ironia, senso de humor, o poema-piada, o poema de
circunstância e da captura do cotidiano, tornados assunto poético.
Aliás, é marcante a transformação do cotidiano em poesia, aquilo que
Gilberto Mendonça Teles denominou de “celebração das coisas
comuns” (1976). Destacamos que a geração de 30, da qual Drummond

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fez parte, “leu os antecessores (dialogando com a tradição brasileira),
estabilizou a forma poética moderna (sem esquecer sua diversidade),
produziu obras que circularam e tinham forte impacto cultural, porém
o público era restrito [...]” (SANSEVERINO, 2008, p. 107).
Obra de estreia do poeta e em seu primeiro texto “Poema de
sete faces” essa eroticidade já é apresentada ao leitor

As casas espiam os homens


Que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
Não houvesse tantos desejos.
(“Poema de Sete Faces” OC, p. 5)

O eu-lírico, Carlos, assim como seu criador, Carlos, tímido e


sensível transfere para as “casas” o poder da visão. São elas as
testemunhas dos desejos entre homens-mulheres.
Conforme Dumoulié, mantém-se entre “Deus e o homem um
laço de amor-desejo, mas o desejo do mundo se reduz a diabólicas
libidos” (2010, p. 83). Freud resgata o termo “libido” “para designar a
potência do desejo” (DUMOULIÉ, 2010, p. 83). O desejo nasceria,
portanto, da falta e da carência. Desejamos o que não temos. A
carência de ter algo faz nascer o desejo. Em outras palavras, “Se
encontra um objeto que satisfaça, logo soçobra na saciedade, no tédio,
no aborrecimento. Se não encontra obstáculo algum, esfalfa-se em
uma busca absurda e interminável” (DUMOULIÉ, 2010, p. 101)
Ainda no mesmo poema, terceira estrofe, encontramos
sensualidade e desejo:
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O bonde passa cheio de pernas:
Pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu
coração.
Porém meus olhos
Não perguntam nada.
(“Poema de Sete Faces” OC, p. 5)

A contraposição entre o coração e os olhos exprime o conflito


entre o sentimento e o desejo ou entre o amor em sua acepção mais
idealizada e o erotismo. O bonde cheio de pernas, aqui, através de
uma sinédoque, substituído por mulheres, é sinônimo de desejo.
Porém, como se trata de alguém destinado a “ser gauche”, esse desejo
tende à frustração e à desilusão, ou melhor, trata-se um desejo
gauche:

Dentro de você há um desejo torto


que elas não sabem.
(“Sombras das Moças em Flor” OC, pp. 60-61).

Infere-se, pelos versos, no interior do eu lírico, um desejo torto


que o impossibilita de concretizar seus amores. Assim como passam as
pernas, também passam os amores: “Mas o coração continua” (OC,
pp. 181-182). Ou seja, “Tanto na sua origem como no seu fim, o desejo
é por conseguinte sempre um sofrimento [...]” (DUMOULIÉ, 2010, p.
101).
Em outro poema, Drummond junta o céu e o inferno. O
primeiro representa o “amor místico”; o segundo, o “amor diabólico”.

- 21 -
E os corpos enrolados
Ficam mais enrolados ainda
E a carne penetra na carne.
(“Casamento do Céu e do Inferno” OC, pp. 6-7).

Contrariar, transgredir valores e princípios para se opor à


ordem natural da criação do mundo, na junção do Bem (Céu) e do Mal
(Inferno) é uma típica atitude gauche. O corpo (carne), aqui, é tratado
como receptáculo de prazer, quando ‘a carne penetra na carne’.
Prazer, desejo e sensualidade é o que observamos quando

A dançarina espanhola de Montes Claros


dança e redança na sala mestiça
Cem olhos morenos estão despindo
seu corpo gordo picado de mosquito.
Tem um sinal de bala na coxa direita,
o riso postiço de um dente de ouro,
mas é linda, linda gorda e satisfeita.
Como rebola as nádegas amarelas!
Cem olhos brasileiros estão seguindo
o balanço doce e mole de suas têtas....
(“Cabaré Mineiro”, OC, p. 30)

Composto de uma décima, com versos variando de métrica


entre 10 e 12 sílabas – o corpo é exposto de maneira fragmentada,
grotesco “corpo gordo picado de mosquito” e, por que não dizer
sensual “Como rebola as nádegas amarelas!”. O corpo da dançarina,
numa visão cristã, é um ‘convite’ para o pecado. No poema “Iniciação
amorosa”, o eu lírico ‘narra’ como se deu sua iniciação sexual.

E como eu não tinha nada que fazer vivia


- 22 -
[namorando as pernas morenas da lavadeira.
Um dia ela veio para a rede,
se enroscou nos meus braços
me deu um abraço,
me deu as maminhas
que eram só minhas.
A rede virou,
o mundo afundou.
Depois fui para cama
febre 40 graus febre.
Uma lavadeira imensa, com duas tetas imensas,
[girava no espaço verde.
(“Iniciação amorosa”, OC, p. 29)

Nota-se nos versos um ‘amor erótico’ marcado pelo desejo


sexual e carnal (o menino e a mulher mais velha, a lavadeira). “O
sentimento que nasce do olhar, do tato e do paladar, não reduz o
desejo à idealização: a lavadeira imensa com tetas imensas servindo à
descoberta pueril é mulher comum” (SILVA, s.d, p. 5)
É preciso atentar que o amor, expresso na poesia
drummondiana, é cantado de maneira problemática, incompreensível,
que transfigura o homem e o mundo. Na obra em análise, o amor é
visto de forma irônica, jocosa e debochada. Até a linguagem, em várias
ocasiões, torna-se vulgar “me deu as maminhas”. Contrariando o
idealismo platônico e a tradição sentimental da literatura, Dumoulié
declara que “Schopenhauer não considera a união das almas ou a
reciprocidade dos sentimentos como a meta do amor, mas somente o
gozo sexual” (DUMOULIÉ, 2010, p. 104), como observamos nos versos

- 23 -
acima. Erotismo e morte caminham juntos no poema “Cantiga de
viúvo OC. p. 14”

A noite caiu na minh'alma,


fiquei triste sem querer.
Uma sombra veio vindo,
veio vindo, me abraçou.
Era a sombra de meu bem
que morreu há tanto tempo...

Trata-se de um dos poemas mais melancólicos e tristes de


Alguma Poesia. O primeiro verso denota um certo romantismo ainda
não visto nos versos anteriores. A bem amada, depois de morta, volta
para visitar seu grande amor. É o desejo dos corpos que se buscam.
“Mas até da própria carência o homem é capaz de fazer potência”
(DUMOULIÉ, 2010, p. 84). Da carência também se faz poesia. Mas
amores têm como fim, pelos menos na visão schopenhaueriana,
tristeza e sofrimento. A não realização do amor estará presente ao
longo da poesia drummondiana: “Os desiludidos do amor / estão
desfechando tiros no peito” (“Necrológio dos desiludidos do amor”,
OC, p. 59), “Amar o perdido / deixa confundido / este coração”
(“Memória”, OC, p. 252); “Deus me deu um amor no tempo de
madureza, / quando os frutos ou não são colhidos ou sabem a verme”,
(“Campo de flores”, OC, p. 268 ); “Não cantarei amores que não tenho,
/ e, quando tive, nunca celebrei” (“Nudez”, OC, p 419); “Mas o amor
car(o,a) colega este não consola nunca de núncaras” (“Amar-amaro”,
OC, p. 476).

- 24 -
Eros, tensionador e insuflador, é a essência das contradições
como observamos no poema “Toada do amor” (OC, p. 08)

E o amor sempre nessa toada:


briga perdoa perdoa briga.

Não se deve xingar a vida,


a gente vive, depois esquece.
Só o amor volta para brigar,
para perdoar,
amor cachorro bandido trem.

Mas, se não fosse ele, também


que graça que a vida tinha?[...]

Se Eros é tensão entre os amantes, fica claro pelos versos do


poeta porque o amor é descrito como uma espécie de gangorra –
brinquedo em que as crianças sentam-se em suas extremidades, de
baixo para cima e de cima para baixo, ou seja, “briga perdoa perdoa
briga” (OC, p. 08). “Diferente das baladas e toadas medievais e
românticas, em que o amado apenas se põe na expectativa do desejo,
aqui a toada se faz de briga e perdão, o poeta descreve o amor como
“cachorro bandido trem” (SILVA, s.d, p. 5). Em entrevista ao jornal
Folha de São Paulo, Drummond explicou que o vocábulo “Trem”,
coloquialmente, podia significar muita coisa. Primeiramente,
significava ‘coisa’ mesmo. Depois, poderia ser entendido de forma
depreciativa, isto é, ‘amor bandido’. Para o poeta trem era uma
‘coisa,’, um ‘troço’, algo difícil de ser definido. Assim, o amor poderia
significar um trem de ferro, assim como a alma do poeta “Por isso sou

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triste, orgulhoso: de ferro” (OC, p. 68), cuja viagem seria marcada pelas
atribulações, tal como a vida
Em Brejo das Almas (1934), constituído de vinte e seis poemas,
com uma linguagem simples, abandona o “compromisso
programático” como havia em Alguma Poesia (1930). Drummond
discute o amor, sob um ponto de vista racional, mantendo um
posicionamento reflexivo e filosófico sobre esse sentimento. O poema
“Soneto da perdida esperança” (OC, p. 45) é uma espécie de síntese
da obra:

Não sei se estou sofrendo


ou se é alguém que se diverte
por que não? ...

O eu-lírico retrata a decepção, o coração partido e a traição na


promessa de um amor eterno. Ele não sabe se sofre ou se alguém –
possivelmente Eros – se diverte com o sofrimento dele.
Contudo, um dos poemas “Em face dos últimos
acontecimentos” (OC, p. 53), em especial, chama-nos atenção:

Oh! sejamos pornográficos


(docemente pornográficos).
Por que seremos mais castos
Que o nosso avô português?

Diante dos assaltos e sobressaltos da vida, “uma saída seria


driblar a vida de modo pornográfico, isso é também uma atitude

- 26 -
política, se entendermos política como o cuidado de si e do outro, o
não isolamento” (SILVA, s.d, p. 7)
A poética drummondiana vai se transformando e o poeta
sensível e tímido, “O homem atrás do bigode/ é sério, simples e forte.
Quase não conversa..” (POEMA DE SETE FASES, OC, p. 5), nos convida
a ser pornográficos. A pornografia é o comércio do ‘amor sexual’. Esse
tipo de amor sempre foi e sempre será praticado pelos homens. É ele
que faz ascender a chama de nossas paixões e da nossa libido. É ele
que nos completa, uma vez que não somos só espírito. A esse convite
Houaiss declarou

Em face dos últimos acontecimentos’ é, porém,


peça importante não apenas do premonitório: em
face dos últimos acontecimentos, a pornografia, a
escatologia, a fescenínia e atitudes afins e conexas
se fazem necessárias ou inevitáveis: Carlos
Drummond de Andrade não a praticou em
concreto, mas antecipou-a: fazendo-o apenas
teoricamente, fazia muito, pois já ferira demais o
ambiente da inércia para permitir-se o passo
público além, da prática pornográfica concreta,
verbalizada” (HOUAISS, 1976, p. 69)

O estudioso não sabia (e não tinha como saber), que em


meados dos anos 70 Drummond iria escrever um tipo de poesia que
escandalizaria leitores “tradicionais”, que pareciam (des)conhecer ou
não vivenciar “o amor erótico”. O livro O Amor Natural (1992) revelou
as poesias eróticas que Drummond manteve oculta durante anos e só
aceitou publicar após a sua morte, pois tinha receio do julgamento

- 27 -
alheio e de ser chamado de “velho bandalho”. A esse respeito o
Drummond explicou

São poemas eróticos, que eu tenho guardado,


porque há no Brasil – não sei se no mundo –, no
momento, uma onda que não é de erotismo. É de
pornografia. E eu não gostaria que os meus poemas
fossem rotulados de pornográficos. Pelo contrário,
eles procuram dignificar, cantar o amor físico,
porém sem nenhuma palavra grosseira, sem
nenhum palavrão, sem nada que choque a
sensibilidade do leitor. É uma coisa de certa
elevação. (BARBOSA, 1987, p. 8).

Em O Amor Natural, composto por trinta e nove textos, o poeta


expressa desejos ardentes e delírios do corpo. Acerca da obra, o
estudioso Affonso Romano de Sant’Anna, proferiu

Este [O amor natural] é um livro inquietante.


Inquietante porque nos faz pensar os limites
(quais?) entre a pornografia e o erotismo. Neste
sentido, esses poemas remetem para fora da obra
de Drummond e colocam em questão não apenas
o poeta, mas o leitor, seus conceitos e
preconceitos. (SANT’ANNA, 2002, p. 7)

Inquietante porque explicita o erótico, o prazer carnal, o


desejo, o sexo, o gozo. A polêmica em torno da obra não concerne as
poesias eróticas – encontramo-nas no decorrer de sua obra, ou
melhor, “ Evidentemente, não se nega que o amor, até aqui, tenha
estado fora do âmbito das preocupações do artífice da palavra; aliás,
pelo contrário. De Alguma Poesia (1930) a Esquecer para Lembrar

- 28 -
(1979), o sentimento amoroso atravessa implícito ou explicitamente,
a poética drummondiana” (BARBOSA, 1987, p. 8-9).
A mudança diz respeito a uma linguagem despido de pudores
poéticos e se inscreve dentro de uma tradição filosófica e poética do
erotismo e da obscenidade. Nesse sentido, Sant’Anna foi enfático ao
declarar que

Este [O amor natural] é um livro que perturbará


alguns, decepcionará outros e em outros mais
reafirmará a admiração por Drummond. [...] Para
os cultores de Drummond, no entanto, O amor
natural será a oportunidade para prolongar
análises feitas em sua vasta bibliografia e adicionar
novas leituras interpretativas num jogo de
espelhos onde à fantasia do texto se somam as
alucinações (objetivas?) dos críticos. (SANT’ANNA,
2002, p. 7).

O teórico tinha razão: a obra ‘perturbou’ e ainda ‘perturba’ os


leitores. Essa ‘perturbação’ já aparece exposta na capa23 da décima
primeira edição da referida obra. A capa traz um homem idoso.
E o conteúdo do livro? O que une a capa ao conteúdo? Não
temos, aqui, um poeta melancólico e enclausurado em sua dor que ao
pintar seu autorretrato declarou ser “[...] sério, simples e forte./ Quase
não conversa./ Tem poucos, raros amigos/ o homem atrás dos óculos
e do bigode” (OC, p. 5), mas um poeta vibrante, pulsional, libidinoso.

2
No livro consta que a concepção da capa foi de Pedro Augusto Granã Drummond,
neto do poeta.

- 29 -
Além disso, o contexto em que o poeta escreveu tais versos é
completamente diferente daquele que tínhamos na década de 30.
A década de 60 foi marcada pelo surgimento da pílula
anticoncepcional e contribuiu para a emancipação feminina. Essa
liberdade teve consequências políticas, sociais, educacionais e
econômicas. As mulheres passaram a ser (mais) vistas, ouvidas e
respeitadas. Todavia, isso mudou rapidamente. Os ciúmes e a
possessividade prevaleceram sobre a liberdade sexual, a guerra entre
os sexos tornou-se mais acirrada, as mulheres se mostraram mais
disponíveis para o sexo sem compromisso. Ainda nesse período, a
indústria pornográfica, que sempre existiu, saiu do limbo e passou a
estar disponível 24 horas por dia na internet, na televisão ou mesmo
nas revistas.
O amor, “palavra essencial”, na poesia drummondiana está
transvestida de uma excessiva eroticidade como podemos ver em
palavras como “bundas”, “vulva”, “nádegas”, “púbis”, “clitóris” etc.
Em O amor natural, cujo título “dessacraliza o amor de forma
radical”, (SILVA, s.d, p. 8) Drummond une corpo e alma como
observamos nos versos “Amor, pois que é palavra essencial” (OC, p.
1365)

Amor - pois que é palavra essencial


comece esta canção e toda a envolva.
Amor guie o meu verso, e enquanto o guia,
reúna alma e desejo, membro e vulva.

- 30 -
Quem ousará dizer que ele é só alma?
Quem não sente no corpo a alma expandir-se
até desabrochar em puro grito
de orgasmo, num instante de infinito?

O corpo noutro corpo entrelaçado,


fundido, dissolvido, volta à origem
dos seres, que Platão viu contemplados:
é um, perfeito em dois; são dois em um.
Integração na cama ou já no cosmo?[...]

Silva (s.d), chama a atenção para contradição do poema de


abertura da referida obra, que tem o foco no termo “amor”, mas, na
verdade, descreve o ato sexual.
Na primeira estrofe, utilizando-se de um vocativo reforçado
pelo travessão, o poeta chama o amor para que o conduza e tome
parte de sua “canção”. O amor deve reunir “alma e desejo”, expressão
metafísica do corpo para em seguida reunir “membro e vulva”, a
expressão física. Todavia, na tradição cristã, o corpo “membro e vulva”
é lugar de pecado. Somente a elevação da alma fará com que
cheguemos a Deus. Mas o poeta questiona essa concepção quando
pergunta: “Quem ousará dizer que ele é só alma? ”. “O corpo noutro
corpo entrelaçado...” gera prazer, “até desabrochar em puro grito/ de
orgasmo” - momento em que o prazer da excitação sexual atinge o
máximo de intensidade. Na terceira estrofe, há a confirmação do ideal
platônico de que a alma precede o corpo e o amor pretende atingir um
plano transcendental. Para o sujeito poético a perfeição só se justifica
pela união corpo/alma, ou seja, “dois em um”.

- 31 -
Duas temáticas estão presentes nos versos acima: choque
social e amor. O choque social diz respeito a ousadia no tratamento da
linguagem, que o poeta, inclusive, já havia demonstrado em sua obra
de estreia, Alguma Poesia. Contudo, expor um poema mais direto,
mais íntimo, mais erótico a leitores desacostumados e/ou puritanos
causou certo estranhamento. De modo geral, “O que se passa na
cama/ é segredo de quem ama” (OC, p. 1368). Ou seja, não pode ser
verbalizado para o conhecimento de terceiros. É um tabu – cuja dupla
função é controlar o profano; preservar o sagrado. Isso só será possível
quando os que amam forem silenciados “entre o lençol e a cortina/
ainda húmidos de sémen...” (OC, p. 1368). Vale ressaltar que às vezes
não dá tempo chegar na cama. Para esse tipo de amor “ O chão é cama
para o amor urgente/ amor que não espera ir para a cama./ Sobre
tapete ou duro piso, a gente/ compõe de corpo e corpo a úmida
trama” (OC, p. 1374)
Em O Amor Natural, o sexo aparece nas suas mais diversas
manifestações, seja através da negação do sexo “A moça mostrava a
coxa” (OC, p. 1369), seja pela realização sexual genital “O que passa na
cama” (OC, p. 1368), seja pela realização sexual oral “A língua lambe”
(OC, p. 1375), seja pela realização sexual anal “Quando desejos outros
é que falam” (OC, p. 1379), seja pela incitação à masturbação “À meia-
noite, pelo telefone” (OC, p. 1380), ou pela (re)memoração do sexo
que causa prazer “No pequeno museu sentimental” (OC, p. 1383).

- 32 -
Em suma, a concepção amorosa presentificada em Alguma
Poesia difere de O Amor natural. Conforme Barbosa (1987, p. 25)
nessa obra "o amor desencontro/desencanto transmuta-se, na
maioria dos casos, em encontro/satisfação, reduzindo ou eliminando
o humour e a ironia".
Dumoulié (2005, p. 83) declarou que “O cristianismo significou
a catástrofe do desejo”. Além do desejo, a libido e o erotismo.
Subversivo e poderoso, o erotismo nos permite vivenciar experiências
múltiplas seja na vida ou na arte.
Cantado em prosa ou em verso, a eroticidade sempre esteve
presente na poética drummondiana. Nas obras iniciais, de maneira
mais velada; nas finais, de maneira mais escrachada, como é o caso de
A paixão medida (1980), Corpo (1984), Amar se aprende amando
(1985), Amor sinal estranho (1985) e O amor natural (1992).
O amor, ‘palavra essencial’, cantado em suas várias dimensões
e manifestações, paternal, fraternal, humanitário, solidário, erótico,
na concepção drummondiana, também não é puro, idealizado,
romântico, desprovido de sexo, à distância, ou seja, não é platônico. É
um sentimento caracterizado por sua completude, pois envolve
‘corpo’ e ‘alma’. É aristotélico, porque se trata sentimento de seres
imperfeitos.
Portanto, conforme Sant’Anna

Está na hora de o erótico (ou pornográfico?) fazer


parte natural da obra do poeta[...]Afinal, há alguns

- 33 -
milhares de anos que amamos desvairadamente de
todas as formas registradas ou não no Kama Sutra
e nos murais de Pompeia” (SANT’ANNA, 2007, p.
14).

O poeta gauche tinha razão: “Sejamos pornográficos”.

- 34 -
Referências

ANDRADE, Carlos Drummond. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova


Aguilar, 2002.

______. Antologia poética (organizada pelo autor). 57ª edição.


Editora Record. Rio de Janeiro, 2006.

______. Erotismo - poesia e psicanálise. Folha de S. Paulo, caderno


Ilustríssima, em 08 de julho de 2012. Entrevista concedida a Marcelo
Bortolloti (Rio de Janeiro). Disponível em:
http://www.elfikurten.com.br/2012/07/carlos-drummond-de-
andrade-entrevista.html. Acesso em 23/06/2017.

BARBOSA, Rita de Cássia. Poemas eróticos de Carlos Drummond de


Andrade. São Paulo: Ática, 1987.

BATAILLE, George. O erotismo na experiência interior. In: O erotismo.


Tradução Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica, 2013, p. 35-
49

BRANCO, Lúcia Castelo. O que é erotismo. São Paulo: Editora Ática,


1985.

DUMOULIÉ, Camille. O desejo do homem. In: O desejo. Petrópolis:


Vozes, 2005, p. 7-145.

DUBOIS S. Jean. Dictionnaire de langue française: Lexis. Larousse.


1994.p. 881-882

GUIMARÃES, Ruth. Dicionário da Mitologia Grega. São Paulo, Cultrix,


INL, 1972, p. 140.

HOUAISS, A. “Drummond”. In: Drummond mais seis poetas e um


problema. Rio: Imago, 1976.

- 35 -
LINHARES FILHO. O amor e outros aspectos em Drummond.
Fortaleza. Editora: UFC, 2002.

PLATÃO. O Banquete. Diálogos. Bauru/ SP: Edipro, 2010, p. 33-107.

SANSEVERINO, Antônio Marcos V. O poeta e o crítico, diálogo entre


Drummond e Candido. Revista Letras, Curitiba, n. 74, p. 101-116,
jan./abr. 2008. Editora UFPR.

SANT'ANA, Affonso Romano de. O erotismo nos deixa gauche? In:


ANDRADE, Carlos Drummond de. O amor natural. 11ª ed. Ed. Record:
Rio de Janeiro. 2007.

SILVA, C.R. “Falo gauche do poeta: a cartilha amorosa de


Drummond". Em: A língua de Eros: ensaios de literatura e outras
artes. Livro no prelo.

TELES, Gilberto Mendonça. Drummond: A Estilística da Repetição. 2ª.


Ed. Rio de janeiro, José Olympio, 1976.

- 36 -
De tinta, Gozo e arrepio: os muros da transgressão
em Contos d´escárnio - textos grotescos, de Hilda Hilst
Natália Marques da Silva3

(IX)
E por que haverias de querer minha alma
Na tua cama?
Disse palavras líquidas, deleitosas, ásperas
Obscenas, porque era assim que gostávamos.
Mas não menti gozo prazer lascívia
Nem omiti que a alma está além, buscando
Aquele Outro. E te repito: por que haverias
De querer minha alma na tua cama?
Jubila-te da memória de coitos e de acertos.
Ou tenta-me de novo. Obriga-me.

(Hilda Hilst, Do desejo)

Considerações iniciais

Este trabalho se originou de uma tentativa. Tentativa, essa, de


compreender os limites daquilo que Hilda Hilst chamou de
bandalheiras. Tentativa, também, de adentrar ao universo das
palavras, especialmente, no universo da escrita erótica hilstiana, que
coloca a sexualidade e a representação do corpo em perspectiva. A
pesquisa se desenvolve a partir de uma averiguação acerca do tema
do Erotismo configurado na narrativa Clódia, que integra a obra Contos

3
Graduada em Letras pela Universidade do Estado de Mato Grosso – UNEMAT,
campus de Tangará da Serra.

- 37 -
d’escárnio/textos grotescos, segundo volume da chamada tetralogia
obscena, publicada em 1990.
De início, a narrativa de Clódia já coloca o leitor perante uma
situação um tanto peculiar: os (des)caminhos do erótico e do
pornográfico sendo postos em consonância. Contudo, não é a
pornografia e suas concomitâncias que nos chamam a atenção neste
conto, embora tal narrativa esteja, também, situada nesse pólo, mas
um apelo voraz à carne, ao sexo, à transgressão. Justamente por essa
perspectiva é que nos deteremos, aqui, da questão que percebemos
como erótico-transgressor, isto é, de um discurso que presentifica
algum tipo de violação do corpo em uso.

O arredio se fazendo ordeiro: os muros da transgressão


Em Contos d´escárnio – textos grotescos, temos como narrador
e personagem central, Crasso, que, como o próprio nome já indica, é
um personagem grosseiro e impudico. Aos sessenta anos, cansado de
ler tanto lixo, decide escrever seu próprio livro, narrando sobre as suas
memórias sexuais: “É tanta bestagem em letra de forma que pensei,
porque não posso escrever a minha?” (HILST, 2002, p. 14). Dessa
forma, decide revelar para os seus possíveis leitores as relações
sexuais que mais marcaram a sua vida, da forma mais anárquica
possível. E, ao optar por tal escolha, recusa-se a narrar de forma
ordeira, pretendendo escrever à maneira de versos chineses,
escolhendo não seguir um estilo formal durante sua escrita, sempre

- 38 -
rejeitando marcações temporais e opondo-se a qualquer expectativa
de retomada da tradição “início-meio-fim”.

A verdade é que não gosto de colocar fatos numa


sequência ortodoxa, arrumada. Os jornais estão
cheios de histórias como começo, meio e fim.
Então não vou escrever um romance como... E o
Vento Levou ou Rebeca, Os Sertões e Ana Karenina
então nem se fala. Os verbos chineses não
possuem tempo. Eu também não. (HILST, 2002, p.
14).

Ao longo da narrativa o leitor se depara com uma total


anarquia de gêneros, com o narrador-protagonista envolvendo, em
seus escritos, alguns elementos, quais sejam: poemas, o romance
memorialístico, excertos filosóficos, contos e mini-contos sobre as
personagens, crítica literária juntamente com piadas e paródias,
alusões políticas com alto teor de ironia e sarcasmo, bem como
diálogos soltos e intercalados no meio do texto. Tudo isso construído
de forma desordenada e híbrida. Dentre as diversas experiências
sexuais, Crasso se relaciona com mulheres elitistas, cultas e poetas,
porém, somente interessadas em dinheiro: “Olhares misteriosos,
pequenas citações a cada instante [...], mas como adoram o dinheiro
as cadelonas!” (HILST, 2002, p.18). Também o narrador se relaciona
com outras personagens peculiares, tais como Josete, personagem
apaixonada por Ezra Pound, que tatua ao redor do ânus pequenas
damas em homenagem a um poema de seu ídolo. E, finalmente,

- 39 -
Clódia, ou também a lambe-cona, personagem sobre a qual
deteremos atenção.
Clódia é a quinta personagem inesquecível que se envolve
sexualmente com Crasso, conhecendo-o em uma igreja, enquanto
pensa sobre “o pau e a vida”. Museóloga e artista, pinta vaginas de
todas as cores, tamanhos e texturas, sendo através desse encontro
fortuito, em que o sagrado e o profano se misturam, que os dois se
tornam amantes por um longo período.
Segundo os estudos de Georges Bataille (1987, p.15), “somos
seres descontínuos, indivíduos que morrem isoladamente numa
aventura ininteligível”, entretanto, temos a consciência de que somos
frutos de uma continuação anterior e por isso almejamos retornar
para tal estado. Essa busca pela continuidade perdida, a totalidade dos
seres, de acordo com a concepção batailleana, é o próprio erotismo,
que se manifesta em três formas - erotismo dos corpos, dos corações
e o erotismo sagrado - que trazem em questão a substituição do
isolamento do ser, de sua descontinuidade por um sentimento de
continuidade profunda. Em Clódia é possível perceber que a
representação das práticas sexuais e do uso do corpo como território
de prazer, faz-se calcada no erotismo dos corpos, principalmente no
que diz respeito sobre a violação dos corpos e da carne, bem como os
interditos e as transgressões que envolvem o prazer do gozo sexual.
A relação de Crasso e Clódia constrói-se em um ambiente
altamente transgressor e tal transgressão perpassa por toda a

- 40 -
narrativa hilstiana. Ainda na esteira de Bataille (1987), entendemos
por transgressão qualquer ato que se rebele contra as imposições
organizadas pelo mundo do trabalho e pela sociedade que vigia e pune
aqueles que não se adéquam as regras vigentes. Tais restrições e
imposições são assim denominadas de interditos, isto é, um conjunto
de regras que define a vida social. Segundo o autor, a transgressão só
é possível com base no interdito: ela o ultrapassa e o completa, e,
deste modo, traz preposições consensuais, de modo que haja a
possibilidade de transgredir o controle da violência, construído pela
modernidade, pelo discurso moral e por todas as manifestações que
recusam o corpo e as disposições que dele possam emergir e exceder
através do erotismo.
Um cenário propício para que a transgressão e suas formas
possam se manifestar está no local do primeiro encontro dos
personagens: a igreja. A imagem provocante da igreja, por sua vez, não
aparece por acaso na narrativa: ela ocorre em um momento de tédio
e vazio, numa busca por explicações e sentido existenciais, mais
especificamente quando o narrador faz uso da transgressão,
adentrando num ambiente considerado sagrado, debochando e
proferindo apelos contra as instituições católicas. O narrador subverte
a lógica do silêncio, da confissão e da oração, passando a proferir
insultos e críticas às relações de poder pré-estabelecidas na sociedade,
e, também, aos interditos que são impostos ao agirmos com certa
conformidade.

- 41 -
Por que os papas, ao invés de discursos lenga-
lenga, não arracam as vestes, não pulam daquela
cadeirinha, não ficam nus e nus não discursam um
texto veemente, apaixonado e colérico
amaldiçoando os canalhas? Não adianta ficar
voando de ceca em meca e beijando o chão. Não
deviam postar-se nus numa praça e ali permanecer
até que os homens entendessem que é preciso
acabar com todas as cloacas do poder? Mas vamos
às nossas orgásticas, gentis e menos imundas
putarias. (HILST, 2002, P.31).

Para Crasso, as profanações transcendem o ambiente de


interditos da igreja enquanto instituição, precisando ir além de todo o
moralismo cristão, despindo-se dos bons-costumes e prostrando-se
nu, reverenciando o corpo. Além do uso do deboche e da transgressão
contra as instituições católicas, o narrador explora o lado profano da
carne ao sentir-se excitado pela presença e cheiro de Clódia, que
adentra o espaço sacro revestida de pecado e desejo: “uma dona
morena, alta, estreita de quadris, mas de bunda perfeita, ajoelhada-se
um tiquinho mais à frente. Um perfume de tenras ervazinhas inundou
a igreja. Meu pau fremiu.” (HILST, 2002, p. 32). Dá-se, nesse momento,
a configuração de um cenário profundamente transgressor, uma
igreja, presentificando o desejo pela obtenção da volúpia da carne.
Como é possível observarmos no trecho a seguir, Crasso não se
intimida em revelar aos seus possíveis leitores as primeiras sensações
ao ver Clódia, ficando excitado, não permitindo que os interditos de
um ambiente sagrado se sobressaiam aos impulsos de Eros:

- 42 -
Armei uma estratégia. Levantei-me com cara
compungida, ajoelhei-me rapidamente diante do
altar, virei a cabeça para os lados e perguntei à
mulher: desculpe incomodá-la, mas a senhora sabe
se o padre andou por aqui? Ela levantou a cabeça.
Era linda. O discreto decote da blusa deixava à
mostra a textura reluzente da pele. E que pescoço!
(HILST, 2002, p.32)

Clódia torna-se, então, a representação do pecado e do fruto


proibido, passando a ser um símbolo da transgressão ao aguçar o
desejo pela carne em um espaço sagrado. Por meio das informações
que o narrador nos revela, e, pela forma como ele constrói a
personalidade de sua futura amante, descobrimos que a mesma
gostava também de mulheres: “Apesar de que alguns historiadores
afirmam que a Lésbia citada por Catulo era a própria Clódia. Fiquei
sabendo que ela gostava de mulheres depois dos dois primeiros
uísques.” (HILST, 2002, p. 24). Sendo a mulher a maior vítima da
repressão sexual, a configuração da sexualidade de Clódia representa
uma transgressão e ruptura com os padrões repressores, destacando
a necessidade feminina de vivenciar os desejos do corpo como via de
autoconhecimento, construção identitária e redimensionamento das
relações entre homem e mulher, entre o humano e o divino. Clódia
transcende não só na quebra como os interditos que regem a
sexualidade e o corpo feminino, mas também nas proibições que
administram a estética da arte. Vejamos:

- 43 -
Era museóloga, imaginem. Falava em volume, cor,
espaço, traço, queria muito pintar também. Pinta?
Perguntei.
olha, Crasso, tento.
E pinta o quê?
já é mais difícil de explicar.
paisagens, homens, mulheres, animais?
.........
cabeças?
vaginas, Crasso. (HILST, 2002, p.34)

A fixação peculiar de Clódia por pintar vaginas poderá causar


tanto espanto nos leitores pudicos de Hilst quanto causa em Crasso,
que revela tal surpresa com certo tom de machismo: “Mas olhe,
Clódia, acho lindo vagina. Deus me livre de gostar de outra coisa. É que
é, vamos dizer, é extravagante só pintar vaginas não é? Ou melhor, é
singular, hen?” (HILST, 2002, p. 35). Temos, então, a representação de
uma personagem feminina altamente transgressora: Clódia, como
mulher, que inicialmente está fadada à submissão, subverte a lógica
machista e patriarcal ao revelar seu gosto por mulheres e homens,
bem como por ser artista, tendo como objeto de trabalho a genitália
feminina, retratando-a de várias formas.

As pinturas de Clódia eram vaginas imensas,


algumas de densidade espessam outras
transparentes, algumas de um rubi-carmim
enegrecido mas tênue, vaginas estendidas sobre as
mesas, sobre colunas barrocas, vaginas dentro de
caixas, dentro dos troncos das árvores, os grandes
lábios estufados iguais à seda esticada (...). A
variedade clitóris era inigualável: pequenos,
textura de tafetá brilhoso, mínimos, cravados de
- 44 -
ínfimos espinhos ou grandes, iguais a dedos
mindinhos, duros de sensualidade e robustez.
Pintava dedos tocando clitóris. Ou dedos isolados e
tristes sobre as camas. Ou um único dedo tocando
um clitóris-dedo. Dizia ter se inspirado no dedo de
Deus da capela Sistina. Aquele do teto. (HILST,
2002, p.38).

Como podemos observar no trecho acima, a estratégia


utilizada pelo narrador, ao descrever a arte de Clódia com detalhes
minuciosos sobre o órgão sexual feminino, revela uma tentativa de
escancarar o sexo, torná-lo público, evidenciando aquilo que é
rebaixado ao nível do privado, do sujo e imoral. O corpo é tratado
como arte, como expressão humana de uma forma natural e bela.
Temos, portanto, o corpo e a sexualidade como oportunidade de
criação e subversão de palavras e códigos sociais. Eliane Robert
Moraes (2014), em entrevista acerca deste assunto, revela que isto
acontece porque tal transgressão:

[...] não só escancara o sexo, mas abala toda a


estrutura de um edifício social. Às vezes por
preconceito, às vezes por medo, as pessoas
recusam e resistem. O ser humano gosta de se
pensar de uma forma idealizada, de contemplar
sua imagem de maneira edificante. Por isso sempre
foi dado um privilégio à cabeça, ao alto... Mas a
humanidade não é só isso, tem também que dar
conta do que acontece da cintura para baixo! Essa
separação é muito cultural. Há culturas orientais
em que o corpo e a alma são trabalhados de outra
forma, concebendo o sexo até como algo sagrado.

- 45 -
No Ocidente, o cristianismo em particular sempre
foi repressor em relação ao corpo. (MORAES, 2014)

Moraes afirma que os interditos e limitações em torno do


corpo e da sexualidade fazem parte de um pensamento dualista, que
opõe bem e mal, mente e corpo, sagrado e profano. E, como vimos na
citação anterior, novamente é possível encontrar o envolvimento do
sagrado e profano quando Clódia, em uma de suas representações da
vagina, pinta a imagem de um “clitóris-dedo”, inspirada no dedo de
Deus da capela Sistina. Tal tom jocoso em relação ao que é tido como
sagrado, acaba por se transformar em uma temática recorrente dos
escritos hilstianos em que, geralmente, a autora os faz remetendo-se
à figura divina do próprio Deus.
Mais adiante, no decorrer da narrativa, Crasso se depara com
um conto no qual o protagonista toca o falo de Deus e vê ejacular
sêmen e sangue de tal prática. Ao reproduzir isso a Clódia, diz: “O pau
de Deus. Esse sim é que você gostaria de pintar. Usarias tuas tintas
vermelhas e negras e pintavas o divino caralhão esporrando adoidado”
(HILST, 2002, p.85). Nesse ponto é possível perceber que o narrador
propõe um modo de reflexão sobre a existência de um Deus
humanizado que criou o humano à sua semelhança, mas também
como seres enquanto carne e desejo.
Após começar a se envolver com Crasso de uma forma mais
intensa, Clódia passa ser questionada por ter apenas a representação
da vagina como objeto para sua arte: “porque não pinta caralhos, hen

- 46 -
Clódia?” (HILST, 2002, p.28), fazendo com que sua fixação por pintar
vaginas logo se transformasse em ânsia por colocar em suas telas o
desenho de um pênis. Inicialmente, a personagem repudiava a ideia
de retratar o órgão sexual masculino, pois acreditava que ao contrário
da vagina “que tem por si só vida, pulsão, cor. Um caralho em repouso
é um verme morto”, ou seja, mais uma vez Clódia subverte o padrão
que trata o falo como algo superior, que com o seu líquido espesso e
poderoso é capaz de gerar vida. No seu trabalho artístico, a vagina é o
poder, o falo masculino é apenas algo sem vida e cor. Entretanto, após
as insistências de seu amante, e por ser uma mulher que encara o sexo
de forma extremamente livre, a personagem se rende e pinta a sua
primeira tela tendo como objeto o próprio pênis de seu parceiro.
Partindo desse ponto, Clódia se torna, então, obcecada por retratar
genitálias masculinas:

Foi ficando muito inconveniente porque assim


que era apresentada a alguém, perguntava:
posso ver o seu pau? Pintou paus de todos os
tamanhos e expressões. Havia-os tão
solitários, tão exangues que chegavam a
causar compaixão. Outros afetados, pedantes.
Havia-os desgarrados de si mesmos como se
suplicassem pela própria existência. Alguns
ostensivos, caralhudos vaidosos. Alguns muito,
muito alegrinhos. (HILST, 2002, p. 46)

Se, antes, Clódia, amante preferida de Crasso, ganhava a vida


pintando quadros de vaginas, agora a personagem inicia uma busca

- 47 -
insaciável por pintar pênis gigantes, o que concede um caráter de
protagonismo a esses órgãos na diegese em questão. Na citação
acima, é possível observar que a forma como as pinturas são descritas
enfatizam a autonomia desses órgãos, conferindo-lhes certo ar de
humanização, não se tratando apenas de um falo qualquer sendo
representado numa tela. Alguns eram solitários e pálidos, outros,
pedantes “como se suplicassem pela própria existência”. Havia,
também, os alegres, felizes, isto é, o próprio narrador debochando de
todo convencionalismo ao personalizar os órgãos sexuais, tornando-
os independentes em relação ao corpo do indivíduo. O que importa,
aqui, não é a pessoa dotada de um órgão sexual, mas sim o próprio
falo em questão.
Tal característica da narrativa hilstiana é a própria transgressão
que se manifesta por meio do deboche e da ironia, ao colocar o tema
do erotismo em meio à pintura da arte erudita. A forma como o
narrador apresenta as pinturas de Clódia demarcam uma subversão ao
envolver referências artísticas e literárias junto à “putaria das grossas”,
ao erótico-transgressor que permeia toda a obra. Ainda em Moraes
(2003):

O potencial de subversão desses escritos está


diretamente ligado à sua capacidade de colocar em
xeque os códigos do sistema literário vigente em
cada sociedade, transtornando a ordem dos
discursos a partir da qual se organizam as culturas.
O escândalo acontece, pois, quando os temas

- 48 -
obscenos abandonam o gueto em que se confinam
os gêneros inferiores e se associam às expressões
legitimadas como superiores. Ou, dizendo com
Hilda Hilst, quando a "putaria das grossas" se
aproxima da metafísica. (ROBERT MORAES, 2003,
p.4)

O interdito reside, então, no fato de que temas relacionados à


esfera sexual devem ser tratados às escondidas, sendo que os temas
tidos como cultos devem permanecer em um nível superior. Contudo,
tal interdito novamente é subvertido por Crasso e Clódia, que em meio
à putaria escrachada, aos impulsos eróticos e aos deleites da carne,
citam e discorrem, de forma extremamente irônica, sobre o universo
artístico e literário, causando desordem e rompendo fronteiras.
Clódia, com sua nova fixação artística, inicia uma busca por
genitálias masculinas e, em uma de suas andanças, avista um mendigo,
pedindo a ele para que a deixe fazer uma pintura de seu pênis. O
mendigo concorda e Clódia inicia o quadro, mas logo é presa e
considerada como louca por tal ato. Vejamos como se dá a construção
de tal cena na narrativa:

Encontrou um mendigo no banco da praça de flores


e pediu (como sempre, aliás) que o cara lhe
mostrasse o pau. O paspalho não hesitou. Ali
mesmo ela começou a riscar o carvão (os papéis
que sempre carregava na pasta) a caceta do dito-
cujo. Logo depois chegou a polícia e foi um bate-
boca que me deixou prostrado. De nada adiantou
dizer-lhes que Clódia era pintora, museóloga,

- 49 -
artista enfim. Louca eu não disse, mas eles
disseram. (HILST, 2002, p.47).

Percebemos que Clódia não demonstra importância com o


olhar do público, tratando do corpo e do falo sexual de forma livre e
espontânea. A personagem simplesmente chega e pede para que o
mendigo lhe mostre o pênis, causando estranhamento naqueles que
não concebem o corpo de uma forma natural. O corpo, as genitálias,
as manifestações eróticas, são entendidos como uma ameaça à
ordem, sendo por isso repreendido e mantido como impuro ou, até
mesmo, crime. Segundo Rodolfo A. Franconi:

O erotismo dirige-se para a liberação, enquanto o


poder, para a dominação. O erotismo é uma
ameaça ao poder: a estrutura da sociedade
(entendida como “autoritária, patriarcal e
machista”) está baseada na repressão que o poder
implica. O erotismo é a liberdade que deve ser
cortada, liberdade que subverte a ordem; de onde
erotismo e poder serem forças antagônicas.
(FRANCONI, 1997, p. 71).

Dessa forma, para garantir domínio e controle acerca das


manifestações eróticas e da sexualidade, a sociedade instaura, por
meio do Estado, e, principalmente, da Igreja, leis e dogmas que
reprimem os desejos e impulsos humanos, bem como a liberdade de
expressão sexual, pois, como vimos na citação, a personagem Clódia é
repreendida por retratar o corpo de uma forma natural e, em seguida,
transferida para um hospício: “disseram-me que tanto insistiu em ver

- 50 -
os paus dos tiras que mandaram-na para um hospício logo ali”. A
situação da personagem ao ser chamada e considerada como louca,
reforça uma naturalização de que a mulher é descontrolada, insana,
exagerada. Uma aceitação tácita destas características é tudo aquilo
que o machismo e as relações de poder precisam para desqualificar,
inferiorizar e subjugar o feminino.
Não tarda para que Crasso faça com que o leitor saiba que
Clódia permanecerá até o fim da narrativa de Contos d’escárnio,
anunciando “com Clódia minha vida transformou-se em risos, cores e
adoráveis loucuras” (HILST, 2002, p.38), tornando-se amantes
regulares. Mas, Clódia não é adepta de relações convencionais,
estando sempre em busca do prazer supremo e da obscenidade,
quebrando com qualquer expectativa de amor romântico. Vejamos
como se dá tal configuração na narrativa:

Vocês devem estranhar a singularidade da minha


relação com Clódia. Afinal ela era minha amante.
Era sim. É verdade. Eu era o fixo. Mas a alminha de
Clódia era brejeira, velhaca e sensual. Quando
fizemos o trato do amor livre ela explicou: a rotina,
a mesma paisagem das genitálias faz apodrecer a
sensualidade. (HILST, 2002, p.42).

O narrador sente a necessidade de afirmar várias vezes que,


apesar de serem amantes, as atitudes e o desejo de sua parceira pela
volúpia da carne eram maiores. Clódia não suportava a ideia de rotina,
de pertencer a um único homem ou mulher, de ter sempre a mesma

- 51 -
paisagem de genitálias, por isso ambos propõem a ideia de amor livre,
isto é, estariam livres para se relacionar sexualmente com quantas
pessoas quisessem, embora estivessem apaixonados um pelo outro.
Tal atitude dos personagens acaba por ceder combustível para que as
descrições libertinas continuem cheias de novidades, caracterizando
esse relacionamento como uma transgressão aos padrões tradicionais
de afetividade.
Com todo o exposto no decorrer deste estudo, percebemos
que o erotismo transgressor está presente em Clódia, sendo
configurado de forma dialógica, dentro de uma perspectiva
transgressora a qual convencionou-se denominar de erótico-
transgressor. Todo o processo de configuração da narrativa é calcado
na subversão de interditos, representando uma personagem que
subverte padrões que regem a estética da arte, o comportamento
sexual e afetivo, não se intimidando diante de suas vontades e
impulsos carnais. A representação do feminino, aqui, não é
presentificada por uma passividade frívola, mas sim por uma rebeldia
e por um comando que, quando bem percebido, ultrapassa os muros
do interdito.

Considerações finais
Com base no processo analítico desenvolvido no presente
estudo, percebemos que em Clódia o erotismo apresenta-se
instaurado sob o viés da transgressão. Com uma narrativa que

- 52 -
evidencia personagens em situações que afrontam a sociedade
opressora, a prosa de Clódia rompe com determinados padrões
literários, artísticos e morais, principalmente quando alia pornografia
com a dita literatura de elite. Apesar de a narrativa ser conduzida por
uma perspectiva machista, mais especificamente por um narrador que
trata as mulheres com deboche e ironia, entende-se a personagem
Clódia como um símbolo de transgressão, isto é, ela conduz todo o
processo erótico-transgressor da relação.
Ao declarar seu gosto afetivo por mulheres e homens, Clódia
subverte interditos que tentam coibir o uso do corpo e da sexualidade,
subvertendo, também, padrões artísticos, quando retrata, de forma
espontânea e livre, genitálias femininas. Por fim, subverte toda a lógica
monogâmica e tradicional das relações, apresentando o conceito de
amor livre ao seu parceiro. O narrador, por sua vez, subverte os
padrões estéticos da escrita literária ao optar por narrar de forma
desordenada as suas experiências sexuais, emaranhando filosofia e
arte com a “putarias das grossas”, sendo essa desordem,
possivelmente, a maior transgressão no conto de Hilda Hilst.

- 53 -
Referências

ALEXANDRIAN, História da literatura erótica. Lisboa: Livros do Brasil


S.A, 1991.

BATAILLE, Georges. O erotismo. Porto Alegre: L&PM, 1987.

BATAILLE, Georges. O erotismo. Trad. Fernando Scheibe. Belo


Horizonte: Autêntica, 2013.

BRANCO, Lúcia Castello Branco. O que é erotismo. São Paulo: Círculo


do livro, 1983.

CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história


literária. 6ª ed. São Paulo: Ed. Nacional, 1980.

CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA – Hilda HILST: IMS, São Paulo,


n. 8, out.1999.

CADERNO DE CULTURA: NÓDOA NO BRIM. Tangará da Serra, n.23,


julho. 2015.

CORTÁZAR, Julio. Valise de cronópio. 2ªed. São Paulo: Perspectiva,


1993.

DINIZ, CRISTIANO. Fico besta quando me entendem: entrevistas com


Hilda Hilst. 1ªed. São Paulo: Globo, 2013.

DURIGAN, Antônio Jesus. Erotismo e Literatura. São Paulo: Ática, 1986.

FRANCONI, Rodolfo A. Erotismo e poder na ficção brasileira


contemporânea. 1ª ed. São Paulo: Annablume, 1997.

HILST, Hilda. Contos d’Escárnio – textos grotescos. 2ª ed. São Paulo:


Globo, 2002.

______. Do desejo. 4ª ed. São Paulo: Globo, 2004.

- 54 -
______. A obscena senhora D. 1ª ed. São Paulo: Globo, 2001.

______. Pornô chic.1ª ed. São Paulo: Globo, 2014.

MORAES, Eliane Robert. A prosa degenerada. In.: Pornô chic. 1ª ed. São
Paulo: Globo 2014. p. 265-268

PÉCORA, Alcir. Por que ler Hilda Hilst. São Paulo: Globo, 2010.

- 55 -
A possibilidade de amar: o erotismo como
emancipação do corpo feminino em Mia Couto

Kleber Kurowsky4
Yasmim Naif Amin Mahmud Kader5

Introdução
Há algo de íntimo na obra do autor Mia Couto, uma ênfase no
sensório, na relação do corpo com o mundo; mas mais do que isso, um
desejo de representar a relação do próprio indivíduo com seu corpo.
Esse estudo do corpo nunca é neutro, mas sempre dotado de
conotações políticas e sociais, remetendo aos diversos conflitos que
permeiam o país de origem do autor; é uma obra profundamente
engajada. Essa fisicalidade, esse enfoque no corpo, surge tanto nos
versos quanto na prosa do autor, mas é nas narrativas que podemos
observar esse aspecto se desenvolverem em um período maior de
tempo.
Os aspectos mencionados acima - estudo do corpo e temas
politicamente carregados - convergem, em boa parte de sua obra, num
elemento específico: o papel da mulher na sociedade moçambicana.
Há uma entonação quase mística a respeito da feminilidade na obra

4
Mestrando em Estudos Literários pelo Programa de Pós-graduação em Letras da
Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Bolsista CAPES.
5
Mestranda em Estudos Literários pelo Programa de Pós-graduação em Letras da
Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Bolsista CAPES.

- 56 -
do autor, em que as mulheres parecem estar não apenas em outra
esfera social, mas até mesmo em outra dimensão existencial: é como
se pudessem tocar uma parte mais profunda da realidade, a qual os
homens não têm acesso, e, quando tem, apenas de forma superficial.
As mulheres surgem não tanto como um gênero distinto, mas quase
como um ser diferente, os quais os homens contemplam sem
realmente entender; muitas vezes, sem nem tentar entender.
Para realizar esse estudo sobre as sensações do corpo humano,
a obra de Mia Couto se vale muito do erotismo, do estado de desejo e
comunhão entre dois corpos. Mas, muito mais do que simples
consumação de desejo, todo o desenvolvimento do ritual erótico
parece funcionar, de certa forma, como um processo de exploração:
em Terra sonâmbula, por exemplo, o ato sexual surge como um
momento de descoberta, do próprio corpo e do corpo de outrem, é
um instante de mergulho na percepção alheia.
O eixo de todo o erotismo é sempre o corpo da mulher, apesar
de todo o conjunto sensorial masculino também estar presente.
Podemos observar isso no seguinte exemplo:

Assim, de face em riste, ela me surgia


exclusivamente única, triste como a pétala depois
da flor. Meu peito se encheu. Eu sei que em cada
mulher a gente lembra outra, a que nem há. Mas
Carolinda me entregava essa doce mentira, o
impossível cálculo do amor: dois seres, um e um,
somando o infinito. Se aproximou e me acariciou os
braços, ali onde as cordas me doeram. A cintura de

- 57 -
suas mãos me afagavam, em suave
arrependimento. Aquele momento confirmava: o
melhor da vida é o que não há de vir. (COUTO,
2015b, p. 148).

Observa-se que o ato sexual, embalado pelo erotismo, surge


como momento de aprendizagem: da mulher ensinando algo ao
homem. É um momento de revelação, não apensas dos prazeres
físicos, mas de todo uma nova forma de contemplar a vida e o corpo.
Isso está sempre relacionado ao ambiente social da mulher, ao seu
contexto econômico e político.
Muitos são os romances do autor que lidam de forma direta
com a posição social da mulher; podemos citar A confissão da leoa e O
outro pé da sereia como sendo emblemáticos desse tipo de discussão.
O primeiro, por exemplo, nos coloca em um contexto no qual a figura
feminina é vista como um animal, inferior e marginalizada, vítima da
cultura local em que vive. Mas é também nesse contexto que a mulher
se descobre e se emancipa, descobrindo que, em um mundo de
homens, há também um mundo de mulheres que sonham.

Numa terra em que a maioria é analfabeta, causa


estranheza que seja exatamente uma mulher que
domine a escrita. A minha escola, de facto, nasceu
antes: aprendi a ler foi com os animais. As
primeiras histórias que escutei falavam de bichos
selvagens. Fábulas me ensinaram, a vida inteira, a
distinguir o certo do errado, a destrinçar o bem do
mal. Numa palavra, foram os animais que
começaram a fazer-me humana. [...] Num mundo

- 58 -
de homens e caçadores, a palavra foi minha
primeira arma. (COUTO, 2012, p. 88-89).

Entretanto, nos concentraremos aqui sobre os romances Antes


de nascer o mundo e Mulheres de cinza; essas escolhas são motivadas
pela seguinte justaposição discursiva: em ambos os romances temos
dois narradores, um homem e uma mulher, mas a forma com a qual
as narrações são apresentadas difere; em Antes de nascer o mundo,
temos uma narrador masculino, Mwanito, que vai apresentado ao
leitor suas considerações sobre Jerusalém, o pequeno pedaço de terra
em que ele e sua família se retiram após a morte de sua mãe;
entretanto, também temos uma narradora feminina, Marta, a qual
aparece em Jerusalém na segunda parte do romance, mas a narração
dela é toda apresentada através de cartas. Mwanito remete sua
narração diretamente ao leitor, já Marta o faz de forma indireta,
através de cartas que são lidas pelos personagens. Em Mulheres de
cinza, por outro lado, encontramos o caminho inverso: temos uma
mulher narradora, Imani, que conta os detalhes de uma guerra
ocorrida num vilarejo moçambicano, no final do século XIX, entre
portugueses e as tropas de um imperador local, que ameaçava o
domínio colonial; temos também um narrador homem, o sargento
Germano de Melo, o qual apresenta suas opiniões pela forma de
cartas, endereçadas a um conselheiro português. Dessa forma, o
romance apresenta os dois lados do conflito, mas também segue o
caminho contrário de Antes de nascer o mundo: em um dos romances

- 59 -
tem um narrador que se comunica diretamente ao leitor e também
uma narradora que se expressa por cartas; no outro, temos um
narrador que relata seu cotidiano através de cartas e também uma
narradora que dialoga diretamente com o leitor.
A partir disso, toda a questão erótica pode ser contemplada de
dois pontos de vista distintos: uma perspectiva feminina e outra
masculina, apresentadas em planos discursivos distintos em cada um
dos romances. O foco do trabalho, portanto, será em verificar de que
maneira isso ocorre e qual é o papel da função erótica dentro de Antes
de nascer o mundo e Mulheres de cinza.

Representações da mulher na literatura


Durante muito tempo, a representação da mulher foi dada à
luz das experiências masculinas. Diferente do homem, sempre
apresentado como o neutro, segundo Simone de Beauvoir (1970), a
mulher era apresentada como o outro; e não apenas no campo da
literatura: outras áreas transformaram a figura feminina em
estereótipos ligados ao desejo do homem. No cinema, por exemplo,
estereótipos famosos surgiram nas telas desde a década de 90 e
continuam a ser usados na atualidade. Os estereótipos dessas
representações variam como se respondessem às necessidades
masculinas.
Sobre influência disso, na Literatura, as mulheres aparecem
“não como elas são, certamente não como elas se definiriam, mas

- 60 -
convenientes as resoluções dos dilemas masculinos” (WOLFF, 1972, p.
206). Segundo a autora, a maioria das principais obras literárias
retratam duas mulheres à luz da atenção de um homem. Em Amor de
Perdição, do autor português Camilo Castelo Branco, temos duas
figuras femininas que sofrem pelo amor de um homem, de modo que
não encontram outra razão a não ser tal sentimento. Muitas outras
obras literárias escritas por homens ao longo do século colocaram a
mulher em tal situação, nas margens de personagens masculinos,
esquecendo que, como o homem, elas também têm objetivos que não
estejam ligados apenas aos quais eram ditos tradicionais pela
sociedade. Sobre isso, Brandão (2006), comenta que a “mulher dentro
de um centro de feminilidade, petrifica-a, enquanto objeto de desejo
do narrador” (2006, p. 32). A mulher representada na literatura

muitas vezes acaba por se tornar um estereotipo


que circula a verdade feminina. Presa em
representações viris, a mulher pode se alienar
nelas, conformando-se em ajustar-se a esses
estereótipos, pois a ideologia das representações
confunde significante com significado e busca
estabelecer uma continuidade do signo com a
realidade. (BRANDÃO, 2006, p. 33)

Esses estereótipos na representação da mulher, para Wolff


(1976), são perigosos: porque a natureza frequentemente imita a arte.
Se a sociedade santificar ou cultuar tais imagens, “o estereótipo
podem se tornar, por uma espécie de obstinação, a imagem de uma
realidade que até mesmo as mulheres podem seguir para perpetuar”

- 61 -
(WOLFF, 1976, p. 207). São, porém, perspectivas fechadas e acabadas
que não representam a mulher, mas a transformam em um objeto do
desejo masculino. Relacionado a isso, Brandão (2006), na obra Mulher
ao Pé da Letra: a Personagem Feminina na Literatura, diz que a
mulher, para ser representada,

é necessário sempre mais e mais palavras para se


dizer sobre ela que nunca se diz toda. Muda de
posição no discurso, é percebida de diversas
maneiras, encarna o pretendido enigma de uma
feminilidade que se pode representar falicamente,
mas que se mostra com adornos fálicos, estes,
entretanto, são o brilho do que ela não é. (AUTOR,
2006, p. 29)

A mulher não é um ser acabado, mas mutável, e sua


representação, tanto na literatura como em outras áreas, precisa ser
pensada de tal forma. No entanto, é importante ressaltar que nem
toda literatura escrita por homens seja problemática quanto a
representação da mulher. A questão é saber como não cair nos
estereótipos frequentes que assolam não apenas o campo literário,
mas qualquer outra mídia. Mia Couto, e em ambos os romances a ser
analisados, representa a figura feminina, primeiramente, coloca
mulheres ancoradas em figuras masculinas, mulheres incompletas e
que buscam sua identidade. No entanto, não é no outro que elas
encontram a plenitude: é nelas mesmas. São personagens que se
descobrem e se manifestam no desejo de enfrentar àqueles que as
silenciam.

- 62 -
Com o passar dos séculos e o avanço nos estudos feministas,
tais representações passaram a serem arduamente discutidas no
campo literário. Problemáticas foram levantadas contra a
discriminação feminina numa tentativa de colocar a mulher como um
sujeito público, independente e capaz de viver longe das sombras do
homem. Enfim, graças às conquistas feministas, a mulher adquiria
espaço no meio social na realidade, e não era mais ofuscada por uma
imagem submissa e recatada, o que levou a literatura se adequar a tal
mudança. Se no passado tínhamos personagens femininas apenas com
o intuito de morrer por amor ou viver apenas na companhia de uma
figura maior – um homem –, agora a mulher é representada como um
indivíduo. É importante ressaltar que esse desejo por representações
femininas verossímeis não acontece apenas hoje. Anne Brontë, assim
como suas irmãs, em meados do século XIX, descrevia mulheres que
contestavam as normas de sua sociedade. O mesmo vale para a
literatura contemporânea: embora muito se discuta sobre
representatividade nas obras, ainda é possível identificar a forte
herança da sociedade patriarcal, a qual insiste em construir a imagem
de uma mulher em que o único pretexto para existir é o amor e/ou
dependência em relação à figura masculina.

Os fundamentos do erotismo
Georges Bataille (1987), na obra O erotismo, defende que o
ritual erótico se sustenta sobre alguns elementos ideológicos

- 63 -
principais, dentre os quais se destacam o interdito e a transgressão.
Segundo o autor, o processo sexual é diferente de outros animais, pois
só os “homens fizeram de sua atividade sexual uma atividade erótica,
e o que diferencia o erotismo da atividade sexual simples é uma
procura psicológica independente do fim natural encontrado na
reprodução e na preocupação das crianças” (BATAILLE, 1987, p. 10). O
desejo sexual humano, portanto, não é puramente instintivo, mas
entrecortado por todo o tipo de fator ideológico e social. Além de uma
compensação física, o indivíduo busca uma compensação psicológica,
e é aí que surge o erotismo: essa busca pela concretização de impulsos
muito mais complexos do que aqueles puramente físicos.
É aqui que se manifesta o que o autor chama de “interdito”.
Para Bataille (1987), os seres humanos são, em última instância,
descontínuos, no sentido de que há algo que nos separa uns dos
outros, dum ponto de vista psicológico e existencial; vivemos num
constante estado solidão, o que é motivado, justamente, por essa
descontinuidade. Como resultado disso, a humanidade estaria sempre
buscando retomar algo que reinstaurasse a continuidade perdida,
afinal “temos a nostalgia da continuidade perdida” (BATAILLE, 1987, p.
12); o erotismo seria uma forma de fazer isso acontecer, pois

Toda a concretização do erotismo tem por fim


atingir o mais íntimo do ser, no ponto em que o
coração nos falta. A passagem do estado normal ao
de desejo erótico supõe em nós a dissolução

- 64 -
relativa do ser constituído na ordem descontínua.
(BATAILLE, 1987, p. 14).

O ato erótico, portanto, é uma tentativa de retomada da


unidade, um desejo de estabelecer continuidade, quase uma tentativa
de ordenar o caos da solidão humana. O autor também defende que o
erotismo é algo subjetivo e que alterna de indivíduo para indivíduo; o
erotismo como experiência interna.
Entretanto, o erotismo só pode existir a partir de dois
elementos: o interdito e a transgressão. O interdito seria uma restrição
criada pela sociedade, com o objetivo de regular os impulsos humanos
e estabelecer algum tipo de ordem. Através dos interditos, a
humanidade acabou “passando da sexualidade livre à sexualidade
envergonhada de onde nasceu o erotismo” (BATAILLE, 1987, p. 21). O
desejo erótico, portanto, precisa de algum tipo de restrição para
nascer, as quais são impostas pelo contexto em que vive.
A partir disso, surge o que o autor chama de “transgressão”,
que seria uma tentativa de romper com os interditos e concretizar o
princípio erótico. Essa transgressão também vem acompanhada pela
ideia de pecado, de estar ferindo algum princípio, seja ético ou
religioso. As ideias de interdito e transgressão não se anulam, mas se
complementam, pois uma depende da outra para existir.
Luciana Borges (2013), na obra O erotismo como ruptura na
ficção brasileira de autoria feminina, dá continuidade a muitos dos
postulados de Georges Bataille, mas a aproxima mais do contexto

- 65 -
feminino. Ela também defende o erotismo como mecanismo
subjetivo, mas enfatiza a maneira com a qual o erótico é atravessado
por influências contextuais, pois

as subjetividades carregam capacidades políticas.


[…] o sujeito está em contínua relação com um
dentro e um fora, com um mundo interior, o
próprio, e um mundo externo, o alheio: esta
relação altera as suas configurações
pretensamente […] “individuais” ou particulares, e
contribui para que o indivíduo encene a si mesmo
e a seu corpo como uma ontologia do ser. Se o
pessoal é político, não existe esfera da
pessoalidade que não esteja, ao final, articulada
com as contingências e inteligibilidades
estabelecidas socialmente. A vida erótica, como
sendo uma das esferas consideradas mais privadas
no mundo humano, não está isenta dessas
relações. (BORGES, 2013, p. 101).

Isso é vital ao estudar o erotismo, em específico aquele


relacionado a mulher, visto que essa, historicamente falando, é a que
mais sofreu com as barreiras e abusos da sociedade. A autora também
argumenta que a indústria pornográfica se vale de muitos dos
preceitos do erotismo para criar algo vulgar a partir do que o público
masculino veria como excitante. Segundo a autora, isso ocorre ao
estudar a questão erótica a partir do ponto de vista masculino, sendo
necessário reverter essa perspectiva para que as complexidades do
erotismo não se percam. A autora defende um estudo mais próximo
da constituição do corpo humano como objeto do desejo erótico,

- 66 -
argumentando que “o corpo não apenas vive, mas, se vive, é parte da
experiência do ser e de ser” (BORGES, 2013, p. 169). A autora aponta
o pensamento cartesiano como um dos responsáveis por separar a
pessoa de seu próprio corpo, o qual passa a ser algo que se tem, não
algo que se é, quando na verdade o indivíduo é um corpo, não pode
ser estudado separado deste. Novamente, o erotismo vem
acompanhado por uma ideia de rompimento da descontinuidade, algo
que visa a unidade. Ao realizar esse deslocamento, concentrar o
estudo do erótico sobre os pormenores do corpo, em específico do
corpo feminino, uma visão mais ampla do erotismo é possibilitada e,
consequentemente, da sociedade.
Octavio Paz (2014), na obra O arco e a lira, defende que a
revelação amorosa em muito se aproxima da revelação poética; o
autor, portanto, traça um paralelo entre a arte – especificamente a
literatura – e o amor. Segundo o autor, a literatura teria a capacidade
de abalar os alicerces do indivíduo, arremessa-lo em direção a outra
margem, em direção ao outro. A literatura seria o momento da união
de opostos, da formação de uma unidade dentro do ser humano, o
qual é dividido por natureza. Isso faz com que a literatura seja solo
fértil para representações do amor e do erotismo, pois estes também
têm o intuito de estabelecer continuidade. Como o próprio autor
explica: “A experiência amorosa nos dá de maneira fulgurante a
possibilidade de entrever, ainda por um instante, a indissolúvel
unidade dos contrários Essa unidade é o ser” (PAZ, 2014, p. 158).

- 67 -
A partir dos autores mencionados, podemos notar uma
constante no que se refere ao erotismo e sua relação com a literatura:
o erotismo como busca de uma unidade, de uma solução para a
profunda cisão que o ser humano possui consigo mesmo e com outros.

As percepções de si: as mulheres e seus corpos


Embora o contexto de Mulheres de Cinza seja o da guerra que
assola Moçambique no final do século XIX, um dos temas mais
recorrentes na obra é a questão de como as mulheres resistem à uma
batalha não apenas com armas e soldados, mas como também
sobrevivem a guerra que é ser mulher em um mundo cercado por
tradições patriarcais. Para as mulheres – não apenas da obra, mas,
também, de todo o contexto que esta se insere –, na guerra, “[passam]
a ser violadas por quem não [conhecem]” (2015, p. 107). É a
personagem Imani, uma africana de quinze anos, que narra sua
sobrevivência em meio à guerra, em meio aos homens. A sensibilidade
de suas palavras, as incertezas que as formam, nos são apresentadas
no primeiro capítulo da narrativa.
Imani se diz ser uma “[...] mulher sem nome. Um nome sem
pessoa” (p. 19, 2015), perdida na própria busca por sua identidade
como mulher, a um destino seco, vazio “como seu ventre” (p. 19,
2015). Diz ela o significado de seu nome é quem é?, como se ela fosse
uma “sombra sem corpo, a eterna espera de uma resposta” (p. 15,
2015). Essa constante afirmação de ser um corpo sem alma, uma

- 68 -
mulher oca, é recorrente ao longo da narrativa como se a personagem,
perdida em meio à guerra, tivesse dificuldade para perceber o próprio
corpo, a própria força, o que, de fato, é ser mulher. Mas não porque
lhe falta conhecimento, Imani é uma das poucas de seu povo que fala
um português impecável como se fosse sua primeira língua, mas, sim,
porque as condições de sua existência são afogadas nas tradições de
seu povo. Essa realidade, talvez, seja um dos motivos que impedem a
personagem de conhecer a si mesma. A mãe, por exemplo, carrega
uma imagem sofrida que faz Imani questionar o mundo, as concepções
que tem dele.
A personagem constantemente questiona sobre se tornar
mulher, mas essa realização, no que defende Imani, talvez só possa ser
feita com amor; e, para exemplificar, há uma passagem em que ela,
logo após ser protegida pelo pai de um assédio de soldados português,
divaga a possibilidade de ser raptada:

E me levassem para onde um rei me escolhesse


como esposa. Por fim, seria mulher. Enfim, seria
mãe. [...] Talvez esse soberano que todos temiam,
ao erguer tão imenso império, não fosse senão um
solitário sofredor. Quem sabe fosse o amor o único
império que Ngungunyane buscava? Ou talvez, em
todos estes anos de guerra, tivesse sido outro o seu
propósito: encontrar uma mulher como eu, capaz
de infinita paixão. (p. 47, 2015).

O que Imani tem é paixão; e busca, através dela, um modo de


encontrar a mulher perdida em seu interior, um modo de conhecer

- 69 -
seu corpo e sua alma. Esse conhecimento de si mesma parece se
intensificar quando, na narrativa, a moça se encontra com um
sargento português, Germano, que vai a sua aldeia apenas com o
intuito de escrever relato a seus superiores sobre a população
moçambicana local. É Imani quem, por ter um português impecável,
se torna tradutora do oficial. Nesse ingênuo encontro, a relação de
ambos começa a se formar sutilmente: Imani se sente tanto
envergonhada e culpada pelo modo que o homem a aborda. É no
primeiro encontro que a personagem, através dos olhos do outro,
começa a se descobrir e conhecer o mundo que existe em seu copo:

Fosse como fosse, a verdade é que aquele


compasso viril me arrancava do mundo e, embora
a dança fosse executada por homens, no meu
recatado lugar eu mantinha todo o corpo em
movimento. E era como se uma outra pessoa
dançasse dentro de mim. Talvez essa pessoa fosse
“a Viva”, talvez fosse “Cinza”, talvez fossem todas
aquelas que em mim viveram. Naquele momento
eu ficava isenta de ter corpo, desobrigada de ter
memória. Eu era feliz. (COUTO, 2012, p. 90).

Apesar do autoconhecimento que a personagem desenvolve


na progressão do relacionamento com o sargento Germano, existe
ainda as barreiras que impossibilitam um desenvolvimento maior
entre ambos: o contexto social. Imani é negra, africana; Germano é
branco e português. E em muitas passagens essa distância se coloca
como um empecilho na descoberta da personagem. Há uma passagem

- 70 -
que, tão encantado pelos dotes da moça com a língua portuguesa, que
o sargento a confunde com uma mulher branca. Em outra situação,
num sutil pedido dela para tocar os cabelos dele, diferentes do seus,
Germano interpreta a partir de suas concepções e vê naquele
simplório uma perspectiva diferente. A princípio, Imani se assusta,
permanece atônita, mas a cena termina de um modo que, no toque do
outro, ela percebe o quanto precisa aprender sobre si mesma e,
consequentemente, a viver.

O que ele fez foi levantar os braços e encher a


concha das mãos com meus seios. [...] E o
português persistiu nos seus corporais intentos.
Quis resistir, morder-lhe o braço, atacá-lo com toda
a fúria. Mas deixei-me ficar, parada, na educada
submissão de mulher. Naquele momento,
confesso, um estranho torpor me entonteceu: pela
primeira vez senti o meu coração batendo em
outro corpo. [...] Na nossa terra é o volume dos
seios que faz as meninas tornarem-se mulheres.
Essa dupla curva anuncia quando podemos gerar
uma outra vida. Os meus seios, naquele momento,
apenas sugeriam o quanto me faltava para viver.
(COUTO, 2015, p. 194)

Essa perspectiva do corpo de mulher também é presente em


Antes de nascer o mundo. Diferente de Mulheres de Cinza, em que
temos a voz de Imani, uma mulher negra, narrando e as cartas de
Germano, um homem branco; nesse temos a voz de uma figura
masculina negra e as cartas de uma mulher branca. Apesar de menos
escancarado, o contexto de Antes de Nascer o Mundo é semelhante ao

- 71 -
de Mulheres de Cinza: o de mulheres que são silenciadas pelas
tradições locais e pelo mundo dos homens. A inserção da voz feminina
se dá apenas na segunda parte do livro, mas por meio de cartas de
uma personagem chamada Marta. Diferente do primeiro livro
analisado, a mulher de Antes de Nascer o Mundo conhece o corpo que
tem, mas não encontra nele a satisfação por ser branca, por não ser
“inteira”, por ser alma e corpo separadamente, enquanto as mulheres
negras “moram em cada porção do corpo. Todo o seu corpo é mulher,
todo o seu tempo é feminino” (COUTO, 2009, p. 135). Marta se
enxerga como uma mulher fragmentada – e pode dizer que a inserção
dela no texto se dá dessa forma.
Em seu diário, a personagem destina todas suas palavras a
Marcelo e não um leitor qualquer; e, nelas, confessa que esse amor
“[a] levou ao mais penoso dos exílios: esse amor afastou-[a] da
possibilidade de amar” (COUTO, 2009, p. 131-132). Exausta, Marta
anseia pela possibilidade de nascer de novo. Esse sentimento, porém,
soa ambíguo: porque ao mesmo tempo que sente essa necessidade da
figura masculina, percebe que é somente na ausência desta que se
apodera de si mesma. Por ser uma mulher, a personagem tem
conhecimento de sua condição, do silêncio imposto, então busca na
escrita um modo de se expressar e encontrar. Ela “[está] fundando as
palavras. [Ela] que as estreio, criadora do [seu] próprio idioma”
(COUTO, 2009, p. 134).

- 72 -
O diário de Marta serve como um remédio par que, silenciada,
ela possa escrever seus anseios e tratar suas feridas; e é pelas escritas
dela, a mulher que representa em suas palavras, que a figura
masculina do livro, Mwanito, descobre o mundo desses seres que em
toda sua infância em Jerusalém idealizou. Ambos se identificam – ela
escreve anseios, ele afina silêncios –, mas o personagem vê nela,
diferente de seu irmão, a mãe que perdera.
Nessa perspectiva, é possível observar que ambas as presenças
femininas, Marta e Imani, representam mulheres que, atormentadas
por tradições e traições, buscam uma identidade própria, a voz
silenciada. Elas se encontram nelas mesmas, e não no outro, passam a
amar o próprio corpo na liberdade que o mundo esconde nas sombras
dos homens. A questão do erotismo, contudo, nos parece mais
presente em Antes de nascer o mundo. Enquanto Mulheres de Cinza
nos remete à uma questão social, embora ligada ao questionamento
do que é ser uma mulher em um mundo de homens, o primeiro livro
relata, do ponto de vista feminino, como o ato sexual lhe transforma
e transforma, consequentemente, o outro: o ser masculino nasce nela
e se descobre:

E quando nos beijávamos e eu perdia a respiração


e, entre suspiros, perguntava: em que dia
nasceste? E me respondias, voz trêmula: estou
nascendo agora. E tua mão ascendia por entre o
vão das minhas pernas e eu voltava a perguntar:
onde nasceste? E tu, quase sem voz, respondias:
estou nascendo em ti, meu amor. [...] Só nua eu

- 73 -
podia te ler. Porque te recebia não em meus olhos,
mas com todo o meu corpo, linha por linha, poro
por poro. (COUTO, 2009, p. 136).

No ato erótico, descrito nas palavras da mulher, o homem se


desconstrói e sua essência se torna cinza. É preciso que nasça de novo
– e é só no encontro com a entidade feminina que ele se torna, então,
pleno, vivo e inteiro: ele, um poeta; ela, poesia. Bataille (1987) ressalta
essa busca pela outra parte, o que ele chama de continuidade, é uma
tentativa do homem, diferente do ser animal, de encontrar o elemento
que perdera e que o faz se sentir incompleto. Marcelo, para quem a
personagem se direciona em seu diário
Embora Marcelo, a figura masculina para a qual a personagem
escreve, tenha, partido e, posteriormente, nascido em outra, Marta
tem um importante papel no que concerne à descoberta de Mwanito,
o protagonista do romance, e dos demais personagens. Sua voz,
apesar de ser vista apenas por palavras escritas, é o caminho desses
homens, de suas continuidades.

O corpo feminino pelo prisma masculino


Em Antes de nascer o mundo, o narrador masculino a que
somos apresentados, Mwanito, é apenas uma criança durante a maior
parte da narrativa. Ele não conhece o mundo para além do pequeno
pedaço de terra que é Jerusalém; diferente de seu irmão, ele não tem
recordações de onde viviam antes. Isso faz com que boa parte dos

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acontecimentos vividos pelo personagem tenham um tom de
descoberta, de novidade; o mesmo se aplica ao seu primeiro encontro
com uma mulher: a presença feminina é inusitada, ele a vê quase
como algo de outro mundo, de outro plano da realidade.

Foi então que sucedeu a aparição. Surgida do nada,


emergiu a mulher. Uma fenda se abriu a meus pés
e um rio de fumo me neblinou. A visão da criatura
fez com que, de repente, o mundo transbordasse
das fronteiras que eu tão bem conhecia. (COUTO,
2016, p. 123, grifo nosso).

A figura feminina, para ele, surge como rompimento de suas


percepções de mundo. A primeira aparição de uma mulher no
romance se manifesta, portanto, como uma ruptura, uma espécie de
desestruturação dos ideais anteriores da realidade. A consequência
última desse encontro surge na frase: “Inesperadamente, já não sabia
viver, a Vida se havia convertido numa desconhecida língua” (COUTO,
2016, p. 124). O mundo que o personagem conhecia era um, o mundo
que tem que dividir com uma mulher é outro. A partir de seu primeiro
contato com uma mulher, o personagem passa a entrever um novo
universo, o qual, pouco a pouco, ele passa a conhecer; são as mulheres
que ensinam ao personagem as verdadeiras dimensões da realidade.
Marta, a primeira mulher com quem Mwanito tem contato,
entretanto, não é alvo de desejos eróticos, vendo-a, muito mais como
uma presença materna. É só ao sair de Jerusalém – e deixar sua
infância para trás – e conhecer Noci, que o personagem passa a

- 75 -
carregar fantasias sexuais. Inventando desculpas para tê-la por perto,
o personagem alimenta desejos, os quais, eventualmente, se
concretizam.

À medida que meus delírios nocturnos reclamavam


por Noci, mais verdadeira se tornava sua presença.
Até que uma noite pude jurar que era ela, em carne
e osso, que entrava, furtiva, no meu quarto. O seu
vulto se esgueirou lençóis adentro e, nos instantes
seguintes, naufraguei na intermitente fronteira dos
nossos corpos. (COUTO, 2016, pp. 257 – 258).

Instaura-se a imagem do erotismo como rompimento de


fronteiras, como quebra da descontinuidade. Essa é uma imagem
recorrente nos dois romances estudados nesse trabalho: o ato erótico
como desconstrução de fronteiras, ato último da união de corpos.
Podemos observar aqui um reflexo das ideias de Bataille (1987): o
erotismo como tentativa de continuidade, de retomar esse elemento
que o ser humano – marcado pela descontinuidade – perdeu e se
sente solto no mundo. É interessante observar, entretanto, que essa
busca pela continuidade parte, principalmente, do homem; é como se
ele visse na mulher uma tentativa de concretização de uma parte de si
que está ausente. Também podemos explorar isso a partir dos
postulados de Paz (2014), o qual propõe que a revelação amorosa,
dentro da qual está o erotismo, funciona como uma forma de união ao
outro: “No encontro amoroso, na imagem poética e na teofania se
conjugam sede e satisfação: somos simultaneamente fruto e boca, em

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unidade indivisível” (PAZ, 2014, p. 143). Fruto e boca, o que consome
e o que é consumido, tudo alojado na união dos corpos, que se
revelam ao outro e a si. Entretanto, em Antes de nascer o mundo, o
desejo de estabelecer a revelação amorosa, erótica, parte muito mais
do homem: é como se ele tentasse desvendar um segredo que a
mulher esconde, ou que ele acha que ela esconde.

O corpo da mulher, pelo ponto de vista masculino,


também surge como algo que faz dissolver a
própria paisagem, como se observa na seguinte
passagem: “A toalha dela tombou aos meus pés. E,
de novo, como pela primeira vez em Jerusalém, a
presença de uma mulher fez dissolver o chão.
Nesse abismo, nos lançámos, eu e ela” (COUTO,
2016, pp. 260 – 261, grifo nosso).

Podemos estudar isso, tendo em vista a argumentação de


Bataille (1987), como sendo reflexo das transgressões realizadas pelos
personagens: Noci, além de ser uma mulher mais velha, é também
namorada do tio de Mwanito; é a partir do rompimento desses
interditos, da atmosfera de pecado, que o erotismo se manifesta. No
momento em que a transgressão é realizada, os próprios alicerces do
mundo são abalados e a paisagem se confunde, se desestabiliza, pois
“O ser amado para o amante é a transparência do mundo. […] É o ser
pleno, ilimitado, que não limita mais a descontinuidade pessoal. É, em
síntese, a continuidade do ser percebida como uma libertação a partir
do ser do amante” (BATAILLE, 1987, p. 16).

- 77 -
A ideia de que a mulher é vértice de ensinamentos a respeito
do mundo e de si volta a aparecer quando Noci explica para Mwanito
que: “Foi tua mãe, foi ela quem te ensinou a amar. Dordalma esteve
sempre aqui” (COUTO, 2016, p. 261, grifo do autor). Isso é carregado
de significado, pois a mãe do personagem, Dordalma, vem a falecer
quando ele é ainda muito novo para se lembrar dela, mesmo assim, é
ela quem o ensinou amar; mais especificamente, foi a ausência de sua
mãe, a visão das mulheres como seres distantes e dotados de
segredos, que funcionou como motor de propulsão aos ensejos
amorosos e eróticos do personagem.
Em Mulheres de cinza, vemos a repetição de muitas dessas
ideias, mas, neste romance, a relação entre homem e mulher, as
dimensões eróticas da narrativa, vêm acompanhadas por uma carga
política ainda mais forte. Isso ocorre porque o narrador é um homem,
português, branco, enquanto que a narradora é uma mulher negra e
moçambicana. A relação entre os dois, portanto, é totalmente
marcada por essas distâncias. Uma das primeiras constatações que o
sargento Germano de Melo faz a respeito de Imani, inclusive, é de
surpresa por, apesar de ser negra, ser também bonita. Esse
distanciamento permanece presente durante todo o romance, mas vai
diminuindo conforme a narrativa avança e a relação entre os dois
narradores se desenvolvem, embora nunca chegue a desaparecer por
completo. Ele, entretanto, conforme passa a viver em África, começa

- 78 -
a se sentir afetado pela cultura local, especialmente pela presença de
Imani.

Essa criatura chama-se África. Nenhuma parede,


nenhuma fortaleza poderia deter essa criatura. E ali
estava ela entrando pelas frestas, na forma de
música de marimbas e vozes e choros de crianças.
Ali estava transformada em raízes que cresciam
entre as rachas dos tijolos. Ali estava ela residindo
nos meus sonhos, invadindo a minha vida na forma
de mulher. Imani. (COUTO, 2015, p. 237).

Imani, aos olhos do sargento, passa a ser a personificação da


cultura africana, tanto daquilo que vê com bons olhos quanto daquilo
que contempla com receio. África se torna alvo de desejo, assim como
Imani. Entretanto, as oposições éticas e culturais entre os dois estão
sempre presentes, realçando os interditos. Luciana Borges (2013)
defende que a influência do contexto é vital para o estudo do
erotismo, pois mesmo a esfera mais pessoal e íntima da vida humana
é atravessada pelo político: “o desejo também não é apenas instintivo,
mas é parte de agenciamentos que o condicionam e colonizam”
(BORGES, 2013, p. 174). Em Mulheres de cinzas isso é demarcado pela
relação colonizador – colonizado, que define o erotismo na obra,
especialmente no que concerne ao distanciamento entre os dois
personagens.
É importante observar que, diferente de Antes de nascer o
mundo, a dimensão erótica do texto não chega a assumir a forma de
ato sexual; ela permanece como sendo desejo, portanto. Isso é

- 79 -
bastante simbólico, na narrativa em questão, pois enfatiza a oposição
existente entre Portugal e África. Mas, por parte do narrador, isso é
também motivo de dor:

Esta semana, magoada por lhe ter mentido, Imani


virou-se contra mim e humilhou-me de forma
requintada. […] quando Imani me maltratou, senti
que estava sendo crucificado no soalho da casa. Na
fúria entendi o quanto ela era a única razão que me
prendia a vida. Agora, que perdia a possibilidade de
a conquistar, o que mais me resta neste mundo?
(COUTO, 2015, p. 208).

O personagem lamenta a falta de Imani, o fato de que parece


ser incapaz de conquista-la. Pensando nisso pelo viés de Bataille
(1987), podemos constatar que o que o personagem lamenta é a
descontinuidade interna que ele não consegue romper, e para a qual
ele vê uma solução em Imani. Novamente, a mulher surge, através dos
olhos masculinos, como uma maneira de atingir completude; a pele
feminina como detentora dos segredos para atingir a plenitude
existencial. Entretanto, o ato sexual não acontece, o erotismo não
chega às vias de fato. Ora, se, como Paz (2014) argumenta, a revelação
amorosa, impulsionada pelo erotismo, é o ato de comunhão de
corpos, da formação de uma unidade, então, aqui, esses corpos estão
condenados a uma eterna distância, impulsionados pelo desejo que os
joga um ao outro, mas torturados pela impossibilidade do toque.
A predominância do interdito, das oposições sociais que
distanciam os dois personagens, bem como a dificuldade de realizar a

- 80 -
transgressão, resultam numa profunda melancolia por parte do
narrador, o qual declara que: “Sou um vencido. Fui derrotado numa
batalha que nunca houve” (COUTO, 2015, p. 209).
A descontinuidade que o personagem sente é motivada não
apenas pela oposição política entre os dois personagens, mas também
pela diferença de gênero: ele a deseja, mas não parece estar disposto
a realmente entender as desigualdades enfrentadas pelas mulheres,
nem sequer parece pensar muito a respeito; o desentendimento entre
os dois fica ainda mais claro quando Imani pede para tocar o cabelo de
Germano e ele vê isso como uma aproximação sexual; nesse instante,
não a vê como indivíduo, apenas como objeto de desejo. Como Borges
(2013) argumenta, a possibilidade do erótico acaba sendo restrita pela
ênfase no masculino; por não entender a ela, ele não entende a si,
conservando-se em descontinuidade.
A principal diferença entre Antes de nascer o mundo e
Mulheres de cinza, no que se refere à perspectiva masculina, se
encontra no fato de que no primeiro o personagem acaba por alcançar
alguma continuidade, atinge certo nível de comunhão com o corpo
feminino através do erotismo. Os ensejos eróticos, portanto, se
concretizam, e através dele o narrador atinge um maior nível de
compreensão de si e da realidade que o cerca. Digno de nota,
entretanto, que em Antes de nascer o mundo a personagem que se
torna amante de Mwanito é africana, assim como ele próprio. O
mesmo não é válido para Mulheres de cinza, em que a diferença

- 81 -
cultural estabelece um nível de interdito muito mais elevado. Neste, o
erotismo surge apenas como desejo, fantasia do corpo da mulher
africana, mas que não chega a se realizar em ato sexual. A
continuidade é almejada, mas jamais conquistada.

Considerações Finais
A intimidade da mulher moçambicana; conhecimento de si, das
fronteiras de seu corpo e onde essas fronteiras se chocam contra o
outro, contra o corpo masculino: é isso que o erotismo viabiliza. Muito
mais do que exame do ato sexual, o erotismo, nos romances
estudados, funciona como instrumento de estudo do mundo e do
papel da mulher nesse mundo.
Tendo em vista que o erotismo é um conceito – e um exercício
– politicamente carregado, Mia Couto propõe uma análise social a
partir de uma das manifestações mais íntimas do emocional humano:
o desejo sexual. O contexto que o autor se insere, embora
apresentados de modo mais tênue em um dos livros e mais intenso no
outro, sempre coloca a questão da mulher oprimida pelas tradições e
pela sociedade em que está inserida. Em Mulheres de Cinza, a
personagem nos é representada como uma entidade que, mesmo
desejando ser ouvida e vista como mulher, é incapaz de ir contra as
regras impostas. Contudo, o fato não faz de Imani uma personagem
que se entrega. Ela busca a si e o outro em olhares e gestos. Marta,
por outro lado, apesar de não ser africana, representa também uma

- 82 -
mulher silenciada, sem voz, uma vez que habita um mundo diferente
do seu. Apesar de oprimida por esse meio que lhe é hostil, a
personagem encontra refúgio na escrita e, entre palavras e confissões,
faz sua voz ser ouvida.
Utilizando dois narradores em cada obra, um homem e uma
mulher, o autor possibilita formas distintas de ver e pensar o mundo;
é justamente aqui que nossa análise encontrou o maior ponto de
contraste: o homem e a mulher parecem se encontrar em planos
opostos quanto à consciência do corpo de si e do outro. Tanto em
Antes de nascer o mundo quanto em Mulheres de cinza, o homem vê
o corpo da mulher como uma forma de estabelecer continuidade à sua
própria existência; ele a vê como uma solução para si, para suas
lacunas particulares e internas. O ser feminino surge, em igual medida,
como abrigo de mistério e desejo, como entidade capaz de realizar um
olhar muito mais minucioso da realidade justamente por se encontrar
numa posição social tão defasada. Seu olhar é mais aguçado porque é
isso é necessário para sobreviver. O desejo erótico que o homem sente
pela mulher se manifesta como uma busca de si. Há certa melancolia
nos personagens enquanto eles se devotam a essa busca; na mulher
eles buscam o fim de suas descontinuidades, mas sabem ser esta uma
empreitada utópica: a descontinuidade sempre estará presente, de
mãos dadas com as ramificações políticas e sociais implícitas no
processo.

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Para a mulher, o desejo erótico surge também como uma busca
de identidade. Contudo, diferente da figura masculina nos livros, a
figura feminina nos parece ser capaz de se encontrar em si mesma. É
na ausência do homem que a personagem de Antes de Nascer o
Mundo se descobre. Embora mais sutil, essa mesma perspectiva surge
em Mulheres de Cinza: Imani deseja que o sargento a guie para a
mulher que ela perdera em si, mas tem noção de que, sem a presença
dele, é ainda capaz de reconhecer o mundo que existe em seu corpo,
o mundo que vive das cinzas que nos remente ao título do livro e,
consequentemente, o mundo que está para nascer de ambas as
personagens.

- 84 -
Referências
BATAILLE, Georges. O erotismo. Porto Alegre: L&PM, 1987.

BORGES, Luciana. O erotismo como ruptura na ficção brasileira de


autoria feminina: um estudo de Clarice Lispector, Hilda Hilst e
Fernanda Young. Florianópolis: Editora Mares, 2013.

BRANDÃO, Ruth Silviano. Mulher ao pé da letra: a personagem


feminina na literatura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.

COUTO, Mia. Antes de nascer o mundo. São Paulo: Companhia das


Letras, 2016.

______. Mulheres de cinza. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

______. Terra sonâmbula. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

PAZ, Octavio. O arco e a lira. São Paulo: Cosac Naify, 2ª ed., 2014.

WOLFF, Cynthia Griffin. A mirror for men: Stereotypes of Women in


Literature. Massachusetts: The Massachusetts Review, vol. 13, n. 1/2,
Woman: An Issue (Winter – Spring, 1972), p. 205-218.

- 85 -
O triângulo pendular: subjacências homoeróticas em
Grania, de Lady Gregory, e Exiles, de James Joyce

Raimundo Expedito dos Santos Sousa6

Introdução
A rivalidade, segundo Girard (1961), pode ser a maior forma de
intimidade. Em 2008, a mídia brasileira noticiou um crime no qual um
marido traído assassinara o amante da esposa, tatuara no braço
direito um caixão com o nome do rival e a data do homicídio e, em
entrevista à imprensa, explicara o porquê do inusitado ato
confessional ao prenunciar que “quando eu for para a cadeia, ele vai
comigo; quando eu morrer, ele vai morrer comigo”7. Ao interpretar a
insígnia do homicida meramente como gesto de vanglória, a polícia
não se apercebeu da simbologia antropofágica na impressão do rival
em seu corpo e tampouco do substrato homoerótico de um triângulo
amoroso dissolvido com a expulsão da mulher e firmação de um enlace
imorredouro entre os dois homens. Também ao enquadrar o crime
como “passional”, o poder judiciário não atentou para a ambiguidade
do adjetivo, pois se o ciúme (afecção análoga à inveja) advém da
posse, por outro, do objeto de desejo, este último – em tese, a mulher

6
Doutorando em Teoria da Literatura e Literatura Comparada, UFMG.
7
O ESTADO DE SÃO PAULO. “Foi em menos de um minuto: entrei, fiz e saí”. Notícias.
26 de março de 2008.

- 86 -
– não passa de uma mediação para o vínculo entre dois homens,
sacramentado por uma homenagem com foro de declaração de amor.
O caso em tela i) ilustra como os vínculos homossociais, ainda
que balizados pela hostilidade, dão-se na tênue fronteira com o
homoerotismo; ii) deixa entrever a coadjuvação da mulher em
triangulações amorosas nas quais, aparentemente, ocupa posição
central; e iii) evidencia a recursividade da mesma no estabelecimento
de coalizões entre homens e, por conseguinte, na perpetuação do
androcentrismo. Norteado por esses três pontos cardinais, este
capítulo empreende uma leitura das peças Grania, de Lady Gregory, e
Exiles, de James Joyce, examinando, à luz das teorizações de Lévi-
Strauss (1949), Girard (1961), Rubin (1975) e Sedgwick (1985), como
ambos os escritores, contemporâneos entre si, problematizaram em
suas respectivas obras questões de gênero e sexualidade que eram
prementes no contexto histórico de sua criação literária.

Inimigos íntimos
Para efeito das discussões que pretendo tecer, importa
ressalvar que, longe de circunscrito à (busca pela) relação sexual, o
erotismo, semanticamente análogo à libido, refere-se aqui à pulsão
rumo ao Outro, expressa por meio tanto da ternura quanto da
hostilidade, uma vez que ambos os afetos, se bem que antitéticos, têm
como força motriz em comum a função unificadora de Eros. Cumpre,
ainda, discriminar dois conceitos que tendem a ser tomados

- 87 -
indevidamente um pelo outro, quais sejam, o homoerotismo,
concebido neste trabalho como um impulso de união intragênero, e a
homossexualidade, concebida enquanto categoria identitária
engendrada pela economia taxonômica do discurso médico vitoriano.
Interessa, finalmente, sublinhar que dessa distinção conceitual
decorre que o desejo homoerótico não necessariamente enquadra o
desejante como homossexual ou o faz identificar-se como tal, uma vez
que esse desejo pode exprimir-se no ato mesmo da ratificação da
heteronormatividade – haja vista o modo como, no contexto de
deflagração da Primeira Guerra Mundial, um ideólogo militarista
erotizava o corpo-a-corpo entre rivais ao ponto de idealizar uma
situação de extremo risco de morte como uma experiência de vida
intensa:

Pode-se, com efeito, admitir que há um certo tipo


de excitação que nada além de uma luta real pode
produzir. Permanecer tentando matar um homem
que, ao mesmo tempo, está tentando matá-lo é
uma experiência bastante singular e, sem dúvida,
produz horas repletas de vida muito intensa.
Provavelmente, existem em todos nós profundos
instintos animalescos que não podem encontrar
satisfação completa em qualquer outra coisa
(GRAY, 1915, p. 12-13; tradução minha8).

Numa matriz cultural heterocêntrica, na qual o afeto entre


homens é rigidamente controlado por tecnologias disciplinares as mais

8
Todas as traduções de citações em língua estrangeira são de minha autoria.

- 88 -
diversas, a expressão homoerótica não raro é escamoteada sob os
auspícios da violência, que não só preserva como potencializa a
virilidade do sujeito que a pratica e ainda encerra, subliminarmente às
investiduras hostis, uma intimidade mais intensa do que outras formas
de afeto. De fato, a agressão física não passa, por vezes, de uma
camuflagem para a expressão do desejo de proximidade, tais como na
violência em regimes de confinamento homossocial, que
frequentemente não prescinde de abuso sexual, e, de modo mais sutil,
nas brincadeiras agressivas, peculiares à sociabilidade masculina, que
franqueiam aos homens o contato corporal entre si sem incorrer em
infração dos protocolos heteronormativos.
Empenhada em propugnar a hombridade dos irlandeses em
face da castração econômica, política e cultural decorrente de uma
experiência colonial mutiladora, a literatura vinculada ao nacionalismo
cultural irlandês é prolífica em exemplos de erotização de vínculos
homossociais aparentemente fincados na rivalidade, tal como aquele
protagonizado por Cuchulain, herói juvenil reabilitado pelos
nacionalistas como epítome da virilidade nativa. Segundo a mitologia
céltica, esse guerreiro, dotado de formosura tal que em certo episódio
os adversários não ousaram feri-lo graças à sua beleza ser
“convincente o bastante para converter o ódio de um inimigo em
amor” (CASSIDY, 1922, p. 32), viu-se forçado a lutar contra seu grande
companheiro Ferdiad. Em um duelo que se estendeu por quatro dias,
“[t]ão rente era a luta [...] que suas cabeças se encontravam em cima,

- 89 -
seus pés embaixo e suas mãos no meio” (GREGORY, 1903, p. 238). A
paixão com que ambos se atracavam exemplifica como a violência
física, embora consagrada como signo de masculinidade
heteropatriarcal, tem um potencial homoerótico singular, uma vez
que o contato corporal satisfaz o impulso de união em que se pauta o
erotismo. Também a luta armada, em que “[c]ada qual permanecia
atirando no outro com lanças desde o meio-dia até o cair da tarde”
(op. cit., p. 232), revela como a face unificadora de Eros é favorecida
pela arma, capaz de penetrar e violar o corpo do adversário. Apesar de
obrigados a lutar um contra o outro, Cuchulain e Ferdiad exprimiam
seu afeto mútuo sob os ritos protocolares do duelo, tal como quando,
ao final de cada dia de combate, trocavam beijos e afagos: “Cada qual
veio junto ao outro, colocou suas mãos em volta do pescoço do outro
e deu-lhe três beijos” (op. cit., p. 232). Em um código de masculinidade
heterocêntrico no qual, de um lado, o afeto entre homens é
interditado e, de outro, a agressividade entre os mesmos homens é
investida como índice de virilidade, esse episódio mítico ilustra a
inscrição da violência como um elemento estruturante do desejo
homoerótico enquanto forma de expressão culturalmente
sancionada.

O triângulo invertido
O intrincado liame entre rivalidade e homoerotismo se torna
mais complexo quando acrescido de um terceiro elemento, a mulher,

- 90 -
que na injunção falocrática ocidental tem figurado, desde a literatura
cavalheiresca ao cinema hollywoodiano, como “prêmio” em duelos
entre homens hierarquicamente superiores àquela que, no final das
contas, será possuída por um deles. Nessa contenda, ambos os rivais
se situam, numa escala valorativa, em posição superior à mulher
amada, pois os homens são agentes mesmo quando em posição
adversa na disputa, enquanto a mulher, destituída de agência porque
relegada à condição de expectadora, é inferiorizada não obstante sua
posição estatuária aparentemente favorável.9
Esse paradoxo, no qual o elemento aparentemente central
ocupa, de fato, uma posição periférica tem sido problematizado, sob
diferentes pontos de vista, tanto por antropólogos como Lévi-Strauss
(1949) e Rubin (1975) quanto por críticos literários como Girard (1961)
e Sedgwick (1985). Em trabalho pioneiro acerca das estruturas
elementares de parentesco, Lévi-Strauss (1949) desconstrói a acepção
convencional de matrimônio ao observar, em sociedades patriarcais
tradicionais, que a aliança estabelecida pelo casamento não se dá
entre um casal, mas entre grupos de homens sob mediação da mulher

9
Tal não ocorre quando, inversamente, duas mulheres duelam pelo amor de um
homem. Nos enredos de folhetins melodramáticos, por exemplo, não raro mulheres
em posições assimétricas nas relações de poder se digladiam pelo amor do herói,
incitando o público leitor/expectador (composto majoritariamente por mulheres) a
se identificar com aquela em desvantagem e torcer pelo seu triunfo: ser escolhida
pelo galã, investido da prerrogativa de eleger como sua a que se provar digna de seu
amor, como nas popularíssimas telenovelas mexicanas Maria do Bairro e A
Usurpadora.

- 91 -
por meio da exogamia. Uma vez que do parentesco depende a
organização societária, assegurada pelo casamento e pela
descendência, a mulher, reduzida à condição de commodity investida
de valor de troca, não é um dos parceiros no enlace, mas, antes, um
bem negociado entre os homens de ambas as famílias, estes sim
parceiros entre si.10
Enquanto o antropólogo considera a comodificação da mulher,
porém não discute devidamente sua subalternização nesse arranjo
social, Rubin (1975), sob um viés feminista, atenta para as relações de
poder aí imbricadas e identifica que o heteropatriarcado se institui e
se mantém por força do “tráfico de mulheres” cuja permutabilidade
instaura e solidifica coalizões entre homens, favorecendo o
empoderamento destes e a subordinação daquelas. Se no regime
patriarcal a heteronomia da mulher é assegurada pela sua
comodificação e mercantilização, as relações de poder se estabelecem
entre os homens que as trocam entre si, despojando-as das esferas da
economia política e da política econômica e, portanto, do direito à
negociação nessas relações.
Já no campo literário, Girard (1961), ao analisar as estruturas
de poder em triângulos amorosos consubstanciados em narrativas do
gênero romance, observa que o enredo romanesco estabelece duas

10
Como sugere a própria cenografia do cerimonial em que o pai conduz a filha (até
então sob sua guarda) ao altar e a entrega ao noivo, a quem confia a autoridade de
novo guardião, a mulher, ao se casar, é literal ou simbolicamente transferida de uma
propriedade a outra.

- 92 -
geometrizações distintas: enquanto numa estruturação mais simples
há uma linha reta que conecta diretamente o sujeito desejante ao
objeto de desejo, numa esquematização triangular um terceiro
elemento intercepta esse canal, desempenhando função mediadora.
Partindo da premissa de que o desejo é tomado de empréstimo a
outrem numa espécie de contágio no qual o sujeito escolhe
mimeticamente seu objeto por este ser desejado por um outro, o
crítico literário sustenta que o impulso rumo ao objeto também se dá
em direção ao mediador, pois mimetizar o desejo deste último pode
redundar na cobiça por ele próprio, na medida em que o objeto que
esse mediador deseja pode também desejá-lo e, neste caso, segue-se
um reposicionamento no qual o próprio objeto se institui como
mediador e este como alvo da cobiça.
À semelhança de Girard, Sedgwick (1985) sustenta que no
triângulo heteroerótico o laço que ata os rivais entre si é no mínimo
tão forte e intenso quanto aquele que une cada um deles ao objeto
cobiçado. Todavia, enquanto seu precursor passa ao largo das
determinações de gênero, deixando entrever que o gênero de cada
um dos atores pouco importa, pois pode ser mudado sem que se altere
a esquematização triangular, Sedgwick, em análise menos estrutural
do que cultural, não acredita que a rivalidade entre duas mulheres por
um objeto masculino manteria o mesmo jogo de identificação e
tampouco concorda que o desejo pela mulher decorra simplesmente
da admiração pelo mediador e da consequente emulação de seu

- 93 -
desejo. Ao investigar na literatura anglo-saxônica dinâmicas de poder
e desejo em triangulações amorosas, a autora observa, a partir de
Rubin, que o desejo homossocial masculino tem a especificidade de se
dar no interior das estruturas que mantêm e transmitem o poder
patriarcal, pois há “um continuum, uma congruência estrutural
potencial e uma relação (móvel) de significado entre os vínculos
homossociais masculinos e as relações patriarcais masculinas pelas
quais as mulheres são oprimidas” (SEDGWICK, 1985, p. 20). A seu ver,
o homoerotismo e a homofobia são dois elementos constitutivos do
primado da homossociabilidade masculina e, uma vez que os vínculos
homossociais são alvo de suspeição homofóbica, mas a engrenagem
patriarcal depende desses mesmos laços, estes são mediados pela
mulher, duplamente instrumentalizada como correia de transmissão
do poder patriarcal e como medium do desejo homoerótico,
escamoteado pela competição masculina em torno da qual a cultura
ocidental se organiza.
Ainda que restrita às literaturas inglesa e estadunidense até o
século XIX, a formulação de Sedgwick ilumina a interpretação de
esquematizações amorosas triangulares na obra de, pelo menos, dois
autores irlandeses do limiar do século XX, Lady Gregory e James Joyce,
como veremos no que se segue.

- 94 -
Rivalidade e homoerotismo em Grania, de Lady Gregory
A (con)fusão entre rivalidade e desejo entre homens é
tematizada em Grania, narrativa medieval adaptada por Lady Gregory
à guisa de tragédia histórica. Em um encadeamento paradigmático da
tragédia grega, na qual uma reviravolta, decorrente de algum deslize,
põe a perder a fortuna do protagonista (cf. ARISTOTLE, 1922), a
personagem homônima está comprometida com o velho Finn, mas,
apaixonada pelo atraente Diarmuid, homem de confiança do noivo,
dirige-se na véspera do casamento até onde o rapaz estaria dormindo
e lhe declara seu amor. Entretanto, é Finn quem a ouve e fica
encolerizado, sobretudo com Diarmuid, e, enquanto os homens,
dialeticamente atados um ao outro, negociam o conflito entre si, a
mulher, à margem dessa dialética, esbraveja como que pedindo
atenção para si: “A culpa não é dele [de Diarmuid]! É minha!”
(GREGORY, 191211, p. 19). Se considerarmos que, diversamente do que
supõe o senso comum, o oposto do amor não é o ódio, mas a
indiferença, é significativo o contraste entre a ira de Finn por Diarmuid
e sua apatia em relação a Grania.
Penalizado com a situação da moça, Diarmuid a leva consigo,
prometendo a Finn salvaguardá-la até o arrefecimento de sua ira e
então devolvê-la intacta. Todavia, quando, passados sete anos, esta é
assediada por um rei estrangeiro, seu protetor reage desposando-a e,

11
Doravante a obra será referenciada pela abreviação G, seguida do número da
página.

- 95 -
assim, descumpre a promessa. Em vez de celebrar o casamento,
Grania se queixa ao marido de que “[d]urante todos os anos em que
que estivemos a sós você manteve distância de mim” e “somente
quando viu outro homem desejar meu amor é que um amor igual
nasceu em você” (G, 31-32). Seu desabafo descortina um panorama
das políticas de desejo numa organização social em que o fato de os
homens terem uns aos outros como referência em suas relações com
as mulheres implica que o interesse masculino pela mulher se dá em
resposta à investidura de outro homem, subordinando-se, portanto,
ao vínculo homossocial.12

12
Relação similar ocorre, na cultura contemporânea, no modo como mesmo o
heteroerotismo masculino tende a ser gerido pela homossociabilidade. Comumente,
a ansiedade quanto à aprovação dos amigos induz rapazes a considerarem, em suas
escolhas amorosas heterossexuais, “o que os caras vão pensar/dizer”. Um dos
rapazes entrevistados por Kimmel (2008) lembra que, durante uma “transa” que
tivera com uma mulher cobiçada pelos amigos, não imaginava outra coisa senão o
que eles pensariam se pudessem vê-lo naquele momento. Trata-se de um exemplo
sintomático de como os homens heterossexuais por vezes estimam menos a
gratificação obtida no ato sexual do que uma gratificação a posteriori, qual seja, a
valorização por outros homens. Ora, a satisfação pelo prestígio homossocial
sobrepuja o próprio prazer sexual porque é precisamente a aprovação masculina que
ratifica seu status de masculinidade. Em situação similar, os homens que “cantam”
mulheres passantes geralmente estão menos interessados em conquistá-las do que
em se exibir para seus pares, pois, ao fazê-lo, executam performances que reafirmam
sua inscrição na masculinidade hegemônica e, assim, ratificam sua aquiescência
junto ao grupo masculino. Portanto, numa cultura falocrática o homem deve manter
sua reputação não só junto às mulheres como, sobretudo, junto aos outros homens,
pois é entre eles que negocia suas posições de poder e pode ratificar ou ascender
seus status.

- 96 -
Em vez de solidificar a união do casal, o matrimônio estreita o
laço entre Diarmuid e Finn, já que, ao se reaproximar do primeiro com
vistas à retaliação, o segundo recupera o elo perdido. É significativo
que Diarmuid, mesmo afamado como “o melhor amante de mulheres
do mundo” (G, 5), sobreponha seu compromisso com Finn, assentado
apenas na palavra, ao compromisso com Grania, firmado na lei, e a
abandone para atender ao chamamento daquele para uma batalha, da
qual retorna gravemente ferido. Em leito de morte, o guerreiro
reconhece apenas o amigo e, ignorando a esposa, diz a ele que “[s]eria
muita tolice se alguma mulher tivesse licença para se interpor entre
você e eu” (G, 59). Em outra passagem reveladora, Grania declara a
Finn, após a morte do marido, que “[e]le não teve amor por mim em
momento nenhum. [...] Eu sabia disso o tempo todo, mas não queria
dar o braço a torcer. O desejo dele, o tempo todo, era por você...” (G,
61). O fato de persistir até a última hora, mesmo ciente de seu
desprestígio na arena do desejo, evidencia sua concepção do triângulo
amoroso como um jogo no qual visa menos o amor do que a
sobrevivência numa matriz de gênero cuja única via de aquiescência
social disponível à mulher é o casamento. Por isso Grania, recusando-
se a velar o marido, apressa-se em substituí-lo, ponderando que se
várias mulheres já se casaram novamente e permaneceram honradas,
“[p]or que, então, eu deveria me manter sempre uma viúva virgem?”
(G, 65). Para além de um arrojado manifesto pelo direito à gratificação
sexual, seu afã pelo matrimônio consiste na busca por um

- 97 -
empoderamento dependente do homem, portador do falo, para sua
concretização. Tal busca é epitomizada pelo gesto em que toma a
coroa das mãos de Finn – que há muito a havia oferecido – em vez de
esperar que ele a coroe e, transgredindo os protocolos do amour
courtois, assume função proativa ao lhe pedir em casamento.
Em virtude de um romance extraconjugal que Lady Gregory
experienciou quando recém-casada, críticos como Coxhead (1961),
Kiberd (1995) e Murphy (2007) interpretam Grania em perspectiva
biográfica, estabelecendo analogia entre a autora e a personagem que
trocam um homem mais velho por um jovem sedutor e, no fim das
contas, regressam ao primeiro. Contudo, tal perspectiva induz a uma
leitura heterossexista que não atenta para o homoerotismo como
força estruturante dessa triangulação amorosa e à interpretação da
história como antirromântica – já que a relação triádica solidifica o
afeto entre os homens em detrimento da mulher –, levando Coxhead
(1961), em exemplo patente desse heterossexismo, a afirmar que a
peça não é uma “história de amor”, pois aqui o amor “é aquele de
homem para homem” (p. 145). Ora, ao tematizar o triângulo amoroso
sob um viés pró-feminista, sublinhando o estatuto da mulher no
circuito do desejo não como meta, mas como via, Lady Gregory
simultaneamente destaca sua marginalidade e lhe confere
centralidade como protagonista. Essa postura revisionista é visível já
no título da peça, em que a autora rompe com as versões precedentes
– que a intitulavam Diarmuid and Grania, dando ênfase ao casal – ao

- 98 -
identificar a personagem como sem par em um arranjo social no qual
a exclusão da mulher nas relações de desejo expressa
sinedoquicamente sua exclusão social.

Rivalidade e homoerotismo em Exiles, de James Joyce


O interesse de Joyce pelo trabalho de expoentes da sexologia
vitoriana, como Richard von Krafft-Ebing, Sigmund Freud e Havelock
Ellis, repercute na forma como o escritor traz à baila discussões então
prementes acerca da sexualidade (cf. TEAL, 1995). O homoerotismo,
presente de forma esparsa em Dubliners, A Portrait of the Artist as a
Young Man e Ulysses, tem papel central no enredo de Exiles, embora
subliminarmente. Se bem que a peça ofereça diversas combinações de
triangulações amorosas13, a tríade nuclear envolve os protagonistas
Richard Rowan, escritor dublinense recém-retornado do exílio na
Itália, Bertha, com quem vive em regime de união estável, e o
jornalista Robert Hand, que tenta seduzi-la.
Na geometria do triângulo amoroso, a mulher ocupa,
aparentemente, posição central e superior aos homens que lhe
disputam a atenção, mas, no transcorrer da trama, essa disposição
hierárquica assume configuração diversa. Em um ordenamento no
qual a posição sociojurídica da mulher dependia do cônjuge, o fato de
Bertha não ter o patronímico do companheiro e ser a única

13
A esse respeito, ver Bauerle (1996).

- 99 -
protagonista cujo sobrenome não é mencionado evidencia seu não
pertencimento e, em última análise, seu não-lugar social. Desde a
mesma inicial R do prenome à carreira nas Letras, Richard e Robert
têm mais em comum um com o outro do que com Bertha, que, como
suposto alvo de desejo em comum, medeia a reaproximação entre
ambos, constituindo um nó que reata o vínculo entre os amigos de
longa data, rememorado com saudosismo por Robert: “Meu Deus,
quando penso em nossas noites desenfreadas de tempos atrás –
conversas toda hora, planos, esbórnias, farras…” (JOYCE, 192114, p.
42). Na obliquidade com que Joyce trata o homoerotismo, as
reticências, ou os silêncios do texto, operam como atos de fala que
extrapolam a materialidade textual, como se na falta se presentificasse
algo inominável numa conjuntura histórica ainda sob impacto da
moral sexual vitoriana. Por seu lado, Richard se refere ao amigo por
meio de uma linguagem conjugal ao lembrar saudosamente o chalé
“para o qual tínhamos duas chaves, ele e eu. […] Onde costumávamos
passar nossas noites desenfreadas, conversando, bebendo,
planejando [...]. Noites desenfreadas; sim. Ele e eu juntos” (E, 57).
No decurso de uma contenda na qual os concorrentes desejam
mais um ao outro do que o prêmio em disputa, chama a atenção o
modo como o desejo homoerótico é incorporado na mulher. Em
fantasia pigmaleônica, Richard se refere à companheira como sua

14
Doravante o texto será referenciado pela abreviação E seguida do número da
página.

- 100 -
criação, considerando tê-la criado durante a estada na Itália, quando
tentou “dar a ela uma nova vida” (E, 84).15 É precisamente o estatuto
de obra-prima forjada pelo artista que assegura a Bertha seu
encantamento sobre Robert, que confessa ao rival: “Ela é [...] sua obra.
[...] E é por isso que eu também me atraí por ela. Você é tão forte que
me atrai, ainda que por meio dela” (E, 76-77). À semelhança dos
enredos romanescos nos quais Girard (1961) observa a determinação
da escolha da amada não tanto por seus predicados pessoais, mas,
sobremaneira, pelo fato de pertencer ao rival, o fascínio de Robert
pela criação não passa de um deslocamento do desejo pelo criador.
Em nota paratextual, Joyce (1991) orienta o leitor a interpretar
a peça como sadomasoquista ao defini-la como “um confronto entre
Marquês de Sade e Freiherr v. Sacher Masoch” (p. 172). De fato, ao se
eximir de orientar a companheira a assentir ou não ao assédio de
Robert, conferindo-lhe livre arbítrio, Richard renuncia ao pátrio poder
em postura crucial para a instauração do triângulo amoroso. Ao
transferir o direito de escolha à companheira em vez de impor sua
autoridade como pater familias e interditar a possibilidade de traição,
o escritor deseja que ela seja possuída pelo rival, ao qual confessa que
“no âmago do meu coração ignóbil eu ansiava por ser traído por você
e por ela” (E, 88). De fato, longe de implicar uma perda, a traição lhe

15
Essa fantasia é ainda mais flagrante nos rascunhos da peça, sobretudo quando
Richard afirma sentir-se “como se a tivesse carregado [...] no meu ventre” (apud
HENKE, 1990, p. 96).

- 101 -
proporciona gratificação erótica na medida em que a experiência
amorosa com a mesma mulher constitui um enlace simbólico com o
rival; donde sua confissão a Bertha: “Eu não consigo odiá-lo, já que os
braços dele te envolveram. Você nos uniu um ao outro” (E, 97).
Escrita numa conjuntura na qual o homoerotismo era
demonizado pela Igreja, patologizado pela medicina e criminalizado
pelo sistema judiciário, Exiles evidencia como a mediação da mulher
como suposto objeto de desejo franqueava aos homens a manutenção
de vínculos afetivos sob os protocolos da heteronormatividade. Nesse
sentido, é reveladora a nota explicativa em que Joyce (1991) afirma
que “[a] posse corporal de Bertha por Robert, repetida diversas vezes,
certamente colocaria em contato quase carnal os dois homens”, de
maneira que ambos seriam unidos “por meio da pessoa e do corpo de
Bertha”, já que, enquanto homens, não poderiam “unir-se
carnalmente” um com o outro (p. 172). Portanto, os rivais cobiçam não
propriamente a amada, mas o que esta representa no campo do
desejo, isto é, o desejo do outro, pois seu corpo constitui menos uma
arena de disputa do que um ponto de encontro.

Considerações finais
Atentos às questões de gênero e sexualidade numa cultura
informada pela moral vitoriana, Lady Gregory e James Joyce
problematizam tanto o estatuto da mulher no estabelecimento e
manutenção de laços homossociais entre homens quanto as formas

- 102 -
sub-reptícias de expressão do desejo homoerótico constitutivo desses
laços. Embora localizem suas respectivas peças em conjunturas
históricas distintas, ambos convergem ao ressaltar a recursividade da
mulher em triangulações amorosas que a inscrevem como meio, não
como fim, bem como sua aparente superioridade na relação triádica
como um engodo que escamoteia sua subalternização. Assim, tratam
de questões cruciais para os estudos de gênero, tais como as formas
de desempoderamento da mulher, os limites entre a
homossociabilidade e o homoerotismo e os meios alternativos de
expressão homoerótica em um ordenamento social homofóbico.
De fato, tanto em Grania quanto em Exiles, no duelo entre dois
homens por uma mulher o vínculo mais sólido e intenso se estabelece
entre os primeiros, mas a varredura desta última para a margem das
dinâmicas de poder e desejo coincide com sua centralidade simbólica,
revelando como, numa matriz cultural heterocêntrica, por vezes a
instauração e manutenção de laços homoeróticos entre homens não
prescinde da mediação da mulher. Desse modo, ambas as peças
iteram o argumento de Sedgwick (1985) quanto à determinação do
gênero do participante para sua posição estatuária na esquematização
triangular e quanto ao componente homoerótico como catalisador
dessa esquematização.
Todavia, Lady Gregory e Joyce divergem no foco conferido às
relações de gênero e no nível de explicitação com que as abordam.
Menos interessada no vínculo homoerótico do que no não-lugar da

- 103 -
mulher no ordenamento social irlandês, a primeira, embora pouco
afeita ao feminismo, ressalta a proscrição da mulher nas dinâmicas de
poder e desejo; porém se esquiva de problematizar o vínculo
homoerótico ao simplesmente encerrá-lo com a morte de um dos
partícipes do triângulo. Já o segundo, favorecido, enquanto homem,
pela maior liberdade enunciativa, é mais inequívoco na exposição das
regras do jogo travado pela trindade amorosa e, além de expor
explicitamente a função mediadora à qual a mulher é relegada,
mostra-se arrojado na exploração do homoerotismo, demonstrando
consciência não apenas de sua ilegitimidade nos códigos de gênero
vigentes como também de sua expressão mediada pela fisicalidade da
mulher.

- 104 -
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Press, 1996, p. 150-163.

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GRAY, A. Herbert. The Only Alternative to War. London, Edinburgh,


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Men of the Red Branch of Ulster Arranged and Put into English by Lady
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JOYCE, James. Exiles: A Play in Three Acts. London: The Egoist Press,
1921.

- 105 -
JOYCE, James. Exiles: A Play in Three Acts. London: Paladin, 1991.

KIBERD, Declan. Inventing Ireland: The Literature of the Modern


Nation. London: Jonathan Cape, 1995.

KIMMEL, Michael. Guyland: The Perilous World Where Boys Become


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LÉVI-STRAUSS, Claude. Les Structures Élémentaires de la Parenté.


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in ‘A Portrait of the Artist as a Young Man’. Novel: A Forum on Fiction,
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- 106 -
A sexualidade feminina em Drácula de Bram Stoker16

Giovane Alves de Souza17


Ana Paula da Silva Pereira18

Introdução
Ao longo da história foram estabelecidos preceitos referentes
à sexualidade que moldaram o papel do sujeito feminino, colocando-
o em uma posição inferior ao homem, delimitando, assim, o seu papel
tal como indivíduo, de modo que a mulher não somente se portasse
de acordo com os conceitos que formam o “ser mulher”, mas também
se conformasse com o seu posicionamento nos espaços público e
privado, atendendo a este papel com eficiência.
Segundo Butler (2016), algumas explicações vindas da
Psicanálise argumentam que a feminilidade é, na verdade, uma parte
da composição psíquica bissexual, baseada no masculino (BUTLER,
2016, p. 101). Este preceito advém de concepções pautadas na
inferioridade do ser feminino, nas quais se pressupõe uma espécie de

16
Trabalho feito sob orientação do Prof Ms. Auricélio Soares. Email:
metallicauricelio@hotmail.com C. Lattes: http://lattes.cnpq.br/2733282184152767
17
Aluno de Graduação em Letras (habilitação em língua inglesa) na Universidade
Estadual da Paraíba – Campus III. Email: giovane.oficial@hotmail.com
18
Aluna de Graduação em Letras (habilitação em língua inglesa) na Universidade
Estadual da Paraíba – Campus III. Email: anapaula.897@hotmail.com

- 107 -
coexistência da mulher em relação ao homem, tendo este como seu
superior, reforçando, assim, a concepção de inferioridade feminina.
Tais representações do sujeito feminino podem ser analisadas
não somente na vida real como também na arte; neste caso,
especificamente, na literatura, considerando que a arte, por vezes,
consegue retratar a realidade em que vivemos, ao passo que nos
apresenta histórias capazes de despertar críticas inerentes a mais
profunda verdade sobre a essência humana.
Posto isso, objetivamos analisar como se apresenta a
sexualidade feminina em Drácula, clássico do escritor inglês Bram
Stoker, de modo que nos seja viável analisar o relacionamento entre
homens e mulheres e possíveis interpretações que competem a este
aspecto na trama, levando em consideração, ainda, o período em que
a obra foi lançada e a possível influência que os preceitos desta
sociedade possam ter ocasionado nos acontecimentos da narrativa.

A sexualidade na Era Vitoriana: a mulher e o seu lugar de


pertencimento
Denomina-se Era vitoriana todo o período em que a rainha
Vitória se manteve como a rainha regente da Inglaterra. Tal período
foi marcado pela ascensão da classe média, juntamente aos preceitos
morais ingleses e preconceitos que fomentaram a sociedade da época
(LINS, 2014, p. 20). Este período se estendeu de 1837, com a ascensão

- 108 -
da rainha Vitória ao trono, até 1901, com o então falecimento da
monarca.
Em História da sexualidade 1: a vontade de saber, Foucault nos
alerta para os preceitos competentes à sexualidade que nós
construímos, chamando atenção para as diferenças entre a franqueza
do século XVII, quando, segundo o teórico, as pessoas eram mais
sinceras, e “as coisas eram ditas sem reticência excessiva” (FOUCAULT,
2007) e a austeridade e circunspecção do século XIX. Tais preceitos
foram atrelados à moralidade e, neste ponto, o teórico fez uma
analogia usando a sociedade vitoriana como viés para uma crítica às
concepções hipócritas que temos sobre sexo, uma vez que este foi um
período conhecido pela grande nuvem de opressão no que compete a
sexualidade.

Um rápido crepúsculo se teria seguido à luz


meridiana, até as noites monótonas da burguesia
vitoriana. A sexualidade é, então, cuidadosamente
encerrada. Muda-se para dentro de casa. A família
conjugal a confisca. E absorve-se, inteiramente, na
seriedade da função de reproduzir. Em torno do
sexo, se cala. O casal, legítimo e procriador, dita a
lei. Impõe-se como modelo, faz reinar a norma,
detém a verdade, guarda o direito de falar,
reservando-se o princípio do segredo. No espaço
social, como no coração de cada moradia, um único
lugar de sexualidade reconhecida, mas utilitário e
fecundo: o quarto dos pais. Ao que sobra só resta
encobrir-se; o decoro das atitudes esconde os
corpos, a decência das palavras limpa os discursos.
E se o estéril insiste, e se mostra demasiadamente,

- 109 -
vira anormal: receberá este status e deverá pagar
as sanções (FOUCAULT, 2007, p. 9-10).

Com isso, o teórico chama atenção para a maneira como a


sexualidade foi reprimida no espaço social, reservando o sexo ao
espaço privado e salubre do lar, onde se encontra a família, instituição
modelo para os indivíduos, capaz, neste momento, não somente de
performar os princípios sexuais tidos como corretos, como também de
reger as “leis” da vivência humana no que concerne à sexualidade, de
modo que essa instituição passasse, neste momento, a delimitar a
maneira correta do indivíduo fazer uso da sua sexualidade.
Os preceitos da sociedade vitoriana foram moldados de forma
arbitraria (LINS, 2014, p. 20), de modo que a população se viu
estagnada em um extrato social no qual a sua conduta era
amplamente vigiada, atrelada a muitos fatores que controlavam e, até
mesmo, proibiam determinados comportamentos – o que colaborou
para o aumento do senso de moralidade da época. Era esperado que
a Inglaterra transparecesse uma imagem de forte, sem falhas, que
servisse como exemplo para as outras sociedades da época (LINS,
2014, p. 20).
Com isso, apesar da mulher já ter garantido algumas
prerrogativas quanto a sua posição na sociedade perante os anos
anteriores, esperava-se dela, ainda, a manutenção de um
comportamento conciso, levando em consideração, também, que a

- 110 -
rainha Vitória estimava a harmonia no espaço doméstico,
prevalecendo, assim, a rigidez dos bons costumes prezados pela
sociedade vitoriana (LINS, 2014, p. 20), o que colaborava para o
processo de delimitação do papel do sujeito feminino na sociedade,
indo de acordo com os papéis de gênero pressupostos. Para Butler
(2016), tal ato é uma prática deliberada, posto que

Considerada coletivamente, a prática repetida de


nomear a diferença sexual criou essa aparência de
divisão natural. A “nomeação” do sexo é um ato de
dominação e coerção, um ato performativo
institucionalizado que cria e legisla a realidade
social pela exigência de uma construção
discursiva/perceptiva dos corpos, segundo os
princípios da diferença sexual (BUTLER, 2016, p.
200).

Deste modo, como apresentado no excerto acima, o “ser


mulher” se pauta em diversos atos performativos que são
institucionalizados pela sociedade e que, para que um indivíduo seja
visto como pertencente a determinado sexo, este precisa
constantemente performar atos que o encaixem nesta posição. Posto
isso, a colocação de Butler sobre a performance da sexualidade
esclarece o espaço destinado ao sujeito feminino na sociedade, indo
de encontro com os preceitos morais da sociedade vitoriana no que
compete ao lugar de pertencimento da mulher à luz dos princípios da
época.

- 111 -
Na próxima seção deste artigo, pretendemos analisar como a
sexualidade feminina se apresenta em Drácula, de Bram Stoker,
atentando para as características dos relacionamentos entre os
homens e mulheres na trama, bem como para os acontecimentos da
narrativa ligados ao sujeito feminino.

A sexualidade feminina em Drácula de Bram Stoker

“[...]É tão natural pecar quanto viver”


(Bram Stoker)

Drácula, de Bram Stoker, foi lançado em 1897 em forma de


romance epistolar, e conta a história do Conde Drácula, vampiro
centenário que vive na Transilvânia e está disposto a se mudar para
Londres; e para que tal fato aconteça, conta com a ajuda de Jonathan
Harker, advogado recém-formado que, ao passar dos dias, estranha o
comportamento do conde e passa a entender a sua verdadeira
natureza. O romance é um clássico da literatura inglesa e, juntamente
a O retrato de Dorian Gray e O médico e o monstro, Drácula figura a
tríade dos romances góticos fin-de-siècle.
Tornou-se um dos mais célebres trabalhos sobre vampiros na
literatura, com diversas adaptações para o teatro, cinema e televisão,
e, além de trazer à tona as características da narrativa gótica
decadente, Drácula abarca os valores morais vigentes da sociedade
vitoriana, personificados nas performances das personagens do

- 112 -
romance. Posto isso, observamos como Stoker aplica tais preceitos às
personagens femininas, tal qual Mina Harker e sua melhor amiga, Lucy
Westerna, bem como às vampiras do conde, com as suas respectivas
participações na trama.

À minha frente, de pé num halo de luar, estavam


três jovens – três damas, a julgar por suas vestes e
suas caprichosas maneiras. Ao vê-las, acreditei
estar sonhando: embora se encontrassem contra a
luz da lua, elas não projetavam sombra alguma no
chão. As três de aproximaram de mim e, depois de
me observarem por alguns instantes, começaram a
conversar entre si, aos sussurros (STOKER, 2014, p.
106).

As três vampiras demarcam a primeira aparição do sujeito


feminino na trama quando aparecem para Jonathan Harker, e são
descritas como jovens muito bonitas, de grandes olhos penetrantes,
narizes aquilinos; lábios vermelhos e voluptuosos de dentes brancos e
brilhantes – características referentes a um caráter posto para seduzir
o herói da narrativa. Elas apresentam um comportamento que foge
dos padrões da época, fazendo alusão à prostituição e, apesar de estar
casado com Mina, Jonathan demonstra sentir atração pelas vampiras
(LINS, 2014, p. 26).
O personagem masculino assume, diante das três vampiras, um
papel essencialmente passivo (HINDLE, 2014, p. 21), havendo, deste
modo, uma inversão dos papéis de gênero nessa cena, onde as três

- 113 -
vampiras são vistas como uma figura de poder e controle. Tal inversão
de valores volta a acontecer com a aparição do conde:

Então ele disse, em uma voz que, apesar de muito


baixa, quase um sussurro, parecia rasgar o espaço
e ressoar em toda a sala: - Como ousam tocá-lo?
Como ousam colocar os olhos sobre ele? Estão
proibidas, e sabem muito bem disso! Para trás, eu
ordeno! Esse homem me pertence! Se voltarem a
encostar um dedo nele, minha ira cairá sobre
vocês! (STOKER, 2014, p. 109)

Segundo Hindle (2014), o terror que assombra a obra de Stoker


de forma mais persistente dá-se através de uma mistura de medo e
desejo masculino em relação ao sexo (HINDLE, 2014, p. 20). Jonathan
é o único homem que o Conde ameaça com o vampirismo, e, com a
sua interferência, as vampiras afastam-se e desistem de atacar
Jonathan. Posto isso, a sua afirmação “Este homem pertence a mim!”,
sugere a presença de um desejo homoerótico e de possessão por
Jonathan por querer reservar o sangue dele apenas para si.

[...] Uma das principais fontes de ansiedade do


romance é “o oscilante interesse de Drácula por
Jonathan Harker”. [...] A ameaça sexual que “o
romance inicialmente evoca, sustenta e manipula,
mas sem jamais representar, é que Drácula seduza,
penetre e consuma outro macho”. Ao longo da
obra, [...] o impulso homoerótico é reprimido,
deslocado e confinado à representação de “uma
heterossexualidade monstruosa” (HINDLE, 2014, p.
39).

- 114 -
Na Era vitoriana, a homossexualidade era vista como pecado e
até mesmo crime. Os homossexuais eram punidos pelo o que era
conhecido como “flagrante indecência”, que, em seu todo, era uma lei
ampla o suficiente para englobar qualquer atividade sexual entre
homens (FRANKEL, 2013, pág. 16). Deste modo, o medo e a repulsa em
relação à homossexualidade foram incorporados no caráter de
Drácula, fazendo seu desejo por Jonathan ser reprimido e
apresentando uma heterossexualidade hegemônica, transformando o
Conde num ser sedutor e misterioso que atrai para si a paixão das
mulheres.
Além da conotação sexual presente na figura monstruosa do
Conde, nota-se também diversos atributos que remetem ao herói
byroniano, uma vez que Drácula demonstra algumas das
características realçadas por Lorde Byron ao distinguir o seu tipo de
herói. Inteligência, magnetismo, dominância social e sexual, estar em
exílio, em estigma social ou fora-da-lei e introspecção são alguns dos
adjetivos geralmente ligados ao herói byroniano (SANTOS, 2011) e que
permeiam o cosmos misterioso do Conde Drácula durante o decorrer
da história.
Outrossim, durante a narrativa, acompanhamos os noivados de
Mina e, posteriormente, de Lucy, o que nos leva a questionar o
comportamento feminino em relação ao casamento retratado na
trama, uma vez que estas personagens femininas performam

- 115 -
comportamentos típicos do que se esperava das mulheres na época
em que a narrativa se situa, sendo estes comportamentos relativos à
obediência, submissão e lealdade, como apresentado no excerto a
seguir:

[...] não conte nada a ninguém, exceto, é claro, ao


seu querido Jonathan. Tenho certeza de que
contará tudo a ele; e eu, se estivesse em seu lugar,
também contaria tudo a Arthur. Uma mulher não
deve ter segredo com o seu marido – não acha?
Precisamos ser corretas em todas as nossas ações.
Os homens desejam que as mulheres
(principalmente suas esposas) sejam tão corretas
quanto eles; mas temo que as mulheres em geral
sejam bem mais incorretas do que deveriam ser
(STOKER, 2014, p. 135).

Com isso, Lucy reafirma o tipo de comportamento que se


espera de uma noiva, sujeito que, segundo Butler, não dispõe de uma
identidade própria, visto que elas funcionam como uma extensão dos
homens de quem são propriedade. Em outras palavras, a noiva
funciona como termo que delimita a relação entre os mais diversos
grupos de homens; ela não tem uma identidade própria, e tampouco
permuta uma identidade por outra. Cabe a ela apenas refletir a
identidade masculina, por ser o lugar de sua ausência (BUTLER, 2016,
p. 77). E, deste modo, Lucy reflete o que seria o ideal de
comportamento para uma mulher em relação aos desejos do seu
noivo Arthur.

- 116 -
Não obstante, Lucy é de todas as personagens a que mais se
dispõe a ir contra os preceitos de idealização do sujeito feminino. No
início da narrativa, ela recebe todos os três pretendentes que vêm lhe
fazer a corte; e, em contraste, Jonathan fica prostrado, em confusa
agitação, perante o avanço de três vampiras sexualmente famintas
(HINDLE, 2014, p. 38), arcando, mais uma vez, com a inversão dos
papéis de gênero na trama. E embora seja evidente o quanto Lucy ame
Arthur ao afirmar continuamente seus sentimentos, através das cartas
enviadas à mina, ela conta a dor que sente por rejeitar os dois outros
pretendentes, lamentando que as mulheres só possam se casar
apenas com um homem:

Desabei no choro – e você, querida Mina, já deve


estar achando que esta é a carta mais boba e piegas
da história universal das correspondências. Mas a
verdade é esta: de novo, eu me sentiria
terrivelmente infeliz. Por que uma moça não pode
se casar com dois ou três homens, ou quantos
queiram se casar com ela? Isso resolveria muitos
problemas, e evitaria inúmeros sofrimentos. Mas
isso é uma heresia, eu sei, e não devo dizer ou
escrever esse tipo de coisa (STOKER, 2014, p. 139).

Com a mordida do conde, acompanhamos o processo de


transformação de Lucy, o que leva os personagens masculinos a tratá-
la como enferma, devido as suas mudanças de humor e o seu
semblante que denota fragilidade, sendo necessário, inclusive,
inúmeras transfusões de sangue realizadas no intuito de fazer com que

- 117 -
Lucy se recupere. Contudo, a morte de Lucy trás o fim deste processo,
de modo que Van Helsing revela as suas suspeitas, e traz à tona a
verdadeira natureza Lucy, enquanto planeja o seu aniquilamento.
Assim, de acordo com Hindle, “as implicações sexuais dessa
cena são embaraçosamente claras” (HINDLE, 2014, p. 23). O
aniquilamento de Lucy, por meio de um instrumento que remete ao
falo, representa o último golpe em um “ataque grupal masculino”
(HINDLE, 2014, p. 23), perpetrado pelos quatro homens que haviam
mantido contato com Lucy no momento – Van Helsing, Seward,
Quincey Morris e Arthur – tal ataque, segundo Hindle, reflete um
estupro coletivo (HINDLE, 2014, p. 23).
Mina, entretanto, é a perfeita definição de mulher ideal da era
vitoriana. Nós a vemos como uma mulher inteligente, determinada,
prestativa, o que a Era Vitoriana considera exemplo de esposa ou
mulher para o casamento. Mesmo com todas essas características,
Mina também reflete sobre o comportamento feminino de forma
subversiva, de modo que os seus pensamentos sobre o casamento
divergem do que se esperava da mulher vitoriana:

Algum dia, a Mulher Moderna vai exigir que moças


e rapazes tenham o direito de ver uns aos outros
adormecidos, antes de fazer ou aceitar pedidos de
casamento. Mas também suponho que ser pedida
em casamento é algo que a Mulher Moderna não
aceitará no futuro; mais cedo ou mais tarde, caberá
às moças fazer a proposta, e aos homens aceitar
com um sentido tímido, ou preterir com lágrimas

- 118 -
sentidas. E em que bela enrascada a Mulher
Moderna estará metida! Bem que eu gostaria de
ver isso (STOKER, 2014, p. 186).

Posto isso, Mina apresenta características referentes à mulher


moderna, entretanto, também se encaixa no estereótipo feminino de
caráter dócil e submisso (HINDLE, 2014, p. 39). O que a leva a ser
induzida à influência do conde durante o transe hipnótico; contudo,
era também ordenada a resistir a ele de forma simultânea, e tal fato
ocorre porque, como observado por Van Helsing, “ela tem um cérebro
de homem, o cérebro que um homem teria, se fosse muito inteligente.
E ao mesmo tempo tem um coração perfeitamente feminino”
(STOKER, 2014, p 396).
Cumpre notar, entretanto, que os homens se viam na função
de proteger Mina e Lucy por acreditarem na manutenção do papel de
um cavalheiro, como uma figura heroica masculina sempre
aparecendo para salvar a donzela em apuros, e, posto isso, apesar de
colaborar de forma significativa para os descobrimentos dos mistérios
envolta do Conde, Mina é excluída de todos os momentos de
perseguição e de todas as descobertas, quando Dr. Van Helsing afirma
que tal situação não é apropriada para uma dama:

[...] É melhor para Mrs. Harker ficar fora disso. As


coisas já estão ruins o suficiente para nós, homens
viajados, que passamos por várias situações difíceis
ao longo da vida. Não é trabalho para uma mulher.
Se ela continuasse envolvida com o caso, acabaria

- 119 -
se abatendo terrivelmente, com o passar do
tempo. (STOKER, 2011, p 327).

Mais uma vez são reforçados os estereótipos de gênero, e


Mina, apesar de praticar taquigrafia e ter sido de grande valia no
desvendar dos mistérios da trama, é minimizada à função que ronda o
seu sexo, arcando com o papel de mulher fraca, que precisa ser
protegida. Sendo assim é ordenado que ela fique, enquanto os
homens saem à procura do conde – ordem a qual ela assente “com
entusiasmo” (STOKER, 2014, p. 397). Mina é, portanto, um conjunto
de perfeição. É o que toda mulher deveria e deve ser: a esposa
perfeita, a heroína feminina que precisa ser salva, a mulher inteligente
e submissa. Levando tal argumento em consideração, Jonathan
termina o livro com a seguinte observação sobre ela:

Algum dia este menino saberá admirar a corajosa e


galante mulher que é sua mãe. Ele já conhece sua
ternura e seu amor. Mais tarde compreenderá por
que um punhado de homens excepcionais a amou
tanto a ponto de se arriscar e tudo ousar por seu
bem. (STOKER, 2011, p 488).

Deste modo, as personagens femininas em Drácula, refletem o


ideal de feminilidade apresentada por Butler e esperados da mulher
vitoriana, fazendo a manutenção de uma posição que remete à
fragilidade e submissão, no que se refere ao comportamento de Lucy
e Mina; enquanto os homens são personagens que denotam atitudes

- 120 -
heroicas na trama, uma vez que cabe a eles desvendar os problemas e
preservar a personagem feminina do perigo aparente.
Contudo, cumpre notar que o romance não se resume a isso.
Uma primeira leitura do romance, segundo Hindle, nos remete à
imagem tradicional do herói masculino disposto a salvar as donzelas
em perigo; contudo, Drácula é, na verdade, uma busca constante da
consciência de uma mente masculina em relação a sua própria
masculinidade (HINDLE, 2014, p. 17). Fato a ser explicado pelas
sugestões homoeróticas apresentadas na trama, como visto no início
deste trabalho.

Considerações finais
Após a análise de Drácula, de Bram Stoker, é possível afirmar
que, mantendo o recorte temporal do romance, no século XIX, faz-se
possível entender os valores morais e o modo de pensar da Era
Vitoriana. Além de observar questões de gênero que envolvem o
posicionamento direcionado ao sujeito feminino inserido nesse
contexto histórico e cultural, as personagens criadas por Stoker,
refletem modelos de feminilidade e masculinidade ansiados por
aquela sociedade patriarcal.
Posto isso, acreditamos que as contribuições teóricas de Butler,
Foucault e Hindle nos foram de grande valia na interpretação dos
processos apresentados no romance aqui estudado, de modo que nos

- 121 -
foi possível entender a influência da cultura na sociedade e como isso
se reflete na literatura, ao passo que compreendemos os espaços
destinados ao sujeito feminino em uma sociedade patriarcal e de que
formas isso se reflete na vivência do indivíduo.
Portanto, acreditamos que a literatura é uma ferramenta de
retratação do indivíduo, capaz de denotar as mais profundas
obscuridades da alma humana; e, ao passo que se estabelece como
arte, cumpre, também, o papel de idealizar e/ou retratar a identidade
do ser humano, juntamente aos seus mais profundos anseios.

- 122 -
Referências

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: Feminismo e subversão da


identidade. Tradução de Renato Aguiar. 11. ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2016.

FOUCAULT, Michel, História da sexualidade 1: a vontade de saber.


Trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon
Albuquerque. 18. ed. São Paulo: Graal, 2007.

______, Michel. História da sexualidade 3: o cuidado de si. Trad. Maria


Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Ed. São
Paulo: Graal, 2005.

HINDLE, Maurice. Introdução. In: STOKER, Bram. Drácula. Trad. José


Francisco Botelho. 1. ed. São Paulo: Penguin Classics Companhia das
Letras, 2014.

LINS, Francisco César Costa. Pecados crimes e monstruosidades em


Drácula, O retrato de Dorian Gray e o Médico e o monstro: Reflexos
da falência da moral vitoriana. 34 f. Trabalho de conclusão de curso.
Universidade Estadual da Paraíba. Guarabira, 2014.

SANTOS, William Carlos Dantas dos. O arpão obsessivo: Moby Dick e a


vingança de Ahab. 2011. 23 f. Trabalho de Conclusão de Curso
(Graduação em Letras) - Universidade Estadual da Paraíba. Guarabira,
2011.

STOKER, Bram. Drácula. Trad. José Francisco Botelho. 1. ed. São Paulo:
Penguin Classics Companhia das Letras, 2014.

______, Bram. Drácula. Trad. Adriana Lisboa. ed. 1. Rio de Janeiro:


Nova Fronteira, 2011.

- 123 -
O sublime e a sarjeta: a percepção do excesso no
romance Eu receberia as piores notícias dos seus
lindos lábios, de Marçal Aquino

Samuel Lima da Silva19

DELÍRIO

O desejo revolvido
A chama arrebatada
O prazer entreaberto
O delírio da palavra
Dou voz liberta aos sentidos
Tiro vendas, ponho o grito
Escrevo o corpo, mostro o gosto
Dou a ver o infinito

(Maria Teresa Horta)

Prelúdio
Neste capítulo, propomos um percurso analítico no qual
averiguamos uma parte erótica específica do romance escrito por
Aquino, em que é possível perceber os mecanismos que compõem a
elaboração estética de sua protagonista. Eu receberia as piores
notícias dos seus lindos lábios apresenta uma estética na qual algumas
categorias presentes na construção da personalidade da protagonista,

19
Doutorando do Programa de Pós-graduação strictu sensu em Estudos Literários,
UNEMAT, campus de Tangará da Serra. Bolsista CAPES. Contato:
samuellds@live.com

- 124 -
Lavínia, sugerem uma bifurcação em sua própria condição de mulher,
mais especificamente de amante.
O romance, somos informados, narra a história do fotógrafo
Cauby, personagem que se envolve amorosamente com Lavínia,
esposa de Ernani, pastor evangélico de uma pequena cidade do estado
do Pará, local esse onde outrora havia incidido uma corrida em busca
de ouro. Narrado em primeira pessoa pelo próprio Cauby, a narrativa
se perfaz numa digressão memorialística que apresenta os fatos por
meio da experiência sofrida e arrebatadora de Cauby ao se relacionar
com Lavínia, ex-garota de programa, convertida ao evangelho pela
pregação de Ernani. São todos personagens que evidenciam uma
problemática do corpo, da religião, bem como do jogo entre
transgressão e sociedade, Deus e o Diabo.

As Lavínias – o deleite do sexo


De início e sob uma perspectiva panorâmica, é necessário que
compreendamos o que se entende por excesso neste estudo. Aqui, o
compreendemos como uma figura presente em todo o texto erótico,
contudo, podendo ser encontrada em demais tipos de textos, mas
sendo na erótica literária seu ponto de manifestação por excelência.
Não o pensamos como conceito, mas como um operador produtivo
que é delineado na narrativa, que desencadeia uma série de
dilapidações e desregramentos na diegese no qual está circunscrito.

- 125 -
Em estudo sobre a obra de Bataille, Luiz Augusto Contador Borges
esclarece que o excesso é uma força:

[...] que supera o que quer que seja, venha de onde


vier, de fora ou de dentro do homem. O excesso é
perpétuo devir. Nenhum discurso o contém,
nenhum saber o detém. Tal movimento responde
por si só se rende a si mesmo, numa relação de
forças em que a mais fraca sempre supera a mais
forte. Se há um limite para o excesso, existe sempre
a possibilidade de um excesso ainda maior poder
suplantá-lo, e assim por diante. A cada ato
excessivo supera-se um limite e ao mesmo tempo
se assinala outro, que via de regra é excedido
depois. (2012, p. 12).

Borges explica que o excesso é quase um fator de manutenção


humana, um ciclo vicioso que é enlaçado à existência do indivíduo,
sempre perpassando a sua relação com o meio que o cerca. Bataille
compreende o excesso como uma “parte maldita”, mais
especificamente como uma parcela existente e profundamente cara
aos limites humanos. Aqui, compreendemos o excesso, em solo
erótico-literário, como o desvio, uma bifurcação que sugere algo
incomum no ambiente em que o personagem está inserido.
A ensaísta Eliane Robert Moraes (2014), em palestra na
Universidade de Lisboa, esclarece o excesso como um desvio, como
algo que foge à rota habitual, por isso sua classificação como uma
operação simbólica ao invés de um conceito. De igual modo, não o
consideramos sinônimo de hipérbole, sentido óbvio do termo, mas sim

- 126 -
o dinamizamos como uma operação simbólica que está relacionada
com a construção arquetípica da protagonista criada por Aquino,
percebido na correlação desta com o erotismo pungente em toda a
trama.
Na plataforma narratológica em que se consolida a prosa de Eu
receberia..., a questão do erotismo está intimamente ligada à
interação entre os personagens principais, fazendo com que suas
atitudes sejam calibradas por meio do desejo incontrolável da carne,
da pele que toca e é sorvida pela boca ávida do amante. A forma como
o gênero romance absorve essa manifestação naturalista do desejo é
bastante tonalizada pelo discurso em primeira pessoa, com a voz de
Cauby imersa no contingente da sua memória, presentificando um
enredo em que a proximidade com a verdade do personagem se
consolida pela sua experiência, isto é, o caráter verossímil da condição
de herói consegue firmar-se com mais veracidade na realidade
diegética em questão.
Aquino é um exímio contador de histórias, estabelecendo um
projeto estético cuja posição dos seus personagens é sempre
condicionada ao fator erótico da existência humana. Da mesma forma
como em O amor e outros objetos pontiagudos (2000) e Famílias
terrivelmente felizes (2003), textos nos quais o sexo e suas implicâncias
obtêm considerável sustentabilidade dentro da trama desenvolvida,
em Eu receberia... essa incidência erótica que perfaz o sujeito amoroso
vai se consolidando na medida em que os fatos narrados são

- 127 -
apresentados in media res, desenvolvendo uma oscilação entre
primeira e terceira pessoa na narrativa. A digressão focaliza um
discurso melancólico, revestido de amargura e desejo de liberdade por
parte do narrador.
O romance divide-se em quatro partes20, mas aqui nos
interessa um trecho presente na primeira, bastante elucubrado por
algumas questões que exprimem o excesso por meio de um processo
transgressor em relação ao desejo, matrimônio e, sobretudo, a si
mesmo. A cena ocorre dentro da casa de Cauby, espaço para quase
todos os trechos eróticos do romance, em um dia no qual o narrador
e Lavínia praticam sexo no quintal. A ação estende-se com Lavínia
dormindo pela primeira vez na casa do amante e, posteriormente,
sendo vista pelo jornalista do vilarejo. É curiosa a maneira como o sexo
é descrito nessa passagem, bem como nas demais; porém, nesta em
particular, acabamos por perceber que a duplicidade percebida em
Lavínia é traduzida, quase sempre, pela forma arredia e seca da prática
sexual, quase uma animalização do ser humano quando este se
encontra em tal situação.
Num primeiro momento, ao retornar para casa, Cauby pondera
acerca de sua atração por Lavínia, comparando-a com a de Ernani: “Ele
também era obcecado por Lavínia. Por metade dela, de certa maneira.
Pela Lavínia dócil, que ele ergueu da sarjeta e salvou. Da outra, que

20
Capítulos: I - O amor é sexualmente transmissível; II- Carne-viva; III - Postais de
Sodoma à luz do primeiro fogo; e IV - Poema escrito com Bile.

- 128 -
não consegui compreender nem controlar, Ernani tinha medo”
(AQUINO, 2005, p. 55). A compreensão por parte do personagem em
traduzir a amante em duas, tendo como ponto de arranque a relação
desta com o esposo, é o primeiro indício da configuração maciça do
excesso nessa personagem. Cauby arquiteta a amante em duas: a dócil
e a incontrolável. Tais demarcações, adjetivos estabelecidos por ele na
reflexão acerca da relação matrimonial do casal, é o fio condutor da
sexualidade que se revela no romance, pois aqui compreendemos o
fenômeno do erotismo literário como algo que se desnuda nos
domínios da fantasia e não da prática. Há um trecho, em particular,
que chama a atenção por seu expressivo caráter simbólico:

Uma coisa incrível: até o cheiro das duas era


diferente. A Lavínia sem juízo tinha cheiro de
bicho. Suor e tesão. Estava sempre à beira da
excitação. E era imprevisível. Um dia se atracou
comigo no quintal, de repente. Levantou o vestido
– o vestido verde que eu tanto amava – e fez com
que eu me ajoelhasse à sua frente. Não estava
usando calcinha.(AQUINO, 2005, p. 2005). (Grifo
nosso).

O narrador enquadra Lavínia em duas personalidades que


oscilam de acordo com algo que próprio narrador não consegue
diagnosticar. A ex-garota de programa segue como um mistério, um
reduto de qualquer coisa que lhe dá prazer em desvendar. A primeira
linha caracteriza o discurso de Cauby num ponto já aludido
anteriormente, ou seja, a associação entre a amante e a ideia de

- 129 -
animal, bicho no cio. O excesso na linguagem romanesca de Aquino
surge como um estreito atalho entre o apreensível e o inapreensível,
ruborizando-se na tensão psicológica e sexual dos personagens
principais, principalmente Cauby, em sua tentativade compreender a
mulher incognoscível com a qual se deita.
Quando lemos até o cheiro das duas era diferente, o verbete
cheiro remete à condição erótica dos sentidos, ao olfato que se
aprimora e se reveste de lascívia quando tencionado pela carne. O
excesso, nesse trecho, manifesta-se no desejo de descoberta, de
tradução do enigma feminino posto à frente do protagonista. Suor e
tesão correspondem à libido excessiva na relação entre ambos,
transformando a transgressão num ritual de sobrevivência: Lavínia é
para Cauby não o excesso do proibido, mas sim do emblemático.
Muito da perspectiva de Lavínia pode ser percebida através da
figura do ausente, descrita por Barthes como: “todo episódio de
linguagem que põe em cena a ausência do objeto amado – quaisquer
que sejam a causa e a duração – e tende a transformar essa ausência
em prova de abandono” (1994, p. 27). Justamente por essa percepção
e argumentação barthesiana é que percebemos em Lavínia uma
espécie de ausência que está figurada, estritamente, no limiar entre as
suas duas personalidades. Como o próprio Barthes descreve acima, há
uma forte associação entre a ausência e o abandono, tornando estes,
em Eu receberia..., quase sinônimos. A construção bifurcada de Lavínia

- 130 -
cede espaço a uma ausência percebida somente por Cauby, mas que
no futuro causa uma ausência real de meses por parte da amante.
É necessário que atenhamos ao fato de que a conformação da
personagem Lavínia é advinda em grande parte por um discurso em
primeira pessoa, o de Cauby, que sobrepõe a diegese somente à
verdade e a certeza deste personagem. Nesse processo narrativo (que
lembra Bentinho e Capitu em Dom Casmurro), a composição dúbia de
Lavínia é percebida com mais acuidade na descrição da súbita
investida da amante para com Cauby:

E curvou-se à minha frente.


A doida.
A outra Lavínia, a mansa, tinha cheiro, sabor e
pudores diferentes. A Lavínia melancólica. A que
às vezes deixava se envolver por uma nuvem de
culpa e paranoia. Ficava se achando suja. A que
gostava de dizer que era triste em legítima defesa.
A Lavínia maluca não estava nem aí. Vivia de
surpresa. Teve uma vez que, depois de farrearmos
a tarde inteira na cama e fora dela, essa Lavínia me
comunicou:
Vou passar a noite aqui. (AQUINO, 2005, p. 56).
(Grifo nosso).

O trecho acima apresenta uma ruptura importante dentro da


questão do excesso no romance, pois é o momento em que a
presentificação desse operador se manifesta com maior intensidade.
Como dito anteriormente, o sexo, em Aquino, liga-se fortemente à
noção de duplicidade em Lavínia. Desta forma, conforme a narração
de Cauby, podemos perceber a estratificação da personagem sendo

- 131 -
advinda da sua ex-profissão, ou seja, de prostituta. Alguns trechos da
fala do narrador merecem destaque, tais como os adjetivos que este
dá à amante na tentativa de desvendá-la ou, ao menos, adentrá-la. Os
termos são populares, mas carregados de uma simbologia que
evidencia muito da personagem: à primeira das Lavínias, o narrador
descreve como doida e maluca, características associadas de maneira
um tanto imprecisas, mas ao longo do romance tais imprecisões são
dissipadas partindo do momento em que a trajetória da personagem
é apresentada ao leitor, expondo sua vida de prostituição nas ruas da
cidade de Vitória - SC.
Em contrapartida, a outra, ou seja, a que se encontra com o
narrador, era mansa, tinha cheiro, sabor e pudores diferentes. Tais
elucubrações, mais especificamente particularidades da visão do
narrador, exprimem efusivamente o excesso do qual tratamos, mais
especificamente quando a linguagem literária proporciona um
aumento no crescimento e construção da personagem, determinando,
desta forma, uma nova conduta, quase o surgimento de outra
personagem. O adjetivo suja é direcionado à Lavínia casada com
Ernani, à mulher redimida trazida de volta às rédeas da normatividade
social pelas mãos de um servo de Deus. Mesmo sendo “resgatada”, a
personagem não se sente pura o suficiente, alternando momentos de
instabilidade emocional. Há um extravasamento de dor e melancolia
que Lavínia descarrega em cima do amante, fazendo-nos perceber que
o detentor de seu “melhor” lado é Cauby, aquele que desperta nela a

- 132 -
Lavínia das ruas, do gueto, aquela abusada sexualmente pelo
padrasto. No instante do sexo, do gozo propriamente dito, a
construção da personagem revela uma simetria erótica que a bifurca,
tornando-a ambígua, irregular. Essa irregularidade é a tônica que
reveste a presentificação do excesso no romance, mais
especificamente na cena em questão.
Retomando Barthes, podemos assimilar muito da concepção
de sujeito amoroso em Eu receberia... por meio da figura do
Escalpelado21. Nas proposições do autor, essa figura é caracterizada
como uma “sensibilidade própria do sujeito amoroso, que o torna
vulnerável, exposto na carne viva aos mais leves ferimentos” (2003, p.
74). Tal perspectiva sobre o discurso do amor é muito bem
desenvolvida dentro da obra de Barthes, sobretudo no que concerne
à problemática do corpo, da alma, do desejo e da perda da vontade. O
escalpelado está presente em Cauby, percebido com pungência no
trecho anteriormente citado, essencialmente na compleição de seu
protagonista, talhado como a representação de sujeito que, na busca
por respostas, acaba se emaranhando por entre os caminhos sinuosos
do corpo da amante.

21
Para este estudo utilizamos a tradução de Marcia Valeria Martinez de Aguiar, da
editora Martins fontes, conforme bibliografia. No entanto, é conveniente lembrar
que na tradução anterior (Editora Francisco Alves, 1981), de Hortênsia dos Santos,
tal figura era intitulada como o despelado.

- 133 -
No corpo da prostituta, o Excesso
Curiosamente, o ponto de início da operação simbólica da
figura do excesso é ocasionado pelo lugar-social do qual Lavínia é
proveniente, ou seja, estamos frente a uma narrativa que evidencia
uma prostituta que fora “regenerada”, mas que ainda detém indícios
da sua antiga profissão. Partindo dessa afirmação, avaliaremos como
essa personagem corporifica a figura da sedução no discurso literário
e como isso se traduz em excesso na perspectiva ocular e erótica de
Cauby. O corpo é um labirinto profundo de curvas e caminhos ainda
não desnudados. Esse mote é pedra de toque para pensarmos a ideia
de corpo não como um constructo social, público, mas pensando-o na
esfera do particular, do íntimo, daquilo que, quando tencionado,
funde-se com o corpo alheio.
A relação entre Lavínia e a pungência erótica que se percebe
na cena recortada a seguir vem atrelada a um fio condutor bastante
potente, ou seja, a óptica de Cauby. Suas constatações acerca do
temperamento da amante não são narradas em tom confessionário,
mas sim reflexivo, como se houvesse muito ainda a se descobrir sobre
Lavínia:

Eu estava na cozinha na manhã seguinte,


preparando ovos para o café e, logo que ela saiu do
quarto, percebi que havia ocorrido uma
metamorfose. Lavínia acordou arredia.
Estremunhada. Deixou claro que não queria ser
tocada e não forcei a barra. Tomamos café e, logo

- 134 -
em seguida, ela foi para casa. (AQUINO, 2005, p.
61). (Grifo nosso).

Não estamos frente a uma percepção imagética da experiência


vivida, mas sim diante de uma visão contornada pela sedução que
Lavínia exerce sobre Cauby. A complexidade de apreensão da
personalidade de Lavínia é sempre amenizada (ou anestesiada) pelo
sexo, pela relação carnal estabelecida entre ambos. O medo do
narrador não é o de não compreender a amante, mas sim de ter se
apaixonado por uma prostituta que o trata como cliente para depois
descartá-lo. É importante lembrar que no momento em que Cauby
narra, já há a noção do vivido, da experiência sentida, pois o leitor está
posto frente a uma narrativa memorialística, reforçada pela desolação
do sujeito amoroso. Novamente a personagem é adjetivada, mas
desta vez de maneira mais lúcida. O “arredia” descrito pelo narrador
é, certamente, ligado à Lavínia obscura, aquela das ruas, adormecida
dentro dela própria, cujo narrador tem medo de que a possua por
inteira.
A tentativa de Cauby em pôr sua vida dentro de uma rota lógica
e sem desolação, acaba por construir dentro da estrutura romanesca
um painel cuja imagem e símbolo do homem se ligam ao seu instinto
sexual, mais precisamente a sua necessidade de entrar no Outro. Após
o sexo voraz no quintal, os personagens voltam ao espaço da casa de
Cauby, onde posteriormente seriam vistos pelo fotógrafo
sensacionalista da região. A cena da prática do sexo é tão rápida

- 135 -
quanto as próprias reflexões do narrador sobre Lavínia. É uma fusão
corporal que no breve momento em que é vivida consegue desfazer os
impasses criados pelos personagens.
Nesse ponto, há uma expressão latente sobre o discurso em
voga, que possui forte catalisação no texto. Abordamos, nesse
horizonte, a sedução como uma expressão na respectiva diegese, que
se difere, mas não se distancia da concepção de erotismo vista em
Aquino. Para tanto, trazemos a argumentação de sedução proposta
pelo pensador francês Jean Baudrillard. Nas asseverações do autor:

A sedução é algo que se apodera de todos os


prazeres, de todos os afetos e representações, que
se apodera dos próprios sonhos para convertê-los
em algo diferente de seu desenrolar primário, um
jogo mais agudo e sutil cuja aposta já não tem fim
nem origem, seja o de uma pulsão, seja a de um
desejo. (BAUDRILLARD, 1992, p. 142). (Grifo
nosso).

Os pensamentos de “apoderação de todos os prazeres, afetos


e representações”, alicerçam-se na percepção não de uniformidade da
conduta sexual, mas sim de uma série de meandros, conjecturas, eixos
que contornam a libido humana e tornam a sedução como um ritual
que aciona outras molas propulsoras da libido, tais como o desejo, a
luxúria, o erotismo e o sexo propriamente dito. Se, por um lado, o
excesso é percebido na descontinuidade da configuração da ex-
prostituta, uma espécie de vertigem, de desfalecimento de si próprio,
também é perceptível entre ambos os protagonistas. O que se molda

- 136 -
na relação amorosa dos personagens é uma conduta estritamente
ligada à transgressão, mais necessariamente à violação de matizes
normativos da sociedade, como o casamento, a religião e o pudor. É
necessário, contudo, que enxerguemos o sexo como mola-mestra de
uma série de outros lugares dentro do comportamento social humano.
É precisamente em um desses lugares, o da sedução, que o homem
encontra seu estado de catarse, de experiência pessoal redentora que
o eleva a um nível superior relacionado a qualquer outra existência.
Justamente nessa experiência pessoal que encontramos Cauby, pois
este está engendrado num contínuo processo de autocomiseração,
anestesiado pela adrenalina e prazer causados pelo deleite sexual e,
acima de tudo, pelo mistério advindo de Lavínia.

Considerações finais
Sob uma perspectiva geral, o romance de Aquino se constitui
de pequenos detalhes que, quando somados, atrelam valor
significativo ao universo diegético posto em cena. Uma dessas
particularidades está intimamente ligada a um processo de
dilapidação moral que assola quase todos os personagens do romance,
mas que encontra seu ponto de simulação nos protagonistas,
principalmente em Lavínia. Tal dilapidação pode ser compreendida
como uma figura do excesso, que se manifesta na configuração
artístico-literária de Lavínia, tornando-a uma personagem repleta de
sinuosidades. A representação literária do que chamamos de excesso

- 137 -
foi investigada partindo de um recorte substancioso do romance de
Marçal Aquino.
Em Eu receberia... o que prepondera é o discurso do amor não
romântico, mas condensado pelo desejo da carne, da alma e dos
recursos que o erotismo pode contrapor à condição humana. Lavínia é
representação do excesso, não em sua totalidade, numa contingência
hiperbólica, mas em uma diminuição provinda de sua alegórica
bifurcação comportamental. Sua personalidade é constructo de um
processo de descoberta e venda do corpo que, não obstante, choca-se
com a atual realidade da personagem, ou seja, imersa em um universo
religioso, num espaço geográfico diminuto.
A irregularidade da personagem é uma consequência
profundamente acoplada à transgressão, ao interdito, à proibição do
uso do corpo. A vinculação do excesso por entre a concepção do texto
de Aquino é minuciosa e carregada de simbologias que, conforme
percebidas, podem não representar uma literatura do excesso, mas
contribuem para a percepção do sujeito amoroso ligado a um desejo
transmissível, uma pele pincelada pela violação: uma ânsia pelo
proibido atrelado ao desespero da perda. Como o próprio narrador diz:
“o que diferencia uma pessoa de outra é o quanto cada um quer o que
não pode ter. Nossa ração de poeira das estrelas”.

- 138 -
Referências

AQUINO, Marçal. Eu receberia as piores notícias dos seus lindos


lábios. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

______. Famílias terrivelmente felizes. São Paulo: Cosac Naify, 2003.

______. O amor e outros objetos pontiagudos. São Paulo: Geração


editorial, 1999.

BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. Trad.: Marcia


Valeria Martinez de Aguiar. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

______. Como viver junto. Trad.: Leyla Perrone-Moisés. São Paulo:


Martins Fontes, 2003, pp. 11-12.

BATAILLE, Georges. O erotismo. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.

______. A parte maldita, precedida de “A noção de dispêndio”. 2ª ed.


Trad.: Júlio Castañon Guimarães. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.

BAUDRILLARD. Jean: Da Sedução. 4ª edição. Papirus. 1992.

BORGES, Luiz Augusto Contador. O louvor do Excesso: Experiência,


Soberania e Linguagem em Bataille. 102 f. 2012. (Tese de Doutorado
em Filosofia). Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo – USP. 2012.

MORAES, Eliane Robert. Sade, Bataille & Cia: literatura, erotismo e


subversão. Vídeo/ Youtube. (Círculo de Cipião: academia de jovens
investigadores/ Universidade de Lisboa). Publicado em 21 de maio de
2014. Disponível em
<https://www.youtube.com/watch?v=m_8ahfNYtPM&t=2667s.
Acesso em 30/04/2017>.

- 139 -
______. Puta, putus, putida - Devaneios etimológicos em torno da
prostituta. Revista da Biblioteca Mário de Andrade, volume 69, 2014.
p. 38-49.

________. O Efeito Obsceno. Cult (São Paulo), volume 30. 2000. p. 48-53.

Figura 1 - Cena do filme Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios
(2012), baseado no livro de Marçal Aquino, dirigido por Beto Brant.

- 140 -
Sobre os autores
Ana Paula da Silva Pereira
http://lattes.cnpq.br/6820689251262078
Graduação em andamento em Letras - Inglês. Universidade Estadual
da Paraíba, UEPB, Brasil

Giovane Alves de Souza


http://lattes.cnpq.br/0660617479087034
Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literaturas
Estrangeiras Modernas, atuando principalmente nos seguintes temas:
literatura, naturalismo, era vitoriana, homossexualidade e
homoerotismo.

Kleber Kurowsky
http://lattes.cnpq.br/1239911775658570
Bacharel em Letras-Português pela Universidade Federal de Santa
Catarina (UFSC), mestrando em Letras - Estudos Literários (Literatura,
Cultura e Interdisciplinaridade) pela Universidade Federal de Santa
Maria (UFSM).

Luciana Bessa Silva


http://lattes.cnpq.br/5747229136127972
Possui graduação em Letras pela Universidade Estadual do Ceará
(1999), especialista em Literatura Brasileira pela Universidade
Estadual do Ceará (2002), especialista em Docência do Ensino Superior
pela Faculdade Leão Sampaio (2009), especialista em História e
Sociologia pela Universidade Regional do Cariri (2009). Mestre em
Letras pela Universidade Federal do Ceará (2005). É professora efetiva
do Centro Universitário Leão Sampaio e doutoranda em Letras pela
Universidade Federal do Ceará.

- 141 -
Natália Marques da Silva
http://lattes.cnpq.br/7601206145444224
Graduada em Letras pela Universidade do Estado de Mato Grosso
(UNEMAT). Fo bolsista do Programa de Iniciação à Docência (PIBID) da
Universidade do Estado de Mato Grosso, na área de Língua
Portuguesa. Integra o grupo de pesquisa Estudos de literatura:
memória e identidade cultural. Atualmente, se dedica ao estudo do
erotismo na literatura brasileira do século XX, tendo como foco de
pesquisa os escritos de Hilda Hilst. Possui experiência na área de
Letras.

Raimundo Expedito dos Santos Sousa


http://lattes.cnpq.br/0070090312079084
Doutorando em Teoria da Literatura e Literatura Comparada na
Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais. Mestre
(com Louvor) em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da
Universidade Federal de São João del-Rei (2013). Graduado em Letras
na Universidade Federal de São João del-Rei (2008), com licenciatura
em línguas portuguesa e inglesa e respectivas literaturas. Ex-bolsista
de Iniciação Científica do PIC/UFSJ e do CNPq. Tenho experiência,
sobretudo, nos seguintes eixos temáticos: prática de ensino de língua
portuguesa; prática de ensino de língua inglesa; produção de textos;
metodologia científica; materiais e métodos didáticos; ensino de
literaturas de língua inglesa; ensino de literaturas de língua
portuguesa.

Samuel Lima da Silva (Organizador)


http://lattes.cnpq.br/8916586222469576
É Doutorando em Estudos Literários na Universidade do Estado de
Mato Grosso - UNEMAT, onde se graduou em Letras (2011) e defendeu
Mestrado (2014) em Estudos Literários, com foco em literatura
homoerótica brasileira. Integra o grupo de pesquisa Estudos de
literatura: memória e identidade cultural. Atualmente se dedica a
investigar as relações entre estética e homoerotismo na literatura
brasileira do século XX, focando na prosa de João Silvério Trevisan e

- 142 -
Silviano Santiago. Possui experiência na área de Letras, com ênfase em
Teoria Literária, atuando, principalmente, nos seguintes temas:
Literatura Brasileira, Romance e Erótica Literária.

Yasmim Naif Amin Mahmud Kader


http://lattes.cnpq.br/5214823050301813
É mestranda no programa de Pós-Graduação em Letras da
Universidade Federal de Santa Maria (2017), sendo bolsista CAPES, e
acadêmica do curso de Bacharelado em Letras da Universidade
Federal de Santa Maria (2016) e possui graduação em Letras -
Português e Inglês pelo Centro Universitário Franciscano (2015). Atuou
como bolsista do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à
Docência - PIBID/CAPES, subprojeto Letras/Inglês, no período de
Ago/2012 à Dez/2015 e como tutora de língua portuguesa no
programa PROINT, desenvolvido pela instituição de ensino superior
Centro Universitário Franciscano, no primeiro semestre de 2014.
Atuou também como revisora-bolsista na revista Século XXI do
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade
Federal de Santa Maria. Tem experiência na área de Literatura, com
ênfase Literatura Norte-Americana.

- 143 -
As representações do sexo, do corpo, mais especificamente do
fenômeno textual do erotismo, têm sido matéria de estudo nas mais
diversas áreas do conhecimento. Neste livro, no entanto, os artigos
que compõem o dossiê temático ocupam-se da percepção do erótico
enquanto elemento textual, percebendo-o como uma chave de
leitura que pode ascender a diversos caminhos, desembocando na
literatura o seu ponto de excelência. Em cada capítulo, é possível
perceber uma observância estética que valora a sexualidade,
concedendo-lhe e, sabiamente, valorando o literário como território
estético a ser investigado com extrema circunspeção.

- 144 -

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