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43º Encontro Anual da Anpocs

ST 25: Música e Ciências Sociais: Reflexões sobre métodos, conceitos


e fronteiras.

A soul music no Brasil: Contracultura negra e luta


por reconhecimento nos anos 1970

Carlos Eduardo Amaral de Paiva


Professor Doutor em Sociologia na Universidade
Federal do Mato Grosso
No presente trabalho demonstramos que a chegada da soul music na década de 1970
Brasil esteve vinculada à emergência da luta por reconhecimento entre parte da população
negra no país. A sistematização da indústria cultural brasileira sob a égide do regime
repressivo e a transnacionalizacao cultural no país trouxeram importantes transformações
no campo da produção cultural no país, propiciando, na esfera da canção, a emergência de
um discurso em torno da identidade étnico racial que se afastava paulatinamente do
nacional popular que orientava as representações estéticas da música popular brasileira até
então.
Ao analisar a produção musical dos anos 1970 é comum uma comparação com a
década que a precedeu. A ênfase nos grandes festivais e movimentos musicais dos anos
1960, faz com que a década de 1970 apareça ao sociólogo como um período de refluxo das
energias criativas dado o recrudescimento da ditadura e a intensificação da indústria
cultural no país.
O famigerado AI-5 instituído pelo regime civil-militar em dezembro de 1968 fez
emergir um clima de “vazio cultural” sentido não só pela censura às produções culturais
da esquerda, como também pelo direcionamento, cada vez mais massificado, das
produções culturais na década. Assim, Zuenir Ventura (2000), que em 1971 cunhara o
termo “vazio cultural”, em 1973 tentava explicar o refluxo da produção cultural pelo termo
“vazio cheio”. Traçando um panorama da época, o crítico intuía três caminhos para a
cultura brasileira: a formação de um campo de uma cultura massificada e de
entretenimento, uma contracultura subterrânea, mas também frequentemente absorvida
pelo consumo e uma cultura crítica de resistência política.
A perspectiva do crítico acaba por esquematizar de maneira estanque três esferas
da produção cultural. No campo musical nota-se que diversas produções sonoras
circulavam nos três circuitos delimitados. Assim, pode-se afirmar que o ”vazio cultural”,
ou “vazio cheio”, revela mais uma visão da esquerda sobre a produção cultural no país do
que propriamente uma realidade. O fato é que esta impressão de “vazio cultural” se revela
como um sintoma da perda da hegemonia da esquerda nacional-popular na produção
cultural no país.
O “vazio cheio” se refere à uma nova fase da produção cultural brasileira, que no
campo musical se configurou como assentamento das conquistas estéticas do tropicalismo,
fim da era dos festivais e uma individualização cada vez maior na figura do cancioneiro
que deixa de se vincular à movimentos musicais e passa a investir na própria imagem.
Consequentemente, o nacional popular, que vigorou como importante ingrediente na
produção musical da MPB também perderá sua hegemonia como horizonte estético.
Como demonstra Robert Schwarz (1978) no ensaio Cultura e Política:1964-1969,
a cultura de esquerda se manteve relativamente hegemônica até o AI-5, o que houve foi
uma repressão aos canais que ligavam essa cultura às classes trabalhadoras, o que levou a
um encapsulamento da produção cultural universitária em seus próprios nichos. Segundo
o crítico, até 1964 o socialismo no Brasil era “forte em luta anti-imperialista e fraca em
propaganda e organização da luta de classes” (SCHWARCZ, 1978,p 63), formando uma
esquerda ambígua, ao mesmo tempo combativa e conciliatória. O discurso nacionalista
criava uma comunidade imaginada contra o imperialismo forjada em uma estratégia de
alianças de classes, mas não compreendia bem a realidade das classes populares no país.
Este déficit de realidade é encontrado em parte das obras da esquerda onde a excessiva
romantização da classe trabalhadora construía uma imagem de povo não muito afastada do
discurso oficial, hegemônico e populista surgido na Era Vargas.
Marcelo Ridenti (2010) assinala que essa imagem utópica de povo atinge seu ápice
nos anos 1960, formando uma estrutura de sentimentos revolucionária no país. Esta utopia
revolucionária, pautada no discurso nacional popular, construiu também uma visão
etnicamente homogenia de povo brasileiro atrelado à perspectiva mestiça modernista.

O Brasil não seria ainda o país da integração entre as raças, da


harmonia e da felicidade do povo, impedido pelo latifúndio, pelo
imperialismo e no limite pelo capital. Mas poderia vir a sê-lo como
consequência da revolução brasileira pelo que se chegava a pensar
numa civilização brasileira, retomando à esquerda a utopia do
período Vargas. (2010, p.86)

Esta aliança de classes presente no discurso nacional popular se embasou


fartamente no ideal mestiço de nação e povo. Na política de aliança de classes da esquerda
brasileira cabia também uma aliança racial representada pelo povo etnicamente mestiço e
assimilado.
Essa unidade nacional presente no discurso da esquerda começa a se fragmentar na
década de 1970. A década do “vazio cultural” é também reconhecida como um momento
de emergência de novas identidades de gênero, orientação sexual e étnico-raciais. Esta
fragmentação, representada no caso da soul music pela luta pelo reconhecimento étnico
racial, é sintoma da perda da hegemonia da esquerda nacionalista na produção cultural e
da ascensão de uma nova forma de organização e produção cultural no país.
Em seu clássico ensaio, Periodizando os anos 1960 (1992), Frederick Jameson
assinala que a emergência de novas identidades coletivas e a crise da concepção clássica
de classe social não foi meramente consequência de uma transformação das
representações, mas sim fruto de uma mudança institucional. Para o autor a expansão do
capitalismo mundial trouxe novos sujeitos políticos, enquanto a perda da hegemonia da
esquerda desorganizou instituições onde a luta de classe poderia se expressar.

De fato, o que se pode notar é uma crise das instituições através


das quais uma real política de classe conseguira, embora
imperfeitamente, se expressar. A este respeito, a fusão da AFL
(American Federation of Labor) e da CIO (Congress of Industrial
Organizations) em 1955 pode ser vista como "condição de
possibilidade" fundamental para o desencadeamento da nova
dinâmica política e social dos anos 60: essa fusão, que foi um
triunfo do macarthismo, garantiu a expulsão dos comunistas do
movimento operário norte-americano, consolidou o novo contrato
social apolítico entre os empresários e os sindicatos norte-
americanos e criou uma situação em que os privilégios da força de
trabalho masculina e branca asseguram-lhe a precedência face às
demandas dos trabalhadores negros, das mulheres e de outras
minorias. Estas últimas não têm, portanto, lugar algum nas
instituições clássicas de uma política mais antiga da classe
trabalhadora. Estão assim "liberadas" da classe social no sentido
carregado e ambivalente que Marx dá à expressão (no contexto
dos enclosures, por exemplo): são excluídas das antigas
instituições e ficam "livres" para encontrarem novos meios de
expressão política e social. (1992, p.87)

No Brasil, como já observamos, a organização da luta de classes não era uma pauta
central da esquerda, ao contrário, a opção pela conciliação e alianças de classe era
imperativa até o golpe de 1964. Por outro lado, o dado anti-imperialista se constituiu como
horizonte político cultural, oferecendo ingredientes para o nacional popular na produção
cultural da esquerda.
Assim, o nacional popular se configurou no campo artístico como uma forma de
representação desta conciliação brasileira, muito embora tivesse a revolução socialista
como utopia, as representações estavam muito mais próximas de um radicalismo da classe
média do que propriamente uma revolução.
Nossa hipótese é que a inviabilidade de uma política de aliança de classes revelada
pelo golpe de 1964, trouxe a entrada em cena de novos sujeitos políticos não unificados
em torno da pauta nacional-popular. Assim, o fim da conciliação de classes trouxe também
o fim da conciliação étnico-racial representada pela perspectiva de povo miscigenado.
Estas mudanças foram intuídas por Heloísa Buarque que em Impressões de
Viagem nos apresenta o seguinte relato:
Por outro lado, a realidade dos grandes centros urbanos é valorizada
agora em seus aspectos “subterrâneos”; marginal do Harlem,
eletricidade e LSD, Rolling Stones e Hell´s Angels. A identificação
não é mais imediatamente com o “povo” ou o “proletariado
revolucionário”, mas com as minorias: negros, homossexuais,
freaks, marginal de morro, pivete, Madame Satã, cultos afro-
brasileiros e escola de samba. A Bahia é descoberta, nesse
momento, como o paraíso oficial das minorias: a marca profunda da
negritude, dos rituais africanos, da cozinha sensual, do ócio, da
mescla do primitivo e do moderno, é associada à disposição
libertaria do Tropicalismo. É da Bahia agora, a região cultural
privilegiada por excelência, que surgem os principais líderes desse
movimento: Glauber Rocha, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Wally
Sailormoon, Rogério Duarte, Duda Machado, Antônio Risério e
outros. Essa associação da Bahia com a atitude de modernidade do
pós-Tropicalismo tem um exemplo expressivo na composição Triste
Bahia, onde Caetano Veloso faz um arranjo musical do poema do
mesmo nome do não menos baiano Gregório de Mattos. A gravação
da Triste Bahia faz-se em inventário e mosaico, onde o poema
musicado sofre a intervenção de canções folclóricas da Bahia,
ruídos eletrônicos, vozes superpostas, sons de berimbau e guitarras
elétricas, situando na triste e primitiva Bahia a explosão industrial
do Brasil moderno. (2004,p75)

A autora nos apresenta um panorama do fortalecimento de uma contracultura no


Brasil, aponta também para o surgimento de novas falas, novos atores e agentes sociais
marginalizados no duplo sentido do termo, tanto no sentido daqueles que vivem nas franjas
da sociedade, quanto daqueles que foram marginalizados historicamente, silenciados pela
história oficial.
É neste contexto que observamos a chegada e aclimatação do gênero soul music no
Brasil. Os principais cantores do gênero: Tim Maia, Jorge Ben e Tony Tornado
encontraram um chão histórico propício para suas canções que tematizavam uma
conjunção entre a negritude internacional e a cultura afro-brasileira. Embora ainda
influenciados pelo discurso nacional popular, as canções da soul music mesclavam o
samba, baião e outros gêneros nacionais com a black music internacional.
A chegada da soul music representou a emergência de algo que denominamos como
“estrutura de sentimentos negra” no Brasil. O conceito de estrutura de sentimentos,
desenvolvido por Raymond Williams é particularmente útil para refletir sobre a formação
de um novo regime de representação da negritude no país. Para o autor, trata-se de uma
“hipótese cultural” que compreende “o pensado como sentido e o sentido como pensado”.
(WILLIAMS, 1979,p.135) Ou seja, o conceito expressa tanto uma constância da estrutura,
quanto a subjetividade do sentimento, o que nos permite compreender as expectativas e
experiências que perpassam uma geração de cantores, e também de seu público em
determinado período histórico.
O conceito nos permite pensar a soul music dentro de uma experiência maior desta
estrutura de sentimentos negra que se formulou na prática vivida dos grupos sociais, sem
necessariamente um projeto estético político coeso. Trata-se então de uma experiência
emergente no país, que se por um lado surge de maneira pouco articulada, por outro,
exerceu uma influência na música popular brasileira.
Na área dos estudos sobre música no Brasil a soul music ocupa um espaço marginal.
A pouca consideração deste gênero musical como objeto de estudos reflete seu caráter
outsider no campo da música popular brasileira. Além disso, há uma tendência nos estudos
acadêmicos em privilegiar gêneros musicais consagrados e representativos de um
engajamento político ou estético, ou ainda, priorizar manifestações folclóricas nacionais.
Não se pode falar propriamente em um engajamento político dos cantores da soul
music, entretanto não se pode negar o papel político destas canções. Embora este gênero
se apresente como menos engajado que as canções influenciadas pela vertente nacional-
popular, a chegada da soul music no Brasil é consonante a um momento de intensa
politização do movimento negro, caracterizado pele esforço de transformação do regime
de representação do negro na cultura brasileira junto à uma política de reconhecimento
étnico.

Tim Maia, Jorge Ben e Tony Tornado, luta por reconhecimento na canção brasileira

O início da década de setenta foi particularmente expressivo da chegada da soul


music no Brasil. No ano de 1970 Tim Maia lançava seu primeiro LP, alcançando em pouco
tempo as paradas de sucesso. Jorge Ben, que já era reconhecido no circuito dos festivais e
programas televisivos investia cada vez mais no uso de guitarras elétricas e arranjos souls
em sua produção musical, e Tony Tornado tornava-se um verdadeiro fenômeno nacional
ao ganhar o V FIC (Festival Internacional da Canção) com a canção soul “BR-3”,
apresentando uma performance black que se tornou um fenômeno midiático no país.
Fazendo um balanço da produção musical brasileira do ano de 1970, o maestro
Júlio Hungria indicava as principais tendências que viriam a se confirmar na referida
década. Dentre elas, sublinharemos as seguintes:
1. Introdução em grande escala (grande consumo) do
procedimento interpretativo soul na música brasileira (Tim Maia).
Fato importante não tanto agora pela informação acrescentada ao
repertório do compositor/do intérprete nacional, mas pelo que
representa de contestação às estruturas tradicionais a introdução
de um procedimento não genuinamente brasileiro.
2. Via TV, sucesso global de vendagem para as trilhas sonoras de
novelas, fenômeno sintonizado em 69 com resultados obtidos com
as trilha de Véu de Noiva. [...]
5. Continuidade (sem muita novidade) do trabalho de Jorge Ben
(informação jovem estrangeira mais contribuição brasileira) em
disco editado pela Philips.[...]
8. V FIC: Retomada da linha evolutiva pela liberdade de
experimentar sem preocupações com nacionalidade ou grau de
cultura desperta, via rede nacional de TV e com prestígio do júri
qualitativo, grande parcela do público e da imprensa. (HUNGRIA,
1970)

A observação do maestro permite avaliar as transformações dentro do campo


musical e do mercado fonográfico daquele ano. A soul music já se apresentava como um
gênero musical internacional que parecia contestar as “estruturas tradicionais” de uma
música vista pelo maestro como genuinamente brasileira. A televisão, por sua vez, já se
estruturava como centro irradiador das tendências musicais, apresentando as trilhas
sonoras das novelas como peças que vincularia o mercado fonográfico ao sistema
televisivo.
O panorama de Júlio Hungria destaca dois fenômenos correlatos no campo musical,
a sistematização da indústria cultural no país e a transnacionalização cultural. Algo que
Renato Ortiz (1988) definiu como ascensão do “internacional-popular” para definir a
produção cultural no capitalismo global, ou seja, o desenvolvimento de um mercado de
bens simbólicos no país vinculado ao mercado internacional.
A memória musical no Brasil costuma identificar Tim Maia ao mundo pop com
canções divertidas e festivas, entretanto, seus primeiros LPs, embora já apresentassem seu
estilo irreverente, trazem uma marca da negritude inédita até aquele momento no país. O
cantor, que a pouco retornara dos EUA, trazia em sua sonoridade as marcas da produção
sonora negra norte-americana.
A revista Veja apresentava o cantor da seguinte maneira:
Para a jovem guarda em crise, ele era a salvação, com o som
inovador, mistura de soul americano e ritmo brasileiro. Mas era
também o bom compositor incluído por Elis Regina na rigorosa
seleção de seu último disco; e escolhido pelo maldito ou
simplesmente “comercial” Agnaldo Timóteo para seu recente
compacto. Essa estranha preferência de admiradores conflitantes
parece explicada de certa forma, nas combinações musicais de seu
disco: um baião engraçado de Luís Vanderlei e João do Vale
(Coroné Antonio Bento) convive pacificamente com românticas
baladas do próprio Tim em parceria com o discutido Carlos
Imperial e uma valsa do cantor de iê-iê-iê, Fábio. (A
ESPERADA..., 15 jul.1970, p. 69)

A dificuldade em enquadrar o compositor é sintoma da novidade. Tim Maia era


reverenciado pela diva Elis Regina, mas também um produto comercializável para as
massas. Suas canções misturavam diversos gêneros com a soul music norte americana,
criando uma sonoridade brasileira e internacional.
Parte significativa das canções de Tim Maia dos dois primeiros LPs fazem
referência à música nordestina, é o caso de “Coronel Antônio Bento”, “Jurema” e “Padre
Cícero” do LP Tim Maia (1970) e “Festa de Santo Reis” e “Salve nossa Senhora” do LP
Tim Maia (1971). Além da nordestinidade, Tim Maia gravava canções misturando
expressões em língua portuguesa e inglesa, além de souls apenas em inglês. Ao referendar
gêneros nordestinos com soul music Tim Maia dava um tom étnico internacional à gêneros
regionais, operando uma reativação da memória étnica em canções regionais do nordeste.
É importante salientar que na referida época os gêneros reconhecidamente
nordestinos, tais como o forró, o coco e o baião já tinham relativo espaço no campo da
música popular brasileira, adentrando como material sonoro do nacional-popular. Ao
enfatizar uma etnicidade nesses gêneros, Tim Maia fazia uma operação inversa ao dos
cantores da MPB, já que não articula as modalidades regionais à nação brasileira, mas sim,
a etnia negra. Por isso, pode-se interpretar a produção sonora de Tim Maia como um
processo de rememorização étnica de estilos regionais nordestinos.
A singularidade das canções de Tim Maia está na maneira como o compositor opera
esta reeetinização das canções nordestinas, não se trata de uma busca por raízes étnicas. O
dado étnico em Tim Maia é internacional e se filia naquilo que Paul Gilroy (2001)
denominou como Atlântico Negro, ou seja, uma cultura internacional diaspórica forjada
em uma contramodernidade instaurada pelo regime escravista no novo mundo. Assim, o
dado internacional em Tim Maia não é meramente importação de arranjos da black music,
mas adentram em uma comunidade imaginada negra internacional dos anos 1960/70.
A proximidade entre música negra e nordestinidade nos oferece um cenário a
respeito de grupos outsiders da sociedade brasileira. Antônio Sérgio Guimarães (2002)
propõe uma interpretação histórica para o fenômeno do preconceito regional no Brasil.
Para o autor, com a decadência do sistema de lavoura na Bahia no século XIX, esse estado,
juntamente com a região nordeste de maneira geral, passou a ser visto como símbolo de
um Brasil atrasado e arcaico. A forte presença de negros e mulatos nessa região também
servia como fator de estigma por parte dos sulistas. Assim, o nordestino:

Era o tipo de gente que o brasileiro do sul não gostaria que fosse
brasileiro – o seu Outro rejeitado, um outro modo de ser brasileiro:
mestiço, imigrante, pobre, “desterrado”. Mas, menos que o tipo
físico, era todo um Brasil antigo, que era rejeitado, tal como a
Bahia o fora: o Brasil das casas-grandes, dos coronéis, da
agricultura de subsistência, da fome, do flagelo, das secas. Seria
também o Brasil que o sul odiaria ser no futuro: mestiço, pobre
migrante? (GUIMARÃES, 2002, p.133)

É expressivo que Tim Maia mescle sonoridades negras com gêneros do nordeste,
já que as canções remetiam a dois grupos outsiders. O fato pode nos revelar a proximidade
de identidades subalternas. A ideia de uma aproximação de identidades subalternas é
analisada por Stuart Hall (2011) como um fenômeno emergente no processo da
globalização. Como exemplo o autor assinala que nos anos 1970 o significante black
forneceu um foco de identificação que abrangia tanto as comunidades afro-caribenhas,
quanto as comunidades asiáticas em território britânico. O fato é que, apesar de não
representarem culturalmente a mesma coisa, essas comunidades eram vistas e tratadas
“como a mesma coisa” pela cultura dominante. A exclusão dessas comunidades formulava
um “eixo comum de equivalências” (HALL, 2011, p.86). Nesta perspectiva, a mistura da
música negra norte americana com o som do nordeste brasileiro pode ser interpretada como
uma formulação de identidades subalternas num contexto em que tanto os negros como os
nordestinos se apresentavam como um grupo outsider dentro da sociedade brasileira.
As canções de Jorge Ben também foram representativas de grupos outsiders da
sociedade brasileira. Desde os anos 1960 o compositor investia em personagens
marginalizados pela história oficial, além de enfatizar elementos da cultura afro brasileira
ainda pouco representados no campo da música brasileira na referida época. É constante
na produção sonora do compositor a presença das religiões de matrizes africanas, figuras
como o preto velho e outras entidades espirituais povoam as canções de Jorge Ben desde
seu primeiro LP de 1963. Porém, será a partir dos anos 1970 que a negritude de Jorge Ben
passa a dialogar cada vez mais com a negritude internacional do Atlântico Negro.
Seu disco Negro é lindo, lançado em 1971 é um marco na carreira do compositor,
nele, Jorge Ben adere à soul music norte americana e apresenta um discurso em torno da
positivação da cultura negra brasileira. O próprio título do disco, nome também de uma de
suas canções, é uma tradução literal do lema Black´s Beautiful, trazendo para as terras
brasileiras a política do orgulho negro que já se espalhara nos EUA.
A canção “Negro é Lindo” é uma balada soul onde o compositor apresenta uma
mensagem de positivação da negritude com frases como, “negro é amor, negro é amigo,
Negro também é filho de deus”, “Preto velho tem tanta canjira, que todo povo de Angola
mandou preto velho chamar”. Assim como Tim Maia, Jorge Ben assimila a soul music
com dados de uma memória étnica afro-brasileira preservada no candomblé, seu discurso
em torno do reconhecimento positivo da cultura afro-brasileira aciona o localismo e o
cosmopolitismo negro.
As frases embaladas pelo discurso “negro é lindo” se referem àquilo que Stuart Hall
(2003) denomina como políticas de transformação dos signos que começam a emergir
durante os anos 1960 nos EUA. Para o autor, tratam-se de estratégias de transcodificação,
surgidas quando os temas de representação e poder passam a ser centrais nas políticas dos
movimentos antirracistas. Nessa perspectiva, estas estratégias buscam reverter os
estereótipos estigmatizantes sobre as populações subalternizadas.
Como assinala Sergio Costa (2006, p. 135), o movimento virava ao avesso a ordem
simbólica dominante, que tratava as características físicas associadas ao negro como
sinônimo de imperfeição estética. Assim, a canção “Negro é lindo”, adentra em uma
política de reconhecimento étnico e de autoestima da população negra invertendo
estereótipos negativos baseados em formas degradantes de reconhecimento.
Outra canção importante do disco é a “Cassius Marcelo Clay”, feita em parceria
com Toquinho. Os compositores fazem uma homenagem ao boxeador, que mais tarde
mudaria seu nome para Muhammad Ali ao adotar o islamismo como religião.
Os compositores transformam o boxeador em super-herói do mundo das histórias
em quadrinho, como Capitão América, Batman e Superman. Chama atenção a forma de
assimilação do pop na canção, ao colocar o boxeador negro ao lado de super-heróis os
compositores trabalham elementos da cultura pop para valorização da negritude,
transformando Cassius Marcelo Clay (Muhamad Ali) em herói da causa negra.
Muhammad Ali foi um dos símbolos da luta pelos direitos civis nos EUA. Um dos
mais importantes boxeadores do país. Negro e mulçumano, foi uma referência para a luta
das minorias étnicas. Reconhecido mundialmente como mestre da movimentação no
mundo do boxe e símbolo da negritude mundial, o esportista frequentava países da África
sendo recebido com pompa de chefe de estado. Muhamad Ali ganharia ainda maior
prestígio entre os jovens americanos simpatizantes da contracultura quando, em 1966, teve
o seu título de campeão cassado diante da recusa à prestação do serviço militar (PEREIRA,
1992, p.76).
A homenagem ao esportista reconhecido mundialmente é sintoma do
internacionalismo contracultural na canção. Entretanto, é importante notar que em
“Cassius Marcelo Clay” as referências não são apenas norte-americanas, Jorge Ben vincula
o boxeador a elementos da brasilidade, ao afirmar que o lutador “tem a cadência de uma
escola de samba” e o “quatro três quatro de um time de futebol”. Ora, tanto o samba quanto
o futebol se configuram como símbolos nacionais que em diversos momentos de nossa
história são acionados na construção de uma identidade brasileira, ademais, se configuram
em tantos outros momentos como símbolo da negritude no Brasil.
Ao apresentar Cassius Marcelo Clay como herói da causa negra internacional e
compará-lo a símbolos étnicos brasileiros, os compositores ressignificam esses símbolos
deslocando-os para o âmbito de uma negritude internacional. Desse modo, a escola de
samba e o futebol para além de seus símbolos de brasilidade, se apresentam inclusive como
elementos de luta e força dos povos negros da diáspora.
Seguindo sua fase soul, Jorge Ben lança em 1972 o disco Ben, em que o compositor
mantém suas experimentações híbridas entre o samba e soul. Este álbum apresenta uma
continuidade nas formas de representação do negro brasileiro. Um dos destaques é a canção
“Domingo 23” que faz alusão a São Jorge, cujo dia de comemoração é 23 de abril. Além
de fazer uma autorreferência ao nome de Jorge, a música traz elementos do sincretismo
religioso do catolicismo brasileiro com o candomblé. Acompanhada por batidas de
atabaques, a canção aproxima São Jorge ao seu homônimo no candomblé, qual seja, o orixá
Ogum. Em 1975, no disco Solta o Pavão, Jorge faz outra homenagem ao santo, gravando
a oração em forma de canção ”Jorge da Capadócia” em estilo funk soul.
Como viemos demonstrando as referências de Jorge Ben circulam entre o dado
nacional e internacional, entretanto não se filiam ao discurso nacional-popular A
perspectiva de Jorge Ben, em seus discos da primeira metade dos anos 1970, coloca a
identidade negra frente à identidade nacional. Assim, o autor representa muito mais uma
perspectiva afro brasileira em conjunção com o Atlântico Negro, do que uma negritude
assimilada pelo nacionalismo. É significativo que a conjunção entre o dado internacional
e o localismo em Jorge Ben se de mediado pelas religiões afro-brasileiras, já que estas
formas religiosas se configuram, no Brasil, como importante fonte de manutenção de uma
memória étnico-racial e também musical. Assim, ao mesclar arranjos soul com batidas do
candomblé, o compositor aponta para uma internacionalização afro-atlântica das religiões
de matriz africana.
Tim Maia e Jorge Ben são representativos da chegada da soul music no país,
entretanto, coube a Tony Tornado o coroamento do gênero por meio da imagem televisiva.
Foi nos anos 1970 que a televisão se tornou o principal meio de comunicação cultural no
país, e a presença do fenômeno Tony Tornado nos dá notícia de como a imagem black
passa cada vez mais a povoar o imaginário de parte da população brasileira.
Tony Tornado foi o vencedor do V Festival Internacional da Canção, organizado
pela Rede Globo de televisão, cantando o famoso soul “BR-3”. O V FIC, realizado em
1970, não possuía a mesma finalidade dos grandes festivais da década anterior. Diferente
dos festivais anteriores, que buscavam construir movimentos musicais e estimular o
surgimento de novos agentes culturais no campo musical, o V FIC investia em uma
imagem internacional do país, atrelando a música brasileira à propaganda do regime civil
militar. (SCOVILLE, 2008, p. 25).
Como se sabe, o festival possuía um tom patrioteiro, entretanto, o destaque do V
FIC ficou por conta da soul music. Além da vencedora, BR-3, interpretada por Tony
Tornado, o festival contou com a participação do grupo Abolição, regido por Dom
Salvador, além de uma inusitada apresentação do Trio Mocotó com a canção “Eu quero
Mocotó”, uma mistura de “sambão jóia” com arranjos em estilo soul.
Foi nesse clima que a canção BR-3 se consagrou na voz de Tony Tornado. O cantor
se tornou um verdadeiro fenômeno midiático, presença constante na televisão e nos jornais,
Tony Tornado encarnava a imagem do negro norte americano, com suas performances
blacks e um discurso em torno da identidade e autoestima da população afro-brasileira.
O relativo sucesso de Tony Tornado e suas mensagens sobre a autoafirmação negra
não passaram despercebidas pelos censores da ditadura, como revela a seguinte reportagem
da revista Gente:
Ao interpretar na televisão carioca a canção “Sou Negro”, cuja
letra focaliza problemas de raça, o cantor Tony Tornado, foi
advertido pelo Serviço de Censura na última semana por
acompanhar sua interpretação com tapas no próprio rosto e gestos
de punhos cerrado, imitando os representantes do Poder Negro dos
Estados Unidos. Motivo de advertência: Tony Tornado (apelido
do carioca Antonio Vieira Gomes) dá uma imagem falsa da
realidade brasileira, ao insinuar agressivamente um clima de ódio
racial que não existe no Brasil. (GENTE, 7 out. 1970, p.84)

A revista retrata a performance de Tony Tornado como uma falsa realidade


brasileira, acusando o cantor de importação de ideias alienígenas de conflito racial para o
país. O fato é que a performance de Tornado atingia em cheio a ideia de democracia racial,
ideologia integracionista do regime militar.
Como demonstrou Thomas Skidmore(1994) durante a década de 1970, a elite
brasileira incrustada no meio político e nos meios de comunicação, defendia tenazmente a
ideia de democracia racial no país, e rotulava como “não brasileiros”, qualquer um que
levantasse questões de cunho racial. “O argumento comum era que os únicos “problemas”
raciais no Brasil provêm da agitação daqueles que afirmam ver problemas”. (SKIDMORE,
1994,p.137). Nesta perspectiva não apenas o gênero musical era acusado de estrangeiro,
como também as mensagens que se referissem as relações étnicas no Brasil.
Ainda que de maneira pouco sistematizada e sem uma conotação de militância
política, os cantores da soul music brasileira trouxeram para o campo musical uma pauta
que seria desenvolvida pelo movimento negro na mesma década, uma visão cada vez mais
biracial da sociedade brasileira, uma aproximação a uma ideia de origem africana, a luta
por reconhecimento étnico racial e, consequentemente, a denúncia da democracia racial
como ideologia da classe hegemonicamente branca e dominante. Essa pauta adentra
naquilo que denominamos como “estrutura de sentimentos negra” no país, ou seja, uma
perspectiva cada vez mais politizada de negritude em consonância com a luta por
reconhecimento étnico racial da população afro-brasileira.
A teoria da luta por reconhecimento nos movimentos sociais, desenvolvida por
Axel Honneth (2003) a partir dos escritos do jovem Hegel, nos auxilia na reflexão de como
os cantores da soul music trouxeram novas formas de representação da negritude em
consonância com os movimentos negros no Brasil. Como demonstra Honneth, a
emergência das sociedades modernas fez surgir o reconhecimento intersubjetivo, assim, os
indivíduos e grupos buscam o reconhecimento de suas especificidades e o não
reconhecimento ou o reconhecimento deturpado se configura como injustiça social e
elemento de baixa autoestima nos grupos sociais.
O filósofo delimita três esferas do reconhecimento, o amor, o direito e a
solidariedade. O amor se refere aos traços afetivos primários de confiança e reciprocidade,
o direito, ao operar no âmbito da justiça busca o reconhecimento da universalidade e
reconhecimento igualitário entre grupos e indivíduos e a solidariedade se refere à estima e
a particularidade dos grupos e indivíduos. Honneth observa que a luta por reconhecimento
surge nas sociedades modernas onde o status da honra é substituído pela ideia de dignidade
universal. Assim, “a estima social só pôde assumir a forma que nos é familiar hoje depois
que se desenvolveu a ponto de não caber nas condições limites das sociedades articuladas
em estamentos”. (2003,p.201)
Partindo das reflexões sobre luta por reconhecimento podemos compreender a
construção de uma identidade negra internacional, presente na soul music, como a assunção
de uma estrutura de sentimentos emergente em embate direto com uma visão residual
estamental de integração do negro à sociedade nacional.
Obviamente, a sociedade brasileira da primeira metade do século XX não era uma
sociedade estamental, porém, a forma de integração do negro e a assimilação de suas
manifestações culturais à um ideal mestiço de brasilidade criava uma forma de integração
cultural que não representava as especificidades étnicas, tampouco dava vazão às lutas
próprias da comunidade negra. Assim, embora o Brasil já se configurasse como uma
sociedade de classes, as formas de reconhecimento daquela população, bem como sua
estima social, reproduziam padrões estamentais e paternalistas de reconhecimento.
Como demonstramos no início deste artigo, a ideia de mestiçagem, presente tanto
na esquerda quanto na direita dos anos 1960, foi construída no modernismo. Foi justamente
contra esse ideal nacional mestiço que a identidade étnica se afirmou.
Até meados dos anos 1960 predominavam duas formas de reconhecimento da
população afro-brasileira, uma primeira forma negativa e racista, onde o negro era
reconhecido de maneira deturpada por meio de características negativas, como preguiça,
barbárie e incivilização, e uma segunda forma de reconhecimento que assimilava a cultura
negra à brasileira. Essa segunda forma de reconhecimento, embora positiva, só reconhecia
os grupos negros diluídos na mestiçagem nacional, o que oferecia a base para a repercussão
da ideologia da democracia racial. Ao não reconhecer a autonomia do grupo, a ideologia
da democracia racial não auxiliava no combate das formas deturpadas de reconhecimento,
assim, qualquer denúncia de racismo no país era tido como uma ideologia estrangeira e
subversiva da harmonia racial no país.
A miscigenação, que outrora servia como base de positivação da nação brasileira,
passa a ser relida pelo movimento negro como uma forma de apagamento étnico racial. O
fato é que o reconhecimento do grupo negro dentro da perspectiva assimilacionista
miscigenada, não só tirava a autonomia do grupo subalternizado na construção de sua
identidade como também não abrangia uma ideia fundamental na teoria do
reconhecimento, qual seja, a autenticidade cultural do grupo.
Na luta por reconhecimento a ideia de dignidade humana estabelece uma
universalidade em oposição à honra presente em sociedades estamentais, porém, o
reconhecimento também está ancorado em uma ideia de autenticidade cultural
possibilitado por uma esfera pública pluralista. Ou seja, o reconhecimento surge da
sobreposição da ideia universal de dignidade humana com a particularidade subjetiva da
autenticidade das culturas, tal como definiu Charles Taylor (1994):

Este novo ideal de autenticidade também era, à semelhança da


noção de dignidade, fruto do declínio da sociedade hierárquica.
Nessas sociedades, aquilo que hoje designamos por identidade era,
em grande parte, determinado pela posição social, que explica
aquilo que as pessoas consideravam ser importante para elas, era,
em boa parte, determinado pelo lugar que ocupavam na sociedade
e pelos papéis ou atividades inerentes. O nascimento e uma
sociedade democrática põe, por si, cobro a este fenômeno, já que
as pessoas ainda podem definir-se pelos papéis sociais que
desempenham. Mas o que fragiliza decisivamente esta
identificação de cariz social é o próprio ideal de autenticidade.
Dotado do sentido que Herder lhe dá, é o ideal que me leva a
descobrir a minha forma original de ser. Por definição, esta não
pode ser fruto da influência social. Deve, isso sim, gerar-se no
interior do ser. (1994, p. 52)

A luta por reconhecimento em um ideal de autenticidade fez emergir um


interessante debate sobre a possibilidade da soul music ser ou não um gênero
autenticamente negro no Brasil. Parte de jovens intelectuais negros vinculados ao Instituto
de Pesquisas das Culturas Negras (IPCN) levantaram a questão em torno do samba e da
soul. Assim, Carlos Alberto Medeiros tinha a seguinte interpretação dos gêneros musicais:

E depois esse papo de importação cultural (num país da periferia


que até a contestação ao sistema não parte se não de modelos
importados). É pura besteira. Ou esses babacas não sabem que as
multinacionais que faturam com o “alienado” soul dos subúrbios
levam também a parte do leão com o rock, o partido alto (Candeia
é contratado da Warner sabiam?), o sambão joia etc... É só
verificar para quem gravam Chico Buarque, Milton Nascimento –
ídolos intocáveis da classe média branca “participante” –
Clementina, Paulinho da Viola, Martírio da Vida (sic), e mesmo
aqueles nego veio (sic) metidos a puristas que não são africanos...
Será que esse papo furado não esconderia a defesa de suas
posições dentro da atual estrutura? A propósito: já tá havendo baile
de rock na inefável Quilombo. Mas soul, isso não
pode...(MEDEIROS, 1977,p. 16)

A nota nos apresenta a estruturação dual que se formulava na produção musical


negra, o debate retomava a querela a respeito da autenticidade e legitimidade da música
nacional frente a uma pretensa alienação na prática do consumo das canções americanas.
O samba, que na época era disputado como gênero brasileiro ou negro, é definido
por Medeiros como um gênero cooptado pela classe média branca. É importante salientar
que o autor relativiza a pureza do samba dado o seu caráter comercial, o que relativizaria
também a soul music.
O confronto entre sambistas e blacks foi intensamente reportado pela mídia e serviu
como incentivo e propaganda de discos e novos artistas. Além da concorrência entre duas
produções culturais, estava em jogo também um conflito de gerações, que no limite
refletiam posturas a respeito da produção cultural negra no Brasil. Itálo Junior, por sua vez,
via no samba uma prática burguesa da indústria cultural, enquanto o soul responderia a
uma necessidade dos oprimidos se manifestarem dentro dessa mesma indústria:

Fica evidente que, mesmo no seio da indústria cultural, formas


artísticas distintas podem também estar falando por grupos sociais
antagônicos. É claro que o lucro obtido tanto com o samba quanto
com soul revertem em benefício de quem detêm o controle da
indústria cultural. Mas em termos de linguagem musical, o samba
está no domínio burguesia, enquanto que o soul está exprimindo
uma resistência por parte de oprimidos. (negrito do autor)
(MARCONI JUNIOR, Ago. 1977,p.16.)
Mais que uma análise, a nota de Itálo Junior serve como documento histórico para
interpretação a respeito das diferentes visões sobre o samba e a soul music nos anos 1970.
Ao associar a soul music à resistência o autor chamava atenção para uma nova linguagem
musical entre os jovens da periferia, assinalando ainda um suposto caráter burguês no
samba. O fato é que na percepção do autor, o samba parecia ter sido cooptado pelo
pensamento burguês, servindo como espetáculo midiático e celebratório de um
nacionalismo ufanista. A resistência da soul music estaria na já discutida aqui formação de
um orgulho negro e uma conscientização negra, enquanto o samba já havia adentrado na
lógica de uma gramática nacional que carregava a ideologia da integração racial.
A fala de Carlos Medeiros e Itálo Junior, dois pesquisadores e militantes negros
dos anos 1970 nos remete a busca por reconhecimento em torno da ideia de autenticidade,
entretanto, os pesquisadores parecem focar a autenticidade, ou falta de autenticidade, no
caráter comercial dos gêneros. Neste sentido, embora ambos os gêneros fossem
comerciais, o soul criava uma possibilidade de expressão de uma resistência pela
linguagem musical. A soul music apresentava-se para os pesquisadores como uma
manifestação negra que possibilitaria dar vazão ao reconhecimento autônomo da
comunidade negra frente à um nacionalismo pouco combativo representado no samba.
É importante salientar que na segunda metade da década de 1970, parte da
intelectualidade negra estava vinculada a ala trotskista do movimento estudantil, assim, o
debate em torno das práticas culturais negras revestia-se de termos em torno de ideias como
conscientização, resistência e práticas contra-hegemônicas, neste cenário a categoria
“cultura negra” surgia como uma estratégia de mobilização política. (CUNHA, 2000,
p.347)
Este debate em torno das práticas culturais autênticas ou não na música popular
brasileira nos remete a própria formação do samba como prática cultural negra. Como
afirma Napolitano (2006) desde os anos 1930 que o debate sobre a música popular
brasileira tende ora por uma busca das raízes étnicas, ora por uma universalização nacional.
Em seu reconhecido livro O mistério do samba (2002), o antropólogo Hermano
Vianna busca compreender porque o samba, uma prática cultural até então perseguida pela
polícia, veio a se tornar símbolo de nacionalidade no Brasil na década de 1930. Para o
autor, a formação do samba como gênero musical ocorre concomitantemente a sua eleição
como símbolo nacional. Vianna busca entender como se “criou uma autenticidade” em
torno do samba ou ainda, a “invenção da tradição nacional-popular brasileira” (2002, p.36)
no contato entre a elite e as classes populares. Assim, Gilberto Freyre teria sido um dos
grandes inventores do orgulho nacional em torno da mestiçagem, e o samba foi escolhido
como gênero musical representante dessa mestiçagem, portanto de nossa autenticidade
nacional.
Neste cenário, o enfrentamento do mito da democracia racial na década de 1970,
passava também por um questionamento do gênero samba como representação da
mestiçagem brasileira. Muito embora os sambistas daquela geração também se afastassem
da ideia de miscigenação apelando para a busca de uma raiz negra, o samba ainda se
encontrava como representante de uma brasilidade autêntica que, na visão de uma parcela
do movimento negro, não poderia ser reconhecido como instrumento de conscientização.
A ideia de “autenticidade” se formula como uma estratégia retórica de identificação
entre o Brasil e símbolos que nos definem como brasileiros pertencentes a essa mesma
comunidade imaginada. Entretanto, os símbolos de autenticidade não são fixos, fazem
parte de uma luta simbólica em torno da classificação. Nesta luta por classificação o
significante negro passa a ser mais autêntico do que a ideia de nação. Ao se afastarem do
samba como prática cristalizada como legítima desde o modernismo, os cantores da soul
music acabavam revelando um lado impuro da música popular brasileira, qual seja, a
influência estrangeira.
É neste sentido que a soul music como música negra internacional ameaçava a
“ordem” proposta e construída pelo samba, principalmente entre os músicos e
compositores que buscavam uma autenticidade negra e nacional do samba.
De maneira inversa ao samba, que nacionalizou os símbolos étnicos da população
negra, a soul music internacionalizava esses símbolos. Colocando a negritude brasileira em
um patamar semelhante à negritude internacional. O Atlântico Negro emerge nos cantores
da soul music expresso em uma prática cultural desenvolvida mais na condição de diáspora
africana do que diluída na ideia de nacional-popular.
A perspectiva anti-imperialista presente em boa parte da intelectualidade da época
criava uma imagem alienada dos produtores e consumidores da soul music, que, segundo
aqueles intelectuais, não sabiam apreciar a riqueza cultural de nosso país. Numa
perspectiva menos mecânica a ideia de Atlântico Negro nos parece mais eficaz para a
compreensão do fenômeno, já que permite entendê-lo sobre a rubrica do intercâmbio
cultural internacional, sem com isso, abandonar as relações de poder presente nas trocas
culturais.
Tal como demonstrou Paul Gilroy (2001), o Atlântico negro formula uma
contracultura na ambiguidade entre a presença dos negros escravizados no Novo Mundo e
a diáspora africana. A experiência da escravidão criou uma comunidade imaginada negra
em tensão com os limites nacionais, formando assim uma contracultura internacional
baseada em laços de solidariedade e narrativas dos grupos escravizados. Essa contracultura
negra encontrou na música um importante veículo de comunicação, solidariedade e coesão
O debate trazido em torno da autenticidade das linguagens musicais atreladas à
etnia são representativos do que viemos definindo como surgimento de uma estrutura de
sentimentos negra no país em consonância com uma luta pelo reconhecimento étnico-
racial, e podem nos oferecer subsídios para reflexão de uma transformação no próprio
espaço público do país durante o regime civil militar.
Como demonstramos nesse artigo, a democracia racial se transformava em
ideologia das classes dominantes incrustradas nas esferas do poder ditatorial, e o nacional
popular, que orientou a MPB, já não oferecia subsídios para um efetivo reconhecimento
da cultura negra no Brasil. A luta por reconhecimento étnico racial, ao buscar superar estas
duas formas deturpadas de reconhecimento, trazia uma nova forma de representação da
negritude no país, pode-se mesmo afirmar que nos anos 1970 o Brasil tornava-se mais
negro.
Nossa hipótese é que as transformações institucionais da ditadura abriram o
caminho para emergência de novas formas de representação da negritude brasileira
atreladas à experiência e memória do Atlântico Negro. Como já afirmamos, a perda da
hegemonia da esquerda somado à ascensão de novos personagens catalisou uma cultura
emergente e pouco sistematizada em torno das identidades étnico raciais. O fenômeno pode
ser capturado por diversos pontos de vista: a entrada do país no capitalismo global, um
aumento da consciência da população afro-brasileira sobre sua memória étnica, a
urbanização e crescimento da população negra como consumidora e produtora cultural no
país, o surgimento do internacional popular como manifestação de uma produção cultural
periférica. Enfim, as diversas leituras convergem para o fenômeno da luta por
reconhecimento étnico racial no país.
A contracultura do Atlântico Negro representada pela soul music no Brasil exerceu
um importante papel político em uma esfera pública pouco autônoma durante a ditadura.
Foi por meio da luta de reconhecimento que se ampliou a ideia de democracia em um
contexto de violenta repressão à própria democracia. A experiência do Atlântico Negro, ao
oferecer horizonte para luta por reconhecimento das comunidades negras, auxiliou na
configuração de identidades étnicas que se desenvolveriam entre a comunidade negra
brasileira, oferecendo subsídios para ampliação de uma luta contra o modelo autoritário
instaurado com o golpe militar, politizando cada vez mais o reconhecimento em torno de
demandas de efetivo reconhecimento e integração da população negra na esfera pública
brasileira.

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