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No Brasil, como já observamos, a organização da luta de classes não era uma pauta
central da esquerda, ao contrário, a opção pela conciliação e alianças de classe era
imperativa até o golpe de 1964. Por outro lado, o dado anti-imperialista se constituiu como
horizonte político cultural, oferecendo ingredientes para o nacional popular na produção
cultural da esquerda.
Assim, o nacional popular se configurou no campo artístico como uma forma de
representação desta conciliação brasileira, muito embora tivesse a revolução socialista
como utopia, as representações estavam muito mais próximas de um radicalismo da classe
média do que propriamente uma revolução.
Nossa hipótese é que a inviabilidade de uma política de aliança de classes revelada
pelo golpe de 1964, trouxe a entrada em cena de novos sujeitos políticos não unificados
em torno da pauta nacional-popular. Assim, o fim da conciliação de classes trouxe também
o fim da conciliação étnico-racial representada pela perspectiva de povo miscigenado.
Estas mudanças foram intuídas por Heloísa Buarque que em Impressões de
Viagem nos apresenta o seguinte relato:
Por outro lado, a realidade dos grandes centros urbanos é valorizada
agora em seus aspectos “subterrâneos”; marginal do Harlem,
eletricidade e LSD, Rolling Stones e Hell´s Angels. A identificação
não é mais imediatamente com o “povo” ou o “proletariado
revolucionário”, mas com as minorias: negros, homossexuais,
freaks, marginal de morro, pivete, Madame Satã, cultos afro-
brasileiros e escola de samba. A Bahia é descoberta, nesse
momento, como o paraíso oficial das minorias: a marca profunda da
negritude, dos rituais africanos, da cozinha sensual, do ócio, da
mescla do primitivo e do moderno, é associada à disposição
libertaria do Tropicalismo. É da Bahia agora, a região cultural
privilegiada por excelência, que surgem os principais líderes desse
movimento: Glauber Rocha, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Wally
Sailormoon, Rogério Duarte, Duda Machado, Antônio Risério e
outros. Essa associação da Bahia com a atitude de modernidade do
pós-Tropicalismo tem um exemplo expressivo na composição Triste
Bahia, onde Caetano Veloso faz um arranjo musical do poema do
mesmo nome do não menos baiano Gregório de Mattos. A gravação
da Triste Bahia faz-se em inventário e mosaico, onde o poema
musicado sofre a intervenção de canções folclóricas da Bahia,
ruídos eletrônicos, vozes superpostas, sons de berimbau e guitarras
elétricas, situando na triste e primitiva Bahia a explosão industrial
do Brasil moderno. (2004,p75)
Tim Maia, Jorge Ben e Tony Tornado, luta por reconhecimento na canção brasileira
Era o tipo de gente que o brasileiro do sul não gostaria que fosse
brasileiro – o seu Outro rejeitado, um outro modo de ser brasileiro:
mestiço, imigrante, pobre, “desterrado”. Mas, menos que o tipo
físico, era todo um Brasil antigo, que era rejeitado, tal como a
Bahia o fora: o Brasil das casas-grandes, dos coronéis, da
agricultura de subsistência, da fome, do flagelo, das secas. Seria
também o Brasil que o sul odiaria ser no futuro: mestiço, pobre
migrante? (GUIMARÃES, 2002, p.133)
É expressivo que Tim Maia mescle sonoridades negras com gêneros do nordeste,
já que as canções remetiam a dois grupos outsiders. O fato pode nos revelar a proximidade
de identidades subalternas. A ideia de uma aproximação de identidades subalternas é
analisada por Stuart Hall (2011) como um fenômeno emergente no processo da
globalização. Como exemplo o autor assinala que nos anos 1970 o significante black
forneceu um foco de identificação que abrangia tanto as comunidades afro-caribenhas,
quanto as comunidades asiáticas em território britânico. O fato é que, apesar de não
representarem culturalmente a mesma coisa, essas comunidades eram vistas e tratadas
“como a mesma coisa” pela cultura dominante. A exclusão dessas comunidades formulava
um “eixo comum de equivalências” (HALL, 2011, p.86). Nesta perspectiva, a mistura da
música negra norte americana com o som do nordeste brasileiro pode ser interpretada como
uma formulação de identidades subalternas num contexto em que tanto os negros como os
nordestinos se apresentavam como um grupo outsider dentro da sociedade brasileira.
As canções de Jorge Ben também foram representativas de grupos outsiders da
sociedade brasileira. Desde os anos 1960 o compositor investia em personagens
marginalizados pela história oficial, além de enfatizar elementos da cultura afro brasileira
ainda pouco representados no campo da música brasileira na referida época. É constante
na produção sonora do compositor a presença das religiões de matrizes africanas, figuras
como o preto velho e outras entidades espirituais povoam as canções de Jorge Ben desde
seu primeiro LP de 1963. Porém, será a partir dos anos 1970 que a negritude de Jorge Ben
passa a dialogar cada vez mais com a negritude internacional do Atlântico Negro.
Seu disco Negro é lindo, lançado em 1971 é um marco na carreira do compositor,
nele, Jorge Ben adere à soul music norte americana e apresenta um discurso em torno da
positivação da cultura negra brasileira. O próprio título do disco, nome também de uma de
suas canções, é uma tradução literal do lema Black´s Beautiful, trazendo para as terras
brasileiras a política do orgulho negro que já se espalhara nos EUA.
A canção “Negro é Lindo” é uma balada soul onde o compositor apresenta uma
mensagem de positivação da negritude com frases como, “negro é amor, negro é amigo,
Negro também é filho de deus”, “Preto velho tem tanta canjira, que todo povo de Angola
mandou preto velho chamar”. Assim como Tim Maia, Jorge Ben assimila a soul music
com dados de uma memória étnica afro-brasileira preservada no candomblé, seu discurso
em torno do reconhecimento positivo da cultura afro-brasileira aciona o localismo e o
cosmopolitismo negro.
As frases embaladas pelo discurso “negro é lindo” se referem àquilo que Stuart Hall
(2003) denomina como políticas de transformação dos signos que começam a emergir
durante os anos 1960 nos EUA. Para o autor, tratam-se de estratégias de transcodificação,
surgidas quando os temas de representação e poder passam a ser centrais nas políticas dos
movimentos antirracistas. Nessa perspectiva, estas estratégias buscam reverter os
estereótipos estigmatizantes sobre as populações subalternizadas.
Como assinala Sergio Costa (2006, p. 135), o movimento virava ao avesso a ordem
simbólica dominante, que tratava as características físicas associadas ao negro como
sinônimo de imperfeição estética. Assim, a canção “Negro é lindo”, adentra em uma
política de reconhecimento étnico e de autoestima da população negra invertendo
estereótipos negativos baseados em formas degradantes de reconhecimento.
Outra canção importante do disco é a “Cassius Marcelo Clay”, feita em parceria
com Toquinho. Os compositores fazem uma homenagem ao boxeador, que mais tarde
mudaria seu nome para Muhammad Ali ao adotar o islamismo como religião.
Os compositores transformam o boxeador em super-herói do mundo das histórias
em quadrinho, como Capitão América, Batman e Superman. Chama atenção a forma de
assimilação do pop na canção, ao colocar o boxeador negro ao lado de super-heróis os
compositores trabalham elementos da cultura pop para valorização da negritude,
transformando Cassius Marcelo Clay (Muhamad Ali) em herói da causa negra.
Muhammad Ali foi um dos símbolos da luta pelos direitos civis nos EUA. Um dos
mais importantes boxeadores do país. Negro e mulçumano, foi uma referência para a luta
das minorias étnicas. Reconhecido mundialmente como mestre da movimentação no
mundo do boxe e símbolo da negritude mundial, o esportista frequentava países da África
sendo recebido com pompa de chefe de estado. Muhamad Ali ganharia ainda maior
prestígio entre os jovens americanos simpatizantes da contracultura quando, em 1966, teve
o seu título de campeão cassado diante da recusa à prestação do serviço militar (PEREIRA,
1992, p.76).
A homenagem ao esportista reconhecido mundialmente é sintoma do
internacionalismo contracultural na canção. Entretanto, é importante notar que em
“Cassius Marcelo Clay” as referências não são apenas norte-americanas, Jorge Ben vincula
o boxeador a elementos da brasilidade, ao afirmar que o lutador “tem a cadência de uma
escola de samba” e o “quatro três quatro de um time de futebol”. Ora, tanto o samba quanto
o futebol se configuram como símbolos nacionais que em diversos momentos de nossa
história são acionados na construção de uma identidade brasileira, ademais, se configuram
em tantos outros momentos como símbolo da negritude no Brasil.
Ao apresentar Cassius Marcelo Clay como herói da causa negra internacional e
compará-lo a símbolos étnicos brasileiros, os compositores ressignificam esses símbolos
deslocando-os para o âmbito de uma negritude internacional. Desse modo, a escola de
samba e o futebol para além de seus símbolos de brasilidade, se apresentam inclusive como
elementos de luta e força dos povos negros da diáspora.
Seguindo sua fase soul, Jorge Ben lança em 1972 o disco Ben, em que o compositor
mantém suas experimentações híbridas entre o samba e soul. Este álbum apresenta uma
continuidade nas formas de representação do negro brasileiro. Um dos destaques é a canção
“Domingo 23” que faz alusão a São Jorge, cujo dia de comemoração é 23 de abril. Além
de fazer uma autorreferência ao nome de Jorge, a música traz elementos do sincretismo
religioso do catolicismo brasileiro com o candomblé. Acompanhada por batidas de
atabaques, a canção aproxima São Jorge ao seu homônimo no candomblé, qual seja, o orixá
Ogum. Em 1975, no disco Solta o Pavão, Jorge faz outra homenagem ao santo, gravando
a oração em forma de canção ”Jorge da Capadócia” em estilo funk soul.
Como viemos demonstrando as referências de Jorge Ben circulam entre o dado
nacional e internacional, entretanto não se filiam ao discurso nacional-popular A
perspectiva de Jorge Ben, em seus discos da primeira metade dos anos 1970, coloca a
identidade negra frente à identidade nacional. Assim, o autor representa muito mais uma
perspectiva afro brasileira em conjunção com o Atlântico Negro, do que uma negritude
assimilada pelo nacionalismo. É significativo que a conjunção entre o dado internacional
e o localismo em Jorge Ben se de mediado pelas religiões afro-brasileiras, já que estas
formas religiosas se configuram, no Brasil, como importante fonte de manutenção de uma
memória étnico-racial e também musical. Assim, ao mesclar arranjos soul com batidas do
candomblé, o compositor aponta para uma internacionalização afro-atlântica das religiões
de matriz africana.
Tim Maia e Jorge Ben são representativos da chegada da soul music no país,
entretanto, coube a Tony Tornado o coroamento do gênero por meio da imagem televisiva.
Foi nos anos 1970 que a televisão se tornou o principal meio de comunicação cultural no
país, e a presença do fenômeno Tony Tornado nos dá notícia de como a imagem black
passa cada vez mais a povoar o imaginário de parte da população brasileira.
Tony Tornado foi o vencedor do V Festival Internacional da Canção, organizado
pela Rede Globo de televisão, cantando o famoso soul “BR-3”. O V FIC, realizado em
1970, não possuía a mesma finalidade dos grandes festivais da década anterior. Diferente
dos festivais anteriores, que buscavam construir movimentos musicais e estimular o
surgimento de novos agentes culturais no campo musical, o V FIC investia em uma
imagem internacional do país, atrelando a música brasileira à propaganda do regime civil
militar. (SCOVILLE, 2008, p. 25).
Como se sabe, o festival possuía um tom patrioteiro, entretanto, o destaque do V
FIC ficou por conta da soul music. Além da vencedora, BR-3, interpretada por Tony
Tornado, o festival contou com a participação do grupo Abolição, regido por Dom
Salvador, além de uma inusitada apresentação do Trio Mocotó com a canção “Eu quero
Mocotó”, uma mistura de “sambão jóia” com arranjos em estilo soul.
Foi nesse clima que a canção BR-3 se consagrou na voz de Tony Tornado. O cantor
se tornou um verdadeiro fenômeno midiático, presença constante na televisão e nos jornais,
Tony Tornado encarnava a imagem do negro norte americano, com suas performances
blacks e um discurso em torno da identidade e autoestima da população afro-brasileira.
O relativo sucesso de Tony Tornado e suas mensagens sobre a autoafirmação negra
não passaram despercebidas pelos censores da ditadura, como revela a seguinte reportagem
da revista Gente:
Ao interpretar na televisão carioca a canção “Sou Negro”, cuja
letra focaliza problemas de raça, o cantor Tony Tornado, foi
advertido pelo Serviço de Censura na última semana por
acompanhar sua interpretação com tapas no próprio rosto e gestos
de punhos cerrado, imitando os representantes do Poder Negro dos
Estados Unidos. Motivo de advertência: Tony Tornado (apelido
do carioca Antonio Vieira Gomes) dá uma imagem falsa da
realidade brasileira, ao insinuar agressivamente um clima de ódio
racial que não existe no Brasil. (GENTE, 7 out. 1970, p.84)
Referências bibliográficas:
GUIMARÃES, Antônio Sérgio. Classes, Raça e Democracia. São Paulo: Editora 34,
2002.
HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São
Paulo: Ed. 34, 2003.
SCWARCZ, Roberto. O pai de família e outros estudos. São Paulo: Paz e Terra, 1978.
SKIDMORE, Thomas. O Brasil visto de fora. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994.
HUNGRIA, Julio. Na música popular o mundo não tem países. Jornal do Brasil,
Caderno B, Rio de Janeiro: 31 dez. 1970, p. 3
Discografia:
BEN, Jorge. Força bruta. Universal Music , 1970 .