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Waldenyr Caldas

TEMAS DA
CULTURA DE
MASSA
MUSICA, FUTEBOL, CONSUMO

2.000

3
2000, by Editora Arte & Ciência

Direção Geral
Henrique Villibor Flory
Editor e Projeto Gráfico
Karel Langermans
Editoração Eletrônica
Vinicius Bronzatto Graberth
Capa

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Biblioteca de F.C.L. - Assis - UNESP)

Rua Treze de Maio, 71 – Bela Vista


São Paulo – SP - CEP 01327-000
Tel/fax: (011) 257-5871
Na internet: http://www.arteciencia.com.br

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Sumário

A. Prefácio 07

1. Comunicação e Indústria Cultural 09

2. O Consumo Estratificado da Produção Cultural 19

3. Sociedade e Cultura de Massa 35

4. O Lixo do Luxo: O Consumo de Elite e da Periferia


Trash Chic 57

5. Produção Cultural e Classes Subalternas 63

6. O Sucesso dos Esquecidos 75

7. Subliteratura: O Fetiche do Prazer 81

8. O Som dos Modernistas 91

9. Aspectos Sociopolíticos do Futebol Brasileiro 99

10.O Futebol e a Cultura Brasileira 113

11. Futebol: A Arte e a Força 131

12. Paixão e Crise no Futebol Brasileiro 153

13. Ideologia da Esperteza 165

5
Prefácio
A cultura de massa é, provavelmente, um dos temas masi estu-
dados das Ciências Humanas no Brasil. Nas Faculdades de Comuni-
cação espalhadas por todo país, a produção e o consumo de objetos,
faz parte de longas discussões em seminários, palestras, congres-
sos, mesas-redondas, etc.

Esses debates, na verdade, já vêm acontecendo desde o final


dos anos sessenta, quando a Universidade brasileira passa a discutir
a Teoria Crítica da Cultura. Theodor W. Adorno, Max Horkheimer, Walter
Benjamim, Herbert Marcuse e Jurgen Habermas, são alguns dos teó-
ricos da Escola de Frankfurt, responsáveis pelos estudos que hoje
são conhecidos em seu conjunto, por Indústria Cultural. Essas análi-
ses passam por discussões que envolvem, especialmente, mas não
só, política, estética e ideologia. No Brasil, dois trabalhos merecem
destaque, justamente pelos subsídios teóricos que oferecem. São eles:
Sociologia da Comunicação: teoria e ideologia, de Gabriel Cohn, e Os
Arcanos da Inteiramente Outro, de Olgária Matos. Trata-se de dois
livros imprescindíveis para melhor compreendermos as sutilezas e o
significado político e ideológico daquilo que os frankfurtianos chamam
de Indústria Cultural.

Neste livro estão reunidos treze ensaios escritos em diferentes


momentos. Todos eles, no entanto, tratam de questões ligadas à In-
dústria Cultural em nosso país.

As diferentes formas de produção e de consumo, sua


estratificação e o contexto de cada classe social, estão contempla-
das nas análises aqui apresentadas. A Paraliteratura, dos escritores
como Dr. G. Pop, Adelaide Carraro e Cassandra Rios, entre outros,
aparece em dois momentos. Quase desconhecida nos meios acadê-
micos, a paraliteratura continua sendo sucesso de público. Diferente
da chamada literatura culta, ela não se enquadra nas formalidades
teóricas do romance apresentadas, por exemplo, nas obras de Wolfgang
Kaiser, Lukàcs, ou mesmo Lucien Goldmann.

No tocante à música, analisamos aqui o clima revolucionário da


Semana de Arte Moderna de 22. Vislumbrava-se, na época, a auto-
promoção, o desejo de brilhar de alguns personagens e, evidentemen-
te, o conflito entre a nova e a velha estética da música erudita brasilei-
ra.

7
O futebol, certamente um dos mais importantes produtos da cul-
tura lúdica brasileira, é tratado aqui de forma sistemática e minuciosa.
Seu significado para a cultura brasileira é analisado, tendo em vista
ser, ao lado da música popular e da telenovela, os três mais represen-
tativos produtos culturais do nosso país. Discutimos ainda, os aspec-
tos sóciopolíticos que envolvem nosso futebol. Sua importância no
contexto dos acontecimentos fora dos campos de futebol, não pode
ser deixada de lado, muito menos minimizada.

Respeitado e admirado em todo mundo, nosso futebol ganhou


“status” de arte para alguns especialistas estrangeiros. No ensaio “fu-
tebol: a arte e a força”, faço comparações com o futebol europeu.
Assim, nem sempre o que se fala sobre o futebol brasileiro na Europa,
podemos considerar como verdadeiro no Brasil.

8
1. Comunicação e Indústria Cultural
A conjunção entre comunicação – tornar algo comum – e in-
dústria cultural – pressupõe interrogar o modo pelo qual aquilo que se
convencionou denominar “indústria cultural” torna o mundo dos bens
culturais algo comum, em princípio, a todos. Este termo, cunhado por
Adorno – bem como seu correlato – o de “Halbbildung” (semi forma-
ção), permitiu dissociá-lo do termo “cultura de massa”.
Esta expressão, segundo Adorno, induz a erro, na medida em
que pode significar tratar-se de uma cultura produzida pelas massas e
a elas devolvida pela mídia, por exemplo. No ensaio “indústria cultural”
bem como em “Elementos de anti- semitismo”, ambos no livro Dialética
do Esclarecimento, Adorno procura mostrar dois aspectos que o ca-
racterizam: 1) todos os bens culturais e as produções espirituais de
formação de indivíduos passam a ser exclusivamente determinados
pelas leis do mercado. Seu destino primeiro e último é o mercado
consumidor; 2) a transmissão dessa cultura deve ser imediatamente
inteligível a todos. Sua lei é a da facilidade e é, nessa medida, criado-
ra de estereótipos. Theodor Adorno assinala que “hoje, quando a cul-
tura está em vias de se extinguir por razões econômicas, criaram-se
numa escala insuspeitada novas condições para a paranóia das mas-
sas (...) A semicultura (ou semi formação), recorre esteriotipadamente
à fórmula que lhe convém melhor em cada caso, ora para justificar a
desgraça conhecida, ora para profetizar a catástrofe disfarçada” 1.
Estas observações partem da idéia segundo a qual a orienta-
ção economicamente determinada da sociedade em seu todo, ou seja,
a determinação de todas as esferas da vida pelas leis do mercado –
prescinde e dissolve o sujeito autônomo. Mais adiante Adorno acres-
centa: “desde Hamlet, a vacilação tem sido para os modernos um
sinal do pensamento da humanidade (...).
Hoje, os indivíduos recebem do poder seus tickets já prontos”2
(isto e’, estereótipos do pensamento e da reflexão – que supõem apre-
ensão de diferenças e diferenciações nas coisas e situações – o que
é contrário das noções de homogeneidade e uniformidade criadas,
(ou presentes) na sociedade de massa.
Sua constituição já fora detectada por Tocqueville na obra De-
mocracia na América, publicada pela primeira vez em 1835.O autor
chama a atenção para a igualdade promovida pela Revolução France-
sa. O desejo de igualdade engendra uma sociedade cada vez mais
1
Theodor Adorno. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro. Zahar, pp. 183-184.
2
Theodor.Adorno, op. cit. P.191

9
homogênea, na qual as mentalidades não se modelam mais pelos
costumes e tradições; surge uma pulsão desmedida a pagar todas as
distinções entre o homem, seja a do talento, riqueza ou capacidades
individuais. E isto pressupunha, segundo Tocquevile, a fé na razão e
na “igualdade de condições”. O autor menciona ainda e repulsa quase
invencível dos americanos no século XVIII pelo sobrenatural e a dispo-
sição a crer que tudo é explicável. A esse respeito, Lefort assinala:
“Aparece, assim, (na Revolução Americana) a figura do indivíduo, pe-
queno soberano, puro sujeito de conhecimento. Poder-se-ia dizer que,
para o sábio, a razão é o objeto de uma fé, uma vez que sua atividade
deriva de postulados de verdades primeiras que ele não pode
demostrar3.
Aqui, encontramos também as palavras de Baudrillard quando
reconhece na concepção contemporânea da noção de massa, não a
idéia de passividade, apatia. Ela se constitui, ao contrário, como re-
sultado de um esforço: “durante muito tempo”, anota Baudrillard “a
estratégia de poder pôde aparecer se basear na apatia das massas
(...) (Hoje), em toda parte se procura fazer as massas falarem, se as
pressiona a existir de forma social, eleitoralmente, sindicalmente, se-
xualmente (...) É preciso conjurar o espectro, é preciso que ele diga
seu nome (...) O único problema verdadeiro é o silêncio da maioria
silenciosa. Todas as energias são consumidas para manter essa massa
em emulsão dirigida e para impedi-la de cair em sua inércia pânica e
em seu silêncio (...) É preciso liberar a ‘energia’ da massa para dela
se fazer o ‘social’4.
Com isto, Baudrillard procura dizer que a sociedade homogê-
nea, uniforme e da igualdade abstrata é fruto e um esforço e mesmo
de uma “cegueira voluntária”, que Lefort, por sua vez, enuncia dizen-
do: “não pensar não significa não querer pensar mas querer não
pensar”5 .(Ou ainda nas palavras de Adorno: “os homens que se quali-
ficam em coletividade, transformam-se a si mesmos em algo material,
desaparecem como sujeito autônomos”6 .
Nesse sentido Adorno dizia, acerca do espírito e da prática da
mídia como veículo da cultura de massa, que sua lei é a da novidade,
mas de modo a não perturbar hábitos e expectativas, a ser imediata-
mente legível e compreensível pelo maior número de espectadores ou
leitores. Evita a complexidade, oferecendo produtos à interpretação
literal, ou melhor, mínima. Isto significa, por sua vez, o advento da
sociedade do espetáculo, no sentido em que Guy Debord o enuncia
em seu livro Sociedade do Espetáculo. Com a dissolução do sujeito
autônomo(o da reflexão independente), aquele capaz de produzir uma
interpretação de si mesmo e da sociedade, dissolve-se também o
espaço público onde se engendra, se institui e se consolidam direitos
3
Claude Lefort, O Fenômeno da Crença em Política , Coleção Utopias, UFMG,
1994,pp.36-49
4
Jean Braudrillard, À Sombra das Maiorias Silenciosas , São Paulo,
Brasiliense, pp.24-25
5
Claude Lefort, op. cit., p.41
6
Theodor.Adorno, “Educação depois de Auschwitz”, in: Educação e
Emancipação. Rio de Janeiro, Paz e Terra, p.91.

10
e o pertencimento simbólico à Lei com o advento da imagem pública.
Ou ainda nas palavras de Marilena Chauí, quando toma o exemplo da
missa oficiada na Catedral da Sé em comemoração ao aniversário da
cidade de São Paulo: “quando o oficiante, no momento da consagra-
ção, ergue a hóstia e o cálice, pronuncia palavras mágicas do mistério
sagrado, a catedral silencia sob o tilintar das campainhas, inundada
pelo perfume do incenso, tem lugar um gigantesco espetáculo ofereci-
do aos fiéis, a encarnação da divindade em objetos até então insigni-
ficantes. A transubustanciação do pão e do vinho no corpo e Deus é
espetáculo, mistério especulativo e exposição do absoluto ao olhar,
ao coração e à mente dos fiéis.” Porém no dia 25 de janeiro, os fiéis
não puderam presenciar a missa, pois entre a nave e o altar postaram-
se holofotes, microfones, câmaras de TVs, fotógrafos, repórteres, téc-
nicos, operadores de máquina e outros profissionais dos meios de
comunicação. Ao observar este quadro Marilena comenta que, “além
de interceptarem a visão dos presentes, os noticiadores tornaram-se
oficiantes(...), só que de outra cerimônia, falando ao mesmo tempo
que os sacerdotes (...), narrando aos que ficaram em casa o que se
passava na Igreja. No instante máximo para um cristão - a elevação
do cálice e da hóstia, em lugar do silêncio, da reverência e do misté-
rio, ouviram-se cliques fotográficos, piscar dos holofotes. Para o fiel foi
o instante da profanação absoluta, enquanto que, para os que ficaram
em casa, a missa não perdeu sua dignidade. Todavia o que viram ou
ouviram foi o fantasma da missa, seu simulacro. A missa foi transfor-
mada em entretenimento dominical”7 . A mídia contorce reflexão em
entretenimento ou distração - isto é, ela é ausência de pensamento.
Como diz o sociólogo americano Dwight Macdonald, “a masscultura
não oferece a seus clientes nem uma catarse emocional, em uma
experiência estética, porque estas coisas requerem um esforço. A
cadeia de produção tritura um produto uniforme cujo modesto objetivo
não é sequer o divertimento, porque este também pressupõe vida e,
portanto, esforço, mas simplesmente a distração. Pode ser estimu-
lante ou narcótico, mas deve ser de fácil assimilação. Não pede nada
ao seu público(...) E não dá nada”8 . É nesses termos que a cultura de
massa apaga a distinção entre o público e o privado podendo, na
verdade, desaparecer ambos ao mesmo tempo. Não haveria mais di-
ferenciações. Como assinala Claude Lefort, “só há possibilidade de
oposição e crítica, quando há referências simbólicas, diferenciações
de lugares sociais não dissimulados e, sobretudo identidades, a do
mestre, pai ou instituição”9 . Esta visão, nos parece, é radicalizada no
pensamento de Adorno. Ele fala nas imagens que nos inflacionam e
nos impedem de imaginar, de pensar dada a velocidade e a quantida-

7
O texto acima faz parte da Aula Inaugural da Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas, ministrada pela Profa. Marilena Chauí, em 1994. O texto está
apenas mimeografado.
8
Dwight Mac Donald, “Masscultura e Medicultura”, in: A indústria da Cultura. Lisboa,
Meridano, 1977, p.71.
9
Claude Lefort, “Pensando a Política”, in: Ensaios sobre Democracia, Revolução e
Liberdade . Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1994, p.74.

11
de com que nos são apresentadas.
As idéias de Baudrillard também vão nessa direção. Ao anali-
sar a Guerra do Golfo, ele nos apresenta, na verdade, duas guerras:
uma real, verdadeira e outra uma espécie de “simulacro da guerra”, ou
seja, uma guerra apresentada pelas imagens da televisão cujo objeti-
vo, entre outros, era mostrar a supremacia norte-americana e a
pertinência de sua intervenção no conflito em nome da paz mundial.
Nesse caso, substitui-se a guerra pelos signos da guerra. Em outras
palavras, estamos diante da ilusão da guerra e da guerra da ilusão. No
primeiro caso, é como se a guerra fosse realmente a grande saída
para a resolução dos problemas. Não é necessário explicar que nada
justifica uma guerra, claro. No segundo caso, estamos diante da farsa
e do embuste. Daquilo que a palavra alemã Schwindel resume muito
bem: a perda de consciência e a mistificação do telespectador. É a
guerra da ilusão. Uma guerra que nunca existiu. Uma guerra articula-
da através de imagens cuidadosamente selecionadas nas dependên-
cias da CNN, com censura prévia para, posteriormente, chegar à opi-
nião pública mundial. Nesse aspecto, as análises de Baudrillard dão
conta de que “a televisão inculca-nos a indiferença, a distância, o
ceticismo, a apatia incondicional. Pelo devir-imagem do mundo,
anestesia a imaginação, provoca uma ab-reação de repulsa e, simul-
taneamente, um aumento de adrenalina que leva à desilusão total”.
Em Freud o conceito de ab-reação concerne a gênese de um sintoma
histérico, conforme sua obra Sobre os Mecanismos Psíquicos dos
Fenômenos Histéricos (1893). Mas tem também o sentido da libera-
ção da lembrança de um acontecimento traumático. Por isso mesmo,
ela permite a catarse capaz de liberar a pessoa de seqüências patoló-
gicas, com a construção de um mundo em imagens pré-concebidas
para dominar consciências. Disso resulta, ao contrário, a subsistên-
cia de um estado inconsciente que inviabiliza a defesa contra a an-
gústia. Nesse sentido, continua Baudrillard, “a televisão e os ‘media’
poderiam tomar o real dissuasivo se não o fosse já. E isso constitui
um progresso absoluto na consciência, ou o inconsciente cínico da
nossa época. Os americanos conduziram a mesma guerra tanto pe-
rante a opinião pública mundial - através dos ‘media’, da censura, da
CNN etc., - como no teatro de descompressão, que suga todo oxigê-
nio da opinião pública. Não se trata de ser a favor ou contra a guerra.
Trata-se de ser a favor ou contra a realidade da guerra”10 .
Não sem motivo, o teórico italiano Gianfranco Bettetini, se pre-
ocupa com as mesmas questões analisadas por Baudrillard, mas em
outra perspectiva. Em seu ensaio intitulado “La Televisione del Rumore”,
o autor assinala que “o advento da eletrônica não substitui o discurso
da realidade mas, ao contrário, acrescenta-lhe discursos incoerentes,
muitas vezes inverídicos, cujo fascínio caótico tende a assemelhar-se
àquele da própria realidade mesmo, favorecendo a ilusão de uma infor-
mação direta e global” 11. Assim, se pensarmos nas palavras de
10
Jean Braudrillard, A Ilusão do Fim. Lisboa, Terramar Editores, 1993, p.93-94
11
Gianfranco Bettentini, “La Televisione del Rumore”, in: II Mutamento Culturale II Itália.
Napoli, Liguore Editore, 1994, pp 91-92

12
Baudrillard e de Bettetini, pode-se avaliar o seguinte: com certa fre-
qüência, o telespectador recebe informações nem sempre compatí-
veis com a realidade dos fatos. Trata-se, então, de ideologizar-se o
discurso cujo objetivo, tudo indica, é diluir a densidade do fato e da
informação. Adorna-se a notícia, o fato, com ingredientes periféricos
ao seu núcleo, à sua lógica interna e subtrair-se inteira ou parcialmen-
te sua essência.Com isso, a informação cede lugar à desinformação
ou, quando menos, beneficia a dúvida e a incerteza.
Aqui, talvez possamos pensar, na falta de melhor termo, no que
chamaríamos de “Teoria do Empastelamento”* . Isto significaria, em
outras palavras, o seguinte: é tão grande o número de notícias e de
informações sobre o mesmo acontecimento que, a partir de um certo
momento, as pessoas não sabem mais nada de preciso sobre aquele
acontecimento. Pela televisão, por exemplo, são tantas as imagens
que se sobrepõem umas sobre às outras ao mesmo tempo, que tor-
na-se quase impossível memorizar qualquer uma delas. Não só pela
quantidade, mas pela velocidade com que são apresentadas. E mais
do que isso, essas mesmas imagens misturam-se a outras, de outros
casos, temas e acontecimentos, reduzindo quase a zero a densidade
da notícia. Assim, é no binômio velocidade/reprodução excessiva da
imagens que se dá o empastelamento das notícias e das informa-
ções, deixando o telespectador aturdido e, senão desinformado, cer-
tamente pouco à vontade para sentir-se de fato informado. Ele recebe
o discurso e a imagem fragmentados. Nesse caso, a superficialidade
da mensagem coaduna-se com a velocidade da imagem apresentada
no vídeo. Discurso e imagem se lhes apresentam fragmentados, o
que significa dizer, a fragmentação nuclear ao próprio acontecimento.
É precisamente, em virtude dessa forma de apresentar a notícia, que
nossa contemporaneidade, segundo estudiosos, tende à
desinformação e ao desentendimento.
De qualquer modo, não se pode esquecer a importância da
mídia, em particular do jornalismo, no desenvolvimento das democra-
cias modernas, a informação rápida chegando aos pontos mais dis-
tantes, apesar do espaço previsto para cada notícia. Em certo período
houve presença do jornalismo na constituição do espaço público. Hoje,
porém, a desunião entre democracia, jornalismo e espaço público
parece mais evidente, pois o empastelamento a que aludimos é o
contrário do pensamento. Este é procedimento reflexivo, anti-mídia.
Que se pense aqui, nas reflexões do lingüista Pier Paolo Pasolini
que, para falar do processo de “neutralização” das línguas pelo cursus
pseudo-falado e escrito da mídia - dado seu vocabulário restrito e
simplificador, tornou-se poeta, pintor, escritor, dramaturgo, romancis-
ta, cineasta e crítico literário. Essas diversas “línguas” ou “linguagens”
são vistas à luz do dialeto Friulano (em que escreve seus poemas)
como parte de “pureza desconhecida pela língua italiana”. É nele que
* No Novo Dicionário da Língua Portuguesa, de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira,
Editora Nova Fronteira, empastelar significa “misturar ( caracteres ou outro material
tipo gráfico) com os de diferentes caixas ou caixotim”. Empastelamento significa a
“ação ou efeito de empastelar.”

13
o autor reconhece a medida das mutações da língua como forma de
comunicação possível. É esta a razão da crítica de Pasolini à “gramá-
tica média” da mídia, à “linguagem paleomodemizadora” da linguagem
tecnocrática. Sobre isto Pasolini escreve ao criticar o escritor Alberto
Moravia: “Moravia opera com a língua como se fosse um instrumento
neutro, quase ignorando que é produzida e elaborada historicamente
pela burguesia. Inconscientemente Moravia teria transformado o italia-
no numa espécie de língua européia neutra, trazendo para ela carac-
terísticas não italianas como, por exemplo, a simplificação da sinta-
xe”12. Isto resulta na substituição da “linguagem patronal” (paleo-in-
dustrial arcaizante porque recai na língua ainda anômica e sem regras
estabelecidas - o que desorganiza ao invés de facilitar a comunica-
ção) pela linguagem tecnocrática (ou neo-liberal). Para Pasolini, uma
língua é viva justamente por sua interlocução com a “língua vernacular”,
matricial com as quais as diversidades se medem e estabelecem a
medida das semelhanças e de suas diferenciações. Não é apagando
as diferenças numa “média” que a língua se mantém viva. Estas pers-
pectivas, como as de Pasolini e Adorno, tendem a ver na sociedade
moderna um “universo fechado”, uniforme e homogeneizador de leito-
res e espectadores.
Esta visão encontra sua contrapartida no pensador e colabora-
dor de Adorno, Walter Benjamin, para o qual a mídia - com cartazes
publicitários, luminosos etc. oferecem ocasião para a reflexão. Não
por acaso, sabemos que, para o autor de Rua de Mão Única, a rua é o
único campo de experiência válida na modernidade. Há que decifrar
os signos plurais das coisas, seus “sinais fantasmáticos”. A metrópo-
le moderna se constitui como uma linguagem. “Paris, Capital do sé-
culo XIX” é um “corpo tatuado”, cujos hieróglifos são mercadorias a
pedir deciframento. E é a mídia que possibilita ler nos muros, ruas e
vitrines, a griffe do Capital e seus novos mitos. Nas palavras de Marx:
“até hoje acreditou-se que a formação dos mitos cristãos no Império
Romano só foi possível por não se conhecer a imprensa. A verdade,
porém, é outra. O jornal diário e o telegrama que divulgam instantane-
amente invenções por todo o globo, fabricam, em um único dia, mais
mitos do que outrora se produzia em um século”13.
No tocante a Walter Benjamin, são os encontros ao acaso do
flâneur que caminha pelas ruas - quando olhar recai na placa “Ministé-
rio do Interior” ou na inquietante publicidade “alemães bebem cerveja
alemã” (1928) que prenuncia o nazismo - que a rua se constitui em
microcosmo do conhecimento. Rua de Mão Única é um livro que deixa
de lado a forma consagrada de escrita sistêmica, pois “convencer (por
pensamento sistemático) é infecundo”. O livro deve tornar-se objeto,
ser lido como um volume tridimensional. Percorrido como um bairro.
Deve ser lido por difração, desenvolver-se nos panfletos e artigos de
jornal, formas modernas que correspondem melhor a sua influência
que o “pretensioso gesto universal do livro”. Tão somente esta “lingua-
12
Pier Paolo Pasolini, “Studi Linguistiche”, in: La Nuova questione della língua, org.
por Oronzo Parlangeli. Brescia, Paideia Editrice, 1979.
13
Karl Marx, O Dezoito Brumário. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1986, p.298.

14
gem de prontidão” mostra-se à altura do momento, revela-se atuante.
Numa perspectiva benjaminiana, o antropólogo Massimo Canevacci
pensa os acontecimentos de maio de 1968. Tomando de empréstimo
a noção de “reprodutibilidade técnica” de que fala Walter Benjamin, o
antropólogo italiano mostra que 1968 criou uma “cultura de
irreprodutibilidade técnica”, o oposto à padronização da cultura, con-
trapondo às técnicas de comunicação petrificadas em normas, dados
e técnicas de informação, estilos inovadores. A resposta às formas de
intimidação do poder se fazia de modo improvisada, afirmando-se a
dimensão lúdica do movimento que se multiplicava em panfletos e
faixas: “estas”, escreve Massimo, “são as mais significativas do movi-
mento. Palavras mudas onduladas ao vento, parecem velas de uma
nave que parte para descobrir mundos maravilhosos e desconheci-
dos”14.
Esta forma irreprodutível, efêmera da cultura é o reverso da rare-
fação da mídia, é obra de reflexão e mobiliza, ao mesmo tempo, o
político e o poético. Razão pela qual está destinada a perdurar, a ser
reinterrogada a cada “comemoração”.
É neste sentido, também, que Adorno, em conversa com
Beckman, ao tratar das formas de participação da televisão, em parti-
cular, como forma de instrução e informação (não Formação mas apoio
à educação), diz que, apesar de o espectador se “inflacionado por um
volume de estímulos dos quais não consegue mais dar conta” 15 , é
possível “ensinar a ver televisão” e “aprender a ver televisão”, para dis-
criminar “o que é fetiche na mídia e as formas de discerni-lo com o
fetiche” 16 , isto é, como “alienação das massas”. Além disso, deve-se
lembrar que a “cultura de imagem” tem, a igual título daquela escrita,
uma história. Para encurtar o caminho, pensemos na separação da
“produção letrada” e da “oral” ainda no interior da cultura grega arcai-
ca. Eric Havelock nos mostra que de Homero a Platão vigora, ainda,
uma cosmovisão que, apesar da utilização das letras por escrito, ain-
da pertence à oralidade. A tese discutida neste trabalho, anota o au-
tor, é “o pressuposto de que o ouvido foi continuamente aliciado para
colaborar com o olho, durante o período clássico, resultando num sin-
gular tipo de composição criativa, que o mero domínio da escrita não
poderia nunca reproduzir”17 .
Assim, podemos concluir, pelo menos provisoriamente, que as
críticas fundamentadas e rigorosas de Adorno, pertencem e atestam
uma perspectiva que privilegia a escrita e a leitura que, sabemos, são
o instrumento, por excelência da forma humanista de reflexão, da aná-
lise de si, e do aperfeiçoamento moral - caros ao Iluminismo. Não
obstante, é preciso estar atento ao fato de que “na verdade, há muitos

14
Massimo Canevacci, “Giorni Cantati”, nº 2, 1982.
15
Theodor Adorno, “Conversa com Beckman”, in: Educação e
Emancipação, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1996.
16
Theodor Adorno, op. cit, p. 72
17
Eric Havelock, A Revolução da Escrita na Grécia e suas
Conseqüências Culturais, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1996, p.21.

15
que lêem só para não pensar”18 .
Esse debate tem hoje, sabemos, o título de pós-modernidade,
entendida esta, como uma tendência ao pensamento “globalizador”,
fragmentado, ao gosto pelo “ecletismo sem conceito” e ao descartável.
Habermas vê na idéia mesma de pós-moderno, uma seqüência do
Moderno, no sentido da perda de uma visão global de um percurso
racional. Há, também, na designação de pós-modernidade, referênci-
as ao universo das comunicações de massa e dos comportamentos
por estes induzidos. A cultura de massa, por exemplo, de acordo com
teóricos contemporâneos como Baudrillard e Fredric Jameson, repre-
senta a lógica do consumo da chamada sociedade pós-moderna. A
concepção de cultura pós-moderna, segundo Jameson (mas com
marcante influência da obra de Baudrillard), é a “cultura sem profundi-
dade”, aquela que melhor representa a sociedade de consumo, etapa
do capitalismo tardio posterior à Segunda Guerra Mundial. Nessa so-
ciedade, a cultura adquire novos contornos e importância, em face
justamente da repetição exaustiva dos signos e mensagens nos per-
mitindo inferir, segundo o autor, a idéia na qual “é possível dizer que
tudo na vida social tornou-se cultural” 19 . A “liquefação de signos e
imagens” tornaria muito tênue a distinção entre o que se estabeleceu
chamar alta cultura e cultura de massa. Objetivamente e em termos
empíricos, a “liquefação de signos e imagens” significa o seguinte:
uma mensagem publicitária através da televisão, de “out-doors” nas
ruas da cidade, de painéis nas estradas, entre outras formas de co-
municação, seria o equivalente a se conhecer o significado e a impor-
tância de Guernica de Picasso, ou ainda viver na alma o dilema e as
agruras de Joseph K, em O Processo de Franz Kafka. Haveria, por-
tanto, não um desmerecimento da chamada alta cultura, mas uma
equivalência desta à cultura de massa, cujo denominador comum se-
ria a “cultura de consumo”. Ao mesmo tempo, ela expressa a produ-
ção capitalista de mercadorias, originando significativo acúmulo da
cultura material de bens e consumo. Nesses termos podemos supor
que a lógica interna da sociedade de consumo, pelo menos como vê
Jameson, vai ao encontro do que hoje chama-se pós-modernidade.
O filósofo Ornar Calabrese fala também, mas anti-
adornianamente, na aceleração do tempo nas mídias. Diz ele: “o es-
pectador de televisão está hoje francamente habituado a saltar de um
programa para outro, relacionando-se instantaneamente, inferindo o
seu conteúdo em poucas cenas, recriando palimpsestos pessoais. E
sobretudo eliminando as ‘diferenças históricas’ entre diversas ima-
gens percebidas”20. Além disso, as novas tecnologias audiovisuais
desfazem a adesão à verificação pessoal dos fatos. Mais adiante acres-
centa o autor: “não é a visão direta do jogo de futebol que dá a ilusão
da verdade, mas a sua re-visão na televisão no replay e na câmera
18
G.C. Lichetenserg, Aforismas . México, Ediciones Siglo Veintiuno,
1989, p.48.
19
Fredric Jameson, Pós-Modernismo – a lógica do capitalismo tardio.
São Paulo, Ática, 1995, p.84.
20
Omar Calabrese. A Idade Neobarroca. Porto, Martins Fontes, 1987,
p.68.

16
lenta. A técnica da representação produz objetos que são mais reais
que o real, mais verdadeiros que a verdade. Mudam deste modo as
conotações de certeza: ela já não depende da segurança dos próprios
aparelhos subjetivos de controle, é delegada em qualquer coisa de
aparentemente mais objetivo. No entanto, paradoxalmente, a objetivi-
dade assim atingida não é uma experiência direta do mundo(...) A
incredulidade de São Tomé está definitivamente ultrapassada. Acredi-
tamos nos milagres não por lhes tocarmos, mas sim se alguém nô-
los vem contar: por isso o replay e a câmera lenta” 21 .
Deste ponto de vista, a modernidade (ou pós-modernidade) não
significa o “fim da narrativa” no dizer de Walter Benjamin em seu en-
saio O Narrador, ou o “fim da história”, nas palavras de Fukuyama _
mas uma transformação com respeito às nações de passado e de
tempo: “[nossa tradição] parece ser uma era que, com a ‘visualização
total’ da imaginação torna tudo perfeitamente contemporâneo. Nas
imagens televisivas, umas ao lado das outras, passam imagens de
diversas datas e isto torna-se perfeitamente atuais entre si. O seu
sujeito pode ser um tempo qualquer, uma época qualquer, um estilo
de sempre. Tudo é perfeitamente sincrônico (...).Com isso pervertem-
se os vetores conectivos da história, eliminam-se as flechas tempo-
rais das conexões (causa-efeito, reconstrução, nostalgia) (...) Se se
pensar que atualidade, entendida em sentido jornalístico, começou a
determinar a total visão do mundo, pode-se apreender que toda a his-
tória é concebida a partir de hoje. Poderia por isso dizer-se que a
história ou acabou, como querem alguns, ou anda à deriva em busca
de seu novo significado”22 .

21
______________, op. cit., p.69.
22
______________, op. cit., p.195.

17
2 - O Consumo Estratificado da Produção Cultural

A absorção administrativa da cultura pela civiliza-


ção é o resultado da orientação estabelecida pelo progres-
so científico e técnico, da crescente conquista do homem e
da natureza pelos poderes que organizam esta conquista e
que utilizam o crescente nível de vida para perpetuar sua
organização da luta pela existência.
Herbert Marcuse

O meio urbano-industrial brasileiro apresenta hoje uma produ-


ção da cultura de massa onde encontramos produtos especialmente
destinados àquele tipo de público não-letrado ou simplesmente
semiletrado. São produtos cujo consumo parece-nos estar principal-
mente – e talvez unicamente – na esfera das classes subalternas:
estamos pensando naquela faixa de produção da cultura de massa
posta à venda nos lugares de maior trânsito e concentração pública.
Trata-se, nesse caso, de produtos que assumem significativa impor-
tância sócio-política, portadores de determinados signos culturais das
classes dominantes, mas qualitativa e esteticamente adulterados, cujo
alcance ideológico permeia valores estéticos e estabelece diferenças
nos planos cultural e social. São bens culturalmente deformados que
parecem obedecer a uma lógica estética interna, socialmente distinti-
va, onde o valor cultural do produto incorpora signos particulares dirigi-
dos a uma classe social específica.

Se hoje toda a sociedade capitalista está envolta pela aura do


consumo da cultura de massa, com certeza também esse consumo
obedece às imposições estabelecidas pelo caráter normativo da
estratificação social, ou seja: cada classe social e até mesmo cada
segmento dessas classes sociais terá, de acordo com sua
especificidade sócio-econômica, de consumir produtos que apresen-
tam nítidas diferenças qualitativas entre si. Nesse caso a cultura de
massa ganha outra feição: ela, que já é um instrumento ideológico da
classe dominante, apresenta uma contradição dialética o ser
estratificada. Ao mesmo tempo que se produz bens culturais mais
sofisticados, esperando-se do cidadão de baixa renda que os compre

19
à procura de status, ocorre também que há uma produção específica
de subprodutos da cultura para manter esse mesmo cidadão nos pa-
drões culturais de sua classe social.
Mesmo quando o indivíduo de baixa renda superestima os pro-
dutos esteticamente mais sofisticados da cultura de massa e empe-
nha-se em adquiri-los, fica evidente que seu êxito social constante-
mente procurado é apenas aparente. Mais correto seria talvez dizer
inexistente. Grosso modo, o prazer da compra desses produtos pode
também desempenhar uma função psicossocial de auto-satisfação. A
mobilidade social na qual passa a acreditar com a compra de objetos
qualitativamente mais sofisticados, não passa, na verdade, de uma
pseudomobilidade social: isto porque, a despeito de uma nova realida-
de material que surge em seu universo com esses produtos, perma-
nece consigo os mesmos valores culturais e as mesmas categorias
sociais que formam a infra-estrutura da sua classe social. Nessas
condições, o objeto enquanto bem cultural – mercadoria preparada
para o consumo – tem seu valor de uso substituído pelo valor de troca,
como nos mostra Theodor Adorno ao analisar o caráter fetichista que
se atribui à música em situação idêntica a esta discutida por nós: “Se
a mercadoria se compõe sempre do valor de troca e do valor de uso, o
mero valor de uso – aparência ilusória, que os bens da cultura devem
conservar, na sociedade capitalista – é substituído pelo mero valor de
troca, o qual, precisamente enquanto valor de troca, assume ficticia-
mente a função de valor de uso”1.
Nesse sentido, a inversão do valor de uso do produto pelo valor
de troca, harmoniza apenas na aparência a contradição de classe do
consumidor. O poder de compra mascara a desinformação do indiví-
duo. O hiato cultural, o despreparo, pelo menos nesse momento, é
nublado pela nova atribuição de status.
Fundamentalmente, os valores culturais e as categorias soci-
ais aos quais nos reportamos anteriormente, não se transformam ape-
nas com a estratificação mais e menos sofisticada da produção das
cultura de massa. É preciso notar, isto sim, que o raio de ação dos
produtos da cultura de massa trabalha com a aparência externa, com
a ostentação de um status que, no caso das classes subalternas,
permeia apenas sua superestrutura, ou seja: como toda relação de
compra e venda, ela se dá na superestrutura de determinados tipos de
relação de produção e de troca. O desmesurado esforço econômico
do indivíduo da classe subalterna ao comprar produtos mais sofistica-
dos da cultura de massa não pode ser mantido senão na aparência.
Ele se esvai, numa primeira instância, na fetichização do próprio pro-
duto ao perder seu valor de uso e revestir-se do valor de troca. Instau-
ra-se nesse momento, a ostentação fictícia: ela não tem lastro econô-
mico para ser mantida e ampliada. A ideologia do consumo conspícuo
esbarra num obstáculo que não pode remover: a paupérie.
Numa segunda instância, esta ação significa também a própria
negação dos valores culturais da sua condição sócio-econômica: ao
1
ADORNO, Theodor W., O fetichismo na Música e a Regressão da
Audição. In: Os Pensadores. São Paulo, Abril, 1975. V. XLVIII, p. 181

20
adquirir a produção mais sofisticada da cultura de massa, essa nega-
ção flutua na aparência do econômico e na própria ideologia dessa
cultura que, aparentemente democrática, dirige-se a todos nós, mas
mantém cada um em seu lugar ao trabalhar o hiato cultural existente
na sociedade entre a classe dominante, monopolizadora da cultura e
as classes subalternas, a quem a sociedade de massa dirige os
subprodutos da sua produção cultural. Mas, se isso ocorre, é precisa-
mente porque no plano histórico a burguesia, enquanto classe
hegemônica, nunca deixou de exaltar e impor seus valores, sua con-
cepção do mundo, sua ideologia de classe dominante. Ao contrário,
se essa classe social determina na sociedade a base econômica e a
estrutura, pode determinar também, a superestrutura política, ideoló-
gica e cultural que estão inextricavelmente ligadas a essa base eco-
nômica, isto é, às relações de produção e de troca como afirma Marx.
Desse modo, produtora do que ocorre na superestrutura social, en-
quanto classe dominante mesmo, é que podemos entender porque a
sociedade burguesa sempre trabalhou ideologicamente sua própria
cultura no âmbito da sociedade de classes. Talvez o exemplo históri-
co mais significativo seja o Renascimento, considerado como um
movimento cultural dirigido à elite e, enquanto tal, aumentou ainda
mais a distância entre os intelectuais e o povo.
Ocorre-nos, através de Marx, ao demonstrar como as classes
subalternas num determinado momento histórico, aceitam a visão
burguesa do mundo. Diz ele que, a burguesia enquanto classe domi-
nante, monopolizadora da cultura, influencia, cria padrões de compor-
tamento e educa a classe operária segundo sua própria visão do mun-
do, seus conceitos e suas conveniências. Se não vejamos: “Os indiví-
duos que constituem a classe dominante possuem entre outras coi-
sas uma consciência disso que pensam; na medida em que dominam
enquanto classe e determinam uma época histórica em toda sua ex-
tensão, é lógico que esses indivíduos dominem em todos os sentidos,
que tenham entre outras, uma posição dominante como seres
pensantes, como produtores de idéias, que regulamentem a produção
e a distribuição dos pensamentos da sua época; as suas idéias são,
portanto, as idéias dominantes da sua época”2.
Analisando o problema pelo mesmo ângulo – classes sociais,
cultura e ideologia – Gramsci mostra que a relação desse trinômio se
dá exatamente no nível das superestruturas ideológicas. É através
delas e do momento cultural de cada época que se clarifica em toda a
sua complexidade a relação de dominação cultural da burguesia so-
bre as classes subalternas. O conceito de hegemonia – segundo
Gramsci – permite-nos entender melhor a ideologia e complexidade
da dominação não apenas no nível da superestrutura – produção e
consumo de bens culturais – mas também em toda a complexidade
que envolve o desenvolvimento da formação econômico-social na so-
ciedade de classes. Para a intelecção mais aprofundada desse pro-
2
MARX, Karl & ENGELS, Friedrich, A Ideologia Alemã. Lisboa, Presença,1975. V.I,
p.56

21
blema não podemos cair no reducionismo do materialismo vulgar, no
determinismo econômico de tipo mecânico, cuja visão se plasma na
concepção mecânica das relações entre classe e ideologia. É tam-
bém na afirmação e difusão da sua ideologia como vimos anteriormen-
te em Marx, que Gramsci mostra o funcionamento efetivo da hegemonia
burguesa na sociedade nos planos político, cultural, econômico e so-
cial: “Uma determinada classe, dominante no plano econômico e, por
isso, também no político, difunde uma determinada concepção do
mundo; hegemoniza assim toda a sociedade, amalgama um bloco
histórico de forças sociais e de superestruturas políticas por meio de
ideologia”3.
Configura-se nas explicações de Marx e Gramsci que a burgue-
sia enquanto detentora dos meios de produção material – e por isso
ostentando a condição de classe dominante – passa a administrar
também a produção cultural da sociedade, submetendo ao seu domí-
nio4, às suas idéias, toda a produção de bens culturais dirigida ao
cidadão comum.
É sob o signo da hegemonia burguesa nos planos econômicos
e cultural que se desenvolve na sociedade pós-industrial a chamada
“sociedade de massas” percebida talvez pela primeira vez por Alexis
de Tocqueville, como demonstra Gabriel Cohn ao estudar as correntes
de análises das formações sociais (Tocqueville, Durkheim, Mannheim
e Hannah Arendt) que seriam mais tarde chamadas de “massas”:
“Numa passagem famosa, Tocqueville enuncia as bases daquilo que
permitiria que o seu nome ficasse associado, mais tarde, à teoria da
conexão entre a ‘sociedade de massas’ e o ‘totalitarismo’”. Mais adi-
ante Gabriel se vale das palavras de Tocqueville para caracterizar os
primeiros estudos, as primeiras reflexões acerca do que hoje denomi-
namos de sociedade de massas:
“A primeira coisa que chama atenção é uma multidão inúmera
de homens, todos semelhantes e iguais, ocupados incessantemente
na busca de pequenos vulgares prazeres com os quais saciam suas
vidas. Cada qual, vivendo à parte, é estranho ao destino de todo o
resto; seus filhos e amigos privados constituem para ele toda a huma-
nidade (...). Por sobre essa raça de homens ergue-se um poder imen-
so e tutelar, que se incumbe de assegurar suas gratificações e de
velar seus destinos”4
De fato, como registra Gabriel, “nessas formulações estão con-
tidas as idéias essenciais daquilo que teóricos posteriores, mais à
vontade para dar nomes aos fenômenos do que Tocqueville, chamari-
3
GRUPPI, Luciano, O Conceito de Hegemonia em Gramsci. Rio de Janeiro, Graal,
1978. P.90.
4
As reflexões de Marx a esse respeito mostram que “A classe que dispõe dos meios de
Produção material dispõe igualmente dos meios de produção intelectual, de tal modo
que o pensamento daqueles a quem são recusados os meios de produção intelectual
está submetido igualmente à classe dominante”. A Ideologia Alemã. Lisboa, Presen-
ça, v. I, p.56.
4
COHN, Gabriel, Sociologia da Comunicação: Teoria e Ideologia. São Paulo, Pioneira,
1973. P.66.
22
am de ‘sociedade de massa’ e ‘totalitarismo’. Essas idéias são a
nivelação, o isolamento e a perda de individualidade das pessoas pri-
vadas; a atomização do conjunto social nas partículas elementares; a
contraposição direta entre a massa atomizada e o Estado todo-pode-
roso”5.
Do conceito acima, resulta a necessidade de analisarmos a
postura que o “Estado todo-poderoso” passa a exercer no âmbito da
sociedade de massa. O isolamento, a perda da individualidade e a
atomização do indivíduo não são decorrências normais do processo
de desenvolvimento da sociedade. Parece-nos, muito mais, decorren-
tes do desequilíbrio que o Estado estabelece privilegiando determina-
dos grupos sociais que, paralelamente e esse Estado passam a diri-
gir, a administrar a economia, a política e a cultura.
Nosso plano de trabalho está voltado justamente para a ação
do Estado sobre as superestruturas ideológicas e mais precisamente
para a forma pelo qual o Estado burguês organiza a cultura no plano
da produção e do consumo de bens culturais.
É necessário, antes de mais nada, não perdermos de vista os
conceitos anteriormente assinalados por Marx e Gramsci, segundo
os quais as classes subalternas incorporam no seu cotidiano a visão
de mundo que lhes é determinada pela classe dominante. Isto é bási-
co.
É através do uso de “vários canais” (a escola, a religião, o ser-
viço militar, e embrionariamente dos veículos de comunicação como o
cinema falado, o romance seriado, o jornal e o rádio que na sua época
começavam a engatinhar) que Gramsci nos fornece as condições re-
ais para percebemos como a ideologia da classe dominante chega às
classes subalternas construindo seu universo de influência sobre toda
a coletividade, implantando sua própria hegemonia.
A escola, um dos canais a quem Gramsci dedica especial aten-
ção ao analisar o problema da educação na Itália – mas até hoje
atualíssimo se pensarmos em termos de sociedade brasileira – já se
apresentava dividida de acordo com o nível sócio-econômico de cada
classe social, criando as respectivas diferenças sociais no tocante ao
acesso ao conhecimento. Enquanto as classes dirigentes da socie-
dade têm pleno acesso à iniciação científica (ginásio, colégio, etc.),
às classes subalternas reserva-se-lhe aquela área do conhecimento
profissionalizante, ou seja: a escola profissional, onde sua participa-
ção no sistema de produção está canalizada para posições subalter-
nas. Nesse aspecto, as idéias de Pierre Bourdieu e Jean Claude
Passeron ao analisarem o problema da difusão cultural e classes so-
ciais em França coincidem com as de Gramsci6.
Há que se pensar ainda, na possibilidade de que a escolha do
cidadão pela formação técnico-profissional (menos dispendiosa e mais
rápida) seja decorrente da premência de possuir uma especialização
para participar do sistema de produção, e que talvez essa escolha
5
COHN, Gabriel,op. cit., p.66.
6
COHN, Gabriel,op. cit., p.66.

23
não seja unicamente sua, mas uma deliberação tomada pela própria
família (os pais) objetivando, entre outras coisas, a diminuição do dé-
ficit familiar. Basta observar que é exatamente dentro desse espírito
que os veículos de comunicação trabalham junto aos baixos estratos
da população, as mensagens publicitárias dos cursos profis-
sionalizantes de tantas instituições com o Instituto Monitor, Instituto
Universal Brasileiro, Escola Taylor etc. É o caso, por exemplo, do que
se verifica no programa radiofônico Linha Sertaneja Classe A, o de
maior audiência em sua categoria no rádio brasileiro, onde essas es-
colas oferecem cursos por correspondência sobre Rádio, Televisão,
Transistores, Eletricidade, Corte e Costura, Mecânica Geral, Mecâni-
ca de Automóveis, Bordado, Torneiro Mecânico, Desenho Mecânico,
Refrigeração e Ar Condicionado, enfim, toda uma gama de cursos
profissionalizantes.
É certamente pensando nos reflexos, nas conseqüências
dessa educação estratificada, privilégio das classes dirigentes,
que Gramsci propõe a criação de uma “escola média unificada, de
caráter formativo geral”7 .
A nós interessa, primordialmente, saber até onde a
estratificação da cultura (diferença entre conhecimento técnico-
profissional e a formação científica, por exemplo) pode ou não
interferir qualitativamente na produção e no consumo de bens
culturais. O problema aqui é, portanto, discutir se a diferença de
conhecimentos adquiridos pelas classes dirigentes e dirigida, se
traduz realmente numa avaliação estética mais e menos apurada,
respectivamente, no tocante à aquisição dos produtos da cultura.
Se, históricamente, a classe dominante sempre criou sua
própria cultura distintiva; se o proletariado enquanto classe social
que se formava, criado pela indústria capitalista moderna, não tinha
o conhecimento e a organização suficientes para criar uma nova
cultura que negasse a cultura burguesa, como mostra Alan
Swingewood 8 , hoje isso já não pode mais ser aceito como
verdadeiro. E a rigor, é um conceito que perde a História de vista.
Um conceito que não leva em conta o fato de ser impossível a
existência da cultura proletária na sociedade burguesa. É não
perceber como diz Trotsky, que “... a cultura burguesa já existia
antes de a burguesia ter galgado formalmente o poder. A burguesia
tomou o poder a fim de perpetuar seu domínio. O proletariado, na
sociedade burguesa, é uma classe sem propriedades e privada de
muitas coisas, de modo que não pode criar uma cultura própria”. 9
7
GRAMSCI, Antonio, Os Intelectuais e a Organização da cultura. Rio de Janeiro,
Civilização Brasileira, 1968. P. 68
8
Diz Alan Swingewood que “o proletariado, como uma classe social relativamente
‘nova’, criada pela indústria capitalista moderna, não tinha nem o conhecimento nem
a organização para criar uma cultura que rivalizasse e negasse a da classe dominante”.
In: O Mito da Cultura de Massa. Rio de Janeiro, Interciência, 1978. P.39.
9
TROTSKY, Leon, On Literatura and Art.p.34.
24
É precisamente à luz dos conceitos acima - conhecimentos
adquiridos, gosto estético e consumo de bens culturais - que
pretendemos desenvolver nosso trabalho, tendo como base para
isso, a relação dialética entre cultura e classe e a teoria da relação
entre cultura e estrutura econômica da sociedade (modo de
produção e relações sociais de produção), a relação entre cultura
e formação de classe, estrutura de poder e ideologia.
Precisaríamos aqui, ainda que de passagem, recorrer ao
conceito de cultura. Para isso não podemos deixar de lado que
este reside em suas determinações históricas específicas. É a
estrutura de classes, a organização política do Estado, o sistema
econômico e os seus meios de produção que determinam a
produção cultural. Para o estudioso, não obstante sua ideologia,
analisar o conceito de cultura sob esse prisma é um problema que
depende unicamente de não prescindir do estudo científico. Como
qualquer outra teoria que se vale da ciência (e, portanto, refuta os
dogmas), o materialismo histórico afirma que toda a produção da
cultura resulta, enfim, das formas de produção econômica, da
influência dos fatores econômicos e sociais.
Não podemos pensar em cultura como um conceito neutro,
isolado. Ao contrário, é um conceito histórico, específico e
ideológico. Ela não pode ser entendida separada das determinações
especificas da formação social. Em qualquer sociedade, não importa
quão simples ela possa ser, sua cultura se desenvolverá através
dos diversos níveis de sua estrutura: o econômico, o político, o
educacional etc. São eles que formam a totalidade das relações e
das práticas sociais. Um conceito de cultura que não se fundamenta
no sistema econômico da sociedade, no processo histórico, na
organização política do Estado é, segundo a concepção do
marxismo, um conceito idealista, histórico e abstrato. Como tal,
perde seu rigor científico, uma vez que elimina a possibilidade de
uma análise genética do problema. Nesses termos, a amplificação
e a explicação do termo cultura, estariam reduzidas a fatos
exploratórios da realidade social, baseado na experiência da
observação e omitindo os princípios racionais do conhecimento
científico. Nesse caso, tatear-se-ia de forma apenas superficial os
fatores que determinam a formação da cultura.
Dessa perspectiva é que Marx, se reportando à obra do artista
italiano Rafael, destaca que o desenvolvimento do talento artístico
em si, depende da “demanda, que por sua vez, depende da divisão
do trabalho e das condições da cultura humana dela resultantes” 10 .
Nesse sentido, tal como argumenta Gramsci, a cultura aparece
como um produto realizável na superestrutura, que por sua vez
10
MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. Lisboa, Presença, 1976. v. II,
p.431-2.

25
repousa sobre a infra-estrutura econômica.
Vemos aqui, nas reflexões dos dois pensadores que o termo
cultura não deve ser reduzido a expressões, tais como “cultura é
toda uma maneira de vida”, ou ainda determinadas avaliações como
as de F. R. Leavis que não levou em conta a forma sobre a qual a
sociedade está organizada. A produção material, as relações de
produção e o desenvolvimento tecnológico, pressupostos básicos
para se entender a cultura ficam, em toda sua obra, no plano
subsidiário. É somente através da religião - sugere Leavis - que
podemos chegar aos fundamentos da cultura. Ora, pelo que vimos
acima, dificilmente - para não imaginarmos impossível - poder-se-
ia pensar numa idéia mais estranha à reflexão dialética da cultura.
Se a religião, enquanto um dos aparelhos ideológicos do Estado,
age na superestrutura social, ela não pode, segundo as concepções
do materialismo histórico, determinar os fundamentos da cultura.
Na verdade, a dependência do conceito de cultura à base
econômica é, sem dúvida, uma realidade. Apesar disso ela não
deve ser vista de forma unilateral. Tanto Marx como Engels
ressaltavam, freqüentemente, a influência inversa dos fatores
ideológicos e espirituais sobre a economia mostrando que ela é
extremamente complexa, indireta e encoberta, mas, apesar disso,
nada invalida da realidade da própria obra de arte estudada.
E é, certamente, de posse dessas afirmações que podemos
pensar na origem dialética do conceito de cultura. Se por um lado,
a base econômica é determinante para se entender a produção
cultural de um povo, não é menos verdade que essa base
econômica, tão vital como se apresenta, sofre influência de fatores
ideológicos e espirituais, ou seja, da própria visão do mundo que o
cidadão pode ter. E quando dela falamos estamos pensando num
conjunto de idéias, de aspirações e de sentimentos que reúne os
membros de um grupo, de uma classe social e os opõe aos outros
grupos e classes. Entretanto - e aqui é que reside a concepção
dialética da cultura - ao mesmo tempo em que o ideológico e o
espiritual formam o pensamento comum dos sentimentos, das
aspirações e das idéias dos membros de uma classe social, não
podemos deixar de lado que essa unidade (sentimentos,
aspirações, idéias etc.) da visão de mundo se desenvolve
exatamente a partir de uma situação econômica e social, que por
sua vez dá origem à atividade da qual o indivíduo é a comunidade
real ou potencial, formada pela classe social.
Essas poucas considerações já nos mostram as razões
pelas quais o conceito de cultura é dialético e não tão simples e
subjetivo como pretende F. R. Leavis. Sua definição é muito
estreita, pois ela deixa fora de sua esfera os problemas econômicos,
políticos e ideológicos. Parece-nos necessário em primeiro lugar,
26
exatamente inverter as proposições de Leavis. Para isso, talvez -
mas também para situar melhor o direcionamento do nosso trabalho
- a citação de Trotsky ao tentar definir cultura seja, no momento, o
melhor caminho. Sua definição, ao contrário da de Leavis, incorpora
e enfatiza os elementos fundamentais para a compreensão histórica
e científica do que é a cultura: “Cultura é a soma total do
conhecimento e das habilidades acumuladas pela humanidade em
toda sua História anterior(...) A conjunção das habilidades e do
conhecimento da humanidade histórica (...) das nações e
classes” 11 . Nesse conceito desaparece a visão empírica, unilateral
(levando em conta apenas a religião) e idealista que vimos em F.
R. Leavis, ao postergar a importância dos fatores econômicos e
ideológicos determinantes para chegarmos ao conceito científico
de cultura.
Contudo, até aqui temos apenas uma macrovisão da cultura.
Há que se pensar, entretanto, na estrutura social e na participação
cultural do indivíduo, uma vez que é na práxis que o homem realiza
sua cultura. É também através dela que ele consegue intervir na
realidade e transformá-la, fazendo da questão teórica uma realidade
objetiva capaz de justificar o caráter revolucionário da práxis.
Nesse aspecto, vale registrar que a relação entre indivíduo e
a participação na cultura de sua sociedade não é feita de forma
aleatória, mas principalmente pela sua posição no quadro social e
pela instrução anteriormente recebida para ocupá-la. Nesse
sentido, o homem não deve ser estudado apenas em relação à
cultura total da sociedade, mas também tendo em vista as
exigências culturais particulares determinadas pela sociedade e
pela posição social que ele ocupa. É assim, e através de verificação
mais precisa quanto possível da estrutura da sociedade, que
podemos determinar não apenas como se configura o universo
sócio-cultural de seus membros, mas também a própria
participação cultural e diferenças culturais entre as classes sociais
que compõem essa estrutura social.
A nós interessa, precisamente, estudar a cultura das classes
subalternas. Para tanto, precisamos levar em conta que a estrutura
da indústria cultural, da forma como se apresenta ao estratificar
sua produção, parece ratificar as diferenças sócio-culturais já
existentes na sociedade de classes. Além disso, de forma
significativa amplia ainda mais o distanciamento socio-cultural,
principalmente no tocante ao consumo de bens culturais, o que
obviamente ampliar-se-ia a todo o complexo de fatos que regem
as relações sociais e a possível participação do Estado enquanto
administrador da cultura. Nossa opinião é de que, a partir daí,
11
TROTSKY, Leon, Leninism and Library Work (1924). In: Problems of Everyday Life.
Nova York, 1973.p. 143.

27
teríamos certos tipos de comportamentos geradores de
distanciamento social trabalhados tanto pela classe dominante
quanto pela classe subalterna. A primeira, por consolidar sua
posição de monopolizadora da cultura, por fazer valer os seus
interesses comuns; a segunda, por estar envolta em certas
constelações sociais e culturais que virtualmente imporiam o seu
autodistanciamento. A constatação dessas impressões talvez seja
possível tanto através das características que norteiam o discurso
cotidiano de uma e de outra classe, quanto no consumo da
produção cultural mais e menos sofisticada respectivamente.
Precisamos dizer, porém, algumas palavras sobre o
significado da cultura das classes subalternas. Talvez aqui se situe
o ponto decisivo deste ensaio. Certamente, não convém pensar
em termos de uma cultura já definida no sentido de classe, e que
apresente uma certa homogeneidade e autonomia tal como a cultura
hegemônica e sua relação com a sociedade. Para Gramsci, por
exemplo, essa situação se dá exatamente de modo inverso. Seu
conceito de cultura subalterna resulta precisamente da ausência
de consciência de classe, de uma cultura de classe ainda não
inteira mente consciente de sua função histórica na sociedade.
Nesses termos, a cultura subalterna, além de ser uma cultura
heterogênea, de não apresentar seus pressupostos básicos, de
sofrer ininterruptamente as influências da cultura hegemônica, de
herdar resíduos culturais de civilizações anteriores, traz ainda
consigo o ETHOS de identidade com a classe oprimida. Eis os
motivos pelos quais talvez possamos pensar que a cultura
subalterna seja antes de mais nada uma cultura híbrida. E disso
resulta, entre outras coisas, a dificuldade de determinar seu estatuto
sociológico.
Todavia, Luciano Gruppi, profundo conhecedor da obra de
Gramsci, acredita que o procedimento cultural das classes
subalternas seja o que, Lévi-Strauss chama de brico-lage, ou seja,
o modo de proceder dos diletantes que, combinando entre
fragmentos diversos de determinadas máquinas, conseguem
construir novos mecanismos. Para Gruppi, a cultura das classes
subalternas “consiste em assumir elementos da cultura dominante
para reelaborá-los, ligá-los de modo diferente, até fazê-los assumir
significado diferente ou mesmo oposto, mas se conservando, no
conjunto, no terreno indicado pela cultura hegemônica. Não é
produção autônoma, fundação de novos temas e de novas formas
de cultura, mas a reelaboração não homogênea, não crítica e
consciente dos temas e dos materiais oferecidos pela classe
dominante”12
12
GRUPPI, Luciano, O Conceito de Hegemonia em Gramsci. Rio de Janeiro, Graal,
1978. p. 92.

28
Em poucas palavras, e tendo como princípio o caráter não
autônomo e heterogêneo da cultura subalterna, o pensamento de
Luciano Gruppi coaduna-se com o de Gramsci. Ambos partem do
princípio de que as classes excluídas do sistema hegemônico, ou
seja, as classes subalternas não possuem uma cultura autônoma,
homogênea e criticamente unificada. Aliás, a esse respeito,
Gramsci vai ainda mais longe. Para ele, a classe operária só poderá
elaborar sua própria cultura, torná-la homogênea, criticamente
unificada e autônoma, quando essa própria classe se tornar
autônoma. Mas para isso - acrescenta Gramsci - o proletariado
terá que realizar antes a ruptura do regime normal das relações
entre a classe dirigente - e seu sistema hegemônico em geral - e
as classes subalternas, eliminar a dominação de classe, ou seja,
a utilização predominante ou exclusiva da sociedade política. Só
assim, essa classe tornar-se-ia autônoma, consciente do seu papel
social e capaz de assimilar criticamente as manifestações da
cultura burguesa. Teríamos, a partir desse momento, a
reelaboração crítica da cultura subalterna e a formação de uma
cultura verdadeiramente revolucionária a partir das próprias
conquistas da cultura burguesa.
Como destaca Lenin, a cultura revolucionária nasce
precisamente da produção cultural burguesa, ou seja, da dialética
hegeliana da economia clássica, das teorias socialistas francesas
etc., e da capacidade de assimilação crítica dos estágios mais
desenvolvidos da cultura burguesa. Da sua superação enquanto
negação e adoção. O negar, que é assumir e também superar,
põe-nos diante da negação e da superação dialética da própria
adoção crítica dos legados da cultura burguesa no seu estágio
mais desenvolvido quanto seja.
Foi dentro desse espirito que Lenin e Trotsky questionaram
a validade do movimento proletkult desenvolvido pelo partido
bolchevista e apoiado por Lunacharsky e Bukharin logo após a
revolução de 1917. O movimento proletkult acreditava que o
proletariado poderia elaborar sua própria cultura de classe formada
precisamente na luta de classes e assim rechaçar a cultura
tradicional. Na verdade, como vimos anteriormente, a solução
teórica não está em contrapor ambas as culturas como se fossem
duas coisas isoladas e sem identidade. Trata-se, de se estabelecer
uma contraposição dialética através da adoção e da superação
crítica. Há que se pensar na cultura burguesa, reelaborá-la
criticamente, retrabalhar suas condições, compreender sua
importância e função histórica, e a partir disso se pensar numa
sociedade onde a cultura não seja um monopólio de classe, mas
que se possa criar condições de elevação geral dos níveis culturais.
Na realidade, não se pode compreender a cultura subalterna,
29
sem antes se refletir sobre a cultura burguesa. A significação
histórica da classe burguesa, abastada e educada, contrastando
com a classe operária privada do acesso à cultura já são dados
suficientes para a compreensão do problema e para não vermos o
fenômeno apenas na aparência. É preciso trabalhar os dados
empíricos e entender o problema cientificamente. A ciência, como
diz Marx, perderia sua função se o fenômeno estivesse inteiramente
contido na aparência. Mas não: a análise científica ultrapassa a
aparência do fenômeno justamente porque ele descobre as
conexões subjacentes a ele, exigindo do analista a reflexão e
elaboração crítica do seu objeto de estudo.
Compreende-se agora quais os desvios teóricos cometidos
pelo movimento proletkult quando definia a cultura proletária apenas
como uma “arma na luta de classes” e como “expressão pura da
ideologia proletária”. Eis porque Lenin nos advertiu acerca do
movimento proletkult, ao qual classificou como ciência diletante e
auto-administradora. Sem dúvida, o erro fundamental em que
incorreu esse movimento foi exatamente não perceber que o
marxismo absorveu os fundamentos científicos do pensamento e
da cultura, burgueses em todo o processo de desenvolvimento da
sua teoria política e social. Vale dizer, o marxismo não recusou
toda a tradição da cultura burguesa. Ao contrário, foi justamente
com base na reflexão crítica sobre o pensamento burguês anterior
que o marxismo pôde elaborar sua filosofia e construir os
fundamentos de uma cultura sem classes, libertária e
“verdadeiramente humana” como diz Trotsky” 13 .
Vê-se de imediato que, tanto no plano prático como teórico,
este universo cultural, malgrado suas diferentes interpretações,
nada tem a ver com aquele produzido e vivido hoje no capitalismo
moderno, nas sociedades que produzem a chamada cultura de
massa. Parece-nos pouco provável que a cultura burguesa, lídima
representante da sociedade de classes, jamais teria condições ou
interesse, de produzir uma cultura “verdadeiramente humana” ou
até mesmo “elaborar um ‘humanismo’ moderno, capaz de se difundir
até as camadas mais toscas e incultas” 14 da população como
pretendia Gramsci. Chega-se assim à conclusão de que, a
alternativa para que isso ocorra é justamente aquela já discutida
neste estudo, proposta por Gramsci, Lenin e Trotsky.
Acreditamos agora poder nos aproximar, senão abordar, o
problema da produção cultural (escolhemos a literatura apenas
como exemplo) e da própria estratificação imanente a essa
produção. Nesse sentido, temos de um lado a literatura culta e do
outro a literatura chamada popular, que nos interessa mais
13
TROTSKY, Leon, Escritos sobre Sindicato. São Paulo, Kairós, 1978. p. 82.
14
GRAMSCI, Antonio, Literatura e Vida Nacional. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira,
1968. p. 108.

30
diretamente. Tanto uma como outra, ou qualquer atividade artística,
não pode, em momento algum ser pensada fora do contexto social
em que foi produzida. Noutras palavras, a abordagem científica
não pode prescindir sob qualquer hipótese da importância dos
fatores econômicos e das relações entre classes sociais no
momento em que a obra foi produzida. Como se vê, trata-se de um
fenômeno de extrema complexidade onde, somente através da
pesquisa profunda e da reflexão mais apurada quanto possível,
poder-se-ia pensar em resolvê-lo ainda que parcialmente. É
necessário então levar em conta as relações entre a produção
cultural, momento histórico em que foi produzida a obra, a estrutura
da sociedade na época, tanto quanto entender sua significação
nos planos estético e ideológico.
Com efeito, o problema que aqui nos preocupa é
precisamente sabermos quais as eventuais peculiaridades
inerentes à literatura do romance policial ou da ficção científica,
por exemplo, para que possamos ou não lhe atribuir características
próprias. Analisar sua formação ideológica, mostrar suas
contradições ao nível das classes sociais e a própria tentativa de
resolvê-los já seria uma boa medida; porém, talvez não seja o
suficiente nem o único caminho a seguir. Se como diz Lucien
Goldmann, que “toda obra importante, toda corrente filosófica ou
artística possui uma eficácia e exerce uma influência sobre o
comportamento dos membros do grupo e, inversamente, a maneira
de viver e de agir das diferentes classes sociais em dada época
determina, em grande medida, a sua vida intelectual e artística” 15 ,
então, a análise dessa produção literária exige, ao mesmo tempo,
uma análise estética (enquanto corrente artística) imanente à
significação objetiva da obra; e uma análise ideológica como forma
de relacioná-la com os fatores econômicos, sociais e culturais da
nossa época.
Se essa produção literária ou talvez paraliterária possui hoje
uma vasta clientela de consumidores - vide seu grande sucesso
comercial - talvez isso seja verdadeiro também para os demais
produtos culturais dirigidos às classes subalternas. Significativo,
entretanto, é que a partir disso podemos então pensar na
estratificação da produção da cultura de massa no interior da
sociedade estabelecendo as diferenças culturais. Jean Baudrillard
nos dá excelentes exemplos de como isso pode ocorrer no plano
da produção e do consumo de objetos. Refletindo sobre o fluxo e o
refluxo de determinados signos culturais e sobre a lógica cultural
de cada classe social, Baudrillard mostra, através da moda, que a
distinção cultural obedece uma certa lógica anteriormente
15
GOLDMANN, Lucien, Dialética e Cultura. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira,
1967. p. 79.

31
sancionada através da posição do indivíduo na sociedade: “Toma-
se a imposição da efemeridade da moda como eliminadora da
herança de signos distintivos, supõe-se que ela, em cada instante
do ciclo, dá a todos igualdade de oportunidade. Todos os objetos
são revogáveis perante a instância da moda: isso bastaria para
criar a igualdade de todos diante dos objetos. Ora, isso é
evidentemente falso: a moda, como a cultura de massa, fala a todos
para melhor devolver cada um a seu lugar. É ela uma das melhores
instituições nesta função, uma das que melhor funda sem
pretensões de aboli-la, a desigualdade cultural e a discriminação
social” 16. Talvez o melhor caminho para compreendermos esse
fenômeno esteja justamente no fato de que a indústria cultural, ao
contrário do que se pode pensar, não mais homogeneiza sua
produção; mas ao contrário, procura diferenciá-la. Ela far-se-á não
só no plano do conteúdo, ou seja, do produto acabado, mas também
no nível das mensagens diferenciadas tornando claro para o
observador as diferenças sociais, econômicas e culturais. Aqui
parece chegar ao fim o mito de que a sociedade de massa possui
uma cultura democratizada como pretendem Edward Shils17 e outros
estudiosos que estão na mesma linha de reflexão sobre o tema.
Situação análoga a esta (portanto, pertinente a este trabalho),
foi registrada e discutida por Mannheim ainda nos anos 30, ao
analisar a questão da democratização da cultura e a mentalidade
aristocrática, em seu notável trabalho sobre Sociologia da Cultura.
Diz ele: “Para a mentalidade aristocrática, o que é culturalmente
valioso deve existir num plano superior, inacessível aos homens
comuns. Neste caso como em outros, percebe-se que as atitudes
em relação aos objetos culturais seguem o paradigma das relações
sociais subjacentes. Onde quer que a ordem política e social se
assente sobre a distinção entre tipos humanos ‘superiores’ e
‘inferiores’ surge uma distinção análoga entre objetos ‘superiores e
‘inferiores’ de conhecimento ou apreciação estética...” 18 . O objetivo
de Mannheim é precisamente nos alertar para duas questões
básicas analisadas em seu livro: a da “distância social”, que por
sua vez gera a “distância vertical”, ou seja, a distância criada pelo
poder entre membros hierarquicamente desiguais e que, por isso,
apresentam diferentes padrões de comportamento social. Atribuindo
essas diferenças a características próprias das sociedades
hierarquicamente estratificadas, Mannheim cita exemplos da
“diferença de vestuário de uma casta para outra, diferentes modos
16
BAUDRILLARD, Jean et alii, A Moral dos Objetos. Função – Signo e Lógica de
Classe. In: Semiologia dos Objetos. Petrópolis, Vozes, 1972. p. 71.
17
SHILS, Edward et alii. A Sociedade de Massa e sua Cultura. In: A Indústria da
Cultura. Lisboa, Meridiano, 1974. p.151.
18
MANNHEIM, Karl, Sociologia da Cultura. São Paulo, Perspectiva, 1974. p. 152.

32
de tratamento cerimônicas de deferência, gestos de submissão” 19
etc. E o que é mais importante: o distanciamento vertical, como
se pode verificar, não se limita apenas às relações mútuas entre
grupos; abrange, inclusive, as relações entre o grupo social ou
uma pessoa e a própria produção cultural. Em outras palavras,
significa dizer que o distanciamento vertical, decorrente da distância
social, atinge as relações interpessoais tanto quanto a aceitação
ou não, de determinados objetos culturais. Nesse sentido é que
Mannheim ratifica o distanciamento social e estabelece diferenças
no tocante à produção cultural. Para ele existem produtos culturais
“superiores” e “inferiores”, precisamente enquanto produtos de uma
sociedade hierarquicamente organizada. São muitos os exemplos
dados por este estudioso acerca dessa questão; mas se pensarmos
em termos de produção literária, como vimos anteriormente, da
distância que separa a chamada literatura culta as literatura popular,
ou ainda da diferença de uso que se faz do vernáculo em nível de
cada classe social, então este exemplo é altamente significativo:
“O discurso ‘culto’ dessas camadas privilegiadas as separa da
plebe; essa é uma das mais importantes barreiras sociais entre
as classes de uma sociedade estratificada. A plena
intercomunicação não é possível em face da coexistência de
discursos ‘superiores’ e “inferiores’. Para o homem comum, o
discurso elegante parece artificial e hipócrita; para as camadas
dominantes, o discurso popular é grosseiro, brutal e degradante”20 .
Embora questionável em certos pontos, Mannheim parece
ter detectado com precisão a distância entre as classes sociais e
suas respectivas culturas particulares. Com efeito, não nos parece
inteiramente correta a suposição de que o homem comum poderia
entender o “discurso elegante” da classe culta como algo “artificial
e hipócrita”. Da mesma forma, o discurso popular não se
apresentaria para o homem culto como “grosseiro, brutal e
degradante”. Há que se refletir muito sobre esse problema, e
Mannheim não o faz. Ele apenas o menciona de passagem. A
rigor, trata-se de uma hipótese, e, como tal, pode estar longe de
ser uma verdade geral.
De qualquer modo sua hipótese trabalha com preconceitos
de classe e apreciação estética de produtos culturais – no caso
específico, o repertório de cada classe social – e de modo algum
pode-se negar sua importância. Agora – pensando em termos da
sociedade de massas – constatar sua pertinência na prática é
uma tarefa que só a pesquisa de campo tem condições de fazê-lo.

19
MANNHEIM, Karls, op. cit., p.174.
20
MANNHEIM, Karls, op. cit., p.177.

33
3. Sociedade e Cultura de Massa
Das Origens: Tocqueville, Nietzsche e Ortega y Gasset

O Brasil, como de resto significativa parte do bloco que compõe


o chamado “terceiro mundo”, assistiram à distancia algumas transfor-
mações estruturais em países europeus, Estados Unidos, enfim, no
outro bloco denominado hoje de “primeiro mundo”. Essas mudanças
que se fizeram sentir nos planos econômico, social, político e cultu-
ral, principalmente, introduziram novas normas sociais e novos pa-
drões de comportamento que vão, desde questões estruturais como o
modo de produção da riqueza, a relação capital e trabalho, 1 até cate-
gorias de superestrutura como, por exemplo, a moda e a superfluida-
de do consumo. A esse conjunto e ao resultado dessas alterações
que se consolidam a partir dos anos 30 deste século, os estudiosos
deram o nome de Sociedade de massa.
Os primeiros sinais do horizonte desta Sociedade, no entanto,
são muito anteriores a esse período. Eles surgem ainda em meados
do século XIX com as obras de Alexis de Tocqueville, Democracia na
América, publicada em 1840 e Gustave Le Bon, Psicologia das Multi-
dões, de 1870. Nesse momento, na Europa, com a consolidação da
Revolução Industrial, criam-se as condições econômicas, politícas e
sociais para o surgimento posterior da moderna sociedade de clas-
ses. A expressão “povo” cede lugar ao termo “massa”, usado inicial-
mente por Tocqueville e depois por Le Bon, com o objetivo de conceituar
aglomerados humanos desorganizados, casuais e sem objetivos defi-
nidos. Ao mesmo tempo, como assinala o sociólogo inglês Alan
Swingewood delineava-se a nova face da sociedade emergente: “o
desenvolvimento da divisão capitalista do trabalho, a organização e a
produção de mercadorias em fábricas de larga escala, populações
urbanas densamente concentradas, o crescimento das cidades, as
decisões centralizadas, um sistema mais complexo e universal de
comunicações e o crescimento dos novimentos políticos de massa
baseados na extensão dos direitos de voto à classe operária, são as
características ideais da sociedade de massa” 2
Não menos importante que as características da nova socieda-
de era o caráter impessoal cada vez maior nas relações sociais. A
mudança de comportamento do indivíduo voltado para a produção, já
1
A literatura sobre a emergência da Sociedade de Massa e a mudança nas relações
de produção é particularmente vasta. Porém, a obra de Giovanni Becheloni, Il Mutamento
Culturale in Italia, Liguori Editore, S rl, Napoli, 1989, deve ser consultada principalmente
por sua riqueza teórica e precisão de informações.
2
SWINGWOOD, Alan. O Mito da Cultura de Massa, Editora Inter-Ciência, Rio de
Janeiro, 1978, p. 6

35
antecedia o processo de “automatização” da sociedade. De outra par-
te, o Estado aumentava sua influência e autoridade (talvez a expres-
são melhor seja autoritarismo) sobre a sociedade, reorganizando-se
administrativamente. O expediente de que lançou mão permanece
válido e forte até nossos dias: a burocracia. Esta foi a opção encontra-
da para redimensionar suas relações com a sociedade. Uma forma
evidente de criar novos macanismos de controle, já destacados na
obra de Clifford Geertz, mas analisado com grande precisão teórica
por Max Weber 3 Tendo em mira justamente a obra de Tocqueville e a
preocupação de interpretar as características da sociedade de massa
emergente, o socióIogo Gabriel Cohn acrescenta que “a nívelação, o
isolamento e a perda da individualidade das pessoas privadas; a
atomização do conjunto social nas suas particulas elementares, a
contraposição direta entre massa atomizada e o Estado
todo-poderoso” 4 constituem o despertar do sociedade de massa.
Sob esse ângulo, me parece lícito se pensar nas implicações
ideológicas de uma sociedade cujas características, como já disse-
mos, mudaria. em todos os planos. Assim, não é sem motivo, por
exemplo, que ocorreria a “contraposição direta entre a massa
atomizada e o Estado todo-poderoso”, ao lado do “crescimento dos
movimentos políticos de massa baseados na extensão dos direitos
de voto à classe operária”, como registram Cohn e Swingewood res-
pectivamente. Nessa perspectiva, nota-se a reorganização da socie-
dade baseada nos interesses de classe. Por um, lado, o proletariado
reivindicando do Estado, a elaboração de leis que lhe permitisse a
conquista de alguns direitos e a consolidação daqueles já alcança-
dos. Por outro, a burguesia, dona do poder, reforçava a posição do
Estado todo-poderoso que, na verdade, representava e defendia seus
interesses de classe. Interessante: ressoa aqui a conhecida fórmula
de alianças entre burguesia e Estado cuja cumplicidade está histori-
camente registrada 5. Investido da imagem de mediador das tensões
sociais, o próprio Estado estabelece o desequilíbrio a favor da burgue-
sia. É esta classe social, na verdade, que vai administrar a econômia,
a política, a cultura, enfim, o Estado e a sociedade como um todo.
Nessas conidições, é possível se pensar que o advento da so-
ciedade de massas, entre outras coisas, acirra as contradições soci-
ais, trazendo à tona a questão ideológica da luta de classes. A massa
atomizada, cuja liberdade e individualidade ficaram comprometidas
em função das transformações ocorridas nas relações de produção,
vê agora sua força política (a despeito do direito ao voto) minimizada
pela aliança entre burguesia e Estado. Claro: uma coerência na traje-
tória da história cujo resultado empírico hoje se conhece muito bem.
A burguesia legítima seu poder alicerçada justamente nos princípios
3
Sobre este assunto deve-se ler a obra Max Weber, Gabriel Cohn (org.) Editora Ática,
São Paulo. 1986.
4
COHN, Gabriel. Sociologia da Comunicação: teoria e ideologia, Livraria Pioneira
Editora, São Paulo, 1973, p. 66
5
Sobre essa questão convém consultar a obbra de Luciano Gruppi, Il Concetto di
Egenomia in Gramsci, Editrice Laterza, 1981

36
democráticos da liberdade, igualdade e justiça material.
O livro de Alexis de Tocqueville, citado anteríormente, é a pri-
meira obra de reflexão científica sobre todo o processo de formação
da sociedade de massa. Tendo a. sociedade Americana como mode-
lo (pais onde morou durante 12 anos), Tocqueville estava atento às
transformações advindas da Revolução Industrial não só da Europa,
mas também da América. São suas reflexões sobre essas transfor-
mações que marcará, a meu ver, o ponto de partida para o estudo
científico das bases de uma nova realidade que mais tarde seria co-
nhecida como sociedade de massa.
Tocqueville faz uma admirável análise da velha sociedade nos
mostrando que sua estrutura social não podia mais suportar o velho e
caduco autoritarismo aristocratico. O autor, no entanto, tem a sensibi-
lidade e a lucidez intelectual para perceber que o advento da nova
ordem social através da burguesia não significa exatamente democra-
cia. Entre tantos aspectos, a instabilidade social preocupava-o de perto.
Não sem motivos, é claro. Ao mesmo tempo que, como já vimos,
emergia uma burguesia sólida economicamente e forte no plano polí-
tico, surgia também, em sua contrapartida, uma respeitável massa
urbana desempregada. Atento a tudo isso, o autor vai um pouco mais
adiante e lança os olhos sobre a produção cultural. Como qualquer
outra atividade profissional, a cultura também ganha outra dimensão
no contexto da sociedade industrial adquirindo uma feição monótona
e rotineira. Era o prenúncio daquilo que Theodor Adorno e Max
Horkheimer mais tarde, em 1947, chamariam de Indústria Cultural.
Em outras palavras, a Cultura de Massa.
Espantado com a industrialização da literatura e sua
consequente banalização, Tocqueville acrescenta que “a literatura
democrática, está sempre infestada de uma tribo de autores que olham
os assuntos como um simples comércio.” 6 Mais adiante, interpretan-
do a reação popular diante das transformações sociais e do sistemá-
tico processo de atomização do indivíduo em sociedade ele acrescen-
ta: “cada cidadão, assimilando-se a todos os demais, está PERDIDO
NA MULTIDÃO 7 e coisa alguma se destaca, salvo a grande e impo-
nente imagem do povo em, geral. Não conheço país em que haja tão
pouca independência de espírito e de verdadeira liberdade de discus-
são como na América.” 8
Diferentes são as posições do filósofo alemão Friedrich
Nietzsche. Em suas obras, The Anti-Christ e The Twilight of the Gods.
Ao analisar o papel do Estado e do proletariado europeu, nota-se uma
certa concepção aristocrática das relações sociais e forte resistência
às mudanças estruturais que estavam ocorrendo. Reportando-se ao
inconformismo do proletariado que reivindicava partícipação política
na administração do Estado, melhores condições salariais e de traba-
lho Nietzsche acrescenta: “eu simplesmente não consigo perceber o
6
Tocqueville, Alexis de. Democracia na América, Cia. Editora Nacional,
São Paulo, 1981, p. 245.
7
O grifo é do autor.
8
Tocqueville, Alexis de. Op. cit. P. 16.

37
que se propõe a fazer com o operário europeu agora que ele já se
transformou numa questão. Ele já está muitíssimo bem de vida para
não reivindicar mais ... se se quer escravos, será tolice educá-los para
ser patrões.” 9
Os arguentos de Nietzsche não param ai. Defensor intransigen-
te da sociedade hierarquica fundada na “maior e menor habilidade” do
homem ele escreve: “em toda sociedade saudável existem três tipos
que se condicionam entre si e que gravitam de modo diferente em
termos psicológicos; cada um tem sua higiêne, seu próprio campo de
trabalho, seu próprio senso de perfeição e domínio ... os primordial-
mente espirituais, os primordialmente fortes em físico e temperamen-
to e - o terceiro tipo - os que não distinguem em coisa alguma, os
medíocres - estes constituindo a grande maioria, e aqueles como a
elite.” 10
Trabalhando com o conceito de “homem medíocre” levado à
sua forma extrema, Nietzsche consolida em seu pensamento a idéia
de uma cultura hierárquica e orgânica ao mesmo tempo. Assim, por
exemplo, o “homem medíocre”, permanentemente insatisfeito com seu
“status” social, torna seu comportamento e aspírações um instrumen-
to de manipulação e um alvo fácil ao que ele classifica de, “agitadores
socialistas ... que minam o instinto, o prazer, o senso de satisfação
do operário com sua existência pequena - que o torna invejoso, que
lhe ensinam a vingança.” 11
As preocupações de Nietzsche no plano cultural incIuiam o que
ele considerava uma ameaça à chamada “alta cultura”, ou seja, a
literatura, a ciência, a arte e a filosofia. A ascenção da classe operá-
ria, portadora de uma ideologia alheia e insensível aos valores dessa
cultura poderia, segundo o autor, colocar em risco exatamente estes,
valores. Nessa questão, no entanto, Netzsche não está sozinho. Au-
tores posteriores à sua obra, como Ortega y Gasset e T.S. Eliot acre-
ditavam que a ameaça a sociedade surgiria de uma nova ordem social
vinda “de baixo”, tendo como principais personagens a ignorância e a
rudeza do “homem de massa”. À maneira desses pensadores, a for-
ma de eliminar a ameaça seria mesmo ensinar a esses homens rudes
a aceitarem seu lugar de subalternidade e não molestarem a cultura
tradicional.
Se por um Iado, nas obras de Tocqueville e Nietzsche já se
detecta a ideologização do termo “massa”, no livro de Ortega y Gasset,
The Revolt of the Masses, publicado em 1930 este fato se consolida.
Interpretando as concepções de Nietzsche sobre a emergência da
classe operária desprovida de instrução escolar e concentrando suas
análises mais ainda na critica do filósofo alemão ao socialismo, Gasset
torna-se implacável. Para ele a sociedade é formada por uma “elite
superior” e por uma imensa “massa desqualificada”. Todavia, não se
trata apenas de um registro eventual do autor. Em sua obra há toda
9
Nietzsche, Friedrich. “The Twilight of the Gods”, in: W. Kaufman (org)
The Portable Nietzsche, New York, 1965, p. 545
10
Nietzsche, Friedrich. Op. cit. p 645.
11
Nietzsche, Friedrich. Op. cit. p. 646-7

38
uma análise que procura fundamentar suas afirmações usando de um
discurso teórico que aponta para o reducionismo sociológico. Assim,
por exemplo, a “elite superíor” deve sempre se manter no poder, deve
sempre representar o Estado, justamente porque é a classe social
mais culta e mais lúcida para resolver os problemas da sociedade.
Seria, segundo Grasset, a única classe social com visão de conjunto
dos problemas políticos, econômicos e sociais. Assim, pela habilida-
de e por ser uma espécie de “antena da raça” (para lembrar a expres-
são do poeta inglês Ezra Pound sobre o artista), a elite deve perpetu-
ar-se no poder. À “massa desqualificada” resta-lhe a resignação de
classe “inferior” e a consequente submissão. As palavras de Gasset
esclarecem melhor a questão quando ele analisa as conquistas traba-
lhistas e sociais do proletariado. Diz ele: “a massa resolveu avançar
para o primeiro plano da vida social, ocupar os lugares, usar os instru-
mentos e gozar os prazeres até agora reservados a poucos.” 12 Na
verdade Gasset estava era preocupado com o avanço político das
massas (embora não fale no elemento político) em função do liberalis-
mo democrático que emergia na Europa. Para ele esse avanço não
passava de uma invasão de “novos bárbaros”, de um flagelo imposto
aos europeus (à elite, é claro) e à sua cultura, agora seriamente
“ameaçada” pela “mediocridade”. Como diz o próprio autor,
reportando-se à classe média e ao operário, eles são “incapazes de
qualquer esforço além do que lhes é estritamente imposto como uma
reação a compulsão externa.” 13
A perplexidade e o inconformismo de Gasset, como se pode
ver, não se concentra apenas nos avanços e nas conquistas, políticas
e sociais das massas. Esse acontecimento com efeito, nada mais
era do que o reflexo do liberalismo democrático, como já disse, que
propiciaria ainda o avanço da ciência e da técnica. É dentro desse
contexto que se automatiza a mecanização das fábricas, constroem-
se ferrovias, expandem-se a índustria da construção cívil, a rede de
saneamento básico e investe-se na pesquisa contra as doenças epi-
dêmicas principalmente na França e Inglaterra. 14 O final do seculo XIX
já aponta como seria a sociedade de massa., marcada pelo avanço
tecnológico e pelo advento de uma nova, ordem social. Surge o avião,
a energia elétrica, o petróleo, o automóvel, o bonde, o cinema e o
telefone.
Gasset, no entanto, não interpretou essas mudanças dessa
forma. Para ele, a presença da democracia gerou uma imensa massa
despreparada e desprovida dos mais elementares princípios
cívilizatórios. Esta é também a opinião do sociólogo alemão Max
Scheler quando, nos anos vinte escreve que a democracia degrada a
“vida,reduzindo-a à psicologia de massa, à gradual transformação de
12
Gasset, Ortega y. The Revolt of Masses, The Seabury Press, New
York, 1930, p. 11
13
Gasset, Ortega y. Op. cit.., p.13
14
Sobre este tema deve-se consultar a obra de Adeline Daumard,
“L”évolution des Structures Sociales em France à l’époque de
l”industrialisation”, Revue Historique nº 502, avril-juin 1972

39
uma democracia de idéias liberais numa democracia sombria de mas-
sas, interesses e sentimentalismo.” 15 Em outros termos, apenas as
“elites verdeiramente cultas” resistiriam às mazelas da sociedade de
massa, como forma de preservar a verdadeira cultura.
Convém lembrar que estes temas foram os mais enfatizados e
discutidos no pensamento do século XIX e até mesmo início do século
XX. Em consequência disso é que, já na segunda metade do século
XIX temos, ainda que de forma embrionária, um conceito de sociedade
de massa reportando-se enfaticamente à presença e ímportâncía do
proletariado industrial. Ao mesno tempo ocorre a ascendência econô-
mica da burguesia e os debates sobre a teoria socialista com Charles
Marie Fourier e Robert Owen, tidos como socialistas utópicos. Nes-
ses termos é possível se entender por quê as primeiras teorias sobre
a sociedade de massa (que se pense nas obras de Tocqueville,
Nietzsche, Ortega y Gasset, T.S. Eliot, entre outros) são, em outras
palavras, a defesa dos valores da aristocracia ou da burguesia. Ou
ainda como diz o sociológo inglês Alan Swingewood, “as primeiras
teorias de sociedade de massa são, então, defesas da classe política
dominante contra o espírito democratico dos estratos subordinados, e
a reafirmação de hierarquias sociais rigidamente definidas, nas quais
as decisões continuam como prerrogativa das elites. Estas teorias
rejeitam os princípios democráticos de governo conservados como
uma relíquia pela filosofia e pela revolução burguesa, que elas identifi-
cam com a mediocridade cultural e social.” 16
Estas rápidas observações nos permitem captar as primeiras
discussões teóricas acerca da gênese da sociedade de massa. De
Tocqueville, ainda em meados do século XIX, até Ortega y Gasset em
1930, o pensamento conservador analisou, a seu estilo, a emergência
do liberalismo democratico, as reivindicações sociais e políticas do
proletariado e, sobretudo, as transformações na infraestrutura econô-
mica, social, política e cultural 17que permitiram o surgimento de uma
nova ordem social: a sociedade de massa. De qualquer modo, apesar
da vastíssima literatura sobre a sociedade e a cultura de massa, os
analistas e estudiosos estão longe de chegarem a um consenso, prin-
cipalmente no tocante às questões ideológicas. Basta pensar, por
exemplo, nas disparidades entre as correntes de pensamento como a
Escola de Frankfurt e a Escola Progressista-Evolucionista liderada
por Edward Shils e seus colegas. Elas são tão diferentes em seus
conceitos e análises que é possível se pensar em duas realidades
opostas para o mesmo objeto de estudo. A diferença estrutural, po-
rém, reside justamente na questão ideólogica. E agora que já temos
um panorama da gênese da sociedade de massa, convêm analisar os
15
Scheler, Max. “Notes Towards a Definition of Culture”. In: Philosophical Perspectives,
Boston, 1958, p. 13.
16
Swingewood, Alan. Op. cit., p. 6;
17
Em minha tese de doutoramento, A Literatura da Cultura de Massa, Editora Lua
Nova, São Paulo. 1987, procuro fazer um levantamento e análise do surgimento da
literatura de massa, desde as novelas inglesas de terror, de fins do século XVIII até o
romance de folhetim do século XIX na França.

40
postulados teóricos da insdústria cultural. Eles serão de grande valia
para este trabalho, principalmente quando iniciamos as análises da
circulação de produtos culturais brasileiros na sociedade italiana.

A Escola de Frankfurt
(os postulados teóricos da industria cultural)
As tendências estruturais do moderno capitalismio industrial
coloca um problema axiomático a ser discutido pelos analistas da
sociedade: a incontestável presença do binômio consumo/lucro como
entidade que estabelece novas formas de comportamento, novos pa-
drões e valores sociais. A questão ideológica, nesse momento, assu-
me fundamental importância porque coloca em pauta a produção e o
consumo de massa que são, em outros termos, os pilares da socie-
dade de massa.
Pensadores como Theodor Adorno, Max Horkheimer Herbert
Marcuse, dedicaram boa parte da sua obra à analise desta socieda-
de, cujo resultado é conhecido por “teoria crítica da sociedade”. A
fecunda contribuição desses estudos tem estimuilado a reflexão con-
temporânea a entender melhor as relações entre Estado e indivíduo,
tendo como pano de fundo a ordem social do capitalismo organizado.
Em 1947, em Amsterdã, Adorno e Horkheimer publicam
“Dialektik der Aufklarung” 1, onde aparecem suas reflexões sobre a
sociedade e a cultura de massa. A expressão “cultura de massa” para
Adorno, já encerra em si mesma uma ambiguidade conceitual e ideo-
lógica que deve ser dissipada de imediato, para que não se confunda
cultura popular com cultura de massa. Deixando de lado esta ultima
expressão, o autor cria o termo “indústria cultural” e justifica da se-
guinte forma: “abandonamos essa ultima expressão para substitui-Ia
por ‘indústria cultural’, a fim de excluir de antemão a interpretação que
agrada os advogados da coisa; estes pretendem, com efeito, que se
trata de algo como uma cultura surgindo espontaneamente das própri-
as massas, em suma, da forma contemporânea de arte popular. Ora,
dessa arte a industria cultural se distingue radicalmente.” 2
As preocupações de Adorno com este tema, porém datam ain-
da de 1938, quando escreveu o ensaio intitulado “O Caráter de Fetiche
na Música”, cujo objetivo era estudar as transformações por que pas-
sava a música com sua inserção na produçao comercial de massa.
Nessa obra já se percebe todo o arcabouço teórico de análise sobre o
processo de reificação de produtos culturais como a música erudita,
por exemplo, que se imaginava estar à margem da estamdardizãção.
Nessas análises, na verdade, estão as “raízes” da industria cultural.
Mas o esforço teórico de Adorno não se limita à estética musi-
1
No livro de Gabriel Cohn já citado (p. 287) e de José Guilherme Merquior, Arte e
Sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin, Edições Tempo Brasileiro, Rio, 1969, p.
48, consta o ano de 1947. No livro de Alan Swingewood, também já citado, p. 14,
aparece 1944. Optei pelas informações anteriores imaginando um equívoco de
Swingewood.
2
Adorno, Theodor. “ A Indústria Cultural”. In: G. Cohn (org.) Comunicação e Indústria
Cultural, Cia. Editora Nacional, São Paulo, 1987, p. 287.

41
cal. Este produto serve apenas de ponto de partida para se chegar a
um universo maior que é a problematização e a anáIise crítica da
cultura. Certamente sua formação de maestro profissional ensejou a
música como início de toda a teoria crítica da cultura. Mas o desejo
de Adorno ir mais longe está claro no seu conceito de indústria cultu-
ral, nove anos, após “O Carater de Fetiche na Música”. Vejamos: “a
indústria cultural é a iritegraçao deliberada, a partir do alto, de seus
consumdores. Ela força a união dos domínios, separados há milêni-
os, da arte superior e da arte inferior. Com prejuízo de ambos. A arte
superior se vê frustrada de sua seriedade pela especulação sobre o
efeito; a inferior perde, através de sua domesticação civilizadora, o
elemento resistente e rude, que lhe era inerente enquanto o controle
social não era total.” 3
Três questões são importantes nesse conceito para entender-
mos a teoria da sociedade de massa da Escola de Frankfurt: a primei-
ra é a perda de autonomia do consumidor, acrescida da reificação da
cultura através da descaracterização de produtos eruditos e popula-
res. A massa perde sua condição de sujeito para ser transformada em
objeto. Em outras palavras: não é a razão da produção cultural, mas a
ideologia da indústria cultural, elemento secundário submetido à tira-
nia do lucro. O autoritarisno e o poder de repressão atingem um nível
que simplesmente destrói a relação democrática que poderia existir
entre produtor e consumidor. Monopolizando a produção cultural, vei-
culando a informação escrita, falada e televisada, a indústria cultural
transforma-se numa espécie de engodo das massas. Mas como todo
comportamento autoritário tem um caráter ambiguo, a indústria cultu-
ral procura a mediação entre lucro e ideologia. Mantém-se o
“establishment” para que a estrutura social permaneça intocável. As-
sim, sufoca-se a crítica à sociedade de massa, ao mesmo tempo que
ajusta-se o comportamento coletivo às necessidades da nova ordem
social e política.
Essas são algumas questões centrais na teoria da indústria
cultural que devem ser pensadas. Todas elas, como se vê, apresen-
tam um quadro sombrio da sociedade de nassa onde, uma estrutura
social atomizada não pode, jamais, conduzir à democracia. O cami-
nho, então, seria na direção inversa. Uma sociedade cuja autonomia
coletiva está comprometida, aproxima-se inevitavelmente do totalita-
rismo. Vários críticos e ensaistas já mencionaram o caráter ideológi-
co da indústría cultural. E sobre esse aspecto, independente das dife-
renças ideológicas que possam haver, nota-se uma certa tendência
em admitir o caráter reificante da sociedade de massa. É com extre-
mo rigor que José Gutilherme Merquior analisa o conceito de indústria
cultural de Adorno, após destacar as “cores sombrias” do último qua-
dro adorniano sobre a sociedade contemporânea. Acrescenta ele que,
“na cultura de massa, o pensamento negativo vive o seu pensamento
mais perigoso. O poder de repressão chega ao máximo. A tirania do
irracional, a justificação do inumano ‘statuquo’ já não necessita se-
3
Adorno, Theodor. Op. cit.,p.287-8.

42
quer de coberturas ideológicas. Quando a revolta social desaparece
do horizonte das massas e o conformismo se torna regra da vida, a
realidade existente ocupa a função das antigas construções ideológi-
cas. O mundo da televisão é um universo de coisas reais - e não
obstante, carregadas de sentido ideológico.” 4
Os argumentos de Merquior nos levam pensar num certo pessi-
mismo de Adorno quando escreveu a “indústria cultural”. Essa visão,
aliás, é compartilhada por outros estudiosos da Escola de Frankfurt, 5
especialmente sobre a obra de Adorno. São os casos, por exemplo,
de Phil Slater, em seu livro intitulado Origem e Significado da Escola
de Frankfurt, e de Alan Swingewood, na obra já citada. Este último
autor, ao analisar a crítica que Adorno e Horkheimer fazem à arte
capitalista moderna assume uma postura incomum. A aspereza de
suas palavras ganham realce tão forte que o melhor a fazer é cita-lo:
“existe, nessas formulações, não só uma concepção elitista de cultu-
ra, a forma ‘alta’ agindo como um meio de transformação da socieda-
de pelo desenvolvimento de uma consciência crítica, como também
uma rejeição pessimista da classe operária como a vítima extrema-
mente subserviente de uma reificação esmagadora. Existe, assim,
uma grande similitude de idéias entre os teoricos marxistas de Frank-
furt e o reacionário Nietzsche: as massas são ‘medíocres’ e a burgue-
sia incapaz de resistir à marcha do capitalismo tecnológico.” 6
Afora o pequeno exagero de Swingewood é bom notar que, pos-
teriormente, em 1967 mais precisamente, Adorno escreveu um en-
saio intitulado “Culture Industry Reconsidered”, onde reinterpreta al-
guns dos temas da sociedade de massa. A crítica à arte capitalista é
exatamente um dos aspectos retomados por Adorno, ao lado da auto-
nomia do consumidor e dos efeitos manipuladores da indústria cultu-
ral. Adorno ameniza suas concepções anteriores, admitin do que o
consumidor possui um relativo grau de autonomia diante da ação da
indústria cultural. A base das suas reflexões, no entanto, permanece
a mesma, uma vez que a “relativa autonomia” não significa nenhuma
concessão à ação da indústria cultural. Ao contrario, ele parte da
mesma constatação anterior, ou seja, do caráter autoritário da socie-
dade de massa e da presença de uma cultura tecnológica. Nesse
aspecto, seu pensamento mantém a mesma estrutura teórica do iní-
cio. O conjunto de sua obra, porém, não se restringe ao domínio da
teoria da indústria cultural e aos escritos de Dialética do Iluminismo,
em colaboração com Horkheimer. Seus trabalhos sobre teoria estéti-
ca e mais especialmente sobre estética musical (reunidos no volume
Dissonâncias), são análises profundas não só do fenômeno musical
em si, mas de uma perspectiva cujo modelo teórico permite a
problematização da cultura num sentido mais abrangente.
4
Merguior, José Guilherme. Op. cit., p. 50.
5
Alguns membros da Escola de Frankfurt não concordavam com a teoria da indústria
cultural elaborada por Adorno. São os casos de Siegfried Kracauer, Walter Benjamin
e Bertolt Brechet, que tinham uma concepção mais otimista, por acreditarem no devir
de uma nova arte proletária baseada na idéia coletivista do modo de produção
capitalista. É ocaso do teatro épico de Brecht.
6
Swingewood, Alan. Op. cit. p.17.

43
A Escola Progressista-Evolucionista
(outra concepção teórica da. cultura de massa)
As críticas mais radicais à teoria da indústria cultural partem do
chamado “Grupo Progressista-Evolu-cionista”, que reune pensadores
como Edward Shils, Daniel Bell, David Riesman, entre outros. Liga-
dos ao pensamento sociológico americano, esses estudiosos refu-
tam o conceito “exacerbado” de indústria cultural, para proporem uma
teoria da sociedade de massa baseada na concepção de uma demo-
cracia pluralista. Este é o ponto de partida dos “progressistas
evolucionistas”. Edward Shils, por exemplo, ao analisar o pensamen-
to frankfurtiano de sociedade e cultura de nassa, apresenta um co-
mentário que oscila entre a discordância e a ironia. Acrescenta ele
que, a visão ao mesmo tempo, idealista e pessimista da Escola
Franikfurt, só tem sentido se partirmos da “fixação frustrada num ideal
impossível de perfeição humana e de uma aversão à sua própria soci-
edade e aos seres humanos tal como eram” 1
Esta frase, não analisada atentamente, pode parecer apenas
mais uma discordância, mais um protesto contra o pensamento teóri-
co dos frankfurtianos. Mas não é so. Ela encerra um componente tão
deselegante quanto equivocado. Na expressão “... aversão à sua pró-
pria sociedade e aos seres humanos ...” Shils nos leva a pensar na
situação do povo alemão (que se pense ainda em franceses e italia-
nos) diante do horror e da barbarie empreendida pelo nazi-facismo que
precedera a Segunda Guerra Mundial. A “aversão à sua própria socie-
dade” não é a expressão mais adequada para interpretar a fuga de
alguns intelectuais de Frankfurt como parece insinuar Shils que, entre
outras coisas, omite a perseguição nazista aos judeus.
De resto, a expressão “fixação frustrada de um ideal e impossí-
vel de perfeição humana”, reporta-se ao desencanto e ao péssimismo
dos frankfurtianos com a sociedade vigente. Como assinala Merquior,
“não distinguindo, nas condições atuais, nenhuma força capaz de as-
segurar a reestruturação completa da sociedade, os representantes
dessa crítica da cultura derivam , logicamente, para o pessimismo” 2
Mais adiante, Shils demonstra com clareza que não entendeu o cará-
ter universalizante da teoria da indústria cultural. Desta vez suas críti-
cas recaem sobre o seguinte aspecto: exilado que era, Adorno elabo-
rou suas análises e críticas à sociedade de massa baseado não em
experiências com sociedades européias, mas sim nos Estados Uni-
dos. Claro: a observação empírica foi a sociedade americana, mas o
modelo teórico aplica-se a qualquer sociedade de massa. Argumen-
tando o comportamento anti-capitalista e, consequentemente, anti-ame-
ricano de Adorno, Shils entende que o pensador alemão só veio co-
nhecer a sociedade em território americano. Ora, nada mais equivoca-
do que o raciocínio de Shils. Ainda nos anos trinta, na Alemanha,
1
Shils, Edward. “The Intellectuals and the Powers”, in: Monthly Review Press, New
York, 1963.
2
Merquior, José Guilherme. Op. cit., p. 149

44
Adorno já se preocupava, ao lado de seu primo Walter Benjamin e
Max Horkheimer, com o caráter reificante da sociedade de massa.
Basta ver, por exemplo, seus escrítos sobre estéiica musical (já cita-
dos anteriormente) que datam dessa época, onde a música já apare-
ce como um produto cultural estandardizado, adulterado em seus com-
ponentes formais, em sua tessitura, enfim, na sua estrutura estética,
como forma de adaptá-la ao consumo de massa.
A teoria “progressista-evolucionista”, contudo, dirige suas aná-
lises em outra direção. Pode-se dizer, quase opostas aos argumentos
da indústria cultural. Partindo de um conceito de sociedade de massa
como democracia pluralista, de uma estrutura de poder descentraliza-
da, uma “sociedade participante”, os representantes dessa teoria acre-
ditam que a liberdade e o desen-volvimento,advindos do processo
ininterrupto da indútriaiização e da tecnologia, fortalecem as bases da
democracia política ampliando ainda mais o pluralismo político. Ao
contrário do que preconiza o pensamento frankfurtiano, os elementos
acima só fortaleceriam a sociedade civil. Pelo menos é assim que
pensa William Kornhauser, um dos representantes da teoria “progres-
sista-evolucionista”: “uma pluralidade de grupos independentes e com
funções limitadas sustentam a democracia liberal, proporcionando
bases sociais de concorrência livre e aberta pela liderança, participa-
ção generaIizada na seleção dos líderes, restrição da aplicação de
pressão sobre os líderes e auto-governo em vastas áreas da vida soci-
al. Por conseguinte, onde o pluralisnio social é forte, a liberdade e a
democracia tendem a ser fortes; e, inversamente, as forças que enfra-
quecem o pluralismo social também enfraquecem a liberdade e a de-
mocracia.” 3
Nesse sentido, o pluralismo, vísto sob a óptica dos progressis-
tas-evolucionistas, apresenta uma sociedade onde os grupos sociais
possuem forças equivalentes. Ao mesmo tempo, esse equilíbrio per-
mitiria um certo controle democrático, uma vez qua as elites não teriann
como monopolizar o poder. Haveria, uma espécie de “estrura interme-
diária” 4 que serviria de canal de acesso às elites o que, em outros
termos, significaria a independência dos outros grupos sociais em
relação às elítes. Assim, as relações sociais ganhariam novo estímu-
lo, evitando o seu empobrecimento. Grande parte da população esta-
ria, pela primeira vez, culturalmente integrada e participando demo-
craticamente dos acontecintentos políticos que pudessem transfor-
mar a sociedade.
Além dos aspectos já destacados, Daniel Bell, outro teórico do
grupo progressista-evolucionista, levanta algumas questões que, se-
gundo ele, passaram desapercebidas pelos frankfurtianos. O cons-
tante processo de alfabetização, o aumento dos padrões educacio-
nais, do nível sócio-econômico e do lazer das populações, vieram
modificar a estrutura política e social do capitalismo primitivo, substi-
tuindo-a por uma nova ordem social mais democrática, onde o indiví-
3
Kornhauser, William. Aspectos Políticos da Sociedade de Massa Amarrortu Editores,
Buenos Aires, 1974, p. 221
4
a expressão é de William Kornhauser, na obra já citada.

45
duo torna-se participativo social e politicamente. O capitalismo indus-
trial contemporâneo, desse modo, habilita multidões a ingressar no
consumo de massa. Produtos culturais (livros, discos de música eru-
dita) até então acessíveis tão somente às elites passam, com a de-
mocratização do consumo na sociedade de massa, a serem adquiri-
dos por uma grande parcela da população. Para Daniel Bell, ao con-
trário do que diz Adorno, a moderna sociedade capitalista não só não
brutaliza a cultura, homogeniza gostos e padrões de comportamento,
como estabelece diferentes referênciais no tocante aos mais variados
produtos culturais. A cultura, em função da eficiência da produção
industrial, apresenta-se estratificada permitindo, dessa forma, o con-
sumo diferenciado.
Dessas fomulações retira-se a idéia, segundo a qual, a socie-
dade de massa e sua cultura são produtos da democracia pluralista e
de uma estrutura social onde o acesso das massas ao consumo eli-
mina as desigualdades sociais. Ou ainda, como diz Alan Swingewood,
analisando as reflexões dos progressistas-evolucionistas, “o conceito
progressista-evolucionista de capitalismo industrial moderno é um
conceito em que a integração social flui naturalmente de forças de
dentro da estrutura social, não sendo forçada a uma população sub-
serviente por meio de instituições de uma ‘indústria da cultura’”. 5
A sociedade de massa, ainda sob a óptica progressista-evolucionista,
teria como traço peculiar, a propriedade de eliminar os clássicos, con-
flitos e divergências entre capital e trabalho, ponto estrutural na análi-
se marxista da sociedade capitalista. O avanço da ciência e da técni-
ca ultrapassam a importância do capital privado no universo da produ-
ção. Em suma, é uma sociedade cuja estrutura social desmantela a
hierarquia econômica para tornar-se democrática. Difunde-se uma
cultura mediana, socializada pelos meios de comunicaçãso de mas-
sa cuja identidade é com a populaçãoo como um todo o não mais só
com a classe dirigente.
Tocando de leve nas questões sociais, os teóricos progressis-
tas-evolucionistas reconhecem que, apesar da existência de uma de-
mocracia pluralista, a sociedade de massa ainda apresenta alguns
problemas de base como a pobreza urbana, a delinquência, a miséria,
o desemprego, o subemprego e até a prostituição. A explicação para
presença desses problemas não poderia, a meu ver, ser mais sim-
ples: são as disfunções decorrentes do próprio processo de industria-
lização e as consequências do desenvolvimento que, involunta-
riamente, criam essas situações, ou seja, a questão é colocada como
se fôsse uma “desagradável contingência” com a qual, infelizmente,
teríamos que conviver por um tempo ainda não previsto.
Não é à toa, portanto, que os progressistas-evolu-cionistas dei-
xam de lado em suas análises, o processo de produção para privilegi-
arem o consumo. Esta opção, com efeito, omite uma questão central
no capitalismo da sociedade de massa que é a luta de classes. É
como se ela não existisse. O “pluralismo democrático”, por outro lado,
5
Swingewood, Alan. Op. cit., p.20

46
é visto como uma entidade real e perfeita onde o cidadão, independen-
te da sua classe social e das suas condições como membro da soci-
edade, poderia participar ativa e diretamente das decisões políticas e
econômicas, em função do seu fácil acesso ao universo do consumo.
É ainda como se a existência do pluralismo democrático (muito frágil
e mal definido pelos progressistas-evolucionistas), fôsse o suficielite
para a presença de uma consciência política e social. É bastante
problemático (senão ingênuo) se imaginar, por exemplo, que o acesso
das massas ao consumo eliminaria as desigualdades sociais. Em
qualquer estrutura social e de qualquer país, isso não seria possível.
O que eventualmente poderia ocorrer, seria a minimização das desi-
gualdades sociais. E isto, de certo modo, vem ocorrendo em paises
como a França, Italia (muito mais ao norte), Inglaterra, Alemanha,
entre outros. Mesmo assim, com profundas contradições (especial-
mente na Itália) que analisaremos mais adiante. Esta minimização,
no entanto, está muito longe de significar uma justiça social satisfatória.
Principalmente se pensarmos no grande contingente que produz a
riqueza e no pequeno grupo que dela se apropria e a administra. Por
isso é que, mais uma vez, não podemos concordar com os argumen-
tos dos progressistas-evolucionistas quando afirmam que a socieda-
de de massa resolveu o problema dos conflitos entre capital e traba-
lho. A prova de que esta questão permanece, e a presença cada vez
maior e mais forte de sindicatos, partidos politicos, instituições soci-
ais e trabalhistas, defendendo e reivindicando os direitos dos diversos
segmentos das classes trabalhadoras.
Os progressistas-evolucionistas deixam ainda à margem da sua
teoria, uma questão ideológica importante na produçõa da riqueza na
sociedade capitalista: uma análise mais profunda do impacto da
tecnologia nas relações de produção, no consumo e nas transformaçoes
do mercado de trabalho. E, claro que a modernização da produção
através da racionalidade tecnológica, tende mesmo a aumentar essa
produção. E quase sempre esse aumento pressupõe também um cres-
cimento do consumo, um aumento da demanda, o que nem sempre é
verdadeiro. As variáveis aqui são muitas, mas convém destacar um
fenômeno bem típico de países do terceiro mundo: o aumento do con-
sumo quase sempre se dá em função do crescimento populacional e
dificilmente em decorrência do aumento qualitativo de vida da socie-
dade como um todo. Nos países desenvolvidos, claro, a situação é
diferente. O aumento do consumo se dá também (mas não só) em
função do crescimento da qualidade de vida. Veremos essa questão
de modo mais detalhado quando analisarmos a ascenção econômica
italiana dos anos setenta para cá.
Em outras palavras, os progressistas-evolucionis-tas colocam
a industrialização e a tecnologia como elementos emancipadores da
sociedade e do pluralismo democrático. Nesse momento lanço mão
das palavras de Herbert Marcuse, não para mostrar que a tecnologia é
a lógica cruel da civilização ou para adjetivá-la como a criação nociva
do homem para si mesmo. Isso não, porque a tecnologia é uma reali-

47
dade necessária e irreversível. Quero citá-lo para refletirmos sobre o
seguinte aspecto: a tecnologia representa, entre outras coisas, a con-
tradição entre o princípio do prazer e o princípio da realidade. Ou ain-
da, como diz o filosofo alemão, “as técnicas provêem as próprias ba-
ses do progresso; a racionalidade tecnológica estabelece o padrão
mental e comportamental para o desempenho produtivo, e o ‘poder
sobre a natureza’ tornou-se praticamente idêntico à civilização.” 6 Nesse
sentido é que devemos pensar na racionalidade tecnológica e no tra-
balho. Se eles criaram e ampliaram a base natural da civilização, nem
por isso pode-se dizer que isto foi feito sempre de forma prazerossa.
Ao contrário, quando a produção se alicerça no trabalho alienado, no
que Marcuse chama de “princípio repressivo de realidade” então a
satisfação no trabalho cotidiano constitui apenas um raro privilégio.
Como se pode notar, não e possível uma análise linear do im-
pacto tecnológico na sociedade. É necessário levar em conta as suti-
lezas ideológicas inerentes a essa questão. Isso os progressistas-
evolucionistas não o fizeram. Por outro lado, parece fora de dúvida,
que realmente Adorno, através da sua teoria da indústria cultural, ana-
lisou a sociedade de massa com certo pessimismo. 7 No entanto,
trata-se de um estudo profundo cuja estrutura teórica permanece ain-
da hoje, com as devidas alterações necessárias no decorrer do tem-
po. A ideologia, as relações de produção, a autonornia e a liberdade
do consumidor, enfim, essas e outras questões foram meticulosa-
mente pensadas pelo filósofo frankfurtiano. Mas é fora de dúvida tam-
bém, que o otimismo vigente na teoria progressista-evolucionista tor-
na-se incompatível com a realidade dos fatos, com o cotidiano do
consumidor. Nem mesmo na sociedade americana que inspirou esta
teoria sociológica da sociedade de massa existe aquele estilo de vida
preconizado pelos progressistas-evolucionistas. Talvez por isso mes-
mo, Daniel Bell, repensando sobre seus escritos apologéticos da so-
ciedade de massa, tenha assumido em suas últimas obras uma posi-
ção, senão “pessimista”, certamente um pouco mais prudente: “a so-
ciedade orientada para o consumo, de livre iniciativa, não mais satis-
faz moralmente os cidadãos, como satisfazia antes. E terá que ser
criada uma nova fiiosofia pública para que possa sobreviver algo que
reconhecemos como uma sociedade liberal.” 8
Seja como for, o fato é que as análises apresentadas até aqui
nos fazem refletir prudentenente sobre uma questão cada vez mais
importante: a transformação da cultura em mercadoria, em ideologia
do capital. O reflexo disso é o consumo arbitrário. Esse é um aspecto
inegável na teoria da cultura de massa, ainda que alguns teóricos
6
Marcuse, Herbert. Eros and Civilization – a philosophical inquiry into Freud, Beacon
Press, Boston, 1966, p. 89
7
José Guilherme Merquior, em seu livro já citado analisa o que ele chama de “raízes
ideológicas do pessimismo frankfurtiano”. Mas é no livro de Olgária C. F. Matos, Os
Arcanos do Inteiramente Outro, Editora Brasiliense, São Paulo, 1989, capitulo III, “A
Razão Critica”, que encontramos uma análise tão sensata quanto brilhante do
pessimismo frankfurtiano acerca da cultura contemporânea. Por não ter interesse direto
para este trabalho, apenas o registramos.
8
Bell, Daniel. The Cultural Contradictions of Capitalism, Beacon Press, Boston, 1981.

48
progressistas-evolucionistas não concordem. Das experiências refle-
tidas no passado, quando o fenômeno cultura de massa apenas gati-
nhava, até o presente, onde a cultura burguesa convive com uma es-
trutura de necessidade das massas, uma coisa permanece intacta e
imutável: a incessante busca ao lucro.
Convém, no entanto, refletir com muita cautela sobre esse pro-
blema, justamente para não incorrer em erros anteriores. A experiên-
cia do passado trouxe uma constatação para o presente: durante al-
gum tempo superestimou-se a presença e a ação dos meios de co-
municação de massa junto ao consumidor. Isso é importante termos
em mente, para repensarmos e redimensionarmos a questão das ne-
cessidades e o papel dos veicúlos de comunicação de massa. Aqui
cabe a observação lúcida de Ciro Marcondes quando diz que “já se foi
o tempo em que criticavam os meios de comunicação produtores da
cultura massificada, por ‘imprimirem’ novas necessidades. Não há
necessidades falsas que forcem os receptores a fazer coisas que não
querem: não há ditadura dos meios, que os críticos dos MCM no
passado ressaltaram. A comunicação para as massas impõe-se, mas
só o faz de forma sutil, sedutora, provocante. Ela incide sobre as
necessidades reais não satisfeitas plenamente (ou saciadas só parci-
almente) pela sociedade e pela cultura e dá respostas a isso (respos-
tas, é claro, falsas, enganosas, aparentes). Mas, enfim, respostas.” 9
Mas é na obra de Herbert Marcuse, a meu ver, que aparece
uma das mais fecundas críticas e contribuições para se entender a
sociedade de massa em nossos dias sem que, com isso, precisemos
apenas reproduzir as teorias vistas e analisadas até aqui. A citação é
tão longa quanto necessária para apreender o pensamento do autor:
“a maior parte dos clichês com que a. Sociologia descreve o processo
de desumanização, na cultura das massas da atualidade, é correta;
mas parece inclinar-se na direção errada. O que é regressivo não é a
mecanização e padronização, mas a sua contenção; não a coordena-
ção universal, mas o seu encobrimento sob liberdades, opções e indi-
vidualidades espúrias. O elevado padrão de vida, no domínio das gran-
des companhias, é restritivo num sentido sociológico concreto: os
bens e serviços que os indivíduos compram, controlam suas necessi-
dades e petrificam suas faculdades. Em troca dos artigos que enri-
quecem a vida deles, os indivíduos vendem não só seu trabalho, mas
também seu tempo livre. A vida melhor é contrabalançada pelo contro-
le total sobre a vida. As pessoas residem em concentrações
habitacionais - e possuem automóveis particulares, com os quais já
não podem escapar para um mundo diferente. Têm gigantescas gela-
deiras repletas de alimentos congelados. Têm dúzias de jornais e
revistas que esposam os mesmos ideais. Dispõem de inúmeras op-
ções e inúmeros inventos que são todos da mesma espécie, que os
mantêm ocupados e distraem sua atenção do verdadeiro problema -
que é a conscência de que poderiam trabalhar menos e determinar
9
Marcondes Filho, Ciro. (org.) A linguagem da Sedução, Editora Perspectiva, SãoPaulo,
1988, p.12.
10
Marcuse, Herbert. Op. cit., p. 99

49
suas próprias necessidades e satisfações.” 10 Claro, a perspectiva
política no texto de Marcuse assume conotação diferente daquela que
já vimos na obra dos progressistas-evolucionistas. Se para o filósofo
alemão a ideologia da cultura de massa em nossos dias reside no fato
de que produção e consumo reproduzem e justificam a dominação,
para os teóricos americanos esta afirmação não procede. E incompa-
tível com a realidade.
Independente das concepções ideológicas da Escola de Frank-
furt e do grupo progressista-evolucionista o fato é que, do conjunto
dessas correntes de pensamento, retiramos o apoio teórico necessá-
rio para melhor interpretarmos a presença da sociedade urbana-
indurtrial. A obra de Herbert Marcuse, embora mencionada à parte,
será citada em nossas análises como parte integrante da Escola de
Frankfurt. Quanto às discussões acerca de “sociedade e cultura” e
“sociedade e cultura de massa”, respectivamente, primeira e segunda
parte deste capítulo, justificam-se por uma questão metodológica im-
portante: fornecer os subsídios teóricos para posterior utilização dos
conceitos inerentes à sociedade e a cultura de massa. Além disso, a
interpretação sociológica da trajetória da sociedade de massa tem
dupla contribuição: entender bem o passado, para melhor interpretar o
presente.

Da Ddependência Cultural à Cultura de Massa


Esta é a trajetoria de grande parte dos chamados países do
terceiro mundo ou subdesenvolvidos onde, entre outros, inclui-se o
Brasil.Mas não é só. Outras nações em situação intermediária como
Itália e Espanha, por exemplo, também podem, ser pensadas nesses
termos. Antes de mais nada, porém, deve-se repensar a expressão
“dependência cultural”. Ela não nos parece a mais apropriada. Seus
conceitos esbarram num obstáculo de ordem teórica difícil de ser su-
perado. Para introduzir a discussão vale a pena transcrever a visão de
conjunto que Renato Ortiz tem dessa questão: “são analises que tem
como eixo central a problemática do ‘colonialismo cultural’,da ‘aliena-
ção’ dos meios de comunicação nacional diante da dominação es-
trangeira, e que recuperam a antiga oposição entre colonizador/colo-
nizado, que só agora levando em consideração uma nova tendência
teórica que surge na América Latina no início dos anos 70: a teoria da
dependência.” 1
Eis aí a noção de dependência cultural. Um conceito comple-
mentar à teoria do subdesenvolvimento surgida ainda nos anos trinta,
quando Menotti del Picchia, Franklin Távora e outros intelectuais da
época, procuravam interpretar o “atraso” brasileiro e apontar as solu-
ções para o desenvolvimento. Como se vê, uma noção alicerçada num
equívoco, onde a idéia de situação colonial aparece como sinônimo
1
Ortiz, Renato. A Moderna Tradição Brasileira, Editora Brasiliense, São Paulo, 1988,
p. 187.
2
A gênese dessa premissa esta contida no ensaio escrito por André Gunder Frank
intitulado “Sottosvillupo Capitalistico o Rivoluzione Socialista”. In: América Latina:
sottosviluppo e o Rivoluzione, Einaudi, Torino, 1971

50
de dependência. 2
Não se trata, de nossa parte, deixar de reconhecer certos con-
ceitos e categorias que, como se sabe, apontam para o desenvolvi-
mento desigual em toda sociedade capitalista, apresentando como
característica fundamental, as disparidades regionais e setoriais. Esse
desequilíbrio, por outro lado, ganha contornos dramáticos no capita-
lismo periférico, em face do processo de acumulaçao do capital, re-
sultando naquilo que Florestan Fernandes chamou de “arcaização do
moderno” e “modernização do arcaico” 3. O mesmo fenômeno se apli-
ca às relações sociais na sociedade moderna. As classes sociais
(segundo a teoria da dependência) desempenham papel preponderan-
te nos planos político e econômico no sentido de viabilizar a “moderni-
zação” da sociedade. E aqui está o primeiro obstáculo a teoria da
dependência criado por ela mesma. Atribuir esse papel histórico às
classes sociais na sociedade de capitalismo periférico e correto a
meu ver. O problema, no entanto, é saber como se darão as relaçôes
sociais no âmbito dessa sociedade, de tal modo que possa efetiva-
mente viabilizar sua modernizaçao. Esta é a questão central e de
difícil solução.
Diferente dos centros hegemônicos, onde a estrutura política é
mais sólida, nas sociedades de capitalismo periférico, a luta de clas-
ses é uma realidade sempre presente que diz respeito diretamente às
transformações das estruturas política e social. Este é um ponto cha-
ve para se entender com clareza as bases da teoria da dependência.
O antagonismo entre capital e trabalho assalariado e a submissão
dos países perifércos aos centros hegemônicos, integram o discurso
desses teóricos cujo tom mais forte, tudo indica, dirige-se ao pensa-
mento nacionalista. Essas e outras questões são também analisadas
por Ruy Mauro Marini, que critica o caráter difuso e dogmático da
teoria da dependência acrescentando que “a consequência e um
ecletismo, uma falta de rigor conceitual e metodológico, em nome de
um pretenso enriquecimento do marxismo, que termina por ser sua
negação.” 4 Severo em seu julgamento, as palavras do autor devem
ser repensadas, justamente sob a óptica ideológica que imprime a
teoria da dependência, ou seja; a ausência de unidade e de coerência
política e ideológica. Esta situação, com efeito, resulta de amálgama
de concepções políticas que transitam desde as deformações ideoló-
gicas do pensamento nacionalista (tipo ISEB no Brasil), 5 até as inter-
pretações pretensamentente marxistas como bem registram Marini e
Weffort. 6
O fato é que as constatações onde se alicerça a teoria da de-
3
Fernandes, Florestan. Capitalismo Dependente e Classes Sociais na América Latina
Zahar Editores, Rio, 1973, p. 45.
4
Marini, Ruy Mauro. Il Subimperialismo Brasileiro, Einaudi Editore, Torino, 1974, p. .5
5
Sobre o nacionalismo isebiano convém consultar o artigo de Caio N. de Toledo,
“Teoria e Ideologia na Perspectiva do ISEB”.in: Inteligência Brasileira, Reginaldo
Moraes, Ricardo Antunes e Vera B. Ferrante, (orgs), Editora Brasiliense, 1986, São
Paulo, p. 224-256.
6
A obra de Marini já foi citada. A de Francisco Weffort á “Nota Sobre a Teoria da
Depêndencia: Teoria de classe ou ideologia nacional ?” Estudos CEBRAP nº 1, 1971.

51
pendência tornaram-se assim uma espécie de lugar-comum na litera-
tura sociológica que se propõe a tais interpretações. Hoje, por exem-
plo, a idéia de que a economia de um país periférico não se auto-
sustenta, e como decorrência sua cultura torna-se dependente, já não
se constitui mais em explicação teórica aceitável. Certamente um
feliz exemplo empírico a contradizer essa teoria é a presença cada
vez maior da cultura latino-americana na Itália (especialmente a brasi-
leira) e, um pouco menos, em outros paises europeus. Hoje também,
o tênue espaço entre estrutura e superestrutura social estabelece a
diferença entre o “modelo clássico “ de sociedade dependente e o
modelo dessa mesma sociedade em nossos dias. No plano da produ-
ção econômica e cultural, estrutura e superestrutura social possuem
hoje “relativa autonomia do processo de produção” 7 ao contrário do
que pensavam (e alguns ainda pensam) os dependentistas. Além dis-
so, a própria cultura em face da sua autonomia, torna-se parte inte-
grante do processo produtivo. À luz de hoje, a cultura não é mais só
um fato superestrutural, mas é também um produto inse rido nas rela-
ções de troca de acordo com a lógica interna do capitalismo. Portan-
to, a concepção de dependência cultural precisa ser repensada em
suas especificidades. Aliás, a própria teoria da dependência, a meu
ver, deve ser repensada. Seu discurso teóríco fincado nos conceitos
de classe e nação redundam mesmo naquilo que Weffort chama de
interpretação norteada pelos princípios do nacionalismo radical. Nes-
se ponto, pelo menos, o pensamento dependentista se identifica com
o integralismo de Plinio Salgado e seus colegas, para quem, a cultura
estrangeira deveria ser eliminada do país, por que colocava em risco
os usos e costumes nacionais. Um equívoco, evidentemente.
Mas a crítica mais severa teoria da dependência, me parece, foi
feita por Ingrid Sarti. Discordando à forma como os estudiosos
dependentistas analisam o processo de comunicação nos países do
terceiro mundo, como se veiculam produtos culturais estrangeiros atra-
vés da indústria cultural ela acrescenta: “a interpretação da teoria da
dependência que serve de fundamento à noção de dependência cultu-
ral, mostra-se tão simplista que difícil será não perceber na filial um
retorno em relação à matriz.” 8 Seus argumentos vão ao encontro do
que pensa Renato Ortiz, para quem a noção de dependência cultural
não se justifica. Logo após analisar as falhas teóricas desse conceito
(já as citamos anteriormente), Ortiz usa as palavras de Ingrid Sarti
para completar seu pensamento e em seguida arremata: “de fato, é
incompreensível que os autores na área da comunicação sequer te-
nham levado em consideração as críticas levantadas pelos teóricos e
adversários da teoria da dependência. Tudo se passa como se as
antigas preocupações sobre a relação entre nacional/estrangeiro, que
já tenham sido abordadas de forma diferenciada por vários autores,
7
E expressão é do professor Massimo Canevacci, quando o entrevistei para realizareste
trabalho.
8
Sasti, Ingrid. “Comunicação e Dependência: um equívoco”. In: Jorge Wertheim (org.)
Meios de Comunicação: realidade e mito. Cia. Editora Nacional, 1979, São Paulo, p.
241.

52
pudessem ser equacionadas segundo uma ‘teoria’ mais convincente,
devido à sua ‘modernidade’. Na verdade, a idéia de dependência cultu-
ral, se confunde com os velhos argumentos da discussão sobre o
colonialismo, da identidade perdida no Ser do outro.” 9 Isto é correto.
Ortiz traz à tona, não só as contradições inerentes à teoria da depen-
dência, mas também analisa com precisão o raciocínio simplista e
apressado dos estudiosos da comunicação, via dependência cultural.
Como a maioria dos seus interpretes, esses pesquisadores fazem do
nacionalismo, do “patrimônio da cultura nacional”, seu grande álibi
para repudiarem a presença de qualquer manifestação cultural estran-
geira que, segundo eles, não vá ao encontro dos interesses e da cul-
tura nacionais.
É necessário, de início, entender o problema de dentro para
fora e não ao contrario como têm feito os dependentistas. A ideologia
vigente na sociedade emana da classe dominante. Esse axioma con-
tinua válido. O que convém explicar, no entanto, é a situação
contraditoria da burguesia, uma vez que ela é dominante e dominada
ao mesmo tempo. Dominante por ter a posse da riqueza, do capital,
dos meios de produçao, enfim, de todos os elementos que a teoria
marxista do capital e do trabalho já analisou com muita precisão.
Dominada porque, no plano econômico, em face da existência de uma
econômia heteronômica, ela vai administrá-la ao lado do capital inter-
nacional. Este é um teorema que, nas palavras do sociológo Florestan
Fernandes, ganha a seguinte interpretação: “a ideologia de uma soci-
edade subdesenvolvida é a ideologia de uma sociedade hegemônica.
Nós importamos da Europa não apenas as instituíções mas também
a ideologia; não só as estruturas sociais, como também as maneiras
de explicá-las.” 10
Posto isto, esse argumento nos conduz naturalmente à ques-
tão que levantamos anteriormente; devemos entender o problerna de
dentro para fora e não ao contrário. Nesse caso, que se pense, sobre-
tudo nas condições internas da produção ideológica, ou seja, nas
articulações das classes sociais no âmbito nacional. Acredito que a
produção ideológica que se faz na classe dominante hegemônica,
embora interfira no comportamento ideológico da periferia, não deve
ser superestimado como tem feito os dependentistas. Assim, não me
parece mais que o influxo externo, embora inegável, seja ideologica-
mente determinante no comportamento das sociedades periféricas.
A rigor, a presença de um “imperialísmo cultural”, se é que po-
demos falar assim, não é decorrente de imposições de cima para
baixo como acreditava-se (ainda há uma corrente de pensamento que
acredita nessa versão) até meados dos anos setenta mais ou menos.
Este é um modelo teórico que deve ser revisto. Mas é ele também
que, no plano da comunicação, fornece os subsídios para a teoria da
dependência. Eis aqui os motivos da defesagem do pensamento
dependentista entre teoria e realidade. A indução a falsas necessida-
9
Ortiz, Renato. Op. cit., p. 187-188
10
Fernandes, Florestan. “Las Classes Sociais em América Latina.” R. B. Zentero (org.)

53
des, como querem alguns é, na verdade, um falso problema. “ Já se foi
o tempo em que se criticavam os meios de comunicação produtores
da cultura massifícada, por ‘imporem’ novas necessidades” registra
Ciro Marcondes, com razão, em seu livro já citado. É claro que a
formação ideológica de uma sociedade, seja ela desenvolvida ou sub-
desenvolvida, não pode ser interpretada somente a partir da dinâmica
interna do seu desenvolvímento. Mas é verdade que as estruturas e
superestruturas dessa sociedade não poderão, de modo algum, ser
assimiladas e explicadas somente a partir da presença de uma ideo-
logia hegemônica. Esse me parece o equívoco maior da teoria da
dependência. Isto é tentar a explicação linear para um problema sinu-
oso, cuja importância e magnitude o mantém na pauta das interpreta-
ções sociológicas do terceiro mundo.
Para finalizar esta primeira parte, quero agora registrar as aná-
lises de Fernando Henrique Cardoso acerca da mesma questão. Para
ele, os dependentistas não conseguem interpretar corretamente o
desenvolvimento do capitalismo nas sociedades subdesenvolvidas. Di-
vergentes em suas opiniões, eles passam a ver a mesma questão por
dois prismas diferentes. Este é um dos poucos momentos, no entan-
to, que a unidade de pensamento dos teóricos da dependência se
divide. Vejamos, então, como Fernando Henrique vê o problema: “exis-
tem os que creêm que o capitalismo dependente baseia-se na
superexploração do trabalho, é incapaz de ampliar o mercado interno,
gera incessante desemprego e marginalidade e apresenta tendência
à estagnação; existem os que pensam que, pelo menos em alguns
países da periferia a penetração do capital industrial-financeiro acele-
ra a produção da mais-valia relativa, intensifica as forças produtivas e,
se gera desemprego nas fases de contração econômica, absorve mão-
de-obra nos ciclos expansivos, produzindo neste aspecto, um efeito
similar ao do capitalismo nas economias avançadas.” 11 Ambas inter-
pretações reconhecem a nocividade do capitalismo estrangeiro. Quanto
à primeira, porém, me parece estar mais próxima das idéias da de-
pendência cultural. A questão é colocada de tal modo, que é como se
o capitalismo internacional tivesse complôs organizados contra a
econômia das sociedades periféricas, justamente com o objetivo de
bloquear qualquer possibilidade de desenvolvimento desses países.
Pesquisando especialmente a literatura sobre as comunicações
no Brasil, Renato Ortiz encontra um trabalho que incorpora o que aqui
poderíamos chamar de “ideologia de complô” 12. Convêm citar o trecho
da proposta de trabalho do autor, porque vai bem ao encontro do que
os dependenitistas entendem por dependência cultural: “a hipótese
central de nosso trabalho é que a rádio como um antecedente, e de-
pois a televisão como uma continuidade, implantam-se. e expandem-
se no Brasil, por meio de mecanismos de manipalação e dominação

11
Cardoso, Fernando Henrique. “Notas Sobre Estado e Depenência”. Cadernos CEBRAP,
nº11, São Paulo, 1975
12
Trata-se do livro, A televisão: a participação estrangeira na televisão do Brasil,
Editora Cortez, S. Paulo, 1982, da autoria de Carlos Rodolfo Amedola Ávila,

54
colonialista, através de um complexo sistema econômico e ideológico
organizado por países dominantes em especial os Estados Unidos.” 13
O texto é um tanto desajeitado, mas reflete o estilo e a reação dos
dependentistas à presença do rádio e da televisão no Brasil que, nos
últimos tempos, tornou-se uma espécie assim de “bode expiatório” do
capitalismo internacional no Brasil. O ponto de partida, ou seja, “hipó-
tese central” de Ávila parte de um equívoco que realmente só poderia
redundar naquilo que chama-mos de “ideologia do complô”. A pesqui-
sa em si, e a posterior interpretação científica do fenômeno trazem,
sem dúvida, uma contribuíção significativa ao debate das comunica-
ções no Brasil. O equívoco, no entanto, reside no fato do autor detec-
tar certas articulações ideológicas que, senão inexístentes, com cer-
teza bastante discutíveis.
Em conjunto, formulações dessa ordem tendem a criar uma
imagem distorcida dos meios de comunicação no Brasil. A bem da
verdade, eles nunca foram propriamente “mecanismos de manipula-
ção e dominaçao colonialista” como registra Ávila. Eles foram, isto
sim (e continuam sendo), veículos de capital importância na fomação
da opinião pública e eficientes instrumentos da indústria cultural em
nosso país. E é justamente por discordar do pensamento anterior, que
Renato Ortiz faz uma crítica contundente ao trabalho do Ávila e, por
extensão, à literatura sobre os meios de comunicação principalmente
na América Latina. Diz ele: “por isso é muito comum encontrarmos na
literatura sobre os meios de comunicação a idéia de que a sociedade
de mercado constituiria, na verdade, uma lideoIogia do consumo’, e
não um desenvolvimento real das forças produtivas, se apresentando
como algo externo que é introduzido junto às massas pelas
multinacionais e pelas técnicas de marketing. Teriamos, nesse senti-
do, a formação de uma cultura popular de massa induzida, na qual a
indústria da cultura seria na verdade, um atavismo em relação ao cur-
so natural da história latino-americana.” 14
As críticas de Ortiz são pertinentes, a meu ver, se analisarmos
a questão vista na sua totalidade. Permito-me, no entanto, repensar
um aspecto mencionado no texto acima, o que não significa concor-
dar com as idéias de Ávila. É dificil discordar da tese, de que a socie-
dade de mercado se pauta, entre outras coisas, na “ideologia do con-
sumo”. Esta premissa, por outro lado, não é incompatível com o pro-
cesso de “desenvolvimento real das forças produtivas”. Aliás, é bom
notar que um fenômeno, nesse caso, é complemento do outro. O
primeiro (ideologia do consumo) estimula o segundo (desenvolvimento
das forças produtivas). Não haveria, no capitalismo, real desenvolvi-
mento das forças produtivas se não houvesse, ao mesmo tempo, o
estimulo do lucro que incentivasse o consumo. E nesse caso é bom
notar o seguinte: o objeto em discussão são os meios de comunica-
ção e não produtos de infraestrutura, embora um ou outro possa servir

13
O trecho é de autoria de Carlos R. A. Avila, mas encontra-se na obra
de Renato Ortiz já citado, p. 18
14
Ortiz, Renato. Op. cit., p. 190.

55
de parâmetro para se avaliar o desenvolvimento, não so das forças
produtivas, mas do próprio Estado.
Seja como for, o fato é que Renato Ortiz analisa critériosamente
a teoria da dependência discordando, entre outras coisas, do nacio-
nalismo radical que é o ponto de partida de todas as análises sobre a
dependência cultural. E é justamente atento a essa questão que de-
vemos pensar nas discussões teóricas até aqui realizadas acerca da
sociedade de massa e da dependência cultural. Antes, porém, quero
encerrar a discussão sobre a dependência cultural fazendo da frase
de Florestan Fernandes, as minhas palavras: “a alternativa para o im-
perialismo cultural não pode ser o provinvícianismo cultural tímido e
estreito. O desafio não consiste em cortar as ligações culturais com o
exterior.” 15

15
Fernandes, Florestan. A Sociologia numa Era de Revoluçao Social.Zahar Editores,
Rio de Janeiro, 1976, p. 12.

56
4. O Lixo Do Luxo:
O Consumo Da Elite e Da Periferia
Trash Chic

A velocidade com que hoje se substituem produtos e subprodutos


de consumo, tem sido tema de discussão especialmente nas obras
de Jean Baudrillard e Pierre Bourdieu. A sucessão, cada vez maior e
mais efêmera de produtos, cria a rotatividade dos objetos sem que,
necessariamente, os velhos produtos sejam transformados em suca-
ta. Ao contrário, eles passam (alguns, é claro) por curioso e constan-
te processo de estratificação social que, em última instância, poderí-
amos chamar de “estratificação social do consumo”.
Trata-se, na verdade, da reciclagem do consumo, mas implica
também a mudança socioeconômica do consumidor. Desse modo,
cria-se todo o mercado que intermedia a trajetória de produtos do
centro consumidor (quando novo) para a periferia que o absorve, dan-
do sobrevida àquele produto já considerado velho e obsoleto pelo cen-
tro consumidor.
Constata-se aqui um fenômeno muito significativo, decorrente
da velocidade com que avança o desenvolvimento tecnológico nos “com-
pelindo” a consumir sempre as maiores novidades e descartando o
que até pouco tempo era considerado moderno. É nesse momento
que entra em cena o consumo estratificado. A elite econômica conso-
me o novo, a novidade tecnológica, e a periferia consome o “velho” que
é novo, mas tecnologicamente obsoleto. Isto é apenas um exemplo.
Mas, já de início cabe uma pergunta: será que a velocidade dessa
modernização tecnológica poderá um dia tornar democrático o consu-
mo? É o que tentaremos discutir neste ensaio, apresentando algu-
mas questões para a reflexão do leitor.
A distância entre o consumo de bens tecnológicos modernos já
foi, a meu ver, bem maior (ou pelo menos maior) entre a burguesia e o
proletariado. Talvez um bom exemplo esteja na aquisição de
microcomputadores, que passam por renovação tecnológica impres-
sionante. Em curto espaço de tempo o produto novo torna-se
tecnologicamente obsoleto e, como tal, passa a ser preterido pela
“última novidade” que, por sua vez, está com seus dias contados e

57
“condenado” à obsolescência. A indústria, aliada à modernização
tecnológica, empreende o ritmo alucinante à produção de novas gera-
ções de microcomputadores que, nesse momento, é imprevisível sa-
ber o que se sucederá em breve futuro. Uma coisa, no entanto, é
certa. Ainda que obsoletos, esses aparelhos, ao contrário o que se
possa pensar, não se tornarão sucata ou objeto imprestável. Eles se-
rão reutilizados, reaproveitados por camadas sociais que não têm aces-
so à modernização tecnológica, mas que não podem (e não há como)
se alijar do processo de informatização, de “microcomputarização”
irreversível, pelo qual passa todo o mundo e especialmente as chama-
das sociedades complexas. Mas à frente mostraremos no plano teó-
rico como ocorre esse mecanismo de reaproveitamento do produto
obsoleto, por meio do qual denominamos de “forças centrífuga e
centrípeta do consumo”.
Um outro exemplo interessante a se observar é o do telefone
celular. Nesse caso a modernização tecnológica não conta muito.
Rigorosamente, quase nada. Quando se instalaram no Brasil as cha-
madas bandas “ A” e “B”, para explorar comercialmente a telefonia
celular, apenas algumas poucas pessoas, durante certo tempo, pode-
riam comprar um telefone móvel. Eram os altos executivos das gran-
des empresas, cidadãos dos estratos mais altos na hierarquia social,
enfim, tratava-se de um produto extremamente elítizado, cuja função
transcendia a mera comunicação útil e objetiva, para transformar-se
também num objeto de ostentação e de atribuição de status, como
analisa o pensador francês Jean Baudrillard em sua obra A Sociedade
de Consumo.
Hoje, porém, após mais ou menos três anos de telefonia celular
em nosso país, o quadro geral é outro. Outros estratos sociais bem
mais modestos passaram a ter acesso a esse serviço. É bem verdade
que em condições a serem cuidadosa e prudentemente analisadas,
para não incorrermos em erros pueris, tais como acreditar que nossa
sociedade atingiu o patamar superior de distribuição da riqueza e,
portanto, vivemos o equilíbrio da democratização do consumo. Evi-
dentemente isso não ocorre. Existe, isto sim, o clássico apelo da
indústria cultural ao desejo de ascensão social aos estratos subalter-
nos da sociedade. Portanto, nesse caso, como em tudo o que se
refere à sociedade de consumo, o fundamental, o determinante é con-
sumir ainda que não haja condições reais de fazê-Io. Aqui é pertinente
a conhecida frase do filósofo alemão Theodor Adorno quando diz: “as
massas não são a medida, mas a ideologia da indústria cultural, mui-
to embora esta última dependa fundamentalmente da primeira para
existir”.
Pois bem, afora o desejo de ascensão social do proletariado
(mas também da classe média e de estratos intermediários) via con-
sumo (algo artificial) existe, é claro, o natural desejo da expansão e
de rentabilidade do capital industrial. Isto faz parte da própria lógica
interna do Capitalismo que, aparentemente, apresenta uma contradi-
ção.

58
Isto porque, se por um lado, a produção de bens
tecnologicamente modernos se dirige inicialmente à burguesia, é ine-
vitável, por outro lado, no decorrer do tempo, que esses produtos te-
nham seu custo de produção sensivelmente declinado, justamente
em face do próprio avanço tecnológico e também do interesse de au-
mentar o mercado consumidor. Assim, nesse momento, não há outra
alternativa senão ampliar este consumo até às classes social e eco-
nomicamente mais modestas.
Para isso, a saída, claro, é obedecer a mais pueril das leis
capitalistas que tratam da macroeconomia: se há potencialmente um
mercado consumidor à vista, a alternativa clássica é aumentar a pro-
dução e, como conseqüência natural, diminuir o custo da produção,
propiciando acesso a outras classes sociais que até então estavam
impossibilitadas de participar desse universo de produtos, ou seja, de
se inserir num novo mercado de consumo até então inacessível. Que
se pense aqui, no clássico estudo de John Kenneth Galbraith, intitulado,
O Novo Estado Industrial. Este é, provavelmente, um dos trabalhos
teóricos mais fecundos sobre o trinômio capital/produção/consumo.
O argumento acima é válido para a grande maioria dos bens
duráveis e não duráveis. Rigorosamente, nesse momento não me ocorre
um bem que não se enquadre nessa lógica de produção/consumo.
Por isso é que, a meu ver, a contradição do Capitalismo nesse caso é
apenas aparente. No fundo há uma lógica harmônica e perfeitamente
sincronizada com a ideologia hierárquica das classes sociais e das
próprias leis que regem a ética capitalista. Mas isso não significa, em
hipótese alguma, que o consumo se dê simultaneamente em todas
as classes sociais. Longe disso. Como já registrei, a vanguarda
tecnológica, claro, é cara e como tal torna-se exclusividade da bur-
guesia endinheirada. Num segundo momento, aí sim, é que outros
estratos mais modestos da sociedade passam a consumir o produto
tecnologicamente obsoleto, o envelhecido, que a burguesia já não quer
mais. Em outros termos, esses segmentos consomem o que eu cha-
maria de “lixo do luxo”. Isto porque, a partir de agora, com as inova-
ções tecnológicas, esses produtos só vão servir a quem não pode
consumir as novidades, ou seja, produtos quase sempre melhores,
mais modernos e bem mais eficientes.
Ainda no tocante ao consumo há, nesse momento, importante
participação do capital financeiro. É natural que, na lógica interna do
consumo no Capitalismo, se crie mecanismos que estimulem o con-
sumo. É aqui que entram o crédito pessoal para compras a longo
prazo (crediário), o sistema de pagamento com cartão de crédito, en-
fim, toda uma série de alternativas e “facilidades” que buscam o lucro
através de juros e, como conseqüência, a maximização do consumo,
porque o pagamento parcelado facilita e encoraja psicologicamente o
consumidor a partir para seus sonhos e aventuras consumistas.
Todo esse quadro cria a falsa idéia da democratização do consumo.
Tanto a burguesia quanto os outros segmentos sociais podem, as-
sim, consumir de formas diferentes (à vista ou a prazo) os mesmos
produtos e, em alguns casos, com a mesma qualidade. Como isso
59
ocorre de fato, pelo menos nesses casos, idéias de kitsch em Abraham
Moles de “simulacro” em Jean Baudrillard desaparecem. Isto porque
um produto tecnologicamente superado (embora desprezado pela bur-
guesia) não é imitação de nada. O aumento da produção industrial,
aliado à participação do capital financeiro, “aproxima” as classes so-
ciais e “democratiza”(?) o consumo.
Mas será que realmente democratiza? É preciso notar que esse con-
sumo, com efeito, não ocorre simultaneamente entre burguês e prole-
tário. Em que pese a velocidade tecnológica, que “envelhece” o produ-
to (e talvez por isso mesmo), quase sempre sobra às classes subal-
ternas a alternativa de consumir o “lixo do luxo”, aquilo que a burgue-
sia já não quer, mesmo assim com a interferência do capital financeiro
parcelando a dívida do comprador, mas auferindo lucros através dos
juros que muitas vezes se diluem ao longo das prestações, dando a
aparente sensação da sua inexistência, ou seja, de que o comprador
não está pagando juros. Todos nós sabemos que esse é um mecanis-
mo muito recorrente em compras a crédito em nosso país.
De outra parte pode-se dizer que, embora burguesia e proletari-
ado façam parte do mesmo universo do consumo (a sociedade de
massa), há diferença significativa que deve ser observada. A primeira
vive no mundo real, em que todas as coisas (entenda-se aqui princi-
palmente inovações tecnológicas) chegam para ser utilizadas imedia-
tamente. A segunda, porém, vive o mundo virtual das coisas. Algo que
provavelmente virá a acontecer, mas por algum tempo indeterminado
não acontecerá. Nesse caso o virtual tornar-se-á real a partir da
obsolescência tecnológica do produto.
Para finalizar, quero mostrar que esse processo se dá através
de um mecanismo que, na falta de melhor nomenclatura, resolvi cha-
mar de “forças centrífuga e centrípeta do consumo”. Imaginemos, por
exemplo, a sociedade como um grande círculo de uma tábua de tiro
ao alvo. Localizada bem no centro, ou seja no alvo, está a burguesia.
À medida que nos distanciamos desse alvo em direção aos círculos
maiores, podemos imaginar que cada círculo representa um estrato
social. Assim, quando chegamos ao último círculo da tábua, estaría-
mos entrando nas regiões das grandes periferias que quase sempre
cercam as metrópoles. Temos aqui, portanto, a presença da força
centrífuga da ocupação do espaço. Se a burguesia de fato não está
localizada no centro geográfico da grande metrópole (quase sempre
um espaço essencialmente comercial), ela é o grande centro do con-
sumo. Já a periferia não. O grande proletariado se concentra nessa
região justamente por falta de opção.
Pois bem, a mesma trajetória vai ter uma parte da produção de
bens de consumo. Tomemos, como exemplo, um automóvel novo.
Seu primeiro proprietário será uma pessoa cujo nível socioeconômico
será compatível com as pessoas integrantes do alvo da tábua que já
apresentei. Depois de um certo tempo, com as renovações estéticas
e as inovações tecnológicas, este veículo passa a ter a imagem de
superado e tecnologicamente obsoleto. Ele será vendido e, a partir
daí, iniciará seu trajeto descendente, através de compra e venda por
60
pessoas cada vez com menos poder aquisitivo até chegar à periferia.
O automóvel começa, em outros termos, a percorrer os anéis (estra-
tos sociais) da tábua de tiro ao alvo, até chegar ao último anel, o mais
distante do alvo. Esse é o destino de boa parte dos automóveis fora de
linha de produção, como, por exemplo, Opala, Brasília, Corcel, entre
outros. São facilmente encontráveis nos bairros periféricos e raramen-
te vistos nos chamados bairros mais nobres ou da classe média. É
assim que se dá a “força centrífuga” do consumo, em que os produtos
“obsoletos” são “exemplos” do centro para a periferia.
A força centrípeta, ao contrário, não pode exportar tecnologia.
Ela é formada por uma parte de determinados produtos que partem da
periferia para o centro. Determinados ritmos da cultura musical brasi-
leira, como o lundu, o samba entre outros, nasceram nas classes
populares. O samba, por exemplo, surgiria de um ritmo chamado “ma-
xixe” nos arrabaldes da cidade do Rio de janeiro, no começo deste
século, entre os negros ex-escravos libertados pela “Lei Áurea”.
Aos poucos, este ritmo superaria os preconceitos de classe,
passaria por algumas transformações estéticas, até chegar o final
dos anos 50, quando ocorre a grande revolução estético/musical em
nosso país, conhecida internacionalmente como “Bossa-Nova”. Con-
vém registrar, no entanto, que esta grande revolução a que me refiro,
foi feita pelos então jovens da classe média carioca como, Antônio
Carlos Jobim, Vinicius de Morais, João Gilberto, Newton Mendonça,
Carlos Lyra, entre outros.
Acrescente-se ainda, que a força centrípeta do consumo, por
sua própria trajetória (da periferia para o centro), não poderia mesmo
exportar tecnologia. Sua importância se concentra bem mais nas ques-
tões comportamentais e até mesmo culturais. São as causas, por
exemplo das conhecidas “tribos urbanas” formadas por jovens da pe-
riferia, que influenciam comportamento, parte da juventude bem nutri-
da dos estratos mais abastados. O uso de peirce pelo corpo, a moda
da calça larga (“calça mano” como é mais conhecida) até a metade da
tíbia, o chamado “tênis radical”, entre outras, são alguns dos objetos
e atitudes da periferia que chegaram até a juventude mais abastada.
Mas há, em nossos dias, alguns exemplos importantes: o “rap” ame-
ricano que saiu da periferia pobre formada pelos negros e hoje se
tornou um ritmo quase universal, com grande; penetração em todas
as classes sociais.
Bibliografia
I. ADORNO, Theodor W. A indústria cultural. ln: COHN, Gabriel (org.).
Co111unicação e indústria cultural. São Paulo: Cia. Editora Nacional,
1978. p. 287-295.
2. BAUDRILLARD, Jean. La société de consommaation. Paris: Editons
Planète, 1976.
3. ______________.Pour une critique de I’économie potitique du signe.
Paris: Editions Gallimard, 1972
4. SWINGEWOOD, Alan. O mito da cultura de massa. Rio d” Janeiro:
Editora Interciência, 1992.

61
5. FEATHERSTONE, Mike. Cultura de consumo e pós-modernismo.
São Paulo: Studio Nobel, 1996

62
5. Produção Cultural e Classes Subalternas
Existem hoje, no meio urbano, produtos da cultura de massa
que são dirigidos a um público não letrado ou no máximo semiletrado,
de significativa importância sócio-política, cuja detecção sociológica
do fenômeno só se obtém via análise dos produtos da subcultura.
Trata-se, na verdade, de produtos que portam signos culturais das
classes pequeno-burguesas, estigmatizados na sua essência e onde
subjaz toda uma ideologia que vai do plano estético à discriminação
cultural e social e que é também o ponto central de discussão deste
trabalho. Nesse sentido, somos levados a pensar que os meios de
comunicação de massa trabalham de forma diferente os valores da
cultura. Mas isso não acontece de fato. Ocorre, isto sim, a produção
de objetos que obedecem a uma lógica estética interna, socialmente
distintiva, onde o valor contextual do produto não passa de signos
particulares dirigidos à classe média, proletariado ou alta burguesia.
Se por um lado, a produção de massa estabeleceu uma distin-
ção qualitativa no plano estético, mas lançando mão de um engodo -
a ideologia da moda - produzindo objetos que acenam com a
pseudomobilidade social, com o mascaramento da atribuição de me-
lhor status (vide o caso da Cachaça de São Francisco) 1, isso já não
se repete no nível ideológico.
O estatuto sócio-político de qualquer produto de massa no ca-
pitalismo obedece a mesma lógica alienante do processo de produ-
ção que juntamente com o consumo formam um todo inextricável na
sociedade capitalista, como demonstra Marx em Contribuição à Criti-
ca da Economia Política.
Seu efeito social através do consumo não tem outra função
senão a de sancionar a ordem estabelecida, tanto quanto de conferir
maior poder ao domínio do capitalismo monopolista que, diferente do
analisado por Marx no século XIX onde a exploração do proletariado
se concentrava sobretudo na produção, concentra-se hoje de igual
maneira nas esferas da produção e do consumo. Portanto, verifica-se
não só o aumento da exploração como a identificação cada vez maior
do próprio controle da vida indivídual 2. Nesse sentido, a consciência
1
O sociólogo Jean Baudrilard mostra como a Indústria cultural trabalha os valores dos
objetos nesse sentido, em seu trabalho: A Moral dos Objetos. Função-Signo e Lógica
de Classe, in: Semiologia dos Objetos, Editora Vozes, Petr6polls 1972.
2
Ao ser entrevistado por Leo Kofler, George Lukàcs mostra como o controle social se
faz hoje também na esfera do consumo: “a exploração das classes operárias passa
cada vez mais da exploração através da mais-valia absoluta para a que se opera
através da mais-valia relativa. Isto significa que é possível um aumento da exploração
ao lado de um aumento do nível de vida do trabalhador”. Conversando com Lukàcs,

63
dos homens encontra-se manipulada pelos detentores do poder; a
repressão aparece de forma inequívoca dentro de si mesma. Assim, a
Sociedade Industrial nas condições que se apresenta reifica a totali-
dade da vida do indivíduo, contribuindo ainda mais para evidenciar a
presença do social impregnado no individual. A forma pela qual o indi-
víduo está submetido aos imperativos lucrativos da indústria cultural e
a intromissão plena do Estado na sua existência privada,
despersonificando-o, transformaram os problemas psicológicos em pro-
blemas políticos. Isso significa dizer que “os processos psíquicos an-
teriormente autônomos e identificáveis estão sendo absorvidos pela
função do indivíduo no Estado - pela sua existência pública”. 3
Mas, não podemos deixar de lado a significação social da pro-
dução e do consumo de bens culturais. Aqui, uma vez mais, a indús-
tria cultural ao estratificá-los transforma os problemas psíquicos em
problemas políticos, fazendo da produção e do consumo um fator de
eficaz discriminação social, deixando bem nítida a marca
caracterológica da sociedade de massas. A partir desse processo
haverá uma perfeita combinação entre objetos e classes sociais. Se,
por um lado, a forma de como se dá o desenvolvimento da produção
segundo a ótica marxista estabelece-se a sociedade de classes, não
resta dúvida que a estratificação da produção de bens culturais corro-
bora ainda mais essa divisão de classes. Dito de outra forma temos:
tal categoria de objetos é fabricada com material de qualidade superi-
or, possui certos requintes de “bom gosto” 4.e, em alguns casos de
produção limitada, e como tal, só pode ser adquirida por aquelas clas-
ses sociais de melhor poder aquisitivo, muito embora todas as clas-
ses estejam imbuídas da ideologia da moda e do consumo. Na com-
pra desses objetos, essas classes encontram-se com signos social-
mente distintivos e com o prestígio social esperado. Este aspecto,
embora não seja o único - consideramos essa abordagem extensiva a
todos os bens culturais -, torna-se particularmente mais claro quando
permeamos os caminhos da moda. E aqui nos valemos das palavras
de Jean Baudrillard para explicitar o problema: “A moda, com efeito,
não reflete uma necessidade natural de mudança: o prazer de mudar
de roupas, de objetos, de automóveis, vem sancionar psicologicamente
imposições doutra ordem, imposições de diferenciação social e de
prestígio. O efeito da moda só aparece nas sociedades de mobilidade
social (e acima de um certo nível de disponibilidades econômicas). O
estatuto social ascendente ou descendente deve-se inscrever em um
fluxo e refluxo contínuos dos signos distintivos”. 5.
A questão da moda pode também se relacionar com o próprio
desenvolvimento industrial, como propõe o sociólogo René Konig. 6
3
. Marcuse, Herbert, Ensaios sobre Política e Cultura, p. 39.
4
Sobre o problema do “bom gosto”, termo tão em voga entre nossos críticos, Amold
Hauser ao analisar a função social do Romantismo nos diz o seguinte: “Bom Gosto é
não só um conceito histórica e sociologicamente relativo; mas também tem apenas uma
importâncla limitada como categoria de valorização estética”. Históri1a Social de Ia
Literatura y el Arte, vol. II, p. 242, Ediciones Guadarrama, Madri 1968.
5
Baudrillard, Jean, obra citada, p. 69.
6
Konig, René, Sociologia de Ia Moda, Ediciones Carlos Lohlé, Buenos Aires 1968.

64
Entretanto, a simples produção em série de uma variedade muito grande
de objetos e que teoricamente permitiria o barateamento do produto,
não significa, necessariamente, que agora os “produtos da moda “
estejam acessíveis à grande massa como propõe o autor. Isto é uma
falsa visão do problema. A industrialização da moda não significa que
se criou uma igualdade de todos no tocante ao consumo dos objetos.
Nesse caso, a moda transforma-se apenas num produto da cultura de
massa. A simples industrialização não aboliu a diferença qualitativa
do produto; ela somente socializou o modelo, o estilo, a forma etc.,
que antes eram um privilégio de classe (mas que fundamentalmente
continua sendo) instituindo o kitsch para melhor poder manter
estratificada a qualidade do objeto e, conseqüentemente, o consumo
da moda entre as diferentes classes sociais; ou ainda, como diz
Baudrillard reportando-se à moda enquanto instrumento ideológico de
controle social: “Ela é uma das melhores instituições nesta função,
uma das que melhor funda, sem pretensões de aboli-la, a desigualda-
de cultural e a discriminação social. A moda quer, além da lógica
social, uma espécie de segunda natureza: de fato, é completamente
regida pela estratégia social de classe. A efemeridade ‘moderna’ dos
objetos (e de outros signos) é, com efeito, um luxo de herdeiros “ 7.
Portanto, o “padrão de qualidade”, frase muito comum nas mo-
dernas mensagens publicitárias ao anunciar um novo produto, pode
até não ser verdade no tocante à qualidade - normalmente o é -, mas
com certeza a verdade reside no alto preço do produto e certamente
com ele um privilégio de classe. Desta forma, tem-se na moda instau-
rada no capitalismo a instituição com duplo compromisso social: de
estabelecer o novo e de reafirmar o velho. De inovar o gosto, os con-
ceitos estéticos, mas de reafirmar e nada mudar na velha ordem
estabelecida.
Contudo, o binômio moda e classes sociais é apenas uma pe-
quena parte de um fenômeno de maior amplitude no capitalismo: a
produção da subcultura. Hoje, a dominação não só se manifesta ao
nível do processo de trabalho, mas também no controle do tempo
“livre” do indivíduo através da indústria cultural, exercida pelo Estado,
nas técnicas de manipulação da massa. E é justamente via produtos
da subcultura que a sociedade não permite ao indivíduo o fruir solitário
além do trabalho. É preciso manipulá-lo através de uma uniformidade
comportamental, engendrada pelos meios de comunicação de mas-
sa, determinando o fenômeno da “invasão da intimidade” 8. É aqui que
a produção maciça da subcultura, além de estabelecer uma distinção
classista em nível do consumo, transforma-se em mais um “ narcótico
social” como propõe Robert Merton 9. Portanto, a partir de agora, tor-
na-se necessário conceituar o estatuto sociológico dos produtos da
7
Baudri1lard, Jean, obra citada, p. 71 e 72.
8
Conceito usado por Richard H. Rovere, para mostrar que o indivíduo na sociedade
atual perdeu o direito de ficar sozinho quando quiser, in: O Dilema da Sociedade
Tecnológica, Hendrik Ruitenbeek (org.) Editora Vozes, Petrópolis 1971
9
Merton, Robert K. e Lazarsfeld, Paul, Comunicação da Massa, Gosto Popular e Ação
Social Organizada, in: Gabriel Cohn (org.) Comunicação e Indústria Cultural, Cia.
Editora Nacional, São Paulo 1971.

65
subcultura, estendidos aqui como aquela parte da produção da cultu-
ra de massa que se destina principalmente aos baixos estratos da
população e, portanto, diferente da outra produção mais sofisticada
dirigida às classes média e à alta burguesia. Essa diferença que esta-
belecemos resulta bem clara se analisarmos o problema sob a óptica
do lazer . Comecemos pela música.
A situação atual em que se encontra a música sertaneja, intei-
ramente desvinculada da cultura caipira paulista, não deve ser vista
somente como uma mudança isolada no contexto do seu universo
sócio-cultural. Não representa também apenas um notório empobreci-
mento estético da canção rural; mas muito mais que isso, simboliza
toda uma transformação em seu “corpus” social gerada pelo processo
de industrialização onde, a partir de agora, as relações de produção
no meio urbano colocam frente a frente o homem do campo e o da
cidade que, a partir de então, passam a disputar o mercado de traba-
lho nos setores secundário e terciário. 10
É exatamente nesse novo contexto urbano que vai nascer também
uma nova modalidade musical: a música sertaneja. Ao contrário da
música caipira, que se coaduna com o “ethos” popular por uma afini-
dade espontânea com o sentir, pensar e agir das camadas modestas
da população, a música sertaneja, enquanto mercadoria da indústria
cultural, transforma-se apenas num produto a mais da subcultura ur-
bana.
Dirigida a um público extremamente vasto e semiletrado, o dis-
curso emergente na música sertaneja, como em todos os produtos
dessa subcultura, usa de uma linguagem onde se cristaliza de forma
inequivoca o “nivelamento por baixo” pondo à tona um dos principais
recursos empregados pela indústria da subcultura que, consciente-
mente, ou não, o sistema social endossa mantendo esse vasto públi-
co num estado de letargia e de obscurantismo critico da sua realidade
social.
Mas há que se pensar na formação intelectual não apenas des-
se grande público letárgico, mas da sociedade como um todo. E já
não estamos nem falando de uma formação acadêmica (mas que se
pense nisso), mas da necessária liberdade para um aprendizado que
dignifique a condição humana e que certamente extirpe do nosso meio
social o velho e falacioso jargão de que há aqueles “menos favoreci-
dos pela sorte”. E é nesse sentido que os produtos da subcultura
(entre eles a música sertaneja) exercem ação sobre o homem inculto
e semiletrado, fazendo com que ele próprio justifique sua paupérie
econômica e cultural, essa última entendida no sentido restrito do
termo.
Por outro lado, impossibilitado pela ação terrorista do Estado
de ter maior visão critica e de exercer na sociedade seu papel de
homem político, este homem termina por acreditar em sua “falta de
sorte” e por justificar sua própria paupérie, submetendo-se mais facil-
10
Sobre esse aspecto há diversos trabalhos realizados mas, sem dúvida, Os Parceiros
do Rio Bonito (livraria Duas Cidades Ltda., São Paulo 1971) do Professor Antônio
Cândido é um dos mais fecundos.

66
mente aos imperativos da administração total do controle social e
político por parte do Estado totalitário. E é assim, usando as viseiras
do autoritarismo sobre os desinformados (que, aliás, são maioria nos
países subdesenvolvidos), que o Estado reaproveita os produtos da
subcultura - agora como inegável instrumento de manipulação ideoló-
gica - mantendo a sociedade econômica e culturalmente estratificada
e com isso organizando-a de tal modo que uns poucos grupos econo-
micamente mais fortes mantêm-se incólumes, assegurando, ao mes-
mo tempo, a sobrevivência do Estado e da estrutura social vigente.
Nesse sentido, portanto, não questionando a função social da
subcultura é que se nos apresenta a permissividade do Estado tor-
nando o homem, não “a finalidade de todos os meios de manipula-
ção” 11, mas convertendo-o em “meio para as finalidades da manipula-
ção” 12 - como diz Igor Caruso -, ou ainda em outras palavras: o Esta-
do, via produtos da subcultura e enquanto administrador dos bens
culturais da sociedade, permite a circulação de produtos culturais que
não têm outra função senão a de justificar a cultura afirmativa, de
elemento mediador das culturas dominante e dominada, de paliativo
das tensões sociais, contribuindo com essa mediação para a manu-
tenção do “status quo”, tanto quanto evitando mudanças na estrutura
social.
Ao consumidor da subcultura, conquanto seja mantido em seu
estado letárgico (e o é, independentemente de sua vontade), sobra-
lhe então apenas uma alternativa: viver num universo cultural já reificado,
permeado de baboseiras, míope na sua essência e onde os meios de
comunicação de massa lhes propiciam formas de entretenimento to-
los e que, fundamentalmente, lhes conduzem não ao universo do pra-
zer lúdico, mas ao desencantamento do mundo.
Disso resulta que, através dessa subcultura, configurada em
lazer (e esta é apenas uma das formas usadas), impõe-se aos baixos
estratos sociais padrões já estandardizados, distanciando-os com isso
.de uma práxis social que poderia conduzi-los a uma visão mais criti-
ca da sociedade e até mesmo a um estado de consciência que permi-
tisse a emancipação definitiva das classes produtoras. Mas isso não
é possível. Tendo em vista justamente esse perigo, é que a domina-
ção, utilizando-se dos meios de comunicação de massa, manipula
conformisticamente o tempo do indivíduo fora do âmbito de trabalho.
Nesse sentido, o lazer, que poderia estar virtualmente a serviço do
florescimento das potencialidades da personalidade humana, trans-
forma-se num engodo.
Contudo, há que se pensar ainda mais no termo subcultura. É
inquestionável que o Capitalismo Organizado estabeleceu a interação
das diversas culturas, permitindo a crescente administração da vida
cultural na presente sociedade de massa. Para Theodor Adorno, por
exemplo, o papel social da administração no âmbito da cultura se
expressa, de forma inequívoca, no hibridismo cultural existente na
11
Caruso, Igor, Psicanálise: fatores sócio-políticos, Edições Rés Ltda.,
Porto, p. 161
12
Caruso, Igor, idem, p. 162

67
atual sociedade. A indústria cultural mistura e nivela as mais diferen-
tes correntes da cultura; adultera a popular, posto que a submete ao
controle social, e envelhece a alta cultura - sobretudo a arte - por
atender as exigências dos imperativos da indústria cultural que nada
tem a ver com o ser da cultura. Destarte, o fenômeno mais evidente
nos é fornecido pela arte: ao ser submetida aos padrões e normas
vindos do exterior a arte perde toda sua seriedade; toda a sua auten-
ticidade estética.
Com efeito, a administração da cultura reflete o caráter
heteronômico da própria cultura, ou seja: a cultura submete-se a uma
nova cultura – a cultura de massa. Por sua vez, a cultura de massa,
enquanto produto do Capitalismo Organizado, da sociedade de clas-
ses, não poderá ser refratária à estratificação da sua própria produção
cultural, como vimos anteriormente. De um modo geral, todas as ca-
racterísticas apontadas por nós referentes à sociedade de massa con-
vergem a um ponto básico: a crescente despersonalização dos indiví-
duos e a forte tendência à uniformidade comportamental. O indivíduo
na sociedade de massa já não decide autonomamente acerca do que
deve fazer. Aliás, esse foi o motivo que levou David Riesman a dizer
que o cidadão moderno pauta seu comportamento de acordo com a
conduta dos outros; somente estando imerso no seio da massa é que
pode estar seguro de obter reconhecimento de seus semelhantes.
Nessas condições o indivíduo, dirigido por outros, abandona qualquer
tipo de iniciativa pessoal, sendo os momentos e ação de sua vida
plenamente controlados pelo Estado. Despersonalizado, ele dispõe-
se a seguir qualquer decisão tomada pela sociedade. O fenômeno da
despolitização das massas ilustra muito bem essa situação social.
Todavia, um argumento que se pode levantar contra a massificação na
sociedade industrial avançada seria o de que as mensagens transmi-
tidas pelos meios de comunicação - antes de atingir própriamente a
massa - estariam filtrados através da existência dos pequenos gru-
pos. Entre o público e as mensagens haveria, como elemento media-
dor, a influência do líder de opinião sobre os pequenos grupos 13. Nes-
se caso, avultar-se-ia o papel social dos grupos primários como um
dos óbices ao fluxo linear da comunicação. Este processo não se
daria de forma direta; entre o emissor e o receptor da mensagem
estariam presentes os grupos primários.
Mas, a nosso ver, não obstante a presença desses grupos, a
massificação continuaria a intensificar-se. Como observou David
Riesman, “os pais têm suas fontes de orientação nos meios de comu-
nicação de massa. Pois, em sua inquietação quanto ao modo de criar
os filhos, voltam-se cada vez mais para os livros, revistas, panfletos
do governo e programas radiofônicos” 14.
Nessas condições, podemos agora dirigir nossa discussão para
os efeitos sociais da estratificação da cultura de massa. A produção
13
Sobre o papel do líder junto ao público, veja: Sociologia da Comunicação, Gabriel
Cohn, Livraria pioneira Editora, 1973, p. 24 e 24; La Sociedad, Theodor e Max
Horkheimer, Editora Proteo, Buenos Aires 1971, p. 87.
14
Riesman, David, A Multidão Solitária, Editora Perspectiva, São Paulo 1971, p. 87.

68
que se verifica na sociedade de massa seria indistintamente acessível
a todas as classes sociais? Em caso negativo, como então se esta-
belece a estratificação do consumo? Nem todo produto de massa
pode ser consumido por todas as classes sociais. Em contrapartida,
todos os produtos de massa podem ser consumidos pelas classes
dominantes. Mas, efetivamente, isso não ocorre. A alta burguesia, por
uma questão de tradição da própria classe - melhor seria talvez dizer
do seu poder aquisitivo -, por seu fácil acesso à cultura superior, con-
some o que de mais refinado oferece o mercado. Estes, são os
freqüentadores dos bem sucedidos Shoping Centers e casas comer-
ciais localizadas nos Jardins (caso de São Paulo).
A classe média, que também acorre a esses locais, conquanto
se lhe apresente as “novidades” da moda contenta-se em consumir o
rústico, o exótico, o “antigo-novo”, o kitsch etc., desde que esse con-
sumo traduza-se em êxito social ou numa posição privilegiada no seio
da sociedade.
Às classes subalternas reserva-se-lhes o consumo do que a
priori foi determinado para elas e obviamente rejeitado pelas classes
dominantes. Nos grandes centros urbanos (caso de São Paulo) esse
comércio concentra-se nos bairros próximos às estações rodoviária e
ferroviárias. Ai, as casas de comércio com seus alto-falantes anunci-
ando as “pechinchas” (o que não se vê no comércio chic), os vendedo-
res nas calçadas induzindo os transeuntes a verificar os preços, os
produtos pendurados nas portas de entrada, a variedade imensa de
objetos espalhados pelos balcões, o enorme cartaz de fundo anunci-
ando O “crédi-fácil” na hora e sem demora, sem entrada e sem mais
nada, estampa o fiel retrato de um comércio de produtos de baixa
qualidade, dirigido ao consumidor de baixa renda. Podemos até mes-
mo dizer, que é nos lugares acima citados que se concentra a grande
maioria do “basfond” de toda a produção industrial. Além disso, é alta-
mente significativo se notar que essa região é passagem obrigatória
(duas vezes ao dia) de uma população pobre que mora nos bairros
proletários da Grande São Paulo. A esse fato, acrescente-se ainda o
grande número de migrantes que transita diuturnamente por esses
locais ao chegarem à Metrópole.
Podemos então, a partir da constatação empírica desses fatos,
pensar numa subcultura de massa; no seu poliformismo social? É
claro que se formos atentar para a função ideológica da cultura de
massa não haveria nenhuma razão para pensarmos em diferenciar
cultura de massa e subcultura de massa 15; mas se atentarmos para o
aspecto qualitativo, para o conteúdo estético (ainda que não queira-
mos divorciar a estética da política) então torna-se pertinente essa
divisão, não obstante tenhamos a considerar que “chaque classe
sociale posède son propre univers de valeurs, sa mentalité, sa
psychologie et son style de vie, en même temps qu’elle crée des
15
A literatura sobre a função ideológica da cultura de massa é particularmente vasta;
mas vale a pena destacar: Comunicação e Indústria, Gabriel Cohn (org.) Cia. Editora
Nacional, São Paulo 1971; e Teoria da Cultura de Massa, Luiz Costa Lima, Editora
Saga, Rio de Janeiro 1969.

69
sphères d’entérêts économiques et politiques, y participe et en découle
à la fois” 16, como diz Ivo Supinic ao abordar o problema do estilo
musical e classes sociais.
Convém destacar que os atributos de classe social, mencionados
pelo autor, em nada impedem que na sociedade de massa ocorram a
crescente despersonalização do indivíduo e a tendência à uniformida-
de comportamental como registramos anteriormente, muito embora a
classe dominante passe a consumir o que de melhor produz a cultura
de massa. Comecemos a analisar as diferenças entre cultura de massa
e subcultura de massa através da comunicação escrita, estabelecen-
do parâmetros entre os jornais:
O Jornal. No âmbito da produção jornalística temos o primeiro
exemplo da estratificação da produção e do consumo da cultura de
massa. Um dos aspectos mais significativos da “era das massas”
ajusta-se à redução gradativa da memória do leitor que recebe infor-
mações dos mass media. Esse fenômeno (que em Herbert Marcuse
aparece como produto de uma repressão social) é constantemente
associado à objetividade da atual técnica jornalística, cujo resultado
representa apenas a função da indústria cultural na sociedade. E é
bom notar que, na pseudo-objetividade da técnica jornalística, se es-
conde outro objetivo: a forma como é elaborada a mensagem - apesar
do leitor acreditar que está bem informado - invariavelmente o conduz
a um Estado de letargia diante do fato denunciado diversas vezes por
estudiosos de teoria da comunicação. Senão vejamos:
Ao analisar o trabalho de Walter Benjamin sobre o ideal do
estilo jornalístico, José Guilherme Merquior coloca da seguinte forma
as idéias do autor: “a brevidade e a ‘objetividade’ com que as noticias
são dadas, sem correlação umas com as outras, na página do jornal
- tende a isolar a informação da experiência pessoal, tanto da do
narrador (cujo estilo se torna perfeitamente anônimo) quanto da do
leitor. Cada indivíduo passa a ler sozinho, a noticia que não o envolve,
assim como não envolveu a quem relata” 17. Ao mesmo tempo, Robert
K. Merton e Paul Lazarsfeld, ao analisarem o mesmo problema, nos
alertam acerca da avalanche de informações às quais estamos ex-
postos a todo momento. Estaríamos cotidianamente envolvidos por
uma constelação de informações onde, insensíveis ao mundo exteri-
or, já não teríamos a acuidade, a lucidez necessária para a reflexão
sobre os fatos. Para os autores, o indivíduo “toma seu contato secun-
dário com o mundo da realidade política, através da leitura de sua
condição e de seu pensar, como sendo uma ação indireta. Confunde
assim o fato de conhecer os problemas cotidianos com o fato de
atuar sobre eles. Sua consciência social permanece imaculada. (...)
Por esta razão peculiar, as comunicações de massa podem-se incluir
entre os mais respeitáveis e eficazes narcóticos sociais” 18.
16
Supicic, Ivo, Musique et Societé, Institut de Musicologie, Académie de Musique,
Zagred 1971, p. 72.
17
Merquior, José Guilherme, Arte e Sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin, Edições
Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro 1969, p. 125.
18
Merton, Robert K. e Lazersfeld, Paul, obra citada, p. 241

70
Cumpre ainda assinalar que, sob a óptica da psicanálise, a
redução gradativa da memória (sua função terapêutica) que se traduz
na objetividade da técnica jornalística, tem justificativa enquanto valor
de verdade, enquanto função cognitiva, visto que na memória estão
registradas as promessas e potencialidades satisfeitas em seu pas-
sado remoto e jamais esquecidas pelo homem civilizado. Nesse as-
pecto, o principio de realidade, via meios de comunicação, reduz a
cognição da memória, pelo simples fato de se saber da existência de
um passado onde não havia restrições ao prazer; tanto quanto há em
nós hoje o desejo inato e consciente de reavermos o prazer negado
pelas realizações da civilização que usa os recursos engenhosos da
cibernética, cerceando hoje, o que era irrestrito no passado 19.
Podemos agora entender porque a redução da memória através
da objetividade da técnica jornalística casa-se .muito bem com a ide-
ologia do Capitalismo Organizado; enfim, essa redução não significa
apenas o embrutecimento crítico do homem diante do mundo mas
significa também sua docilidade, sua resignação, seu aceite, ainda
que inconscientemente, à dominação imposta.
Na imprensa jornalística brasileira (e nosso caso não é uma
exceção) 20, principalmente nas metrópoles, há matutinos que dirigem
seu trabalho a classes sociais especificas. No caso de São Paulo,
por exemplo, pode-se perceber uma diferença qualitativa muito grande
entre uma noticia registrada por jornais como O Estado de São Paulo
e Folha de São Paulo, dirigidos a um público de elite e a mesma
noticia registrada por Notícias Populares ou Última Hora. Uma infor-
mação sobre política nacional ou internacional quando aparece num
dos jornais de elite é enunciada e às vezes analisada por especialis-
tas do assunto, sem evidentemente transformá-la num conhecimento
teórico e sistemático, o que tornaria a leitura desinteressante ao leitor
não especializado em literatura de Ciência Política. Isso, independen-
temente (mas principalmente) do ranço ideológico subjacente à men-
sagem, permite ao leitor econômica e socialmente privilegiado, com
um repertório muito mais abrangente (se quiser), “parar para pensar”,
não apenas na mensagem que leu, mas principalmente nas possíveis
e freqüentes distorções nela contidas por imposição do aparelho cen-
sor do Estado e muitas vezes pela própria empresa jornalística. Evi-
dentemente, quando a noticia pode ser publicada: quando o jornalista
usa de malabarismos, da linguagem cifrada para escrever seu traba-
lho. Noutras palavras, podemos dizer o seguinte: uma informação,
num matutino dirigido ao proletariado, traz apenas o referencial da
noticia; apenas lampejos informativos para anunciar a ocorrência de
tal fato. A que atribuir essa disparidade tão grande numa mesma men-
sagem, se a mesma informação num jornal das classes privilegiadas
19
Sobre esse aspecto é indispensável a leitura de Herbert Marcuse, Eros e Civilização,
Zahar Editores, 6ª edição, Rio de Janeiro 1975, p. 33 a 40, onde o autor trata das
vicissitudes do instinto humano e as influências da realidade externa.
20
Vide o ensaio de Robert E. Park, A notícia como Forma de Conhecimento, in: Meios
de Comunicação de Massa, Charles Steinberg (org.) Editora Cultrix, São Paulo 1972,
p. 168 a 185.

71
aparece de forma mais contundente e em alguns casos até mesmo
analisada ?
Poder-se-ia até pensar que a diferença de conteúdo da mensa-
gem reside na possibilidade de maior ou menor sofisticação da lingua-
gem, na maior e menor riqueza de repertório em nível da classe social
a quem se dirige o discurso; na elaboração de textos densos e mais
ou menos longos como se vê nos matutinos de elite. Mas isso não é
verdade, é apenas uma falsa visão do problema. Nenhuma mensa-
gem, de acordo com a Teoria da Informação, para ser perfeitamente
decodificada precisa, necessariamente, ser longa, extensa 21. Preci-
sa, isto sim, trazer consigo, a seriedade (nem sempre permitida pela
censura) que a própria informação exige. Por outro lado, acreditar que
a linguagem sofisticada - muitas vezes uma retórica inútil, logomáquica
que mais lembra o culto ao doutor no Brasil - possa dar maior visão
crítica ao indivíduo, é acreditar também que essa maior ou menor
visão crítica reside na razão direta do binômio linguagem-classe soci-
al. Mas, é óbvio, isso não ocorre. Em qualquer sistema de circulação
da informação a notícia pode ser bem detalhada e analisada, sem
prejuízo total ou parcial, usando-se para isso a linguagem coloquial (o
que torna até mais fácil a sua decodificação) , o repertório da classe
social a quem se quer dirigir a mensagem, sem no entanto ter que se
descambar para o jornalismo vulgar ou usar das técnicas bizantinas
da imprensa marrom.
Nessas circunstâncias, portanto, o aviltamento da informação,
fato comum com o qual fomos obrigados a nos acostumar, recairia
tão-somente na postura impositiva do Estado, no seu aparelho cen-
sor, que não permite a liberdade de expressão, muito embora não
devamos esquecer (e isto é muito importante) que até nos países
mais desenvolvidos onde se abre o pano para a liberal democracia,
social-democracia etc., a ideologia entranhada nos meios de comuni-
cação de massa tornam-lhes, voluntária ou involuntariamente, cúmpli-
ces da cultura afirmativa.
Para nós, o exemplo acima no tocante à imprensa jornalística
apresenta-se como uma diferença entre um produto da cultura de
massa e um produto da subcultura de massa. Assim, não podemos
de forma alguma considerar a produção cultural de um jornal de elite
(ou qualquer outro veiculo de informação massiva) igual à de um outro
dirigido às classes subalternas. Ambos são, numa primeira instância,
produtos da cultura de massa mas, é indiscutível que, num segundo
momento, se diferenciam pela qualidade da informação que veiculam.
Muito embora, voltamos a repetir, ambos sejam arautos da mesma
ideologia.
Um jornal bem elaborado, com informação mais completa (não
entendamos sem censura), é diferente de outro jornal que se plasma
na imprensa marrom - a despeito da ideologia ser a mesma - na explo-
ração do sensacionalismo, do sobrenatural, das anomalias físico-psí-
21
Segundo Muniz Sodré, “ quanto menor é a taxa matemática de informação de uma
mensagem ( e maior, portanto, a redundância) maior a sua capacidade de comunicação”.
A Comunicação do Grotesco, Editora Vozes, Petrópolis 1971.

72
quico-sociais, atribuindo quase sempre um caráter anedótico e nunca
uma visão nua do problema. A esse estado de coisas na cultura de
massa brasileira Muniz Sodré classifica como “a estrutura do mau
gosto e do kitsch”. E é ele também, a nosso ver, quem analisou de
forma mais fecunda a gênese sociológica do grotesco e sua função
sócio-politica: “Aqui, o grotesco é posto a serviço de um sistema que
pretende ser exatamente a compensação para a angústia do indivíduo
dos grandes agrupamentos urbanos” 22.
Pois bem, temos nos dois casos acima citados, uma situação
idêntica e outra diversa. A primeira (idêntica) reside no fato de que
ambos os tipos de jornais são portadores de uma cultura, emergente
da ideologia impositiva do Estado que, através do seu aparelho cen-
sor, corroborado pela “objetividade” da técnica jornalística, ordena com
precisão o aviltamento da informação.
O segundo aspecto (diferença) diz respeito a uma situação de
classe social. O jornal bem elaborado apenas fortalece um privilégio
cultural das classes dominantes ampliando ainda mais a discrimina-
ção cultural já perpetuada na sociedade de classes não apenas ao
nível do saber, mas também dos próprios objetos, como nos mostra
Jean Baudrillard: “A inovação formal em matéria de objetos não tem
por finalidade um mundo de objetos ideal, mas um ideal social, o das
classes privilegiadas, o de reatualizar perpetuamente seu privilégio
cultural” 23.
Por outro lado, o jornal que se utiliza da imprensa marrom, que
se nos apresenta como legítimo representante da subcultura de mas-
sa, tem mera função especulatória da ignorância popular. Seu objetivo
não é nem mesmo informar. Subjacente a essa proposição reside o
interesse de aumentar as vendas (como qualquer veículo de massa) ,
baseado justamente na ingenuidade e na curiosidade do leitor
semiletrado, seu principal comprador .
Para isso, a técnica é promover o grotesco, o crime, a erotomania
etc., não enquanto forma de denúncia de um mal-estar na sociedade,
claro, mas tão-somente enquanto forma de entretenimento que invari-
avelmente redundará em prejuízo da condição humana do leitor. Essa
é, portanto, uma das opções que têm os baixos estratos sociais. É a
eles que são dirigidos os produtos da subcultura de massa.
Cabe finalmente - ainda que de passagem - apenas registrar o
papel do Estado diante da produção cultural no Brasil. De antemão,
sabe-se perfeitamente que, nos últimos catorze anos, a censura con-
trolou e bloqueou vigorosamente grande parte da produção intelectual,
artística, científica, jornalística etc., diluindo dessa forma o espírito
critico da produção cultural em nosso país; calando a todos aqueles
que, inconformados com a nova política cultural, resolveram procurar
novos rumos para os nossos problemas sociais, políticos, econômi-
cos e culturais. O resultado de tudo isso já é sobejamente conhecido:
aos inconformados o banimento em massa; aos mais impetuosos, o
epílogo da tragédia grega.
22
Sodré, Muniz, A Comunicação do Grotesco, Vozes, RJ, 1971, p. 39
23
Baudrillard, Jean, obra citada, p. 39..

73
Mas, o Estado autoritário, dependente do Capitalismo
monopolista cria suas alternativas de repressão. Uma delas - aliás
nada original: vide os casos da Alemanha hitlerista, os tempos do
Estado Novo de Vargas etc. - é a de se manter no poder defendendo
apenas os interesses das classes dominantes e policiar estreitamen-
te, através da censura, a produção cultural de resistência à sua tira-
nia. Com isso, o rádio, o jornal, a televisão, a música, enfim, todos os
veículos de comunicação, após a fase ufanista, xenófoba da época do
“este é um país que vai pra frente”, passaram a trabalhar apenas com
os valores de uma outra cultura. Da cultura inconsistente, inconse-
qüente, inútil, banal. Enfim, com os valores da cultura espúria.
Por isso é que o sociólogo Octávio Ianni, em seu fecundo en-
saio sobre “O Estado e a Organização da Cultura “ ao analisar a cria-
ção e a ação de diversas instituições culturais (FUNARTE,
EMBRAFILME, SNT etc.), da vigência do AI-5 e do 477 nos mostra
como o Estado subreptícia e veladamente exerce o controle e a re-
pressão culturais. De forma lapidar , o Professor Octávio Ianni descar-
ta todo o caráter lesivo com que o Estado agiu ao ter criado essas
instituições: “ A. rigor, o Estado se transformou no centro de uma
poderosa e singular indústria cultural, indústria essa totalmente orga-
nizada segundo os interesses das classes dominantes no país” 24.
Mais adiante, ainda abordando o problema da monopolização
da cultura pelo Estado, o Professor Ianni mostra que nos países em
desenvolvimento, em virtude da forte influência dos meios de comuni-
cação de massa e a tendência à imitação de comportamento dos
países hegemônicos, sistematicamente a qualidade da produção cul-
tural declina pelo desejo de se criar novidades, o que, invariavelmente,
acarreta numa produção excessiva e redundante. Para ele (e nisso
estamos de acordo), “trata-se de inovar apenas e somente no que diz
respeito à acumulação do capital monopolista, que governa o sistema
de poder. Qualquer outra inovação cultural, com significação política
para as classes subalternas, pode afetar a estabilidade e continuida-
de dos interesses econômicos predominantes” 25.
Isto posto, justifica-se o vertiginoso crescimento da baixa qua-
lidade estética da produção da cultura de massa. E mais: se por um
lado, uma possível inovação cultural dirigida às classes subalternas
está proibida, por outro, a produção da subcultura de massa, ou seja:
da indústria cultural, tornou-se hoje uma instituição já formalizada al-
tamente rentável e consagrada.

24
Diversos autores, Encontros com a Civilização Brasileira, n. 1, Editora Civilização
Brasileira, Rio de Janeiro 1978, p. 232.
25
Ianni, Octavio, obra citada, p. 23

74
6. O Sucesso dos Esquecidos
A música sertaneja e a literatura de massas que explora como
tema central a sexualidade, a pornografia, o erotismo ou qualquer ou-
tra nomenclatura que se queira dar, são dois temas que me fascinam.
Importante vertente da nossa literatura, essa modalidade literá-
ria (passaremos, a partir de agora, a chamá-la de paraliteratura) onde
se incluem as obras de Adelaide Carraro, Casandra Rios, Márcia
Fagundes Varela, Brigitte Bijou, entre outras, permanece ausente da
história oficial da literatura brasileira e da pesquisa científica. A Uni-
versidade na pessoa de seus pesquisadores não tem se interessado
por ela. E as alegações para justificar tal procedimento são as mais
diversas. Começam por classificá-la de literatura de mau gosto, de
péssima qualidade e culmina com o pretexto de sua inexpressividade
na produção literária do país.
A sexualidade, tema preferido dos autores da paraliteratura,
termina abarcando os dois planos anteriormente citados. É assim,
portanto, que ela se torna um eficiente instrumento ideológico.
Os livros de Adelaide Carraro, por exemplo, influenciam de tal
maneira seus leitores, a ponto deles verem na figura da autora a gran-
de conselheira, a mulher perfeita, inteligente, exemplar e extrema-
mente preocupada com a humanidade. Enfim, ela estaria hoje para os
brasileiros, assim como Kate Smith, artista de rádio, estava para os
norte-americanos na década de quarenta. 1
Adelaide não concorda que em sua obra a sexualidade seja a
temática dominante. Ela prefere dizer que seu trabalho está voltado
para os problemas sociais e a denúncia política. A sexualidade (se-
gundo a autora) seria apenas um complemento usado como pretexto
para a denúncia dos problemas maiores, ou seja, a desonestidade
dos políticos (caso típico de Eu e o Governador), a maledicência dos
ricos (tema de Mansão Feita de Lama), a corrupção na sociedade
(caso de Submundo da Sociedade), a infidelidade conjugal (tema de
Os Amantes), enfim, uma gama razoável de problemas que grassam
hoje em nosso meio. Mas, fundamentalmente, Adelaide se considera
uma escritora de denúncias políticas.
1
Analisando a propaganda com objetivos sociais, Paul F. Lazarsfeld e Robert K.
Merton acrescentam que: “As imagens públicas de uma artista de rádio, Kate Smith por
exemplo, descrevem-na como uma mulher dotada de compreensão inigualável para
com as demais mulheres norte-americanas, profundamente identificada com homens e
mulheres comuns, como um guia espiritual, um líder, um patriota, cujas idéias a respeito
de assuntos políticos devem ser levados a sério.” In Cohn, Gabriel, Comunicação e
indústria cultural, Cia. Editora Nacional, São Paulo, 1979.

75
Com efeito, há uma diferença muito grande entre aquilo feito
pela autora e o que efetivamente pretendia fazer. A sexualidade, que,
segundo ela, deveria assumir importância secundária no romance,
passa a ser o tema central ao longo de toda a narrativa. A questão
política, por sua vez, passa a um plano secundário, tornando-se mero
pretexto para o discurso sobre a sexualidade. Isso está claríssimo em
suas obras como, Eu e o Governador, Eu Mataria o Presidente, Falên-
cia das Elites, A Vingança do Metalúrgico, Os Padres Também Amam,
Podridão, Carniça, entre tantas outras.
Mas, até aí, o equívoco de Adelaide pode não representar muita
coisa. A inversão de privilégios nos ternas não significa, de maneira
alguma, um demérito à sua obra. Quando menos, teríamos diversos
romances tratando da sexualidade (embora não fosse a intenção da
autora) a serviço do leitor interessado no assunto. Mas isso efetiva-
mente não ocorre. A questão é um pouco mais complicada do que
parece.
Nessa perspectiva é que se impõe a necessidade de análise da
função da sexualidade na obra de Adelaide. E por extensão, é claro,
da própria paraliteratura.
A sexualidade, muitas vezes chamada em seus livros de porno-
grafia, obscenidade, etc., tem conotações extremamente moralistas
e conservadoras. A meu ver, a autora, bem como Cassandra Rios,
Shirley de Queiroz e outros autores da paraliteratura incorrem em er-
ros conceituais básicos quando resolvem trabalhar a sexualidade em
seus romances. Como sempre, nesses casos, o resultado é absolu-
tamente nocivo e pernicioso. Essas obras, entre outras coisas, tor-
nam-se eficientes instrumentos de deseducação sexual. Principalmente
porque o alcance da paraliteratura é altamente expressivo em termos
de público.
Assim, a sexualidade, que poderia ser transformada num ins-
trumento de prazer e de libertação 2 , torna-se coisa, mercadoria. Reifica-
se o corpo, o prazer e com eles a sexualidade. O caráter libertário da
relação corporal sucumbe diante do fetichismo mercantil a que foi
submetida a sexualidade. Igor Caruso, psicanalista dos mais argutos,
dedicou boa parte do seu tempo a questões como essa 3.
A conseqüência desse fato, claro, não poderia ser outra: a
paraliteratura erótica termina por descaracterizar e envilecer a sexua-
2
Convém destacar a observação de Norbert Lechner sobre o caráter libertário que
deve assumir a sexualidade na personalidade de cada pessoa: “Enquanto não limitamos
a sexualidade à genitalidade, a expansão do prazer sexual é uma necessidade
básica que transcende o nome de produção capitalista. A sexualidade é uma energia
emancipadora, porquanto aponta a uma satisfação total somente possível numa
sociedade sem classes”, Revista CEREN, Chile, p. 43.
3
Num trabalho dos mais famosos, o autor analisa as perturbações psíquicas ligadas à
sexualidade humana, em sua maioria decorrentes da reificação sexual. Vendo a questão
sob a ótica da Psicanálise, Igor Caruso registra as conseqüências da seguinte forma:
“Na prática psicanalítica, esse critério permite fazer apanhar ao vivo a significação –
o simbolismo! -dos sintomas mais diversos, como frigidez e impotência, perversões
sexuais, hipersexualidade; indireta e mediatamente é ela a base das conversões
neuróticas que substituem o sintoma sexual por um símbolo secundário; em resumo,
para a análise da história íntima e impulsional do sujeito, esse critério tem um valor
heurístico complementar àquele da reificação do trabalho que Karl Marx colocou na

76
lidade. É neste momento que ela assume sua função política. O con-
trole social se faz presente, justamente em decorrência do estereóti-
po da imagem estigmatizada que sempre se faz da sexualidade. Ali-
ás, esta é uma prática secular que já nasceu acompanhada de toda a
visão da cultura afirmativa sobre o mundo e com ela a concepção
burguesa do amor. É neste momento também que a paraliteratura
brasileira chega ao ápice do seu reacionarismo. O falso moralismo é
tão exaustivamente exaltado que nos faz até lembrar a repulsa que os
integralistas (versão tupiniquim do fascismo) tinham pela sexualida-
de. Como bem assinala Gilberto Vasconcellos, “no campo da sexua-
lidade, ninguém compete com os camisas-verdes em termos de
reacionarismo: repulsa dos instintos, monogamia indissolúvel, sexo
como procriação, dessexualização da mãe e da criança, etc...” 4 Incrí-
vel! Mas é precisamente por essa ótica também que a paraliteratura,
aqui representada por Adelaide Carraro, vê a sexualidade. Desvalori-
za-se o gozo, o prazer, reificando a sexualidade e transformando-a
num instrumento de coerção política. Ela deve agora assegurar o fun-
cionamento da ordem social estabelecida e manter a mesma concep-
ção que sempre foi difundida na cultura afirmativa. Estamos nesse
estágio, vivendo a auto-sublimação da sexualidade. Perpetua-se a
dessexualização do corpo, tornando o organismo o sujeito-objeto das
atividades socialmente úteis. O destino da sexualidade não é outro
senão viver, a partir desse instante, sob a égide do princípio de realida-
de repressivo. É nesse momento que a sublimação real opera sobre a
estrutura instintiva da sexualidade anulando o principio de prazer e
dessexualizando o corpo. Assim, os impulsos sublimados (Freud usa
a expressão “impulsos sexuais de finalidade inibida”), para manter a
coerência com a ideologia da cultura afirmativa, para sancionar a prá-
tica sistemática da moral sexual repressiva, toma o lugar das livres
relações libidinais com evidente prejuízo da saúde corporal e mental
do indivíduo. E é este elevado grau de sublimação determinado, entre
outras coisas, pelos valores sociais da cultura afirmativa que dá o
“tom” do comportamento sexual da nossa civilização ocidental, hoje,
ao que tudo indica, um pouco pior que amanhã.
Nesses termos e sob tais condições, me parece, é que deve-
mos pensar como se organiza a “cultura do corpo”, da sexualidade e
do prazer em nossa sociedade. O psicanalista húngaro Géza Róheim,
analisando comportamentos sociais e psicológicos da cultura repres-
siva, nos dá um excelente exemplo de como a reativação da libido
narcisista (atributo comum nas personagens da paraliteratura de
Adelaide), transforma-se num eficiente instrumento anticultura e ao
mesmo tempo gerador de neurose:
“A diferença entre uma neurose e uma sublimação é evidente-
mente, o aspecto social do fenômeno. Uma neurose isola; uma subli-
mação une. Numa sublimação algo novo é criado - uma casa ou uma
comunidade, ou uma ferramenta - e é criado num grupo ou para uso

4 Vasconcellos, Gilberto, Ideologia curupira, Editora Brasiliense, São Paulo, 1979, p.


66.

77
de um grupo.” 5
A interpretação do autor nos leva a perceber a forma como se
organiza o controle social repressivo dos instintos. Nessas condições,
os instintos vitais (Eros) curvam-se diante dos instintos de morte
(Thânatos) .A brutalidade do controle repressivo, aniquilando as
potencialidades do indivíduo só pode conduzi-lo a um único destino:
como diria Marcuse, ao interpretar Freud, “à descida para a morte”.
Cerceiam-se os instintos sexuais e Thânatos triunfa sobre Eros. Este,
em última instância, criará sua própria destruição atuando a serviço
da Thânatos, transformando a trajetória da vida num tortuoso caminho
rumo à morte. Os impulsos eróticos, força alimentadora do instinto de
vida, esvaem-se irremediavelmente diante da cultura repressiva. Nes-
se instante, não há outra alternativa: a morte está muito mais próxima
da vida. O controle repressivo do corpo decreta a supremacia de
Thânatos sobre Eros; e com isso o instinto de morte vence a vida e o
prazer.
Todas as sociedades autoritárias (caso das sociedades nazi-
fascistas européias, as latino-americanas de ditaduras militares) vive-
ram, e de certo modo ainda vivem, o tormento da velha moral sexual
repressiva. Na América Latina, a meu ver, os melhores exemplos des-
se quadro desolador estão no Chile de Pinochet e no Brasil da ditadu-
ra militar.
Historicamente, o autoritarismo sempre reprimiu o corpo, o pra-
zer, a libertação sexual e as próprias potencialidades humanas. Com
certeza, para esconder sua pecha e o barbarismo que sempre se-
meou. A arte, a cultura, o desenvolvimento econômico, social, enfim,
todo o florescimento da sociedade, do indivíduo dizimam-se, ou me-
lhor, são dizimados pela força bruta da cultura afirmativa. Brasil e Chi-
le (apenas para citar dois países latino-americanos, entre tantos) já
passaram (o Chile ainda passa) por essa experiência; e os resultados
são aqueles já conhecidos cuja história do país e da civilização não
deixarão passar impunemente.
No Brasil, os iconoclastas da cultura e do prazer conseguiram
o inusitado: mergulhar nosso país na mais profunda depressão cultu-
ral, social e política de toda a sua história. Salvam-se muito poucas
coisas. O movimento musical tropicalista é uma delas. Mesmo as-
sim, porque eles não entenderam a ótica política (a questão do subde-
senvolvimento) subjacente à grande estética desse movimento; se-
não, até ele teria sucumbido à força bruta e à arbitrariedade com que
o autoritarismo tratou a produção cultural em nosso país. Os exem-
plos desses desmandos são tantos que nem caberiam num ensaio
como este. É bom lembrar, no entanto, que os chefes do autoritarismo
passarão para a história como os vilões da cultura e da arte brasileira.
Eles só serão lembrados como tirânicos; caso contrário, o ostracis-
mo lhes será inevitável. A arte, por sua vez, varou o tempo e se impôs
por aquilo que oferece às potencialidades humanas. É do seu lado
que Eros tornar-se-á imbatível. Thânatos, o instinto de morte, nessas
5 Róheim, Géza, The Origin and Function of Culture, Nova York, 1943, p.74.

78
circunstâncias acabrunha-se. A esperança é de que o autoritarismo
viva em nosso país os últimos estertores agônicos da sua longa traje-
tória de vinte anos. Que floresça a liberdade de expressão e de com-
portamentos; enfim, que sejamos livres. Que possamos contestar,
protestar, termos o direito incondicional à liberdade de expressão sem
temermos o fantasma da máquina repressiva do Estado. Da mesma
máquina a que Kafka se refere em A Colônia Penal. É desse direito (o
direito à liberdade) que brasileiros, chilenos, enfim, os povos oprimi-
dos exigem, para não se tornarem personagens angustiados, mutila-
dos e acabados para a vida como Joseph K. e Gregor Samsa, respec-
tivamente em O Processo e A Metamorfose, de Franz Kafka.
Pois bem, o moralismo repressivo, medula de toda a paraliteratura
brasileira, termina corroborando o autoritarismo do Estado a que nos
referimos até agora. Se esta é uma atitude intencional, ou não, já é
um outro problema. O mais primário dos manuais de Teoria e Critica
Literária, no entanto, já nos diz: mais importante do que a intenção do
autor ao tratar de certo assunto num romance, é a interpretação do
leitor sobre seus escritos e, claro, as conseqüências advindas da ab-
sorção da leitura.
E, nesse caso, a leitura veiculada por autores da paraliteratura
está absolutamente comprometida com o autoritarismo do Estado.
Aliás, convém mencionar, por exemplo, algumas identidades entre os
autores da paraliteratura. Não por acaso, vale a pena registrar a con-
cepção de amor que permeia os romances de Dr. G. Pop, Adelaide
Carraro, Marcelo Francis, Márcia Fagundes Varela, entre outros. Há
uma ética invulnerável. Certos valores que podemos resumir da se-
guinte forma: aos homens está assegurado o direito de ter experiênci-
as sexuais (desde que sejam heterossexuais) a qualquer momento,
sem que isto interfira negativamente em sua reputação. Aliás, ao con-
trário, em certas ocasiões elas tornam-se até motivo de orgulho e de
prestígio em seu meio social. A própria observação empírica desse
comportamento corrobora nossas palavras. As mulheres, claro, pela
própria estrutura patriarcal em que estão montados os valores da cul-
tura afirmativa, isso não lhes é permitido. É comportamento habitual
dos pais (e não poderia ser diferente; eles são produtos dessa cultura)
darem mais liberdade ao filho e até incentivar o seu machismo. As
mulheres não. As regras do jogo se invertem. A experiência sexual
não formalizada pelo casamento redunda, invariavelmente, em sua
má reputação.
Esses conceitos estão presentes em diferentes autores da
paraliteratura. Adelaide Carraro, só para citar um exemplo, se enqua-
dra entre eles. Os valores acima citados estão contidos claramente
em Eu e o Governador, sua obra mais conhecida. No capítulo intitulado
“Reflexão” a autora deixa-os claros ao colocar a seguinte epígrafe de
Mantegazza:
“Nunca se faz uma segunda edição da virgindade, do pudor e da
honestidade”.
Adelaide Carraro, como se vê, nesta pequena amostra, repro-
duz e reforça alguns valores já tradicionalmente conhecidos na socie-
79
dade burguesa que vão contra nossa liberdade, ou seja: o direito de
ser o que quisermos, e não aquilo que gostariam (os pais, a socieda-
de, os amigos, etc.) que fôssemos. Se tivéssemos pouco espaço
para dar uma idéia da extensão do seu convervadorismo quanto à
dinâmica do relacionamento entre casais, diríamos o seguinte: se re-
almente amamos uma mulher, devemos ainda preservar sua virginda-
de, inclusive como prova de amor até a concretização do casamento.
Em suma, seu pensamento moralista permeia quase todo o universo
do comportamento humano. A questão da sexualidade, sem dúvida, é
a mais evidente porque é também, rigorosamente, o tema mais explo-
rado em seus livros. Ainda é o filão paraliterário mais rentável.

80
7. Subliteratuda: O Fetiche do Prazer
Alguns escritores brasileiros como João F. de Lima, Cassandra
Rios, Márcia Fagundes Varela, Adelaide Carraro, entre outros, dedi-
caram-se a um tipo de literatura muito pouco conhecida nos meios
acadêmicos do país. É bem verdade que, pelo menos de passagem,
intelectuais ou não, já leram um livro de Adelaide Carraro ou, na pior
das hipóteses, já ouviram falar da estória de uma obra sua. Aliás,
como se não bastasse seu quase desconhecimento, com certeza ela
nunca foi estudada de forma sistemática que nos permitisse saber da
sua importância no contexto da sociedade brasileira. Esse tipo de
literatura não aparece somente em países de cultura dependente. Ele,
é antes de mais nada - nos moldes como discorre sobre a sexualida-
de -, um produto gerado pela sociedade capitalista. Mesmo porque,
muito antes de surgir no Brasil com aqueles escritores já menciona-
dos, essa literatura existia nos Estados Unidos com Francis Miller,
por exemplo, com grande ressonância junto ao público.
É somente a partir do inicio da década de 60 que aparece no
Brasil, com duas escritoras já bastante conhecidas do público, um
tipo de literatura que chamaremos, a partir de agora, de subliteratura.
A rigor, trata-se de obras que mostram insistentemente o erotismo,
indo desde a prática do coito pura e simples entre casais, passando
pela homossexualidade indo até as tramas sadomasoquistas. Mas,
fundamentalmente, essa não é uma literatura erótica - entendido aqui
o erótico como algo que também pode nos levar a uma visão lirica do
amor. A subliteratura nos mostra muito mais a erotomania e, além
disso, toda uma ideologia contida em seu discurso que precisa ser
analisada.
No Brasil, Adelaide Carraro e Cassandra Rios são as escritoras
mais importantes na subliteratura. Suas obras são as mais procura-
das pelo público. Basta dizer que Eu e o Governador, segundo a auto-
ra e a própria editora, vendeu em apenas três dias 20.000 exemplares,
estando agora na 14. edição. Este é um indício de que o público liga-
do à subliteratura prolifera rapidamente. Convém destacar que, embo-
ra Cassandra e Adelaide sejam as líderes em vendagem, não são as
únicas que vendem bem. A rigor, toda a subliteratura é bem aceita,
independentemente do autor ser brasileiro ou estrangeiro, apesar da
estrangeirice de que estão impregnadas as editoras. É bastante co-
mum autores brasileiros, a conselho da editora, usarem pseudônimos
estrangeiros. É o que faz, por exemplo, Al Trebla (nome verdadeiro),
autor de A Trama Perfeita, que escreveu também Vamos Querida e
81
Motel Nove, usando o pseudônimo de Brigite Bijou. A escolha desses
pseudônimos quase sempre recai sobre nomes franceses. E é bas-
tante provável que a gênese disso (além do evidente chamarisco co-
mercial) esteja na visão estereotipada que os meios de comunicação
de massa criaram sobre os franceses em relação à sexualidade. Ao
contrário de qualquer outro tipo de literatura, a subliteratura está con-
centrada principalmente em livrarias do grande centro da cidade. Em
São Paulo, por exemplo, nas livrarias da avenida São João, onde se
misturam discos, livros, fitas cassetes etc., nas imediações das esta-
ções ferroviárias e rodoviárias, além das bancas de jornais. Por outro
lado, nas livrarias especializadas em livros científicos e literatura dos
grandes escritores, dificilmente encontram-se obras de autores que
produzem a subliteratura. Bem, mas a que se deve o fato das livrarias-
discotecas do centro estamparem em suas vitrinas e balcões de cor-
redores uma variedade tão grande de obras especializadas em
subliteratura, enquanto um Dalton Trevisan ou qualquer outro escritor,
brasileiro ou não, permanece quase escondido nas prateleiras? Por-
que a exploração maciça do erótico no grande centro? Esse fenôme-
no - se é que assim podemos chamar - não é peculiar da cidade de
São Paulo; mas das grandes metrópoles de países dependentes e
até mesmo de países desenvolvidos (EUA), como é o caso de Nova
York, onde se paga para ver uma mulher nua na vitrina. São casas de
diversões que lançam mão da sexualidade para auferir lucros. E rigo-
rosamente podemos dizer: a exploração maciça do erótico no grande
centro metropolitano não é outra coisa senão o resultado de como “a
sexualidade é radicalmente levada à forma de bem capitalista, cuja
expressão adequada é o seu valor publicitário e o infinito aumento de
consumo” 1; aspectos esses já fecundamente abordados por Wilhelm
Reich 2 e, mais recentemente, por Michael Schneider 3.
Em São Paulo, observa-se que ao centro da cidade estão re-
servados todos os subprodutos de qualquer manifestação cultural e
artística. Basta ver que, nos cinemas do centro, os filmes exibidos
são quase sempre providos de temáticas que ou exploram a violência
pela violência, a sexualidade por si mesma ou ainda a simples vulga-
rização da temática amorosa. Além disso, não há, no centro de São
Paulo, uma só galeria de arte. Até mesmo a Praça da República, que
no inicio parecia se transformar numa feira de artes, hoje, com raras
exceções, nada mais é do que um posto de vendas de obras kitsch,
de obras que levam o rótulo de cultura popular, mas que não passam
de simples produtos da cultura de massa, de uma cultura que, no
dizer de Dwight MacDonald, “está decadente de um modo novo; não
tem sequer a possibilidade teórica de ser boa. Não é simplesmente
arte falida, é não arte. É absolutamente anti-arte” 4.
1
Scheineidr, Michael. Neurse e Classes Sociais. Zahar Editores, 1977, Rio, p. 293
2
Reich, Wilhelm . La Lucha Sexual de los Jovenes, Granica Editores, 1972 Buesnos
Aires.
3
Trata-se do livro acima mencionado.
4
-MacDonald, Dwight. “Massicuktura e Medicultura”, in: A indústria da Cultura, Editira
Meridiana, Lisboa, 1971, p. 70

82
Além do mais, o fato do centro da cidade não possuir atrativos
artísticos e culturais de boa qualidade, faz com que ele termine sendo
deixado de lado por quase todo o público universitário e aquela parce-
la intelectualizada da população que prefere fazer seus “pontos de
encontro” nos bairros classe média periféricos ao centro, surgindo dai
a estratificação do lazer. É o caso dos bairros da Consolação (Bar
Riviera, Ponto 4, Cantina Piolin, Cine Belas Artes), Perdizes (Choperia
Cristal, Bar Whisqueria), Pinheiros (Café Paris, Bar BoraBora, etc.).
Pois bem, por essa divisão sócio-geográfica de público, mas que tam-
bém revela uma divisão de interesses lúdico-culturais, é que a
subliteratura está à venda apenas nos locais já citados. Mas não é só.
O grande centro de São Paulo é mais ou menos uma espécie de “terra
de ninguém”, Apesar de ser a área de lazer dos baixos estratos da
população, é também ponto de passagem de profissionais das mais
diversas qualificações, tornando esse público indiferenciado. Anôni-
mo. É por isso, principalmente, que as livrarias-discotecas do centro
dão grande destaque em suas vitrinas às obras de Adelaide Carraro,
Cassandra Rios e outros escritores ligados à subliteratura. Isto por-
que, apesar da heterogeneidade do público, predomina o leitor não
comprometido com a literatura dos grandes escritores.
Não é tarefa fácil detectar o leitor de subliteratura. Nem mesmo
as entrevistas realizadas nas livrarias-discotecas das avenidas São
João, Ipiranga, estações ferroviárias e rodoviária, nos permite afirmar e
definir claramente esse público. Mesmo assim, podemos dizer que a
maioria dos leitores é formada por pessoas da classe média que apre-
sentam um índice de escolaridade e diversificação profissional extre-
mamente heterogêneos. Com certeza, a procura desses livros, por
parte do proletariado, é insignificante visto que o preço de cada volu-
me está em tomo de Cr$ 25,00, inacessível ao seu poder de compra.
O resultado de nossa pesquisa confirma-se em dois momen-
tos: primeiramente, porque o livro Adelaide Carraro, Escritora Maldita?
é composto exclusivamente de cartas de leitores (padres, donas de
casa, estudantes, empresários, escriturários, fazendeiros, profissio-
nais liberais) ; enfim, elementos das classes média e alta burguesia
falando sobre a obra da escritora. As profissões citadas no livro nos
permite confirmar a heterogeneidade do público. O segundo aspecto,
certamente muito relevante, reside no próprio depoimento de Adelaide
quando por nós entrevistada. Sob seu ponto de vista, a classe social
que lê seus livros é aquela “que tem problemas, tristeza na vida, me-
nos o operário que não compra livros. Ele não tem dinheiro para isso.
É uma classe diferente das outras (a que lê seus livros), é a classe
que vê longe. Não há uma classe definida, até o Erasmo Dias lê. João
Saad, do canal 13, é assíduo, lê tudo o que escrevo. Padres, tudo,
não dá pra definir todos”.
Posto isso, cabe-nos agora analisar quais as eventuais contri-
buições que Adelaide Carraro e Cassandra Rios trouxeram ao seu
público e à sociedade. São duas escritoras que usam o erotismo como
tema central de sua obra, embora o façam de formas absolutamente
diferentes.
83
Cassandra Rios, em seus 36 livros publicados - tendo três iné-
ditos a serem editados no exterior - não aborda o homossexualismo
em apenas dois. São eles: As Mulheres dos Cabelos de Metal e O
Bruxo Espanhol, suas primeiras incursões pelos caminhos da ficção
científica, sem no entanto abandonar inteiramente o erotismo. Mas,
importante é sabermos o que pensa a autora sobre a homossexuali-
dade. Recentemente, ao ser entrevistada pelo pasquim, de 20 a 26/8/
76, Cassandra declarou o seguinte: “Pra mim, o homossexualismo é
uma forma especial de amar, como, qualquer outra forma especial de
amor. É um modo diferente, um jeito” de amar. Tudo é amor. Desde
que haja amor, não há depravação. Nem é pornografia. Um dia meus
livros poderão servir como estudo do modo de vida dessas criaturas,
do relacionamento entre eles, de como pensam e o que sentem. O
homossexual é um ser humano igual a qualquer outro”. Nossa visão
sobre sua obra, tanto quanto sobre a homossexualidade, é muito dife-
rente daquela defendida por Cassandra. Seu conceito romântico e
aparentemente desprovido de qualquer conseqüência social e política
está, na verdade, impregnado de valores que fundamentalmente não
só demonstram um pseudoliberalismo que não nos conduz a solu-
ções viáveis mais, ao contrário, reforçam ainda mais as distorções da
educação sexual burguesa ensinada já na primeira infância. Como se
sabe, o primeiro período infantil é de vital importância porque é nessa
fase que os instintos parciais se manifestam, constituindo a estrutura
da personalidade. E é também nessa fase que a criança tem seu
comportamento sexual inteiramente moldado pelos pais, que obede-
cem à risca todos os preceitos da “boa educação sexual burguesa”.
Educação essa que se reveste de pruridos sexuais determinados pelo
autoritarismo dos pais que fazem uso não só da violência psíquica
(mas em casos extremos da violência física), para assegurar os “bons
princípios” da educação sexual burguesa. Assim é que a decepção do
filho em relação à mãe, tanto quanto da filha para com o pai, motivada
pela repressão físico-psíquica pode, segundo a óptica reichiana, con-
verter facilmente as pessoas em homossexuais. E mais: essa situa-
ção pode ainda ser reforçada por experiências sexuais desastrosas
com pessoas do sexo oposto. Assim fica bem claro o seguinte: uma
ou outra experiência (autoritarismo dos pais e frustração em relação
ao sexo oposto ) pode conduzir ao homossexualismo. Isso não quer
dizer, evidentemente, que sejam os dois únicos casos determinados
pelas relações sociais a levar o indivíduo à homossexualidade. E aqui,
queremos registrar uma estória de Cassandra que se enquadra exata-
mente nessas categorias sociais: em seu livro A Borboleta Branca,
São Paulo, 1968, a autora mostra que Fernanda, a personagem prin-
cipal da estória, é vítima do desajustamento familiar e do autoritarismo
do seu pai, Felipe, o que, provavelmente, poderia ter levado Fernanda
ao homossexualismo.
Nesse aspecto, a situação familiar vivida por Fernanda, desde a
infância até se fazer moça, terminou lhe criando transtornos psíqui-
cos. Como resultado disso, Fernanda torna-se homossexual. A cons-
tante repressão sexual que Fernanda sofria em decorrência do
84
autoritarismo de seu pai, torna-se um nítido exemplo de como a edu-
cação sexual burguesa pode conduzir ao homossexualismo. Mas é
fora de dúvida que as causas do homossexualismo não se resumem
apenas nos dois aspectos abordados. Seria errado acreditar-se nis-
so. Seria simplificar demais os problemas que envolvem a sexualida-
de. Estudiosos como Wilhelm Reich, La Lucha Sexual de los Jovenes,
Granica Editores, Bue nos Aires, 1972, e Sigmund Freud, Três Ensai-
os Sobre a Teoria da Sexualidade, Editora Imago, Rio, 1973, realiza-
ram exaustivos estudos sobre o tema apresentando suas causas e
conseqüências no âmbito da sociedade.
A nós cabe, entretanto, não concordar com a postura confor-
mista e aparentemente liberal que Cassandra Rios assume diante da
homossexualidade. Por outro lado, assumir uma posição de animosi-
dade em relação aos homossexuais, combatê-los e depreciá-los gra-
tuitamente seria irrelevante e sem propósitos. É ter apenas uma visão
míope da nossa realidade concreta.
Na verdade, há que se entender o seguinte: na própria literatura
de Cassandra, tanto quanto todos os casos de homossexualidade
abordados por ela - a autora não menciona nenhum caso de anomalia
física -, são simples produtos da sociedade capitalista, da moral cris-
tã que, ao distorcerem a educação sexual do homem, ao dificultarem
a relação normal entre homens e mulheres - veja o caso das prisões
masculinas e femininas, colégio de freiras etc. -, os conduzem lenta-
mente à prática da homossexualidade. Portanto, endossar simples-
mente o homossexualismo é antes de mais nada endossar a própria
tirania do Estado autoritário e castrador das reais potencialidades
sexuais do ser humano; é justificar a instituição da barbárie como
forma adequada para educar a sociedade. É também não perceber
que há razões científicas e políticas para não se endossar o homos-
sexualismo. É não entender que a homossexualidade “constitui um
fenômeno puramente social, uma questão de educação e de desen-
volvimento sexual” 5 e que a sociedade capitalista já nos transmite de
forma doentia, defeituosa. Assim, ela sempre produzirá homossexu-
ais. Portanto, não há que se opor aos homossexuais. Há, isto sim,
que entender cientificamente a questão. E para isso nos valemos das
palavras de Wilhelm Reich para melhor situar o problema: “ Antes de
tudo é necessário preservar aos jovens de entregar-se definitivamente
à homossexualidade, não por causas morais mas por motivos de pura
economia sexual. Se pode comprovar que a satisfação sexual média
no indivíduo heterossexual não é mais intensa que a do homossexual
também são. E isto tem uma grande importância a respeito da regulação
da economia psíquica. Aos muitos homossexuais que afirmam repre-
sentar uma espécie sexual particular e não um caso de desenvolvi-
mento sexual defeituoso, devemos opor-lhes o decisivo argumento
seguinte: todo homossexual pode deixar de sê-lo seguindo um trata-
mento psíquico determinado; mas nunca sucede que um indivíduo
normalmente desenvolvido se converta em homossexual depois de
5
Reich, Wilhelm, op. cit. p.97.

85
submeter-se a esse mesmo tratamento” 6.
É nesse sentido, portanto, que não podemos concordar com as
palavras de Cassandra Rios. Com sua obra menos ainda. Fazendo da
homossexualidade seu tema predileto, a autora limita-se apenas à
descrição de cenas amorosas entre homossexuais, sem nenhuma
reflexão; sem nenhuma contribuição que possa facilitar a intelecção
do problema, sem qualquer outra coisa que eventualmente
problematizasse a gênese social da homossexualidade. A educação
sexual burguesa e o sistema que a produz passam absolutamente
impunes em toda sua obra, desde A Volúpia do Pecado até Nicoleta
Ninfeta, sua primeira e última obra, respectivamente. E é bom lembrar
mais uma vez que o leitor dos seus livros - talvez com raras exceções
- é exatamente aquele leitor já imbuído dos valores culturais da socie-
dade burguesa. É aquele leitor que vê os homossexuais como depra-
vados da sociedade, como pessoas que lhes causam até mesmo
ojeriza, não admitindo inclusive sua inserção numa sociedade de “pes-
soas decentes”, de homens e mulheres normais segundo a concep-
ção burguesa do “normal”. Mas, ironicamente, é também esse leitor
de compra “escondidinho” seu livro de “sacanagem”, como costumam
chamar, para ler muito escondidinho também e se degustar com a
homossexualidade. Com a mesma homossexualidade que, perante a
sociedade, ele repudia por considerar obscena, sem perceber, no en-
tanto, que a maior obscenidade não reside propriamente no homosse-
xual, mas única e exclusivamente no seu prazer em saber das rela-
ções homossexuais sem a mínima postura crítica ou apenas para
repudiá-lo ainda mais como nos mostra o senso comum.
Bem, mas os efeitos desses livros não param nisso. Apesar de
escritores como Cassandra e Adelaide acreditarem no
descomprometimento político de suas obras, o fato é que isso não
ocorre. E seria ingênuo demais aceitar esse descomprometimento.
Segundo Elíseo Verón (e nisso concordamos plenamente), nenhum
texto está isento de uma leitura ideológica 7. E nesse caso é de suma
importância que se análise as conotações ideológicas que envolvem a
subliteratura. Aqui percebe-se uma estreita correlação entre sexuali-
dade e dominação. Com a literatura de ambas as autoras (entre tan-
tos outros), as relações sexuais, de como estão colocadas são sub-
metidas ao fetichismo mercantil através do seu valor de uso reificado
(a compra de um livro à procura do prazer sexual), tanto quanto são
reduzidas tão somente à genitalidade. E mais: assim é que “en este
caso las relaciones sexuales dejan de ser un asunto privado para
tarnsformarse em problema político” 8. Nesse sentido, a sexualidade
enquanto instrumento político de sistemas totalitários assume seu
6
Reich, Wilhelm, op. cit. p. 96
7
Sobre esse aspecto, Eliseo Verón diz que “... la significación ideológica de un
discurso reposa, no en su contenudodenotativo, sino en la ralación entre lo comunicado
y las decisiones selectivas y combinatórias movilizadas para construir esse discurso”.
“Hacia una Teoria del Processo Ideológico” in: El Processo Ideológico. Editorial Tiempo
Comtemporaneo, Buenos Aires. 1971, p. 261.
8
Informe Del Seminario Interno Del Ceren Sexualidad, autoritarismo y lucha de classes.
Distribuidora Baires S. R. L. Buenos Aires, 1974.

86
valor de mercadoria. Ela é proposta apenas enquanto objeto de con-
sumo. Ou ainda como diz Jean Baudrillard ao analisar o erotismo
funcional: “A sexualidade, juntamente com a beleza... é que orienta
hoje por toda parte a ‘redescoberta’ e o consumo do corpo” 9. Nesse
aspecto, a subliteratura está ideologicamente comprometida na medi-
da em que se transforma no arauto da sexualidade fetichizada, redu-
zindo-a a mero engodo, dando-lhe conotações reacionárias. Mas há,
pelo menos aqui, que se redefinir o papel político da sexualidade. E
para isso lançamos mão das palavras de Norbert Lechner: “La
sexualidad es una energia emancipadora, por cuanto apunta a una
satisfación total solamente posible en una sociedad sin clases” 10. 0
Agora perguntamos: qual o resultado dessa subliteratura senão criar
estereótipos sobre a sexualidade e reforçar ainda mais a repressão
sexual via aparatos ideológicos do Estado? Veja, por exemplo, que
tanto Cassandra Rios como Adelaide Carraro tiveram todos os seus
livros proibidos à venda. Mas o recolhimento dessas obras pela cen-
sura federal não representa uma preocupação estética ou coisa se-
melhante para com a cultura brasileira. Significa, isto sim, apenas um
comportamento político do Estado. Essas apreensões devem-se, fun-
damentalmente, ao fato de que essa literatura fere os valores da cultu-
ra afirmativa ao apresentar o corpo enquanto instrumento de prazer.
Porém, é bom que se diga, não se trata propriamente do prazer; mas
de um pseudoprazer, do prazer fetichizado. E “a proibição de oferecer
o corpo no mercado, como instrumento de prazer, em vez de instru-
mento de trabalho, é uma das raízes sociais e psíquicas fundamen-
tais da ideologia burgueso-patriarcal” 11. Assim, a subliteratura, enquanto
pseudo-prazer, assume mais uma vez a função de engodo, do grande
público, na medida em que passa a servir de “válvula de escape” aos
instintos sexuais reprimidos em virtude da instrumentalização do cor-
po, imprescindível ao modo de produção capitalista. E na impossibili-
dade do prazer corporal com outra pessoa - já que para isso é neces-
sária a não instrumentalização do corpo -, adquire-se o pseudoprazer
através da subliteratura - entre outras formas -, reforçando-se ainda
mais a individualidade burguesa. “Mas a idéia do amor exige a supera-
ção, a nível individual, do isolamento monádico. Pretende a entrega
profunda da individualidade à solidariedade incondicional entre pessoa
e pessoa. Numa sociedade em que a oposição dos interesses é o
principium individuations, esta entrega perfeita só se dá, só acontece
na sua forma pura, na morte” 12.
É nesse quiproquó que reside a aparente ambigüidade ideológica da
subliteratura. Se, por um lado, ela subverte os valores da moral bur-
guesa, tratando quase sempre da sexualidade ainda que grotesca-
mente, por outro, ela se torna conivente com a ideologia dessa socie-
dade, ao se transformar num tipo especial de adulação astuciosa.
9
Baudrillard, Jean. A Sociedade de Cunsumo. Edição 70, Lisboa, 1975, p. 221.
10
Informe..., op. cit., p. 43.
11
Marcuse, Herbert e outros. “Sobre o Caráter Afirmativo da Cultura”, in: Cultura e
Sociedade, Editora Presença, Lisboa, 1970, p. 90
12
Idem, p. 83.

87
Entretanto, a subversão desses valores diz respeito apenas à forma
como a sexualidade é abordada; não ao conteúdo das estórias. E
isso domina toda a subliteratura. Vejamos, por exemplo, um trecho do
livro A Falência das Elites de Adelaide Carraro:
“Ela sentiu sua intenção. Virou-se e o abraçou desesperada-
mente, para pedir que não a desrespeitasse. Tossiu na angústia do
mal que por dentro minava seu corpo. A negativa morreu-lhe nos lábi-
os. O sangue esguichou mais uma vez, encharcando todo o peito do
rapaz.
Ele, como alucinado, deitou-se em cima de Inês. Suas narinas
inflavam, dilatadas, e seus olhos esbraseados tinham uma fixidez es-
tranha. Uma dor aguda, dilacerante, fez com que ela gritasse. Nova
golfada de sangue inundou sua boca e, afogada na hemoptise, Inês foi
vigorosamente possuída pelo noivo. Ela choramingava, indefesa.
Uma semana depois, ela estava Internada no sanatório à espe-
ra, diariamente, da visita do noivo.
Esta visita aconteceu numa tarde de sol flamejante.
O sorriso desapareceu dos lábios de Inês quando Luís chegou ao seu
apartamento no sanatório São Pedro.
- Por que me chamou? Não leu minha carta?
- Mas Luís, você enlouqueceu?
- Ora, Inês, para que fazer cenas? Já deixei bem esclarecido, na carta
que lhe enviei, porque não posso me casar com você.
- Luís, agora que há um filho no meu ventre! Você será o pai. Você
sabe disso!
O jovem empalideceu e replicou mais violento:
- Pai? Sei lá se o filho é meu?
- Sinto muito, Inês, mas não posso me casar com você. O melhor que
você tem a fazer é tirar essa criança.
- Oh! Luís, pense nos meus pais, na minha família, em mim, na minha
idade! Tenho apenas dezessete anos!” 13.
Pois bem, a forma de como a autora descreve o estupro de Inês -
detalhadamente - é que subverte os valores da moral burguesa. Toda-
via, a autora toma como parâmetro para condenar o estupro, a impor-
tância da virgindade, a situação de Inês - agora grávida diante dos pais
-, enfim, determinados valores inerentes a essa moral, sem dar impor-
tância ao estupro enquanto uma violentação da liberdade individual,
enquanto manifestação da sexualidade patológica, do
sadomasoquismo. Além disso, ela não vê que a relação amorosa en-
tre ambos não surge espontaneamente; mas principalmente da
coisificação de um pelo outro. E é nessa visão que reside o caráter
reacionário da obra.
Alguns de seus livros, entretanto, não apresentam somente a
temática do erotismo. Eu e o Governador, O Comitê, Eu Mataria o
Presidente, entre outros, são obras cujos temas giram em torno do
binômio politico-erótico. Valendo-se de experiências pessoais em di-
ferentes fases da sua vida, a autora denuncia a corrupção dos políti-
13
Carraro, Adelaide. Falência das Elites, Editora L. Oren Ltda., São Paulo, 5ª edição,
1974, p. 30s.

88
cos em época de eleições, suas promessas nunca cumpridas, o abu-
so da autoridade, enfim, um sem número de casos já sobejamente
conhecidos do grande público. Entremeada a isso, aparece sempre a
sexualidade. É o caso, por exemplo, de Eu e o Governador, onde o
político corrupto promete bom emprego à jovem elegante e bela, des-
de que, em troca dessas “vantagens”, ela lhe ofereça seu corpo.
A rigor, a obra de Adelaide Carraro - não obstante a visão reaci-
onária da sexualidade - comparada à de Cassandra Rios, que se per-
de obsessivamente na estereotipia do homossexualismo, assume uma
posição bem mais crítica em relação à sociedade. E nesse hibridismo
político-herótico, a autora - à sua maneira - pelo menos se mostra
bem intencionada. E isso ficou bem claro nas suas palavras durante a
entrevista:
- O que você visa com suas denúncias políticas?
R: “Um Brasil melhor; com liberdade que não tem mais, mais refor-
mas. É tudo! O governo acha que a violência resolve, mas fica a razão,
por isso não adianta matar”.
Está aí, portanto, a forma como a autora encara suas incursões
na política brasileira. Ora, se a subliteratura em geral plasma-se na
ambigüidade ideológica, como mostramos anteriormente, com Adelaide
então - pelo menos parte significativa de sua obra -, essa ambigüidade
ganha ainda mais consistência. Verifica-se uma verdadeira barafunda
ideológica que é sem dúvida alguma decorrente muito mais da sua
experiência empírica, da sensibilidade humanitária e bem menos da
visão crítica sobre a realidade brasileira. É bem verdade que, se com-
parada com os demais autores que nada ou quase nada apresentam
nesse sentido, ela é, sem dúvida, a mais lúcida. Nesse sentido, essa
barafunda ideológica tornar-se-ia perigosa se permanecesse como algo
inextricável, como algo sem solução. Ela tem suas explicações, que
para nós residem muito mais nas experiências individuais da autora,
na sensibilidade humanitária (o que evidentemente não invalida seu
trabalho), do que propriamente na intenção política de conscientização
do seu público leitor, sobre os problemas que o cercam. E mais: isso
é verdade, se observarmos que a autora trata superficialmente do pro-
blema. Suas denúncias ficam apenas ao nível pessoal. Elas são
dirigidas contra a falta de humanidade de determinados governadores
e presidentes e não ao regime político que representam. Assim, a
possível conscientização do seu leitor se desvanece nesse momento;
como provavelmente se desvaneceu no decorrer do tempo com a su-
cessão de políticos desumanos e desinteressados por aqueles “mais
humanos” e “atenciosos”.
Resta lembrar ainda que, irrefletidamente, a simples substitui-
ção de políticos pode levar a autora, e por extensão o seu público, a
ter uma falsa visão da realidade concreta. E isso, obviamente, redun-
daria na reafirmação ideológica do sistema político. Portanto, a nosso
ver, é na ingenuidade política de Adelaide e na forma estereotipada
pela qual aborda a sexualidade, que reside todo o teor alienante da
sua obra.

89
8. O Som dos Modernistas
“Toda a arte nasce de uma concepção ideo
lógica do mundo; uma obra de arte inteira
mente desprovida de conteúdo ideológico é coisa que não existe”.
G. Plekhanov

A Semana de Arte Moderna de 1922, realizada no Teatro Muni-


cipal de São Paulo apresenta, seguramente, um dos momentos mais
significativos de toda a produção cultural brasileira. Sua ressonância
foi suficientemente grande, a ponto dos intelectuais discutirem-na até
hoje. Aliás, ela só varou o tempo em função justamente do seu caráter
inovador e revolucionário, que contrastava com a arte passadista do
Romantismo do século XIX.
À primeira vista, o comportamento irreverente de Oswald de
Andrade e de seus amigos parecia ter o endereço certo : a burguesia
conservadora que relutava, brigava para não aceitar as inovações es-
téticas introduzidas pela Semana. No entanto, a repercussão do tra-
balho dos modernistas superou até mesmo os próprios participantes
do movimento. Não é à toa que a Semana serve de grande “divisor de
águas” da arte brasileira. Com o evento de 1922, as artes no Brasil
alteram o seu rumo em cento e oitenta graus. E quem ganhou com
isso, com essa verdadeira revolução das concepções estéticas até
aquele momento, foi a produção artística do nosso país.
A música. nosso interesse específico neste ensaio, foi uma
das manifestações (paralelamente às artes plásticas e à literatura)
mais significativas da Semana. Foi ela, com certeza, a modalidade
que gerou os protestos mais contundentes e agressivos presenciados
em toda a história do Teatro Municipal. Basta ver, por exemplo, o que
aconteceu ao artista Nascimento Filho, o “Pequenino”, como era co-
nhecido entre os amigos. Após revidar as provocações da platéia du-
rante sua apresentação, foi agredido ao sair do teatro por um grupo
que não aceitava os propósitos da Semana. Nascimento ganhou for-
tes hematomas nos olhos, além de escoriações generalizadas em
seu corpo. Em suma, apanhou muito.
Mas, a presença da música no movimento modernista de 22
tem antecedentes de grande importância. Vale à pena, até mesmo
por uma questão didática, voltarmos um pouco atrás no tempo para
entendermos melhor o binômio música/modernismo de 22.
Rigorosamente, essa trajetória inicia-se com um projeto do es-
critor carioca Coelho Neto, um pouco antes da inauguração da Sema-

91
na de Arte Moderna. Intitulado de “Poema Sinfônico Brasil”, esse pro-
jeto pretendia se valer da música para dar uma visão geral das diver-
sas fases por que passou o Brasil. O objetivo era abarcar desde o
século XVI (antes mesmo do descobrimento) até o centenário da Inde-
pendência. Para sua plena realização, o autor do projeto resolveu divi-
di-lo em três grandes ciclos com funções específicas:
1. O primeiro ciclo nos daria uma visão do que foi o descobri-
mento do Brasil, da participação do indígena e dos primeiros contatos
com o português;
2. O segundo ciclo se poria à análise das relações do homem
nativo com a terra e seu catequizador. Paralelamente a isso, estaria
inclusa a situação do negro na condição de escravo. O músico teria
que trabalhar esses acontecimentos através da linguagem musical de
tal forma a ser suficientemente entendido;
3. Este terceiro ciclo deveria mostrar a luta do homem nativo
pela posse da terra. Através da música, o ouvinte deveria associar
todo o sentimento nativista e o desejo de liberdade que culminaria
com a nossa independência.
Mas, o projeto de Coelho Neto (deveria ser realizado através de
concurso) não deu os resultados esperados. Entre outras coisas, por-
que era inviável, naquela época, se fazer uma espécie de “reconstituição
histórica” do país. O fato é que ele era extremamente grande e auda-
cioso. Embora como idéia fosse respeitável. Seja como for, ele teve
sua importância. É precisamente da concepção nacionalista do proje-
to de Coelho Neto que vamos notar a presença do “verdeamarelismo”,
uma espécie de facção do movimento modernista na Semana de 22.
Nesse momento, portanto, vê-se a música envolvida com a ideologia
do nacionalismo. Há aqui, uma perfeita consonância entre música e
ideologia formando uma idéia que pretende dar uma visão histórico-
cultural do Brasil.
Havia ainda um aspecto muito significativo no Projeto Brasil.
Era de nítido interesse dos seus organizadores, que os compositores
participantes se valessem dos ritmos característicos da nossa músi-
ca popular. Assim, os jongos, modinhas, cururus, cateretês, catiras,
fandangos, quero-mana, dão-dão, canaverde, enfim, todos os ritmos
populares deveriam ser trabalhados na música erudita e na
especificidade de uma nova estética. Isso foi, sem dúvida, de grande
valia para a música brasileira. Vale dizer ainda, que Heitor Villa-Lobos,
Luciano Gallet e a grande maioria dos compositores modernistas já
faziam uso do folclore em suas composições. No entanto, um dos
maiores problemas do poema-sinfônico “Brasil” foi o fato de ter se
restringido basicamente a São Paulo e Rio de Janeiro. Certamente
por isso, e por sua amplitude, esse projeto ficou restrito apenas ao
seu próprio desejo de realização. Ainda assim, vemos nele alguns
modernistas desenvolvendo seu trabalho que posteriormente aparece-
ria na Semana de Arte Moderna.
É nesse momento, precisamente, que a arte brasileira (entre
elas, a música) desponta ao lado de uma nova concepção estética.
Abandonando toda a arte passadista do século XIX e a concepção de
92
uma arte bucólica, voltada para a reprodução da natureza (até então
em voga), os modernistas procuraram novos caminhos. É dessa in-
quietação que alguns compositores como Henrique Oswald, Luciano
Gallet, Ernani Braga, Heitor Villa-Lobos, Fructuoso Vianna, entre ou-
tros, levam ao Teatro Municipal de São Paulo uma nova ordem estéti-
ca no plano musical. A arte musical brasileira, procura agora, uma
identidade maior com as vanguardas européias. Stravinsky, Eric Satie,
Poulenc, além do próprio Villa-Lobos, serão os grandes inspiradores
da “revolução musical” brasileira.
Informados do que ocorria na Europa através da La Revue
Musicale, nossos compositores davam livre curso à sua criatividade
sem no entanto, importar simplesmente a arte européia. É claro, a
ressonância dessa arte continuava (como até hoje) com muita força.
No entanto, já se sentia, se via no trabalho dos compositores moder-
nistas, uma arte musical brasileira de alto nivel. Tão boa, tão impres-
sionantemente boa, que o famoso pianista Arthur Rubstein não resis-
tiu. Numa excursão profissional que fez ao Brasil, após ouvir composi-
ções de Villa-Lobos, resolve incluí-las em seu já rico repertório, forma-
do por uma elite de grandes compositores europeus. Assim, Villa-
Lobos tornou-se o primeiro latino-americano a ingressar no fechadíssimo
“clube” de Arthur Rubstein, do qual já participavam Prokofiév, Stravinsky,
Albéniz, entre outros. Villa-Lobos foi, sem dúvida, a grande expressão
musical da Semana de Arte Moderna. Seu talento, certa vez, foi moti-
vo de discussão entre Coelho Neto e o poeta Manuel Bandeira. Ape-
sar de admiradores do trabalho de Villa, eles tinham opiniões diferen-
tes. Para o poeta, Villa era um músico de muito talento, e isso já era
o suficiente. Dessa discussão, vale à pena registrar o comentário de
Manuel Bandeira em “andorinha, andorinha”, sobre a obra de Villa: “ A
música de Villa-Lobos é uma festa de timbres, uma golfada de ritmos
onde os motivos selvagens constituem o substrato de humanidade
profunda que sustenta o edifício sonoro”.
Certamente nas palavras de Manuel Bandeira estava o consen-
so sobre o trabalho de Villa-Lobos. Até mesmo os críticos mais con-
servadores (ou desinformados da emergência de uma nova estética
musical?) e inimigos da Semana, como Oscar Guanabarino, por exem-
plo, respeitavam o trabalho de Villa-Lobos. Mas, num certo momento,
inconformado com a revolução estética que se verificava na Semana,
o crítico carioca sai com a seguinte frase: “0 sr. Villa-Lobos pelo seu
talento musical, bem merecia não se ter metido com a meia dúzia de
cretinos que tansformaram o nosso Municipal em dois espetáculos
memoráveis pela sandice, numa desoladora grita de feira”. Esta ob-
servação de Guanabarino está contida no jornal, Folha da Noite, de
18-2-1922.
Mas, a unanimidade, com certeza, era uma coisa muito distan-
te da Semana de Arte Moderna. Como todo movimento cultural revolu-
cionário, este também criou cisões internas, sofreu pressões das alas
conservadoras às inovações estéticas. Por outro lado, evidentemente,
foi exaltado por aqueles que entenderam seus reais propósitos. Este
fato, nada mais é do que o confronto de idéias passadistas, de um
93
lado, e futuristas de outro. A Semana, entre outras coisas, se trans-
formou numa espécie de “iconoclasta dos grandes mitos”. Oswald de
Andrade, por exemplo, pôs sua vivacidade, inteligência e perspicácia
a serviço da Semana. Sempre irreverente, ele não perdoava o trabalho
das grandes figuras do passado, mas que continuavam a ser
“endeusadas” pela ala conservadora dos críticos. Certa vez, analisan-
do a importância do movimento modernista e respondendo às provo-
cações da ala conservadora, Oswald foi implacável com a obra de
Carlos Gomes. Ele era, na verdade, o grande mito da música erudita
antes do modernismo: “Carlos Gomes é horrível. Todos nós o senti-
mos desde pequeninos. Mas como se trata de uma glória da família,
engolimos a cantarolice toda do ‘Guarani’ e do ‘Schiavo’, inexpressiva,
postiça, nefanda.” É isto o que diz Oswald de Andrade, no Jornal do
Comércio, de 12/2/1922, sob o título, “Semana de Arte Moderna”.
Por causa desse artigo, Oscar Guanabarino “abre fogo”,
indiscriminadamente, contra todos os participantes da Semana. Ele
considerava as palavras de Oswald um autêntico ultraje à figura de
Carlos Gomes. Coube a Menotti deI Picchia, no entanto, travar com
Guanabarino, uma verdadeira guerra de palavras e insultos extrema-
mente pesados. A briga foi feita pelos jornais, em três artigos para
cada um. Deixando a questão intelectual de lado, tanto Menotti, quan-
to Guanabarino, passam as agressões para o plano pessoal, tirando
todo o caráter polêmico da discussão estética. Era hora de parar.
Sobrou depois disso, a velha e desgastada rixa regionalista entre São
Paulo (de Menotti) e Rio (de Guanabarino). Coisa de criança; nada
mais.
Mas, cumpre assinalar, que as divergências decorrentes da
Semana foram mais longe. As cisões internas ao movimento, por
exemplo, são significativas. Apesar de todos os participantes terem
os mesmos objetivos, a forma de atingí-los, no entanto, divergia de um
grupo para outro. Foi o que se verificou com a corrente literária
verdeamarela liderada por Plínio Salgado. Como se sabe, foi ele du-
rante toda sua vida, o fiel representante da doutrina integralista em
nosso país. Apenas para lembrar, o integralismo era uma espécie de
fascismo à moda tupiniquim. Oswald de Andrade, no entanto, jamais
aceitou os integralistas. Em seus escritos dos anos trinta (artigos de
jornais e crônicas), sempre que se referia ao discurso pomposo da
ordem integralista, aproveitava para intitulá-los de “jacarés falantes do
integralismo”. Vide seu trabalho, “Só para homens”, Telefonema, Obras
Completas, Civilização Brasileira, 1974.
Esse é apenas um exemplo de tudo aquilo que aconteceu em
conseqüência da Semana. E rigorosamente, as divergências são muito
mais profundas. Elas envolvem, claro, até mesmo questões ideológi-
cas. Coexistiram claramente, pelo menos duas grandes correntes ide-
ológicas no movimento modernista: sua ala direita e a outra ala, a
quem não se pode atribuir propriamente tendências esquerdizantes.
Pode-se falar, isto sim, de uma ala de oposição. Com certeza, era
uma ala de resistência às idéias daqueles membros que compunham
a ala direita.
94
Com muita clareza e argúcia, Gilberto Vasconcellos (Batatais)
analisou essa questão. Num certo momento do seu trabalho, Ideolo-
gia Curupira, Editora Brasiliense, 1979, o autor trata do caráter auto-
ritário da corrente literária verde-amarela, mas não se satisfaz em pa-
rar aí. Mais adiante, ele nos dá uma visão muito inteligente das diver-
gências políticas e ideológicas da Semana de Arte Moderna: “Um dos
aspectos mais delicados do movimento de 22 é, sem dúvida, a pre-
sença marcante de um setor reacionário. Se o modernismo trouxe
nova visão da realidade brasileira e, ao mesmo tempo, revolucionou a
linguagem literária, como então explicar a atitude intelectual de um
Plínio Salgado, futuro líder fascista; Menotti del Picchia, verboso e
nacional-populista; Tasso da Silveira, representante do autoritário gru-
po “Festa”; Cassiano Ricardo, adepto do ufanismo verde-amarelo? Não
se pode, é claro, considerá-lo uma experiência homogênea do ponto
de vista estético e político. Há, em verdade, modernismo e modernis-
mo. Isto é, uma ala radical, crítica, comprometida com a pesquisa
literária; outra, passadista, academizante, reacionária do ponto de vista
político e diluidora do ponto de vista artístico.” Está, assim, caracteri-
zada, nos parece, a grande confusão, o grande choque de idéias que
foi a Semana.
No plano especificamente musical, houve alguns desentendimentos
que merecem destaque. Como nas outras modalidades artísticas, tam-
bém na música havia uma ala que não aceitava inteiramente os propó-
sitos modernistas. Foi o que aconteceu, por exemplo, com os pianis-
tas Ernani Braga e Guiomar Novaes. Aliás, aqui cabe uma observa-
ção: ambos artistas participaram fundamentalmente como
instrumentistas. Eles não se envolveram nas questões estéticas da
Semana. Guiomar Novaes, por exemplo, participou como se estives-
se participando de qualquer outro evento musical. Ela não tinha, na
verdade, consciência dos propósitos da Semana. Considerados artis-
tas de grande talento (segundo Villa-Lobos, os dois melhores pianis-
tas da Semana), ambos tiveram pequenos desentendimentos com
seus companheiros justamente porque não concordavam com o com-
portamento deles.
Ernani Braga, como se sabe, chegou a discutir com Villa-Lo-
bos (moderadamente, é verdade) por causa da forma de executar
“Fiandeira”, peça de Villa. Embora um pouco longo, vale a pena tomar-
mos conhecimento do incidente através das próprias palavras de Ernani
Braga: “Lembro-me que tinha de tocar a ‘Fiandeira’ de Villa-Lobos,
entre muitas outras cousas. Dias antes executara essa peça, que era
a mais recente do meu querido amigo, em casa do professor Luiz
Chiaffarelli, para um grupo de discípulas suas e convidados. Villa-Lo-
bos estava presente. Quando eu acabei, ele se levantou, de olhos
arregalados, e declarou energicamente no meio da sala que aquilo
que eu tocava não era dele. Foi um sucesso. Expliquei, então, aos
ouvintes, que o autor exigia na peça, e principalmente no final, um
pedal contínuo que me parecia insuportavelmente cacofônico.
Chiaffarelli pediu ‘bis’ para a ‘Fiandeira’, com o pedal do autor. Fiz a
vontade do velho mestre. E todos pareceram muito contentes com a
95
cacofonia, inclusive Villa-Lobos que me abraçou entusiasmado. Só
quem não gostou foi Chiaffarelli. Tomou-me a um canto, e me aconse-
lhou: -use o pedal como da primeira vez, o Villa não é pianista; você é
quem está com a razão. - Pois bem, quando no meio da perturbação
em que eu estava pelos incidentes daquela noite fatídica, chegou o
momento da ‘Fiandeira’, fiquei sem saber o que devia fazer. Com pe-
dal ou sem pedal ? Villa-Lobos ou Chiaffarelli ? Seguindo o conselho
do mestre acatado podia provocar um protesto do autor, e dessa vez
diante de um público já meio zangado. Ataquei a peça litigiosa em
plena turbação de sentidos. E reduzi-a à quarta parte, porque me per-
di no meio, e me achei sem saber como, na última página. O auditório
gostou daquela peça tão viva, tão extravagante e ...tão curtinha. Por
isso aplaudiu muito, não dando tempo a Villa-Lobos de protestar.
Chiaffarelli depois me felicitou por eu ter encontrado a fórmula exata
de resolver o problema. Além de mestre admirável de arte pianística,
era Chiaffarelli sutilíssimo na arte da ironia.” Este depoimento de Ernani
Braga, “O que foi a Semana de Arte Moderna em São Paulo...”, en-
contra-se em Presença de Villa-Lobos, 2.0 volume, p. 68-69.
Não menos aborrecida e desapontada ficou a pianista Guiomar
Novaes. Isto porque, a Semana terminou apresentando uma divisão
muito clara, como vimos anteriormente. De um lado, os virtuoses,
muito talentosos no piano e de muito prestígio junto ao público. Mes-
mo assim, e respeitando toda a condição profissional, Mário de Andrade
fez críticas interessantes a esses instrumentistas, usando uma ex-
pressão muito significativa: a “pianolatria”. De outro lado, estava o
grupo de cameristas (profissionais da música de câmera) cujo ponto
alto estava nas apresentações do conjunto de Paulina d’ Ambrosio.
Essa questão, aliás, passa a ser assunto de destaque na recém-
fundada revista Klaxon. E é precisamente, no primeiro número, que
Mário de Andrade escreve seu ensaio intitulado “Pianolatria”. 0 melhor
estudo que conheço sobre este tema é de José Miguel Wisnik. Anali-
sando o problema com uma clareza incomum, o autor mergulha a
fundo nos propósitos de Mário de Andrade e nos dá uma excelente
visão de certos momentos do clima musical vivido na Semana de 22.
Senão vejamos: “Nesse texto que se chama ‘Pianolatria’, Mário ob-
serva que São Paulo havia constituído uma brilhante tradição pianística
(“a melhor da América do Sul”), que, no entanto, viciava o gosto do
público, restringindo o repertório e promovendo a prática da interpreta-
ção sentimentalista. Chama a atenção exatamente para a grande
disparidade existente entre o estudo do piano e dos demais instru-
mentos, o que motiva a pobreza da cultura camerística e sinfônica.”
Mais adiante, o autor cita um artigo da revista Klaxon, onde fica bem
claro o valor específico do piano na Semana: “Estamos ainda em ple-
no romantismo sonoro; e Chopin é o soluçante ideal de todas as nos-
sas pianeiras.” Essas duas citações constam do livro de J. M. Wisnik,
O Coro dos Contrários, Livraria Duas Cidades, 1977.
E se a Semana se pautou sobretudo pelo desejo de uma reno-
vação estética, de dessacralizar aquela arte passadista, não poderia,
claro, deixar de acontecer pelo menos um incidente com a persona-
96
gem mais famosa entre os pianistas: Guiomar Novaes. Segundo Menotti
deI Picchia ( em seu discurso meio picaresco, meio logomáquico) , “o
ídolo canoro da gente paulista”. Após assistir a uma exibição de pe-
ças satirizando a música de Chopin, Guiomar Novaes fez sérias críti-
cas à forma “irreverente e desrespeitosa” com que foi tratada a obra
desse compositor: “Em virtude do caráter bastante exclusivista e into-
lerante que assumiu a primeira festa de arte moderna, realizada na
noite de 13 do corrente, no Teatro Municipal, em relação às demais
escolas de música, das quais sou intérprete e admiradora, não posso
deixar de declarar aqui o meu desacordo com esse modo de pensar.
Senti-me sinceramente contristada com a pública exibição de peças
satíricas à música de Chopin. Admiro e respeito todas as grandes
manifestações de arte, independente das escolas a que elas se filiem,
e foi de acordo com esse meu modo de pensar que, acedendo ao
convite que me foi feito, tomei parte num dos festivais de Arte Moder-
na.” Este depoimento consta do artigo, “Semana de Arte Moderna”
(Artes e Artistas) , O Estado de São Paulo, 15 de fevereiro de 1922.
As palavras de Guiomar Novaes refletem, entre outras coisas, seu
inteiro alheamento aos propósitos da Semana. Elas comprovam, em
definitivo, que sua participação foi meramente circunstancial (um con-
vite de Villa-Lobos) , e não tinha a menor intenção de ajudar na pro-
posta de uma nova estética musical, como pensavam outros moder-
nistas.
Estão aqui registrados, portanto, alguns momentos de tensão
que de certo modo caracterizaram uma parte do ambiente musical da
Semana de 22. Se, por um lado, parte do público presente ao Teatro
Municipal de São Paulo, delirava de satisfação e de prazer com a
apresentação de determinada peça musical (principalmente quando
se apresentavam Guiomar Novaes ou Ernani Braga, considerados in-
tegrantes da ala conservadora), por outro lado ele também protestava
quando via que seus interesses de classe (e não apenas de gosto
musical) não eram inteiramente atendidos. Aquela platéia seleta, que
no fundo gostava de ser vista como a elite cultural do país, não supor-
taria ver seus valores culturais, ainda que passadistas, serem substi-
tuídos por novos valores, por uma nova estética que revolucionaria a
própria cultura brasileira. Por esses motivos, ela reagiu até com vio-
lência nos momentos em que se achava lesada em seus valores cul-
turais. Foi assim, por exemplo, que ela se comportou quando Luciano
Gallet tentou interpretar algumas peças de Ernesto Nazareth. Houve
até intervenção policial. Nazareth não era reconhecido como compo-
sitor erudito. Aquilo era visto como uma afronta. Sua obra tem origens
numa espécie de hibridismo musical onde estariam incorporados o
maxixe, o lundu, o fado, enfim, um certo número de ritmos que abarca
diferentes níveis culturais. Aliás, o próprio Ernesto Nazareth preferia
que suas peças fossem chamadas de “Tango” e não de “maxixes”.
Ele mesmo as chamava de Tango. Um rítmo de maior prestígio entre
os compositores da música erudita. Universo do qual ele sempre quis
participar.

97
Aí está, portanto, um panorama do que foi a Semana de Arte
Moderna no plano da música. Como tudo aquilo que envolvia a arte da
semana, a música também provocou protestos, aplausos, cisões in-
ternas, divisões em grupos e todo um conjunto de acontecimentos
que só poderia mesmo ocorrer num movimento com novas propostas
estéticas reais e exeqüíveis para a cultura brasileira. Volto a me valer
das palavras de José Miguel Wisnik, desta vez para dar a idéia, a meu
ver muito precisa, do que foi o movimento musical do modernismo:
“Assim, o modernismo vai se opor, na música, aos vícios tardios do
romantismo: o sentimentalismo que impregna a concepção
interpretativa da obra nos pianistas, o culto do piano e do ‘virtuose’, a
preferência pela escuta programática, tendente a converter as estrutu-
ras sonoras em quadros, paisagens, ‘sentimentos’, estórias.”. Este
texto consta de sua obra já citada.
Como todo movimento revolucionário (vide o Tropicalismo, o
Formalismo russo do início deste século), a Semana de Arte Moderna
também foi um acontecimento irreversível. É precisamente, a partir de
1922, de todo o trabalho cultural realizado pelos modernistas que se
vê florescer no Brasil uma nova arte e uma nova consciência, cujos
reflexos mais claros emergem nos campos da estética e da política.
A Semana não morreu. Apenas o tempo é que passou. Suas idéias,
sua ideologia, suas concepções vararam (só a grande arte consegue
isso) o tempo e ressurgem nos anos sessenta/setenta com o movi-
mento Tropicalista. Agora, no entanto, atualizando o discurso, a lin-
guagem gestual, assumindo novos comportamentos, mas mantendo
a intenção de renovação estética da cultura musical brasileira. Agora,
os iconoclastas da cultura passadista não são mais Villa-Lobos,
Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Luciano Gallet. Coube a Gil-
berto Gil, Tom Zé, Caetano Veloso, Capinan, Torquato Neto, entre ou-
tros, realizarem a iconoclastia e retirar a música brasileira do maras-
mo em que se encontrava após a fase mais expressiva do movimento
“Bossa-Nova”. A esses artistas (modernistas de 22, da “Bossa-Nova”
– viva João Gilberto -, e do Tropicalis-mo) , devemos a beleza e o
aperfeiçoamento da estética musical brasileira. Parece até que todos
eles combinaram em levar à risca o pensamento do esteta e filósofo
austríaco Ernst Fischer, quando diz que “a função da arte não é a de
passar por portas abertas, mas a de abrir portas fechadas”. Foi preci-
samente isso o que fizeram os artistas da Semana de 22, do movi-
mento “Bossa-Nova” e do Tropicalismo. Uma coisa eles têm em co-
mum: desconheciam a redundância. Sua criatividade jamais permiti-
ria “passar por portas abertas”. É provável que todos eles tivessem
consciência de que o talento é o ponto antípoda da mesmice. Por

98
9. Aspectos Sociopolíticos do Futebol Brasileiro
um breve histórico
O desenvolvimento dos esportes em nosso país, pelo menos
até nossos dias, tem sido prescindível, em face de outros problemas
considerados mais importantes. Embora polêmico (e talvez por isso
mesmo), este é um assunto recorrente nos congressos, simpósios
ou mesas-redondas que pretendem discutir o esporte brasileiro. As
opiniões são sempre divergentes. Há quem defenda a participação
ativa e direta do Estado no sentido de estimular, de algum modo, o
aprimoramento dos atletas praticantes de esportes amadores. E há,
em contrapartida, aqueles que acreditam mais no incentivo do capital
privado. As empresas, através de incentivos fiscais, investiriam no
esporte, “substituindo” a efetiva participação do Estado.Nos últimos
vinte anos (desde 1979) tem sido essa a opção brasileira. Pelo menos
em boa parte dos esportes amadores.
Analisar a questão a fundo exigiria uma discussão muito longa.
Ultrapassaria os objetivos deste ensaio. Provavelmente, e logo de iní-
cio, teríamos de pensar nas questões ideológicas que envolvem as
relações entre Estado, sociedade e capital privado. De qualquer modo,
o tema é importante e pouco estudado. Um dos primeiros trabalhos
nessa direção é do sociólogo alemão Gerhard Vinnai, intitulado
Fussballsport als Ideologie,de1970.
No Brasil, ainda em 1882, Ruy Barbosa, presidente da comis-
são estadual de ensino, enfatizou a importância da educação física no
currículo das escolas primárias. Não houve qualquer receptividade à
sua proposta. Essa atividade ficaria por conta do interesse pessoal de
alguns poucos brasileiros que já haviam estudado na Europa, onde
adquiriram o hábito do exercício físico. Ao lado deles, deve-se regis-
trar ainda a voluntariedade de imigrantes italianos, portugueses, espa-
nhóis, entre outros. Esse estímulo, no entanto, não bastaria. Não con-
seguiria sensibilizar o brasileiro a praticar exercícios físicos de forma
mais sistemática. Tanto é assim que, só em 1888, surgiu no Rio Grande
do Sul o primeiro clube de regatas do Brasil. Sete anos depois, em
1895, se realizavam, no Rio de Janeiro, as primeiras competições de
natação e corridas de bicicletas.
Aqui, só tomaríamos contato com o football em 1894. Charles
W. Miller, brasileiro filho de ingleses, estudava em Londres. Ao voltar
para o Brasil (São Paulo), em sua bagagem trouxe uma bola de fute-
bol. Praticante e entusiasta desse esporte, Charles Miller tratou de
99
difundi-lo entre os ingleses residentes em São Paulo que se interes-
savam mais pelo jogo de cricket. Aos poucos, porém, os ingleses,
altos funcionários da Companhia de Gás, do Banco de Londres e da
São Paulo Railway iriam aderir ao futebol. Assim é que o São Paulo
Athletic Club, fundado especialmente para a prática do cricket, intro-
duziria, em seu espaço lúdico, em 1887, a nova modalidade esportiva
importada por Charles Miller. 0 primeiro “grande” jogo foi realizado em
São Paulo, em 1899, na presença de 60 torcedores. Um aconteci-
mento singular. Os adversários eram um time de funcionários da Em-
presa Nobiling, contra os ingleses da Companhia de Gás,da SãoPaulo
Railway e do Banco de Londres. O resultado final era previsível: 1x 0
para os ingleses.
Ao contrário do que possa hoje parecer, o futebol brasileiro nas-
ceu e se desenvolveu entre a elite. Os colégios grã-finos, tanto do Rio
de Janeiro quanto de São Paulo, passariam, a partir da primeira déca-
da deste século, a adotar o futebol como forma de recreação para
seus alunos. É o caso do AngloBrasileiro, dos colégios militares, en-
tre outros. Por se tratar de um esporte elitizado, que dava status, os
próprios pais de alunos faziam um tipo de pressão para que os colégi-
os incluíssem o futebol nas práticas esportivas. Surgiriam, a partir daí,
bons jogadores que logo se integrariam aos clubes das tradicionais
famílias. O Clube Athlético Payssandu (Rio de Janeiro), o Germânia
(atual Pinheiros), o São Paulo Athletic, entre outros. Rapidamente, o
futebol se propagaria por São Paulo e Rio de Janeiro. Em 1903, os
aristocratas do café, da Associação Athlética Ponte Preta, formam o
que seria o primeiro time de futebol organizado do Brasil, segundo
registros oficiais da CBF Confederação Brasileira de Futebol. Surgem
também, na década de 10, o The Bangu AthIetic Club, o Carioca, o
Andaraí, o Mangueira, o Fluminense, o Vila Isabel e o Sport Club
Corinthians Paulista. Bangu e Fluminense merecem
destaque,justamente por suas oposições no quadro social. Se este
último corroborava a tradição elitizante do futebol em nosso país, lo-
calizado no elegante bairro do Retiro da Guanabara, o mesmo já não
acontecia com o The Bangu Athletic Club, apesar.da “nobreza” do
nome escrito em inglês. Ainda que fundado por altos funcionários in-
gleses da Cia. Progresso Industrial do Brasil, o Bangu, pela própria
condição geográfica, sempre teve tendências proletárias. Localizada
na periferia distante, num bairro proletário, a Cia. Progresso iria esti-
mular o futebol entre seus executivos, como forma de lazer. Mas,
como formar dois times para competirem, se o número de funcionári-
os mais graduados e interessados nesse esporte não chegava a tan-
to? A alternativa seria aceitar operários para completar as duas es-
quadras. 0 critério de escolha, para isso, obedecia a algumas exigên-
cias administrativas na empresa, tais como: o desempenho profissio-
nal, o tempo de serviço e o comportamento pessoal. Surgiria, assim,
o primeiro time de futebol no Brasil não inteiramente elitizado. Mas,
como se vê, por questões meramente circunstanciais. Desse contex-
to surgiria, mais tarde, o time proletário do Bangu.

100
O privilégio de ser escolhido criaria uma nova categoria profissi-
onal de operário que, a partir de agora, chamaremos de “operário-
jogador”. Eles formariam a “elite operária do futebol” e teriam algumas
regalias por isso: passariam a fazer um trabalho mais leve, para que
sua energia se concentrasse também no futebol. Nos dias de treinos
poderiam deixar o serviço mais cedo. Quase sempre os operários
jogadores eram mais rapidamente promovidos. Em suma, eles eram
discretamente protegidos pela diretoria da empresa. 0 contato mais
informal no campo de futebol com os altos funcionários ingleses pode-
ria também se converter numa vantagem a mais. Mas, em pouco tem-
po, com a contínua popularização do futebol, o time do Bangu se
tornaria mais conhecido que a própria Cia. Progresso. Apartir daí, o
The Bangu passaria a ser também eficiente veículo de publicidade da
companhia inglesa. Os operários jogadores já não eram apenas al-
guns trabalhadores a mais. Pelas circunstâncias e em face da cres-
cente popularidade do futebol, eles seriam transformados também em
eficiente veículo de divulgação da empresa. Nas excursões que fazi-
am para jogar em outras cidades, a presença de operários criava uma
imagem simpática do time e, por extensão, da própria empresa junto
ao público.
Desse modo pode-se pensar hoje que existiu no Bangu, no
início da sua história, uma espécie de “elite operária do futebol”. Os
notórios privilégios por integrar a equipe da Cia Progresso criavam
uma verdadeira luta silenciosa entre os trabalhadores. Tornar-se joga-
dor significava também a garantia do emprego. Nessa época, como
em nossos dias, a economia já era débil. A industrialização durante
toda a Velha República praticamente inexistia. Mesmo com a aboli-
ção da escravatura, um dos principais entraves ao desenvolvimento do
capitalismo no Brasil, pouca coisa mudaria no tocante à produção
industrial. Vivíamos a passagem do artesanato à manufatura. Este
sim, e apesar de tudo, um momento relativamente significativo. A pro-
dução e o consumo causariam certo impacto sobre outros segmentos
da economia e, por decorrência, na estrutura social. Não obstante, a
forçade trabalho nativa, composta em sua maioria de homens
despreparados, não tinha como competir com a mão-de-obra imigran-
te que aqui chegava. Como diz o brasilianista Warren Dean, “os imi-
grantes, freqüentemente mais alfabetizados do que a classe brasileira
inferior, trouxeram habilidades manuais e técnicas que raro se encon-
travam no Brasil” 1. A estrutura econômica do país, pode-se ver, não
tinha como absorver a força de trabalho disponível. Vivíamos, funda-
mentalmente, da monocultura cafeeira e de uma economia agrária
pouco expressiva. 0 processo de industrialização só surgiria mesmo,
de forma mais sistemática, a partir dos anos 30.
Nesse aspecto, a Cia. Progresso tem um caráter duplamente
pioneiro. Foi uma das primeiras indústrias de manufatura têxtil do país,
quando ainda não se pensava objetivamente numa política industrial.
1
Warren Dean, “A Indústrialização Durante a República Velha”, in Boris Fausto (org.)
História Geral da Civilização Brasileira, Tomo III, volume 8, o Brasil Republicano, São
Paulo, Difel, 1985, p.252.
101
Além disso, transformou a imagem da empresa numa instituição vito-
riosa, graças as conquistas do Bangu nos campos de futebol. A popu-
lação associava os tecidos Bangu (era esse o nome da produção
têxtil da Cia. Progresso) ao vitorioso time de futebol.
Dos fatos acima emergem algumas questões quanto à demo-
cratização do futebol no Brasil originar-se no Bangu. A grande contri-
buição, volto a repetir, foi o aspecto geográfico. Não fosse este clube
localizado no longínquo subúrbio carioca e sim mais próximo da cida-
de, ou dos outros clubes de elite, dificilmente teríamos operarios, jun-
tamente com executivos ingleses, vestindo a camisa do mesmo time.
Segundo Anatol Rosenfeld, há ainda outro aspecto para a democrati-
zação do futebol no Bangu: a própria produção industrial da empresa.
Para ele, o lazer através do futebol seria o estimulante para o aumento
da produção da empresa. Os ingleses “ viram-se obrigados a recorrer
aos operarios da fábrica, estimulados pela direção esclarecida, que
provavelmente soubera que os fabricantes de tecidos ingleses na
Rússia fomentavam o futebol entre os turnos para animar sua disposi-
ção ao trabalho e seu “esprit de corps” 2. De fato, a partir de 1908, os
operários passariam a treinar regularmente no campo da empresa.
Em pouco tempo, a esquadra banguense já estava formada exclusiva-
mente de operários. O time passaria a representar prestígio para a
fábrica, o que obrigaria o bom senso de seus diretores a dar ainda
mais atenção ao futebol. Ao mesmo tempo e aos poucos, os executi-
vos ingleses começavam a ceder seu lugar no time para o operário
mais habilidoso com a bola. E ao contrário de outros times da elite
carioca, o Bangu era o único que aceitava negros. Mesmo assim,
com algumas restrições, como mostra Mário Filho ao se reportar a
esquadras como Botafogo e Fluminense:
“O jogador preto não podia aprender com o professor. Só jogan-
do no The Bangu, só sendo operário da Cia. Progresso Industrial do
Brasil. E assim mesmo um ou outro. O The Bangu deixando preto
entrar no time, não fazendo questão de cor, de raça, mas não exage-
rando” 3.

a luta política pelo profissionalismo


Mas, a partir da segunda metade dos anos 20, com a crescen-
te popularização do futeboi, surgiriam os primeiros grandes impasses.
A frágil democracia banguense estava seriamente comprometida. Al-
gumas contradições precisariam ser resolvidas, mas envolviam ques-
tões sociais e políticas difíceis de serem contornadas. Dessas
destacam-se:
I. Apesar da popularização espontânea do futebol, alguns clubes do
Rio e de São Paulo relutavam em aceitá-la, boicotando qualquer medi-
da administrativa nessa direção;
2
Anatol Rosenfeld, “O Futebol no Brasil”, in Revista Argumento nº 4, Rio de Janeiro,
Editora Paz e Terra, 1973, p. 67.
3
Mario Filho, O Negro no Futebol Brasileiro, Rio de Janeiro, Editora Civilização
Brasileira, 1964, p. 60.

102
lI. Tanto jogadores e público pertenciam às classes mais abastadas.
Assim, não haveria motivos para se profissionalizar esse esporte. Afi-
nal, o futebol poderia se manter só com a venda dos ingressos ao
público elitizado;
III. Os clubes de subúrbio, portanto não elitizados, começavam a “rou-
bar” o espetáculo, apresentando bons jogadores. 0 Vasco da Gama,
por exemplo, já levava pequenas multidões aos seus jogos;
IV. Mas o maior impasse era profissionalizar ou não o futebol.
Por mais que se relutasse, que alguns presidentes de clubes
como Fluminense, Botafogo, Flamengo (Rio), C. A. Paulistano, S. C.
Corinthians, S. C. Germânia (SP) tentassem impedir a trajetória natu-
ral do nosso futebol para o profissionalismo, o máximo que consegui-
riam seria mesmo adiá-la por algum tempo. A antiga CBD, fundada a
6 de novembro de 1916, fazia o jogo de interesses das agremiações
elitistas. Os presidentes de clubes, em sua maioria políticos profissi-
onais, ficariam em situação difícil. Se apoiassem a profissionalização,
certamente perderiam o apoio político de parte da elite que não a
desejava. Apoiando-a, tornariam sua imagem mais simpática aos elei-
tores. Os outros estados ainda eram inexpressivos e sem força políti-
ca para se manifestarem. Pela primeira vez, surge a figura do cartola
que, já naquela época, trabalhava muito mais pelo jogo de interesses
pessoais e muito menos pelo futebol. A maior parte da imprensa era
favorável ao profissionalismo. Contra o que os jornalistas chamavam
de “profissionalismo marrom”. Mas se oficialmente o futebol ainda era
amador, oficiosamente já havia pagamentos a jogadores. Isso carac-
terizava um tipo de futebol semiprofissional que só interessava aos
clubes. Enquanto as arrecadações nos estádios aumentavam e enri-
queciam ainda mais as agremiações, os jogadores permaneciam na
mesma situação de explorados e sem nenhum direito. Sub-emprega-
do, mas na esperança de profissionalizar-se, ele ficaria à mercê da
sua sorte, de não sofrer acidentes de trabalho mais sérios e da even-
tual honestidade dos presidentes de clubes que, como registra a pró-
pria história do nosso futebol, com algumas exceções, exploravam a
ignorância e a subserviência do seu jogador, em troca de salários
irrisórios ou de emprego sem nenhuma garantia. Não por acaso, os
jogadores mais explorados eram, ao mesmo tempo, os que mais te-
miam reivindicar qualquer direito como jogador. Embora fosse em al-
guns casos, sua única profissão, a verdade é que, formalmente, ele
não tinha direito algum. 0 futebol era oficialmente reconhecido como
uma atividade esportiva para amadores. Do ponto de vista jurídico isso
era uma farsa. Era esconder uma realidade e a falta de ética profissi-
onal por trás da formalidade da lei e de suas imperfeições. Era este o
quadro do futebol brasileiro até início dos anos 30. Um
semiprofissionalismo de mão única. Só os clubes ganhavam dinheiro
com as arrecadações.
A situação, porém, iria se modificar a partir desse momento.
Começa o êxodo de jogadores brasileiros para a Europa e alguns
países sul-americanos. Os motivos para deixarem o Brasil eram sem-
pre os mesmos: o falso amadorismo e a conseqüente exploração do
103
seu trabalho. Em depoimento esclarecedor, o jogador Amilcar Barbuy
torna-se uma espécie de porta-voz do que a maioria dos seus colegas
gostaria de poder falar.
“Vou para a Itália. Cansei de ser amador no futebol onde essa condi-
ção há muito deixou de existir, maculada pelo regime hipócrita da
gorjeta que os clubes dão aos seus jogadores, reservando-se para si
o grosso das rendas. Os clubes enriqueceram e eu não tenho nada.
Vou para o país onde sabem remunerar a capacidade do jogador” 4.
A contrapartida, nesses casos, era a indignação dos. cartolas
0 sr. Rivadávia Meyer, presidente do Flamengo e da AMEA (Associa-
ção Metropolitana de Esportes Attiléticos), forte defensor do
amadorismo, não admitia o direito e o desejo dos atletas de se
profissionalizarem. Certa ocasião, o sr. Meyer reagiria violentamente
ao ser entrevistado pelojornal Diário Carioca, em 26 de janeiro de 1932:
“Eu considero o jogador que quer se profissionalizar como um
gigolô que explora a prostituta. 0 clube lhe dá todo o material neces-
sário para jogar e se divertir com a pelota e ainda quer dinheiro? Isso
eu não permitirei no Flamengo. O profissionalismo avilta o homem”.
Enquanto isso, no plano político, o país emergia de uma grave
crise. A 24 de outubro de 1930, as tropas militares cercam o Palácio
do Catete e obrigam o presidente Washington Luis a renunciar. A 4 de
novembro, toma posse Getúlio Vargas, encerrando o período da cha-
mada Velha República (1889-1930) e iniciando a Segunda República.
Ao assumir o governo, o novo presidente apresenta seu projeto para
melhorar o país, intitulado “Programa de Reconstrução Nacional”, do
qual constavam dezessete itens destacando as medidas mais urgen-
tes e de aplicação imediata. Isso foi muito bom para o atleta e o
futebol brasileiro. 0 próprio Estado, através da sua política trabalhista,
iria liquidar com as pretensões dos cartolas conservadores em manter
o amadorismo no nosso futebol. O item 15 do programa é importante
nesse sentido. Seu texto fala em “instituir o Ministério do Trabalho,
destinado a superintender a questão social, o amparo e a defesa do
operariado urbano e rural”. Estava dado o pontapé inicial para a poste-
rior regulamentação do futebolista em 1933. Embora não fosse reco-
nhecida, mas apenas regulamentada, a profissão se caracterizava por
uma situação de fato. A Legislação Social e Trabalhista de Vargas
iria, de 1930 a 1936, regulamentar algumas profissões até então nun-
ca cogitadas nesse sentido. 0 futebol, como já se esperava, entraria
nessa lista. Isso não significava regulamentação automática, mas o
caminho estava oficialmente aberto para as negociações. Assim é
que, dois anos depois, em 23 de janeiro de 1933, estaria definitiva
mente implantado o futebol profissional no Brasil, em que pese o com-
portamento amador de muitos dirigentes até hoje. Destaque-se, aqui,
um aspecto significativo: reitera-se com a profissionalização nos anos
30 o caráter de união e de identidade nacional através do futebol que,
4
O jogador de futebol dessa época. Floriano Peixoto Corrêa, em seu livro Grandezas
e Misérias do Nosso Futebol (Rio de Janeiro, Hermano Editores 1933), faz um longo
relato dos constrangimentos por que passava o jogador da periferia ao integrar-se aos
clubes de grã-finos.

104
a essa altura, já estava definitivamente incorporado à cultura lúdica
brasileira.
o futebol e a política hoje
E justamente por ter se tornado, ao longo do tempo, um produto cultu-
ral de massa em nosso país, esse esporte, como todo fenômeno so-
cial de grande alcance, tem sido sistematicamente tema de debates
em todos os veículos de comunicação. E nessas condições, não fal-
tam as opiniões e as análises de cunho político, social, econômico e
até ideológico. Visto como atividade lúdica, alguns analistas atribuem
ao futebol a perigosa função de desviar a sociedade de seus proble-
mas prioritários como, por exemplo, o desemprego, a má distribuição
de renda, a injustiça social, as precárias condições de vida de deter-
minados segmentos da sociedade e até dos debates acerca da revi-
são constitucional e da corrupção que é a tônica recorrente em nosso
país. O brasilianista Robert M. Levine é partidário dessa concepção.
Para ele o futebol não é só o “ópio do povo brasileiro”, como ainda
serve de instrumento da classe dominante para manipular as massas
como forma de sublimar a miséria e as desventuras da pobreza, atra-
vés do sucesso meteórico da conquista de um campeonato domésti-
co ou internacional. Ele considera ainda que “o significado principal do
futebol tem sido o seu uso pela elite para apoiar a ideologia oficial e
dirigir a energia social por caminhos compatíveis com os valores soci-
ais prevalecentes” 5. Permito-me discordar dessas opiniões, que con-
tam, aliás, com muitos adeptos, por entender que a questão não se
coloca exatamente nesses termos. A rigor, todo fenômeno social de
grande ressonância popular (no Brasil, o carnaval e o futebol) possui,
sem dúvida, importância política e social incontestável. Esses ele-
mentos, porém, não nos autorizam atribuir automaticamente um cará-
ter reificador embutido nessas manifestações. Transformá-las em “ópio
do povo”, em algo alienante, corresponde a ter uma visão unilateral e
maniqueísta dos processos sociais.
A questão não é bem assim. Podemos afirmar que nenhum
clube de futebol nasceu com o deliberado intuito de ludibriar os inte-
resses sociais e políticos da sociedade. Aliás, ao contrário. No Brasil,
esse esporte emana das classes dominantes, de uma elite extrema-
mente sofisticadae ávida por aprender a jogar o football introduzido
pelos ingleses como vimos. Até porque a bola era objeto importado e,
como tal, inacessível aos trabalhadores. Só mais tarde é que a dire-
ção da fábrica criaria o time operário do Bangu, com o objetivo de
aumentar a produção industrial. Esse fenômeno talvez se circunscre-
va na idéia de que o futebol teria desempenhado função narcotizante
para incentivar a produção. Isso é possível, claro, mas é um expedien-
te que, indistintamente, todo sistema político usa e, além disso, é
uma questão evidentemente óbvia; se houver saúde física, corporal,
certamente a produção tenderá a aumentar.
5
Robert M. Levine, “Esporte e Sociedade”, in J. S. Wittere e J. C. S. B.
Meihy (orgs.), Futebol e Cultura, São Paulo, Publicação IMESP/DAESP,
1982, p. 23.

105
Aparece aqui a conhecida formulação do marxismo vulgar de
que o futebol, como qualquer outro esporte, estaria, nessas condi-
ções, submetendo a força de trabalho à tirania do capital. Desse fato
decorreria, então, o rígido controle social empreendido pela classe
dominante e a conseqüente manutenção do “establishment”. Pesso-
almente, vejo o problema de forma diferente. Entendo que o futebol,
como qualquer outro esporte, não deve ser interpretado de forma line-
ar. Qualquer análise ideológica que se quiser fazer do futebol de modo
geral, e do futebol brasileiro em particular, não deve deixar de lado o
seguinte argumento: não é o futebol em si nem enquanto manifesta-
ção lúdica nacionalmente consagrada que aliena, que desvia a socie-
dade dos seus problemas mais urgentes. Esse fato decorre, isto sim,
do uso ideológico que o Estado possa fazer desse esporte, como faria
de qualquer outra manifestação que tivesse força popular idêntica.
Assim, fica claro o seguinte: não é o futebol enquanto tal que aliena.
Quem aliena são os governantes que, deliberadamente, usam os es-
portes de massa com objetivos políticos, quase sempre sem nenhum
escrúpulo, sem nenhuma ética. A grande meta é se manterem no
poder. Os meios para consegui-lo não são importantes. Podem ser
todos ou apenas um, não interessa. Interessa o poder.
Nesse sentido é que se torna improcedente, em nosso país, o
caráter alienante atribuído ao futebol, especialmente a partir do início
dos anos 70, quando coincide a conquista do tricampeonato mundial
no México com o auge do autoritarismo militar personificado na figura
do presidente Emílio Médici. Se nessa época determinados segmen-
tos da sociedade brasileira se distanciaram dos seus problemas mais
prementes, a culpa não foi do futebol nem do tricampeonato. A causa
está no Estado de terror imposto aos brasileiros, cerceados em qua-
se todos os seus direitos, entre eles o direito à informação e à partici-
pação política. Em outro aspecto, acredito, isto sim, na clássica teo-
ria althusseriana dos aparelhos ideológicos de Estado. Os desportos,
entre outras coisas, integram o grupo desses aparelhos. Assim como
o Estado autoritário pode usar o futebol para corroborar ainda mais o
seu poder, no Estado democrático esse mesmo futebol pode dar ver-
dadeiras demonstrações de amor à liberdade e à democracia. Foi
isso, precisamente, o que ocorreu com a “democracia corinthiana”.
Um movimento bem pensado por seus criadores, meticulosos em suas
ações, liderado por Adilson Monteiro Alves, ex-vice-presidente de fu-
tebol do Corinthians e seus companheiros, Sócrates, Walter
Casagrande, Wladimir, Juninho e outros. Conscientes do que esta-
vam fazendo e daquilo que queriam, eles levaram o Corinthians, em
toda sua história, a atingir o mais alto grau de liberdade e de autono-
mia dos jogadores como profissionais da bola. Com uma adesão qua-
se maciça à sua causa (Biro-Biro e Leão eram contra) e o apoio exter-
no de colegas de outros clubes, a “democracia corinthiana” eliminou,
pelo menos no departamento de futebol, uma estrutura montada em
bases autoritárias, arcaicas e paternalistas, cujo resultado redundava
sempre no desrespeito ao jogador profissional.
Vale ainda registrar que na América este não é um fato isolado.
106
O futebol argentino, por inúmeras vezes, se rebelou contra a ditadura
militar e a tirania dos dirigentes de clubes. 0 sindicato dos jogadores
nesse país apoiou publicamente a concentração das mães na Plaza
de Mayo, quando reivindicavam, aos ditadores militares, a presença e
o paradeiro dos seus filhos que, na verdade, sucumbiram ao terror e à
tortura a que foram submetidos.
A “democracia corinthiana”, por sua vez, transcenderia os mu-
ros do Parque São Jorge para tornar-se um tipo de exemplo a outros
clubes que, de alguma forma e por iniciativa dos próprios jogadores,
desejavam seguir o modelo político da democracia no futebol que ha-
via dado certo em São Paulo. Foi o caso do Clube de Regatas Flamengo
que, no estádio do Maracanã, durante a campanha para as eleições
diretas em 1984, apoiou a candidatura de Tancredo Neves. Enquanto
os jogadores exibiam no gramado faixas alusivas à vitória do seu can-
didato, a torcida rubro-negra apoiava o time e o futuro presidente com
faixas como “O Fla não Malufa”. Decepcionada, porém, ficaria a torci-
da do Fluminense, quando soube que os dirigentes do clube haviam
“malufado”.
Em São Paulo, o Corinthians não só conquistava títulos de campeão
paulista, entre outros, como tinha o maciço apoio das torcidas organi-
zadas para continuar seu projeto democrático. A “democracia
corinthiana”, aliás, na pessoa de Adilson Monteiro Alves e Sócrates
foi mais longe. Juntamente com Juca Kfouri, jornalista da revista Pla-
car, elaboraram, em 1983, um documento intitulado “Profissionalismo
no Futebol e a Estrutura Atual”. Nesse ensaio eles analisam as precá-
rias condições do futebol brasileiro, suas mazelas, justamente a partir
da estrutura autoritária e arrogante que continua dominando nosso
futebol desde 1933, quando implantou-se o profissionalismo, como
vimos.
Conscientes de que a “grande paixão brasileira” deve ser discu-
tida, rearticulada e organizada de baixo para cima, os autores enten-
dem que o caminho da revolução e da redenção do nosso futebol só
será possível via poder Legislativo, quando houver inteira e total
reformulação das leis caducas e desconexas com nossa realidade,
embora continuem arbitrando nosso futebol. Por isso, justamente, é
que este documento foi apresentado à Comissão Parlamentar Perma-
nente de Esportes e Turismo, que vinha promovendo ciclos de deba-
tes sobre a realidade do desporto nacional. 0 objetivo dos autores do
documento era dar sua contribuição para aprimorar, democratizar e
tornar o futebol brasileiro mais humano, não só ao seu profissional,
mas também ao torcedor, principal responsável por sua existência.
Na ocasião, o deputado Márcio Braga coordenava a Comissão de
Estudos de Esportes da Câmara Federal em Brasília. A seu convite
Sócrates, entre outros esportistas ligados ao futebol, prestou depoi-
mentos sobre a situação desse esporte em nosso país. Como este
documento ficou circunscrito a um reduzido número de profissionais e
interessados no tema e não chegou a ser editado, vale a pena citar
um pequeno trecho onde se esclarece bem a contribuição dos auto-
res:
107
“A maneira de entregar o futebol para a sociedade não é tão
difícil, embora trabalhosa. Propomos, para enriquecimentos posterio-
res, uma fórmula consagrada em qualquer regime de liberdade. Uma
fórmula que passe por um poder Legislativo representado pelos Con-
selhos Deliberativos dos clubes e pelo CND, por um poder Executivo
representado pela Diretoria dos clubes, das Federações e pela CBF, e
um poder Judiciário cujas instâncias seriam a Justiça Esportiva como
ramo da Justiça Comum e um Tribunal de Contas Desportivo. Tudo
isso como resultado de uma estrutura democrática em que, no poder
Legislativo, os Conselhos Deliberativos fossem eleitos pelos sócios
dos clubes e o CND pelos presidentes dos Conselhos com votos pon-
derados, ou seja, de acordo com o número de eleitores de cada clube.
Da mesma maneira se procederia em relação ao poder Executivo,
onde as diretorias seriam eleitas por voto direto dos sócios dos clu-
bes, as diretorias das Federações pelos presidentes dos clubes com
votos ponderados e a CBF pelos presidentes das Federações com
votos também ponderados, garantindo-se desse modo, em todos
osníveis, a real representatividade de cada clube e Federação”.
O Congresso Nacional, por sua vez, jamais se manifestou so-
bre o documento, nem sobre o trabalho realizado pela Comissão de
Estudos de Esportes da Câmara Federal, apesar dos insistentes ape-
los do deputado Márcio Braga. Há nos meios esportivos (especial-
mente no futebol profissional) a expectativa de que o assunto volte à
tona com o “Projeto Zico” e a revisão da Constituição, se ela sobrevi-
ver.
De qualquer modo, o fato é que a experiência da “democracia
corinthiana” trouxe efeitos significativos, deixando de ser um aconte-
cimento isolado para se tornar um movimento mais abrangente. É
importante notar que os Sindicatos dos Atletas do Futebol Profissio-
nal de São Paulo e do Rio de Janeiro têm aumentado consideravel-
mente o número de associados. Quando menos, reflete interesse e
uma convergência maior desses profissionais, que realmente pare-
cem agora estar empenhados em sanar pelo menos parte dos proble-
mas inerentes à sua categoria profissional. Esta política sindical, no
entanto, é apenas parte integrante de um contexto político maior em
que atua o próprio sindicato e alguns de seus associados. Em São
Paulo, durante a última campanha política para a Prefeitura, ficou im-
plícito o apoio deste sindicato ao candidato do Partido dos Trabalha-
dores.
Hoje, apesar de ainda não terem uma visão crítica mais apura-
da dos problemas que envolvem o atleta profissional e o futebol brasi-
leiro, os jogadores têm procurado os sindicatos. Principalmente em
São Paulo e Rio de Janeiro. Certa ocasião conversando com Sócrates,
em 1986, ele me citou alguns dados impressionantes: dos 4.200 joga-
dores de futebol profissional no estado de São Paulo, apenas 920
eram sindicalizados. Pior do que isso, porém, foram os dados citados
em seu depoimento ao jornalista Oswaldo Mendes, da Folha de S.
Paulo. Falando sobre o declínio qualitativo do futebol como espetácu-
lo, ele deixa de lado, intencionalmente, as razões estruturais ligadas
108
à política dos dirigentes de clubes e das federações para fixar seu
comentário sobre a condição humana do jogador: “É preciso não es-
quecer que, no Brasil, mais de 60% dos jogadores de futebol ganham
menos que o salário mínimo. A esses jogadores não interessa dar
espetáculo, mas ganhar de qualquer jeito”.
Na verdade, Sócrates reportava-se à questão mais delicada do
futebol profissional no Brasil: como aqui esse esporte exige vitórias a
curtíssimo prazo para o atleta manter seu emprego, então ela tem que
ser conseguida ainda que para isso se use da violência e de outros
expedientes, em detrimento da qualidade do espetáculo. Além disso,
alguns jovens jogadores, esperançosos de se transferirem para gran-
des clubes, para a “vitrine” do futebol, como são conhecidos os cen-
tros de São Paulo e Rio, preferem vender sua força de trabalho por um
preço insignificante e se manterem explorados pelos clubes à espera
de uma grande oportunidade. Essa questão desmistificaria a falsa
imagem de que o jogador de futebol no Brasil é muito bem pago. Isso
não é verdade. Ao contrário, ele hoje (e sempre foi assim) é tão mal
pago quanto qualquer outra categoria profissional. 0 que ocorre, isto
sim, é que a elite do nosso futebol realmente realiza bons contratos
de trabalho. Mesmo assim, nem sempre todo o elenco de um grande
time é bem pago. Só alguns o são. Não esqueçamos, por exemplo,
que jogadores talentosos, famosos e com passagem pela seleção
brasileira como Garrincha, Tupanzinho (Palmeiras), Ipojucan e Velu-
do, entre outros, morreram miseráveis. Assim, quando falamos da
realidade econômica do jogador profissional em nosso país é neces-
sário muita cautela. Ela é bem diferente do que prevalece no senso
comum. E mais diferente ainda da realidade do jogador famoso que já
consolidou seu status de craque, e por isso mesmo “virou o jogo”
mudando a relação de dependência. Nesse estágio ele já não precisa
mais do prestígio do clube grande. Ao contrário,o clube é que precisa
dele, do seu prestígio profissional, da sua popularidade, do seu talen-
to e dos seus gols para aumentar as glórias e o lucro. Eles não têm
dificuldade na renovação de seus contratos. Os clubes, ainda que
contra a vontade de alguns diretores, terminam aceitando sua propos-
ta milionária e renovando o contrato. 0 grande jogador, até por cláusu-
la contratual, não pode ficar fora do time, a não ser em casos de
contusões muito graves. Mesmo assim, é de domínio público que, por
diversas vezes, Garrincha jogou dopado e com infiltração de fortíssimos
analgésicos no joelho direito, porque sua presença era obrigatória por
cláusula contratual. Isso abreviou a carreira futebolística do jogador
que, embora fosse um artísta genial com a bola nos pés, nunca soube
fazer bons contratos, porque sempre acreditou na boa fé dos dirigen-
tes.
Nesses termos, o nivelamento por cima que se faz da remune-
ração do jogador de futebol (falsa imagem criada pela mídia) no Brasil,
escamoteia a realidade. Hoje, com a conquista do tetra campeonato
nos Estados Unidos o futebol brasileiro mantém seu prestígio interna-
cional, embora seja visível sua implosão no âmbito doméstico, com
exceção do estado de São Paulo. Isso compromete ainda mais a
109
condição econômica do jogador. A desorganização, a falta de
profissionalismo dos dirigentes e os interesses político-partidários são
alguns dos elementos que arrebentaram com a já frágil estrutura do
nosso futebol. Os reflexos disso são: estádios vazios, evasão dos
melhores jogadores para o exterior, crise financeira dos times e a
perda de público para outros esportes de massa como o vôlei e o
basquete. Se perdessemos o tertra campeonato é possível que esta
crise crescesse ainda mais. O torcedor só aceita o título de campeão.
0 více-campeonato não interessa. No futebol em nosso país, a vonta-
de popular é esta: “se não for campeão, vice não quero ser”.
Com a democratização do país a partir de 1985 e a participação
de todos os segmentos da sociedade nesse processo, o profissional
de futebol parece, decididamente, disposto a participar politicamente,
não só dos destinos do país, mas também das questões que envol-
vem seu trabalho de atleta. Assim, certamente, ele estará ajudando a
mudar o perfil socioeconômico do jogador de futebol em nosso país.
Até então esse trabalho sobreviveu de atos isolados de alguns profis-
sionais mais conscientes que, por algum motivo e a seu modo, resol-
veram enfrentar a tirania e o autoritarismo dos dirigentes. São os ca-
sos de Afonsinho, Reinaldo, Tostão e, um pouco mais tarde, o grupo
da “democracia corinthiana”. Este último, como vimos, preocupado
com uma nova consciência política e profissional entre os jogadores.
A bem da verdade, para fazer justiça, a gênese da “democracia
corinthiana” tem muito a ver com o jogador Afonsinho. Famoso por
seu talento profissional, pela coragem com que enfrentava os dirigen-
tes e sobretudo pelas posições políticas que assumia, ele sempre
agiu com determinação. Foi, durante os anos 70, o primeiro jogador
brasileiro a questionar publicamente o sistema político (em pleno go-
verno Médici) e a denunciar a estrutura arcaica e autoritária em que
repousa até hoje nosso futebol. Estudante de Medicina e jogador do
Botafogo do Rio, ele abriu processo na Justiça do Trabalho em 1974
contra seu clube, pelo direito de negociar seu próprio passe. Essa
atitude foi um marco na conquista dos direitos do futebolista brasilei-
ro. Vitorioso na justiça, alugaria seu passe aos grandes clubes,
conclamando publicamente os demais colegas a fazerem o mesmo.
Ainda em 1974, foi convocado para integrar a seleção brasileira que
disputaria o campeonato mundial na Alemanha, mas foi cortado mais
tarde por razões políticas.
Por uma grande ironia, Afonsinho jogou ao lado de Pelé no San-
tos. Digo ironia porque Pelé sempre foi o avesso político de seu cole-
ga de clube. Em 1972, em Montevidéu, ao conceder entrevista à jorna-
lista Amália Barran do jornal La Opinión, sobre a ditadura militar no
Brasil, Pelé responde: “Não há ditadura no Brasil. O Brasil é um país
liberal, uma terra de felicidade. Somos um povo livre. Nossos dirigen-
tes sabem o que é melhor para nós e nos governam com tolerância e
patriotismo”. É provável que, passados 22 anos dessa entrevista, Pelé
pense um pouco diferente daquela época. Seu apoio ao governador
Leonel Brizola, através de propagandas pela televisão, é um bom indí-
cio. Recentemente, ao receber um prêmio da TV Bandeirantes, ele
110
fez um pronunciamento político, no qual denunciava a precária situa-
ção dos profissionais de futebol no Brasil, conclamando-os a se filiarem
ao seu sindicato para formarem uma categoria profissional politica-
mente forte. Foi esse, pelo menos, o teor geral do discurso.

111
10. O Futebol e a Cultura Brasileira:
da heterogeneidade cultural
O Brasil possui uma formação étnica e cultural bastante
diversificada. O colonizador europeu que aqui encontraria o indígena
em seu “habitat” natural, abriria caminho para o grande ciclo das mi-
grações.
Antes, porém, os portugueses trariam do continente africano, a
mão de obra escrava de que precisavam para explorar os recursos
naturais da sua nova colônia.
Assim, indígenas, europeus e africanos, ainda que em circunstâncias
e condições diferentes (colonizador versus colonizados), seriam pro-
tagonistas do que mais tarde os estudiosos chamariam de Cultura
Brasileira. 1
Heterogêneo em sua formação cultural, o Brasil apresenta ain-
da desigualdades regionais no tocante à sua economia e a distribui-
ção populacional. Enquanto o sudeste e o sul concentram a grande
força econômica do país e a maior parte da população, as demais
regiões (NE, N e CO) apresentam grandes vazios populacionais e
uma produção agro-industrial apenas sofrível. Analisando-se mais
detalhadamente a questão, chega-se mesmo a pensar na velha mas
sempre atual tese do sociólogo francês Jacques Lambert 2 sobre “Os
Dois Brasis”. A bem da verdade, os 8.511.965 km2 que totalizam a
área do país, permitem que se reconheça bem mais de dois brasis.
Do ponto de vista antropológico, podemos nomear pelo menos
três brasis: um formado pelas regiões norte e centro oeste, outro pelo
nordeste e o terceiro pelo sudeste e sul. São regiões que apresentam
poucas identidades e muitas diferenças. Culturalmente 3, por exem-
plo, elas possuem usos, costumes, tradições e comportamentos muito
diferentes. O suficiente para as percebermos separadamente, em que
pese o processo de modernização da sociedade brasileira, o desen-
volvimento das telecomunicações e a urbanização dos últimos trinta
anos. Se não tão acentuadas como antes, ainda assim as diferenças
1
A bibliografia especifica sobre o tema Cultura Brasileira é muito vasta e não cabe
neste ensaio uma discussão mais detalhada do tema. No entanto, os interessados
devem consultar algumas obras como: Gilberto Freire, Casa Grande e Senzala, Editora
José Olympio, 1978, S. Paulo; Sérgio Buarque de Hollanda, Raizes do Brasil, Editora
Brasiliense, 1980, S. Paulo; Alfredo Bosi, Cultura Brasileira, Editora Atica, 1977,
S.Paulo, entre outras
2
Lambert, Jacques. Os Dois Brasis, Cia. Editora Nacional, 1958, S.Paulo.
3
Estamos aqui pensando nas concepções de Clifford Geertz quando discute sobre as
formas de cultura em seu livro A Interpretação das Culturas

113
são notórias.
Era até previsível que a televisão pudesse ter alguma interferên-
cia nos valores culturais locais num país continental como o Brasil.
Isso realmente aconteceu e, de certo modo, ainda ocorre. Mas a meu
ver, não o suficiente para falarmos em descaracterização da cultura
regional. Não se pode falar, pelo menos até agora, no chamado fenô-
meno da estandardização da cultura com o advento da televisão via
Embratel. Não se pode negar, evidentemente, a forte presença de uma
cultura de massa.
Com a integração televisiva do país, os estudiosos da cultura e
da comunicação, passaram a se preocupar com os rumos que pode-
riam tomar a cultura regional. Com algumas exceções, o pensamento
vigente apontava para um desfecho pessimista: a pasteurização
irreversível daquela cultura.
Pois bem, ha vinte e oito anos o país está integrado pela ima-
gem eletrônica e não se pode ainda falar de transformações irreversíveis
ou radicais na cultura regional brasileira. O que se pode observar, isto
sim, é aquilo que os antropólogos chamam de “interpenetração cultu-
ral” 4, o u seja; a presença de duas culturas interagindo no mesmo
espaço. Isso no entanto, não significa, necessariamente, o desgaste
estrutural da cultura autóctone ou vice-versa 5. O que se percebe, efe-
tivamente, é a absorção de determinados valores culturais, tanto de
uma parte quanto de outra, sem que isso signifique, de fato, danos à
cultura regional. As mudanças culturais ocorreriam de qualquer forma
nessas regiões, justamente em face da própria dinâmica da socieda-
de.
Não se poderia esperar que só a sociedade mudasse e sua
cultura permanecesse a mesma. E fácil observar empiricamente como
se dá esse processo na dinâmica sociocultural. Seria, aliás, um erro
teórico, não se admitir este fato. Uma coisa é se desejar a preserva-
ção cultural de um lugar, de uma região, outra coisa é não se admitir
que esse mesmo espaço necessariamente mude no decorrer do tem-
po, com ou sem interferência externa.
De uma forma ou de outra é inegável a mudança. Este “purismo
cultural” gera, na verdade, uma espécie de conservadorismo românti-
co e retrógrado que às vezes pode obliterar novos e importantes cami-
nhos para a pesquisa antropológica.
E preciso notar que o norte e o centro-oeste do Brasil têm ainda
(não se sabe por quanto tempo) uma forte presença da cultura indíge-
na. Não só nos seus hábitos culinários (vide o mujangué, a chicha, os
refrescos de assai, patoá, biribá, tacacá, etc.), mas nas suas crenças
e festas populares. Além disso, permanece ainda, toda uma mitologia
acerca da sua cultura que continua viva nos hábitos, costumes e tra-
dições do homem amazônico 6.
4
A expressão é do antropologo M. J. Herskovits, em seu trabalho, Les Bases de
l’Anthropologie Culturelle, Paris, Payot, 1967.
5
Quando ocorre o choque entre duas culturas costuma-se chamar esse fenômeno de”
fricção cultural” .
6
Especialmente sobre essa questão convém ler a obra de Orlando Villasboas, intitulada
Xingu, Editora Brasiliense, 1984, S.Paulo.

114
Este é também o caso do nordestino que, a partir do início do
século XVII, com a importação maciça de escravos, passaria a ter
significativa influência da cultura negra. Hoje o Estado da Bahia tor-
nou-se assim uma espécie de “representante” da cultura negra no
Brasil. E de Iá, ou para Iá converge, grande parte dos chamados “mo-
vimentos negros” desse país. E, mais do que isso, a Bahia vem se
tornando ao longo dos últimos vinte anos, a mais legítima represen-
tante da cultura negra em toda a América Latina, provavelmente ao
lado de Cuba. Um fenômeno sociológico que a pesquisa sistemática
poderá explicar melhor mais à frente: não por acaso, a cidade de
Salvador tornou-se a preferida dos cantores e compositores negros de
diversas partes do mundo.
Segundo eles mesmos, seu objetivo é um contato mais estreito
com o som “afro-brasileiro”. Além de ser considerado de alta qualida-
de pelos próprios musicistas, possui a emergência e a aura de uma
cultura da negritude e grande prestígio na indústria cultural internacio-
nal. Enquanto o superstar Sting estudava os sons dos indígenas bra-
sileiros para seu novo disco, os jamaicanos Jimmy Clif e Bob Marley
e os americanos Milles Davis e Paul Simon, entre outros, faziam via-
gens de estudo e pesquisa de som da negritude baiana.
As festas populares do nordeste, entre elas o carnaval, man-
têm a tradição de toda a cultura popular da região, a despeito da
presença ostensiva da cultura televisiva. A sátira política, os bonecos
tradicionais, os mascarados, as fantasias de cangaceiros e de outros
personagens da região são destaques nessa importante festa popular
do nordeste e do Brasil. É claro que em alguns casos, como a sátira
política, as fantasias, os mascarados, etc., há sempre uma reciclagem
objetivando justamente atualizar o momento social vivido.
Na Bahia, por exemplo, o carnaval tem uma longa tradição da
cultura negra. Ha blocos muito bem organizados formados essencial-
mente de negros. São os casos dos “Filhos de Gandi” e dos “ Afoxés”.
De algum modo, portanto, a cultura popular nordestina tem se manti-
do presente, ao contrário de algumas previsões mais pessimistas de
estudiosos do tema.
O caso das regiões sudeste e sul é diferente. Por condições
históricas decorrentes do processo de colonização, essas regiões
tornaram-se as mais ricas do país. O ciclo do café, economicamente
o mais importante para o país ocorreu nessas regiões. A partir da
metade do século XIX, os imigrantes europeus (especialmente atlanto-
mediterrâneos) passaram a se concentrar nessa parte do país tornan-
do-a, já naquela época, o destaque da incipiente economia brasileira.
Por sua diversidade étnica e cultural e pela concentração da
riqueza, o sudeste e o sul apresentam características bem diferentes
das outras regiões brasileiras. O capital as desenvolveu mais, criando
um padrão de vida superior àquele encontrado no norte, centro-oeste
e nordeste. Ao mesmo tempo, essa heterogeneidade étnica e cultural
resultou numa falta de maior identidade não só com as outras regiões,
mas também entre a própria população dessa área.

115
Se, por um lado, existem algumas identidades como, por exem-
plo, oficialmente terem a mesma religião (o catolicismo) e falarem o
mesmo idioma ( o português), por outro lado, cada grupo étnico de
imigrantes preservou sua cultura, criando e vivendo nos chamados
“núcleos étnico- culturais”. São os casos dos alemães em Santa
Catarina, dos poloneses no Paraná e dos italianos e japoneses em
São Paulo. A capital do Estado (São Paulo), alias, uma metrópole de
dezesseis milhões de habitantes, com um estilo inteiramente cosmo-
polita.
Aqui está, portanto, uma rápida síntese das regiões brasileiras
e uma pequena amostra das suas diversidade culturais. A falta de
uma unidade cultural, no entanto, não ameaça a unidade territorial do
país. Até .porque, não há problemas de ordem religiosa ou racial, que
são fatores historicamente desagregadores.
Os problemas concernentes ao Brasil são aqueles já consagra-
dos na grande maioria dos países em desenvolvimento. A economia
que não vai bem, o aumento dos problemas sociais, a má distribuição
de renda, a corrupção política, entre outros que, por não terem relação
direta com o tema deste ensaio, apenas os registramos 7.

a tradição lúdica do futebol


Ao mesmo tempo, essa diversidade cultural faz do Brasil, um
país com algumas peculiaridades onde a população realmente se iden-
tifica. Nem boas nem ruins; apenas peculiaridades. Há uma certa tra-
dição da cultura lúdica nesse país. O senso comum detecta,
empiricamente, algumas sutilezas e fatos sociológicos no “jeito de
ser” do homem brasileiro que, na verdade são procedentes. E, mais
do que isso, eles têm importância fundamental na organização social
e política do país. O que se apresenta aos olhos do estrangeiro ou de
quem o desconhece “por dentro”, como simples objeto lúdico e de
mero divertimento é, na verdade, um produto da maior importância.
Não só no tocante à cultura popular brasileira (essa é a primeira leitu-
ra que se faz), mas também no que diz respeito à sua economia e
política. O que se apresenta ao leigo apenas como objeto de prazer,
de folia, de diversão, tem significados muito mais densos e profundos
do que a simples aparência. Estou pensando no carnaval, na musica
e, evidentemente, no futebol.
Mas é preciso ir por partes, até por uma questão metodológica.
A música popular, por exemplo, desde o final dos anos cinqüenta
(1957) se tornou um produto de exportação. O movimento “Bossa Nova”,
liderado por jovens compositores e cantores brasileiros, ganharia pres-
tígio nos Estados Unidos ainda nessa mesma década.
Depois de revolucionar inteiramente a música popular brasileira, espe-
cialmente no plano estético, a bossa nova emigrou para a América e,
7
A literatura cientifica sobre os problemas econômicos, políticos e sociais do Brasil é
muito vasta. Mas, para se ter uma síntese dessas questões, deve-se ler o brasilianista
Thomas Skidmore, Brasil: de Getulio a Castello, e Brasil: de Castello a Tancredo,
ambos da EditQra Paz e Terra, São Paulo.

116
obviamente, com um bom respaldo mercadológico manteve seu su-
cesso e prestígio. Logo em seguida, o mercado europeu a absorveria.
A consolidação desse sucesso, no entanto, está estreitamente ligada
às transmissões televisivas do carnaval carioca para diversos países
do mundo. A somatória do sucesso da bossa nova, com a batucada
dos sambistas, o remelexo da mulata e a alegria dos foliões carnava-
lescos, projetaram a música popular brasileira como imagem e perso-
nalidade do seu país. O que é verdade, em grande parte, e exagero
sensacionalista em alguns aspectos.
Tomemos o carnaval como exemplo. Não há dúvida de que o
povo brasileiro tem mesmo um certo pendor pela gestualidade corpo-
ral 8. Há até uma explicação histórica a antropológica para isso. A
miscigenação de três etnias, quando menos, já é algo peculiar. Mais
do que isso, no entanto, é notar que índios e negros (cafuso) têm
importância fundamental na formação étnica e cultural brasileira.
São duas civilizações que sempre viveram numa cultura libertária.
Entre eles a expressão corporal tem outra conotação, que não aquela
da civilização branca, onde o corpo passou a ser instrumento de re-
pressão e de dominação. O catolicismo e o branco é que, por conta
do seu autoritarismo colonizador, fizeram negros e índios se vestirem.
Alias, foram mais longe. Obliteraram parte de suas culturas, proibindo
as chamadas “danças profanas” como, por exemplo, o Lundu, por as
considerarem imorais e, portanto, ofensivas e incompatíveis com a
nova moral social vigente do colonizador ocidental.
E inegável que essas civilizações possuem uma estética cor-
poral particular. Original. Para elas a nudez nunca teve um caráter
libidinoso, muito menos de permissividade sexual. Só passaria a ter
para aqueles “aculturados” que iriam trabalhar como mão-de-obra es-
crava.
Pois bem, essa cultura libertária e a estética corporal
desreprimida, têm muito a ver com o homem brasileiro, seu herdeiro
direto. Assim é possível entender sua linguagem corporal. A
manemolência de que fala o sociólogo Gilberto Freyre, o gingado que
é, alias, uma das suas características coletivas, o remelexo da mula-
ta, enfim, toda uma gestualidade transposta para o seu cotidiano,
para sua cultura lúdica como a música, o carnaval e o futebol. Basta
ver, por exemplo, as apresentações das Escolas de Samba ou de
partidas de futebol. Há nesse esporte, evidentemente, aqueles que
transcendem qualquer previsão das características aqui apresenta-
das. São os casos de Garrincha, Canhoteiro, Pelé, Rivelino, Tostão e
Romário, entre outros. Voltaremos a falar deles mais adiante.
Quando me reportei ao exagero sensacionalista, estava pen-
sando nos desfiles carnavalescos. Por seu prestígio internacional, esta
festa popular brasileira é transmitida ao vivo, do Rio de Janeiro, para
alguns países da Europa e da América, mas também para todo o
8
Sobre esse tema convém consultar os livros de Câmara Cascudo, Historia dos Nossos
Gestos, Editora Itatiaia, Belo Horizonte, 1988 e o prefacio que o sociólogo Gilberto
Freyre fez para o livro de Mario Filho, O Negro no Futebol Brasileiro, Editora Civilização
Brasileira, Rio de Janeiro, 1964.

117
Brasil em cadeia de televisão. Fala-se muito da pouca roupa usada
pelos foliões brasileiros, especialmente as mulheres.
Ora, é preciso analisar com muita cautela essa questão para evitar os
estereótipos. Nessa época é verão no Brasil, e a temperatura no Rio
de Janeiro chega com facilidade aos quarenta graus. Esse não é,
evidentemente, o motivo do uso de pouca roupa. De qualquer modo,
mas também por ser habitual, este é um período de altas temperatu-
ras no país, e os brasileiros costumam usar roupas leves, curtas e,
em alguns casos, até transparentes. É época de férias e o país vive
um clima de festa pré-carnavalesco, carnavalesco e após o carnaval,
por pouco tempo, em que pese os problemas econômicos, políticos e
sociais que, a rigor , infelizmente, já fazem parte do cotidiano brasilei-
ro.
Para Iá afluem milhares de turistas de todo o mundo, para par-
ticiparem do carnaval diretamente ou, quando menos, como especta-
dores. Por se tratar da mais importante festa popular do país, o gover-
no decreta sempre dois dias de feriado para que os foliões possam
brincar à vontade. De norte a sul, de leste a oeste, todo o país está em
festa durante os quatro dias de carnaval. São quatro dias porque essa
festa começa no sábado e, oficialmente, só termina na terça feira
seguinte. Tanto no carnaval de rua, quanto no de salão, cantam-se as
modinhas carnavalescas, pula-se, grita-se e bebe-se à vontade. É a
própria catarse coletiva.
Nesse tipo de carnaval mais “doméstico” não se vê muitos foli-
ões com pouca roupa. O exagero sensacionalista a que me refiro
ocorre nas Escolas de Samba, uma espécie de “cartão de visita” do
carnaval brasileiro. Diferente do carnaval de salão e de rua, onde há
um alto grau de sociabilidade e de solidariedade 9, o carnaval das Es-
colas de Samba é um tipo de empreendimento bastante
profissionalizado. É uma espécie de “carnaval empresa” cujo objetivo
é, entre outros, estimular a indústria do turismo no país.
A nudez que se vê nas Escolas de Samba não é a regra geral.
Ela é a exceção localizada que caracteriza o seu tipo de carnaval,
cujo objetivo é manter a antiga e desgastada imagem da “sensualida-
de” da mulata brasileira. É uma estratégia de marketing da qual o
governo e as próprias Escolas não prescindem. Mesmo nas Escolas
de Samba a nudez aparece em poucas alas 10. A televisão, como de
resto a maior parte da grande imprensa, à procura de audiência e de
vender mais jornais e revistas, concentram boa parte das atenções
nas mulheres que desfilam semi-nuas. Este é o exagero sensaciona-
lista a que me refiro: concentrar as atenções na nudez que é uma
exceção e passar a falsa idéia de regra geral.
Não há, no entanto, por que contestar a nudez das mulatas. Afinal,
como já disse anteriormente, há toda uma tradição cultural por detrás
9
O livro da socióloga Maria Isaura Pereira de Queiroz, O Carnaval Brasileiro, Editora
Brasiliense, 1992, analisa com detalhes e precisão a importância social do carnaval
brasileiro.
10
Ala é a denominação que se da a cada parle da Escola de Samba que pode
apresentar quantas quiser. Algumas dessas Escolas chegam a desfilar com até cinco
mil foliões.
118
dessa nudez que precisa ser entendida na sua lógica interna, no pla-
no da sua tradição mesmo. Já é algo internalizado à cultura lúdica do
país. Foi isso o que procurei mostrar um pouco antes, de modo mais
resumido.
Por outro lado, discordo, isto sim, da exploração mercadológica
dessa imagem que a transforma em mero objeto de consumo visual,
banalizando sua sexualidade e, por extensão, a própria imagem da
mulher brasileira. É como se a sexualidade no Brasil fôsse hoje um
produto a mais de consumo.
Nesse sentido, aliás, o governo federal, através da Embratur -
Empresa Brasileira de Turismo, tem contribuído para a divulgação dessa
falsa imagem. Em 1989, foram distribuídos cartazes por toda a Euro-
pa e a América, estimulando o turista a passar suas férias no Brasil.
O cartaz encaminhado pela Embratur trazia uma mulher deitada de
bunda para cima, na praia de Copacabana com um olhar insinuante,
lânguido, vestida num maiô “fio dental”. O texto, escrito em vários
idiomas, convidava elegantemente o turista a visitar o Brasil. É claro
que a intenção do governo era estimular o turismo internacional no
país, e não banalizar a imagem da mulher brasileira. Mas o cartaz
também permite outra leitura que vai ao encontro dessa última obser-
vação. Alias, se bem analisado, ele permite diversas leituras. Uma
das possíveis é esta que mencionei.
o futebol
Pois volto a dizer: se a música popular, o carnaval e o futebol
podem parecer ao leigo apenas objetos de prazer e de folia, no Brasil
e para os brasileiros, eles estão muito além das aparências. Estão,
na verdade, na essência do seu povo.
Por outro lado, é certo e sabido que este país não possui tradi-
ção nas competições esportivas, a não ser no futebol. A explicação
para isso vem de longe e data ainda do século XIX quando, em 1882,
Rui Barbosa, chefe da Comissão Nacional de Ensino tenta, sem su-
cesso, introduzir a educação física no currículo das escolas primári-
as. A partir daí, esta atividade ficaria à mercê de alguns imigrantes
europeus que Iá chegavam e da voluntariedade de um reduzido nume-
ro de brasileiros que havia estudado na Europa e adquirido o hábito de
praticar esportes.
Foi assim, por exemplo, que apareceu o futebol no Brasil em
1894. Charles W. Miller, brasileiro de origem familiar inglesa, ao voltar
de suas férias na Inglaterra, trouxe uma bola de futebol em sua baga-
gem. Em São Paulo, ao lado do alemão Hans Nobiling que chegara ao
Brasil em 1897, passariam os dois a organizar competições entre
seus amigos no campo de rugby do São Paulo Athletic e no Velódro-
mo. Concretizava-se, dessa forma, a importação do assim chamado “
esporte bretão “ 11.
No início, mas por pouco tempo, o futebol ficaria restrito aos
11
O professor e historiador Alfred Wahl, da Universidade de Metz, em seu livro, La
Baile au Pied, Edition Gallimard, 1990, Paris, faz uma trajetoria muito interessante
sobre a historia do futebol no mundo.

119
jovens da elite de São Paulo e do Rio de Janeiro. Os colégios grã-finos
que podiam importar material esportivo como o Anglo-Brasileiro, os
Colégios Militares e o Alfredo Gomes, logo incorporaram o futebol nas
atividades físicas dos seus alunos. Era daí que saiam os jogadores
para se integrarem aos clubes da época como, o Paissandú (Rio de
Janeiro), Germânia (atual Pinheiros), São Paulo Athletic, entre outros.
Em 1899, em São Paulo, ocorre o primeiro “grande” jogo. Havi-
am sessenta torcedores. Um público considerável, se levarmos em
conta o quase total desconhecimento do futebol no Brasil. Jogaram
os altos funcionários da Empresa Nobiling, contra os ingleses que
trabalhavam na Companhia de Gás, Estrada de Ferro e no Banco de
Londres. Venceram os ingleses.
Mas, se no início o futebol no Brasil teve um caráter essencial-
mente elitista, os motivos o justificam. E preciso ver que os ingleses,
introdutores desse esporte neste país, integravam a elite da socieda-
de paulistana e carioca. Só eles, e os brasileiros ricos, tinham acesso
à pratica do futebol. Quase todo o material necessário era importado e
muito caro. Não bastassem os empecilhos econômicos, os precon-
ceitos social e racial reiteravam de forma categórica o elitismo.
Esta foi uma das características do futebol brasileiro até início
dos anos quarenta. Apesar da evidente popularização desse esporte,
boa parte da elite burguesa não aceitava subalternos nem negros no
seu time. E mais do que isso, a própria classe dirigente do futebol
estimulava a discriminação social e racial. Tanto em São Paulo, quan-
to no Rio de Janeiro, todos os clubes recreativos que aderiram ao
futebol não admitiam negros no time e nem jovens que não estives-
sem estudando.
Assim, a grande maioria dos jogadores era formada por univer-
sitários que, nos momentos de lazer, procurava seu clube para jogar
futebol. Em São Paulo surgiram times como o Mackenzie College, o
Club Athlético Paulistano, o São Paulo Athletic Club, o Sport Club
Corinthians Paulista, a Associação Athlética Ponte Preta, todos no
início deste século. No Rio de Janeiro, o The Bangu Athletic Club, o
Andaraí, o Carioca, o Vila Isabel, o Mangueira e o Fluminense. Todos
eles agremiações sociais e esportivas que passariam a se interessar
pelo futebol. Ou melhor: foram agremiações criadas tendo o futebol
como seu principal lazer .
Interessante notar que, embora altamente elitizado, o futebol
no Rio de Janeiro já dirigia-se para a zona norte da cidade. Geografi-
camente essa região sempre concentrou a grande maioria da popula-
ção proletária e dos baixos estratos da classe média. Agremiações
como o Carioca, Bangu e Mangueira tinham suas sedes em bairros
proletários.
a pelada
Origina-se aqui, na verdade, todo o processo de democratiza-
ção do futebol brasileiro e sua conseqüente popularização. Uma traje-
tória de muitas brigas e lutas políticas entre dirigentes de clubes e

120
jogadores, cujo espaço deste ensaio não nos permite esmiuça-la 12. O
fato é que, tanto no Rio de Janeiro, quanto em São Paulo, o futebol já
não era mais aquele esporte que só as elites podiam praticar. Nas
ruas, nos espaços vazios da periferia, na várzea e na areia das praias
(caso do Rio de Janeiro), os jovens que não pertenciam à elite econô-
mica começavam a improvisar suas partidas de futebol, que mais tar-
de seriam chamadas popularmente de “peladas”. Estava criado, a partir
desse momento, um hábito que teria (e continua tendo) lugar de des-
taque na cultura lúdica brasileira. Nem sempre a bola era de couro.
Muitas vezes era de meia e corda ou de borracha, mas sempre atrain-
do jovens que se habituavam a jogar e um público disposto a se diver-
tir assistindo a “pelada”.
Esta expressão, além de ser sinônimo de futebol no Brasil,
está estreitamente ligada à popularização desse esporte no país. Está
aliás, incorporada à própria cultura futebolística do torcedor brasileiro.
Trata- se de uma partida cuja principal característica é a desorganiza-
ção tática e técnica dos jogadores em “campo”. Não é necessário que
haja vinte e dois jogadores. O jogo se realiza com qualquer numero,
desde que igualmente para cada “time”. Não há necessariamente ár-
bitro nem bandeirinha, mas as regras do futebol devem ser rigorosa-
mente respeitadas pelos jogadores. A única condição imprescindível,
aliás, para que ele participe da “pelada”. Há toda uma ética de com-
portamento nesse sentido e ela não deve, sob qualquer hipótese ou
pretexto, ser desrespeitada. Agora, é evidente que, com a
ausência do árbitro, quando ocorre uma falta grave (o penalte, por
exemplo) não há consenso quanto a real procedência da penalidade.
Trata-se de uma situação decisiva e, como tal, nesse caso, prevalece
a cumplicidade que cada um tem com o seu time.
Nesse momento, é claro, a confusão esta formada. Pode haver
briga, empurra-empurra e o jogo pode não chegar ao fim, que alias não
é cronometrado. Ele só termina por um acordo entre os times ou quando
os jogadores chegarem à exaustão. Os desentendimentos, no entan-
to, com raras exceções, não ultrapassam o domínio esportivo. É habi-
tual esses mesmos jovens se reunirem no dia seguinte para continu-
arem a mesma partida, ou iniciarem uma outra. Na várzea, na praia,
na periferia ou, como ja disse, em qualquer espaço vazio, sem qual-
quer demarcação de um campo de futebol. Estas também são impro-
visadas.
A expressão “pelada”, por outro lado, tem muito a ver com uma
cultura da pobreza dos jovens da periferia no Brasil. Sejam eles dos
grandes centros urbanos (Rio, São Paulo, Salvador, etc.) ou mesmo
do interior. Sem trabalho, seu tempo se limita, eventualmente, à Es-
cola e ao futebol. Por não terem dinheiro para comprar material espor-
tivo, eles costumam jogar descalços e sem camisa. Apenas de cal-
ção. Explica-se por que: eles não devem estragar seus sapatos ou
tênis jogando futebol, muito menos suar a camisa.
12
Em meu livro, O Pontapé Inicial, Editora Ibrasa, São Paulo, 1990, eu analiso a
relação entre o elitismo econômico, o preconceito racial e social e a luta política entre
dirigentes e jogadores no sentido de profissionalizar o futebol brasileiro.

121
A “pelada” tem ainda três aspectos significativos que merecem
destaque. O primeiro é que, sendo uma atividade espontânea definiti-
vamente incorporada à cultura lúdica do país ela tem, por isso mes-
mo, um caráter de sociabilidade muito grande. As relações de vizi-
nhança tornam-se mais dinâmicas justamente em face do número de
pessoas que dela participa. Seja jogando futebol ou ainda como torce-
dor. De uma forma ou de outra, o habitante do bairro ou da região
estaria participando de um intenso processo de sociabilidade e de
integração social. Isto porque, a “pelada” tanto pode acontecer ocasi-
onalmente, sem que nada tenha sido planejado, como pode ter hora e
data marcadas 13
Isso é o máximo da organização que se consegue numa parti-
da descomprometida com a vitória ou a derrota como a “pelada”. O
mais importante mesmo é o prazer da diversão. Poder gritar a favor e
contra seu próprio time, fazer brincadeiras com os jogadores, as mais
variadas possíveis, sem que isso tenha a conotação de agressão que
se vê nos estádios. Enfim, pode-se dizer, sem correr o risco de ro-
mantizar, que a “pelada” é, no fundo, muito mais uma festa popular
esportiva do que propriamente uma competição. O que menos inte-
ressa é o resultado da partida. Ou, pelo menos, interessa muito pou-
co. De tudo isso, o que fica mesmo é o caráter de sociabilidade que o
futebol de “pelada “ proporciona a seus participantes como um todo.
Em outras palavras, é a força do futebol informal, despretensioso que
aproxima o jogador e o torcedor brasileiro.
O segundo aspecto diz respeito à identidade da pobreza. O
futebol de pelada é uma atividade essencialmente proletária. Haja vis-
ta, por exemplo, que seu maior índice de incidência nas grandes me-
trópoles se da justamente ná periferia onde se localizam os bairros
proletários. Faz parte da cultura proletária brasileira, jogar peladas
nos finais de semana. Especialmente aos sábados à tarde e aos do-
mingos pela manhã.
Após a partida, seja qual for o resultado, ganhadores e
perdedores se congratulam bebendo e comendo no próprio local do
jogo ou no bar mais próximo do campo. Nesse momento, a partida é
minuciosamente analisada por seus integrantes. Seja ele jogador ou
torcedor. De forma desordenada (todos falam ao mesmo tempo), cada
lance da partida é exaustiva e passionalmente analisado em suas
possibilidades. Como aconteceu, como deveria ter sido, o que acon-
teceria se ele tivesse sido executado corretamente e assim por dian-
te. Enfim, faz-se uma discussão minuciosa sobre a técnica, a tática e
as oportunidades de cada time durante a partida.
Nesse momento, jogadores e torcedores tornam-se verdadei-
ros “analistas” do futebol. Nada, ou quase nada lhes escapa. Talvez
por isso é que exista no Brasil a conhecida frase: “somos cento e
setenta milhões de técnicos de futebol”. É claro que se trata de uma
13
O professor Sebastião Witter escreveu um trabalho bastante interessante sobre o
futebol de varzea em São Paulo, intitulado II A Varzea não Morreu”. in: Futebol e
Cultura, Imprensa Oficial do Estado -Divisão de Arquivo do Estado de São Paulo,
1982.

122
metáfora para mostrar a afinidade desse povo com o futebol. Não é
sem motivo, portanto, que esse esporte atingiu um alto grau de de-
senvolvimento no Brasil. Este é apenas um deles. Não é sem motivo
também que, em todo o mundo, a imagem desse país está estreita-
mente ligada ao futebol. E que esse esporte está também
indissociavelmente ligado à sua cultura popular. Hoje, talvez, mais do
que o carnaval e a música.
O terceiro aspecto está diretamente relacionado com o futebol
profissional, mas é o reflexo imediato das chamadas “peladas”. É um
momento muito significativo e importante para o futebol brasileiro e
para os “peladeiros” que postulam seu espaço como futuros profissio-
nais da bola. É também a grande oportunidade de ascenção social,
de sair do anonimato e adquirir o reconhecimento e a consagração
publica.
Este processo ocorre muitas vezes da seguinte forma: no Bra-
sil há uma tradição de que nos jogos de várzea e de praia surgem
sempre bons jogadores. E ela se mantém ao longo dos anos, revelan-
do jogadores que marcaram definitivamente a ascenção e o prestígio
internacional do futebol brasileiro.
Num passado bastante remoto (anos dez e vinte), quando o
futebol nesse país ainda era altamente elitizado, o Club Athletico
Paulistano (São Paulo) teve de render-se ao brilho e ao talento de
Arthur Friedenreich. Segundo especialistas como João Saldanha, tão
habilidoso ou mais que Pelé. Filho de alemão com uma negra brasilei-
ra, Friedenreich herdaria mais a cor da mãe, mas também algumas
características do seu pai. Era alto, de olhos azuis e cabelos bem
crespos. Como tantos outros jogadores, ele foi descoberto na várzea
e, numa deferência muito especial, em face do seu futebol brilhante e
da influência do seu pai, foi levado para jogar no Club Athlético
Paulistano, o mais elegante e sofisticado clube da cidade de São
Paulo desde 1900. Não se tem notícia de outro jogador negro que
tenha vestido a camisa deste clube. Em 1929, depois de conquistar o
bicampeonato de São Paulo, o Paulistano encerra suas atividades no
futebol por discordar do movimento de profissionalização desse es-
porte que seria vitorioso em 1933.
Poderíamos aqui fazer uma longa relação de jogadores mundi-
almente conhecidos e descobertos nos jogos de peladas na várzea ou
na praia. Mas não é o caso. Apenas para ilustrar a importância deste
futebol recreativo, quero acrescentar alguns nomes que por ele passa-
ram: Garrincha, Zizinho, Pelé, Sócrates, Didi e mais recentemente
Romário.
Hoje, com toda a modernização e a preparação cientifica do
futebol brasileiro, as peladas mantêm a mesma importância. É na
várzea, na praia, nos campos da periferia que os “olheiros” 14 vão, ano-
nimamente, à procura de novos talentos.

14
O “olheiro” é uma espécie de treinador itinerante que sai pela varzea, praia e outros
lugares onde ocorrem as peladas, à procura de novos talentos para o futebol do seu
clube.

123
Ao mesmo tempo, deve-se destacar, a grande maioria dos ti-
mes brasileiros possui as chamadas divisões inferiores, de onde sai
boa parte dos jogadores que se profissionalizam. Quero citar um exem-
plo: o Vasco da Gama, do Rio de Janeiro é tri-campeão (92, 93, 94)
com uma esquadra formada nas divisões inferiores. É bem verdade,
porém, que diversos jogadores foram recrutados nas peladas e prepa-
rados para se profissionalizarem. Como são sempre jovens, eles ne-
cessariamente passam pelo estágio pré-profissional das divisões
amadoras. Esta é, em síntese, a importância da pelada para o futebol
brasileiro.
Dada a importância e o grande desenvolvimento desse esporte
naquele país, há hoje toda uma infraestrutura destinada à preparação
de jogadores. Os grandes clubes possuem verdadeiros laboratórios
por onde deve passar o atleta de talento, mas sem as devidas condi-
ções físicas para a prática do futebol. Há muitos casos desse tipo,
mas acredito que o de Zico, ex-jogador do Flamengo do Rio de Janeiro
seja o mais conhecido. Extremamente talentoso como jogador, ele
era muito fraco fisicamente. Como atacante que era, não teria a míni-
ma chance de enfrentar, em igualdade de condições, a truculência
dos defensores adversários. A saída encontrada pelos dirigentes do
Flamengo foi, evidentemente, entregá-lo aos fisicultores e médicos do
clube. Depois de um certo, tempo Zico havia ganhado massa muscu-
lar e crescido dois centímetros, sem que isso interferisse negativa-
mente no seu rendimento, na sua agilidade corporal e gestual. Não
comprometeu seus dribles. O jornal britânico Daily Mirror deu desta-
que a esse fato acrescentando que Zico seria o primeiro jogador “biônico”
do futebol. O primeiro jogador “forjado” em laboratório. N a verdade, o
grupo de profissionais do Flamengo nada fez de excepcional. A equi-
pe médica apenas procurou suprir suas deficiências advindas da des-
nutrição, um fato corriqueiro nos jovens que optam e conseguem se
profissionalizar no futebol brasileiro.
O Clube de Regatas Vasco da Gama foi um pouco mais longe
nesse aspecto. Criou uma Escola de Futebol que integra crianças
desde os nove anos de idade e pode levá-las ao profissionalismo. Há
toda uma infraestrutura destinada especialmente a esse objetivo. A
saúde, a educação escolar. a alimentação, a preparação física e até
habitação estão inclusas no projeto vascaíno. O jovem vindo de outro
Estado tem moradia assegurada nos alojamentos do Estádio de São
Januário propriedade dessa equipe. Não é sem motivo, portanto que
este clube tem conquistado nos últimos anos. a maioria dos títulos da
cidade do Rio de Janeiro com equipes formadas basicamente na sua
própria escola.
Outras grandes agremiações do futebol brasileiro também têm
esta infraestrutura com algumas pequenas diferenças. Em São Pau-
lo. são os casos do Guarani Futebol Clube, da cidade de Campinas e
do São Paulo Futebol Clube da Capital. Em Belo Horizonte, o Esporte
Clube Cruzeiro, em Porto Alegre, o Sport Club Internacional, apenas
para citar alguns exemplos.

124
a política
Nesse momento, porém, o futebol brasileiro vive uma situação
extremamente importante no tocante à sua própria estrutura. Se por
um lado, ele atingiu um elevado estagio de desenvolvimento que lhe
permitiu conquistar quatro campeonatos mundiais, por outro, não se
pode dizer que é exatamente organizado. Não só sob a óptica da sua
política administrativa, mas também sob a própria concepção do que
significa o futebol profissional em nossos dias. Nessas questões, me
parece, o futebol brasileiro tem muito ainda a aprender com o futebol
europeu, especialmente o italiano, o francês e o alemão. O calendário
anual para distribuição dos jogos tem a tradição de ser sempre muito
mal elaborado. Além de fazer coincidir datas de jogos dos campeona-
tos estaduais e brasileiro nunca considera o compromisso extra-cam-
peonato que um time possa ter. Não deixa dias disponíveis para im-
previstos. Os jogos de campeonato são realizados até três vezes du-
rante a semana, num ritmo que não leva em conta a recuperação
física do jogador. Esse é um dos aspectos pelos quais se diz que o
jogador de trinta anos no Brasil já está “velho”.
Na sua política interna, já faz tempo, a CBF -Confederação Bra-
sileira de Futebol, em certos momentos, administra esse esporte ao
sabor de interesses políticos particulares. A presidência dessa enti-
dade é um cargo arduamente disputado entre os dirigentes do futebol
brasileiro. Além do prestigio pessoal, da força política em nível nacio-
nal e internacional ele permite, a médio prazo, que este presidente
postule também, mais tarde, a presidência da FIF A. Foi essa a traje-
tória de João Havelange que, em 1998, no campeonato mundial a ser
realizado na França, completará 25 anos no poder dessa entidade.
No tocante à política interna dos clubes prevalece ainda um
certo amadorismo administrativo. Quero dizer o seguinte: alguns diri-
gentes de clubes ainda não se deram conta (ou pelo menos relutam
em aceitar) de que o presente e provavelmente o futuro do futebol
estão coligados ao capital. Ou ainda, como se diz no Brasil, ao fute-
bol-empresa. Só de 1992 para ca, é que o São Paulo Futebol Clube e
a Sociedade Esportiva Palmeiras iniciaram, de forma ainda muito tími-
da, a modernização do conceito amadorista presente no futebol des-
se país.
Ao contrário do que possa parecer, e da indiscutível paixão bra-
sileira por esse esporte, ele é deficitário aos clubes, com poucas ex-
ceções. São os casos do São Paulo Futebol Clube e do Clube de
Regatas Vasco da Gama, que apresentaram superavit em 1993. Isso
não significa, porém, um desempenho habitual. O ano de 1992 foi
deficitário para todo o futebol brasileiro de modo geral. Em 1994, em
função da conquista do tetra campeonato mundial é possível que os
clubes venham a ter superavits.
Por outro lado, enquanto permanecer a desorganização admi-
nistrativa e a política equivocada dos dirigentes (auto-promoção,
clientelismo, nepotismo, etc.), continuará havendo também a evasão
dos melhores jogadores para o exterior. Não há como concorrer com

125
os clubes europeus e mante-los jogando no Brasil. É justo que esses
profissionais queiram também jogar no exterior. É lá que eles ganham
muito dinheiro, projeção e prestígio internacionais. É no Brasil que
eles têm a primeira consagração profissional, mas é nos times euro-
peus que ocorre a segunda e definitiva consagração, com uma dife-
rença significativa: ela vem acompanhada da também definitiva inde-
pendência econômica. São os casos de Julinho (Fiorentina), Amarildo
(Milan), Mazzola (Internazionale), Falcão e Aldair (Roma), Marcio Santos
(Bordeàux), Bebeto (La Corufía), Romario (PSV Heidoven e Barcelo-
na) e tantos outros. Basta ver que a seleção brasileira titular do mun-
dial de 1994, apenas o jogador Zinho ainda não havia sido contratado
por um clube do exterior. Todos os outros dez jogadores estavam em
times europeus ou já haviam passado por Iá.
Deve-se considerar aqui um aspecto importante e que envolve a
economia brasileira. Já faz tempo, desde o início dos anos oitenta, o
país vem enfrentando sérios problemas econômicos, num processo
acumulativo de perdas. Têm aumentado, o desemprego, a inflação
monetária e os problemas sociais. Ao mesmo tempo, em decorrência
disso, é claro, tem ocorrido o sistemático empobrecimento da popula-
ção. A instabilidade econômica que atinge a todos os setores da pro-
dução cria um clima de pessimismo e desânimo. Os salários, corroidos
pelo processo inflacionário, diminuem o poder aquisitivo das classes
média e proletária, as mais atingidas pelo lento processo de empobre-
cimento do país. Numa situação economicamente delicada como esta,
a primeira providência das pessoas (a população como um todo) é
cortar as despesas com o lazer. No caso brasileiro, não para econo-
mizar e se prevenir contra eventualidades e situações mais graves,
mas por imposição imediata de suprir as necessidades básicas.
Esse quadro, como não poderia ser de outra forma, reflete-se
negativamente em todas as atividades lúdicas, entre elas o futebol. O
resultado disso, é que o público se afasta dos estádios, a renda dos
jogos diminui sensivelmente e os clubes entram em crise econômica.
Esta situação no futebol brasileiro sucede de forma intermitente. Há
determinados momentos em que se percebe uma pequena reação
favorável. O torcedor começa a retornar aos estádios mas, depois de
pouco tempo se retrai novamente. Não posso precisar exatamente o
motivo desse fenômeno, mas acredito que ele esteja diretamente liga-
do às oscilações da economia. Até porque, esta situação se repete
em outros setores como, por exemplo, o aumento e o declínio do
consumo de produtos alimentares, eletrodomésticos, etc..
No futebol, um aspecto tem contribuído negativamente para isso:
os campeonatos estaduais e brasileiro são muito mal organizados,
como ja disse. Há jogos sem a menor importância e, portanto, não
podem mesmo motivar o torcedor a ir ao estádio. Isso, no entanto, é
apenas um detalhe de toda uma estrutura mal organizada, mal admi-
nistrada e com um agravante que foge ao alcance dos dirigentes do
futebol: a economia do país não vai bem. Nesses termos, dificilmente
alguma coisa pode prosperar. Ainda que seja o futebol no Brasil, onde
há profunda empatia do torcedor com esse esporte, a ponto de torná-
126
lo o mais importante produto da cultura lúdica brasileira.
Nessa situação, a alternativa dos clubes é vender mesmo seus
melhores jogadores ao exterior, nivelando por baixo os espetáculos
futebolísticos no país. É mais um motivo para o torcedor não ir aos
estádios. Para ele é frustrante ver os melhores jogadores do seu time
serem vendidos ao exterior e substituídos, pelo menos temporaria-
mente, por profissionais desconhecidos e sem nenhuma expressão
no cenário nacional. Ele raciocina com o coração e, como torcedor
apaixonado que é, tem suas razões. Ele quer vitórias, quer ver seu
time brilhar e conquistar títulos.
O problema, no entanto, é muito mais grave do que a simples
aparência. Ainda bem que este clube tem jogadores pretendidos pelo
exterior. Vende-los é a única alternativa possível para pagar as dívidas
do clube, salários atrasados dos outros jogadores, encargos traba-
lhistas, enfim, equilibrar as finanças novamente.
Ao jogador interessa ser vendido. Ao clube, claro, também. Pela
lei do passe no Brasil, toda e qualquer venda de futebolista, seja em
nível nacional ou internacional, ele terá direito a 15% do valor da venda
do seu passe. Não bastasse isso, seu salário no exterior é muitas
vezes superior ao que ele ganha no Brasil. Enfim, ter seu passe vendi-
do significa também sua independência financeira.
Quero citar um exemplo que não é exceção. Ao contrario, é
rotina no futebol brasileiro. O jogador Ronaldo, 17 anos, do Cruzeiro
de Belo Horizonte, reserva de Romário no mundial dos Estados Uni-
dos, foi vendido ao PSV Heidoven da Holanda por seis milhões de
dólares. Pela lei do passe Ronaldo recebeu quatrocentos mil dólares,
o suficiente para viver muito bem, pelo menos no Brasil. Em 1987
sucedeu-se exatamente a mesma coisa com Romário. O Clube de
Regatas Vasco da Gama que o projetou para o futebol, vendeu seu
passe pelo mesmo valor e para o mesmo time.
Vendo o problema por essa óptica, tem-se então a impressão
de que o futebol brasileiro vai mal. É verdade sim, mas apenas no seu
aspecto organizacional e administrativo. Economicamente, é claro,
so poderá ir realmente bem quando o país reequilibrar sua economia.
Mesmo assim, com esses aspectos desfavoráveis ele sobrevive e re-
centemente conquistou seu quarto campeonato mundial, recuperan-
do todo seu prestigio internacional.
Há porém, alguns fatores que impulsionam e ajudam a manter
a qualidade do futebol brasileiro. Um dos mais importantes, talvez o
maior, é a sua capacidade de renovação. A política dos grandes clu-
bes, de modo geral, tem valorizado esse tipo de trabalho. Os mais
bem sucedidos, como vimos são, Vasco da Gama (Rio de Janeiro) e
São Paulo Futebol Clube (São Paulo) que já criaram uma infraestrutura
para a renovação ininterrupta do seu elenco. Os que ainda não o fize-
ram também usam um sistema muito interessante e eficaz. Ele é
popularmente chamado de “peneira” e consiste no seguinte: pelo me-
nos a cada quinze dias, os milhares de jovens que desejam seu espa-
ço no futebol profissional terão oportunidade de treinar nas dependên-
cias de um time grande ou médio, sob o olhar atento de um de seus
127
treinadores. Para cá acorrem muitos jogadores de “peladas”. Dessa
grande quantidade e num trabalho meticuloso, este treinador selecio-
na os melhores que deverão, posteriormente, confirmar sua aptidão
futebolística em outros treinos. Se confirmadas, o futuro atleta deverá
ainda passar por rigorosos exames médicos para se saber da sua
saúde e receber eventual tratamento médico. Foi o que aconteceu
com Zico, como vimos, que mostrou excepcional talento, mas apre-
sentava-se desnutrido e raquítico.
Após esse processo, o atleta selecionado será integrado às
categorias juniors do clube (depende muito da sua idade) e tem gran-
de chance de se profissionalizar. Ele passa a treinar com os profissi-
onais para adquirir, aos poucos, a experiência necessária. Nesse caso
ele ainda não é propriamente profissional, mas já recebe uma ajuda
de custos do clube para treinar e algum custeio das suas despesas
pessoais.
Ele não tem contrato assinado, mas apenas o que se chama
de “acordo de cavalheiros”, ou seja: ele não deve deixar o clube e, em
contrapartida, a qualquer momento (isso fica a critério do técnico)
pode ser aproveitado para jogar no time profissional. Assim, ele teria
completado toda a trajetória “hierarquica”, da “peneira” à
profissionalização. A partir daí seus objetivos serão outros. Realizar
bons contratos, trocar de clube posteriormente (ele ganha 15% do
valor do seu passe) e, se possível, jogar no exterior onde será muito
mais bem pago.
Esta é a formas mais usual de se descobrir novos talentos para
o futebol brasileiro e de promover a renovação a todo momento. É o
princípio da quantidade que se reverte em beneficio da qualidade. Como
isso acontece em todo o país e não apenas nos grandes centros, é
fácil compreender por quê o Brasil tem sempre uma geração jovem de
jogadores muito bons.
Como é fácil, da mesma forma, compreender o gingado do jo-
gador de futebol, a manemolência do malandro e o remelexo da mula-
ta no carnaval. Há razões históricas e antropológicas para isso, como
vimos antes. A gestualidade brasileira é uma questão cultural. Como
cultural é sua incrível paixão pelo futebol.
Os dribles de Garrincha, que mais parecem uma borboleta vo-
ando têm sua gênese na gestualidade libertaria e desreprimida do
brasileiro. É assim que ele joga futebol. É ainda nesse esporte, no
carnaval e na música, perfeitamente integrados à sua cultura lúdica,
que ele encontra todo o espaço possível para improvisar com liberda-
de, os movimentos sensuais e imprevisíveis que brotam da sua es-
pontaneidade corporal, essa doce magia que flutua ao sabor da sua
criatividade.

bibliografia básica
Bosi, Alfredo. Cultura Brasileira, Editra Atica, S.Paulo, 1991
Caldas, Waldenyr. O Pontapé Inicial, Editora Ibrasa, S.Paulo,1990.
Freyre, Gilberto. Casa Grande e Senzala, Editora José Olympio, 1968,

128
S. Paulo.
Geertz, Clifford, As Interpretações da Cultura, Zahar Editores, 1978,
Rio de Janeiro.
Hollanda, Sérgio Buarque de. Raizes do Brasil, Editora Brasiliense,
1980, S, Paulo.
Lambert, Jacaues. Os Dois Brasis,Cia. Editora Nacional, 1958, S.
Paulo.
Mario Filho. O Negro no Futebol Brasileiro, Editora Civilização Brasi-
leira, 1964, Rio de Janeiro.
Queiroz, Maria Isaura Pereira de. O Carnaval Brasileiro, Editora
Brasiliense, 1992, S. Paulo.
Skidmore, Thomas. Brasil: de Getulio a Castelo,Editora Paz e Terra,
S. Paulo, 1983.
Villas-Boas, Orlando. Xingu: seus indios, seus mitos, Editora
Brasiliense, 1984, S.Paulo.

129
11. Futebol: A Arte e a Força
Introdução
A maioria dos esportes traz consigo um alto índice de
competividade. Embora sejam vistos como necessárias à alma e ao
lazer, as competições esportivas, paradoxalmente, quase sempre
estimulam a agressividade e a violência. Estas, às vezes manifesta-
das fisicamente e, em alguns casos, até a nível psicológico. Deve-se
registrar, no entanto, que intrinsecamente, em sua base filosófica, o
esporte nada tem de violento e muito menos de agressivo. Esses
atributos, com efeito, surgem justamente a partir da sua
profissionalização.
Transformado em mercado de trabalho é compreensível, mas
não aceitável, a presença desses dois elementos. A propósito, o filo-
sófico alemão Herbert Marcuse nos alerta sobre o significado do tra-
balho na sociedade industrial. Seu caráter alienante, a perda da auto-
nomia e a agressividade, são algumas das categorias inerentes à pro-
dução capitalista, que ele prefere chamar de “sociedade da cultura
afirmativa” 1. Os esportes, nesse caso, ao serem profissionalizados
não seriam exceções e nem haveria motivo para tal. Seriam produtos
da cultura afirmativa. Assim, por exemplo, o rugby, basquetebol, pugi-
lismo e o futebol, exigem, hoje, dos seus profissionais não apenas a
técnica. É necessário, sobretudo, exibir um porte físico que seja an-
tes de mais nada respeitado pelo adversário. O ideal mesmo é que o
intimide; que lhe dê vantagem psicológica na disputa.

Competição: vitórias e condicionamento físico


A competição, portanto, não se inicia mais no local da disputa.
Ela hoje parte de uma outra concepção: do culto ao corpo, da exube-
rância física (que se pense em Narciso) e da preparação para a força
bruta. Não seria exagero, nos parece, dizer que em nossos dias o
desportista precisa, antes de mais nada, ser um pequeno gladiador.
Do seu desempenho enquanto esportista profissional, depende um
razoável número de outros profissionais. A vitória na disputa é a única
forma e a segurança de se manter no emprego. É mais do que isso:
de vitórias e de grandes conquistas depende o sucesso profissional
1
No livro sobre o caráter afirmativo da cultura (1970), Marcuse analisa o trabalho,
lazer e individualidade na sociedade capitalista.

131
do esportista.
Nesse preciso momento, a técnica pura e simples não é mais
vista como suficiente. É necessário um excelente preparo físico, um
corpo muito bem treinado e condicionado. Enfim, é necessária a opu-
lência física.
Não se pode, sensatamente, contestar esse comportamento. Afinal,
sabemos que o atleta dotado de bom condicionamento físico terá mais
chances de vitória. Nesse sentido é compreensível, e até justo, que
seu corpo seja posto a serviço do seu sucesso profissional. Sabe-se
ainda que o desenvolvimento e as conquistas da medicina esportiva
têm levado ao esporte uma certa concepção cientificista de prepara-
ção física. Isto é muito bom, conquanto não provoque o desgaste pré-
maturo do atleta.
Dito assim, tudo parece estar devidamente equacionado e re-
solvido. Isso porém, não é verdade. É exatamente aqui que começam
a surgir os problemas. Nesse momento, o excelente preparo físico do
atleta adquire uma feição polissêmica. Ele serve para ajudar a superar
lealmente o adversário, para intimidá-lo psicologicamente, para me-
lhor resistir o tempo de disputa, mas serve, também, para ser desleal-
mente usado em busca da vitória. Esta é, aliás, uma prática que tem
se tornado cada vez mais freqüente no esporte, especialmente no
futebol.
Corpo: a arma da vitória
O corpo, elemento central das competições esportivas, passa
a descaracterizar a própria competição, à medida que usa a força
física de forma desleal para vencer o adversário. Nesse instante, a
beleza, a graça e a sutileza do espetáculo enquanto tal, se esvaem. A
violência reina soberana. A truculência sobrepõe-se à técnica e à
racionalidade. O corpo é, ao mesmo tempo, agressor e vítima, herói e
vilão. Prepondera o imponderável.
Mutilar o adversário numa disputa decisiva pode não ser um ato de
irracionalidade, muito menos de covardia. Ao contrário, os espectado-
res, o comportamento coletivo da massa 2, pode interpretar como um
ato de bravura, abnegação, coragem e amor à camisa e às cores do
clube. A deslealdade através da força física torna-se, naquele instan-
te, socialmente “aceitável”. O objetivo último não é mais o espetáculo,
a exibição do talento ou da técnica, e sim, a vitória “a qualquer preço”.
O próprio espectador “legitima” a prática da violência nos campos de
futebol, quando percebe a inferioridade técnica ou superioridade física
do seu time 3.
Assim, o corpo perde a condição de sujeito da competição para
tornar-se simples objeto exposto ao sabor de impoderabilidade, da
agressividade e da violência. Aqui, antes de prosseguir a discussão
quero lembrar o trabalho do pensador alemão Max Weber sobre a
2
O conceito de massa aqui usado está baseada no trabalho de Sigmund Freud,
Psicologia de las masas, Guadarrama, 1982
3
A literatura sobre a violência no esporte especialmente nos estádios de futebol, é
particularmente vasta. Convém, no entento, consultar os livros de N. Elias e E. Dunning.
Sport e Agressività (1989), e G. Vinnai, El fútebol como ideología.

132
Teoria da ação humana 4, onde apresenta oito diferentes tipos de vio-
lência praticados pelo homem. Mais do que uma teoria da violência e
da agressão, Weber nos legou uma tipologia da violência humana,
cujo teor mantém-se admiravelmente atual, principalmente se pensar-
mos, por exemplo, nos estádios de futebol.

Futebol: profissão arte vs. violência física


Sem se preocupar especialmente, com a violência praticada
pelo ser humano no esporte, o pensador alemão nos mostra como
são complexas e diversificadas as situações em que se pratica a
violência. Neste ensaio, por se tratar de futebol - arte e força - nos
interessam de imediato três itens da sua tipologia. São eles:
1. Se la violenza è effetiva o simbolica. cioè: se prende di forma di un
attaco físico diretto o semplicemente implica gesti verbali e nonvenbali:
2. se la violenza è intenzionale o se e conseguenza accidentale de
una sequenza di azioni che all’origine non era intenziolmente violenta:
3. se si trata di violenza cominciata senza provocazione o come reazione
vendicativa a un atto violento intenzionale o non intenzionale.
Basta uma rápida vista d’olhos para se perceber que a violência
e a agressividade física praticadas no futebol se enquadram muito
bem na tipologia weberiana. A começar pelo item n° 1 nota-se, siste-
maticamente, no futebol a prática efetiva da violência através da agres-
são física direta. Casos dessa natureza, embora corriqueiros no fute-
bol, requerem uma pausa para melhor se pensar. Convém destacar
que, nem sempre, a decisão pura e simples de agredir o adversário
parte propriamente do jogador. Muitas vezes parte dos técnicos e diri-
gentes os quais ordenam esse tipo de comportamento ao seu joga-
dor. Mais adiante, trataremos melhor dessa questão.
No entanto, a agressão, pode ocorrer principalmente no calor
da hora, no momento da disputa, porque há sempre instantes de in-
sensatez entre os próprios jogadores (colegas de profissão) que, esti-
mulados pela tensão da partida, podem lesar fisicamente seu colega
para sempre. Esse tipo de profissional - é bom que se diga - parece
estar em rápido processo de extinção. Por dois motivos importantes:
ou porque começa a receber forte resistência (marginalizam-no) dos
seus colegas profissionalmente mais conscientes, ou porque eles
mesmos começam a tomar consciência de que, antes de mais nada,
o futebol é uma profissão e deve ser vista como tal.
Nesse aspecto me permito discordar de outros colegas, os quais
acreditam que a violência física direta está aumentando entre os joga-
dores. Isso, a meu ver, não procede, principalmente no futebol brasi-
leiro onde os registros de violência física têm demonstrado o contrá-
rio.
O problema, porém, não termina aqui. Ao contrário, a partir de
agora ele adquire forma multifacetada. De início, convém se pensar na
seguinte questão: o que levaria um jogador de futebol usar da violência
4
O sociólogo Eric Dunning retoma a Teoria da ação humana, de Weber, em seu
ensaio, “Coesione sociale e volenza nello sport”, no livro: Sport e agressività.

133
física contra seu colega? Aqui emergem algumas sutilezas, onde pro-
vavelmente a análise sociológica nos fará compreender melhor o pro-
blema. Para responder a pergunta gostaria, logo de início, de enume-
rar algumas situações em que o jogador, agressor e vítima, ao mesmo
tempo, tem enfrentado enquanto profissional. Esta situação diz res-
peito especialmente ao futebol brasileiro, que vive um contexto dife-
rente do futebol europeu. Apesar disto, convém prosseguirmos nesta
análise, porque, ainda que vivam realidades diferentes, sabe-se que
há algumas identidades entre o futebol brasileiro e o europeu.

Futebol brasileiro: profissão e realidade


Vejamos, então, o contexto onde se insere o jogador profissional no
Brasil:
I) procedente, na sua maioria, dos baixos estratos econômicos da
população;
2) o futebol, pela sua força e popularidade, significa a grande oportuni-
dade de ascenção econômica e social;
3) para exercer a profissão não se requer nenhum conhecimento ante-
rior adquirido pela escolaridade formal;
4) tem as garantias legais como qualquer outro trabalhador;
5) a presença de um treinador que a todo momento pode “aprimorar” o
seu futebol;
6) a presença da diretoria do clube cujo presidente assume as fun-
ções de seu patrão;
7) a grande concorrência e a espera da oportunidade de ser chamado
para treinar e mostrar as suas qualidades para jogar futebol.
Eis aqui, alguns elementos que podem nos ajudar a compreen-
der a dinâmica e o binômio futebol/violência física no Brasil, lembran-
do o primeiro item da tipologia da violência humana de Max Weber,
segundo a qual a violência se dá diretamente pela agressão corporal.
O Rio de Janeiro e São Paulo são as expressões máximas do futebol
brasileiro. Uma espécie de “vitrine” do nosso futebol. E, também, nes-
sas cidades - nos subúrbios, favelas e periferias - onde se concentra
uma massa humana extremamente pobre, desqualificada profissio-
nalmente e, o que é mais grave, a maior parte desempregada. Preci-
samente junto a essas populações que os grandes clubes, como o
Vasco da Gama, Flamengo, Fluminense, Botafogo, Corinthians, Pal-
meiras, São Paulo e outros, vão recrutar a maioria dos seus jogado-
res. Depois de consagradas no futebol brasileiro, eles quase sempre
são vendidos a clubes europeus, especialmente portugueses, italia-
nos e espanhóis. Essa trajetória, porém, é feita muitas vezes de for-
ma sinuosa, na qual o jogador se submete a situações as quais nem
sempre concorda.
Por outro lado, suportar as adversidades significa, concreta-
mente, a possibilidade de emergir da situação de pobreza para um
nível sócio-econômico bem superior; significa mais do que isso: é
chegar a um lugar de destaque, admiração e popularidade. Esta é,
enfim, a grande oportunidade de ascenção econômica e social que

134
um jogador, em início de carreira, pode ter. Não se “exige” nenhuma
escolaridade.
Ao ingressar na categoria “júnior”, o futebolista tem grandes
chances de chegar a assinar um contrato como profissional. É nessa
categoria onde se inicia os treinamentos tático, técnico e físico. Este
último, quando necessário, objetiva aumentar a massa muscular do
atleta para que ele possa competir em igualdade de condições com
os adversários. Esse foi, por exemplo, o caso de Zico, que chegou ao
Flamengo magro, baixo e desnutrido. Após o tratamento, o jogador
ganhou peso, estatura e força muscular. Por razão dessa transforma-
ção, o jornal inglês Daily Mirror chamou o jogador de “a primeira des-
coberta biônica do futebol”. Convém registrar que o tratamento a que
Zico foi submetido para melhorar a performance corporal não é mais
uma exceção. A fisicultura dos esportes já faz isso de forma sistemá-
tica. Em síntese, os grandes clubes brasileiros põem à disposição de
seus futebolistas uma infra-estrutura capaz de atender às suas ne-
cessidades, pelo menos no tocante à saúde física.
Tudo isso não passa de um investimento muito bem feito, uma
vez que, mais tarde, o clube receberá de volta todo o capital investido
e seus respectivos dividendos, através de grande rendas pelos cam-
pos nacionais e internacionais, ou pela venda pura e simples do pas-
se do jogador a clubes europeus. Esses foram os casos de jogadores
como o Alemão, Careca, Casagrande, Falcão, Amarildo, Cerezzo,
Zico e tantos outros, apenas para citar nossos contemporâneos. Acon-
tece que essa é uma prática iniciada no final dos anos 20, quando o
futebol brasileiro já não era mais amador - embora oficialmente o fos-
se.
Um aspecto, no entanto, é inegável. A relação dos clubes com
os jogadores em nada, na verdade, se diferencia de qualquer outro
tipo de atividade econômica. As relações de produção se desenvol-
vem bem nos moldes da análise marxista do capital e do trabalho.
Amilcar Brabuy, jogador brasileiro dos anos 20 e 30, foi um dos pionei-
ros na reivindicação do seu justo salário. Nessa época o futebol, no
Brasil, ainda era um esporte da elite. Esclarecido e consciente do seu
valor profissional, Amilcar abre o mercado para os jogadores brasilei-
ros no exterior. Diz ele:
“Vou para a Itália. Cansei de ser amador no futebol onde essa
condição há muito tempo deixou de existir, maculada pelo regime
hipócrita da gorjeta que os clubes dão ao seus jogadores, reservando-
se para si o grosso das rendas. Durante vinte anos prestei desinteres-
sadamente ao futebol nacional meus modesto serviços. Que aconte-
ceu ? Os clubes enriqueceram e eu não tenho nada.
Vou para o país onde sabem remunerar a capacidade do jogador 5.”
Esta situação, porém, mudou muito pouco no Brasil durante
todos esses anos. São poucos os jogadores profissionais que aqui
desejam permanecer, sabendo que podem ser muito melhor remune-
rados no exterior. Posto isso, cabe uma pergunta: como se sente e o
5
Floriano Peixoto Corrêa, Grandezas e misérias do nosso futebol. Rio de Janeiro,
1933
135
que fará um jovem favelado que vislumbra a possibilidade real de vestir
a camisa de um grande clube brasileiro e depois se transferir para o
exterior ?
A conjuntura brasileira encontra-se, hoje, numa situação extre-
mamente delicada. A economia é hoje, o melhor reflexo desse “mal-
estar” na sociedade. A inflação de 1989 atingiu, oficialmente, a per-
centagem de 1.965 pontos. Assim, da mesma forma está o futebol.
Economicamente mal, às vésperas da Copa do Mundo na Itália, mas
surpreendentemente bem no campo de jogo.
É dentro desse contexto que deve ser analisada a violência
corporal e a agressividade do jogador brasileiro. Rigorosamente, com
esse comportamento ele apenas reproduz um contexto sócio-econô-
mico extremamente hostil, violento e vilipendioso, cujo conteúdo mais
profundo não está na violência corporal do futebol. Outros profissio-
nais também reproduzem essa violência e agressividade. A rigor, a
sociedade e as relações sociais são violentas no Brasil. O país está
muito próximo de uma convulsão social espontânea (em 1982 já se
esboçara algo parecido) em face do momento extremamente crítico
por onde passam os médios e baixos estratos da população.
A quem conhece bem a realidade brasileira não causaria ne-
nhuma surpresa a emergência imediata da luta de classes. E não
poder-se-ia, em sã consciência, usar o velho e desgastado argumento
de que a luta de classes é produto da “intrusão” estrangeira. Os seto-
res da produção e o mercado de trabalho vivem hoje uma letargia e um
reflexo tão profundos, só comparáveis à famosa frase do Hino Nacio-
nal Brasileiro que diz o seguinte:
(...) deitado eternamente em berço esplêndido
ao som do mar e à luz do céu profundo ...
Este sim é, precisamente, o retrato fiel da sociedade e da econo-
mia brasileira.
Assim, frágil em sua formação escolar - como a imensa maioria
do país - o jovem futebolista procura se fortalecer em sua estrutura
física. Muitas vezes o faz até inconscientemente. É do seu corpo, da
sua massa muscular que vai depender, em grande parte, seu sucesso
profissional num pais sem perspectivas.
Tudo isso não significa, necessariamente, que seu corpo deva
ser usado como instrumento de destruição de outros companheiros
como tem-se visto sistematicamente. Há que se pensar que muitas
vezes o próprio jogador é compelido a usar seu corpo como instru-
mento de violência ou de intimação psicológica o que, em outros ter-
mos, também é uma forma terrível de violência e agressão. Nesse
caso, a violência é extrínseca. Ela emana de acontecimentos anterio-
res, de situações vividas e mal resolvidas no cotidiano, mas no mo-
mento do jogo, pode ser sublimada através da agressão física ao co-
lega de profissão; e, ainda, pode ter o caráter do que se pode chamar
“violência ordenada”. Esta é, infelizmente, para o jogador. para o fute-
bol, enquanto espetáculo. e para o próprio espectador, a mais espú-
ria, a mais maledicente das formas de se praticar a violência. Ela é
produto da estrutura autoritária e antidemocrática que muito bem ca-
136
racteriza o futebol brasileiro, desde 1933, quando profissionalizou-se.

Futebol brasileiro: estrutura e formação


Assim, para melhor se entender a “violência ordenada”, neces-
sário se faz conhecer, ainda que de passagem, a estrutura autoritária
do futebol brasileiro. Portanto, vamos a ela. Sem exceção, os clubes
de futebol no Brasil possuem, na formação da sua diretoria, o diretor-
presidente, cuja função administrativa consiste em gerir todos os inte-
resses do clube; e o diretor de futebol, o qual se ocupa exclusivamen-
te dos interesses desse esporte.
Esses dois cargos possuem uma força política muito grande e,
a eles, quase sempre são creditados os méritos ou deméritos que o
clube venha a adquirir nos campeonatos brasileiros, regionais e tor-
neios. Enfim, em toda atuação da esquadra.
O treinador, embora não faça parte da diretoria, tem muita força
e autoridade junto ao time - desde que faça dele uma esquadra vitori-
osa. Caso contrário, pode ser despedido ainda nos vestiários, após
uma ou duas derrotas seguidas.
Dessa forma, não é à toa que os treinadores, no Brasil, têm
consciência de que seu emprego só estará garantido se o time for
vitorioso. Osvaldo Brandão, um dos mais famosos treinadores brasi-
leiros, com diversas passagens pela seleção nacional, tem uma frase
que retrata muito bem a situação desses profissionais: “no Brasil, o
treinador só tem feijão na mesa se tiver vitória no campo”. É fácil,
então, imaginar o clima de horror em que trabalham os treinadores
brasileiros. Assim, a vitória torna-se um objetivo a ser alcançado a
qualquer custo, caso contrário, a demissão é eminente. Obtê-la, trans-
cende o imaginário inerente ao universo da competição esportiva para
integrar-se ao mundo dos expedientes escusos e da violência.
A conquista de bons resultados significa a manutenção da uni-
dade do time e do técnico. No caso da seleção brasileira o problema
é, evidentemente, mais grave. Envolve, entre outras coisas, questões
de honra nacional. Só a vitória interessa. A conquista de um vice-
campeonato tem o mesmo sabor amargo de uma desclassificação
prematura. É visto como vexame, desonra e humilhação.
Quando em 1982 o Brasil, franco favorito para conquistar o seu
quarto campeonato mundial, perdeu em Sarriá (Espanha) para a Itália,
por 3 a 2, foi o caos. O torcedor brasileiro ficou atônito, sentindo-se
humilhado e a mídia tratou logo de “encontrar as causas da humilha-
ção”: a “covardia” de Toninho Cerezzo, que não foi “macho” e chorava
em campo; e a “incompetência” do técnico Telê Santana que, mesmo
com o resultado do empate beneficiando o Brasil (seria a classifica-
ção para as semifinais), ordenou o time que continuasse atacando a
esquadra italiana. As conseqüências do “desastre de Sarriá” (o nome
que a imprensa arranjou e, masoquisticamente, o torcedor brasileiro o
consagrou) foram muito sérias na vida de Cerezzo e Telê Santana - os
mais responsabilizados pela derrota. O primeiro não conseguiu se
libertar da imagem de “covarde” junto ao torcedor brasileiro, e o segun-

137
do, tem hoje nos meios futebolísticos do seu país, a imagem de técni-
co-perdedor.
Com efeito, esse não é um caso isolado. A gênese dessa ob-
sessão mórbida pela vitória a qualquer preço, surge ainda por ocasião
do quarto campeonato mundial, em 1950, sediado justamente no Bra-
sil. É precisamente nesse momento - na última partida do campeona-
to (Brasil e Uruguai) - que a imprensa e os torcedores passariam a
viver a “síndrome da derrota” e a justificar a violência como forma de se
chegar à vitória. A seleção brasileira, uma vez mais, era a melhor e a
favorita para vencer o campeonato. Tinha tudo a seu favor. Coinci-
dentemente vivia até um hiato democrático no governo do presidente
Eurico Gaspar Dutra. Cartolas e jogadores já eram vistos pela popula-
ção como os novos “gênios da raça”. Era apenas uma questão de
horas e o Brasil emergiria do seu anonimato de país colonizado e do
subdesenvolvimento pleno, para “glorificar” seu povo através do fute-
bol.
No dia 16 de junho de 1950, o Estádio do Maracanã estava
literalmente lotado. Havia 220 mil pessoas dentro do Estádio e outras
60 mil do lado de fora querendo entrar. Uma das últimas frases do
técnico Flávio Costa a seus jogadores antes de entrarem em campo
foi a seguinte:
“em cada ponta da chuteira de vocês, há milhares e milhares de
corações brasileiros. Vamos lutar, vamos brigar. Vamos tirar sangue
se for preciso. É uma partida de vida ou de morte 7”.
Foi esta a “preparação psicológica” recebida pelos jogadores.
Naquele momento, porém, os atletas não iriam disputar apenas um
titulo mundial de futebol. Estava em jogo a “honra nacional”, a “digni-
dade da raça brasileira”. Enfim, todos os valores nacionais que tão
bem caracterizavam o exacerbado nacionalismo verde-amarelo, res-
quícios do integralismo de Plínio Salgado, versão cabocla do fascis-
mo europeu.
Justamente por ser o adversário um latino-americano havia,
portanto, mais um ingrediente nessa “luta”. O vencedor teria a homo-
logação simbólica e real, ao mesmo tempo, da hegemonia do futebol
nas Américas. A Argentina, o mais temível adversário, havia sido eli-
minado. Caberia ao Brasil e Uruguai, a disputa pela hegemonia. Ao
Brasil, bastaria o empate e a glória seria alcançada. Mas ninguém
pensava nisto. A vitória era tida como certa. Ao Uruguai, por sua vez,
só interessava a vitória. O empate, formalmente, teria o mesmo efeito
da derrota.
Inicia-se o jogo e, no primeiro tempo, o Brasil marca 1 a O. A
esquadra brasileira não jogava bem, mas “honrava a pátria”. A única
chance brasileira de conquistar a vitória teria que ser mesmo através
da habilidade técnica, porque fisicamente os uruguaios eram bem mais
fortes. Subitamente, no segundo tempo da partida, a situação come-
ça a se inverter. Os uruguaios empatam o jogo e fazem prevalecer sua
superioridade física usando o corpo para interceptar a maior criatividade
técnica dos jogadores brasileiros. A tão conhecida “garra” uruguaia
7
Revista Sport Ilustrado, 19/7/1950.
138
começava a se transformar em violência física no Estádio do Maracanã,
que assistia estupefato os jogadores brasileiros “aceitarem” a superi-
oridade física dos uruguaios, e a se “acomodarem” em sua visível infe-
rioridade física.
Impõem-se aqui, uma vez mais, o caráter ideológico do discur-
so integralista: a vergonha do corpo. Desta vez, não mais como des-
valorização rancorosa da sexualidade como o fizeram Plínio Salgado,
Custódio Viveiros, Gustavo Barroso e outros, mas como pecha da
nação.
O “raquítico corpo brasílico”, produto nato do subdesenvolvimento,
não podia usar a mesma arma dos menos subdesenvolvidos uruguai-
os: a violência. De nada resultara a preparação psicológica do técnico
Flávio Costa antes do início da partida: “vamos lutar, vamos brigar.
Vamos tirar sangue se for preciso”. Jogando futebol, aí sim, o Brasil
teria todas as chances. Era melhor. Agora, descaracterizar a compe-
tição entremeando-a com luta corporal, era transformá-la num espetá-
culo hediondo. A maior surpresa, porém, a grande “humilhação à patría”
ainda estaria por vir. Aos 36 minutos do segundo tempo, a seleção
uruguaia faz seu segundo gol e termina por vencer a partida e o quarto
campeonato mundial. Impossível acreditar. O país passava pela maior
“humilhação” esportiva de sua história.
Não estava em jogo, naquele momento, apenas o futebol. A
vitória teria reflexos políticos satisfatórios ao Estado, embora o torce-
dor não tivesse consciência disso 8. O país estava consternado e a
multidão no Maracanã, atônita e em estado de choque, não conse-
guia sair do Estádio. Um quadro verdadeiramente patético. Um trau-
ma coletivo. Tristeza, lágrimas, depressão e quatro mortes. O
Maracanã transformou-se no palco da tragédia nacional.
Passada a comoção, a imprensa inicia a “análise” da derrota.
Conclusão: a seleção acovardou-se diante da violência uruguaia, mas
dois jogadores foram ainda mais “covardes” que os outros: Barbosa, o
goleiro e Bigode, lateral esquerdo. Eles foram considerados os maio-
res responsáveis pela derrota, porque não agrediram, foram agredidos
e não reagiram. Bigode, por exemplo, passou pela incômoda situação
de ter recebido de Obdulio Varela, capitão da seleção uruguaia, uma
cusparada no rosto e, em seguida, ter sido chamado de “macaquito” 9.
Bigode é negro, ainda vive e mora no Rio de Janeiro.
Embora derrotado, o Brasil foi vice-campeão do mundo o que,
na verdade, para o torcedor brasileiro não representa absolutamente
nada. Aliás, ao contrário, ele se sentia humilhado vendo o orgulho
nacional (o futebol) ferido e desmoralizado. Profissionais que eram,
Barbosa e Bigode tiveram muita dificuldade em continuar jogando fu-
tebol. A imprensa e a torcida os estigmatizaram de “covardes” abrevi-
ando sua profissão de futebolistas, encerrada pouco depois da grande
derrota brasileira.
Este acontecimento de triste memória para os brasileiros não
8
Por tradição, o futebol no Brasil em função da sua popularidade, sempre foi usado
como instrumento político por parte do Estado. Na linguagem althuseriana, este esporte
é, no Brasil, um dos mais eficientes aparelhos ideológicos do Estado.

139
foi um episódio a mais em seu futebol. Ele permanece vivo. Sempre
que jogam Brasil e Uruguai, em qualquer lugar, a imprensa brasileira
conclama torcedores e jogadores. a irem à forra. O trauma ficou e a
ferida permanece aberta, mas com um agravante no decorrer do tem-
po: o inegável complexo de país de Terceiro Mundo, sublimado nos
anos 70 com o nacionalismo autoritário, com a xenofobia crescente e
com a farsa do “milagre econômico” do governo Médici. Hoje, apesar
da conquista de quatro campeonatos mundiais, o torcedor e o povo
brasileiro de modo geral começam a entender uma realidade que trans-
cende o prosaico universo do futebol. A necessidade do país se orga-
nizar politicamente. De derrubar as velhas e encardidas estruturas
autoritárias, que sempre manipularam o poder no Brasil, justamente
contra o desavisado torcedor que traumatizou no Maracanã, parte da
sua existência lúdica, da sua relação telúrica com o país, certamente
por acreditar que a pátria é mais importante que a vida.
Esse é o primeiro axiológico do fascismo caboclo. Digo, do
integralismo brasileiro, personificado na figura retoricista e bacharelesca
de Gustavo Barroso. Ao estilo beletrista e abusado de paráfrases e
metáforas canhestras ele escreve:
“amai o Brasil para poderes morrer pelo Brasil nas grandes lu-
tas que se aproximam, quando às sombras esvoaçantes das bandei-
ras cor de sangue se cantarem. sob a batuta judaica profanando a
nossa pátria, as estrofes da interncional 10”.
Foi contra a presença deste fascismo à moda brasileira, que
parte expressiva do povo, do torcedor brasileiro votou nas eleições
presidenciais de novembro de 1989, outorgando a Luís Inácio da Silva
(Lula) um respeitável sufrágio. Não fossem os casuismos eleitoreiros,
os lances oportunistas e desonestos de última hora e a força de parte
da mídia eletrônica, parceira do conservadorismo político brasileiro, o
resultado das eleições, seguramente, teria sido outro e o país estaria
emergindo do grande marasmo e inércia política que tem caracteriza-
do sua história.
Assim, é necessário que se entenda um aspecto muito impor-
tante: os insucessos colhidos pelo Brasil nos esportes e, especial-
mente no futebol, não é uma questão de “covardia” ou de “heroísmo”,
de “amor à pátria” ou “mercenarismo”. É antes de mais nada, isto sim,
o reflexo da estrutura política e econômica do pais, a qual sempre foi
capenga; estimulando a proliferação de uma população pobre, mise-
rável e subnutrida, cuja paixão pelo futebol supera, em alguns mo-
mentos, a falta de vitaminas, proteínas, carboidratos, enfim, os com-
ponentes alimentares que qualquer atleta deveria ter .
A derrota do Brasil para o Uruguai, em 1950, não foi a derrota
do futebol brasileiro. Foi a derrota da fome, do raquitismo e da
subnutrição. Foi na verdade, em sua essência, a derrota da estrutura
política, econômica e social do país imposta pelo velho establishment,
9
A expressão “macaquito” foi usada pela primeira vez por torcedores argentinos em
Buenos Aires, quando os jogadores brasileiros (em sua maioria negros), em 1919,
foram disputar o campeonato Sul-Americano.
10
Gustavo Barroso, 1935

140
que hoje, ironicamente, se traveste de atleta “lutando” karatê no Japão
e criando a imagem pública de homem saudável, maratonista e vence-
dor. Estou me reportando ao presidente eleito, Fernando Collor de
Melo.
Como poderiam, então, Barbosa e Bigode agredir os opulentos
uruguaios e fazer do seu corpo um escudo de defesa da “honra nacio-
nal”? Da mesma forma que o futebol e o esporte como um todo preci-
sam de atletas competentes para fazer o espetáculo, não necessita
de Dom Quixote e muito menos de Rambos.
O corpo não feito para apanhar, ser maltratado, vilipendiado.
Ele foi feito para o homem usufruí-lo de forma harmônica, pacifica,
plena e saudável. Foi feito para viver o “princípio de prazer” em sua
dimensão freudiana. O corpo é EROS, definido sabiamente por Herbert
Marcuse, “como a grande força unificadora que preserva a vida toda” 11.
A violência corporal, ao contrário, identifica-se com a agressão, com o
“instinto de morte”. A violência é THANATOS, é destrutividade e mor-
te.
Nesse sentido é que o futebol, enquanto espetáculo, jogado por
profissionais sérios e conscientes de que sua profissão não é gladiar,
identifica-se com EROS. Perseguir a vitória às custas da violência
corporal, do seu próprio sangue e do sangue adversário como incitou
o técnico brasileiro em 1950, é o que há de mais espúrio profissional-
mente. É a antivirtude. É o produto de um comportamento predomi-
nante hostil e perverso que visa submeter EROS ao instinto de morte.
Esse comportamento no futebol brasileiro, no entanto, não é tão raro
quanto possa parecer, muito embora, como já dissemos, tem diminu-
ído sensivelmente.
Reconhecido como um futebol de alto nível técnico, isso não
impede que treinador e jogador, acossados pelo fantasma da perda do
emprego assumam, deliberadamente, a violência corporal, como for-
ma “válida” para manterem-se empregados. No Brasil, a derrota é si-
nônimo de desemprego. Desnecessário dizer, que este é um compor-
tamento de absoluta falta de solidariedade profissional e até de cons-
ciência de classe. Gostaria de citar um exemplo do que estou regis-
trando para melhor caracterizar este fenômeno. Trata-se de um episó-
dio (mais correto seria dizer atentado) que se passou com Zico, um
dos mais brilhantes e habilidosos jogadores brasileiros.
Em 29 de agosto de 1985, jogavam Bangu e Flamengo no
Maracanã, Rio de Janeiro. Ao Bangu, apenas a vitória poderia lhe dar
chances de prosseguir na disputa pelo campeonato carioca. O joga-
dor Zico estava escalado para jogar e, grande craque que era, costu-
mava desequilibrar a partida a favor do Flamengo. A alternativa, en-
contrada pela comissão técnica do Bangu, foi alijar Zico da partida.
Assim, no decorrer do jogo, um jogador banguense acerta, intencio-
nalmente, o joelho de Zico. Este atleta, até o momento, já se subme-
teu a cinco cirurgias, que muito pouco melhoraram sua condição físi-
ca. Seu joelho ficou definitivamente lesado obrigando-o a antecipar o
fim da carreira profissional como jogador.
11
Herbert Marcuse, 1966

141
Convém destacar que este é apenas um caso entre tantos ou-
tros que ocorrem no futebol brasileiro. Lamentável, no entanto, é re-
gistrar que a refinada técnica de grandes atletas - como Zico, Sócrates,
Falcão, entre outros - tem que conviver e enfrentar a truculência de
impostores do futebol. São os jogadores que só sabem ser violentos -
usam o corpo como se fossem gladiadores - e não profissionais da
bola. Esses jogadores enfeiam e destroem o futebol enquanto espetá-
culo.
Diferente dos profissionais competentes, os impostores do fu-
tebol colocam-se em posição oposta, usando a repressão e a coação
física como instrumento de trabalho. Impõem-se aqui, a teoria freudiana
do antagonismo, da luta primordial pela existência, que separa o “prin-
cípio de prazer” do “princípio de realidade”. A truculência e a violência
física materializam-se como instrumento de repressão, de subjuga-
ção, da mesma forma que “o princípio de realidade” materializa-se
num sistema de instituições” de controle social com suas leis repres-
sivas.
O que diferencia os impostores do “princípio de realidade” é
algo quase imperceptível. Mas, enfim, há uma diferença. Os imposto-
res, com a sua truculência causam lesão física imediata, e o “princí-
pio de realidade”, usando de suas leis repressivas e de controle soci-
al, causa a lesão psíquica a longo prazo. A identidade entre ambos
reside justamente no fato que ambos são repressivos. Um destrói o
corpo, o outro reprime a alma.
Nesses termos é que os impostores do futebol se distanciam
do “princípio de prazer” e se identificam com o “princípio de realidade”.
Na concepção freudiana o princípio de realidade materializa-se
num sistema de instituições. E o indivíduo, evoluindo dentro de tal
sistema, aprende que os requisitos do princípio de realidade são os
da lei e da ordem, e transmite-os à geração seguinte.te 12.
Esta situação, ainda a propósito da teoria freudiana, é radical-
mente oposta ao “principio de prazer”, de onde está próxima a arte
futebolística de atletas como Garrincha, Falcão, Pelé, Zico, Ademir
da Guia, Di Stefano, Maradona, Gullit e tantos outros citando apenas
os contemporâneos.
A diferença entre esses dois tipos de profissionais (o truculento
e o técnico) é a mesma existente entre a arte e a força bruta. Entre a
arte e a farsa. Ou ainda, para usar a expressão consagrada por Abraham
Moles, entre a arte e o Kisch. A truculência no futebol é um arremedo.
É o comportamento espúrio do profissional incompetente. O torcedor
não gosta disso. Ele prefere o espetáculo futebolístico, os movimen-
tos elegantes e técnicos do jogador habilidoso e competente com a
bola nos pés. O corpo e os lances limpos, elegantes, fazem o espetá-
culo para os olhos e a alma.
Se seu time perder, certamente ganhará em beleza e movimen-
tos harmônicos, que só o futebol de verdadeiros profissionais pode
proporcionar. Só o futebol dessa qualidade, com este refinamento téc-
nico, pode levar ao “princípio de prazer” irrestrito. E mais: é uma forma
12
Herbert Marcuse, 1966. P. 36

142
eficiente de denunciar a truculência, a barbárie, que enfeia e entriste-
ce as tardes de domingo do torcedor interessado no espetáculo fute-
bolístico.
Nesse caso, viva a arte de Falcão, Ademir da Guia, Maradona e
Gullit. Viva a arte de Garrincha. Esses são profissionais que fizeram -
e fazem do futebol -, um espetáculo de arte e movimento. Garrincha
era o próprio movimento corporal. Rápido, intrépido e talentoso, ele
era implacável com seus adversários. Fossem eles, leais ou desleais.
Sua velocidade de raciocínio e de movimentos jamais permitia que o
adversário o acompanhasse. Era terrível. Tudo em Garrincha era
imprevisível. Menos seus dribles que eram, ao mesmo tempo, certos,
perfeitos, desconhecidos e desconcertantes. Uma contradição apa-
rente e uma poderosíssima arma contra seus adversários truculentos
que visavam, não tomar-lhe a bola, e sim, acertar-lhe as pernas tortas
- uma ironia da natureza. Não havia pernas mais certas para preparar
e executar o drible. Aquelas pernas tortas (ambas inclinadas para o
lado esquerdo) eram imbatíveis. Foi o único jogador na história do
futebol que driblava o adversário com a bola parada.
Garrincha usava apenas o movimento corporal. Corria dois, três
metros sem a bola e o adversário o acompanhava sem perceber que
havia deixado a bola no mesmo lugar. Ele voltava para pegá-la e o
adversário ficava sem ação. Até o torcedor do outro time delirava. En-
fim, não foi sem motivo, que este excepcional jogador recebeu, unani-
memente, da imprensa esportiva brasileira, o carinhoso e merecido
apelido de “Garrincha, a alegria do povo”.
Mais tarde, em 1962, o cineasta Joaquim Pedro de Andrade
faria um filme sobre sua vida, dando exatamente o nome de seu ape-
lido. Hoje, na literatura esportiva do Brasil, há quatro livros que tratam
da vida futebolística de Garrincha. Mais recentemente, em setembro
de 1989, a revista de ciências sociais Actes, n° 79, editada em Paris
e dirigida pelo sociólogo Pierre Bourdieu, dedicou nada menos que 15
páginas para falar da trajetória futebolística e da morte ocorrida, em
1983 de Manoel dos Santos Garrincha.
Garrincha, no entanto, era um tipo de “anti-herói” do futebol.
Suas pernas tortas eram sua marca registrada, ao mesmo tempo,
caracterizavam seu notório defeito físico. Quando andava mancava
visivelmente, quando corria com a bola tudo desaparecia. Era irresistível.
Só a violência corporal o detia, mesmo assim, quando conseguiam
acertá-lo. No Brasil, com certeza, Garrincha foi o único jogador porta-
dor de defeito físico a assinar contrato como futebolista profissional.
Isso ocorreu em 1953, quando passou a jogar pelo Botafogo Futebol e
Regatas do Rio de Janeiro.
Antes disso, porém, tentou jogar pelo clube de Regatas Vasco
da Gama e Fluminense Futebol Clube, mas foi dispensado sem nem
ter oportunidade de treinar, por causa das suas pernas tortas. Semi-
alfabetizado e extremamente ingênuo, ele foi vítima da sua própria boa
fé e das falcatruas dos dirigentes, os quais sempre lhe ofereceram
péssimos contratos.

143
Ao contrário de outros jogadores famosos de sua época, não
fazia qualquer tipo de autopromoção, embora sua popularidade só fos-
se comparável à de Pelé. Garrincha gostava mesmo era de criar pas-
sarinhos em sua casa.
Permito-me, por outro lado, discordar da opinião divulgada pe-
los veículos de comunicação de massa que elegem Pelé, o maior
jogador de todos os tempos. Sem nenhum demérito a este genial
jogador, Garrincha está exatamente no mesmo nível. A única diferen-
ça reside na sua extrema simplicidade e no desinteresse em promo-
ver-se profissionalmente. De uma coisa, porém, nós podemos estar
certos: Garrincha não inventou o drible mas, sem dúvida, o aprimorou
a um estágio de perfeição. Se o drible, como diz Antonio Roversi, é
“uno stile consistente non più nell’aggredire, manell’aggiare l’avversario
con la palla al piede” 13, então Garrincha foi o seu grande mestre. Ele
passou para a história do futebol brasileiro como o seu maior driblador.
O fato é que Garrincha já fazia o drible no corpo antes mesmo
de conhecer o futebol. Suas pernas tortas, seus movimentos sincroni-
zados e atípicos, ao mesmo tempo, são o próprio drible. Quem o
visse andando e mancando, jamais imaginaria que ali estava um gran-
de driblador.
Por isso, a meu ver, seu corpo é o próprio drible. Quando me-
nos, enganava tanto quanto o drible. Ao contrário dos jogadores
truculentos, ele acreditava muito mais na sua rapidez de raciocínio e
na competência de dominar a bola nos pés, do que no seu potencial
físico, na luta corporal direta com o adversário. Talvez por isso, desli-
zasse entre seus adversários sem que estes pudessem atingi-los.
Quem não teve a oportunidade de assistir o espetáculo dos
desconcertantes dribles de Garrincha, aterrorizando seus adversári-
os, pode vislumbrá-los hoje. Para tanto, basta imaginar o vôo de uma
borboleta. Nunca se sabe para que lado ela vai. Garrincha era assim.
Uma borboleta “voando” sobre a grama, e os adversários nunca sabi-
am onde achá-lo, embora sempre estivesse indo, com a bola, em
direção a eles para fazer o que mais sabia e gostava: driblar.
Este era o futebol de Garrincha. A técnica, a rapidez, os movi-
mentos perfeitos no momento certo. A “finta corporal” como se fosse
a borboleta voando. Enfim, este é o chamado futebol-arte praticado
por estilistas e profissionais de alta técnica.

O Corpo e o futebol
Com efeito, os jogadores de refinada técnica têm, mas últimas
décadas (de 1970 até hoje), perdido parte do seu espaço, em benefí-
cio de atletas de maior vigor físico. Esta é, na verdade, uma prática
que ganha prestígio entre fisicultores e treinadores de futebol a partir
de 1974, quando o futebol alemão conquistou pela segunda vez, o
Campeonato Mundial.
A esquadra alemã, que no jogo final superou a refinada técnica
13
As palavras de Antonio Roversi estão contidas na Introdução do livro Norbert Elias
e Eric Dunning, Sport Agressività... já citado, p. 12.

144
da seleção holandesa, era formada por jogadores fisicamente bem
dotados. É nesse momento que surge uma questão importante no
universo do futebol. Coloca-se a seguinte pergunta: qual a forma mais
eficiente de se chegar a vitória: é através do futebol técnico ou de um
futebol estruturado no vigor físico? A experiência de 1974 demonstrara
que a força {Alemanha) havia superado a técnica (Holanda).
De tudo isso, no entanto, sobrou a revolução tática e técnica,
engendrada pelo treinador holandês Rinus Michels, que ficaria conhe-
cida pelo nome de “carrossel”. Ocorre que a tática do “carrossel” tam-
bém exigia um preparo físico exuberante do jogador, embora não pre-
cisasse ser fisicamente avantajado como era toda a seleção alemã
daquele campeonato.
Dessa discussão entre a força e a técnica, os treinadores de
futebol chegariam à conclusão mais sensata: o ideal é dirigir um time
fisicamente forte e tecnicamente aprimorado. Uma utopia, é claro.
Uma das duas alternativas, porém, deveria prevalecer. Como a ten-
dência de qualquer evolução tática no esporte em geral - e o futebol
não é exceção - é envelhecer, torna-se superada, é evidente que a
opção seria pela opulência física. Nesse momento, é que o chamado
futebol-força passa a ser contemplado. Torna-se um acontecimento
de âmbito internacional e não apenas europeu. A experiência alemã
obteve êxito, atravessava o Atlântico e chegava à América.
Por uma ironia histórica, o futebol brasileiro, respeitado por sua
refinada técnica, entrava em crise. A geração campeões mundiais,
em 1970, começava a se despedir do futebol e não apareciam substi-
tutos à altura. Dentro do próprio país, o futebol começava a perder
prestígio. O público nos estádios diminuía e os clubes entravam em
crise econômica.
A solução, evidentemente, não estava em assimilar o chamado
fulebol-força dos alemães em especial e tampouco da Europa como
um todo. Mas foi esta a alternativa em face da crise técnica porque
passava o futebol nacional. Ao torcedor brasileiro isto significava mui-
to. Entre outras coisas, representava ferir seu orgulho e reconhecer
que no seu país já não se praticava o melhor futebol. Mais grave era
notar a visível transformação pela qual passava o futebol brasileiro
que, por falta de opção e de jogadores técnicos, introduzia a concep-
ção do futebol-força alemão, vitorioso em 1974. A técnica cedia espa-
ço à força.
Para a frustração do torcedor brasileiro e do orgulho nacional, a
conseqüência pior estaria por vir. A imagem que se criou e se tornou
uma espécie de instituição e de símbolo nacional começava a desa-
parecer dos estádios. Um tipo assim de “marca registrada”, não só do
jogador brasileiro, mas também, do cidadão brasileiro. Trata-se da
manemolência, do gingado, do jogo de corpo, enfim, de uma certa
astúcia corporal que o brasileiro acredita ser uma peculiaridade sua.
Certo ou não, o fato é que alguns antropólogos e sociólogos,
entre eles, Gilberto Freyre, tentam explicar estas características atra-
vés do hibridismo afro-brasileiro. Vejamos o que diz Gilberto Freyre:

145
“...o desenvolvimento do futebol, não num esporte igual aos
outros, mas numa verdadeira instituição brasileira, tornou possível a
sublimação de vários daqueles elementos irracionais da nossa forma-
ção social e de cultura. A capoeiragem e o samba, por exemplo, es-
tão presentes de tal forma no estilo brasileiro de jogar futebol que um
jogador um tanto álgido como Domingos da Guia, admirável em seu
modo de jogar, mas quase sem floreios - os floreios barrocos tão do
gosto brasileiro - um critico da argúcia de Mário Filho pode dizer que
ele está para o nosso futebol como Machado de Assis para a nossa
literatura, isto é, na situação de uma espécie de inglês desgarrado
entre tropicais. Em moderna linguagem sociológica, na situação de
um apolíneo entre dionisíacos. (...) com esses resíduos é que o fute-
bol brasileiro afastou-se do bem ordenado original britânico para tor-
nar-se a dança cheia de surpresas irracionais e de variações dionisíacas
que é. A dança dançada baianamente por um Leônidas e por um Do-
mingos, com uma impossibilidade que talvez acuse sugestões e influ-
ências ameríndias sobre sua personalidade ou sua formação 14”.
A citação é longa, mas esclarecedora. Necessária. Como se
pode observar, a instituição do gingado, da manemolência e do jogo
de corpo já tem tradição no futebol brasileiro.
A partir da conjunção dos dois fatores: a crise técnica e a
consequente introdução do futebol-força - o gingado, o jogo de corpo
(que se pense em Garrincha) e a manemolência passariam, lenta-
mente, a desaparecer dos estádios brasileiros. Em 1975 já se perce-
bia com clareza a influência do futebol-força no Brasil.
O Sport Club International de Porto Alegre contrata o técnico
Rubens Minelli conhecido por sua competência profissional. Intransi-
gente defensor do futebol-técnico Minelli, ironicamente, inaugura o fu-
tebol-força no Brasil, conquistando o campeonato brasileiro daquele
ano. Em 1976, com o mesmo time, ele sagra-se bicampeão.
A contradição de Minelli, na verdade, é apenas aparente. Quan-
do estruturou o time do Internacional procurou contratar jogadores de
grande porte físico, ainda que tecnicamente limitados. Ocorre que
estavam nesse elenco, jogadores como Falcão, Batista, Elias Figueiroa
e Dario. Todos eles dotados de bom porte físico e tecnicamente res-
peitáveis. Assim as conquistas de Minelli e do seu Internacional se
devem, fundamentalmente, à oportunidade de se mesclar técnica e
força.
A concepção do futebol-força, no Brasil, atinge o ponto máximo
no Campeonato Mundial da Argentina em 1978. Cláudio Coutinho,
capitão do Exército e treinador da seleção, resolveu optar pela força e
deixar a técnica do jogador brasileiro em segundo plano, baseado no
seguinte argumento: “o campeonato mundial da Argentina será a com-
petição da força e da virilidade. Nossos jogadores precisam estar pre-
parados para esta batalha.” 15 Foi pensando dessa forma que o técni-
co brasileiro não convocou Falcão e Sócrates, dois jogadores técni-
14
Gilberto Freyre, no prefácio do livro de Mário Rodrigues Filho, O negro no futebol
brasileiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1964, p. 2-3.
15
Entrevista concedida ao Jornal dos Sports, Rio de Janeiro. 6/2/1978

146
cos e em boa forma na época. Preferiu levar jogadores fisicamente
mais fortes e tecnicamente limitados, como o voluntarioso Chicão.
As interpretações sobre a transformação estrutural do futebol
brasileiro (abandono da técnica e adesão da força) passaram pela
esfera do político, econômico, social e cultural. Algumas análises
apressadas davam conta de que o país, vivendo sob a égide da ditadu-
ra militar, estava agora militarizando seu futebol, trocando a técnica
pela força. Certo ou errado, o fato é que começam a surgir no linguajar
futebolístico brasileiro alguns termos até então mais familiares ao uni-
verso militar. Por exemplo: expressões como “canhão”, “tanque”, “tiro”,
“explosivo”, “batalha” etc., passam a se popularizar na linguagem co-
tidiana do torcedor. O “canhão”, por exemplo, tem duplo significado: a)
jogador de físico avantajado, mas tecnicamente precário; b)chute muito
forte. “Tanque” - jogador de físico avantajado que usa o corpo como
instrumento de ameaça ao adversário. “Tiro” - chute em direção à tra-
ve. “Explosivo” - jogador que surpreende pela velocidade, força física e
movimentos corporais muito rápidos ao conduzir a bola em direção à
área adversária. “Batalha” - partida de futebol decisiva.
Convém registrar que toda essa terminologia militarizada tem
muito a ver com a presença do capitão Cláudio Coutinho na direção
técnica da seleção brasileira. Apesar disso, não se pode, em sã cons-
ciência, dizer que o Estado estava militarizando o futebol brasileiro.
Esta questão mereceria uma análise à parte.
Com Cláudio Coutinho, porém, os exercícios físicos dos joga-
dores passam a ter uma concepção cientificista, uma vez que seu
trabalho seria baseado na metodologia do fisicultor norte-americano,
Kenneth Cooper. Importante destacar que o “método Cooper” já era
usado no Exército pelo Capitão Coutinho, quando dava aulas de edu-
cação física aos soldados. Foi ele, aliás, o introdutor da fisicultura
cooperniana no Brasil.
De 1978 até hoje, a própria concepção de competição no fute-
bol do Brasil começaria a mudar. A manemolência, a capoeiragem
(como chama Gilberto Freyre), a criatividade, uma espécie assim de
“orgulho da raça”, cediam espaço ao que podemos chamar de
“tecnoburocracia do corpo”. Essa, no entanto, não me parece a ques-
tão mais importante na transformação estrutural do futebol brasileiro.
Até porque, os adjetivos acima citados, são inatos ao jogador brasilei-
ro que, por sua profunda identidade com o futebol, jamais vai “burocra-
tizar” sua relação com a bola. A cessão do espaço a que me referi
antes só prevaleceu durante o período do Capitão Coutinho no coman-
do da seleção.
No meu modo de entender, o grande equívoco do treinador está
em introduzir no futebol brasileiro a idéia de que a rudeza, a virilidade,
a intimação corporal e a agressividade são ingredientes indispensá-
veis para se chegar à vitória. Essas tendências podem ser agrupadas
num só termo: o monopólio da violência. O que o treinador sugeria aos
jogadores como estratégia e tática, uma espécie de “filosofia da vitó-
ria”, nos faz lembrar muito pouco o campo de futebol e muito mais o
campo de batalha. Algo mais próximo ao militarismo dos exércitos do
147
que ao futebol enquanto espetáculo. Isto é um equívoco. Aliás, a con-
cepção de virilidade no esporte já foi exemplarmente analisada por
Theodor Veblen, quando diz que:
“na vida dos bárbaros, a valentia se manifesta de duas manei-
ras diferentes: como a violência e como engano. Em diferentes graus,
estas duas formas de expressão existem na guerra moderna e no
esporte. A estratégia e a astúcia pertencem tanto ao jogo desportivo
como à guerra 16”.
As análises de Theodor Adorno, para quem o esporte se carac-
teriza basicamente por seu elemento masoquista, vão bem ao encon-
tro do que pensa Veblen. Para o pensador frankfurtiano, “ao desporto
não só pertence o impulso a exercer a violência mas, também, o de
obedecer e sofrer.” 17 Adorno, na verdade, estava se reportando à ten-
dência ideológica que os esportes adquiriram na Alemanha com a
crescente ascensão do nazi-fascismo que, como se sabe, acreditava
na superioridade ariana.
As palavras de Adolf Hitler são, sem dúvida, a maior evidencia dessa
crença:
“dê à nação alemã seis milhões de corpos perfeitamente treina-
dos no aspecto desportivo, todos eles ardendo de um amor fanático
pela pátria e educados no mais; elevado espírito agressivo e, de ser
necessário, um estado nacional os converterá, em menos de dois
anos, em um exército 18”.
Esta é a síntese do pensamento fascista sobre o esporte. Des-
necessário qualquer comentário, senão apenas acrescentar que a tra-
jetória do fascismo alemão, de forma insofismável, a utilização do
esporte como instrumento político dos governos autoritários e das di-
taduras.
O Brasil dos anos 70 aproximou-se muito da concepção fascista do
esporte. No futebol, onde o país sempre teve muito prestigio, o corpo
teria, necessariamente, que ser um instrumento de intimidação e de
agressão, sempre bem preparado para “lutar” pela pátria no “campo
de batalha”. Quando a seleção brasileira disputava uma partida, esta-
vam em jogo não só a vitória pura e simples de uma competição es-
portiva, mas também, a honra, a glória e o prestígio nacionais. O go-
verno do presidente Médici, por exemplo, fez uma campanha político-
ideológica com o slogam de que éramos “os maiores do mundo”. Fra-
ses como: ‘.a economia cresce em ritmo de Brasil-Grande”, “eu te
amo meu Brasil”, “ninguém segura a juventude do Brasil”, “Brasil, ame-
o ou deixe-o”, seriam incorporadas ao cotidiano do cidadão brasileiro,
que vivia um falso momento de prosperidade econômica 19 e tinha ra-
zões aparentes para acreditar na ideologia do “milagre brasileiro”.
16
Theodor Veblen, apud G. Vinnai, El futebol como ideologia. Madrid:
Siglo Veintiuno, 1974.
17
Theodor Adorno, Prismas, 1981. p.75.
18
Hitler, apaud Vinnai, El fútbol... op. cit., p. 132
19
A década de 70, no Brasil, foi marcada pelo maior aumento da
dívida externa. A partir dos anos 80, o país passaria a pagar esse
empréstimo, causando a maior inflação da sua história e o conseqënte
empobrecimento da população.

148
Adesivos em veículos, rádio, televisão, enfim, a mídia como um todo,
divulgavam as mensagens publicitárias do Estado. A juventude brasi-
leira, segundo esse mesmo Estado, “forte, viril e sadia” estava “dis-
posta a todo e qualquer sacrifício em defesa das cores e da honra
nacionais.” 20 Esse era o perfil da sociedade brasileira nos anos 70.
Ironicamente, porém, o maior titulo do desporto nacional (a con-
quista do tricampeonato mundial de futebol no México) não usaria da
força, virilidade ou violência. Para vencer o campeonato a seleção,
considerada a melhor da história do futebol brasileiro, usou a refinada
técnica, a solidariedade entre os atletas e a competência individual de
jogadores sui generis como Tostão, Jairzinho, Pelé, Rivelino, Clodoaldo
e Gerson. A força, a virilidade e a agressividade eram exatamente os
elementos que não tinham espaço no conjunto brasileiro. A técnica
se sobrepôs à força. A última partida do campeonato, a que indicaria
o campeão mundial, foi realizada entre Brasil e Itália. Este jogo, a
despeito de ser decisivo, apresentou o menor índice de faltas de todo
o campeonato e o maior nível técnico de todas as partidas realizadas.
Para sorte da nação e consolidação da imagem vitoriosa que o gover-
no do autoritarismo militar estava criando no Brasil, a seleção de Pelé
vence a Itália por 4 a 1. Imediatamente, a conquista do tricampeonato
se tornaria em eficiente instrumento político de glorificação do Estado
autoritário. Imediatamente também, o presidente Médici passaria a
falar da “grande conquista nacional” e anunciaria, entre outras coisas,
que receberia no Palácio do Planalto, em Brasília, todos os “heróis da
nação”.
Não há dúvida que a conquista do tricampeonato, de alguma
forma, ajudou a prolongar a experiência fascista do Estado autoritário
no Brasil. Esta é a opinião de alguns analistas da sociedade brasilei-
ra, sempre que pensam no futebol dessa época: ao mesmo tempo,
convém registrar a forma oportunista com que o Estado se aproveitou
desta conquista. Devemos explicar melhor essa questão.
De início deve-se assinalar, que a seleção tricampeã não era,
na verdade, considerada a “ideal” pelo próprio presidente da Repúbli-
ca. Ele desejava uma esquadra “mais forte e agressiva “ como chegou
a dizer, para justificar a convocação de jogadores da sua simpatia.
Num certo momento dos treinamentos da seleção, o presidente Médici
tentou, inclusive, escalar o jogador Dario. Justificando sua estatura
física privilegiada. Ocorre que o treinador da seleção era João Saldanha,
militante confesso do então Partido Brasileiro Comunista (PCB). A
resposta foi imediata: “diga ao presidente que ele não me pediu opi-
nião para escolher seus ministros e, portanto, não pode opinar na
escolha dos meus jogadores.” 21 No dia seguinte João Saldanha esta-
va demitido do cargo de treinador da seleção brasileira e ameaçado de
prisão por desacato ao presidente. Mais importante que isso, no en-
20
Estas palavras foram pronunciadas pelo ministro do Exército em 1972, por ocasião
da entrega das espadas aos futuros oficiais que estavam comcluindo seus cursos na
Academia Militar das Agulhas Negras, no Rio de Janeiro.
21
Depoimento de João Saldanha em várias conferências realizadas no Brasil sobre o
futebol brasileiro dos anos 70.

149
tanto, é que este treinador, demitido às vésperas da estréia do Brasil
no Campeonato Mundial, deixou a seleção inteiramente estruturada
para o seu substituto, o técnico Zagalo. Não havia tempo hábil para
mudar nada. O time brasileiro, sob a ótica do Palácio do Planalto, era
a anti-seleção. Não possuía nenhum dos elementos desejados pelo
Estado: agressividade, corpulência, nacionalismo exacerbado etc.
Mesmo assim, após a conquista, os jogadores foram homenageados
pelo Estado como os “verdadeiros heróis nacionais”.
O futebol brasileiro, com efeito, nunca apresentou um time de
estatura física avantajada. Com algumas exceções, o cidadão brasi-
leiro apresenta estatura média, muito diferente dos “tanques” que o
Estado, personificado na figura do presidente, gostaria de ver vestindo
a camisa da seleção no México. Há até uma explicação biossociológica
para a estatura física do homem brasileiro que, por não ser tema des-
te ensaio, devo deixar para analisá-lo noutra oportunidade. Como se
sabe, a boa alimentação, na infância e na adolescência, com o con-
sumo equilibrado de produtos vegetais e animais, vitaminas, proteínas
e calorias, interferem substancialmente na compleção física e intelec-
tual do homem. Esse, infelizmente, não é o caso do Brasil nem de
outras populações do Terceiro Mundo. O Brasil sempre, desde suas
origens, enfrenta gravíssimos problemas de alimentação, o que tem
gerado no decorrer do tempo, um considerável índice de subnutrição.
Como poderia, então, o Estado autoritário dos anos 70, desejar
homens corpulentos, viris e agressivos vestindo a camisa da seleção
brasileira, se grande parte dos futebolistas do país emergem desta
população de subnutridos? A explicação sociológica mais sensata e
correta, a meu ver, passa mesmo pelo crivo da análise de desempe-
nho do Estado. Ou seja, o Estado autoritário só tem duas alternativas
para monopolizar o poder: a força e a farsa. A combinação desses
dois fatores prolonga mais a ditadura. E isso os militares souberam
fazê-lo com muita habilidade.
Talvez por isso, a história do Brasil tenha sido até agora, perio-
dicamente interrompida por regimes autoritários. A corpulência não é
a principal característica do jogador brasileiro, é a habilidade técnica.
Nesse ponto a estratégia do estado autoritário cometeu o erro de
exaltação a apoio num país de subnutridos. A habilidade e a técnica
do jogador brasileiro, para desgraça e glória do país, ao mesmo tem-
po, amenizaram o erro grosseiro da ditadura e venceram o campeona-
to mundial de 1970.
Por outro lado, deve-se pensar que a única alternativa para o futebol
brasileiro, como para o futebol do Terceiro Mundo subnutrido, é mes-
mo o aprimoramento da habilidade técnica. Competir fisicamente com
atletas bem-nutridos do Primeiro Mundo não é a forma mais inteligen-
te. Nesse caso, não estaria paradoxalmente na subnutrição um dos
fatores que fazem o futebol brasileiro mais técnico e menos viril? O
aprimoramento da forma técnica uma característica extremamente
exigida pelos treinadores brasileiros aos seus jogadores, não seria
uma maneira de suprir a diferença física em relação aos atletas dos
países desenvolvidos onde, na sua maioria são corpulentos? Esta é
150
uma questão a se pensar.
Deixo agora o campo das hipóteses para trabalhar com dados reais.
Seja como for, não sem motivos, a meu ver, a técnica, a habilidade, a
ginga e a manemolência do jogador brasileiro consagraram mundial-
mente o futebol do país, criando a imagem do futebol-espetáculo, o
futebol-arte. Uma espécie de dança do corpo e da bola. Há, porém,
uma explicação sociológica para isto. Além daquelas já apontadas
por Gilberto Freyre e citadas neste texto, desejo acrescentar outras.
No Brasil o futebol deixou, há muito tempo, de ser apenas um
esporte. Hoje é uma instituição de inegável força cultural para seu
povo. A despeito do intenso processo de urbanização da população,
são milhares os campos de várzea espalhados pelo país, onde a prin-
cipal diversão dos baixos estratos populacionais, é assistir e jogar as
tradicionais “peladas”. Esta prática no Brasil tornou-se quase um cos-
tume cultural. A população como um todo é muito bem informada
sobre a prática do futebol. Nos aglomerados urbanos, favelas, corti-
ços, grandes periferias ou nas várzeas verdes do interior do país, é
comum se verem crianças dando seus primeiros chutes na bola, fa-
zendo seus primeiros movimentos, tomando contato com os rudimen-
tos da técnica que mais tarde, quando profissional, serão chamados
de gingado e manemolência ou, como diz Gilberto Freyre, de “dança
cheia de surpresas irracionais e de variações dionisíacas”.
É assim que o futebol passa a fazer parte do olhos da cultura popular
brasileira. E, também, transcende a condição de mero espetáculo
coletivo para se tornar, ao lado do samba, da música sertaneja e do
carnaval, um dos mais fortes e significativos produtos da cultura popu-
lar deste país. É no trinómio carnaval, samba e futebol que o brasileiro
solta seu corpo no ar sem necessariamente se alienar como algumas
análises apressadas e pueris quiseram dar a entender. Sua relação
com o futebol transcende as quatro linhas do campo e o momento do
jogo. É uma paixão corporal. Algo muito próximo do que Freud chama
de “pulsão da libido” quando elabora sua teoria da sexualidade.
Não é novidade, aliás, o caráter libidinal do futebol no Brasil. “0
corpo solto no ar” não é apenas uma metáfora ou figura de retórica
como possa parecer. É, também, a imaginação voluptuosa de Cecília
que ao ver seu namorado Marcos Carneiro de Mendonça, goleiro da
seleção brasileira, em 1919 voar, esticar-se e fazer os movimentos
elegantes de goleiro à procura da bola, resolveu homenageá-lo com
um poema de convite ao amor. Vejamos:

O corpo solto no ar
Quando te vejo voar sobre o tapete verde
Para ir ao encontro da pelota
Imediatamente minha memória
Se reporta a ApoIo.
Teus longos braços viajam plenos pelo espaço
Como se fosse um elegante pássaro a passear.
Teu lindo corpo suspenso e solto no ar
Para a pelota abraçar
151
Me faz sentir o prazer do amor
O prazer de te amar.
Essas mesmas mãos que agora afagam a pelota
Mais tarde, na intimidade do amor
Meu corpo irão afagar.
Te vejo pássaro, homem e belo
Te vejo corpo, te vejo todo
Voa meu amor, vem voando
E pousa em minha casa
Traz essa elegância contigo.
Teu cheiro, teu corpo.
Voa, vem
Vou te esperar.

Bibliografia
CAILLAT, M. L ‘Ideologie du sport en France. Paris: Editions de la
Passion, 1989.
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Editrice il Mulino, 1989.
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de Bruxelles, 1989.
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LOPES, J. S. L. e MARESCA, S. La Disparition de “la joie du peuple”
Actes, Paris, n. 79, septembre 1989, p. 2-36.
MARCUSE, H. Eros e civilização. Rio de Janeiro: Zahar, 1975.
RODRIGUES, M. F. O negro no futebol brasileiro. Rio de Janeiro: Civi-
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SCHNEIDER, M. Neurose classes sociais. Rio de Janeiro: Zahar, 1977.
Vários Autores. Violenza e sport. Torino: Corsi Editore, 1987.
Vários Autores. Sport e Violenza negli stadi. Torino: Corsi Editore,
1986.
VINNAI, G. El fútbol como ideología. Madrid: Siglo Veinliuno, 1974.

152
12 - PAIXÃO E CRISE NO FUTEBOL BRASILEIRO

Alguns países do chamado “terceiro mundo” têm apresentado


nas competições esportivas resultados surpreendentes. No atletis-
mo, por exemplo, e mais especialmente nas corridas de média e lon-
ga distâncias, atletas marroquinos, nigerianos e quenianos, entre ou-
tros, têm certa tradição de vencedores. Os resultados olímpicos e as
competições atestam esse fato. Essa situação, porém, se repete em
diversas outras modalidades esportivas, tanto individuais quanto cole-
tivas, nos dando a impressão de que a riqueza econômica do país
nada tem a ver com o seu sucesso nas competições esportivas.
Na realidade, a prática nos mostra que não é bem assim. Em
que pese a crise por que passa toda a teoria marxista neste final de
século e especialmente sua filosofia política, é inegável que a estrutu-
ra econômica de um país ainda determina o sucesso ou o fracasso de
alguns setores do Estado e da sociedade. Seja no que diz respeito a
questões de infra-estrutura, ou ainda superestrutura como é o caso do
esporte.
Nesse aspecto, os exemplos acima mencionados são apenas
exceções que confirmam a regra, ou seja: é na produção da riqueza e
na sua distribuição mais equânime quanto possível, que reside a con-
solidação das estruturas econômica e democrática de uma nação. É
também nessas condições que se fortalece sua superestrutura produ-
zindo os resultados que se deseja.
Não é mera coincidência, muito menos uma obra do acaso, o
fato de os países ricos e desenvolvidos serem os grandes vencedores
das competições esportivas em todo o mundo. A própria história das
Olimpíadas ratifica nossa afirmação. Enquanto esses países conquis-
tam a grande maioria das medalhas de ouro, prata e bronze, aos paí-
ses de terceiro mundo reservam-se algumas poucas medalhas de bron-
ze, e em alguns casos, por esforço e obstinação pessoal do atleta,
pouquíssimas medalhas de ouro e prata.
A explicação para o sucesso dos países desenvolvidos, embora
seja simples e óbvia, deve ser repensada. Por trás dessa superiorida-
de “primeiromundista”, por trás dos músculos e da performance dos
atletas desses países, existe uma formidável infra-estrutura cujo raio
de ação possui a flexibilidade necessária para abarcar as conquistas
esportivas.
Sabe-se no entanto que, ao contrário das nações do terceiro
mundo, os países desenvolvidos cientificizaram as competições es-
portivas chegando a requintes admiráveis. Hoje, toda a alimentação,
153
treinamentos, equipamentos e até o lazer do atleta, passaram a ser
administrados por uma diretriz científica produzida em laboratórios
por estudiosos e pesquisadores especializados no esporte. Há um
exemplo muito elucidativo no esporte profissional. Trata-se do pugilis-
ta norte-americano, Evander Holyfield, campeão mundial da categoria
dos pesos pesados, em todas as versões, e que, segundo os especi-
alistas desse esporte, seria o único pugilista em condições reais de
enfrentar Mike Tyson e sair do ringue com uma vitória. Foi assim que
alguns investidores do boxe americano criaram o chamado “Projeto
Ômega”, que consistiu num investimento de US$ 20 milhões, no qual
trabalha uma equipe de 21 profissionais de alto nível como, psicólo-
gos, nutricionistas, fisicultores, endocrinologistas, sociólogos, entre
outros. Significativo é saber ainda que parte do dinheiro investido no
“Projeto Ômega” foi devidamente deduzido de impostos que seus in-
vestidores deveriam pagar ao governo americano. Por outro lado, a
vida do atleta Holyfield tem sido inteiramente administrada por esses
profissionais. Gostaríamos de analisar as implicações ideológicas da
perda de autonomia e de liberdade do atleta numa situação como
essa, mas esse é um tema que por si só exigia um ensaio à parte. De
qualquer modo, convém lembrar o exemplar estudo do sociólogo Kosta
Axelos, intitulado “A invasão da intimidade”, e de Gerhard Vinnai, “El
futbol como ideologia”, no qual a presença do Estado sobrepõe-se à
individualidade do cidadão, justamente à procura do sucesso no es-
porte, como forma de consolidar o establishment.
Embora nos países do terceiro mundo essa seja uma prática
quase rotineira (o Brasil é um bom exemplo), a procura desse suces-
so é feita de outra forma que não a cientificização esportiva do atleta.
Em face das profundas dificuldades econômicas em que sempre es-
tão mergulhados esse países, seria acintoso demais o Estado investir
mais na preparação científica do atleta e menos na educação de base.
Essa opulência de uma minoria, contrastando com a miséria econô-
mica coletiva, seria, sem dúvida, explorada politicamente pela oposi-
ção do Estado.
A alternativa é lançar mão daquilo que o lingüista e teórico fran-
cês Georges Mounin chama de “função apelativa” da linguagem, ou
seja, usar sempre o discurso com o objetivo de causar impactos emo-
cionais ao receptor da mensagem. Nesse caso, é claro, toda a estru-
tura da narrativa está centrada numa concepção populista de governo
e, em segundo plano, numa política esportiva de resultados imedia-
tos, Esse tem sido, com algumas poucas exceções, o comportamen-
to de governos de países do terceiro mundo onde, até pouco tempo,
prevaleciam regimes autoritários liderados quase sempre por ditado-
res militares. É o caso da América Latina e especialmente do Brasil,
o qual de agora em diante tomaremos como exemplo.
Nos últimos 40 anos, da Copa do Mundo de 1950 para cá, o
futebol adquiriu no Brasil uma popularidade muitas vezes maior que
os demais esportes, em que pese seu sistemático uso político por
parte do Estado, ou talvez por isso mesmo. O suficiente, pelo menos,
para eleger vereadores, deputados e senadores. Não é exagero afir-
154
mar que futebol e partidos políticos constituem-se duas grandes for-
ças políticas do país.
Contrastando com os demais setores, especialmente da cultura
e da educação, o futebol brasileiro, em âmbito federal, até que apre-
senta uma boa estrutura organizacional. Em alguns casos, compará-
vel mesmo a países do primeiro mundo. Nada disso, no entanto, pas-
sa do papel. Não ultrapassa as fronteiras burocráticas do CND (Con-
selho Nacional de Desportos), afeto à Secretaria dos Esportes. A com-
plexa máquina administrativa do Estado, em que pese o esforço isola-
do de alguns políticos, mantém-se emperrada e incompetente para
resolver até problemas vitais do país, como o aumento progressivo do
desemprego, da inflação econômica, da mortalidade infantil e da fome.
As pesquisas e os estudos sociológicos revelam que a qualidade de
vida no país vem declinando na mesma proporção do aumento da
dívida externa e do déficit público1.
A sociedade, como de resto o futebol e as demais manifesta-
ções culturais do país, se ressentem da inoperância política e admi-
nistrativa do Estado. Hoje, o futebol brasileiro está mergulhado na
maior crise econômica da sua história (desde 1894 quando Charles
Miller introduziu esse esporte no país) e sem perspectivas a curto e
médio prazos de sequer amenizar a situação.
Tudo isso, porém, é apenas reflexo da grande crise econômica
por que passa o país nesses últimos 25 anos, onde cada vez, mais
acumula-se o descrédito popular sobre os políticos, o descrédito eco-
nômico internacional e até uma certa desesperança e ceticismo das
novas gerações na reconstrução democrática do país, após o flagelo
de 21 anos de regime militar.
Nesse sentido é que já não se pode mais justificar a miséria
social do Brasil, através do raciocínio linear da “Teoria da Dependên-
cia”, segundo a qual nosso subdesenvolvimento é uma situação im-
posta de fora para dentro pela força econômica dos países imperialis-
tas. Isso não é e nunca foi exatamente assim. A teoria da dependên-
cia, a bem da verdade, servia de trincheira onde os maus governantes
escondiam sua incompetência política e administrativa e os bem in-
tencionados estudiosos da sociedade criticavam com veemência a
presença do imperialismo no Brasil.
Portanto, se hoje o futebol brasileiro está capenga, padecendo
de anemia econômica profunda, enfim, com sua saúde financeira bas-
tante comprometida, isso se deve fundamentalmente aos desmandos
políticos e econômicos que exauriram a vida do país durante o período
dos governos militares. Ironicamente, no entanto, foram precisamente
os presidentes militares quem mais se beneficiaram com as conquis-
tas internacionais do futebol brasileiro.
No período de glória desse esporte no Brasil (anos 70) o
autoritarismo militar reinava soberano sob a liderança do presidente
general Emílio Garrastazu Médice, o mais tirano e obscuro dos presi-
1
Sobre esse assunto especialmente deve-se consultar o Sinopse do IBGE de 1990, o
Anuário Estatístico do Brasil de 1990, a Revista “Veja” nº 45, de 14-11-90 e as
publicações do DIEESE.
155
dentes do nosso país. O futebol brasileiro lhe rendeu o maior dividen-
do político de toda a sua gestão, conquistando em 1970, o
tricampeonato mundial do México e se apossando definitivamente da
taça “Jules Rimet”.
Nesse momento, o populismo do presidente Médice explorou
politicamente a conquista do campeonato. Todos os atletas tricampeões
do mundo foram recebidos e homenageados no Palácio do Planalto,
em Brasília, pelo presidente, numa cerimônia pomposa e transmitida
ao vivo pelas televisões para todo o Brasil. Naquela época o país vivia
um momento de falsa euforia econômica. Foi o período que passou
para a história econômica do país, conhecido por “milagre brasileiro”.
A economia “inchava” (não crescia), criando a falsa idéia de que o PIB
(Produto Interno Bruto) aumentava e de que nossa exportações eram
muito superiores às importações. Não era verdade. O falso momento
de euforia era produto de uma inteligente manobra econômica, do en-
tão ministro do Planejamento. O país contraia dívidas no exterior, au-
mentando progressivamente o montante da sua dívida externa. Esse
dinheiro era aplicado em obras faraônicas de grande impacto popular,
gerando novos empregos, aumentando os índices das Bolsas de Va-
lores do Rio de Janeiro e de São Paulo, facilitando o crédito às empre-
sas e o sistema de crédito ao povo, dando a falsa impressão de pros-
peridade econômica. No decorrer do tempo, no entanto, constatou-se
que a estrutura econômica brasileira era tão frágil quanto um castelo
de areia construído à beira-mar. A qualquer momento poderia ruir. O
foi precisamente o que ocorreu.
O governo seguinte, do presidente-general Ernesto Geisel, co-
meçaria a sentir os efeitos do aumento da dívida externa. Nem por
isso deixou de aumentá-la ainda mais.
Para pagar parte do principal da dívida e seus respectivos juros,
era necessário tomar dinheiro emprestado, aumentando a velocidade
e o raio de ação da espiral inflacionária que mais tarde, em 1989,
tornar-se-ia incontrolável.
Ao longo de toda essa trajetória, o que se tem observado é o
sistemático e gradativo empobrecimento da sociedade brasileira. A
literatura científica a esse respeito é vasta e não deixa dúvidas.
O futebol brasileiro, é claro, sentiria e acusaria de imediato os
reflexos da recessão econômica. Sendo o esporte mais popular do
país e uma espécie de termômetro da economia popular, o futebol
entra em lenta e progressiva crise. O torcedor que lotava os estádios
aos domingos começava a repensar sua economia e já não ia mais
tão freqüentemente aos espetáculos futebolísticos. Essa prática, par-
te integrante da sua rotina de vida e ponto central do seu universo
lúdico, precisaria ser parcialmente sacrificada como forma e tentativa
de amenizar seus problemas econômicos, Ledo engano. O pior viria
mais tarde e o torcedor, só em casos excepcionais, como decisões
de campeonatos e jogos muito importantes da seleção brasileira, com-
praria seu ingresso ao estádio. A cada temporada de campeonato, os
estádios ficariam mais vazios. De acordo com dados oficiais divulga-
dos pela CBF (Confederação Brasileira de Futebol), a presença do
156
torcedor de 1982 a 1986 nos estádios brasileiros diminuiu em 31%,
representando a maior evasão de público de toda a história do futebol
brasileiro até então2.
Já em 1991, no entanto, esses dados são inexpressivos se pen-
sarmos, por exemplo, nas estimativas da imprensa esportiva especi-
alizada em futebol, que ampliou esse percentagem para 40 a 45%.
Esses dados estatísticos, no entanto, não teriam importância se a
saúde financeira dos clubes brasileiros se mantivesse inalterada. Mas
não é isso o que sucede. Não é por acaso que a imprensa esportiva
brasileira se reporta à difícil situação econômica em que se encontra
o futebol brasileiro e seus principais clubes. Algumas vezes, tratando
diretamente do assunto, através de entrevistas com presidentes de
clubes, outras vezes de forma indireta, para citar títulos protestados,
atrasos de aluguel, de salários do atleta, envolvimentos em causas
trabalhistas, entre outras coisas.
Para melhor ilustrar a crise financeira do futebol brasileiro, con-
vém reproduzir um texto do jornal “O Estado de São Paulo”, de 8-1-
91. Em rápidas notícias, o jornal dá conta da situação do futebol no
estado do Piauí, caracterizando muito bem o momento das duas prin-
cipais equipes desse Estado. Diz o texto: “sufocados por grave crise
financeira, Tiradentes e Flamengo não poderão aceitar o convite for-
mulado pela CBF para representarem o Piauí na Segunda Divisão do
Campeonato Brasileiro. Os dois clubes não dispõem sequer de joga-
dores para formar os times que enfrentariam Moto Clube e Ceará na
primeira rodada. O Flamengo não tem dinheiro nem para pagar salári-
os atrasados de jogadores e funcionários. A situação do Tiradentes,
campeão estadual de 1980, não é muito diferente: o clube tem apenas
um atleta contratado e ainda não pôde renovar com o meia Zé Augusto,
ídolo da torcida. A última esperança dos dirigentes é uma possível
ajuda por parte da CBF”. Em outra matéria de igual teor, o “Jornal do
Brasil” acrescenta ainda, que o Flamengo do Piauí não realiza mais
treinos coletivos por falta de dinheiro para comprar material esportivo.
Apresso-me a registar que não estamos diante de uma exceção.
Os grandes clubes dos maiores centros futebolísticos do país
como São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul
vivem, proporcionalmente à sua grandeza e importância no futebol bra-
sileiro, situação semelhante. Dificilmente os presidentes desses gran-
des times investem dinheiro na compra de novos jogadores. Ao con-
trário, quase sempre querem vender seus melhores atletas ao exteri-
or, para equilibrar ou diminuir o déficit financeiro do clube. Retomarei
adiante esse assunto. Para tentar minorar o crise e superar a letargia
que se abateu sobre o futebol brasileiro, os dirigentes de clubes têm
usado de um expediente que, embora criativo, tem se mostrado
ineficiente. Para motivar o torcedor a voltar aos estádios e impossibi-
litados de realizar contratações de novos jogadores, os dirigentes re-
solveram fazer a troca de alguns atletas de um time para outro, O
resultado, é claro, não apresentou e nem poderia apresentar os efei-
2
Revista CBF, ano VII, número 9, 1986, Rio de Janeiro.

157
tos desejados. A evasão do publico dos estádios não é apenas uma
questão de falta de motivação do torcedor brasileiro. Mais importante
que isso, está o problema da sua sobrevivência econômica, uma vez
que seu salário vem declinando mês a mês, em contraste com sua
despesas que, em função da inflação, aumentam também mensal-
mente. A precária estrutura econômica do país, o desemprego, o cír-
culo vicioso inflacionário e a conseqüente recessão econômica têm,
nos últimos anos, levado o trabalhador brasileiro a um contínuo pro-
cesso de proletarização.
Nessas condições, as atividades lúdicas são as primeiras a se-
rem postas de lado em função da tentativa de manter o padrão de vida
e seu nível sócio-econômico. Assim, ainda que reconheçamos a
criatividade dos dirigentes dos clubes brasileiros e da CBF, essa situ-
ação dificilmente será alterada. Enquanto persistir no país uma políti-
ca econômica equivocada, o futebol brasileiro permanecerá como está:
capenga, empobrecendo dia-a-dia e cada vez mais distante da magni-
tude que o consagrou. Nesse sentido, convém ainda se pensar no
futebol não apenas como uma atividade lúdica pura e simples, como
se fosse desvinculado do contexto político e econômico do país. Evi-
dentemente que não é assim. Os esportes em geral e o futebol nesse
caso apenas refletem com seus resultados ruins a atual conjuntura da
sociedade brasileira. Dificilmente um país economicamente próspero
e bem administrado apresenta índices adversos nos esportes de for-
ma sistemática. Esse não é o caso brasileiro, obviamente. É fácil
entender que o futebol brasileiro não vai bem nas suas competições
internas e externas porque o país não está bem. É fácil também se
notar que nosso futebol empobreceu, porque nosso país vem empo-
brecendo a largos passos, a despeito das inúmeras tentativas através
de planos econômicos para reverter esse quadro. Por enquanto, todos
eles redundaram no desencanto e na frustração coletiva, bem ao esti-
lo do que vem sucedendo com a seleção brasileira de futebol a cada
quatro anos, quando é eliminada dos campeonatos mundiais que dis-
puta.
Visto e fora, no entanto, o futebol brasileiro ainda mantém o pres-
tígio semelhante àquele de alguns anos atrás quando conquistou o
tricampeonato mundial. Os especialistas estrangeiros (treinadores,
fisicultores e atletas) e a grande imprensa internacional ainda mantém
o mesmo respeito pela seleção brasileira. Em todas as disputas de
que participa, ela é sempre apontada como uma das grandes favoritas
como ocorreu recentemente no último campeonato mundial da Itália.
Esse fato tive a oportunidade de constatar pessoalmente, assistindo
aos programas de televisão sobre o campeonato mundial, ouvindo as
diversas opiniões de cronistas esportivos, de torcedores europeus (es-
pecialmente italianos), os comentários radiofônicos e as matérias de
jornais europeus, principalmente italianos, franceses e ingleses.
Esse prestígio internacional ainda intacto do futebol brasileiro
tem uma explicação bastante procedente, uma vez que ele é baseado
numa realidade incontestável. Refiro-me ao fato de que a seleção bra-
sileira de futebol propriamente dita, ou seja, a melhor formação da
158
nossa esquadra, a mais forte, não está no Brasil, nem seus jogadores
pertencem a clubes brasileiros. Basta observar, por exemplo, que o
time titular no campeonato mundial da Itália era formado por nove atle-
tas atuando em times europeus e apenas dois jogando por esquadras
brasileiras. São eles: Taffarel e Mauro Galvão, que após o mundial da
Itália foram também comprados por times europeus. Além disso, con-
vém assinalar que, com algumas poucas exceções (são os casos de
Renato e Sócrates), os jogadores brasileiros comprados por time eu-
ropeus quase sempre justificam, com suas atuações de alto nível, o
investimento feito na compra de seu passe. Em outros termos, o pres-
tígio adquirido por esses jogadores em gramados europeus reverte-se
em benefício da seleção brasileira, por quem atuarão mais tarde em
competições internacionais.
Assim, se por um lado o futebol brasileiro vive internamente uma
crise profunda em função da crise do próprio país, por outro lado,
externamente, consegue manter, com justiça, seu grande prestígio
internacional. Esse fenômeno, com efeito, revela uma situação pecu-
liar: nesse caso é notório que a crise do futebol brasileiro restringe-se
ao aspecto econômico-financeiro e à incompetência administrativa.
Esse último, no entanto, de forma mais localizada. Apenas algumas
instituições no nosso futebol são bem administradas. O primeiro as-
pecto, claro, transcende a esfera do futebol e dos esportes em geral
para abater-se sobre toda a sociedade brasileira, como vimos anteri-
ormente.
Nesses termos pode-se dizer, sem sobra de dúvida, que o fute-
bol brasileiro mantém uma admirável capacidade de renovação. De
acordo com a Federação Internacional de História e Estatística do
Futebol, o Brasil é o país que mais exporta jovens atletas para jogar
futebol em outros países, Essa renovação, sem dúvida, contribui de
forma decisiva para a manutenção do futebol brasileiro entre os me-
lhores do mundo.
Aqui, no entanto, cabem algumas considerações, perguntas e
alguns esclarecimentos. Como se explica, por exemplo, que um país
mergulhado numa crise econômica tão longa, quase crônica, com um
futebol mal administrado em sua grande maioria (há as exceções),
apesar do alto nível, possa renovar-se com tanta facilidade e rapidez?
A explicação é relativamente simples (embora não tenha uma só res-
posta), mas requer um conhecimento razoável sobre a cultura lúdica
brasileira.
O futebol foi introduzido no Brasil no fim do século XIX, para se
tornar mais tarde, ao lado do carnaval e da música (especialmente o
samba), um dos três mais importantes produtos lúdicos da cultura
popular brasileira3. É uma atividade esportiva de tal modo arraigada
aos costumes e tradições do provo brasileiro que se torna difícil imagi-
nar esse povo sem o prazer do grito de gol. Gilberto Freyre, eminente
sociólogo da cultura brasileira, certa vez escreveu sobre a paixão do
brasileiro pelo futebol. Diz ele: “o desenvolvimento do futebol, não num
3
Em meu livro, Memória do futebol brasileiro, Editora Ibrasa, São Paulo, 1990, eu trato
detalhadamente desse tema.

159
esporte igual aos outros, mas numa verdadeira instituição brasileira,
tornou possível a sublimação de vários daqueles elementos irracio-
nais de nossa formação social e de cultura. A capoeiragem e o sam-
ba, por exemplo, estão presentes no estilo brasileiro de jogar fute-
bol”4. Assim, para entender a ininterrupta renovação do futebol brasi-
leiro é preciso, antes de mais nada, olhar esse esporte não apenas
como um divertimento a mais, mas sim como um produto cultural
inteiramente absorvido e integrado à cultura popular brasileira. É isso
o que vamos ver agora.
Tanto na periferia dos grandes centros urbanos, quanto no interi-
or do país, a bola de futebol está sempre presente nas atividades
lúdicas das crianças e dos adolescentes. Com uma vasta área
territorial, o Brasil não padece de falta de espaço como ocorre em
alguns países da Europa. Os campos de várzea e as praias são os
locais preferidos dos brasileiros para improvisarem, a qualquer mo-
mento, a tradicional “pelada”. Trata-se de um jogo de futebol improvi-
sado, no qual os jogadores não precisam usar camisa, não existe
árbitro, nem traves (elas são demarcadas com pedras ou pedaços de
madeira) e nem tem hora certa para a partida terminar. É comum os
jovens jogarem uma manhã ou tarde inteiras, sempre fazendo
revezamentos. Entram no time alguns que esperam à beira do “cam-
po” e saem outros para descansar e voltar depois. Essa é uma prática
lúdica que já faz parte do cotidiano do jovem brasileiro, principalmente
daqueles pertencentes aos estratos mais modestos da sociedade.
Ao lado da tradicional “pelada” existem ainda alguns clubes que
mantêm sua escola de futebol, com o objetivo de preparar o pequeno
atleta para profissionalizar-se mais tarde. Em que pese os problemas
econômicos desses clubes, as escolinhas, como são conhecidas,
dispõem de toda uma infra-estrutura para que esse pequeno atleta
possa vir a se tornar um profissional mais tarde e justificar o investi-
mento, uma vez que o clube passa a mantê-lo. Dessas escolinhas
saíram para o profissionalismo jogadores como Zico, Romário, Taffarel,
Geovani, Facão, Bebeto, entre outros.
O grande celeiro desses atletas, no entanto, são os campos e
várzea da periferia e as praias. É nesses lugares que os treinadores
(nesse caso, chamados também de “olheiros”) recrutam boa parte
dos garotos que freqüentarão a escola dos clubes. Esses profissio-
nais vão assistir às “peladas” e convidam os jovens que se destacam
durante a partida. Foi assim que o “olheiro” Waldemar de Brito desco-
briu Pelé para o Santos Futebol Clube e para o futebol brasileiro. Essa
é uma prática que tem dado certo para a renovação constante desse
esporte em nosso país, revelando grandes jogadores e gerando bons
lucros com sua posterior venda ao exterior. Para se ter uma idéia da
exportação de atletas brasileiros formados nas escolinhas ou desco-
bertos nas praias ou na várzea, basta observar que, dos nomes ante-
riormente citados, apenas Bebeto ainda permanece jogando no Bra-
sil, embora já esteja há algum tempo sendo pretendido por diversos
4
Gilberto Freyre, in : Mário Filho, O negro no futebol brasileiro, Civ. Bras., Rio de
Janeiro, 1964, p. 2.

160
clubes europeus.
Importante acrescentar ainda que o nível intelectual do jogador
brasileiro é muito baixo por um motivo também muito simples, mas
que envolve a incompetência administrativa do Estado: o Brasil, como
se sabe, apresenta uma carência muito grande de vagas na sua edu-
cação de base. Existem mais crianças na idade de freqüentar a esco-
la do que vagas para absorvê-las. Esse é um problema crônico na
estrutura educacional brasileira, cujo ônus maior recai sobre a popula-
ção mais pobre do país. As classes sociais mais abastadas superam
essa carência pagando escolas particulares para seus filhos. As clas-
ses mais modestas não têm alternativa. Esperam por uma vaga para
seu filho, que nem sempre aparece. Enquanto isso, os campos de
futebol na várzea vão recebendo crianças que, quase como forma de
sublimar sua frustração por não poder freqüentar a escola no momen-
to certo, dedicam-se às populares “peladas” na esperança inconsci-
ente de que sua ascensão social se dê não mais através das letras,
da escolarização oficial, mas sim pela arte de jogar futebol. De jogar o
futebol gingado brasileiro.
Se tudo correr mais ou menos dentro das expectativas, alguns
anos mais tarde a criança ou o jovem adolescente estará iniciando
sua carreira de futebolista profissional. Se for um atleta dotado de
certo talento terá, num futuro bem próximo, a grande oportunidade de
ser contratado por uma equipe européia , americana, japonesa ou do
Oriente Médio realizando, dessa forma, sua independência financeira.
Nesse momento, porém, completa-se o ciclo renovação/exportação,
fenômeno que vem crescendo e acompanhando o futebol brasileiro
nos últimos 25 anos. Mesmo antes ele já existia, mas de forma mais
discreta e quase imperceptível. Como se sabe, os primeiros jogado-
res a atuarem em esquadras do exterior foram contratados por clubes
uruguaios e italianos, ainda na década de 20.
O último aspecto sobre a crise por que passa o futebol brasileiro
diz respeito à evasão dos seus melhores atletas vendidos ao exterior.
Os dirigentes de clubes asseguram que, se esses jogadores perma-
necessem no Brasil jogando por suas respectivas esquadras, a pre-
sença do público nos estádios e a renda dos jogos seriam bem maio-
res. É possível que sim, mas isso é uma dupla utopia. Primeiramente
porque é vendendo sues grandes jogadores, que os clubes brasileiros
continuam sobrevivendo, ainda que acumulando déficits. Em segundo
lugar, é plenamente justificável que um atleta profissional queira traba-
lhar no exterior, num centro onde, seguramente, poderá realizar-se
financeiramente. No Brasil, hoje, não há clube de futebol capaz de
pagar nem mesmo a metade do que um atleta profissional pode ga-
nhar em times europeus, especialmente italianos, espanhóis e fran-
ceses. Os clubes brasileiros não têm a mínima chance de evitar a
evasão desses jogadores. Ao contrário, em função do alto preço que
pagam aos clubes europeus (tendo como referência a sistemática
desvalorização da moeda brasileira), os dirigentes estão sempre inte-
ressados em vender seus jogadores, embora não ratifiquem publica-
mente esse intenção, justamente para não desvalorizar o preço do
161
passe do atleta. Coisa elementar da lei mais banal que rege as rela-
ções comerciais no capitalismo: a lei da oferta e da procura.
Ao mesmo tempo, emerge aqui um problema que deve ser pen-
sado com cautela: ora, se os grandes jogadores brasileiros permane-
cessem em suas respectivas esquadras, todos eles estariam nos gran-
des clubes do Brasil. Os jogos entre eles, provavelmente, levariam
mais público aos estádios, Mas isso nem de longe sequer ameniza a
crise por que passa o futebol brasileiro. Essa situação apenas privile-
gia ainda mais a grande esquadra cujo poder econômico, pelos me-
nos em nosso país, tem sido usado sistematicamente como instru-
mento de persuasão política quando surgem impasses nos campeo-
natos estaduais e brasileiros. Como se sabe, não foram poucas as
vezes em que grandes times brasileiros, incapazes de conseguir sua
classificação pelo desempenho técnico, o fizeram (e continuam fa-
zendo) através da justiça desportiva. Nessa instância, em que pese o
pomposo nome de STJD (Superior Tribunal da Justiça Desportiva), as
grandes esquadras são sempre (ou quase sempre) imbatíveis quando
se defrontam com esquadras de menor porte econômico e político.
Os exemplos são tantos e tão constantes, que se torna desnecessá-
rios qualquer um deles.
Nesse sentido é que a permanência do grande jogador nos ti-
mes brasileiros não resolveria a crise do nosso futebol. Essa seria
uma solução pouco eficiente par tentar resolver o problema pela supe-
restrutura. Não é assim. É um erro acreditar nisso. E as pequenas
esquadras, aquelas que não podem manter um grande jogador em
seu elenco, o que fariam para melhorar suas rendas nos estádios?
Nada. Elas não podem fazer nada, porque o problema central está,
como vimos, na precária estrutura econômica do Estado brasileiro
que insiste numa política econômica improdutiva e tautológica, levan-
do a sociedade a um constante processo de empobrecimento e, em
muitos casos, ao constrangimento de não poder satisfazer suas ne-
cessidades básicas.
Sendo assim, é claro, o torcedor começa mesmo a se afastar
dos estádios, Sua paixão pelo futebol deve ser contida, ou melhor,
reprimida, em face do seu empobrecimento cada vez maior. Seus com-
promissos financeiros não permitem mais que ele mantenha a mes-
ma assiduidade aos estádios. Mesmo assim, sua paixão pelo futebol
já é há tanto tempo de tal grandeza, que ele não pode mais prescindir
do grito de gol. Já faz parte de seu cotidiano, dos seus costumes,
enfim, da sua própria cultura.
Ele agora, apesar de tudo, tem dois motivos para torcer: continu-
ar gritando o nome do seu time ( o “grito de guerra” da torcida), mas
torcer também para que os políticos recuperem de fato a economia do
país. Só assim seria possível sua volta aos estádios e seu reencontro
com o futebol, sua paixão, o esporte que melhor reflete a crise e a
decadência econômica por que passa o Estado e a sociedade brasi-
leira.

162
Bibliografia
ABREU, Marcelo de Paiva – A ordem do progresso. Editora
Campus, Rio de Janeiro, 1989.

ANDREDD, Wladmir – Économie du sport. Presses Universitaires


de France, 1986, Paris.

CALDAS, Waldenyr – O pontapé inicial . Editora Ibrasa, São


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MARZOLA, Pier Luigi – L’industria del calcio. NIS – La Nuova


Italia Scientifica, Roma, 1990.

MICELI, Sérgio (org.) – Estado e cultura no Brasil. Difel, São


Paulo, 1984.

WITTER, J. S. “A várzea não morreu”, in: J.S. Witter e José


Carlos Sebe Meihy. Futebol e cultura. Convênio IMESP/DAESP, São
Paulo, 1982, pp. 101-104.

CANEVACCI, Massimo e outros. Lo sport tra natura e cultura.


Guida Editori, Napoli, 1984.

163
13. A Ideologia da Esperteza

O Brasil mudou. Aliás, cada vez mais aumenta a velocidade como


ocorrem essas mudanças. Isto é, sem dúvida, entre outras coisas,
reflexo da modernização do país, principalmente no tocante às formas
de comunicação. Veículos como jornal, rádio, e principalmente a tele-
visão, têm muito a ver com toda essa transformação.
Paralelamente a este processo de modernização, emerge ainda
um fenômeno bem brasileiro, que podemos aqui chamá-lo de Ideolo-
gia da Esperteza.
Embora seja um comportamento bem mais perceptível no meio
urbano-industrial, nas metrópoles brasileiras, é possível também
presenciá-lo em menor escala, certamente, em qualquer outra região
do país.
Agora, aqui cabe uma pergunta: mas afinal, em que consiste
esta Ideologia da esperteza? Consiste naquela visão destemperada e
egoísta de se levar vantagem em tudo o que se faz. Entre nós é co-
mum por exemplo ouvirmos frases como: “ quanto eu ganho com isso?”
“e o meu?”. E assim por diante.
Esta prática da esperteza, com efeito, também tem se transfor-
mado, se aprimorado. O suficiente, para inverter alguns valores cultu-
rais e morais em nosso país. A desonestidade, a maledicência e o
comportamento espúrio, por exemplo, permite-nos até acumular ri-
queza, ainda que de forma ilícita, é claro. O cidadão sério, honesto,
de límpido caráter, também pode fazer o mesmo, mas certamente
encontraria muito mais obstáculos. Nosso cotidiano tem revelado isso.
É nesse momento que se percebe a total inversão de valores:
premia-se a desonestidade e pune-se a honestidade. Isto nos faz lem-
brar o conhecido provérbio popular que diz o seguinte: “aos amigos,
tudo. Aos inimigos, ‘justiça’ ”. Parafraseando-o, a ética do comporta-
mento brasileiro ficaria assim: “aos desonestos, tudo. Aos honestos,
‘justiça’ ”.
Por outro lado, colocar esta delicada questão sem apresentar
provas bem claras de que isso efetivamente ocorre em nosso país
seria, no mínimo, um ato de irresponsabilidade. Não é o que pretendo
com este ensaio. Tenho muita resistência aos irresponsáveis. É por
isso que quero apresentar as provas e os exemplos que presencia-
mos no nosso dia a dia.
Existe hoje uma ética (melhor seria dizer antiética)
comportamental em nosso país que privilegia e promove a
165
desonestidade. Senão vejamos: o cidadão que estoca dólares em
seu cofre ou em sua casa, as pessoas que usam de falcatruas para
burlar a Receita Federal ao declararem o imposto de renda, que com-
pram ou vendem contrabando, que bajulam outras pessoas com tapi-
nha nas costas esperando retorno financeiro, político ou qualquer ou-
tra vantagem, que furam o semáforo no trânsito, que não respeitam a
faixa de pedestres, que se negam a fornecer recibo ou nota fiscal e
que de alguma forma lesam outra pessoa ou o Estado, são vistas por
grande parte da sociedade como muito vivas, inteligentes, super es-
pertas e outros adjetivos semelhantes.
Elas passam a ter respeito social e uma imagem de vitoriosas
por saberem ganhar dinheiro. Nesse caso, só aparece o resultado
final do comportamento do cidadão. Não interessa como ele procedeu
para ganhar dinheiro. Importante mesmo é que ele acumulou “prestí-
gio” aumentando o valor da sua conta bancária.
O contrário acontece com a pessoa honesta que tem consciên-
cia da sua cidadania. Por não usar de meios lesivos, por querer man-
ter sua dignidade e, sobretudo, por não abdicar da sua consciência
social, muitas vezes este cidadão torna-se motivo de chacota das
pessoas que prestigiam os atos de desonestidade citados anterior-
mente.
Isto é extremamente perigoso! Esses valores estão se inverten-
do em nosso país. Enquanto algumas pessoas se envergonham de
serem honestas, de exigir a nota fiscal no momento de compra para
não dar escândalo (tem acanhamento de exigir seu direito), de se
negar a comprar contrabando, há outras que aperfeiçoam as técnicas
de ludibriar seu semelhante e o próprio Estado. Estamos, desse modo,
diante de um novo e infeliz momento: o culto à desonestidade.
Pois bem, o perigo a que me refiro, está justamente na inversão
de valores. Não tenho dúvida em afirmar que a desonestidade é uma
instituição vitoriosa em nosso país. Que se pense em Jbsen Pinheiro,
nos Anões do orçamento, Luiz Estevão, Nicolau dos Santos Neto (o
Lalau), entre tantos outros casos. Aproveito, porém, para dizer que
isto não ocorre só no Brasil, é claro.
Ocorre ainda em outros países, mas com maior ou menor inci-
dência. A corrupção é apátrida. Nos Estados Unidos, um político cor-
rupto escolheu a televisão para, ao vivo, com um tiro fatal na boca,
livrar-se da justiça e da cadeia. Mas, nem ele nem sua família livra-
ram-se da humilhação a da pecha de desonestos. E mais do que
isso: humilhada, sua família teve que devolver todo o roubo aos cofres
do governo americano. Na China, um burocrata foi punido com a pena
de morte por desvio de dinheiro do Estado. Na Coréia do Sul, o ex-
presidente foi preso por corrupção e política de favorecimentos a gru-
po industriais. O ex-primeiro ministro da Alemanha, Helmut Kohl, líder
da reunificação alemã em 1990, maculou sua imagem com transa-
ções financeiras espúrias para beneficiar seu partido político. Humi-
lhado e sem nenhum prestígio, ficou envergonhado de, recentemente,
participar das comemorações dos dez anos da reunificação alemã.
Há outros exemplos, mas acredito que estes sejam suficientes. É
166
difícil afirmar, mas até onde sabemos através da imprensa internacio-
nal, não existe uma corrupção sistêmica, regular e organizada em
países com a França, Inglaterra, Estados Unidos, Alemanha, Cana-
dá, apenas para citar alguns com tradição jurídica.
Existe, isto sim, uma jurisprudência conexa e coerente, real-
mente levada a sério pelo Estado e pela sociedade. Isto, certamente,
harmoniza um pouco mais as relações sociais ou, quando menos,
inibe as arbitrariedades e a impunidade.
E no Brasil? Bem, são tantos os casos de corrupção, injustiça,
impunidade, bandalheira, e desmandos que, se relacionados um a
um, não caberiam todos neste trabalho.
Meu maior temor, porém, é que, no decorrer do tempo, este es-
tado de coisas venha a se tornar um valor cultural entre nós, se é que
isso já não ocorre. O Estado é, sem dúvida, altamente responsável
por esta situação. Seria uma puerilidade, senão burrice deixar de re-
conhecer isso. A prova está nos atos de corrupção praticados impu-
nemente por nossas autoridades. São muitos os casos e todos eles
publicamente conhecidos. Mas não se iluda caro leitor: com certeza,
aparecerão muitos outros que ainda não sabemos. As autoridades
dão o mau exemplo, é verdade, mas em sã consciência não pode-
mos responsabilizá-las (como não podemos também absolvê-las da
desonestidade) pela corrosão do caráter nacional de forma tão gene-
ralizada como ocorre de algum tempo para cá. Sempre houve políti-
cos corruptos, na História do Brasil. Isso, no entanto, nunca foi sufici-
ente, como não é hoje, para deformar e perverter o caráter nacional.
Não podemos também (pela maledicência e corrupção dos políticos),
justificar, premiar a desonestidade e punir a honestidade. Em nosso
país, ser honesto hoje, é sinônimo de boboca, de imbecil e de
desavisado.
Cabe a todos nós, nesse momento, reverter esse quadro.
Estamos próximos das eleições e é hora de fazer justiça ao político
desonesto negando nosso voto. Vamos votar com razão e consciên-
cia. Não vamos permitir que um ato de honestidade seja motivo de
acanhamento de ninguém. Os desonestos inveterados - adeptos da
Ideologia da Esperteza -, não podem fazer da sua prática ilícita um
valor cultural em nosso país, nem um instrumento de inibição da ho-
nestidade. E hoje nós corremos esse perigo. Vamos resgatar o res-
peito, a decência e a dignidade que estão em baixa na nossa socieda-
de. Só os insensatos podem acreditar na máxima – o mundo é dos
mais espertos. Não é. O mundo é de todos nós, sem exceção. É da
mulher, do homem, da criança, do jovem, do velho e da solidariedade
humana.

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