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LEV VIGOTSKI: MEDIAÇÃO,

APRENDIZAGEM E DESENVOLVIMENTO

UMA LEITURA FILOSÓFICA E EPISTEMOLÓGICA

Janette Friedrich

2011
LEV VIGOTSKI: MEDIAÇÃO,
APRENDIZAGEM E DESENVOLVIMENTO

UMA LEITURA FILOSÓFICA E EPISTEMOLÓGICA

ÍNDICE

Introdução
O programa e o método
Notas bibliográficas

A psicologia é possível como ciência?


A análise da crise em psicologia
O projeto de uma psicologia geral
Por um realismo científico

O termômetro da psicologia
Métodos diretos e indiretos
O conceito de psiquismo

A ideia de instrumento psicológico


O funcionamento do instrumento psicológico
Natural/artificial versus natural/cultural
A astúcia da razão ou o conceito de atividade mediatizante
Duas observações conclusivas

A formação dos conceitos na criança


Crítica dos métodos da definição e da abstração
Dois estudos experimentais: os dispositivos de Ach e de Sakharov/Vigotski
Os estágios de formação dos conceitos
O objeto de uma psicologia do desenvolvimento

O aporte específico da escola


A distinção entre conceitos cotidianos e conceitos científicos
As duas neoformações adquiridas na escola
A relação entre aprendizagem e desenvolvimento

Conclusão

Referências bibliográficas
INTRODUÇÃO

O programa e o método

O começo do século XX foi um momento decisivo para a constituição das ciências do


homem. A psicologia, as ciências da educação, assim como a linguística e a sociologia
ganham autonomia em relação à filosofia e criam suas próprias infraestruturas:
laboratórios, postos universitários, revistas científicas específicas de cada disciplina
começam a aparecer. Esse período foi também o dos fundadores. Wilhelm Wundt
(1832-1920) cria o primeiro laboratório de psicologia em Leipzig e trabalha na
psicologia experimental. Na França, Alfred Binet (1857-1911) desenvolve uma das
primeiras grandes pesquisas sobre o desenvolvimento intelectual da criança. E, em
Genebra, Édouard Claparède, em 1912, funda o Instituto Jean-Jacques Rousseau, a
chamada escola das ciências da educação. Um grande número de correntes que até hoje
dominam o pensamento teórico e os métodos empíricos nas ciências do homem se
constituíram nesse período. Entretanto, embora essa diversificação das teorias e das
pesquisas tenha sido uma das características fortes dessa época, uma delas, atualmente,
às vezes, parece ter sido esquecida ou deixada de lado. Essa geração dos fundadores das
ciências humanas produzia um saber sobre o homem ainda não esfacelado em um saber
puramente disciplinar. Isso se explica pelo fato de que a maioria era formada nas
faculdades de filosofia e que, mais tarde, nelas ensinavam psicologia, pedagogia ou
linguística. Além disso, a filosofia detinha ainda seu papel de «ciência das ciências »,
pelo menos no plano epistemológico. Assim, encontramos nas obras desses fundadores
não só resultados novos e aplicáveis pelos profissionais e métodos que vão fazer escola,
mas também reflexões epistemológicas e filosóficas que focalizavam, sobretudo, a
capacidade das ciências humanas de produzirem um conhecimento do homem que
pudesse, de direito, ser chamada de científica. Essa imbricação entre um pensamento
filosófico para as ciências do homem e um saber especificamente disciplinar faz com
que a leitura de seus textos frequentemente seja difícil. Ao mesmo tempo, essa situação
dá ao leitor atual a possibilidade de descobrir ideias que não foram retomadas por seus
sucessores ou teses que nem sempre encontraram acolhida nas correntes que, desde
então, continuam a se desenvolver em uma especialização cada vez maior.

Essa volta ao fundamento das ciências humanas, tal como é proposto neste livro, visa,
portanto, a duas coisas. De um lado, tem o objetivo de fazer conhecer a história dos
pensadores e das ideias com base nas quais construíram e ainda constroem nossas
concepções sobre o funcionamento do homem, como as que, por exemplo, tratam da
educação. Portanto, trata-se de estabelecer o estado da arte das fontes, dos germes, dos
esboços de inúmeras ideias que hoje fazem parte dos conhecimentos confirmados e
institucionalizados no quadro das ciências do homem. De outro lado, essa volta busca
encontrar alguma coisa de novo, ainda não explorada em toda sua riqueza. Esse olhar
sobre a história visa, de fato, ao potencial criativo das obras fundadoras, utilizando um
método bem específico para detectá-lo e trabalhá-lo. Hannah Arendt (1906-1975), uma
das raras mulheres filósofas do século XX, discorre sobre o método ensinado por seu
professor, Martin Heidegger, em seus cursos de filosofia nos anos 20 em Heidelberg:

Decisivo quanto ao método era que, por exemplo, não se falasse sobre
Platão e que não se expusesse sua doutrina das ideias, mas que um diálogo
fosse desenvolvido e sustentado durante o semestre inteiro, até que ele não
fosse mais uma doutrina milenar, mas sim, apenas uma problemática
fortemente presente (Arendt, 1974, p. 310).

É esse método que tentaremos aplicar na apresentação de um dos fundadores


incontestáveis das ciências do homem, a quem é dedicado este livro, um psicólogo e
pesquisador no domínio do ensino e da escola. Trata-se do pensador russo e soviético
Lev Sémionovitch Vigotski (1896-1934), que, desde os anos 80, é considerado como o
pai da corrente histórico-cultural em psicologia e em ciências da educação 1. Vamos
discutir algumas partes de sua obra, tentando não « falar sobre ele ». O objetivo não é o
de reproduzir suas ideias, de apresentá-las na forma de uma doutrina, de uma teoria bem
definida e fechada, mas, como Arendt sugere, o de pensar no interior de sua obra. Será
desenvolvido um diálogo, que tem por objetivo mostrar, no pensamento de Vigotski,
determinados problemas e determinadas questões que ainda não chegamos a formular,
mas que, entretanto, atualmente nos assaltam. Questões que parecem ser importantes de
colocar, aqui e agora, para podermos pensar, para podermos tratar da realidade que nos
interessa enquanto pesquisadores, professores ou formadores e que nos permitem no
que nos aproximemos dessa « problemática fortemente presente » em sua obra.

Esse objetivo só pode ser atingido por meio de leituras e releituras dos textos de
Vigotski. É a única maneira de proceder, a fim de evitarmos falar exclusivamente sobre
o autor. Mostrar o que ele faz, o que ele diz, quando ele o diz ; pensar o que ele pensa,
quando o lemos – este livro não propõe mais que isso. Para aproveitar plenamente desse
empreendimento, o leitor deve nos acompanhar com suas próprias leituras, a fim de
atingir o objetivo principal: poder pensar no interior desta obra.

Nota biográfica2

Lev Sémionovitch Vigotski nasceu em Orcha, em 1896, em uma família judia culta.
Um ano após seu nascimento, a família se instala em Gomel (Bielorússia), onde
Vigotski passa sua infância e sua adolescência. Nessa época, Gomel era uma cidade
reconhecida como ilustrada, com seus liceus, suas bibliotecas, seus teatros, com seu
1
Essa leitura de Vigotski foi iniciada nos Estados Unidos (Wertsch (1985) e Bruner (1990, 1996).
2
Essas notas biográficas baseiam-se, sobretudo, na biografia muito rica e bem documentada da filha de Vigotski,
Gita L. Vygodskaja e de Tamara M. Lifanova (2000) ; ver também Rochex (1997).
museu de Belas Artes. Muito cedo Vigotski participa dos círculos de amigos que se
constituem como círculos de discussão sobre temas muito variados, como a história dos
judeus, a história da filosofia, a dialética hegeliana, a arte poética. Em 1913, termina
seus estudos secundários, deixa Gomel e vai para Moscou, onde começa estudos de
medicina na Universidade imperial, estudos que abandona depois de um mês, para
continuar no domínio do direito. Sua escolha é determinada pela situação bem
específica dos judeus na Rússia dos tzares. De um lado, havia um numerus clausus para
os estudantes de origem judia; de outro, era proibido por lei que se empregasse judeus
como funcionários de Estado. Vigotski, portanto, teve de renunciar a seus estudos
prediletos, isto é, à filosofia e à literatura, decidindo-se por uma profissão independente.

Paralelamente a seus estudos de direito, Vigotski se inscreve na Universidade popular


de Chaniavski, na qual ele pode enfim seguir os cursos de história e de filosofia. A
Universidade de Chaniavski, uma instituição pública de Moscou, aceitava estudantes
independentemente do gênero, da nacionalidade, da religião e das convicções políticas.
Depois dos protestos dos estudantes em 1911 na Universidade Imperial de Moscou, que
terminaram com a intervenção policial do Estado, com uma violação aberta de sua
autonomia, muitos de seus melhores professores a deixaram para exprimir sua profunda
discordância. Muitos deles foram ensinar na Universidade de Chaniavski. Vigotski
aproveitou-se dessa situação, que fez dessa Universidade um dos melhores
estabelecimentos universitários da Rússia. Nela, ele seguiu os cursos e os seminários de
Gustav G. Chpet 3 (1879-1940), discípulo de Edmund Husserl (1859-1938), um dos
maiores filósofos alemães do século XX e fundador do movimento fenomenológico.
Nesse período, seus cursos foram consagrados ao problema da consciência, que Chpet,
muito bom conhecedor da filosofia moderna, discutia em relação a seu projeto de uma
filosofia científica. É provável que esses seminários tenham reforçado a atração de
Vigostski pela psicologia, fazendo com que ele decidisse fazer dela a sua profissão.

Durante seus estudos, seu interesse pela literatura e pela arte, já despertada em
Gomel, não para de crescer. Acompanhado de sua irmã, visita os teatros e museus da
capital russa, publica resenhas e escreve, entre 1915 e 1916, um trabalho final de curso,
com o título « A tragédia de Hamlet, príncipe da Dinamarca de W. Shakespeare ». Dez
anos mais tarde, em 1925, Vigotski utiliza alguns capítulos desse texto para defender
sua tese de doutorado, intitulada « A psicologia da arte » (Vigotski, 2005), que tem por
objeto a análise das reações e dos mecanismos psicológicos desencadeados pelas obras
de arte. Entretanto, o livro só foi publicado pela primeira vez em 1965. Esse interesse
pela arte e principalmente pela literatura nunca foi desmentido e grande parte de seus
projetos dão a plena medida desse interesse. Dentre eles, mencionamos um projeto de
colaboração com o célebre cineasta russo Serguéï M. Eisenstein (1898-1948), que não
pôde ser realizado pela falta de tempo que restava a Vigotski.

Tendo acabado seus estudos em 1917, Vigotski volta a Gomel. O momento é


propício, dado que o governo oriundo da revolução de outubro tinha abolido todas as

3
Sobre Chpet (2007), ver o prefácio de Maryse Dennes na tradução francesa do texto « La forme interne du mot ».
medidas de discriminação antissemitas e, a partir de 1919, Vigotski começa suas
atividades pedagógicas. Ensina em várias instituições em sua cidade natal: em escolas
públicas, em escolas profissionais, em instituições de trabalhadores ou populares e no
instituto de formação de professores. Ensina língua e literatura russa, lógica, psicologia,
história, ética e filosofia. A experiência adquirida nesses anos foi resumida e analisada
pelo autor em sua primeira grande obra A psicologia pedagógica, que surge em 1926.
Na escola de formação dos professores, ele abre um laboratório de psicologia, no qual
se desenvolvem seus primeiros trabalhos experimentais sobre o processo de ensino e
sobre as capacidades das crianças com deficiência mental. Dois domínios que ficam, no
transcorrer de toda a sua vida, no centro de suas preocupações científicas.

Em 1924, Vigotski participa do II Congresso Panrusso de Psico-neurologia em


Petrogrado, com três exposições sobre os resultados de suas pesquisas. Suas
intervenções não passaram despercebidas e desencadearam mudanças em seu destino.
Konstantin N. Kornilov (1879-1957), nomeado recentemente como diretor do
prestigiado Instituto da Psicologia de Moscou, que ele visa a reorganizar, elaborando
uma nova psicologia orientada por princípios marxistas, convida Vigotski para nele ir
trabalhar. Essa proposta se explica, em grande parte, pelo projeto que Vigotski defendia
em sua exposição intitulada « Os métodos de pesquisa em reflexeologia4 e em
pesquisa ». Nela, Vigotski critica a influente corrente da psicologia russa aprensentada
por Vladimir Bekhterev (1857-1927) e Ivan P. Pavlov (1849-1936) e que excluía o
estudo objetivo da consciência do campo da psicologia. Vigotski, usando a terminologia
da reflexologia, esforça-se em mostrar como uma reintrodução do conceito de
consciência se torna possível, sem ter que deixar o quadro de uma psicologia objetiva.
A proposta de tomar «uma terceira via » é expressa em um segundo texto, que Vigotski
escreve em 1925 sobre « A consciência como problema da psicologia do
comportamento », parecendo corresponder ao que Kornilov e muitos jovens
pesquisadores do Instituto de Moscou buscavam desenvolver. Vigotski aceita o convite
de Kornilov e se instala com sua futura mulher R.N. Smechova em Moscou, em um
pequeno apartamento do Instituto, até se mudar para um apartamento maior, na rua
Serpuchovskaja, onde moraram com suas duas filhas, Gita (1925) e Asja (1930). Em
Moscou, começa um período de trabalho extremamente intenso, que tem seu fim em
1934, quando Vigotski perde seu combate contra a tuberculose, doença que desde
Gomel rondava seus dias e o obrigava, durante toda a sua vida, a inúmeras
hospitalizações.

No Instituto, ele conhecerá seus dois mais próximos colaboradores: Alexandre R.


Luria (1902-1977) et Alexis N. Léontiev (1903-1979). Os três constituem o núcleo
(chamado de a troika) de uma equipe de pesquisa que reúne um grande número de
jovens pesquisadores cujo mestre, agora, é Vigotski. Os trabalhos realizados por
Vigotski durante esses anos em Moscou são inúmeros e é impossível enumerá-los.

4
A reflexeologia é a tentativa de conhecer e de inferir o conteúdo dos fenômenos psíquicos só a partir dos
fenômenos fisiológicos e principalmente dos reflexos. Essa corrente pretendia desenvolver um estudo puramente
objetivo em psicologia.
Podemos classificá-los em quatro domínios: 1) problemas epistemológicos e filosóficos
da psicologia, 2) trabalhos sobre o desenvolvimento e sobre a educação das crianças
com deficiência, 3) textos teóricos, pesquisas empíricas, aulas sobre quase todos os
domínios cobertos pela psicologia e pelas ciências da educação, 4) promoção e iniciação
de traduções de autores ocidentais mais influentes da época (Sigmund Freud, Jean
Piaget, William Stern) e a apresentação deles em prefácios e resenhas. Seus trabalhos
em defectologia (Vigotski, 1994) permitiram que fizesse sua única viagem ao exterior,
passando por Berlim, Amsterdam e Paris, ele participa em 1925, em Londres, do 25o
Congresso Internacional sobre a educação dos surdos-mudos.

No final dos anos 20, Vigotski e sua equipe veem suas condições de trabalho se
degradarem. São cada vez mais confrontados a acusações políticas mascaradas em
princípios científicos postos como progressistas. Seus trabalhos são oficialmente
acusados de grande abertura para as ciências ocidentais e falta de aderência aos
princípios de uma psicologia marxista. Esse clima de « limpeza ideológica » pesa
duramente sobre a equipe de Vigotski5. Léontiev6 deixa Moscou para trabalhar na
Academia de Psiconeurologia da Ucrânia, em Charkow. Luria viaja entre essas duas
cidades e Vigotski também planeja sua mudança para 1934. Nesse período, continua
seus trabalhos de pesquisa e ensino em várias instituições moscovitas, vai a Leningrado
para dar aulas de pedologia e termina seu livro principal Pensamento e linguagem, que
será publicado alguns meses depois de sua morte, em 1934.

Em 1936, é editado o decreto do Partido Comunista da União Soviética, chamado


Decreto da pedologia, que trouxe a destruição de uma grande parte dos resultados das
atividades intelectuais tão ricas e criativas dos anos 20. A obra de Vigotski é colocada
no índex, seus trabalhos são retirados de circulação, seus artigos são minuciosamente
cortados das revistas e das obras nas bibliotecas públicas. Só em 1956 é que Léontiev e
Luria reeditam Pensamento e Linguagem, que será traduzido para o inglês em 1962. A
partir dos anos 70, a recepção de Vigotski como fundador da escola histórico-cultural
em psicologia encontrar-se-á em plena emergência no mundo ocidental. Em 1990, saem
os seis volumes de Obras completas (Vigotski, 1982-1984) em russo. Um projeto
semelhante é desenvolvido por R. Rieder e seus colaboradores desde 1987 nos Estados
Unidos. Vertentes e escolas se constituem e se distinguem com leituras e pesquisas
específicas, muitas vezes fortemente ancoradas em debates que ocorrem em culturas
científicas nacionais. Apesar de um grande esforço editorial que, na França, desde 1985,
deu acesso aos textos mais importantes de nosso autor, com traduções de grande
qualidade, é preciso ressaltar que um número grande de seus escritos ainda não foram
editados, até mesmo na Rússia, onde novos projetos editoriais começam a ser
desenvolvidos (Vigotski, 2001)

5
Encontamos nas cartas de Vigotski (2008) alusões que mostram que ele teve consciência plena da gravidade da
situação.
6
Essa separação geográfica dos membros da troïka significa também o começo de uma divergência entre suas
posições teóricas que os escritos de Leontiev mostram, quando este começa, a partir dos anos 30, a esboçar sua teoria
da atividade (Friedrich, 1993, 1997).
CAPÍTULO 1

A PSICOLOGIA
É POSSÍVEL COMO CIÊNCIA?

Em 1927, Vigotski escreve seu livro A significação histórica da crise em psicologia7,


obra que exprime o que se chama em filosofia de prolegomenos. Estes desempenharam,
durante séculos, um papel iconstestavelmente importante, pois são longas introduções
ou obras de caráter introdutório que colocavam as bases e elaboravam os conceitos-
chave de um domínio ou de uma disciplina inteira. Os prolegômenos mais célebres são
os de Emmanuel Kant (1724-1804): Prolegômenos a toda metafísica futura que terá o
direito de se apresentar como ciência (1783), cujo título expressa muito bem a sua
função. A comparação da obra de Vigostski com determinados prolegômenos não é vã,
pois o psicólogo propunha um projeto semelhante: ele tentava desenvolver as bases e as
premissas necessárias para uma psicologia que pudesse ser uma ciência por inteiro. Essa
é a razão pela qual podemos atribuir a esse texto um lugar primordial em sua obra. Com
suas reflexões epistemológicas, ele reage e participa de um debate que se desenvolveu
nessa época, no quadro da psicologia ocidental. Vigotski não é o único a utilizar o termo
« crise » para descrever a situação dessa disciplina. Principalmente no mundo
germanofone, encontramos inúmeros artigos e livros que propõem uma análise crítica
da psicologia dessa época (Friedrich, 1999). Os diagnósticos de crise são tão diversos
quanto os autores que os desenvolvem. Mas há uma crítica que se encontra reiterada
pela maioria dos autores, a falta de unidade. É a coexistência, frequentemente não
articulada, de vários sistemas ou concepções, no quadro da psicologia, que é
denunciada. Cada uma das correntes existentes na época desenvolvia seus próprios
conceitos e métodos, frequentemente em oposição aos outros, o que teve como
consequência a descoberta de dados muito heterogêneos e de leis extremamente
divergentes.

Essa situação de uma psicologia esfacelada pode ser criticada dentro do quadro da
psicologia, chamando a atenção sobre o fato de que a falta de coesão afetaria,
necessariamente, as trocas e o compartilhamento do trabalho, indispensáveis a uma
disciplina científica. Entretanto, a crítica que Vigotski formula não toma esse argumento
tão frequentemente repetido posteriormente, o que, aliás, faz-nos pensar que a situação
8
atual no quadro da psicologia, de fato, não mudou.

7
Todas as citações de Vigotski nos capítulos 1 e 2 foram tiradas dessa obra.
8
O que é, por exemplo, confirmado por Bruner, em 1990 : « Eu o escrevi, no momento em que a psicologia [...] está
esfacelada como nunca tinha estado em sua história. Ela não tem mais centro de gravidade e se encontra ameaçada de
perder a coesão... » (1999, p.11).
Vigotski cita os que trabalham na prática, os psicólogos praticantes, os professores, os
formadores, que se apressam em utilizar as pesquisas realizadas em psicologia e que se
encontram, frequentemente, desamparados diante de uma massa de dados muito
heterogêneos. Como escolher, como se posicionar em relação aos resultados propostos
pelos cientistas, como decidir o que tomar como referência, se mesmo no interior da
psicologia falta um debate sobre essa diversidade? São essas questões que levam
Vigotski, por seu lado, a reagir à demanda de unificar a psicologia e a decidir responder
a ela em duas etapas: 1) traçando um estado da arte da psicologia de seu tempo, e 2)
esboçando os princípios fundamentais de uma psicologia que se quer científica.

A análise da crise em psicologia

A análise feita por Vigotski sobre as correntes existentes no quadro da psicologia de


seu tempo se baseia em um princípio bem preciso. Ele propõe considerar os sistemas
psicológicos como « realidades científicas existentes » ou, em outros termos,
« acontecimentos históricos vivos ». Essa comparação das concepções psicológicas com
seres vivos, uma comparação relacionada ao domínio da biologia, é utilizada para
denunciar uma ideia muito difundida nas ciências, a de uma naturalização dos fatos que
constituem seu objeto. Assim, ocorre, frequentemente, que os fatos estudados nas
ciências sejam tomados como fenômenos preexistentes à pesquisa, como objetos
atestáveis tais como o são na realidade. Vigotski se opõe a essa ilusão, dado que não é a
psiquê nem a educação tal como são analisadas, mas a psiquê e a educação em um grau
determinado de seu conhecimento, que é, por sua vez, determinado pela história das
ciências. Portanto, os objetos da ciência são categorias puramente históricas, não no
sentido de que a educação é diferente em função da sociedade sempre historicamente
determinada, em que ocorre, mas em função do grau de conhecimento anteriormente
produzido sobre ela pelas ciências que a tomam como objeto. Portanto, o que aparece
como uma propriedade natural do objeto não o é, dado que seu conhecimento é sempre
um conhecimento historicamente determinado, dependente do modo cada vez bem
específico de produção de conhecimento. Vejamos como Vigotski resume esse
princípio :
[...] a cada estágio do desenvolvimento da ciência, pode-se detectar, diferenciar,
abstrair as exigências que decorrem da própria natureza dos fenômenos estudados
em um determinado grau de seu conhecimento, grau esse que é seguramente
determinado, não pela natureza dos fenômenos, mas pela história do homem. É
exatamente porque as propriedades naturais dos fenômenos psíquicos, em um
determinado grau de conhecimento, são uma categoria puramente histórica – pois
essas propriedades se modificam no decorrer do processo de elaboração dos
conhecimentos.

[...], que é permitido considerá-los como a causa, ou uma das causas do


desenvolvimento histórico da ciência. (p. 100)
Essa decisão por um princípio histórico em detrimento de um princípio naturalizante
não é só uma escolha a se operar no quadro da teoria das ciências, mas ela tem
consequências para a análise dos próprios sistemas científicos. Tratando as correntes
psicológicas de seu tempo, como seres vivos, Vigotski vai mostrar em qual direção as
diferentes concepções se desenvolvem, a que elas aspiram, quais são seus confltos, qual
é o problema central que se detecta em seu movimento. A análise do caminho das
diferentes correntes de sua época constitui a originalidade do trabalho de Vigotski, que
baseia seu diagnóstico da crise na análise e não na ideia do que a psicologia deve ser9.

Ele começa sua análise das correntes psicológicas com uma segunda observação
preliminar que reforça sua argumentação a favor de um procedimento histórico. Em um
determinado momento de seu desenvolvimento, cada ciência define seu objeto com a
ajuda de uma abstração primária, afirma ele. Isso significa que, em cada ciência, vai-se
reencontrar um ou vários conceitos gerais que determinam seu conteúdo. Os que são
qualificados pelas diferentes disciplinas científicas como seus parecem ser os traços
fossilizados desse gesto. Trata-se dos conceitos que determinam o que, em um
fenômeno real, deve ser analisado e que, portanto, constitui o objeto do conhecimento
científico. Exemplifiquemos essa proposição com a ajuda de um exemplo que o próprio
Vigotski cita. Qual é a diferença entre a observação de um eclipse solar feita por um
astrônomo e por um leigo? O astrônomo utiliza conceitos, métodos, formas de fazer que
transformam esse fenômeno natural em um fato de astronomia, em um objeto do
conhecimento astronômico. No eclipse solar, o astrônomo vê mais, ou melhor, vê além
do que um simples curioso, não porque ele utiliza instrumentos sofisticados que não
temos à nossa disposição, mas porque tem um aparelho conceitual que transforma o
eclipse em um objeto de conhecimento científico.
.
Vigotski insiste no fato de que cada fenômeno do mundo é inesgotável e infinito em
seus traços e que essa diversidade faz com que o mundo real tal qual é não possa nunca
ser o objeto de uma pesquisa científica. Portanto, qualquer ciência precisa dessas
abstrações primárias que traçam e delimitam seu campo e que permitem converter um
fato qualquer em um fato científico. Tomemos um exemplo,o que é analisado em uma
pesquisa em ciência da vida depende do modo como a vida é conceitualizada. Se a
abstração primária é « a vida como acomodação e ajustamento ao meio », os fatos
analisados no mundo dos seres vivos vão ser diferentes dos que são os privilegiados em
uma pesquisa que trabalhe com o conceito de « vida como direcionalidade ou
intencionalidade » 10.

Voltemos agora ao diagnóstico de crise, que vemos elaborado no texto que


discutimos. De acordo com Vigotski, o problema com o qual a psicologia dos anos 20
encontra-se confrontada não é a falta de abstrações primárias, mas sim, o fato de que se
pode encontrar pelo menos três delas que servem, cada uma delas, de base para uma

9
Uma concepção normativa da psicologia acompanhada por um desenvolvimento dos critérios de cientificidade
encontra-se elaborada na obra Elementos da psicologia fisiológica de Wilhelm Wundt (1874/1886).
10
Esse exemplo se refere a uma discussão que teve lugar nos anos 20 e 30. Ver Gurwitsch, 1940.
corrente psicológica determinada. Vigostki distingue primeiramente a psicologia do
homem normal, frequentemente chamada de psicologia instrospectiva ou ciência da
consciência. Ela vê a especificidade dos fenômenos psíquicos em seu caráter não
espacial, que os tornam acessíveis exclusivamente ao sujeito que tem a experiência
desses fenômenos. O método proposto por essa corrente é a reflexão ou a « percepção
interior », que é, como diz John Locke, « observação aplicada [...] às operações
internas do espírito (1709/2001, p. 164). Por meio dessa forma de percepção direta, o
homem seria capaz de produzir um conhecimento sobre seus próprios estados mentais.
Todos nós sabemos algo sobre o que faz ter frio, sobre ter um sentimento de
preocupação, de sentir alegria, de pensar apoiando-nos sobre essa experiência específica
que é a reflexão11. Na psicologia do homem normal, essa capacidade foi transformada
em método, chamado de introspecção, e aplicado nas pesquisas para se conhecerem os
estados psíquicos e os conteúdos conscientes dos indivíduos.

A segunda corrente defende uma tese oposta, propondo desenvolver a psicologia


como ciência do comportamento. Vigotski coloca aqui a reflexeologia, cujos
representantes célebres são Pavlov e Bekhterev, que tem seu equivalente no
behaviorismo americano de James Watson (1878-1958). A consideração dos fatos
psíquicos como os comportamentos implica pelo menos duas coisas. Por um lado, eles
são identificados a atos de resposta do organismo a estímulos externos, a reflexos. Por
outro, uma tese bem surpreendente e sustentada. Nega-se a existência de uma causa
mental do comportamento ou, dito de outro modo, é inconcebível para os representantes
dessa corrente admitir a existência dos fenômenos psíquicos sob outra forma que não
seja a do comportamento exterior ou interior (funcionamento dos sistemas fisiológicos
ou neuronais). Esses dois tipos de comportamentos são os únicos dados analisados por
essa corrente, pois preenchem a condição de serem diretamente observáveis. Entretanto,
Vigotski insiste em ressaltar que há um traço comum que aproxima essas duas correntes
psicológicas : trata-se da utilização de um método direto em suas pesquisas. Enquanto a
psicologia do homem normal pretende que, com a ajuda da percepção interior, os
sujeitos podem acessar de imediato as operações psíquicas realizadas por eles, o
reflexólogo, por sua vez, observa diretamente as reações, os movimentos e os atos
comportamentais exteriores.

Resta-nos abordar a terceira corrente que Vigotski distingue pela abstração primária
do inconsciente. Essa abstração exige conceber a especificidade dos fenômenos
psíquicos no fato de que são determinados por uma realidade psíquica inacessível ao
sujeito, sem que se recorra a um trabalho suplementar, que seria o da psicanálise.

Tentemos expor uma primeira conclusão que nos guiará na sequência de nossa
leitura. Saindo das três abstrações primárias, as da consciência, do comportamento e do
insconsciente, temos três grupos de fatos científicos diferentes. Portanto, parece que o

11
Uma retomada dessa discussão se encontra em Nagel (1974/1987), que recolocou essa capacidade da consciência,
essa experiência consciente, como ele a designa, no centro dos debates em filosofia do espírito e em ciências
cognitivas.
diagnóstico de crise proposto por Vigotski denuncia, antes de mais nada, essa
multiplicação do objeto da psicologia, que tem, como consequência, que cada corrente
busca elaborar seu próprio princípio de explicação. Tal princípio é necessário, dado que
cada corrente é obrigada a trazer a prova de que é por meio de sua abstração primária
que o ser do psíquico, a realidade do psíquico pode ser apreendida. Entretanto, parece
possível resumir os resultados das análises vigotskianas sobre a crise de algum modo e é
preciso, logo a seguir, assinalar que a solução que ele propõe não consiste na pesquisa
de uma abstração primária comum e aceitável por todas as correntes. Bem ao contrário,
ele vai iluminar e questionar a filosofia do conhecimento que sustenta as três correntes
de sua época e que constitui, ainda hoje, o sustentáculo de inúmeras concepções da
psicologia e das ciências da educação. A segunda parte desse capítulo, dedicada à
análise que Vigotski faz da crise, contém, consequentemente, sua própria concepção
epistemológica e, mais diretamente, sua resposta à questão de saber como se pode
produzir um conhecimento científico no quadro da psicologia. Essa resposta
compreende dois elementos essenciais: 1) o projeto de uma psicologia geral e 2) a
proposta de métodos indiretos em psicologia (ver cap. 3).

O projeto de uma psicologia geral

Atualmente, não temos mais o hábito de falar de uma psicologia geral, o termo
desapareceu de nossos debates e são, frequentemente, os que fizeram seus estudos nos
anos 50 e 60 que se lembram dos inúmeros manuais que traziam esse título. Trata-se
então de uma psicologia que se mostrou pouco fecunda? Para compreender o que
Vigotski visa com esse projeto, é preciso lembrar qual função teve e que tem até hoje,
em determinadas disciplinas, a distinção entre ciências gerais e ciências particulares.
Vigotski utiliza essa distinção para seus próprios objetivos, referindo-se frequentemente
à botânica ou, mais ainda, à biologia, que mostram um bom exemplo dessa distinção.
Assim, fala-se das botânicas particulares, no sentido de que cada um de seus ramos é
especializado em relação a um subconjunto de vegetais (rosas, cactos, árvores, etc.). Do
mesmo modo, na biologia, o organismo vivo é analisado em subespécies, como os
peixes, os mamíferos, etc. Ao contrário, a botânica geral trabalha os conceitos utilizados
por todas essas ciências particulares, como por exemplo, o conceito de planta, de
fotossíntese, etc. Quanto à biologia geral, são os conceitos de vida, de seleção natural,
etc, que são analisados. Assim, uma ciência geral estuda os conceitos (gerais) utilizados
nas ciências particulares, detectando ou confirmando o que é comum a todos os objetos
da ciência em questão. Atribuir à ciência geral a tarefa de desenvolver um aparelho
conceitual que garantiria a unidade e a coerência de toda uma disciplina científica
apresenta-se como uma proposta bem sedutora, mas ela pode ser realizada de dois
modos diferentes. É o que Vigotski trabalha para mostrar, criticando a psicologia geral
desenvolvida no quadro da lógica, opondo a ela sua própria concepção. Como exemplo
de uma psicologia geral, Vigotski discute a obra de Ludwig Binswanger (1881-1966),
intitulada Introdução aos problemas de uma psicologia geral (1922). Essa obra é, para
ele, ao mesmo tempo, um recurso interessante para seu projeto e o objeto de sua crítica
apurada e convincente, que pode ser resumida na seguinte citação:
É certo que a ciência geral é o estudo dos fundamentos centrais, dos princípios
gerais e dos problemas de um determinado domínio do saber, e que,
consequentemente, seu objeto, sua metodologia de pesquisa, seus critérios e suas
tarefas são diferentes das disciplinas particulares. Mas é incorreto não a considerar
como uma parte da lógica, como uma disciplina lógica, [...], como se a psicologia
geral deixasse de ser uma psicologia para se tornar uma lógica (p. 109)

Para Binswanger, a psicologia geral toma como objeto os conceitos científicos


utilizados nas pesquisas psicológicas, examina o conteúdo desses conceitos e a relação
entre eles. Como ela realiza essa tarefa independendemente dos objetos que as ciências
particulares estudam, os conceitos são tratados como puras formas do conhecimento, de
onde a comparação que Vigotski faz entre a psicologia geral de Binswanger e a lógica.
Em lógica, é costume verificar a estrutura de um raciocínio independentemente do
conteúdo da proposição, ou ainda, estudar o conteúdo de um conceito e de sua relação
com outros conceitos, independentemente do que é conhecido por meio desse conceito.
Os critérios que guiam esse tipo de estudo não são os dos objetos reais, mas os da
lógica, dentre os quais encontramos, por exemplo, as regras de coerência e de não
contradição. Aliás, é um dos objetivos da lógica querer abstrair as formas de
conhecimento dos suportes concretos em que elas se exemplificam, a fim de poder
detectar sua estrutura e sua forma pura. Um exemplo que permite ilustrar esse
procedimento é a reprodução da língua natural por meio de sua forma lógica:

Se chove eu não saio. Ora, eu saio. Portanto, não chove.


Se e somente se A, não B. Ora, B. Portanto, não A.

A forma lógica do raciocínio nos permite verificar se as condições de verdade estão


respeitadas. Para decidir se o raciocínio está correto, não precisamos olhar o que se
passa na realidade. Isso também se mostra no fato de que a forma lógica seguinte seria
imediatemente refutada até mesmo por um não amador da lógica: Se e somente se A,
não B. Ora, A. Portanto, B. Sem sermos obrigados a verificar na realidade sobre o que
fala esse raciocínio, podemos decidir se ele diz a verdade com a ajuda do critério de não
contradição12. Essa « força » da lógica, ou, como diz Vigotski, o fato de que
« Binswanger está disposto a admitir que o método do conhecimento determina a
realidade, como em Kant a razão ditava suas leis à natureza » (p. 124), encontra uma
viva rejeição de sua parte. O que Vigotski critica na psicologia geral de Binswanger é o
fato de que ela trata os conceitos utilizados como separáveis dos objetos que visa a
conhecer. Assim, essa psicologia se propõe a não estudar os mesmos objetos das
ciências particulares, estudando exclusivamente os conceitos e as abstrações. Esse

12
Em filosofia, o conhecimento que é produzido pelo raciocínio lógico é chamado de analítico. Assim, um enunciado
é analítico, quando é verdadeiro em virtude das significações dos termos, ou dito de outro modo, quando sua
correspondência com a realidade não precisa ser constatada nem verificada pela experiência, como é o caso do
enunciado « um retângulo é um quadrado ».
procedimento tem como consequência que « os conceitos e os objetos reais são
separados por um abismo instransponível » (p. 124). Mesmo que seja verdade que a
ciência geral em biologia e em botânica não trate de objetos vivos e concretos como as
plantas e os animais, mas de abstrações como organismo, a evolução das espécies, a
seleção natural, a vida, entretanto, no fim das contas, a partir dessas abstrações, ela
estuda a mesma realidade que a zoologia ou a botânica. Seria um erro afirmar que
estuda os conceitos e não a realidade que neles se encontra refletida [...] (p. 109,
sublinhada pela autora).

Portanto, a conclusão de Vigotski pode ser resumida como segue: por meio dos
conceitos, a psicologia geral estuda a mesma realidade que as ciências particulares. A
realidade que é analisada pelas ciências particulares como um mundo imediatamente
perceptível por palavras e conceitos utilizados pelo cientista, essa mesma realidade é
também o objeto da ciência geral. Ela estuda a realidade, analisando os conceitos nas
ciências particulares; em resumo, trabalha sobre o conteúdo real dos conceitos, com a
finalidade de produzir um conhecimento verdadeiro sobre a realidade. Essa afirmação
de que o conhecimento científico não se produz apenas por meio das experiências, das
percepções, das observações e de sua denominação, mas também e em grande parte por
meio de um trabalho sobre o conteúdo real dos conceitos, eis aí o que está na base do
projeto vigotskiano de uma psicologia geral.

Finalmente, se os conceitos, como instrumentos, estivessem predestinados a fatos


determinados da experiência, qualquer ciência seria supérflua, milhares de funcionários-
registradores ou estatísticos-contadores poderiam então, transcrever o universo inteiro
em mapas, colonias, rubricas. O conhecimento científico se distingue do registro do fato
pelo ato de escolha do conceito requerido, isto é, pela análise do fato e do conteúdo (p.
117, sublinhado pela autora).

Por um realismo científico

Resta uma questão a ser estudada. Ela decorre imediatamente dessa tomada de
posição de Vigotski contra a compreensão que a psicologia geral recebe na obra de
Binswanger: o que é esse famoso « conteúdo real de um conceito » de que Vigotski
fala? Como se pode conhecer a realidade por meio dos conceitos? Vigotski esboça uma
resposta, com a ajuda de muitos exemplos, frequentemente emprestados das ciências da
natureza. Ele nos lembra de que é por meio dos conceitos de luz, de rotação e de
movimento que conhecemos o fato de que a terra gira em torno do sol. Com a ajuda
desses conceitos, enfim foi establecido o fato real do movimento da terra, apesar do fato
observável por cada criança de que o sol gira todos os dias em torno da terra.

Outro caso é citado por Vigotski no domínio da biologia. Como sabemos que as
formigas veem os raios químicos que são invisíveis para nós? É de novo por meio dos
conceitos, dessa vez por meio do conceito da luz, que esse conhecimento foi produzido
(ver p. 114).

Além disso, o psicólogo russo traz também exemplos oriundos das ciências do
homem como o célebre experimento de Pavlov sobre o reflexo condicionado.
Lembremos a definição de reflexo: ele é caracterizado por uma excitação periférica de
um nervo sensível que determina um movimento de resposta. Assim, a salivação do
cachorro começa imediatamente à visão do alimento que se põe diante dele. Esse
mesmo conceito de reflexo é utilizado por Pavlov para resumir uma situação mais
complexa em relação à primeira. No momento mesmo em que o alimento é trazido, o
pesquisador acende uma lâmpada na cela do cachorro. Depois de algumas repetições
dessa situação, só a lâmpada vai ser acesa, enquanto o alimento não é trazido e constata-
se o resultado que nos é bem conhecido: a salivação do cachorro é produzida, mesmo
com a falta do alimento.

Pavlov decide explicar esse fato, por meio do conceito de reflexo e, mais
particularmente, com o conceito de reflexo condicionado. Para bem compreender por
que Vigotski cita esse exemplo, parece-nos importante ressaltar o fato de que a escolha
desse conceito é uma decisão que determina fortemente o conhecimento desse
fenômeno. Enfim, tomando essa decisão conceitual, Pavlov realiza duas coisas.
Primeiro, ele expande o conceito de reflexo, mostrando que não há apenas uma
dimensão inata e que, portanto, ele não é apenas um produto da filogênese, mas que
também contém uma dimensão artificial. O reflexo pode aparecer como resultado de um
adestramento, de um condicionamento. Em segundo lugar, Pavlov afirma, com esse
conceito, que não se trata de um comportamento inteligente ou controlado que se
observa no cachorro de seu experimento. Ressaltemos que ele poderia ter utilizado, para
discutir seus resultados, um outro conceito, por exemplo, o de intelecto prereflexivo,.
Mas o conceito de intelecto prereflexivo fala de uma coisa diferente do que fala o
conceito de reflexo condicionado. Esse conceito teria explicado o que foi observado
como o resultado de uma aprendizagem, a qual permitiu que o cachorro descobrisse e
memorizasse a relação entre duas coisas e que tomasse esse saber de um modo não
reflexivo, desde que a situação o exigisse. Com o conceito de intelecto prereflexivo,
outro conhecimento do que foi descoberto no experimento de Pavlov teria sido
produzido. Poder-se-ia contra- argumentar à nossa ilustração desse exemplo, citado por
Vigotski, que nos parece ser bem claro, que se tratava de um reflexo, mas a situação
empírica não o « diz ». Trata-se de um gesto teórico do pesquisador, que decide utilizar
o conceito de reflexo condicionado e não utilizar o de intelecto prereflexivo para
conhecer o que acaba de constatar pela observação 13. Portanto, isso confirma a
necessidade e o interesse de trabalhar com o conteúdo dos conceitos e com a escolha
dos conceitos para podermos produzir um conhecimento sobre o mundo; um trabalho
que teve e que sempre terá lugar nas ciências, mesmo que não seja sempre explicitado.

13
Aliás, é esse mesmo trabalho sobre os conceitos, esse trabalho sobre o conteúdo real dos conceitos que fez que
conhecêssemos os comportamentos dos macacos observados por Wolfgang Köhler (1887-1967) nos célebres
experimentos em Tenerife como comportamentos inteligentes (ver Köhler, 1921 – 1927).
Entretanto, essa conclusão, coloca uma outra questão. Podemos, com o trabalho
sobre o conteúdo real dos conceitos, produzir, efetivamente, um conhecimento
verdadeiro sobre os fenômenos do mundo? Vigotski responde pelo positivo e adota uma
posição realista plenamente assumida. Poderíamos resumir essa posição do seguinte
modo. De acordo com Vigotski, o objeto do conhecimento científico existe sempre, ao
mesmo tempo, sob a forma do fato real e sob a forma de seu pensamento com a ajuda
dos conceitos. Dito de outro modo: há uma realidade que correponde às leis descritas
pela física, aos conceitos utilizados nas ciências, mesmo que essa realidade seja
diferente e que, frequentemente, não pareça corresponder às nossas visões ordinárias do
real. Como é o caso em relação ao movimento do sol, cuja descrição científica é
considerada como verdadeira não corresponde ao que vemos realmente. De fato, essa
realidade que conhecemos nas ciências através dos conceitos, não é, frequentemente,
relativa à nossas medidas e à nossas observações, mas trata-se, entretanto, de um
conhecimento verdadeiro da realidade produzida graças a conceitos que correspondem a
ela. O realismo em ciência significa que se reconhece que ele existe independentemente
de nosso pensamento sobre uma realidade que pode ser conhecida e que a confirmação
de uma teoria científica permite afirmar que a realidade é como a teoria que a descreve,
mesmo que pareça estar em contradição com nossas observações ou que essa realidade
conhecida pela ciência não seja ou que não venha a ser nunca observável 14. O filósofo
americano Charles Peirce (1839-1914) exprimiu a concepção realista em um slogan
bem claro: « Mas, de fato, um realista é simplesmente o que não reconhece nenhuma
realidade mais abstrusa do que a que é representada por uma verdadeira representação »
(1868/1987, p. 100).

Isso implica também que o realismo científico defende a tese de que um enunciado
científico é verdadeiro justamente em virtude de sua correspondência com a realidade.
Entretanto, há, no quadro da corrente realista alguns autores que preferem ressaltar que
essa correspondência entre conhecimento e realidade deve ser sempre considerada como
uma finalidade e que não se pode concluir daí que ela seja o único critério da verdade.
Essa nuance cética no quadro do realismo científico é frequentemente resumida do
seguinte modo: « A verdade de nossas teorias não transcende o conhecimento que temos
dela, apesar de que essas teorias incidam sobre um mundo objetivo » (Tiercelin, 2004,
p. 805)15. Esse modo de formular o problema impede imputar aos realistas uma
concepção ingênua no que se refere ao caráter histórico das pesquisas científicas que
também têm tanto os instrumentos científicos quanto os aparellhos conceituais
utilizados. Lembremos as reflexões de Vigotski expostas na primeira parte desse
capítulo que ressalta justamente esse fato e que nos levam a situar a psicologia russa
nessa corrente de realismo « moderado ».

Entretanto, quanto ao fato de que ele é um defensor de uma posição realista, não

14
Como isso foi, durante muito tempo, o caso de determinados planetas, cuja existência foi provada exclusivamente
por cálculos matemáticos.
15
Tiercelin relata aqui a posição do filósofo americano Hilary Putnam (1926-) que não para de procurar um realismo
que leve realmente em conta que as ciências não descrevem “uma realidade independente dos conceitos,
independente de toda perspectiva” (Putnam, 1909/1994, p. 328).
deixa dúvida. Vejamos como ele próprio exprime explicitamente essa posição. Para
isso, refere-se à obra de Friedrich Engels 16 (1820-1895), A dialética da natureza
(1883/1975), citando principalmente as passagens em que este reinterpreta uma ideia
central do grande filósofo alemão Georg W.F. Hegel (1770-1831):

O que em Hegel aparece como um desenvolvimento do julgamento como


categoria do pensamento como tal, aparece-nos agora como o desenvolvimento de
nossos conhecimentos teóricos sobre a natureza do movimento em geral,
conhecimentos que se baseiam em uma base empírica. Consequentemente, isso
mostra que as leis do pensamento e as leis da natureza se encontram
necessariamente de acordo entre si por pouco que sejam conhecidas de um modo
exato. (Engels, 1975, p. 227, citado por Vigotski, p. 126)

Vigotski comenta essas reflexões de Engels, formulando o que nos parece uma
conclusão pertinente para esse capítulo:
Essas palavras (de Engels) contêm a chave da psicologia geral como parte da
dialética:17 essa correspondência entre o pensamento e o ser em ciências é, ao mesmo
tempo, o objeto, o critério último e mesmo o método, isto é, o princípio geral da
psicologia geral (p. 126).

Poderíamos avançar dizendo que, para Vigotski, a resposta à questão de saber se a


psicologia como ciência é possível, é uma resposta positiva. Com a condição de que
isso não seja a realidade tal como considerada como o objeto da pesquisa, mas a
correspondência entre o fato real e o pensamento conceitual desse fato. Para Vigotski, é
incontestável que essa correspondência é o produto das práticas científicas
desenvolvidas em um determinado momento da história das ciências, das práticas que,
muito moventes, sempre visam, entretanto, a um conhecimento verdadeiro.

16
Friedrich Engels desenvolveu com Karl Marx uma teoria social e revolucionária da economia e da sociedade,
chamada desde então, de marxismo. Essa teoria foi um ponto de referência central nos debates intelectuais na União
Soviética nos anos 20.
17
A dialética é aqui compreendida no sentido de Hegel, como o estudo do automovimento do espírito, que, através de
um procedimento do conhecimento bem determinado chega à correspondência entre seu ser e seu conhecimento. É o
curso do espírito em seu autoconhecimento. Reencontramos aí a ideia da correspondência cara ao realismo.
CAPÍTULO 2
O TERMÔMETRO DA PSICOLOGIA

Métodos diretos e indiretos

Esse capítulo dedica-se à discussão do método que, como Vigotski assinala, tem o
objetivo de produzir a correspondência entre o conhecimento e a realidade, que
acabamos de discutir no capítulo anterior. Na Significação histórica da crise em
psicologia, Vigotski distingue dois grupos de métodos. O primeiro, o método direto,
dominou a psicologia de sua época e, principalmente a psicologia do homem normal
e o behaviorismo. O segundo grupo de métodos, o método indireto, é discutido por
Vigotski, de um lado, a partir das ciências da natureza e, de outro, das ciências
históricas.

O termo método direto recobre todos os procedimentos que afirmam que só é


possível estudar o que nos é dado pela experiência imediata. Esse método pode ser
desenvolvido por meio de observações externas, como é o caso para o
behaviorismo, ou sob a forma de observações internas, utilizando-se o método da
instrospecção atestável na psicologia do homem normal. No capítulo anterior, vimos
que, para os defensores dessas duas correntes, a experiência é considerada como a
única fonte e o limite natural do saber científico. Então, para eles, é necessário
sustentar que a única mediação entre o mundo e os pesquisadores são os órgãos dos
sentidos ou as suas extensões que um determinado tipo de instrumentos propicia,
como o microscópio, o telescópio ou o telefone. Esses últimos não nos liberam da
percepção, mas tornam acessíveis à percepção e à observação o que é invisível a
olho nu, como é o caso, por exemplo, de determinadas estrelas de nossa galáxia, que
só se tornaram observáveis depois da invenção do telescópio.

Vigotski submete essas posições a uma crítica radical, segundo as quais o método
direto seria o único método possível da psicologia. Em sua argumentação se
distinguem dois tipos de argumentos. O primeiro sustenta o fato de que
determinados domínios da psicologia não podem ser investigados com o método
direto. Vigotski cita a psicologia da criança, que, necessariamente, se torna « um
paraíso perdido para sempre ». Como queremos analisar o pensamento da criança,
seu modo de construir conceitos com um método que exige confiar na auto-
observação, na percepção interior e na fala da criança? Isso seria uma empreitada
extremamente trabalhosa, na visão de Vigotski, principalmente se considerarmos o
seu desenvolvimento cognitivo. Outro exemplo dado pelo autor é a filogênese do
psiquismo. A questão posta assemelha-se à anterior e recai de novo sobre a
acessibilidade do objeto de pesquisa: como se pode analisar diretamente o
nascimento dos fenômenos psíquicos na evolução da espécie humana? Assim, diante
dessas dificuldades, qualquer análise de caráter histórico deveria ser excluída da
psicologia. Uma última prova da fraqueza do método direto é dada pela abstração
primária da terceira corrente em psicologia, a saber, o conceito de inconsciente.
Vigotski pergunta como se poderia acessar ao insconsciente, que é justamente
considerado como estando « fora da consciência » (ou « recalcado »), ou ainda que
não é dado imediatamente ao sujeito e que, portanto, exigiria um trabalho
suplementar dirigido por um terceiro para detectá-lo.

Outro grupo de argumentos que Vigotski desenvolve contra o método direto aponta
para um caráter positivo. Ele propõe que nos voltemos para o psíquico e para as
ciências da natureza, a fim de apreender como nela se desenvolve uma liberação em
relação às percepções sensoriais. Assim, ele mostra que o conceito de força, tal
como é definida pela física newtoniana, é liberada de qualquer relação com as
sensações musculares e encontra sua « expressão » nas fórmulas matemáticas, que
permitem determinar a força necessária para se colocar um corpo em movimento,
sem que essa força seja necessariamente percebida ou mensurada 18. A maioria dos
conceitos em física apresenta a mesma característica. Para Vigotski, a conclusão que
decorre desse fato é incontestável: se o conhecimento científico e a observação
imediata não coincidem, isso significa, para as pesquisas em psicologia, que « a
distinção entre o conceito psicológico de base e a percepção sensorial específica
constitui a próxima tarefa ». (p. 163).

Mas como tal distinção pode ser feita? É a questão que ocupa nosso autor no
capítulo 8 do texto A significação histórica da crise em psicologia e que o leva a
reexaminar os métodos que têm um caráter indireto, como no caso dos métodos
interpretativos e reconstrutivos utilizados nas ciências históricas. Como um
historiador, um geólogo e um filólogo estudam o passado da humanidade e da terra
ou ainda das línguas antigas? De um modo indireto, frequentemente com o auxílio
dos traços que são os documentos transmitidos, os vestígios, as deformações das
pedras nas montanhas, os grãos encontrados em uma determinada profundidade da
terra, etc. É com a ajuda desses traços que o pesquisador formula um conhecimento
sobre o passado. Ele interpreta e reconstrói, a partir deles, o objeto que antes existiu.
Ele o faz de um modo indireto, como o engenheiro que, ao estudar o plano da
máquina, já estuda a máquina e não mais o seu plano.

passado (inacessível) traços

interpretação / reconstrução

Mesmo que, no decorrer dos séculos, a partir de documentos verídicos, os


historiadores tenham feito mais de uma interpretação errônea, isso não significa,

18
A segunda lei de Newton é enunciada da seguinte maneira: « Seja um corpo de massa m (constante): a aceleração
sofrida por um corpo em um referencial galileliano é proporcional à resultante das forças que ele sofre, e
inversamente proporcional à sua massa m ». Trasformando com essa lei a força em uma variável desconhecida, ela se
torna o resultado de um cálculo: .
para Vigotski, que a aplicação do método indireto nos afaste da verdade, mas sim,
muito ao contrário, que ele nos aproxima dela 19.
Os instrumentos com caráter específico, como o termômetro, servem para
exemplificar de maneira muito interessante o método indireto, que Vigotski
descreve da seguinte maneira:

No termômetro, lemos a temperatura; [esse instrumento] não reforça nem prolonga a


sensação de calor, como o microscópio aumenta a capacidade do olho, mas ele nos
emancipa totalmente da sensação, quando estudamos o calor [...]. O termômetro é o
modelo perfeito do método indireto; de fato, não estudamos o que vemos (como
com o microscópio) – a subida do mercúrio ou a dilatação do álcool -, mas sim, o
calor e suas modificações, tal como indicados pelo mercúrio ou pelo álcool.
Interpretamos as indicações do termômetro; reconstruímos o fenômento estudado a
partir de seus traços e de sua influência sobre a dilatação de um corpo (p. 164).

O que frequentemente esquecemos, quando utilizamos esse tipo de instrumentos na


vida cotidiana e na vida científica, é o fato de que eles se baseiam na interpretação
dos traços que se torna possível pela expressão do fato sob uma forma que nos libera
de sua percepção imediata. Em vez de sentir o calor, vemos a mudança da posição
do mercúrio na escala inscrita no termômetro; em suma, vemos os traços do calor. É
só então que, com o conhecimento das regularidades e das leis de dilatação dos
corpos sob o efeito do calor é que o termômetro pode ser concebido e construído.
« Consequentemente », conclui nosso autor, « interpretar significa recriar o
fenômeno a partir de seus traços e de suas influências, com base nas regularidades
anteriormente estabelecidas » (p.164). O exemplo do termômetro mostra claramente
um traço da interpretação muitas vezes passado em silêncio. Uma interpretação ou
uma reconstrução de um fato se realiza sempre por intermédio de um conhecimento
já existente (por exemplo, pelas leis da física) que mediatiza, seja diretamente,
enquanto conhecimento, seja sob a forma de um construto, graças a ele, a produção
do conhecimento do fato em questão.

Vigotski prossegue suas reflexões em torno do termômetro, colocando em questão


uma ideia que, desde o começo do século XX, animava os debates epistemológicos
em filosofia. Trata-se da distinção entre as ciências da natureza e as ciências do
espírito, entre as ciências que favorecem a explicação e as que se voltam para a
compreensão (Schurmans, 2006). Apesar da tendência bem difundida de se oporem
dois tipos de ciências, a discussão dos métodos indiretos que Vigotski propõe apaga
de certa maneira essa distinção, pois, segundo o autor:

[...] não há nenhuma diferença de princípio entre a utilização do termômetro e a

19
As características essenciais do método interpretativo são postas à luz nas contribuições de uma obra que propõe o
método indiciário como método central para as ciências do homem. (ver Thouard, 2007).
interpretação em história, em psicologia e etc. A mesma coisa é verdadeira para
todas as ciências: elas não são dependentes da percepção sensível (p. 164). (trad.
nossa)

Mas, para Vigotski, a psicologia ainda não tinha desenvolvido sua metodologia de
procedimentos e se baseava, muito frequentemente, em métodos diretos. Nessa
perspectiva, o autor formula a tarefa futura da psicologia, que deveria ser a de
conceber e construir « o termômetro » que « não controlaria ou reforçaria a
instrospeção, mas que nos liberaria dela [...] » (p. 165).

O conceito de psiquismo

Essa discussão sobre os métodos diretos e indiretos permitiu a Vigotski mostrar que um
método que não se baseia na percepção sensorial é concebível e, além disso, necessário
para a psicologia. Ele propõe, assim, voltar ao conceito psicológico de base (à abstração
primária) para substituir tanto o conceito de consciência (intimamente ligado ao método
da introspecção), privilegiado pela psicologia do homem normal, quanto o conceito de
comportamento (ligado à observação exterior), valorizado pelo behaviorismo, por um
outro que corresponde ao método indireto. No que se segue, demonstrarei por que
Vigotski propõe como conceito psicológico de base o de psiquismo, às vezes substituido
pelo de consciência. Em sua obra, o uso distinto desses dois conceitos não está
estabilizado, o que pode ser explicado pelo fato de que Vigotski tentava defender o
conceito de consciência contra o behaviorismo, distinguindo-se ao mesmo tempo da
psicologia introspeccionista.

Vigotski compara o psiquismo a um instrumento que isola, separa, abstrai, faz


escolhas dos fatos da realidade. O autor postula que, mesmo que nossos sentidos nos
deem acesso ao mundo prioritariamente na forma de segmentos, eles nos fazem ver, de
modo mais preciso, prioritariamente, as partes da realidade que são importantes para
nós. Não vemos tudo, não sentimos tudo, nossa consciência não se dá conta de tudo.
Além disso, o resultado de tal exaustividade seria fatal e Vigotski nos adverte, pois
« um olho que visse tudo, não veria nada » (p. 167). Do mesmo modo, para a
consciência, que, se tomássemos consciência de tudo o que nos diz respeito (as opiniões
dos colegas, as próprias fraquezas, a finitude de ser) provavelmente acabaria por nos
separar do mundo.
É como se a consciência seguisse a natureza por saltos, como omissões e lacunas. O
psiquismo seleciona elementos estáveis de realidade no seio do movimento
universal. Ele constitui ilhotas de segurança no fluxo de Heráclito. Ele é o órgão
que escolhe o filtro que filtra o mundo e o transforma de um modo que seja possível
agir (p. 167). (Trad. nossa)

É interessante salientar as comparações que Vigotski utiliza para caracterizar o


funcionamento do psiquismo. Ele fala de órgão de seleção, de filtro, mas também
de um funil que se estreita. Todos esses « instrumentos » têm uma função em
comum, a saber, a de « escolher », de selecionar, de deixar passar determinados
elementos da realidade e de reter outros. É por essa razão que Vigotski considera o
psiquismo como a forma superior de escolha e atribui a essa característica um valor
exlusivamente positivo. Um reservatório de água reflete tudo, uma pedra também,
suas reações são normalmente iguais aos estímulos; ao contrário, o psiquismo nunca
reflete a realidade, seu papel positivo consiste justamente no fato de que « distorce
subjetivamente a realidade em favor do organismo » (p.167). Portanto, se a função
primeira do psiquismo é a de constituir ilhotas de segurança, de transformar nossa
percepção do mundo de modo que seja possível continuar a agir e viver, estamos
confrontados com a ideia de uma distância entre o psiquismo e o mundo. O
psiquismo não representa o mundo, mas, metaforicamente falando, ele « trabalha o
mundo ».

Tal definição do conceito psicológico de base coloca o psicólogo diante de uma


situação bem particular, pois o que acabamos de expor significa que o pesquisador
tem acesso a seu objeto, o psiquismo, exclusivamente sob a forma de fragmentos.
Vigotski salienta o fato de que a série psíquica20, de natureza infinita, nunca é
infinita nem sem lacunas para o pesquisador, pois, como a relação do sujeito com o
mundo é mediatizada pelo psiquismo, a percepção e o conhecimento do mundo são
sempre trabalhados e o que se apresenta imediatamente ao pesquisador é apenas essa
parte selecionada, parte finita da série psíquica. Com outras palavras: para analisar
um « instrumento » que funciona como filtro, não é suficiente conhecer os
resultados da filtragem, o que « sai », depois da seleção; também é preciso saber o
que foi filtrado; portanto, o que não passou, o que foi posto de lado, o que não foi
selecionado. Para provar que o psiquismo trabalhou, é preciso mostrar que houve
seleção; consequentemente, é preciso completar os saltos da série que conhecemos
por meio de uma reconstrução do que não passou no filtro, do que se encontrava na
entrada do filtro e que aí ficou. Em suma, a tarefa do psicólogo, para Vigotski,
consiste na transformação da série psíquica, sempre dada como finita, em uma série
infinita. Portanto, o psiquismo, tal como definido pelo autor, só pode ser definido
por meio de métodos indiretos, de construção de hipóteses, de reconstrução e de
interpretação dos traços da filtragem. Desse modo, ele desenvolve um conceito de
psiquismo visivelmente separado da percepção sensorial, o que confirma a
prioridade que o autor atribui aos métodos indiretos em psicologia.

Encontramos aplicações do conceito vigotskiano do psiquismo em diferentes


domínios. Assim, no quadro da psicologia do trabalho, uma distinção interessante
para a análise das atividades profissionais foi introduzida por Yves Clot, distinção
essa que se inspira nessas ideias de Vigotski. Clot (1999, p. 119-120) diferencia em
cada atividade uma parte que ele chama de ação realizada e outra, que ele nomeia

20
Na psicologia clássica, foi costume falar da série psíquica. Esse conceito se refere à distinção kantiana entre tempo
e espaço. Kant utiliza esse conceito de série para caracterizar o tempo; portanto, o fato de que os antecedentes são a
condição das consequências presentes e assim em diante. Lembremos de que o conceito de tempo serve,
habitualmente, para especificar os fenômenos psíquicos.
de ação real ou o real da atividade. O real da atividade contém tudo o que não foi
feito, mas que poderia ter sido para a realização da atividade. Pode ser o que
tentamos fazer e não conseguimos, o que sonhamos poder fazer, o que não se pode
fazer, o que saiu de nosso campo de atenção em um determinado momento e etc.
Clot propõe levar em consideração essas atividades suspensas, contrariadas,
impedidas, retidas, ocultas, que ocorrem no decorrer da ação, pois são elas que
« explicam » a ação realizada. Frequentemente essa parte de nossas ações é muito
mais extensa que a parte que « chega a passar pelo filtro », isto é, a ação realizada,
dado que esta é apenas um « sistema de reações que venceram », como diz Clot (p.
119), com as palavras de Vigotski (1925/2003, p. 74). Portanto, se voltarmos a este
autor, é pertinente concluir que, para apreender o real da ação, o pesquisador só tem
um meio à sua disposição: uma reconstrução hipotética do real da ação. Tanto o real
da ação quanto o funcionamento do psiquismo são inacessíveis, tanto para o ator
quanto para o pesquisador, se eles estiverem armados apenas com o método direto.
O objetivo, portanto, é conhecer o que não aparece nem na ação realizada nem na
percepção da realidade pelo sujeito, mas que faz justamente com que elas existam na
forma atestada.

Essas reflexões nos levam a uma conclusão radical: a psicologia, assim como outras
ciências que tomam o homem como seu objeto, não podem se fiar só na observação,
na análise do que nos é diretamente dado, quer seja por meio de nossos sentidos
(pela perceção, pela sensação), mesmo que elas sejam auxiliadas por instrumentos,
ou seja por meio do discurso dos sujeitos que relatam imediatamente suas
experiências e suas ações. Tanto o trabalho sobre o conteúdo real dos conceitos
assinalado por Vigotski à psicologia geral quanto o trabalho da interpretação e da
reconstrução da série psíquica mostram, de fato, que, para o autor, a psicologia
como ciência behaviorista ou instrospectiva é, por princípio, impossível. Ao
contrário, a psicologia que produz de um modo indireto, portanto, mediatizado pelos
conceitos ou pelos instrumentos do método indireto, um saber sobre o
funcionamento do psiquismo detém, de acordo com o autor, o nome de ciência com
toda a justiça. É só de um modo mediatizado, por meio de conceitos, das
reconstruções e dos instrumentos comparáveis ao termômetro, que uma produção de
conhecimento científico é possível no quadro da psicologia. Essa ideia de uma
mediação está no centro de suas reflexões epistemológicas e é ela a base de seu
conceito de psiquismo. Essa mesma ideia pode ser atestada em seus trabalhos
puramente psicológicos. Ela vai ser desenvolvida no próximo capítulo, com o
conceito de instrumento psicológico, que mostra que a psicologia vigotskiana não
tem apenas o objetivo só de conhecer, mas também o de intervir.
Capítulo 3

A IDEIA DE INSTRUMENTO PSICOLÓGICO

O conceito de instrumento psicológico foi desenvolvido por Vigotski em forma de


teses no pequeno texto O método instrumental em psicologia (1930) e nos dois
primeiros capítulos da obra A história do desenvolvimento das funções psíquicas
superiores (1931), cuja tradução para o francês está sendo feita. Para a compreensão
dessa ideia, outro texto póstumo é muito interessante. Trata-se de A psicologia concreta
do homem, que apresenta « um rascunho de pensamento », que tem por objetivo abordar
esse tópico a partir de ângulos de vista múltiplos.

O funcionamento do instrumento psicológico

A tese central desenvolvida por Vigotski nesses textos pode ser assim resumida: todas
as funções psíquicas superiores, como por exemplo, a atenção voluntária ou a memória
lógica, surgem com o auxílio dos instrumentos psicológicos e, consequentemente, se
constituem como fenômenos psíquicos mediatizados. Isso significa claramente que, em
relação às concepções reflexológicas e behavioristas, opera-se uma modificação da
unidade de análise dos fenômenos psíquicos. Nessas duas concepções, os processos
psíquicos são apresentados como sendo compostos por dois elementos: o estímulo (por
exemplo: A = a tarefa de memorizar uma determinada informação) e a reação (B = a
memorização efetiva dessa informação):

A B

Consequentemente, para os defensores dessas correntes, a memorização consiste na


instauração de um vínculo associativo e direto entre A e B, que, de acordo com
Vigotski, é característica da memória natural. Entretanto, há outro tipo de memória, a
memória artificial, que é classificada por Vigotski como uma das funções psíquicas
superiores. Tomemos um dos exemplos que o autor desenvolve sobre essa questão para
apreender a especificidade da memória artifical (Vigotski, 1931/1983, p.109-111). A
uma criança de dois anos e meio damos a tarefa de levantar a mão direita, quando lhe
mostramos um lápis e a de levantar a mão esquerda quando se tratar de um relógio. Em
uma primeira série de tentativas, o pesquisador faz a criança apenas repetir a tarefa
durante muito tempo e ela não chega a memorizar o vínculo entre a mão direita e o
lápis, e entre a mão esquerda e o relógio; em uma segunda série são introduzidos
determinados « instrumentos ». Perto da mão direita da criança, o pesquisador põe uma
folha de papel que a criança pode relacionar com o lápis e, perto da mão esquerda, ela
encontra um termômetro que faz com que ela se lembre do relógio. Depois da
introdução desses « instrumentos », a maioria das tentativas se desenvolve sem erro,
pois a criança se refere aos « instrumentos » que facilitam a memorização demandada.
Vigotski fala do método da dupla estimulação, pois em vez de um vínculo direto entre
A e B, dois novos vínculos são criados:

A B
Estímulo Reação

tarefa realização da tarefa


(a memorizar) (memorizar)

I
instrumento
psicológico

A tarefa de memorização se realiza com o auxílio de um instrumento, que Vigotski


chama de instrumento psicológico, que transforma o vínculo entre A e B em um vínculo
indireto ou mediatizado. Daí se chega à seguinte conclusão, cuja importância Vigotski
sempre ressalta: os processos psíquicos superiores são, sempre e necessariamente,
compostos de três elementos: a tarefa (A), o instrumento (I) e o processo psíquico
necessário (B) para resolver a tarefa (Vigotski 1930/1985, p. 40). Entretanto, esse
esquema não evidencia um traço principal do instrumento psicológico, o que se explica
pelo fato de que Vigotski busque aqui, como muitas vezes em seus escritos, apresentar
uma nova ideia, mas usando a terminologia das correntes dominantes, ao mesmo tempo
que aplica um deslocamento importante dos conceitos utilizados. Assim, ele ressalta
que o processo de memorização artifical leva ao mesmo resultado que é obtido pela
memória natural, com a diferença de que « [...] a novidade tem a ver com a direção
artifical que é imposta, pelo instrumento, ao processo natural » (ibid., p. 41). Essa
observação é muito importante, pois dá conta do fato de que o instrumento psicológico é
orientado para os processos psíquicos do sujeito, espontaneamente mobilizados, em um
primeiro momento, para resolver a tarefa. São esses processos (naturais) que são
atingidos pela introdução do instrumento psicológico e são eles que se tornam objeto de
controle e de domínio por parte do homem. De fato, o instrumento psicológico utilizado
tem por função fazer com que os fenômenos psíquicos necessários para se realizar a
tarefa se desenvolvam de uma forma melhor. O esquema abaixo pemite dar conta dessa
função do instrumento psicológico.

sujeito realização da tarefa


processo psíquico
natural

= transformação em processo psíquico artificial

instrumento
influenciar e controlar

É na forma como Vigotski argumenta sobre a diferença entre um instrumento


psicológico e um instrumento ou ferramenta de trabalho que essa diretividade bem
específica do instrumento psicológico é mais uma vez ressaltada. Os dois tipos de
instrumentos funcionam como elementos intermediários, intercalados entre a atividade
do homem e seu objeto. A diferença está no fato de que, com a ferramenta de trabalho,
as transformações no mundo dos objetos são produzidas e, consequentemente, ela deve
ser concebida em função das intervenções preconizadas. Assim, com um martelo,
busca-se fazer buracos ou endireitar o metal. Para chegar a esse objetivo com sucesso, o
martelo deve ter uma determinada forma e ser feito com um determinado material. Ele é
portador de uma finalidade que está incorporada em sua forma material. Ao contrário, o
objeto do instrumento psicológico não está no mundo exterior, mas na atividade
psíquica do sujeito, sendo esse instrumento um meio de influência do sujeito sobre si
mesmo, um meio de autorregulação e de autocontrole.

O que é um bom instrumento psicológico ou, em outras palavras, o que pode


desempenhar essa função parece ser menos predeterminado que no caso da ferramenta
de trabalho. Qualquer objeto pode tornar-se um meio mnemotécnico, tendo como único
critério o fato de que deve permitir que nos lembremos de um modo melhor de alguma
coisa. É no texto O método instrumental em psicologia que Vigotski dá exemplos de
instrumentos psicológicos e nos dá uma primeira enumeração deles:
« Eis alguns exemplos de instrumentos psicológicos e de seus sistemas complexos:
a linguagem, as diversas formas de contar e de cálculo, os meios mnemotécnicos,
os símbolos algébricos, as obras de arte, a escrita, os esquemas, os diagramas, os
mapas, os planos, todos os signos possíveis etc. » (ibid., p. 39).

Lendo essa citação, somos levados a pensar que Vigotski situa os instrumentos
psicológicos só no domínio dos signos. Mas essa conclusão deve levar em consideração
o fato de que ele fala de « todos os signos possíveis », o que implica que qualquer
objeto da realidade pode se tornar um signo. Vimos no experimento relatado acima duas
ferramentas de mensuração, um relógio e um termômetro, funcionando como
instrumentos mnemotécnicos. Esse exemplo prova que Vigotski amplia o conceito de
signo de tal modo que faz com que ele perca sua força distintiva, sua capacidade de
marcar um tipo bem específico de objetos do mundo 21. De fato, não é o conceito de
signo que permite identificar o que é um instrumento psicológico, mas três outras
características que podem ser inferidas das reflexões de Vigotski e que os signos
também podem ter. Um instrumento psicológico: 1) é uma adaptação artifical; 2) tem
uma natureza não orgânica, ou, em outras palavras, tem uma natureza social e 3) é
destinado ao controle dos próprios comportamentos psíquicos e dos outros. Como diz
Vigotski:
« No comportamento do homem, voltamos a encontrar toda uma série de
adaptações artificiais que visam a controlar os processos psíquicos. » (ibid., p. 39)

Natural/artificial versus natural/cultural

É importante observar que Vigotski resume essa especificidade do instrumento


psicológico com a ajuda do par de conceitos natural e artifical e não, como se poderia
esperar, do par de conceitos natural e cultural. Quais são os argumentos que
encontramos em Vigotski para compreender essa escolha conceitual? Em primeiro
lugar, ele insiste no seguinte fato, aparentemente banal: os processos psíquicos que são
dominados, regulados e controlados por meio dos instrumentos psicológicos sempre são
processos naturais:
Por outro lado, podemos abordá-lo [o comportamento psíquico] sob o ângulo do
uso que o homem faz de seus próprios processos naturais e dos métodos que adota
para esse fim e estudar o modo como o homem se serve das propriedades naturais
de seu tecido cerebral e como controla os processos que aí se produzem (ibid., p.
41).

O objetivo da utilização dos instrumentos psicológicos consiste então em « um uso


ativo que se faz das propriedades naturais do tecido cerebral » (ibid.). Em vez de falar
de uma transformação dos processos naturais em processos de caráter social e cultural,
Vigotski tematiza a função dos instrumentos psicológicos, sua intervenção artificial
sobre os fenômenos psíquicos, que são caracterizados pelo termo natural. Essa
conceitualização tem uma vantagem, pois, de alguma forma, torna caducas as oposições
bem estabelecidas, como a oposição entre o psíquico e o fisiológico, segundo a qual o
fisiológico é o objeto das ciências da natureza, enquanto o psíquico é alguma coisa
outra, diferente dos fatos puramente naturais que são os fenômenos fisiológicos ou

21
É a relação de representação que faz a especificidade dos signos e que assinala na famosa fórmula aliquid stat pro
aliquo (alguma coisa que está no lugar de outra coisa), avançada pelos escolásticos para falar das entidades
semióticas. Os signos que são o objeto da semiótica e da linguística são caracterizados por sua capacidade de ser um
objeto (som, imagem acústica, etc.) que significa, indica, representa outro objeto (uma representação mental, uma
informação, um simples processo natural etc.).
físicos. Aliás, essa oposição é a fonte de debates incessantes sobre o lugar da psicologia
no sistema das ciências. Desde o fim do século XIX, alguns autores a colocam nas
ciências da natureza, outros lhe reservam um lugar no domínio das ciências sociais e
culturais e, mais frequentemente, é considerada como « estando entre as duas ».

Portanto, parece que com o par dos conceitos natural/artifical, Vigotski busca evitar
não só uma oposição entre ciências da natureza e ciências da cultura, mas também tanto
um reducionismo naturalista quanto um reducionismo histórico-cultural, uma vez que os
dois não chegam a ultrapassar uma concepção dualista do espírito e do corpo. O fato de
que as concepções dualistas em psicologia tenham sido um dos alvos permanentes da
crítica de Vigotski (ver Bronckart, 1999) sustenta essa interpretação. Antes de ver por
que a conceitualização de Vigotski permite ultrapassar esses dois tipos de reducionismo,
analisemos o que é a tese dualista que os acompanha.

Um dos pressupostos das posições dualistas é a afirmação de um paralelismo entre o


psíquico e o físico, que se baseia na ideia de uma assimetria entre os dois grupos de
fenômenos. Geralmente, nelas se admite uma oposição do espírito ao mundo dos
objetos, que é justificada pelo estatuto ontológico específico do espírito e o modo de
conhecimento tão original que apresenta a percepção interior. A relação psicofísica, o
mind-body problem, como é hoje chamada pelos anglosaxões, é, desde Descartes, um
objeto de debates calorosos 22. Uma das resoluções desse problema elaborada no
domínio da psicologia consiste na explicação dos fenômenos psíquicos pelos fenômenos
físicos, como diria Vigotski, por meio de uma análise do funcionamento do tecido
cerebral (interpretação por redução). Outra solução, um pouco mais reconciliatória,
privilegia uma interpretação por equivalência. Estipulando que tal estado neuronal vai
corresponder a um certo estado cognitivo, a tarefa do pesquisador é clara: ou ele precisa
encontrar, para aquilo que está descrito em termos psicológicos, o equivalente
fisiológico ou neurofisiológico, ou terá a tarefa de apreender o fenômeno psíquico
indicado pelo estado neuronal. Ora, essas duas soluções só podem ser pensadas
admitindo-se a dualidade entre o espírito e o mundo dos objetos físicos postulada; do
contrário, o problema psicofísico não existiria.

A contribuição original de Vigotski para esse debate consiste no questionamento da


lógica da especificidade. Os defensores dessa lógica atribuem ao espírito um lugar e um
ser bem específico no mundo e atribuem à ciência a tarefa de explicá-los. Ao contrário,
de acordo com Vigotski, não é a especificidade do espírito que deveria ser analisada,
mas os instrumentos, os meios que têm como objetivo controlar e desenvolver os
processos psíquicos. Estes continuam sendo, a despeito de sua mediação por
instrumentos, processos naturais ou orgânicos, com a diferença de que seus
desenvolvimentos espontâneos sofrem uma intervenção e tornam-se, nesse sentido,
« artificiais ». Portanto, o que deveria interessar ao psicólogo não é nem a explicação
por equivalência nem a explicação por redução, mas o uso que o homem faz de seus

22
A relação entre os debates atuais em torno da relação psicofísica no quadro das ciências cognitivas e da filosofia do
espírito, de um lado, e a história da psicologia, de outro, encontra-se bem esclarecida em Fisette & Poirier (2000).
próprios processos naturais e os meios que utiliza e cria para atingir esse objetivo. É
essa lógica de intervenção que caracteriza a psicologia de Vigotski e determina suas
questões de pesquisa: de que modo, com quais meios, o homem se serve das
propriedades de seu tecido cerebral e controla os processos psíquicos que ele produz?
Nessa perspectiva, é a natureza social dos instrumentos psicológicos que se torna um
dos objetos privilegiados da psicologia, pois se busca compreender quais são os objetos
que adquirem essa função, em qual época e de que modo.

Se agora compreendemos claramente porque Vigotski se opôs a qualquer


reducionismo naturalista, resta ainda mostrar em que sentido ele também recusa
qualquer reducionismo sócio-histórico. De fato, a lógica de intervenção por ele
defendida não pode se basear na oposição natural-cultural, pois ela também coloca em
questão a ideia simplista segundo a qual a especificidade do psiquismo humano está em
sua natureza sócio-histórica. Essa afirmação não é falsa, mas é tão geral que ela
sucumbe diante do perigo de reproduzir o velho dualismo cartesiano, dado que ela
também insiste sobre a especificidade do espírito e que, sobretudo, tem por objetivo,
acentuar o « especificamente humano » no desenvolvimento mental. Se o psiquismo,
segundo a lógica de intervenção, é considerado como um processo natural cujo uso
artifical é possível, o fato de que a artificialidade desse uso seja condicionada por
fatores culturais e sociais não é um argumento nem a favor da tese segundo a qual a
natureza do psiquismo é exclusivamente histórico-cultural nem contra ela. Em resumo,
defendemos a ideia de que, nas reflexões vigotskianas sobre o instrumento psicológico,
simplesmente não há espaço para essa tese.

Portanto, convém levarmos a sério a utilização do par dos conceitos natural/artificial


que Vigotski propõe. É o controle artificial dos fenômenos psíquicos-naturais
produzido e desenvolvido pelo homem com o auxílio dos instrumentos psicológicos que
se encontra no centro de suas preocupações e é também esse controle que constitui,
segundo o autor, a essência do processo de desenvolvimento (ver cap. 5).

A astúcia da razão ou o conceito de atividade mediatizante

Para uma compreensão completa do que é, para Vigotski, um instrumento psicológico,


resta-nos trazer um último elemento. Trata-se da distinção entre a atividade mediatizada
e a atividade mediatizante, que o psicólogo desenvolve no capítulo 2 da obra A história
do desenvolvimento das funções psíquicas superiores. O ponto de partida de sua
reflexão é a questão: o que há em comum entre um instrumento de trabalho e um
instrumento psicológico? Podemos fazer uma analogia entre esses dois tipos de
instrumentos ou ainda, podemos, de fato, chamar o instrumento psicológico de
instrumento? Para Vigotski, « uma analogia se mostra adequada se encontramos na
comparação dos dois conceitos a característica principal e essencial » (1930/1985, p.
39). O autor a encontra no fato de que os instrumentos de trabalho e os instrumentos
psicológicos estão subordinados a um conceito mais geral, o da atividade mediatizante.
Referindo-se à célebre discussão sobre a « astúcia da razão », do filósofo alemão Georg
W. F. Hegel, ele busca apreender a particularidade dessa atividade. De acordo com
Hegel, a razão é toda poderosa porque é capaz de se servir da astúcia. A astúcia da razão
aparece no fato de que o homem deixa os objetos do mundo trabalharem uns sobre os
outros, em função de sua natureza, visando a um objetivo determinado, que é atingido
por meio dessa atividade, à qual ele não tem necessidade de se misturar. Causando uma
atividade bem determinada entre os objetos do mundo, o homem se mantém no exterior
dessa atividade, mas realizando, por meio dela, os seus objetivos.

A razão é tão astuciosa quanto poderosa. A astúcia consiste, em geral, na atividade


mediatizante que, deixando os objetos, conforme sua própria natureza, agirem uns
sobre os outros e se usarem no contato de uns com os outros, sem se imiscuir
imediatamente nesse processo, não faz nada mais, entretanto, que realizar seu
objetivo. (Hegel, 1830/1970, p. 614)
Essa descrição hegeliana da astúcia da razão foi retomada por Karl Marx (1818-1883),
que a detecta nas transformações profundas do trabalho humano características da época
da industrialização, cujos inícios são conceitualizados em O Capital. Desse texto,
Vigotski faz a seguinte descrição, que ilustra de novo o poder da razão pela qual Hegel
era tão atraído.

O meio de trabalho é uma coisa ou um conjunto de coisas que o homem interpõe


entre si e o objeto de seu trabalho como condutores de sua ação. Ele se serve das
propriedades mecânicas, físicas, químicas de determinadas coisas para fazê-las agir
como forças sobre outras coisas, de acordo com seu objetivo. (Marx, 1867/1957, p.
181-182)

Outros exemplos podem ser dados, todos eles nos dando provas dessa astúcia: damos
uma determinada direção a uma goteira de modo que a água que corre do teto caia
diretamente sobre uma pedra de calcário e produza, em um lugar preciso, o buraco
previsto. Ou ainda, pomos pedras pesadas em um rio para, desse modo, diminuir seu
leito, o que dá como resultado uma aceleração da corrente, que levará os troncos de
madeira a alguns quilômetros mais distantes da serralheria. Vemos bem, nessa atividade
mediatizante, que o sujeito não age fisicamente sobre a natureza, que não utiliza um
instrumento para ele mesmo mudar a natureza, como é o caso, quando pegamos uma
furadeira para fazer um buraco na madeira. Essa última atividade, na qual o sujeito
intervém com um instrumento diretamente sobre a natureza é chamada por Hegel como
atividade mediatizada. Ao contrário, na atividade mediatizante, o homem deixa a
natureza agir sobre a natureza. As transformações desejadas são produzidas por meio de
uma determinada constelação, na qual os objetos da natureza são postos pelo homem;
uma constelação que faz com que os objetos, trabalhando uns sobre os outros, produzam
o que foi projetado, sem que o homem intervenha nessa atividade.
O O

= realização do objetivo

Resta provar que a atividade realizada pelo homem com o instrumento psicológico é
portadora das mesmas características que as da atividade mediatizante. Retomemos o
esquema desenvolvido no parágrafo anterior, que mostra essa similaridade, com a
diferença de que o instrumento psicológico sempre produz um desdobramento do
sujeito em S (1) e S (2).

Instrumento psicológico S (2)

= realização da tarefa
psicológica

S (1)

O sujeito que utiliza um instrumento psicológico se transforma, ao mesmo tempo, em


um « objeto » (S2), sobre o qual o instrumento age. O fato de que o sujeito se desdobra
quer dizer que, sendo ele, de um lado, o sujeito da ação, de outro, a ação desencadeada
pelo sujeito transforma o sujeito em « objeto » de sua própria ação. Voltamos a
encontrar aqui a ideia da atividade mediatizante. Utilizando os instrumentos
psicológicos, o homem controla e influencia seu comportamento psíquico, sem que se
misture nesse processo, já que ele não faz nada mais do que intercalar entre ele e seus
processos psíquicos determinados meios que agem diretamente sobre seu próprio
comportamento psíquico, a fim de produzir o resultado desejado. O sujeito se
transforma, pela utilização do instrumento, em objeto visado por esse último. Com a
ajuda dos instrumentos psicológicos, o sujeito faz com que se produza em si mesmo
determinados efeitos desejados, do qual é o objeto. Poder-se-ia dizer também que o
sujeito é, ao mesmo tempo, ativo e passivo, o que justamente constitui a especificidade
da atividade mediatizante no plano psicológico.

Tentemos aprofundar essa especificidade dos instrumentos psicológicos com alguns


exemplos. O primeiro não provém dos escritos de Vigotski. Trata-se da descrição de um
caso clínico, que, a nosso ver, apresenta um bom exemplo da atividade mediatizante
sobre a qual fala nosso autor. Isso significa também que defendemos a hipótese de que a
ideia dos instrumentos psicológicos também aparece em outras teorias psicológicas e
filosóficas frequentemente associadas a outras correntes de pensamento, nas quais até
mesmo o conceito não é utilizado. O exemplo é emprestado de um contemporâneo de
Vigotski, o psicopatologista alemão Kurt Goldstein (1878-1965). Com Adhémar Gelb
(1887-1936), seu coloborador próximo no Instituto de pesquisa neurológica de
Frankfurt a Main, Goldstein desenvolveu um grande número de pesquisas sobre a
afasia 23. Em um texto publicado em 1933, no Journal de la psychologie, ele se interessa
pelas estratégias, ou como ele mesmo o diz, pelos détours [desvios] que os doentes
desenvolvem para resolver tarefas cotidianas que não podem executar normalmente por
causa da doença. O autor analisa detalhadamente os meios que o paciente mobiliza para
obter o resultado desejado, apesar da afasia. O tipo de afasia que sobretudo lhe interessa
é a afasia amnésica, cujo traço clínico central é a falta de palavras, que se manifesta, por
exemplo, nas frases encurtadas, pronunciadas em lugar da palavra. Os doentes não são
capazes de evocar as palavras que querem pronunciar de acordo com suas intenções
e/ou de acordo com os objetos aos quais se encontram confrontados. Por meio de
exemplos extremamente significativos, Goldstein busca apreender o que o doente faz
para achar essas palavras. Vejamos abaixo casos descritos e discutidos por Goldstein.

Um doente, por exemplo, não pode achar a palavra « miosótis » ou a palava


« azul », mas o objeto desperta nele a lembrança de um refrão: „Blau blüht ein
Blümelein, es heisst Vergissmeinnicht‟ (é uma florzinha azul que se chama
miosótis), e, logo ele diz « miosótis » e « azul ». Essas palavras, ele não as
empregou do modo significativo usual, elas se apresentaram a ele como um saber
verbal exterior [...]. (Goldstein, 1933, p. 325-326)
No caso citado, o doente achou um meio para que a palavra que não encontrava
mais, apesar de todos os seus esforços voluntários, se apresentasse a ele. Lembra-se
de um refrão bem conhecido e aprendido na escola e então, refere-se a seu saber
verbal memorizado e, pronunciando o refrão, a palavra « vem inteiramente
sozinha ». Ela se apresenta ao paciente que pode apreendê-la24. Poderíamos dizer
também que ele fez vir a palavra que lhe faltava por meio dessa astúcia bem útil
que é o refrão. Se seguirmos Vigotski, deveremos dizer que o refrão preenche a
função de instrumento psicológico e transforma a atividade realizada pelo doente
em uma atividade mediatizante. O emprego desse mesmo instrumento psicológico
também pode ser observado nos casos normais. Um locutor não francófono não
consegue achar a palavra « capacho», mas, de repente, pensa em uma expressão
frequentemente ouvida e depositada em sua memória verbal: « é preciso evitar
prender os pés no capacho » e a palavra « volta a ele ». A formulação linguageira
que acabamos de utilizar « a palavra volta a ele » exprime adequadamente o
desdobramento do sujeito em sujeito e objeto, assinalado por Vigotski. O sujeito
recorre a um refrão (no papel de sujeito) e essa operação lhe permite lembrar a
palavra (ele se torna objeto de sua própria ação). Tanto o doente da afasia de
Goldstein quanto nosso locutor não francófono « fazem agir » um instrumento (o

23
Ver também o esquema que Vigotski propõe em “A psicologia concreta do homem” (La psychologie concrète de
l’homme », 1929/2004, p. 239-240).
24
A afasia é um transtorno da linguagem oral e/ou escrita ligada a uma lesão cerebral. Esses transtornos podem
acontecer no nível da produção da linguagem (afasia motora), da compreensão da linguagem (afasia sensorial) etc.
refrão) sobre si mesmos, para se lembrarem, ou mais precisamente, para que a
palavra volte a eles, para que a palavra surja25.

O exemplo de Goldstein se articula bem com outro exemplo discutido por Vigotski
em « A psicologia concreta do homem ». Trata-se do « sonho do Cafre26 », relatado por
Lévy-Bruhl. O chefe de uma tribo sul-africana responde a um missionário que o
aconselhava a por seu filho na escola: « Verei o que meus sonhos me dirão a fazer »
(Vigotski, 2004, p. 242, note 15). Essa resposta bem incomum para nós é utilizada por
Vigotski com um objetivo preciso. Contrariamente a Lévy-Bruhl (1857-1939), ele não
se interessa pela especificidade do pensamento primitivo. Essa oposição tão típica na
época, para as pesquisas etnológicas entre um pensamento primitivo ou pré-moderno, e
um pensamento moderno não tem nenhum interesse para nosso autor. É a descoberta de
um instrumento psicológico bem específico, no caso o sonho, que capta Vigotski. A
atividade de que o chefe da tribo fala apresenta tanto uma dimensão ativa quanto uma
dimensão passiva « Eu vou me fazer sonhar a resposta ». De fato, todos os exemplos
relatados colocam a mesma questão de saber se podemos ainda falar aqui de um eu
como controlador de suas próprias funções psíquisas. Portanto, não é de se espantar que,
depois de ter discutido o sonho do Cafre, Vigotski tenha se questionado sobre esse
problema: «Como falar de processos psíquícos? Precisamos falar deles sob uma forma
impessoal ou sob uma forma pessoal? Não é a mesma coisa dizer „parece-me‟ e dizer
„eu penso‟. O problema do „eu‟: como precisamos formulá-lo? » (ibid., p. 242)

Duas observações conclusivas


Raros são os trechos em que Vigotski discute explicitamente os problemas do eu em
psicologia e neles não encontraremos resposta direta às questões postas. Mas talvez seja
possível compreender essas questões como contendo as respostas em si mesmas.
Vigotski mostrou que, quando o homem (o eu) utiliza um instrumento psicológico, ele
transforma seus processos psíquicos em uma atividade mediatizante e também é tanto
sujeito quanto objeto dessa atividade, ou, como diz Vigotski, « há um me e um eu em
cada função »:
Um Cafre poderia dizer: Eu sonharei sobre isso, dado que ele sonha ativamente,
dizemos: ele ´me´sonha. Portanto: há um me e um eu em cada função, em um caso trata-
se de uma reação primitiva (forma passiva e pessoal) e, no outro, trata-se da reação da
personalidade (forma ativa e pessoal). (ibid., p. 244)

Propomos resumir essa questão sobre o eu por meio de outro conceito, o de medium,
que ressalta claramente o desdobramento em um me (forma passiva) e em um eu (forma
ativa), constatado por Vigotski, e que busca atenuar a aparente contradição que tal

25
Outro exemplo muito pertinente encontra-se em Merleau-Ponty (1945/2002, p. 191), que dá uma descrição
magnífica dos meios empregados para « fazer o sono vir ».
26
O termo Cafre designa os negros da Cafreia, parte da Áfria austral (conjunto de territórios situados ao sul da
floresta equatorial africana). A etnografia clássica utiliza esse termo para designar as culturas autóctenes da África do
Sul.
conceito do sujeito necessariamente esconde. Se tomarmos o conceito de medium em
sua conotação espiritual, ele designa um sujeito que, com o auxílio de determinados
meios (bater na mesa, formar um círculo ininterrupto entre os participantes) torna
presente para os outros e para si mesmo um mundo que se encontra além de nosso
mundo imediatamente acessível. Ele faz vir, faz sentir, faz ouvir um mundo povoado
por defuntos, transformando a si mesmo e aos autros em espectadores passivos de um
espetáculo provocado por ele. Ousamos, portanto, postular que se trata do mesmo tipo
de poder, que as crianças adquirem no decorrer da ontogênese, aprendendo a utilizar os
instrumentos psicológicos, e que os adultos desenvolvem cotidianamente, servindo-se
de e criando esses instrumentos. Resta-nos agora mostrar como Vigotski se coloca para
analisar esse poder, o que nos leva à minha segunda observação conclusiva.

Essa observação enfoca a natureza sócio-histórica dos instrumentos psicológicos. De


acordo com Vigotski, há uma relação de forte intimidade entre o modo como o sujeito
utiliza o instrumento psicológico e a sua proveniência. Como exemplo, ele lembra o fato
de que outrora, nas tribos do Cafre, a função de decisão pertencia aos feiticeiros ou aos
chefes da vila; era uma função social atribuída a um membro da comunidade,
frequentemente considerado como alguém que tinha « poderes » particulares. A decisão
que o sonho ditava ao feiticeiro tinha a força de uma lei para a tribo e não podia ser
constestada pelos outros membros sem correrem o risco de uma sanção. Esse exemplo
mostra uma característica comum dos instrumentos psicológicos: em primeiro lugar,
eles são utilizados como instrumentos de regulação social e, depois, se transformam em
meios de influência sobre si mesmo.

Outro exemplo que Vigotski não se cansa de citar é o « poder da palavra ». A função
mais importante das palavras em nossas sociedades foi e é ainda, a de ser utilizada como
meio de comando, como meio de dominação de um indivíduo sobre o outro. É
necessário observar que a palavra tem esse mesmo poder na regulação psíquica. Todos
nós conhecemos essa frase « mágica »: « calma, calma », que cada um de nós já dirigiu
a si mesmo em voz alta ou em silêncio em situações estressantes, com efeitos mais ou
menos satisfatórios.
Essa origem dos instrumentos psicológicos é resumida por Vigotski na lei geral do
desenvolvimento cultural das funções psíquicas:

Cada função psíquica superior aparece duas vezes no curso do desenvolvimento da


criança: primeiro, como atividade coletiva, social e, portanto, como função
interpsíquica, depois, na segunda vez, como atividade individual, como propriedade
interior do pensamento da criança, como função intrapsíquica. (Vigotski,
1935/1985, p. 111).

Vigotski acentua o resultado desse processo, enfatizando que se trata aqui de uma
transferência das relações sociais para o mundo do psíquico. Na discussão dessa lei do
desenvolvimento cultural, a ênfase é frequentemente posta no processo de
interiorização, que, sem nenhuma dúvida, aí ocorre. Entretanto, observemos que
Vigotski não deixa de insistir sobre um segundo desdobramento atestável na utilização
dos instrumentos psicológicos:
[...] a relação sonho/comportamento futuro (a função de regulação do sonho) deve
ser relacionada genética e funcionalmente a uma função social (o feiticeiro, o
conselho dos magos, o intérprete dos sonhos, etc.: essa função é sempre dividida
entre duas pessoas). É a seguir que tudo se reúne em uma só e única pessoa. A
história real da operadora e do aparelho (de um indivíduo) [...] se compreende
como a transferência das relaçõe sociais (entre as pessoas) para o psicológico (para
o interior do homem). (Vigotski, 1929/2004, p. 243)

Portanto, o que é interiorizado pelo sujeito são relações sociais que ocorrem entre
pessoas nas instituições sociais. As interações entre o feiticeiro e os membros de uma
tribo, entre o chefe e os seus subordinados, entre o professor e o aluno se reúnem « em
uma só e única pessoa ». O ponto de vista a partir do qual os instrumentos psicológicos
devem ser analisados está, portanto, claramente posto. É preciso abordá-los como sendo
oriundos de e portadores, neles mesmos, das relações sociais bem específicas que se
reconstituem no interior do sujeito. Entretanto, precisamos assinalar aqui, um possível
equívoco, pois pode ser que o sujeito não seja verdadeiramente levado em consideração
nesse contexto. Qual é o papel, de fato, a ser atribuído ao indivíduo nesse processo que
Vigotski resume na lei do desenvolvimento cultural?
Para responder essa questão, voltemos ao título que Vigotski deu a seu texto de 1928:
A psicologia concreta do homem. Quando discute esse título, ele apresenta duas
explicações. A primeira ressalta a novidade de sua concepção em relação à da
psicologia tradicional:

[...] a base da psicologia concreta são as relações do tipo „sonho do Cafre‟. A base da
psicologia abstrata são relações do tipo: sonho como reação (Freud, Wundt etc.) a
excitantes. (ibid., p. 244)

Mas o termo psicologia concreta destina-se ainda a tematizar outro traço daquilo que
se tornará o objeto do psicólogo. Assim, lemos no mesmo texto:
Sendo as leis do pensamento idênticas [...], o funcionamento do pensamento será
diferente de acordo com o indivíduo no qual ele tem lugar. Cf. as leis do
pensamento não são naturais (a substância cortical e subcortial, etc.), mas sociais (o
papel do pensamento em um indivíduo). Cf. o papel do sonho. (ibid)
Os psiquiatras o sabem muito bem. Tudo depende da questão de saber quem pensa
e que papel o pensamento desempenha nesse indivíduo. O pensamento autista
diferencia-se do pensamento filosófico não por determinadas leis, mas pelo papel
[...]. (ibid., p. 247)
A tarefa mais importante para analisar fenômenos psíquicos como o pensamento, a
memória ou o juízo é, portanto, conhecer quem pensa ou, em outras palavras, como o
pensamento « ocorre nele ». Em outros termos, o que interessa à psicologia concreta são
os meios (instrumentos) que o indivíduo utiliza para controlar, realizar, desenvolver seu
pensamento, sua memória, seu juízo, como indivíduo cada vez mais diferente do outro.
Os meios utilizados por um autista, por um pedreiro, por um aluno e por um filósofo
para pensar vão ser bem diferentes, o que também signfica que não é a capacidade
intelectual mensurável por testes que fará a diferença, mas o papel que o pensamento
desempenha « no indivíduo ». O indivíduo está no centro da pesquisa, pois o que se
estuda é o indivídulo particular em sua qualidade de um ser pensante.

Assim, compreendemos que as duas ideias vigotskianas desenvolvidas nesse capítulo


caminham juntas e são interdependentes. A primeira postula que todas as funções
psíquicas superiores são mediatizadas pelos instrumentos psicológicos, e a segunda, que
qualquer psicologia deveria ser concreta, tanto no que diz respeito à análise dos
instrumentos psicológicos enquanto meios da transferência das relações sociais no
domínio do psíquico, quanto no que diz respeito ao indivíduo, no qual os fenômenos
psíquicos desempenham um papel. Essas duas ideias vão ganhar mais importância ainda
nos dois próximos capítulos, consagrados à concepção da aprendizagem e à do
desenvolvimento da criança, que nosso autor expõe, sobretudo, em seu livro mais
importante Pensamento e linguagem.
CAPÍTULO 4
A FORMAÇÃO DOS CONCEITOS NA CRIANÇA27

Crítica dos métodos da definição e da abstração

Vigotski começa suas reflexões com uma crítica dos dois métodos dominantes nesta
área. A primeira, que ele nomeia o método da definição, identifica o conceito à
significação de uma palavra. Como consequência, o conceito é apresentado como a
definição verbal do conteúdo de uma palavra, em outras palavras, como uma entidade
de definição expressa por uma palavra. Nessa perspectiva, um estudo dos conceitos na
criança visa a analisar seu conhecimento verbal, seu nível de desenvolvimento verbal.
Na questão de saber o que é um cachorro, a criança mobiliza seu saber verbal e enumera
de memória certo número de traços característicos desse animal. Em função da idade, o
saber verbal dominado pela criança pode ser de uma riqueza e de uma complexidade
mais ou menos desenvolvidos. A crítica que Vigotski formula quanto a esse método
visa, antes de mais nada, ao fato de que ela permite apenas estudar os conceitos já
prontos, já formados, os que fazem parte do saber da criança e que são então,
reproduzidos por ela. Esse método não dá acesso ao pensamento enquanto processo
realizado pela criança em sua relação viva com a realidade. O pesquisador não pode de
maneira alguma compreender « o significado real, efetivo, que corresponde à palavra no
processo de sua correlação viva com a realidade objetiva que ele designa » (p. 190). No
entanto, para o pesquisador russo, torna-se essencial levar em conta que o conceito não
está apenas em ligação com o saber verbal, mas que ele tem uma relação com a
realidade experimentada e compreendida pela criança. Com efeito, analisar a maneira
pela qual o conceito é utilizado pela criança em confronto com a realidade torna seu
conteúdo independente do simples saber verbal e mostra que o conceito não é apenas
expressado pela palavra e, em seguida, aplicado ao mundo, mas pensado em função da
relação que a criança mantém com o mundo. Logo, a fraqueza do método e da
definição provém do fato de que ela separa o conceito de seu contexto « natural » (de
sua relação com o mundo) e o fixa no seio do saber verbal no qual ele é definido,
levando-se em conta os outros conceitos.

Existe um segundo método que se baseia no privilégio de ser considerado, ainda hoje,
como expressando a concepção que se faz habitualmente da natureza dos conceitos.
Poderíamos designá-la como método de abstração já que ela define o conceito como um
produto (uma representação) do espírito, que engloba (resume) um determinado número
de objetos por abstração e por generalização de seus traços comuns. Nessa perspectiva,
o conceito resulta do que há em comum entre vários objetos e distingue-se de cada um
desses objetos singulares por seu grau de generalidade. Essa situação é bem ilustrada na
dita pirâmide da abstração que Vigotski critica várias vezes:

27
Todas as citações de Vigotski neste capítulo foram tiradas de sua obra Pensamento e linguagem 1934/1997.
Esquema 1

plantas

flores cactos algas

rosa tulipa

Essa definição do conceito determina forçosamente a maneira pela qual a formação dos
conceitos na criança é analisada. São atos mentais como estes de encontrar por
comparação o que os diferentes objetos têm em comum, de isolar este traço e, em
seguida, de guardar as coisas isoladas em uma e mesma categoria que constituem aqui o
objetivo da pesquisa. O objeto de estudo são “os processos e as funções psíquicas que
estão na base da formação de conceitos, na base da elaboração mental da experiência
concreta que dá origem ao conceito” (p. 190). Em sua crítica a esse método, Vigotski
ressalta que ele negligencia o papel da palavra no processo de formação dos conceitos.
A primeira vista, essa objeção não parece convincente, já que a palavra é utilizada
mesmo que seja apenas para expressar o resultado da abstração. Mas o argumento
avançado por Vigotski visa, afinal, ao fato de que a palavra não é empregada como meio
da conceitualização. Lembremos a ideia dos instrumentos psicológicos que ele repete
no capítulo 5 da obra Pensamento e Linguagem, como segue:

[...] todas as funções psíquicas superiores estão unidas por uma característica
comum, a de serem processos mediatizados, ou seja, de incluirem em sua
estrutura, enquanto parte central e essencial do processo em seu conjunto, o
emprego do signo como meio fundamental de orientação e de domínio dos
processos psíquicos (p. 199).

A questão que se coloca é então a seguinte: como podemos levar em conta esta ideia
fundadora da sua psicologia no estudo experimental dos conceitos? Antes de discutir o
método elaborado com este objetivo por seu colaborador Léonid S. Sakharov (1900-
1928)28, devemos nos remeter à crítica que Vigotski faz a um outro dispositivo, o que
foi concebido e utilizado por Narziss Ach (1871-1946). Esse dispositivo pretende levar
em conta os pontos fracos tanto do método de definição quanto do método de abstração.
Ele serve de ponto de partida para Sakharov/Vigotski, mesmo se o método de Ach é
globalmente insuficiente na visão de Vigotski. Vamos desenvolvê-lo a seguir.

28
Esse método foi também aplicado por outros pesquisadores da equipe de Vigotski. Assim, Léontiev (1931)
analisava com esse mesmo método o desenvolvimento da memória. Esse método também foi chamado a seguir de
método Sakharov/Vigotski.
Dois estudos experimentais: os dispositivos de Ach e de Sakharov/Vigotski

Narziss Ach publica em 1921, os resultados de sua pesquisa sob o título Da formação
de conceitos. Um estudo experimental. Esse psicólogo alemão fazia parte dos membros
da escola de Würzburg, conhecida na história da psicologia por seus trabalhos
experimentais sobre a psicologia do pensamento29. A tendência geral de seu estudo é
clara: ele procura mostrar como a criança utiliza o conceito em uma situação de
resolução de problema. Partindo da hipótese de que o conceito deve estar implicado em
um processo vivo de pensamento, para que possamos apreender sua formação, ele
confronta as crianças a tarefas que não podem ser resolvidas sem recurso aos conceitos.
O que consiste em afirmar que o conceito tem um caráter produtivo e serve para realizar
um objetivo. Na pesquisa de Ach, o conceito recebe efetivamente um significado
funcional, um procedimento apoiado plenamente por Vigotski e aplicado em seu
próprio dispositivo.

Uma parte do capítulo 5 de Pensamento e Linguagem é dedicada à descrição do


dispositivo de Ach, que comporta duas etapas. Em um primeiro momento, o
experimentador fornece os meios necessários para resolver a tarefa. Neste período de
aprendizagem, o pesquisador dá palavras artificiais e desprovidas de sentido e lhes
atribui significados que a criança tem que memorizar. Assim, gazun é proposta como
uma palavra que significa todos os objetos grandes e pesados, ao passo que fal resume
tudo o que é pequeno e leve. Em um segundo tempo, o experimentador introduz o
problema. A criança tem a tarefa de utilizar as duas palavras aprendidas para designar
com elas os objetos correspondentes que se encontram à sua frente, na mesa. Após cada
tentativa de designação, o objeto é virado a fim de verificar se a palavra escrita no verso
do objeto valida ou invalida a proposta da criança. Se, por um lado, Vigotski está de
acordo com Ach, no que diz respeito ao objetivo da experimentação, por outro lado, ele
questiona o fato de que este dispositivo permitiria realmente apreender o processo de
formação de conceitos. Em sua argumentação, ele mostra que a maneira pela qual o
conceito é formado é predeterminada na pesquisa de Ach pela semantização da palavra
que teve que ser aprendida pela criança.

O método de Ach tem um grande defeito: ele não nos dá a possibilidade de


elucidar o processo genético de formação de conceitos, ele nos dá apenas a
possibilidade de constatar a presença ou a ausência desse processo. A própria
organização da experiência implica que os meios pelos quais se forma o
conceito, ou seja, as palavras experimentais que representam o papel de signos,
sejam dadas desde o início, que eles representem uma grandeza constante, não se
modificando ao longo da experiência, e, além disso, que seu modo de utilização
seja estipulado anteriormente nas instruções. (p. 199)

29
Ver Friedrich (2008).
Com efeito, o dispositivo de Ach mostra a mesma fragilidade que os outros dois
métodos, pois ele não permite descobrir a natureza genética do processo de formação de
conceitos. A razão dessa fragilidade reside, segundo Vigotski, no papel concedido às
palavras. Em Ach a palavra é utilizada para criar uma ligação associativa e direta com
os objetos que são conceitualizados graças a ela. A palavra tem a função de assinalar os
objetos resumidos sob o conceito. A palavra não traz nada ao processo de generalização,
pois seu modo de utilização é estipulado de início e não mudará. O que é verificado no
experimento nada mais é, então, do que a capacidade de a criança aplicar a palavra e,
logo, o conceito, de uma maneira correta em relação aos objetos.

Por outro lado, é significativo que o dispositivo concebido na equipe de Vigotski


conceda à palavra um papel de um meio essencial na formação dos conceitos. A tese de
partida estipula que a palavra represente um papel de instrumento psicológico; é então
com a ajuda das palavras que a criança formará os conceitos. Considerado funcional,
esse estudo da palavra do qual Vigotski nos convida a participar opera primeiramente
uma mudança no dispositivo de Ach. O experimento proposto por Sakharov/Vigotski
começa com a exposição do problema que é o mesmo que na pesquisa de Ach: a criança
tem a tarefa de agrupar os objetos que, segundo ela possuem as mesmas características;
objetos que poderiam então ser resumidos pelo mesmo conceito. No entanto, à diferença
de Ach, as palavras não são introduzidas no início, seus significados não são
predeterminados e aprendidos, em consequência elas não são consideradas como
constantes. Na pesquisa de Sakharov/Vigotski, as palavras são progressivamente
introduzidas e propostas para as crianças como instrumentos a utilizar para formar
conceitos.

Tentemos ilustrar essa diferença de uma maneira detalhada referindo-nos à descrição do


experimento tal como ela é dada por Vigotski. Primeiramente, o experimentador vira,
diante da criança, uma das figuras que se encontra em uma ordem qualquer sobre a
mesa. No verso dessa figura, encontra-se uma palavra desprovida de sentido que é lida
pelo pesquisador em voz alta. Em seguida, é pedido à criança para virar outra figura
que, segundo ele, trará certamente sobre o verso a mesma palavra. Após cada tentativa o
experimentador verifica o resultado. As figuras escolhidas são representadas no desenho
abaixo. As letras russas designam as cores das figuras (ж = amarelo, б = branco, к =
vermelho, з = verde, ч = preto), no verso de cada figura está escrito uma palavra
desprovida de sentido.
Estudo da formação dos conceitos
Método de Sakharov

Pode-se ver bem: as figuras estão dispostas em quatro séries constituídas com a ajuda
das palavras. Cada figura presente na mesa se distingue por certas características das
outras figuras e se assemelha a elas por outras. A primeira série de figuras compreende
objetos pequenos e planos, a segunda, objetos pequenos e espessos, a terceira, objetos
grandes e planos e a quarta, objetos grandes e espessos. A questão que a criança teve
que responder foi de saber quais são as figuras que “estão ligadas a um mesmo conceito
experimental”? São as palavras desprovidas de sentido e escritas no verso das figuras
que ajudaram a criança em sua busca de traços comuns que o conceito experimental
resume. As palavras guiaram e dirigiram o processo de formação de conceitos. Assim,
os pesquisadores da equipe de Vigotski puderam observar como a criança faz uma
primeira ideia do conceito experimental ou, em outras palavras, como ele dirige sua
atenção, com a ajuda das palavras, para certos traços das figuras que ele pressupõe
estarem resumidos pelas palavras; em seguida, ele valida ou invalida sua hipótese
virando a próxima figura e ele consegue, enfim, pouco a pouco, formar o conceito
preconizado e organizar as figuras de uma maneira totalmente correta nas quatro séries.

Pode-se ver bem que nessa classificação orientada e dirigida pelas palavras, nem a cor
e nem o tamanho das figuras funcionaram como traços distintivos. Não são esses dois
traços que estiveram na base da conceitualização e, em consequência, eles não foram
visados pelas palavras que simbolizavam o conceito. É claro que outras séries teriam
sido possíveis. Poderíamos ter organizado as figuras segundo suas cores ou segundo seu
tamanho, ou ainda segundo o fato de serem quadrangulares, triangulares ou redondas,
ou então pelo fato de serem simplesmente planas ou espessas. Em função da
conceitualização proposta pelas palavras, as fileiras poderiam ter sido mais ou menos
numerosas e mais ou menos preenchidas com figuras. Vigotski insiste no fato de que é a
utilização da palavra enquanto instrumento de conceitualização que muda
profundamente o modo de resolução da tarefa em relação às pesquisas de Ach e resume
seu próprio procedimento como a seguir:
Transformando assim os meios de resolver o problema, ou seja, os estímulos-signos
ou palavras, em grandeza variável e fazendo do problema uma grandeza constante,
nós tivemos a possibilidade de estudar como o sujeito emprega os signos enquanto
meios de dirigir suas operações intelectuais e como, em função desse modo de
utilização da palavra, de sua aplicação funcional, se desenrola e se desenvolve todo
o processo de formação do conceito em seu conjunto. (p. 202).

Duas diferenças maiores em relação às três outras maneiras de definir e de analisar os


conceitos que relatamos acima decorrem desse experimento e devem ser assinaladas
para compreender a especificidade da posição de Vigotski. A primeira diferença diz
respeito à concepção da linguagem. A maneira pela qual Vigotski discute a linguagem
enquanto meio de conceitualização inclui uma crítica das concepções nas quais as
palavras são discutidas como tendo uma ligação associativa ou exterior, seja com as
coisas, seja com as representações das coisas. Segundo os protagonistas dessa
concepção associacionista da linguagem, parece que podemos separar os objetos
representados das palavras que são, exclusivamente, consideradas como suporte
sensível dessas representações. A palavra teria então uma e única função, ou seja, de
expressar e de lembrar os objetos do mundo, da mesma maneira que o casaco do meu
amigo me faz pensar nele, mesmo quando ele não o está usando. Vigotski desenvolve
sua crítica dessa concepção da linguagem sobretudo no capítulo 7 de Pensamento e
linguagem e mostra que seus defensores tratam as significações das palavras como
constantes e imutáveis. Em consequência, um desenvolvimento das significações
quando da utilização das palavras não é concebível. Além disso, a especificidade da
própria linguagem é colocada em questão, pois nessa perspectiva, qualquer objeto do
mundo pode tomar o lugar da palavra e indicar um outro objeto ou sua representação. É
com a ajuda de um slogan que Vigotski mostra a originalidade de sua própria
concepção. Segundo ele: “O pensamento não se expressa na palavra, mas se realiza na
palavra” (p. 428). Essa frase resume perfeitamente a descoberta principal de suas
pesquisas, a qual o conduz a constatar que o pensamento e a linguagem não apresentam
dois processos independentes um do outro, se desenrolando em paralelo e se articulando
de vez em quando, mas que eles constituem um único e mesmo processo. É a
significação da palavra que “é esta unidade que não se decompõe na continuação dos
dois processos que não se pode dizer o que ela representa: um fenômeno da linguagem
ou um fenômeno do pensamento” (p. 417-418). Essa concepção da significação da
palavra está na base do experimento Sakharov/Vigotski sobre a formação dos conceitos
e, é ela também que é corroborada pelos resultados. É apenas se admitirmos que a
conceitualização se realiza através da palavra, mais precisamente na significação da
palavra, que não é jamais imutável, que diferentes maneiras de conceitualizar o mundo
com a ajuda das palavras se tornam visíveis.

O que nos leva à segunda diferença característica para a pesquisa de Vigotski. O


estudo funcional da palavra nos permite identificar diferentes formas de
conceitualização do mundo em função da idade das crianças. Isso confere um grande
interesse a seu estudo, sobretudo para os profissionais da educação, pois ele permite
afirmar a existência de diferentes estados de formação de conceitos na ontogênese da
criança. Por meio de uma análise das significações das palavras utilizadas pela criança,
diferentes maneiras de conceitualizar o mundo podem ser inferidas e se tornam
« observáveis ». As análises de Sakharov/Vigotski provam que o emprego das palavras
e, também, do significado das palavras, se distingue em função da idade das crianças.
Vigotski tira dessa conclusão uma tese importante no plano desenvolvimental:

É apenas quando a criança se torna um adolescente que é possível a passagem


decisiva ao pensamento conceitual. Antes dessa idade, trata-se de formações
intelectuais originais que, por seu aspecto exterior, se parecem a autênticos
conceitos e, em razão dessa semelhança exterior, podem ser tomadas, quando de
uma análise superficial, por índices da presença de verdadeiros conceitos desde a
mais jovem idade. As formações intelectuais são, em realidade, equivalentes
funcionais de verdadeiros conceitos que, eles, vêm à maturidade muito mais tarde.
[…] Identificar uns e outros, é ignorar o longo processo de desenvolvimento, é
colocar no mesmo plano seu estado inicial e seu estado final. (p. 205)

Essa citação contradiz uma ideia muito divulgada na época, a qual afirmava que as
crianças, já na idade de dois anos, eram capazes de formar verdadeiros conceitos. Ela
introduz igualmente um termo que será utilizado em seguida, a saber, o termo
«equivalentes funcionais ». Vamos mostrar, no próximo parágrafo, as etapas da
formação de conceitos que a análise experimental de Shakarov/Vigotski permitiu
identificar. Além disso, tentaremos trazer alguns elementos de resposta a uma questão
imperativa que se coloca aqui: em que consiste então a natureza de um pensamento
conceitual verdadeiro ou autêntico? Essa questão diz respeito ao estágio final, o da
maturidade do pensamento conceitual, cujos primeiros indícios são atestáveis na idade
da adolescência. Entretanto, Vigotski apressa-se em afirmar que a existência desse
pensamento conceitual autêntico ou verdadeiro, tão característico da idade adulta, não
significa de maneira alguma que as outras formas de conceitualização, os ditos
equivalentes funcionais, teriam totalmente desaparecido. Bem ao contrário,
frequentemente elas existem ainda paralelamente.

Os estágios de formação de conceitos

Quais são então, a natureza psíquica, a estrutura e o modo de ação desses equivalentes
funcionais dos conceitos verdadeiros? Na parte seguinte, vamos nos limitar à discussão
dos três grandes estágios que são claramente separados por Vigotski, mesmo se a faixa
etária para cada estágio não é precisamente indicada. No interior desses estágios,
Vigotski discute sobre os subestágios (ver p. 204-232)30, que, na seguinte demonstração,
vão ser apenas levados em conta se isso permitir esclarecer os próprios estágios.

O primeiro estágio é o dos conceitos sincréticos (ver p. 211-214). A criança designa


diferentes objetos, utilizando a mesma palavra. A ligação produzida entre os objetos
designados com a ajuda da palavra baseia-se em uma impressão totalmente subjetiva e
pouco estruturada. Assim, pode tratar-se de um encontro espacial ou temporal desses
objetos ou de uma configuração específica que provoca uma relação entre eles na
percepção subjetiva do mundo pela criança. Segue-se uma extensão difusa de uma
significação linguageira a uma série de elementos que não têm relações objetivas entre
eles. Vigotski ressalta que a generalização realizada aqui, com a ajuda de uma palavra,
tem um caráter difuso e aleatório, trata-se de uma reunião de coisas desprovidas de
qualquer regra de composição. No entanto, não se pode esquecer que não é, por assim
dizer, apesar da palavra, mas graças a ela que essa generalização se faz. Outra
particularidade desse estágio deixa-se detectar pela maneira pela qual a palavra é
tratada. « Na formação de imagens, a palavra é tomada como um estímulo entre outros,
presente na situação e participando da impressão global » (Zaccai-Reyners, p. 154).
Tomemos um exemplo: uma criança sentada no ônibus olha pela janela e designa
sucessivamente tudo o que acontece na frente da janela com a palavra « auto », pouco
importa que se trate de um ciclista, de um carrinho de criança, de um policial andando,
de um cachorro, de um esqueitista, de um quiosque. É difícil dar um sentido qualquer à
palavra « auto » tal como é utilizada pela criança, pois a ligação que ela cria entre os
objetos tem um caráter subjetivo (sincrético), a palavra só pode ser credidata a ela-
mesma. No entanto, é incontestável que a criança faz uma utilização funcional dessa
palavra que é aplicada a todas as coisas que ela percebe a partir de seu lugar no ônibus,
relacionando-os.

O segundo tipo de conceitos analisados em Pensamento e Linguagem são os


complexos. No pensamento por complexos, a criança torna-se capaz de compreender
relações objetivas que existem realmente entre as coisas e as pessoas no mundo.
Vigotski dá como exemplo os sobrenomes. Os « objetos » que são semelhantes pelo
sobrenome têm entre eles uma ligação muito específica que não se baseia mais em uma
impressão subjetiva, mas que também não têm um caráter lógico. A relacão entre os
membros de uma família, entre as pessoas que têm o mesmo nome é uma ligação
concreta e factual. Que Vladimir e Serguéï sejam membros da família Pétrov é um fato;
um fato empírico e concreto, já que se constatou que os dois têm o mesmo pai e a
mesma mãe. Aliás, a ligação entre Paul e Pierre apresenta-se igualmente como uma
ligação factual já que ela se baseia no fato de que os outros dois fazem parte da
associação de estudantes, o que é mostrado pelo crachá « membro da ADELME 31» que
eles usam durante a Assembleia geral. Trata-se de uma ligação constituída por um

30
Assim, Vigotski distinque três etapas de formação dos conceitos sincréticos e cinco formas fundamentais do estado
dos complexos.
31
Associação de estudantes de Licenciatura.
pertencimento comum, no caso, aqui, pela de ser um membro da mesma associação.
Esses exemplos mostram claramente uma característica essencial dos complexos que
Vigotski mostra como segue: « Assim não podemos nunca determinar se uma dada
pessoa faz parte da família Pétrov, nem se podemos designá-la por esse nome a partir da
mesma base de sua relação lógica com os outros portadores desse nome » (p. 216).
Mesmo se Boris e Serguéï têm traços de caráter comuns, não é uma razão pela qual eu
poderia concluir que Boris faz parte da família Pétrov. Da mesma forma para Paul e
Pierre, pois, ainda que eles compartilhem as mesmas convicções políticas, esse fato não
permite concluir que eles são membros da mesma associação de estudantes, e não há
nenhuma necessidade lógica entre os dois fatos. « É o pertencimento de fato ou o
parentesco de fato entre os indivíduos que decide » (p. 216).

Vigotski sublinha que o caráter concreto e empírico dessas ligações objetivas que é
levado em conta cada vez que se utiliza um sobrenome ou, mais geralmente, um
complexo. Assim, este se baseia nas relações empíricas mais variadas, nas ligações
entre objetos que não têm, frequentemente, nada em comum entre si, como pode ser o
caso para os irmãos Vladimir e Serguéï, que são, no entanto, realmente ligados um ao
outro, sendo membros da mesma família. Essa especificidade dos complexos reflete-se
também no papel que a palavra tem na generalização. Enquanto que na formação dos
conceitos sincréticos a palavra foi um aspecto indiferenciado da percepção, « nos
complexos, a palavra pode ser considerada de maneira diferenciada […] Assim, por
exemplo, a palavra „maçã‟, [..] pertence à maçã da mesma maneira que sua forma, sua
textura, sua cor … » (Zaccaï-Reyners, p. 154). Aplicado a nosso exemplo, isso quer
dizer que o nome Pétrov pertence a Serguéï da mesma forma que sua barba e a cor de
seus cabelos.

Resta discutir os dois últimos tipos de conceitos, a saber, o pseudoconceito e o


verdadeiro conceito. Já que o pseudoconceito constitui um equivalente não maduro do
verdadeiro conceito, parece mais relevante começar por uma discussão desse último.
Segundo Vigotski, o verdadeiro conceito tem por base « ligações de tipo único,
logicamente idênticas entre elas » (p. 217). Um conceito é formado quando traços
distintivos de um grupo de objetos foram abstraídos e submetidos a uma nova síntese.
Essa síntese assim obtida se torna a forma fundamental do pensamento. Uma questão se
coloca, no entanto: Em que essa descrição do conceito verdadeiro se distingue da que
demos sobre o método de abstração discutido no primeiro parágrafo deste capítulo? O
método da abstração apoia-se justamente na ideia de que o conceito é uma
representação do espírito que reúne uma multitude de objetos pela abstração de um
traço comum. Aparentemente, é difícil de escapar de uma teoria representacionalista do
conceito. É então importante voltar para uma diferença que não é pequena e na qual
Vigotski não cessa de insistir.

O conceito é impossível sem as palavras, o pensamento conceitual é impossível


sem o pensamento verbal; o elemento novo, o elemento central de todo o processo,
que somos instituídos a considerar como a causa produtiva da maturação dos
conceitos, é o emprego específico da palavra, a utilização funcional do signo como
meio de formação de conceitos. (p. 207 ; ver também p. 259, 267)

Na concepção representacionalista dos conceitos, a função concedida à palavra é de


expressar (ou de designar) o resultado da generalização, enquanto que, para Vigotski, a
palavra tem, de início, já na formação do conceito, um papel incontestável. A palavra
não fecha a generalização, mas contém a generalização; não é sua expressão, mas o
próprio suporte do processo. Na abordagem de Vigotski, a palavra não é o resultado da
generalização nem sua condição imutável, mas o « lugar » em que o pensamento nasce:

Nós vimos que a relação entre o pensamento e a palavra é o processo vivo do


nascimento do pensamento na palavra […] Hegel considerava a palavra como um
ser animado pelo pensamento. Esse ser é absolutamente necessário a nossos
pensamentos. (p. 498)

Poderíamos então, dizer que a palavra permite pensar no mundo e não apenas
representá-lo. Senão, como poderíamos formular os enunciados desse gênero: « O
homem é um animal que pensa »? Uma criança que não pensa com essas palavras, mas
procura designar, talvez a representar com elas as coisas no mundo, diria
imediatamente: « mas um animal não tem razão, então um homem não pode ser um
animal ». Evidentemente a validade dessa generalização não pode ser questionada, mas
isso não impede que, com esse enunciado, alguma coisa com relação ao homem seja
pensada. Esse enunciado permite pensar o mundo, mas à condição que nós não tentemos
considerar o traço « dotado de razão » como um traço comum ao homem e ao animal.
Nós pensamos com a expressão animal dotado de razão alguma coisa no mundo e,
nesse sentido, as palavras não representam o mundo, mas desencadeiam, trazem e
guiam o processo do pensamento. A diferença do conceito sincrético e de um complexo,
um verdadeiro conceito baseia-se na capacidade de o homem tomar as coisas no mundo
fora das relações nas quais elas se deram na experiência, além de seus traços empíricos
atestáveis, além de seu ser de fato. Em outros termos: utilizar um conceito não significa
apenas generalizar, colocar junto às coisas no mundo, mas pensar o mundo, o que pode
conduzir a ligações entre as coisas no mundo que não são ligações fatuais. Que o
homem seja um animal dotado de razão, só pode ser pensado, mas pensado utilizando a
linguagem que se revela, assim, indissociável do pensamento. O processo de formação
do pensamento através da linguagem, tal como é característico para um conceito
verdadeiro é descrito por Vigotski por um recurso ao conceito de mediação que já
encontramos no capítulo anterior:

Não apenas o pensamento é mediatizado exteriormente pelos signos, mas ele o é


interiormente pelas significações. […] Não se pode conseguir fazê-lo, a não ser por
uma via indireta, mediada, ou seja, graças à mediatização interna do pensamento,
primeiramente pelas significações, em seguida pelas palavras. É por isso que o
pensamento nunca equivale à significação literal das palavras. A significação serve
de mediação entre o pensamento e a expressão verbal, ou seja, a via que vai do
pensamento à palavra é indireta, interiormente medidada. (p. 493)

É essa espécie de « jogo », de não coincidência entre pensamento e linguagem, os dois


sendo ao mesmo tempo indissociáveis, que constitui a condição para a formação de
conceitos verdadeiros. O conceito de mediação tematiza perfeitamente o processo que
ocorreu aqui. A linguagem não expressa, não reflete, não significa o pensamento, ela
funciona como um meio [médium], ela faz com que o processo de pensamento se
realize; em suma, o pensamento se faz através dela. Assim, a linguagem torna presente
o pensamento realizado pelos sujeitos sob forma de conceitos verdadeiros.

O objeto de uma psicologia do desenvolvimento

A análise experimental da formação de conceitos e a interpretação que Vigotski


propõe dela implicam duas consequências em relação ao desenvolvimento. Nós vimos
que, na ontogênese da criança, diferentes formas de pensamento em conceitos se
sucedem e coexistem e que os conceitos utilizados pela criança antes da idade da
adolescência constituem equivalentes funcionais. Esse termo explica, igualmente, um
fato bem observável na vida diária, a saber, que a criança, desde a mais terna idade, é
capaz de realizar trocas verbais e de assegurar uma compreensão mútua com os adultos,
mesmo se o que é dito e pensado com a ajuda das palavras é frequentemente diferente.
Vigotski empresta um célebre exemplo à filosofia da linguagem. Falando de Napoleão,
pode-se visar com essa mesma palavra tanto o « vencedor de Iéna », quanto o « vencido
de Waterloo » (p. 243). As palavras que a criança e o adulto utilizaram em suas
conversas, visam aos mesmos objetos (a denominação é comum). No entanto, a maneira
pela qual esses objetos são conceitualizados e pensados a partir delas (a significação) é
diferente. É essa diferença que deveria, segundo Vigotski, ser o objeto primário de uma
psicologia do desenvolvimento.

A segunda consequência diz respeito à escola e ao papel que Vigotski lhe atribui.
Antes da aquisição da capacidade de formar os conceitos verdadeiros, Vigotski constata
o estágio dos pseudoconceitos. Nesse estágio, o adolescente começa a ser capaz de
utilizar conceitos verdadeiros, mas não se exercitou, no entanto, a definir os conceitos.
O traço característico dos pseudoconceitos consiste no fato de que a generalização
realizada leva ao mesmo resultado que aquela que se baseia nos conceitos, mas ela se
realiza definitivamente na base de um pensamento por complexos, logo, apoiando-se em
operações intelectuais muito diferentes (ver p. 226-233). Vigotski mostra que a presença
dos conceitos e a consciência dos conceitos não coincidem; existe uma discordância
entre a utilização dos verdadeiros conceitos e a tomada de consciência desse fato pela
criança.
Essa discordância se mantém não apenas no adolescente, mas também no
pensamento do adulto, às vezes, mesmo no pensamento desenvolvido ao mais alto
ponto. […] O adolescente forma um conceito, emprega-o corretamente em uma
situação concreta, mas, assim que se trata de definir verbalmente esse conceito, seu
pensamento se choca então, imediatamente, a extremas dificuldades e a definição
que ele dá é muito mais estreita que o emprego vivo que ele faz dele. Vemos aí a
confirmação direta de que os conceitos não resultam simplesmente de uma
elaboração lógica de tais ou tais elementos da experiência, que eles não são o
produto da reflexão do adolescente, mas que eles aparecem nele por outro caminho
e só se tornam conscientes e lógicos muito mais tarde. (p. 261)

Esse outro caminho, mencionado por Vigotski, é o do ensino e, mais precisamente, do


ensino dos conceitos científicos que, segundo nosso autor, é uma das tarefas principais
da escola. É a esse aporte bem específico da escola que dedicamos o último capítulo
deste livro.
CAPÍTULO 5
O APORTE ESPECÍFICO DA ESCOLA

A distinção entre conceitos cotidianos e conceitos científicos


É a distinção entre conceitos cotidianos e científicos que permite melhor compreender o
papel que Vigotski atribui à escola, já que é o ensino de conceitos científicos que
constitui, segundo ele, sua especificidade. A gênese dos conceitos cotidianos não
necessita desse quadro institucional, pois a criança os forma e os aprende em sua
atividade prática, na comunicação imediata com as pessoas ao seu redor; em suma, nas
situações informais de aprendizagem. O fato de que esses conceitos se formam na
experiência, logo, no contato direto com o mundo, explica que eles têm um nível de
abstração pouco elevado. Assim, um conceito cotidiano refere-se diretamente às coisas
do mundo como nossa análise dos conceitos sincréticos e dos complexos o mostrou. Por
outro lado, os conceitos científicos são generalizações de segunda ordem, já que a
referência ao mundo que eles operam não é nunca imediata nem direta. Ela sempre se
realiza por intermédio de algum outro conceito. Vigotski mostra que um conceito
científico tem uma relação tanto com os objetos do mundo, quanto com os outros
conceitos. Isso significa duas coisas: 1) os conceitos científicos sempre se apoiam nos
conceitos cotidianos, não podendo existir sem eles e 2) um conceito científico existe
sempre no interior de um sistema de conceitos.

C científico C cotidiano mundo

Para ilustrar essa definição dos conceitos científicos como generalizações das
generalizações, Vigotski faz referência a um conceito oriundo da ontogênese da criança.
Uma criança pequena ainda não é capaz de utilizar o conceito flor como tendo um nível
de generalidade diferente em relação aos conceitos rosa e tulipa. Ela o utiliza como um
conceito cotidiano entre outros e não compreende que o conceito flor inclui conceitos
mais particulares. Em vez de subordinar os conceitos tulipa e rosa ao conceito flor, a
criança os situa todos ao mesmo nível. Em consequência, a utilização do conceito flor
enquanto generalização do que é generalizado pelos conceitos tulipa e rosa, mostra o
fato de que a criança começa a dominar os conceitos que têm características
semelhantes àquelas dos conceitos científicos. Ela se torna capaz de operar no interior
de um sistema de conceitos organizado hierarquicamente. Em outros termos, ela
aprendre a seguir o movimento dos conceitos não apenas no plano horizontal, mas
também no plano vertical.

Flor

Rosa tulipa
Objeto objeto

Vigotski insiste no fato de que o conceito científico não anula de maneira alguma a
etapa precendente à formação de conceitos, mas se apoia nela e a transforma (p. 391). O
que explica a possibilidade de ligações supraempíricas entre os conceitos. Essa
característica dos conceitos científicos, a saber, de não ser um novo modo de
generalização dos objetos do mundo, mas de apresentar um trabalho sobre as
generalizações já existentes, revela-se um sinal precioso para poder determinar os
procedimentos que, segundo nosso autor, deveriam ser privilegiados no ensino escolar.
Dentre os inúmeros exemplos que cita, ele se refere em vários momentos ao ensino da
linguagem escrita e insiste em um ponto preciso 32. Uma das condições requeridas para a
aquisição da linguagem escrita é a decomposição e a recomposição da linguagem oral,
tanto no plano fonético quanto no plano sintático ou semântico. A linguagem oral deve
ser usada como “mediadora” para a aprendizagem do escrito. Mesmo se o escrito possui
uma qualidade totalmente nova e não reproduz de maneira alguma a linguagem oral, o
processo de aquisição da linguagem escrita deve se basear na linguagem oral. Segundo
Vigotski, é preciso levar a sério essa situação quase paradoxal: mesmo se o escrito não
se deixa inferir a partir do oral, ele não pode ser aprendido sem se referir ao oral, como
o conceito flor não pode ser adquirido por uma criança que não conhece os conceitos
rosa e tulipa. É nesse jogo de dependência e independência entre o escrito e o oral, entre
as generalizações de primeira e de segunda ordem, entre os conceitos cotidianos e os
conceitos adquiridos na escola, que a aprendizagem escolar deve se fundar.

Resta então, a discutir o que a criança adquire como capacidades quando se dá a


aprendizagem dos conceitos científicos. Em que consiste, no final das contas, o aporte
específico da escola? A resposta a essa pergunta será desenvolvida a partir de outro
exemplo trazido por Vigotski, no capítulo 6 de Pensamento e Linguagem. Trata-se da
relação entre os conceitos aritméticos e os conceitos algébricos. Comecemos com o
conceito aritmético, que é definido por Vigotski como a abstração do número a partir da
coisa ou, em outras palavras, como a generalização dos traços numéricos da coisa. Os
traços numéricos são, nos conceitos aritméticos, separados das coisas. Essa separação
permite operar livremente com os números, o que pode ser facilmente observado nas
operações elementares, a adição, a subtração e a multiplicação, que também são o objeto
da aritmética. Por outro lado, os conceitos algébricos são generalizações das
propriedades numéricas expressas nos conceitos aritméticos. Esses conceitos permitem
pensar qualquer relação entre os números e são proferidos sobretudo sob a forma de
equações. Trata-se de abstrações de segunda ordem que se baseiam no conceito
aritmético do número e que são completamente separadas do mundo dos objetos.
Vigotski expressa o fato como segue:
Operar a generalização de suas próprias ideias e operações aritméticas representa
alguma coisa superior e nova em relação à generalização das propriedades
numéricas dos objetos nos conceitos aritméticos. (p. 393)

32
Sobre a concepção da escrita em Vigotski, ver Schneuwly, 2008.
Para esclarecer em que consiste esta alguma coisa nova, proponho completar as
reflexões de Vigotski pela discussão de um ensino igualmente matemático que o
filósofo alemão Ludwig Wittgenstein (1889-1951) desenvolve em alguns curtos
parágrafos de seu livro Recherches philosophiques publicado em 1953. Essa articulação
inabitual entre esses dois pensadores, considerados como pertencentes a tradições de
pensamento bem diferentes, torna-se possível e pode ser defendida, pois os dois se
juntam em sua crítica a uma concepção mentalista do espírito 33. Wittgenstein discute em
Recherches philosophiques um ensino a respeito das sequências dos números naturais,
que ele começa como segue:
Imaginemos o seguinte exemplo: A escreve sequências de números; B o vê fazer
e se esforça para encontrar uma lei da sucessão desses números. Se ele consegue,
ele grita: “Agora eu posso continuar!” – Essa capacidade, essa compreensão é,
assim, alguma coisa que aparece em um instante. Vejamos então o que aparece
aqui. Suponhamos que A tenha escrito os números 1, 5, 11, 19, 29 e que B diga
que agora ele sabe como continuar. O que aconteceu? Pode ter acontecido várias
coisas. (§ 151, p. 99)

Aqui está, primeiramente, a segunda resposta dada por Wittgenstein:


[...] B não pensa em nenhuma fórmula. Ele observa com certa tensão os números que A
escreve, todos os tipos de pensamentos confusos que atravessam o espírito. E,
finalmente, ele se pergunta: „Qual é a continuação pelas diferenças?‟ Ele acha 4, 6, 8,
10, e ele diz: Agora eu posso prosseguir. (§ 151, p. 100)
Poderíamos ilustrar essa solução pelo seguinte esquema:

1 ______ 5 ______ 11 _____ 19 ______ 29 _____ 41


4 6 8 10 12

O procedimento aplicado por B torna-se claro: ele acrescenta um segundo nível à série,
um nível que a “generaliza”. Ele utiliza os números que permitem entender o princípio
de construção da série, ficando, no entanto, sob o plano aritmético. Acrescentando a
cada número da primeira série o número par seguinte da segunda série, começando a
segunda série com o número 4, B consegue continuar a série. Mas existe ainda outra
maneira de resolver o enigma, a que é discutida por Wittgenstein enquanto primeira
solução:

Por exemplo, no momento em que A escrevia lentamente esses números uns após os
outros, B tentava lhes aplicar diferentes formas algébricas. Depois, no momento em que
A escreve o número 19, B tentou a formula a = n2 + n – 1; e o número seguinte permitiu
confirmar sua suposição. (§ 151, p. 99-100)
1 ________ 5 ___________ 11 ___________ 19 ____________ 29 ____________ 41
a = n2 + n – 1

33
Sobre o antimentalismo de Wittgenstein, ver Bouveresse 1987.
Essa operação aplicada por B para poder continuar a sequência se situa claramente no
campo da álgebra. Enquanto que, na primeira resolução, os números continuam a ser o
suporte maior, no segundo caso, B consegue explicitar a equação na qual se baseia a
série. Essa equação explicita as operações aritméticas a realizar para formar cada
membro da série (por exemplo: 5 = 2x2 +2-1). Ela generaliza as operações aritméticas,
ou mais precisamente, ela os faz “ver” e permite tomar consciência delas.
Esse exemplo emprestado de Wittgenstein mostra bem o que Vigotski tenta ilustrar com
sua discussão sobre os conceitos aritméticos e algébricos. O psicólogo russo sublinha
que é a fórmula algébrica que permitiu tomar consciência da constituição da série, já
que é ela que contém o princípio de sua construção. O que se opera aqui, então, é a
tomada de consciência sobre as operações matemáticas na base da série.
Assim, a tomada de consciênca apoia-se em uma generalização dos processos
psíquicos próprios, que conduz ao seu domínio. Nesse processo, é antes de tudo
a aprendizagem escolar que representa um papel decisivo. Os conceitos
científicos, com sua relação totalmente outra com o objeto, sua mediação por
outros conceitos, seu sistema hierárquico de relações recíprocas, são o campo no
qual, sem dúvida, a tomada de consciência dos conceitos, ou seja, sua
generalização e seu domínio, se desenvolve no mais alto ponto. (p. 317)

Vigotski conclui, então, que a tomada de consciência é uma das duas neoformações
principais da escola, a outra sendo o domínio ou a intervenção da vontade, como ele
também a chama (p. 309).

As duas neoformações adquiridas na escola


Todas as funções essenciais que têm uma parte ativa na aprendizagem escolar
giram em torno do eixo das neoformações 34 fundamentais desta idade: o caráter
consciente e o caráter voluntário. (p. 361)

Vigotski insiste na interdependência da tomada de consciência e da intervenção da


vontade. A tomada de consciência de um conceito é a condição indispensável para
utilizá-lo voluntariamente. Ao longo do capítulo 6, encontramos a identificação do
domínio da vontade. Essa identificação torna-se compreensível se levamos em conta
que, para Vigotski, dominar quer dizer “poder fazer voluntariamente”. De fato, uma
segunda identificação pode ser revelada aqui: aquela entre o saber e o poder fazer. Uma
identificação igualmente presente no exemplo de Wittgenstein. B diz, encontrando a
solução, “Agora, eu posso continuar” e ele continua a série. Para Wittgenstein, os dois
processos « ter compreendido e poder prosseguir corretamente a série” são apenas um.
Segundo ele, é importante reconhecer que a compreensão não existe enquanto processo
mental precedente e separado da realização da tarefa, nesse caso, de continuação da
série. O saber da fórmula algébrica não é nada mais do que “poder continuar a série”
(logo, fazê-lo realmente). B aprendeu álgebra, ele tem um conhecimento de álgebra

34
O termo neoformação significa que se trata de dois traços distintivos fundamentais das funções psíquicas superiores
que são desenvolvidos tarde, na idade escolar, e dão a estes últimos um caráter totalmente novo.
quando ele sabe continuar a série, em resumo, quando ele sabe fazer. A tomada de
consciência sobre suas próprias operações aritméticas não leva simplesmente ao
conhecimento da fórmula algébrica, mas ao domínio desse tipo de tarefa, à realização
dessa tarefa (ao seu domínio), que pode ser repetida em outras situações.

Outro exemplo de predileção de Vigotski, o da linguagem escrita, esclarece mais a


especificidade dessas duas neoformações. O autor insiste no fato de que antes de sua
entrada na escola a criança demonstra alguns “saber-fazer35” no campo da linguagem,
mas ela não sabe que os possui. Um bom exemplo é a pronúncia das palavras que as
crianças fazem com facilidade, mas sem que tenham consciência das letras que elas
pronunciam nessas palavras. A atividade de pronúncia se desenvolve na maioria dos
casos de uma maneira involuntária e inconsciente, ela se apresenta como uma atividade
espontânea. Vigotski apresenta várias provas: quando se pede a uma criança para
pronunciar separadamente as letras “sk” que ela pronuncia sem nenhum problema na
palavra “Moskva”, os experimentos mostram que fora dessa palavra a criança não
consegue pronunciá-las. Estamos, assim, frente a uma pronúncia automática, na qual as
letras “sk” são utilizadas de maneira inconsciente e não dominada. A explicação que
Vigotski dá desse fenômeno se resume em uma frase: “A criança domina então alguns
“saber-fazer” no campo da linguagem, mas não sabe que os domina” (p. 344). A criança
realiza certas operações no campo da linguagem (como a da conjugação e a da
declinação) sem se dar conta, como o demonstramos quanto às operações aritméticas
que acontecem antes do ensino da álgebra. A linguagem escrita e a álgebra são sistemas
voluntários de signos e seu ensino tem por resultado não apenas uma tomada de
consciência sobre o funcionamento da linguagem oral, mas também seu domínio.
Assim, a criança começa a dominar, através de uma aprendizagem da linguagem escrita,
o que ela sabe fazer na linguagem oral, ela utiliza voluntariamente esse saber no curso
da palavra36. Definitivamente, o resultado das aprendizagens escolares é um
desenvolvimento voluntário (dominado), logo, livre e independente dos automatismos
aprendidos e dos conhecimentos inculcados. A aquisição das duas neoformações é
considerada por Vigotski como objeto privilegiado das disciplinas escolares 37.

A relação entre aprendizagem e desenvolvimento

As reflexões de Vigotski sobre a escola seriam incompletas sem abordar e discutir a


problemática da relação entre aprendizagem e desenvolvimento. Primeiramente, ele
tenta se diferenciar das concepções que ele considera pouco compatíveis com suas
próprias ideias, porém bem difundidas na sua época. Estas se deixam esquematicamente
esboçar sob a forma de três teorias. A primeira considera a aprendizagem e o
desenvolvimento como dois processos independentes, que, embora não se influenciando

35
No original, “savoir-faire’ (nota de tradução).
36
Outro exemplo é a aprendizagem de uma língua estrangeira: a língua materna é a condição para aprender uma
língua estrangeira que, por sua vez, nos torna conscientes de certos traços de nossa própria língua, permitindo utilizá-
la de uma maneira voluntária.
37
Ver também sua discussão sobre a velha doutrina da disciplina formal, segundo a qual certas disciplinas escolares
são mais aptas do que outras a participar do desenvolvimento das neoformações. (ver, p. 331-335)
absolutamente, se preparam um ao outro. Nessa perspectiva, o desenvolvimento de
certas funções e capacidades psíquicas bem determinadas é apresentado como uma
condição indispensável para as aprendizagens e é então considerado como precedente às
aprendizagens. Segundo os representantes da segunda concepção, a aprendizagem e o
desenvolvimento são tratados como um único e mesmo processo. Considerar os dois
como sendo inseparáveis um do outro, implica que qualquer aprendizagem tem um
efeito direto sobre o desenvolvimento ou, mais precisamente, é automaticamente
identificado a um desenvolvimento. A terceira concepção tenta afirmar uma verdadeira
interdependência entre esses dois processos. Vigotski se posiciona em favor dessa
última, criticando seus representantes quanto a um número importante de pontos que,
segundo ele, não são sustentáveis (ver p. 328-331).
Sua própria concepção se deixa resumir em torno de duas grandes teses. A primeira
tese afirma que “a aprendizagem precede o desenvolvimento” (p. 348). Mostrando que
as funções psíquicas superiores se baseiam todas nas duas neoformações discutidas
anteriormente, que não são a condição, mas o objetivo primário e o resultado esperado
dos ensinamentos escolares, as aprendizagens têm um papel primordial no
desenvolvimento da criança. Essa afirmação reflete-se em um conceito que viu seu
alcance aumentar consideravelmente nos últimos anos, trata-se da “zona de
desenvolvimento proximal”. Opondo-o ao conceito de “desenvolvimento presente”, que
engloba tudo o que a criança sabe fazer de uma maneira autônoma, todas as capacidades
que vieram à maturidade, o conceito de “zona de desenvolvimento proximal” antecipa
os desenvolvimentos possíveis, o que a criança conseguirá fazer se acompanhada pelos
adultos na resolução de tarefas e problemas. É esse movimento entre “o que ela sabe
fazer” em direção “ao que ela poderia conseguir fazer”, que constitui o que os
ensinamentos escolares deveriam focalizar. Vigotski insiste no fato de que os últimos só
são frutíferos no quadro dessa zona que deve ser definida para cada aluno de maneira
individual, em função de seu desenvolvimento posterior. Esse último aspecto é
reforçado por um recurso às filiações históricas do conceito “zona de desenvolvimento
proximal”. Vigotski mostra que a psicologia empresta esse conceito da biologia na qual
utiliza-se o termo de “períodos sensíveis” (ver p. 358-359) a fim de delimitar um lapso
de tempo bem específico, durante o qual o organismo é particularmente sensível às
influências do meio. Durante esse período, o meio orienta e determina fortemente o
curso de seu desenvolvimento e provoca grandes modificações, enquanto que em outro
período as mesmas condições não têm nenhum efeito, nem mesmo efeitos inversos no
organismo.

Na sua segunda tese, Vigotski afirma que o ritmo do desenvolvimento não coincide
com o ritmo das aprendizagens, o que parece, à primeira vista, relativizar a tese anterior.

Se as duas curvas se juntassem em uma só, nenhuma relação, em geral, seria


possível entre aprendizagem e desenvolvimento. […] os dois processos são, de certo
modo, incomensuráveis na acepção própria da palavra. (p. 348)
Mas essa segunda tese é indispensável para poder supor uma verdadeira
interdependência entre aprendizagem e desenvolvimento, uma interdependência na qual
nenhum dos dois tem prioridade sobre o outro. Essa tese sobre a incomensurabilidade
permite justamente afirmar que não é apesar do desenvolvimento, mas graças a ele que
as aprendizagens se realizam. O que é então expresso aqui? O simples fato de que as
aprendizagens não garantem automaticamente que um aluno seja « afetado » por elas,
ou, em outras palavras, que ele seja sensível a elas. Em consequência, um
desenvolvimento não é garantido pelas aprendizagens, pois, com efeito, o processo
escolar tem seus encadeamentos, sua lógica e sua organização complexa que lhe são
próprias. Os ensinamentos se desenvolvem em função de um planejamento determinado
anteriormente, de uma maneira sequencial, na forma de lições, de deveres, que são
organizados segundo os diferentes campos e matérias a ensinar. É essa organização que
Vigotski tem em vista quando ele caracteriza as leis da aprendizagem como externas ou
artificiais, pois seria ilusório pensar que as aprendizagens coincidirão perfeitamente
« com as leis internas próprias à estrutura dos processos do desenvolvimento que a
aprendizagem desencadeia » (p. 346). O fato de que a estrutura e a temporalidade das
aprendizagens não correspondem ao desenvolvimento interno, não significa que os dois
processos não se cruzem nunca. Bem ao contrário, « esses pontos de cruzamento » são o
objetivo declarado e procurado do ensino e regularmente atestados nas práticas
escolares. No entanto, cada professor já observou o fenômeno que Vigotski relata como
segue: nem a primeira, nem a segunda e a terceira lições fizeram avançar o aluno B na
elaboração, por exemplo, de um pensamento algébrico; e, depois, a sessão seguinte se
mostra decisiva, « ele compreendeu ». Vigotski chama a atenção do leitor para o caráter
brusco e pouco contínuo das mudanças suscitadas pelas aprendizagens. Ele se refere
novamente à escola de Würzburg, desta vez, para tomar um termo que tenta explicar
esse fenômeno. Os membros dessa escola utilizaram em suas pesquisas sobre o
pensamento o termo de « Aha-Erlebnis » que encontrou em francês38 traduções como
« experiência estalo » ou « experiência eureka ». Esse termo indica o momento
aparentemente bem circunscrito durante o qual uma clarificação, uma compreensão, um
pensamento se faz repentinamente, instantaneamente; esse momento é frequentemente
expresso pela exclamação « agora, eu sei ».

Essa discussão da experiência estalo contém uma ideia já discutida no parágrafo


anterior e que é primordial para todo o pensamento de Vigotski sobre a escola:

Na verdade, não ensinamos à criança o sistema decimal propriamente dito. Ensinamos


a inscrever algarismos, a multiplicar, a resolver exercícios e problemas e o resultado de
tudo isso é o desenvolvimento, na criança, de umconceito geral de sistema decimal. (p.
348)

Novamente, um paralelo com as reflexões de Wittgenstein revela-se interessante, pois,


para este último, ensinar o sistema decimal a uma criança significa, nada menos, do que
mostrar, ressaltar, escrever a série no quadro. Nessa perspectiva, o sucesso das

38
NT: expérience déclic ou expérience eureka.
aprendizagens depende inteiramente do que o aluno sabe fazer ou não sabe fazer em
seguida, em suma, do fato que ele continua sozinho a partir de certo momento, a série
decimal dos números naturais ou que ele não o faz.

Suponhamos que o aluno escreva agora a sequência 0 a 9 de uma maneira que nos
satisfaça. – Será o caso apenas se ele consegue frequentemente e não se ele o faz
corretamente uma vez a cada cem vezes. Eu o guio em seguida no desenvolvimento
da sequência e chamo sua atenção sobre o retorno da primeira sequência nas
unidades, depois sobre o retorno nas dezenas. (O que quer simplesmente dizer que
eu recorro a certas entonações, que eu ressalto alguns sinais, que eu os escrevo uns
sob os outros de tal ou tal maneira, e outras coisas semelhantes.) – E em certo
momento, ele continua a desenvolver a sequência sozinho, - ou ele não o faz. – Mas
por que você o diz? Isso é natural! – Evidentemente, e eu queria simplesmente dizer
que o efeito de toda explicação suplementar depende de sua reação. (§ 145, p. 97)

Não poderíamos dizê-lo mais claramente: o professor mostra, designa, acentua no


quadro, e depois ele pede à criança para continuar sozinho, para continuar a série.
Continuar a série não pode ser ensinado, trata-se de um processo produzido pela
criança, é um resultado de seu desenvolvimento. Para continuar a série, a criança deve
desenvolver um conceito de sistema decimal, esse conceito não pode ser adquirido tal
qual, mas é produzido pela criança. Assim, esse conceito só é adquirido se ele existe sob
a forma de saber fazer, quando ele continua a série. É a continuação da série, mas
geralmente sua reação, que mostra ao professor se ele pode continuar sua lição ou se o
processo de aprendizagem é temporariamente interrompido até que o aluno reaja de uma
maneira conveniente. Esse exemplo ilustra perfeitamente a divergência das
temporalidades próprias à aprendizagem e ao desenvolvimento. Ora, é o poder fazer, o
saber fazer que atesta o desenvolvimento da criança e, em consequência, o sucesso das
aprendizagens.

Essa diferença entre aprendizagem e desenvolvimento, tal como é discutida por


Vigotski, confirma sua ideia da mediação que encontramos ao longo desse livro. O
conhecimento não é dado nem adquirido, ele é mostrado, acentuado, demonstrado pelo
professor e, a partir dessas operações, ele é construído pela criança. A criança constrói o
que não pode ser expresso diretamente por essas operações, mas que é, no entanto,
visado por elas: por exemplo, o conceito algébrico. O que é mostrado pelo professor é
usado como um instrumento pela criança que se transforma ao mesmo tempo em objeto
e sujeito. Por um lado, o aluno segue as intervenções do professor: ele repete, continua,
escreve, recopia tudo o que é mostrado. Por outro lado, para continuar, por exemplo, a
série decimal, ele deve acrescentar a essas operações um conceito quer seja aritmético,
quer seja algébrico, como mostrou a demonstração de Wittgenstein. Assim, a
constituição dos conceitos que permitem continuar a série é um processo ativo realizado
pelo aluno, um processo que demanda que o aluno se constitua como ator de sua
aprendizagem no sentido de que o aluno deve moldar para si um poder fazer. O que
implica também que os meios que fazem emergir esse poder fazer podem variar de um
aluno a outro, sem que isso tenha a menor incidência sobre sua eficiência.

Essa demonstração nos conduz a concluir que os saberes ensinados na escola não
podem ser transmitidos tais quais ao aluno\; eles devem ser dados com o objetivo de
incitar um poder fazer constituído pelo próprio aluno. As reflexões de Vigotski em
torno do desenvolvimento e da aprendizagem permitem propor uma concepção do saber
escolar que trata esse último como um instrumento psicológico. O saber requer essa
função de instrumento, assim que o aluno se torna capaz de intercalá-lo entre ele e o
mundo (por exemplo, o mundo das tarefas matemáticas), o que tem como resultado que
« ele pode continuar a série », ou, mais geralmente, que ele adquiriu um poder fazer. Se
o saber algébrico enquanto saber que39, existindo sob a forma de manuais e definições,
era o objetivo das aprendizagens, não saberíamos nunca se a criança o aprendeu, pois
esse saber pode ser simplesmente sabido e redito. Ao contrário, um poder fazer (saber
como) deve ser realizado e efetuado, logo, é validado imediatamente por sua realização.
Esse saber(-fazer) não pode nunca ser desligado do homem e não existe sob forma de
proposições categóricas (ele sabe matemática, ele conhece a lei de Newton).
Parece então, totalmente relevante dar uma última vez a palavra a Wittgenstein para
relatar uma de suas breves reflexões conceituais que resumem tão bem a concepção do
saber que embasa as reflexões vigotskianas sobre a ligação entre a aprendizagem e o
desenvolvimento:
A gramática da palavra „saber‟ é, evidentemente, estreitamente semelhante à da
gramática da palavra „poder‟, „ser capaz de‟, mas também da palavra „compreender‟
(Maîtriser une technique40.) (§ 150, p. 99)

A diferença entre aprendizagem e desenvolvimento que acabamos de discutir tem um


alcance considerável. Ela evidencia o fato de que sem resposta do lado do aluno, sem
sua participação ativa, as aprendizagens são condenadas ao fracasso. No entanto, essa
discussão sobre uma correlação complexa entre os dois processos não reforça
simplesmente a ideia, mais banal, de uma interação necessária entre o aluno e o
professor, mas chega também à definição de educação como o desenvolvimento
artificial da criança (Vigotski, 1930/1985, p. 45). Lembremos de que, segundo
Vigotski, a maioria das atividades psíquicas da criança se encontra antes das
aprendizagens escolares, no nível de uma atividade espontânea, quase involuntária.
Antes da aprendizagem da linguagem escrita, o dizer da criança se orientava quase
exclusivamente em direção ao que havia a dizer, a responder, a replicar. Assim que o
aluno se apropria da linguagem escrita, ele pode utilizar seus conhecimentos para
reorganizar e reestruturar a linguagem oral, que perde, em parte, seu caráter
involuntário. Ele intercala esse novo saber entre ele e seu dizer e começa a controlar
através dele a espontaneidade natural de seu falar sem a lesar ou a interromper. Nesse
sentido, Vigotski fala de um desenvolvimento artificial.

39
Ver G. Ryle (1949/2005, sobretudo capítulo III) que, na tradição wittgensteiniana, introduziu uma distinção
conceitual entre um saber que e um saber como.
40
Dominar uma técnica (nota de tradução).
Segue-secerta concepção do aluno que Vigotski opõe a duas outras teorias dominantes
na época. Segundo a primeira, o desenvolvimento não depende da educação escolar, em
consequência, a criança pode ser estudada « independentemente do nível de
escolaridade em que se encontra ». Na segunda concepção, o desenvolvimento da
criança depende exclusivamente dos saberes e conhecimentos adquiridos na escola, a
criança é então, identificada ao aluno e analisada « independentemente de todas suas
outras características de criança ». Sua própria teoria, diz Vigotski, permitirá, enfim,
reunir o que, nas duas outras, é artificialmente separado. Ela « estuda uma criança
particular em sua qualidade de aluno » (ibid., p. 45-46). Isso se torna possível, pois em
sua concepção, o saber é considerado poder fazer, ele é, consequentemente, inseparável
de um indivíduo particular e de suas ações.

CONCLUSÃO

Se há uma problemática que se destacou em nosso diálogo com Vigotski como


altamente presente, é uma concepção bem específica do sujeito, a qual é essencial em
seu pensamento. Como pudemos ver, o sujeito (o pesquisador, o aluno, o professor) não
se encontra ausente em seus textos, mas é sempre tematizado em relação aos
instrumentos: com os instrumentos dos métodos indiretos, como o termômetro, ou com
os instrumentos psicológicos. Para dar conta do funcionamento do psiquismo como
órgão de seleção, o pesquisador deve encontrar meios para mostrar o que não passou o
filtro; sendo, entretanto, determinante para o comportamento do sujeito. Os
instrumentos psicológicos intercalados entre o sujeito e seus processos psíquicos
melhoram o desdobramento de seu curso natural, e as aprendizagens propostas ao aluno
visam a lhe permitir saber fazer. Esses instrumentos, como vimos, fazem desaparecer a
velha oposição entre sujeito e objeto, pois, desde que são utilizados, o indivíduo é, ao
mesmo tempo, sujeito (ativo) e objeto (passivo), de um modo inseparável.
Isso traz consequências para o conceito de instrumento, pois, nessa perspectiva, não
importa qual objeto do mundo natural, social e psíquico pode tornar-se tal instrumento.
É só em seu uso real por um indivíduo concreto que um objeto do mundo é identificado
ou reconhecido como instrumento. A fotografia da avó que trazemos na bolsa para
lembrarmos de que temos de comprar um presente pelo seu aniversário não funciona
como instrumento, se, ao vermos a foto, não nos lembrarmos do que devíamos fazer. A
partir desse exemplo, poderíamos concluir que, na compreensão vigotskiana, o
instrumento não existe além de seu emprego pelo sujeito. Isso não exclui que
determinados objetos do mundo se prestem de modo melhor que outros como
instrumento psicológico, ou ainda que tenham recebido essa função nos usos e costumes
sociais e culturalmente determinados (como é o caso no sonho do Cafre). Portanto, os
instrumentos psicológicos se distinguem dos outros instrumentos, dos que são
especialmente produzidos pelo homem para atividades bem determinadas, para as
chamadas atividades mediatizadas. Um machado é concebido para cortar madeira, mas
também pode servir para fixar pregos; mas ter esse domínio sobre ele se baseia no
conhecimento de seu emprego e de suas características naturais e sociais. Sabemos para
que, normalmente, serve um martelo e como podemos usá-lo para chegar ao objetivo. É
claro que podemos utilizar tão bem um machado quanto um martelo para outros fins,
mas isso não muda em nada o fato de que eles são normalmente produzidos tendo em
vista ser utilizados para... e nós bem o sabemos. Em um de seus textos, Hans Georg
Gadamer (1900-2002), representante de hermenêutica filosófica, ilumina essa
característica dos instrumentos ditos comuns, para distigui-los do funcionamento da
linguagem:
A linguagem não é, de jeito algum, um instrumento, uma ferramenta, pois é uma
característica da essência da ferramenta é que saibamos dominar sua utilização, ou
seja, que nós a tomemos em mãos, e que a depositemos, quando ela cumpriu seu
serviço. (1986/1991, p. 60)41

Os instrumentos psicológicos discutidos neste nosso livro se assemelham à


linguagem, já que também se caracterizam pelo fato de que «não sabemos dominá-los».
Muito ao contrário, eles desvelam sua função de instrumento, só quando eles fazem
fazer. O domínio dos instrumentos comuns baseia-se no conhecimento de seus usos, o
que pode preceder ou suceder seu funcionamento e ser dele destacado e anotado nas
instruções de utilização e nos manuais. Ao contrário, o uso dos instrumentos
psicológicos exige um poder fazer engendrado e pelo sujeito, ao mesmo tempo que ele
os utiliza. Esse poder fazer não é separável dos instrumentos psicológicos, nem sob a
forma de um conhecimento, nem sob a forma de uma capacidade. Isso explica porque o
sujeito, bem presente nos textos de Vigotski, não é tematizado em relação às
competências a serem adquiridas ou em relação aos conhecimentos a lhe serem
transmitidos ou inculcados, mas enquanto aquele que, em sua relação com o mundo
cotidiano e escolar constitui e realiza um poder fazer utilizando esses instrumentos.
Uma compreensão do sujeito como essa leva, necessariamente, a uma psicologia
concreta, pois exige que o pesquisador analise, sob qual forma, onde, quando e por
quem, em um objeto do mundo, é despertada a possibilidade de funcionar como
instrumento, o que prova que, ao mesmo tempo é constituído por esse homem um poder
fazer. A essas questões só se pode responder com a ajuda de uma análise empírica que
se oporia, enfim, a qualquer procedimento a priori42.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Ach, N. (1921). Über die Begriffsbildung. Eine experimentelle


Untersuchung. Bamberg : Buchners Verlag.

42
Agradeço a Kim Stroumza e Giuseppe Di Salvatore pelas observações e pelo nosso debate em torno deste texto, a
Maryvonne Charmillot, por seu trabalho sobre o francês e a Marianne Weberpela pela preparação do texto para a
publicação. Muito obrigada aos estudantes da FAPSE e da Universidade d’Ouagadougou, com os quais desenvolvi
essa leitura de Vigotski.
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Un bilan des recherches processus-produit. L’enseignement peut-il contribuer à
l’apprentissage des élèves et, si oui, comment ? Marcel Crahay
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Intervention cognitive en éducation spéciale. Deux programmes métacognitifs.
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Préalables à l'ingénierie.
Sandra Enlart & Stéphane Jacquemet
Production écrite et difficultés d'apprentissage.
Joaquim Dolz, Roxane Gagnon & Simon Toulou
Didactique comparée et difficultés scolaires.
Francia Leutenegger
Introduction aux approches interculturelles en
éducation. Abdeljalil Akkari
Lev Vygotski : médiation, apprentissage et développrement. Une lecture
philosophique et épistémologique. Janette Friedrich
A coleção Carnets des sciences de l'éducation

A coleção dos Carnets des sciences de l'éducation é uma edição da Seção das
ciências da educação, produzida pelo Grupo Publicação, em ligação com o comitê de
redação da coleção Raisons Educatives.
A coleção dos Carnets des sciences de l'éducation propõe-se a publicar textos
científicos próprios aos diversos campos disciplinares e temáticos das ciências da
educação. Esses textos, sempre assinados por um professor da seção, são articulados aos
ensinamentos dispostos no quadro dos diferentes cursos de formação, cujo estudo, eles
preparam ou aprofundam.
Do mesmo modo que os Cahiers de la Section des sciences de l’éducation et os
Raisons Educatives, a coleção Carnets des sciences de l'éducation também tem por
objetivo promover e desenvolver uma cultura da leitura e da pesquisa.
Contracapa

Janette Friedrich
Lev Vigotski: mediação, aprendizagem
e desenvolvimento
Uma leitura filosófica e epistemológica

Este Carnet apresenta a obra de Vigotski por uma leitura de seus principais textos.
Sem entrarmos em uma exposição de suas ideias sob a forma de uma doutrina, visamos
a pensar no interior de seu pensamento para encontrarmos os conceitos e os
procedimentos que permitem tratar a realidade pela qual atualmente se interessam os
pesquisadores, os professores ou formadores no domínio da educação.
A primeira parte se dedica à diferença entre os métodos diretos e indiretos, e à
relação entre a observação dos fatos e o trabalho sobre o conteúdo real dos conceitos. O
papel dos instrumentos psicológicos como mediação dos processos psíquicos e das
aprendizagens é central na segunda parte. Concluindo, encontra-se esboçado o projeto
de uma psicologia concreta que analisará o funcionamento bem específico dos
instrumentos psicológicos, baseado na constituição de um poder fazer dos seres
humanos.

Professora de ensino e pesquisa no campo Aportes da filosofia para a educação e a


formação, Janette Friedrich dirige atualmente pesquisas sobre a relação entre saber-
fazer e reflexão.

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