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APRENDIZAGEM E DESENVOLVIMENTO
Janette Friedrich
2011
LEV VIGOTSKI: MEDIAÇÃO,
APRENDIZAGEM E DESENVOLVIMENTO
ÍNDICE
Introdução
O programa e o método
Notas bibliográficas
O termômetro da psicologia
Métodos diretos e indiretos
O conceito de psiquismo
Conclusão
Referências bibliográficas
INTRODUÇÃO
O programa e o método
Essa volta ao fundamento das ciências humanas, tal como é proposto neste livro, visa,
portanto, a duas coisas. De um lado, tem o objetivo de fazer conhecer a história dos
pensadores e das ideias com base nas quais construíram e ainda constroem nossas
concepções sobre o funcionamento do homem, como as que, por exemplo, tratam da
educação. Portanto, trata-se de estabelecer o estado da arte das fontes, dos germes, dos
esboços de inúmeras ideias que hoje fazem parte dos conhecimentos confirmados e
institucionalizados no quadro das ciências do homem. De outro lado, essa volta busca
encontrar alguma coisa de novo, ainda não explorada em toda sua riqueza. Esse olhar
sobre a história visa, de fato, ao potencial criativo das obras fundadoras, utilizando um
método bem específico para detectá-lo e trabalhá-lo. Hannah Arendt (1906-1975), uma
das raras mulheres filósofas do século XX, discorre sobre o método ensinado por seu
professor, Martin Heidegger, em seus cursos de filosofia nos anos 20 em Heidelberg:
Decisivo quanto ao método era que, por exemplo, não se falasse sobre
Platão e que não se expusesse sua doutrina das ideias, mas que um diálogo
fosse desenvolvido e sustentado durante o semestre inteiro, até que ele não
fosse mais uma doutrina milenar, mas sim, apenas uma problemática
fortemente presente (Arendt, 1974, p. 310).
Esse objetivo só pode ser atingido por meio de leituras e releituras dos textos de
Vigotski. É a única maneira de proceder, a fim de evitarmos falar exclusivamente sobre
o autor. Mostrar o que ele faz, o que ele diz, quando ele o diz ; pensar o que ele pensa,
quando o lemos – este livro não propõe mais que isso. Para aproveitar plenamente desse
empreendimento, o leitor deve nos acompanhar com suas próprias leituras, a fim de
atingir o objetivo principal: poder pensar no interior desta obra.
Nota biográfica2
Lev Sémionovitch Vigotski nasceu em Orcha, em 1896, em uma família judia culta.
Um ano após seu nascimento, a família se instala em Gomel (Bielorússia), onde
Vigotski passa sua infância e sua adolescência. Nessa época, Gomel era uma cidade
reconhecida como ilustrada, com seus liceus, suas bibliotecas, seus teatros, com seu
1
Essa leitura de Vigotski foi iniciada nos Estados Unidos (Wertsch (1985) e Bruner (1990, 1996).
2
Essas notas biográficas baseiam-se, sobretudo, na biografia muito rica e bem documentada da filha de Vigotski,
Gita L. Vygodskaja e de Tamara M. Lifanova (2000) ; ver também Rochex (1997).
museu de Belas Artes. Muito cedo Vigotski participa dos círculos de amigos que se
constituem como círculos de discussão sobre temas muito variados, como a história dos
judeus, a história da filosofia, a dialética hegeliana, a arte poética. Em 1913, termina
seus estudos secundários, deixa Gomel e vai para Moscou, onde começa estudos de
medicina na Universidade imperial, estudos que abandona depois de um mês, para
continuar no domínio do direito. Sua escolha é determinada pela situação bem
específica dos judeus na Rússia dos tzares. De um lado, havia um numerus clausus para
os estudantes de origem judia; de outro, era proibido por lei que se empregasse judeus
como funcionários de Estado. Vigotski, portanto, teve de renunciar a seus estudos
prediletos, isto é, à filosofia e à literatura, decidindo-se por uma profissão independente.
Durante seus estudos, seu interesse pela literatura e pela arte, já despertada em
Gomel, não para de crescer. Acompanhado de sua irmã, visita os teatros e museus da
capital russa, publica resenhas e escreve, entre 1915 e 1916, um trabalho final de curso,
com o título « A tragédia de Hamlet, príncipe da Dinamarca de W. Shakespeare ». Dez
anos mais tarde, em 1925, Vigotski utiliza alguns capítulos desse texto para defender
sua tese de doutorado, intitulada « A psicologia da arte » (Vigotski, 2005), que tem por
objeto a análise das reações e dos mecanismos psicológicos desencadeados pelas obras
de arte. Entretanto, o livro só foi publicado pela primeira vez em 1965. Esse interesse
pela arte e principalmente pela literatura nunca foi desmentido e grande parte de seus
projetos dão a plena medida desse interesse. Dentre eles, mencionamos um projeto de
colaboração com o célebre cineasta russo Serguéï M. Eisenstein (1898-1948), que não
pôde ser realizado pela falta de tempo que restava a Vigotski.
3
Sobre Chpet (2007), ver o prefácio de Maryse Dennes na tradução francesa do texto « La forme interne du mot ».
medidas de discriminação antissemitas e, a partir de 1919, Vigotski começa suas
atividades pedagógicas. Ensina em várias instituições em sua cidade natal: em escolas
públicas, em escolas profissionais, em instituições de trabalhadores ou populares e no
instituto de formação de professores. Ensina língua e literatura russa, lógica, psicologia,
história, ética e filosofia. A experiência adquirida nesses anos foi resumida e analisada
pelo autor em sua primeira grande obra A psicologia pedagógica, que surge em 1926.
Na escola de formação dos professores, ele abre um laboratório de psicologia, no qual
se desenvolvem seus primeiros trabalhos experimentais sobre o processo de ensino e
sobre as capacidades das crianças com deficiência mental. Dois domínios que ficam, no
transcorrer de toda a sua vida, no centro de suas preocupações científicas.
4
A reflexeologia é a tentativa de conhecer e de inferir o conteúdo dos fenômenos psíquicos só a partir dos
fenômenos fisiológicos e principalmente dos reflexos. Essa corrente pretendia desenvolver um estudo puramente
objetivo em psicologia.
Podemos classificá-los em quatro domínios: 1) problemas epistemológicos e filosóficos
da psicologia, 2) trabalhos sobre o desenvolvimento e sobre a educação das crianças
com deficiência, 3) textos teóricos, pesquisas empíricas, aulas sobre quase todos os
domínios cobertos pela psicologia e pelas ciências da educação, 4) promoção e iniciação
de traduções de autores ocidentais mais influentes da época (Sigmund Freud, Jean
Piaget, William Stern) e a apresentação deles em prefácios e resenhas. Seus trabalhos
em defectologia (Vigotski, 1994) permitiram que fizesse sua única viagem ao exterior,
passando por Berlim, Amsterdam e Paris, ele participa em 1925, em Londres, do 25o
Congresso Internacional sobre a educação dos surdos-mudos.
No final dos anos 20, Vigotski e sua equipe veem suas condições de trabalho se
degradarem. São cada vez mais confrontados a acusações políticas mascaradas em
princípios científicos postos como progressistas. Seus trabalhos são oficialmente
acusados de grande abertura para as ciências ocidentais e falta de aderência aos
princípios de uma psicologia marxista. Esse clima de « limpeza ideológica » pesa
duramente sobre a equipe de Vigotski5. Léontiev6 deixa Moscou para trabalhar na
Academia de Psiconeurologia da Ucrânia, em Charkow. Luria viaja entre essas duas
cidades e Vigotski também planeja sua mudança para 1934. Nesse período, continua
seus trabalhos de pesquisa e ensino em várias instituições moscovitas, vai a Leningrado
para dar aulas de pedologia e termina seu livro principal Pensamento e linguagem, que
será publicado alguns meses depois de sua morte, em 1934.
5
Encontamos nas cartas de Vigotski (2008) alusões que mostram que ele teve consciência plena da gravidade da
situação.
6
Essa separação geográfica dos membros da troïka significa também o começo de uma divergência entre suas
posições teóricas que os escritos de Leontiev mostram, quando este começa, a partir dos anos 30, a esboçar sua teoria
da atividade (Friedrich, 1993, 1997).
CAPÍTULO 1
A PSICOLOGIA
É POSSÍVEL COMO CIÊNCIA?
Essa situação de uma psicologia esfacelada pode ser criticada dentro do quadro da
psicologia, chamando a atenção sobre o fato de que a falta de coesão afetaria,
necessariamente, as trocas e o compartilhamento do trabalho, indispensáveis a uma
disciplina científica. Entretanto, a crítica que Vigotski formula não toma esse argumento
tão frequentemente repetido posteriormente, o que, aliás, faz-nos pensar que a situação
8
atual no quadro da psicologia, de fato, não mudou.
7
Todas as citações de Vigotski nos capítulos 1 e 2 foram tiradas dessa obra.
8
O que é, por exemplo, confirmado por Bruner, em 1990 : « Eu o escrevi, no momento em que a psicologia [...] está
esfacelada como nunca tinha estado em sua história. Ela não tem mais centro de gravidade e se encontra ameaçada de
perder a coesão... » (1999, p.11).
Vigotski cita os que trabalham na prática, os psicólogos praticantes, os professores, os
formadores, que se apressam em utilizar as pesquisas realizadas em psicologia e que se
encontram, frequentemente, desamparados diante de uma massa de dados muito
heterogêneos. Como escolher, como se posicionar em relação aos resultados propostos
pelos cientistas, como decidir o que tomar como referência, se mesmo no interior da
psicologia falta um debate sobre essa diversidade? São essas questões que levam
Vigotski, por seu lado, a reagir à demanda de unificar a psicologia e a decidir responder
a ela em duas etapas: 1) traçando um estado da arte da psicologia de seu tempo, e 2)
esboçando os princípios fundamentais de uma psicologia que se quer científica.
Ele começa sua análise das correntes psicológicas com uma segunda observação
preliminar que reforça sua argumentação a favor de um procedimento histórico. Em um
determinado momento de seu desenvolvimento, cada ciência define seu objeto com a
ajuda de uma abstração primária, afirma ele. Isso significa que, em cada ciência, vai-se
reencontrar um ou vários conceitos gerais que determinam seu conteúdo. Os que são
qualificados pelas diferentes disciplinas científicas como seus parecem ser os traços
fossilizados desse gesto. Trata-se dos conceitos que determinam o que, em um
fenômeno real, deve ser analisado e que, portanto, constitui o objeto do conhecimento
científico. Exemplifiquemos essa proposição com a ajuda de um exemplo que o próprio
Vigotski cita. Qual é a diferença entre a observação de um eclipse solar feita por um
astrônomo e por um leigo? O astrônomo utiliza conceitos, métodos, formas de fazer que
transformam esse fenômeno natural em um fato de astronomia, em um objeto do
conhecimento astronômico. No eclipse solar, o astrônomo vê mais, ou melhor, vê além
do que um simples curioso, não porque ele utiliza instrumentos sofisticados que não
temos à nossa disposição, mas porque tem um aparelho conceitual que transforma o
eclipse em um objeto de conhecimento científico.
.
Vigotski insiste no fato de que cada fenômeno do mundo é inesgotável e infinito em
seus traços e que essa diversidade faz com que o mundo real tal qual é não possa nunca
ser o objeto de uma pesquisa científica. Portanto, qualquer ciência precisa dessas
abstrações primárias que traçam e delimitam seu campo e que permitem converter um
fato qualquer em um fato científico. Tomemos um exemplo,o que é analisado em uma
pesquisa em ciência da vida depende do modo como a vida é conceitualizada. Se a
abstração primária é « a vida como acomodação e ajustamento ao meio », os fatos
analisados no mundo dos seres vivos vão ser diferentes dos que são os privilegiados em
uma pesquisa que trabalhe com o conceito de « vida como direcionalidade ou
intencionalidade » 10.
9
Uma concepção normativa da psicologia acompanhada por um desenvolvimento dos critérios de cientificidade
encontra-se elaborada na obra Elementos da psicologia fisiológica de Wilhelm Wundt (1874/1886).
10
Esse exemplo se refere a uma discussão que teve lugar nos anos 20 e 30. Ver Gurwitsch, 1940.
corrente psicológica determinada. Vigostki distingue primeiramente a psicologia do
homem normal, frequentemente chamada de psicologia instrospectiva ou ciência da
consciência. Ela vê a especificidade dos fenômenos psíquicos em seu caráter não
espacial, que os tornam acessíveis exclusivamente ao sujeito que tem a experiência
desses fenômenos. O método proposto por essa corrente é a reflexão ou a « percepção
interior », que é, como diz John Locke, « observação aplicada [...] às operações
internas do espírito (1709/2001, p. 164). Por meio dessa forma de percepção direta, o
homem seria capaz de produzir um conhecimento sobre seus próprios estados mentais.
Todos nós sabemos algo sobre o que faz ter frio, sobre ter um sentimento de
preocupação, de sentir alegria, de pensar apoiando-nos sobre essa experiência específica
que é a reflexão11. Na psicologia do homem normal, essa capacidade foi transformada
em método, chamado de introspecção, e aplicado nas pesquisas para se conhecerem os
estados psíquicos e os conteúdos conscientes dos indivíduos.
Resta-nos abordar a terceira corrente que Vigotski distingue pela abstração primária
do inconsciente. Essa abstração exige conceber a especificidade dos fenômenos
psíquicos no fato de que são determinados por uma realidade psíquica inacessível ao
sujeito, sem que se recorra a um trabalho suplementar, que seria o da psicanálise.
Tentemos expor uma primeira conclusão que nos guiará na sequência de nossa
leitura. Saindo das três abstrações primárias, as da consciência, do comportamento e do
insconsciente, temos três grupos de fatos científicos diferentes. Portanto, parece que o
11
Uma retomada dessa discussão se encontra em Nagel (1974/1987), que recolocou essa capacidade da consciência,
essa experiência consciente, como ele a designa, no centro dos debates em filosofia do espírito e em ciências
cognitivas.
diagnóstico de crise proposto por Vigotski denuncia, antes de mais nada, essa
multiplicação do objeto da psicologia, que tem, como consequência, que cada corrente
busca elaborar seu próprio princípio de explicação. Tal princípio é necessário, dado que
cada corrente é obrigada a trazer a prova de que é por meio de sua abstração primária
que o ser do psíquico, a realidade do psíquico pode ser apreendida. Entretanto, parece
possível resumir os resultados das análises vigotskianas sobre a crise de algum modo e é
preciso, logo a seguir, assinalar que a solução que ele propõe não consiste na pesquisa
de uma abstração primária comum e aceitável por todas as correntes. Bem ao contrário,
ele vai iluminar e questionar a filosofia do conhecimento que sustenta as três correntes
de sua época e que constitui, ainda hoje, o sustentáculo de inúmeras concepções da
psicologia e das ciências da educação. A segunda parte desse capítulo, dedicada à
análise que Vigotski faz da crise, contém, consequentemente, sua própria concepção
epistemológica e, mais diretamente, sua resposta à questão de saber como se pode
produzir um conhecimento científico no quadro da psicologia. Essa resposta
compreende dois elementos essenciais: 1) o projeto de uma psicologia geral e 2) a
proposta de métodos indiretos em psicologia (ver cap. 3).
Atualmente, não temos mais o hábito de falar de uma psicologia geral, o termo
desapareceu de nossos debates e são, frequentemente, os que fizeram seus estudos nos
anos 50 e 60 que se lembram dos inúmeros manuais que traziam esse título. Trata-se
então de uma psicologia que se mostrou pouco fecunda? Para compreender o que
Vigotski visa com esse projeto, é preciso lembrar qual função teve e que tem até hoje,
em determinadas disciplinas, a distinção entre ciências gerais e ciências particulares.
Vigotski utiliza essa distinção para seus próprios objetivos, referindo-se frequentemente
à botânica ou, mais ainda, à biologia, que mostram um bom exemplo dessa distinção.
Assim, fala-se das botânicas particulares, no sentido de que cada um de seus ramos é
especializado em relação a um subconjunto de vegetais (rosas, cactos, árvores, etc.). Do
mesmo modo, na biologia, o organismo vivo é analisado em subespécies, como os
peixes, os mamíferos, etc. Ao contrário, a botânica geral trabalha os conceitos utilizados
por todas essas ciências particulares, como por exemplo, o conceito de planta, de
fotossíntese, etc. Quanto à biologia geral, são os conceitos de vida, de seleção natural,
etc, que são analisados. Assim, uma ciência geral estuda os conceitos (gerais) utilizados
nas ciências particulares, detectando ou confirmando o que é comum a todos os objetos
da ciência em questão. Atribuir à ciência geral a tarefa de desenvolver um aparelho
conceitual que garantiria a unidade e a coerência de toda uma disciplina científica
apresenta-se como uma proposta bem sedutora, mas ela pode ser realizada de dois
modos diferentes. É o que Vigotski trabalha para mostrar, criticando a psicologia geral
desenvolvida no quadro da lógica, opondo a ela sua própria concepção. Como exemplo
de uma psicologia geral, Vigotski discute a obra de Ludwig Binswanger (1881-1966),
intitulada Introdução aos problemas de uma psicologia geral (1922). Essa obra é, para
ele, ao mesmo tempo, um recurso interessante para seu projeto e o objeto de sua crítica
apurada e convincente, que pode ser resumida na seguinte citação:
É certo que a ciência geral é o estudo dos fundamentos centrais, dos princípios
gerais e dos problemas de um determinado domínio do saber, e que,
consequentemente, seu objeto, sua metodologia de pesquisa, seus critérios e suas
tarefas são diferentes das disciplinas particulares. Mas é incorreto não a considerar
como uma parte da lógica, como uma disciplina lógica, [...], como se a psicologia
geral deixasse de ser uma psicologia para se tornar uma lógica (p. 109)
12
Em filosofia, o conhecimento que é produzido pelo raciocínio lógico é chamado de analítico. Assim, um enunciado
é analítico, quando é verdadeiro em virtude das significações dos termos, ou dito de outro modo, quando sua
correspondência com a realidade não precisa ser constatada nem verificada pela experiência, como é o caso do
enunciado « um retângulo é um quadrado ».
procedimento tem como consequência que « os conceitos e os objetos reais são
separados por um abismo instransponível » (p. 124). Mesmo que seja verdade que a
ciência geral em biologia e em botânica não trate de objetos vivos e concretos como as
plantas e os animais, mas de abstrações como organismo, a evolução das espécies, a
seleção natural, a vida, entretanto, no fim das contas, a partir dessas abstrações, ela
estuda a mesma realidade que a zoologia ou a botânica. Seria um erro afirmar que
estuda os conceitos e não a realidade que neles se encontra refletida [...] (p. 109,
sublinhada pela autora).
Portanto, a conclusão de Vigotski pode ser resumida como segue: por meio dos
conceitos, a psicologia geral estuda a mesma realidade que as ciências particulares. A
realidade que é analisada pelas ciências particulares como um mundo imediatamente
perceptível por palavras e conceitos utilizados pelo cientista, essa mesma realidade é
também o objeto da ciência geral. Ela estuda a realidade, analisando os conceitos nas
ciências particulares; em resumo, trabalha sobre o conteúdo real dos conceitos, com a
finalidade de produzir um conhecimento verdadeiro sobre a realidade. Essa afirmação
de que o conhecimento científico não se produz apenas por meio das experiências, das
percepções, das observações e de sua denominação, mas também e em grande parte por
meio de um trabalho sobre o conteúdo real dos conceitos, eis aí o que está na base do
projeto vigotskiano de uma psicologia geral.
Resta uma questão a ser estudada. Ela decorre imediatamente dessa tomada de
posição de Vigotski contra a compreensão que a psicologia geral recebe na obra de
Binswanger: o que é esse famoso « conteúdo real de um conceito » de que Vigotski
fala? Como se pode conhecer a realidade por meio dos conceitos? Vigotski esboça uma
resposta, com a ajuda de muitos exemplos, frequentemente emprestados das ciências da
natureza. Ele nos lembra de que é por meio dos conceitos de luz, de rotação e de
movimento que conhecemos o fato de que a terra gira em torno do sol. Com a ajuda
desses conceitos, enfim foi establecido o fato real do movimento da terra, apesar do fato
observável por cada criança de que o sol gira todos os dias em torno da terra.
Outro caso é citado por Vigotski no domínio da biologia. Como sabemos que as
formigas veem os raios químicos que são invisíveis para nós? É de novo por meio dos
conceitos, dessa vez por meio do conceito da luz, que esse conhecimento foi produzido
(ver p. 114).
Além disso, o psicólogo russo traz também exemplos oriundos das ciências do
homem como o célebre experimento de Pavlov sobre o reflexo condicionado.
Lembremos a definição de reflexo: ele é caracterizado por uma excitação periférica de
um nervo sensível que determina um movimento de resposta. Assim, a salivação do
cachorro começa imediatamente à visão do alimento que se põe diante dele. Esse
mesmo conceito de reflexo é utilizado por Pavlov para resumir uma situação mais
complexa em relação à primeira. No momento mesmo em que o alimento é trazido, o
pesquisador acende uma lâmpada na cela do cachorro. Depois de algumas repetições
dessa situação, só a lâmpada vai ser acesa, enquanto o alimento não é trazido e constata-
se o resultado que nos é bem conhecido: a salivação do cachorro é produzida, mesmo
com a falta do alimento.
Pavlov decide explicar esse fato, por meio do conceito de reflexo e, mais
particularmente, com o conceito de reflexo condicionado. Para bem compreender por
que Vigotski cita esse exemplo, parece-nos importante ressaltar o fato de que a escolha
desse conceito é uma decisão que determina fortemente o conhecimento desse
fenômeno. Enfim, tomando essa decisão conceitual, Pavlov realiza duas coisas.
Primeiro, ele expande o conceito de reflexo, mostrando que não há apenas uma
dimensão inata e que, portanto, ele não é apenas um produto da filogênese, mas que
também contém uma dimensão artificial. O reflexo pode aparecer como resultado de um
adestramento, de um condicionamento. Em segundo lugar, Pavlov afirma, com esse
conceito, que não se trata de um comportamento inteligente ou controlado que se
observa no cachorro de seu experimento. Ressaltemos que ele poderia ter utilizado, para
discutir seus resultados, um outro conceito, por exemplo, o de intelecto prereflexivo,.
Mas o conceito de intelecto prereflexivo fala de uma coisa diferente do que fala o
conceito de reflexo condicionado. Esse conceito teria explicado o que foi observado
como o resultado de uma aprendizagem, a qual permitiu que o cachorro descobrisse e
memorizasse a relação entre duas coisas e que tomasse esse saber de um modo não
reflexivo, desde que a situação o exigisse. Com o conceito de intelecto prereflexivo,
outro conhecimento do que foi descoberto no experimento de Pavlov teria sido
produzido. Poder-se-ia contra- argumentar à nossa ilustração desse exemplo, citado por
Vigotski, que nos parece ser bem claro, que se tratava de um reflexo, mas a situação
empírica não o « diz ». Trata-se de um gesto teórico do pesquisador, que decide utilizar
o conceito de reflexo condicionado e não utilizar o de intelecto prereflexivo para
conhecer o que acaba de constatar pela observação 13. Portanto, isso confirma a
necessidade e o interesse de trabalhar com o conteúdo dos conceitos e com a escolha
dos conceitos para podermos produzir um conhecimento sobre o mundo; um trabalho
que teve e que sempre terá lugar nas ciências, mesmo que não seja sempre explicitado.
13
Aliás, é esse mesmo trabalho sobre os conceitos, esse trabalho sobre o conteúdo real dos conceitos que fez que
conhecêssemos os comportamentos dos macacos observados por Wolfgang Köhler (1887-1967) nos célebres
experimentos em Tenerife como comportamentos inteligentes (ver Köhler, 1921 – 1927).
Entretanto, essa conclusão, coloca uma outra questão. Podemos, com o trabalho
sobre o conteúdo real dos conceitos, produzir, efetivamente, um conhecimento
verdadeiro sobre os fenômenos do mundo? Vigotski responde pelo positivo e adota uma
posição realista plenamente assumida. Poderíamos resumir essa posição do seguinte
modo. De acordo com Vigotski, o objeto do conhecimento científico existe sempre, ao
mesmo tempo, sob a forma do fato real e sob a forma de seu pensamento com a ajuda
dos conceitos. Dito de outro modo: há uma realidade que correponde às leis descritas
pela física, aos conceitos utilizados nas ciências, mesmo que essa realidade seja
diferente e que, frequentemente, não pareça corresponder às nossas visões ordinárias do
real. Como é o caso em relação ao movimento do sol, cuja descrição científica é
considerada como verdadeira não corresponde ao que vemos realmente. De fato, essa
realidade que conhecemos nas ciências através dos conceitos, não é, frequentemente,
relativa à nossas medidas e à nossas observações, mas trata-se, entretanto, de um
conhecimento verdadeiro da realidade produzida graças a conceitos que correspondem a
ela. O realismo em ciência significa que se reconhece que ele existe independentemente
de nosso pensamento sobre uma realidade que pode ser conhecida e que a confirmação
de uma teoria científica permite afirmar que a realidade é como a teoria que a descreve,
mesmo que pareça estar em contradição com nossas observações ou que essa realidade
conhecida pela ciência não seja ou que não venha a ser nunca observável 14. O filósofo
americano Charles Peirce (1839-1914) exprimiu a concepção realista em um slogan
bem claro: « Mas, de fato, um realista é simplesmente o que não reconhece nenhuma
realidade mais abstrusa do que a que é representada por uma verdadeira representação »
(1868/1987, p. 100).
Isso implica também que o realismo científico defende a tese de que um enunciado
científico é verdadeiro justamente em virtude de sua correspondência com a realidade.
Entretanto, há, no quadro da corrente realista alguns autores que preferem ressaltar que
essa correspondência entre conhecimento e realidade deve ser sempre considerada como
uma finalidade e que não se pode concluir daí que ela seja o único critério da verdade.
Essa nuance cética no quadro do realismo científico é frequentemente resumida do
seguinte modo: « A verdade de nossas teorias não transcende o conhecimento que temos
dela, apesar de que essas teorias incidam sobre um mundo objetivo » (Tiercelin, 2004,
p. 805)15. Esse modo de formular o problema impede imputar aos realistas uma
concepção ingênua no que se refere ao caráter histórico das pesquisas científicas que
também têm tanto os instrumentos científicos quanto os aparellhos conceituais
utilizados. Lembremos as reflexões de Vigotski expostas na primeira parte desse
capítulo que ressalta justamente esse fato e que nos levam a situar a psicologia russa
nessa corrente de realismo « moderado ».
Entretanto, quanto ao fato de que ele é um defensor de uma posição realista, não
14
Como isso foi, durante muito tempo, o caso de determinados planetas, cuja existência foi provada exclusivamente
por cálculos matemáticos.
15
Tiercelin relata aqui a posição do filósofo americano Hilary Putnam (1926-) que não para de procurar um realismo
que leve realmente em conta que as ciências não descrevem “uma realidade independente dos conceitos,
independente de toda perspectiva” (Putnam, 1909/1994, p. 328).
deixa dúvida. Vejamos como ele próprio exprime explicitamente essa posição. Para
isso, refere-se à obra de Friedrich Engels 16 (1820-1895), A dialética da natureza
(1883/1975), citando principalmente as passagens em que este reinterpreta uma ideia
central do grande filósofo alemão Georg W.F. Hegel (1770-1831):
Vigotski comenta essas reflexões de Engels, formulando o que nos parece uma
conclusão pertinente para esse capítulo:
Essas palavras (de Engels) contêm a chave da psicologia geral como parte da
dialética:17 essa correspondência entre o pensamento e o ser em ciências é, ao mesmo
tempo, o objeto, o critério último e mesmo o método, isto é, o princípio geral da
psicologia geral (p. 126).
16
Friedrich Engels desenvolveu com Karl Marx uma teoria social e revolucionária da economia e da sociedade,
chamada desde então, de marxismo. Essa teoria foi um ponto de referência central nos debates intelectuais na União
Soviética nos anos 20.
17
A dialética é aqui compreendida no sentido de Hegel, como o estudo do automovimento do espírito, que, através de
um procedimento do conhecimento bem determinado chega à correspondência entre seu ser e seu conhecimento. É o
curso do espírito em seu autoconhecimento. Reencontramos aí a ideia da correspondência cara ao realismo.
CAPÍTULO 2
O TERMÔMETRO DA PSICOLOGIA
Esse capítulo dedica-se à discussão do método que, como Vigotski assinala, tem o
objetivo de produzir a correspondência entre o conhecimento e a realidade, que
acabamos de discutir no capítulo anterior. Na Significação histórica da crise em
psicologia, Vigotski distingue dois grupos de métodos. O primeiro, o método direto,
dominou a psicologia de sua época e, principalmente a psicologia do homem normal
e o behaviorismo. O segundo grupo de métodos, o método indireto, é discutido por
Vigotski, de um lado, a partir das ciências da natureza e, de outro, das ciências
históricas.
Vigotski submete essas posições a uma crítica radical, segundo as quais o método
direto seria o único método possível da psicologia. Em sua argumentação se
distinguem dois tipos de argumentos. O primeiro sustenta o fato de que
determinados domínios da psicologia não podem ser investigados com o método
direto. Vigotski cita a psicologia da criança, que, necessariamente, se torna « um
paraíso perdido para sempre ». Como queremos analisar o pensamento da criança,
seu modo de construir conceitos com um método que exige confiar na auto-
observação, na percepção interior e na fala da criança? Isso seria uma empreitada
extremamente trabalhosa, na visão de Vigotski, principalmente se considerarmos o
seu desenvolvimento cognitivo. Outro exemplo dado pelo autor é a filogênese do
psiquismo. A questão posta assemelha-se à anterior e recai de novo sobre a
acessibilidade do objeto de pesquisa: como se pode analisar diretamente o
nascimento dos fenômenos psíquicos na evolução da espécie humana? Assim, diante
dessas dificuldades, qualquer análise de caráter histórico deveria ser excluída da
psicologia. Uma última prova da fraqueza do método direto é dada pela abstração
primária da terceira corrente em psicologia, a saber, o conceito de inconsciente.
Vigotski pergunta como se poderia acessar ao insconsciente, que é justamente
considerado como estando « fora da consciência » (ou « recalcado »), ou ainda que
não é dado imediatamente ao sujeito e que, portanto, exigiria um trabalho
suplementar dirigido por um terceiro para detectá-lo.
Outro grupo de argumentos que Vigotski desenvolve contra o método direto aponta
para um caráter positivo. Ele propõe que nos voltemos para o psíquico e para as
ciências da natureza, a fim de apreender como nela se desenvolve uma liberação em
relação às percepções sensoriais. Assim, ele mostra que o conceito de força, tal
como é definida pela física newtoniana, é liberada de qualquer relação com as
sensações musculares e encontra sua « expressão » nas fórmulas matemáticas, que
permitem determinar a força necessária para se colocar um corpo em movimento,
sem que essa força seja necessariamente percebida ou mensurada 18. A maioria dos
conceitos em física apresenta a mesma característica. Para Vigotski, a conclusão que
decorre desse fato é incontestável: se o conhecimento científico e a observação
imediata não coincidem, isso significa, para as pesquisas em psicologia, que « a
distinção entre o conceito psicológico de base e a percepção sensorial específica
constitui a próxima tarefa ». (p. 163).
Mas como tal distinção pode ser feita? É a questão que ocupa nosso autor no
capítulo 8 do texto A significação histórica da crise em psicologia e que o leva a
reexaminar os métodos que têm um caráter indireto, como no caso dos métodos
interpretativos e reconstrutivos utilizados nas ciências históricas. Como um
historiador, um geólogo e um filólogo estudam o passado da humanidade e da terra
ou ainda das línguas antigas? De um modo indireto, frequentemente com o auxílio
dos traços que são os documentos transmitidos, os vestígios, as deformações das
pedras nas montanhas, os grãos encontrados em uma determinada profundidade da
terra, etc. É com a ajuda desses traços que o pesquisador formula um conhecimento
sobre o passado. Ele interpreta e reconstrói, a partir deles, o objeto que antes existiu.
Ele o faz de um modo indireto, como o engenheiro que, ao estudar o plano da
máquina, já estuda a máquina e não mais o seu plano.
interpretação / reconstrução
18
A segunda lei de Newton é enunciada da seguinte maneira: « Seja um corpo de massa m (constante): a aceleração
sofrida por um corpo em um referencial galileliano é proporcional à resultante das forças que ele sofre, e
inversamente proporcional à sua massa m ». Trasformando com essa lei a força em uma variável desconhecida, ela se
torna o resultado de um cálculo: .
para Vigotski, que a aplicação do método indireto nos afaste da verdade, mas sim,
muito ao contrário, que ele nos aproxima dela 19.
Os instrumentos com caráter específico, como o termômetro, servem para
exemplificar de maneira muito interessante o método indireto, que Vigotski
descreve da seguinte maneira:
19
As características essenciais do método interpretativo são postas à luz nas contribuições de uma obra que propõe o
método indiciário como método central para as ciências do homem. (ver Thouard, 2007).
interpretação em história, em psicologia e etc. A mesma coisa é verdadeira para
todas as ciências: elas não são dependentes da percepção sensível (p. 164). (trad.
nossa)
Mas, para Vigotski, a psicologia ainda não tinha desenvolvido sua metodologia de
procedimentos e se baseava, muito frequentemente, em métodos diretos. Nessa
perspectiva, o autor formula a tarefa futura da psicologia, que deveria ser a de
conceber e construir « o termômetro » que « não controlaria ou reforçaria a
instrospeção, mas que nos liberaria dela [...] » (p. 165).
O conceito de psiquismo
Essa discussão sobre os métodos diretos e indiretos permitiu a Vigotski mostrar que um
método que não se baseia na percepção sensorial é concebível e, além disso, necessário
para a psicologia. Ele propõe, assim, voltar ao conceito psicológico de base (à abstração
primária) para substituir tanto o conceito de consciência (intimamente ligado ao método
da introspecção), privilegiado pela psicologia do homem normal, quanto o conceito de
comportamento (ligado à observação exterior), valorizado pelo behaviorismo, por um
outro que corresponde ao método indireto. No que se segue, demonstrarei por que
Vigotski propõe como conceito psicológico de base o de psiquismo, às vezes substituido
pelo de consciência. Em sua obra, o uso distinto desses dois conceitos não está
estabilizado, o que pode ser explicado pelo fato de que Vigotski tentava defender o
conceito de consciência contra o behaviorismo, distinguindo-se ao mesmo tempo da
psicologia introspeccionista.
20
Na psicologia clássica, foi costume falar da série psíquica. Esse conceito se refere à distinção kantiana entre tempo
e espaço. Kant utiliza esse conceito de série para caracterizar o tempo; portanto, o fato de que os antecedentes são a
condição das consequências presentes e assim em diante. Lembremos de que o conceito de tempo serve,
habitualmente, para especificar os fenômenos psíquicos.
de ação real ou o real da atividade. O real da atividade contém tudo o que não foi
feito, mas que poderia ter sido para a realização da atividade. Pode ser o que
tentamos fazer e não conseguimos, o que sonhamos poder fazer, o que não se pode
fazer, o que saiu de nosso campo de atenção em um determinado momento e etc.
Clot propõe levar em consideração essas atividades suspensas, contrariadas,
impedidas, retidas, ocultas, que ocorrem no decorrer da ação, pois são elas que
« explicam » a ação realizada. Frequentemente essa parte de nossas ações é muito
mais extensa que a parte que « chega a passar pelo filtro », isto é, a ação realizada,
dado que esta é apenas um « sistema de reações que venceram », como diz Clot (p.
119), com as palavras de Vigotski (1925/2003, p. 74). Portanto, se voltarmos a este
autor, é pertinente concluir que, para apreender o real da ação, o pesquisador só tem
um meio à sua disposição: uma reconstrução hipotética do real da ação. Tanto o real
da ação quanto o funcionamento do psiquismo são inacessíveis, tanto para o ator
quanto para o pesquisador, se eles estiverem armados apenas com o método direto.
O objetivo, portanto, é conhecer o que não aparece nem na ação realizada nem na
percepção da realidade pelo sujeito, mas que faz justamente com que elas existam na
forma atestada.
Essas reflexões nos levam a uma conclusão radical: a psicologia, assim como outras
ciências que tomam o homem como seu objeto, não podem se fiar só na observação,
na análise do que nos é diretamente dado, quer seja por meio de nossos sentidos
(pela perceção, pela sensação), mesmo que elas sejam auxiliadas por instrumentos,
ou seja por meio do discurso dos sujeitos que relatam imediatamente suas
experiências e suas ações. Tanto o trabalho sobre o conteúdo real dos conceitos
assinalado por Vigotski à psicologia geral quanto o trabalho da interpretação e da
reconstrução da série psíquica mostram, de fato, que, para o autor, a psicologia
como ciência behaviorista ou instrospectiva é, por princípio, impossível. Ao
contrário, a psicologia que produz de um modo indireto, portanto, mediatizado pelos
conceitos ou pelos instrumentos do método indireto, um saber sobre o
funcionamento do psiquismo detém, de acordo com o autor, o nome de ciência com
toda a justiça. É só de um modo mediatizado, por meio de conceitos, das
reconstruções e dos instrumentos comparáveis ao termômetro, que uma produção de
conhecimento científico é possível no quadro da psicologia. Essa ideia de uma
mediação está no centro de suas reflexões epistemológicas e é ela a base de seu
conceito de psiquismo. Essa mesma ideia pode ser atestada em seus trabalhos
puramente psicológicos. Ela vai ser desenvolvida no próximo capítulo, com o
conceito de instrumento psicológico, que mostra que a psicologia vigotskiana não
tem apenas o objetivo só de conhecer, mas também o de intervir.
Capítulo 3
A tese central desenvolvida por Vigotski nesses textos pode ser assim resumida: todas
as funções psíquicas superiores, como por exemplo, a atenção voluntária ou a memória
lógica, surgem com o auxílio dos instrumentos psicológicos e, consequentemente, se
constituem como fenômenos psíquicos mediatizados. Isso significa claramente que, em
relação às concepções reflexológicas e behavioristas, opera-se uma modificação da
unidade de análise dos fenômenos psíquicos. Nessas duas concepções, os processos
psíquicos são apresentados como sendo compostos por dois elementos: o estímulo (por
exemplo: A = a tarefa de memorizar uma determinada informação) e a reação (B = a
memorização efetiva dessa informação):
A B
A B
Estímulo Reação
I
instrumento
psicológico
instrumento
influenciar e controlar
Lendo essa citação, somos levados a pensar que Vigotski situa os instrumentos
psicológicos só no domínio dos signos. Mas essa conclusão deve levar em consideração
o fato de que ele fala de « todos os signos possíveis », o que implica que qualquer
objeto da realidade pode se tornar um signo. Vimos no experimento relatado acima duas
ferramentas de mensuração, um relógio e um termômetro, funcionando como
instrumentos mnemotécnicos. Esse exemplo prova que Vigotski amplia o conceito de
signo de tal modo que faz com que ele perca sua força distintiva, sua capacidade de
marcar um tipo bem específico de objetos do mundo 21. De fato, não é o conceito de
signo que permite identificar o que é um instrumento psicológico, mas três outras
características que podem ser inferidas das reflexões de Vigotski e que os signos
também podem ter. Um instrumento psicológico: 1) é uma adaptação artifical; 2) tem
uma natureza não orgânica, ou, em outras palavras, tem uma natureza social e 3) é
destinado ao controle dos próprios comportamentos psíquicos e dos outros. Como diz
Vigotski:
« No comportamento do homem, voltamos a encontrar toda uma série de
adaptações artificiais que visam a controlar os processos psíquicos. » (ibid., p. 39)
21
É a relação de representação que faz a especificidade dos signos e que assinala na famosa fórmula aliquid stat pro
aliquo (alguma coisa que está no lugar de outra coisa), avançada pelos escolásticos para falar das entidades
semióticas. Os signos que são o objeto da semiótica e da linguística são caracterizados por sua capacidade de ser um
objeto (som, imagem acústica, etc.) que significa, indica, representa outro objeto (uma representação mental, uma
informação, um simples processo natural etc.).
físicos. Aliás, essa oposição é a fonte de debates incessantes sobre o lugar da psicologia
no sistema das ciências. Desde o fim do século XIX, alguns autores a colocam nas
ciências da natureza, outros lhe reservam um lugar no domínio das ciências sociais e
culturais e, mais frequentemente, é considerada como « estando entre as duas ».
Portanto, parece que com o par dos conceitos natural/artifical, Vigotski busca evitar
não só uma oposição entre ciências da natureza e ciências da cultura, mas também tanto
um reducionismo naturalista quanto um reducionismo histórico-cultural, uma vez que os
dois não chegam a ultrapassar uma concepção dualista do espírito e do corpo. O fato de
que as concepções dualistas em psicologia tenham sido um dos alvos permanentes da
crítica de Vigotski (ver Bronckart, 1999) sustenta essa interpretação. Antes de ver por
que a conceitualização de Vigotski permite ultrapassar esses dois tipos de reducionismo,
analisemos o que é a tese dualista que os acompanha.
22
A relação entre os debates atuais em torno da relação psicofísica no quadro das ciências cognitivas e da filosofia do
espírito, de um lado, e a história da psicologia, de outro, encontra-se bem esclarecida em Fisette & Poirier (2000).
próprios processos naturais e os meios que utiliza e cria para atingir esse objetivo. É
essa lógica de intervenção que caracteriza a psicologia de Vigotski e determina suas
questões de pesquisa: de que modo, com quais meios, o homem se serve das
propriedades de seu tecido cerebral e controla os processos psíquicos que ele produz?
Nessa perspectiva, é a natureza social dos instrumentos psicológicos que se torna um
dos objetos privilegiados da psicologia, pois se busca compreender quais são os objetos
que adquirem essa função, em qual época e de que modo.
Outros exemplos podem ser dados, todos eles nos dando provas dessa astúcia: damos
uma determinada direção a uma goteira de modo que a água que corre do teto caia
diretamente sobre uma pedra de calcário e produza, em um lugar preciso, o buraco
previsto. Ou ainda, pomos pedras pesadas em um rio para, desse modo, diminuir seu
leito, o que dá como resultado uma aceleração da corrente, que levará os troncos de
madeira a alguns quilômetros mais distantes da serralheria. Vemos bem, nessa atividade
mediatizante, que o sujeito não age fisicamente sobre a natureza, que não utiliza um
instrumento para ele mesmo mudar a natureza, como é o caso, quando pegamos uma
furadeira para fazer um buraco na madeira. Essa última atividade, na qual o sujeito
intervém com um instrumento diretamente sobre a natureza é chamada por Hegel como
atividade mediatizada. Ao contrário, na atividade mediatizante, o homem deixa a
natureza agir sobre a natureza. As transformações desejadas são produzidas por meio de
uma determinada constelação, na qual os objetos da natureza são postos pelo homem;
uma constelação que faz com que os objetos, trabalhando uns sobre os outros, produzam
o que foi projetado, sem que o homem intervenha nessa atividade.
O O
= realização do objetivo
Resta provar que a atividade realizada pelo homem com o instrumento psicológico é
portadora das mesmas características que as da atividade mediatizante. Retomemos o
esquema desenvolvido no parágrafo anterior, que mostra essa similaridade, com a
diferença de que o instrumento psicológico sempre produz um desdobramento do
sujeito em S (1) e S (2).
= realização da tarefa
psicológica
S (1)
23
Ver também o esquema que Vigotski propõe em “A psicologia concreta do homem” (La psychologie concrète de
l’homme », 1929/2004, p. 239-240).
24
A afasia é um transtorno da linguagem oral e/ou escrita ligada a uma lesão cerebral. Esses transtornos podem
acontecer no nível da produção da linguagem (afasia motora), da compreensão da linguagem (afasia sensorial) etc.
refrão) sobre si mesmos, para se lembrarem, ou mais precisamente, para que a
palavra volte a eles, para que a palavra surja25.
O exemplo de Goldstein se articula bem com outro exemplo discutido por Vigotski
em « A psicologia concreta do homem ». Trata-se do « sonho do Cafre26 », relatado por
Lévy-Bruhl. O chefe de uma tribo sul-africana responde a um missionário que o
aconselhava a por seu filho na escola: « Verei o que meus sonhos me dirão a fazer »
(Vigotski, 2004, p. 242, note 15). Essa resposta bem incomum para nós é utilizada por
Vigotski com um objetivo preciso. Contrariamente a Lévy-Bruhl (1857-1939), ele não
se interessa pela especificidade do pensamento primitivo. Essa oposição tão típica na
época, para as pesquisas etnológicas entre um pensamento primitivo ou pré-moderno, e
um pensamento moderno não tem nenhum interesse para nosso autor. É a descoberta de
um instrumento psicológico bem específico, no caso o sonho, que capta Vigotski. A
atividade de que o chefe da tribo fala apresenta tanto uma dimensão ativa quanto uma
dimensão passiva « Eu vou me fazer sonhar a resposta ». De fato, todos os exemplos
relatados colocam a mesma questão de saber se podemos ainda falar aqui de um eu
como controlador de suas próprias funções psíquisas. Portanto, não é de se espantar que,
depois de ter discutido o sonho do Cafre, Vigotski tenha se questionado sobre esse
problema: «Como falar de processos psíquícos? Precisamos falar deles sob uma forma
impessoal ou sob uma forma pessoal? Não é a mesma coisa dizer „parece-me‟ e dizer
„eu penso‟. O problema do „eu‟: como precisamos formulá-lo? » (ibid., p. 242)
Propomos resumir essa questão sobre o eu por meio de outro conceito, o de medium,
que ressalta claramente o desdobramento em um me (forma passiva) e em um eu (forma
ativa), constatado por Vigotski, e que busca atenuar a aparente contradição que tal
25
Outro exemplo muito pertinente encontra-se em Merleau-Ponty (1945/2002, p. 191), que dá uma descrição
magnífica dos meios empregados para « fazer o sono vir ».
26
O termo Cafre designa os negros da Cafreia, parte da Áfria austral (conjunto de territórios situados ao sul da
floresta equatorial africana). A etnografia clássica utiliza esse termo para designar as culturas autóctenes da África do
Sul.
conceito do sujeito necessariamente esconde. Se tomarmos o conceito de medium em
sua conotação espiritual, ele designa um sujeito que, com o auxílio de determinados
meios (bater na mesa, formar um círculo ininterrupto entre os participantes) torna
presente para os outros e para si mesmo um mundo que se encontra além de nosso
mundo imediatamente acessível. Ele faz vir, faz sentir, faz ouvir um mundo povoado
por defuntos, transformando a si mesmo e aos autros em espectadores passivos de um
espetáculo provocado por ele. Ousamos, portanto, postular que se trata do mesmo tipo
de poder, que as crianças adquirem no decorrer da ontogênese, aprendendo a utilizar os
instrumentos psicológicos, e que os adultos desenvolvem cotidianamente, servindo-se
de e criando esses instrumentos. Resta-nos agora mostrar como Vigotski se coloca para
analisar esse poder, o que nos leva à minha segunda observação conclusiva.
Outro exemplo que Vigotski não se cansa de citar é o « poder da palavra ». A função
mais importante das palavras em nossas sociedades foi e é ainda, a de ser utilizada como
meio de comando, como meio de dominação de um indivíduo sobre o outro. É
necessário observar que a palavra tem esse mesmo poder na regulação psíquica. Todos
nós conhecemos essa frase « mágica »: « calma, calma », que cada um de nós já dirigiu
a si mesmo em voz alta ou em silêncio em situações estressantes, com efeitos mais ou
menos satisfatórios.
Essa origem dos instrumentos psicológicos é resumida por Vigotski na lei geral do
desenvolvimento cultural das funções psíquicas:
Vigotski acentua o resultado desse processo, enfatizando que se trata aqui de uma
transferência das relações sociais para o mundo do psíquico. Na discussão dessa lei do
desenvolvimento cultural, a ênfase é frequentemente posta no processo de
interiorização, que, sem nenhuma dúvida, aí ocorre. Entretanto, observemos que
Vigotski não deixa de insistir sobre um segundo desdobramento atestável na utilização
dos instrumentos psicológicos:
[...] a relação sonho/comportamento futuro (a função de regulação do sonho) deve
ser relacionada genética e funcionalmente a uma função social (o feiticeiro, o
conselho dos magos, o intérprete dos sonhos, etc.: essa função é sempre dividida
entre duas pessoas). É a seguir que tudo se reúne em uma só e única pessoa. A
história real da operadora e do aparelho (de um indivíduo) [...] se compreende
como a transferência das relaçõe sociais (entre as pessoas) para o psicológico (para
o interior do homem). (Vigotski, 1929/2004, p. 243)
Portanto, o que é interiorizado pelo sujeito são relações sociais que ocorrem entre
pessoas nas instituições sociais. As interações entre o feiticeiro e os membros de uma
tribo, entre o chefe e os seus subordinados, entre o professor e o aluno se reúnem « em
uma só e única pessoa ». O ponto de vista a partir do qual os instrumentos psicológicos
devem ser analisados está, portanto, claramente posto. É preciso abordá-los como sendo
oriundos de e portadores, neles mesmos, das relações sociais bem específicas que se
reconstituem no interior do sujeito. Entretanto, precisamos assinalar aqui, um possível
equívoco, pois pode ser que o sujeito não seja verdadeiramente levado em consideração
nesse contexto. Qual é o papel, de fato, a ser atribuído ao indivíduo nesse processo que
Vigotski resume na lei do desenvolvimento cultural?
Para responder essa questão, voltemos ao título que Vigotski deu a seu texto de 1928:
A psicologia concreta do homem. Quando discute esse título, ele apresenta duas
explicações. A primeira ressalta a novidade de sua concepção em relação à da
psicologia tradicional:
[...] a base da psicologia concreta são as relações do tipo „sonho do Cafre‟. A base da
psicologia abstrata são relações do tipo: sonho como reação (Freud, Wundt etc.) a
excitantes. (ibid., p. 244)
Mas o termo psicologia concreta destina-se ainda a tematizar outro traço daquilo que
se tornará o objeto do psicólogo. Assim, lemos no mesmo texto:
Sendo as leis do pensamento idênticas [...], o funcionamento do pensamento será
diferente de acordo com o indivíduo no qual ele tem lugar. Cf. as leis do
pensamento não são naturais (a substância cortical e subcortial, etc.), mas sociais (o
papel do pensamento em um indivíduo). Cf. o papel do sonho. (ibid)
Os psiquiatras o sabem muito bem. Tudo depende da questão de saber quem pensa
e que papel o pensamento desempenha nesse indivíduo. O pensamento autista
diferencia-se do pensamento filosófico não por determinadas leis, mas pelo papel
[...]. (ibid., p. 247)
A tarefa mais importante para analisar fenômenos psíquicos como o pensamento, a
memória ou o juízo é, portanto, conhecer quem pensa ou, em outras palavras, como o
pensamento « ocorre nele ». Em outros termos, o que interessa à psicologia concreta são
os meios (instrumentos) que o indivíduo utiliza para controlar, realizar, desenvolver seu
pensamento, sua memória, seu juízo, como indivíduo cada vez mais diferente do outro.
Os meios utilizados por um autista, por um pedreiro, por um aluno e por um filósofo
para pensar vão ser bem diferentes, o que também signfica que não é a capacidade
intelectual mensurável por testes que fará a diferença, mas o papel que o pensamento
desempenha « no indivíduo ». O indivíduo está no centro da pesquisa, pois o que se
estuda é o indivídulo particular em sua qualidade de um ser pensante.
Vigotski começa suas reflexões com uma crítica dos dois métodos dominantes nesta
área. A primeira, que ele nomeia o método da definição, identifica o conceito à
significação de uma palavra. Como consequência, o conceito é apresentado como a
definição verbal do conteúdo de uma palavra, em outras palavras, como uma entidade
de definição expressa por uma palavra. Nessa perspectiva, um estudo dos conceitos na
criança visa a analisar seu conhecimento verbal, seu nível de desenvolvimento verbal.
Na questão de saber o que é um cachorro, a criança mobiliza seu saber verbal e enumera
de memória certo número de traços característicos desse animal. Em função da idade, o
saber verbal dominado pela criança pode ser de uma riqueza e de uma complexidade
mais ou menos desenvolvidos. A crítica que Vigotski formula quanto a esse método
visa, antes de mais nada, ao fato de que ela permite apenas estudar os conceitos já
prontos, já formados, os que fazem parte do saber da criança e que são então,
reproduzidos por ela. Esse método não dá acesso ao pensamento enquanto processo
realizado pela criança em sua relação viva com a realidade. O pesquisador não pode de
maneira alguma compreender « o significado real, efetivo, que corresponde à palavra no
processo de sua correlação viva com a realidade objetiva que ele designa » (p. 190). No
entanto, para o pesquisador russo, torna-se essencial levar em conta que o conceito não
está apenas em ligação com o saber verbal, mas que ele tem uma relação com a
realidade experimentada e compreendida pela criança. Com efeito, analisar a maneira
pela qual o conceito é utilizado pela criança em confronto com a realidade torna seu
conteúdo independente do simples saber verbal e mostra que o conceito não é apenas
expressado pela palavra e, em seguida, aplicado ao mundo, mas pensado em função da
relação que a criança mantém com o mundo. Logo, a fraqueza do método e da
definição provém do fato de que ela separa o conceito de seu contexto « natural » (de
sua relação com o mundo) e o fixa no seio do saber verbal no qual ele é definido,
levando-se em conta os outros conceitos.
Existe um segundo método que se baseia no privilégio de ser considerado, ainda hoje,
como expressando a concepção que se faz habitualmente da natureza dos conceitos.
Poderíamos designá-la como método de abstração já que ela define o conceito como um
produto (uma representação) do espírito, que engloba (resume) um determinado número
de objetos por abstração e por generalização de seus traços comuns. Nessa perspectiva,
o conceito resulta do que há em comum entre vários objetos e distingue-se de cada um
desses objetos singulares por seu grau de generalidade. Essa situação é bem ilustrada na
dita pirâmide da abstração que Vigotski critica várias vezes:
27
Todas as citações de Vigotski neste capítulo foram tiradas de sua obra Pensamento e linguagem 1934/1997.
Esquema 1
plantas
rosa tulipa
Essa definição do conceito determina forçosamente a maneira pela qual a formação dos
conceitos na criança é analisada. São atos mentais como estes de encontrar por
comparação o que os diferentes objetos têm em comum, de isolar este traço e, em
seguida, de guardar as coisas isoladas em uma e mesma categoria que constituem aqui o
objetivo da pesquisa. O objeto de estudo são “os processos e as funções psíquicas que
estão na base da formação de conceitos, na base da elaboração mental da experiência
concreta que dá origem ao conceito” (p. 190). Em sua crítica a esse método, Vigotski
ressalta que ele negligencia o papel da palavra no processo de formação dos conceitos.
A primeira vista, essa objeção não parece convincente, já que a palavra é utilizada
mesmo que seja apenas para expressar o resultado da abstração. Mas o argumento
avançado por Vigotski visa, afinal, ao fato de que a palavra não é empregada como meio
da conceitualização. Lembremos a ideia dos instrumentos psicológicos que ele repete
no capítulo 5 da obra Pensamento e Linguagem, como segue:
[...] todas as funções psíquicas superiores estão unidas por uma característica
comum, a de serem processos mediatizados, ou seja, de incluirem em sua
estrutura, enquanto parte central e essencial do processo em seu conjunto, o
emprego do signo como meio fundamental de orientação e de domínio dos
processos psíquicos (p. 199).
A questão que se coloca é então a seguinte: como podemos levar em conta esta ideia
fundadora da sua psicologia no estudo experimental dos conceitos? Antes de discutir o
método elaborado com este objetivo por seu colaborador Léonid S. Sakharov (1900-
1928)28, devemos nos remeter à crítica que Vigotski faz a um outro dispositivo, o que
foi concebido e utilizado por Narziss Ach (1871-1946). Esse dispositivo pretende levar
em conta os pontos fracos tanto do método de definição quanto do método de abstração.
Ele serve de ponto de partida para Sakharov/Vigotski, mesmo se o método de Ach é
globalmente insuficiente na visão de Vigotski. Vamos desenvolvê-lo a seguir.
28
Esse método foi também aplicado por outros pesquisadores da equipe de Vigotski. Assim, Léontiev (1931)
analisava com esse mesmo método o desenvolvimento da memória. Esse método também foi chamado a seguir de
método Sakharov/Vigotski.
Dois estudos experimentais: os dispositivos de Ach e de Sakharov/Vigotski
Narziss Ach publica em 1921, os resultados de sua pesquisa sob o título Da formação
de conceitos. Um estudo experimental. Esse psicólogo alemão fazia parte dos membros
da escola de Würzburg, conhecida na história da psicologia por seus trabalhos
experimentais sobre a psicologia do pensamento29. A tendência geral de seu estudo é
clara: ele procura mostrar como a criança utiliza o conceito em uma situação de
resolução de problema. Partindo da hipótese de que o conceito deve estar implicado em
um processo vivo de pensamento, para que possamos apreender sua formação, ele
confronta as crianças a tarefas que não podem ser resolvidas sem recurso aos conceitos.
O que consiste em afirmar que o conceito tem um caráter produtivo e serve para realizar
um objetivo. Na pesquisa de Ach, o conceito recebe efetivamente um significado
funcional, um procedimento apoiado plenamente por Vigotski e aplicado em seu
próprio dispositivo.
29
Ver Friedrich (2008).
Com efeito, o dispositivo de Ach mostra a mesma fragilidade que os outros dois
métodos, pois ele não permite descobrir a natureza genética do processo de formação de
conceitos. A razão dessa fragilidade reside, segundo Vigotski, no papel concedido às
palavras. Em Ach a palavra é utilizada para criar uma ligação associativa e direta com
os objetos que são conceitualizados graças a ela. A palavra tem a função de assinalar os
objetos resumidos sob o conceito. A palavra não traz nada ao processo de generalização,
pois seu modo de utilização é estipulado de início e não mudará. O que é verificado no
experimento nada mais é, então, do que a capacidade de a criança aplicar a palavra e,
logo, o conceito, de uma maneira correta em relação aos objetos.
Pode-se ver bem: as figuras estão dispostas em quatro séries constituídas com a ajuda
das palavras. Cada figura presente na mesa se distingue por certas características das
outras figuras e se assemelha a elas por outras. A primeira série de figuras compreende
objetos pequenos e planos, a segunda, objetos pequenos e espessos, a terceira, objetos
grandes e planos e a quarta, objetos grandes e espessos. A questão que a criança teve
que responder foi de saber quais são as figuras que “estão ligadas a um mesmo conceito
experimental”? São as palavras desprovidas de sentido e escritas no verso das figuras
que ajudaram a criança em sua busca de traços comuns que o conceito experimental
resume. As palavras guiaram e dirigiram o processo de formação de conceitos. Assim,
os pesquisadores da equipe de Vigotski puderam observar como a criança faz uma
primeira ideia do conceito experimental ou, em outras palavras, como ele dirige sua
atenção, com a ajuda das palavras, para certos traços das figuras que ele pressupõe
estarem resumidos pelas palavras; em seguida, ele valida ou invalida sua hipótese
virando a próxima figura e ele consegue, enfim, pouco a pouco, formar o conceito
preconizado e organizar as figuras de uma maneira totalmente correta nas quatro séries.
Pode-se ver bem que nessa classificação orientada e dirigida pelas palavras, nem a cor
e nem o tamanho das figuras funcionaram como traços distintivos. Não são esses dois
traços que estiveram na base da conceitualização e, em consequência, eles não foram
visados pelas palavras que simbolizavam o conceito. É claro que outras séries teriam
sido possíveis. Poderíamos ter organizado as figuras segundo suas cores ou segundo seu
tamanho, ou ainda segundo o fato de serem quadrangulares, triangulares ou redondas,
ou então pelo fato de serem simplesmente planas ou espessas. Em função da
conceitualização proposta pelas palavras, as fileiras poderiam ter sido mais ou menos
numerosas e mais ou menos preenchidas com figuras. Vigotski insiste no fato de que é a
utilização da palavra enquanto instrumento de conceitualização que muda
profundamente o modo de resolução da tarefa em relação às pesquisas de Ach e resume
seu próprio procedimento como a seguir:
Transformando assim os meios de resolver o problema, ou seja, os estímulos-signos
ou palavras, em grandeza variável e fazendo do problema uma grandeza constante,
nós tivemos a possibilidade de estudar como o sujeito emprega os signos enquanto
meios de dirigir suas operações intelectuais e como, em função desse modo de
utilização da palavra, de sua aplicação funcional, se desenrola e se desenvolve todo
o processo de formação do conceito em seu conjunto. (p. 202).
Essa citação contradiz uma ideia muito divulgada na época, a qual afirmava que as
crianças, já na idade de dois anos, eram capazes de formar verdadeiros conceitos. Ela
introduz igualmente um termo que será utilizado em seguida, a saber, o termo
«equivalentes funcionais ». Vamos mostrar, no próximo parágrafo, as etapas da
formação de conceitos que a análise experimental de Shakarov/Vigotski permitiu
identificar. Além disso, tentaremos trazer alguns elementos de resposta a uma questão
imperativa que se coloca aqui: em que consiste então a natureza de um pensamento
conceitual verdadeiro ou autêntico? Essa questão diz respeito ao estágio final, o da
maturidade do pensamento conceitual, cujos primeiros indícios são atestáveis na idade
da adolescência. Entretanto, Vigotski apressa-se em afirmar que a existência desse
pensamento conceitual autêntico ou verdadeiro, tão característico da idade adulta, não
significa de maneira alguma que as outras formas de conceitualização, os ditos
equivalentes funcionais, teriam totalmente desaparecido. Bem ao contrário,
frequentemente elas existem ainda paralelamente.
Quais são então, a natureza psíquica, a estrutura e o modo de ação desses equivalentes
funcionais dos conceitos verdadeiros? Na parte seguinte, vamos nos limitar à discussão
dos três grandes estágios que são claramente separados por Vigotski, mesmo se a faixa
etária para cada estágio não é precisamente indicada. No interior desses estágios,
Vigotski discute sobre os subestágios (ver p. 204-232)30, que, na seguinte demonstração,
vão ser apenas levados em conta se isso permitir esclarecer os próprios estágios.
30
Assim, Vigotski distinque três etapas de formação dos conceitos sincréticos e cinco formas fundamentais do estado
dos complexos.
31
Associação de estudantes de Licenciatura.
pertencimento comum, no caso, aqui, pela de ser um membro da mesma associação.
Esses exemplos mostram claramente uma característica essencial dos complexos que
Vigotski mostra como segue: « Assim não podemos nunca determinar se uma dada
pessoa faz parte da família Pétrov, nem se podemos designá-la por esse nome a partir da
mesma base de sua relação lógica com os outros portadores desse nome » (p. 216).
Mesmo se Boris e Serguéï têm traços de caráter comuns, não é uma razão pela qual eu
poderia concluir que Boris faz parte da família Pétrov. Da mesma forma para Paul e
Pierre, pois, ainda que eles compartilhem as mesmas convicções políticas, esse fato não
permite concluir que eles são membros da mesma associação de estudantes, e não há
nenhuma necessidade lógica entre os dois fatos. « É o pertencimento de fato ou o
parentesco de fato entre os indivíduos que decide » (p. 216).
Vigotski sublinha que o caráter concreto e empírico dessas ligações objetivas que é
levado em conta cada vez que se utiliza um sobrenome ou, mais geralmente, um
complexo. Assim, este se baseia nas relações empíricas mais variadas, nas ligações
entre objetos que não têm, frequentemente, nada em comum entre si, como pode ser o
caso para os irmãos Vladimir e Serguéï, que são, no entanto, realmente ligados um ao
outro, sendo membros da mesma família. Essa especificidade dos complexos reflete-se
também no papel que a palavra tem na generalização. Enquanto que na formação dos
conceitos sincréticos a palavra foi um aspecto indiferenciado da percepção, « nos
complexos, a palavra pode ser considerada de maneira diferenciada […] Assim, por
exemplo, a palavra „maçã‟, [..] pertence à maçã da mesma maneira que sua forma, sua
textura, sua cor … » (Zaccaï-Reyners, p. 154). Aplicado a nosso exemplo, isso quer
dizer que o nome Pétrov pertence a Serguéï da mesma forma que sua barba e a cor de
seus cabelos.
Poderíamos então, dizer que a palavra permite pensar no mundo e não apenas
representá-lo. Senão, como poderíamos formular os enunciados desse gênero: « O
homem é um animal que pensa »? Uma criança que não pensa com essas palavras, mas
procura designar, talvez a representar com elas as coisas no mundo, diria
imediatamente: « mas um animal não tem razão, então um homem não pode ser um
animal ». Evidentemente a validade dessa generalização não pode ser questionada, mas
isso não impede que, com esse enunciado, alguma coisa com relação ao homem seja
pensada. Esse enunciado permite pensar o mundo, mas à condição que nós não tentemos
considerar o traço « dotado de razão » como um traço comum ao homem e ao animal.
Nós pensamos com a expressão animal dotado de razão alguma coisa no mundo e,
nesse sentido, as palavras não representam o mundo, mas desencadeiam, trazem e
guiam o processo do pensamento. A diferença do conceito sincrético e de um complexo,
um verdadeiro conceito baseia-se na capacidade de o homem tomar as coisas no mundo
fora das relações nas quais elas se deram na experiência, além de seus traços empíricos
atestáveis, além de seu ser de fato. Em outros termos: utilizar um conceito não significa
apenas generalizar, colocar junto às coisas no mundo, mas pensar o mundo, o que pode
conduzir a ligações entre as coisas no mundo que não são ligações fatuais. Que o
homem seja um animal dotado de razão, só pode ser pensado, mas pensado utilizando a
linguagem que se revela, assim, indissociável do pensamento. O processo de formação
do pensamento através da linguagem, tal como é característico para um conceito
verdadeiro é descrito por Vigotski por um recurso ao conceito de mediação que já
encontramos no capítulo anterior:
A segunda consequência diz respeito à escola e ao papel que Vigotski lhe atribui.
Antes da aquisição da capacidade de formar os conceitos verdadeiros, Vigotski constata
o estágio dos pseudoconceitos. Nesse estágio, o adolescente começa a ser capaz de
utilizar conceitos verdadeiros, mas não se exercitou, no entanto, a definir os conceitos.
O traço característico dos pseudoconceitos consiste no fato de que a generalização
realizada leva ao mesmo resultado que aquela que se baseia nos conceitos, mas ela se
realiza definitivamente na base de um pensamento por complexos, logo, apoiando-se em
operações intelectuais muito diferentes (ver p. 226-233). Vigotski mostra que a presença
dos conceitos e a consciência dos conceitos não coincidem; existe uma discordância
entre a utilização dos verdadeiros conceitos e a tomada de consciência desse fato pela
criança.
Essa discordância se mantém não apenas no adolescente, mas também no
pensamento do adulto, às vezes, mesmo no pensamento desenvolvido ao mais alto
ponto. […] O adolescente forma um conceito, emprega-o corretamente em uma
situação concreta, mas, assim que se trata de definir verbalmente esse conceito, seu
pensamento se choca então, imediatamente, a extremas dificuldades e a definição
que ele dá é muito mais estreita que o emprego vivo que ele faz dele. Vemos aí a
confirmação direta de que os conceitos não resultam simplesmente de uma
elaboração lógica de tais ou tais elementos da experiência, que eles não são o
produto da reflexão do adolescente, mas que eles aparecem nele por outro caminho
e só se tornam conscientes e lógicos muito mais tarde. (p. 261)
Para ilustrar essa definição dos conceitos científicos como generalizações das
generalizações, Vigotski faz referência a um conceito oriundo da ontogênese da criança.
Uma criança pequena ainda não é capaz de utilizar o conceito flor como tendo um nível
de generalidade diferente em relação aos conceitos rosa e tulipa. Ela o utiliza como um
conceito cotidiano entre outros e não compreende que o conceito flor inclui conceitos
mais particulares. Em vez de subordinar os conceitos tulipa e rosa ao conceito flor, a
criança os situa todos ao mesmo nível. Em consequência, a utilização do conceito flor
enquanto generalização do que é generalizado pelos conceitos tulipa e rosa, mostra o
fato de que a criança começa a dominar os conceitos que têm características
semelhantes àquelas dos conceitos científicos. Ela se torna capaz de operar no interior
de um sistema de conceitos organizado hierarquicamente. Em outros termos, ela
aprendre a seguir o movimento dos conceitos não apenas no plano horizontal, mas
também no plano vertical.
Flor
Rosa tulipa
Objeto objeto
Vigotski insiste no fato de que o conceito científico não anula de maneira alguma a
etapa precendente à formação de conceitos, mas se apoia nela e a transforma (p. 391). O
que explica a possibilidade de ligações supraempíricas entre os conceitos. Essa
característica dos conceitos científicos, a saber, de não ser um novo modo de
generalização dos objetos do mundo, mas de apresentar um trabalho sobre as
generalizações já existentes, revela-se um sinal precioso para poder determinar os
procedimentos que, segundo nosso autor, deveriam ser privilegiados no ensino escolar.
Dentre os inúmeros exemplos que cita, ele se refere em vários momentos ao ensino da
linguagem escrita e insiste em um ponto preciso 32. Uma das condições requeridas para a
aquisição da linguagem escrita é a decomposição e a recomposição da linguagem oral,
tanto no plano fonético quanto no plano sintático ou semântico. A linguagem oral deve
ser usada como “mediadora” para a aprendizagem do escrito. Mesmo se o escrito possui
uma qualidade totalmente nova e não reproduz de maneira alguma a linguagem oral, o
processo de aquisição da linguagem escrita deve se basear na linguagem oral. Segundo
Vigotski, é preciso levar a sério essa situação quase paradoxal: mesmo se o escrito não
se deixa inferir a partir do oral, ele não pode ser aprendido sem se referir ao oral, como
o conceito flor não pode ser adquirido por uma criança que não conhece os conceitos
rosa e tulipa. É nesse jogo de dependência e independência entre o escrito e o oral, entre
as generalizações de primeira e de segunda ordem, entre os conceitos cotidianos e os
conceitos adquiridos na escola, que a aprendizagem escolar deve se fundar.
32
Sobre a concepção da escrita em Vigotski, ver Schneuwly, 2008.
Para esclarecer em que consiste esta alguma coisa nova, proponho completar as
reflexões de Vigotski pela discussão de um ensino igualmente matemático que o
filósofo alemão Ludwig Wittgenstein (1889-1951) desenvolve em alguns curtos
parágrafos de seu livro Recherches philosophiques publicado em 1953. Essa articulação
inabitual entre esses dois pensadores, considerados como pertencentes a tradições de
pensamento bem diferentes, torna-se possível e pode ser defendida, pois os dois se
juntam em sua crítica a uma concepção mentalista do espírito 33. Wittgenstein discute em
Recherches philosophiques um ensino a respeito das sequências dos números naturais,
que ele começa como segue:
Imaginemos o seguinte exemplo: A escreve sequências de números; B o vê fazer
e se esforça para encontrar uma lei da sucessão desses números. Se ele consegue,
ele grita: “Agora eu posso continuar!” – Essa capacidade, essa compreensão é,
assim, alguma coisa que aparece em um instante. Vejamos então o que aparece
aqui. Suponhamos que A tenha escrito os números 1, 5, 11, 19, 29 e que B diga
que agora ele sabe como continuar. O que aconteceu? Pode ter acontecido várias
coisas. (§ 151, p. 99)
O procedimento aplicado por B torna-se claro: ele acrescenta um segundo nível à série,
um nível que a “generaliza”. Ele utiliza os números que permitem entender o princípio
de construção da série, ficando, no entanto, sob o plano aritmético. Acrescentando a
cada número da primeira série o número par seguinte da segunda série, começando a
segunda série com o número 4, B consegue continuar a série. Mas existe ainda outra
maneira de resolver o enigma, a que é discutida por Wittgenstein enquanto primeira
solução:
Por exemplo, no momento em que A escrevia lentamente esses números uns após os
outros, B tentava lhes aplicar diferentes formas algébricas. Depois, no momento em que
A escreve o número 19, B tentou a formula a = n2 + n – 1; e o número seguinte permitiu
confirmar sua suposição. (§ 151, p. 99-100)
1 ________ 5 ___________ 11 ___________ 19 ____________ 29 ____________ 41
a = n2 + n – 1
33
Sobre o antimentalismo de Wittgenstein, ver Bouveresse 1987.
Essa operação aplicada por B para poder continuar a sequência se situa claramente no
campo da álgebra. Enquanto que, na primeira resolução, os números continuam a ser o
suporte maior, no segundo caso, B consegue explicitar a equação na qual se baseia a
série. Essa equação explicita as operações aritméticas a realizar para formar cada
membro da série (por exemplo: 5 = 2x2 +2-1). Ela generaliza as operações aritméticas,
ou mais precisamente, ela os faz “ver” e permite tomar consciência delas.
Esse exemplo emprestado de Wittgenstein mostra bem o que Vigotski tenta ilustrar com
sua discussão sobre os conceitos aritméticos e algébricos. O psicólogo russo sublinha
que é a fórmula algébrica que permitiu tomar consciência da constituição da série, já
que é ela que contém o princípio de sua construção. O que se opera aqui, então, é a
tomada de consciência sobre as operações matemáticas na base da série.
Assim, a tomada de consciênca apoia-se em uma generalização dos processos
psíquicos próprios, que conduz ao seu domínio. Nesse processo, é antes de tudo
a aprendizagem escolar que representa um papel decisivo. Os conceitos
científicos, com sua relação totalmente outra com o objeto, sua mediação por
outros conceitos, seu sistema hierárquico de relações recíprocas, são o campo no
qual, sem dúvida, a tomada de consciência dos conceitos, ou seja, sua
generalização e seu domínio, se desenvolve no mais alto ponto. (p. 317)
Vigotski conclui, então, que a tomada de consciência é uma das duas neoformações
principais da escola, a outra sendo o domínio ou a intervenção da vontade, como ele
também a chama (p. 309).
34
O termo neoformação significa que se trata de dois traços distintivos fundamentais das funções psíquicas superiores
que são desenvolvidos tarde, na idade escolar, e dão a estes últimos um caráter totalmente novo.
quando ele sabe continuar a série, em resumo, quando ele sabe fazer. A tomada de
consciência sobre suas próprias operações aritméticas não leva simplesmente ao
conhecimento da fórmula algébrica, mas ao domínio desse tipo de tarefa, à realização
dessa tarefa (ao seu domínio), que pode ser repetida em outras situações.
35
No original, “savoir-faire’ (nota de tradução).
36
Outro exemplo é a aprendizagem de uma língua estrangeira: a língua materna é a condição para aprender uma
língua estrangeira que, por sua vez, nos torna conscientes de certos traços de nossa própria língua, permitindo utilizá-
la de uma maneira voluntária.
37
Ver também sua discussão sobre a velha doutrina da disciplina formal, segundo a qual certas disciplinas escolares
são mais aptas do que outras a participar do desenvolvimento das neoformações. (ver, p. 331-335)
absolutamente, se preparam um ao outro. Nessa perspectiva, o desenvolvimento de
certas funções e capacidades psíquicas bem determinadas é apresentado como uma
condição indispensável para as aprendizagens e é então considerado como precedente às
aprendizagens. Segundo os representantes da segunda concepção, a aprendizagem e o
desenvolvimento são tratados como um único e mesmo processo. Considerar os dois
como sendo inseparáveis um do outro, implica que qualquer aprendizagem tem um
efeito direto sobre o desenvolvimento ou, mais precisamente, é automaticamente
identificado a um desenvolvimento. A terceira concepção tenta afirmar uma verdadeira
interdependência entre esses dois processos. Vigotski se posiciona em favor dessa
última, criticando seus representantes quanto a um número importante de pontos que,
segundo ele, não são sustentáveis (ver p. 328-331).
Sua própria concepção se deixa resumir em torno de duas grandes teses. A primeira
tese afirma que “a aprendizagem precede o desenvolvimento” (p. 348). Mostrando que
as funções psíquicas superiores se baseiam todas nas duas neoformações discutidas
anteriormente, que não são a condição, mas o objetivo primário e o resultado esperado
dos ensinamentos escolares, as aprendizagens têm um papel primordial no
desenvolvimento da criança. Essa afirmação reflete-se em um conceito que viu seu
alcance aumentar consideravelmente nos últimos anos, trata-se da “zona de
desenvolvimento proximal”. Opondo-o ao conceito de “desenvolvimento presente”, que
engloba tudo o que a criança sabe fazer de uma maneira autônoma, todas as capacidades
que vieram à maturidade, o conceito de “zona de desenvolvimento proximal” antecipa
os desenvolvimentos possíveis, o que a criança conseguirá fazer se acompanhada pelos
adultos na resolução de tarefas e problemas. É esse movimento entre “o que ela sabe
fazer” em direção “ao que ela poderia conseguir fazer”, que constitui o que os
ensinamentos escolares deveriam focalizar. Vigotski insiste no fato de que os últimos só
são frutíferos no quadro dessa zona que deve ser definida para cada aluno de maneira
individual, em função de seu desenvolvimento posterior. Esse último aspecto é
reforçado por um recurso às filiações históricas do conceito “zona de desenvolvimento
proximal”. Vigotski mostra que a psicologia empresta esse conceito da biologia na qual
utiliza-se o termo de “períodos sensíveis” (ver p. 358-359) a fim de delimitar um lapso
de tempo bem específico, durante o qual o organismo é particularmente sensível às
influências do meio. Durante esse período, o meio orienta e determina fortemente o
curso de seu desenvolvimento e provoca grandes modificações, enquanto que em outro
período as mesmas condições não têm nenhum efeito, nem mesmo efeitos inversos no
organismo.
Na sua segunda tese, Vigotski afirma que o ritmo do desenvolvimento não coincide
com o ritmo das aprendizagens, o que parece, à primeira vista, relativizar a tese anterior.
38
NT: expérience déclic ou expérience eureka.
aprendizagens depende inteiramente do que o aluno sabe fazer ou não sabe fazer em
seguida, em suma, do fato que ele continua sozinho a partir de certo momento, a série
decimal dos números naturais ou que ele não o faz.
Suponhamos que o aluno escreva agora a sequência 0 a 9 de uma maneira que nos
satisfaça. – Será o caso apenas se ele consegue frequentemente e não se ele o faz
corretamente uma vez a cada cem vezes. Eu o guio em seguida no desenvolvimento
da sequência e chamo sua atenção sobre o retorno da primeira sequência nas
unidades, depois sobre o retorno nas dezenas. (O que quer simplesmente dizer que
eu recorro a certas entonações, que eu ressalto alguns sinais, que eu os escrevo uns
sob os outros de tal ou tal maneira, e outras coisas semelhantes.) – E em certo
momento, ele continua a desenvolver a sequência sozinho, - ou ele não o faz. – Mas
por que você o diz? Isso é natural! – Evidentemente, e eu queria simplesmente dizer
que o efeito de toda explicação suplementar depende de sua reação. (§ 145, p. 97)
Essa demonstração nos conduz a concluir que os saberes ensinados na escola não
podem ser transmitidos tais quais ao aluno\; eles devem ser dados com o objetivo de
incitar um poder fazer constituído pelo próprio aluno. As reflexões de Vigotski em
torno do desenvolvimento e da aprendizagem permitem propor uma concepção do saber
escolar que trata esse último como um instrumento psicológico. O saber requer essa
função de instrumento, assim que o aluno se torna capaz de intercalá-lo entre ele e o
mundo (por exemplo, o mundo das tarefas matemáticas), o que tem como resultado que
« ele pode continuar a série », ou, mais geralmente, que ele adquiriu um poder fazer. Se
o saber algébrico enquanto saber que39, existindo sob a forma de manuais e definições,
era o objetivo das aprendizagens, não saberíamos nunca se a criança o aprendeu, pois
esse saber pode ser simplesmente sabido e redito. Ao contrário, um poder fazer (saber
como) deve ser realizado e efetuado, logo, é validado imediatamente por sua realização.
Esse saber(-fazer) não pode nunca ser desligado do homem e não existe sob forma de
proposições categóricas (ele sabe matemática, ele conhece a lei de Newton).
Parece então, totalmente relevante dar uma última vez a palavra a Wittgenstein para
relatar uma de suas breves reflexões conceituais que resumem tão bem a concepção do
saber que embasa as reflexões vigotskianas sobre a ligação entre a aprendizagem e o
desenvolvimento:
A gramática da palavra „saber‟ é, evidentemente, estreitamente semelhante à da
gramática da palavra „poder‟, „ser capaz de‟, mas também da palavra „compreender‟
(Maîtriser une technique40.) (§ 150, p. 99)
39
Ver G. Ryle (1949/2005, sobretudo capítulo III) que, na tradição wittgensteiniana, introduziu uma distinção
conceitual entre um saber que e um saber como.
40
Dominar uma técnica (nota de tradução).
Segue-secerta concepção do aluno que Vigotski opõe a duas outras teorias dominantes
na época. Segundo a primeira, o desenvolvimento não depende da educação escolar, em
consequência, a criança pode ser estudada « independentemente do nível de
escolaridade em que se encontra ». Na segunda concepção, o desenvolvimento da
criança depende exclusivamente dos saberes e conhecimentos adquiridos na escola, a
criança é então, identificada ao aluno e analisada « independentemente de todas suas
outras características de criança ». Sua própria teoria, diz Vigotski, permitirá, enfim,
reunir o que, nas duas outras, é artificialmente separado. Ela « estuda uma criança
particular em sua qualidade de aluno » (ibid., p. 45-46). Isso se torna possível, pois em
sua concepção, o saber é considerado poder fazer, ele é, consequentemente, inseparável
de um indivíduo particular e de suas ações.
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
42
Agradeço a Kim Stroumza e Giuseppe Di Salvatore pelas observações e pelo nosso debate em torno deste texto, a
Maryvonne Charmillot, por seu trabalho sobre o francês e a Marianne Weberpela pela preparação do texto para a
publicação. Muito obrigada aos estudantes da FAPSE e da Universidade d’Ouagadougou, com os quais desenvolvi
essa leitura de Vigotski.
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Production écrite et difficultés d'apprentissage.
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Didactique comparée et difficultés scolaires.
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Introduction aux approches interculturelles en
éducation. Abdeljalil Akkari
Lev Vygotski : médiation, apprentissage et développrement. Une lecture
philosophique et épistémologique. Janette Friedrich
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Contracapa
Janette Friedrich
Lev Vigotski: mediação, aprendizagem
e desenvolvimento
Uma leitura filosófica e epistemológica
Este Carnet apresenta a obra de Vigotski por uma leitura de seus principais textos.
Sem entrarmos em uma exposição de suas ideias sob a forma de uma doutrina, visamos
a pensar no interior de seu pensamento para encontrarmos os conceitos e os
procedimentos que permitem tratar a realidade pela qual atualmente se interessam os
pesquisadores, os professores ou formadores no domínio da educação.
A primeira parte se dedica à diferença entre os métodos diretos e indiretos, e à
relação entre a observação dos fatos e o trabalho sobre o conteúdo real dos conceitos. O
papel dos instrumentos psicológicos como mediação dos processos psíquicos e das
aprendizagens é central na segunda parte. Concluindo, encontra-se esboçado o projeto
de uma psicologia concreta que analisará o funcionamento bem específico dos
instrumentos psicológicos, baseado na constituição de um poder fazer dos seres
humanos.