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UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS

FACULDADE DE ARTES VISUAIS

MATHEUS EZEQUIEL DE OLIVEIRA MEIRELES

COSMOGONIA
EXPERIÊNCIAS EM COSMOVISÃO E DECOLONIALIDADE DE UM ARTISTA
EM RESIDÊNCIA NO PLANETÁRIO DA UFG

GOIÂNIA
2018
1

MATHEUS EZEQUIEL DE OLIVEIRA MEIRELES

COSMOGONIA
EXPERIÊNCIAS EM COSMOVISÃO E DECOLONIALIDADE DE UM ARTISTA
EM RESIDÊNCIA NO PLANETÁRIO DA UFG

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado


ao curso de graduação Artes Visuais
Bacharelado, da Faculdade de Artes Visuais
da Universidade Federal de Goiás.

Orientadora: Profª. Drª. Manoela dos Anjos


Afonso Rodrigues

GOIÂNIA
2018
2

Na qualidade de titular dos direitos de autor, eu Matheus Ezequiel de Oliveira


Meireles autorizo a Faculdade de Artes Visuais (FAV) da Universidade Federal
de Goiás (UFG) a disponibilizar gratuitamente este Trabalho de Conclusão de Curso
para fins de leitura, impressão e/ou download, a título de divulgação da produção
artística e científica brasileira, a partir de 19 de dezembro de 2018.
3

MATHEUS EZEQUIEL DE OLIVEIRA MEIRELES

COSMOGONIA
EXPERIÊNCIAS EM COSMOVISÃO E DECOLONIALIDADE DE UM ARTISTA
EM RESIDÊNCIA NO PLANETÁRIO DA UFG

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado


ao curso de graduação Artes Visuais
Bacharelado, da Faculdade de Artes Visuais
da Universidade Federal de Goiás.

Goiânia, 27 de novembro de 2018.

BANCA EXAMINADORA

________________________________________
Prof.ª Manoela dos Anjos Afonso Rodrigues
Universidade Federal de Goiás (UFG)

________________________________________
Prof. Glayson Arcanjo
Universidade Federal de Goiás (UFG)

________________________________________
Prof. Manoel Alves Rodrigues Junior
Universidade Federal de Goiás (UFG)
4

AGRADECIMENTOS

Gostaria de registrar aqui alguns humildes, afetuosos e sinceros


agradecimentos a todas as pessoas que participaram, colaboraram para e
incentivaram o meu percurso como estudante de artes visuais e, assim, contribuíram
para o desenvolvimento deste processo de pesquisa.
Com muita gratidão, agradeço imensamente aos meus pais, Marlene Luiz de
Oliveira e José Eudes Meireles, minhas irmãs, Daniela O. Santos e Avelyne O.
Rocha, meus cunhados e sobrinhos (as), meu tio Ezequiel Luiz de Oliveira e demais
familiares que sempre me apoiaram e fizeram o possível e impossível para me
ajudar a chegar até aqui. Agradeço também aos meus amigos queridos, minha
família estendida. Tantos nomes especiais que não caberiam nesta nota de
agradecimento, mas espero que cada um (a) saiba e sinta o carinho e amor mútuo
que temos. A todos vocês, eu sou eternamente grato por todos os momentos.
Dentre estes amigos, sou especialmente grato à Prof.ª Manoela dos Anjos
Afonso Rodrigues, que me orientou desde antes dos inícios formais desta pesquisa,
para muito além das questões acadêmicas e, principalmente, me inspirou enquanto
artista e ser humano. Neste sentido, também agradeço a Daniela Alpa, Danielli
Bettini, Hariel Revignet, Sérgio Gonçalves, Letícia Rosa, Iago Araújo, Amanda de
Sá, Vitor Maia, Glayson Arcanjo, Patrícia Osses, Suzane Oliveira, Fabiana Francisca
e Luiz Fernando, alguns dos meus amigos e professores que me acompanharam e
ensinaram imensamente durante todo este processo.
Por fim, também sou cosmicamente grato aos meus novos amigos da equipe
do Planetário da UFG, em especial o Prof. Manoel Alves Rodrigues Junior, Gustavo
Ramos Jordão, Prof. Rafael Miloni Santucci e Prof. Paulo Henrique Azevedo
Sobreira, que tanto já me ensinaram e sem os quais este trabalho, nestas condições,
jamais seria possível.
Gratidão!
5

RESUMO

Esta é uma pesquisa transdisciplinar com base nas artes visuais que busca
compreender relações entre arte e ciência por meio de perspectivas decoloniais.
Nesta investigação, observo ideias, experiências, espaços e situações que possam
gerar possibilidades de ampliação e reflexões sobre processos de construção de
saberes na contemporaneidade. Neste sentido, me insiro como artista no Planetário
da Universidade Federal de Goiás perguntando-me sobre os tipos de experiências
que a minha presença naquele espaço podem criar. Por meio desta residência
artística pude experimentar, na prática, algumas das questões sobre decolonialidade
e poéticas visuais que vinham atravessando o meu trabalho e o meu existir.
Desenvolvo, então, uma prática artística que se dá na intersecção dos campos da
arte, cosmologia e consciência social, que expresso pela ideia de cosmovisão, em
que a origem do universo (cosmogonia) e a expansão da consciência mostram-se
como temas recorrentes. Com isso, nesta pesquisa, dou início a um caminho prático-
teórico que me ajuda a refletir sobre a cosmovisão contemporânea em um momento
crítico em que passamos por diversas disputas por visões de mundo em nossa
sociedade.

Palavras-chave: Prática artística; Artes Visuais; Cosmovisão; Decolonialidade.


6

ABSTRACT

This is a transdisciplinary research based in the visual arts which seeks to


understand art and science relations through decolonial perspectives. In this
investigation, I observe ideas, experiences, spaces and situations that can generate
possibilities of enlargement and reflections about knowledge construction process in
contemporaneity. In this regard, I inserted myself as an artist in the Planetarium of
the Federal University of Goiás wondering what kind of experiences my presence in
that space could create. Through this artistic residence I could experiment, in
practice, some of the questions about decoloniality and visual poetics that had been
crossing my work and my existence. I develop, then, an artistic practice that occurs in
the intersection of the arts, cosmology and social conscience fields which I express
as the idea of cosmovision, wherein the universe origin (cosmogony) and the
expansion of consciousness are shown as recurring themes. Therefore, in this
research, I initiate a theoretical practical way which helps me to think about the
contemporary cosmovision in a critical moment, wherein we are passing through
various disputes over the worldviews in our society.

Key words: Art practice; Visual Arts; Cosmovision; Decoloniality;


7

SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO………………………………………………………………... 8

2. UMA ARQUEOLOGIA PESSOAL..................................................……... 10

2.1. UM BREVE OLHAR SOBRE MEU PERCURSO ATÉ AQUI.................... 10

2.2. ARTE COMO EXPRESSÃO DE UMA COSMOVISÃO............................. 13

3. COSMOVISÕES E DECOLONIALIDADES: PERSPECTIVAS................ 30

3.1. O ABISMO.....………....……………………......................……………….... 30

3.2. O SALTO..................….......………………...............…………................... 37

4. PARA ALÉM DO UNIVERSO OBSERÁVEL.........................……......…. 42

4.1. EM BUSCA DE NOVOS ESPAÇOS: RESIDÊNCIA ARTÍSTICA NO


PLANETÁRIO DA UFG............................................................................. 42

4.2. ESTABELECENDO CONTATO................................................................ 44

4.2.1. As sessões de planetário.......................................................................... 44

4.2.2. Reconhecendo o ambiente....................................................................... 49

4.3. PROJETANDO COSMOVISÕES.............................................................. 54

4.3.1. Processo de expansão.............................................................................. 54

4.3.2. Cosmogonias............................................................................................ 59

4.3.3. Uma viagem coletiva................................................................................. 68

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................………….…………….. 72

REFERÊNCIAS………………………………………………….…………… 75
8

1. INTRODUÇÃO

Esta é uma pesquisa transdisciplinar com base nas artes visuais que, por
meio do fazer artístico, busca compreender relações entre arte e ciência numa
perspectiva decolonial. Nesta investigação, observo ideias, experiências, espaços e
situações potentes e favoráveis a reflexões sobre processos de construção de
saberes na contemporaneidade. Assim, objetivo articular uma prática artística que se
propõe a pensar experiências em cosmovisão que se posicionem como formas
poéticas de tensionar e propor transformações possíveis aos aspectos hegemônicos
dos saberes que limitam visões de mundo e subjetividades.
Ao observar mais atentamente o meu percurso como artista e graduando do
curso Artes Visuais Bacharelado na Faculdade de Artes Visuais (FAV) da
Universidade Federal de Goiás (UFG), percebi que certos temas eram recorrentes
em meus trabalhos. São eles a origem do universo, a expansão da consciência e a
ideia de cosmovisão. Deste modo, compreendo estes assuntos como importantes
ativadores do meu pensamento e da minha prática, bem como questões sociais
bastante relevantes e necessárias de serem pensadas numa atualidade em que se
amplia cada vez mais o conhecimento do cosmos qual fazemos parte, mas de modo
pouco acessível para grande parte da população mundial. Assim, lancei-me à
investigação de referenciais que pudessem me ajudar a refletir sobre as
problemáticas da cosmovisão hegemônica na contemporaneidade e buscar
alternativas a ela por meio da pesquisa em arte e ciência sob óticas decoloniais e
transdisciplinares.
Após entrar em contato com uma vasta literatura a respeito dessas temáticas,
neste trabalho decidi partir do estudo em cosmovisão de Adélia Miglievich-Ribeiro
(2014), que considera que as principais problemáticas das cosmovisões atuais são
subjacentes à colonialidade. A partir disso, busco algumas reflexões acerca de
colonialidade e decolonialidade em Aníbal Quijano (1992, 2005) e Walter Mignolo
(2007, 2011), com foco na ideia de estética decolonial discutida por Pedro Pablo
Gómez e Walter Mignolo (2012). Utilizo também a abordagem de pesquisa baseada
na arte (arts-based research, em inglês) proposta por Patricia Leavy (2018) e
algumas perspectivas sobre cosmos e ciência de Ervin László (2008). Tais
referenciais certamente não esgotam o assunto, que é vasto, mas me oferecem
ferramentas conceituais iniciais que podem me ajudar a pensar mais profundamente
9

sobre as questões práticas e metodológicas desta pesquisa, bem como a poética de


uma proposta artística que busca se projetar para além dos lugares que
normalmente fazem parte do circuito artístico convencional.
Durante esta busca, tive a oportunidade de fazer um estágio no Planetário da
UFG. Aos poucos, percebi que o estágio estava se transformando numa residência
artística e pude, então, experimentar de forma prática algumas das questões que
estavam a atravessar todo o meu percurso de pesquisa. Assim, ao me situar como
pesquisador em artes visuais em residência artística no Planetário da UFG, tive a
oportunidade de criar um trabalho artístico que se transformou em ponto de
convergência para aspectos poéticos e conceituais que compõem não só a minha
prática como artista mas também o meu desejo de criar processos de transformação
de consciências e cosmovisões.
Levando em consideração que vivemos atualmente num mundo em que as
tensões sociais, políticas e econômicas se acirram cada vez mais, penso que a
contribuição da minha pesquisa possa se dar por meio da ativação das
sensibilidades, das emoções e da reflexão crítica sobre o que significa ‘ser’ humano
num mundo em que a violência, a intolerância e a desumanização do diferente
avançam velozmente. Desta forma, busco desenvolver uma prática artística a partir
de escolhas poéticas e decoloniais como forma de propor outros entendimentos
sobre o existir, criar, experimentar e compartilhar arte para além dos lugares já
estabelecidos. Busco construir pontes com outras áreas do saber e gerar
experiências artísticas pessoais e coletivas que propõem interações sensíveis e
transformadoras a partir do contato com a arte, um contato que vai ficando cada vez
mais imersivo em minhas proposições artísticas.
Esta primeira parte deste trabalho é constituída por esta introdução. No
segundo capítulo, com a finalidade de compartilhar e contextualizar as origens e
motivações desta pesquisa, apresento uma visão geral dos meus processos de
conhecer e conhecer-me por meio da prática artística que desenvolvi desde o início
da graduação. Em seguida, no terceiro capítulo, apresento os referenciais que me
ajudaram a elaborar uma reflexão crítica e tecer relações entre arte, cosmovisão e
decolonialidade. Na quarta parte, apresento o projeto artístico desenvolvido durante
o estágio que foi vivido como residência artística no Planetário da UFG. Finalmente,
na quinta e última parte, teço minhas considerações finais e aponto possibilidades
de desdobramentos futuros para esta investigação.
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2. UMA ARQUEOLOGIA PESSOAL

Neste capítulo, situo meu percurso como artista com o objetivo de apresentar
meus processos de conhecer e conhecer-me por meio da prática artística e, ao
mesmo tempo, identificar temas que perpassam minha produção e que convergem
no trabalho desenvolvido na residência artística realizada no Planetário da UFG.
Busco compartilhar meu percurso e as origens desta pesquisa a partir de uma
abordagem subjetiva e autobiográfica, desafiando as noções de impessoalidade e
objetividade exigidas no processo de produção de conhecimento. Assim, ressalto a
importância das experiências de vida como indissociáveis dos processos de
conhecer e construir saberes. A partir desta compreensão, falar sobre meu percurso
também pode desvelar perspectivas e questões históricas e sociais intrínsecas à
minha narrativa de vida apresentada.

2.1. UM BREVE OLHAR SOBRE MEU PERCURSO ATÉ AQUI

O curso de graduação Artes Visuais Bacharelado seria, aparentemente, o


início mais próximo para pensar sobre o meu percurso artístico. Porém, ao refletir
mais demoradamente sobre as origens da minha interação com a arte, lembrei-me
da minha infância. Desde muito novo eu já gostava de criar e conhecer narrativas
fantásticas, principalmente pelo desenho e pela escrita. Expressões artísticas e
culturais diversas me inspiravam e, além disso, já podia perceber os problemas
sociais e sentia que precisava fazer algo sobre isso. Talvez naquele momento eu
tenha começado a perceber a arte como forma de transformação, antes de tudo
pessoal, que poderia cumprir também um papel de transformação social.
Em meio aos desenhos e escritas, com o tempo passei a sonhar em fazer
desenhos animados e criei vários projetos, porém nunca os terminei. A falta de
acessibilidade à informação, equipamentos e técnicas me fez permanecer no
desenho tradicional. Quando pude ter acesso a algum equipamento e informações,
passei à arte digital. Ao mesmo tempo, a minha inclinação para os assuntos da
sociedade também se manteve e passei a me interessar por estudos culturais, fato
que foi acentuando a minha vontade de atuar nos meios da arte e da educação.
Foi assim que meus caminhos para os estudos foram sendo configurados e,
embora me fora imposta uma ideia de educação como meio de aprender para
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trabalhar e me manter no sistema, com o tempo passei a me interessar pelo próprio


processo de aprendizado em si, inclusive, o de aprender a aprender. Talvez porque
o ato de aprender me parecia, e ainda me parece, primordial para articular meios de
agir em prol das transformações sociais que eu percebia como tão necessárias.
Então, apaixonado pelos processos de aprender, saber e conhecer, interessei-me
pelos estudos transdisciplinares (embora eu não os entendesse dessa forma
naquela época) e passei a buscar conciliar saberes diversos, em especial dos
campos da arte, espiritualidade, história, filosofia, geografia, política, biologia,
astronomia e demais perspectivas das ciências humanas e da natureza. A imensidão
e complexidade da existência me encantavam ao mesmo passo em que eu sofria ao
descobrir mais sobre as desigualdades, injustiças, destruição da natureza e outras
mazelas da sociedade. Foi todo este contexto que me trouxe à universidade, por
acreditar neste espaço como um potente local de aprendizado e atuação social.
Iniciei meus estudos universitários no curso de graduação Relações
Internacionais, na UFG, em 2013. Acreditava que esse curso me ajudaria a entender
mais sobre o percurso histórico global que nos trouxe até os problemas do presente.
Ao mesmo tempo, pensei que esta área de estudos poderia me trazer oportunidades
de aprender como eu poderia atuar diretamente na transformação social. Graças aos
planos de assistência estudantil das universidades públicas federais consegui me
manter financeiramente e, assim, dedicar todo o meu tempo para os estudos.
Porém, embora o curso Relações Internacionais tenha contribuído profundamente
para a minha visão de mundo atual, progressivamente fui me desinteressando pelas
possibilidades de atuação como internacionalista, uma vez que não conseguia me
reconhecer nos espaços de atuação desse profissional. Após muito refletir, percebi
que gostaria de continuar a pensar sobre as questões sociais que me interessavam,
porém utilizando outro meio: a arte.
Foi assim que, sentindo e seguindo o fluxo da vida, ingressei no curso Artes
Visuais Bacharelado, em 2015. Como estudante de artes visuais, passei a acessar
pessoas, encontros, experiências e uma cena cultural e artística que ampliaram e
transformaram profundamente minha forma de perceber a arte como campo de
transformação pessoal e social. Adentrei um universo com o qual eu não estava
habituado e a graduação em artes visuais me apresentou todo um corpo teórico,
referenciais artísticos e aspectos do circuito da arte que eu nunca pude acessar até
então. Este caminho proporcionou aprendizados e transformações, mas também
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provocou conflitos, pois passei a perceber os perigos da lógica produtivista na


prática artística bem como da narrativa hegemônica eurocêntrica da história e da
filosofia da arte. Ainda assim, resiliente, procurei me concentrar no que poderia
florescer a partir das trocas positivas que esta vivência estava me possibilitando.
O aprendizado oriundo dessa trajetória se somou profundamente ao meu
processo de autoconhecimento, amadurecimento pessoal e expansão de visão de
mundo, contribuindo diretamente para um pensamento cada vez mais crítico,
autônomo, complexo e transdisciplinar que me faz perceber a prática artística não
apenas como lugar de expressão de ideias, poéticas e visualidades, mas também
como método de saber e saber-se.
Para Patricia Leavy (2018), pesquisadores devem fazer o exercício de
abordar seus objetos de pesquisa de formas diversas para, assim, poder fazer
perguntas desde outros lugares e ter novos insights a respeito do problema em
questão. Para a autora, “pesquisadores que exploram o poder das artes estão
fazendo isso para criar novas maneiras de ver, pensar e se comunicar.
Cumulativamente, eles construíram um novo campo: pesquisa baseada em artes
(ABR)” (LEAVY, 2018, p. 3, tradução nossa)1. Desta forma, a autora entende a
pesquisa baseada em artes como uma abordagem transdisciplinar usada para a
construção de conhecimento que se dá quando temos os princípios da prática
artística articulados num contexto de pesquisa acadêmica (LEAVY, 2018). Neste
trabalho, estou interessado nestas aproximações entre arte e ciência, porém
questiono as concepções tradicionais com as quais tais relações são observadas e
busco olhar através das lentes da decolonialidade para, então, descobrir outras
formas de observar seus entrelaçamentos.
Antes de abordar o referencial teórico que compõe esta pesquisa, no capítulo
3, apresentarei a seguir os principais trabalhos artísticos que desenvolvi durante a
graduação com o objetivo de observar como busquei construir um lugar
transdisciplinar favorável à expressão de uma cosmovisão em constante
trans/formação. E apresentarei também alguns dos artistas que me inspiram durante
este percurso.

1 Citação original: “researchers tapping into the power of the arts are doing so in order to create new
ways to see, think, and communicate. Cumulatively, they have built a new field: arts-based research
(ABR)” (LEAVY, 2018, p. 3).
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2.2. A ARTE COMO EXPRESSÃO DE UMA COSMOVISÃO

Um dos meus primeiros trabalhos como estudante de artes visuais se


constitui como uma série de desenhos chamada Linhagens de gigantes (Figura 1).
Ela reflete bastante os meus estudos em ciências sociais e história, bem como
demonstra minha afinidade com o desenho, que já vinha sendo constituída
anteriormente ao curso. Vejo também neste trabalho um pouco da minha maior
referência artística precedente ao curso: Salvador Dalí.

Figura 1 – Matheus Meireles. Linhagem de gigantes #1: humano cansado.


Esferográfica s/ papel. 2015.

Fonte: acervo pessoal.


14

Com o tempo, fui percebendo as possibilidades do ‘pensar pela arte’, o que


me permitiu experimentar diversos sentidos e propostas de aproximação com a
ciência, mesmo abordando temas que geralmente estão distanciados dos espaços
ditos científicos. Encantei-me com as possibilidades das poéticas visuais
contemporâneas, assunto de uma das disciplinas do primeiro semestre do curso, e
que mudou muito a forma como eu via o campo das artes visuais. Durante este
período, tive acesso a conteúdos sobre movimentos artísticos, ideias, pesquisas e
fazeres que me ajudaram a ampliar esse entendimento sobre o fazer nas artes
atualmente. Conteúdos sobre cultura visual, pesquisa em arte, arte como processo,
arte conceitual, relações arte-vida, arte visionária, práticas artísticas autobiográficas
e outros ampliaram muito minha compreensão e trouxeram uma grande elasticidade
para as minhas proposições.
Nesta época, também me deparei com as práticas dos ateliês e pude
conhecer diversos fazeres que jamais havia experimentado como, por exemplo, a
pintura, gravura, instalação, arte e tecnologia, performance e vídeo arte. A partir
disso, percebi que minhas possibilidades expressivas e de cognição artística
começaram a se expandir. Como resultado, gerei um corpo de obras artísticas que
hoje me ajudam a entender um pouco mais sobre as minhas possibilidades de
pesquisa em arte e a partir da arte. No trabalho medita ação (Figura 2), expresso um
pouco das minhas experiências de descoberta neste sentido, e trago pela primeira
vez a performance, a instalação e experiências em arte-vida para a minha produção
artística.
O trabalho medita ação surgiu no choque entre a minha prática e a vida.
Inicialmente, estava a desenvolver um trabalho para a disciplina Introdução ao
Tridimensional, ministrada pela professora e artista Anahy Jorge no meu primeiro
semestre de curso. Na ocasião, instalei 40 peças de argila, chamadas Artefatos, no
corredor da FAV/UFG. Tais peças eram parte de uma performance interativa que
tinha como objetivo expor questões sobre o fazer, nos seus aspectos de
materialização. Entretanto, a instalação não durou até a performance, pois na
ocasião, por um erro de mensagem, a equipe da limpeza da faculdade entendeu que
as peças já haviam cumprido com seu propósito e podiam ser recolhidas. Encontrei
meu trabalho apenas como cacos em um saco de lixo. Apesar disso, executei a
performance como um processo de meditação em meio aos cacos, em uma ação
mínima e silenciosa, porém gritante sobre o ocorrido.
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Figura 2 – Matheus Meireles. medita ação. Performance. 2015.

Foto: Pauline Arroyo. Fonte: Acervo pessoal.

Essa e minhas demais experiências proporcionadas pela performance


borraram as barreiras do momento em que eu fazia arte e do momento em que eu
levava minha vida ‘normal’. Neste processo, o conteúdo da disciplina Pesquisa e
Prática em Performance, orientada pelo artista e professor Paulo Veiga Jordão,
tornou-se crucial, pois durante as aulas descobri uma das minhas grandes
inspirações: as performances de Tehching Hsieh (Figura 3), artista que se propunha
a usar a vida como matéria-prima da arte, gerando espaços de reflexão sobre o
corpo em sociedade e dissolvendo as fronteiras entre arte e vida.
Arte e vida ficam evidentes nos trabalhos One Year Performances
(Performances de Um Ano, em português), em que Hsieh se comprometeu a
executar diversas propostas performáticas que duram, cada uma, um ano. No
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trabalho da Figura 3, o artista passou um ano se fotografando a cada uma hora


(MORGAN, 2017). Nas fotos resultantes deste processo é possível ver as
transformações do seu corpo neste espaço de tempo, também ele sempre aparece
usando uma roupa que se assemelha a um uniforme de operário. Ao se fotografar,
ele também registrava a hora da fotografia em um relógio de ponto para deixar ainda
mais evidências temporais de sua performance e somar nos aspectos simbólicos,
poéticos e críticos de suas ações (MORGAN, 2017). Isso gerou diversos registros de
fotos e pontos que são expostos como enunciadores de todo este processo.

Figura 3 – Tehching Hsieh, registros do trabalho One Year Performance: 1980-1981,


na Bienal de Veneza de 2017.

Fotos: Hugo Glendinning, cortesias do Taipei Fine Arts Museum. Fonte: MORGAN, 2017.

O contato com as ideias desde a performance e a instalação me mostraram


possibilidades de expandir minha percepção, meu trabalho e minha forma de ser e
estar no mundo. Por essas linguagens, vivi reflexões profundas sobre o corpo, o
espaço, o tempo e o caráter relacional da arte. Redescobri meu próprio corpo e
percebi melhor não só minhas ações, mas também o corpo do outro e nossas inter-
relações, para além da objetificação e consumo, dos protocolos de expressões
corpóreas convencionais e utilitárias e das noções antropocêntricas de corpos, que
nem mesmo reconhece os corpos vegetais, geológicos, celestes e cósmicos. A partir
disso, a performatividade do corpo e do espaço passou a aparecer cada vez mais
nos meus trabalhos. Na experiência Projetando o Universo (Figura 4), por exemplo,
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organizei uma sala escura com projeções de imagens de corpos celestes e convidei
amigos para experienciar este ambiente e imagens performativamente. Tal
experiência gerou uma série de fotografias que buscam explorar relacional e
poeticamente a ideia de corpo e espaço. Foi a partir deste trabalho que comecei a
perceber os primeiros indícios diretos da pesquisa sobre o cosmos na minha prática
artística.

Figura 4 – Matheus Meireles em colaboração com Ítalo Augusto. Fotografia Sem


Título da Série Projetando o Universo. Fotografia. 2015.

Fonte: Acervo pessoal

Neste período, estava a me aprofundar com bastante curiosidade em estudos


sobre cosmologia. Gradualmente, isso foi ampliando meu discurso sobre a condição
social humana para algo mais abstrato que pouco a pouco entendi como consciência
cósmica. Este termo não faz referência ao entendimento de Richard Bucke (1901),
de consciência cósmica apresentada no seu livro Consciência cósmica: Um Estudo
na Evolução da Mente Humana, que vê este termo como uma expansão de
consciência pouco comum ao humano, que acontece como experiência de epifania e
de transcendência, e o associa com valores antropocêntricos e moralistas. No meu
trabalho, a ideia de consciência cósmica surge como um conceito simbólico que
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comecei a usar para me referir às questões poéticas da minha pesquisa em artes


visuais e dos meus estudos de ser e estar consciente da imensidão cósmica. Neste
sentido, passei a refletir sobre a expansão de consciência sobre o cosmos ao
compor meus trabalhos. Isso passou a inspirar e mover minha prática artística e
comecei a explorar a visualidade, poética e estética do imaginário cósmico para
trazer à tona reflexões advindas dos meus estudos, investigações e experiências.
A cosmologia somada à perspectiva artística transformou minha percepção da
realidade. Passei a compreender os processos de autoconhecimento como um
processo de conhecimento do cosmos, subvertendo a lógica cartesiana da
separação entre sujeito e objeto, alma e corpo, interno e externo, prática e teoria.
Neste sentido, repensei-me como ser e não pude mais me entender como indivíduo
isolado, mas sim como indivíduo conectado à imensidão e à complexidade cósmica.
O teórico de sistemas Ervin László (2008) reconhece que,

É evidente que a procura por uma visão significativa do mundo não


está confinada à ciência. Ela é, em todos os seus aspectos,
fundamental para a mente humana. É tão antiga quanto a civilização,
pois, sempre que as pessoas olhavam para o Sol, a Lua, o céu
estrelado acima delas, e também para os mares, os rios, as
cordilheiras e as florestas sob eles, elas se perguntavam de onde
tudo isso veio, para onde tudo isso está indo, e o que tudo isso
significa. (LÁZLÓ, 2008, p. 8).

Nesta época, estava a me aprofundar na prática da pintura e explorava os


fenômenos físicos e visuais nos meus exercícios pictóricos para experimentar
livremente as possibilidades de criar conexões poéticas entre os fenômenos visuais
da pintura e os fenômenos visuais cósmicos, como no trabalho Império de pó (Figura
5), por exemplo. Nessa fase, libertei-me da autocobrança em produzir uma
mensagem visual direta e bem delimitada bem como da necessidade da presença
do corpo humanoide nos meus trabalhos. Então, passei a estar mais presente e
aberto ao prazer criativo e às suas possibilidades de translocuções2 abstratas,

2 Translocução é uma palavra que passei a usar intuitivamente e não encontrei nenhuma publicação
ou citação com a mesma, assim, entendi que esta palavra não existe. Primeiramente, comecei
utilizando numa ideia de ampliação da palavra interlocução, mas num entendimento trans, assim
como as diferenças entre interdisciplinar e transdisciplinar, em que o prefixo trans subentende um
atravessamento e um desfoque nas fronteiras dos saberes. Assim, translocução estaria para mim
num sentido parecido, só que se referindo às relações de dialogo, considerando tanto as interações
comunicativas entre pessoas, mas também lugares, ideias e coisas.
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pessoais e subjetivas. Tais escolhas se expressaram como uma abstração profunda


nos meus trabalhos desta fase.

Figura 5 – Matheus Meireles. Império de Pó. Tinta acrílica sobre papel. 2015.

Fonte: Acervo pessoal.

A partir do processo de abstração comecei a extrair ideias, formas e criar


imaginários. Notei a presença do corpo, porém agora como corpos cósmicos em
uma configuração não humanoide. Percebi que estava a compor universos e, assim,
passei a entender o ato de pintar como ato performático e poético, articulando
conteúdos sobre comportamentos sabidos do universo, como as leis universais,
organismos, sistemas, fractais e alguns outros aspectos que me interessavam. Ao
experimentar essas ideias por meio da prática artística, sentia como se eu pudesse
experimentá-las na prática. Por exemplo, às vezes pintava numa lógica gravitacional
ao agrupar manchas e gerar sistemas, às vezes pintava na lógica da matéria escura
ao separá-los e distanciá-los. Nestas experiências com pintura podia me integrar ao
conhecimento tanto pela arte quanto pela cosmologia, em experiências imersivas
que me proporcionavam sensações de interconexão, autossimilaridade e
complexidade cósmica. Acredito que tais ideias se demonstram no trabalho da figura
6 e na série de pinturas em acrílica e arte digital que se seguiram a partir dele
20

durante a disciplina de Pintura orientada pela artista e professora Selma Parreira.


Neste momento, experimentei estilos minimalistas, porém profusos, discutindo
espaço e partícula em composições orgânicas que favoreceram os efeitos ópticos
como a vertigem e a confusão visual estimulando, assim, a percepção e a sensação
de movimento.

Figura 6 – Matheus Meireles. ๑. Acrílica sobre papel triplo. 30 x 60 cm. 2016.

Fonte: Acervo pessoal.

Nesta mesma época tive a oportunidade de aprender gravura em metal com o


artista e professor José César e, durante a disciplina Gravura Processos em
Côncavo, criei o trabalho Stargate (Figura 7). Inicialmente, a placa de latão utilizada
na produção das calcogravuras me remeteu às placas pioneiras das Voyagers3.
Pensei então em compor minha própria placa contendo perspectivas pessoais sobre
a humanidade e nosso lugar no espaço. Este trabalho foi um dos mais importantes
para mim, pois me ajudou a perceber um certo holismo, como um fio condutor mais

3 As Placas Pioneiras são registros em placas de ouro, apresentando informações visuais sobre a
localização da Terra, alguns aspectos dos humanos, como representações visuais e um pouco do
nosso entendimento científico. Essas placas estão fixadas na sonda Voyager I e II, lançadas a partir
dos anos 1970, e após completar sua missão observação e exploração, vagam pelo espaço próximo
com informações sobre os humanos. Além disso as Voyager também carregam gravações com
músicas, diálogos e sons de humanos, e até mesmo sons de batidas de coração de um bebê recém
nascido, ondas cerebrais e sons de baleias. Atualmente, pelo que se sabe, a Voyager é o artefato
humano mais distante da Terra. (SAGAN, DRAKE, DRUYAN, et al., 1978)
21

claro entre todas as minhas produções visuais anteriores. É como se neste momento
eu tivesse unido os aspectos de condição humana, consciência, ancestralidade,
imaginário cósmico e os diversos estilos visuais, expressivos e símbolos recorrentes
na minha produção. Percebi que era na intersecção desses pontos que poderiam
surgir as minhas narrativas. Foi a partir daí que compreendi a potência da minha
produção de uma forma mais concisa e inter-relacionada.

Figura 7 – Matheus Meireles. Placa (matriz) Stargate [à esquerda]; Stargate


impressa [à direita]. Calcogravura. 2017.

Fonte: Acervo do pessoal.

Passei um tempo experimentando as possibilidades levantadas pelo trabalho


Stargate, pensando em experimentações gráficas como continuidade dessa
pesquisa. Porém, senti que o formato bidimensional por si só não me era o
suficiente. Mais ou menos nessa época frequentei a disciplina Laboratório de
Produção Artística 1, ministrada pela artista e professora Manoela dos Anjos Afonso
Rodrigues, que veio a se tornar a minha orientadora deste Trabalho de Conclusão
de Curso. Nesta disciplina, fizemos muitos exercícios que nos levaram a olhar para a
nossa prática e refletir sobre suas origens, meios, sentidos e dispersões. Isso me
levou para um outro estágio do meu trabalho, pois passei a buscar mídias mais
interativas que pudessem favorecer a articulação de experiências para as pessoas
que porventura tivessem contato com os meus trabalhos. Foi deste contexto que
surgiu o projeto c o s m o g o n i a (Figura 8), momento em que me reaproximei da
22

instalação, mas agora pensando este processo como possibilidade de criar


ambientações imersivas.

Figura 8 – Matheus Meireles. c o s m o g o n i a. Pessoa experimentando a


ambientação imersiva. 2017.

Fonte: Acervo pessoal.

A partir deste trabalho percebi que não queria mais criar obras para serem
apenas observadas; estava cada vez mais interessado em trabalhos que pudessem
ser adentrados, vivenciados e sentidos. Movido por esse desejo, busquei
experimentar formatos novos para mim e que me serviriam como material para
articular as ambientações. O trabalho c o s m o g o n i a é composto por uma
animação com sonoplastia que foi instalada num ambiente escuro do Laboratório de
Fotografia da FAV/UFG. Trabalhei basicamente com luz, escuridão, som, percepção
e sensação. O conteúdo da animação é uma representação da expansão cósmica,
numa estética inspirada em minhas pinturas de organismos (Figura 6), só que agora
em movimento e tomando conta de um espaço que podia ser adentrado pelas
pessoas. A sonoplastia foi feita a partir de ondas eletromagnéticas de planetas
23

traduzidas em ondas sonoras disponibilizadas pelas NASA4, e foi crucial para


sensação imersiva, pois ocupou todo o ambiente escapando até mesmo para fora
dele.
Ao mesmo tempo, c o s m o g o n i a gerou diversos registros e
desdobramentos artísticos em fotografia, vídeo e vídeoperformance que foram
surgindo a partir das interações que as pessoas iam tendo com este trabalho. Essa
experiência também me reconectou com duas práticas, a animação e a
ambientação, e principalmente me chamou a atenção para a potência dos sentidos e
das sensações que podem ser provocados pela experiência artística. Por um lado,
continuei a pensar soluções para criar espaços ainda mais imersivos e menos
dependentes da imagem, mas ao mesmo tempo também continuei estudando
animação com o intuito de criar possíveis experiências imersivas também
virtualmente. Minha primeira animação em tal contexto foi feita para o trabalho
HUMANO (Figura 9), que aponta para diversas questões e inspirações presentes no
trabalho c o s m o g o n i a e que também apresenta novamente a presença
simbólica do corpo em relação com cosmos.

Figura 9 – Matheus Meireles. HUMANO. QR code e frames da animação, 13’, 2017.

Fonte: Acervo pessoal.


No desejo de pensar mais sobre estas questões que floresciam na minha
prática artística, comecei a participar periodicamente das reuniões do Núcleo de

4Disponível em: <https://www.nasa.gov/vision/universe/features/halloween_sounds.html>. Acesso em


setembro de 2018.
24

Práticas Artísticas Autobiográficas (NuPAA), grupo que faz parte do projeto de


pesquisa Práticas Artísticas Autobiográficas: intersecções entre prática artística,
escritas de vida e decolonialidade, coordenado por minha orientadora. Os encontros
do núcleo acontecem como reuniões acolhedoras em que compartilhamos nossos
processos artísticos dando ênfase para abordagens autobiográficas e decoloniais.
Foi assim que conheci e comecei a me aprofundar na prática e nos estudos
autobiográficos, decoloniais e de narrativas de vida, processos que envolvem não
apenas as práticas acadêmicas e artísticas, mas também são conduzidas pelas vias
do afeto, da partilha de experiências de vida, do diálogo e de exercícios de
auto/posicionamento crítico e situado. A partir dos encontros do NuPAA comecei a
pesquisar e a pensar a opção decolonial (GOMEZ, MIGNOLO, 2012; MIGNOLO,
2007, 2011; QUIJANO, 1992, 2005), o que influenciou profundamente a minha
prática artística, provocando-me a ter mais consciência sobre a minha própria
colonialidade bem como do meio no qual a minha arte se insere e/ou é inserida.

Figura 10 – Matheus Meireles. Frame do vídeo da performance Emissões: tentando


estabelecer contato. 2017.

Imagem: Deep Alpa. Fonte: Acervo Pessoal.


25

Emissões (Figura 10) foi um trabalho realizado no evento Ponto de Origem,


realizado pelo NuPAA no Evoé Café, em 2017. Compreendo este trabalho como
‘composição espacial’ no qual quis experimentar performaticamente a ruptura da
normalidade a partir da ação artística. Busquei usar aparelhos tecnológicos ruidosos
para mediar minha relação e interação com as pessoas do lugar, fazendo uma
alusão às tecnologias como mediadoras do contato e como ferramentas de poder.
Assim, a ideia era expandir a presença da minha consciência por meio do uso dos
objetos tecnológicos, os quais me conectaram a um pensamento permeado por
elementos híbridos e pelo imaginário ciborgue, questionando às pessoas se elas
eram humanas ou conseguiriam identificar um. No interesse de discutir consciência
no mundo atual cada vez mais mediado pelas tecnologias e modos de ser e agir,
totalmente aberto aos devires que esta experiência podiam me proporcionar.
Nesta época de experiências com o NuPAA, estava a frequentar também a
disciplina Laboratório de Produção Artística 2, orientada pelo artista e professor
Glayson Arcanjo que, dentre várias coisas, marcou meu percurso ao me inspirar a
perceber a potência do processo artístico. Foi a partir daí que aprofundei ainda mais
as reflexões sobre o meu percurso criativo e interesses que alimentavam os
processos da criação. Continuei a olhar para os trabalhos em retrospecto para
compreender o que eu tinha produzido ao longo da minha trajetória no curso Artes
Visuais Bacharelado, e para além dele. Tal processo se expandiu tanto que comecei
a chamá-lo de Arqueologia Pessoal.
Comecei a rever tudo: as coisas que fiz, minhas escolhas e ações mais
marcantes, todas as coisas que possuía e guardava à época, os trabalhos artísticos
que criei, interesses comuns, a forma com a qual geralmente me relacionava e todo
e qualquer outro aspecto, desde o mais sutil, que me possibilitasse aprimorar meus
processos de autoconhecimento. Foi um momento reflexivo profundo em que
observei tudo o que construí bem como as mudanças entalhadas pelo tempo e seu
impacto na minha subjetividade. Este olhar de arqueólogo que encontra as coisas e
as marcas de si proporcionou um distanciamento necessário para poder lançar
olhares outros para mim mesmo e para os meus trabalhos pessoais. Passei a
entender meus trabalhos como artefatos, como rastros dos processos e
aprendizados pessoais como ser consciente nessa realidade.
26

Como avaliação final desta disciplina, deveríamos montar mesas de processo


inspiradas na exposição Sinapses - O pensamento do artista5, com curadoria do
artista e pesquisador Hugo Fortes e que aconteceu em 2017. Desta forma, o objetivo
foi articular aspectos, arquivos, documentos, objetos e produções que pudessem
demonstrar o pensamento e o percurso do nosso trabalho artístico.
Ao fazer uma ligação com a ideia convencional de laboratório, comecei a
coletar amostras de elementos que de alguma forma pudessem se relacionar com a
minha pesquisa artística. Isso foi sendo ampliado progressivamente e, com o tempo,
passei a entender a ação de coleta de amostras como parte da poética do meu
trabalho, pois estava a recolher itens ‘cósmicos’ desde a região e realidade que
estava inserido, reconhecendo que todo item é cósmico, pois não existimos fora
deste. O trabalho Laboratório (Figura 11) nasceu neste contexto, momento em que
juntei diversos artefatos e amostras do meu cotidiano visando a uma investigação
criativa.

Figura 11 – Matheus Meireles. Laboratório (detalhe). Mesa de processos. 2017.

Fonte: Acervo pessoal.

Neste trabalho, recolhi amostras de botânica, animais, minerais, elementos


químicos e até de seres humanos, inclusive de mim mesmo (Figura 12). A partir de
5 Para mais informações, acessar o release da exposição disponível em:
<http://www3.eca.usp.br/noticias/exposi-o-na-biblioteca-brasiliana-tem-curadoria-de-hugo-fortes>.
27

uma prática que busca se apropriar e recontextualizar métodos e objetos que são
socialmente entendidos como científicos, busquei subverter seus princípios e
finalidades por meio de uma prática artística experimental que trouxesse razão e
sensibilidade para o mesmo território do saber e do conhecer. De forma a recuperar
uma compreensão do todo, já que a cisão entre razão e emoção, objetividade e
subjetividade, parece ter trazido problemas sérios à humanidade, como demonstra
László (2008):
Essa divisão nas visões de mundo dos principais cientistas tem
profundas raízes culturais. Ela reflete aquilo que o historiador da
civilização Richard Tarnas chamou de as “duas faces” da civilização
ocidental. Uma face é a do progresso, a outra a da queda. A face
mais familiar é o relato de uma longa e heroica jornada, que, partindo
de um mundo primitivo de ignorância sombria, sofrimento e limitação,
se dirige até o brilhante mundo moderno de conhecimento, liberdade
e bem-estar cada vez maiores, que se tornou possível graças ao
desenvolvimento sustentado da razão humana e, acima de tudo, do
conhecimento científico e da habilidade tecnológica. A outra face é a
história da queda da humanidade e de sua separação do seu estado
original de unicidade com a natureza e com o cosmos. Enquanto se
encontravam na condição primordial, os seres humanos tinham um
conhecimento instintivo da unidade sagrada e da profunda
interconectividade que mantinham com o mundo, mas, com a
ascendência da mente racional, ocorreu uma profunda cisão entre a
humanidade e o restante da realidade. O nadir desse
desenvolvimento se reflete na situação atual, de desastre ecológico,
desorientação moral e vazio espiritual (LASZLO, 2008, p. 9, grifos do
autor).

Figura 12 - Amostras anti-eugênicas. Tubos de ensaio com amostras pessoais de


sangue, esperma, saliva, cabelo, urina e DNA extraído. 2017.

Fonte: Acervo pessoal.


28

Embora aparentemente esse processo pareça constituir uma prática diferente


das propostas anteriores, acredito que a partir dele consegui experimentar a ideia de
cosmogonia utilizando outras perspectivas e demonstrando uma das fases mais
experimentais e subjetivas de todo o meu percurso artístico. Esse trabalho me fez
perceber que minha pesquisa apontava para mais uma questão importante no
campo das artes visuais: as relações entre arte e ciência. Ao perceber isso, várias
questões foram disparadas sobre os lugares que meus trabalhos artísticos estavam
a ocupar, em especial o científico e acadêmico, e sobre as experiências que eles
estavam a criar e ou dialogar. Assim, neste momento, passei a pesquisar um pouco
mais sobre a relação arte e ciência, porém de forma transdisciplinar e decolonial.

Figura 13 – Matheus Meireles. Sou de estrelas o pó. Fotoperformance e


manipulação digital. 2018.

Fonte: Acervo pessoal.

Mais recentemente criei o trabalho Sou de estrelas o pó (figura 13), que já


surge no contexto específico desta pesquisa e dá mais alguns indícios para a prática
29

que acabei desenvolvendo no Planetário da UFG, apresentada no capítulo 4 deste


trabalho. Mas antes disto, apresentarei as principais referências teóricas que me
ajudam a estruturar o pensamento a partir dos elementos que atravessam a minha
prática artística desdobrada até o momento e me auxiliaram na articulação de
minhas práticas atuais. Como mencionado anteriormente na introdução deste
trabalho, não pretendo esgotar o assunto neste Trabalho de Conclusão de Curso,
mesmo porque tenho consciência da imensidão dos assuntos aqui envolvidos.
Proponho-me, então, a esboçar um ponto de partida para uma articulação teórico-
prática em expansão.
30

3. COSMOVISÕES E DECOLONIALIDADE: PERSPECTIVAS

Neste capítulo, apresento o referencial teórico que me auxiliou na


investigação da cosmovisão contemporânea. Neste contexto, também aproveito para
refletir acerca dos lugares sociais nos quais eu e minha prática nos inserimos, em
especial o meio artístico e científico.
A cosmovisão aqui é entendida na perspectiva de Adélia Miglievich-Ribeiro
(2014) que, a partir do diálogo com autores pós-coloniais e decoloniais, aponta o
pensamento moderno e a colonialidade como fundamentação básica das visões de
mundo hegemônicas contemporâneas. Neste sentido, trago também algumas
perspectivas de autores que discutem a colonialidade e o projeto de modernidade
global, em especial Aníbal Quijano (1992; 2005), Walter Mignolo (2007; 2011) e
Boaventura Sousa Santos (2010). Ao fim, apresento algumas reflexões destes
autores sobre possíveis alternativas decoloniais emergentes à cosmovisão
hegemônica.

3.1. O ABISMO

O termo cosmovisão é um conceito amplo que, dentre muitos usos, pode


significar a perspectiva subjetiva de perceber e entender a realidade, também
conhecida como visão de mundo (MIGLIEVICH-RIBEIRO, 2014). E, embora seja
uma questão subjetiva, Adélia Miglievich-Ribeiro (2014) aponta que a cosmovisão
contemporânea foi homogeneizada globalmente nos parâmetros dos postulados
dispostos na modernidade, que são fundamentados na colonialidade, e traz à tona
suas principais características: o totalitarismo, a universalidade, o eurocentrismo e o
racionalismo. Portanto, ela estabelece diálogo com autores que se propõem a
pensar a colonialidade, a fim de identificar desafios éticos, políticos e
epistemológicos frente a essa realidade. Assim, faz-se necessário, então,
primeiramente entender melhor as raízes da colonialidade e o projeto de
modernidade para entender como se configura essa cosmovisão hegemônica.
Sobre colonialidade, em Quijano (1992), é possível compreender que este é
um aspecto duradouro e atual do colonialismo, que não acabou ao fim das colônias
com os processos de ‘independência’, isso porque o autor entende que a
colonialidade se estendeu pela modernidade de forma mais abstrata, indireta e até
31

mesmo interiorizada e naturalizada, entretanto, ainda bastante agressiva, e agora


mundialmente estabelecida, como o processo de um projeto que já dura mais de
cinco séculos (QUIJANO, 1992). Sobre este contexto, o autor afirma que:

A colonialidade, em consequência, é ainda o modo mais geral de


dominação no mundo atual, uma vez que o colonialismo, como ordem
político explícito, foi destruído. Ela não esgota, obviamente, as condições
nem as formas de exploração e dominação existentes entre as pessoas.
Mas não parou de ser, há 500 anos, seu marco principal. As relações
coloniais de períodos anteriores provavelmente não produziram as mesmas
sequelas e, sobretudo, não foram a pedra angular de nenhum poder global.
(QUIJANO, 1992, p. 4).

Miglievich-Ribeiro (2014) se baseia nas ideias de colonialidade de Quijano e


Mignolo como o pivô da modernidade e, assim, da globalização, que estabeleceu as
bases da compreensão e parâmetros de legitimação do que seria cultura,
epistemologia, política, economia, modos e meios aceitáveis de expressão,
comunicação e demais organizações e padrões sociais e da existência humana, em
termos práticos, a cosmovisão moderna. E apesar da ideia de pós-modernidade,
GÓMEZ e MIGNOLO (2012), sugerem que os principais paradigmas da
modernidade ainda não foram superados e persistem.
Mignolo (2011, p. 4) entende o princípio da modernidade “como uma
colonização dupla, do tempo e do espaço”. A colonização do tempo acontece a partir
do Renascimento e da Revolução Científica no ocidente, e estabelece os principais
ideais da modernidade, inclusive cria a noção de Pré-história, Antiguidade e Idade
Média, numa perspectiva desenvolvimentista que instaura “a lógica da colonialidade
ao colonizar seu próprio passado (e ao arquivá-lo como sua própria tradição)”
(MIGNOLO, 2011, p. 13) e se coloca “no presente inevitável da história e preparando
o terreno para a Europa se tornar o centro do espaço” (MIGNOLO, 2011, p. 13). A
colonização do espaço, e isso inclui os seres que nele vivem, partem desta mesma
lógica (MIGNOLO, 2011).
Quijano (1992; 2005) discute esse ideal ocidental com base no mito primário
da colonização, e ressalta o seu aspecto etnocêntrico, como no entendimento dos
colonizadores de se autoafirmarem o resultado evolutivo da civilização humana, que
começaria no estado de natureza (no qual eles situaram os povos colonizados) e
culminaria nos padrões europeus de civilização, num contexto que subjugava os
povos não europeus como naturalmente menos desenvolvidos, inferiores e
primitivos. Segundo Quijano (1992), desta forma os colonizadores estabeleceram
32

uma relação de superioridade que pretensiosamente afirmavam como uma questão


natural e até mesmo científica, e não como um resultado dos jogos de poder. Para
Mignolo essas questões-base da lógica da colonialidade se demonstram na retórica
da modernidade “nos termos de salvação, do progresso, do desenvolvimento, da
modernização e da democracia” (MIGNOLO, 2011, p. 8). Que, segundo o autor
(MIGNOLO, 2011, p. 2) transformou “um mundo policêntrico e não capitalista antes
de 1500 para uma ordem mundial monocêntrica e capitalista de 1500 a 2000”, o que
ele se refere como “o advento da modernidade” (MIGNOLO, 2011, p. 3).
Entretanto, a implementação deste ‘projeto de modernidade’ foi
historicamente violenta, dominadora, exploratória e impositiva (QUIJANO, 1992) e
gerou traumas profundos ao qual Mignolo (2007), se refere como “feridas coloniais”6.
Isto porque, tanto para Quijano (1992) quanto para Mignolo (2011), a colonização
aconteceu para além do colonialismo territorial, autoritário e econômico, mas
também através da colonização da cultura, do conhecimento e da subjetividade, e
assim, de indivíduos (humanos e não humanos) e da natureza como um todo.
Dominações por meios que Mignolo (2011) se refere como geopolítica e biopolítica
(FOUCALT apud MIGNOLO, 2011). Quijano sugere que a colonialidade se
desenvolveu também como “uma colonização do imaginário dos dominados. Isto é,
atua na interioridade desse imaginário. Em alguma medida, é parte de si”
(QUIJANO, 1992, p. 2).
Para Quijano (1992, p. 2) isso teve início na repressão sistemática dos
“modos de conhecer, de produzir conhecimento, de produzir perspectivas, imagens,
[...] símbolos, modos de significação; [...] recursos, padrões e instrumentos de
expressão formalizada e objetivada, intelectual ou visual”. Seguido pela imposição e
sobreposição gradual e universal do uso dos modos e padrões de conhecer e se
expressar eurocentrados dos colonizadores, o que os serviu como meio de controle
social e cultural (QUIJANO, 1992). Neste contexto, além da imposição à força, com o
tempo, surge a sedução (QUIJANO, 1992). Visto que “os colonizadores impuseram
uma imagem mistificada de seus próprios padrões de produção de conhecimentos e
significações” (QUIJANO, 1992, p. 2), de forma a criar uma espécie de sentimento

6 Para Mignolo a ferida colonial é “el sentimiento de inferioridad impuesto en los seres humanos que
no encajan en el modelo predeterminado por los relatos euroamericanos” (Mignolo, 2007, p. 17), “y la
herida colonial, sea física o psicológicamente es una consecuencia de racismo, el discurso
hegemónico que pone en cuestión la humanidad de todos los que no pertenecen al mismo locus de
enunciación (y a la misma geopolítica del conocimiento) de quienes créan los parámetros de
clasificación y se otorgan a sí mismos el derecho de clasificar” (Mignolo, 2007, p. 34).
33

de desejo desta imagem idealizada nos povos colonizados, e assim, “a europeização


cultural se converteu em uma aspiração [...] passou a ser um modelo cultural
universal” (QUIJANO, 1992, p. 2), e dificilmente outras culturas poderiam coexistir e
ou se reproduzir fora deste contexto. Isso porque, como afirma Quijano:

“Não se trata de mudanças dentro do mundo conhecido, que não alteram


senão alguns de seus traços. Trata-se da mudança do mundo como tal.
Este é, sem dúvida, o elemento básico da nova subjetividade: a percepção
da mudança histórica. [...] as mudanças ocorrem em todos os âmbitos da
existência social dos povos, e portanto, de seus membros individuais, tanto
na dimensão material como na dimensão subjetiva dessas relações”. (2005,
p. 124)

Ao passo que se consolidava esse colonialismo eurocentrado, estabeleceu-se


o complexo estrutural da modernidade que foi exportado para o resto do mundo
(QUIJANO, 1992; MIGNOLO, 2011). De modo que a colonialidade passou a se
expressar globalmente e por diversas vias de poder complexas e interconectadas,
que Quijano chama de “matriz colonial de poder” (MIGNOLO, 2011, p. 5), uma
articulação de poderes e interesses que estabelecem padrões, controles e
autoridade sobre diversas esferas da ordem social, dos indivíduos e suas
subjetividades (QUIJANO, 1992; MIGNOLO, 2011). E isso compreende “um piso
básico de práticas sociais comuns para todo o mundo, e uma esfera intersubjetiva
que existe e atua como esfera central de orientação valorativa do conjunto”
(QUIJANO, 2005, p. 124). De forma que a globalização e a ordem social mundial são
resultados atuais do processo dessa história de poder colonial, que mantém seu viés
etnocêntrico que privilegia os indivíduos e as culturas que as construíram
(MIGNOLO 2011; QUIJANO, 1992, 2005).
No entendimento de Quijano, o “eurocentrismo é uma questão não de
geografia, mas de epistemologia” (QUIJANO apud MIGNOLO, 2011, p.12). Desta
forma a epistemologia vigente se relaciona diretamente com a colonialidade pela sua
função estrutural de formalização dos paradigmas da cultura e conhecimento em
geral da atualidade, e assim, da própria matriz colonial de poder da qual faz parte
(QUIJANO, 1992; MIGNOLO, 2011). E essa retórica moderna do conhecimento é
marcada pela lógica colonial eurocêntrica, totalitária, cientificista, individualista,
competitiva, racionalista dentre outras mazelas adjacentes da colonialidade, que é
via direta de formação dos sujeitos e das suas subjetividades e, portanto, das suas
cosmovisões (MIGLIEVICH-RIBEIRO, 2014). De forma que o problema está não em
34

todo e qualquer pensamento ocidental, e sim na sua compreensão hegemônica,


etnocêntrica colonial e totalitarista, que gerou “uma visão reducionista da realidade”
(QUIJANO, 1992, p. 7).
Mignolo (2011) se refere ao conjunto de saberes, conhecimentos e
epistemologias ocidentais colonialmente impostas como cosmologia ocidental, que
por meio das relações de poder se tornou a perspectiva mediadora ontológica da
realidade e da subjetividade, sendo determinante nos modos que os indivíduos
passaram a ver, ser e se relacionar na e com a realidade (MIGNOLO, 2011), algo
como a ideia de cosmovisão. Essa cosmologia ou cosmovisão ocidental seria base e
também fruto dos processos de colonialidade do ser, conhecer, pensar e sentir
(GÓMEZ e MIGNOLO, 2011), na lógica da matriz colonial de poder capitalista e
eurocêntrico (QUIJANO, 2005). Neste sentido, foi estabelecido estruturalmente um
sistema de “hierarquia epistêmica que privilegiava o conhecimento e a cosmologia
ocidentais em detrimento dos conhecimentos e das cosmologias não ocidentais”
(MIGNOLO, 2011, p. 11). Isso porque essa cosmologia ocidental não sustenta
apenas o conhecimento, “mas também as categorias em que o pensamento é
baseado” (MIGNOLO, 2005, p. 12).
Portanto, Mignolo (2005, p. 8) percebe a cosmologia ocidental como um
sistema narrativo que configura “supostamente realidades representadas no domínio
do conhecimento, e o conhecimento era a ferramenta básica e poderosa usada tanto
para controlar a autoridade quanto para ser transferida como mercadoria”. No
sentido que, para Mignolo, foram sendo estabelecidos pacotes de conhecimentos
prontos, oficiais e amparados pelo monopólio da verdade, que passou a funcionar
como uma mercadoria a ser exportada para a ‘modernização’ dos indivíduos de
saberes não modernos, compreendidos como todos os saberes não-ocidentais. Isto
transformou a relação cognitiva com o conhecimento, que passou a ser idealizado
como um ‘pensamento tecnológico’, lógico, objetivo e racionalista, por razões
produtivistas (MIGNOLO, 2011; QUIJANO 1992).
E neste sentido, Quijano (1992) percebe o racionalismo como um dos
fundamentos principais dessa lógica, que entende o conhecimento e as relações
entre os indivíduos e a realidade de uma forma dual de sujeito-objeto nos ideais
cartesianos do “sujeito isolado, [que] se constitui em si e diante de si mesmo, em seu
discurso e em sua capacidade de reflexão” (QUIJANO, 1992, p. 4) separado do
objeto, a não-razão, que pode abarcar objetos, ou objetificações, como de corpos,
35

de espaços, da natureza, de conhecimentos em geral. Isso aparece na retórica do


sujeito produtor de conhecimento, que seria baseado num individualismo que nega
“a intersubjetividade e a totalidade social como sedes de produção de todo o
conhecimento” (QUIJANO, 1992, p. 5) e em seus ideais frágeis de originalidade,
identidade, objetividade e impessoalidade do sujeito no processo de produção do
conhecimento (QUIJANO, 1992). Neste ponto, Mignolo (2011) ressalta como esse
entendimento fez com que os indivíduos passassem a se ver como seres externos à
natureza, que serviria para ser explorada, descoberta e dominada. E isto pode ser
compreendido bem como uma das perspectivas que influenciam a relação dos
sujeitos com todo o universo, num entendimento ampliado de natureza.
Esses ideais se expressam por todos os campos do conhecimento, inclusive
pelos saberes, subjetividades, crenças, culturas, manifestações, artes, experiências
e demais esferas constituintes da cosmovisão humana (MIGNOLO, 2011; GÓMEZ e
MIGNOLO, 2012), entretanto a estrutura colonial favorece os aspectos objetivos e
eurocêntricos dessas esferas, de forma a favorecer a cosmologia ocidental, por ser
aspecto constituinte de sua epistemologia e ontologia (QUIJANO, 1992; MIGNOLO,
2011). É como se a cosmologia ocidental agisse pelo conhecimento expandido,
usando-o para privilegiar seu conhecimento reduzido e etnocentrado, na pretensão
de se dizer e fazer universal (QUIJANO, 1992; MIGNOLO, 2011; GÓMEZ e
MIGNOLO, 2012). Mignolo (2011, p. 9) chama isso de teopolítica do conhecimento,
pois, para ele, “o secularismo deslocou o Deus como fiador do conhecimento,
colocando o homem e a razão no lugar de Deus, e centralizou o ego”, cuja
preocupação com o controle da alma passou para o controle do corpo. E de certa
forma, a ênfase da geopolítica e biopolítica da epistemologia era ocultada pela
ênfase ora na crença cristã, ora na razão (MIGNOLO, 2011).
No que tange as estéticas e artes, nos 500 anos de história colonial ocidental,
seus entendimentos foram estruturados nos moldes do Renascimento e da História
da Arte Ocidental, impondo a arte e cultura ocidentais como espelho para o restante
do mundo (GÓMEZ e MIGNOLO, 2012). Essas ferramentas passaram a ser usadas
como reguladores sociais, ao estabelecer padrões e monopólios do que seria
considerado ou não arte, estético e até mesmo cultural. E em conjunto com
instituições como museus, galerias, escolas, críticas, revistas e demais entidades do
circuito da arte, estabelecem poder e legitimam padrões de expressividade, sentidos,
sensibilidades, experiências e assim, influenciam diretamente na formação de
36

indivíduos e subjetividades nos moldes da cosmovisão ocidental (GÓMEZ e


MIGNOLO, 2012). O próprio conceito de estética, que vem do termo aisthesis
etimologicamente ligado às ideias de sentido, percepção, sensação, sensibilidade,
foi suprimido pela ideia moderna de padrões de belo e sublime, estabelecendo assim
alguns padrões de fundamentos e entendimentos sobre arte e expressividade que
persistem e se tornaram hegemônicos (GÓMEZ e MIGNOLO, 2012).
Mais do que colonizadas, essas esferas culturais, artísticas, estéticas e
subjetivas foram também desprestigiadas na hierarquia dos saberes, dominado pela
retórica científica (MASINI, 1996). Segundo Colombo (1994), após o Renascimento
Cultural e durante a Revolução Científica ocidental no século XVII, a separação
entre arte e ciência se intensificou e se cristalizou com a crescente supervalorização
das ciências (o que seriam aqui as filosofias naturais e tecnologias). Assim, a arte
teria sido distanciada deste posto como resultado de um processo de desassociação
entre a cultura humanística e a cultura científica e tecnológica (COLOMBO, 1994).
Blassnigg vê isso como:

A longa tradição na separação dualista entre a racionalidade como um


processo de ordem superior e os sentidos físicos e a mente do corpo como
os processos menores relacionados ao instinto deixou seus traços e ainda
prevalece. [...] uma presunçosa oposição binária entre o racional e o
irracional, o inteligível e o sensível, ou o dionisíaco e o apolíneo.
(BLASSNIGG, 2015, não paginado).

Apesar disso, ambas – arte e ciência – fazem parte do mesmo processo


estrutural de poder e são vias do mantimento de controle epistemológico e político
da matriz colonial. Somando nos controles da natureza, do corpo, da razão, da
subjetividade, e da cosmovisão (QUIJANO, 2005; MIGNOLO, 2011). Neste sentido,
Santos (2010) entende essa cosmovisão como um pensamento abissal.
O pensamento abissal subentende uma espécie de abismo que separa
simbolicamente a epistemologia, de um lado7 estariam os saberes científicos,
culturais, espirituais, econômicos e demais aspectos da ordem social em
consonância com a colonialidade hegemônica socialmente privilegiada (SANTOS,

7 Percebo que Santos (2010), um pensador português, se reconhece do lado hegemônico da linha
abissal: o que ele chama de lado de cá, se referindo ao outro lado ‘excluído e invisibilizado’ como o
lado de lá. Embora reconheça que todos estamos introduzidos na lógica do pensar do lado
hegemônico (o lado de cá de Santos), busco falar mais a partir do lado de lá, que para mim é meu
lado de cá, considerando meu local de enunciação e vivência. Para evitar um posicionamento
essencialista e maiores confusões com traduções de lados, usarei os termos ‘de um lado’ (lado de cá
de Santos) e ‘do outro lado’ (lado de lá de Santos).
37

2010). Do outro lado do abismo estariam os saberes populares, tradicionais e de


povos e grupos historicamente marginalizados (SANTOS, 2010). Numa lógica em
que o saber de um lado é hegemônico e age pela matriz de poder e endossa a
invisibilização e exclusão radical do outro lado marginalizado enquanto realidade,
desconsiderando-o como relevante ou compreensível (SANTOS, 2010). Desta
forma, o autor entende que:

[...] tensões entre a ciência, a filosofia e a teologia [e a arte] têm sido


sempre altamente visíveis, mas como defendo, todas elas têm lugar deste
lado da linha. A sua visibilidade assenta na invisibilidade de formas de
conhecimento que não se encaixam em nenhuma destas formas de
conhecer. Refiro-me aos conhecimentos populares, leigos, plebeus,
camponeses ou indígenas do outro lado da linha. Eles desaparecem como
conhecimentos relevantes ou comensuráveis por se encontrarem para além
do universo do verdadeiro e do falso [...] O outro lado da linha compreende
uma vasta gama de experiências desperdiçadas, tornadas invisíveis, tal
como os seus autores. (SANTOS, 2010, p. 33-34, grifo meu).

Portanto, Santos defende que “a injustiça social está, de certa forma,


intimamente ligada à injustiça cognitiva global, a luta pela justiça social global deve,
por isso, ser também uma luta pela justiça cognitiva global” (2010, p. 40).

3.2. O SALTO

Antes de prosseguir é necessário ressaltar que as questões levantadas no


tópico anterior não pretendem acusar, desqualificar ou recusar todo e qualquer
pensamento ocidental e as contribuições de culturas e pensadores desde dentro da
matriz, isso seria desconsiderar todo o conhecimento contemporâneo, pois estamos
introduzidos e produzindo a partir da matriz colonial (MIGLIEVICH-RIBEIRO, 2014).
Pelo contrário, a ideia é refletir sobre o monopólio, a totalidade e as incongruências
desse contexto, levantando debates sobre mazelas, barbáries, exclusões,
explorações, dominações e violências adjacentes deste sistema (GÓMEZ e
MIGNOLO, 2012), que se demonstram como as próprias bases pelas quais a
colonialidade se firmou (MIGLIEVICH-RIBEIRO, 2014). Se faz urgente pensar tais
questões, ainda mais se considerarmos que o estilo de vida que levamos coloca em
risco até mesmo a continuidade da existência da espécie humana e da vida na Terra
(GÓMEZ e MIGNOLO, 2012).
38

Neste sentido, face à persistência da colonialidade, surgiram os estudos pós-


coloniais e decoloniais, visto a necessidade do contínuo processo de
descolonização. Esse processo é entendido por Mignolo e Gómez (2012),
principalmente, como uma espécie de descolonização epistemológica e cultural. A
decolonialidade não segue os ideais essencialistas, determinados e fechados em
suas próprias argumentações teóricas (GÓMEZ e MIGNOLO, 2012). Muito menos
pretendo indicar a articulação de uma epistemologia marginal para se sobrepor à
epistemologia dominante (SANTOS, 2010), pois isso seria compactuar com a
mesma lógica da colonialidade. A decolonialidade seria mais um conjunto de opções
em aberto (MIGNOLO, 2011), que entende a necessidade de libertação e
florescimento de espaços, culturas, saberes e expressões diversos, num aspecto de
co-presença pluricultural, inclusivo e tolerante, como a ideia de ecologia de saberes,
de Boaventura Sousa Santos (2010).
E para isso seria necessário não apenas criar alternativas (já pautadas na
lógica abissal), mas sim alternativas às alternativas, um novo pensamento pós-
abissal (SANTOS, 2010). Um pensamento que considera a “ideia de que a
diversidade do mundo é inesgotável e que essa diversidade continua desprovida de
uma epistemologia adequada” (SANTOS, 2010, p. 51), e ressalta a necessidade de
pensar o “agir através do pensar e o pensar através do agir, trocando e deslocando
a distinção entre a teoria e a prática” (MIGNOLO, 2011, p. 13). Como podemos
perceber, é urgente a emergência de perspectivas e pensamentos dos indivíduos
historicamente silenciados e colonizados (SANTOS, 2010). Neste sentido, é
necessário ressaltar que:

É cada vez mais importante que todas as possibilidades sejam exploradas,


em favor de obtermos um entendimento da complexidade da sociedade e do
mundo em geral. Isso significa usar os insights de todos os artistas e
pessoas criativas, incluindo mulheres - e não apenas a opinião daqueles
que são reconhecidos tradicionalmente como quem desempenham funções
de liderança social (como homens em geral, cientistas, políticos e outros no
poder). Em outras palavras, precisamos dos insights daqueles que nos
últimos 200 anos estiveram na periferia da tomada de decisões na geração
da sociedade. (MASINI, 1996, p. 20, tradução nossa). 8

8 Citação original: “It’s increasingly important that all possibilities be explored in order to gain an
understanding of the complexity of society and the world in general. This means using the insights of
artists and creative people, including women - and not just the opinions of those traditionally
acknowledge as playing a leading role in society (i.e. men in general, scientists, politicians and others
in power). In other words, we need the insights of those who over the last 200 years have been on the
periphery of the decision-making and gearing of society.” (MASINI, 1996, p. 20).
39

Mignolo (2011) reconhece que não há fórmulas ou desenhos universais de


como possibilitar essas potências decoloniais. Que, inclusive, na visão de Santos
(2010) exige um enorme exercício de descentramento e esforços coletivos, pois
demanda a ascensão dos sujeitos e suas particularidades (GÓMEZ e MIGNOLO,
2012). Para tanto, muitos dos autores discutidos (QUIJANO, 1992; GÓMEZ e
MIGNOLO 2012; SANTOS, 2010) apontam a necessidade de encarar as
colonialidades nas quais estamos introduzidos e cultivando, inclusive, a nossa
colonialidade interna. E assim, olhar na face da colonialidade e se reposicionar
frente a essa realidade e, a partir daí, articular re-existências possíveis (GÓMEZ e
MIGNOLO, 2012). De forma a não desconsiderar radicalmente, mas buscar
exercícios de desvincularizar-se dos regimes, culturas, epistemologias e padrões
existenciais historicamente impostos e dominantes, abrindo espaço para articular
modos potentes de “ser, sentir, pensar e fazer [...], enfrentando em algumas de suas
caras as dimensões da matriz colonial de poder” (GÓMEZ e MIGNOLO, 2012, p. 17,
tradução nossa)9, agindo mesmo que de dentro da matriz colonial de poder como:

[...] um vetor, uma linha de força com direção, uma rebarba, um desvio, uma
dissonância, um alerta ou um escape que se dá nos interstícios e margens
da modernidade, nos seus espaços de poder e controle, nas suas
instituições, nos seus modos de produções de sujeitos e subjetividades.
(MIGNOLO e GÓMEZ, 2012, p. 18, nossa tradução).10

Gostaria de pensar sobre a colonialidade em seu aspecto amplo e complexo,


em suas diversas esferas estruturais específicas da cosmovisão contemporânea,
uma vez que no campo da nova cosmologia “a nova física, a nova biologia e as
novas pesquisas sobre a consciência reconhecem que a vida e a mente são
elementos integrantes do mundo, e não subprodutos acidentais” (LASZLO, 2008, p.
10). Levando em consideração que para GÓMEZ e MIGNOLO (2012, p.12) as
estéticas decoloniais são “operações com elementos simbólicos” que buscam
desobedecer a lógica epistêmica da arte e estética eurocentradas, percebo em
minha prática artística um viés decolonial quando procuro, por meio da arte, pensar
novas cosmologias. Bem como me identifico com a inquietação destas estéticas

9 Citação original: “un modo de ser, sentir, pensar, y hacer [...], enfrentando en algunas de sus caras o
dimensiones la matriz colonial del poder.” (GÓMEZ e MIGNOLO, 2012, p. 17).
10 Citação original: “lo decolonial como un vector, una línea de fuerza con direccionalidad, una rebaba,

un desvío, una disonancia, una alerta o un escape que se da en los intersticios y márgenes de la
modernidad, en sus espacios de poder y control, en sus instituciones, en sus modos de producción de
sujetos y sujeciones.” (GÓMEZ e MIGNOLO, 2012, p.18)
40

decoloniais, que buscar “descolonizar os conceitos de arte e estética para libertar a


subjetividade [...] trabalhando no plano de descolonização do conhecer, do sentir, do
pensar e do ser” (GÓMEZ e MIGNOLO, 2012, p.6, tradução nossa).11 Assim, os
autores (GÓMEZ e MIGNOLO, 2012) entendem a estética decolonial como um
pensar e fazer que buscam se posicionar frente às percepções da colonialidade,
objetivando a libertação dos seres humanos das amarras coloniais, e não apenas
pensando catarses, refinação do gosto e padrões estéticos visuais no entendimento
ocidental hegemônico. Neste sentido eles afirmam que:

As estéticas decoloniais são então - em sua pluralidade, dentro e fora do


denominado campo da arte, como conjunto heterogêneo de práticas
capazes de realizar suspensões da hegemonia e totalização do capitalismo
- formas de fazer visíveis, audíveis e perceptíveis tanto as lutas de
resistência ao poder estabelecendo como compromisso e a aspiração de
criar modos de substituição da hegemonia em cada um das dimensões da
modernidade e sua cara mais obscura, a colonialidade. [...] uma proposta
que pretende instalar uma nova conversação para falar de nossas
experiências concretas de estar sendo no mundo contemporâneo, em que
se excutem e atendam outras vozes [...]. (GÓMEZ, MIGNOLO, 2012, p. 16,
tradução nossa.12

Apesar de reconhecer a necessidade de pensar outros lugares, possibilidades


e fazeres artísticos, esse posicionamento não busca ignorar e negar os espaços e
instituições convencionais da arte, mas ao contrário, reconhece a importância de agir
e atuar também a partir e dentro deles (GÓMEZ e MIGNOLO, 2012). O
entendimento decolonial da estética também ressalta que esta vivência artística não
deve ser entendida como uma possibilidade restringida apenas a artistas e
instituições de arte, e sim, busca se expandir para abraçar as possibilidades do
sentir e pensar dos seres humanos, e seus processos criativos de modos de ser e
existir (GÓMEZ e MIGNOLO, 2012). Para tanto, faz-se necessário descolonizar,
antes de tudo, esses conceitos, entendimentos e espaços da arte e estética,
ampliando, apropriando e ressignificando-os (GÓMEZ e MIGNOLO, 2012). E, assim

11 Citação original: “descolonizar los conceptos cómplices de arte y estética para liberar la subjetividad
[...] trabajando en el plano de la descolonización del conocer, del sentir, del pensar y del ser.”
(GÓMEZ e MIGNOLO, 2012, p.6)
12 Citação original: “Las estéticas decoloniales son entonces —en su pluralidad, dentro y fuera del

denominado campo del arte, como conjunto heterogéneo de prácticas capaces de realizar
suspensiones a la hegemonía y totalización del capitalismo— formas de hacer visibles, audibles y
perceptibles tanto las luchas de resistencia al poder establecido como el compromiso y la aspiración
de crear modos de sustitución de la hegemonía en cada una de las dimensiones de la modernidad y
su cara oscura, la colonialidad. [...] una propuesta que pretende instalar los términos de una nueva
conversación para hablar de nuestras experiencias concretas del estar siendo en el mundo
contemporáneo, en la que se escuchen y atiendan otras voces [...]” (GÓMEZ e MIGNOLO, 2012,
p.16).
41

favorecer a proliferação de várias estéticas plurais e diversas, inclusive as até então


marginalizadas, inferiorizadas, excluídas e invisibilizadas, florescendo outras
subjetividades e expressividades, transgredindo os fundamentos hegemônicos de
comportamento artístico e estético (MIGNOLO e GÓMEZ, 2012). Desta forma, seria
um ponto que atinge diretamente a formação tanto intrapessoal como interpessoal,
gerando potência para desencadear processos decoloniais não apenas nos âmbitos
da arte e ciência, mas também as demais esferas sociais.
Assim, voltando ao meu trabalho artístico, penso que a opção decolonial e a
compreensão da importância da decolonialidade da estética, auxiliam a pensar-me
como um artista situado num contexto atual que é também um momento de novas
proposições e visões sobre teorias que envolvem o fazer artístico e o pensar sobre o
universo e, assim, a pesquisa e construção de saberes. Estas compreensões
atentam para a necessidade de pensar desde perspectivas pluriculturais,
transdisciplinares, descentralizantes e inclusivas, considerando a necessidade
histórica de diversificar e ampliar os discursos, representatividades e métodos de
construção de saberes. Bem como pode favorecer reposicionamentos frente a
crescente complexidade das relações humanas, da natureza e das descobertas
atuais. Neste sentido, para László (2008), uma das principais características de uma
possível nova visão que está a emergir nas novas ciências, “vindo à tona na física e
na cosmologia, nas ciências biológicas e no novo campo das pesquisas sobre a
consciência” (LASZLO, 2008, p. 10), é a seguinte:

[...] a descoberta revolucionária segundo a qual nas raízes da realidade não


há apenas matéria e energia, mas também um fator mais sutil e igualmente
fundamental, um fator que podemos descrever melhor como informação
ativa e efetiva: “in-formação”. A in-formação, eu afirmo, liga todas as coisas
no universo, tanto os átomos como as galáxias, tanto os organismos como
as mentes. Essa descoberta transforma o conceito fragmentado de mundo,
que impera nas ciências convencionais, numa visão de mundo integral,
holística. Ela abre caminho para a elaboração de uma teoria que tem sido
muito discutida, mas que até há pouco tempo não foi efetivamente
realizada: uma teoria integral não apenas de um único tipo de coisa, mas de
todos os tipos — uma teoria integral de tudo. Uma teoria integral de tudo
nos aproximaria do entendimento da verdadeira natureza de todas as coisas
que existem e evoluem no espaço e no tempo, sejam elas átomos ou
galáxias ou camundongos e homens. Ela nos proporciona uma visão de nós
mesmos e do mundo que é abrangente e, no entanto, científica; uma visão
de que precisamos muito nestes tempos de mudança acelerada e
desorientação cada vez maior. (LASZLO, 2008, p. 10).
42

4. Para além do universo observável

Neste capítulo, apresento um pouco do percurso prático que se deu a partir


das minhas investigações artísticas em cosmovisão e decolonialidade. Este
processo me lançou a caminhos de conhecer novas possibilidades de atuar como
artista e estabelecer experiências cotidianas que possivelmente se posicionassem
de forma crítica e tensionadora aos problemas da sociedade colonial que minha
prática e escolhas pudessem sustentar ou corresponder.
A partir disso, busquei me inserir em locais não convencionais para atuação e
pesquisa artística, de forma a estabelecer relações transdisciplinares. Esta busca me
levou a um estágio no Planetário Professor Juan Bernardino Marques Barrio -
Universidade Federal de Goiás (Planetário da UFG)13, que com o tempo foi se
configurando como uma residência artística. Esta residência se tornou uma forma de
experimentar na prática as principais questões desta pesquisa que vem sendo
contada. Deste modo, relatarei um pouco desta experiência desde suas origens
inesperadas até a produção artística que surgiu deste encontro e suas possíveis
perspectivas de futuros.

4.1. EM BUSCA DE OUTROS ESPAÇOS E EXPERIÊNCIAS

Durante esta pesquisa, precisava também executar meu estágio curricular


obrigatório, como uma das condições para conclusão de curso. No contexto já
citado, busquei um local para fora do circuito artístico tradicional, mas que ainda
assim se relacionasse poética e conceitualmente com a minha pesquisa artística.
Neste sentido, escolhi o Planetário da UFG. Isso porque percebi que o Planetário me
possibilitaria uma experiência transdisciplinar e também se conectaria com os
aspectos principais dos meus trabalhos e pesquisas.
Percebo os planetários como espaços potentes de formação cultural e
divulgação científica. E, dentre várias atividades de pesquisa, ensino e extensão,
são socialmente bastante reconhecidos pela apresentação das sessões educativas.
Essas sessões podem ser entendidas como ambientações audiovisuais e imersivas,

13 Para mais informações sobre o Planetário da UFG, acessar: < https://planetario.ufg.br/>.


43

com finalidades públicas de divulgação científica, que se assemelham a espetáculos


e tem por objetivo apresentar conceitos de astronomia e simulações de corpos
celestes e fenômenos cósmicos (ALMEIDA et al., 2010; KANTOR, 2009).
Foi a partir de uma sessão que conheci o planetário, ainda na infância. E foi
após assistir uma sessão, mais recentemente, que tive a vontade de trabalhar no
Planetário da UFG. Além de me encantar com a experiência que era possível ali,
percebi as potências educacionais, culturais e artísticas das sessões, que também
se aproximavam dos meus interesses atuais de trabalho, como a geração de
experiências sensíveis e estéticas potencialmente decoloniais a partir do pensar
sobre o cosmos. Assim, penso que as sessões são um dos principais pontos de
intersecção entre minha prática artística e o Planetário. Também encontrei no
Planetário um lugar em que a administração e a equipe em geral se demonstram
muito receptivas e interessadas em promover diálogos transdisciplinares e
afetuosos, com olhares inspiradores sobre educação e ciência.
Neste contexto, comecei trabalhando na reprodução e reedição de algumas
sessões antigas. Experiência que foi bastante inspiradora e fértil para minha
pesquisa, o que me fez passar a ficar muito tempo no Planetário e começar a ver
este espaço em suas mais amplas possibilidades de criação e experimentação
artística. Assim, redescobri o Planetário como um lugar de pesquisa, um laboratório
extraordinário e temporário. Em conversas sobre estas experiências, o atual diretor
do Planetário da UFG, o professor Manoel Alves Rodrigues Junior, demonstrou cada
vez mais abertura e receptividade para que eu desenvolvesse também trabalhos
pessoais. Deste modo, fui compreendendo este estágio como uma espécie de
residência artística. Essa ideia foi muito bem recebida pela equipe do Planetário, e
então essa vontade de residência se transformou em uma oportunidade real.
Por meio dessa residência, busquei incluir nesta experiência minha
investigação relacionada à esta pesquisa, mas dialogando com as particularidades e
inspirações de trabalhar no Planetário. Esse contexto possibilitou vivenciar novas
experiências que acredito se aproximarem das opções decoloniais às quais tenho
me referido aqui e mantive em mente durante todo o processo. Pude atuar por meio
de minha prática artística em um espaço socialmente entendido como científico,
gerando pontes transdisciplinares e possibilidades de construção de conhecimentos
conjuntas. Pude pensar também as possibilidades de pesquisa no Planetário de uma
forma não convencional, em uma perspectiva artística e experimental.
44

Portanto, considerando todas essas questões, decidi trabalhar na criação de


uma sessão de planetário, pois entendi que este formato me permitiria expandir
minha prática artística em seus objetivos decoloniais e de translocução sobre
cosmovisões. Além disso, pude experimentar e conhecer profundamente o
Planetário, criando uma conexão criativa por intermédio da prática artística que
almeja ocupar seu principal espaço, e existir apenas neste espaço onde surgiu. Isso
também reforça o meu desejo de buscar ampliar minha atuação como artista e
experienciar maneiras outras de compartilhar meu trabalho e criar relações com
públicos, espaços e realidades intermediadas pelo Planetário, gerando um trabalho
público, não comercializável e sem fins lucrativos, em uma instituição pública que
permite acesso e comunicação social, além de um despertar para a arte e para os
desejos de conhecer o universo.

4.2. ESTABELECENDO CONTATO

O processo de trabalhar no Planetário e principalmente, na criação de uma


sessão, interpôs novos limiares para meu trabalho artístico e me colocou em um
campo novo com diversas descobertas. Portanto, em um primeiro momento,
interessei-me por conhecer mais sobre as especificidades dos formatos das sessões
e do próprio Planetário e suas possibilidades. Para tanto, busquei relacionar minhas
percepções e experiências pessoais enquanto artista residente com estudos do livro
Planetário da Universidade Federal de Goiás: uma história de vida (ALMEIDA et al.,
2010) e do artigo Aspectos emocionais nas sessões de planetário (KANTOR, 2009).

4.2.1. As sessões de planetário

As sessões, também chamadas de programas, são uma das principais


atividades dos planetários (ALMEIDA et. al, 2010; KANTOR, 2009). Neste sentido, o
projetor óptico-eletro-mecânico (figura 14) responsável pela projeção dessas
sessões é entendido como o coração dos planetários (RATICLIFFE apud KANTOR,
2009), e é inclusive chamado por si só de planetário (ALMEIDA et al., 2010)14. Neste

14Mas para fins de distinção com a ideia de planetário como espaço físico, neste trabalho optei por
me referir a tal projetor como projetor de planetário ou projetor central, pois ele fica posicionado no
centro da cúpula.
45

sentido, a maior parte dos planetários, do Brasil e do mundo, focam na atividade de


extensão por meio das sessões e são poucos os lugares que as associam com a
pesquisa e ensino, como no caso do Planetário da UFG (ALMEIDA et al., 2010). O
que demonstra a importância das sessões para os planetários, mas também uma
visão reduzida de muitos planetários de suas outras capacidades educacionais
(ALMEIDA et al., 2010).

Figura 14 – Projetor central e projeções de constelações.

Fonte: Site do Planetário da UFG. Disponível em: <https://planetario.ufg.br/n/18055-conheca-o-


planetario>.

A própria história arquitetônica do Planetário da UFG reflete um pouco da


importância central do projetor e das sessões, isto porque este planetário só surgiu
por conta do recebimento de um projetor de planetário pela UFG do Governo
Federal, no início de 1970 (ALMEIDA et al., 2010). A partir daí, a Prefeitura de
Goiânia, em parceria com a UFG, construiu em 1970 o edifício do atual Planetário,
que era constituído apenas pela cúpula para projeções (figura 15), o que também
corresponde ao pouco interesse em gastos e entendimento limitado do governo na
época (ALMEIDA, et al., 2010). Foi apenas por problemas estruturais da cúpula, que
46

até mesmo comprometeram o funcionamento do projetor, que posteriormente o


Planetário foi reformado e, assim, foram construídas outras estruturas anexas à
cúpula inicial (ALMEIDA et al., 2010). Atualmente, as sessões atendem
aproximadamente 40 mil pessoas por ano e são apresentadas quase que
diariamente no Planetário da UFG (ALMEIDA et. al., 2010).

Figura 15 – Edifício do Planetário em 1971 (esquerda). Edifício do Planetário em


expansão em 1977 (direita).

Fonte: Site oficial do Planetário da UFG. Disponível em: <https://www.planetario.ufg.br/>.

Assim, pode-se perceber a importância central do projetor de planetário e da


própria cúpula, que podem ser entendidos como a estrutura nuclear dos planetários,
associados a alguns dispositivos periféricos, como outros projetores e aparelhagem
de som (KANTOR, 2009; ALMEIDA et al., 2010). Esse espaço e aparelhos
inspiraram planetaristas e produtores a criarem e apresentarem essas sessões e,
assim, ideias (KANTOR, 2009). Neste sentido, Kantor (2009) afirma que:

Esse primeiro planetário de concepção moderna era constituído


basicamente por uma sala com teto em forma de cúpula, no centro da qual
um projetor óptico-eletro-mecânico (OEM) reproduzia com absoluta
perfeição o céu estrelado e simulava com grande realismo os seus
movimentos. Os planetas, o Sol e a Lua foram acrescentados
posteriormente por meio da inclusão de pequenos projetores, um para cada
astro, acoplados à máquina principal. Simultaneamente com a projeção dos
fenômenos celestes na cúpula, um texto era apresentado ao público,
geralmente descrevendo o fenômeno que se estava projetando ou as
características de um astro mostrado. (KANTOR, 2009, p. 3)

Deste modo, as sessões se constituem primeiramente como produções


audiovisuais, que apresentam imagens no formato de documentário e simulação,
47

acompanhadas por narrações que explicam o que está acontecendo com um fundo
musical (KANTOR, 2009). Elas podem ser previamente gravadas e então
reproduzidas ou executadas ao vivo pelo planetarista, e também podem ser híbridas,
o que é o mais comum, apresentando partes pré-gravadas e partes executadas ao
vivo (KANTOR, 2009). Também há planetários em que o público pode intervir na
apresentação das sessões a partir de controles de interação individuais e coletivas
(KANTOR, 2009).
Kantor (2009) cita que o autor Oscar T. Matsuura considera que as sessões
de planetário devam tender mais para o espetáculo que para a aula, e assim
privilegiar os aspectos emocionais em relação ao racional. Porém, Almeida et al.
(2010) ressaltam a importância de se equilibrar essas duas ideias, privilegiando a
apresentação de conceitos e conhecimentos sobre astronomia. Mas de certo modo,
ambos convergem no reconhecimento da capacidade das sessões proporcionarem
ao público “um lazer cultural que seja capaz de provocar reflexões e inquietações
sobre os problemas apresentados de modo a despertar-lhes a curiosidade sobre o
assunto e induzi-los a buscar esses conhecimentos por sua própria vontade”
(KANTOR apud SANTOS JUNIOR, KLAFKE e FALCÃO, 2009, p. 6). Neste sentido,
as sessões também representam certa liberdade poética e criativa, como por
exemplo, pode-se notar na seguinte sinopse da sessão 3C-273, que faz parte do
programa de sessões Planetário da UFG:

Uma nave espacial imaginária transporta-nos para além dos limites do


Sistema Solar, a 1.600 anos-luz da nossa morada, na direção da estrela
Deneb, na constelação do Cisne. A grande velocidade nos leva para fora
dos domínios da Via-Láctea. Aproximamo-nos de Andrômeda e outras
galáxias do Grupo Local. [...] Em toda a nossa viagem percorremos 5
bilhões de anos-luz e na Terra passaram-se exatamente 5 bilhões de anos.
O nosso planeta já não existe mais e partimos em busca de uma nova
morada que nos ofereça as condições ambientais que necessitamos para
sobreviver. Na ânsia da procura porém não percebemos a proximidade de
um gigantesco Buraco Negro. Quando o notamos já é tarde demais.
Penetramos numa fenda do Espaço-Tempo e não sabemos em que tempo
ou em que região do espaço iremos acabar... (PLANETÁRIO DA UFG,
2017, online).

Para Almeida et al. (2010, p. 47) as sessões se assemelham “ao teatro (na
iluminação e roteiro), aos programas de rádio (na narração, nas músicas e nos
efeitos sonoros) e ao cinema (exibição de imagens em uma tela acompanhada por
48

sons)”. Kantor (2009) amplia essa ideia ao entender que esses aspectos narrativos
audiovisuais são apresentados na condição de ambientação imersiva nas sessões.
De modo que elas são pensadas para envolver o público, gerar emoções, sensações
e assim aprendizados, utilizando diversos meios como iluminação, escuridão,
espaço e até mesmo as possíveis sensações do público (KANTOR, 2009). Isso seria
favorecido pelo ambiente que reproduz fenômenos e corpos celestes de maneira
bastante convincentes, dando sensação de realismo e imensidão, e assim, induzindo
o espectador a uma percepção imersiva. Neste sentido, Kantor (2009) afirma que:
O conceito de imersão está relacionado com o sentimento de se estar
integrado ao ambiente, no interior dele. Além do fator visual, os outros
sentidos humanos também são importantes para a sensação de imersão, a
qual deve proporcionar o envolvimento com a situação vivida. A ideia de
envolvimento está diretamente relacionada com as emoções do usuário.
(KANTOR, 2009, p. 5).

Assim, esses aspectos das sessões possibilitam também diversas


experimentações artísticas e estéticas. E, de certa forma, aproximam muito as
sessões às ideias de arte in situ e site specific e, assim, da instalação. Esta é uma
afirmação por comparação, em que uso como base para tal as afirmações de Kantor
(2009) aproximando-as das categorias artísticas citadas no artigo Instalação como
relação, de Eliane Tedesco (2007). Neste, a autora discute site specific a partir das
ideias de Miwow Kwon, que entende este conceito como: “práticas poéticas
programadas para lugares específicos” (TEDESCO, 2007, p. 22), enquanto arte in
situ seria “a obra que tem o lugar como um pretexto para sua constituição, durante
sua construção e existência” (TEDESCO, 2009, p. 23). Estes conceitos seriam sobre
a instalação, em que a obra não é posta como um produto independente a ser
observado, mas sim, como um trabalho a ser adentrado e vivenciado, se
constituindo como “uma ação, um posicionamento; e o lugar não é apenas físico, é
contexto, significação [...] [as instalações são] construídas a partir de relações [...],
implicam o lugar e os demais elementos que as compõem e acontecem no tempo”
(TEDESCO, 2007, p. 23). Neste sentido, é reposicionado o foco do produto artístico
para o espectador (TEDESCO, 2007) e vai ao encontro também com a atual
intenção da divulgação científica, que Kantor (2009, p. 2) ao citar Fayard afirma que
“se antes a divulgação da ciência era focada no objeto a ser comunicado, hoje o foco
é no próprio público”.
49

Assim, acredito que as sessões de planetário poderiam se aproximar desses


conceitos, pois se configuram como produções que surgem e acontecem integral e
exclusivamente no (e por conta do) espaço para o qual foram pensadas. Neste
sentido as sessões só podem ser reproduzidas nestas condições favoráveis e
dependem de materiais que geralmente só podem ser encontrados em planetários.
Mas, além disso, muitas das sessões são pensadas para o planetário específico
para qual foram desenvolvidas, considerando as suas questões especiais e técnicas
particulares, e, às vezes, apresentando questões regionais, como constelações e
panoramas da cidade relativos à localização e data em que acontecem. Assim,
algumas sessões não podem ser reproduzidas de maneira idêntica nem mesmo em
outros planetários diferentes do qual ela foi idealizada para acontecer.
Outro aspecto importante é que mesmo que as sessões possam ser
reproduzidas em outros e até no mesmo planetário e pelo mesmo planetarista15, elas
poderão ser sempre diferentes (desconsiderando os casos de sessões totalmente
pré-gravadas, sem interferência direta do planetarista). Essa ideia é discutida no
artigo supracitado de Kantor (2009), mas também captei de diálogos com
planetaristas do Planetário da UFG. Em geral, eles acreditam que cada sessão é
singular, e são moldadas pelo momento presente e escolhas pessoais de quem a
apresenta. Isso porque embora haja um roteiro a seguir, cada um teria seu jeito de
apresentar as sessões, o que confere a elas aspectos experimentais, subjetivos,
criativos e expressivos de cada planetarista e da momentaneidade em que as
sessões acontecem. Dessa forma, penso que essas sessões com ações ao vivo do
planetarista, aproximam a arte ambiente com a ideia de happening, live art e arte e
vida. Além disso, esses trabalhos são apresentados em horários específicos, com
início e fim. Sendo assim uma atividade não apenas de lugar, mas também de tempo
específico.

4.2.2. Reconhecendo o ambiente

Neste processo de investigações, também senti que precisava realmente


viver a residência no Planetário de forma a experienciar e conhecer profundamente
seus espaços, principalmente a Sala de Projeções e suas capacidades técnicas e

15 O profissional que opera os equipamentos dos planetários e apresenta sessões.


50

estéticas. Estas são as condições básicas para o acontecimento das sessões e,


assim, determinariam também o meu trabalho. Deste modo, gostaria de reconhecer
estes espaços, vivenciando-os para pensar como trabalhar com eles.
Este processo aconteceu de formas sutis e cotidianas. Por exemplo, enquanto
assistia a algumas sessões, mas também enquanto aprendia mais sobre suas
lógicas e sobre as aparelhagens do planetário, graças aos planetaristas que
compartilharam seus conhecimentos comigo, como o técnico responsável pela
manutenção do planetário Gustavo Ramos Jordão e os professores Rafael Miloni
Santucci e Manoel Alves Rodrigues Junior. Também pude aprender a partir dos
testes das produções audiovisuais que estava a produzir para o Planetário para o
estágio e residência. Porém, tive duas experiências marcantes neste sentido. Uma
delas foi durante uma confraternização da equipe do Planetário, em que durante
alguns momentos fomos para a cúpula contemplar as estrelas despretensiosamente,
num clima de descontração e sem muitos objetivos narrativos pré-estabelecidos. A
outra ocasião foi quando tive a oportunidade de passar um bom tempo sozinho na
cúpula, sentindo o ambiente e contemplando a projeção de estrelas. Nesta segunda
ocasião me senti consumido pelo silêncio e pela imensidão da escuridão da cúpula e
da ilusão da projeção de estrelas e em algum momento eu já não estava mais na
Sala de Projeções, e sim, suspenso no cosmos.
Durante esse reconhecimento inicial mais sensível, precisei também pensar
esse reconhecimento espacial de forma técnica, pois considerando que as bases da
sessão são o audiovisual e a ambientação, a estrutura e equipamentos disponíveis
determinariam bastante a produção e até mesmo a narrativa da sessão (ALMEIDA
et.al., 2010). Dentre todos os dispositivos, os que me pareceram mais importantes
de serem estudados foram os tipos de projetores disponíveis, pois eram os únicos
com muitas variações determinantes. Além disso, é a partir desta escolha que se
adequa a produção de imagens, neste caso, um dos pontos centrais da minha
sessão. Atualmente, em novembro de 2018, o Planetário da UFG possui 4 tipos
principais de projetores:
I. Projetor óptico-eletro-mecânico ZEISS Spacemaster, que funciona
desde 1970, sendo o mais antigo em funcionamento do Brasil. Ele
apresenta excelência em projeção de estrelas e, assim, simula
realisticamente o céu estrelado, as constelações, as posições do Sol e
51

até mesmo eclipses solares. Este projetor alcança toda a cúpula, mas
não projeta imagens além das do seu banco de imagens específico.
II. Retroprojetores periféricos que projetam alguns corpos celestes como
galáxias, nebulosas, planetas, luas e cometas.
III. Projetores multimídia (data show) conectados a um computador e,
assim, podem projetar quaisquer tipos de imagens e vídeos e formatos
digitais compatíveis. Porém, suas áreas de projeção são restringidas à
apenas algumas partes da cúpula. Sendo dois mais brilhantes, e um
mais escuro que é chamado de Sphera, que se mistura ao ambiente
escuro da cúpula e não aparenta ser uma projeção de local específico
se a imagem do vídeo não estourar o quadro de projeção.
IV. Projetores digitais com lente olho de peixe, também chamados de
projetor fulldome ou planetário móvel, pois possibilita projeção digital
em toda a cúpula e não é fixo na Sala de Projeções, diferente de todos
os outros citados. Este projetor também é usado em um planetário
móvel inflável, que poderia ser uma opção técnica para montar a
sessão, mas acabei preferindo a cúpula da Sala de Projeções do
Planetário.
Todos os projetores poderiam ser usados em conjunto, mas o projetor central
e o projetor fulldome entram em conflito visual. Isso se dá porque quando os dois
são usados em conjunto a qualidade das projeções de estrelas do projetor central é
reduzida por conta da forte luz do projetor fulldome. Este último, por sua vez, embora
possa ser utilizado sozinho, possui qualidade inferior na projeção de estrelas. Desta
forma eu teria três possibilidades principais para a criação da minha sessão: a)
Produzir o vídeo da sessão em formato 16:9 pensando nos projetores multimídia
(que abrangem apenas algumas partes da cúpula), associados ao projetor central e
os retroprojetores periféricos, privilegiando a projeção de estrelas; b) Produzir o
vídeo em fulldome, que utilizaria toda a cúpula para projeção e possibilitaria maior
efeito imersivo por meio de vídeos; ou c) Unir a primeira e segunda opção, apesar
dos possíveis problemas técnicos e estéticos.
Ao considerar todos os motivos já citados, a última opção (c) não me pareceu
viável. Também, considerei que o projetor central poderia favorecer mais a
ambientação, principalmente do céu estrelado e imaginário popular de espaço. O
uso do projetor central foi, inclusive, uma das principais inspirações para a produção
52

da minha sessão, em que me perguntei o que poderia projetar neste céu/espaço.


Por esses motivos, optei pela primeira opção (a) e por produzir os vídeos em formato
limitado para os projetores multimídias, em prol do uso conjunto com o projetor
central. Desta forma, os principais materiais para a produção e reprodução desta
sessão seria a cúpula, o computador, o painel de controles, o projetor central, os
projetores multimídia, o equipamento de iluminação e a aparelhagem de som da
Sala de Projeções do Planetário da UFG, buscando experimentar seus potenciais
artísticos e estéticos. Assim, cheguei ao seguinte plano de expografia:

Figura 16 – Projeto expográfico da sessão. Desenho digital. 2018.

Fonte: Arquivo pessoal.

Esta escolha determinou muito minhas narrativas visuais e suas visualidades


que, quando projetadas pelos projetores multimídias (área indicada como projeção
na figura 16), deveriam ser feitas em fundos pretos para se misturarem às projeções
do projetor central (área indicada como cúpula na figura 16), e não poderiam
extrapolar o quadro de projeção (para não evidenciar as limitações de projeção
multimídia), dando a impressão de ocupar todo o espaço, já que a imagem do
projetor central ocupa toda a cúpula. Assim pensei em movimentos e imagens que
53

criassem a ideia de perspectiva, principalmente de distância e proximidade,


aumentando a sensação de profundidade que o ambiente escuro com a projeção de
estrelas já me possibilitaria. Isso pode ser perceptível na figura 17, que inclusive me
fez perceber que a maior parte dos meus trabalhos anteriores poderiam se encaixar
neste esquema.

Figura 17 - Esquema de composição visual. Desenho digital. 2018.

Fonte: Arquivo pessoal.

Assim, com todas as questões levantadas até então, este se constitui como
meu primeiro trabalho que orbita e depende totalmente de um lugar específico,
diferente dos meus trabalhos anteriores que mesmo quando ambientações, estes
podiam ser instalados em locais diferentes sem grandes perdas considerando
algumas condições básicas mais fáceis de serem reproduzidas. Também, neste
processo, decidi montar uma sessão híbrida, com uma parte executada ao vivo,
ampliando os limiares deste trabalho no meu percurso artístico, fazendo desta uma
54

proposta ainda mais dinâmica e efêmera (considerando os aspectos singulares das


sessões citadas no item 4.2.1).

4.3. PROCESSO DE EXPANSÃO

Os estudos, percepções e experiências anteriormente citadas se somaram


aos meus estudos mais amplos desta pesquisa e confluíram na estruturação das
ideias e do processo criativo do meu trabalho prático. A partir disso, entendi um
pouco mais as possibilidades de inserção da minha prática artística nas condições
do Planetário, que neste local e momento parecia se expandir e buscar novas
interações e dimensões possíveis. Um pouco mais do processo de criação,
transformação e resultados desta sessão experimental compõem os tópicos
seguintes.

4.3.1. Projetando cosmovisões

Durante os estudos de sessões já existentes e das condições do Planetário


(citadas no item 4.2 deste trabalho) fui me inspirando e também estabelecendo a
lógica de criação da minha sessão. Como dito, identifiquei que uma das bases das
sessões é o desenvolvimento de uma narrativa que funciona como um roteiro. Isso
porque tal narrativa deve englobar a descrição audiovisual, estética e técnica da
sessão, tentando estabelecer todos os acontecimentos e condições importantes para
facilitar a posterior montagem e apresentação.
Ao assistir outras sessões e na leitura de Almeida et al. (2010) e Kantor
(2009) percebi que, no geral, as sessões de planetário são narrativas objetivas, e
mesmo quando poéticas, giram em torno da comunicação verbal e visual de
conceitos de astronomia e geralmente simulam uma viagem espacial ou passeio
cósmico (ALMEIDA et al., 2010). Esse formato é o mais convencional e em geral
determinam as sessões de planetário, portanto, foquei em articular uma perspectiva
mais experimental, condizente com meu lugar de fala como artista interessado em
experiências em cosmovisão e decolonialidade. Neste sentido, não busco
desqualificar a lógica convencional das sessões. Na verdade, reconheço esta
necessidade para as finalidades de divulgação científica como fazem os planetários.
No caso deste trabalho, apenas tive a liberdade de propor uma situação desde a
55

perspectiva de experimentação estética e artística que vem sendo desdobrada em


minha pesquisa artística transdisciplinar.
Procurei desenvolver uma narrativa subjetiva, não linear e abstrata, com foco
em gerar experiências estéticas potencialmente decoloniais, sensoriais e imersivas
para quem, por ventura, entrasse em contato com a mesma. Gostaria de criar uma
narrativa que não fosse verbalmente explicativa e possibilitasse maior relativismo
perceptivo e de entendimento sensível. Com este objetivo, busquei criar narrativas
no formato de videoarte, somadas às ideias de clipes e interlúdio. Desenvolvi
diversas experimentações visuais que estabelecem diálogos entre si, mas que
também podem ser compreendidas separadamente e remontadas em diversas
ordens sequenciais. Mas, de certo modo, todas orbitam em torno de alguns assuntos
condutores, que foram configurando os temas centrais da sessão.
As principais questões que apareceram nas narrativas das minhas
experiências no planetário têm raízes nas minhas práticas e seus assuntos
recorrentes (citados no capítulo 2 deste trabalho), mas que floresceram e
expandiram nas condições do ambiente do Planetário. Assim, percebo fortes bases
subjetivas e autobiográficas nessas narrativas. A primeira questão que pude
identificar neste início de criação da sessão foi o recorrente pensamento filosófico
sobre perceber-se consciente na imensidão cósmica. A partir disso fui tecendo
outras relações, como com os imaginários de origens do cosmos e seu desenrolar
até a atualidade, apresentando ideias e conceitos de sistemas, micro e
macrocosmos, autossimilaridade e complexidade. Outro aspecto recorrente é a
presença da figura humana em contraste com figuras cósmicas. Deste modo,
busquei pensar poeticamente o cosmos, mantendo em mente a vontade de ampliar
os entendimentos de cosmovisão, por meio de experiências estéticas de gerar
sensações de integração e interconexão à imensidão e complexidade cósmica.
Busquei pensar e experimentar esses conceitos também a partir dos aparatos
do Planetário, na busca de favorecer e ampliar as videoartes em seu caráter de
ambientação. Neste sentido, durante a residência desenvolvi experimentações em
imagens, vídeos e sonoplastias, bem como experimentações com os controles,
projeções, luzes e aparatos técnicos específicos da Sala de Projeções do Planetário.
Assim, tanto o espaço como o audiovisual foram pensados em conjunto, de forma
complementar e interdependente. O que, naturalmente, foi dando corpo para minha
sessão.
56

Para pensar as potências artísticas e estéticas dessa ambientação imersiva,


busquei referências artísticas que pudessem gerar reflexões e inspirações
interessantes para o meu momento criativo. Lembrei-me do trabalho Blind Light
(2007), de Antony Gormley (figura 18). Este artista já me inspirara com seus estudos
sobre figura e condição humana, e também com seus trabalhos de instalação, mas
este especificamente havia me marcado desde os tempos de c o s m o g o n i a
(Figura 8).

Figura 18 – Antony Gormley, Blind Light. Visão da instalação, na exposição Blind


Light, Hayward Gallery, London. 2007.

Fonte: Adaptado de GORMLEY, 200-?, não paginado.

Neste trabalho em questão, Gormley apresenta um ambiente totalmente


tomado por uma espécie de neblina e forte luz branca (figura 18). Quando as
pessoas entram, não conseguem ver nada e são tomadas pela experiência, e para
quem está a observar do lado de fora, suas silhuetas ficam evidentes e passam a
compor a obra (GORMLEY, 200-?). Inspira-me a ideia de Gormley da experiência e
sensação darem sentido e compor o trabalho de maneira central. Sobre este
57

trabalho, Gormley (200-?, online, nossa tradução)16 diz que: “é muito importante para
mim que dentro você encontre o fora. Também você se torna uma figura imersa num
lugar sem fim, literalmente o tema/sujeito do trabalho”.
Durante a residência, conheci o trabalho Milky Ways, da artista Mihoko Ogaki.
Esta artista possui uma vasta pesquisa visual sobre o cosmos, mas este trabalho em
especial influenciou bastante meu pensamento conceitual em relação às
possibilidades da ambientação com temas cósmicos. Milky Ways é uma série de
instalações que se tornou uma exposição individual de mesmo nome (RABANUS,
2009).

Figura 19 – Mihoko, Ogaki, Milky Ways. Visão de uma das instalações da exposição
individual Milky Ways na Gallery Voss. 2008.

Fonte: Adaptado de OGAKI, 200-?, não paginado.

Nestes trabalhos a artista articula a ideia de corpo e espaço, num simbolismo


cósmico sensorial (RABANUS, 2008). Como é possível perceber na figura 19, em
uma das instalações de Milky Ways (2009), a artista posiciona num espaço um
objeto que se assemelha a uma figura humana, a partir do qual são projetadas luzes
pontuais que ocupam o ambiente, lembrando a visualidade de estrelas. Dessa
forma, entendi esta instalação como uma espécie de planetário conceitual e artístico,

16Citação original: “It is very important for me that inside it you find the outside. Also you become the
immersed figure in an endless ground, literally the subject of the work” (GORMLEY, 200-, online).
58

que possibilita a ambientação de um cosmos poético que não apresenta precisão na


localização das estrelas projetadas, mas cria uma atmosfera temporária que remete
ao universo e carrega uma forte mensagem, focada, sobretudo, nas emoções e
sensações humanas a partir da percepção (RABANUS, 2008).
Neste processo, também pude identificar a expansão, desenvolvimento e
amadurecimento de diversas questões que surgiram com força no meu trabalho
c o s m o g o n i a (Figura 8), só que agora em outra proporção. Principalmente, a
vontade de pensar e gerar arte como experiência estética de integração e expansão
da consciência sobre o cosmos. De certa forma, passei a ver este conceito de
cosmogonia bastante presente em muitas de minhas narrativas artísticas e
posicionamentos enquanto ser humano, inclusive neste trabalho atual. Assim,
pensando origens, atualidades e futuros, vi neste conceito um termo que ainda
expressava poeticamente muitas de minhas ideias com este trabalho específico.
Portanto, decidi manter este conceito de maneira expandida, como uma pesquisa
em série, de modo que também escolhi este como o nome desta sessão que estava
a produzir no Planetário, mas agora configurado como C O S M O G O N I A, em um
estilo tipográfico diferente do anterior.
De certa forma, percebo que meus objetivos conceituais e poéticos vão ao
encontro com algumas das preocupações do Planetário. Os objetivos de reflexão
poética que citei estão direta e indiretamente presentes nos objetivos das sessões
de planetário, de forma que pude perceber no livro sobre a história de vida do
Planetário da UFG, de Almeida et al. (2010), que para muito além de ensinar
conceitos e personalidades da astronomia, é perceptível a potência das sessões de
planetário na formação cultural, na humanização, sensibilização e conscientização
social, no seu aspecto constitutivo de experiências que podem inspirar humildade,
respeito, consciência ambiental e consciência coletiva. De modo que as sessões não
ensinam apenas conteúdos teóricos, sobretudo, comunicam conhecimentos práticos
e reflexivos sobre o que sabemos de onde estamos e fazemos parte, o cosmos,
possibilitando, assim, ampliar visões de mundo através de meios emocionais, bem
como racionais (KANTOR, 2009).
Percebi também que a ideia de cosmogonia está presente pelo Planetário da
UFG em muitos de seus painéis informativos. Pude identificar pelo menos quatro
painéis que tratam da origem e desenvolvimento do cosmos em alguns de seus
principais espaços, como na entrada, no corredor principal e na biblioteca (figura 20).
59

Inclusive esta última é uma das salas em que mais trabalho no Planetário. Portanto
pude ver esses painéis diariamente durante minha residência. De certa forma, as
ideias presentes nestes painéis aparecem também na minha sessão, mas de uma
maneira não linear e indireta.

Figura 20 – Foto do painel em minha sala de trabalho. Planetário da UFG, 2018.

Fonte: Arquivo pessoal.

4.3.2. Cosmogonias

Todo este percurso de residência citado até aqui gerou a sessão de planetário
C O S M O G O N I A. Esta se constitui como um trabalho de ambientação que não
pode ser reproduzido em sua integridade, senão no Planetário, e tão pouco pode ser
fotografado, por suas condições de baixíssima iluminação (principalmente de
projeções em movimento). Assim, na sequência descrevo alguns dos principais
aspectos narrativos, poéticos, conceituais e estéticos específicos deste trabalho. E
também apresento alguns frames ilustrativos da produção audiovisual que compõe a
ambientação, já que a mesma não pode ser registrada de outras formas, senão pelo
falar sobre e na memória de quem pode ou, um dia, possa vivenciá-la.
Para a sessão a cúpula é previamente ambientada como um céu diurno
azulado com nuvens brancas17. Uma frequência de tigela tibetana marca o início da
sessão. Após este momento, pode-se ouvir uma narração que chama o público para
um exercício de presença e meditação, pedindo que as pessoas se posicionem

17 Este efeito é feito com realismo pelo projetor central.


60

confortavelmente, que relaxem seus corpos e mentes, que respirem profundamente


e que fechem os olhos18. Os exercícios de respiração continuam e, depois, essa voz
pede que as pessoas abram seus olhos. Ao abrirem, percebem que tudo está escuro
e logo algumas estrelas começam a aparecer por toda a cúpula, que já passa a ser
percebida como um céu estrelado19. Neste momento, meu objetivo é que as pessoas
desacelerem e venham para o ‘agora’, preparando-as para os aspectos estéticos e
sensoriais da sessão.
Repentinamente, abre-se um olho no centro do ‘céu’, que fica mirando todo o
ambiente, acompanhado por um som de frequência que ecoa pelo espaço. Na íris
deste olho está a acontecer um big bang. O olho começa a se multiplicar a cada
piscada: 1, 2, 4, 8, 16, até chegar a 32 olhos e, após um tempo, vão se fechando
progressivamente até não sobrar mais nenhum20. A primeira imagem vista é um olho
porque gostaria de remeter à ideia de consciência, despertar e percepção. Desta
forma, estou a devolver o olhar para o público. Esta cena me foi inspirada a partir do
trabalho Stargate (figura 7), que apresenta o olho como elemento simbólico central.
O olho também é uma referência à ideia de cosmovisão, representando meu local de
enunciação como ser humano e como artista visual a pensar e observar o cosmos.

Figura 21 – Matheus Meireles. Frame 1: Despertar. 2018.

Fonte: acervo pessoal.

18 A narração foi feita por Danielli Bettini, e foi escrita, gravada e editada por mim.
19 Também bastante realista por ser feita pelo projetor central.
20 Esta sequência de olhos foi criada por mim em animação digital.
61

Por alguns instantes o ambiente fica em silêncio, que é quebrado por um


áudio em espanhol que fala sobre a experiência de sonhar21. Logo ao fim do áudio,
começam alguns sons de fundo do oceano, que parecem estar distantes e vão
ficando cada vez mais altos. Neste momento, surge a imagem de um ser, que vem
nadando desde o fundo, ele se aproxima progressivamente e vai se tornando cada
vez maior. Visualmente, não fica muito claro se é um ser natural ou uma máquina,
principalmente para quem não conhecer o animal que foi usado para a cena, uma
hydromedusa22, que vive nas profundezas da Fossa das Marianas. Nesta cena a
ideia é deslocar um ser abissal para o espaço sideral, discutindo lugares e
condições, profundezas e alturas, numa metáfora de oceano cósmico.

Figura 22 – Matheus Meireles. Frame 2: Vida I. 2018.

Fonte: Acervo pessoal.

Na sequência, este ser explode em algo que se parece com uma nebulosa23,
em referência aos inícios nebulosos do universo. Aqui gostaria de misturar um pouco

21 A base deste áudio é a introdução de 16 segundos da música Noite Severina (2001), gravada por
Lula Cortez.
22
A imagem base para composição com esta hydromedusa foi retirada de um vídeo de cortesia da
NOAA Office of Ocean Exploration and Research, 2016 Deep water Exploration of the Mariana. 2016.
Disponível em:
<https://oceanexplorer.noaa.gov/okeanos/explorations/ex1605/dailyupdates/media/video/0424-
jelly/0424-jelly.html>. Acesso em outubro de 2018.
23 Criada em animação e vídeo colagem associado aos aparatos técnicos do Planetário. Para a base

da nebulosa usei uma imagem da nebulosa de Helix de domínio público, disponibilizada pela NASA,
62

a narrativa sobre origens, juntando as origens da vida com as origens de corpos


celestes em uma aproximação poética. Dentro desta nebulosa aparecem pouco a
pouco diversos seres marinhos, desde invertebrados a peixes e mamíferos24 e logo
se percebe todo um ecossistema ali, que apresenta uma profusão de sons de seres
marinhos.

Figura 23 – Matheus Meireles. Frame 3: Vida II. 2018.

Fonte: Acervo pessoal.

Com esta cena, interesso-me em abordar poeticamente os inícios, tanto da


vida, como de grandes corpos cósmicos, associando esta sequência ao sonho, no
áudio previamente anunciado. Pouco a pouco todos os seres vão sumindo por entre
as nuvens da nebulosa e, então, a cúpula volta a ficar mais escura. A nebulosa vai
condensando e se tornando uma grande nuvem de gás interestelar avermelhada em
um estágio de formação estelar. Neste momento se inicia um áudio de traduções de
ondas eletromagnéticas do sol25 e a música Yulunga, de Dead Can Dance.

ESA, e C.R. O'Dell (Vanderbilt University). Disponível em:


<http://hubblesite.org/news_release/news/2004-32>.
24 Todas as imagens-base para edição foram retiradas de bancos livres de vídeos online como

Creative Film e Bestofgreenscreen.


25 Divulgado pesa NASA. Disponível em: < https://www.nasa.gov/feature/goddard/2018/sounds-of-the-

sun/>. Acessado em novembro de 2018.


63

Figura 24 – Matheus Meireles. Frame 4: Vida III. 2018.

Fonte: Acervo pessoal.

Esta nuvem de gás interestelar expele diversas estrelas26, dentre elas uma
que vai se tornando cada vez maior na medida em que a nuvem desaparece. A
estrela vem se aproximando em movimento espiralado até ficar o maior possível no
espaço da cúpula, demonstrando sua superfície e sua atividade estelar. Esta estrela
fica um tempo reinando no céu e depois vai encolhendo até ficar bem pequena, mas
ainda visível. Ao lado dela aparece uma face27, que se põe a observá-la. Esta face
continua observando a estrela por uns instantes até que esta última começa a
diminuir de tamanho. Neste movimento, revela-se que atrás desta estrela há uma
galáxia que agora já é possível ser vista. A estrela vai ficando cada vez menor até se
perder na imagem da galáxia que faz o mesmo movimento: fica menor até evidenciar
um aglomerado de galáxias e se perder dentre esta imagem. Este aglomerado
também repete o movimento dos outros corpos anteriores e se misturam a uma
representação do universo observável.28 A face continua a observar este sistema por

26Nesta cena utilizei imagens de código livre da animação de simulação de formação estelar The
Formation of Stars and Brown Dwarfs and the Truncation of Protoplanetary Discs in a Star Cluster, de
Matthew R. Bate, Ian A. Bonnell, e Volker Bromm, da Universidade de Leicester. Disponível em: <
http://www.ukaff.ac.uk/starcluster/>. Acessado em novembro de 2018.
27 Feita com vídeo de acervo pessoal (com a participação da modelo/performer Deep Alpa) mais
vídeo mapping digital feito por mim.
28 Muitas das bases de imagens e vídeos do universo utilizados foram retiradas do banco de imagens

e vídeos para artistas da European Southern Observatory (ESO). Disponível em:


64

alguns instantes até que, repentinamente, vira-se e desaparece completamente. O


universo observável permanece visível por um tempo, até que desaparece também.

Figura 25 – Matheus Meireles. Frame 5: Perspectivas/Conhecimento I. 2018.

Fonte: Acervo pessoal.

Neste momento permanecem perceptíveis apenas as estrelas e a música


Yulunga, que de um instrumental calmo vai se tornando cada vez mais agitada e
intensa. Logo vão surgindo algumas estrelas cadentes, que riscam o céu por alguns
instantes29. Após as estrelas cadentes, surge uma grande Terra30, que em um
primeiro momento está totalmente escura, sendo possível observar apenas as luzes
artificiais de sua superfície. Então, surge o Sol bem pequeno que parece girar em
torno da Terra e iluminar sua superfície que progressivamente vai sendo
evidenciada31. Pode-se ver todo o movimento da luz diurna, até que o Sol parece

<https://www.eso.org/public/images/>. Acesso em setembro de 2018. Outras foram criadas por mim


em pintura digital, edição e colagem digital.
29 O uso das estrelas cadentes foi ideia do planetarista Gustavo Ramos Jordão que, com razão,

gostaria que eu utilizasse mais dos aparatos técnicos do Planetário durante a sessão.
30 Feito com um corte de 11 segundos do vídeo 4K Earth Rotating Half Hour Loop - Relaxing

Screensaver, de Cool Motion, disponível em: <


https://www.youtube.com/watch?v=eEpEeyqGlxA&t=281s>. Acesso em novembro de 2018.
31 O movimento do Sol foi uma ideia do planetarista Gustavo Ramos Jordão.
65

passar pela Terra e desaparecer do campo de visão32. Assim a Terra volta a ficar
escura até que desaparece junto com as estrelas e, assim, toda a cúpula fica
totalmente escura por alguns minutos. Este momento foi pensado como uma
situação em que a visualidade cessa para possibilitar um momento de absorção bem
como de reflexão sobre o que aconteceu até este instante da sessão. Mas também é
uma provocação aos nossos sentidos e a comum necessidade de acontecimentos
sucessivos33.

Figura 26 – Matheus Meireles. Frame 6: Perspectivas/Conhecimento II. 2018.

Fonte: Acervo pessoal.

Está tudo escuro e a música acaba, há um silêncio total e, então, surge uma
cena de abertura central que tenta se assemelhar ao olhar de um astronauta em
primeira pessoa. Deste modo, a imagem parece uma visão do espaço emoldurada
pelas bordas de um capacete de astronauta, dando a impressão de estarmos vendo
através da sua viseira e, assim, de seu olhar34. Neste momento, o astronauta

32 Esta cena demonstra a Terra parada, no centro, com o Sol girando em torno dela. Uma liberdade
técnica e científica para mostrar o movimento da luz diurna, bem como uma liberdade poética para
refletir um pouco sobre como percebemos nosso lugar no cosmos.
33 Esta também foi uma ideia que cheguei durante o processo criativo com o planetarista Gustavo

Ramos Jordão, que sentia falta de momentos de escuridão total mais longos durante a sessão. Algo
bastante incomum também nas sessões de planetário.
34 Feito com cenas do jogo Adr1ft, animação e colagem digital (viseira e elementos digitais da

mesma). Para o espaço e a Terra, utilizei como base o programa de simulação livre Space Engine.
66

percebe que despertou e de longe vê sua nave/estação espacial destruída, também


se pode ver a terra ao fundo. Em um primeiro momento ele tenta se locomover, mas
é atingido por um dos destroços de sua nave e, repentinamente, sua visão fica
escura. Aparece então a cena deste astronauta sendo lançado e girando pela
imensidão do espaço. Desta cena acontece outra abertura ocular, em que se pode
ver novamente a visão do astronauta, agora observando seu distanciamento
progressivo da Terra enquanto ouve-se apenas sua respiração ofegante.

Figura 27 – Matheus Meireles. Frame 7: Morte/Astronauta. 2018.

Fonte: Acervo pessoal.

Essa cena vai sendo cortada e acelerada, como lapsos de memória. Estes
cortes são evidenciados pelas indicações de níveis de oxigênio na viseira do
astronauta, mostrando que ele tem cada vez menos oxigênio e, assim, tempo de
vida. A Terra vai ficando menor e mais distante enquanto sua respiração vai se
tornando cada vez mais lenta e fraca. Entre estes cortes, o astronauta tem algumas
visões que poderiam ser sonhos ou alucinações. Em um primeiro momento ele vê
diversas imagens cósmicas psicodélicas, fluidas e descontruídas, em especial
imagens que se assemelham ao Sol, a Terra e a sonda Voyager, bem como
67

imagens de cotidiano da vida na Terra, como memórias35. Em um segundo momento


ele vê algo como uma serpente feita de estrelas se locomovendo pelo espaço escuro
e vazio. Após esta visão da serpente, sua respiração vai cessando lentamente e
tem-se a impressão que seus olhos vão se fechando, abrindo, fechando, até que não
abrem mais e, assim, a cúpula fica toda escura. Por alguns instantes, impera o
silêncio e a escuridão, que é rompido por uma voz que pergunta: “Como é ser
humano?”36. O silêncio permanece e as estrelas começam a reaparecer. Após um
tempo aparece o corpo do astronauta37 flutuando pelo espaço até sumir de vista.

Figura 28 – Matheus Meireles. Frame 8: Recomeços. 2018.

Fonte: Acervo pessoal.

Devagar as estrelas começam a girar até que param e pode-se observar a sonda
Voyager. Esta sonda vem se aproximando ‘ecoando’ os sons que carrega de forma
fisicamente impossível, mas em certa liberdade poética. Esta seria uma referência
às ideias do livro Murmurs of earth: the Voyager interstellar record 38, de Sagan et al.
(1978) e, assim, faço uma alusão a ideia poética de que, de alguma forma, ecoamos

35Nesta cena, usei um pedaço do vídeo Stardust, de Postpanic com direção de Mischa Rozema, e
a música Dark Matter, de Bjork. Ambos disponíveis em <
https://www.youtube.com/watch?v=d3bRaaK85HU>. Acessado em novembro de 2018.
36 Narrado pela Professora Manoela dos Anjos Afonso Rodrigues. Escrito, gravado e editado por mim.
37 Para esta cena do astronauta flutuando no espaço, utilizei como base uma cena de 3 segundos do
filme Gravity (2013), dirigido por Afonso Cuarón.
38 Que em português pode ser traduzido como: Múrmuros da Terra: Disco interestelar da Voyager.
68

nossa existência pelo espaço distante. A Voyager vai se distanciando e também o


som vai ficando mais baixo. As estrelas giram novamente, agora de forma
espiralada, muito rapidamente e por mais tempo. Até que o movimento para, e
pouco a pouco é possível notar alguns pontos brilhantes surgindo, como se algumas
luzes surgissem e brilhassem intensamente e logo depois ficassem com o brilho
estável como as outras luzes39. Neste momento uma voz diz: “E se acontecessem
big bangs a todos os instantes?”40. As luzes vão sumindo lentamente e, então,
aparece o título C O S M O G O N I A. E após o título são apresentados o créditos,
agradecimento e referências.

Figura 29 – Matheus Meireles. Frame 9: C O S M O G O N I A, título. 2018.

Fonte: Acervo pessoal.

4.3.3. Uma viagem coletiva

A primeira apresentação pública da sessão C O S M O G O N I A aconteceu


no Planetário da UFG, no dia 23 de novembro de 2018. Ocasião que foi divulgada
amplamente por meio da internet, em especial pelas redes sociais, inclusive pela

39 Uso a palavra estrelas para me referir às projeções de luzes do projetor central do planetário, pois é
o que simbolizam, mas durante a sessão, e principalmente nesta parte, as assumo como pontos
brilhantes que podem ser entendidas de diversas formas, inclusive como supostos universos, no caso
desta última cena.
40 Narrado por Sther Ko. Escrito, gravado e editado por mim.
69

página oficial do Planetário da UFG. Esta sessão aconteceu de forma pública, livre e
gratuita, e reuniu um público de aproximadamente 110 pessoas. E, considerando
necessidades deste projeto, aproveitamos este acontecimento também para propor
uma roda de conversas para compartilhamento das experiências pessoais
vivenciadas durante a apresentação da sessão.
Nesta ocasião organizamos a sala de projeções do Planetário da UFG para
receber as pessoas e já prepará-las para a experiência da sessão. Assim, todos os
momentos vivenciados no Planetário, desde a chegada e a espera pelo início da
sessão também foram pensados como parte desta experiência. Deste modo, a
cúpula foi ambientada com uma projeção de céu diurno com nuvens (que foi
pensado como, de fato, o início da sessão, agora estendido). Também coloquei
algumas músicas ambientes que dialogam com o tema, a estética e ambiente que
gostaria de possibilitar. No geral foram escolhidas músicas latinas, com sonoridades
calmas, tranquilas e temáticas ou referências à momentos espirituais. Esse ambiente
ajudou na adaptação sensorial das pessoas, sendo uma forma de trazer o público
para o momento presente, e prepara-las para a experiência seguinte.

Figura 30 – Foto do início da primeira sessão pública de C O S M O G O N I A. 2018.

Fonte: Acervo pessoal. Foto: Hariel Revignet. Edição: Matheus Meireles.


70

Um pouco após a hora marcada, fechamos as entradas e iniciamos os avisos


de segurança, que não foram em vídeo como de costume, mas aconteceu como
discurso, feito pelo planetarista Gustavo Ramos Jordão, que também me auxiliou
essencialmente na apresentação das projeções. Após a fala dele, apresentei
rapidamente uma introdução sobre o percurso e as principais questões deste
trabalho, sem entrar diretamente em aspectos poéticos e conceituais, em uma
tentativa de garantir uma experiência mais livre e subjetiva para o público. Logo após
esta fala introdutória, a sessão foi apresentada, bastante parecida com a narrativa
descrita no item 4.3.2 deste capítulo.
Com o término da sessão, apresentamos os créditos e agradecimentos. E
após este momento, fiz novamente uma fala rápida em que agradeci a presença de
todos e demonstrei minha vontade de saber como a sessão teria reverberado em
cada um presente ali, abrindo espaço para que o público compartilhasse suas
experiências e sensações. Este momento foi bastante importante, pois acredito que
convergiu todo o processo desta pesquisa. Desde o início do processo criativo deste
trabalho estava interessado muito em pensar experiências, tanto pessoais como
coletivas. Assim, esta roda de conversas foi uma forma de saber um pouco como
todo esse processo de pesquisa chegou até as pessoas e que experiências essa
situação gerou.
Algumas questões foram levantadas em muitas das falas, como por exemplo,
a recorrente percepção de um aspecto existencialista da sessão. Bem como
percepções de referências ao consciente e inconsciente, e à mitos e misticismos.
Neste sentido, muitos falaram sobre como o trabalho possibilitava uma viagem
pessoal, profunda e interna. De modo que muitas falas ressaltaram os aspectos
poéticos e a abstratos da narrativa, e como isso dava abertura para diversas
compreensões subjetivas. Citaram também, diversas vezes, a capacidade da arte de
gerar reflexões e saberes sensíveis transformadores, indo de encontro com um dos
principais interesses deste projeto.
Neste sentido, o próprio diretor do Planetário, professor Manoel, expressou
que a sessão trazia vários conceitos astronômicos, mas de uma forma artística e não
convencional para uma sessão de planetário, possibilitando diversos aprendizados
subjetivos. Nas falas da equipe do Planetário, em geral, pude perceber que eles
viram todo esse processo como uma contribuição positiva para o Planetário, em
especial pela experimentação poética, transdisciplinar, a comunicação social e a
71

expansão do pensar possibilidades de uso do Planetário que foram possíveis com


este trabalho.
A primeira sessão pública foi bem-sucedida e a procura por novas datas foi
bastante grande. Assim aconteceu uma segunda sessão pública no dia 05 de
dezembro. No geral, a estrutura de programação foi um pouco parecida com a da
primeira sessão: recepção, avisos, sessão e roda de conversas, mediadas por mim e
pelo planetarista Gustavo Ramos Jordão. Mas, ocorreram algumas diferenças na
apresentação, pois como dito anteriormente, cada sessão é singular. O espaço de
compartilhamento de experiencias desta ocasião seguiu um pouco da lógica do
primeiro, em que as pessoas foram convidadas a compartilhar suas perspectivas
subjetivas. O que deu espaço para novas falas e olhares sobre a sessão, e assim,
novas descobertas e perspectivas, mesmo de quem já havia visto a primeira sessão
outras vezes. Mas, desta vez, aconteceram também muitas perguntas técnicas
sobre a produção do trabalho e sua apresentação, bem como dúvidas sobre minha
concepção poética e conceitual de algumas partes da narrativa audiovisual.
Em ambas as sessões as falas e contribuições foram bastante positivas,
emocionantes, poéticas e inspiradoras. Grande parte das pessoas se sentiram à
vontade para falar sobre suas experiências de modo bastante pessoal e subjetivo,
demonstrando o que sentiam e pensavam sobre aquele momento. Portanto, este foi
um momento de bastante aprendizado, inspiração e reflexão sobre todo este
processo de pesquisa. Além disso, sinto que estes compartilhamentos deram muito
sentido ao meu trabalho e, principalmente, me ajudaram a perceber ainda mais a
potência dos espaços de aprendizados não convencionais e das diversas
possibilidades e potenciais da investigação e estudos da arte e do cosmos.
O resultado e recepção do público também foi tão positivo que a equipe do
Planetário da UFG se interessou em adicionar C O S M O G O N I A ao seu
programa de sessões oficiais e possivelmente apresentá-la em alguns domingos no
espaço de sessões públicas para público adulto.
72

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Refletir acerca das considerações finais se constituiu como um processo de


pensar todos os resultados desta pesquisa em retrospecto, o que me ajudou a
entendê-la ainda mais e me trouxe perspectivas para pensar possíveis futuros.
Agora já podia ver um corpo conciso de uma experiência em um espaço de tempo e
condições específicas. Penso que este corpo diz muito sobre mim e sobre o
desenrolar do meu caminho como estudante das artes e como ser humano.
Uma das preocupações recorrentes durante todo este processo de pesquisa
foi a vontade de pensar formas de usar meus lugares de enunciação desde os
espaços no meio acadêmico-científico e acadêmico-artístico investigando um pouco
de suas questões históricas, estruturais, ontológicas e epistemológicas com
propósitos de conhecer mais a fundo os lugares onde estou inserido para, então,
gerar debates e experiências de tensionamento das realidades e para tentar
contribuir com perspectivas de futuros melhores. Claro que isso é muito amplo,
relativo, inesgotável mesmo que em uma pesquisa de vida.
Porém, essas foram as bases nas quais apoiei meu pensamento e atuação
como artista e acadêmico, bem como no campo da arte e da ciência. Neste sentido,
penso que as ideias de cosmovisão e decolonialidade me permitiram perceber com
mais profundidade as problemáticas sociais contemporâneas e me inspiraram a agir
em prol da alquimia da cosmovisão dominante de maneira mais incisiva e
consciente. Assim, busquei pensar estas questões de uma forma não usual, mas
que acredito no potencial de contribuir socialmente, não focando apenas em fontes e
argumentações teóricas específicas da arte e da astronomia, mas sim, investigando
perspectivas decoloniais para, então, re-ver estes saberes e meus trabalhos.
Espero que estes estudos possam comunicar algumas necessidades de
conhecermos as colonialidades internas e sistêmicas que moldam nossa forma de
ver o mundo e limitam nossas subjetividades, ressaltando as necessidades de
fomentarmos pensamentos alternativos e diversos. Assim, neste trabalho procuro
partir de um estudo pessoal para expandir espaços e experiências e, assim, discutir
e viver decolonialidades. Neste processo gostaria também de evidenciar a
necessidade do desenvolvimento de posicionamentos transdisciplinares, sensíveis,
subjetivos, pluridiversos, não competitivos e não comerciais.
Acredito que aprendi muito com o ambiente transdisciplinar desta pesquisa,
que me possibilitou aberturas para desenvolver uma pesquisa prática artística
73

focada na experimentação de sensibilidades, sentidos e estéticas, desde a criação


de experiências de imersão coletiva que se desenrolou como um profícuo ambiente
de saber e conhecer. Desta forma, não estava no Planetário a produzir arte sobre
cosmovisão, mas estava a aprender, contribuindo e transformando também a minha
própria cosmovisão e o entendimento que tenho dela através dos meus trabalhos
resultantes deste momento. Esta experiência me fez retomar com mais atenção a
ideia de translocução, pela qual pude expandir a ideia de transdisciplinaridade pelas
possibilidades de pensar atravessamentos de lugares, que neste caso seriam os
lugares de atuação, de pesquisa e dos saberes. A partir dos processos de
orientação, passamos a compreender este termo como um ativador importante da
minha pesquisa, agora configurado como translocusção, ressaltando a ideia de locus
(lugar).
Ao escrever sobre o estágio e residência artística no Planetário da UFG
percebi como esta experiência se transformou num ponto convergente para muitas
das questões que vinham sendo apontadas em trabalhos anteriores. A sessão
criada para o Planetário demonstra uma ampliação das possibilidades de atuação
artística que consegui atingir em meu trabalho. Ao realizar este trabalho, busquei
abordar a opção decolonial que possibilita re-ver entendimentos sobre o existir, criar,
experimentar e compartilhar conhecimento tanto em arte como nas demais ciência.
Procurei criar pontes transdisciplinares para ampliar possibilidades de compreensão
e socialização de saberes diversos por meio de uma proposição artística que
pudesse trazer benefícios para os processos de formação, pesquisa, extensão,
ensino e de experiência sensível. A partir disso, percebo então, a sessão
C O S M O G O N I A como a materialização desses re-posicionamentos e buscas
que estão lá atrás, na minha infância.
Foi ao pensar sobre o trabalho que executei na residência no Planetário que
percebi que há algum tempo tenho pensado o cosmos como um organismo vivo,
num entendimento sistêmico não antropocêntrico, para além da colonialidade e
compreensão cartesiana convencional que objetifica o cosmos e o entende como
recurso e mercadoria a ser descoberto e explorado. Percebi que a questão da vida
em toda sua complexidade tem aparecido em meus interesses de pesquisa,
posicionamentos artísticos e, assim, tem ganhado espaço nas minhas narrativas,
expandindo-as em diversas formas e possibilidades. A experiência no Planetário me
fez perceber um outro fio condutor que transpassa minha poética visual: minha
relação com a vida alimentando minha relação com a arte. Deste modo, a minha
74

prática vai se transformando na medida que transformo minhas compreensões e


interesses de vida.
Esta pesquisa me possibilitou estudar um cosmos inesgotável e utópico, em
suas possibilidades poéticas e filosóficas, numa liberdade imaginativa que pode
transcender as barreiras do que é estipulado no meio científico e cultural como
hegemônico. Para mim, minha relação com a arte está na sua percepção como
pensamento de fronteira, que embora esteja inclusa na lógica colonial do saber,
ainda é bastante flexível e pode abrir espaço para o processo de conhecer desde
perspectivas outras. Ter a oportunidade de inserir este tipo de pesquisa dentro do
Planetário é uma situação que demonstra que estas aberturas e consciências
transdisciplinares, cooperativas e coletivas podem florescer nos diversos campos do
saber e mesmo em lugares tradicionalmente considerados universos unicamente
ligados ao campo da ciência.
A residência no Planetário da UFG transformou meu percurso artístico e de
vida. Para muito além das diversas trocas, aprendizados e situações relatadas neste
trabalho, vivi experiências que talvez ainda não imagine a grandiosidade do impacto
no meu processo de conhecer e ser. Assim, espero que esta experiência continue a
florescer e, neste sentido, estou a concluir a pesquisa, porém ficam alguns caminhos
em aberto por onde pretendo seguir e continuar a desdobrar os processos iniciados
nesta investigação. Neste momento, desejo encontrar uma forma de coletar relatos
das pessoas que puderam vivenciar a sessão C O S M O G O N I A, além de
continuar a apresentá-la com alguma periodicidade no Planetário. Futuramente,
também gostaria de pensar novas sessões que possibilitassem interatividade e
construção coletiva.
Este momento do meu percurso artístico me lembrou o conto sobre as flechas
que marcou a vida de Giordano Bruno (COSMOS, 2014). Este conto apresenta uma
narrativa em que um personagem lança flechas pelo universo que viajam por longas
distâncias até que atingem um muro, que pode ser escalado e, assim, pode-se
lançar uma nova flecha que viaja até atingir outro muro, e acima deste pode-se
lançar outra flecha, e por aí se pode continuar eternamente. Por meio deste conto
ele percebeu a infinitude e complexidade do universo. Simbolicamente, a arte é a
minha flecha que lanço no cosmos, bem como as experiências às quais seus
percursos me levam, que são por demais diversos e, provavelmente, inesgotáveis e
sempre surpreendentes.
75

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