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2 Romário José Borelli

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Curitiba – Paraná
2006

Romário José Borelli


O Contestado 3

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© 2006 Romário José Borelli

Produção Orion Editora

Ilustração da Capa Márcia

Projeto Gráfico
e Diagramação Tássia Vidal Vieira

Revisão de Texto Maria Fernanda Gonçalves


e Provas Silvana Seffrin

Fotolitos, Impressão
e Acabamento Gráfica Reproset

Dados internacionais de catalogação na publicação (CIP)

Borelli, Romário José


O Contestado / Romário José Borelli. – Curitiba: Orion Editora, 2006.
Bibliografia
ISBN 85-98093-02-5
1. Guerra do Contestado – Brasil. 2. Teatro. 3. História do Brasil.
4. Messianismo. 5. Coronelismo. 6. Linguagem regional.

Direitos reservados Orion Editora


Rua Serafim Lucca, 111, Santa Felicidade
82320-400 – Curitiba – PR – Brasil
Tel. (41) 3272-4940
orioneditora@terra.com.br

Impresso no Brasil 2006

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Dedico este livro a Augusto Salvatori Borelli,
meu avô. De tantas palavras cintilantes que tenho
para defini-lo, a que mais brilha é generosidade.

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Sumário

9 Agradecimentos
11 Apresentação da peça teatral O Contestado na Universi-
dade de São Paulo (1974), por Duglas Teixeira Monteiro
13 Introdução
29 O Contestado
143 Notas para as montagens
145 Glossário coloquial e histórico do Contestado
155 Bibliografia

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Agradecimentos

Tenho um carinho muito especial por todos aqueles que susten-


taram esta peça no palco em momentos críticos da história cultural
do Brasil, muitas vezes arriscando-se durante a ditadura. Mais de
500 atores já trabalharam nela, por isso é quase impossível citar
todos nestes agradecimentos.
Devo agradecer particularmente ao Grupo Temporá, de Ca-
çador/SC, que durante quinze anos encenou este texto, dirigido por
Avito Correa. Eles têm essa natureza estóica dos heróis que não
se deixam abater pelas dificuldades. Enfrentam tudo em nome de
uma causa, pelo amor, pela poesia, pelo ideal. É graças a grupos
como esse que a cultura brasileira sobrevive.
Duas mulheres se destacam na trajetória da peça, pelo que
fizeram de revisões, datilografias incansáveis e críticas: a socióloga
Regina Maria Sampaio e a antropóloga Sandra Jaqueline Stoll. Com
o amor e o apoio que recebi de ambas, em diferentes momentos
de minha vida, consegui caminhar desde a primeira montagem até
esta edição.
Que os Pares de França do Exército Encantado proteja a todos!

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Apresentação da peça
teatral O Contestado
na Universidade de
São Paulo (1974)
Duglas Teixeira Monteiro
Prof. Dr. do Departamento de Sociologia da USP
Autor do livro Os errantes do novo século

Numa transposição artística vívida, Romário José Borelli nos


põe em contato com um momento dramático, mas esquecido, da
história republicana. Da mesma maneira que nos fatos em que
fundamentou sua elaboração poética, as personagens aqui postas
em cena são homens e mulheres do povo oprimido do sertão.
Suas ações não chegaram a ocupar a historiografia oficial
mais do que o modesto lugar de pequenas notas de pé de página e,
isso mesmo, porque conseguiram perturbar o curso de um suposto
destino nacional.
Como nos casos de Canudos e, secundariamente, de Juazeiro
do padre Cícero, a rebeldia religiosa pôs em evidência as profundas
raízes de nossa formação como povo. Identificá-las num ato de sim-
patia e intuição, mais do que de inteligência, não é fácil, recobertas
como estão por uma ganga de incompreensões e preconceitos.
O autor, entretanto, conseguiu, talvez por ser filho da mesma
terra onde lutaram os irmãos do Contestado e, certamente, por ser
poeta. Seja como for, retirou do limbo esse episódio marginal de
nossa história, buscando-lhe as dimensões humanas universais.

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Introdução
“Não conteste o Contestado
sem saber sua razão.”
(Paris, 1971)

Comecei a escrever O Contestado quando estava na França


com o Teatro de Arena, em 1971. Eu brincava com as idéias, rabis-
cava algumas frases musicais, como esse refrão da abertura, mas
a coisa não andava.
Lá mesmo mostrei o que tinha para o ator Lima Duarte,
que estava no elenco do Arena e com quem tinha muita amizade.
Ele perguntou: “Sim, e daí?” Eu não tinha mais nada para dizer,
naquele momento. Faltava-me documentação e conhecimento para
encarar o projeto e, com as incansáveis viagens do Teatro de Arena,
faltava-me sossego, bibliografia e lugar para sentar e estudar. Eu
não sabia, então, que poderia ter começado a estudar lá mesmo, já
que a primeira tese sobre o Contestado foi defendida na Universi-
dade Sorbonne, pela Profa. Dra. Maria Isaura Pereira de Queirós,
da USP, em 1957.
Eu estava ansioso para voltar ao Brasil e pegar um velho
caderno no qual anotara, nas férias escolares, aos meus 17 anos,
inúmeras expressões da linguagem regional, formas de construção
e até algumas referências históricas. Acompanhando um primo

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que trabalhava para o Banco do Brasil, e que controlava pequenos
empréstimos para os lavradores, eu ia no seu jipe pelas serras ao
norte de Santa Catarina. Conversávamos com os moradores:
– Buenas! Estou procurando seu Sebastião!
– Bastião? É bem eu memo. Mecê se achegue.
– O senhor mora aqui faz tempo, seu Bastião?
– Esses bagurotinho (as crianças) nascero tudo aqui, mas
eu e a muié vinhemo co´as trempe ali do Paranã.
– E o senhor trabalha na lavoura?
– Eu tenho uma rocinha só pras percisão, qu’eu sô toreadero.
– Toreadero?
– É, luito com as tora aí nos mato, quando dá. Se esmoreja,
toco o carijo e as lavora.
Aquele modo de falar era tão diferente de tudo quanto eu
ouvira que me parecia quase um dialeto regional. Mais que isso,
parecia-me que vinha de uma outra dimensão no tempo, uma rea-
lidade do passado que sobrevivia incrustada no presente e que
resistia graças ao isolamento daquelas serras. Isso me encantava.
Tinha a magia de uma viagem no tempo.
Nos anos 50 e 60 do século XX não havia eletrificação rural.
As poucas estradas eram precárias e muitos moradores do interior
de Santa Catarina ainda viviam quase da mesma forma que seus
pais e avós. Sem muitas influências externas no seu meio, sua lin-
guagem e seu modus vivendi preservavam-se.
Embora eu não soubesse o que fazer com aquelas infor-
mações, mesmo sem ter um projeto em mente, fui anotando o

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que podia. Aquela minha etnografia intuitiva visava, talvez, um
aproveitamento literário futuro. Mas como faria isso? Não tinha a
menor idéia.
Essa “etnografia” de férias ficou num fundo de baú, esqueci-
da por muitos anos, até que lembrei dela quando estava em Paris,
durante uma das viagens com o Teatro de Arena. Em 1971 o Tea-
tro de Arena encerrou sua trajetória internacional, depois de uma
tumultuada reunião num hotel em Paris. A trajetória nacional já
havia sido encerrada pela polícia. Depois de tantos percalços políti-
cos, voltei ao Brasil. Meu passaporte não era exatamente falso, era
“alterado”, já que no item profissão (requerido nos passaportes de
então) apresentava-me como “comerciário”. Recurso utilizado para
não chamar a atenção para nossa condição de artistas de teatro,
agravada mais ainda por pertencermos ao Teatro de Arena, marca-
damente socialista e agente da luta contra a ditadura.
Meses depois prestei vestibular e entrei para o Departamento
de História da USP. Lá completei uma primeira versão teatral de O
Contestado.
Dez anos depois de realizar aquelas anotações em Santa
Catarina, e alguns meses depois dos esboços em Paris, ficou-me
claro que a peça teatral só poderia ser escrita com aquela linguagem
de meus registros, aquele “caderno de campo” com as anotações
da linguagem regional, e que era seu último suspiro, antes que
esta fosse triturada pela expansão das telecomunicações no Brasil,
pelo acesso viário, pela dissolução das relações de compadrio, pela
falência do sistema extrativista diante de uma economia que se
modernizava... e todas essas coisas que se sabe.

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Logo em seguida pude constatar o triste momento em que o
caboclo, descobrindo o mundo transformador que chegava à sua
porta, envergonhava-se de sua condição e tentava dissimular sua
natureza, aculturando-se apressadamente.

Montagens da peça durante a ditadura

Ao escrever a introdução deste livro, vem-me uma revoada de


imagens ligadas às várias produções da peça, desde sua primeira
montagem em 1972. Esse histórico, profundamente determinado
pela produção cultural no Brasil, quase constitui uma história à
parte e merece algumas anotações que servem para ilustrar como
a discussão de nossas questões sociais, nossa história, esteve
emperrada por mais de vinte anos.
Em 1972, depois de ganhar um prêmio de dramaturgia na
TV Cultura de São Paulo, com a peça Olhos e ouvidos, consegui
apoio do Governo de Santa Catarina – governador Colombo Sales
– para uma produção de O Contestado. Isso foi feito graças a duas
pessoas, que muito deram de si para a vida cultural em Santa
Catarina: Mauro Amorim e Augusto de Souza.
Comecei a viajar para Santa Catarina toda semana. Naquele
ano, fiz mais de trinta viagens entre São Paulo e Santa Catarina.
O Mauro era jornalista de O Estado e o Augusto dirigia o Depar-
tamento de Cultura. Mesmo assim, para levar o projeto adiante
sem ter problemas com a censura, eu precisava dourar a pílula. A
simples palavra contestado já seria censurada naqueles tempos. É
uma palavra por si só subversiva, os censores da ditadura (período

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Médici) nunca suportariam. Para passar com o título e o tema na
primeira montagem, fiz uma miscelânea com a história de Santa
Catarina que hoje me parece um absurdo.
Coloquei na abertura do espetáculo uma alegoria que ia
desde os Protegidos da Princesa (escola de samba de Floripa) até
Hermann Blumenau, Cruz e Sousa, Anita Garibaldi... Era uma
máscara de ufanismo barriga-verde que mais parecia o “samba do
catarinense doido”. Na segunda parte encenávamos O Contestado,
na qual se delineava o tema da guerra. O Augusto de Souza diri-
giu a primeira montagem em Santa Catarina. A censura engoliu
a fórmula sem nos molestar. Fizemos a estréia em Joaçaba, numa
cancha de basquete, para uma platéia de 4.500 pessoas, em setem-
bro de 1972.
Também foi nessa época, por ocasião da primeira monta-
gem da peça, que fundamos o Grupo de Teatro Armação em
Florianópolis e construímos o Teatro Trapiche, transformando
um velho armazém instalado no Miramar num teatro de 120
lugares (depois destruído pelo aterro em frente à Praça XV). Ali
ficamos com O Contestado cerca de um mês. Foi um ano de
trabalho intenso e muito produtivo, que alimentou o interesse pelo
teatro em vários jovens do elenco. Estes depois deram seqüência
ao Grupo Armação, de tal forma que ele existe até hoje, embora
não tenha mais nenhum vínculo com as propostas iniciais nem
conosco, seus fundadores.
O Grupo Armação daquele tempo colocou em discussão o
maior movimento messiânico do Brasil. Arrancou-o do esqueci-

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mento e ergueu pela primeira vez, em cena, a bandeira branca com
a cruz verde, pavilhão dos “fanáticos”. O povo humilde e massa-
crado pela história dos vencedores pôde então falar. E falava com
sua própria linguagem, conservada naquelas anotações de meu
caderno.
Em 1974, em São Paulo, resolvi montar a peça O Contestado
no Departamento de História da USP, com estudantes da univer-
sidade e alguns profissionais que se agregaram, inclusive Rodrigo
Cid, cenógrafo de Morte e vida severina.
Para essa montagem, retirei todos os subterfúgios de texto
que visavam confundir a censura, ampliei as discussões, criei cenas
e músicas novas. O novo texto foi para a Polícia Federal e voltou
com vários cortes, embora tenha sido liberado. Dava para montá-lo
sem muitas perdas, pois a essência ainda estava lá.
O que mais me preocupava nessa montagem era a linguagem
impregnada de termos regionalistas de Santa Catarina e do Para-
ná. Não sabia se os paulistas iriam entender. Mas não! Depois de
alguns minutos de espetáculo, já se percebia que o público podia
entender aquela linguagem e estava absolutamente integrado. A
montagem, que deveria permanecer uma semana em cartaz, teve
tanta afluência de público que fomos obrigados a mantê-la em cena
por mais de um ano, com apresentações diárias. Só paramos nas
férias de dezembro.
Fato interessante, mas doloroso, daquele tempo é que a cen-
sura liberou a peça, mas depois, diante do sucesso, parece que se
arrependeu. Eles poderiam simplesmente proibir a qualquer hora,
mas isso criaria uma polêmica ainda maior e transformaria a peça
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em mais um ícone de resistência. Eles já tinham muitos problemas
dentro e fora do campus, então resolveram apenas assustar e atra-
palhar. Uma vez alguém deu um tiro no vidro do meu fusca. Algu-
mas vezes apagaram a luz da cidade universitária bem na hora de
começar o espetáculo. Quando isso acontecia, eu e o assistente de
direção, Moraci Oliveira, abríamos as portas laterais do anfiteatro
e colocávamos nossos carros com o farol alto dirigido para o palco
e, assim, apresentávamos a peça. Com o teatro lotado, estávamos
mais ou menos seguros, e depois saíamos em grandes blocos com
o público (empurrando os carros sem bateria).
Nessa temporada, o professor doutor Duglas Teixeira Mon-
teiro, um dos maiores especialistas na questão do Contestado
(autor de Os errantes do novo século), deu-me a honra de assinar
a apresentação da peça, texto que abre a presente edição.
No fim de 1975, saímos da universidade e fomos para o Tea-
tro Aplicado, no centro de São Paulo. Dois anos depois, fomos
convidados para inaugurar o Teatro Célia Helena, com mais quatro
meses de temporada. A cenografia e os figurinos dessa montagem
eram de Rui Othake.
Quando começaram a soprar as primeiras brisas de redemo-
cratização no Brasil, com a reabertura do Congresso Nacional,
depois a suspensão do AI-5 e a Lei da Anistia, o Governo do Paraná,
sob o comando de Ney Braga, resolveu fazer grandes produções
teatrais e programou para o Teatro Guaíra, no segundo semestre
de 1979, Rasga coração, Macunaíma e O Contestado.
Emílio di Biasi, prestigiado diretor paulista, era apaixonado
pelo texto. Convidei-o e ele dirigiu essa montagem com os melho-
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res atores do teatro paranaense. Dessa produção também saiu o
primeiro disco com as músicas da peça, pelo Museu de Imagem e
do Som (MIS) do Paraná. Em 1980 esse elenco paranaense viajou
por vários estados brasileiros. De lá para cá, sucederam-se mais de
vinte montagens em universidades do Paraná, de Santa Catarina
e de São Paulo.
Agradeço imensamente a todos aqueles que me ajudaram
a colocar O Contestado em cena desde sua primeira montagem.
Muitas vezes, além de atores, tiveram que ser pessoas de extraor-
dinária coragem.

O Teatro de Arena de São Paulo

Estudei música desde os meus 6 anos de idade (acordeom,


depois piano, depois violão) e cheguei a São Paulo, com 18 anos,
quando começava a Bossa Nova. Fui estudar violão com Roberto
Ribeiro, um grande músico que acompanhava Agostinho dos Santos.
Com essa base, logo a vida me aproximou de um teatro que
mesclava uma dramaturgia moderna com a música de Edu Lobo e
um sentido político da arte: o Teatro de Arena. O Arena trabalhava
essencialmente com a história do Brasil e suas raízes, usando-as
como metáforas para propor reformas sociais no Brasil e, ainda,
usando a história como paráfrase para resistir à ditadura.
Eu não poderia ter escrito esta peça se não fosse o aprendi-
zado adquirido em vários anos de trabalho como músico no teatro
brasileiro. Toquei em Arena conta Zumbi, Arena conta Tiradentes,

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Morte e vida severina, Feira Paulista de Opinião e Roda viva,
entre outras peças.
No Teatro de Arena de São Paulo, fiz toda a base de minha
escola teatral como músico e dramaturgo e fui impulsionado para
os estudos de história e a busca das raízes culturais do Brasil.
Em O Contestado quis, propositadamente, usar o modelo do
Teatro de Arena para lidar com a história. Não tive a pretensão de
criar uma estética nova, por vezes cobrada pelos críticos. A base
desta peça é nascida do trabalho do Teatro de Arena e dos estudos
e intensa vivência com o teatro épico e dialético de Brecht.
Os vários anos de trabalho com Augusto Boal e Gianfran-
cesco Guarnieri foram fundamentais para essa formação. Além do
aprendizado de teatro em si, a aventura de fazer teatro naqueles
tempos politicamente obscuros e de participar tão ativamente da
história cultural daquele momento nos propiciou uma extraordiná-
ria vivência.
O que mais me impressionava naquela época era a profusão
de conhecimento que circulava no meio teatral. Ler-se uma crítica
de Anatol Rosenfeld, de João Apolinário, de Alberto D’Aversa, de
Clovis Garcia, era tomar uma aula de teatro, cultura, humanidade.
Em todos os meios via-se o lampejo dos talentos. Quando
ouvi a música que Edu Lobo fez para Arena conta Zumbi, em
1965, fiquei perplexo (como ele pôde fazer aquela obra monumen-
tal quando tinha apenas 18 anos?) Isso ainda me deslumbra. Tocar
suas músicas sempre foi um ato de contínuo prazer e inesgotável
aprendizado. Outros compositores de grande talento circulavam

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pelo Arena: Theo de Barros (de Disparada), Gilberto Gil, Caetano
Veloso, Sidney Muller, que fizeram a música de Arena conta
Tiradentes. Lá também conheci Chico Buarque, Toquinho e César
Roldão Vieira.
Faço questão de dar um destaque especial para o maestro
Carlos Castilho, primeiro diretor musical e extraordinário violonista
do Arena conta Zumbi, a quem tive a honra de substituir quando
deixou o Arena para assumir outras funções no mundo musical de
São Paulo. O Castilho traçou os rumos da direção musical de teatro
naqueles tempos. Seu talento foi engolido de forma desumana por
muitos que cresceram ao seu lado e ele morreu amargurado. Pena
que a história não pode ser refeita com o pedido de perdão que
muitos lhe devem. Onde você estiver, saiba que nós todos devemos
muito a você, Castilho, muito obrigado.
De qualquer forma, conviver e trabalhar com essas pessoas
na flor de meus 20 anos foi uma bênção em meu destino.
Além do Arena, envolvi-me profundamente com a música
de Chico Buarque, desde que fui organista de Roda viva, e de-
pois como diretor musical e violonista de Morte e vida severina,
na Companhia Paulo Autran, com a qual viajei por todo o Brasil
durante dois anos.

Magia do teatro

A relação magnética palco–platéia para mim não se compara


a toda a magia que se vive nos ensaios: quando se reúne um elenco

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de atores; quando se mergulha na estrutura literária de um texto;
quando aflora um personagem; quando se ensaia uma música e
vão chegando as soluções de cenário, figurino, luz, cartazes...
Parece que alguns atores estão “tomados de teatro” com tan-
ta intensidade que isso extravasa permanentemente por seus poros,
é todo o seu ser. Um momento sempre excepcionalmente vibrante
é o começo dos ensaios, quando o entusiasmo de um novo proje-
to, o reencontro com colegas, trazem essa vibração à flor da pele.
Vê-se que são pessoas que foram talhadas para isso. Não se pode
imaginá-las senão fazendo teatro.
Essas pessoas especiais com quem convivi contagiaram
toda a minha vida: Renato Consorte, Lima Duarte, Gianfrancesco
Guarnieri, Paulo Autran, Davi José, Antônio Fagundes, Carlos
Augusto Strasser, Dina Sfat, Hélio Ari, Antônio Ganzaroli, Antonio
Pedro, Célia Helena, Yara Amaral, Flávio Império, Carlos Castilho,
Fauzi Arap, Luís Serra, Umberto Mangani, Zanoni Ferrite... Gente
de teatro.
Os diretores com quem trabalhei, além de acrescentarem uma
vivência intensa ao meu amor pelo teatro, sem dúvida me propicia-
ram momentos inigualáveis de aprendizado nas horas e horas de
ensaios. Além de Augusto Boal e das peças do Arena, devo citar
Silney Siqueira (Morte e vida severina), Fauzy Arap (Macbeth),
José Celso (Roda viva) e Afonso Gentil, este meu primeiro diretor
e mestre, para quem musiquei oito peças encenadas com grande
sucesso em São Paulo.

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Foram centenas de nomes que me inspiraram e orientaram,
com os quais pude levar à cena a cultura brasileira num dos mo-
mentos mais difíceis de sua história.

Teatro Hiperbólico
Contestado: a fúria cabocla

Até o momento desta edição, mais de quinhentos atores já


trabalharam em cerca de vinte montagens desta peça, de São Paulo
ao Rio Grande do Sul.
O número de atores foi extraordinariamente acrescido em
2005, com a montagem da peça em praça pública em Caçador,
Santa Catarina. Só ali mais de duzentos atores participaram da
montagem feita com técnicas do Teatro Hiperbólico de Ginaldo
de Sousa. Esse tipo de espetáculo, preparado para um público de
milhares de pessoas com o áudio previamente gravado, mescla
o trabalho de atores com cinema, coreografias, equipamentos –
carros, trens, navios, canhões e até aviões – e animais, que entram
em cena.
Fui assistente de Ginaldo de Sousa no Rio de Janeiro e co-
dirigi uma de suas montagens em Curitiba sobre o Centenário da
República. Ele inventou esse tipo de teatro, que hoje em dia todos
copiam sem lhe dar os devidos créditos.
As modernas tecnologias de gravação, difusão de som, ilumi-
nação, computação e até de acomodação de público permitiram que
esses espetáculos atingissem uma precisão inigualável. E, principal-
mente, atingissem platéias numerosas. Nós, homens de teatro, sempre
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temos preconceito de fazer essas coisas um tanto mecanizadas. Mas
devemos lembrar que, quando se vê um filme, o áudio e a imagem
foram pré-gravados, o que não impede o espectador de avaliar o
trabalho do ator e de ser tocado pela obra cinematográfica.
O Teatro Hiperbólico funciona como uma espécie de dubla-
gem ao contrário. Na dublagem, como sabemos, o ator coloca a
voz sobre uma imagem pré-gravada (filmada). Nesse tipo de espe-
táculo, o ator coloca a imagem sobre uma voz, a própria voz pré-
gravada.
Pude perceber que os espetáculos do Teatro Hiperbólico
estão sujeitos aos mesmos acidentes de ritmo e variações da inter-
pretação a que estão sujeitos os espetáculos teatrais tradicionais.
Até porque as cenas ficam divididas em diferentes arquivos do
computador que gera o áudio, e essas entradas e saídas são
gerenciadas pela própria direção. Além disso, o trabalho do ator
em cena tem que ser reforçado por uma absoluta concentração
na postura e no gestual cênico. Quem trabalha com teatro sabe o
quanto isso pesa na hora de garantir o nível de uma encenação.
Dirigi um espetáculo desses para os 350 anos de Paranaguá,
em 1998. A história da cidade foi apresentada numa praça à
beira-mar para 30 mil pessoas. Entrava até um navio (réplica de
uma caravela) em cena. Em 2005, convidado pelo Governo de
Santa Catarina, resolvi enfrentar um projeto gigantesco: fiz uma
adaptação de O Contestado e a dirigi numa encenação em praça
pública. Numa imensa arena numa praça da cidade de Caçador,
colocamos 250 pessoas atuando, cantando, cavalgando, lutando,
num espetáculo que durava 1 hora e 45 minutos. Até um trem
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de verdade entrava em cena. Em seis dias de apresentação, quase
30 mil pessoas assistiram ao espetáculo. Foi muito gratificante ver
aquele público emocionar-se com sua própria história no espetáculo
que chamamos de Contestado: a fúria cabocla.

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Ilustração de Agostinho Gisé.
Folha de S. Paulo, 28 de junho de 1977.
Estréia no Teatro Célia Helena.

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Atores prostrados no chão do palco, no escuro. Luz em resis-
tência, abrindo um foco sobre os músicos. Violeiro canta ao
fundo do palco.

Por favô, peço atenção


E que me escuite com cuidado
Vô cantá neste tabrado
Com viola, peito e emoção.
Sertanejo bem armado,
Que rasgô este sertão
“Não conteste o Contestado
sem sabê sua razão.”

Repete “Não conteste o Contestado...” várias vezes, enquanto


a luz se abre em resistência. Os atores vão acrescentando
suas vozes ao refrão, ao mesmo tempo em que se levantam
lentamente. A idéia básica é de ressurgimento dos mortos na
Guerra do Contestado.

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“Não conteste o Contestado
Sem sabê sua razão...”

Vozes distribuídas entre o elenco, solo de duas vozes com in-


tervalo de terça. Coreografia de ocupação do palco.

Este canto sertanejo


Abre história que aqui vai
Que se deu desde o Iguaçu
Inté as banda do Uruguai.

Por um tá de Zé Maria
Dito santo e benzedô
Levantô-se o povo armado
Só de vê dava tremô.

Galopando nos piquete


Assustando nas bataia
Com guampa, grito e com reza
Com facão, tiro e tocaia.

Preparô uma tá fuzia


No esquentá do entrevero
Que os peludo se assustaro
Que os sordado inté correro.

Mais de vinte mi jagunço


Nos reduto bem armado

32 Romário José Borelli

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Combatendo inté a morte
E o famoso Contestado.

Vô cantá neste tabrado


Meu canto que é vocação
“Não conteste o Contestado
Sem sabê sua razão.”

Alguns atores se concentram no meio do palco como


se estivessem capinando. Os outros cantam a descrição
introdutória e saem de cena.

As vozes O sor quente rebenta a pinha


(em terças) Que se espaia na coxia
Espaiando em serra acima
Todo o povo sertanejo
Maragato refugiado
Vindo lá de Vacaria
Poncho véio, pingo magro
E as história da porfia.

O sor quente rebenta o broto


Parece que ainda vejo
Espaiado em serra acima
Todo o povo sertanejo
Trabaiando nos carijo
Nas fazenda, nos roçado

O Contestado 33

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Corpo magro, braço rijo
Pé no chão, facão do lado.

Varava este sertão


O monge São João Maria
Com benzedura e pregação
Que o povo ainda glorifica
C’um oratório e um bordão
Gorrinho de jaguatirica.

Palavras de profecia
E velas pra escuridão
Por esta luz que me alumia
O que ele fez ninguém explica
C’um oratório e um bordão
Gorrinho de jaguatirica.

Quem ora pra João Maria


Seguro não reza em vão
Lhe dê a mão como seu guia
Pois ele atende a quem suplica
C’um oratório e um bordão
Gorrinho de jaguatirica.

CORTE DE LUZ

34 Romário José Borelli

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Miano irrompendo ansiosamente na cena da capinação.

Miano Ei, pessoá! Larga essas enxada que eu


trago novidade! Vem aqui escuitá! Meceis
se acheguem!

Capinador 1 Que novidade é essa mais ansiada! Vá


falando logo que nóis temo que carpi esse
terreno inté a hora do armoço.

Miano Ah, ah! A novidade é que João Maria tá pra


chegá!

Capinador 2 O João Maria? O santo benzedô?

Miano É bem ele memo! O santo que anda por


todo este sertão! Um cavalero tá correndo
os caminho e avisando todo mundo pra
que venha arrecevê São João Maria!

Capinador 3 Mais como é...

O Contestado 35

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Miano Ele disse que o João Maria tá cruzando os
caminho com benzedura e pregação. Fais os
maió dos milagre e não cobra dinheiro, nem
posada! Diz que inté veneno de cobra o home
sabe sará! E os pau-de-bugre seca numa
semanada se o João Maria passa perto!

Capinador 2 Que barbaridade!

Capinador 1 Ah, essa não! Essa história tá me parecendo


espichada.

Miano Que espichada o quê! O home é de respeito e


tem muito mais: diz que ele benze as prantação
e não tem gafanhoto que se achegue! Diz que
ele batiza as criança e onde pernoita ergue
uma cruis de lenha que acaba frorescendo!
(Espanto geral. Alguns exclamam “Santa
Bárbara!”) Diz inté que se o João Maria bebe
narguma fonte ela não seca nunca mais!

Capinador 2 E pra quando é que chega o santo?

Miano O santo já varô o Maratá! Deve de chegá


hoje de noitinha. Ele segue de a pé pelos
caminho. Vamo lá, pessoá! Se aperpare pra
arrecevê o home santo que eu inda vô por
aí avisá mais gente!

CORTE DE LUZ

36 Romário José Borelli

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Nhô Pedro conversa com um agregado, enquanto Gumer-
cindo, em segundo plano, espera para fechar um negócio.

Nhô Pedro Não quero sabê! Não quero sabê! Pra mim
o que interessa é que ele pire daqui o mais
antes que dé! Vô dá um dinherinho pra ele,
e ele que trate de pirá daqui da minha zona.
E avise que o home que fartá um dia na
tirage da erva-mate pra se fazê corrê atrais
do tá de monge, no dia seguinte num carece
vortá! Tá cheio de caboco procurando
empreita. Vamo vê se a tá de benzedura dá
o que comê pra eles. É uma inorança!

Lara Tresontonte, em Valões, tinha pra mais de


cinqüenta famia na reza.

Nhô Pedro Pra isso tá todo mundo ligero!... É uma


vagabundage... E veja que ninguém me faça
capelinha e essas coisa que é do costume
O Contestado 37

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da inorança, por onde o tá de... esse aí,
como é o nome dele?

Lara João Maria.

Nhô Pedro É, esse memo! Que ninguém me dê siná


de cruis nos pernoite dele. Nóis tamo é
carecendo de uma outra missão do padre
Rogério pra endireitá esse povo!

Lara O causo, nhô Pedro, é que tão falando que o


João Maria é santo... e tá fazendo milagre.

Nhô Pedro Santo, santo! Santo sô eu que assustento


vanceis tudo! Isso é que é milagre!
(Lara intermeia algumas palavras de
concordância, como “sim, sim”, “o senhor
tem razão”.) Onde é que vanceis ia trabaiá
se não fosse na tirage da erva-mate aí dos
meu terreno, ô então na serraria que mandei
fazê? Hein? Onde é que vanceis ia fazê as
provisão se não fosse no meu armazém?

Lara O senhô tá certo, coroné.

Nhô Pedro Vanceis não tem idéia do progressio que


eu dei pra essa região. Mais tô avisado,
o mundo tá cheio de ingratidão... E ande
cumpri as orde! Vá cuidá que essa gente
que tá atrais desse jaguara não me roube

38 Romário José Borelli

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os pomá, nem me seque o leite das vaca
da invernada. E se essa gente vará argum
potrero meu, sorte a cachorrada em cima!
Se fô perciso pode inté dá uns tiro... pra
assustá! Ande! (Lara se retira e nhô Pedro
se dirige a Gumercindo, que esperava
timidamente.) Vamo vê Gumercindio,
quantos mirréis vancê tá querendo pelo
mate?

Gumercindo Bem, nhô Pedro, a erva é da boa e eu tô


muito percisado...

Nhô Pedro Percisado tamo tudo nóis! Vá falando logo


o prêcio.

Gumercindo Tô querendo cinco mirréis a arroba.

Nhô Pedro Pois isso o quê! Vancê perdeu o juízio? Tá


muito caro!

Gumercindo Mais só vai dá umas vinte cangaia e os


polaco tão pagando isso!

Nhô Pedro Então vá vendê pros polaco! Vá vendê


pros polaco e adespois venha me contá se
arreceveu. Pegá teu mate eles pega... inté
vão buscá no teu carijo, mais na hora do
pagamento eles vão negaceá e si vancê

O Contestado 39

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insisti ainda vai acabá recebendo uma
sumanta de arreio grosso no lombo.

Gumercindo Isso não, que não sô home de fechá a boca


por intimidação.

Nhô Pedro Deixa de galisená aqui no meu terreno!


Mete tua erva-mate nas cangaia e trais pra
cá. Eu te dô treis mirréis a arroba, bem
pesada.

Gumercindo Só treis? Passei dois meis no fumaré do


carijo, tô inté intochicado.

Nhô Pedro Tô te fazendo um favô que faço pra poca


gente. Não careço do teu mate. E vancê não
carecia de fazê aquela imitação de carijo
pra secá tão poca erva. Podia se asservi
do meu barbaquá. O que adiantô? Vancê
não quis dependê de mim e agora tem que
me entregá o mate pra eu vendê em Porto
Amazona.

Gumercindo É bem isso memo, nhô Pedro, mais...

Nhô Pedro Eu sei o que que é isso: é desconfiância que


tô vendendo o mate mais caro na hora que
entrego em Porto Amazona. E tô memo!
Nem podia sê diferente. Pra isso eu tenho o
trabaio e risco de mandá inté lá. E vanceis

40 Romário José Borelli

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não entende de comerciá... um negócio só
é bão quando todo mundo ganha. Mais
eu não careço de vanceis. São vanceis que
tão carecendo de mim. Se vanceis pudé se
organizá pra vendê o mate direto em Porto
Amazona, é mió pra mim. Esse negócio só
me dá dô de cabeça. Quarqué hora eu vendo
essa merda toda e vô m’imbora daqui.

Gumercindo Dexe disso, nhô Pedro. O senhô não pode


deixá nóis aqui.

Nhô Pedro Bem, então tamo acertado. Treis mirréis.


Aminhã quero vê tuas cangaia puxando o
mate pro paió do Iguaçu. Metemo tudo no
vapô do Marconde e mandamo tudo pra
Porto Amazona.

Gumercindo (Vai saindo desolado.) Tá bão.

Nhô Pedro Adespois vancê vem acertá tua conta aí no


armazém, que me parece que ela já tá meio
crescida.

Gumercindo Tá certo. Inté.

CORTE DE LUZ

O Contestado 41

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Duas lavadeiras ajoelhadas esfregando roupa na beira de
um riacho.

Mercedes Como é que tu vai casá, guria, se tu não


sabe nem lavá uma peça de ropa? Vancê
carece de sê mais ladina.

Etusa Eu aprendo.

Mercedes Fazê bobage garanto que tu não carece de


aprendê. O mundo tá virado... tá co’as tripa
de fora. Força com esse trapo, ansim, ó!

Etusa É muito pesado!

Mercedes Pesado... um paninho desse e ela diz que é


pesado. E segura essa ropa direito, senão tu
ainda vai perdê a ropa no rio. Despois anda
estendê isso. O pessoá já tá caminhando
pra encontrá o santo e nóis inda temo que

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pegá o Marinho pra batizá. Vergonha! Um
arrelaxo dos pai, um piá daquele tamanho
andando por aí sem batismo. Pagão como
um bugre... por aí c’uns bodoque e uns
pelote derrubando passarinho.

Etusa Como é que eles ia fazê se não tinha quem


pudesse batizá?

Mercedes Quem qué, procura. Mais o pai dele, aquele


lá, não sei nem se ele casô direito. Eu não
vi a bença. Apareceu por aí de repente
com uma negrinha trapêra dizendo que
era muié. Muié, é?... Hoje é tudo ansim...
“Casemo lá em Treis Barra”, disse ele. Ah!
E aquela é outra como vancê: pra lavá um
trapo, géme como se tivesse tendo um fio...

João (entrando em cena) Comadre, vancê não


vai?

Mercedes Tamo indo, tamo indo. Antes vô buscá o


Marinho.

João Tem gente chegando de todo lugá.

Mercedes Não carecia nem dizê. Quarqué motivo é


bão pra tirá essa gente de casa, meno o
trabaio. Tô sabendo que já se achegaro

O Contestado 43

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co’as viola, os baraio e tudo mais. Já tão
querendo fazê baile na pregação. Inté posso
apostá que a pinga tá correndo sorta ali
na bodega do Zé Luiz e ante memo de o
santo chegá a metade já vai tá bebo e inté é
possive de tê um esfaqueado lá no chão.

João e Etusa trocam olhares de interesse. Mercedes finge que


não percebe, mas suas palavras refletem sua posição.

João Que que é isso, comadre? O pessoá tá c’o


respeito.

Mercedes É, vamo vê. Se esse monge fô memo dos


bão, vai dizê o diabo pra esse povo. Essa
gente carece de pregação braba. A cruis na
mão direita e o rabo-de-tatu na outra.

João Comadre, o home é um santo e só sabe


dizê o bem.

Mercedes Pra dizê o bem se óia pra quem. Esse pessoá


carece de grito pra criá vergonha. Povinho
que só é ligero pra corrê pras bodega. Mais
vamo lá. Vamo vê o que acontece. E se esse
monge não falá o que deve, eu vô dizê pra
ele como é que deve sê.

44 Romário José Borelli

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João (sentindo-se atingido) Mas o pessoá tá
trazendo semente e fita pro santo benzê.
Eu tô levando uma vela.

Mercedes Quero só vê o que vai dá!

João Inté, comadre! (Retirando-se.)

Mercedes Inté. (Mercedes comenta:) Esse é otro


que carece de um cabresto.

CORTE DE LUZ

O Contestado 45

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Em novo foco, que irá se ampliar gradativamente, vê-se o povo se
concentrando à frente da bodega do Zé Luiz. As vozes se confun-
dem. Alegres ou tensos, todos agem em função da esperada vin-
da de João Maria. Ouve-se o burburinho das falas entrecruzadas,
risos, exclamações e mesmo um ponteio de viola ao fundo. Algu-
mas beatas já se põem a rezar, enquanto outros estão mesmo é
vibrando com o clima de festa. As mulheres já trazem véus e fitas
de medidas sobre os ombros, velas, terços. Falas entrecruzadas:

Nhazinha Esse João Maria já passô por aqui no


tempo que os Maragato tava fugindo do
Rio Grande, me alembro como se fosse
hoje. Nóis tava tudo escondido na serra, de
medo. Só saímo de lá quando o João Maria
veio fazê uma pregação. Agora ele deve de
tá muito véinho.

Elizeu Eu escuitei dizê que esse é outro João


Maria. Aquele do quar a senhora tá falando
já morreu fais tempo.
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Nhazinha Pode sê que seja, porque inté minha vó já
falava num tar de João Maria. Das veis eu
garro de pensá se o nome João Maria não
é um apelido que o povo põe nos benzedô.
Tarveis por conta de um de mais fama que
tenha passado ante de nóis existi.

Edinardo Óie aí, ó! (Largando quase meio saco


de milho no chão.) Tô trazendo essa
meia quarta de semente pra ele benzê e vô
sameá lá na serra.

Nhazinha Vancê vai vê como vai dá bonito.

Elizeu Óie quanto povo tá vindo aí!

Ozias Acho que o Zé Luiz devia de fechá a bodega,


hoje é dia santo.

Euládio (já meio tocado pela bebida) Por isso


memo é que a bodega tem que ficá aberta.

Elizeu Cadê o Xête? Xête!? (O menino Xête


apresenta-se: “O quê?”) Isso é manera
de arrespondê pro teu pai? (Xête conserta
a resposta: “Senhor?”) Amonte no zaino
e vá inté a barsa pra vê se o João Maria já
tá cruzando o Timbó.

Xête sai correndo.

O Contestado 47

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Nhazinha Óie, quando ele chegá no rio vancê venha
correndo avisá, daí nóis saímo em porcissão
pra arrecevê ele.

O menino desaparece.

Euládio Vamo tomá mais uma, compadre.

Nhazinha Vancê trate de criá vergonha! Seque esse


bico e se ponha de respeito pra esperá o
santo!

Josué Quanto vancê qué pelo cavalo?

Nhazinha Isso não é hora de negociá cavalo! Vanceis


dexe isso pra otra hora.

Chico (para um recém-chegado:) Cadê a


gaita?

Nhazinha Mais que gaita o quê! O que é que vanceis


tão pensando que viero fazê aqui? Vanceis
trate de se pô de respeito e se aperpará pra
arrecevê o santo.

Eliza Será que o coroné Pedro não vem?

Maria Ele tá mais é escoiceando de medo que o


santo fale das exproração que o povo sofre.

Tonho Nunca se viu tanta gente por aqui.

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Chico É um acontecimento!

Eliza Nhazinha, dissero que o João Maria fala


com Jesuis, é verdade?

Nhazinha É verdade sim, ele...

Xête (voltando afobado) Pessoá, pessoá! Ele


tá vindo aí! O João Maria tá vindo aí!

Exclamação geral e todos se atropelam na direção aponta-


da pelo Xête, sendo cercados pela Nhazinha.

Nhazinha Olhe aqui, vanceis, não vão saí ansim


como uma boiada. Vanceis trate de se
acomodá em fila de porcissão e vamo
segui pela estrada pra encontrá o santo.
As muié cubra a cabeça e os home tire o
chapéu... Quero vê todo mundo cantando e
rezando com muita fé. Vô puxá um verso
e vanceis arrepete enquanto nóis caminha.
(Nhazinha canta:)

“O pai véio João Maria


Não qué pôso nem esmola
Afasta a agonia
Batiza, benze e consola.”

(Todos repetem:)

Todos “Lá vem João Maria, a bença, a bença!”

O Contestado 49

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Cantam quatro vezes o refrão, apontando para dois lugares
diferentes da platéia.

O sol preparou o dia


No verde desta querença
“Lá vem João Maria, a bença, a bença!”

Repetem o refrão quatro vezes, com o mesmo gesto, e conti-


nuam cantando.

O povo corre pra estrada


Pra ver João Maria que vem,
Lenda veio antes dele
Pelo atalho da crença
“Lá vem João Maria, a bença, a bença!”

Repetem seis vezes com o mesmo gesto, levantando os bra-


ços com as mãos abertas na última vez, e caem ajoelhados,
enquanto João Maria surge diante deles.

João Maria Que Deus abençoe vanceis tudo!

Todos Amém!

João Maria Que Deus abençoe as criança, porque as


criança inda vão vê muita desgrácia. Vim
avisá que vem um tempo de muito pasto e
poco rasto. (Todos se mostram assustados.)

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O sangue vai corrê pela terra como os rio.
(Ouvem-se alguns soluços.) Vanceis
tem que tomá providença. A Guerra dos
Maragatos foi feia, mais não foi nada. Vem
uma guerra muito pió, e vem uma peste
de rato, e vem uma peste de chaga, inté as
ave vão se mudá daqui. Vanceis carece de
fazê penitença... Jesuis disse pra São Pedro
que o mundo ia existir mir anos, mais que
não ia passá disso. E Deus disse: “Faze que
eu te ajudo”... E o que é que vanceis estão
fazendo? Nada! (agressivo) Tão aí sem
tomá providença. Tão aí como os bicho!
(Ouvem-se mais soluços.) Mais eu aviso:
a cidade de Porto União vai desaparecê nas
água do Iguaçu! A cidade de Curitibano
vai virá tapera. Logo, logo, vanceis vão tê
treis dia de escuridão compreta. O sor não
vai passá no céu. Eu vejo muita desgrácia
diante de vanceis. Guardem velas pros dia de
escuridão! (João Maria sai caminhando
entre os fiéis ajoelhados, abençoando-
os e rezando. À medida que passa, eles
se levantam e o seguem, formando uma
procissão que se retira para o fundo do
palco, para fora de cena.) Pai nosso que
está no Céu... (Todos repetem.) santificado

O Contestado 51

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é o Teu Nome (Todos repetem.) Que nóis
possa segui no Teu Reino... (Todos.) E que
se cumpra a Tua Vontade... (Decrescendo
a distância.)

Luz cai em resistência.

Nhá Tertula e Tinho se preparam para dormir. Nhá Tertula


acende uma lamparina e canta:

“Quem pode guarda alegria


Pros dia de solidão.
Guardem vela, guardem vela
Pros dia de escuridão...”

Tinho Vó, o que é isso que a senhora canta toda


noite?

Nhá Tertula É uma oração do João Maria.

Tinho Aquele santo pra quem eu rezo?

Nhá Tertula É bem ele memo. Tinho, vancê arrecoieu as


grimpa?

Tinho Catei tudo. A senhora falô c’o João Maria?

Nhá Tertula Falei. Ele inté me curô de uma dô de cabeça


que eu tinha todo domingo, vancê não tinha
nem nascido. Vancê guardô a gamela e o
balaio?

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Tinho Tá tudo debaixo do fogão. O João Maria já
morreu?

Nhá Tertula Morreu nada! Santo não morre. Vancê


fechô direito as tramela?

Tinho Fechei tudo. (Responde irritado:) Todo dia


eu faço isso!

Nhá Tertula Arresponda direito! O lobisome vem pegá


guri marcriado!

Tinho Onte a senhora disse que era os bugre que


vinha pegá. E eu nunca vi bugre por aqui...
nem lobisome, nem boitatá, nem pau-seco,
nada dessas coisas que a senhora fala toda
noite.

Nhá Tertula Vancê ainda é muito piá pra tê visto quarqué


coisa. Vancê só é grande na marcriação.

Tinho Eu já andei por todo esse mundo, desde o


Pintado inté o Timbó e nunca vi nada.

Nhá Tertula Mais tem. Tá cheio de visage por aí. Vancê é


que nunca saiu de noite e essas coisa quage só
aparece no escuro. Os bugre memo só anda de
noite pra gente não vê que eles são muito feio.

Tinho E eles não dorme?

O Contestado 53

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Nhá Tertula Dorme muito poco... e quando dorme,
dorme de pé atrais de um pau. Bugre é
como preto, é diferente da gente, não carece
de dormi muito.

Tinho Outro dia a senhora disse que os bugre não


gosta de preto.

Nhá Tertula E não gosta memo. Nem os preto gosta


dos bugre. É um vê o outro que o zóio fica
vermeio de sangue. Por isso que os dois
quage não dorme... Cada um tem medo de
sê assartado quando tá dormindo. Então,
os dois fica sempre meio acordado...

Tinho Como tem gente diferente! (Caindo de


sono.) Preto, alemão, bugre... Onde é que
os bugre mora?

Nhá Tertula Agora mora lá nas tapera deles, lá no


Espigão. Ante morava tudo por aqui. Fomo
nóis que enxotemo os bugre daqui. Mais se
a gente descuidá eles vem aí e roba galinha,
porco... e guri marcriado. Das veis teu avô
tem que se alevantá de madrugada e dá uns
grito pra assustá a bugrada. Por isso nóis
arrecóie as gamela e as traia, senão eles
roba tudo. E esse teu guará é um cachorro
muito jaguara... é capais de acuá teu pai

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e dexá passá um bugre... E com eles não
adianta memo, porque eles fica lá no mato
piando... piu, piu, piu... como um macuco
ô quarqué bicho. Eles arremeda quarqué
bicho, o cachorro vai inté lá, eles dão uma
bordoada na cabeça do animá e despois
entra nos potrero pra robá o que dé... Uma
noite dessa tava uma buia aí no terreno,
teu avô saiu e tava uma arreunião de bugre
lá fora. Daí teu avô... Tinho... hã?... Tinho?
Tá me escuitando? Ah, dormiu e me dexô
falando sozinha!

Luz vai caindo em resistência.

Ouve-se galope de cavalo. Foco em um jovem cavaleiro che-


gando à casa. Nhá Tertula sai com uma lamparina na mão.

Nhá Tertula Que tropelia é essa? Quem taí?

Cavaleiro Boa noite, nhá Tertula! Não tenha medo.


Sô eu, o fio do seu Lauro. A senhora me
adescurpe...

Nhá Tertula Vancê tá muito variado. Pra mor de que


tanto galope na madrugada, meu fio?

Cavaleiro Meu pai foi ofendido de jararaca fais mais


de quatro hora e já tá variando.

O Contestado 55

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Nhá Tertula Que barbaridade! Vanceis já chamaro a nhá
Barbina?

Cavaleiro Nhá Barbina não tá em casa. Ela foi de


acavalo lá pro Pintado, pra mor de atendê
uma muié que vai tê criança. Eu vô procurá
o poso do João Maria.

Nhá Tertula Vai sê difice encontrá o santo. Depois que


passô por aqui o João Maria se introjô lá
pras grota do Taió. Temo que esperá inté
que ele vorte.

Cavaleiro Mais não pode sê! O pai já tá c’o veneno na


cabeça.

Nhá Tertula É, mais ninguém consegue vará aí pela


bugrada do Espigão. Só o João Maria
memo. Com ele os bugre não mexe. Mais
é só ele que consegue passá. Tresontonte
a bugrada matô dois caçadô e inda troxero
eles inté a picada da Imbuia-Quebrada e
pinduraro num pau pra fazê medo pra nóis
tudo. Ninguém mais se arroja por esses
brejo. Tamo acuado nesse pé de serra.

Cavaleiro Mais eu preciso sarvá o pai!

Nhá Tertula Óie, vancê não pode saí ansim pela noite. É
perigoso demais. Quarqué que se introje aí
pros mato leva frexaço de botocudo.
56 Romário José Borelli

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Cavaleiro Mais como é que eu vô fazê se tô com o
pai... quage morrendo? Só o João Maria...

Nhá Tertula Por aqui vancê não vai arresorvê. Vorte


pra casa e reze pro João Maria, é a mesma
coisa. Ele já curô muita gente ansim. Vancê
não carece de vará esse bugrero todo pra
mó de encontrá o santo. Óie aqui! Eu tenho
essa cuia de cinza benta, de um fogo que
o santo acendeu. Vancê leve um poco da
cinza pra tua mãe e ela que faça treis cruis
no lugá onde a cobra ofendeu, treis cruis
na testa do ofendido e treis cruis no lado de
fora da porta da casa...

Cavaleiro Mais será...

Nhá Tertula E vancê não pode desacreditá! Diga pra


tua mãe aperpará um cardeirão de chá de
espinheira-santa e faça ele bebê sem pará,
pra mijá o mais veneno que dé. Mais tô
dizendo que carece de muita fé. Vorte pra
casa. Aminhã cedo eu vô inté lá, visitá tua
mãe.

CORTE DE LUZ

O Contestado 57

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Quatro homens tomam uns tragos, fumam cigarro de palha
e jogam truco sobre uma pequena mesa. Mais dois homens
assistem ao jogo. Todos conversam.

Otaviano Nóis já tamo com seis tento. Vanceis não


vão se mexê?

Aparício A primeira quirera é dos pinto.

Otaviano E as galinha são da raposa. Vanceis tão


querendo é apanhá de bota.

Lura Tão porvocando demais. Dê as carta, compa-


dre, que agora nóis vamo mostrá pra eles.

Otaviano Acho bão memo, porque pra vê corrida eu


sorto os cachorro no mato, não careço de
vi na casa aieia.

Lura (para um dos que assitem o jogo:) Vancê


vai lá na festa de Porto União pra vê a
inauguração da ponte?
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Assistente 1 Essa eu não perco nem que chova canivete.
Diz que vem gente inté da Argentina pra vê
essa ponte.

Assistente 2 Já fui lá no Porto e vi o colosso. Já tá quage


tudo pronto. É uma barbaridade! São
trezento e setenta metro de ponte deitada
no Iguaçu. Já tem vagonete cruzando o
rio. Diz que só farta pô umas viga de ferro
ansim de arriba e pode metê a máquina.
(Soltando uma carta:) Pode co’essa?

Augusto Essa é pequena. Já fizemo a primera. Se


isso é tudo que vanceis têm, pode corrê de
novo.

Lura Vai crescê mato nas estrada boiadera.


Ninguém mais vai querê andá de acavalo e
carroça se pudé pegá o trem.

Otaviano Cuidado, compadre, eles tão falando da


estrada de ferro pra disfarçá o gato que tá
na mão. Ranca deles, compadre, que eu já
vi um siná. Ranca já! Despois eu... eu sô pé
e não sô quarqué.

Augusto Se tem gato miando, eu sorto os cachorro.


(Soltando outra carta:) Que tar essa?

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Assistente 1 Diz que os americano vão dá uma carneada
no dia que passá o trem. Diz que vão
matá vinte boi. Diz que tá todo mundo
convidado.

Otaviano (soltando uma carta:) Aqui não passa


cachorro magro!

Lura Bonita essa, compadre! Fizemo a segunda.


Sorte a otra aí que eu vô pô uma barba no
espadia deles. (Aparício solta sua última
carta.)

Otaviano Quero vê se tem home nessa mesa! Truco!


Reboco de igreja véia! Truco!

Lura Pensô que eu tava trovando de farso, é?


Seis, seis, caboco! Ah, ah, ah!

CORTE DE LUZ

60 Romário José Borelli

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Foco sobre duas lavadeiras.

Gardina Nunca mais se escuitô falá do João Maria.


Como é que um home daquele pode
desaparecê ansim? Nunca mais se teve
notiça. Fais ano que não se escuita falá
nada.

Leoir Muita gente não gostô das coisa que ele andô
dizendo por aí. Deus que me perdoe, mais
pra mim mataro ele. Mataro e escondero o
corpo em quarqué lugá. Tem gente capais
de tudo!

Leoir Credo em cruis! Um santo daquele ninguém


ia tê corage. Ele deve de tá escondido
narguma gruta rezando por nóis tudo
ô então já foi pro céu de corpo e tudo.
Ninguém ia fazê má pr’um home que só
pregava e fazia bondade.
O Contestado 61

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Gardina Aí é que tá! São os pregadô da bondade
que fica mais cheio de risco neste mundo
de marvadeza. Jesuis Cristo não era santo?
Era inté Deus e veja o que fizero co’Ele!

Gardina Mais Ele arressuscitô e o João Maria


tamém vai vortá um dia. Não havemo de
ficá largado à toa no mundo. Agora vamo
tê a estrada de ferro e nossa vida vai miorá
muito. Arguma coisa o céu há de mandá
pra gente.

Leoir É, arguma coisa o céu há de mandá!

CORTE DE LUZ

62 Romário José Borelli

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Efeitos musicais. Palmas ritmadas sobre a base da música
que vai entrar. Abre-se a luz sobre um palanque. Os atores pu-
xam cordões com bandeirolas presas em carretilhas. Vêem-
se bandeiras, músicos e pessoas que chegam. A cenografia
poderá puxar pela ilustração cênica com elementos de ins-
piração ferroviária e a sonoplastia poderá incluir a gravação
de uma locomotiva maria-fumaça, com seu apito caracterís-
tico, que pode, inclusive, ser conjugado com a música a ser
cantada e a inserção de fumaça em cena.

Prefeito Amazonas Marcondes entra pomposamente com


uma pequena comitiva na qual está Affonso Camargo, sendo
efusivamente cumprimentado por alguns dos presentes.

Todos cantam, executando coreografia.

Bata o sino, corra a festa


Muita alegria toda semana
Já vamos aproveitar
A colaboração norte-americana.
O Contestado 63

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Vem chegando a ferrovia
Vem desde a terra paulistana
Já vamos aproveitar
A colaboração norte-americana.

Vai raiar um novo dia


Nossa alforria! Gente serrana!
Já vamos aproveitar
A colaboração norte-americana.

Ê, ê, ê, ê.
E o chefe da estação
Já libera o primeiro trem
No meio dessa fumaça,
Diga quem é, que eu não vejo bem.

Posa na fotografia
Toda galera republicana
“Já vamos aproveitar
A colaboração norte-americana.”

(Repetem o refrão três vezes.)

Prefeito (indo ao palanque enquanto os atores


se acomodam) Povo de Porto União! A
ponte que hoje se inaugura... é mais do que
a união das duas margens do Iguaçu. Vejo
esta ponte magnífica como um elo de ferro
que une esse tempo a uma nova era. Este

64 Romário José Borelli

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ano de 1906 é um marco que assinala o
início do desenvolvimento de nossa região!...
Por essas linhas receberemos maquinarias
e implementos para acelerar o nosso
progresso!... As máquinas fumegantes
levarão nossa madeira e nossa erva-mate
para todos os rincões do Brasil. (palmas)
Para se ter uma idéia da grandiosidade do
empreendimento nacional, basta saber que
a BRAZIL RAILWAY não se limita apenas
à construção da ferrovia, mas seremos
favorecidos também com a instalação
de duas grandes serrarias automáticas,
uma lá em Três Barras e a outra ali em
Calmon (Alguém comenta feliz: “Eu
sô de Carmão!”) Essas serrarias vão
beneficiar mais de trezentos metros cúbicos
de madeira por dia... (palmas). E com o
ramal ferroviário Rio Negro–São Francisco,
nossa madeira será levada até para os
Estados Unidos. Por isso eu convidei para
essa festa todas as personalidades que
dignificam esta região. Aqui está o Dr.
Affonso Camargo (algumas palmas),
advogado da companhia. Vejo ali o coronel
Tomás Vieira com sua gente (palmas).

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O coronel Chiquinho de Albuquerque
(palmas). O Coronel Arthur de Paula
(palmas). O coronel Pedro Ruivo (palmas).
Todos valorizando com seu prestígio e
autoridade esta festa histórica! Vinte bois
foram carneados para esta festa. (vivas do
povo) E a banda musical do maestro Emílio
Taboada (Estava dormindo e, ao ser
acordado por um dos músicos, ataca o
instrumento pensando que já estava na
hora da execução.)..., a banda do maestro
Emílio Taboada estará alegrando o povo
por conta da municipalidade!...

Uma voz Viva o coroné Amazona Marcondes!!!

Todos Viva!

Um bêbado chegando ao palanque.

Bêbado Com sua permissão? Eu careço de aporferi


umas palavrias.

O prefeito se ressente do inconveniente mas, percebendo a


aceitação dos presentes, segura um de seus agregados que
já estava para expulsar o bêbado e concede-lhe a palavra.

66 Romário José Borelli

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Bêbado Povo de Porto União... (risadas) O vinho...
é uma locomotiva que enche a cabeça
de um home de fumaça. (Risadas. Uma
participação forçada do prefeito.) É
como uma palavria bonita que enche um
caboco de ilusão numa hora de alerta.
(silêncio) Essa companhia dos gringo
ficô com muita terra ali do Paranã, eu
tava lá e vi... Aqui eles não vão deixá por
meno. (O capanga do prefeito segreda-
lhe alguma coisa, ao que o prefeito
responde entre dentes.)

Alguém Ele tá demais de bêbo.

Bêbado Vanceis tão festejando que vão perdê tudo?


É isso?

Alguém Vancê tá demais de bêbo! Cai fora daí!

Prefeito faz um gesto e seu capataz parte para agarrar o bê-


bado que, apesar disso, continua soltando o verbo, sendo ar-
rastado para fora de cena com apupos da platéia.

Bêbado (sendo arrastado) Pelo contrato c’o


governo federá, me sortem! Eles vão ficá
com quinze légua de cada lado da estrada
construída e quem fô moradô daqui vai tê

O Contestado 67

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que se arretirá... (Reação generalizada.
Bêbado é arrastado pra fora de cena
sob pontapés, socos e gritos.) Ai, ai, me
sortem! É isso que vanceis estão festejando?...
(já fora de cena) O despejo, a miséria, ai, ai.
Me deixem... Ai!

Para dissolver o mal-estar, o prefeito chama pela banda.

Prefeito Maestro! Maestro! Vamos lá!

A banda ataca e inicia-se um animado baile. O baile pode


ser tocado com sanfona.

A certa altura do baile a música vai sendo acrescida de acor-


des que a dissolvem e transformam em choques harmônicos.
Ouve-se efeitos de trovoadas. Arma-se uma tempestade.
Base para uma cena impressionista, na qual os atores vão ra-
lentando os movimentos até que, em absoluta câmara lenta,
desfazem a cena do baile, retirando a decoração festiva do
palco. No meio do que foi o salão de baile, ficam apenas os
dois atores que dão seqüência à peça.

CORTE DE LUZ

68 Romário José Borelli

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Bastião (desolado) Junte os trapo que nóis imo
embora.

Eneida (surpresa) Imo pra onde?

Bastião Pra Timbozinho. Tão carecendo de braço


pra enxada por lá.

Eneida Mais vancê é toreadero!

Bastião Quar! Já me adespediro. Hoje o véio Furma


ajuntô os toreadero lá no mato e disse que
não vai mais carecê de nóis. Agora ele vai
vendê a madera pros americano e eles vai
derrubá e puxá as tora c’as máquina. Ele
inté arrecoieu os machado e as serra. Quem
fô toreadero vai tê que procurá otro trabaio.
Nóis temo que i ligero pro Timbozinho
enquanto sobrá quarqué coisa pra fazê... Inté
vai sê bão, lá nóis fica mais perto dos pai.

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Eneida É... nem sei que dizê, Bastião.

Bastião Vai se adespedi das comadre. Não carece


de falá com a Diolina, que eles vão com
nóis. Semo quatro famia que saímo pra
serra aminhã. Já combinemo tudo c’o
Setembrino. Saímo pisando a geada ante
do sor.

Eneida Inté me dá uma tristeza... vivemo tanto


tempo aqui...

Bastião Temo que tê força... Quando as coisa miorá,


nóis vorta. Inté já ganhei uma borsa de
estopa pra introjá as trapera. E só amarrá
as trempe, metê o arroiz de mio num picuá
e podemo i. Dá mais trabaio a caminhada
que a mudança, que poco temo pra levá.

Ouve-se voz fora de cena, que surge em seguida.

Maurílio Compadre Bastião?

Bastião Mecê se achegue.

Maurílio Boa noite, comadre! Tão dizendo que mecê


tá de partida, compadre!

Bastião É verdade. Me adespediro e imo pro


Timbozinho, que por aqui não tão mais
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carecendo de toreadero. Já adevorvi o
machado do véio Furma. Aquele aço não
bebe mais sangue de imbuia e pinhero.
Vem serra dos americano aí.

Maurílio É, a coisa tá preta, mais eu inda vô ficá por


aqui. Tô pra sameá meia quarta do amarelo
lá na serra. Vô aproveitá as úrtima geada
pra queimá ele.

Bastião Que Deus murtiprique.

Maurílio Se dé bem, mecê pode contá comigo pra


quarqué percisão.

Bastião E mecê apareça lá pro Timbozinho. Vô


mandá dizê onde nóis vai se abrigá e mecê
vai visitá nóis um dia.

Maurílio É um gosto! E mecê vá com corage. Nóis não


ficamo aqui pr’um tempo dos mais malhó.
Parece inté que aquele bêbo gorento, lá na
festa da ponte, tava dizendo umas verdade.
Sabe que a tá Companhia dos americano
tem pra mais de trezento home armado
que anda por aí fazendo barbaridade?
Pegaro uns bandido dos mais pió, gente
aperseguida por matança e empregaro eles
pra fazê cumpri os contrato. E o governo

O Contestado 71

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federá acordô de dá pros americano quinze
légua de cada lado da estrada de ferro. Mais
como é que é isso é que eu não sei. Se nóis
semo moradô daqui desde sempre, como
é que o governo vai dando as terra nossa,
ansim? Sabe que inté os peludo de dinhero
tão oiando de travéis. O coroné Benjamim
já fechô a serraria dele e ficô só c’os boi.
O coroné Pedro disse que as terra dele
ninguém tira e se aparecê arguém por lá
querendo metê as linha na invernada, leva
chumbo grosso. Veja o que digo pra mecê:
inda vai corrê muito sangue por aqui.
Quem tá estabelecido em quarqué lugá tá
negaceando o que vai fazê.

CORTE DE LUZ

72 Romário José Borelli

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Nhô Miro e Paciência tomando chimarrão.

Nhô miro Eu fico doente quando me adefronto c’um


caboco mentiroso... doente. E tem caboco
sem-vergonha que mente um tanto, uta la
merda!... O compadre Aniba é um desses. Eu
gosto muito dele... ansim pro trabaio, pras
percisão, mais quando ele garra de proseá
e contá de suas caçada não tem quem
segure o guasca! Ele queima um campo
sem medo! Eta home sem vergonha!... É
certo que tem coisa estranha nesse mundo
(Paciência de vez em quando coloca
uma risadinha ou uma palavra qualquer
de concordância: “é...”, “sim...”, “pois isso
o quê!”... “não?”) Das veis um home se
vê diante de arguma situação que se contá
pra otro pode inté passá por mentiroso. Eu

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memo já me adefrontei com coisa difice
de acreditá... A úrtima inté não fais muito
tempo... Vancê conhece ali o aguapezá da
Imbira, na boca do Capivarinha?...

Paciência É... eu escuitei...

Nhô Miro É um lugá dos mais feio. É lugá de metê


medo em quarqué que se aproche. Pois não
fais muito tempo, eu fui lá c’os americano
pra estudá a derrubada daquele pinhá todo
que tem ali no banhado, ali pra donde
morreu o Chicuta, que Deus o tenha! (Tira
o chapéu em sinal de respeito.) Mais eu
e os americano fomo tudo armado, que os
home troxéro umas espingarda estrangera
que dava pra mais de... cinqüenta tiro...
sem carecê de municiá. É um fuzi dos
mais malhó. Um balaço daquele vara uma
prancha de... sete polegada, como se fosse
uma paia. E eu ainda levei minha doze, de
quebra, aquela que derruba uma anta só
c’o estampido do cão, a garrucha do véio
Terêncio e a cachorrada. Saímo tudo de
acavalo em quage sete dia de viage. Mais
quando cheguemo ali na Barra do Bogo,
os cavalo negaceava de medo e não ia nem

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a rabo-de-tatu. Tivemo de apeá, dexá os
animá no cabresto e seguimo tudo a pé.
Mais vancê sabe que os americano nem
conseguiro vê os pinhero? Ali tem cobra
dessa grossura, ó... e tigre de dois metro
ali é fiote. Varemo uma caivera braba na
ponta do facão, era aquele vap... vap... vap...
hora seguida sem pará. Já na entrada do
aguapezá nóis demo c’umas pegada do
tigre que mais parecia uma mão de vaca.
Os home já queria vortá tudo, mais eu
disse: “Não! Agora que vinhemo inté aqui,
vamo inté o fim!... Vancê sabe que eu não
sô home de arrecuá...

Paciência É... e o compadre Aniba... aquele mentiroso?

Nhô Miro Péra aí, péra aí! Adespois nóis falamo


dele. Deixa eu contá primero como é que
nóis passemo a noite tudo pendurado
num girá... Depois que nóis varemo um
inhapindazero que tinha espinho desse
tamanho... mais compadre, essa água já
tá fria pro chimarrão... (Gritando para o
fundo da cena:) Juia! (Ouve-se uma voz
de mulher fora de cena que atende
ao chamado.) Bota uns pau no fogo pra

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nóis aquentá a água do mate! (Vão se
retirando.) Acho que inda pode chovê hoje.
O tempo tá querendo virá...

Vão se levantando quando percebem um homem que vem


puxando uma vaca por uma corda. Vê-se apenas a corda que
se perde para a coxia. Nhô Miro se adianta e puxa conversa.

Nhô Miro Óie só quem tá vindo aí! É o compadre


Ferrera. Buenos dias, compadre! Mecê se
achegue.

Ferreira Buenas! Agora não vai dá, compadre. Tenho


que segui c’o animá.

Nhô Miro Onde mecê vai com essa vaca na corda? Vai
carneá a boizinha?

Ferreira Pois isso o quê! Não tá vendo que a danada


tá toda bexiguenta? Tô levando ela pro
Nhô Cardoso benzê, pra mó de acabá c’os
berne.

Nhô Miro Vancê não devia se arriscá de passá pelas


terra do Benjamim. Tem uns sordado
do Paranã acampado por lá. Eles tão
aperseguindo o Demétrio Ramo.

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Ferreira Eta, que eu já não tô entendendo mais nada!
Será que vancê que é um home ladino
pode me expricá esse fuzuê todo que anda
acontecendo por aqui? Tanta brigacera, pra
mó de quê?

Nhô Miro Ó, vô te expricá. Veja bem aí tua vaca na


corda. Agora magine que essa corda é a
frontera entre Paranã e Santa Catarina.
Nóis vinhemo puxando a corda da frontera
desde lá de serra abaixo, sem brigá. Mecê
é Santa Catarina e eu sô o Paranã. Daí,
quando nóis cheguemo na vaca, aqui no
arto da serra, que é onde tem muita madera
e muita erva-mate, mecê diz que aquela
divisão de corda tava certa, mais agora
a corda tem de passá pelo lado de lá e o
animá fica pra cá, pro teu lado... e eu digo
que não! Digo que eu é que sô dono da
vaca. Daí nóis garramo de porfiá. Mecê que
é Santa Catarina embala uns agregado do
Demétrio Ramo e manda puxá a vaca pro
teu lado. E eu, que sô o Paranã, mando as
forças policiá. E ficamo nessa aperseguição
pra lá e pra cá.

Ferreira Hã... Entendi. E os americano?

O Contestado 77

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Nhô Miro Os americano... bem, daí as coisa se
comprica, porque vem o nosso padrinho,
que é governo federá, e diz que vendeu
a metade da vaca pr’uns estranho. E os
estranho vem e começa a carneá... Vão
tomando conta das terra, vão levando nossa
madêra, vão expursando os moradô... e nóis
ainda tamo se aperseguindo...

Ferreira Hã... E os peludo?

Nhô Miro Os peludo? Bem... os rico são os corvo que


vão comendo os bofe do animá... E nóis,
Paranã e Santa Catarina, ainda tamo pra
arresorvê a nossa questão. E inté os peludo
começa a gritá que a vaca tamém é deles.
Ansim é essa região... Agora pode i, leve
tua vaca pro nhô Cardoso benzê, mais vá
com cuidado...

Ferreira Inté compadre!... Ma... péra aí... E nóis aqui?


Não o Paranã, nem Santa Catarina, nem os
peludo, mais nóis memo, mecê... eu, o que
é que nóis semo aqui nesta região?

Nhô Miro Mecê e eu... nóis semo como os bicho aí da


tua vaca.

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Ferreira (pensativo) Mmmm... Obrigado pela expri-
cação. Vô andando, compadre. Inté.

Nhô Miro Inté, compadre... (Para o Paciência:) Home


trabaiadô tá aí! Mais a muié manda nele.
Essa benzedura é coisa da cabeça da muié.
É coisa da muié dele. Vamo aquentá nossa
água, vamo lá des...

Estão para se retirar quando são interpelados por dois recém-


chegados à cena.

Recém-chegado 1 Ei, vanceis aí!

Nhô Miro Buenas! Meceis se acheguem. Pode se


achegá que é um gosto! Tamo aqui
proseando...

Recém-chegado 2 Vanceis são moradô daqui?

Nhô Miro Semo, semo. Eu moro nessa casa véia, o


Paciência mora ali na dobra do morro.

Recém-chegado 2 Nóis viemo avisá que vanceis vão tê que se


mudá, que a estrada de ferro vai passá por
aqui.

Nhô Miro Meceis deve de tá enganado. Tamo infor-


mado que a estrada vai passá lá do outro

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lado da serra. Nóis tamo inté assossegado
que não precisamo saí daqui.

Recém-chegado 2 É, a estrada passa lá, mas os agrimensô da


companhia já mediro tudo. Isso aqui é tudo
terra dos americano... Tá dentro da faxa de
15 légua. É tudo deles.

Nhô Paciência Vai falá com eles, compadre. Vancê inté


conhece os home, já...

Nhô Miro É... eu vô falá co’eles...

Recém-chegado 1 Não, não, não! Não adianta. Vancê pode


fazê as troxa e se arretirá. E vancê tamém.

Nhô Miro Como ansim? Nóis semo moradô daqui


desde sempre... Não podemo sê apinchado
ansim, não!

Recém-chegado 1 Meceis tem argum documento, argum


paper?

Nhô Miro Dicumento... ansim, não temo, mais temo as


prantação. E terra ocupada por nossos pai.
É coisa véia de famia. Terrinha poca e fraca
mais é nossa, desde o tempo que inda tinha
bugre por aqui. Não é, compadre Paciência?
Mecê alembra que nóis...

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Recém-chegado 1 As prantação vanceis pode arretirá. As
terra são do governo e o governo vendeu
pros americano. É a lei e nóis tamo aqui
pra execuitá.

Nhô Miro Como é que é isso, arretirá as prantação


mar sameada? Temo famia aqui e não temo
pra onde vivê.

Recém-chegado 2 Tamo só cumprindo o mandado. Se vanceis


não quisé colaborá, temo de usá da força.
Pra semana vamo passá por aqui com trinta
home armado, se inda tivé arguém por aqui
nóis tocamo fogo em tudo.

Efeito musical.

CORTE DE LUZ

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Vozes nervosas, atropelando-se, sobrepondo-se. Pessoas
chegam à casa do prefeito Amazonas Marcondes. Este apa-
rece à varanda acompanhado de um capataz.

Vozes 1 Ansim não pode sê!

2 Arguém tem que tomá uma medida!

3 Quem tava no seco tá sendo apinchado


pros banhado do Iguaçu!

4 Se eu tivesse dinhero pra comprá uma


Wincheste, me prantava numa costanera
do meu terreno e queria vê o peludo que
chegava lá... eu esquentava as tripa dele!

Amazonas O que é que é isso aí?

Todos tentam falar ao mesmo tempo.

Amazonas Carma! Fala um de cada veis!


82 Romário José Borelli

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Vozes 2 Carma!

1 Deixa eu falá, pessoá!

4 Fale vancê, então!

1 Vosmecê tá sabendo que as expropiação tão


apinchando nóis aí pra quarqué lugá, como
se nóis fosse bicho. Gente das mais malhó
já tá co’as tripa virada de contrariedade. E
não é só o causo dos americano. Tem muito
coroné fazendo fuzia co’as terra daqui: tão
entregando as terra pras companhia de
colonização e nóis tamo sendo apinchado
na estrada. E ainda pra mó dos pecado veio
essa praga de rato que tá maió do que se
sabe.

3 Parece inté que os rato chegaro junto c’os


americano. Qué dizê, ante tinha rato por
aqui, mais não era tanto. Agora, esse ano,
os broto de taquara já não dero comida pra
tanto rato e eles tão invadindo as coieta, tão
invadindo os paió e acabando com tudo!

4 Quem tinha arguma rocinha tá perdendo


tudo.

2 Já perdemo!

O Contestado 83

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3 Nóis carecemo de arguma solução!

Amazonas Bom...

Vozes 4 E vancê ainda não falô dos trabaio de


empreita que tão acabando. Das empreita
que termina e não se arrecebe, sem tê pra
quem recorrê. E inté o precio que se paga,
quando se paga, por quarqué trabainho
aqui e ali, é muito poco. Tá tudo pela hora
da morte e não se pode mais vivê. Não
sabemo mais o que fazê! Mais vosmicê, que
é um home rico e é o nosso prefeito, tarveis
possa dá arguma solução pra nóis.

3 Tem muita gente se arretirando aí pros lado


de Treis Barra, Curitibano, Carmão, mais
não adianta que tá tudo iguar. Nóis tamo
numa situação difice memo.

Capataz Eu acho muito bão pra dá uma domada


em vanceis! O pessoá daqui sempre andô
atrais dos benzedô e das festa. Trabaiá
nunca ninguém foi de muito e agora tão
querendo usá da miséria pra exprorá quem
tem quarqué coisa! Vanceis nunca foro do
pesado!

84 Romário José Borelli

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4 E vancê já pegô no cabo da enxada arguma
veis? Véve sempre escorado nos peludo
como capanga!

Capataz Acho mió tu amarrá essa língua!

4 Não se meta nas nossa percisão se não quisé


saí esquentado! (A ameaça de entrevero
é contida por Amazonas Marcondes.)

Capataz Tão me ameaçando?

Amazonas Bem, bem! Vamo se acarmá que eu não


quero briga aqui na frente da minha casa.
Vanceis pode vortá pra casa e se acarmá.
Quando chegá o tempo da colheta da erva-
mate, nóis arresorvemo a vida de todo
mundo. Só nas minha terra posso empregá
pra mais de cem home.

3 Mais coroné! O tempo de colhê a erva-mate


é só pro ano... O que é que nóis vamo fazê
inté lá?

Amazonas Carma, carma! Ansim que terminá a


construção da estrada de ferro, tudo vai
miorá pra nóis. Eu também tô em situação
difice... Mais em todo caso, pra ajudá
vanceis, no sábado vô carneá duas vaca
(Os presentes começam a se retirar um

O Contestado 85

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após o outro, de tal forma que o prefeito
vai terminar falando sozinho, tentando
alcançá-los com as palavras.) e vanceis
pode tirá fiado no meu armazém. Não
carece de pensá em pagá por enquanto...
Despois nóis acerta tudo...

CORTE DE LUZ

86 Romário José Borelli

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Terêncio, desesperado, tenta matar ratos a pauladas.

Terêncio Fora, fora, fora! Vortem pro inferno!...


Fora!

Bastiana Não adianta, fio. Vancê não vai consegui


acabá co’a peste dos rato só c’um pedaço
de pau.

Terêncio Nojêra! Eu suei o ano intero pra enchê


barriga de rato. O que foi que nóis fizemo
pra Deus castigá tanto a gente? Fora! Fora!

Bastiana aproxima-se de Terêncio, que está agachado, deso-


lado. Bastiana põe as mãos sobre a cabeça do filho e tenta
consola-lo.

Bastiana Lá pro Pintado tá pió que aqui, meu fio. Os


rato inté mataro uma criança. As criação

O Contestado 87

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tão perdendo o juízo... Os véio conta que
os rato sempre aparece ante de acontecê
arguma desgrácia. Deve de tá pra vi uma
coisa muito pió... uma praga, uma guerra.

Terêncio O que é que pode sê pió que isso? O que


é que a gente fais? Pra onde é que a gente
vai? Tamo sem trabaio, tamo sendo robado
e apinchado das terra e agora essa praga
de rato! Nunca escuitemo falá do governo...
e a primeira veis que ele chegô inté aqui foi
abraçado c’os gringo pra apinchá a gente
das terra. Tamo acuado pela desgrácia!
O mundo tá cheio de rato de tudo que é
tamanho e cara. Tá cheio de rato nojento
devorando o trabaio da gente! Dá vontade
de metê fogo em tudo, tudo, em todo
mundo! Essa praga devorando a miséria da
gente! Inté coro de arreio vai pra barriga
deles! Mãe, quem pode acabá com essa
praga? Essa situação me dá uma tristeza
tão grande...

Mariana (entrando ansiosa) Terêncio! Terêncio!

Terêncio O que é, muié?

Mariana Temo novidade!

88 Romário José Borelli

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Terêncio Só farta me dizê que essa novidade é mais
uma criança que vem passá fome nessa
desgracera!

Mariana Não, não, Terêncio! Tudo vai miorá! O João


Maria vortô!

Efeito musical.

Bastiana O João Maria?

Terêncio O João Maria? Mais não pode sê!

Mariana Mais é! O pessoá tá todo arvoroçado. Tão


dizendo que ele vortô armado!

Terêncio Então não é ele.

Mariana É ele, sim! Já tá arreunindo gente lá em


Taquaruçu e vai fazê uma varreção de bala
nos gringo, nos capanga da companhia, em
todo mundo!

Terêncio Mais não pode sê o João Maria.

CORTE DE LUZ

O Contestado 89

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Diálogos isolados que se alternam em diferentes focos de luz.

Ator A Insisto que esse não é o João Maria! O João


Maria já era um home véio quando passô
por aqui, fais quage vinte ano.

Ator B Pr’um santo tudo é possive. Pode sê que


seja bem ele memo.

CORTE DE LUZ

Ator C Não, não. Eu conheci o outro benzedô e


conheço esse daí. Não sei por que o povo tá
nesse arvoroço. Esse é um tar de Zé Maria,
Zé Maria.

Ator D Bem, se esse daí não fô o João Maria, não


fais mar. Pode sê um mandado dele. E esse
aí também é santo e benzedô.

90 Romário José Borelli

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CORTE DE LUZ

Ator E Não é o memo home. E esse aí, santo


eu garanto que não é. Não sei nem se é
benzedô.

Ator F Benzedô ele é... e dos bão! O home tem


muita força e já curô uma barbaridade! Vai
fazê uma cidade santa lá em Taquaruçu, tá
armando gente e tá aperparando arguma
coisa. Esse tá falando a minha língua.

Ator E Não vai dá em nada. Os coroné já tão se


aperparando pra tocá ele de Taquaruçu.

Ator F Vancê é muito descrente. Do jeito que nóis


tamo aqui, o que é que nóis podemo esperá?
Se é arguém que tá do nosso lado, não
podemo dexá que fique sozinho. Qué sabê
de uma coisa? Eu vô enciá meu matungo e
vô pra lá agora memo!

Uma voz (canta) “Moço, chame os primos,


Os amigos e os manos
Parece que chegô a hora
Lá pr’os lados de Curitibanos.”

Os atores, divididos em três grupos, dirigem-se seqüencial-


mente para a cena que será o primeiro agrupamento

O Contestado 91

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de Taquaruçu. Levam pertences e estandartes com toscas
imagens santas. Cantam:

1.o grupo A semente vira planta


como a noite vira dia
Vô pra cidade santa
Junto com José Maria.

2.o grupo Dia a dia se agiganta


Uma força que arrepia
Vô pra cidade santa
Junto com José Maria.

3.o grupo Uma força se alevanta


Uma luz me alumia
Vô pra cidade santa
Junto com José Maria.

CORTE DE LUZ

92 Romário José Borelli

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Forma-se uma cena com os atores dispostos à frente de José
Maria. Uns sentados, outros meio ajoelhados, dois deles o la-
deiam com estandartes. José Maria aparece pela primeira
vez fazendo um tratamento com ervas. Veste um paletó surra-
do, sandálias, gorro de jaguatirica, impondo as mãos sobre
uma mulher e dando-lhe para beber o líquido de uma garra-
fa. O tema musical prossegue em BG.

José Maria “Eu tenho o bálsamo sagrado


Bebendo ficarás curado.”

Mulher Obrigada, seu José Maria.

Chega outro crente. Homem que arrasta uma perna. José Ma-
ria repete a oração.

José Maria “Eu tenho o bálsamo sagrado


Bebendo ficarás curado.”

O Contestado 93

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A sessão de benzedura se repete uma terceira vez. Ao sair
o terceiro devoto, volta o tema musical e aparece mais um
grupo indo encontrar o monge.

2.o grupo (música)


Dia a dia se agiganta
Uma força que arrepia
Vô pra cidade santa
Junto com José Maria.

Zé Maria agora aparece lendo a história de Carlos Magno


para um grupo de caboclos.

Zé Maria O imperadô Carlos Magno organizou um


exército santo, venceu os turco, expursô
os infiel e recuperou os lugá sagrado. E o
rei Carlos Magno organizô um quadro de
cavaleiros que eram os Pares de França.
Doze cavaleiros montados em cavalos
brancos que acompanhavam o rei. Onde
ele ia, os Pares de França iam com ele.

Caboclo 1 Pares de França?

Zé Maria É... Eram os pares do rei da França.

Uma mulher Pares de França, que coisa linda. Doze


cavalos brancos, sempre seguindo o rei.

94 Romário José Borelli

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Caboclo 2 Nóis podia fazê os cavalero aqui, também...

3.o grupo (música)


Uma força se alevanta
Uma luz me alumia
Vô pra cidade santa
Junto com José Maria.

Volta foco de cena para José Maria no meio dos caboclos.

Zé Maria Que Deus abençoe vanceis tudo! Vanceis


viero aqui com fé nas oração, o coração
límpio. Mais aí em Curitibanos tem muita
gente incomodada comigo. Eu escuito os
telegrama correndo nos fio. Tem gente
querendo me matá.

Sertanejo 1 Seu Zé Maria, se eles qué brigá, nóis briga


e vamo vê quem pode mais!

Zé Maria Nóis inté que podemo, nóis temo a proteção


de São Sebastião. Mais não tamo aqui pra
derramá sangue... Ainda não tive ordem
pra isso. Dessa veis nóis vamo se arretirá.
Vamo pro Irani, lá nóis construímo uma
cidade santa.

O tema musical prossegue em BG.

O Contestado 95

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Sertanejo 2 Zé Maria, se nóis fô pro Irani, nóis vai se
incomodá co’as forças do Paranã.

Zé Maria É um risco que nóis temo que corrê. Se


nóis ficá por aqui, nóis vai se incomodá
c’os capanga do Chico de Albuquerque.
Os peludo tem tanto medo que Deus
adevorva o que eles robaro do povo, que
tão instigando os governante pra mandá as
força policiá pra combatê nóis. Mais nóis
não vamo levantá arma contra ninguém.
Eu trago atrais do zóio coisa que não posso
revelá... Vanceis arreúna tudo. Nóis vamo
saí em peregrinação e vamo se mudá pro
Irani.

Sertanejo 3 Mais se arguém vinhé le combatê, seu Zé


Maria, nóis le adefende inté a morte!

Zé Maria Que Deus abençoe vanceis! Se eles vié brigá,


pode sê inté que eu morra ante de vanceis,
mais vanceis não pode adesisti. Vanceis
lute e co’a corage do corpo frechado de
São Sebastião, porque se eu morrê, pode
contá que eu arressuscito e vorto! Vão se
aperpará pra mudança. Vamo mudá pro
Irani!

96 Romário José Borelli

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Os atores saem em grupos, dirigindo-se para a frente do palco.

1.o grupo O povo inté já fala


(canta) Vem aí o nosso dia
Já tem fuzi com bala
Protegendo Zé Maria.

2.o grupo Violeiro desta mata


Té mudou de cantoria
Já tem fuzi com bala
Protegendo Zé Maria.

3.o grupo Coroné na minha frente


Já não ousa tirania
“Já tem fuzi com bala
Protegendo Zé Maria.”

TROCA DE LUZ

O Contestado 97

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Zé Maria agachado, rezando. O canto continua com o refrão
“Já tem fuzi com bala / Protegendo Zé Maria”, que vai se ace-
lerando enquanto um grupo passa a repetir apenas “Já tem
fuzi com bala”. E, sob efeitos do prato na bateria, inseridos
dentro do ritmo, os atores vão levantando em pequenos gru-
pos numa atitude agressiva e com uma arma. Os primeiros a
se levantar, mais ao fundo, poderão carregar os estandartes,
e o último a se levantar, bem à frente, desfralda uma bandeira
do Contestado — uma bandeira branca com uma cruz verde
colocada horizontalmente. Enquanto o refrão se repete, Zé
Maria dá um grito e se lança em meio aos atores, que então
se agacham. O canto para, mas continuam os efeitos musi-
cais, principalmente rítmicos, nos instrumentos.

Zé Maria (desesperado) Eu não queria brigá! Vim


pro Irani porque eu que não queria brigá!
Mais esse coroné do Paranã veio aqui
pra me matá, é certo! Já que eu tô sendo

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aperseguido onde qué que eu vá, eu brigo
e dô perjuízo! Vamo picá essa gente toda!
(Deflagra-se a batalha do Irani.) Mata
tudo! Mata esses jaguara! Cai em cima
deles! Maaah... ah!

Zé Maria é mortalmente ferido. Cessam os efeitos musicais.


Silêncio. Sob um foco de luz vermelha, Zé Maria cai em câma-
ra lenta. Ao tocar no chão, recomeçam os efeitos musicais e
alguns atores tentam acordar seu líder.

Caboclo 1 Zé Maria! Zé Maria!

Caboclo 2 Te acorda, home! Te acorda!

Caboclo 3 Vorta pra esse corpo depressa, se


arrecupera! Não deixa nóis sozinho!

Caboclo 2 O que é que vai sê da gente? Nóis não


sabemo sê sem a tua chefia!

Miguel Carma, bugrada! Continua brigando! Um


home não morre quando tem companhero!
Nóis vamo segui sendo de quarqué manera.
Não se pode mais arrecuá! Zé Maria disse
que ia morrê no primeiro entrevero, mais
que era pra nóis não se entregá porque
ele ia arressuscitá com mais gente e mais
força pra se arreuni com nóis. Nóis vamo

O Contestado 99

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em frente! Pega os facão! Vamo inquietá
todo mundo! Quem não vié com nóis, nóis
passamo o facão!

Efeitos de spot simulando relâmpagos. Reação de medo entre


os atores — coreografia.

Todos cantam O céu pretejô


D’um jeito que dá medo
O vento enlouqueceu
No meio do arvoredo.
Cai galho seco e cai pinha
Se venta no Contestado
Menino tome cuidado
Que lá vem... tormenta.
Cada relampejo, parte o céu no meio
Santa Bárbara! Minha nossa!

Prossegue o canto, enquanto se arma uma coreografia que


estiliza luta entre os atores.

Todos É um prisco, é risco, é medo


É tarde, é cedo
É raio, é brecha
É fogo, é aço
É corte, é sangue
É morte
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É dia, é noite
É sul, é norte
(Repetem desde “É um prisco...”)

Corre pra dentro


Tranca a porta, cobre o espelho
Queima a palma benta e reza
Que lá vem... tormenta.

Segue música instrumental com aproveitamento livre da


melodia, enquanto pares de caboclos convocam seqüen-
cialmente um terceiro sertanejo para incorporar-se ao movi-
mento.

1.o trio

Caboclo A O Zé Maria morreu na primeira bataia,


mais nóis nem se abalemo. Tamo sabendo
que ele vai vortá! Vorta sim!

Caboclo B É, ele vorta quarqué horinha, mais memo


sem ele nóis já tamo muito forte. Veio um
bataiãozinho lá do Paranã e não deu no
coro. Botemo ele pra corrê.

Convocado 1 Vanceis pode contá comigo. Eu vô com


vanceis!

O Contestado 101

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2.o trio

Caboclo C Digo e repito: o São José Maria não morreu!


Quem acreditô nele que não se avexe. Ele
vai arressuscitá a quarqué horinha!

Caboclo D Tem mais de sessenta famia arreunida em


Taquaruçu. Vamo fazê uma cidade santa!

Convocado 2 Vô arreuni os bagurote e a famia e vô com


vanceis!

3.o trio

Caboclo E É bem isso memo! O profeta tem inté


aparecido lá no mato pra uns escoído.

Caboclo F Já tem mais de cem famia em Taquaruçu.


Todo dia fazemo porcissão e tiramo reza.

Convocado 3 Eu vô com vanceis! Vô levá minha gente e


minhas arma!

Todos cantam Cai galho seco e cai pinha


Se venta no Contestado
Menino tome cuidado
Que lá vem...

102 Romário José Borelli

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4.o trio

Caboclo G Lá nóis semo tudo irmão!

Caboclo H Já temo mais de cem wincheste e um


mundão de bala!

Convocado 4 Meceis me adescurpe, mais eu não vô! Tô


achando isso muito perigoso. Isso não vai
dá boa coisa!

Todos cantam Corre pra dentro


Tranca a porta
Cobre o espelho
Queima a palma benta e reza
Que lá vem... tormenta.

Convocado 1 Nóis já tomemo conta de metade de serra


acima e vamo se espaiá ainda mais! Viva o
São José Maria!!!

Todos Viva!!!

Efeitos de bateria. Rufos, tiros.

Todos cantam Não foi tufão, nem foi temporá


Foi a jagunçada, foi a jagunçada
Que acabô de passá!

O Contestado 103

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(Vozes em terças) Um jagunço quando passa
Deixa lenda e fumaça
Deixa as coisas em desalinho
Deixa bala em cada pinho.

Tem jagunço de tocaia


Na beira do Timbó
Quem tá por perto que saia
Que jagunço não tem dó.

(Uníssono) Não foi tufão, nem foi temporá


Foi a jagunçada, foi a jagunçada
Que acabô de passá.

CORTE DE LUZ

104 Romário José Borelli

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Num reduto jagunço. O líder Elias apresenta sua neta, Maria
Teodora, como vidente. Maria Teodora, protótipo da cabocli-
nha envergonhada, veste um longo vestido branco, um véu e
uma grinalda.

Elias Preste atenção, todo mundo aí! Esta é


minha neta Maria Teodora. O São José
Maria apareceu pra ela na noite passada.
(exclamações de perplexidade) Não é
verdade, fia? (Maria Teodora, indecisa,
sacode a cabeça timidamente, sem
levantar os olhos.) O São José Maria disse
uma porção de coisa pra ela, não é verdade,
fia? (Maria Teodora repete afirmação
silenciosa.) Diga aí pro povo o que é
que o santo falô!... (Maria Teodora olha
assustada para o avô. Tenta, mas não
consegue articular uma palavra. Elias
interfere, irritado:) Dexe que eu digo! O

O Contestado 105

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santo apareceu pra ela todo de branco,
rodeado de luis, não é verdade, fia? E o São
José Maria disse que vanceis têm rezado
muito poco e que vanceis carece de bedecê
com mais respeito as orde do conseio. E que
vanceis carece de lutá com mais certeza,
porque ele já tá desgostado que arguns tão
arrenegando nossa porfia. O São José Maria
vai vortá sempre e dizê pra ela como é que
deve sê a nossa luita. Daí ela me conta e eu
digo pra vanceis.

Caboclo (aproximando-se afoitamente) Eu queria


que a menina me desse uma bença, agora
que ela é santa!

Elias Adespois que nóis fizé uma porcissão e tirá


umas reza, ela vai benzê todo mundo. Ante
eu quero falá c’o Valêncio...

Valêncio Pronto!

Elias Vancê vai agora memo se introjá no meio


dos sordado. Vai ansim como se não fosse
dos nosso. Tem muito caboco por aí que
não tá brigando e os sordado não vão
sabê se vancê é ou não um desse. Vai de
bombero. Diga que vancê mora aí na serra
e foi oferecê uma carga de mio verde pros

106 Romário José Borelli

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sordado. Daí vancê fica lá bombando. Se
introje no meio deles e fique lá. Óie bem
quantos home eles são, as arma que têm
e o que eles tão pensando de fazê contra
nóis. Quando mecê tivé bem informado e
percebê que eles tão pra se ativá, mecê dá
um jeito de fugi, co’a parte que vai cuidá da
tua roça e vem contá tudo pra...

Voz em off Acuda aqui! Tamo trazendo um morto!

Elias Quem foi?

Entram três caboclos carregando um morto.

Jagunço 1 É o Tonho, que foi varado com cinco bala


e inda cruzô de acavalo de Valões inté o rio
Timbó.

Elias Encostem ele aqui.

Jagunço 1 Foi uma tocaia na artura de Valões. Nóis


tinha ido negaceá uma fazenda pra vê se
tirava umas vaca, quando estorô uma fuzia
de tiro das boca de mato, que não sei como
escapemo ainda nóis. Uns deis ficaro lá co’s
cavalo e tudo. O Tonho inda agüentô o
arrojo do galope inté o Timbó...

O Contestado 107

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Mulher (chegando desesperada) E o meu fio
Terêncio, cadê ele? Cadê o meu fio? E meu
fio? (Os chegados abaixam a cabeça
e não respondem. Algumas mulheres
iniciam uma lamentação em torno do
morto.)

Elias Meceis não vão chorá os defunto. Eles foro


se arreuni c’o São José Maria e quarqué
hora vão tá aí de vorta. Levem o Tonho
daqui e vão se aperpará que nóis vamo
encomedá o corpo. Vamo rezá pra São José
Maria arrecevê bem ele.

Todos saem, levam o morto. Fica em cena apenas a mulher


que perguntou pelo filho, prostrada. Sabe que seu filho não
voltou com o grupo porque morreu no ataque.

Mulher Eu nunca disse pro meu fio fazê a guerra...


mais eu só disse: “Faça o que fô honesto.”
(chora)

Presença do filho nas memórias da mãe.

Filho Pode dexá, mãe, eu me cuido... Vô roçá essa


encosta toda, daí vô cobri ela de mio e feijão
e daí nóis vende todo e arruma nossa vida...
Vô fazê uma casa bem bonita pra senhora,
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mãe. Vai tê inté varanda pra senhora sentá e
ficá proseando co’as comadre... Mãe, eu e a
Dira tamo se gostando, que tar? É uma boa
moça, é... Mãe! O Chico de Arbuquerque
não qué me pagá a empreita. Diz que um
temporá quebrô as cana de mio e ele teve
perjuízo... Mais o que é que eu tenho com
isso? Eu não tenho curpa do temporá!... O
que é que nóis vai fazê? Era co’esse dinhero
que eu queria comprá as semente pra fazê
a minha roça... Mãe! Eu vô no baile dos
alemão!... Tomo, tomo cuidado, pode dexá...
Mãe, tinha um sanfonero dos mais malhó.
Como uma gaita é uma coisa bonita! Se eu
pudesse... Tocadô é sempre convidado, pra
tudo quanto é lugá... Mãe, eu mato ele! A
ladinice desse coroné é pequena pra mim!
Ele tá de guaiaca cheia e não qué pagá...
Dexa eu tomá chuva, mãe. Eu gosto de
me moiá. Não, não fais mar. Nada... Será
que não tem um jeito da gente vivê com
mais alegria, seguindo esse impurso de
cantoria, de riso, de prosa... Mãe, hoje é teu
aniversário, a senhora tá fazendo cinqüenta
ano, é uma idade tão bonita e vancê ainda
tá tão moça... Mais eu não tenho nada pra
le dá... Robaro teu fio. Não tenho dinhero

O Contestado 109

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e já tô devendo tanto!... Vamo se arreuni
c’os seguidô do Zé Maria, mãe. Vamo, vamo
embora depressa! É só o que nóis podemo
fazê. Vamo lá pros reduto. Vamo começá
vida nova...

Entra procissão, puxada pela Maria Teodora, com estandarte,


fitas, véus e bandeiras... Quando a procissão passa pela mulher,
alguém a recolhe e faz com que se incorpore ao cortejo.

Uma voz puxa canto e oração e todos repetem.

Uma voz (canta) Quem pode guarda alegria


Pros dias de solidão.
Guardem vela,
Guardem vela,
Pros dias de escuridão.

Todos São José Maria


Recóie o nosso irmão
Vivido na agonia
E morto na afrição.
(todos repetem)

São José Maria


Estende tua mão
E enche de alegria
O afrito coração.
(todos repetem)

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Mesma voz (reza) Pai Nosso que está no céu
(todos repetem)

Santificado é o Teu nome


(todos repetem)

Que nóis possa segui no Teu reino


(todos repetem)

E que se cumpra a Tua vontade...


(todos repetem)

Cantando São José Maria


Recebe teu sordado
E trais de vorta um dia
No exércio encantado.
(todos repetem)

Cortejo para

Euzébio Nosso irmão descansô da afrição. Tomô


a bença e se dexô guiá. Ele sabe que um
home não morre quando tem companhero.
Ante do corpo dele esfriá, nóis vamo vingá
a afronta! Pega os facão, pessoá! Vamo saí
pr’um piquete chucro, vamo atacá a vila
de Carmão e vamo destruí a serraria dos
americano. E quando vinhé o trem dos
sordado pra socorrê Carmão, nóis atacamo
o trem e não dexamo ninguém vivo.
O Contestado 111

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Alarido de apoio. Rufo de bateria.

Ouve-se ruído de motor de um pequeno avião. O avião do te-


nente Kirk. Os caboclos nunca tinham visto uma coisa assim.
Muitos nem imaginavam a existência de um aparelho que
pudesse voar. O aviãozinho sobrevoa o reduto — pode-se usar
um efeito de sombra —, enquanto os caboclos gritam, alguns
correm sem rumo, alarido geral de pânico.

Caboclo D Minha nossa! Óiem lá!

Caboclo F São José Maria!

Caboclo G O que que é isso? Vamo rezá, minha gente!


Isso é argum milagre!

Caboclo A Óiem como ele vorteia aqui em cima!

Caboclo B É o fim do mundo!

Todos apavorados. Desespero. Alguns se ajoelham.

Caboclo C Minha nossa!

Euzébio (tentando segurar o medo de todos)


Isso é coisa dos sordado. Esse apareio é
coisa deles. Esse é o tar do aeroprano! Tem
um home lá dentro. Não se assustem! É
um aeroprano! É coisa dos sordado. Tão
espiando nóis! Carma!

112 Romário José Borelli

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Caboclo A Vamo atirá nele!

Caboclo B Tá muito arto.

Deve-se ampliar a gritaria de desespero até o momento em


que o ruído indica que o avião vai embora.

Caboclo D Óiem, parece que ele tá indo embora...

Caboclo E Então esse é o tar de aeroprano. Que


barbaridade! Como é que essa coisa avoa?

Caboclo A Barbaridade! Onde nóis cheguemo...

Agrupam-se murmurando coisas alusivas à sua perplexidade.

Euzébio (retomando o controle da situação)


Vanceis não vão ficá aí assustado dessa
manera! Isso é coisa dos sordado. É o tar
de aeroprano. Tinha um sordado lá dentro.
Vamo mostrá pra eles que nóis não se
assusta com quarqué coisa! Vamo parti pro
ataque de Carmão!

Alarido de apoio Vambora!

Euzébio Então vão se aperpará! (todos saem)

Textos intercalados em dois focos diferentes: (a) benzedeira e


(b) caboclo Delmiro.

O Contestado 113

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(Foco A) Eu vô benzê essa criação, despois nóis
Benzedeira arreunimo ela co’as outra e tocamo tudo
pro reduto santo.

(Foco B) Derrubaro Taquaruçu, mais nóis já tinha


Delmiro erguido Caraguatá. O reduto é uma festa
de cantoria, reza e carneada.

Benzedeira É lá que nóis devemo i vivê. Caraguatá


é lugá de muito respeito... e já tem otros
reduto se formando aí.

Delmiro O São João Maria logo vai vortá de veis


com exércio de cavalero e vai acavá co’esse
pessoá que tá se adefrontando co’a religião
dele!

Benzedeira Quem qué se sarvá, tem que mudá pr’os


reduto santo. Vanceis leve o que pudé!

Delmiro Vanceis leve o que pudé, mais se não tivé o


que levá, não fais mar!

Benzedeira Lá nos reduto santo, quem tem come, quem


não tem também come! Tudo é dividido
entre os irmão! Essa é a lei!

A partir deste momento, o caboclo e a benzedeira falam si-


multaneamente. Seus textos diferentes começam e terminam
juntos.

114 Romário José Borelli

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Delmiro É a lei da irmandade. Por isso nóis se ale-
vantemo. Quando derrubaro Taquaruçu,
nóis já tinha erguido Caraguatá. Quando
cercaro Caraguatá, nóis já tava em Santo
Amaro e Santa Rosa. Quando foro combatê
Santa Rosa e Santo Amaro, nóis já era mais
de cinco mir em Santa Maria! Vanceis sabe
como é que nóis vivia aqui... mais agora é
diferente. Nóis se alevantemo e vamo brigá
inté fazê as coisa da nossa manera.

Benzedeira Vamo benzê o animá: “Faraó tinha 9 fio,


morreu um, ficaram 8; morreu mais um,
ficaro 7; morreu mais um, ficaro 6. Morreu
mais um, ficaro 5. Morreu mais um, ficaro
4. Morreu mais um, ficaro 3. Morreu mais
um, ficaro 2. Morreu mais um, ficô só 1. De
1 morreu 1, ficô nenhum. Ansim os bicho
dessa bichera vão morrê de um em um, inté
que não fique mais nenhum.” Amém!

CORTE DE LUZ

O Contestado 115

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Estação ferroviária qualquer. Aparelho de telegrafia.

Teles Eta vida boa essa tua, heim? Vancê se


encostô bem... Fica o dia intero tomando
chimarrão... mora aqui na estação, ganha
bem e não fais nada!

Telegrafista Não é bem assim. Este é um trabalho de


muita responsabilidade! E agora com
essa guerra então, este é um trabalho
fundamental. São os telegrafista que tão
passando as notícia pra lá e pra cá.

Teles É! Mais isso não é tipo de trabaio... Xii...


Corra aqui! Tuas galinha tão entrando no
cantero das cove.

Telegrafista É aquele piá que me deixa o portão aberto.


Vamo lá! Vamo tocá elas pra fora... (Ouve-
se o tec-tec característico da antiga

116 Romário José Borelli

20060904 - O Contestado - final.indd 116 4/9/2006 15:38:20


telegrafia.) Não, não! Agora não vai dá!
Vai lá pra mim que agora eu tenho que
recebê um telegrama.

Teles Ah, eu tamém quero vê o que é que tão


dizendo... vamo vê o que é...

Telegrafista (apressando-se em tomar notas) Quieto!


Eu tenho que escutá!... Uta la merda, que a
coisa tá preta!

Teles O que foi? É a jagunçada atacando mais


um posto?

Telegrafista Fique quieto! Deixe eu escutar e tomar


nota.

Teles Onde foi? Fale!

Telegrafista Péra aí, não atrapalhe, home!... Minha


nossa!...

Teles São João Maria!

Telegrafista (terminando a anotação) Pronto! Veja!


“Depois ataques fanáticos Curitibanos,
Calmon, Canoinhas, Papanduva... centenas
famílias deixam Porto União de trem.
Dirigem-se para Ponta Grossa, fugindo da
região contestada.”

O Contestado 117

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Teles Uta la merda! Se o povo tá abandonando
Porto União é o fim do mundo!

Telegrafista (ainda lendo) ...aqui em Canoinhas teme-


se novo ataque qualquer momento.

Teles Desgraciou tudo. Se já queimaram Curiti-


banos, atacaram Canoinhas pra lá e
Calmon pra cá, nóis tamo bem no meio do
entrevero. Como é que a coisa pode ficá
tão preta ansim? Mesmo com o exército
cercando toda a região, a coisa parece que
tá se alastrando. Dá medo de saí por aí.
Botaram fogo no sertão.

CORTE DE LUZ

118 Romário José Borelli

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Caboclo Quando as força foro chegando e se espaiando
aqui e ali, nóis já era mais de cinco mir em
Santa Maria! Nóis temo perdido muita gente,
mais nóis continua de pé. Quem não tá com
nóis que trate de pirá daqui, que cruze o rio
e desapareça! Se nóis tira o coro dos peludo,
tamém tira dos agregado e dos vaqueano
que serve eles. Meceis que se cuide! Nóis
inda vamo cruzá o Iguaçu e vamo se espaiá
pro mundo intero! Meceis que ainda não se
decidiro, que trate de arresorvê de que lado
que tá! É o úrtimo toque de guampa que
damo no orvido de meceis! Quem não se
apresentá, nóis já ficamo sabendo que não tá
de acordo. E quem não tá de acordo, tá contra
nóis, e quem tá contra nóis que se introje o
desconhecido se inda tivé tempo.

CORTE DE LUZ

O Contestado 119

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Cantadores Sô levantado
(num reduto) Pra justiça na porfia
E a guerra no Contestado
Tem benção de Zé Maria.

E a metraia
Dos sordado em faxiná
Negou fogo na bataia
Morrero sem detoná.

E quem pensô
Que nóis morria no Irani
Por certo que se assustô
Que nóis já semo vinte mi.

E a Teodora
Viu o santo lá no mato
Quero vê quem desafora
O novo chefe Adeodato.

120 Romário José Borelli

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Por onde cruzo
Nesta terra contestada
Abusadô perde os abuso
Exproradô fica sem nada.

Todos repetem a última estrofe.

Valêncio (interrompendo desesperado) Adeodato!


Adeodato! Tem sordado chegando de tudo
quanto é lado pra combatê nóis! Inté canhão
eles tão trazendo! O exércio nacioná cercô
toda a região. Os canhão tão bombardeando
os reduto.

Adeodato Não se assuste home! Nóis arresiste. Nóis


se adefende! Nóis já vencemo eles e se
espaiemo por aí tudo. E afiná, nóis não
tinha guerra se não tivesse inimigo!

Valêncio Mais nóis já tamo em muita dificurdade. A


coisa já não é como era. Nóis tamo cercado.
Muitos dos nosso já se entregaro, muitos
morrero. Os reduto já são poco e tão tudo
dividido. Muitos chefe já desaparecero e
nóis não temo mais comida, a munição tá
se acabando...

O Contestado 121

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Adeodato Mecê se acarme! Nada é diferente do que
sempre foi. Nóis sempre vivemo cercado,
memo ante da guerra começá! Não quero
vê indecisão de vanceis! Aqui não tem lugá
pra gente fraca. Aqui não tem lugá pra
covardia! Nóis vamo inté o fim!

CORTE DE LUZ

122 Romário José Borelli

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Foco nos músicos tomando chimarrão e conversando.

Violeiro (cantando) Eu vi teu rasto na areia, oiá


Me pus a considerá, oiá
O sangue me fugiu das veia, oiá
E o coração do lugá, oiá...

Outro músico Que coisa mais linda, compadre. Essa


marca é sua?

Violeiro Quem sô eu, compadre! Essa é do nhô


Perera. Vancê não conheceu o nhô Perera?

Outro músico Não tô alembrado! Acho que não é do meu


tempo!

Violeiro O nhô Perera era um tocadô de viola que


morô emprestado ali no paió do Antonio
Melo.

Outro violeiro Era dos bão, então. Que fim levô esse


home?

O Contestado 123

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Outro violeiro C’o perdão da má palávria, ele se introjô aí
c’os jagunço.

Terceiro músico O home perdeu o juízio, então?

Violeiro (sem perceber que alguém se aproxima)


Pois pra se metê nos reduto com essa jagun-
çada, acho que o home ficô de pinha mole.

Segundo músico Que barbaridade!

Violeiro Eu inda disse pra ele: “Nhô Perera, não


vá co’essa gente. Eles já tão pelas úrtima.
Agora tão na chefia de um tar de Adeodato,
que é o maió dos bandido que já apareceu.”
E eu disse mais: “Se aparecê argum jagunço
na minha casa, eu boto ele pra corrê.”

Chegado (que estava escutando a conversa)


Buenas!

Violeiro Batarde!... Não tô conhecendo sua feição,


mecê é moradô daqui?

Chegado Não. Tô morando aí nas serra.

Violeiro Nas serra? Mais isso é antro de ja... ja...


qué dizê, bem... é lugá... o senhô mora lá
então?...

Chegado É. Eu moro em Santa Maria.

124 Romário José Borelli

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Violeiro Santa Maria! Então vancê é... qué dizê, o
senhô é, é um ja... ja... já é devoto de são
José Maria!... O grande santo!

Chegado Sô. Lá nóis semo tudo devoto dele.

Violeiro Pois nóis temo uma dimiração muito


grande, não é, compadre?... Uma dimiração
imência pelos ja... qué dizê, pela sua gente.

Chegado Hã, sim. Pois então vanceis pode se aperpará


pra i comigo pra Santa Maria.

Violeiro Ma... mais... é...

Chegado Não quero sabê de nada! Se vanceis ainda


qué tocá essa violinha, vão tocá lá em Santa
Maria! Nóis tamo carecendo de cantoria pra
animá os desacorçoado.

Violeiro Ma... mais diz que os sordado...

Chegado Feche o bico e vamo embora! Vamo embora,


já!

CORTE DE LUZ

O Contestado 125

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Prisioneiro caboclo, amarrado e espancado (pode estar sozi-
nho em cena). Apenas se ouvem as pancadas, que podem
ser produzidas por percussão, inserindo-se em determinados
momentos do texto. Ao ouvi-las, o prisioneiro tem contrações
de dor.

Prisioneiro (pancada/gemido) É, é verdade. Já matei


muita gente e não me arrependo. Matei
cinco dentro de uma casa em Timbozinho
e não tenho arremorso. Muié sempre grita
mais na hora de morrê. As criança chora
que inté parece que sabe o que vai acontecê,
(pancada/gemido) mais tamém tem home
que tem muito cagaço... Sei que vanceis vão
me matá, mais não tenho med... (pancada/
gemido) Não sei, não sei por que. As coisa
se esquentaro por aqui e eu me esquentei
junto... Eu não sei quanto nóis semo... Como
é que eu vô sabê se eu não sei nem contá?
126 Romário José Borelli

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Mais se eu soubesse não dizi... (pancada/
gemido) aahhh! Não, eu nunca acreditei
muito nessa vorta do Zé Maria. O home
tá morto memo e não se alevanta mais. E
aquelas santinha: Teodora, Maria Rosa...
aquilo era tudo bobage... Guerra é coisa pra
home. Elas caíro fora fais tempo. Mais nóis
tamo de pé... (pancada/gemido) Conheço
o Adeodato sim. Ele é o chefe agora. Mais
é mió vanceis não conhecê ele. Aquele é
um tigre que vanceis nunca vão consegui
adomá... Ah! É bem verdade, no começo o
pessoá ficô meio assustado c’o esse tar de
aeroprano que vanceis mandaro pra espiá
nóis. Despois adescobrimo que era um
apareio que tinha um home dentro. Mais
nóis nem carecemo de derrubá ele. Ele se
apinchô sozinho. Bateu nuns pinhero e pegô
fogo. Nóis demo muita risada. (rindo) Ah,
ah, ah!... (pancada/gemido) Ui, ah!... Já
tô proseando muito... Não sô muito de me
aperpará, nem pra matá, nem pra morré.
Vanceis pode fazê o servício, seus... (Tiro
seco. Prisioneiro cai.)

CORTE DE LUZ

O Contestado 127

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Violeiros que foram convocados entre os músicos cantam
num reduto. Roda de caboclos faz coro no refrão. Reconstitui-
ção da cosmologia mítica.

Violeiro 1 Eu venho de serra acima


Da zona do Contestado
Quem não gosta de meu canto
Me descurpa o desagrado
Mas não vou ficar calado
Que meu canto é uma missão
Que eu venho de serra acima
Da zona do Contestado.

Todos “E não conteste o Contestado


Sem sabê sua razão.”

Violeiro 2 Eu venho de serra acima


Onde passei fiquei falado
Falou bem é boa gente

128 Romário José Borelli

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Falou mar é despeitado
Mas ninguém ficou calado
Se escutou este bordão
Que eu venho de serra acima
Da zona do Contestado.

Todos “E não conteste o Contestado


Sem sabê sua razão.”

Violeiro 1 Eu venho de serra acima


Da zona do Contestado
Vou descendo o rio da vida
Cruzando seu alagado
Já passei anos vigiado
Pra não fazer rebelião.
Que eu venho de serra acima
Da zona do Contestado.

Todos “E não conteste o Contestado


Sem sabê sua razão.”

Violeiro 2 Eu venho de serra acima


Da zona do Contestado
As mocinha, quando eu chego
Não me deixam sossegado
Quando a viola faz ponteado
Me entregam seu coração.
Que eu venho de serra acima
Da zona do Contestado.

O Contestado 129

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Todos “E não conteste o Contestado
Sem sabê sua razão.”

Violeiro 1 Eu venho de serra acima


Da zona do Contestado
E os doze Pares de França
Que cavalgam ao meu lado
Me protegem num quadrado
Cada um num alazão
Que eu venho de serra acima
Da zona do Contestado.

Todos “E não conteste o Contestado


Sem sabê sua razão.”

Violeiro 2 Eu venho de serra acima


Da zona do Contestado
E no exércio encantado
Sou patente capitão
Carlos Magno coroado
Toma do meu chimarrão
Que eu venho de serra acima
Da zona do Contestado.

Todos “E não conteste o Contestado


Sem sabê sua razão.”

Violeiro 1 Eu venho de serra acima


Da zona do Contestado

130 Romário José Borelli

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O João Maria na direita
O Zé Maria no outro lado
E salve o corpo frechado
Do meu São Sebastião
Que eu venho de serra acima
Da zona do Contestado.

Todos “E não conteste o Contestado


Sem sabê sua razão.”

Violeiro 2 Eu venho de serra acima


Da zona do Contestado
Se chegar argum sordado
C’uma ordem de prisão
Digam que fui pro passado
Fui seguindo uma visão
Que eu venho de serra acima
Da zona do Contestado.

Todos “E não conteste o Contestado


Sem sabê sua razão.”

Violeiro 1 Eu venho de serra acima


Da zona do Contestado
E agora vou retirando
Com viola acompanhado
Ainda procuro um reduto
Onde se viva como irmão

O Contestado 131

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Que eu venho de serra acima
Da zona do Contestado.

Todos “E não conteste o Contestado


Sem sabê sua razão.”

Refrão vai sendo repetido por todos e caindo em BG.

LUZ CAI EM RESISTÊNCIA

132 Romário José Borelli

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Cena na Praça XV de Novembro, em Florianópolis.

Júlio Cesar O que eu mais gosto aqui em Florianópolis


é este ar do mar quando bate essa brisa
suave.

Mauro É verdade, mas seria melhor se esse trapiche


tivesse outro cheiro...

Júlio Cesar Bem, é peixe, meu caro... (O pregão de


um jornaleiro sobrepõe-se à sua fala.)

Jornaleiro Olha a Folha de Florianópolis! Olha a Folha!


A Folha de Florianópolis! Acompanhe as
últimas notícias da guerra. Não fique por fora
dos fatos!... Acompanhe as últimas notícias
da guerra... Olha a Folha de Florianópolis!

Júlio Cesar Ô, menino! Dê-me um jornal!... (Paga e


lê as manchetes.) ... Hum... Ahn... Ahh!...
Tudo na mesma! Não se tem mais sensação
O Contestado 133

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de novidade. Os lances se repetem sem
imaginação. Eu gostaria de saber se afinal
de contas os Estados Unidos não vão entrar
nessa guerra.

Mauro Os Estados Unidos?

Júlio Cesar Claro! Não basta que eles nos dêem créditos
em seus bancos. Precisamos contar com
um apoio mais efetivo.

Mauro Desculpe, não estou entendendo.

Júlio Cesar É o seguinte: eu acho que a Inglaterra, a


França e a Rússia deveriam exigir...

Mauro A Inglaterra, a França... a Rússia?!...

Júlio Cesar É, os países mais fortes da Europa deveriam


exigir que...

Mauro Ah! Tu falas do conflito europeu, por


certo!

Júlio Cesar E do que mais poderia estar falando? O


ano de 1914 ficará como um marco trágico
na história da humanidade... e os Estados
Unidos ainda não decidiram se vão apoiar...

Mauro Pensei que estivesses falando da guerra no


Contestado... lá em... serra acima.

134 Romário José Borelli

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Júlio Cesar Guerra no Contestado! Chamas isso de
guerra? A agitação de meia dúzia de
fanáticos, ignorantes, tu chamas “guerra”?!
E dizes isto assim, assim... quando a aflição
de todos os povos se concentra num conflito
mundial?

Mauro É, mas neste caso os tiros são disparados


aí em serra acima, bem pertinho de nossas
cabeças. Além disso, dizem que são mais
de vinte mil jagunços...

Júlio Cesar Psss... Nem fales isso por aí, que vão te
confundir com essa gente ignorante. Além
do que, meu caro, esses... (com desprezo)
jagunços já foram quase totalmente
dizimados. Resta meia dúzia de bandidos,
que recalcitram em seus crimes, como
bárbaros primitivos que são, liderados por
esse tal de Adeodato. E eu soube que já
cercaram ele. Seus dias estão contados.

Mauro Aah... Menos mal.

Júlio Cesar Nem comentes um conflito tão provinciano,


quando estão em guerra povos tão cultos,
potências seculares, monarquias e repúbli-
cas com raízes históricas tão importantes!

O Contestado 135

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Mauro Sim, sim...

Júlio Cesar Vou te mostrar a essência dessa cultura.


Experimente pronunciar: “Lüdendorff,
(Mauro tenta pronunciar com difi-
culdade: “Lide... Liden...”) Hindemburg,
Clemenceau” e outros que lideram o conflito
europeu. E depois diga: “Zé Maria, Euzébio,
Terêncio... Adeodato!”

Mauro Ééé...

Júlio Cesar Experimente dizer: (enfático) “As tropas


mecanizadas de Hindemburg cruzaram
o Reno!” E depois diga: “Os home de
Adeodato vararo o Timbó.”

CORTE DE LUZ

136 Romário José Borelli

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Entra coro.

Os home de Adeodato vararo o Timbó.


Os home de Adeodato vararo o Timbó.
Os home de Adeodato vararo o Timbó...

Segue acompanhamento musical de fundo.

Spots alternando-se pelo palco. Último reduto. Um após o


outro, os caboclos se levantam para falar.

Caboclo 1 Vanceis me adescurpem, mais eu vô me


arretirá. Vô me arretirá e seja o que fô pra
sê da vontade de Deus. Não posso mais
agüentá o arrojo.

Caboclo 2 Quando tudo isso começô eu tava tão


cercado de amigo, de crença... Mais uns
morrero o foro preso e os outro foro se
arretirando quieto. Se introjaro pr’os mato
O Contestado 137

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da vida, esconjurando a crença, e nunca
mais vortaro...

Caboclo 3 Eu continuei quieto no meio da noite,


esperando um dia que nunca crareô.
Inquieto no meio dos inimigo, esperando
uma vitória úrtima que nunca veio.

Caboclo 4 Meceis não devia de falá ansim! E não deve


de se entregá! Os vaqueano e os sordado tão
matando todo mundo que tá se entregando.
Se é pra morrê, morremo aqui.

Caboclo 3 Que diferência fais, se é pra morrê?

Caboclo 4 Pense no que nóis já fizemo com tanta luita.


Eu morro mais não me entrego!

Caboclo 5 Tudo vinha de ante. O que é e o que vai sê


é o que sempre foi.

Caboclo 6 Os reduto era uma festa e virô uma desgrácia,


como um dia pequeno que foi cortado por
um temporá. Ano atrais de ano foro caindo.
Assim foro quatro ano de luita... Os reduto
caindo um depois do outro...

Caboclo 7 Caiu Taquaruçu, Caraguatá virô tapera e


Bom Sossego virô cinza.

138 Romário José Borelli

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Caboclo 8 Caiu São Sebastião, Pinhero e Vila Nova...
os caminho trancado foro rompido contra
nóis.

Caboclo 9 Caiu Santo Amaro, Santa Rosa e Santa


Maria. O São José Maria não veio com
tempo pra acudi... Vô me escondê por aí.
Se arguém perguntá, vô dizê que nem tive
notiça de guerra.

Caboclo 10 Adeodato! Vancê é o nosso úrtimo chefe e


veja como nóis tamo! Nóis que cheguemo a
sê mais de cinco mir de uma só veis, num
só lugá, tudo armado e embalado, agora
não semo nem cinqüenta... fraco, sem arma,
desacorçoado... Tamo cercado por dentro e
por fora...

Adeodato Tamo cercado... Aqui se costumava dizê


que um home não morre quando tem
companhero. Mais agora os companhero se
arretiraro quage tudo. Uns pras cova, sem
nome e sem cruis, os otro se escondero ô
se entregaro... é o fim. Meceis se espaiem
se ainda dé. Que ninguém se arrependa do
grito que deu, que foi bem dado. Eu, nascido
e criado aqui nos mato, não sei dizê o que
tá errado no mundo, que poco vi... mais
arguma coisa tá muito errada. Se meceis
O Contestado 139

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que vão segui por aí, um dia pudé adescobri
e pudé consertá, se arreúna e conserte, que
vale a pena. Vale a vida inté. Porque nóis
não semo bandido, nem matemo por gosto,
porque pelo memo impurso e pela mema
ânsia nóis enfrentemo o risco de morte,
sofremo e morremo. Se um home se alevanta
e diz “Vô morrê se fô perciso”, pode não sê
bonito, nem muito religioso, mais só acontece
porque arguma coisa tá muito errada antes
disso. Peço que vanceis me perdoe os grito
e os comando de guerra, peço que vanceis
se espaiem... pode se espaiá por aí, pode inté
se entregá... mais não se renda por dentro,
não se conforme. O Zé Maria já dizia: “Eu
trago atrais dos zóio coisa que não posso
revelá! Eu trago atrais dos zóio coisa que
não posso revelá!... Vanceis pode sê como o
profeta, inté que dê pra revelá.

As duas falas seguintes são opcionais.

Soldado (Ouve-se uma voz.) Adeodato, você tá


preso!

Adeodato Preso? Eu?! (Estoura numa gargalhada:)


Ah, ah, ah, ah! Ah, ah, ah!

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Volta o coro Os home de Adeodato vararo o Timbó.
Os home de Adeodato vararo o Timbó.
Os home de Adeodato vararo o Timbó...

Música segue em BG, enquanto os atores, tomando cada


um uma frase, declamam o poema final e voltam para suas
posições do início da peça. Note-se que daqui para a frente
não é mais usada a linguagem regional, apenas o coro do
refrão a mantém.

Vozes distribuídas E caminharam nas serras e no século...


no elenco
...quando perseguidos se esconderam nos
vales e nas matas.

Viveram nos mesmos redutos, nos mesmos


vales, na mesma linguagem.

E trançaram arremedos de sonhos para


suas vidas.

E traçaram idas e vindas nos caminhos de


pó.

Coro sobressai Os home de Adeodato vararo o Timbó...

Vozes E pisaram descalços a relva gelada.

E se aqueceram com o fogo das grimpas.

O Contestado 141

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E se entocaiaram nas pontes e estradas.

E marcaram as imbuias com o sangue dos


inimigos.

E cometeram injustiças sem culpa, nem dó.

Coro sobressai Os home de Adeodato vararo o Timbó...

Vozes Os homens de Adeodato vararam o Timbó,


o Contestado e a vida.

E se fizeram cumprir em quatro anos de


luta, levando a angústia de suas cabeças
para o ventre dos inimigos.

E vararam serras e matas, caindo e se


levantando, caindo e se levantando, caindo
e ficando.

Alguns, sem tempo de fuga, se esconderam


dentro de si mesmos.

Coro volta com força total e em seguida vai caindo lenta-


mente.

Os home de Adeodato vararo o Timbó...

CAI A LUZ EM RESISTÊNCIA

142 Romário José Borelli

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Notas para as
montagens

Esta peça traz nas falas dos personagens a antiga linguagem


regional de Santa Catarina e do Paraná, no território contestado.
A manutenção dessa linguagem nas montagens é fundamental
para manter a autenticidade do processo cultural através da fala.
Dessa forma o documento lingüístico complementa o documento
histórico. Não é uma imitação, não é uma caricatura. É, antes de
tudo, um resgate preciso e assim deve ser tratado.
Quanto às músicas, estas têm duas linhas de composição:
uma, como a linguagem, é o resgate de um estilo musical com as
características próprias da região abordada, que se expressa priori-
tariamente com a viola sertaneja, como era usada então. Algumas
músicas, porém, como Lá vem João Maria e Tormenta, são inter-
venções do dramaturgo para comentar o andamento das cenas.
A liberação da peça para qualquer montagem é condiciona-
da à manutenção da linguagem e de toda a parte musical, como
foi concebida. Um guia de referência importante para a seqüência
musical é o disco O Contestado, gravado em 1979 pelo Museu da

O Contestado 143

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Imagem e do Som, em Curitiba/PR. As músicas também podem
ser obtidas com o próprio autor ou com a Orion Editora.

144 Romário José Borelli

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Glossário coloquial e
histórico do Contestado

Apanhar de bota – Loc.verbal Perder no jogo de truco sem fazer


nenhum ponto. Ficar a zero.

Bandas do Uruguai – Loc.subst. Referência genérica à região do


rio Uruguai, que faz parte da fronteira sul de Santa
Catarina com o Rio Grande do Sul. A Guerra do
Contestado, genericamente falando, estendeu-se das
“bandas do Iguaçu” – que se escrevia Iguassu – até as
“bandas do Uruguai” (rio Uruguai).

Barbaquá – S.m. Complexo de beneficiamento da erva-mate que


incluía um paiol de secagem, geralmente com melhor
acabamento que o carijo, tendo anexadas instalações de
moagem. Esse complexo era a base de beneficiamento
da indústria de erva-mate. Além do paiol de secagem,
o barbaquá continha uma cancha (área circular
assoalhada, de cerca de cinco ou seis metros de diâmetro)
sobre a qual girava uma tora de madeira – geralmente
em formato cônico – com toletes de madeira incrustados,

O Contestado 145

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fazendo as vezes das mãos de pilão. Ao girar sobre a
cancha, puxada por um animal de tração (cavalo, mula
ou boi de canga), a tora ia moendo a erva ali depositada.
Daí a expressão erva cancheada – que já passou pela
cancha –, utilizada quando se referiam à erva-mate
pronta para o consumo.

Buia [bulha] – S.f. Barulho.

Cangaia [cangalha] – S.f. Arreamento grosseiro para transporte


de cestos ou fardos.

Carecer – V.t.i. e intr. Precisar. Ter necessidade de.

Carijo – S.m. Armação de varas na qual eram colocados os


ramos de erva-mate para crestá-los ao calor do fogo e,
assim, secá-los. Espécie de tendal, paiol rústico para
defumação da erva-mate, geralmente construído no
mato, junto ao acampamento de tiragem [tirage] com
a finalidade de desidratar os ramos antes de se proceder
seu beneficiamento. O beneficiamento complementar
realizado pelo índio e pelo caboclo era feito em “socas
de pilão”. A imagem do paiol de secagem, o carijo, deu
nome ao primeiro romance histórico sobre o Contes-
tado, Casa verde, de Noel Nascimento.

Costanera [costaneira] – S.f. A primeira tábua extraída ao serrar


um tronco, que tem um lado abaulado e irregular
acompanhando a circunferência da tora. Essas tábuas

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eram vendidas a preço menor, dado seu pouco
aproveitamento para carpintaria ou marcenaria. As
costaneiras eram usadas comumente como cercas,
paredes de chiqueiro, paredes de paióis e na feitura de
casas pelos mais pobres.

Coxia [coxilha] – S.f. Na região do Contestado, era muitas


vezes usado como sinônimo de potreiro, campo ou
parte desmatada das fazendas. A tradição vocabular
sulina interpreta a palavra coxilha como pequena
colina, cerro. Considerando que a sede dos sítios e
fazendas geralmente era instalada no lugar mais alto e
visível, livre das enchentes e favorável para a vigilância,
entende-se a associação das duas palavras.

Emílio Taboada – Nota de pesquisa. A banda do maestro Emílio


Taboada na realidade não tocou na inauguração da
ponte do rio Iguaçu em 1906. As autoridades do Paraná,
que organizaram a festa da inauguração da ponte,
convidaram uma banda de Ponta Grossa, regida pelo
maestro João Holzmann. Apesar das críticas que tenho
recebido, sustento a presença do maestro Emílio Taboada
para homenageá-lo, restituindo-lhe a importância de
grande músico e figura extraordinariamente conhecida
na história cultural e recreativa da região.

Engaipar – V.t.d. e pron. Geralmente usado na forma reflexiva.


Enroscar-se (em galhos, obstáculos imprevistos).

O Contestado 147

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Entrevero – S.m. Luta, batalha.

Fuzia – S.m. Relâmpagos de uma tempestade. Fuzilaria de ar-


mas de fogo durante uma batalha. Fig. Confusão, luta.

Galisená [galisenar] – V.intr. Cantar de galo, bancar o valente.

Grimpa – S.f. Galhos ressecados com a folha espinhosa dos


pinheiros. Excelente material para acender fogo, pois é
altamente comburente. Havia em grande quantidade na
região.

Guampa – S.f. Chifre de boi usado para vários fins, entre eles:
buzina ou espécie de corneta para chamar animais, dar
sinais de alarme etc; copo para beber água nos rios e
fontes; depósito de pequenas quantidades de erva-mate,
para uma jornada do tropeiro; depósito de pólvora para
carregar garruchas e bacamartes; medida previamente
calculada pelos armazéns e bodegas para venda de
cereais.

Guasca – S.m. e S.f. Pejorativo para sujeito rude, meio aventu-


reiro, de origem gauchesca; falastrão. Correia ou tira de
couro. Também sinônimo de surra.

Introjar – V.t.d.bit.pron Guardar alguma coisa com pouco cui-


dado. Enfiar, meter, guardar de qualquer jeito, às pressas.
Enfiar-se numa mata, num banhado, num buraco. Fig.
Desaparecer em algum lugar, fugir, esconder-se.

148 Romário José Borelli

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Jaguara – S.m. Sujeito vagabundo, desonesto. Cachorro sem
serventia, desatento, preguiçoso.

Jagunço [De zaguncho, cf. Dicionário Aurélio] – S.m. Original-


mente referia-se ao indivíduo que vivia de forma arredia,
enfiado nas serras e matas, tendo raros contatos com a
civilização. Posteriormente esse termo sofreu algumas
adequações. Pelos interiores do Brasil, esse indivíduo,
pela sua simplicidade e pela ausência de princípios mo-
rais, tornou-se presa fácil dos coronéis e mandantes
para execução de crimes: ameaças, vinganças, desapro-
priações, assassinatos, por alguns “mirréis” [mil réis]. O
termo designa nesse caso o bandido contratado para
execuções criminosas. Os cangaceiros de Lampião tam-
bém foram chamados pela imprensa de jagunços. Esta
é uma terceira variação da palavra, já que os canga-
ceiros tinham outra característica de comportamento
e ação, não eram capangas (valentões que se colocam
a serviço de quem lhes paga, cf. Dicionário Aurélio)
dos coronéis. No Contestado, a exemplo da Campanha
de Canudos, o termo foi utilizado na imprensa e pelos
fazendeiros e moradores das cidades para se referir aos
caboclos reduzidos (moradores dos redutos). O próprio
sertanejo reduzido acabou assumindo essa designação
como forma de caracterizar o perigo que representava
para seus inimigos.

O Contestado 149

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Maragato – S.m. Revolucionário que lutou contra os pica-paus,
facção conservadora que defendia o Governo Federal
e Floriano na Revolução Federalista de 1894. Muitos
maragatos se refugiaram na região do Contestado de-
pois da Revolução Federalista, sendo cooptados pelos
estados litigantes para auxiliá-los a tomar o território.
No início do século XX Gumercindo Saraiva perfilou-
se junto aos paranaenses e Demétrio Ramos defendeu
os catarinenses. Esse engajamento envolvia essencial-
mente apoio político com pouca ação belicosa, salvo
pequenas escaramuças nos postos de fiscalização que
os estados em disputa instalavam nas pretendidas fron-
teiras.

Ofendido de jararaca – Loc.verbal O caboclo não dizia que a


cobra mordeu. A cobra, para ele, ofendeu. Fulano foi
ofendido de jararaca, cascavel, urutu.

Paranã – S.m. Denominação caingangue para rio Iguaçu, que


quer dizer “rio grande”. Os velhos moradores da região
se apropriaram da pronúncia nasalada dos indígenas,
assim como da noção geográfica, ao se referirem gene-
ricamente às margens do rio Iguaçu como paranã.

Pelado – S.m. Outra palavra para definir o sertanejo reduzido.


Sinônimo de pobre, sem dinheiro, sem nada, pelado.

Peludo – S.m. e Adj. Designa o indivíduo rico, com posses,


endinheirado. Antepõe-se a pelado, desprovido. Termo

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que remete à guerra entre ricos e pobres, ou seja, entre
peludos e pelados.

Pingo – S.m. Cavalo de montaria. Na região do Contestado,


não tinha o sentido de cavalo vistoso, fogoso, como
se usa no vocabulário sul-rio-grandense. Trata-se de
uma variante denominativa para o simples animal de
montaria. Pingo magro, no texto, é uma figura poética
utilizada para resgatar a imagem da decadência sofrida
por aqueles homens que se refugiaram no Contestado
depois da Revolução Federalista.

Pinha – S.f. Conjunto de frutos do pinheiro. Cacho de pinhões


que se esparramam ao cair do pinheiro. Termo usado
também como sinônimo de cérebro, cabeça, centro de
decisões.

Piquete – S.m. Grupos de cavaleiros armados que saíam para


uma empreitada de guerra: ataque a alguma fazenda,
seqüestro de animais etc.

Porto Amazonas – Nota de pesquisa. Aldeia, hoje município, às


margens do rio Iguaçu, próxima à cidade da Lapa.
Localidade limítrofe de chegada dos vapores que trans-
portavam erva-mate. Ponto até onde o rio era navegável.

Potrero [potreiro] – S.m. Área cercada junto à sede das fazendas,


na qual se guardam os animais empregados nos trabalhos
diários e aqueles que necessitam de cuidados especiais.

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Rabo-de-tatu – S.m. Rebenque usado muitas vezes pelos cava-
leiros.

Redutos – S.m. Vilas construídas pelos fanáticos (termo corrente


utilizado na literatura para se referir a adeptos de movi-
mentos messiânicos) para a sua moradia. Cada reduto
tinha um líder, apoiado por um grupo de “conselheiros”,
que era constituído por aqueles que se destacaram por
feitos em batalha, por sua liderança prévia nas aldeias
antes da guerra, por serem visionários que traziam as
“revelações” místicas ou por relações de compadrio.

Sapeco – S.m. Sapecada. Pinhão assado nas grimpas, geral-


mente ao pé do pinheiro.

Tigre – S.m. Onça. Normalmente os velhos moradores do


Contestado nunca usavam a palavra onça. Sempre
se referiam a esse felino como tigre. Algumas vezes,
porém com menos freqüência, também se usava a pala-
vra leão.

Toreadero [toreadeiro] – S.m. e Adj. Indivíduo que lida com toras,


que corta madeira pesada na mata para as serrarias.
Termo usado também dentro das serrarias para desig-
nar o indivíduo que cuidava da colocação das toras na
linha de corte, que era o trabalho mais pesado.

Trempe – S.f. Barras de ferro (geralmente duas) que são


apoiadas sobre pedras para se fazer um fogão rústico.

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Tresontonte – Adv. Antes de anteontem.

Vaqueano – S.m. e Adj. As fazendas no sul do Brasil contavam com


certo tipo de empregados para a faina diária, que muitas
vezes viviam retirados em postos avançados das fron-
teiras da propriedade. Estes eram também chamados
de agregados. Quando eclodiu o movimento messiânico
do Contestado, esses vaqueanos formavam verdadeiras
milícias particulares, que defendiam os coronéis, que
inúmeras vezes foram usadas pelo exército como força
complementar de ataque aos redutos. Também foram
responsáveis por dezenas de execuções criminosas dos
sertanejos. Sustentados pelos coronéis e escudados
pelo endosso oficial, agiam contra os sertanejos revol-
tados com a maior violência e sem nenhum escrúpulo.
Atribui-se aos vaqueanos o massacre de mais de cem
prisioneiros combalidos, mulheres e crianças, nos arre-
dores de Canoinhas, no fim da guerra. No contexto
do coronelismo essa relação com os vaqueanos
muitas vezes se complementava com as práticas de
compadrio.

P.S.: Essas referências visam apenas apoiar a compreensão


do texto. Quem quiser se aprofundar nesse estudo pode con-
tar com o excelente Dicionário de regionalismos do sertão do
Contestado, de Fernando Tokarski. Vide Bibliografia.

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Bibliografia

A minha bibliografia de referência específica para escrever


O Contestado foi muito pequena porque até aquela época, 1971-
1974, havia apenas quatro livros editados e os dois relatos militares.
Esses livros, que foram básicos para mim, estão aqui referenciados
e assinalados com um asterisco (*). Mas com o intuito de fornecer
subsídios para aqueles que querem estudar mais sobre a Guerra
do Contestado, indico alguns livros fundamentais que me serviram
nos estudos complementares e outros, publicados recentemente,
que servem igualmente para a compreensão do maior movimento
social brasileiro.

AURAS, Marli. Guerra do Contestado: a organização da irman-


dade cabocla. Florianópolis: Edusc/Assembléia Legislativa de Santa
Catarina. São Paulo: Cortez, 1984.

BERNADET, Jean-Claude. Guerra camponesa no Contestado.


São Paulo: Global, 1979.

CABRAL, Oswaldo R. João Maria. São Paulo: Companhia Editora


Nacional, 1960. (*)
O Contestado 155

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CABRAL, Oswaldo R. História de Santa Catarina. Florianópolis:
Governo do Estado, 1968.

CARVALHO, Fernando Setembrino de. Relatório apresentado ao


General de Divisão José Caetano de Faria, Ministro da Guerra.
Rio de Janeiro, 1915. (publicação do Exército Brasileiro) (*)

D’ASSUNÇÃO, Herculano Teixeira. A campanha do Contestado.


Belo Horizonte: Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais,
1918. 2 v. (*)

DIACON, Todd. Milenarism vision, capitalist reality. Brazil’s Contes-


tado rebellion 1912-1916. Londres: Duke University Press, 1991.

ESPIG, Márcia J. A presença da gesta carolíngea no movimento do


Contestado. Canoas: Editora da Ulbra, 2002.

FACÓ, Rui. Cangaceiros e fanáticos. 3. ed. São Paulo: Civilização


Brasileira, 1978.

GALLO, Ivone C. D’Ávila. O Contestado: o sonho do milênio igua-


litário. Campinas: Editora da Unicamp, 1999.

GRAHAM, Richard. Grã-Bretanha e o início da modernização do


Brasil: 1850-1914. São Paulo: Brasiliense, 1973.

HOBSBAWM, Eric. Rebeldes primitivos. Rio de Janeiro: Zahar, 1970.

IGLÉSIAS, Francisco. Natureza e ideologia do colonialismo no


século XIX. In: SIMPÓSIO NACIONAL DE PROFESSORES DE
HISTÓRIA, 4., 1969, São Paulo. Anais... São Paulo, 1969.

156 Romário José Borelli

20060904 - O Contestado - final.indd 156 4/9/2006 15:38:24


LINHARES, Temístocles. História econômica do mate. Rio de
Janeiro: José Olympio, 1969.

LUZ, Nicia Vilela. Aspectos do nacionalismo brasileiro. Revista de


História, São Paulo, 1959.

MACHADO, Paulo Pinheiro. Lideranças do Contestado. Campi-


nas: Editora da Unicamp, 2004.

MARTINS, José de Souza. Os camponeses e a política no Brasil.


Petrópolis: Vozes, 1981.

MARTINS, Romário. História do Paraná. São Paulo: Rumo, 1939.

MONTEIRO, Duglas Teixeira. Os errantes do novo século: um


estudo sobre o surto milenarista do Contestado. São Paulo: Duas
Cidades, 1974.

NASCIMENTO, Noel. Casa verde. São Paulo: Martins, 1963. (*)

OLIVEIRA, General João Pereira de. Diário de campanha de um


aspirante a oficial (Contestado 1914/1915). Boletim do Instituto
Histórico, Geográfico e Etnográfico Paranaense. Curitiba, 1975.
v. XXVI, p. 51-105.

PEIXOTO, Dermeval. Campanha do Contestado: episódios e impres-


sões. Rio de Janeiro, 1916. (publicação do Exército Brasileiro) (*)

PINTO, Virgilio Noya. Balanço das transformações econômicas


no século XIX. In: Brasil em perspectiva. Rio de Janeiro: Difusão
Européia do Livro, 1973.

O Contestado 157

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QUEIROZ, Maria Isaura Pereira. La guerre sainte au Brésil: le
mouvement messianique du Contestado. São Paulo: USP, 1957. (*)

QUEIROZ, Maria Isaura Pereira. O mandonismo local na vida


política brasileira e outros ensaios. São Paulo: Alfa-Omega, 1976.

QUEIROZ, Maurício Vinhas de. Messianismo e conflito social:


a guerra sertaneja do Contestado. 3. ed. São Paulo: Ática, 1981. (*)

REISEMBERG, Alvir. 90 anos de navegação a vapor no Rio Iguaçu


e Negro. Boletim do Instituto Histórico, Geográfico e Etnográfico
Paranaense. Curitiba, 1973.

TOKARSKI, Fernando. Dicionário de regionalismos do sertão do


Contestado. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2004.

VALENTINI, Delmir. Da cidade santa à corte celeste: me-


mórias dos sertanejos e a Guerra do Contestado. Caçador:
Universidade do Contestado, 1998.
WALDRIGUES, Augusto. História do monge João Maria.
Curitiba, 1985. (edição do autor)

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