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34492016 1041
Abstract The scope of this article is to analyze Resumo Este artigo tem por objetivo analisar
the temporal evolution of the rules that comprise a evolução temporal das regras que compõem o
the legal framework of public policies on mental arcabouço legal das políticas públicas de saúde
health and on alcohol and other drugs between mental e de álcool e outras drogas entre os anos de
the years 1900 to 2000. The study seeks to analyze 1900 até 2000. O estudo busca analisar a trajetó-
the trajectory of the rules to make it possible to ria das regras, de modo que se possa compreender
understand a little more about the context and the um pouco mais sobre o contexto e a forma no qual
way in which the issues related to these two themes as questões relacionadas a estes dois temas foram
were addressed prior to the Psychiatric Reform in tratados, até a Reforma Psiquiátrica no Brasil, em
Brazil, in 2001. For this purpose, documentary 2001. Para isso realizou-se uma pesquisa docu-
and bibliographical research was conducted, with mental e bibliográfica, com o intuito de avançar
the intention of enhancing the understanding of no entendimento destas duas políticas sobre um
these two policies from a more normative angle. In ângulo mais normativo. Em um emaranhado de
the skein of legislation, 33 norms were cataloged legislações, foram catalogadas 33 normas que,
which, after analysis, reveal the process of con- após análise, demonstram o processo de constru-
struction of the public policies related to the use of ção das políticas públicas relacionadas ao uso de
alcohol and other drugs, changing the repressive álcool e outras drogas, alterando a lógica repressi-
logic of justice and the “pathologization” of drug va da justiça e da patologização do uso de drogas e
use and enabling the transition of the discussion possibilitando a transição da discussão do terreno
from the field of security to that of public health, da segurança para o da saúde pública, mais espe-
more specifically of mental health. cificamente de saúde mental.
Key words Alcohol, Drugs, Mental health, Public Palavras-chave Álcool, Drogas, Saúde mental,
policy Políticas públicas
1
Laboratório de Gestão e
Políticas Públicas, Centro
de Ciências do Homem,
Universidade Estadual do
Norte Fluminense Darcy
Ribeiro. Av. Alberto Lamego
2000, Horto. 28013-600
Campos dos Goytacazes
RJ Brasil.
annamodesto@hotmail.com
1042
Vargas AFM, Campos MM
Quadro 1. Trajetória das legislações em saúde mental, álcool e outras drogas no Brasil de 1900 a 2000.
Álcool e Saúde
Ano Legislação Síntese do Conteúdo
Outras Drogas Mental
1903 Lei n. 1.132 Reorganiza a assistência a alienados - X
1976 Lei n. 6.368 Dispõe sobre medidas de prevenção e repressão ao tráfico ilícito e uso X -
indevido de substâncias entorpecentes ou que determinem dependência física
ou psíquica.
1980 Decreto n. Institui o Sistema Nacional de Prevenção, Fiscalização e Repressão de X -
85.110 Entorpecentes.
continua
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é Johnny, de 2008, mostrando que dependentes e a heroína. Assim, o uso de drogas aparece clas-
químicos masculinos ficavam abrigados no hos- sificado como “toxicomania”, doença de notifi-
pital. cação compulsória, não podendo ser tratada em
Como forma de se esquivar, como discuti- domicílio. A internação em manicômios diante
do por Reis13, de uma suposta degradação física desses casos e mesmo nos de intoxicação por be-
e mental da população, é criada em 1923 a Liga bidas alcoólicas era entendida como obrigatória
Brasileira de Higiene Mental, que para Amaran- quando estabelecida pelo juiz, ou facultativa15.
te14 significa a cristalização de um movimento Interessante notar como a questão do uso de
com características eugênicas que tinha propos- drogas aparece, já nesse momento, como uma
tas que cerceavam a liberdade e cidadania13. Já questão de saúde, ou, mais precisamente, de do-
no ano de 1927, através do decreto nº 5.148-A, ença. Silva16 faz uma investigação histórica do
a assim denominada “assistência a psicopatas” é uso de droga enquanto objeto de intervenção da
reorganizada e estabelece que, “(...) a pessoa que, Psiquiatria e da Justiça, partindo do século XX
em consequência de doença mental, congênita até os dias atuais. A autora reflete sobre a arti-
ou adquirida, atentar contra a própria vida ou culação e cooperação entre as duas instituições,
a de outrem, perturbar a ordem ou ofender a encontrando convergências e divergências dos
moral publica, será recolhida a estabelecimento processos de medicalização e criminalização do
apropriado para tratamento”. uso da droga, enfocando a organização atual da
Esses estabelecimentos apropriados seriam os problemática.
manicômios judiciários anteriormente criados, A discussão que se apresenta já nos indica
ficando disposto neste último decreto que seria caminhos a serem seguidos no que tange à pato-
proibido manter os “psicopatas em cadeias públi- logização do uso de drogas e no sentido das nor-
cas ou entre criminosos. mativas que foram surgindo ao longo do tempo.
A partir de 1936 percebe-se um aumento na Vê-se que as questões jurídicas e de medicina
preocupação com a questão do uso de substân- acabam por manter uma relação dialética, em-
cias entorpecentes, sendo criada uma Comissão bora aparentemente polêmicas. Como analisado
Permanente de Fiscalização. Em 1938 publicou- por Castel17, essas instituições socialmente reco-
se o decreto-lei n° 891, que condenava o uso do nhecidas, a justiça e a medicina, se apropriam de
ópio e da cocaína, incluindo também a maconha determinado objeto – o uso de drogas – através
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Vargas AFM, Campos MM
de um poder legitimado e exercem seus domí- lícitas e ilícitas. O século XX, segundo Carneiro20,
nios, direcionando a temática para uma questão ficou marcado pelo que foi considerado “guerra
de Estado e que exige intervenções normativas. às drogas”, não apenas em função das normativas
Vargas18 indica a polissemia do termo “dro- da ONU, mas também face aos interesses polí-
gas”, que mantém fronteiras imprecisas com ticos e econômicos dos Estados Unidos. Com a
outras categorias como “alimentos”, “venenos” e expansão da indústria farmacêutica e das normas
“remédios”. Segundo o autor, essa questão não internacionais, as drogas foram classificadas em
está vinculada a uma simples experiência de uso lícitas e ilícitas, categorizando o que passou a
enquanto tal, mas ao processo ativo de apropria- ser considerado medicamento, alimento e con-
ção dessa experiência enquanto fenômeno digno dimento. Vargas18 expõe que alguns alimentos
de intervenção médica e jurídica indistintamen- como chá, café, açúcar e chocolate foram, entre
te, o que torna a criminalização e medicalização os séculos XVII e XVIII, rechaçados pela igreja
as principais vias de criação do evento da droga católica por sua função estimulante, ou aceitos
nas sociedades modernas. apenas para consumo por alguns níveis sociais.
Segundo Machado e Miranda8, as inter- Isso, segundo Silva e Delduque21, chama a aten-
venções iniciais do governo brasileiro se deram ção para o fato de que a criminalização das dro-
através da criação de um aparato jurídico-insti- gas é um processo social recente.
tucional, no início do século XX, destinado a ga- Silva16 argumenta que ao final dos anos de
rantir o controle do comércio e do uso de drogas, 1930 havia um panorama caracterizado pelo tom
preservando a segurança e saúde pública no país. alarmante e epidêmico em relação à construção
Os autores afirmam que nessa época, o consumo do discurso sobre a temática da droga no âmbi-
de drogas era ainda incipiente, não constituindo to médico e jurídico. A retenção dos toxicôma-
uma ameaça à saúde. No entanto, o uso de bebi- nos era amparada tanto pela justiça, legalmente,
das alcoólicas era constante, mas não era motivo quanto cientificamente, pela psiquiatria, defen-
de preocupação, uma vez que seu consumo era dendo seu discurso terapêutico. O toxicômano,
tolerado pela sociedade e também pelo governo. era visto como ameaça, sendo incapaz de viver
Nesse período surgiram, como apontado por de acordo com os preceitos de civilidade, repre-
Musumeci19, sociedades privadas como a Liga sentando um risco para si e para o seu entorno.
Antialcoólica de São Paulo, Liga Brasileira de Hi- Em 1938 é criada a Comissão Nacional de
giene Mental, Liga Paulista de Profilaxia Moral Fiscalização de Entorpecentes (CONFEN), vin-
e Sanitária e União Brasileira Pró-Temperança, culada ao Ministério da Saúde. O decreto nº 891
que tinham por objetivo promover assistência de 1938, resultante da Convenção de Genebra de
aos alcoolistas e dependentes químicos. Essas 1936, determina pena de prisão para o caso de
instituições eram marcadas por princípios higie- consumo de drogas e apresenta o rol de substân-
nistas e moralistas. A questão legal referente às cias assim consideradas, estabelecendo um con-
drogas permanecia frágil e sem uma organização junto de infrações penais, dentre elas a internação
que pudesse ser considerada objetiva até o início e interdição civil dos considerados toxicômanos.
do século XX8,11. No ano de 1940, através do decreto-lei nº
Em 1932 é instituído o decreto nº 20.930, que 2.848 é instituído o Código Penal, que regula-
integrou a Consolidação das Leis Penais, fixando menta a pena de reclusão e multa a quem “im-
pena de reclusão e multa para ações de comércio portar ou exportar, vender ou expor à venda,
e indução ao uso, além de pena de prisão para fornecer, ainda que a título gratuito, transportar,
posse ilícita de drogas sem receita médica ou su- trazer consigo, ter em depósito, guardar, minis-
perando as quantidades terapêuticas indicadas11. trar ou, de qualquer maneira, entregar a consu-
Já nesse período o poder médico legitima a posse mo substância entorpecente, sem autorização ou
de algumas drogas, conferindo a elas um estatu- em desacordo com determinação legal”. Posterior
to de “licitudes” e “ilicitudes”. Assim, ter posse à instituição do Código Penal de 1940, alguns
da droga com uma receita médica legitima seu mecanismos legais vinculados à temática foram
uso, que passa a ser visto como controlado. Indo editados, como o decreto-lei nº 3.114 de 1941,
além, as quantidades também são controladas e que criou uma Comissão Nacional de Fiscali-
quando estão fora de uma dosagem considerada zação de entorpecentes e o decreto-lei nº 4.720
“terapêutica” pelos profissionais de saúde, já há de 1942, que fixava as normas para o cultivo de
um indicativo para punições. plantas entorpecentes e para a extração, trans-
Necessário então construir melhor essa ideia formação e purificação de seus princípios ativos
em relação à categorização de certas drogas em terapêuticos11.
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pressão ainda constatada nos dias de hoje, evi- cientes psiquiátricos. Os autores apontam que no
denciando as diversas motivações que perpassam período de seis anos, que vão de 1987 até 1993,
as práticas de saúde na área. diversas articulações foram realizadas e em 1993
O ano de 1976 constitui um marco pela inter- o Movimento Nacional da Luta Antimanicomial
venção da ONU na procura pela instauração de foi consolidado. É neste cenário que se é apresen-
medidas de controle do tráfico e uso de substân- tado, em setembro de 1989, o Projeto de Lei nº
cias psicotrópicas em todo o mundo, o que, para 3.657, de autoria do deputado federal Paulo Del-
Lima11, ocasionou um aumento da preocupação gado, que propunha a extinção progressiva dos
pelos operadores do direito no Brasil. Foi então manicômios. Tal Projeto de Lei ficou por 12 anos
promulgada a Lei nº 6.368, que segundo Macha- em tramitação, sofrendo diversas alterações, até
do e Miranda8 corroborou para a abordagem da por fim ser aprovada, em abril de 2001 a Lei nº
dependência e uso de drogas na esfera médico 10.21629. Importante demarcar que a proposição
-psiquiátrica. de análise neste artigo vai apenas até o ano 2000,
Cláudia Silva16 explica que uma modificação sendo que a Lei n° 10.216 de 2001, que regula-
importante no campo da Psiquiatria também mente a Reforma Psiquiátrica no Brasil é apon-
ocorreu na década de 1970: a elaboração da ter- tada por ser resultante de um processo iniciado
ceira edição do Manual Diagnóstico e Estatís- em 1989. De outro lado, através do decreto nº
tico de Transtornos Mentais (DSM), discutido 85.110 de 1980, é instituído o Sistema Nacional
ao longo da década de 1970, mas publicado em de Prevenção, Fiscalização e Repressão de Entor-
1980. Este manual é um documento que marca pecentes. Assim, foi definido como órgão central
uma mudança nos sentidos da Psiquiatria mun- do Sistema Nacional o Conselho Federal de En-
dial e no tocante à questão das drogas um ele- torpecentes (COFEN).
mento importante precisa ser considerado: seu Segundo Machado e Miranda8 o COFEN so-
uso deixa de estar presente entre o conjunto de bressaiu-se como órgão normativo dos variados
transtornos de personalidade e aparece com a temas e das ações governamentais programáticas
denominação “transtorno de uso de substân- dedicadas ao controle das drogas. Era formado
cia”16. Isso significa que há uma modificação por diversos ministérios, como o da Justiça, da
quando comparado às duas edições anteriores. Saúde, da Educação e Cultura, da Previdência e
O transtorno de uso de substâncias, conforme o Assistência Social, da Fazenda e das Relações Ex-
manual, torna-se independente dos transtornos teriores. Inicialmente somente as questões relati-
de personalidade e há o incremento de uma nova vas às drogas ilícitas eram abordadas. Mas ainda
categoria, “abuso”, passando-se a considerar pa- na década de 1980 passou a englobar também
tológicas medidas cada vez menores de consumo. discussões relacionadas às drogas lícitas8.
Tudo isso possibilitou que um número maior de Ao longo da década de 1990, já no governo de
indivíduos, fossem inseridos nessa categoria, ha- Fernando Henrique Cardoso, o Sistema Nacional
vendo o que a autora denomina “afrouxamento” de Prevenção, Fiscalização e Repressão de En-
dos critérios diagnósticos, permitindo um signi- torpecentes é substituído pelo Sistema Nacional
ficativo aumento da atuação da Psiquiatria sobre Antidrogas (SISNAD) e pela Secretaria Nacional
a questão das drogas. Antidrogas (SENAD). A SENAD era um órgão
Na década de 1980 importantes aconteci- ligado ao então Gabinete Militar da Presidência
mentos ocorreram tanto no sentido da atuação da República e sua elaboração demonstrou uma
em saúde mental, quanto na elaboração de po- estratégia política do Estado brasileiro em trans-
líticas voltadas para a questão do álcool e outras parecer à comunidade internacional iniciativas
drogas. Um desses acontecimentos é a ampliação que corroboravam com a ideia de que o combate
do Movimento da Luta Antimanicomial. Lü- às drogas era uma prioridade do governo. Além
chmann e Rodrigues28 discutem que as primeiras disso, tal secretaria era responsável pela coorde-
manifestações no setor de saúde surgem em 1976 nação e articulação da Política Nacional Antidro-
com a constituição do Centro Brasileiro de Estu- gas (PNAD), de 200222.
dos de Saúde (CEBES), no contexto de abertura O COFEN foi extinto em 1998 e substituído
do regime militar, sendo um espaço de discussão pelo Conselho Nacional Antidrogas (CONAD).
e possibilitando a produção crítica na área. É nes- O SISNAD norteia-se pelo princípio da respon-
se espaço que surge o Movimento dos Trabalha- sabilização compartilhada pelo Estado e a So-
dores em Saúde Mental, denunciando o sistema ciedade, entendendo que governo, cidadãos e a
nacional de assistência psiquiátrica, indicando iniciativa privada precisam cooperar mutuamen-
fraudes, torturas e tratamento desumano aos pa- te. Um dos objetivos apresentados pelo sistema
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Considerações finais
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Brasil: a estratégia de redução de danos. Psicol Cienc Aprovado em 10/05/2017
Prof 2013; 33(3):580-595. Versão final apresentada em 12/05/2017
CC BY Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons
https://www.interface.org.br
eISSN 1807-5762
Espaço aberto
A educação permanente em redução de danos:
experiência do Curso de Atenção Psicossocial em
Álcool e outras Drogas
Relata-se a experiência do Curso de Atenção Psicossocial em Álcool e outras Drogas, ofertado pelo
Centro Regional de Referência para Formação em Políticas sobre Drogas da Universidade Federal de
São João del-Rei (CRR/UFSJ), com relação aos desafios para formação em Redução de Danos (RD).
Foram constituídos grupos com 16 alunos em média, entre profissionais e lideranças comunitárias
de 18 municípios da microrregião administrativa de São João del-Rei, MG. Com base nos registros de
diários de campo e relatórios do curso, foram elaboradas três unidades de sentido relacionadas ao
processo educativo sobre RD: (a) estranhamentos em torno da RD; (b) problematizações, resistências
e apropriações da RD; e (c) impactos da RD nas práticas dos cursistas. Observou-se que o Curso
favoreceu um primeiro passo para mudança e sensibilização com relação à RD, desafio fundamental
para a reforma nas políticas de drogas.
Batista CB, Vasconcelos MPN, Dalla Vecchia M, Queiroz IS. A educação permanente em redução de danos:
experiência do Curso de Atenção Psicossocial em Álcool e outras Drogas. Interface (Botucatu). 2019; 23: e180071
https://doi.org/10.1590/Interface.180071 1/12
A educação permanente em redução de danos: ... Batista CB et al.
Introdução
A atual Política sobre Drogas1 brasileira concebe o uso de álcool e outras drogas
como questão de saúde pública, propõe a Redução de Danos (RD) como estratégia,
e sugere a desconstrução da imagem de todo usuário de drogas como doente. Porém,
há dificuldades na implantação de uma política norteada pelos direitos humanos e que
enfatize a integralidade do sujeito, já que também se identificam abordagens repressivas
e criminalizadoras sob o pretexto de práticas de cuidado. As ações de internação
compulsória, por exemplo, são justificadas pela incapacidade de o indivíduo gerir seu
próprio uso e elaborar outras possíveis formas de relação com as drogas2.
A perspectiva da atenção psicossocial caminha em direção contrária, ao se
apresentar como modo de atuação que prioriza: o direito de escolha e de acesso
às políticas públicas de forma integral, o protagonismo e a liberdade dos sujeitos,
sobretudo em relação ao seu corpo e à sua saúde. Assim, é preciso reconhecer a
existência de diferentes sujeitos, motivações, drogas e formas de usá-las, exigindo
diferentes modos de abordar as especificidades individuais e contextuais3.
O paradigma da RD, preconizado pela Política do Ministério da Saúde para a
Atenção Integral a Usuários de Álcool e outras Drogas (PAIUAD)1, é central para o
trabalho dentro da perspectiva de atenção psicossocial. Busca-se elaborar estratégias
para a corresponsabilização dos usuários de drogas no tratamento mediante construção
conjunta. Neste paradigma, a abstinência pode vir a ser uma das finalidades possíveis
na relação com as drogas, priorizando-se, no entanto, o aumento no grau de autonomia
e liberdade dos sujeitos, com respeito aos direitos humanos4.
É preciso salientar que a imensa maioria das pessoas não faz uso problemático
de álcool e outras drogas, mas, nem por isso, devem ser negligenciadas nas ações de
prevenção de riscos, danos e vulnerabilidades. O direito de acesso a essas oportunidades
de prevenção requer, portanto, a adoção de princípios ético-políticos da RD, como:
tolerância, pragmatismo e respeito à diversidade5.
Parte-se da constituição de redes de apoio e proteção ao usuário, com foco
na garantia de direitos e na singularização das intervenções, de acordo com cada
experiência e contexto de vida6,7. A viabilização de ações de RD, assim, exige ações
intersetoriais entre os setores: da saúde, da educação, da assistência social, do lazer, dos
esportes, da segurança pública etc., numa tentativa de superação de práticas pautadas
na “guerra às drogas” e na lógica da abstinência.
Assim, maiores esforços em nível macropolítico mostram-se necessários para
que políticas de prevenção e cuidado atentas aos direitos humanos dos usuários de
drogas se efetivem, já que discursos com base no paradigma proibicionista e na ideia
de “guerra às drogas” ainda prevalecem8. Cabe ressaltar que tal discurso não é restrito
aos profissionais atuantes nas ações de prevenção e cuidado, visto que a própria
legislação brasileira apresenta-se ambígua, e a construção histórica acerca da temática
no país calca-se em políticas antidrogas, coexistindo dois modelos orientadores da
política brasileira sobre drogas: a estratégia de RD, conforme descrita na PAIUAD1,
e os modelos que preconizam a abstinência, a exemplo da Portaria n. 131/2012, que
trata da inclusão das Comunidades Terapêuticas na Rede de Atenção Psicossocial
(RAPS)9. Não obstante, as mudanças anunciadas pela atual Coordenação de Saúde
Mental, Álcool e Outras Drogas do Ministério da Saúde, em dezembro de 2017, por
exemplo, aumentaram as tensões no campo, ao proporem o aumento dos recursos para
Método
O Curso de Atenção Psicossocial em Álcool e outras Drogas, oferecido pelo CRR-
UFSJ, teve como objetivo promover uma oportunidade de qualificação voltada para:
lideranças comunitárias, monitores de comunidades terapêuticas e trabalhadores das
políticas públicas de quaisquer setores, desde que atuassem com ações de prevenção ao
uso prejudicial ou de cuidado a pessoas com problemas relacionados ao uso de álcool
e outras drogas. O conteúdo e a proposta foram articulados juntamente do Conselho
Municipal de Políticas sobre Drogas de São João del Rei – MG. Foi organizado em
quatro módulos, com atividades presenciais e à distância, tendo duração de setembro
de 2015 a julho de 2016.
No Módulo I, intitulado “O que são drogas?”, foram levantadas as concepções
iniciais dos cursistas sobre drogas, apresentando-se também os tipos de drogas,
seus usos e epidemiologia. No Módulo II, “Políticas e programas no território”,
debateram-se as orientações e ações da política e dos programas nacionais, por meio
da sistematização e análise das redes constituídas nos municípios de origem dos
cursistas, seus desafios e potencialidades. No Módulo III, “Formas de abordagem e
intervenções”, discutiram-se fundamentos e princípios que embasam as estratégias
de prevenção e tratamento no campo de álcool e outras drogas, compartilhando-se
estratégias de atuação com base na apresentação de situações-problema. Finalmente,
no Módulo IV, “Redução de danos”, foram discutidas e compartilhadas ações de
prevenção de riscos, danos e vulnerabilidades e de promoção da saúde, com base na
discussão e análise de práticas bem-sucedidas de RD.
Nos encontros, realizados quinzenalmente, adotou-se a metodologia ativa de
ensino-aprendizagem, a partir das Oficinas em Dinâmica de Grupo15. Cada grupo de
formação tinha, em média, dezesseis cursistas, provenientes de dezoito municípios
da microrregião de São João del Rei, MG, sendo mediado por dois professores e
um monitor. Os grupos foram compostos majoritariamente por mulheres (84%).
Os cursistas atuavam como: psicólogos (20%), profissionais de enfermagem (17%),
assistentes sociais (11%) e outros (22%), provenientes do setor da saúde (31%) e
assistência social (26%), e, predominantemente, de municípios da região (60%).
As duas primeiras autoras deste artigo atuaram na coordenação de duas turmas do
Curso, desenvolvendo registros, em diário de campo (DC), de suas observações no
decorrer das atividades do grupo de formação. Os participantes foram informados que
haveria registro de falas e acontecimentos em DC, consentindo com este processo e
não apresentando objeções à sua realização. Além dos DC, os relatórios parciais e final,
fornecidos pelo coordenador geral do CRR/UFSJ, terceiro autor deste artigo, também
foram acessados para esta análise. Com os dados pré-selecionados, realizou-se um
recorte com foco no processo de ensino-aprendizagem sobre a RD.
O sigilo na identificação de indivíduos, municípios e estabelecimentos foi
assegurado aqui por meio da adoção de nomes fictícios e termos genéricos, como
a tipologia geral do serviço e “comunidade terapêutica”. A análise temática de
conteúdo19,20 propiciou a elaboração de três unidades de sentido que sintetizam a
análise realizada do processo educativo referente à RD, organizadas em três tópicos:
(a) estranhamentos em torno da proposta de RD; (b) problematizações, resistências e
apropriações da RD; e (c) impactos da proposta de RD nas práticas dos cursistas.
Resultados e discussão
“Pra entender isso é difícil. Pode fumar maconha? Pode beber? Nossa senhora!
Quando a família leva pra internação é pra parar de usar. Como falar pra família
que a gente vai avaliar se ele pode beber uma cerveja no final de semana, pode
fumar maconha?” (DC – Fala de trabalhadora de CAPS)
“Quando a gente começa a entender e ver que tem outros caminhos a gente
passa a aceitar outras possibilidades. No começo eu não acreditava. Agora eu e
outra profissional que também faz o curso começamos a mudar a maneira de
trabalhar. Me falta ir ao CAPS conhecer o lugar, me apresentar e informar sobre
os encaminhamentos que vou fazer.” (DC – Fala de trabalhadora de CT)
Observa-se, a partir das falas, que a proposta de RD vai sendo incorporada pelos
cursistas como práticas de mudança na atuação. A formação possibilitou que os
cursistas, “partindo da ponderação de que o consumo de drogas é impossível de ser
eliminado por completo e que os usuários de drogas têm direitos sobre seu próprio
corpo”29 (p. 903), incorporassem ações voltadas para a redução dos problemas que
podem surgir em decorrência do consumo, procedimento análogo ao adotado em
relação a outros problemas de saúde pública, como as doenças crônico-degenerativas6.
Considerações finais
O processo de mudança em relação à compreensão e implantação da proposta
de RD, aspecto central para a reforma das políticas de drogas contemporâneas,
Agradecimentos
À Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (SENAD), que financiou a execução do
Curso de Atenção Psicossocial em Álcool e outras Drogas.
Direitos autorais
Este artigo está licenciado sob a Licença Internacional Creative Commons 4.0, tipo BY
(https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt_BR).
CC BY
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Report about the Psychosocial Care Course on Alcohol and Other Drugs, offered by Centro
Regional de Referência para Formação em Políticas sobre Drogas, Universidade Federal de São João
Del Rei (CRR/UFSJ), oriented towards to Harm Reduction (HR) training. Groups of around
sixteen students were gathered, encompassing professionals and community leaders from 18 cities
within the region of São João del Rei, MG, Brazil. Through field notes and management reports the
study elaborated three units of meaning related to the educational process of HR: (a) estrangements
regarding the HR proposal; (b) problematizations, resistances and appropriations of HR; and (c)
impacts of the HR proposal on students’ practices. The involvement in the Course promoted a first
step towards change and produced awareness of HR, a major challenge on drug policy reform.
Keywords: Permanent health education. Harm Reduction. Professional education. Drug addiction.
Drug policy.
Se relata la experiencia del Curso de Atención Psicosocial para Alcohol y otras Drogas, ofrecido
para el Centro Regional de Referencia para Formación en Políticas sobre Drogas de la Universidad
Federal de São João Del Rei (CRR/UFSJ), en relación a los desafíos para formación en reducción
de Daños (RD). Se constituyeron grupos con un promedio de 16 alumnos, entre profesionales y
liderazgos comunitarios de 18 municipios de la micro-región administrativa de São João del Rei,
Estado de Minas Gerais. Con base en los registros de diarios de campo e informes del curso, se
elaboraron tres unidades de sentido relacionadas con el proceso educativo sobre RD: (a) extrañezas
sobre la RD; (b) problemáticas, resistencias y apropiaciones de RD; e (c) impactos de la RD en
las prácticas de los participantes. Se observó que el Curso favoreció un primer paso para cambio y
sensibilización con relación a la RD, desafío fundamental para la reforma en las políticas de drogas.
Palabras clave: Educación permanente en salud. Reducción de daños. Formación profesional.
Adicción a drogas. Políticas de drogas.
Submetido em 05/02/18.
Aprovado em 07/08/2018.
ARTIGO ARTICLE
assistencial da rede de atenção aos usuários de drogas
Abstract By applying Social Network Analysis Resumo O presente estudo objetiva avaliar,
(ARS), this study seeks to evaluate the role of the através da Análise de Redes Sociais (ARS), o pa-
Center for Psychosocial Care - Alcohol and Oth- pel do Centro de Atenção Psicossocial - Álcool e
er Drugs (CAPSad) in the care network for drug outras Drogas (CAPSad) sobre a rede de atenção
users. It involves an exploratory, cross-sectional aos usuários de drogas. Trata-se de uma pesqui-
and quantitative approach of the Juiz de Fora city sa exploratória, de corte transversal e abordagem
network in the state of Minas Gerais. One hun- quantitativa na rede de Juiz de Fora, Minas Ge-
dred and eighty-seven care services were iden- rais. Nela, foram identificados 187 serviços assis-
tified in the city. The data gathering was made tenciais no município. A coleta de dados foi feita
from a questionnaire with professionals of these a partir de questionário com profissionais destes
instruments. The analysis took the cohesion and dispositivos. A análise levou em consideração mé-
centrality metrics of the ARS into account as well tricas de coesão e centralidade da ARS, bem como
as the creation of network sociograms. One cen- a confecção de sociogramas da rede. Constatou-se
trality of the network was found in the CAPSad, uma centralidade da rede no CAPSad, em confor-
in accordance with the policies and the care model midade com as políticas e o modelo assistencial
advocated in the area, referred to here as “CAP- preconizado na área, nomeada de “CAPSoliza-
Solization,” The centralization in this instrument, ção”. A centralização neste dispositivo, ainda em
still in insufficient number and with structural número insuficiente e com problemas estruturais
and workflow dynamics problems, leads to low re- e na dinâmica de trabalho, influi para um baixo
silience power of the network indicating the need poder de resiliência da rede e indica a necessidade
for care logic modifications, still based on special- de modificação da lógica assistencial, ainda pau-
ized and emergency care, to the detriment of terri- tada pelo cuidado especializado, de urgência, em
torial/community and ongoing prospects. detrimento de perspectivas territorializadas/co-
Key words Public health care, Substance-related munitárias e contínuas.
1
Programa de Pós- disorders, Mental health, Substance abuse treat- Palavras-chave Atenção à saúde, Transtornos re-
Graduação em Psicologia, ment centers, Public policies lacionados ao uso de substâncias, Saúde mental,
Universidade Federal de Juiz Centros de tratamento de abuso de substâncias,
de Fora. R. José Lourenço
Kelmer s/n Campus Políticas públicas
Universitário, São Pedro.
36036-330 Juiz de Fora
MG Brasil.
phantunes.costa@gmail.com
3234
Costa PHA et al.
A análise dos dados foi realizada com o au- O presente estudo foi aprovado pelo Comitê
xílio do software R Project for statistical compu- de Ética da Universidade Federal de Juiz de Fora,
3237
Tabela 1. Métricas de Centralidade dos dispositivos da rede de acordo com suas tipologias.
Métricas de Centralidade
Grau Intermediação Proximidade
Serviços N (CG) (CI) (CP)
Entrada Saída Geral
M M
M M M
CAPSad 1 106 105 211 1 0,003968
HPS 1 70 89 159 0,412853 0,003774
Ambulatório em saúde mental 1 38 64 102 0,220140 0,003175
SAMU 1 39 20 59 0,032856 0,002849
CREAS 3 21,7 35,7 57,4 0,031724 0,002854
Hospital Geral com leitos em álcool e outras 1 27 18 45 0,107471 0,002976
drogas
CentroPOP 1 26 16 42 0,019838 0,002717
Ambulatório sobre tabagismo 1 14 27 41 0,014446 0,002618
CAPS gerais 3 24,7 15,3 40 0,024841 0,002677
CRAS 9 19,1 18,1 37,2 0,029329 0,0027
Hospital Psiquiátrico 1 14 21 35 0,031737 0,002653
Serviços de Acolhimento Institucional 3 14 17,7 31,7 0,022821 0,002552
Consultórios na Rua 2 7,5 23,5 31 0,017176 0,002677
CAPSi 1 21 9 30 0,004311 0,002653
Entidades Socioassistenciais 11 8,4 12,4 20,8 0,018275 0,002478
Ambulatório em álcool e outras drogas 1 9 9 18 0,020618 0,002532
Centro de Convivência 1 14 2 16 0,031189 0,0025
Clínicas e Comunidades Terapêuticas 19 5,8 8,6 14,6 0,013326 0,002357
UAPS Urbanas 48 6,7 5 11,7 0,005326 0,002477
Residências Terapêuticas 12 3,8 5,1 8,9 0,000536 0,002324
Grupos de Ajuda Mútua 46 4 3,3 7,3 0,006577 0,002121
UAPS Rurais 19 4,1 1,7 5,8 0,000123 0,002411
Hospital Judiciário 1 0 0 0 0 0,002288
Fonte: Dos Autores.
3238
Costa PHA et al.
pois, com a retirada do seu principal dispositi- cluída – dada a sua já baixa densidade –, assim
vo, cujas métricas de centralidade são as mais como suas métricas de coesão são diminuídas.
elevadas e dissonantes, uma parcela significativa Ademais, os outros dispositivos especializados
das relações estabelecidas na rede também é ex- (principalmente os ambulatórios) e os de urgên-
3239
Discussão
do oriundos da RP? Não estaríamos, portanto, xos assistenciais, por meio de linhas-guia de cui-
reforçando um modelo contraditório ao postu- dado, perpassado por uma hierarquização não
lado pela RP, onde no lugar do hospital psiqui- tão rígida entre os dispositivos e níveis de aten-
átrico são inseridos outros dispositivos, mesmo ção e com foco na AB, visando reverter ou, pelo
que mais humanos, como os CAPS e CAPSad? menos, minimizar essa centralização no CAPSad,
Enfim, aponta-se a necessidade de se repensar a nos demais serviços especializados e/ou nos de
lógica que direciona o papel e a função destes dis- urgência/emergência. Portanto, é necessária uma
positivos na rede e a própria organização destes maior consideração da AB na gerência da clínica
arranjos organizativos. Afinal, como foi possível e ordenação dos fluxos assistenciais. Entretanto,
observar, os dispositivos com maiores métricas não pretendemos uma mera responsabilização
de centralidade depois do CAPSad foram servi- deste nível de atenção e seus respectivos dispo-
ços também especializados e de urgência/emer- sitivos, já sobrecarregados, sem as necessárias
gência, sendo que com a retirada do CAPSad nas modificações: maior dispêndio orçamentário,
análises, estes mesmos dispositivos passaram a ampliações estruturais, melhores condições de
“ocupar” sua posição em termos de centralidade trabalho etc.6,33.
na rede. Enfatizar a institucionalização de fluxos e
Entende-se que a RP e suas conquistas his- linhas-guia não significa desconsiderar as singu-
tóricas compreendem não apenas uma troca do laridades de cada caso, abarcadas por meio dos
hospital psiquiátrico por outros serviços, como PTS, mas somente que elas devem ser pensadas
os CAPS e as demais estratégias substitutivas e em conjunto com o que se tem de estabelecido,
extra-hospitalares. Vasconcelos32, por exemplo, isto é, as possibilidades e caminhos pré-definidos
destaca que essa centralidade na implantação dos na rede. Sem isso, corre-se o risco de uma centra-
CAPS, fez com que outros dispositivos e pontos lidade e demanda cada vez maior nos já sobre-
da rede, como os leitos em hospitais gerais, fos- carregados serviços especializados34,35, acarretan-
sem desconsiderados ou não tivessem o dispên- do em uma cronificação do usuário na rede36,37,
dio devido de atenção e fomento de acordo com assim como imobilismos por parte dos profis-
suas relevâncias: “[...] na expectativa de chegar sionais29, reforçados por problemas estruturais
imediatamente ao nosso objetivo estratégico, e esforços contínuos de “invenções de roda” de-
ou seja, no CAPS III, reduzimos, congelamos ou mandados por cada novo caso que lhes é apre-
deixamos sucatear nossa retaguarda de leitos de sentado. Os próprios fluxos, além de não serem
atenção integral”. Por mais que a mera substitui- tomados de forma engessada, como receituários
ção destes serviços já configurasse um considerá- ou panaceias, devem ser formulados a partir das
vel avanço, a RP pressupôs uma mudança radi- realidades locais. Através dessas estratégias, até
cal e ruptura na forma como se concebe a saúde mesmo a elaboração de novas saídas e possibi-
mental e o uso de drogas, bem como os modelos lidades que fujam do instituído fica facilitada, a
assistenciais e as instituições que as abordam e, partir do momento em que já se tem um conjun-
consequentemente, em como as pessoas e seus to de caminhos e fluxos formalizados.
contextos de vida deveriam ser compreendidos e De modo geral, o que se observou no estudo
tratados. foi que, apesar da retirada do CAPSad da rede
Por mais que o decreto da RAPS coloque que resultar numa perda de cerca de 13% das rela-
a ordenação do cuidado estará sob a responsabi- ções estabelecidas, assim como na redução nos
lidade dos CAPSs ou da AB, as políticas de saúde valores das métricas de coesão, essa diminuição
mental do MS1,3 vão nessa direção de centrali- não ocasionou uma desarticulação da rede, o
dade organizativa da rede e de gestão da clínica que poderia ser visto com um aumento signifi-
nos CAPS e CAPSad. Dessa forma, o cenário en- cativo nos números de cliques. Entretanto, isso
contrado no município mostra uma replicação pode ser explicado pelas densidades observadas
de orientações provenientes de cima para baixo, nas redes, que encontram-se entre 3-5%. Por
ou seja, do MS. Assim, trata-se de um problema, mais que se tenha uma centralidade no CAPSad,
cuja origem consta desde a sua formulação, de- a “baixa densidade” dessa rede faz com que o ce-
monstrando que uma série de possíveis entraves nário não seja demasiadamente modificado. Ou
que permeiam o cotidiano das ações advém dos seja, a retirada do CAPSad da rede não resulta
próprios instrumentos norteadores, como, nesse em sua dissipação, pelo fato dela já se apresentar
caso, das políticas em si. incipientemente articulada. Cabe ressaltar que
Além disso, tal panorama reforça a necessida- utiliza-se “baixa densidade” mais na falta de uma
de da configuração e institucionalização de flu- outra adjetivação, devido à insuficiência de pa-
3243
Considerações finais
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3245
CC BY Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons
ARTIGO ORIGINAL ABCS
ABCS HEALTH SCIENCES
Arquivos Brasileiros de Ciências da Saúde
DOI: http://dx.doi.org/10.7322/abcshs.v42i3.1072
RESUMO ABSTRACT
Introdução: No âmbito das políticas públicas vigentes no Brasil Introduction: In the context of public policies aimed at health care
sobre atenção à saúde de pessoas que usam álcool e outras for people who use alcohol and illicit drugs in Brazil, the community
drogas, os agentes comunitários de saúde (ACS) da Estratégia health agents of the Family Health Strategy are very important for
de Saúde da Família (ESF) são profissionais de significativa the active fetch and care of these people. However, they have
importância para a busca ativa e para o cuidado dessas difficulties to perform these actions, probably due to insufficient
pessoas. No entanto, eles têm muita dificuldade em realizar technical qualification as to appropriate approach of drug users.
tais ações, provavelmente devido à insuficiente qualificação Objective: To describe the perceptions and expectations of a
técnica que recebem sobre abordagem adequada de usuários group of community health agents about drug users, on which
de drogas. Objetivo: Descrever as percepções e as expectativas they base their care practices. Methods: Clinical-qualitative
de um grupo de ACS sobre usuários de álcool e outras drogas research approved by the Research with Human Subjects Ethics
(UAOD), sobre as quais fundamentam suas respectivas práticas Committee, which interviewed ten community health agents
de cuidado. Métodos: Pesquisa clínico-qualitativa, aprovada experienced the care of drug users. The interviews were treated
por Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos, que by ideographic strategy and nomothetically organized by theme,
entrevistou dez ACS experientes em cuidar de usuários de later on being analyzed under the referential of extended clinics.
drogas. As entrevistas foram tratadas por estratégia ideográfica Results: Community health agents want to take proper care of
e organizadas nomoteticamente por conteúdos temáticos, os illicit drug users, but they do not know how to do it, probably
quais foram analisados sob os referenciais da clínica ampliada. because they still have lay beliefs about these people and do
Resultados: Os ACS querem cuidar adequadamente dos UAOD, not receive enough technical training. Conclusion: These agents
mas não sabem como fazê-lo porque ainda convivem com noções perceive their need to better qualify and wish to improve so they
leigas sobre essas pessoas e não recebem formação técnica can take care of alcohol and other drugs’ users. Therefore, in
suficiente. Conclusão: Esses ACS percebem a necessidade de order for public policies aimed at the care of drug users to be
se qualificarem e desejam essa qualificação para cuidar melhor effective, it is indispensable to apply permanent education
de pessoas que usam álcool e drogas ilícitas. Portanto, para strategies capable of transforming the practices and perceptions
que as políticas públicas destinadas ao cuidado de quem tem of these professionals.
problemas com o uso de drogas sejam eficazes, é indispensável
Keywords: community health workers; mental health; drug users;
a aplicação de estratégias de educação permanente capazes de
Family Health Strategy.
transformar as práticas e as percepções desses profissionais.
Autor para correspondência: Karen Batista – Departamento de Medicina, Programa de Pós-graduação em Gestão da Clínica, Universidade Federal
de São Carlos – Rodovia Washington Luís, km 235, s/n – Jardim Guanabara – CEP: 13565-905 – São Carlos (SP) – E-mail: karenbatista85@gmail.com
Conflito de interesses: nada a declarar.
Quadro 1: Indicador de experiência, dados sociodemográficos e participação no curso Caminhos do Cuidado dos 10 Agentes Comunitários
de Saúde que responderam à entrevista qualitativa semiestruturada
Valor obtido no indicador Idade em Morador da Frequentou o curso
ACS Escolaridade
de experiência (E) anos comunidade “Caminhos do cuidado”*
1 289.200 53 Ensino médio completo Não Sim
2 255.500 31 Ensino médio completo Não Não
3 109.500 32 Ensino superior completo Não Não
4 32.120 53 Ensino superior incompleto Não Sim
5 26.565 58 Ensino superior completo Não Sim
6 22.500 42 Ensino superior incompleto Sim Não
7 16.425 35 Ensino superior incompleto Sim Sim
8 9.700 33 Ensino médio completo Não Sim
9 3.880 25 Ensino médio completo Sim Sim
10 960 44 Ensino médio completo Não Sim
ACS: agente comunitário de saúde; *curso de capacitação de agentes comunitários de saúde em atenção a usuários de álcool e outras drogas na atenção básica
editado pelo Ministério da Saúde no ano de 2013 e realizado no município de Rio Claro em 2015.
O acolhimento é um modo de cuidar em saúde que implica em semelhantes para pessoas com problemas diferentes, denúncias
compreender a pessoa em suas demandas físicas, sociais e psíqui- de agressões e de maus tratos e o uso de estratégias segregatórias
cas, de modo que suas necessidades possam ser reconhecidas e e punitivas21,22.
trabalhadas de maneira articulada e integral17.
Para isso propõe-se, entre outras práticas, ações transdiscipli- Limitação da autonomia profissional
nares caracterizadas pela horizontalização das relações entre os Se um ACS desenvolver uma percepção de que é fundamental
provedores do cuidado e a pessoa com necessidades de atenção, a institucionalização do UAOD, poderá se sentir tecnicamente li-
as quais podem ter o ACS como esse provedor16,18. mitado para contribuir para o cuidado demandado e, com isso,
ter obnubilada a noção da abordagem integral em que seu apoio
Modelo assistencial biomédico é fundamental:
No processo em que se propõe ofertar um cuidado inte-
gral, incluiu-se a abordagem médica biológica, entendendo-se [...] não tem como você falar muita coisa [...] a gente tenta
que o uso de álcool e outras drogas está associado também a orientar a pessoa a vim aqui. Mas uma prática de saúde que a
problemas orgânicos: gente não pode entrar na questão social (ACS 3).
[...] vamos tentar ver se ele consegue vim no médico, pro mé- No espaço em que surge essa percepção de limitação técnica
dico pedir uns exames nele, porque faz muuuuito tempo que que compromete a integralidade do cuidado, observou-se uma
ele não vem no médico, a gente não sabe como ele tá (ACS 6). tendência dos ACSs de encaminharem o usuário de drogas para
tratamento; porém, sob o entendimento de que a pessoa não de-
No entanto, a expectativa de intervenção médico-biológica sejava o cuidado oferecido, fundamentado na percepção de que
no processo de cuidado de uma pessoa que usa álcool e outras há desinteresse da própria pessoa em relação ao projeto terapêu-
drogas, a exemplo do exposto pelo entrevistado acima, pode ser tico proposto:
consequência de uma percepção de que tal uso representa uma
doença crônica adquirida19. Nesse caso, álcool e outras drogas [...] aí a gente tentou encaminhar ele para alguns... encaminhou
podem ser metaforizados como os agentes etiológicos e seu ele pro CAPS, a mãe também, [...] mas assim ele aparentemente
usuário como o hospedeiro definitivo desse agente que não pode ele não quer sair dessa vida pelo jeito [...] (ACS 6).
ser eliminado do organismo. Uma vez percebido como proble-
ma de ordem biopatológica, pode ser que a condição de UAOD A gente tem que tomar o máximo de cuidado né. Tem pessoas
seja vista como algo que demanda uma intervenção diagnóstica que elas não querem ser ajudadas (ACS 3).
e uma prescrição médica.
Nesse sentido, a premissa de que, obrigatoriamente, tem que Nesse caso, parece que a compreensão do ACS foi de que a
haver um diagnóstico e um tratamento para tudo o que é per- pessoa que usa álcool e outras drogas resiste ao projeto terapêu-
cebido como desvio funcional tende a fazer com que o cuidado tico sugerido.
seja visto como essencialmente dependente do médico ou de
tecnologias duras20: Influência cultural leiga sobre o cuidado
Também se observaram práticas de cuidado de orientação leiga
Eu acho que o governo deveria dar mais clínicas, ter uma clíni- e paternalista, possivelmente fundamentadas num sentimento de
ca específica para drogados, sem limite [...] (ACS 5). compaixão do ACS pelo UAOD, capaz de resultar numa caridade
de base religiosa:
[...] no pior o que eu imagino no paciente preso ou morto.
Dependendo do grau da droga, dependendo do uso que ele faz, Oriento a buscar tratamento, eu oriento a ir pra uma igreja, eu
ou também ele pode ser internado numa clínica e se recupe- dou suporte e encaminhamento pra vários seguimentos pra que
rar(ACS 1). ele melhore (ACS 5).
Nesse caso, a institucionalização do UAOD, seja no sistema [...] eu acho que em qualquer situação você tem que ter pa-
prisional ou em regime de internação hospitalar, também é vista ciência, amor né. Deus sobre todas as coisas e ir com calma
como uma estratégia intersetorial contra o uso de álcool e outras [...] (ACS 4).
drogas. Entretanto, em inspeções realizadas em instituições de in-
ternação de usuários de drogas, observaram-se dificuldades como A percepção da caridade com apelo religioso como recur-
superlotação, insuficiência de recursos humanos, precariedade so assistencial, quando descontextualizado dos aspectos cien-
das condições físicas, ausência de projeto terapêutico singular, tíficos demandados pela condição de saúde da pessoa assistida,
elevado número de pessoas aguardando exames, intervenções pode concorrer com a necessidade de provisão de um cuidado
tecnicamente adequado e até mesmo desviar a assistência pres- ah qual que é o problema?” Eu sinceramente não tenho nada
tada da que é indicada pelas políticas públicas e pela evidência contra a pessoa que usa a maconha (ACS 10).
científica19. Não é raro, ainda, que esse apelo derive da percepção
de exaustão da possibilidade terapêutica: No âmbito dessa tolerância pode surgir um desejo de concilia-
ção com o UAOD no sentido de aceitá-lo desde que o mesmo não
[...] ele chegou no fundo do poço e ele pediu mesmo para Deus faça uso nocivo da droga:
[...] Aí Deus na hora que deu o sinal para ele [...] ele conseguiu
mudar (ACS 6). [...] Bom, seria bom se as pessoas não usassem droga mas como
hoje isso não é possível, tentar ficar mais junto da pessoa, con-
No caso de o cuidado subordinar-se inteiramente à religio- versar, pra eles num vê a gente como inimigo. [...] A gente tem
sidade, isso poderá ser tanto causa como consequência de uma preconceito, às vezes tem até medo né, sair à noite por causa
subtração na autonomia da pessoa com necessidades de saúde, dessas pessoas. Mas é bom que unificasse tudo [...] (ACS 10).
sustentada em modelos doutrinários da moral que defendem o
controle sobre o sujeito como estratégia para a sua reabilitação. Contudo, houve quem fosse ainda mais tolerante e propusesse
Nesse caso, o que se entende por reabilitação também está subor- uma abordagem solidária e menos condicional, fundamentada
dinado ao olhar de quem impõe o controle. numa reflexão crítica social:
O ajuizamento moral sobre o uso e o UAOD apareceu na fala
de um ACS no contexto da sua dificuldade em admitir a possi- [...] Todo mundo tem na família ou conhecido que usa.
bilidade de a pessoa sob seus cuidados ser usuária, como se essa Então vamo tentar ajudar. Mas vamo ser amigo, vamo ser nor-
revelação representasse algo devastador: mal, sei lá. Não deixar a pessoa se sentir excluída (ACS 10).
[...] Aí comecei a conversar com ele e chegou na parte: Ninguém é normal, assim, basta um entender o outro [...] você
- Usa drogas? É, e a gente já vai no “Não” [...] Nunca imaginei é aceito se você é normal, se você faz umas coisas meio fora do
que ele fosse usar... Aí eu (perguntei): padrão você não é normal não (ACS 10).
- O senhor usa? Não... eu vou ser sincero pra você, não pode
mentir, não pode seu João, fala a verdade! O estigma relacionado ao uso de drogas
- Não, eu uso, eu fumo maconha [...] (ACS 6). Porém, o que predominou foi a percepção de que, invariavel-
mente, há algo degenerado e ameaçador no UAOD. E quando não
Devastador porque viola a expectativa estereotípica que se tem é assim, foge ao conceito estabelecido ao ponto de surpreender e
sobre uma pessoa que usa droga: soar ilógico, inacreditável e fora dos padrões. A maior parte dos
entrevistados deixou transparecer uma percepção de que, se a
- Mas o senhor fuma mais alguma...? pessoa usa droga, necessariamente tem algo de ruim a oferecer no
- Não, só a maconha mesmo. contexto de suas relações e, portanto, representa uma condição
Mas é uma pessoa de boa, de bem com a vida assim sabe, não que não deveria existir. Se ela não tem isso de ruim é porque, na
é uma coisa que eu acho que ele é assim, viciado mesmo, sabe, verdade, não é o estereótipo de usuária de droga que está no ima-
e ele é uma pessoa bem bacana, assim, ele cata reciclagem as- ginário coletivo. Ou seja, há um preconceito depreciativo, talvez
sim na rua, eu nunca ouvi falar que ele maltratou ninguém, é estigmatizante, em relação a quem usa droga, mesmo por parte de
uma pessoa educada, sabe? Ah mas foi muito engraçado esse ACSs cuja primeira função é acolher essa pessoa, demonstrando
dia assim sabe... (risos). [...] Assim nenhuma complicação para uma dificuldade desse profissional em compreender que o uso de
família, não tá destruindo a família, tá tudo mundo assim, sabe, droga pode fazer parte da constituição existencial do indivíduo
tudo tranquilo [...] (ACS 6). sem que isso implique em problemas23:
Possibilidades oferecidas pela reflexão crítica Preconceito a gente tem [...]. No fundo, no fundo, todo mundo
Não obstante, essa experiência de contato com UAOD, sem que tem preconceito [...] (ACS 10).
isso repercuta negativamente no ambiente ou no comportamen-
to ético-social sob responsabilidade do usuário, pode facilitar ao [...] ela não é vista como uma pessoa, um ser, ela é vista como
ACS uma reflexão produtiva em favor de uma melhor compreen- uma coisa que dá trabalho, uma sem sentido. Ela é uma pes-
são e tolerância em relação a esse usuário: soa que dificilmente alguém dá a mão. Todo mundo fala, todo
mundo evita, porque o preconceito existe contra a droga, con-
[...] eu fui conversar com ele sobre ele usar droga tal [...] Ele fa- tra qualquer outro tipo de dependência. Existe preconceito, e a
lou: “eu não prejudico ninguém, eu trabalho, eu tenho meu pessoa sofre muito e a família, os amigos, todas as pessoas que
emprego, eu cuido da minha filhinha, pago minhas contas, cercam ela vão sofrer junto (ACS 5).
E aí o estigma aparece claramente na fala a seguir: você fica lembrando, mas nossa, mas eu aprendi que é assim,
assim, assim. Então eu procuro respirar e procuro colocar em
Ah um receio né. Cria um receio, uma barreira. Não vou ex- prática aquilo que a gente aprendeu (ACS 4).
plicar assim um nome pra isso [...] Até onde né, a pessoa que
tá usando a droga já tá num certo grau de uso, ela pode me Essa questão da formação profissional de ACSs apresentou-se
atingir? Com o contato mais direto (ACS 3). como importante possibilidade para a aplicação das políticas pú-
blicas sobre cuidados de pessoas que usam álcool e drogas ilícitas.
Nesse caso, surge o óbvio efeito do estigma que, segundo Como dito, há um conflito entre a influência da cultura de fun-
Goffman23, desqualifica o estigmatizado: damentação leiga e a ciência na percepção de ACSs sobre essas
pessoas e o fenômeno que as envolve. Esse conflito prejudica a
[...] eles sentem vergonha. Eu acho que eles sentem vergonha. integralidade do cuidado por dificultar a participação qualificada
É o meu ponto de vista [...] Da própria fraqueza deles. De algum dos ACSs na assistência. Entretanto, a formação técnica mostra-se
ponto que eles não conseguem trabalhar (ACS 1). potencialmente capaz de influenciar a atuação dos mesmos em
favor do que se pretende em termos de atenção aos UAOD:
Ainda segundo as ideias de Goffman23, sendo o estigma uma
marca que se impinge a uma pessoa com o fim de identificá-la Mas eu acho que a gente pode contribuir bastante pra que tenha
com o indesejável, essa marca interfere, pois, na relação de quem um bom desfecho né. Aquela parte que a gente estudou sobre
a percebe com aquele que se tornou maculado no sentido de des- redução de danos, eu acho que se a gente conseguir reduzir um
pertar um desejo pela segregação do estigmatizado. Esse fenôme- pouquinho que seja [...] eu faço a minha parte [...] (ACS 4).
no, na percepção de um ACS, pode resultar numa ação excluden-
te do UAOD, capaz de obstruir o acesso dessa pessoa a cuidados Interessante foi que os ACSs se mostraram sensíveis a esse
adequados de saúde24. progresso:
Nesse ambiente de significados, pode tornar-se patente, na vi-
são de ACSs, a associação entre uso de álcool e outras drogas a Eu acho que a gente tinha que ir buscar mais, mas a gente tem
um fenômeno que é degenerado a partir de sua própria natureza: que ser preparado pra lidar com isso também [...] (ACS 2).
[...] Eu acho que assim, é bem [...] uma fraqueza de espírito. Percebe-se que os próprios ACSs refletiram criticamente sobre
Mas eu acho que é a emoção, um distúrbio emocional da pessoa sua potência profissional e sobre a necessidade de qualificarem a
[...] (ACS 7). atenção que oferecem aos UAOD. No entanto, para que tal qualifi-
cação ocorra, é fundamental que esses profissionais sejam forma-
Porque as pessoas hoje não, não têm [...] aquela família uni- dos para isso e que recebam apoio para desenvolver as respectivas
da, que dá mais estrutura, mais base sabe pra um futuro me- ações de saúde no território.
lhor (ACS 5) A literatura, as políticas públicas e as diretrizes internacionais
reconhecem que a ESF é uma ferramenta essencial para a provi-
Não sei...tem tanta gente boa que usa...gente mal você vai falar são do cuidado qualificado aos UAOD, que tem como objetivo a
que é, que é a situação dela. Mas e o cara legal, o cara que estu- reinserção social do sujeito e a redução de danos. Dentro dessa
da, o cara que faz faculdade...sei lá. Por que que usa droga? [...] estratégia, destacou-se o papel dos ACSs.
(ACS 10). Nesse foco, respeitadas as limitações inerentes à metodologia
utilizada neste estudo e o universo investigado, estabelecidas pela
A política pública frente ao subjetividade dos achados, pela característica específica dos su-
conflito entre a ciência e a cultura jeitos e pela organização do ambiente assistencial em que traba-
Por outro lado, os ACSs demonstraram vivenciar um conflito lham, observou-se que os ACSs têm tendência acolhedora sobre
entre suas percepções culturais relacionadas aos UAOD e o dis- os UAOD na tentativa de ofertarem uma atenção ampliada e in-
curso científico ou as políticas públicas a que tiveram acesso. tegral. Contudo, essa tentativa mostrou-se prejudicada pela falta
Nesse sentido, destacou-se o curso “Caminhos do cuidado”, de oportunidade de qualificação técnica; pela influência de per-
ofertado nacionalmente pelo Ministério da Saúde para a qualifica- cepções de ordem sociocultural estigmatizantes sobre os UAOD;
ção de profissionais da atenção básica sobre cuidados de UAOD17: e por um sentimento de baixa autoeficácia profissional, o qual
sustenta uma crença equivocada de que os modelos assistenciais
[...] você tem que parar e pensar naquilo que você aprendeu hospitalares, médico-centrados ou restritivos da autonomia dos
porque pra gente, por mais que você conviva, você nunca teve sujeitos são mais eficazes.
uma...eu pelo menos nunca tive uma orientação que nem agora Esse conjunto de obstrutores, aliado a uma falta de adequada
a gente teve no Caminhos, né... Caminhos do Cuidado, então estrutura de suporte assistencial secundário e terciário, dificulta a
aplicação correta das políticas públicas vigentes para o cuidado de condições de refletir sobre as políticas de saúde mental, bem
UAOD por parte das equipes de saúde da família, dando a impres- como problematizar e construir modelos de atenção à saúde
são de uma ineficiência sistêmica das próprias políticas públicas. numa perspectiva ampliada e emancipatória sobre os usuários
Não obstante, os ACSs compreendem suas limitações técnicas de drogas.
e identificam a importância de qualificação para o cuidado de Em síntese, os ACSs demonstraram interesse por cuidar de
UAOD, entendendo que é possível prover uma atenção melhor UAOD, mas não sabem como fazê-lo adequadamente. Essa condi-
do que aquela que é ofertada. Apontaram, inclusive, que muitas ção os deixa numa situação de insegurança pessoal e profissional
de suas ações leigas destinadas ao cuidado de UAOD, as quais frente a esses sujeitos e às suas próprias limitações, o que leva ao
resultam numa abordagem pouco qualificada e ineficiente em desperdício da potencialidade que têm.
relação ao objetivo das políticas públicas, derivam da tentativa Portanto, sugere-se incluir entre as políticas públicas a aplica-
de cuidarem mesmo na falta de recursos pessoais e profissionais ção de estratégias pedagógicas de qualidade e intensidade sufi-
para isso. Entretanto, como dito, mostraram-se interessados em cientes para tornar o ACS um profissional capaz de exercer uma
fazer melhor e, portanto, reivindicam oportunidade de conquis- clínica ampliada e compartilhada no âmbito da ESF, bem como a
ta desses recursos. produção de novos estudos sobre o tema por meio de estratégias
É fundamental garantir espaços regulares de educação perma- metodológicas que permitam avaliar a influência dos treinamen-
nente para que os ACSs e demais profissionais da ESF tenham tos nas percepções e nas práticas do ACS.
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© 2017 Batista & Souto. Publicação licenciada para ABCS Health Sciences
Este é um artigo de acesso aberto distribuído nos termos de licença Creative Commons.
ABSTRACT: The aim of this study is to understand the perception of professionals of a Center for
Psychosocial Care Alcohol and Other Drugs (CAPS ad) about the harm reduction strategy, furthermore
to identify the main challenges for the effectiveness of this policy in the scope of Psychosocial
care. It was characterized as a qualitative approach research, where thirteen professionals were
interviewed and their speeches were analyzed from a Content Analysis framework. In general,
Harm Reduction is seen as a recent strategy, with the role of expanding possibilities in the treatment
of users of psychoactive substances, making them more autonomous and cooperative in their care
process, ensuring greater adherence to treatment and greater humanization in care. There are also
some challenges related to the achievement of Harm Reduction, such as insufficient knowledge
about the policy by professionals, family members, and users themselves. However, whilst they do
1 Psicóloga – Especialista em Gestão em Saúde pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). Egressa da Residência
em Saúde Mental Coletiva pela RIS-ESP/CE. Psicóloga da Universidade Federal de Campina Grande – UFCG. Centro
de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS AD). Quixeramobim, Ceará, Brasil. E-mail: cbjr.carol@hotmail.com
2 Psicólogo, Mestre em Psicologia, Professor substituto do Departamento de Psicologia da Universidade Estadual do
Ceará, Egresso da Tutoria de Núcleo (Psicologia) da Residência Integrada em Saúde – RIS da Escola de Saúde Pública
do Ceará – ESP-CE, Fortaleza, Ceará, Brasil. Doutorando do programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da
Universidade Estadual do Ceará - UECE. E-mail: ronrodpires@bol.com.br
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not feel able to promote this differentiated care, professionals have sought, along with the user,
several possibilities of practices that are guided by this paradigm.
Keywords: Harm reduction, Drug abuse, Mental health.
RESUMEN: Este estudio tiene como objetivo comprender la percepción de los profesionales
en un Centro de Atención Psicosocial de alcohol y otras drogas (CAPS ad) sobre la estrategia
en reducción de daños e identificar los principales desafíos para la eficacia de esta política en la
Atención Psicosocial. Se caracteriza por ser una investigación cualitativa donde trece profesionales
fueron entrevistados y sus declaraciones analizadas a partir de la referencia del análisis de
contenido. En general, la reducción de daños es percibida como una nueva estrategia, que tiene
el papel de ampliar las posibilidades en el tratamiento de los usuarios de sustancias psicoactivas,
convirtiéndolo en un ser autónomo y participativo en su proceso de cuidado, garantizando una
mayor adhesión al tratamiento y humanización del cuidado. También se pudo observar algunos
retos en cuanto a la aplicación de la reducción de daños, tales como el conocimiento insuficiente
de los profesionales, miembros de la familia y los usuarios acerca de las políticas de lucha contras
las drogas. Sin embargo, aunque todavía no se sienten capaces de promover este cuidado especial,
los profesionales han buscado, junto al usuario, distintas posibilidades de prácticas que se orientan
bajo este paradigma.
Palabras clave: Reducción de daños, Abuso de drogas, Salud mental.
1 INTRODUÇÃO
No âmbito da atenção aos usuários de álcool e outras drogas, a Redução de Danos (RD) se
constitui como uma política de saúde pública que tem como objetivo minimizar as consequências
negativas do consumo, garantindo a liberdade de escolha do sujeito e seu papel de protagonista
do cuidado 1,2. Na realidade da Atenção Psicossocial, foi inserida como uma diretriz que se coloca
como alternativa às estratégias de cuidado baseadas exclusivamente na lógica da abstinência.
Tendo em vista a diversidade de relações que os sujeitos estabelecem com as drogas, a RD aponta
para a necessidade da ampliação das ofertas em saúde para esta população3.
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de álcool e outras drogas5,6,7 . Desse modo, percebe-se que, mesmo com as resistências históricas, a
RD está presente nestes diferentes marcos normativos das políticas públicas brasileiras.
A Redução de Danos é apontada por vários estudos como um princípio crucial para
a efetivação dos direitos dos usuários de drogas, tendo em vista que ela permite que um novo
olhar seja lançado sobre esse sujeito, mostrando-se como uma oferta concreta de acolhimento e
cuidado que rompe com a marginalização desses usuários4,8,9,10. No entanto, essa política ainda
enfrenta diversos obstáculos na sua efetivação, como dificuldades de financiamento das ações,
descontinuidade dos projetos, além de insuficiência de estruturas para sua realização3, 11.
Além disso, observa-se que existem concepções diversas acerca dos objetivos e da aplicação
das estratégias de Redução de Danos. Em estudo realizado sobre as concepções presentes na
literatura acerca da RD10, constatou-se que existe uma visão heterogênea acerca desse conceito,
sendo ele aplicado e representado de diferentes formas e recortes. Nesse estudo, Santos, Soares e
Campos10 apontam que a RD pode ser abordada a partir de diferentes concepções sobre o objeto e
o sujeito destas ações, de modo a afirmar que existem “várias RDs”.
A percepção destas contradições e destes problemas no campo de prática dos serviços tem
servido para mobilizar questões sobre esta situação. O interesse por esta temática surgiu a partir
da experiência vivida da primeira autora como psicóloga residente da Ênfase em Saúde Mental
Coletiva do Programa de Residências Integradas em Saúde – RIS. Através das ações, dos diálogos
e das vivências com os profissionais do Centro de Atenção Psicossocial álcool e outras drogas
(CAPS ad) onde atuou, foi possível perceber que a temática da Redução de Danos ainda aparecia
de forma tímida nesse espaço, além de parecer haver certa resistência a sua efetivação.
2 MÉTODOS
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qualitativa, pois está interessada em produzir informações sobre a natureza de um fenômeno, a partir
dos sujeitos e seus relatos12. Foi realizada em um Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Outras
Drogas (CAPS ad), o qual se constitui como um serviço especializado responsável pela atenção
psicossocial aos usuários de substâncias psicoativas. O CAPS ad do município de Iguatu no interior
do Ceará em que foi realizada a pesquisa foi fundado em 2003, e funciona das 7h às 17h. Acolhe
diariamente usuários que o procuram buscando oferecer um cuidado multiprofissional, através de
atendimentos individuais, grupais, oficinas terapêuticas, visitas domiciliares e articulação com os
demais serviços que compõem a rede do município. O CAPS ad, em questão, também possuía,
na época da pesquisa, profissionais oriundos de um programa de residência multiprofissional em
Saúde Mental Coletiva e profissionais da residência médica em Psiquiatria.
Os dados coletados através das entrevistas foram transcritos na íntegra e analisados a partir
do referencial da Análise de Conteúdo13. As principais categorias de análise foram: concepção de
RD, dificuldades enfrentadas para concretização da RD, ações e metodologias de RD dentro da
prática no CAPS ad, e benefícios proporcionados pela adoção da estratégia.
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sobre os objetivos da pesquisa e manifestaram seu consentimento em participar.
3 RESULTADOS E DISCUSSÃO
A partir de algumas narrativas foi possível perceber que, para um grupo dos entrevistados do
serviço, havia uma aproximação das concepções sobre a RD como uma ética do cuidado, tal como
aponta Petuco11. Esta compreensão orientaria a clínica junto às pessoas que fazem uso de drogas, a
partir do ponto de vista da necessidade de ampliarem-se os lugares onde se efetiva o cuidado. Tal
pressuposto implica também numa modificação da relação que se estabelece entre quem cuida e
quem é cuidado, de modo a produzir uma horizontalidade e respeito ao protagonismo do sujeito.
A Redução de Danos, pra mim, é assim, quando o paciente faz um uso abusivo, e ele não
quer parar, mas quer diminuir, então a gente vai trabalhando essa diminuição com ele,
com foco também na questão das atividades esportivas, atividades de lazer, a questão
também da alimentação, que influencia muito, até pra melhorar a condição de saúde
dele. Então eu fui entendendo que na redução ele pode ir fazendo uso, mas com outras
ocupações, outras atividades. Se ele não quer parar, então foi uma escolha dele, e a gente
tem que respeitar (Entrevistado VIII).
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Eu definiria como uma forma de tratamento para aquelas pessoas que não querem
deixar de ser usuárias, e que de alguma forma elas têm direito à saúde. Então, a gente
trabalharia com Redução de Danos (Entrevistado IX).
Então, eu acho que a Redução de Danos está presente o tempo todo, porque eu estou
sempre fazendo um esforço para que os usuários atendidos aqui sejam respeitados,
independente das suas escolhas em relação ao uso de drogas. Acho que a Redução
de Danos está presente também na minha prática por eu não ter somente o ideal da
abstinência, por reconhecer muitas vezes que as pessoas vão continuar usando algumas
substâncias (Entrevistado VI).
A Redução de Danos, na verdade, ela faz parte da nossa vida. A gente que não percebe
muito. Por exemplo, no trânsito a gente diz assim, se beber não dirija, já é para reduzir
um dano que pode ser causado, um acidente, uma morte iminente. Eu acho que a gente
vive na sociedade em meio à Redução de Danos e não tem essa consciência ainda
(Entrevistado VII).
Em outros trechos analisados também foram encontrados alguns relatos que destacaram a
RD como um modo de minimizar a relação de dependência existente entre o sujeito e a substância,
no sentido de diminuir os riscos e agravos que o uso de drogas pode trazer para esse indivíduo.
Redução de Danos é uma maneira que se encontrou para diminuir os danos que a droga
faz no organismo do paciente, quando ele não tem a capacidade ou a vontade de deixar,
ele é orientado a, pelo menos, diminuir o uso abusivo, e com isso vai melhorar a saúde
dele (Entrevistado XI).
Pelo pouco que eu entendo, a pessoa fica no tratamento e fica usando quando sente a
necessidade dele. O objetivo é ver se, no que vai reduzindo, a pessoa vai indo, vai indo, e
fica em apenas uma coisa só. Ou no tratamento, ou no vício (Entrevistado XII).
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15 //
A Redução de Danos é a “clínica do possível”, é o que dá para fazer, tendo em vista que
em alguns casos não é possível a abstinência, não é possível parar completamente o uso
de alguma substância. É tentar de alguma forma diminuir o prejuízo que ele vai causar,
tendo em vista que algumas pessoas não conseguem parar o uso da substância. Então, é
tentar fazer com que a substância seja menos nociva pra ela (Entrevistado III).
A preocupação com a substância e os prejuízos possíveis foi mais destacada entre estes
entrevistados. Como afirma Moraes17, a abordagem da Redução de Danos muitas vezes é colocada
como uma possibilidade pelos profissionais, embora, por vezes, parece ficar subentendido que a
meta ideal para o tratamento é a abstinência. No entanto, é importante esclarecer que a RD não
se opõe à abstinência como possibilidade, tendo em vista que muitas vezes a supressão do uso de
drogas pode ser a melhor forma de reduzir os danos para algumas pessoas.
Cabe ressaltar, no entanto, que buscar a abstinência é uma conclusão que deve ser tirada pelo
próprio usuário, e não uma expectativa ou exigência de seu projeto terapêutico17. Nesse sentido,
há sempre um risco de simplificação da proposta que precisa estar sempre sob a necessidade de
reflexão. É preciso destacar também que o fato do usuário não deixar de consumir drogas não deve
significar uma desresponsabilização nem do serviço, nem do usuário, como aponta Quinderé e
Jorge18, e, por isso, os entrevistados parecem supor a necessidade de apostar em algo que produza
o vínculo para a produção do cuidado.
Além de proporcionar um momento de lazer, um momento que eles possam ter assim um
conhecimento do seu próprio corpo, do que é bom para eles, eu acredito que o grupo de
caminhada já seja uma estratégia de reduzir os danos, porque se você se conhece, você
conhece seu corpo, você sabe quais são suas limitações ou não (Entrevistado VII).
Orientação familiar, alguma orientação que a gente pode dar no serviço que não se
resuma somente ao uso de álcool e outras drogas. Mas acredito que o esclarecimento é
uma forma de reduzir danos, o compartilhamento com os usuários é uma forma de reduzir
danos, garantir direitos. Eu acho que essa também é uma forma de Redução de Danos
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16 //
(Entrevistado IV).
de caminhada. Ressalta-se que boa parte destas atividades externas era realizada por profissionais
residentes que tinham agendas que proporcionavam maior flexibilidade para esse deslocamento no
território.
É preciso sublinhar que, segundo os entrevistados, este panorama de inserção dos princípios
da RD vem ocorrendo progressivamente, mas convive também com dificuldades. A ideia de
“ocupar a mente”, presente em uma das falas, parece sugerir que a prática oferecida leve o usuário
a suprimir seu desejo e não permite compreender que é justamente o desejo que faz com o uso de
drogas ocorra na vida das pessoas18.
Enquanto eles ocupam a mente com o artesanato, eles já estão saindo, ali já tem uma
conversa, eles estão desenhando, pintando. e então, seja qual for a atividade, usa a
Redução de Danos (Entrevistado XIII).
Dessa maneira, observa-se que o conceito de RD corre o risco também de ser utilizado
como uma figura retórica para abarcar práticas que nem sempre condizem com seus princípios.
A persistência deste modo de pensar a clínica com usuários de álcool e outras drogas se deve
também pela insuficiência de ações de educação permanente que têm sido comuns nos serviços
de saúde mental. Estratégias como a supervisão clínico-institucional e as rodas de equipe têm sido
negligenciadas ou até mesmo desconsideradas como instrumentos fundamentais para a produção
do cuidado nos serviços de saúde.
Segundo relatos dos entrevistados, em anos anteriores, o usuário que chegasse ao serviço sob
efeito do uso de qualquer substância era suspenso e só poderia voltar a frequentar o CAPS se viesse
acompanhado pela família. Percebe-se com isso que, quando não existe clareza e reflexão sobre
os princípios norteadores da atenção psicossocial aos usuários de drogas, a abstinência comparece
como uma norma de acesso ao serviço que reproduz incongruências com princípios fundamentais
como a universalidade do acesso14.
Essas situações passaram a ser objeto de discussão com os espaços reflexivos produzidos
pelas residências, como as rodas de discussão, e os estudos de caso, e, por isso, proporcionaram o
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aperfeiçoamento do serviço, demonstrando que o trabalho na atenção psicossocial deve ter espaços
garantidos que proporcionem uma reflexividade sobre este fazer, reformulando estas regras
institucionais que não favoreciam o vínculo e o cuidado com as pessoas.
Além das questões suscitadas dentro do próprio serviço, observa-se outra aplicação prática
para a RD que foi apresentada no matriciamento em saúde mental. Os profissionais relatam que
a Redução de Danos é utilizada através da orientação e do contato com as famílias em visitas
domiciliares e atividades realizadas na Atenção Básica.
Então, da mesma forma que a gente vai abordando aqui nos grupos, a gente já vai levando
alguma coisa do que a gente pode abordar na visita, no matriciamento, para a gente tentar
ver o que podemos abordar com aquele usuário, e o que pode ser melhor na questão da
saúde física, saúde psíquica, e na questão social também. Então a gente já tem entrado
nessa questão de, se o paciente não quer parar, então vamos ver o que a gente pode fazer,
junto com ele e com a família, pra melhorar a qualidade de vida dele, mesmo ele estando
em uso (Entrevistado VIII).
Embora a Redução de Danos seja uma estratégia que está nas ações do CAPS AD, ainda
existem muitas barreiras para que essa política se concretize nesse serviço, tendo em vista que é um
processo novo e que exige sensibilização e abertura dos profissionais.
Uma das principais dificuldades citadas pelos sujeitos foi a questão da família, que muitas
vezes apresenta resistência com relação às propostas baseadas na RD. Tal resistência é originada,
segundo os entrevistados, pelo desconhecimento, visto que, no senso comum, o tratamento da
dependência química ainda tem como objetivo, para a maioria das pessoas, à abstinência total do
uso. Dessa forma, os profissionais relatam que tem sido difícil para os familiares entenderem a RD
como estratégia de tratamento.
A família, geralmente, o que ela quer, o que ela deseja do seu familiar é que ele cesse o
uso por completo. Ela não compreende que, muitas vezes, o usuário não consegue e, às
vezes, a gente também não consegue estar convencendo, estar discutindo com a família,
a questão da redução do uso. Na maioria das vezes o que a família quer é abstinência
(Entrevistado IV).
Como ela não conhece a política de Redução de Danos, elas pensam que o paciente vem
pra aqui, principalmente os que fazem uso de álcool, e querem que eles parem de beber
de uma vez. Eles não sabem o que pode causar uma abstinência mais séria. Eles não
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compreendem o processo. Tem deles que nem aceitam, como já teve familiar que chegou
aqui dizendo ‘ah, quero conversar com o doutor, porque ele mandou meu marido tomar
um copo de vinho por dia. Como ele quer que ele pare de beber, bebendo vinho todo
dia?’(Entrevistado IX).
Como afirmam Mielkeet al19, a família tem sido uma aliada na reabilitação psicossocial
do usuário no âmbito da saúde mental, necessitando receber o suporte adequado para superar
os diversos desafios no cuidado à dependência de drogas, devendo encontrar junto aos serviços
substitutivos em saúde mental o acolhimento de suas necessidades e apoio. É preciso considerar,
no entanto, que o stress e o desgaste vivido pelo familiar não pode deixar de ser compreendidos
nesta demanda por internação e abstinência, tendo em vista que os serviços de saúde, diante da
precarização, não têm oferecido um suporte adequado às necessidades da população.
Eu nem tinha conhecimento do que era a Redução de Danos. Eu só vim ter um pouco de
conhecimento a respeito com a residência em saúde mental, mas na minha formação eu
não tinha ouvido falar na estratégia de Redução de Danos (Entrevistado IV).
Por último, foi citada como dificuldade a questão do preconceito e do estigma que têm
envolvido a proposta da Redução de Danos desde suas primeiras manifestações no Brasil1,2. Os
profissionais relatam que escutam comentários da RD como apologia ou indução ao uso de drogas.
A Redução de Danos tem muito preconceito em cima dela, tem muita gente que tem tabu,
que acha que não, que eu como profissional não posso trabalhar isso porque vou estar
induzindo o paciente a usar e não é isso. A gente não induz o paciente a usar, a gente
estimula o paciente a diminuir a quantidade abusiva daquele uso. Se ele for fazer o uso,
fazê-lo de uma forma mais segura (Entrevistado I)
As pessoas ainda não entendem que a Redução de Danos não é apologia ao uso de
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drogas. Eu acredito que, às vezes, as pessoas pensam: “ficam deixando o paciente fumar
no serviço?” Ou então... “ele bebeu e aceitar o paciente?” Então, eu acho que tem esse
preconceito por parte de nós profissionais mesmo (Entrevistado VII).
O relato de alguns sujeitos também permite entrever um constrangimento por parte de
profissionais que não acreditam na proposta. Percebe-se assim que mesmo passados vários anos das
primeiras experiências, e de estarem expressas nas diversas políticas sobre a questão das drogas,
permanecem empecilhos históricos que tentam deslegitimar a RD como uma alternativa viável.
Embora possa ser visto que existem muitas dificuldades na adoção dessas estratégias
no âmbito do CAPS AD, também são abordadas pelos profissionais algumas potencialidades
alcançadas pela, ainda, tímida inserção da abordagem de Redução de Danos no serviço. Um destes
foi a abertura do serviço aos usuários, mesmo nos casos onde não conseguem interromper o uso da
substância.
Um paciente que está fazendo o uso de determinada substância, ele não tem vergonha de
chegar ao CAPS. Algumas vezes acontece dele chegar alcoolizado. Ele sabe que aqui ele
vai receber uma orientação, será acolhido. Nesse caso, ele não se sentiria bem em chegar
aqui estando em uso de substância, que é quando mais precisa de acompanhamento
(Entrevistado II).
Eu acho que o CAPS tem que ter essa visão de que “eu vou lhe receber do jeito que você
estiver, eu vou lhe receber, o importante é você estar aqui para tentar se cuidar”. Se você
pregar somente a abstinência, no dia que o cara tiver feito o uso de alguma substância
e chegar lá, eu não vou conseguir receber da mesma forma, receber bem .Aí eu vou
atrapalhar muito aquela pessoa (Entrevistado III).
Embora algumas percepções ainda se mostrem vinculadas à diminuição dos riscos referentes
à dependência e como um meio para alcançar a abstinência, pode-se ver que há uma consideração
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sobre as questões psicossociais que envolvem o contexto onde o sujeito está inserido e o respeito
à sua autonomia. Percebe-se que a transposição da política de RD para as práticas no cotidiano
acontece de maneira gradual e não está isenta de contradições e conflitos na sua efetivação.
No que tange aos principais desafios enfrentados para a concretização da Política de Redução
de Danos no serviço, foram citados o conhecimento insuficiente por parte dos profissionais,
familiares e dos próprios usuários acerca dessa temática, além da resistência das pessoas envolvidas
no tratamento e do próprio estigma que essa estratégia sofre no contexto da saúde mental e da
sociedade de forma geral.
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Scafuto JCB et al.
ARTIGO ORIGINAL
ABSTRACT
The paper presents a discussion about the space occupied by training
initiatives on the health’s public policies sector, as well as initiatives
traditionally developed, especially in the mental health field. It presents
a review of the initiatives developed by the Mental Health Alcohol and
other Drugs Sector of the Ministry of Health, between the years 2003
and 2015, based on the Management Reports released by that Sector
and the journal “Saúde Mental em Dados”. The documents indicate
that the implemented actions sought to propagate the principles of the
new model on mental health care, answering to a scenario of expansion
of new services and incorporation of new professionals in the health
care workforce. Over time, some of the initiatives were improved and
others were incorporated, seeking to overcome recurring challenges
regarding the participation of public managers in the elaboration of
local policies for training in mental health and strategies based on the
knowledge generated on workspaces that involve the Psychosocial Care
Network professionals and focus on practices that can transform daily
care. Deinstitutionalition was taken as the key concept to analyse the
initiatives of mental health education in SUS (Brazilian Unified Health
System).
O tema da formação e qualificação dos trabalhadores e de outras áreas da saúde, ocorrida durante o
há muito acompanha o desenvolvimento dos período de ditadura militar, voltadas ao modelo
processos de cuidado na saúde. Os saberes biomédico e indiferentes às necessidades de saúde
incorporados pelos trabalhadores e o modo como da população5.
representam o processo saúde e doença são pontos
críticos do sistema público de saúde brasileiro1. O modelo pedagógico hegemônico de
A formação dos trabalhadores, porém, é uma das ensino é centrado em conteúdos, organizado
áreas menos problematizadas na formulação de de maneira compartimentada e isolada,
políticas para a saúde2. As discussões sobre esse fragmentando os indivíduos em especialidades
tema acontecem desde a concepção de um Sistema da clínica, dissociando conhecimentos das
Único de Saúde (SUS), e a sua implementação não áreas básicas e conhecimentos da área clínica,
foi necessariamente acompanhada da qualificação centrando as oportunidades de aprendizagem
dos profissionais para atuarem no caminho dos da clínica no hospital universitário, adotando
princípios do modelo de saúde vigente. sistemas de avaliação cognitiva por acumulação
de informação técnico-científica padronizada,
Ao contrário do que se espera, as tradicionais incentivando a precoce especialização,
ações de formação praticadas nos últimos anos perpetuando modelos tradicionais de prática
têm induzido a especialização do cuidado e em saúde. Na abordagem clássica da formação
produzido uma tensão na construção do modelo em saúde, o ensino é tecnicista e preocupado
de saúde atual, tornando evidentes as diferenças com a sofisticação dos procedimentos e do
entre o que pensam os usuários, os trabalhadores conhecimento dos equipamentos auxiliares do
e gestores da saúde3,4. O país ainda vive a herança diagnóstico, tratamento e cuidado, planejado
da proliferação das escolas privadas de medicina segundo o referencial técnico-científico
Na busca pela superação dos desafios relacionados Os relatórios de gestão da CGMAD do período
ao campo e para cumprir o papel delegado ao 2003-2006, bem como os SMD do mesmo período,
SUS de formação dos seus quadros profissionais, já indicavam que os programas de formação
foi instituído, em 2002, o Programa Permanente neste campo são escassos e que a formação de
de Formação em Saúde Mental do Ministério da psiquiatras aptos e vocacionados a trabalhar na
Saúde, que desenvolveu diversas iniciativas com rede pública de saúde mental ainda é insuficiente.
apoio da Coordenação Geral de Saúde Mental, Os documentos apontaram como prioridade
Álcool e Outras Drogas CGMAD e orientação geral para os anos seguintes o fortalecimento de uma
da Secretaria de Gestão do Trabalho e Educação política efetiva, regular e sustentável de educação
em Saúde (SGTES), por meio da parceria com permanente para a saúde mental, que envolvesse
instituições universitárias15. Este Programa tem todos os profissionais da rede de atenção e que se
como proposta o incentivo, apoio e financiamento propusessem centradas no trabalho em ato e em
de ações e núcleos de formação no campo da saúde práticas transformadoras do cuidado cotidiano16.
mental para a rede pública de saúde, por meio da
formalização de convênios junto a instituições Entre 2007 e 2010 houve um crescimento
formadoras, municípios e estados16. expressivo de serviços de saúde mental “que não
foi acompanhada por uma oferta e capacitação
Far-se-á aqui uma breve consolidação das compatível de profissionais para o trabalho
uma comoção social em torno do tema do uso de cerca de 1.600 profissionais; 82 oficinas
de drogas ilícitas e demandou do poder público de integração do processo de trabalho em 82
respostas integradas dos Ministério da Justiça, municípios, contemplando cerca de 4.500
Saúde e Desenvolvimento Social. No campo da pessoas entre usuários, familiares, trabalhadores e
saúde as respostas reverberaram tanto na oferta de gestores de diferentes serviços; o desenvolvimento
serviços, quanto na qualificação dos profissionais e implementação de 96 planos de educação
para atendimento a esse público, além de aquecer permanente e a execução de um componente
o debate sobre o cuidado em liberdade, respeito de engrenagens da Educação Permanente em 92
aos direitos e da redução de danos como ética do municípios12,19.
cuidado.
O Projeto de Percursos Formativos é uma
Como resposta para a demanda sobre formação recente iniciativa para a qualificação da atuação
dos profissionais, além das ações já mencionadas, dos trabalhadores da RAPS, que propõe o
foram desenvolvidas novas estratégias, como o fortalecimento das práticas do cuidado na
Curso de Tópicos Especiais em Policiamento perspectiva da Atenção Psicossocial; e o encontro
e Ações Comunitárias, em parceria com a com outras realidades, com outros profissionais e
Secretaria Nacional de Segurança Pública do com os usuários dos serviços como possibilidade
Ministério da Justiça19. O curso foi direcionado de transformação, uma vez que “(...) é no cotidiano
à polícia comunitária, como proposta de dos serviços de saúde que o conhecimento deve
sensibilização dos agentes de segurança pública ganhar materialidade como uma ação de produção
quanto às possibilidades de cuidado para essa de vida”14 (p.34).
população.
O Projeto foi implementado de maneira a priorizar
Foi realizado também o curso “Caminhos do a aprendizagem colaborativa e significativa,
Cuidado”, por iniciativa da Secretaria de Gestão buscando produzir sentido para o trabalho
do Trabalho e Educação em Saúde (SGTES), cotidiano nos serviços de saúde mental e propôs
em parceria com a CGMAD, Fundação Oswaldo que as transformações das práticas profissionais
Cruz e Grupo Hospitalar Conceição. Este curso fossem baseadas na reflexão crítica sobre as
ofereceu uma formação aos agentes comunitários práticas reais13,31
de saúde, auxiliares e técnicos de enfermagem da
equipe de Saúde da Família, tendo como ênfase (…) a mobilização de recursos emocionais
as necessidades de saúde decorrentes do uso na aprendizagem em prática de trabalho,
substâncias psicoativas, visando a qualificação do aliada às reflexões coletivas em grupo, permite
atendimento aos usuários dos serviços. O curso foi nascer uma disposição à mudança. Isto é, neste
elaborado de maneira que viabilizasse o trabalho projeto significa aprender sobre a história da
conjunto entre profissionais da atenção primária e Reforma Psiquiátrica dentro de um contexto
da saúde mental, e considerou as especificidades de práticas inclusivas, associadas à perspectiva
locorregionais para as atividades propostas. de direitos e conquistas da cidadania. Este
Ao final de 2015 havia 237.175 profissionais formato de aprendizagem é fundamental para
formados19,29. a elaboração de novas estratégias de atuação,
uma vez que funciona como disparador de
No ano de 2014, uma estratégia inovadora questionamentos e aglutinador de propostas e
de educação permanente foi desenvolvida e soluções que são dinâmicas e contingentes, de
implementada pela CGMAD, e foi chamada acordo com o movimento das redes13 (p.31-
de Projeto de Percursos Formativos na Rede 32).
de Atenção Psicossocial. Essa estratégia visou
fortalecer a prática de cuidado em saúde mental, A implementação desse projeto vem responder
apostando no encontro entre profissionais e a apontamentos já realizados nos primeiros
usuários como possibilidade de disseminação, relatórios de gestão, que sinalizavam a necessidade
transformação e invenção de novas práticas, na de propostas que contemplassem o envolvimento
perspectiva da RPb13. dos profissionais da Rede de Atenção Psicossocial
e que se propusessem centrados no trabalho em
Considerando todo o escopo do PPF, em suas ato e em práticas transformadoras do cuidado
quatro etapas, o Projeto previu a realização de cotidiano16.
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Artigo Original
Percepção de profissionais da área de saúde mental
sobre o acolhimento ao usuário de substância
psicoativa em CAPSad1
Daiane Bernardoni Sallesa, Meire Luci da Silvab
a
Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina, São Paulo, SP, Brasil.
b
Departamento de Fisioterapia e Terapia Ocupacional, Universidade Estadual Paulista – UNESP, Marília, SP, Brasil.
Resumo: Introdução: A adesão ao tratamento da dependência química ainda consiste em um grande desafio não só
aos usuários, mas também aos profissionais da saúde. Atualmente, as políticas públicas apontam, como ferramenta
auxiliar, o desenvolvimento de um modelo de tratamento humanizado, que preconiza a prática do acolhimento.
Objetivo: Investigar a percepção dos profissionais de saúde mental sobre o acolhimento oferecido ao usuário de
álcool e outras drogas em Centro de Atenção Psicossocial para usuários de álcool e outras drogas (CAPSad).
Método: Trata-se de um estudo do tipo exploratório descritivo e qualitativo, realizado em CAPSad do interior
paulista. Participaram do estudo, seis profissionais. Para coleta de dados, foi utilizado questionário semiestruturado
com 27 perguntas de autopreenchimento, sendo 15 perguntas fechadas, analisadas através de estatística descritiva,
e 12 abertas, analisadas pelo método de análise de conteúdo. Resultados: Participaram do estudo, seis profissionais
com tempo médio de atuação de 14,3 anos e, destes, nenhum possui capacitação em relação à prática do acolhimento.
Neste estudo, cinco responderam realizar acolhimento com presença de familiar, quatro sem a presença de familiar e
um prefere deixar a critério do usuário (o mesmo participante poderia assinalar mais de uma resposta). Os resultados
demonstram ambiguidade da concepção de acolhimento, já que todos relataram que acolher restringe a recepção do
usuário, a escuta qualificada, a orientação e a realização de encaminhamentos necessários. Conclusão: Evidenciou-se
necessidade de criação de espaços formais para troca de saberes, discussão e encaminhamentos dos casos, bem
como necessidade de incentivo à capacitação profissional, promovendo a identidade do acolhimento no serviço e
favorecendo a adesão do usuário ao tratamento.
Palavras-chave: Transtornos Relacionados ao Uso de Substâncias, Acolhimento, Serviços de Saúde Mental.
Abstract: Introduction: Adherence to chemical dependency treatment is still a great challenge for both, users and
health care professionals. Currently, public healthcare policy is a tool to assist in the development of a humanized care
model, which advocates for the practice of user inclusion. Objective: Investigate the perception of professionals who
work in the mental health field, to understand the inclusion offered to users of psychoactive substances in Psychosocial
Care Centers for alcohol and drug users (CAPSad). Method: A descriptive and exploratory study conducted at the
CAPSad in São Paulo. Active professionals in the mental health field working at the CAPSad participated in the
present study. For data collection a semi-structured questionnaire was used with 27 self-report questions, 15 closed
questions, analyzed through statistics and 12 open questions, with speech analysis. Results: The questionnaires of
six professionals with a mean of 14.3 years working at the CAPSad, revealed that they had no prior training about
inclusion. Five participants responded that they carried out inclusion in the presence of the family, four responded
Autor para correspondência: Meire Luci da Silva, Departamento de Fisioterapia e Terapia Ocupacional, Universidade Estadual Paulista,
Av. Hygino Muzzi Filho, 737, Mirante, CEP 17525-000, Marília, SP, Brasil, e-mail: meire@marilia.unesp.br
Recebido em Mar. 7, 2016; 1a Revisão em Maio 11, 2016; 2a Revisão em Jun. 20, 2016; Aceito em Jul. 7, 2016.
342 Percepção de profissionais da área de saúde mental sobre o acolhimento ao usuário de substância psicoativa em CAPSad
without the presence of family and just one responded according to user choice (each participant could choose more
than one option). The results show ambiguity regarding the concept of user inclusion, as all reported that inclusion
hampers user reception, qualified listening, guidance and making necessary referrals. Conclusion: The need to
create formal spaces for knowledge exchange, case discussion, and encourage professional training, promoting the
identity of the service and improving user adherence to treatment was highlighted.
Keywords: Substance-Related Disorders, User Inclusion, Mental Health Service.
ao usuário de álcool e outras drogas pode contribuir O ingresso neste serviço acontece por meio de
para a organização do serviço, o fortalecimento da rede demanda espontânea ou por encaminhamento via
de atenção a este usuário e também para a educação Unidades Básicas de Saúde, Unidades de Saúde da
permanente destes profissionais, propiciando, assim, Família ou hospitais, podendo ainda o encaminhamento
cuidados específicos e individuais ao usuário, e ser por ordem judicial.
promovendo o aumento de sua vinculação e adesão A pesquisa foi aceita pelo Comitê de Ética em
ao serviço e ao tratamento. Pesquisa da Faculdade Medicina de Marília, sob
Como forma de possibilitar a identificação das protocolo 916.902. Os participantes receberam todas
necessidades de formação e desenvolvimento de as informações e orientações sobre sua participação
profissionais em saúde, e de fortificar estratégias na pesquisa e assinaram o Termo de Consentimento
de qualificação em atenção e gestão em saúde, foi Livre e Esclarecido
criada pelo Ministério da Saúde a Política Nacional Para a coleta de dados, foi elaborado e aplicado pela
de Educação Permanente em Saúde (EPS), a partir equipe de pesquisa um questionário com 27 questões
da Portaria nº 198, de fevereiro de 2004 (BRASIL, de autopreenchimento, sendo 15 perguntas fechadas
2004). Assim, como citam Carotta, Kawamura e e 12 perguntas abertas, permitindo ao profissional
Salazar (2009), discussões à base de acolhimento e especificar sua percepção sobre acolhimento ao
humanização tornam-se parte integrante da gestão usuário do serviço de álcool e drogas. O conteúdo
em saúde, como meta prioritária do Sistema Único das questões era referente à escolha do profissional
de Saúde (SUS). em relação à área de serviço, ao entendimento sobre
acolhimento, às possibilidades de discussões do
O objetivo do estudo foi investigar, a partir
tema e à autoavaliação sobre sua atuação e realidade
da percepção dos profissionais de saúde mental, profissional.
o entendimento sobre o acolhimento oferecido ao
O instrumento foi respondido de forma
usuário de álcool e outras substâncias psicoativas
individual, conforme orientação do pesquisador.
em CAPSad.
As informações sobre o projeto foram dadas de
maneira a não influenciar o participante em suas
2 Método respostas. A coleta de dados foi realizada entre os
períodos de dezembro de 2014 e janeiro de 2015.
Trata-se de um estudo do tipo exploratório
Os resultados das perguntas fechadas foram
descritivo e qualitativo, realizado em um CAPSad
analisados por meio de estatística simples descritiva,
de uma cidade do interior paulista. Segundo para melhor exposição dos dados. A análise dos
informações do Ministério da Saúde do ano de 2012 resultados das perguntas abertas foi realizada conforme
(BRASIL, 2012), existiam 69 CAPSad no Estado proposta de Bardin (1977), por meio da análise de
de São Paulo, porém Silva et al. (2015) referem conteúdo temático. Os temas foram selecionados
que, em 2015, ano no qual esta pesquisa também pela pesquisadora para melhor exposição dos dados,
foi desenvolvida, existiam somente 65 CAPSad em conforme o objetivo proposto pela pesquisa.
funcionamento em todo o Estado. E ainda, segundo
essas autoras, a composição quantitativa da equipe
técnica dos CAPSad do Estado de São Paulo variou
3 Resultados
quantitativamente, sendo a composição da menor Atualmente, trabalham no CAPSad pesquisado,
equipe técnica de cinco profissionais e da maior, nove profissionais da área de saúde, dentre eles:
com 23 profissionais. três médicos psiquiatras, uma assistente social, um
Ressalta-se que o serviço estudado é referência psicólogo, dois enfermeiros e dois auxiliares de
e único no tratamento da dependência química na enfermagem, sendo que, destes, seis profissionais
região, e está vinculado a uma faculdade de medicina; aceitaram participar da pesquisa. Os que aceitaram
não obstante, é composto por uma equipe técnica foram: um médico, um psicólogo, uma assistente social,
mínima. Participaram da pesquisa, seis profissionais uma enfermeira e dois auxiliares de enfermagem.
que realizam acolhimento na Unidade, dentre eles: A média de idade dos participantes foi de 45,8 anos
um psicólogo, dois auxiliares de enfermagem, uma com desvio padrão de ± 7 anos, com tempo de
enfermeira, uma assistente social e um médico. formados de 18,3 ± 8,5 anos, sendo 50% (3) do
Dentre os critérios de exclusão, destacam-se a não gênero feminino e 50% (3) do gênero masculino.
realização de acolhimento ou a não aceitação de Os participantes pesquisados apresentaram tempo
participar do estudo. de atuação com média de 14,3 ± 6,7 anos. Ao serem
questionados sobre o trabalho com dependência participantes, 67% (4) disseram também realizar
química ter sido sua área de escolha profissional, 33% grupos de acolhimento. Em outro item, em relação
(2) tiveram resposta afirmativa e 67% (4) referiram a ter companhia ou não durante o acolhimento,
não ter sido sua primeira escolha. Em relação ao 83% (5) realizam com a presença de familiar, 67%
primeiro contato com usuário que abusa de substâncias (4) sem a presença de familiar e 17% (1) refere
psicoativas, 50% (3) relataram ter sido no ambiente deixar a critério do usuário.
familiar, enquanto 33% (2) responderam ter tido o Os profissionais responderam que não estabelecem
primeiro contato no ambiente profissional e 17% um número de acolhimentos a cada usuário, sendo
(1) com amigos. Quanto à realização de especializações
este número flexível quanto às suas necessidades.
na área de saúde mental, 50% (3) responderam
afirmativamente, sendo referidos: um aprimoramento, Depende da necessidade de cada pessoa (P3).
duas especializações e um mestrado. Este fato não
ocorreu em relação às capacitações, em que somente Quando questionados sobre a via de atendimento
dois profissionais (33%) relataram ter algum tipo de dos acolhimentos realizados, 100% (6) responderam
capacitação na área, sendo um deles também com ser via demanda espontânea e 17% (1) disseram
especialização. Dentre as capacitações específicas realizar acolhimento via agendamento prévio.
sobre o tema acolhimento, 100% (6) disseram nunca No quesito “sistematização do acolhimento”, apenas
terem realizado. 17% (1) relataram usar algum tipo de protocolo para
Com relação à fonte de recurso para o financiamento realização deste, sendo tal documento elaborado por
das especializações e capacitações, 50% (2) referiram outros colegas do serviço e que engloba aspectos
ter realizado com recurso próprio, 25% (1) com como tipo de substância consumida, período de
recurso institucional e 50% (2) gratuito. É importante abstinência, tratamentos anteriores, entre outros.
ressaltar que, neste item, foram citadas capacitações Em relação às discussões em equipe acerca do
realizadas à distância. Dos quatro profissionais acolhimento realizado, 83% (5) responderam que
que possuem algum tipo de especialização ou sempre fazem discussões e 17% (1) responderam
capacitação, 50% (2) deles responderam ter realizado que nem sempre a discussão é realizada. Quanto
tal aprimoramento após o ingresso no serviço e 50% aos profissionais com os quais discutem, 100%
(2) referiram ter realizado em ambos os momentos, (6) relataram fazer a discussão com equipe
antes e após o ingresso ao serviço. multidisciplinar, podendo, em alguns casos, ser
Dentre os participantes, 33% (2) são técnicos exclusivamente com a equipe médica.
de referência de 25 usuários cada, 17% (1) de Os assuntos abordados nas discussões sobre
15 usuários, sendo tais profissionais com formação o acolhimento, segundo os participantes, são,
de nível superior; os demais 50% (3) não são técnicos principalmente, referentes à coleta de dados realizada
de referência de nenhum usuário.
durante o acolhimento, a fim de possibilitar o
Já em relação à temática “entendimento sobre encaminhamento e/ou modalidade de tratamento
acolhimento”, todos os participantes relataram que oferecido ao usuário, conforme evidenciado em:
entendem por acolher, receber o usuário no serviço,
ouvir suas demandas de forma qualificada, orientar Motivação, tempo de abstinência, coleta de
e fazer os encaminhamentos necessários, como dados, proposta terapêutica e/ou conduta (P4).
destacado pela fala: Já quando questionados se existem períodos
Acolher é ter uma escuta qualificada para as e/ou reuniões formais para as discussões dos
queixas do indivíduo, identificar as necessidades acolhimentos, 83% (5) responderam negativamente
com o usuário e dar uma resposta às queixas e e 17% (1) afirmativamente, sendo referenciada a
necessidades, envolvendo-o na elaboração do reunião de equipe semanal como o momento para
cuidado (P1). tais discussões.
Referiram, ainda, o acolhimento como sendo Na temática referente à “função do acolhimento
o início do acompanhamento deste paciente no ao usuário”, todos os participantes evidenciaram o
tratamento, o que fica bem evidenciado nesta fala: acolhimento como forma de orientação quanto ao
tratamento. Dentre estes, apenas 33% (2) correlacionaram
Acolhimento é o início do acompanhamento o acolhimento como uma forma de estimular a
(P6). adesão ao tratamento, sendo o início do vínculo
Quanto ao tipo de acolhimento realizado, serviço/usuário, explicitado em:
100% (6) dos participantes relataram que fazem o Ouvir o usuário, orientar sobre o tratamento,
acolhimento individual ao usuário e, dentre estes estimular a adesão (P2).
Acolher o indivíduo, ter escuta ampliada sobre psicoativa mostrar-se cada vez mais rotineiro e
suas dificuldades, fazer vinculo e oferecer frequente. Quando questionados sobre o primeiro
proposta terapêutica (P4). contato com usuários que abusam de substâncias
psicoativas, parte dos participantes respondeu que
Na categoria relacionada à realização de possíveis o primeiro contato se deu no ambiente familiar; já
alterações em seu acolhimento, 67% (4) responderam Lopes et al. (2009) apontam que o primeiro contato,
que sim, podendo tal disposição ser evidenciada quando pesquisados alunos de enfermagem, se deu no
pela fala: ambiente profissional, o que pode estar relacionado
Sempre é possível melhorar (P5). com o pouco entendimento, quanto ao abuso de
substâncias na sociedade em geral, sobre o assunto.
A última temática selecionada diz respeito
As especializações e capacitações são formas
ao “entendimento sobre acolhimento ideal”, em
de aproximar o profissional de novas técnicas e
cuja análise das respostas, todos os participantes
conhecimentos acerca de sua prática profissional,
apontaram para a preocupação de um atendimento
o que facilita, proporciona suporte e dá maior
ágil e instantâneo no momento da procura, prezando
autonomia no momento de lidar com situações até
a escuta qualificada, a realização de orientações
então desconhecidas. Para Silva et al. (2007), os cursos
necessárias e os possíveis encaminhamentos.
e capacitações podem ocorrer de forma desarticulada
Destacaram também a necessidade de uma rede de com as reais necessidades do trabalhador e do usuário
suporte bem estruturada, explicitada em: do serviço, sendo importante o desenvolvimento de
O acolhimento ideal deveria ter equipe abordagens que contemplem o contexto institucional,
multiprofissional designada para receber, auxiliando na promoção da articulação de diálogos
ouvir as pessoas que buscam o serviço, ter mais e do estabelecimento de relações entre os atores do
profissionais na equipe, ter um trabalho de tratamento (profissionais/usuários).
acolhida não só com a visão de inserção no Nesta pesquisa, metade dos participantes tem
tratamento, mas também em orientação (P3).
alguma especialização, cursos exclusivos para
Se houvesse rede de suporte estruturada nas profissionais de nível superior na ou da área de
políticas de saúde (P4). dependência química específica ou de saúde mental.
O tempo é curto em função da demanda,
Tal fato contribui de forma favorável para o melhor
condições físicas do ambiente... bem como planejamento do serviço, já que, dos profissionais
realiza-lo em equipe (P6). de ensino superior participantes, apenas um relatou
não ter qualquer especialização.
No quesito “capacitações”, alguns responderam
4 Discussão ter realizado alguma, sendo que um deles também
realizou especialização; referiram, ainda, que o
Os resultados apontaram que a escolha em financiamento para a realização destas foi a partir
trabalhar com saúde mental, muitas vezes, está de recursos próprios. Um fator que pode também
associada à oferta de emprego e não necessariamente colaborar para a dificuldade na realização das
como a primeira escolha do trabalhador. Este fato capacitações e especializações pode estar relacionado
pode resultar em serviços compostos por um quadro à falta de incentivo por parte da própria instituição,
de profissionais que, muitas vezes, não se identifica que, muitas vezes, não permite o afastamento para
com o ambiente, com o tipo de serviço prestado e realização de cursos, questão esta também apontada
também com o usuário atendido. Neste estudo, por Vargas e Duarte (2001).
os participantes relataram que trabalhar com Quanto à necessidade de capacitações e especializações
dependência química não foi uma escolha pessoal de profissionais da saúde mental, estas sempre estiveram
e profissional, o que é corroborado por Tavares contempladas e reafirmadas nos documentos do
(2006), em pesquisa realizada com profissionais em Ministério da Saúde, englobando novas técnicas e
serviços especializados em saúde mental, em que a formação desses profissionais, a fim de lidar com o
oferta de emprego nem sempre permite a escolha novo paradigma de saúde, como cita Silva, Oliveira e
pela área desejada. Postigo (2014). Além da necessidade já citada, Gallassi
Sabe-se que o consumo de substâncias tem e Santos (2013) trazem as dificuldades encontradas
se intensificado e agravado a cada ano, de forma quando abordado o assunto da dependência química,
concomitante ao aumento de produção e desenvolvimento reiterando as capacitações muito espaçadas e muitas
de novas substâncias (UNITED..., 2013), sendo vezes distantes da necessidade do profissional, uma
possível o contato com um usuário de substância formação acadêmica com carga horária escassa sobre
a uma triagem. Tal fato pode estar ligado, muitas de melhores condições físicas. O número reduzido
vezes, à falta de disponibilidade de profissionais de funcionários e a inadequação do ambiente foram
suficientes para um acolhimento adequado, o que é itens destacados por Oliveira et al. (2010), que referem
corroborado por Oliveira et al. (2010), que discutem que a vulnerabilidade destes itens fragiliza a proposta
o reduzido número de profissionais especializados de repensar os processos de trabalho, lidando com a
ou os recursos insuficientes para manter uma equipe frustração do profissional em atuar entre a expectativa
multidisciplinar disponível apenas para a função e a realidade de seu trabalho, limitando inclusive o
de acolher. tempo disponível para cada função.
Vargas e Duarte (2001) salientam a importância da
troca de informações entre os próprios profissionais 5 Conclusão
do serviço como uma fonte de conhecimentos, já
que as especializações e capacitações são pouco O estudo permitiu evidenciar a percepção dos
difundidas nestes ambientes. As discussões, quando profissionais de saúde mental acerca do acolhimento
não realizadas em espaços formais, como encontrado ao usuário de substâncias psicoativas em um CAPSad.
nesta pesquisa, não favorecem o fortalecimento das
trocas de conhecimento e experiências da equipe, Através do questionário utilizado, foi possível
já que só alguns profissionais fazem parte deste identificar uma preocupação em fornecer um
momento. Se esse modo disperso é agregado à falta acolhimento a todo usuário que busca o serviço,
de capacitação específica sobre acolhimento, pode porém também apontou a dificuldade em manter as
acarretar uma dificuldade em criar vínculo com este diretrizes do SUS, o que pode ser percebido como
usuário, que terá que adaptar-se às formas individuais resultante do baixo número de capacitações realizadas
de cada profissional de lidar com o acolhimento, e do pouco incentivo para tais. Ficou evidente que
descaracterizando uma identidade do serviço. a concepção de acolhimento ainda está vinculada
Em relação aos assuntos abordados nas discussões à necessidade de coleta de dados.
sobre o acolhimento, ressalta-se a coleta de dados Uma forma de lidar com o número restrito de
realizada durante o acolhimento como forma auxiliar capacitações seria a implantação de espaços formais
‒ e até principal ‒ do encaminhamento do usuário de discussão em equipe, favorecendo a troca de
para modalidade de tratamento oferecido. Deve-se saberes e a facilitação da criação de identidade ao
tomar cuidado para não confundir acolhimento acolhimento do serviço, além da implementação
com a simples coleta de dados, deixando de lado a de educação permanente aos profissionais atuantes.
singularidade de cada indivíduo. Para Rêgo (2009), o A sobrecarga, muitas vezes acarretada pelo exíguo
acolhimento deve fornecer um diagnóstico situacional quadro de funcionários, é tema a ser discutido em
de cada usuário, para, em seguida, ser elaborado o toda a rede de serviços de saúde, que hoje, em sua
plano terapêutico. Talvez, neste primeiro momento,
maioria, funciona com o quadro mínimo exigido.
seja difícil traçar a modalidade de tratamento na
Dessa forma, desempenhar todas as funções de forma
qual o indivíduo se encaixe, restando pouco espaço
qualificada pode trazer enorme sobrecarga e estresse
para a singularidade e o contexto trazido por cada
ao profissional, que, além de ter de lidar com suas
usuário que procure o serviço.
próprias frustrações, deve estar sempre disponível
O acolhimento é então um grande aliado à adesão ao sofrimento do usuário, já que um acolhimento
ao tratamento, conforme referido por Andrade, insatisfatório poderá dificultar a adesão do usuário
Sousa e Quinderé (2013), Solla (2005) e Schmidt e ao tratamento.
Figueiredo (2009). Com o número de participantes
relatando o acolhimento como forma de adesão, Mediante os itens destacados e supra discutidos,
demonstra-se uma fragilidade no entendimento deve-se tomar cuidado para que os serviços
da função do acolhimento, segundo as diretrizes substitutivos não reproduzam a forma de cuidar
do SUS, ficando evidenciada a orientação como dos modelos asilares. Para isso, o investimento em
principal função do acolhimento para os participantes. conhecimento e subsídios para o profissional é de
extrema importância.
Evidenciou-se também a crítica por parte dos
participantes quanto a possíveis melhoras no Repensar na forma de estruturação do serviço
acolhimento realizado. Quando questionados sobre e contemplar espaços de troca e capacitação é
o “acolhimento ideal”, os participantes citaram proporcionar um atendimento de qualidade ao
a necessidade de uma equipe multidisciplinar usuário e também proporcionar a manutenção do
específica para o acolhimento, favorecendo a escuta bem-estar profissional, a fim de que este profissional
no momento em que o usuário busca o serviço, além adquira autonomia e manejo para lidar com as
situações vivenciadas no cotidiano do tratamento BRASIL. Ministério da Saúde. Saúde Mental em Dados -
da dependência química. 10. Brasília, 2012. Informativo eletrônico de dados so-
bre a Política Nacional de Saúde Mental, ano VII, n. 10.
Espera-se, com este estudo, contribuir para
uma reorganização dos processos de trabalho, CAROTTA, F.; KAWAMURA, D.; SALAZAR, J. Edu-
fomentando espaços de troca de saberes, fortalecendo cação Permanente em Saúde: uma estratégia de gestão
o acolhimento como forma de atendimento pautado para pensar, refletir e construir práticas educativas e pro-
na escuta qualificada, priorizando a singularidade cessos de trabalhos. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 18,
p. 48-51, 2009. Suplemento 1.
de cada indivíduo, sem conceitos pré-estabelecidos,
e favorecendo, assim, maior adesão do usuário ao CARVALHO, C. A. P. et al. Acolhimento aos usuários:
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do mesmo. co de Saúde. Arquivos de Ciências da Saúde, São José do
Rio Preto, v. 15, n. 2, p. 93-95, 2008.
Novas pesquisas podem contribuir para maiores
reflexões acerca do olhar do profissional desta área, CARVALHO, R. M. C. et al. Causas de recaída e de
permitindo cada vez mais discussões que contribuam busca por tratamento referidas por dependentes quími-
para a qualificação e o fortalecimento da rede de cos em uma unidade de reabilitação. Columbia Médica,
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Notas
Este trabalho é um recorte de uma pesquisa temática e foi parte integrante do Trabalho de Conclusão de Curso do
1
Programa Multiprofissional em Saúde Mental da Faculdade de Medicina de Marília – FAMEMA, Marília, SP, Brasil.
2015.
ARTIGO ARTICLE
análise da legislação brasileira no período de 2000 a 2016
Abstract Brazilian public policy on drugs has Resumo Tensões em diferentes campos perpas-
been permeated by two diametrically opposing sam a formulação de políticas públicas sobre dro-
approaches: one focusing on prohibition and the gas. Na Justiça/Segurança pública, controvérsias
other on non- prohibition. Similarly, there have entre os paradigmas do proibicionismo e antiproi-
been two opposing approaches to mental health- bicionismo; no campo da Saúde/Assistência so-
care, one centered on hospitalization and the other cial, os paradigmas asilar e psicossocial norteiam,
psychosocial care and development. In the context de forma divergente, práticas em saúde mental/
of these different paradigms, this article presents álcool e outras drogas. O objetivo do artigo é ana-
an analysis of twenty-two documents sourced by lisar, à luz destes paradigmas, modelos que in-
the legislative rules over the last sixteen years. Af- fluenciaram as Políticas Públicas sobre Drogas no
ter the year 2000, a renewed focus by healthcare Executivo Federal brasileiro. Trata-se de pesquisa
community on drugs was noticeable as was the documental, cuja fonte são normativos publicados
immersion of a harm reducing approach. Follow- entre 2000-2016 e categorias analíticas: os mo-
ing international trends, although there are still delos hegemônicos, as influências na organização
considerable divergencies between (a) psychoso- dos serviços e a intersetorialidade. Foram anali-
cial care and(b) residential care in the therapeutic sados 22 documentos. Concluiu-se que, na saúde,
communities there seems to be an alignment to a abordagem às drogas apresentou incremento e
anti- prohibition approaches. relevância a partir dos anos 2000, a redução de
Key words Harm reduction, Public policies, Al- danos emergiu como estratégia norteadora do
cohol and other drugs, Inter-sector cooperation cuidado, um paradigma ético, clínico e político,
and coordination transversal no diálogo com os campos. Identifi-
cou-se protagonismo promissor de outros setores,
alinhados às novas tendências internacionais e ao
antiproibicionismo, mas persistem divergências
1
Escola Nacional de quanto ao modelo de atenção psicossocial e inter-
Saúde Pública, Fiocruz. R. nação em comunidades terapêuticas.
Leopoldo Bulhões 1480,
Manguinhos. 21041-210 Palavras-chave Redução de danos, Políticas pú-
Rio de Janeiro RJ Brasil. blicas, Álcool e outras drogas, Intersetorialidade
mirna@ensp.fiocruz.br
2
Escola Politécnica de Saúde
Joaquim Venâncio, Fiocruz.
Rio de Janeiro RJ Brasil.
1456
Teixeira MB et al.
Quadro 1. Sistematização dos normativos acessados sobre drogas na legislação brasileira no período de 2000 a 2016.
Relação com temática das drogas
Normativos Ano e Setor Modelos*
e a organização dos serviços
Lei 10.216 de 06 de abril 2001. Ministério da Marco da Reforma Psiquiátrica; novo modelo de atenção em (3)
de 2001 Saúde saúde mental; desospitalização, serviços de base territorial,
portas abertas, sem exclusão do convívio com a sociedade.
Define três tipos de internação psiquiátrica: voluntária,
solicitada pelo paciente e involuntária.
Resolução da Diretoria 2001. Ministério da Regulamento Técnico sobre o funcionamento dos serviços (2)
Colegiada (RDC) 101 Saúde. Anvisa de atenção a pessoas com transtornos decorrentes do uso
de 30 de maio de 2001 ou abuso de substâncias psicoativas (SPA), segundo modelo
(revogada pela RDC 29 psicossocial, também conhecidos como Comunidades
de 2011) Terapêuticas (CT).
Decreto Presidencial 2002. Presidência Institui a Política Nacional Antidrogas (PNAD). Apresenta o (1)
nº 4.345 de da República. prefixo anti drogas, que denota uma posição proibicionista
26 de agosto de 2002. Secretaria Nacional visando uma sociedade livre do uso de drogas ilícitas e do uso
Antidrogas indevido de drogas lícitas embora já aponte para programas de
(SENAD) redução de demanda e danos considerando os determinantes
sociais de saúde.
Portaria nº 2197 de 14 2004. Ministério da Estabelece que o Programa de Atenção Integral a Usuários de (3)
de outubro de 2004. Saúde Álcool e outras Drogas (AD). Considera as determinações do
documento “A Política do Ministério da Saúde para a Atenção
Integral a Usuários de ÁD” de 2003 do MS. Adota a Redução
de Danos (RD) como estratégia de intervenção prioritária.
É contrária a internação de usuários AD em hospitais
psiquiátricos normatizando as internações hospitalares de
curta permanência; propõe integração entre os serviços e níveis
de atenção à saúde.
Resolução nº3/GSIPR/ 2005. Conselho Institui a Política Nacional Sobre Drogas substituindo o prefixo (3)
CH/CONAD de 27 de Nacional “anti” para “sobre” drogas, refletindo nova compreensão
outubro de 2005. Antidrogas técnica-política para o problema em uma sociedade protegida
(CONAD) do uso de drogas ilícitas e do uso indevido de drogas lícitas.
Portaria nº 1.028, de 1 2005. Ministério da Regulamenta ações que visam à RD decorrentes do uso de (3)
de julho de 2005. Saúde produtos, substâncias ou drogas que causem dependência
definindo as ações de RD com disponibilização de insumos
para prevenção de HIV e hepatites.
Lei de Drogas 11.343 de 2006. Presidência Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (1)
23 de agosto de 2006. da República. Casa (Sisnad). Prescreve medidas para prevenção do uso indevido,
Civil atenção e reinserção social de usuários e dependentes de
drogas e as redes de serviços. Estabelece normas para repressão
à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas; define
crimes, distingue usuário de traficante e suas respectivas penas,
porém mantém a criminalização e a penalização por uso de
drogas.
Decreto nº 6.117, de 22 2007. Presidência Institui a Política Nacional sobre o Álcool com medidas para (3)
de maio de 2007. da República redução do seu uso indevido e sua associação com a violência e
criminalidade. Propõe a ampliação e fortalecimento das redes
locais de atenção integral na lógica de território e de RD.
Portaria nº 1.190 de 04 2009. Ministério da Institui o Plano Emergencial de Ampliação do Acesso ao (3)
de junho de 2009. Saúde. Tratamento e Prevenção em Álcool e outras Drogas (PEAD).
Normatiza os Consultórios de Rua (CR) como uma das
estratégias do plano na área de saúde mental, visa diversificar
as ações orientadas para a prevenção, promoção e tratamento
por meio de respostas intersetoriais efetivas.
continua
da Segurança Institucional (Secretaria Nacional bre Drogas - CONAD e Casa Civil); Ministério
sobre Drogas - SENAD; Conselho Nacional so- da Justiça (SENAD). A maioria dos documentos
1460
Teixeira MB et al.
Quadro 1. continuação
Relação com temática das drogas
Normativos Ano e Setor Modelos*
e a organização dos serviços
Resolução nº 01 de 19 2015. Presidência Regulamenta, no âmbito do Sisnad, as entidades caracterizadas (2)
de agosto de 2015. da República. como CT, sem prejuízo da RDC nº 29. Afirma que as CT não
CONAD. são estabelecimentos de saúde, mas de interesse e apoio das
políticas públicas de cuidados, atenção, tratamento, proteção,
promoção e reinserção social. Estabelece o acolhimento
por até 12 meses o que se diferencia de uma abordagem
psicossocial com vistas a desinstitucionalização. O programa
de acolhimento ainda permite incluir a realização de
desenvolvimento da espiritualidade como parte do método de
recuperação.
Portaria 834 de 26 de 2016. Ministério da Redefine os procedimentos relativos à certificação das (2)
abril de 2016. Saúde entidades beneficentes de assistência social na área de saúde
(CEBAS) e considera entidade beneficente de assistência
social na área de saúde aquela que atue diretamente na
atenção à saúde. A CT definida como entidade de saúde
poderá receber o CEBAS, porém não há definição de critérios
quanto ao que se caracteriza “entidade de saúde”. Informa
ainda excepcionalmente, para receber a CEBAS as CT que
comprovem a aplicação de apenas 20% de sua receita bruta em
ações de gratuidade.
*Legenda: Modelos de abordagem aos usuários de drogas: 1) Moral/criminal/proibicionismo; 2) Doença/asilar; 3) Redução de danos e/ou
modelo de atenção psicossocial/antiproibicionista.
(n = 10) foi publicada pela Saúde, 07 pela Presi- à atenção psicossocial ao evitar a internação de
dência da República e 01 pela Justiça. usuários de álcool e outras drogas em hospitais
Sobre a tipologia dos modelos/abordagens, psiquiátricos e reconhecer o UPD como grave
houve uma predominância do modelo da RD e/ problema de saúde pública, apresentando a RD
ou modelo de atenção psicossocial/antiproibicio- como estratégia de intervenção prioritária, mo-
nista, com 08 documentos; seguido do modelo de delo que se fortaleceu de forma crescente nos
doença/asilar com 06 documentos. Identificou-se anos seguintes. Em 2005, as ações de RD foram
apenas 02 documentos no modelo moral/crimi- regulamentadas pela Portaria nº 1.028/MS10,
nal/proibicionista (nos anos 2002 e 2006) e 02 apostando num modelo direcionando à oferta
normativos compostos por mais de um tipo de de cuidados que minimizassem as consequências
modelo, nesses casos expondo ainda mais uma adversas do UPD para o indivíduo e a sociedade;
disputa de modelos. reduzindo riscos associados sem, necessariamen-
Com destaque no início da série temporal es- te, intervir na oferta ou no consumo de drogas.
tudada, a Lei 102168, de 2001, foi um marco da De forma convergente à tendência observa-
Reforma Psiquiátrica, por legislar sobre o novo da na Saúde, neste mesmo período outros seto-
modelo de atenção em saúde mental (psicosso- res experimentaram mudanças na abordagem às
cial), com serviços de base territorial de portas drogas rumo ao antiproibicionismo, expressas
abertas em substituição aos manicômios psiqui- no realinhamento do título de políticas e seto-
átricos. Essa lei, embora não abordasse especifi- res governamentais afins: de Política Nacional
camente a temática das drogas, definiu 3 tipos Antidrogas (2002) para a Política Nacional sobre
de internações: 1) voluntária, solicitada pelo Drogas (2005)15; de Secretaria Nacional Antidro-
paciente; 2) involuntária, pedida por terceiro; e gas (SENAD) e da Política Nacional Antidrogas
a 3) compulsória, “aquela determinada pela Jus- (PNAD), com a expressão anti alterada para so-
tiça”. Somente em 2003, o tema das drogas, seu bre drogas, expressam a construção de uma nova
uso prejudicial, entrou na agenda da saúde de identidade na abordagem ao tema, movimento
forma mais efetiva, com a publicação da “Políti- consolidado com o Conselho Nacional de Polí-
ca para atenção integral aos usuários de álcool e ticas sobre Drogas (CONAD). Um primeiro re-
outras drogas/MS”. Esta foi normatizada no ano sultado desta mudança pode ser observado em
seguinte (Portaria nº 2.197)11, em convergência 2006, com a Lei 11.34316, que extinguiu a pena
1461
civil, para lacunas assistenciais do SUS. Nessa competências e habilidades para trabalhar com
tensão política, as CT passaram a ser financiadas novos saberes e práticas, em uma leitura trans-
pela SENAD, por meio do Ministério da Justiça, versal sobre os problemas fundantes de uma po-
em 201426. Em 2015, a Resolução nº 1/2015 do lítica12. Segundo Buss e Carvalho30, a intersetoria-
CONAD27 regulamentou, no âmbito do Sisnad, as lidade não pode se restringir às intencionalidades
entidades que realizavam o acolhimento de pes- retóricas nem em frágeis acordos, devendo estar
soas, em caráter voluntário, com problemas asso- sistematizada em “programas concretos dirigidos
ciados ao UPD, aí, sim, caracterizadas como CT. a populações concretas (...) submetidas a proce-
Estas não seriam estabelecimentos de saúde, mas dimentos de avaliação que permitam dimensio-
entidades de interesse e apoio das políticas públi- nar seus impactos sobre a saúde e a qualidade de
cas de cuidados, atenção, tratamento, proteção, vida”.
promoção e reinserção social, sendo, desta forma, Cabe destacar que, em 2002, a Política Nacio-
vinculadas ao MJ e fiscalizadas pela SENAD. No nal Antidrogas31 apresentou, embora insipiente,
entanto, em 2016, contrariando tal vinculação, a uma perspectiva ampliada entre saúde e assis-
responsabilidade sobre as CT retornam à Saúde, tência social. Em 2005, com o realinhamento da
com procedimentos do MS normatizando a cer- política, a integração setorial se torna mais ro-
tificação das entidades beneficentes de assistência busta. Com a Política Nacional sobre o Álcool17,
social na área de saúde – CEBAS (Portaria 834)28. em 2007, a intersetorialidade e a integralidade de
Essa definiu que as instituições reconhecidas na ações têm maior visibilidade e em 2011, o Pro-
legislação, como serviços de atenção em regime grama “Crack é possível vencer” fez uma indução
residencial e transitório (incluídas as CT) pres- à intersetorialidade ao propor o trabalho integra-
tadoras de serviços ao SUS, poderiam ser certifi- do por meio de Comitês intersetoriais.
cadas, desde que qualificadas como entidades de
saúde e com prestação de serviços comprovada
por declaração do gestor do SUS. Contudo, es- Discussão
tabeleceu-se dualidade acerca do financiamento
às CT, possível tanto pela SENAD/Justiça como A formulação de políticas públicas relaciona-
pelo MS. das à temática das drogas no período estudado
Em relação às políticas específicas acerca no Brasil não identificou uma tendência linear
do crack, estas foram mais evidentes a partir de progressista rumo ao modelo da RD/psicosso-
2010, coincidindo com a profusão na mídia sobre cial, embora tenha predominado nas normativas.
a suposta epidemia do crack. Na perspectiva de Há alternância na ênfase da segurança pública e
intervenções integradas entre setores, foi lançado justiça, que reafirmam o paradigma da “guerra
em 2010, o Plano Integrado de Enfrentamento ao às drogas” e na abordagem as drogas como pro-
Crack e outras Drogas29 que deu origem ao “Pro- blema de saúde publica32. No entanto, em todos
grama Crack é Possível Vencer” em 2011, este com esses setores o modelo de RD vem ganhando
investimento financeiro substancial e com ações protagonismo principalmente, a partir de 2005,
que envolveram diretamente as políticas de saúde, com realinhamento da Política Nacional sobre
assistência social e segurança pública e educação, Drogas33.
trazendo como diretriz, a integração das ações O uso de práticas de RD como estratégia
dos eixos cuidado, autoridade e educação. importante para a saúde e o modelo de atenção
A perspectiva intersetorial dos documentos psicossocial, de forma diferenciada ao modelo
foi melhor explorada no presente estudo com as de doença, tem beneficiado pessoas que usam
tipologias sistematizadas no Quadro 2. Eviden- drogas, suas famílias e a comunidade por serem
ciou-se que a maioria dos documentos abordou a intervenções que se baseiam num forte compro-
intersetorialidade de forma ainda incipiente (08); misso com a saúde pública e os direitos huma-
06 de forma robusta e apenas 03 inexistente, já nos34, cujo foco principal de suas ações é a oferta
sendo, portanto, uma dimensão relevante de aná- de cuidado integral reduzindo prejuízos agrega-
lise de políticas públicas. dos em função do uso de drogas e prevenindo
Esta categoria é relevante não apenas pela aqueles ainda não instalados, sem necessaria-
possibilidade de ampliar as alianças intersetoriais mente interferir no uso das drogas. A RD torna-
no desenvolvimento de projetos, mas também se, assim, uma estratégia norteadora do cuidado,
em compreender as competências necessárias um paradigma ético, clínico e político mostran-
para implementar as ações, lidar com disputas do-se mais resolutiva para os usuários de crack
políticas e pessoais por espaços de poder, novas e outras drogas. Esta terapêutica é considerada
1463
critérios éticos e técnicos, pois não trabalham tório das drogas sugerindo um reconhecimento
com a noção de território, com o conceito de saú- em nível global das falhas da abordagem crimi-
de ampliada, nem com critérios de acolhimento nalizatória e reforçando uma vertente política em
pautados na lógica da RD. direção a uma guinada histórica de paradigma44.
Esta abertura tem ocorrido em vários países com
penas mais brandas aos usuários de drogas vi-
Considerações finais sando economia de custos44. A descriminalização
tem consonância com o modelo de atenção psi-
O Relatório global sobre Descriminalização de cossocial porque auxilia o encaminhamento dos
Drogas44, de 2016, aponta os danos provocados usuários de drogas para tratamento, diminuindo
pela criminalização: aumento da população pri- muito a sua estigmatização e os protege do im-
sional, aumento de doenças infectocontagiosas pacto devastador da condenação criminal.
e contribuição para o aumento do número de Conclui-se que as políticas sobre drogas não
mortes relacionadas às drogas que, em 2013, deveriam ter como foco somente o seu uso ou na
chegou perto de 200 mil no mundo. Devido a es- tentativa de eliminar a sua produção como dire-
ses danos, o paradigma do proibicionismo tem ciona a política proibicionista, mas sim, em in-
sido bem debatido em nível global. A RD, como vestir na educação com informação nítida sobre
medida de saúde pública tem sido considerada seus efeitos para que os sujeitos possam usar dro-
como a abordagem mais adequada ao problema gas sem causar maiores danos à sua vida, e para
das drogas com respeito aos direitos humanos. aqueles que fazem uso prejudicial, seja garantido
Nos últimos 15 anos, uma nova onda de países acesso ao cuidado no modelo da atenção psicos-
rumou em direção ao modelo descrimininaliza- social, a partir da premissa da RD.
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http://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2012/03/2a_ Aprovado em 12/09/2016
Edixo_relatorio_inspecao_VERSxO_FINAL.pdf Versão final apresentada em 01/12/2016
Artigo Original
RESUMO
Como citar este artigo:
Silva AB, Pinho LB, Olschowsky A, Siniak
Objetivo: Conhecer estratégias de cuidado ao usuário de crack no território a partir da realidade de um Centro de Atenção Psicossocial
DS, Nunes CK. O cuidado ao usuário para álcool e outras drogas (CAPS AD).
de crack: estratégias e práticas de Método: Estudo qualitativo e descritivo. Os dados foram coletados por meio de entrevista, realizada com oito profissionais de um
trabalho no território. Rev Gaúcha Enferm. CAPS AD da região metropolitana de Porto Alegre, entre os meses de fevereiro e março de 2013. Para análise dos dados utilizou-se a
2016;37(esp):e68447. doi: http://dx.doi. análise temática.
org/10.1590/1983-1447.2016.esp.68447. Resultados: Foram apontadas, a partir dos dados analisados, estratégias de cuidado no território como: as equipes itinerantes, as
visitas domiciliares, a clínica ampliada e a importância do território de trabalho ser o mesmo da residência do profissional.
doi: http://dx.doi.org/10.1590/1983- Conclusão: O cuidado no território mostra-se como uma inovação para o campo da Saúde Mental, visto que permite uma atenção
1447.2016.esp.68447 em saúde voltada para o contexto social, cultural e histórico dos usuários.
Palavras-chave: Saúde mental. Reforma dos serviços de saúde. Enfermagem. Políticas públicas. Usuários de drogas.
ABSTRACT
Objective: To know the care strategies for crack users in Brazil from the perspective of the Centre of Psychosocial Care for Alcohol and
Other Drugs (CAPS AD).
Method: This is a qualitative descriptive study. Data were collected by means of interviews conducted with eight professionals of a
CAPS AD in the metropolitan region of Porto Alegre, between February and March 2013. Data were subjected to thematic analysis.
Results: The analysed data revealed the use of care strategies, such as itinerant teams, home visits, and the extended clinic, and that
the work territory should essentially be the home of the professional.
Conclusion: Care in the territory is considered an innovation in the field of mental healthcare because it enables care that focuses on
social, cultural, and historical context of users.
Keywords: Mental health. Healthcare reform. Nursing. Public policies. Drug users.
RESUMEN
Objetivo: Conocer las estrategias de atención al usuario grieta en el territorio de la realidad de un centro de atención psicosocial
contra el alcohol y otras drogas (CAPS AD).
Método: Se trata de un estudio cualitativo y descriptivo. Los datos fueron obtenidos con entrevistas a ocho profesionales de un CAPS
AD de la región metropolitana de Porto Alegre, entre los meses de febrero y marzo de 2013. Para el análisis de los datos se utilizó el
análisis temático.
Resultados: Sugieren las siguientes estrategias de atención: equipos itinerantes, visitas domiciliarias, la clínica ampliada y la impor-
tancia del territorio de trabajo ser el mismo que el de la residencia del profesional.
a
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Conclusión: El cuidado en el territorio se presenta como una innovación en el campo de la Salud Mental, ya que permite una atención
Escola de Enfermagem. Programa de Pós-Graduação em a la salud centrada en el contexto social y cultural de los usuarios.
Enfermagem. Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil. Palabras clave: Salud mental. Reforma de la atención en salud. Enfermería. Políticas públicas. Consumidores de drogas.
menos seis meses no CAPS AD, e como critério de exclusão Foram respeitadas as questões éticas da Resolução
estar de licença médica e/ou desfrutando de férias. 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde(12) que trata do
Desta forma, a equipe participante foi composta por Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Para manter
dois psicólogos, um médico psiquiatra, um terapeuta ocu- o anonimato, os integrantes da equipe foram identificados
pacional, um oficineiro, um enfermeiro, um técnico de en- com a inicial “E”, seguido da ordem em que apareceram na
fermagem e um auxiliar administrativo. Um profissional foi entrevista. Exemplo: E6, E3.
excluído por estar em licença-saúde e outro por gozar suas
férias no período da coleta de dados. RESULTADOS E DISCUSSÃO
A coleta de dados ocorreu por meio de uma entrevis-
ta aberta com a seguinte pergunta norteadora: “Fale-me o A categoria “Estratégias de cuidado no território”, em
que você entende por território no cuidado ao usuário de que quatro profissionais, dentre os oito, trazem reflexões
crack”. As entrevistas tiveram duração de 20 a 30 minutos. práticas para abordagem do conceito de território, para
O período de coleta de dados foi entre os meses de feve- além do físico, como também que compreenda os modos
reiro a março de 2013. de vida da população.
A análise dos dados ocorreu por meio da Análise de Estratégias de cuidado no território - reflexões práti-
conteúdo, modalidade temática que consiste em desco- cas para abordagem do conceito de território que compreen-
brir os núcleos de sentido que compõem uma comunica- da os modos de vida da população.
ção, cuja presença ou frequência signifiquem alguma coisa O cuidado no território propõe uma nova maneira de
para o objeto analítico a ser estudado(11). Possui três fases, fazer clínica, diferente da clínica tradicional (baseada no
que são: a pré-análise, a exploração do material e o trata- controle e na tutela). Essa nova clínica considera o usuário
mento dos dados empíricos. como ator ativo no processo do cuidado, incorporando sua
Na primeira fase, iniciou-se a constituição do corpus, a experiência de vida e seu local de moradia na constituição
partir da transcrição das informações obtidas das entre- de novas ações de saúde mental. Observam-se algumas
vistas. Nela foi realizada uma leitura flutuante do material considerações da Equipe de Saúde Mental sobre o tema:
identificando aspectos que respondessem os objetivos
da pesquisa. Então, a ideia de formar uma equipe itinerante é pen-
A segunda fase é a exploração do material, que consiste sando nisso, que é esses usuários que não vêm ao CAPS,
na operação de codificação, a partir daquilo que se con- que não têm o CAPS como parte, às vezes tem [...] Enfim,
sidera como sendo a “criação de núcleos para a compre- já vieram aqui uma vez e não voltaram mais, não acredi-
ensão do texto”. Assim, desenvolveram-se as “unidades de tam que o CAPS possa ser um serviço que ajude, que não
informação”, que indicavam informações e ideias específi- tem uma organização subjetiva pro CAPS ser um território
cas em cada entrevista. Foi criado um quadro teórico com ocupado, e por aí que a gente vem pensando: não, mas
as “unidades de informação” que, agrupadas, formaram temos que ir ao encontro a essas pessoas, a gente tem que
“unidades de significado”, as quais geraram, por fim, duas ir pra rua... E daí, tá, pensamos mais estruturalmente e no-
categorias de análise. meamos assim, tentamos nomear de Equipe Itinerante, e
A terceira e última fase consistiu no tratamento dos re- o plano é que diariamente a gente tenha uma equipe, que
sultados obtidos e interpretação, na qual os resultados bru- não é a equipe toda do CAPS, porque a gente precisa ter
tos foram analisados e debatidos à luz da literatura da área. pessoas aqui dentro também, mas uma parte da equipe
Neste artigo, serão discutidos aspectos da segunda cate- que vá fazer essa inserção no território e aí o território pode
goria de análise que engloba as estratégias de cuidado ao ser a casa, pode ser a rua, pode ser o sujeito singularmente,
usuário de crack no território, a partir da realidade de um pode ser um grupo, pode ser uma zona vulnerável [...] (E7).
Centro de Atenção Psicossocial para álcool e outras drogas.
O projeto foi submetido à avaliação pelo Comitê de Temos muitos vetores de fuga no território geográfico, de
Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande ir atrás dos usuários, fazendo uma VD. Na medida em que
do Sul (UFRGS), recebendo parecer favorável à execução temos uma família dentro de uma casa de um bairro, isso
(protocolo 20157/2011). Foi também, por solicitação do modifica alguma coisa nessas relações com o usuário,
CEP/UFRGS, avaliado pelo CONEP/MS, recebendo parecer com o território [...] (E1).
favorável à sua execução (parecer 337/2012), enquanto um
subprojeto da pesquisa “Avaliação qualitativa da rede de Os profissionais do CAPS AD apontaram duas estraté-
serviços em saúde mental para usuários de crack”. gias de cuidado que reforçam o espaço social como lócus
de atuação do serviço. Um dos profissionais propõe a É importante destacar que a visita domiciliar se tra-
criação de equipes itinerantes como possibilidade para ta de uma atividade pontual no processo de trabalho: o
o cuidado no território. Essa estratégia é adequada para profissional vai até a casa do usuário e retorna ao serviço
usuários que não reconhecem no CAPS um dispositivo de de saúde, conhecendo o ambiente familiar daquele dele,
cuidado, que possuam vínculos frágeis com o serviço e te- mas inserindo-se pouco naquele contexto. Já a construção
nham dificuldades de acessá-lo. O profissional ressaltou a de equipes itinerantes propõe uma mudança de modelo
importância da equipe, estar onde as pessoas estão, na rua, de cuidado: o profissional tem no território um espaço de
na cidade, na casa, propondo novos projetos de vida para atuação, provocando encontros entre usuários e trabalha-
a população e inserindo os profissionais nessa realidade. dores por meio da inserção do profissional no ambiente de
O termo “itinerância” é a utilização de tecnologias de vida do usuário.
cuidado que objetivam o deslocamento do profissional Assim, a itinerância demonstrou que a ocupação do
até o território dos usuários. A itinerância busca maior co- território dos sujeitos pelo profissional é uma estratégia
bertura de ações de cuidado ao alcançar grupos popula- potente na atenção ao usuário de crack. Isso porque há
cionais com maior dificuldade de acesso e de criação de um deslocamento do olhar do trabalhador para o con-
vínculo, como moradores de rua, indígenas, nômades e texto da população. A estratégia de cuidado no territó-
usuários de droga, que não se adaptam ao modelo tradi- rio exposta pelo E7 corrobora esse tipo de processo de
cional de tratamento dos serviços(13). trabalho, que não se vincula ao contexto interno do ser-
A equipe itinerante não deixa de ser um movimen- viço de saúde, mas aos espaços sociais da comunidade
to político que age em contato com os elementos do – o bairro, a cidade, o território –, incorporando-os como
território, afetando-o de algum modo e sendo afetado locais de cuidado.
por ele. A construção da itinerância pode ocorrer por Os profissionais do CAPS AD apontaram mudanças
meio de três elementos: o movimento de encontro com importantes e necessárias em seu processo de trabalho,
o usuário no território, os movimentos ocasionados pelo reconhecendo uma clínica ainda voltada para o interior
processo de acompanhamento do trabalhador com o do serviço, com ações pontuais para a saída no território,
usuário (construindo seu pertencimento no território) e, como as visitas domiciliares. No entanto, essas ações ain-
por fim, a invenção de novos caminhos no pensamento da não abrangem a complexidade do território de vida da
e no real social(13). população, bem como, esses espaços de uso de drogas
Segundo o depoimento de E7, o CAPS é um serviço e existências que remontam a relação do usuário com a
interno, devendo possuir uma equipe que trabalhe “den- droga, com suas redes sociais e com desejo de cuidado.
tro” de seu espaço. No entanto, a construção de equipes A pesquisa apontou a necessidade de transformações nas
itinerantes traria a possibilidade de inserção do profissional práticas de saúde mental, que devem incluir esse território
no território do usuário, conhecendo seu cotidiano, o que de vida e existência como local de cuidado.
ensejaria novas alternativas de cuidado e permitiria aces- Pensando o território como local de cuidado, espaço
sibilidade a usuários que não enxergam o CAPS como um potente para a prática em atenção psicossocial, são trazi-
local de cuidado. das as seguintes colocações:
Em contrapartida, E1 abordou a realização de visitas do-
miciliares como uma estratégia importante de inserção no [...] falando um pouco na dependência química, em
território. Ele relatou que o fato de o serviço estar em um usuário de crack, a gente não pode deixar de pensar em
espaço, em um bairro, em uma cidade, e de haver famílias projetos de vida, potência de vida de estar explorando es-
e populações envolvidas, já aponta a necessidade de criar sas questões no território daquele sujeito. E acho que, no
relações entre equipe e território, sendo a visita domiciliar serviço de saúde, a gente, aqui no CAPS AD, a gente tem
uma estratégia de cuidado. a preocupação de ver aquele individuo além da doença.
A visita domiciliar é um potente instrumento de cui- Se pensando a nível de usuário de crack no território, a
dado no território, pois é por ela que o profissional pode gente tem que pensar na família daquele sujeito, nos ami-
se inserir no contexto familiar e prestar assistência a todos gos daquele sujeito, no que aquela pessoa faz durante o
os envolvidos, não considerando somente os problemas dia, faz durante a noite, o que ela faz além do trabalho,
do usuário, mas também os fatores sociais, se constituin- o que ela faz além do CAPS [...] E acho que, quanto mais
do, também, como um momento no qual se estabelece possibilidades de oferta tiver nesse território, melhor para
vínculo por meio do acolhimento e da escuta qualificada, aquele sujeito estar investindo em outras possibilidades de
movimentando as relações(14). vida, além daquele uso de substância química (E2).
O trabalhador se coloca preocupado com a construção Estes territórios na saúde englobam características fí-
de uma clínica do sujeito, que pense para além da doença sicas de uma dada área e também as marcas produzidas
e crie projetos de vida a partir do contato com a realidade pelo homem, suas relações sociais, a forma como se orga-
dos usuários de crack, da relação com sua família, de seu nizam e transitam por esse território. Há uma inseparabili-
cotidiano, de seus afetos e desafetos. A fala exprime a ne- dade estrutural, funcional e processual entre a sociedade e
cessidade dos profissionais descobrirem sobre o sujeito, seu o espaço geográfico. É um território usado, pois é um re-
território e suas relações, visto que isso permite a constru- corte ou fração do espaço qualificado pelo sujeito, espaço
ção de um cuidado potente e criativo. Investir nas possibili- vivido pelo homem(17).
dades de cuidado no território é investir na vida e construir Outro depoimento abordou estratégias de cuidado no
uma nova relação do usuário com a substância química. território, trazendo-o para além de um espaço de cuidado,
Pensando o cuidado no território na saúde mental, mas também como local de residência do profissional:
percebe-se uma nova forma de organizar os processos de
trabalho e produzir ações de cuidado. Busca-se o trabalho [...] têm várias formas de ver o território, o meu território
em equipe interdisciplinar a partir das necessidades indi- com os usuários não só a serviço que eu trabalho, é tam-
viduais dos usuários, abarcando suas diversas dimensões: bém o local que eu resido. O que acho importante é, não
biológica, cultural, existencial, socioeconômica, política acontece em todos os serviços de saúde, mas que eu acho
e religiosa. Tendo o usuário como norte, seu território e a que seria importante, seria relevante, tu morar no territó-
complexidade de formar projetos terapêuticos que reco- rio que tu trabalha, daí tu tem uma percepção maior [...]
nheçam a amplitude de questões que envolvem o sujeito, Eu acho assim: no momento que tu reside no local do tra-
a equipe precisa trabalhar em conjunto, rompendo a frag- balho, eu acho que tu tem uma visão maior do território
mentação de saberes e hierarquização de relações(15). [...] Pra mim se torna mais fácil tendo o cotidiano dentro
A Clínica Ampliada e Compartilhada refere-se à amplia- do trabalho e ele se torna uma extensão do serviço. Um
ção do cuidado em saúde para o todo, valorizando o ser exemplo que eu tenho disso é que vários usuários moram
humano integralmente, com respeito a sua individualida- no lugar onde eu moro, eu venho de ônibus com ele, eu
de. A compreensão da clínica ampliada vai além do cui- cumprimento eles, eles vem aqui, eu também cumprimen-
dado guiado por técnicas e protocolos, esta assume um to, então tem essa coisa que é uma continuidade do meu
cuidado compartilhado e interdisciplinar. Além disso, as território de trabalho, ao mesmo tempo a minha residên-
práticas de saúde desenvolvidas neste contexto tornam o cia, e isso cria um elo bem interessante, bem legal, tanto
ambiente permeado de criatividade, cuidado singular, es- do tratamento do usuário, ou ter pertencimento do terri-
cuta e compartilhamento de conhecimento(16). tório meu com o dele do meu [...] (E6).
Consequentemente, o cuidado no território está as-
sociado às formas de fazer clínica, sendo necessário um O participante do estudo destacou a importância de o
deslocamento de modelo de cuidado que incorpore uma profissional residir no mesmo território do usuário, o que
clínica do sujeito no contexto dos serviços substitutivos. possibilita que o trabalhador compreenda melhor o con-
Com a formação e reformulação da clínica, temos a texto em que o usuário está inserido, facilitando o trabalho
construção de projetos de vida que enxerguem o sujeito e no território. Essa ideia é utilizada na atenção básica do SUS,
seu espaço social em sua totalidade, trazendo a utilização em que, nas Estratégias de Saúde da Família, o profissional
de crack como parte da existência do indivíduo, e não como Agente Comunitário deve residir no mesmo local de traba-
foco de atendimento. A possibilidade de nova relação do lho, aumentando o vínculo com os usuários e facilitando as
usuário com a substância pode ser possível com a criação ações de promoção de saúde para o território.
de novos espaços de cuidado no território, bem como com Pensando o cuidado no território como uma teia com-
a percepção das reais necessidades do sujeito, trabalhando plexa, formada por diversos serviços, profissionais, usuários
a qualidade de vida e o usuário para além do crack. e dispositivos de cuidado, considera-se que o profissional
Trabalhar com o sujeito envolto em seus processos so- não precisa necessariamente ter residência no território do
ciais e não somente com a dependência química é pensar usuário, desde que “ocupe o” na construção de propostas
estratégias de cuidado no território, a mudança seria incluir de cuidado, de modo que haja uma maior articulação em
suas vivências, suas histórias de vida, suas relações sociais e rede e de diferentes territórios.
seus contextos como norteadores deste cuidado, criando Nesse contexto, a atenção básica pode ser uma impor-
espaços de abertura da rede para a comunidade, territórios tante aliada no cuidado ao usuário de crack, uma vez que,
vivos, territórios usados. está inserida no território e compreende o modo de vida
dessas pessoas, o que propicia a atuar mais efetivamente atenção em saúde voltada para o contexto social, cultural e
sobre as necessidades de saúde que elas apresentam(18). histórico dos usuários. Desta forma, é possível a reinserção
O cuidado em saúde mental tem como característica social e a busca de novos olhares para o tratamento que
inerente do seu processo o desenvolvimento de práticas não se limitam a estratégias dentro dos serviços.
singulares, baseadas na construção do vínculo com a fa- As equipes itinerantes fazem com que o cuidado vá até
mília, usuário e sua comunidade, criando estratégias no o lugar onde as pessoas estão, conhecendo os espaços co-
território(19). A atenção básica, por ser um serviço junto ao munitários, a verdadeira realidade do usuário de crack, e
território, pode estar mais próximo de estratégias que re- possibilitando uma atenção em saúde que contemple os
conheçam os modos de vida das pessoas e os incluam em desejos, as vivências e os espaços sociais em que os usuá-
seus projetos terapêuticos de cuidado. rios habitam. Essa estratégia é imprescindível para usuários
Compreende-se, então, que o fato de os profissionais que não reconhecem no CAPS um dispositivo de cuidado,
do CAPS residirem no mesmo território do usuário pode que possuem vínculos frágeis com o serviço e têm dificul-
reforçar a ideia de que o CAPS é o “centro” da rede de saú- dades de acessá-lo.
de mental, única referência para o cuidado. No entanto, o As formas de “fazer clínica” podem criar uma nova re-
CAPS deve ser um serviço voltado para o território, buscan- lação do indivíduo com a droga. Uma clínica que visualiza
do a comunicação com outros dispositivos(20). o sujeito e sua existência em seu espaço social tira o foco
Na prática, o desafio continua sendo a composição de somente da utilização da droga, buscando resgatar suas
uma rede móvel, flexível e resolutiva, que facilite o trânsi- histórias de vida. Assim, pela percepção das reais necessi-
to do usuário e acolha suas diferentes demandas. No âm- dades do usuário, pelo interesse em conhecê-lo e contex-
bito da gestão, buscam-se alternativas frente à demanda tualizar a utilização da droga, percebe-se uma clínica am-
de linhas de cuidado e sistemas de referência e contrar- pliada do sujeito que pode criar possibilidades para novos
referência para consolidação do desafio da construção de espaços de cuidado que reconheçam o território.
redes. Identificam-se, no momento, muito mais serviços Foi apontado como estratégia de cuidado no território,
isolados, fechados em suas rotinas, do que redes articula- o fato de o território de residência do profissional do CAPS
das para atender a demanda do usuário. Para a composi- AD ser o mesmo do território do usuário. Assim, torna-se
ção de uma rede móvel, flexível e resolutiva, é necessária importante problematizar que essa ideia é trazida na aten-
a comunicação e a busca por uma boa articulação entre ção básica, em que os agentes comunitários devem residir
dispositivos da rede(15,20). no mesmo local de moradia da população para que estrei-
Assim, o cuidado no território precisa reconhecer a mul- tem seus vínculos e ampliem seu ponto de vista acerca da-
tiplicidade de suas dimensões, incorporando estratégias, quele contexto social. O território, na perspectiva de uma
tanto no campo macropolítico como na micropolítica do teia complexa de relações, que se articula, complementan-
serviço. É necessária a construção de redes de cuidado dis- do-se e contradizendo-se, demonstra a necessidade de o
postas no território, que ampliem relações entre os traba- CAPS se comunicar com outros dispositivos da rede, como
lhadores e usuários, melhorando o acesso e a comunicação a atenção básica. Portanto, essa estratégia de cuidado no
do serviço com a realidade. Os profissionais, usuários e fami- território pode fortalecer a ideia de o CAPS AD ser o “centro”
liares são atores deste processo de construção do cuidado da rede e, muitas vezes, a única referência para o cuidado
no território, e o desafio é a consolidação de uma clínica do em saúde mental.
sujeito, que não se apoie somente na doença e na depen- Os achados também demonstraram que a visita domi-
dência química para elaboração de planos de cuidado. ciliar é um potente instrumento de cuidado no território,
Precisamos de estratégias que incorporem o espaço so- constatou-se que, por meio dela, é possível conhecer o
cial como local de saber e de prática, que mudem os para- ambiente familiar e o contexto social na qual o usuário e
digmas do cuidado, pois só assim será possível consolidar seus familiares estão inseridos, e prestar assim a assistên-
a proposta da Reforma no que se refere à cidadania, à re- cia a todos os envolvidos. Contudo, essas ações podem ser
abilitação social, ao acolhimento e à inclusão dos usuários pontuais, ressaltando que a proposta de equipes itineran-
em seu espaço de vida. tes, oferece um modelo de cuidado que amplia o espaço
de atuação, para além do ambiente de moradia do usuário,
CONSIDERAÇÕES FINAIS mas ocupando o seu território vivido.
Refletimos que no momento em que o território é in-
Cuidar no território mostrou-se como uma inovação corporado enquanto um espaço de cuidado pode levar a
para o campo da Saúde Mental, visto que, permite uma transformações nas práticas de saúde mental, isso quan-
do o observamos para além de um espaço físico, mas que 7. Pinho LB, Hernandez AMB, Kantorski LP. Serviços substitutivos de saúde men-
compõem as culturas, as histórias, os afetos, um local so- tal e inclusão no território: contribuições e potencialidades. Cienc Cuid Saude.
cial o qual permite a construção de novos olhares sobre 2010;9(1):28-35.
a saúde e o uso de drogas. Assim, o foco é o sujeito e sua 8. Santos MRP, Nunes MO. Território e saúde mental: um estudo sobre a experiência
relação com a droga e sociedade e não somente a depen- de usuários de um Centro de Atenção Psicossocial, Salvador, Bahia, Brasil. Inter-
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dência física e química que geram uma “doença”. Essas
9. Leão A, Barros S. Território e serviço comunitário de saúde mental: as concepções
transformações práticas incluem construção de equipes
presentes nos discursos dos atores do processo da reforma psiquiátrica brasileira.
nos territórios, articulações em redes de diferentes dispo- Saúde Soc. 2012;21(3):572-86.
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Importa destacar como limitação desse estudo, a re- magem, Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2014.
alização desta pesquisa a partir de um serviço de saúde 11. Minayo MCS. O desafio do conhecimento. 12ª ed. São Paulo: Hucitec; 2013.
mental, o CAPS AD, assim os resultados não podem ser 12. Ministério da Saúde (BR). Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 466, de
generalizáveis para outros serviços. Sugere-se que novos 12 de dezembro de 2012. Diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas
estudos nesta perspectiva sejam desenvolvidos, buscan- envolvendo seres humanos. Diário Oficial da União [da] República Federativa do
do novas pesquisas e práticas que contemplem a percep- Brasil. 2013 jun 13;150(112 Seção 1):59-62.
ção dos usuários sobre o cuidado no território, suas com- 13. Lemke RA, Silva RAN. Um estudo sobre a itinerância como estratégia de cuidado
no contexto das políticas públicas de saúde no Brasil. Physis. 2011;(3):979-
preensões sobre o tema, experiências e expectativas de
1004.
um tratamento que possibilite outros espaços além dos
14. Antunes B, Coimbra VCC, Souza SA, Argiles CTL, Santos EO, Nadal MC. Visita
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Comunidades Resumo
Abstract
Problems related to alcohol and other
substance abuse are on a steady rise. Certain
controversial measures currently aim at
Renata Cristina Marques Bolonheis-Ramos immediate solutions, such as the public
Psicóloga, Prefeitura Municipal de Maringá, Paraná. funding of therapeutic communities. The
renatabolonheis@hotmail.com article draws comparisons between the
legacy of early twentieth-century public
health practices in psychoactive substance
Maria Lucia Boarini abuse and current proposals for intervention
Professora, Programa de Pós-graduação em through therapeutic communities. The
Psicologia/Universidade Estadual de Maringá. study researched primary sources from
UEM the perspective of historical materialism.
Avenida Colombo, 5790
87302-220 – Maringá – PR – Brasil Historically produced by society as a whole,
problems stemming from substance abuse
mlboarini@uol.com.br
continue to place the greatest burden on
users, the people around them, and public
health.
Keywords: therapeutic communities; public
policy; drug users; alcoholics; mental health.
Recebido para publicação em agosto de 2013.
Aprovado para publicação em abril de 2014.
http://dx.doi.org/10.1590/S0104-59702015000400005
Assim, é importante ressaltar que a relação que estabelecemos entre as CTs atuais e as
instituições do início do século XX estão circunscritas a algumas de suas características e
fundamentos de seu modelo de atenção. Até porque não encontramos o termo comunidade
terapêutica nos documentos elaborados naquele período e, como sugere De Leon (2003),
essa expressão parece ter sido popularizada somente a partir da década de 1960, nos EUA.
De qualquer forma, partimos do pressuposto de que essa relação existe. Como já defendido
por Queiroz (2001), uma leitura atenta das propostas de tratamento moral e das colônias
agrícolas (século XIX e início do século XX), e das CTs e fazendas de recuperação atuais, pos-
sibilita a observação das semelhanças entre seus fundamentos, ideologias e visões de mundo.
Igualmente, consideramos que a recuperação da história enquanto cenário de construção
do conhecimento é um dos compromissos da pesquisa e, nestes termos, nos possibilita observar
e discutir possíveis avanços, limitações e repetições sobre a forma como o Estado e a sociedade
contemporânea têm enfrentado o problema das drogas, que se agrava continuamente e
traz a urgência de repensarmos esse fenômeno e as possíveis e necessárias estratégias de
enfrentamento. Isso não significa apontar soluções imediatas para um problema que há
décadas vem se configurando; tampouco meramente criticar as propostas existentes, mas
aprender com os seus impasses e limites, já evidenciados pela história.
Para atender ao objetivo proposto, realizamos uma pesquisa bibliográfica e documental
com materiais que abordam a questão do álcool e de outras drogas, desde o início do século
XX até as discussões atuais, com enfoque nas CTs.
Na investigação das propostas dos higienistas, trabalhamos com fontes primárias da
primeira metade do século XX, principalmente os Arquivos Brasileiros de Higiene Mental (de
1925 a 1947) – periódico publicado pela Liga Brasileira de Higiene Mental.
Para fundamentar a discussão sobre a questão das drogas na atualidade, levantamos alguns
documentos oficiais relativos às políticas públicas sobre álcool e outras drogas, além de obras
de autores contemporâneos que pesquisam no campo da saúde mental, como Amarante
(1994, 1995), Bezerra Júnior (2007), Delgado (2011), Pitta (2011) e outros. Para abordar o
tema das CTs, trabalhamos principalmente com De Leon (2003), que é considerado um dos
principais autores nesse assunto.
Destacamos ainda que as leituras e análises que realizamos para o desenvolvimento desse
estudo foram inspiradas na vertente do materialismo histórico. Assim, pretendemos esboçar
em nossa discussão o entendimento do uso/abuso de substâncias psicoativas como um
fenômeno datado historicamente e construído socialmente.
A conversão institucionalizada
Antes de analisar o legado higienista nas questões que envolvem o uso de drogas e as
propostas das CTs, entendemos ser necessário pontuar algumas características gerais dessas
instituições, bem como algumas críticas a esse modelo por parte de autores contemporâneos.
Na sequência, apresentaremos as discussões atuais em torno do seu financiamento pelo SUS.
Segundo De Leon (2003), a ideia de comunidade terapêutica é verificada ao longo da
história sob diferentes formatos. Em sua forma contemporânea, podemos dizer que surgiram
duas grandes variantes dessas instituições: uma no campo da psiquiatria social, que consiste
que surgiram como contraponto ao modelo asilar contemplam em si a mesma ideia: de que
promover a saúde mental consiste num processo de adaptação social.
Amarante (1995) complementa tal ideia, defendendo que, apesar de as CTs representarem
uma proposta diferente dos manicômios, tais instituições não deram conta de resolver a
questão da exclusão, e consequentemente do tratamento dos internos, uma vez que se criam
condições ideais dentro da instituição que não se sustentam quando o egresso se depara com
o mundo real.
Em um breve percurso pelos documentos oficiais que abordam as políticas públicas sobre
álcool e outras drogas no Brasil, observamos que as CTs até 2010 estavam ligadas somente
ao Sistema Único de Assistência Social,2 não fazendo parte da cobertura do SUS. Entretanto,
tendo em vista o avanço do problema das drogas no país – especialmente do crack –, a rede
de atenção psicossocial incompleta e as pressões da sociedade em geral clamando por uma
solução, o Ministério da Saúde estipulou o apoio financeiro com recursos do SUS às CTs
(Brasil, set. 2010).
Em 30 de junho de 2011, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária aprovou a resolução
da Diretoria Colegiada n.29 (Brasil, 30 jun. 2011), que substituiu a resolução n.101 (Brasil,
30 maio 2001), propondo modificações para que essa norma se adequasse à realidade das CTs
e possibilitando, nesse sentido, a entrada dessas entidades no SUS. Em dezembro de 2011, as
CTs foram oficialmente incluídas na rede de atenção psicossocial, através da portaria n.3.088
(Brasil, 23 dez. 2011).
Ainda no final de 2011, o governo federal lançou um plano com o slogan “Crack, é possível
vencer”, concentrando as ações em três eixos: cuidado, autoridade e prevenção (Brasil, 2012).
Com isso, as CTs podem elaborar projetos para receber verbas federais, desde que atendam
a alguns critérios, como a presença de um responsável técnico de nível superior legalmente
habilitado, a permanência voluntária do interno na instituição, o respeito à sua crença
religiosa, ideologia, orientação sexual (Brasil, 2014).
Sabemos que a inclusão das CTs no SUS e outras medidas atuais relativas ao tratamento
dos usuários de drogas têm levantado críticas e debates por parte de profissionais de saúde,
conselhos de categorias profissionais e outras entidades interessadas.
O Conselho Federal de Medicina e a Associação Brasileira de Psiquiatria, por exemplo,
contestaram as propostas de financiamento das CTs com recursos públicos, os quais deixam
de ser investidos na ampliação da rede pública de saúde. Tais entidades destacaram também
que muitas CTs substituem o tratamento médico por um programa terapêutico cuja eficácia
não é comprovada cientificamente (Brasil, 2011).
O Conselho Federal de Psicologia (2011a) também se manifestou contra o financiamento
das CTs pelo SUS, alegando que o cuidado dos usuários de drogas deve ser feito em liberdade,
em uma rede diversificada e territorializada de serviços, que poderia contar com as equipes
de saúde mental na atenção básica, com os centros de atenção psicossocial, unidades de
acolhimento, consultórios de rua, leitos em hospitais gerais para os quadros de intoxicação
e/ou abstinência grave e outros. Esses serviços, estando dentro dos pressupostos da reforma
psiquiátrica, buscam preservar e resgatar os laços e o apoio sociofamiliar, diferente do que
se observa nas CTs.
Segundo o psiquiatra Marcelo Kimati Dias (Drogas..., 24 jul. 2011), com o financiamento
dos leitos nas CTs não se fortalece a rede de atenção psicossocial, mas se cria uma rede paralela,
não complementar. Nesse sentido, seria precipitado trazer tais entidades para a rede pública de
saúde com o argumento de que os serviços atuais não estão dando certo, uma vez que, apesar
de existirem há algum tempo, as próprias comunidades não deram provas de sua eficácia.
O mesmo argumenta que o incentivo às CTs com recursos públicos constitui um retrocesso
com consequências muito sérias, uma vez que sinaliza a ideia de que deve existir um local
específico para atender aos usuários de drogas, isolados de sua comunidade, o que contribui
ainda mais para sua estigmatização. Além disso, os serviços que se pautam unicamente na
abstinência acabam tendo uma adesão baixa por parte dos usuários.
Acrescentamos que a última Conferência Nacional de Saúde Mental, realizada em 2010,
teve como um dos motes principais a garantia de que o cuidado dos usuários de álcool e
outras drogas ocorra em rede diversificada de ações e serviços de base comunitária e territorial,
defendendo-se então o não credenciamento pelo SUS de serviços especializados em alcoolismo
e drogadição que impliquem internação de longa permanência (Brasil, 2010).
Como sugerem alguns autores, como Bezerra Júnior (2007), Daúd Júnior (2011) e Luzio
(2011), apesar de a rede de atenção comunitária ter sido ampliada no Brasil nos últimos anos,
os dispositivos existentes ainda estão longe de dar conta de toda a demanda de atendimento
aos usuários de álcool e outras drogas. Sendo assim, abre-se um espaço para a entrada de
outros serviços no sistema público de saúde, como as CTs, que, segundo Pitta (2011), têm a
oferecer apenas o enclausuramento do problema.
o perfil clínico típico das pessoas que utilizam drogas e frequentam as CTs, identificando
nesses usuários disfunções sociais e interpessoais, problemas no âmbito educacional, na sua
capacidade de percepção e julgamento.
Outro ponto que também não é exclusividade das discussões atuais é a associação entre o
uso de substâncias psicoativas e a criminalidade. Segundo Juliano Moreira (1925), a internação
de um dependente de drogas no manicômio, o mais cedo possível, era fundamental para
prevenir os crimes que ele pudesse vir a causar. Em 1931, Moraes Mello publicou alguns
estudos que indicavam o álcool como principal fator das causas da criminalidade e que a
violência aumentava consideravelmente nos dias de folga, quando o consumo do álcool era
maior (Tavares, 1931).
Assim, no entendimento de grande parte dos higienistas, os problemas que envolviam a
vida dos dependentes de álcool e outras drogas decorriam do seu vício. Da mesma forma, como
discute Silveira (Nassif, 17 jan. 2012), a vulnerabilidade social em que vivem os usuários de
crack e outras drogas na atualidade normalmente é vista como consequência desse consumo;
enquanto que, por uma perspectiva sócio-histórica, esse consumo deveria ser entendido como
sintoma dos problemas sociais.
Essa falta de estrutura social, na lógica da exclusão, acaba por legitimar a internação
prolongada dos usuários de drogas em hospitais psiquiátricos e CTs, internação essa que, em
meio ao pânico gerado pelas questões atuais do crack e outras drogas, encontra fácil aceitação
social (Andrade, 2011; Delgado, 2011; Pitta, 2011). No início do século XX não era muito
diferente. As dificuldades sociais em que vivia a população também ajudavam a justificar a
internação prolongada dos pacientes psiquiátricos, com a diferença de que naquele período
a história ainda deixava dúvidas sobre a eficácia do isolamento dessas pessoas.
Nesse sentido, para Gustavo de Rezende (1934), a alta dos pacientes internados em
manicômios deveria ser muito bem ponderada, já que o meio familiar ao qual voltariam os
egressos muitas vezes não lhes forneceria condições adequadas para a manutenção do seu
tratamento. Na lei antialcoólica proposta pela LBHM em 1931, consta como prioridade,
dentro dos serviços assistenciais, a criação de reformatórios para alcoolistas e toxicômanos
e o amparo das famílias dessas pessoas no meio social (LBHM, 1931). Para Cunha Lopes
(1925), a internação dos dependentes, além de necessária, deveria ser obrigatória para evitar
que esses indivíduos cometessem crimes ou que se perdessem moralmente por completo.
E, dependendo do seu estado mental, a sociedade deveria recorrer até à interdição ampla ou
limitada dessas pessoas.
Vale acrescentar que, para os higienistas, as medidas de controle do avanço do alcoolismo
e o tratamento dos dependentes deveriam partir tanto das entidades públicas como da
iniciativa privada. Leitão da Cunha (1934), como exemplo, afirmou a importância de se incen-
tivarem iniciativas particulares na organização do combate ao alcoolismo. Assim, como
defendido por Delgado, Macedo, Cordeiro e Rodrigues (Brasil, 2004), a prática de se retirar
do Estado a responsabilidade pela atenção e tratamento dos usuários de drogas, como tem
ocorrido com o incentivo às CTs atuais pelo setor público, tem raízes históricas e estruturais.
De qualquer forma, mesmo sem dados concretos que atestassem a efetividade da interna-
ção prolongada, essa era uma forma conveniente de se realizar a higiene social, como exem-
plificamos pelos seguintes dizeres de Penafiel (1923, citado por Ernani Lopes, 1925, p.148):
É exato que o resultado obtido por estes asilos, tanto na Suíça como na América do
Norte, não tem sido grande coisa, pois vale mais ou menos pelo seguinte: doentes
curados, um terço; saídas com risco de recaídas, um terço; doentes que saem incuráveis,
outro terço. Em todo caso trata-se de um bom paliativo, a que no interesse coletivo e
dos próprios doentes a sociedade precisa recorrer.
E como lembrado por Silva Filho (2007), essa necessidade urgente e absoluta de internação
da pessoa com transtorno mental, visando a sua própria segurança, de seus familiares e da
sociedade como um todo, era ainda mais urgente para aqueles pertencentes às classes mais
pobres da população.
Acompanhando a defesa da internação e do isolamento, como medidas principais
preconizadas por grande parte dos higienistas para tratamento dos dependentes de álcool e
outras drogas, tínhamos o proibicionismo como perspectiva predominante em relação ao uso
de substâncias psicoativas. Muckermann (1929) defendia que uma das formas para combater
os danos do alcoolismo seria a proibição do uso do álcool no período de desenvolvimento
do homem até o fim da sua maturidade. Henrique Roxo (1925) e Carlos Werneck (1929)
demonstraram a sua convicção em relação à necessidade de se instituir a lei seca no Brasil,
apesar de reconhecerem que essa opinião não era unânime na sociedade brasileira e em
diversos países do mundo, nem mesmo entre a classe médica.
Outro ponto que buscamos destacar, semelhante às CTs atuais, é o trabalho como
terapêutica utilizada nos asilos e colônias do início do século XX. A LBHM defendia, em
1934, que uma de suas aspirações era a criação de casas de trabalho para “doentes mentais”
convalescentes, como já existiam na Itália. Ferrer (citado por Lopes, 1933, p.322), abordando a
questão da “laborterapia”, discutia inclusive a importância de se instituir nos manicômios
a possibilidade de os internos subirem na hierarquia do trabalho que desempenhavam,
iniciando com atividades mecânicas mais simples e passando progressivamente a outras
mais complexas. Esse mesmo autor falava também sobre a necessidade de o enfermeiro
viver junto dos internos, dentro dos próprios estabelecimentos, “para melhor observação
do asilado, em todos os momentos da vida manicomial” (p.322).
Juliano Moreira (1929, p.62), por sua vez, defendia a construção de reformatórios para
alcoolistas, nos quais o trabalho manual, especialmente aquele voltado para as atividades
agrícolas, seria empregado como principal terapêutica.
“pré-cidadãos”. Portanto, a prática psiquiátrica teria que se empenhar para devolver ao meio
social indivíduos tratados e aptos para o trabalho.
Por outro lado, já no início do século XX também havia aqueles que questionavam o valor
terapêutico do trabalho para os “alienados”.3 Del Greco (citado por Lopes, 1932) levantou
algumas objeções nesse sentido, apontando que o trabalho na maioria dos asilos era mecânico,
coercitivo e sem relação com as disposições psicológicas dos internos. Segundo esse autor,
para obter resultados favoráveis, seria necessário proporcionar aos “doentes” ocupações de
caráter coletivo e em harmonia com algumas das tendências neles predominantes.
Do mesmo modo, encontramos na atualidade críticas ao trabalho empregado aos residentes
nas CTs, uma vez que esse recurso muitas vezes não é utilizado com fins terapêuticos, mas como
forma de manter o funcionamento da própria instituição, como verificado pelo Conselho
Federal de Psicologia (2011b).
No início do século XX, como alternativa para melhorar a sua situação financeira, alguns
hospitais-colônias adotavam o método de trabalho para os internos, com o objetivo de
arrecadar verbas para o custeio das despesas da instituição. Apesar de ser usado o argumento
de que não se tratava de um trabalho forçado, mas uma ocupação suave e benéfica para a
saúde, os internos reclamavam da exploração que sofriam ao trabalhar sem remuneração
direta (Caldas, 1935).
Segundo Resende (2007, p.51), outra contradição observada na adoção do trabalho, que
em geral era agrícola, dentro das colônias, estava no fato de que “a nova e dinâmica lavoura
cafeeira exportadora paulista pedia braços, é certo, mas é duvidoso que o hospício pudesse
lhe fornecer o material humano eficiente e disciplinado de que necessitava”. Isso sem falar na
crescente industrialização e urbanização pelas quais passava o país, que tornavam a reeducação
para o trabalho rural um anacronismo.
Ademais, observamos que não é só pelo emprego do trabalho nas instituições de tratamento
dos dependentes que as propostas dos higienistas se aproximam das intervenções realizadas
nas CTs atuais. Flávio de Souza (1943, p.84) apresentou como seriam as casas de saúde para
recuperação dos dependentes do álcool, abordando os tratamentos psiquiátrico, psicológico
e moral pelos quais deveria passar o paciente durante a internação:
Cumpre apontar que não encontramos relatos que mencionem o trabalho sistemático
com a religião, característico de grande parte das CTs brasileiras, no tratamento dispensado
aos internos dos hospitais-colônias do início do século XX.
Mas apesar das diferenças entre as instituições do passado e as atuais, e com o devido
cuidado que devemos ter ao analisar fenômenos distantes no tempo, foi possível observar
por meio desta pesquisa vários pontos defendidos pelos higienistas no início do século XX
que convergem para as propostas das CTs. Pontos esses pautados fundamentalmente no
isolamento, na internação prolongada e no proibicionismo em relação ao uso de álcool e
outras drogas.
Apesar disso, assim como em qualquer momento histórico, outras propostas e necessidades
ajudaram a compor a história e, nesse caso, os rumos da assistência aos usuários de drogas.
Alguns estudiosos do início do século XX, que também faziam parte da LBHM, apresentavam
críticas ao modelo manicomial, como exemplificado por Ernani Lopes (1930b), ao discutir
como o tratamento dispensado aos alcoolistas internados nos hospícios não trazia resultados,
e por Mirandolino Caldas (1935, p.95), que fez o seguinte questionamento: “De que vale
toda a liberdade de ambulatória de que desfrutam dentro das Colônias, se o ambiente dessas
Colônias é artificial e não satisfaz as exigências da vida normal do homem!?” Esse mesmo
autor argumentava ainda que apenas um pequeno número de “doentes mentais” e alcoolistas
oferecia perigo à coletividade e, portanto, a maioria deles poderia ser tratada preservando-se
o seu vínculo familiar e social.
Podemos dizer que esses pensadores apontavam, então, para outra forma de atender as
pessoas com transtornos mentais e usuários de substâncias psicoativas. Atenção essa que se
aproximava de uma assistência intersetorial e buscava a convivência social e familiar dos
egressos do manicômio. Caldas (1935) apresentou, aliás, modelos de assistência aos “alienados”
propostos em outros países, como o modelo de sociedade cooperativa do médico argentino
Vidal Abal, que contribuiria para desonerar o governo dos altos custos que tinha para manter
os hospitais psiquiátricos.
Desse modo, apesar do saber médico predominante no ideário higienista, grande parte
dos profissionais que compunham a LBHM entendia o alcoolismo não exclusivamente
como uma doença médica, mas, sobretudo, como um problema social (LBHM, 1930). E,
assim, parte dos higienistas já defendia um tratamento às pessoas com transtornos mentais
e dependentes de álcool e outras drogas diferente daquilo que o modelo manicomial tinha a
oferecer, seja por vislumbrar, de fato, condições mais humanas nessa atenção, seja por entender
que o tratamento ambulatorial poderia ser menos custoso que a internação prolongada nos
hospícios.
Também não podemos deixar de mencionar que essa nova concepção sobre as práticas
psiquiátricas foi ganhando corpo com o desenvolvimento da psicofarmacologia, especialmente
a partir de meados da década de 1950, quando os distúrbios mentais puderam ser mais
facilmente controlados (Silva Filho, 2007).
Enfim, resgatar o conhecimento produzido por esse grupo de pensadores do início do
século XX nos ajuda a compreender um pouco mais da história da atenção aos usuários de
drogas e da própria reforma psiquiátrica no Brasil, que, segundo Amarante (1994), tem em suas
bases o conjunto de medidas proposto pelos psiquiatras no início do século XX, começando
pela implantação do modelo de colônias na assistência às pessoas com transtornos mentais.
Considerações finais
Encaminhando para as considerações finais desse estudo, sem contudo pretendermos
esgotar essa discussão, lembramos primeiramente que, apesar de os cenários do início do
século XX e o atual serem diferentes em certo ponto, foi possível estabelecer paralelos entre as
propostas de atenção aos usuários de substâncias psicoativas de ambos os períodos. Propostas
essas que, em geral, fazem parte de um modelo pautado no isolamento e em ações de caráter
proibicionista.
Em contraposição a essa perspectiva, observamos que nos últimos anos a redução de danos
tem conquistado espaço na política sobre drogas.4 No entanto, a perspectiva proibicionista
ainda se faz presente, associada a propostas, leis e normativas recentes, que veiculam os
interesses de uma vertente moralista bem atuante junto ao poder público.
Observamos também que, no âmbito geral, o usuário de drogas, principalmente as ilícitas,
continua associado a algo pejorativo, que deve ser escondido, isolado, sob o pretexto de
se fazer “tratamento”, como verificamos nos pressupostos defendidos por boa parte dos
higienistas. Como apontado por Costa-Rosa (2012, p.75), “ao mesmo tempo em que a loucura
vai assumindo fisionomias mais familiares que não justificam seu isolamento social, eis que
surgem prontos para a clausura manicomial os novos protagonistas”.
E as práticas utilizadas nos dispositivos que atualmente são chamados para resolver o
problema – como as CTs – remetem-nos aos encaminhamentos adotados nos antigos asilos,
colônias e reformatórios do início do século XX. Instituições essas, como verificamos em
nosso estudo, que foram questionadas por integrantes do próprio movimento higienista, e
cuja eficácia, historicamente, não apresenta registros de resultados positivos.
E a própria história nos indica ainda que os modelos e práticas de saúde que preconizam
a segregação e internação prolongada, compulsória em muitos casos, de usuários de drogas e
de outros indesejados parecem ter destino certo. Usando as palavras de Lima Barreto (1961,
p.179), “os loucos são de proveniências as mais diversas; originam-se, em geral, das camadas
mais pobres da nossa gente pobre. São pobres imigrantes italianos, portugueses, espanhóis e
outros mais exóticos, são negros roceiros”.
Desse modo, se a clientela principal dos hospícios do início do século XX era formada por
miseráveis, marginais, desempregados, imigrantes desocupados, índios, negros, “degenerados”,
toda sorte de pessoas que poderiam ameaçar a ordem pública (Amarante, 1994; Resende,
2007), o alvo principal das medidas atuais de internação compulsória continua sendo a
“escória” da sociedade, os desocupados da atualidade, em geral pessoas menos favorecidas
social e economicamente, em um claro processo de limpeza das ruas, como apontado por
Maierovitch (14 jan. 2012).
Ainda que o movimento pela reforma psiquiátrica tenha ganhado repercussão e, em tese,
sejam esses os princípios que devem embasar o atendimento aos usuários de álcool e outras
drogas, os hospitais psiquiátricos e demais instituições de internação prolongada continuam
sendo admitidos dentro das políticas públicas de saúde mental e apoiados pela sociedade.
Como discutido por Zenoni (2000), antes de existir para tratar o sujeito, a instituição de
internamento serve a uma necessidade social, de assisti-lo e colocá-lo a distância.
Aliado ao aumento do uso/abuso de álcool e outras drogas, segundo Alves (2009, p.2316),
“a explicação para este esforço de conciliação entre racionalidades divergentes no que se refere
ao conteúdo e à organização das práticas de saúde pode ser remetida ao conflito de interesses
entre representantes dos diferentes modelos assistenciais no país”.
Pontuamos ainda que o financiamento público das CTs, em detrimento do fortalecimento
da rede pública de atenção aos usuários de álcool e outras drogas, soma-se a um conjunto de
forças por parte de alguns setores que tentam enfraquecer o SUS (Borges et al., 2012), que é
uma importante conquista social, mas que não se coaduna ao modelo de sociedade vigente,
a qual privilegia as ações da iniciativa privada. Com menos investimento de recursos em
dispositivos públicos, aumentam-se as dificuldades para o seu pleno funcionamento e, com
isso, incrementam-se as justificativas para a terceirização e privatização de outros serviços
dessa natureza.
Por fim, queremos destacar que diferentes forças, interesses e necessidades, de cunho
social, político e econômico, vêm tecendo a complexa história da saúde pública brasileira e
da atenção aos usuários de drogas. Sabemos que os problemas decorrentes do uso/abuso de
substâncias psicoativas, seja no Brasil ou em qualquer parte do mundo, não se restringem
à esfera da segurança pública, da educação ou da saúde, que historicamente, em nosso
entendimento, tem arcado com a maior parte dessa conta. As questões de cunho político-
econômico também devem perpassar as discussões e as propostas de enfrentamento dessa
problemática, questões essas que têm constituído importantes entraves às ações que priorizam
a saúde e o desenvolvimento da autonomia dos usuários.
Assim, seja no apogeu do movimento higienista no Brasil ou na atualidade, interesses de
alguns setores continuam atuando na manutenção de práticas que promovem a internação
e o isolamento dos usuários de álcool e outras drogas, como a história vem nos mostrando
por meio dos asilos, manicômios, hospitais-colônias, comunidades terapêuticas.
NOTAS
1
Esses e outros princípios estão explicitados nas cartilhas “Doze passos”, “Doze tradições” e “Doze
conceitos”, demonstradas pela Junta de Serviços Gerais de Alcoólicos Anônimos do Brasil, disponibilizadas
em http://www.alcoolicosanonimos.org.br.
2
A Norma Operacional Básica orienta sobre as ações da rede socioassistencial de proteção básica e especial,
na qual se enquadram os serviços voltados para os usuários de substâncias psicoativas (Brasil, 2005).
3
Entendemos que os “alienados” eram as pessoas com transtornos mentais, dependentes de substâncias
psicoativas e outros que poderiam perturbar a ordem social e que faziam parte da clientela dos asilos,
manicômios e demais instituições de internamento no início do século XX (Amarante, 1994).
4
A redução de danos passou a ser considerada no Brasil, fundamentalmente a partir da década de 1990,
uma importante estratégia de ação junto às políticas públicas de atenção aos usuários de álcool e outras
drogas. Por essa perspectiva, as intervenções propostas têm como objetivo minimizar os danos à saúde, os
prejuízos sociais e econômicos vinculados ao consumo de drogas, sem com isso proibi-lo, partindo-se do
pressuposto de que o consumo de drogas faz parte da história da humanidade e que a ideia de uma sociedade
completamente livre de drogas é utopia (Brasil, jan. 2011).
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As políticas públicas e as comunidades LBHM.
terapêuticas nos atendimentos à dependência Liga Brasileira de Higiene Mental. Trabalhos de
anti-alcoolismo: para a nossa legislação anti-
uuuUUU
CONSULTÓRIO NA RUA:
1 E-mail: helizettlima@gmail.com
CONSULTORIO EN LA CALLE:
ATENCIÓN A LAS PERSONAS EN EL USO DE SUSTANCIAS PSICOACTIVAS
RESUMEN. El estudio tuvo el objetico de investigar los modos de actuación y las características del trabajo de
intervención con adultos jóvenes habitantes de la calle y usuarios de sustancias psicoactivas, según percepciones de
profesionales del Consultorio en la Calle (CC) del municipio de Goiânia (GO) y de personas atendidas por el CC. Los
participantes fueron nueve profesionales de diferentes categorías con edades entre 24 y 64 años, y cuatro usuarios
beneficiarios de CC con edades entre 23 y 37 años. Fue utilizada la metodología cualitativa con aplicación de guiones
semiestructurados de entrevista y la realización de análisis de contenido. Los resultados, a partir de los relatos de los
profesionales, se configuraron en ejes temáticos, tales como: actuación profesional en el CC; aspectos facilitadores y
dificultadores; apoyo necesario para el trabajo. Para los usuarios, los ejes fueron: primer contacto con el equipo;
actuación de los profesionales del CC; lo más interesante en ese trabajo. Se observó una coherencia entre las
percepciones y el predominio de aspectos positivos en los relatos de los profesionales y de los usuarios, respecto a la
actuación del CC, caracterizada como acogida, escucha y vínculo. En cuanto a las dificultades, fueron citados: prejuicio
y falta de aceptación del usuario por la sociedad civil; acciones agresivas de la Policía Militar y Guardia Municipal; y la
falta de insumos para el trabajo. El estudio indicó que los modos de actuación del CC cumplen aquellos preconizados en
las políticas públicas de alcohol y otras drogas de Brasil, basados en el respeto a los derechos humanos, ampliación del
acceso a acciones y servicios y la reducción de daños a la salud de esta población usuaria.
Palabras-clave: Profesionales de la salud; prevención en el abuso de drogas; sin vivienda.
O consumo de substâncias psicoativas (SPA) é uma prática do ser humano desde os primórdios
da humanidade, e a decisão acerca do tipo de droga a ser consumida está baseada em suas
necessidades e motivações subjetivas e sociais. Por isso, é importante compreender como o indivíduo
– enquanto pessoa com direitos, desejos e interesses – percebe e interpreta a sua experiência com
drogas, a importância e a necessidade desse uso (Nery Filho, 2010; Simões, 2008). É imprescindível
que o olhar para esse indivíduo seja livre de preconceitos, voltado para formas de abordagens novas e
abrangentes, respeitando os diferentes modos de consumo, as razões para o uso, as crenças sobre
álcool e outras drogas e os estilos de vida (MacRae & Martins, 2010). Por isso, as estratégias e ações
nessa área devem ser realizadas por equipe multiprofissional, privilegiando a integração dos vários
saberes e áreas de atuação, como saúde, educação, lazer, cultura, justiça e assistência social, e
respeitando as especificidades locais.
Com o agravamento do desemprego, da pobreza e de situações de risco social, observa-se o
crescimento quantitativo da população em situação de rua, em especial nos meios urbanos. Na rua, os
indivíduos procuram se fixar predominantemente em áreas centrais das cidades, onde há o
predomínio do comércio e de serviços em geral, além de maior fluxo de pessoas, tornando possível a
obtenção de alimentos e de recursos financeiros; no período noturno, esses lugares podem se
transformar em abrigos (Andrade, 2010). Existem várias terminologias para designar esse grupo
social, e o termo população em situação de rua é o mais utilizado na atualidade, pois busca garantir a
complexidade e a diversidade do espaço da rua, além do caráter muitas vezes transitório desse modo
de vida (Santana, 2010).
No contexto da rua há uma cultura específica que é desconhecida para a maioria da sociedade, e
muitas vezes vista de forma pejorativa e preconceituosa. Cada segmento do espaço urbano é uma
cultura, como tantas outras, com seus valores, especificidades e complexidades. A partir dessa
realidade, é importante ressaltar a necessidade de que os órgãos públicos, bem como os
profissionais, propiciem atenção e cuidado, além de um olhar singular e respeitoso para essa
população (Santana, 2010). Conhecer a situação do consumo e/ou do uso abusivo de SPA, buscando
contribuições das ciências sociais, humanas e da saúde, pode favorecer mudanças positivas nesse
cenário. É preciso considerar a complexidade desse fenômeno e a diversidade dos aspectos relativos
à vida de pessoas usuárias para que se possa oferecer uma abordagem integral e humanizada,
baseada no conhecimento científico, mas calcada na realidade dos sujeitos (Brasil, 2009).
Desta forma, a abordagem voltada ao uso e abuso de SPA e população em situação de rua deve
ser baseada na construção, implantação e implementação de políticas públicas, programas e
baixo índice da procura e de acesso aos serviços da rede pública, principalmente pela população
usuária de álcool e outras drogas em situação de extrema vulnerabilidade e riscos, justifica a
implementação de intervenções biopsicossociais mais efetivas e integradas in loco (Brasil, 2010, p.
8).
Os CRs dispõem de uma equipe volante, multiprofissional, que se desloca em um veículo tipo
Kombi, com identificação/logotipo, abastecidos com insumos para tratamento de situações clínicas
comuns (como material para curativos e medicamentos) e de prevenção, como preservativos, cartilhas
e folders informativos (Brasil, 2010; Oliveira, 2009). Esta nova estratégia de atendimento traz inúmeros
desafios, como a busca do contato com o usuário in loco, na rua, bem como a identificação das
necessidades e demandas da clientela a partir de escuta da mesma. Seus principais objetivos são:
minimizar a vulnerabilidade social, o sofrimento físico e mental, reduzir os riscos e danos à saúde,
desenvolver ações de promoção da saúde e cuidados básicos no “espaço da rua” e garantir o resgate
da cidadania e o respeito a esta população (Brasil, 2011; Oliveira, 2009; Valério & Menezes, 2010). A
política de redução de danos norteia as ações do CR e visa minimizar os riscos e danos à saúde
relacionados ao uso de SPA, sem exigir abstinência, bem como oferecer atenção integral ao usuário
de álcool e outras drogas, com prioridade para a formação de vínculo, escuta, respeito à liberdade de
escolha e aos direitos humanos (Oliveira, 2009).
Atualmente, no Brasil, existem 127 equipes de consultório na rua, distribuídas segundo dados do
cadastro nacional de estabelecimentos de saúde (CNES) do Ministério da Saúde (Brasil, 2015). O CR
do município de Goiânia, instituído pela Secretaria Municipal de Saúde, segue o que é preconizado
pelo MS; funciona desde final de 2010, mas foi inaugurado oficialmente em abril de 2011, e tem tido
reconhecimento pelas instituições parceiras em nível municipal. Os dispositivos do consultório de rua
tiveram uma mudança em sua nomenclatura, passando a ser denominados consultório na rua a partir
da junção dos programas consultório de rua (equipe itinerante com foco na saúde mental) e do
Programa Estratégia de Saúde da Família Sem Domicílio (ESF com equipes específicas para atenção
integral à saúde da população em situação de rua), mas manteve o objetivo de equipe itinerante para
atenção integral à saúde dessa clientela (Brasil, 2012). Assim, no presente estudo, foi mantida a
denominação consultório na rua, adotada no município de Goiânia.
Considerando o caráter recente e inovador dessa iniciativa no âmbito das políticas de atenção a
usuários de álcool e outras drogas, a presente pesquisa teve por objetivo investigar os modos de
atuação e as características do trabalho de intervenção com adultos jovens em situação de rua e
usuários de substâncias psicoativas, segundo percepções de profissionais do consultório na rua do
município de Goiânia e de pessoas usuárias atendidas pelo CR.
MÉTODO
Participantes
Foram entrevistados nove profissionais, sendo três do sexo masculino e seis do feminino. A média
de idade foi igual a 39 anos, variando de 24 a 64 anos; quanto à escolaridade, três possuíam nível
médio completo e seis tinham nível superior, sendo que três deles cursaram uma especialização lato
sensu. O tempo de atuação no CR variou de um ano e seis meses a um ano e dez meses. No que
tange à experiência profissional anterior ao trabalho no CR, os participantes tiveram inserções
diversas tais como: atuação em saúde mental, na assistência social com população em situação de
rua, bem como em redução de danos.
Com relação aos usuários, participaram duas pessoas do sexo masculino e duas do sexo
feminino. A idade variou de 23 a 37 anos; três usuários viviam em união consensual com
companheiros que também estavam em situação de rua e um era solteiro. Todos referiram ter ensino
fundamental incompleto. Quanto à substância de uso, referiram o crack e o álcool, sendo que uma
delas também era tabagista. Duas usuárias tinham filhos e uma delas estava grávida do quarto filho.
Optou-se por nomear os participantes com nomes de personalidades brasileiras ligadas a
movimentos separatistas e à abolição. Assim, os nove profissionais receberam os nomes de Ana,
Anita, Bárbara, Bento, Quitéria, Joana, Francisco, Garibaldi e Luisa. Os quatro usuários entrevistados
foram nomeados Dandara, Cruz e Souza, Palmares e Veridiana.
Instrumentos
Análise de dados
Resultados
Quatro eixos temáticos e suas respectivas categorias são apresentados e ilustrados com trechos
de relatos dos participantes.
Atuação profissional no CR
Esse eixo retrata a caracterização da atuação no CR, independente da formação profissional, bem
como a prática em equipe interdisciplinar. Foram identificadas seis categorias. Na primeira categoria –
atuação focada nas demandas dos usuários – foram evidenciados relatos de três participantes, que
valorizaram a importância das ações do CR serem voltadas para as solicitações e necessidades dos
usuários, exemplificada pelo relato de Bárbara: “na rua a minha intervenção não é a minha demanda,
é a demanda de quem me procura, do usuário. E dependendo da demanda, do que ele me solicita, é a
forma como eu vou tentar atendê-lo”.
Quanto à categoria atuação em equipe, houve relatos de quatro participantes que ressaltaram a
importância do trabalho em equipe interdisciplinar, com a integração dos diferentes saberes e
especificidades dos profissionais, valorizando o trabalho in loco com a presença de dois ou três
profissionais, o que pode facilitar as ações e a tomada de decisões, além de priorizar o cuidado e a
atenção dos membros da equipe entre si, o que está presente no relato de Ana:
... conto comigo, meus colegas ... se eu tiver atendendo a família é só a família, eu fico atenta para
aquela situação. Mesmo que eu esteja com alguém, tem um colega que está sempre atento, porque
pode acontecer muita coisa na rua. Fico muito feliz de ter colegas me dando apoio, para que eu
possa me dedicar, como se eu tivesse dentro de uma sala, ouvindo uma pessoa. E eu sei que eu
estou sendo cuidada, que não vai acontecer nada.
A categoria atuação para ampliar o conhecimento sobre DST e drogas teve a contribuição do
relato de Garibaldi, ao ressaltar a importância da abordagem desses temas sem preconceitos, na
perspectiva da redução de danos, com uso de linguagem acessível, a partir das diretrizes da PNRD:
Dependendo dos insumos que tiver, vai ser a porta de entrada, um dos insumos é o material gráfico,
com informações sobre DST e uso de drogas, e um dos insumos principais é o preservativo. Como
a principal droga que a gente trabalha nesse momento é o crack, tem que ter uma conversa sobre o
fato da pessoa ter o cachimbo, se é com quem ela compartilha..., se na hora que está todo mundo
doido, sob algum tipo de efeito, e que a conversa vai pra questão sexual, se eles se lembram do
preservativo.
... experiência desafiadora, é o consultório sem consultório. É estar naquilo que a pessoa considera
como sua casa, sem parede, sem teto, o carro passando, a polícia te ameaçando, o traficante
passando e vendendo drogas, as pessoas olhando, te condenando, muitas vezes porque você está
atendendo um mendigo na porta da loja.
A categoria atuação com coração/afeto emergiu nos discursos de Joana e Quitéria, que
valorizaram a atuação profissional no cotidiano do CR pautada nas emoções:
Atuo com o coração, e o profissional, na hora necessária coloco em prática, vou pelo momento,
porque são pessoas muito sensíveis, que percebem você enquanto ser humano. Na semana
passada, por exemplo, eu não estava bem, eles perceberam e me acolheram, então foi o contrário
(Joana).
A categoria atuação com usuários em grupo foi exemplificada pelo relato de Luisa, que descreveu
seu trabalho no coletivo, com as intervenções da área de artes (música) voltadas para o
relacionamento interpessoal e para a vivência em grupo:
Atuo no coletivo, toco com todos, percebo como está a relação interpessoal entre eles ... alguns tem
um pouco mais de dificuldade em aceitar o jeito que o outro toca e critica, então faço as
intervenções: 'você percebe como estão as suas relações? ' Porque a gente vê como eles atuam em
um minigrupo, é a forma como eles atuam no dia a dia.
Nesse eixo temático buscou-se investigar as facilidades do trabalho, na ótica dos participantes. A
maioria dos entrevistados relatou que existem mais dificuldades do que facilidades, mas identificaram
aspectos que facilitam esse trabalho, os quais foram definidos em seis categorias. A primeira
categoria – perfil/sensibilidade do profissional para o trabalho – teve relatos de seis participantes, que
destacaram a importância do perfil para atuação nessa modalidade de dispositivo, bem como a
sensibilidade e disponibilidade interna dos profissionais para enfrentarem desafios cotidianos,
exemplificada por trecho da fala de Bárbara: “... quem trabalha na rua tem uma sensibilidade maior,
então um profissional é sensível ao outro, à dor do outro, é um profissional flexível, geralmente quem
trabalha na rua tem que ter bastante humanidade...".
Quanto ao trabalho em equipe, essa categoria teve a contribuição de quatro entrevistados, com
narrativas sobre a importância do trabalho interdisciplinar, onde os saberes e especificidades de cada
profissão se completam e os profissionais trabalham com a visão do ser humano de forma integral:
A principal facilidade pra mim é a equipe, uma equipe fora de série, diversas profissões, no sentido
de formação, estão representadas aqui. Têm médicos, enfermeiros, atores, assistente social, então
nós temos uma equipe bem plural no sentido de formação e de visão do outro, é muito
complementar. É uma equipe que funciona, porque apesar das suas particularidades e
individualidades é uma equipe que se complementa, é bastante motivada, interessada, disponível,
acessível (Bento).
A categoria atuação da equipe com base nos direitos humanos emergiu no relato de Bárbara, ao
ressaltar a importância do trabalho do CR voltado para a garantia dos direitos humanos dos usuários
de SPA em situação de rua: “Enquanto facilidade eu acredito que devemos defender os direitos
humanos, portanto, os profissionais que lidam com esse público, em todo o momento, têm que se
lembrar de que eles têm esses direitos e que precisam ser efetivados.”
A construção de vínculo/confiança com os usuários teve ocorrência nos relatos de três
participantes, quando destacaram a importância e necessidade do vínculo e confiança dos usuários
com a equipe para facilitar a aproximação e produção de cuidados para essa clientela, exemplificada
na fala de Francisco:
... com todo afeto que a equipe tem acaba atingindo essas pessoas no ponto mais frágil dela, isso
faz com que ela desperte para a construção do vínculo, da confiança .... É um desafio, mas a gente
tem as principais armas, que é o afeto, a escuta, o cuidado.
Quanto à categoria redução de riscos e danos à saúde, evidenciou-se o relato de Garibaldi, que
valorizou como aspecto facilitador as ações que podem contribuir para a reinserção familiar e social
(trabalho, escola), mediante a retirada da pessoa da rua e, ainda, a redução do consumo de SPA:
“porque as facilidades e as recompensas que a gente tem é a retirada dessa pessoa da rua, a
diminuição do consumo de droga, a reinserção familiar, a reinserção no possível mercado de trabalho,
a reinserção na escola”.
Com relação à categoria não tem facilidades, o relato de Quitéria foi ilustrativo, ao afirmar que
enfrenta muitas dificuldades e desafios no trabalho do CR e, portanto, não percebia nenhuma
facilidade: “Olha eu não sei quais são as principais facilidades não, eu nem sei se tem alguma
facilidade, eu acho que é muito difícil”.
Esse eixo buscou analisar as dificuldades do trabalho, segundo os participantes, o que culminou
em seis categorias. A primeira delas – sofrimento pela falta de respeito aos direitos humanos dos
usuários – teve relatos de três profissionais que reportaram seu sofrimento cotidiano diante de
situações vivenciadas pelos usuários, em que os direitos humanos são desrespeitados, merecendo
destaque o relato de Bárbara:
As dificuldades aparecem quando a gente vê que os direitos não são respeitados ... um direito do
ser humano, que existe uma constituição que assegura isso através do artigo 227, ... quando a
gente vê que isso não é respeitado, por quem deveria de fato efetivar esses direitos, isso gera um
sofrimento em cada um de nós, principalmente em mim.
Quanto à categoria esforço e luta da equipe para suprir necessidades dos usuários, observou-se a
fala de Luisa: “Tudo é com muita luta, muita garra, muita briga, eu acho que tem muito a questão da
gratificação pra gente”.
A atuação agressiva da Polícia Militar e da Guarda Municipal foi a categoria que obteve maior
frequência de menções, com seis relatos, que fizeram referência a ações violentas de membros
dessas instituições da segurança pública: “a maior dificuldade que encontro é a atuação dos policiais
e da guarda municipal, pois todos os dias quando chegamos na rua tem reclamações de moradores
que foram agredidos ... é uma agressão contínua” (Joana).
Com relação à categoria dificuldade de atendimento dos usuários nas unidades de saúde,
observou-se a contribuição de quatro participantes, quando descreveram as dificuldades para
atendimento da população atendida pelo CR em serviços de saúde. Dentre as situações relatadas,
merece destaque a questão das normas estabelecidas para atendimento, bem como a falta de
flexibilidade diante de situações peculiares, mencionadas por Francisco:
Quanto a dificuldades, eu acho que é da própria cultura da rua, da sociedade, o próprio serviço, o
SUS, a forma como ele funciona na prática. As unidades de saúde que não estão prontas para
receber o morador que está na rua, não tem endereço, não tem documento, não tem sequer a
higiene básica pra chegar na unidade de saúde, com a sua assepsia.... E ele não é bem recebido,
porque acaba sendo um ente desagregador da norma, ele acaba sendo visivelmente o desviante da
situação, e incomoda a todos.
Na categoria preconceito e falta de aceitação do usuário pela sociedade civil, os relatos de dois
participantes se destacaram, ressaltando a questão do preconceito pela sociedade em relação a
pessoas que fazem uso de SPA e que estão em situação de rua, como descrito na fala de Bento:
A principal dificuldade que a gente observa é justamente essa disposição dos outros em mudar a
concepção ... no sentido de quebrar um pouco esse preconceito, seja em relação à pessoa
moradora de rua, ou a pessoa usuária de drogas, que muitas vezes são as mesmas pessoas.
Quebrar essa barreira de compreensão, a pessoa deve ver além daquela situação, ver que tem uma
pessoa. Mas isso não depende da gente (da equipe do CR).
Na categoria falta de insumos e materiais para atuação da equipe, que apareceu na fala de Anita,
houve menção à ausência do kit de redução de danos e do uniforme para a equipe, o que acarreta
transtornos no cotidiano do trabalho e na realização de ações pelos profissionais do CR.
O kit de redução de danos foi pedido em fevereiro, março, antes de inaugurar oficialmente o CR. E
também o uniforme para a equipe, até hoje não tem, agora a gente resolveu fazer por conta própria,
falta a questão de recursos menores. Tem outros recursos maiores que é o pagamento dos
profissionais, gasolina, motorista, mas os menores que também teriam de estar disponíveis, pela
burocracia da própria Secretaria, a gente não tem.
Os profissionais relataram o apoio necessário para realização do trabalho, bem como de suas
atividades cotidianas. Foram encontradas quatro categorias. Nesse eixo temático, as falas fizeram
críticas a precariedades de determinados apoios. Com relação ao apoio das entidades/instituições
parceiras, foram identificados cinco relatos, nos quais os participantes assinalaram a importância do
apoio das parcerias para o desenvolvimento das ações e encaminhamentos diários da população
atendida, tal como verbalizado por Joana:
a gente precisa estender as parcerias, eu percebo que o Consultório, a equipe está lutando muito,
mas essa rede como um todo, inclusive a Secretaria Municipal de Saúde, não investe tanto como
deveria ..., então a Secretaria, o Ministério e o Estado, a população precisam ver isso, e a gente
precisa gritar e mostrar o que está acontecendo, mas precisa de parcerias, e que se estendam
essas parcerias. É preciso ir além.
Quanto ao apoio da Secretaria Municipal de Saúde de Goiânia, essa categoria consolidou-se com
relatos de quatro participantes ao ressaltarem que, para a realização de ações e estratégias do CR, é
imprescindível o apoio da Secretaria Municipal em todos os âmbitos, níveis e serviços do SUS no
município. Dentre as falas, há destaque para a de Anita:
Há que se pensar em haver maior agilidade nesses processos de aquisição de insumos, que o CR
precisa de água, o kit de redução de danos, uniformes, um apoio seria da própria Secretaria para
agilizar esses processos burocráticos, porque a equipe fica vulnerável em situações que a gente
precisava de mais rapidez, o que pode atrapalhar o nosso trabalho.
A categoria apoio da sociedade apareceu no relato de Quitéria, que ressaltou a importância desse
apoio para a atuação do CR: “nós temos muitas necessidades para funcionar bem, como apoio da
sociedade de uma forma geral, respeitar esse trabalho, essas pessoas que estão em situação de rua,
do apoio da polícia, da guarda municipal, da Secretaria de Assistência Social”.
Quanto ao apoio para melhores condições de trabalho, essa categoria incluiu o relato de Quitéria,
ao referir a importância da melhoria das condições de trabalho para o CR:
O CR sem o carro, e sem material para fazer curativo, não funciona. Então esse é um apoio que a
gente precisa, que tem mais ou menos o apoio de rede, porque como a gente atua na questão da
lógica do SUS, em relação à saúde, então nós precisamos da rede inteira.
Cinco eixos temáticos e suas categorias são apresentados, exemplificados com trechos de relatos
dos participantes.
Esse eixo temático buscou verificar, a partir da percepção dos usuários, como foi o primeiro
contato com a equipe do CR. Foram identificadas quatro categorias. Na primeira delas, demanda por
cuidados de saúde, a fala de Dandara foi ilustrativa ao destacar a sua necessidade de atenção
específica:
Na época nós duas estávamos grávidas, eu estava no começo de gestação, de três meses, não
queria fazer pré-natal, mas eu vi que eram coisas que poderiam fazer bem pra mim e até pra minha
criança, na situação em que eu me encontrava, pra mim foi ótimo.
Na categoria por causa da apresentação e das informações sobre o CR, dois relatos se
destacaram, tal como exemplificado na fala de Dandara: “Ah, quando começou, eles chegaram e
conversaram com a gente; chegou a mim e perguntaram e explicaram (sobre o CR)”.
Com relação a pensaram que era a polícia disfarçada, essa categoria foi observada na fala de
Veridiana, que relatou seu receio, bem como de outros usuários, acerca da possibilidade dos
profissionais do CR serem policiais disfarçados:
A gente pensa que é polícia disfarçada, mas chegaram fazendo amizade com a gente, conversando
um tempão, que não é aquilo que a gente estava pensando, que eles eram pessoas de bem, ai
foram acalmando nossos corações; depois nossos corações começou a abrir, a gente começou a
conversar com eles, achei muito bom.
Quanto à categoria usuário não quis, não aceitou, o relato de Palmares é ilustrativo ao falar sobre
a sua impaciência no dia da abordagem e que não aceitou o primeiro contato: “esse contato foi, só
que eu estava impaciente e não quis”.
Esse eixo buscou analisar a atuação dos profissionais do CR, segundo a percepção dos usuários,
o que culminou em quatro categorias. A primeira – CR atua em horários e dias definidos – apareceu
na fala de Dandara, destacando que o CR atua em horários e dias previamente estabelecidos: “são
horários certos, dias definidos, e o atendimento é bom, são pessoas boas”.
Na categoria melhora a vida e reduz riscos e danos à saúde, a fala de um participante mostrou as
características do trabalho do CR voltado para as mudanças de comportamento que influenciam na
melhoria de vida, bem como as ações de RD: “Foi muito bom, está ajudando a gente a sair dessa vida.
Graças a Deus estou conseguindo, porque eu era usuário de crack, estou mais quieto por causa do
Consultório de Rua” (Cruz e Souza).
Quanto à categoria CR oferece carinho e cuidado, três entrevistados mencionaram a presença de
carinho e atenção da equipe do CR para com eles, de acordo com o relato de Cruz e Souza: “porque é
igual uma mãe pra gente, e para as coisas da gente tem uma atenção muito carinhosa com todos nós
que mora na rua”.
Com relação à equipe do CR conversa com os usuários, essa categoria emergiu no relato de
Veridiana, ao falar do diálogo e da comunicação entre a equipe e os usuários de SPA em situação de
rua: “a gente começou a conversar com eles, achei muito bom. São umas conversas assim que a
gente vê, que não são aquelas pessoas que vão fazer mal pra gente, só querem o bem da gente”.
Nesse eixo temático procurou-se investigar o que era mais interessante no trabalho do CR, na
ótica dos usuários, o que resultou em três categorias. A categoria preocupação e dedicação da equipe
com os usuários emergiram nas falas de três usuários, ao descreverem o trabalho do CR voltado para
a dedicação, carinho e preocupação com eles: “assim, eu acho a dedicação que eles tem pela gente,
e a preocupação, pois eles preocupam muito com a gente” (Veridiana).
A perseverança do CR emergiu no relato de Dandara, que ressaltou a importância da
perseverança e do envolvimento dos profissionais do CR para o sucesso do trabalho cotidiano:
a perseverança quando eles veem que a pessoa quer esforçar ... eles veem que a pessoa quer
ajuda, porque a pessoa tem estilo diferente, uma às vezes é ignorante, ... mas quando eles veem
que a pessoa aceita de bom coração, eles continuam, eles são perseverantes.
Esse eixo temático buscou identificar quais foram os atendimentos recebidos no CR, em outras
unidades ou instituições da rede de atenção, culminando em quatro categorias. A categoria
atendimento com dentista apareceu na fala dos entrevistados, que valorizaram a importância desse
tipo de atendimento e do trabalho diferenciado do dentista, como descreveu Palmares:
O dentista, ali é maravilhoso, não precisa nem de aplicar anestesia para arrancar dente ..., que em
vez de você chorar, você faz é rir, ele brinca com a gente, ai vai tratando ... nos tocamos, nós
pulamos amarelinha lá no Novo Mundo, tirou foto lá pulando amarelinha. Ele é sangue bom, ali vou
falar a verdade, é filho de Deus também.
A categoria atendimento na Maternidade Nascer Cidadão foi evidenciada nas falas de Dandara e
Veridiana, ao descreverem as ações da equipe em suas necessidades relativas à gestação:
Passei mal quando eu perdi o neném, na época quase morro, se não fosse por eles, e a doutora
mesmo falou, mais dois dias que eu tivesse ficado na rua, eu tinha morrido. Que deu hemorragia
duas vezes, da 1ª vez eles me levaram, porque eu tinha perdido neném, fizeram a curetagem, já
estava com hemorragia, ai voltei, até a D. (profissional do CR) foi mais eu, que enquanto fiquei
internada ela não saiu de dentro do hospital (Veridiana).
Nesse mutirão, eu fiz uns exames, falei com a doutora, que eu estou com altos problemas, só
conversei com a Q. (profissional do CR) sobre os meus problemas e ai ela sumiu. E o que eu fiz no
mutirão umas papeladas, que não é a A. aqui do Consultório de Rua, é a A. (funcionária) da
SEMAS, pegou meus papel, diz ela que entregou não sei pra quem, do Consultório de Rua.
Esse eixo buscou analisar como foram os atendimentos recebidos na percepção dos usuários,
bem como o que gostaram e não gostaram, o que resultou em duas categorias: gostou do
atendimento e às vezes a equipe demora a vir. Na categoria gostou do atendimento, houve relato dos
quatro participantes, com destaque para as falas de Palmares e Cruz e Souza, respectivamente:
“gostei de tudo, é maravilhoso" e “todas eu gostei”.
A categoria às vezes a equipe demora a vir apareceu no relato de Veridiana, ao reclamar da
demora da equipe para visitá-la:
às vezes eles esquece de vim ver nós, e ai eu fico com raiva, somem, parece que esquece da
gente, parece que tem gente mais importante pra lá, pro outro lado. Assim como eles mesmo
explica, às vezes nós tá aqui, tem gente passando mal, com mais problemas, mais graves, ai a
gente até releva, mas passar aqui, dá um oi pelo menos, está bom.
Discussão
A partir dos aspectos presentes nos relatos dos dois segmentos participantes do estudo, pode-
se identificar a consonância entre as percepções relacionadas às ações desenvolvidas pelo CR no
que se refere à construção de vínculo, ao processo de escuta e acolhimento e à atenção à saúde dos
usuários na perspectiva da redução de danos. Essa congruência entre os relatos dos profissionais e
dos usuários em aspectos que caracterizam a atuação do CR demonstra sintonia entre o que é
realizado pela equipe e o que é recebido pelas pessoas atendidas nesse dispositivo do SUS,
expressão da equidade das ações e da prioridade aos direitos humanos, aspectos preconizados nas
políticas públicas direcionadas à essa população (Brasil, 2010).
A composição das categorias, a partir da análise dos relatos, permite concluir que o trabalho
do CR no município estudado está em consonância com os princípios do SUS, em especial a
universalidade, a equidade e a atenção integral ao usuário de SPA. A proposta de atender in loco,
indo ao encontro das pessoas em seu espaço na rua, representa a concretização do princípio da
universalidade. É importante ressaltar que muitas unidades de saúde do SUS costumam infringir o
direito ao acesso universal para populações estigmatizadas, em função de barreiras diversas, em
especial as de cunho burocrático – como a exigência de documentos pessoais para o atendimento –,
além do preconceito em relação a pessoas usuárias de substâncias psicoativas em situação de rua.
Essas barreiras também foram observadas por Souza, Pereira e Gontijo (2014), em estudo realizado
com a equipe de um CR na região metropolitana de Recife. Outra dificuldade citada por esses autores,
também observada no presente estudo na ótica dos profissionais, foi a falta de insumos e materiais
para atuação da equipe, aspecto que amplia os desafios enfrentados no território e pode prejudicar a
qualidade da atenção disponibilizada.
A categoria atuação focada nas demandas dos usuários exemplifica diretrizes do CR com foco em
RD como formação de vínculo, atenção integral ao usuário de SPA e respeito aos direitos humanos.
Assim, as ações do CR eram voltadas para as necessidades da população atendida, a partir de escuta
qualificada e da valorização do sujeito. Em consonância, os usuários respaldaram a percepção dos
profissionais acerca de sua própria atuação ao relatarem fatos e vivências que compuseram
categorias como encaminhamentos e resolução das demandas, preocupação e dedicação da equipe
com os usuários e o eixo temático atendimentos recebidos com apoio do CR. Pesquisas sobre práticas
de saúde em consultórios de rua, realizadas nos municípios de Olinda, Recife e Maceió, encontraram
resultados semelhantes no que tange à construção de vínculo, escuta e integralidade da atenção,
aspectos tidos como essenciais no trabalho das equipes dos CR com base em redução de danos
(Jorge & Conradi-Webster, 2012: Silva, Frazão, & Linhares, 2014).
Outro aspecto indispensável – condição sine qua non
uma equipe multidisciplinar. Categorias expressaram essa dimensão quando abordaram as facilidades
oriundas do trabalho em equipe e a atuação em equipe no eixo temático atuação profissional do CR,
reforçando a relevância da articulação e do apoio entre os profissionais, de modo a propiciar
segurança e confiança para a realização do trabalho na rua, minimizando os desafios dessa prática. O
perfil dos profissionais que compunham a equipe do CR merece destaque, pois estes possuíam
experiência anterior na área de saúde mental, com população em situação de rua e/ou em redução de
danos, facilitando a atuação da equipe de Goiânia, aspecto não observado no estudo conduzido por
Jorge e Conradi-Webster (2012) junto à equipe do CR de Maceió.
Alguns desafios e dificuldades relevantes ficaram evidenciados no trabalho da equipe, dentre eles
a própria novidade do dispositivo de atenção, tanto para os profissionais quanto para os usuários, bem
como para a sociedade em geral. Para os profissionais, é o atendimento em espaço aberto, em
serviço móvel, sem agenda, muitas vezes sem privacidade e equipamentos: é o consultório sem
consultório. Portanto, essa nova forma de atendimento se constitui em desafio diário para a atuação
profissional.
Dentre os desafios que indicam a fragilidade na articulação intersetorial está a violência de setores
que deveriam ser parceiros, como os da área de segurança pública, aspecto evidenciado em falas de
profissionais e de usuários. O fortalecimento da rede intersetorial para favorecer uma mudança
cultural que reduza preconceitos e permita a atuação efetiva de um serviço como o CR – além da
articulação cotidiana e contínua com outros setores públicos como assistência social, educação e
segurança pública –, são estratégias fundamentais para a minimização das barreiras referidas,
aspecto também evidenciado por Jorge e Conradi-Webster (2012). Ademais, há necessidade de
melhor articulação intrassetorial, pois dificuldades de acesso a unidades de saúde do SUS municipal
também foram referidas pelos dois segmentos de participantes.
Pode-se afirmar que os objetivos da pesquisa foram alcançados, mas é importante considerar que
ocorreram limitações que apontam para a relevância de estudos futuros. Pesquisas com número maior
de profissionais e usuários, com processo de seleção de participantes que permita alguma
aleatoriedade, pode ser interessante para minimizar efeitos de desejabilidade social, ou seja, quando
o entrevistado verbaliza e responde com base na perspectiva do pesquisador. Estudos
observacionais, com estratégias como a observação participante, podem aportar dados valiosos em
investigações sobre modos de atuação de dispositivos inovadores como o CR. Quanto às entrevistas
realizadas com os usuários, destacam-se como limitações: número reduzido de participantes, estes
terem sidos indicados pela equipe, os quatro usuários aceitaram o atendimento do CR, mantinham
adesão e vínculo com a equipe. Esses aspectos podem ter influenciado a avaliação muito positiva da
atuação do CR no presente estudo.
Considerações Finais
Referências
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& A. L. R. Valério (Eds.), Módulo para capacitação dos
Helizett Santos de Lima: mestre em psicologia pelo Programa de Pós-graduação em Processos de Desenvolvimento
Humano e Saúde da Universidade de Brasília; servidora efetiva da Prefeitura Municipal de Goiânia, Brasil.
Eliane Maria Fleury Seidl: doutora em psicologia; docente do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília em
nível de graduação e pós-graduação (mestrado e doutorado) no Programa de Pós-graduação em Processos de
Desenvolvimento Humano e Saúde; bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq.
Experiência
Relato de
para cuidado integral de usuários de drogas
em contextos de vulnerabilidade
Maria de Nazareth Rodrigues Malcher de Oliveira Silvaa, Vagner dos Santosa,b,c,
Josenaide Engracia dos Santosa,d, Flávia Mazitelli de Oliveiraa,
Douglas José Nogueirae, Andrea Donatti Gallassia
a
Curso de Terapia Ocupacional, Faculdade Ceilândia – FCE, Universidade de Brasília – UnB, Ceilândia, DF, Brasil
b
Programa Dynamics of Health and Welfare, École des Hautes Études en Sciences Sociales, França
c
Linköping University, Suécia
d
Faculdade de Ciências da Saúde, Universidade de Brasília – UnB, Brasília, DF, Brasil
e
Curso de Enfermagem, Universidade Federal de Goiás – UFG, Goiânia, GO, Brasil
Resumo: Este manuscrito apresenta um relato de experiência com algumas atividades do Centro de Referência
sobre Drogas e Vulnerabilidades Associadas da Universidade de Brasília – Faculdade Ceilândia (CRR/FCE/UnB)
implementadas e desenvolvidas durante o ano de 2013. Este relato permite a reflexão sobre o processo de construção
de parcerias baseadas na rede social e na noção de território para cuidado daqueles com problemas relacionados
ao uso de drogas e as vulnerabilidades associadas. Esta experiência segue o atual marco da prática e da política
nacional (p. ex., lei 10.216/2001), nas quais se estabelecem as mudanças no modelo de cuidado integral de pessoas
com transtornos mentais, inclusive aquelas em sofrimento pelo uso de álcool e outras drogas. Inicialmente, a equipe
do CRR/FCE/UnB mapeou a rede social local (instituições públicas de diferentes setores) de quatro municípios,
sendo uma delas no Distrito Federal (Brazlândia) e três no estado de Goiás (Valparaíso, Luziânia e Águas Lindas).
Após o mapeamento, a equipe do CRR buscou articular e estabelecer uma agenda de discussão sobre os problemas
relacionados ao uso de álcool e outras drogas e suas vulnerabilidades associadas entre as diferentes instituições, setores
e profissionais (p. ex., enfermeiros, médicos, terapeutas ocupacionais, assistentes sociais, policiais). Essa estratégia
possibilitou a capacitação de diversos atores para o desenvolvimento e qualificação da sua rede intersetorial que,
consequentemente, qualifica as ações de cuidado integral, conforme recomendado por inúmeras políticas nacionais.
Palavras-chave: Saúde Mental, Drogas, Vulnerabilidade Social.
Abstract: This manuscript presents an experience report with some activities that the Reference Center on Drugs and
Associated Vulnerabilities - CRR, ‘Faculdade Ceilândia’/University of Brasilia - UNB implemented and developed
in 2013. This account allows us to reflect on the process of building partnerships based on social networks and the
notion of territory for people with problems related to drugs and their associated vulnerability. The experience follows
the current national framework, in which the social network has become a central paradigm of public practices
and policies (e.g. Law 10.216/2001). These changes occur in the model of care for people with mental disorders,
including the integral health policy for users and dependents of alcohol and other drugs. The CRR team mapped
local social networks, i.e. several public institutions in different sectors, in four municipalities: one in the Federal
District (Brazlândia) and three in the state of Goiás (Valparaiso, Luziânia, Águas Lindas). After the mapping, the CRR
Autor para correspondência: Nazareth Malcher, Faculdade de Ceilândia, Universidade de Brasília, Centro Metropolitano, Conjunto A, Lote 01,
CEP 72220-900, Ceilândia, DF, Brasil, e-mail: malchersilva@unb.br
Recebido em 30/8/2013; Revisão em 20/2/2014; Aceito em 4/5/2014.
146 Desenvolvendo e articulando a rede intersetorial para cuidado integral de usuários ...
team sought to articulate and establish an agenda to discuss alcohol and drug use and its associated vulnerabilities
among these different institutions, sectors and professionals, e.g. nurses, physicians, occupational therapists, social
workers, and police officers. This strategy enabled several actors to develop and qualify their local intersectorial
network, which consequently qualifies the integral care actions, as recommended by several national policies.
Keywords: Mental Health, Drugs, Social Vulnerability.
Cad. Ter. Ocup. UFSCar, São Carlos, v. 22, n. Suplemento Especial, p. 145-152, 2014
Silva, M. N. R. M. O. et al. 147
Cad. Ter. Ocup. UFSCar, São Carlos, v. 22, n. Suplemento Especial, p. 145-152, 2014
148 Desenvolvendo e articulando a rede intersetorial para cuidado integral de usuários ...
Cad. Ter. Ocup. UFSCar, São Carlos, v. 22, n. Suplemento Especial, p. 145-152, 2014
Silva, M. N. R. M. O. et al. 149
Cad. Ter. Ocup. UFSCar, São Carlos, v. 22, n. Suplemento Especial, p. 145-152, 2014
150 Desenvolvendo e articulando a rede intersetorial para cuidado integral de usuários ...
Cad. Ter. Ocup. UFSCar, São Carlos, v. 22, n. Suplemento Especial, p. 145-152, 2014
Silva, M. N. R. M. O. et al. 151
ações e, nesse sentido, os territórios e os sujeitos em Consideramos que essas estratégias de associar
situações de abuso de drogas ou expostos a outras os cursos com a utilização de profissionais da
vulnerabilidades tornam-se passíveis de uma ação universidade e daqueles disponíveis na própria rede
coletiva, com protagonismos de acordo com as reais local, bem como que o mapeamento e a vinculação dos
necessidades locais e que ao longo do tempo podem recursos comunitários da região foram facilitadores e
promover uma comunidade mais saudável e com potencializaram a articulação das ações nesses locais,
menores índices de iniquidades. possibilitando e qualificando o trabalho intersetorial
A rede deve oferecer um ambiente no território em rede, conforme preconizado pelas mais diversas
para a prática de um cotidiano ocupacional como políticas nacionais e internacionais sobre o tema.
projeto de existência social, ou seja, o território deve Nesse processo de trabalho próximo das demandas
ser promotor de ações diárias, nas quais se possibilite locais foi possível reconhecer dificuldades e agir de
forma rápida em parceria com a comunidade.
uma comunidade “ocupada”, viva e com bem-estar.
Não se trata apenas da ocupação como norma moral, Essa metodologia traduz um dos poucos momentos
mas como envolvimento social de encontro, troca, de encontro dos vários atores sociais em uma interação
de atividades lúdicas, de esporte, de trabalho e de natural, significativa e específica pelo ideal que
aprendizagem de habilidades. mobilizou os grupos – o enfrentamento do abuso
de drogas e suas vulnerabilidades. Essa mobilização
O abuso de drogas resulta em uma ruptura nos
social promoveu o encontro de usuários, familiares,
processos dos indivíduos com suas redes sociais,
comunidade, técnicos de saúde e de outros setores
territórios e outros atores. Nesse sentido, deve-se
pensar no cuidado a ser desenvolvido baseado na ao redor de um ideal comum. Com isso, considerar
minimização dos fatores de riscos da comunidade o movimento social como um “grande encontro
para possibilitar com que os atores se disponham peripatético” (LANCETTI, 2006) deveria ser o
a desenvolver estratégias de enfrentamento e principal objetivo dos CRR de todo o Brasil.
empoderamento e, dessa forma, superem o processo
de vulnerabilidade. Agradecimentos
O desenvolvimento das ações pelo CRR/FCE/ Os autores agradecem o Ministério da Justiça/
UnB criou uma ambientação não apenas de formação Secretaria Nacional de Políticas sobre drogas pelo
de conteúdo mas de correlação com as demandas dos apoio financeiro para implementação do CRR-UNB/
atores e com os processos contextuais do território.
FCE.
Estimulou-se uma cultura baseada no pensamento
coletivo de ação para a prevenção, intervenção e
enfrentamento da complexidade que o tema drogas Referências
impõe. O pensamento coletivo de dividir, criar BAUMAN, Z. Comunidade: a busca por segurança no
parcerias e pactuar ações está lentamente sendo mundo atual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
construído. Dessa forma, o foco não é na remissão BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria-Executiva.
do uso de drogas, mas no empoderamento dos atores Secretaria de Atenção à Saúde. Legislação em saúde
em uma clínica de rede, baseado em pressupostos e mental: 1990-2004. 5. ed. Brasília, 2004. Disponível
recursos presentes no próprio território. em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/
legislacao_saude_mental_1990_2004_5ed.pdf>. Acesso
em: 15 jul. 2013.
6 Considerações finais BR ASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e
Combate à Fome. Decreto nº 7.179, de 20 de maio
O CRR/FCE/UnB desenvolveu em paralelo à de 2010. Institui o Plano Integrado de Enfrentamento
formação permanente em serviço uma vinculação com ao Crack e outras Drogas, cria o seu Comitê Gestor,
o território, possibilitando ações que estimulassem e dá outras providências. Diário Oficial da República
seus atores a um cuidado em rede. Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 21
maio 2010. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/
Como resposta a essa formação, a rede intersetorial ccivil_03/_Ato2007-2010/2010/Decreto/D7179.htm>.
compartilha ações de cuidado e passa a desenvolver Acesso em: 10 ago. 2013.
um cotidiano de serviços de rede no território, com BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 3.088, de 23 de
parcerias e pactuações de ações que promovem uma dezembro de 2011. Institui a Rede de Atenção Psicossocial
cultura social de cuidado em rede. para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com
necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras
Com um território fortalecido, o cuidado em si e
drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde. Diário Oficial
o enfrentamento dos desafios do cotidiano serão no da União, Poder Executivo, Brasília, DF, 30 dez. 2011.
sentido de recuperar uma vida ativa pelo movimento Disponível em: <http://www.brasilsus.com.br/legislacoes/
dos direitos próprios e de seu grupo. gm/111276-3088.html>. Acesso em: 10 fev. 2013.
Cad. Ter. Ocup. UFSCar, São Carlos, v. 22, n. Suplemento Especial, p. 145-152, 2014
152 Desenvolvendo e articulando a rede intersetorial para cuidado integral de usuários ...
Cad. Ter. Ocup. UFSCar, São Carlos, v. 22, n. Suplemento Especial, p. 145-152, 2014
ISSN 0104-4931
Cad. Ter. Ocup. UFSCar, São Carlos, v. 22, n. Suplemento Especial, p. 153-159, 2014
http://dx.doi.org/10.4322/cto.2014.040
Experiência
Relato de
o paradigma de redução de danos emancipatória
com uma equipe de CAPS-AD
Luciana Cordeiro, Aline Godoy, Cassia Baldini Soares
Departamento de Enfermagem em Saúde Coletiva, Escola de Enfermagem, Universidade de São Paulo – USP,
São Paulo, SP, Brasil
Resumo: Introdução: O consumo contemporâneo de drogas ocupa lugar de destaque nas políticas públicas e na
mídia. Diferentes formas de enfrentar a problemática vêm se apresentando, sendo uma delas a Redução de Danos
Emancipatória, um movimento social antiproibicionista baseado no desenvolvimento de crítica sobre a realidade a
fim de transformá-la. Objetivo: Discutir processo de supervisão em um Centro de Atenção Psicossocial para Álcool e
outras Drogas, CAPS-AD de uma cidade do estado de São Paulo com a finalidade de transformar as práticas da equipe
de saúde, refletindo sobre o processo de produção em saúde e os processos de trabalho. Método: Compreendeu-se
a supervisão como processo educativo emancipatório, utilizando-se o referencial teórico da Saúde Coletiva. Seis
encontros foram realizados com a equipe do serviço. Resultados: A supervisão configurou-se como processo educativo
crítico, visando à emancipação dos usuários e trabalhadores do serviço. Discussão: O processo de supervisão
pautado no referencial crítico possibilitou o desenvolvimento de práticas da equipe de saúde fundamentadas na
Redução de Danos Emancipatória.
Palavras-chave: Educação em Saúde, Saúde Pública, Saúde Mental, Redução do Dano, Transtornos Relacionados
ao Uso de Substâncias.
Abstract: Introduction: The contemporary drug consumption has been highlighted in the public policies and
by the media. Different forms of coping with this issue are being constructed. Emancipatory Harm Reduction, an
antiprohibitionist social movement based on the development of critical conscience about the reality in order to
transform it, is one of them. Objective: To discuss the supervision process of a public community mental health
institution focused on treatment of problematic consumption of drugs in a municipality of the state of San Paulo,
aiming to transform the mental health team practices, reflecting about the health production process and their work
process. Method: A Collective Health theoretical framework was used to base the supervision in an emancipatory
educative process. The process occurred in six meetings with the health care team. Results: The supervision was
configured as a critical educative process, and its objective was the emancipation of the institution’s workers and
users. Discussion: The supervision process based on critical theoretical framework enhanced the development of
the mental health team practices, based on Emancipatory Harm Reduction.
Keywords: Health Education, Public Health, Mental Health, Harm Reduction, Substance-related Disorders.
Autor para correspondência: Cassia Baldini Soares, Departamento de Enfermagem em Saúde Coletiva, Universidade de São Paulo, Av. Dr.
Enéas de Carvalho Aguiar, 419, Sala 233, 2o. andar, Cerqueira Cesar CEP 05403-000, São Paulo, SP, Brasil, e-mail: cassiaso@usp.br
Recebido em 03/09/2013; Revisão em 21/02/2014; Aceito em 04/05/2014
154 A supervisão como processo educativo: Construindo o paradigma de redução de danos emancipatória ...
Cad. Ter. Ocup. UFSCar, São Carlos, v. 22, n. Suplemento Especial, p. 153-159, 2014
Cordeiro, L.; Godoy, A.; Soares, C. B. 155
entre as diferentes classes e promover a compreensão necessidades de saúde apresentadas pela população
das raízes dos problemas associados ao consumo (TRAPÉ; SOARES; DALMASO, 2011). Nesse
prejudicial de drogas (SOARES, 2007). sentido, a finalidade da supervisão é superar as
A fim de operacionalizar a RDE, devem ser questões colocadas pela dimensão técnica do
incorporadas as necessidades dos sujeitos a partir trabalho sem negá-la, estabelecendo discussão
de seu cotidiano, sendo essencial compor projetos de caráter político-técnico (SAVIANI, 2003), de
específicos e utilizar instrumentos apropriados a forma que se domine o processo de trabalho em
realidades específicas, já que discursos descolados da seus elementos (objeto, instrumentos, finalidade
realidade produzem o afastamento dos sujeitos. Além e produto), propiciando o desenvolvimento de
disso, os projetos devem contar com a participação responsabilidades de caráter social e político e a
dos sujeitos, com a finalidade de defender seus capacidade de contestar a realidade (FREIRE, 2000).
direitos e convicções, enfrentando questões como a O processo educativo, nessa perspectiva, parte da
criminalização das drogas, as desigualdades sociais, a realidade a ser transformada, constituída histórica e
política e o papel das instituições sociais (SOARES; culturalmente, de forma que essa seja problematizada.
JACOBI, 2000). Cabe ao supervisor mediar a relação dialógica
Tomando como objeto deste estudo as práticas estabelecida, isto é, uma relação em que todos os
desenvolvidas em Centro de Atenção Psicossocial envolvidos (supervisor e supervisionados) são sujeitos
para Álcool e Drogas II (CAPS-AD) de uma cidade do processo e em que há mútuo aprendizado. Por
do estado de São Paulo, a partir da experiência de ter uma síntese diferente daquela proveniente dos
um processo de supervisão, objetiva-se discutir a conhecimentos dos supervisionados, também cabe
supervisão como processo educativo emancipatório, ao supervisor instrumentalizar a problematização
com a finalidade de transformar as práticas da equipe em função das necessidades levantadas, para a
de saúde, refletindo sobre o processo de produção compreensão das práticas sociais vigentes. A partir
em saúde e seu processo de trabalho. da mediação, espera-se que uma nova compreensão
da realidade seja elaborada e expressa, isto é, que
2 Procedimentos novas práticas sejam desenvolvidas (SAVIANI, 2003).
teórico-metodológicos Coerentemente com o marco teórico adotado,
notadamente de natureza crítica, buscou-se conhecer
Em uma cidade do interior de São Paulo de a realidade do serviço e do território em questão,
aproximadamente 80 mil habitantes, um CAPS-AD bem como o processo de trabalho e a prática
foi inaugurado, tendo como equipe técnica dois dos profissionais embasadas em conhecimento
psicólogas, um terapeuta ocupacional, um assistente técnico-científico sobre o fenômeno das drogas e
social/gerente, uma enfermeira, três auxiliares de também em experiências profissionais prévias. Os
enfermagem (que também desenvolviam funções profissionais elencaram as dificuldades encontradas
administrativas), além de dois oficineiros (contratados no trabalho, que diziam respeito ao processo de
para um ano de trabalho)1. Os profissionais técnicos trabalho fragmentado, à compreensão do processo
eram concursados e não tinham experiência ou saúde-doença pautado na multifatorialidade, ao
formação sobre a problemática de álcool e outras conhecimento técnico limitado acerca do fenômeno
drogas, com exceção da gerente, que havia trabalhado das drogas e das políticas públicas voltadas a
em uma comunidade terapêutica e que desenvolvia consumidores de drogas e aos recursos humanos e
ações utilizando-se dos 12 passos2 (alcoólicos materiais disponíveis na unidade, que se mostravam
anônimos e narcóticos anônimos). insuficientes. Tal reconhecimento permitiu que
Após oito meses da inauguração, a prefeitura da fossem realizadas discussões a partir das experiências
cidade providenciou uma supervisão por meio de vivenciadas na unidade e de casos clínicos, de leitura
contrato de seis meses, a fim de auxiliar a equipe em de textos e sugestão de filmes.
suas dificuldades técnicas. Os encontros ocorreram
na própria unidade, com todos os profissionais 3 O processo da supervisão
presentes em horário de serviço, uma vez por mês,
totalizando seis encontros. O processo da supervisão baseou-se no referencial
Por supervisão entende-se um processo educativo teórico crítico da Saúde Coletiva, que compreende
que tem como objetivo integrar as atividades o processo saúde-doença como determinado
parcelares e refletir sobre o processo de trabalho, socialmente, isto é, tem relação direta com as
a fim de avaliar se o trabalho está respondendo às formas de trabalhar e de viver (LAURELL, 1982).
Cad. Ter. Ocup. UFSCar, São Carlos, v. 22, n. Suplemento Especial, p. 153-159, 2014
156 A supervisão como processo educativo: Construindo o paradigma de redução de danos emancipatória ...
O referencial crítico aponta que a partir da respostas de saúde e de sujeitos não certificados pela
modernidade e com o advento da formação social formação acadêmica (STOTZ; ARAUJO, 2004).
predominantemente capitalista, as drogas passaram Consequentemente, a prática em saúde integrada a
a fazer parte do conjunto de mercadorias que outros setores também fica limitada. Dessa forma,
respondem às necessidades de acumulação do compreendendo os problemas de saúde de forma
capital (SOARES, 2007). As drogas, portanto, mais ampla, a partir dos contextos de vida e da
estão inseridas de forma organizada no sistema de escassez de recursos, há de se reconhecer os próprios
produção, distribuição e consumo da economia de limites e validar, ao mesmo tempo, o saber do outro
mercado, representando a maior economia mundial, (STOTZ; ARAUJO, 2004).
considerado o conjunto de drogas lícitas e ilícitas. Nesse sentido, estimulou-se durante o processo
Em relação apenas às drogas ilícitas, Arbex Junior de supervisão o estabelecimento de comunicação e
(2012) afirma que são movimentados de 350 a fortalecimento da rede social e de saúde, uma vez que
500 milhões de dólares ao ano, sendo que diariamente essa prática não existia e os serviços funcionavam de
narcodólares são lavados em bancos e instituições forma não integrada. Uma ação proposta pela equipe
internacionais. Narcoprodutores e os narcotraficantes foi o planejamento de um evento a fim de apresentar
estão inseridos no mercado de trabalho, ainda que se o CAPS-AD e o paradigma da RD aos demais
esse se constitua paralelamente ao mercado oficial e equipamentos da saúde e assistência, planejando-se
ainda que tal inserção se deva em grande parte à falta que o esclarecimento sobre o serviço seria o primeiro
de opção concreta de emprego no mercado formal. passo para a aproximação e o estabelecimento do
Soares (2007) afirma que na base do consumo funcionamento em rede.
prejudicial de drogas estão sérias dificuldades de A compreensão do objeto de trabalho pela
perspectivar o futuro, insegurança em relação aos equipe demandou discutir o paradigma que embasa
mecanismos de proteção social e necessidades de as práticas que desenvolvem. Como já relatado
obtenção de prazer imediato, condições características por Campos e Soares (2003) em análise sobre a
da vida em sociedade, atualmente. compreensão do processo de trabalho de equipes de
Diz-se, dessa forma, que as necessidades de diferentes serviços de saúde mental, inicialmente a
saúde, que são necessidades sociais, extrapolam equipe demonstrou ter pouco acúmulo de discussão
as possibilidades e atribuições funcionalistas do sobre o trabalho, de forma que a finalidade do
campo da saúde (CAMPOS; MISHIMA, 2005) de trabalho do CAPS-AD estava obscurecida.
forma que promover saúde depende de transformar Propunha-se nesse contexto, como finalidade para
as práticas em saúde, articulando-as às de diversos o trabalho, que os consumidores alcançassem a
setores, como trabalho, educação, saneamento abstinência de drogas, por vezes acompanhada
básico e preservação ambiental, estando esses setores de desejos de boa convivência com sua família e,
submetidos à política econômica (STOTZ; ARAUJO, ainda, que os usuários se engajassem em alguma
2004). ocupação. Tais finalidades propostas encontravam
A experiência de supervisão fez reconhecer que o obstáculos na realidade, que eram explicados pelas
processo de trabalho nos CAPS-AD de fato exige dos dificuldades de mudança de comportamentos dos
trabalhadores que se comuniquem com outros setores: usuários de drogas.
seja pelos princípios da Reabilitação Psicossocial3 Entre as culpabilizações dos usuários e as da
(diretriz que está na base da formulação dos serviços própria equipe, pelo não êxito em atingir tais
CAPS), seja pelas necessidades demandadas pelas finalidades, a equipe mostrou-se motivada a
pessoas atendidas: alimentação, abrigo, vestimenta, desenvolver práticas fundamentadas na RD, sendo
documentação, retomada de estudos, entre tantas que para isso foram discutidos a política de atenção
outras. Essas práticas, entretanto, limitam-se aos a usuários de drogas do Ministério da Saúde5, textos
encaminhamentos entre serviços, sendo as iniciativas sobre a história da RD bem como a operacionalização
de elaboração conjunta de ações entre setores, difíceis desse paradigma no cotidiano da unidade.
e fragmentadas4 (COELHO, 2012). Outra estratégia utilizada a fim de desenvolver
Stotz e Araujo (2004) discute a necessidade de novas práticas na unidade foi a discussão de casos
construir uma nova cultura para o setor saúde. atendidos pela equipe. Tal como a complexidade
Atualmente, a legitimidade das práticas em saúde do fenômeno do consumo de drogas, os usuários
baseia-se no saber técnico inquestionável por sua do CAPS-AD também apresentam diversas
natureza científica. Uma suposta completude desse necessidades de saúde que exigem uma resposta
saber gera autoritarismo e centralização das práticas complexa. Observa-se atualmente, “[...] o aumento
em saúde, limitando a elaboração criativa de outras das necessidades, carências e demandas sociais e
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Cordeiro, L.; Godoy, A.; Soares, C. B. 157
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158 A supervisão como processo educativo: Construindo o paradigma de redução de danos emancipatória ...
Cad. Ter. Ocup. UFSCar, São Carlos, v. 22, n. Suplemento Especial, p. 153-159, 2014
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Notas
1
Agradecemos a equipe que participou da supervisão e concordou com a publicação da experiência.
2
Os 12 passos são uma metodologia voltada a dependentes químicos que se autodenominam “irmandade de homens e
mulheres que compartilham suas experiências, forças e esperanças, a fim de resolver seu problema comum e ajudar outros
a se recuperarem do alcoolismo. O único requisito para se tornar membro é o desejo de parar de beber” (http://www.
alcoolicosanonimos.org.br).
3
Reabilitação Psicossocial – Uma noção de Reabilitação que tem como sentido a construção dos direitos substanciais:
afetivos, relacionais, materiais, habitacionais, produtivos e culturais dos sujeitos (SARACENO, 1999).
4
Embora não seja nosso intuito focar no debate sobre a privatização dos setores saúde e assistência social, é relevante
mencionar que ela interfere diretamente no processo da intersetorialidade, a qual, orientada pela lógica empresarial, limita
os processos de trabalho ao cumprimento de metas, competitividade, e limita também a solidariedade e o compartilhamento
de informações e conhecimentos.
5
O Brasil conta com duas políticas públicas voltadas a usuários de drogas, quais sejam: a política do Ministério da Saúde,
pautada no paradigma da redução de danos, e a política da Secretaria Nacional sobre Drogas (SENAD), do Ministério
da Justiça, notadamente pautada nos cânones da guerra às drogas (COELHO, 2012; COELHO et al., 2012).
Cad. Ter. Ocup. UFSCar, São Carlos, v. 22, n. Suplemento Especial, p. 153-159, 2014
DOI: 10.1590/1413-81232014192.00382013 569
Abstract In the second half of the last century a Resumo Na segunda metade do século passado
revolutionary movement began in the world men- iniciava-se um movimento revolucionário no
tal health scenario, namely Psychiatric Reform. cenário mundial da saúde mental: a Reforma Psi-
At the same juncture, the concept was also put quiátrica. No mesmo momento nascia a proposta
forward for Therapeutic Communities, which das Comunidades Terapêuticas, que mais tarde se
would later become the tried and tested model for tornaria um modelo consagrado de atendimento
treatment of addiction to alcohol and other drugs. para a dependência do álcool e outras drogas. Por
However, due to the alarming increase of this prob- outro lado, com o alarmante crescimento deste
lem in Brazil, as well as the absence of public problema no Brasil, assim como pela ausência de
policies to address the problem, there was an in- políticas públicas que dessem conta do problema,
discriminate proliferation of chemical dependency houve uma indiscriminada proliferação de locais
internment locations that, despite calling them- de internação para dependentes químicos que,
selves Therapeutic Communities, in no way re- mesmo se autodenominando como Comunidades
sembled the initial model proposed. These places Terapêuticas, em nada se assemelham ao modelo
featured inhuman and iatrogenic practices, very inicial proposto. Estes locais apresentam práticas
similar to those criticized by the Psychiatric Re- desumanas e iatrogênicas, muito semelhantes às
form movement, which consequently discredited criticadas pelo movimento da Reforma Psiquiá-
the Therapeutic Community model. This article trica, o que tem provocado o descrédito para com
seeks to demonstrate, through bibliographic re- o modelo das Comunidades Terapêuticas. Este
search, how the conceptual and methodological artigo tem como objetivo demonstrar, através de
bases of Psychiatric Reform closely resemble the pesquisa bibliográfica, como as bases conceituais
Therapeutic Communities movement, having e metodológicas da Reforma Psiquiátrica se asse-
appeared at the same time and for the same rea- melham profundamente as do movimento das
son, and how the lack of control and regulation of Comunidades Terapêuticas, tendo surgido na
chemical dependency internment locations in mesma época e pelo mesmo motivo, e como a falta
Brazil has contributed to the current disrepute of de regulamentação dos locais de internação para
1
Faculdade de Medicina de this model. dependentes químicos no Brasil tem contribuído
Botucatu, UNESP. R. Bento Key words Therapeutic Community, addiction com o atual descrédito deste modelo.
Lopes s/n, Distrito de
to alcohol and other drugs, Psychiatric Reform Palavras-chave Comunidade terapêutica, De-
Rubião Jr. 18.618-970
Botucatu SP Brasil. pendência do álcool e outras drogas, Reforma psi-
pablok@novajornada.org.br quiátrica
ter acesso a práticas que o levassem de volta a si ção constante, cada um com seu núcleo específico
mesmo, de encontro com a sua história, com a de ação, mas apoiando-se mutuamente, alimen-
sua singularidade. tando-se enquanto rede – que cria acessos varia-
Assim surge o conceito de singularização no dos, acolhe, encaminha, previne, trata, reconstrói
atendimento ao doente mental, que seria, segundo existências, cria efetivas alternativas de combate13.
Tenório1, uma forma de tratá-lo de acordo com as Como se confirma através destes conceitos, a
suas características e necessidades pessoais, fugin- Reforma Psiquiátrica e o Movimento de Luta
do da lógica asilar capitalista de massificação. Antimanicomial são movimentos que visam
Para ser almejada e alcançada, a singulariza- muito mais do que apenas a desaparição dos
ção dependerá de que a forma das relações sociais e manicômios. Eles buscam, acima de tudo, a qua-
humanas na instituição parta da horizontaliza- lidade de vida do doente mental, a atenção inte-
ção como meta e, em alguma medida, seja vivida gral, a humanização do atendimento, através de
como exercício17. um novo olhar que se faz cada vez mais urgente
Considerando todo o apresentado até o mo- numa sociedade que pretenda dizer-se justa e
mento, fica evidente que o novo modelo propos- democrática.
to visa como finalidade última a ressocialização,
ou seja, o retorno do doente mental à sociedade e A comunidade terapêutica para
à família, de acordo com as reais possibilidades recuperação da dependência do álcool
de cada caso, e para isto busca desenvolver diver- e de outras drogas: modelo e método
sos dispositivos que se adaptem a cada necessida-
de, como o CAPS, residências terapêuticas, hos- Quem teve a oportunidade de aproximar-se de
pitais-dia, NASF, consultórios de rua e outros dis- uma CT, tem a sensação de haver participado de
positivos que podem ser adaptados com a finali- ‘algo diferente’. Quem teve, além disso, a oportuni-
dade de garantir a integralidade do atendimento dade de conviver durante algum tempo numa CT
ao doente mental desospitalizado1,2,7-9,16,17,19. terá uma lembrança que o acompanhará pelo res-
A necessidade do retorno à sociedade, como tante dos seus dias12.
prática despatologizante, se torna um dos estan- Como foi visto acima, as CT existem há mais
dartes do Movimento de Luta Antimanicomial de 60 anos, tendo-se consagrado nas duas últi-
no Brasil, assim como da Reforma Psiquiátrica mas décadas como um dos modelos mais pro-
no mundo. Para isto é imprescindível garantir curados para a recuperação da dependência do
ao indivíduo o cuidado nesta tarefa de readapta- álcool e outras drogas, tanto no Brasil como em
ção social, e por este motivo o cuidado, em saúde muitas partes do mundo, por oferecerem uma
mental, amplia-se no sentido de ser também uma inovadora forma de tratar o problema, tão im-
sustentação cotidiana da lida diária do paciente, placável e urgente, independentemente da cultu-
inclusive em suas relações sociais1. ra e do nível de desenvolvimento das populações
Desta forma, segundo Vecchia e Martins16: o atingidas.
trabalho de desconstrução do manicômio e da cul- Neste momento serão apresentadas apenas
tura manicomial envolve políticas sociais de con- as bases metodológicas e conceituais deste mo-
junto, implicando o reconhecimento da necessida- delo, comparando-as com as recém-explicadas,
de de: moradias substitutivas e assistidas para ex- referentes à Reforma Psiquiátrica e ao Movimento
internos psiquiátricos; espaços de trabalho prote- de Luta Antimanicomial, deixando as críticas ao
gido (mas não ‘tutelado’); inserção em atividades respeito da aplicação das mesmas no Brasil para
culturais e de lazer etc... outro tópico adiante.
Outra característica indiscutível do modelo Segundo consta na RDC nº 10114 (atual RDC
de atenção proposto pelo Movimento de Luta nº 29, de 30/06/1120) da Agência Nacional de Vi-
Antimanicomial é a maciça participação dos fa- gilância Sanitária (Anvisa) as CT: “são serviços
miliares dos usuários, tanto na discussão políti- urbanos ou rurais, de atenção a pessoas com
ca das diretrizes e normativas vigentes, quanto transtornos decorrentes do uso ou abuso de subs-
no cotidiano do atendimento, como agentes de tâncias psicoativas (SPA), em regime de residên-
saúde do mais alto escalão, tendo participado do cia ou outros vínculos de um ou dois turnos, se-
movimento desde o seu nascimento, como afir- gundo modelo psicossocial. São unidades que têm
mam diversos autores1,7-9,16,17. por função a oferta de um ambiente protegido,
Nunca é demais, portanto, insistir que é a rede técnica e eticamente orientado, que forneça su-
– de profissionais, de familiares, de organizações porte e tratamento aos usuários abusivos e/ou
governamentais e não governamentais em intera- dependentes de substâncias psicoativas, durante
Superação do “Tratar o doente, e não a doença”1, “Não é a droga, mas a pessoa inteira, o
paradigma da num ambiente social, e não apenas problema a ser tratado”10. O ambiente de
clínica no consultório. tratamento é a CT, um ambiente social.
continua
Quadro 1. continuação
Conceitos Reforma Psiquiátrica e Comunidade
básicos Movimento de Luta Terapêutica
Antimanicomial
Reapropriação da O que está em jogo é a O que deve ser tratado é a pessoa como ser
identidade reapropriação do sujeito; do sentido social e psicológico, ou seja, deve ser tratado o
e da motivação humana; modo como o dependente se comporta,
reapropriação da capacidade de pensa, sente, administra suas emoções e
forjar sua própria identidade6. frustrações, suas culpas e tristezas, a sua
comunicação com o mundo externo e o
interno10.
anualmente. Segundo a mesma pesquisa, mais de mica Aplicada (IPEA), mais de 80% dos trata-
55% das ONG que oferecem tratamento para a mentos no Brasil são realizados dentro de CT.
dependência do álcool e outras drogas no Brasil Isto se configura um problema, já que gran-
seriam CT, embora Hartmann32 afirme que, se- de parte destas CT não consta nos registros de
gundo pesquisa da Universidade de Brasília (UnB) nenhuma instituição regulamentadora, poden-
juntamente com o Instituto de Pesquisa Econô- do ser esta tanto a própria FEBRACT, os respec-
dia, consultórios de rua e outros dispositivos que Por outro lado também se percebeu que uma
garantam a integralidade do atendimento, sem o grande maioria destas supostas CT não recebe
ônus da hospitalização. nenhuma forma de fiscalização, não se encontran-
Por outro lado, o problema da dependência do cadastrada em nenhum serviço de referência
do álcool e outras drogas tem se alastrado de que regulamente sua prática, o que facilita ainda
forma alarmante nas últimas décadas, o que tem mais a proliferação e a prática indiscriminada.
provocado, em função da ausência de políticas Mas isto não significa, de forma alguma, que
públicas, a proliferação de uma série de locais de o conceito de CT se posiciona contra as bases do
internação para este público, dentre estes as de- movimento reformista da saúde mental, já que,
nominadas CT. como foi demonstrado, as suas bases conceituais
Embora em sua origem histórica, conceitual e metodológicas em muito se aproximam.
e metodológica, o movimento das CT tenha O que sim fica evidente é a necessidade de
muitas mais semelhanças do que diferenças com uma sistemática de fiscalização e regulamenta-
o proposto pela Reforma Psiquiátrica e o Movi- ção das CT, a fim de que somente permaneçam
mento de Luta Antimanicomial, na prática, pelo em atividade aquelas que, de fato, sigam o mo-
menos no Brasil, a realidade é diferente, como delo proposto originalmente, nascido no mes-
confirmado por diversas investigações realiza- mo berço da Reforma Psiquiátrica.
das na atualidade. Desta forma, as CT poderão sim fazer parte
De fato, uma boa parte das CT no Brasil pos- das estratégias de atenção integral aos dependen-
sui práticas tão desumanas e iatrogênicas quan- tes do álcool e outras drogas, consolidando-se
to às das antigas instituições asilares manicomi- como um excelente instrumento nos casos em
ais, sem garantir minimamente a preservação dos que outras alternativas se mostrem ineficazes.
direitos humanos mais básicos.
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Em todo o mundo, o uso de álcool e de Americana da Saúde (OPAS), em torno operam na prevenção das doenças e na
outras drogas contribui para configurar de 4,5 milhões de homens e 1,2 milhão promoção da saúde (2). Contudo, as ex-
um novo perfil no quadro dos problemas de mulheres na América Latina e Caribe, periências preventivas ao uso de álcool
de saúde. Segundo a Organização Pan- em algum momento de suas vidas, so- e outras drogas ainda são limitadas,
1 Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), De-
freram transtornos causados pelo uso de apesar da importância de tais ações para
partamento de Psicologia, Centro de Referên- drogas (1). De acordo com a literatura, mudar os indicadores de saúde geral da
cia em Pesquisa, Intervenção e Avaliação em os mecanismos mais efetivos na redu- população.
Álcool e Drogas (CREPEIA), Juiz de Fora (MG),
Brasil. Correspondência: Telmo Mota Ronzani, ção da vulnerabilidade da população a Nessa perspectiva, diversos autores
tm.ronzani@gmail.com essas novas epidemias são aqueles que (3–5) apontam o enfoque denominado
SBIRT — Screening, Brief Intervention, and educação permanente, problematizando município brasileiro de pequeno/médio
Referral to Treatment (Triagem, Interven- as demandas sociais emergentes e consi- porte de março a dezembro de 2010. O
ção Breve e Encaminhamento para Tra- derando as condições socioeconômicas e município possui 177 estabelecimentos
tar) — como uma importante ferramenta estruturais dos profissionais e usuários cadastrados no Sistema Único de Saúde
para a implementação e a organização dos serviços de saúde (11, 12). (SUS), sendo 147 da iniciativa privada e
de atividades preventivas ao uso de Nesse sentido, ressalta-se que os avan- 30 de responsabilidade do poder público
álcool e outras drogas, principalmente ços científicos repercutem nas pessoas municipal (18). O município conta com
nos serviços de atenção primária à saúde não exclusivamente pela atuação dos 21 equipes de ESF na zona urbana e um
(APS). Esse nível de atenção se configura profissionais de saúde, mas também Núcleo de Apoio à Saúde da Família
como uma das principais estratégias de pelo impacto positivo que têm nos co- (NASF) que atua em conjunto com os
organização dos sistemas de saúde, prin- nhecimentos, valores e comportamentos profissionais da ESF no matriciamento
cipalmente na América Latina (6). É, das comunidades e sistemas sociais (13, e organização do fluxo de pacientes. A
portanto, uma instância essencial para a 14). Para uma implementação efetiva média de profissionais por equipe de
aplicação das práticas de prevenção ao das estratégias de prevenção, torna-se ESF é de 9,73, sendo 76,5% da popula-
uso de álcool e outras drogas. No Brasil, imprescindível a adoção de uma lógica ção coberta pela ESF (19). Todas essas
a APS é organizada através da Estratégia de interação entre o sistema de saúde e a equipes de ESF, além do NASF, foram
Saúde da Família (ESF), cujos principais sociedade, a partir da compreensão das abrangidas pelo estudo.
atributos são: caráter substitutivo em reais demandas e necessidades sociais. Quanto à rede de atenção aos usuários
relação à rede de atenção básica tradicio- Para tanto, as ações no campo da de álcool e outras drogas, o município
nal, atuação territorializada, desenvolvi- saúde devem ser compartilhadas com dispõe de um Centro de Atenção Psicos-
mento de atividades com foco na família outros setores estratégicos, assim como social para Álcool e Drogas (CAPSad).
e comunidade, busca da integração com devem garantir a participação efetiva Entre os grupos de autoajuda, eram
instituições e organizações sociais e ser dos diferentes grupos sociais na iden- cadastrados na Secretaria Nacional de
um espaço de construção de cidadania tificação, formulação e implementação Políticas sobre Drogas (SENAD) quatro
(7). Apesar disso, são escassos os estudos das ações, ou seja, devolvendo o poder grupos de Alcoólicos Anônimos (AA)
sobre a eficácia das práticas de preven- de decisão de sua saúde à própria co- e dois grupos de Narcóticos Anônimos
ção ao uso de álcool e outras drogas na munidade (13, 15, 16). A participação (NA) (20). Na rede particular foram
APS, com identificação de elementos que comunitária pode constituir eixos para encontradas uma clínica de repouso e
promovam resultados positivos na pre- a promoção de saúde e a prevenção do duas comunidades terapêuticas. Além
venção e redução do consumo de acordo uso de álcool e outras drogas, pois as disso, existia no município o Conselho
com cada realidade (4). características ecológicas, culturais e so- Municipal de Políticas para Álcool e
Um dos componentes da SBIRT é a cioeconômicas da comunidade na qual Drogas, que, no entanto, encontrava-se
aplicação de instrumentos de triagem, se pretende intervir passam a ser melhor desativado.
como o teste para detecção de envol- visualizadas, configurando formas mais No município, assim como no restante
vimento com álcool, tabaco e outras efetivas para que tais estratégias de pre- do país, há uma sistematização do acesso
substâncias (Alcohol, Smoking and Sub venção atinjam a população (16, 17). aos serviços de álcool e outras drogas,
stance Involvement Screening Test, ASSIST), Cabe destacar ainda que, de modo ge- com um protocolo de acolhimento, ava-
desenvolvido em 2002 pela Organização ral, muitos projetos e ações são implanta- liação, referência e contra-referência dos
Mundial da Saúde (OMS) para iden- dos sem que se avalie sua efetividade ou pacientes que procuram os serviços de
tificar o padrão de uso e auxiliar o que se determinem fatores que possam atenção primária à saúde. Todo paciente,
profissional de saúde a definir a estra- facilitar ou dificultar sua implantação. Os para entrar na rede assistencial de saúde
tégia de intervenção mais adequada (8). aspectos científicos, tecnológicos e meto- mental do município, deve ser avaliado
Após a aplicação do instrumento de dológicos imbricam-se com aspectos éti- inicialmente pelas equipes de ESF, ex-
triagem, realiza-se a intervenção breve, cos e culturais de maneira indissolúvel, ceto pacientes atendidos pelo serviço de
uma abordagem de educação em saúde devendo ser considerados, desde o início, urgências psiquiátricas.
relacionada à prevenção primária ou de maneira integral no ciclo completo da
secundária para usuários de álcool e implementação das estratégias de preven- Participantes
outras drogas, com foco na mudança ção ao uso de álcool e outras drogas (13).
de comportamento do paciente. Essa Dessa forma, o objetivo do presente Participaram do projeto três gestores
intervenção breve pode ser realizada artigo é desenvolver uma metodologia do sistema municipal de saúde, com base
por profissionais de diferentes forma- para implementação de práticas de pre- na importância dos seus cargos para a or-
ções (9). Contudo, no Brasil e em outros venção ao uso de álcool e outras drogas ganização e a implementação do projeto
países latino-americanos, grande parte na APS. Para isso, foram determinados (amostra intencional), e os profissionais
dos profissionais sente-se despreparada fatores que pudessem facilitar ou di- das equipes de ESF e NASF que acei-
para lidar com a prevenção e a promoção ficultar sua implantação, promovendo taram participar de todas as etapas do
de saúde, devido, entre outros fatores, à aproximação com a realidade local. projeto (amostra de conveniência). Além
sua formação centrada na resolutividade disso, foi enfatizada a participação de
da “doença” (5, 10). No que se refere à MATERIAIS E MÉTODOS multiplicadores, que eram profissionais
formação profissional, é importante o in- da própria rede e atores comunitários
vestimento na contínua formação desses Esta pesquisa-intervenção de natu- com uma inserção e/ou algum tipo de
atores sociais, a partir dos princípios da reza qualitativa foi conduzida em um liderança/engajamento nas comunida-
des, para auxiliar na execução do projeto foram coletados documentos sobre APS ção permanente, com objetivos práticos
junto às equipes e população. e ESF do município, com participação e voltados para o processo de aprendiza-
em reuniões da gestão de saúde com gem dinâmico e vivenciado no dia-a-dia
Avaliação do trabalho os gerentes de equipe de Saúde da Fa- dos serviços.
mília e visitas às equipes de saúde e às A quinta etapa do projeto foi o acom-
O processo foi avaliado visando a comunidades. panhamento do processo de implemen-
adequação às necessidades locais e exa- Foram mapeados e analisados: os indi- tação das práticas de prevenção ao uso
minando os fatores que pudessem faci- cadores sociais e de saúde do município de álcool e outras drogas, promovendo
litar ou dificultar a sua implantação em (dados epidemiológicos e de vulnerabi- uma articulação entre APS e comuni-
outros municípios e/ou países latino- lidade social), o cotidiano dos serviços dade local e mediando os interesses dos
americanos. A partir do exposto, e de de saúde (estrutura e dinâmica de fun- atores envolvidos em relação às ações so-
acordo com os achados na literatura, a cionamento), a percepção e as demandas bre álcool e outras drogas. Para isso, du-
metodologia de implementação de prá- populacionais em relação ao serviço de rante 4 meses foram realizadas, simulta-
ticas preventivas foi avaliada através da saúde, a percepção dos profissionais em neamente: visitas quinzenais às equipes
observação participante. Os dados cole- relação à população, os serviços e ações da ESF, entrega de materiais didáticos
tados foram registrados em diários de existentes para prevenção e tratamento e educativos aos profissionais de saúde
campo, gerando, posteriormente, relató- do uso de álcool e outras drogas e o nível e reuniões semanais com os gestores da
rios sistemáticos (21). Além disso, reu- de engajamento e participação da socie- APS, com dois retornos parciais.
niões semanais de planejamento foram dade civil no planejamento e implan- Através dos contatos com a gestão da
efetuadas, sendo a avaliação do trabalho tação de políticas públicas. Tais dados APS, disponibilizou-se uma assessoria
realizada continuamente. foram analisados concomitantemente ao para a definição de uma agenda de ações
processo de coleta. Eles serviram como sobre álcool e outras drogas, articulando
RESULTADOS parâmetro para o contínuo desenvolvi- os principais atores sociais no âmbito
mento dos trabalhos. local.
Os resultados são apresentados em Ainda nesta etapa, posteriormente à Nas visitas às equipes de ESF, foi rea-
duas categorias: 1) metodologia de im- realização do mapeamento, foram iden- lizado o acompanhamento da aplicação
plementação das práticas preventivas ao tificados os multiplicadores. Além disso, das técnicas de prevenção pelos profis-
uso de álcool e outras drogas e 2) pontos foram promovidas parcerias com diver- sionais de saúde e uma discussão poste-
de dificuldade e pontos de facilitação sos setores identificados dentro da rede rior dos casos encontrados, promovendo
observados no desenvolvimento dessa de apoio aos usuários. uma educação continuada dos conteú-
metodologia. A terceira etapa do projeto consistiu dos abordados na etapa de capacitação.
num trabalho de sensibilização dos vá- Ofereceu-se suporte para o desenvol-
Metodologia de implementação de rios atores sociais envolvidos na temá- vimento das estratégias de prevenção.
práticas preventivas ao uso de álcool tica de álcool e outras drogas (gestores, Também foram propostas estratégias
e outras drogas profissionais da rede assistencial, líderes voltadas para fatores organizacionais e
comunitários, etc.). Foi organizado um processos de trabalho que poderiam im-
A metodologia de implementação evento com duração de 1 dia que contou pactar favoravelmente a realização das
foi desenvolvida a partir de seis eta- com participação desses atores, onde os práticas de prevenção entre as equipes
pas, sendo elas: contato inicial e pla- pesquisadores do grupo e os gestores de profissionais de saúde.
nejamento, diagnóstico e mapeamento, locais proferiram palestras sobre a im- Os dois retornos parciais consistiram
sensibilização, capacitação, acompanha- portância da prevenção ao uso de álcool em apresentações dos principais resul-
mento e devolutiva. e outras drogas. tados referentes ao processo de imple-
Na fase de contato inicial, a posição de Contudo, o trabalho de sensibilização mentação do projeto para a discussão
colaboração entre todos os participantes foi contínuo, com o objetivo, ao longo do coletiva dos fatores que facilitaram e/
foi corroborada, de modo que as ações tempo, de modificar crenças e atitudes ou dificultaram a implementação da
propostas foram de responsabilidade moralizantes sobre o uso de álcool e proposta no município. O público alvo
mútua e realizadas em parceria. Tal pac- outras drogas. Portanto, preconizou-se a foi de profissionais da ESF, da rede de
tuação ocorreu entre os meses de março disseminação e a troca de informações ao álcool e outras drogas, coordenação da
e abril. Envolveu a elaboração, pelos longo do projeto, remetendo, mais uma APS e saúde mental. Essas apresentações
pesquisadores e gestores de saúde, das vez, à importância dos multiplicadores tiveram o objetivo de planejar as próxi-
estratégias de implementação do projeto, como ferramenta de alcance a uma maior mas etapas do projeto, consolidando a
respeitando as características locais. parcela da população. sua implementação e o fortalecimento de
Na etapa de diagnóstico, iniciou-se Na quarta etapa, os profissionais da parcerias locais estabelecidas.
um trabalho de inserção e familiarização ESF passaram por uma capacitação que Os materiais didáticos e educativos
ao campo e coleta de informações acerca incluiu noções teóricas sobre substâncias foram disponibilizados para os profis-
das características locais. Tal processo psicoativas (farmacologia, epidemiolo- sionais e usuários da ESF e continham
teve duração de 2 meses e compreendeu gia do uso, efeitos agudos e crônicos) dados sobre epidemiologia do uso de
a coleta de dados em sites do governo, e atividades práticas da SBIRT, como álcool e outras drogas e a realização da
Ministério da Saúde e Secretaria Nacio- a aplicação do instrumento de triagem triagem e IB. O intuito dessa estratégia
nal de Políticas sobre Drogas do Minis- (ASSIST) e a técnica de IB. A capacitação era de continuar com o processo de dis-
tério da Justiça (Senad/MJ). Também ocorreu dentro da perspectiva da educa- seminação de informação e sensibiliza-
ção e, também, servir como material de Ademais, na etapa de diagnóstico, suporte da gestão municipal para a abor-
apoio para os profissionais na realização foram observados outros pontos de di- dagem das questões ligadas ao tema.
das práticas dadas na capacitação. ficuldade, entre eles: insuficiência de re- Foram também relatados problemas no
A sexta etapa foi executada a partir cursos na ESF, visão da população como encaminhamento de pacientes — com
de um relatório final e de um último mera receptora de políticas públicas, sobrecarga para o CAPSad, que não con-
retorno. A finalidade foi sistematizar o baixo número de contingente profissio- seguia suprir a demanda de tratamento
projeto como um todo, apontando os nal nas equipes de saúde, infraestrutura do município, e (mais uma vez) a falta
pontos de dificuldade e facilitação à im- inadequada dos postos de saúde e au- de intersetorialidade, com os setores
plementação das ações de prevenção ao sência de mobilização e participação da atuando, em sua maior parte, de forma
uso de álcool e outras drogas. Ainda fo- população no planejamento e realização isolada, sem articulação.
ram delineados os pontos que poderiam de ações. Por fim, na etapa devolutiva, observa-
auxiliar no planejamento e continuidade Na etapa de sensibilização, a partici- ram-se, como pontos facilitadores, a pos-
das ações realizadas. No retorno final, pação da gestão de saúde e de outros tura receptiva da gestão em relação aos
foi arquitetada uma reunião com pro- setores ocorreu em momentos pontuais, resultados apresentados pelo projeto. Na
fissionais da ESF, da rede de álcool e como palestras e reuniões gerais com reunião final, houve participação ativa
outras drogas, coordenação da APS e os profissionais de saúde e população. dos agentes comunitários de saúde e dos
saúde mental e demais interessados. O O grupo enfrentou dificuldades na mu- enfermeiros na discussão dos pontos de
relatório final foi entregue à gestão e dis- dança de crenças, atitudes e compor- facilitação e dificuldade observados a
ponibilizado aos profissionais e demais tamentos dos profissionais, que eram partir de cada etapa de implementação
interessados. muitas vezes pautados por preconceitos da metodologia. Ademais, uma profis-
e estigmas sobre os usuários de álcool e sional da ESF que teve atuação desta-
Pontos de facilitação e dificuldade outras drogas. cada foi selecionada para supervisionar
observados no desenvolvimento da Na etapa de capacitação, 120 profissio- a execução do projeto e para apoiar a
metodologia nais da ESF foram capacitados para defi- implantação e a continuidade do modelo
nir e implementar as ações de prevenção de prevenção proposto. A nomeação
A seguir serão apresentados os pontos ao uso de álcool e outras drogas. Foi no- dessa profissional foi pactuada com a
de facilitação e dificuldade observados tável a participação maciça de agentes co- gestão de APS.
no desenvolvimento da metodologia, le- munitários de saúde, com 76 capacitados,
vando em consideração cada etapa de e a participação escassa dos médicos, DISCUSSÃO
implementação. com somente 2 capacitados. Observou-
Em relação ao contato inicial e o plane- se, nas propostas de ações formuladas Ao se pensar numa metodologia de
jamento, estes foram facilitados por uma pelos profissionais da ESF, o foco na de- pesquisa-intervenção, algumas caracte-
postura receptiva da gestão de saúde do pendência, demonstrando uma formação rísticas inerentes às realidades e ne-
município. Essa postura possibilitou a ainda calcada no saber médico, curativo, cessidades locais, além da própria me-
realização de um trabalho conjunto de que não priorizava a prevenção. todologia de trabalho e do papel do
planejamento e operacionalização das Ainda quanto ao processo de acompa- pesquisador, devem ser analisadas, para
ações preventivas a serem realizadas nhamento das equipes de ESF, foi desta- que não haja simplesmente uma trans-
pelos profissionais de saúde. cada a participação de agentes comuni- posição de modelos fora do contexto.
Na segunda etapa, de diagnóstico e tários de saúde na aplicação das práticas Mesmo que exista um planejamento ini-
mapeamento, constatou-se a existência preventivas, e dos enfermeiros na orga- cial à entrada no campo, esse planeja-
de outros projetos sobre álcool e outras nização da SBIRT. Foi percebida também mento deve ser maleável e modificável
drogas — por exemplo, um grupo de uma ausência dos médicos nesta etapa. a partir do mapeamento de demandas
trabalho composto por gestores de di- Os pontos facilitadores observados fo- e dificuldades dos serviços e da popu-
versos setores e um fórum intersetorial ram a realização da SBIRT pelos profis- lação, da definição das problemáticas a
permanente de saúde mental. Nesses sionais da ESF, aplicando o ASSIST e rea- serem consideradas e da possibilidade
projetos, as práticas realizadas no mu- lizando a intervenção breve; e as práticas de resolução ou enfrentamento dessas
nicípio eram apresentadas e discutidas educacionais e preventivas realizadas problemáticas. Todo esse processo deve
entre usuários e profissionais da rede em escolas por algumas equipes de ESF, ser calcado na participação conjunta, re-
em encontros quinzenais. Foram reali- como cursos, palestras, feiras e exposi- lações dialógicas estabelecidas entre pro-
zadas parceiras com esses projetos pre- ções. Essas práticas ocorreram a partir fissionais e comunidade, possibilitando
existentes, o que contribuiu não apenas da aproximação das equipes de ESF com a construção de novos saberes (22, 23).
para aprofundar o conhecimento acerca escolas de suas áreas de abrangência e de Com relação à APS no Brasil e em
das características da rede local, mas acordo com as necessidades e realidades grande parte da América Latina e Ca-
também para dar início ao processo locais. Ademais, algumas equipes pla- ribe, a literatura demonstra que, apesar
de sensibilização. Contudo, a despeito nejaram e implementaram grupos nas de profissionais e gestores atribuírem
dessas tentativas, foram observadas di- comunidades para discussão de diversos grande importância às ações de preven-
ficuldades de articulação da rede, com aspectos sobre o uso de álcool e outras ção e promoção de saúde, essas ainda
as noções de trabalho intersetorial ba- drogas, como as consequências do uso e ocorrem de forma paralela. O discurso
seadas apenas na junção de diferentes da prevenção, entre outros. preventivo, embora amplamente discu-
setores para a realização de ações com Contudo, os profissionais envolvidos tido na teoria, raramente é colocado em
caráter pontual. relataram ainda haver receio e falta de prática nos serviços de saúde (10). No
Brasil, a população ainda procura as adveio de um maior aprofundamento e a aplicação do ASSIST e a realização da
equipes de ESF com demandas majori- conscientização de alguns profissionais IB em pessoas mais próximas, a fim de
tariamente de cunho curativo e remedia- sobre o conceito de saúde e suas práti- uma maior ambientação do profissional
tivo — por exemplo, consultas médicas cas, mostrando também como é possível às práticas.
e odontológicas, requisição de medica- realizar ações coletivas, mesmo em si Também se mostra importante para
mentos e realização de curativos e vaci- tuações que não sejam as ideais. manutenção das práticas preventivas a
nas. A lógica que orienta o trabalho dos Destaca-se para isso a necessidade de realização de um planejamento das equi-
profissionais tende a ser o da legitimação parcerias com atores/entidades locais, pes de saúde para a implementação da
de tais demandas sociais (20, 24). Cabe nas quais esses atores assumam a respon- SBIRT em seus serviços, abordando a
salientar que isso é fruto de um processo sabilidade de aumentar a capilaridade da maneira como serão realizadas, estabe-
sócio-histórico com várias formulações e divulgação da prevenção ao uso de álcool lecendo metas e funções de cada profis-
reformulações. Nesse processo, é recente e outras drogas e de oferecer suporte à sional e pontuando possíveis entraves e
a introdução dos conceitos de prevenção implementação das práticas de acordo pontos facilitadores a serem enfrentados
e promoção de saúde, tanto para a po- com as potencialidades e peculiaridades de acordo suas realidades (12).
pulação quanto para os profissionais, em de cada localidade, promovendo o en- Sobre o papel da gestão, percebe-se na
comparação aos pressupostos da lógica gajamento da comunidade. A posição de literatura uma dificuldade dos gestores
biomédica (20). destaque exercida pelos profissionais da em ponderar adequadamente a impor-
Aliados a isso estão os problemas ESF perante a comunidade — principal- tância de ações preventivas ao uso de ál-
referentes à formação dos profissionais mente os enfermeiros e os ACS — confere cool e outras drogas (27). No município,
de saúde e suas práticas. O modelo de a esses profissionais um papel de elo observou-se a gestão de saúde receptiva
APS exige uma mudança estrutural em entre o serviço e a população, sendo que, à realização dessas práticas preventivas
ambas, que deve começar nos centros além disso, participam de forma ativa dentro da rotina dos serviços de saúde.
formadores. Contudo, ainda percebem- do contexto das equipes. Ao se objetivar Entretanto, não foi possível perceber um
se os profissionais de nível superior a continuidade das ações propostas na engajamento com as práticas propostas,
com sua formação e atuação voltadas rotina de trabalho, é preciso considerar como se o projeto não estivesse sob a
para os processos de adoecimento (10). a comunidade como o componente prin- responsabilidade do município também,
Ademais, a APS aparece como um meio cipal, com os profissionais gerenciando e numa perspectiva articuladora da atua
importante de inserção no mercado de organizando as ações em suas respectivas ção dos profissionais de saúde. Isso se
trabalho, especialmente para aqueles em equipes e áreas de abrangência (16). torna um fator que dificulta a incor-
início de carreira, estando a permanên- Entretanto, deve-se aproximar a equipe poração e manutenção das práticas na
cia desses, muitas vezes, condicionada e a rede assistencial para um trabalho in- rotina assistencial do sistema de saúde
pela falta de outras oportunidades de terdisciplinar/intersetorial. Sabe-se que a local (27).
trabalho (24). questão do uso de álcool e outras drogas Os processos de construção das po-
No caso dos agentes comunitários remete a diversas causas e dimensões, líticas públicas de saúde do município
de saúde (ACS), muitos não tiveram não sendo resolvida apenas pelo esforço foram observados como sendo, em sua
passagem alguma pela área da saúde setorial isolado da saúde. Articulações maioria, de cima pra baixo, onde pro-
anteriormente, adquirindo na prática o intersetoriais e a atuação multiprofis- fissionais e população são vistos como
seu real aprendizado, acarretando uma sional são imprescindíveis para incidir agentes passivos, não sendo convidados
reprodução de modelos de pensamento sobre os determinantes sociais do pro- para o processo de construção dessas
e ação hegemônicos. Portanto, o tra- cesso de uso de álcool e outras drogas e políticas. Isso nos remete à proposta da
balho de prevenção ao uso de álcool promover a saúde (26). participação comunitária num contexto
e outras drogas não pode mostrar-se Com relação às práticas de SBIRT, latino-americano que, segundo Briceño-
desconexo dessas análises conjunturais, estas devem acompanhar a rotina de Leon (28), trata-se de uma maneira de
com o objetivo de uma maior conscien- trabalho dos profissionais, ainda que em fortalecer a democracia. A sociedade
tização da população, de profissionais e momentos de maior sobrecarga de tra- civil há de assumir os seus deveres e im-
de gestores (24). balho tais práticas sejam realizadas com plicações na construção do setor saúde,
Outros fatores também são inerentes à menor frequência. Daí a importância do mas também não se pode acusá-la so-
APS no contexto latino-americano, como planejamento e do estabelecimento de mente por uma ausência de participação
a insuficiência de recursos (humanos, fi- metas concretas na APS. Essas ações, quando o Estado não se movimenta para
nanceiros, infraestrutura) e a falta de in- aliadas a maior e melhor investimento, criar um espaço de debate, convidando
tegralidade e intersetorialidade da rede melhorias das condições de trabalho, a sociedade a participar como agente fo-
assistencial (6, 25). Tais problemas foram suporte às equipes de saúde, são condi- mentador de reflexões e mudanças (28).
observados no município estudado, ge- ções para a sustentação e melhoria dos
rando grande demanda de atendimento, serviços ofertados. Conclusões
limitando e, em alguns casos, impossi- Pelo fato de serem práticas relativa-
bilitando as ações de prevenção. Entre- mente novas e que requerem mudança Algumas limitações foram percebidas
tanto, algumas ações pensadas e concre- de paradigmas, grande parte dos profis- durante o projeto, relacionadas, princi-
tizadas pelas equipes de saúde, além da sionais de saúde tem receio de abordá- palmente, às concepções da população
aplicação das práticas de SBIRT, indicam las dentro de suas comunidades (12). e profissionais sobre o uso de álcool e
tentativas mais amplas de se pensar na Frente a isso, é necessária uma postura outras drogas e às questões referentes
temática de álcool e outras drogas. Isso compreensiva, sugerindo soluções como à estruturação e dinâmica de funciona-
mento da rede de APS. Apesar disso, ações precisam ser planejadas para mé- torizar a realização do estudo; aos acadê-
considera-se o método apresentado e dio e longo prazo e não podem ser rea- micos de Psicologia da Universidade Fe-
avaliado no presente artigo como um lizadas para obter resultados imediatos, deral de Juiz de Fora, que participaram
modelo útil para ser adotado, com suas apesar da demanda da gestão, profissio- do trabalho de campo e coleta dos da-
devidas adaptações aos países latino- nais e população por respostas instan- dos; à Fundação de Amparo à Pesquisa
americanos. Ademais, demonstra que, tâneas. Por isso, a importância de pes- do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG)
apesar do incentivo cada vez mais fre- quisas-intervenções que levem em conta pelo financiamento do estudo através do
quente dos programas de capacitação, metodologias de implementação amplia- Edital 09/2010, “Extensão em Interface
estes de tornam limitados para a mu- das, participativas, levadas a cabo em com a Pesquisa 2010”; e ao Conselho
dança de fato de práticas se não esti- rede e contextualizadas, com destaque Nacional de Desenvolvimento Científico
verem articulados com uma ação mais para desafios e possibilidades de disse- e Tecnológico (CNPq) pela bolsa de pro-
ampliada e constante. minação nos países latino-americanos. dutividade em pesquisa.
É preciso progredir nas ações de pre-
venção ao uso de álcool e outras drogas Agradecimentos. À Secretaria de Conflito de interesses. Nada decla-
na América Latina como um todo. Tais Saúde do Município participante por au- rado pelos autores.
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Key words Primary health care; community-based participatory research; substance abuse
detection; Latin America.
por
apresentada por
Resumo....................................................................2
Abstract...................................................................3
Introdução...............................................................5
Justificativa............................................................11
Objetivos................................................................12
Método...................................................................14
Conclusões...........................................................113
1
Resumo
2
Palavras-chave: Uso de drogas; Serviços de saúde;
Política de drogas; Redução de danos; Atenção
psicossocial.
Abstract
3
nor remain in the realm of abstract models. They
rather comprise concerted practical actions, in
harmony with renewed public policies and the
concrete needs of people who misuse drugs and
alcohol, their families and peers, as well as their
communities at large.
4
Introdução
4
Poucos anos antes, McNeil havia atribuído às
doenças infecciosas um valor singular na dinâmica
do processo civilizatório: elas seriam um dos
principais parâmetros da história humana, e ao
mesmo tempo um de seus limites. O autor afirmou, à
5
época, que a prontidão necessária às ações de saúde
pública é pouco freqüente, e a continuidade dos
êxitos obtidos com sua implantação é dificilmente
mantida 5 .
6
9 p 87
FI Bastos
7
complexidade e gravidade dos problemas
contemporâneos demandam respostas oportunas, se
possível em tempo real, de modo a reduzir os danos
à saúde e sociais relacionados com determinadas
práticas. A redução de danos é definida como
conjunto estratégico de medidas de saúde pública,
para reduzir ou minimizar os efeitos adversos do uso
prejudicial de álcool e outras drogas 11.
Definição do problema
8
produtividade e diminuição da renda familiar, maior
envolvimento em acidentes de trabalho e de trânsito
e em situações de violência e corrupção, para citar
alguns 13 .
9
geral. O desejável é que tais intervenções ampliem o
foco para a população geral, mas que também se
dirijam a populações específicas, particularmente
vulneráveis 16 .
10
Justificativa
11
Estudos e pesquisas avaliativas da Atenção
Psicossocial demonstram a insuficiência de critérios
recomendados ou usados na avaliação de serviços de
saúde em geral, quando se pensa em transpô-los (na
construção de indicadores) para a Atenção
21, 22
Psicossocial em álcool e drogas . Esta
dissertação de doutorado visa contribuir para uma
reflexão teórica a respeito de modos possíveis de
avaliá-la, através do estudo da experiência de
implementação de um Centro de Atenção
Psicossocial em álcool e drogas (CAPS-ad) no Rio
de Janeiro.
Objetivos
12
• identificar os atores sociais e os principais
êxitos e obstáculos à implementação das
ações de cuidado deste serviço;
• identificar os itens pertinentes à qualidade
destas ações, na interface das diretrizes
técnicas e políticas propostas e sua realização
cotidiana, tal como experimentada por
aqueles que trabalham no serviço
mencionado e os usuários deste.
Estrutura da Tese
13
e diretrizes técnicas subjacentes ao modelo de
atenção psicossocial são apresentadas neste capítulo.
A identificação de fatores intervenientes na
qualidade das ações de saúde prestadas por um
Centro de Atenção Psicossocial em álcool e drogas
(CAPS-ad) na cidade do Rio de Janeiro, tal como
experimentada por alguns de seus profissionais, foi
considerada em sua elaboração. Este texto foi
submetido à avaliação na revista Interface:
Comunicação, Saúde, Educação.
Método
14
... baseia-se em várias fontes de evidências, e
...beneficia-se do desenvolvimento prévio de
proposições teóricas para conduzir a coleta e a
análise de dados’ 23 p 33.
15
4.3 Técnicas de coleta de dados
16
Para cada entrevista, uma folha de rosto foi
confeccionada, contendo informações sócio-
demográficas e anotações pertinentes. Cada folha de
rosto incluiu um campo para registro do código de
identificação do participante e espaço para
comentários. As folhas de rosto foram incluídas na
transcrição e a cópia em papel anexada à folha física
da entrevista.
17
esclarecido, por cada participante das coletas
descritas.
18
Referências bibliográficas
1Informações detalhadas em
http://dtp.nci.nih.gov/timeline/noflash/milestones/M
4_Nixon.htm).
19
10 Semenza JC, Giesecke J. Intervening to reduce
inequalities in infections in Europe. Am J Public
Health 2008; 98(5):787-92.
20
pela população urbana brasileira, 2005. Rev Saúde
Pública 2008; 42(1 Suppl ):118-26.
21
23 Yin RK. Estudo de caso: planejamento e
métodos. D Grassi (trad). Porto Alegre: Bookman;
2005.
22
Capítulo I - Saúde pública, redução de danos e a
prevenção das infecções de transmissão sexual e
sanguínea: revisão dos principais conceitos e sua
implementação no Brasil
Introdução
23
inserido). Na esfera da população e da comunidade,
entretanto, tal meta enquanto meta coletiva não é
factível (e não necessariamente desejável, para
alguns segmentos sociais), e tem resultado antes na
imposição de leis draconianas, que violam os
direitos humanos, sem contribuir de fato para a
redução dos danos e riscos em pauta.
24
disputa por pontos de venda é por dinheiro, e se
ninguém comprasse, não haveria o que disputar”.
25
Argentina, Bolívia, Equador e Uruguai) 5, principal
região produtora de coca e cocaína no mundo,
especialmente na região Andina. Espera-se que tais
iniciativas (em curso) redundem em políticas
públicas menos centralizadoras e autoritárias nesta
região, e contribuam para promover uma reforma
substancial nas suas políticas de drogas9. A
estratégia de RD necessita de suporte político e
legislativo para funcionar adequadamente10, o que
compreende intervenções fundamentais, básicas, de
captação para os serviços de saúde de um
contingente de usuários habitualmente ‘‘invisíveis”
para os mesmos. Recente artigo de Bastos e
colaboradores afirma que
Método
26
e Web of Science, utilizando-se como descritores:
redução de danos (harm reduction), saúde pública
(public health), abuso de drogas (substance abuse) e
Brasil. Além disso, foram utilizadas as bibliotecas
pessoais dos autores, essenciais na busca de
referências não indexadas nas bases supra-citadas.
Histórico
27
derivados do ópio, matéria prima da heroína e
substâncias correlatas, então em voga no Reino
Unido) para usuários destas drogas, sob
determinadas condições, foi estabelecido como
prática médica legítima a partir deste Relatório. Esta
prescrição incluía o manejo da síndrome de
abstinência e casos em que a interrupção do uso da
droga não pudesse se dar de modo seguro para o
usuário ou impossibilitasse o curso normal e
produtivo de sua vida12.
28
Atualmente, a prescrição de heroína para pessoas
que usam esta substância vem sendo objeto de
acalorados debates, e se restringe a um pequeno
grupo de experiências piloto, na Inglaterra e em
outros países europeus, como Dinamarca, Suécia e
Suíça14.
29
requisito para ingresso e permanência da sua
clientela.
30
seringas usadas (e potencialmente contaminadas) por
seringas estéreis, quando feitas de modo
independente uma da outra.
31
dificuldades no controle desta infecção do que no
controle da infecção pelo HIV, gerando
questionamentos a respeito da efetividade da RD
neste caso 26,27.
32
de administração de drogas por via injetável para
outras vias28.
33
mostraram estreita associação com a infecção pelo
HIV34. De forma similar, estudo desenvolvido junto
a usuárias de drogas afro-americanas residentes no
Brooklyn, Nova York35, indica que várias infecções
sexualmente transmissíveis - dentre as quais a
infecção pelo HIV - se mostram endêmicas (alguns
diriam que hiper-endêmicas) entre estas mulheres.
Os resultados sugerem, de acordo com estes
pesquisadores, a existência de nichos (“core
networks”) micro-sociais de incidência elevada de
tais infecções, além dos já conhecidos
conglomerados geográficos, onde tais infecções
apresentam elevada prevalência de fundo
(background prevalence)36.
34
Programas de Troca de Seringas (PST): breve
histórico
35
documentam sua influência decisiva nas primeiras
intervenções de saúde implantadas com base na
RD39.
36
No final dos anos ´80, metade da população-alvo
havia sido contactada e Liverpool e arredores
concentravam um terço das prescrições de metadona
de todo o país. O programa contribuiu decisivamente
para prevenir a nascente epidemia de AIDS entre
usuários de drogas injetáveis na região41.
37
tempo, de modo a reduzir os danos à saúde
individual e coletiva associados a determinadas
práticas.
Perspectivas Contemporâneas em RD
38
Tailândia e China. Já há PRD na Europa Oriental e
Central, Ásia e América Latina, impulsionados em
parte pela militância e trabalho coletivo, construído
e organizado em rede40.
Os PRD no Brasil
39
redes internacionais de cooperação. O debate
público, nacional e internacional, acerca de medidas
(de saúde pública) visando conter a disseminação do
HIV conferiu nova dimensão à questão das drogas
injetáveis48.
40
Apenas em 1995 foi de fato implantado o primeiro
PTS no Brasil, em Salvador, Bahia. O programa foi
possível graças à parceria entre o Centro de Estudos
e Tratamento em Atenção ao Uso de Drogas (Cetad),
a Escola de Medicina e a Universidade Federal da
Bahia, apoiados pelos governos estadual e
municipal50. Este programa foi pioneiro na América
do Sul, onde atualmente, além do Brasil, apenas a
Argentina apóia oficialmente tais programas.
41
A epidemia de AIDS no Brasil é um compósito de
diversas sub-epidemias regionais. O país tem
dimensões continentais, e apresenta diferenças
regionais importantes em seu desenvolvimento
sócio-econômico e composição demográfica, entre
outros aspectos53. Desde o início da epidemia, nos
anos ‘80, tem havido variações de incidência e
prevalência das epidemias regionais e locais, nas
diferentes regiões geográficas e sub-populações do
país.
42
Estes achados, segundo análise recente59, podem
contribuir para explicar a disseminação rápida e
continua da epidemia entre mulheres (muitas delas
parceiras sexuais de pessoas que usam drogas
injetáveis) e da transmissão vertical (da mãe para o
bebê) nesta região, bem como o declínio menos
expressivo das mortes relacionadas à infecção pelo
HIV, em relação a outras regiões do país, em função
do contexto de pobreza e discriminação em que
estão inseridos os usuários de drogas injetáveis e
suas redes sociais, mesmo num país que conta com
acesso universal à terapia anti-retroviral.
43
permanentemente atualizados e revisados, e que se
estabeleçam incentivos e sanções reforçando a
responsabilização por estas iniciativas50.
Considerações finais
44
devidamente avaliada. Não resta dúvida, entretanto,
que as ações de redução de danos devem ser
plenamente integradas às ações latu senso em saúde
pública, deixando para trás uma crônica vitoriosa,
mas amarga, de conflitos e confrontos, em prol do
diálogo e do crescimento mútuos, sempre em
respeito aos direitos humanos e em favor da
população de usuários de drogas, seus familiares e
próximos.
45
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WHO strategy” (“3 by 5”). Addiction
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48
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51
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52
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53
54 Barcellos C e Bastos FI. Redes sociais e difusão
da AIDS no Brasil. Boletín de la Oficina Sanitaria
Panamericana 1996; 121:11–24.
54
Rio de Janeiro, Brazil. Cad Saúde Pública 2007;
23(9):2134-44.
55
Capítulo II - Um estudo qualitativo sobre o
cuidado público às pessoas que usam álcool e
drogas de modo prejudicial ou dependente na
cidade do Rio de Janeiro 2009-2010
Introdução
56
substâncias psicoativas (especialmente estimulantes,
como cocaína, crack e metanfetamina) com práticas
sexuais menos seguras, como parcerias sexuais
concorrentes com relações desprotegidas e sexo em
2
troca de drogas, bens ou dinheiro .
57
saúde mental, cujas bases técnicas e políticas devem
ser analisadas sob uma perspectiva histórica.
58
métodos clínicos alijavam as pessoas internadas
nessas instituições (e seus familiares) das decisões
quanto ao seu próprio tratamento, violando
5 , 6
princípios básicos de cidadania . O panorama
nacional era de mobilização em prol da saúde
coletiva, advogando mudanças nos modelos de
gestão e atenção à saúde pública, eqüidade na oferta
de serviços e o protagonismo de trabalhadores e
usuários destes na gestão e produção de tecnologias
de cuidados 7 .
59
a apresentação ao Congresso Nacional do Projeto de
Lei “Paulo Delgado”, propondo a regulamentação
dos direitos da pessoa com transtornos mentais e a
extinção progressiva dos manicômios.
1
Documento da Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) a respeito das mudanças na atenção à
saúde mental nas Américas, adotado pela OMS.
60
As recomendações da III Conferência Nacional em
Saúde Mental (convocada logo após a promulgação
da Lei) também apontam na direção de uma política
pública afinada com os princípios, diretrizes e
estratégias da Reforma Psiquiátrica. Os CAPS se
consolidam como dispositivos estratégicos na
implementação de um novo modelo de atenção em
saúde mental, advoga-se a elaboração de uma
política pública de saúde para usuários de álcool e
drogas inserida neste modelo, e reafirma-se a
importância do controle social como garantia de
permanência e avanço das mudanças dai
decorrentes.
61
permanente entre as primeiras e as últimas, que pode
(e deve) resultar no aprimoramento de ambas.
A Atenção Psicossocial
62
Os serviços do tipo CAPS subdividem-se em cinco
modalidades (CAPS I, II, III, CAPSI e CAPS-ad),
não apenas quanto ao porte, capacidade de
atendimento, perfil populacional do município em
que estão localizados, mas também quanto ao tipo de
cuidado oferecido. Cada gestor deve definir junto à
comunidade o serviço adequado às demandas locais
7
.
63
acompanhamento mensal de até 450 pessoas com
transtornos mentais graves e persistentes. São
serviços de maior complexidade, com equipe
mínima de 16 profissionais (de nível médio e
superior), além de equipe noturna e de final de
semana.
64
hospitalização) os CAPS-ad contam com 2-3 leitos
de repouso.
65
buscar tratamento, por temor à criminalização de seu
comportamento, não conseguirem ou não desejarem
abster-se destas substâncias, não se sentirem
doentes, não acreditarem na efetividade do
tratamento ou não terem acesso aos mesmos (em
função do custo, distância ou impedimentos de outra
ordem) 10 .
66
tratamento (ambulatorial e hospitalar) vinculados a
universidades públicas.
67
mundial de HIV/AIDS nos anos ’80, mas já havia
sido empregada com sucesso por usuários
holandeses de drogas injetáveis na contenção de
surtos de infecções transmissíveis pelo sangue
(através do uso compartilhado de equipamentos de
injeção) e por relações sexuais 2 . Esta estratégia era
apoiada pelo Brasil desde os anos ’90, quando foi
lançado o Programa Nacional de Atenção
Comunitária Integrada aos Usuários de Álcool e
outras Drogas em 2003.
68
ainda, metas claras e mensuráveis, de modo que
possam ser monitoradas e avaliadas 17 .
Principais conceitos
69
experiências iniciais de desinstitucionalização
ampliaram e remodelaram o campo médico-
psiquiátrico onde se inscreviam os fenômenos da
loucura 18 p 14
.
70
princípio norteador no entendimento da questão do consumo de
21 p 43
álcool e outras drogas .
71
substanciais. O ideal seria alocar de antemão
recursos para o monitoramento e avaliação, quando
da implantação destes serviços (exigência básica de
diversas agências financiadoras). Seu valor imediato
mais evidente reside na captação de um conjunto de
pessoas até então excluídas, oferecendo-lhes
alternativas de prevenção que são custo-efetivas em
relação ao tratamento dos infectados pelo HIV e
outras afecções, além do que poupam em sofrimento
22 , 23 , 24
e vidas humanas .
72
da epidemia, quando pouco se sabia sobre ela. Tais
ações foram instituídas, primordialmente, enquanto
direito à cidadania e acesso universal à assistência.
O respeito às vivências diversas da sexualidade e ao
uso de drogas constituem princípios éticos
explicitados no Programa mencionado, embasando
27
suas ações programáticas .
73
modo de operar o cuidado, requerem a investigação
de formas (mais) adequadas de avaliação.
Método
Campo de pesquisa
74
Em 2000, a nova direção do Centra-Rio deu maior
autonomia à equipe de trabalho, incentivou o estudo
e pesquisa, e implantou ações de RD na instituição,
ainda que de forma descontínua (preservando, ao
longo do tempo, apenas as oficinas de
aconselhamento e a distribuição de preservativos,
fora do contexto mais amplo em que estavam
inseridas) 31 .
75
total de 1267 pessoas em acompanhamento (912
homens e 355 mulheres). Destes, 26% relataram
usar álcool e 26% múltiplas drogas; 16% cocaína,
11% crack, 8% crack e cocaína, 5% maconha e 8%
outras drogas (não especificadas). Os atendimentos
(individuais e grupais) cumpriram planos
terapêuticos específicos. Os usuários receberam
ajuda-alimentação, além de medicação e orientação
relacionada a benefícios sociais.
População de estudo
76
medicina clínica (1), acupuntura (1) e terapia
ocupacional (1).
Caracterização do estudo
Coleta de dados
77
local previamente definido, baseados em um roteiro
adaptado 36 .
78
Resultados
79
Especificidades da Atenção Psicossocial em álcool e
drogas foram apontadas pelos participantes,
questionando a territorialização de atendimentos
sigilosos, envolvendo situações de risco, e horários
de funcionamento restritivos ao acesso; ressaltou-se
que a reinserção social é complementar, e não
substitutiva do trabalho clínico, e que a precariedade
dos vínculos trabalhistas é ainda mais grave no
cuidado em pauta.
80
Nossa clientela é assim: tem tudo prá melhorar, prá dar certo, e
o cara some e não aparece nunca mais. E aí, foi o serviço que
foi ruim? (J).
Discussão
81
uso de drogas ilícitas), ao mesmo tempo em que os
qualifica para esta assistência, caracteriza-os como
infratores.
82
Os achados também evidenciam dificuldades
referentes ao manejo clínico (que podem estar
associadas com a própria constituição de serviços
específicos para estas pessoas). Outra questão foi a
precariedade dos vínculos trabalhistas, dificultando
o estabelecimento da confiança entre profissionais e
usuários do serviço – fundamento do trabalho
terapêutico cujo rompimento brusco pode trazer
conseqüências clínicas importantes.
83
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84
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87
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mestrado]. Rio de Janeiro: Departamento de
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88
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Pós-graduação em Política Social do Departamento
de Serviço Social da UNB. Brasília: UNB; 2001.
89
Capítulo III - o ponto de vista de familiares de
pessoas que usam álcool e drogas de modo
prejudicial ou dependente, atendidas em um
serviço público no Rio de Janeiro, 2009-2010
Introdução
90
adotar em seu modo de funcionamento. Os CAPS-ad
são considerados dispositivos estratégicos na
prestação de ações de saúde destinadas às pessoas
que usam as substâncias referidas de um modo
prejudicial ou dependente, bem como aos seus
familiares 3 .
91
município localizado na região metropolitana de São
Paulo), com parcos resultados terapêuticos, e
semelhante, na sua filosofia e modus operandi, à
ditadura vigente no país naquele período.
92
mental, regidos pelos princípios da Reforma
Psiquiátrica 7 .
93
problemática (prejudicial ou dependente) com álcool
e drogas, que utilizam serviços públicos voltados
para esta questão, sobre a qualidade dos mesmos.
94
A redução de danos é o conjunto estratégico de
medidas de saúde pública objetivando reduzir ou
minimizar os efeitos adversos do uso prejudicial de
9
álcool e outras drogas . Mais do que as medidas
em si, no entanto, a lógica da redução de danos
constitui um marco conceitual de auxílio
inestimável na escolha de modos mais apropriados
de intervenção, face às circunstâncias concretas em
10 p
que se dá o consumo de substâncias psicoativas
57
.
Referencial teórico
95
Seu início remonta aos anos ’50, com observações
de Jay Haley, psiquiatra norte-americano, quanto à
piora de doentes esquizofrênicos ao serem visitados
por determinados familiares (nas instituições em que
se encontravam internados) ou no retorno a suas
casas.
96
mesmo grupamento familiar, sendo o
comportamento daquele identificado como paciente
apenas parte do padrão (familiar) geral recorrente.
Uma das implicações desta inferência teórica foi
97
[...] quando a drogadicção ocorre, a família precisa ser
engajada na prevenção e no tratamento, uma vez que esse
sintoma que ‘aparece’ em um de seus membros denuncia
14 p 149
problemas no sistema familiar .
98
modo inconsciente) a uma lógica peculiar, ao
mesmo tempo refratária e submissa às injunções que
lhe são impostas pela Cultura 16 .
99
Ações de cuidado, segundo a psicanálise, devem
visar à implicação do sujeito naquilo que lhe
acontece, levando-o a responsabilizar-se por seus
atos. Isto requer intervenções clínicas que não se
restrinjam ao diagnóstico psicopatológico, ainda que
elaborado com seriedade e competência.
100
relativa, exemplificada por Lacan pela opção entre
‘a bolsa ou a vida’ imposta pelo ladrão à sua vítima,
situação em que ao se escolher a bolsa pode-se
perder a vida).
Método
Campo de Pesquisa
101
total de 1267 pessoas em acompanhamento (912
homens e 355 mulheres).
População de Estudo
102
familiares participaram do grupo foi de 26,6 anos,
com ampla variação (17–60 anos). O uso em questão
se referia a bebidas alcoólicas (3), substâncias
psicoativas não especificadas (3), cocaína aspirada
(2) e maconha (1). Nenhum dos usuários estava
sendo atendido na instituição em pauta atualmente,
salvo a mais jovem, há oito meses, e o mais velho,
irregularmente.
Caracterização do Estudo
Coleta de dados
103
segunda rodada teve como única questão : como
deve ser o funcionamento ideal de um serviço
público especializado nesse tipo de atendimento ?
Resultados
104
Segundo: sua permanência nesta unidade de saúde
parece tão fundamentada no vínculo estabelecido
com pessoas que relatam problemas semelhantes
(outros ‘‘familiares’’, como se apresentam), quanto
na relação terapêutica propriamente dita com os
profissionais que ali trabalham. Alguns relatam já
terem satisfeito sua demanda inicial, mas se sentirem
vinculados ao serviço:
G: [... ] não quero ter alta porque aqui foi tudo prá mim, meu
porto seguro.
105
Os dados sugerem uma apropriação, por parte destes
familiares, de noções pertinentes aos serviços em
pauta, como o valor da ‘‘funcionalidade’’ enquanto
critério de uso prejudicial ou dependente de álcool
ou drogas (a menção ao estudo ou trabalho regular e
capacidade de estabelecer relações interpessoais foi
feita por alguns). O respeito ao livre arbítrio (e ao
disposto pela Lei Federal 10216 aprovada em 2001)
quanto à possibilidade de internação em hospital
psiquiátrico também parece ter sido assimilado pela
maioria.
Discussão
106
comparecimento das pessoas (algumas mencionaram
a dificuldade de deslocamento em dias úteis nestes
horários). Os integrantes do grupo prontamente se
dispuseram a falar, mas seus relatos privilegiaram
histórias pessoais em detrimento das considerações
sobre o serviço (talvez pelo modo habitual em que se
portam em atendimentos desta natureza).
107
intervenções para preservar a vida do usuário de
drogas ou de terceiros. Os relatos dos participantes
do estudo ratificam essas observações, mas sugerem
que tais dificuldades podem ser amenizadas por
serviços amigáveis e receptivos.
Considerações Finais
108
técnica colocada à prova em cada atendimento, na
escuta um a um, caso a caso.
109
Referências bibliográficas
110
9 Brasil. Decreto n 6117 de 22 de maio de 2007.
Dispõe sobre as medidas para redução do uso
indevido de álcool e sua associação com a violência
e a criminalidade. Diário Oficial da União 23 de
maio de 2007.
111
16. Freud S. Obras Completas. El Malestar em la
Cultura (1930 [1929]). Buenos Aires: Amorrortu ;
1985.
112
Conclusões
113
cabe resgatar as experiências pioneiras,
caracterizadas no Brasil por um elo então
indissociável entre a clínica, a ação política e a
participação da sociedade civil (inclusive dos
próprios pacientes e seus familiares). É desta
perspectiva que a investigação de formas (mais)
adequadas de avaliação da atenção psicossocial em
álcool e drogas deve ser analisada e prosseguir.
114
Rev. Ter. Ocup. Univ. São Paulo, v. 21, n. 3, p. 247-254, set./dez. 2010.
* Este estudo é resultado da dissertação de mestrado intitulada “O desafio de assistir pacientes com transtornos decorrentes de uso prejudicial
e ou dependência de álcool e outras drogas” (Oliveira, 2005).
1.
Enfermeira, Mestre pelo Programa de Pós Graduação em Enfermagem da Escola de Enfermagem da USP. Membro do Grupo de Estudos
em Álcool e outras Drogas da Escola de Enfermagem da USP email: eoliv_br@hotmail.com
2.
Enfermeira, Livre Docente do Departamento de Enfermagem Materno-Infantil e Psiquiátrica da Escola de Enfermagem da USP, líder do
Grupo de Estudos em Álcool e outras Drogas da Escola de Enfermagem da USP email: marciaap@usp.br
3.
Enfermeira, Mestre e Doutoranda em Ciências pelo Programa de Pós Graduação em Enfermagem da Escola de Enfermagem da USP,
membro do Grupo de Estudos em Álcool e outras Drogas da Escola de Enfermagem da USP heloisa.claro@usp.br
4.
Estudante de graduação em Enfermagem da Escola de Enfermagem da USP. Membro do Grupo de Estudos em Álcool e outras Drogas
da Escola de Enfermagem da USP email: heloisa.paglione@usp.br
Endereço para correspondência: Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 419 - 05403-000 - São Paulo – SP
247
A
de um centro de atenção psicossocial álcool e outras drogas
s transformações dos modelos assistenciais constroem acerca das práticas assistenciais desenvolvidas
que vêm sendo produzidas desde o final da na instituição.
década de 1970, em relação à assistência
aos portadores de transtornos mentais, atingiram seu ápice PERCURSO METODOLÓGICO
em 1980, com a Reforma Psiquiátrica brasileira. Este
movimento inspirou-se na reforma psiquiátrica italiana, Este estudo é de abordagem qualitativa entendida
de negação dos manicômios, e, por meio da Lei nº 180 de como uma tentativa de obter profunda compreensão das
1978, partiu para investimentos em ações de reinserção concepções e definições de uma determinada situação,
social (REPPUBLICA ITALIANA, 1978), tal como as pessoas nos apresentam, e possibilita uma
Na década de 1980, foi criado o Sistema Único de aproximação do universo de significações, motivos,
Saúde (SUS), que tem como finalidade garantir a promoção aspirações, atitudes e crenças dos profissionais aqui
e qualidade de vida para toda população, no intuito de estudados. Essa abordagem parte do pressuposto de que
assegurar acesso a todos a uma assistência universalista, o mundo está permeado de significados e símbolos e que
integral e eqüitativa. No campo da saúde mental, essa a intersubjetividade é um ponto de partida para captar
finalidade foi alcançada somente em 2001, pela aprovação reflexivamente os significados sociais (MINAYO, 1998).
da Lei 10.216/2001. Esta lei redireciona o modelo A coleta de dados foi realizada em um Centro de
assistencial, criando um conjunto de medidas e fundamentos Atenção Psicossocial aos usuários de álcool, tabaco e outras
para sua efetivação e, estabelece que os tratamentos devam drogas – CAPS adII, localizado em São Paulo, em região
ser realizados em serviços comunitários, como estrutura de alto consumo de crack. A instituição oferece assistência
intermediária entre a internação e a vida comunitária nas modalidades intensiva, semi intensiva e não intensiva,
(BRASIL, 2007). Neste mesmo ano, o seminário realizado de acordo com o o projeto terapêutico singular1 elaborado
em Brasília sobre o Atendimento aos Usuários de Álcool e para cada usuário.
Outras Drogas enfocava a discussão sobre a organização da Participaram do estudo nove sujeitos, todos
rede em saúde mental, visando ao aprimoramento constante profissionais de nível superior, que prestam assistência
da assistência, no âmbito do SUS (BRASIL, 2007). direta aos usuários no centro de atenção psicossocial para
Como conseqüência do Seminário e da III Conferência álcool e outras drogas – CAPS ad II. Os dados foram obtidos
Nacional de Saúde Mental, o Ministério da Saúde, em por meio de entrevistas semi-estruturadas, de acordo com
2002, institui, no âmbito do SUS, o Programa Nacional formulário e termo de consentimento livre e esclarecido
de Atenção Comunitária Integrada a Usuários de Álcool e aprovado pelo Comitê de Ética da Escola de Enfermagem
Outras Drogas, por meio da Portaria GM/MS nº 816, de 30 da Universidade de São Paulo, parecer nº422/2004/CEP-
de abril de 2002 (BRASIL, 2004). EEUSP.
Assim, a Política do Ministério da Saúde para a Os dados foram submetidos à análise de conteúdo,
atenção integral aos usuários de álcool e outras drogas propõe tendo como suporte o referencial teórico-metodológico
que os novos equipamentos de saúde considerem o caráter a representação social. Por meio da leitura repetida das
multifatorial do consumo de drogas, realizando diálogos entrevistas procuramos depreender os temas; os valores,
com os serviços culturais, sociais e outras instituições de crenças e concepções dos sujeitos; identificações das
saúde, estruturando uma rede de assistência na atenção argumentações presentes no discurso e reconhecimento
comunitária com ênfase na reabilitação e reinserção social da emergência das categorias empíricas (MINAYO,
(BRASIL, 2007). Nesse contexto, os Centros de Atenção 1998). Considerando os temas emergentes foi elaborada a
Psicossocial de Álcool e Outras Drogas – CAPS adII - são representação central da pesquisa, como categoria empírica
considerados equipamentos estratégicos para essas novas denominada: práticas assistenciais aos usuários com
práticas de saúde. transtornos decorrentes de uso prejudicial e ou dependência
Diante do exposto, o objetivo deste estudo foi de álcool e outras drogas. As categorias empíricas são
1. Projeto Terapêutico Singular entendido, neste estudo, como uma construção coletiva centrado nas reais necessidades, desejos e poten-
cialidades dos sujeitos e na co-responsabilização entre usuários, técnicos e outros atores envolvidos (MARQUES; MÂNGIA, 2009).
248
responsáveis por captar os significados e contradições no “Procuramos no acolhimento estar um de cada área.”
aspecto empírico da realidade a ser pesquisada (MINAYO, (D6.9)
1998).
As falas apreendidas das entrevistas, que estão “A primeira vez que ele vai ser acolhido, tem uma equipe
citadas ao longo deste estudo, estão codificadas a partir do para o acolhimento.” (D7.21)
número atribuído pelos pesquisadores ao sujeito e o número Apesar de reconhecerem a importância do
do trecho de seu discurso que foi apreendido, exemplo: D2.3 acolhimento e da equipe multidisciplinar para realizá-lo, os
– Discurso do sujeito 2, 3º trecho do discurso apreendido. profissionais reconhecem que este deve ser realizado durante
todo o período de funcionamento do serviço, informação que
RESULTADOS E DISCUSSÃO pode ser comprovada por meio da literatura, uma vez que o
usuário comumente apresenta ambivalência com relação ao
Práticas assistenciais aos usuários com transtornos tratamento e ao uso de álcool e outras drogas. Se o usuário
decorrentes de uso prejudicial e ou dependência de álcool não é acolhido no momento em que vê o tratamento como
e outras drogas uma possibilidade, é provável que não retorne ao serviço
posteriormente (CASTRO; PASSOS, 2005).
As práticas assistenciais são definidas por meio da Na sequência:
identificação das necessidades dos usuários e implementação
de ações e intervenções por parte dos profissionais do serviço. “A equipe do acolhimento está disponível durante
No CAPS ad II, estas práticas sofrem grandes influências das muito pouco tempo.” (D9.37)
atitudes e participação/integração da equipe como um todo
no projeto terapêutico dos usuários, e devem ultrapassar a “Aqui você tem um sistema, às vezes é ruim por que
rigidez dos papéis, manter a continuidade terapêutica, utilizar você não consegue acolher na hora.” (D2.17)
todas as medidas disponíveis, registrando os dados essenciais Esta dificuldade para realizar o acolhimento durante
sobre as atividades exercidas e possibilitar, também, novas todo o período de funcionamento do serviço e com uma
práticas derivadas das demandas dos indivíduos assistidos. equipe multidisciplinar, pode ser justificada à medida que os
Esse modelo assistencial busca o rompimento do modelo serviços contam com um número reduzido de profissionais
clínico, centrando-se na individualização do sujeito e no seu especializados na área, ou recursos insuficientes para a
modo de viver (SARACENO, 1997). Podemos observar no manutenção de uma equipe exclusiva para exercer esta
discurso dos profissionais abaixo: função.
“Não atendemos o paciente cada um na sua formação, Depois de realizado o acolhimento do usuário, os
mas a gente discute o paciente como um todo. A gente faz profissionais relatam que é realizada uma entrevista com o
um trabalho multidisciplinar... Estamos caminhando para objetivo de coletar a história pregressa e do uso de drogas
uma transdisciplinaridade.”(D1.1) de cada indivíduo. Como podemos verificar abaixo:
Essa assistência requer uma reflexão sobre a forma “Fazemos a entrevista, onde você coleta dados da família,
de organização dos serviços, saberes e práticas de saúde infância, adolescência, uso que faz de drogas, se tem
a fim de transformar sua relação com aqueles que se internação”. (D2.37)
propõem a atender. Os principais atores para essas mudanças
são os técnicos de saúde. Podemos articular este saber “Procura estar avaliando a situação completa.”
evidenciado no discurso do profissional (de que a assistência (D3.15)
deve perpassar todas as especialidades) com a literatura O plano terapêutico é realizado após a entrevista
científica, que aponta a necessidade de uma flexibilização inicial em conjunto com o usuário; um profissional é indicado
dos papéis, respeitando-se a formação profissional de cada como referência, realizando possíveis intervenções no plano
um e a dinâmica do atendimento no serviço aberto, sendo
terapêutico. Essa forma de atendimento fortalece a formação
necessária uma mobilização de competências e saberes
de vínculos, tratando-se de uma ação transformadora da
que devem se unir frente à demanda de cada indivíduo
prática em saúde (BERTONCELLO; FRANCO, 2001),
(SARACENO, 2001).
Percebemos, também, que os profissionais têm porém, a forma de indicação de um profissional de referência
buscado modelos diferentes dos tradicionais para receber nem sempre é o melhor caminho, este deve acontecer com
os usuários os quais são recebidos por um grupo de base na vinculação inicial do usuário e um profissional.
acolhimento, como percebemos a seguir: A seguir:
249
“Depois do acolhimento, se faz o plano terapêutico. O do usuário, por trabalhar questões como a ambivalência, por
plano terapêutico é realizado pela equipe.” (D1.32) fornecerem um ambiente onde o usuário sinta-se seguro
A equipe do serviço tem como objetivo trabalhar para falar sobre os seus sentimentos, de forma acolhedora
em um contexto de intersetorialidade no fortalecimento da e empática. É necessário, portanto, avaliar o estágio
rede de atenção integral à saúde, contando, também, com a motivacional do usuário e trabalhar com os recursos acima
participação familiar e da comunidade, porém, esta prática mencionados (PILLON; LUIS, 2004, CASTRO; PASSOS,
não é muito frequente, conforme relatado nos discursos 2005).
abaixo: “Nos grupos terapêuticos de primeira fase o paciente...
Está iniciando; para o trabalho motivacional, grupo
“(Incluir a família no tratamento) É um trabalho que está
de segunda fase que aí você vai trabalhar mesmo as
engatinhando”. (D1.7)
necessidades intrínsecas dos pacientes que são as
ansiedades os medos as angustias.” (D1.24)
“Com a família, nós estamos começando; é uma coisa que
está andando” (D9.4)
“Grupo terapêutico: os que chamam de primeira fase é
O projeto institucional do CAPS adII, neste estudo, quando ele (o paciente) está iniciando o tratamento, e
visa o resgate à cidadania e autonomia dos usuários. Neste o de segunda fase quando ele já está em abstinência.“
sentido, profissionais utilizam de consultas individuais, (D2.19)
grupos, oficinas e educação da população. Existem, também, alguns grupos mais específicos,
No início do tratamento, os usuários são atendidos que foram desenvolvidos para atender demandas de
por diversos profissionais individualmente, sendo obrigatória características especiais, como o grupo terapêutico para
uma consulta com o médico clínico. atendimento exclusivo de mulheres. Este grupo tem como
“Você tem consultas, Consultas com psiquiatra, de objetivo proporcionar um espaço em que as participantes
enfermagem, clínica, consulta com a assistente social.” sintam-se mais confortáveis para falar de questões femininas
(D1.23) específicas.
“Tem o grupo de mulheres, com atividades voltadas pra
“Nós fazemos o possível para que eles façam a consulta
elas, para se sentirem mais confortáveis” (D9.22)
de enfermagem, mas não são todos.” (D9.27)
Nenhum profissional citou grupos de família, o
“Eles participam de consultas com a enfermagem, também que nos chamou atenção, uma vez que a participação do
com o psicólogo.”(D9.21) familiar e sua contribuição para o tratamento são essenciais
“É importante participar de todas (as na assistência ao usuário de álcool e outras drogas. Não
consultas), não só a do clínico.” (D9.23) podemos esquecer, porém, que o serviço atende diversos
A terapia de grupo é uma estratégia muito utilizada usuários em situação de rua, que teoricamente não possuem
neste serviço. Os grupos podem ser abertos (os usuários respaldo familiar (COLVERO et al., 2004).
podem participar a qualquer momento) ou fechados (um As oficinas terapêuticas são estratégias utilizadas
grupo de usuários é formado, e somente estes usuários pelos profissionais para a reabilitação dos usuários,
frequentam o grupo até mudarem de nível assistencial, ou entendidas como atividades grupais para a socialização,
até que o grupo atinja alguns objetivos). expressão e inserção social dos usuários que dela participam.
Podemos verificar a importância das oficinas nos discursos
“Tem atividades grupais que têm desde grupo operativo, abaixo:
o grupo de motivação, o grupo terapêutico propriamente
dito... A gente tem grupos abertos e fechados.” (D4.9) “Tem as oficinas que são as atividades grupais com
atividades dirigidas; que são terapêuticos pela convivência
Os grupos motivacionais são classificados em com o técnico que sabe do projeto terapêutico do paciente,
primeira e segunda fase. Os de primeira fase são os grupos que está interagindo.” (D4.13)
que trabalham com a motivação do usuário e a sua evolução
nos estágios motivacionais. Nos grupos de segunda fase, são “Temos os oficineiros.” (D2.10)
trabalhadas estratégias de manutenção e necessidades mais
específicas de cada usuário, para que este permaneça em “Oficinas são vários tipos; tem trabalhos manuais; agora
tratamento. Intervenções motivacionais são descritas pela está tendo uma de xadrez realizada por um médico. A
literatura como importantes para o processo de reabilitação oficina tem um objetivo terapêutico bem definido; tem
250
251
procurem hospitais ou outros serviços que não apresentam sem beber, sem usar droga, é que a gente vai pensar em
as diretrizes da atual política de saúde brasileira. Quando alta”. (D8.10)
da necessidade de internação hospitalar, os CAPSs devem Ao rever o projeto terapêutico singular, alguns
acionar um hospital geral de referência, sobertudo, os princípios devem ser considerados, tais como: manter
serviços hospitalares de referência para álcool e outras a continuidade do propósito inicial do projeto; ouvir as
drogas. Este é um dos pontos importantes ao se trabalhar queixas dos usuários; acompanhar seu progresso; e procurar
com o conceito de rede assistencial, em que os diferentes trabalhar suas necessidades externas (trabalhar o contexto,
níveis de atenção devem ser considerados para que o usuário no qual usuário faz parte) (GRIFFITH et al., 1999).
desfrute da integralidade assistencial que prevê o SUS A assistência deve apresentar um continuum,
(DEL-BEN, 1999). eliminando possíveis barreiras para a manutenção e procura
Podemos verificar, nos discursos dos profissionais, dos usuários pelo tratamento. As práticas assistenciais
que esta transferência do usuário para o hospital é de difícil prestadas nos serviços de atenção ao usuário de álcool
acesso: e outras drogas devem ser determinadas pela equipe
multiprofissional, porém, com a participação ativa do
“Às vezes, eles precisam ir da observação pro
usuário, para que ele sinta-se acolhido e para que as suas
hospital e o CAPS não tem transporte, nem o
necessidades sejam centrais no planejamento e evolução do
hospital.” (D7.12)
projeto terapêutico singular (RIBEIRO, 2004; MARTINS
Na sequência, os sujeitos nos apontam que alguns et al., 2010).
usuários que se encontram nos leitos de observação
devido à intoxicação podem ser liberados para participar CONCLUSÕES
de outras atividades. O usuário pode permanecer no leito
até que cessem os sintomas mais importantes, e quando os Na instituição pesquisa, foi possível observar que
profissionais avaliam que este está mais estável, ele pode as práticas assistenciais dos profissionais são cercadas
freqüentar oficinas, grupos, entre outros, como observamos de estratégias com o objetivo de acolher, planejar e
a seguir: realizar intervenções terapêuticas com os usuários. Destas
estratégias, destacam-se, sobretudo as oficinas e grupos
“Isso não quer dizer que ele vai ficar lá a semana
terapêuticos multiprofissionais.
toda. Ele pode ficar no primeiro dia. Amanhã,
Os profissionais verbalizam que o acolhimento ao
ele pode ficar bem, ele passa, faz o processo da
usuário é extremamente importante, o que condiz com as
desintoxicação, vai para as atividades. Sempre
afirmações encontradas na literatura especializada. Porém,
quando ele chega”. (D7.24)
estes sujeitos reconhecem que existem diversos fatores que
O usuário que se encontra no atendimento intensivo dificultam que o acolhimento ocorra da maneira necessária
é avaliado constantemente, e quando a equipe reconhece a para atender as demandas dos usuários.
evolução do indivíduo, pode propor o encaminhamento deste Este estudo permitiu, ainda, visualizar a importância
ao atendimento semi intensivo. Esta avaliação é de grande do projeto terapêutico singular, uma vez que, nos discursos,
importância para a execução do projeto terapêutico singular fica claro que a assistência deve ser planejada pela
de cada usuário, porém, parece não ser tão fácil, uma vez equipe interdisciplinar, e deve variar de acordo com as
que podemos identificar, no discurso dos profissionais certa necessidades/demandas de cada um, resultando num plano
dificuldade para estabelecer qual será a nova frequência e de tratamento aos usuários que possam considerar os níveis
outros critérios para encaixá-lo: diferenciados de atenção estabelecido nas instituições de
“No intensivo, a pessoa vai melhorando aos poucos... cuidado ao usuário de álcool e outras drogas.
Ela... tem um período que a situação dela está muito aguda É importante destacar, também, a necessidade de
e ela está precisando continência médica e de enfermagem uma rede mais articulada para o cuidado destes usuários,
mais... À medida que ela vai melhorando, vai espaçando uma vez que os profissionais verbalizam que, muitas vezes, o
as atividades dela”. (D3.8) usuário precisa de cuidado em hospital geral e este processo
é dificultado pela falta de acesso, pois faltam alguns recursos
“Não intensivo que são mais consultas ambulatoriais, ou
essenciais para uma articulação efetiva entre os serviços,
grupais que faz parte do quadro do projeto terapêutico
do paciente”. (D4.8) como um sistema de referência e contra-referência, ou seja,
esta articulação da rede de atenção integral aos usuários de
“No não intensivo, depois de um ano que o paciente está álcool e outras drogas,tem que ser estabelecida com a rede
252
ABSTRACT: Objectives: To identify and analyze the representations the professionals from a
psychosocial care center for alcohol and other drugs construct about care practices developed at the
institution. Methods: We interviewed nine professionals from a referral center for alcohol, tobacco
and other drugs, at the city of Sao Paulo. Data were subjected to content analysis, supported by the
theoretical and methodological social representation. Results: by analysing the emerging themes
it were elaborated the central representation of the research: practical assistance to users with
disorders caused by harmful use and alcohol and other drugs dependence. Conclusion: professionals
in psychosocial care center for alcohol and other drugs have procedures for caring for the user of
alcohol and other drugs, which vary with the level of attention and needs of each, and those are
developed through therapeutic projects. Thus, care should be planned by an interdisciplinary team,
considering that the harmful use of alcohol and other drugs are the result of multifaceted factors,
which should guide and be part of these projects.
KEY WORDS: Health services; Public policies; Comprehensive health care; Mental health
services/utilization.
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