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Abilio A rruda

calvtno
e a educação para a solidariedade
Abilio Arruda

Calvino
E A E D U C A Ç Ã O PARA A
S O L ID A R IE D A D E

EDITORA

m
SANTUÁRIO
© Fonte Editorial e Editora Santuário

Capa e preparação:
E duardo de P roença
Formato 14x21 cm - 144 páginas

D ados Intern acio n ais de C atalogação n a Publicação (CIP)

Arruda, Abilio
Calvino e a educação para a solidariedade / Abilio
Arruda ; São Paulo: Fonte Editorial; A parecida (SP):
Santuário, 2010.

Bibliografia
ISBN 978-85-63 607-08-9

1.Educação - Solidariedade 2. Reforma calvinista


3 .Calvino, João, 1509-1564 - Crítica e interpretação 4.
Educação religiosa I. Título.

CDD 370.115

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Agradeço
à Carlos Jeremias Klein e Reginaldo von Zuben.

> Dedico
à Rose, Paula Giovanna, Daniele e Natália, minha família.
6
A m uo A rruda
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO........................................................................................... 09

CAPÍTULO I - A DOUTRINA TEOLÓGICA E SOCIAL DE CALVINO......13

1. O Contexto Histórico e Social da Reforma Calvinista......................... 13

2. A Doutrina Teológica e Social de Calvino.............................................. 24

2.1.0 humanismo..................................................................................... 25

2.2. Trajetória biográfica de Calvino humanista....................................... 27

2.3. Acrítica de Calvino ao Estado............................................................ 30

2.4. Agraça e a educação para a solidariedade....................................... 38

CAPÍTULO II - EDUCAÇÃO PARAASOLIDARIEDADE............................ 53

1.0 Ser Humano é “ser aprendente”........................................................54

2. Duas Noções de Solidariedade..............................................................59

2.1. A solidariedade como um fato..............................................................60

2.2. A solidariedade como uma exigência ética........................................64

3. Solidariedade e Competência................................................................69

4. Solidariedade e Espiritualidade..............................................................79
CAPÍTULO III - A DOUTRINA TEOLÓGICA E SOCIAL DE CALVINO EA

EDUCAÇÃO PARAA SOLIDARIEDADE...............;................................... 93


8 1. Estado, Igreja e Solidariedade................................................................94
2. A Fé e a Práxis Política......................................................................... 100
3. Solidariedade e Missão: a Práxis Religiosa Crista e a Educação para
a Solidariedade.........................................................................................106
3.1. Educação anti-dialógica e insensibilidade....................................... 107
3.2. Solidariedade e a dimensão profética da Igreja.............................. 111

CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................131
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...................................................... ..135
A bílioA rruda
INTRODUÇÃO

Atualmente uma boa parcela da Igreja cristã tem observado,


insensível e passiva, ao sofrim ento de m ilhões de pessoas
excluídas, do mercado de trabalho e do mercado consumidor, pelo
sistema capitalista e neoliberal que a tudo e a todos confere valor
m ercadológico. E isso se deve, a nosso ver, ao modelo de
educação a que são submetidos seus partícipes e à perda gradativa
da sua dimensão profética, como resultado de sua retirada milenar
e estratégica da esfera pública. Contudo, ao desenvolver uma práxis
religiosa cristã como resultado da inserção na esfera pública, a Igreja
hodierna poderá desenvolver sua missão, qual seja, viabilizar a
implantação do Reino de Deus, com seus ideais de justiça, equidade
e fraternidade. Mas, para tanto, precisará rever seu processo
educacional atual, que tem prim ado pela falta de diálogo e o
conseqüente desconhecimento do outro como semelhante, o que,
em linhas gerais, tem promovido a indiferença e a insensibilidade
dos cristãos com os que mais sofrem.
Para que a Igreja, como instituição, possa rever seu processo
educativo terá que, entre outras coisas, relativizar suas próprias
certezas no contato dialógico com o diferente. Terá que se abrir à
so cied ade , in se rir-se na esfera pú blica, para que consiga
desenvolver uma educação que faça emergir nos seus partícipes
tanto uma sensibilidade solidária com os que sofrem quanto o
desenvolvimento de ações solidárias como imperativo ético e, como
conseqüêncía, a recuperação gradativa de sua dimensão profética.
Este livro tem por objetivo investigar até que ponto a Doutrina
Teológica e Social de Calvino, nomenclatura escolhida por nós para
designara sistematização da Reforma Protestante efetuada por João
Calvino na cidade de Genebra, pode contribuir para uma educação
para a solidariedade.
No primeiro capítulo, será feito um levantamento do contexto
onde ocorre a Reforma calvinista, a saber, a cidade de Genebra no
século XVI. Este levantamento é de suma importância tendo em
vista que tanto o desenvolvimento quanto a prática de sua doutrina
teológica e social foram delimitados pelo contexto histórico e social
desta cidade que passou por profundas transform ações como
resultado da prática da fé cristã da m aneira como Calvino a
compreendia e a sistematizou.
É claro que toda esta onda de transformações pela qual passaram
a Suíça do século XVI, e de modo mais específico a cidade de
Genebra, tem precedentes históricos. O humanismo aparece como
fonte de questionamentos em todas as áreas da vida humana,
ocasionando uma série de reformas nos âmbitos social, econômico,
político e religioso. Como não poderia deixar de acontecer, João Calvino
vai ser educado desde a mais tenra idade com base nos valores culturais
de sua época. Toma-se humanista, depois jurista e, por fim, após seu
desligamento da igreja católica romana e conversão ao protestantismo,
vai empreender a mais profunda reforma, social e religiosa, na Genebra
do século XVI.
Como humanista cristão, Calvino vai empreender dura crítica
à relação entre a Igreja e o Estado de seu tempo. De acordo com
sua maneira de compreender o Evangelho, estas duas poderosas
instituições foram criadas pela vontade de Deus e tinham deveres a
cum prir para que a sociedade pudesse viver em harmonia e
I equilíbrio social. Se a sociedade genebrina estava vivendo tempos
! de crise e desmantelamento da coesão social, é porque o Estado
estava se ocupando de responsabilidades que caberia tão somente
à Igreja, e esta não estava levando a cabo sua missão profética de
denúncia do Estado quando este deixa de zelar pela manutenção .
da justiça. Toda essa crítica de Calvino tem seu nascedouro na sua
Teologia da Graça, segundo a qual todo ser humano fora inumanizado
pelo pecado e teve suas relações pessoais, familiares e sociais
deturpadas. A humanização só é possível pela atuação da graça
redentora de Deus, no encontro com Jesus C risto e, como
conseqüência desse encontro, as relações do ser humano com
seu semelhante poderão ser revitalizadas, ou seja, as relações
humanas e sociais poderão se desenvolver solidariamente.
A solidariedade e sua relação com a educação serão
discutidas no segundo capítulo. Quando se fala em educação já se
pressupõe a educabilidade do ser humano e a sua condição de
“ser aprendente” . Tanto a hominização quanto a humanização
resultam do contato do ser humano com o intermeio e com o seu
semelhante, com o outro, que serve de referência para que possa
se construir como tal. Por isso a educação está relacionada com a
preservação da própria espécie, da sociedade e da cultura.
Para se abordar a questão da solidariedade, tem-se que,
primeiro, desfazer os equívocos que esta palavra tem produzido,
por estar presente nos mais variados discursos, das mais variadas
instituições, fato que tem prom ovido m ais confusão do que
entendimentos na busca por sua realização. Por isso, para que os
equívocos possam ser desfeitos, ou pelo menos amenizados,
abordaremos a solidariedade, primeiro, como um fato corriqueiro,
cotidiano, para mostrar que ela existe e acontece de forma pessoal
nos m ais sin gelo s atos de ajuda m útua. Mas, para que a
solidariedade possa evoluir, sem deixar de acontecer, das relações
pessoais e casuísticas para ações de cunho ético-político e social,
é m ister um processo e d uca cion al que e n cerre em seu
desenvolvimento a transmissão dialógica tanto de competências
exigidas pelas sociedades modernas (e pós-modernas) quanto de
conhecimentos que valorize o ser humano como Homo-sapiensl
faber e Homo-demens, enfim como Homo-complexus,1 Cabe, aqui
então, a discussão sobre como unir solidariedade, competências
e espiritualidade.
Por fim, no terceiro capítulo, o nosso objetivo será o de tentar
comprovar se a Doutrina Teológica e Social de Calvino pode ser j
entendida como processo pedagógico prático que propicia ao
educando tanto o desenvolvimento da sensibilidade solidária quanto
0 da prática da solidariedade pessoal e social. Se toda a aquisição
de conhecim entos passa pela relação do ser humano com o
intermeio, partimos do pressuposto de que a doutrina teológica e
social de Calvino prom oveu, na Genebra do século XVI, um
processo educativo que culminou na inserção da comunidade cristã
reformada na esfera pública. O que fomentou tal inserção foi a crítica
de João Calvino à relação entre a Igreja e o Estado, cada qual com
sua responsabilidade, na promoção e manutenção da coesão social.
Ao delimitar as funções da Igreja e do Estado, Calvino viabilizou,
com a presença da Igreja na sociedade genebrina, um processo
educacional que culminou em relações solidárias de cunho ético-
político.

Notas da Introdução
1 Cf. MORIN, Edgar. Os Sete Saberes necessários à Educação do Futuro, pp, 58-61.
A bílio A rruda
Capítulo I
A DOUTRINA TEOLÓGICA E

m
SOCIAL DE CALVINO

Cai vino l a iducação i»ar\a solidariedade


1 .0 Contexto Histórico e Social da Reforma Calvinista
O contexto histórico e social da reforma calvinista é a Suíça
e, de modo mais específico, a cidade de Genebra, no século XVI.
É de suma importância a delimitação, neste tópico, do contexto
onde o co rrera a reform a ca lvin is ta , contexto este que vai,
concomitantemente, sofrer alterações inesperadas com a chegada
de João Calvino e cunhar o “reformador de Genebra” bem como a
sua doutrina teológica e social.
Também é de sa lu ta r im p ortâ ncia a com preensão da .
organização política, administrativa e religiosa da cidade de Genebra,
onde se daria a reforma calvinista, para se obter com clareza um
melhor entendimento da relação entre Estado e Igreja em Calvino,
tendo em vista que é da crítica destas duas instituições que Calvino
dá início ao desenvolvimento de sua doutrina teológica e social.
A Suíça do século XVI, desde muito antes de se poder falar
em Reforma, seja ela de caráter social ou religioso, já experimentava
transformações históricas e sociais que suscitavam na população
anseios de liberdade. Segundo Biéler, “os movimentos sociais e
religiosos na Suíça determinam, em larga medida, a história de
Genebra e de Calvino” .1 Estas transform ações, bem como os
anseios de liberdade que delas resultavam, fizeram da cidade de
Genebra o palco de uma das maiores reformas social, econômica,
política e religiosa de todos os tempos.
De maneira bastante sucinta, segue o levantam ento de
importantes transformações que vão, historicamente, ter influências
determinantes tanto no desenvolvimento da história de Genebra
quanto de Calvino. Desde o século XI o com ércio já estava
estabelecido na Suíça, o que suscitava um forte movimento de
independência. No século XII, os habitantes da região encontram
no transporte de mercadorias uma fonte de prosperidade, ao mesmo
tempo em que se unem para defenderem seus interesses comuns
formando as chamadas “comunas juradas”, e mais tarde, uma
Confederação “jurada”.2 Do século XIII ao XV importantes mudanças
vão agitar a Suíça. Forma-se, no século XIII, uma cidade de burguesia
em Lucerna; a facção popular derruba, no século XIV, o governo
aristocrático, e com o desenvolvimento e fortalecimento da população
operária, ou artesãos, tom a o poder em 1336; os burgueses
derrubam os nobres e se unem aos Confederados, em 1530; cidade
e campo se unem e formam a Confederação dos Oito Cantões, no
século XV.3 '
P ode-se pe rceb er fa cilm e n te que os a conte cim e ntos
históricos que precedem a Reforma, na Suíça, são responsáveis
pela promulgação de ideais libertacionistas que vão estar presentes
de maneira muito forte na chamada reforma calvinista, em Genebra.
Segundo Silvestre, “para Calvino, era preciso reconhecer que a
abertura de espírito e o amor à liberdade, trazidos pelo comércio e
pelas trocas humanas, contribuíram para introduzir a Reforma em
Genebra.”4
Como não podia deixar de acontecer, todo esse clima de
revolução, de liberdade, atinge também a esfera religiosa. Na Suíça,
o prim eiro a dar im pulso à Reforma foi Ulrich Zwínglio, mais
propriamente na cidade de Zurique, e mais tarde o movimento chega
a Genebra, por meio de Guillaume Farei no ano de 1532.5 Portanto,
embora Calvino seja reconhecido, e com muita propriedade, como
o reformador de Genebra, a reforma genebrina é anterior a ele.
Alguns fatos históricos apontam nesta direção e demonstram que
Genebra não fica imune ao vírus revolucionário que desencadeou
uma série de transformações nas esferas social, política, econômica
e religiosa na Suíça.
Na Suíça, os reformadores estavam preocupados em atacar,
com a mensagem reform ada, os problem as sociais gritantes
existentes na sociedade. Com isso, atraem os envolvidos nos
movimentos sociais populares, mas também provocam a reação
dos conservadores. A ssim , segundo Biéler, “a nobreza e o
campesinato permanecem católicos, enquanto os burgueses e as
chamadas camadas populares das cidades adotam a nova fé”.6
Desde o século XIII os negócios da cidade de Genebra
estavam sob a direção do ducado de Sabóia, que tinha como
propriedade inúmeras áreas rurais e algumas vilas ao seu redor.
Inclusive, segundo MacGrath, Sabóia possuía “o direito de escolher
o indivíduo responsável pela manutenção da justiça civil e criminal,
que era aplicada aos leigos dentro da cidade”.7
Durante muito tempo, a cidade de Genebra fora uma potência
econômica, como resultado de sua política de produção, serviço e
exportação. Nos séculos XIV e XV, segundo observa Silvestre, esse
período, para Genebra, foi caracterizado “pelo sucesso de suas feiras,
[...] que [...] veio a torná-la uma das principais praças financeiras e
comerciais da Europa”.8
Mas, a capital financeira da Europa vai enfrentar o declínio. O
enfraquecimento das “feiras”, decorrente da proibição, imposta pelo
duque de Sabóia e por Luiz XI, aos franceses de participarem destas,
faz com que Genebra enfrente uma crise econômica e política sem
precedentes.
Embora as feiras continuassem a existir em Genebra, já não
possuíam nem o esplendor nem a freqüência de outrora, e o resultado
disso foi a incapacidade da cidade de se auto-sustentar
economicamente. Com a alta nos preços, derivada do livre comércio
de metais preciosos9, a chegada de refugiados políticos e religiosos
advindo das nações vizinhas e a conseqüente carência de alimentos
bem como de seguidos anos de epidemias, provocaram uma situação
de extrema pobreza na Genebra que terminava o século XV.10
Na esfera política, a influência do ducado de Sabóia sobre
Genebra era tão grande que até sua diocese fora conquistada, tendo
como resultado a diminuição gradativa do poder do líder espiritual
e temporal da cidade de Genebra, o Bispo.11 Na sua ausência, o
poder era exercido “pelo conselho episcopal e pela assembléia
de trinta e dois cânones da catedral".12
Com o domínio do ducado de Sabóia, o episcopado de
Genebra passa para as mãos de homens ligados diretamente a
este, que tinha a prerrogativa de nom ear o bispo. Resultado
disso é a nom eação de João de Sabóia, em 1513.13 Assim ,
segundo Durant, "o outrora excelente governo episcopal e a moral
do clero sob sua jurisdição foram de mal a pior” .14
Neste tempo, Genebra vivia uma situação de acentuada
imoralidade, inclusive contando com a participação ativa de seus
clérigos.15 A este respeito aponta Ferreira, ao expor com bastante
clareza a situação da cidade:

Havia bebedeira, discussões, adultérios, etc,,, A


prostituição era oficializada, sancionada pelas autoridades.
Os prostíbulos eram supervisionados por uma mulher eleita
pelo concilio, que recebeu do povo o nome de “rainha do
bordel”.16

Quando se dá o início do século XVI, o poder e a influência


do ducado de Sabóia estão em declínio, e duas facções iniciam
um confronto em Genebra, a saber, os mammelus17e os Eiguenots16.
Na discussão sobre apoiar Sabóia ou a Confederação Suíça, estes
ú ltim os, fa v o rá v e is à C o nfed eração S uíça, desafiavam
incessantemente a autoridade do Duque de Sabóia, Charles III.
Segundo MacGrath,
Os mercadores da cidade [...] defendiam um
estreitamento dos laços com a Confederação Suíça. Dentro
da cidade começou a surgir uma tensão, à medida que as
facções se formavam. Oitenta e seis cidadãos de Genebra, [...]
participaram de uma jornada até a cidade suíça de Friburgo,
onde foram declarados cidadãos, em 7 de janeiro de 1519. No
mês seguinte, a cidade de Genebra, agindo sem autorização
de Sabóia, entrou em aliança com Friburgo. A pressão de Sabóia
resultou na anulação desse combourgeoisie, em abril daquele
ano; quatro meses mais tarde, o principal ativista do
combourgeoisie foi executado em praça pública. Embora
fisicamente reprimida, porém, a facção pró-Suíça não demorou
a se reorganizar. As atas do Conselho Municipal, no ano de
1519, registram como aguynos o nome dado a esse grupo; as
atas de 1520 o identificam como eyguenots.n

Para dar um fim a este confronto, o Bispo Pierre de La Baume


faz aliança com Charles III, Duque de Sabóia que envia tropas para
atacar Genebra, em 1535. Os magistrados denunciam o Bispo a
Roma, que ignora a denúncia. Em contrapartida, Genebra funda sua
própria Casa da Moeda, proclamando, assim, sua independência
frente à hierarquia romana.20
Mas, a liderança política genebrina não aceitou o domínio
imposto pelo Duque de Sabóia, e para refutá-lo, faz aliança com
Berna e Friburgo optando assim, pela Confederação Suíça. Esta
opção dá a Genebra grande im pulso no seu movimento pela
independência, atraindo para a cidade muitos reformados, entre
eles, para citar alguns dos que mais se destacaram, Claude Bernard,
Étienne Dada, Pierre e Robert Vandel, Ami Perrin.21
Embora, em Genebra, Igreja e Estado se confundissem o
que se percebe do exposto até aqui é que Genebra, através do
seu magistrado, aniquilou o poder do Bispo e do Duque sem a
influência do clero.22 Este fato denuncia que, na Genebra do século
XVI, antes de ocorrer uma reforma religiosa, houve uma reforma
política ou civil.23 Nas palavras de Martin, “a Reforma não foi
engendrada pelos Reformadores; nasceu ela fora deles e se lhes
impôs”.24
Estes acontecimentos começam a abalar a esfera religiosa a
partir do momento em que o Conselho Municipal de Zurique aderiu
aos princípios fundam entais da reform a zw ingliana. Segundo
argumenta MacGrath,

Isso foi um marco no curso da Reforma Suíça, pelo fato


de haver estabelecido um princípio crucial: as cidades
independentes iriam decidir se adotariam ou não a Reforma,
após ouvirem os argumentos contrários e favoráveis a ela e,
então, procederem a uma votação.25

Desse modo, um debate entre favoráveis e contrários à fé


reformada vai ocorrer em Berna. Juntando-se a este acontecimento,
outros, tais como a introdução das obras de Lutero através da
chegada à cidade de mercadores alemães e a propagação da fé
reformada através das pregações de Guillaume Farei, faz com que
Genebra venha a ceder, gradativamente, espaço às novas idéias
reformistas.
Com relação ao clima revolucionário na qual estava embebida
a Suíça do século XVI e do qual Genebra não ficaria imune, as
convicções de Farei, que já “havia tomado parte no movimento
reformista em Meaux [...] e pregado em muitas áreas ao redor de
Berna”26 são uma denúncia deste fato, Durant afirma que antes de
sua chegada a Genebra, Farei foi influenciado por Jacques Lefèvre
d’Étaples,

cuja tradução e explicação da Bíblia transformaram-lhe


a ortodoxia; pois, não pode descobrir nas Escrituras vestígio
algum de papas, bispos, indulgências, purgatórios, nem dos
sete sacramentos, missa, celibato do clero, adoração da Virgem
Maria ou de santos. Desdenhando a ordenação, seguiu viagem
como pregador independente, vagueando de uma cidade a


outra, na França e na Suíça.27

>
Por causa de seu estilo agressivo e por não poupar,
nas suas pregações, de seus vícios o clero, ficou conhecido,

navcMavarios v v>ivd o\ .Wjncu v a oni vivj


segundo Ferreira, como o “azorrague dos padres”.28
Como resultado dos acontecimentos precedentes, um culto
reformado é celebrado publicamente em 10 de abril de 1533, por
Garin Muète, fato cujo corolário foi a irrupção de “uma revolta na
qual um cônego foi morto”.29 Pierre de Ia Baume, Bispo de Genebra,
manda prender os líderes da revolta, que são em seguida libertados
pelo Magistrado, que “era incumbido da defesa da cidade, da guarda
e execução dos prisioneiros, dispondo de direito de justiça restrito”,30
sob a alegação de que a corte episcopal não tinha jurisdição em
caso de assassinato.31 O Bispo La Baume, que já não era bem
visto pelos genebrinos, foi obrigado a deixar a cidade,32
No ano seguinte, 1534, Genebra promove um debate público
entre Farei, incubido de defender os princípios da Reforma, e o
dominicano Guy Furbity, doutor em Teologia, que iria defender a
form a católica do cristianism o, o que leva Friburgo, que era
predominantemente católica, a protestar contra a permanência do
reformador em Genebra, bem como a romper, em 15 de maio, sua
aliança com a cidade. Uma consequência peculiar destes debates
é levantada por Wallace:

O clero romano e as comunidades monásticas, ao longo


de todo o conflito, quando eram desafiadas para discussão
pública, foram incapazes de responder, não conseguindo
oferecer nenhuma defesa razoável para suas posições
teológicas ou para suas superstições, sendo que,
gradativamente, outras instituições religiosas e igrejas
tornaram-se vazias.33
Este fato coloca em evidência a rápida difusão da Reforma
na Suíça do século XVI, e de modo mais específico a adesão em
larga escala por parte dos moradores de Genebra.
No dia 8 de agosto de 1535, Guillaume Farei, que havia dado
início às suas pregações em Genebra em 153234, obtém permissão
para pregar pela primeira vez na Catedral de São Pedro e, dois
dias depois, faz o mesmo perante o Conselho da cidade. O
resultado, segundo Ferreira, foi a explosão da “violência por parte
da massa popular, que invadiu a catedral de São Pedro e praticou
atos de iconoclastia e vandalismo”.35 Este tipo de violência se deve,
obviamente, ao conteúdo anticatólico das prédicas de Farei, que
denunciava “o papa como Anticristo, a missa como sacrilégio e as
imagens de igreja como ídolos que deviam ser destruídos".36
Ao final das controvérsias, com a derrota da ala católica, e
após as pregações de Farei, o Conselho Municipal abole a missa,
em 10 de agosto de 1535, culminando na excomunhão de toda a
população de Genebra por parte do seu Bispo, em 22 de agosto.37
Por esta ocasião, Berna permanece como a única aliada da cidade.
A bílio A rruda

Como os ataques anteriores a Genebra haviam fracassado, o


Duque de Sabóia novamente investe contra a cidade, sitiando-a,
em janeiro de 1536, mas Berna vem em socorro e liberta Genebra,
“que teria sido totalmente devastada por essa ofensiva, não fosse a
aliança militar feita com a cidade de Berna, a qual era adepta do
evangelicalism o desde o final da década de 1520.”38 Como
conseqüência dessa aliança, acontece um equilíbrio nas forças
externas que impediam o desenvolvimento da reforma.
Guillaume Farei, que já havia pregado na Catedral de São
Pedro e perante o conselho em 1535, recebe, então, autorização
deste para pregar publicamente, em 10 de março de 1536, onde
conclama os cidadãos genebrinos a viverem segundo os preceitos
do Evangelho.39
Nas suas prédicas, Farei pressionava o Conselho a adotar
definitivamente a fé reformada. Com a falta de argumentos dos
clérigos católicos e com a adesão cada vez mais crescente dos
moradores de Genebra à Reforma, o Conselho decide então acolher
a proposta de Farei, reiterando parte do que fizera no ano anterior.
Segundo Durant,

Em 21 de maio de 1536, o Pequeno Conselho decretou


a abolição da missa e a remoção de todas as imagens e
relíquias das igrejas. As propriedades eclesiásticas foram
empregadas pelos protestantes para fins de culto religioso,
instituições de caridade e ensino; o ensino tornou-se
compulsório e gratuito, e uma severa disciplina moral ficou
consolidada em lei.40

Genebra, enfim, adota a fé reformada. Mas, apesar de a


adesão à fé reformada ter produzido im portantes avanços na
sociedade genebrina, bem como, nas palavras de Ferreira,
“favorecer a causa evangélica”41, esta estava longe de se tornar
protestante, segundo o entendimento dos reformadores.
O que se percebe do exposto até aqui é a ocorrência de
importantes mudanças ocorridas em Genebra mesmo antes da
chegada de João Calvino, bem como a íntima relação entre as duas
principais instituições governamentais, a Igreja e o Estado, o que é
comum no século XVI. Biéler assim a explica, com relação a
Genebra:

Estão elas nas mãos de três autoridades: o bispo, o


magistrado e os burgueses. Ora, o bispo, chefe espiritual da
Igreja, é ao mesmo tempo o “príncipe de Genebra”. É ele,
teoricamente, o soberano da cidade, debaixo da suzerania do
Imperador, que confia ao duque de Sabóia o vicariado imperial;
[...] O magistrado é incumbido da defesa da cidade, da guarda
e da execução de prisioneiros; dispõe ele de direito de justiça
restrito. Os Conselhos [formado pelos burgueses] são
encarregados das questões criminais importantes
concernentes aos leigos; têm a missão de velar pelo
abastecimento da cidade, de gerir-lhe as finanças, [...] manter
a boa ordem, [...] suas fortificações e de salvaguardar os seus
direitos garantidos pelas “Franquias”.42

Este tipo de relação entre a Igreja e os magistrados, na direção


da cidade de Genebra, terá como resultado a proeminência do
Estado sobre a Igreja. Calvino irá criticar ininterruptamente esta
gerência do Estado em assuntos que, segundo ele, é de incumbência
restrita da Igreja. Esta crítica será objeto de análise um pouco adiante.
O levantamento do contexto histórico e social de Genebra,
onde se daria a reforma calvinista no século XVI completa-se, nesta
pesquisa, com a com preensão da sua organização política e
administrativa, para se obter com clareza um melhor entendimento
da relação entre Estado e Igreja, tendo em vista que é da crítica
desta inter-relação que Calvino irá desenvolver sua doutrina teológica
e social. •
A começar pela população genebrina, esta era formada por
cidadãos, ou seja, pessoas nascidas ou batizadas por pais nascidos
em Genebra; burgueses, ou pessoas não nascidas em Genebra
mas que adquiriam esse título, que era pago, após longo período
de residência na cidade; habitantes, isto é, estrangeiros que residiam
em Genebra, sujeitos às mesmas leis mas sem direito a voto e a
participação em cargos públicos.43
Com relação à sua administração, a cidade de Genebra era
administrada por quatro tipos de conselhos: Pequeno Conselho,
Conselho dos Sessenta, Conselho dos Duzentos e Conselho Geral,
sendo que o de maior importância era o Pequeno Conselho. Era
formado pelos magistrados ou ex-magistrados e, coletivamente,
pelos Senhores de Genebra ou Sindicos, título de honra conferido
pelo Conselho dos Duzentos aos cidadãos.4*
Cabia ao Pequeno Conselho julgar as causas criminais e civis,
além da eleição dos m em bros do Conselho dos Duzentos e
nom eação dos D iáconos, que eram respon sáve is pelo
funcionamento dos hospitais e pela assistência aos pobres. Seus
m em bros eram eleitos anualm ente e não recebiam salários.

OJ
K>
Formado por vinte e cinco homens que fossem cidadãos de
Genebra e mais quatro síndicos, tornou-se o verdadeiro governo
municipal de Genebra.45

C'al v inoe a hdi ilação para a solidariedade


O Conselho dos Sessenta, que fora criado, segundo Lessa,
"em conseqüência da aliança com Berna e Friburgo”,46 era uma
relíquia do século XIV e de caráter puramente diplomático.
O Conselho dos Duzentos existia em Genebra desde 1527,
sendo criado, conforme Mcgrath, “como um tipo de concessão,
permitindo que o amplo caráter representativo do Conseil General
fosse mantido sem que houvesse a inconveniência da participação
em imensas assembléias de indivíduos”,47 e cabia-lhe eleger os ex-
magistrados como membros do Pequeno Conselho, aprovar as
propostas de mudanças na lei, servindo como corte de apelação nas
causas criminais.
O Conselho Geral ou Assembléia Geral era formada por “todos
os cidadãos de Genebra, com propriedade ou título de honra conferido
pelo Conselho dos 200, por alguma razão especial”.48
Toda esta organização político-administrativa já existia antes da •
chegada de Calvino a Genebra e demonstra a cidade é multiforme,
com suas diferenças e desigualdades que produzem populações
diferenciadas pela fortuna, cultura [e] origem.49
No caso de Genebra, a estratificação social denuncia a existência
de abastados e miseráveis. As medidas tomadas para atenuar a situação
de pobreza de muitos que viviam na cidade denunciam este fato.
Segundo Biéler, foi fundado, em 1536,
8
o Hospital Geral, destinado a dar assistência aos enfermos,
aos pobres, aos órfãos e aos idosos. Depois, em consideração à
penúria de víveres, a pobreza de uma parte da população e a avareza
de outra, medidas de ordem econômica são tomadas
imediatamente contra o monopólio e a especulação [...]. O
Conselho fixa o preço do pão, do vinho e da carne.50

Um outro fato que corrobora a existência de abastados e


miseráveis em Genebra, por ocasião da reforma calvinista, é a instituição,
por parte de Calvino, do que ele denomina a quarta ordem do governo
eclesiástico, a saber, os diáconos. Segundo Calvino, nas suas
Ordenanças, os diáconos sempre foram divididos em duas espécies,
a saber:

uns são comissionados para receber, dispensar e conservar


os bens dos pobres, tanto esmolas diárias quanto posses,
rendimentos e pensões; outros para tratar e pensar os doentes e
administrar a porção dos pobres, costume esse que mantemos
ainda no presente.51

Todos estes acontecimentos ocorridos em Genebra antes da


chegada de Calvino, corroboram, como já foi salientado, a íntima relação
entre Estado e Igreja culminando, logicamente, com a subordinação
desta àquele, subordinação esta que Calvino irá combater durante sua
vida, como cristão, humanista e pregador. A crítica de Calvino a esta
inter-relação, com base nas novas idéias engendradas pela Reforma,
vai culminar no desenvolvimento de sua “Doutrina Teológica e Social”.

2. A “Doutrina Teológica e Social” de Calvino


Discorrer sobre o desenvolvimento do humanismo social de João
Calvino põe-se como uma tarefa instigante, visto que tal desenvolvimento
ocorrerá dentro de uma relação dialética entre Calvino e o contexto
onde está inserido, a saber, a cidade de Genebra. Instigante, também,
pelo fato do desenvolvimento do humanismo social de Calvino
evidenciar-se como processo pedagógico, o que será proposto no
terceiro capítulo deste trabalho.
Talvez se faça necessária a compreensão, mesmo em rápidas
pinceladas, do que vem a ser o Humanismo, mesmo porque,
compreendê-lo revela sua íntima relação com a Reforma Protestante,
com a reforma calvinista, e com o desenvolvimento da doutrina teológica
e social de Calvino, ou seu humanismo social.

2.1.0 humanismo
Em seus primórdios, o Humanismo queria se referir a um

Calvino l a educaç \o para a solidariedade


processo pedagógico que se dava através do aprendizado do grego
e do latim clássicos. De acordo com McGrath, o termo “foi inicialmente
utilizado pelo educador alemão F. J. Niethammer, em 1808”.52
O Humanismo se caracterizava pelo entusiástico retomo às fontes.
Os clássicos gregos, como Xenofonte, Diodoro Sículo, Homero e
Tucídides eram estudados e pesquisados a fundo, formando-se
verdadeiros focos culturais. Segundo Daniel-Rops, “o movimento *
recrutara adeptos em todas as classes: magistrados, professores,
clérigos e burgueses ricos”.53
Pode-se perceber a importância do Humanismo dentro das m
profundas mudanças ocorridas nos séculos XV e XVI na síntese que
McGrath faz do movimento:

O Humanismo estava interessado em como as idéias eram


transmitidas e expressadas, em vez de se preocupar com a precisa
natureza dessas próprias idéias. Um humanista poderia ser um
adepto de Platão ou de Aristóteles - mas em ambos os casos as
idéias envolvidas eram derivadas da Antiguidade. Um humanista
poderia ser um cético ou um religioso - mas ambas as atitudes
poderíam ser defendidas a partir da Antiguidade. A diversidade de
idéias, que é tão característica do Humanismo renascentista, é
baseada em um consenso geral a respeito de como essas idéias
devem se originar e ser expressas,54
;

Todo esse conjunto de novos saberes, somado à destreza


de seus anunciadores, encontrará m elhor guarida na Europa
Protestante, do que na Católica, devido àquela estar mais banhada
nos rios do escolasticismo.55 Segundo Chaunu, o Humanismo tem
seu berço na Itália do século XIV, e é introduzido na França por
Guilherme Fichet, que juntamente com Robert Gaguin, serão “os
verdadeiros pioneiros do italianismo em Paris”.56
O Humanismo vai ser difundido na Europa por meio de três
canais, a saber, o ingresso de estudantes do Norte da Itália nas
Universidades do Sul, que retornavam com as novas doutrinas;
através das inúmeras correspondências enviadas ao exterior pelos
humanistas italianos; e através da imprensa, que possibilitou o
aum ento do montante de livros que circulavam pela Europa,
disseminando as novas idéias humanistas.57
Contudo, o humanismo italiano não possui características de
rejeição. Já mais revolucionário é o de Pádua e o do Reno, descrito
por Chaunu como “um humanismo [...] tardio e poderoso, contra
uma fortaleza universitária relativamente recente, intransigente”.58
O Humanismo, de certa forma, lança as bases para a Reforma
Protestante, tendo em vista que seu espírito engendra reformas.
Com relação à esfera religiosa, a Igreja é árrastada pelo Humanismo
a um retorno às línguas originais: o hebraico, o grego e o latim.
A bílioA rruda

Segundo pondera McGrath, “em vez de lidar com a confusão


conceituai e a deselegância literária dos com entários bíblicos
medievais, era preciso retornar aos próprios textos bíblicos e
redescobrir seu frescor e vitalidade”.59
Assim, forma-se uma sincronia entre as obras de cunho
humanístico e a crescente difusão da Bíblia, que passam a ser
publicadas em língua vernácula, graças à imprensa. O Humanismo
alcança o altar, questionando-o como um apóstata e sacrílego. De
acordo com Chaunu, em contraposição à prática ritualística da Igreja,
as idéias humanistas defendem que,

a palavra de Deus comanda uma religião de amor, uma


obediência em espírito e em verdade. A maior parte dos gestos
são inúteis (sic), quando não são mesmo sacrílegos. O
humanismo conduz a um evangelismo simplificador.60
Para além das qualidades do Humanismo, uma questão se
lhe sobressai quando se trata de utilizá-lo como ferramenta crítica
da Igreja: o seu exacerbado antropocentrismo, colocando o ser
humano como o centro de todas as coisas. Segundo Reid Stanford,
“o humanismo renascentista, com sua ênfase sobre o indivíduo,
particularmente sobre o homem de “virtu”, deu uma força adicional

C alvino EA EDUCAÇÃOPARAA SOLIDARIEDADE


ao ponto de vista de que o indivíduo é a figura central de qualquer
conceito a respeito do homem e de suas atividades".61
Na Suíça, especialmente na cidade de Genebra, um homem
vai engendrar um humanismo que salta das páginas da Bíblia, como
resultado da aplicação das idéias humanistas na leitura desta. Desse
modo, lançando mão de princípios evangélicos fundamentais, João
Calvino vai criticar duramente a hostilidade do Estado, sua posição
de mantenedor do status quo, favorecendo as camadas mais
abastadas em detrimento de uma grande multidão de alijados do
sistema.
Assim, ao direcionar sua crítica ao Estado, Calvino elabora j
sua doutrina teológica e social, denom inada por Biéler de “O
Humanismo Social de Calvino”.62 O mesmo autor diz que este
hum anism o social pode ser entendido como “um humanismo
teológico que inclui a um tempo o estudo do homem e da sociedade
através do duplo conhecimento do homem pelo homem, de um
lado, e do homem por Deus, de outro”.63
Porque se pode afirmar que Calvino era um humanista? E
ainda mais: que seu humanismo era social e teológico? Para
responder as perguntas acima, faz-se necessário uma rápida análise
da formação recebida pelo “reformador de Genebra”, bem como
da sua crítica à relação entre Igreja e Estado em Genebra.

2.2. Trajetória biográfica de Calvino humanista


João Calvino nasce “às doze horas e vinte e sete minutos do ;
dia 10 de julho de 1509, [...] filho de Gerard Cauvin e Jeanne de La
F ra n c”64, na cidade de Noyon, na p ro vín cia de P icardia,
departamento de Oise. Era uma cidade eclesiástica, ou seja, estava
sob a direção do bispado.65 Gerard Cauvin se estabelece em Noyon
no ano de 1481, ocupando, nesta cidade, os cargos de "escrivão
do governo, [...] solicitador da corte eclesiástica, agente fiscal da
região, secretário do bispo e procurador do capítulo”.66
C alvino faz o prim ário e o secundário no C olégio dos
Capetos67 e, posteriormente, é encaminhado pelo pai, secretário
do bispo, para exercer o sacerdócio, por volta dos 12 anos. Em
1521, começa a receber uma capelania68, o que irá garantir-lhe o
sustento dos estudos. Assim, aos 14 anos é enviado a Paris, em
1523, onde estuda durante cinco anos nos colégios de La Marche
e de Montaigu, da Faculdade de Artes da Universidade de Paris.
No colégio de Montaigu, Calvino irá receber uma excessiva
educação ortodoxa católica,69 que traz no seu bojo uma grande
influência do Humanismo. Após este período de estudos em Paris,
em 1528, contando então com 19 anos70, deixa a cidade e vai para
Orleans, onde termina seus estudos filosóficos e em 1529 é mestre
em Artes.
Aun ioA rruda

Embora a Europa esteja im pregnada das novas idéias


advindas da Reforma, Calvino está cada vez mais convicto das
suas posições humanistas, um legado de seus mestres de Montaigu
e de seus amigos de Orléans. Em 1529 vai estudar Direito na
Universidade de Bourges, e é licenciado em leis em 1532.71
Com a morte do pai em 153172, se sente desobrigado a seguir
a carreira de jurista, e apesar de ser licenciado em Leis, segue
para Paris onde, segundo Ferreira, “podia agora dedicar-se à carreira
de sua preferência. O seu pendor natural era para letras clássicas,
seguindo a linha humanista da época”.73
Em 4 de abril de 1532 publica seu prim eiro livro, um
comentário à DE CLEMENTIA, de Sêneca.74 Esta obra vai lhe trazer
rápido prestígio entre os humanistas. Nas palavras de Biéler, esta
publicação "de imediato granjeia a Calvino grande autoridade no
mundo hum anista. M ostra-nos ela, [...] a que ponto o futuro
reformador está ainda fielmente ligado, nesta época, ao pensamento
em honra entre os humanistas católicos”.75
S u bita m ente, após a pu blica ção do com entário a De
Clementia, de Sêneca, Calvino aparece preocupado com as novas
doutrinas religiosas em Paris. Suspeito de haver inspirado um
discurso reformista realizado por seu amigo, Nicolas Cop,76 reitor
da Universidade de Paris, Calvino é perseguido, juntamente com
os demais envolvidos, mas escapa, deixando Paris em 153377 e
vai se refugiar em Saintongue, na casa de um amigo, “Louis du
Tillet, o então cânone de Augoulême e reitor de Claix”78, onde
começa a redigir sua grande obra, as Institutas, ou Instituição da
Religião Cristã.
De Augoulême, Calvino “vai para Nerac na Gascônia, refúgio
de muitos protestantes que a rainha de Navarra acolhia”79, seguindo,
posteriormente, viagem para Noyon e daí para Paris.
Provavelmente, ao redigir as Institutas, Calvino já havia
decidido romper com o catolicismo,80 o que será posteriormente
sinalizado com a renúncia da capelania81 em maio de 1534, quando
da sua estada em Noyon, possivelm ente tam bém revela sua
conversão ao cristianismo evangélico reformado. Nas palavras de
Biéler, Calvino, nesta época,

não é mais o humanista conformista que teme os


remoinhos da política e recusa comprometer-se com aqueles
que são qualificados como revolucionários; bem pelo contrário,
é o cristão que, sem fugir aos riscos intervém, com todas as
suas forças, contra os grandes deste mundo para restabelecer
a justiça e a verdade.82

Segundo Daniel-Rops, Calvino "deslocou-se incessantemente


durante todo o ano de 1534, umas vezes voltando a Paris”.83 Neste
m esm o ano deixa d e fin itiva m e n te a França, passando por
Estrasburgo e chegando provavelmente a Basiléia em 1535. Em
Basiléia, Calvino termina de redigir a sua obra prima, as Institutas,
em 23 de agosto deste mesmo ano.84
Após uma rápida passagem por Ferrara, na Itália, "onde os
protestantes se abrigavam sob a proteção da Duquesa Renée de
Ferrara”,85 retornou a Noyon, em junho de 1536, para resolver
pendências relativas à herança de família, aproveitando-se do "Edito
de Coucy, de 16 de julho de 1535, [que] deu permissão aos exilados
religiosos para regressarem à França”.86
Ao sair de Noyon, acompanhado de seus irmãos Antoine e
Marie, segue para Estrasburgo, em 15 de julho de 153687, para ali,
possivelm ente, residir. Mas, por causa das batalhas entre "o
Imperador Carlos V e o rei Francisco I da França"88, a estrada que
dava acesso à cidade estava bloqueada, forçando-os a passar por
Genebra.
Após esta sucinta divagação sobre a vida do reformador de
Genebra, sua educação familiar e formação acadêmica, pode-se
agora discorrer sobre a crítica que Calvino faz ao Estado em
Genebra, compreender os seus objetivos, bem como sua relação
A bílio A rruda

com a Igreja, visando um melhor entendimento do humanismo social


de Calvino.

2.3. A crítica de Calvino ao Estado


Para Calvino, Igreja e Estado eram duas ordens que tinham a
mesma origem e objetivo: provinham de Deus e foram instituídas
por ele para a promoção de seu reino.89 Toda a sua crítica ao
Estado90, e posteriormente à Igreja, está relaciona com o que
presencia em Genebra, quando da sua chegada em julho de 153691,
e após ser persuadido por Farei a perm anecer e ajuda-lo a
transformar Genebra numa cidade evangélica.
Aceito o convite e recebido oficialmente pelo concilio, Calvino
rapidamente empreende esforços para a organização da cidade
nos moldes protestantes. Convoca uma reunião com toda a cidade
para renúncia coletiva ao papado e aceitação da fé reformada;
propõe a aprovação individual do Catecismo e da Confissão de Fé, sendo
que ambas as tentativas não lograram o êxito esperado por ele.92
Mas o que vai realmente contrariar Calvino e demonstrar a
proeminência do Estado sobre a Igreja é o que ocorre posteriormente.
O Concilio, talvez com medo do descontentamento do povo em relação
às medidas propostas por Calvino, resolve assumir a jurisdição em
assuntos religiosos e morais. Calvino não aceita tamanha jurisprudência
do Estado sobre assuntos que, conforme pensava, caberia à Igreja
resolver.93
Um exemplo disso diz respeito ao direito de excomunhão. Esse
direito estava nas mãos dos magistrados94 cabendo à Igreja apenas o
direito de admoestação. Calvino vai lutar durante mais de quinze anos
para conseguir que a excomunhão fosse prerrogativa da Igreja, o que
vai ocorrer apenas em 1555.95
Somando-se a estes aborrecimentos, nas eleições de 1538 há
um considerável aumento de pessoas no Concilio “favoráveis a uma
atitude mais liberal com respeito aos costumes”.96A situação de Calvino
e dos demais pastores de Genebra se torna insuportável quando são
obrigados pelo Concilio a ministrarem a Santa Ceia a quem cometesse
pecado considerado grave, desde que a pessoa se considerasse
apta, o que contrariava profundamente a concepção do sacramento
por parte dos reformadores.97
Para não comprometer as relações com Bema, os concílios de
Genebra aceitam a imposição da cidade aliada, no que diz respeito à
adoção das práticas religiosas bemenses.98Assim, conseqüentemente,
os pastores de Genebra são obrigados pelo Conselho a seguirem
os rituais religiosos de acordo com Berna. Calvino e Farei se
recusam a fazê-lo e são proibidos de pregar.99 Desobedecem as
ordens e são expulsos de Genebra em 23 de abril de 1538.100
O que estes acontecim entos querem demonstrar? Uma
diminuição considerável e gradativa da autoridade dos pastores, e
conseqüentemente, da Igreja, e cada vez mais o aumento do poder
do Estado em detrimento ao da Igreja, na Genebra do século XVI.
Também, para além de demonstrar a diminuição gradativa da
autoridade da Igreja em Genebra, os fatos expostos acima vêm
derrubar a tese de alguns historiadores de que Calvino era um
verdadeiro ditador e sua intenção era promover uma verdadeira
teocracia em Genebra.101
Calvino começa então sua crítica ao despotismo do Estado e
à om issão da Igreja pelo levantam ento das suas obrigações.
Segundo Calvino, nas suas Institutas, as obrigações do Estado
consistiam em:

manter e conservar o culto divino externo, a doutrina e a


religião em sua pureza, o estado da Igreja em sua integridade,
fazer-nos viver com toda justiça, instruir-nos numa justiça social,
colocar-nos em comum acordo uns com os outros, manter e
conservar a paz e a tranqüilidade comuns.102

O levantamento das obrigações do Estado, em sua crítica,


parece evidenciar o não cumprimento destas, no todo ou em partes,
da parte deste. Mas, como se irá constatar no desenvolvimento
A hilioA rri da

desta pesquisa, a crítica está direcionada muito mais à dominação


do Estado sobre a Igreja, ou dito de outra maneira, à intervenção
do Estado em áreas onde somente a Igreja, segundo Calvino, tinha
autoridade.
Na relação entre Estado e Igreja, o primeiro possuía autoridade
para manter a pureza da doutrina cristã e a integridade da Igreja,
mas não se pode confundir esta autoridade sobre os cidadãos,
com o fim de m antê-los em certa ordem e obediência com a
autoridade que somente o Espírito Santo tem sobre a Igreja. Assim
afirma Calvino, comentando João 18,36 em seus Comentários ao
Novo Testamento:

O Reino de Cristo, sendo espiritual, deve ser


fundamentado na doutrina e no poder do Espírito. Dessa forma,
sua edificação é promovida, pois, nem as leis nem os editos
dos homens, nem as punições impostas por eles participa nas
consciências. Contudo, isto não impede, por acaso, os
príncipes de defender o Reino de Cristo. Em parte pela
disciplina externa, e em parte, emprestando sua proteção contra
os homens maus.103

Para Calvino, o Estado tem limites bem definidos: está a


serviço de Deus e do povo. No seu comentário à carta aos Romanos
13,4, ele diz que os

Magistrados podem daqui aprender no que consiste


sua vocação, para não governarem mais em seu próprio
interesse, mas para o bem público, nem são imbuídos
com poder desenfreado, mas restrito ao bem-estar de seus
assuntos; em resumo, são responsáveis a Deus e aos
homens no exercício de seu poder.104

Sendo o Estado instituído por Deus, tanto quanto a Igreja,


este serviço prestado ao povo implica, em contrapartida, obediência
e subm issão por parte deste ao Estado. Esta obediência e
submissão visam, ao mesmo tempo, a manutenção da fé e da ordem
social, que teimam em ser desmanteladas tanto pela insubmissão
quanto pelo conformismo à ordem civil. Segundo Calvino,

en ei día de hoy existen hombres tan desatinados y


bárbaros, que hacen cuanto pueden para destruir esta
ordenación [gobierno] que Dios ha establecido; y por su parte,
los aduladores de los príncipes, ai engrandecer sin limite ni
medida su poder, no dudan en ponerlos casi en competência
con Dios. Y así, si no se pone remedio a tiempo a Io uno y a Io
otro, decaerá Ia pureza de Ia fe.105

Mas esta obediência e submissão também são limitadas pela


obediência e submissão a Deus. Ainda nas Institutas, Calvino deixa
isso bem claro com as seguintes palavras:
Mas, en Ia obediência que hemos ensebado se debe a
los hombres, hay que hacer siempre una excepción; o por mejor
decir, una regia que ante todo se debe guardar; y es, que tal
obediência no nos aparte de Ia obediência de Aquel bajo cuya
voluntad es razonable que se contengan todas Ias disposiciones
de los reyes, y que todos sus mandatos y constituciones cedan
ante Ias ordenes de Dios, y que toda su alteza se humille e
abata ante Su majestad.106

Para Calvino, as pessoas devem submeter-se primeiramente


a Deus, o que não abole sua tese de que devem submeter-se
também às autoridades, visto serem estas instituídas por Deus para
a manutenção da ordem social. Porém, esta submissão primeira a
Deus vai evoluir para uma teoria da resistência, visto que o próprio
Calvino vai concluir, dando continuidade à sua teoria da submissão
a Deus e ao Estado, que:

después de El hemos de someternos a los hombres que


tienen preeminencia sobre nosotros; [...] Si ellos mandan alguna
cosa contra Io que Él ha ordenado no debemos hacer ningún
caso de ella, sea quien fuere el que Io mande. [...] Porei contrario,
el pueblo dei Israel es condenado en Oseas por haber
obedecido voluntariamente a Ias impías leyes de su rey (Os.
5,11). Porque después que Jeroboam mandó hacer los becerros
de oro dejando el templo de Dios, todos sus vasallos, por
complacerle, se entregaron demasiado a Ia ligera a sus
supersticiones (1 Re. 12,30), y luego hubo mucha facilidad en
sus hijos y descendientes para acomodarse al capricho de sus
reyes idólatras, plegándose a sus vicios. El profeta con gran
severidad les reprocha este pecado de haber admitido
semejante edicto regio.107 '

Se cabe à ordem civil, segundo Calvino, entre outras coisas,


“hacernos vivir con toda justicia, [...] instruímos en una justicia social,
ponernos de acuerdo los unos con los otros, mantener y conservar
Ia paz y Ia tranquilidad comunes”,108 toda ordem dada que venha a
ferir os princípios evangélicos da justiça, da solidariedade, da paz
entre os seres humanos deve ser rechaçada, ou melhor, resistida
como prova de obediência a Deus. Calvino termina as Institutas
afirmando que “verdaderamente daremos a Dios Ia obediência que
nos pide, cuando antes consentimos en sufrir cualquier cosa que
desviamos de su santa Palabra”.109
Já foi visto que para Calvino a Igreja é um meio pelo qual a
graça justificadora de Deus visa alcanças os seres humanos e
melhorar suas relações sociais. Mas a Igreja, formada por uma
parcela da sociedade, continua com resquícios do pecado, não
podendo, por isso, restaurar completamente esta sociedade.
Assim, segundo Calvino, Deus estabelece uma outra instituição
que irá servir como instrumento de Deus para balizar as relações
sociais de homens e mulheres ainda submetidos ao pecado, de
maneira que consigam viver em comunidade. Conforme nos diz
Biéler, “para evitar, pois, que todas as coisas descambem para a
desordem e o caos, Deus suscita, no quadro geral da sociedade,
uma ordem provisória a que Calvino dá o nome de ordem política".110
Calvino algumas vezes teve que com bater a indiferença
política dos cristãos, que muitas vezes queriam reduzir a vida à
esfera espiritual. Embora para ele, o reino espiritual de Cristo e o
poder civil sejam coisas muito diferentes entre si111, "esta distinción
no sirve para que tengamos el orden social como cosa inmunda y
que no conviene a cristianos”.112 Muito pelo contrário, ele entende
que a Igreja tem uma missão política a desenvolver na sociedade.
Segundo Biéler, o humanismo social de Calvino compreende que
“apolítica não é, pois, sem relação com a ordem de Deus. Ela deve
representar, em todas as sociedades, a ordem que mais se aproxima
da ordem de Deus, tendo-se em conta o desenvolvimento espiritual
dos habitantes em um lugar e um momento dados”.113
Esta missão política da Igreja pode ser dividida em quatro
m om entos ou tópicos, segundo Biéler. São eles: “orar pelas
autoridades, advertir as autoridades, tomar a defesa dos pobres e
dos fracos contra os ricos e poderosos, recorrer à autoridade política
na aplicação das sanções disciplinares”.114 Para o nosso objetivo,
privilegiaremos o segundo e o terceiro tópicos, onde parece estar
contida a missão profética da Igreja.
A Igreja tem uma missão profética porque é ininterruptamente
conclam ada a denunciar as injustiças sociais, ao apregoar o
Evangelho de Jesus Cristo, embora muitas vezes promova, ela
mesma, com sua omissão, a desordem social. Para Biéler, a Igreja,
de acordo ao hum anism o social de C alvino, “é o ferm ento
regenerador da vida social, política e econômica. E se a Igreja é
morta, [...] se sua presença não imprime à sociedade total o impulso
de sua própria e constante regeneração pela Palavra de Deus, então,
ela mesma participa na propagação da desordem social”.115 Aqui
se evidencia a crítica de C alvino àqueles cristãos que, por
conformismo, não vivenciam a fé cristã na esfera política.
Aqueles incumbidos de anunciar o Evangelho, por vezes são
suspeitos de desordem social e política.116 Isto ocorre porque a
ordem estabelecida e defendida pelos magistrados, pela ordem
civil,.e stá longe de ser uma ordem segundo os preceitos do
Evangelho. Para Calvino, aqueles que consideram os cristãos fiéis
como suspeitos de propagar a desordem, são os verdadeiros
responsáveis por esta. Ao comentar Atos dos Apóstolos 17,6 em
seus Comentários ao Novo Testamento, ele afirma:

Tal é a condição do Evangelho, que os tumultos que


Satanás suscita para combatê-lo lhe são imputados. Eis
também qual a maldade orgulhosa dos inimigos de Jesus Cristo,
que lançam a culpa das perturbações sobre os santos e
modestos professores, que eles mesmos obtêm,117

Ao anunciar a verdadeira ordem que o Evangelho quer


estabelecer, a Igreja denuncia a ordem vigente corrupta e a seus
mantenedores, o que pode acarretar na perda de privilégios por
parte destes. De acordo com Calvino, em sua dedicatória ao livro

m
r -
dos Atos dos Apóstolos,

muitos príncipes, embora vejam o estado asqueroso de


corrupção da Igreja, não tentam nenhum remédio, pois, quando

Calvino e a educação para a solidariedade


a questão é alijar as corrupções de sua possessão antiga, da
qual fruíram tranqüilamente, temem que a novidade e a
mudança os ponham em perigo, e esta apreensão os retarda e
os impedem de cumprir o seu dever.118

Aqui está o cerne da crítica de Calvino ao Estado. No não


cumprimento de suas obrigações, torna-se evidente sua corrupção.
Por ser corruptível, o Estado não tem autoridade para invadir a área de
atuação da Igreja. Fixam-se os limites para ambas as instituições: à
Igreja cabe a missão profética de denunciar a corrupção do Estado, e
ao Estado a manutenção da ordem política. Segundo Biéler, para o
humanismo social de Calvino, “o Estado, ao qual cabe manter pelas
leis e pela coerção a ordem política, não dispõe de outra garantia contra
sua própria corrupção. Com efeito, se a Igreja não o chamar
constantemente à sua missão, o Estado torna-se também um fator de
desordem".119
A Igreja, através da denúncia e da resistência à ordem
estabelecida, acaba por contribuir com a restauração da sociedade.
Pode contribuir se permanecer fiel ao Evangelho, ou seja, seguir firme
na sua missão de denunciar as injustiças, muitas vezes promulgadas
pela própria ordem civil, colocando-se como defensora dos pobres e
dos oprimidos. É o que se pode depreender do comentário de Calvino
sobre Jeremias 7,6:

Quanto aos estrangeiros, e órfãos, e viúvas, [...] são quase


destituídos de todo socorro e ajuda e estão sujeitos às injúrias de
muitos, como se postos por presa. Portanto, cada vez que se faz
referência a um governo bom e reto, Deus menciona os
estrangeiros, e as viúvas, e os órfãos, por isso que daí se pode
facilmente ver qual é a forma da administração pública da justiça.
Não é, pois, de surpreender se os outros obtêm seu direito, porque
têm eles advogados para defender-lhe as causas [...] Assim, quando
alguém pleiteia sua causa, obtém pelo menos alguma parte de
seu direito. Se, porém, os estrangeiros, os órfãos e as viúvas não
são tratados injustamente, isto é evidência de verdadeira
integridade.120

É neste sentido que a missão profética da Igreja deve ser exercida


em relação ao Estado, ou seja, manter certa vigilância sobre este no
que diz respeito às suas atribuições, visto que o cumprimento destas
tem como conseqüência a existência de uma sociedade mais justa,
igualitária e solidária.

2.4. A graça e a educação para a solidariedade


Segundo o humanismo Social de Caívino, existem três maneiras
que o cristão consciente da responsabilidade que deriva de sua fé
encontra para participar ativamente da vida política da sociedade. Assim
Biéler as dispõem:

1. Contribuindo, em primeiro lugar, pelo seu engajamento pessoal,


a construir no seio da sociedade uma comunidade cristã tão fiel
quanto possível ao Evangelho.
2. Em seguida, participando pessoalmente na ação política para
aperfeiçoar cada vez mais a vida da sociedade pelos meios
legais e institucionais.
3. Enfim, recusando-se energicamente a obedecer ao Estado
toda vez que este lhes impõe deveres incompatíveis com as
exigências do Evangelho.121

Para Calvino, fé e política estão a serviço da instauração de


uma nova sociedade baseada na justiça e na eqüidade. A fé cristã
exige a participação ativa na vida política como meio de se engajar
na construção desta sociedade. É o que assevera C alvino,
comentando Mc 10,21, em seus Comentários ao Novo Testamento:

desde que a preservação da raça humana é algo


agradável a Deus, Ele ama as virtudes políticas, - as quais
consistem em justiça, sinceridade, moderação, discrição,
fidelidade e parcimônia, - não que sejam meios de salvação
ou de graça, mas porque orientam para um fim que Ele
aprova.122

Quando o Estado dá garantias de que as virtudes políticas,


com o as entendiam C alvino, sejam d e se n vo lvid a s surge a
esperança de se poder construir uma sociedade onde valores
humanitários como a justiça, a eqüidade e a solidariedade sejam
seu esteio.
Porém, a doutrina teológica e social de Calvino tem uma visão
pessimista do ser humano. Ele Argumenta, nas Institutas, que “todo
el hombre, de los pies a Ia cabeza, está como anegado en un
dilúvio, de modo que no hay en él parte alguna exenta o libre de
pecado, y, por tanto, cuanto de él procede se le imputa como
pecado”.123 Se tanto a intenção quanto a ação dos seres humanos
são más, tem-se que as suas relações sociais são corrompidas,
ou seja, são relações egoísticas, desprovidas de solidariedade.
Mas Calvino vai vislum brar uma saída, um caminho de
reconciliação para esse ser humano desnaturado, no Evangelho:
“Dios [...] se hubiera hecho nuestro Redentor em Ia persona de su
H ijo u n ig ê n ito ” .124 Nesta redenção, o ser hum ano não tem
participação, sendo que todo mérito repousa em Cristo Jesus. Para
Ele, todo este processo de justificação ocorre por conta da graça
de Deus. Assim comenta, ainda nas Institutas, que “no hay dificultad
alguna en que Ia justificación de los hombres sea gratuita por pura
misericórdia de Dios”.125
Embora a graça redentora e justificadora de Deus não deixe
espaço para a participação humana, esta graça não quer manter o
ser humano na passividade. Biéler afirma que, segundo o humanismo
social de Calvino, o novo homem,

transformado por Cristo, encontra-se em luta sem


tréguas com seu próprio eu e com todas as forças que
ameaçam desnaturá-lo. A graça nunca é um dom que o reduz
à passividade. Ao contrário, provoca nele uma atividade
transbordante e põe em movimento todas as suas
potencialidades de tal modo que, para realizar plenamente sua
humanidade, ele deve lutar incessantemente contra sua própria
inumanidade.126

Assim sendo, o ser humano que se tornara incapaz de


relações sociais solidárias, passa a viver uma relação mais justa
com o seu semelhante, relação esta baseada na fé e no amor,
primeiramente com Deus, depois com o seu próximo. Segundo
o humanismo social de Calvino, “o dinamismo do Espírito Santo,
o poder do amor que age no homem, leva-o necessariamente
ao encontro do próxim o do qual ele não pode privar-se sem
prejudicar sua própria humanidade” .127
Chega-se assim, ao ponto culminante do humanismo social
de C a lv in o . Para ele a nova vid a p ro v e n ie n te da g ra ça
justificadora de Deus é essencialm ente com unitária, porque,
“efectivamente, si en verdad están persuadidos de que Dios es
el Padre común de todos, y de que Cristo es su única Cabeza,
se amarán los unos a los otros como hermanos, comunicándose
mutuamente Io que poseen”.128
E xpressar a so lid a rie d a d e com o próxim o através da
comunicação mútua dos bens. Esta é a compreensão que tem
C alvino da Igreja. Mas, esta so lidarie dad e deve ser vivida
somente na comunidade cristã? Segundo Biéler,
A existência, no seio da sociedade humana, desse
núcleo celular que é a comunidade dos cristãos, por pequena
que seja, constitui o estímulo para a restauração social da
humanidade, desde que, evidentemente, [...] seja
verdadeiramente cristã. A Igreja, com sua comunidade de
homens e mulheres reais que recuperam em Cristo sua
humanidade, tornam-se o embrião de um mundo inteiramente
novo onde as relações sociais, outrora pervertidas, reencontram
sua natureza original.129

Seria esta a saída proposta por Calvino para a construção de


uma sociedade mais humana e solidária, ou seja, que através da
ação da Igreja toda as pessoas de uma determinada sociedade
aprendessem a comunicar solidariamente seus bens? Talvez aqui
haja o germe de uma educação para a solidariedade.
Sabe-se que para Calvino o Estado tem a obrigação de instruir
seus partícipes na justiça social130, entendendo-se por isso que as
pessoas sejam instruídas, por meio de leis e da coerção, a viverem
de modo a propiciarem, ou pelo menos não desmantelarem a
coesão social131. Para que a coesão social não seja desmantelada,
faz-se necessário que todos tenham direito ao trabalho como fonte
de recursos.132
Esta equação foi resolvida por Calvino ao decretar “que os
pobres, os enferm os e os in vá lid o s sejam reeducados
profissionalmente'’.133 A “instrução pública obrigatória” já existia em
Genebra desde antes da chegada de Calvino.134 O que ele fez foi
instaurar um processo educativo prático, cujos resultados foram a
emergência, na Genebra do século XVI, pelo menos por parte dos
que aderiram à reforma calvinista, da solidariedade com os excluídos
e a conseqüente manutenção da coesão social. Segundo Biéler,

A comunhão humana se realiza nas interrelações que


decorrem da divisão do trabalho, visto que cada pessoa é
chamada por Deus para uma atividade particular, parcial e
complementar da atividade das outras. A comunicação natural
dos bens e dos serviços é o sinal concreto da solidariedade
profunda que une o gênero humano.135

O restabelecimento da solidariedade como um fator de coesão


social aparece aqui como o resultado da graça justificadora de Deus.
Mas a graça deve ser comunicada a todo ser humano através da
ação da Igreja, o que evidencia a sua missão, a saber, vivenciar e
apregoar o amor ao próximo e a solidariedade humana.
Para Calvino, a Igreja, comunidade de mulheres e homens
regenerados mediante a fé em Cristo Jesus para vivenciarem a
prá tica do amor, isto é, viverem relações de igualda de e
solidariedade, é o canal para que a graça justificadora de Deus
alcance e regenere toda a sociedade. Segundo ele, “por eso Dios
ha unido a su Iglesia con ei vínculo que le pareció más apropiado
para mantener en ella Ia unión, confiando Ia salvación y Ia vida eterna
a hombres, a fin de que por su medio les fuese comunicada a los
demás”.136
A bílio A rruda

Com unicar a salvação e a vida eterna a todos os seres


humanos. Mas, no que consiste para Calvino a salvação? Para
Calvino, nas palavras de Biéler,

toda criatura humana poderá encontrar nessa única


criatura perfeita [Jesus Cristo] o caminho de sua própria
restauração. Não importa a raça ou a religião a que pertença e
nem o lugar onde habite, o homem pode agora recuperar sua
humanidade ouvindo e seguindo Jesus Cristo.137

Restauração da humanidade: eis o que significa para Calvino


a salvação mediante a fé em Jesus Cristo. E esta restauração
acontece diariamente mediante a graça, pois “transformado por Cristo,
o novo homem encontra-se em luta sem tréguas com seu próprio
eu e com todas as forças que ameaçam desnaturá-lo” .138
Para Calvino, a restauração da humanidade, da qual a raça
humana estava privada por causa do pecado, ocorre no encontro
com Jesus Cristo, mas esse encontro também é horizontal, isto é,
no relacionamento com o seu semelhante o ser humano é novamente
humanizado. Tanto a verticalidade, no encontro com Deus, quanto a
horizontalidade, no encontro com o sem elhante podem ser

C alvino b a bducação para a solidarii dadl


encontradas na doutrina teológica e social de Calvino. Nas palavras
de Biéler, “o dinamismo do Espírito Santo, o poder do amor que
age no homem, leva-o necessariamente ao encontro do próximo
do qual ele não pode privar-se sem p re judicar sua própria
humanidade”.139
Neste ponto do humanismo social de Calvino também se torna
evidente a presença de uma educação para a solidariedade, tendo
em vista que todo relacionamento humano implica em processo
educativo. Uma educação que promova a solidariedade humana ,
será analisada no segundo capítulo deste trabalho, e, por fim, no ■
terceiro capítulo, tentar-se-á propor o humanismo social de Calvino S
como processo educativo que impulsione a Igreja hodierna à prática
da solidariedade como decorrência da fé.
O humanismo social de Calvino, por ser uma doutrina social
e teológica, ou seja, relaciona o ser humano ao seu semelhante no
convívio da sociedade da qual participam, porém sem excluir a
sujeição destes ao seu criador, não se fecha num reduto eclesial
ou espiritual, mas enxerga para além dos muros da igreja uma graça
justificadora que quer restabelecer à totalidade dos seres humanos
a comunhão outrora aniquilada pelo pecado.
A Igreja sendo formada como é por mulheres e homens, que
apesar de justificados e perdoados, permanecem pecadores, da
mesma forma que o Estado, está arriscada à corrupção. Calvino,
comentando Atos 6, 1, pondera:

Aprendemos com a história que a Igreja não pode ser


tão completamente formada que não permaneça aigo para
ser corrigido; nenhum edifício tão grande poder ser
completamente acabado em um dia, sendo que não haja algo
que não lhe possa ser acrescentado para torna-lo perfeito. Além
do mais, aprendemos que não há ordenança de Deus, por
mais santa e louvável que seja, que não seja corrompida ou
inutilizada pelas falhas dos homens. [...] a causa disso é a nossa .
natureza maliciosa e corrupta.140

Embora em Jesus Cristo as relações sociais harmoniosas,


outrora desmanteladas pelo pecado, foram restabelecidas, não
podem ser plenamente realizadas, tendo em vista que não é a
totalidade da sociedade que vive segundo a fé em Jesus Cristo e,
também, porque os próprios fiéis continuam a ser pecadores,
podendo se r co rrom p idos. A ssim , “o advento da Igreja, o
nascimento da nova humanidade em meio à antiga humanidade
não basta para conter o ímpeto das forças destruidoras do homem
e da sociedade”.141 .
Por isso Calvino, ao criticar a união da Igreja com o Estado,
não o faz de modo a provocar, ou propor um cisma entre estas
A bílioA rri ia

duas importantes instituições do século XVI, e isso é atestado pela


sua compreensão de que ambas instituições são provenientes de
Deus, mas para fixar os limites de cada uma delas dentro de suas
competências, segundo ele entendia e propõe no capítulo final das
Institutas.142Assim, em seus Comentários sobre a Primeira Epístola
a Timóteo, reconhecendo a importância do Estado, junto à Igreja,
na manutenção da ordem social, Calvino diz:

Deus tem nomeado os magistrados e os príncipes (o


Estado) para a preservação da humanidade, [...] foram armados
com a espada a fim de promover a manutenção da paz. Se não ■
contivessem a audácia de homens maus, em todo lugar haveria
abundância de roubos e de assassinatos. [...] os magistrados
existem para a promoção da religião, para a manutenção do
culto e para que as ordenanças sagradas sejam reverenciadas
com o devido respeito. [...] Tais magistrados foram nomeados
por Deus para a proteção da religião, para a manutenção do
bem-estar, bem como da paz e da decência da sociedade.143

Igreja e Estado: na compreensão de Calvino, duas instituições


divinas, cada qual com suas atribuições, a serviço da implantação

C a LYINC) I, A HDUCAÇÃO PARA \ SOI


do Reino de Deus entre os seres humanos. Na implantação deste
reino, que trás consigo os ideais da justiça, da eqüidade e da
solidariedade humana, cabe ao Estado zelar pela justiça social e
proporcionar à Igreja liberdade e segurança no desempenho de
sua missão, qual seja, vivenciar e propagar estes ideais.
Por outro lado, cabe à Igreja, no desempenho de sua missão
profética, exercer a vigilância sobre o Estado, não lhe permitindo,
sob o risco de corrupção, deixar de zelar pela manutenção da
coesão social e nem interferir, como déspota, em áreas que são
atribuições conferidas por Deus a ela somente.
Enquanto perdurar este equilíbrio, ou seja, a Igreja e o Estado
desempenharem as funções que lhes são outorgadas por Deus,
dentro de seus limites, os ideais do Reino de Deus, a saber, a
justiça, a eqüidade e a solidariedade hão de estar presentes de
forma ininterrupta entre os seres humanos.
Mas, para que tal equilíbrio se mantenha como fenômeno
efetivo, os seres humanos que, unidos em torno de objetivos
comuns fazem emergir as instituições, devem ser alcançados pela
graça redentora de Deus, no encontro com Jesus Cristo. Outrora
desumanizados pela força do pecado, os seres humanos tiveram,
como conseqüência, suas relações pervertidas, ocasionando o
afastamento do outro, do seu semelhante e o desmantelamento
das relações sociais.
A graça redentora de Deus, ao alcançar os seres humanos,
devolve-lhes a oportunidade de ir ao encontro do outro, reatando
os laços de am izade, de com panheirism o, enfim , laços de
solidariedade pessoal e social. Por isso a graça se estabelece
como fenômeno que viabiliza um processo educacional para o
aprendizado da solidariedade. Mas, como ocorre esse processo
educativo para a solidariedade? É o que pretendemos responder
no próximo capítulo.

Notas do Capítulo 1
1BIÉLER, André. O Pensamento Econômico e Social de Calvino, p. 68.
2Cf. BIÉLER, André. Op. cit., p. 69.
3 Idem.
4 SILVESTRE, Armando Araújo. O direito de resistir ao Estado no pensamento de
João Calvino, p. 46 -Tese.
5 Cf. GAMBLE, Richard C. Suíça: Triunfo e Declínio. In: REID STANFORD, W.
Calvino e sua Influência no Mundo Ocidental, p. 63.
6 BIÉLER, André. Op. Cit., p. 84-85.
7 MAcGRATH, Alister. A Vida de João Calvino, p. 107.
8SILVESTRE, Armando Araújo. Op. Cit., pp. 26-27.
9 Cf. GAMBLE, Richard C. op. cit., p. 41,
10 Cf. SILVESTRE, Armando Araújo. Op. Cit., pp. 47-50. '
11 DURAN, Will. A História da Civilização V I - A Reforma, p. 390.
12 MAcGRATH, Alister. Op. cit., p. 108.
13IRWIN, C. H. Juan Calvino: su vida y su obra, p. 25.
; 14 DURAN, Will. Op. cit., p. 390.
15 ESTRELLO, Francisco E. Breve Historia de Ia Reforma, p. 38.
16 FERREIRA, Wilson Castro. Calvino: vida, influência e teologia, p. 78-79.
17SILVESTRE, Armando Araújo. Op. Cit., p. 12. “Referência negativa aos mamelucos
orientais que preferiam ser escravos ou servos a viver em liberdade”.
18MAcGRATH, Alister. Op. Cit., p. 109. Segundo o autor, “a palavra suíça-alemã para
“confederado”, Eidgnoss, provou-se praticamente impossível de ser pronunciada
no dialeto de Genebra (...) A expressão eiguenot ou eyguenot representa a tentativa
feita pelos moradores de Genebra para reproduzir a palavra usada para “confederado”
(Eidgnoss).
19 MAcGRATH, Alister. Op. Cit., p. 108.
20 Cf. GAMBLE, Richard C. Op. cit., p. 64. '
21 GAMBLE, Richard C. Op. cit., p. 13. Vide nota de rodapé n° 7 deste capítulo.
22 Cf. SILVESTRE, Armando Araújo. Op. Cit., p. 16.
23 Cf. MAcGRATH, Alister. Op. Cit., p. 104.
24 apud BIÉLER, André. O Pensamento Econômico e Social de Calvino, p. 16.
25 MAcGRATH, Alister. Op. Cit., p. 110.
26WALLACE, Ronald. Op. cit., p. 21.
27 DURANT, Will. Op. cit., p. 391.
28 FERREIRA, Wilson Castro. Calvino: vida, influência e teologia, p. 77.
29 GAMBLE, Richard C. Op. cit., p. 63.
30 SILVESTRE, Armando Araújo. Op. Cit., p. 15. Cf. nota de rodapé n° 13.
31 Idem, Ibidem, p. 14.
32Cf. REID, W. Stanford. A Propagação do Calvinismo no SéculoXVI, p. 45.
33WALLACE, Ronald. Op. C/'f„ p. 21.
34 Cf. DURANT, Will. Op. c/í., p. 391.
35 FERREIRA, Wilson Castro. Op. Cit., p. 76.
36 DURANT, Will. Op. c/í., p. 391.
37 Cf. MAcGRATH, Alister. Op. Cit., p. 112.
38 MAcGRATH, Alister. Op. Cit., p. 105.
39Cf. SILVESTRE, Armando Araújo. Op. Cit., p. 14.
40 DURAN, Will. Op. cit., p. 391. Também Cf. IRWIN, C. H. Op. Cit., p.29; LESSA,
Vicente Themudo. Calvino: sua vida e sua obra, p. 70. McGRATH data o mesmo
acontecimento em 25 de maio. Cf. McGRATH, A. Op. cit., p. 115.
41 FERREIRA, Wilson Castro. Op. Cit., p. 77.
42 BIÉLER, André. Op. Cit., p. 86-87.
43 Cf. McGRATH, A. Op. cit., p. 130.
44 Idem, pp. 130-131.
45 Cf. DURAN, Will. Op. cit., p. 390; LESSA, Vicente Themudo. Op. Cit., p. 67.
McGRATH, talvez por um equívoco, diz que o número de cidadãos que compõem o
Pequeno Conselho é de “vinte e quatro”. Op. Cit., p. 131.
46 LESSA, Vicente Themudo. Op. Cit., p. 67.
47 McGRATH, A. Op. cit., pp. 130-131. Ferreira diverge desta informação e afirma
que o “Conselho dos Duzentos” fora criado à imitação do governo de Bema, em ’
1526. Cf. FERREIRA, Wilson Castro. Op. Cit., p. 76.
48 McGRATH, A. Op. cit., pp. 130-131.
49SILVESTRE, Armando Araújo. Op. Cit., p. 31.
50 BIÉLER, André. Op. Cit, p. 222.
51 apud BIÉLER, André. Op. Cit., p. 223. Cf. nota n° 545.
52 McGRATH, A. Op.c/f„ p. 70.
53DANIEL-ROPS. A Igreja da Renascença e da Reforma - I . A reforma protestante,
p. 346.
54 McGRATH, A. Op. cit., p. 72. Grifos do autor.
55 Cf. CHAUNU, Pierre. O Tempo das Reformas (1250-1550): História religiosa e
sistema de civilização. - II. A reforma protestante, p. 55.
56 CHAUNU, Pierre. Op. cit., p. 56.
57 Cf. McGRATH, A. Op. cit., p. 72-73.
58 CHAUNU, Pierre. Op. cit., p. 56-57.
59 McGRATH, A. Op. cit., p.73.
60 CHAUNU, Pierre. Op. Cit., p. 59.
61 REID STANFORD, W. A Propagação do Calvinismo no Século XVI. In: REID
STANFORD, W. Calvino e sua Influência no Mundo Ocidental, p. 38.
62 BIÉLER, André. O Humanismo Social de Calvino. - Trad. de A Sapsezian - São
Paulo: Edições Oikumene, 1970.
63 BIÉLER, André. O Humanismo Social de Calvino, p. 13.
64 FERREIRA, Wilson Castro. Op. Cit., p. 38.
85 Cf. CHAUNU, Pierre. Op. Cit., p. 201; DURAN, Will. Op. cit., p. 383; LESSA,
Vicente Themudo. Op. Cit, p. 19; ESTRELLO, Francisco E. Breve Historia de La
Reforma, p. 34.
66BIÉLER, André. O Pensamento Econômico e Social de Calvino, p. 113. Cf. IRWIN,
C. H. op. Cit., p. 10.
67 FERREIRA, Wilson Castro. Op. Cit., p. 37.
68 BIÉLER, André. O Pensamento Econômico e Social de Calvino, p. 114. “Benefício
ou rendimento de uma função eclesiástica". Cf. nota 211; também: ESTRELLO,
Francisco E. Op. Cit., p. 34; IRWIN, C. H. Op. Cit., p. 10. '
69Cf. IRWIN, C. H. Op. Cit., p. 10; DURANT, Will. Op. cit., p. 383; FERREIRA, Wilson
Castro. Op. Cit., p. 34.
Amuo A rruda

70 Cf. FERREIRA, Wilson Castro. Op. Cit., p. 43.


71 DURANT data sua formação em 1531. Cf. DURAN, Will. Op. cit., p. 384.
i 72 Cf. CHAUNU, Pierre. Op. Cit., p. 203.
73 FERREIRA, Wilson Castro. Op. Cit., p. 63.
74Cf. BIÉLER, André. O Pensamento Econômico e Social de Calvino, pp. 113 -116;
CHAUNU, Pierre. Op. Cit., p. 203; FERREIRA, Wilson Castro. Op. Cit., p. 48.
75 BIÉLER, André. O Pensamento Econômico e Social de Calvino, p. 116.
76 Cf. DURANT, Will, Op. cit., p. 384; ESTRELLO, Francisco E. Op. Cit., p. 36;
IRWIN, C. H. Op. Cit., p. 15; McGRATH, A. Op. cit, p. 83-85. Quanto ao fato de
Calvino ser o autor do "discurso”, McGRATH vai oferecer, nas páginas citadas,
provas históricas favoráveis e contrárias.
77 Cf. McGRATH,A.Op.c/f.,p.85.
78McGRATH,A.Op.c/f.,p.91. ■
79 FERREIRA, Wilson Castro. Op. Cit., p. 64.
80 Cf. BIÉLER, André. O Pensamento Econômico e Social de Calvino, 121-122.
| 81Vide nota n° 51 deste capítulo. Também Cf. DURAN, Will. Op. cit., p. 384; CHAUNU,
j Pierre. Op. Cit., p. 204; IRWIN, C. H. Op. Cit., p. 16.
82 BIÉLER, André. 0 Pensamento Econômico e Social de Calvino, p. 124.
88 DANIEL-ROPS. Op. cit, p. 371.
84 Cf. McGRATH, A. Op. c/f„ p. 95; DANIEL-ROPS. Op. c/l, p. 373.
85 McGRATH, A. Op. cit., p. 96; DANIEL-ROPS. Op. cit., p. 374; IRWIN, C. H. Op.
Cit., p. 25; FERREIRA, Wilson Castro. Op. Cit., p. 65.
88 McGRATH, A. Op. c/'f., p. 96-97.
87 Idem.
88 FERREIRA, Wilson Castro. Op. Cit., p. 70.
89 CALVINO, Juan. Institución de La Religión Cristiana. Libro IV, Capítulo XX, pp.
1167-1170. ■>
90"Calvino usava as expressões príncipes, magistrados, ordem civil e ordem política
no lugar do termo Estado". Cf. SILVESTRE, Armando Araújo. Op. Cit., p. 153.
91 Cf. IRWIN, C. H. Op. Cit., p. 29.
92 FERREIRA, Wilson Castro. Op. Cit., p. 78.
93Cf. FERREIRA, Wilson Castro. Op. Cit., p. 78.
94Cf. SILVESTRE, Armando Araújo. Op. Cit., p. 16.
96Cf. FERREliRA, Wilson Castro. Op. Cit., p. 104-105.
95 FERREIRA, Wilson Castro. Op. Cit., p. 79.
97 Idem, Ibidem, p. 80.
98 Cf. McGRATH,A.Op.c/f.,p,105.
99 Cf. FERREIRA, Wilson Castro. Op. Cit., p. 82.
100 Cf. DURANT, Will. Op. cit., p. 392; IRWIN, C. H. op. cit., p. 34.
101 Cf, DURANT, Will. Op. cit., pp. 394-395. DURANT se refere ao clero de Genebra
como “verdadeira teocracia’’ e a Calvino como a “voz mais influente em Genebra’’.
102CALVINO, Juan. Op. Cit., Libro IV, Capítulo XX, p. 1169. "mantenery conservarei
culto divino externo, Ia doctrina y religión en su pureza, el estado de Ia Iglesia en su
integridad, hacernos vivir con toda justicia, (...) instruirnos en una justicia social,
ponernos de acuerdo los unos con los otros, mantener y conservar Ia paz y Ia
tranquilidad comunes.” (Tradução minha).
103 CALVIN, John. Commentaryon the GospelAccording to John. - Volume Second
- p. 210-211. “ the Kingdom of Christ, being spiritual, must be founded on the
doctrine and power of the Spirit. In the same for the Kingdom of Christ, being
spiritual, must be founded on the doctrine and power of the Spirit. In the same
manner, too, its edification is promoted; for neíther the laws and edicts for men, nor
the punishments inflicted by them, enter into the conscíences. Vet this doesnot hinder
princes from accidentally defending the Kingdom of Christ; partly, by appointing
externai discipline, and partly, bylending theirprotection to the Church against wicked
men". (tradução minha).
104 CALVIN, John. Commentaries on the Epistle of Paul the Apostle to The Romans
- Chapter XIII. 4 - p. 481. “Magistrates may hence learn whattheir vocation is, for
they are not to rule for their own interest, but for the public good; nor are they endued
with unbridled power, but what is restricted to the wellbeing of their subjects; in short,
50 they are responsible to God and to men in the exercise of their power”. (traduçáo
minha).
105 CALVINO, Juan. Op. Cit., Libro IV, Capítulo XX, p. 1168. “hoje em dia existem
homens tão desatinados e bárbaros, que fazem tudo quanto podem para destruir o
governo que Deus estabeleceu; e, de outra parte, os aduladores dos príncipes, ao
engrandecer demasiadamente seu poder, não suspeitam que os estão colocando
quase em competência com Deus. E assim, se não se remedia a tempo a um e a outro,
decairá a pureza da fé”. (Tradução minha).
106CALVINO, Juan. Op. Cit., p. 1193-1194. “Mas, na obediência que temos ensinado
que se deve aos homens, tem-se que fazer uma exceção, ou melhor dizendo, uma
regra que deve ser guardada antes de tudo; isto é, que tal obediência não nos aparte
da obediência d’Aquele sob cuja vontade é razoável que se contenham todas as
disposições dos reis, e que todos seus mandatos e constituições cedam ante às
ordens de Deus, que toda alteza seja humilhada e abatida perante Sua majestade.".
(Tradução minha).
107 CALVINO, Juan. Op. Cit., Libro IV, cap. XX, p. 1194. “depois d’Ele havemos de
nos submeter aos homens que têm proeminência sobre nós. (...) Se ordenam alguma
coisa que contraria o que Ele há ordenado, não devemos fazer nenhum caso dela,
seja quem for que ordene. [...] Pelo contrário, o povo de Israel é condenado em
Amuo A rruda

Oséias por ter obedecido as ímpias leis de seu rei (Os 5,11). Porque depois que
Jeroboão mandou fazer os dois bezerros de ouro, abandonando o templo de Deus,
todos seus súditos, por condescendência, se entregaram demasiadamente rápido às
suas superstições (1 Rs 12,30), e logo com muita facilidade seus filhos e descendentes
se acomodaram aos caprichos de seus reis idólatras, conformando-se aos seus
vícios. O profeta severamente lhes censura este pecado, de haver admitido semelhante
edito real". (Tradução minha).
108CALVINO, Juan. Op. C/f.,p. 1169. “fazer-nos viver com toda justiça, [...] instruír-
nos em uma justi;a social, colocar-nos de mútuo acordo uns com os outros, manter e
conservar a paz e a tranqüilidade comuns". (Tradução minha).
109CALVINO, Juan. Op. Cit., Libro IV, cap. XX, p. 1194. “verdadeiramente daremos
a Deus a obediência que nos pede, quando antes consentimos em sofrer qualquer
coisa que desviar-nos de sua santa Palavra." (Tradução minha).110 BIÉLER, André:
O Humanismo Social de Calvino, p. 25.
111 Cf. CALVINO, Juan. Op. Cit., p. 1168.
112 Idem. “esta distinção não serve para que tenhamos a ordem social como imunda
e que não convém a cristãos.” (Tradução minha).
113 BIÉLER, André. 0 Humanismo Social de Calvino, p. 25.
114Cf. BIÉLER, André. 0 Pensamento Econômico e Social de Calvino, pp. 382-389.
115BIÉLER, André. 0 Humanismo Social de Calvino, p. 26.
116 Carta ai crístianísimo Rey de Francia. Cf. CALVINO, Juan. Op. Cit., p. XXVIII.
117CALVIN, John. Commentary upon TheActsoftheApostles. Volume Second,
chapter XVII. 6, p. 136. "This is the State of the gospel, to have those uproars which
Satan raiseth imputed to It. This is also the malicious-ness of the enemies of Christ, to
lay the blame of tu-mults upon holy and modest teachers, which theythem-selves
procure11, (Tradução minha).
118CALVIN, John. Commentary upon TheActsoftheApostles. Volume First.-Epistle
Dedicatory, p. XVII. “many princes, although they see the estate of the Church filthily
corrupt, yet dare they attempt no remedy; because that danger which they fear will
proceed from innovation, when evils must be driven out of theirold and quiet possession,
doth hinderand keepthem backfrom doing theirduty”. (Tradução minha).
119 BIÉLER, André. O Humanismo Social de Calvino, p. 26.
120 CALVIN, John. Commentaries on the Book of the Prophet Jeremiah and The
Lamentations. - Volume First - p. 367. "As to strangers and orphans and widows, they ,
are often mentioned; for strangers as well as orphans and widows were almost destitute
of protection, and were subject to many wrongs, as though they were exposed as a
prey. Hence, whenever a right government is referred to, God mentions strangers and
orphans and widows; for it might hence be easily understood of what kind was the
public administration of justice; for when others obtain their right, it is no matter of
wonder; since they have advocates to defend their cause (...) Thus every one who
defends his own cause, obtains at leastsome portion of his right. Butwhen strangers
and orphans and widows are not unjustly dealt with, it is as evidence of real integrity.”
(Tradução minha).
121 BIÉLER, André. O Humanismo Social de Calvino, p. 28.
122 CALVIN, John. Commentary on a Harmonyofthe Evangelists, Matthew, Mark,
and Luke. - Volume Second - p. 399. “for since the preservation of the human race is
agreeableto Him—which consists in justice, upright—ness, moderation, prudence,
fidelity, and temperance—he is said to love the political virtues; not that they are
meritorious of salvation or of grace, but that they have reference to an end of which he
approves”. (Tradução minha).
123CALVINO, Juan. Institución de La Religión Crístiana, Libro II, Capítulo I, p. 170.
"O homem todo, dos pés à cabeça, está como submergido em um dilúvio, de modo
que não há nele parte alguma isenta ou livre de pecado, e, portanto, tudo quanto dele
procede se lhe imputa como pecado”. (Tradução minha).
124 Idem, Ibidem, Capítulo VI, p. 239. "Deus [...] se fez nosso Redentor na pessoa de
seu Filho unigênito.” (Tradução minha).
125 Id. Ibid., Libro II, Capítulo XVII, p. 393. “Não há dificuldade alguma em que a
justificação dos homens seja gratuita por pura misericórdia de Deus.” (Tradução
minha).
52 126 BIÉLER, André. O Humanismo Social de Calvino, pp. 17-18.
,27ldem, Ibidem, p. 18.
128CALVINO, Juan. Institución de La Religión Cristiana. Libro IV, Capítulo I, p. 805.
“Porque, efetivamente, se em verdade estão persuadidos de que Deus é o Pai
comum de todos, e de que Cristo é sua única Cabeça, se amarão uns aos outros como
irmãos, repartindo mutuamente o que possuem.” (Tradução minha).
129 BIÉLER, André. O Humanismo Social de Calvino, p. 21.
130Vide nota de rodapé n° 104 deste capítulo.
131Vide nota de rodapé n° 108 deste capítulo.
132 Cf. BIÉLER, André. O Pensamento Econômico e Social de Calvino, p. 225.
133 Idem.
134 Id., p. 222.
135 BIÉLER, André. O Humanismo Social de Calvino, p. 19.
136CALVINO, Juan. Op. cit. Libro IV, Capítulo III, p. 837.
137 BIÉLER, André. O Humanismo Social de Calvino, p. 17.
138 Idem.
139 Idem, p. 18. * "
140 CALVIN, John. Commentary Upon TheActsoftheApostles. - Volume First - p.
229. “We learn in this history that in the Church cannot be so framed by and by, but that
A bílio A rrudv

there remain somewhattobeamended; neithercan sogreatabuildingbesofinished


in one day, that there may not something be added to make the same perfect.
Furthermore, we learn that there is no ordinance of God so hoiy and laudable, which
is not either corrupt or made unprofitable through the fault of men.[...] it isthe wickedness
and corruption of our nature which causeth this”.
(Tradução minha).
141 BIÉLER, André. O Humanismo Social de Calvino, p. 24.
142Cf. CALVINO, Juan. Institución de Ia Religión Cristiana - Capítulo XX - La Potestad
Civil, pp. 1167-1194.
143CALVIN, John. Pastoral Epistles, pp. 51 -52. Aqui se trata do comentário ao capítulo
2, verso 2. “That God appointed magistrates and princes for the preservation of
mankind, (...) for magistrates are armed with the sword, in orderto keep us in peace.
If they did not restrain the hardihood of wicked men, every place would be full of
robberies and murders. (...) when magistrates give themselves to promote religión, to
maintain the worship of God, and to take care that sacred ordinances be observed with
due reverence. (...) that magistrates were appointed by God for the protection of
religión, as well as of the peace and decency of society”. (Tradução minha).
Capítulo II
EDUCAÇÃO PARA A

m
SOLIDARIEDADE

Calvino l a kdi/caçào para a solidartedadl


A doutrina teológica e social de Calvino, como vimos no
primeiro capítulo, empreende dura crítica à relação entre Estado e
Igreja na Genebra do século XVI. De acordo com Calvino, cabe a K
estas duas instituições divinas a salvaguarda da sociedade, ou seja,
a manutenção da justiça, da igualdade e da solidariedade humana
como alicerces da coesão social. Esta crítica de Calvino, decorrente I
da sua adesão à fé reformada e da maneira como vai vivenciá-la e S
sistem atizá-la, tem seu nascedouro em tem pos de gritantes
desigualdades e exclusões sociais na sociedade genebrina.
A maneira de vivenciar a fé reformada e contextualizá-la em meio
à desagregação social pela qual passava a Genebra do século XVI
levará Calvino a desenvolver sua doutrina teológica e social que emergirá
como processo pedagógico que conduzirá seus adeptos à 1
solidariedade. Podemos afirmar que a doutrina teológica e social de
Calvino adquire aspectos pedagógicos, pois, através de suas prédicas,
ou sermões, questões de interesse geral eram discutidas publicamente,
levando as pessoas a aprimorarem a capacidade de interrogarem-se a
si mesmas e de pensarem e agirem por conta própria. E, nesta ação,
vão passar por experiências que vão forjar uma sensibilidade solidária
com os excluídos do sistema.
Hoje, quando se vive situação análoga em todo o planeta
devido a crescente polarização “ricos-pobres”, decorrente da brutal
concentração de renda nas mãos de uma minoria privilegiada; o
desemprego estrutural, cujo corolário é a exclusão irreversível de
milhões de trabalhadores do mercado de trabalho e do mercado
de consumo; o aumento do número de pessoas infectadas com o
víru s da aids, vítim a s da de sin fo rm a çã o e do descaso; a
discriminação de mulheres, homossexuais e negros; acelerado
processo de urbanização; degeneração da política em discursos e
ações em proveito próprio (“politicagem”); etc., talvez a doutrina
teológica e social de Calvino, como processo cognitivo e ético,
cujo resultado é a solidariedade estrutural com os excluídos do
sistema, possa trazer a lume a discussão sobre o papel da Igreja e
sua relação com as demais instituições sociais na manutenção da
coesão social.
Todo este contexto é fruto da cultura do individualism o,
resultado da “racionalidade produtivista do ‘capitalismo tardio’”,1
dissem inada e m antida por um modelo educacional que tudo
dissocia, separa, individualiza, não perm itindo aos indivíduos
desenvolverem uma visão cooperativa*ou solidária do mundo,
pessoas e sociedades, como sistemas complexos. Urge, então, a
vci.nraVoriLuv

im plantação de um modelo educativo que se contraponha ao


tradicional, dissociativo, individualizante. Uma educação que leve
em conta o potencial cognitivo do ser humano, que tem como
aspiração vital viver em comunidade, e que, para tanto, precisa
encontrar um sentido para sua vida.
Neste capítulo buscarem os responder a uma questão
imprescindível para o nosso objetivo, a saber, se a doutrina teológica
e social de Calvino em erge como processo educativo para a
solidariedade: O que é educação para a solidariedade?

1 .0 Ser Humano é “ ser aprendente” .


Nós, seres humanos, somos seres aprendentes. Isso quer
significar que desde os primeiros momentos de vida já estamos
aprendendo a nos comportar como seres humanos, a nos humanizar.
Conforme Assmann e Sung, “nós não nascemos prontos e o fato de
nascermos prematuros, exigindo um útero externo acolhedor, marcou
toda a nossa evolução, principalmente a do cérebro”.2 O fato de os
seres humanos serem inacabados os coloca em contato imediato
e constante com o meio, num processo de contínuo aprendizado,
que é o responsável pela manutenção da vida.
Isso significa dizer que o ser humano é um ser que necessita
aprender para manter-se vivo. Ou seja, o ser humano precisa
aprender continuamente a conhecer o mundo no qual atua passiva
e ativamente, e este aprendizado passa pela aquisição dos mais
variados conhecimentos que são necessários à sua sobrevivência.
De acordo com Garcia,

a aprendizagem é entendida como alterações


comportamentais mais ou menos permanentes, alterações que
não podem ser creditadas a processos de maturação
fisiológica, à fadiga ou à adaptação sensorial, mas sim a alguma
experiência anterior e que são devidas a modificações a nível
de sistema nervoso central. [...] importa-nos considerar a
aprendizagem como um todo, um processo contínuo de
transformações e que determina uma orientação, intelectual e
práxica, definida pela história de vida de cada qual, uma
especialização mesmo, e alguns interesses específicos.3

Afirm ar que a aprendizagem é um processo contínuo de


transformações equivale a dizer que o ser humano, em contato com o
meio ambiente, com o mundo, está em constante processo de
aquisição de conhecimento. E, segundo Strieder, “a aprendizagem é
efetiva quando toma compatível o agir do ser vivo em seu entorno ambiente,
viabilizando um constante processo de reestruturação interna”.4
Na luta pela sobrevivência, o ser humano vai aprendendo a
sobreviver, e estas aprendizagens vitais vão sendo captadas pelo
cérebro/m ente, dotado, na longa evolução genética, de uma
capacidade incrível, segundo Assmann, “de captar, criar e observar
regras op e ra cio n a is de toda índole. Mas sua destinação,
am adurecida evolucionariam ente, já não é prim ordialm ente a
elaboração e o cumprimento de regras. Já não está condenado a
lógicas rígidas e lineares.” 5
Embora a aprendizagem de técnicas foi e é essencial para a
m anutenção da vida hum ana, fic a r re s trito a esse tip o de
conhecimento somente não deixaria espaço para a humanização
do ser humano. O ser humano, ciente de seu inacabamento, bem
como de sua finitude, é capaz de trabalhar, de criar, de construir,
mas, ao mesmo tempo, é também capaz de sonhar, de desejar, de
transcender. Para Freire,

No jogo constante de suas respostas, (o ser humano)


altera-se no próprio ato de responder. Organiza-se. Escolhe a
melhor resposta. Testa-se. Age. [...] A captação que faz dos dados
objetivos de sua realidade [...] é naturalmente crítica, por isso
reflexiva e não reflexa [...] Ademais, é o homem, e somente ele,
capaz de transcender. A sua transcendência, acrescente-se,
não é um dado apenas da sua qualidade “espiritual" [...] A sua
transcendência está também, para nós, na raiz de sua finitude.6
A bílioA rruda

Se o ser humano é capaz de desejar outras realidades, de


transcender ao meio ambiente imediato, necessário se faz abandonar
a visão de que a aquisição de conhecim entos só ocorre por
transmissão de conteúdos ou informações. Esta proposição está
ancorada no conceito de enaction, de Francisco Varela, que segundo
Assmann e Sung, alude

à necessidade de abandonarmos o conceito de


representação mental em nossa concepção do conhecimento
e da ação. Nossos sentidos não são apenas ‘janelas’ para o •
mundo. São muito mais do que isso porque nossos sentidos
participam ativamente não apenas na recepção de informação
desde o meio ambiente, mas também na construção da
realidade percebida.7
Nas relações diárias a que os seres humanos são submetidos
no meio ambiente em que vivem, já está ocorrendo a aquisição do
co nhe cim en to dos dados cu ltu ra is e sp e cífico s para a sua
sobrevivência. Segundo Morin, "os indivíduos conhecem, pensam
e agem segundo paradigmas inscritos culturalmente neles”.8
A ssim , a educação consiste em p o te n c ia liz a r os
conhecimentos já adquiridos pela pessoa em contato com o seu
meio am biente, pois, segundo Garcia, “aprender significa o
aprimoramento de algo menos perfeito que já existia no organismo
e não criar algo do nada, fazer surgir uma habilidade qualquer do
vazio, da ausência”.9
Mas também ocorre que, ao adquirirem conhecim entos
culturais específicos que propiciam sua sobrevivência, como
resultado da relação constante com o meio, os seres humanos
promovem, por sua vez, a perpetuação da cultura e da sociedade
específicas e também da espécie. Segundo Morin,

No nível antropológico, a sociedade vive para o indivíduo,


o qual vive para a sociedade; a sociedade e o indivíduo vivem
para a espécie, que vive para o indivíduo e para a sociedade.
Cada um desses termos é ao mesmo tempo meio e fim: é a
cultura e a sociedade que garantem a realização dos indivíduos,
e são as interações entre indivíduos que permitem a
perpetuação da cultura e a auto-organização da sociedade.10

Dessa afirmação é possível depreender que o ser


humano, a sociedade e a cultura, que é o resultado da inter-relação
dos dois anteriores, foram sendo construídos juntos, ao longo da
evolução humana. E esta constatação é de salutar importância para o
tema da educação para a solidariedade, porque estabelece a discussão
da complexidade tanto do ser humano quanto da sociedade e da cultura.
Para melhor se entender esta relação complexa, cabe aqui uma
explicação de Morin sobre o termo complexidade:
Complexus significa o que foi tecido junto; de fato, há
complexidade quando elementos diferentes são inseparáveis
constitutivos do todo [...] e há um tecido interdependente,
interativo e inter-retroativo entre o objeto de conhecimento e
seu contexto, as partes e o todo, o todo e as partes, as partes
entre si. Por isso, a complexidade é a união entre a unidade e
a multiplicidade.11

Esta relação de com plexidade quer dizer que a


hominização e a humanização são decorrentes da evolução conjunta
do ser humano, do cérebro/mente, da sociedade e da cultura. O
que implica em que o ser humano precisa adquirir conhecimentos
que promovam e garantam a manutenção da vida, isto é, da
ininterrupta inter-relação do ser humano com o seu semelhante em
sociedade e na cultura. Segundo Strieder,

A raiz bio-organizativa e bio-soçial da vida, vista como


sistema dinâmico de interação, carrega consigo a flexibilidade
necessária no nosso agir. Os direcionamentos forçados,
A bu io A r r u d a

inibidores da dinâmica auto-organizativa, reclusos da pura


racionalidade, interpõem-se a uma visão de vida como unidade
mente/corpo e, mais ainda como unidade ser humano/
entorno.12

Tocar no assunto de uma educação para a manutenção


da vida é cogitar sobre uma educação para a solidariedade. Ou
seja, um modelo de educação que, sem romper com a salutar
importância de se transmitir informações necessárias ao aprendizado
de técnicas indispensáveis para a preservação da vida e da espécie
humana, leve as pessoas à compreensão de que vivem numa.
relação de in te rd e p e n d ê n cia , po rtan to num a relação de
so lid a rie d a d e , e que esta relação é im p re scin d íve l para a
“perpetuação da cultura” e a “auto-organização da sociedade".
Por isso, tam bém , a necessidad e de um processo
educacional que gere nos indivíduos um sentido de vida que seja
ético, isto é, que leve as pessoas a praticarem a solidariedade,
pois, segundo Assmann e Sung, “ética é, no fundo, saber situar-
nos neste mundo como seres solidários”.13

2. Duas Noções de Solidariedade


O tema da solidariedade hoje está presente nos mais variados
discursos que vão desde o Banco Mundial e FMI até o sonho da
Economia Solidária, perpassando a Igreja e as ONGs, o que contribui
para a disseminação em larga escala do reducionismo da noção
de solidariedade.14
Nesta parte pretendemos mostrar que a solidariedade é muito
mais que atos isolados ou transitórios, mas que tem relação
inquestionável com a coesão social e que deve se estabelecer
como ações políticas, permanentes, conscientes e pedagógicas.
Nas palavras de Assmann e Sung,

Para aprofundar a reflexão sobre a solidariedade, parece


aconselhável que se distingam nitidamente, por um lado, os
apelos à solidariedade que se referem a situações
emergenciais transitórias e, por outro, as questões da
solidariedade como ingrediente eticopolítico na busca de
soluções estruturais e sustentáveis para problemas amplos e
de caráter persistente.15

Refletir sobre a questão da solidariedade sugere que esta existe


de fato, ou nas palavras de Sung, a “solidariedade é um fato, pois
vivemos em uma relação de interdependência”.16 Pode-se presencia-
la na ação da pessoa que ajuda a outra a empurrar o carro que quebrou,
da pessoa que ajuda o/a deficiente visual a atravessar a rua, etc. Inclusive
pode-se dizer que é este tipo de solidariedade a responsável pela
coesão social em uma determinada sociedade.
Só que, embora relações de solidariedade aconteçam a todo
instante, cimentando a coesão social, as pessoas não têm, de modo
geral, noção desta realidade, ou seja, da solidariedade como um
fato, um fenômeno social.

2.1. A solidariedade como um fato


As pessoas, ao pra tica rem no dia a dia ações de
solidariedade, mesmo que não se apercebam disso, fortalecem
os laços de interdependência que as unem e, paralelamente,
cim entam a coesão social. É, segundo Assm ann e Sung, “a
solidariedade entendida como um fato e uma necessidade de
interdependência na vida social, um conceito associado à coesão
social”.17
Mas é necessário que estas mesmas pessoas tenham nítida
compreensão de que a solidariedade é um fato, uma necessidade
de interdependência, ou seja, consciência de que precisam umas
das outras na construção de si mesmas1como seres humanos e
sociais e da própria sociedade na qual se encontram inseridas.
Como as pessoas poderíam ter acesso à compreensão de
que a solidariedade/interdependência é um fato ligado à coesão
social? Necessariamente, a resposta a essa questão passa pela
aquisição de conhecimentos, isto é, pela educação.
Mas, como afirm am Assm ann e Sung, “a form a como
conhecemos a realidade tem muito a ver com a forma como vivemos e
construímos o nosso mundo”.18 Só que entre a forma como conhecemos
a realidade e como esta interferirá na construção do nosso mundo
existem "interferências” psicossociais, afetivas e racionais. Por isso
Assmann irá dizer que o “nosso acesso à realidade não vai além do
fenomênico. O próprio sensoriamento do real está sempre inscrito em.
modelizações. Do ponto de vista epistemológico, toda realidade para
nós é uma realidade inventada por nós”.19
Dessa forma, a realidade tal como se apresenta não é a
realidade estabelecida. O que implica em que ao se referir à
realidade que o cerca, os seres humanos o fazem por meio de
modelos da realidade parcialmente construídos. Segundo Assmann,

os paradigmas funcionam como filtros na percepção


do mundo, que agudizam, por um lado, a capacidade
perceptiva para alguns aspectos e, pelo outro, criam uma
verdadeira cegueira para o resto, afetam a escolha da
informação tida como relevante, selecionam as perguntas tidas
como válidas e tendem a estabelecer parâmetros de crença.
[...] Já que os paradigmas funcionam como modelos de
compreensão do mundo, eles simulam sempre uma
consistência isenta de contradições para poderem direcionar
melhor as expectativas.20

Isso tem interferência direta sobre a educação. Se a educação é


um fenômeno humano, tem-se que todo conhecimento adquirido na
inter-relação entre o ser humano e o meio é um conhecimento parcial
da realidade. Dessa forma o ser humano nunca conhece a si mesmo e
ao seu semelhante “por inteiro”, tendo em vista serem eles resultados
de uma realidade que não podem enxergar por completo. Dito de
outra maneira, os indivíduos vêem o seu semelhante através da realidade
por eles construída e, na construção dessa realidade, o modelo
educacional tem grande responsabilidade.
Com o advento da modernidade, a razão encontrará seu
apogeu em detrimento dos sentidos e dos sentimentos.21 Resultado
disso é o óbvio aparecimento de um sistema educacional que se
encontra baseado na racionalização do pensamento. Filho da razão
iluminista, o método cartesiano vai orientar os processos educativos
desde então e, fatalmente, influenciará profundamente a cosmovisão
do homem e da mulher modernos. Segundo Morin,

O paradigma cartesiano separa o sujeito e o objeto, cada


qual na esfera própria: a filosofia e a pesquisa reflexiva, de um
lado, a ciência e a pesquisa objetiva, de outro. Esta dissociação
atravessa o universo de um extremo ao outro: Sujeito / Objeto,
Alma / Corpo, Espírito / Matéria, Qualidade / Quantidade,
Finalidade / Causalidade, Sentimento / Razão, Liberdade /
Determinismo, Existência / Essência.22

Esta visão disjuntiva do mundo será reforçada por séculos


por meio da educação. E, desse modo, tornar-se-á um paradigma
cultural profundamente interiorizado pelo indivíduo moderno. E todo
paradigma, como já foi visto, funciona como mediador entre a
realidade como tal e a realidade percebida pelos indivíduos.
Esse modelo cartesiano, pedagogicamente transmitido e
cu ltu ra lm e n te a ssim ila do, tem im pedido que as pessoas
compreendam e enxerguem a complexidade e a interdependência
humana e social, isto é, segundo salienta Morin, “o ser humano é
ao mesmo tempo biológico, psíquico, social, afetivo e racional. A
so cied ade com porta as dim ensões h is tó rica , econôm ica,
sociológica, religiosa...”23 .
É preciso estabelecer, então, uma contracultura como
A bkjoA rruda

paradigma cultural, que viabilize a construção de um processo


educacional que prom ova a com preensão e a construção da
re a lida de en tendida com o um em aranhado de elem entos
interligados e constitutivos de um todo. De acordo com Sung,

Essa forma de conhecimento que articula diversas


perspectivas e ciências no estudo de realidades concretas pode
ser chamada de paradigma da complexidade - um
conhecimento que articula diversos tipos de conteúdo. Mais
do que isso, estrutura o próprio pensamento de tal forma que
procura sempre perceber a interdependência entre aspectos
e fatos que parecem à primeira vista independentes ou sem ■
relações. É uma forma de pensar que reconhece que a
realidade é 'tecida' por tramas complexas e, portanto, acredita
que pensamentos analíticos que privilegiam o separar e o dividir
em partes são importantes, mas não suficientes.24
Se não se percebe a inter-relação entre os vários aspectos
que integram a vida e as sociedades não se consegue reconhecer
a interdependência como um fato ligado à coesão social. Para que
esse reconhecim ento se estabeleça, se faz necessária uma
educação que leve em consideração a complexidade. Segundo
Assmann e Sung, “o conhecimento deste fato pode ser adquirido
com uma educação baseada na tra n sd iscip lin a rid a d e e na
perspectiva sistêmica” .25
Um processo educativo que viabilize a compreensão da
complexidade da vida, das sociedades, dos seres humanos, deve
acontecer de forma transdisciplinar e sistêmica. Transdisciplinar,
onde a pretensão é “o encontro necessário entre análise e síntese”
e “uma rearticulação do universo objetivo e do universo subjetivo”.26
Sistêmica, pois se a educação é um fenômeno humano, não pode
prescindir da multidimensionalidade tanto dos seres humanos quanto
das sociedades,27 evitando, desse modo, segundo Morin, “o
parcelamento e a compartimentação dos saberes”.28
Im põe-se, desse modo, a necessidade de um m odelo
educacional que se alicerce numa contracultura que procure enxergar
os seres humanos e as sociedades como realidades complexas.
Conforme salientam Assmann e Sung, “o método analítico consiste
em isolar as partes a fim de compreende-las, enquanto que o
pensamento sistêmico significa coloca-las num contexto mais amplo
para entender as relações entre o todo e as partes”.29
A ssim , uma educação para a co n sciê n cia de que a
solidariedade/interdependência é um fato ligado à coesão social
pressupõe, então, que já existam, entre as pessoas de determinada
sociedade, relações so lid á ria s, m esm o que sejam aquelas
em e rg e n cia is e p ro visó ria s. Mas, uma educação para a
solidariedade de cunho “ético-político” exige uma revolução para
além da própria sociedade, uma revolução da própria maneira de
pensar, já que quando pensamos ou refletimos o meio ambiente
em que vivemos, o estamos construindo.
2.2. A solidariedade como uma exigência ética
Para que a solidariedade deixe de ser entendida apenas
como um fato relacionado à interdependência e à coesão social e
passe a ser vivenciada como uma exigência ética, é necessário
que as pessoas as compreendam, a interdependência e a coesão
social, como vital.
Se esse processo, o de um salto da com preensão da
solidariedade como um fato para a solidariedade como imperativo
ético, passa naturalmente pela educação, talvez seja possível afirmar
que a solidariedade não se ensina, se aprende, já que o ato de
ensinar é um processo diferente do de aprender. Segundo
Assmann, "o ensinar parece estar mais relacionado com gestão e
su pervisão de ta re fa s docentes. O a p rend er se refere ao
desenvolvim ento de uma rede de experiências pessoais de
conhecim ento socialm ente validável no convívio humano” .30 A
aquisição de conhecimentos que despertem nos seres humanos
um desejo de solidariedade será m ediatizada por trocas de
experiências humanas e sociais.
Mesmo com a implantação de um processo educacional que
contribua para que os indivíduos percebam a importância vital da
interdependência e da coesão social, para que o esperado salto
para a solidariedade como imperativo ético fosse realizado, ter-se-
ia que perscrutar a cultura humana em busca de um paradigma
cultural que contivesse, em si, uma fagulha de cooperação solidária,
pois, conforme Assmann, “somos membros de uma espécie proclive
a egoísmos e entredevoramentos. Somente a conversão, refeita
dia-a-dia, pode conduzir-nos à fraternura solidária capaz de evitar
nossa autodestruição”.31
O termo conversão alude a um retorno, a uma volta a um
determinado caminho, não importando se do qual se estava afastado
ou se desconhecia. O que importa, para a nossa reflexão, é a
existência do caminho, pois só se pode retornar para um lugar que
exista e isso só é possível por um caminho. E esta constatação
suscita uma questão: se a aprendizagem sempre se deve a uma
experiência anterior32, qual seria a primeira experiência cognitiva
experimentada pelo ser humano?
Ao nascer o ser humano “se conforma” ao mundo que o
recebe e no qual, de agora em diante, passa a participar passiva e
ativamente. Este “conformar” tem um aspecto cognitivo fundante,
mas, segundo Morin, ocorre sob este conformismo cognitivo muito
mais que mera conformação,

Há o imprinting cultural, marca matricial que inscreve o


conformismo a fundo, e a normalização que elimina o que
poderia contestá-lo. O imprinting é um termo proposto por
Konrad Lorenz para dar conta da marca indelével imposta pelas
primeiras experiências do animal recém-nascido...33

Para responder a questão do parágrafo anterior, pode-se dizer


que a primeira experiência cognitiva do ser humano é o imprinting
cultural. Garcia classifica esta primeira experiência como uma forma
de aprendizagem: a Estampagem, que segundo ele, “se caracteriza
por uma relação que se estabelece entre um padrão complexo de
com portam ento e um estím ulo característico presente em um
momento apropriado, [...] a primeira experiência, como situação, é
a mais importante”.34
Mas, que experiência de fato, que tipo de imprinting cultural
poderia ocorrer para que o ser humano pudesse passar por uma
primeira alteração comportamental, ou seja, uma experiência de
aprendizagem? Segundo Assmann e Sung, “o imprinting cultural
primário é [...] [o] reconhecimento que vem do olhar da mãe (ou de
quem faz este papel), que é um olhar do cuidar, do zelar, guardar.
Um olhar de reconhecimento baseado na reciprocidade e não na
confrontação competitiva”.35
Como corolário dessa afirmação, tem -se que a primeira
experiência cognitiva do ser humano é que o mundo, as pessoas e
Sllliií

a sociedade, que o acolhe é um mundo solidário. Mas, a realidade


experimentada no decorrer da vida vai mostrar que o mundo não é
tão solidário assim. As pessoas, com raríssimas exceções, estão
voltadas, no dia a dia, para os sonhos, desejos e objetivos próprios,
vítim as que são de uma sociedade que privilegia o “ter" em
detrimento do “ser”. Raro se vê alguém agir solidariamente com o
semelhante, em detrimento de seus interesses e segurança, e para
se ter um “lugar ao sol” nas sociedades capitalistas e neoliberais,
não sobra tempo para se ser solidário, apenas competitivo.
De qualquer maneira, o desejo de ser solidária com o recém-
chegado ao mundo, à sociedade e à cultura, estampado no olhar
e/ou nos braços acolhedor da mãe ou de quem cumpriu esse papel
foi apreendido, interiorizado e gravado pelo e no cérebro/mente
do recém-nascido. Seria este o caminho para que, mediante a
educação, os seres humanos pudessem reaver sua propensão
solidária, já que não conseguem , naturalm ente, perceber a
importância vital da sociabilidade? De acordo com Assmann e Sung,
para que possamos perceber a importância vital da solidariedade
para todo o planeta,

precisamos de um salto ético que não costuma suceder


espontaneam ente. Ele necessita ser alavancado com
argumentos, vivências, testemunhos e até mesmo a sensação
de riscos e ameaças, que não formam parte do senso comum
do nosso cotidiano. Para tornar-nos solidários num sentido mais
abrangente precisamos ascender a um estágio de consciência
e opção, que implica numa conversão a valores, que não são

1■ óbvios em nossa experiência cotidiana.36

Quando, acima, foi ressaltada a questão do imprinting como


um primeiro evento cognitivo que leva os seres humanos, ao serem
acolhidos solidariamente pelo mundo, a interpretá-lo como um
mundo solidário, o fizemos com a intenção de suscitar a seguinte
questão: Por que se a “primeira impressão” que o ser humano ao
nascer tem do mundo é de um mundo acolhedor e solidário, este
mesmo ser humano, ao crescer, descobre-se tão pouco solidário e
num mundo que não é diferente? De acordo com Assmann e Sung,
tem a ver com a educação que se recebe ao longo da vida. Vejamos:

Os imprintings culturais, por serem culturais, não são


indeléveis nem totalmente apagáveis, nem deterministas.
Podem ser revistas, reformuladas e/ou recuperadas. Processos
educacionais podem reforçar unilateralmente as marcas
patriarcal-confrontativas ou podem ajudar a recuperar a
experiência originante do desejo de reconhecimento recíproco
no olhar do cuidar, o desejo de felicidade alheia como parte
integrante da felicidade própria.37

Neste ponto, Assmann e Sung discordam da proposição de


Konrad Lorenz, como fora citado por Morin38, de que os imprintings
culturais são “marcas indeléveis”, ou seja, uma vez interiorizadas
jamais poderão ser dissipadas. Sejam quais forem as primeiras
experiências dos seres humanos ao chegarem ao mundo, caberá
à educação reforçá-las ou enfraquecê-las. Quanto às marcas
"patriarcais-confrontativas”, as sociedades e as culturas, de modo
geral, já têm se encarregado, através de processos educativos
racionalizados, de reforçá-las, em detrimento da solidariedade. Nas
palavras Assmann e Sung,

nossa cultura - com a sua visão fragmentada da realidade,


com um individualismo exacerbado, incentivo unilateral à
concorrência, diminuição da importância da identidade
nacional e do compromisso com a construção de um futuro
melhor, [...] dificulta o conhecimento e o reconhecimento da
importância da interdependência e da coesão social.39

Com relação a uma educação que fomente nas pessoas e


nas sociedades o desejo de vivenciar ações solidárias, o desafio
ainda se im põe, m esm o porque “o co nhe cim en to da
interdependência e o problema da coesão social é uma condição
de possibilidade para uma atitude pessoal e social de solidariedade,
mas não conduz necessariamente a essa atitude".40
Se a primeira experiência de aprendizado do ser humano,
propiciada pelo amor materno, foi interiorizada pelo seu cérebro/
mente, embora durante muitos anos de sua vida essa experiência
tenha sido esquecida devido a um processo ed ucacional
excessivamente racional, onde os sentimentos, os instintos e a
paixão foram expulsos do campo da ação41, ela ainda está presente
no fundo do desejo humano, podendo ser recuperada42, embora,
lembra-nos Sung, "provavelmente, para não dizer com certeza, o
desejo fundamental que move a maioria das pessoas da nossa
sociedade não é o desejo de solidariedade, mas sim o desejo de
consumo”.43
Se o desejo de consumo, na nossa sociedade, sobrepuja o
de solidariedade é porque a educação,* como resultado de uma
cultura maniqueísta e individualista, tem transmitido e reforçado os
A bílioA rruda

valores próprios dessa cultura e dessa sociedade. Segundo afirma


Durkheim,

Não há ninguém que possa fazer com que uma


sociedade tenha, num momento dado, outro sistema de
educação senão aquele que está implicado em sua estrutura;
[...] estamos mergulhados numa atmosfera de idéias e de
sentimentos coletivos que não podemos modificar à vontade; e
é sobre idéias e sentimentos desse gênero que repousam as
práticas educativas.44

Nesse mesmo sentido, Assmann e Sung vão afirmar que os


processos educacionais próprios da sociedade capitalista vão
reforçar o tipo de desejo que tem condicionado as pessoas nessa
mesma sociedade. Segundo esses autores, “quando o consumo
passa a ser um dos critérios fundam entais na construção da
ide ntid ade e ocupa um lugar im p orta nte no processo de
com unicação social, ele passa a ser um dos ordenadores
fundamentais do desejo na sociedade”.45
Porém, se entre o conhecimento da interdependência como
um fato e a prática da solidariedade pessoal e social estão os
desejos e os interesses das pessoas, então uma educação que
redimensione os desejos se faz necessária. Pois, se no fundo do
desejo humano está o sentimento de solidariedade interiorizado
como imprinting cultural, um processo educacional que o traga à
tona e o reforce levará as pessoas a sentirem o desejo de serem
solidárias umas com as outras. Nas palavras de Assmann e Sung,
um “desejo que nos faz desejar a felicidade alheia como parte
integrante da nossa felicidade, por isso que faz o desejo de
solidariedade se tornar uma necessidade vital”.46
Se o desejo de solidariedade mútua aflorar nas pessoas,
graças a uma educação que o tra ga à tona, o salto, do
reconhecimento da interdependência como um fato ligado à coesão
social para a solidariedade como uma questão ética, estaria dado.
O resulta do m ais am plo da so lid a rie d a d e vivenciada com o
imperativo ético poderá vir a ser a transformação das sociedades
hedonistas, individualistas e excludentes, como a nossa, numa
sociedade mais humana e solidária.

3. Solidariedade e Competência
É possível a construção de uma sociedade mais humana e
solidária apenas com práticas ou ações solidárias? Ao lançarmos
um olhar mais aguçado para a Genebra do século XVI, contexto da
reforma viabilizada por Calvino, podemos visualizar que o resultado
de sua doutrina teológica e social, como processo educativo, não
só levava as pessoas à prática da solidariedade com os excluídos,
mas também que estes fossem treinados nas profissões da época,
com o intuito de se superar a exclusão social.47
A doutrina teológica e social desenvolvida por Calvino
compreendia, então, como processo pedagógico, o reconheci­
mento da interdependência como responsável pela coesão da
sociedade genebrina, mas, concomitantemente, compreendia a
aquisição de competências para o mundo da época.
A mera compreensão da interdependência como um fato e
rela cio n a d a à coesão social e a co nseq üen te prá tica da
solidariedade como imperativo ético não são suficientes para que
a desagregação social presente nas sociedades contemporâneas,
capitalistas, seja minimizada.48 Também não se pode atribuir à
solidariedade, ou às ações solidárias a responsabilidade de redimir
a sociedade de seus problemas. Conform e Assmann, “parece
urgente o re-exame crítico de uma série de saltos salvacionistas,
curto-circüitos ideológicos m arcadam ente apocalípticos e até
imediatismos messiânicos no complexíssimo quadro das ênfases
radicais na solidariedade”.49
Na busca pela superação do problema da desagregação
social, uma contribuição pode vir de um modelo de educação que
com porte, além do aflorar da sensibilidade, a aquisição das
competências exigidas por estas mesmas sociedades. De acordo
com Sung, “educar é dar as competências necessárias para o mundo
de hoje. A gente não educa só dando e ensinando conteúdo. É
preciso ajudar as pessoas a aprender a aprender”.50
E esse tipo de aprendizagem, “aprender a aprender”, passa,
indubitavelm ente, pela superação de processos educativos
baseados numa visão racionalizada do mundo, que divide, separa,
enfim, fragmenta a realidade. A fragmentação da realidade, visão
típica das culturas ocidentais racionalizadas, dificulta a falta de visão
no que diz respeito à in te r-re la çã o entre com petência e .
solidarie dad e, isto é, a percepção de que a aquisição das
competências exigidas pelo mundo moderno (e pós-moderno) não
exclui necessariamente a solidariedade, e a prática desta última
não abole as primeiras.
A solidariedade precisa deixar de ser entendida apenas como
fomentadora da interdependência e da coesão social e passar a

<1
ser compreendida, de acordo com Assmann e Sung, como

um chamado à superação da exclusão e da


segmentação sociais através de uma educação que contribua

Calvino e a educação para a solidariedade


para a aprendizagem de competências de caráter geral e que
levem as pessoas a praticarem a solidariedade. Neste segundo
aspecto, a solidariedade é vista mais como uma atitude capaz
de respeitar as diferenças e se interessar pelos problemas da
coletividade, principalmente dos que estão sofrendo mais com
a situação.51 1

Isto é, para que a solidarie dad e seja praticada com o '


imperativo ético pelos indivíduos e pela sociedade é necessária a .
aquisição de competências humanas e sociais que a viabilizem.
Há um aspecto na citação acima que chama a atenção: a
“aprendizagem de competências de caráter geral” que leve as
pessoas à prática da solidariedade. Que tipo de educação pode
levar as pessoas a adquirirem competências e que competências
são estas? O tipo de competências que se adquire ao longo da
vida está intimamente relacionado ao tipo de educação que se
recebe. Por exemplo, nas sociedades capitalistas as pessoas são
"educadas” para serem consumistas, o que faz diminuir, ou morrer
nelas o desejo de solidariedade. Segundo Assmann e Sung,
“quando todos se vêem som ente com o consum idores, a
solidariedade é impossível”.52
A pergunta acima enunciada pode ser feita de forma inversa:
Como se adquire competências? Perrenoud traz uma resposta
satisfatória a esta questão:

As competências não se ensinam, mas se constroem


graças a um treinamento. Aprende-se fazendo, ao sabor de uma
prática reflexiva, com um apoio, uma regulação e um coaching.
Não se trata de aprender tudo sozinho, por tentativa e erro, mas
tampouco de se exercitar simplesmente para seguir um
procedim ento, um modo de uso ou uma receita. Para
desenvolver com petências, é preciso confrontar-se
pessoalmente, de forma ao mesmo tempo repetida e variada,
com situações complexas e empenhar-se para tentar domina-
las, o que, aos poucos, leva a integrar saberes, habilidades
mais estritas, informações, métodos para enfrentar, para decidir
em tempo real, para assumir riscos. Isso demanda tempo, não
podendo ser feito no ritmo desenfreado da transmissão de
saberes descontextualizados.53

As necessárias competências para o agir solidário, num


mundo competitivo e complexo, são construídas de forma prática e
reflexiva, e isto enseja um tipo de educação que extrapole a mera
transm issão de informações desvinculadas do contexto social,
político, econômico e religioso onde esta 0'corre. Por isso Perrenoud
vai afirmar que “formar para a solidariedade é, portanto, formar
indivíduos críticos, que querem e podem tornar-se atores, defender
seus in teresses, e x p lic a r e co m ba ter os m ecanism os que
engendram a violência, a miséria, a exclusão”.54
Neste desafio de se instaurar uma sociedade solidária, sem
abrir mão das competências e da competitividade, tão necessárias
para a convivência, a manutenção e a reprodução da vida social55,
urge um modelo de educação que ultrapasse o velho esquema
“transmissor-receptor” , uma educação bancária, como denominava
Freire aos processos pedagógicos onde o educador transm ite
informações e o educando as recebe passivamente. Nas palavras
de Delors,

Uma nova concepção ampliada de educação devia fazer


com que todos pudessem descobrir, reanimar e fortalecer o
seu potencial criativo [...] Isto supõe que se ultrapasse a visão
puramente instrumental da educação, considerada como via
obrigatória para obter certos resultados (saber-fazer, aquisição
de capacidades diversas, fins de ordem econômica), e se passe
a considera-la em toda a sua plenitude: realização da pessoa
que, na sua totalidade, aprende a ser.56

Nesse sentido, o de u ltrapa ssar os velhos esquem as


ed u ca cio n a is de tra n sm issã o de inform a ções, a C om issão
Internacional sobre educação para o século XXI, da UNESCO, sugere
quatro momentos distintos, porém inseparáveis, para um processo
pedagógico que leve em consideração tanto a aquisição de
competências quanto o respeito pelo outro, o que ela, a Comissão,
irá denominar de “os quatro pilares da educação”, a saber, “aprender
a conhecer”, “aprender a fazer”, “aprender a viver juntos, aprender
a viver com os outros”, “aprender a ser".57
Estes quatro pilares da educação propostos pela Comissão
chamam à atenção como uma espécie de pré-requisitos para uma
educação para a vivência solidária. Aqui, se faz necessária a
compreensão destes saberes, tendo em vista emergirem, eles próprios,
como competências necessárias para a prática da solidariedade como
imperativo ético-social.
Primeiro, a educação deve proporcionar às pessoas condições
para “aprender a conhecer”, ou seja, uma educação que não objetiva
necessariamente a aquisição de saberes prontos, mas, segundo
Delors,

o domínio dos próprios instrumentos do conhecimento pode


ser considerado, simultaneamente, como um meio e como uma
finalidade da vida humana. Meio, porque se pretende que cada
um aprenda a compreender o mundo que o rodeia, pelo menos na
medida em que isso lhe é necessário para viver dignamente, para
desenvolver as suas capacidades profissionais, para comunicar.
Finalidade, porque seu fundamento é o prazer de compreender,
de conhecer, de descobrir.58
Tanto a superação da educação racionalista, cartesiana, quanto
a da educação como mera transm issão de informações estão
presentes neste postulado. O ser humano descobrindo o potencial
cognitivo do mundo que o cerca, tanto na aquisição de competências
quanto na comunicação mútua. E, nesse processo de dialogação
com o mundo, que se apresenta ao ser humano como meio de
aquisição de conhecimentos, o prazer aparece como mediador.
Segundo Silva, “o ato cognitivo passa a ser uma atividade que
en volve todos os nossos sentido s. [...] Os se ntido s estão
associados ao ‘gosto’; portanto, àquilo que proporciona o gozo e o
prazer".59
Esta preocupação com processos educativos que sejam
prazerosos, rompendo com a educação como mera transmissão
de informações ou instruções, está presente na crítica que faz
Assmann da instrução escolar. Segundo ele,

Precisamos reintroduzir na escola o princípio de que


toda a morfogênese do conhecimento tem algo a ver com a
AmuoA rruda

experiência do prazer. Quando esta dimensão está ausente, a


aprendizagem vira um processo instrucional, que pode até
chegar a ser maquinicamente eficiente e criar um montão de
automatismos eficientistas.60

Juntamente com “aprender a conhecer”, “aprender a fazer”


está diretamente ligado à aquisição de novas competências exigidas
pelos novos processos de produção. Dentre tantas, pode-se
enumerar algumas delas: tarefas intelectuais em detrimento das
físicas; “qualificação técnica”, “comportamento social”, “aptidão para
o trabalho em equipe”, iniciativa e não ter medo de arriscar;
com petências hum anas (“in tu içã o ” , “capacidade de ju lg a r”);
capacidade empreendedora.61
Novas competências são, na verdade, novos conhecimentos
adquiridos por intermédio de uma educação que leve em conside­
ração tanto a complexidade humana quanto a social. Porém, não
podemos acreditar que competências se reduzem a conhecimento.
De acordo com Perrenoud, estas “manifestam-se na capacidade
de um sujeito de mobilizar diversos recursos cognitivos para agir
com discernimento diante de situações complexas, imprevisíveis,
mutáveis e sempre singulares”.62
São essas novas “capacidades” de mobilizar conhecimentos
em situações novas, inesperadas e complexas que estão no cerne
de uma educação que leve os indivíduos a aprenderem a fazer e
não apenas desenvolver uma determinada tarefa repetitiva. Por isso,
Delors irá salientar que “as aprendizagens devem evoluir e não
podem mais ser consideradas como sim ples transm issão de
práticas mais ou menos rotineiras, embora estas continuem a ter
um valor formativo que não é de desprezar".63
Também, como uma espécie de pré-requisito para uma
educação para a solidariedade, as pessoas precisam “aprender a
vive r ju n ta s e com os o u tro s ” u tiliza n d o duas vias que se
complementam: “num primeiro nível, a descoberta progressiva do
outro. Num segundo nível, e ao longo de toda a vida, a participação
em projetos comuns...”64
Não é interessante o fato de que as pessoas precisem
aprender a viver juntas umas com as outras? Essa aprendizagem é
necessária, pois as pessoas vivem juntas, mas não “estão” juntas,
vivem com o “outro”, mas não conhecem a sua “outridade”. E não
e xiste a p o ssib ilid a d e de se pa ssar das ações so lid á ria s
e m e rg e n cia is, a so lid a rie d a d e com o reconh ecim ento da
interdependência como um fato, para ações solidárias de cunho
ético-político se não se conhecer o outro, suas mazelas, suas
limitações, seus desejos. Segundo Assmann e Sung,

Solidariedade tem a ver com o modo de ver o mundo e


a vida. Solidariedade é uma relação inter-hum ana
fundamentada na alteridade, que pressupõe o reconhecimento
do/a outro/a na diferença e singularidade, atributos da alteridade.
Reconhecer o/a outro/a na diferença pressupõe relativizar a si
mesmo, as nossas certezas, enfim, todas as mesmices.65

Para que as pessoas possam ser solidárias umas com as


outras, é preciso que haja um encontro real com o outro, o
reconhecimento da sua outridade e alteridade, bem como de que
suas necessidades podem ser satisfeitas. Segundo Sacristán, “as
relações de solidariedade [...] podem ser motivadas por vínculos
amorosos [...] (e) podem ser impulsionadas por imperativos éticos
de reconhecer o outro como semelhante”.66 O reconhecimento do
outro como semelhante, apesar da consciência de sua alteridade,
talvez queira significar que foi dado o salto para a solidariedade
como ação de cunho ético-político.
O co nhe cim en to do outro provoca nas pessoas o
conhecimento de si mesmas, experiência imprescindível para o
reconhecimento do outro na sua alteridade. “só então poderão”,
conforme Delors, “verdadeiramente, pôr-se no lugar dos outros e
compreender as suas reações”.67
Enfim, para que as pessoas vivenciem a solidariedade como
um imperativo ético, precisam “aprender a ser”. Segundo Delors, uma
educação que leve as pessoas a aprenderem a ser, "deve contribuir
para o desenvolvimento total da pessoa - espírito e corpo, inteligência,
sensibilidade, sentido estético, responsabilidade pessoal,
espiritualidade”.68
A educação compreendida apenas como transmissão de
informações ou instrumental não respeita e muito menos contribui para
o desenvolvimento total do ser humano, para a humanização, em suas
nuanças acima explicitadas. É preciso ater-se à questão de que nossos
sentidos participam, concomitantemente, na recepção de informações
do meio ambiente e na construção da realidade.69
Como resultado desta m áxim a, pode-se afirm ar que a
aquisição de conhecimentos passa literalmente pelo corpo e que,
diametralmente, o reconhecimento - e a construção - da realidade
que nos cerca só é possível através dele. Em outras palavras, a
recepção de informações do meio e a construção da realidade,
processo que se dá de maneira concomitante, ocorre na e pela
corporeidade.
Por isso uma educação que corrobore o processo de fazer-
se humano deve ter como ponto de partida o próprio ser humano,
na sua corporeidade. Segundo afirma Assmann,

Todo conhecimento se instaura como um aprender


mediado por movimentos internos e externos da corporeidade
viva. Toda aprendizagem tem uma inscrição corporal. Não
existe mentalização sem corporalização. Por isso, o corpo
aprendente é a referência fundante de toda aprendizagem.70

Os humanos se relacionam, expressam seus sentimentos e


vivem através do corpo. Aprendem, em contato com o meio que
os cercam, através do corpo. Constroem-se seres humanos, no
convívio com outros, através do corpo. Os seres humanos só o
são na intercorporeidade.
Os “quatro pilares da educação” acima discutidos revelam-
se como competências humanas e sociais necessárias para a prática
da solidariedade como im perativo ético. Essa afirm ativa está
an corada nas d e fin içõ e s, dadas por A ssm ann e Sung, de
competência humana e competências sociais,71 que comportam os
enunciados gerais dos “quatro pilares da educação”, que aqui
aparecem resumidos pelos mesmos autores:

Aprender a aprender --> priorizar as experiências de aprendizagem


Aprender a fazer --> ênfase nas competências e habilidades
Aprender a viver juntos --> juntar competência e solidariedade
Aprender a ser --> realizar-se como indivíduo e s e r social72
Assmann e Sung reconhecem, ainda, que a proposta da
Unesco foge à lógica neoliberal ao propor um modelo educativo
que na contramão dos valores enunciados pela sociedade capitalista,
conjugam competência e solidariedade. Segundo os autores,

O destaque do papel da educação na luta contra a


exclusão, a ênfase na participação democrática, o alerta de
que o crescim ento econômico perde sentido sem o
desenvolvimento social e a insistência na visão de um mundo
solidário evidenciam que se trata de uma visão que certamente
não pode ser acusada de neoliberal. Por outro lado, é óbvio
que não fantasia acerca de um mundo sem emulações
competitivas e mecanismos de mercado.73

O que se coloca em questão, aqui, é o tema da insuperável


tensão entre co m pe tição , com petência e so lid a rie d a d e em
socied ade com plexa. E, nesse se ntido , as com pe tências
“transversais” de Perrenoud vão dem onstrar a necessidade de
desenvolvê-las para se ser sujeito e não objeto em sociedades
complexas. São elas:

■Saber identificar, avaliar e fazer valer seus recursos, seus direitos,


seus limites e suas necessidades;
■Saber, individualmente ou em grupo, conceber e implementar
projetos, desenvolver estratégias;
■Saber analisar situações, relações, campos de força de maneira
sistemática;
■Saber cooperar, agir em sinergia, participar de um grupo,
compartilhar uma liderança;
• Saber construir e coordenar organizações e sistemas de ação
coletiva de tipo democrático;
• Saber gerir e superar conflitos;
• Saber operar com regras, utiliza-las, elabora-las;
• Saber construir ordens negociadas para além das diferenças
culturais.74
Todas estas competências têm, em si, aspectos relacionados
à solidariedade, vivenciada, individual e socialm ente, como
im perativo ético. Todas são, pedagogicam ente falando, novos
conhecimentos adquiridos intelectualm ente, mediatizados pelo
mundo reconhecido como meio cognitivo.
Mas a educação para o reconhecimento da interdependência
como um fato do qual nenhum indivíduo, e nenhuma sociedade,
pode escapar, e para a prática da solidariedade, requer, para além
de competências intelectuais, experiências que dêem sentido e
passem a d ire cio n a r a vid a desses m esm os ind ivíd uos e
sociedades. Para Sung, “o reconhecimento da interdependência
exige experiências de aprendizagem e de vida que vão além do
mero conhecimento intelectual. É algo que penetra no nosso ser e
se torna parte do nosso existir”.75
Uma educação para a solidariedade não deve, então, estar
restrita ao ensino “teórico racional”, mas necessita levar em conta,
com o processo co g n itivo , os "exem p los de v id a ” e certa
“espiritualidade” que mova as pessoas em direção de outras
pessoas com necessidades ou que estejam sofrendo. É o que
abordaremos no próximo tópico.

4. Solidariedade e Espiritualidade
Educar para a solidariedade pressupõe, como foi discutido
até aqui, viabilizar processos cognitivos que proporcionem aos
ed ucandos a aq u isiçã o in te le ctu a l de co m petências que a
estabeleçam como ações de cunho ético-político em sociedades
complexas.
Mas, como afirma Perrenoud, estas competências podem
ser desenvolvidas “ao sabor da experiência de vida e de uma
prática reflexiva”.76 Experiência e reflexão são fenômenos que
ocorrem concom itantem ente como processo cognitivo, e, na
aquisição de conhecimentos através da inter-relação com o meio,
os seres humanos experienciam e refletem através dos sentidos.
Quando se afirma que os sentidos têm participação ativa na
aquisição de conhecimentos, abre-se espaço para a discussão da
sensibilidade como meio de conhecimento. Segundo Assmann e Sung,
uma condição epistemológica necessária para ser solidário/a

é a valorização da sensibilidade como conhecimento.


Sensibilidade no sentido de experiências físicas da visão, audição
e tato. [...] Também é preciso valorizar a sensibilidade no sentido da
‘sensibilidade humana’, a capacidade de sentir a empatia e a
compaixão, de se deixar tocar pelas vidas, sofrimentos e alegrias,
esperanças e desejos de outras pessoas.77

Desse modo evidencia-se qual o modelo de educação se faz


necessário para que as pessoas passem da solidariedade apenas
como um fato, e relacionada à interdependência, para um segundo
sentido, mais normativo ou propositivo78: uma educação para a
sensibilidade solidária. De acordo com Asgmann e Sung,

A palavra sensibilidade quer mostrar que a solidariedade


como ato ético-subjetivo radical só acontece quando entram em
jogo os ‘sentidos’, como a percepção empática do sofrimento e
angústia dos/as outros/as. O ver e o ouvir alterando a sensibilidade
da nossa pele. Ao mesmo tempo, a sensibilidade é a condição a
príori para que o/a outro/a possa irromper no meu mundo como
outro/a.79

É no contato com o outro na sua ambigüidade humana que a


sensibilidade pode aflorar, pois o ser humano nunca é insensível
ao sofrimento alheio, a não ser em caso de patologia.
Da mesma forma que a aquisição de conhecimento passa
pela relação “eu-meio”, o aflorar da sensibilidade passa pela relação
“eu-tu". Nesta inter-relação humana, o outro se me apresenta como
mais humano e menos “supra” ou “infra" humano, o que faz com que
a relativização da minha “supra” ou “infra-humanidade” venha à tona.80
Aqui entra a questão da relativização das certezas que se adquire
ao longo da vida, como fruto de uma educação que apenas transmite
informações, que não deixa espaço para a dúvida, que gera pré-
conceitos em relação ao outro. Nas palavras de Sung, “para quem tem
certeza, pessoas e povos diferentes não são diferentes, mas sim
errados. Portanto, só posso encontrar outro como outro, [...] na medida
em que eu duvido das minhas certezas”.81
À educação para a sensibilidade solidária cabe, então, o
papel de relativizar as certezas adquiridas no processo de aquisição j
de conhecimentos. É interessante que estas certezas foram se
cristalizando como conhecimentos tidos como verdadeiros, sem
espaço para erros. Mas, segundo Morin,

O conhecimento não é um espelho das coisas ou do


mundo externo. Todas as percepções são, ao mesmo tempo,
traduções e reconstruções cerebrais com base em estímulos
ou sinais captados e codificados pelos sentidos. [...] O
conhecimento, sob forma de palavra, de idéia, de teoria, é o
fruto de uma tradução/reconstrução por meio da linguagem e
do pensamento e, por conseguinte, está sujeito ao erro.82

Essa tradução/reconstrução da realidade ocorre através da


prática, isto é, de experiências com o meio onde se vive através
dos sentidos.
Quem tem certeza não precisa de esperança. Certezas dão
a impressão de que tudo está acabado, que não resta nada a construir
(ou “des-construir”). Para Assmann e Sung, “esperança é quando
nós esperamos apesar das nossas incertezas, apesar das atuais
condições hum anas e sociais que não nos dão garantia da
possibilidade de realização dos nossos desejos”.83
Esperança e utopia são dois lados da mesma moeda. A
esperança não permite a desistência porque possibilita enxergar
no horizonte o ideal, o perfeito que se quer alcançar; a utopia.
Porém, conforme assevera Assmann, “o horizonte utópico vira
fumaça ideológica (tóxica!) quando não se elaboram linguagens
acerca da inauguração desse horizonte utópico a pa rtir de
conhecimentos vividos e esperanças personalizadas”.84
Discutir a possibilidade de uma educação para a sensibilidade
solidária pressupõe que os seres humanos trazem “em si” certa
dose de sensibilidade que não os deixa ficarem indiferentes frente
ao sofrimento alheio. O que se passa é que a educação tradicional,
utilitarista, tem alimentado uma sensibilidade “medrosa”, ou seja,
um tipo de emoção que não tem “coragem” de se traduzir em atos
solidários. Segundo Sung,

Quando uma pessoa desvia o olhar para não ver o


sofrimento alheio ou responde de modo agressivo a uma
criança pobre que pede um trocado, ele não está sendo
indiferente. [...] Estas reações imediatas, na maioria das vezes
inconscientes e/ou não planejadas, mostram que a pessoa foi
tocada. [...] Reage. Só que reage com ujna aparente indiferença
ou com agressividade, como uma forma de se defender do
‘incômodo’, da dor sentida ao ver o sofrimento alheio.85
A bílioA rri t>\

Quando a educação se dá através de experiências que


valorizam o uso dos sentidos, na aquisição de conhecimentos, os
sentim entos vêm à tona e se exteriorizam por meio de ações
concretas. Dito de outra maneira, a aproximação, o toque, o ver, o
ouvir permitem que os sentim entos outrora cam uflados numa
roupagem de indiferença venham à tona como sensibilidade
solidária. Nas palavras de Damásio,

O simples processo de sentir começa a dar ao


organismo o incentivo para prestar atenção aos resultados da
emoção (o sofrimento começa com sentimentos, embora seja
intensificado pelo conhecimento...) [...] Esse conhecimento, por
sua vez, é um trampolim para o processo de planejar reações
específicas.86
Sentir e emocionar-se são reações que eclodem através do
contato com o outro. A solidariedade, segundo Assmann e Sung, “é
uma relação inter-hum ana fundam entada na alteridade, que
pressupõe o reconh ecim ento do/a o u tro/a na diferen ça e
singularidade, atributos da alteridade”.87 Esse reconhecimento do
outro e da sua alteridade pressupõe o diálogo. Nesse sentido,
esses mesmos autores vão reconhecer, um pouco mais adiante,
“que para conhecer a realidade complexa das vidas humanas e
sociais o caminho não é a proposta cartesiana de ‘idéias claras e
distintas’, mas a aproximação respeitosa e dialógica”.88
Estas “idéias claras e distintas” têm sido o foco de uma
educação anti-dialógica, de um processo educacional racionalizado
que tem prezado pela tra n sm issã o de va lores cu ltura is
individualizantes. De acordo com Sung,

Há na sociedade uma diversidade grande de


cosmovisões, doutrinas religiosas ou éticas que justificam a
indiferença. As pessoas com dificuldade em conviver com o
sentimento de compaixão têm a sua disposição os mais
diversos tipos de doutrinas ou explicações pseudocientíficas
para justificar a seleção e/ou bloqueio das emoções, [...jArazão
ou a racionalidade (em geral econômica ou teológica) é
utilizada para justificar o bloqueio da emoção que nos mostra a
nossa incapacidade de ver sem reagir ao sofrimento alheio.89

O diálogo é próprio da educação. Porém, o que tem ocorrido


através dessa dialogicidade, é que as gerações mais velhas têm
transmitido às mais jovens seus conhecimentos, moldando o jovem
de acordo com suas experiências, sem respeitar sua personalidade
e originalidade. Freire se refere a esta situação da seguinte maneira:

Ditamos idéias. Não trocamos idéias. Discursamos


aulas. Não debatemos ou discutimos temas. Trabalhamos
sobre o educando. Não trabalhamos com ele. Impomos-lhe
uma ordem a que ele não adere, mas se acomoda. Não lhe
propiciamos meios para o pensar autêntico, porque recebendo
as fórmulas que lhe damos, simplesmente as guarda. Não as
incorpora porque a incorporação é o resultado de busca de
algo que exige, de quem o tenta, esforço de recriação e de
procura. Exige reinvenção90.

Faz-se necessária uma educação que desenvolva nas novas


gerações um ser autêntico, sem paradigmas culturais diabólicos impostos
através de uma educação transmissora de fórmulas pré-concebidas.
O que se percebe nesse tipo de educação é que a relação
“educador-educando” é simplesmente narrativa, o que implica num
não diálogo. No lugar do diálogo entre educador e educando o
que se tem é um mero ato de depositar, em que os educandos
tornam-se recipientes prontos para o preenchimento, cuja ação única
que “se oferece aos educandos é a de receberem os depósitos,
guardá-los e arquivá-los. Margem para serem colecionadores ou
fichadores das coisas que arquivam”.91 Nesse tipo de educação
alienante, onde educar é o ato de depositar, de mera transmissão
A bílioA rriba

de informações, verifica-se um estado de passividade do ser


humano, que ingenuamente se amolda ao sistema estabelecido,
ao status quo.
A educação bancária promove a preservação da ordem
vigente, do status quo, se colocando à disposição da ideologia
dominante, o que não modifica em nada a cultura individualista
contemporânea, muito pelo contrário, fornece subsídios para a sua
cristalização. Nesse sentido, segundo Azevedo, a educação torna-
se “um dos mais válidos instrumentos da conservação de tal estado
de coisas. [...] Por seu estilo, esta educação contribui decisivamente
para a permanência diversificada destas ordens”.92
A n te rio rm e n te foi ob servado que o co nhe cim en to, o
pensam ento e a ação dos indivíduos são m ediatizados por
paradigmas culturais neles inscritos93. Embora os paradigmas
culturais sejam relativos, isto é, não são “perenes nem omni-
explicativos, porque em qualquer paradigma há um recorte das
perguntas admitidas como relevantes e, portanto, uma demarcação
do que é admissível como real”,94 eles são interiorizados pelos
indivíduos, Segundo afirma Perrenoud, “o individualismo é um
modelo cultural contemporâneo”,95e isso significa que os valores
transmitidos às novas gerações, por intermédio da educação, são
valores individualistas, o que dificulta grandeipente a construção
de uma cultura solidária.
A construção de uma cultura solidária não pode comportar
pensamentos e ações ingênuos. Embora uma educação para a
sensibilidade solidária pressuponha a prática da solidariedade como
imperativo ético, o que inevitavelmente tornará as pessoas e as
so cied ade s m ais hum anas, a so lid a rie d a d e “não pode ser
transformada no único princípio organizador”.96
Construir uma sociedade solidária passa pela consolidação
da solidariedade com o ações de cunho ético-político e pelo
desabrochar da sensibilidade solidária. Como já foi salientado neste
capítulo, para que a solidariedade se manifeste voluntariamente nas
ações cotidianas dos indivíduos em sociedade, deve ocorrer uma
verdadeira transformação na própria maneira de pensar desses
mesmos indivíduos.
Essa transformação radical da maneira de pensar, de adquirir
conhecimentos e competências para a construção de uma cultura
solidária requer uma “epistem ologia solidária", que segundo
Assmann e Sung, é uma “forma de conhecim ento que sejam,
congenitamente, formas de relacionamento, e que os aprendentes
se possam dar conta disso. Que haja uma dimensão solidária na
própria forma de aprender, no cerne do próprio pensamento”.97
A e p iste m o lo g ia so lid á ria su gere a a q uisição de
conhecimentos através de relacionamentos solidários. E relacionar-
se implica em dialogicidade. Somente na dialogicidade o outro se
faz conhecer, o que é um p re ssu posto para a prática da
solidariedade. Nessa relação dialógica98 ocorre um processo
cognitivo que conduz à sensibilidade solidária. Freire define o
processo educativo afirmando que “ninguém educa ninguém, como
tampouco ninguém se educa a si mesmo: os homens se educam
| em comunhão, mediatizados pelo mundo”.99
! Esta criticidade que nasce do relacionamento solidário, é
j possibilitada pela relativização das certezas, no encontro com o
| semelhante. Essa proximidade dialógica permite a compreensão
J do outro, mas, ao mesmo tempo, e até mais importante, essa
1 proximidade permite a auto-compreensão. E a auto-compreensão
| permite que o indivíduo, que agora passa a se conhecer, se coloque
| no lugar do outro e compreenda suas reações.100 Assim, Morin vai
| dispor “a missão propriamente espiritual da educação: ensinar a
i compreensão entre as pessoas como condição e garantia da
| solidariedade intelectual e moral da humanidade”.101
[ A reação provocada pela dor alheia é a com paixão,102 e
| compaixão é sentir a mesma dor. Mas, continua Sung, “para que
| possamos viver a compaixão, a base da solidariedade, precisamos
A bílioA rruda

! ter força espiritual para conviver com o nosso sofrimento e com o


j sofrim ento alheio” .103 A com preensão como relação dialética
I intersubjetiva está relacionada à dimensão espiritual do ser humano,
j Compreender o outro, seu sofrimento, suas reações, suas
lim itações, é indispensável para o desenvolvim ento de uma
sensibilidade solidária. Por isso, segundo Assm ann e Sung,
“precisamos ensaiar formas do pensar e do aprender que impliquem
simultaneamente a afirmação da subjetividade dos aprendentes e a
j abertura à intersubjetividade e à sensibilidade social”.104 Aliás, a
j verdadeira comunicação só acontece quando os dialogantes se
I reconhecem como semelhantes, como iguais, estabelecendo-se
jj uma relação de simpatia entre eles.105
j Esse relacionamento simpático, onde ocorre o reconheci-
I mento mútuo dos dialogantes compreende a subjetividade, a inter-
} subjetividade, a alteridade, enfim, uma gama de elementos que
sugerem que a relação solidária entre os indivíduos não é simples
e nem de fácil manutenção. Segundo Morin, “ainda que solidários,
os hum anos perm anecem inim igos uns dos outros, e o
desencadeamento de ódios de raça, religião, ideologia conduz
sempre a guerras, massacres, torturas, ódios, desprezo”.106 Por
isso que a educação para a sensibilidade solidária, mediatizada
pelos “ exem plos de v id a ” que se dão no rela cion am e nto
compreensivo com o outro, se torna tarefa imprescindível para a
construção de uma cultura solidária.
Porém, e a título de encerramento desse capítulo, temos que
ressaltar a importância da institucionalização das ações solidárias,
para que o desejo da construção de uma cultura solidária não
permaneça na esfera do ideal. De acordo com Sung, “é preciso
que o valor da solidariedade seja institucionalizado em mecanismos
auto-reguladores, como salário-desemprego decente, ou hospital
e educação de qualidade para todos".107
Interessante, aqui, é poder enfatizar que na Genebra do
século XVI pode ser encontrado, como fruto da reforma protestante,
instituições de caráter filantrópico para o socorro dos excluídos do
sistema, pobres, enfermos e inválidos, como o “Hospital Geral” e a
“instrução pública obrigatória”.108
Mesmo que, antes da chegada de Calvino à cidade, e,
portanto, antes da sistematização da sua doutrina teológica e social,
já existissem algumas instituições com esse fim, pode-se encontrar
em Calvino a preocupação de mantê-las e/ou melhorá-las. Como
exemplo disso, ele não somente decreta, segundo Biéler, “que os
pobres, os enferm os e os in vá lid o s sejam reeducados
profissionalmente”,109 mas também que:

Será necessário velar diligentemente a que o asilo


comum seja bem provido e que isto seja tanto para os doentes
quanto para a gente idosa que não pode trabalhar, assim como
também para as senhoras viúvas, as crianças órfãs e outras
pessoas pobres. [...] Que os ministros e os encarregados [...]
com um dos senhores síndicos tenham de sua parte cuidado
de indagar se aí havia qualquer falta ou necessidade de alguma
coisa, a fim de solicitar-se à Magistratura a pôr tudo em ordem.110

Neste decreto de Calvino, cuja preocupação está em melhorar a


condição de vida dos excluídos da sociedade genebrina, aparece
nitidamente a inter-relação, ou a relação solidária entre a Igreja e o
Estado na manutenção da ordem, ou da coesão social. Por manutenção
da ordem ou da coesão social na Genebra do século XVI, subtende-
se, de acordo com a doutrina teológica e social de Calvino, a vigilância
exercida pelo Estado sobre os indivíduos, e instituições, de maneira
que estabeleçam ações solidárias, principalmente com os excluídos,
mas também, e concomitantemente, a vigilância exercida pela Igreja
sobre o Estado para que este não deixe de cumprir seu papel
mantenedor da coesão social.
No terceiro, e último capítulo deste trabalho, tentaremos
demonstrar que a doutrina teológica e social de Calvino emerge
como educação para a solidariedade com os excluídos, que na
nossa sociedade significa excluídos do mercado de trabalho e,
conseqüentemente, do mercado consumidor. Como fomentadora
deste processo educativo, aparece a Igreja, entendida como espaço
onde relações solidária s de cunho é tico -p o lítico podem ser
construídas pedagogicamente, desde que sua dimensão profética
seja resgatada por meio de uma práxis que intenta instaurar uma
sociedade nova baseada nos ideais do Reino de Deus.

Notas do Capítulo 2
1SILVA, Divino José da. Ética e educação para a sensibilidade em Max Horkheimer;
p.27.
2ASSMANN, Hugo; SUNG, Jung Mo. Competência e Sensibilidade Solidária: Educar
para a esperança, p. 213.
3 GARCIA, Francisco Luiz. Introdução Crítica ao Conhecimento, p. 18.
4STRIEDER, Roque. Educar para a iniciativa e a solidariedade, p. 295.
5ASSMANN, Hugo. Metáforas novas para reencantar a Educação: epistemologia e
didática, pp. 144-145.
6 FREIRE, Paulo. Educação como Prática da Liberdade, p. 48.
7ASSMANN, Hugo; SUNG, Jung Mo. Op. cit, p, 246.
8MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro, p. 25.
9 GARCIA, Francisco Luiz. Op. Cit., p. 43.
19 MORIN, Edgar. Op. Cit., p. 54.
11 MORIN, Edgar. Op. Cit., p. 38.
12STRIEDER, Roque. Op. cit., p. 293.
13ASSMANN, Hugo; SUNG, Jung Mo. Op. cit., p. 261.
14 Cf. ASSMANN, Hugo; SUNG, Jung Mo. Op. cit., p. 52-66.
16 ASSMANN, Hugo; SUNG, Jung Mo. Op. cit., p. 69.
16 SUNG, Jung Mo. Conhecimento e Solidariedade: educar para a superação da
exclusão social, p.47. ,
17ASSMANN, Hugo; SUNG, Jung Mo. Op. cit., pp. 74-75.
18ASSMANN, Hugo; SUNG, Jung Mo. Op. cit., p. 80.
19ASSMANN, Hugo. Op. cit., pp. 90-1.
20 Idem, Ibidem, p. 94.
21Cf. SILVA, Divino José da.Ética e educação para a sensibilidade em MaxHorkheimer,
p. 22.
22 MORIN, Edgar. Op. cit., p. 26.
23 MORIN, Edgar. Op. cit., p. 38.
24 SUNG, Jung Mo. Op. cit., p. 55.
25ASSMANN, Hugo; SUNG, Jung Mo. Op. cit., p. 86.
26 STRIEDER, Roque. Op. Cit., pp. 315 e 316.
27Vide nota n° 24 deste capítulo.
28 MORIN, Edgar. Op. Cit., p. 45.
29ASSMANN, Hugo; SUNG, Jung Mo. Op. cit., p. 81.
"ASSMANN, Hugo. Op. cit., p. 192.
31 Idem, Ibidem, p. 220.
32Vide nota n° 3 deste capítulo.
33 MORIN, Edgar. Op. cit., p. 28. Sublinhados do autor.
34 GARCIA, Francisco Luiz. Op. Cit., pp. 31-32.
35ASSMANN, Hugo; SUNG, Jung Mo. Op. cit., p. 201. Sublinhado dos autores.
36ASSMANN, Hugo; SUNG, Jung Mo. Op. cit., p. 31. Sublinhados dos autores.
37ASSMANN, Hugo; SUNG, Jung Mo. Op. cit., p. 202.
38Vide citação n° 29 deste capítulo.
"ASSMANN, Hugo; SUNG, Jung Mo. Op. citl., p. 79.
40ASSMANN, Hugo; SUNG, Jung Mo. Op. citl., pp. 76-7.
41 Cf. SILVA, Divino José da. Op. Cit., p. 22.
42 Cf. ASSMANN, Hugo; SUNG, Jung Mo. Op. cit., p. 202.
43 SUNG, Jung Mo. Conhecimento e Solidariedade: educar para a superação da
exclusão social, p. 63.
44 DURKHEIM, Èmile. Educação e Sociologia, p. 60.
45ASSMANN, Hugo; SUNG, Jung Mo. Op. cit., p, 183.
46 Idem, p. 205.
47Vide capítulo I deste trabalho, citação n° 133.
48 Cf. ASSMANN, Hugo; SUNG, Jung Mo. Op. cit., pp. 209-210.
49ASSMANN, Hugo. Op. cit., p. 229.
50 SUNG, Jung Mo. Op. cit., p. 72.
51ASSMANN, Hugo; SUNG, Jung Mo. Op. cit., p. 75.
52ASSMANN, Hugo; SUNG, Jung Mo. Op. cit., p. 183.
53 PERRENOUD, Philippe. Escola e Cidadania: o papel da escola na formação para
a democracia, p. 75.
64 Idem, Ibidem, p. 97.
55 Cf. ASSMANN, Hugo; SUNG, Jung Mo. Op. cit., p. 152.
56 DELORS, Jacques et alii. Educação: um tesouro a descobrir, p. 90.
57 Cf. DELORS, Jacques et alii. Op. Cit., pp. 89-102..
58 DELORS, Jacques et alii. Op. Cit., pp. 90-91.
59 SILVA, Divino José da. Op. Cit., p. 226-27.
“ ASSMANN, Hugo. Op. cit., p. 151.
61 Cf. DELORS, Jacques et alii. Op. Cit., pp. 93-96.
62 PERRENOUD, Philippe. Op. cit., p. 69.
63 DELORS, Jacques et alii. Op. Cit., p. 93.
64 DELORS, Jacques et alii. Op. Cit., p. 97.
“ ASSMANN, Hugo; SUNG, Jung Mo. Op. cit., p. 97.
66SACRISTÁN, J. Gimeno. Educar e Conviver na Cultura Global: As exigências da
cidadania, p. 132.
67 DELORS, Jacques et alii. Op. Cit., p. 98.
68 Idem, Ibidem, p. 99.
69 Cf. ASSMANN, Hugo; SUNG, Jung Mo. Op. cit., p. 246.
70ASSMANN, Hugo. Op. cit., p. 47.
71 Cf. ASSMANN, Hugo; SUNG, Jung Mo. Op. cit., pp. 213-222.
72 Idem, Ibidem, p. 211.
73ASSMANN, Hugo; SUNG, Jung Mo. Op. cit., p. 211..
74PERRENOUD, Philippe. Op. cit., p. 111. Competências transversais, para o autor,
são aquelas "que atravessam os diversos campos sociais e não são específicos de
nenhum”. Cada uma destas competências será desenvolvida e discutida, pelo autor,
em detalhes nas páginas 107 a 129. Grifo do autor.
75 SUNG, Jung Mo. Op. cit., p. 57.
76 PERRENOUD, Philippe. Op. cit., p. 129.
77ASSMANN, Hugo; SUNG, Jung Mo. Op. cit, p. 98. Sublinhado dos autores.
78 Cf. ASSMANN, Hugo; SUNG, Jung Mo. Op. cit., p. 75.
79ASSMANN, Hugo; SUNG, Jung Mo. Op. cit., p. 98.
80 SUNG, Jung Mo. Sujeito e Sociedades Complexas: Para repensar os horizontes
utópicos, p. 172.
61 SUNG, Jung Mo. Op. cit., p. 70.
82 MORIN, Edgar. Op. Cit., p. 20.
“ ASSMANN, Hugo; SUNG, Jung Mo. Op. cit., p. 103.
84ASSMANN, Hugo. Op. cit., p. 149.
85 SUNG, Jung Mo. Op. c/f., p. 159.
86 Damásio, Antonio. O mistério da consciência, p. 160. Grifo do autor.
87ASSMANN, Hugo; SUNG, Jung Mo. Op. cit., p. 97.
88 Idem, Ibidem, p. 99.
89 SUNG, Jung Mo. Op. cit., p. 161.
90 FREIRE, Paulo. Educação como Prática da Liberdade, p. 104.
91 FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido, p. 66.
92 cf. AZEVEDO, Marcelo C.. Educação, Sociedade, Justiça: Um Enfoque
Antropológico-Cultural, p. 25.
93Vide citação n° 10 deste capítulo.
94ASSMANN, Hugo. Op. cit., p. 91.
95 PERRENOUD, Philippe. Op. Cit., pp. 83-84.
96ASSMANN, Hugo; SUNG, Jung Mo. Op. cit. p. 152.
97 Idem, Ibidem, p. 260.
98Para Freire, diálogo “é uma relação horizontal de A com B. [...] Nutre-se do amor,
da humildade, da esperança, da fé, da confiança. Por isso só o diálogo comunica.
E quando os dois pólos do diálogo se ligam assim, com amor, com esperança, com fé
um no outro, se fazem críticos na busca de algo”. Cf. FREIRE, Paulo. Educação como
Prática da Liberdade, p. 115.
99 FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido, p. 79.
100Cf. DELORS, Jacques etalii. Op. Cit., p. 98.
101 MORIN, Edgar. Op. Cit., p. 93.
102 Cf. SUNG, Jung Mo. Op. cit., p. 159.
103 Idem, Ibidem, p. 170.
104ASSMANN, Hugo; SUNG, Jung Mo. Op. cit., p. 260.
105 Cf. FREIRE, Paulo. Educação como Prática da Liberdade, p, 115.
106 MORIN, Edgar. Op. C/f.,p. 85.
107 SUNG, Jung Mo. Op. cit., p. 81.
108Cf. BIÉLER, André. O Pensamento Econômico e Social de Calvino, p. 222. Vide
Capítulo I, nota n° 51.
109 BIÉLER, André. Op. cit., p. 225. Vide Capítulo I, notas n° 133 e 134.
110apud BIÉLER, André. Op. cit., pp. 224-225.
A bilioA rruda
Capítulo III
EDUCAÇÃO PARA A
SOLIDARIEDADE SEGUNDO A
DOUTRINA TEOLÓGICA E
SOCIAL DE CALVINO

De acordo com Calvino, como foi visto no primeiro capítulo .


deste trabalho, a Igreja e o Estado são duas instituições divinas,
cada qual com suas atribuições, a serviço da implantação do Reino ;
de Deus entre os seres humanos. Na implantação deste reino que
traz consigo os ideais de justiça, de equidade e de solidariedade
humana cabe ao Estado zelar pela justiça social e proporcionar à
Igreja liberdade e segurança no desempenho de sua missão, qual
seja, vivenciar e propagar estes mesmos ideais.1
Por outro lado, cabe à Igreja, no desempenho de sua missão
profética, exercer a vigilância sobre o Estado, não lhe permitindo
deixar de zelar pela manutenção da coesão social e nem interferir,
como déspota, em áreas que são atribuições conferidas por Deus
a ela somente.2 Enquanto a Igreja e o Estado desempenharem as
funções que lhes são outorgadas por Deus, dentro de seus limites,
os ideais do Reino de Deus, a saber, a justiça, a eqüidade e a
solidariedade hão de estar presentes de forma mais expressiva
entre os seres humanos.
No desenvolvimento deste capítulo, procuraremos demonstrar
que a doutrina teológica e social de Calvino, entendida, por um
lado, como resultado da crítica que ele faz da relação entre Igreja e
Estado na Genebra do século XVI e, por outro, como a mola
propulsora que impulsionou seus adeptos à (re) construção de uma
94 sociedade mais harmoniosa, emerge como processo pedagógico
para a solidariedade.

1. Estado, Igreja e Solidariedade


Se Calvino empreende dura crítica tanto ao Estado quanto à
Igreja é por que ambas as instituições não estavam levando a cabo
suas atribuições com relação à manutenção da coesão social na
cidade de Genebra. E depreende-se desta afirm ação que as
relações sociais, a justiça, a solidariedade, a paz e a tranqüilidade3
encontravam-se fragilizadas na sociedade genebrina.
Na compreensão de Calvino, a coesão social, como resultado
do cumprimento satisfatório das atribuições do Estado e da Igreja,
era sinal da presença ou promoção do Reino de Deus entre os
seres humanos. Se as relações de solidariedade entre as pessoas
estavam fragilizadas, tem-se que a Igreja tem falhado na promoção
desse reino, o que significa, na visão de Calvino, que a Igreja não
tem cumprido sua missão profética, qual seja, exercer vigilância
sobre o Estado no cumprimento de suas atribuições sociais.
De acordo com a Teologia da Graça de Calvino, este fato tem
relação com a natureza humana pervertida pelo pecado, de sorte
que tanto as intenções como as ações humanas são más, tendo
como resultado a deturpação das relações sociais harmoniosas
como dispostas por Deus. Embora a doutrina teológica e social de
Calvino tenha uma visão pessimista do ser humano, ela revela um
cam inho de reconciliação para esse mesmo ser humano no
Evangelho, que anuncia a sua redenção mediante a adesão aos
ideais solidários do Reino de Deus, adesão esta por meio do
encontro com Jesus Cristo.
O resultado da redenção é o amor ao próximo, experienciado
em atos de solidariedade pessoal e social.4 Esta é a compreensão
que, segundo Biéler, Calvino tem da Igreja, como núcleo celular
que serve de estímulo para a restauração tanto da sociedade quanto
da própria humanidade.5
Percebe-se, nesse ponto, a promoção do Reino de Deus
conform e a compreensão de Calvino, e esta promoção ocorre
a tra vé s de ações de so lid a rie d a d e que são resulta do da
reconciliação ou humanização do ser humano outrora inumanizado
pelo pecado. Mas estas ações de solidariedade, que fomentam a
promoção dos ideais do Reino de Deus, não ocorrem isoladamente,
senão enquanto comunidade ou Igreja.
Hoje, quando a sociedade globalizada, que preza pelo
individualismo, tende para as relações e ações anti-solidárias, o
pensamento de Calvino, com relação à promoção do Reino de
Deus por parte da Igreja, e a conseqüente revitalização das relações
sociais, se torna atual e relevante. É o que se pode perceber na
proposta de Munoz:

Sabemos por experiência que a palavra da Igreja só


poderá ser uma boa nova do reinado de Deus se se apresentar
[...] como o testemunho de uma comunidade que confessa sua
fé e demonstra ter motivos para sua esperança. Assim sucede
também com a sua ação de serviço: só poderá ser sinal deste
reinado de Deus se se apresentar [...] como a entrega de uma
comunidade que materializa e compartilha de seu amor
fraterno, que abre e estende sempre mais sua comunidade de
bens e responsabilidades [...] Desta maneira, não gerarão
relações de dependência, mas de fraternidade; não suscitarão
tanto uma resposta de gratidão, mas de consciência da
dignidade compartilhada; não confirmarão os pobres em seu
fatalismo, mas alimentarão sua esperança; não manterão o
povo em sua passividade, mas despertarão sua
responsabilidade solidária...6

O Reino de Deus materializado em ações solidárias através


da encarnação da Igreja junto aos pobres, significando, segundo
Gutiérrez “tanto as classes exploradas quanto as raças desprezadas
e as culturas marginalizadas",7 ou as grandes massas sobrantes. A
preocupação com a materialização das ações solidárias, por parte
da Igreja, pode ser encontrada na Doutrina Teológica e Social de
Calvino quando, por exemplo, decreta “que os pobres, os enfermos
e os inválidos sejam reeducados profissionalmente”,8 sendo que o
| resultado desta ação supera as relações baseadas na dependência,
! no fatalismo e na passividade.
De acordo com a Doutrina Teológica e Social de Calvino, tais
relações são o resultado imediato da separação entre o ser humano
e Deus, decorrente do pecado. A deturpação do gênero humano
não ocorre somente na esfera individual, mas segundo Biéler, as
“relações sociais também são pervertidas e toda sua [do ser
humano] vida em sociedade e suas trocas econôm icas são
desnaturadas. [...] Vida conjugal, vida familiar e a sociedade inteira
são falsificadas pela queda do homem”.9
Se as relações solidárias, outrora dispostas por Deus, entre
os seres humanos estão deturpadas, para Calvino, somente a graça
AmuoA rruda

redentora de Deus pode reverter essa situação. A graça redentora


de Deus poderá alcançar e regenerar toda a sociedade e a Igreja é
o canal por onde os ideais do Reino de Deus podem nela se
materializar.
Para Calvino, a regeneração da sociedade passa pela
regeneração do ser humano desnaturado. Portanto, a graça redentora
de Deus que interpela o ser humano no seu caminho rumo a
destruição, individual e coletiva, torna-se evidente no encontro com
Jesus Cristo. O resultado desta interpelação, que regenera e
humaniza o ser humano, o conduz ao encontro do outro. Para Calvino,
a restauração da humanidade, da qual a raça humana estava privada
por causa do pecado, ocorre no encontro com Jesus Cristo, mas
esse encontro também é horizontal, isto é, no relacionamento com
o seu semelhante o ser humano é novamente humanizado. Ao definir
o pecado como “o anti-reino, quer dizer, ruptura da solidariedade,
recusa da comunhão [...], a não-solidariedade, a injustiça, a opressão
dos débeis, a morte do irm ão”,10 Codina ajuda a esclarecer o
entendimento de Calvino acerca da degeneração humana como
fruto da separação entre os seres humanos e Deus.
Já foi salientado, no primeiro capítulo, que para Calvino, "cabe
à ordem civil, entre outras coisas, fazer-nos viver com toda justiça,
[...] instruir-nos na justiça social, colocar-nos em comum acordo
uns com os outros”.11 Depreende-se dessa concepção que tanto a
Igreja quanto o Estado estão a se rviço de Deus para o
estabelecimento de uma sociedade onde a solidariedade seja algo
comum entre os seres hum anos que a compõem. Mas a isto
precede uma “instrução” ou educação, por parte do Estado, na
“justiça social”, culminando na prática de relações solidárias e,
conseqüentemente, na manutenção da coesão social.
Isso pressupõe que a coesão social emerge como resultado da
solidariedade vivenciada socialmente entre homens e mulheres. Para
Assmann e Sung, a solidariedade tem sido entendida, num primeiro
momento, “como um fato e uma necessidade de interdependência na
vida social, um conceito associado à coesão social”.12
A doutrina teológica e social de Calvino defende a tese de que a
sociedade humana foi disposta por Deus de forma harmoniosa, ou
seja, homens e mulheres vivendo solidariamente e promovendo, com
isso, a coesão social e, conseqüentemente, a preservação do gênero
humano.
Mas, para além da compreensão de que a solidariedade
vivenciada entre homens e mulheres ocasiona a coesão social, a
doutrina teológica e social de Calvino sustenta que a prática da
solidariedade com os excluídos é critério indispensável para a
constatação de que Igreja e Estado estão velando pela manutenção
desta coesão. De acordo com o pensamento de Calvino,

Será necessário velar diligentemente a que o asilo


comum seja bem provido e que isto seja tanto para os doentes
quanto para a gente idosa que não pode trabalhar, assim como
também para as senhoras viúvas, as crianças órfãs e outras
pessoas pobres. [...] Igualmente [...] que haja certa hospitalidade
à parte para aqueles que se considerarão como dignos de
caridade especial.13

Esta so lid a rie d a d e com os e xcluíd os, en con trada no


pensamento de Calvino, é confirmada como um segundo sentido
de solidariedade, conforme Assmann e Sung, ao afirmarem que
esta “é vista mais como uma atitude capaz de respeitar as diferenças
e se interessar pelos problemas da coletividade, principalmente
dos que estão sofrendo mais com a situação”.14
Desse modo, a solidariedade com os excluídos aparece
como expressão da fé cristã e reformada conforme Calvino a
sistem atizou através da experiência vivenciada na sociedade
genebrina do século XVI. A doutrina teológica e social de Calvino é
desenvolvida na prática dessa proposta de fé, ou seja, ao apregoar
e vivenciar a solidariedade com os excluídos como resultado da
fé, Calvino cunhou sua “doutrina” social.
A bílioA rruda

Pode-se argumentar, assim, que a prática da fé cristã, como


a entendia Calvino, emerge como processo cognitivo cujo resultado
é o aflorar da sensibilidade solidária, ao colocar seus adeptos em
contato relacionai e dialógico com o outro, pela prática do amor.
Segundo Josaphat,

Nossa inteligência chega ao pleno conhecimento


dizendo em si e para si uma palavra, engendrando um verbo
mental em que um objeto, de fora ou de dentro da pessoa, se
torne presente, em uma nova forma de existir. Algo de
semelhante, porém de feitio original, se passa na fecundidade •
de amar. No ato de amar, no dinamismo da vontade, o bem
amado, coisa ou pessoa, se torna presente em uma nova
presença distinta tanto de sua realidade física como de sua
realidade mental, como objeto conhecido.15
No encontro com o outro, através da prática do amor, a
outridade do meu semelhante se torna conhecida e me sensibiliza

sO
ao reconhecer no outro as minhas próprias mazelas.

VO
N esta in te r-re la ç ã o entre p rá tica e conhe cim en to, a
sensibilidade aparece como intermediária. Dentre as condições
necessárias para a prática da solidariedade com os excluídos,

Calvino if a educai; \o p\ra a solidaried \im


Assm ann e Sung introduzem a questão da “valorização da
sensibilidade como conhecimento. Sensibilidade no sentido de
experiências físicas da visão, audição e tato”.16
As relações humanas outrora pervertidas e degeneradas em
relações de dominação, com base no fatalismo e na passividade,
podem ser superadas se transformadas em relações solidárias de
cunho ético-político, se a Igreja se colocar como “espaço” cognitivo
fomentando e valorizando a sensibilidade humana. De acordo com
Munoz, “na tarefa da Igreja, a palavra evangelizadora das pessoas \
deve prolongar-se em uma palavra ‘profética’ na sociedade, e a
ação de assistência e promoção das pessoas deve prolongar-se
em uma ação ‘política’ na sociedade”.17
Este prolongamento da ação de assistência e promoção
humana da Igreja em ações políticas já aparece em Calvino, para
quem Deus irá suscitar uma instituição civil para, ao lado da Igreja,
zelar pela manutenção da coesão social. De acordo com Biéler,
ele irá denominar essa instituição de "ordem política”.18 Segundo a
Doutrina Teológica e Social de Calvino, “a política não é, pois, sem
relação com a ordem de Deus”.19Assim, no pensamento de Calvino,
política e fé são duas nuanças de um mesmo fenômeno social.
Se para C alvino a ordem política tem uma relação de
interdependência com a ordem de Deus, pode-se depreender que a
Igreja tem uma missão também no campo da política a desenvolver na
sociedade, objetivando a promoção do Reino de Deus e a conseqüente
solidariedade humana como fruto da graça redentora de Deus.
2. Fé e Práxis Política
Para se abordar a relação entre fé e política no pensamento
100 de Calvino, é mister termos em mente o que significa a crítica feita
por ele à relação entre a Igreja e o Estado na Genebra do século
XVI. Para tanto, e a título de enfatizar esta questão retomaremos
aqui o que foi colocado como parte introdutória deste capítulo.
De acordo com a doutrina teológica e social de Calvino, a
implantação do reino de Deus, com seus ideais de justiça, eqüidade
e solidariedade humana, está a cargo tanto da Igreja quanto do
Estado, quando estas duas instituições desenvolvem sua missão
de forma íntegra e responsável. No desenvolvimento de sua missão
cabe ao Estado a manutenção da ordem e da justiça social e à
Igreja zelar para que este desenvolva cumpra satisfatoriamente o
seu papel. Assim, a crítica de Calvino à união do Estado e da Igreja
não consiste na proposta de separação de ambas as instituições,
m esm o porque na sua com preensão, E stado e Igreja são
instituições divinas criadas para a manutenção da coesão social.
Para Calvino, as virtudes políticas que “consistem em
A biuoA rruda

ju s tiç a , s in c e rid a d e , m o d e ra çã o , d is c riç ã o , fid e lid a d e e


p a rc im ô n ia ",20 têm um fim a p ro va d o po r D eus, v is to que
contribuem, em parceria com a Igreja, para o desenvolvimento
espiritual dos seres humanos, em uma determinada sociedade.
E esta parceria acontece da maneira acima salientada.
Tanto a relação entre a Igreja e o Estado, cada qual com
suas atribuições, na m anutenção da ordem social, com o o
entendimento de Calvino acerca das virtudes políticas, são aqui
im portantes, pois visam dem onstrar que a missão política da
Igreja não está relacionada à “conquista e exercício do poder
de E s ta d o ” ,21 m as z e la r para que ta is v irtu d e s s e ja m ,
d e sen volvidas pelos m agistrados, ou d e tentores do poder,
objetivando a m anutenção da justiça e da coesão social. De
acordo com Josaphat, ao comentar a missão política da Igreja,
Além e acima do poder, do seu exercício que sem dúvida
deve ser bem orientado - como bem principal e como fonte de
toda retidão - emerge o primado da justiça. Esta justiça designa
em primeiro lugar a fidelidade a Deus. Mas desenvolve-se no
respeito e na promoção do direito, de todos os direitos para
todos. Ela exige sobretudo que sejam assegurados os direitos
dos pobres, dos fracos, dos abandonados, que devem encontrar
na organização do povo justo e solidário a garantia daquilo que
sua fraqueza e sua marginalidade não lhes permitem reivindicar
e defender.22

Nesta mesma linha, a doutrina teológica e social de Calvino


cobra uma postura ética por parte da Igreja. Sendo que, de acordo
com essa doutrina, a fé cristã deve ser vivenciada em comunidade,
tem-se que as virtudes políticas serão desenvolvidas quando a fé
cristã é praticada pela e na comunidade dos fiéis. A Igreja, entendida
como comunidade dos cristãos, ao fomentar relações baseadas na
justiça, na eqüidade e na fraternidade, torna-se prototípica. Segundo
Biéler, “a Igreja, com sua comunidade de homens e mulheres reais
que recuperam em Cristo sua humanidade, tornam-se o embrião
de um mundo inteiramente novo onde as relações sociais, outrora
pervertidas, reencontram sua natureza original”.23
Dentro dessa linha de pensamento cabe à Igreja a inserção
na vida pública, tendo em vista ser essa a compreensão a que se
pode chegar ao abordar a relação entre fé e política em Calvino. A
Igreja se torna protótipo de uma sociedade mais humana e solidária
não se fechando dentro de seus muros, construídos com tijolos de
verdades absolutas e cristalizadas, mas colocando-se a serviço da
libertação dos seres humanos e da sociedade, como conseqüência.
Segundo Munoz, na linha de pensamento de Calvino, a Igreja “é uma
porção do mundo, ou da humanidade, que por sua adesão consciente
a Jesus Cristo está a serviço de todos os homens e de toda a sociedade
humana, para sua libertação e promoção integrais”.24
Na prática quotidiana da fé, os cristãos são convocados a
exercerem suas virtudes políticas como qualquer cidadão, com o fim
102 de promover a construção ou a transformação da sociedade iníqua de
acordo aos princípios da justiça do Evangelho. Nas palavras de Biéler,
a Igreja está convocada a exercer sua missão profética das seguintes
maneiras, dentre outras: "advertir as autoridades, tomar a defesa dos
pobres e dos fracos contra os ricos e poderosos”.25
Na prática da justiça como exigência do Evangelho do Reino de
Deus, que contribui na construção ou transformação da atual sociedade,
os cristãos adquirem virtudes cívicas, pois, segundo Heller e Fehér,
“as virtudes cívicas estão relacionadas à esfera política, mas não são
praticadas exclusivamente nessa esfera”.26 Na prática da fé cristã, na
esfera pública, os crentes também podem desenvolver as virtudes
cívicas necessárias à melhoria do todo social.
A prática humana que visa a transformação de uma sociedade
problemática,27 como já foi visto no segundo capítulo, acontece na/
pela corporeidade que se explicita através dos sentidos.28 Os
sentidos têm participação efetiva tanto na coleta de informações do
A bílio A rruda

intermeio como na sua transformação imediata, corroborando a


proposição de que toda prática humana se confirma como meio de
aquisição de conhecimentos.
Podemos perceber com muita clareza que fé e política não
se excluem, muito pelo contrário, complementam-se na prática cristã
e cidadã que visa o aperfeiçoamento da sociedade. Na prática da
fé que não exclui a ação política, a sociedade toda pode ser
aperfeiçoada, não somente alguns grupos. Heller e Fehér enumeram
as principais virtudes cívicas que podem colaborar para se alcançar
esse ob jetivo, a saber, to le râ n cia rad ical, coragem cívica,
solidariedade, justiça, disposição para a comunicação racional e .
phronesis ou prudência.29 Segundo esses autores, “quaisquer outras
virtudes que homens e mulheres desenvolvam além dessas virtudes
cívicas contribuem para a boa vida deles próprios. As virtudes cívicas
contribuem para a boa vida de todos”.30
Quando a prática humana objetiva a transform ação da
sociedade passa a ser entendida como práxis, que segundo
Vázquez é uma “atividade material do homem que transforma o
mundo natural e social para fazer dele um mundo humano”.31 Este
autor subdivide a práxis em quatro formas32, a saber, práxis produtiva,
produção ou criação de obras de arte, atividade científica, sendo
que estas três primeiras são, nas palavras do mesmo autor, “formas
fundamentais [...] da práxis quando a ação do; homem se exerce
mais ou menos imediatamente sôbre uma matéria natural...”33A quarta
e última forma é a práxis política, que se distingue das anteriores pelo
fato de ser “o tipo de práxis em que o homem é sujeito e objeto dela;
ou seja, práxis na qual ele atua sôbre si mesmo”.34
Para Heller e Fehér a prática das virtudes cívicas propicia uma
sociedade melhor para todos os seus membros. Essas virtudes
pertencem à esfera do político, o que significa dizer que a prática das
virtudes cívicas se dá no âmbito sócio-político, objetivando sua
transformação.
Os elementos transformadores presentes na definição de práxis,
segundo Vázquez, podem ser encontrados no pensamento de
Calvino com relação à resistência da Igreja à ordem estabelecida,
ao status quo. Por ser o ministério da Igreja a constante regeneração
da sociedade, ela torna-se, muitas vezes, um elemento crítico da
própria sociedade onde se encontra estabelecida.35
De acordo com Floristan, “toda práxis é uma atividade ou
ação humana”.36 Sendo a religião um fenômeno humano, práxis
religiosa cristã é, em última instância, ação humana transformadora
que se dá conforme a perspectiva cristã. Se se pode considerar,
de acordo com Floristan, “a tradição cristã como a transmissão de
algumas práticas ou ações”37, práxis religiosa cristã se configura
como ação, de mulheres e homens, que tem como referência “a
memória cristã [...] de alguns feitos prototípicos, simbolizados
sacramentalmente, que se expressam historicamente”.38
Para Boff, “a prática da fé e a prática política se realizam no
mesmo sujeito e nele se dão como um abraço estreito”.39 Ao se
engajar na transformação da sociedade de acordo a perspectiva
cristã, os cristãos desenvolvem sua fé política, embora, para o
mesmo autor, “a fé vive de sua verdade teológica (transcendente) e
não de sua utilidade política, por mais revolucionária que se queira”.40
Ainda que a fé não se reduza à política, conforme a compreensão
do próprio Calvino, Boff continua dizendo que “a política como exigência
ética decorre da fé de maneira absolutamente necessária”.41 Para que
a fé cristã seja vivida na sua plenitude se faz necessário o envolvimento
do crente na esfera pública, onde pode, ao mesmo tempo, desenvolver
e praticar as virtudes cívicas e desenvolver sua cidadania, objetivando
uma sociedade mais justa e solidária.
Logo, a Igreja deve fazer política, entendida, de acordo com
Boff, como “a busca comum do bem comum, a promoção da justiça,
dos direitos, a denúncia da corrupção e da violação da dignidade
humana”,42 na mesma linha de entendimento de Calvino.
Para Calvino, a fé cristã deve ser vivida comunitariamente.43
Mas a comunidade cristã, a Igreja, encontra-se inserida na sociedade
humana, o que induz os cristãos a vivenciarem a fé que professam
no espaço público. Castro afirma que “o cristão também é um
cidadão quando incorpora, em seu cotidiano, quer na esfera privada,
quer na pluralidade do espaço público, a vivência da fé cidadã” .44
A vivência da fé cidadã ou fé política se dá quando os cristãos,
fiéis aos princípios do Evangelho, instauram a utopia45 de uma
sociedade mais justa, mais fraterna, mais humana, através de uma
práxis religiosa cristã que acontece no âmbito social. Segundo
Castro,

Repensar a cidade, como local prioritário da missão e


da vivência de uma fé cidadã, é um dos objetos [...] dos cristãos
preocupados com a (re) construção de cidades mais justas,
solidárias, onde não haja seres sobrantes, onde todos possam
viver em condições mínimas de bem-estar-social...46
A fé cristã se evidencia como práxis po lítica . E esta
compreensão é de suma importância neste trabalho que tem como
premissa que, de acordo com a doutrina teológica e social de
Calvino, a Igreja tem uma missão profética a cumprir na sociedade
quando esta se torna iníqua.
Assim sendo, do exposto até aqui, pode-se depreender que
a prática, a vivência da fé cristã tem implicações políticas muito claras
e evidentes. Os cristãos estão engajados politicamente na construção
de uma sociedade mais justa e humana desde quando vivenciam sua
fé de acordo aos princípios do Evangelho. No desenvolvimento de
uma práxis religiosa cristã, onde fé e política complementam-se na
implantação do reino de Deus, a Igreja leva seus partícipes ao
desenvolvimento de uma missão profética.
A fé cristã desenvolvida na esfera pública traduz-se em ações
ou práticas que culminam na aquisição de conhecimentos advindos do
contato dialógico com o meio, de acordo com o conceito de enaction
de Francisco Varela,47 e também com o outro. Por isso é possível
verificar na inserção da Igreja, como comunidade de mulheres e homens
regenerados pela graça no encontro com Jesus Cristo, na esfera pública
um processo cognitivo que viabiliza o desenvolvimento de uma
sensibilidade solidária, tendo em vista que o contato com o meio e
com o outro ocorre através dos sentidos.
Porém, que garantias se pode dar de que o desenvolvimento
da sensibilidade solidária corresponde ao desenvolvim ento
concomitante de ações solidárias? Quais são as chances, numa
sociedade individualista e hedonista como a atual, das pessoas, mesmo
sentindo-se sensibilizadas com o sofrimento alheio, perseverarem nas
ações solidárias?
As garantias, as chances e as oportunidades de relações
solidárias permanentes são poucas, primeiro porque a espécie humana
não desenvolveu, na sua longa história evolutiva, propensões solidárias.
Segundo Assmann e Sung, “somos um animal que acumulou
filogeneticamente propensões à destrutividade e agressividade, como
herança genética e cultural de m últiplas e difíceis lutas pela
sobrevivência1’.48 Segundo, porque o tipo de educação presente em
uma determinada sociedade está condicionado, inexoravelmente, ao
modelo cultural vigente que a tudo e a todos condiciona.49
Por isso urge o desenvolvimento de um processo educativo
que viabilize e assegure a manutenção permanente de práticas
sociais que possibilitem, além da sensibilidade solidária, relações
perseverantes de solidariedade pessoais e sociais. E esta premissa
também cabe à Igreja como instituição educadora.

3. Solidariedade e Missão: a Práxis Religiosa Cristã e a Educação


para a Solidariedade
Talvez a inconstância a que estão submetidas as relações
solidárias esteja relacionada à falta de iniciativa da maioria das
pessoas. Esta inércia tem sido largamente disseminada e reforçada
por uma educação que tem prezado pela passividad e dos
educandos. Por isso entre a sensibilidade que aflora no contato
com os que sofrem e a possibilidade de perseverança nas ações
A uILIo A r RITK

solidárias, vem a lume a necessidade de uma educação para a


iniciativa. Esta antecede uma educação para a solidariedade. De
acordo com Assmann e Sung, “esta simplesmente não funciona,
como constante social, onde falta a criatividade e a disposição para
tom ar in ic ia tiv a s” .50 Para que as pessoas, acostum adas na
passividade, aprendam a deixar a inércia e saibam tomar iniciativas
para a prática da solidariedade, faz-se necessário o desenvol­
vimento diário de ações que a possibilitem.
Segundo a concepção de Calvino, na promoção do Reino
de Deus, por parte da Igreja, as relações fraternas emergem como
resultado da regeneração do ser humano mediante a graça redentora
de Deus, no encontro com Jesus Cristo. Desse modo a comunidade
cristã aparece como “espaço” cognitivo, onde a prática do amor
irrompe como processo educativo que capacita seus partícipes a
tomar iniciativas. De acordo com Mufioz,
a Igreja e suas comunidades hão de oferecer às pessoas
o espaço e as condições de que necessitam para dizer sua
própria palavra [...] Hão de dar-lhes o espaço de que necessitam
para criar e multiplicar seus gestos de solidariedade: [...] gestos 107
que devem antecipar um mundo novo, como sinais da
presença do reinado de Deus que alimentam a esperança de

Calvíno ea educação p\ra a


sua plenitude futura.51

Ao viabilizar espaço, isto é, condições para que as pessoas


possam dizer a sua própria palavra e, também, desenvolverem
práticas solidárias, a Igreja permite que o ser humano se afirme
como tal.
Mas, se a Igreja irrompe como “espaço” cognitivo, por que o
que se percebe, hoje, é uma quase total inércia e insensibilidade
dos cristãos frente aos problemas da sociedade atual? A nosso
ver, tanto a inércia quanto a insensibilidade, presentes na Igreja
hodierna, estão relacionadas a dois fatores históricos: o tipo de f l j
educação a que são subm etidos seus pa rtícip es e a perda
progressiva da sua dimensão profética.

3.1. Educação anti-dialógica e insensibilidade


A educação consiste em potencializar os conhecimentos já
adquiridos pela pessoa em contato com o seu meio ambiente, pois,
segundo Garcia, “aprender significa o aprimoramento de algo menos
perfeito que já existia no organismo e não criar algo do nada, fazer
surgir uma habilidade qualquer do vazio, da ausência”.52
Se a aquisição de conhecimentos passa pela inter-relação
com o meio, os conhecimentos adquiridos têm relação com a cultura.
A educação nada mais é do que a assimilação e a transmissão da
cu ltura . Se o in d ivid u a lism o é o m odelo cu ltura l a tu a l53 os
conhecimentos transmitidos pela educação contemporânea estão
ancorados numa visão fragmentada da realidade, que por sua vez
tem por base o método cartesiano que dissocia sujeito e objeto e
os coloca em esferas separadas. Vale a pena citar novamente Morin,
que afirma que “esta dissociação atravessa o universo de um
extremo ao outro: Sujeito / Objeto, Alma / Corpo, Espírito / Matéria,
Qualidade / Quantidade, Finalidade / Causalidade, Sentimento /
m
Razão, Liberdade / Determinismo, Existência / Essência”.54
Para Codina, esse dualismo, que perpassa toda a cultura
ocidental, é o responsável pela cisão entre fé e prática, pois divide
a realidade às esferas do sagrado e do profano. Segundo ele, “à
esfera profana pertencem o corpo, a matéria, a terra, a história e o
tempo, enquanto que a alma, o espírito, o céu, a eternidade e o
próprio Deus pertencem à esfera do sagrado”.55
O resultado imediato desta cisão entre o profano e o sagrado
é a proeminência das coisas “espirituais” sobre as terrenas. Logo,
a Igreja é entendida como a responsável pelas coisas sagradas e
as demais instituições, por exemplo, o Estado, pelas coisas terrenas
ou seculares.
À Igreja, de acordo com Calvino, cabe a transmissão da
salvação e da vida eterna através da palavra e da ação solidária.
No cumprimento de sua missão, anuncia e educa. Desse modo,
bh .io A rruda

essa cisão entre o profano e o sagrado, das coisas seculares


daquelas espirituais, o que vai em direção oposta da teologia de
Calvino, traz sérias conseqüências para a ação educativa da Igreja.
A Igreja, como instituição, é um micro-sistema dentro de um
macro-sistema, por isso não pode furtar-se ao modelo cartesiano
pedagogicam ente transm itido e culturalm ente assim ilado cujo
resultado é a incompreensão, por parte dos indivíduos, de que a
in te rd e p e n d ê n cia hum ana e so cial é um fato e é tam bém
A

imprescindível para a manutenção da coesão social. Isso significa


dizer que a Igreja tem assimilado, ao longo dos tempos, o modelo
cultural da sociedade da qual faz parte.
Por ter assimilado o modelo cultural individualista e dualista56
das sociedades ocidentais, a Igreja tem transm itido aos seus
partícipes, através da sua prática, valores que não corroboram sua
missão de promover o reino de Deus. Pois, se os valores por ela
assimilados estão ancorados tanto numa cultura individualista quanto
numa visão dualista, os assuntos da esfera “e spiritu al” têm
proeminência sobre os da esfera material, e o resultado disso é
que a Igreja tem se preocupado em salvar ou libertar “almas” e
encam inhá -las para o “cé u” , ao invés de se ocupar com a
solidariedade com o homem e com a mulher “encarnados” nas

Calvino e a educação para a solidariedade


sociedades capitalistas.
Ao interiorizar os valores da cultura individualista vigente as
pessoas são levadas a pensar que somente o seu ponto de vista é
correto e que, em contrapartida, os demais pontos de vista não são
importantes ou estão errados. Como consequência, as pessoas
conversam sobre os mais variados assuntos e têm as mais variadas
opiniões acerca destes, mas não se comunicam, uma vez que a
comunicação enseja a aceitação da opinião alheia.
Dessa forma os valores transmitidos pelas igrejas embebidas
no individualismo e no dualismo não promovem o diálogo. Viabilizam,
isto sim, um antidiálogo que, segundo Freire, “implica numa relação
vertical de A sobre B, [...], É desamoroso. [...] Não é humildade. É
desesperançoso. Arrogante. Auto-suficiente. [...] Por tudo isso, o
antidiálogo não comunica, Faz comunicados”,57
Fazer comunicados é o mesmo que transmitir, aos educandos,
informações desconectadas da sua realidade, do contexto por eles
vivenciado. Escutam, arquivam estas informações, mas não apreendem,
não adquirem conhecimentos relevantes para a vida.
A arrogância e a auto-suficiência são características de quem
se considera dono da verdade absoluta. Conforme foi visto no
segundo capítulo deste trabalho, a educação para a solidariedade
pressupõe a não-arrogância, a relativização das certezas e a
aceitação do outro. A Igreja, cuja missão inicial era a implantação
do reino de Deus, tem levado seus partícipes, através de suas
doutrinas religiosas (teológicas) cristalizadas, a se considerarem
donos da verdade, o que gera certa arrogância em relação às
doutrinas diferentes daquela que julgam ser a única verdadeira.
Porém, de acordo com Calvino, a Igreja, através de seus dogmas,
não pode suprir a fé dos fiéis, porque "a fé consiste no conhecimento
de Deus [...], e não na reverência da Igreja”.58
Se a fé significa, na compreensão de Calvino, conhecimento
de Deus, a Igreja não pode querer gerar nos seus partícipes o
sentimento de que a sua doutrina está acima de qualquer dúvida,
porque, segundo a teologia de Calvino, o nosso conhecimento de
Deus é imperfeito e incompleto. Assim se refere à fé:

Admitimos que a fé [...] é implícita (isto é, imperfeita,


incompleta ou incipiente); não somente porque ignoramos
muitíssimas coisas, senão também porque estando rodeados
das trevas de numerosos erros, não podemos entender quanto
deveriamos saber. [...] Com este freio nos mantém Deus na
modéstia, destinando a cada um uma determinada medida e
porção de fé, a fim de que inclusive os mais doutos entre os
doutores estejam sempre prontos a aprender.59

Para se realizar a proposta da doutrina teológica e social de


A bílio A rruda

Calvino, hoje, é preciso que as igrejas viabilizem um modelo de


educação que conduza à relativização das certezas ancoradas em
dogmas religiosos que muitas vezes não têm nenhuma relação com
as vidas das pessoas. De acordo com Segundo, aqui está o grande
problema a ser resolvido pela teologia atual. Vejamos:

Chega-se aqui ao verdadeiro problema prático da


teologia hoje, assim como o de suas relações com o dogma.
Em outras palavras, o interesse do leigo pela teologia vem,
talvez, na maioria dos casos, de uma crise [...]. Crise, ao
perceber que a compreensão que tem da mensagem cristã
não se compagina com as atitudes que leva, por seu próprio
compromisso cristão, à vida. À sua história vital, onde encontra
suas esperanças e entusiasmos, assim como também seus
bloqueios.60
E, se não dizem respeito às suas vidas, tais ensinamentos
não promovem um conhecimento que os coloque em contato com
o outro, numa relação solidária, porque inexiste o diálogo, apenas 111
a transmissão de informações. Segundo o mesmo autor, o homem
de hoje percebe as verdades da fé, talvez sim, registros de um
saber m em orístico ou inform ativo, mas não com os olhos da

C a LVINO E A EDUCAÇÃO l’\R \ A SOI IDARIEDADE


experiência espiritual”.61
Se a ação educativa da Igreja se toma apenas discursiva, leva
seus partícipes à construção de uma cosmovisão desvinculada da
realidade, isto é, um sentido de vida baseado em certezas provenientes
da estaticidade do dogma. De acordo com Assmann e Sung,

É sumamente difícil para as pessoas, que estruturam


suas percepções do sentido a partir de verdades religiosas,
admitir que é necessário abandonar, na teoria e na prática, a
obsessão pela verdade única e pelo sentido único, para poder
chegar a uma abertura solidária desde o interior de nossas
formas de pensar.62

Desse tipo de cosmovisão construída com base em verdades


inquestionáveis resulta uma insensibilidade frente aos problemas reais
das pessoas. Para quem tem um sentido de vida direcionado por
certezas, aqueles/as que pensam e agem de maneira diferente estão
erradas, e este tipo de compreensão dificulta o encontro dialógico.
Além disso, e com base nisso, emerge a indiferença com o sofrimento
alheio, que, na maioria das vezes aparece justificada por, e aqui recordo
parte da citação de Sung “uma diversidade grande de cosmovisões,
doutrinas religiosas ou éticas”.63

3.2. Solidariedade e a dimensão profética da Igreja


D epois de se v e rific a r que tan to a iné rcia quanto a
insensibilidade ao sofrimento alheio presentes na Igreja hodierna
se deve, em parte, a uma educação que tem reproduzido e
transmitido, acriticamente, os valores individualistas que perpassam
as sociedades capitalistas, queremos propor a recuperação da
dimensão profética da Igreja, da maneira como a compreendia
Calvino, como uma tentativa de fazer emergir, na Igreja hodierna,
um modelo educacional que impulsione seus educandos à prática
da solidariedade.
Que a Igreja tem perdido tanto sua dimensão solidária quanto
profética, pode-se constatar pela questão levantada por Boff:

Pode-se [...] esperar que uma Igreja rompa seu pacto


histórico com as forças hegemônicas e efetivamente se
converta para uma pobreza evangélica, solidária com os
debulhados de seus direitos e empobrecidos, para uma
coragem profética, [...] para um seguimento de seu Fundador,
o Servo Sofredor Jesus Cristo, conseqüente e destemido?64

Ao se propor a recuperação da dimensão profética da Igreja,


queremos fazê-lo, de início, aludindo à critica marxista da Igreja
como instituição histórica.65 Isso porque o levantamento dessa crítica
tornará evidente ao leitor que a Igreja possui uma dimensão profética,
A biuoA rruda

que embora tenha sido diminuída quando da sua adesão ao status


quo, permanece latente em seu seio.
Toda crítica da crítica marxista da religião se dá em torno da
célebre frase de Karl Marx: “A religião é o ópio do povo”. Existem
duas questões de salutar importância para esta pesquisa: o equívoco
histórico de se atribuir o enunciado da frase em questão apenas a
Marx, como se fosse ele o primeiro cientista a entender a religião
como tal66 e também considerar todo o elemento religioso como
alienante com base numa frase destacada de seu contexto.67
Talvez seria interessante começar, ainda que de forma bem
resumida, pelo que se pode entender sobre a crítica marxista da
religião, segundo Assmann e Mate:

Por un lado, esa crítica marxiana es una 'crítica de Ia


iglesia’.(...) Ia iglesia como institución histórica, empírica,
establecida. (...) Por otro, es una ‘crítica dei cristianismo". El
cristianismo (...) como concreción histórica de ia religión en
general,(...) se refiere ai fenômeno religioso que envuelve ai
mundo burguês... (...) En tercer lugar, es‘una crítica de Ia religión
mágica’. Finalmente, es una 'crítica total de Ia religión. No se
refiere a un fenômeno sino a Ia esencia; no a una parte sino al
todo.68

Ao ide ntificar o cristianism o com o fenôm eno religioso


envolvido pelo mundo burguês, Marx tem se apercebido que a
religião cristã tem estado aliada, com seus discursos e práticas, à
ideologia dominante. Neste sentido, mesmo quando a frase de Marx,
a religião é o ópio do povo, é retirada de seu contexto, para ser
interpretada numa ótica unilateral, a crítica tem razão de ser, na
medida em que, em diferentes épocas históricas, a religião serviu
de suporte teórico à dominação política.69 Essa mesma tese será
corroborada por Codina com relação aos valores individualistas e
dualistas assimilados pela Igreja. Segundo ele,

Se o individualismo reduzia a fé à esfera privada, e o


dualismo ao âmbito do sagrado e do além, nos países de
tradição cristã a fé se reduz, em muitos momentos históricos, à
função de sancionar a ordem estabelecida, o ‘establishment’,
[...] Ela sacraliza e consagra os valores da sociedade burguesa
e lhe dá um respaldo de transcendência. Deste modo, o sistema
econômico, político, familiar e social vigente fica reforçado.70

Quando se afirma que a frase de Marx foi interpretada numa


ótica unilateral, quer-se com isso remeter ao fato de que nas críticas
enunciadas à critica marxista da religião tem-se negligenciado o
duplo aspecto da religião encontrado em Marx quando da leitura
do restante do parágrafo onde se encontra a célebre frase. Segundo
ele, “a miséria religiosa constitui ao mesmo tempo a expressão da
miséria real e o protesto contra a miséria real. A religião é o suspiro
da criatura oprimida, o ânimo de um mundo sem coração e a alma
de situações sem alma. A religião é o ópio do povo”.71
Mesmo que Marx reconheça na religião um lampejo de
pro te sto , é óbvio que ele o enxerga como evasão. Segundo
Assmann e Mate, para Marx “o fatídico desse protesto é sua
im potência, e o perigoso da religião é se rvir de consolo, de
narcótico.72Apesar de adiantar-se à concepção totalitária73 de Hegel,
ao a n a lisa r a h istória da sociedade, M arx não consegue
desvencilhar-se desta concepção e, de acordo com Assmann e
Mate, ‘‘aplica ao problema religioso o ‘pensamento de identidade’
entre totalidade e particularidade, entre essência e fenômeno que
temos visto em Hegel’’.74 Desse modo, surpreendentemente, Marx
reduz a religião à pura alienação, ou seja, segundo os mesmos
autores, “se hoje a religião se alia ao capitalismo deduz-se que a
essência religiosa é alienação ou perversão”.75
Mas, seria a religião pura alienação? Estaria o cristianismo, e a
Igreja, sua instituição máxima, em todas as épbcas e em todas as suas
nuanças, comprometido com os interesses das classes dominantes?
A bílio A rruda

De acordo com Maduro, para consolidar o poder adquirido e


tornar-se classe dirigente “a fim de obter o consenso geral à seu domínio
[e] hegemonia”,76 a classe dominante utilizará estratégias de coerção e
persuasão. Como parte dessa estratégia, o aprofundamento do poder
simbólico é condição sine qua non para que a classe dominante consolide
sua hegemonia. Segundo o mesmo autor,

uma religião qualquer, ao se encontrar no seio de uma


sociedade onde uma classe social [...] se acha a ponto de constituir-
se como classe dominante, há de se ver passo a passo e
inevitavelmente submetida [...] a um conjunto de limitações e
orientações geradas pelo mesmo processo de dominação, e
tendentes a fazer da mera dominação uma verdadeira
hegemonia.77
Dessa forma a Igreja, sem que disso se apercebam seus
partícipes, através de seus discursos e práticas (ritos), passa a ser
ferram enta nas mãos da classe dom inante para que essa se
estabeleça como classe dirigente.78
Porém, ao se lançar o olhar para a história da Igreja latino-
americana, pode-se perceber que, mesmo que durante muito tempo

C alvino e a educaçài ) para a soi idarifd aoi


e em muitos lugares ao redor do continente a Igreja, com seus
discursos e práticas, tenha se posicionado ao, lado das classes
dominantes,79 dando assim substrato à crítica marxista da Igreja e
do cristianismo, algo de revolucionário sempre esteve latente em
seu seio, podendo irromper sob certas circunstâncias. Segundo
Maduro, “toda igreja [...] abriga em seu seio conflitos tais que seu
desenvolvimento pode [...] favorecer processos religiosos com
funções sociais não conservadoras e até revolucionárias".80
Alguns fatos históricos tais como a criação dos movimentos 1
sociais no Brasil81, a participação ativa de cristãos no processo de
libertação da Nicarágua, com a vitória dos “sandinistas em 19 de
julho de 1979”82 e a formação de movimentos responsáveis pelas
lutas revolucionárias em El Salvador,83 evidenciam que a Igreja latino-
americana possui uma dimensão profética que pode vir a lume
quando as tensões, próprias de uma sociedade cuja população se
encontra dividida entre “incluídos” e “sobrantes”, tornam-se patentes.
Se o objetivo desse trabalho é demonstrar que a doutrina
te o ló g ica e social de C alvino pode v ia b iliz a r um processo
pedagógico que fomente a aquisição de conhecimentos que se
estendam em ações solidárias, é interessante trazer à lembrança,
aqui, que a Reforma Protestante ocorrida na Genebra do século
XVI, ocasionando um resgate da função profética da Igreja, levou
os magistrados a instituírem “mecanismos institucionais”,84 tais como
o “Hospital Geral” e a “instrução pública obrigatória”.85 Como fruto da
maneira como Calvino compreendia a Reforma, bem como do
próprio contexto social, político, econômico e religioso genebrino,
sua doutrina teológica e social permitiu não somente a continuidade
destes mecanismos institucionais, bem como providenciou para
que fossem melhorados.86
Para que a Igreja, hoje, possa recuperar sua dimensão
profética, o que, por conseguinte, fará emergir uma prática educativa
que conduza seus partícipes à inserção no espaço público através
de ações solidárias, faz-se necessário passar das ações solidárias
de cunho assistencialista e/ou paternalista para as de cunho ético-
político. Segundo argumenta Codina,

A visão do cristianismo de cunho individual não nos faz


sentirmo-nos solidários com o que sucede em volta de nós,
mas, no melhor dos casos, compassivos e paternalistas, dando
do supérfluo aos pobres e sentindo-nos secretamente
orgulhosos de nossa generosidade. A assistência tranquiliza
pessoas, classes e países ricos, enquanto que humilha os
pobres e não ataca o mal pela raiz.87

Para que as igrejas, hoje, consigam desvencilhar-se do


assistencialismo e do paternalismo que têm, na maioria das vezes,
pontuado suas ações, é mister a elaboração e implantação de um
processo educativo que rompa com os valores desumanizantes
da m o dernidade, pois, segundo sa lie n ta C odina, “fre n te à
modernidade, a Igreja nascida da Reforma (talvez por ter também
ela surgido na época moderna) adotou uma postura aberta. [...]
mas sem superar os questionamentos da própria modernidade”.88
Porém, ao se fazer referência à assistência não se pode
incorrer no erro comum de reduzi-la a simples ações paternalistas.
A assistência aos menos favorecidos é necessária e pode ser
caracterizada, tam bém , por ações cujos resultados sejam a
solidariedade de cunho ético-político. De acordo com Munoz,

Ao falar de assistência, devemos levar em consideração


a existência de variantes que podem ser decisivas. Por exemplo,
existe a simples ajuda ou esmola, mas também o apoio e a
entrega de elementos para que os necessitados se ajudem
uns aos outros: apoio moral, conhecimentos, capacitação,
ferramentas, etc.89

A citação precedente clarifica a existência de uma tensão entre


uma assistência imediata àquele/a que se encontra necessitado/a
e uma ação que viabilize uma libertação integral do ser humano
que se encontra socialmente excluído. Mas, ao aludir a elementos
como “conhecimentos”, “capacitação” e “ferramentas”, que aludem,
por sua vez, a uma educação para a práxis, Munoz sugere que
essa tensão seja tom ada em conta com o ação pedagógica
libertadora, tendo em vista que capacitam as pessoas para que
“tomem a palavra, se comprometam com os irmãos, descubram
seu próprio caminho e atuem organizadamente por sua conta”.90
A Igreja, como instituição, também vive uma tensão entre ser
a guardiã e a promulgadora das doutrinas religiosas que possibilitam
sua existência no tempo e no espaço e encarnar, fomentar e ensinar
os ideais da utopia do reino de Deus através da institucionalização
da solidariedade. Mas essa tensão deve ser assumida como
processo pedagógico, pois ao institucionalizar a solidariedade, com
ações de cunho ético-político, o horizonte do Reino de Deus se
torna próximo, possibilitando os fiéis a dar continuidade a estas
ações e, concomitantemente, a construírem uma sociedade mais
justa e solidária.
Hoje, para que a Igreja latino-am ericana, situada numa
sociedade onde os valores estão ancorados no individualismo,
possa de sen volve r sua m issão pro fética tem que levar em
consideração as novas condições impostas pelo capitalismo. Numa
sociedade onde os “incluídos” e os “sobrantes” estão em contínuo
conflito político-ideológico, o desenvolvim ento dessa missão
profética da Igreja se apresenta como processo de transformação
social, e isto se dá pelo fato de que na busca pelo seu objetivo,
estabelece um processo educacional que encaminha seus partícipes
para uma compreensão e apropriação91 do reino de Deus, que, de
acordo com Groome, “não é basicamente um território governado,
118 nem, por outro lado, um conceito abstrato: É antes, um símbolo
que se refere à atividade concreta de Deus na História...”92
Assim se estabelece um paralelo histórico entre as ações
ético-políticas, desenvolvidas e viabilizadas pela Igreja genebrina,
no século XVI, que após longa história de permanência ao lado
dos interesses do poder temporal ou secular, visando seus próprios
interesses, foi dinamizada pela reforma protestante, especialmente
pelo desenvolvimento e sistematização desta por João Calvino, e
a Igreja hodierna.
Cunhada pelo contexto social, político, econômico e religioso
de Genebra, contexto este fruto da reforma, a doutrina teológica e
social de Calvino serviu de ação educativa que conduziu os adeptos
da “Igreja calvinista” a uma práxis religiosa cristã cujos resultados
foram a transform ação radical da sociedade genebrina e a
solidariedade como ação de cunho ético-político com os excluídos
da sociedade.
A b il k >A r r ii [ ) \

Se não a prática da doutrina teológica e social de Calvino,


devido à distância tem poral, histórica e contextual, os valores
solidários que se pode dela inferir podem vir a ajudar a Igreja
hodierna no resgate de sua dimensão profética. Conforme foi
levantado neste capítulo, a Igreja possui de forma latente uma
dimensão profética que pode vir à tona se através de práticas que
viabilizem valores solidários como “ato ético-subjetivo radical”,93 seja
fomentada e alimentada uma ação educativa que conduza seus
partícipes à apropriação da utopia do reino de Deus.
Mas, para que a Igreja possa recuperar sua dimensão profética
de crítica do sistema quando este engendra valores que contrariam
a justiça, a eqüidade e a solidariedade humana, deverá romper,
nas palavras de Boff, “seu pacto h is tó rico com as fo rça s
hegem ônicas e efetivam ente se converta para uma pobreza
evangélica, solidária com os debulhados de seus dire itos e
empobrecidos...’’94 Ao romper com os poderosos deste mundo, a
Igreja-instituição poderá direcionar seus partícipes a viver de forma
integrada, e não separada, de acordo com Codina, “as dimensões
de fé e justiça, fé e solidariedade, como ponto chave e profético da
Igreja de hoje.”95
Se a Igreja em ergir como “espaço cognitivo” onde seus

Çalvíno e a educação para à -soudaredade


partícipes têm a oportunidade de unir fé e justiça, fé e solidariedade
para a construção de um mundo diferente, mais humano e habitável
tende a recuperar sua dimensão profética. Isso é o mesmo que
afirmar que a dimensão profética da Igreja vem a lume quando os
cristãos colocam em prática os ideais do reino de Deus, tais como
justiça e solidariedade. Como se pode constatar na citação de
Munoz:

Uma Igreja [...] que valoriza mais a fraternidade e busca


uma co-responsabilidade maior; que tem seu centro
sociológico e cultural no mundo dos pobres, nos setores
majoritários, que são os pobres do país e os pobres do mundo;
que vive e promove a solidariedade no meio do povo; que
cumpre ali uma denúncia profética, discretamente mas
assumindo os inevitáveis riscos, a fim de alimentar nos pobres
a consciência de sua dignidade e a esperança de um mundo
diferente...96

O que se pode depreender da citação precedente é g j


que o mergulho acrítico na cultura individualista e dualista, por parte
da Igreja, fez com que a fé se degenerasse numa relação pessoal •
com Deus, olvidando seus partícipes da dimensão de justiça e
solidariedade inerente à fé cristã. Segundo Codina:

Todos os aspectos escatológicos, utópicos, proféticos


e críticos de Evangelho desaparecem nesta configuração da
fé eciesial. De fermento renovador passa a ser cimento da
arquitetura social. Em lugar de buscar os interesses do Reino
de Deus e sua justiça, a Igreja se concentra em si mesma e se
preocupa por seus direitos, suas instituições e seus interesses.
Em lugar de levantar sua voz profética quando o homem é
pisoteado, muitas vezes cela diplomaticamente para não
ofender as autoridades nem criar maiores conflitos.97

Esse tipo de fé que não leva em conta os ideais de justiça e


com unhão fraterna do reino de Deus tem com o resultado o
afastamento do outro, do diferente por gerar certa arrogância naquele
que se considera especial devido a pretensa relação íntima com
Deus. A Igreja que tem olvidado do seu legítimo poder evangélico,
permutando-o pelo poder temporal, político apenas, tem gerado
uma eclesiologia marginal, com quase extinção da comunicação
dialogai, tem se tornado, segundo Boff, “uma Igreja demasiadamente
[...] preocupada consigo mesma e, portanto, sem interesse real
pelos grandes problemas dos homens”.98
Para que a Igreja recupere sua dimensão profética dève
aprender, num primeiro momento, a se interessar pelos problemas
humanos reais, e para isso, deve viabilizar um modelo de educação
A hilioA rritu

que preze pelo reconhecimento do outro, no encontro dialógico.


Como já foi visto no capítulo dois, não é possível instaurar a
solidariedade como imperativo ético-político sem o reconhecimento
do outro, seus sofrimentos, suas limitações, seus medos, sua maneira
de ser e de enxergar o mundo, enfim, sua outridade."
Também, num segundo momento, a Igreja deve promover uma
educação que coloque em “xeque” as certezas adquiridas ao longo da
vida, certezas que na maioria das vezes impedem as pessoas de ter
esperança,100 continuar lutando pelos seus ideais, pois dão a impressão
de que tudo está perfeito. Primeiro, porque o ser humano é um ser
inacabado, em construção, por isso um ser de incertezas. Segundo,
porque a utopia do Reino de Deus interpela a Igreja à construção
permanente de um mundo mais humano e solidário.
E ainda, na recuperação de sua dimensão solidária, a Igreja
precisa re in tro d u zir, numa ótica evangélica, a questão da
corporeidade humana. O corpo humano é aprendente e participa
da aquisição de conhecim entos através dos sentidos.101 Todo
conhecimento é precedido pelo desejo de conhecer,102 por isso
pode-se afirm ar que nossos desejos se corporificam . Só que
relacionar corpo e desejo é problemático na tradição cristã que se
ha bitu ou a co n sid e ra r este últim o apenas com relação à
sexualidade.103
Uma Igreja solidária com os reais problemas humanos aparece
como paradigma de uma Igreja profética. Dentre os modelos de
“vida religiosa” propostos por Codina, a “vida religiosa popular” é
um modelo que, segundo ele, tem o objetivo de “viver, numa estreita
integração, as dimensões de fé e justiça, fé e solidariedade, como
ponto chave e profético da Igreja de hoje”.104 Numa sociedade
excludente, onde o individualism o se tornou o modelo cultural
vigente, onde tudo tem valor mercadológico, inclusive os próprios
valores, a Igreja solidária pode conclamar a sociedade e suas
instituições a repensar seus valores de maneira que o ser humano
possa ocupar novamente o lugar que lhe foi usurpado pelo capital,
pelo mercado e pelas máquinas.
Ao invés de se rejeitar a Igreja-instituição como se fosse um
mal, tem-se que recuperar sua dimensão profética e solidária, tão
profundamente vivenciada nos primeiros séculos de sua existência,105
e fazer com que os valores solidários e fraternos do Reino de Deus
se tornem valores éticos-políticos e sociais. A Igreja-instituição como
espaço cognitivo pode levar seus partícipes ao aprendizado da
solidariedade, e esta, institucionalizada, pode emergir como contra-
cultura em meio a cultura individualista atual, pois, no cumprimento
de sua missão profética promove o “anúncio de uma mensagem
que contradiz [...] valores humanos estabelecidos”.106
Para que uma mensagem tenha força de contradizer valores anti-
solidários e individualistas tão profundam ente arraigados nas
sociedades atuais deve vir acompanhada por uma prática cotidiana da
comunidade que se reúne em tomo dos ideais subversivos de Jesus
de Nazaré107, tais como fraternidade, solidariedade e amor altruísta.
Propor uma Igreja solidária, e por isso profética, é propor uma
comunidade que, fiel aos ideais do Reino de Deus, possa, através de
t sua prática relativizar, além dos valores dos outros, os seus próprios. É
| propor uma comunidade que “reme contra a maré” dos nossos tempos,
; que são marés extremamente poderosas por nascerem nas águas
| longínquas do lluminismo. Relativizar as certezas que geram arrogância,
I diferenças, racism os, segregações. R elativizar os dualism os/
| individualism os que geram desencontros, desconhecim entos.
I Relativizar a noção de corporeidade e desejo visto que somos humanos
! porque desejamos e corporificamos nossos desejos. Essas são as
| prerrogativas da Igreja profética e solidária que pode emergir como
| contracultura, como fomentadora de valores esquecidos e vilipendiados
[ pela cultura desumana vigente.
A bílio A rruda

Para que a Igreja-instituição possa emergir como espaço cognitivo


! onde a sensibilidade solidária possa ser desenvolvida e, através da
educação, transformada em ações permanentes de solidariedade, deve
ousar relativizar a própria fé, já que esta não está, necessariamente,
; ligada apenas aos valores religiosos ou à religião.108 Promover a

I
relativização da fé não quer significar desmistificá-la, roubar-lhe sua áurea
mística, mas tão somente demonstrar seu conteúdo existencial de
certezas e incertezas. A fé não pode ser puramente certeza, pois a
certeza incondicional anula a esperança, e fé e esperança estão
intimamente relacionadas. Mas a fé contém uma chispa de incerteza,
uma vez que está direcionada para o sagrado.109Essa relação de certeza
e incerteza presentes na definição de fé é detalhada por Tillich:

Fé é certeza na medida em que ela se baseia na


experiência do sagrado. Mas ao mesmo tempo a fé é cheia de

a
incerteza, uma vez que o infinito, para o qual ela está orientada,
é experimentado por um ser finito. Esse elemento de
insegurança na fé não pode ser anulado; nós precisamos
aceitá-lo. E esta aceitação é um ato de coragem.110

O elemento de insegurança, de incerteza da fé a define como

C alvino e a educação para a solidariedade


uma aposta. Ter fé é apostar que algo vai dar certo ou errado. Esse
apostar em algo elimina o princípio de certeza incondicional da fé e,
portanto, descaracteriza qualquer sentimento de arrogância da parte
daquele/a que tem fé.
Se a sensibilidade solidária somente pode aflorar no contato
com outro, principalmente com o outro que sofre, a arrogância surge
como obstáculo para que a solidariedade seja uma ação de cunho
ético-político. Da mesma forma, a arrogância originada da fé como certeza
incondicional tem obstaculizado o desenvolvimento das ações diárias
de solidariedade, ou as micro-solidariedades, em ações solidárias
permanentes por parte da Igreja. A fé entendida e vivenciada como
aposta impede que o sentimento de arrogância se desenvolva nas
pessoas, e isso também no âmbito religioso, o que favorece o encontro
com o outro e a consequente abertura solidária.
Se a Igreja-instituição, fiel aos princípios do Reino de Deus, ousar
interferir profeticamente, com seus discursos e sua prática solidária, na
política das demais instituições sociais, provocar-lhes-ão à relativização
de princípios tidos, até então, como dignos de certeza incondicional,
como por exemplo, a crença no mercado como o único princípio
regulador da sociedade, inclusive da própria solidariedade orgânica.
A missão profética da Igreja, na ótica de Calvino, estava em vigiar
o Estado para que este viabilizasse e assegurasse a manutenção da
justiça social na sociedade genebrina. Esta sua compreensão da
relação entre Igreja e Estado está profundamente arraigada na sua forma
de entender e vivenciar a fé cristã, o que fica claramente evidenciado
ao se fazer um levantamento de sua doutrina teológica e social. Fé e
solidariedade estavam juntas na reforma empreendida por Calvino na
Genebra do século XVI.111
Para Codina, “este é o grande desafio lançado aos cristãos de
nosso tempo: voltar a unir fé e solidariedade”.112 Se a Igreja hodierna,
aos 'c)ea's c'° ^ e 'no Deus, a Parecer com ° espaço de
solidariedade, de fraternidade, de comunhão, poderá emergir como
uma instituição mediadora da justiça e da coesão social, num mundo
onde as instituições, em tempos de crise, estão voltadas para si
mesmas.
Poderá chamar para si a responsabilidade de exercer certa
vigilância sobre as demais instituições para que estas tenham sempre
em conta, através de suas atividades, a manutenção da justiça e da
coesão social. E, quando isso não ocorrer, possa denunciá-las,
não com o objetivo de minimizá-las, mas de ajudá-las a encontrar
um meio termo entre as com petências exigidas pelo mercado
neoliberal e a solidariedade com os que sofrem a exclusão do
mercado de trabalho e do mercado consumidor.
Ao tornar-se espaço cognitivo para o desenvolvimento da
sensibilidade solidária, fomentadora e facilitâdora da fraternidade e
da solidariedade como ação afetiva e efetiva, a Igreja recupera sua
Awi io A rruda

dimensão profética, visto que poderá vir a propiciar o resgate de


va lores que poderão se estabe lece r com o contracultura de
resistência frente à cultura individualista vigente e de denúncia da
mesma como desumana e desumanizadora.

Notas do Capítulo 3
1Vide Capítulo I, nota de rodapé n° 145.
2Vide Capítulo I, nota de rodapé n° 120.
3Vide Capítulo I, nota de rodapé n° 103.
4Vide Capítulo I, nota de rodapé n° 129.
5BIÉLER, André. O Humanismo Social de Calvino, p. 21. Retomo aqui a citação n°
130 do Capítulo I.
6 MUNOZ, Ronaldo. Solidariedade Libertadora: missão da Igreja, pp. 26-7.
7apud LÔWY, Michael. Marxismo e Teologia da Libertação, p. 96.
8Vide Capítulo I, nota de rodapé n° 134.
9 BIÉLER, André. O Humanismo Social de Calvino, pp. 19-20.
10CODINA, Victor. Renascer para a Solidariedade, p. 63.
11CALVINO, Juan. Op. c/f. Libro IV, Capitulo XX, p. 1169. “cabe à ordem civil, entre
outras coisas, hacernos vivircon todajusticia, (...) instruirnos en unajusticia social,
ponernos de acuerdo los unos con los otros, mantener y conservar Ia paz y Ia
tranquilidad comunes”.
12ASSMANN, Hugo; SUNG, Jung Mo.Competência e Sensibilidade Solidária: educar
para a esperança, pp. 74-75.
13Vide nota de rodapé n° 1 capítulo 3.
14ASSMANN, Hugo; SUNG, Jung Mo. Op. c/f., p. 75.
15 JOSAPHAT, Frei Carlos. 2000: Em Nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo -
Comunhão divina, solidariedade humana, p. 116.
16ASSMANN, Hugo; SUNG, Jung Mo. Op. c/f., p. 98.
17 MUNOZ, Ronaldo. Solidariedade Libertadora: missão da Igreja, p. 27.
18Vide Capitulo I, citação n° 111.
19 BIÉLER, André. O Humanismo Social de Calvino, p. 25.
20Cf. CALVIN, John. Commentaryon a Harmonyofthe Evangelists, Matthew, Mark,
and Luke. - Volume Second - p. 399.
21 Cf. BOFF, Leonardo. Igreja: carisma e poder, p. 72. De acordo com o autor,
“política em minúsculo é toda atividade que se destina à administração ou transformação
da sociedade mediante a conquista e exercício do poder de Estado1’. Sublinhado do
autor.
22 JOSAPHAT, Frei Carlos. Op. cit, p. 176.
23Cf. BIÉLER, André. O Humanismo Social de Calvino, p. 21.
24 MUNOZ, Ronaldo. Op. cit, p. 23.
25Cf. BIÉLER, André. O Pensamento Econômico e Social de Calvino, pp. 382-389.
26 HELLER, Agnes; FEHÉR, Ferenc. Op. cit., p. 127.
27Temos em mente aqui a definição de problema como “a discrepância entre uma
situação real e a ideal”. Cf. Secretaria Nacional de ação Social e Diaconia - Igreja
Presbiteriana Independente do Brasil. Metodologia de Implantação e Operacionalização
de Projetos Sociais, p. 13.
28Vide Capítulo II, citações n° 72 e 79,
29Cf. HELLER, Agnes; FEHÉR, Ferenc. Op. C/f., pp. 122-129.
30 Cf. HELLER, Agnes; FEHÉR, Ferenc. Op. C/f., p. 129.
31VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Filosofia da Praxis, p. 13.
32Cf. VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Op. cit., pp. 194-202.
33VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Op. Cit., p. 200.
34 Idem.
35BIÉLER, André. 0 Humanismo Social de Calvino, p. 393.
36FLORISTAN, Casiano. Teologia Práctica: teoria ypraxis de Ia acción pastoral, p. 181.
37 FLORISTAN, Casiano. Teologia Práctica: teoria y praxis de Ia acción pastoral, p.
184. “Ia tradición cristiana como transmisión de unas prácticas o acciones”.
38 Idem. “Ia memória cristiana [...] de unos hechos prototípicos, simbolizados
sacramentalmente, que se expresan historicamente”.
39BOFF, Clodovis. Fé e Política: Alguns Ajustes. In: Fé e política: fundamentos, p. 46.
40 Idem, Ibidem, p. 43.
41 ld„ Ibid., p. 48.
42 BOFF, Leonardo. Igreja: carisma e poder, p. 70.
43 CALVINO, Juan. Instítución de Ia Religión Cristiana. Libro IV, Capítulo XV, pp.
1035-1036.
44 CASTRO, Clovis Pinto de. Por uma Fé Cidadã: A dimensão pública da Igreja -
fundamentos para uma pastoral da cidadania, p. 114.
45Utopia é aqui entendida, de acordo com Assmann e Sung, “no sentido de desejar e
de ‘ver’ um mundo, um lugar, [...] que ainda não existe e que talvez nunca venha a
existir, mas que dá um sentido às ações que nascem do nosso desejo de um mundo
melhor”. Cf. ASSMANN, Hugo e SUNG, Jung Mo. Op. cit., p. 134.
46 CASTRO, Clovis Pinto de. Op. Cit., p. 119.
47Vide Capítulo II, citação n° 8.48ASSMANN, Hugo; SUNG, Jung Mo. Op. cit., p. 190.
49Cf. DURKHEIM, Èmile. Educação e Sociologia, p. 60; VÂZQUEZ, Adolfo Sanches.
Filosofia de Ia praxis, pp. 13-49.
“ ASSMANN, Hugo; SUNG, Jung Mo. Op.cit., p. 290.
51 MUNOZ, Ronaldo. Op. cit., p. 30.
52Cf. GARCIA, Francisco Luiz. Introdução Crítica ao Conhecimento, p. 43.
53Vide Capítulo II, citação n° 97.
54 MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro, p. 26.
55 CODINA, Victor. Op. cit., p. 20.
56 Cf. CODINA, Victor. Op. Cit., pp. 18-20.
57 FREIRE, Paulo. Educação como Prática da Liberdade, p. 116.
58CALVINO, Juan. Instítución de Ia Religión Cristiana - Libro III, capítulo II, p. 407."...
Ia fe consiste en el conocimiento de Dios [...], y no en Ia reverencia de Ia Iglesia”.
59 CALVINO, Juan. Instítución de Ia Religión Cristiana - Libro III, capítulo II, pp. 407-
408. “Nosotros admitimos que Ia fe [...] es implícita (es decir, imperfecta, incompleta o
incipiente); no solamente porque ignoramos muchísimas cosas, sino también porque
estando rodeados de Ias tinieblas de numerosos errores, no podemos entender
cuanto deberíamos saber. [...] Con este freno nos mantiene Dios en Ia modéstia,
asignando a cada uno una determinada medida y porción de fe, a fin de que incluso
los más doctos entre los doctores estén siempre prontos a aprender”.
60SEGUNDO, Juan Luis. O Dogma que Liberta: fé, revelação e magistério dogmático,
p.30. Sublinhado do autor.
61 SEGUNDO, Juan Luis. Op. Cit., p. 11. Sublinhado do autor.
62ASSMANN, Hugo; SUNG, Jung Mo. Op. cit., p. 263.
63Cf. SUNG, Jung Mo. Sujeito e Sociedades Complexas: Para repensar os horizontes
utópicos, p. 161.
64 BOFF, Leonardo. Op. cit., p. 98.

C alvino E A EDUCAÇ \ ( ) PAR \


65 Cf. ASSMANN, Hugo; MATE, Reyes. Karl Marx - Friedrich Engels: Sobre Ia
religión I, p. 36.
66 Cf. ASSMANN, Hugo; MATE, Reyes. Op. cit., pp. 9-37; LÒWY, Michael. Op. cit.,
caps. I - IV; V II-V III.
67Cf. LÓWI, Michael. Op. cit., p. 11.
68ASSMANN, H.; MATE, R. Op. Cit., p. 36.
69 Idem, p. 39.
70 CODINA, Victor. Op. cit., p. 22.
71MARX, Karl. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. São Paulo: Boitempo Editorial,
2005, pp. 146-147.
72ASSMANN, Hugo; MATE, Reyes. Op. cit., p. 23. “Io fatídico de esa protesta es su
impotência, y Io peligroso de Ia religión es servir de consuelo, de narcótico”.
73 Cf. BETTO, Frei. Cristianismo e Marxismo, p. 29. Segundo o autor “essa
'concepção totalitária’ não faz distinção entre a totalidade do fenômeno religioso e a
manifestação particular do mesmo; antes, identifica-as. (...) Não há relação dialética
entre o universal e o particular. Os dois coincidem”.
74ASSMANN, Hugo; MATE, Reyes. Op. cit., p. 32. “aplica al problema religioso ei
‘pensamiento de identidad1entre totalidad y particularidad, entre esencia y fenômeno
que hemos visto en Hegel”.
75 Idem, Ibidem, p. 33. "si hoy Ia religión se alia al capitalismo hay que deducir que Ia
esencia religiosa es alienación o perversión”.
76 MADURO, Otto. Religião e Luta de Classes, p. 107.
77 MADURO, Oüo.Op.cit, p.108.
78 Idem. Segundo o autor, “a dinâmica da dominação poderá impor-se sobre as
tradições religiosas da população implicada até o ponto de (a) aniquilar ou submeter
todo 'elemento' religioso [...] que pareça constituir um obstáculo ou perigo para a
consolidação do poder da classe [...] dominante; (b) favorecer a criação e/ou o
desenvolvimento de todos os elementos religiosos que forem claramente convergentes
com a consolidação do poder da classe dominante, e (c) reestruturar de maneira mais
adequada à nova situação de dominação todos aqueles elementos religiosos que não
forem diretamente obstaculizadores da consolidação do poder da classe dominante”.
79 Cf. MADURO, Otto. Op. Cit., p. 105-109.
80 MADURO, Otto. Op. Cit., p. 183.
11 A criação do MEB (Movimento peia Educação de Base), da JOC (Juventude
0 Operária Católica) das CEBs (Comunidades Eclesiais de Base), da CUT (Central
1 2 Ô Única dos Trabalhadores), do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais sem
Terra), do PT (Partido dos Trabalhadores), movimentos estes de cunho socialista-
marxista que se originaram por causa do trabalho de militantes cristãos. Cf. LÔWY,
Michael. Marxismo e Teologia da Libertação, pp. 51-64.
82 Cf. LÕWY, Michael. Marxismo e Teologia ida Libertação, pp. 65-80. Segundo o
autor, "essa participação cristã ativa [...] influenciou profundamente o sandinismo,
como ideologia composta do nacionalismo agrário radical de Sandino, do cristianismo
revolucionário e da corrente guevarista do marxismo latino-americano”. Cf. p. 75.
Sublinhado do autor.
83 Movimentos tais como a Feccas (Federação Cristã dos Camponeses de El
Salvador), a UTC (União dos Trabalhadores do Campo), o Bloco Revolucionário
Popular (BRP), cujo principal dirigente era um militante cristão, e a participação de
muitos outros cristãos, como o Monsenhor Oscar Romero, que deu sua vida pela
revolução salvadorenha. Cf. LÕWY, Michael. Op. cit., pp. 81-89.
84 Cf. SUNG, Jung Mo. Conhecimento e Solidariedade: educar para a superação da
exclusão social, p. 158.
85Vide Capítulo I, citação n° 51.
86Vide Capítulo I, citações n° 133 e 134.
87 CODINA, Victor. Op. cit., p. 25.
A bílio A rruda

88 Idem, Ibidem, p. 33.


89 MUNOZ, Ronaldo. Op. Cit., p. 40.
90 MUNOZ, Ronaldo. Op. Cit, pp. 64-65.
91 Cf. SCHIPANI, Daniel S. El Reino de Dios y ei Ministério Educativo de Ia Iglesia:
fundamentos yprincipios de educación cristiana, p. 161.
92 GROOME, Thomas H. Educação Religiosa Cristã: compartilhando nosso caso e
visão, p. 67. Nesse trabalho, por questões de objetivo e delimitação, não vamos
desenvolver o conceito de Reino de Deus. Porém, remetemos os leitores para, além
de Thomas H. GROOME, Daniel S. SCHIPANI, Op. cit., cap. II.
93ASSMANN, Hugo, SUNG, Jung Mo, Competência e Sensibilidade Solidária, p. 98.
94 BOFF, Leonardo. Igreja: carisma e poder, p. 114.
95 CODINA, Victor. Op. Cit., p. 114.
96 MUNOZ, Ronaldo. Op. cit., p. 50.
97 CODINA, Victor. Op. cit., p. 23.
98 BOFF, Leonardo. Igreja: carisma e poder, p. 127.
99Vide capítulo II, notas de rodapé n° 67 e n° 68.
100Vide capítulo II, nota de rodapé n° 85.
101Vide capítulo II, nota de rodapé n° 71.
102Cf. ASSMANN, Hugo; SUNG, Jung Mo. Op. cit., p. 256.
103Cf. SUNG, Jung Mo. Conhecimento e Solidariedade: educar para a superação da
exclusão social, p. 61.
104 CODINA, Victor. Op. cit., p. 114.
129
105Cf. BOFF, Leonardo. Igreja: carisma e poder, p. 126.
106 BOFF, Leonardo. Op. cit., p. 136.

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107 Cf. BOFF, Leonardo. Op. cit., p. 237.
108 Cf. TILLICH, Paul. Dinâmica da Fé, pp. 5-7.
109 Segundo Tillich, “algo que nos toca incondicionalmente se torna sagrado” e “o
sagrado é essencialmente ‘mistério’”. Cf. TILLICH, Paul. Op. cit., pp. 13-14.
110 TILLICH, Paul. Op. c/í., p. 15.
111Vide capítulo I.
112 CODINA, Victor. Op. c/í., p. 119.
Amuo A rruda
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Quando João Calvino aderiu à Reforma Protestante, por volta


da segunda década do século XVI, não poderia imaginar que seria
o responsável direto por uma das maiores transformações sociais
e religiosas que já ocorrera na história. Genebra, uma pequena
cidade localizada na Suíça, foi o palco das transformações. Depois
de abandonar os estudos de Teologia e, após a morte do pai,
enveredar-se pelas trilh as do D ireito, vai por fim m ergulhar
profundamente nas águas do humanismo, onde tomará gosto pela
crítica, o que, aliás, fará com que sistematize as doutrinas cristãs
reformadas tendo por base os grandes clássicos da literatura antiga.
É este gosto pela crítica que o levará a analisar as relações
existentes entre a Igreja e o Estado. Esta análise crítica tem por
base as premissas do Evangelho que testificam, segundo Calvino
compreendia, qual a missão da Igreja, a saber, a implantação do
Reino de Deus e sua justiça nas sociedades humanas. Entende ele
que a Igreja contava com um grande aliado no cumprimento de sua
missão: o Estado. Estes dois baluartes da sociedade medieval,
segundo Calvino, foram instituídos por Deus para a implantação da
justiça e da ordem social.
Se a so cied ade g e neb rina passava por problem as
econômicos, políticos, religiosos e éticos e morais, era porque a
Igreja e o Estado não estavam cumprindo com suas incumbências
sociais. Assim, Calvino vai elaborar sua doutrina teológica e social
de m aneira que estas duas in s titu iç õ e s tive sse m suas
responsabilidades delimitadas na promoção do bem estar social.
Para tanto, ele une suas idéias humanistas com as premissas do
Evangelho, dando especial atenção para a teologia da graça, onde
vai buscar a compreensão teológica e social para as deturpações
tão prementes das relações humanas e sociais.
Ao apregoar para a sociedade as verdades concernentes ao
Evangelho do Reino de Deus começa a questionar a Igreja, o Estado
e a sociedade, bem como as pessoas que os compõem. Calvino
e as pessoas que aderiram à reforma por ele viabilizada na cidade
de Genebra deixam o recôndito do templo sagrado e se lançam
para a esfera pública, pois passaram a compreender que a missão
profética da Igreja seria resgatada se esta cumprisse seu papel de
denunciar o Estado quando este deixasse de zelar pela manutenção
da justiça social. Ao saírem da inércia para a prática do amor,
conforme ensinado e ordenado pelo Evangelho, entram em contato
com o intermeio e passam a vivenciar experiências que os levam a
adquirir conhecimentos que provocam sua sensibilidade com os
menos abastecidos da sociedade.
Com base nesta premissa propomos, de início, que a Doutrina
Teológica e Social de Calvino pode ajudar a Igreja, hoje, na
A bílioA rruda

elaboração de um processo educacional que faça aflorar nos seus


partícipes uma sensibilidade solidária com os excluídos da nossa
sociedade capitalista e neoliberal, bem como o aprendizado de
competências que promovam efetivas relações de solidariedade
pessoal e social. Ao escrevermos essas considerações finais sobre
a nossa pesquisa, percebemos a viabilidade da proposta, pois
descobrimos que todo conhecimento humano é adquirido na relação
do ser humano com o intermeio. Na inter-relação com o meio
passamos a conhecê-lo e reconhecê-lo, construí-lo e (des)construi-
lo. Construímos a cultura e esta passa a nos construir. O mesmo
processo se dá com o nosso semelhante: conhecemo-lo e, nesta
inter-relação, reconhecemo-nos e construímo-nos.
É este reconhecimento mútuo, tanto em nível social quanto
pessoal, que nos conduz à abertura solidária. Processa-se, desse
modo, uma educação para a sensibilidade solidária que, ao ser
dire cion ada por m ecanism os in stitu cio n a is, pode perm itir a
viabilização de ações efetivas de solidariedade como imperativo
ético-político. Uma educação para a solidariedade pressupõe, então,
a relativização dos nossos preconceitos, tendo em vista que o
encontro com o outro nos permite o conhecimento de conceitos
novos e diferentes. Por isso, uma educação para a solidariedade

C \1 VINOI AEDUCAÇ \() P\RA ASOIJDARlIilJADE


deve assumir a dialogicidade, sem a qual não há comunicação e,
conseqüentemente, não há educação. Deve relativizar às certezas,
de onde provém todo preconceito, toda in d ifere nça e todo
desconhecimento, sentimentos dos quais resultam a insensibilidade.
No entanto, para que a Igreja, hoje, possa desenvolver um
processo pedagógico que fomente nos seus partícipes a sensibilidade
com os que mais sofrem, vítimas da exclusão produzida em larga escala |
pelo modelo econômico neoliberal, e viabilize a prática de ações
solidárias permanentes, tem que se inserir na esfera pública, pois .
somente aí, na prática cotidiana, poderá relacionar-se com o diferente,
o que produzirá a aquisição de novos conhecimentos e a conseqüente
(des)construção dos seus preconceitos.
Com sua inserção na esfera pública, a Igreja levará seus partícipes
a desenvolverem uma fé cidadã, e, ao realizar isso, promoverá o
desenvolvimento de sua missão, isto é, a implantação do Reino de
Deus com seus ideais de justiça, eqüidade e fraternidade. No
cumprimento de sua missão a Igreja, como instituição, viabilizará o
espaço necessário para que a abertura e a sensibilidade solidária
possam a flo ra r nas pessoas levand o-as à aquisição de
conhecimentos práticos que possam consolidar a solidariedade
como ação de cunho pessoal e social. Através da prática efetiva e
cotidiana da solidariedade a Igreja hodierna tem a possibilidade de
resgatar sua dimensão profética e emergir como um dos baluartes
da sociedade contem porânea, como instituição educativa que
pratica e ensina os valores do Reino de Deus como competências
necessárias ao convívio fraterno entre as pessoas e as sociedades
do nosso tempo.
Deixo, para finalizar, duas questões em aberto. Primeira: ao
fazer a crítica da crítica marxista da religião, usei como referencial
134 os discursos produzidos pela Teologia da Libertação, principalmente
; os das décadas de 1970 e 1980. Teria a Doutrina Teológica e Social
de Calvino algo a ensinar à TL na sua busca por atuais e melhores
referenciais? Segunda: a Teologia da Graça, conforme Calvino a
; entendia, serviu de referencial, no primeiro capítulo, para uma
educação para a solidariedade ao discutir e propor a graça redentora
de Deus como fenômeno que promove a restauração das relações
humanas e sociais. Agraça é um fenômeno subjetivo que, no entanto,
torna-se objetivo ao produzir a conversão dos valores e das práticas
das pessoas. Até que ponto, então, poderia se afirmar que a Graça
divina é um processo cognitivo?


Amuo A rruda

—a
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AbílioTadeu Arruda nasceu em
Osasco e se mudou em 1996
para Londrina para estudar
teologia no Seminário
Teológico "Rev. Antonio de
Godoy Sobrinho". Em 2000 foi
ordenado pastor da Igreja
Presbiteriana Independente do
Brasil e atuou em cidades do
interior de São Paulo. Em 2003
tornou-se secretário de
Educação Cristã do Presbitério
do Oeste da IPI do Brasil e em
2006 concluiu seu mestrado na
Universidade Metodista
de São Paulo.
No ano de 2007 retornou para
Londrina onde é servidor
público da Prefeitura Municipal
de Londrina e membro da Igreja
Episcopal Anglicana do Brasil.

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