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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 19, Nº 38: 85-99 FEV.

2011

O TEMA DA LIBERDADE RELIGIOSA NA POLÍTICA


BRASILEIRA DO SÉCULO XIX:
UMA VIA PARA A COMPREENSÃO DA SECULARIZAÇÃO
1
DA ESFERA POLÍTICA

Gilson Ciarallo

RESUMO

A secularização das instituições tem sido um tema muito recorrente nas Ciências Sociais das últimas déca-
das, sobretudo em razão de sua complexidade conceitual, o que propicia olhares diversos para as relações
que ao longo da história estabelecem-se entre religião e outras esferas sociais. Uma dessas relações é a que
se pode observar entre religião e política. A “Secularização” consiste na autonomização das esferas da
sociedade em relação à religião. Aspectos da autonomização da esfera política em relação à religião são
colocados sob análise considerando as discussões sobre liberdade religiosa travadas no cenário político
do Brasil do século XIX. Nesse contexto, o padroado e as idéias ultramontanas estiveram intimamente
relacionadas com rupturas e permanências identificadas no campo das idéias políticas, considerando-se os
temas de natureza religiosa. Embora tenha sido marcante a presença do clero na atividade política do
período sob análise, com a extinção do padroado e o advento da República os discursos religiosos deixa-
ram aquela esfera, passando a manifestar-se exclusivamente no âmbito eclesiástico, de forma proselitista. A
configuração social que se desenha à luz desse tema permite idenficar sinais da efetivação da secularização
da esfera política em fins do século XIX. O argumento presente contribui para esclarecer o tema da secula-
rização no Brasil. Ao separarem-se Igreja e Estado, e ao tornar-se cada vez menos expressiva a presença do
clero nos processos decisórios oficiais, a esfera política secularizou-se, permitindo localizar a experiência
sociocultural brasileira ao lado de outras experiências socioculturais componentes da modernidade oci-
dental.
PALAVRAS-CHAVE: secularização; Parlamento Imperial brasileiro; liberdade religiosa; autoridade ecle-
siástica.

I. INTRODUÇÃO que secularização é um conceito que passou por


metamorfoses diversas, tornando possível, in-
A “secularização” das instituições tem sido um
clusive, o seu estudo genealógico, conforme faz
tema muito recorrente nas Ciências Sociais das
Marramao (1997). Isso deu ensejo aos diver-
últimas décadas, sobretudo em razão de sua com-
sos significados que o termo ganhou ao longo
plexidade conceitual, o que propicia olhares di-
do tempo.
versos para as relações que ao longo da história
estabelecem-se entre religião e outras esferas so- O significado mais recorrente da seculariza-
ciais. Uma dessas relações é a que se pode obser- ção nos estudos das Ciências Sociais é o que
var entre religião e política. Dobbelaere (1981; 1999) tipifica como seculari-
zação no nível macro. É considerando essa
Para tratar da secularização da esfera políti-
tipificação que utilizo o termo neste artigo. Le-
ca é necessário considerar o sentido que o con-
vando em conta, então, esse sentido estrito, a se-
ceito secularização tem nessa discussão, espe-
cularização consiste na autonomização das esfe-
cificamente. E para isso não se pode ignorar
ras da sociedade em relação à religião2. Assim,
1 Agradeço pelos comentários e sugestões dos professores
que fizeram os pareceres, os quais contribuíram muito para 2 Além de sua acepção no nível macro, a secularização
a elaboração da versão final do texto. também aparece como pluralização da religião, no nível de

Recebido em 6 de março de 2009.


Aprovado em 12 de abril de 2009.
Rev. Sociol. Polít., Curitiba, v. 19, n. 38, p. 85-99, fev. 2011
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O TEMA DA LIBERDADE RELIGIOSA NA POLÍTICA BRASILEIRA DO SÉCULO XIX

cada subsistema da sociedade passa a produzir Ao lado da extinção do padroado, outra evi-
seus próprios valores e normas independentemente dência da secularização como autonomização da
de normas religiosas neles vigentes anteriormen- esfera política em relação à religião consiste no
te. Exemplos disso são a emancipação da educa- decréscimo do envolvimento do clero na vida po-
ção em relação à tutela eclesiástica e a separação lítico-partidária. Eram numerosos os clérigos de-
entre igreja e estado. putados provinciais, nacionais e senadores do
Império. No Parlamento, por exemplo, é grande o
A acepção da secularização como
número de clérigos nas primeiras legislaturas, de-
autonomização das esferas em relação à religião
crescendo progressivamente nas legislaturas se-
está presente, por exemplo, nos estudos de Berger
guintes. Vislumbra-se, dessa maneira, um traço
(1985, p. 119), o qual coloca em questão o “pro-
importante das relações entre Estado e Igreja no
cesso pelo qual setores da sociedade e da cultura
Brasil imperial, o que corrobora a fusão entre es-
são subtraídos à dominação das instituições e sím-
sas esferas em um primeiro momento, seguida da
bolos religiosos”, manifestando-se na “retirada das
progressiva autonomização da esfera estatal em
Igrejas cristãs de áreas que antes estavam sob seu
relação à religião.
controle ou influência”.
De 80 deputados escolhidos na primeira elei-
No cenário político brasileiro do século XIX
ção geral organizada no Brasil, vinte e três deles
alguns temas tiveram especial confluência com o
eram clérigos. A Constituinte de 1823, por sua
tema da secularização das instituições. Dentre es-
vez, contou com 21 clérigos, entre bispos e pa-
tes, o tema da liberdade religiosa ganha importân-
dres. Iniciando-se as atividades das instituições
cia especial por colocar em evidência as discus-
constitucionais, em 1826, de um total de 103 clé-
sões relacionadas com a quebra do monopólio
rigos, 23 foram eleitos para compor a legislatura
religioso mantido pela Igreja Católica até então.
da Câmara dos Deputados. A Tabela 1 mostra a
São essas discussões que coloco em perspectiva
redução progressiva desse número no decorrer
neste artigo, no intuito de lançar luz sobre as rup-
das sucessivas legislaturas.
turas e permanências que se conjugaram no cam-
po das idéias políticas do século XIX. Esse olhar, De uma forma geral, foi grande a participação
por sua vez, contribui para a compreensão de do clero no processo legislativo e administrativo
configurações históricas peculiares nas quais as do país durante o período imperial. Participaram
esferas religiosa e política relacionaram-se, con- da Câmara dos Deputados do Império 223 mem-
vergindo para a autonomização da esfera política bros do clero, eleitos para as 20 legislaturas listadas
em relação à religião. na Tabela 1. Participação significativa, porém sen-
sivelmente decrescente4. A 10ª Legislatura será a
II. A PRESENÇA DO CLERO NO PARLAMEN-
última a ser marcada por uma participação mais
TO IMPERIAL
significativa do clero. Tal diminuição progressiva
No Brasil o processo de secularização da esfe- é comentada por Octávio Tarquínio de Sousa
ra política esteve intimamente ligado à extinção (1988), que salienta a perda do monopólio inte-
do padroado, o que ocorre como decorrência do lectual mantido pela Igreja até as primeiras déca-
processo de autonomização da esfera política em das do século XIX. Contribuiu para isso a inau-
relação à religião. O padroado, que sobreviveu para
além do período colonial, consistia em instituição
atrelada ao período de reconquista ibérica, tendo direito originariamente concedido pelos papas aos reis de
surgido como um compromisso entre a Santa Sé Portugal mediante bulas diversas.
e o governo português3. 4 A principal obra utilizada como fonte de informações
desta pesquisa é O clero no Parlamento brasileiro
(BRASIL, 1978). Essa obra de sete volumes reúne os
pronunciamentos dos clérigos que ocuparam cadeiras em
análise meso, e como privatização da religião, no nível micro.
ambas as casas do Parlamento brasileiro. Cinco volumes
Neste último nível a secularização refere-se aos processos
foram publicados pela Câmara dos Deputados, todos em
mediante os quais a religião passa a ser coisa da esfera
associação com a Fundação Casa de Rui Barbosa. O primeiro
privada, exclusivamente. Neste artigo restringimo-nos à
dos volumes publicados pela Câmara reúne as intervenções
acepção do conceito no nível macro.
dos parlamentares clérigos da constituinte de 1823, ao passo
3 Do padroado decorria o direito da Coroa portuguesa de que os outros foram dedicados às legislaturas dos clérigos
administrar os negócios eclesiásticos de seus domínios, na Câmara dos Deputados, de 1826 a 1889.

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guração no Brasil das duas faculdades de estudos imperiais. Essas escolas jurídicas seguiriam ver-
jurídicos em São Paulo e Recife, as quais iriam tentes distintas daquelas orientadas pelo direito
abastecer as câmaras do Império, restringindo, canônico e pelos códigos lusitanos tradicionais,
desta maneira, o espaço de inserção que nelas ti- os quais dariam lugar às influências do pensamento
nha o clero no início das atividades legislativas liberal europeu (SCHWARTZMAN, 2001, p. 73).

TABELA 1 – NÚMERO DE CLÉRIGOS NAS LEGISLATURAS DA CÂMARA DOS DEPUTADOS (PERÍODO


IMPERIAL)

FONTE: O autor, a partir de Brasil. Câmara dos Deputados (1978).

Erigia-se, dessa forma, o tipo de funcionário administrativos emergia destituída do elemento


mais adequado às exigências dos quadros admi- sagrado.
nistrativos estatais, que iam paulatina e cada vez
A participação inicial do clero na política do
mais expressivamente ganhando os traços carac-
Brasil imperial parece mais expressiva se consi-
terísticos do tipo burocrático de organização. Ao
derarmos sua presença na galeria dos presidentes
longo desse processo, não só o elemento clerical
da Câmara dos Deputados, sobretudo até meados
abandonava gradativamente o cenário administra-
do século XIX. No Quadro 1 seguem listadas as
tivo, como também a formação desses quadros
sucessivas presidências nos respectivos períodos
de seu exercício.

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O TEMA DA LIBERDADE RELIGIOSA NA POLÍTICA BRASILEIRA DO SÉCULO XIX

QUADRO 1 – GALERIA DOS PRESIDENTES DA CÂMARA DOS DEPUTADOS NO PERÍODO IMPERIAL (1826
A 1847)

FONTE: O autor, a partir de Brasil. Câmara dos Deputados (1978).


NOTA: 1. Clérigos.

É, portanto, expressiva a presença do clero na e em 1841 – o 5º e o 19º mandatos, respectiva-


liderança da Câmara. Dos primeiros 25 manda- mente. Entretanto, do 26º ao 57º mandatos, ne-
tos, sete foram ocupados por clérigos (5º, 8º, 11º,
14º, 15º, 19º e 25º mandatos). O Arcebispo da
vista dos papas, aos que davam apoio à política papal,
Bahia, D. Romualdo Antônio de Seixas, um dos freqüentemente em oposição aos partidários do Imperador.
paladinos do “ultramontanismo”5, ocupou a ca- O tipo de pensamento que no século XIX é conhecido
deira por duas vezes, no período de 1828 a 1829, como ultramontanismo refere-se aos conceitos e atitudes
conservadores da Igreja, geralmente opondo-se às correntes
liberais que emergiram a partir da Revolução Francesa. Nesse
5 Termo utilizado desde o século XI, referindo-se aos sentido, ser ultramontano é ser ortodoxo, é pautar-se nos
cristãos que buscavam a liderança de Roma (do outro lado ditames doutrinários propugnados pelas bulas romanas,
da montanha). É relativo também à defesa do ponto de independentemente das correntes de pensamento locais.

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nhum clérigo terá ocupado a cadeira da presidên- de culto, a liberdade de expressão, a liberdade de
cia da Câmara. Seguem-se, assim, de 1847 a 1889, pensamento e a migração de colonos europeus.
32 mandatos, em sua maioria ocupados por ex-
Nas diversas sessões da Constituinte,
alunos das faculdades de direito em Pernambuco
registrados no Diário da Assembléia Geral Cons-
e São Paulo.
tituinte e Legislativa do Império do Brasil (BRA-
Esse progressivo enfraquecimento da presen- SIL, 1874), é possível vislumbrar a polarização
ça do clero no Parlamento deve ser entendido tam- dos discursos. É manifestando essa polarização
bém como um dos resultados do avanço das fren- que, de um lado, claramente liberal, Antônio Carlos
tes liberais no país, as quais se deparavam com tomava a defesa do projeto, acompanhado por Mo-
os obstáculos provenientes do conservadorismo niz Tavares, que era clérigo – liberal, todavia –,
do clero militante na política, sobretudo aquele de afirmando que naquele contexto era político e não
vertente ultramontana. Esse clero esforçava-se teólogo (em um legítimo posicionamento favorá-
para manter forte presença nos quadros diretivos vel à autonomia das esferas). Ressaltando a liber-
do país, sob os auspícios de Roma. A presença dade religiosa como direito dos mais sagrados,
inicial na liderança da Câmara é um dos indicado- Moniz Tavares manifestava-se contra a intolerân-
res desse empenho, tendo a seu favor o artigo 95 cia, as perseguições e o constrangimento intelec-
da Constituição de 1824, segundo o qual eram tual. Francisco Carneiro, por sua vez, atribuía ao
excetuados dentre os cidadãos hábeis a serem parágrafo referente à liberdade religiosa “um dos
nomeados deputados aqueles que não professas- que mais honra fazem aos ilustres redactores do
sem a religião do Estado. projecto” e, lembrando as perseguições dos ju-
deus em Portugal, indagava: “Seremos nós hoje
Entretanto, ao passo que o Estado seculariza-
menos justos e menos liberais do que foram os
va-se, autonomizando-se em relação à religião,
portugueses em tempos chamados escuros?”
avançavam nos processos decisórios entendimen-
(idem, p. 195) Para José Joaquim Carneiro de
tos favoráveis ao quadro do pensamento liberal,
Campos, o projeto levantava voz em respeito a
ao qual estava atada uma idéia de mundo moder-
um direito inalienável de todo o homem. Atentava,
no, e com ele o desenvolvimento da indústria e da
dessa maneira, para princípios bastante caros ao
democracia. A tais entendimentos, por sua vez,
pensamento liberal.
não se chegavam sem que se travassem caloro-
sos embates entre a ala liberal, pró-secularização, Engrossando a fileira dos liberais, Carneiro da
e a ala conservadora que queria ver mantida a fu- Cunha requeria a aprovação do artigo como havia
são entre as esferas política e religiosa. Era sido redigido, pois “as luzes do século nos mos-
constitutiva desta última ala a maioria dos cléri- tram que a todos devemos abrir a porta” (idem, p.
gos que ocuparam cadeiras nas atividades parla- 199), ao que se unia Vergueiro, que também de-
mentares imperiais. fendeu o princípio da tolerância. Rocha Franco
destacou-se por sua manifestação em favor da
III. O TEMA LIBERDADE RELIGIOSA E SUA
extensão da liberdade religiosa ao judaísmo, re-
CONJUGAÇÃO NO CENÁRIO POLÍTICO
querendo aditamento ao artigo. Fizeram coro a tal
As diversas manifestações em prol ou contra aditamento Carvalho e Mello, Montezuma e Fran-
a liberdade religiosa dentro do cenário nacional cisco Carneiro, dentre outros.
são essenciais para compreender-se a natureza do
Do outro lado do embate, visivelmente con-
pluralismo religioso que passou a caracterizar a
servador, Maciel da Costa levantava, na sessão de
fisionomia da sociedade brasileira no século XX.
sete de outubro, a primeira crítica ao projeto de
Os embates que nessa matéria são travados no
tolerância, apontando nele uma contradição base-
Parlamento em muito contribuem para elucidar a
ada no fato de que o Brasil era uma nação inteira-
presença da doutrina católica como única fonte
mente católica. Fazendo coro ao lado de Maciel
simbólica com aura sagrada, ao mesmo tempo em
da Costa, Dom José Caetano da Silva Coutinho
que apontam os movimentos em direção à quebra
acrescentava que de modo algum aprovaria tal li-
de tal monopólio. Menck (1995, p. 151) atenta
berdade se considerada em seu sentido amplo.
para centralidade e importância que ganhou a
Padre Manuel Rodrigues da Costa, temendo ser
matéria na Assembléia Constituinte do Império,
acusado de perjuro por falta de defesa à religião
identificando como temas confluentes a liberdade

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O TEMA DA LIBERDADE RELIGIOSA NA POLÍTICA BRASILEIRA DO SÉCULO XIX

católica, propôs a exclusão do artigo, após consi- Estando assim legitimada de modo sacramen-
derações acerca dos “perversos dogmas de tal, a Carta expressava-se claramente em matéria
Calvino, de Lutero e de muitos outros heresiarcas de religião. O monopólio da Igreja Católica era
que se quiseram erigir em reformadores” (idem, garantido juridicamente, como assegurava o arti-
p. 185). E, fazendo do Parlamento seu púlpito, go 5º. Às outras religiões era permitido o culto,
acrescentava à maneira do sermão: “Se depois de porém, em casas “sem forma alguma exterior de
sermos ilustrados pela revelação, se depois de ter- templo”. Somente a religião oficial poderia
mos abraçado a religião católica romana, admitís- exteriorizar os símbolos de sua fé nas constru-
semos, dentro de nós mesmos, um culto diferen- ções, monopolizando assim o direito de utilização
te daquele que nos foi revelado, e adotássemos os dos mais poderosos aparatos de proselitismo, so-
que o demônio tem introduzido, servindo-se de bretudo aqueles que permitiam a domesticação de
seus emissários para os inculcar como verdadei- imagens e símbolos no reservatório de conheci-
ros, levantaríamos altar contra altar dentro da mentos compartilhados. Dessa maneira, o cotidi-
mesma nação” (BRASIL, CÂMARA DOS DEPU- ano dos indivíduos, sua forma de ver o mundo,
TADOS, 1978, v. 1, p. 260). bem como suas atividades, costumes e hábitos
diários eram impregnados pela sempre presente e
O deputado José da Silva Lisboa, por sua vez,
constante atividade religiosa da Igreja Católica, no
também pedia a supressão do parágrafo, já que, a
centro da cidade, junto à praça, ao som dos sinos,
seu ver, era prejudicial aos princípios do catoli-
ao ritmo da música sacra, à sombra das imagens.
cismo. Temia facultar aos já católicos o direito de
abandonar a religião oficial, abrindo brechas às A tais elementos adicione-se a monopolização
heresias. Que fosse, então, restrito aos estrangei- dos sacramentos mais fundamentais como o ba-
ros que traziam a indústria. tismo e o casamento, o que impedia aos estran-
geiros de religiões acatólicas manifestarem-se nes-
Mesmo após várias horas de trabalho, seguidas
ses ritos. Thomas Davatz, o colono protestante
em diversas sessões, o tema não chegou a ser es-
suíço que viveu no Brasil de meados do século
gotado pela Constituinte6. Atribuo a causa de tal
XIX, apontou a contradição que via entre a liber-
dificuldade ao próprio caráter do tema em um mo-
dade religiosa admitida constitucionalmente e a
mento de transformações conturbadas, momentos
prática dos batismos, monopolizada pela religião
nos quais os conflitos acirravam-se, dando lugar a
oficial. Reclamava que os filhos de protestantes
polarizações. E em contextos conflituosos polari-
só podiam ser batizados na igrejas católicas e que
zados tende a ser mais custoso o entendimento e
o padre não aceitava protestantes como padrinhos
dispendioso o acordo.
de batismo (DAVATZ, 1980, p. 137-138). Isso aju-
Decorrente da forte presença do elemento re- da a compreender o motivo da confluência entre
ligioso na Assembléia Constituinte, saliente-se a os temas liberdade religiosa e migração de colo-
ancoragem da Constituição de 1824 no arcabouço nos europeus nas discussões do Parlamento Im-
religioso do pensamento católico do Brasil da pri- perial.
meira metade do século XIX. Jurada pelo Impe-
Cumpre ressaltar que a observância da reli-
rador em cerimônia solene na Catedral do Rio de
gião oficial era condição para que autoridades exer-
Janeiro no dia 25 de março de 1824, a Carta da
cessem seu ofício. O Imperador, seu herdeiro e
Lei – como era chamada – inaugurava-se com a
conselheiros de Estado deveriam jurar manter a
Carta Imperial, reiterando a tradição do chama-
religião católica. O compromisso a religião oficial
mento a Deus (NÓBREGA, 1998, p. 19), assina-
principiava o juramento a ser proferido por eles:
da “em Nome da Santíssima Trindade”.
“Juro manter a Religião Católica Apostólica Ro-
mana”. Assim requeriam os artigos 103, 106 e
6 Menck (1995, p. 159) salienta que, com a dissolução da 141 da Constituição de 1824.
Constituinte, apenas o inciso III do artigo sétimo do Tal compromisso com a religião oficial chega-
projeto havia sido aprovado: a liberdade religiosa como va a ser estendido – e cobrado – aos deputados ao
direito individual. Não se chegou a dar fim à discussão
longo das legislaturas. Cite-se, a exemplo disso,
acerca dos limites dessa liberdade, acerca de quais seriam
os direitos característicos da primazia da Religião do Estado trecho do debate ocorrido durante a 15a Legislatura,
e nem acerca de como e sob qual forma os demais cultos a 27 de março de 1873, por ocasião das discus-
seriam aceitos. sões travadas à época da Questão Religiosa: “O

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Sr. Leandro Bezerra: - Esses deputados que pre- bons costumes”, o artigo 276 do mesmo código
gam o liberalismo, permita-se-me dizer, faltam ao enquadra aquele que “celebrar em casa ou edificio
juramento que prestaram de manter, primeiro que que tenha alguma fórma exterior de templo, ou
tudo, a religião do Estado, isto é, a católica apos- publicamente em qualquer lugar, o culto de outra
tólica romana. religião que não seja a do Estado” (idem, p. 499).
Há liberdade de culto, porém somente os prédios
O Sr. Silveira Martins: - Não há tal, primeiro
da religião do Estado podem ter a aparência de
que tudo o país não é nenhum convento.
templo, de “casa de Deus”, de local sagrado, rea-
O Sr. Pinto de Campos: - Primeiro que tudo a firmando o teor do já mencionado artigo 5º da
religião católica apostólica romana, e V. Ex.ª sabe Constituição de 1824.
que segundo disposição constitucional não se pode
Sob o mesmo título, no artigo 277, deve cum-
ser deputado sem pertencer a esta religião, e de
prir pena mínima de um mês e máxima de seis
jurar mantê-la” (BRASIL. CÂMARA DOS DEPU-
meses de prisão aquele que “abusar ou zombar de
TADOS, 1978, v. 5, p. 111).
qualquer culto estabelecido no Imperio por meio
A presença dos clérigos no Parlamento de papeis impressos, lithographados ou gravados,
correspondia à presença de guardiões daqueles que se distribuirem por mais de quinze pessoas,
dispositivos constitucionais. Saliente-se que o epi- ou por meio de discursos proferidos em publicas
sódio supracitado ocorre 50 anos depois de jura- reuniões, ou na occasião e lugar em que o culto
da a Carta da Lei do Império, tal era a força das se prestar”. Proteção também garantida a outras
prerrogativas da religião oficial. expressões religiosas. Contudo, no artigo seguin-
te, observe-se que deve cumprir pena mínima de
Ainda que permitidas, outras religiões não con-
quatro meses – quatro vezes mais que a pena mí-
tavam com iguais condições a fim de penetrar na
nima relativa ao artigo anterior – e máxima de um
tradicionalmente católica sociedade brasileira do
ano – o dobro da pena máxima relativa ao artigo
século XIX. O monopólio da Igreja Católica era
anterior – na prisão aquele que “propagar por meio
sempre novamente assegurado, inclusive – a exem-
de papeis impressos lithografados ou gravados,
plo dos artigos constitucionais supracitados – pe-
que se distribuirem por mais de quinze pessoas,
las vias que legitimavam uma autoridade política
ou por discursos proferidos em publicas reuni-
de tipo marcadamente tradicional, a qual, por sua
ões, doutrinas que diretamente destruam as ver-
vez, guardava nítidas afinidades com o pensamento
dades fundamentais da existencia de Deus e da
católico de então, rigorosamente único, especial-
imortalidade da alma” (idem, p. 499-500). Com-
mente aquele sob os auspícios da atividade cleri-
preende-se, destarte, que é restrita a liberdade re-
cal ultramontana.
ligiosa no período imperial.
Assim como a Constituição de 1824, também
Cabe atentar para a tendência à restrição da
o Código Criminal do Império, de 1830, apresen-
liberdade religiosa que se verifica em episódio
tava avanços relativos em matéria de liberdade
curioso narrado por Daniel P. Kidder, o viajante e
religiosa, ao mesmo tempo em que privilegiava a
ministro protestante que missionava no Brasil de
religião do Estado. Tal operação evidencia-se no
1837 a 1840 sob a incumbência da American Bible
teor dos artigos que se sucedem, ora protegendo
Society, distribuindo publicações como o Novo
a liberdade de culto, ora enfatizando a proteção à
Testamento. O Arcebispo da Bahia, ultramontano
religião do Estado. Sob a rubrica “dos crimes contra
e parlamentar – o qual ocuparia a cadeira de Pre-
a liberdade individual”, aponta o artigo 191: “Per-
sidência da Câmara pela segunda vez em 1841 –
seguir por motivo de religião ao que respeitar a do
incriminava tal distribuição, acusando-as de ferir
Estado e não offender a moral publica” (TINÔCO,
as crenças da religião do Estado, já que as publi-
2003, p. 369). É ilícito perseguir se se respeita a
cações consistiam em “exemplares adulterados ou
religião do Estado. A liberdade religiosa tem, por-
mutilados das Escrituras” (KIDDER, 1980, p. 63).
tanto, restrições. Não fica claro, todavia, em que
Quanto aos folhetos, consistiam em “blasfêmias
consiste o respeito e o desrespeito à religião cató-
contra a Igreja Católica Romana” (ibidem).
lica. A depender da apreciação, o desrespeito po-
deria ser invocado injustamente, restringindo ain- Tal episódio é representativo das tensões que
da mais a liberdade garantida. tiveram lugar no Brasil do século XIX, corrobo-
Sob o título “Offensa da religião, da moral e rando a tendência à restrição da liberdade religio-

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O TEMA DA LIBERDADE RELIGIOSA NA POLÍTICA BRASILEIRA DO SÉCULO XIX

sa oficialmente admitida. Não obstante, a despei- na sessão de 17 de maio de 1828 (BRASIL, 1876,
to dessa conjugação de fatores presentes no p. 91-102), os deputados liberais falavam em de-
arcabouço jurídico imperial, faziam-se expressi- portar os frades estrangeiros, pois perturbavam a
vas as correntes liberais favoráveis ao alargamen- ordem estabelecida, espalhando “idéias absolutas
to da liberdade religiosa, sobretudo quando apare- e idéias transmontanas” (idem, p. 95) segundo
cia como condição para o desenvolvimento Paula e Souza; eram “inimigos de todas as luzes
propugnado pela frente liberal. Ademais, a liber- do século” (idem, p. 96), nas palavras de Cruz
dade religiosa era um dos elementos designativos Ferreira; para Cunha Matos, “muito inúteis e pre-
da sociedade burguesa. judiciais” (idem, p. 97); Bernardo Pereira Vascon-
celos exigia que fossem punidos por ensinarem o
A fim de fazer avançar a liberdade religiosa,
ultramontanismo; José Lino Coutinho falava na
era necessário enfraquecer o catolicismo de ver-
importação de outro tipo de imigrante, diferente
tente ultramontana, cujo conservadorismo recru-
dos frades estrangeiros, que trouxessem a indús-
descia ao passo que a Igreja e o papado eram con-
tria e as artes.
frontados pela vertente liberal (VIEIRA, 1980).
Esse catolicismo conservador, o da reforma ca- Durante a terceira legislatura (1834-1837),
tólica, que se queria ver homogêneo, à luz dos Dom Romualdo expressava indignação diante da
ditames da Igreja Romana, fortalecia-se à medida notícia de que a Regência, por intermédio da Se-
que eram recebidos no Brasil eclesiásticos estran- cretaria do Império, havia tomado providências
geiros afinados com o tradicionalismo católico de com vistas a contratar dois missionários luteranos
Roma. a fim de catequizar indígenas. Tal feito parece estar
sintonizado com o posicionamento de Lino
Ações com vistas a enfraquecer o
Coutinho em legislatura anterior, representando as
ultramontanismo permeavam as atividades do Par-
diversas ações provenientes da vertente liberal que
lamento imperial. Evento representativo de tais
procuravam dar maior consistência à liberdade
ações consistiram nas proposições legislativas
religiosa admitida oficialmente.
contra a vinda de frades estrangeiros formuladas
por Bernardo Pereira Vasconcelos e Raimundo José IV. MANIFESTAÇÕES DO DEBATE NA IM-
da Cunha Matos na sessão da Câmara de 9 de PRENSA
novembro 1827 (BRASIL, 1875, p. 187). Apre-
Ações como as narradas acima estenderam-se
sentavam, dessa maneira, resistência ao cresci-
ao longo do período imperial, tematizando artigos
mento do ultramontanismo no Brasil. Na legislatura
na imprensa de tendência liberal, a qual opunha-
seguinte, em 1828, é Antônio Francisco de Paula
se ao intenso e constante movimento romanizador
e Sousa quem apresenta projeto de lei com vistas
do clero que no Brasil fortalecia-se na medida em
a vetar o ingresso de todas as ordens religiosas
que recebia clérigos estrangeiros mais sintoniza-
estrangeiras no Império. Genericamente denomi-
dos com Roma. Veja-se, a exemplo dessa corren-
nadas “jesuítas”, tais ordens seriam enquadradas
te de imprensa, o trecho do editorial intitulado “O
na lei pombalina antijesuítica de 1759. Manifesta-
Clericalismo”, publicado no periódico da corte
ram-se contra este e outros projetos semelhantes
Gazeta de Notícias de 20 de julho de 1883: “Lá
D. Romualdo Antônio de Seixas, Arcebispo da
pela Europa, para testas coroadas e nucas
Bahia e Presidente da Câmara nesse período, e
tonsuradas vão mal os tempos, o céu está carre-
Dom Marcos Antônio de Sousa, Bispo do
gado de nuvens, sopra um vento morno, precur-
Maranhão. Com muita lógica, os clérigos aponta-
sor de tempestades... os jesuítas vêm, como aves
vam a contradição que os projetos engendravam:
de arribação, fugindo à estação cruel, prepararem
já que o Brasil admitia a entrada de indivíduos de
os ninhos onde se agasalhem e procriem” (AZZI,
outras religiões, não podia proibir a entrada de clé-
1992, p. 95).
rigos católicos, ministros da religião oficial do
Estado. Tipos de ação como essa, porém, encontrarão
sempre novamente, no período imperial, as opo-
No embate travado vislumbra-se a militância
sições características do conservadorismo que via
de fortes guardiões do tradicionalismo católico,
na liberdade religiosa uma ameaça à
ao mesmo tempo líderes parlamentares e líderes
homogeneidade religiosa da nação, bem como ao
eclesiásticos. Militância que não era sem razão,
caráter de religião oficial atribuída ao catolicismo,
pois em seus discursos parlamentares, sobretudo
o que lhe garantia posições tão estratégicas no

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 19, Nº 38: 85-99 FEV. 2011

mundo da política, como se pode perceber na atu- religiosa, presságio certo de impendentes perigos
ação parlamentar dos eclesiásticos. Tal sobre a unidade de suas crenças e profissão pú-
conservadorismo deu nascimento a várias publi- blica e exclusiva de sua fé católica” (Souza apud
cações periódicas, leigas e clericais, que, em opo- PEREIRA, 1982, p. 27).
sição ao princípio de liberdade religiosa, levanta-
A noção de liberdade, incluindo a religiosa,
vam a bandeira da religião oficial do Estado. Um
característica do conjunto de valores da socieda-
desses periódicos, O Bom Ladrão, foi editado na
de burguesa, é vista pelos liberais como sinal de
diocese de Mariana a partir de 1 de janeiro de 1876.
desenvolvimento e progresso. De outra parte, para
Combativo, posicionava-se contra as frentes libe-
o tradicionalismo católico expresso no discurso
rais que se faziam expressivas à época da Ques-
de José Soriano de Souza, essa mesma liberdade
tão Religiosa, sobretudo quando se falava em alto
está associada a um vendaval, o “vendaval das
som acerca da separação entre Igreja e Estado: “o
liberdades modernas” que começava a açoitar o
Estado sem o elemento religioso é um cadáver
Brasil.
sem vida, sem ação, e em via de completo aniqui-
lamento” (idem, p. 47-48). Em 20 de março de Liberdade religiosa para o tradicionalismo ca-
1876, O Bom Ladrão trazia o artigo intitulado “A tólico só se encaixava como expediente para um
proteção da Igreja pelo Estado”, que mencionava mal. O mal, nesse contexto, tomava as formas da
a Carta de 1824, fazendo lembrar as obrigações diversidade religiosa. Desse mal, porém, não so-
que tinha o Estado para com a religião católica, fria o Brasil, raciocinavam os tradicionalistas.
com vistas a sua proteção, impedindo que fosse Conseqüentemente, restava perguntar: “a que vem
ultrajada e punindo os desacatos a ela dirigidos portanto o remédio da liberdade de cultos, se não
(ibidem). existe a doença da diversidade de religião?” (ibidem)
Uma vez presente o mal da diversidade religiosa,
Também expressando contínua e efusivamente
não pode a verdade subsistir, sendo ela una. Tal
o conservadorismo típico dos discursos contra a
unidade só poderia estar em um lugar: no catoli-
liberdade religiosa e enfatizando o caráter oficial
cismo, e nele de maneira exclusiva, concluía José
da religião do Império, um grupo de intelectuais
Soriano de Souza: “a liberdade ou pluralidade de
católicos reuniu-se em Pernambuco em um mo-
cultos supõe no Estado a existência, pelo menos,
vimento de oposição às vagas do liberalismo7. Den-
de duas religiões, e nesse caso ou ambas ou ao
tre tais intelectuais cita-se, por exemplo, José
menos uma será falsa” (ibidem).
Soriano de Souza e Pedro Autran da Matta
Albuquerque, sendo este o redator do periódico O No periódico O Católico Pedro Autran da Matta
Católico, instrumento privilegiado na veiculação Albuquerque levantava-se como audaz defensor
das idéias do grupo. do regime de aliança entre o poder eclesiástico e o
poder civil. Tal defesa, por sua vez, não era sem
Reiterando a importância que o tema da liber-
razão. Corria cada vez mais destemida a idéia li-
dade religiosa ganhava no período, atente-se para
beral da necessidade de autonomia dos poderes,
o título da obra que José Soriano de Souza escre-
idéia que não era de todo imprópria ao poder ecle-
ve em 1867: A religião do Estado e a liberdade de
siástico, pois vivia a reclamar dos abusos do Es-
culto. Nela, admite a existência concreta de uma
tado em assuntos nitidamente localizados na esfe-
ameaça considerável à exclusividade da religião
ra espiritual, como se dizia. Assim é que O Cató-
oficial: “o Brasil está sendo ameaçado em suas
lico consistia em uma das derradeiras vozes con-
crenças tradicionais, e já avista uma temperatura
servadoras, porém leigas (não eclesiásticas), da
nação. O mundo novo que surgia já não admitia a
7 Dois estudiosos debruçaram-se longamente sobre esse convivência do princípio de liberdade religiosa
movimento: Nilo Pereira (1970), em Conflitos entre a Igreja com aquele da união entre a Igreja e Estado. Isso
e o Estado no Brasil e Tiago Adão Lara (1988), em consistia em erro fatal para os tradicionalistas.
Tradicionalismo católico em Pernambuco. São dos trabalhos
desses autores grande parte do material utilizado por mim O caráter combativo dos posicionamentos pró-
para a análise do “tradicionalismo em Pernambuco”, como prios dos tradicionalistas de Pernambuco fica mais
o chamaram. evidente se levarmos em conta os estudos refe-

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O TEMA DA LIBERDADE RELIGIOSA NA POLÍTICA BRASILEIRA DO SÉCULO XIX

rentes a temas religiosos do visceralmente liberal a participação do clero fora bem menos significa-
Tobias Barreto, estudos em grande medida pro- tiva, seria na 20ª Legislatura – última do período
duzidos em resposta aos artigos de Matta imperial – que a voz dos clérigos far-se-ia ouvida,
Albuquerque em O Católico. Vistos em conjunto, em matéria de liberdade de cultos. Saliente-se que
vislumbra-se o espírito da época, na qual os ventos é nessa legislatura (1886-1888) que o clero volta
do liberalismo, da ciência e da razão vão de encon- a ter uma representação razoável na Câmara, con-
tro ao conservadorismo católico. Dentre os escri- tando com seis clérigos. Referindo-se ao projeto
tos do jurista sergipano, Professor da Faculdade de Gaspar Silveira Martins acerca da liberdade de
de Direito em Recife a partir de 1881, cita-se os cultos, o qual já havia passado no Senado, o cléri-
versos publicados durante a polêmica contra os go José Lourenço da Costa Aguiar afirmava, em
artigos de Matta Albuquerque em O Católico: 19 de junho de 1888, ter sido muito imprudente a
apresentação do projeto naquela ocasião, em que
“Mote
“todos vêem que as instituições do país perigam”
Fradecos, tocai o sino – Que o Católico mor- (BRASIL, 1978, v. 5, p. 258).
reu.
Mâncio Caetano Ribeiro, por sua vez, depois
Glosa de ter pedido a palavra por mais de um mês para
trazer à Câmara representações contra o projeto,
Um velho feito menino, – Por força da cadu-
atacou-o na sessão de 30 de agosto de 1888. Re-
quice
feriu-se ao projeto como “presente de gregos”,
Quis lutar, ó que sandice – Fradecos, tocai o como “propaganda descarada das doutrinas do li-
sino! beralismo moderno”, que partia de princípio oposto
Não julgueis que é destino – Tachá-lo assim ao da Constituição, princípio este que permitia dis-
de sandeu... tinguir “uma religião verdadeira entre todas as re-
ligiões” (idem, p. 268-269).
Se em discussões se meteu,
O liberalismo moderno de que fala Caetano
Para tomar uma sova – Carolas, abri-lhe a cova Ribeiro continuava sendo veementemente confron-
Que o Católico morreu tado pela vertente conservadora, possivelmente de
maneira mais aguerrida, em um momento em que
Tal é na terra o destino – Das ciências passa- o ideário da república ganhava novos adeptos.
geiras Nessas circunstâncias, mesmo às vésperas de sua
Morreu vomitando asneiras... substituição, recorrer à Carta de 1824 para fazer
valer a condição de religião oficial do Catolicismo
Fradecos tocai o sino! – Não teve auxílio divi- consistia ainda em uma ação bastante conseqüen-
no te do clero militante na política.
Nem a Suma lhe valeu A não aprovação do projeto acerca da liberda-
Como é que assim se perdeu – Tão sábio guia de de cultos levou Silveira Martins a atacar aque-
das almas? les que o confrontaram. Em resposta a estes ata-
ques, Caetano Ribeiro, na sessão de 12 de outu-
Quem for ímpio, bate palmas – Que o Católi- bro de 1888, acusava Silveira Martins de fanatis-
co morreu” (BARRETO, 1978, p. 59-60). mo anticatólico e de advogar a causa da heresia
Alguns trechos desses versos referem-se ao (idem, p. 280).
movimento que afirmava a escolástica como base “Fanatismo anticatólico” e “causa da heresia”
filosófica do clero. Tobias Barreto cita especifi- representam dois dos fatores constitutivos do ce-
camente “as páginas sebentas da Suma de S. To- nário. O primeiro consistiu no anticlericalismo de-
más”, retratando o “ar dogmático” que faz da fi- senvolvido no decorrer das décadas. Quase sem-
losofia algo petrificado, sem movimento (idem, pre marcaram sua posição, em uma atitude
p. 58-59). anticlerical, aqueles que engrossavam as fileiras do
V. MANIFESTAÇÕES DERRADEIRAS DO CLE- movimento liberal moderno. A alguns desses o pró-
RO NO PARLAMENTO IMPERIAL prio Caetano Ribeiro denominava “liberalismo com-
pletamente radical” (ibidem). O segundo elemento
No Parlamento, depois de um período em que – causa da heresia – consistia na defesa de direitos

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 19, Nº 38: 85-99 FEV. 2011

iguais para outros grupos religiosos, em sua maio- importância dessa liberdade, enfatizando os tra-
ria protestantes já instalados, especialmente nas ços do pensamento liberal que afirmavam o prin-
regiões Sul e Sudeste do país. Em grande medida cípio da autonomia do indivíduo: “nenhum direito
integrados economicamente – sobretudo os alemães está senão posterior a esse, ao que tem por objeto
luteranos –, os novos grupos religiosos, bem como o homem interior, a atividade, a integridade, a in-
as demandas advindas da política exterior do impé- dependência da razão” (idem, p. 419-420).
rio, contribuíam para tornar insustentáveis as de-
A Constituição de 1891 foi promulgada após
corrências do regime de religião oficial.
ter seu projeto revisto e modificado por Rui, ten-
Essas, então, foram as últimas vozes do clero do ganhando o caráter de instituição jurídica secu-
na Câmara considerando o tema da liberdade reli- larizada. Incorporava, dessa forma, a “impreterível
giosa. Produziram discursos intensos e aguerri- liberdade” de que falava Rui Barbosa em sua intro-
dos que corroboravam o clima conflituoso ins- dução à tradução do livro de Döllinger. Manifes-
taurado no cenário político. As polarizações deli- tam essa incorporação os parágrafos 1º, 7º, 28º e
neavam-se quase sempre onde quer que emergis- 29º: “§ 3o Todos os indivíduos e confissões religi-
se a dança de conservadores e liberais. A liberda- osas podem exercer pública e livremente o seu
de religiosa, por sua vez, era uma das matérias culto, associando-se para esse fim e adquirindo
que mais geraram a dança e as polarizações. bens, observadas as disposições do direito comum.
VI. A PREDOMINÂNCIA DE UM TIPO PECU- § 7o Nenhum culto ou igreja gozará de sub-
LIAR DE DECISION MAKER venção oficial, nem terá relações de dependência
ou aliança com o governo da União, ou o dos Es-
Referi-me anteriormente ao anticlericalismo de
tados.
Tobias Barreto confrontando o movimento tradi-
cionalista dos leigos de Pernambuco. Esse § 28o Por motivo de crença ou função religio-
anticlericalismo, geralmente constitutivo do pen- sa, nenhum cidadão brasileiro poderá ser privado
samento liberal do período imperial, encontra con- de seus direitos civis e políticos nem eximir-se do
sonância na campanha de Rui Barbosa em favor cumprimento de qualquer dever cívico.
da liberdade religiosa. Foi ele um dos protagonis-
§ 29o Os que alegarem motivo de crença religi-
tas no movimento em favor da liberdade religiosa,
osa com o fim de se isentarem de qualquer ônus
o qual alcançou o processo decisório de maneira
que as leis da República imponham aos cidadãos, e
decisiva. Em seus escritos o anticlericalismo pode
os que aceitarem condecorações ou títulos
ser recortado como um tema recorrente, rivali-
nobiliárquicos estrangeiros perderão todos os di-
zando contra o ultramontanismo romanizante que
reitos políticos” (BALEEIRO, 2001, p. 97 e p. 99).
por sua vez fazia-se mais expressivo a partir da
segunda metade do século XIX. Sublinhe-se o mero fato de ser Rui Barbosa a
pessoa a assumir papéis tão fundamentais ligados
Em sua grande introdução à tradução do livro
à confecção da Carta. Rui Barbosa era um dos
de Döllinger (1930), O Papa e o Concílio8, Rui
protagonistas do movimento liberal contra o cle-
Barbosa empenhava-se fervorosamente ao lado dos
ricalismo, o ultramontanismo e o movimento da
liberais, dando especial atenção ao tema da liber-
reforma católica tridentina que marcaram o cená-
dade religiosa, em sua defesa, “tão congenial ao
rio sociopolítico de grande parte do século XIX.
homem e tão nobre, e tão frutificativa, e tão
Esses foram movimentos religiosos em grande
civilizadora, e tão pacífica, e tão filha do evange-
medida bem sucedidos em seus objetivos, cujos
lho” (BARBOSA, 1977, p. 419). Atentava para a
frutos continuariam a ser colhidos e administra-
dos ao longo das décadas seguintes. Se dentre
esses se levantavam os paladinos do
8 Historiador eclesiástico e teólogo liberal de Munique, ultramontanismo, da romanização do catolicismo
Döllinger protestava contra o crescente absolutismo papal e da sacralização das instituições sociais, em Rui
e o reavivamento da teologia escolástica. Manteve-se em Barbosa vislumbra-se o típico paladino do libera-
oposição ao dogma da Infalibilidade papal, o que lhe custou lismo e da autonomização das instituições em re-
a excomunhão, em 1871. A obra O Papa e o Concílio foi
publicada no Brasil em 1877, sendo conhecida por trazer
lação à religião, intelectual que influencia de ma-
uma das manifestações contrárias à definição do dogma da neira decisiva a formulação das instituições jurídi-
infalibilidade papal. cas republicanas.

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O TEMA DA LIBERDADE RELIGIOSA NA POLÍTICA BRASILEIRA DO SÉCULO XIX

Efetivamente, um novo quadro sociocultural entre os posicionamentos da frente liberal e os


delineia-se nas proximidades da queda do império posicionamentos dos positivistas, sobretudo quan-
e advento da república, uma nova conjugação so- do tangenciavam o advento da República. Nesse
cial desenha-se e dela é constitutiva o tipo de po- sentido, muito embora no Brasil também se tenha
lítico, o tipo de decision-maker, representado por instalado a Igreja Positivista, que seguiria a traje-
Rui Barbosa e demais personalidades influentes tória de Comte em direção à religião da humanida-
nessa transição. Essa mesma conjugação repele o de, a crença dos positivistas no poder de inter-
tipo de político tão presente nas sessões da Cons- venção com vistas à marcha progressiva da his-
tituinte de 1824 e ao longo das atividades parla- tória teve afinidades com as idéias secularizantes
mentares das primeiras décadas do Brasil Imperi- que marcaram o período.
al, representado pelo clérigo que atava em si mes-
VII. O DESLOCAMENTO DO DISCURSO PARA
mo os poderes políticos e eclésiasticos, à maneira
A ESFERA RELIGIOSA
de um microcosmo personificado da união entre
o trono e o altar, do Estado sob a égide do O discurso da Igreja Católica contra a li-
padroado. berdade religiosa é mantido, mesmo depois de
perder o status de religião oficial do Estado. Esse
Atrelado ao princípio de liberdade religiosa,
discurso, porém, já não tinha a mesma penetra-
estava aquele da separação entre Igreja e Estado.
ção nos quadros político-decisórios oficiais. Ao
Assim é que, diferentemente da Constituinte de
final do século XIX e nas primeiras décadas do
1824, aquela instalada em 15 de novembro de 1890
século seguinte, a ação romanizadora caracterís-
não admitirá clérigos entre os 205 deputados que
tica da vertente ultramontana – que, por sua vez,
dela fizeram parte. Eram em sua maioria juristas
torna-se preponderante na hierarquia da Igreja –
formados em São Paulo e Pernambuco – que há
desloca-se do cenário próprio do poder político
décadas já haviam garantido lugar cativo nas ati-
para fortalecer sua atividade proselitista, sobretu-
vidades parlamentares –, médicos diplomados na
do junto à emergente classe média das cidades
Bahia e no Rio, engenheiros civis e militares, jor-
urbanizadas. Nas palavras de Moura e Almeida,
nalistas e homens de letras, oficiais do Exército e
ao aderir ao Estado liberal, a Igreja renunciava à
da Marinha, muitos deles funcionários públicos
“função de coadjuvante do Estado na ordenação
(BALEEIRO, 2001). Se a presença do clérigo cha-
da sociedade”, exercida até então, para aferrar-se
mava a atenção na Constituinte de 1823, é a pre-
à “função espiritual de levar os homens a abrir-se
sença dos militares (46 entre os 205 deputados)
para um sobrenatural meta-histórico” (MOURA
que deve ser sublinhada na Constituinte instalada
& ALMEIDA, 1997, p. 329). Daí um desloca-
em 1890, fato que ilustra o avanço do seu notório
mento não só na natureza de sua atividade, como
destaque na política para além da proclamação da
também um deslocamento no espaço de atuação,
república.
de uma esfera a outra.
Cumpre ressaltar que grande parte dos médi-
Assim é que, nesse período seguinte, o dis-
cos, engenheiros, militares e bacharéis em Direito,
curso católico acerca da liberdade religiosa aban-
que na política desse período de transição tiveram
donava as bases de defesa construídas sobre o
um papel mais ativo, compartilhavam o ideário do
princípio da união entre Igreja e Estado, passando
positivismo. Nesse ideário a república consistia em
a falar em nome de uma homogeneidade religiosa,
regime ideal para a busca da fase final (a positiva)
em uma postura proselitista, mais direcionada aos
da trajetória evolucionária preconizada por Comte,
fiéis do que aos quadros diretivos do país. Com
uma vez que contribuiria para a superação da fase
efeito, apresentava-se, em estado embrionário, o
metafísica, própria das monarquias hereditárias,
tipo de mentalidade que geralmente é engendrada
baseadas no direito divino dos reis.
em um contexto de diversidade religiosa: intensi-
Ao lado da militância contra a escravidão e ficação da propaganda proselitista e multiplicação
contra o regime monárquico, as idéias positivistas dos núcleos de formação, motivados sobretudo
no Brasil defendiam, dentre outras coisas, a sepa- pela competição por fiéis.
ração entre Estado e Igreja, o casamento civil e a
No pensamento da hierarquia eclesiástica, o
secularização dos cemitérios. Também eram fa-
governo monárquico, antes sacralizado nos dis-
voráveis ao princípio da liberdade religiosa. Ha-
cursos oficiais da Igreja, é agora colocado ao lado
via, desta feita, diversas confluências de opiniões
de outros tantos tipos de governos, que passam a

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 19, Nº 38: 85-99 FEV. 2011

ter um caráter acidental. A religião, porém, sub- à virtude da religião”. Não seria, portanto, liber-
siste a qualquer forma de governo, uma vez que é dade, mas uma “depravação da liberdade e uma
“congênita ao homem”. É essa uma das idéias servidão da alma na abjeção do pecado” (idem, p.
transmitidas no artigo intitulado “A Religião e a 94-95).
República”, publicado no jornal católico
Nesse período de transformações, não só nas
maranhense Civilização, em 23 de novembro de
relações entre as esferas, como no interior de cada
1889, oito dias após a proclamação da República
uma delas – na religiosa, inclusive – também as
e pouco mais de um mês antes do decreto 119-A,
pastorais coletivas são bastante representativas dos
que extinguia o padroado.
documentos do clero para a orientação do povo
Vale salientar o tipo de operação mental que (idem). A Pastoral Coletiva de 1890, decretada
permeia os discursos clericais que, como o pouco depois da proclamação da república, é uma
supracitado, são publicados no período: anterior- das representações da mudança de direção do dis-
mente, estado monárquico e religião uniam-se fun- curso acerca da liberdade religiosa: do campo da
dindo as características e as naturezas de ambas política para a da defesa proselitista do monopólio
as esferas (padroado); depois, o Estado muda de religioso. Defendendo a “unidade da mesma fé
natureza de monárquico para republicano, dentro do grêmio do universal rebanho de Cristo”
autonomizando-se da esfera religiosa; a religião (idem, p. 28), o discurso assumia as característi-
não muda, pois é congênita ao homem. Eis o tipo cas do tipo de veículo que dialoga com o povo e
de raciocínio que agora passa a designar o pensa- perdia aquelas outras designativas do discurso
mento eclesiástico frente à nova condição da reli- parlamentar. Ao dirigir-se aos fiéis, “dignos
gião, a condição de estar restrita à sua própria cooperadores e filhos diletíssimos”, é à esfera re-
esfera. Aos fiéis, conseqüentemente, não deve ligiosa que se restringe o discurso, não mais no
assustar essa nova condição. A religião sempre intuito de influenciar o processo decisório da po-
foi e sempre será a mesma, a despeito das trans- lítica, mas sim no esforço de homogeneizar o dis-
formações noutras esferas. Não é ela circunstan- curso da Igreja, pelas vias do pastoreio.
cial como a extinta sacrossanta monarquia. Raci-
O novo direcionamento expresso nas pasto-
ocínio bastante pertinente, já que o período em
rais é decorrência imediata da continuidade e in-
questão fora palco de transformações profundas
tensificação da ação romanizadora do clero junto
na conjugação da sociedade.
aos seus próprios quadros de formação de cléri-
No mesmo jornal maranhense, em 4 de janeiro gos e junto a uma massa populacional, nominal-
de 1890 – seu último ano de publicação –, o dis- mente católica, porém heterogênea nas formas de
curso religioso da Igreja Católica lançava-se ao expressão de sua religiosidade. Estando agora os
proselitismo mais aberto, uma vez que se desco- fiéis expostos muito mais facilmente a outras ex-
bria desprovido da proteção do Estado, condição pressões de fé, urgia que se homogeneizassem as
que parecia irreversível. Nada restava, portanto, formas de expressão do catolicismo, o que torna-
a não ser voltar-se aos fiéis, agindo única e exclu- ria mais fácil a construção dos fundamentos do
sivamente em sua própria esfera, em defesa da repúdio às religiões acatólicas. Para isso, neces-
religião que “prende-se às consciências por meio sário era que esses fiéis considerassem legítimas
de raízes misteriosas, de maneira que ninguém apenas as ações e os métodos dos clérigos ofici-
poderá arrancá-las impunemente” (RODRIGUES, ais da Igreja Católica Apostólica Romana, rejei-
1981, p. 90). tando, por exemplo, a livre interpretação das es-
crituras sagradas, que por sua vez “não serão
Sob o mesmo título, “A Religião do Estado”, o
mandadas aos fiéis para eles examinarem e for-
número 483 de Civilização é característico do tipo
marem por elas a sua fé, independente do ensino
de proselitismo que o discurso eclesiástico passa-
e da tradição da Igreja, como querem hoje os pro-
va a fazer diante das novas condições abertas à
testantes” (idem, p. 30).
diversidade religiosa. Dentre várias religiões dis-
putando o domínio das consciências, algumas Dez anos depois, a exemplo da Pastoral Cole-
delas falsas e imorais, somente uma – o Catolicis- tiva de 1900, o discurso contra a liberdade religi-
mo romano – apresentava-se “com notas e osa direcionado à hierarquia eclesiástica e aos fi-
caracteres da verdade revelada”. Nesse contexto, éis – logo, ainda dentro dos limites da esfera reli-
a liberdade religiosa é concebida como “contrária giosa – fora mantido em suas linhas básicas: “que-

97
O TEMA DA LIBERDADE RELIGIOSA NA POLÍTICA BRASILEIRA DO SÉCULO XIX

remos que nossa religião não seja nivelada com República, pois, com ela, extingue-se o padroado,
os inventos de Lutero e Calvino, com as torpezas cai o regime de religião oficial e suprime-se o prin-
de Mafoma, com os delírios de Augusto Comte. cípio da união entre Igreja e Estado.
Trabalharemos para este desideratum, amados ir-
VIII. CONCLUSÕES
mãos e filhos; e assim prestaremos à pátria o mais
assinalado e relevante serviço” (idem, p. 65). Ao longo do artigo, sob o tema da liberdade
religiosa, discorri acerca da presença do elemento
Assim se conjugava o raciocínio do clero ca-
clerical em algumas das instituições fundamentais
tólico em fins do século XIX e início do século
da nação no período imperial e início do período
XX: fazer frente ao protestantismo, ao
republicano. As reflexões serviram para lançar luz
maometismo e ao positivismo não só é demons-
sobre a seguinte transição: de uma condição de
tração de lealdade ao catolicismo; é, também, de-
forte presença da religião nas instituições públicas
monstração de lealdade à pátria. Ao atrelar a fide-
para uma configuração que viu seu posterior en-
lidade religiosa dos católicos à fidelidade à pátria,
fraquecimento, em decorrência do processo de
o discurso eclesiástico fortalecia seu discurso
autonomização da esfera política.
contra a liberdade religiosa. Lutero, Calvino,
Mafoma (variação de Maomé) e Comte não re- O serviço que tais considerações fazem às Ci-
presentam a identidade da pátria brasileira. Têm ências Sociais brasileiras consiste em contribuir
raízes noutras nações. Somente o catolicismo re- para uma clareza muito necessária aos estudos
presentava a identidade da pátria, pois estivera com que têm confluência com o tema da secularização
ela desde seu nascimento. Ser fiel a ele é ser patri- do Brasil. Essa clareza necessária pode ser assim
ota. Converter-se a outra religião é negar as pró- enunciada: entendendo-se secularização como
prias raízes. Constitui-se, dessa maneira, o tipo autonomização das esferas sociais em relação à
de discurso proselitista da Igreja Católica no perí- religião, cumpre afirmar que, ao separarem-se
odo. Igreja e Estado, e ao tornar-se cada vez menos
expressiva a presença do clero nos processos
Por sua vez, a atividade proselitista que se ini-
decisórios oficiais, a esfera política secularizou-
ciava mais intensamente não era gratuita. O
se, o que permite localizar a experiência
proselitismo só se faz pertinente em um contexto
sociocultural brasileira ao lado daquelas outras
em que não mais se garante a exclusividade da
experiências socioculturais que compõem a
visão religiosa de mundo. Essa era, efetivamente,
modernidade ocidental.
a nova condição inaugurada com o advento da

Gilson Ciarallo (gilsonciarallo@gmail.com) é Doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília (UnB)


e Professor do Centro Universitário de Brasília (Uniceub).

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 18, Nº 37: 295-300 OUT. 2010

THE THEME OF RELIGIOUS FREEDOM IN 19 th CENTURY BRAZILIAN POLITICS:


TOWARD AN UNDERSTANDING OF SECULARIZATION WITHIN THE POLITICAL
SPHERE
Gilson Ciarallo
The secularization of institutions has been a recurrent theme in the social sciences over the last few
decades, largely as a result of its conceptual complexity, a fact which has led to the development of
different ways of looking at the relationships between religion and other social spheres established
throughout history. One of these relationships is the one that exists between religion and politics.
“Secularization” refers to the increased autonomy of different spheres of society in relation to
religion. Aspects of autonomization of the political sphere in relation to religion are subjected to
analysis, taking discussions of religious freedom carried out on the 19th century Brazilian political
scene into consideration. Within this context, papal patronage and ultramontanist ideas were intimately
related to the continuities and ruptures identified within the field of political ideas, considering what
religious themes were at that time. Although clerical presence within the political activities of the
period was notable, with the extinction of papal patronage and the advent of the Republic, religious
discourse migrated from that sphere, now manifesting itself only within the strictly ecclesiastic
environment and through proselytism. The social configuration that emerged in this light enables us
to identify clear signals of secularization of the political sphere toward the end of the 19th century.
The present argument contributes to clarifying the theme of secularization in Brazil. With the
separation of Church and State and with the decreasing presence of the clergy within official
decision-making processes, the political sphere underwent secularization. This in turn allows us to
locate Brazilian socio-cultural experience alongside other socio-cultural experiences that can be
considered as components of Western modernity.
KEYWORDS: Secularization; Imperial Brazilian Parliament; Religious Freedom; Ecclesiastic
Authority.
* * *
REDUCTION OF THE WORK DAY AND QUALITY OF EMPLOYMENT: BETWEEN
DISCOURSE, THEORY AND REALITY
Daniel Gustavo Mocelin
The goal of this essay is to critically examine the topic of work day reduction, expounding some of the
important theoretical and empirical dimensions that are often excluded from public debate on the
matter. Analyzing some of the characteristics of workers’ contracts within the Brazilian labor market,
we demonstrate that there is considerable distance between discourse and academic readings of the
issue and its reality. The reduction of the work day is a multi-faceted theme that characterizes a
complex and polysemic debate, stirring the interest of a variety of social agents who are interested in
the matter but whom maintain different conceptions of it, given the heterogeneity of the values that are
at stake. We argue that the social implications of a political measure reducing the work day cannot be
predicted. Nonetheless, such a reduction is a historic tendency, linked to socio-economic development.
There are marked differences between trade union discourse, political sympathies, theoretical assertions
and empirical evidence on the matter This essay looks at two main dimensions of the topic: quality and
quantity of employment. When examined from the quantitative side, the issue of job creation comes to
the fore, in the interests of minimizing the effects of unemployment. When the focus turns to the
qualitative side, what is at stake is the issue of the relationship of work activities to wealth and outputs,
of providing real improvements in work conditions and worker’s quality of life.
KEYWORDS: Work Day Reduction; Employment; Job Quality.
* * *

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 18, Nº 37: 303-309 OUT. 2010

LE THEME DE LA LIBERTE RELIGIEUSE DANS LA POLITIQUE BRESILIENNE DU XIX


SIECLE: UNE VOIE POUR LA COMPREHENSION DE LA SECULARISATION DE LA
SPHERE POLITIQUE
Gilson Ciarallo
La sécularisation des institutions est un thème qui a été très abordé dans les sciences sociales les
dernières décennies, surtout en raison de sa complexité conceptuelle, ce qui favorise des différents
regards sur les relations qui sont établies au long de l’histoire entre la religion et d’autres sphères
sociales. Une de ces relations, c’est celle que nous pouvons observer entre la religion et la politique.
La “sécularisation” est l’autonomisation des sphères de la société par rapport à la religion. Les
aspects de l’autonomisation de la sphère politique par rapport à la religion sont placés sous analyse,
en considérant les discussions dans le scénario politique brésilien du XIX siècle sur la liberté religieuse.
Dans ce contexte, le patronage et les idées ultramontaines ont été intimement liées aux ruptures et
permanences identifiées dans le domaine des idées politiques, en considérant les thèmes religieux.
Bien que la présence du clergé dans l’activité politique de la période sous analyse ait été remarquable,
avec l’extinction du patronage et l’avènement de la République, les discours religieux ont quitté ce
domaine là, et ont commencé à se manifester seulement dans le cadre ecclésiastique, de façon
prosélytique. La configuration sociale qui apparait à partir de ce thème permet d’identifier des
signes de l’effectuation de la sécularisation de la sphère politique à la fin du XIX siècle. L’argument
présent contribue pour clarifier le thème de la sécularisation au Brésil. Avec la séparation entre
l’Eglise et l’Etat, et la présence chaque fois moins expressive du clergé dans les processus décisionnels
finaux, la sphère politique s’est sécularisée, en permettant de localiser l’expérience socioculturelle
brésilienne à côté d’autres expériences socioculturelles qui composent la modernité occidentale.
MOTS-CLES: sécularisation; parlement impériel brésilien; liberté religieuse; autorité ecclésiastique.

* * *

REDUCTION DE LA JOURNEE DE TRAVAIL ET QUALITE DES EMPLOIS: ENTRE LES


DISCOURS, LA THEORIE ET LA REALITE
Daniel Gustavo Mocelin
Le but de cet article est d’examiner le thème de la réduction de la journée de travail de façon
critique, en exposant certaines dimensions théoriques et empiriques importantes qui sont normalement
exclues du débat public sur la question. En analysant quelques caractéristiques sur le temps
d'embauche des travailleurs dans le marché de travail brésilien, on démontre qu’il existe une grande
distance entre le discours, la lecture académique sur la question et la réalité. La réduction de la
journée de travail est un thème avec des multiples facettes, ce qui caractérise un débat complexe et
polémique, favorisant ainsi l’intérêt de plusieurs agents sociaux sur cette question, mais qui possèdent
différentes conceptions autour du débat, en raison de l’hétérogénéité des valeurs en jeu. Dans
l’article, on soutient que les implications sociales d’une mesure politique de réduction de la journée
de travail ne peuvent pas être prévues. Toutefois, on comprend que cette réduction est une tendance
historique, liée au développement social et économique. Il y a des différences frappantes entre le
discours de syndicat, la sympathie politique par la mesure, les affirmations théoriques et les évidences
empiriques sur la thématique. L’article aborde le thème avec deux dimensions principales: quantité
et qualité de l’emploi. Quand abordé par la perspective de la quantité de l’emploi, il implique la
question de la création d’emplois, avec l’objectif de réduire au minimum les effets du chômage.
Quand abordé par la perspective de la qualité de l’emploi, il implique la question de la richesse des
activités de travail et la meilleure productivité, en fournissant une réelle amélioration dans les conditions
de travail et dans la qualité de vie des travailleurs.
MOTS-CLES: réduction de la journée de travail; emploi; qualité de l’emploi.

* * *
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