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DESASSOSSEGOS

Imagens
de Sonho
e Real da
Imagem
JOSÉ MARTINHO
FILIPE PEREIRINHA
SÉRGIO LAIA
FÁTIMA PINHEIRO
RITA MENDONÇA
MIRTA ZBRUN
ALBERTO PUCHEU

REVISTA DE PSICANÁLISE
DE ORIENTAÇÃO LACANIANA N 02
REVISTA DE PSICANÁLISE DIRECTOR Marcus André Vieira
DE ORIENTAÇÃO LACANIANA José Martinho Psiquiatra, psicanalista da EBP.
ANTENA DO CAMPO FREUDIANO Professor no Departamento
PORTUGAL CONSELHO EDITORIAL de Psicanálise da PUC –
Angelina Harari Rio de Janeiro – Brasil
NÚMERO 2 Presidente da Associação Mundial Marie-Hélène Brousse
ABRIL 2019 de Psicanálise (AMP) Psicanalista ECF, AMP, Chief Editor
PUBLICAÇÃO SEMESTRAL Alain Abelhauser da “New Lacanian Review”
Psicanalista e ex-diretor da Mirta Zbrun
Faculdade de Psicologia Psicanalista EBP/AMP
da Universidade de Rennes II
Filipe Pereirinha CONSELHO DE REDACÇÃO
Psicanalista, Vice-presidente Anne Pedro (ACF)
da ACF Portugal Carlos Pereirinha (ACF)
Marcelo Veras Cristina Certo (ACF)
Psiquiatra, psicanalista da EBP
e Moderador do Blog da AMP
DESASSOSSEGOS
9 Editorial

Abertura
11 José Martinho
Matriz

Impureza e obscenidade das imagens

17 Filipe Pereirinha
Imagens impuras

27 Filipe Pereirinha
Obscenidade líquida

Imagens em série

37 José Martinho
Temporadas e episódios

Psicanálise das imagens


INDICAÇÃO AOS AUTORES
51 Sérgio Laia
Os trabalhos deverão ser enviados em arquivo Fazer falar um sonho
no programa Word for Windows, versão 6.0 ou su-
perior, fonte Times New Roman, corpo de letra 61 Fátima Pinheiro
12, espaçamento entre linhas de 1,5, margens 2,5 Que entre o infinito, sonhos e final de análise
cm, não devendo exceder 20 páginas, incluindo
os espaços. 79 Rita Mendonça
Devem chegar com um breve resumo em Sonhos: um escrito para não ser lido
Português e inglês (abstract), e com a indicação
de 3 a 5 palavras-chaves em Português e inglês Imagens 85 Mirta Zbrun
(keywords). O título deve ter uma versão inglesa. O sonho do “parlêtre”
A apresentação dos trabalhos deverá conter de Sonho
título, nome do(s) autor(es), filiação científica e O Sonho de Sócrates
e-mail para correspondência. e Real da
Os textos podem ter notas de rodapé. Deve- 91 Alberto Pucheu
rão ser respeitadas as normas bibliográficas da Imagem Espantografias: entre poesia e filosofia
Revista (por exemplo: LACAN, Jacques (2001).
“L’Allocution sur l’enseignement” in Autres écrits.
Paris: Seuil, pp. 297-305). REVISTA DE PSICANÁLISE
Os trabalhos serão de preferência inéditos. DE ORIENTAÇÃO LACANIANA
Os artigos deverão ser enviados para o seguinte ANTENA DO CAMPO FREUDIANO
e-mail: jomartinho@yahoo.com PORTUGAL
Os textos serão submetidos à apreciação do
Conselho Editorial e Conselho de Redação, es-
NÚMERO 2

tando a publicação dependente dos nossos referees.


ABRIL 2019
PUBLICAÇÃO SEMESTRAL
EDITORIAL José Martinho

O nº 2 da Desassossegos é consagrado a “imagens de sonho e real da imagem”.


É uma contribuição da ACF-Portugal para o próximo Congresso da Associação
Mundial de Psicanálise, sobre “O sonho. A sua interpretação, o seu uso na psicaná-
lise lacaniana”, que se realiza em 2020, em Buenos Aires.
A revista trata igualmente da autonomia do Imaginário e das suas consequên-
cias sobre a cultura, a clínica e o corpo.
Desde sempre que o corpo convive com as imagens dos sonhos que procuram
os humanos de noite e de dia. Este sonhar tem também um impacto sobre o pen-
samento e o comportamento, como testemunha o texto de um poeta brasileiro
que publicamos em adenda sobre o sonho de Sócrates e a esquize entre poesia e
filosofia que se produziu no século V a.C.
Muitos outros sonhos houve desde essa época, como aqueles que Descartes fez,
no dia 10 de novembro de 1619, sobre a solidão do sujeito da ciência moderna; ou,
ainda, o sonho do inventor da psicanálise de que um dia colocariam uma placa em
Bellevue dizendo: “Nesta casa, em 25 de julho de 1895, o segredo dos sonhos foi
revelado ao Dr. Sigmund Freud”.
O mais conhecido do que então se revelou a Freud é que o sonho é a “realização
de um desejo”, mas também o “guardião do sono”.
Falta interrogar como aqui porque é que o sonho é, ainda, “um despertar que
recomeça”.
Vários amigos e colegas atentos a estes problemas ofereceram-nos textos de
excelência para os editarmos. Bem hajam.

9
MATRIZ
José Martinho*

*
Ph.D. Filosofia e Psicologia. RESUMO ABSTRACT
Fundador da ACF-Portugal e AP da Artigo sobre a esquize do Article about the schize of
Escola Europeia de Psicanálise, olho e do olhar. eye and glance.
New Lacanian School e Associação
Mundial de Psicanálise. E-mail: PALAVRAS-CHAVE KEYWORDS
jomartinho@yahoo.com. Esquize, olho, olhar, arte. Schize, eye, glance, art.
ABERTURA

Lacan forneceu em 1964 àqueles que assistiam ao seu Seminário uma preciosa
matriz para a abordagem de vários problemas, que vão dos comportamentos ani-
mais estudados pelos etologistas, em particular mimetismos de acasalamento e de
intimidação, a Psicologia e a Fenomenologia da percepção, a gramática da pulsão
escopofílica (ver/ser visto/fazer-se ver), a causalidade psíquica dos sintomas da ce-
gueira histérica e de certos escotomas, as imagens oníricas, o fantasma do desejo,
a formação do ego e do corpo próprio, até às artes visuais e plásticas. Esta matriz é a
“esquize do olho e do olhar”1.
Antes de falar desta esquize, Lacan tece algumas considerações no seu Semi-
nário sobre a compulsão a repetir, distinguindo aí o automatismo (automaton) que
preside ao eterno retorno do mesmo e a diferença que emerge quando há um en-
contro (tuké) com o real.
É o inevitável encontro traumático com o real no campo da visão que provoca a
esquize do olho e do olhar. Separado do olho – representação clássica do sujeito –,
o olhar permanece no entanto lá, como um objecto da “natureza”, por vezes como
um perseguidor paranoico; ou passa a materializar a fresta por onde o olho espreita
o que se esconde, mas que, no entanto, lhe diz respeito (ça me regarde).
Se nos encontrássemos no campo do audível não falaríamos da esquize do olho
e do olhar, mas da esquize da fala e da voz enquanto objecto da pulsão invocante:

No campo do audível: voz (a) - fala ($)


No campo do visível: olhar (a) - olho ($)2

1 LACAN, Jacques (1973). Le Séminaire, livre XI, Les quatre concepts fondamentaux de la
psychanalyse (1964). Paris: Seuil, pp. 64-112.

2 Se o olhar como objeto é invisível, a voz é afónica, como ilustra o silêncio que escuta o
analisando que fala ao analista. Lacan dá diversos exemplos clínicos destas duas esquizes ao longo do seu
ensino. Por exemplo, no Seminário De um Outro ao outro (lição XVI, 26 de março 1969), comenta
a função da voz no gozo masoquista e sádico, e a função do olhar no gozo exibicionista e voyeurista.

11
Uma imagem pode vir interpor-se entre o objecto e o sujeito. Existem vários ti- veja lá de onde me olham. Sou primeiramente olhado do lugar do Outro pelo que
pos de imagens, imagens reais, virtuais, etc. Na “tópica do imaginário” desenvolvida o habita. Sou olhado por quem me quer bem ou mal, por quem me retrata, sou
após o “estádio do espelho”, em particular no comentário sobre a experiência do olhado pela máquina que me fotografa ou filma, pela câmara ou o satélite que vigia
“ramo de flores invertido”, de Bouasse, Lacan explica que o olho apenas pode ver todos os meus gestos em cada canto de loja ou de rua.
as flores dentro do vaso se ocupar um certo lugar no cone visual determinado pelas Quando o olhar coincide com o ponto cego do olho simboliza a castração (-φ)
leis da óptica. Se o olho não estiver nesse sítio, apenas verá um vazo vazio e flores no campo da visão: ele é isso que o falante não vê6.
dispersas, como acontece com as imagens do corpo despedaçado da esquizofrenia. É ainda munido desta matriz que Lacan aborda a pintura no Seminário XI e
Voltemos ao Seminário XI, para comentar algumas das figuras/esquemas que responde à questão: o “que é um quadro?”.
este apresenta. O primeiro triângulo reproduzido ao lado mostra a imagem que se A instauração do quadro – termo que se tornou praticamente sinónimo de pin-
forma entre o objecto e o sujeito, reduzido a um ponto geométrico. Esta imagem tura – no século XV, com o arquitecto e humanista genovês Alberti, corresponde
pode também funcionar (cf. 2º triângulo) como um ecrã entre o ponto luminoso e a uma visão matemática do olho como ponto geométrico, a partir do qual se abre
a tela (tableau) onde o raio de luz emanado da fonte se vem depor. uma janela para ver o mundo segundo variados pontos de vista. Neste sentido, o
Como instrumento da luz o olhar encarna-se no ponto luminoso; este ponto quadro modificou não só a história das artes, como das letras e das ciências7. Só
é distinto do fio de luz que se propaga a partir da fonte em linha recta. Com a luz muito recentemente – com a “forma-série”, de que falarei mais adiante – é que a
nasce também a sombra3. visão quadrada (janela, moldura, tela, ecrã, etc) do real foi subvertida.
A figura seguinte sobrepõe, em quadrado, os dois triângulos anteriores. Ela O olhar - originariamente situado no lugar do Outro – encarna a luz que ilu-
mostra melhor a complexidade das formas tangíveis que se oferecem ao sujeito da mina o meu ser. Quando esta luz é projectada numa superfície faz de mim quadro,
representação. mais precisamente, mancha no quadro8.
Com a próxima figura podemos situar: 1) o ponto luminoso invisível por detrás É esta mancha que os Embaixadores, de Holbein (literalmente “Osso oco”), dão
do ecrã (círculo central); 2) e, à volta deste ecrã, a realidade marginal (círculo ex- a ver na forma de uma anamorfose. O crânio fálico assim deformado está lá para
terior) a que a vista tem acesso. mostrar, menos o que me falta como sujeito ($) dividido entre significantes, que
Um exemplo probante é o do representante da pulsão no psiquismo que Freud aquilo (a) que sou para além da vanitas (símbolos do poder e do saber, S1, S2): um
chama o “fantasma do desejo” (Wunschphantasie)4. Este funciona simultaneamente condenado à castração e à morte.
como um ecrã que permite localizar, ao centro, o real subjacente, e uma janela com
vista para a realidade que se espraia na margem. É por esta razão que os objectos da
realidade (psíquica e material) não devem ser confundidos com a Coisa velada à visão.
O fantasma procura transformar a “esquize” do olho e do olhar numa “dialéc-
tica” e, mais além desta, colar o sujeito ao objecto ou fechar os dois numa mesma
esfera corporal. A lógica do fantasma fundamental construído na análise demons-
tra, todavia, a impossibilidade deste projecto.
A realidade psíquica do “fantasma” assenta na relação – formalizada no mate-
ma $ ◊ a5 – do sujeito dividido com o objecto perdido do desejo, que, no caso da
escopofilia, é o olhar.
Convém distinguir ainda o olhar como objecto em falta no enquadramento
do real pelo fantasma neurótico, e o olhar que aparece a céu aberto na psicose, Na Origem do Mundo de Gustave Courbet – pintura que foi propriedade de
nomeadamente na alucinação visual. No Seminário X, A angústia, Lacan dá como Lacan – a mancha encontra-se nos pelos púbicos que cobrem/descobrem a vagina,
exemplo o caso de Isabella, uma jovem esquizofrénica que comentava o desenho a racha ou o buraco de onde saem os infantes.
que fizera dizendo: io sono sempre vista, sou sempre (a) vista. É ainda a esquize do olho e do olhar que permite a Lacan defender que uma
Basicamente é o olhar que faz com que, antes de ver, seja visto; e que nunca pintura não é explicável pela psicobiografia do pintor. A pintura não é o espelho

6 Se a castração simbólica deriva da morte da Coisa e sua abstração pela palavra, o olhar
3 Sobre o uso da luz e da sombra no Ocidente e Oriente, ler: TANIZAKI, Junichiro (1933). simboliza para o falante a castração como o invisível da Coisa no campo do visível.
L´Éloge de l´ombre. Tradução de René Sieffert. Paris : Collection Unesco d’oeuvres représentatives.
7 STOICHITA, Victor (1999). L´instauration du tableau. Métapeinture à l´aube des temps
4 O fantasma não oferece apenas um cenário imaginário à faculdade de desejar, mas também modernes. Paris: Droz.
a sua estrutura simbólica de frase; tem ainda um efeito de gozo (autoerótico) no real do corpo. Cf.
8 Num outro contexto, o da sociedade japonesa de que fala Tanizaki (cf. L’Éloge de l´ombre,
FREUD, Sigmund (1991). “Uma criança é batida” (1919) in Esquecimento e Fantasma. Posfácio de José
op.cit., pp. 82-83), a “mancha” no quadro pode ser um negro numa assembleia de homens brancos,
Martinho. Lisboa: Assírio & Alvim.
mesmo se os ocidentais dizem que os japoneses são de “raça amarela”. O autor refere-se também à
5 O punção (◊) simboliza a reunião e disjunção lógicas, numa outra linguagem, a alienação do mancha que foram os negros e homens de “sangue misturado” (até ao 32º) perseguidos nos EUA na
sujeito ao significante e a sua separação do objecto (a). altura da Guerra de Secessão.

12 13
de uma alma, nem uma exposição do exibicionismo do pintor que se colocou ao xou Leonardo ao abutre – melhor dizendo, ao milhafre ou gavião (nibbio) – que o
serviço do gozo de um Senhor. Mesmo que um Outro peça para ver tudo, aquilo horrorizou/fascinou desde criança.
que a pintura mostra nunca é o que o olho espera.
Recorrer à História da pintura também não chega para a explicar. Ainda que
exista uma crítica e uma aproximação epocal da coisa a ser pintada, a verdade em
pintura varia desde sempre entre duas armadilhas no campo da visão: a que serve
para enganar o olho (trompe-l´oeil), e a que tenta domar o olhar (dompte-regard).
A antiga competição entre Zêuxis e Parrhasius pode ilustrar o trompe-l´oeil. En-
quanto o primeiro enganou o olho dos pássaros com os cachos de uvas que pintou,
o segundo conseguiu lograr o próprio olho do homem com a sua pintura, que Zêu-
xis confundiu com o véu que a cobria.

Ainda que tenha falado de “psicanálise aplicada” à arte, Freud aconselhou a


não tentar compreender a obra do artista ou do escritor criativo pela sua psicologia.
E Lacan ensinou que, em vez de patologizar a pintura, mais vale procurar o seu
valor sublimatório e social, pois é na relação ao Outro, em particular ao Mercado,
que melhor se revela o valor da obra como objecto a.
O “objecto a” de Lacan corresponde ao que Freud chama o “coração do ser”.
Há quem prefira chamar-lhe “alma”, aquilo que anima o corpo e a que o sujeito
não pode renunciar.
A Igreja, o Príncipe, o Mercador, os Donos das galerias, os Colecionadores de
Importante não é que alguém seja capaz de pintar com maior perfeição um ca- arte procuram fazer desse objecto original uma mercadoria, transformar o seu valor
cho de uvas – como é o caso de Caravaggio em Narciso –, mas que o olho humano de gozo em valor de uso e de troca.
se deixe enganar tão facilmente tomando a aparência pelo real. O caso do ícone é igualmente interessante, por não pretender apenas compra-
O expressionismo fornece um exemplo do outro tipo de armadilha, o dompte- zer aos homens, mas também despertar o desejo de Deus. Feito para agradar a
-regard. O Esqueleto prendendo as máscaras de James Ensor, por exemplo, mostra o todos, o ícone oferece uma imagem santa do Todo.
real da Morte que ninguém quer ver se aproximando e parando as máscaras com
que os sujeitos vagueiam no mundo.

Os judeus foram os únicos verdadeiros iconoclastas, que disseram que Deus


não é uma imagem, nem se deixa enganar por nenhum bezerro de oiro, mas o
No impressionismo há uma outra maneira de colocar o olhar na tela, por exem- Nome que funda a ordem simbólica da Lei primordial (Dez Mandamentos). Só
plo, através da “chuva de pincel” dos pequenos azuis, castanhos e brancos que se os pagãos perceberam que os deuses não estão basicamente do lado do simbólico,
abate sobre a Route tournante de Cézanne. mas do real.
Apesar de todas as vicissitudes por onde passa, a pintura tenta fazer com que Na arte que se segue à religiosa, que Lacan chama no Seminário XI commu-
o olho capte alguma coisa do olhar como objecto evanescente no campo da visão. nautaire, o que passa a ocupar o lugar de Deus é o olhar do pintor. O poder criador
É o que permitiu a Freud partir de um óleo sobre madeira – A Virgem e o menino do olhar – que se encontrava até então do lado de fora do criado – invade de re-
com Santa Ana – de Leonardo da Vinci para chegar a uma recordação da infância pente o quadro, dando-se a ver a quem vê e é visto. É isso que mostra Las Meninas
deste, de modo a ver melhor como o fantasma originário capturou o olhar que fi- de Velásquez.
14 15
Durante séculos a pintura procurou fazer-se bela para agradar ao olho. O charme Todo e da excepção (fundadora), mas a das séries e do fora-de-série.10 São as novas
da pintura residia então no apetite do olho pelo olhar. Este charme acabou por se séries lawless que apresentam melhor as peças soltas do real “sem lei”.
romper. O espectador deixou então o céu para onde era levado e entrou no inferno Vieram os ready-made, as machines célibataires, a body art, Picasso, Bacon e as
da pintura. Ou conheceu a sua bruxaria. O olho ficou influenciado pelo mau olha- manipulações corporais de Marina Abramovic e Orlan, mas o que a arte contem-
do e sentiu amargura, como quando é invadido pela inveja que empalidece o rosto porânea da queda dos ideais e das ideologias mais produz são aditivos, substâncias
que se confronta com a imagem de completude que se fecha para sempre a ele. que respondem ao Enjoy! generalizado pelo consumo sem nunca satisfazer.
A arte do século XX foi bem para lá desta bruxaria. Com o tempo, o Céu caiu, No mundo dos suplementos de gozo derivados da castração do real pela pala-
o Colosso ruiu e a linha quebrou. À arte figurativa e formal seguiu-se a arte da vra, a parceria do artista é menos com a perda que causa o desejo de criar o novo,
acomodação dos restos. A Beleza foi-se escoando pelo urinol de Marcel Duchamp, que com o que sobra desta.
ou viajou, com Kasimir Malevich, para uma zona negra. Aquilo que se produz a partir dos quatro objectos pulsionais listados por Lacan
– seio, fezes, olhar e voz – são séries desse mesmo tipo – massas líquidas, pedaços
de lixo, gritos que fazem ressoar o silêncio, vistas cegas, numa palavra, dejectos
que perturbam a Razão e provocam o desconforto do olho que se confronta, por
exemplo, com a “merda de artista” oferecida por Piero Manzoni.

Duchamp: Fountain Malevich: Black Square

Não foi a Ideia, mas o objecto que chegou ao zénite do século XX. Não ao topo
da ciência, onde o local e o particular são generalizáveis ao Universal, mas da arte. O
objecto de arte – assim como o da psicanálise – é um universal singular.
O “objeto do século”9, como lhe chamou Wajcman, não é uma metáfora, mas O próprio buraco do olho serve agora de cano de esgoto do cada vez mais
um pedaço de real com o qual se esbarra. É um ob-jecto produzido para vir ocupar merda produzida pela nossa civilização. Gérard Wajcman, em O Olho Absoluto11,
o lugar vazio do Objecto ausente; foi assim que passou a causa prima, enquanto que explica que a arte contemporânea corresponde a esta nova civilização, a da Hiper-
o sujeito foi destituído da sua suposta posição de dono das palavras, das coisas e do visibilidade. Como diz, o globo terrestre tornou-se um grande globo ocular, para
corpo. O sujeito é um produto, causado por outra coisa: um objecto sem subjectivi- qual todo o real é potencialmente visível e, inversamente, tudo o que não é visível
dade. Lacan deu conta desta transformação traduzindo Freud da seguinte maneira: deixa de ser real.
o objecto perdido é a causa do desejo. Com o digital, o real é desmantelado e o imaginário totalizado. O olhar como
A causa do desejo não é objecto de nenhum jogo, não é o “objeu” de Pon- objecto parcial confunde-se então com o Olho Absoluto gerado pelas novas tec-
ge, mas o objecto freudiano (angustiantemente fóbico, ou fetiche encantado, por nologias. Desta confusão emerge uma Vontade de Gozo que exige a total trans-
exemplo), mais precisamente, o “objecto a” que Lacan escreve também “abjecto”. parência12. Uma das consequências é a submissão a um imperativo que elimina a
É este que faz com que o objecto de arte do século XX deixe de ser bonito e intimidade, melhor dizendo, a exterioridade íntima.
passe a especial. Ele começa a funcionar como uma espécie de óculo inteligente, E, no entanto, quanto mais espiamos, fotografamos, filmamos, menos olhamos
que dá a ver e a pensar o ab-sens, o incompreensível que não dá prazer ao sujeito, para o êxtimo que nos diz respeito. É o motivo pelo qual a psicanálise permanece
mas que o interpela e interpreta, convidando-o a abrir os olhos para o omnivoyeur uma carta fora do baralho do mundo, para grande desagrado de todos os que pro-
– ainda que por vezes púdico – espectáculo do mundo. curam pôr-lhe o olho e a mão em cima.
São sobretudo as instalações, performances e happenings que mostrarão melhor
de onde a arte é causada hoje. Essas passagens ao acto obedecem já a uma Outra
lógica que não a da perfeição e da falta, a uma lógica da efemeridade infinita. Dito
de outro modo, a lógica que começou a prevalecer no século XXI já não é a do

10 WAJCMAN, Gérard (2018). Les séries, la crise, le monde, les femmes. Lagrasse : Verdier.

11 WAJCMAN, Gérard (2010). L´Oeil absolu. Paris: Denoël.

9 WAJCMAN, Gérard (1998). L´Objet du siècle. Lagrasse: Verdier. 12 HAN, Byung-Chul (2014). A sociedade da transparência. Lisboa: Relógio D’Água.

16 17
IMPUREZA E OBSCENIDADE DAS IMAGENS
IMAGENS IMPURAS
Filipe Pereirinha*

*
Psicanalista. Atual vice-presidente RESUMO ABSTRACT
da Antena do Campo Freudiano Poderemos ainda, num Can we still, in an
(ACF-Portugal). Doutor em Filosofia mundo cada vez mais increasingly unclean world,
Moderna e Contemporânea. imundo, defender a pureza defend the purity of images,
Ex-professor e investigador da das imagens, incluindo including the poetic image,
Faculdade de Psicologia da ULHT. a imagem poética, do desire or act? Here is our
Colaborador do Centro de Estudos desejo ou do ato? Eis, proposal.
de Psicanálise (CEP) e da revista seguidamente, o que
Afreudite. Convidado e colaborador propomos. KEYWORDS
regular, entre 2007 e 2016, do Bachelard – Psychoanalysis –
Núcleo de Direito e Psicanálise PALAVRAS-CHAVE Lacan – Poetry – Real
da Universidade Federal do Bachelard – Psicanálise –
Paraná (Curitiba, Brasil). É autor Lacan – Poesia – Real
dos livros Psicanálise & Arredores
(Lisboa, Edições Universitárias
Lusófonas, 2005) e Passagens – Da
Literatura à Psicanálise, via Direito
(Florianópolis, Empório do Direito, Vivemos numa época em que a visão e a imagem têm um privilégio quase absoluto
2016). e há quem sinta já alguma dificuldade, sobretudo as gerações mais novas, em ima-
ginar que houve um tempo antes. Mas eu nasci num lugar e num tempo em que
a “voz” da rádio, mesmo se a televisão já existia e começava progressivamente a
ganhar cor e importância, tinha ainda um relevo muito especial e marcante na vida
das pessoas, em particular na minha. Talvez por isso, ainda hoje, após duas revo-
luções tecnológicas, a mediática e a digital, eu conservo um enorme carinho pelas
“vozes” da rádio e, sobretudo, quando vou de carro, é sempre com grande emoção
quando o acaso da hora e do dia me fazem tropeçar com um programa onde se
fala – o que não é tão frequente assim, na era das listas de reprodução musical – e
a voz é de novo a protagonista.
Nesse tempo das vozes da rádio, acontecia com frequência habituar-me a escu-
tar uma certa voz; mais do que a voz, porventura, um certo tom, o que lhe conferia
um sabor e nuance particulares. E, desse modo, eu imaginava um corpo, um rosto,
uma face, sobretudo esta, associada à voz que eu me habituara a escutar e ao tom
que lhe singularizava a cor.
Quando a imagem televisiva triunfou e se tornou hegemónica, e eu pude enfim
constatar o desfasamento que existia entre o que eu associara mentalmente àquelas
vozes e o rosto efetivo da pessoa em causa – na minha debilidade mental eu não
tinha querido saber que por definição o mental mente – não pude deixar de sentir
um pequeno ou grande sobressalto, consoante a maior ou menor discrepância en-
tre uma coisa e outra. Tanto num como noutro caso, era como se um grão de real,
uma chuva ou um ruído, como se diz por vezes das imagens televisivas, interferisse
18 19
com a pureza da imagem que eu tinha associado à voz, não sintonizando uma coisa gada, mas não a absoluta novidade do ser e dinamismo que lhe são próprios. Em
com a outra e havendo, pelo contrário, uma certa dissonância entre elas. vez de a imagem poética ser um eco do passado, acontece antes o inverso: por meio
Talvez por isso, quando a letra se foi sobrepondo ao papel da voz, enquanto voz do clarão da imagem, o passado longínquo ressoa de ecos que se vão repercutindo,
agora materializada em texto, dei por mim a não querer saber nada, ou praticamen- não se sabe até que profundezas. Ou, como o poeta confirma: “o clarão me dura…
te nada, da pessoa que estava por detrás ou na base desse mesmo texto. Aconteceu- como dizer a minha liberdade, a minha surpresa, ao fim de mil rodeios. Não há
-me isto com os filósofos, primeiro, quando eu era estudante de filosofia, mais tarde chão, não há teto”.14 Talvez melhor ainda, num outro poema, num outro verso,
com Lacan, quando se deu o meu encontro decisivo com os seus textos, ou seja, porventura mais agudo e acutilante, “se habitamos um clarão, ele é o cerne do
o que sobrou de um ensino eminentemente oral, onde a voz, a imagem e o estilo eterno”.15
eram componentes essenciais de uma performance que ele punha habitualmente Acontece que, segundo a argumentação de Bachelard, as causalidades alegadas,
em cena e que marcou gerações. tanto pelo psicólogo como pelo psicanalista, não podem jamais explicar convenien-
Pois bem, o que foi decisivo para muita gente, pareceu deixar-me frio a mim, temente o caráter inesperado e surpreendente da imagem inédita, nem da adesão
à partida. De tal modo que só muito recentemente alguma coisa mudou de forma que ela suscita em almas estranhas à sua criação. Como se, visando interpretar,
decisiva, penso, quando li do princípio ao fim o seminário de Jacques-Alain Miller compreender ou contextualizar a imagem poética, uns e outros acabassem por “in-
dedicado à “vida de Lacan”. Um seminário cuja leitura eu fui adiando, guardei telectualizá-la”, despojando-a do essencial, isto é, do que nela se furta à compreen-
para depois, sempre com a desculpa de que o mais importante não era a “vida”, são ou à cultura, pois nada a prepara, muito menos a cultura. Ou seja, finalmente,
mas o “ensino” e o “texto” em que ele se cristalizou. Como se a impureza da vida a imagem poética não afirma nem o passado nem a realidade, mas fratura ambas,
de Lacan, de qualquer vida, no fim de contas, pois não há vidas puras, com seus poderíamos dizer, ao afastar-se simultaneamente de uma e de outra. Ou, como
pecados, características ou idiossincrasias, bem como as diversas incoerências que escreve o poeta, “é uma centelha nómada que morre em sua chama”.16
a empurram à direita e à esquerda, pudessem turvar a “imagem” construída ao pé Finalmente, no dizer de Bachelard, a imagem poética é uma “emergência de
da letra, mostrando que há algo irredutível à frieza do simbólico, mas também, e linguagem”, o que poderíamos ler, antes de mais, no sentido de que faz emergir,
sobretudo, um grão que faz ruído na própria imagem e que é, digamos, o seu real. isto é, vir à luz, não apenas um sentido novo ou um novo uso, para além do prático,
Isolando a voz ou a letra, que real procurava eu excluir? Limpando-a das suas utilitário ou mesmo “significante”, mas sobretudo um novo acontecimento, uma
impurezas, do seu grão, digamos, que imagem pura tinha eu, afinal, em mente ou “fulgurância” nova em que ela ganha autonomia e ultrapassa os dados da sensi-
buscava preservar: a dele? a minha? ambas ao mesmo tempo? bilidade para se afirmar em toda a sua liberdade, independência e pureza, no que
Há muitos anos atrás, quando dava os primeiros passos no estudo da filosofia, o autor, recorrendo a um termo de cariz psicanalítico, chama “sublimação pura”.
um dos nomes com que deparei foi o de Gaston Bachelard. Li alguns dos livros Uma sublimação pura que, embora não desconhecendo os processos de sublima-
que ele dedicou à filosofia da ciência com bastante prazer. Gostava do seu estilo de ção tão longamente estudados pela psicanálise, não seria redutível a ela de modo
escrita. Mas, ou porque os livros que eu li na altura não traziam qualquer imagem, nenhum. Mais do que a sublimação do vivido, digamos assim, tratar-se-ia de passar
nomeadamente a fotografia do autor, ou porque a esqueci, pior ainda, recalquei ao “invivido”, isto é, às imagens que a vida não prepara e que o poeta cria.
por completo, o certo é que só recentemente prestei a devida atenção ao seu rosto, Assim concebida, a imagem poética, na sua “forma pura de linguagem”, seria
com uma larga e farta barba descaindo, um olhar vivo e ternurento, uma voz com avessa tanto à psicanálise, cujas causas não permitem predizê-la na sua novidade,
um sotaque característico, abrindo um caminho na espessa floresta da barba. Este como, mais ainda, a toda e qualquer forma de “psicologismo”. Se ela constitui
homem, de que eu lembrava apenas o incolor da letra, a vivacidade do estilo de uma “emergência”, é porque faz emergir o novo, mas também porque urge, isto
escrita e alguns conceitos fundamentais, tinha agora barba, olhar e voz, um olhar e é, mais do que um “tempo para compreender”, como diria Lacan, ela seria da
uma voz que davam imagem e corpo ao deserto do texto em que eu me exercitara. ordem do instante, “esta espécie de começo puro que faz da criação um exercício
E foi então que pude ler – eu sabia há muito tempo que existia essa outra vertente, de liberdade”.17
mas era como se não importasse, ou não fosse o momento certo, ou mesmo que O que impressiona mais é como, apetece dizer, embora por caminhos tão dís-
fosse, eu não estivesse ainda pronto para - aquilo a que Bachelard dedica uma boa pares, o mal-entendido acaba por desaguar numa confluência ou proximidade que
parte da sua vida e obra, pois uma não vai sem a outra: a imaginação poética. E foi julgávamos impossível. E, a meu ver, esse mal-entendido resulta antes de mais de
ao ler um dos mais importantes livros desta fase, A poética do espaço, mais precisa- uma certa “compreensão” apressada por parte de Bachelard – ele que tanto critica
mente a introdução, que eu deparei com uma crítica à psicanálise, nomeadamente
em relação ao modo como esta aborda por vezes o fenómeno poético ou artístico
em geral.13 Terá ele razão? O que critica afinal Bachelard, tanto na psicanálise como 14 CHAR, René (2013). Poèmes en archipel – Anthologie de textes de René Char. Paris: Éditions
Gallimard, p. 303: “L’éclair me dure… Comment dire ma liberté, ma surprise, au terme de mille détours:
na psicologia?
il n’y a pas de fond, il n’y a pas de plafond”.
Antes de mais – segundo ele – devemos reconhecer que o ato poético não tem
15 CHAR, René (2017). Fureur et mystère. Paris: Gallimard, p. 190.
passado. Um passado que explicaria, por exemplo, a sua preparação ou a sua che-
16 Ibidem, p. 195. “Étincelle nomade qui meurt dans son incendie”.

13 BACHELARD, Gaston (2017). La Poétique de l’espace. Paris: P.U.F., pp. 1-21. 17 BACHELARD, Gaston (2017), op. cit., p. 15.

20 21
a compreensão apressada quando se trata da imagem poética pura – acerca do que Ou a psicanálise, já agora. Na verdade, o que seria uma psicanálise fechada
é a psicanálise. Com efeito, não era o próprio Lacan a advertir-nos, em 1965, que na sua pureza, quando a vida explode por todas as fendas da cidade, como diz o
a única vantagem que um psicanalista tem o direito de tirar da sua posição, se esta poeta?26 É por isso que Lacan, mesmo se chegou a propor, em certa época, que o
lhe for reconhecida como tal, é a de lembrar-se, com Freud, que em matéria de desejo do psicanalista era um desejo puro, teve de reconhecer, mais tarde, que não
arte o artista sempre o precede, e, como tal, ele não deve brincar ao psicólogo onde se trata de um desejo puro, mas antes de obter a diferença absoluta, isto é, o que
aquele lhe abre a via?18 Por outro lado, não foi igualmente Lacan, em meados dos faz grão (de real) na pureza da imagem po-ética.
anos setenta, a aproximar a interpretação analítica da poesia, lamentando não ser Não é, afinal, com isso, o que resta de incuravelmente impuro, “pois nós somos
poeta-bastante (poâte-assez)?19 E, por último, não é o próprio Lacan a dizer, pela doentes siderais incuráveis aos quais a vida satanicamente dá a ilusão da saúde”,27
mesma altura, que não era poeta, mas poema, e que se trata, na psicanálise, não que um analista é capaz de su-portar um ato, como diz o poeta, que permanece
tanto de “interpretar”, mas de “satisfazer casos de urgência”?20 virgem, mesmo quando é repetido?
Se, “ao viver os poemas, temos a experiência salutar da emergência”,21 como O lugar de onde fala um sujeito, ou um psicanalista intervém, enquanto objeto,
diz Bachelard, não é essencialmente o mesmo que se passa em análise, ao escutar não é sem corpo, por isso “não há lugar puro”28, muito menos o consultório de um
um sujeito que, pelo seu ato de fala, mais do que repetir um passado, abre para psicanalista.
algo que é urgente agora, que existe só na medida em que emerge, vivendo em puro Se há imagens que perduram ou se fixam, outras que retornam e insistem é
estado de emergência? porque há algo nelas de impuro, quer dizer, trazem agarradas a si frases ou letras
É nessa medida que talvez o saber (suposto) de um psicanalista seja menos (como Freud destacou, por exemplo, no sonho) ou, então, grãos de real que se
importante do que a emergência do ato que o faz ex-sistir no instante mesmo em apegam indeléveis ao canto dos olhos. E tanto o poeta como o sujeito em análise,
que ele acontece: sem antes nem depois, sem passado nem futuro, sem chão nem uns e outros, embora em lugares, tempos e modos diferentes, “dizem as palavras
teto, sem dentro nem fora, sem uma identidade que lhe dê garantia ou segurança, que lhes ficaram no canto dos olhos”.29
por força de um ato repetido, pois, como reafirma o poeta, continuamente abrindo Talvez por isso Lacan tenha equiparado, em 1977, a psicanálise à poesia: não
a via ao psicanalista, ao dizer bem no ponto, “o ato é virgem, mesmo repetido”.22 porque esta fosse uma espécie de lirismo que conviria adotar no meio psicanalíti-
À pureza da imagem poética, segundo Bachelard, corresponderia assim a co, ou, por outro lado, uma imagem pura qualquer a restituir, mas antes porque
pureza do ato. À sublimação pura, um puro desejo, como Lacan chegou a propor ambas, num certo ponto ou momento das respetivas “práticas da letra”30 - convém
numa certa época.23 Mas não será exatamente essa “pureza, seja ela qual for, in- lembrar –, se propõem (a)bordar esse grão de areia, de pó, de real ou, quando é o
cluindo a sublimação pura e a imagem pura, o desejo puro ou o ato puro, que con- caso, e se for o caso, “de poesia”.31
vém fundamentalmente interrogar? Essa mesma “pureza” que deu título ao livro de Em toda a sua impureza e rugosidade.
Jonathan Franzen: Purity?24 Uma pureza das imagens, incluindo a imagem poética,
que se tornou tão difícil de sustentar depois das cinzas de Auschwitz, como diria
Adorno, e o imundo do mundo a que elas reduziram os grandes e nobres ideais da
era das luzes, lançando uma definitiva sombra acerca do que pode a espécie huma-
na? A pureza, enfim, de que há muito a arte abjurou, estando hoje repleta de obras,
instalações, performances, acontecimentos, objetos…que são tudo menos puros.25
E o que dizer dos poemas “sujos”, pois se a vida é imunda e suja, como poderia ser
diferente um poema?

18 Cf. LACAN, Jacques (1989). “Homenagem a Marguerite Duras pelo Arrebatamento de Lol
V. Stein”, in Skakespeare, Duras,Wedekind, Joyce. Lisboa: Assírio & Alvim, p. 125.

19 LACAN, Jacques (1977). Le Séminaire, Livre XXIV, L’insu que sait de l’une bévue s’aile à
26 GULLAR, Ferreira (2010). “Poema sujo” (fragmento), in Poemas escolhidos. Rio de Janeiro:
mourre, inédito, lição 17 de maio 1977.
editora Nova Fronteira, pp. 77-81.
20 LACAN, Jacques (2001). “Préface à l’édition anglaise du Séminaire XI”, in Autres Écrits.
27 CHAR, René (2017), op. cit., p. 103: “Nous sommes des malades sidéraux incurables
Paris: Éditions du Seuil, p. 572.
auxquels la vie sataniquement donne l’illusion de la santé”.
21 BACHELARD, Gaston (2017), op. cit., p. 10.
28 Ibidem, p. 172: “Il n’y a pas de siège pur”.
22 CHAR, René (2013), op. cit., p. 167.
29 Ibidem, p. 157.
23 LACAN, Jacques (1986). Le Séminaire, Livre VII, L’éthique de la psychanalyse. Paris: Éditions
30 LACAN, Jacques (1989), op. cit., p. 125: “Que a prática da letra converge com o uso do
du Seuil.
inconsciente é tudo o que testemunharei rendendo-lhe homenagem”.
24 FRANZEN, Jonathan (2015). Pureza. Barcelona: Ediciones Salamandra.
31 LACAN, Jacques (2013). Le Séminaire, Livre VI, Le désir et son interprétation. Paris: Éditions
25 RIOUT, Denys (2014). Qu’est-ce que l’art moderne? Paris: Gallimard. du Seuil, p. 573.

22 23
Pessoa faz, como se vê, uma ressalva: o “quadro” que ele se lembra de ter ama-
do – e valeria a pena interrogar este amor do quadro, do puro exterior que se dá ao
OBSCENIDADE LÍQUIDA olhar, isso que é, nas palavras de Jean Clair, uma “ereção do olho”33 – é diferente
dos quadros que os pintores pintam. Como assim, diferente? Voltamos à pergunta:
Filipe Pereirinha* o que é, afinal, um quadro?
Sem ter, naturalmente, a pretensão de esgotar o assunto, poder-se-ia dizer o
seguinte: um quadro é um certo recorte, uma janela ou moldura que fatia e limita
* uma parcela de real, sendo que este é, em si mesmo, ilimitado. Lacan estabelecia
RESUMO ABSTRACT Psicanalista. Atual vice-presidente uma diferença entre o real e a realidade baseado precisamente num tal pressuposto:
Porquê revisitar um quadro Why revisit a seventeenth da Antena do Campo Freudiano a realidade é um real já enquadrado, isto é, sujeito ao quadro. Daí que ele tenha
do século XVII quando century picture when we are (ACF-Portugal). Doutor em Filosofia afirmado, igualmente: “tudo o que nos é permitido abordar da realidade permane-
estamos no século XXI? Será in the 21st century? Can this Moderna e Contemporânea. ce enraizado no fantasma.”34 Não que a realidade exista em si mesma, de um lado,
ele ainda capaz de revelar picture still reveal something Ex-professor e investigador da e o fantasma de outro, mas antes que toda a realidade para o sujeito falante é já o
algo sobre nós? about us? Faculdade de Psicologia da ULHT. resultado de um certo enquadramento, já enquadrada fantasmaticamente. E é o
Colaborador do Centro de Estudos quadro que lhe dá forma, que a emoldura. Entre uma coisa e outra existe, como
PALAVRAS-CHAVE KEYWORDS de Psicanálise (CEP) e da revista diria Wittgenstein, a mesma “forma lógica”.
Velasquez – Bentham – Velasquez – Bentham – Afreudite. Convidado e colaborador Ao mesmo tempo que recorta uma parcela de real, o quadro constitui um den-
panopticon – Lacan – panopticon – Lacan – regular, entre 2007 e 2016, do tro e um fora, um interior e um exterior. Ele dá-nos a ver alguma coisa na justa
eaub-scène eaub-scène Núcleo de Direito e Psicanálise medida em que cria em torno, simultaneamente, uma invisibilidade, algo que não
da Universidade Federal do será visto ou que, no limite, é impossível de ver. Entre uma coisa e outra há a mol-
Paraná (Curitiba, Brasil). É autor dura do quadro: o recorte entre o visível e o invisível.
Volto, pois, ao quadro: pela enésima vez. Não o quadro negro, da escola, ou o dos livros Psicanálise & Arredores Se entendermos por obsceno – tal como J. M. Coetzee nos propõe no texto “O
quadro branco, onde hoje se projeta mais do que se escreve, mas o quadro que (Lisboa, Edições Universitárias problema do mal”35 – o que deveria permanecer no exterior, “fora de cena”, invi-
foi, ainda é, e porventura continuará a ser uma verdadeira obsessão para mim. Lusófonas, 2005) e Passagens – sível, não podendo ou devendo ser visto, mas que acaba por entrar em cena, não
Sobre ele escrevi uma e outra vez, em diferentes momentos e de diversas formas. Da Literatura à Psicanálise, via será o quadro de Velásquez, Las meninas, um quadro obsceno por excelência? Não
Ele parece ser um quadro inesgotável, sem fim. De tal modo que vários pintores, à Direito (Florianópolis, Empório que ele dê a ver qualquer tipo de pornografia, ou que mostre os corpos em toda a
cabeça dos quais vem o nome sonante de Pablo Picasso, tentaram reproduzi-lo até do Direito, 2016), bem como de exuberância do gozo, como acontece em geral na arte barroca, ligada ao cristianis-
à exaustão. Só Picasso realizou dele cinquenta e oito pinturas diferentes, sendo que inúmeros artigos publicados em mo e à contrarreforma, como recordava Lacan em 1973, manifestando de forma
cada versão da série, mais do que reproduzir fielmente o quadro original, recria-o livros, revistas e sites nacionais patente “que ela é sempre e por todo o lado obscenidade”.36 Não é disso que se
e reinterpreta-o de uma forma nova. Falo, naturalmente, do quadro Las Meninas, e estrangeiros. E-mail: filipe. trata no quadro de Velásquez. É antes, diria eu, o gesto. É o gesto que é obsceno,
de Diego Velásquez (1656). pereirinha@gmail.com. na medida em que revela a estrutura, a definição mesma da obscenidade: esbater
Se volto a este quadro novamente – e parece que a coisa está ficando séria, quer a fronteira entre o interior e o exterior, entre o que está dentro e o que está – ou
dizer, fazendo série – não é tanto para vê-lo de uma forma nova, mas porque consi- deveria permanecer – fora, o visível e o invisível.
dero que talvez ele possa, a despeito do grande intervalo temporal que nos separa, O quadro de Velásquez deve-se a um gesto – pioneiro, inaugural, mas cujo eco
mostrar ou ler algo sobre nós, sobre a nossa época, o nosso tempo, o nosso mundo. não cessa de repercutir, como se fosse interminável nas suas consequências – que
E tudo por causa de um gesto. É esse gesto que importa, a meu ver, interrogar. põe em continuidade o que é habitualmente descontínuo: o visível e o invisível,
Qual foi o gesto de Velásquez? o olho e o olhar. É o gesto, o autor como gesto37 – e não tanto a cena do quadro,
Se falamos de um quadro, convém saber, antes de mais, o que devemos enten-
der por isso. O que é, afinal, um quadro?
Talvez um poeta como Fernando Pessoa, que tinha como lema sentir e dizer
tudo de todas as maneiras, nos possa elucidar também nesta matéria. A páginas 33 SAVATIER, Thierry (2017). L’origine du monde – histoire d’un tableau de Gustave Courbet.
Paris: Éditions Bartillat, p. 20.
tantas do Livro do Desassossego, ele escreveu o seguinte: “Não me lembro de ter
amado senão o ‘quadro’ em alguém, o puro exterior – em que a alma não entra 34 LACAN, Jacques (1999). Le Séminaire, Livre XX, Encore. Paris: Éditions du Seuil, p. 121.

para mais que fazer esse exterior animado e vivo – e assim diferente dos quadros
que os pintores fazem.”32 35 COETZEE, John Maxwell (2004). Elisabeth Costello. Lisboa: Dom Quixote, p. 167.

36 LACAN, Jacques (1999), op. cit., p. 144.

32 PESSOA, Fernando (2017). Livro do Desassossego. Edição de Jerónimo Pizarro. Lisboa: Tinta 37 AGAMBEN, Giorgio (2006). “O autor como gesto”, in Profanações. Lisboa: Edições
da China, fragmento 126, p. 185. Cotovia, pp. 83-101.

24 25
embora esta tenha merecido inúmeros e pertinentes comentários38 –, que constitui nidade líquida, a “cena obscena” (eau-b-scène) em que o mundo se tornou e a que
aqui o verdadeiro ato a interrogar. não é possível aceder – muito menos saber ler – a não ser molhando-se, como diz
É nossa convicção de que esse ato não só antecipa, como vai ainda mais longe Lacan?45
que a ideia de um todo-visível (panopticon), tal como Bentham o concebeu e ao Como acontece muitas vezes, nada como um poeta para dizer bem, por an-
qual Michel Foucault dedicou toda uma importante reflexão.39 Com efeito, o pa- tecipação, este estado do mundo: “A nossa vida não tinha dentro, éramos fora e
nopticon de Bentham, contrariamente ao que o nome sugere, mantém pontos ou outros”.46 Ou seja: não se trata apenas de que não haja um interior e um exterior,
zonas de invisibilidade. A disposição arquitetónica do edifício é tal que o sujeito mas sobretudo que, na era da obscenidade líquida, não há quadro. Tudo parece
que vê, da torre central, não é visto pelos ocupantes das células dispostas a toda a estar a céu aberto. Como se o real ameaçasse engolir a todo o momento a realidade.
volta do anel periférico. Além disso, as divisões do anel, com células bem separadas E o que era algo incomum ou extraordinário se banalizasse.
umas das outras, implicam uma invisibilidade lateral. Assim, ao mesmo tempo que A hipervisibilidade a que falta toda a negatividade do inacessível e do misterio-
induz no detido um estado de permanente visibilidade, o que assegura o funcio- so é obscena. É obscena a transparência que nada encobre e tudo entrega ao olhar.
namento automático do poder e da ordem, uma vez que o detido não sabe se é Nessa medida, cada um e todos controlam todos e cada um. Por isso, o panopticon,
atualmente observado ou não, mas que sempre pode sê-lo a qualquer momento (o como escreve Byung-Chul Han, é agora diferente:
que é, no fundo, o que preside à instalação de inúmeras câmaras de vigilância por
esse mundo fora), o panopticon, como sublinha Foucault, é ao mesmo tempo uma … o mundo inteiro tende a desenvolver-se de modo a formar um grande panóptico. Não
máquina de dissociar o par ver - ser visto, pois no anel periférico é-se totalmente há lugar exterior ao panóptico. Este torna-se total. Nenhum muro separa o dentro e o
visto, sem nunca ver, enquanto no corredor central se vê sem ser jamais visto.40 fora. O Google e as redes sociais, que se apresentam como espaços de liberdade, adotam
Dissemos que o quadro de Velásquez parece ir ainda mais longe, mas será que formas panópticas. Hoje, ao contrário do que normalmente se supõe, a vigilância não se
ele não conserva igualmente, apesar de tudo, uma zona de invisibilidade; algo, pelo realiza como ataque à liberdade. É, antes, voluntariamente que cada um se entrega ao
menos, que nos deixa indecisos, na dúvida, pois o que é, afinal, aquele quadro vol- olhar panóptico. Sabendo que o fazemos, contribuímos para o panóptico digital, na medi-
tado dentro do quadro? Terá ele apenas a função de mostrar que o direito e o avesso da em que nos desnudamos e nos expomos. O habitante do panóptico digital é, ao mesmo
estão em continuidade topológica ou, pelo contrário, que há, como diria Lacan, tempo, ator e vítima. Tal é a dialética da liberdade, que se torna patente como controlo.47
bem lá no íntimo do quadro em que cada um de nós se dá a ver, uma esquize entre
o olho e o olhar, pois nunca me olhas aí onde eu te vejo e, inversamente, o que eu E a psicanálise, em tudo isto? Se o mundo entrou plenamente na era da obs-
olho nunca é o que quero ver?41 cenidade líquida, da hipervisibilidade, da “sociedade da transparência”, do omni-
E mesmo que não houvesse mais nada, nenhum ponto de invisibilidade, haveria voyeurismo, como pode ela ob-jetar, no sentido de fazer ob-jeção a este excesso de
ainda, pelo menos, o quadro em si mesmo: algo que faz recorte, fronteira, borda. luz? Pois um psicanalista não deve abrir mão ou esquecer que ele é essencialmente
Obsceno ou não, ele obedece ainda, eu diria, pensando nas fórmulas da sexuação um objeto, que Lacan nomeou por meio de uma letra minúscula, o pequeno a, pela
de Lacan, à lógica que funda um todo – mesmo que seja um todo-visível – numa razão de que é “ob, obstaculizando à expansão do imaginário concêntrico, quer
exceção, isto é, em algo que constitui um limite.42 dizer, englobante”.48
Mas o que sucede quando já não há quadro ou nada que faça limite à visibili- Dei por mim a pensar nisto quando, certo dia, tendo-se deitado no divã, e após
dade e o mundo se torna literalmente, como dizia Lacan, em todos os sentidos e mexer um pouco, suspirar e ter permanecido algum tempo em silêncio, um anali-
direções da palavra, “omnivoyeur”?43 Não entramos aí numa zona ou, mais ainda, sando abriu finalmente a boca e disse: “Pode apagar a luz, por favor?”
numa outra “forma”44 bem mais radical de obscenidade, a que eu, recorrendo si-
multaneamente a Bauman e Lacan, não hesitaria em chamar líquida, uma obsce-

38 Ver, nomeadamente: FOUCAULT, Michel (1988). “Las Meninas” in As Palavras e as Coisas.


Lisboa : Edições 70, pp. 59-71.

39 FOUCAULT, Michel (2005). Philosophie – anthologie. Paris: Gallimard, pp. 523-530.

40 Ibidem, p. 526.

41 LACAN, Jacques (1990). Le Séminaire, livre XI, Les quatre concepts fondamentaux de la
psychanalyse. Paris : Éditions du Seuil, p. 118.

42 LACAN, Jacques (1999). op. cit., p. 99.

43 LACAN, Jacques (1990). op.cit., p. 87. 45 LACAN, Jacques (2001). “Joyce le Symptôme”, in Autres Écrits. Paris: Éditions du Seuil, p. 565.

44 Sobre a importância da “forma” e da sua especificidade neste mundo que já não obedece 46 PESSOA, Fernando, op. cit., p. 79.
tanto à lógica do todo e da exceção, mas antes ao não todo e à serie, de acordo com as fórmulas da
47 HAN, Byung-Chul (2014). A sociedade da transparência. Lisboa: Relógio D’Água, pp. 72-73.
sexuação, de Lacan, cf. : WAJCMAN, Gérard (2018). Les séries, le monde, la crise, les femmes. Lagrasse:
Éditions Verdier. 48 LACAN, Jacques (2005). Le Séminaire, Livre XXIII, Le Sinthome. Paris: Éditions du Seuil, p. 86.

26 27
TEMPORADAS
E EPISÓDIOS
José Martinho*

*
Ph.D. Filosofia e Psicologia. RESUMO ABSTRACT
Fundador da ACF-Portugal e AP Artigo sobre a topologia Article about the topology
da Escola Europeia de Psicanálise, das imagens. of the images.
New Lacanian School e Associação
IMAGENS EM SÉRIE

Mundial de Psicanálise. E-mail: PALAVRAS-CHAVE KEYWORDS


jomartinho@yahoo.com. Sonhos, séries. Dreams, series.

Abordo aqui algumas séries de imagens a que podemos ter acesso através dos mo-
tores de busca da Internet, nas temporadas e episódios em que se apresentam ao
contemporâneo.

COMBOIOS, FILMES, TOTALIDADES, ROBOTS


A vida vivida a grande velocidade inicia-se no Século XIX. Mesmo o animal que
era até então o mais rápido meio de locomoção começa a ser transportado pelo
“cavalo de ferro”.

Cavalo saindo do comboio - cena do filme Da uomo a uomo, de Giulio Petroni

O comboio ilustra bem a mudança de percepção do espaço e do tempo que


então se opera: ele acelera o ritmo da existência humana e, simultaneamente, im-
planta uma estrutura em rede possível de percorrer na totalidade em poucos dias,
por mais vasta que seja49.

49 CARRIÓN, Jorge (2017). Livrarias. Lisboa: Quetzal Editores, p. 223. Interrogando o que
significam as Livrarias (como mitos culturais, centros de tertúlia e debate político, actividade comercial,
lugares de troca de ideias e refúgios solitários) no “imaginário colectivo”, o autor mostra ao mesmo
tempo como o ritmo cada vez mais alucinante da produção industrial na sociedade de consumo fez com
que tudo, absolutamente tudo, passasse de moda ou tivesse um prazo de validade.

28 29
Não é apenas o olhar capturado pela máquina50, mas o “excesso contemporâ- mansão que Kane possuía na Flórida, lançado para o forno por aqueles que a vão
neo de vós, ó máquinas!”, de que fala Álvaro de Campos, que terá efeitos incalcu- abandonar, como acontece com os espectadores que saem da sala de cinema depois
láveis sobre a representação da res e o resto51. de terem queimado os olhos na película.
Assim, o viajante que vai vendo imagens em movimento rápido através da ja-
nela do comboio – numa perspectiva diferente daquelas que o quadro fixa na pin-
tura52 - anuncia já a chegada do cinema. Hollywood – tão importante na projeção
sobre o Grande ecrã do mito da gloriosa Nação Americana53 - não deixou de ho-
menagear esta mudança, levando à tela inúmeros filmes (movies), nomeadamente
Westerns, sobre pessoas e populações condicionadas pelas redes ferroviárias, caso
do premiado O comboio apitou três vezes (High Noon), de Fred Zinnemann.
O apelido da principal personagem de O Comboio apitou três vezes – o delegado
Will Kane, interpretado por Gary Cooper - é o mesmo de Citizen Kane, do filme
de Orson Wells. Este último filme não fala de comboios, mas do self made man em Fica sugerido deste modo que a infância foi a única fase da vida em que aquele
acção, ainda que para mostrar o hiato que existe entre a busca capitalista da felici- que teve o mundo a seus pés foi feliz; mas também que a felicidade não se compra
dade e o que é obtido desse modo.54 com dinheiro, pois o que tornou Charles Foster Kane infeliz foi a perda de um
Intrigado pela última palavra – Rosebud – que Charles Foster Kane pronuncia brinquedo com o sugestivo nome de “botão de rosa”.
antes de morrer, um jornalista tenta descobrir o significado que esta terá tido no Apesar do sentido fixado pelo Reader´s Digest freudiano, o mistério desta obra-
passado do magnata; no final da investigação, reconhece que foi incapaz de desco- -prima da sétima arte permaneceu intacto, como provam as mais variadas inter-
brir esse significado, mas também que nenhuma palavra pode explicar a existência pretações que conheceu por parte de críticos e leigos desde que foi apresentada ao
de um homem. No entanto, nas últimas cenas do filme, o público descobre que grande público em 1941.
Rosebud era a inscrição gravada no trenó com o qual o pequeno Charles brincava Nenhum significante, significado ou objecto da vida material dá conta do que
na neve quando era criança. Vemos então o velho trenó no meio do lixo da rica resiste ao que a narrativa procura mostrar, o que podemos chamar o sonho de “Um
só”. O vivido unicamente pelo pequeno Charles, inútil para qualquer outro, bem
50 GLEIZES, Delphine e REYNAUD, Denis (2017). Machines à voir, Pour une histoire du regard como impossível de partilhar ou comunicar, permanece indecidível ao longo das
instrumenté (XVIIème - XIXème siècles). Lyon : Presses Universitaires de Lyon.
imagens que a filmagem ofereceu à montagem e depois aos olhos de milhões de
51 Freud e Pessoa, entre outros, irão dar conta no século XX e à sua maneira da mutação que espectadores.
a aceleração da vida operou nos modos de ser e de estar. Freud critica a este propósito as psicoterapias
Citizen Kane é também um bom exemplo da passagem de uma cultura influen-
breves num dos seus últimos textos; diz ele que a proposta destas de encurtar a cura é incompatível com
a psicanálise, sobretudo quando tem como principal objectivo a formação do psicanalista. Diz, ainda, ciada pelos relatos provenientes dos divãs pós-freudianos para uma cultura onde a
que esta oferta responde, antes de mais, ao pedido de uma sociedade que, depois de ter sido obrigada imagem se sobrepôs ao discurso e à história e passou a valer – como já pretendia
a admitir a existência da doença mental, se quer desembaraçar o mais rapidamente do problema; Confúcio no seu tempo55 - mais do que mil palavras. Paul Virilio traduziu mais
finalmente, que a época em questão é a da vida apressada do self made man que os EUA promoveram
despreocupadamente até à grande crise de 1929 (FREUD, Sigmund. (2011). “Análise terminável e
tarde esta transmutação de valores da seguinte maneira: “Doravante quem fala
interminável” (1937) in Transferência, Construções e Fins da Psicanálise. Lisboa: Edições Universitárias é a imagem”.56
Lusófonas, Coleção Psicanálise, dirigida por José Martinho, pp.45-46). Por sua vez, Fernando Pessoa, Mesmo se a velocidade não cessou de aumentar durante todo o século XX, um
sob o nome do intelectual italiano Giovanni B. Angioletti, ofereceu-se uma entrevista no jornal Sol, onde
novo status conferido à imagem travou momentaneamente a rapidez com que o
fala, com humor negro, do “rodar férreo” que Mussolini impôs à Itália: “A obra principal do fascismo
é o aperfeiçoamento e organização do sistema ferroviário. Os comboios agora andam bem e chegam homo viator começara a viajar: refiro-me ao que a língua alemã designa por Gestalt.
sempre à tabela. Por exemplo, você vive em Milão, seu pai vive em Roma. Os fascistas matam o pai, mas É neste âmbito cultural que Wassily Kandinsky, pioneiro do Abstracionismo,
você tem a certeza que, metendo-se no comboio, chega a tempo para o enterro” (PESSOA, Fernando.
pôde defender que se devia libertar a vista das referências formais da imagem para
Sobre o fascismo. BNP/E13, 133E-12r). Leia-se a este propósito o artigo de: BARRETO, José (2012).
“Mussolini é um louco: uma entrevista desconhecida de Fernando Pessoa com um antifascista italiano” procurar a boa Forma, aquela “que fala instantaneamente aos olhos de todos”.
in Pessoa Plural, n.º 1 (Texto acessível em: http://www.brown.edu/Departments/Portuguese_Brazilian_ A Forma da totalidade encerrada sobre si mesma e compondo uma figura com
Studies/ejph/pessoaplural/Issue1/PDF/I1A06.pdf). limites bem marcados tornou-se um Ideal, não só para as artes visuais, plásticas e
52 Cf. PANOFSKY, Erwin (1976). La perspective comme forme symbolique. Paris: Minuit. dramáticas, como para as artes de educar, governar e psicanalisar o que se começou
DAMISCH, Hubert (1984). Fenêtre jaune cadmium ou les dessous de la peinture. Paris: Seuil. a chamar a “personalidade total”.
53 WAJCMAN, Gérard (2018). Les séries, la crise, le monde, les femmes. Lagrasse: Verdier. Este Ideal ajudará também a instruir o processo do silêncio, no sentido kafkiano
54 O “direito à busca da felicidade” (right to pursuit of happiness) é uma noção que vem do do termo. O Homem, metamorfoseado em insecto, aguarda passivamente a con-
iluminismo e vai reaparecer na Declaração dos Direitos da Virgínia, de 1776, que Thomas Jefferson
inscreve na Declaração de Independência dos EUA; ela será finalmente transposta para a Constituição
Americana, no lugar do que se podia esperar, a saber, do direito à propriedade privada. Escrita durante
55 CONFUCIUS (1981). Entretiens. Tradução de Anne Cheng. Paris: Points – Seuil.
o verão de 1787 em Filadélfia, a Constituição dos Estados Unidos da América é a Lei fundamental do
sistema federal do governo dos EUA e um documento de referência para o mundo Ocidental. 56 VIRILIO, Paul (2000). La procédure silence. Paris: Galilée.

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denação à morte ou, em alternativa, comete o suicídio como único acto livre para perdendo o seu valor de “agalma”, como disse Lacan leitor de Platão, ou a sua
escapar ao seu mais recente enclausuramento. Por fim, o poder conferido ao “Todo “aura”, segundo a expressão de Walter Benjamin57.
maior do que a soma das partes” acabou por alargar o silenciamento do sujeito fa- As máquinas que se alimentam de pequenos 0 e 1 e que levaram o habitante
lante até ao mutismo das maiorias silenciosas, contribuindo para os totalitarismos da terra até outros planetas, possuem neste momento uma inteligência artificial
que emergiram no século XX e seu “culto da personalidade”. de superior qualidade. A computação e a bioinformática tendem cada dia mais a
Aquilo que acabou por tomar a palavra no interior do silêncio massivo ou da maio- eliminar para sempre as trémulas narrativas de vidas sofridas, as reconstruções da
ria silenciosa foi a estatística. Nesta, já não é a Figura, mas o Número que governa. verdade histórica, as teorias gerais.
A quantificação passou a definir a era do homem “sem qualidades”, como lhe Com a automação, robots de todos os géneros começaram a invadir o antigo
chamou Robert Musil no seu célebre anti-romance. Encontramos aí a ideia que mundo dos afazeres e afectos, deixando vislumbrar num horizonte muito próximo
qualquer ideologia, por mais pacífica que seja, conduz à guerra. A solução que sur- uma onto-ortopedia moral até então nunca vista: seres eternamente fiéis, que não
giu foi que se poderia obter a paz universal substituindo a ideologia pela estatística. se queixam nem se revoltam, que não exigem melhorias de vida e de salário, em
Em 1835, Lambert Quételet tinha publicado um livro intitulado Sur l’homme et poucas palavras, que aceitam tudo como se já estivessem mortos.
le développement de ses facultés, essai d’une physique sociale, no qual lançou a noção de A isto responde a subversão introduzida pela arte contemporânea. Apesar do
estatística social e o conceito de homem-médio. Aplicada mais tarde às sondagens, desenvolvimento sem precedentes dos trabalhos museográficos, do aumento dos
a estatística começou a infiltrar-se no Estado e na sociedade civil; passou a dominar institutos e ministérios da cultura, do número das galerias e dos cineclubes, a anti-
os momentos eleitorais e, em seguida, a marcar todos os dias presença nas audiên- ga pintura, escultura, assim como o cinema e a televisão generalista vão-se apagan-
cias mediáticas. Influenciou ainda a investigação científica, da metereologia à ac- do lentamente da história. Jean-Luc Godard confessara já ser viciado em cinema,
tual psicologia cognitivo-comportamental, dando finalmente lugar à “necessidade” mas que “o cinema acabou”.
de uma avaliação geral e permanente. Mesmo se tenta resistir e adaptar-se ao novo mundo, o velho cinema foi em
A omnipotência do Número é igualmente a da cifra e dos cifrões. Foi a exi- grande parte substituído pelas séries americanas (e de outras proveniências) que
gência de lucro imediato das empresas e particulares que conduziu à crise geral da são vendidas às centenas no mercado mundial. O cinema ocupava ainda um es-
representatividade. Juntamente com o agravamento da injustiça na distribuição da paço de tempo clássico, fechado, com começo, meio e fim, enquanto que as séries
riqueza acumulada, a representação política, sindical e mais geralmente associativa são, por princípio, abertas ao interminável. Mesmo se, como acontece em certas
foram perdendo a sua importância. análises, terminam por cansaço, desinteresse ou falta de verbas, nada impede logi-
Com a queda da importância conferida ao Nome, à Fala do sujeito, ao Ideal da camente que recomecem.
Figura e à Unidade numérica, o ego moderno perdeu alguns dos seus mais pode- Gérard Wajcman propôs que se encarasse o fenómeno das séries como uma
rosos polos de identificação; ficando desde logo sem a identidade que neles se cris- mudança radical. Para tal é preciso conceber a série, não como um género, mas
talizava, sentiu não ser mais nada do que um peão num complexo jogo de xadrez. como uma forma. A forma-série é uma forma nova, a que veio substituir as antigas
Desprotegido, desgovernado, descrente começou a obedecer a um imperativo de formas do mito e do romance.
segurança em que o estado de excepção se tornou cada dia mais a regra. Ainda que as séries tenham surgido depois da sétima arte, a série não é a forma
E todavia a ação política foi se confundindo com a publicidade. O marketing que tomou o antigo Todo que faliu, nem uma outra totalidade fechada como a Gestalt,
começou a dominar as campanhas eleitorais dos EUA - modelo que acabou por ou uma série aritmética, obedecendo à regra n+1, mas uma forma que liberta cada
se espalhar pelo globo -, onde o melhor candidato é aquele que possui a melhor um do um-entre-outros. Numa palavra, a forma-série é a forma do “não-todo”58 hoje.
imagem. Mas, na época da chamada “pós-verdade”, assistimos ainda a um outro É o motivo pelo qual só a topologia e o tempo da forma-série estão à altura,
fenómeno: as redes sociais e suas fake news. não da subjetividade da época, nem do seu objecto, mas dos novos sintomas da
Com a revolução digital e as novas autoestradas da informação, as elites inte- Hipervisibilidade. O que distingue esta da antiga “sociedade do espetáculo”59, é
lectuais deixaram de ter influência sobre as populações na hora do voto. Não foi
apenas o poder patriarcal que assim se evaporou, mas também o poder de repre-
57 BENJAMIN, Walter. (1975). A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução (1936). São
sentação, mediação e persuasão de uns tantos.
Paulo: Abril Cultural.
Tornou-se cada vez mais inútil que escritores, artistas, historiadores, sociólogos
58 WAJCMAN, Gérard (2018). Les séries, le monde, la crise, les femmes. Lagrasse: Verdier. O
elaborem manifestos e assinem petições, ou que os jornais criem vídeos e hashtags
autor defende aqui que a forma-série é a linguagem do mundo tal como ele é hoje: em crise. Esta crise
para dizer às populações o que devem fazer e quem eleger. A inutilidade desta prá- não é mais pontual como as antigas, é uma ruptura permanente, vivida em temporadas e episódios,
tica é bem visível nos sites de notícias falsas, bastante mais frequentados hoje em dia que corresponde a um mundo indefinido, inconsistente ou incompleto, em que os velhos heróis foram
que os lugares em que existe ainda um jornalismo que verifica os factos que noticia geralmente substituídos por mulheres desiludidas, destroçadas, delirantes, como Carrie Mathison, em
Homeland, que encarnam aquilo que o gozo feminino tem de não-todo fálico e ilimitado.
e apresenta sobre eles argumentos contraditórios.
59 DEBORD, Guy (2012). A Sociedade do espetáculo. Lisboa: Antígona. Desde 1967 que
A crescente aliança entre o modo de produção capitalista e o discurso da ciên-
Debord definiu a “sociedade do espetáculo” como a sociedade capitalista onde a acumulação das
cia fez com que a fabricação industrial acabasse praticamente com o artesanato. A imagens se juntou à acumulação do capital. Esta interdependência intensificou-se desde então com o
chamada “Grande Arte” sofreu igualmente o impacto da reprodutibilidade técnica, mercado global e os milhões de imagens hoje disponíveis na internet.

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um escândalo: mais ninguém escapa ao circuito da pulsão escopofílica, à tentação espaços65, as várias soluções que os problemas matemáticos podem ter66, etc.
de ver, ser visto e fazer-se ver que gira à volta da Coisa Invisível que se ausentou. Esta minuciosa discriminação equivale a uma “análise”, no sentido tradicional
que Freud retoma. Mas nesta operação inteligível as palavras permanecem irreme-
ESTAMPAS, INDULGÊNCIA, PERCEPÇÃO MUTILADA, IDEOGRAMAS diavelmente inadequadas ao real. O japonês sabe que não pode dizer, conhecer,
Nos últimos anos da sua vida, Claude Lévi-Strauss apercebeu-se que era atraído há nem figurar nada do que Kant chamou as “coisas-em-si”67.
muito tempo por certas imagens que tinha descurado durante os longos anos que O pensamento japonês parece muito distante do que foi a racionalidade grega.
dedicou ao ensino, investigação e exploração etnológica: as estampas japonesas que Mas este facto não impediu que a ciência e a tecnologia fossem de “ponta” num
o seu pai tinha trazido para casa quando ele era ainda criança. país que se tornou a terceira potência económica mundial68.
Devido a um feliz conjunto de circunstâncias, o antropólogo pôde nessa altura Para entender como isto foi possível, convém estar a par da “indulgência”
tardia da sua vida viajar várias vezes ao Japão, onde se inteirou melhor e por dentro (amaeru)69 dos japoneses, um sentimento que vai do cuidado de si, do outro e das
da cultura deste país. coisas até à faculdade de desejar. A perseverança deste sentimento preside não só à
Num livro que veio a lume já após a sua morte60, lembra que o pensamento vida quotidiana, como a duas importantes características dos nipónicos: a primeira
oriental se caracteriza por duas recusas básicas do que se passa no pensamento é a sua ancestral preocupação com as manufacturas, da simples tijela de arroz ou
ocidental. A primeira é a recusa que o Eu seja o ponto de partida do pensamento, da chávena de chá sem a mínima pretensão estética, às requintadas bonecas, bús-
facto que se aplica melhor ao pensamento moderno ou cartesiano (“eu penso, logo solas, espelhos, pentes e óculos das Gueixas, às caixas em cerâmica ou em laca para
existo”); a segunda recusa é da prevalência do discurso sobre o real. os mais variados usos e funções, biombos, quimonos, tão belos e minuciosamente
Não existe no Japão nada de semelhante a um ego ou self. O que se pode abusi- feitos por fora, como por dentro. É este mesmo cuidado que encontramos na alta
vamente chamar o “sujeito” japonês é apenas um lugar, que o verbo situa no final qualidade da eletrónica japonesa que se espalhou pelo mundo com a primeira vaga
de uma sintaxe que constrói as frases por determinações sucessivas, que vão do de máquinas fotográficas, magnetofones, walkmans, aparelhos estéreo e de televi-
geral ao mais especial. Não se trata, pois, de uma entidade, ou da representação que são, viaturas e motores, entre outras coisas, e que dura ainda hoje com as novas sé-
acompanha todos os pensamentos, nem de uma suposta causa do discurso, mas do ries de telemóveis, computadores, robots, etc. A segunda característica é a sua forte
resultado final de um processo onde se refletem todas as pertenças, nomeadamente e ancestral ligação em rede, tão importante no vínculo social e na aliança entre as
ao grupo familiar, social e profissional. ilhas do arquipélago, como nas conexões microeletrónicas.
Por sua vez, o discurso no Japão não serve para apreender metodicamente a Um Mestre Zen forjou uma vez uma expressão – que fez escola no Japão - para
ordem racional e relacional do mundo, nem contribui para a conquista progressi- qualificar a engenhosidade japonesa: “arte imperfeita”.
va da natureza; o que exprime basicamente é o sentimento de cada um, por mais Da modesta estampa à grande arte de Sengaï – pinturas e legendas em tinta
humilde que seja. da China – pode-se apreciar como a conjugação do desenho e da caligrafia, com
Tanto no caso do sujeito, como na ordem do discurso, o tempo permanece as suas facetadas alusões e diversos subentendidos, apenas permite a “percepção
mítico, ainda que possa coexistir, em estratos paralelos, com o tempo histórico. mutilada” do real que escapa70.
Isto acontece sobretudo após a Segunda Guerra mundial e a americanização ou
modernização do Japão.
A discriminação operada no tempo cíclico do mito é o mais relevante; ela não
procura chegar imediatamente às “Dez Mil Coisas”, apenas esmiuçar o que destas
se encontra distribuído pelos prazeres do leito61, os ruídos e os sons da música62,
os sabores do cru e do cozinhado63, as cores e as tintas64, a grande diversidade dos

65 FIÉVÉ, Nicolas (1996). L’architecture et la ville du Japon ancien. Espace architectural de la ville
de Kyôto et des résidences shôgunales aux XIVe et XVe siècles. Coll. Bibliothèque de l’Institut des Hautes
Études Japonaises, Collège de France. Paris: Maisonneuve & Larose; BERQUE, Augustin & SAUZET,
60 LÉVI-STRAUSS, Claude (2011). L´Autre face de la lune, Écrits sur le Japon. Paris: SEUIL, La
Maurice (2004). Le sens de l´espace au Japon, vivre, penser, bâtir. Paris: Editions Arguments.
Librairie du XXIème siècle.
66 HORIUCHI, Annick (1994). Les mathématiques japonaises à l´époque d´Edo. Paris: Vrin.
61 UTAMARO (2002). Le chant de la volupté. Paris : Éditions Philippe Pacquier.
67 LÉVI-STRAUSS, Claude (2011), op. cit., pp. 50-55.
62 HUGHES, David W. (2008). Traditional folk song in modern Japan: sources, sentiment and
society. Folkestone, UK: Global Oriental Ltd. 68 SABOURET, Jean-François (2011). Japon, la fabrique des futurs. Paris: CNRS Éditions.

63 TSUJI, Shizuo (1980). Japanese cooking: A simple Art. Nova York: Kodansha International/USA. 69 TAKEO, Doï (1991). Le jeu de l´indulgence. Paris: L´Asiathèque.

64 MANRIQUE, María Eugenia (2006). Pintura Zen. Método y arte del sumi-e. Barcelona: 70 SUZUKI, Daisetz Teitaro (2005). Sengaï, le rire, l´humour et le silence du zen. Paris: Le
Editorial Kairós. Courrier du Livre ; LÉVI-STRAUSS, Claude (2011). Op. cit., pp. 109-132.

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dizer que, relativamente à arte imperfeita de psicanalisar, também não existe dife-
rença fundamental entre o seminário, o chiste e a jaculação poética.

IMAGEM, CHARADA, FIGURAL, DESCONHECIDO


Uma boa parte do que expus anteriormente sobre o poder das imagens no Oci-
dente e no Oriente faz eco ao que escreveu Freud nos dois últimos capítulos da
Interpretação do sonho.
No início do capítulo VI deste seu livro Freud desvaloriza claramente as ima-
gens. Explica que estas fazem parte do conteúdo manifesto e não do conteúdo la-
tente do sonho, e que foram elas que enganaram os intérpretes dos sonhos durante
Sengaï: Hotei carregando o peso do mundo com um sorriso séculos, porque não as souberam ler como uma charada ilustrada (rebus).
O sonho que interessa Freud nesta passagem é, pois, aquele que pode ser lido
Qualquer representação japonesa da natureza, da sociedade ou da cultura – ro- na fala do sujeito, em particular do analisando que conta ao seu analista o pequeno
cha, montanha, árvore, riacho, rã, mas também casa, guerreiro poema haikai, etc. filme que viu sozinho durante a noite. Neste caso, compete ao analista ajudar o
– recebe, por conseguinte e de imediato, um sentido “filosófico” que os transcende. analisando a descobrir as sílabas, palavras ou frases da charada ilustrada do seu
Este sens-joui, como diria Lacan, vai-se imiscuindo no radical sem-sentido do sonho.
real através daquilo que a escrita consegue desenhar71. Mas ao abordar mais à frente o “processo da figurabilidade” (Rücksicht auf
A escrita japonesa é uma escrita de imagens. Tradicionalmente privilegia o gra- Darstellbarkeit), Freud sublinha uma função das imagens a que não tinha dado a
fismo despreocupado, sem regras preestabelecidas, no qual a espontaneidade da devida importância durante a sua exposição do “trabalho do sonho”; ao mesmo
primeira pincelada e a elegância do desenho sobre o papel que se segue se confun- tempo que distingue representação (Vorstellung) e apresentação (Darstellung), diz
dem, por vezes de uma forma “caricatural”, para melhor mostrar que a realidade que as imagens apresentam o que a representação não consegue, seja porque foi
é “sonho, nada mais que sonho” (Sengaï). Que a realidade não seja o real fugidio censurado do pensamento, seja porque não chegou à fala75.
ou infinito é o que faz com que o budismo Zen seja a espiritualidade nipónica por A palavra é o “ponto nodal” de numerosas representações, que podem ser lidas
excelência72. ao pé-da-letra, ou no seu sentido figurado, metafórico por exemplo; mas, prossegue
A poesia Zen está presente nos calendários, nos jardins e espaços arquiteturais, Freud, “de todas as formas tomadas pelos principais pensamentos do sonho as que
no teatro, na música e na dança, na arte médica, na culinária, no ritual do chá, permitem a visualização são sempre as preferidas”.
antes de mais, no ideograma. Esta preferência deve-se ao facto de o figural ser o meio que o sonho como
Os ideogramas procuram pintar a essência das coisas, a qual não admite que o formação do inconsciente inventou para ir beber à fonte, à “força pulsional” que
transitório possa ser capturado nas malhas de uma definição, que recusa a perma- está na origem do desejo. A especificidade deste meio, acrescenta Freud, consiste
nência eterna do ser dos entes, e que dissolve todos os dualismos (vazio/pleno, belo/ em traduzir a expressão abstrata e descolorida dos pensamentos do sonho em “lin-
feio, bem/mal, eu/outro, etc.). guagem pictural”, uma espécie de poesia concreta e colorida76.
Para o Mestre Zen, não só os textos sagrados não têm o mínimo valor, como Freud diz ainda que a escrita figural não é para ser compreendida. É a condição
não existe uma hierarquia entre a meditação, a graça e a derisão. Não é por acaso para que as figuras estilizadas que cria possam ser apreciadas pelo seu interesse e
que a doutrina esteja recheada de fábulas e boas piadas73. beleza, comparáveis aos dos pictogramas ou ideogramas, caso dos caracteres chi-
Lacan – que se refere ao budismo Zen do primeiro ao último ensino74 – poderia neses e japoneses, ou dos hieróglifos egípcios, antes que Champollion os decifre77.

71 A propósito da série consagrada por Sengaï ao poeta Bashô, Lévi-Straus comenta que
“o desenho e o texto respondem um ao outro pelas vias complementares da metáfora e da metonímia”
(Cf. LÉVI-STRAUSS, Claude, op. cit., p 122).
émousse tout tranchant / Elle démêle tout nœud. LAO-TZEU (1979). La Voie et la vertu (Tao-tê-king). Paris:
72 O Budismo existe no Oeste do Japão desde 538. A espiritualidade Zen contrasta, no
Points Seuil, p. 27. Lembro, ainda, que a espiritualidade Zen é também e de longe a que mais agrada
entanto, com as conjecturas verbais das outras 17 seitas budistas, assim como com os ensinamentos do
aos ocidentais. Em França, tanto Lacan, como Sollers (SOLLERS, Philippe (1974). Sur le matérialisme.
Confucionismo e da religião dominante, a Xintoísta.
Coll. Tel Quel. Paris: Seuil) e Barthes (BARTHES, Roland (1970). L´Empire des signes. Paris: Champs-
73 Um exemplo “lacaniano”: Sengaï dizia das inúmeras pessoas que lhe vinham pedir uma Flammarion), entre outros, são a prova disso.
caligrafia ou uma pintura a tinta da China que pareciam tomar o seu retiro espiritual por uma retrete,
75 Cf. LYOTARD, Jean-François. (1971). Discours, figure. Paris: Éditions Klincksieck,
já que vinham todas com um rolo de papel na mão. Cf. SUZUKI, Daisetz Teitaro (2005). Sengaï, le rire,
COTTET, Serge. “Retour sur les images indélébiles”, https://www.lacan-universite.fr/wp-content/
l´humour et le silence du zen. Paris: Le Courrier du Livre, p. 50.
uploads/2017/12/03-Ironik-hors-se rie-Serge-Cottet-Les-images- inde le biles.pdf.
74 Por exemplo, Lacan retoma o termo “Via” - equivalente do “Vazio” em que o caminho
76 FREUD, Sigmund (1976). L´Interprétation des rêves (1900). Paris: P.U.F., p. 291.
se faz caminhando, ou onde os nós (familares, sociais, etc.) se vão desatando e atando – de Lao-Tzeu:
La Voie est comme le bol vide que nul usage ne comble / Un sans-fond dont toute chose a tiré son origine / Elle 77 Ibidem, p. 293.

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O mais importante não é, pois, o profundo significado que a interpretação pode tal da psicanálise vai vigorar até 1964, ano em que deixa de afirmar categoricamen-
extrair da frase onírica, mas a capacidade que o figural tem de não fechar o movi- te que “o inconsciente está estruturado como uma linguagem”, para dizer que é
mento das imagens num todo definitivo, bem como de radicar a associação livre “pulsação temporal”82.
das representações das palavras e das coisas na impressão sensível78. Ainda em 1964, Lacan fala desta pulsação temporal como abertura/fecho do
Freud aponta aqui para um real literal da imagem que não é um ersatz, um inconsciente, a propósito por exemplo da divisão do sujeito entre enunciação e
sucedâneo do discurso.79 enunciado83; tema que retomará em 1972, pela diferença entre dizer e dito. Passo
É este real que vem de novo à baila no final do capítulo VII da Interpretação do a citar o célebre aforismo que inicia L´Étourdit: “Que se diga fica esquecido por
sonho, onde se distingue dois tipos de inconsciente: o interpretável e o real. O pri- detrás do que é dito naquilo que se ouve” 84.
meiro é um efeito do recalcamento secundário ou recalcamento propriamente dito; Se aplicarmos este aforismo àquilo a que o sonho dá voz podemos dizer: “Que
enquanto que o segundo resulta do recalcamento primordial. se sonhe fica esquecido por detrás do sonho no que se entende”. O que fazemos
Uma formação do inconsciente como o sonho só é interpretável se o retorno sobressair deste modo é que cada sonho é uma peça solta do sonhar.
do recalcado trouxer alguns fragmentos à fala e até à consciência: mas, mesmo Refiramos agora a pulsação temporal sonhar/acordar ao que propõe Lacan em
que continue a atrair e a sobredeterminar o sujeito, o inconsciente real permanece 1974, no Seminário XXII, sobre a autonomia do Imaginário e a importância deste
inacessível como tal. na consistência do corpo, sua apresentação e representação85.
É ainda o que diz Freud nesse último capítulo, quando evoca o “umbigo” do É o corpo que substituiu a estrutura da linguagem ou que veio para o primeiro
sonho, o buraco no espesso tecido das representações oníricas por onde o desejo plano do último ensino de Lacan. Que corpo?
inconsciente do sonho, mesmo devidamente interpretado, se liga ao Desconhecido Depois de uma “orgia” de arte barroca nas igrejas de Roma, Lacan diz aos que
(Unbekannt)80. se encontravam presentes no seu Seminário Encore que tudo nessas igrejas é “exi-
bição do corpo evocando o gozo 86.
DIMENSÕES, CORDAS, NÓS, GOZOS Exibição não é copulação. Na representação religiosa do gozo a que Lacan faz
No início dos anos 1950, Lacan convidou os psicanalistas a apanhar algo da inefável referência não há nenhuma imagem explicita da copulação, como acontece por
experiência que descreviam com a rede do Imaginário, do Simbólico e do Real81. exemplo na pornografia. As místicas como Santa Teresa de Ávila não pensam no
Trata-se das três “ordens estruturantes” que propôs Claude Lévi-Strauss para Sexo, mas no Céu, sabendo que o gozo que experienciam, na Outra cena do in-
estudar o fenómeno antropológico. No entanto, a “eficácia simbólica” de que fala consciente, provém unicamente da penetração do corpo pelos raios de luz divinos.
Lévi-Strauss na Antropologia estrutural, levou em seguida Lacan a substituir a auto- As jaculações místicas do gozar a Deus derivam, precisamente, da não existência
nomia de cada uma dessas dimensões pelo primado do Simbólico sobre o Imaginá- de relação sexual.
rio e o Real. É uma hipótese legitima, conforme ao princípio e à regra fundamental Voltando ao corpo que (se) sonha. Não se trata do corpo próprio de um ego,
da talking cure freudiana, mas também ao rigor objectivo que as matemáticas intro- nem mesmo do corpus simbólico dos significantes que determinam o seu sintoma87,
duziram nas ciências da natureza, da vida e da sociedade. mas do corpo de que se goza.
Depois de reconhecida a estrutura de linguagem do inconsciente, e o sujeito É este corpo sem órgãos, mas com orifícios (boca, ânus, olho) à volta dos quais
que esta supõe, Lacan ensina a decifrar manifestações psíquicas como o sonho circulam as pulsões parciais, que uma análise deve apertar como um objecto a. A
enquanto mensagens cifradas enviadas ao sujeito da Outra cena do inconsciente. proposta do último Lacan começa por ser de apertar este corpo-objecto atando,
Mesmo se o Seminário A angústia (1962-1963) introduz o “objecto a” na Outra desatando e reatando o nó RSI.
cena do inconsciente, a primeira definição que Lacan dá deste conceito fundamen-
82 LACAN, Jacques (1973). Le Séminaire, Livre XI, Les quatre concepts fondamentaux de la
78 Lacan diz que o “homem de base” tem um corpo, que não se mostra (I), nem demonstra psychanalyse. Paris: Seuil. p.115.
(S), mas que apenas se sente (R). Este corpo de base é aquele de que se goza, juntamente com as
83 Idem, pp. 115-116.
palavras primitivas ou de lalangue de cada um. Cf. LACAN, Jacques (2001). “Joyce le Symptôme” in
Autres écrits. Paris: Seuil, Le Champ freudien, p. 565. 84 Qu’on dise reste oublié derrière ce qui se dit dans ce qui s’entend (LACAN, Jacques (1973).
“L’Étourdit” (1972) in Scilicet nº4. Paris: Seuil, p. 5).
79 Lacan virá, por exemplo, a falar do inconsciente real nos seguintes termos: ce Tout-Autre (…)
tout à fait impossible de le dire complètement, qu’il y a un urverdrängt, un inconscient irréductible, et que celui-là 85 Cf. a este respeito o que a psicanálise de “orientação lacaniana” considera ser as “imagens
- de le dire - c’est à proprement parler ce qui non seulement se définit comme impossible, mais introduit comme telle rainhas”: MILLER, Jacques-Alain (1995). « L’image reine » in L’objet caché, La cause du Désir n° 94,
la catégorie de l’impossible (LACAN, Jacques, Séminaire XXII, RSI, versão online de Patrick Valas ( http:// novembre 2016. Paris: Navarin Éditeur, pp 18-28.
www.valas.fr/IMG/pdf/s22_r.s.i.pdf ).
86 LACAN, Jacques. (1975). Le Séminaire, Livre XX, Encore (1972-1973). Paris: Seuil. Cf., a
80 FREUD, Sigmund (1976). L´Interprétation des rêves (1900). Paris: P.U.F., p. 446. este propósito, MILLER, Jacques-Alain (2016). L´Inconscient et le corps parlant: http://www.wapol.org/fr/
articulos/Template.asp?intTipoPagina=4&intPublicacion=13&intEdicion=9&intIdiomaPublicacion=5&i
81 LACAN, Jacques (2005). “Le symbolique, l’imaginaire et le réel” in Des Noms-du-Père
ntArticulo=2742&intIdiomaArticulo=5
(1953). Paris: Seuil, p. 31. Trata-se do Imaginário como se explana da etologia à literatura, passando pela
formação do ego e do corpo próprio com suas zonas erógenas. Do Simbólico como função da palavra 87 “Defino o sintoma pela maneira como cada um goza do inconsciente enquanto o
no campo da linguagem. E do Real como Outro absoluto do sujeito. (Cf. LACAN, Jacques (1981). inconsciente o determina” (Je définis le symptôme par la façon dont chacun jouit de l’inconscient en tant que
Le Séminaire, Livre III, Les psychoses (1955-1956). Paris : Seuil, pp. 18-21). l’inconscient le détermine (LACAN, Jacques (1975). “RSI” in Ornicar? nº 4, p.106. Lição de 18 fevereiro).

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No Seminário XXII, quando fala aos seus alunos dos primeiros esboços de
nós borromeanos a quatro (e mais) cordas88 que acabara de desenhar ou escrever,
Lacan avisa-os que não se priva de “fazer imagem” (...de faire image, je ne m’en prive
pas), e pergunta: “o que veem no quadro, senão imagens?”89.
Mas mais adiante questiona: será que se “trata mesmo de imagem? Não é por
nada que vos digo, agarrem bem na corda [...] uma corda pode ser agarrada. Isso
tem a ver com o real”.90
Se a linguagem, nomeadamente a da lógica simbólica, permite demonstrar o
real, e a imagem mostrar alguma coisa deste, o mais importante numa psicanálise
– como frisa aqui Lacan - é que se agarre bem na corda do real91.
Por exemplo, que se agarre bem na corda do real que acorda em pleno sonho.
Porque o sonho não é apenas um trabalho de simbolização da alucinação, uma
escrita de imagens, retórica figural ou poesia concreta, mas também um despertar
que recomeça para o real impossível de imaginar e simbolizar.
O real do “OMEM” lacaniano é o do corpo falante. É um real que faz sonhar
e forma sintoma, sem por isso eliminar o mistério do inconsciente que já lá está,
antes que haja o sonho e a sua interpretação, antes de qualquer transferência, logo
antes da psicanálise.

88 O sintoma de base, paranoico, é um nó borromeano RSI. Este funciona como suplência ao


que aconteceria se não existisse essa ligação, a saber, a esquizofrenia. O que Lacan chama sinthome no
Seminário seguinte é a quarta corda, que vem corrigir qualquer erro que possa existir no atamento do nó
borromeano RSI. Mas como pode sempre haver algum lapso do nó, Lacan conclui que caberá a cada um
inventar a sua solução sinthomática. O último Lacan começa a utilizar o termo “cordas”; convém lembrar
que existe uma “teoria das cordas” na Física contemporânea, que permite juntar numa mesma estrutura
matemática a teoria da relatividade e a teoria quântica, e uma “teoria das cordas” na biologia molecular
(12 cordões do ADN). Há mesmo quem pense que a “teoria das cordas” é a matriz da “Teoria do Tudo”,
de Stephen Hawking. Não é o caso de Lacan, para quem as cordas não são uma “teoria”, mas uma
maneira de agarrar o real “não-todo” e “sem lei”; e de apertar, como “objecto a”, o corpo que se goza.

89 LACAN, Jacques. Le Séminaire RSI (1974-1975). Texto estabelecido por Jacques-Alain


Miller in Ornicar? nº3, p. 98.

90 LACAN, Jacques, ibidem, p. 99. Na versão online de Patrick Valas: C’est dire quand même
l’importance qu’a cette image, mais est-ce bien une image ? Après tout, c’est pas pour rien qu’on vous dit: « Tenez
bien la corde hein ! ». « Tenez bien la corde », ça veut dire qu’une corde, quand à l’autre bout c’est noué, on peut
s’y tenir. Ça a quelque chose à faire avec le Réel...( http://www.valas.fr/IMG/pdf/s22_r.s.i.pdf ).

91 LACAN, Jacques, ibidem, p. 104.

40 41
FAZER FALAR UM SONHO
Sérgio Laia*

*
PSICANÁLISE DAS IMAGENS

Psicanalista; Analista da Escola (AE RESUMO ABSTRACT


- 2017-2020) e Analista Membro da Artigo que fala de um This article speaks of a
Escola (AME) pela Escola Brasileira sonho feito e trabalhado dream done and worked in
de Psicanálise (EBP) e pela no contexto da experiência the context of the analytic
Associação Mundial de Psicanálise analítica do autor, e experience of the author
(AMP); Professor do Curso de retomado por este no seu and taken up by him in his
Psicologia e do Mestrado em primeiro testemunho como first testimony as School
Estudos Culturais Contemporâneos Analista da Escola (AE). Analyst (AE).
da Universidade FUMEC (Fundação
Mineira de Educação e Cultura). PALAVRAS-CHAVE KEYWORDS
E-mail: sergiolaia@gmail.com. Sonho, fantasia, fonação, Dream, phantasy, phonation,
epifania. epiphany.

O tema deste número de Desassossegos - “imagens de sonho e real da imagem” - me


remeteu particularmente a um sonho que, produzido e trabalhado no contexto
de minha experiência analítica, foi retomado em meu primeiro testemunho como
Analista da Escola (AE)92. Nessa ocasião, esse sonho me serviu para elucidar como,
alguns anos antes do fim de minha análise, sobretudo pela desmontagem fônica
promovida pela intepretação analítica com relação ao que se apresentava onirica-
mente como imagens, pude me surpreender com a transmutação do olhar em voz.
Com tal transmutação, conforme também pude testemunhar, um atravessamento
importante começou a se realizar quanto às sombras da depressão que por vezes
me turvava, insidiosamente, a relação com a vida. Agora, neste texto, evocando essa
transmutação, pretendo elucidar como, das imagens de um sonho, a interpretação
analítica ressalta o real que se impõe nas imagens oníricas e que tendia a escapar
àquele que sonha.

SONHO
No sonho que volto a relatar aqui, o resto diurno de meu corpo cansado devido a
uma produtiva viagem de trabalho me levou a deslocar tal exaustão, mas de for-
ma invertida, para o corpo do analista. Marca desse deslocamento invertido era o
analista aparecer em um divã, mas não mais exausto como eu estava. Ao contrário,
ele aparecia bastante descontraído, após ter realizado um intenso trabalho e, nos
sentidos literal e figurado da expressão, “coçando o saco”. Essa cena onírica de des-

92 LAIA, Sérgio (2018a). “1, 2, 3 e…” in Opção Lacaniana, nº 78. São Paulo: EBP, pp. 58-59.

42 43
contração e virilidade me evocava, ainda, em contraponto, O nascimento de Vênus, A transferência, para o analista, nas imagens do sonho, dessa dimensão provo-
célebre quadro de Cabanel e, assim, como uma espécie de trompe-l’oeil, ou seja, do cadora que eu muitas vezes encarnei, quando criança e no início de minha juven-
que literalmente engana a visão, eu via sair do teto sob o qual nos encontrávamos tude, ao me precipitar nas brigas conjugais de meus pais, equivale ao que Lacan
– diferente do que baila no céu azul da pintura – não os anjos, mas um pássaro designou como “tentativas do sujeito de fazer entrar o analista no seu jogo”94. Em
que, apesar de sua dimensão assustadora, parecia-me uma gaivota. Esta, tal qual outros termos, era bem diferente da “realização do símbolo” porque se tratava
na célebre cena filmada por Hitchcock como prenúncio da terrível proliferação da “tentação... de constituir hic et nunc na experiência analítica” uma “referência
do supereu materno em Os pássaros, voava ferozmente rumo a mim e ao analista. imaginária”. Assim, a atitude de provocação, transferida ao analista no sonho, não
Para enfrentar tal ferocidade, do corpo do analista deitado no divã, vi insurgir uma deixava de me angustiar e perturbar porque se tratava de mais uma imagem desor-
espécie de gesto que, por me parecer também provocar demais a gaivota aviltante, denada com que eu procurava substituir o símbolo que não se realizava para mim
me angustiou e me fez acordar. O enfrentamento e a provocação se faziam com o de forma viva. Nessa transferência, eu acabava me assustando de, nas imagens
punho cerrado e o antebraço levantado, tal como no gesto de “dar uma banana” oníricas, ver o analista fazer o que eu muitas vezes fiz, mas esse susto, seja no mo-
que, por sua vez, não deixa de ter conotações fálicas. mento do sonho, seja no momento em que o sonho é relatado, não foi determinante
Ao falar desse sonho em uma sessão de análise, ressaltei a homofonia que eu para que eu verificasse o real que se impunha no sonho. Tal verificação se processa
escutava, em francês, entre o nome do pássaro ameaçador e um adjetivo relaciona- apenas quando, pela interpretação, o analista faz falar o sonho, dá voz ao que as
do ao que por muito tempo se apresentou para mim como o silêncio de minha mãe imagens oníricas, inclusive por sua dimensão pictural e cinematográfica, atiçando
diante da irascibilidade paterna. Mas, dessa equivalência fônica, meu então analis- o olhar, procuravam emudecer. Mas, antes de abordar esse real que se destaca no
ta francês me corrige dizendo que apenas um estrangeiro poderia escutar mouette sonho, é importante discernir as relações das imagens do sonho como o símbolo e
(“gaivota”) como homofônico à muette (“muda”). Diante de minha insistência na a interpretação analítica.
dimensão aterradora do gesto que, figurado a princípio como uma proteção, aca- No que concerne ao símbolo, as imagens oníricas se destacam frente a outros
bava por me parecer provocar ainda mais o pássaro que, como eu, no passado, nas tipos de imagem porque “o sonho é uma imagem simbolizada”95. Daí, a meu ver,
brigas conjugais de meus pais, se precipitava na cena, o analista me lançou uma a dimensão enigmática tão presente nos sonhos: suas imagens não se separam de
interpretação na qual a dimensão da voz fura e perpassa o que antes – sob a forma um questionamento do tipo “o que querem dizer?”, ou seja, elas se apresentam,
de quadro, cena, atuação e gesto – se dava a ver como imagem no sonho para não mesmo de modo desordenado, como simbolizações de alguma outra coisa. Porém,
se fazer escutar. é a interpretação analítica que faz a “simbolização da imagem”96 e, também, como
Essa interpretação faz falar, dá voz ao gesto que, como uma imagem agressi- procurarei elucidar mais adiante, permite ao analisante verificar o real que se impõe
va e provocadora, me angustiava no sonho. Ela valoriza, ao revés da angústia, a no sonho.
incidência do falo para o enfrentamento do domínio materno: “Tais-toi, surmoi A interpretação Tais-toi, surmoi maternel (“Cala-te, supereu materno”) me per-
maternel!”, “Cala-te, supereu materno”. O que, como imagem onírica, era “teto” mitiu enfrentar o que as imagens oníricas, por mais que tentassem me mostrar, não
(“toit”) ressoa em “cala-te” (“tais-toi”), ressaltando e fazendo-me escutar, por essas deixavam de me ocultar. Tal interpretação destaca e, mais ainda, confronta a voz do
desmontagens fônicas, a voz do supereu ocultada por meu equívoco de forçar uma supereu na suposta mudez da mãe frente ao pai agressivo, mas não menos emude-
homofonia entre moeutte (“gaivota”) e muette (“muda”), assim como pela encena- cido. Nesse contexto, é instigante que Lacan97, logo após ter situado a intepretação
ção pictural e cinematográfica das imagens do sonho. analítica como “simbolização da imagem”, também sustenta que o analista “acaba
por simbolizar o supereu que é o símbolo dos símbolos” porque “o supereu é uma
VIVIFICAÇÃO DO SÍMBOLO fala que não diz nada” ou, ainda, “uma lei sem fala”.
Lacan, já nos primórdios de seu ensino, afirma que, “por não realizar a ordem Porém, por mais que, inclusive por sua dimensão imperativa e sua formulação
do símbolo de uma forma viva, o sujeito realiza imagens desordenadas que a como uma lei, a interpretação Tais-toi, surmoi maternel (“Cala-te, supereu mater-
substituem”93. Considero que a condensação de O nascimento de Vênus com Os no”) ressoe, tanto quanto o gesto provocador do sonho a que ela alude, como uma
pássaros evoca muito bem a realização de imagens desordenadas como um modo, ordem do supereu e aponte claramente para o supereu materno, ela mesma não
fracassado, de dar vida a um ordenamento simbólico que, pelo modo pouco vivo se impõe como proveniente do supereu. Afinal, se o analista simboliza o supereu é
como o pai parecia-me afetar a existência, eu experimentava de forma pouco pre- justamente porque ele não o é, nem deve sê-lo, uma vez que a interpretação analí-
cisa e muito mortificada. Devido a esse fracasso e esse desordenamento, só restava tica – ao contrário da fala do supereu – é bem diferente de “uma fala que não diz
angustiar-me e apavorar-me frente à imagem do gesto provocador que, no sonho, nada” ou de “uma lei sem fala”. A interpretação analítica diz alguma coisa, é um
eu via o analista fazer para a gaivota que eu tomava como muda mas, ao mesmo
tempo, ameaçante.
94 Ibidem, p. 32.

95 Ibidem, p. 47.

96 Ibidem, p. 47.
93 LACAN, Jacques (2005). “Le symbolique, l’imaginaire et le réel” in Des Noms-du-Père
(1953). Paris: Seuil, p. 31. 97 Ibidem, pp. 49 e 57.

44 45
dizer, se apresenta como uma fala, e uma fala vivificante. Assim, me parece possível que se impõe de modo surpreendente e vulgar à fala, ao gesto ou ao que se pensa.
sustentar que a interpretação analítica, bem diferente das tentativas do neurótico, Em seguida, Stephen mostra a seu colega Cranly como o relógio do Ballast Office,
confere à ordem do símbolo uma forma viva. Nessa vivificação do símbolo, a inter- que “é apenas um item do catálogo do mobiliário das ruas de Dublin”, passa a ser
pretação analítica permite ao analisante verificar o que há de real, por exemplo, nas visto e descoberto de modo epifânico:
imagens do sonho e, por isso, a desmontagem fônica operada em Tais-toi, surmoi
maternel (“Cala-te, supereu materno”) abriu-me uma via, só efetivamente perfilada imagine meus olhares para o relógio como apalpadelas de um olho espiritual que preten-
ao final de minha análise, para desenredar-me do afeto depressivo que perturbava de ajustar o foco da própria visão. No momento em que o foco é encontrado o objeto se
minha relação com a vida. transforma em epifania103.

“... ENTRE FANTASIA E FONAÇÃO” Logo, a epifania resulta do enlaçamento entre o que se impõe a partir de um
Considero especialmente instigante que Tais-toi, surmoi maternel (“Cala-te, supe- olhar (ou fala, gesto, pensamento) e, por um processo de focalização, a fruição, ou
reu materno”), pela desmontagem fônica que faz falar, se refira ao gesto fálico que, seja, o gozo disseminado por tal imposição.
na imagem onírica, provocava a gaivota em sua mudez ameaçante causando-me Para retomar a referência do falo no contexto da interpretação analítica, desta-
angústia e, na interpretação analítica, evocava o falo como resposta ao supereu co que o pospositivo -fânico, presente em “epifania” e derivado do grego phanós que
materno permitindo-me separar-me do afeto depressivo. significa “claro”, “luminoso”, “brilhante”, “manifesto”, “evidente”, já aparecia, por
Tal desmontagem fônica não deixa de evocar, portanto, a “phunção de fonação” exemplo, nas lições 19 e 20 do Seminário O desejo e sua interpretação, quando La-
da “função fálica”, tematizada por Lacan98 e que considero como contraposta à voz can104 aborda as “falofanias” como momentos em que o falo aparece e que, a meu
do supereu porque já não se limita à fantasia. Nesse contexto, parece-me impor- ver, não deixam de ser epifânicos. Mas, antes dessa abordagem, na lição XVIII,
tante lembrar que, logo após o título da lição VIII do Seminário XXIII, podemos Lacan105, falando aos presentes em seu Seminário, sustenta que o “significante
ler, entre suas referências iniciais, o seguinte: “a função fálica, entre fantasia e fo- do qual o Outro não dispõe”, “o significante do Outro barrado”, “o significante
nação”. Esse “entre” parece-me indicar que a “função fálica” pode ser considerada oculto... é justamente o que lhes concerne” como parte do corpo que é “sacrifica-
tanto na vertente da fantasia quanto na vertente da fonação, mas que, nessas duas da... simbolicamente”, “essa parte... que tomou função significante” e que aparece
vertentes, o valor ou, melhor dizendo, o uso do falo (Φ) não é da mesma ordem. como a “função enigmática” do “falo”. Assim, diante do que, no campo do Outro,
Por isso, a meu ver, na parte da lição em que desdobra tal indicação, Lacan99 co- se apresenta como significante do Outro barrado – S( A) / – é evocado, no campo do
meça destacando que a letra grega Φ (phi, com maiúscula) é também “a primeira sujeito, o falo simbólico (Φ). Nesse contexto, também é importante considerarmos
letra da palavra fantasia”, mas, logo em seguida, sustenta que essa letra também a seguinte ressalva de Lacan106: “embora seja o símbolo mesmo” da “vida que o
situa “as relações... de uma phunção de fonação” que é “a essência do Φ”, ou seja, sujeito torna significante, o falo é indisponível no Outro, e não vem em nenhuma
do falo. parte garantir a significação do discurso do Outro” porque, por mais que a vida
A referência ao falo no contexto da interpretação analítica também me ende- do sujeito lhe seja sacrificada, ela não lhe é, “pelo Outro, devolvida”: “o Outro lhe
reça à última lição do Seminário XXIII, quando Lacan100 diz, rapidamente, que responde – S( A)/ ”.
Joyce se vale das epifanias para fazer com que “inconsciente e real se enodem”, À medida que o falo concerne ao sujeito e não ao Outro, que o falo, no campo
ou seja, com que a dimensão significante determinante de um sujeito se enlace do sujeito, evoca o significante que falta ao Outro, parece-me possível sustentar
com a substância gozante cuja fluidez disseminadora encontra no objeto a alguma que, embora o Outro não devolva ao sujeito a vida que lhe foi sacrificada, algo da
referência, alguma fixação. Esse enodamento entre significante e gozo pode ser vida se impõe na função enigmática própria ao falo. Nesse contexto, sublinho que,
lido, a meu ver, na definição e em um dos exemplos apresentados por Joyce101 em no Seminário XIX, Lacan107 se vale das histórias em quadrinhos para afirmar que,
Stephen herói, esse livro publicado postumamente e considerado uma espécie de tal como os balões (banderoles) onde se indica que os personagens tomam a palavra,
“rascunho” de Um retrato do artista quando jovem. De início, a epifania é definida a própria fala pode, “se levantar (bande) como uma função (rôle) ou não”. Nessa
como “uma súbita manifestação espiritual, fosse na vulgaridade de uma fala ou de citação, temos uma aproximação entre o verbo bander (apresentar ereção fálica) e
um gesto ou na memória da própria mente”102 e verificamos, portanto, o quanto os balões (banderoles) onde lemos as falas nas histórias em quadrinhos, verificamos
tal “manifestação espiritual” é laicizada e mesmo banalizada por sua relação com o

98 LACAN, Jacques (2007). O Seminário, livro XXIII, O sinthoma (1975-1976). Rio de Janeiro: 103 Ibidem, p. 171.
Jorge Zahar Editor, pp. 123-124.
104 LACAN, Jacques (2013). Le Séminaire, Livre VI, Le désir et son interprétation (1958-1959).
99 Ibidem, p. 123. Paris: La Martinière et le Champ Freudien Éditeur, pp. 376 e 389.

100 Ibidem, p. 151. 105 Ibidem, pp. 354-355.

101 JOYCE, James (2012). Stephen herói (1944). São Paulo: Hedra. 106 Ibidem, p. 355.

102 Ibidem, p. 171. 107 LACAN, Jacques (2011). Le Séminaire, Livre XIX, ... ou pire (1971-1972). Paris: Seuil, p. 69.

46 47
o quanto a fala é relacionada por Lacan108 à função fálica, a “Φ de x”. “fechamento (serrage) do nó em torno do acontecimento de corpo e a inscrição que
No último ensino de Lacan, a função fálica não me parece mais se restringir ao pode ser notada como a em um uso renovado”. Esse “uso” é “renovado” porque a
que, no início desse ensino, era designado como significação fálica, ou seja, ela já interpretação, sobretudo em sua perspectiva jaculatória, vem enfatizar, de um modo
não é mais apenas o que se produz metonímica e metaforicamente no deslizamento mais decidido e evidente que antes, o furo e não a cadeia significante.
e na substituição dos significantes. Por isso, no Seminário XXIII, Lacan109 passa a Em minhas associações referentes ao sonho retomado aqui neste texto, na pro-
afirmar que o falo, como “suporte da função do significante”, verifica o real, assim liferação de nomes, referências e imagens que ele me evocou em análise, eu tendia
como passa a situar “a função fálica, entre fantasia e fonação”, ou seja, respectiva- a privilegiar, ainda como analisante, a cadeia significante, mesmo que a persistência
mente, entre o que se enquadra nos termos da significação fálica e o que enigma- do enigma no sonho me convocasse ao furo que me tenta a vida, mas do qual, no
ticamente extrapola tal enquadre. De modo ainda mais contundente, Lacan110 vai momento em que fiz esse sonho e o trabalhei em análise, eu ainda me defendia. As-
nos fazer escutar o fonético como faunético, condensando os fonemas com a figura sim, sem dúvida a interpretação Tais-toi, surmoi maternel (“Cala-te, supereu mater-
erótico-mitológica dos faunos e nos permitindo conjugar ainda mais a dimensão no”) permitiu-me acercar-me da vida de um modo surpreendente, mas precisei de
sexual e significante própria à função fálica com a dimensão enigmática, literal e mais um bom tempo de análise para efetivamente acolher o furo por onde a trama
não menos sexual do falo, conferindo ao inconsciente um alcance real e que extra- aterradora evocada pelas imagens desse sonho pôde, enfim, esvair-se117.
pola o inconsciente tomado apenas no âmbito da significação fálica111.
Lacan112 já destacava a fala, em sua conjugação com a função fálica (Φ de
x), como instauradora da “dimensão da verdade”, “da verdadeira verdade” e que
somente com o discurso analítico” passou-se a “entrever” tal verdade como “o que
revela esse discurso a cada um que se engaja nele de modo axial como analisante”.
Ora, essa revelação realizada pelo discurso analítico para o analisante se dá com a
intepretação, com esse importante recurso pelo qual um analista sustenta como a
psicanálise é “o que faz de verdade (fait vrai)”113. Por conseguinte, a interpretação
Tais-toi, surmoi maternel (“Cala-te , supereu materno”) não deixa de se valer fau-
neticamente da referência ao falo (Φ), convocando-o do lado que concerne à vida,
valendo-se do que eu falava das imagens de um sonho (“teto”/toit, “gaivota”/moeut-
te, “muda”/muette, etc.) sem conseguir, a princípio, discernir o que o sonho falava.
Parece-me que essa ressonância faunética da interpretação analítica também
pode ser escutada na recente tematização de Laurent114 sobre a interpretação, no
último ensino de Lacan, como uma forma de jaculação. Seu ponto de partida é a
seguinte formulação de Lacan115: “o efeito de sentido exigível do discurso analítico”
é “o real de um efeito de sentido”. Nesse novo contexto, esclarece-nos Laurent116,
a interpretação analítica não é “uma tradução por acréscimo de um significante
dois em relação a um significante Um”, porque, ao interpretar, o analista escolhe o

108 Ibidem, p. 69.

109 LACAN, Jacques (2007), op. cit., pp. 114 e 115.

110 LACAN, Jacques (2001). “Joyce le Symptôme” in Autres Écrits (1979). Paris: Seuil, p. 565.

111 Para esta extrapolação do inconsciente nos termos da significação fálica e, portanto, para a
concepção do “inconsciente real”, encontrei importantes esclarecimentos em Laurent (2016, pp. 52-54 e
104-105).

112 LACAN, Jacques (2011), op. cit., p. 69.

113 MILLER, Jacques-Alain (2013). El ultimísimo Lacan. Buenos Aires: Paidós. Ver, também:
LAURENT, Éric (2018). “Disrupção do gozo nas loucuras sob transferência” in Opção Lacaniana,
Revista Internacional Brasileira de Psicanálise, nº 79. São Paulo: EBP, pp. 57-60.

114 LAURENT, Éric (2018), op. cit., pp. 60-62.

115 LACAN, Jacques (octobre 1975). “Séminaire du 11 février 1975 [R.S.I.]” in Ornicar?, nº 4.
Paris: Le Graphe, p. 96.
117 LAIA, Sérgio (2018a), op. cit.. E, também: LAIA. Sérgio (2018b). “O furo, em corpo, ainda”
116 LAURENT, Éric (2018), op. cit., p. 60. in Curinga, nº 46. Belo Horizonte: EBP, pp. 118-132.

48 49
solução singular que cada um realiza acerca de seu atravessamento da fantasia, sua
QUE ENTRE O INFINITO relação com o sintoma e sobre o seu desejo de analisar.
É possível, a partir da experiência analítica, verificar, através da grande maioria
Sonhos e final de análise dos testemunhos de passe, o lugar privilegiado conferido aos sonhos, como foi
observado por Marie-Hélène Brousse: “os passantes fazem de seus sonhos um ob-
Fátima Pinheiro* jeto de transmissão essencial de seu tratamento”120, o que oferece um tom de au-
tenticidade aos relatos destes. Na conferência que proferiu na Escola de Orientação
* Lacaniana (EOL), em 1995, publicada posteriormente em 1997, com o título de
RESUMO ABSTRACT Psicanalista EBP/AMP, Doutora “Algumas observações sobre a interpretação a partir do Cartel de Passe”, Brousse
Este artigo apresenta This article draws some em Psicanálise/UERJ. E-mail: chama atenção para o seguinte aspecto: a interpretação não foi uma referência dos
algumas considerações considerations on the hole mariafatimapinheiro01@gmail.com. passantes na organização de seus testemunhos, nem tampouco aparece do que res-
sobre os sonhos no final de of dreams in the end of ta de seu tratamento. Ainda, frente à ausência das interpretações, Brousse verifica
análise. E mostra que os analysis. It demonstrates que são os sonhos que vêm ocupar o lugar vazio da interpretação, uma vez que os
mesmos ocupam o lugar that dreams occupy relatos dos passantes fazem mais referência aos sonhos do que às interpretações do
vazio da interpretação, the empty space of analista nos momentos cruciais de cada experiência analítica. O fato importante,
assim como são uma via interpretation, as well as ressaltado pela autora, é que os sonhos relatados pelos passantes eram sonhos não
possível na direção do they present a possible interpretados, o que faz Brousse concluir que nos testemunhos são os sonhos que
real excluído de sentido ao alternative towards the interpretam, eles não são interpretados. Acrescenta, indo além, “o sonho se con-
servirem de sustentação senseless of real by offering verteu em analista, o que dá a esses testemunhos um aspecto de autoanálise”121.
para o passe. a pillar to the construction of Embora limitados, ou por terem sido registrados de maneira imposta, ou por terem
the pass. sido objeto de uma seleção, como descreve Brousse, os sonhos são pontos impor-
PALAVRAS-CHAVE tantes de referência no desenvolvimento da análise, desvelando progressivamente
Sonho, final de análise, KEYWORDS as mudanças de posição do sujeito.
interpretação, passe. Dream, end of analysis, Perguntamos, então, qual seria a função dos sonhos no final de análise? Como
interpretation, pass. eles participam da mudança de posição subjetiva no final do percurso analítico?
Seriam os sonhos uma via possível para dirigir-se ao real excluído de sentido?
Essas perguntas, antes de mais nada, têm por objetivo tentar cernir algo, ao
Na proposição de 9 de outubro de 1967, sobre o psicanalista na Escola, Lacan menos, da tarefa do analista, a de investigar ao que escapa da representação, esse ir-
reitera a concepção freudiana de que somente o início e o final das análises podem representável que se aproximaria do que nos apontou Jorge Luis Borges122, em seu
funcionar como pontos nodais, a partir dos quais pode-se teorizar sobre os efeitos Libro de Sueños. Nesse livro, o sonho ocupa o lugar vazio da interpretação; o sonho
de uma experiência analítica. Lacan contava com aqueles “a quem se imputa estar ocupa sua radical posição de intérprete. Ao situar a conjunção/disjunção entre o
entre os que podem dar testemunho dos problemas cruciais, nos pontos nodais em sonho e o poema, Borges não somente parte de uma história geral dos sonhos, ao
que se acham eles no tocante à análise, especialmente na medida em que eles pró- compilar desde os sonhos proféticos do Oriente até os sonhos satíricos e alegóricos
prios estão investidos nessa tarefa ou, pelo menos, sempre em via de resolvê-los”118. da Idade Média, passando por Lewis Carroll e Kafka, como também e principal-
Como sabemos, no final de uma análise produz-se o savoir-faire implicado no mente por introduzir algo novo para nós analistas.
sinthoma, que concerne à arte ou artifício com que o analista se depara diante da Esse livro, como uma sombra no canto da prateleira, aparentemente inofensivo,
inexistência do Outro. Contudo, é o AE (analista da Escola) que teria um duplo de dentro dele salta um tigre:
esforço: não somente o de saber-fazer com o seu sinthoma, mas de “fazer” um saber
que seja transmissível, realizado por seus atos e suas interpretações. Esse seria o du- Na infância pratiquei com fervor a adoração do tigre: não o tigre oveiro dos camalotes
plo esforço ao qual se referiu Bassols119, ao denominar o AE como sendo o artista do Paraná e da confusão amazônica, mas o tigre rajado, asiático, real, que só homens
da Escola, por ele testemunhar o resultado de sua obra, o sinthoma, e, ao mesmo aguerridos podem enfrentar, sobre um castelo em cima de um elefante. Eu costumava
tempo, por ser aquele que elabora um saber que é produto de sua obra. Fazer um demorar-me infindavelmente diante de uma das jaulas do Zoológico; apreciava as vastas
saber, em contraponto ao saber-fazer, implica na produção de um saber sobre a
120 BROUSSE, Marie-Hélène (1997). “Algunas Observaciones sobre la interpretación a partir
del Cartel del Pase” in Enseñanza del Pase. N. Alvarez, P. P. Casalins, L. Michaine, A. M. Rubistein & F.
118 LACAN, Jacques (2003). “Proposição de 9 de outubro de 1967” in Outros Escritos. Rio de
Vitale (Eds). Buenos Aires: Ediciones Publikar, pp. 21-39.
Janeiro: Jorge Zahar Editor.
121 Ibidem, p. 23.
119 BASSOLS, Miquel. Entrevista: Conversando com los artistas (EOL). Acessível em: https://
vimeo.com/151034725. 122 BORGES, Jorge Luis (1979). Livro dos Sonhos. São Paulo: Difel, p. 134.

50 51
enciclopédias e os livros de história natural, pelo esplendor de seus tigres. (Ainda me Lacan, em seu ensino, nos permite aproximar o umbigo dos sonhos do recalque
lembro dessas figuras: eu, que não consigo recordar sem engano a fronte ou o sorriso de originário, uma vez que reconhece nele um fenômeno significante, ao situar ali o
uma mulher.) A infância passou, caducaram os tigres e sua paixão, mas eles prosseguem impossível de dizer. O impossível de dizer está remetido ao que Lacan situou como
em meus sonhos. Nessa tela submersa ou caótica continuam prevalecendo, e desse modo: “não há relação sexual”, o que significa que o umbigo do sonho se relaciona à im-
adormecido, distrai-me um sonho qualquer, e de repente percebo que é um sonho. Cos- possibilidade da existência da relação sexual.
tumo pensar então: isto é um sonho, pura diversão de minha vontade, e, já que tenho um
poder ilimitado, vou produzir um tigre. HOMEM DOS LOBOS: A RECONSTRUÇÃO DA CENA E A LETRA
Oh, incompetência! Nunca meus sonhos sabem engendrar a almejada fera. O tigre apare-
ce, sim, mas dissecado ou fraco, ou com impuras variações de forma, ou de um tamanho
inadmissível, ou muito fugaz, ou tirante a cão ou a pássaro123.

Borges, pode-se dizer, toca num ponto crucial, com seu esforço de poesia: no
enodamento em que a psicanálise opera, aquele em que o real não fala, o simbólico
só mente e o imaginário se equivoca124. Entretanto, pode-se dizer que o sonho, ocu-
pando o lugar vazio da interpretação, requer um esforço de poesia, como o trecho
de “Dreamtigers” de Borges assinala. É necessário um esforço de invenção, como
atestam os testemunhos dos passantes, para dar conta do tigre real da palavra que
não pode ser dita.

O QUE É O SONHO? Através do sonho dos lobos de o “Homem dos Lobos”125, Freud tenta reconstruir
Para Freud, o sonho é a via régia para o inconsciente. Para ele cada sonho traz con- uma cena com a dimensão de um acontecimento traumático, desvelando que ali
sigo um grão de descoberta, que o trabalho interpretativo desdobra e faz frutificar, havia algo de real. Real que a função da cena infantil desvela, as vias que marcam
contudo jamais de maneira definitiva. A interpretação de um sonho é um trabalho para sempre o sujeito e determinam seu desejo e gozo, anunciando assim o lugar
em que é sempre possível o mesmo elemento do sonho ser tomado em outra di- da causa.
reção e chegar a sentidos diferentes. Há algo interminável em uma interpretação, Mesmo que o que esteja em jogo no sonho não seja a metaforização do gozo, e
por restar sempre algo opaco e obscuro, o que Freud denominou de “umbigo do sim da castração, uma vez que a metáfora realiza a substituição de um significante
sonho”, aspecto revelador de que nem tudo é possível interpretar. por outro significante, não podemos dizer que todo sonho realize deslocamentos e
O sentido do sonho se refere ao efeito da metáfora, e é justamente esse efeito de metáforas. Existem, porém, sonhos onde algo não está metaforizado ou deslocado.
sentido que Freud chama de desejo inconsciente. Esse desejo, de aspecto intrans- Freud nos mostra como o sonho do “Homem dos Lobos” está organizado em tor-
missível, uma vez que não se anuncia de que ele é desejo, tem um espectro evanes- no da cena primitiva. O sonho se realiza através de substituições significantes, con-
cente e representa o enigma do sujeito. Se por um lado o sonho, como formação do tudo, esses significantes estão ordenados em torno de um ponto fixo, imóvel, e que
inconsciente, tem valor na experiência analítica por ser “vetor da palavra”, isto é, é suporte da imagem. Essa presença, que não se reduz à articulação significante,
faz falar o sujeito, sendo um índice de histerização (na transferência o desejo – via mas remete à potencialidade dos sonhos e está relacionada às cenas infantis, Freud
o analista – dirige sua pergunta ao sujeito suposto saber). Por outro lado, como a chamou de verdade latente do sonho. Isto revela, de acordo com Freud, que todos
Freud escreveu, a função do sonho é a de cegar, não se podendo mais ver algo ali, os sonhos possuem sempre o mesmo conteúdo, o que explica que um único sonho
adquirindo a função de resistência. Podemos dizer que, na experiência analítica, a possa envolver todo o percurso de um tratamento. Esse ponto traduz a dimensão
metáfora do sonho só pode ter importância se ela sustentar a metonímia do desejo. da escrita que o sonho enseja. Lacan126 exemplifica essa dimensão ao utilizar uma
Entre a ambiguidade que se apresenta na função do sonho: a de convidar o analogia do jogo e sonho da seguinte maneira:
sujeito a falar e da recusa de nada escutar dele, nos parece interessante retomar o
aspecto apontado por Freud que concerne ao “umbigo do sonho”, uma vez que ali Digamos que o sonho se parece com o jogo de salão em que se deve, estando na berlinda,
ele descreve com precisão do que trata o umbigo. Freud se refere a ele como sendo levar os espectadores a adivinharem um enunciado conhecido, ou uma variação dele,
um termo onde o sentido se perde, em que a força de falar e de associar sobre o so- unicamente por meio de uma encenação muda. O fato de o sonho dispor da fala não
nho tem um limite, onde há um ponto de carência do significante, um ponto opaco modifica nada, visto que, para o inconsciente, ela é apenas um elemento de encenação
em que falta a possibilidade de se concluir.
125 FREUD, Sigmund (1976). “Uma neurose infantil e outros trabalhos” in Edição standard
123 BORGES, Jorge Luis (1979). “Dreamtigers” in Livro dos Sonhos. São Paulo: Difel. brasileira das obras completas de Sigmund Freud, v. XVII. Rio de Janeiro: Imago.

124 SALGADO, Marita (2016). “Interpretación?” in Deseo y Sinthome: consecuencias de la última 126 LACAN, Jacques (1998). “A instância da letra no inconsciente” in Escritos (1957). Rio de
enseñanza de Lacan. Compilador: Gerardo Arenas. Olivos: Grama Ediciones. Janeiro: Jorge Zahar Editor.

52 53
como os demais. É justamente quando o jogo e o sonho esbarrarem na falta de material Podemos pensar que o V, enquanto algarismo romano, é da ordem do sentido.
taxêmico para representar as articulações lógicas da causalidade, ...eles darão provas de Entretanto, o V, enquanto signo ou letra, é tomado além do significante, possi-
ser, um e outro, uma questão de escrita, e não de pantomima.127 bilitando sua ação metonímica de inscrever o gozo. É no deslocamento de vespa
listrada à pêra listrada, no deslizamento sucessivo do V às asas da borboleta, às
Ao aproximar o jogo do sonho, Lacan parece denotar a conjunção entre o “isso pernas abertas das mulheres, que a metonímia opera no metabolismo do gozo. Esse
fala” e o “isso mostra”, no entanto, marca a diferença entre a figuração e a cena, trabalho faz passar ali algo do gozo ao inconsciente, passagem que se dá em ato. O
sem reduzir a cena à figuração, ou seja, aponta que a figuração não é senão uma trabalho cria uma borda, que é da ordem do non sens, o fora-dentro do sentido. As-
limitação da escritura. Dessa forma, Lacan nos leva a deduzir que um sonho é sim, pode-se depreender na direção do tratamento uma modificação na economia
uma escrita por meio de imagens. Assim sendo, consideramos que na articulação de gozo do sujeito.
entre “isso fala” e “isso mostra” se desvelam dois aspectos distintos da escritura do Se o primeiro sonho, o sonho dos lobos, é o exemplo de um trabalho que se dá
sonho: o da letra e o do significante remetido à sintaxe. O exemplo do sonho do em torno das palavras, e que produz um saber, o segundo sonho do “Homem dos
“Homem dos Lobos” revela, de maneira única e especial, os dois aspectos distintos Lobos”, descrito por Freud, se produz por meio de poucas palavras, é lacônico.
da escritura que opera no sonho. Um homem arrancando as asas de uma vespa – espe – que recebe de Freud apenas
No texto freudiano de o “Homem dos Lobos”, podemos observar que, parale- uma correção: Wespe. Isto remete à emergência da letra, fora de qualquer sentido
lamente à busca da cena primitiva, há um trabalho de Freud na direção do esva- e de qualquer consistência imaginária, o que faz com que a resposta seja: Espe,
ziamento de um significado e da decantação de uma letra, reconhecido por Lacan então sou eu mesmo: S.P. – Sergei Pankejeff. Nota-se aí a letra, como resto, que
como o momento em que Freud se defronta com o limite do inanalisável, isto é, cai, revelando que não há sentido, ou seja, que não há saber no campo do Outro.
com o limite da interpretação. Retomando o aspecto assinalado anteriormente, de que o sonho é uma escrita
por meio de imagens, cabe ressaltar que a formulação lacaniana de “isso mostra”,
Observamos a partir do signo V: de fato mostra a evocação do sujeito fora do deciframento. A imagem referida aos
1. O algarismo romano, que marca a hora do relógio. Da infância até a época lobos que olham o menino, na cena do sonho, (ou melhor, a imagem é olhada pelo
do tratamento, às 5 horas aparecia a depressão, hora da suposta observação do menino), mostra não porque é imagem, mas porque as substituições significantes
coito dos pais. estão ali situadas ao redor de um elemento insubstituível. Esse aspecto revela que o
2. No desenho do sonho, os 5 lobos. “mostrar” no sonho não é uma questão de sentido, mas uma questão de construção.
3. Do abrir e fechar das asas da borboleta, de listras amarelas, que desenca-
deia a fobia, cujos traços estão associados às pernas abertas da mulher (listras O SONHO COMO INTÉRPRETE E A CONSTRUÇÃO NO PASSE.
amarelas). Demonstrar e mostrar são duas vias possíveis para dirigir-se ao real excluído de
4. Nome da ama, associada à cena crucial na história do paciente: Grusha, sentido128, como aponta Moraga (2016) a partir de Lacan. A demonstração, que vai
(em russo, pêra) ajoelhada de quatro (postura da mãe na cena primária), que o do simbólico ao real, como observado no umbigo dos sonhos, ponto inapreensível,
fez aos dois anos e meio urinar. como sublinha Lacan129, e o mostrar, que vai do imaginário ao real, como indicamos
5. Posição do corpo das camponesas, como condição de atração, sintoma no “Homem dos Lobos”, parecem ser vias possíveis. Os testemunhos de passe en-
compulsivo. sinam que a relação com o real não pode ser transmitida sem que haja o arranjo de
uma ficção construída no passe. Diante disso, perguntamos: como o sonho, como
Podemos observar, igualmente, através da letra M, de matrona, que aparece intérprete no final de uma experiência analítica, pode servir de suporte à ficção
carregada de uma nuance maternal, assim como também o desenho das orelhas construída no passe? Dois exemplos podem nos auxiliar a introduzir alguma luz
do lobo. sobre essa pergunta: um sonho-poema de Louis Aragon,130 retirado do Livro dos
A letra W como um duplo de V: letra do nome do professor de latim, Wolf (lobo) Sonhos de Jorge Luis Borges, como “esforço do poeta para levar adiante o exercício
e letra inicial de Wespe. no sentido da demonstração”, e que nos faz estar a cada instante a dois dedos da
Espe – wespe – Wespe são significantes que articulam uma nova produção de metáfora poética, e dois sonhos produzido por Araceli Fuentes, descrito no seu
sonho no curso da análise. Vê-se aí o inconsciente em pleno trabalho, ao fazer uso testemunho de passe “O resíduo de uma análise”131.
do “saber-fazer” com a língua, produzindo uma escrita. Nesse ciframento persiste
uma forma gráfica, simples – V ou redobrada – W. Quando Freud acrescenta W ao 128 MORAGA, Patrícia (2016). “Entre demostrar y mostrar” in Deseo y Sinthome: consecuencias
espe, a intervenção não se detém no campo da significação – vai além do significado de la última enseñanza de Lacan. Compilador: Gerardo Arenas. Olivos: Grama Ediciones.

da vespa ou da pêra. Fica colocada em questão a dimensão do sentido, reduzindo- 129 LACAN, Jacques (1985). O Seminário, Livro II, O eu na teoria de Freud e na técnica da
-se ao elemento mais radical, a letra. psicanálise (1954-55). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.

130 BORGES, Jorge Luis (1979), op. cit., p.121. Embora não seja um sonho de um dispositivo
de passe, antecipa com sua arte o que podemos apreender no dispositivo.
127 Ibidem, p. 515.
131 FUENTES, Araceli. “O resíduo de uma análise” in Opção Lacaniana nº 63/junho de 2012. EBP.

54 55
Araceli Fuentes relata que, num momento avançado da análise, dois sonhos A poesia, outro nome do encontro da língua com o real, que “basta escutá-la
propõem uma solução lógica a um problema de lógica sexual. para que nela se faça ouvir uma polifonia”133, é um influxo de uma partitura para
Assim ela descreve essa passagem: o sonho:

Não gostava de estar num grupo de mulheres em que não houvesse homens. Para evitá-lo “Que passe!
preferia ficar sozinha, quer dizer, em posição de exceção ao conjunto das mulheres que eu Ah, muito bem! Façam entrar o infinito!”134
mesma constituía, apartando-me. Um sonho que se repetiu duas vezes me deu a solução
para esse problema. Por duas noites consecutivas sonhei que encontrava uma mulher co-
nhecida e que, para meu assombro e regozijo, tinha a mesma altura que eu. Na realidade,
as duas mulheres são mais altas que eu e ambas tiveram relação com o dispositivo de
passe. A cada noite ocorria a mesma situação: encontro uma e comprovo com surpresa
que é da mesma estatura que eu; na noite seguinte encontro a outra e sucede o mesmo.132

O sonho, em sua função de intérprete, além de realizar o seu desejo infantil de


ser mais alta, também solucionava de forma lógica a dificuldade inicialmente men-
cionada por ela: nem grupo nem exceção, mas uma série, ser mulher entre outras,
em uma série, uma série aberta, sem lei.
Outro sonho, produzido na véspera de sua última sessão de análise, solta uma
pergunta, que é tomada como um resto sem ser analisado:

“O que há de resíduo da voz?” O sonho tem o seguinte relato: “Ia à análise e encontrava
minha analista limpando a porta de sua casa, o lugar onde seu marido havia morrido. Ao
chegar, ela me dizia que ia fazer uma festa-homenagem a seu marido, e eu, nesse diálogo
absurdo, dizia-lhe que ia me apresentar ao passe. Então ela me perguntou: O que há de
resíduo da voz?”

De acordo com Araceli Fuentes, o fato de existir resto não demoveu sua ideia
de concluir a sua análise, pois sabia que em uma análise sempre ficam restos. Ao
realizar as entrevistas com os passadores, decidida a se apresentar ao passe, ela es-
quece de se referir à pergunta do sonho. A despeito disso, situa um acontecimento
de corpo, denominado por ela, de “O dia que baixaram a voz de Paris”, que se
revelou certo dia em que foi se analisar em Paris, onde havia um barulho provoca-
do por manifestantes nas ruas. Ao localizar o acontecimento de corpo ao passador
acrescentou que, de fato, era sua voz que havia mudado passando de brusca à
metonímica, esvaziada de ruído. Mesmo tendo sido nomeada AE poucos meses
depois, a pergunta do sonho continuava a lhe interrogar. Havia no “resíduo da voz”
algo opaco, impossível de decifrar, mas que, no entanto, estava relacionado com o
empuxo a dizer, que segundo ela, era irrefreável e que atravessa seu corpo, por ve-
zes, ligado a um gozo do corpo vivo. Esse gozo, que não se deixa interpretar e nega-
tivizar, é resto, resíduo da voz, e antes de ser um resto do banquete analítico, como
ela sublinha, é produto de um novo modo de gozar. Gozo do corpo, onde vazio e
corpo se enlaçam, resposta sinthomática, como ela se refere, ao silêncio imposto no
trauma. E é com esse resíduo que o sonho deixa cair, que ela trata de saber-fazer
com o sintoma, uso surpreendente da língua que permite o encontro com o real.
133 LACAN, Jacques (1988). “A instância da letra no inconsciente” in Escritos. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor.

134 Sonho-poema de Louis ARAGON compilado por Jorge Luis BORGES no seu Livro dos
132 Ibidem, p. 23 Sonhos.

56 57
“Nunca me dê o céu...
Quero é sonhar com ele SONHOS:
na inquietação feliz
do purgatório” Um escrito para não
MÁRIO QUINTANA
ser lido
Rita Mendonça*

*
Psicóloga, Psicanalista – RESUMO ABSTRACT
Universidade Federal do Rio O presente artigo aborda The present article deals with
de Janeiro – UFRJ. Cartelizante a função do sonho e do the function of the dream
da EBP/AMP - Rio de Janeiro. despertar no percurso de and the awakening in the
Coordenadora e professora dos uma análise, recortando course of an analysis, cutting
Departamentos de Ensino, Arte e sua função crucial na off its crucial function in the
Psicanálise, e Psicossomática da passagem de analisante passage from analysand to
Escola Brasileira de Psicanálise para analista, mediante o analyst, through what can be
Movimento Freudiano, Rio de que se pode verificar nos verified in the testimonies of
Janeiro. Supervisora da equipe de testemunhos de passe com pass from the last teachings
atendimento do Conselho Estadual os últimos ensinamentos of Lacan. With the notion of
de Entorpecente, Rio de Janeiro. de Lacan. Com a noção da autonomy of the imaginary,
Membro fundador da Oficina do autonomia do imaginário, after the Seminar RSI, the
Corpo do Colégio Freudiano do Rio após o Seminário RSI, a question of the body will be
de Janeiro. E-mail: ritamendonca@ questão do corpo será approached in a counterpoint
globo.com. abordada num contraponto between the real of the
entre o real da imagem, image, denounced by art, and
denunciado pela arte, e the empire of images, effect
o império das imagens, of the decline of the father’s
efeito do declínio do nome name. The crossing of the
do pai. A travessia do transferential unconscious to
inconsciente transferencial the real unconscious, from the
para o inconsciente real, do symptom to the “sinthoma”,
sintoma para o “sinthoma”, will be punctuated by some
será pontuada por alguns littoral conversations with
litorais de conversação com psychoanalysis, such as: art,
a psicanálise, tais como: a cinema and poetry. Finally,
arte, o cinema e a poesia. the author articulates the
Por fim, a autora articula node of the sinthoma with the
o nó do sinthoma com a writing of the dream at the
escrita do sonho no final da end of the analysis.
análise.
KEYWORDS
PALAVRAS-CHAVE Dream, real unconscious,
Arte: Le pain quotidien Sonho, inconsciente real, image, art, end of the
(Our daily bread) imagem, arte, final de analysis.
René Magritte, 1942 análise.

58 59
DE ONDE VÊM OS SONHOS? pulsão é gozo, que a cena onírica se constitui. A inserção do objeto a no sonho a
partir da função do “mostrar”, nos é proposta por Lacan já em seu Seminário XI,
As cidades como os sonhos são construídas de desejos e de medos, embora o fio do quando atrela esta função ao despertar no instante que isso mostra.
seu discurso seja secreto, as suas regras absurdas, as perspectivas enganosas, e todas as Numa conferência em 1997, Marie-Hélène Brousse, referindo-se aos sonhos
coisas escondam outra. que indicam momentos decisivos da cura, menciona sonhos que indicam um final,
Italo Calvino uma virada que consiste em figurações de esvaziamentos do objeto que pontua sa-
ídas da lógica fálica, e o objeto comparece dissolvido bordejando um vazio. Cenas
O primeiro despertar de Freud para os fios secretos do inconsciente se dá pela via oníricas onde o “objeto a deixa-se soletrar como um vazio”137, numa escrita onde
régia aberta pelos sonhos, através do seu texto inaugural da psicanálise, A Interpre- o sonho surge como borda de um semblante que situa o núcleo do gozo, limbo da
tação do Sonho. Nele, ao desvelar as leis do inconsciente, Freud se dá conta que o linguagem onde a letra é puro traço no real. É dessa borda que o sonho é índice.
sonho é, com efeito, a sua narrativa e, o intérprete do sonho, o próprio sonhador. Sabemos, com Freud e Lacan, que despertamos para continuar dormindo, e que o
E, assim, brindamos o nascimento da psicanálise, na passagem do sonho para a inconsciente é exatamente a hipótese de que a gente não sonha apenas quando dorme.
palavra e seu mais além. A escrita em psicanálise pode ser abordada por três vertentes: a instância da
A questão que nos interroga é qual o lugar dos sonhos e de que maneira eles letra no inconsciente, texto considerado por Lacan entre escrita e fala, onde a letra
podem pontuar a escritura de um percurso de uma análise à luz das indicações do está ligada à proposição freudiana das formações do inconsciente, a escrita do fan-
último Lacan. tasma e a escrita do sinthoma, quando Lacan radicaliza essa distância ao apontar
Apesar de Freud não ter articulado explicitamente o conceito de real, desde o que “há mais que uma nuance, há uma montanha entre a fala e a escrita”.138
início de seus escritos já podemos ler o sonho como uma escritura, mais além das Nossa proposta é esgarçar o fio do sonho, do rébus para decifração, até a escrita
formações do inconsciente, como veremos com o sonho paradigmático da injeção como letra, testemunha que o ciframento é uma escrita de cifras, efeito do gozo da
de Irma, que exibe um real impossível de significantizar ou ser traduzido. Escrita letra. Do litoral ao literal, do “isso mostra”, ao traço onde o sujeito possa advir no
em nó, mais além do umbigo do sonho, que Lacan chamou “mistério do corpo reconhecimento da sua repetição.
falante.”135 Considerando a escrita dos sonhos, entre semblante e real, indagamos como
Com Lacan, observamos ao longo do seu ensino uma travessia na qual o sonho, articular real, simbólico, imaginário e sinthome, tendo como referência a autonomia
inicialmente concebido como uma formação simbólica/imaginária, através da via do imaginário do último Lacan.
do objeto, revela uma sólida articulação com a medula da palavra, ou seja, com o Miller em A natureza dos semblantes (2005), define os semblantes como uma
real. Essa questão se coloca, a partir da transcrição de uma intervenção de Lacan categoria diferenciada do imaginário, e só comparável a este porque ambos se in-
em Strasbourg, em 26 de janeiro de 1975, em resposta a uma questão de Marcel terpõem entre o simbólico e imaginário. O imaginário é que intermedia o vetor que
Ritter, quando Lacan, a propósito do “umbigo do sonho” comenta: “O umbigo do conduz do real ao simbólico, estando no sentido oposto, o semblant.
sonho é esse ponto onde o sonho é insondável, quer dizer, ponto onde se interrom- Portanto, a escrita do sonho nos aponta duas vertentes: a do sintoma como for-
pe o sentido ou toda a possibilidade de sentido”. Esse ponto é um buraco no tecido mação do inconsciente, e a do sinthome como função da letra, relacionada ao gozo,
que constitui o sonho, um real não simbolizável, opaco, que nunca chegamos a movimento pulsional depois da travessia da fantasia, onde vemos a representação
decifrar, mas que se mantém por um único fio de ligação com o restante do sonho. do objeto a na cena onírica, sem o caráter “ominoso”, mas que se insere na trama e
Nosso interesse é, através das imagens dos sonhos e do real das imagens, subli- participa da solução sinthomática, como verificamos no final de análise a partir dos
nhar como o percurso de uma análise, até a destituição subjetiva, conduz ao objeto testemunhos de passe.
como encarnação do real do sujeito, revelando uma nova relação do sujeito com a Neste périplo observamos a passagem do inconsciente transferencial para o
castração. inconsciente real, da transferência articulada ao sujeito suposto saber, a sua exte-
Assim, o trabalho de dissolução do objeto, efeito da travessia de uma análise, rioridade, homóloga ao trou-matismo.
comparece na cena onírica revelando um esvaziamento do gozo mortífero e um re- No Prefácio à edição inglesa do Seminário XI (17/5/76) encontramos a princi-
-posicionamento do sujeito, com novos arranjos de seu modo de gozar, o que aqui pal referência de Lacan para pensarmos a tese do inconsciente real: “Quando o es-
trataremos através da tessitura do sonho. paço de um lapso não comporta mais nenhum sentido (ou interpretação), somente
Revisitando o último ensino de Lacan e seus desenvolvimentos sobre o fim da aí se pode estar seguro de estar no inconsciente”.
análise, trata-se de um ponto mais radical, um mais além do umbigo dos sonhos, Vale ressaltar que, na travessia de uma cura, a abertura para o inconsciente
um ab-sens136 impossível de dizer pois não pertence ao jogo significante, mas à fun- real nos sonhos não surge apenas no final da análise, mas faz erupções em todo o
ção de “mostrar”, lá, onde a palavra não chega. É em torno desse ponto, do que na seu percurso, revelando que algo nos sonhos muda, mas, “algo” não muda nunca.

135 LACAN, Jacques (1982). O Seminário, Livro XX, Mais, Ainda. Rio de Janeiro: Zahar 137 MANDIL, Ram (2008). “Formas de relação com o corpo próprio” in Latusa digital, nº 32, p. 2.
Editores, p. 178.
138 LACAN, Jacques (1976). “Conferência na Columbia University” (1.12.1975) in Scilicet, 6/7,
136 ab-sens – homofonia entre ab-sens e absence (sem sentido, ausência de). pp. 42-45. Paris: Seuil, p. 43.

60 61
Entretanto, ao termo de uma análise, o sonho poderá expressar um encontro da- significante, letras que comparecem no sonho na tentativa de a-bordar o buraco.
quilo que mudou com o que não mudará, sendo que o que é passível de mudar é a L’une-bévue que não cessa de não se escrever, mas se faz cicatriz no umbigo do
posição subjetiva do sujeito na cena onírica diante do seu resto. sonho permitindo enodar RSI.
“Construído de desejos e medos”, veremos que o sonho, além de revelar o Freud desperta sem despertar, inaugurando o surgimento da posição ética do
sujeito em sua divisão subjetiva, também pode ser uma resposta que possibilita o analista e o pilar do que Lacan construirá como a categoria de semblant:
sujeito se orientar no seu modo de gozar diante da queda do Outro, despertando
para a sua inconsistência, momento situado na brecha entre o sonho e a vigília, em Tal como o semblante, a força do sonho é não se confundir com o que é da ordem da
que o objeto já não guarda mais seus encantos de outrora. imagem. O sonho não é uma forma imaginária que permita ao sonhador representar o
A aposta de Lacan no dispositivo do passe visava a verificação desta queda, ou mundo. Quer dizer que não se produz por meio da consciência do sonhador. Longe de ser
seja, como o início e o fim de uma análise podem oferecer os pontos chaves para se uma representação do real, o sonho é o lugar sob o qual o sujeito é olhado como objeto.140
pensar nos efeitos transformadores de uma análise.
A fim de ilustrar, cito um comentário a propósito do sonho de um passante: Este dito precioso, que sublinha o sujeito olhado como objeto no sonho, é um
marcador importante nos testemunhos dos passantes, que marca a passagem de
En su testimonio, Naparstek remarca la falta de angustia al momento de despertar, cues- analisante para analista.
tión que lo interroga. En otro testimonio (Naparstek, 2007, p. 23), este autor relata un No sonho “Pai, não vês que estou queimando” o real comparece com outro
sueño previo: parado frente al aula magna — en la que daba clases todas las semanas — nome, o mais além do pai, o pai morto, cujo despertar do pai se dá pelo alerta do
constata que esta se encontraba totalmente vacía. El Otro al cual había estado hablando filho que o pai não vê e não sabe.
todo ese tiempo, perdía consistencia. A partir de estos sueños, el pasante «escribe» — o
«lee» retroactivamente — su axioma fantasmático: «ser la voz del Otro».139 A força imperativa do desejo de dormir é a falha inerente ao exercício da paternidade.
Aquilo que queima no filho é o peso da castração paterna – “Pai, não vês”? – castração
Neste relato, observa-se a inserção do objeto a “voz” na cena onírica, para, em se- que, por se tratar do pai, é nomeada como pecado.141
guida, cair. Ao despertar, sem angústia, foi possível situar a lógica da injunção que o
obrigava a se submeter a qualquer sacrifício, contanto que encarnasse a voz do Ou- Portanto, é o encontro com o real do pai que desperta, e o desperta pela angús-
tro. Não se trata aí de um despertar produzido pela angústia do unheimlich diante do tia que envolve e queima o mais íntimo da relação entre pai e filho, o mistério que
objeto, mas um “despertar” como acontecimento, figuração de um esvaziamento do se funda no mal-entendido do encontro impossível do sujeito com o pai. A herança
objeto, que foi considerada pelo passante como a perda de um certo gozo mortífero, paterna a ser transmitida é sempre o seu pecado, o impossível de um pai, aquilo
momento em que o sujeito é capaz de fazer da sua castração o que falta ao Outro. que ele “não vê e não sabe.”
Em Les Non-Dupes Errent, Lacan nos diz que se o inconsciente é alguma coisa
O DESPERTAR DE FREUD no real, do real, testemunha-se. O que dele emerge é função do escrito, e a estru-
Como vemos, o termo despertar está no cerne da experiência analítica. Em Freud, tura como borda do real.
seu primeiro despertar para o inconsciente foi com o sonho princeps da injeção de
Irma. E, no capítulo VII da Interpretação do Sonho, relata o sonho do pai que des-
perta quando seu filho lhe diz “pai, não vês que estou ardendo?” Faremos um breve
comentário sobre esses dois sonhos paradigmáticos.
Ao se deparar com o impossível de saber através da garganta de Irma, Freud
tenta o recurso da letra - TRIMETILAMINA- na tentativa de nomear o real. Rup-
tura da imagem unificada de um corpo especular, onde nenhuma letra cabe, pois
trata-se do ponto de origem de “lalíngua”. Esse encontro de Freud com o enig-
mático da sexualidade que escapa de qualquer representação, é considerado por
alguns autores como sendo o passe de Freud. O real, atualizado no sonho enquanto
feminino, um dos seus nomes, pede em vão ajuda ao simbólico, a letra, que se pro- Paul Klee – Beginning of a poem (Gramatologia)
duziria no buraco do saber. Entretanto, o que Freud encontra na cena onírica é a
pulsão que escapa à imagem, “mancha branca”, subtração do que do mundo não
se transpõe para a cena. E assim, a extração do objeto “olhar” abre a fenda do que
140 LAURENT, Éric. Conferencia introductoria del IV Encuentro Americano de Psicoanálisis
não tem imagem, ou seja, o real da imagem. de la Orientación Lacaniana (ENAPAOL): La clínica analítica hoy: el sintoma y el lazo social. Buenos Aires,
Com Irma, Freud nos apresenta o buraco e a escrita, através da extração de um 2009.

141 LACAN, Jacques (1981). «Improvisation: désir de mort, rêve et réveil» in L’âne, Le Magazine
139 NAPARSTEK, Fabián (2007). El pase: una experiencia de Escuela. Buenos Aires: Grama. Freudien, nº 3, p. 3.

62 63
A seguir, veremos como a arte, enquanto organização em torno do vazio do A propósito, cito um comentário de Bacon sobre o retrato que fez do escritor
real, nos revela que são os espectadores que realizam as obras. e amigo Michel Leiris:

ALGUNS LITORAIS DOS SONHOS E A AUTONOMIA DO IMAGINÁRIO O que fiz literalmente menos parecido com ele é o que se parece com ele de forma mais
Se o artista antecede o psicanalista, que a psicanálise se deixe bem dizer pela arte, dramática. O interessante nesse retrato de Michel é que ele é o que se parece mais com a
servindo-se do artista como desbravador dos seus caminhos, podendo abri-los para sua figura, mas quando se pensa na cabeça de Michel, a gente nota que ela é arredondada,
novas veredas através de outros litorais literais, pois ninguém melhor que o artista e essa do retrato tem uma forma comprida e estreita. Por isso pode-se dizer que ninguém
para transformar solução em enigma. sabe o que faz uma coisa parecer mais real do que uma outra. Eu realmente quis que esse
Na história da pintura moderna, a ruptura com o figurativo se dá, segundo De- retrato de Michel ficasse parecido com ele: não faz sentido fazer o retrato de uma pessoa
leuze, sob duas formas: 1) a negação da figura, com o abstracionismo, seja ele ge- se não for para ficar parecido com ela. Mas por ser comprida e fina, essa cabeça nada
ométrico ou expressionista, nos extremos da pura forma colorida e do movimento tem a ver com a cabeça de Michel, mas, mesmo assim, é a que se parece mais com ele.143
turbulento dos acasos da linha - Mondrian ou Pollock e 2) a afirmação do Figural
contra a figuração, como é o caso de Francis Bacon (1909 - 1992).142 Na via oposta da denúncia da arte, temos o belo, enquanto valor fálico, a pode-
Na Pintura, destacaremos a obra de Francis Bacon, exibindo o “desfazimento”, rosa barreira da castração, que sustenta a imagem do corpo e o sentido através da
ou a desmontagem do corpo, corte, rompimento com a imagem unificada pela libi- ficção do corpo belo, enquanto ilusão de substância que visa fazer Um.
do, que toca o real da imagem com um estilo que nos remete ao que Lacan chamou
de “acomodação de restos”, ou seja, a mostração do objeto. O falasser adora seu corpo, porque crê que o tem. Na realidade, ele não o tem, mas seu
corpo é sua única consistência, consistência mental, é claro, pois seu corpo sai fora a
todo instante. Eu penso que sou isto! Mas cada um de nós somos apenas pequenos furos.
Pensam que são “substâncias”, mas são furos criados pelo significante. Este é o primeiro
“engano do imaginário”: Crer que somos substância!144

A princípio, Lacan inicia seu ensino pelo estádio do espelho, onde o imaginário
comparece reduzido à imagem especular, mas a questão do corpo está sempre pre-
sente ao longo de seus seminários. Do corpo tórico, passando pelo corpo extempo-
râneo à imagem - do seu seminário sobre a angústia - Lacan nos indica, ao final de
seu ensino, que o imaginário não é mais concebido como um registro dependente
Francis Bacon - Três estudos para um autorretrato (1976) e sem autonomia.
Assim, depois do Seminário RSI, o enodamento dos três aros pelo sinthome faz
Um dos pintores mais importantes da arte moderna, não por acaso, escapa de nó, homogeniza e desfaz qualquer tipo de hierarquia entre eles. Com isto, ocorre a
todo enquadramento numa Escola ou movimento, pois ora é tido como expressio- subversão do imaginário, reduzido à imagem especular, e Lacan retoma a questão
nista, ora abstracionista. Sua obra, considerada muitas vezes grotesca ou imagem do corpo e do imaginário com o sinthome, com a proposta que o imaginário é o
de pesadelo, critica ferozmente a pintura figurativa, em seu processo de desfigura- corpo. Um “novo imaginário”, que se articula com os orifícios do corpo, imagem
ção de imagens - as imagens rainhas. Com seu estilo, de stylos, estilete que risca o que se sustenta no objeto resto.
corpo da linguagem, Bacon produz um risco corporal, navalha na carne que escari- É deste imaginário que a obra de Bacon testemunha interpretando um real sem
fica a unidade da imagem. Desfigurando as figuras para, desfigurando-as, figurá-las apaziguamento, onde os objetos a, ponto de encontro entre imaginário e imagem,
de forma a romper com o que seria esperado pelo campo da representação, ele nos não seguem a estética da harmonia, nos remetendo ao dito de Lacan sobre o pintor
remete para aquilo a que o artista nos dá acesso, o lugar do que não se deixa ver, como “fonte de algo que pode passar ao real, e que o tempo todo, se assim posso
resto sem nome, sobras que s’obram. dizer, nós arrendamos.”145
A apresentação e o “desfazimento” do corpo na obra de Francis Bacon, re-
presenta o homem como um pedaço de carne. Os seus trípticos, crucifixões, e
inumeráveis retratos - autorretratos, retratos de amigos e também retratos a partir
de reproduções de pinturas famosas, como a do Papa Inocêncio X, de Velásquez – 143 SYLVESTER, David. Entrevistas com Francis Bacon – A brutalidade dos fatos (tradução
nos interessam como desdobramento do tema, por denunciar a estética do real da de Maria Teresa Resende Costa a partir de Interviews with Francis Bacon, 1995). Cosac & Naify (sem
imagem, em detrimento da harmonia do império das imagens. indicação de cidade e data de publicação).

144 LACAN, Jacques (1975): Jornada de Estudos de Cartéis.

145 LACAN, Jacques (1973). “O que é um quadro” in O Seminário, Livro XI, Os quatro conceitos
142 DELEUZE, Gilles (1984). Logique de la sensation. Paris: Éditions de la Différence. fundamentais da psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, cap. IX, p. 109.

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Neste ponto, interessa-nos uma conferência de Marie-Hélène Brousse146, onde voz e olhar, cuja estrutura moebiana rompe com a binariedade da representação e
faz um precioso comentário sobre a ruptura que se apresenta na atualidade entre exibe a impossibilidade de separar sonho e vigília, pois um está contido no outro,
o Ideal do Eu – I(A) – e o objeto a, e também uma ruptura entre o Ideal do Eu e separados apenas pelo tempo como um contínuo.
a imagem narcisista ou eu ideal, i(a). Com isso, através do avanço da ciência, o eu O impacto borromeu e perturbador de Mulholland Drive encontra-se nessa rede
ideal vem substituindo cada vez mais o Ideal do Eu. Brousse comenta que, na me- de sonhos dentro de outros sonhos, esbarrando no limite de um dizer, inapreensí-
dida em que a ciência avança, verificamos a decadência do Ideal do Eu, a assunção vel, pivô oco em torno do qual, genialmente, o filme se constrói.
do eu ideal, e uma ampliação do império das imagens, não mais tão reguladas pelo Mais uma vez, a est’ética do artista nos ante-cede.
império da linguagem, mas pelo império da escritura científica, nos processos para
modificar o eu ideal. CONCLUSÃO
Mais uma vez, a arte vai na mesma direção do discurso analítico. A ciência, que Se num primeiro momento da análise, os sonhos comparecem sob o envoltório do
é uma escritura, produziu alterações importantes na relação que temos com nosso sintoma e do inconsciente transferencial, ao final de uma análise, em função do
corpo como organismo e nosso corpo como imagem. Numa época marcada pelo esvaziamento do objeto, o sujeito pode ser representado apenas por um S barrado,
declínio do Nome-do-Pai, somos convocados a modos singulares de amarrar RSI. visto que se torna vazio e, assim, se apresenta ao passe, dispondo apenas do seu ob-
Essa escritura que o Lacan borromeu nos trouxe, com as três dimensões, Real, jeto a, demonstrando que os sonhos se situam na dimensão da separação do objeto.
Simbólico e Imaginário, nos permite mudar a relação entre o organismo e a ima-
gem seguindo as trilhas no mesmo sentido da arte. A demonstração que fazemos na escritura, Lacan a realizou a partir do sonho, mostrando
Em outro litoral destacamos o Cinema, fazendo aqui uma merecida homena- que a imagem onírica é retida por Freud pelo seu valor de significante despojado de sig-
gem, uma vez que os primórdios da psicanálise e do cinema são rigorosamente con- nificação. Distinguiu isso no que Freud oferece como exemplo de sonho a ser lido como
temporâneos, pois no mesmo ano em que ocorre a publicação dos Estudos sobre His- enigma. Afirmar que o sonho se lê como enigma quer dizer que a imagem não vale como
teria (1895), os irmãos Lumière fazem suas primeiras projeções públicas em Paris. figura, um signo figurado, nem como pantomima, mas sim como uma letra e que tudo
É sabido que Freud nunca escreveu sobre cinema, preferia os clássicos da aqui é assunto de escritura. […] Há tanto mais significância quanto mais o significante
literatura e as artes plásticas, e o mesmo ocorreu com os seus seguidores imediatos. funciona como uma letra, separado do seu valor de significação. Esse mais-de-significante
Até que a poetisa da psicanálise, Lou Andréas-Salomé, se revelasse como a pioneira é o que podemos chamar de efeito poético.148
no interesse da psicanálise pelo cinema, abrindo um interessante diálogo entre
a psicanálise e a sétima arte. Para Lou, a técnica cinematográfica é a única que
permite uma rapidez de sucessão de imagens que se aproxima das nossas faculdades
de representação.
O cinema “monta cenas”, disse Lou Salomé, nossas lembranças também, e
essas cenas montadas no nosso psiquismo distorcem e encobrem aquela que re-
almente aconteceu. São “as perspectivas enganosas, e todas as coisas escondem
outra”, como diz Italo Calvino, na epígrafe deste artigo. Freud nomeou este fenô-
meno como “lembranças encobridoras”147, tela encobridora da fotografia infantil,
mas que ao mesmo tempo que encobre, revela uma outra cena, não de imagens-
-muros, mas de imagens-furos.
Destacamos aqui David Lynch, um dos grandes diretores que atualiza o legado
surrealista como poucos. Em seu filme A Cidade dos Sonhos (Mulholland Drive -
2001), Lynch denuncia com sua arte, dentre outras coisas, que o sujeito nunca
desperta.
Numa história construída com sequências que se sucedem, o sujeito acorda e
tenta construir alguma narrativa a partir das sequências do seu sonho, mas o limite Man Ray (1924). Intitulado “Parole” (“Poema Sonoro”). Paris
entre o real e o irreal é opaco e inapreensível, uma vez que se apresentam como um
espaço diferenciado, porém contíguo, assim como a fita de Moebius.
David Lynch constrói um filme que gira em torno da presença dos objetos

146 BROUSSE, Marie-Hélène. “Corpos lacanianos: novidades contemporâneas sobre o Estádio


do espelho” in Opção Lacaniana online

147 FREUD, Sigmund (1996 [1899]). “Lembranças Encobridoras” in Obras completas. Vol. 3. 148 MILLER, Jacques-Alain. “O escrito na fala” in Opção lacaniana online. Ano 3, número 8,
Rio de Janeiro: Imago, pp. 285-306. julho 2012.

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A partir da inflexão desse dito, iremos aproximar o sonho do poema, como “um BEM-AVENTURADA A LOUCURA NOSSA DE CADA DIA
escrito para não ser lido”. Convidamos o poeta René Char:

La parole dépourvue de sens annonce toujours un bouleversement prochain. Nous


l’avons appris. Elle en était le miroir anticipé.149

O sonho está ligado à linguagem, mas o despertar se inscreve para além da


linguagem. Com Lacan, toda linguagem é feita para que não se pense na morte,
a coisa mais pensável que há. Por isto ela é concebida como um despertar, mas o
despertar absoluto, o saber sobre o real, fica excluído. Assim sendo, não desperta-
mos totalmente nunca. O desejo mantém os sonhos, e a morte é um sonho entre
outros, que perpetua a vida.
Como pintou René Magritte na sua tela O Império da Luz o despertar é como o
anoitecer, inapreensível, hora da transição entre o dia e noite, hora de paz para al-
guns, de angústia para outros, mas hora de passagem, travessia entre luz e escuridão.
No atravessamento do inconsciente real, o sujeito deverá extrair deste percurso
um savoir-y-faire com o real, construindo seu nó singular no ponto da junção mais
íntima do sentimento de vida de cada um, com os efeitos sobre o gozo e o sinthoma.
Se “somos feitos do tecido dos sonhos”, como disse Shakespeare, o sonho,
enquanto semblante, guarda nosso sinthoma, pelo qual nos cabe ser responsáveis,
inclusive, despertos. Freud também poetou, ao aproximar o texto poético do texto
onírico, posto que o sonho tem a estrutura do poema, e o sonhador, enquanto so-
nha, pode ser comparado ao poeta.
O sonho da eternidade consiste em imaginar que despertamos, mas o próprio
despertar também é um sonho, “porque toda vida é sonho, e os sonhos, sonhos são.
O homem que vive, sonha o que é, até o despertar”.150
Quanto a nós, analistas, sabemos que enquanto analisantes, também falamos Salvador Dalí - In Voluptas Mors (“Próximo da Morte Voluptuosa”)
do que não existe, pois, o ser do homem não pode ser compreendido sem a sua lou- Fotografado por Philippe Halsman. New York City, 1951
cura. Nos diz Lacan: “Tudo é somente um sonho e todo mundo (se uma expressão
assim pode ser usada), todo mundo é louco, ou seja, delirante”.151
E assim, é do mesmo lugar que vem o sonho que talvez possa advir um analista:
saber se haver com o sonho e o despertar, e com o que fizemos da palavra que nos
fez falante, é do que trata na passagem da posição de analisante para analista.
O sonho? O poema que cada sonhador inventa, lá, onde o objeto a só-letra no vazio.

De tanto lidar com os sonhos,


eu mesmo me converti num sonho.
O sonho de mim mesmo152.

149 CHAR, René. “Couche” in L’Effroi et la joie. “A palavra desprovida de sentido anuncia
sempre uma mudança próxima. Nós aprendemos isso. Ela era o espelho antecipado.”

150 CALDERON DE LA BARCA, Pedro (1635). A Vida é Sonho.

151 LACAN, Jacques (2003). “Talvez em Vincennes...” (1975) in Outros Escritos. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, pp. 316-318.

152 Livro do desassossego – Bernardo Soares/Fernando Pessoa.

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da ordem do Unbewusst (Inconsciente), o que se esclarece com a escolha do objeto.
No sonho freudiano conhecido como o sonho do “filho morto” o objeto é o Pai, e
O SONHO DO PARLÊTRE o desejo apresenta-se na sua função de “desejo do Outro”.
Nesse momento de seu ensino Lacan trata do desejo na sua dimensão simbó-
Mirta Zbrun* lica, bem como reduz a pulsão ao significante. Trata especialmente da função do
desejo na última aula do Seminário, Livro VI, intitulada “Rumo à Sublimação”.154
Nela ficará esclarecido que a função do desejo é relativa à estrutura da cadeia sig-
* nificante (S1→S2) e as significações que dela se desprendem, e que é no intervalo
ABSTRACT RESUMO Psicanalista. Membro: EBP / entre os significantes que surge o efeito sujeito como ‘resposta do real’.
The present essay on the O presente ensaio sobre o EOL / AMP. Doutora em Teoria Em outras palavras, da articulação da cadeia significante fica um resto que é
dream studies the relations sonho estuda as relações Psicanalítica. IP-UFRJ. Brasil. nomeado “sujeito”. Assim, do deslizamento dos significantes dependerá o possível
between the dream images entre as imagens oníricas Coordenadora de CICLOS e encontro do sujeito com seu objeto a. Como causa do desejo, este objeto está para
and the real one of the e o real da imagem que Casuística/Publicação CLAC-Rio. além das significações produzidas pela cadeia significante.
image that causes the faz o sujeito acordar,
subject to wake up, analyzes analisa a função do desejo O DESEJO DO PARLÊTRE NO SONHO
the function of the desire in no sonho e considera a O desejo, assim o pensa Freud, encontra sua satisfação no sonho; a realidade é
the dream and considers the temporalidade das imagens suspensa, mas o ser do parlêtre pode desejar. O sonho será mesmo o único lugar
temporality of the images vividas no sonho e seu valor onde o desejo alcançará a satisfação, Befriedigung, pois a suspensão do princípio da
lived in the dream and its no despertar. realidade permite a satisfação do ser.
value in the awakening. Sabemos que a busca do objeto do desejo é sempre uma armadilha, um atalho
PALAVRAS-CHAVE para encontrar a satisfação. Isso se demonstra na dialética lacaniana necessidade –
KEYWORDS Sonho, imagem onírica, demanda – desejo, onde o desejo advém como conclusão.
Dream, dream image, real real da imagem, desejo no O parlêtre pode desejar além desta dialética, mas o desejo permanecerá sempre
image, desire in the dream, sonho, parlêtre. como enigma, pois se manifesta especialmente sob a forma de enigma a ser deci-
parlêtre. frado. Surge desse modo a pergunta profundamente explorada por Lacan: “o que
será que o Outro quer de mim?” Che vuoi? Que me quer o Outro? - uma referência
de Lacan ao conto de Cazotte O Diabo amoroso. Encontramos esta questão explici-
... pues reprimimos tada no “Grafo do desejo”, no Seminário VI, O desejo e sua interpretação.155
esta fiera condición, Perguntamo-nos: como poderá advir o desejo no sonho? E como encontrar o
esta furia, esta ambición, objeto possível para o desejo se o próprio desejo é um enigma, se está sempre atre-
por si alguna vez soñamos; lado ao desejo do Outro?
y si hacemos, pues estamos, Encontrar um objeto para seu desejo será a via possível do sujeito na análise.
en mundo tan singular, Porém, isso é, em alguma medida, contraditório, porque o objeto do desejo respon-
que el vivir solo es soñar; de a um “real sem lei”, que resiste a toda demanda. Como bem o assinala Jacques-
y la experiencia me enseña -Alain Miller em seu curso Todo el mundo es loco, o desejo é o “inexorável”, o que
que el hombre que vive, sueña não pode ser simbolizado, o que deriva da pura “nubilidade”, que vem no lugar
lo que es, hasta despertar. onde “não há mais Ninguém”.156 O desejo, diga-se, reedita a situação edípica e se
apresenta no sonho na sua vacilação mais extrema sem a mediação fálica.
Pedro Calderón De La Barca (1600-1681). Na associação livre - regra fundamental da análise -, as intervenções do analista
Libro de Oro De La Poesia en Lengua Castellana. Editorial Juventud, p.291. reintroduzem a falta, ressignificando a passagem pela castração, ao negativarem o falo
imaginário φ (-phi). Nessa lógica, a mediação do falo se torna necessária diante das
A FUNÇÃO DO DESEJO NO SONHO relações imaginarias do desejo vividas pelo sujeito. Por outro lado, temos a estrutura
No Seminário, Livro VI, O desejo e sua interpretação153, Jacques Lacan elucida pon- da perversão, que se apresenta como “o protesto” que se eleva à dimensão do desejo.
tos cruciais em relação à função do desejo, tomando como ponto de partida a
argumentação freudiana na Traumdeutung. A função do desejo é manifestar o que é
154 Ibidem, pp.503-520.

155 Ibidem, pp. 46 e 151.


153 LACAN, Jacques (2016). O Seminário, Livro VI, O desejo e sua interpretação. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor. 156 MILLER, Jacques-Alain (2015). Todo el mundo es loco (2008-2009). Buenos Aires, pp. 331-333.

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A TEMPORALIDADE DAS IMAGENS VIVIDAS NO SONHO citar Spinoza “O desejo é a essência mesma do homem”160, anuncia uma ética da
Na época do Seminário VI, a clínica psicanalítica encontrava-se sob o domínio da psicanálise que tem como ponto de partida o real. Uma ética que assume o laço
análise das “relações de objeto”. A investigação referida vinculava-se à experiência entre a fantasia e a pulsão, condição esta para a instância do gozo aparecer em seu
freudiana da teoria do objeto, tendo como foco de estudo a primeira tópica, relativa ensino posterior, pois o desejo, em sua qualidade de “desejo do desejo”, está aberto
à teoria e à técnica da análise. Mas uma nova orientação da função do desejo, e de ao corte, representado por Lacan em seu matema (A / ) a falta do Outro.
sua temporalidade, irá se produzir quando Lacan criticar a teoria das relações de No sonho trata-se de encontro com o real trazido por uma imagem. Assim,
objeto e postular que o objeto não está enraizado no Imaginário, mas no Real e, o sujeito, na análise, traz seu sonho para serem analisadas as associações que, de
portanto, tratar-se de um objeto real.157 seu conteúdo latente decorrem (agora como manifesto). Ele se coloca frente à re-
Nesse mesmo seminário Lacan analisa, como já o tinha feito Freud, a Tragédia alidade na interpretação possível do desejo no sonho, se somos fiéis ao princípio
de Hamlet - Príncipe da Dinamarca, de William Shakespeare. Vai assinalar que Ofé- freudiano do sonho como realização princeps de desejo.
lia, a mulher que Hamlet não pode amar, representa para ele a tragédia do desejo
como impossível. Temos uma bela representação do desejo como impossível: Ofélia O VALOR DADO À IMAGEM NO DESPERTAR
é o objeto que se apresenta como uma armadilha para o sujeito Hamlet, porque No seu Seminário, livro XI, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise 161, Lacan
pode ser amada e ao mesmo tempo rejeitada. Como objeto do desejo, ela represen- comenta, na aula de 19 de fevereiro de 1964, o “sonho da borboleta” do filósofo
ta o desejo do Outro, uma pura cifra de gozo sem sentido. Considera a imagem taoista Chuang-Tzé. O sonho é o seguinte:
que vela o alvo, que oculta a meta do ato que Hamlet não consegue realizar. Algo
semelhante a um sonho onde a imagem traz e, ao mesmo tempo, vela o desejo, pois Chuang-Tzé sonhou uma vez que era uma borboleta que esvoaçava livremente, uma bor-
o sonho como formação do inconsciente freudiano não conhece a contradição. boleta feliz por ser quem era e fazendo o que lhe apetecia. Ela não sabia que na verdade
O Príncipe da Dinamarca somente fixará claramente a meta do seu desejo após era Chuang-Tzé. De repente, se desperta. Chuang se surpreende. Não mais sabia se era
a morte de Ofélia, quando finalmente realiza seu ato final, ao matar o usurpador do Chuang-Tzé, que tinha sonhado ser uma borboleta ou uma borboleta que sonhara que
trono.158 O desejo estrutura assim as pulsões e vincula o sujeito ao objeto na medida seria Chuang-Tzé. Entre Chuang-Tzé e uma borboleta devia haver de facto uma diferen-
em que este é sempre uma letra ou cifra de gozo, como afirma Miller.159 ça qualquer! Assim é o mudar-se das coisas!162

IMAGENS ONÍRICAS E O ENCONTRO DE UM OBJETO REAL É no despertar que o sujeito do sonho se torna parlêtre. Do real ele nada sabe e
No sonho as imagens oníricas levam o desejo até ao encontro de um real, elas nada quer saber, pois o desejo de saber, o Wisstrieb freudiano, só existe no sonho. O
representam os objetos recalcados, objetos extraídos pelo Simbólico do corpo, ob- despertar o precipita na rotina de sua fantasia e no bem-estar que lhe asseguram os
jetos parciais, aos que Lacan acrescentará a voz e o olhar. discursos que o hipnotizam, diz Miller, em seu texto “Despertar” (in Matemas I)163;
O desejo terá uma relação com tais objetos intermediada pela fantasia, onde o e ainda: “o que extraio do que se diz sobre a prática de Lacan é que uma sessão de
sujeito dividido se orienta ao objeto causa, o que é expresso no matema lacaniano psicanálise que se respeite, e qualquer que seja sua duração, tem por função escandir
($ ◊ a). Esta é a interpretação do desejo numa inércia fantasmática da relação do o encontro sempre faltoso com o real, aquele que se passa entre sonho e despertar”.
sujeito com seu objeto. Lacan comenta que o filósofo taoista no sonho é uma borboleta, ou que ele vê
As elaborações sintomáticas deste período da vida devem ser levadas da ordem a borboleta como o objeto olhar. E pergunta: o que são essas figuras todas, esses
da consciência ao plano do que permanece inconsciente, para encontrar o desejo desenhos todos, todas essas cores? Senão esse dar-a-ver gratuito em que se marca
situado nas coordenadas do sujeito com o significante. Nessa interseção se dá o a primitividade do olhar. Assim, quando Chuang-Tzé está acordado, ele pode se
desejo humano e Hamlet será, segundo a expressão de Lacan, “o modelo dramático perguntar se não é a borboleta que sonha que é Chuang-Tzé. Para Lacan isso
dessas coordenadas”. No entanto, a vacilação de seu desejo chega ao limite máxi- prova que o filósofo não se vê como idêntico a Chuang-Tzé. Sonhando, perguntava
mo de seu ser, expressa na famosa frase, “ser ou não ser, eis a questão”. se ele era a borboleta, mas acordado terá que afirmar que ele é Chuang-Tzé e não
A fantasia ($ ◊ a) faz a ligação entre os registros do Simbólico e do Imaginário. a borboleta.
O corte que opera numa sessão de análise traz a presença do significante do desejo.
Lacan chega assim à sua máxima elaboração sobre o desejo e sua interpretação no
fim do Seminário, livro VI, ao posicionar o Eu inconsciente no nível do gozo. Ao
160 SPINOZA. “Da Servidão Humana ou da Força das Paixões” in Ética (IV Parte), pp. 238-244.

161 LACAN, Jacques (1979). O Seminário, livro XI, Os quatro conceitos fundamentais da
psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, p. 77.
157 LACAN, Jacques (2016), op. cit., p. 29.
162 CHUANG-TZÉ (1991). Análisis y traducción de Carmelo Elorduy. Caracas: Monte Ávila
158 SHAKESPEARE, William (1955). A tragédia de Hamlet, Príncipe da Dinamarca. Rio Editores.
de Janeiro: Livraria José Olympio Editora.
163 MILLER, Jacques-Alain (1996). “Despertar” in Matemas I. Tradução de Sérgio Laia. Rio de
159 MILLER, Jacques-Alain (2015), op. cit., p. 227. Janeiro: Jorge Zahar Editor.

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A IMAGEM DA BORBOLETA DE CHUANG-TZÉ seu desejo foi na sua realidade até esse momento, realizar o desejo do Outro. Tal
O imaginário do sonho oferece ao que é foracluído do simbólico a possibilidade conclusão foi para esse sujeito, a melhor interpretação de seu desejo. Assim, o uso
de múltiplas imagens, que não podem ser confundidas com as alucinações onde, e valor do sonho na prática de Orientação Lacaniana nos conduz a uma interpreta-
segundo o axioma lacaniano o foracluído do simbólico retorna no real. O sonho ção das imagens do sonho que nos levam a distinguir o Registro do Imaginário no
do filósofo taoista é um despertar para a realidade, expresso de alguma maneira no ultimíssimo ensino de Lacan.
parágrafo anterior ao relato do sonho da borboleta, onde se pode ler: “A penumbra O poeta e escritor Jorge Luis Borges assinala que na parábola da borboleta não
perguntou à sombra: faz um momento sua Mercê andava e agora se detém. (...) devemos considerar propriamente o momento do despertar, mas o momento em
porque não fica quieta? Não atua em dependência dos outros? (...). Como sei eu si mesmo do sonho, aquele em que Chuang sonhava com uma borboleta que nada
que é assim ou porque, não é assim?”164 sabia do sonhador que a sonhava, sublinhando que para a filosofia do Idealismo,
Podemos considerar essas interrogações como o conteúdo anterior ao sonho, o como a de Berkeley, verdadeiramente houve um sonhar, mas não um sonhador,
material que faz o sujeito sonhar. São perguntas sobre o seu ser e sobre a própria iden- nem sequer um sonho.
tidade. Não por acaso encontram-se no capítulo que trata da ‘Identidade dos seres’. Referindo-se a questão da data do sonho de Chuang-Tzé, o autor do Aleph
O parlêtre remete para o axioma lacaniano ‘todo mundo delira’, ou sonha o acrescenta uma hipótese: “Imaginemos que por acaso, não impossível, este sonho
tempo todo; desse modo convém delimitar o âmbito de cada uma das noções de repete pontualmente o que o mestre sonhou”.166 Postulada esta igualdade, cabe
que se utiliza a psicanálise, como fantasia ou fantasma, delírio, alucinação, sonho. perguntar: esses instantes que coincidem não serão o mesmo? Não basta um só
termo repetido para destruir e confundir a história do mundo, para denunciar que
O IMAGINÁRIO E A IMAGEM REAL NO SONHO APÓS O SEMINÁRIO RSI não há uma história. Adiante, pondo fim ao seu desconcertante ensaio sobre a
No relato do sonho na análise, o sujeito da associação livre se depara com uma refutação do tempo, remata, com alguma melancolia. “O tempo é um rio que me
imagem que lhe fornece o vazio e o pleno de seu ser: imagem agora real, que lhe arrebata, mas eu sou o rio; é um tigre que me destrói, mas eu sou o tigre: é um
traz a angústia do sonho, experimentada ao despertar. A função da análise é des- fogo que me consome, mas eu sou o fogo. O mundo, desgraçadamente, é real, eu,
pertar o sujeito para o real: acorda! Tu deves acordar, pois, deves saber algo de teu desgraçadamente, sou Borges.”167
real impossível, que te faz sonhar. Em suma, somos nós que sonhamos ou somos
sonhados? Eu sonho que sonho que sou uma borboleta igual a Chuang-Tzé? Ou, CONCLUSÃO
eu penso que sou Chuang-Tzé? Se penso que sou esse sujeito que sabe algo do real Por fim, podemos concluir que o desejo de despertar, no sonho do parlêtre, é ma-
de seu sonho, então só há imagens coloridas ou cinzas no sonho, claras ou confusas, soquista, para despertar do desejo de continuar dormindo e se deparar com o in-
trazendo um real que a interpretação do desejo poderá esclarecer. consciente real, “com tudo o que nos é dado de real no sinthome”.168 Pois tal como
O mestre taoista - como no relato da arte do ‘bom cozinheiro’ do capítulo se- escreveu o poeta, “a experiência nos ensina que, o homem que vive, sonha o que
guinte ao sonho da borboleta, cujo título é “O mais importante para conservar a ele é até despertar”. De modo que, a função do desejo no sonho pode se considerar
vida” – se vê submergido no abismo do sem sentido, onde ele mesmo se pergunta de importância relativa à pulsação temporal do inconsciente, na sua abertura e no
sobre sua identidade ao sonhar: estou sonhando ou sou eu que sonho? seu fechamento; porquanto, ao despertar, a imagem do sonho é experimentada na
Nesta parábola taoista os registros do Imaginário e do Real referidos por Lacan comprovada vivência de um real que sempre escapa ao parlêtre.
no seu Seminário XXII, RSI, parecem se confundir um com o outro, pois o sonho
da borboleta de Chuang-Tzé elimina as diferenças entre o que é Imaginário e o
que é Real. As representações no sonho, igualmente, são aquelas que acordados
fabricamos para nós mesmos, havendo tanta ou nenhuma realidade nelas como
nos sonhos, vividos por nós como realidade. Diz Miller: “tal como os sonhos que
sonhamos, a vida acordada de quem desperta é irreal, construída pelo homem.
Somos então sonhadores ou sonhados? O sonho pode ser vivido como realidade,
introduzido num lugar onde as coisas são indecisas, no qual o princípio do terceiro
excluído é anulado: ou sou quem sonha ou sou aquilo que sonho?”165
O sonho na análise nos traz a melhor via para as considerações das imagens
oníricas e do registro Imaginário em Lacan. O paciente que relata uma sequência
de dois sonhos com três cenas em cada um deles, pode vir a, num terceiro tempo de
associações livres, numa sessão da análise, concluir que ele estava sonhando, mas
166 BORGES, Jorge Luis (1974). Obras completas. Buenos Aires: Emecé Editores, pp. 768-770.

164 CHUANG-TZÉ (1991), op. cit.. 167 Ibidem.

165 MILLER, Jacques-Alain (1999). “Despertar” in Matemas I. Rio de Janeiro: Jorge Zahar 168 LACAN, Jacques (1985). O Seminário, livro XX, Mais ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editores. Editor, p. 98.

74 75
ESPANTOGRAFIAS:
Entre poesia e filosofia
Alberto Pucheu

*
Alberto Pucheu é poeta, professor RESUMO ABSTRACT
O SONHO DE SÓCRATES

de Teoria Literária da Faculdade Platão e Aristóteles Plato and Aristotle


de Letras da UFRJ, Pesquisador do determinam o espanto e determine astonishment
CNPq e Cientista do Nosso Estado a aporia como origem da and aporia as the origin of
pela FAPERJ. Entre seus livros filosofia e como o que, de philosophy and as what, in a
de ensaios, Giorgio Agamben: certo modo, fazem com way, make the poet and the
poesia, filosofia, crítica; apoesia que o poeta e o filósofo philosopher the same. In this
contemporânea; Kafka poeta e sejam o mesmo. Neste texto, text, I want to show a little of
Que porra é essa – poesia? Entre desejo mostrar um pouco de how the word astonishment,
seus livros de poemas: A fronteira como, sobretudo a palavra before arriving at
desguarnecida (poesia reunida espanto, antes de chegar philosophy, is one of the
1993-2007); mais cotidiano que o à filosofia, é uma das most determinant for Greek
cotidiano e Para que poetas em mais determinantes para poetry. Seeking to capture
tempos de terrorismos?. a poesia grega. Buscando some of its uses in poems
flagrar alguns de seus usos by Archilochus, Pindarus,
em poemas de Arquíloco, Homeric Hymns to Hermes,
Píndaro, no Hino Homérico Plato and Aristotle, I would
a Hermes, em Platão e em like to show that aporia and
Aristóteles, gostaria de astonishment are terms that
mostrar que a aporia e o pass from Greek poetry to
espanto são termos que philosophy, showing this
transitam da poesia para a passage links of experience
filosofia gregas, mostrando and terminology between
– já essa passagem – them that make them, in
vínculos de experiências a way, the same, or having
e terminológicos entre their borders unguarded.
elas que fazem com que,
de certo modo, sejam a KEYWORDS
mesma, ou tenham suas Poetry, philosophy, the
fronteiras desguarnecidas, writing of astonishment,
ou se indiscernibilizem. aporia, Greek poetry
and philosophy.
PALAVRAS-CHAVE
Poesia, filosofia,
espantografias, aporia,
poesia e filosofia gregas.

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Quando, no Teeteto, em busca de pensarem o saber que reside nas palavras, a per- postas e levando-o a não acreditar que sabe quando na realidade não sabe, teria por
sonagem homônima ao diálogo e Sócrates conversam a respeito do conhecimento objetivo, na assunção desse não saber, ou desse saber que sabe apenas que nada
ou da sabedoria, a primeira definição dada pelo jovem defende o vínculo entre sabe, a provocação mesma do espanto. Não à toa, no Teeteto, Sócrates afirma com
conhecimento e sensação ou percepção. Depois de Sócrates dizer que tal definição humor, mas também com toda seriedade, mais uma vez, o que dizem acerca dele,
se dá a partir do pensamento de Protágoras e de questioná-la longamente, Teeteto a fama que ele tem com as pessoas em geral: corre na boca das pessoas a fofoca de
finalmente afirma que isso que está sendo pensado pelo filósofo lhe causa “espan- que sua “atopia” leva os homens à “aporia” (149a). Mais à frente, ele acrescenta
to” (θαυμάζω) e que, quando ele olha para essas coisas que estão sendo pensadas, que os que convivem com ele também se sentem em aporia, em trabalho com mui-
elas lhe provocam “vertigem” (σκοτοδινιῶ). Na passagem 175d do mesmo diálogo, to mais dores do que as parturientes (151a). O fato de “atopia” e “aporia” serem
Sócrates fala, mais uma vez, da “vertigem” (desta vez, o termo grego é: εἰλιγγιῶν) termos cujos usos e sentidos possam ser intercambiáveis enquanto o que há para
sentida por quem se lança a responder as perguntas filosóficas, ficando suspenso ser transmitido no modo de pensamento do Sócrates platônico pode ser lido em
no abismo da aporia: “sente vertigens na altura a que se viu guindado e, por falta diversos diálogos. No Primeiro Alcibíades, por exemplo, que começa com o espanto
de hábito de sondar com a vista o abismo, fica com medo, atrapalha-se todo e mal ou a admiração ou o assombro (o thaumadzein) aparecendo duas vezes logo na
consegue balbuciar”169. Na República, mais uma vez, a relação é estabelecida: na fala inicial de Sócrates e outra vez logo em seguida, quando Alcibíades é levado a
passagem 407c, é dito que se teme as “vertigens” (ἰλίγγους) e as dores de cabeça, dialogar sobre o que é justo e o que é injusto, depois de arriscar algumas respostas
as exaustões mentais, as tensões ou dilatações cerebrais que são, de novo, impu- que se revelam insatisfatórias, em certo momento, ele diz a Sócrates: “Pelos deuses,
tadas à filosofia. Na passagem 216c do Lísis, a mesma articulação entre vertigem Sócrates, já não sei o que falo; encontro-me numa situação esquisita; quando me
(εἰλιγγιῶ) e aporia, ou entre vertigem, aporia e logos, está colocada, quando Só- interrogas, ora sou de uma opinião, ora de outra”172. O termo platônico-socrático
crates afirma que “sinto vertigem pela aporia do que está sendo dito”. A Carta VII traduzido por Carlos Alberto Nunes como “situação esquisita” é ἀτόπως, átopos,
estabelece a conjunção entre “espanto” e “vertigem”: “A corrupção dos artigos das dissituado, desassentado, deslocado, sem lugar, desencaminhado, estranho, inclas-
leis e dos costumes [se] alastrava tão espantosamente (θαυμαστὸν), que eu, que sificável, esquisito. Sem conseguir responder a Sócrates, que lhe mostra que o gran-
de início estava pleno de ímpeto para realizar o bem comum, olhando para eles de erro e a causa de todos os males não é, de modo algum, não saber, mas presumir
e vendo-os sendo completamente levados de qualquer modo, acabei em vertigem saber quando nada sabe, Alcibíades se encontra atopicamente em aporia.
(ἰλιγγιᾶν)”170. Esse vínculo intrínseco entre poesia e filosofia pelo espanto, gerando o que há
“Espanto”, “aporia” e “vertigem”, eis uma associação que oferece elementos entre elas de indiscernível, com a decisiva importância política desse desguarneci-
que indicam que se espantar com alguma coisa (ou encontrar-se em impasse) é so- mento das fronteiras pode ser evidenciado, além de, como sempre, pela enunciação
frer uma sensação de desequilíbrio ou de rotação em que tudo parece subitamente dos diálogos platônicos, por um enunciado de um dos diálogos que pertencem ao
em movimento e fora do lugar, levando-nos a, sem apoio, desorientados, tontos, ciclo do momento da acusação de Sócrates, de sua defesa, de sua prisão e do dia em
nos sentirmos instavelmente sem chão, dessituadamente em queda, insolitamente que, na prisão, ele é levado a tomar o veneno que o levará à morte – o Fédon. Como
despossuídos de qualquer segurança, fora dos eixos e do autocontrolo. O esgota- vem circulando entre discípulos e amigos a novidade de que, na prisão, prestes a
mento mental exigido parece ser tanto que o que é mostrado produz distensões morrer, o filósofo tem transposto as fábulas de Esopo para verso cantado, para
cerebrais, levando-nos, aprendizes, à vertigem. É então que, no Teeteto, Sócrates música, Cebes lhe indaga o motivo de ele estar fazendo isso. A resposta de Sócrates
afirma a famosa frase que vincula, de modo indissociável, espanto ou admiração é uma das magníficas passagens de Platão que podem nos fazer entrever como se
ou assombro (θαυµάζω) à filosofia: “Estou vendo, amigo, que Teodoro não ajuizou colocava, para ele, a relação entre poesia e filosofia. Assim começa a resposta de
erradamente tua natureza, pois admiração [espanto] é a verdadeira característica Sócrates: “— Dize-lhe a verdade, Cebes: não foi com a intenção de lhe fazer con-
do filósofo. Não tem outra origem a filosofia”171. A filosofia não tem outra origem corrência [a Esopo], e muito menos às suas composições, que fiz aqueles versos: sei
senão o espanto, pois este é o a que a filosofia vem como seu depois, como a que, que isso teria sido muito difícil! Eu os fiz em virtude de certos sonhos, cuja signi-
movida por ele, lhe segue em decorrência dele, jamais como o que lhe antecede. ficação pretendia assim descobrir, e também por escrúpulo religioso — prevendo,
Ninguém filosofa senão na vertigem provocada pelo espanto. sobretudo, a eventualidade de que as repetidas prescrições que me foram feitas se
Em Platão, teria de ser pensado que o “espanto” se coloca como o páthos pri- relacionassem com o exercício dessa espécie de poesia. Eis como se passaram as
vilegiado do acontecimento de seus diálogos, claramente na existência dos mitos coisas: várias vezes, no curso de minha vida, fui visitado por um mesmo sonho; não
e naquilo que pode ser chamado de seu método irônico, que, com suas perguntas era através da mesma visão que ele sempre se manifestava, mas o que me dizia era
consecutivas a exaurirem o interlocutor de Sócrates em suas possibilidades de res- invariável: ‘Sócrates, dizia-me ele, deves esforçar-te por compor música!’”173.

169 PLATÃO (2001). Diálogos: Teeteto, Crátilo. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Belém:
172 PLATÃO (2015). Primeiro Alcibíades. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Belém: Ed.UFPA,
Editora Universitária UFPA, p. 85.
116e, p. 87.
170 PLATÃO (2013). Carta VII. Tradução de José Trindade Santos e Juvino Maia Jr. Rio de
173 PLATÃO (1991). “Fédon”, in Diálogos; O banquete, Fédon, Sofista, Político (Os Pensadores).
Janeiro: Editora PUC Rio e Edições Loyola, 325d-e, p. 51.
Tradução e notas de José Cavalcante de Souza, Jorge Paleikat e João Cruz Costa. 5ª edição. São Paulo:
171 PLATÃO (2001), op. cit., p. 55. Nova Cultural, p. 61.

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Pela pergunta de Cebes, supomos que, contrariando uma das acusações que para que eu persevere na minha ação, que é compor música: haverá, com efeito,
recaem sobre ele, a de não acreditar nos deuses da cidade, o que Sócrates chama mais alta música do que a Filosofia, e não é justamente isso o que eu faço?”176
de “escrúpulo religioso” se refere a Apolo, mas sabemos igualmente que, na tradi- Tal passagem mostra que, no sonho de Sócrates, a poesia não tem nada a ver com
ção grega, o sonho tem um envio divino. Quem não se lembra das tramas de Zeus o retorno do recalcado do filósofo, com o inconsciente que quer se dizer à consci-
que, enviando o sonho enganoso a Agamêmnon, engendraram tanta dor, mortes, ência filosófica, ou seja, com aquilo que não poderia comparecer quando a filosofia
destruições? Em tradução de Haroldo de Campos, a segunda rapsódia da Ilíada comparecesse. Sócrates, esse que nada sabe, termina sua vida compondo música,
começa assim: “Deuses e os homens de elmos equinoformes ornados/ dormiam fazendo poesia, porque, como a filosofia socrática, a poesia, como ele a pensa, nada
todos, toda a longa noite. Zeus,/ só ele, não cedia à hipnose do sono,/ mas pondera- sabe. Em seu caso, compor música ou fazer poemas não é de modo algum o incon-
va: como, nos navios acaios,/ muitíssimos matar, honrando assim Aquiles./ Decide fessável de toda uma vida tardiamente confessado, mas o confessado que, em todo
o coração (e lhe parece bem):/ enviar – ruinoso – o sonho do atreide Agamêm- caso, e apesar disso, se mantém enigmático. Se é no momento de seu julgamento
non./ ‘Ôneiros!’ – chamou (e as asas-frases tatalaram):/ ‘Alcança, ôniro-fúnebre, que Sócrates explicita seu não saber ou seu saber de seu não saber como seu segre-
os navios aqueus./ Junto ao leito do Atreide, diz-lhe, tal e qual:/ Põe os aqueus, do, o segredo da poesia – e/ou da filosofia enquanto poesia – é revelado por ele no
cabelos-longos, – já! – em armas,/ todos, a tomar Troia, pólis de amplas ruas:/ que momento imediatamente anterior à sua condenação à morte por envenenamento,
os Imortais, do Olimpo aonde habitam, não/ mais discrepem, nenhum deles. Hera como as últimas palavras ditas, ditas imediatamente depois do dito do não saber e
os dobrou/ a todos, suplicante. A angústia sobrepaira:/ Ai dos Troianos!’ Falou. imediatamente antes e diante do não viver. Ao invés de a poesia ser recalcada pelo
Ôneiros ouviu./ Partiu. [...]”174. Se Agamêmnon é enganado pelo sonho enviado filósofo, ela é exatamente aquilo que o filósofo, enquanto filósofo, afirma que, tanto
por Zeus, Sócrates é aquele que, ao longo da vida e especialmente no momento de antes quanto agora, sempre fizera; em outras palavras, o que o filósofo faz é música,
sua morte, não quer, de modo algum, ser trapaceado pelos sonhos, mas escutá-los poesia, um tipo de poesia, um novo tipo de poesia condizente com seu tempo e
em suas determinações de modo a, seguindo-os, não ficar em dívida com eles nem que, por ser a mais condizente com seu tempo, e por outros motivos que não temos
com os deuses. Sócrates se coloca enquanto aquele que entende que, para ser se- tempo de abordar aqui, é chamada de “a mais alta música”. Isso, ao menos, se por
guido também na vigília, um sonho deve ser interpretado e que suas interpretações filósofo entendemos um filósofo como Platão ou Sócrates enquanto personagem
podem variar, tratando-se, portanto, de se colocar à altura do sonho, de interpretar filosófica de Platão. O filósofo é o poeta de seu tempo nessa nova espécie de poesia
aquele que o interpreta. que, em tal momento, precisa se fazer sem metro ou verso, esse novo tipo de poesia
Na diversidade dos sonhos, o que pode significar a repetição do invariável que que, então, dialógica, é a filosofia. Nessa interpretação socrática, os sonhos de sua
interpreta Sócrates, determinando-lhe o que fazer, ser a injunção para que ele com- vida não diziam para Sócrates fazer finalmente o que ele nunca fizera, mas eram,
ponha música e, trabalhando nela, performatizando-a, a pratique? Em certo mo- antes, um estímulo para que ele continuasse a fazer exatamente o que antes fizera.
mento da República, Sócrates afirma: “o que queríamos constatar é que há em cada Como se, a partir da injunção dos sonhos, a partir da voz dos sonhos que lhe dizia
um de nós, mesmo nos que parecem totalmente regrados, uma espécie de desejos “Sócrates, faça poesia!”, “Sócrates, faça música”, Sócrates respondesse à voz como
terríveis, selvagens, irrefreáveis, e que é posto em evidência pelos sonhos”175. Nesse lhe caberia: “Mas não é isso – música, poesia – o que eu sempre fiz?”. Sim, é isso,
Platão avant la lettre freudiano, será a poesia fruto desses “desejos terríveis, selva- música, poesia, ainda que não em versos, sim, é isso, um novo tipo de poesia por
gens, irrefreáveis” que, em sonho, voltam mesmo nos mais regrados e comedidos não ser em versos, por não ser em metro, o que a filosofia faz e que Sócrates diz
como, supostamente, seriam os filósofos? Será a poesia o retorno, em sonho, do que sempre fizera.
recalcado pelo filósofo? Será a poesia o que o inconsciente filosófico demandaria Acontece que, se esta interpretação socrática do sonho de Sócrates é, de fato,
diante da razão? Precisará Sócrates de um psicanalista, mesmo que este seja o impressionante, os sonhos, que não se deixam apreendidos, podem ter diversas
sonho cujo envio fora, de fato, por ele, analisando, recebido? Mostrando a interpre- interpretações. Exatamente por nada saber, Sócrates sabe da inacessibilidade das
tação que Sócrates dá aos sonhos, que invariavelmente lhe dizem “Sócrates, com- coisas e que interpretações são inesgotáveis. No dia de sua morte, diante dela,
ponha música, e, trabalhando nela, performatizando-a, a pratique!”, a continuação ele retoma esses sonhos sintomáticos para aventar outra hipótese: e se os sonhos
da passagem retira Sócrates, o filósofo, do suposto lugar de analisando, inserindo-o, estivessem lhe dizendo para compor versos, metros? E se os sonhos estivessem lhe
claro, se fosse esse o caso, na posição de analista. dizendo para compor “essa espécie comum de composição musical” e não aque-
O que faz Sócrates lidar com o sonho de uma maneira inesperada, dando-lhe la nova espécie, diferenciada, estranha, pela qual ele será, em horas, executado?
grande força interpretativa e passando de uma possível posição de analisando (do Por esse motivo, por não querer morrer sem obedecer aos sonhos e aos deuses,
sonho) à de analista, está em ele dizer: “E, palavra! sempre entendi que o sonho ele resolve, em seus últimos dias, compor versos, com a ajuda de Apolo e Esopo,
me exortava e me incitava a fazer o que justamente fiz em minha vida passada. reconhecendo sua ausência de grandeza – a ausência de grandeza dele, Sócrates –
Assim como se animam corredores, também, pensava eu, o sonho está a incitar-me n’“essa espécie comum de composição musical”. As palavras que complementam
a passagem são: “Mas sucede agora que a festa do Deus está retardando minha
174 HOMERO (2002). Ilíada de Homero. Tradução Haroldo de Campos. São Paulo: Arx, p. 67. morte, o que é preciso então, pensei, no caso de que o sonho me tenha prescrito
175 PLATÃO (2016). A República de Platão. Tradução e organização J. Guinsburd. São Paulo:
Perspectiva, 572b., p. 341.
176 PLATÃO (1991). Op. cit., p. 61.
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essa espécie comum de composição musical, é que eu não o desobedeça; é que eu esse ἀγνοεῖν, esse não entender, esse não saber, esse não discernir, esse fracassar
componha versos. E, de fato, é muito mais seguro não me ir sem antes ter satisfeito na compreensão, esse falhar em conhecer... Afinal, se a palavra que Aristóteles usa
esse escrúpulo religioso com a composição de tais poemas; não desaparecer antes para dizer esse não saber ou essa ignorância é οὐκ οἶδα ou alguma variação desse
de haver prestado obediência ao sonho. E, por isso, minha primeira composição verbo, não sendo, portanto, a mesma do Sócrates platônico da Apologia, a preser-
foi dedicada ao Deus em cuja honra estava sendo realizado o sacrifício. Depois de vação do sentido está garantida.
haver prestado a minha homenagem ao Deus, julguei que um poeta para ser verda- Enquanto negação de todo e qualquer sentido determinado que possa apare-
deiramente um poeta não basta que escreva discursos em verso. É mister que seja cer, a aporia mostra que o sentido é um aparecimento ocorrido pela passagem que
capaz de inventar ficções. Não me sentindo capaz de invenção, tomei por matéria por ele se dá a pensar, que o sentido é um salto mortal no abismo do impossível,
de meus versos, na ordem em que me vinham ocorrendo à lembrança, as fábulas derivado do impasse no qual o sentido sempre se faz e que, enquanto ignorância,
ao meu alcance, as de Esopo que eu sabia de cor. Assim, pois, aí está, Cebes, o enquanto um não-saber, enquanto um não saber dizer, enquanto um não saber
que deverás dizer a Eveno. Transmite-lhe também a minha saudação, e além disso dizer senão pela pergunta sobre, na impossibilidade, o que dizer, o constitui ina-
o conselho, se de fato ele é sábio, de seguir minhas pegadas o mais depressa que pelavelmente como o poder dizer da exclamação que subjaz à interrogação. Para
puder! Quanto a mim, parece que me vou hoje mesmo, uma vez que os atenienses poetas e para filósofos gregos, para aqueles que lidam com o desguarnecimento das
me ordenam”177. Não custa lembrar ainda que, no Eutidemo, em 272c, em clima fronteiras entre poesia e filosofia, isso é de fato o mais espantoso, sendo o poeta e o
anedótico, Sócrates menciona seu professor de cítara dando a entender que há filósofo, por isso mesmo, pelo fato de não abrirem mão de tal experiência, de certo
tempos vinha tendo aulas de lírica com Cono: “não vá eu acarretar uma afronta modo, o mesmo. Se, de certo modo, eles são o mesmo, é porque a filosofia deriva
aos estrangeiros, como o fiz a Cono, filho de Metróbio, o citarista, que me ensina da poesia como um de seus modos, levando adiante aquilo que mais lhes concerne.
até hoje a tocar a cítara. Vendo isso, então, as crianças, meus condiscípulos, morrem Deste modo, como dito anteriormente, a aporia e o espanto são dois dos termos
de rir de mim, e chamam a Cono ‘professor de velhos’. Não vá pois alguém fazer a privilegiados, que transitam da poesia para a filosofia gregas, mostrando – já essa
mesma afronta também aos estrangeiros”178. passagem – vínculos de experiências e terminológicos entre elas que fazem com
Seguindo Platão, que, como visto, no Teeteto, havia feito Sócrates dizer ser o que, de certo modo, sejam a mesma, ou tenham suas fronteiras desguarnecidas, ou
espanto a origem da filosofia associando-o, de algum modo, à aporia e, no Fédon, se indiscernibilizem. No verso 237 da Teogonia, em que Hesíodo nos dá a ouvir o
indicara um desguarnecimento de fronteiras entre poesia e filosofia, Aristóteles, Mar mutante e informe (Póntos), com sua “planície impetuosa das ondas”, é dito:
na Metafísica, faz uma colocação decisiva, que, desde então, não poderia mais ser [o Mar] “amante de Terra gerou também o grande Espanto”179. Filho do Mar e da
abandonada. Se a passagem não é diferente do que, como visto, Platão escreve Terra, Thaúmanta, Espanto, se coloca, desde seu nascimento, como um deus litorâ-
dispersamente, ela é uma impressionante condensação revisada das palavras de neo, um deus por excelência do entre, do entrelugar, do choque impetuoso do mar
seu mestre. Eis a passagem: “Através do espanto, pois, tanto agora como desde a (ao qual nos lançamos) contra nossa morada terra a acolher as águas que sobre ela
primeira vez, os homens começaram a filosofar [...]. Mas aquele que se espanta e vêm, misturando-se a ela, deslizando e penetrando em suas areias, transformando,
se encontra em aporia reconhece sua ignorância. Por conseguinte, o filômito é, de com o impacto, suas rochas que, por sua vez, por sua resistência, fazem a água
certo modo, filósofo: pois o mito é composto do admirável, e com ele concorda e entrar em novos movimentos informes. Sendo Thaúmanta um deus do entre, a tra-
nele repousa”. Há, pelo menos, três assertivas em tal passagem. A primeira: a de dição grega pegou suas derivações tanto para a poesia quanto para a filosofia, deri-
que, para haver filosofia, tem de haver espanto, pois é através dele que, desde sua vações não mais necessariamente divinas, mas poeticonceituais, para estabelecê-las
origem até sempre que ela existir, a cada vez, inevitavelmente, a filosofia se faz, ou também enquanto o entre poesia e filosofia, enquanto o intermediário entre elas,
seja, o grego está dizendo que, também em 2017, se houver filosofia, terá de haver enquanto o que faz com que o filósofo e o poeta, de certo modo, sejam o mesmo.
espanto; na segunda, para a sorte de todos nós, uma breve explicação de quando o Em algum momento do século VII a.C., a partir do tema de um eclipse total do
espanto se dá: o espanto se instaura quando, imersos na aporia, imersos na ausência sol, surge o que é para mim um dos mais belos fragmentos poéticos que conheço,
de alternativas a serem seguidas, reconhecemos nossa ignorância, mergulhando no de Arquíloco, que trago, agora, na tradução de Paula da Cunha Corrêa:
não saber que a caracteriza; por fim, é exatamente o compartilhar dessa experiência
do impasse e da ignorância, o compartilhar, portanto, da aporia, que faz com que “Das coisas, nada é inesperável, nem se pode jurar impossível
o filósofo e o filômito, de alguma maneira, sejam o mesmo, já que, tanto no mito ou admirável, uma vez que Zeus, pai dos Olímpios,
quanto no filosófico, há a intensidade constitutiva do espantoso ou do admirável, do meio-dia fez noite, ocultando o brilho
confundida, agora, com a da aporia. Em Platão já se encontrava o espanto como a do Sol luzente, e lúgubre temor sobreveio aos mortais.
origem da filosofia, o vínculo entre espanto e aporia, tudo isso compondo o fato de Desde então, tudo é crível e pode ser esperado
o filósofo ser também poeta, como nele também estava igualmente essa ignorância, pelos homens. Nenhum de vós deve se admirar do que vê,
nem se com golfinhos as feras trocarem o pasto
177 PLATÃO (1991), op. cit., p. 62.

178 PLATÃO (2011). Eutidemo. Tradução de Maura Iglésias. Rio de Janeiro: PUC-Rio; Edições 179 HESÍODO (1995). Teogonia; a origem dos deuses. Tradução Jaa Torrano. São Paulo: Editora
Loyola, pp. 36-37. Iluminuras, verso 237.

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marinho e, para essas, as sonantes ondas do mar possíveis (δυνατά)”181. Parece-me que seria melhor traduzir πιθανόν diretamente
forma mais caras e, para aqueles, o monte relvoso. [...]”180 por crível, até para manter o jogo entre tal termo e πιστεύομεν, que aparece na
sequência, ficando então “o que é possível é crível; ora, enquanto as coisas não
Que esse poema fala do espantoso, do assombroso ou do admirável, isto se acontecem, não estamos dispostos a crer que elas sejam possíveis”. O que Aris-
mostra textualmente. Por duas vezes, tanto no segundo quanto no sexto versos, tal tóteles parece estar dizendo é que se, habitualmente e de modo geral, o que é
palavra (θαυμάσιον, θαυμαζέτω) aparece. Em ambos os casos, ela surge, entretan- “crível” (πιθανόν) é exclusivamente o que se manifesta e se expõe de antemão
to, no negativo, querendo sinalizar que, a partir de um acontecimento totalmente para nós como possível, a poesia pode lidar com coisas que não se manifestam
imprevisível, a partir de uma desmedida da natureza (physis), nada mais é espan- nem se expõem de antemão para nós como possíveis e, nesses casos, tem-se
toso, que ninguém mais se assombre depois de tal acontecimento. Antes de ser dificuldades em aceitá-las enquanto críveis. A poesia lida, privilegiadamente com
um poema do espanto, seria ele, então, um poema da negação do espanto? Muito o, de antemão, impossível, com o impossível possível de, nela, acontecer ou com
pelo contrário, ele é um poema por excelência do assombro, do estarrecimento, do uma possibilidade impossível que ela torna crível. Nesse sentido, tanto o eclipse
arrebatamento secreto do organizado da natureza e da vida diária. Sinalizando a do poema de Arquíloco quanto suas consequências (golfinhos no pasto e feras no
proximidade entre os termos, em sua primeira aparição, o espanto vem como um mar) seriam, antes, impossíveis a ganharem credibilidade no poema. Imitando um
páthos que se relaciona com o “inesperado” e com o “impossível”; mais abaixo, ele movimento inesperado, impossível e assombroso da natureza, criando-o ou, pouco
se relacionará ao “incrível”. Ao se dar um acontecimento no âmbito do radicalmen- importa, recriando-o de maneira verossímil, encenando-o ou, pouco importa,
te “inesperável”, “impossível” ou “incrível”, ao se dar a possibilidade do inesperá- reencenando-o, o poema dá credibilidade a tal desmedida.
vel, do impossível ou do incrível, quando o incrível se torna crível e o impossível Isso está dito explicitamente em outra passagem da Poética. Recito a passagem,
possível, dá-se o espanto. de novo primeiramente em tradução de Eudoro de Souza: “De preferir às coisas
O fragmento do poema é evidente: ele diz respeito a uma mutação súbita que possíveis [δυνατὰ] mas incríveis (ἀπίθανα) são as impossíveis (ἀδύνατα) mas crí-
leva o que está na ordem dos dias, a sequência do que se sucede, a uma desordem veis (εἰκότα μᾶλλον)”182; ou, para facilitar, poderia, imediatamente, inverter a frase
inantecipável, inacessível e inapropriável, a um acontecimento que, vindo, no lugar em português: “As coisas impossíveis, mas críveis, são preferíveis às possíveis mas
de trazer a possibilidade de seu conhecimento ou de seu reconhecimento, no lugar incríveis”. Em tal momento, tanto o que foi traduzido como incríveis tem o mes-
de trazer uma movimentação que vai do ignorar ao conhecer, traz, antes, o inverso, mo radical do termo usado anteriormente, ἀπίθανα, quanto impossíveis, ἀδύνατα,
o que coloca o previamente conhecido no âmbito de um não saber, não se dando também é a mesma palavra usada anteriormente de modo afirmativo, mas, dessa
absolutamente ao conhecimento ou, ainda mais, passando-se por fora das oscila- vez, o que foi traduzido por críveis é εἰκότα, ou seja, o que, por se parecer com
ções entre conhecer e desconhecer. Passando por fora do conhecimento, poderia o que acontece, por se parecer com a natureza dos acontecimentos, mesmo que
dizer que o poema acontece, então, quando, naquilo que está habitualmente dispo- não aconteça imediatamente e por conta própria na natureza, mas precisando da
nível ao dizer na linguagem, irrompe, pelo contrário e às avessas, uma intensidade poesia para aparecer, é provável, plausível, verossímil, razoável de acontecer. Aris-
não disponível, alógica, que, a princípio, impede o dizer, desarticulando-o – sendo tóteles estaria dizendo algo como que, na poesia, “As coisas impossíveis, mas que
de dentro desse impedimento, de dentro dessa impossibilidade, de dentro des- se parecem com a natureza dos acontecimentos, são preferíveis às possíveis, mas
sa desarticulação, que o poeta canta, fala, escreve, levando-o a uma improvisação incríveis”. A formulação é tão importante que Aristóteles a repete, ainda, uma ter-
constitutiva da poesia desde seu começo. Encontrando-se na tragédia, na épica e ceira vez; na tradução de Eudoro de Souza: “Com efeito, na poesia é de preferir o
na lírica, tal dimensão alógica no lógos se confunde com o que os gregos chamam impossível que persuade ao possível que não persuade”183. De modo diverso do tra-
de espanto, de admiração, de assombro. duzido, o jogo aqui é de novo o do impossível crível (πιθανὸν ἀδύνατον) preferível
Na Poética, em tradução de Eudoro de Souza, Aristóteles afirma repetidamente ao incrível e possível (ἀπίθανον καὶ δυνατόν). Com tais passagens de Aristóteles,
coisas como: “o que é possível (δυνατόν) é plausível (πιθανόν); ora, enquanto as estamos certamente no âmbito do poema do Arquíloco, que, anterior à Poética, faz
coisas não acontecem, não estamos dispostos a crer (πιστεύομεν) que elas sejam com que o supostamente impossível se torne crível e verossímil.
Volto a mencionar o poema de Arquíloco, perguntando, então, como não levar
em conta os termos (o espantoso, o inesperável, o incrível) do poema de Arquílo-
co, praticamente os mesmos, como visto, mencionados por Aristóteles na Poética?
180 (Stob. 4.46.10 + P. Oxy. 22.2313 Fr. 1a = Archil. Fr. 122 W): O que tento defender é que tais termos atravessam uma parte significativa da po-
Χρημάτων ἄελπτον [inesperado] οὐδέν ἐστιν οὐδ› ἀπώμοτον [impossível] esia grega, não importando o gênero ou o modo, sendo desse empuxo, dessa im-
οὐδὲ θαυμάσιον, ἐπειδὴ Ζεὺς πατὴρ Ὀλυμπίων
ἐκ μεσαμβρίης ἔθηκε νύκτ’, ἀποκρύψας φάος
ἡλίου †λάμποντος, λυγρὸν† δ’ ἦλθ’ ἐπ’ ἀνθρώπους δέος.
ἐκ δὲ τοῦ καὶ πιστὰ [crível] πάντα κἀπίελπτα [esperado] γίνεται 181 ARISTÓTELES (1992). Poética. Tradução de Eudoro de Souza. São Paulo: Ars Poetica,
ἀνδράσιν· μηδεὶς ἔθ’ ὑμέων εἰσορέων θαυμαζέτω 1451b, p. 55.
μηδ’ ἐὰν δελφῖσι θῆρες ἀνταμείψωνται νομὸν
182 Ibidem, 1460 a, p. 131.
ἐνάλιον, καί σφιν θαλάσσης ἠχέεντα κύματα
φίλτερ’ ἠπείρου γένηται, τοῖσι δ’ ὑλέειν ὄρος. 183 Ibidem, 1461b, p. 143.

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pulsão, desse influxo, e nele, que nasce a filosofia. É certo que, da e na aporia, o por conta de um espanto ainda maior que, no caso, gera temor aos seres humanos
espanto se diz em múltiplos poemas, de múltiplas maneiras, mas, se nem todos os por conta do acontecimento absolutamente inesperado, impossível e incrível do
poemas o atualizam ou, ao menos, se nem todos os poemas atualizam tal palavra, eclipse solar. Se o eclipse, enquanto a desmedida irrepresentável demasiadamente
isso se dá pelo fato de que “não é necessário que o que é em potência chegue a ser espantosa acontece, causando-nos temor, tudo pode, doravante, espantosamente,
em ato”184. Eis a importância maior do poema de Arquíloco: a de trazer a explici- acontecer – golfinhos podem, então, pastar nas montanhas ou bosques, ovelhas
tação da potência no ato, mostrando o que era então decisivo, sem perder, no ato, e vacas podem nadar, então, no mar... Como cantar, como dizer, como escrever
a potência, que desde o ato se abre. Do mesmo modo que poderia dizer que tais esse impossível tornando-o verossímil, plausível, dando credibilidade a ele? Entre
versos ou canção ou poema são, anacronicamente (pois anteriores ao que passou a o mar e a terra, com tudo embaralhado, nesse litoral, nesse entrelugar, o espanto.
se chamar de filosofia), de certo modo, filosóficos, poderia igualmente dizer que a Se, na Poética, Aristóteles escreveu que se deve preferir as coisas impossíveis mas
filosofia é, por isso, de certo modo, poética. Não aceitar que a filosofia provém das críveis às possíveis mas incríveis, ou um impossível crível a um possível incrível, ou
canções, da poesia recitada e da poesia dramatizada, sendo, elas, de certo modo, a que se deve preferir o impossível verossímil ao possível inverossímil, o poema de
mesma, é, priorizando um preconceito cultural hegemônico moderno (o da cisão Arquíloco nos faz lidar, paradoxalmente, com o espanto do impossível a transfor-
entre poesia e filosofia), não entender o movimento de maior importância e re- mar o possível, do inesperável a transformar o esperável, do incrível a transformar
levância em seu nascimento. Nesse “de certo modo” que, via Aristóteles, tenho o crível, da desmedida a transformar a medida, fazendo com que o espanto abra
repetido, coloca-se o que, a partir de um canto e de uma recitação do espanto e a completamente a percepção da potência do que poderia acontecer no âmbito mes-
partir das passagens de Aristóteles e Platão, gostaria de chamar de uma thauma- mo do acontecendo, dizendo, assim, no poema, o acontecimento enquanto pura
dzologia, uma thaumadzografia, uma linguagem e uma escrita do espanto, em uma potencialidade. Diferente do que ocorrerá em Heráclito, que diz que “O Sol não
palavra – uma espantografia. ultrapassará as medidas; se o fizer, as Eríneas, ajudantes de Dike, o encontrarão”186,
Se pensarmos que Gregory Nagy assinala o ano de 446 a.C. como o do fim no poema de Arquíloco, o sol ultrapassa suas medidas, e nenhuma das auxiliares da
impreciso do cânone da história da poesia grega antiga, ou seja, se ele estabelece Justiça, nenhuma de suas aliadas, nenhuma das Eríneas, irá pegá-lo.
entre o tempo de quem é reconhecido como Homero e o de Píndaro o que ele de- Tal experiência que lemos nesse magnífico poema de Arquíloco está por todos
nomina de pan-helenismo, e se pensarmos que o mesmo cânone alexandrino exclui os lados na poesia grega, constituindo-a e se dando para nós ainda hoje como
os poetas da segunda metade do século V a.C. e de depois (como, por exemplo, um de seus traços mais decisivos. Na “Ode Olímpica 1”, logo depois de dizer, na
Thimotheos de Mileto, Philoxenos de Citera e Cinesias – que talvez estejam entre tradução de Glória Braga Onelley e Shirley Peçanha, que “muitas são certamen-
os músicos dos ditirambos mencionados por Aristóteles no catálogo do início da te as maravilhas (ἦ θαυματὰ πολλά)”187, à menção desses múltiplos espantos ou
Poética), e se pensarmos que Platão nasce, estimativa e também imprecisamente, assombros ou admirações ou estarrecimentos que se oferecem por todos os lados,
entre 428 e 425 a.C., parece-me muito significativa essa linha que, ao invés de um Píndaro acrescenta que a Graça (Χάρις) (que, com as musas e Apolo, entusiasma
fim, determina um modo de continuação diferenciado, caracterizado exatamente os poetas, inflamando-os), fazendo vida brotar e florescer no canto, “[...] consegue,
por essas thaumadzologias, por essas thaumadzografias, por essas espantografias, muitas vezes,/ tornar crível o incrível (ἄπιστον ἐμήσατο πιστὸν)”188. Com isso, ele
por essas linguagens e por essas escritas do espanto. A filosofia nasce e se estabelece mostra o dom de vivificação do canto em seu espanto diante do que (o) assombra
como um tipo de poesia composta por aqueles que, na imanência da poesia, numa enquanto o dar credibilidade ao incrível enquanto incrível. Não à toa, na Pítica X,
intimidade com ela, numa proximidade radical dela, em uma interconectividade nos versos 49-50, o vínculo entre o espanto e o incrível é, factualmente, explicitado:
e reciprocidade intensiva, a realizam, pensando-a, pensando o que anteriormente na tradução de António de Castro Caeiro, “Espanto-me (ἐμοὶ δὲ θαυμάσαι) sem-
ela pensara e levando-a a novas possibilidades de escrita e de pensamento. Como pre que os deuses actuam, pois nada parece/ ser inacreditável (ἄπιστον)”189. Como
ninguém antes, e apesar de muita coisa, Nietzsche soube antever algo como isso em Arquíloco, também aqui, quando Zeus (“[...] abalador dos alicerces” que “dis-
quando, em seu primeiro livro, escreveu: “Se a tragédia havia absorvido em si todos põe as coisas como quer”, segundo Semônides em tradução de Trajano Vieira) ou
os gêneros de arte anteriores, cabe dizer o mesmo, por sua vez, do diálogo platô- quando os deuses atuam, quando o real age descontroladamente, quando o tempo,
nico, o qual, nascido, por mistura, de todos os estilos e formas precedentes, paira subitamente, golpeia ou é golpeado a contrapelo, nada parece inacreditável exa-
no meio, entre narrativa, lírica e drama, entre prosa e poesia, e com isso infringe tamente porque a intensidade do incrível, irreversível e irrepetível é tão tamanha
igualmente a severa lei antiga da unidade da forma linguística; [...] O diálogo pla- que faz com que, contrariando todas as expectativas, passando ao largo de todas
tônico foi, por assim dizer, o bote em que a velha poesia naufragante se salvou com
todos os seus filhos”185. 186 HERÁCLITO (1991). “Fragmento 94” in Os pensadores originários: Anaximandro, Parmênides,
Voltando ao fragmento do poema de Arquíloco, a negação do espanto só vem Heráclito. Tradução Emmanuel Carneiro Leão e Sérgio Wrublewski. Petrópolis: Vozes, p. 83.

187 PÍNDARO (2016). As Odes Olímpicas de Píndaro. Introdução, tradução e notas de Glória
Braga Onelley e Shirley Peçanha, edição bilingue. Rio de Janeiro: 7 Letras, p. 29.
184 ARISTÓTELES (2013). Metafísica. Tradução de Giovanni Reale. São Paulo: Edições
Loyola, 1003b, p. 125. 188 Idem, Ibidem.

185 NIETZSCHE, Friedrich (1992). O Nascimento da Tragédia. Traduzido por J. Guinsburg. São 189 PÍNDARO (2010). Odes. Tradução, prefácio e notas de António de Castro Caeiro. Lisboa:
Paulo: Companhia das Letras, p. 88. Quetzal Editores, versos 49-50, p.73.

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as possibilidades de antecipação, o mais inesperado possa, a qualquer momento,
irromper em sua pura estranheza, submetendo o homem “ao revés inescapável” e
levando o poeta, que espera o inesperado como quem é tomado pelo incrível, con-
tinuamente ao espanto. Se, como Lacan, entendermos que “os deuses, isso é bem
certo, pertencem ao real”, que os deuses são “um modo de revelação do real”190, e
se entendermos o real enquanto a espantosa potência de emergência do impossível,
do incrível ou do inesperável impositivos, vale lembrar, igualmente, da definição
que, Em busca do real perdido, Alain Badiou dá do poema: “todo grande poema é o
lugar linguageiro de uma confrontação radical com o real. Um poema extorque à
língua um ponto real impossível a dizer”191.

190 LACAN, Jacques (1992). O Seminário, Livro VIII, A transferência. Versão brasileira de Dulce
Duque Estrada, revisão de Romildo do Rêgo Barros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, p. 51.

191 BADIOU, Alain (2017). Em busca do real perdido. Tradução de Fernando Scheibe. Belo
Horizonte: Autêntica, p. 40.

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Um espesso muro de imagens invadiu
o mundo em que se pratica a
psicanálise e se organizam as suas
instituições. Que oportunidades oferece
ainda o sonhar neste mundo? Que real
nos espreita? São perguntas que coloca
este número 2 da Desassossegos e
às quais cada um dos autores que aí
escreve responde à sua maneira.

REVISTA DE PSICANÁLISE
DE ORIENTAÇÃO LACANIANA
ANTENA DO CAMPO FREUDIANO
PORTUGAL

NÚMERO 2
ABRIL 2019
PUBLICAÇÃO SEMESTRAL

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