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CULTURA EM RUÍNAS:

NARRATIVAS DISTÓPICAS SOB À LUZ DA TEORIA CRÍTICA

Ícaro Yure Freire de Andrade1 (PPGS/UFPB)

INTRODUÇÃO

As distopias ou utopias negativas surgem como narrativas literárias no final do


século XIX e ganham espaço cativo na produção cultural desde então. Não demorou
muito para que essa forma específica chegasse a indústria cultural e consequentemente a
esfera da produção cinematográfica. Entre tecnocracias e mundos em ruínas o universo
das utopias negativas ganha cada vez mais espaço nas produções contemporâneas.
Percebemos que a popularização destas formas narrativas obedecem a condições
históricas muito específicas. Para isto, é necessário que haja a percepção da imaginação
utópica e distópica ligada diretamente a dimensão histórica e à uma realidade mais
abrangente.
Raymond Willians no ensaio intitulado “Ficção Científica e Utopia” (2011) faz
uma primeira discussão sobre as formas da distopia literária. O autor aponta que um dos
objetivos das utopias literárias, enquanto mundos imaginados, era trazer como pauta
propostas que assumiam o caráter reformista tanto dos valores morais como também da
estrutura social. O que Williams afirma é que, para além da cada vez mais recorrente
presença dessas narrativas – tais como “1984” e “Admirável Mundo Novo” - de cunho
distópico, que assumiam um certo tom crítico, estas traziam consigo a perda desses
pressupostos reformistas, assumindo agora um sentido que se restringia a uma mudança
de base estritamente material e da técnica. Williams percebe a mudança presente nas
narrativas distópicas de uma dimensão de “transformação alemejada” para a modalidade
de “transformação tecnológica”. Neste sentido a transformação tecnológica não está
imersa apenas no desenvolvimento da indústria ou da economia, mas também pode
assumir forma em uma proposta de um novo conjunto de leis, ou seja, um novo
maquinário social. Para Raymond Williams essa é uma das características presentes nas
utopias, que assumem uma narrativa distópica, do século XX. O autor contextualiza uma
série de elementos históricos e sociais que nos possibilitam a consideração e a produção
de narrativas de cunho distópico:

1
Bacharel em Ciências Sociais (UFPB). Mestrando em Sociologia (PPGS/UFPB). E-mail:
icaroyuresocio@gmail.com
É dentro de um complexo de tendências contemporâneas - do capitalismo
eficiente e abastado contrastado a uma pobreza e desordem capitalista anterior;
do socialismo contra o capitalismo em cada uma dessas fases; e das divisões
profundas, dentro do próprio socialismo, entre os reformistas moderados [free-
riders] do capitalismo (os engenheiros sociais centralizadores) e os democratas
revolucionários – que temos de considerar a modalidade de distopia, que é
tanto escrita quanto lida dessa dentro dessa complexidade teórica e prática.”
(WILLIAMS, 2011: 281-282)

Fredric Jameson (2006) ao discutir a imaginação utópica contemporânea põe em


questão a relação que é estabelecida entre ficção e realidade histórica, como também traz
à tona os problemas que são relacionados à ideia de utopia no imaginário social – que
podem ser entendidos pelo fracasso do bloco soviético e sua associação com governos
totalitários entre outros fatores. Para o Jameson, a utopia teria como função produzir e
dar espaço a pensar o radicalmente diferente, onde este “diferente” seria relacionado a
modelos de socialização e políticos que contrastassem com os modelos da sociedade em
que a crítica enunciada nestas obras parte. Jameson percebe que essa imaginação do
“diferente” apresenta-se de certa forma comprometida, uma vez que o desenvolvimento
de uma sociedade cada vez mais calcada no consumo de bens culturais e numa indústria
cultural, configurando assim uma totalidade através do processo de reificação. O que está
presente na maioria das obras culturais contemporâneas é a sustentação do “mesmo”2,
logo as utopias/distopias são inseridas também neste mesmo processo.
Para o autor esses projetos de um mundo radicalmente diferente que são
apresentados nas narrativas utópicas/distópicas sempre partem de um lugar político e são
recobertos por uma dimensão ideológica; e a percepção da política/ideologia se torna
bastante importante para os que pretendem analisar de forma crítica estes tipos de
narrativa. O que Jameson percebe a partir do processo de reificação presente na indústria
cultural é que a imaginação utópica se apresenta comprometida, uma vez que o que vemos
representados nessas obras é o nosso mundo social e que a tentativa de se pensar mundos
além da realidade que nos cerca torna-se cada vez mais difícil e que esse status assumido
pela imaginação utópica tem um fundo histórico e social, além de que a imaginação

2
Fredric Jameson (1997) aponta para a questão da produção do “mesmo” e qual papel assume na análise
proposta pela teoria crítica, especialmente por Theodor Adorno. Segundo Jameson a questão da repetição
para Adorno traz um fundo sociológico e psicanalítico. O que se percebe a partir desse conceito é que ocorre
um aprisionamento do self em si mesmo (p.32) acarretado pelo terror ao novo e inesperado, onde essa
repetição traz um problema de caráter sociológico: a impossibilidade de reconhecer o Outro e qualquer
forma de alteridade. Isso é reafirmado na vida cotidiana e legitimado nos sentidos assumidos pelos produtos
culturais.
utópica surge para a crítica cultural como um objeto de suma importância para que possa
compreender alguns contornos e delineamentos dos processos sociais contemporâneos.
Jameson e Williams permite, através das discussões apresentadas, que a distopia
seja vista como tal. Dialogam diretamente com outros autores da teoria crítica que, visto
suas contribuições teóricas, nos permitem entender as narrativas distópicas não apenas
enquanto formas de narrar, mas também enquanto resultantes de processos históricos
específicos. Torna-se necessário para analisar este tipo de produto cultural que não nos
limitemos apenas a prioridade dada a forma que os mesmos assumem – neste caso de
mundos extremamente administrados ou sociedades em ruínas – mas que estejam
relacionados também os conteúdos, assim como também a realidade social mais ampla.
O presente artigo tem como objetivo discutir as possibilidades teóricas e
metodológicas propiciadas pela teoria crítica de Theodor Adorno e Siegfried Kracauer
para se constituir uma sociologia do cinema que tome as distopias cinematográficas como
objeto de análise. Para isto será necessário que no decorrer de nossa exposição sejam
apresentados elementos mais gerais da teoria dos respectivos autores assim como os mais
específicos, visando assim uma clarificação maior do argumento por nós apresentado no
decorrer do artigo.

CULTURA DE MASSA E SUPERFÍCIES

Para que possamos entender a sociologia do cinema proposta por S. Kracauer


(1988; 2009) e sua importância para a análise pretendida neste artigo torna-se necessário
uma breve introdução sobre como o problema da cultura de massa e sua relação direta
com a experiência moderna surgem como problema teórico para o sociólogo alemão. Para
o autor a cultura de massa só se torna possível com o desenvolvimento de uma
racionalidade instrumental advinda das demandas oferecidas pelos processos próprios a
modernidade.
A ratio então surge como um problema que permeia as várias esferas da
experiência social moderna. Era do interesse do autor entender como a ideia de
mecanização que emergia da preeminência de uma racionalidade técnica, se apresentava
tanto como um regime socioeconômico como também em forma de discurso cultural
voltado para as massas, que constituía uma forma moderna do coletivo (HANSEN, 2007).
Para o sociólogo alemão o cinema surge como produto direto dos desdobramentos da
modernidade.
Para o autor o interesse nos produtos culturais emergentes da cultura de massa
advém da percepção dos mesmos como índices impressos do processo histórico
(HANSEN, 2009), permitindo desta forma que fosse percebido nestes artefatos culturais
não apenas a sua dimensão estética ou formal, mas a correlação dessas duas dimensões
com seu conteúdo, desta forma antevendo alguns problemas cruciais para o
desenvolvimento das análises posteriores efetuadas pela teoria crítica.
O lugar que uma época ocupa no processo histórico pode ser determinado de
modo muito mais pertinente a partir da análise de suas discretas manifestações
de superfície do que dos juízos da época entre si mesma. Estes, enquanto
manifestações de tendências do tempo, não representam um testemunho
conclusivo para a constituição conjunta da época. Aquelas, em razão de sua
natureza inconsciente, garantem um acesso imediato ao conteúdo
fundamentado do existente. Inversamente, ao seu conhecimento está ligada sua
interpretação. O conteúdo fundamental de uma época e seus impulsos
desprezados se iluminam reciprocamente. (KRACAUER, 2009: 91)

A análise destes produtos culturais surge então como crucial para o entendimento
dos desdobramentos dos processos sociais que eclodem no final do século XIX e começo
do século XX. Para o autor esses objetos culturais – biografias, folhetins, filmes - não
representavam o declínio da sociedade como alguns profetizavam, mas indícios preciosos
das mudanças a nível social e histórico decorrentes dos desdobramentos resultantes do
processo da modernidade. O que queremos afirmar aqui não é que para Kracauer esses
desdobramentos dos processos da vida moderna tivessem uma perspectiva positiva, mas
que eles apresentavam fortes indicações que trariam “luzes” a compreensão destes novos
problemas e dilemas que se apresentavam socialmente. Esses objetos culturais ou objetos
de análise trariam consigo os caminhos para se poder compreender as mudanças que se
operavam naquele momento na sociedade.
Kracauer apontava a vinculação direta destas mercadorias culturais com os
valores sociais do mundo em que eram produzidos. É nessa percepção que o cinema surge
como um problema crucial para o sociólogo. Primeiro por ser um ornamento das massas
e ter sua estética como reflexo da racionalidade econômica, segundo por carregar consigo
um grande potencial de mistificação e apagamento da realidade.
O cinema surge então nesta sociologia empreendida por Kracauer como um fato
social (ADORNO, 2009). Ele não se restringe a um único estrato social, mas só é possível
enquanto fenômeno coletivo, abarcando desta forma uma grande parte da sociedade em
que ele emerge.
Dos trabalhadores nos cinemas da periferia da cidade à alta burguesia nos
cinepalácios, todos os segmentos da população afluem ao cinema; destes
segumentos, provavelmente o mais amplo seja com posto de pequenos
empregados, cujo número não apenas aumentou em termos absolutos, mas
também em termos relativos desse a racionalização de nossa economia.
(KRACAUER, 2009:327)

Por mais que exista um recorte histórico e espacial muito específico, Kracauer
interessava-se em compreender o desenvolvimento de uma indústria do entretenimento
que tinha como principal público consumidor a nova classe média alemã, os problemas
conjecturados por ele não podem ser limitados a esta única realidade. A noção do vínculo
entre obras culturais e experiência social já está presente em seus primeiros ensaios sobre
a cultura de massa e são sedimentadas em suas obras posteriores.
O outro ponto que ganha uma certa relevância para as análises empreendidas pelo
sociólogo alemão refere-se ao caráter ideológico adotado pela indústria cinematográfica
que para além do componente do desejo traz no interior de suas produções a dimensão
ideológica própria aos objetos culturais produzidos sobre a forma de mercadoria. Como
apontado posteriormente por Fredric Jameson (1985) a mercadoria tenta de todas as
formas apagar os resquícios de trabalho social em seu interior, onde uma vez que o
processo de universalização da mercadoria assume proporções totalizantes com o
desenvolvimento cada vez maior de uma indústria cultural, os produtos que da mesma
emergem já assumem essa dimensão ideológica. Para Kracauer,

Não se pode negar, contudo, que na maioria dos filmes contemporâneos as


coisas são bastante irrealistas. Eles pintam de rosa as instituições mais negras
e borram de graxa as vermelhas. Mas com isto os filmes não deixam de refletir
a sociedade. Ao contrário: quanto mais incorretamente apresentam a superfície
das coisas, tanto mais corretos eles se tornam e tanto mais claramente refletem
o mecanismo secreto da sociedade. (KRACAUER, 2009: 313)

A análise do cinema proposta por Siegfried Kracauer já traz consigo a forte


influência da filosofia da história aliada a uma crítica severa da ideologia, juntamente a
percepção dos processos weberianos de racionalização e desencantamento do mundo e
críticas da reificação como as propostas por Simmel e Lucáks (HANSEN, 2009).
O filme nesta perspectiva apresenta pelo autor, traz consigo não só os sonhos de
mobilidade social ou os sonhos de consumo, mas simultaneamente, uma dimensão de
supressão das tensões que emergiam a partir dos problemas colocados pela própria
experiência na modernidade.
Para pesquisar a sociedade atual, seria necessário ouvir aquilo que revelam os
produtos da grande indústria cinematográfica. Todos eles revelam um segredo
rude sem que na realidade o queiram. Na sequência infinita de filmes um
número limitado de temas típicos retorna sempre a eles e revelam como a
própria sociedade deseja ver a si mesma. A quintessência destes temas de
filmes é, ao mesmo tempo, a soma das ideologias da sociedade, despidas de
seus encantos através da intepretação do motivo. (KRACAUER, 2009: 315)

Esses são os primeiros esboços de uma sociologia que vai tomar o cinema como
seu objeto de análise, assim nos permitindo localizar o problema das formas narrativas
cinematográficas distópicas como um sintoma da experiência social contemporânea. Mas
esses esboços sociológicos escritos por Siegfried Kracauer já nos permitem perceber o
vínculo estreito assumido pelas obras culturais e as formas que assumem - assim como os
conteúdos que a permeiam - com os valores sociais que emergem do universo social em
que são produzidas.

DE CALIGARI À ORWELL

Esse vínculo cinema e sociedade proposto por Siegfried Kracauer fica ainda mais
claro em uma de suas obras posteriores intitulada De Caligari à Hitler: uma história
psicológica do cinema alemão (1988). Neste livro o que víamos anteriormente como um
esboço torna-se uma sociologia do cinema com uma metodologia bastante coesa.
Para se compreender como a sociedade alemã – principalmente a nova classe
média alemã – aderiu ao projeto político proposto pelo Terceiro Reich, Siegfried Kracauer
faz uma extensa análise do cinema alemão do final da primeira guerra mundial até a
ascensão e queda da República de Weimar. Kracauaer percebeu nestas obras
cinematográficas do período analisado como alguns valores que posteriormente
possibilitariam a ascensão do nazismo já estavam expostos nestes filmes, assim como a
falta de algumas discussões ou elementos já preconizavam a inaptabilidade da sociedade
alemã do pós-primeira guerra a lidar com ideais democráticos.
Os filmes apareceriam como um problema crucial para S. Kracauer pelo fato dos
mesmos não serem nunca produtos de um indivíduo e serem destinados as massas. Os
filmes refletiriam desta forma não credos explícitos, mas dispositivos psicológicos
ocultos. O que os filmes projetam em seu interior, segundo a análise kraucareana, são as
dinâmicas das relações sociais que passam de forma despercebida e que são
características da vida interior da sociedade em que estes filmes emergem.
A vida interior se manifesta em vários elementos e conglomerados da vida
exterior, especialmente naquelas informações superficiais quase
imperceptíveis que formam uma parte essencial da linguagem. Ao gravar o
mundo visível – não importa se a realidade vigente ou um universo imaginário
-, os filmes proporcionam a chave de processos mentais ocultos.
(KRACAUER, 1988:19)

Por mais que S. Kracauer enfatize em sua pesquisa sobre o cinema alemão pré-
terceiro reich a compreensão de um caráter nacional, o mesmo já dá indícios de que a
metodologia empreendida em sua análise não se limita apenas a realidade alemã, até
porque como demonstrado pelo autor o caráter nacional não é fixo. O interesse
empreendido em sua pesquisa reside na recorrência de dispositivos coletivos ou
tendências que prevalecem em certos períodos de desenvolvimento de uma nação.

O que conta não é tanto a popularidade dos filmes estatisticamente mensurada,


mas a popularidade de seus temas pictóricos e narrativos. A persistente
reiteração destes temas marca-os como projeções externas de desejos internos.
E eles obviamente tem muito mais peso quando ocorrem tanto em filmes classe
B ou em superproduções. Esta história do cinema alemão é uma história dos
temas que permeiam os filmes de todos os níveis. (KRACAUER, 1988: 20)

Esses temas refletem de forma consciente e inconsciente os problemas, anseios,


desejos e tensões que emergem do mundo social em que são produzidos. Por mais que o
sociólogo alemão não trabalhe ou analise de forma direta o problema das utopias
negativas ou como convencionou-se a classifica-las contemporaneamente, as distopias,
ele nos permite enxergar a recorrência destas formas narrativas como indícios ou sintomas
de problemas experenciados nas sociedades do capitalismo tardio. Como aponta de forma
muito clara T. Adorno:
O Caligari, rico em análises técnicas pontuais, desdobra, de maneira bastante
luminosa, a história do cinema alemão após a Primeira Guerra como história
do poder totalitário transformando‑se na ideologia em avanço. Entretanto, essa
tendência não estava em absoluto restrita ao cinema alemão; decerto ela
culminou no King Kong Norte‑americano, verdadeira alegoria do monstro
desmesurado e regressivo em que se desenvolveu a coisa pública; para não
falar da reabilitação de Ivan, o terrível e de outras figuras abomináveis na
Rússia stalinista. (2009: 20)

A partir dos apontamentos expostos anteriormente e como o mesmo aparece como


um problema sociológico para S. Kracauer, podemos entender como as narrativas
distópicas cinematográficas se tornam um problema para o tipo de análise que está sendo
proposta neste artigo.
A popularização dos temas distópicos nas obras culturais tornaram-se cada vez
mais populares a partir do final do século XX. O desenvolvimento do cinema permitiu
que obras tais como Admirável Mundo Novo escrita por Aldous Huxley e 1984 de George
Orwell fossem adaptadas para a linguagem cinematográfica, possibilitando que essas
primeiras adaptações fossem consideradas como o cânone das distopias cinema. Esses
mundos futuros excessivamente administrados ou envoltos em uma guerra perpétua,
passam a tornarem-se cada vez mais como formas e temas pictóricos recorrentes que
nascem na indústria cultural.
Não esquecendo, obviamente, da importância atribuída a dimensão de
compreensão da história enquanto processos sociais que é apresentada na sociologia do
cinema defendida por S. Kracauer (1988). Fora a recorrência do tema distópico a teoria
de Kracauer nos permite localizar a dimensão histórica em que estas obras são produzidas
e veiculadas. Muito mais do que apenas apontar a incidência de temas pictóricos o que
esta sociologia do cinema objetiva é compreender quais foram as condições que
permitiram que estas formas ganhassem a notoriedade que ganharam assim como um
público cativo muito expressivo.
O cinema tem como força motriz a produção de universos imaginados que são
movidos pelos desejos e apreensões que são próprias do mundo social fragmentado.
Desde sua gênese ele já trazia em seu interior um potencial de mitologização da realidade
e foi usado de diversas formas como elemento legitimador das relações de dominação
assim como da necessidade da autopreservação. É com esta visão sobre o cinema que S.
Kracauer percebe-o muito mais do que apenas simples produto direcionado ao
entretenimento.
Dada as circunstancias metodológicas apresentadas no decorrer da exposição do
argumento defendido neste artigo, torna-se necessário que nos debrucemos sobre as
contribuições proporcionadas pela teoria crítica e mais especificamente com as análises
de Theodor Adorno. O objetivo será a partir de uma síntese com a sociologia do cinema
proposta por S. Kracauer pensar em ferramentas que facilitem a percepção destas obras e
da realidade social que representam ou tentam ofuscar. Em seguida a partir de uma
análise que privilegie as afinidades eletivas entre a teoria dos pensadores alemães
esboçaremos uma análise que toma a relação entre forma e conteúdo das obras distópicas.

DISTOPIA E TABU

No ensaio intitulado Huxley e a Utopia escrito em 1942, T. Adorno (1998) ao


analisar a utopia negativa literária escrita por Aldous Huxley se vale de uma metodologia
que mantem uma proximidade3 com a teoria sociológica de forma geral e mais
precisamente a sociologia de seu compatriota S. Kracuaer. A ideia de que esta obra traz
consigo um índice histórico e expõe as contradições da própria experiência moderna é
uma ideia de já está presente nos primeiros escritos propostos por Kracauer sobre a
cultura.
Para além desta proximidade teórica entre as análises de Kracauer e Adorno, será
necessário que façamos uma breve exposição dos conceitos e problemas apontados por
Adorno que não se limitam especificamente a obra escrita por Huxley. São nestes
elementos universalizáveis que se apresentam recorrentemente nas formas e conteúdo
distópicos que nos possibilitarão entender estes tipos de obras especificamente como
possíveis sintomas de problemas que surgem a partir dos valores sociais produzidos e
reproduzidos nas sociedades contemporâneas.
O mundo tecnocrático proposto por Aldous Huxley e classificado ironicamente
como “admirável” traz consigo uma série de problemas de ordem moral e social que são
sublimados pelo conteúdo explícito em sua obra. Este universo ficcional excessivamente
administrado, que se valeu bastante do próprio medo construído socialmente sobre a
relação do homem e tecnologia, apresenta o mundo regido sobre os ensinamentos
deixados pelo deus Ford. Nesta obra que foi amplamente entendida como um presságio
ao futuro próximo, as classes sociais são produzidas seguindo os valores tecnocráticos da
produção em série e a felicidade comungada é totalmente destonante da felicidade
burguesa que tem na autorrealização do indivíduo monádico o seu clímax.
T. Adorno (1998) localiza nos problemas do mundo da falsa felicidade atacada
por Huxley no decorrer de sua obra, como advindos do lugar ocupado pelo autor na
hierarquia social. Todos os problemas denunciados por Huxley são na verdade os medos
próprios a intelectualidade burguesa que se via ameaçada pelo desenvolvimento cada vez
maior da cultura de massa. A supressão de qualquer possiblidade de individualidade é
vista por Huxley como catastrófica, como um ataque direto ao que caracterizaria a o
mundo ocidental enquanto mundo civilizado. ”Em um espírito autenticamente burguês, o
indivíduo é para Huxley ao mesmo tempo tudo, porque foi um dia a base do princípio de

3
Fredric Jameson (1992) em seu ensaio “Allegorizing Hitchcock” (1982) aproximou os problemas da
análise cinematográfica com os enfrentados pela análise literária. Segundo este autor, a crítica feita a tais
obras privilegia de maneira equivocada a forma ignorando o conteúdo e sua relação com os processos
sociais. Neste sentido, a crítica literária adorniana e a crítica cinematográfica kracauerana nos permitem
entender as obras distópicas e sua relação com uma realidade social mais ampla.
propriedade privada, o nada, porque é absolutamente substituível enquanto mero suporte
da propriedade. ” (1998: 113)
Os problemas apontados por Huxley se apresentam enquanto pautados em uma
ideologia do individualismo que rejeita o reconhecimento dos processos sociais que
possibilitaram a existência desta categoria social. Aldous Huxley ao demonstrar que o
mundo estava caminhando para um futuro em que o indivíduo burguês seria eliminado
em sua essência, rejeitasse qualquer possiblidade ou visão mais crítica sobre as categorias
que eram ali apresentadas, dentre as quais além do indivíduo a da mercadoria.
T. Adorno aponta o caráter de fetichismo do fetichismo da mercadoria presente
no romance de Huxley, onde a mesma se apresentava enquanto categoria social natural
desvinculada de qualquer historicidade. Neste sentido a crítica adorniana a este tipo de
obra centrasse também no ofuscamento das necessidades enquanto mediadas
historicamente. O que é colocado por Huxley é um falso caráter estático assumido por
estas necessidades e como esse ofuscamento ou naturalização desta categoria é um
problema da própria experiência social no capitalismo tardio.
Hoje em dia, a obrigação de produzir para necessidades mediadas e
petrificadas pelo mercado constitui um dos principais meios para manter todos
na linha. Nada por ser pensado, escrito e realizado que vá além dos limites de
uma situação que mantém em grande parte seu poder graças às necessidades
de suas vítimas. (1998: 106)

É como se a massificação para o romancista estivesse associada de forma direta


ao problema da degeneração dos valores ocidentais, valores estes eminentemente
burgueses. Aldous Huxley “ (...) crítica a era industrial menos por sua desumanização do
que pela decadência dos costumes. ” (ADORNO, 1998: 100)
Adorno aponta como problemática as críticas apresentadas por Huxley em seu
romance por ofuscarem todas as percepções dos problemas como processos sociais, além
do tom excessivamente conservador assumido pelo “mundo novo”. No romance Aldous
Huxley aponta para como as relações sociais são fundadas em uma falsa felicidade que é
mediada pelo uso da drogada intitulada Soma. É como se os valores comungados pela
cultura de massa fossem totalmente opostos aos valores socializados pela intelectualidade
burguesa, enfatizando assim um recorte de classe muito específico.
O que é exposto nesta obra são os problemas que emergem na própria
modernidade e se intensificam com o desenvolvimento do capitalismo tardio. O lugar que
a cultura ocupa para a análise das relações sociais e da própria modernidade tem para a
primeira geração da teoria crítica um lugar de grande importância para o diagnóstico da
modernidade. Para Adorno,
Entre os temas da crítica cultural de há muito é central o da mentira: que a
cultura ilude sobre uma inexistente sociedade digna dos homens; que encobre
as condições materiais sobre a quais se erige toda a vida humana, e que ela
serve com conforto e sossego para manter em vida a má determinação
econômica da existência. (2008:39).

O que está colocado no romance pessimista sobre o futuro não é o que nos
tornaremos se os caminhos do desenvolvimento não forem mudados. Para T. Adorno essa
suspensão destes problemas para futuros não muito distantes servem como recurso
ideológico para ofuscar as causas reais destes problemas denunciados: a própria
experiência social no mundo da divisão do trabalho e da racionalidade técnica. E é neste
ponto central na crítica a obra de Huxley que servirá como ponto de síntese entre a
sociologia do cinema de S. Kracauer e a teoria crítica de T. Adorno: o tabu4 do existente.
Quanto mais existência social, graças a sua onipotência e restrividade,
transforma-se em ideologia de si mesma aos olhos dos desiludidos, tanto mais
rotula-os como pecadores, cujos pensamentos ousem blasfemar contra a noção
de o que existe é justo, simplesmente porque existe. (ADORNO, 1998: 96)

O tabu do existente está relacionado com outro problema levantado por Adorno
juntamente com Horkheimer na Dialética do esclarecimento (2006), que diz respeito ao
caráter da produção do mesmo pela indústria cultural. O que é vinculado como novo na
verdade é o mesmo com algumas pequenas mudanças que são toleradas5. Este futuro que
é denunciado em admirável mundo novo é o presente, revestido por uma dimensão de
ideologia em que a dominação é exercida. O jogo das forças econômicas é suprimido e
um pacto antimitológico torna-se mitológico, enfatizando assim a antítese presente entre
espirito e natureza que é próprio da moral burguesa (ADORNO, 1998). Como muito bem
apontado por Brito, “as formas sociais sob o capitalismo se desenvolveram tanto no
sentido da pura utilidade e do esvaziamento dos significados que a “experiência” se
tornou mera repetição ou compulsão. ” (BRITO, 2007). Neste sentido as obras ou produtos
culturais já nascem constituídas de normas e valores e sendo socializados pela indústria
cultural e tornando-se assim mediadores das relações sociais.

4
“Portanto utilizo o conceito de tabu de um modelo relativamente rigoroso, no sentido da sedimentação
coletiva de representações que, de um modo semelhante àqueles referentes à economia, já mencionadas,
em grande parte perderam sua base real, mais duradouramente até do que as econômicas, conservando-se
porem com muita tenacidade como preconceitos psicológicos e sociais, que por sua vez retroagem sobre a
realidade convertendo-se em forças reais. ” (1995: 98)

5
“Justamente ao passo que o igual é tolerado, ele não permanece mais como igual, senão que, por meio da
tolerância, converte-se no contrário. ” (ADORNO, 2009:91)
O tabu do existente aparece como recurso de manutenção da ordem social, pois
ao confundir as causas por efeitos, suprimir qualquer possibilidade de reconhecimento
dos processos como sociais juntamente com o caráter estático das necessidades e sublimar
o jogo das forças econômicas, ele apresenta o mundo da má determinação econômica
como o único mundo possível. Este tabu sobre pensar o diferente pode ser compreendido
como o elemento universalizável anteriormente apresentado como problema das distopias
de uma forma geral – literárias ou cinematográficas. Ao suspender as tensões para futuros
e negar a sua existência no presente o que se é apresentado nestas obras são argumentos
que legitimam e reconfortam o mundo social do capitalismo tardio, assumindo assim uma
dimensão de dominação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este artigo se coloca como um exercício e uma primeira problematização sobre as


possibilidades da construção de uma sociologia do cinema que toma a teoria crítica como
aporte teórico e metodológico. A partir da síntese dos modelos sociológicos esboçados
por S. Kracauer (1988; 2009) e as dimensões sociológicas da crítica cultural proposta por
T. Adorno (1995; 1998; 2006; 2008) é possível que possamos observar de forma mais
acurada e crítica as distopias cinematográficas e os problemas que são projetados nestas
obras.
É possível notar nos textos escritos por T. Adorno fortes laços teóricos com os
temas abordados em um primeiro momento por S. Kracauer Apesar do tardio
reconhecimento das contribuições do pensamento kracausiano para os fundamentos da
teoria crítica por parte dos pesquisadores, é possível notar essa herança epistemológico e
metodológica advinda desse projeto de análise dos produtos culturais presentes nas obras
posteriores de T. Adorno.
Para além das filiações teóricas e metodológicas objetivamos aqui apontar
caminhos e possiblidades teóricas, assim como demonstrar a atualidade que tais projetos
de análise da cultura possuem. Além da necessidade de uma retomada da dimensão
cultural associada a não dissociação entre a mesma e as suas expressões estéticas e mais
precisamente políticas.
O objetivo pretendido foi estabelecer um diálogo entre a localização da
recorrência dos temas e narrativas nos filmes hollywoodianos de baixo ou grande
orçamentos associado a sua relação com uma realidade social mais abrangente, isto é,
como estes produtos ou bens culturais então intrinsecamente ligados a experiência social
mais ampla.
Com o desenvolvimento cada vez maior da indústria cultural como uma
instituição que possui seu lugar cativo na organização do mundo social das sociedades
pós-segunda guerra, torna-se ainda mais relevante que nos debrucemos sobre os bens que
advém desta dimensão da cultura e procuremos entender quais as contradições que eles
tentam apagar ou resolver.
A cultura continua a produzir de forma cada vez mais recorrentes resoluções
imaginárias para problemas inconciliáveis socialmente (JAMESON: 1985). Essa
percepção da dimensão cultural como espaço onde as tensões e contradições processantes
do capitalismo são eliminadas (LEO-MARR: 2008) já era denunciada como a grande
tendência das sociedades tardias, dada as circunstâncias e o desenvolvimento cada vez
mais forte do sistema econômico e sua incorporação cada vez mais abrangente nos valores
que medeiam as relações sociais mais gerais.
Adorno ao falar sobre o papel ideológico assumido pelas utopias negativas ou
distopias de ofuscamento e suspensão dos problemas do presente para futuros não tão
distantes, juntamente com o convencimento de que não existe um outro mundo melhor
que o mundo da racionalidade instrumental apesar dos pesares, possibilita que nós
possamos criar ferramentas críticas para analisar a realidade social que nos rodeia.
Kracauer já pressagiava como essa dimensão ideológica denunciada por Adorno ganharia
forças ainda maiores com os desenvolvimentos do cinema, basta lembrarmos da sua
análise exaustiva do cinema e de sua relação com a experiência moral moderna.
A contribuição mais importante para uma sociologia dos filmes distópicos refere-
se ao caráter histórico da necessidade. Por mais que Adorno e Kracauer em suas críticas
tenham se restringido a momentos históricos específicos, ambos já reconheciam esse
caráter histórico presente nos produtos culturais e que uma crítica que rejeita e se pretende
a-histórica ou reconhece o caráter a-histórico da necessidade recairá em ideologia e
reforçará ao invés de denunciar os mecanismos de dominação.
As tensões que são expostas nestas narrativas estão intimamente ligadas ao
universo social em que foram produzidos. Os valores que são expostos nestes mundos em
ruínas ou universos extremamente totalitários, assumem o papel de fantasmagorias das
tensões sociais que nascem da experiência social concreta. A ideologia entendida como
tabu tem como função cobrir essas fendas que nascem das próprias contradições do
sistema capitalista.
Mas as formas e conteúdos ideológicos assumidos por estas obras estão
intimamente ligados aos processos históricos e sociais do momento em que foram
produzidos. O que cabe a análise crítica destas distopias é entender o tom assumido pelas
mesmas a partir da relação entre a forma e o conteúdo que assumem associada ao
entendimento destes filmes como índices documentais do presente em que foram
produzidos. Enfatizando assim mais uma vez o caráter histórico da necessidade que estas
narrativas tentam ofuscar.
Reconhecemos a necessidade de uma discussão mais pormenorizada sobre o que
foi exposto no artigo, dada a importância do problema para a teoria social como também
pela abrangência bibliográfica e teórica dos dois autores expostos. Intentamos neste artigo
esboçar um problema de ordem metodológica visando desta forma possibilitar a
constituição de uma sociologia do cinema, assim como apresentar uma teoria que tenha
na síntese das contribuições teóricas tanto de S. Kracauer como de T. Adorno sua
principal base teórica.

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