Resenha: “A Sociedade Aberta E Seus Inimigos” (Karl R. Popper) (Vol. I - Caps.
09, 10)
Karl Popper nessa obra trabalha o conceito de sociedade aberta, bem
como as ameaças à essa forma de sociedade sobretudo a nível intelectual (ideias, pensamento, inimigos intelectuais). A sociedade aberta corresponde a uma sociedade liberal-democrática, onde os indivíduos nessa organização são marcados pela sua responsabilidade pessoal, ou seja, o próprio indivíduo é responsável pelas decisões que toma e as consequências desta. Numa sociedade dessa configuração, portanto, a ação racional está presente no momento dos cálculos sobre as consequências possíveis de determinada escolha, logo, o indivíduo age de forma mais racional, do que irracional, creditando as consequências de suas escolhas a si mesmo e não à fatores externos. Essa “ação racional” em sociedades abertas também se mostra presente nas mudanças que são planejadas, de forma racional e baseadas nos fatores internos ao coletivo (na tendência dos interesses da maioria, ou do governo).
Diante disso, Popper enfatiza que essa configuração social possui
inimigos, que são na verdade intelectuais que pregam um projeto de sociedade contrário a esse, como ficou evidente em A República, de Platão, nas experiências nazifascista e comunista do séc. XX (Itália, Alemanha, União Soviética), na promoção de uma sociedade fechada que anula as liberdades individuais e a responsabilização pessoal, delegando as escolhas para fatores externos ao indivíduo (extra-humanos), implicando dizer que a organização social não se pauta por “vontades humanas”, na esfera decisória. Isso fica evidente em A República, de Platão, quando se pretende criar uma sociedade baseada na “verdade filosófica”, eliminando-se o elemento das discussões que corresponde a um elemento importante da política, que caracteriza um “ideal utópico”, no caso, um projeto de sociedade a nível de sua totalidade, onde a crítica e a contestação não possuem espaço, formando-se uma espécie de sociedade fechada.
Popper também enfatiza aqui dois conceitos importantes quando se trata
de sociedade, sobretudo uma sociedade aberta atacada por intelectuais advogados de uma “sociedade nova”: a mecânica utópica e a mecânica gradual. A utópica corresponde a um ideal que ainda não foi alcançado, um projeto que ainda não se concretizou, caracterizado por reformas de caráter total, com alvo pretendido, mas não delimitado e garantido. A mecânica utópica, na sociedade aberta, possui um caráter maior de controle, sobretudo, pela característica das reformas de se levar em consideração a mudança geracional, que possui valores distintos na transição e a partir do reconhecimento desses valores, o projeto pode estar afinado com essas ideias, valores, aspirações. Numa sociedade fechada, isso não é possível pela ausência de contrapontos que levem a um exame crítico do processo de reformas, não passíveis de verificação. Essa mecânica, portanto, é um ponto central dos projetos comunista, nazista, fascista, exemplos de projeto de sociedade defendido pelos inimigos da sociedade aberta.
Já a mecânica gradual, trata de reformas parciais em escala menor e com
objetivos limitados, com maior capacidade de acompanhamento e controle dado que o alvo é reconhecido, sobretudo, quando se trata das reivindicações das gerações presentes que interferem no processo decisório, levando-se em conta os efeitos e consequências das reformas (impactos). Essa mecânica é típica de sociedades abertas porque o processo de discussão, de crítica, o regime de discussões é fundamental para se acompanhar e realizar exame crítico das reformas feitas, que por sua vez possuem um impacto mais direto na vida das pessoas no médio prazo. As legislações criadas, sistemas, códigos, são exemplos desse tipo de lógica, que fundamenta o reformismo liberal, por exemplo, presente na tendência política da social-democracia.
As questões anteriores se mostram presentes nesse texto, a partir da
crítica que Popper faz do projeto de sociedade de Platão, que elimina a política em troca de uma “verdade filosófica” que revelaria o caminho a ser trilhado por essa sociedade. Afasta-se da razão ao mutilar as liberdades individuais e as particularidades entre os indivíduos, em nome de uma concepção historicista da realidade, alicerçada num ideal de beleza, de uniformidade, que caracteriza a sociedade (ou projeto de) de Platão, marcada por um apelo a tudo, menos à própria razão, numa perspectiva última de retorno a um estado tribal de sociedade onde cada um possui um lugar determinado, estático, e considerado justo, como afirma Platão ao falar dos guerreiros, escravos e governantes da República, algo que é impensável e impossível para Popper, pois significaria um retorno à bestialidade humana, ao invés de se estimular a razão.