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Introdução

Entendo que a geografia é o estudo de como o arranjo do espaço organiza as rela­


ções de troca metabólica que o homem e a natureza estabelecem entre si no curso
da história. Na essência dessa relação de troca está o processo do trabalho - o tra­
balho ontológico e o trabalho histórico-concreto mediante o qual o homem salta
na história da condição de ser natural em ser social. E assim se assenhoreia como
sujeito de seu curso autopoético, deixando de ser um autofazer-se da natureza para
vir a ser um autofazer-se de si mesmo. Um produto da história natural para ser um
produto da história social. E assim um homem que hominiza-se a si mesmo, histo-
ricizando a natureza ao tempo que naturiza a sociedade pelo processo do trabalho.
Tendo o espaço como mediação, numa forma de constituição que já de um tempo
designa-se uma economia política do espaço.
É a forma histórica dessa troca metabólica que distingue as sociedades comu­
nitárias das sociedades privatistas passadas e presentes. Mas é o modo de arranjo
da organização de espaço dessas sociedades que lhes define o seu modo concreto
de ser e estar. Assim se compondo uma relação triádica homem-espaço-natureza
- a relação de troca metabólica do homem e da natureza definida e efetivada em
sua forma concreta de realidade histórica pela mediação do modo de arranjo do
espaço -, que mais que um eixo geográfico é o modo concreto, porque espacial, de
existência das coisas. A sua geograficidade.
Reúno neste livro os textos que escrevi e publiquei sobre a economia política do
espaço brasileiro entre 1978 e 2011. O trabalho histórico-concreto aí aparece em
suas formas de arranjo espacial e seus conflitos com as formas de arranjo de espaço
do capital. O trabalho ontológico, todavia, só aqui e ali insinuando aparecer. São
textos que serviram de material de base para a redação de três livros - O movimen­
to operário e a questão cidade-campo no Brasil, de 1985, Formação do espaço agrário
brasileiro, de 1990, e Sociedade e espaço geográfico no Brasil, de 2011 - dedicados ao
estudo global da base espacial da geografia do Brasil, que me pareceu proveitoso
também publicar em livro.
Algumas observações, porém, tomam-se aqui necessárias.
O leitor perceberá uma frequência de repetições de termos, conceitos e for­
mulações analíticas, que intencionalmente mantive, em benefício da prevalência
do texto original. Voltado cada qual para assuntos diferentes, mas sendo sempre
8 A FORMAÇÃO ESPACIAL BRASILEIRA

seu tema a sociedade brasileira em sua relação de sobredeterminação espacial, foi


necessário fazer-se a recuperação das fases do seu movimento de geograficização,
localizando-se a repetição justamente nessas páginas das fases. Daí a impressão de
seguirem um mesmo padrão de montagem com uma parte retrospectiva das etapas
da evolução espacial, uma parte expositiva da base teórica utilizada e uma parte
final analítica do tema propriamente. Como as duas primeiras partes são invaria­
velmente acrescentadas de facetas novas, espera-se que a manutenção da repetição
seja também uma forma de ganho acumulativo para o leitor. A quem agradeço a
paciência.
Também notará uma vinculação da linha analítica da sociedade brasileira a
um elenco igualmente constante de autores. Trata-se de estudiosos e intérpretes
do Brasil de outras áreas que nos servem de referência de diálogo. Dois em par­
ticular: Celso Furtado e Francisco de Oliveira. De Furtado extraio sobretudo o
conceito do binômio latifúndio-minifúndio como base de sustentação de nossa lei­
tura histórico-estrutural de uma sociedade que muda sempre, para em essência
nunca mudar. De Oliveira, a forma como concebe o papel das relações de trabalho
dessa estrutura binomial de Furtado no todo do movimento acumulativo, o modo
como a indústria surge no Brasil no interior de uma estrutura de um todo ainda
dominantemente plantacionista, e a década de 1950 como o momento de virada
Jao glandes foiiiids de oigdiikdçào de espaço de nosso processo evolutivo. Mas
são, sobretudo, presenças por trás das quais vejo uma forte confirmação da perti­
nência da tese da relação capitalismo e extracapitalismo de Rosa Luxemburgo pela
evolução histórico-concreta da formação geográfica da sociedade brasileira. Devo,
porém, deixar claro que o modo como incorporo essas ideias são de minha inteira
responsabilidade, mesmo correndo o risco Je Jetuipã-lds.
Por fim, observará a independência de uns textos diante dos outros, que o le­
vam a deixar a seu critério lê-los na sequência do sumário ou do seu interesse de
estudo. Em particular quando pondo este livro em diálogo com os três anterior­
mente citados, busca por este meio um reforço de síntese ou de acrescentamento de
mais subsídios em sua busca de formar da sua maneira também própria um modo
de ver e compreender a sociedade brasileira - a formação espacial brasileira do
título - através da reciprocidade das determinações do seu espaço.
Aproveito para fazer um particular agradecimento ao editor, o amigo Luís
Octaviano Vicente, pela oportunidade de reunir numa publicação em livro um
conjunto de textos que não fora isso por suas características e natureza tenderiam
a permanecer dispersos ou cair no esquecimento no meio da poeira dos periódicos
onde fui buscá-los.
AS FASES E VETORES DA FORMAÇÃO
ESPACIAL BRASILEIRA
hegemonias e conflitos*

Cinco são as fases da formação espacial brasileira, balizando as formas de relação


sociedade-espaço no Brasil no tempo: dos vetores fundacionais; dos ciclos de assen­
tamento; da maturação do arranjo capitalista; da redesconcentração e privatização
da gestão do espaço; e da articulação das sociabilidades e as tendências de uma
formação espacial complexa. São fases marcadas por um contraponto entre o mo­
delo comunitário, engendrado espontaneamente, e o modelo de sociedade domi­
nante, engendrado pela Coroa portuguesa, numa sequência histórica de conflitos
que tensionam a formação espacial brasileira por dentro, em caráter reiterado e
permanente.
Se no longo do tempo este contraponto foi mantido às ocultas pelo modo de
regulação de espaço instituído pela face hegemônica, emerge hoje à evidenciação
da consciência social, liberado pela reestruturação por que passa a formação es­
pacial brasileira como resultado da entrada do modo de produção capitalista, seu
nexo estruturador, no rumo duma fo^mn de organização e regulação e^parial nova
Evidenciação revelada na ressurgência daqueles e de novos sujeitos. Quais as raízes
históricas e as formas de tendência dessa realidade nova que a formação espacial
brasileira aos poucos revela?

Os vetores fundacionais

A formação espacial inicial do Brasil tem origens na ação de dois vetores territo­
riais: o bandeirantismo e a expansão do gado. Caminhando em sentidos contrários,

* Texto originalmente publicado no Boletim Paulista de Geografia, da AGB-Seção São Paulo, n° 83,
2005.

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10 A FORMAÇAO ESPACIAL BRASILEIRA

no século XVIII estes dois vetores vão encontrar-se no planalto central e assim cris­
talizar a matriz do arranjo da formação espacial que hoje conhecemos. Na fachada
atlântica e na Amazônia ao bandeirantismo vai somar-se a ação dos aldeamentos
jesuíticos.
O bandeirantismo tem foco de irradiação em São Vicente e avança rumo a
quatro direções: o litoral sul, seguindo pelo costeamento; o sudoeste, rumo ao
território das missões jesuíticas; o oeste e noroeste, rumo aos territórios das co­
munidades indígenas do planalto central e da Amazônia; e o nordeste, rumo aos
territórios indígenas do sertão e quilombolas da zona da mata, ambos rebelados.
São incursões apresadoras e de repressão, em cujos rastros os bandeirantes vão
deixando comunidades indígenas destruídas e manchas de cultivos e núcleos de
futuras cidades que pontuarão a base logística da sociedade em formação.
Todavia, a inspiração real é a descoberta de minas de ouro e prata, intento per­
seguido tenaz e permanentemente, com o destino de cumprir na colônia a política
do metalismo que norteia todo o empreendimento colonial de Espanha e Portugal
neste momento. Daí o bandeirantismo perduraç.por todo o correr dos séculos XVI
ao XVIII, culminando com a descoberta das minas de ouro e diamantes no planalto
central-mineiro, quando então cessa. Em cada ponto para o qual se dirige, combina
então o apresamento de índios e a busca da descoberta do eldorado. Estimulado
pela demanda interna de trabalho escravo, que aumenta na colônia com o sucesso
e a expansão da economia açucareira dos engenhos, o apresamento e venda de
índios como escravos é o que motiva os bandeirantes em todos os seus movimen­
tos de incursão pela hinterlândia, não respeitando o marco legal do Tratado de
Tordesilhas, pelo qual o domínio colonial português pouco vai além da faixa estrei­
ta do litoral do Atlântico (Monteiro, 1995; Moog, 1966), acumulando com o tempo
uma experiência de guerra, a que recorre a classe plantacionista da zona da mata
em diferentes momentos.
Neste propósito, as incursões bandeirantes avançam rumo ao litoral sul, onde
suas tropas vão disputar hegemonias de território e de apresamento indígena com
as tropas espanholas, que aí também agem, em nome da pertença dessas terras à
Espanha segundo o Tratado de Tordesilhas. Indo para além do limite da região de
Laguna, no litoral de Santa Catarina, o movimento bandeirante alarga os domínios
da colônia portuguesa, ao tempo que garante a mercadoria escrava que o motiva.
É mais rico de possibilidades, todavia, o apresamento nas missões jesuíticas, que
reúnem numerosa população de índios guaranis, aldeados desde 1610 em terras do
atual Paraguai, Argentina e Rio Grande do Sul. Uma sequência de conflitos atraves­
sa a história das relações de bandeirantes e a região missioneira, que leva, por fim,
A s fases e vetores da formação espacial brasileira 11

à dissolução e dispersão das comunidades no século XVIII, em 1768, quando são


extintas (Lugon, 1968). Mas também são grandes atrativos as aldeias espalhadas
pela imensidão dos sertões do Centro-Oeste e da Amazônia, focos preferidos da
ação de apresamento para muitas tropas de bandeirantes por seu menor poder de
resistência e coincidir com a possibilidade de descoberta de metais preciosos, unin­
do apresamento e descoberta num só movimento (Holanda, 1976 e 1986). Fogem
a este escopo, porém, as incursões dos bandeirantes às regiões do Nordeste pecu­
ário e açucareiro (Puntoni, 2002; Carneiro, 1966). Seguidamente derrotados em
campos de batalha primeiro pelos índios organizados na confederação dos cariris
e pelos negros escravos organizados nos quilombos, de que Palmares ficou como
grande símbolo, a elite governamental convoca os serviços do capitão de guerra
Domingos Jorge Velho, esgarçando-se uma série de confrontos que culmina com a
derrota seja dos cariris e seja dos palmarinos, encerrando um período de revoltas
de índios e escravos no Nordeste que dura desde 1597.
Estes levantes são contrapontos comunitários ao modelo latifundista de socie­
dade que Portugal institui na colônia. Dado essa estrutura e organização, por isso
mesmo são movimentos que resistem longamente às investidas de sua extinção
- Palmares durando 98 anos, a confederação dos carris, 64 anos e as missões je­
suíticas 158 anos -, só desaparecendo no correr da segunda fase da formação es­
pacial brasileira, quase ao mesmo tempo e pelas mesmas mãos. São contraponto
do tempo igualmente as rebeliões indígenas da confederação dos tamoios, entre
1554 e 1567, no litoral do Estado do Rio de Janeiro (Quintiliano, s/d) e a revolta de
Ajuricaba, entre 1723 e 1727, na Amazônia (Bruno, 1961).
As trilhas do gado seguem em sentido contrário ao do vetor bandeirante. Seu
ponto de origem é a região açucareira da zona da mata, com ponto de referência
em Pernambuco, de onde, na forma de ondas, o gado avança aos limites ocidentais
do sertão nordestino rumo ao Piauí e Ceará, na direção oeste, e aos limites do
planalto central, através da calha do rio São Francisco, na direção sul. E a região
pampeana do sul, introduzido pelas missões jesuíticas, de onde igüalmente em on­
das o gado sobe rumo ao planalto central através da calha da depressão periférica.
Tal como no caminho dos bandeirantes, uma diversidade de pontos de parada vai
dando origem a manchas de cultivos e de vilas de onde irão brotando os centros de
referência da ocupação e formação do território.
Neste mister, o movimento bandeirante e o movimento de expansão do gado
forçam o deslocamento das fronteiras formais do Tratado de Tordesilhas, empur­
rando os limites legais crescentemente para os confins da hinterlândia, forjando o
domínio que o Tratado de Madrid, de 1730, irá consagrar como o novo recorte de
12 A FORMAÇÃO ESPACIAL BRASILEIRA

fronteira das colônias de Portugal e Espanha, praticamente riscando o desenho do


território brasileiro de hoje (Peregalli, 1997).

Os ciclos de assentamento

O desenho combinado das trilhas bandeirante e pastoril traça os grandes riscos de


linha da tela em cujos interstícios o pincel discreto da história se incumbirá de de­
senhar em grandes manchas de tinta as paisagens com que a sociedade brasileira
inscreverá o seu espaço. As grandes paisagens, que a discrição da história paciente
e incansavelmente desde então vai desenhando, são os frutos de nossa evolução em
seis grandes ciclos de espaço-tempo: pau-brasil, cana-de-açúcar, mineração, gado,
borracha e café.
Ponto essencial desse processo, esse plano geral de linhas e cores das paisagens
é o plano-guia de ocupação efetiva, o roteiro dos assentamentos que os ciclos vão
aqui e ali plantando no espaço. As trilhas dos-bandeirantes e do gado, ora pelos
rios e ora pelos interflúvios para o gado também pelas grandes superfícies planas
do planalto, onde avança como uma mancha de óleo -, orientam a pontuação dos
assentamentos da população e das atividades econômicas, no correr dos ciclos.
Mciecendo o privilégio, os vales dos rios sao os grandes planos de ocupação.
Primeiro momento dos ciclos da ocupação do território, o ciclo do pau-brasil
inicia a história da formação espacial brasileira. Vigora no correr dos séculos XVI e
XVII e tem por domínio de abrangência a estreita faixa da franja costeira da mata
atlântica, do Rio Grande do Norte ao norte do Rio de Janeiro. A extração do pau-
-brasil, cuja madeira, de seiva vermelha, será enviada à Europa para a produção
de corante, dá origem às primeiras áreas de ocupação da colônia. Instaladas como
feitorias, essas áreas fundam a toponímia e antecipam a depredação do meio am
biente como política colonial, deixando atrás de si terra arrasada como herança
para a história das relações da sociedade com o seu espaço no Brasil.
Entretanto, é com o ciclo da cana-de-açúcar que começa efetivamente o pro­
cesso da ocupação e formação espacial da colônia. Sua área inicial de localização
é São Vicente, no litoral de São Paulo, ponto de influência direta da irradiação do
bandeirantismo, mas a área privilegiada de desenvolvimento é a zona da mata
nordestina, onde se instala em 1532, com o tempo se multiplicando por novas
áreas da mata atlântica, particularmente no norte do Estado do Rio de Janeiro. É o
ciclo da cana que institui a sociedade agrária como modelo de sociedade no Brasil,
diferentemente da política de ocupação espanhola, que, por encontrar de imediato
1

A s fases e vetores da formação espacial brasileira 13

as minas de ouro e prata que representavam a ambição colonial das metrópoles,


institui como modelo uma sociedade mineradora e urbana. O caráter agrário e
mercantil substanciará o conteúdo social da formação espacial brasileira desde o
começo, num contraste com a essência mineiro-urbana da formação espacial da
América hispânica.
No século XVIII, finalmente encontrado o ouro e os diamantes que desde o
início o projeto colonial intentara, a formação espacial colonial experimenta uma
ligeira, mas substantiva mudança. Iniciado o ciclo da mineração, o centro de gra­
vidade da ocupação se transfere do litoral para o interior, multiplicando-se pelos
planaltos central e mineiro, e o caráter agrário da formação colonial é trocado
pelo mineiro-urbano, encerrando a fase do bandeirantismo e impulsionando a de
expansão do gado. Esse deslocamento de conteúdo e localização do centro de gra­
vidade dura apenas até o final do século, quando o ciclo se encerra, restando como
herança a cultura de uma vida urbana que doravante terá efeitos profundos e de
alta importância nos destinos da colônia.
O encerramento precoce do ciclo da mineração devolve o centro de referência
da vida de volta aos núcleos açucareiros do litoral, ao tempo que consolida nas
antigas áreas mineiras o ciclo do gado. O ciclo do gado é a culminância das ondas
de deslocamento de rebanhos provenientes das duas áreas extremas da colônia: o
sertão do Nordeste e os campos do Sul, atraídos para o planalto central-mineiro
pela demanda de alimentos criada pelo ciclo da mineração. É dos centros açucarei­
ros que sai inicialmente o rebanho nordestino que, subindo o vale do São Francisco,
chega e se espalha pelas áreas de vegetação de cerrado, em busca dos mercados
formados pelos núcleos urbanos da mineração. Aí, o rebanho nordestino se encon­
tra com o rebanho sulino, vindo da região do pampa, atraído pela mesma demanda.
Estes deslocamentos, um vindo do Nordeste e outro do Sul, colmatam o território
colonial de povoamentos e caminhos, marcando através sua consolidação pós-ciclo
mineiro a diversidade dos sertões que irão formar a hinterlândia brasileira desde o
pampa, ao cerrado e à caatinga, face à enormidade do espaço que o gado organiza.
Centrado no planalto central-mineiro, o ciclo do gado terá por real abrangência
toda a imensidão formada pelas áreas de vegetação campestre do pampa, do pla­
nalto central e do planalto nordestino, com o tempo alongando-se numa faixa qua­
se contínua do Nordeste ao Sul, no sentido da latitude. E é este ciclo que na prática
sedimenta e covalida como espaço o território da colônia estabelecido pelo Tratado
de Madrid de 1730 (Abreu, 1976).
O final do século XVIII é a fase do ciclo da borracha, que vai ocorrer na região
de florestas do vale do Amazonas. Até este final de século, e em paralelo aos ciclos
14 A FORMAÇÃO ESPACIAL BRASILEIRA

do pau-brasil, da cana e dos metais preciosos, vige no Norte o ciclo das drogas do
sertão. A instituição de aldeamentos indígenas, pelo trabalho de catequisação jesuíta,
instaura a atividade do extrativismo como modo de vida dominante ao longo de todo
o vale. É um ciclo que se esgota nos finais do século XVIII, quando é substituído pelo
da extração da borracha, o novo ciclo que reorganiza a economia regional como
um todo, cria um novo modo de vida, atraindo imigrantes do sertão nordestino,
assolados pelas secas do final do século, e alterando as relações existentes e forma­
tando a relação de exploração da floresta em função-do novo empreendimento.
Por fim, o século XIX é a fase do café, o último dos ciclos, que domina os es­
tados do Sudeste do começo do século XIX aos meados do século XX, com auge e
epicentro no planalto de São Paulo. Instaurado inicialmente nas matas dos maciços
interiores da cidade do Rio de Janeiro, daí se expande para se instalar nas áreas
florestadas da serra do Mar e do vale do Paraíba, nos Estados do Rio de Janeiro,
Espírito Santo, Minas Gerais e São Paulo, para, por fim, chegar ao planalto paulista,
quando então atinge seu clímax. O ciclo do café sustenta e faz inúmeras transições,
da colônia para a independência, da escravidão para o capitalismo e-da monarquia
para a república, assim antecipando o momento instaurador da grande transfor­
mação que ocorrerá na formação espacial brasileira com o advento da industriali­
zação e urbanização do agora país.
Essa sequência de ciclos implanta, pois, o formato de ocupação e assentamento
económico-demográfico da formação espacial brasileira. E cria o padrão do ar­
ranjo espacial que irá vigorar até meados do século XX, em que a lavoura ocupa
as áreas de floresta e a pecuária as de vegetação aberta, coincidentemente com o
arranjo diferenciado das paisagens geobotânicas arrumadas em três longas faixas,
no sentido latitudinal. Correlação assim distribuída, no sentido do litoral para o
norte amazônico: a faixa de lavouras e ocupações urbanas, das áreas de floresta da
mata atlântica; a faixa de pecuária, das áreas da vegetação campestre da caatinga,
do cerrado e dos campos da campanha dos sertões; e a do extrativismo vegetal
da Amazônia, fechando o mapa no extremo oeste-norte. A ocupação demográfica
reproduz essa ocupação socioeconômica em três grandes faixas, com maior den­
sidade na faixa atlântica e intensidade sucessivamente menor na faixa dos sertões
até minguar e mostrar-se rala na faixa extrativista do extremo oeste-norte.
É nesse longo período dos ciclos que se implanta o modelo de sociedade brasi­
leira como uma sociedade concentradora e excludente, levantando a sequência de
movimentos insurrecionais que se desdobram das comunidades indígenas e qui-
lombolas dos ciclos iniciais às comunidades camponesas dos últimos ciclos, cada
qual experimentando um modelo comunitário de sociedade distinto e contraposto
A s fases e vetores da form açao espacial brasileira 15

ao modelo escravista, latifundiário e monocultor hegemônico: o modelo da confe­


deração dos tamoios, no litoral do Rio de Janeiro e São Paulo, entre 1554 e 1567,
no período do ciclo canavieiro vicentino do século XVI (Quintiliano, s/d); o modelo
da confederação dos cariris, no sertão, entre 1651 e 1718, no período do ciclo do
gado nordestino (Puntoni, 2002); o modelo do quilombo dos palmares, nas áreas
montanhosas do agreste alagoano-pernambucano, entre 1597 e 1695, no período
do ciclo da cana (Carneiro, 1966; e Reis e Gomes, 1996); o modelo dos cabanos, no
vale do Amazonas, entre 1835 e 1840, entre o período do ciclo das drogas e o pe­
ríodo do ciclo da borracha (Rocque, 1984; e Di Paolo, 1985); o modelo de Canudos,
no sertão da Bahia, entre 1893 e 1897, na transição da monarquia para a república
(Cunha, 1995 [1901]; e Moniz, 1978); e o modelo do Contestado, no oeste de Santa
Catarina e Paraná, entre 1912 e 1916, no período do ciclo do mate e de extração
madeireira do planalto meridional (Queiroz, 1966). Todos reprimidos e dissolvidos
pelo sistema dominante, à semelhança da experiência comunitária das missões
jesuíticas, no vale do rio Paraná, entre 1610 e 1804, na fase do ciclo do bandeiran-
-tismo (Flores, 1986).
De um modo geral,, são experiências de constituição de um outro modelo de so­
ciedade, que vicejam na fímbria da instituição do modelo latifundista-escravocrata
dominante em toda a evolução da formação espacial brasileira e por isso mesmo se
multiplicam ao longo de todo o percurso desse tempo.

A implantação do arranjo capitalista

O começo do século XX encontra essa formação espacial brasileira matricialmen­


te completada e consolidada fundamentalmente em seu processo de constituição
territorial e cartográfico. E será essa matriz a base de que o Estado nacional, dora­
vante o regulador do desenvolvimento, partirá para esgotar e ultrapassar a fase dos
ciclos, no rumo da industrialização. Caracteriza-a a permanência da diferenciação
de áreas, seja por sua arrumação em faixas geobotânicas distintas do litoral para
o interior e seja por sua arrumação em arranjos espaciais distintamente criados
pelos ciclos no longo do tempo, ciclo a ciclo. Cujo começo de reestruturação numa
formatação rejgional sistemática terá fundamental importância para o desenvol­
vimento da indústria, dado o caráter de uma divisão territorial de trabalho que
está já implícita nessa divisão regional, que o Estado vai intensamente utilizar
com o fim de daí extrair as divisas de exportação necessárias ao desenvolvimento
industrial.
16 A FORMAÇÃO ESPACIAL BRASILEIRA

Distinguem-se a fase pré e a fase industrial da formação espacial brasileira


agora em construção. De que a década de 1950 é o marco temporal de passagem.
A industrialização tem seu fomento na passagem do modelo de economia “para
fora” dos ciclos para o de uma economia “para dentro” que ela estabelece (Tavares,
1972). Até os anos 1950 a indústria utiliza em seu crescimento a economia de pro­
dução regional para fora, legada dos ciclos coloniais, crescendo com o consumo de
suas divisas, que usa para financiar a formação do capital inicial das indústrias,
na forma da importação de matérias-primas e equipamentos. Após os anos 1950, a
indústria encontra-se já desenvolvida e centrando a formação espacial brasileira,
no âmbito de uma organização espacial por ela inteiramente produzida e transfor­
mada, e obediente à sua lógica intrínseca de mercado. Oliveira designa essa trans­
formação de passagem de “uma economia regional nacionalmente organizada”, a
da formação espacial herdada do período dos ciclos de espaço-tempo, para uma
“economia nacional, regionalmente organizada”, a da integração industrial, o ano
de 1950 sendo a referência (Oliveira, 1984, 1987 e 1988).
A lei do desenvolvimento desigual e combinado passa então a reger a nova for­
mação, progressivamente desigualando e invertendo a forma das relações espaciais
até então existente. O centro do comando assim se desloca do campo para a cidade,
das diferentes regiões para o Sudeste e das indústrias regionais para as indus­
triais nadundis concentradas em São Paulo, assim se reorientando a regulação e o
ordenamento espacial no interior da formação. Essa metamorfose, acontecida na
formação espacial brasileira já dentro de sua fase industrial, segue, todavia, dois
distintos momentos. Primeiramente, a industrialização arranca e ultrapassa nessa
arrancada a economia regional herdada da matriz dos ciclos, a seguir dissolvendo-
-a, ao atingir o seu auge, para reorganizar o espaço numa divisão de trabalho de
tipo avançado. O que no fundo significa uma passagem de duas distintas formas
de divisão territorial do trabalho industrial: aquela da conversão pura e simples do
espaço pouco organizado dos ciclos no espaço da divisão inter-regional do trabalho
em que os ciclos se transformam e aquela da conversão desta na redivisão que irá
caracterizar a organização espacial concentrada na hegemonia industrial e sudes-
tina. A primeira divisão territorial do trabalho é a da fase da formação espacial em
que o campo comanda ainda a cidade, as indústrias são ainda de bens de consumo
e por isso encontram-se instaladas em praticamente todas as regiões (coladas em
suas respectivas economias agrárias) e a concentração industrial em São Paulo
não é um traço distintivo ainda. A segunda divisão territorial do trabalho é a da
consolidação do arranjo do campo comandado pela indústria e assim pela cidade,
que marca a integração industrial-mercantil do espaço nacional polarizada por São
A s fases e vetores da formação espacial brasileira 17

Paulo (Moreira, 2004). Uma ampla base de infraestrutura para tanto deve ser as­
sim instalada, que traga os meios de transporte, de comunicação e de transmissão
de energia para o cerne dessa formação, organizados numa rede de circulação que
visa a que tudo convirja para a instauração do comando da cidade sobre o campo,
da indústria nacional sobre a indústria regional e da indústria paulista sobre o todo
do espaço nacional.
Esta rede no geral é a mesma das trilhas do bandeirantismo e da expansão do
gado, porém orientada agora para outra direção de relações e propósito e com
impacto em geral negativo para os núcleos iniciais de assentamento e suas loca­
lizações. Ali por onde passa o eixo modemizante da urbano-industrialização, os
velhos núcleos de assentamento são encarados como de efeito inercial, não raro a
industrialização dissolvendo-os, desalojando seus habitantes ou mesmo extinguin­
do seus arranjos de espaço. Daí advindo conflitos de reordenamento urbano que se
acrescentam aos de origem fundiária rural.
Conflitos rurais, urbanos e regionais assim se entrecruzam e se multiplicam
reciprocamente no espaço nacional unificado. Nos conflitos rurais opõem-se gran­
des proprietários e camponeses ao redor da questão da reforma agrária. A forte
concentração da propriedade rural herdada do período colonial e que atravessa
sem mudança as transformações fundamentais do século XIX - a independência, a
abolição da escravatura e a república - agora é questionada por um campesinato
que começa a ser expulso do campo por conta das mudanças na agropecuária em
sua resposta de mercado capitalista às demandas urbanas e da industrialização, re­
agindo o campesinato com a pressão pela partilha e redistribuição mais equânime
da terra que equilibre as relações no campo e modernize socialmente as relações
agrárias. Já nos conflitos urbanos opõem-se o capital e o trabalho, a população
trabalhadora urbana e a especulação imobiliária e a nova e a velha direção dos
fluxos da circulação. São duas ordens territoriais de conflito, a rural e a urbana,
que aqui e ali se aproximam. O apoio dos segmentos sociais da cidade que veem
um rebatimento positivo da reivindicação dos camponeses no seu modo de vida
urbano - caso dos trabalhadores, que relacionam os problemas rurais a sua pauta
de emprego, salários e moradia - e no alargamento do mercado - caso dos indus­
triais, preocupados com os limites do mercado interno para seus produtos -, en­
contra a contrapartida no apoio dos segmentos sociais do campo, nacionalizando o
movimento do campesinato por reforma agrária e dos trabalhadores urbanos por
melhores condições de vida, num cruzamento de bandeiras. Já nos conflitos inter-
-regionais, por fim, pontuam as dissonâncias entre as velhas oligarquias rurais re­
gionais e as novas nascidas da urbano-industrialização, acentuadas pela passagem
18 A FORMAÇÃO ESPACIAL BRASILEIRA

da velha para a nova divisão territorial do trabalho, ressaltando em particular o


contraste que então se estabelece entre Sudeste e Nordeste.
Todo esse mapa de conflitos expressa a passagem de uma formação espacial para
outra e a necessidade de sedimentar-se a regulação correspondente. A forte concen­
tração da economia industrial no polo paulista, a subordinação das atividades regio­
nais à performance econômica da indústria concentrada em São Paulo, a canalização
e transferência de meios de uma região para outra e a disparidade do desenvolvi­
mento entre o campo e a cidade, são todos conflitos referidos à forma da regulação
espacial industrial e que não raro têm nas políticas territoriais do Estado, via ação
superestrutural e políticas de infraestrutura, seus termos iniciais de equacionamento.

A redesconcentração e privatização da gestão do espaço

A resposta a esses confrontos vem na forma de uma reordenação espacial que


orienta o desenvolvimento na linha combinada da desconcentração urbano-indus­
trial e modernização conservadora da agricultura. Estratégia de ação que usa da
rearrumação do espaço no lugar da transformação estrutural da sociedade de­
mandada pela sociedade para neutralizar os movimentos pró-reformas de base do
período da industrialização. Basicamente apoiada na redistribuição da indústria e
da população fortemente concentradas nos espaços centro-sulinos e na moderni­
zação conservadora do campo, esta estratégia afeta e altera de modo ainda mais
radical o mapa dos assentamentos, introduzindo na formação espacial brasileira
um período de desarrumação demográfica e socioambiental anteriormente nunca
vista (Gusmão, 1990; Moreira, 2003a). É a reestruturação do espaço brasileiro, de
que a década de 1970 é o marco temporal.
Três eixos seguem esta reestruturação: a modernização da agricultura, a re­
distribuição territorial da indústria e a despatrimonialização-desestatização que
privatiza a gestão do espaço.
A reestruturação começa pela modernização dá agropecuária, que tem na ex­
pansão da sojicultura para as áreas do cerrado o seu carro-chefe. Só depois che­
gando à indústria. E por intermédio desta à organização do sistema de empresas.
E um processo anterior aos anos 1970, relacionando-se à migração de pequenos
produtores das regiões de colonização alemã e italiana do Sul para a calha do rio
Paraná, em busca de reassentar-se no noroeste do Rio Grande do Sul, oeste de
Santa Catarina e oeste do Paraná, afetados em suas propriedades pelo desenvolvi­
mento da agricultura gaúcha, motivada pela industrialização de São Paulo, e pela
A s fases e vetores da form açao espacial brasileira 19

acentuada fragmentação da propriedade relacionada às seguidas transmissões de


heranças, de onde segue para as terras pouco povoadas e ocupadas agricolamente
do planalto central. Premidos por essas dificuldades, esses pequenos produtores
empreendem um movimento de migração, que nos anos 1960-1970 chega ao Mato
Grosso, e que os governos militares aproveitam para orientar no sentido da política
de colonização da fronteira amazônica. Uma ação que é antecedida pela intensa
atividade de pesquisa dos solos precários do cerrado de orientação governamental.
É o Estado que através das pesquisas agronômicas da EMBRAPA está por trás da
geração das técnicas de correção de acidez e uso rentável dos solos que abre a área
do cerrado para a implementação agrícola em grande escala e que se concretiza na
política migratória estimulada pelos governos militares dos anos 70. E, ainda, da
estratégia de desenvolvimento do setor de indústria para a agricultura, que leva a
mecanização da agricultura a acelerar-se em toda a região. De modo que em pou­
cas décadas a soja toma conta do cerrado.
Segue-se-lhe a política de grandes projetos, que leva à desconcentração indus­
trial. Estratégia esta de ocupação, sobretudo, da periferia da região de moderniza­
ção agropastoril com polos de indústrias de bens intermediários, implementadas
na forma de grandes centros minero-industriais como o polo do Grande Carajás,
um enorme centro minero-florestal-siderúrgico instalado na província ferrífera de
Carajás, no sudeste do Pará, voltado para a produção de lingotes de ferro para
exportação, apoiado em alto consumo de lenha extraída da floresta amazônica. A
que se acrescenta a incrèmentação da política de instalação da rede de meios de
transporte, comunicação e transmissão de energia pelas áreas do Centro-Oeste e
da Amazônia numa interiorização das. interações espaciais nacionais polarizadas
nas cidades do Sudeste que a União vem implementando desde os anos 1950-1960
com a rodovia Belém-Brasília. Um número crescente de grandes usinas hidrelétri­
cas forma o suporte geral de toda essa expansão para o centro-norte.
Nas décadas de 1980-1990 o espaço brasileiro encontra-se assim inteiramente
redesenhado e descomprimido. Arrumadas ao redor do Sudeste ainda central, no
arco agropecuário moderno circundante da faixa sul-central-nordestina de vege­
tação campestre e na periferia mais externa dos polos minero-industriais as ati­
vidades agrícolas, pecuárias e industriais estão agora mais disseminadas. A rede
de transporte, comunicação e linhas de transmissão de energia mais difundida.
E, como efeito, a população, as cidades e as trocas comerciais mais amplamente
redistribuídas por todo o território.
Assim, a matriz segundo a qual a formação espacial brasileira até então se or­
ganizara ganha novo formato. Já não mais são as faixas geobotânicas, a integração
20 A FORMAÇAO ESPACIAL BRASILEIRA

viária de sentido litoral-interior e os recortes oriundos dos ciclos as formas da or­


denação. São agora velhas paisagens naturais e humanas que se dissolvem ou se
misturam: a lavoura passa a ser feita nas áreas de vegetação campestre e o gado nas
antigas áreas de matas; as vias de circulação se enxadrezam num sentido entrecru-
zado de leste-oeste e norte-sul e os núcleos urbanos e industriais se interiorizam pelo
nordeste e centro-norte indistintamente. De modo que a antiga forma de regulação
agroexportadora se desfaz num movimento de desmonte e remonte do espaço nacio­
nal de duas principais consequências: 1) a desarrumação socioambiental em ampla
escala; e 2) o desalojamento, expulsão e desterritorialização dos velhos nichos de as­
sentamento. Ambos com incidência sobre os antigos arranjos do campo e na cidade.
Sob novas formas, escondem-se, entretanto, velhos processos. Com efeitos mul­
tiplicados.
Os efeitos socioambientais, cumulativos, são conhecidos (Moreira, 2003b). A
combinação de modernização monoagrícola, grandes usinas hidrelétricas e gran­
des polos de produção minero-industrial validada como política territorial para
todo o país, nacionaliza o problema ambiental. Antes concentrada nas grandes re­
giões industriais do Sudeste, a desarrumação socioambiental do espaço brasileiro
se difunde agora por todos os cantos. A propagação da soja pelo topo dos chapa-
dões do planalto central sobre a base da mecanização e consumição de água para
irrigaçao tirada dos lençóis subterrâneos a grandes profundidades e em grande
escala, esgota as reservas hídricas, submete os solos a intensos desgastes, assoreia
e altera a rede de drenagem, desorganizando o ecossistema do cerrado e da mata
amazônica. E a opção pelo transporte rodoviário, destinado a favorecer o escoa­
mento dos grãos e da madeira, intensamente explorada junto à ocupação predató­
ria do cenado e da floresta, reforça a desarrumação socioambiental que já vem na
esteira da ocupação rodoviária do Centro e do Norte desde a abertura da Belém-
Brasília e se amplifica agora com a Transamazônica e Cuiabá-Santarém (Valverde
e Dias, 1967; e Valverde, 1979).
Bem como os efeitos socioterritoriais, seja no campo e seja na cidade. Nas áreas
rurais, o melhor exemplo é o desalojamento dos assentamentos onde as populações
estão localizadas desde os pontos de trilhas do bandeirantismo e da expansão do
gado, com seus embriões de vilas e comunidades rurais localizadas no fundo dos
vales dos rios, pelos lagos de barragem das usinas. Os lagos inundam as áreas
justamente desses antigos assentamentos, expulsam as comunidades indígenas e
camponesas de seus lugares históricos e forçam-nas a ter de reinventar seus mo­
dos de vida em ambientes totalmente distintos aos seus, multiplicando junto aos
camponeses sem-terra, expulsas de suas terras pela latifundização crescente as
As fases e vetores da formação espacial brasileira 21

comunidades indígenas e as campesinas expulsas das suas pelos grandes lagos de


barragem. Já nas áreas urbanas os desalojados são os trabalhadores despedidos
de suas ocupações e empregos pela chamada flexibilização do trabalho, dividindo
a população trabalhadora urbana em população do trabalho formal e informal
quase simetricamente, num volume de trabalhadores informais até então desco­
nhecido na realidade social brasileira, e que vão engrossar as ocupações de áreas
desprezadas pela especulação imobiliária, aumentando em exponencial o número
de favelas nas grandes, médias e pequenas cidades (Kowarick, 1975; Kraychete,
2000). Essa combinação de efeitos no campo e na cidade desterritorializa e torna
flutuante grande massa de população, que no campo vai alimentar a multiplicação
dos trabalhadores boias-frias e a pressão dos sem-terra por novos assentamentos e
na cidade a amplificação dos desempregados e o aumento da mobilização dos sem-
-terra urbanos. Uma população de excluídos para a qual reinventar os modos de
vida torna-se uma imperiosa necessidade.
Todo esse efeito se amplia diante da reestruturação empresarial que privatiza
as empresas estatais do ramo de infraestrutura. Muitas delas criadas através da po­
lítica de polos dos grandes projetos governamentais justamente pelo seu papel es­
tratégico nacional. Há, assim, dentro do rearranjo em marcha, com a privatização
dessas empresas, a equivalência da instituição de uma norma nova de gestão que
pralicaiiiente implanta nus anos 1980 1990 uma privatização administrativa do
território do país. A entrega da propriedade dessas empresas para o setor privado
passa assim para elas o mando sobre os seus recortes de espaço, transferidos para
elas em caráter de gestão privada. Somados esses pedaços de espaço aos da cultura
da soja, do reflorestamento e da pecuária, centrados no poder também privado, a
escala da privatização da gestão do espaço se torna um fato de abrangência tão am­
pla, que praticamente torna o poder privado o poder territorial nacional. Um poder
pelo qual as empresas fatiam o controle do território, vinculam sua administração
à lógica do mercado, definem na sua estratégia a própria estratégia da regulação
do espaço nacional, e, por essa via, dissociam a formação espacial brasileira do
projeto de país autônomo que até determinara o seu conteúdo.

As novas sociabilidades e as instituições de regulação da complexidade

Na prática, todo esse conjunto de reordenação traduz-se numa combinação pú­


blico-privada de gestão do território em que o Estado entra com o recurso e a
segurança pública e a empresa privada com a rentabilidade, a reestruturação re­
22 A FORMAÇÃO ESPACIAL BRASILEIRA

dundando numa amplificação para o plano da administração do espaço a prática


de socialização das despesas e privatização dos lucros - o socialismo dos tolos, há
tempo observado por Oliveira - que constitui o modo histórico de relação socie-
dade-Estado da evolução nacional brasileira. E cujo exemplo é a instituição das
agências de regulação.
As agências reguladoras são o dado novo do esquema de gestão da formação
econômico-social brasileira. Criadas uma para cada setor chave da economia (as
primeiras das quais foram a ANP, a ANATEL, a ANEEL e a ANTI, reguladoras,
respectivamente, do setor do petróleo, das telecomunicações, da energia elétrica
e dos transportes terrestres), fazem elas um arremedo de gestão público-privada
do país. Assim, o modo como o- Estado intervinha desde os anos 1940-1950 é
substituído pelo modo de ação dessas agências. Segundo duas grandes diferenças:
a gestão global via planejamento estatal-federal é agora fragmentada por setores
e o mando passa a realizar-se numa aparência de relação de compartilhamento
entre sociedade civil e Estado. Visto setorializado campo a campo este modo de
ação cabe ao Estado a função de. levantamento dos recursos financeiros ao capi­
tal privado, a execução e fruição maior da margem de lucros, Estado e empresas
privadas deixando aparentemente para as agências a função reguladora e de
fiscalização dos resultados e cumprimentos. Um mix de representações ao qual
caberia por tarefa a função de pensar e gerir o todo da nova formação espacial
assim criada.
Todo um desdobramento, todavia, se abre nessa conjuminação de regulação e
interesses assim institucionalizados. De um lado, um mecanismo de regulação de
rentabilidade estável basicamente para o capital em sua busca exclusiva de novos
nichos de lucro. De outro, um quadro de aumento da restrição dos excluídos. Dois
modos distintos como o novo formato da formação espacial brasileira chega aos
segmentos sociais historicamente extremos da sociedade brasileira. Desatando um
quadro de tensões até então enjaulado. O capital nele entra tal qual um bicho voraz,
descartando e transferindo para o Estado inteiramente as componentes que pesam
no custo espacial da nova cartografia. Já a energia do movimento popular solta as
amarras dum desejo histórico de autorregulação em formas coletivas e individuais
de organização da produção e da vida longamente amortecidas ou presas no âmbi­
to da regulação antiga.
Tudo indica tratar-se de uma nova fase de espaço e contraespaço, cujas per­
sonagens estão melhor exemplificadas de um lado nos complexos agroindustriais
(Araújo, Wedekin e Pinazza, s/d; Pinazza e Araújo, 1993; Lopes, 1996; e Belik,
2001) - a nova face dos monopólios - e de outro nos complexos de economia popu­
A s fases e vetores da formação espacial brasileira 23

lar urbana (Reijntjes, Haverkorte Waters-Bayer, 1999; Kraychte, Lara e Costa 2000;
Gaiger, 2004; e Pacheco, 2004).
Contraponto que encaminha a formação espacial brasileira rumo ao formato de
uma organização social mais complexa, em que, de modo claramente explícito, a
sociabilidade capitalista e as sociabilidades não capitalistas coexistam num perfil
societário ainda incerto,, mas que sugere tratar-se de sujeitos estruturais efetiva­
mente presentes (Moreira, 2005). Paradigmas de um mundo do trabalho e da polí­
tica contarrestantes, sobretudo face à regulação do espaço.
Expressão do novo rumo da organização da formação espacial brasileira pelo
lado das classes hegemônicas, o complexo agroindustrial é uma economia indica­
tiva da organização da sociedade e do espaço segundo padrões de regulação mar­
cados pela ausência da divisão territorial do trabalho, de um lado, e novo modo
de entrada do Estado, de outro lado, ilustrando o desaparecimento justamente das
estruturas reguladoras das ações e dos ordenamentos do recente passado. E, assim,
a forma estrutural-produtiva que melhor encarna os efeitos da nova base material
trazida à organização da produção e do trabalho no modo de produção capitalista
pela terceira revolução industrial, cujo epicentro técnico são a microeletrônica e a
engenharia genética, e cujo epicentro acumulativo é o capital rentista. Assim, no
campo, para além da interação própria da primeira fase da mais-valia relativa, a
agricultura e a indústria fundem-se na estrutura única do complexo agroindus­
trial, uma estrutura de produção e trabalho em que os setores da agricultura, da
indústria, do serviço e da pesquisa tecnológica eliminam as separações setoriais
(em setores primário, secundário, terciário e quaternário) e espaciais (em cidade
e campo; e cidade e região) e introduzem um modo de organização espacial sem
as separações que segmentavam territorialmente a formação espacial capitalista
clássica. E passam a assim relacionar-se no plano estrutural da economia e das
empresas como um corpo global, não mais setores especializados, todos os setores
juntando-se, fundidos, numa só empresa e numa mesma estrutura espacial em
rede. E na cidade, enquanto equivalente urbano do complexo agroindustrial, o
complexo empresarial que junta a produtora, a revendedora e a financiadora num
só domínio de empresa, é a estrutura nova, generalizando o modelo de produção-
-realização do valor do ramo das montadoras de automóveis para o todo do sistema
industrial, produção, venda e financiamento se fundindo numa só unidade corpo­
rativa espacialmente. O capital rentista, representado na agência de financiamento
do grupo, assumindo o comando geral por trás das fusões. Daí dizer-se que o es­
paço tornou-se uma rede de redes. Um nome apropriado para o espaço de rede de
complexos. O de complexos em rede.
24 A FORMAÇÃO ESPACIAL BRASILEIRA

Já do lado da organização popular são várias as formas de expressão. Daí a


liberação, tanto no campo quanto na cidade, das formas de sociabilidade até então
ocultadas nos velhos nichos de assentamento. No campo, são as que aparecem
na evidenciação dos conhecimentos populares há séculos centrados na relação
de biodiversidade, e, nas cidades, sob o termo genérico de trabalho informal e
das ocupações urbanas. E, daí, a multiplicação das formas de economia popular,
ora designadas de economia dos setores populares e ora de economia solidária
(Kraychete, 2000; Coraggio, 2000), que despontam da reestruturação capitalista,
e cuja natureza é o antigo modo de produção mercantil simples (Singer, 2000),
supostamente extinto na história. São formas de produção e trabalho que tomam
por braço de apoio, nessa reemergência e caminhada para consolidação, movimen­
tos sociais organizados como o MST (Fernandes, 2000) e a CUT (Neto e Giannoti,
1993), dois âmbitos de confronto evidente com a sociedade modelada nos comple­
xos da agroindústria e do rentismo (Souza, Cunha e Dakuzaku, 2003).
Assim, ao fazer desaparecer as divisões que distinguiam e separavam cidade
e campo, região e região, e cidade e região, e justificavam a necessidade da re­
gulação que as unificasse por baixo do Estado, ou, dizendo de outro modo, ao
dissolver a fronteira das relações cidade e campo, região-região e cidade-região,
superando a divisão territorial do trabalho criada pela indústria nos anos 1950-
19G0 paia sei o padrão dc organização espacial da formação capitalista, naquilo
que a nova base material do capitalismo lhe traz de apoio, a regulação privada
do espaço abre para vir à tona novas e antigas formas de sujeitos. E um modo
novo de contraponto que embaralha as regras e normas da formação espacial
brasileira.

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SETOR AGRÍCOLA E ACUMULAÇAO
URBANO-INDUSTRIAL NO BRASIL*

Este texto centra sua atenção no papel que o setor agrícola vem desempenhando
no processo de acumulação urbano-industrial, que domina o presente momento
do desenvolvimento capitalista no Brasil, bem como em algumas controvérsias em
torno do assunto.

A importância do tema

Foi Antônio Barros de Castro quem observou recentemente o papel de “pano de


fundo” da sociedade rural brasileira em relação à nossa sociedade urbano-industrial,
chamando a atenção para o fato de que aquela projeta sua imagem sobre esta, mar­
cando assim seus traços essenciais (Castro, 1969). Define nesses termos sua crítica
ao dualismo, sobretudo à tese, consagrada por esta corrente, de ausência de articula­
ções entre os lados rural e urbano-industrial da presente formação social brasileira.
Mesmo que tal concepção da sociedade brasileira não proceda, o exemplo ilus­
tra o propósito deste trabalho: é nossa crença que, seja qual for a solução que se
dê ao impasse em que nos encontramos mergulhados atualmente, a direção que
tomar o setor agrícola no seu processo evolutivo definirá o caminho que o Brasil
seguirá como um todo.
É abundante a produção intelectual, mormente em forma de curtos ensaios,
sobre a temática agrária brasileira a partir da década de 1960, atestando sua im­
portância. Mas para lembrarmos que tal não é uma preocupação de hoje, basta
atentarmos para o fato de que, entre os temas centrais que ocuparam o esforço de
compreensão da realidade brasileira na década que vai de 1954 a 1964, o da refor­

* Texto originalmente publicado na revista Legenda, n. 2, ano 1,1978, da Faculdade Notre Dame.

29
30 A FORMAÇÃO ESPACIAL BRASILEIRA

ma agrária talvez tenha sido o de maior polarização dos debates. Paradoxalmente,


no entanto, impressiona a ausência de um conhecimento concreto das relações
de produção imperantes no campo brasileiro, em contraste com a profundidade
de conhecimento a que já chegamos da sociedade urbano-industrial, bem como
percebe-se a falta de um programa agrário nos vários projetos políticos gerados
pela história recente no país.

Os modelos teóricos

A teoria clássica de inspiração ricardiana, aqui incluindo Marx, define o papel do


setor agrícola na fase inicial do desenvolvimento do capitalismo urbano-industrial
com base naquilo que se chama de sua funcionalidade. Consiste tal funcionalidade
na capacidade desse setor de contribuir para a acumulação de capital requerida por
esse desenvolvimento, dita primitiva, por meio da geração de excedentes, da libe­
ração de mão de obra, do consumo de produtos urbanos e da transferência de sua
* i*
renda. Como observa André Gunder Frank, “O processo da acumulação do capital é
um dos motores principais (se não o principal) da História moderna” (Frank, 1977).
Formulada com base no processo histórico europeu, a teoria clássica vê na
ausência de vínculos do setor agrícola com a economia de mercado capitalista nas­
cente freios ao desenvolvimento que podem retardá-lo ou torná-lo penoso. Tendo
por premissa que a produção de excedentes é uma pré-condição ao desenvolvimen­
to do capitalismo, coloca neste fato um papel de suma importância. Isto porque o
surgimento de uma produção de excedentes permite ao setor agrícola liberar mão
de obra, que flui para os centros urbanos onde formará abundante oferta de força
de trabalho às indústrias, bem como renda, com a qual o campo se converterá em
consumidor dos bens e serviços industriais.
Duas correntes vão ter lugar na América Latina em torno a esta questão, ani-
nhando-se em cada qual teses conflitantes, embora não linearmente: uma, deri­
vada da teoria clássica, vê o setor agrícola como fator impeditivo do desenvolvi­
mento, sem desempenho de sua funcionalidade em razão da permanência de uma
estrutura pré-capitalista; a outra, conflitando com os princípios da teoria clássica,
vê no setor agrícola desempenho do seu papel a contento precisamente devido ao
seu caráter pré-capitalista. Na ausência de terminologia adequada e com o intuito
de facilitar a exposição, chamaremos à primeira de corrente dualista e à segun­
da de corrente funcionalista. A corrente dualista encontra suas bases teóricas em
Lambert e em trabalhos iniciais da Comissão Econômica para a América Latina
Setor agrícola e acumulação urbano-industrial no Brasil 31

(CEPAL). Já a corrente funcionalista pode ser vista em Ruy Miller Paiva, André
Gunder Frank, Francisco de Oliveira.
Observe-se que no cerne das controvérsias entre estas duas correntes situam-
-se duas questões: a transformação da estrutura agrária e o tratamento científico
do -tema por via do uso da noção de acumulação do capital. A primeira, posta à
margem dos debates na última década, consiste na principal proposta da corrente
dualista, mas sua necessidade é contestada por alguns teóricos da corrente funcio­
nalista; a segunda-consiste num dos pontos de fraqueza teórica da corrente dualista,
constituindo uma das grandes contribuições da corrente funcionalista.
Para Lambert, em nosso país coexistem dois brasis, que estão separados “por
diferenças de séculos”: o Brasil Moderno, representado por São Paulo e estados
sulinos, e o Brasil Arcaico, representado pelo Nordeste. Na origem dessa defasa-
gem, como diz Lambert, está a implantação em solo brasileiro, em tempo e espaço
diferentes, de duas diferentes fases do desenvolvimento europeu:

Oriundas da Europa e dos Estados Unidos, as novas formas de civilização (a civili­


zação industrial) estabeleceram-se a principio em alguns pontos isolados do imenso
território brasileiro; estas novas formas de civilização européia atravessaram o mar,
tal como ofizeram as formas arcaicas que os primeiros colonos portugueses haviam
introduzido quatro séculos mais cedo. (Lambert, 1972)

Já nascidos defasados, os dois brasis só tendem a aumentar o abismo que os


separa, já que ao grande dinamismo do Brasil desenvolvido opõe-se o imobilismo
e estagnação do Brasil subdesenvolvido. A solução do dualismo está na difusão
do novo através do arcaico, a partir dos centros de gravidade do novo: as cidades.
Mas tal superação da defasagem e do arcaísmo não se fará sem violência, já que
ao dualismo econômico e cultural corresponde por decorrência uma dualidade de
nacionalismo, a exemplo da revolução constitucionalista de 1932, na qual “... o país
novo foi provisoriamente vencido”.
O dual-cepalismo, preocupado com a relação capital-produto, toma a defasa­
gem como origem de processo inflacionário e ponto de estrangulamento do pro­
cesso desenvolvimentista. Tal fato se deveria à insuficiente produção agrícola e
seus altos custos em razão do atraso tecnológico, refletindo-se no desenvolvimento
urbano-industrial sob a forma de altos custos de produção industrial, alto preço
dos gêneros alimentícios e desemprego urbano. A rigidez da oferta de produtos
agrícolas (oferta insuficiente) estrangula, assim, o desenvolvimento industrial, pre­
judicando o desenvolvimento social e econômico como um todo. Ao lado dessa rigi­
32 A FORMAÇÃO ESPACIAL BRASILEIRA

dez de oferta de produtos agrícolas, e parcialmente a ela associada, mas, sobretudo,


devido ao caráter feudal das relações de trabalho rurais, verifica-se a fraqueza de
consumo de bens e serviços urbanos pelo campo, obstaculizando-se também des­
se modo a urbano-industrialização. Há, assim, “rigidez tecnológica”, geradora de
“rigidez de oferta” de produtos agrícolas, em razão da “rigidez institucional”, para
usarmos as expressões neoclássicas desse discurso. Somente pela transformação
das relações de produção arcaicas feudais (“rigidez institucional”), pode-se libertar
a tecnologia do seu atraso (“rigidez tecnológica”), condição essencial à elevação
da produtividade agrícola, sem a qual permanecerá a insuficiência de oferta de
produção agrícola (“rigidez de oferta”).
A corrente funcíonalista tem suas origens na CEPAL, como observa Celso
Furtado, mas ganha expressão dominante após 1964, quando as teses reformistas
de cunho cepalino são postas à margem dos debates, seja pela nova conjuntura
política, seja pela própria contestação que o ritmo de urbano-industrialização do
período 1968-1974 oferece à tese da “rigidez estrutural”. Náo vendo antagonismos
entre a atual estrutura agrária, a despeito mesmo do seu caráter pré-capitalista, e
os propósitos da urbano-industrialização, antes esta teoria constata a funcionalida­
de do setor agrícola. De modo que invertendo o painel histórico que serviu de base
à teoria clássica, vai localizar a urbano-industrialização num tipo de formação so­
cial oposto ao das nações europeias, surgida nos quadros da divisão inleinacional
de trabalho por estas nações criada em proveito próprio, divisão esta caracterizada
pela sua natureza produtora de excedentes, colonial-exportadora, e por isso dotada
das mínimas condições exigidas para o início do desenvolvimento industrial. Esta
aparente heterodoxia com relação à teoria clássica reside no fato de a corrente
funcíonalista visualizar nesta formação social uma forma própria de acumulação
primitiva de capital urbano-industrial, produzida por condições históricas não só
diferentes, mas, sobretudo, inversas às prevalecentes nos países europeus capita­
listas centrais.

Um modelo brasileiro de acumulação

Diferentemente da evolução europeia, em cujo processo histórico temos ido buscar


até agora os modelos de interpretação de nossa realidade, na evolução brasileira
encontramos um sistema agrícola montado pelo e em função do modo de produção,
o colonial agro-exportador, constituído basicamente de dois subsetores articulados:
a grande empresa agromercantil e a pequena lavoura de subsistência. As formas de
Setor agrícola e acumulação urbano-industrial no Brasil 33

articulação entre estes subsetores e as formas adquiridas pela pequena lavoura de


subsistência ao longo do nosso processo histórico têm variado, mas o subsetor de
subsistência cumpre sempre um papel ancilar da grande empresa agromercantil,
papel de fundamental importância no processo de acumulação.
Um ligeiro painel da estrutura econômico-social brasileira até a crise da escra­
vatura mostra largos tratos de terra sob o controle da grande empresa agromercan­
til, em uso ou, diz Furtado, simplesmente a ela adjudicados com fins de utilização
futura (Furtado, 1972). A abundância de terras e a escassez da mão de obra são as
condições de fatores de produção que estão por trás das formas que adquirem as
relações de produção nesta fase. A elasticidade de oferta do fator terra e a inelasti-
cidade de oferta do fator trabalho são a razão mesma do imperativo de instalação
da grande empresa como base de organização do empreendimento colonial, tendo
em vista a alta capacidade financeira exigida pela importação de equipamentos e
escravos. Localizada na periferia das terras usadas pela grande empresa, mas em
terras a esta adjudicadas, a pequena lavoura de subsistência compreende pequenas
unidades familiares dedicadas à produção de gêneros alimentícios com os quais se
supre a grande empresa, complementar mente.
A mão de obra escrava ocupa uma posição-chave na estruturação do sistema
polarizado na grande empresa agroexportadora. Sendo a terra um fator de produ­
ção abundante e a mão de obra um fator escasso, reside no controle deste último a
base do prestígio e do poder da grande empresa, garantindo-lhe a fruição exclusiva
dos benefícios, oriundos dos centros de decisão da colônia (a Coroa portuguesa e
seus prepostos na colônia). Como, no entanto, o monopólio do poder e prestígio
é função do monopólio da terra, torna-se fundamental compor se os dois fatores.
Surgida para compensar com alta rentabilidade o empreendimento colonial, a ins­
tituição da escravatura permite, por meio do uso do poder que confere ao escravo­
crata, o controle da terra. Assim, observa Furtado, o domínio do fator escasso abre
o caminho para o domínio do fator abundante, estabelecendo-se o monopólio com
o intuito de barrar o acesso à terra para a população não escrava restante. Como
observa ainda, graças à escravidão a grande empresa agromercantil pôde dominar
tão completamente a vida rural brasileira, ao ponto de chegar a imprimir-lhe seu
persistente perfil de autoritarismo. Ao tempo que, aduz, lograr por meio do mono­
pólio da terra impedir a frutificação de todo ensaio de atividade agrícola indepen­
dente e reduzir a população não escrava a um potencial disponível de mão de obra.
Desse modo, o sistema monopolista converte o pequeno lavrador de subsistên­
cia em parte vital do processo de acumulação. Praticada em terras adjudicadas,
a pequena lavoura nenhuma chance oferece de formação de propriedade a seu
34 A FORMAÇÃO ESPACIAL BRASILEIRA

praticante, mesmo porque é de natureza itinerante, pois não raro o pequeno lavra­
dor vê-se forçado a retirar-se para áreas ainda não ocupadas pela grande lavoura
de exportação, toda vez que esta expande seu espaço de cultivo. Lembra Celso
Furtado que há total impossibilidade da pequena competir com a grande lavoura,
face: a) à dificuldade de acesso às melhores terras, sempre controladas pela grande
empresa; b) à exigência de alto investimento pela comercialização e aquisição de
equipamentos e escravos; e, c) à maior rentabilidade da grande empresa propiciada
pela mão de obra escrava.
O monopólio da terra tem ainda outra função relevante: garantir o caráter mo-
nocultor e itinerante da grande lavoura. Sendo a terra fator elástico e a mão de obra
fator limitante, a grande empresa responde aos aumentos de demanda com o uso
extensivo do solo, ou seja, ampliando simplesmente o espaço cultivado. Por outro
lado, tendo em vista a alta especialização do uso (monocultural), fundamental à mi-
nimização dos custos operacionais, a terra toma-se sujeita ao rápido esgotamento,
que conduz à prática da rotação de terras. Por estas duas razões, viáveis apenas nos
quadros de alta disponibilidade" de terras, á*própria monocultura reforça a tendên­
cia monopolista da propriedade fundiária. Ao passo que articulando-se em sua pró­
pria área de domínio com a lavoura de subsistência, praticada pelo próprio escravo
ou agregados, a grande lavoura garante para si própria o suprimento alimentício,
sem preocupar-se com sua produção, ao mesmo tempo em que se desincumbe de
maiores gastos com a massa de escravos ao transferir-lhe o encargo de reprodução
da sua própria força de trabalho com essa lavoura de.subsistência dominial.
Assim, com apoio no tripé escravatura-latifúndio-monocultura edifica-se o sis­
tema agrícola colonial brasileiro. Seus subprodutos são, de um lado, a subutilização
e dilapidação do patrimônio ecológico, e, de outro, uma formação social caracteri­
zada pela concentração da riqueza e autoritarismo num polo e por forte pauperis-
mo noutro polo social. Temos, então, um modo de produção que garante altas taxas
de acumulação, viabilizando o empreendimento colonial e tornando-o altamente
compensador. Por isto, construído sobre o estatuto da escravidão, abolido este nem
por isso o sistema desmorona. O monopólio da terra conseguido via domínio do
trabalho escravo garantirá a sobrevivência da grande empresa agromercantil.
Todavia, nota Celso Furtado que a permanência de elasticidade de oferta do
fator terra, estabelecida pelo controle do seu acesso, permite ao sistema manter
intacta sua estrutura fundiária quando da abolição da escravatura. Contudo, se
não se alteram as relações de propriedade fundiária e de troca, a abolição do es­
tatuto escravista leva ao estabelecimento de novas formas de relações de trabalho.
Ora, tais formas novas teriam que ser pertinentes ao propósito de preservação das
Setor agrícola e acumulação urbano-industrial no Brasil 35

relações de propriedade e de troca, para tanto tendo que atender a duas exigências:
que abrisse o acesso da terra à população recém-liberta e ao mesmo tempo a man­
tivesse despojada de sua propriedade. O intuito, duplo, é o de manter o sistema de
transferir à massa de trabalhadores rurais os gastos com sua própria subsistência
e também mantê-la agregada à grande empresa como reserva de mão de obra para
uso nas épocas de safra ou outros tipos de emprego. Tal solução, encontrada sem
tocar-se no regime monopolista da terra, é duplamente vantajosa à grande em­
presa, pois, ao mesmo tempo em que perpetua sua desincumbência com os gastos
de reprodução da força de trabalho que utiliza, mantidos como função da própria
massa trabalhadora, cria no próprio âmbito do seu domínio especial uma conve­
niente e crescente disponibilidade de mão de obra. É assim que se multiplicam as
formas de relações de trabalho agrícolas como moradores, condiceiros, parceiros,
rendeiros, colonos e mesmo trabalhadores assalariados, refletindo as metamorfo­
ses da grande empresa no seu afã de preservar o monopólio da terra e as fortes
taxas de acumulação de que sempre foi beneficiária.
Dificilmente, e eis aqui um ponto de alta controvérsia na literatura sociológica
latino-americana e brasileira,. pode-se falar então de feudalismo, dado o claro pro­
pósito de engendrar-se fôrmas de acumulação compatíveis com os objetivos mer­
cantis do empreendimento econômico agroexportador, desenvolvido em formações
sociais periféricas.
Um novo painel, construído a partir da abolição do trabalho escravo em fins
do século XIX, e que dominará a formação social brasileira até seu rompimento
recente em alguns pontos do país, a exemplo do advento de formas de relações de
trabalho do tipo boia-fria, se configura então. E que em suas linhas gerais, se apoia
em três novos elementos que assumem papel crescente na dinâmica das relações
econômicas e sociais do Brasil: a urbano-industrialização, a nova modalidade de
relação pequena-grande lavoura e a aceleração do crescimento demográfico.
Primeiramente temos a urbano-industrialização, elemento novo na sociedade
brasileira que se desenvolve sobretudo a partir da terceira década do século XX ex­
teriormente ao setor agrícola e com o qual aos poucos irá relacionar-se em âmbito
nacional como o lado dominante da relação, expropriando-lhe excedentes, renda e
o próprio poder político com a Revolução de 1930. Nessa medida, o setor agrícola
gradativamentè assim se desloca para constituir-se em retaguarda do desenvolvi­
mento urbano-industrial, atuando como uma de suas fontes de acumulação.
O segundo elemento é a nova forma de articulação da pequena lavoura inde­
pendente de subsistência com a grande empresa agroexportadora, ampliada atra­
vés o surgimento da lavoura de subsistência agregada. Fato de importância crucial
36 A FORMAÇÃO ESPACIAL BRASILEIRA

para o entendimento do processo de acumulação urbano-industrial, duas formas


de lavoura de subsistência, existentes desde o sistema econômico da colônia, ga­
nham uma escala nova e um estado crescente de coabitação do espaço nacional em
formação: I a) aquela praticada fora dos limites da grande empresa, nas áreas de
frentes pioneiras, por posseiros livres, e que tende a ser absorvida pela expansão
espacial da grande empresa, ou por posseiros-rendeiros nas cercanias desta, e que
constituem modalidades de pequena lavoura independente; e 2a) aquela praticada
no interior da grande propriedade pela massa de trabalhadores recém-liberta e
aquela a ela agregada como foreira, e que constituem a forma nova da pequena
lavoura de subsistência dominial. São formas de lavoura de subsistência que man­
têm a função do abastecimento dos mercados de gêneros alimentícios das cidades e
da grande fazenda, ambas em rápido crescimento, e motivo de sua expansão mais
generalizada. Como observa Francisco de Oliveira,

... tanto na abertura de fronteiras “externas”como “internas”o processo é idêntico:


o trabalhador rural ou morador ocupa a terra, desmata e cultiva as lavouras tem­
porárias chamadas de “subsistência”; nesse processo; ele prepara a terra para as
lavouras permanentes ou para a formação de pastagens, que não são dele, mas do
proprietário. Há, portanto, uma transferência de “trabalho morto”, de acumulação,
para o valor das culturas ou atividades du pi opi ietái íu, ao passo que u subtração
de valor que se opera para o produtor direto reflete-se no preço dos produtos de sua
lavoura, rebaixando-os. Esse mecanismo é o responsável tanto pelo fato de que
a maioria dos gêneros alimentícios vegetais (tais como arroz, feijão, milho) que
abastecem os grandes mercados urbanos provenham de zonas de ocupação recente,
como pelo fato de que a permanente baixa cotação deles tenha contribuído para o
processo de acumulação nas cidades; os dois fenômenos são, no fundo, uma unida­
de. (Oliveira, 1972)

A que Celso Furtado acrescenta que tendo em vista o baixo nível técnico e de
capitalização dessa lavoura, são suas condições precárias de subsistência em ter­
ras marginais que determinarão o preço da oferta de mão de obra rural (Furtado,
1972). Por extensão, da mão de obra urbana, cujo salário representa o preço da sua
subsistência, acrescentaríamos.
Por fim, o crescimento demográfico que então passa a ter lugar, fruto dessa
nova articulação surgida entre os setores agrícola e urbano-industrial, é o terceiro
elemento, completando a configuração geral. Tal é um fenômeno sobretudo rural,
que se acentua partir da década de 1940, gerando uma crescente elasticidade de
Setor agrícola e acumulação urbano-industrial no Brasil 37

oferta do fator trabalho no campo e invertendo a situação passada de escassez.


Elasticidade de oferta que permitirá ao setor agrícola liberar mão de obra para a
urbano-industrialização, sem que seja afetada em sua própria reserva, bem como
possibilitará a continua expansão das fronteiras agrícolas por via das frentes pio­
neiras. À elasticidade de oferta do fator terra, sobretudo em razão do monopólio
fundiário, soma-se agora, assim, a elasticidade do fator trabalho, o que não só
propicia à grande empresa manter inalterada a estrutura agrária do campo bra­
sileiro, como realizar de modo suficiente sua funcionalidade. O que leva Furtado
a indagar-se sobre como reagirá a agricultura, quando futuramente as fronteiras
agrícolas se esgotarem.

0 modelo brasileiro e o modelo clássico de acumulação

Em que difere da teoria clássica aquilo que descrevemos acima? Antes de mais,
sendo uma economia colonial de grandes empresas agroexportadoras movidas ini­
cialmente pelo trabalho escravo e a seguir por formas de relações de trabalho de
cunho clientelista (seriam feudais?), o quadro estrutural e conjuntural em que
evolui a urbano-industrialização é distinto daquele da Europa.
No modelo capitalista clássico a geração de excedentes é uma pré-condição
para o desenvolvimento urbano-industrial, seja pela oferta de produtos agrícolas e
liberação consequente de mão de obra, seja pela contrapartida em forma de consu­
mo de produtos de origem urbana.
A geração de excedentes propicia a especialização produtiva do campo e da
cidade, por via da separação entre a agricultura e o artesanato, estabelecendo-se
desse modo a divisão social básica de trabalho em que se apoiará o desenvolvimen­
to urbano-industrial.
Ocorre que a expansão econômica europeia, primeiramente mercantil e depois
industrial, projetará no plano internacional esta macrodivisão de trabalho entre
campo e cidade, ocasionando, por meio da divisão internacional de trabalho, um
tipo de economia produtora de excedentes de escala mundial. Esta divisão interna
do trabalho engendra as formações sociais capitalistas periféricas, nas quais a ge­
ração de excedentes é sua própria razão de origem, antecipando-se à industrializa­
ção interna e com isto beneficiando seu futuro arranco.
Já nesses países periféricos, centrados em plantations tropicais, organiza-se um
modo de produção em cuja estrutura interna coexistem a grande empresa agro-
mercantil, a pequena lavoura de subsistência e atividades urbano-industriais ele­
38 A FORMAÇÃO ESPACIAL BRASILEIRA

mentares. Uma divisão de trabalho que aí define-se espacialmente num forte elo
orgânico com a monocultura de exportação. Nestas condições, a geração de exce­
dentes alimentícios visa a recompor a mão de obra empregada na grande empresa
plantacionista, como já vimos, de modo que o advento da urbano-industrialização,
demandando estes excedentes, conduzirá o setor agrícola a um remanejamento
puro e simples dos fatores de produção sob seu alcance em seu processo evolutivo,
sem uma prévia erradicação da estrutura agrária no tocante ao exercício, da sua
funcionalidade.
O fato é que as economias exportadoras de produtos primário-agrícolas, como
a brasileira, desde cedo, tendem a desenvolver uma agricultura capaz de gerar vo­
lumoso excedente. De forma que contrariamente à versão dualista, entende-se que
não há uma “rigidez de oferta” e sim “rigidez de demanda”. A urbano-industriali­
zação vai assim encontrar essa economia duplamente habilitada, seja. a fornecer ex­
cedentes em forma de gêneros alimentícios e seja em matérias-primas industriais,
para tanto bastando à grande empresa plantacionista reorientar nesse sentido o
uso dos fatores de produção de que dispõe.
E uma característica estrutural que transfere para sua relação com a urbano-
-industrialização a partir dos anos 1930. Reside nesta flexibilidade sua grande ca­
pacidade de reagir a suas crises cíclicas, alternando os períodos de baixa com os
períodos de recuperação. Bem como seu contínuo poder de expansão espacial, em
razão de um mecanismo particular: as alternâncias de crise-recuperação, comuns
ao setor agrícola em decorrência das oscilações de preços do mercado externo,
transformam-se em alternâncias de expansão ora do subsetor de subsistência/mer-
cado interno, nos momentos de crise do subsetor exportador, e ora do subsetor
exportador, nos momentos de sua recuperação, condição que justamente visa dar
flexibilidade à grande empresa agroexportadora.
A causa tanto do poder de alternar quanto de manter de modo permanente a
capacidade de expansão do espaço cultivado está na elasticidade de oferta dos
fatores terra e mão de obra, bem como na absorção dos fatores de produção das
regiões deprimidas pelas regiões dinâmicas. A liberação de mão de obra permitida
pela produção de excedente é um ponto básico da teoria clássica, tendo em vista
que o aumento da oferta de mão de obra oriunda dos fluxos migratórios do campo
reflete-se nos salários urbanos, permitindo maior rentabilidade e competitividade,
às empresas urbanas. Como o pressuposto dessa geração de excedentes é o progres­
so das técnicas agrícolas, eleva-se a média de hàbitantes urbanos nutridos por uni­
dade de trabalhador rural (produtividade), o que pressiona ainda mais para baixo
os salários urbanos, fundamental ao movimento da acumulação urbano-industrial.
Setor agrícola e acumulação urbano-industrial no B rasil.. 39

Como decorrência destas mudanças estruturais no campo, a unidade familiar cam­


ponesa tende à especialização, entrando numa divisão social de trabalho com a
cidade que elimina sua autossuficiência de produtos agrícolas e artesanais. Eis
aí um pressuposto básico ao desenvolvimento do capitalismo urbano-industrial,
pois que significa a transferência para a cidade das atividades não agrícolas até
então desenvolvidas no campo pelas unidades familiares. Cria-se a dependência
rural em relação à produção urbana. Ora, no Brasil, como observa Caio Prado Jr.,
não há uma economia camponesa no sentido clássico-europeu (Prado Jr., 1966). A
população rural existente fora da grande propriedade não chega a constituir uma
economia camponesa desse tipo, uma vez que sua formação foi sempre reprimida
pela monopolização da terra em favor da grande empresa agromercantil. O caso de
áreas de campesinato familiar como as de colonização alemã e italiana no Sul e as
do Agreste nordestino tem significado espacial restrito, não servindo para tipificar
o sistema agrícola brasileiro estruturado em função da relação grande-pequena
lavoura de subsistência. Ademais, o minifúndio, em suas várias modalidades, é em
si um subproduto da latifundização crescente da terra, e atua como reserva de mão
de obra para as grandes lavouras.
O mesmo se diga da indústria. Seja nas pequenas unidades produtoras de sub­
sistência independentes, que encontramos nas áreas de frentes pioneiras e franja
das grandes propriedades plantacionistas, bem como do tipo agregado à grande
empresa plantacionista, há uma produção artesanal que cresce ou reflui segundo a
alternância de crise-recuperação do subsetor exportador que já referimos. Contudo,
esta produção artesanal não se desloca para os centros urbanos a fim de fomentar a
urbano-industrialização, em razão do caráter substitutivo de importações do nosso
desenvolvimento industrial. Vale dizer, o referido desenvolvimento surge voltado
para a demanda de manufaturas das classes de rendas média e alta, reprimida pela
incapacidade momentânea de importação de manufaturados.

Agricultura e acumulação urbano-industrial

Depreende-se do que foi dito que qualquer que seja o modelo de desenvolvimento
urbano-industrial capitalista cabe à agricultura um papel fundamental no pro­
cesso, pela via da acumulação. Vejamos alguns aspectos da questão, relativos aos
mecanismos de transferência de recursos pelo setor agrícola. Basicamente, é uma
contribuição que se concretiza por duas vias: o montante dos salários urbanos e
a transferência de sua renda. No primeiro caso, sendo o salário do trabalhador
40 A FORMAÇÃO ESPACIAL BRASILEIRA

urbano definido como o preço de reprodução da força de trabalho, seu montante


é estabelecido pelos preços dos gêneros de subsistência. E no segundo daí deriva a
fonte maior dos capitais que vão transferir-se para a indústria, via intermediação
mercantil.
Eis a razão da preocupação pela teoria clássica para com a produtividade agrí­
cola. Significando dizer que a liberação da mão de obra pelo setor agrícola tem a
função de formar um exército de reserva de mão de obra industrial, Que atuará
como elemento de pressão dos salários para baixo, localizando-os sempre próxi­
mos ou mesmo abaixo do nível de subsistência. No segundo caso, a contribuição
da agricultura se dá por via da deterioração das relações de troca, a favor dos
produtos urbanos, já que estes, por conterem maior soma de trabalho acumulado,
têm seu valor acima do valor dos produtos de origem agrícola. As relações de troca
entre campo e cidade tendem sempre a favorecer a esta última, dado seu papel na
acumulação urbano-industrial.

Agricultura e acumulação urbano-industrial no Brasil

No Brasil, a transferência se processa segundo nuanças próprias à sua característi­


ca de formação social capitalista periférica, mesmo que sem tugir em essência aos
moldes clássicos.
Por via dos excedentes agrícolas, definem-se as duas modalidades de transfe­
rência referidas. Através do subsetor de exportação transfere-se parte da renda do
setor agrícola ao urbano-industrial, sobretudo sob a forma de subsídios às impor­
tações seja de bens de capital e seja de bens intermediários. Através do setor de
subsistência, o setor agrícola transfere o baixo preço de reprodução de sua força
de trabalho ao setor urbano-industrial, sob a forma de baixos preços relativos dos
gêneros agrícolas. Como, segundo observa Francisco de Oliveira, o salário do tra­
balhador urbano não incorpora em seu valor a produtividade do trabalho urbano-
-industrial, em rápido incremento nas últimas décadas, a participação dos preços
dos gêneros agrícolas em seu montante tem peso quase exclusivo, fato que se torna
um dos elementos básicos à determinação da alta taxa de acumulação urbano-
-industrial que se verifica no Brasil (Oliveira, 1972).
Acresce que dois outros fatores fundamentais nessa determinação reforçam a
funcionalidade do setor agrícola. A liberação da mão de obra, extremamente ele­
vada nas condições do incrementado crescimento demográfico rural, acarreta a
formação nos centros urbanos de viveiros de mão de obra em grande escala, man­
Setor agrícola e acumulação urbano-industrial no Brasil 41

tendo os níveis salariais muito baixos. Ademais, utilizando tecnologia importada,


produzida nos quadros de diferentes condições de fatores de produção, onde a mão
de obra é um fator caro, a empresa industrial brasileira beneficia-se dos diferen­
ciais de produtividade embutidos nessa tecnologia. Com isso, acentua-se, também,
a subutilização da oferta de mão de obra urbana.
A transferência da renda se processa por via direta e indireta. A transferência
por via direta, de cunho intrafamiliar, tem pouca expressão, observando Antônio
Barros de Castro que “... as fortunas industriais raramente correspondem a famí­
lias da ‘oligarquia agrária’”. A transferência por via indireta, via intermediação
da acumulação mercantil, segue caminhos múltiplos, mas basicamente se verifica
pelas relações de troca entre cidade e campo, e por intervenção do Estado no
processo econômico. No primeiro caso, atua a deterioração das relações de troca
a favor do setor urbano-industrial, realizada nos quadros de uma superioridade de
oferta de produtos agrícolas sobre a demanda do setor urbano-industrial, da maior
produtividade do trabalho urbano-industrial sobre o trabalho agrícola e do valor
superior do produto de origem urbana. No segundo caso, atua o Estado por vias
institucionais, seja pela orientação das taxas de câmbio em benefício da urbano-
industrialização (subsidiando as importações de bens de capital e de bens inter­
mediários com as divisas das exportações de produtos agrícolas), seja pelo confisco
cambial, pela política de preços ou pela legislação dos créditos agrícolas (Castro,
1969).

Funcionalidade e mudanças estruturais

Aludimos à importância desigual que as duas correntes emprestam à questão da


erradicação da atual estrutura agrária brasileira.
Até que ponto se pode falar de antagonismos entre a estrutura agrária brasileira
pré-capitalista e os propósitos de acumulação urbano-industrial? A própria exposi­
ção deste trabalho nos encaminha para a negativa.
Há, contudo, que projetar-se a questão deste ponto específico, o do processo de
acumulação, para a totalidade da formação social brasileira. Significa dizer-se que,
se por um lado somente através da utilização de categorias científicas, como a teo­
ria da acumulação, pode-se chegar a um conhecimento mais concreto da realidade
brasileira, nisso residindo uma das falhas do enfoque dualista, cabe por outro re­
conhecer-se a pertinência das estruturas sociais relativamente às exigências da so­
ciedade, particularmente da grande massa, levantada pela corrente funcionalista.
42 A FORMAÇÃO ESPACIAL BRASILEIRA

Bibliografia

Castro, Antônio de Barros. Agricultura e desenvolvimento no Brasil. In:________ .


7 ensaios sobre a economia brasileira. Volume 1. Rio de Janeiro: Editora Forense,
1969.
Frank, André Gunder. Acumulação mundial: 14921789. Rio de Janeiro: Editora
Zahar, 1977.
Furtado, Celso. A estrutura agrária e o subdesenvolvimento brasileiro. In:
________ . Análise do “modelo” brasileiro. Rio de Janeiro: Editora Civilização
Brasileira, 1972.
Lambert, Jacques. Os dois Brasis. São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1972.
Oliveira, Francisco de. Critica à razão dualista. In: Estudos CEBRAP n. 2. São
Paulo: CEBRAP, 1972.
Prado Jr., Caio. A revolução brasileira.. São Paulo: Editora Brasiliense, 1966.
ESPAÇO AGRARIO E CLASSES SOCIAIS
RURAIS NA SOCIEDADE BRASILEIRA 5

São as relações de classes de dada fração de território que orientam a dialética do


espaço do lugar. É este, exatamente, o nexo que funde espaço e sociedade, tornan­
do-os uma mesma totalidade social.
Espaço de existência dos homens, o espaço geográfico traz estampado em sua
morfologia e organização o seu caráter de classe. Cada classe social define seu
espaço próprio de existência. De modo que as relações intra e entre áreas não são
mais do que relações entre classes sociais (as relações entre cidade e campo, por
exemplo, em verdade são relações entre as classes sociais da cidade e as do campo).
E, assim, relações de dominância, contradições, lutas de classes.
Se são as relações antagônicas de classes que orientam a dialética do espaço do
lugar, não são elas todavia que a originam. As classes sociais não existem no abs­
trato, mas emergem da natureza das relações de produção do lugar. Determinante
em última instância da sociedade e do espaço, a estrutura das relações de produ­
ção do lugar engendra a estrutura global da totalidade social do lugar (da formação
econômico-social), aqui incluindo-se a estrutura de classes com seus antagonismos.
Sob a determinação das relações de produção em última instância, o espaço ge­
ográfico é a própria formação econômico-social, é uma formação socioespacial.
Sintetizamos assim a articulação fundamental à compreensão dessa dialética:
aquela que existe ligando estrutura e conjuntura. A estrutura da formação econô­
mico-social determina a estrutura do espaço, mas é a conjuntura política de cada
momento constituída pela correlação de força entre as classes sociais do lugar, que
comanda seus movimentos, processos e formas.
Veremos, por exemplo, que sob relações de produção escravistas-mercantis, co­
loniais, o espaço agrário-industrial canavieiro retira sua organização da forma

Texto originalmente publicado na Revista de Cultura, Vozes, n. 2, ano 74, 1980.


44 A FORMAÇÃO ESPACIAL BRASILEIRA

como se relacionam as classes sociais aí fundamentais. Internamente ao processo


produtivo relacionam-se o senhor de escravos proprietário de engenho (senhor de
engenho), o senhor de escravos não proprietário de engenho (lavrador de partido)
e os escravos. Externamente ao processo produtivo, relacionam-se na esfera da cir­
culação os senhores de escravos e o capital mercantil, dominante sobre a sociedade
e o espaço coloniais em face da subordinação formal que estabelece.
Veremos que, porque realizada ainda em quadros pré-capitalistas, a mudança
da estrutura de classes decorrente da derrocada do escravismo (de escravistas mer­
cantis para mercantis simples) pouca alteração promove na estrutura do espaço
agrário. Só com o estabelecimento das relações capitalistas vem a mudança radical
na organização espacial. Desaparece, então, a organização espacial estruturada
em duas frações de espaço coexistentes: uma destinada à realização do sobretra-
balho e outra destinada à realização do trabalho necessário. Ou seja, desaparecem
as formas sociais de espaço pré-capitalistas, mediadoras da reprodução do capital
(monocultura de exportação) e da reprodução da força de trabalho (pequena lavou­
ra de subsistência).
A análise da evolução das formas sociais de espaço no espaço cafeeiro, num
outro exemplo, é um campo extremamente rico neste mister. É nítida a diferença
de sua organização sob o escravismo, sob o regime do colonato e sob o capitalismo
recente. É fácil localizarmos tais diferenças nos modos de reprodução da força de
trabalho do escravo, do colono e do boia-fria.

Espaço agrário e acumulaçao de capital

Em todos os momentos do processo evolutivo de nossa história as formas de orga­


nização do espaço e da sociedade encontram sua lógica na forma, volume e ritmo
da acumulação do capital.
Subordinada à forma como se insere no contexto da divisão internacional de
trabalho, nossa evolução socioeconômica ora rege-se pela hegemonia do capital
mercantil (subordinação formal), ora pela hegemonia do capital industrial-finan­
ceiro (subordinação real). No primeiro caso, o processo de produção nacional está
subordinado ao movimento mundial de acumulação primitiva de capital. No segun­
do caso, está subordinado ao movimento de acumulação capitalista mundial em
sua fase imperialista. Todavia, a forma concreta de subordinação relaciona-se ao
modo como a vinculação se faz do capital com a produção interna. Nas condições
da subordinação formal, a subsunção se faz num vínculo com um contexto mundial
Espaço agrário e classes sociais rurais na sociedade brasileira 45

estruturado pela intermediação mercantil, numa hegemonia da esfera da circulação


de fora para dentro, sem a intervenção direta do capital mercantil sobre o processo
de produção, controlado internamemnte pela classe plantacionista. Nas condições
da subordinação real, a subsunção se faz na relação sem intermediários da produ­
ção com o capital industrial, organizador em linha direta da produção interna (Silva,
1976). Nisto residindo sua especificidade frente à realidade clássica europeia.
No processo colonial-escravista de acumulação de capital o tempo de trabalho
social global reparte-se em dois: o tempo de trabalho necessário e o sobretrabalho.
Na fase agroexportadora, porém não mais escravocrata e colonial, esta relação du­
pla se mantém, mas com variações consideráveis. O tempo de trabalho necessário
é a fração do tempo global dispendida para a produção da quantidade ou do equi­
valente da quantidade dos bens necessários à subsistência do trabalhador e de sua
família. Pode ser uma parte da produção, como no caso do parceiro, ou um salário,
como no caso do proletário rural. O tempo do sobretrabalho é a fração de tempo
além, excedente, de que se apropria, gratuitamente, o proprietário dos meios de
produção, como a terra. Além disso, nos modos de produção pré-capitalistas subme­
tidos à hegemonia do capital o sobretrabalho assume a forma de renda capitalizada,
assumindo no modo de produção já capitalista a forma de mais-valia, valor novo que
será convertido em lucro no ato da troca. Em todos esses casos, o trabalho neces­
sário objetiva a reprodução da foiça de tiabalho c o òobictiabalho a reprodução do
capital (Mandei, 1978; Martins, 1979).
Estes dois momentos fundamentais do processo de acumulação de capital re­
produzem-se nitidamente na morfologia do espaço agrário pré-capitalista, como
vimos, uma vez que o campo é o próprio locus onde se realiza a produção e a
reprodução da força de trabalho. Daí a dominância de formas sociais de produção
do tipo parceria. Tal já não ocorre no espaço agrário capitalista, uma vez que a
reprodução da força de trabalho passa pela mediação mercantil do espaço urbano.
Daí a emergência de relações assalariadas de trabalho rural do tipo boia-fria.
Tendo a formação econômico-social brasileira atual uma estrutura heterogênea
de relações de trabalho, coexistem nela formas sociais de espaço em aparente caos.
Mas tal heterogeneidade nada tem de dualismo, caos ou distorção, refletindo antes
uma fase e a própria forma do desenvolvimento do capitalismo no Brasil em que a
agricultura cumpre ora o papel de centro de gravidade e depois papel ancilar fun­
damental no processo de acumulação de capital. Até porque tal heterogeneidade
é o que melhor convém à acumulação capitalista onde a lógica é a do capital em
formações econômico-sociais submetidas à dominação imperialista, ditas depen­
dentes ou periféricas.
46 A FORMAÇÃO ESPACIAL BRASILEIRA

Em todos esses momentos tem o setor agrícola cumprido este papel seja como
centro de gravidade e seja pela via de sua participação no montante dos salários
urbano-industriais e do financiamento da industrialização. Através da produção
de subsistência, pré e não capitalista, o setor agrícola transfere o baixo preço de
reprodução de sua própria força de trabalho ao setor agrícola de exportação e ao
urbano-industrial. Realiza esta transferência sob a forma de baixos preços rela­
tivos, com base nos quais irão definir-se os níveis de subsistência do operariado
agroexportador, industrial e demais classes trabalhadoras urbanas. Mesmo nas
condições atuais, como, segundo observa Francisco de Oliveira, o salário do tra­
balhador urbano não incorpora em seu valor a produtividade do seu trabalho, em
rápido crescimento nas últimas décadas, a participação dos preços dos gêneros
agrícolas em seu cálculo tem peso dominante. Acresce que os setores agrários,
transferem, ainda, em fluxos permanentes, parte de sua força de trabalho, para
compor nas cidades “viveiros de mão de obra”, a exemplo das favelas, com os quais
o capital contará para forçar a baixa dos níveis salariais para aquém dos níveis de
subsistência do trabalhador urbano. Contribtjdndo, assim, para a reprodução da
força de trabalho urbano-industrial pela via dos baixos custos de subsistência e
pela do êxodo rural.
Através da produção de exportação, o setor agrícola transfere à urbano-in­
dustrialização capitalista também parte de sua renda. Seja pela via direta, de
cunho familiar, seja pela da acumulação mercantil e seja ainda da intermediação
do Estado. Particularidade nacional brasileira, por meio da manipulação da má­
quina estatal o capital industrial-financeiro orienta Estado a institucionalmente
captar a renda do setor agrícola em seu proveito, transferindo-a para si sob a
forma do controle da taxa de câmbio, do confisco cambial, da política de preços
mínimos ou da legislação do crédito rural. O meio histórico é o de subsidiar com
as divisas de exportações agrícolas as importações de bens de capital e interme­
diários para o fim do desenvolvimento da infraestrutura geral e urbana e assim
da indústria.

As formações socioespaciais históricas e seus espaços agrários

As três formas básicas de relações de produção (escravista, de transição e capita­


lista) que balizam o processo evolutivo brasileiro permitem-nos nele divisar três
formações econômico-sociais distintas: a formação econômico-social escravista-
-mercantil, a formação econômico-social de transição (do modo de produção de
Espaço agrário e classes sociais rurais na sociedade brasileira 47

mercadorias) e a formação econômico-social capitalista. Permitindo nos referir­


mos, assim, a três correspondentes formações socioespaciais.
O espaço agrário de cada uma tem como denominador comum o monopólio da
terra. Resulta desse monopólio fundiário uma estrutura de classes em que confli-
tam, de um lado, a classe dos poderosos proprietários monopolistas, e, de outro,
toda a imensa massa de minifundiários e camponeses sem-terra. De modo que a
luta pela terra marca toda essa evolução histórica. Numa modalidade epocal em
que cada formação socioespacial expressa, nas formas e processos de seu espaço
agrário, as marchas e contramarchas desse antagonismo secular.

O ESPAÇO AGRÁRIO SOB AS RELAÇÕES ESCRAVISTAS

Durante o longo período que se estende até o último quartel do século XIX, as
relações de produção escravistas constituem a base da formação econômico-social
brasileira. Praticamente confundida com a produção agrícola, essa formação orga­
niza-se, contudo, segundo fins declaradamente mercantis.
Tal produção constitui-se, basicamente, de duas formas espaciais distintas, mas
articuladas: a grande lavoura agromercantil exportadora e a agricultura de subsis­
tência. Nesta, inclui-se tanto a pequena policultura de subsistência, quanto a gran­
de fazenda de gado. Completa este quadro da formação, até o final do século XVII,
um reduzido sistema urbano constituído pelo que Paul Singer denomina “cidades
de conquista”. São cidades que atuam como locus colonial do capital mercantil e
dos aparelhos ideológicos e jurídico-políticos da Coroa (Singer, 1977).
Um ligeiro painel da estrutura dessa formação mostra como forte determinante
social da sociedade e do espaço o monopólio da terra, que constitui o lado logístico
básico do padrão de acumulação. Mas è a natureza escravista das relações de tra­
balho a determinante social principal.
A abundância de terras, tornada escassa à maioria da população por força desse
monopólio, e a escassez da força de trabalho, são dois aspectos dominantes que
estão por trás de toda dinâmica da formação. Isto porque reside no controle da
força de trabalho a base do controle monopolista da terra. E por intermédio desse
duplo controle, garante-se o poder e o prestígio aos seus detentores, internamente
e frente à Coroa, assegurando-lhes, igualmente em caráter monopolista, a fruição
dos benefícios oferecidos pela Coroa e seus prepostos. Assim, o monopólio do po­
der e do prestígio é determinado pelo monopólio da terra, e, este, pelo monopólio
do trabalho escravo. Antonil, alcunha de João Antonio Andreoni, já observara que
a força do senhor é medida pelo número de escravos de sua propriedade. De modo
48 A FORMAÇÃO ESPACIAL BRASILEIRA

que atuando como barreira do acesso à terra para a população não escrava restan­
te, o monopólio da terra revela o caráter social, antes que físico, da abundância ou
escassez de terras nos quadros coloniais (Andreoni, 1966; Canabrava, 1966).
Como observa Celso Furtado, com isto o grande proprietário monopolista edifi­
ca seu sistema de poder e anula todo ensaio de desenvolvimento de uma totalidade
social baseada na pequena propriedade. Estas, vicejam na medida das necessidades
da economia exportadora. Cabe-lhe o papel subsidiário da grande lavoura de ex­
portação, suprindo-a de gêneros alimentícios nas épocas de grande demanda inter­
nacional de açúcar, sobretudo para a subsistência dos escravos (Furtado, 1972). A
economia exportadora transfere, desse modo, à pequena lavoura de subsistência o
dispêndio com a reprodução da força de trabalho escrava da grande lavoura. Uma
lavoura de subsistência praticada entre outros pelos próprios escravos. Ademais,
há total impossibilidade desta competir com a grande lavoura de exportação, face:
a) à alta exigência em investimentos de capitais, na forma de equipamentos e es­
cravos, e, b) à rentabilidade consequentemente superior da grande lavoura frente
à pequena. Some-se a isto as dificuldades de crédito, controlado pelo capital mer­
cantil. Estas são as condições sociais-da organização do espaço.
Polo organizador da formação espacial colonial, a agroindústria canavieira es­
trutura-se, assim, a partir das três classes fundamentaisr: os senhores de escravos
proprietários de engenho, os senhores de escravos não proprietários de engenho e
os escravos. Os primeiros exercem a hegemonia sobre o conjunto, uma vez que o
engenho-indústria é o centro do sistema produtor da colônia. E sobre o processo da
acumulação internamente. O sobretrabalho expropriado ao escravo pelo lavrador
de partido é objeto de redistribuição a favor dos senhores de engenho-indústria,
que ficam com 50 a 62%, já em forma de pães de açúcar, como pagamento pela
moagem da cana daqueles. Todavia externamente esta é uma hegemonia do capital
mercantil metropolitano. Parte do montante global do sobretrabalho expropriado
pelos senhores de escravos cabe ao capital mercantil, capturada pela via do contro­
le sobre a comercialização e o crédito (Oliveira, 1977; Wanderley, 1978).
Destas relações de classes deriva um espaço fragmentado-integrado. Primei­
ramente, há sua divisão em espaço de monocultura da cana e espaço de policul­
tura de subsistência. Em segundo lugar, há a divisão em grandes propriedades de
lavradores de partido e dos senhores de engenho-indústria. Da unidade desses
fragmentos é que vem o tom sistêmico do todo colonial.
Dado o caráter massivamente exportador do modo de produção colonial, o es­
paço melhor em localização e fertilidade, como vimos, é privilégio da monocultura
da cana, que ocupa essas terras melhores, deixando as demais ou as esgotadas para

i
Espaço agrário e classes sociais rurais na sociedade brasileira 49

a agricultura de subsistência. Esta, consiste numa constelação de tipos, basicamen­


te de três: a policultura de subsistência dos escravos, a policultura de subsistência
agregada e a policultura de subsistência independente. As duas primeiras locali­
zam-se no espaço interno das grandes propriedades, funcionando em regime de
agregação, enquanto a terceira localiza-se dispersamente pelo espaço da colônia,
funcionando em regime de posse.
Nexo principal da produção-expropriação do sobretrabalho internamente ao
sistema produtor, o engenho-indústria comanda o aspecto locacional do conjun­
to, incluindo as demais formas sociais de espaço e inclusive do espaço urbano. O
engenho-indústria localiza-se à beira rio, próximo ao litoral, tanto pelo necessário
uso das águas, quanto para facilitar o recebimento de cana e lenha e o escoamento
dos caixotes de pães de açúcar aos portos litorâneos. Ao seu redor, localizam-se as
terras ocupadas pelos canaviais, as do proprietário da indústria contíguas e as dos
lavradores de partido mais além do engenho. A policultura de subsistência inde­
pendente localiza se na periferia desse conjunto, preferencialmente às margens das
vias de acesso às fazendas canavieiras e aos centros urbanos. As fazendas de gado,
por fim, localizam-se nos espaços mediterrâneos da colônia, formando um amplo
e largo arco circundante à franja costeira em que se alojam os espaços agrícolas.
É particularmente discreta, mas essencial, a presença da policultura de subsis­
tência, cuja distribuição lembra miúdos pontos dispersos logicamente num tabu­
leiro. Esta lógica deriva do papel estrutural que desempenha na economia colonial.
Em lugares pouco afastados do engenho-indústria localiza-se a policultura sob o
encargo dos escravos, que a praticam nos dias de domingos e feriados. Sua produ­
ção insuficiente, em que se destaca a mandioca, é complementada pela produção
da policultura dos lavradores agregados, geralmente mestiços, que dividem com
o grande proprietário a colheita. Ambas voltam a produção basicamente para o
suprimento das necessidades das classes sociais diretamente envolvidas com a mo­
nocultura de exportação. Voltada por sua vez tanto para estas classes sociais como
para as classes sociais urbanas, a policultura de subsistência independente tem
uma distribuição mais dispersa, localizando-se ora ao longo do litoral, ora ao longo
das rotas principais de circulação terrestre. E seu número e dinamismo dependem
do estado momentâneo da grande lavoura. Multiplicam-se nos momentos em que
esta, solicitada pelo crescimento da demanda internacional de açúcar, vê-se leva­
da a mobilizar todas as terras e trabalhadores para o fim de chegar ao volume de
produção requerida, época em que declina a produção de subsistência escrava e
agregada e aumenta a da produção independente. Reduz sua dinâmica e núme­
ro, inversamente, nos momentos de declínio da demanda internacional, quando a
50 A FORMAÇÃO ESPACIAL BRASILEIRA

grande lavoura entra em crise, multiplicando-se os pontos da produção dominial


em contraste com a retração da produção independente. Sofrem os centros urba­
nos com isso, por consequência, frequentemente lançados a permanente estado de
crise de abastecimento, sobretudo na Bahia e Pernambuco, conforme relatam todos
os cronistas da época.
Num capítulo que corre à parte e é ao mesmo tempo reflexivo desse todo evo­
luem as fazendas de gado. Toda vez que a grande lavoura é sacolejada pelas crises,
delas beneficia-se a pecuária bovina. Tendo o gado sido introduzido inicialmente
para subsidiar os engenhos de açúcar em alimentos, transporte e tração para as mo­
endas, o espaço pastoril confunde-se com o espaço agrícola nos primeiros tempos
da formação colonial. À medida, entretanto, que a acumulação de capital atinge
níveis mais elevados, no âmbito mundial com a ampliação do mercado consumidor
de açúcar e no local com a consequente ampliação do espaço de plantio canavieiro
e o aumento natural do rebanho, o gado vai sendo expulso para o interior, expan­
dindo-se independente e indefinidamente. Até porque favorecido pela estrutura de
classes interna do sistema pastoril, altamente relacionada à mobilidade social as-
* fA
cendente. Aqui domina o trabalho semilivre do peão, geralmente o mestiço do ín­
dio, que se prolonga na prática do sistema da quarta, isto é, ao pagamento ao peão
de um bezerro para cada quatro bezerros nascidos como forma de remuneração.
Essa interiorização se acelera com o aparecimento de núcleos de mineração nos
planaltos mineiro e central, ultrapassando os limites nordestinos e do Sul, onde o
gado fora introduzido respectivamente pelas plantations e pelas missões jesuíticas.
Economia de natureza essencialmente urbana, a mineração cria esplêndido merca­
do de gêneros alimentícios, estimulando o desenvolvimento da produção de meios
de subsistência em todo espaço da colônia. Por outro lado, ao encontrar-se no pla­
nalto central o gado proveniente do Nordeste e o do Sul leva o espaço geográfico a
expandir-se de modo ilimitado territorialmente. De modo que toda a colônia passa
a constituir-se numa formação espacial colonial completamente. Assim podendo
consolidar-se como uma estrutura que mantém-se viva até o final do século XIX.

O ESPAÇO AGRÁRIO SOB AS RELAÇÕES DE TRANSIÇÃO

O final do século XIX marca o seu final, todavia. E a entrada num período de tran­
sição a que Francisco de Oliveira designa modo de produção de mercadoria - isto é,
“o capitalismo como modo de produção dominante, ainda que não exclusivo, mas
que redefine, inclusive, o papel das outras formas de organização da economia e da
sociedade em seu favor” -, a face escravista se extinguindo e a face agroexportado-
Espaço agrário e classes sociais rurais na sociedade brasileira 51

ra se mantendo ainda por algum tempo (Oliveira, 1977). É o período que externa­
mente corresponde à passagem do capitalismo à fase imperialista, e assim a uma
modalidade de relações internacionais cada vez mais pautada pela organização
mundial à base de uma divisão territorial do trabalho e das trocas generalizada­
mente mercantil-capitalista. Repondo-se, em decorrência, internamente os termos
do processo de acumulação de capital e a uma formação espacial nova.
Nas palavras de Oliveira:

A expansão das culturas de exportação, sobretudo e indiscutivelmente o café, leva


consigo uma expansão mais que proporcional do capital constante, constituído seja
pelo próprio estoque de capital empatado em escravos, seja pelos meios de subsis­
tência dos mesmos escravos. Principalmente a expansão dos últimos significava um
incremento das importações que punha constantemente em risco a estabilidade da
forma de valor produto: a moeda estrangeira e principalmente, a taxa de câmbio.
Além disso, a base de infra-estrutura necessária para a expansão das culturas de
exportação - as ferrovias e os portos - requeria também doses incrementadas de moe­
da externa, com o que as crises cambiais chegam qúase a um estado crônico. A
abolição resolve um dos lados da contradição, transformando o trabalho em forma
de trabalho. (Oliveira, 1984)

Há, pois, que mudar-se as formas de relações de produção. Em particular as re­


lações de trabalho. A solução encontrada, diz-nos ainda de Oliveira, é a conversão
do escravo em um “quase campesinato”:

... a rigor, a continuidade da expansão, que culminaria com o auge da produção e


exportação do café nos anos 20, é assegurada sobretudo por.aquela transformação
das relações de produção e o consequente nascimento de um quase-campesinàto,
com o que se dá um rebaixamento dos custos de reprodução da força de trabalho.

Uma solução centrada em duas medidas: a) a quebra da autarcia da grande


lavoura, e, b) a diversificação territorial das formas desse “quase campesinato”.
O processo de acumulação retoma, assim, seu impulso, uma vez mudada sua
forma, ritmo e volume. Do que resulta: a) um processo embrionário de acumulação
primitiva interna de capital; b) o surgimento de uma divisão interna de trabalho, e
c) a redefinição dos termos de reprodução da força de trabalho.
A abolição do trabalho se faz sem mudança na natureza monopolista da pro­
priedade da terra. Mantendo-se o monopólio fundiário como padrão de proprie­
52 A FORMAÇÃO ESPACIAL BRASILEIRA

dade. As formas de relações de trabalho novas têm que estar pertinentes com a
preservação necessária desse monopólio, que, por sinal, acentua-se. Para conciliar
monopólio da terra com elevação da produtividade do trabalho rural, há então que
atender-se a uma exigência: a população recém-liberta deve ter acesso à terra, mas
numa forma que não implique em propriedade dela. Ou seja, o quase campesinato
ganha acesso ao uso da terra e não a sua propriedade real. O intuito é aqui duplo:
reter o máximo de reserva de força de trabalho livre no âmbito do domínio da
grande lavoura e deixar mantido a seu cargo o custo de sua própria reprodução.
É assim que, no lugar do trabalho escravo multiplicam-se formas de trabalho do
tipo posseiro, parceiro, morador de condição, foreiro, arrendatário, intermediário,
colono e proletário rural. Metamorfoses visando adequar o novo trabalho rural às
necessidades da nova forma de acumulação, elevando sua produtividade e o nível
das forças produtivas. Aspecto fundamental deste elenco de formas novas é o seu
entrecruzamento. Torna-se comum, por exemplo, um mesmo trabalhador rural as­
sumir a forma aqui do parceiro, ali do rendeiro e acolá do assalariado.
A expressão espacial desse processo de mudanças fica por conta sobretudo das
transformações que ocorrem na agricultura de subsistência, promovidas de um
lado pela quebra da autarcia da grande lavoura e de outro lado pela urbano-indus­
trialização.
A lavoura de subsistência dominial, em sua dupla forma, a do lavrador agrega­
do e a do escravo, adquire a feição dominante do agregado, mantida todavia para
a reprodução da força de trabalho dominial. A lavoura de subsistência indepen­
dente mantém sua natureza predominantemente abastecedora das fazendas em
caráter suplementar e as cidades, praticando-a desde proprietários minifundiários
a posseiros, estes multiplicando-se sobretudo nas fronteiras de expansão agrícola.
Abrindo em sua relação com a cidade mais e mais para a reprodução da força de
trabalho do operariado urbano-industrial. E assim caminha-se para uma dinâmica
de espaço agrário que Oliveira descreve nos seguintes termos:

... tanto na abertura de fronteiras ‘externas’ como ‘internas’ o processo é idêntico:


o trabalhador rural ou morador ocupa a terra, desmata e cultiva as lavouras tem­
porárias chamadas de ‘subsistência’; nesse processo, ele prepara a terra para as
lavouras permanentes ou para a formação de pastagens, que não são dele, mas do
proprietário. Há, portanto, uma transferência de ‘trabalho morto’, de acumulação,
para o valor das culturas ou atividades do proprietário, ao passo que a subtração
de valor que se opera para o produtor direto reflete-se no preço dos produtos de sua
lavoura, rebaixando-os. Esse mecanismo é o responsável tanto pelo fato de que
Espaço agrário e classes sociais rurais na sociedade brasileira 53

a maioria dos gêneros alimentícios vegetais (tais como arroz, feijão, milho) que
abastecem os grandes mercados urbanos provenham de zonas de ocupação recente,
como pelo fato de que a permanente baixa de cotação deles tenha contribuído para
o processo de acumulação nas cidades; os dois fenômenos são, no fundo, uma uni­
dade. (Oliveira, 1984)

A urbanização vinculada à industrialização tende a ser a face do capitalismo no


Brasil. Vale lembrar com Sérgio Silva, que

... para o conjunto do Brasil, entre 1872 e 1920 o número de cidades com mais
de 30 mil habitantes passa de 67 para 265, e sua população de 3.073.886 para
15.746.525. (Silva, 1976)

A pecuária, entretanto, caminha em algumas áreas na direção oposta, acentu­


ando a anterior tendência de autarcização. Em todos os cantos surge como uma
“civilização do couro”. Expressão usada por Capistrano de Abreu, que exprime sua
involução para uma economia do tipo natural.
É assim em todos os sertões, e também no sertão nordestino. Onde no espaço
canavieiro litorâneo, com a elevação da produtividade do trabalho rural e a redefi­
nição dos termos da acumulação, a maior parte dos senhores de engenho-indúsiiia,
após malograda experiência de engenhos centrais promovida pelo Estado e ca­
pitais estrangeiros, converte-se em meros fornecedores de cana. Alguns poucos
acompanham o processo de modernização, que substitui o engenho pela usina, de
superior capacidade de moagem de cana. Com a usina vem a ferrovia, ampliando
o alcance espacial da indústria. Voraz absorvedora de cana, a usina é igualmente
de terras. É grande o número de grandes propriedades canavieiras, de senhores
decadentes de engenho e de partidos, que passam às mãos dos usineiros.
Neste novo contexto da formação econômico-social brasileira é, assim, a cafei­
cultura que assume papel de importância até tornar-se, quando atinge o planalto
paulista, seu novo polo central de produção-expropriação de sobretrabalho, a fun­
ção de gravidade da economia nacional. Em face da reação do escravo-liberto à
nova ideologia de trabalho, e da rapidez necessária à acumulação, exigente em no­
vos hábitos de trabalho, é aí que se inicia a introdução do trabalho assalariado no
campo brasileiro. Com a imigração italiana maciça transformada pelo sistema do
colonato, misto de assalariado e parceiro, e assim um proletário rural disfarçado.
Nela, a estrutura de classes difere substancialmente daquela que vemos apa­
recer no espaço agroindustrial canavieiro. Uma diferença essencial é a que existe
54 A FORMAÇÃO ESPACIAL BRASILEIRA

na forma da articulação entre o capital agrário e o capital mercantil. Enquanto no


espaço agroindustrial canavieiro as relações entre o senhor de escravos e o capital
mercantil são relações de conflito agudo, no espaço cafeeiro fundem-se o capital
agrário e o capital mercantil, além do capital industrial e do capital bancário.
Nesta fusão abarcam o próprio Estado. É conhecida a manipulação das ferrovias
por tais capitais com fim de abrir-se os espaços virgens da fronteira agrícola à espe­
culação. São os cafeicultores mais poderosos os grandes acionistas dessas ferrovias,
como a Paulista, a Sorocabana e a Mogiana. Mas não se limita a isto sua ingerência.
Os mesmos cafeicultores estão presentes nas casas comissárias (importadoras) e
nos estabelecimentos bancários, de que depende o desenvolvimento cafeeiro.
Com isto, os grandes capitalistas agrários são também banqueiros e grandes
comerciantes de exportação-importação, com interesses na indústria e nos trans­
portes ferroviários. Nesta estranha composição, denominada por Sérgio Silva “ca­
pital cafeeiro”, o capital mercantil mantém a hegemonia, secular, sobre as demais
formas de capital (Silva, 1976).
A hegemonia cafeeira sela, de vez, a trànsferência do centro de gravidade jurí­
dico-político e econômico para o Sudeste iniciada com o deslocamento da sede de
Salvador para o Rio de Janeiro pelo ciclo da mineração. Intensa migração interna
de forças produtivas flui para as áreas do espaço cafeeiro e os centros urbanos
sudestinos, que vão crescendo na esteira da cafeicultura. Inicia-se o processo de
inserção do espaço urbano das cidades de expressão na divisão interna de trabalho,
particularmente na forma do desenvolvimento industrial. Transformadas agora em
centros urbanos de função fundamentalmente mercantil, não mais de conquista.
No espaço cafeeiro de corte capitalista do planalto paulista a estrutura de
classes antepõe, de um lado, o capital cafeeiro, e, de outro, o trabalhador, colo­
no, imprimindo uma dinâmica territorial que lhe será típica. Compartimentam-no
três diferentes porções de recorte, cada qual representando uma das três fases da
continua marcha verde do café: a zona de decadência (de cafezais velhos), a zona
consolidada (de cafezais maduros) e a zona pioneira (de cafezais novos). No geral,
entretanto, em cada uma dessas porções sucedem-se todas as três fases, numa falsa
dialética de velho-novo que objetiva ritmo e volume de acumulação jamais havidos
anteriormente. A dilapidação do patrimônio ecológico caminha a par com esta
rápida acumulação. O capital tudo absorve e incorpora, ou dizima, como fez com a
tribo kaingang, senhora comunitária das terras sujeitas à especulação imobiliária.
Citando Monbeig, Silva observa que o domínio da cafeicultura sobre a força de
trabalho é absoluta, as fazendas cafeeiras absorvendo dois terços da imigração ita­
liana chegada a São Paulo. O Estado organiza e financia a imigração. No Escritório
Espaço agrário e classes sociais rurais na sociedade brasileira 55

de Imigração o imigrante assina contrato válido por um ano, dando-lhe direito a


“salário base proporcional ao número de pés de café” a si atribuído, que cumpre em
caráter familiar. Recebe, ainda, “um pedaço de terra que pode cultivar por sua con­
ta”, arcando desse modo com o dispêndio da reprodução de sua força de trabalho
familiar. Aí o colono planta milho, mandioca e feijão-preto, vendendo o excedente
eventual dessa policultura de subsistência no mercado. Fica, outrossim, sujeito a
determinadas obrigações de prestação de trabalho adicional.
São culturas que o colono planta e colhe preferencialmente nas “ruas” do café,
numa agricultura intercalar (plantio da policultura de subsistência intercalada­
mente às fileiras de café), por ser uma forma de organização espacial que propor­
ciona economia de tempo e de trabalho, permitindo-lhe obter maior produção de
café e de gêneros de subsistência, ganhando mais por um lado e garantindo produ­
tos alimentícios para além dos níveis de subsistência por outro lado, provendo-se
regularmente de excedente para venda. Esta forma de sistema de cultivos tende,
contudo, a desaparecer com o envelhecimento do cafezal e o enfraquecimento do
solo, fato comum nas zonas_de decadência. Mesmo assim, tais relações dão-lhe
pouco além da garantia de reprodução de sua força de trabalho, referência que
interessa ao capital. Por isso, é extremamente instável a permanência do trabalha­
dor na área. Findo o contrato anual, este parte para as zonas pioneiras, ou para os
centros urbanos onde vai engrossar a oferta de força de trabalho operária, quando
não para o exterior (Argentina, sobretudo). Informa Sérgio Silva que entre 1902 e
1906, de um total de entrada de 182 mil trabalhadores restaram na área cafeeira
6 mil, tendo havido 176 mil saídas. É esta a origem da intensa mobilidade espacial
de força de trabalho que aí tem lugar.
Repete-se aqui, pois, o que vemos para o espaço canavieira, ou seja, a coexis­
tência em contiguidade das formas sociais de espaço representativas do sobretra-
balho e do trabalho necessário: o cafezal e a policultura de subsistência.
Mas é no planalto cafeeiro de São Paulo que através da acumulação cafeeira
preparam-se as bases da transferência do padrão de acumulação do campo para a
cidade, com a urbano-industrialização que brota das entranhas do capital mercan­
til e leva a ultrapassar-se a fase do modo de produção de mercadorias.

O ESPAÇO AGRÁRIO SOB AS RELAÇÕES CAPITALISTAS

Refletindo a determinação agora das relações de produção capitalistas sobre o


conjunto da formação econômico-social brasileira, o padrão de acumulação sofre
radical mudança. O centro de gravidade desloca-se da agroexportação, que segue
56 A FORMAÇÃO ESPACIAL BRASILEIRA

existindo e ao monopólio da terra, para o setor industrial. Inicialmente, para o


Departamento I (produção de bens de produção), e, na década de 1960, para o
Departamento II (produção de bens de consumo duráveis), acompanhando a in­
trodução generalizada das forças produtivas capitalistas (Tavares, 1978). Termos
do novo processo de acumulação que se resumem: a) na conversão do trabalhador
rural em vendedor de sua força de trabalho, único meio de produção cuja proprie­
dade o capital lhe permite; b) na transformação dos meios de produção em capital;
e, c) na transformação da terra em mercadoria.
O espaço urbano torna-se o locus do novo padrão de acumulação, mudando
inteiramente sua feição social. As cidades formam em crescendo um sistema de
cidades, uma rede urbana hierarquizada que tem por papel ordenar a captura
e circulação, em ampla escala nacional, do excedente rural vindo de todas as
formações regionais para acumulação no Sudeste. A integração dos mercados
urbanos nesse mercado nacional unificado promove a integração da formação
espacial brasileira sobre essa nova base de relação produtiva, instituindo nessa
direção a hegemonização e homogeneização do capital industrial-financeiro. Por
outro lado, pela via da intermediação do Estado caminha-se para o nivelamento
dos custos de produção industrial em escala nacional. A cidade insere-se, pela
via da industrialização, no cerne do sistema de divisão interna de trabalho por
esta instituido, tornando-se, igualmenle o lvcus de piudu^ãu da foima dominante
de sobretrabalho da nova formação econômico-social brasileira, a mais-valia do
operário industrial.
Deslocado para essa posição ancilar, o espaço agrário passa assim a atuar como
retaguarda da urbano-industrialização capitalista. À mais-valia extraída ao ope­
rário da indústria fabril moderna, o capital combina as formas pré capitalistas
de sobretrabalho do campo (renda da terra pré-capitalista). Efetuando, portanto,
a articulação das diferentes modalidades de relações de produção existentes no
interior da formação econômico-social brasileira e unificando-as numa totalidade
social única sob sua hegemonia. De agora em diante, a reprodução das relações
capitalistas de produção realizar-se-á reproduzindo as relações de produção pré-
-capitalistas assim submetidas.
A sociedade e o espaço brasileiros passam então a ser regidos pela lei do desen­
volvimento desigual e combinado. Acentuam-se os desequilíbrios sociais e espa­
ciais. À concentração da riqueza social em poucas mãos, corresponde sua concen­
tração espacial. As relações campo-cidade e inter-regionais são a expressão espa­
cial das relações entre as classes sociais postas a serviço da acumulação capitalista.
Em todos os espaços coexistem acumulação e miséria (DTncao e Melo, 1977).
Espaço agrário e classes sociais rurais na sociedade brasileira 57

Portanto, as formas e processos sociais do espaço entram em radical trans­


formação. No caso do espaço agrário, ressalta-se seu caráter dependente a partir
de agora do processo interno de acumulação urbano-industrial, por via do qual
insere-se no processo de acumulação capitalista mundial.
Nas porções do espaço agrário onde a penetração das relações capitalistas de
produção completou-se, observa-se, de imediato, a eliminação da lavoura de sub­
sistência dominial, e das formas de relação de trabalho correspondentes, como a
parceria. Tal mudança é a consequência direta do despojamento do trabalhador
pelo capital de qualquer outra propriedade de força produtiva que não sua própria
força de trabalho. Tornando-se vendedor dessa força de trabalho para aquisição
dos meios de subsistência, o trabalhador rural torna-se cliente do mercado urbano,
onde vai comprá-los de agora em diante. A cidade substitui a mediação espacial
intrarrural de antes. E a lavoura de subsistência converte-se, inteiramente, em
produção de mercadorias por intermédio das trocas cidade-campo, com a cidade
recebendo e redistribuindo os produtos alimentícios. Via a canalização de uma
rede urbana cada vez mais hierarquizada a partir da relação regional com o campo.
Para montagem de tal rede a cidade organiza um sistema viário que de imedia­
to se densifica e se ramifica, se espraiando e interligando as porções mais distantes
da formação espacial capitalista. Bombeando o intercâmbio entre campo e cidade
e inter-regional, esta rede combinada de cidade e chculação compõe a conversão
final da velha na nova ordem espacial plenificada na acumulação capitalista de
capital.
Disso resulta a integração de todas as partes na divisão territorial de trabalho e
de trocas onde indústria, serviços e agricultura se arrumam numa estrutura de es­
pecialização produtiva fortemente diferenciada, a produção agrária se abrindo em
leque e cujo desenho se faz-refaz segundo o andamento dos humores do mercado.
Combinando-se a essa mudança a permanência do propósito da produção-expro­
priação do sobretrabalho rural como lógica dos arranjos, a acentuação do monopó­
lio da terra, significando maior grau ainda de latifundização, a elevação contínua
da taxa orgânica de capital da empresa agrária. E, assim, a substituição das formas
seja do campesinato emerso da abolição do trabalho escravo e seja do pequeno
proprietário familiar pela presença generalizada do boia-fria, nas áreas rurais do
Centro-Sul especialmente, onde a elevação da produtividade do trabalho rural fez-
s e ao apelo da mecanização intensiva e toma-se frequente a substituição da lavoura
de subsistência e da pecuária atrasada pela pecuária modernizada e intensiva.
Esta proletarização do campesinato do Centro-Sul tem a contrapartida no avan­
ço do campesinato da fronteira agrícola. Um movimento estratégico que ao tempo
58 A FORMAÇÃO ESPACIAL BRASILEIRA

que amplia as áreas disponíveis para uso capitalista igualmente amplia na fron­
teira a pequena produção campesina. Procedimento fundamental, na medida em
que o preço da terra tende a encarecer nas áreas avançadas do espaço brasileiro,
compensado com o distanciamento da fronteira agrícola.
Logo, todavia, o problema aí também se repete. Aspecto contraditório da nova
ordem espacial, é nas áreas de fronteira que acaba se concentrando o conflito de
terras mais fortemente, acarretado pelo deslocamento também para essas áreas do
capital agrário, levado pela tendência ao aumento do preço da terra nas regiões
centro-sulinas. Conflito e esgotamento das terras virgens vão então se combinan­
do. Apoiada em forças produtivas sofisticadas e de alto nível, ao chegar à faixa
fronteiriça a expansão capitalista devora terras novas e terras há séculos ocupadas
por posseiros e índios. Originários dos centros capitalistas hegemônicos do país e,
sobretudo, do exterior, os empresários capitalistas facilmente obtêm do Estado os
títulos de propriedade dessas terras, ou os falsificam.
Isto torna as relações de classes mais agudas na fronteira agrícola atual que do
passado. Historicamente, por onde a fronteira agrícola passou, a grande proprie­
dade deixou marcas de violência. Reacendidas agora pelo capital na fase avançada
do capitalismo: violência contra a mata virgem, violência contra os posseiros, vio­
lência contra os índios.
Mas são conflitos que; motivados pela concentração monopolista, se reprodu­
zem em escala não menos intensa em todas as porções do espaço nacional. Nas
áreas centro-sulinas o surgimento do proletário rural do tipo boia-fria, um traba­
lhador rural de residência urbana, é acompanhado do surgimento do campesinato
sem-terra. Um segmento social do campo que resulta da aceleração do processo de
expulsão do campesinato pela expansão do capitalismo no campo, mas que reage
e se nega a proletarizar-se, antes optando pelo questionamento e enfrentaniento
do monopolismo fundiário recorrente. Sob essa forma se somando aos conflitos da
zona da fronteira. No fundo uma mesma luta movendo o posseiro, o índio, o boia-
-fria, o sem-terra e os moradores de rua.

Ciência e práxis em Geografia

Algumas questões cabem aqui ser levantadas, Uma primeira refere-se à natureza
do modo de produção dominante e dos modos de produção dominados, e da for­
ma como sua articulação compõe o todo da formação econômico-social brasileira.
Uma segunda refere-se à natureza da correlação de forças entre classes sociais e à
Espaço agrário e classes sociais rurais na sociedade brasileira 59

dialética espaço-sociedade nela hoje existentes. Uma terceira refere-se ao tipo de


sociedade capaz de dar solução a seus problemas sociais que se agravam. E uma
quarta refere-se à definição da classe social capaz de dar conta das suas contradi­
ções sociais fundamentais.
Perpassa-as uma mesma questão geral: a da capacidade e modo de a análise
geográfica, uma análise social, tratar de tais temas, que são as questões postas
hoje pelas lutas sociais no Brasil. Em outros termos, a questão do método capaz
de permitir-lhe desvendar as determinações sociais da sociedade e do espaço
brasileiros.
Um passo fundamental é a análise das formas dominante e secundárias de
capital, e de suas articulações. Segue-se-lhe a análise das formas dominante e se­
cundárias de sobretrabalho, bem como os mecanismos e caminhos de sua captura
até à forma dominante de capital. Trata-se, pois, de analisar a forma e natureza das
relações de produção que compõem a base da estrutura e movimentos da formação
econômico-social brasileira. O eixo é o conhecimento de como se realizam hoje a
reprodução da força de trabalho e do capital, isto é, a acumulação capitalista, e as
contradições que envolve e engendra.
Na interior dessa análise, é fundamental proceder-se à localização da estrutura
de classes e à análise de suas relações antagônicas, com fins de conhecimento da
correlação entre elas em cada conjuntura.
Com isto, analisam-se os modos de produção dominante e dominados à medida
mesmo que se investiga estrutura e movimentos do espaço. Uma vez que investi­
gando a organização do espaço em verdade está-se investigando a forma como se
inter-relacionam as relações de classes no seu todo. E sua compreensão significa
a compreensão da própria dialética da sociedade, uma vez que as lutas de classes
são a essência do seu movimento, o motor que está por trás de seus processos e
formas. Localizado este motor, isto é, conhecidas a natureza das lutas de classes e
suas formas, está aberto o passo para a condução consciente e objetiva da história.
Da construção de um espaço novo, numa sociedade nova.
Sabemos que neste texto isto foi visto de modo limitado. O tema é mais amplo
e complexo. Mas cremos que esta pista abre um campo de reflexão tão ilimitado
quanto é infindável a dialética das formações econômico-sociais.
É uma pesquisa de algumas formas sociais de espaço agrário. Seu método, em si,
nada traz de novo: segue o jogo dialético que, passando da forma para o conteúdo,
e deste voltando à forma, numa reversão constante, culmina com o desvendamento
da essência pela sua aparência. Jogo que se orienta na busca das determinações
sociais das formas e processos sociais segundo a expressão clássica de Marx: “O
60 A FORMAÇÃO ESPACIAL BRASILEIRA

concreto é o concreto porque é a síntese das múltiplas determinações, logo unidade


na diversidade” (Marx, 1974; Moreira, 1978).
O que é frequente nas pesquisas recentes da Geografia é a diluição do eixo
metodológico no eixo lógico, confundindo-se a investigação com o uso de técnicas
como a quantificação, a análise de sistemas e modelos, que injetam nos resultados
grande força lógica, mas mostram-se incapazes de permitir o salto para a explica­
ção científica.
Magnífico exemplo são as pesquisas sobre a estrutura da propriedade da terra.
Invariavelmente, tais pesquisas concluem pelo alto índice de monopólio da terra
rural e urbana. E sua acentuação contínua. Porém não progridem além dessa cons­
tatação, repetindo-a sempre, por completo desprovimento das categorias analíticas,
da base teórica fundamentalmente, que permitam à pesquisa penetrar fundo nos
fenômenos investigados. Não explicam, para exemplificar, o papel que o monopó­
lio da terra joga na estruturação e poder da sociedade de classes no Brasil.
Este tipo de procedimento é incapaz de dar conta dos processos sociais que
conformam a sociedade brasileira. Preso às dimensões físicas da estrutura da pro­
priedade da terra, escapa-lhe que a propriedade é uma relação social e a natureza
dessa relação. Por conseguinte, a natureza dos processos estruturais e sua evolução.
Escapa-lhe que, enquanto o caráter monopolista da propriedade comporta-se como
uma conslaule, sua naluieza históiica, sua historicidade, varia radicalmente no
tempo: ontem, fundamenta a escravidão e a acumulação primitiva de capital; hoje,
à dominação e reprodução do capitalismo.
Uma vez que a lógica desta Geografia deriva do seu caráter de classe. À
Geografia do dominante e da dominação, propomos a Geografia da emancipação
dos dominados.

Bibliografia

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Paulo: Companhia Editora Nacional, 1966.
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In: Andreoni, João Antonio (André João Antonil). Cultura e opulência no Brasil.
São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1966.
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________ . Análise do “modelo” brasileiro. Rio de Janeiro: Editora Civilização


Brasileira, 1972.
Mandel, Ernst. Tratado de economia marxista. Lisboa: Livraria Bertrand, 1978.
M artins, José de Souza. O cativeiro da terra. São Paulo: Livraria de Ciências
Humanas, 1979.
Marx, Karl. Método da economia política. In: Contribuição para a crítica da eco­
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In: A economia da dependência imperfeita. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1984.
Silva, Sérgio. Expansão cafeeira e origens da industrialização no Brasil. São Paulo:
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Tavares, M aria da Conceição. Ciclo e crise: o movimento recente da industriali­
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Wanderley, Maria de Nazareth B. Capital e propriedade fundiária. Rio de Janeiro:
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P L A N T A T IO N E FORMAÇÃO ESPACIAL
A s r a íz e s d o E s ta d o -n a ç ã o no B r a s il *

A população brasileira conta cerca de 3 milhões de habitantes nos fins do período


colonial, aí por volta dos fins do século XVIII. Sua distribuição espacial é desigual,
contrastando “marinha” e “sertão”.
O povoamento, no dizer de Frei Vicente do Salvador “arranha a costa como
caranguejo”. Forma núcleos densos e separados uns dos outros por largos tratos
despovoados, ao longo da linha da costa, o restante se dispersando pela hinter-
lândia: 60% da população colonial se concentram numa largura da franja costeira
que não adentra mais que alguns quilômetros o sertão. A ocupação demográfica se
tece, além disso, sobre uma rede de frágeis e incompletas ligações. As plantations,
dedicadas sobretudo à agfoindustrialização açucareira, têm localização costeira e
nuclear. Do interior, dão conta a expansão progressiva, mas constante, das fazen­
das de gado e o escasso povoamento do vale amazônico. O surto mineiro terá efeito
multiplicador no povoamento do hinterlândia, para ele atraindo, de modo intenso
por quase um século, colonos novos, escravaria das regiões agrícolas em crise e
nova, gado do Nordeste e do Sul. Mesmo assim, o povoamento manter-se-á costeiro,
reforçando-se com o declínio da mineração.
Este é um quadro parcial, no entretanto, da real organização espacial do perío­
do. Os limites espaciais confinam com os limites territoriais, avançando para além
da fronteira demográfica, mesmo que isto não aparente demograficamente. A ocu­
pação económica-demográfica de parte restrita do território obedece e enquadra-
-se numa trama de relações da qual é a expressão evidente, porque polar. Porque o
arranjo espacial económico-demográfico inscreve-se num arranjo jurídico-político
que transporta o espaço ocupado para além de seus limites aparentes: o limite
estrutural da formação socioespacial.

* Texto originalmente publicado na série Estudos PUC-RJ, n. 1, de título Contribuição ao estudo da


geografia agrária, de 1981. Acrescentado nesta reedição da parte final, de modo a melhor ajustar-se
aos propósitos deste livro.

63
64 A FORMAÇÃO ESPACIAL BRASILEIRA

Pouco é preciso para se perceber que este modo de ver o arranjo do espaço
ocupado exprime e revela a apreensão do real pelas relações técnicas, formais, dos
processos mais gerais que comandam a sociedade colonial, qual seja, suas determi­
nações externas. O caráter exportador da economia colonial determina a fixação
costeira dos homens e aparelhos produtivos que se veem envolvidos na agroindús­
tria canavieira; a natureza portuária dos centros urbanos; a ossatura linear e de
penetração da rede viária; a oposição marinha-sertão. Adensa a população onde ela
se instala como produção-chave do sistema produtor colonial, determinando a di­
nâmica dos fluxos espaciais. A sua desvalorização como produto-chave no mercado
mundial impõe o enraizamento do sistema em um outro, mudando o centro da gra­
vidade demográfica. A área caída em decadência cede a dinâmica a outra. A mudan­
ça do produto-chave, implicando em mudança de locus, significa redistribuição de
homens e aparelhagem produtiva. Eis porque no decurso dos séculos da colonização,
até os finais do século XVIII, a gravidade espacial da população segue três momen­
tos: concentração costeira, interiorização meteórica e retomo à concentração costei­
ra, o fluxo demográfico acompanhando a dinâmica geral da estrutura produtiva do
sistema econômico: nascimento agrícola mineração renascimento agrícola.
A fixação dos estudos de geografia brasileira nestas relações de superfície, to­
madas como o real concreto, reflete, assim, a interpretação “circulacionista” e
“economicista”que substancia toda nossa produção geográfica desde os primeiros
trabalhos.
A análise a partir das determinações internas, realçando a estrutura de relações
de classe e poder dos detentores da terra, permite, todavia, a revelação da natureza
mais ampla do processo, a dimensão mais global do arranjo do espaço, a formação so-
cioespacial colonial-escravista, uma vez que transporta o desenho do arranjo espacial
econômico demográfico para o nível do arranjo jurídico-político, vale dizer, para a to­
talidade global. Assim, ultrapassa-se a noção empírica de espaço e resgata-se o papel
das determinações múltiplas, repondo-se os termos espaciais do jurídico-político, de­
formados pela ótica das teorias burguesas de geopolítica, pelo qual pode-se conceber
o geopolítico como expressão espacial do jurídico-político. E transpõe-se o seu entra­
nhado naturalismo, repondo-se o natural em outros termos de conjunto. Alçando-se,
assim, os limites do território aos limites da formação socioespacial, nãõ restingindo-
-se a organização do espaço aos limites da fronteira económico-demográfica.

O “espaço-arquipélago” e o espaço concreto

Compreendido desse modo, o espaço colonial-escravista parece revelar uma outra


face que a face corrente.
Plantation e formação espacial 65

Sob a determinação do caráter exportador, o espaço brasileiro, afirmam di­


versos estudos, constitui-se num espaço-arquipélago. O objetivo de exportação
estabelece laços de relação das regiões exclusivos com o exterior, implicando ine­
xistência de laços internos, inter-regionais. Castro nos parece ter sido o primeiro
dentre nós a por este modo de conceber a formação socioespacial brasileira sob
crítica (Castro, 1980). Segundo observa, é nos momentos de crise das economias
regionais que a falácia do espaço-arquipélago mais se desmente, uma vez que a
crise alimentará visível redistribuição espacial de forças produtivas, sem o que o
processo de acumulação do sistema econômico em seu conjunto sofreria solução
de continuidade.
Ora, o açúcar, para nos determos num dos produtos-chaves do sistema econô­
mico até o século XVIII, define-se no contexto das relações da produção coloniais
como sobretrabalho. Nuclearizando o próprio interesse do empreendimento colo­
nial, a produção açucareira implicará o estabelecimento de uma rede de articula­
ções que não se limitará ao contexto específico da plantation. As características
de produção determinarão uma estrutura de relações que irão abarcar necessa­
riamente e em graus variáveis a totalidade do sistema econômico. Concertam esta
articulação a absorção do sobretrabalho das diferentes formas socioespaciais de
produção pela produção plantacionista açucareira e a repartição da massa do so­
bretrabalho no contexto global (senhores de escravos, capital mei cantil e Coioa)
entre a esfera da produção e a da circulação.
A inexistência de relações internas inter-regionais encontraremos sobretudo
entre as unidades de produção similares, e, assim mesmo, ao nível das trocas e
na regularidade destas. No nível conjunto da totalidade, das relações, gerais de
poder principalmente, a classe dos detentores de tais unidades de produção trava
diferentes graus de ligações, em particular os senhores de escravos das plantations.
Compondo um mesmo e único corpo, uma unidade no e sobre o conjunto, concer­
tam uma totalidade social nesse conjunto.
Ademais, a noção de inter-regionalidade define-se, para cada época, ao nível
da sua estrutura de produção. Cada tempo histórico estabelece seus termos pró­
prios de regionalização e relações inter-regionais. O que poderia ser então para as
classes dominantes coloniais uma questão regional. Que significado expressões
como relações inter-regionais poderiam ter para elas? Como se põem e se con­
cretizam a regionalização e as relações inter-regionais para a época? Indagações
que procedem do fato de o espaço mais arrumar-se no fundo no que chamaríamos
macroformas.
66 A FORMAÇÃO ESPACIAL BRASILEIRA

0 arranjo global do espaço colonial

Tomando-se o momento dos fins do século XVIII, como num corte transversal no
tempo, encontramos constituindo a totalidade espacial da formação social brasilei­
ra cinco macroformas (formas gerais de espaço): o espaço agrícola, o espaço pas­
toril, o espaço extrativo-vegetal e o espaço urbano. O trabalho escravo e o caráter
exportador são as relações gerais que dão conformidade unitária ao conjunto des­
ses recortes de espaço. Mas em cada macroforma estas relações se amoldam dentro
de determinadas especificidades. Por isto, estas formas gerais ao mesmo tempo se
distinguem e se confundem na totalidade. Superpõem-se, aqui e ali, numa tessitu-
ra.de limites imprecisos e natureza diversa (Mapa 1).

Fonte: Atlas Geográfico Escolar - MEC - 1980


Plantation eform acao espacial 67

Ao longo da fachada costeira, em geral ao abrigo de baias e estuários, alojam-se


as diminutas porções de espaço urbano, cidades-portos que abrigam os aparelhos
de Estado da Coroa e da Colônia. Ao seu redor, estende-se o espaço agrícola, des­
contínuo igualmente, que abriga as plantations e as policulturas de subsistência.
Contorna-o em amplo arco que avança ilimitadamente pela hinterlândia o espaço
pastoril, incorporando aqui e ali em seu tecido a policultura de subsistência e os
centros mineiros. Embutido no tecido do espaço pastoril sob a forma de “nebulosas
de núcleos de mineradores", no dizer de Caio Prado Jr., dispersas e distanciadas
umas das outras, temos o espaço mineiro. Nos limites territoriais da longa frontei­
ra norte, por fim, o espaço extrativo-vegetal amazônico (Prado Jr., 1961):
Visto neste plano, o espaço parece arrumar-se segundo formações regionais. O
aspecto formal, todavia, mascara o caráter da unidade que se esconde por detrás.
Um detalhe do arranjo revela, se considerado no conjunto, antes de mais nada a
natureza de uma totalidade: a rede de caminhos que combina trilhas, rios e rotas
de gado num desenho irregular orienta as interações desses recortes do espaço na
direção das áreas das plantations, mineiras e, sobretudo, urbanas.
Assim, e ao invés dum espaço-arquipélago, percebe-se que: 1°) por detrás
das “formações regionais” há uma unidade de conjunto; 22) esta unidade indi­
ca, à primeira vista, a própria determinação do caráter exportador de sistema
econômico.
Tentemos avançar essa análise.

0 mecanismo geral da articulação

Embora levantando afirmações que necessitam de uma elaboração teórica maior


e com maior respaldo de pesquisa empírica, serve-nos um quadro preliminar com
fulcro na realização do processo de acumulação.
No plano da escala mundial está em curso o processo de acumulação primitiva
de capital, sob o qual e para o qual se concerta um arranjo espacial internacional
calcado numa divisão de trabalho que atribui às colônias a tarefa específica do
fornecimento de matérias-primas. Dessa forma, institui-se nestas colônias uma es­
trutura de relações em que a esfera da produção, interna, cola com uma esfera de
circulação, externa e subordinante. Embora imbricada, cada esfera possui dinâmi­
ca distinta no processo de acumulação, podendo-se falar de uma acumulação ex­
terna e de uma acumulação interna, separando de um lado a burguesia mercantil
e a Coroa e de outro lado os senhores de escravos.
68 A FORMAÇÃO ESPACIAL BRASILEIRA

O processo da acumulação tem por móvel principal determinado produto-cha­


ve: o açúcar, em nossa análise. Sendo assim, todo o aparelho produtor do sistema
econômico colonial será mobilizado para o sucesso da produção açucareira, nisto
pondo todo seu empenho à Coroa. No intuito da geração do sobretrabalho o plan-
tacionista dará origem a um universo de relações que inclui todas as macroformas
e culmina na metamorfose e repartição da renda do sobretrabalho entre os seg­
mentos de dominantes, à cuja sobranceira encontram-se os senhores de escravos,
o capital mercantil e a Coroa. Subsumido ao capital mercantil, os senhores plan-
tacionistas hierarquizam por sua vez as relações no âmbito colonial, mediante o
que estabelecem sua hegemonia sobre os demais e socializam suas perdas de renda
para o capital mercantil e a Coroa, redistribuindo-as internamente pelo conjunto
do sistema econômico colonial. O trabalho escravo, a monocultura, a extensivida-
de, a itinerância de terras, a queimada, a policultura de subsistência, o monopólio
da terra, a moagem vinculada da cana tais são algumas das formas usadas nessa
“socialização”.
F. assim que cada macroforma enquadra-se neste processo, ainda quando in­
serida diretamente na divisão internacional de trabalho e por esta imposta ao
sistema econômico. Cada qual tem sua dinâmica determinada pelo grau em que
concorre para a acumulação interna gestionada em primeiro plano pelos plan-
tacionistas, e para a acumulação externa, nem sempre em caráter combinado.
Dentro deste contexto de articulações é que o conjunto e cada macroforma teria
algo próximo de uma economia regional. Todavia, cada uma encontra-se vincu­
lada à viabilização do eixo principal de existência do empreendimento colonial.
No caso temporal, talvez à exceção do extrativismo amazônico, para a concor­
rência direta ou indireta da viabilização da produção açucareira. Assegura esse
liame do todo, quando frágil ao nível das relações econômicas diretas, a unidade
da instância jurídica-política encimada pela Coroa, enquanto persona do Estado
colonial português.

0 arranjo e as macroformas

Tal o quadro das macroformas e sua dinâmica intrínseca de relações. Vejamo-las


individualmente. De modo a retornarmos às relações mais internas, indicadoras da
essência da sociedade colonial e do seu espaço.
plantation e form ação espacial 69

O ESPAÇO AGRÍCOLA PLANTACIONISTA

É no espaço da plantation que se desenrolam as relações que, à exceção do período


mineiro, polarizam as atenções da Coroa e do capital mercantil. Sua localização é
virtualmente litorânea. Onde se distribui em núcleos densos e descontínuos.
Foi a plantation, observa Gorender, que "contou com o financiamento do capital
mercantil e com o apoio dos governos metropolitanos interessados na exploração
lucrativa das colônias e no tráfico de negros” (Gorender, 1978). Ainda segundo
este autor, ”foi ela a forma de organização dominante no escravismo colonial. Dela
o trabalho escravo irradiou a outros setores da produção e se difundiu na genera­
lidade da vida social. As unidades produtoras não-plantacionistas se modelaram
conforme a plantagem e todas as formas econômicas, inclusive as não-escravistas,
giraram em torno da economia de plantagem. Juntamente com a escravidão, a
plantagem constitui categoria fundamental do modo de produção escravista colo­
nial”.
Tomando por base Waibel, Gorender lista como suas características principais:
1“) especialização na produção de gêneros comerciais destinados ao comércio mun
dial, embora não seja uma organização mercantil em sua totalidade;
2o) organização do trabalho por equipes sob comando unificado, significando rígi­
da e integrada disciplina;
3a) estabelecimento voltado para produção em grande escala, implicando elevado
grau de investimento;
4a) conjugação indispensável, no mesmo estabelecimento, do cultivo agrícola e de
um beneficiamento complexo do produto, nunca constituindo por isto uma unida­
de produtora puramente agrícola.

Desse modo, o arranjo espacial plantacíonista combina natureza de processo


produtivo e estrutura de classe própria, tendo à base o monopólio da terra e da
indústria do açúcar (o engenho-fábrica). Contudo, é o trabalho escravo a chave de
toda sua dinâmica social e espacial, porquanto dele deriva o monopólio da terra,
numa relação em que é a posse do número dei escravos que define o tamanho do
acesso à terra e este retroativamente a condição sine qua non da monopolização do
sobretrabalho expropriado ao escravo pelos senhores. Este sobretrabalho é a razão
mesma do empreendimento colonial, girando o sistema colonial em torno de sua
produção-expropriação-circulação. O monopólio fundiário é a condição de viabi­
lizá-lo efetivamente. E a monocultura uma forma de atingir-se sua alta taxa de
geração. Em termos simples, as formas e processos do espaço são o correspondente
70 A FORMAÇÃO ESPACIAL BRASILEIRA

espacial desses propósitos e integração, organizando e favorecendo a produção e


fluxo distributivo do sobretrabalho entre os segmentos das classes dominantes.
Daí que primeiramente o espaço agroindustrial canavieiro se reparte em espa­
ço de monocultura da cana e espaço de policultura de subsistência (a cultura da
mandioca, basicamente). Por sua vez, em segundo plano o espaço de monocultura
da cana se reparte em função de como os senhores de escravos definem-se em
relação à propriedade do engenho-fábrica, diferenciação esta mascarada na paisa­
gem pela homogeneidade visual do canavial. Porém visualizada na localização do
engenho-fábrica, o ente que dá o nexo espacial global, tem-se a noção mais real
da distribuição: as terras derredor são as dos proprietários da indústria e as que
situam-se mais além são as dos lavradores de partidos, regra geral, observando
Alice Canabrava que “o engenho é o centro de uma constelação de lavouras de
partido” (Canabrava, 1966).
A desigual situação entre os senhores de escravos deriva das exigências de ins­
talação de um engenho-fábrica. Castro diz a este propósito que embora as despesas
correntes (salários e subsistência dos escrayos) sejam baixas, o montante das in­
versões (em madeira, bois, cavalos, cobre, escravos, barcos, metais etc.) e os gastos
de reposição (manutenção da capacidade produtiva) são muito elevados. Esta é a
razão pela qual, quando das crises, o senhor de engenho-fábrica promove apenas
uma redistribuição interna das forças produtivas, sendo-lhe impossível mudar de
ramo. Face a ausência de flexibilidade gerada pelo volume de capital fixo emprega­
do, a crise não destrói a economia agroindustrial canavieira, mas obriga-o a uma
forte reciclagem interna. As crises aumentam, em verdade, a autarcia da grande
empresa, intensificando a produção de subsistência, o artesanato e os trabalhos
caseiros. E reduzem o grau das articulações com as demais grandes unidades es­
paciais.
Dado o caráter massivamente exportador do modo de produção escravista-colo­
nial, o espaço é privilégio da grande lavoura, isto é, da monocultura de exportação,
que então ocupa as terras de maior fertilidade e melhor localização. As terras dé
menor fertilidade, já cansadas ou de acessibilidade difícil são as deixadas para a
pequena lavoura de subsistência. Esta, tem duplo caráter, interno e externo, frente
à plantation. No âmbito da plantation, encontra-se aquela praticada pelos próprios
escravos e aquela praticada por brancos-livres em caráter agregado. Tanto a mo­
nocultura de exportação quanto a pequena lavoura de subsistência são aí tocadas
pelos escravos, materializandoe no espaço interno da plantation a divisão do tempo
de trabalho do escravo em sobretrabalho e trabalho necessário. No decorrer dos
dias da semana o escravo cuida da primeira, cuidando da segunda nos domingos e
Planmtion e formação espacial 71

feriados. A pequena lavoura de subsistência agregada visa a complementar a pro­


dução alimentícia do escravo no âmbito interno da plantation-engenho. Atuando
em caráter de complementaridade, sobretudo nas épocas de grande demanda de
açúcar, intervém a pequena lavoura de subsistência autônoma, esta situada fora
dos domínios da grande lavoura. A estrutura do arranjo espacial revela, assim,
de um lado, com a monocultura de exportação, a forma da reprodução global do
capital e, de outro lado, com a pequena lavoura de subsistência, a forma como se
realiza a reprodução da força de trabalho.
O fator ordenador desse arranjo espacial interno é a localização do engenho-
-indústria enquanto centro de um verdadeiro “sistema espacial”. Fato decorrente
de ser o açúcar o motor propulsor do próprio sistema produtor da economia colo­
nial. Sua localização prende-se basicamente a três exigências: terras férteis, água e
lenha. O engenho localiza-se à beira do rio, num ponto de favorável acessibilidade
às matas e aos canaviais. Assim, observa Capistrano: “Os engenhos estavam todos
na mata, o que se explica pela maior fertilidade dos terrenos bem vestidos, e pela
abundância da lenha, necessária às fornalhas em um laborar que às vezes durava,
dia e noite, oito e nove meses. E não deviam se afastar muito do litoral marítimo,
sob pena de, sendo um só o preço dos gêneros de exportação, não poderem compe­
tir com os fazendeiros mais vizinhos do mercado, cujo produto se gravava com as
despesas de transporte” (Abreu, 1976). A seu redor estendem-se os canaviais, loca­
lizados, na zona da mata nordestina, nos solos de massapé, situando-se a policultu­
ra de subsistência nos solos arenosos. Notando Capistrano que “o afastamento do
canavial em relação ao engenho produz a elevação dos custos pelo frete, por isso o
canavial não se arreda dele”. Nas proximidades das instalações principais, em pas­
tos naturais, ficam os animais usados no transporte e moagem da cana, enquanto
nas proximidades da Casa Grande situam-se os espaços reservados à fruticultura.
As áreas de matas, fornecedoras de lenha, situam-se nos mananciais circundantes,
onde também se encontram alguns poucos animais para carne e leite. O consumo
de lenha é notável: em média, cada fornalha consome um carro de lenha por dia,
tendo, um engenho real, seis fornalhas. As matas fornecem ainda a madeira, com
a qual praticamente se produz todo o equipamento do engenho. Somente as liga­
duras são de metal, dado seu elevado preço. A sua rápida devastação é inevitável.
Comumente, há ainda olarias e cerâmicas, situadas nos trechos argilosos, que for­
necem telhas, tijolos e utensílios domésticos e de purgação do açúcar.
Globalmente, contudo, o engenho, lato sensu, comporta uma estrutura muito
mais diversificada, gerada pela gama ainda mais ampla de atividades. Aí, combina­
dos e em alguns casos ao lado do engenho-indústria estão a casa grande, a senzala,
72 A FORMAÇÃO ESPACIAL BRASILEIRA

as instalações acessórias (oficina, estrebaria etc), a capela, os canaviais, as pasta­


gens (bois e cavalos), as culturas de subsistência, as matas etc. Se acrescentarmos
as demais macroformas e as relações de fora, forma-se na unidade plantacionista
um todo que compreende: 1) o espaço pastoril sertanejo, fornecedor de alimentos
(carne) e matérias-primas (couro) para utensílios e artesanato; 2) as pequenas
lavouras de subsistência autônomas, que o suprem em caráter suplementar de ali­
mentos; 3) os centros urbanos, que atuam como canalizadores do sobretrabalho
produzido na colônia para a metrópole e supridores de créditos e mercadorias; 4)
as praças africanas, fornecedoras de força de trabalho escrava; e, 5) os centros
europeus de mercado de açúcar e fornecedores de manufaturas e serviços diversos.
Por detrás desse amplo ’’sistema espacial” encontra-se o movimento da produ­
ção-expropriação-circulação do excedente do trabalho escravo gerado na planta­
tion stricto sensu. Este sobretrabalho é capturado pelos senhores de engenho e de
partido, sofrendo entre eles uma primeira partição, em benefício dos proprietários
de engenho. Estes cobram dos lavradores de partido de 50 a 60% do sobretrabalho
capturado aos seus escravos, já em forma de pães de açúcar, como pagamento dos
serviços a eles prestado de moagem das suas canas no engenho. Ao venderem por
sua vez o produto aos comerciantes, ainda nos portos da colônia, o sobretrabalho
sofre uma segunda partição, agora em benefício da classe mercantil. Que este
fazem desdobrar em mais partes. Como o pagamento da compra do açúcar aos
senhores de escravos somente é feito quando da revenda do produto nos mercados
externos, surge entre estes dois momentos um período de falta de liquidez para os
senhores de escravos, que então recorrem a empréstimos oferecidos pela classe
mercantil. Levando esta a expropriar aos senhores duas frações de sobretrabalho:
uma no ato da troca; outra, no ato do crédito; isto é: uma, pela via do controle da
comercialização; outra, pela via do sistema de crédito.

O ESPAÇO PASTORIL

Na esteira do processo descrito para o espaço agrícola, move-se o espaço pastoril.


Embora tenha suas próprias estruturas espaciais, este tira grande parte de sua
dinâmica da articulação que tem de um lado com a agroindustrial canavieira e de
outro com as áreas de mineração, numa relação bifronte com os núcleos de lavoura
e cidade do litoral e os núcleos de mineração e cidades do sertão..
As fazendas de gado situam-se nos espaços intermediários localizados entre o
espaço agrícola e urbano da franja costeira e o espaço extrativo-vegetal amazônico.
E são as principais responsáveis pela ocupação da hinterlândia desde os inícios
Plantation e formação espacial 73

da colonização. E, contrapondo-se a estes, cuja economia se destina à geração


de sobretrabalho para fins de acumulação externa, formam, no dizer de Prado
Jr.,“grandes propriedades de subsistência”, atuando como peça ancilar no “sistema”
social e espacial da colônia, por meio da qual se insere em plano indireto na divi­
são internacional de trabalho. E assim, portanto, na acumulação primitiva mundial
de capital.
O gado foi introduzido entretanto primeiramente nas áreas litorâneas, em par­
ticular nordestinas, para subsidiar os engenhos de cana em alimentos, transporte e
força para as moedas. À medida em que na franja costeira ampliam-se, no decorrer
do tempo, as extensões ocupadas com os cultivos e o número de engenhos, o gado
vai tendo seu espaço comprimido, o que produzirá seu gradual afastamento para o
interior, para tanto inclusive concorrendo o aumento natural, dos rebanhos. Cedo
o interior nordestino se ocupa de fazendas de gado. E com o ciclo da mineração
a interiorização se precipita pelo sertão central, coalhando de fazendas de gado a
região dos cerrados do planalto central.
Aumentando a distância aos mercados, a articulação com a subsistência dos
engenhos e cidades litorâneas nem por isso se enfraquece. Reforça-se mais e mais
com o crescimento da demanda. Todavia, refluindo e tendendo à economia natural
toda vez que a produção para exportação reflui e entra em crise. Reagindo a pecuá-
íia, então, numa espécie de sinal conUáriu, aus humores da economia exportadora.
É assim que nos períodos de euforia das exportações de açúcar todo o espaço
pastoril reage com intenso dinamismo. Tal como relata Antonil, mencionando a
multiplicação das longas rotas de gado que põem em contato as distantes áreas
pastoris do Piauí com os centros consumidores do litoral pernambucano e baiano.
Observando o papel de Jacobina, encravada no sertão piauiense, na ordenação dos
fluxos de gado que vão ter às portas de Salvador, onde articula-se a Jeremoabo. E
nos períodos de refluxo reage num forte traço de ensimesmamento. Caindo num
estado de economia fechada em si, num isolamento para dentro que a torna uma
civilização do couro, tal como relata Capistrano de Abreu.
A dinâmica desse espaço deriva, contudo, determinantemente da estrutura so­
cial interna à própria economia pastoril. Nela coexistem a criação e a pequena la­
voura de subsistência, praticadas, ambas, pelos peões. Aqui se estabelecendo uma
articulação semelhante à que vimos para a monocultura-policultura no espaço ca-
navieiro. Não obstante, as relações de classes são menos rígidas e mais simplifica­
das. Empregando em maior escala a força de trabalho semilivre, branca e nativa, a
fazenda de gado constitui um mundo de maior mobilidade social vertical, fato que
se constitui no real motor de mobilidade das formas e processos do espaço pastoril.
74 A FORMAÇÃO ESPACIAL BRASILEIRA

A instituição do pagamento da quarta (o vaqueiro recebe em paga de seu trabalho


um bezerro em cada quatro nascidos), favorece ao peão sua ascensão a fazendeiro.
Como tal pagamento só se efetua decorridos cinco anos, acumula-se um rebanho
que o vaqueiro recebe de uma só vez. Falta-lhe a terra que, geralmente, consegue
arrendando-a ao seu antigo senhor.
Secundariamente, concorrem ainda inúmeros fatores, tais como: 1) a natureza
auto-móvel do gado; 2) a elasticidade de terras; 3) o consumo crescente do litoral
e das minas; 4) o baixo montante das inversões e gastos de reposição exigido pela
pecuária extensiva; e, 5) o meio ecológico propício.
Destes, dois aspectos realçam-se, particularmente: a regularidade da relação
de mercado e o baixo investimento de capital. O comércio de boi e carne, interno,
é intenso. Observa Caio Prado Jr. originar “um desfile ininterrupto”. O consumo
anual chega a 20 mil bovinos na Bahia, 6.000 em São Luís do Maranhão e 11 mil
em Belém. Por outro lado, a instalação de uma fazenda, exige por sua vez pouco
investimento, geralmente centrado em currais, vivendas, vaqueiros e auxiliares
(os “fábricas”). A força de trabalho empregada é mínima: dois ou três vaqueiros e os
fábricas, em número de dois a quatro, sendo estes às vezes trabalhador escravo, as
vezes semilivre. A par do baixo fundo fixo, a fazenda encerra fracas despesas cor­
rentes: o sustento dos trabalhadores e sua remuneração é função do próprio desfru­
te natural dos rebanhos, cabendo aos “fábricas” a tarefa da lavoura de subsistência.
É face a todos estes aspectos que a pecuária torna-se naturalmente imune às
crises, tão frequentes na plantation canavieira, a elas respondendo prontamente
com a autorcização. Sua própria dinâmica de expansão espacial é uma garantia,
apoiando-se em seus próprios excedentes demográficos e os oriundos dos centros
agrícolas costeiros em baixa.
No conjunto, entretanto, há notáveis diferenciações no todo do espaço pas­
toril, distinguindo-se: o sertão nordestino, o sul de Minas e o o pampa sulino.
Ecologicamente o sertão nordestino é a porção menos favorecida das três. Não
obstante, por longo tempo beneficia-se das proximidades dos mercados formados
pelas cidades e agroindústria canavieira nordestinas, bem como da ausência de
concorrentes. A água exerce papel fundamental na localização e distribuição das
fazendas e em sua proliferação e expansão, sobretudo porque dela depende tam­
bém a produção agrícola de subsistência interna a cada fazenda, praticada em
pequena escala nas várzeas. As fazendas, por isso, adquirem forma retangular, de
pequena largura e longo comprimento, dividindo as margens dos rios, nas quais
ficam as “testadas”. A expansão do espaço pastoril se dá a partir de centros de irra­
diação. Desses focos, as fazendas, e com elas o povoamento, vão-se espraiando pau-
Plantation e form ação espacial 75

latinamente para o interior. Expandem-se em contiguidade, fato que as mantêm


em contato íntimo com os seus centros irradiadores. Não obstante isto, a ausência
de uso de cercas impõe relativo isolamento entre elas. Pernambuco e Bahia são
os centros de irradiação, Pernambuco com polos em Olinda a Recife e Bahia com
polo em Salvador. Na observação de Capistrano de Abreu, Pernambuco é o “sertãò
de fora”, sendo Bahia o,"sertão de dentro”. A dependência da pecuária nordestina
para com a economia agroindustrial canavieira gera um comportamento peculiar:
a toda crise desta, a pecuária cai “numa economia natural”. A pecuária mineira é
tecnicamente mais avançada e ecologicamente melhor servida, sobretudo quanto
à água. Contudo, o relevo acidentado força a dispersão das fazendas pelos vales,
criando dificuldades de comunicação. Sua origem é a expansão da atividade de
mineração atraindo a pecuária nordestina e sulina. Situado entre o sertão per­
nambucano baiano e as minas, o vale do São Francisco rapidamente povoa-se de
fazendas de gado, que logo atingem os afluentes do alto curso e o sul de Minas.
Surge, assim, com o aparecimento dos mercados de carne nos centros mineiros,
voltando-se também mais tarde para o mercado do Rio de Janeiro. Usando um
sistema m ais desenvolvido de criação, as fazendas de gado de Minas obtêm maior
produtividade que as do sertão nordestino. Pratica-se o uso de cercamentos, siste­
ma de parcelamento interno e a produção simultânea de carne e leite. No sul da
colônia, por fim, a pecuária expande-se inicialmente em função do comércio de
muares com os centros mineiros numa primeira fase e de couro e carne a seguir. A
eclosão do ciclo da mineração atrai o deslocamento do gado muar e bovino para
o planalto central, onde o-gado sulino, subindo pela calha da depressão periférica,
vai encontrar-se com o que chega do sertão nordestino, que sobe pela calha do São
Francisco. Centrada por sua vez no começo no comércio do couro, desperdiça-se
na segunda fase a carne bovina. Só há grande progresso local quando, com a “Seca
Grande” de 1791-1793 no sertão nordestino, surge a industrialização do charque.
Proliferam, então, as charqueadas em Pelotas e São Gonçalo, centros urbanos si­
tuados a meio caminho entre as áreas de pastagens da fronteira, onde há animais
em .estado selvagem oriundos das missões, e o porto de Rio Grande. A esta época,
entra em crise a pecuária de muares, face ao surgimento de áreas de criação nas
fazendas mineiras.

O ESPAÇO DA POLICULTURA DE SUBSISTÊNCIA AUTÔNOMA

O ciclo da mineração no planalto central estimula a expansão na colônia também


da pequena lavoura de subsistência autônoma. Já antes os núcleos urbanos, com
76 A FORMAÇÃO ESPACIAL BRASILEIRA

função meramente de organização da circulação do sobretrabalho entre a colônia


e a metrópole, reúnem mercados esparsos de consumo no litoral. Ao lado dos nú­
cleos dos espaços agrícolas da monocultura plantacionista. Com a proliferação de
núcleos urbanos ligados ao surgimento do ciclo da mineração e a aceleração da
interiorização do povoamento ocasionada pela expansão do gado vinculada a esse
mercado, multiplicam-se os pontos da pequena lavoura de subsistência, generali­
zando-se por toda a extensão territorial colonial.
Surgida para suprir essas áreas em alimentos, a pequena lavoura de subsistên­
cia tem sua localização interligada à localização dessas áreas. Multiplicando-se
nos lugares de acessibilidade aos mercados, como a periferia da plantation e dos
centros urbanos litorâneos e do interior ligados à mineração, sempre situando-se às
margens das rotas de comunicações com estas áreas. E é com o advento da mine­
ração que há sua grande difusão, descolando-se dos limites da franja costeira para
disseminar-se pela hinterlândia amplamente, encontrando-se por fim em todos os
cantos.

O ESPAÇO MINEIRO

O ciclo da mineração forma com o ciclo plantacionista da cana de açúcar os dois


polos da ordenação espacial da colônia. Com o seu surgimento e ampliação em nú­
cleos dispersos no século XVIII nos planaltos mineiro e central, a fronteira econó­
mico-demográfica avança para os sertões, onde as fazendas de gado e as pequenas
policulturas de subsistência não encontram limites de expansão, junto à demanda
das cidades que aí igualmente se multiplicam.
Algumas diferenças básicas distinguem o espaço mineiro. A diferença dos es­
paços plantacionista e pastoril, não há, aqui, a exclusividade da grande unidade
de produção, com ela coexistindo a pequena e a média cm condições plenas de
sobrevivência e desenvolvimento. Em parte esta característica distintiva revela
outras diferenças essenciais. O espaço mineiro é um espaço de relação de mercado.
De modo que suas cidades, erguidas numa relação para dentro e nas distâncias
da hinterlândia, não são iguais às cidades da costa, estas inteiramente político-
-administrativas.
Não foi, por isso, o surto mineiro em si ou a expansão do espaço pastoril e dos
polos de lavoura de subsistência, dele decorrente, o motor desta notável unificação.
Mas em verdade o extraordinário salto verificado no ritmo da acumulação, tendo
em vista o alto valor de uso do novo produto: o ouro. Basta lembrarmos que a eco­
nomia europeia, de cujo processo de acumulação primitiva de capital o processo de
jPlantation efo im a cã o espacial 77

colonização é manifestação reflexa, avança largamente no século XVIII em direção


às relações capitalistas plenas, ocupando ai a moeda-ouro um papel central.
Acresce que com a extração do ouro o processo interno de formação espacial
sofre uma alteração inaudita, em face do caráter urbano da economia mineira, que
muda substancialmente a natureza das relações sociais internas, ao torná-la menos
agrária e mais urbana e monetária. Assim, a par de levar o território a unificar-
-se no seu todo, leva a modificar-se a própria ordem espacial. A interiorização e
a cidade de mineração redesenham as linhas gerais das articulações internas da
formação espacial colonial, num impacto de ordenamento cultural que abarca, ao
contrário daquele litorâneo gerado pela agroindústria canavieira, no seu todo o
território colonial (Mapa 2).
São fatos conhecidos: 1) a interiorização do povoamento sob a forma de prolife­
ração de “condensações” de núcleos urbano-mineiros e de fazendas de gado; 2) os
fluxos de migrações de origem interna e externa; 3) a desestruturação e esvazia­
mento das economias agrícolas até então dominantes; 4) a valorização da produção
de subsistência e a proliferação decorrente de espaços agrícolas de subsistência
circunvizinhos aos centros mineiros e nas linhas de articulações deles com São
Paulo, Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco; 5) a multiplicação dos centros urbanos
e da vida urbana na hinterlândia; 6 ) o desenvolvimento de uma rede viária de
escala global; 7) a mudança qualitativa das articulações mterespacíais, agora teitas
sobretudo na forma de trocas de produtos e forças produtivas; 8) o deslocamento
do centro de gravidade espacial da baixada costeira nordestina para o planalto mi­
neiro; 9) o consequente deslocamento do centro de gravidade jurídico-político de
Salvador para o Rio de Janeiro; 10) a reviravolta na malha político-administrativa,
redefinindo a forma e o marco do arranjo espacial jurídico-político.
Todos estes fatos são a expressão de como passou a se dar em seu conjunto o
processo da acumulação no Brasil, agora centrado em um produto de alto valor
de uso e de troca, tanto no plano externo quanto no plano interno da economia
colonial. Usando uma linguagem espaciológica: o que surge é uma redefinição do
locus e natureza de fonte do processo de produção-expropriação do sobretrabalho.
O espaço mineiro compõe-se. basicamente, de três “nebulosas de estabeleci­
mentos mineiros”, como diz Prado Jr. No interior de tais nebulosas os centros mi­
neiros localizam-se por sua vez de modo disperso e isolado, largamente apartados
às vezes uns dos outros. Minas Gerais é o centro de gravidade da condensação.
Tal dispersão em parte se deve à ampla extensão da área de ocorrência do ouro
de aluvião, tipo de fonte principal do ouro extraído. E em parte à influência do
relevo acidentado, compartimentando o espaço mineiro. Provavelmente, contudo,
78 A FORMAÇÃO ESPACIAL BRASILEIRA

a causa principal resida na estrutura interna da própria organização econômica. As


relações de trabalho, a despeito de serem também aqui escravas, são menos rígidas
que nas áreas agroindustriais, acenando aos escravos com a conquista de alforria
sob o estímulo da descoberta de ouro. Ademais, é baixo o montante das inversões
e dos gastos de reposição, embora, as despesas correntes sejam aqui mais altas em
face da corrida inflacionária que a produção aurífera acarreta na economia interna
e no exterior, como da separação espacial entre a produção de subsistência e a
reprodução da força de trabalho.
O ouro impele o homem do litoral ou do exterior a migrar para a hinterlândia,
num arranco brusco. Face o que os núcleos mineiros vão surgindo nessa marcha
em locais muito distanciados dos pontos de partida das correntes migratórias, não
havendo então contiguidade na expansão. No espaço intermediário, que se vai
formando entre os centros mineiros, formam-se extensos desertos, que só raras e
longas vias de comunicação atravessam.
O nível das forças produtivas empregadas é muito baixo, razão porque os ho­
mens raramente vão além dos depósitos dç^ superfície, dilatando-se sempre a ex­
tensão do espaço. O sítio, em conjunto, não é favorável à agropecuária surgindo
com isso especialização na atividade da mineração. Ao relevo acidentado soma-se
a pobreza dos solos. Por isso, as áreas de abastecimento alimentício crescem fora
do espaço mineiro, como ao longo das rotas, gerando-se grave especulação dos
preços dos alimentos. Tal situação amplia-se quando a mineração entra em brusco
declínio a partir de meados do século.
Todavia, a marcha da expansão do espaço pastoril e da lavoura de subsistência
que vai se dando pelos planaltos mineiro e central aos poucos vai interligando essa
rede dispersa de núcleos da mineração, o amplo tecido do espaço pastoril então
formado servindo de interior onde se imbrica nessas três modalidades de espaço
(pastoril, agrícola de subsistência e mineiro) a tessitura de unidade necessária, so­
bretudo dada pela demanda de alimentos pelos centros urbanos mineiros.
Mas aos poucos também o ciclo mineiro vai se esgotando. Seja pela forma
como tecnicamente ocorre. E seja por sua conformidade geológica. Na ordena­
ção do espaço mineiro atuam duas formas sociais básicas de produção: a lavra
e a faiscação. A lavra é realizada por grandes estabelecimentos, que são os que
mais se beneficiam da repartição das datas, enquanto a faiscação é realizada por
pequenos e médios estabelecimentos, geralmente baseados em pequeno número
de escravos (abaixo de 12). Como as datas são distribuídas em função do número de
escravos de propriedade de cada minerador, cabe à faiscação um papel geralmen­
te complementar.
plantation e formação espacial 79

Observa Prado Jr. que a proliferação da faiscação é fator indicativo da deca­


dência da extração. Uma vez que o progressivo esgotamento da extração aurífera
compartimenta a área de mineração em três porções distintas: 1) o veio - parte
do leito dos rios, nas quais aloja-se a maior riqueza aurífera e que constitue então
o objeto principal e inicial da mineração; 2) o tabuleiro - parte das margens dos
rios, ainda concentradora de relativa riqueza aurífera, para as quais os mineiros
acorrem quando o ouro começa a escassear nos veios; 3) a grupiara - parte de meia
encosta, na qual já predomina a faiscação.

O ESPAÇO EXTRATIVO-VEGETAL AMAZÔNICO


Não chega a haver, propriamente, no vale amazônico, um espaço geográfico, no
sentido que temos dado neste trabalho de um espaço produzido.
80 A FORMAÇÃO ESPACIAL BRASILEIRA

Este, é um espaço de não intervenção do homem sobre o meio físico, um es­


paço de uso coletor da natureza e não um espaço de transformação. A ocupação
do solo da floresta não tem um caráter permanente. Organiza-se a cada vez que o
homem intervém na natureza, para logo desfazer-se depois de terminado o perío­
do extrativo. Daí tratar-se de uma organização do espaço primitiva, rudimentar e
momentânea.
Não chega a constituir-se assim uma sociedade estável e organizada nesse espa­
ço extrativista. Exceto no delta do rio Amazonas, no qual se organiza a agropecuá­
ria. E em pontos localizados ao longo do eixo viário fluvial. No delta concentram-se
dois terços da população amazônica a altura.
Na observação de Prado Jr., a unidade produtora tem aí uma natureza “móvel
no espaço e instável no tempo”, por que a ocupação não tem por base a proprieda­
de rural fixa. A extração não se faz em áreas permanentes e de exploração exclu­
siva. Os coletores têm a liberdade de se dirigir para onde melhor lhes convenha. A
floresta é uma espécie de propriedade comum.
Dos núcleos de povoamento situados às margens dos grandes rios, saem expe­
dições intermitentes para a coleta das drogas, retornando-se após. A extração se
fazendo, portanto, à base de expedições.

Aspectos essenciais do arranjo espacial colonial

Algumas inferências podem ser aqui tiradas, no que respeita aos processos de or­
ganização do espaço, que estudamos sumariamente:

I a) A Forma, o ritmo e o volume da acumulação constituem o motor real da dinâ­


mica do espaço.
Vimos que as relações de classes, altamente favoráveis ao capital comercial,
tecem uma rede de articulações que vai da apropriação do sobretrabalho escravo à
acumulação primitiva europeia. Esta é a forma geral das relações sociais de classes.
Rege-as a partilha do sobretrabalho.

2a) O Aspecto locacional é função do volume de lucros que o montante da acumu­


lação propicia.
É interessante tomarmos aqui o modo como um cronista da época, autor anôni­
mo do Roteiro do Maranhão a Goiás, obra de 1815, citado por Prado Jr., vê a dinâ­
mica locacional das formas de produção: “O povoador, ou seja o agricultor ou seja o
Plantation e form ação espadai 81

comerciante, de nenhuma maneira estenderá povoamento, cultura e comércio para


o interior do país, indo se estabelecer naqueles lugares dos quais, sendo conduzidas
as produções aos portos (de exportação), não possam com o valor que eles tiverem,
pagar tanto o trabalho da aquisição (produção) como as despesas das conduções
e transportes. Daqui se segue que o valor que tiverem nos portos respectivos as
produções será a regra que fixa o limite da extensão da povoação, cultura e comér­
cio para o interior do país” (Apud Prado Jr., 1961). Sendo assim, não é o custo de
transporte o determinante locacional, mas antes o montante dos lucros.
Ora, sabemos que o volume de lucros é função do processo da acumulação.
Vistos em sua totalidade, os aspectos locacionais da formação espacial colonial
são determinados, assim, em última instância, pela forma, ritmo e volume da acu­
mulação, as quais dependem das formas de relações entre classes. Somente dentro
deste quadro é que se pode ajuizar da participação dos transportes no montante
dos lucros, e, por esta via, nos aspectos locacionais do espaço.
Eis o que explica e interiorização da produção agrária a partir de findado o
século XVIII, sobretudo com o café, quando o salto qualitativo na forma das forças
produtivas e das relações de produção abrirá as portas à expansão propriamente
capitalista da acumulação. Antes disso, a ocupação “arranha a costa como caran­
guejo”. A própria expansão do espaço pastoril para o interior só se verifica nos
momentos permitidos pelo volume atingido pela animulação, seja os iniciais com
a agroindústria canavieira e seja o consecutivo com a mineração.

3a) As alterações no ritmo e volume da acumulação reproduzem-se na forma de


reordenação do espaço.
Quando o ciclo mineiro torna-se o polo da acumulação na colônia, o espaço re­
define sua estrutura. Mas tão logo encerra-se o ciclo mineiro e a plantation recobra
sua antiga posição, a dinâmica espacial anterior reaparece.

4a) A inserção na divisão internacional de trabalho encerra o quadro mais geral


da formação do espaço colonial, mas são as determinações internas as dominantes.
É assim, que o renascimento do reinado da grande lavoura resulta de fortes
interferências sobre a divisão internacional de trabalho por parte de uma série de
acontecimentos que têm como fundo a emergência do capitalismo industrial inglês
e europeu de noroeste, particularmente o francês. O conflito a que se lançam estas
duas nações em tomo do controle dos mercados europeus reflete-se nas colônias.
No Brasil, primeiramente pelos benefícios que a economia colonial extrai da “neu­
tralidade” assumida pela Coroa portuguesa perante o conflito e que lhe dá acesso
82 A FORMAÇÃO ESPACIAL BRASILEIRA

aos mercados de ambos os lados. Em segundo lugar, porque o conflito reflete-se


nas colônias francesas e inglesas das Antilhas sob a forma de colapso na produção-
-exportação açucareira.
Então, não só a monocultura canavieira recobre seus melhores dias, como surge
à cena a lavoura algodoeira, esta em decorrência do desenvolvimento da indústria
têxtil no exterior, além da lavoura canavieira no norte do Estado do Rio e no pla­
nalto central paulista.

A estrutura global da organização socioespacial

Um paralelo sumário revela os traços comuns e os distintivos da estrutura global


da formação socioespacial já então existente.
Um traço comum é a relação básica do modo escravista-colonial de produção,
o trabalho escravo. Patente na plantation e menos evidente na pecuária como na
mineração, porém basilar no conjunto. É fato que a força da classe dominante
' !*
não vem da terra, tanto na economia agrícola quanto mineira, mas do número
de escravos. A concessão de terras a isto está condicionada, como igualmente a
presença do plantacionista e do pecuarista nos órgãos do poder. Na pecuária, onde
encontramos a coexistência progressivamente pendente a favor da introdução do
trabalho livre, a presença do trabalho escravo (negro e índio) se prolonga por
longo período e sua substituição é desigual no tempo e no espaço. O peso do
trabalho escravo nas fazendas de gado deriva da fraca rentabilidade do empreen­
dimento da pecuária em contraste com o preço elevado do escravo. Na mineração,
por sua vez, encontramos a presença do escravo na própria sistemática de doação
das datas: como o quantitativo exigido é o mínimo, o acesso à terra mostra-se mais
universal nas áreas mineiras, em relação às condições de acesso à terra nas áreas
de plantation. Também por isso, é maior a estratificação social no espaço mineiro.
Mas como o volume de escravos distribui-se desigualmente, os proprietários mais
“ricos” em número adquirem maior extensão de datas de terra. Razão porque mais
de metade das lavras auríferas encontra-se sob o controle de menos de um quinto de
proprietários de escravos.
Um outro traço distintivo revela-se do exposto: o montante dos investimen­
tos requerido por setor de produção, comparativamente a sua rentabilidade. Nas
plantations o montante dos investimentos é altamente elevado, em comparação
com qualquer outro setor produtivo. Em particular pelas implicações da escala de
produção e da elaboração industrial dos engenhos. Aqui o dispêndio com a força
Plantation eform acao espacial 83

de trabalho escravo situa-se entre 25 a 30% do dispêndio global, recuperável num


tempo de dois a três anos, indicando isto a altíssima rentabilidade do empreendi­
mento. Já vimos que em contraste na pecuária há baixa rentabilidade, implicando
em baixo investimento, sobretudo para aquisição de escravos negros. Mas na mi­
neração a rentabilidade cobre largamente os investimentos, não necessariamente
elevados.
Em todos esses casos, contudo, o balanço investimento-rentabilidade é positi­
vo, face as condições excepcionais e comuns de reprodução da força de trabalho,
face a presença estrutural da policultura de subsistência dominial, praticada pelos
próprios escravos ou agregados internamente às unidades de produção dominante.
Nas plantations, por exemplo, o custo do escravo quase se resume aos gastos de sua
aquisição. As formas combinadas de “renda natural” - o que se produz domestica­
mente para uso e consumo doméstico, em que se incluem os alimentos - equivalem
aqui em média a 30% da renda líquida total, oscilando entre 10% nas conjunturas
de alta e 50% nas conjunturas de baixa da exportação açucareira.

y4s inter-relações econômicas de conjunto

Não se pode afirmar, por insuficiência de maiores elementos, que o funcionamento


de cada setor reflita completa reciprocidade de influência de conjunto. Até porque
sendo as relações de natureza desigual, umas são mais evidenciáveis que outras.
Os registros são precários, mesmo para as de natureza econômica. As relações no
geral são mais nítidas ao redor de três polos: as áreas das plantations açucareiras,
as áreas mineiras e os centros urbanos litorâneos. Estes últimos estão em vínculo
permanente com os dois primeiros, entre os quais as ligações praticamente são ine­
xistentes. Permeiam os três, entretanto, os polos de produção de subsistência, seja
a fazenda de gado (a grande fazenda de subsistência, no dizer de Prado Jr.) e seja a
pequena lavoura de subsistência autônoma.
Já se viu a articulação da pequena produção policultora com as áreas mineiras,
de plantation e urbanas. E sabe-se das implicações dessa relação ampla para os cen­
tros urbanos. São inúmeras as reclamações partidas das cidades litorâneas quando
das altas de exportação açucareira, período em que a demanda alimentar pelas
plantations cria problemas graves ao suprimento urbano. Fato que vai amplificar-
-se com o advento da mineração e seus centros urbanos. Tal o fato que alimenta,
à retaguarda das grandes plantações e centros de mineração, a proliferação de
sitiantes (pequenos proprietários de terra) e posseiros (ocupantes). E será o estí­
84 A FORMAÇÃO ESPACIAL BRASILEIRA

mulo verdadeiro da generalizada expansão das fazendas de gado pelos sertões da


colônia que se dá no curto período de sete décadas de mineração.
São sobretudo fortes essas articulações da pecuária. São frequentes ao longo do
século XVIII as “bocas do sertão”, áreas de relação de mercado entre pecuaristas e
plantacionistas nos planos de interseção do interior pastoril e do litoral agrícola -
muitas das cidades do agreste nordestino têm aí sua origem - onde se multiplicam
as feiras de gado. As rotas de gado são frequentemente referidas pelos clássicos, à
exemplo de Capistrano de Abreu. É Gorender quem informa: “A pecuária distin­
guiu-se por formar uma espécie de tecido cartilaginoso do sistema econômico esta­
belecido na colônia. Enquanto as regiões plantacionistas mantinham laços frouxos
entre si, pois se orientavam de modo essencial para o comércio externo, a pecuá­
ria resultava de uma divisão social de trabalho de natureza interna que obrigava
a manter vínculos consistentes com as diversas regiões plantacionistas e com os
núcleos urbanos”. E, citando Koster, informa serem muitas as fazendas que aquele
conheceu no Nordeste, do Recife a São Luis, cujos proprietários são pecuaristas e
igualmente plantadores de cana. Mas os laços da fazenda de gado e de lavoura de
exportação dão-se ainda com a produção do fumo, ligados ao fornecimento do cou­
ro para enfardamento de rolos, enquanto moeda de troca do comércio de escravos
nas praças da África.
Para além da simbiose, troca-se escravos, sal e manufaturas, aqui os centros
urbanos entrando frequentemente no desempenhando da intermediação. E não só
de mercadorias importadas, manufaturas especialmente. E embora tenha seu pe­
ríodo áureo na mineração, as trocas internas de escravos são igualmente intensas.
Daí a presença não menos frequente dos atravessadores. Isto é, “compradores
itinerantes de safras por antecipação” que procuram os pequenos agricultores in
loco, diz Gorender, e “em troca de adiantamentos onerosos, adquiriam o direito
prévio à colheita, no todo ou em parte”.
A produção de subsistência, seja da pecuária e seja da policultura, esta em re­
gra tarefa de pequeno produtor, é, todavia, a tela de fundo que tudo viabiliza, da
plantation à mineração, ao propiciar incorporação máxima do plantei escravo ao
processo produtivo. Em particular nas conjunturas de alta da exportação açucarei­
ra, quando a maximização do emprego de escravos e da terra atinje seu pique nas
plantations. A produção de subsistência cumprindo uma função anticrise. Citando
Taunay, diz Gorender: “O cultivo e o preparo de mantimentos, segundo cálculo da
maioria dos fazendeiros, absorviam um quinto da mão de obra total disponível”.
Sob a alta, há um redução drástica, reconvertendo-se a alocação. Exemplificando
com a alta de 1790-1820, correspondente ao período da Revolução Francesa e
Plantation e formação espacial 85

Guerras Napoleônicas, relata: “Sob o estímulo da alta dos preços no mercado mun­
dial, expandiu-se sem demora o setor da economia mercantil, crescendo a produ­
ção de açúcar, de tabaco e de algodão. Imediato foi o reflexo sobre a economia na­
tural das plantagens: contraiu-se a produção de gêneros alimentícios de primeira
necessidade e os plantadores passaram a disputá-los com as populações urbanas
no restrito mercado da colônia. A consequência só podia ser a escassez e a cares­
tia sentida de maneira atroz pelas populações urbanas, enquanto aos plantadores,
recheados de lucros em afluxo pouco importava o preço mais caro dos gêneros
alimentícios, que antes produziam e agora precisavam comprar”.
A exata medida da importância do processo dá-nos o Autor Anônimo, referido,
quando afirma, pondo em dúvida, diz Gorender, a racionalidade do sistema: “Que
importa receber-se em uma mão o alto preço do açúcar, do tabaco e do algodão, se
com a outra entregam o equivalente de uma arroba de açúcar, de duas de tabaco e
de uma de algodão por um alqueire de farinha para o sustento próprio, da família
e da escravatura?”. A rentabilidade da alta estabelece a prioridade da alocação da
mão de obra, momento em que o preço elevado de investimento encontra opor­
tunidade de rápido retomo. Fato que os números evidenciam plenamente: “A ne­
cessidade de comprar escravos implica uma redução de 50% das possibilidades de
acumulação”. A compra de escravos “se paga mediante parte dos bens exportados”,
representando, em 1798, na Bahia, segundo Vilhena, citado por Gorendei, 24%
do total da exportação e 23% do total da importação o preço global dos escravos
importados.

As inter-relações espaciais e o Estado-nação

O declínio da mineração marca o começo do declínio da colônia. Marcando um


período de tensões constantes e o prenúncio da passagem à formação espacial
independente.
As contradições estão assim agudas nos fins do século XVIII. Dos 3 milhões de
habitantes da colônia um terço é de escravos, entre os quais fermentam as rebeli­
ões. O pico da mineração terminara e esta vive seu final. E o reânimo simultâneo
que a conjuntura externa traz à economia açucareira é insuficiente para alterar o
processo em curso.
Antepõem-se colonos e índios, colonos e missionários, trabalho livre e trabalho
escravo, senhores e escravos, lavradores de partido e senhores de engenho, senho­
res de escravos e mercadores-banqueiros, classe dominante colonial e classe do-
86 A FORMAÇÃO ESPACIAL BRASILEIRA

minante metropolitana, contribuintes e fisco metropolitano, expansão econômica


e monopólio do comercio, centralização e segregação político-administrativa. No
entrechoque, se arrolam índios, sitiantes, posseiros, trabalhadores livres, escra­
vos, senhores de escravos, burguesia mercantil-banqueira, ’’classe média” (padres,
militares, letrados), no plano interno; burguesia industrial, burguesia mercantil,
aristocratas feudais, no plano mundial.
Arrumando o quadro dos conflitos no nível da composição de forças, Sodré es­
calona duas séries de contradição: Ia) a que antepõe classe dominante colonial (“os
proprietários coloniais dos meios de produção”) e classe dominante metropolitana
(“os que dominam a circulação”); e 2a) a que antepõe classe dominante colonial
e demais classes e frações da colônia (”os não-proprietárias dos meios de produ­
ção”) (Sodré, 1963). A contradição principal é aquela existente no seio das classes
dominantes da colônia e da metrópole, nela embutindo-se a segunda, incluindo-
-se a que está na própria base da estrutura do sistema colonial, entre escravos e
senhores. Na expressão do autor: “A contradição principal era a que separava a
classe dominante colonial da,Metrópole que detinha os lucros do monopólio do
comércio”. Todavia, a classe dominante colonial conduz esta contradição principal
de olhos presos na segunda, atenta aos conflitos que a antepõem às outras classes e
frações de classes da colônia, em particular em relação aos escravos. Dessa forma,
a natureza da contradição principal delineia o processo global das lutas internas,
uma vez que o que está historicamente em questão é o monopólio do comércio,
mais que a vigência do regime do trabalho escravo. O desfecho da crise pressupõe,
pois, primeiramente seja ela superada: “Permanecendo principal, esta contradição
tornar-se-ia a base de um acordo entre as forças externas e as forças internas in­
teressadas na eliminação do regime de monopólio. Permanecendo secundária, a
contradição referente ao tráfico negreiro e ao trabalho escravo prolongar-se-ia por
quase todo o século XIX, gerando sucessivos atritos entre as forças internas e as
forças externas”. Há antes de mais nada que romper com a metrópole. Dado o fato
de que “a Metrópole não tinha capacidade para assegurar mercados à produção
colonial, e menos ainda para assegurar os preços. As flutuações debilitam a classe
dominante colonial, mas debilitam principalmente a posição da Metrópole perante
aquela”. Uma situação cujo resultado pesa fortemente sobre a economia da colônia,
uma vez que “a Metrópole [...] onerava a produção colonial, pelas taxas impostas
ao açúcar e que se refletiam negativamente no preço, dificultando a concorrência;
pela invasão total da área privativa, no caso do ouro; pela tributação lançada sobre
as importações. Esta, em particular, pesava sobre toda a população consumidora”.
O que significa, em suma, substituir o Estado colonial português pelo Estado-nação.
Plantation e form ação espacial 87

Faz parte desse processo a própria ação da Coroa, transferindo a sede do Estado
para o território da colônia. Com o que faz-se a máquina do Estado colonial por­
tuguês vir a espacialmente confundir-se com a própria estrutura territorial da
colônia, numa consequência inusitada. Parte por suas próprias características de
aparelho central e parte pelas necessidades de dar maior eficácia à tributação,
essa condição de sede do Estado implicará em amplo alargamento e reestrutura­
ção administrativa (em particular pelos aparatos militar, judiciário e tributário)
da colônia, mudando-a de status completamente. Em consequência, dirá Kaplan,
reforçam-se ”...o tamanho e o peso específico dos grupos urbanos já incrementados
pelo ciclo mineiro e suas repercussões” (Kaplan, 1974).
Sendo assim, todos os elementos constitutivos da formação espacial brasileira
encontram-se já reunidos. Fecha-se o longo período de três séculos de gestação. A
instalação do aparelho de Estado metropolitano apenas irá dar a conformação de
um fato: a sua passagem ao Estado-nação do Brasil.

Estrutura de Classes e totalidade: a dimensão real do real

As determinações internas encontram nas externas o ponto de apoio de eclosão


formal de um processo historicamente elaborado ao longo do século XVIII. Por isso,
a quebra dos laços coloniais que virá em breve não conduzirá à quebra da unidade
territorial, a exemplo do que se verá para o resto do continente. A unidade espacial,
ou seja, a rede articulada de relações internas, em particular as de natureza eco­
nômica, ao redor das áreas de plantation sobretudo, conferirá e reafirmará na uni­
dade territorial a integralidade espacial existente. A constatação transparece neste
texto de Sodré: ’’Entre a conspiração de Tiradentes e o grito do Ipiranga decorreu
pouco mais de trinta anos: pouco mais de vinte anos, entre a Inconfidência Baiana
e a autonomia; um lustro, apenas, entre a rebelião pernambucana e a separação”.
Será oportuno advertir-se que a atuação das relações de natureza econômica deve
entender-se no plano da manifestação superestrutural do espaço, mais que no plano
infraestrutural propriamente. A unidade espacial que está na base da constituição
do Estado-nação governante de sua inteireza territorial quando da Independência,
define-se pelo seu significado concreto: o de uma formação socioespacial.
A dificuldade de análise dos processos reais por parte dos geógrafos deve-se a
raramente se elevarem para além do empírico-territorial, consequente do limitado
poder explicativo da aparelhagem conceituai com que trabalham. Por isto, sua con­
tribuição aos demais cientistas sociais é por estes encarada como precária. Se por
88 A FORMAÇÃO ESPACIAL BRASILEIRA

um lado o geógrafo privilegia o todo - afinal, a geografia é uma “ciência de síntese”


por outro faz toda abstração de sua real concretude. Embora o faça em nome do
concreto. Condicionadas pelo modo como os geógrafos vêm e produzem a geogra­
fia, os demais cientistas sociais ao fim também o reproduzem e difundem, limitan­
do com isto também seu próprio poder de apreensão dos movimentos da totalidade
real. Dada pelo território, mas dentro do arcabouço espacial que o determina. É
assim, que, referindo-se às relações interespaciais da colônia, afirma Sodré:

O Brasil era dividido em áreas praticamente isoladas umas das outras.

Para mais adiante contradizer-se:

Demais, aqui, nenhuma área tinha ascendência absoluta sobre as outras, enquanto
a classe dominante exercia ascendência absoluta sobre as outras classes ou cama­
das sociais”. E mais adiante: “Parece ocorrer uma luta entre o poder central e as
províncias. Ocorre, na verdade, uma luta dentro da classe dominante, motivada
pelos seus antagonismos e contradições, e em que reponta, por vezes com a clare­
za singular da Cabanagem, uma luta de classes. Quando ocorrem tais lutas, são
ligadas ao quadro provincial: se acontece em zona açucareira, parece tratar-se da
Província de Pernambuco; se ocorre em *onapasloi il, paieee tratar-se da Provinda
do Rio Grande do Sul; se acontece em área econômica coletora, parece tratar-se da
Província do Pará. As províncias são entretanto, meras abstrações, que dão a idéia
do geral, de sua moldura física. O essencial não está nas províncias, mas nas clas­
ses, em conseqüência do modo local de produção, de suas peculiaridades. Em todas
as províncias as forças e as opiniões se dividem; quando o poder central intervém,
encontra sempre apoio em uma das facções provinciais. Só isto bastaria para provar
que a apresentação do quadro como de luta entre província e o centro é falsa, des­
figura a realidade e mascara os verdadeiros traços do problema.

Belíssima síntese geográfica.


Igual exemplo de lúcida pressuposição, colocada no limiar de uma possível e
extraordinária revolução no pensamento geográfico - porque na verdade no da
compreensão do real, parâmetro único de valor de toda ciência -, encontramos em
Kaplan, quando, a propósito da estratégia da dominação metropolitana, diz:

Através dos processos analisados delineia-se uma dialética que une tendências à
centralização e à descentralização. Na verdade, o principal problema político da
plantation e form ação espacial 89

Coroa portuguesa no Brasil colonial é a conciliação do sistema imposto e do prin­


cípio de unidade territorial com a propensão à desintegração regional e local. Por
um lado, pretende-se manter no Brasil uma forte centralização política com eixo
na metrópole, visando a manutenção do Pacto Colonial. Utiliza-se com este fim a
nomeação e hierarquização verticais dos funcionários, dotados de fortes poderes, e
o grau reduzido ou nulo de participação dos grupos locais nos mecanismos de deci­
são. De início as possibilidades de autonomia das regiões e dos centros urbanos são
rebaixadas ao mínimo. Impede-se o contato direto entre estes para que se cristali­
zem solidariedades que possam gerar um sentimento nacional e uma frente comum
contra o poder colonial, finalizando uma reivindicação emancipadora. Para se opor
ao isolamento excessivo, prejudicial à centralização e controle, a administração
colonial abre estradas entre o interior e as capitais da costa, e no interior de cada
capitania, mas impede a criação de uma rede inter-regional de transportes e co­
municações, não melhora nem permite que se melhorem os sistemas de ligação das
capitanias entre si. A simples construção de estradas inter regionais por iniciativa
dos colonos ê severamente castigada.

Isto quando anteriormente dissera:

A atividade mineradora estimula direta ou mdiretamente a expansao demográjicu


e o povoamento, a exploração geral do território, o progresso dos transportes e das
comunicações, a forte concentração de escravos. Por sua alta rentabilidade e por
suas características tecno-econômicas, favorece uma especialização mais avançada,
o desenvolvimento da agricultura alimentícia, da criação de gado e do artesanato
(em Minas Gerais, São Paulo e no sul em geral), a maioi divisão do trabalho entre
as regiões, a expansão do mercado e do comércio internos, o surgimento ou incre­
mento de grupos sociais intermediários.

E ainda:

As municipalidades bandeirantes são capazes de reunir fundos suficientes para


construir uma rede de estradas que vai criando e fortalecendo canais de comuni­
cação e solidariedade locais, regionais e inter-regionais. Tudo isto vai entrar em
conflito com a Coroa e o sistema colonial”.

Numa espécie de tendência de conflito entre domínio de território e arcabouço


global de espaço, deste duplo aspecto, por onde inclusive se insinua a estratégia da
90 A FORMAÇÃO ESPACIAL BRASILEIRA

dominação metropolitana, redunda um quadro tenso de coexistência entre unida­


de e localismo. De um lado a centralização, que concorre para o desenvolvimento
da globalização das relações. De outro lado a segregação, que concorre para o
florescimento do localismo. Não deixaria de prevalecer a unidade espacial sobre as
propendências territoriais, uma vez que a contradição centralização-segregação é
formal. Mesmo que a “tradição localista” permaneça viva ainda hoje.
O fato é que a fração da classe dominante colonial que empolgará a máquina do
Estado institucionalizará a hegemonia de que já a investira as interações espaciais
dá plantation. O curto e tumultuado período de Regência provavelmente demons­
tre a necessidade de ajuste na formação socioespacial em ascendência, seus termos
estruturais da totalidade: enquanto a base econômica ainda está em Pernambuco-
Bahia (basta consultarmos o rol das exportações e origem), a sede do Estado já
está no Rio de Janeiro. Só com o surgimento da cafeicultura infra e superestrutura
combinarão espacialmente seus focos, superando-se a fase da Regência.

* tf
O segredo da formação socioespacial

A longa transcrição abaixo, de Sodré, um historiador, sintetiza a determinação do


espaço sobre o tempo de que estamos falando:

Na fase que precede a separação entre o Brasil e Portugal com o Príncipe D. João
e sua Corte instalados no Rio de Janeiro com a passageira euforia decorrente das
condições do bloqueio napoleônico, a zona economicamente próspera, na extensão
geográfica brasileira, é a do Nordeste. O açúcar retoma impulso na exportação, e
é acompanhado pelo algodão, pelo arroz e, em situação ainda sem destaque, pelo
café. Isto confere à zona nordestina e suas adjacências uma inequívoca preponde­
rância. Significa que afração mais importante da classe dominante é a dos senhores
de engenho. Não há, desde que a mineração definiu seu declínio, coincidência entre
o centro de gravidade política e o centro de gravidade econômico, nafase final do
período de subordinação à Metrópole. Mas não há, também, como já foi assinalado,
supremacia absoluta de uma classe sobre as demais. A classe dominante, empresá­
ria da autonomia, está distribuída pelo território e pelas atividades: porta-se como
tal onde quer que esteja, seja qual for a atividade que explore. Tem, entretanto,
vista de perto, divergências que apropria autonomia vai agravar [...].
Quando esta contradição - que é apenas uma entre muitas -, ocorre, ocorre
também o surto da lavoura do café, que vai alterar o quadro brasileiro [...].
plantation e formação espacial 91

Mas [...] a criação ou o desenvolvimento de uma atividade agrícola visando a ex­


portação dependia da disponibilidade de terras. Isto excluía, desde logo, as zonas
já utilizadas para este fim, em que a apropriação se expandira no espaço e se con­
centrara socialmente e para cujo aumento de produção não existiam as condições
mínimas, particularmente a colocação no mercado externo. Muito ao contrário, o
açúcar, que dominava tais zonas, vinha sofrendo a concorrência antilhana e suas
perspectivas eram antes difíceis do que promissoras. Era, pois, imprescindível: - o
utilizar zonas novas; - utilizar um gênero novo (Sodré, 1963).

A estrutura de classes, atravessando a totalidade demográfico-económica em


toda sua extensão, conduz suas relações a um plano maior que aquele que vemos
no arranjo espacial. Rumo a uma conjuntura jurídico-política e ideológico-cultural,
que, sobredeterminando o económico-demográfico, amplia enormemente a dimen­
são e o significado do “concreto visível”. Isto precisamente é o que a análise espa­
cial confirma para o caso brasileiro, ontem como hoje. No espaço colonial, a “tra­
ma invisível” do jurídico-político tece uma totalidade supra que governa a empiria
do arranjo territorial demográfico-económico do visível para além de si mesmo: a
totalidade da formação socioespacial.
A onipresença histórica da Coroa, tecendo supraterritorialmente o arcabouço ju­
rídico-político do espaço colonial, propicia, mesmo sob suas determinações em con­
trário, face à sujeição dos plantacionistas à acumulação externa de capital, a conju­
gação global das relações intracoloniais. A produção do sobretrabalho plantacionista,
ao incorporar as diferentes formas sociais de produção do espaço colonial, concerta
a hegemonia dos plantacionistas sobre o espaço e a sociedade coloniais. Sob a he­
gemonia plantacionista configuram-se espaço e sociedade como totalidade. E assim
as relações de classes, globalizadas, determinam um espaço unitário. Cujo efeito é a
sobredeterminação unitária do rodo. Por isto, para o nascimento da “economia cafe-
eira” não servirá qualquer zona nova. O café “só dará certo” nas adjacências do Rio
de Janeiro. Evidentemente que não por determinações económico-demográficas...

A sobrevida plantacionista

O fim do ciclo da mineração e o retorno à economia de agroexportação através o


ciclo do café, se de um lado devolve a colônia aos processos e formas de arranjo do
plantacionismo, de outro deixa exposto todavia seu claro esgotamento como base
sistêmica.
92 A FORMAÇÃO ESPACIAL BRASILEIRA

Algumas mudanças coexistem com algumas permanências, indicando uma


transição. Do ponto de vista territorial, o Brasil já se encontra definido desde o
Tratado de Madrid, de 1750. Do ponto de vista político, o Estado nacional existe, ao
menos formalmente, desde 1822. Mas do ponto de vista da organização do espaço,
a nação já não arranha a costa como caranguejo. Fato contraditório, se o Estado
nacional é já uma realidade, o traço nacional do espaço deverá aguardar ainda
algum tempo para acontecer.
Os grandes ciclos do espaço molecular da etapa colonial vão ser a base da orga­
nização do espaço brasileiro ainda até a metade do século seguinte, enriquecidos e
prosseguidos pelos ciclos do período monárquico e republicano, a começar pelo ciclo
do café, nos anos 1830, e se completar com o ciclo da borracha, em 1870. Entretanto,
na década de 1950 este modelo de história se fecha, findando a longa etapa de uma
formação espacial fundada no modo de produção agromercantil-exportador e abrin­
do para uma etapa da arrancada industrial cujo marco de arranco é essa década.
Entre 1830 e 1950, o Brasil vive ainda, assim, por mais cerca de cem anos, um
longo período de ciclos de sobrevida do plantacionismo, mas a organização do
espaço dá seus primeiros ensaios de mudanças rumo a uma sociedade industrial
moderna. É, por isso, um espaço ao mesmo tempo molecular e combinado em seu
ritmo de desenvolvimento: algumas áreas se transformam rapidamente - a exem­
plo do Sudeste cafeeiro, da Amazônia seringueira c do Sul colonial imigrante -,
outras estagnam - como o Nordeste canavieiro - e outras ainda mergulham numa
fase de autarcia - como a hinterlândia pastoril - num quadro desigual-combinado
de mudanças até os anos 1950.
Até os anos 1950 manter-se-á a tradição da localização da lavoura em áreas
de florestas da franja costeira, da pecuária em áreas de vegetação aberta da hin
terlândia e do extrativismo vegetal nas áreas florestais da fronteira norte, com o
entremeio de uma imensa gama de formas sociais não colonial escravistas, embu­
tidas nos poros desses espaços - a exemplo das comunidades indígenas e das comu­
nidades camponesas independentes -, até que o avanço da urbano-industrialização
altera estes termos e imprime ao todo uma nova dinâmica.

Os arranjos da sobrevida

Cinco macroformas compõem o quadro do arranjo do espaço no século XIX: o espa­


ço cafeeiro, o espaço seringueiro, o espaço canavieiro-usineiro, o espaço colonial-
-imigrante e o espaço pastoril.
: plantation e form ação espacial 93

O ciclo do café é o marco dessa fase de sobrevida e transformação,da economia


agromercantil-exportadora, caracterizada por uma mudança no modo de produção,
na forma da configuração do espaço e na estrutura do Estado que ocorre, sobretudo,
no espaço cafeeiro. O ciclo começa no início do século, nas cercanias da cidade do
Rio de Janeiro, ocupando inicialmente a área dos maciços do espaço carioca, de
onde avança para o restante do atual Estado do Rio de Janeiro, até chegar ao vale
do rio Paraíba do Sul. Tomando o vale como eixo, expande-se rumo ao Espírito
Santo (sul), Minas Gerais (sul e mata) e São Paulo (leste e norte), onde por fim forma
um amplo domínio de espaço que instala e consolida uma sociedade escravocrata
em tudo parecida com a escravista do Nordeste açucareiro (Milliet, 1982). A terra é
retaliada em enormes latifúndios, ocupados pela monocultura do café e movimen­
tada pelo trabalho do escravo importado do Nordeste canavieiro em decadência.
Aí, a plantation cafeeira origina uma paisagem semelhante à desenvolvida naquela
área, tendo a fazenda do café como núcleo organizador. Cada fazenda é formada
pela casa senhorial, pela senzala, pelas instalações do beneficiamento do café
e pela coabitação da monocultura do café e da policultura de subsistência levadas
pelo escravo e pela população semilivre. Na franja das fazendas, em terras de mata
ainda não ocupadas pela grande plantação, mas consuetudinariamente para ela
reservadas, localiza-se a policultura de subsistência independente, organizada por
uma população de posseiros A rasa senhorial, posta numa cota alta do terreno, do­
mina todo o visual da paisagem, reafirmando o poder do senhor sobre escravos, ter­
ras e cafezais. Daí sai o domínio que a elite cafeeira estende até o poder do Estado,
simbolicamente rodeado pelas grandes fazendas senhoriais do café. Por volta
de 1870 o café chega, em sua expansão contínua, à região dos solos de terra roxa de
Ribeirão Preto, centro-norte de São Paulo, aí iniciando a fase capitalista num avan­
ço sobre novas áreas que não para. Entre 1870 e 1930, o café domina todo o centro
e oeste do planalto paulista, e continua a se expandir até chegar ao norte do Paraná
nos anos 1930. É no período paulista que a cafeicultura vai marcar e subsidiar todo
o processo das transformações do período da transição: a Abolição da Escravatura,
a Proclamação da República e a arrancada da industrialização. O espaço cafeeiro se
sobrepõe, assim, a duas áreas de espaço preexistentes: o espaço fluminense-mineiro,
originado pelo ciclo da mineração, incluindo a transferência da capital de Salvador
para o Rio de Janeiro, e o espaço paulista, originado pelo ciclo do bandeirantismo.
E que o café reorganiza radicalmente, a partir de dois distintos momentos: o mo­
mento escravocrata, que se desenvolve na área fluminense-mineira, com eixo no
vale do rio Paraíba, e o momento capitalista, que se desenvolve na área paulista,
com eixo nos grandes interflúvios do planalto ocidental, coincidindo e subsidiando
94 A FORMAÇÃO ESPACIAL BRASILEIRA

os dois momentos gerais da transição da sociedade brasileira no século. É em São


Paulo que vai se dar o auge do ciclo do café, pela combinação de um conjunto de
fatores, entre eles o solo da terra roxa (de alta renda diferencial de fertilidade e lo­
calização), os primeiros avanços mundiais da indústria moderna (responsáveis pela
generalização do uso do transporte ferroviário no espaço da circulação brasileira),
a introdução do trabalho assalariado (e a maior produtividade que ele conferiu ao
processo econômico) e o surgimento do sistema de crédito (com o aparecimento das
primeiras instituições bancárias privadas na forma das Casas Comissárias). Mas são
motores principais desse dinamismo o regime do colonato, a rápida disseminação
da rede da circulação ferroviária e a especulação imobiliária que tem por trás o
interesse do capital cafeeiro, um complexo de capitais que reúne o interesse do
grande cafeicultor e o intermediador mercantil-financeiro representado pela Casa
Comissária. Estas características determinam um conjunto de especificidades que
distinguem o arranjo do espaço cafeeiro das demais macroformas, particularmente
pelo modo de presença da cidade. A elite cafeeira tem uma relação distinta com
a cidade, motivada pela relação distinta que tem com a fazenda, uma relação de
absenteísmo até então desconhecida pela elite brasileira. Isto leva a uma paisagem
em que ao lado da fazenda do café se multiplicam em larga escala cidades onde a
vida de relação econômica local é intensa. O centro de organização da paisagem é a
fazenda do café, mas a cidade tem um papel igualmente importante -na organização
e dinâmica do todo do espaço cafeeiro. Daí que a maioria dessas cidades nasce junto
à marcha do café, em geral à beira das ferrovias, dado seu papel no escoamento do
café. E que a circulação monetária e a presença da elite cafeeira entre seus morado­
res levem-nas a uma atividade de comércio e de indústria que não se conhece seja
no espaço cafeeiro do vale do Paraíba e seja no espaço canavieiro da zona da mata
nordestina, onde predomina o trabalho escravo e a elite escravocrata mora na sede
das fazendas. A mobilidade intensa de capital e trabalho, que empurra a marcha
cafeeira sempre para áreas novas rumo ao oeste de São Paulo e ao norte do Paraná,
dissemina essas cidades por todo o planalto, formando em todo o interior do espaço
cafeeiro uma vida urbana de grande intensidade (Monbeig, 1984).
O ciclo da borracha ocorre na Amazônia paralelamente ao ciclo do café em sua
chegada ao planalto paulista. Tem início nos anos 1870, acompanhando a civili­
zação material criada pela segunda revolução industrial. A demanda de borracha
criada pela nova civilização técnica - em particular pelos meios de transporte e
circulação criados pela segunda revolução iridustrial - provoca uma busca intensa
da seringueira na mata amazônica, que atrai volumosos capitais e força de traba­
lho, esta fornecida pelo imigrante nordestino fugido da seca dos três setes (1877-
Plantation e form ação espacial 95

1878) para a Amazônia. E assim altera o modo de vida nela vigente desde o período
do ciclo das drogas do sertão. O centro da organização da paisagem é o seringal,
o latifúndio extrativista que segmenta a Amazônia em enormes áreas de domínio,
em parte em decorrência da grande dispersão natural da seringueira pela mata e
em parte pela necessidade da explorá-la em grande escala de modo a alcançar os
lucros que a acumulação do capital seringueiro requer (Santos, 1980). Dentro dos
seringais, a atividade da produção está entregue ao trabalho do seringueiro, um
trabalhador assalariado cujo modo de vida inviabiliza qualquer outra atividade
que não a extrativa da borracha. Seu tempo é assim todo tomado pela extração da
seringa, o que o obriga a adquirir utensílios e mantimentos num galpão localizado
num ponto do seringal, o barracão, onde o seringalista fornece os meios de subsis­
tência a título de adiantamento do salário. Esse monopólio de abastecimento man­
tém o seringueiro na mão do seringalista, que o usará para manobrar os preços
para forjar o endividamento e prender o seringueiro em caráter permanente numa
situação quase escrava ao seringal. O conjunto da atividade é, entretanto, organi­
zado pelo aviador, o intermediador mercantil-usurário instalado nas grandes cida­
des, Belém principalmente, que financia (avia) todas as atividades, da produção
à comercialização, organizando e comandando através dessa centralidade todo o
arranjo relacional do espaço amazônico. Por volta dos anos 1940 o ciclo da borra­
cha se esgota economicamente, frente à concorrência da borracha vulcanizada e
outras áreas mundiais de produção da borracha natural, numa situação de renda
diferencial a elas mais favorável, a exemplo da Malásia, declinando sua dinâmica
coincidentemente com o declínio do ciclo do café.
No mesmo momento o espaço canavieiro experimenta na zona da mata nor­
destina uma forte mudança, relacionada à chegada da usina, após uma malograda
experiência do engenho real. O engenho real é uma reforma do velho sistema do
engenho, forçada pelo fim do trabalho escravo e pelo envelhecimento da tecnologia
dos cultivos e dos fabricos, consistente na tentativa de separação da propriedade da
terra/canavial e da indústria. Pensada como uma forma de resolver, o problema do
capital, sobretudo em vista da modernização tecnológica, entretanto não dá certo.
E a solução vem na forma da substituição do engenho pela usina. A usina reafirma
o sistema de agroindústria tradicional, ao tempo que reestrutura as relações técni­
cas da produção, as relações de trabalho e as relações de classes tanto da lavoura
quanto da indústria, através da nova configuração das relações de espaço. Os anti­
gos senhores de engenho são transformados em fornecedores, reforçando as fileiras
dos antigos lavradores de partido, e os trabalhadores escravos são substituídos por
trabalhadores contratuais, os moradores de condição, na lavoura, e os moradores
96 A FORMAÇÃO ESPACIAL BRASILEIRA

de rua, na usina. Com a usina vem a ferrovia. E com a ferrovia, a concentração ain­
da maior da propriedade da terra. De modo que a usina toma o lugar do engenho
na constituição da paisagem, num ato de organização e domínio do espaço que a
ferrovia leva até o limite visual da zona da mata nordestina (Diégues Júnior, 1960).
É quando é introduzida pelo governo imperial, e particulares no Sul, uma diver­
sidade de núcleos coloniais de imigrantes, sobretudo de alemães e italianos, após a
bem-sucedida experiência da imigração de açorianos anteriormente no século XVIII.
Enquanto os açorianos instalam-se no litoral e planícies do pampa, os alemães e ita­
lianos vão se instalar no planalto, os primeiros nas encostas e os segundos no topo.
Os alemães chegam ao Rio Grande do Sul em 1824, onde criam a colônia de São
Leopoldo. Desde então, seus núcleos se multiplicam pela encosta do planalto, no Rio
Grande do Sul e em Santa Catarina. Os italianos chegam a partir da década de 1870
e seus núcleos vão igualmente se disseminar tanto pelo Rio Grande do Sul quanto
por Santa Catarina. Nos núcleos coloniais, as famílias de imigrantes recebem pe­
quenas parcelas de terra e alguns equipamentos e aí implementam uma forma de
organização econômica em tudo parecida com a das suas áreas de origem. A base
dessa organização é uma policultura e uma indústria artesanal que são a base de
uma intensa atividade de trocas e cuja consequência é a multiplicação de cidades
por toda a área colonial. E que em pouco tempo leva a florescer um modo de vida
e de organização do espaço muito distinto do modo de vida e organização espacial
das áreas ocupadas pelos ciclos de agroexportação (Valverde, 1958).
A hinterlândia pastoril, por fim, conhece ao mesmo tempo uma fase de forte
declínio e ensimesmamento. A extensão de pastos ainda livres vai se aproximando
do seu horizonte. F. as fazendas passam a ser separadas por cercas, inaugurando-se
no século XIX um período de conflitos que se expressam no tropel dos jagunços em
guerra. São diferentes, entretanto, as sociedades que aí se organizam, acentuando
a distinção do modo de vida pastoril do sertão nordestino, do sertão central e do
sertão sulino. No sertão nordestino o gado é levado a se consorciar com o algodão
e no sertão sulino a se consorciar com a indústria do charque, enquanto que no
sertão central a pecuária cai na autarcia da “civilização do couro”.

A acumulação primitiva, a cidade e a consolidação do Estado nacional

O começo do século XX flagra uma formação espacial assentada, assim, numa di­
versidade de áreas e lugares que a arrumam numa grande pluralidade de formas
de economia e de poder político.
plantation e formação espacial 97

0 núcleo organizador de cada fragmento - o engenho, depois a usina, na área


da plantation canavieira da zona da mata nordestina; a aldeia jesuítica, depois o
seringal, na mata amazônica; o núcleo mineiro, depois a fazenda de gado (a es­
tância no pampa), no sertão pastoril; a fazenda do café, no planalto paulista; os
núcleos de colônias de imigrantes no planalto sulino - é o agente construtor dessa
pluralidade, cuja tradução superestrutural maior é o perfil do Estado que então se
institui, um Estado nacional formado pela aglutinação num grande pacto das for­
ças rural-regionais, que apoiadas nele vão levar a molecularidade das macroformas
a dar lugar a sucessivos modos novos de arranjo.
Nesse trânsito, é a cidade que, aos poucos, assume o papel de ente organizador
do espaço, numa escala de estrutura mais global, num forte vínculo com o papel
central exercido pelo Estado. Quando, com a Independência, institucionaliza-se a
malha municipal como a base da divisão territorial do Estado em províncias, depois
estados, assim se definindo a configuração política da máquina administrativa da
nação emergente, a cidade é declarada sede do município. E a base do implemento
da nação. Sobre o apoio nela, faz-se o entrelaçamento que do município à escala
federal reafirma a elite rural-regional como classe dominante do país. O veículo é
a afirmação da cidade como cabeça interna do Estado-nação. E este Estado-nação
como um grande campo de pactuação política, marcando-o e à sociedade nascente
no símbolo da velha elite plantacionista e pastoril modernizada.
Assim, das entranhas das macroformas vai emergindo uma sociedade urbana
com centro na relação da agricultura e da indústria, que aos poucos despede o
plantacionismo da história ao tempo que forma a base logística da modernização
acelerada da antiga elite. Cujo trânsito é sua transformação de uma classe ges­
tora de macroformas do passado numa classe gestora de arranjo rural-regional
nacionalmente integrado. É o movimento do processo interno de acumulação
primitiva.
Nem sempre o processo da acumulação primitiva desabrocha efetivamente na
modernização. É comum por seu intermédio a elite plantacionista-pastoril se con­
solidar como uma classe usurária, vivendo dos ganhos da intermediação mercantil-
-financeira e orientando a acumulação primitiva neste sentido, como na economia
pecuário-algodoeira que no final do século XIX se forma nos trechos paraibano-
-riograndenses do espaço pastoril nordestino, num forte quadro de aliança com a
classe usineira egressa da modernização dos antigos senhores de engenho da zona
da mata canavieira. Bem como se transformar numa classe industrial de corte
essencialmente urbano, como nas áreas de economia cafeeira do planalto paulista,
beneficiária dos Planos de Valorização e ações indutoras de modernização urbano-
98 A FORMAÇÃO ESPACIAL BRASILEIRA

-industrial do Estado egresso da Revolução de 1930. Seja como for, é a acumulação


primitiva o eixo das passagens.

A transespacialidade e o Estado enquanto


a mão invisível do movimento brasileiro

A transespacialidade histórica conduzida pela mão invisível do Estado vai ga­


nhando assim nova forma. A mão que, por trás da molecularidade das macro-
formas do passado e das formas regionais do presente, articula e unifica su-
perestruturalmente os pedaços de território numa só na unidade de espaço, a
caminho da formação do espaço nacional brasileiro. É com esse intuito que em
1938 o governo federal convoca a nação a uma expansão para o oeste. O repto
é, no fundo, a forma como Vargas anuncia o modo como o Estado deve agora
intervir no trajeto da evolução societária brasileira, agindo através de políticas
explícitas de espaço. ,
O grande segredo geográfico nacional talvez seja este. O engenho real e os
núcleos coloniais de imigrantes são exemplos de intervenção do Estado na organi­
zação da sociedade brasileira através da organização do seu espaço, definindo seu
papel ordenador do movimento da formação espacial da sociedade brasileira. Mas
não deixa de ser um momento novo o que agora se apresenta. A marcha para o
oeste como uma política deliberada do Estado representa o uso não mais pontual,
mas global do espaço para o fim de orientar o rumo do desenvolvimento histórico
da sociedade brasileira, norteando a acumulação primitiva na direção inequívoca
do desenvolvimento global daJLndústria.
A indústria moderna surge no Brasil por volta de 1870, a mesma década em
que o café chega ao planalto paulista, a borracha ao vale amazônico, o algodão ao
sertão nordestino, o charque à campanha gaúcha e a cana de açúcar se moderniza
à base da usina na zona da mata nordestina, numa multiplicidade que diversifica
regionalmente a pauta das exportações e forma a fonte de matérias-primas e divi­
sas que serão o fomento do desenvolvimento industrial.
A distribuição das indústrias é, assim, a mesma das áreas agroexportadoras.
São, então, indústrias de bens de consumo não duráveis, que se instalam onde
encontram aquelas condições propícias, aparecendo tanto nas capitais quanto nas
cidades do interior dos estados e onde evoluem embaixo e sob o mando das elites
agromercantis que, assim, estendem o controle da agricultura e da intermediação
mercantil-usurária à indústria^ A indústria que forma nesse momento um item jun­
Plantation e form ação espacial 99

to à produção agromercantil do movimento da acumulação primitiva, num papel


subsidiário da reprodução da força de trabalho plantacionista.
Com os choques adversos da economia mundial - a Primeira Guerra Mundial,
a crise de 1929 e a Segunda Guerra Mundial - e a abertura do mercado da elite, a
indústria, até então abastecida com os produtos importados, cresce e ganha escala,
liberando-se de suas origens para ganhar vida própria (Baer, 1979).
É quando, sob indução estatal, a economia industrial deixa para trás a própria
base plantacionista da economia nacional. Num marco visível cuja expressão é de
um lado a marcha para o oeste decretada por Vargas como política espacial de
Estado em 1938, e de outro a autosuficiência estatística que declara finda a fase
dos bens não duráveis e iniciada a dos bens de infraestrutura e equipamentos em
1939.

Bibliografia

Abreu, Capistrano de. Capítulos de História Colonial. 6a. edição. Rio de Janeiro:
Editora Civilização Brasileira, 1976.
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edição. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1979.
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Brasil. In: Andreoni, João Antônio. Cultura e opulência do Brasil. São Paulo:
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Castro, Antônio Barros de. Agricultura e desenvolvimento no Brasil. In: 7 ensaios
sobre a economia brasileira, v. 1. Rio de Janeiro: Forense, 1980.
Diégues Júnior, Manuel. População e açúcar no Nordeste do Brasil. Rio de Janeiro:
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Monbeig, Pierre. Pioneiros e fazendeiros de São Paulo. São Paulo. Editora Hucitec/
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Santos, Roberto. História Econômica da Amazônia (1800-1920). São Paulo: T. A.
Queiroz, Editor, 1980.
100 A FORMAÇÃO ESPACIAL BRASILEIR*

Sodré, N. Werneck. Formação histórica do Brasil. Rio de Janeiro: Editora


Civilização Brasileira, 1967.
Valverde, Orlando. Planalto Meridional do Brasil. Guia nQ9. Rio de Janeiro: IBGE/
CNG/UGI, 1958.
A MARCHA DO CAPITALISMO E A ESSENCIA
ECONÔMICA DA QUESTÃO AGRÁRIA NO BRASIL

Falando dos rumos e aspectos da questão agrária na Rússia, dizia Lênin em 1905:

A fonte principal de todo equívoco de nossos municipalistas reside precisamente


em que não compreendem a base econômica da transformação agrária burgue­
sa da Rússia nas duas variedades possíveis dessa transformação: a latifundiária-
-burguesa e a camponesa burguesa. Sem “limpar” o regime e as relações agrárias
medievais, em parte feudais e em parte asiáticas, não pode sobreviver à transfor­
mação burguesa da agricultura, pois o capital deve — no sentido da necessidade
econômica — criar para si um novo regime agráiiu adupLadu às novas condições
da agricultura mercantil livre. Essa “limpeza” dos restos medievais no terreno das
relações agrárias em geral e do velho regime de posse da terra, em primeiro lugar,
deve afetar principalmente as terras dos latifundiários e as terras comunitárias dos
camponeses, pois que tanto uma como a outra dessas formas de propriedade da
terra estão, no presente, adaptadas ao pagamento em trabalho, à herança da cor
véia, e não à economia livre que se desenvolve à maneira capitalista. (Lênin, 1980)

O mercado e o Estado capitalistas, eis dois dos parâmetros fundamentais sem


cuja observância a análise da questão agrária fica solta no ar. Tal como no dito
popular, se passamos pelo segundo, ao instituir-se com a reforma agrária a pro­
priedade privada da terra, qualquer forma da propriedade privada, não fugimos às
artimanhas do primeiro. Tem sido esta a fonte das agruras das revoluções quando
passam ao momento da construção da nova sociedade. E sobretudo este o dilema,
para o campesinato e o proletariado urbano, quando se trata de qualquer das va-*

* Texto originalmente publicado na revista Terra Livre, n. 6,1988, da Associação dos Geógrafos
Brasileiros (AGB).

101
102 A FORMAÇÃO ESPACIAL BRASILEIRA

riedades de transformação agrária com a qual a história “limpe” o caminho para


que se instale “a maneira capitalista” de desenvolvimento agrário.
Esta reflexão me veio à mente quando o assassinato de Chico Mendes tornou
público o forte conteúdo campesino da proposta de reserva florestal. E mais ainda,
quando este conteúdo ficou envolto na obscuridade ao chegar o movimento dos
seringueiros de Xapuri-Brasileia à consciência da classe trabalhadora urbana como
uma pressão “sindicalista-ecologista” sobre o Estado pela preservação do “maior
pulmão verde do mundo”. Se a mistificação do movimento ecologista ao funda­
mento da questão agrária é previsível, a confusão das forças pró-reforma agrária
no esclarecimento do calor e direção que podem seguir as lutas camponesas aos
trabalhadores da cidade é preocupante.

A essência econômica da questão agrária no Brasil

Xapuri localiza-se no limite pcidental d^, linha da fronteira agrícola, no Estado do


Acre, onde à colonização privada, tipicamente especulativa com terras, se soma a
chegada da representação espacial mais típica da incorporação de terras ao cir­
cuito mercantil capitalista: a estrada CBR-364). No momento do assassinato de
Chico Mendes, polemiza-se sobre o asfaltamento do trecho que liga Rio Branco a
Cruzeiro do Sul e sua interligação à rede rodoviária peruana de modo a que os cen­
tros de produção madeireira da região amazônica e de produção de grãos do pla­
nalto central tenham acesso aos mercados asiáticos orientais, via Oceano Pacífico.
No fundo da polêmica está o confronto americano-japonês, ressonado pelo Banco
Mundial (BIRD), avalista da dívida externa brasileira em substituição ao FMI, e dos
principais organismos internacionais de financiamento da pesquisa e preservação
ecológica no país, como “ameaça ao equilíbrio ambiental da Amazônia”, com am­
plificação pelo movimento ecológico nacional e internacional.
Envolvendo o conflito de terras entre seringueiros de Xapuri-Brasileia e o la­
tifúndio moderno, que desde a década passada chega à Amazônia substituindo a
floresta por pasto e expropriando pela violência armada a terra a seus ocupantes
tradicionais (posseiros, seringueiros e índios, estes dois últimos formando os “po­
vos da floresta”), o assassinato de Chico Mendes rapidamente internacionaliza a
polêmica, ficando ocultadas sob a ressonância da repercussão ecológica as dis­
putas externas, o alastramento da reação camponesa em toda extensão da linha
da fronteira agrícola amazônica e o problema do caminho histórico seguido pela
sociedade brasileira.
A marcha do capitalismo e a essência econômica da questão agrária no Brasil 103

Ocorre que aqui o modelo redistributivo de terras, preconizado como caminho


de reforma agrária por todas aquelas forças, cedo mostrou-se inadequado para os
próprios seringueiros. Logo evidenciou-se que a divisão pura e simples da terra,
implicando com a sua repartição também a das árvores da borracha, levaria, dado
a sua grande dispersão territorial, cada nova pequena propriedade a tornar-se im­
produtiva (estamos numa economia puramente extrativa: quantas árvores ficariam
em cada propriedade com a repartição?). Daí a saída óbvia: o uso coletivo da terra.
O Estado expropriaria a terra e a repassaria ao usufruto dos seringueiros pelo pra­
zo de 30 anos, na mais clássica solução leninista de reforma agrária (afinal, Chico
Mendes teve sua educação política com um velho leninista refugiado nas matas
da Amazônia), que a vê passando primeiro pela mais radical forma de revolução
agrária burguesa, a que extingue o pagamento da renda absoluta, extinguindo a
propriedade privada da terra. Mas qual Estado? É aqui que a carência das alianças
urbanas do movimento dos seringueiros levara-o a buscá-la onde pôde encontrar (é
sabido que sua proposta pouca atenção desperta no 35° CONCUT, realizado pouco
antes da tragédia).
Ora, tanto esta quanto outras áreas econômicas do espaço agrário brasileiro
dão indícios do amadurecimento da solução camponesa para a questão da ter­
ra, fruto da própria marcha do desenvolvimento capitalista. Peculiaridade que se
deve-se às três características que resumem esta marcha no Brasil:

1. a hegemonia da variedade latifundiário-burguesa da transformação agrária,


em que um processo de modernização progressiva leva o latifúndio atrasado a
converter-se em moderna empresa rural capitalista (o “novo latifúndio”);
2. a preeminência da estrutura binomial latifúndio-minifúndio, com base na qual
o latifúndio transfere para o minifúndio as tarefas produtivas dos gêneros ali­
mentícios de primeira necessidade, vitais ao desenvolvimento geral do capita­
lismo, porém não lucrativas, liberando a grande propriedade para ocupar-se da
produção agrícola de mais altas taxas de lucratividade numa combinação capaz
de ensejar-lhe o ritmo desejado de capitalização;
3. a ampliação crescente e generalizada da mobilidade territorial do trabalho, de
modo que se possa combinar ampla proletarização urbana e permanência de gran­
de contingente de população rural no campo, vital à sobressalência do complexo
binomial.

Analisando o caso russo com base no estudo do quadro europeu e norte-


-americano a ele contemporâneo, Lênin já observara os dois caminhos que fun­
104 A FORMAÇÃO ESPACIAL BRASILEIRA

damentalmente pode seguir o desenvolvimento capitalista no campo, o latifundi­


ário-burguês e o camponês-burguês, ambos destinados a “limpar” as estruturas
econômico-sociais ao livre florescimento do mercado, a “maneira capitalista” de
desenvolvimento. O primeiro é o caminho da modernização dos processos produ­
tivos, mediante a qual a grande propriedade atrasada acabe por transformar-se
numa moderna empresa rural, consistindo num caminho de evolução lenta para
o capitalismo e dolorosa para o campesinato. O segundo, é o caminho em que a
revolução camponesa empreende o confisco e redistribuição da terra entre as fa­
mílias camponesas, abrindo a economia de mercado de modo generalizado a toda
a população. Estes dois caminhos podem coexistir num mesmo país, a exemplo
do que vinha ocorrendo na própria Rússia desde a Reforma de 1861, que abole a
servidão da gleba, o primeiro nas áreas centrais da Ucrânia e Rússia Europeia e o
segundo nas periféricas do leste, as áreas da Sibéria que então faziam o papel de
um grande “fundo de colonização”.
Pode o leitor notar que é o primeiro, o latifundiário-burguês, o caminho que
está em curso no Brasil desde 1850, ana da abolição do tráfico negreiro e da ins­
tituição da Lei de Terras. Pode igualmente observar a semelhança da ordenação
espacial desse caminho no Brasil e na Rússia do período em área de latifúndio con­
solidado (centro) e área de “fundo de colonização” (periferia) num envolvimento
respectivo da Amazônia e da Sibéria.
O que está ocorrendo em Xapuri-Brasileia, e em cada canto do país sob formas
próprias, é a reação dos seringueiros à “limpeza” latifundiário-burguesa da estru­
tura agrária para o desenvolvimento do capitalismo, estratégia que, desde 1850,
consiste em criar para depois dissolver as relações de trabalho e produção próprias
da acumulação primitiva do capital. Não é, pois, um fato isolado e sem conexão
com o curso geral da marcha capitalista, que hoje chega à periferia amazônica.
Vejamos, primeiramente, este curso geral, para, a seguir, analisarmos os rumos da
questão agrária nesta virada de século no Brasil.

As peculiaridades do desenvolvimento do capitalismo no Brasil

A passagem do escravismo ao modo capitalista de produção é marcada no Brasil


pelo nascimento de uma dinâmica reprodutiva do capital em que uma divisão
interna de trabalho, de que a indústria fabril é de início uma simples componente,
origina intemamente a economia mercantil, com a qual logra-se criar e avançar
sempre para adiante o processo interno da acumulação primitiva. É esta estrutura
A marcha do capitalismo e a essência econômica da questão agrária no Brasil 105

nova de sociedade que vê nascer o campesinato substitutivo do trabalho escravo no


campo brasileiro e com ele o que vamos designar por estratégia da modernização
como caminho da reforma agrária das elites. Esta, é um mecanismo de fusão entre
agricultura e indústria, cujo limite agora estamos atingindo, em que o latifúndio
atrasado usa da acumulação primitiva e da indústria para se converter em em­
presa capitalista moderna. E no qual o campesinato nascente é peça essencial do
mecanismo, através do papel que lhe é dado manter dentro do binômio latifúndio-
-minifúndio.
E um campesinato que nasce sob faces regionais as mais diferenciadas, já que
a acumulação primitiva do capital surge e progride no interior do arcabouço es­
pacial herdado do colonial-escravismo, aparecendo como pequeno proprietário
familiar no Sul, colono nos cafezais do Sudeste, morador nos canaviais e algodo­
ais do Nordeste e seringueiro nas matas extrativistas da Amazônia. Dentro deste
arcabouço molecularizado tal campesinato toca a pequena produção vinculada às
culturas alimentícias, ocupando como antes dentro dos latifúndios as terras me­
nosprezadas pela “lavoura nobre”, mantendo-se assim o minifúndio dominial, ao
tempo que externamente mantém-se o minfúndio autônomo.
É esta estrutura espacial que instrumentará as estratégias do caminho latifun­
diário-burguês, até o grande salto de qualidade que a transformação agrária irá dar
a partir dos anos 1950
Já antes da Abolição formal da escravatura ela ocorrera na prática. Herdada
que fora da economia agroexportadora da colônia. Os anos 1870 reelaboram essa
velha estrutura, através esse campesinato substituto criado/recriado sob formas
distintas no espaço canavieiro, extrativo-vegetal, pastoril, policultor e, por fim,
cafeeiro quando este atinge o planalto paulista.
Em todas estas áreas um mesmo problema se apresenta e é a mesma a saída.
Francisco de Oliveira assim resume a questão, numa linha de reflexão com a qual
concordamos por inteiro:

A Abolição é o fim do Império, um truísmo de há muito proclamado pelos historia­


dores e que, segundo consta, não havia escapado à percepção dos políticos da época.
Não é “um raio num dia de céu azul”, na frase famosa de Marx; é o resultado de
uma contradição entre estrutura de produção e as condições de realização do pro­
duto. A expansão das culturas de exportação, sobretudo e indiscutivelmente do café,
leva consigo uma expansão mais que proporcional do capital constante, constituído
seja pelo próprio estoque de capital empatado nos escravos, seja pelos meios de sub­
sistência dos mesmos escravos. Principalmente a expansão dos últimos significa um
106 A FORMAÇÃO ESPACIAL BRASILEIRA

incremento das importações que punha constantemente em risco a estabilidade da


forma de valor do produto: a moeda estrangeira e notadamente a taxa de câmbio.
Além disso, a base de infra-estrutura necessária para a expansão das culturas de
exportação — as ferrovias e os portos — requeria também doses incrementadas de
moeda externa, com o que as crises cambiais chegam quase a um estado crônico. A
Abolição resolve um dos lados da contradição, transformando o trabalho em força
de trabalho. (Oliveira, 1984)

Em outros termos, o custo de reposição e o de reprodução dò escravo resolvem-


-se no nascimento do campesinato moderno. Este leva ao surgimento da indústria.
E a uma divisão de troca e mercado simples de bens de manufatura que altera
também o campo da moeda.
Já antes a necessidade de elevar-se o nível da produtividade faz combinar-se
aqui e ali ao trabalho escravo a introdução de máquinas tanto nas atividades agrá­
rias (como nos cafezais e nos algodoais) quanto no plano geral (implantação de
ferrovias e navegação a vapor). Com isso, agrava-se a contradição apontada por
Oliveira, que o autor situa no âmbito do circuito produção-financiamento-comer-
cialização-acumulação-produção. E, no limite, aquela em que se defrontam as re­
lações escravistas de produção e a necessária elevação do nível das forças produ­
tivas, resolvendo-se em seu conjunto pelo surgimento internamente da economia
mercantil.
O aguçamento dessa contradição de fundo, formada pelo antagonismo senhor-
-escravo, vai-se resolvendo em cada canto num modo diferente, metamorfose do
trabalho escravo. Até que a solução cafeeira aponte o caminho. É com ela que se
abre a saída da crise, a qual vem na forma do nascimento da divisão do trabalho
com que internamente se engendra o que Oliveira chama de “emergência do modo
de produção de mercadorias”. E que designa a forma interna de acumulação pri­
mitiva que se encontra para o deslanche da economia nacional, cujos termos e
processo são por ele assim descritos:

Olhando-se mais de perto, a ruptura das relações escravocratas e a instauração do


trabalho assalariado não podiam, jamais, elevar a renda derivada do trabalho; o
nível global da renda permanecia constante, mudando a sua forma. Mas, isto sim,
a passagem para o trabalho assalariado expulsou para fora dos custos da produção
do café a manutenção da classe trabalhadora (ainda que a produção dos bens de
subsistência possa ter permanecido dentro das fronteiras do latifúndio); no proce­
der-se a.essa mudança deforma de produção dos meios de subsistência, procedia-se,
A marcha do capitalismo e a essência econômica da questão agrária no Brasil 107

concomitantemente, a uma mudança de conteúdo fundamental, para a existência


de um modo de produção de mercadorias, pois antes, ainda que existisse, a produ­
ção de subsistência pelos próprios escravos não fundava nenhuma troca. Mesmo no
caso quase geral da agricultura brasileira, de persistência de uma fraca moneta-
rização das relações de troca - um fenômeno largamente existente ainda hoje -, a
própria reiteração das relações de troca acaba por escolher uma mercadoria padrão,
que se metamorfoseia no dinheiro; virão a ser o sal, o querosene, o pouco vestuário
e calçado, enfim, elementares artigos da cesta de consumo dos novos produtores da
agricultura de subsistência, que quase tomam o lugar do dinheiro nas novas rela­
ções de troca - o arquiconhecido esquema dos “barracões” da zona açucareira do
Nordeste e das zonas correlatas do Sul. O importante é que também esses elemen­
tares produtos nem são produzidos pelas unidades de agroexportação nem pelas
unidades da chamada agricultura de “subsistência”, o que forceja a diferenciação
da divisão social do trabalho em outros segmentos econômicos.

Trata-se, assim, de uma solução que de um lado instaura o nascimento da in­


dústria, ainda que esta surja com a função precípua de compor mais um elemento
do elenco das condições da reprodução do capital agroexportador. E, nesse passo,
abra para que se lance o embrião da nova qualidade de relação cidade-campo, em
que o comando do campo vá sendo transferido para a cidade quanto mais o prato
da balança penda para o lado do desenvolvimento industrial, e por esse meio se
encaminhe o desenvolvimento para as formas mais avançadas do capitalismo. E de
outro lado transfere-se para o trabalhador a tarefa do seu próprio custeio.
Isto requer uma estrutura social e produtiva que ao mesmo tempo reinvente o
binômio latifúndio-minifúndio e introduza organicamente a indústria de bens de
consumo popular, assim iniciando um momento de instauração de uma divisão
interna do trabalho e de trocas mesmo que ainda incipiente. A primeira medida
é necessária a que o próprio novo trabalhador das fazendas continue a produzir
seu sustento sem sair dos interstícios do tempo dedicado ao produto nobre. E a
segunda a que da cesta dessa sua reprodução conste bens nãa agrícolas, isto é,
industriais, produzidos intemamente a custos baixos. Estas duas características
formando a base do movimento de acumulação primitiva que então se inicia.
Oliveira assim resume essa estratégia da modernização latifundista na sua fase
inicial de acumulação primitiva:

A Primeira República herda, pois, uma economia cujas condições de acumulação


e crescimento haviam sido grandemente potencializadas. Em primeiro lugar, avan-
108 A FORMAÇÃO ESPACIAL BRASILEIRA

çam os processos de acumulação primitiva, que a nova classe revertia agora pro
domo suo, e que significavam, não apenas a ampliação da posse e propriedade da
terra, mas o controle das nascentes trocas entre unidades de produção distintas,
desfeita a autarquia anterior, por intermédio de todas as instituições que depois vão
caracterizar a estrutura política e social da República Velha, como o coronelismo,
o complexo latifúndio-minifúndio, os agregados. Em segundo lugar, a instauração
do trabalho livre no coração das próprias unidades produtivas do complexo agro-
exportador significa uma inversão de situação da economia escravocrata, predomi­
nando agora o capital variável e fazendo crescer a rentabilidade das explorações.
Quantitativamente, pois, o volume do excedente sob controle dos “barões do café”
(assim como dos barões do açúcar e dos outros barões) era, agora, maior que em
épocas anteriores.

Em resumo, a abolição do escravismo abre para o desenvolvimento do capita­


lismo, primeiro instaurando e a seguir “limpando” as formas sociais próprias da
acumulação primitiva. Vejamos o processo e seus dois momentos. Ao primeiro
' b
chamaremos o espaço molecular. Ao segundo o espaço monopolista-financeiro. E
que Oliveira designa fase da economia regional nacionalmente organizada e fase
da economia nacional regionalmente organizada, respectivamente.

O ESPAÇO m o l e c u l a r : a fa se d a a c u m u l a ç a o p r im it iv a

E no âmbito da molecularidade espacial herdada do colonial-escravismo que tal


processo avançará, rearticulado por uma transformação dos macroespaços em es­
paços regionais que progressivamente levará o escravismo colonial a dar lugar à
formação capitalista. Tal não se dá, porém, por razões de uma inércia espacial,
mas porque o arcabouço molecular representa justamente o poder das oligarquias
rural-regionais em composição, nesse sentido reiterada para servir à estratégia do
desenvolvimento latifundiário-burguês da agricultura.
Imbricada nessa amálgama de reiteração-modernização da “burguesia junker”
brasileira, a molecularidade espacial abre, mas de modo obviamente regulado pe­
las elites agrárias, as portas para o fluxo da acumulação primitiva, que dos anos
1870-1880 aos anos 1960-1970 converterá a crise agrária da agroexportação em
metamorfose capitalista.
Em cada canto desse arcabouço espacial a caminho de rearrumar-se em ar­
ranjos regionais elite e Estado se imbricam processualmente, numa interação de
conjunto em que o Estado leva as acumulações a convergirem para uma ordenação
A marcha do capitalismo e a essência econômica da questão agrária no Brasil 109

regional localmente, ao tempo que a servirem ao propósito do aprofundamento


geral do eixo agricultura-indústria mediante o qual a industrialização seja o fim
último do desenvolvimento da sociedade brasileira. Cresce, portanto, por dentro
da heterogeneidade molecular, a linha de homogeneização que mais à frente uni­
ficará o espaço nacional no conteúdo capitalista, num movimento contraditório
que numa primeira fase gera os regionalismos e numa segunda a uniformização
nacional do espaço, numa passagem de subsunção formal para subsunção real
que o eufemismo da ideologia latifundista rotulará nos anos 1950 de uma questão
regional (a questão regional, de certo, do capitalismo, assim como as relações das
macroformas o foram na colônia para a classe plantacionista).
Seja como for, uma diferenciação regional de fato irá se formando, em grande
parte decorrente das diferentes modalidades que a acumulação primitiva vai na­
cionalmente seguindo, na esteira da forma de campesinato e combinado a ele de
binômio latifúndio-minifúndio que aqui e ali vai surgindo. É no espaço cafeeiro,
na forma do sistema do colonato, que se gesta e desenvolve a forma mais avançada
dessa tessitura escalar horizontal-vertical de modernização. Paralelamente à qual
surge no Nordeste o sistema do morador de sujeição, na Amazônia o sistema do
seringal e no Sul o sistema dos núcleos de colonização familiar.

Simbiose e Ireagem no Nordeste


Nas áreas do Nordeste a acumulação primitiva desenvolve-se nos termos de uma
articulação tanto estranha quanto contraditória, que unifica o todo regional por
dentro das diferenças do arranjo espacial que separa a mata canavieira e o sertão
pecuário usineiros e coronéis, com a metamorfose do trabalho escravo em que mo­
radores, foreiros, parceiros e pequenos rendeiros numa pontuação comum à área
canavieira da fachada costeira e pecuário-algodoeira do agreste-sertão interiorano.
No espaço plantacionista canavieiro o processo da acumulação primitiva iden­
tifica-se com a metamorfose do velho engenho na moderna usina, que coroa as
tentativas governamentais de modernização da agroindústria via instalação dos
engenhos centrais. Estes exprimem uma política do governo imperial de moderni­
zar a economia agroaçucareira pela separação orgânica entre lavoura e indústria:
os antigos senhores de engenho se voltariam exclusivamente para a lavoura, en­
quanto a fabricação do açúcar seria entregue a capitais estrangeiros. Em tese, visa-
-se com isto introduzir-se uma divisão territorial do trabalho localmente capaz de
traduzir-se numa modernização da aparelhagem produtiva e consequente elevação
em uníssono da produtividade tanto da lavoura da cana quanto da indústria do
açúcar. Num momento em que em todo o espaço nacional busca-se tomar a divisão
110 A FORMAÇÃO ESPACIAL BRASILEIRA

que especialize e integre organicamente a agricultura e a indústria o eixo geral do


desenvolvimento, mas que na experiência dos engenhos centrais só teria que falir.
Uma vez que trata-se aqui de uma modernização econômica da elite plantacionista
tradicional, que, ao contrário, vem na forma de uma ainda maior fusão dos capitais
dentro da agroindústria, com centro na usina. Indústria moderna e instalada com
capitais oriundos da metamorfose dos donos de engenho ou vindos da cidade,
com a usina vem a ferrovia, e com a ferrovia maior latifundização, que põe nas
mãos dos usineiros uma concentração ainda maior da propriedade da terra e dos
canaviais.
Situada em condições técnicas superiores às do engenho na moagem de cana,
a usina ganha assim terreno rapidamente. Alicerçada na difusão e ramificação
do transporte ferroviário, a usina açambarca a apropriação da matéria-prima do
açúcar num raio de distância crescente, sufocando os engenhos, que, sem condi­
ção de concorrência, tendem a fechar (a tornar-se “engenhos de fogo morto”) ou
a converter-se em meros produtores de aguardente e rapadura. Tomando-lhes as
terras e monopolizando a moagem, -a usina implanta verdadeiros impérios. E dá
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inicio a uma completa reestruturação do espaço. Que de um lado reverte a ten­
dência à fragmentação da propriedade que acompanha a crise do engenho, trans­
formando a maioria dos antigos senhores de engenho em simples fornecedores de
cana e expandido a área de cultivo da cana mesmo sobre parcelas de policultura
com que dessa vez cria e proletariza parcela crescente do antigo campesinato. E de
outro interliga e integra numa só unidade de espaço a totalidade da zona da mata,
polarizando-a como um todo na centralidade da cidade de Recife.
Centrados na usina, os macroespaços individualizados das plantations são rear­
rumados e uniformizados num só contexto. No centro da paisagem localiza-se ago­
ra, sobranceira, a usina, ladeada pelas vilas operárias, as “ruas” onde o morador
expulso do campo vai se aglomerando em viveiros de mão de obra, e a rodeá-la a
uniformidade dos canaviais, estes, fragmentados em canaviais da usina e canaviais
dos fornecedores. Uma moldura imperial integrada na ubiquidade da ferrovia, eixo
geral da centralidade territoria^da indústria.
Todavia, sustenta-a no fundo o velho binômio latifúndio-minifúndio, reforçado
dentro dos canaviais na figura do condiceiro e do foreiro, convertidos nas per­
sonagens da nova versão da policultura dominial. Assim, mesmo polarizando a
estratificação social em usineiros e proletários, esta reordenação das estruturas
espaciais da produção e de classes mantém, portanto, o papel axial do binômio
latifúndio-minifúndio. Sendo uma atividade de safra única, reiterada como norma
à totalidade regional através duma ainda maior exclusividade da monocultura, a
A marcha do capitalismo e a essência econômica da questão agrária no Brasil 111

agroindústria do açúcar de cana tem no binômio a base da necessária flexibilidade


que precisa para operar a alternância cíclica dos períodos de safra e entressafra, que
ainda permanece como lei de mercado básica da agroexportação plantacionista. E
que, tal como no passado, expande e restringe, segundo a alternância terras e força
de trabalho, garantindo- produção alimentícia e reserva cativa de mão de obra à
agroindústria sempre. Compondo o que Oliveira, com muita propriedade, desig­
na por “fundo de acumulação” e “formas de defesa anticíclicas não capitalistas”.
Acrescido agora do papel de mola mestra da estratégia de “imbricação salários-cul­
turas de subsistência”. E encontrando nessa coabitação do passado e do presente
a forma que habilita a agroindústria a sobreviver sob a crise permanente em que
a agroexportação passa a viver desde o ciclo da mineração. Agravada a partir da
primeira metade do século XX pela concorrência da produção açucareira do “Sul”
(Andrade, 1973; Oliveira, 1977).
Paralelamente, corre nas áreas pastoris do Sertão e do Agreste o rearranjo es­
pacial articulado pelo desenvolvimento do consórcio gado-algodão, consolidado na
passagem do século e agora sedimentado na forma de uma sociedade agropastoril
fortemente hegemonizada na figura dos “coronéis”. Designação com que os gran­
des proprietários de terras passam a ser conhecidos a partir do Segundo Império,
e ganham um caráter designativo sociológico de classe, a classe dos senhores do
gado e do latifúndio pastoril no sertão nordestino, após a Revolução de 1930. Aqui
também é o binômio, mesclado da forma dominial tradicional e da reinventada na
figura do morador e do foreiro, o eixo que arruma por dentro o arranjo espacial
do elo gado-algodão.
A diferença maior vem da maior diversidade da composição estrutural desse
arranjo. Compõem-no basicamente os pares policultura-gado, policultura-algodão,
gado-algodão em que a pequena produção de subsistência aparece com o mesmo
papel de “fundo de acumulação” que sustenta por dentro a acumulação do capital
no espaço agroindustrial açucareiro da mata. Pode-se mesmo falar aqui de uma
imbricação policultura-algodão-pecuária como o suporte agrícola de uma relação
agricultura-indústria local, que vem com a emergência da indústria têxtil, arruma­
da espacialmente como um complexo algodão-pecuária-policultura-indústria têxtil.
Uma estrutura em parte emanada de uma divisão internacional do trabalho pas­
sada, correspondente à Guerra da Secessão norte-americana (1861-1865), em que
o Nordeste surge como centro algodoeiro encaixado como supridor de matérias-
-primas para as indústrias inglesas.
Mas que a rigor é uma faixa da hinterlândia arrumada ao longo da borda seten­
trional, alongada da Paraíba/Rio Grande do Norte ao Piauí/Maranhão, onde o es­
112 A FORMAÇÃO ESPACIAL BRASILEIRA

paço algodoeiro evolui com pano de fundo na grande propriedade pastoril. E onde
a apropriação monopolista da terra mostra-se ostensivamente o seu caráter para­
sitário, pois não é o gado o fundamento da economia e a fonte real da acumulação,
mas a renda fundiária usufruída com o negócio do algodão desenvolvido à sombra
da acumulação primitiva. A renda fundiária identificada com o parcelamento da
terra pelo latifúndio e sua entrega aos cuidados do campesinato foreiro, parceiro
ou rendeiro advindo da metamorfose do trabalho escravo para o cultivo do algodão.
Espécie de relação fundiária pré-capitalista que o grande proprietário rural estabe­
lece com este campesinato, reforçada na forma da intermedição mercantil-usuária
que lhe impõe. E ao qual não raro sobrepõe-se o grande intermediador mercantil
externo ao complexo na comercialização do algodão intrarregionalmente e nos
mercados mundiais. Proprietário, arrendador e intermediador mercantil-usurário,
tanto quanto veremos para os demais espaços, a hegemonia dos “coronéis” é aqui
o que temos. Intervindo na intermediação mercantil-financeira a ponto de às vezes
constituir o próprio capital mercantil regional, é frequente sua presença mesmo
na organização do comércio urbano regional. Além de um grande investidor in­
dustrial. Vindo de sua acumulação agromercantil a grande parte do investimento
formador do capital industrial têxtil da região.
Se já no passado colonial mata e sertão se entrecruzavam no plano das ma-
uufojiuids plcuitddunistdò, d pecuáiid foi mando d ie tag uai da da subsistência da
plantation canavieiro-açucareira, no presente amalgamam-se numa simbiose ainda
mais forte e cúmplice. A simbiose em que no plano de conjunto formam o todo
de um Nordeste regionalmente estruturado na interligação da economia sucro-
-canavieira e pecuário-algodoeira, através da imbricação dos capitais industriais. A
economia pecuário algodoeiro têxtil que fornece o tecido grosseiro voltado para o
proletariado empregado na agroindústria e para a sacaria necessária ao acondicio­
namento do açúcar das usinas e a economia canavieiro-usineira que vai ser o gran­
de mercado da primeira, condição que leva frequentemente à reunião dos respecti­
vos capitais e capitalistas. Erguendo-se, assim, uma unidade agricultura-indústria
regional fortemente engastada na fusão algodão-açúcar, em que a industrialização
faz-se embaixo da hegemonia das elites agrárias e em cima do todo do trabalho de
uma classe trabalhadora ecleticamente matizada de rural-urbana.
Simbiose que faz da economia pecuário-usineira a força da geografia regional
nordestina. Mas ao mesmo tempo a fonte de inércia que por todo o século irá man­
tê-la enraizada nos parâmetros da mais-valia absoluta. Quando noutras regiões a
relação agricultura-indústria empurra o desenvolvimento para os parâmetros mais
efetivos da mais-valia relativa, levantando a barreira que leve a que a acumulação
A marcha do capitalismo e a essência econômica da questão agrária no Brasil 113

primitiva efetivamente convirja para a forma capitalista plena. Nisto diferindo


processualmente Nordeste e Centro-Sul, justamente. E a desigual evolução que
afasta o desenvolvimento das unidades estaduais representativas de ambas regiões,
particularmente Pernambuco e São Paulo.

Rapinagem e ilusionismo no vale amazônico


A virada do século vai encontrar o vale amazônico situado num quadro de estado
ainda mais oposto. Formada num trajeto de evolução histórica própria e a seguir
dizimada demograficamente pela forma como o governo imperial resolve o movi­
mento insurrecional da Cabanada, a região do vale manter-se-á mergulhada nas
macroformas jesuíticas do período colonial até o advento do ciclo da borracha. Por
isso, ao mesmo tempo pode em grande medida por-se à margem dos abalos da cri­
se da mineração a que não puderam fugir as áreas de dominação plantacionista e
pastoril da fase da colônia, mergulhada nas estruturas advindas do ciclo das “dro­
gas do sertão”. Todavia, abalada e reestruturada por seus próprios acontecimentos
internos, virado o século sua economia gira em 58% ao redor das exportações
do cacau, quando por volta de 1850 o início da extração da borracha anuncia as
profundas alterações do conteúdo e forma que vai mudar o seu quadro extrativo.
Determinações interno-externas são também aqui evidentes. Internamente
acumulam-se os efeitos da queda inteinaciuual dos preços do cacau (só enlie 1805
e 1816 cai no porto paraense de Belém de 3.100 réis para 2.000 réis por arroba).
Externamente descobre-se em 1841 o processo de vulcanização da borracha na­
tural que abre para seu franco emprego industrial. Frente à rápida ascensão de
preços que a borracha experimenta, o extrativismo vegetal amazônico se desloca
inteiramente para este produto.
De início, a extração da borracha faz-se nos pontos mais acessíveis das cerca­
nias de Belém, indo deslocar-se depois mais e mais para os pontos distantes da
hinterlândia, na direção do alto curso dos rios. Quando as necessidades de organi­
zação do espaço tornam-se então mais exigentes. Respondendo-lhes a maciça inter­
mediação mercantil-usurária trazida pelo sistema do aviamento, “uma espécie de
crédito sem dinheiro”, no dizer de Roberto Santos, consistente num mecanismo
de financiamento pago com produtos in natura (Santos, 1980).
Ao contrário dos aldeamentos jesuíticos espalhados pela calha dos rios do ciclo
das drogas, o novo ciclo de extrativismo implica um arranjo espacial arrumado na
dispersão dos seringueiros (trabalhadores extratores do látex, líquido extraído da
árvore com o qual fabricar-se-á a borracha) por dentro da mata, que nela irão se
fixar com suas cabanas indeterminadamente. Aí, num ponto à beira do rio, o se-
114 A FORMAÇÃO ESPACIAL BRASILEIRA-

ringueiro levanta sua habitação precária, na qual instala o sistema rústico de defu­
mação do látex necessário para transformá-lo na forma bruta da matéria-prima da
borracha. Daí diariamente o seringueiro desloca-se ao longo de uma picada aberta
na mata, a estrada de seringueiras, fincando nas seringueiras tijelinhas para re­
cepção do látex, recolhendo e reunindo o líquido num balde para defumá-lo ao
final do dia. Percorrendo de uma a duas estradas por dia contendo cada qual uma
média de 123 árvores, não lhe sobra tempo para dedicar-se à produção alimentícia
e demais bens de uso e consumo, tendo que suprir-se com os meios fornecidos pelo
seringalista (proprietário do seringal, a fazenda que emprega o seringueiro congre­
gando dezenas de estradas) através da instituição do barracão.
Trata-se de um trabalhador assalariado, mas que no correr do trabalho vê sua
remuneração substituída pelo vale do barracão, um mecanismo de registro e con­
trole dos meios de subsistência e de uso fornecidos ao seringueiro num caderno
comum como adiantamento, que ao findar do mês é assim descontado do salário.
A manipulação e o monopólio do suprimento faz que no lugar do pagamento o
seringueiro acumule dívidas sucessivas, tornando o sistema de assalariamento no
fundo uma forma de escravidão disfarçada. E que mantém o seringueiro nas mãos
do seringalista ad etemum.
O trabalho do seringueiro é uma das pontas da complexa cadeia de que os serin-
galistas a rigor não passam de mediadores e que tem o capital mercantil-exportador
no outro extremo. Formando um sistema que da cabana à casa exportadora se des­
dobra numa multiplicidade de mediação de “aviadores”. Um sistema de aviamento
que assim articula numa estrutura vertical desde a plêiade de pontos da produção
dos seringais até a praças internacionais da comercialização-industrialização da
pela, passando pelo sistema cotidiano de suprimento, numa gama diversificada de
níveis intermediários cuja projeção espacial é a rede de ligações que se espalha por
dentro da região da bacia amazônica.
O sistema do suprimento é todavia o seu epicentro. Tudo aqui centra-se na
extração da borracha. Polarizado na alta lucratividade oferecida pela exportação
da borracha, o capital mercantil desorganiza toda a produção de subsistência an­
teriores, suprimindo as poucas áreas de produção agropastoril do ciclo das drogas.
Chupa-lhes a infraestrutura e força de trabalho. Mas também a numerosa massa
de população que quando do início do ciclo gomífero vem para a Amazônia fugin­
do do sertão nordestino afetado por longas ondas de seca, indo buscar trabalho
nas áreas extrativistas em formação. Reside nessa genealogia a forma como vai-se
implantar o sistema do suprimento do barracão e seu correspondente tipo de tra­
balho semiescravo. Como a migração até o seringal é custeada por intermediários,
A marcha do capitcdismo e a essência econômica da questão agrária no Brasil 115

que repassam os gastos aos próprios trabalhadores, uma vez instalado este recebe
instrumentos de trabalho e meios de subsistência, que deverão ser descontados
de sua remuneração. Somam-se, desde este momento, os débitos que ele jamais
poderá saldar e, pelo contrário, aumentam incessantemente, dado a forma como a
contabilidade é feita pelo seringalista. Assim instituindo-se umaJorma de relação
de trabalho de duração e controle permanente. E cujo custo de reprodução é dos
mais baixos.
A cadeia do aviamento já começa nesse sistema de suprimento. O resto vindo de
uma forma de organização em rede de que fazem parte quatro estratos de classes
entrecruzados: o seringalista, o importador, o aviador (pequeno, médio e grande)
e o exportador. Todos articulados num todo orgânico cujo alimento é o processo
de produção-extração-distribuição do excedente do trabalho produzido pelo se­
ringueiro. Este, extraído pelo seringalista, redistribui-se entre as demais camadas
dominantes até chegar ao topo.
O ponto da medida das partes é o baixo volume dos investimentos, limitando-se
o gasto de capital basicamente ao mecanismo da reprodução da força de trabalho
do seringueiro, numa ordem de proporção dos investimentos que de hábito chega
a 84% do total dos gastos. Sendo uma atividade apenas extrativa, o capital fixo
fica extremamente minimizado. De modo que é o investimento em abastecimento
alimentar o gasto principal. E o pé de apoio da origem da hegemonia em grau tão
elevado do capital mercantil. Já que o suprimento alimentício, vindo de importa­
ção das áreas agrícolas do Sul, face a dietética do migrante nordestino, centrada
na carne do charque, de que o Sul é no momento o grande produtor, tudo põe na
dependência da cadeia da intermediação que envolve o importador e os aviadores
mais próximos do esquema dos suprimentos Uma relação assim descrita por Santos:

O “aviador” de nível mais baixo fornecia ao extrator certa quantidade de bens de


consumo e alguns instrumentos de trabalho, eventualmente pequena quantidade de
dinheiro. Em pagamento, recebia a produção extrativa. Os preços dos bens eram fi­
xados pelo “aviador”, o qual acrescentava ao valor das utilidadesfornecidas a juros
normais e mais uma margem apreciável de ganho a título do que se poderia chamar
“juros extras”. Esse “aviador” por seu turno, era “aviado” por outro e também
pagava “juros extras”apreciavelmente altos. No cume da cadeia estavam as firmas
exportadoras, principais beneficiárias do regime de concentração de renda por via
do engenhoso mecanismo dos “juros extras” e do rebaixamento do preço local da
borracha. A cadeia era simplificada quando o seringalista se tornava um empre­
sário de certa envergadura. Nesse caso, ele próprio se constituía um “aviador” de
116 A FORMAÇÃO ESPACIAL BRASILEIRA

primeira linha, ligando-se diretamente, por um lado, às casas "aviadoras”de Belém


e Manaus e, por outro lado, ao seringueiro extrator, seu “aviador” ou “freguês”.

Copertencem, pois, a ordenação espacial polarizada na comercialização da bor­


racha e o sistema do aviamento, tudo interligado na amplidão amazônica em fun­
ção da cadeia do aviamento. A que Santos acrescenta:

O aumento dos contactos da economia amazônica com o mercado monetizado de


outras áreas tendia a resultar mana intensificação do aviamento, dado que todo
o sistema era altamente dependente do setor primário, onde prevaleciam as rela­
ções de “aviador-aviado”. Mesmo as poucas indústrias existentes, por se limitarem
quase sempre ao beneficiamento e à transformação elementar de matérias-primas
locais, dependiam, para seu suprimento, dos mecanismos do aviamento. Os trans­
portes, comércio, e as rendas públicas repousavamfundamentalmente na movimen­
tação da riqueza gerada no setor primário. Mas, as mudanças de intensidade do
aviamento dependiam, externamente, da elasticidade da procura extra-regional de
produtos primários. Contrações da procura acarretariam fatalmente desprestígio e
desestimulo ao aviamento e à atividade produtora da borracha. Em contraposição,
se a demanda externa crescia e o aviamento se fortalecia, a taxa de juros média do
sistema tendia a subir, desestimulando outras inversões estranhas ao extrativismo.
Ê certo que o aviamento exercia efeito multiplicador do emprego nas atividades
terciárias. De fato, ele implicou historicamente uma tendência à hipertrofia do ter­
ciário, face aos ganhos do transporte e da comercialização da produção primária.

A partir dos anos 1920 o ciclo extrativo da borracha entra todavia em declínio.
A extração da borracha definha em todo o vale, restando como atividade dominan­
te nos anos 1950-1960 apenas nas áreas do extremo-ocidente (no Acre, basicamen­
te). Não se alicerçando num eixo agricultura-indústria, mas tão só na rapinagem
da natureza, a acumulação primitiva não desemboca pois na industrialização. E
assim apernas reaparecem aqui e ali a lavoura e a pecuária dos tempos das drogas
do sertão como forma de organização do espaço.

Variação e polaridade do Centro-Sul


O aprofundamento nacional da relação agricultura-indústria que levará à indus­
trialização da grande propriedade e de toda a sociedade brasileira tem, assim, no
Centro-Sul seu centro de gravidade. Num deslocamento que já no ciclo da mine­
ração transfere do Nordeste para aí o centro dinâmico da formação socioespacial
A marcha do capitalismo e a essência econômica da questão agrária no Brasil 117

brasileira. Seu polo de desenvolvimento, a economia cafeeira, particularmente no


momento que atinge o planalto paulista.
Quando se inicia o século XIX o café não é ainda uma cultura comercial im­
portante. A crise das macroformas tradicionais abre todavia para expansão e pro­
gressiva polaridade. Já em 1832 o valor da exportação do café sobrepujara a do
açúcar. E em 1837 já representa mais da metade do valor das exportações globais
do Brasil. A razão desse surto é que âs determinações da crise interna vão somar-
-se as externas em que sobressai a independência dos Estados Unidos, lançando-o
entre os maiores importadores de café.
A implantação de uma fazenda de café envolve gastos elevados. Prado Jr. nos dá
uma descrição do que inclui seu arranjo espacial no período escravista:

Além das plantações, a fazenda conta com diferentes instalações e dependências


que fazem dela um conjunto complexo, vultoso e em grande parte auto-suficiente. É
a repetição do que já se observara nos engenhos de açúcar. Assim, as destinadas ao
preparo e beneflciamento do produto: tanques onde o grão é lavado logo depois da
colheita, terreiros onde ele é exposto ao sol para secar, máquinas de decorticação,
triagem etc. Além destas, a residência do proprietário (em regra absenteísta, mas
visitando sua propriedade na época da colheita, de maio a agosto), a senzala dos
escravos (grande edificação térrea com os alojamentos dispostos ao redor de um
pátio central) ou “colônias” de trabalhadores livres, agrupamentos de casinholas
em geral alinhadas ao longo de uma rua e dando o aspecto de uma pequena aldeia;
finalmente as cocheiras, estrebarias e oficinas diversas de carpintaria, ferreiro etc.
Tudo isso forma uma aglomeração que nas fazendas importantes toma vulto, abrin­
do uma clareira de habitações e edificações em meio da floresta de cafeeiros que
as cerca de todos os lados. Exatamente como o engenho de açúcar, a fazenda de
café é um mundo em miniatura quase independente e isolado do exterior e vivendo
inteiramente para a produção do seu gênero (Prado Jr., 1961).

Herdeira de tudo que a secular exploração do trabalho escravo acumula nas


plantations canavieiras, a fazenda do café está em franca expansão quando nas
demais áreas o escravismo já se decompôs e deu lugar às formas do campesinato
que substituem o trabalho escravo . Por isso, aqui é onde a abolição encontra mais
resistências, porém onde a nova ordem nasce por isso mesmo de modo mais radical.
No espaço cafeeiro esta nova ordem vem na forma do colonato, iniciando sua meta­
morfose logo após a cafeicultura atingir o planalto na região de Campinas. Aí, en­
tre 1847 e 1857, na Fazenda Ibicaba, situada onde hoje se encontram os municípios
118 A FORMAÇÃO ESPACIAL BRASILEIRA

de Limeira e Rio Claro, de propriedade do Senador Vergueiro, ocorre a malograda


tentativa de substituir o trabalhador escravo pelo dos parceiros. Mas é somente nos
anos 1870, quando a mancha cafeeira desloca-se para instalar-se nas áreas de terra
roxa de Ribeirão Preto, que se inicia o emprego definitivo do trabalho assalariado
na cafeicultura, para tanto apelando-se para a imigração italiana. Golpeando o
regime escravocrata em seu próprio centro de gravidade, a cafeicultura capitalista
desde então acelera sua marcha.
Uma forma específica de binômio latifúndio-minifúndio tem lugar, num típico
mecanismo de transição em que relações contratuais de salário se combinam a re­
lações de trabalho ainda de certo modo campesinas. O processo é tão simples quan­
to conflitivo. O Estado, atuando como intermediário, divulga e custeia no exterior
a vinda do imigrante italiano, cobrindo as suas despesas de transporte e de subsis­
tência até que, chegando a São Paulo, seja contratado pelos cafeicultores. Trata-se,
como diz Prado Jr., para diferi-la da modalidade de imigração que vai promover
a formação de colônias italianas no Sul, de uma “imigração subvencionada”, um
mecanismo em que o Estado» arca com qs dispêndios de formação de mercado de
trabalho livre, com isso cumprindo sua função de criar ou mediar condições gerais
de reposição de força de trabalho para o uso do capital. Uma vez contatado pelo
cafeicultor, o colono com ele assina um contrato, numa caderneta, segundo o qual
este obriga-se a cuidar de um número estabelecido de pés de café, com o direito de
em troca receber um salário fixo, com adicionais a cada pé de café a mais, além de
uma parcela de terra no interior da fazenda de café para plantio de policultura de
subsistência, de seu inteiro domínio (Monbeig, 1984).
Lembrando o conhecido padrão binomial, põem-se nesse arranjo espacial, lado
a lado, a grande e a pequena lavoura. Há, entretanto, aqui no espaço cafeeiro, uma
radical diferença quanto ao funcionamento desse binômio frente ao do ambiente
nordestino, que reside justamente na possibilidade que este dá ao colono de aquisi­
ção de terras. Movido por essa perspectiva, a este interessa que os cereais da poli­
cultura sejam plantados intercaladamente ao café, nas “ruas” do café, uma vez que
ficam assim suprimidas as distâncias respectivas entre uma e outra culturas, e com
isso o tempo de deslocamentos, podendo o colono ao tempo que se dedica a uma
dedicar-se a outra, ganhando salário adicional com uma e com a outra gerando ex­
cedente para a venda, aumentando sua possibilidade de acumular e comprar terras.
Por isso, lutará com as armas disponíveis por este arranjo espacial, pelo mesmo
motivo se voltando contra ele o cafeicultor, ao qual interessa ceder terra para
policultura fora e distante das fileiras do café, o que torna este arranjo intercalar
uma das contradições motoras da marcha cafeeira. Move o cafeicultor o interesse
A marcha do capitalismo e a essência econômica da questão agrária no Brasil 119

de reter o colono numa conjuntura marcada pela escassez de força de trabalho, E


ao colono a consecução daquilo que o motivara a migrar. Decidirá esta contenda
a própria dinâmica vegetativa do cafezal, uma vez que o pé de café, ao atingir no
quarto ano de crescimento sua altura normal, com esta sombreia as “ruas”, impe­
dindo seu uso agrícola. Por isso, terminado o prazo contratual, estabelecido para
um ano, a tendência do colono é deslocar-se para as frentes de expansão da marcha
cafeeira, onde encontra cafezal novo e maior chance de obter o arranjo intercalar
desejado. Assim o esquema do binômio se somando às causas da aceleração inau­
dita da marcha cafeeira quando esta atinge o planalto.
A ele soma-se, sobretudo, à especulação fundiária. Aqui, o agente é o próprio
capital cafeeiro, representado no estrato superior dos cafeicultores. Estes, abrindo
o leque do movimento acumulativo, dirigem os lucros auferidos com as exporta­
ções cafeeiras na direção do abarcamento de todos os segmentos em que se divide
o movimento da reprodução ampliada do capital envolvido no espaço cafeeiro.
Assim, abrem empresas de exportação-importação, fundam bancos para financiar
os demais cafeicultores, investem em indústrias e instalam a rede ferroviária de­
mandada pela distância aos portos que vem com a interiorização crescente da
cafeicultura. Fazendo a ferrovia chegar à frente da linha de fronteira, aí compram
e loteiam as terras que serão demandadas para novos plantios, especulando e for­
jando artificialmente a valorização da terra e auferindo com isso enormes margens
de lucros.
Governado por esta dinâmica, frequentemente o espaço cafeeiro ganha um am­
plo espectro de cafezais em diferentes estágios de maturidade. Reunindo desde
frações de áreas de café velho até as de plantio recente e um ritmo de abandono e
novo plantio em que a renda fundiária tende sempre ao nível abaixo da média, for­
jando um ritmo correlato de subida e descida na taxa de lucros que alterna euforia
e crise em curtos espaços de tempo.
Três sucessivos planos de valorização do café são assim postos em prática em
face disso a partir de 1906. Que rejeitado no primeiro, acaba por envolver o Estado.
Este passa a intervir seguidamente na oferta, via formação de estoques, com o fito
de dar estabilidade sistêmica ao preço do café e à economia cafeeira, que ao fim
apenas alimenta o ciclo da crise, num quadro paradoxalmente generalizado de
euforia especulativa que lança a cafeicultura a um estado de superprodução sem
retorno.
É, porém, esse mesmo quadro que abre para o aprofundamento da acumulação
primitiva no planalto, levando o ciclo cafeeiro a desaguar num processo de indus­
trialização acelerado. Comprando e estocando café para manter em nível elevado o
12 0 A FORMAÇÃO ESPACIAL BRASILEIRA

preço da saca, porém pagando este preço fictício com recursos oriundos dos impos­
tos de importações-exportações cobrados a outras áreas, o Estado subsidia a espe­
culação cafeeira através de um expediente que significa socializar a crise cafeeira
nacionalmente, distribuindo inter-regionalmente seu custeio por todas as regiões
exportadoras numa espécie de transferência de renda para fins de acumulação ca­
feeira privada em São Paulo. Como que numa reedição modernizada das políticas
de socialização de crise plantacionista para as macroformas coloniais passadas. Já
instituída como polaridade econômica e política do país pelo simples fato de ter-se
constituído em seu centro de gravidade, a cafeicultura passa agora a tomar-se um
grande polo de expropriação de frações crescentes de excedentes produzidos por
outras frações de espaço do país, como um tributo pago por seus agentes econômi­
cos aos que especulam com o café em São Paulo. Acumulando-se no planalto uma
densificação inaudita de capital maior que a do próprio tecido do espaço cafeeiro.
Transformada de especulação produtiva em especulação financeira, dela parti­
cipam grandes cafeicultores e grandes bancos internacionais, que também reticen­
tes quanto ao primeiro plano passam a partir do segundo a financiar os déficits de
caixa do Estado e os investimentos em capital fixo plantados no espaço cafeeiro,
exigindo em troca o direito de administrar os estoques de café, liberdade para es­
pecular com os preços do produto no comércio internacional e margens de frações
ciescenLes de i enda Uansiei ida de todas as regiões exportadoras para debelamento
da crise cafeeira no planalto. Assim acabando por forjar o nascimento da hegemo­
nia do capital financeiro sobre a sociedade brasileira. E por meio deste a fonte que
vai alimentar o financiamento da indústria no planalto paulista.
A crise terminal da cafeicultura é também do monopólio da monocultura e da
grande propriedade monocultora no planalto. A crise provoca a fragmentação da
propriedade. E face isto o espaço agrário ganha um novo desenho. Sobressaindo-se
o aparecimento de novas formas de cultura, apoiadas no desdobramento da grande
em médias e pequenas propriedades. Nasce, assim, uma divisão intra-agrícola de
trabalho que vai ser a retarguarda do desenvolvimento da indústria. A qual junta a
força de trabalho liberada. E o capital, transferido da acumulação cafeeira amplia­
da pelos planos de valorização. E, então, o quadro de classes sociais e institucional
que vai empurrar a industrialização sempre para frente, de que os entreveros da
Revolução de 1930 e Constitucionalista de 1932 são parte integrante, estilhaçando
e reordenando o quadro de pactos e alianças do Estado plantacionista.
A reordenação pactuai vem em nível nacional, com a nova frente das oligar­
quias rurais e urbanas nascidas da acumulação primitiva, e local, com o espectro
das classes do planalto seja rurais da modernização e seja urbana igualmente tra­
A marcha do capitalismo e a essência econômica da questão agrária no Brasil 121

zido pela acumulação primitiva no âmbito cafeeiro, num bloco histórico de fundo
industrial-oligárquico. Bloco que trata, assim, de estruturar o aparelho do Estado
na forma que cumpra a função de repor as condições gerais da acumulação, agora
no sentido do arranco industrial. Faça da indústria e da agricultura duas vertentes
que se integrem e interajam no ritmo orgânico da reprodução comandada pelas
necessidades do capital industrial, a agricultura numa forma em que seu excedente
se incorpore incessantemente à formação do capital fabril e a indústria tecnifique o
processo produtivo agrícola e o seu ininteruptamente. Ponha em ordem as normas
da divisão territorial do trabalho e das trocas de mercado numa escala sucessiva­
mente ampliada. E leve a roda das forças produtivas a mover-se na sobreposição
crescente ao ritmo movente do espaço nacional.
É neste plano pactuai que a acumulação pós-cafeeira abre para a combinação
espacial desigual que já nos anos 1930 coloca o planalto paulista à frente da in­
dustrialização nacional. O fato é que a cafeicultura por si mesma não introduz no
planalto senão margem restrita de meios de industrialização. Produto que só exige
uma indústria de beneficiamento primário, não requerendo ele mesmo processa­
mento local, o café, mesmo com o trabalho assalariado do colonato, em si não gera
indústrias além das que vemos nos demais espaços plantacionistas. Por isso, não
veremos surgir em São Paulo senão em 1907 um parque industrial significativo.
Não é no espaço cafeeiro e sim no canavieiro-algodoeiro nordestino que a in­
dustrialização tem seu ensaio inicial. As pesquisas e reflexões sobre o processa­
mento histórico do capitalismo no Brasil têm-se dedicado a responder as razões da
concentração industrial em São Paulo. Mais frutífero seria talvez indagar porque
não no Nordeste. Quando, porém, em 1930-1932 se refaz a estrutura do aparelho
federal do Estado, a oligarquia industrial paulista está presente na composição do
poder, a tanto terá crescido. É quando São Paulo assume a dianteira da industria­
lização brasileira, o Nordeste industrial definhando e ficando progressiva mente
para trás. Há, portanto, uma inversão no tempo. A transposição dos momentos
não é todavia imediata, sendo antes processual, correndo por toda a primeira vin­
tena do século uma dinâmica de expansão industrial que se dá na esteira e sob o
benefício da polaridade cafeeira sobre o quadro nacional. Combinando-se a forma
avançada como a relação indústria-agricultura se dá com a crise cafeeira em São
Paulo com a presença cada vez mais visível da força auxiliadora do aparato federal
do Estado. Num desdobramento da política dos planos de valorização do café na
forma moderna do financiamento da importação de máquinas para implementação
de indústrias e investimento de infraestrutura com recursos confiscados à agricul­
tura nacional.
122 A FORMAÇÃO ESPACIAL BRASILEIRA

É assim que a relação de ordenamento vai transbordar territorialmente do


planalto de São Paulo para os espaços circunvizinhos, no sentido de um raio de
abrangência da relação indústria-agricultura que se estende da faixa imediata dos
estados fronteiriços de Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso aos estados sulinos, num
ensaio de complementaridade que com o tempo ganha a uniformidade do Centro-
Sul, do ponto de vista agrícola. E do ponto de vista da força de trabalho para a
região Nordeste. À medida que o binômio latifúndio-minifúndio montado à base
do colonato vai desaparecendo no planalto.
As áreas agrícolas e pastoris do planalto mineiro incorporam-se à polaridade
carioca e paulista já logo após o declínio da mineração, transferindo escravos e fa­
zendas de gado para a nascente cafeicultura do vale do Paraíba e gado para suprir
de alimentos o centro urbano do Rio de Janeiro, numa contrapartida de mercado
que reforça a tendência ao desenvolvimento da indústria de laticínios no planalto
mineiro, bem como excedente de gado que do oeste mineiro migra para o centro e
oeste paulista. Quando cessa a imigração italiana na década de 1920 e as fazendas
de café passam a ter que incqrporar forç^de trabalho imigrante das áreas decaden­
tes do país, é do sul de Minas que primeiramente saem as levas de trabalhadores
que se transferem para as fazendas de café do planalto de São Paulo. E uma parte
da força de trabalho que vai alimentar as indústrias do Rio de Janeiro. A marcha
da industrialização que leva a vanguarda do desenvolvimento capitalista para São
Paulo para aí tudo então canaliza, as áreas de Minas Gerais indo a reunir-se às da
diversificação agrícola do planalto, até incorporar-se à divisão do trabalho e das
trocas que aí está nascendo. Diminuído o ímpeto mineiro, a atração de força de tra­
balho se intensifica rumo às áreas nordestinas em crise, de onde já na fase inicial
do café vem a leva de trabalhadores escravos que vão formar as fazendas cafeeiras-
do período escravocrata.
É porém a divisão intra-agrícola de trabalho o peso de maior presença das inte­
rações espaciais nesse momento de arrancada industrial do planalto de São Paulo.
Reúnem-se, nesse amplo leque da divisão de trabalho intra e extralocalmente: 1)
a policultura intercalar da frente cafeeira que nos anos 1930 chega ao norte do
Paraná, embora aí já não mais ligada ao latifúndio, e a que surge seja nas áreas
relegadas pela cafeicultura, dado sua baixa .fertilidade, e seja nas emersas da frag­
mentação da grande propriedade, esgotadas e deixadas pára trás pela marcha cafe­
eira; 2) as culturas industriais que surgem com a diversificação de cultivos a partir
da crise cafeeira, como a pecuária inicialmente de corte e depois a leiteira do vale
do Paraíba, a de cítricos no centro-leste do planalto, a da cana nas áreas centrais, a
do algodão e do café no oeste; e, ainda, 3) as que vão surgindo nas áreas circundan­
A'marcha do capitalismo e a essência econômica da questão agrária no Brasil 123

tes dos estados vizinhos, até onde chega a influência crescente de São Paulo, como
a do café no norte do Paraná, de cereais e gado de corte no sul (Dourados) e sudo­
este (Pantanal) do Mato Grosso e de cereais (arroz) no sul de Goiás (Mato Grosso de
Goiás). Nessa ampla área, cujo arco se expande progressivamente, transbordando
no tempo para além do Estado de São Paulo, extraordinária divisão intra-agrícola
de trabalho tem lugar, indicando a forte integração agricultura-indústria que desde
então fará de São Paulo o centro de gravidade da economia nacional.
Mas vai até os limites fronteiriços gaúchos o arco dessa divisão territorial do
trabalho até onde chega a área de interação espacial da industrialização paulista,
rumo ao quadro mais amplo que irá compor à luz do eixo agricultura-indústria o
espaço centro-sulino.
Um eixo de tendência inicial mais abrangente, que aos poucos vai ganhando
um tom mais centro-sulino de interação mais constante. Abrindo-se em sua acu­
mulação primitiva de capital tanto para o Rio de Janeiro quanto para São Paulo, a
produção agropecuária sulina chegará mesmo para além desses limites, alcançan­
do, como vimos, o Norte e o Nordeste.
Inicialmente o movimento da acumulação primitiva sulino fica contido nos ní­
veis pontuais dos núcleos coloniais estaduais, só depois irradiando-se para hori­
zontes mais regionais de dimensão sulina, primeiro nos quadros da navegação de
cabotagem, e, após 1910, com as ferrovias, por rotas terrestres, até a acelerada
integração extrassulina com o transporte rodoviário. O Rio Grande do Sul é o
exemplo típico dessa fase local, depois regional e a seguir centro-sulina da acumu­
lação primitiva do Sul.
A acumulação primitiva aí está relacionada inicialmente a um campesinato for­
mado através de núcleos de imigrantes, em particular alemães e italianos, que vão
se localizando em lugares e momentos diferentes nos três estados sulinos no correr
do século XIX. Antecede-os, mas em menor grau de importância neste sentido, a
imigração açoriana. Esta cobre a segunda metade do século XVIII e relaciona-se
essencialmente à estratégia imperial de povoamento das áreas de fronteira. Já os
fluxos migratórios de alemães e italianos se relacionam à dupla estratégia de cobrir
a fronteira e ensaiar a metamorfose do regime de trabalho no Sul, a imigração
alemã no curso da primeira metade do século XIX e a italiana no curso da segunda
metade do século XIX.
A colonização açoreana inicia-se em 1746-48 e encerra-se no começo do século
XIX. Cada família recebe uma gleba de cerca de 200 ha, distribuindo-se pelo lito­
ral de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul em inúmeras e densas comunidades.
Aí, dedica-se à policultura de subsistência e pesca no litoral de Santa Catarina e
124 A FORMAÇÃO ESPACIAL BRASILEIRA

policultura com destaque para o trigo no litoral do Rio Grande do Sul, de onde,
findas as guerras platinas, migram para a campanha, requerendo sesmarias e indo
então constituir “o tronco de várias atuais famílias de estancieiros”, formando um
arco que se alonga pelo litoral e inflete por terra pela linha de fronteira, como
observa Orlando Valverde: “De fato, a colonização açoreana da costa sul foi parte
de um plano vasto de defesa do território português na América do Sul, onde quer
que ele estivesse ameaçado”. A que acrescenta: “Ademais da ocupação efetiva do
solo, a colonização açoreana proporcionava grandes contingentes de soldados, bem
como áreas de abastecimento de víveres, junto aos possíveis campos de batalha”
(Valverde, 1958).
As colonizações alemã e italiana irão ocupar as terras mais ao norte, igualmente
interiorizadas do planalto meridional. Os primeiros núcleos são os de colonização
alemã, que se sucedem pela primeira metade do século XIX. Estes, multiplicam-se
entre 1824 e 1859 pelos trechos serranos das encostas que bordejam o planal­
to meridional, num arco de longa curvatura que vai do norte de Santa Catarina
(Joinville) às fronteiras continentais do Rio Grande do Sul (Santa Maria). Já a
colonização italiana estende-se pelo período 1870-1920, evoluindo, no que toca à
formação da moderna policultura camponesa, em colônias localizadas em áreas do
topo do planalto, do Rio Grande do Sul ao Paraná.
Alemã ou italiana, a colonização inaugura nas terras do Sul um novo padrão
de arranjo espacial, próprio das comunidades camponesas familiares autônomas.
Nada aqui assemelha-se ao padrão latifúndio-minifúndio característico das macro-
formas do espaço escravista-exportador ou delas egressas. Uma dada área extensa
é dividida em lotes pequenos (35ha em média), incluindo o traçado de estradas des­
tinadas ao escoamento da produção, sobretudo porque os lugares escolhidos geral
mente estão afastados dos centros mais povoados, onde as famílias de imigrantes
são instaladas. Uma vez assentada no seu lote, a família imigrante organiza uma
típica unidade camponesa de produção e consumo de molde europeu, adaptada
entretanto às condições locais. Seguindo um processo histórico comum de monta­
gem da organização espacial, que Waibel classicamente captou em suas pesquisas,
a colonização inicia-se com a abertura do roçado na mata para substituí-la pela
policultura de subsistência. Planta-se feijão, mandioca, batata e milho, este para
nutrir a criação miúda (aves e porcos), a isto limitando-se a relação lavoura-criação.
Industrializa-se caseiramente as sobras. Comerciantes ambulantes intercambiam
os produtos dos camponeses pelos que estés necessitam, como utensílios. A den-
sificação das relações amplia a rede de estradas e das trocas. A policultura ainda
mais se diversifica, para introduzir entre outras a cultura do trigo. O comerciante
A marcha do capitalismo e a essência econômica da questão agrária no Brasil 125

se instala nos cruzamentos da rede e aí se fixa com seu negócio, criando pontos de
referência da movimentação das trocas no núcleo. Sob esse estímulo, os colonos
introduzem o arado de tração animal (cavalo) na lavoura e a carroça de quatro
rodas num sistema de circulação que servirá para levar os produtos ao mercado e
a família às festas e à igreja. É quando a limitação do tamanho da propriedade à
rotação de terras força a família camponesa a migrar para outra área ou a evoluir
para a rotação de culturas. Esta vem com a introdução de leguminosas na lavoura e
a associação com a pecuária, para o fornecimento do adubo. A paisagem fica mais
complexa, compondo-se agora do xadrez das culturas e das instalações da pecuária,
em particular a leiteira, dado a exiguidade da propriedade exigir pecuária especia­
lizada e sua estabulação. Junto, vem a indústria. Esta logo cresce e transborda do
limite caseiro, criando um ramo próprio com capitais vindos tanto da acumulação
mercantil quanto da reunião dos camponeses em cooperativas, fundando com ela
uma divisão do trabalho assentada numa relação cidade-campo que instaura novo
patamar de organização do espaço.
Leva tempo, entretanto, este desenvolvimento. E mesmo quando este ganha
amplitude, pouco extravasará a escala local-regional inicialmente. De modo que
durante todo o correr da segunda metade do século o isolamento cultural será a
característica dos núcleos coloniais, tanto de alemães quanto de italianos, seja no
Rio Grande do Sul e Santa Catarina, e de eslavos e poloneses no Paraná
É então que o Estado intervém, promovendo as articulações intrapontuais e de
escala vertical que levará as relações locais a regionalizar-se e assim aos poucos
ganhar o nível centro-sulino. É o que vemos ocorrendo no Rio Grande do Sul, onde
a virada do século XIX para o XX registra o declínio das charqueadas, um produto
de mercado nacional com referência então de economia estadual, e a necessidade
de reordenar-se essa economia em termos estruturais mais amplos, na forma da
implantação de uma ramificada rede de ferrovias que promova as interligações das
áreas intra e extraestaduais. É assim que se interligam as áreas coloniais do pla­
nalto com as de pecuária da campanha, abrindo o mercado desta para a pequena
produção camponesa imigrante. E em consequência proliferam por todos os cantos
as indústrias locais, todas calcadas nas respectivas produções agrícolas, numa in­
tegração e diversidade de relação agricultura-indústria que fará do Rio Grande do
Sul um dos principais abastecedores de meios de subsistência aos grandes centros
industriais e urbanos do país. Mas particularmente aos centros urbano-industriais
paulistas. Juntando numa mesma divisão territorial de trabalho e de trocas de es­
cala centro-sulina o processo até então espacialmente segmentado da acumulação
primitiva.
126 ■ A FORMAÇAO ESPACIAL BRASILEIRA

A INTEGRAÇÃO MONOPOLISTA-FINANCEIRA E
O NOVO MODO DE ORGANIZAÇÃO DO ESPAÇO

A década de 1950 vai conhecer a integração de escala que irá juntar essa evolução
desigual-diferenciada do processo de acumulação primitiva, arrumando os capitais
então organizados num parâmetro tipicamente molecularizado, face o seu berço
plantacionista, num todo unificado. E o vetor é a integração de todos os pedaços de
espaço numa divisão territorial do trabalho e de trocas nacional única.
Se o processo da acumulação primitiva segue essa face molecularizada é por­
que o seu conteúdo de classe traz a marca indelével da presença das elites agrárias.
A crescente interdependência entre os segmentos de áreas e setores que vai se
abrindo em leque na medida mesma que o processo do desenvolvimento do capi­
talismo se aprofunda, ampliando o intercâmbio dos produtos recíprocos e estabe­
lecendo uma imbricação entre os compartimentos de divisão interna de trabalho e
de trocas, aos poucos vai vencendo e integrando essa fragmentaridade econômico-
-demograficamente ainda dispersa.
O centro de impulsão é ali onde melhor se dê a identidade entre divisão nacional
de trabalho e mercado, mais levando o processo da acumulação primitiva a chegar à
uma forma de capitalismo plenamente desenvolvido. Aí se instalando a fusão mono­
polista que engendra a relação entre a indústria e o capital financeiro. E aí de come­
ço se extinguindo as componentes da molecularidade. Dois vetores particularmente
têm para isso importância: a proletarização campesina que gera em escala global a
força de trabalho livre e a concentração-centralização industrial que diferencia ao
tempo que integra as empresas em diferentes áreas e setores produtivos.
A expulsão com que se processa a proletarização do campesinato é a decorrên­
cia direta do aprofundamento da divisão local do trabalho. Todavia, é um processo
que se dá dentro dos contornos de divisão do trabalho dos movimentos regionali­
zados de acumulação primitiva, variando no seu formato segundo esse contexto. É
assim que no planalto paulista tem um caráter geral de abrangência do colonato,
ao passo que no âmbito nordestino tem caráter parcial, atingindo parcela das for­
mas de trabalho egressos da abolição da escravatura e mantendo outra parcela nos
termos instituídos, proletarizando e liberando a primeira e contendo e mantendo
a segunda dentro das grandes fazendas de lavoura da mata e de gado do sertão
como população condiceira. De modo que no planalto paulista é um processo que
vai significar a transferência de força de trabalho do campo para cidade numa
absorção pela indústria e economia urbana aí em desenvolvimento. Enquanto que
no espaço nordestino vai significar a liberação sem a condição de absorção pela
economia industrial e urbana local, proletarizando a força de trabalho campesina
A marcha do capitalismo e a essência econômica da questão agrária no Brasil 127

para oferecê-la quase in totum como reserva de força de trabalho para a concentra­
ção industrial em formação no planalto paulista, via sucessivas ondas de migração
que vai transformar o Nordeste na grande fonte de força de trabalho para a indus­
trialização paulista. No todo do espaço brasileiro, entretanto, trata-se da proleta-
rização do campesinato que acompanha o começo de tecnificação e especialização
produtiva da agricultura consorciada numa divisão e integração mais avançada do
trabalho com a indústria, cujo resultado é a mobilidade territorial do trabalho que
aqui exprime-se no êxodo rural e acolá na migração rural-rural no modo próprio
de passagem da fase da mais-valia absoluta para a da mais-valia relativa da eco­
nomia nacional. Vale dizer, de uma fase de forças produtivas ainda não de todo
capitalistas para uma outra de forças produtivas capitalistas inteirizadas. E assim
de uma fase ainda subsumida pelo capital mercantil para a em que com o capital
industrial se abre e irrompe no seu todo a face da subsunção financeira (Mapa 3).
128 A FORMAÇÃO ESPACIAL BRASILEIRA

É a esta passagem que Lênin designa “a limpeza das terras” para o capitalismo,
que, uma vez completada, instaura a agricultura em moldes capitalistas. Todavia,
esta só se assenta quando a par e articuladamente a esta “limpeza” geradora do
proletariado (pressuposto do livre mercado de terra, capitais e força de trabalho)
a agricultura absorve a tecnologia de escala industrial (pressuposto da mais-valia
relativa). O ponto do espaço nacional onde este duplo processo primeiro se efetiva
é onde se polariza o comando do conjunto do movimento, uma vez que na continui­
dade da progressão vai carreando para si parcelas crescentes dos excedentes seja
de força de trabalho e seja de alimentos aqui e ali produzidos.
Desde os anos 1920 mal se esconde dentro da molecularidade o dreno de ex­
cedentes que vai se transferindo e SE incorporando à formação do capital em São
Paulo. Se neste período a face financeira está oculta ainda no subsídio que o Estado
passa À região cafeeira na forma da política de preços artificiais do café, a face
mercantil transparece já na estatística do saldo das trocas entre São Paulo e os de­
mais estados. E, mais ainda, na das levas de imigrantes que para aí afluem vindas
inicialmente de Minas Gerais, depois do Nordeste, de que a rodovia Rio-Bahia é o
retrato na paisagem, do Sul, por fim de todo o espaço brasileiro.
Confrontando a divisão intra-agrícola do trabalho no planalto paulista com a
de qualquer outra fração do espaço nacional, entende-se a razão dessa polaridade.
Que daí paia diante nào cessa, até evidenciai-se em definitivo a partir nos anos
1950. Quando a concentração de estabelecimentos industriais na área urbana de
São Paulo atinge já mais da metade de todo o parque industrial brasileiro. É jus­
tamente em São Paulo onde os pressupostos da instauração do modo de produção
capitalista primeiro completam sua formação no país. Precisamente isto revelando
a paisagem do seu espaço, seja na diversidade do seu amplo arranjo agrário e seja
na escala de concentração técnica do seu arranjo fabril.
E assim a razão porque embora as primeiras manifestações industrializantes
possam ser detectadas nas áreas urbanas nordestinas, não é aí onde o capitalismo
vai efetivamente florescer. Freadas pela forma ambígua como se dá a liberação da
força de trabalho campesina seja na zona da mata canavieira e seja na zona serta­
neja pecuarista. Resumindo este freio, diz-nos Oliveira:

Essa breve digressão serve para apontar o fato de que, emergindo a economia do
“Nordeste”algodoeiro-pecuário, que se centrava nasforças de reproduçãojá descritas,
produziu em primeiro lugar uma mão de obra que, pelas flutuações internacionais
da economia algodoeira-pecuária, converteu-se parcialmente em força de trabalho
disponível nas entressafras para alugar-se na produção da cana; a constituição des­
A marcha do capitalismo e a essência econômica da questão agrária no Brasil 129

se semiproletariado levou para o coração da economia capitalista do açúcar-têxtil


uma forma de mão de obra que não era força-de-trabalho, que não era totalmente
mercadoria, já que cuidava de sua própria subsistência. Tendo agora como produtor
um contendor não-antagônico, o capital industrial do “Nordeste” açucareiro-têxtil
caiu na armadilha preparada pela “região” que lhe era concorrente na hegemonia
das forças produtivas e das relações de produção; e recriou, no seu interior, formas
de trabalho semicompulsórias, o “cambão”, mercados “cativos”de trabalho nas usi­
nas, formas de apropriação e expansão do trabalho não-pago caracterizadas pelo
“barracão”, em que o trabalhador passou a ser pago em espécie. Recriou, portanto,
formas de defesa anticíclicas não-capitalistas: não ocorria o desemprego, nas crises
da economia açucareira: ocorria apenas a volta de parte da população trabalhado­
ra às "economias de subsistência”, a formas quase-naturais. Essas formas de defesa
foram-lhe extremamente eficazes para não desaparecer, mas cobraram seus direitos
na medida em que a impediam de expandir-se. (Oliveira, 1977)

A que acrescenta:

...a hegemonia do Centro-Sul sobre a burguesia industrial do Nordeste começa a


ocorrer exatamente pela troca de mercadorias, pela invasão de mercadorias pro­
duzidas no Centro Sul, onde a produtividade do trabalho estava cm crescimento.

Assim,

...enquanto ocorre no Centro-Sul esse desdobramento e aprofundamento da força de


trabalho como mercadoria, no Nordeste açucareiro têxtil essa nova circularidade
vê-se embotada pelo fato de que a forma do capital ali predominante acha-se em­
patada pelas formas não capitalistas de reprodução da própria força-de-trabalho.

Ao não operar a desterritorialização geral da massa trabalhadora capaz de


torná-la como um todo uma população livre para o capital, torná-la e ela mesma
capital variável, ficou bloqueada a possibilidade de baixar-se o custo e elevar-se a
produtividade nos termos próprios da mais-valia relativa, o todo do eixo indústria-
agricultura mantendo-se atrasado na forma da reprodução da força de trabalho
e da capacidade de competitividade e ritmo de circularidade que é um requisito
do salto qualitativo da fase da mais-valia absoluta para a relativa do movimento
acumulativo do capital. O avanço do capitalismo fica assim bloqueado no Nordeste
e franqueado no Sudeste, abrindo-se as comportas para a polaridade de São Paulo.
130 A FORMAÇÃO ESPACIAL BRASILEIRA

Mais que isto, as comportas da dissolução da molecularidade na globalidade do


espaço nacional. O todo do espaço nacional qualificando-se num quadro de combi­
nação desigual em tudo favorável aos capitais situados em São Paulo.
Daí que inicia-se nos anos 1950 a unificação do espaço nacional, com o planalto
paulista no centro. E numa via de homogeneização que vai fechando as indústrias
regionais em proveito da absorção de seus mercados pelas indústrias paulistas. E
daí que essa unificação do mercado nacional com centro nos capitais paulistas
levante a suspeição das outras formações regionais de um “colonialismo interno”,
travando-se um confronto político que vai constituir a questão regional que atra­
vessa a década de 1950 e domina toda a conjuntura dos anos 1960. Até que com a
integração dos anos 1970-1980 termina.
Uma conjuntura que vai ter sua melhor caixa de ressonância na literatura re­
gionalista, a obra romanesca produzida dos anos 1930 aos anos 1950, antecipando
os embates ideológicos dos anos 1950-1960 com enorme clareza e antecedência.
E dessa época a tese do “espaço arquipélago”, de forte colorido, tomada como
fundamento explicativo por um e outro lado. Uma tese que, enfim, justifica ai-
gumentos. De parte das burguesias regionais consideradas preteridas, trata-se de
uma herança do passado colonial, cuja consequência, por força das preferências e
abandono manifestados pelo poder público, é o subdesenvolvimento nelas impe-
rante. De parte do grande capital, trata-se de um atraso instado pela ausência de
relações mercantis internas decorrente do passado colonial, que deve ser supera­
do pela abertura de vias de comunicações e demais implementos infraestruturais
governamentais que integrem o atrasado ao moderno. Seja como for, é o fato que
revela ter-se completado o fundamental do processo da acumulação primitiva do
capital, ressonando o dobre de finados do período molecular.

A face camponesa
Se é assim entre as elites, não menos será com o campesinato, numa reação que
em 1955 vem em série na forma da criação das ligas camponesas, seguindo uma
linhagem de sindicatos rurais que vem dos anos 1940.
Não por acaso, seu foco genético e irradiador é o Nordeste. Daqui saem as mais
fortes reações regionalistas. E saem também os protestos organizados dos campo­
neses. E será o Nordeste a primeira região a motivar a criação dos organismos re­
gionais de planejamento, que igualmente irão proliferar nessa década. Criada sob
o calor dos protestos regionalistas e das lutás dos camponeses, a Superintendência
do Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE) surge de um plano essencialmente
redistributivo de população camponesa no interior do território nordestino, vindo
A marcha do capitalismo e a essência econômica da questão agrária no Brasil 131

a seguir a tornar-se um bastião de combate ao desenvolvimento regional desigual


para todas as regiões, excluído justamente o Sudeste.
Década rica de acontecimentos, justamente porque é a do salto de qualidade na
marcha ascendente do capitalismo no Brasil, os anos 1950 veem nascer o sistema
bidepartamentalizado da indústria, marcando o surgimento da força produtiva
capitalista (Tavares, 1978; Moreira, 1985). E portanto de auge da face dolorosa
para o campesinato, cuja expressão é o Estatuto da Terra (Lei 4.504/64), a nova lei
agrária através da qual o Estado toma para si a tarefa de orientar a fase decisiva da
limpeza de terras para o fim do desenvolvimento capitalista no campo brasileiro
(Moreira, 1986).
Trata-se de um conjunto de formas de intervenção voltadas para superar ou
recriar, a depender da região, o binômio latifúndio-minifúndio como estratégia
histórica de reprodução da força de trabalho no campo, ao tempo que de moderni­
zação permanente do latifúndio. E assim reestruturar-se a relação indústria-agri­
cultura da fase da mais-valia absoluta à luz da instauração da divisão territorial
nacional do trabalho e das trocas de base na mais-valia relativa que instituam por
fim as forças produtivas capitalistas em todo o espaço nacional brasileiro.
Eis porque torna-se mais intensa e nacionalmente generalizada a expulsão em
massa do campesinato, impondo-lhe a violenta mobilidade territorial que atinge
famílias camponesas inteiras. De que gaúchos e nordestinos são o melhor exemplo,
obrigados a migrar aqueles para as áreas distantes da fronteira agrícola do Centro-
Oeste e da Amazônia e estes em marcha ainda mais batida para os centros urbanos
do Sudeste.
Subvertendo o modo de vida do campesinato, transformado em boia-fria e
sem-terra em todas as áreas do país, a capitalização da agropecuária generali­
za a forma burguesa de propriedade rural como a base das relações no campo,
fundando-a diretamente na relação capital-trabalho e instalando o conflito de
terras como estado geral do meio rural no país (DTncao e Melo, 1977; Martins,
1981; Silva, 1982).

A face capitalista
A essência econômica do processo está se deslocando, portanto, dos mecanismos
da mais-valia absoluta, eivada ainda dos termos mercantis da acumulação primiti­
va, para os da mais-valia relativa, centrada na acumulação financeira. A limpeza
das terras para o capitalismo, efetuada nos parâmetros do caminho latifundiário-
-burguês, de pura e simples modernização da grande propriedade, e não do ca­
minho camponês-burguês, o da reforma agrária que redistribua a terra para a
132 A FORMAÇÃO ESPACIAL BRASILEIRA

capitalização à base da média e pequena propriedade capitalista, ganha então toda


sua intensidade.
Tudo à base da combinação das duas grandes forças sempre confundidas na
evolução histórica da rearrumação estrutural do campo brasileiro: o grande capi­
tal e o Estado. O primeiro via capitalização produtiva e o segundo via criação das
condições espaciais gerais da acumulação, agora na forma de um traçado nacional
dos transportes e do sistema de geração de energia à base das grandes usinas. É
assim que iremos ver multiplicar-se nos anos 1970-1980 as culturas da soja, arroz,
trigo, café e o gado bovino nas amplas áreas do planalto central, rumo à frontei­
ra da Amazônia, num deslocamento da fronteira histórica do leste para a ocupa­
ção generalizada do miolo do país nas terras do cerrado e da mata equatorial do
Centro-Norte.
Intensificando o nivelamento dos custos agrários em nível nacional, o consórcio
Estado-latifúndio modernizado avança sobre áreas da pequena produção campo­
nesa e até então ainda virgens da fronteira agrícola a relação agrária capitalista,
promovendo nesse formato de espaço agrário o caminho latifundiário-burguês
de “limpeza das relações nao-capitalistas”, que Lênin vê como modus operandi da
transformação agrária no campo russo dos finais do século XIX e começos do sécu­
lo XX. E vemos agora acontecendo no findar do século XX no Brasil (Velho, 1976).
Numa espécie de reprise de “fundo de colonização” e “fronteira agrícola” do
Centro-Leste russo no Centro-Norte brasileiro.

A face do conflito
Junto à expropriação e expulsão do campesinato próprias da modernização lati-
fundista chega também a violência dos conflitos de terras. Se não se registram as
longas rebeliões camponesas do passado - a de Canudos, em 1896 no sertão baiano,
dura dois anos, 1896-1897; a do Contestado, em 1912 no sertão catarinense-para­
naense, dura cinco anos, de 1912 a 1916; e a de Trombas e Formoso, em 1948 no
sertão goiano, dura oito anos, de 1948 a 1964 -, todas de caráter pontual, os con­
frontos camponeses de hoje são de caráter generalizado e permanente, expressan­
do a subversão igualmente simultânea e generalizada do modo de vida camponês
no todo do espaço nacional unificado pela ação concentrada da mais-valia relativa.
É assim que dos 23 milhões de trabalhadores (incluindo todas as formas sociais
do trabalho rural) hoje habitantes rurais do Brasil, 12 milhões são camponeses
sem-terra. E o restante são camponeses com pouca-terra. No geral trata-se de uma
imensa massa humana que se desloca demandando terra e trabalho pelo imenso
território do país, locacionalmente variada mas toda tendo em comum o plano de
A

A marcha do capitalismo e a essência econômica da questão agrária no Brasil 133

fundo da “limpeza” latifundiária-burguesa das relações agrárias no campo brasi­


leiro.
Muitos destes são habitantes atingidos pela ação do Estado de implantação de
infraestrutura (capital fixo espacializado), seja de rede de rodovias e seja de usinas
hidrelétricas de grande barragem, e jogados em locais sem condições ideais de
vida. Realizada para o grande capital e não para o campesinato, essa infraestrutu­
ra sempre redunda na expulsão maciça de comunidades camponesas ou indígenas
inteiras, quando não é pela especulação de terras que vem na esteira da implan­
tação viária ou usineira nos lugares antes isolados ao tecido do espaço nacional.
Expulsão sempre acompanhada da reação destes, nascendo nestas áreas muitos
dos polos de conflito. Um tema recorrente desde os anos 1940. É assim em 1945
com a revolta de Malacacheta (Teófilo Otoni), norte de Minas Gerais, relacionada
à abertura da rodovia Rio-Bahia; em 1948, com a revolta de Trombas e Formoso,
norte de Goiás, relacionada à abertura da rodovia Transbrasiliana, posteriormente
(1956) incorporada como trecho da rodovia Belém-Brasília; e hoje com as ações
de empate de seringueiros em Xapuri-Brasileia, no Estado do Acre, relacionada
à pavimentação do trecho local da rodovia 364, destinada a incorporar através
da rodovia internacional Brasil-Peru a produção agrária do planalto central bra­
sileiro aos mercados da Ásia oriental. São todas elas áreas cortadas por rodovias
r convulsionadas pela grilagem e especulação fundiária trazidas pela valorização
das terras vinda da ligação rodoviária. E é assim também com as áreas das comu­
nidades rurais de Sobradinho e ltaparica, desaparecidas sob os lagos de barragens
implantados pela Chesf e Codefasf, no vale do São Francisco; a área de ltaipu, de­
saparecida sob o lago de barragem implantado no vale do Paraná pela Eletrosul;
as áreas das 25 barragens levantadas no vale do Uruguai também pela Eletrosul;
a área de Tucuruí, sepultada no vale do Tocantins pela Eletronorte; a de Balbina,
no vale do Uatumã, pela Eletronorte; e a área dos Cararaô, projetada no vale do
Xingu pela Eletronorte, que motivou o protesto do I Encontro de Povos Indígenas
do Xingu reunindo oito nações indígenas contra a usina. Todas relacionadas a polí­
ticas de infraestrutura do Estado e de reassentamento implicando desestruturação
dos modos de vida via inundação de terras dessas comunidades camponesas ou
indígenas, com o explícito sacrifício destas.
São pontos de um tabuleiro de xadrez de um espaço nacional unitarizado pela
modernização agrária capitalista a que se soma a reação camponesa à usurpação
de suas terras pelo avanço pastoril ou de monocultura do latifúndio modernizado,
fora e dentro das áreas de fronteira da grande propriedade. Aqui é o campesinato
dominial, policultor de alimentos, o primeiro a ser atingido pela modernização
134 A FORMAÇÃO ESPACIAL BRASILEIRA

latifundista, uma vez que é sobre a parcela que este ocupa na grande propriedade
que a grande cultura de mercado de imediato amplia seus espaços, antes de buscar
áreas externas de expansão. Situadas dentro das terras do grande proprietário, e a
ele pertencentes, este as retoma para a expansão dos cultivos lucrativos, fazendo
dos minifundistas dominiais as primeiras vítimas da “limpeza” de terras da via
capitalista por cima. Expulsos das áreas que até então ocupavam como moradores,
meeiros, foreiros, pequenos rendeiros e até posseiros, resta-lhes-oferecer sua força
de trabalho à venda na própria grande propriedade transformada em empresa ru­
ral ou alhures, trabalhando como mão de obra volante ou somando-se ao exército
dos assalariados temporários que vão se amontando nas cidades rurais do roteiro
das safras. Quando não engrossando as fileiras dos que partem em demanda de
terras nas áreas da “fronteira agrícola” como posseiro.
Situados no quadro dessa dinâmica de territorialização da burguesia e dester-
ritorialização do campesinato, os seringueiros de Xapuri optam pelo contraespaço
do empate, forma de luta criada para bloquearem o avanço da “limpeza de terras”
nas áreas extrativistas da Amazônia. Que complementam com a estratégia da re-
. . * t*1
serva extrativista.
Em meio a esse pipocamento de conflitos de diferentes tipos, três grandes polos
de confronto assim se formam diante do avanço do capital agrário modernizado: o
noroeste gaúcho, o Bico de Papagaio e a Amazônia ocidental. Três polos que se dis­
tinguem pelo tipo de campesinato envolvido, projeto de reforma agrária e forma
tático-estratégica de luta. O noroeste gaúcho é o centro nevrálgico do nascimento
do Movimento dos Sem-Terra (MST), entidade criada pelo campesinato expulso de
suas terras pelo avanço da grande propriedade e cujo traço característico é a ocu­
pação, seguida da fixação da comunidade em assentamentos coletivos de pequenos
produtores familiares. As ocupações são a forma experimentada em ações de que o
movimento praticamente nasce, em Ronda Alta, Encruzilhada Natalino e Fazenda
Anoni, que logo se difunde como modalidade de ação no campo e transborda para
a cidade, onde é uma forma de luta histórica dos sem-terra urbanos ao redor da
constituição das moradias em favelas. O Bico do Papagaio é a área formada pelo
norte de Goiás, hoje Estado de Tocantins, sudoeste do Maranhão e sudeste do Pará,
onde concentrou-se um campesinato típico de fronteira agrícola. Aí, reagindo ao
avanço da grande propriedade pastoril e à derrubada de mata para a constituição
de pasto, este campesinato cedo passa à tática da ocupação, num confronto aberto
com as formas mais agressivas de avanço latifundista, que vão tornar o Bico do
Papagaio a área de maior violência de luta fundiária no campo brasileiro desde
os anos 1970. São dessa área os mais violentos registros dos conflitos de terra, in­
A marcha do capitalismo e a essência econômica da questão agrária no Brasü 135

variavelmente seguidos de assassinato de lideranças rurais (padres, sindicalistas


rurais e advogados sindicais) do país. Já a Amazônia ocidental é a área dos em­
bates dos seringueiros, aí situando-se Xapuri. Se o empate é a forma de ação que
consiste em por-se os seringueiros com mulheres e crianças frente ao avanço das
motosserras de modo a evitarem a derrubada da mata e com ela a expansão do
latifúndio pecuário sobre as terras da seringa, a reserva extrativista é uma espécie
de reforma agrária baseada na incorporação pública da terra, numa socialização
da renda fundiária absoluta. Tática e estratégia que fogem e inovam à forma de
luta agrária tornada histórica a partir da introdução do capitalismo no campo e na
cidade, numa similaridade com as ações tático-estratégicas das rebeliões comuni­
tárias de até Trombas e Formoso.
São áreas que se defrontam com a marcha forçada da expansão capitalista
que iniciada nos anos 1950 se acelera com as transformações técnicas da produ­
ção agrícola dos anos 1970, quando, numa maior integração entre a indústria e
a agricultura, a produção capitalista se moderniza em grande escala nacional. A
integração em que ao tempo que a agricultura se torna a retaguarda da indústria,
a indústria reciprocamente se torna a base de impulso da agricultura, numa pro­
gressão acelerada conjunta.

A face da burguesia a g rária


Nessa marcha em que, não necessariamente em linha reta, o capitalismo vai se
“depurando” de todas as formas de relação que lhe vede o caminho rumo ao flo­
rescimento à sua forma plena de desenvolvimento, o velho campesinato egresso
da transição capitalista aqui proletarizando e ali recriando o velho campesinato
egresso da transição escravocrata segue quatro caminhos distintos. A fração das
áreas antigas do plantacionismo no grosso se proletariza, alimentando o forte da
massa trabalhadora safrista que busca em perambulaçãó pelo campo vender sua
força de trabalho em períodos de safra das grandes culturas de mercado. A fração
restante que se refugia nas áreas de fronteira aí se reproduz como campesinato
migrante, alimentando a tradição do camponês posseiro que desde o começo
alimenta a franja da expansão agrícola posta à frente do avanço plantacionista,
hoje chegando ao seu limite com o fechamento das áreas virgens da fronteira. A
fração das áreas de colonização sulina em parte perde suas terras para a latifun-
dização, reagindo todavia à proletarização cabal através da tática de ocupação
das áreas de latifúndio improdutivo e transformação destas em assentamentos,
numa condição sociologicamente em aberto que levou-a ao designativo de sem-
-terra, formando o enorme contingente hoje organizado no MST. A fração restan-
136 A FORMAÇÃO ESPACIAL BRASILEIRA

te que se antecipa e vende suas pequenas propriedades nos campos sulinos para
investir em compra de terras no cerrado do centro do país, por fim, segue o rumo
da vinculação direta com o consumo de insumo industrial, emburguesando-se
e capitalizando-se rapidamente. É esta última que vai formar o grosso da bur­
guesia agrária mais moderna, pondo-se à frente das velhas elites plantacionistas
ao tornar-se o epicentro da forma avançada que a modernização capitalista em­
presta à agroindústria, através da centração do campo brasileiro na cadeia do
complexo agroindustrial (CAI).
No fundamental, é esta fração que pela forma como modernamente industria­
liza a agricultura dá o rumo geral da marcha capitalista nesta quadra da fase de
mais-valia relativa no campo. Trata-se da agricultura altamente incorporadora de
insumos industriais como maquinaria pesada, adubos químicos e defensivos agrí­
colas que vai levar a industrialização substitutiva de importações a completar-se
através da criação do setor da indústria para a agricultura, fazendo o mundo todo
entrar na era do agrobusiness. Um processo iniciado nos Estados Unidos nos anos
1950. E em curso acelerado no Brasil a partir dos anos 1970.
£ sobretudo por onde o Estado entra como êmulo, junto ao grande capital fi­
nanceiro. Para tanto, o Estado cria a política de crédito agrícola que vincula o
empréstimo bancário ao agricultor à obrigatoriedade deste investir o recurso na
modernização da agricultura, empregando-o obrigatoriamente em compras de in
sumos industriais. De modo a assim estimulá-lo, estabelece um sistema de emprés­
timo agrícola a taxa de juros negativos, isto é, abaixo da taxa média empregada
para o cálculo do empréstimo aos demais setores da economia. E assim leva a que
se acelere a incorporação das forças produtivas capitalistas, que mostravam-se já
excedentes no âmbito produtivo da indústria pela agricultura, numa espécie de
conclusão com fecho de ouro da constituição do capitalismo no Brasil sobre a base
da mais-valia relativa.

A marcha do capitalismo e o problema do


caráter da reforma agrária no Brasil

Encarando de modo direto e cru a revolução agrária camponesa como uma varie­
dade de transformação agrária burguesa, denomina-a camponesa-burguesa, Lênin
define-a como indiscutivelmente uma via eminentemente revolucionária, obser­
vando a respeito:
A marcha do capitalismo e a essência econômica da questão agrária no Brasil 137 * '

Com efeito, imaginemos concretamente o que significa na Rússia atual a “revolu­


ção agrária camponesa”, com o confisco das terras dos latifundiários. Não resta
dúvida de que no decurso de meio século o capitalismo veio abrindo caminho para
si, através da economia latifundiária, que, em geral e no conjunto, é, no momento
atual, indiscutivelmente superior à economia camponesa, não só no tocante ao
nível das colheitas (o que se explica em parte pela melhor qualidade das terras
dos latifundiários), como também no tocante ao emprego dos modernos instru­
mentos de trabalho e do sistema de rotação das culturas (culturas de plantas
forraginosas). Não resta dúvida de que a economia latifundiária se acha ligada
por milhares de laços não só à burocracia, mas também à burguesia. O confisco
solapa numerosos interesses da grande burguesia e a revolução camponesa leva
também, como assinalou com razão Kautsky, à bancarrota do Estado, isto é, à
perturbação dos interesses não só da burguesia russa, mas também de toda a
burguesia internacional. Compreende-se que, nessas condições, a vitória da revo­
lução camponesa, a vitória dos pequenos burgueses, tanto sobre os latifundiários
como sobre os grandes burgueses, exige um concurso particularmente favorável
de circunstâncias, exige hipóteses absolutamente extraordinárias e “otimistas” do
ponto de vista do filisteu ou do historiador limitado, exige um impulso gigantesco
de iniciativa camponesa, de energia revolucionária, de consciência, de boa orga­
nizarão c de I icu u Laçao popular.

Abstraindo as semelhanças formais, sempre perigosas como método, a reflexão


de fundo de Lênin serve para chamar a atenção para semelhanças e diferenças dos
caminhos da reforma agrária no Brasil nesta quadra final do século.
Duas grandes vertentes organizam as ações do movimento dos trabalhado­
res rurais no Brasil hoje: o MST e a Confederação Nacional dos Trabalhadores
na Agricultura (CONTAG). Sob a égide delas, três vetores centram a linha dos
programas de lutas: 1) a desapropriação e redistribuição das terras improdutivas;
2) a extensão dos direitos trabalhistas ao campo; e, 3) a instituição de políticas de
preços mínimos e custos compatíveis com a pequena produção. De um modo geral,
o MST tem dirigido suas ações para o ponto um, conduzindo a luta pelo rumo da
redistribuição de terras, através da tática das ocupações de terra a que se seguem
pressões pela sua regularização em assentamentos dirigidos pelos sem-terra aí ins­
talados. Os dois outros pontos têm sido levados sobretudo pela CONTAG, entidade
de forte caráter sindical.
Em que pesem conhecidas diferenças, MST e CONTAG têm em comum: 1) a cla­
rificação nem sempre definida da essência econômica da questão agrária, identifi-
138 A FORMAÇÃO ESPACIAL BRASILEIRA

cada genericamente como domínio monopolista da terra, e 2) o cuidado de evitar o


confronto centrando a bandeira no confisco das terras improdutivas.
No dilema de se visualizar uma transformação agrária no âmbito de uma eco­
nomia já fortemente impregnada pelas regras de mercado capitalista reside o es­
sencial dos cuidados visíveis na formulação das bandeiras. Se é assim com as for­
mulações políticas, não é assim com a prática de vida da economia já dominante de
mercado. E do envolvimento do Estado e do grande capital modernizado com esta
base já inteiramente alicerçada.
Só uma grande ilusão é capaz de obscurecer a compreensão de que mesmo uma
reforma agrária realizada pela via do confisco de terras impeça que seja um re­
forço da economia de mercado e que no limite esta trabalhe contra qualquer meta
de igualitarismo ou comunitarismo que se pense como projeto. Em contraposição,
só uma reforma agrária com a radicalidade do confisco é capaz de efetivamente
quebrar a espinha do poder monopolista e barrar as tendências que a marcha do
capitalismo traz de desaparição estrutural do campesinato pela via de sua prole-
tarização hoje generalizada. Que não nos enganem as estatísticas que mostram,
antes, o aumento crescente do campesinato quanto mais avança esta marcha do
capitalismo. Os números, quando muito, indicam a expressão numérica de um mo­
vimento, nunca o seu significado.
Ora, o programa agrário pautado por incidir sobre a redistribuição de terras (1)
improdutivas e (2) via indenização empaca num tema de definição controversa e
por isto de grande conveniência ao emperramento burocrático. Além de não ferir
de morte o sistema latifundiário, antes pressiona-o pela modernização, empurran­
do-o contra sua própria inércia cujos efeitos sobre a massa camponesa já vimos.
Até porque a teia que subsume a massa dominada rural no Brasil, a exemplo
do que vimos para o pequeno produtor de insumos industriais, é a forma peculiar
como o capital financeiro aqui se constitui, fundindo-se organicamente num só
tecido os monopólios terra-tenentes, industriais e bancários (no contexto mundial
origina-se da fusão dos monopólios industriais e bancários), o Estado sendo o orga­
nismo promotor de tal fusão e sua expressão política maior (vimos como o Estado
forjou a criação do ramo industrial de insumos agrícolas).
É essa essência econômica a força gigantesca contra a qual se luta, a rede de in­
teresses “não só da burguesia (nacional), mas também de toda a burguesia interna­
cional”, que só a quebra de laços contraria. Eis onde reside o erro da pressão tam­
bém sobre o Estado, primeiro porque não põe o seu caráter em questão e segundo
porque acaba por vir em reforço do seu papel tutelar sobre a sociedade brasileira.
Os acontecimentos de Xapuri põem em evidência o desacerto desse programa
A marcha do capitalismo e a essência econômica da questão agrária no Brasil 139

agrário. E onde pode levar ao consórcio do jogo eleitoral. Por força de definir-se o
campesinato como parceiro eleitoral é que se fez dissipar um dos raros momentos de
aproximação do operariado urbano à causa camponesa, ao endossar-se a imagem de
“ecologista”, “sindicalista ecologista”, “mártir da ecologia amazônica” e “Gandhi da
floresta” que se pôs sobre Chico Mendes e o movimento dos seringueiros.
Qual é, assim, a natureza do movimento que está em curso em Xapuri? Com
qual essência econômica se defronta? E o que tem em comum com os movimentos
de ocupação que pipocam em todos os cantos do espaço nacional neste final de
século? Ora, a tática do empate, esta rica criação popular de forma de luta, é o
modo como os seringueiros em seu próprio aprendizado resistem à “limpeza das
terras” pelos latifundiários para o capitalismo. “Limpeza das terras” de que a der­
rubada da floresta para substituir a mata pelo pasto é a “face ecológica”. É o que
se aprende com ele.

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140 A FORMAÇÃO ESPACIAL BRASILEIRA

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DO ESPAÇO DA MAIS-VALIA ABSOLUTA AO
ESPAÇO DA MAIS-VALIA RELATIVA
Os ordenamentos da geografia operária no Brasil*

Dois momentos distinguem a formação do espaço capitalista no Brasil, materiali­


zados em duas formas distintas de arranjo espacial, o da mais-valia absoluta e o da
mais-valia relativa, que alhures designei o espaço molecular e o espaço monopolis­
ta, respectivamente (Moreira, 1985).
O espaço da mais-valia absoluta se identifica pelas interações espaciais ainda
frouxas, marcadas por ensaios parciais de integração dentro de um todo estrutu­
rado pela ordenação mais de ocupação extensiva, seja na cidade e seja no campo,
face uma relação de integração indústria-agricultura, e então cidade-campo, ainda
inicial e pouco veilicalizada. Já o espaço da mais-valia relativa se identifica pelo
estado oposto, de uma relação indústria-agricultura de integração horizontal-ver­
tical realizada e em crescente aprofundamento à base de uma ocupação intensiva
seja do tempo do trabalho e seja do espaço tanto na cidade quanto no campo, com
reflexos globais sobre o todo.
Esses dois momentos da formação espacial enquadram dois momentos de geo­
grafia operária, igualmente dispersa no primeiro e concentrada no segundo. A ge­
ografia operária acompanhando a geografia da indústria, sua repartição espacial,
arranjo, ideologia e representação de mundo, modelada, todavia, no quadro social
e simbólico do todo urbano da cidade.
O sentido evolutivo do espaço brasileiro caminha, assim, da dispersão para a
integração nacional crescente, que marca a passagem da fase molecular da mais-
-valia absoluta para a integrado-concentrada da mais-valia relativa. E que hoje
se rearruma num retomo ao arranjo disperso de antes, agora porém a serviço
de autopreservação de um todo já integrado, num movimento vertical-horizontal

* Texto originalmente publicado na revista Terra Livre n. 36, ano 27, vol. 1, 2011, da Associação dos
Geógrafos Brasileiros (AGB).

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