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SANTOS, Boaventura. Democratizar a democracia.

Resumo do livro
Livro organizado com o objetivo de reunir experiências – realizadas em África do Sul, Brasil, Colômbia, Índia,
Moçambique e Portugal – de organizações e movimentos com o objetivo de analisar iniciativas em democracia,
sistemas alternativos de produção, multiculturalismo, justiça e cidadanias culturais, luta pela biodiversidade e novo
internacionalismo operário, que permitam a proposição de uma globalização alternativa.
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O caminho percorrido especialmente nas últimas décadas combinando e contrastando o avanço das tecnologias,
de um lado, e o regresso de doenças, da fome, da escravidão e do trabalho servil, de outro, escancara cada vez mais
a incapacidade da modernidade oferecer aquilo que prometera: o progresso racionalizado em direção à
emancipação humana. Se, de um lado, hoje temos as condições tecnológicas para alcançar muito além do que
poderíamos há dois séculos atrás, de outro, percebemos aumentar a distância que nos separa das suas promessas.
O autor, ressaltando a divisão – tratada hoje como anacrônica – entre capitalistas e socialistas, nacionalistas e
internacionalistas, reformistas e revolucionários, revela o encobrimento de algumas pela ação da evolução científica
e sua aproximação com o capitalismo. A visão de mundo socialista sucumbiu às promessas materialistas do
capitalismo, a concepção de mundo nacionalista foi ultrapassada pelo discurso da globalização mundial,
impulsionada pela internet de alta velocidade, os revolucionários, hoje, cada vez mais céticos quanto à possibilidade
de uma revolução social, e os reformistas, de outro lado, passaram a ter suas intenções cerceadas em nome da
governabilidade.
A proposta centraliza-se na contraposição entre projetos de globalização. Ao contrário da globalização hegemônica,
que, inclusive, compreende-se como única e neutra, o autor entende necessário que afloremos novas possibilidades
de globalização – contra-hegemônicas – com o objetivo de rivalizar harmoniosamente num cenário de pluralidade
de concepções de mundo, questionando a suposta neutralidade cientifica que, para postar-se como tanto, separa
a produção do conhecimento entre sujeito e objeto, crendo ser possível ao sujeito apreender quantitativamente as
qualificações do objeto sem que, ao mesmo tempo, seja esse mesmo afetado pela apreensão desse conhecimento.

Introdução Geral à Coleção


As promessas que legitimaram o privilégio epistemológico do conhecimento científico a partir do século XIX – as
promessas de paz e da racionalidade, da liberdade e da igualdade, do progresso e da partilha do progresso – não só
não se realizaram sequer no centro do sistema mundial, como se transformaram, nos países da periferia e da
semiperiferia – o que se convencionou chamar de Terceiro Mundo –, na ideologia legitimadora da subordinação ao
imperialismo ocidental. Em nome da ciência moderna destruíram-se os muitos conhecimentos e ciências
alternativas e humilharam-se os grupos sociais que neles se apoiavam para prosseguir as suas vias próprias e
autônomas de desenvolvimento. (14)

O que há de novo hoje? Em primeiro lugar, é hoje mais do que nunca evidente que o universalismo da ciência
moderna é um particularismo ocidental cuja particularidade consiste em ter poder para definir como particulares,
locais, contextuais e situacionais todos os conhecimentos que com ela rivalizam. [...] Não há nem conhecimentos
puros, nem conhecimentos completos, há constelações de conhecimentos. No interior dessas constelações há
hibridizações, mas estas, em vez de eliminarem as relações desiguais entre os poderes, contribuem muitas vezes
para reforçá-las. (14)

O que há, pois, de novo neste limiar de século é o reconhecimento de que há conhecimentos rivais alternativos à
ciência moderna e de que mesmo no interior desta há alternativas aos paradigmas dominantes. Com isto, a
possibilidade de uma ciência multicultural, ou melhor, de ciências multiculturais é hoje mais real do que nunca. Esta
possibilidade não está, no entanto, igualmente distribuída pelas diferentes comunidades científicas. Ela é tanto mais
vaga quanto mais dominante é a hegemonia do paradigma científico, com suas estritas e estreitas divisões
disciplinares, suas metodologias positivistas que não distinguem objetividade de neutralidade, sua organização
burocrática e discriminatória dos conhecimentos em departamentos, laboratórios e faculdades que reduzem a
aventura do conhecimento a privilégios corporativos. (15)

No âmbito deste projeto foi crucial a distinção entre globalização hegemônica, dominada pela lógica do capitalismo
neoliberal mundial, e a globalização contra-hegemônica, as iniciativas locais-globais dos grupos sociais subalternos
e dominados no sentido de resistir à opressão, à descaracterização, à marginalização produzidas pela globalização
hegemônica. (16)
SANTOS, Boaventura. Democratizar a democracia.
Um segundo fator novo é a voracidade com que a globalização hegemônica tem devorado, não só as promessas do
progresso, da liberdade, da igualdade, da não discriminação e da racionalidade, como a própria ideia da luta por
elas. Ou seja, a regulação social-hegemônica deixou de ser feita em nome de um projeto de futuro e com isso
deslegitimou todos os projetos de futuro alternativos antes designados como projetos de emancipação social. A
desordem automática dos mercados financeiros é a metáfora de uma forma de regulação social que não precisa da
ideia de emancipação social para se sustentar e legitimar. Mas, paradoxalmente, é dentro deste vazio de regulação
e de emancipação que estão surgindo em todo o mundo iniciativas, movimentos, organizações que lutam
simultaneamente contra as formas de regulação que não regulam e contra as formas de emancipação que não
emancipam. (17)

Apesar destas dificuldades [tendência canibal das ciências sobre outras formas de conhecimento], os objetivos
deste projeto assentam em algumas condições que lhe conferem consistência. [...] É grande a dissidência no interior
do campo científico, propõem-se formas de ciência-ação, de ciência cidadã. De ciência popular, investiga-se o
caráter multicultural da ciência, propõem-se novas articulações entre a ciência e conhecimentos rivais. (18-19)

Aos cientistas sociais da semiperiferia aplica-se melhor do que a quaisquer outros o que o crítico literário cubano
Roberto Retamar disse a respeito do leitor colonial: ‘Não há ninguém que conheça melhor a literatura dos países
centrais que o leitor colonial.’ De fato, os cientistas sociais da semiperiferia tendem a conhecer bem a ciência central
e a conhecê-la melhor que os cientistas centrais, porque conhecem os seus limites e muitas vezes buscam as
alternativas para superá-los. É uma condição mais complexa quando comparada com a condição dos cientistas dos
países centras com a condição dos cientistas sociais dos países periféricos. Os primeiros, os cientistas centrais, em
sua esmagadora maioria não conhecem e, se conhecem, não valorizam o conhecimento científico produzido na
semiperiferia ou na periferia. Este é considerado inferior em tudo o que for diferente ou alternativo. Por isso, é
facilmente canabalizado, convertido em recurso ou matéria-prima pela ciência central. (20)

É, neste sentido, um projeto pioneiro e inovador, mas, como todos os projetos deste tipo, está sujeito tanto ao
fracasso pela inviabilidade, como ao fracasso pelo êxito fácil, ou seja, pela cooptação hegemônica. Consciente
dessas vicissitudes, tomamos algumas precauções que, vistas da perspectiva da ciência hegemônica, são violações
irresponsáveis dos cânones metodológicos. Em primeiro lugar, este projeto não tem um quadro teórico estruturado.
[...] Em segundo lugar, este projeto não estabelece nenhuma metodologia; abre-se às diferentes metodologias pelas
quais optarem os pesquisadores. Em terceiro lugar, não dispõe de um conjunto de hipóteses de trabalho e muito
menos de termos de referência. (21)

Em outras palavras, a ciência é para nós um exercício de cidadania e de solidariedade e a sua qualidade é aferida
em última instância pela qualidade da cidadania e da solidariedade que promove ou torna possível. (22)

Mas se é difícil definir os limites do que se considera global, ainda é mais difícil definir o que se considera contra-
hegemônico. É demasiado fácil definir como contra-hegemônica toda a iniciativa que resiste e cria alternativas à
logicado capitalismo global. Sabemos que a opressão e a dominação têm muitas faces e que nem todas são
diretamente um efeito do capitalismo global, como a discriminação sexual, a discriminação étnica ou xenofóbica e
mesmo a arrogância epistemológica. É aliás, possível que algumas iniciativas que se apresentam como alternativas
ao capitalismo global sejam, elas próprias, também uma forma de opressão. Por outro lado, uma iniciativa que em
um dado país, uma dada comunidade, um dado momento, é vista como contra-hegemônica pode ser vista em outro
país ou outro momento como hegemônica. Finalmente, iniciativas ou movimentos contra-hegemônicos podem ser
cooptados pela globalização hegemônica sem que disse se deem conta os seus ativistas ou vejam nisso um fracasso.
Podem até ver nisso uma vitória. (23)

Daí que, para maximizar a inovação, fosse necessário partir de comunidades científicas não hegemônicas, como
disse, e criar desorientação teórica e analítica de modo a que nenhum dos pesquisadores se sentisse obrigado a
seguir outros caminhos que não os seus. Por isso, houve de fato teorização, mas teorização por omissão, pelo
silêncio da teoria. Por outro lado, a confrontação que pretendi suscitar não foi apenas entre teorias e metodologias
diferentes, foi também entre conhecimentos diferentes. Por essa razão, incluí, como subprojeto, as Vozes do
mundo, com o objetivo de confrontar as análises científicas com outras visões do mundo, da vida e, sobretudo dos
temas escolhidos, protagonizadas por ativistas e líderes de movimentos e organizações populares que aprenderam
na luta da resistência contra os poderes hegemônicos o saber prático que afinal faz mover o mundo e, mais do que
qualquer outro, dá sentido ao mundo. (26)
SANTOS, Boaventura. Democratizar a democracia.

Na minha concepção, as ações rebeldes, quando coletivizadas, são a resistência social a estas formas de poder e,
na medida em que se organizam segundo articulações locais-globais, constituem a globalização contra-hegemônica.
(26-27)

Assim, a democracia participativa confronta privilegiadamente a dominação, o patriarcado e a diferenciação


identitária desigual; os sistemas de produção alternativos confrontam em especial a exploração, o fetichismo das
mercadorias e a troca desigual; o multiculturalismo emancipatório e as justiças e cidadanias alternativas resistem
em especial à diferenciação identitária desigual, à dominação e ao patriarcado; a biodiversidade e os conhecimentos
rivais confrontam privilegiadamente a troca desigual, a exploração e a diferenciação identitária desigual;
finalmente, o novo internacionalismo operário resiste em especial à exploração, á troca desigual e ao fetichismo da
mercadorias. (27)

Esta proposta teórica baseia-se na ideia utópica de uma exigência radical: é que só haverá emancipação social na
medida em que houver resistência a todas as formas de poder. A hegemonia é feita de todas elas e só pode ser
combatida se todas forem simultaneamente combatidas. Uma estratégia demasiadamente centrada na luta contra
uma forma de poder, mas negligenciado todas as outras, pode, por mais nobres que sejam as intenções dos ativistas,
contribuir para aprofundar em vez de atenuar o faro global da opressão que os grupos sociais subalternos carregam
no seu quotidiano. (27)

Introdução ao volume
A ideia central deste objeto é que a ação e o pensamento que sustentaram e deram credibilidade aos ideais
modernos de emancipação social estão sendo profundamente questionados por um fenômeno que, não sendo
novo, adquiriu nas últimas décadas uma intensidade tal que tem redefinido os contextos, os objetivos, os meios e
as subjetividades das lutas sociais e políticas. Refiro-me ao que usualmente é chamado globalização. De fato, o que
chamamos globalização é apenas uma das formas de globalização, a globalização neoliberal, sem dúvida a forma
dominante e hegemônica da globalização. (30)

A ideia deste projeto é que esta forma de globalização, apesar de ser hegemônica, não é a única, e de fato tem sido
crescentemente confrontada por uma outra forma de globalização, uma globalização alternativa, contra-
hegemônica, constituída pelo conjunto de iniciativas, movimentos e organizações que, através de vínculos, redes e
alianças locais/globais, lutam contra a globalização neoliberal mobilizados pela aspiração de um mundo melhor,
mais justo e pacífico que julgam possível e ao qual sentem ter direito. (30-31)

Introdução: para ampliar o cânone democrático (Boaventura e Avritzer)


O século XX foi efetivamente um século de intensa disputa em torno da questão democrática. Essa disputa, travada
ao final de cada uma das guerras mundiais e ao longo do período da guerra fria, envolveu dois debates principais:
na primeira metade do século o debate centrou-se em torno da desejabilidade da democracia (Weber, 1919;
Schmitt, 1926; Kelsen, 1929; Michels, 1949; Schumpeter, 1942). Se, por um lado, tal debate foi resolvido em favor
da desejabilidade da democracia como forma de governo, por outro lado, a proposta que se tornou hegemônica ao
final das duas guerras mundiais implicou em uma restrição das formas de participação e soberania ampliadas em
favor de um consenso em torno de um procedimento eleitoral para a formação de governos (Schumpeter, 1942).
(39-40)

Entretanto, um segundo debate se articulava aos dos requisitos estruturais da democracia [que julgava países aptos
e inaptos à democracia, de acordo com suas estruturas sociais], o debate sobre as virtualidades redistributivas da
democracia. Tal debate partia do pressuposto de que à medida que certos países venciam a batalha pela
democracia, junto com a forma de governo eles passavam a usufruir de uma certa propensão distributiva
caracterizada pela chegada da socialdemocracia ao poder (Przeworski, 1985). Haveria, portanto, uma tensão entre
capitalismo e democracia, tensão essa que, uma vez resolvida a favor da democracia, colocaria limites à propriedade
e implicaria em ganhos distributivos para os setores sociais desfavorecidos. Os marxistas, por seu lado, entendiam
que essa solução exigia a descaracterização total da democracia, uma vez que nas sociedades capitalistas não era
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possível democratizar a relação fundamental em que se assentava a produção material, a relação entre o capital e
o trabalho. Daí que, no âmbito desse debate, se discutissem modelos de democracia alternativos ao modelo liberal:
a democracia participativa, a democracia popular nos países da Europa de Leste, a democracia desenvolvimentista
dos países recém-chegados à independência. (40-41)

Amartya Sem é um dos que celebra a perda de credibilidade da ideia das condições estruturais [posto que grande
maioria dos países encontra-se em processo de democratização desde o pós-guerras] quando afirma que a questão
não é a de saber se um dado país está preparado para a democracia mas antes de partir da ideia de que qualquer
país se prepara através da democracia (1999:4). (41)

Quanto mais se insiste na fórmula clássica da democracia de baixa intensidade, menos se consegue explicar o
paradoxo de a extensão da democracia ter trazido consigo uma enorme degradação das práticas democráticas. (42)

O debate sobre a democracia da primeira metade do século XX foi marcado pelo enfrentamento entre duas
concepções de mundo e sua relação com o processo de modernização do Ocidente. De um lado, a concepção que
C.B. MacPherson batizou de liberal-democracia (MacPherson, 1966) e de outro uma concepção marxista de
democracia que entendia a autodeterminação no mundo do trabalho como o centro do processo de exercício da
soberania por parte de cidadãos entendidos como indivíduos-produtores (Pateman, 1970). Desse enfrentamento
surgiram as concepções hegemônicas no interior da teoria de democracia que passaram a vigorar na segunda
metade do século XX. Essas concepções estão relacionadas a três questões: a da relação entre procedimento e
forma; a do papel da burocracia na vida democrática; e a da inevitabilidade da representação nas democracias de
grande escala. (44)

A questão da democracia como forma e não como substância foi a resposta dada pela teoria democrática
hegemônica às críticas feitas pela teoria marxista à democracia (MARX, 1871; LENIN, 1917). Hans Kelsen formulou
essa questão em termos neo-kantianos ainda na primeira metade do século XX. Para ele, o ponto central era criticar
a ideia de que a democracia poderia corresponder a um conjunto preciso de valores a uma forma única de
organização política. (44)

Coube a dois autores, Joseph Schumpeter [nas sociedades de massa, os indivíduos são manipulados, cedendo a
impulsos irracionais e extra-racionais] e Norberto Bobbio [concebe a democracia como regras do jogo para a
formação das maiorias], durante o período entre guerras e no imediato pós-guerra, transformar o elemento
procedimentalista da doutrina kelseniana de democracia em uma forma de elitismo democrático. (44)

Com o crescimento das funções do Estado ligadas ao bem-estar social, a discussão sobre o interesse no crescimento
da burocracia foi mudando de tom e adquirindo uma conotação positiva (a exceção aqui é a obra de Michel
Foucault). No campo da teoria democrática, Norberto Bobbio [complexificação da sociedade exigiria a sua gerência
através da burocracia especializada] foi, mais uma vez, o autor que sintetizou a mudança de perspectiva em relação
à desconfiança weberiana com o aumento da capacidade de controle da burocracia sobre o indivíduo moderno.
(47)

No entanto, uma questão não parece resolvida pelos teóricos que argumentam pela substituição dos mecanismos
de exercício da soberania por parte dos cidadãos pelo aumento do controle da burocracia sobre a política. Trata-se
do ceticismo sobre a capacidade das formas burocráticas de gestão lidarem com a criatividade e absorverem o
conjunto das informações envolvidas na gestão pública (Domingues, 1997; Fung, 2002). (47-48)

A concepção hegemônica da democracia, ao abordar o problema da representação, ligando-o exclusivamente ao


problema das escalas, ignora que a representação evolve pelo menos três dimensões: a da autorização, a da
identidade e a da prestação de contas (essa última introduzida no debate democrático muito recentemente). (49)

É possível, portanto, perceber que a teoria hegemônica da democracia, no momento em que é reaberto o debate
democrático com o fim da guerra fria e o aprofundamento do processo de globalização, está frente a um conjunto
de questões não resolvidas que remetem ao debate entre democracia representativa e democracia participativa.
Essas questões se colocam de modo mais agudo naqueles países nos quais existe maior diversidade étnica; entre
aqueles grupos que têm maior dificuldade para ter os seus direitos reconhecidos (Benhabib, 1996; Young, 2000);
SANTOS, Boaventura. Democratizar a democracia.
nos países nos quais a questão da diversidade de interesses se choca com o particularismo de elites econômicas
(Bóron, 1994). (50)

É possível, portanto, perceber que a preocupação que está na origem das concepções não hegemônicas de
democracia é a mesma que está na origem da concepção hegemônica mas que recebe uma resposta diferente.
Trata-se de negar as concepções substantivas de razão e as formas homogeneizadoras de organização da sociedade,
reconhecendo a pluralidade humana. No entanto, o reconhecimento da pluralidade humana se dá não apenas a
partir da suspensão da ideia de bem comum, como propõem Schumpeter, Downs e Bobbio, mas a partir de dois
critérios distintos: a ênfase na criação de uma nova gramática social e cultural e o entendimento da inovação social
articulada com a inovação institucional, isso é, com a procura de uma nova institucionalidade da democracia. (51)

Pensar a democracia como ruptura positiva na trajetória de uma sociedade implica em abordar os elementos
culturais dessa mesma sociedade. Mais uma vez, abre-se aqui o espaço para discutir o procedimentalismo e suas
dimensões societárias. No interior das teorias contra-hegemônicas, Jugen Habermas foi o autor que abriu o espaço
para que o procedimentalismo passasse a ser pensado como prática social e não como método de constituição de
governos. (52)

Há ainda um segundo elemento extremamente importante de ser discutido, que é o papel de movimentos sociais
na institucionalização da diversidade cultural. Essa questão, que já está antecipada na crítica à teoria hegemônica
feita por Lefor e Castoriadis, vai aparecer mais claramente no debate democrático a partir da teoria dos
movimentos sociais. [...] Os movimentos sociais estariam inseridos em movimentos pela ampliação do político, pela
transformação de práticas dominantes, pelo aumento da cidadania e pela inserção na política de atores sociais
excluídos. (53)

O que a democratização fez foi, ao inserir novos atores na cena política, instaurar uma disputa pelo significado da
democracia e pela constituição de uma nova gramática social. Ao gerar esse tipo de disputa, a extensão da
democracia que começou no Sul da Europa nos anos 70 e chegou à América Latina nos anos 80 recolocou na agenda
da discussão sobre democracia as três questões discutidas acima [relação entre procedimento e participação;
adequação da solução não participativa e burocrática em nível local; questão entre representação e diversidade
cultural]. [...] Essa gramática [participação dos movimentos nos processos de redemocratização] implicou na
introdução do experimentalismo na própria esfera do Estado, transformando o Estado em um novíssimo movimento
social. [...] Ao mesmo tempo, as inovações institucionais que parecem bem-sucedidas nos países do Sul estão
relacionadas ao que Castoriadis denomina de instauração de um novo eidos, isto é, de uma nova determinação
política baseada na criatividade dos atores sociais. [...] Os grupos mais vulneráveis socialmente, os setores sociais
menos favorecidos e as etnias minoritárias não conseguem que os seus interesses sejam representados no sistema
político com a mesma facilidade dos setores majoritários ou economicamente mais prósperos. (54)

Em todos os casos, junto com a ampliação da democracia ou sua restauração, houve também um processo de
redefinição do seu significado cultural ou da gramática social vigente. Assim, todos os casos de democracia
participativa estudados iniciam-se com uma tentativa de disputa pelo significado de determinadas práticas políticas,
por uma tentativa de ampliação da gramática social e de incorporação de novos atores ou de novos temas à política.
(56)

Como vimos antes, as sociedades capitalistas, sobretudo nos países centrais, consolidaram uma concepção
hegemônica de democracia, a concepção da democracia liberal com a qual procuraram estabilizar a tensão
controlada entre democracia e capitalismo. Essa estabilização ocorreu por duas vias: pela prioridade conferida à
acumulação de capital em relação à redistribuição social e pela limitação da participação cidadã, tanto individual,
quanto coletiva, com o objetivo de não ‘sobrecarregar’ demais o regime democrático com demandas sociais que
pudessem colocar em perigo a prioridade da acumulação sobre a redistribuição. (59)

O orçamento participativo surge dessa intenção que, de acordo com Santos, se manifesta em três das suas
características principais: (1) participação aberta a todos os cidadãos sem nenhum status especial atribuído a
qualquer organização, inclusive as comunitárias; (2) combinação de democracia direta e representativa, cuja
dinâmica institucional atribui aos próprios participantes a definição das regras internas; e (3) alocação dos recursos
para investimentos baseada na combinação de critérios gerais e técnicos, ou seja, compatibilização das decisões e
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regras estabelecidas pelos participantes com as exigências técnicas e legais da ação governamental, respeitando
também os limites financeiros. (66)

A comparação entre os estudos e debates sobre a democracia nos anos 60 e na última década leva-nos facilmente
à conclusão de que em nível global se perdeu demodiversidade nos últimos trinta anos. Por demodiversidade
entendemos a coexistência pacífica ou conflituosa de diferentes modelos e práticas democráticas. Nos anos 60, se,
por um lado, o modelo hegemônico de democracia, a democracia liberal, parecia destinado a ficar confinado, como
prática democrática, a um pequeno recanto do mundo, por outro lado, fora da Europa ocidental e da América do
Norte existiam outras práticas políticas que reivindicavam o status democrático e o faziam à luz de critérios
autônomos e distintos dos que subjaziam à democracia liberal. (71-72)

Se, como cremos, a democracia tem um valor intrínseco e não uma mera utilidade instrumental, esse valor não
pode sem mais assumir-se como universal. (72)

Não faz sentido postular a universalidade dos valores que sustentam a democracia na base de que não há nada em
outras culturas que se lhes oponha, como faz Amartya Sem (1999). Tal convergência não pode ser postulada como
ponto de partida. Tem que ser, quando muito, o ponto de chegada de um diálogo intercultural em que as outras
culturas possam apresentar não só aquilo a que não se opõem, como, sobretudo, aquilo que propõem
autonomamente. (72)

Citações diretas – Socialização da política e do poder (artigo)


Restava às políticas sociais – em maior ou menor medida, conforme o governo – registrar um traço de uma opção
popular dos governos, sem reflexos no plano político. O próprio projeto administrativo original do PT – presente
mais diretamente na fórmula O modo petista de governar, livro organizado por Francisco Wefort (1986) – não se
centrava na ideia, ainda embrionária naquele momento em setores do partido, do orçamento participativo, mas na
‘inversão de prioridades’, privilegiando o social – como estará presente, por exemplo, no governo de Luiza Erundina
na prefeitura de São Paulo (1988-1992). (669)

Na contramão das tendências dominantes, as políticas de orçamento participativo permitem fortalecer os direitos
de cidadania e resgatar a importância do espaço político e o significado dos interesses públicos, e dão início a um
processo de reforma radical do Estado centrada numa esfera pública renovada – nem estatal, nem privada: pública.
Aponta-se para um processo paralelo de socialização do poder e da política e de estreitamento da dicotomia
governantes/governados. (670)

Em vez de cobrar do neoliberalismo coerência com seus pressupostos doutrinários na democracia liberal, faz-se a
crítica desta, não pura e simplesmente do ponto de vista da democracia direta, mas da combinação entre
democracia direta e democracia participativa, na direção já apontada por Nicos Poulantzas em seus últimos
trabalhos. (670)

Não se trata – como se vê nesses textos – de um projeto socialdemocrata de reengenharia institucional para dar
maior vigor a uma democracia liberal carcomida pela crise social e pelas políticas liberais. [...] Trata-se de reformular
a relação dos governos com a cidadania, de colocar as estruturas de governo sob o controle direto da população,
de levar a cabo uma tentativa de mobilização permanente dos cidadãos, apontando para uma forma de Estado, na
prática incompatível não apenas com os modelos políticos liberais – as tensões entre as câmaras municipais e os
órgãos do orçamento participativo são uma das expressões dessas contradições, embora não a única –, mas com a
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própria dinâmica do capitalismo, ainda mais em sua fase neoliberal, em que os mecanismos de mercado e de
liberdade da propriedade privada primam sobre tudo. (670-671)

Tampouco é retomada a proposta de ‘via pacífica ao socialismo’ do governo chileno de Salvador Allende. Naquele
se incluía um projeto anticapitalista dentro das estruturas estatais vigentes, buscando inserir a dualidade de poderes
dentro do Estado e buscar resolvê-la positivamente ao longo do tempo. Havia lugar para uma ‘área social’ que
englobaria basicamente as propriedades estatizadas, com ‘participação dos trabalhadores’, mas sem um desenho
de uma nova forma de poder no conjunto da sociedade, protagonizado pela cidadania organizada. Os trabalhadores
participariam corporativamente, como sindicatos e como centrais sindicais, ficando a direção política delegada ao
governo, do qual participavam os partidos políticos de esquerda. (671)

Em direção diferente, diante da falência do Estado no atendimento das carências sociais, setores da chamada
‘sociedade civil’ – seja sob forma de organização não governamentais, seja de entidades empresariais ou
simplesmente civis – buscam desenvolver políticas que compensem aquelas lacunas. [...] Nesse elemento reside
justamente o caráter contraditório e ineficaz dessas políticas: elas surgem sempre como políticas compensatórias,
focalizadas, localizadas, ao ter a ‘sociedade civil’ como referência e não o Estado como sujeito. Nessa condição,
perdem a possibilidade de se tornar políticas universalizantes, resignando-se a iniciativas necessariamente locais e
quase sempre intermitentes. [...] Significativamente, esse tipo de iniciativas costuma assumir a ideia de
‘solidariedade’, que implicitamente representa a ação filantrópica dos incluídos para com os excluídos. [...] A
situação de exclusão social ganha uma conotação funcionalista – uma relação entre os que estão ‘fora’ e ‘dentro’
do sistema, que substitui formas de compreensão dos conflitos sociais que geram as situações de exclusão. (674)

Boa parte das iniciativas das entidades empresariais revelam-se, assim, mais como formas de legitimação e de
marketing – um representante de uma delas confessa que é gasto mais dinheiro na publicidade das ações do que
nas próprias ações – do que como referências para novas modalidades de políticas sociais por parte da ‘sociedade
civil’. (674-675)

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