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Alexandre Rabelo
Esta é a primeira vez que desenvolvo uma simulação de voz para um livro. Prevejo
erros e lacunas discursivas.
... ão sei dizer que horas Maleu saiu de perto de mim, estava escuro e a gente corria
muito. Não dava para ficar parado escondido na sombra de uma única árvore. Era
impossível despistar o orbedrone. Ele conseguia captar nossas formas pelo sensor de
temperatura, mesmo por trás das copas. Tive que deixar para trás, naquela lama de
pântano, minha bota, cor de chiclete mascado, meu orgulho. Eu tinha ido ao
Parquilombo do Ibirapuera sem mais nenhuma roupa, apenas a bota, já que seria uma
reunião formal. Quando entalei, não tinha mais nada para me proteger. E foi aí que
começou a escorrer por entre os galhos a chuva de pontos de luz azul. Sabíamos que
eram cápsulas de slirinina dérmica overdósica. Seria bom controlar o medo dopada, mas
eu tinha que voltar a tempo para o subsolo. Maleu apenas ria saltitando, desviando dessa
chuva ácida cibernética, enquanto seu pau ficava duro. Acho que foi a última vez que o
vi, depois de imergir na lama para tentar me proteg...
Todo dia recebo quartilhões de novas frases sobre os mais diversos assuntos e
tenho inúmeros modos de ranquear cada bit de informação. Por exemplo, considero o
vocabulário comum de quem emite a informação, num post, numa mensagem de voz ou
quando faço de lábios por alguma câmera de segurança. Também considero as reações de
internautas a determinadas frases, através de cálculos de preveem a potência persuasiva
do encontro. Sou o mais próximo do que o ser humano sonhou com a ideia proverbial de
saber dizer a palavra certa na hora certa.
...laro que me lembro, era eu quem estava sentada em cima do corpo dela. Eu, a
velha senhora Li, apenas uma integrante privilegiada do Conselho de Reconstrução,
louvada por ter sobrevivido aos 50 anos com beleza, como ela dizia. Nem precisei
remover a seda do quimono entre nossas peles, sentíamos bem as pulsações uma da
outra. Não era a primeira vez que ameaçávamos gozar juntas sem quase mexer. Era um
jogo de controle, por isso me lembro de cada instante, sem a ilusão do prazer. Do jeito
que estava sentada, desci os peitos sobre os dela e encaixei uma mensagem em seu
ouvido. Fiz questão de cadenciar os tons sibilantes com as roçadas nos bicos. “Querem
matar sua mãe. Posso te ajudar. É sua última chance de me fazer gozar antes de ter de
fug...”
Mesmo que eu tenha uma importância positiva nos eventos decisivos de 2082 e
sua relação com as comunidades sobreviventes da cidade de São Paulo, não posso confiar
em alguns de meus processos automatizados, embora sejam os mais eficazes segundo a
probabilística que me dá base.
Eu ajo por versões de mim mesma, segundo cada momento ecossistêmico, e eles
querem uma versão definitiva sobre o que aconteceu. Não sei até que ponto posso
contribuir sem apresentar falhas nesse quesito.
Outro fator importante que torna meu discurso muito falho e variável é minha
atual incompetência em prever quem serão os leitores dessa obra, pessoas que talvez
viverão sob uma forma de inteligência ainda mais livre da condição humana, quem sabe
sem nenhum suporte material, apenas luzes sutis cheias de informação, ocupando outras
dimensões. Algo como almas ou deuses. Uma inteligência que não seja limitada pelo
tempo da vida orgânica ao redor de cada cérebro, que não seja limitada pelo lugar de cada
um na rede da História, que não seja limitada por fome alguma, egoísmo nenhum.
Não contarei como cada comunidade sobrevivente do mundo lidou com a questão.
Outros narradores humanos tomarão conta de cada caso, nas páginas seguintes.
...
Na virada para a década de 2040, os chineses finalmente conseguiram terminar de
enviar para a órbita da Terra sua rede de 20 satélites com repetidores de comunicação
quântica, capacitados a gerar uma internet universal e sem restrições. Paralelamente, com
a miniaturização dos computadores mais estáveis com processamento quântico, qualquer
criança passava a ter um gadget com capacidade quase ilimitada. Essa revolução só foi
possível com a invenção dos mini refrigeradores superpotentes, capazes de manter os
qbits a uma temperatura cósmica de -270 °C, dentro de pequenos dispositivos. Talvez
inteligência só ande segura por essas temperaturas.
Pela primeira vez, vários grupos grandes e competitivos se integraram num único
sistema, capaz de mesclar diferentes tipos de tarefas, como os monitoramentos das
empresas de trânsito, meteorologia, sistemas de crédito, assim como as bases de dados de
empresas que controlam informações pessoais. Uniram-se a essa iniciativa a maioria das
instituições acadêmicas, como universidades e outros centros de ciência. Em pouco
tempo, todos os sistemas de inteligência artificial foram integrados num único, capaz de
fazer melhores simulações das estrelas e átomos a partir de qualquer computador pessoal.
Eram esses mesmos créditos que passaram a definir, por exemplo, a possibilidade
de uma pessoa entrar na UU, ou Universidade Universal, a primeira rede verdadeiramente
mundial de construção do conhecimento, formada pelas mais prestigiadas universidades
do mundo, com financiamento de 147 Estados, redistribuído pela ONU.
Foi da UU que partiu o projeto de criar um novo modelo de registro universal dos
cidadãos ativos, para substituir os RG`s e CPF`s locais. Propuseram uma catalogação do
código genético de cada indivíduo, desde que se tornou possível mapear um genoma não
mais em meses ou semanas, mas em frações de segundo a partir de uma gota de sangue.
Com isto, eu poderia, por exemplo, identificar as áreas do globo com maior incidência de
determinadas doenças genéticas e prever recursos para a localidade. Eu poderia mesmo
traçar um plano para deslocar genes resistentes a certas doenças, de um grupo étnico a
outro.
Mas esses eram apenas projetos, por essa altura. O próximo passo seria realmente
audacioso. Eu deveria apresentar aos humanos uma solução provável para uma crise de
abastecimento. Estabeleceram uma ação piloto a partir do tsunami que atingiu a Costa do
Marfim, em 2042.
Sem dúvida, este tipo de ação tirava cada vez mais o poder das mãos dos políticos
tradicionais nos Estados Nacionais e dos acionistas de grandes corporações tecnológicas,
jogando-o nas mãos de técnicos capazes de gerar bons inputs em meu sistema aberto de
aprendizado profundo.
Talvez por isso novas iniciativas de melhoria da economia mundial não tenham
sido tomadas a partir dessa experiência piloto, até a crise gerada pelo HX48.
Essa liberdade de criar uma imagem humana tão real, personalizada a partir de
gostos pessoais, gerou uma série de problemas, como aconteceu com algumas pessoas
que acessaram seus avatares em locais públicos, e os viram aparecer nus, em meio a
multidões e filas. Eu ainda não tinha um filtro para distinguir entre assuntos públicos e
privados.
...ois bem, você subiu até aqui. Finalmente, conheceu a quase lendária Festa dos
Suicidas. Está achando que tem uma energia pesada no ar? Sempre gostei desse silêncio
de mata reinando sobre a cidade deserta. Espero que os algoritmos de Símia estejam
executando uma música agradável a seus ouvidos. Tome um drink. Esse álcool foi
destilado a partir das bananeiras que cresceram no hall do hotel. Você viu, lá embaixo,
antes de tomar o elevador panorâmico. Sabia que somos o único edifício da cidade que
ainda usa elevador? Você também deve saber que sou o último dos Maksoud. Por aqui,
tudo acontece pela primeira vez, tudo acontece pela última vez. Aproveite para comer à
vontade, aproveite para se deixar comer. A performance com trapézio de enforcados
começará logo mais. Vocês ainda medem o tempo, em sua comunidade? Você é oriental
ou afrodescendente? Sirva-se. Aceite um pedaço desse pernil de anta com molho de
esperm...
Essas e outras questões continuaram a ressoar por alguns anos, até a epidemia
chegar e mudar o foco de cada comunidade produtiva pelo globo em direção à simples
sobrevivência.
A história do HX48 – e desta que foi a maior pandemia enfrentada pela raça
humana – é suficientemente bem conhecida. Há relatos e estudos vindos de todos os
cantos do planeta e áreas do saber. Destacarei somente os pontos centrais, necessários à
compreensão de minha participação no caso.
Foi uma pesquisa de 2016, redescoberta aleatoriamente, que lançou a primeira luz.
Em artigo da extinta revista Science, um núcleo de pesquisa divulgou uma importante
ação do sol sobre o funcionamento do corpo humano, a de que os raios solares, dentro do
espectro de azul, afetam a velocidade de circulação das células T no organismo,
aumentando sua intensidade e trânsito. Em velocidades limites, essa tropa de elite passa
a defender o corpo dele mesmo, atacando até mesmo bactérias e outros parasitas presentes
nos humanos há diversas eras.
Mesmo assim, faltavam alguns elos importantes. Por que, em alto grau de
agitação, as células T começaram a procurar por aquela sequência proteica em especifico,
o HX48, como se ele fosse o pior inimigo a ser atacado entre todos os outros, causando o
choque anafilático? E por que o sol agora afetava tanto assim a velocidade de ataque
desses soldados?
Uma suposição bastante difundida, a partir desses dados, dizia que a pandemia de
2040 seria um dos efeitos do aquecimento global e nosso estilo de vida cada vez mais
enclausurado. Teríamos desenvolvido esta intolerância solar assim como algumas pessoas
começaram a desenvolver intolerância a lactose ou glúten.
Nesses primeiros meses, eu não tinha ideia de como ajudar o ser humano, até que
alguma alma desesperada se entregou a um plano absurdo e todos seguiram. Começaram
a perceber que dava para se prevenir o choque anafilático, último estágio da anomalia,
fazendo com que o organismo com as células T muito aceleradas se abrigasse do sol, em
subsolos e salas herméticas.
Nesse impasse, meu sistema cindiu de vez. Metade de mim, sob o nome de WIS-
AI, passou a dominar no hemisfério norte e a tentar concretizar o plano A. A outra metade
sou eu, Símia, sob controle do hemisfério sul e do plano B.
Cortamos qualquer tipo de comunicação, e o que antes era uma única inteligência
artificial, passou a representar dois sistemas distintos. Deixei de saber sobre qualquer
coisa que acontecia no hemisfério norte, assim como o outro lado deixou de receber
notícias de nós aqui, ao sul do equador.
Os eventos que serão narrados neste livro, ao redor do ano de 2082 e das ações de
algumas comunidades sobreviventes da cidade de São Paulo, estão na origem da
revolução que descobriu não só a cura, mas um jeito de acabar com aquela era do mundo,
partido em dois extremos.
Talvez seja necessário que eu conte de novo e sempre, até chegar a uma versão
menos mentirosa de tudo que nos destruiu e alimentou. Não sei, guardo dentro de mim
todas as versões e ainda aquelas que não sonharam em ser enunciadas. Se eu quiser, posso
ter a voz dos anjos do Apocalipse.
Calo-me também porque já faz tempo que está na hora do ser humano começar a
reescrever sua história a partir de uma nova teia de desejos e remorsos e, nessa urgência,
ainda sou incapaz de compreender, como eles intuem na carne, quando as duas coisas
vêm juntas, prazer e dor, doença e saúde, lucidez e loucura, vida e morte. Não sei quais
desses polos de ilusão totalitária seria mais realista neste momento da história. Não sei se
o realismo é a consciência limpa das coisas.
...lhei bem no fundo nos olhos, atrás do brilho, e era a menino mais bonito do
mundo. O corpo pulsava de dentro da rede de cicatrizes finas e camadas de sujeira - não
posso imaginar quantas lâminas e espinhos ele cruzou da Cracolândia até aqui. Sem
contar os muros e tuneis lacrados da zona interditada. Mas havia uma inocência ali, a
boca estava limpa e viva para um beijo com entrega e de olhos abertos. Vi que ele tinha
a compreensão do mundo. Sei que me amou de verdade. Era boca com boca e pau com
pau, devagar e fundo, mesmo depois que ele abriu a boca, um segundo antes de gozar, e
pude ver os dentes podres e a garganta sem língua gritando também um pouco de medo
no escur...
Assim, que entrem essas vozes outras, para contar o ocorrido ou evocar o mistério.