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Pesquisa em Comunicação

nos Prêmios Estudantis


do Intercom 2017

Maiara Sobral
Genio Nascimento
Adriana Omena
(organizadores)

São Paulo
INTERCOM
2018
Pesquisa em Comunicação nos Prêmios Estudantis do Intercom 2017

Copyright © 2018 dos autores dos textos, cedidos para esta edição à
Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação -
Intercom

Diagramação e Capa
Genio Nascimento

Revisão
Maiara Sobral

Ficha Catalográfica

Pesquisa em Comunicação nos Prêmios Estudantis do Intercom 2017

[recurso eletrônico] / Organizadores: Maiara Sobral, Genio


Nascimento e Adriana Omena.
São Paulo: INTERCOM, 2018, 189 p.:il.

Inclui bibliografias.
E-book.
ISBN 978-85-8208-115-0

1. Pesquisa em Comunicação. 2. Prêmios Estudantis. 3. Análises. 4.


Objetos I. Sobral, Maiara (org.). II. Nascimento, Genio (org.). III. Omena,
Adriana (org.).

CDD: 1ª ED. 302.2

Todos os direitos desta edição reservados à:


Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação- Intercom
Rua Rua Joaquim Antunes, 705 - Pinheiros
CEP 05415-012 - São Paulo - SP
Tel.: (11) 2574-8477 / 3596-4777
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Diretora Editorial
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Norval Baitelo (PUC-SP)
Olgária Chain Féres Matos (UNIFESP)
Osvando J. de Morais (UNESP)
Pedro Russi Duarte (UnB)
Sandra Reimão (USP)
Sérgio Augusto Soares Mattos (UFRB)
Sumário

Introdução

Prêmios Estudantis da Intercom se firmam como exemplo do que melhor


tem sido produzido na pesquisa em comunicação no Brasil .....................7
Maiara Sobral

Prêmio Vera Giangrande

Quem foi Vera Giangrande? ......................................................................12


Maiara Sobral

A análise crítica de discurso como bússola metodológica para a pesquisa


de representações no jornalismo de quebrada .........................................13
Juliana Salles de Souza e Lilian Crepaldi de Oliveira Ayala (orientadora)

Gênero, não! Poder e normalização nos discursos jornalísticos sobre o


Plano de Educação do Paraná ....................................................................30
Priscila Schran e Ariane Carla Pereira (orientadora)

Médicos para além das fronteiras: comunicação, território e o poder


vinculativo da publicidade social ..............................................................48
Gabriel Faza Guedes de Souza e Patrícia Gonçalves Saldanha (orientadora)
Prêmio Francisco Morel

Quem foi Francisco Morel? ........................................................................68


Maiara Sobral

A regionalização no telejornalismo piauiense: estratégias adotadas pela


rede Clube ....................................................................................................69
Renan da Silva Marques e Jacqueline Lima Dourado (orientadora)

Do direito à pratica comunicacional: Casa Brasil Imbariê como


dispositivo de empoderamento comunitarista ........................................90
Suelen de Aguiar Silva e Cicilia Maria Krohling Peruzzo (orientadora)

Gênese e desenvolvimento da política pública do direito de acesso à


informação no México .............................................................................110
Ana Beatriz Lemos da Costa e Fernando Oliveira Paulino (orientador)

Prêmio Freitas Nobre

Quem foi Freitas Nobre? ..........................................................................129


Maiara Sobral

Desigualdade de gênero em Guaribas-PI e o aparecer da mulher


sertaneja no Facebook ..............................................................................130
Tamires Ferreira Coelho e Ângela Cristina Salgueiro (orientadora)

Medium/Forma nas teorias alemãs de mídias: um exercício em arqueologia


epistêmica .......................................................................................................148
Marcio Telles da Silveira e Alexandre Rocha da Silva (orientador)

O retrato da lenda - fotojornalismo e mistério no imaginário


farroupilha .................................................................................................166
Andriolli de Brites da Costa e Tais Martins Portanova Barros (orientadora)
Introdução
Prêmios Estudantis da Intercom se firmam
como exemplo do que melhor tem sido
produzido na pesquisa em comunicação no
Brasil
Maiara Sobral1

Pelo terceiro ano consecutivo, a Intercom - Sociedade Brasileira


de Estudos Interdisciplinares da Comunicação, por meio da Diretoria
Cultural, divulga o e-book com os artigos finalistas dos prêmios
estudantis realizados anualmente pela instituição. Os artigos deste livro
foram apresentados no Congresso Nacional da Intercom realizado em
2016, na cidade de São Paulo (SP) e participaram como finalistas da
edição do Prêmio no ano de 2017.
Os prêmios estudantis são divididos em três categorias: o Vera
Giangrande, destinado às pesquisas desenvolvidas por graduados e
recém-graduados; o Francisco Morel que premia pesquisas desenvolvidas
por estudantes dos cursos de mestrado; e o Freitas Nobre dedicado às
pesquisas desenvolvidas em programas de doutorado.
É importante ressaltar que foram aproximadamente 70 trabalhos
indicados pelos Grupos de Trabalho (GTs), e Intercom Jr., após o término
do Congresso Nacional da Intercom em 2016, em São Paulo.
1. Jornalista pela Universidade Federal do Tocantins (UFT) e mestre em Educação
pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Atua como jornalista na área de
assessoria de comunicação do Instituto Federal do Tocantins (IFTO) desde o ano de
2010. Lecionou como professora convidada as disciplinas de Introdução à Fotografia e
Introdução à Antropologia Cultural na UFT.

Introdução 7
Sobral | Prêmios Estudantis da Intercom se...

Os trabalhos apresentados nesse e-book obtiveram as melhores


notas, são os finalistas, que reapresentaram seus trabalhos no Congresso
Nacional da Intercom, que foi realizado na cidade de Curitiba em
setembro do ano passado, durante o Colóquio Acadêmico.
Seguindo esse cronograma de apresentação e premiação,
todos os textos apresentados no Congresso de 2017, automaticamente,
concorrem à indicação para a edição 2018 dos Prêmios Estudantis da
Intercom.

Prêmio Vera Giangrande


Os finalistas do Prêmio Vera Giangrande 2016 foram os autores:
Juliana Salles de Souza, Priscila Schran de Lima e Gabriel Faza Guedes
de Souza.
“A Análise Crítica de Discurso como Bússola Metodológica
para a Pesquisa de Representações no Jornalismo de Quebrada”, esse
foi o trabalho apresentado por Juliana Salles de Souza, da Faculdade
Paulus de Tecnologia e Comunicação, sob a orientação da professora
Lilian Crepaldi de Oliveira Ayala, cuja abordagem explicitou o papel
da Análise Crítica de Discurso (ACD) na pesquisa de representações
e ressignificações no Jornalismo de Quebrada, modelo combativo,
emancipatório e híbrido localizado no âmbito da comunicação popular,
alternativa e comunitária.
Com a orientação da professora Ariane Carla Pereira, da
Universidade Estadual do Centro Oeste, Priscila Schran de Lima
apresentou o trabalho “Gênero, não! Poder e normalização nos discursos
jornalísticos sobre o Plano de Educação do Paraná”, que buscou entender
como o jornalismo contribuiu e mediou o debate sobre a inclusão ou
não das questões de gênero nos planos, as análises foram feitas num viés
foucaultiano, a partir dos conceitos relacionados à ordem do discurso e
à disciplina.
No intuito de apresentar como a campanha publicitária
do Programa Médicos Sem Fronteiras é um exemplo de criação e
fortalecimento de vínculos capazes de gerar vontades que podem, em
alguma medida, impactar nas escolhas do sujeito social, Gabriel Faza
Guedes de Souza, da Universidade Federal Fluminense, apresentou o

Introdução 8
Sobral | Prêmios Estudantis da Intercom se...

trabalho “Médicos Para Além das Fronteiras: Comunicação, Território


e o Poder Vinculativo da Publicidade Social”, com a orientação da
professora Patrícia Gonçalves Saldanha.

Prêmio Francisco Morel


Por sua vez, o Prêmio Francisco Morel contou com os seguintes
finalistas: Renan da Silva Marques, Suelen de Aguiar Silva e Ana Beatriz
Lemos da Costa.
Com o trabalho “A regionalização no telejornalismo piauiense:
estratégias adotadas pela rede Clube”, Renan da Silva Marques, da
Universidade Federal do Piauí, apresentou uma adaptação da discussão
sobre implicações do processo de regionalização sobre as empresas
de comunicação, sobretudo nas produções televisivas, destacando
procedimentos econômicos e estratégias do grupo Rede Clube, afiliada
da Rede Globo no Piauí, sob a orientação da professora Jacqueline Lima
Dourado.
“Do direito à pratica comunicacional: Casa Brasil Imbariê
como dispositivo de empoderamento comunitarista”, esse foi o trabalho
apresentado por Suelen de Aguiar Silva, da Universidade Metodista
de São Paulo e orientado pela professora Cicilia Maria K. Peruzzo.
No trabalho, Suelen apresentou referenciais importantes para a
compreensão do direito à comunicação no âmbito de políticas públicas,
particularmente, do Projeto Casa Brasil.
Já o trabalho “Gênese e desenvolvimento da política pública do
direito de acesso à informação no México” apresentado por Ana Beatriz
Lemos da Costa, da Universidade de Brasília, demonstra um estudo
da gênese e desenvolvimento da política pública do direito de acesso
à informação no México a partir da mudança do contexto político,
de reformas constitucionais e da atuação do Grupo Oaxaca, e teve a
orientação do professor Fernando Oliveira Paulino.

Prêmio Freitas Nobre


Em 2016, os finalistas do Prêmio Freitas Nobre foram: Tamires
Ferreira Coelho, Marcio Telles da Silveira e Andriolli de Brites da Costa.

Introdução 9
Sobral | Prêmios Estudantis da Intercom se...

“Desigualdade de gênero em Guaribas PI e o aparecer da


mulher sertaneja no Facebook” foi o trabalho apresentado por Tamires
Ferreira Coelho, da Universidade Federal de Minas Gerais, e orientado
pela professora Angela Cristina Salgueiro. Essa pesquisa analisou
as possibilidades e dificuldades de construção da autonomia e da
subjetivação política de sertanejas piauienses, a partir da exposição e
das narrativas construídas no Facebook, mais especificamente as que
residem em Guaribas-PI.
Já Marcio Telles da Silveira, da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, apresentou “Medium/Forma nas Teorias Alemãs das
Mídias: um exercício em arqueologia epistêmica”, que partindo da
distinção medium/forma, buscou demonstrar que este é um axioma
chave para as ditas “teorias alemãs da mídia” e seus teóricos, como
Kittler, Gumbrecht e outros. O trabalho foi orientado pelo professor
Alexandre Rocha da Silva.
“O Retrato da Lenda - Fotojornalismo e Mistério no Imaginário
Farroupilha” foi o trabalho apresentado por Andriolli de Brites da
Costa, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e orientado pela
professora Tais Martins Portanova Barros. Essa pesquisa buscou debater
a produção de fotografias jornalísticas durante a cobertura de mitos e
lendas pelo jornalismo.
Com isso, destacamos exemplos do que melhor tem sido
produzido na pesquisa acadêmica em comunicação nas universidades
brasileiras, tanto federais, como estaduais e privadas. E esperamos que
essa produção se intensifique cada vez mais para os próximos anos. Boa
leitura.

Introdução 10
Prêmio
VERA GIANGRANDE
Quem foi Vera Giangrande?

Maiara Sobral

Para narrar a história das Relações Públicas no Brasil, é preciso


citar os feitos de Vera Giangrande. Paulista, nascida em 1931, iniciou
aos 16 anos, o curso de Biblioteconomia na Escola de Filosofia Sede
Sapientiae. Em 1967, com o advento da Lei Federal nº 5.377, Vera se
registrou como relações públicas. A partir daí, transitou por várias
funções e cargos, o que a tornaria uma das referências da área.
Ela foi a primeira mulher a obter cargo de gerência em relações
públicas numa empresa multinacional, outro acontecimento que aponta
o pioneirismo e ousadia de Vera aconteceu em maio de 1993, quando
ela assumiu o posto de ombudsman no grupo Pão de Açúcar.
Para Vera, o segredo da profissão era saber ouvir, era preciso
contrariar um pouco a latinidade e passar a ouvir. Com essa escuta
atenta, ela se tornou uma profissional multifacetada, pois transitou pela
comunicação mercadológica e pela docência, ressaltando as diferenças
entre o bom e o mau profissional de relações públicas. Ela faleceu no dia
22 de agosto de 2000, aos 69 anos.

Prêmio Vera Giangrande 12


A Análise Crítica de Discurso como
Bússola Metodológica para a Pesquisa
de Representações no Jornalismo de
Quebrada1

Juliana Salles de Souza2


Lilian Crepaldi Ayala (orientadora)3

Um mapa-múndi do Jornalismo de Quebrada


Dentro do meio jornalístico, editorias e modelos variados
diversificam angulações, tipos de fontes, formatos e objetivos. Apesar
das convergências e da solidariedade editorial, a comunicação, cujo
posicionamento político-ideológico apresenta-se como alternativa ao
status quo, também possui diferenciações. Em geral, denominações
como “popular”, “alternativo” e “comunitário” são utilizadas como
sinônimos para designar produtos comunicacionais com caráter contra-
hegemônico. Há, entretanto, oscilações conceituais entre os termos.
Observa-se ainda o surgimento de novos conceitos, para abarcar novas
práticas comunicacionais e jornalísticas.

1. Trabalho inicialmente apresentado no IJ07 - Comunicação, Espaço e Cidadania


da Intercom Júnior – XII Jornada de Iniciação Científica em Comunicação, evento
componente do XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação.
2. Jornalista recém-formada pela Faculdade Paulus de Tecnologia e Comunicação
(Fapcom) e pesquisadora vinculada ao Centro de Estudos Latino-Americanos sobre
Cultura e Comunicação (CELACC-USP).
3. Orientadora do trabalho. Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Mestre
em Ciências da Comunicação pela ECA/USP. Bacharel em Jornalismo e em História.

Prêmio Vera Giangrande 13


Souza e Ayala | A Análise Crítica de Discurso como...

A denominação “jornalismo de quebrada” foi criada pelo


Periferia em Movimento4, que se propõe a produzir conteúdos “sobre,
para e a partir das periferias”5. O termo é utilizado nos cursos de extensão
e formação universitária coordenados pelo coletivo. A expressão
possui uma especificidade geográfico-espacial ligada aos propósitos do
coletivo de comunicação paulistano: o vocábulo “quebrada” consiste em
uma gíria paulistana para falar sobre as periferias da capital paulista. De
acordo com Alexandre Barbosa Pereira6 (2010), a palavra quebrada é
utilizada para

referir-se aos bairros da periferia de onde vêm, tanto por pixadores


como por outros jovens, principalmente os ligados ao hip hop.
Essa denominação tornou-se, aliás, bastante popular e difundida
entre os moradores de bairros da periferia de São Paulo de uma
maneira geral. Embora a noção de quebrada se apresente como
um modo particularizado de se referir a um determinado bairro
e às relações específicas entre os moradores de uma localidade,
ela remete também a uma disposição de apresentar o bairro onde
se vive para quem é de fora, caracterizando-o como um lugar
arriscado, hostil e perigoso para quem não pertence a ele e não
conhece suas regras. A quebrada é, portanto, associada também
à ideia de um bairro periférico pobre com altos índices de
violência, onde não se deve desrespeitar as normas de conduta.
(PEREIRA, 2010, p.37)

Pereira observa ainda que o vocábulo está associado à dimensão


de risco, pois “aqueles que nela residem correriam mais riscos e
enfrentariam maiores adversidades, sendo, portanto, mais fortes” (p.45).
4. Criado a partir de um projeto experimental de conclusão de curso em 2009 na
Universidade de Santo Amaro (Unisa), o coletivo de comunicação Periferia em
Movimento tem como objetivo produzir e disseminar conteúdos a respeito das
quebradas paulistanas, em especial sobre os bairros do Extremo Sul de São Paulo, local
em que os coordenadores do coletivo, os jornalistas Aline Rodrigues e Thiago Borges,
residem.
5. Disponível em: <periferiaemmovimento.com.br/quem-somos>. Acesso em: 15 jun.
2016.
6. O autor foi entrevistado pelo Periferia em Movimento para a série À margem da margem
e ganhou espaço para escrever um artigo sobre escola, juventude, funk e periferia no
mesmo projeto. Entre a bibliografia disponível sobre o termo quebrada, Pereira é o que
apresenta mais dados sobre a denominação. Nos demais casos, menciona-se que as
periferias ganharam o apelido de quebrada em São Paulo, mas não se especifica detalhes
sobre o conceito.

Prêmio Vera Giangrande 14


Souza e Ayala | A Análise Crítica de Discurso como...

Em algumas circunstâncias, o termo pode indicar ainda valorização


do bairro no qual se reside e quebra com o centro. Falar em quebrada
pode configurar também a ideia de junção entre todas as periferias da
metrópole paulistana.
O jornalismo de quebrada é um dos exemplos atuais de
reelaborações e hibridismos teórico-práticos no campo da comunicação
popular, alternativa e comunitária7, a qual é definida por Cicilia Peruzzo
como:

(...) constituída por iniciativas populares no contexto de


localidades, bairros, comunidades (presenciais ou virtuais),
movimentos sociais e organizações civis congêneres sem fins
lucrativos. Surgem para suprir necessidades de expressão
de segmentos das classes subalternas em suas lutas pelo
estabelecimento da justiça social. Constroem uma outra
comunicação que se distingue da mídia comercial pelos
conteúdos difundidos, formatos, sistemas de gestão, pela
participação da população e pelo compromisso com o interesse
público (PERUZZO, 2009, p.11)

Enxergar o jornalismo de quebrada como um hibridismo


implica em retornar a categorizações anteriores dentro das práticas
comunicacionais contra-hegemônicas. Na pesquisa, estudou-se, de
forma mais aprofundada, os modelos alternativos (DOWNING, 2002;
FIORUCCI, 2011; HAUBRICH, 2015; KUCINSKI, 2003), radicais
(DOWNING, 2002), comunitários (HALL, 2003; MARTÍN-BARBERO,
2004; PERUZZO, 2009; YAMAMOTO, 2008), populares (HALL, 2003;
MARTÍN-BARBERO, 2004; PERUZZO, 2009); participativo-cidadãos
(FONSECA; LINDEMAN, 2007; LIMA JÚNIOR, 2009; TARGINO,
2009) e emancipatórios (OLIVEIRA, 2014)8.
7. O quadro teórico da pesquisa foi elaborado a partir de um mapa teórico compreendido
pela Sociedade em Rede (CASTELLS, 2003), composto pelas latitudes dos Estudos
Culturais Latino-Americanos (GARCÍA-CANCLINI, 2005; MARTÍN-BARBERO,
2004;) e as longitudes das Geografias da Comunicação (MARTÍN-BARBERO, 2004;
MOREIRA, 2012; SANTOS, 2009).

8. As semelhanças e diferenças entre o jornalismo de quebrada e as demais práticas de


comunicação popular, alternativa e comunitária estão explicitadas no artigo “Sobre, para
e a partir das periferias: as características do Jornalismo de Quebrada”. Nas conclusões

Prêmio Vera Giangrande 15


Souza e Ayala | A Análise Crítica de Discurso como...

A partir do pressuposto de que a linguagem jornalística é um


discurso que constrói representações sobre fatos, lugares, culturas e
outros elementos da sociedade, o objetivo geral do trabalho é verificar,
sob o ponto de vista da comunicação e, especificamente, do jornalismo,
de que maneira o Periferia em Movimento constrói representações das
periferias paulistanas. Entre os objetivos específicos, estão: explicitar as
características do jornalismo de quebrada e verificar de que maneira
o slogan do coletivo (“Sobre, para e a partir das periferias”) se reflete
no conteúdo editorial da série de reportagens e artigos À margem da
margem9.

Jornalismos, discursos e representações


A relação linguagem-representação-ideologia está presente nas
diferentes práticas jornalísticas. Stuart Hall conceitua as representações,
as quais dialogam com os conceitos de significação e ideologia. O autor
organiza as representações e significações de forma sistemática:

Os sistemas de representação são os sistemas de significado


pelos quais nós representamos o mundo para nós mesmos e
os outros. Reconhece que o conhecimento ideológico resulta
de práticas específicas - as práticas envolvidas na produção do
significado. Uma vez que não há práticas sociais fora do domínio
do significado (semiótico) serão todas as práticas simplesmente
discursos? (HALL, 2003, p.179)

Hall explana que não existem práticas sociais além do discurso,


pois elas constituem-se na interação entre significado e representação e
podem ser representadas, ou seja, não há prática social fora do campo
ideológico. Posteriormente, o autor acrescenta uma retificação sobre
os sistemas de representação. Hall assume que suas primeiras obras
tratam a representação como se o mundo real existisse, como algo
desse artigo, há um quadro-resumo sobre os hibridismos da prática jornalística do
Periferia em Movimento. Disponível em: <portalintercom.org.br/anais/sudeste2016/
resumos/R53-0586-1.pdf>. Acesso em: 10 jul. 2016.

9. Publicação seriada composta por 32 matérias publicadas no website do Periferia em


Movimento entre janeiro e junho de 2014.

Prêmio Vera Giangrande 16


Souza e Ayala | A Análise Crítica de Discurso como...

separado e fora do discurso. Ainda que as explicações que cercam esses


sistemas tragam o conceito de realidade implícito em suas proposições,
não há caminhos para acessar esse plano, “pois na medida em que
somente podemos conhecer o real através da linguagem, através da
conceitualização, como eu seria capaz de contar a você onde isso estaria?
Porque eu só posso fazê-lo dentro da linguagem.” (HALL, 2003, p.358).
A relação linguagem-representação-ideologia faz-se fundamental na
produção dos significados: a linguagem é o meio pelo qual se representa
os itens presentes no pensamento e, portanto, torna-se o local em que a
ideologia é criada e transformada.
Já Martín-Barbero (2004) ressalta a importância de analisar-se
“o possível, o conflito, a mudança, o imaginário e o simbólico” (p.65).
Em outras palavras, o autor destaca o papel da análise de discurso como
meio de identificar as mediações sociocomunicativas da cultura em
textos, falas e outras formas de comunicação.
O jornalismo insere-se em tal relação. Por meio de estruturas
textuais próprias, como lead, linha fina, pirâmide invertida e outras
técnicas, representam-se práticas sociais10, as quais estão inseridas em
ideologias. Nesse cenário, conflitos ideológico-culturais (res) surgem e
são traduzidos em discursos. Manuel Chaparro (2014) resume o papel
do jornalismo na sociedade:

Jornalismo pertence ao lado dos valores. Integra o universo da


cultura, como espaço público dos discursos sociais conflitantes.
É objeto abstrato, inserido no cenário humano da complexa
construção do presente. (CHAPARRO, 2014, p.26)

Os jornalistas tornam-se mediadores e comunicadores sociais


ao propagarem os sistemas de significado pelos quais eles mesmos
representam o mundo. A construção de representações jornalísticas
consiste também na captação de ângulos do mundo pré-significado e na
tarefa posterior de ressignificação, segundo Hall. Tais imagens podem
ser apropriadas por meio das ritualidades do processo comunicativo,
10. Não é adequado utilizar a metáfora do jornalismo como espelho da realidade, pois,
como não há certezas da existência do real, a consequência é que não existem também
reflexos, sejam fiéis ou distorcidos.

Prêmio Vera Giangrande 17


Souza e Ayala | A Análise Crítica de Discurso como...

acompanhadas por hibridismos trazidos pelo consumidor de


informação, conforme explica Jorge Pedro Sousa (2000):

Os meios jornalísticos contribuem, ainda, para dotar essas


ocorrências, ideias e temáticas de significação, isto é, contribuem
para que a essas ocorrências, ideias e temáticas seja atribuído um
determinado sentido, embora a outorgação última de sentido
dependa do consumidor das mensagens mediáticas e das várias
mediações sociais (escola, família, grupos sociais em que o
indivíduo se integra etc.) (SOUSA, 2000, p.21)

Nesse sentido, a revisão bibliográfica sobre a práxis


comunicacional popular, alternativa e comunitária demonstra a
importância de utilizar-se uma metodologia de análise a qual considere
a ideologia por trás do discurso. Compreender a forma pela qual
ideologias são disseminadas por meio dos discursos é fundamental
para identificar uma prática inerente ao jornalismo emancipatório, por
exemplo. Segundo Oliveira:

O fato da maioria dos projetos de jornalismo alternativo ou


contra-hegemônico se preocuparem, principalmente, na
disseminação das ideologias de contraposição, de desmascarar
o sistema, de criticar por criticar e de propagandear as ações e
posições dos grupos e segmentos subalternizados, em particular
as suas entidades representativas. Com isto, o jornalismo
contra-hegemônico se aproxima de um discurso de propaganda
ideológica. Evidente que tal prática jornalística se explica quando
é realizada dentro de órgãos de comunicação de entidades e
partidos políticos, porém não se esgota aí as possibilidades do
jornalismo. (OLIVEIRA, 2014, p.233)

Os limites de tal modelo decorrem de elementos estruturais


do jornalismo, haja vista que a produção de notícias está inserida
dentro de um sistema social opressivo e que a propaganda ideológica
chega a superar os olhares críticos. Para Oliveira, não há a necessidade
de levantar bandeiras, mas sim de superar opressões. Deve-se ainda
enxergar o jornalismo como espaço.

Prêmio Vera Giangrande 18


Souza e Ayala | A Análise Crítica de Discurso como...

Nas práticas jornalísticas alternativas, a análise de discurso


também tem papel fundamental para a compreensão da construção
de representações e até mesmo de ressignificações acerca de histórias,
espaços e debates em geral. O questionamento “alternativo em relação
a quê?” trazido por John Downing (2002) auxilia tal entendimento.
Sem a consideração da ideologia por trás do discurso, a comunicação
alternativa pode ser composta por mídias segmentadas – como jornais e
revistas voltadas a condomínios – ou por veículos cujo posicionamento
político é contrário ao status quo. Identificar os traços ideológicos nos
discursos jornalísticos auxilia ainda na diferenciação entre comunicação
comunitária e popular11, de acordo com a distinção proposta por
Eduardo Y. Yamamoto (2008).
As análises discursivas de produtos jornalísticos demonstram-
se, entretanto, desafiadoras. Para representar uma prática social,
equipes de jornalismo partem de ideologias e pressupostos e selecionam
(perfis de) entrevistados, denominados fontes. Além disso, escolhem-
se ângulos e ordem de importância dos fatos. Considera-se ainda
a institucionalização da cultura, a relação empresa-jornalista, as
construções discursivas, a ação de técnicas, o uso de gêneros (também
conhecidos como a materialização dos formatos industriais), as
ritualizações e as recepções12.
Desse modo, para obter-se os resultados, recorreu-se à análise
crítica de discurso (ACD)13.
11. Para Yamamoto (2008), a comunicação popular pode ser considerada como uma
evolução do modelo comunitário.

12. Ver Escosteguy; Fellipi (2013).

13. Ao falar sobre a análise de discurso como um procedimento metodológico para


pesquisas em Comunicação Social, Manhães IN Barros (2010) elege John Austin como
representante clássico da análise de discurso inglesa, definida como pragmática e
centrada no papel ativo do sujeito. Em 1962, Austin apresentou a teoria geral dos atos
da linguagem (ou do discurso ou dos atos de fala). Apesar de a pragmática austianiana
não enfatizar perspectivas sociais do discurso, o autor pregava que “falar é, portanto,
intervir no mundo” (Flores, 1994, p.3) e preocupava-se com os elementos encontrados
além da linguagem. O autor cita Norman Fairclough, John Searle, Oswald Ducrot e
Emile Benvenist como outras referências da análise de discurso inglesa. Apesar da
coincidência geográfica, a ACD é posterior aos pressupostos austinianos, cronológica
e epistemologicamente.

Prêmio Vera Giangrande 19


Souza e Ayala | A Análise Crítica de Discurso como...

ACD: uma bússola metodológica no campo das representações


Por meio do método proposto por Norman Fairclough (2001),
o sujeito analisado pela ACD é influenciado ideologicamente, mas
não é dominado por completo pela ideologia (WALSH, 2011, p.11).
Tal procedimento de pesquisa pressupõe que o discurso tem natureza
dialética: deve-se considerar a determinação social e a construção do
social na prática discursiva (FAIRCLOUGH, 2001, p.92).
A ACD surgiu na década de 1980 com o objetivo de verificar
o papel da linguagem na transformação social. Marcado pela
interdisciplinaridade, o quadro epistemológico central da corrente é
composto por Teun Van Dijk (vertente sócio-cognitiva14), Gunter Kress
(semiótica social) e Norman Fairclough (Teoria Social do Discurso).
Fairclough (2001) explicita os objetivos da ACD:

O que se busca é uma análise de discurso que focalize a


variabilidade, a mudança e a luta: variabilidade entre as práticas e
heterogeneidade entre elas como reflexo sincrônico de processos
de mudança histórica que são moldados pela luta entre as forças
sociais. (FAIRCLOUGH, 2001, p.58)

Pode-se considerar que a ACD é uma alternativa à Linguística


Crítica e à Análise de Discurso Francesa (AD), pois as correntes
anteriores “apresentam um desequilíbrio entre os elementos sociais e
os linguísticos da síntese, embora tenham pontos negativos e positivos
complementares” (FAIRCLOUGH, 2001, p.20). Para o linguista, a
análise e tratamento textuais são completos na Linguística Crítica, mas
conceitos como “ideologia” e “poder” ganham poucas discussões e
explicações (idem). Já a AD francesa tem teoria social mais sofisticada,
mas falha na análise discursiva.
14. Van Dijk é responsável por trazer o conceito de contexto ao âmbito da análise crítica
de discurso. Segundo o autor, contexto é a estrutura mentalmente representada das
propriedades da situação social (VAN DIJK, 2008a, p.119 apud GUIMARÃES, 2012,
p.451). O cognitivista explica que a linha proposta por Fairclough desconsidera a
interface cognitiva existente na relação entre textos e contextos. Em síntese, a cognição
serviria de mediação entre o discurso e a sociedade na visão de Van Dijk, ou seja, as
análises críticas deveriam considerar o triângulo discurso-cognição-sociedade. Nas
Ciências da Linguagem, tal teoria também é conhecida como Análise Cognitiva (ou
sociocognitiva) do discurso.

Prêmio Vera Giangrande 20


Souza e Ayala | A Análise Crítica de Discurso como...

Melo (2009) explica que

O que é fundamental na AD, e ignorado na ACD, é a complexidade


na concepção da estrutura da língua, ou da materialidade
linguística, pois nos fornece uma idéia de que a língua se trata
de uma estrutura opaca, atravessada pelos eventos sócio-
históricos. Mesmo assim, para Fairclough a análise discursiva da
escola francesa é tratada em termos semânticos muito estreitos.
(MELLO, 2009, p.14)

As bases epistemológicas das análises de linha inglesa e


francesa também variam: a AD apoia-se na Psicanálise, em especial
no inconsciente freud-lacaniano, na linguística estruturalista e no
materialismo histórico-dialético. Já a ACD sustenta-se pela Linguística
Crítica, por teorias neomarxistas, com enfoque gramsciano, e na Escola
de Frankfurt.
A relação dialética proposta na ACD possibilita o trabalho com
o quadro teórico da Teoria das Mediações e da comunicação a partir
da cultura em geral. A ACD sustenta-se pela Linguística Crítica15, com
enfoque gramsciano e na Teoria Crítica. A relação dialética proposta na
ACD possibilita o trabalho com o quadro teórico dos Estudos Culturais
Latino-Americanos e da comunicação a partir da cultura em geral.
Na obra de Fairclough, pode-se identificar o objeto de análise
da ACD como pós-moderno. A autora também sintetiza que a ACD
é caracterizada pela análise da ação por meio de mediação dialética.
Mudanças e revoluções reconhecidas pela corrente são associadas ao
inconsciente (WALSH, 2011, p.19). Além de reconhecer a possibilidade
de mudança a partir da linguagem, a abordagem da Teoria Social do
Discurso também conta com concepções de ideologia e hegemonia
elaboradas por Fairclough baseadas em Althusser e Gramsci.
As ferramentas oferecidas pela Análise de Discurso
Textualmente Orientada (ADTO) proposta por Fairclough são
adequadas para o estudo de reportagens e artigos. Martino (2010)
também destaca que “desconstruir o discurso jornalístico pode ser

15. Abordagem desenvolvida na Grã-Bretanha na década de 1970 cuja visão considerava


a linguagem como forma de intervenção na ordem econômica e social, segundo resumo
de Pacheco (2012).

Prêmio Vera Giangrande 21


Souza e Ayala | A Análise Crítica de Discurso como...

entendido como um esforço para identificar as várias vozes dentro


da notícia” (p.35). A adequação ao projeto específico do pesquisador
também é uma característica da ACD: “não há procedimento fixo
para se fazer análise de discurso; as pessoas abordam-na de diferentes
maneiras, de acordo com a natureza específica do projeto e conforme
suas respectivas visões do discurso.” (FAIRCLOUGH, 2001, p.275). O
trabalho com o corpus previamente delimitado acontece em três etapas:
seleção de dados a partir de pesquisa documental, análises e resultados.
A investigação ocorre por meio de microanálise textual e macroanálise
de práticas discursivas.
Os textos da série À margem da margem foram analisados a
partir das seguintes classes particulares de traços: editorias jornalísticas;
tematização; tipologia das fontes jornalísticas; organização editorial;
distribuição geográfica das reportagens; e histórias de vida. Como
ferramenta específica de análise jornalística, foram utilizados os valores-
notícia propostos por Traquina (2008) e Wolf (2012). Para complementar
as informações sobre a série, utilizou-se ainda a entrevista por telefone
com Thiago Borges e a consulta a todos as publicações do coletivo no
Facebook entre 2013 e 2014.

Considerações finais
Por meio da ACD, constatou-se que as produções do Periferia
em Movimento extrapolam conceitos como comunicação alternativa,
radical, popular, emancipatória, comunitária e participativo-cidadã.
Com o papel de bússola metodológica, a ACD também foi fundamental
na análise do manifesto do coletivo, no qual foi possível constatar
influências, mas não dominações ideológicas.
Verificou-se, portanto, que o jornalismo de quebrada é
delineado pelas diretrizes: produções sobre, para e a partir das periferias;
democratização da comunicação sobre as quebradas paulistanas;
compartilhamento de conteúdo de midialivristas independentes;
caráter contra-hegemônico; caráter participativo-cidadão; emancipação
de quebradas; disputa de imaginários; incorporação de gírias;
preocupação com a informação e formação do leitor; militância pela
garantia dos direitos fundamentais; adaptação do conceito de periferia;

Prêmio Vera Giangrande 22


Souza e Ayala | A Análise Crítica de Discurso como...

e especificidade geográfico-espacial. Mais do que uma prática isenta, o


jornalismo de quebrada constitui-se em um formato comunicacional
simultaneamente combativo e emancipatório.
Pode-se considerar ainda que o jornalismo de quebrada
diversifica angulações em relação aos temas tratados pela mídia
convencional. Financiamento de atividades e manutenção de equipes
para projetos em grande escala são os principais desafios desse modelo
comunicacional.
Quadro 1 – Reelaborações e hibridismos do Jornalismo de Quebrada

Modelo comunicacional Semelhanças em relação Diferenças em relação ao


ao Jornalismo de Jornalismo de Quebrada
Quebrada
Alternativo • É um meio de • Publicidade escassa;
democratização do • Ausência de conteúdos
cenário comunicacional em âmbito nacional e
brasileiro; internacional;
• Há preocupação com a • Sob o ponto de vista
informação e formação do histórico, não tem
leitor; semelhanças com o
• Produção jornalística conteúdo e formato dos
voltada às transformações pasquins.
sociais
• Valorização do texto
literário.
Comunitário • Trata de diferentes • Propriedade do meio
comunidades paulistanas; não é coletiva;
• Relações entre emissores
e receptores não é
horizontal.
Popular • Comunicação a partir • Termo ainda não engloba
das periferias; todas as dimensões do
• Busca pela hegemonia jornalismo de quebrada.
popular.
Radical • Também extrapola os • Há distinção entre
limites da comunicação produtores e receptores;
popular, alternativa e • Não existe rompimento
comunitária; de regras.
• Sensibilidade às
aspirações e vozes dos
excluídos;
• Preocupação com o uso
de formatos mais baratos,
como os digitais

Prêmio Vera Giangrande 23


Souza e Ayala | A Análise Crítica de Discurso como...

Emancipatório • É engajado; • Disseminação de


• Toma a posição dos ideologias contra-
excluídos; hegemônicas, em tom de
• Não se preocupa apenas propaganda ideológica.
com a denúncia;
• “Periferia em Movimento
é busca por emancipação.”
Fonte: As autoras, 2016

Por meio dos temas da série À margem da margem, já é


possível encontrar pistas acerca das representações construídas a partir
do discurso do Periferia em Movimento. De modo global, o projeto
priorizou os temas imigração (5 textos), religião (5), drogas (4 textos),
pessoas com deficiência (4), identidade periférica (3 textos), terceira
idade (3), índios (3), movimento LGBT (3) e definição de periferia (2).
Outra característica geral da série é a distribuição geográfica abrangente
das reportagens. Ao longo dos 32 textos, citou-se 63 lugares diferentes.
Os mais citados foram: Grajaú (quatro menções), Cidade Tiradentes
(3), Itaquera (3) e Glicério (3). Nesse aspecto, constata-se o papel das
vivências no jornalismo de quebrada, tendo em vista que o distrito no
qual um dos fundadores do coletivo reside - o Grajaú - é o mais presente
na série.
A editoria com maior número de textos na série À margem
da margem foi Cultura e Identidade, com nove matérias. O dado
demonstra a preocupação do coletivo em representar as margens das
margens paulistanas por meio de aspectos identitários, contribuindo,
desse modo, para emancipar as quebradas e disputar imaginários. Falar
sobre vida nas cracolândias, favelas habitadas por índios, redigir perfis
de transexuais e descrever a vida de imigrantes periféricos são alguns
dos exemplos do caráter contra-hegemônico do jornalismo de quebrada
aplicado na série À margem da margem. A segunda editoria mais
retratada na série foi “Contra o Genocídio”, com seis reportagens. Em
terceiro lugar, houve a presença de quatro textos pertencentes à editoria
Gênero e Sexualidade. Os números demonstram a preocupação com a
informação e formação do leitor, além da militância pela garantia dos
direitos fundamentais. Em quarto lugar, as editorias Terceira Idade e
Resistência Indígena empataram, com três reportagens em cada uma.

Prêmio Vera Giangrande 24


Souza e Ayala | A Análise Crítica de Discurso como...

Nesse caso, os textos foram consecutivos, formando blocos editoriais.


Foram publicados ainda dois textos sobre Mobilidade, dois sobre
Moradia, dois sobre Trabalho e Renda, além de uma reportagem sobre
Educação. Observa-se ainda o uso de diferentes formatos de textos para
construir representações sobre as periferias: o gênero predominante foi
a reportagem, com espaço para perfis e/ou mini-perfis em cada bloco
editorial. Os temas “identidade periférica”, “pessoas com deficiência”
e “religião” foram contemplados por artigos. Outros formatos, como
entrevistas pingue-pongue, foram usados ao longo da série.
O jornalismo de quebrada praticado em À margem da margem
tem como ferramentas jornalísticas específicas o uso de fontes primárias,
independentes e testemunhas, o que confirma a hipótese levantada
no início do estudo. De modo geral, percebe-se que os critérios de
noticiabilidade utilizados na série são os mesmos presentes nas teorias
de Nelson Traquina e Mauro Wolf. Nesse sentido, vale ressaltar que, na
maioria das reportagens analisadas, o uso de recursos inerentes ao meio
digital não é explorado pelo coletivo. Na perspectiva da comunicação
popular, alternativa e comunitária, pode-se reafirmar a crítica de que
a internet possibilita que projetos nessa área tenham intercâmbios
regionais, nacionais e internacionais. Por outro lado, o tecno-apartheid
pode impedir que o público-alvo de publicações populares, alternativas
e comunitárias receba tais mensagens.

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Gênero, não! Poder e normalização nos
discursos jornalísticos sobre o Plano de
Educação do Paraná1

Priscila Schran2
Ariane Carla Pereira (orientadora)3

Introdução

O Paraná é o terceiro estado brasileiro com maior índice de


feminicídios do país, ficando atrás apenas de Alagoas (2º) e Espírito
Santo (1º). Em 2010, ano da pesquisa do Mapa da Violência 2012, foram
registradas 338 mortes de mulheres por violência doméstica e familiar
no estado, computando um índice de 6,4 feminicídios a cada 100 mil
mulheres.
Esses assassinatos refletem uma cultura de submissão do
feminino ao masculino, uma cultura de posse do homem sobre a
mulher, uma desigualdade de gênero, que gera violências de gênero.
Segundo diversos sociólogos e filósofos, o gênero é a construção social
e cultural do masculino e do feminino. Foi construído um estereótipo
do masculino forte, violento, que não chora, não leva desaforo para a

1. Trabalho inicialmente apresentado na Divisão Temática de Interfaces Comunicacionais,


da Intercom Júnior – XII Jornada de Iniciação Científica em Comunicação, evento
componente do XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação.

2. Recém-formada no curso de Jornalismo da Unicentro.

3. Professora do curso de Jornalismo da Unicentro.

Prêmio Vera Giangrande 30


Schran e Pereira | Gênero, não! Poder e normalização nos discursos...

casa, que domina a relação e, em paralelo, foi instituído o estereótipo


do feminino sensível, submisso, frágil e dependente. Assim, mesmo que
hoje as mulheres sejam cada dia mais protagonistas de suas vidas, em
algumas relações onde há a contrariedade, a violência contra a mulher
acaba se manifestando.
Pode-se dizer então que o machismo é uma construção
cultural, não natural, que pode ser combatido desconstruindo padrões,
estereótipos e comportamentos. Mas essa desconstrução perpassa a
educação, os discursos, a difusão da informação, enfim, a mídia.
Em junho de 2015, os estados e municípios brasileiros estavam
debatendo e votando os Planos Estaduais e Municipais de Educação, os
quais deveriam definir as diretrizes de políticas públicas da educação
para os próximos dez anos. Cada um desses Planos é resultado das
Conferências estaduais e municipais de educação e foram construídos
de forma democrática, reunindo representantes governamentais e não
governamentais e a população interessada. Porém, a inclusão de um
termo nesses Planos aprovados nas Conferências e que, depois, foram
encaminhados às Câmaras de Vereadores e às Assembleias Legislativas,
gerou polêmica e manifestações contrárias por todo Brasil. A palavra era
gênero. Muitas pessoas e grupos religiosos se articularam e lotaram as
assembleias legislativas e câmaras municipais para a retirada do termo
dos Planos de Educação.
Diante desse contexto onde existem, paralelamente, mulheres
sendo violentadas e assassinadas e a negação dos estudos relacionados
a gênero na educação formal, o presente trabalho tem como objetivo
perceber como a questão foi tratada pelo jornalismo no Paraná, durante
as votações dos Planos de Educação. Essa análise se torna importante a
partir da premissa de que o jornalismo não é só um retrato da sociedade,
mas também é um influenciador de opinião e de modos de ser e estar
no mundo. Vamos estudar como o jornalismo aderiu ao discurso sobre
gênero, como se deu o posicionamento editorial, a parcialidade, o campo
de debate dos diversos discursos, quem teve direito à voz nas edições e
como isso se deu no estado.
Para a análise, vamos nos deter no jornal Gazeta do Povo e
pretendemos entender se a mídia contribuiu nesse debate de gênero e

Prêmio Vera Giangrande 31


Schran e Pereira | Gênero, não! Poder e normalização nos discursos...

como mediou a votação dos Planos de Educação. Nosso aporte teórico


de dará por um viés foucautiano, a partir dos conceitos relacionados à
ordem do discurso e à disciplina. Ao evidenciarmos a relação intrínseca
do poder com o discurso, a necessidade de interditar algumas vozes, e a
disputa pelo poder de normalização dos corpos, conseguimos enxergar
as vontades de verdade políticas, religiosas, feministas, conservadoras,
libertárias, em conflito pelo poder do discurso, não como estrutura, mas
como acontecimento. Essa relação do poder com o discurso e a disputa
pelo espaço de debate tanto nos meios de comunicação quanto na lei, é
apresentada na análise, quando é relacionado o corpus da pesquisa com
os conceitos estabelecidos por Michel Foucault.

Polêmica na votação do Plano de Educação do Paraná


A votação do Plano Estadual de Educação (PEE) na Assembleia
Legislativa do Paraná não ocorreu tranquilamente. As questões de
gênero presentes no texto geraram manifestações. No dia da votação,
as galerias da Assembleia Legislativa estavam lotadas. As opiniões
eram divididas, estavam presentes pessoas favoráveis e contrárias às
discussões propostas pelo Plano. Cartazes e faixas externavam a opinião
dos grupos: “Escola sem homofobia. Pelo fim da violência na educação”,
“Gênero não!”, “Educação sexual compete aos pais”, “Gênero sim!”, “Não
à ideologia de gênero”.
Alguns deputados também se opunham à presença das
expressões gênero, diversidade sexual e LGBT. Desse modo, 66 emendas
ao PEE foram propostas. Dessas, a Comissão de Constituição e Justiça
da Assembleia aprovou 56 propostas de alteração no texto original que
foram encaminhadas para a votação na sessão, segundo o extrato da Ata
da 7ª reunião extraordinária da 1ª sessão legislativa da 18ª legislatura.
Entre as 56, 16 eram relacionadas a gênero, diversidade e LGBT.
Em 22 de junho de 2015, data da votação do PEE, as emendas
foram debatidas e votadas. Ao comparar os textos originais do projeto
de lei e os aprovados pela Assembleia, ambos disponíveis no site da
Secretaria Estadual de Educação, percebe-se que foram suprimidas
expressões como violência sexual, relações de gênero, LGBT e
diversidade. A estratégia do Plano, por exemplo, que previa ações

Prêmio Vera Giangrande 32


Schran e Pereira | Gênero, não! Poder e normalização nos discursos...

que visassem o enfrentamento da violência sexual e a outros tipos de


violência, e a que previa a promoção ao acesso, à ermanência e condições
igualitárias de aprendizagem aos sujeitos das discussões de gênero e
diversidade sexual foram suprimidas por completo.
Foi retirada também a garantia da promoção da alfabetização e a
elevação da escolaridade para as mulheres negras, indígenas, ciganas, do
campo, quilombolas, em situação de itinerância, travestis, transexuais,
lésbicas, bissexuais, profissionais do sexo, deficientes, adolescentes em
conflito com a lei, e privadas de liberdade. Todas essas minorias ficaram
subentendidas na expressão vulnerabilidade social.
Outros tópicos sofreram alterações em terminologia. Por
exemplo: a expressão “conteúdos sobre diversidade” foi substituída por
“conteúdos que reprimem todas as formas de discriminação”; “educação
de gênero” foi substituída por “educação que efetive o respeito entre
homens e mulheres”; e “preconceito de gênero, orientação sexual,
étnico-racial e religião” foi substituída por “situações de discriminação,
preconceito ou violência”.

O PEE Paraná nas páginas da Gazeta Do Povo


Estudaremos a discursivização jornalística do Plano de
Educação a partir da cobertura, durante o mês de junho de 2015, da
Gazeta do Povo, jornal impresso diário de alcance estadual. Assim,
nosso objeto é formado por:

Edição 11 de junho de 2015


- reportagem “Emenda tira trechos do plano de educação e
causa polêmica”, que apresenta o estágio em que está o debate
e a votação do PEE, bem como relembra como se deu a votação
do PNE. Explica-se que a principal polêmica está nas emendas
apresentadas pela deputada Claudia Pereira (PSC), que eliminam
do PEE, trechos que dizem respeito à igualdade de gênero e ao
ensino da história das minorias.

Edição 12 de junho de 2016


- nota em Notas Públicas, que tem como título “Polêmico” e trata
da segunda Audiência Pública da ALEP para discutir o PEE.

Prêmio Vera Giangrande 33


Schran e Pereira | Gênero, não! Poder e normalização nos discursos...

Edição 14 de junho de 2015


- reportagem “O que é ‘ideologia de gênero’?”
Edição 17 de junho de 2015
- reportagem “Dois entre 10 municípios do Paraná ainda não
fizeram planos de educação”
- reportagem “Plano de educação está na pauta de hoje da
Assembleia”, que apresenta os trâmites para a inclusão das
emendas ao PEE.
Edição 18 de junho de 2015
- reportagem “PR ainda não votou plano de educação”, que
explica que a proposição das emendas ainda deveria ser analisada
pela Comissão de Constituição de Justiça e, por isso, a votação
seria realizada apenas na próxima semana.
Edição 21 de junho de 2015
- editorial “Educação e teoria de gênero”, resgata as teorias de gênero
e afirma que são controversas e carentes de fundamentação científica
- reportagem “Mais educação, menos gênero”, que elenca outros
pontos relevantes do PEE que não estão sendo debatidos pelos
deputados, por estarem presos à polêmica do gênero. São
apresentadas as 20 metas para a educação para o próximo decênio.
- reportagem “Governo tenta aprovar reajuste”, relembrando que
na próxima sessão da Alep será votado o PEE e que a polêmica
em torno do termo gênero mobilizou religiosos.
- nota “Convocação”, chamando os católicos para pressionarem
os vereadores, por meio de cartas e emails, a não votarem o PME
devido a ideologia de gênero.
Edição 22 de junho de 2015
- reportagem “Bispo pede que católicos pressionem vereadores
de Curitiba”
Edição 23 de junho de 2015
- reportagem “Em votação do PEE, deputados do PR restringem
investimentos em educação”, que relata como se deu a votação do
Plano na Assembleia.
Edição 24 de junho de 2015
- reportagem “Apenas 40% dos estados aprovaram seus planos
de educação”, que traça um panorama de quais estados e cidades
aprovaram seus planos e relembra a retirada do termo gênero no
dia da votação.
- reportagem “Planos de educação do Paraná e de Curitiba são
sancionados”.

Prêmio Vera Giangrande 34


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Edição 25 de junho de 2015


- artigo “Ninguém muda de sexo”, assinado por Carlos Ramalhete.

Poder, disciplina e normalização na disputa pelo discurso dos planos


de educação
Um debate prolongado, uma polêmica que mobilizou muitas
pessoas e tomou conta das matérias e reportagens acerca dos Planos
Municipais e Estaduais de Educação, chamou a atenção de segmentos da
sociedade, de legisladores e encheu as casas de leis com população fervorosa.
Uma grande mobilização em torno dos Planos de Educação, não em favor
de benfeitorias na educação, mas para proibir, negar, substituir e excluir um
termo: gênero. Só uma palavra. Por que tamanha mobilização?
Michel Foucault (2004, p.10) em sua obra A Ordem do Discurso
já anunciava que o discurso está ligado ao poder, ou melhor, é o próprio
poder, é aquilo pelo que se luta. “(...) o discurso não é simplesmente
aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de domínio, mas aquilo por
que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar.”
O que houve nos debates em torno dos termos gênero e
sexualidade nos Planos de Educação não foi simplesmente a discussão
pela escolha das palavras que mais eram convenientes, mas sim uma
disputa por poder, uma disputa pelo discurso. “A historicidade que nos
domina e nos determina é belicosa e não linguística. Relação de poder,
não relação de sentido” (2004, p.5). Não é só uma questão de não aceitar
uma palavra (gênero), é uma questão de poder. A disputa não está
somente presente na linguagem, na estrutura, mas no discurso como
poder e acontecimento.
Para alguns, Foucault foi o filósofo que primeiro relacionou
o discurso com poder. No livro A Microfísica do Poder, ele diz que
muitos filósofos estudavam o poder, mas relacionando-o ao Estado ou a
questões jurídicas. Foucault foi quem estudou a mecânica do poder nas
relações. Não só o poder que emana do estado, mas os micro-poderes
presentes nas relações.
Mas o que estava em disputa nas votações dos Planos de
Educação? Quais discursos estavam em jogo? Diversos eram os interesses
em disputa. De um lado estava o texto construído a partir das conferências
e audiências públicas, seguindo a metodologia recomendada pelo MEC,

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e do outro estavam as emendas dos deputados e vereadores e os cartazes


(também discursos) de segmentos da sociedade.
O texto original do PEE trazia a sugestão de incluir no ensino
infantil, fundamental e médio, cada um na sua competência, conteúdos
sobre diversidade sexual e relações de gênero, com foco na diminuição do
preconceito e na convivência com as diferenças. O texto dos legisladores
e dos religiosos, por sua vez, propunha a retirada desses assuntos da
educação escolar, por acreditarem que os estudos da diversidade e das
relações de gênero poderia comprometer a estrutura tradicional da
família. Estavam em disputa dois discursos, duas buscas pelo poder de
disciplinar as relações.
Roberto Machado, ao introduzir a genealogia do poder de
Foucault, já destacava como o poder se dá na tentativa de disciplinar
as relações, de disciplinar os corpos. “Poder esse que intervém
materialmente, atingindo a realidade mais concreta dos indivíduos – o
seu corpo – e que se situa ao nível do próprio corpo social, e não acima
dele, penetrando na vida cotidiana e por isso podendo ser caracterizado
como micropoder ou subpoder” (MACHADO, 2015 in FOUCAULT,
2015, p.14).
A disputa pelo poder, segundo Foucault, se dá na concretude,
diretamente nos corpos dos indivíduos. Esse conceito vem de encontro
com o conflito estabelecido na votação dos planos de educação. Havia
uma tentativa de disciplinarização dos corpos, não só na relação política
e econômica, mas também no ambiente privado, discursando sobre o
que é certo e o que é errado nas relações entre homens e mulheres,
como se houvesse uma universalização das vontades, comportamentos
esperados ou contrários a norma.
A tentativa de disciplinarização do corpo faz parte do exercício
do poder. O corpo é disciplinado para trabalhar, para estudar, para se
exercitar, para se comportar diante de alguns ambientes, para se vestir
e também para se relacionar. A disciplinarização das relações entre
homens e mulheres ficou clara nos discursos que resistem aos termos
diversidade sexual e relações de gênero. É uma disputa entre os discursos
dominantes e os discursos divergentes.
A disciplina busca normalizar os indivíduos. A normalização se
dá por meio dos mecanismos da sociedade moderna de disciplinar os

Prêmio Vera Giangrande 36


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corpos. Seja a lei, a escola, a família, todos têm o poder de disciplinar


os indivíduos para a sua normalização, fazendo com que essas mesmas
instituições mantenham seu poder disciplinador. “As disciplinas
veicularão um discurso que será o da regra, não da regra jurídica,
derivada da soberania, mas o da regra ‘natural’, quer dizer, da norma;
definirão um código que não será o da lei, mas o da normalização”
(FOUCAULT, 2004, p.189).
Nesse sentido, a disputa pelo discurso nos planos de educação
vem de encontro com a função de disciplinar para a normalização
que as escolas têm na sociedade moderna. Pois, como Foucault (2004)
destaca, todo sistema de educação é uma maneira política de manter ou
de modificar a apropriação dos discursos.
A partir dessa compreensão de que o discurso é o próprio poder
pelo qual se luta e está diretamente relacionado ao poder de disciplinar
para a normalização, cabe agora, identificar os procedimentos de
controle e de delimitação do discurso enumerados por Foucault em A
Ordem do Discurso, que melhor balizam a análise.
Como já mencionado, o objetivo deste trabalho é ver como o
gênero foi tratado, em no Paraná, pela redação jornalística do jornal
Gazeta do Povo.
Considerando que cada dia mais os indivíduos, devido à
complexidade das suas relações e ao papel central dado aos meios de
comunicação, não vivem diretamente alguns fatos da vida cotidiana,
mas o recepcionam através dos meios de comunicação, ou seja, sabem
somente aquilo que foi mediado, o tratamento dado ao debate das
relações de gênero e da diversidade sexual pelos meios de comunicação
é de suma importância para a compreensão dos discursos (WOLF,
2006).
Essa mediação faz com que o jornalismo não seja só um retrato
da sociedade, mas um formador de opinião que influencia modos de
ver e estar no mundo, ou seja, ele dá suporte à formação das ideias das
pessoas e acaba interferindo no modo como elas entendem as relações
e se comportam diante dos fatos. Por isso, compreender como se deu o
discurso dos jornais acerca do gênero se faz relevante, principalmente
porque entendemos que o discurso da mídia também é poder, e por

Prêmio Vera Giangrande 37


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isso também é interpelado por procedimentos de controle. “Por mais


que o discurso seja aparentemente bem pouca coisa, as interdições que
o atingem revelam logo, rapidamente, sua ligação com o desejo e com o
poder” (FOUCAULT, 2004, p.10).
Foucault (2004) já enunciava que, em toda sociedade, a
produção do discurso é controlada, interditada, fiscalizada, organizada
e distribuída conforme a necessidade de controle de seus poderes
e perigos, evitando sua materialidade. Todo discurso é regido por
procedimentos de controle e de delimitação, que podem ser externos ao
discurso ou próprios dele.
Para esta análise, vamos nos deter aos procedimentos externos,
mais especificamente àqueles concernentes a parte do discurso que
põe em jogo o poder e o desejo. Foucault enuncia três procedimentos
de exclusão: a interdição (a palavra proibida), a separação/ rejeição (a
segregação da loucura) e o verdadeiro/falso (a vontade de verdade).
Não se pode falar sobre tudo, não se pode falar de tudo em
qualquer circunstância, qualquer um não pode falar de qualquer coisa.
De forma clara, Foucault explica os tipos de interdição do discurso:
“tabu do objeto, ritual da circunstância, direito privilegiado ou exclusivo
do sujeito que fala: temos aí o jogo de três tipos de interdições que se
cruzam, se reforçam ou se compensam, formando uma grade complexa
que não cessa de se modificar” (FOUCAULT, 2004, p.9).
Nem todas as palavras podem ser ditas em todos os lugares, por
qualquer pessoa em qualquer circunstância, as interdições funcionam
como grades para controlar os discursos, são forças externas ao discurso,
que o influenciam diretamente e que estão relacionadas ao contexto
político, social e econômico em que o discurso está inserido.
Segundo Foucault (2004), os temas que têm as grades mais
cerradas são a sexualidade e a política. E isso ficou perceptível na
repercussão das polêmicas acerca de gênero e diversidade sexual. A
ameaça de abertura nessas grades, por conta das discussões provocadas
pelas votações dos PMEs e do PEE, fez com que a temática fosse excluída
dos planos. Dentre os tipos de interdição do discurso (tabu do objeto,
ritual da circunstância e direito privilegiado exclusivo do sujeito que
fala), o que mais cabe na análise do nosso corpus é o tabu do objeto.

Prêmio Vera Giangrande 38


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Segundo o dicionário Michaelis, tabu é “qualquer coisa


que se proíbe superticiosamente, por ignorância ou hipocrisia”. As
teorias acerca de gênero ainda geram muitos debates, com pontos
de concordância e discordância, havendo estudos diversos nos mais
variados campos como a sociologia, a psicologia, o direito, a história, a
biologia, a filosofia. A filósofa Judith Butler, por exemplo, afirma em seu
livro Problemas de Gênero (2013) que gênero é uma construção social,
intencionalmente edificada ao longo dos anos, e que os papeis sociais
homem-mulher e feminino-masculino não devem ser tratados como
categorias fixas, que aprisionam as pessoas a uma identidade definida
pelo sexo, mas sim mutáveis. Simone de Beauvoir, na década de 1940 já
afirmava que “Ninguém nasce mulher: torna-se mulher.” (BEAUVOIR,
1967, p.9). Ela acreditava que o ser mulher é uma construção social e
cultural, que por meio da socialização de gênero o papel social feminino
era definido e, muitas vezes, construído baseado na inferiorização do
sexo feminino em relação ao masculino.
Esses conceitos geram divergências, colocam em cheque alguns
conhecimentos e discursos que se têm como verdadeiros e corretos,
como o de que o gênero está vinculado ao sexo. Isso gera insegurança,
dúvida, incerteza e acaba sendo encarado como um tabu. O ‘tabu do
objeto’ (...) ocorre quando um determinado saber é colocado à parte
daqueles que podem ser compartilhados socialmente, de modo que
ele se torna sombreado pelos demais e seu debate se torna proibido”
(COSTA; FONSECA-SILVA, 2014, p.51).
A interdição do objeto gênero, devido ao tabu, é um
procedimento de controle do discurso. É a tentativa de controle
desse discurso que entra em choque com o discurso verdadeiro da
normalização. Isso nos traz ao próximo procedimento de exclusão que
cabe nesta análise, o referente à vontade de verdade.
Como já mencionado, algumas teorias de gênero têm colocado
em cheque alguns discursos tidos como verdadeiro, são eles os discursos
dominantes da normalização e da disciplina dos corpos dos indivíduos e
das suas identidades. Mas, para Foucault (2004), não existe uma história
única, um único discurso. A história e os discursos são descontínuos,
eles se cruzam, se ignoram, se excluem e disputam poder. Há discursos

Prêmio Vera Giangrande 39


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plurais, há vontades de verdade diversas, disputando um lugar no


discurso verdadeiro.
Essa vontade de verdade se faz presente ao interditar discursos,
inclusive institucionais, como nas escolas, na ciência, nos livros,
nas edições, nas universidades. Ela está presente na produção e na
distribuição de conhecimento, produzindo um discurso verdadeiro, o
qual tem por finalidade a normalização. “(...) creio que essa vontade de
verdade assim apoiada sobre um suporte e uma distribuição institucional
tende a exercer sobre os outros discursos – estou sempre falando de
nossa sociedade – uma espécie de pressão e como que um poder de
coerção” (FOUCAULT, 2004, p.18).
Por meio do discurso verdadeiro, penetrado nas instituições, só
aparece aos nossos olhos uma verdade que seria “riqueza, fecundidade,
força doce e insidiosamente universal” (FOUCAULT, 2004, p.20), e por
que não, a heteronormatividade, o papel de submissão da mulher, o
domínio e a força do masculino.
Esse discurso verdadeiro reitera a normalização. O normal é
ser hetero, cisgênero, mulher frágil, homem provedor, família composta
por pai-mãe-filhos. O que está fora dessa norma é/deve ser interditado,
excluído, proibido. Cabe às diversas vontades de verdade, aos discursos
disputarem esse poder no discurso verdadeiro, afinal, para Foucault, não
há um único discurso, eles são descontínuos, se cruzam, se ignoram, se
excluem.

E ignoramos, em contrapartida, a vontade de verdade, como


prodigiosa maquinaria destinada a excluir todos aqueles que,
ponto por ponto, em nossa história, procuraram contornar essa
vontade de verdade e recolocá-la em questão com a verdade,
lá justamente onde a verdade assume a tarefa de justificar a
interdição e definir a loucura. (FOUCAULT, 2004, p.20)

Diante desses conceitos, vamos perceber como se deu a


cobertura jornalística da votação do PEE e como a questão de gênero foi
retratada nos jornais. Como ocorreu a disputa das vontades de verdade
no discurso jornalístico e se o objeto gênero foi tratado como tabu.
A Gazeta do Povo posicionou seu discurso contra a questão de
gênero ao dedicar um editorial para fundamentar sua opinião contrária

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às teorias de gênero e para justificar o porquê esses estudos viriam


desestabilizar as famílias. Dessa maneira, quem vai ler o jornal já sabe do
seu posicionamento e da sua parcialidade. Há uma sinceridade editorial
ao definir sua opinião. Tal postura conservadora do veículo se justifica
também por seu diretor, Guilherme Cunha Pereira, ser integrante da
Opus Dei, setor conservador da Igreja Católica. Existe uma coerência
entre a formação ideológica e formação discursiva.
A primeira matéria relacionada à votação do PEE apareceu em
uma pequena notícia, no canto da página, intitulada Emenda tira trechos
do plano de educação e causa polêmica, do dia 11 de junho de 2015.
Nela é explicado que a bancada evangélica é que estava apresentando as
emendas retirando trechos que diziam respeito à igualdade de gênero e
ao ensino de história de minorias. Para eles, o plano incorria no que eles
chamam de ideologia de gênero, ou seja, distorceria a visão tradicional
sobre sexualidade, “dizendo, por exemplo, que as orientações sexuais
são equivalentes e que não existe ‘certo’ ou ‘errado’ em comportamentos
sexuais.” Seguindo Foucault, podemos afirmar que está presente a
tentativa de disciplinarização dos corpos, discursando sobre o que é
certo e o que é errado nas relações entre homens e mulheres, como se
houvesse uma universalização das vontades, uma normalização dos
comportamentos.
Na mesma matéria, a Secretaria de Educação marca seu
posicionamento nessa disputa e defende a permanência de gênero
alegando que a inclusão do debate sobre igualdade de direitos é
importante em uma sociedade marcada pelo machismo como a
brasileira.
A explicação do jornal sobre O que é a ideologia de gênero?,
mesmo título da reportagem, foi publicado no dia 14 de junho de 2015.
Toda a matéria é direcionada para mostrar que a inclusão de gênero no
PEE é inviável. Segundo o jornalista, a expressão ideologia de gênero foi
criada pelos críticos à teoria para fazer referência aos diversos estudos
sobre o tema.
O debate sobre a expressão é tratado como se houvesse algo
que está sendo escondido da população, “a agenda de gênero navega nas
comunidades não como um navio elevado, mas como um submarino,

Prêmio Vera Giangrande 41


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determinado em revelar-se tão pouco quanto possível”. É explicado


que gênero não é apenas uma forma mais polida de falar sexo, e
sim, uma construção social da identidade e que não está definida ao
nascer homem ou mulher. Uma das fontes da matéria, um pedagogo
do Observatório Interamericano de Biopolítica, afirma que há uma
manipulação da linguagem com a palavra gênero: “O que querem
promover não pretende valorizar a mulher, mas sim discriminar
a família.”. Uma psicóloga da Universidade Estadual de Londrina
confirma que gênero não é sinônimo de sexo, e sim uma construção
social, mas rejeita o termo ideologia: “A resistência em usar gênero em
políticas educacionais deve-se ao receio equivocado de alguns de que as
crianças seriam estimuladas ao homossexualismo”. É relevante ressaltar
que o uso da palavra homossexualismo presume que é uma doença, é
recomendado substituir pela palavra homossexualidade.
Na matéria ainda é resgatado o caso do Instituto Nórdico de
Gênero, que teve a suspensão de seu financiamento, porque os estudos de
gênero, com abordagem sociológica, iam na contramão dos estudos da
neurociência. A suspensão aconteceu após a exibição do documentário
Hjernevask (Lavagem Cerebral).
Todas essas fontes selecionadas e o foco da pauta demonstram
o posicionamento do jornal como conservador. Mais uma vez está
presente o tabu do objeto gênero, da sexualidade, da união livre, da
opção sexual. Para os críticos, a concepção de que o gênero é construído
culturalmente favorece liberdade de relacionamentos, à escolha de ser
homem ou mulher e por fim à desestabilização da família. Por isso, esse
discurso deveria ser interditado, proibido, negado. Outras matérias
tiveram o mesmo foco.
O posicionamento da Gazeta do Povo nessa interdição foi
revelado no editorial do dia 21 de junho de 2015: “incluir a teoria de
gênero nos planos de educação seria trazer para as escolas, de forma
indiscriminada, convicções morais e de valores que não necessariamente
correspondem às dos pais dos alunos”. A inclusão dos estudos das
relações de gênero é tratada como imposição do governo, e na opinião
do jornal, seria necessária uma discussão aberta “inclusive sobre os
estratagemas daqueles que desejam implantá-la sem dizer com todas as

Prêmio Vera Giangrande 42


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letras o que pretendem”, além de ser necessário tratar dos limites entre
as responsabilidades da família e da escola na educação das crianças
sobre temas morais e de valores. Por fim o editorial chama a atenção
de que por meio do PEE é possível melhorar a educação no estado e se
está perdendo tempo com um assunto que deveria ser de competência
exclusiva da família. O editorial da Gazeta do Povo não poupa seu
discurso contra gênero. No mesmo dia é publicada a matéria Mais
educação, menos gênero, na qual os deputados são criticados por focar o
debate do PEE em gênero e não nas demais metas do plano.
No decorrer das matérias já é possível prever o resultado da
votação do PEE, pois o discurso predominante tanto no jornal quanto na
Assembleia Legislativa é o do discurso verdadeiro da família tradicional
e da disciplinarização do corpo para a heteronormatividade.
Eis que no dia 23 de junho de 2015 é anunciado o resultado da
votação do plano. O tema da polêmica aparece num intertítulo, no meio
da matéria, não sendo o foco principal da pauta. Duas notas destacam
o descontentamento de alguns setores da sociedade. A OAB-PR, por
exemplo, publicou uma nota de repúdio às emendas que supriram os
termos gênero e diversidade no PEE, e anunciou que entraria com uma
ação judicial para rever a lei.
Para dar um ponto final ao discurso sobre gênero, no dia 25 de
junho é publicado um artigo de opinião do professor Carlos Ramalhete,
colunista semanal do jornal, intitulado Ninguém muda de sexo, no qual,
de forma implícita, ele compara o transgênero ao anoréxico, dizendo
que se você tem um amigo anoréxico você não vai passar a mão e
esconder que ele vomita, vai procurar ajuda para que ele sare. O mesmo
serve para o transgênero, você não vai passar a mão na cabeça dizendo
que gênero é uma construção social, mas vai procurar ajuda. “Quem
realmente ama essas pessoas deveria ajudá-las. Ajudar um anoréxico
desnutrido a esconder que vomita tudo o que come não é um ato de
amor, como não ajudar alguém a mutilar-se na ilusão de vir a tornar-
se membro do sexo oposto.” Nessa analogia, o autor dá a entender que
sujeitos LGBT estão doentes.
Como já dito, o posicionamento da Gazeta do Povo vinha de
encontro com o discurso verdadeiro na normalização. Deixa claro que

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não concorda que a educação trate gênero como uma construção social,
que isso favoreceria às diversas identidades e que por consequência
desestabilizaria a família. Reconhecer que gênero é uma construção
cultural e uma forma das pessoas exercerem seu papel social é admitir
que a população LGBT é “normal”, e é exatamente esse discurso que o
jornal pretendeu interditar.
Por meio do poder, aqueles que tinham o privilégio do sujeito
que fala fizeram valer a sua vontade de verdade, a da normalização.
Igrejas, imprensa e Assembleia Legislativa unificaram seu discurso e
definiram que ninguém fala de gênero na educação do Paraná. “Afinal,
somos julgados, condenados, classificados, obrigados a desempenhar
tarefa e destinados a certo modo de viver ou morrer em função dos
discursos verdadeiros que trazem consigo efeitos específicos de poder.”
(FOUCAULT, 2015, p.279)
Foi uma disputa pelo discurso onde os adversários não tiveram
vez. Eram minoria, não foram ouvidos e foram silenciados pela
pressão do grande número de participantes favoráveis às alterações
e dos deputados, que também eram maioria favorável. Se não foram
ouvidos nesse momento propício de debate, quando serão? Como já
disse Foucault, “sabe-se bem que não se tem o direito de dizer tudo,
que não se pode falar de tudo em qualquer lugar circunstância, que
qualquer um, enfim, não pode falar de qualquer coisa” (FOUCAULT,
2004, p.9) Os discursos divergentes não tiveram o direito de falar, não
tinham o privilégio do sujeito que fala. Aquele era o momento e o lugar
para debater gênero, mas os divergentes não foram ouvidos. Quem era
oprimido continuou a ser oprimido.

Considerações finais
Fora da norma. Falar de gênero incomoda, desestabiliza.
Dizer que gênero é uma construção social e cultural dos indivíduos
e independe do sexo é estar na contramão do discurso dominante
da normalização. Estar dentro da norma é comportar-se conforme
o que seu sexo biológico lhe definiu. Acontece que o papel social do
masculino e do feminino é construído socialmente, e se é construído
socioculturalmente, é gênero.

Prêmio Vera Giangrande 44


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No combate à violência contra a mulher, o debate sobre gênero


é primordial, pois uma das primeiras certezas que a mulher em situação
de violência tem é que ela é inferior ao agressor porque é mulher e é
submissa. Aos homens, o debate sobre gênero também é primordial
para que haja a compreensão de que não só porque ele nasceu do sexo
masculino que ele é superior e dono da mulher.
Devido ao tabu que se tem sobre gênero, esse debate ficou de
fora do ambiente escolar, mesmo que em algumas estratégias o termo
gênero tenha sido substituído por direitos da mulher ou relação homem-
mulher. Não é o mesmo discurso. Estamos falando de papel social e isso
é gênero.
Houve um pensamento que falar de gênero é só falar de
homossexualidade ou transexualidade, não pensaram em gênero como
construção social do masculino e do feminino. Mas o preconceito e o
foco dos embates de gênero não era apenas a relação homem-mulher, era
a população LGBT. O seu discurso não só foi banido como foi rotulado
de errado, polêmico, desagregador da família. Mais do que interditar
esse discurso, foi consolidado um discurso dominante da discriminação
e do preconceito.
A análise do discurso jornalístico da votação do PEE mostrou,
por meio da genealogia do poder de Foucault, que a disputa em torno
de gênero foi belicosa, que as vozes fora da norma foram interditadas.
Esse conflito tomou conta dos jornais e se tornou a discussão central da
maioria dos planos educacionais do país. Os discursos estavam em jogo,
estavam nos holofotes.
Mesmo que o resultado final das votações tenha interditado
gênero, o debate permeou meios de comunicação, conversas de bar,
salas de aula, reuniões, igrejas. Gênero foi agendado nos debates, nas
opiniões. Pode-se dizer que o debate sobre gênero fez o país parar para
olhar essa questão. Houve conflito, acabou interditado, mas foi discutido.
Há um discurso central que domina as formações discursivas, mas entre
elas estão vários outros discursos, que estão à margem, não estão no
centro da discussão. O debate sobre gênero, que era/é um assunto à
margem, começou a se infiltrar nas formações discursivas dominantes.
Isso demonstra que a história não é linear, que ela é descontínua. Nossa

Prêmio Vera Giangrande 45


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sociedade está em movimento. Não há um único discurso, uma única


história. Eles estão sendo construídos ao mesmo tempo, com sua
pluralidade.
Essa compreensão da descontinuidade sela ainda mais o estudo
do discurso jornalístico sobre gênero em Foucault. Ter a oportunidade
de estudar essa temática com os óculos referenciais de Michel Foucault
foi a abertura de um imenso leque de possibilidades teóricas. Falar de
poder, disciplina, normalização, vontades de verdade e discurso com
viés foucaultiano foi verdadeiramente um profundo aprendizado.
Sem contar que análise das reportagens dos jornais possibilitou
reiterar que o discurso jornalístico não é isento. É parcial. E isso se
percebe na escolha das fontes, nos estudiosos escolhidos para compor
sua coluna de opinião, no enquadramento do tema, no uso da linguagem
e também no posicionamento de um editorial. Os jornais foram palco
do conflito de gênero, das vontades de verdade, das interdições e do
poder. O jornal também é discurso e utilizou de seu poder, ora para
infiltrar as formações discursivas dominantes, ora para torná-la ainda
mais forte. Nem mesmo o discurso jornalístico é único, ele também é
descontínuo.

Referências

BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo: a experiência vivida, v.II, 2 edição. São


Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1967.

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade.


6 edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013.

COSTA, Aline; FONSECA-SILVA, Maria. Considerações iniciais sobre


o controle dos discursos: breve leitura de A ordem do discurso, de Michel
Foucault. Disponível em: periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/
article/view/23889 Acesso dia 19 de Janeiro de 2016.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 2 edição. Rio de Janeiro: Paz e


Terra, 2015.

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. 10 edição. São Paulo: Edições


Loyola, 2004.

Prêmio Vera Giangrande 46


Schran e Pereira | Gênero, não! Poder e normalização nos discursos...

GAZETA DO POVO. Curitiba: ano 97, 11 a 25 de jun. 2015.

PARANÁ, Lei 377 de 23 de junho de 2015. Plano Estadual de Educação.


Disponível em educacao.pr.gov.br/arquivos/File/PEE/Anexo_18492.pdf.
Acesso em 30 de agosto de 2015.

WAISELFISZ, Julio. Mapa da Violência 2012. Atualização: homicídios


de mulheres no Brasil. São Paulo: Instituto Sangari; 2012. Disponível em:
mapadaviolencia.org.br/pdf2012/MapaViolencia2012_atual_mulheres.pdf.
Acesso em 15 de agosto de 2015.

WOLF, Mauro. Teorias da comunicação. 9 edição, Lisboa: Editoral Presença,


2006.

Prêmio Vera Giangrande 47


Médicos para além das fronteiras:
comunicação, território e o poder
vinculativo da publicidade social1

Gabriel Faza Guedes de Souza2


Patrícia Gonçalves Saldanha (orientadora)3

Introdução

Diante do cenário atual, nos cabe questionar sobre o papel da


comunicação em relação as suas ações e seus reflexos na sociedade.
Como a publicidade trabalha para estabelecer e fortalecer o vínculo
com uma causa e converter indivíduos em agentes de transformação
social? Para isso, analisamos um dos mais significativos exemplos
internacionais de publicidade social: a organização Médicos Sem
Fronteiras. Diversas organizações sociais e sem fins lucrativos executam
um trabalho comunicacional profissional e comprometido. Também é
possível encontrar, em outras iniciativas como essa, pessoas fortemente
1. Trabalho inicialmente apresentado na Divisão Temática Publicidade e Propaganda,
da Intercom Júnior – XII Jornada de Iniciação Científica em Comunicação, evento
componente do XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação.

2. Graduado no Curso de Publicidade e Propaganda da UFF, membro do LACCOPS


(Laboratório de Investigação em Comunicação Comunitária e Publicidade Social)

3. Professora Adjunta IV do Curso de Publicidade e Propaganda da UFF, Membro do


quadro permanente do PPGMC, Membro fundador do INPECC, Coordenadora do
LACCOPS (Laboratório de Investigação em Comunicação Comunitária e Publicidade
Social)

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vinculadas a determinadas causas e que fazem da ação social um


objetivo central em suas vidas. Entretanto, a escolha por Médicos Sem
Fronteiras se faz por um simples fato: o profissional, ao se candidatar
a uma vaga da organização, precisa estar disposto a se afastar de seus
familiares, morar em locais com infraestrutura precária e se arriscar
para levar cuidado médico para aqueles que precisam. Enxergamos,
portanto, que o trabalho da instituição para criar e fortalecer o vínculo
com seus profissionais precisa ser mais aprofundado, dado o alto nível
de engajamento necessário para a tomada de decisão.
Para se chegar ao objetivo pretendido, este trabalho contou
com uma análise bibliográfica de diversos autores, entrevistas com
profissionais do escritório de MSF no Brasil e uma análise semiótica do
filme publicitário Hold On. Vale ressaltar que o trabalho está vinculado
ao Laboratório de Investigação em Comunicação Comunitária e
Publicidade Social – LACCOPS.

Médicos Sem Fronteiras


Levar ajuda humanitária internacional, de forma independente,
comprometida com as pessoas, sem discriminar raça, religião ou
convicções políticas. Com este objetivo nascia, em 1971, a organização
Médicos Sem Fronteiras (MSF). Suas ações fizeram da instituição
reconhecida internacionalmente, sendo crucial no atendimento
da população em momentos delicados da história. A organização
sempre esteve pronta para combater doenças epidêmicas em países ou
comunidades com sistema de saúde precário ou ineficiente, atender
emergencialmente vítimas de catástrofes naturais ao redor do mundo,
assegurar o atendimento médico às pessoas excluídas pelos sistemas
de saúde, ou entrar em zonas de conflito e locais já devastados por
confrontos armados, oferecendo socorro de forma imparcial aos feridos
de ambos os lados.
Atuando como voluntários em Biafra, Nigéria, jovens médicos
e jornalistas puderam vivenciar todas as muitas dificuldades que havia
para realizar ajuda humanitária internacional. Ao se depararem com
os muitos entraves, barreiras burocráticas e as diversas dificuldades
para se chegar aos locais impactados, sentiram a necessidade de criar

Prêmio Vera Giangrande 49


Souza e Saldanha | Médicos para além das fronteiras...

uma instituição que organizasse as ajudas humanitárias, tornasse


possível e viável o atendimento médico para populações impactadas
por epidemias ou conflitos e desse a visibilidade necessária para todos
os acontecimentos antes negligenciados. Assim nascia, no ano de 1971,
na França, a organização Médicos Sem Fronteiras, que viria a se tornar
essencial para o socorro de muitas pessoas espalhadas por todo o
mundo. Devido às muitas ações humanitárias realizadas, após 28 anos
de trabalho, a organização Médicos Sem Fronteiras foi agraciada com
o Prêmio Nobel da Paz, como forma de reconhecimento por todas as
ações realizadas.
Em 2006, a organização decide então implantar seu primeiro
escritório no território nacional brasileiro, o que ajudou a ampliar ainda
mais sua atuação no país, captando uma quantia maior de recursos
financeiros, captando ainda mais médicos para atuar nas ações da
organização e promover ações de comunicação no território nacional.
Para começarmos a entender como se estrutura a organização
Médicos Sem Fronteiras devemos partir da carta de princípios da
instituição. O primeiro princípio é a ‘independência’, que garante sua
atuação de forma livre das instituições políticas, militares, econômicas e
religiosas, cabendo à própria MSF tomar as decisões sobre quando e onde
atuar. A ‘imparcialidade’ propõe que todos os colaboradores oferecerão
ajuda humanitária e cuidados de saúde sem fazer discriminação de raça,
religião, nacionalidade ou convicção política. A ‘neutralidade’, um dos
principais valores da organização, garante que esta não tome partido,
permitindo sua entrada nos locais de conflito para se aproximar da
população afetada. A ‘transparência’ garante aos apoiadores e a sociedade
uma prestação de contas clara, auditada e acessível para que todos os
interessados saibam sobre a gestão de recursos captados e os resultados
das ações promovidas. Outro pilar essencial da organização, a ética
médica, garante que os profissionais ajam de acordo com as regras da
ética médica universal, que versa sobre a autonomia e confidencialidade,
e, acima de tudo, o fato de que todo indivíduo deve ser tratado com
respeito e dignidade e receber cuidados médicos de qualidade.
Durante a entrevista, Vanessa Cardoso, responsável por
recrutamento e desenvolvimento de carreira em MSF no Brasil, em

Prêmio Vera Giangrande 50


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entrevista para a monografia que deu origem a este trabalho, explica


que um alinhamento com os princípios da organização é fundamental
para o profissional que deseja ingressar em uma carreira em MSF.

Se você vem para MSF você precisa saber que se trata de uma
organização que não vai trabalhar com um dos lados de um
conflito, se a gente está falando de um conflito étnico ou de uma
guerra propriamente dita. A gente vai trabalhar com os civis,
prestando serviço a quem mais precisa, independente da etnia,
da raça ou do gênero, entrando no conceito de imparcialidade.
E o quesito independência, o candidato precisa saber que ele vai
trabalhar em uma organização que tem 90% dos seus fundos
doados por doadores privados. (CARDOSO apud SOUZA,
2016)

A maior dificuldade para a manutenção das ações alinhadas


com seus princípios se deve ao grande número de pessoas envolvidas
nas ações humanitárias. Médicos Sem Fronteiras está presente em
60 países, contando com 36 mil profissionais de diferentes áreas e
nacionalidades. As ações são organizadas pelos escritórios distribuídos
por 28 países. O Escritório Internacional de MSF está localizado em
Genebra, Suíça, onde se encontra a presidência global da organização.
As ações da organização são financiadas por doadores de todo o mundo,
sendo majoritariamente (90%) por doações vindas de indivíduos e da
iniciativa privada. Deste modo, a instituição consegue se manter isenta
e independente das decisões e escolhas de governos, sendo fundamental
para a manutenção dos princípios de independência, imparcialidade e
neutralidade.

Vínculos
Antes de adentrarmos nas estratégias comunicacionais adotadas
por MSF para motivar profissionais a se candidatarem às causas de
ação humanitária, precisamos, à priori, entender o conceito de vínculo.
Para Sodré (2002), vínculo é um sentimento capaz de tirar o sujeito da
sua zona de conforto, do seu ambiente e expô-lo a novos sentimentos,
ações e riscos. A relação, para Sodré (2002), é uma conexão entre os

Prêmio Vera Giangrande 51


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indivíduos que se inicia e se acaba, com tempo contado, mas o que gera
a relação mais intensa é, sem dúvida, o vínculo. Segundo Sodré (2002),
vínculo é algo que atravessa os indivíduos, criando assim uma conexão,
uma vinculação. O vínculo aproxima os seres humanos, abre o canal
de comunicação e coloca-os necessariamente em contato por um nexo
atrativo comum. É o vínculo a ligação que faz com que o indivíduo
se sinta parte de uma determinada comunidade. É o vínculo que faz
com que ele se arrisque para a manutenção do bem-estar social da
comunidade. Para Yamamoto (2012), ao dissertar sobre o pensamento
de Sodré, o vínculo funciona como a força motriz da sociabilidade.

[…] o vínculo, o traço que atravessa o “eu e o outro”, a


vinculação social. O vínculo perpassa os seres humanos e os
faz comunicarem. Ele perfura e esvazia os seres, fá-los entrarem
efetivamente em contato, obrigam-nos à relação e, portanto, se
coloca como força motriz da sociabilidade. Tal relação, tendo
o Outro como prioridade e condição de sua própria existência
(como numa vida em comunidade), confere ao vínculo a
capacidade agenciadora da coexistência […]. (YAMAMOTO,
2012, p.49)

O vínculo é a ligação capaz de fazer uma mãe arriscar sua vida


para salvar um filho que corre perigo ou um soldado se voluntariar para
a guerra. E, por sua vez, o vínculo é a ligação do médico com uma causa
humanitária, capaz de tirá-lo de seu ambiente, sua comunidade, casa,
família prestar auxílio humanitário em outro país.
Os anúncios profissionais de MSF são feitos sem divulgar a
remuneração e os benefícios, sendo esta uma iniciativa que garante
à organização que os candidatos tenham uma vinculação com a
causa. Apesar do suporte logístico e psicológico oferecido por MSF
ao profissional que se candidata a uma vaga, ele poderá ser enviado
para países com pouquíssima infraestrutura. A ligação com a causa
humanitária apoiada por Médicos Sem Fronteiras é um fator essencial
para a aprovação de um candidato no processo de seleção para a
organização. Esta necessidade de ligação com a causa humanitária
fica clara na fala de Vanessa Cardoso, responsável pelo recrutamento e
gerenciamento de carreira dos funcionários de Médicos Sem Fronteiras

Prêmio Vera Giangrande 52


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no Brasil, quando ela explica os motivos que fazem com que um


candidato escolha ingressar em uma carreira na organização e não em
uma empresa, por exemplo.

O MSF é uma organização internacional médico humanitária,


não uma empresa. O fato de ter esse nome faz com que a diferença
já esteja posta (...). Uma vez que a gente começa o processo
seletivo e a gente consegue começar a fazer os nossos filtros, vai
ficando cada vez mais claro para as pessoas que organização é
esta. É necessário ao candidato ter empatia e identificação com
os princípios da organização (...). Os profissionais procuram
MSF pelo desejo de cuidar do outro de alguma forma, mas
com qualidade técnica e com atenção. Tem uma procura sobre
a vontade de prestar este cuidado, mas o desejo de prestar este
serviço através de uma organização que eu conheça e com a qual
eu me identifique com seus valores e princípios. (CARDOSO
apud SOUZA, 2016)

O que nos cabe analisar é como as ações comunicativas de


MSF podem fortalecer e criar ainda mais vínculos. Para Yamamoto,
ao analisar os textos de Sodré, “o vínculo pode ser facilitado pelo uso
técnico (mídia)” (2012, p.51) o que reforça a importância das ações
de comunicação na missão de ampliar e fortalecer cada vez mais os
vínculos.

Vontades
Para o sociólogo alemão Ferdinand Tönnies (1887) todas as
escolhas que permeiam a vida dos indivíduos são impulsionadas por
vontades, que motivam e organizam as interações humanas. Para o autor,
os indivíduos possuem vontades naturais, aquelas diretamente ligadas
à natureza do ser humano, chegando a serem quase necessidades.
Como a vontade de se alimentar, a busca por proteção ou a procura da
reprodução. Tais vontades são inerentes ao indivíduo, despertadas com
ou sem seu consentimento, intrínsecas e naturais, como o próprio nome
diz. Brancaleone (2008), um estudioso do trabalho de Tönnies (1887),
define a vontade natural da seguinte forma:

Prêmio Vera Giangrande 53


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Tönnies se referia em seus escritos ao processo permanente


de inter-ações humanas através do termo vontade. [...] Que
fique claro que vontades não seriam necessariamente e
em princípio indivíduos, pelo menos no sentido cultural
moderno, enquanto atores monádicos reflexivos, mas antes de
tudo unidades biológicas dirigidas por instintos, orientadas
por motivações de origem orgânica como a nutrição, a auto-
preservação e a reprodução. A vontade humana, assim neste
estado mais “bruto”, equivalente psicológico do corpo, foi
designada por ele como vontade natural. (BRANCALEONE,
2008 – p.99)

Por outro lado, as vontades arbitrárias teriam motivações


exteriores à sociabilidade do indivíduo, se pautando nas escolhas
de meios e fins em uma visão essencialmente mercadológica. Para o
sociólogo, quando o indivíduo fosse orientado pelas vontades naturais
ele fortaleceria o grupo social, tornando-o mais duradouro, todavia,
quando orientado pelas vontades arbitrárias este estaria colocando em
primeiro plano suas escolhas e interesses individuais, em detrimento do
bem coletivo.
Porém, a vontade que impulsiona um profissional rumo a um
trabalho como o de Médicos Sem Fronteiras é, na grande realidade, o
meio termo entre a vontade natural e a arbitrária. Seria uma decisão
híbrida, mestiça entre as duas formas de vontades, que foge do
essencialmente intrínseco e essencial ao homem da vontade natural e se
afasta do individualismo mercantil das vontades arbitrárias. Essa mistura
garante o que Tönnies (1887) chamou de “sociabilidades híbridas”, pois
torna possível a existência de padrões de sociabilidade comunitária
mesmo diante de uma sociedade capitalista. Esse hibridismo explica o
fenômeno de pessoas que se candidatam a diversas ONGs, por exemplo.
A comunicação adentra neste meio como um impulsionador
das vontades, trabalhando para motivar o surgimento ou o aumento
destas. Ela consegue comunicar elementos que aproximem o receptor
da causa, fortalecendo seu vínculo, como explicamos anteriormente, e
motivando sua vontade de se unir à Organização.

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Comunicação e a Tomada de Decisão


A escolha de um profissional em seguir a carreira de Médicos
Sem Fronteiras é um exemplo da “coexistência entre sociedade e
comunidade na atualidade” Paiva (2012). Isso se torna flagrante diante
do fato de que, ao tomar a decisão de seguir tal carreira, o indivíduo
escolhe por romper com a proximidade e os laços que o prendem a sua
comunidade, para atuar em prol de outra comunidade, com a qual ele
não possui vínculo histórico, cultural e linguístico.
No caso de Médicos Sem Fronteiras a comunicação é essencial
para levar aos profissionais e aos financiadores da organização
informações sobre os trabalhos e ações que estão sendo realizadas e,
principalmente, dando voz e visibilidade aos abusos cometidos contra
a população. Para Raquel Paiva, este é o real sentido da comunicação,
como ressalta em sua obra, “O espírito comum”:

o entendimento que se persegue de comunicação é aquele que


efetivamente possa comprometer o indivíduo com o exercício de
sua cidadania, que possa permitir-lhe uma atuação no seu real-
histórico, podendo transformar, inclusive, sua existência e a das
pessoas a sua volta. (PAIVA, 2003 – p. 49)

O processo de vinculação do indivíduo para com Médicos Sem


Fronteiras conta com o apoio essencial da comunicação, diferentemente
de uma escolha menos complexa. Essa decisão é, na realidade, o que
Sodré(2002) vem chamando de héxis, em seu livro “Antropológica do
Espelho”, quando o indivíduo rompe com o habitus. Segundo Wacquant
(2004), a raiz do conceito habitus está presente nas discussões aristotélicas
acerca da héxis. Nesse sentido, podemos entender por habitus o fato
das ações do indivíduo serem estritamente reguladas por princípios e
escolhas socialmente orientadas. Já a héxis seria, para Sodré (2002), o
rompimento do indivíduo para com o habitus. Deixando o caminho
pré-determinado socialmente e se chocando com uma nova realidade.
A héxis é o desvinculamento com o habitus, e dá ao indivíduo a sensação
de liberdade, como explica o autor em sua obra. Ao analisarmos a
carreira de um Médico da organização, por exemplo, temos claramente

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o fato que ele rompeu com o habitus e se propôs a encarar uma realidade
diferente da que seria imaginada previamente.
Segundo a Diretora de Comunicação de MSF no Brasil,
Alessandra Vilas Boas, em entrevista para a monografia que deu origem
a este trabalho, o processo de vinculação, que gerará, em um momento
seguinte, a candidatura a uma vaga na organização é um processo
gradual, ou seja, este momento de héxis, de ruptura, é algo construído
ao longo de processos gradativos até chegar ao momento de decisão,
como defende em sua fala.

A gente divide nosso público em interessados e entusiastas. Os


interessados são pessoas que leem uma notícia, que sabem que
a gente existe e que estão minimamente antenados. E a gente
tem os entusiastas que são aqueles que vão em uma palestra e
saem dali falando da gente e que querem fazer mais. E a gente
chega até eles com eventos, como palestras em Universidades e
exposições imersivas. As pessoas têm um primeiro contato, aí
conhecem nosso trabalho. Algumas delas vão se interessar mais
e vão criar uma relação mais próxima, até chegar ao ponto de
querer trabalhar conosco e ter um envolvimento maior com a
organização. (VILAS BOAS apud SOUZA, 2016)

Deste modo, poderíamos dizer que os interessados, aqueles


que conhecem e buscam informações, seriam os indivíduos com uma
relação com a causa, entretanto, os entusiastas, que possuem uma
ligação mais forte, seriam os que possuem vínculo com organização.
Outro ponto que devemos ressaltar é o efeito de clinâmen4 que
o profissional se submete ao se candidatar a uma vaga para trabalhar em
Médicos Sem Fronteiras, efeito este também descrito por Filho (2011)
ao analisar a obra de Epicuro. Dois átomos, ao entrar em uma trajetória
retilínea, em um dado momento se encontram, se chocam. Este choque
é capaz de reestabelecer as trajetórias de ambos para direções variadas.
Essa associação é feita pelo autor em relação ao ser humano, que ao
se chocar com uma nova realidade tem sua trajetória alterada. Este
choque é o clinâmen e pode ser comparado com os encontros da vida
de um ser humano. Um Médico expatriado pela organização, ao chegar
4. Segundo o filósofo pré-Socrático Epicuro, é o desvio imprevisível de átomos.

Prêmio Vera Giangrande 56


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em uma nova região, se depara com uma realidade diferente da vivida


anteriormente por ele. Ou seja, o médico chega a um novo local e se
choca com uma realidade que modifica sua trajetória, como os átomos
descritos pelo pensador grego.
A comunicação deve motivar e impulsionar todas as situações
supracitadas. Cabe à comunicação levar a importância e a existência
do trabalho da organização até a população, criando uma relação rasa
e simples. Somente um trabalho mais árduo é capaz de converter esta
relação em um vínculo forte e duradouro. A comunicação também
permeia o indivíduo de forma a fazer com que este vínculo reflita em
suas vontades híbridas, capazes de norteá-lo até ações que busquem
o bem comum e motivá-lo a romper seu habitus, em um momento
de héxis, guiando-o até um caminho diferente do socialmente
previsto, colocando este profissional em uma nova região, exposto
ao clinâmen.

Propaganda (ou Publicidade) Social?


O termo publicidade é derivado do latim (publicus) e tem seu
primeiro registro em um dicionário da Academia Francesa (publicité),
e se referia à publicação, leitura de leis e julgamentos, de acordo com
Rabaça e Barbosa. Posteriormente foi atribuído ao termo um sentido
comercial, de divulgação de uma informação com objetivo comercial,
visando a obtenção do lucro. Ou seja, podemos concluir que em sua
origem a palavra publicidade esteve diretamente vinculada ao ato de
persuadir e induzir a compra de um determinado bem ou serviço.
Origem esta, por sua vez, muito diferente do termo propaganda, que
tem sua raiz na propagação e na divulgação de ideias e doutrinas, com
linguagem persuasiva, mas com caráter ideológico.
Com isso, os termos não devem ser tratados como sinônimos.
É essencial que constatemos suas diferenças para que possamos dá-
las suas devidas aplicações. Segundo Saldanha, é necessário que se
aprimore o olhar sobre as características cognitivas da Publicidade, que,
em uma visão simplória, poderia ser associada exclusivamente a uma
lógica mercadológica da comunicação, mas que pode ser explorada com
outros objetivos e formatos.

Prêmio Vera Giangrande 57


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(...) fica evidente, que a intenção prioritária desta atividade vai


para além da publicização das marcas de produtos e serviços, mas
considera a propagação do pensamento dominante que enfoca a
prática do consumo como ideia central que, ultimamente, tem se
tornado uma das opções de vida da Sociedade Contemporânea
que vê, em larga escala, sua expressão reduzida ao consumismo.
(SALDANHA, 2012 – p.4)
Desta forma, o ambiente publicitário encara uma forma
diferente de comunicação que a pesquisadora, na época, não havia
concluído se deveria ser chamada de publicidade ou de propaganda
social. Todavia os estudos nos servem de alerta para que percebamos
este novo caminho comunicacional. Esta análise é fundamental para
enxergarmos o papel de transformador social inerente à comunicação,
e não simplesmente uma máquina criadora de indivíduos insaciáveis
por novas aquisições mercadológicas. Nesse sentido, as ações de
comunicação como as realizadas por MSF se enquadram na proposta
do termo Publicidade Social, que está em construção.

A Comunicação de Médicos Sem Fronteiras

A comunicação está no DNA da organização. Quando a gente


nasceu em 1971, criados por um grupo de Médicos e Jornalistas,
tínhamos o objetivo de estar presente nas crises humanitárias
levando ajuda médica de qualidade a quem precisava e chamar
atenção para essas crises. E como você chama atenção para essas
crises? Basicamente com comunicação. A gente profissionalizou
muito a nossa comunicação, obviamente como todas as nossas
operações. Mas MSF não existe sem a comunicação, e não só
porque os recursos não chegam se não houver comunicação,
é porque a comunicação faz parte da nossa história, do nosso
modus operante. (VILAS BOAS apud SOUZA, 2016)

A comunicação de Médicos Sem Fronteiras se baseia em três


grandes pilares estratégicos: visibilidade, aceitação e influência. O
primeiro pilar, a visibilidade, é aquele que tem como objetivo mostrar
para a comunidade internacional e o público em geral as crises
humanitárias enfrentadas pelas populações apoiadas por MSF. Este
pilar almeja também dar visibilidade para os princípios que regem

Prêmio Vera Giangrande 58


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a organização e mostrar para a comunidade suas ações. Na tentativa


de amenizar os riscos a comunicação de MSF trabalha com o pilar
de aceitação, que visa difundir para a população assistida todos os
princípios da organização, como, por exemplo, o de imparcialidade,
muito importante quando as operações serão realizadas em uma área
de conflito. Por fim, o último pilar é o da Influência. Segundo ele a
comunicação de MSF deve trabalhar sua capacidade de engajamento
e de mobilização, denunciando situações ocorridas nas áreas apoiadas
por suas equipes, sejam violações dos direitos humanos ou mesmo
epidemias, trabalhando para chamar atenção da mídia e da comunidade
internacional para um determinado fato.
Os objetivos da comunicação se refletem nas ações e
campanhas comunicacionais. Esta exposição da marca, baseada nos
pilares estratégicos, é fundamental para criar e reforçar o vínculo da
organização com o público geral, o que resulta em um aumento no
número de doadores e em um crescimento do interesse de se candidatar
para as vagas profissionais oferecidas pela organização.

Hold On
Com o objetivo de entender melhor as estratégias vinculativas
utilizadas pelas campanhas de MSF, analisaremos o filme publicitário
Hold On, produzido pelo escritório da organização na Noruega. Este
vídeo de um pouco mais de quatro minutos pode ser considerado uma
referência no que se diz respeito à estratégia de criação de vínculos,
pois sai do lugar comum dos roteiros puramente emotivos e desloca o
espectador do seu papel passivo para dividir com ele todas as angústias
dos personagens do filme.
A mensagem, a estrutura e a estratégia do vídeo fazem dele o
objeto central da nossa análise. Visto que a narrativa sai do lugar comum
ao colocar o espectador dividindo o sofrimento dos beneficiados
pelas ações e dos médicos no trabalho em campo. Este deslocamento
diminui a distância entre a instituição e o espectador. Esta estratégia
rompe a fragilidade de uma relação, criando e fortalecendo vínculos.
A escolha da trilha, dos personagens e das imagens é fundamental para

Prêmio Vera Giangrande 59


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este resultado vinculativo que desperta nos indivíduos a vontade de se


unirem à causa apoiada pela Organização.
Segundo Shimp (2002), um vídeo publicitário pode possuir
quatro tipos de orientação. No caso de Hold On a orientação é
claramente voltada para a história, a mensagem fundamental é fornecida
por imagens reais de vídeo que ajudam a compor uma narrativa sobre
as ações executadas pela marca, mostrando o momento de ação dos
diversos profissionais de Médicos Sem Fronteiras trabalhando, e se
emocionando, durante as ações humanitárias da entidade.
Outra decisão importante a ser tomada na elaboração do roteiro
é se este seguirá pelo caminho da emoção ou da razão. Neste caso, se torna
quase involuntária a opção de seguir pelo caminho emocional quando
o assunto se trata de uma organização de apoio a causas humanitárias.
Este foi o caminho escolhido para trabalhar o filme Hold On, e podemos
considerar uma escolha assertiva, dado o grau de impacto causado pelo
mesmo no receptor. É indubitável o fato de que tal decisão aproxima o
espectador da causa e dos personagens apresentados no enredo narrado.
No vídeo o roteirista começa mostrando ao espectador o
problema. Em seguida, as imagens começam a demonstrar a interação
entre médicos e comunidade, com ações de vacinação, combate à
desnutrição, cirurgias e atendimentos médicos básicos. Junto delas o
roteirista acrescenta imagens de médicos visivelmente emocionados com
a situação com a qual estão lidando. Este conjunto de imagens antecede
o clímax do vídeo, quando a música diminui e profissionais, olhando
para a câmera falam “Hold On” (Aguente firme). Após isso, as imagens
começam a ganhar sorrisos, traços de cura e sinais de que os pacientes
foram atendidos e estão retornando para suas rotinas. Esta construção
e as escolhas de cenas específicas montam na cabeça do receptor um
enredo demasiadamente emotivo que aproxima inevitavelmente o
espectador da causa apoiada.
Ao assistir o vídeo podemos concluir que boa parte da força do
filme publicitário se deve, principalmente, à canção “Hold On”, gravada
pelo grupo R.E.M5. A escolha da canção é fundamental para transmitir
5. Everybody Hurts. Banda REM. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=i-
jZRCIrTgQc. Acessado em 23 abr. 2016

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Souza e Saldanha | Médicos para além das fronteiras...

o tom de igualdade entre todos os personagens do enredo: crianças,


jovens, profissionais e, essencialmente, o espectador que vê a obra. A
canção, com frases perfeitas para a obtenção deste objetivo desloca o
receptor para dentro da mensagem, o colocando como um personagem
que sofresse, assim como todos os outros. Ao analisar a letra pode-se
notar que o autor deixa o sofrimento aberto, não diz se a pessoa da
canção está sofrendo por alguma enfermidade, sentimento, ou qualquer
outra angústia que faz do indivíduo descontente com sua realidade.
Por ter este discurso genérico, a canção é capaz de ter aderência com
qualquer indivíduo que tenha sofrido ao menos uma vez.
Este objetivo, por parte do roteirista, fica claro quando a música
chega ao seu clímax com a frase “Everybody hurts” (Todo mundo sofre)
e é bruscamente interrompida pelo silêncio e a imagem de um médico,
olhando fixamente para a câmera, e dizendo em tom enfático: “Hold On”
(Aguente firme). Até este momento o filme fala daquele que é assistido
por MSF (o assistido é o foco), depois, o filme fala diretamente com
o telespectador (o telespectador é o foco). A imagem deste médico é
sucedida por uma outra profissional que repete a mesma frase e precede
um último médico, que completa o pensamento, “You are not alone”
(Você não está sozinho). Após esta construção de cenas as imagens
começam a ganhar um caráter de solução do problema, onde outros
profissionais continuam repetindo da frase que dá título à obra de
forma alternada com crianças já cuidadas, sorrisos e pessoas deixando
o hospital.
Em relação as cenas escolhidas, o filme se inicia com cenas de
adultos e crianças com problemas de saúde, intercalando com imagens
de veículos e agentes da Organização a caminho desta população. O que
as imagens deixam claro é a dificuldade de se chegar até estes locais,
onde as imagens mostram automóveis enfrentando lama, estradas
precárias e um agente pilotando um barco. Neste momento podemos
perceber o início da narrativa, onde o roteirista começa a construir o
problema a ser resolvido: como socorrer as famílias que demandam por
atendimento médico?
Em seguida podemos notar uma variação na escolha das
imagens, fica perceptível que as imagens de pessoas, antes isoladas, dão

Prêmio Vera Giangrande 61


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espaço para cenas de interação entre médicos e pacientes. A partir deste


momento o filme começa a ganhar um tom de esperança, provocado
juntamente com o crescimento da trilha sonora, que ganha força a
partir deste momento. As imagens demonstram a ação de expatriados
amenizando o sofrimento da população apoiada. Até este ponto podemos
perceber os agentes como indivíduos isolados emocionalmente de todas
as angústias sofridas por aquelas pessoas, entretanto, em breve, o roteiro
começará a desconstruir esta imagem.
Neste momento o roteiro do filme quebra o que seria uma
história comum. As cenas de interação entre médico e paciente dão
espaço para imagens de médicos emocionalmente abalados e tocados
pelas cenas vivenciadas no campo de ação. Esta escolha de imagens
é fundamental para deslocar o sofrimento e dividi-lo entre médico,
paciente e espectador. “Everybody hurts” (Todo mundo sofre) é o
verso cantado pela música neste trecho do vídeo, o que faz com que
o espectador seja deslocado para dentro do sofrimento de todos os
personagens envolvidos na história. Esta decisão também é importante
para demonstrar a fragilidade natural dos profissionais, tirando-os de
um patamar superior e colocando o mesmo nível daqueles que sofrem.
Desta forma o agente perde o estigma de um super-herói e deixa clara a
fragilidade humana envolvida.
Aos dois minutos e quarenta segundos o filme chega ao
seu clímax, e é neste exato momento que o objetivo de mostrar ao
espectador que ele também sofre fica claro. A música é interrompida
repentinamente e dá espaço para um médico, olhando fixamente para
a câmera e pronunciando a frase que dá título ao filme, “Hold On”
(Aguente firme), uma outra médica repete a mesmo verso e, logo em
seguida um outro profissional completa “You’re not alone” (Você não
está sozinho).
A partir desta cena, que dura aproximadamente quatro
segundos, todas as imagens ganham um novo tom. As expressões de
dor e angústia, a interação profissional entre os médicos e pacientes e
as emoções exacerbadas dos profissionais dão espaço a cenas pessoas
curadas deixando o hospital, crianças brincando e casais voltando para
casa. Os sorrisos passam a estampar os rostos e a interação profissional
entre agente de saúde e a população cede espaço para brincadeiras, troca
de olhares e interações afetuosas.

Prêmio Vera Giangrande 62


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Filmes publicitários como “Hold On” estão no ponto comum


entre a produção cinematográfica e a produção publicitária. As escolhas
das imagens e toda a sentimentalidade envolvida na captação de cada
uma delas aproxima a obra de produções cinematográficas, entretanto,
a técnica aplicada no roteiro é inteiramente publicitária, com uma
história sendo contada em um tempo enxuto. É indiscutível o alto teor
vinculativo desta produção e sua capacidade de tocar aqueles que o
assistem.
A obra do escritório de Médicos Sem Fronteiras na Noruega vai
ao encontro do discurso da pesquisadora Raquel Paiva, que acredita que
o papel da comunicação é, em sua essência, de mostrar ao indivíduo seu
papel social e o impacto de suas ações no seu entorno. Ao assistir o vídeo
temos a comunicação cumprindo seu papel informativo, transmitindo
detalhes da ação da organização no seu campo de atuação, porém a obra
rompe a barreira da informação e se aproxima da vinculação com o
espectador.
Uma conclusão é inevitável, ao assistir o vídeo o receptor
conhece as ações realizadas pela marca e toma consciência de que é
necessária intervenção para mitigar o sofrimento de populações inteiras.
A forma de proximidade trabalhada pelo vídeo coloca o espectador
como elemento pertencente à aquela realidade, o que resultará em uma
vinculação com a marca e com a causa. Este vínculo poderá resultar em
um novo financiador da organização ou em uma candidatura a uma
vaga profissional na organização.

Considerações
A técnica publicitária está aberta para ser utilizada para
quaisquer fins, positivos ou negativos, entretanto a MSF deve ser tomada
como um exemplo de estratégia, coesão e qualidade comunicacional.
Médicos Sem Fronteiras nada mais é do que um exemplo prático e real
do vínculo explicado por Sodré. A organização nos mostra que um
indivíduo pode ter a capacidade de fortalecer ou criar relações tão fortes
com uma determinada causa, ou uma instituição específica, que o fará
sair de sua zona de conforto para enfrentar um ambiente inóspito.

Prêmio Vera Giangrande 63


Souza e Saldanha | Médicos para além das fronteiras...

Esse vínculo gera uma vontade. Não uma vontade natural


inerente ao organismo biológico humano, nem uma vontade arbitrária,
consumista, mercantil, mas sim uma vontade híbrida, capaz de o
colocar a serviço do outro. Esta vontade provoca um momento de hexis,
um rompimento, por opção e desejo, com aquilo que seria previamente
imaginado para aquele indivíduo. Esta vontade é capaz de gerar uma
tomada de decisão racionalmente inexplicável, mas emocionalmente
motivada. Médicos Sem Fronteiras demonstra a força de um vínculo,
sua capacidade de gerar vontades que motivarão rupturas com padrões
de histórias de vida.
A organização, ao utilizar de estrutura, técnicas, estratégias e
formatos praticados pela publicidade comercial, se torna um exemplo
bem-sucedido de publicidade social, mostrando que existem vias
alternativas para o uso da técnica. MSF nos leva a concluir que as
ferramentas existem, mas cada empresa ou organização escolhe a forma
e por qual objetivo as usam.
Hold On, por sua vez, exemplifica a hipótese de que a
comunicação é a faísca capaz de acender um processo vinculativo. Não
sozinha, pois a decisão de se candidatar para uma vaga da organização
é fruto de diversos fatores que permeiam, muitas vezes, boa parte da
vida dos indivíduos. Esta fórmula complexa, quando impulsionada pela
comunicação, ganha fôlego e amplia o vínculo com os profissionais que
terão interesse pelas vagas de trabalho.
MSF mostra uma alternativa para o mercado publicitário
sufocado pela pressão de se enquadrar em padrões de beleza, estilo
e consumo. Mostra que as técnicas podem, e devem ser usadas em
campanhas que objetivem um bem comum, que transformem a
realidade local e faça a diferença na vida de comunidades inteiras.
Hold On mostra que a emoção ainda toca, que a angústia presente
nas imagens aproxima espectador dos personagens do filme. MSF
mostra que ações sociais e humanitárias podem ser feitas de forma
séria, profissional e competente. Por fim, a organização nos mostra que
existem alternativas, que quando a maioria das mensagens da mídia e
dos meios de comunicação convergem para uma campanha massiva pelo
consumo exagerado, e as opções de carreira se fecham para que todos os

Prêmio Vera Giangrande 64


Souza e Saldanha | Médicos para além das fronteiras...

trabalhadores se encaixem em empresas e cargos que o pressionam em


busca de produtividade e de resultados cada vez mais arrojados, “Hold
On, because everybody hurts”, mas é possível respirar.

Referências

BRANCALEONE, Cassio. Comunidade, sociedade e sociabilidade: revisitando


Ferdinand Tönnies. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 39, n. 1, p. 98-
104, 2008.

EPICURO. Obras completas. 7.ed. Trad. José Vara. Madrid: Edciones Cátedra,
2007.

FILHO, Francisco L. T. O Epicuro de Marx: considerações sobre a controvérsia


ao redor da Clinamen. Intuitio, Porto Alegre, jul. 2011.

PAIVA, Raquel. O espírito comum: comunidade, mídia e globalismo. Rio de


Janeiro: Mauad, 2002

PETERS, Gabriel. Configurações e reconfigurações na teoria do habitus: um


percurso. XIV Congresso Brasileiro de Sociologia, Rio de Janeiro, jul. 2009.

SALDANHA, Patricia Gonçalves. Publicidade social ou propaganda social:


uma reflexão epistemológica e as possíveis consequências sociais. IV Encontro
Nacional Ulepicc Brasil, Rio de Janeiro, out. 2012.

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Nacional Ulepicc Brasil, Rio de Janeiro, out. 2012.

SHIMP, Terence. Propaganda e promoção: aspectos complementares da


comunicação integrada de Marketing. Porto Alegre: Bookman, 2002

SODRÉ, M. Antropológica do espelho: uma teoria da comunicação linear e


em rede. Petrópolis: Vozes, 2002

TÖNNIES, F. (1947) Comunidad y Sociedad. Buenos Aires: Lozada [1887]

Prêmio Vera Giangrande 65


Souza e Saldanha | Médicos para além das fronteiras...

WACQUANT, Loic. Habitus. In: International Enciclopedia of Economic


Sociology. Milan Zafirovski (ed.). Londres, Routledge, 2004.

YAMAMOTO, Eduardo Yuji. Um novo antropólogo: Muniz Sodré. Revista


Estudos em Comunicação, Curitiba, v. 13, p. 47-56, jan/abr. 2012.

Youtube - Médicos Sem Fronteiras. Disponível em: <https://www.youtube.


com/user/MSFBrasil>. Acesso em: 27 fev. 2016.

Prêmio Vera Giangrande 66


Prêmio
FRANCISCO MOREL
Quem foi Francisco Morel?

Maiara Sobral

O nordestino Francisco Rocha Morel nasceu na capital do


Ceará, no ano de 1927. Foi um dos intelectuais que participou na
formação da Escola de Comunicações e Artes (ECA), da Universidade
de São Paulo (USP). Ao lado dos professores José Marques de Melo e
Gaudêncio Torquato, dentre outros, esteve presente em momentos
decisivos para a consolidação dos estudos comunicacionais no Brasil.
Quando se mudou para a cidade de São Paulo, ele exerceu as
profissões de publicitário e advogado. E em 1967, quando recebeu o
convite para auxiliar na implantação da ECA, atuou como assessor da
diretoria, o que levaria Morel às salas de aula.
Como professor, ele estabeleceu processos de excelência no que
tangia à impressão, seu engajamento e dedicação aos projetos gráficos
lhe renderiam o título de patrono da gráfica da ECA. Morel foi sócio-
fundador da Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da
Comunicação (Intercom). Prematuramente, faleceu em 19 de fevereiro
de 1984.

Prêmio Francisco Morel 68


A regionalização no telejornalismo
piauiense: estratégias adotadas pela Rede
Clube1

Renan da Silva Marques2


Jacqueline Lima Dourado (orientadora)3

Introdução
Em todo o Brasil, grupos de comunicação comerciais acompanham as
mudanças tecnológicas, adaptam-se à realidade dos mercados e buscam
a sobrevivência por meio de estratégias, de contratos e da relação que
constroem com o público e com o mercado. Este trabalho pretende
refletir sobre as implicações do processo de regionalização sobre
as empresas de comunicação, oferecendo elementos que permitam
entender e criticar os procedimentos econômicos e estratégias do grupo
1. Trabalho apresentado no GP Políticas e Estratégias de Comunicação do XVI Encontro
dos Grupos de Pesquisa em Comunicação, evento componente do XXXIX Congresso
Brasileiro de Ciências da Comunicação.

2. Mestre em Comunicação pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da


Universidade Federal do Piauí – PPGCOM/UFPI, na linha Processos e Práticas em
Jornalismo. Membro do Grupo de Pesquisa em Comunicação, Economia Política e
Diversidade (COMUM-UFPI).

3. Orientadora do Trabalho. Doutora em Ciências da Comunicação pela Universidade


do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), Professora do Programa de Pós-Graduação em
Comunicação da Universidade Federal do Piauí (PPGCOM/UFPI). Coordenadora do
Grupo de Pesquisa em Comunicação, Economia Política e Diversidade (COMUM-U-
FPI).

Prêmio Francisco Morel 69


Marques e Dourado | A regionalização no telejornalismo...

Rede Clube, afiliada da Rede Globo no Piauí. Na primeira parte, será


revisado o conceito de globalização, aprofundando sobre regionalização
da comunicação, no entendimento da desconcentração econômica
e regionalização da televisão no Brasil. Em seguida, a discussão será
aprofundada com a análise das produções da emissora, como também
suas ações de marketing.

Globalização e regionalização da televisão


Atualmente são frequentemente empregadas as palavras
globalização e regionalização como implicações geográficas, econômicas
e políticas. Globalização, de forma geral, pode ser entendida como uma
fase da evolução do sistema capitalista, após o regime imperialista
e que, por sua vez, certamente será suplantada por outra fase, ainda
neste século XXI. (ANDRADE, 2013, p. 162). A regionalização, no lado
oposto ao processo de globalização, está ligada ao local, em dimensões
mais modestas que o Estado, mas com elevada importância política e
econômica.
Globalização ou mundialização – como preferido pelos
estudiosos da França – é uma fase que teve início com o surgimento
do modo de produção capitalista, a partir da Europa Ocidental, e que
se estendeu pelo mundo. Existem três fases para se analisar o processo
de territorialização do modo de produção capitalista: o período do
colonialismo, o do imperialismo e o do globalismo.
A fase colonialista se iniciou no século XV, no período em que
nações europeias se unificaram em monarquias absolutistas, rompendo
paulatinamente com o modo de produção feudalista e substituindo pelo
comércio com outras nações, como a África e a Ásia. O que marca nesta
fase foi a considerável expansão europeia para novas regiões e espaços
ainda não conhecidos, por meio de diversas formas de exploração. No
século XVI começa-se a passar, de forma lenta e gradual, do colonialismo
para o imperialismo, de acordo com as realidades e a expansão favorável
– ou não – das forças do capital. Até o século XX o mundo foi se
reconfigurando entre os países imperialistas que detinham controle
de colônias e os que protegiam e/ou controlavam os já independentes.
Após as duas grandes guerras as potencias imperialistas enfraqueceram-

Prêmio Francisco Morel 70


Marques e Dourado | A regionalização no telejornalismo...

se, e o mundo ficou dividido em duas grandes áreas de influência –


americana e soviética –, numa disputa conhecida como Guerra Fria.
Desse embate político, ideológico e militar foram vitoriosos os Estados
Unidos, a União Soviética foi desmembrada e surgiu, assim, o mundo
globalizado em que vivemos, composto por oligopólios e empresas
multi e transnacionais que controlam uma economia mundial, e no
qual os avanços tecnológicos e de comunicação surgem em função
da exploração do capital financeiro. Manuel Correia de Andrade
complementa:

Desse modo, enquanto no colonialismo dominou o capital


comercial e no imperialismo o industrial, no globalismo domina
o capital financeiro; passando uma série de atividades industriais
dos países do primeiro mundo, aos que se chamam hoje,
formalmente, de países emergentes. (ANDRADE, 2001, p. 4)

O processo de globalização tem provocado a formação de


uma regionalização em escala global. Aqui não se fala no processo
característico da geografia tradicional, baseada em questões naturais,
mas em regionalização geopolítica e mais especificadamente em
regionalização midiática. A geografia tradicional, por meio da
cartografia, aponta e caracteriza determinada região num mapa.
Mas isso pode ser alterado a partir da mídia, pois ela tem o poder de
modificar, ampliar e transformar determinados espaços, num processo
que cria novas regiões midiáticas4.

A globalização ao mesmo tempo em que tenta unificar o


espaço geográfico, estimula dando margem a novas formas
de regionalizações e de transformações no meio geográfico,
gerando, em consequência, o surgimento de uma nova fase com
novas características. (ANDRADE, 2013, p. 173).
4. Evangelina Oliveira, geógrafa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE), em palestra proferida no XI Regiocom, refletiu juntamente com outras
autoridades no assunto, como o Prof. Dr. Rogério Bazi (Pucccamp) e o Prof. Dr. Cidoval
Souza (Universidade de Taubaté) sobre um conceito para regiões midiáticas. Segundo
os autores, a mídia tem o poder de deslocar regiões naturalmente definidas e ainda
modificar, transformar e formar novas regiões. Essas seriam as regiões midiáticas,
evidenciadas por meio do poder da mídia. Disponível em: metodista.br/revistas/
revistas-ims/index.php/CSO/article/viewFile/753/763.

Prêmio Francisco Morel 71


Marques e Dourado | A regionalização no telejornalismo...

A globalização, em sua dinâmica própria – que ganha força


por meio das inovações tecnológicas – incita os espaços regionais a
participar de fenômenos globais, por meio da mídia e do consumo,
e tornam características e peculiaridades locais protagonistas dessa
nova fase, com conquista de novos espaços no mercado. Deste modo,
no atual cenário regido pela globalização, as noções de tempo e de
espaço são cada vez menores e, inclusive, anulam-se limites territoriais
e geográficos. Essas características se evidenciam no âmbito midiático.
No Brasil, o poder da mídia está mais ligado à televisão, por ainda ser o
meio de maior abrangência no país.
No que se refere à regionalização da televisão e a relação com
as geradoras, o que se observa é a continuidade da lógica produ¬tiva e
comercial das grandes redes. Peruzzo (2006, p.10) afirma que a mídia
local, nas suas várias for¬mas de veiculação, “tende a reproduzir a
lógica dos grandes meios de comunicação, principalmente no que se
refere ao sistema de gestão e aos interesses em jogo”, e o que vem como
diferencial são as pautas, que se voltam às especificidades de cada região.
A dinâmica desses meios de comunicação tende a explorar o local
enquanto nicho de mercado, como uma unidade comercial que tem
interesses mercadológicos, podendo também corresponder a interesses
políticos e tende a repercutir, em nível local, os conteúdos tratados pela
grande mídia.
A bibliografia sobre a regionalização da televisão revela que o
termo regionalização tem sido utilizado – junto ao discurso da defesa
da cultura – em função dos interesses econômicos dos operadores dos
meios de comunicação de massa, e surge em momentos distintos, de
acordo com cada cenário histórico político-econômico.
No entanto, quando se busca aprofundar este conceito, no que
concerne à televisão regional – ou ainda ao processo de regionalização
da televisão – há mais divergências que consensos, o que demonstra
a necessidade do entendimento do termo “região”. Este, presente em
muitos contextos, revela-se mais comumente em seu aspecto geográfico,
mesmo Correa (1991) considerando o termo “região” tradicional não
apenas na geografia, mas inserido no linguajar do homem comum.
Aqui, fugindo de um determinismo geográfico, concorda-se com Costa

Prêmio Francisco Morel 72


Marques e Dourado | A regionalização no telejornalismo...

(1998, p.13), que explica que a geografia não tradicional caracteriza a


região como um “espaço socialmente ocupado, limitado de acordo com
a realidade histórico-social, em que a delimitação decorre da relação
entre espaço e sociedade e não de fronteiras territoriais estanques.”
Levando-se em consideração o aspecto televisivo, bem como fatores
econômicos e operacionais, considera-se região como um espaço
delimitado geograficamente pelas emissoras de televisão, que admita a
pluralidade de culturas e onde há agentes que “disputam e/ou tecem
alianças para si para conquistar o poder de divisão de um espaço
atribuindo-lhe identidade(s)” (BARBALHO, 2004, p. 156).
Buscando entender o que seria televisão regional, por seu
turno, recorre-se a Bazi (2001), segundo o qual televisão regional é
a que retransmite seu sinal a uma determinada região, delimitada
geograficamente e que tenha sua programação voltada para esta
mesma região, sem perder a contextualização do global. Segundo o
autor, a televisão regional possibilita a união das pessoas desse espaço,
diminuindo distâncias e aproximando culturas.
O processo de regionalização da televisão foi sentido nos
anos 80 com as transformações ocorridas nos meios de comunicação
na valorização dos espaços regional e local, mas também percebida
no contexto histórico. Após um período marcado pela imposição
de interesses e valores supostamente nacionais motivados por uma
proposta de “uniformização da cultura brasileira”, sufocando ou
apresentando ar caricato de expressões socioculturais regionais e locais,
sentiu-se durante a década de 1980, uma mudança nessa trajetória.
Isto se dá pelo processo de redemocratização político-econômica, na
formação de políticas estatais específicas para o setor de comunicação,
e mesmo nas iniciativas empresariais, na criação das grandes redes de
televisão a partir do desmembramento dos Diários Associados – o SBT
(Sistema Brasileiro de Televisão), de Silvio Santos e a Rede Manchete,
de Adolfo Bloch. Neste momento, um novo cenário de disputas impôs
à líder Rede Globo de Televisão, bem como as Organizações Globo
como um todo a inserção cada vez maior da regionalização na sua
programação buscando fazer frente às novas emissoras mediante a
adoção de inovadoras estratégias de (re)aproximação com o público e
com os mercados regionais (Ferraz, 2005).

Prêmio Francisco Morel 73


Marques e Dourado | A regionalização no telejornalismo...

Bazi (2001) explica que este processo de regionalização


se encerrou entre os anos de 2002 e 2003, e a Globo passou a não
desejar mais a regionalização da sua produção. Isso se justifica nos
próprios interesses econômicos da emissora, quando acreditava no
desenvolvimento da TV a Cabo, e era favorável à regionalização como
um subproduto da televisão segmentada. Pelo endividamento das
Organizações Globo após o investimento nesse sistema de TV que não
vingou e no fracassado projeto de ampliação dos negócios para a Europa
(TV Montecarlo), sua crise financeira irrompeu simultaneamente à
estagnação do projeto brasileiro de TV a cabo, fazendo inverter a antiga
convicção quanto ao capital externo.
Paradoxalmente, um novo cenário de disputas na televisão
brasileira em meados dos anos 2000 revela um processo de
provisoriamente definido como “nova regionalização”. Um indício desse
novo posicionamento são as sutis alterações que as afiliadas da Rede
Globo sofreram em suas denominações, e a tentativa da produção de
conteúdos inspirados pelos condicionantes locais.
Além de propostas de regionalização da produção, observam-se ainda
ações de regionalização da comercialização, por meio de incentivo
pelas cabeças de redes na realização de Projetos Regionais, no qual as
afiliadas produzem eventos/produtos regionais para o mercado local
como também para divulgação na grade nacional. Segundo Simões
(2006, p. 139), eventos desse tipo tem como finalidade movimentar as
economias regionais e promover vendas de espaço nas grades locais.
Programas temáticos sobre as festas juninas no Nordeste, as micaretas e
eventos esportivos, por exemplo, criam eventos midiáticos regionais do
interesse de clientes/anunciantes e possibilitam um tipo de negociação
local/regional/nacional que facilita o processo de “regionalização dos
investimentos publicitários” de grandes anunciantes.

Desconcentração econômica e regionalização no Brasil


As mudanças que tem ocorrido em função da regionalização do
mercado de comunicação brasileiro tem relação com a desconcentração
da indústria, o deslocamento de empresas dos mais variados setores
de serviços, o desenvolvimento da agropecuária em novas regiões,

Prêmio Francisco Morel 74


Marques e Dourado | A regionalização no telejornalismo...

entre outros, num processo de migração de mercados produtores e


consumidores principalmente do sudeste para outras regiões do Brasil.
Visando novas oportunidades de mercado, operadores de
marketing, publicidade comercial, agências de comunicação, anunciantes
e veículos tentam entender esse cenário e traçar novas estratégias de
mercado. Em meados dos anos 2000, o Mídia Dados já apresentava
sinais dessa mudança, quando afirmou que as “agência e veículos têm
tirado proveito da rápida desconcentração da economia, com sinais
cada vez mais frequentes e animadores vindos de fora do eixo Rio e São
Paulo” (Mídia Dados, 2004, p. 35).
As empresas de comunicação regionais – ao tempo que investem
em recursos humanos, tecnológicos e econômicos para consolidar os
processos de digitalização e convergência –, enfrentam a necessidade
de posicionar-se ou reposicionar-se diante desta nova configuração do
capitalismo tardio, na atual fase da multiplicidade da oferta.

Regionalização como estratégia de mercado: região nordeste


As dimensões continentais, a grande diversidade cultural e o
desenvolvimento desigual de determinadas regiões em relação a outras
revelam que o Brasil possui diferenças muito grandes entre regiões,
estados e municípios. A formação de mercados regionais se dá quando
percebe-se o local/regional como nicho de mercado e verifica-se que se
trata de segmento com potencial de rentabilidade alto. Hoje, as regiões
“menos desenvolvidas” do país revelam-se como as que mais crescem.
Se observarmos a região Nordeste como fins de pesquisa e
amostra para análise, nos últimos cinco anos, a região apresentou,
crescimento acima da média brasileira. Segundo dados do Banco
Central5, a atividade econômica no Nordeste teve, em 2014, crescimento
superior à média Nacional e diversos indicadores confirmam a
continuidade do aumento da participação da região no Produto Interno
Bruto (PIB) nacional. Este crescimento é apontado pelo Índice de
Atividade Econômica Regional do Banco Central (IBCR), que mostra
o Produto Interno Bruto nacional com crescimento de 0,1% em 2014,
enquanto o Nordeste teve elevação da economia de 3,7%.
5. Boletim Regional do Banco Central do Brasil. Janeiro 2015. Disponível em: bcb.gov.
br/pec/ boletimregional/port/2015/01/br201501c2p.pdf Acesso em 02/12/2015

Prêmio Francisco Morel 75


Marques e Dourado | A regionalização no telejornalismo...

O Nordeste liderou o crescimento no Brasil entre dezembro


de 2012 e fevereiro de 2013. Na construção civil, entre julho de 2009 e
2010, foram criadas nessa região mais de 114 mil vagas de emprego, o
que representou 34% do total de vagas abertas no país. Este crescimento,
sobretudo na construção civil, é motivado pelo deslocamento de
novos negócios para a região. Destacam-se ramos de montadores de
automóveis, imobiliário, bebidas, calçadista, agrícola, papel e celulose,
fruticultura, petroquímico, turístico, entre outros. Além disso é preciso
mencionar que a região possui a segunda maior população do país,
representando 56,1 dos 202 milhões de habitantes do país, segundo
levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE),
mantendo-se em primeiro lugar a região Sudeste, com 85,1 milhões de
habitantes6.
Ao longo dos anos, a capacidade de consumo do habitante
do Nordeste tem aumentado. Segundo dados do Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (IPEA), em 1995, quase 70% dos habitantes da
região recebiam menos da metade do salário mínimo. Em 2008, 49% da
região recebia um salário mínimo, enquanto a outra metade já recebia
mais. O prognóstico do IPEA é que em 2016, apenas cerca 28% da
população receba salário mínimo.
Isso revela o processo de desconcentração da economia, que
gera, por sua vez novos mercados, novas oportunidades de negócio
e, por seu turno, novas estratégias de comunicação. Vislumbrando a
conquista de novos espaços, a Indústria da Comunicação cria estratégias
no sentido de explorar estes novos mercados.
O Brasil oferece um mercado de radiodifusão de modelo
oligopolista, controlado por poucos grupos midiáticos. Na região
nordeste não é diferente, e as emissoras comerciais de TV pertencem
a pequenos grupos empresariais e familiares, que têm negócios na
área de comunicação, mas também em outras áreas de atuação, muitas
vezes complementares na conquista de capitais. Quanto ao mercado de
comunicação, as emissoras de TV têm enfrentado desafios diante de um
6. Estimativas da população residente nos municípios brasileiros com data de
referência em 1º de julho de 2014, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
Acesso em 29/07/2015. Disponível em: ftp://ftp.ibge.gov.br/Estimativas_de_Populacao/
Estimativas_2014/estimativa_dou_2014.pdf

Prêmio Francisco Morel 76


Marques e Dourado | A regionalização no telejornalismo...

quadro de concorrência e buscam, por meio de estratégias de mercado


específicas, conquistar novos espaços.

Nesse panorama, as redes regionais cresceram e ampliaram


seus negócios. A valorização das demandas locais tem suas
raízes em um processo de expansão do sistema capitalista, que
remonta aos séculos XIX e XX, desencadeador do desmonte
das barreiras geográficas, culturais e políticas entre as nações. A
internacionalização da economia acentuou a circulação de bens
culturais e o desenvolvimento tecnológico propiciou o surgimento
de redes de serviços e o acesso aos novos consumidores espalhados
pelo planeta. (SALOMÃO, 2006, p. 186)

Percebe-se um maior investimento no número e na qualidade das


produções locais, alterações nos padrões tecnoestéticos, convergência
de plataformas, o investimento em produções locais e regionais7 e
a autoreferenciação como redes regionais8. Deste modo, observa-se
que a relação globalização e mídia, a expansão para novos mercados,
motivada pela regionalização – como estratégia – tem relação direta
com os contextos econômico, político e social.
Ao analisar o mercado regional de comunicação que se
configura no Brasil, percebe-se um novo cenário de disputas na
televisão regional, com maior ênfase à regionalização. Observa-se,
ainda, indícios do apego a este novo posicionamento, quando emissoras
de TV empregam alterações em suas denominações, havendo por parte
destas um visível empenho na produção de conteúdos inspirados pelas
condicionantes locais. Percebe-se um deslocamento e um novo modelo
de negócio, na conquista por novos espaços, por mercados ainda não
(ou pouco) explorados e que se tornam atrativos. Na medida em que há
uma expansão de capital, o mercado de televisão procura acompanhar e
expandir-se.
7. No Piauí, por exemplo, a Rede Meio Norte é o único canal de televisão do estado
sem afiliação às grandes redes da televisão brasileira, apresentando uma proposta de
programação totalmente regional. Passou a denominar-se Rede no ano de 2011.

8. O mais antigo grupo de televisão do estado do Piauí, passou a denominar-se Rede


Clube, englobando TV, Rádio Clube AM e FM e seu Portal de Notícias “Portal da Clube”,
que passa a chamar-se G1 Piauí, além de empreender ações de regionalização, visando
o reposicionamento de mercado.

Prêmio Francisco Morel 77


Marques e Dourado | A regionalização no telejornalismo...

Entretanto esta expansão de cobertura, motivada pela expansão


de capital, demonstra uma regionalização mais ligada ao processo de
reestruturação capitalista, e um posicionamento que visa conquista de
mercados – regionais e locais – numa lógica de ocupação de espaços/
territórios.

Rede Clube: estratégias de regionalização


Aqui serão levantadas algumas estratégias de regionalização
da Rede Clube, afiliada da Rede Globo no Piauí, na perspectiva da
Economia Política da Comunicação. A discussão é aprofundada com
a análise da emissora como espaço público midiático e como ela
desempenha este papel, na condição de indústria cultural e produtora
do debate de questões sociais. Como análise, foram observados os
conteúdos produzidos e as suas ações de marketing. Partindo de uma
metodologia de abordagem analítico-descritiva da programação da
emissora, revisitando e analisando elementos referentes à teoria e ao
objeto, por meio do instrumental teórico-metodológico do materialismo
histórico dialético concebido por Marx, foram destacados os programas
dos gêneros9 não-jornalísticos produzidos pela TV Clube, quais sejam:
Clube Rural (Rural), Globo Esporte (Esporte) e Programão (Show).
Justifica-se a escolha por serem produções que têm maior variação no
padrão tecnicoestético em toda a produção e apresentação, e maior
número de conteúdos apresentados como regionais, em comparação
com os programas do gênero informativo.

Clube Rural
O programa é classificado na categoria jornalismo, no gênero
Rural e é exibido nas manhãs de domingo, atualmente das 07h30 às 08h00.
Este é um dos horários optativos destinados para produções regionais,
em que em rede, a TV Globo exibe o programa Globo Comunidade. O
9. Segundo a classificação de Aronchi de Souza (2004), gênero é o desenvolvimento
de um programa de televisão voltado para determinado público e para determinado
assunto. A grade de gêneros que orienta a Rede Clube é a mesma da Rede Globo, que
divide-se, de acordo com Dourado (2008, p. 112), em “auditório, break exclusivo,
educativo, entrevista, esporte, feminino, filme, humorístico, infantil, jornalismo,
minissérie, musical, novela, reality show, reportagem, rural, série e show”.

Prêmio Francisco Morel 78


Marques e Dourado | A regionalização no telejornalismo...

programa não tem apresentador fixo, e segue um revezamento entre os


repórteres da TV Clube. É apresentado em ambientes fora dos estúdios,
não fixos, geralmente num ponto turístico do estado. Apesar de ser
classificado como Rural, o programa demonstra abertura para outras
temáticas, como culinária, cultura, religiosidade e tradições.

Análise do Clube Rural exibido em 21 de fevereiro de 2016, das 7h30 às


8h00.
O programa exibido apresentou 4 reportagens em 3 blocos e 2
intervalos comerciais. A primeira matéria foi uma grande reportagem
que ocupou todo o primeiro bloco, e teve como temática o local aonde
estava sendo apresentado o programa: o Parque Nacional da Serra da
Capivara. A reportagem 4 foi a reprise de uma produção da Globo
Nordeste, exibida anteriormente em Rede Nacional e exibida nesta
edição do Clube Rural.
Não houve apresentação de vinhetas comerciais de oferecimento
antes ou depois do programa, como é comum nas produções da emissora.
Nos dois intervalos foi veiculada apenas uma propaganda comercial. As
demais veiculações foram produções próprias da emissora: campanhas
educativas e de cunho social da Rede Clube e da Rede Globo conta o
Aedes aegypti; FM Clube; produtos da Som livre / loja.globo e o pay
per view do Big Brother Brasil. Destaca-se a falta de patrocinador oficial
para o programa e o baixo volume de inserções publicitárias em virtude,
também, do horário de exibição. A emissora procura, deste modo,
ocupar os espaços e rentabilizar-se na divulgação de seus produtos e
sub-produtos, de campanhas educativas e de conscientização e de outras
emissoras do grupo de comunicação.
Do ponto de vista da captura e movimentação das imagens
também percebe-se diferenças nas produções. O Globo Rural, gravado
quase totalmente em espaços abertos e mostrando grandes áreas,
apresenta mais imagens em plano aberto – com câmera distante do
objeto, por trabalhar mais ambientação nas cenas – e plano médio, com
a câmera a uma distância média do objeto, de modo que ele ocupa parte
considerável do ambiente, buscando posicionamento e movimentação.

Prêmio Francisco Morel 79


Marques e Dourado | A regionalização no telejornalismo...

No fim do programa, há um convite à participação do


telespectador na produção do programa, por meio de sugestões que
podem ser enviadas à emissora por telefone, e-mail e até carta. A
correspondência por cartas aos programas de televisão, sempre muito
utilizado, está em desuso na maioria das produções, que têm preferido
os meios mais modernos como SMS, aplicativos de mensagens
instantâneas e espaços reservados nos próprios sites das emissoras. Por
tratar-se de um programa com a temática do campo, no gênero rural,
ainda mantém-se esse tipo de comunicação por subentender-se que
parte do público telespectador do produto não tem fácil acesso a meios
mais modernos de comunicação. Este é o mesmo modelo utilizado na
TV Globo no programa Globo Rural.

Globo Esporte
Exibido de segunda a sexta, das 12:49 às 13:00h antes do Jornal
Hoje, o bloco piauiense do Globo Esporte tem 10 minutos, enquanto
os dois blocos que seguem têm o conteúdo produzido pela TV Globo
exibido por mais 20 minutos. A Rede Clube não relaciona em seu portal
o programa Globo Esporte como local, apesar de manter um site próprio
(globoesporte.globo.com/pi), e recentemente ter investido em pessoal
e produção, seguindo as mudanças significativas no telejornalismo
esportivo da emissora que aconteceram mais intensamente a partir de
2009. Na data analisada foi apresentado pela primeira vez por Vinicius
Vainner, novo âncora do programa.

Análise do Globo Esporte exibido em 15 de fevereiro de 2016, das 12h50


às 13h20.
Por ser uma segunda-feira, o programa tende a ser um
resumo dos jogos que aconteceram no final de semana. A emissora
faz a cobertura da Copa do Nordeste e as matérias, produzidas pelas
afiliadas, que são compartilhadas na rede. O programa é apresentado
com linguagem despojada, leve, descontraída e repleta de elementos do
esporte, como “primeiro tempo”, “em campo” e “todo poderoso Sampaio
Correia”. Numa das matérias veiculadas não é informado que a mesma
foi produzida pela TV Redes Mares, afiliada Globo no Ceará. Isso pode

Prêmio Francisco Morel 80


Marques e Dourado | A regionalização no telejornalismo...

ser percebido pelo repórter, pela canopla no microfone e também pela


edição, que se difere das demais.
O apresentador não deixa o seu lado torcedor, e demonstra
desapontamento na derrota do time local, e que o programa representa
a torcida dos times piauienses, quando estão em partidas com times de
outros locais. Pela limitação do tempo, e por ser o último programa ser
encaixado como bloco das produções locais na grade da Rede Globo, a
fala de encerramento do apresentador foi muito curta, durou apenas 3
segundos, o tempo de despedir-se.
O Globo Esporte é o principal telejornal esportivo do país e
líder de audiência no seu segmento, segundo dados do IBOPE, desde
1978 no ar, mas com o passar do tempo seu modelo foi ficando obsoleto
e seus índices de audiência começaram a cair, o que levou a Rede Globo,
a partir de 2009, a modificar o formato e a linguagem do programa,
que deixou de ser sério e engessado e passou para um tom mais leve
e dinâmico, que hoje oscila entre jornalismo e entretenimento. Novas
editorias, um portal específico na plataforma da Globo.com10, cenários
e linguagem foram criados e têm sido impostos para as afiliadas.
No caso da TV Clube, as mudanças aconteceram na substituição
de apresentadores, na adequação da linguagem, na postura e na
abordagem dos conteúdos. Houve também a criação de uma editoria
específica, que produz conteúdos para o telejornal, para os blocos
esportivos nos outros telejornais e para o portal local do Globoesporte.
com, o Globo Esporte Piauí, ou GEPI (globoesporte.globo.com/pi/), que
reúne conteúdos esportivos e é mais um espaço para o departamento de
marketing da emissora explorar comercialmente.

Programão
Exibido aos sábados, das 14h00 às 14h40, o programa é
classificado na categoria entretenimento, no gênero show e é exibido
10. A Rede Globo organiza seus conteúdos na internet por meio de sites específicos para
jornalismo (G1), conteúdos esportivos (GE ou Globoesporte.com) e de entretenimento
(Gshow), além do portal/plataforma que reúne os destaque de cada editoria (globo.com).
Os produtos das afiliadas tem subsites vinculados aos portais da Globo, organizando-
se de acordo com os tipos de conteúdos. A fragmentação em editorias possibilita
a exploração de um maior número de espaços e formatos pelos departamentos de
marketing nacional e local.

Prêmio Francisco Morel 81


Marques e Dourado | A regionalização no telejornalismo...

num dos horários optativos destinados para produções regionais,


que em rede, a TV Globo exibe o programa Sessão Comédia. É o
único produto de entretenimento da TV Clube11. O Programão é
apresentado pelos jornalistas Simone Castro e Hélder Vilela. É a
produção mais recente da emissora, e foi ao ar pela primeira vez em
15 de agosto de 2015. Comercialmente o produto é considerado,
segundo informações do IBOPE divulgadas no informativo comercial
da emissora (INFOCLUBE)12 do mês de novembro de 2015, destaque
na programação da emissora e líder de audiência no segmento, além de
uma ótima oportunidade de associação de marca.

Análise do Programão exibido em 20 de fevereiro de 2016, das 14h00 às


14h49.
Apresentado por Simone Castro, teve 3 blocos, 4 quadros (Fora
do Ar, Isso é Piauí, Você por Aí, A boa da Semana), 2 Reportagens, 1
entrevistas e 2 intervalos comerciais. A proposta do programa é passar
uma linguagem leve, espontânea e bem humorada, mas na edição
analisada apresentou-se direta, coloquial e corrida, muitas vezes sem
pausas entre os temas apresentados.
Imagens com muito movimento, enquadramentos diferenciados,
capturas feitas com maior detalhamento revelam um maior cuidado
na produção, e uma edição mais elaborada. Todas as matérias tem
uma trilha sonora ao fundo e as cenas utilizam elementos com cores
vibrantes, aparecendo com frequência algum elemento regional, seja
na decoração, no vestuário, nas vinhetas ou na sonoplastia. Riqueza de
detalhes e exploração dos recursos imagéticos podem ser vistos, por
exemplo, na matéria de Hélder Vilela Quadro para o quadro “Isso é Piauí”,
no município de Água Branca, que apresentou duas animações para
ilustrar a história do município. São elementos dificilmente encontrados
em outras produções da emissora, e vistas com maior frequência nos
produtos da TV Globo. A linguagem visual recebe um cuidado à parte,
11. A emissora, até então, produzia informativos nos gêneros jornalístico, rural e de
esportes, com destaque ao formato telejornalístico.

12. Disponível em: https://issuu.com/redeclube/docs/infoclube_novembro. Acesso em


25/01/2016.

Prêmio Francisco Morel 82


Marques e Dourado | A regionalização no telejornalismo...

desde a abertura, nos locais escolhidos para a apresentação, às roupas


dos apresentadores. A proposta, é diferenciada das demais produções
da emissora.
Uma relação de pertencimento, pode ser observada na proposta
de mostrar o Piauí, por meio de matérias que tragam conteúdos “sob um
ponto vista diferenciado, valorizando o regionalismo” e percorrendo o
estado em busca dessas histórias. Aproveita a possibilidade de envios
de conteúdos na atualidade por meio de smartphones, para incrementar
sua produção e instigar a participação do telespectador, pelas redes
sociais, e também por meio da ferramenta “VC no Programão” que o
portal GShow disponibiliza, após um cadastro na globo.com.
O quadro “Isso é Piauí” vai em busca da identificação da “cor
local”, frequentemente tema das produções de entretenimento e cada
vez mais presente no jornalismo da Rede Globo, aonde o telespectador
pode ver-se representado. A evidência de personalidades locais e
regionais também é uma marca permanente, exibida no quadro “Fora
do ar”. Este tipo de produção geralmente destaca nomes que mantém
certo estreitamento com a emissora, ou utilizam como critério de
escolha pessoas que não possuem limitação ou algum tipo de influência
em seus interesses comerciais ou operacionais.
A canopla personalizada com a marca do programa, a almofada
em forma de TV personalizada com a marca do programa e os
caracteres “© 2015 Rede Clube”, no final dos créditos no encerramento
do mesmo são elementos que são apresentados apenas nessa produção.
Observam-se aí as marcas da empresa local que registra seus produtos e
subprodutos, dentro da lógica organizacional da Rede Globo, da Globo
Marcas e da Central Globo de Afiliadas e Licenciamento (CGAL).
Há outras marcas que podem ser relacionadas às questões
comerciais do Programão. Identificadas como merchandising, a
aparição de determinados serviços no programa, mesmo sem as
características explícitas de anúncio publicitário podem ser vistas no
local das gravações, nos restaurantes aonde aconteceram as entrevistas
e no próprio vestuário dos participantes e da apresentadora. Simone
Castro utiliza as redes sociais para divulgar as parcerias do programa,
principalmente empresas de vestiário.

Prêmio Francisco Morel 83


Marques e Dourado | A regionalização no telejornalismo...

Oportunidades e eventos locais/regionais da Clube


O Departamento de Marketing da Rede Clube produz conteúdo
relacionado aos programas e ao mercado local e repassa à Rede
Globo, que divulga em portais específicos (NEGOCIOS GLOBO), em
publicações (BIP) e localmente por meio do Informativo Comercial da
Rede Clube (INFOCLUBE) que começou a ser produzido em Abril de
2015. No caso específico deste documento, a comercialização apresenta
além de destaques da programação, planos comerciais e programação de
eventos e atrações, os seus clientes são destacados em sessão específica
que chama de “Case de Sucesso”. O portal da emissora e as redes sociais
também são utilizadas pelo departamento de marketing da emissora
para divulgar seus parceiros”.13
Segundo Cláudia Quaresma, diretora de relacionamento com
afiliadas da Globo, por ano “cerca de 40 mil clientes investem em TV por
meio das afiliadas”, na programação ou em eventos locais, que “são vistos
pelo mercado como oportunidades”14 de associação de marca e mídia
especial. O modelo de relacionamento das afiliadas integra o padrão
de qualidade nacional e a vocação de cada grupo regional, e procuram
trabalhar de forma alinhada em diversas áreas e nas várias mídias
disponíveis. Estrategicamente, o trabalho numa política comercial
integrada garante, segundo o departamento comercial da emissora, um
grande portfólio15 de oportunidades e projetos, bem como o atendimento
de cliente de pequeno, médio e grande porte, em estratégicas locais,
regionais ou nacionais. Para tanto a área de relacionamento com
afiliadas, juntamente com outras áreas da Globo, promove formações
13. A emissora promove divulgação de seus parceiros comerciais nas redes sociais do
departamento de marketing da emissora (https://www.facebook.com/mktredeclube)
e em seu site (http://redeglobo.globo.com /pi/redeclube/noticia/2015/12/cliente-da-
tv-clube-flavio-jose-visita-estudios-da-rede-globo-em-sao-paulo.html). A matéria
destacou a visita de um desses aos estúdios da Rede Globo em São Paulo. Mesmo não
mencionando o nome empresa, é possível identificá-la na postagem das redes sociais.

14. Disponível em: http://propmark.com.br/midia/afiliadas-da-rede-globo-permitem-


alcance-de-99. Acesso em 23/12/2015.

15. Inclusive mantendo um portal intitulado “Oportunidades Regionais” no site


Negócios Globo, onde estão mapeados ações comerciais, eventos, programas por
emissora, estado, região ou localidade e disponíveis campanhas de vídeos, calendário
de planos comerciais e informações de mercado. Disponível em: https://negocios2.
redeglobo.com.br/oportunidadesregionais2014/Paginas/Home.aspx

Prêmio Francisco Morel 84


Marques e Dourado | A regionalização no telejornalismo...

de alinhamento, intercâmbio para troca de experiências, aproximação


entre telespectadores e anunciantes entre muitas outras ações, visando
potencializar estratégias do mercado publicitário. A abertura na
grade das afiliadas também prevê a ampliação das oportunidades de
comunicação para o mercado publicitário.
Seguindo a cultura organizacional da Rede Globo, a Rede
Clube promove e incentiva eventos locais e regionais, e neles realiza as
chamadas “coberturas especiais” nas quais permite inserções publicitárias
específicas, na abertura ou encerramento, vinhetas de passagem,
chamadas, vinhetas de bloco, clipes, teasers, flashs, etc., dependendo da
definição do plano comercial. Alguns eventos promovidos pela emissora
nos últimos anos:
EVENTOS REGIONAIS: Destinados a incentivar festividades
regionais/folclóricas por meio da identificação e da divulgação
de oportunidades dessa natureza. Exemplos: Cidade Junina, Vila
Junina, Carnaval Globeleza, Corso, Semana Santa de Oeiras,
Paixão de Cristo de Floriano.
EVENTO ESPORTIVO: Destinados a promover o esporte da
região ou uma competição esportiva, de forma a levar público
e trazer entretenimento à população. Exemplos: GP Teresina
Corrida de Rua.
EVENTOS COMUNITÁRIOS: Destinados a trazer
esclarecimentos de caráter educativo/social que resultem no
bem-estar da comunidade. Envolvem a população/comunidade
na participação dos mesmos, resultando numa prestação de
serviço. Exemplos: Ação Global, Criança Feliz.
O Portal Negócios Globo, organiza as oportunidades Regionais
em que a Rede Clube faz parte nos Mercados Floriano – PI (via TV
Alvorada do Sul – Sigla: FNO), Teresina – PI (via TV Clube – Sigla:
TER), Piauí Estado (Sigla: PIE), e a emissora também faz parte da
Rede Nordeste Integrado (PE, BA, CE, AL, RN, MA, SE, PB, PI) que
promove conjuntamente em 2016 os eventos: PAIXÃO DE CRISTO
DE NOVA JERUSALÉM 2016; SÃO JOÃO DO NORDESTE; VERÃO
NORDESTE 2016. Para cada mercado são disponibilizados planos
comerciais, a programação local, datas promocionais e temáticas gerais
para campanhas.

Prêmio Francisco Morel 85


Marques e Dourado | A regionalização no telejornalismo...

Considerações
O baixo número de produções originadas nas emissoras
afiliadas é um reflexo da desregulamentação da produção regional, visto
que ocupam significativo tempo de emissões com retransmissão dos
conteúdos das grandes redes. Questiona-se, aqui, a concessão e a própria
definição de “geradora”, pois as ações destas emissoras vão ao encontro
do que é estabelecido pelo Código Brasileiro de Telecomunicações,
segundo o qual geradora é “uma estação radiodifusora que realiza
emissões portadora de programas que têm origem em seus próprios
estúdios”, enquanto as retransmissoras não podem transmitir conteúdos
próprios, limitando-se a exibir a programação de uma geradora. A
definição está mais que defasada e a situação se agrava porque não há na
legislação regulamentação específica sobre a relação de afiliação entre
geradoras.
Algumas estratégias, por mais que fossem um desejo do grupo
Rede Clube, como a criação de um produto como o Programão, só
foram possíveis após a abertura que a Rede Globo criou em sua grade
nos últimos anos, acompanhando o movimento dos mercados e o
processo de regionalização. Isso descreve uma limitação imposta como
barreira dentro da própria organização, e um cenário de disputa interna
do ponto de vista do engessamento da grade de programação, aonde
a emissora afiliada identifica, como empresa, suas necessidades e suas
estratégias, mas que são barradas pelos interesses maiores do grupo ao
qual se relaciona.
O Programão, mais do que atender uma demanda local do
telespectador piauiense, apresenta-se como uma demanda da emissora
por um produto diferenciado, e uma oportunidade para explorar o
mercado com uma imagem diferenciada aos anunciantes da emissora,
e pela possibilidade de cobrir geograficamente conteúdos de outros
espaços do estado. Por outro lado quando houve a abertura desta
possibilidade, a formatação do produto para apresentação ao mercado
regional teve o suporte da Rede Globo, e seu diferencial foi ter sido
cunhado sobre os princípios comerciais, estéticos, organizacionais,
jurídicos e de conteúdo da emissora que conferem a sua diferenciação
no mercado local.

Prêmio Francisco Morel 86


Marques e Dourado | A regionalização no telejornalismo...

O interesse de dar ênfase à “cor local” é refletido nos conteúdos


produzidos pela emissora, como forma de conquista dos anunciantes,
propondo uma valorização desse local/regional. O incentivo à
participação popular e as sugestões dadas pelo telespectador garantem,
por um lado, a conquista da audiência e se perfazem estratégia de
conquista do público. Por outro lado, demonstram a posição da
emissora, por meio da produção de seus conteúdos, visto que passa para
a ‘vontade’ do telespectador em querer ver o que acontece no seu bairro,
na sua cidade.
A TV Clube procura criar vínculos com a comunidade por meio
de ações sociais em seus eventos como também nas suas produções, por
meio da interação com o consumidor e, em contrapartida, recebe maior
envolvimento e credibilidade para a empresa. O investimento em ações
sociais garante, também, o posicionamento positivo da marca como
empresa cidadã, e se reflete em premiações.

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Prêmio Francisco Morel 87


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Prêmio Francisco Morel 88


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2006.

Prêmio Francisco Morel 89


Do direito à prática comunicacional:
Casa Brasil Imbariê como dispositivo
de empoderamento comunitarista 1

Suelen de Aguiar Silva2


Cicilia M. Krohling Peruzzo (orientadora)3

Introdução
Neste texto trataremos das experiências de Comunicação
Comunitária e participação popular oriundas do Projeto Casa Brasil,
abordando parte dos resultados obtidos em nossa dissertação de
mestrado. Na primeira parte apresentamos os aspectos teóricos e
conceituais sobre o direito à comunicação que embasaram o estudo. Na
segunda parte traremos da dimensão empírica do estudo.
Processo tão natural como, respirar, beber água ou caminhar, a
comunicação é a força que dinamiza a vida das pessoas e das sociedades:
a comunicação excita, ensina, vende, distrai, entusiasma, dá status,
constrói mitos, destrói reputações, orienta, desorienta, faz rir, faz
1. Trabalho inicialmente apresentado no GP Comunicação para a Cidadania, do XVI
Encontro dos Grupos de Pesquisa em Comunicação, evento componente do XXXIX
Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. O presente artigo apresenta um
recorte da dissertação de mestrado da autora defendido em 2013, com o apoio do CNPq.

2. Doutora e mestre em Comunicação Social pela Universidade Metodista de São Paulo,


graduada em Comunicação Social com habilitação em Publicidade e Propaganda pela
Universidade Estácio de Sá.

3. Docente do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade


Metodista de São Paulo - Umesp.

Prêmio Francisco Morel 90


Silva e Peruzzo | Do direito à prática comunicacional...

chorar, inspira, narcotiza, reduz a solidão e – num paradoxo digno de


sua infinita versatilidade – produz até incomunicação (BORDENAVE,
[1983] 2002, p. 10)4. A passagem acima não é nova, mas não poderíamos
começar nosso texto sem antes retomá-la. Juan Díaz Bordenave (1926-
2012), um grande expoente do pensamento comunicacional latino-
americano, demonstrou por seu legado, como educador e comunicador,
o quão fundamental é o papel da comunicação - participativa - na vida
das pessoas e das sociedades, principalmente o direito à comunicação.
Em 1948, a Organização das Nações Unidas (ONU) sancionou a
Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), a qual afirma em
seu primeiro artigo: “todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade
e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação
umas às outras com espírito de fraternidade”. A Declaração Universal
dos Direitos Humanos foi aprovada em quarenta e oito estados com o
objetivo de tornar livres e iguais os indivíduos, em primeira instância
para a promoção da paz e o fortalecimento dos direitos humanos. Isso
devido ao horror do período entre guerras. A Primeira Guerra Mundial,
nesse sentido, serviu para demonstrar como a capacidade industrial e a
corrida armamentista de países ricos desembocaram em graves conflitos
armados e tensões entre os povos. Já a Segunda Guerra Mundial revelou
para o mundo as piores ações realizadas em conflitos: o genocídio de
milhões de judeus. Nesse cenário de barbárie, a dignidade e a igualdade
entre os seres humanos foram descartadas, e foi nesse contexto e por ele
que as Nações Unidas adotaram a DUDH.
Sendo assim, os direitos humanos englobam desde as
necessidades mais básicas de cada ser humano, como o direito à
alimentação, moradia, saúde e educação, o direito de ir e vir e, entre
tantas outras coisas, o direito à comunicação. O artigo 19º da Declaração
Universal dos Direitos Humanos aponta que, “toda pessoa tem direito
à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de,
sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir
informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de
fronteiras” (DECLARAÇÃO..., 1948).
4. A primeira publicação desta obra data de 1983, porém utilizamos a 10ª ed. lançada
em 2002.

Prêmio Francisco Morel 91


Silva e Peruzzo | Do direito à prática comunicacional...

Embora a história nos permita uma leitura a favor desses


princípios, percebemos que isso ocorre em maior ou menor grau
dependendo de cada cultura, de cada povo. Segundo a pesquisadora
Cicilia M. Krohling Peruzzo (2004, p. 275), “esse processo tem a ver
com as decisões dos governantes e a capacidade do povo para exigir
o cumprimento de seu direito, com vistas à realização de seu dever de
contribuir ativamente, como sujeito, para a construção da sociedade”.
Dentre os mais variados aspectos da vida, o direito a exercer a
comunicação ativamente é um deles. Referimo-nos a comunicação de
fato e de direito e não apenas pensando o sujeito como consumidor,
mas como sujeito ativo da comunicação. Para Peruzzo (2004, p. 275),
a democratização da comunicação no Brasil e em outros países latino-
americanos tem sido obstaculizada pelo Estado e por setores dominantes
que, em virtude de sua posição hegemônica ou pela imposição,
acabam por ganhar a cumplicidade da sociedade, embora exista certa
resistência, como veremos adiante. Contudo, antes de tratarmos dos
matizes que envolvem essa temática, acreditamos ser necessário fazer
uma incursão a respeito dos direitos humanos a partir de um breve
apanhado conceitual sobre cidadania e sobre a inserção da comunicação
como uma das dimensões desse conceito.

1. Cidadania e Comunicação
À luz do Direito, a formulação dos direitos de primeira, segunda,
terceira, quarta e quinta geração revelam os aspectos e as demandas
históricas, políticas e sociais da sociedade inerentes à cidadania. Por
conseguinte, o direito à comunicação é um direito humano e está
circunscrito neste processo. Conceitos de autores como T. H. Marshall,
Liszt Vieira, Norberto Bobbio, entre outros, tornam-se importantes ao
mostrar as mudanças históricas que conduzem a alterações no conceito
de cidadania, a partir das gerações de direitos e do sentido que são dados
a eles.
T. H. Marshall (1967), em Cidadania, Classe social e Status,
publicado originalmente em 1949, compreende a cidadania moderna
a partir do estabelecimento primeiramente dos direitos civis, seguido
dos políticos e por último dos direitos sociais. Para Marshall (1967) a

Prêmio Francisco Morel 92


Silva e Peruzzo | Do direito à prática comunicacional...

cidadania é histórica e é conformada pelo status comum, conquistado e


compartilhado pelos membros de uma comunidade. Em termos gerais,
os direitos civis, surgidos no século XVIII, essencialmente, são aqueles
que dizem respeito à liberdade individual, à de pensamento, de religião,
à liberdade de ir e vir, etc. Os direitos políticos, surgidos no século XIX,
dizem respeito aos direitos eleitorais, na possibilidade de votar e ser
votado, e à liberdade de associação nos partidos, ambos caracterizados
como direitos de primeira geração (BOBBIO, 1995; VIEIRA, 2001). Já os
direitos sociais, datam do século XX e estão relacionados ao bem-estar
social, ao emprego, à educação, à saúde, entre outros. São os chamados
direitos de segunda geração (BOBBIO, 1995; VIEIRA, 2001). Assim,
a cidadania pode ser compreendida, a partir das explanações acima,
exatamente pelas mudanças que propicia e ampliações que gera em prol
das lutas sociais dos povos para conquistar mais direitos.
Logo, a caracterização moderna do conceito de cidadania
representa a promoção de um status de igualdade social, que atribui
ao indivíduo à posse legítima de direitos e a obediência comum aos
deveres. Porquanto, ser cidadão independe de sexo, cor ou classe social,
sendo todos iguais perante a lei. Liszt Vieira (2001, p. 35) compreende
que o conceito de cidadania, como o direito a ter direitos - e reconhecer
seus deveres - , foi abordado de variadas perspectivas. Segundo Vieira,
Marshall propôs a primeira teoria sociológica de cidadania ao incluir os
direitos e as obrigações inerentes à condição de ser cidadão. Contudo,
não podemos perde de vista que a teoria desenvolvida por Marshall, na
época, partia da sua concepção inglesa sobre o conflito entre capitalismo
e liberdade. Os avanços e retrocessos da cidadania ocorrem de maneira
diferenciada nos diferentes países, principalmente no Brasil, onde temos
um histórico marcado por desigualdades sociais.
Por sua vez, Norberto Bobbio (1999, p.32-33), filósofo italiano,
também compreende que o desenvolvimento dos direitos do homem
passou por três fases, os direitos civis, políticos e sociais. Segundo
Bobbio (1992), a partir do século XX, os direitos sociais são vistos como
direitos de terceira geração. Como demonstra na passagem a seguir:

Com relação ao terceiro processo, a passagem ocorreu do


homem genérico – do homem enquanto [sic] homem – para o

Prêmio Francisco Morel 93


Silva e Peruzzo | Do direito à prática comunicacional...

homem específico, ou tomado na diversidade de seus diversos


status sociais, com base em diferentes critérios de diferenciação
(o sexo, a idade, as condições físicas) cada um dos quais releva
diferenças específicas, que não permitem igual tratamento e
igual proteção. A mulher é diferente do homem; a criança do
adulto; o adulto; do velho [...] (BOBBIO, 1992, p. 69).

Para o filósofo italiano, também no século XX surge uma


quarta geração de direitos. Aquela que está intrinsicamente ligada ao
direito à vida como fator político, bem como aos desafios da genética e
da bioética, entre outros. Em contrapartida, para Murilo César Ramos
(2005, p. 245) a comunicação é portadora de um novo direito social, o
direto à comunicação, que segundo ele pode ser considerado “de quarta
geração”, mas que está ainda muito longe de ser reconhecido como tal.

[...] torna-se imperativo retomar o debate sobre o direito


à comunicação enquanto [sic] um novo direito humano
fundamental. Um direito social de “quarta geração”, aquele,
quem sabe, mais adequado para amparar, nas sociedades da
informação e da comunicação, nossas inesgotáveis expectativas
de avanço crescente da democracia da igualdade em todo o
mundo (RAMOS, 2005, p. 247).

A nosso ver, essas proposições teóricas ganham corpo


dependendo do contexto histórico e das demandas pelos direitos de
cidadania. Atentarmos para esses aspectos, torna-se importante para
que não haja confusão conceitual acerca das gerações dos direitos e
suas imbricações. Por exemplo, Bobbio e Ramos caracterizam a quarta
geração, em partes, como assertivas diferentes. Outros autores, entre
os quais, o jurista Paulo Bonavides (2006)5 também incluem na quarta
geração, além da bioética, aspectos dos direitos humanos à informação.
Contudo, nos apoiamos nas argumentações de Bobbio, pois acreditamos
que na atualidade já exista uma quinta geração de direitos, totalmente
relacionável com as dimensões anteriores, cujo aspecto central recai na
comunicação da contemporaneidade como um direito humano.

5. Para mais informações, ver obra: BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional.
19. ed. São Paulo: Malheiros, 2006.

Prêmio Francisco Morel 94


Silva e Peruzzo | Do direito à prática comunicacional...

No intuito de relacionar as dimensões da cidadania à


comunicação, Peruzzo (2009), reflete sobre o acesso e o empoderamento
popular do cidadão e dos movimentos sociais que os representam, no
que diz respeito à comunicação como um direito humano. Peruzzo
traz em seu texto o percurso da comunicação nas diversas dimensões
da cidadania, o qual é tratado desde os direitos de primeira à terceira
geração. Entretanto, ressalva que na atualidade a comunicação, dado
os avanços tecnológicos, esteja em via de ocupar lugar de destaque na
construção da cidadania. Assim, isso seria um “processo indicativo de
movimento correlato àquele que identifica a passagem da cidadania de
uma fase à outra de maior qualidade” (PERUZZO, 2009, p. 38). Dessa
forma, aponta nas dimensões da cidadania a inclusão de uma quinta
geração de direitos, os direitos comunicacionais, que englobam também
a cultura.
A base da comunicação para a cidadania está no empoderamento
popular, ou seja, na apropriação e consciência coletiva dos cidadãos
em utilizar a comunicação para desenhar melhores mundos possíveis,
para redesenhar sua própria realidade, tendo em vista à transformação
social. Este empoderamento, no limiar, só é possível quando os sujeitos
coletivos se apropriam da comunicação e tornam-se protagonistas,
quando a comunicação passa a ser considerada como um processo. Neste
aspecto, sujeitos coletivos, movimentos sociais populares engajados na
luta pelos direitos sociais, forjam suas realidades e tentam reinventá-
las se empoderando da Comunicação Comunitária, por exemplo. Ela é
uma das formas de exercitar o direito à comunicação.
Ramos (2005, p. 250), embora caracterize a comunicação como
um direito de “quarta geração” e não de quinta, como seria desejável,
faz uma contribuição importante quando aborda que a primeira e
fundamental consequência de se reconhecer o direito à comunicação
é entender que ela precisa ser vista como passível de discussão e ação
como política pública essencial, assim como as demais direcionadas à
saúde, à alimentação, ao saneamento, ao trabalho, à segurança, entre
outros. Para Bobbio (1999, p. 25), o problema que temos diante de nós
em relação à conformação dos direitos de cidadania - incluimos nessa
esteira o direito à comunicação - não é filosófico, mas num sentido mais

Prêmio Francisco Morel 95


Silva e Peruzzo | Do direito à prática comunicacional...

amplo, político. O autor afirma que não se trata de saber quais e quantos
são esses direitos, qual é a sua natureza e seu fundamento, neste caso,
bastaria observarmos a Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Tampouco, se são direitos naturais ou históricos, mas sim pensar qual o
modo mais seguro de garantir esses direitos, já amplamente expressados
nas declarações.

1.2 Políticas Públicas de Comunicação


Em Trazos de una otra Comunicación en América Latina
(2011), Cicilia Peruzzo faz um apanhado dos principais acontecimentos
relacionados às políticas públicas de comunicação nos últimos anos,
levando em conta a democratização da comunicação, bem como a
comunicação alternativa, popular e comunitária. A autora ponta em
seu texto fatores históricos como a concentração de propriedade, com a
formação de oligopólios e a produção de conteúdos como negócio, que
abarcam o conglomerado das redes de comunicação.
A discussão sobre as políticas nacionais e regionais da
comunicação no Brasil enfatiza o universo da grande mídia,
especialmente o setor audiovisual. A convergência tecnológica, as
trocas telemáticas e a entrada da TV digital também animou o cenário
(PERUZZO, 2011, p. 23). Entretanto, a comunicação popular, alternativa
e comunitária não ocupou espaço expressivo nesse debate.
Peruzzo (2011) aponta para a questão de os meios de
comunicação estarem historicamente concentrados nas mãos de poucos
grandes grupos econômicos de ordem familiar e com vínculos políticos.
Comenta que a chegada das igrejas evangélicas na operação nas redes
de comunicação, principalmente na TV, traz um elemento perturbador
no cenário, mas que não chega a romper com o oligopólio criado pelos
grandes grupos. Um exemplo é a Rede Globo de Televisão que controla
desde a produção à distribuição da programação.
Outro ponto explorado no texto é a questão do conteúdo das
programações. Para Peruzzo os meios privados de comunicação no
Brasil são geridos como negócio, que proporcionam alta rentabilidade,
além de favorecer interesses políticos e ideológicos de seus proprietários,
aliados e da classe dominante. É notável que nessas condições, os

Prêmio Francisco Morel 96


Silva e Peruzzo | Do direito à prática comunicacional...

conteúdos veiculados priorizam o entretenimento, sensacionalismo da


informação e a publicidade, seguindo a lógica da chamada sociedade do
consumo.
De acordo com Peruzzo (2011) a comunicação alternativa,
popular e comunitária traçou caminho paralelo no cenário acima por
diversos motivos. Entre os quais, o nível de atuação não alcançava
os sistemas de transmissão massivos; a comunicação era dirigida a
pequenos grupos por jornais de bairro, folhetos, alto-falantes, rádio de
baixo alcance e vídeos analógicos; poderia ser vista como algo menor
e sem importância no contexto das comunicações; não dependia de
regulamentação, justamente por seu caráter alternativo em criar meios
próprios e independentes de expressão.
Como os estudos das políticas nacionais de comunicação
privilegiam questões de regulamentação (lei e normas) e regulação
(estabelecimento de políticas) assim como as relações de poder e
a estrutura do mercado, há aí outro motivo para a Comunicação
Comunitária ser desprezada. Este é um aspecto importante para a
nossa análise, pois geralmente nos debates correntes a tendência é tratar
das regulamentações e regulações dos sistemas de radiodifusão como
demandas diretas da sociedade civil.
Contudo, ao atentarmos para o conjunto de leis e normas que
regulamentam as comunicações e as instituições envolvidas, adentramos
num complexo jogo político e econômico e de estruturas de poder.
A este complexo emaranhado juntam-se na atualidade as inovações
tecnológicas e as transformações ocorridas na sociedade em favor das
Tecnologias de Informação e Comunicação. Isso gera uma situação
na qual o Estado se vê obrigado a incluir nas demandas das políticas
públicas projetos que privilegiem parte da população vilipendiada por
esse processo. O Projeto Casa Brasil parte desse contexto e foi uma
proposta desenvolvida diretamente pelo antigo governo Lula (2003-
2010), porém sem intervenção ou consulta popular.
Mesmo assim, acreditamos ser interessante trilhar o percurso
das políticas públicas de comunicação, mesmo que de forma breve, por
estarem elas intrinsecamente ligadas à comunicação como um direito
humano e por não estarem restritas somente aos mecanismos que
regulam os meios de comunicação.

Prêmio Francisco Morel 97


Silva e Peruzzo | Do direito à prática comunicacional...

1.3 O comunitário no contexto das políticas públicas de comunicação


e o direito à comunicação
A Nova Ordem Mundial da Informação e Comunicação
(NOMIC) e o Relatório MacBride já previam o fortalecimento da
comunicação horizontal, alternativa e comunitária (PERUZZO, 2011,
p. 133). Apesar de as recomendações do relatório não terem sido
implementadas como políticas públicas de comunicação, pensadores
e ativistas persistem na investigação e promoção de atividades nessa
direção. Cicilia Peruzzo ao lado de pensadores como Mário Kaplún, Juan
Díaz Bordenave, Luiz Ramiro Beltrán, entre outros, é uma referência
nos estudos da comunicação popular e comunitária na América Latina.
Na atualidade, mudanças importantes vêm ocorrendo na
sociedade no âmbito da comunicação desenvolvida por grupos,
instituições e movimentos sociais das classes subalternas que visam à
democratização da comunicação. Percebemos tais mudanças devido ao
fervor das mobilizações provocadas pela sociedade civil organizada por
meio de iniciativas como a Campanha pelos Direitos à Comunicação
na Sociedade da Informação, conhecida mundialmente como CRIS,
além de fóruns pela democratização da comunicação. De acordo com
informações extraídas do site da CRIS, a proteção e implementação dos
direitos de comunicação representam uma parte essencial do tema geral
dos direitos humanos. E ainda,

Os Quatro Pilares dos Direitos da Comunicação vão ressaltar


muito claramente por que o direito à comunicação é importante
para as pessoas, a fim de viver em liberdade, paz, justiça e
dignidade. Assim, o direito de comunicar pode ser visto como
um meio para melhorar os direitos humanos, bem como para
fortalecer com cuidado a vida social, cultural e econômica das
pessoas de diferentes nações, comunidades, instituições e grupos
(CRIS, 2011, tradução nossa, online).

Ponderações como essas só reafirmam o caráter basilar da


comunicação como um direito fundamental e único de cada indivíduo.
Conforme um dos conselheiros do Comitê Gestor da Internet no Brasil
(CGI.br) Gustavo Gindre,

Prêmio Francisco Morel 98


Silva e Peruzzo | Do direito à prática comunicacional...

Desde o final dos anos 60, com o começo do debate que


redundaria no famoso Relatório MacBride (aprovado pela
Unesco em 1980) e o surgimento da Nova Ordem Mundial da
Informação e da Comunicação (NOMIC), vem se consolidando
a ideia de que a comunicação é um direito humano inalienável.
Ou seja, [sic] o direito de se comunicar é um dos elementos-
chave que nos constitui enquanto [sic] espécie. Despossuir um
ser humano da sua capacidade de se comunicar é o mesmo que
despossuí-lo de sua humanidade (GINDRE, 2008a, p. 23).

Cees J. Hamelink é enfático em seu posicionamento sobre a


questão do direito humano à comunicação quando afirma que o simples
acesso à consulta, registro e disseminação de informações, como aponta
boa parte dos levantamentos sobre direitos humanos existentes, é
insuficiente para garantir a qualidade da comunicação. Segundo o
autor (2005, p. 143), praticamente todos os dispositivos internacionais
de comunicação referem-se ao direito humano sobre a comunicação
como “transferência de mensagem”. Esse conceito, segundo Hamelink é
insuficiente, pois ignora o fato de que a comunicação não se faz de forma
linear, mas sim como um “processo de compartilhar, tornar comum ou
criar uma comunidade”.
Peruzzo, em Direito à Comunicação Comunitária, Participação
Popular e Cidadania, fala sobre o entendimento do que vem a ser o
direito à comunicação. Segundo a autora (2005, p. 9), tradicionalmente
as abordagens teóricas tendem a enfocar esse direito sob uma perspectiva
do acesso à informação ou, por outro lado, como direito à liberdade de
informação e de expressão. Ainda seguindo o pensamento de Peruzzo,
essa concepção se renova ao incluir a dimensão do direito à comunicação
como acesso ao poder de comunicar. Entretanto, a estudiosa segue
afirmando que a liberdade de informação e de expressão, posta em
questão na atualidade, não faz referência apenas ao acesso do indivíduo
à informação como um unidirecional receptor, tampouco ao direito de
expressar-se por quaisquer meios, porém refere-se a garantir o direito de
acesso do cidadão, e de suas diversas formas de organizações coletivas
aos meios de comunicação social, na condição de produtor, transmissor
e difusor de informação, ou seja, como protagonista do processo. Em

Prêmio Francisco Morel 99


Silva e Peruzzo | Do direito à prática comunicacional...

suma, nas palavras de Peruzzo (2005, p. 9), o direito à comunicação


refere-se ao direito de democratizar o poder de comunicar.

1.4 Direito à Comunicação no contexto das Tecnologias de


Informação e Comunicação (TICCs)
Atualmente, o uso das tecnologias de informação e comunicação
transcorre todos os setores da sociedade e está relacionado às questões
econômicas, políticas, culturais e sociais. Contudo, esse processo
evidencia desigualdades, tais quais não dizem respeito somente à
apropriação e uso dessas tecnologias, mas aos problemas relacionados à
falta de moradia, ao precário sistema público de saúde, à problemas na
educação, ao desemprego, à falta do direito à comunicação, etc. É neste
último ponto que nos debruçamos: a comunicação como um direito
humano e como um exercício de cidadania.
Para Sérgio Amadeu da Silveira (2001, p.49-50), o pontapé que
fez deslanchar o discurso sobre a apropriação e uso das tecnologias partiu
justamente das demandas das grandes corporações, pois lançaram aos
governos o discurso iminente de combate à exclusão digital6.
De certo modo, a esfera econômica não é a única balizadora
que importa, apesar de ser uma condição estruturante para o momento
em que vivemos marcados pela aceleração do espaço e do tempo, pelas
transações financeiras e em escala global. Justamente porque as TICCs
afetam outras instâncias da vida cotidiana, como já foi dito.
Muito do que temos visto no plano teórico a respeito dos
efeitos da globalização em diversos autores (Milton Santos, Muniz
Sodré, Zygmunt Bauman, Néstor Gárcia Canclini, entre outros) ou
mundialização (Renato Ortiz) presenciamos na prática, pois o capital
trata de configurar e reconfigurar qualquer empecilho que se coloque
à frente de seus objetivos. Quanto mais rápida a produção ou as
6. Não consta nos objetivos do presente trabalho trabalhar com a expressão “Inclusão
digital”, nem adentrar no tema das políticas de “inclusão”, todavia nos depararemos
com ela no decorrer do texto, por ser um jargão corrente entre os estudiosos da área
e também por que foi a partir da apropriação desse conceito que o governo buscou
integrar seus programas que são beneficiados pelas Tecnologias de Informação e
Comunicação. Contudo, sabemos que inclusão pode gerar exclusão social. Não temos a
pretensão de aprofundar essa temática, mas deixamos claro nosso olhar crítico quanto
ao conceito quando utilizado desprendido do seu corpo teórico.

Prêmio Francisco Morel 100


Silva e Peruzzo | Do direito à prática comunicacional...

demandas por determinados serviços, melhor para o sistema. Parte das


grandes transformações ocorridas na sociedade, dizem respeito a essa
concentração de capital nas mãos de poucos. E um dos efeitos nocivos da
emergência da tecnologia é justamente esse. Ser comercializada “a toque
de caixa”, e como veremos adiante em muitos programas e projetos,
faz com que acabe se tornando uma tecnologia de desconhecimento
(GONZÁLEZ, 2012).
A partir das demandas das corporações para incluir a sociedade
brasileira na “Era da Informação” e a própria motivação dos governos
em se adequar às tecnologias por conta de diversos fatores, aumenta na
América Latina e no Brasil o debate sobre as tecnologias, o barateamento
de computadores e o desejo da sociedade civil em participar da
chamada Sociedade da Informação. No governo Lula (2003-2010),
especificamente, é que verificamos um boom nos programas de
inclusão digital, por meio da criação de espaços públicos, gratuitos e
comunitários providos de computadores conectados à internet para o
acesso à informação. Normalmente, esses espaços são conhecidos como
telecentros, telecentros comunitários7 ou infocentros de inclusão social
e digital.
Para Juciano Lacerda (2006, p. 101) o marco que constituiu
a criação dos telecentros, sob a égide dos governos e do poder
econômico foi a necessidade de integrar as periferias dos países em
“desenvolvimento” e os próprios países periféricos ao sistema global de
informação como condição fundamental para o seu progresso. Já para
Silveira (2011) aconteceram dois fenômenos importantes no Brasil, a
partir de 2003.

O primeiro foi o projeto de política digital no Ministério da


Cultura e a proposta de digitalização dos Pontos de Cultura,
que eram constituídos por movimentos e grupos de artistas
e produtores culturais que passaram a receber recursos do
governo como apoio às suas atividades. Isso trouxe novos atores
populares e ativistas para o debate do uso das tecnologias de
informação pelas comunidades. O segundo teve na dificuldade
de organização e implementação consistente de uma política
7. Para saber mais sobre telecentros comunitários acesse <mc.gov.br/images/inclusao-
-digital/telecentros/manuais/Release---Telecentros.pdf.>.

Prêmio Francisco Morel 101


Silva e Peruzzo | Do direito à prática comunicacional...

pública de inclusão digital pelas esferas estatais o principal


incentivo para a explosão das lanhouses, centros de acesso pago
à internet, mantidos por micro e pequenos empresários nas áreas
periféricas. Em 2006, as lanhouses tornaram-se o principal local
de acesso do brasileiro das classes D/E, ou seja, 33,97 % deste
segmento social usavam as lanhouses para navegar na rede,
sendo a escola o seu segundo local de acesso, com 30,02% dos
seus integrantes (SILVEIRA, 2011, p. 50).

Por outro lado, as TICCs podem apoiar outras formas de


participação, produção e desenvolvimento social com vistas ao
exercício da cidadania. Dessa forma, é importante compreender que
o acesso significativo às TICCs ultrapassa computadores conectados à
internet, mas abrange um complexo conjunto de fatores que vai além
da tecnicidade das máquinas. Abrangem os aspectos mais significativos
da vida, como a própria língua, a educação, as estruturas comunitárias,
perpassados por condicionantes históricos, políticos, econômicos e
sociais. Nessa linha de frente, conforme aponta Lacerda (2007, p. 101),
estão as organizações da sociedade civil, como a World Association for
Christian Communication (WACC), de Londres, a Agência Latino-
Americana de Informação (ALAI), de Quito, e a Associação Mundial de
Rádios Comunitárias (AMARC), de Montreal, que com outros agentes
sociais que compõem a Plataforma pelo Direito à Comunicação (grupo
que aglutina ONGs de vários países que atuam no campo da mídia e
comunicação), lançaram a campanha Communication Rights in the
Information Society (CRIS). De acordo com Lacerda (2007, p. 101-102),
para essas organizações os telecentros e o conjunto de discussões sobre
tecnologias e controle da informação devem ser vistos como parte do
direito à comunicação.

2 Projeto Casa Brasil


O Projeto Casa Brasil foi criado em 2004, com a chamada
Sociedade da Informação. No governo do ex-presidente Luiz Inácio
Lula da Silva que os programas voltados para a temática da inclusão
digital, ganharam força e visibilidade.

Prêmio Francisco Morel 102


Silva e Peruzzo | Do direito à prática comunicacional...

Segundo fonte confiável, mas que preferiu não se identificar8, a


criação do Sampa.Org, foi uma experiência significativa que influenciou
o Governo Federal a expandir a área de atuação dos telecentros e a
integração dos mesmos com os outros programas em diversos pontos
do país. O projeto nasceu no ano de 2000, em São Paulo, durante a
gestão da prefeita Marta Suplicy (2001-2005), como parte das ações do
Instituto de Políticas Públicas Florestan Fernandes. O Governo Federal
se inspirou nessa iniciativa e tentou integrar suas ações por meio de
um projeto que sustentasse não somente o aspecto da inclusão digital
e da conectividade com computadores providos de internet, mas que
pudesse de uma forma macro tratar da inclusão social. Em outras
palavras, além de fornecer cursos de informática e acesso livre a internet,
fomentaria outras formas de sociabilização por meio da integração da
informática e da comunicação, com o objetivo precípuo - a ampliação
dos direitos de cidadania. No entanto, no ano de 2010, o Projeto Casa
Brasil foi descontinuado, mas algumas unidades espalhadas pelo Brasil
continuaram em funcionamento, como é o exemplo da Casa Brasil
Imbariê.

2.1 Casa Brasil Imbariê e a observação participante


A Casa Brasil Imbariê está localizada no município de Duque de
Caxias, na Baixada Fluminense, do Rio de Janeiro. O distrito de Imbariê
sofre com a falta de água, saneamento, transporte, tem sérios problemas
na saúde pública, principalmente devido ao aumento de usuários de
crack em Duque de Caxias e outras localidades, além dos escassos
recursos para a educação e a cultura. Como as demais unidades, a
Casa Brasil Imbariê participou de seleção pública e foi contemplada
com o Projeto Casa Brasil em parceira com a Secretaria de Cultura e
Turismo da prefeitura de Duque de Caxias. A Casa foi inaugurada no
ano de 2006 e abrigava, na época, os seguintes módulos: Sala de Leitura
com a apropriação e adequação da Biblioteca pública comunitária já
presente no local, Laboratório de Informática, de MetaRec, Laboratório
Multimídia, Auditório e Telecentro Comunitário.
Nossa inserção na Casa Brasil Imbariê aconteceu por meio
8 Entrevistado 1. Entrevista concedida a autora pelo telefone no dia 24 de jan. de 2012.

Prêmio Francisco Morel 103


Silva e Peruzzo | Do direito à prática comunicacional...

da observação participante, de forma autônoma e revelada. Deixamos


claro desde o início para o grupo pesquisado que o nosso papel era
apenas de observadora. Não nos deixamos confundir como membros,
funcionários, tampouco como alunos dos cursos observados. O grupo,
nosso sujeito-objeto, não interferiu na pesquisa, na formulação dos
objetivos e nem nas demais fases do projeto de pesquisa, nem do tipo de
informação que registramos e menos ainda nas análises e interpretações
que fizemos.
A observação se constituiu na participação das seguintes
atividades: Oficina de Desenho; História em Quadrinhos (H.Q);
Curso livre de teatro e Biblioteca. O período de permanência para a
observação participante foi de aproximadamente três meses, a partir do
mês de setembro de 2012, quando se iniciou o segundo semestre, com
novos cursos de capacitação e oficinas. Chegávamos normalmente com
uns 15 minutos de antecedência, um pouco antes de serem iniciados
os cursos, tempo extra que nos permitia organizar nosso material e,
também, já iniciar a observação. Acompanhamos, então, os cursos de
Desenho, de História em Quadrinhos (H.Q) e as aulas de Teatro. As
aulas eram realizadas as segundas, terças, quintas-feiras e aos sábados.
Não tínhamos uma regularidade nas visitas, em média realizávamos
duas visitas semanais acompanhando durante os três meses o
desenvolvimento desses cursos.
Adotamos o Diário de Campo no qual fizemos o registro diário
de ocorrências, partindo dos seguintes critérios: apropriação da unidade;
tipos de participação. (Participa como?); rotinas de produção coletivas
e/ou individualizadas; preferências temáticas; tipo de atuação em
grupo (construtiva ou depreciativa); tipo de informação que os jovens
levam para a Casa Brasil; empoderamento da Casa Brasil Imbariê pela
comunidade; análise do cenário (objetos, ambiente, tipo de apropriação
do espaço para além do previsto, tipo de relações que estabelecidas, etc).
A observação participante nos possibilitou verificar os cursos e oficinas
ministrados, os usos que a comunidade faz da unidade, sua participação
e, também, averiguar se a Comunicação Comunitária acontece no bojo
desse processo, como veremos mais adiante a partir da explicitação de
um dos critérios.

Prêmio Francisco Morel 104


Silva e Peruzzo | Do direito à prática comunicacional...

2.2 Empoderamento da Casa Brasil Imbariê pela comunidade


Percebemos que os alunos mais engajados no Projeto Casa
Brasil são aqueles que participam do Curso livre de Teatro. Um dado
interessante é que a partir do curso ministrado na Casa Brasil, pelo
professor Leandro Fortunato, por iniciativa da equipe, foi criado um
grupo de trabalho com 13 membros, composto pelo professor e alunos.
Dessa forma, as atividades desenvolvidas não se encerram no Projeto
Casa Brasil, extrapolam os muros de Duque de Caxias e se mostram
em outras comunidades também. Todas as formas de participação
demonstradas são válidas, principalmente em um país como o Brasil,
marcado pela centralização do poder nas mãos de poucos, em especial,
se tratando de experiências que envolvam a comunicação.
Para demonstrar, em certa medida, como ocorre o
empoderamento da Casa Brasil, transcrevemos partes significativas dos
relatos de dois alunos do curso de Teatro9:

Bom, para mim, trabalhar com o teatro de forma social tem


sido incrível! Acho que num mundo, onde a informação viaja
tão rápido, não devemos estar alheios a isso. Devemos trabalhar
sempre, levando uma mensagem positiva através da arte.
É mais do que um dever, é uma necessidade. E o teatro tem
influenciado a minha vida da melhor maneira possível. Por
muito tempo na minha vida, fui uma pessoa muito travada, por
conta da Síndrome do Pânico. E o teatro tem me feito ver a vida
com outros olhos. Olhos de arte, de beleza e alegria (Aluno 3).

Trabalhar com o teatro pra mim não é apenas apresentar uma


peça de teatro, mas sim representá-la. E também inclui um
monte de vantagens, como no improviso, expressão corporal,
entonação da voz o entrosamento com as pessoas, o incentivo
a leitura muito que estimula a imaginação. Pra mim é ótimo
trabalhar com o teatro, ele me ajuda muito. [...] a questão
do entrosamento, melhorei muito. No desenvolvimento e na
comunicação (Aluno 4).

9. Por decisão metodológica optamos pelo anonimato dos alunos. Entrevistas concedi-
das pessoalmente a autora no dia 01 de novembro de 2012.

Prêmio Francisco Morel 105


Silva e Peruzzo | Do direito à prática comunicacional...

Trilhamos um caminho que nos levasse ao entendimento


da participação popular na Casa Brasil Imbariê, e como ela pode
contribuir para o compartilhamento de poderes e decisões na produção,
desenvolvimento e circulação da comunicação (a partir da atuação dos
membros no Teatro, nas experiências com o curso de Quadrinhos),
seja somente no nível da informação - como espectadores, aguardando
as demandas das atividades solicitadas - ou mesmo na cogestão da
unidade, promovendo exposições, espetáculos, participando da escolha
dos temas das aulas seja nos cursos de Desenho ou no Teatro, enfim,
participando e democratizando o poder de comunicar por meio de suas
experiências.

Considerações
As explanações anteriores deixam claro que a democratização da
comunicação é fundamental para o empoderamento da Comunicação
Comunitária, uma vez que ele pode proporcionar a apropriação da
comunicação pelas comunidades, que em seu objetivo primário pode
servir como uma ferramenta de articulação para a busca e reivindicação
social dos demais direitos de cidadania. Sabemos, contudo, da
necessidade premente em se lutar contra todas as mazelas econômicas,
sociais e políticas que fazem tão poucos terem acesso às TICCs.
Fazemos menção à comunicação de forma geral, em quaisquer meios,
que seja uma arena de realização de conflitos e disputas de hegemonia
na sociedade.
Outro ponto importante é a concepção do Estado nas dimensões
dos direitos de cidadania, pois é necessária uma série de regulações, leis
e instrumentos para que eles sejam garantidos. Enquanto são tímidas as
investidas do Estado em prol de uma outra comunicação, os movimentos
sociais populares, instituições da sociedade civil, homens, mulheres,
levantam a bandeira de luta pela democratização da comunicação no
país. A Casa Brasil Imbariê a partir de suas práticas demonstra que
apesar dos escassos recursos materiais e financeiros, mas com suas ricas
experiências no por em comum, é possível democratizar a comunicação.
A comunicação pautada no diálogo, nas atividades e tarefas diárias, na
conscientização e participação das ações coletivas.

Prêmio Francisco Morel 106


Silva e Peruzzo | Do direito à prática comunicacional...

Entretanto, somente num espaço dialógico e plural, onde


todos tenham voz, acesso aos meios de produção e comunicação e
condições de participação equânime na formulação e monitoramento
de políticas democráticas de comunicação, os demais direitos poderão
ser reconhecidos, de fato.
Sabemos que muitas investidas do Estado em promover
políticas de “inclusão” são orientadas de cima para baixo, temos um
histórico marcado pela submissão dos povos em diversos níveis que não
vamos adentrar aqui. Mas de nada adianta o investimento em políticas
públicas de comunicação que não sejam orientadas para a participação
popular, de maneira gradativa e processual, pois certamente estarão à
mercê de sua própria sorte, fadadas a sua descontinuidade, ou melhor,
existirão unicamente enquanto o poder público quiser.
As demandas da sociedade civil, mais articuladas, se apropriam
dos meios que estão ao seu alcance, porém, muitas vezes, por limitações
próprias, não alcançam o restante da população alijada desses processos.
Infelizmente, nem todos os cidadãos têm consciência dos seus direitos
básicos, menos ainda dos direitos à comunicação. Falta em muitos casos,
uma cultura de autonomia, de mobilização que precisa ser fomentada,
não da noite para o dia, mas gradualmente. Mesmo assim, acreditamos
que todo o “barulho” provocado e fomentado por parte da sociedade
civil é reflexo de que uma outra comunicação é possível.

Referências

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tiragem.
pp.1-83.

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Prêmio Francisco Morel 108


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Acesso em: 25 jul.2011.

Prêmio Francisco Morel 109


Gênese e desenvolvimento da política
pública do direito de acesso à informação
no México1

Ana Beatriz Lemos da Costa2


Fernando Oliveira Paulino (orientador)3

Introdução
Esse artigo trata da gênese e desenvolvimento do direito de
acesso à informação pública no México, enquanto uma política pública
de comunicação, na medida em que se trata de uma garantia para o
exercício da liberdade de expressão, por meio do pedido e recebimento
de informações produzidas pelo Estado.
A abordagem teórico-metodológica será a do ciclo de políticas
públicas (SARAVIA, 2006), somada às técnicas de pesquisa bibliográfica,
análise documental e entrevistas com atores-chave.

1. Trabalho inicialmente apresentado no GP Políticas e Estratégias de Comunicação, do


XV Encontro dos Grupos de Pesquisa em Comunicação, evento componente do XXXIX
Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação.

2. Mestranda do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Comunicação da


Universidade de Brasília, na Linha de Pesquisa de Políticas de Comunicação e de
Cultura, eixo Temático do Ambiente Normativo das Políticas de Comunicação.

3. Professor e Diretor da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília; Di-


retor de Relações Internacionais da Associação Latino Americana de Investigadores da
Comunicação (ALAIC).

Prêmio Francisco Morel 110


Costa e Paulino | Gênese e desenvolvimento da política pública...

Primeiramente, o artigo apresenta a gênese do direito de acesso


à informação na Constituição mexicana de 1917 e reforma subsequente.
Depois, é dado o contexto político do México, que ensejou a colocação
do direito de acesso na Constituição e formulação da Lei de Acesso na
esfera federal. Na terceira parte a análise se debruçará sobre as etapas
do ciclo que compõe uma política pública, quais sejam, a de colocação
do tema na agenda e a de formulação do direito de acesso à informação.
Nesses estágios, dar-se-á ênfase à participação do Grupo Oaxaca para
alcance de visibilidade midiática, colocação do tema na agenda pública
e formulação da lei de acesso à informação no país.
Considerando a dinamicidade que envolve as etapas do ciclo de
política pública, o artigo avançará para algumas questões relacionadas à
implementação que culminaram na reformulação da legislação federal,
após mudanças constitucionais e criação de uma lei geral sobre o tema,
de alcance nacional.
Ao final, o artigo espera deixar uma contribuição ao estudo
do direito de acesso de modo a ajudar na avaliação de políticas
relacionadas ao tema não somente no Brasil, mas na América Latina,
cujos países também aprovaram leis de acesso nos últimos anos e
enfrentam semelhanças no processo de implementação das políticas de
comunicação sobre transparência como parte da dinâmica democrática.

1. Gênese do direito de acesso à informação no México


O direito de acesso à informação constava de forma implícita
na Constituição Mexicana de 1917, em vigor até os dias atuais, cujos
artigos 6o, 7o e 8o tratavam respectivamente da liberdade de expressão
nas seguintes perspectivas: direito de manifestação do pensamento;
liberdade de escrever e de publicar, sem censura prévia; e o direito de
petição. Porém, as regras careciam de regulamentação, motivo pelo qual
a norma ficou sem efeitos práticos.
Com as reformas ocorridas em 1977 no governo do presidente
José López Portillo, o direito passou a fazer parte do texto constitucional
de maneira explícita. Essas mudanças constitucionais, “parte da reforma
política que o governo de então havia prometido como processo de
democratização do país” (CASTILLEJO, 2014, p. 44), foram fruto de

Prêmio Francisco Morel 111


Costa e Paulino | Gênese e desenvolvimento da política pública...

pressões que visavam abrir espaço para uma maior participação de


outros partidos na vida política do país, que desde 1929, com a criação
do Partido Nacional Revolucionário, depois denominado Partido
Revolucionário Institucional (PRI), era o único a exercer o poder no
México.

Todos os governos estaduais e cadeiras do Senado estavam em


suas mãos e a oposição só foi admitida na Câmara dos Deputados
como minoria simbólica que legitimava as formas democráticas,
sem capacidade de influenciar efetivamente no comportamento
do Legislativo (CARMÍN; MEYER, 2000, p. 216).

Essa pressão para aumentar a participação dos partidos se deu,


entre outros motivos, após a eleição de 1976 do presidente López Portillo
ter ocorrido sem oposição formal, pois fora candidato do PRI, só havia
o candidato do Partido Comunista Mexicano, sem registro oficial.

No México, as eleições nunca haviam sido o instrumento real de


escolha dos governantes e sim um ritual para legitimar candidatos
previamente ungidos, mas o ritual precisava da competição, da
alternativa partidária, ainda que simbólicas, e esta foi a razão
para as reformas da legislação eleitoral de dezembro de 1977, que
pretendiam dar maior visibilidade à oposição sem compartilhar
o poder com ela (idem, p. 243).

Como produto dessas emendas, ao artigo 6o foi acrescentada a


seguinte frase:

A manifestação do pensamento não será objeto de nenhuma


inquisição judicial ou administrativa, senão em caso de ataque
a moral, a direitos de terceiros, provoque dano ou perturbe
a ordem pública; o direito à informação será garantido pelo
Estado. (MÉXICO, 1977, art. 6º, tradução nossa, grifo nosso).

A intenção do novo comando constitucional, no entanto,


não era assegurar o acesso das pessoas às informações públicas, e sim
garantir que os partidos políticos tivessem, dentre outras prerrogativas,

Prêmio Francisco Morel 112


Costa e Paulino | Gênese e desenvolvimento da política pública...

acesso ao rádio, à televisão, somados aos meios impressos, para difundir


seus princípios e programas, inclusive nos períodos eleitorais, de modo
a propiciar uma melhor formação da opinião pública.
Para esclarecer a abrangência do artigo, em abril de 1982,
a Suprema Corte de Justiça, instância máxima do Poder Judiciário
mexicano, expediu uma resolução em que afirmava que o direito de
acesso era uma garantia social, ligada à liberdade de expressão e consistia
na permissão do Estado para que os partidos políticos manifestassem
de maneira regular a diversidade de opiniões, através dos meios de
comunicação. Ademais, afirmava que a definição precisa do direito de
acesso à informação competiria à legislação infraconstitucional.
Em 1996, após a morte de 17 camponeses em Aguas Blancas,
município do estado de Guerrero, no sudoeste do país, evidenciando
a necessidade da sociedade mexicana ter acesso a dados oficiais
verdadeiros e sem omissões, a Suprema Corte deu nova interpretação ao
artigo 6o, colocando que a garantia se vinculava ao respeito à informação
verdadeira, exigindo-se assim “que as autoridades se abstenham de dar à
comunidade informação manipulada, incompleta ou falsa, sob pena de
incorrer em violação grave às garantias individuais” (VILLANUEVA,
2003, p. 21, tradução nossa).
Posteriormente, a interpretação do artigo se deu de modo que
o direito de acesso à informação pública fosse visto como a prerrogativa
da pessoa buscar dados, registros e todo tipo de informações em poder
das entidades públicas e empresas privadas que exerçam gastos públicos
e ou cumpram funções de autoridade, com as exceções expressas na lei
(VILLANUEVA, 2003, p. 24). Com isso, abriu-se o caminho para criação
da citada lei para regular a constituição e dar gênese à política pública de
comunicação sobre o direito de acesso às informações públicas.

2. Mudanças do cenário político


Em 1988, as eleições para presidência do México foram
marcadas por fraudes e processos de apuração demasiado demorados e
suspeitos. Nesse contexto, em agosto de 1990, o escritor peruano Mario
Vargas Llosa durante um encontro de intelectuais na Cidade do México,
definiu o sistema político mexicano como a ditadura perfeita.

Prêmio Francisco Morel 113


Costa e Paulino | Gênese e desenvolvimento da política pública...

O México tem todas as características de uma ditadura: a


permanência, não de um homem, mas de um partido. Um
partido que é inamovível, um partido que concede espaço à
crítica na medida em que esta lhe serve, porque confirma que
é um país democrático, mas que suprime por todos os meios,
inclusive os piores, aquela crítica que de alguma maneira põe
em perigo sua permanência no poder (LLOSA in FUSER, 1995,
p. 14).

O partido a que se referia o escritor Vargas Llosa era o PRI, que


durante 71 anos governava o México a custas de recursos governamentais
e de eleições às vezes sem concorrentes, seguidas de acusações de fraude
que não eram levadas adiante, nem mudavam a realidade política. Com
essa predominância a opinião pública no México era dominada pelos
interesses do partido, por meio do controle dos discursos políticos,
das campanhas, da cobertura mediática e dos resultados eleitorais
(ESCOBEDO, 2003, p.65).
Até a década de 1980, o partido do governo e suas políticas
nacionalistas sempre estava em conflito com interesses norte-americanos,
de cunho liberais. Em 1985, após o assassinato de um agente da Agência
Antidrogas dos Estados Unidos (DEA) por narcotraficantes protegidos
pelas polícias local e federal mexicanas, foi dado início a uma intensa
campanha internacional de desprestígio do aparelho policial mexicano
em particular e do sistema político geral.
Com o surgimento de uma oposição eleitoral, os meios de
comunicação, especialmente os norte-americanos, transformaram-se
em fator importante no processo político mexicano, ao dar credibilidade
internacional às acusações da oposição de centro-direita - o Partido de
Ação Nacional (PAN) - com relação às fraudes do partido oficial.

De maneira indireta, alguns círculos políticos norte-americanos


externaram que considerariam um desenvolvimento positivo
a possibilidade de que a oposição conservadora democrática
no México, simpática às políticas predominantes nos Estados
Unidos, pusesse fim ao longo monopólio de poder político do
PRI (CARMÍN; MEYER, 2000, p. 311).

Prêmio Francisco Morel 114


Costa e Paulino | Gênese e desenvolvimento da política pública...

A primeira derrota do PRI se deu em julho de 1989, com a


vitória na eleição de um governador e da maioria do Legislativo local por
candidatos do Partido de Ação Nacional, no Estado da Baja Califórnia
Norte, “o primeiro caso de um entidade governada pela oposição desde
a criação do partido do Estado, em 1929. Foi o fato mais significativo,
anunciando a chegada de uma nova era na possível democracia
mexicana” (idem, p. 328).
Na esfera federal, no entanto, a eleição de um candidato da
oposição somente ocorreu 11 anos depois, quando no ano 2000 foi
eleito presidente do México o candidato do PAN, Vicente Fox.
Segundo a ex-presidente do IFAI e acadêmica da UNAM,
Jaqueline Pechard, depois da ascensão ao poder de um partido diferente
do PRI e com a democratização das eleições, nasce a demanda por
transparência no país.

Era uma demanda que estava no mundo todo, não era somente
no caso mexicano. Então a alternância no poder gera uma
exigência de que, depois de 20 anos a sociedade estar lutando
por eleições confiáveis e competitivas, agora necessitamos de
um governo que seja confiável. Já não se exigia uma mudança
somente no processo eleitoral, senão na gestão governamental.
Então realmente o que empurra que haja uma legislação de
transparência é a chegada de outro partido, como uma coroação
da transição mexicana [tradução nossa] (PECHARD, 2016).

3. Mobilização do Grupo Oaxaca, construção da agenda e formulação


da política pública
Durante a campanha presidencial, o partido de Fox montou
uma plataforma de transparência e combate à corrupção, além de fazer
promessas de estabelecer a lei de acesso a informações públicas e uma
política pública que garantisse o acesso. Estava colocado, assim, o tema
na agenda do poder Executivo.
Em março de 2001, já formado o novo governo, formou-se um
grupo de trabalho de integrantes do Executivo cuja dinâmica incluiu
estudos de legislação comparada de acesso, análise de alternativas ligadas
a procedimentos de acesso, critérios de classificação da informação,

Prêmio Francisco Morel 115


Costa e Paulino | Gênese e desenvolvimento da política pública...

prazos de resposta e desenhos institucionais. O trabalho foi concluído


em julho do mesmo ano, com a produção de um documento que serviu
de base para estabelecer os primeiros contatos com o Poder Legislativo.
Também em julho, o deputado Luis Miguel Barbosa, do Partido
da Revolução Democrática (PRD), apresentou na Câmara uma iniciativa
de Lei de Acesso à Informação, com relação a atos administrativos do
Poder Executivo Federal.
Antes disso, em maio de 2001, na cidade de Oaxaca, a
Universidade Iberoamericana, em parceria com a Fundação Informação
e Democracia e outras entidades, promoveram o Seminário Nacional
“Direito à Informação e Reforma Democrática”, com a presença de
jornalistas, organizações não-governamentais e pesquisadores do
assunto. Na pauta do seminário, foram feitas discussões acerca do
significado do direito a informações, de modo a colocar o assunto na
perspectiva do acesso a informações públicas.
A Declaração de Oaxaca, fruto das discussões do seminário,
trazia seis pontos-chave que deveriam estar presentes em uma legislação
de acesso à informação pública: adequar o texto constitucional para
estabelecer o princípio de que a informação do Estado é pública e pertence
aos cidadãos; criar uma legislação para que os órgãos do Estado e entes
privados que lidassem com recursos públicos fossem sujeitos obrigados
a dar informação aos cidadãos; estabelecer sanções aos servidores
públicos que descumprissem os pedidos injustificadamente; estabelecer
um capítulo de exceções claras e assegurar que fossem mínimas; criar um
órgão independente que resolvesse as controvérsias entre os particulares
e as autoridades; e reformar e revogar as leis que contrariassem o direito
de acesso no país. A publicação desse documento colocou a temática na
agenda pública e possibilitou unificar o tema que tinha interpretações
controversas (ESCOBEDO, 2003, p. 74).
No dia seguinte ao encontro, foi constituída uma Comissão
Técnica, responsável por inserir o tema na agenda da opinião pública,
por meio de reportagens sobre a questão. O pesquisador Juan Francisco
Escobedo (2003), membro do Oaxaca, explica a origem do nome do
grupo,

Prêmio Francisco Morel 116


Costa e Paulino | Gênese e desenvolvimento da política pública...

(…) foi a jornalista Ginger Thompson, correspondente do New


York Times, que pela primeira vez denominou a mobilização
emergente como Grupo Oaxaca, a partir do lugar em que
se realizou o encontro acadêmico que, por sinal, não tinha nem
interna, nem externamente, o objetivo de se constituir em uma
instância deliberativa (…) tampouco se tratava de uma iniciativa
de oaxaqueños e menos ainda de um projeto financiado pelo
governo de Oaxaca (ESCOBEDO, 2003, p. 71, tradução nossa).

As ações do grupo Oaxaca se dividiram em quatro fases rumo


à aprovação da legislação. Primeiro com a interpretação do direito de
acesso previsto na Declaração Universal dos Direitos Humanos e o
desenvolvimento da dinâmica interna do grupo; em seguida, houve o
posicionamento sobre o tema e elaboração de um projeto de lei; projeto
elaborado, foi dado início à divulgação nos meios de comunicação e à
promoção de lobby com o governo; por fim, o assunto foi colocado na
agenda parlamentar.
Essas fases coincidem com as duas primeiras etapas do processo de
política pública, caracterizadas pela agenda ou “inclusão de determinada
necessidade social na lista de prioridades do poder público” (SARAVIA,
in FERRAREZI; SARAVIA, 2006, p.33), seguida do estágio de elaboração,
“que consiste na identificação e delimitação de um problema atual, na
determinação de possíveis soluções e no estabelecimento de prioridades”
(idem, p. 33). Como se vê, a separação da dinâmica de uma política
pública por etapas é mais uma forma de esquema teórico do que ocorre
na prática, em que muitas vezes o processo não segue uma sequência
ordenada e previsível.
Na etapa de formulação, que inclui a especificação da alternativa
mais conveniente e define o marco jurídico da política pública, a lei federal
representou os interesses de duas propostas:

A primeira foi fruto da união da sociedade civil, o Grupo Oaxaca,


apresentada ao Congresso em outubro e acolhida em 6 de dezembro
por membros de todos os partidos representados na Câmara dos
Deputados, exceto o partido do presidente Vicente Fox, Partido
da Ação Nacional. A segunda proposta foi do governo mexicano,

Prêmio Francisco Morel 117


Costa e Paulino | Gênese e desenvolvimento da política pública...

apresentada ao Congresso em 1o de dezembro (DOYLE, 2002,


apud. NEUMAN, 2009, p.18, tradução nossa).

Tendo em vista a existência de duas propostas legislativas


concorrentes, além da iniciativa do PRD, o Grupo Oaxaca conseguiu
publicar reportagens de capa nos jornais de grande circulação
“Reforma” e “El Universal” com os princípios do direito de acesso
que deveriam estar presentes em uma futura legislação, no chamado
“Decálogo do Direito de Acesso à Informação”, contendo os seguintes
princípios: direito humano universal; informação pública pertence às
pessoas; máxima abertura dos Poderes do Estado; obrigação de publicar
e entregar a informação em posse do Estado; procedimentos ágeis,
simples e a custos mínimos; mínimas exceções; órgão autônomo para
promover a abertura e resolver as controvérsias; apresentar a origem dos
recursos; consistência jurídica; e promoção do federalismo.
O modelo proposto pelo Grupo Oaxaca previa a possibilidade
dos solicitantes entrarem com recursos relacionados ao acesso à
informação dentro dos próprios órgãos e junto a uma instância externa,
o Instituto Federal de Acesso à Informação Pública Governamental
(IFAI), sem necessidade de recorrer ao Judiciário. Assim, sobre as
justificativas para a escolha desse modelo, Neuman (2009) explica,

Embora, com a eleição do PAN, o Executivo e o Legislativo elegeram


novos rostos, o Judiciário permaneceu predominantemente
inalterado. Havia uma desconfiança em recorrer ao judiciário
para apelações na primeira instância, não só por questões de
independência, mas também pela incapacidade de resolver os
casos de forma célere. Tradicionalmente, as cortes do México
tem restringido o acesso a pessoas “comuns”, em função do alto
custo e por requererem um advogado. Por todas essas razões, o
Grupo Oaxaca e outros defensores da transparência envidaram
esforços para adoção de um modelo menos dependente do
judiciário (NEUMAN, 2009, p. 18, tradução nossa).

Após a participação de dois integrantes do Grupo Oaxaca na


Comissão da Câmara que cuidaria da uniformização das propostas
legislativas, a lei foi aprovada. Era a primeira vez que o Poder Executivo

Prêmio Francisco Morel 118


Costa e Paulino | Gênese e desenvolvimento da política pública...

se dispunha a tratar de uma lei diretamente com representantes da


sociedade civil, respaldados pelos partidos da oposição. Segundo Luis
Ernesto Salomón, “os legisladores se deram conta de que era uma
questão valiosa e sentiram que era politicamente incorreto colocarem-
se contra o tema” [tradução nossa] (SALOMÓN, 2008)4.
Na sequência, foi chegado o momento de atuar junto aos
senadores para enfim aprovar a Lei Federal de Transparência e Acesso
à Informação Pública Governamental, em 30 de abril de 2002, tendo
acolhido em várias seções as propostas do Grupo Oaxaca.
Em um documentário sobre a dinâmica do Grupo Oaxaca
após oito anos da aprovação da lei, o acadêmico Ernesto Villanueva
comenta a existência de propostas concorrentes no Poder Legislativo:
“o governo de Fox tentou diminuir a ação do Grupo Oaxaca através de
uma campanha de comunicação em que dizia que a lei foi uma virtude
e uma mostra de vontade política do governo, o que não foi assim, pois
sabemos que a lei foi fruto de uma grande negociação” [tradução nossa]
(VILLANUEVA, 2008)5.
Negociação essa que ocorreu, sobretudo, quanto à previsão de
ratificação dos comissionados do órgano garante pelo Poder Legislativo,
após nomeação do Poder Executivo e à faculdade desse órgão de fazer
recomendações e derrogar disposições jurídicas que contrariassem a lei.
Dessa maneira, a lei federal, que estava em vigor até maio de 2016,
trazia, dentre outros, os princípios da máxima publicidade; obrigação
dos órgãos publicarem periodicamente informações-chave; promoção
de governos abertos; Instituto Federal de Acesso à Informação Pública
Governamental (IFAI), órgão da Administração Pública Federal, com
autonomia operacional, orçamentária e de decisão, encarregado de
promover e difundir o exercício do direito de acesso à informação;
alcance limitado das exceções, rol restrito de informações classificadas
como reservadas ou confidenciais; eficiência do acesso, por meio de
procedimentos simples, ágeis e de baixo custo ao requerente; reuniões
em órgãos públicos com caráter aberto; e proteção aos denunciantes.

4. Disponível em: youtube.com/watch?v=TtfjK_PykH8. Acesso em 10/06/2016.

5. Disponível em: youtube.com/watch?v=TtfjK_PykH8. Acesso em 10/06/2016.

Prêmio Francisco Morel 119


Costa e Paulino | Gênese e desenvolvimento da política pública...

4. Implementação e reformulação do direito de acesso: reformas de


2007 a 2015
Após a entrada em vigor da legislação federal, foi dado início
à implementação “constituída pelo planejamento e organização do
aparelho administrativo necessários para executar uma política pública”
(SARAVIA, in FERRAREZI; SARAVIA, 2006, p. 34). O chamado
órgano garante da transparência, IFAI, foi criado por Decreto do Poder
Executivo Federal em 24 de dezembro de 2002.
Os estados e municípios mexicanos começaram a se mobilizar
para também aprovarem os respectivos regulamentos de forma que, em
2007, os 31 estados mexicanos mais o Distrito Federal contavam com
uma lei sobre o assunto. Ocorre que, como a Constituição não trazia
maiores detalhes acerca do direito de acesso às informações públicas,
cada ente da federação deu origem à lei, criando por conseguinte
uma miscelânea de direitos e obrigações. Havia, por exemplo, leis que
somente permitiam o acesso à informação aos cidadãos de seus estados
(SÁNCHEZ, 2011, p. 67).
A título de exemplo, o jornalista Rudolfo Ruiz explica como se
deu a dinâmica de implementação da legislação no estado de Puebla,
localizado no centro-sul do país.

Em Puebla foi feita uma cópia da lei federal. Ali se criou uma
Comissão de Acesso à Informação Pública. Porém, a Comissão
era muito mais limitada que a iniciativa federal, pois, se no
nível federal houve transição política, nos estados não houve
transição. Nos estados o PRI dominava e se fazia o que o partido
queria. Os comissionados, os integrantes do órgano garante
eram praticamente empregados do governador, do Executivo.
Então era uma Comissão que não servia muito [tradução nossa]
(RUIZ, 2016).

Segundo o jornalista Roberto Rock, integrante do Grupo


Oaxaca, havia muitas diferenças entre as leis estaduais e os órgãos
locais responsáveis pela transparência, ensejando na necessidade de
reformulação da Constituição e legislação respectiva.

Prêmio Francisco Morel 120


Costa e Paulino | Gênese e desenvolvimento da política pública...

Os órganos garantes estaduais não favoreciam a transparência.


Eram cúmplices do governo local, designados pelo governador,
mandados pelo governador. Era uma mentira, digamos. E isso se
refletia no fato de que as pessoas não apresentavam pedidos, não
apresentavam solicitações de acesso à informação. Havia estados
onde, enquanto aqui na Cidade do México havia, não sei, duas
mil solicitações ao mês, havia estados que havia três, quatro
pedidos para temas locais. Assim foi crescendo a pressão desde
a capital por parte de todos os atores. O governo se perguntava,
por que eu tenho transparência no governo federal e o governo
estadual não é transparente? Isso está mal porque estamos tendo
um desequilíbrio de poder. Um poder federal que está submetido
à transparência e poderes locais que não estão submetidos à
transparência [tradução nossa] (ROCK, 2016).

Essa característica da influência do Poder Executivo mexicano


nos órgãos responsáveis pela transparência não é exclusiva da política
pública do direito de acesso à informação, nem tampouco uma relação
de poder recente, restrita às esferas locais. Ao longo dos anos, a influência
do Executivo na dinâmica da administração pública também ocorreu
no governo federal.

A partir dos anos quarenta, o carisma e a autoridade deixaram


de estar depositados no caudillo e no cacique (no pessoal) e
começaram a ser associados ao próprio cargo. (…) É um cargo,
ademais, que tem um enorme poder numa cultura burocrática
patrimonial como a mexicana. Em 1970, um presidente da
República podia repartir, entre 6 mil agraciados, 6 mil postos
dos mais bem remunerados e de maior privilégio e status do
país; em 1982, a distribuição atingia 10 mil cargos. Falamos
de um poder considerável de premiação, castigo e distribuição
patrimonial concentrado nessa instituição, a maior do sistema
político mexicano (CARMÍN; MEYER, 2000, p. 332-333).

Para tentar diminuir as discrepâncias entre a legislação federal


e as normas locais, em 2006, um grupo de governadores reunidos na
cidade de Chihuahua no Segundo Congresso de Transparência Local,
apresentaram ao Congresso Nacional um documento denominado
“Iniciativa Chihuahua”, que consistia em uma proposta de reforma ao
artigo 6o da Constituição.

Prêmio Francisco Morel 121


Costa e Paulino | Gênese e desenvolvimento da política pública...

Após início da tramitação na Câmara dos Deputados, foram


estabelecidos os princípios sob os quais deveria ser alterado o citado
artigo. O primeiro deles dizia que toda informação em posse dos órgãos
do Estado mexicano é pública.

Rompe-se radicalmente com concepções de informação


patrimonialistas ou fechadas, e confirma-se um princípio
democrático básico, que consiste em que todo ato do governo
deve estar sujeito ao escrutínio público (IFAI, 2008, p. 24,
tradução nossa).

Adiante, após tramitação nas duas casas do Congresso, em


julho de 2007, já no governo do presidente Felipe Calderón (PAN), o
artigo 6o passou a contar com sete novos princípios que deveriam guiar
o exercício do direito de acesso à informação pela federação, estados
e Distrito Federal, entre eles: o de que toda informação em posse de
qualquer autoridade, entidade, órgão e organismo federal, estadual e
municipal é pública e somente poderá ser reservada temporariamente
por razões de interesse público; proteção de informações pessoais;
acesso gratuito e sem necessidade de justificar o pedido; criação de
órgãos autônomos e obrigação de adotarem procedimentos céleres de
revisão; obrigações dos órgãos divulgarem informações sobre gestão e
gastos públicos, independente de pedido; e previsão de sanções em caso
de descumprimento.
Em 2010 foi a vez da entrada em vigor da Lei Federal de
Proteção de Dados Pessoais, ampliando a competência e atribuições,
além de alterar o nome de Instituto Federal de Acesso à Informação
Pública Governamental para Instituto Federal de Acesso à Informação e
Proteção de Dados, mantendo-se a sigla IFAI. Essa lei objetiva proteger
os dados pessoais em posse de particulares, para garantia da privacidade.
Com a reforma constitucional de 2007, apesar do IFAI passar
a estar assegurado constitucionalmente, sua jurisdição limitava-se ao
Poder Executivo Federal. Na prática, isso fazia com que os Poderes
Legislativo e Judiciário e outros órgãos que lidam com recursos e
informações públicas tivessem discrepâncias no exercício do direito de
acesso à informação.

Prêmio Francisco Morel 122


Costa e Paulino | Gênese e desenvolvimento da política pública...

Para tentar sanar essa lacuna, a Constituição do país passou por


nova reforma em 2014, prevendo a transformação do órgão federal em
um órgão autônomo nacional, que atuasse junto a uma ampla gama de
sujeitos obrigados, nos três Poderes, conforme transcrição a seguir.

Art. 6o, VIII. A Federação contará com um organismo autônomo,


especializado, imparcial, colegiado, com personalidade jurídica e
patrimônio próprio (…)
(…) O órgão tem competência para conhecer os assuntos
relacionados com o acesso à informação pública e a proteção
de dados pessoais de qualquer autoridade, entidade, órgão
ou organismo integrante dos Poderes Executivo, Legislativo,
Judiciário, órgãos autônomos, partidos políticos, funções
comissionados e fundos públicos, assim como qualquer pessoa
física, jurídica, sindicatos que recebam e utilizem recursos
públicos ou realizem atos públicos em âmbito federal; com
exceção de assuntos jurídicos de competência da Suprema
Corte de Justiça da Nação, quando será resolvido por um comitê
integrado por três ministros. Também conhecerá os recursos
interpostos por particulares a respeito de resoluções dos órgãos
autônomos especializados dos estados e do Distrito Federal
que classifique a informação como reservada, confidencial,
inexistente ou que negue o acesso à informação, nos termos
estabelecidos pela Lei (MÉXICO, Decreto publicado no Diário
Oficial da União em 07/02/2014, tradução nossa).

Fruto de propostas de três partidos, PRD, PRI e PAN, a nova


reforma busca dotar o país de um sistema integral de transparência
e prestação de contas de modo a fazer parte da vida institucional do
governo mexicano (CASTILLEJO, 2014, p. 58). Como visto no trecho
da Constituição acima, o texto também amplia a relação de pessoas que
passam a ser obrigadas a divulgar as informações, como é o caso dos
sindicatos, partidos políticos e qualquer pessoa física ou jurídica que
utilize recursos públicos. Também pode, de ofício ou a requerimento
do organismo estadual ou do Distrito Federal, conhecer os recursos de
revisão que por seu interesse e relevância o justifiquem.
A mais recente reforma constitucional em matéria de
transparência ocorre com o retorno ao poder em 2012 de um presidente

Prêmio Francisco Morel 123


Costa e Paulino | Gênese e desenvolvimento da política pública...

do partido PRI, Enrique Peña Neto. Nessa volta à presidência da


República, o partido retoma um projeto de apresentar uma série de
reformas constitucionais que queriam implementar no México desde
antes de 2000, em matéria de telecomunicações e energia.

É um governo que disse que para que passem essas reformas eu


necessito intercambiar por outras a pedido da oposição. Chama-
se a esse momento de Pacto pelo México. Então esse regresso dá
uma margem de renegociação importante ao governo e um dos
assuntos que inclusive o próprio governo oferece como parte do
intercâmbio é o tema da transparência e junto à transparência
aparece o tema da luta contra a corrupção. São dois elementos
que o próprio governo oferece, mais para dar-lhe cobertura a
outras reformas que interessavam ao governo, que são reformas
mais de tipo econômico e de modernização do setor econômico:
de telecomunicações, sobretudo, e a energética. Então é como
uma moeda de troca, não é que o partido fosse convencido da
transparência, e sim o que poderia dar uma cobertura de ética e
ser uma proposta atrativa para a oposição e para a sociedade em
geral, para poder aprovar sua reforma e fazer com que fossem
aceitáveis. Na minha opinião, esse foi o grande contexto para a
conquista da autonomia constitucional do INAI e seu controle
sobre as decisões dos estados, porque neles havia menos controle
sobre a transparência [tradução nossa] (PECHARD, 2016).

Para evitar que as resoluções do órgão autônomo que obriguem


a administração pública a divulgar a informações sejam descumpridas,
o mesmo inciso também dispõe que as resoluções passem a ser
vinculatórias, definitivas e inatacáveis pelos sujeitos obrigados. A
exceção é para os casos em que a matéria possa por em risco a segurança
nacional, quando o Conselheiro Jurídico do Governo poderá recorrer
junto à Suprema Corte de Justiça.
Por último, delibera sobre os princípios que deverão guiar
a atuação do novo órgão: segurança, legalidade, independência,
imparcialidade, eficácia, objetividade, profissionalismo, transparência e
máxima publicidade.
A fim de regular o artigo após a reforma, em maio de 2015
entrou em vigor a Lei Geral de Transparência e Acesso à Informação

Prêmio Francisco Morel 124


Costa e Paulino | Gênese e desenvolvimento da política pública...

Pública, que institui a transformação do IFAI em Instituto Nacional


de Transparência, Acesso à Informação e Proteção de Dados Pessoais
(INAI). A nova legislação também lança as bases para criação de um
Sistema Nacional de Transparência, cujo lançamento ocorreu em maio
de 2016.
Outra inovação da lei é a obrigação de disponibilizar informação
pública em linguagem simples para qualquer pessoa. Além disso, prevê-
se que, na medida do possível, deverá ser dada acessibilidade a pessoas
com deficiência e traduzida a informação para línguas indígenas.
Nesse último caso, trata-se de uma garantia já prevista na constituição
mexicana, a qual prevê que os princípios relativos ao reconhecimento
dos povos e comunidades indígenas serão observados em constituições
e leis das entidades federativas, além de obedecerem a critérios
etnolinguísticos.
Com a criação da legislação geral, que serve de parâmetro para
as leis estaduais e municipais, houve a necessidade de reforma para
harmonização da legislação federal, a qual entrou em vigor em 9 de maio
de 2016 e se aplica aos 882 sujeitos obrigados federais. Entre os artigos
da nova lei estão fixadas 247 novas obrigações específicas que os sujeitos
obrigados, no âmbito de suas atribuições, deverão cumprir de forma
adicional às obrigações já fixadas na lei geral. Outra nova atribuição do
INAI é a imposição de sanções como advertências públicas e multas para
assegurar o cumprimento de suas determinações. Antes essa faculdade
cabia aos órgãos internos de controle da Administração Pública que
deveriam investigar e sancionar as condutas irregulares cometidas pelos
servidores públicos, ou diretamente pela Secretaria da Função Pública
(SFP).

5. Considerações finais
A partir da pesquisa realizada sobre a gênese, pode-se
perceber a natureza cíclica do processo de elaboração, implementação
e avaliação de políticas públicas ligadas ao direito à informação no
México. Atualmente, o país vive um momento de reformulação a partir
da avaliação dos primeiros anos de vigência da primeira norma infra-
constitucional sobre o tema.

Prêmio Francisco Morel 125


Costa e Paulino | Gênese e desenvolvimento da política pública...

Para compreender a realização de políticas públicas sobre acesso


à informação no México também é preciso verificar que a legislação
não esgota a temática no país, visto que tramitam no Congresso outros
projetos de normas relacionadas respectivamente a arquivos públicos e
a dados pessoais, além de um projeto sobre combate à corrupção.
Como consequência da pesquisa, também se percebeu a
necessidade de aprofundamento das concepções e práticas de políticas
públicas sobre direito à informação não só no âmbito nacional, mas
também no que se refere às instituições estaduais e municipais no
México, além de estudos que desempenhem um papel de avaliar a
abrangência e o dia a dia dos processos de solicitação e respostas dos
órgãos públicos vinculados aos Poderes Executivo, Legislativo e Judicial.
Por fim, merece destaque a necessidade de reflexões sobre as
ações do INAI como órgão recursal, criando métricas para avaliar seu
papel como garante do direito à informação. Tais debates e contribuições
podem ser relevantes para o aprimoramento do exercício do direito
à informação em países latino-americanos, especialmente realidades
como a brasileira que conta com lei de acesso há menos tempo que o
México.

Referências

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Mexicana: História Mexicana Contemporânea, 1910-1989, tradução Celso
Mauro Paciornik. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2000.

CASTILLEJO, Itzel Leticia Solano. Retos y dificultades que ha enfrentado


México sobre transparência y derecho de acceso a la información pública en
los últimos años (2002-2014). 2015. 197 f. Dissertação (Mestrado em Direito).
Universidad Nacional Autónoma de México, 2015.

ESCOBEDO, Juan Francisco. Movilización de la opinión pública en México:


El Caso del Grupo Oaxaca y de la ley federal de acceso a la información pública.
http://www.saladeprensa.org/art417.htm). Acesso em 10 set 2015.

FUSER, Igor. México em transe. 2a edição. São Paulo: Scritta, 1995.

Prêmio Francisco Morel 126


Costa e Paulino | Gênese e desenvolvimento da política pública...

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resoluciones del IFAI. 2008. Disponível em: www.ifai.org.mx/descargar.
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Editorial PAC, México 1993.

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Disponível em: dof.gob.mx/nota_detalle.php?codigo=5332003&fe-
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MONTERO, Aránzazu Guillán (org). Los órganos garantes de la transparencia


y el acceso a la información en Chile y México. Estructura administrativa,
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2012. Disponível em: consejotransparencia.cl/consejo/site/artic/20130820/
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Prêmio Francisco Morel 127


Prêmio
FREITAS NOBRE
Quem foi Freitas Nobre?

Maiara Sobral

Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de


Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito e
Economia da Informação pela Faculdade de Direito da Universidade
de Paris, José de Freitas Nobre nasceu em 1921, na cidade de Fortaleza,
Ceará.
Quando chegou a São Paulo, ele ingressou precocemente no
Jornalismo e dedicou-se às biografias históricas, com a produção de
livros sobre o poeta popular Juvenal Galeano, o abolicionista João
Cordeiro, o jurista Clovis Bevilacqua e o missionário José de Anchieta.
Ao ingressar na Faculdade de Direito do Largo São Francisco,
hoje incorporada à USP, graduou-se em Ciências Jurídicas e Sociais, e
começou a exercer, paralelamente, a advocacia. A nova profissão não
lhe afastou da paixão pelo exercício do Jornalismo, além da reportagem,
ele buscou resgatar a história da profissão. Essa faceta de pesquisador,
motivou seu ingresso na docência. Freitas Nobres faleceu no dia 19 de
novembro de 1990.

Prêmio Freitas Nobre 129


Desigualdade de gênero em Guaribas-
PI e o aparecer da mulher sertaneja no
Facebook1

Tamires Ferreira Coelho2


Ângela Cristina Salgueiro (orientadora)3

Introdução
Este artigo parte de uma investigação que busca conhecer e
analisar as possibilidades e dificuldades de construção da autonomia e da
subjetivação política, a partir da exposição e das narrativas construídas
por sertanejas piauienses na rede social Facebook, mais especificamente
as que residem na região do município de Guaribas-PI. Essa cidade foi
escolhida após nossa primeira experiência em campo: ao mesmo tempo
em que é “conhecida” por ter sido piloto do Programa Fome Zero, é
1. Trabalho inicialmente apresentado no GP Comunicação para a Cidadania, do XVI
Encontro dos Grupos de Pesquisa em Comunicação, evento componente do XXXIX
Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação.

2. Professora do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal de


Mato Grosso (UFMT). Doutoranda em Comunicação Social na UFMG com bolsa da
CAPES; Estágio Doutoral na Université Paris-Sorbonne/CELSA junto ao GRIPIC com
bolsa da CAPES.

3. Professora Adjunta do Departamento de Comunicação Social da Universidade


Federal de Minas Gerais. Doutora em Comunicação Social pela UFMG (2007). Realizou
pós-doutorado em Comunicação e em Ciências Sociais na cidade de Grenoble (França),
onde atuou junto a dois grupos de pesquisa: o Groupe de Recherche sur les Enjeux
de la Communication (Institut de Communication et Medias - Université Stendhal)
e o Groupe de Recherche en Sciences Sociales sur l’Amérique Latine (MSH-Alpes,
Université Pierre Mendes France).

Prêmio Freitas Nobre 130


Coelho e Salgueiro | Desigualdade de gênero em Guaribas-PI...

desconhecida e pouco abordada em termos de relações de gênero e


de tecnologias digitais recém-chegadas, apresentando um contexto
diferente (com tradições patriarcais acentuadas e peculiares) do que
encontramos em outras cidades piauienses com as quais já tínhamos
contato prévio.
Além da importância de pesquisar uma região com carências
comunicacionais, destacamos nosso interesse em conhecer a natureza
dessa apropriação e exposição com vistas a perceber se (e como)
instauram oportunidades para que essas mulheres se constituam como
sujeitos de palavra na ordem do discurso e do registro do visível e, além
disso, possam criar enunciados e modos de enunciação próprios nas
redes, que revelam um agir autonômico e um processo de subjetivação
pautados pelo trabalho criativo com a linguagem, a imagem e a narrativa.
Concomitantemente, há obstáculos à emancipação em uma plataforma
que transforma interações em capital financeiro.
Moura e Mantovani (2005) explicam que “a intensificação
do uso do telefone celular foi acompanhada por uma forte campanha
(quase mesmo uma imposição) em torno da necessidade de os sujeitos
estarem conectados, sempre aptos a ingressar em processos de interações
instantâneas”, de forma que os telefones celulares assumiram o papel
antes relegado aos computadores, sobretudo após a privatização das
empresas de telecomunicação no Brasil na década de 1990, agregando
às interações elementos como “a portabilidade, a conectividade e a
multifuncionalidade” e impactando as relações sociais (MOURA;
MANTOVANI, 2005). No entanto, o acesso à tecnologia não se dá de
maneira uniforme. Se pensarmos que as possibilidades de acesso à rede
são ainda mais dificultadas em regiões distantes das capitais e de grandes
centros, o Sertão piauiense – região com alguns dos mais baixos índices
de desenvolvimento humano do Nordeste e do Brasil – é uma das regiões
menos privilegiadas em termos de acesso a meios comunicacionais: não
somente o acesso à internet é precário, mas também o acesso à telefonia
móvel e a alguns canais de TV, inclusive de afiliadas do próprio estado.
As mulheres empobrecidas4, em sua grande maioria, são
invisíveis, têm sua palavra e seus corpos desvalorizados, encontrando
4. Termo que evidencia uma circunstância, em vez de lugar fixo, conforme destaca
Fortes (2015, p. 10).

Prêmio Freitas Nobre 131


Coelho e Salgueiro | Desigualdade de gênero em Guaribas-PI...

inúmeros obstáculos para a conquista da cidadania e do reconhecimento


social (SOUZA, 2006; MARQUES, 2007), seja por sua condição
estigmatizada de empobrecimento, seja também por uma questão de
desigualdade e de assimetrias de gênero.
É interessante mencionar que, apesar dos estereótipos e do
preconceito que existem em torno da figura das mulheres sertanejas
– ligados a uma ideia de que elas se conformam ao assistencialismo
governamental e às tradições machistas culturalmente impostas5 –,
existe um forte potencial na cultura sertaneja de empreender, resistir
e inovar. Prova disso são as alternativas desenvolvidas por algumas
delas para driblar as dificuldades de acesso comunicacional, como o uso
dos celulares em residências ainda sem energia elétrica, dependendo
de deslocamento para recarregar as baterias dos aparelhos telefônicos.
Acreditamos que essas, dentre outras táticas6, podem sinalizar para ações
políticas criativas, diante de adversidades que a população sertaneja
enfrenta diariamente na região em que vive.
Gerar e compartilhar conhecimentos relacionados às sertanejas
e ao cenário comunicacional do Sertão do Piauí é também uma
opção política, no sentido de descentralizar a discussão que ainda
se concentra no Sudeste brasileiro, trazendo temáticas e fenômenos
pouco explorados por pesquisadores no campo comunicacional. Há
possibilidade de analisar o estar e o ser na rede, considerando quais
dimensões de autonomia e subjetivação são articuladas e acionadas,
recuperando (e ressignificando) o conceito de autonomia na literatura
feminista (MIGUEL; BIROLI, 2014; REGO; PINZANI, 2013; FRAISSE,
2016) com uma combinação metodológica específica para nosso objeto.

Questões Contextuais
O desenvolvimento de diversas políticas públicas no Brasil
nos últimos 14 anos, desde o principal programa de transferência de
5. “As beneficiárias do PBF sofrem diariamente preconceitos, que colocando em xeque
a moralidade de cada uma. Vivem sob olhares que as julgam e incriminam pela pobreza
vivenciada” (VIEIRA, 2015, p. 39).

6. “Essas ‘maneiras de fazer’ constituem as mil práticas pelas quais usuários se reapropriam
do espaço organizado pelas técnicas da produção sócio-cultural” (CERTEAU, 1998, p. 41).

Prêmio Freitas Nobre 132


Coelho e Salgueiro | Desigualdade de gênero em Guaribas-PI...

renda implementado pelo governo Lula (Bolsa Família) até o acesso a


serviços básicos (energia elétrica e água potável, por exemplo) e bens
de consumo essenciais (meios de comunicação), tem transformado
cenários e realidades no país. Não há como descolar o crescimento do
acesso à informação e à educação (ainda que com inúmeros problemas)
do desenvolvimento de possibilidades de autonomia e conquista de
direitos.
Mesmo sem acesso pleno à internet, em uma região na qual a
maioria das residências ainda não conta com um computador conectado
à rede, as lan houses, telecentros e outros estabelecimentos públicos são
alternativas cada vez menos utilizadas após a disponibilidade do sinal
(ainda que precário) de telefonia móvel. A adesão da população sertaneja
às redes sociais virtuais também tem crescido e, apesar de o Facebook
já existir desde 2004, o crescente uso dessa plataforma em pequenas
cidades do Sertão piauiense ainda pode ser considerado um fenômeno
recente, potencializado com a chegada dos celulares e smartphones.
Em 2014, quando iniciamos esta pesquisa, ainda havia mais aparelhos
televisivos que computadores e havia sertanejas que sequer tinham
energia elétrica em casa, mas a chegada dos aparelhos celulares tinha
modificado o cenário comunicacional de muitas piauienses.
Essa chegada simultânea de diversos meios de comunicação
altera não apenas as formas e expectativas de uso, de consumo, mas, com
as tecnologias digitais, emergem possibilidades de criação de modos de
ser e dizer, possibilidades de registro e inserção de si e de uma existência
em espaços discursivos outros que não aqueles da rotina. Além disso,
está associada a peculiaridades do cotidiano e da região em que vivem
as mulheres que escolhemos conhecer durante esta pesquisa.

Desigualdades Sociais e de Gênero em Guaribas-PI


Guaribas não é uma cidade grande, nem é de fácil acesso. Com
cerca de 4.500 habitantes, está situada a cerca de 650km de Teresina, se
localiza na região da Serra das Confusões e foi emancipada do município
vizinho (Caracol-PI) há cerca de vinte anos (IBGE, 2016). Quem apenas
lê matérias jornalísticas e acompanha estatísticas sobre Guaribas não
consegue ter dimensão, ainda que superficial, das desigualdades

Prêmio Freitas Nobre 133


Coelho e Salgueiro | Desigualdade de gênero em Guaribas-PI...

que existiram e continuam existindo nessa cidade. De acordo com


o IBGE (2016), Guaribas, cuja atividade econômica principal é a
agricultura familiar, ainda figura entre as cidades de menor Índice de
Desenvolvimento Humano Municipal do Piauí e do Brasil, embora esse
mesmo índice tenha duplicado em apenas dez anos, o que foi resultado
de melhorias e investimentos em saúde, educação e distribuição de
renda, sobretudo a partir do programa Fome Zero e, posteriormente,
do Bolsa Família.
Em Guaribas, as mulheres conhecem bem as dificuldades de
acesso a água, pois por muito tempo carregaram (muitas ainda carregam)
o peso da responsabilidade e das latas de água na cabeça, trazidas com
muito custo de locais de difícil acesso na Serra das Confusões. Essa tarefa,
essencialmente feminina, figura dentre as mais difíceis e exigentes nas
palavras de muitas delas. Apesar de o município hoje já contar com uma
adutora de água e com vários serviços essenciais, algumas comunidades
mais afastadas da sede do município ainda sofrem com a falta de acesso
a água e energia elétrica, por exemplo. São famílias em casas de taipa,
com uma renda mínima e muito pouca atenção dos governos municipal,
estadual e federal.
As mulheres figuram como grande maioria das pessoas
beneficiadas pelos programas de combate à pobreza do governo
federal, principalmente pelo Bolsa Família, o que pode impulsionar
sua autonomia financeira, no entanto isso não impede que muitas
opressões se perpetuem na relação com os homens de seu lar e de suas
comunidades. Não é raro escutar relatos de maridos que “administram”
os benefícios recebidos por suas companheiras, limitando o acesso ao
dinheiro que elas recebem e usufruindo individualmente da quantia
que deveria ser voltada para despesas familiares. Isso quando muitos
não fogem da cidade para formar outra família, geralmente fruto de
relações extraconjugais, e tomam para si o benefício que deveria ser das
mulheres abandonadas. Assim, em que medida seriam esses auxílios
financeiros uma “libertação do controle masculino familiar” (REGO;
PINZANI, 2013)?
Por outro lado, se as opressões do cotidiano são por vezes difíceis
de serem rotuladas e reconhecidas como tal, também são invisibilizados

Prêmio Freitas Nobre 134


Coelho e Salgueiro | Desigualdade de gênero em Guaribas-PI...

e pouco mencionados muitos esforços de autonomia e de libertação das


regras patriarcais. Algumas mulheres que administram o benefício que
chega em seus nomes também veem nessa pequena renda um estímulo
à separação de maridos agressores e que muitas vezes não contribuem
para a renda da casa nem para o sustento da família. Segundo Capai
(2013), “em 2003, quando chegou o Fome Zero, foram solicitados 993
divórcios no Piauí. Em 2011 o número saltou para 1.689 casos. Dos
casos não consensuais, 134 foram requeridos por mulheres em 2003;
em 2011 esse número saltou para 413 – um aumento de 308%”. Quando
extrapolamos os números estatísticos e conversamos com mulheres
na região percebemos que o número de separações não oficiais chega
a ser ainda maior, embora haja inúmeras pressões sociais (familiares,
religiosas etc.) contra a dissolução de casamentos (mesmo quando a
separação é motivada por violência doméstica) e as mulheres separadas
sejam vistas de maneira bastante preconceituosa.
As mulheres em Guaribas carregam uma enorme cruz, cujo
peso é constituído de normas patriarcais e extremamente misóginas:
“na pequena Guaribas, a mulher ficar presa em casa em dias de festa,
o alcoolismo e a infidelidade masculina são histórias contadas com
naturalidade” (CAPAI, 2013). É perceptível também que, enquanto
muitas mulheres se desdobram em duas ou três jornadas de trabalho
(plantando na roça, cuidando da casa e dos filhos e, às vezes, trabalhando
em algum outro setor), há muitos maridos dependentes químicos,
sobretudo alcoólatras, ou viciados em jogos de azar que não ajudam na
jornada de trabalho e agridem esposa e filhos.
As instituições e os discursos religiosos7 de matriz cristã
ocidental, predominantes na região, também ajudam na manutenção das
desigualdades e das opressões, seja porque as dificuldades e violências
são vistas como “cruzes” redentoras dos pecados de cada uma, seja
porque os dias melhores são relegados aos “braços de Deus”. Além disso,
as igrejas evangélicas e católica contribuem para legitimar o casamento
e o papel maternal como prioritários na vida das mulheres jovens.
7. Fraisse (2016, p. 66) lembra que nenhum dos três monoteísmos pensam ou afirmam
a igualdade dos sexos, ajudando a propagar e legitimar a dominação masculina. Alami
M’Chichi (2002) ressalta que o discurso emancipador feminino continua limitado
diante da influência religiosa (p. 68-69).

Prêmio Freitas Nobre 135


Coelho e Salgueiro | Desigualdade de gênero em Guaribas-PI...

Uma outra característica marcante da região de Guaribas e que


ajuda a perpetuar toda essa cultura opressora é uma prática bastante
antiga e que sobrevive em poucos lugares: o “casamento roubado” de
crianças e adolescentes. Essa “modalidade de casamento” difere do que
é chamado de “casamento pedido” por não haver consenso familiar e
por ser, de fato, uma prática enquadrada no Código Penal brasileiro
como “estupro de vulnerável”. Práticas como essa ajudam a manter a
dominação social masculina e a cercear os direitos das mulheres desde
muito jovens, além de estigmatizar as que alcançam a maioridade
solteiras, ficando conhecidas como “velhas para casar”.
Em uma região já esquecida por boa parte das instituições, os
cargos de autoridade são ocupados por homens, que não só não veem
problemas na perpetuação dessas desigualdades, como alegam ser
algo “cultural” da região, logo, que não deve ser modificado. E isso faz
bastante sentido na lógica de dominação do patriarcado.
Essas práticas e opressões se refletem em índices de evasão escolar
que o Bolsa Família tem conseguido reduzir8. Com a obrigatoriedade
da frequência de crianças e adolescentes na escola para manutenção
do benefício, muitas meninas têm tido maior acesso à informação e à
educação formal (IBGE, 2016). Isso, associado a práticas de resistência
das mulheres na comunidade (como a recuperação de filhas roubadas
por algumas mães a contragosto dos pais), garante que muitas meninas
terminem o ensino médio e consigam vislumbrar outras possibilidades
de futuro para além do casamento.
A invisibilidade social está muito mais ligada à sua não
consideração como interlocutoras e como agentes políticas paritárias.
A dominação ideológica masculina e a naturalização da opressão
dificultam que as mulheres alcancem uma representação de sua própria

8. Em Guaribas há um alto índice de beneficiários do Bolsa Família. Para recebê-lo, a


família beneficiada deve manter as crianças e adolescentes na escola. De 2000 a 2010,
segundo o IBGE, os índices de abandono escolar precoce e de analfabetismo de mulheres
em Guaribas caiu consideravelmente: a taxa de abandono escolar precoce das mulheres
entre 18 a 24 anos caiu de 67,6% para 37,7%; a taxa de analfabetismo das mulheres de
15 anos ou mais caiu de 63,7% para 38,1% (IBGE, 2016). Disponível em: <cidades.ibge.
gov.br/xtras/temas.php?lang=&codmun=220455&idtema=132&search=piaui|guariba
s|sistema-nacional-de-informacao-de-genero-uma-analise-dos-resultados-do-censo-
demografico-2010>. Acesso em: mai. 2016.

Prêmio Freitas Nobre 136


Coelho e Salgueiro | Desigualdade de gênero em Guaribas-PI...

situação, ou seja, de transformar o vivido em experiência e, muitas


vezes em nomear essa experiência como injusta. Sob esse aspecto,
uma das dimensões da emancipação reside na tentativa de elaboração,
pelas mulheres, de uma palavra que exprima sua própria experiência
vivida de sofrimento, de um quadro de enunciação de injustiças que
as torne visíveis. Tornar-se visível é poder falar (expressar-se e ser
ouvido em uma enunciação) e é poder definir termos da tomada da
palavra, fazendo parte de uma cena de interpelação e escuta. Sob esse
segundo aspecto, Honneth (2005) não associa a invisibilidade a uma
ausência física, mas sim a uma inexistência social e comunicacional.
A visibilidade se concretiza quando um indivíduo sabe que foi
considerado por seus parceiros na interação, através de reações claras
que revelam que a outra pessoa mostra que ela o percebe. Falar sobre
não é o mesmo que falar com.
Assim, considerando um contexto de desigualdades e
assimetrias no qual as mulheres têm mais acesso à informação, à
educação e estão conquistando uma maior independência, inclusive
financeira, instiga-nos pensar como a configuração do Facebook
como espaço de criação de novos enunciados e de enunciação pode
nos sinalizar para uma busca de autonomia e de resistência contra
a cultura sexista que ainda prevalece no Sertão, revelando também
marcas de sua subjetivação9. A subjetivação política relaciona-se à
constituição de um indivíduo como sujeito de palavra, e não só de
voz. Falar com os outros e diante deles é ter sua palavra ouvida e
considerada, entrar no circuito de diálogo e justificação recíprocas,
configurando um modo de “aparecer” na cena pública.

Desenhos da Pesquisa Piloto


Em junho de 2014 ouvimos e interagimos presencialmente com
77 mulheres e adolescentes em cidades piauienses de diferentes portes,
na região formada pelos municípios de Acauã, Conceição do Canindé,
Guaribas, Lagoa do Barro, Paulistana, Queimada Nova, São Raimundo

9. Assim, acreditamos que essa subjetivação está relacionada à presença dessas mulheres
em redes sociais como o Facebook, às suas falas, bem como às imagens, caracterizadoras
do que é feminino, que as atravessam, inclusive em produções fotográficas, como selfies.

Prêmio Freitas Nobre 137


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Nonato e Simplício Mendes10. Posteriormente decidimos delimitar


a pesquisa a Guaribas, para onde retornaríamos em abril de 2015 e
faríamos entrevistas mais profundas e longas que as anteriores.
Tivemos o cuidado de configurar um questionário
(acompanhado de termo de assentimento) que nos auxiliou a limitar
as narrativas, a fim de extrair das entrevistas dados importantes para
nossa pesquisa, focando nas apropriações da rede social e na busca por
práticas que envolvam posicionamentos, formas de expressão, de criação
de enunciados e ideais de autorrealização expressos por essas piauienses
(as duas dimensões centrais de busca da tese: uma são os usos, a outra
a emergência/aparecer político das mulheres online). Assim, buscamos
entender como o Facebook poderia ajudar (ou não) na configuração
dos processos de construção da autonomia e subjetivação das mulheres
pesquisadas ao dar a ver modos como constroem uma forma criativa de
ser no mundo e de organizar suas experiências e modos de enunciação.
Após as entrevistas feitas nessa pesquisa piloto, através da
observação participante, mantivemos contato com as mulheres
pesquisadas, já que as adicionamos no perfil do Facebook da
pesquisadora e interagimos com elas, observando de maneira mais
próxima os conteúdos postados e compartilhados nessa rede social,
bem como as interações entre essas mulheres e seus contatos11. Assim,
utilizamos o aporte netnográfico para nos guiar na análise do aparecer
das sertanejas no Facebook a partir do acesso virtual a seus perfis, e,
a partir da observação participante, tentamos compreender como isso
pode estar relacionado ao contexto presencial das mulheres sertanejas
(com o qual tivemos contato durante as entrevistas), às suas relações

10. Essas foram as cidades que estiveram no trecho que nos propusemos a percorrer
e nas quais foi possível parar e encontrar mulheres dispostas a conversar, durante o
caminho já mencionado (entre Paulistana e Guaribas). Inicialmente não escolhemos
muitos critérios: seriam mulheres ou adolescentes que utilizassem o Facebook com
frequência e que residissem nessa região.

11. Essa aproximação, através da adição dos perfis dessas mulheres à nossa rede de
contatos no Facebook mostra-se essencial. Sem esse recurso, é provável que seja
impossível observar e rastrear boa parte de suas interações na rede social, já que só
teríamos acesso ao que é postado como “público”. No momento em que podemos
interagir diretamente com elas, tudo o que for postado ou compartilhado com
visibilidade para amigos e/ou conhecidos está disponível à nossa pesquisa.

Prêmio Freitas Nobre 138


Coelho e Salgueiro | Desigualdade de gênero em Guaribas-PI...

fora da rede, não desconectadas de suas práticas online. Já a teoria


fundamentada nos auxilia a partir da possibilidade de mobilização de
teorias a partir de nossa observação empírica.
Consideramos a esfera de aparição ao construírem e
enunciarem as “vidas precárias” (BUTLER, 2015; 2004), ou “a condição
de estar condicionado, na qual a vida de alguém está sempre, de alguma
forma, nas mãos do outro” (2015, p. 33), relacionada à construção de
narrativas de si e sua relação com a autonomia e a subjetivação. Estamos
conscientes de que nossos enquadramentos, enquanto construtores de
conhecimento científico, são também operações de poder e delimitam a
esfera de aparição dessas mulheres (BUTLER, 2015).

As Sertanejas de Guaribas no Facebook


Falar das sertanejas é também falar de desigualdades e da
concentração de riqueza que caracterizam nosso país, reproduzindo uma
“pobreza historicamente construída” que se vincula a novas condições de
vulnerabilidade, implicando limites à autodeterminação dos indivíduos
como sujeitos e à sua participação política (CUNHA, 2004). Associado
a isso, o fato de termos uma democracia jovem incide também sobre
características da liberdade de expressão que encontramos no Brasil. Se
o período ditatorial limitou drasticamente os espaços de expressão e de
fala dos brasileiros (algo que tem consequências até os dias atuais), no
caso das mulheres isso é ainda mais complexo. As tradições patriarcais
e conservadoras ainda vigentes em nossa sociedade valorizam nas
mulheres características como a reclusão, a obediência e a ausência
de posicionamentos e argumentos. Esse conservadorismo machista,
associado ao pouco ou nenhum estímulo à liberdade de expressão
(resquícios de estruturas conformadas no sistema ditatorial) resulta na
formação (tanto na educação formal quanto na informal) de mulheres
que não se sentem seguras para falar, defender, explicar o que pensam.
Sabemos que mesmo em países como a França, onde o
desenvolvimento da democracia é bastante antigo e mais sólido, as
questões de gênero são pautas importantes: existem desigualdades
sociais entre homens e mulheres, violência doméstica e predominância

Prêmio Freitas Nobre 139


Coelho e Salgueiro | Desigualdade de gênero em Guaribas-PI...

de homens em espaços políticos, evidenciando limites democráticos


(FRAISSE, 2016; FASSIN, 201612). Mesmo com essas assimetrias,
a formação das mulheres conta com um estímulo à expressão e
à criticidade, além de existirem múltiplos espaços de fomento à
discussão. Assim, na França, os espaços configurados em redes sociais
não se apresentam como no Brasil, pois lá conta-se com uma oferta
maior de espaços presenciais propensos ao debate político. No caso
brasileiro, a ausência de muitos desses espaços faz com que os usos
das redes sociais possam ser apropriados para o debate e a expressão
de questões que não são discutidas presencialmente. Dessa forma,
observamos que as mesmas redes em que enxergamos um potencial
político de discussão são, na França, vistas por alguns pesquisadores
como espaços de expressão do ego e da exaltação de uma sociedade
vaidosa e individualista (ESCANDE-GAUQUIÉ, 2015). Aqui, as redes
sociais têm se mostrado como espaços importantes de expressão de si,
levando em conta que o processo de subjetivação dos sujeitos passa
por experiências de dramatização (LAZZARATO, 2014) e resistência.
Assim, estamos muito mais próximos de uma perspectiva que focaliza
o potencial de expressão das redes sociais em seu entrelaçamento com
aspectos da subjetivação, como em Gunthert (2015), que explica que
o termo “selfie” corresponde a um processo de identificação tardia de
um grupo de práticas foto ou videorreflexivas, ligadas a uma estética da
subjetividade, à autonomia e à agência.
O acesso à palavra pública por parte das mulheres não é
um problema contemporâneo, mas é fruto de uma série de silêncios
historicamente impostos (PERROT, 2005) que ainda têm resquícios sobre
o complexo lugar de fala das mulheres nas sociedades atuais. É preciso
pontuar que os processos de resistência não são inaugurados com o
Facebook. Prova disso são as mulheres que não têm acesso à rede, mas
que adotam posturas resistentes em seu cotidiano, seja no combate à
violência dos maridos, seja posicionando-se contra regras e pressupostos
sociais opressores. Assim, esses processos já existentes podem ganhar
novos desenhos, contornos e visibilidades com o acesso à internet.
12. Aula com Eric Fassin em 12 de fevereiro de 2016, no seminário “Le / la biopolitique :
sens, usages, limites ou contestations du terme dans le champ de la réflexion sur le genre
et les sexualités”, na Université Paris 8, Saint-Denis, França.

Prêmio Freitas Nobre 140


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Um exemplo de resistência fora das redes é Marina13 (34 anos),


que, mesmo sem ter concluído o ensino fundamental e sem acesso à
internet, se expressa e identifica com alguma facilidade muitas injustiças
contra as mulheres na região. Ela é uma das mulheres que já saíram de
casa após maus os tratos do marido, que não entendia suas limitações e
problemas de saúde e, que já não a agride mais. Ela também se destaca
por ter resgatado a filha mais velha, após oito meses de “casamento
roubado”:

“Ela foi roubada. Aí não tava dando certo e eu fui e tomei. Eu


tomei por telefone. Botei o motoqueiro pra ir e ela dizendo que
não vinha. Eu disse que ela vinha e se ela não fosse eu ia buscar.
E se ela não quisesse vim, eu tinha mais gosto de deixar ela na
cadeia, mas não tinha gosto de deixar ela lá com este homem.
Aí ela veio chorando. E eu disse: ‘Eu não vou desligar o celular
enquanto tu não sair daí [Cristino Castro-PI]. Enquanto tu
não sair de dentro da cidade, eu não desligo o celular. Tu vai
ter que vim’. Ela tinha 16 anos. Aí ela veio e graças a Deus não
voltou mais não. E ela disse que não quer homem agora não. Eu
disse: ‘Se algum dia você sentir mal com a mãe, pode dizer. Se
apavorar com seu casamento... porque fui eu que tomei. E não
me arrependo não’. [O homem] Pega, leva, aí lá fica com outras.
Até o absorvente dela era eu que mandava daqui. Ele não dava
nada. Às vezes, as coisas de comida, né? Eu sabia que ele tinha
namoradinha lá e ele levava pra dentro de casa. Eu disse ‘Minha
fia, a gente não tá aqui pra viver com homem com duas mulheres,
nem ele sendo rico, imagina sendo pobre, pior do que a gente’. De
vez em quando ela me agradece. Chorou muito, mas hoje me
agradece” (MARINA, 22/04/15).

Quando têm acesso à internet, as mulheres se conectam,


essencialmente, pelo celular ou por computadores em locais de acesso
público (Espaço Sociocultural do Instituto Nordeste Cidadania e do
Banco do Nordeste em Guaribas ou lan houses), onde as máquinas mais
velozes são mais disputadas, mas também pode ser feito em dispositivos
de amigas e familiares. A cidade tem um telecentro que não funciona, o
que limita as opções de quem acessa a rede em espaços públicos.

13. Nome fictício.

Prêmio Freitas Nobre 141


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Toda guaribense conhece alguma mulher que não usa ou que


usa mas não tem “permissão” de uso da rede social por proibição do
marido. Muitos homens casados usam o Facebook e não permitem
que suas mulheres acessem a rede: grande parte deles inclusive nem se
identifica na rede como casado.
No entanto, os relatos que ouvimos também falam de sonhos, que
são por vezes estimulados pelo contato com outras pessoas na internet,
seja para fomentar um fluxo migratório ainda existente - o sonho da
cidade grande, de mudar-se para grandes metrópoles como São Paulo
ou Brasília -, seja para sair à procura de alternativas de relacionamento
afetivo, seja para viajar, estudar, conhecer lugares e pessoas diferentes.
Muitas postagens e/ou interações que exploram elementos
dramáticos ou experiências pessoais trazem consigo elementos (ainda
que implícitos) que dizem muito dessas mulheres, sejam essas situações
de alegria, de descontentamento, de revolta. No campo afetivo, Fábia14
(33 anos) afirma que ser mulher já é difícil, pelas cobranças sociais e pelos
desrespeitos. “Num pé onde não tem um esposo, todo mundo quer botar
a mão. Ser mulher é complicado. Ser mulher não é nada fácil. Tudo tem
que ser mulher, em todo meio das coisas tem que ter mulher por o meio
A mulher é isso, é aquilo. Pra mim, a palavra ‘mulher’ já é difícil” (FÁBIA,
23/04/15). Assim, isso se relaciona ao compartilhamento de mensagens
sobre “estar sozinha ser melhor do que estar mal acompanhada”, tanto
em críticas à falência dos casamentos, nos termos em que as famílias
de Guaribas tentam mantê-los, baseados em estruturas de profunda
desigualdade e opressão, quanto de forma a afirmar-se enquanto pessoa
que merece respeito, sendo mulher separada.
A exposição do que pensam leva em conta sua realidade, as
possibilidades que enxergam para o contexto no qual vivem (pautadas
também no que absorvem no contato com outras pessoas, digital ou
presencialmente), mas também a certeza de que estão sendo vigiadas (se
não tão claramente pelos dispositivos digitais, certamente por aqueles
que as cercam presencialmente). Chamou-nos atenção especialmente
uma postagem de Fábia em julho de 2014, quando ela compartilhou
fotos de uma publicação da página da prefeitura de Guaribas e teceu
14. Nome fictício.

Prêmio Freitas Nobre 142


Coelho e Salgueiro | Desigualdade de gênero em Guaribas-PI...

críticas ao conteúdo promocional do governo municipal, que falava


sobre o “tão sonhado calçamento do povoado brejão Guaribas PI. Esta
obra era aguardada há muito tempo pelos moradores que agradeceram
ao prefeito Claudine Matias por ter atendido a solicitação e ter realizado
a obra que os moradores há anos tanto desejavam”. Fábia por sua vez
escreveu que “Enquanto ele faz no brejao esquece da Guaribas o ex
prefeito Ercilo comecou a praca da rua sao joao e o atual prefeito n
terminou a agua na cidade e so 1 vez na semana.” (FÁBIA, postagem
em 26/07/14), chamando atenção para o término de obras apenas
na comunidade mais desenvolvida da cidade (Brejão), onde muitos
políticos residem, e cobrando a finalização de obras na sede da cidade,
onde ela vive, bem como a regularização do precário abastecimento de
água.
Assim, ao analisar o “aparecer” das sertanejas conectadas no
Facebook, abordamos imagens e discursos, bem como enunciados
que nos ajudam a perceber uma potência autonômica na escrita
digital dessas mulheres. A autonomia seria mais que visão exigente
concentrada na capacidade de essas mulheres decidirem por si sobre
o que é melhor para elas, a partir de uma condição de agência, tendo
em vista o benefício de direitos que por vezes podem lhes ser negados.
O devir autonômico está atrelado a vulnerabilidades que atravessam
sua condição de empobrecimento e a desvalorização de gênero que
prevalece na região em que vivem. Esse aspecto leva em conta também
o enfrentamento de carências estruturais e materiais (MARQUES,
2007) que caracterizam seu contexto de vida. A questão da subjetivação,
interligada à da autonomia, também diz respeito aos agenciamentos,
gestos políticos e posturas questionadoras, resistentes ou de insatisfação
com relação a injustiças descritas nas palavras dessas sertanejas15.

Algumas Considerações
As imagens de mulheres sertanejas, sejam elas encarnadas
em relatos ou fotografias propagadas pelo Facebook, podem criar, na
oportunidade de aparecerem diante do outro sem as mediações de meios
15. As experiências dessas mulheres, integradas aos seus pontos de vista, podem, ainda
que com dificuldade, levar a uma redefinição do político, como aponta Alami M’Chichi
sobre as feministas no Marrocos (2002, p. 124).

Prêmio Freitas Nobre 143


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hegemônicos, formas interessantes de exposição e enunciação, mas


também promovem distanciamento e incompreensão. Um olhar mais
superficial pode questionar, inclusive, o que há de valioso na postagem
de fotos no Facebook, de selfies que poderiam ser de qualquer pessoa,
em qualquer lugar. Ocorre que, o que poderia ser natural para qualquer
indivíduo que tenha acesso a meios de comunicação há décadas – que
tenha acompanhado o processo de adesão a diferentes tecnologias e de
acesso à telefonia móvel, após uma anterior popularização da telefonia
fixa, da televisão, do rádio etc. – ganha um caráter diferente à medida
em que o acesso à energia elétrica de muitas sertanejas observadas nessa
pesquisa é recente, e que a forma de apropriação de diversos meios (que
chegam simultaneamente) também se diferencia, gerando outras formas
de escrita. Em um contexto presencial no qual há muito pouco espaço
de expressão e no qual as mulheres não são estimuladas a argumentar,
mas a obedecer, ganhar exposição e visibilidade a partir de fotografias
compartilhadas na rede, ganhar existência digital e poder interagir
com diversas pessoas parece fascinante, ainda que todo esse processo
seja permeado por vigilâncias e limites (em termos de arquitetura da
rede social e de competências de uso das tecnologias). Não se trata
aqui somente de corroborar o que alguns pesquisadores do tema da
democracia digital (STROMER-GALLEY, 2002; SHIRAZI, 2012) vêm
argumentando acerca do aumento da participação de mulheres em
espaços de conversação e ativismo online. Sabemos que múltiplas vozes
femininas têm se imposto em redes de esferas públicas digitais, mas,
ainda assim, estruturas institucionais marcadas pela assimetria e pela
injustiça dificultam a transformação dessas vozes em falas ou enunciados
em uma cena de interpelação e escuta na qual essas mulheres possam
definir por si mesmas quem são, o que fazem e como vivem.
Consideramos que o aparecer por meio de autorretratos,
potencializado e modificado a partir de redes como o Facebook, parte
de uma diluição entre o público e o privado e nem sempre aborda
discussões de assuntos de interesse público (MARTINO, 2015). Assim,
são evidenciados posicionamentos, olhares, mas também sentimentos
e emoções por vezes não considerados ou valorizados em relações
presenciais. “[...] se não podemos fazer política efetiva apenas com

Prêmio Freitas Nobre 144


Coelho e Salgueiro | Desigualdade de gênero em Guaribas-PI...

sentimentos, tampouco podemos fazer boa política desqualificando


nossas emoções, isto é, as emoções de toda e qualquer pessoa, as
emoções de todos em qualquer um” (DIDI-HUBERMAN, 2016, p. 38,
grifo do autor). Os espaços potencializados a partir do Facebook são
também ocupados por emoções que compõem as narrativas de si, que
orientam percepções e interferem nos modos como nos apropriamos da
linguagem.

Referências

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l’égalité hommes-femmes entre islamisme et modernisme. Paris : L’Harmattan,
2002.

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brasil/pi-cidade-piloto-do-bolsa-familia-retrata-revolucao-na-vida-de-mulher
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Disponível em: <http://www.ces.uc.pt/lab2004/pdfs/EleonoraCunha.pdf>.
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Coelho e Salgueiro | Desigualdade de gênero em Guaribas-PI...

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Prêmio Freitas Nobre 147


Medium/Forma nas Teorias Alemãs de
Mídias: um exercício em arqueologia
epistêmica1

Marcio Telles da Silveira2


Alexandre Rocha da Silva (orientador)3

Introdução
Para McLuhan (2005), as mídias são um ambiente, tão
imperceptível quanto a água para os peixes – uma tese que o conceito
de redes discursivas de Kittler (1990) segue à risca. Por conseguinte,
aquilo que se configura como um axioma dentro de uma rede, ambiente
ou episteme, pode ser determinado a partir de um a priori tecnológico
ou medial. A filosofia platônica só foi possível com a disseminação
da palavra escrita, pois sua teoria das formas – de que outro mundo
existe além daquele temporal e material percebido através dos sentidos
1. Trabalho inicialmente apresentado no GP Teorias da Comunicação, do XVI Encontro
dos Grupos de Pesquisa em Comunicação, evento componente do XXXIX Congresso
Brasileiro de Ciências da Comunicação.

2. Doutorando em Comunicação e Informação da Universidade Federal do Rio Grande


do Sul. Mestre pela mesma instituição.

3. Alexandre Rocha da Silva é doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade do


Vale do Rio dos Sinos (2003), doutorado-sanduíche em Sémiotique - Centre d Étude de La
Vie Politique Française (2002) e pós-doutorado na Universite de Paris III (Sorbonne-Nou-
velle) (2005-6). Atualmente é pesquisador do CNPq (bolsista produtividade) e professor
do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Informação da Faculdade de Biblio-
teconomia e Comunicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Prêmio Freitas Nobre 148


Silveira e Silva | Medium/Forma nas teorias alemãs de mídias...

humanos – emula a tecnologia chamada alfabeto, da qual Platão foi


uma das primeiras gerações alfabetizadas (DAVIS, 2004). O trabalho
de um “arqueólogo das mídias”, termo relacionado às teorias alemãs
das mídias, é perceber tal relação a priorística, ou seja, aquilo que para
Platão era imperceptível e que ele, portanto, tomava como axiomático:
o alfabeto como fundo de seu pensamento. Será que, por conseguinte,
o trabalho de um “arqueólogo epistêmico” das teorias da comunicação
seria apontar o axioma que jaz no fundo de uma dada teoria e que, por
conseguinte, se constitui em a priori epistêmico?
Se sim, tal axioma seria imperceptível para o conjunto de
autores estudados. Afinal, na filosofia, um axioma é uma premissa
evidente, “verdadeira” e “indemonstrável” para aqueles que o utilizam,
constituindo-se um elemento basilar teórico. Esse caráter basal torna os
autores cegos para ele, tornando-se espécie de dogma que lhes organiza o
mundo. Por esta razão mesmo, é uma ótima chave de leitura. Ao mesmo
tempo, permite ao epistemólogo juntar autores que compartilham do
mesmo axioma em uma mesma “escola” ou “tradição”, por mais que os
próprios autores neguem filiação.
O conjunto de autores que serão estudados neste artigo,
limitados senão pela nacionalidade, pela língua4, parecem compartilhar
do mesmo axioma: a distinção medium/forma, oriunda da interpretação
germânica de Aristóteles (BASTOS, 2012). Como os autores alemães
partem desta distinção quando falam dos media, e nós brasileiros não,
os conceitos germânicos deságuam deformados no nosso litoral. O
que se entende no Brasil por “teorias de mídias alemãs” (FELINTO,
2011) sofre de um duplo apagamento: primeiro, entendidas qua teorias
alemãs, possuem ainda poucos divulgadores nacionais; segundo, autores
amplamente conhecidos no Brasil e que partem do mesmo axioma são
estudados de forma isolada: casos de N. Luhmann, H.U. Gumbrecht e V.
Flusser.
A recepção dos textos germânicos em nosso meio é feita a partir
das versões inglesas, o que, para diversos comentadores (WINTHROP-
YOUNG, 2011; GEOGHEGAN, 2013; SPRENGER, 2016), coloca

4. Impossível não lembrar de Flusser (2007): o horizonte filosófico confunde-se com o


horizonte linguístico.

Prêmio Freitas Nobre 149


Silveira e Silva | Medium/Forma nas teorias alemãs de mídias...

algumas dificuldades. Primeiro, assim como com a recepção da Escola


de Toronto de McLuhan, a produção de alguns outsiders tornou-se
característica de um tipo de abordagem delimitada por fronteiras
linguística ou geopolítica, vista a partir do olhar estrangeiro. Apesar
da importância do Institut für Kulturwissenschaft, fundado por
Kittler em Berlim no começo do século, e pela formação continuada
de teóricos alemães das mídias, o tipo de abordagem prezada pela
crítica anglófona não é dominante nas universidades alemãs. Segundo,
alguns autores apontam que Kittler, frequentemente citado como o
fundador da abordagem (HORN, 2007; FELINTO, 2011), jamais teria
sido “kittleriano”. Sendo um “perspectivista em sentido nietzcheano”
(SPRENGER, 2016), Kittler não teria se permitido um conjunto fixo de
instrumentos intelectuais, sequer uma orientação teórica fixa. Isto vai
bem por quanto se continue compreendendo os alemães isoladamente,
sem levar em conta as bases epistêmicas comuns – até a Nietzsche, como
se verá – que determinaram as diversas fases do “kittlerianismo”.
Dentro do panorama apresentado, minha proposta é torcer
as teorias germânicas sobre elas mesmas: se uma dada materialidade
(textual) é uma ferramenta heurística que torna presente um medium
até então imperceptível, minha proposta é tratar as teorias germânicas
como sonda exploratória que faz emergir uma epistemologia e um
estado da arte das teorias comunicacionais.

Medium/Forma
O conceito de medium (meio) na germanofonia desenvolve-se
a partir do pensamento aristotélico, onde a atividade da visão requer
o medium ar. “Para Aristóteles há sempre um atributo sensível que
causa um movimento no medium (ar, água ou terra), que por sua vez
produz movimento nos órgãos do sentido. Com isso, os corpos só
são percebidos na medida em que atributos sensíveis movimentam o
medium” (BASTOS, 2012, p.56). Bastos (2012) aponta que esta acepção
foi difundida na filosofia islâmica através de Al-Kindi, Al-Farabi e
Averróis, mas permaneceu desconhecida no Europa até a adaptação à
teologia cristã com São Tomás de Aquino, ou seja, com mais de um
milênio de atraso.

Prêmio Freitas Nobre 150


Silveira e Silva | Medium/Forma nas teorias alemãs de mídias...

Na Teoria da Gestalt desenvolvida sobretudo por Heider no


começo do século passado, o medium se configura enquanto “massa
de elementos reunidos de modo disperso e transigente, sem nenhuma
configuração fixa, mas que adquire uma forma rígida tão logo alguma
força se aplique sobre [ele]” (BASTOS, 2012, p. 57). O atributo específico
daquilo que possa ser um medium é que ele, paradoxalmente, não
possui qualidades específicas. Por isso mesmo é um excelente portador
de inscrições – ou, como Kittler irá chamar mais tarde, um excelente
“sistematizador de notações”.
A distinção medium/forma segue a de fundo/figura, comum
na psicologia das formas gestaltiana. A diferença ente forma e medium,
portanto, é que a primeira é discreta e criada a partir do agenciamento
de elementos frouxamente interligados, enquanto o segundo é o fundo
amorfo ou dis-forme [ungeformt], portanto não autossuficiente, daquela
(BALKE; SCHOLZ, 2010). Enquanto a forma tem bordas definidas, a
medialidade é caracterizada por seus estados de latência e potência. A
pegada na areia gera uma forma, da mesma maneira que a reunião de
alguns indivíduos dentre vários forma a opinião pública (LUHMANN,
2005), e que a reunião do cinema, do Taylorismo, da industrialização
e do colonialismo permitem ao etnógrafo francês Maurice Mauss
desenvolver o conceito de techniques du corps (GEOGHEGAN, 2013).
Essa forma gerada a partir do agenciamento de elementos
heterogêneos – “aparatos, códigos, sistemas simbólicos, formas de
conhecimento, práticas específicas e experiências estéticas” (VOGL,
2007, p.16, tradução minha) – é ilusória e volátil, não sendo mais que
um estado frágil de “entridade” [in-between-ness] ou medialidade. Esta
é sua característica. A medialidade é tanto um momento de mediação,
de atualização, de estruturação, de criação de ordem, de codificação
quanto de ruptura, de separação e de ruído (HORN, 2007). A pegada se
faz a partir da areia e se desfaz nela.
Esta dupla-hélice é bastante evidente no desenvolvimento mais
recente da tradição alemã, o conceito de Kulturtechnik (SIEGERT, 2012,
2013; GEOGHEGAN, 2013), que pode ser traduzido como técnicas
culturais, mas cujas raízes agrícolas traduziriam melhor por “técnicas de
cultivo”. Entendidas enquanto tais, a racionalização e a sistematização

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da lavoura acarreta uma matriz de práticas que estabelece uma lógica


dentro do solo, territorializando-o, e codifica as relações entre homens
e máquinas para o seu cultivo. Procedimentos de cultivo relacionados
à sazonalidade introduzem um sistema semiótico misto que in-
forma uma nova ordem entre coisas, práticas e signos – as chamadas
Kulturtechniken. O resultado são distinções culturais, tanto dentro da
terra territorializada quanto entre terras diferentes (GEOGHEGAN,
2013). No entanto, assim que tem início o processo de “aculturação”,
inicia-se também o de “desculturação”, que desestabiliza os códigos
culturais, apaga signos, desprograma a codificação e, no limite,
desterritorializa o território, fazendo-o passar por novos processos
cultivantes (SIEGERT, 2013).
A visão da distinção medium/forma a partir dos cercamentos
serve para compreender por que, na Systemtheorie, Luhmann define
a medialidade como uma “complexidade organizada” que não
destrói a complexidade, ao contrário a re-produz, simultaneamente
constrangendo aquilo que é possível e tornando visível outras
possibilidades. Nos cercamentos ingleses do século XVIII, a
organização feudal foi constrangida a partir da demarcação de
territórios; ao mesmo tempo, a complexidade da nova configuração
aumentou o campo de possíveis, sendo essencial para o
desenvolvimento do sistema comercial. Logo, “a potencialidade da
medialidade sempre permanece uma exclusão de outros possíveis
que se tornam visíveis apenas na perspectiva de uma forma atual
de produção como uma inclusão de exclusão” (BALKE; SCHOLZ,
2010, p.48, tradução minha). Para os dois autores, isto certamente
se mantém no horizonte kantiano e hegeliano, pois a redução é uma
condição transcendental da geração de formas.
Paradoxalmente, é a medialidade que determina seu próprio
horizonte de indeterminação, ou seja, aquilo sobre o qual ela recorta
uma organização: aí está o que Kittler chamou de Medienapriorismus, o
a priori medial. Apenas com a máquina de escrever é que a linguagem
se torna tanto perceptível quanto também possível enquanto medium
(WELLBERY, 1990), pois, se os media textuais transformaram o
simbólico em código operacional (o alfabeto), com os media tecnológicos

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é o próprio real, contingente e material, que devém código capaz de ser


manipulado (KRAMER, 2006) – isto é demais para Platão!
A medialidade da máquina de escrever libera a escrita do
controle do olho e da consciência, instituindo o espaçamento como pré-
condição da diferenciação (WELLBERY, 1990), de forma que para Kittler
(1990; 1999), a psicofísica, a noção nietzscheana de inscrição moral, a
linguística saussureana, o aparato psíquico freudiano, os instrumentos
de tortura kafkianos e o além-do-homem foucaultiano são todos efeitos
da máquina de escrever. Contudo, não é a medialidade da máquina
de escrever que torna tudo isto possível, mas o desenvolvimento em
conjunto dela ao do filme e do gramofone (KITTLER, 1999), em que
as três tecnologias posicionam-se recursivamente como observadoras
de segunda ordem. É o limite da medialidade que detona o “devir
indeterminável” (BALKE; SCHOLZ, 2010) que opera distinções no
medium, pois, sequer a terra existia enquanto terra antes da cerca...

Formalização
No ato de diferenciação entre medium e forma, o segundo
tanto substancia o primeiro quanto se mantém imperturbável por ele.
Trata-se, então, “de saber como é possível a emergência de um sistema
[...], considerando-se a altíssima improbabilidade de sua articulação,
uma vez que há milhões e milhões de alternativas engendráveis pela
fricção [...]” (GUMBRECTH, 1998, p.147) de elementos heterogêneos
passíveis de articulação e formalização. Na releitura deste problema
por Gumbrecht (1998, 2010), a questão “o que é uma forma?” torna-se
“como é possível que algo não estruturado adquira forma?”.
Diferentemente da individuação – de coisas e de pessoas –,
a mediação é uma espécie de comporta que, limítrofe, diferencia as
bordas da zona de indeterminação (BALKE; SCHOLZ, 2010). Assim,
a forma é uma quantidade de elementos heterogêneos que só se
constitui enquanto qualidade pela relação medium/forma. Para Balke e
Scholz (2010), a forma consistiria de uma formalização “dissociativa e
disfigurativa” do medium, já que, além do processo de territorialização/
desterritorialização acima mencionado, a realização da medialidade
ativamente diferencia entre elementos incluídos e excluídos.

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Siegert (2013) aponta que toda cultura inicia com a introdução


de distinções binárias. As técnicas de cultivo seriam uma tentativa
epistemológica de resolver tais distinções pelo meio, ou seja, pela
medialide. Enquanto o binarismo trabalha com a lógica “ou... ou...”, a
lógica da medialidade é “e... e...”, pois tão importante quanto aquilo que
é incluindo na forma é aquilo que ela exclui (o ruído).
Portas (SIEGERT, 2012, 2013), por exemplo, processam a
distinção entre dentro/fora, não sendo possível restringir a análise a
nenhum dos lados da distinção. A medialidade é a qualidade de lidar
com elementos incluídos e excluídos simultaneamente – o residente e
o visitante no caso da porta. Deste modo, a forma assume a posição de
terceiro que precede ao primeiro e ao segundo, quer dizer, à formalização
da distinção – é o princípio mesmo de uma “teoria negativa dos media”
(MERSCH, 2013).
A distinção medium/forma é projetada sobre a distinção
entre potencialidade (medium) e atualidade (forma). Luhmann vê
o medium como o reino das possibilidades quase infinitas. Balke
e Scholz (2010) chamam tais possíveis de “funções de existência”
garantidoras “que, de uma maioria aberta de conexões possíveis,
apenas certos padrões estruturais sejam escolhidos e realizados”
(p. 42, tradução minha). Luhmann escolhe o sentido [meaning]
como o medium mais geral. Meaning aparece, em Luhmann, sob
dois aspectos: um sentido atualizado (forma) e uma mais-valia
referencial infinita (medium) (BALKE; SCHOLZ, 2010). O exemplo
de Luhmann (2005) dos grãos de areia parece claro quanto a isso:
sendo a forma uma organização de possíveis, há muitos outros
incluídos possíveis excluídos na ação de traçar uma pegada sobre a
areia fofa. Ao mesmo tempo, porém, os outros grãos de areia não são
alternativas de reserva que poderiam vir a ser incluídas na forma,
pois incluí-los a apagaria. Acontece o mesmo com a palavra como
expressão exterior do sentido: a ressignificação apaga o primeiro
significado, estabelecendo uma nova rede semântica, igualmente
transitória. Por exemplo, o significado latino de cultur como cultivo
agrícola, ressignificado em cultura enquanto conjunto de formas
simbólicas que caracterizam eras, nações, sociedades, pessoas, etc.

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Em tal entendimento, as formas são sempre mais assertivas


que o medium, pois, como um medium não tem desenho definido,
ele não oferece resistência à imposição de formas. Os objetos,
porém, só são percebidos em razão da forma (rígida), em constraste
com o meio (flexível): “Os media surgem a partir da união frágil
de elementos superabundantes, como grãos de areia, ar, ou luz,
enquanto a forma é uma seleção invariavelmente temporária”
(BASTOS, 2012, p. 58).

Media
Volta-se ao paradoxismo da forma como simultaneamente
determinante e indeterminante do medium, à questão do
Medienapriorismus. Isto leva alguns interprétes a compreenderem
a abordagem alemã como “anti-ontológica” (HORN, 2007), pois
se negaria a definir a essência dos media. Na interpretação desses
comentadores – e até de alguns autores, como Siegert (1996, 2012,
2013) –, a não-ontologia dos alemães levam-nos a uma definição
pragmática de mídia, ou seja, definido-a ad hoc conforme os usos
práticos e as demandas daquilo que se entende por mídia. Isso
significaria cair na tautologia de que é mídia aquilo que é utilizando
como mídia. Ao contrário, o a priori medial aponta que, para os
alemães, na relação entre a dupla-articulação do medium com o seu
ambiente operacional, o medium é “um fato ontológico cuja segunda
natureza define a condição da cultura” (BASTOS, 2012, p. 62).
Nesse sentido, equivaler o conceito de medium com o de
meio ou de ambiente (ou meio-ambiente), ou enquanto “cultura”,
também é equivocado. Em Kittler, por exemplo, o ponto central
de sua análise é a função discursiva da literatura dentro da rede
cultural da comunicação e da informação, operações dependentes
de tecnologias midiáticas. A rede discursiva não está para o todo da
cultura assim como a máquina de escrever não está para o conceito
pedestre de “mídia”: é a rede discursiva que é o medium cuja máquina
de escrever é uma das formas de expressão. Ou seja, para os alemães,
o conceito de media é sempre bidimensional, de dupla natureza,
composto pela dupla-articulação medium/forma.

Prêmio Freitas Nobre 155


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Daí que o medium é o lado de dentro, interior, da forma: no


cercamento, a cerca (forma) delimita o solo onde é operacionalizada a
heterogeneidade dos componentes (medium). É o mesmo com a teoria
dos sistemas de Luhmann (2005). Kittler (1990), em Aufschreibesysteme
1800/1900, aponta que todo “sistema de notação” ou “rede discursiva”
tem como exterioridade uma tecnologia. Logo, é “a partir do não-sentido
(a dimensão material dos meios) [que] surgem as condições para a
manifestação do sentido” (FELINTO, 2011, p. 241), como já visto acima
em Luhmann. Em toda forma de comunicação mediada, o sentido é o
produto de uma seleção de possíveis: “o objeto de estudo kittleriano,
portanto, não é aquilo que é dito, mas o fato brutal de que é dito, de que
é isto que está inscrito e não qualquer outra coisa” (WELLBERY, 1990,
tradução minha).
Logo, toda medialidade está numa relação íntima e transitiva
com o não-sentido. Isso explica o interesse, aparentemente anacrônico,
de Kittler por Claude Shannon: o ruído, entendido como os possíveis
excluídos, está sempre à espreita para desestabilizar a forma e, portanto,
deve ser controlado. Na teoria de Shannon, as funções informativas são
manipuladas em possibilidades de ocorrência, de presença e ausência, de
sim e não; isto faz com que a contingência do ruído que acompanha toda
a transmissão de informação possa ser constrangida processualmente,
através de mecanismos de realimentação (KRAMER, 2006). Nenhum
medium, portanto, é definido por sua essência, mas pela diferença entre
sentido e não-sentido, entre informação e ruído, que as possibilidades
mediais que o recortam colocam em ação (WELLBERY, 1990): toda
palavra está sempre no limite de devir outra. Daí, também, a importância
da materialidade no pensamento germânico, sobretudo quando
compreendida como forma de expressão do medium (GUMBRECHT,
1998, 2010): toda materialidade, enquanto exterioridade, está sempre
em risco de se tornar obsoleta como expressão de sua interioridade
medial.
O a priori tecnológico-medial não tem, portanto, o caráter
tecnodeterminista apregoado por comentadores, sobretudo norte-
americanos, algo que, no senso comum, é “altamente suspeito, se não
moralmente depravado” (WINTHROP-YOUNG, 2011, p. 14, tradução

Prêmio Freitas Nobre 156


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minha). Ao contrário, o foco na medialidade é por que ela constitui uma


função heurística no pensamento germânico: “um medium não chega
a constituir um objeto de pesquisa, uma vez que objetos como a TV, o
rádio ou o jornal não configuram um medium, mas uma modulação a
partir da qual a manifestação de formas pode ser observada” (BASTOS,
2012, p. 58). E isso é verdade até para Gumbrecht, frequentemente lido
como limitado à expressão material de um medium (por ex. SILVEIRA,
2010).
No cenário alemão, o conceito de media, portanto, não faz
referência a objetos concretos, mas “é empregado como um dispositivo
teórico que permite incluir diferentes fenômenos artísticos e discursivos
dentro de um mesmo programa de pesquisa” (BASTOS, 2012, p. 63). É
por isso que ele é retomado, nas décadas de 1970 e 1980, por teóricos
de fora dos estudos de comunicação, como exemplificam as carreiras de
Kittler e Gumbrecht, ambos doutores em Letras.

5.Corporalidade
Para os alemães, o corpo, e não a mente (ou a subjetividade), é o
local no qual as formas mediais inscrevem-se: o próprio sistema nervoso
torna o corpo um aparato medial e uma tecnologia elaborada (WELLBERY,
1990). Em Sloterdijk (2000, 2008, 2013), o corpo humano é o medium
sobre o qual ocorre a forma da hominização, o tornar-se humano: estas
antropotécnicas – exercícios físicos, ascetismo, religião, autoajuda –
recortam o que convencionalmente é chamado de sujeito. A subjetividade
é produzida a partir da exterioridade, mas o medium que a produz só é
acessível quando interiorizada. Essa substituição do sujeito pelo corpo
acaba por dispersar, complexificar e historicizar o conceito de subjetividade:
afinal, corpos são múltiplos, possuem camadas e são produtos finitos e
contingentes (WELLBERY, 1990). Daí Kittler (1990) chamar o homem de
sogenannte Mensch, algo como “o tal homem”, pois ele não aparece apenas
como figura do discurso, mas de fato enquanto efeito mídio-tecnológico
para processos de endereçamento e operacionalização (SPRENGER, 2016).
Passa-se da noção de práxis para a de treinamento: a cultura
e, por extensão, a própria humanidade, não passa de um regime pelo
qual passam os corpos. Essa noção “faz explodir o horizonte humanista”

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(SLOTERDIJK, 2000, p. 39), já que o humanismo compreende o humano


como dado de antemão. É através da redução da aleatoridade, do impulso
e do esquecimento, enfim, da domesticação do animal humano, que se
devém homem, no sentido não-biológico da palavra, um sujeito cultural
e historicamente localizado O avô desse pensamento é Nietzsche (2011),
que já apontava o humano como produto da domesticação. Relido a luz
dos desenvolvimentos atuais dos teóricos alemães, o filósofo do século
XIX ressurge como contemporâneo, pois

[Nietzsche] toma como medida os remotos processos milenários


pelos quais, graças a um íntimo entrelaçamento de criação,
domesticação e educação, a produção de seres humanos foi até
agora empreendida – um empreendimento, é verdade, que soube
manter-se em grande parte invisível e que, sob a máscara da
escola, visava ao projeto de domesticação (SLOTERDJIK, 2000,
p. 51).

É na escola, mais precisamente na pedagogia germânica,


que emergem os Kulturtechniken durante os anos 1970s, período
formativo tanto de Gumbrecht quanto de Kittler – que cita o conceito
já em Aufschreibesysteme 1800/1900. A preocupação da pedagogia nesta
época era a ascensão dos novos meios comunicacionais e seus efeitos
na educação (GEOGHEGAN, 2013). Dentro da educação, as técnicas
de cultivo são técnicas do cuidado de si, como Foucault apontava: elas
demandam a articulação de humanos, de práticas e de signos.
São a partir das antropotécnicas que se reinserem, no panorama
intelectual alemão, termos como vida e bios, segundo Geoghegan (2013)
evitados pela academia local devido ao passado nazista. No trabalho
de Krajewski (2013), por exemplo, a análise dos gestos pelos quais os
criados selecionavam e comunicavam as mensagens recebidas aos seus
senhores vitorianos abre as teorias das mídias para a análise bipolítica
e ecológica, assuntos decisivos para o nosso século. Historicamente
localizadas, as técnicas midiáticas produzem formas de vida, ambientes
e relações intraespécies específicas (GEOGHEGAN, 2013).
É por isso que, no paradigma não-hermenêutico
(GUMBRECHT, 1998, 2010; SIEGERT, 2013) proposto pelos alemães,

Prêmio Freitas Nobre 158


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não existem verdades escondidas a serem desentranhadas de dentro


de uma superfície qualquer. Tudo está na superfície, precisamente
porque é a superfície material a eficiência histórica (WELLBERY, 1990).
Eis o grito aflito de Gumbrecht (2007, p. 31) quando se volta para o
esporte: “Queremos desesperadamente que os corpos dos atletas sejam
tudo ‘menos’ os signos para alguma coisa espiritual, ou pelo menos
psicológica ou mental, ou no mínimo dos mínimos sociopolítica”.
Isto não quer dizer, contudo, que a bidimenionalidade da
distinção medium/forma tenha se achatado na unidimensionaldade da
matéria. Tanto a cerca quanto o homem, como exterioridades da terra
e do humano – nota-se que ambos os lados da relação são “materiais”
–, correm sempre a possibilidade de serem reordenados conforme
qualquer dos lados da relação reconfigure seu recorte. O Übermensch
nietzscheano não é a equivalência do homem ao humano, a materialidade
biológica desprovida de qualquer domesticação cultural (o que refaria
o binarismo que Nietzsche demole com esmero), mas a re-abertura das
formas contingentes para o permanente auto-aprimoramento. Há de
se ter, por outras palavras, sempre o cuidado para que o materialismo,
tal qual proposto pelos alemães, não se converta em mero “elogio da
superficialidade” (FLUSSER, 2007, p. 72).

Presença
Segundo Siegert (2013), operações como contar e escrever sempre
pressupõem objetos técnicos capazes de desempenhar e determinar tais
operações. Um ábaco permite cálculos diferentes que os dedos, assim como
o computador distingue-se do ábaco – como demonstrado pelo a priori
medial. Contar, não obstante, precede tanto o computador e o ábaco quanto
os próprios números. Em termos familiares às teorias germânicas dos 1980
e 1990, concerne às técnicas de cultivo dos anos 2010 as leis de seleção,
armazenamento e transmissão que caracterizam um dado sistema de
mediação, incluindo aí as estruturas formais que compõem e constrangem
tais processos (GEOGHEGAN, 2013). Isso compreende tanto a emergência
de um novo sistema simbólico quanto a formalização deste, resultando em
uma ambiguidade insolúvel no alemão: toda técnica cultural (Kulturtechnik)
tende a se tornar uma tecnologia cultural (Kulturtechnik).

Prêmio Freitas Nobre 159


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Daí que formas como os números não são meras condições de


possibilidade para ocorrências, mas também provêm a possibilidade
de tornar presente algo abaixo do limiar perceptivo, transformando tal
evento – a aparição ou presentificação – em um fenômeno sociocultural
significativo (BALKE; SCHOLZ, 2010, p. 40), ou seja, em um
acontecimento. As pessoas contavam antes dos números, assim como
falavam antes da escrita, mas o que as torna conscientes do entorno
é a formalização: logo, são as técnicas que precedem as tecnologias.
Portanto, Siegert (2012, 2013) e Geoghegan (2013) apontam que o a
priori não é tecnológico-medial, mas técnico-prático.
É uma tentativa de responder à pergunta que parece incomodar
gerações de pesquisadores, de Luhmann (2005) a Balke e Scholz (2010),
constatada por Bastos (2012): qual é a força que recorta o medium
para formalizá-lo? O perigo de esquivar-se desta questão era retornar
à “espiritualização do conceito de media” (BALKE; SCHOLZ, 2010, p.
43, tradução minha), pois, assim como o espírito, ele só poderia ser
observado através de sua materialidade, jamais por si. A solução para os
autores que redefinem a teoria germânica das mídias em Kulturtechnik
é que os media podem ser observados

ao reconstruir-se as redes discursivas em que o real, o imaginário


e o simbólico é armazenado, transmitido e processado. [...] Isto
é dizer: os media não emergem independentemente e fora de
práticas históricas específicas. Ao mesmo tempo, a história é um
sistema de sentido que opera através do abismo tecnológico-medial
de não-sentido que deve permanecer escondido (SIEGERT, 2013,
p.52, tradução e grifo meus).

Isto, evidente, reconfigura o conceito de medium mais uma vez.


Os media são os sistemas de formalização que estabelecem as regras para
presenças específicas (BALKE; SCHOLZ, 2010). É por isso que Gumbrecht
(2010, p. 51) retorna à transubstanciação cristã para explicar o seu conceito
de presença: diz ele que o pão é a “forma” que torna perceptível a “presença”
do corpo de Cristo; assim como o alfabeto torna Platão perceptível a um
mundo das formas; os números tornam-nos perceptíveis à aritmética; e a
máquina de escrever, à rede discursiva 1900.

Prêmio Freitas Nobre 160


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Os media tornam as formas “legíveis, visíveis, perceptíveis e audíveis”,


mas, assim fazendo, tendem a apagar-se, “fazendo-se imperceptíveis
e ‘anestésicas’” (VOGL, 2007, p.16, tradução minha). É por isso que o
peixe não enxerga a água e nós só percebemos as mudanças no ambiente
empreendidas por uma forma tecnológica como a eletricidade quando
uma nova forma se atualiza (McLUHAN, 2005). Mais grave ainda, para
Kittler – e, de certo modo, também para Flusser (cf. 2007) – os media
digitais são propositalmente e “fundamentalmente projetados para
minar a percepção sensória” (2013, p. 221, tradução minha).

Considerações finais
Não se pode evitar uma sensação de vertigem ao ler os teóricos
alemães, com seus objetos que desafiariam qualquer taxonomista
borgiano. Para eles, são objetos do media studies: os usuais suspeitos
como imprensa, cinema, TV, rádio, computadores; suspeitos menos
usuais como máquinas de escrever, fonógrafos e lanternas mágicas;
esquemas de notação, sejam hieroglíficos, fonéticos ou alfanuméricos; o
teatro, a literatura, o rock americano e a propaganda nazista; formas de
organização, como arquivos e calendários; instituições sociais como o
sistema político e o sistema jurídico; instrumentos como quadro negros,
pianos, portas e telescópios; tecnologias como a eletricidade; técnicas
de hominização, como a bipedalidade e a alfabetização; a natureza,
como grãos de areia, água, luz e ar; e coisas inclassificáveis como aspas,
selos, escalpos, lulas, pessoas jurídicas, fantasmas, mesas mediúnicas,
sonâmbulos, criminosos hipnóticos e criados vitorianos.
A alta filosofia se cruza com objetos do cotidiano: Heidegger e
o futebol em Gumbrecht, Goethe e o seio materno em Kittler, Nietzsche
e a autoajuda em Sloterdjik, Lacan e portas em Siegert. Quando a teoria
encontra-se com a tecnologia, o surrealismo só aumenta: softwares são
abolidos em favor da maquinaria pesada do hardware; um violinista
sem braços do início do século passado relê uma crença new age do
final deste; GPS, radares e sensores sísmicos desmontam o Olimpo.
Em uma recente entrevista, A.R. Galloway apontou que toda
posição teórico-filosófica é centrada naquilo que chamou “dogma-x”,
definido como “[...] qualquer tipo de imagem coerente das coisas. Pode

Prêmio Freitas Nobre 161


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ser experimental ou metodológico, provisório ou total, pequeno ou


grande. [...] O dogma-x é uma afirmação formulada como uma imagem
de mundo” (BERRY; GALLOWAY, 2015, p. 153, tradução minha).
Para Galloway, o dogma-x seria o núcleo duro de onde partiriam as
concepções de mundo – mais ou menos o que chamei de axioma acima.
Até posições fortemente antidogmáticas, como o pós-estruturalismo
possuem um dogma-x, como “não há nada além do texto”. O dogma-x é
invisível para quem está do lado de dentro: é a água do peixe.
Ao longo do artigo, procurei demonstrar que o dogma-x das
teorias alemãs das mídias, naquilo que seus autores compreendem por
“mídia”, é o que chamei de “distinção medium/forma”. É a partir dela
que decorrem os demais conceitos que caracterizam a abordagem:
exterioridade, a priori tecnológico-medial, corporalidade, presença e
técnicas de cultivo (Kulturtechniken).
De certa forma, equivale dizer que um conjunto de teorias,
organizado a partir de seu axioma ou de seu dogma-x, é a técnica de
cultivo de um tipo específico de teórico. A “teoria” aí funciona como
dispositivo (AGAMBEN, 2005; DELEUZE, 2003): toda teoria é uma rede
de elementos heterogêneos; se inscreve em relações de poder; inclui em
si uma episteme que “permite distinguir o que é aceito” (AGAMBEN,
2005, p. 10); e produz uma subjetividade a partir do corpo-a-corpo
com sua materialidade, os textos. A antropotécnica da teoria alemã das
mídias produz um teórico que “é misto de high theory e high tech, Hegel
e Mercedes, Krautrock e bicho-papão” (WINTHROP-YOUNG, 2011,
tradução minha): Kittler, Gumbrecht, Flusser, Luhmann, Pias, Siegert,
Krajewski, Sloterdjik, Vismann, Macho, etc.
Tal dispositivo demonstraria o “sistema de notação e inscrição”
a operar através de uma forma, um conjunto teórico histórica e
espacialmente localizado, capaz de traçar uma rede discursiva de
elementos muito diferentes entre si e que pareceria, à primeira vista,
absurda, desde uma forma material. Talvez, a partir deste entendimento
teórico, poderíamos explicar porque, no Brasil, o baixo apelo das teorias
da comunicação acaba fazendo com que não participemos de “um cenário
que, internacionalmente, se caracteriza por um interesse crescente pelas
abordagens teóricas e por estudos de natureza exploratória” (FELINTO,

Prêmio Freitas Nobre 162


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2011, p. 235). Será que, tal como os meios determinam nossa situação,
são nossas teorias que determinam nossa situação intelectual?

Referências bibliográficas

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O retrato da lenda - fotojornalismo e
mistério no imaginário farroupilha1

Andriolli de Brites da Costa2


Ana Taís Portanova Barros (orientadora)3

Introdução
Durante os últimos anos, temos investigado a cobertura
jornalística de acontecimentos envolvendo mitos e lendas folclóricas
presentes no imaginário popular (COSTA, 2014, 2013, 2012). Tal
cobertura chama atenção, uma vez que o jornalismo hegemônico
tradicional, cujo modo de produção é filiado a uma visão moderna de
mundo, mobiliza preceitos como o empirismo factual e a verificação que,
a princípio, são insuficientes para dar conta das dimensões imateriais
do saber local. Percebemos entretanto que existem determinados
fatores que, vez ou outra, abrem espaço dentro desse território para
manifestações de um universo inefável e sensível. Elementos que
permitem às notícias de mito e lenda serem como são (COSTA, 2014).
1. Trabalho inicialmente apresentado no GP Folkcomunicação, do XVI Encontro dos
Grupos de Pesquisa em Comunicação, evento componente do XXXIX Congresso
Brasileiro de Ciências da Comunicação.

2. Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Informação da


UFRGS. Mestre em Jornalismo pela UFSC. Bolsista Capes.

3. Ana Taís Martins Portanova BARROS é pós-doutora em Filosofia da Imagem pela


Université Jean Moulin - Lyon/3 (2013). Professora da pós-graduação em Comunicação
e Informação e da graduação em Comunicação Social da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul.

Prêmio Freitas Nobre 166


Costa e Barros | O retrato da lenda...

Este artigo parte para uma segunda instância desta investigação,


interessando-se por outro aspecto deste campo de atuação: o
fotojornalismo. A partir do momento em que o lendário foi pautado,
como ilustrá-lo? Se a cobertura de mitos e lendas tensiona os limites do
jornalismo empiricista no que diz respeito a sua lógica de verificação
testemunhal, de que modo e de quais recursos o fotógrafo de diário –
imbuído, pois, de especificidades bem distintas das de um profissional de
revista - lança mão para produzir um “retrato” da lenda? Estas são foram
as inquietações que guiaram esta pesquisa. E para tentarmos entender
os nexos que ligam esta fotografia do sensível à estética jornalística,
lançamos os olhos para a série de sete reportagens intitulada Imaginário
Farroupilha, publicada em 2014 pelo jornal gaúcho Zero Hora.
Produzida ao longo de dois meses pelo repórter especial Nilson
Mariano e pelo fotojornalista Carlos Macedo, a reportagem percorreu
o interior do Rio Grande do Sul visitando lugares “misteriosos,
encantados, malditos e assombrados que atiçam a imaginação dos
gaúchos” (MARIANO, 2014a). O resultado foi um material rico
para análise. No ambiente online, sem limitação de espaço como no
jornalismo impresso, algumas matérias incluíam até mesmo galerias
com dezenas de fotografias. O que nos interessa, no entanto, são
os processos e racionalidades que envolveram a escolha por uma
singularidade descritível da lenda que coubesse em um único clique: a
imagem da capa. Um enquadramento4 que deve ser capaz de transmitir
informação – como exige a atividade fotojornalística – mas também a
poética e o mistério pertinentes ao objeto retratado.
A reflexão incitada pelas fotografias e suas reportagens será
mirada à luz da Teoria Geral do Imaginário, vertente antropológica
dos estudos da imagem fundada pelo pensador francês Gilbert Durand
na década de 1960, com suas Estruturas antropológicas do imaginário.
O imaginário, este capital pensado e não-pensado do homo-sapiens
(DURAND, 1997), a tudo perpassa. Direciona lógicas, racionalidades,
práticas sociais e culturais. Esta perspectiva nos permite olhar para além
da imagem técnica e do fenomênico – preso ao presente, ao instante –
4. Enquadramento aqui, serve quase como uma metáfora do termo para a fotografia.
O framing é o viés, a janela através da qual enxergamos os acontecimentos a serem
retratados.

Prêmio Freitas Nobre 167


Costa e Barros | O retrato da lenda...

para buscar num tempo fora do tempo as imagens simbólicas plasmadas


no ato fotográfico. Esta leitura simbólica integra uma metodologia
peculiar aos estudos do imaginário, a Mitodologia, que visa encontrar
na obra cultural as redundâncias do universo mítico, que “repete-se
para melhor impregnar” (ARAÚJO, 2014, p. 29).
Cabe ressaltar que, ainda que a perspectiva nos oriente para
caminhos mais próximos à complexidade do fato folclórico, o conceito
de “mito” é usado de maneira distinta nos estudos do imaginário e nos
estudos folclóricos. No primeiro caso, mitos são grandes narrativas,
metáforas vivas que articulam constelações de imagens (ARAÚJO,
2014). No segundo, muitas vezes o mito é compreendido em lato sensu,
não como narrativa, mas como “sinônimo de figura ou criação mítica”,
como propõe Schaden citado por Queiroz (1987, p. 39). É isto que
permite que se fale de um mito do Saci ou do Curupira. Mito, neste
sentido, seria o personagem, enquanto a lenda seriam seus os episódios
exemplares, as narrativas histórica e geologicamente localizadas onde
estes seres atuam (CASCUDO, 2000, p. 396).
Compreendemos que, ainda que usem a mesma palavra,
os pesquisadores se referem a elementos de grandezas diferentes,
ainda que de mesma natureza. Ou seja: podemos dizer que os mitos
folclóricos operam dentro de mitos diretores percebidos pelos estudos
do imaginário. Este pressuposto nos coloca radicalmente distantes de
outras pesquisas da área, como a de Nair Prata (2009), para quem o
jornalismo operaria na construção social de mitos. Pela perspectiva do
imaginário, o jornalismo não constrói mitos, recorre a eles.
Neste artigo, vamos primeiramente relacionar o jornalismo
e imaginário, apontando os motivos para a recusa do invisível na
modernidade e localizando as discussões sobre fotojornalismo, com
suas aproximações e afastamentos, em relação aos dilemas próprios
do campo jornalístico. A segunda parte reflete sobre as variáveis que
permitem a cobertura do lendário pela imprensa, (re)organizando
ideias inicialmente exploradas numa pesquisa de mestrado anterior
(COSTA, 2013). Na terceira parte, descrevemos as reportagens e suas
fotografias para, enfim, reunir as análises acerca das opções estético-
discursivas do corpus.

Prêmio Freitas Nobre 168


Costa e Barros | O retrato da lenda...

Jornalismo e reminiscências da modernidade iconoclasta


As racionalidades que habitam o jornalismo hegemônico
contemporâneo – aquele produzido pelas grandes empresas e
conglomerados de mídia – estão impregnadas da herança iconoclasta
da modernidade (DURAND, 2008). Sabemos, é claro, que a lógica
produtiva do jornalismo em ambiente virtual, com toda a sua agilidade
e liberdade de difusão, não é a mesma que a do jornalismo impresso de
décadas atrás, quiçá de dois séculos no passado. Entretanto, por mais
que lógicas diferentes de produção se apliquem a diferentes plataformas,
imperativos de eficiência, progresso, distinção binária entre verdadeiro
e falso ainda permeiam os critérios de seleção, elaboração e distribuição
dos materiais noticiosos – buscando informar cada vez mais, “melhor”
e mais rápido.
Tais valores tiveram seu surgimento e consolidação ainda no
contexto da revolução científica. Após o chamado “século das luzes” e as
revoluções industriais na Europa ocidental, o paradigma do progresso
e a racionalidade científica se espalharam por diversas instâncias da
sociedade, das artes à filosofia. Schudson (1978, p. 72) relembra que,
ainda no final do século XIX “muitos jornalistas eram ou treinados em
disciplinas científicas ou compartilhavam uma admiração comum pela
ciência”. Esse racionalismo analítico, filiado ao método cartesiano, se
expande pelo meio acadêmico a ponto de produzir um novo tipo de
senso comum da ciência, que Morin chama de paradigma simplificador
(2011, p. 58-59).
Em busca de nova legitimação, o jornalismo encontrou
na aproximação com o discurso das ciências um horizonte de
possibilidades e desenvolveu sua linguagem inspirada em “gramáticas
comuns” também entre as metodologias de pesquisa do conhecimento
científico (MEDINA, 2008, p. 18). Isto porque o real como objeto de
conhecimento frequenta a oficina das ciências tal qual o faz na oficina
jornalística (MEDINA, 2008, p. 19). Não obstante, ambos os profissionais
“[...] trabalham com a mediação da realidade, alcançada por meio da
apuração e da investigação dos fenômenos” (SPONHOLZ, 2009, p. 20).
Há um rigor peculiar ao método científico que era necessário
ao jornalismo para seu pleno desenvolvimento na potência que viria a

Prêmio Freitas Nobre 169


Costa e Barros | O retrato da lenda...

ser no século XX. Entretanto, também não podemos esquecer os efeitos


colaterais intrínsecos a este processo. Isto pois, ao se aproximar de
gramáticas oriundas das ciências, o jornalismo incorpora suas virtudes
e também seus vícios, sendo o iconoclasmo – a aversão à imagens - um
dos mais evidentes.
Com o cenário do pós-Segunda Guerra na Europa e uma série
de movimentos sociais e descobertas científicas, irrompe no cenário
acadêmico a crise de paradigmas. Gilbert Durand desenvolve os estudos
do imaginário na esperança de revalorizar o estatuto da imagem no
Ocidente. Para Durand, o modo de pensar a Verdade no Ocidente
segue uma herança socrática fundada em uma lógica binária, em que
as coisas são ou falsas, ou verdadeiras (DURAND, 1998, p. 9). Como a
pluralidade das imagens escapa a esse binarismo, a imaginação passa a
ser vista como “mestra do erro e da falsidade” (DURAND, 1998, p. 13).
O lastro desta racionalidade vem dos movimentos iconoclastas ao longo
da história - do catolicismo ortodoxo – em sua recusa a adoração de
ídolos – até a ideologia renascentista e, sobretudo, a ciência moderna –
fazendo com que a importância do imaginário seja marginalizada nos
processos intelectuais em favor de uma lógica racionalista, empirista e
factual (DURAND, 1995, 1997, 1998).
Durand (1995) lembra-nos que é do casamento entre a
factualidade dos empiristas e o rigor iconoclasta do racionalismo clássico
que nasce, no século XIX, o positivismo – de que nossas pedagogias são
ainda tributárias. Esta corrente de pensamento colocava o imaginário, os
mitos, o sensível e o simbólico como estágios primitivos do pensamento.
Como estruturas provisórias e incompletas, que precederiam, por fim,
o pensamento científico (1995, p. 244). Da mesma forma, o jornalismo
guiado pelo leitmotiv da modernidade tem dificuldades para absorver o
imaterial, o sensível e o lendário. Busca a comprovação, a factualidade,
a verificação, daquilo que pertence ao universo do inverificável.

A lenda nas páginas do jornal


Percebemos no jornalismo tradicional esta herança iconoclasta que afasta
o sensível de seus processos. Na atitude de vigilantes da objetividade,
como propõe Gonzaga Motta, os jornalistas evitam o inefável (MOTTA,

Prêmio Freitas Nobre 170


Costa e Barros | O retrato da lenda...

2006, p. 9), reportam-se a fatos concretos, resumem o mundo a cinco


questões suficientemente pungentes5. Isso se evidencia quando a mídia
jornalística se vê obrigada a produzir relatos envolvendo elementos que
fogem a instância do real palpável, como no caso dos mitos e lendas
folclóricos. São as “notícias do fantástico”, como as chama Motta (2006),
que tensionam os enunciados noticiosos aos limites do jornalismo.

Tanto na imprensa escrita quanto na audiovisual é preciso dar a


ver6. Assim, [na cobertura sobre mitos e lendas] a dificuldade de
obter imagens para cobrir as narrações em off na televisão, ou de
fotos para acompanhar a diagramação de uma matéria em um
veículo impresso, leva ao abuso da utilização de trechos de obras
cinematográficas ou ilustrações, o que muitas vezes reforça seu
tom jocoso ou ficcional (COSTA, 2013, p. 29).

No entanto, a construção de narrativas sobre o real, tarefa da


qual se ocupa o jornalismo, “[...] é operação realizada por sujeitos sobre
os quais incidem coerções sociais e pulsões subjetivas” (DE CARLI;
BARROS, 2015, p. 18). Na perspectiva de Durand (1997), o resultado
dessas dinâmicas entre coerções e pulsões não é o recalcamento, como
para Freud, mas a própria formulação de imagens simbólicas. Neste
processo, a comunicação dá materialidade à instância simbólica do
homem, tornando-se veículo do imaginário (BARROS, 2013, 27).
Os mitos e lendas, neste contexto iconoclasta do jornalismo
industrial hegemônico, encontram espaço na mídia geralmente nas
narrativas sobre ficção: são os cadernos de cultura que tratam sobre
as produções literárias, os encartes históricos sobre antigas lendas das
cidades que explicam algum nome de bairro, ou ainda, os artigos de
opinião que se valem do fantástico como metáfora. Existem, entretanto,
válvulas de escape pelos quais mitos e lendas encontram seus caminhos

5. O lead jornalístico tradicional contempla as respostas para “quem”, “o que”, “onde”,


“quando”, “por quê” e “como”.

6. É preciso pontuar que “dar a ver” não significa de pronto uma virtude jornalística, ela
por vezes ocasiona consequências trágicas para os sujeitos relacionados ou perniciosas
para os acontecimentos narrados. Um caso famoso na história do fotojornalismo
brasileiro são as fotografias que José Medeiros fez de um ritual de iniciação das iaôs em
1951 para a Revista Cruzeiro (TACCA, 2009).

Prêmio Freitas Nobre 171


Costa e Barros | O retrato da lenda...

no jornalismo tradicional. Essa fronteira é transpassada devido a


enquadramentos pertinentes à própria lógica da cobertura jornalística
– e os proporemos aquii: A) o insólito, B) a normalização, C) a moldura
erudita, D) o agendamento.
Quando são tomados como fatos, e não como recursos
literários, os mitos e as lendas, em sua grande maioria, ganham as
páginas dos jornais devido ao valor-notícia7 do exotismo. São os
chamados faits-divers, notícias de variedades que chamam atenção pela
característica pitoresca do acontecimento. Motta (2006, p. 10) ressalta
que normalmente estas publicações costumam ser escritas de forma
irônica ou como deboche. É comum também que o veículo recorra a
estudiosos para explicar cientificamente os acontecimentos, esvaziando-
os de suas significações epifânicas (2006, p. 9).
Dar aos fenômenos suas causas, consequências ou apontar suas
contradições e inverossimilhança, é um serviço de informação dada pela
imprensa que, apesar de adicionar mais elementos à análise da situação,
pode acabar desqualificando qualquer transcendência conferida ao
tema por parte daqueles que creem no fenômeno como legítimo. Tal
postura pode conceder ao jornalista um posicionamento que o afasta e
o superioriza em relação ao seu público leitor. Como se, ao ter acesso
a diferentes fontes de informação, o jornalismo teria condições mais
legítimas para explicar os fatos de maneira mais verdadeira do que os
“falatórios populares” da região.
No entanto, é possível também que histórias lendárias estejam
de tal forma imbricadas na cultura de uma região que o jornalismo
não se atreve a contestá-las. O lendário é noticiado pelo valor da
normalização, ao estar imerso em diversas instâncias da sociedade. No
Paraguai, por exemplo, histórias envolvendo um gigantesco tesouro
escondido – protegido por espíritos e destinado apenas aos escolhidos
– são tão comuns que o foco para o tratamento da lenda deixou de ser
o que acontece para enfocar como acontece no lead da notícia (COSTA,
2013, p. 13). Uma vez que a lenda escapa da variável do exotismo, o
acontecimento torna-se noticiável não mais devido ao “absurdo” do

7. Motivos, temáticos ou contextuais, pelos quais algo é tido como relevante o suficiente
para ser noticiado.

Prêmio Freitas Nobre 172


Costa e Barros | O retrato da lenda...

ocorrido, mas pela sua repercussão no universo do concreto. Acidentes,


mortes, invasão e depredação de patrimônio público são ações
engendradas pela mitopráxis, permitindo portanto que a lenda de plata
yvyguy esteja presente em todos os cadernos da imprensa paraguaia a
partir dos mais variados valores-notícia, e não apenas pelo exotismo ou
nos suplementos culturais (COSTA, 2013, p. 80).
Mitos e lendas são parte da chamada literatura oral, um braço
da cultura popular de um povo. E essa relação direta entre o povo e
suas manifestações culturais, em si, pouco interessam ao jornalismo
tradicional. A professora Amparo Tuñón (1990, p 29) percebe como
o predomínio do texto sobre a imagem, da razão sobre a sensação, e
da busca de sentido sobre o noticiável demonstram sinais de respeito à
cultura escrita, formal e factual, associada diretamente à alta cultura. De
maneira semelhante, a jornalista Lena Frias, que foi editora do primeiro
caderno cultural do Brasil, criticou uma perspectiva dominante na
cobertura jornalística brasileira:

Cultura popular, folclore, manifestações populares, tudo isso é


coisa antiga, baixa cultura. Entra na mídia se contar com uma
moldura erudita, se interessar dramaturgicamente, se contar com
o aval de alguma opinião midiática, de alguma personalidade ou
artista (FRIAS, 2004, p. 68).

Apontamos, então, para a “moldura erudita”, a terceira porta de


entrada para mitos e lendas nas páginas do jornal. Podemos verificar esta
lógica em operação ao perceber que o relato jornalístico de uma mulher
que afirma ter sido atacada por um lobisomem8 é norteado pelo valor-
notícia predominante do insólito, com abordagem irônica e distanciada.
Por outro lado, fosse a notícia sobre um documentário sobre a crença em
lobisomens, uma peça de teatro retratando os ataques, livros de causos
ou obras semelhantes, a abordagem seria completamente diferente9.
Uma explicação possível é que os veículos normalmente
recebem releases de editoras, produtoras e distribuidoras, que são
8. Ver Jovem do RS afirma ter sido atacada por ‘lobisomem’ , publicada pelo G1RS em
13/02/2009. Disponível em http://bit.ly/g1lobisomem.

9. Ver Livro com relatos sobre fantasmas e até lobisomem será lançado amanhã, publicada
pelo Campo Grande News em 11/08/2016. Disponível em bit.ly/cgnewslivrolobi.

Prêmio Freitas Nobre 173


Costa e Barros | O retrato da lenda...

publicados com pouca ou nenhuma alteração – transmitindo, portanto,


a mensagem comercial do produto, que é inspirado no universo lendário.
Ou melhor, a partir do momento em que é apropriada pela indústria
cultural, a lenda é fixada em formatos estanques. Abandona, portanto, a
hesitação e a imprecisão, que justamente caracterizam-na no cotidiano
das comunidades, que permite ao imaginário popular transitar, sem
muito rigor, através dos tempos e das constantes atualizações exigidas
pela cultura. O jornalismo precisa resumir o assunto e toma o inefável
como fato, inevitavelmente podando suas arestas e privando-lhe das
incoerências internas próprias dos mitos e lendas.
Por fim, o lendário pode habitar o jornal por um motivo
ainda mais simples: o agendamento. São pautas cuja motivação não é a
ocorrência de um fenômeno, mas uma data comemorativa. No Brasil, o
vasto folclore não perdoou o calendário católico e gregoriano: pelo menos
dois dias ultrapassam as fronteias regionais: 31 de outubro, data que alguns
municípios instituíram como Dia do Saci, e 22 de agosto, o Dia do Folclore.
Justamente por poderem ser planejadas com antecedência, as pautas relativas
a essas datas especiais são momentos em que parecem reportagens mais
aprofundadas, que atravessam o exótico e o irônico e entram na discussão a
respeito de identidade cultural, pertencimento e resgate histórico.
Os estudos folclóricos que se ocupam das narrativas da chamada
literatura oral, a grande diferença entre mitos e lendas está no fato de
que as lendas são necessariamente geolocalizadas. É que o lendário
conserva uma essência permeada pela imaginação e pelo subjetivo,
mas apresenta necessidade de fixação geográfica, de vínculo com algum
episódio histórico ou com parte da biografia de um herói. A lenda pode
ser definida, portanto, como “[...] episódio heroico ou sentimental, com
elemento maravilhoso ou sobre-humano, transmitido e conservado na
tradição oral popular, localizável no espaço e no tempo” (CASCUDO,
2000, p. 328). Ou ainda, uma narrativa imaginária, mas que possui
raízes na realidade objetiva (CARVALHO NETO, 1977, p. 132). Assim,
pela via da historicidade, a lenda encontra modos de ser representada e
contextualizada durante estas datas comemorativas.
No Rio Grande do Sul, este é o caso da Semana Farroupilha. O 20
de setembro, data da entrada do exército Farroupilha em Porto Alegre,

Prêmio Freitas Nobre 174


Costa e Barros | O retrato da lenda...

marca o início da Guerra dos Farrapos em 1835. A insurreição, que foi


a mais longa e uma das mais sangrentas da Regência, envolveu peões e
estancieiros num ideal separatista e republicano que até hoje se sente
vigorar no pensamento político gaúcho10. Motivada principalmente pela
insatisfação da oligarquia rural da região com as tributações sobre o
charque e erva-mate cobradas pelo império, a guerra logo ganhou ares
separatistas dando origem à República Rio-Grandense: um Estado-
Nação não reconhecido pelo governo imperial.
Dada a importância identitária deste episódio para a população
gaúcha11, as comemorações se estendem ao longo de uma semana e
por vezes os eventos duram todo o mês de setembro. Ocorrem diversas
atividades culturais em todo o estado, várias encabeçadas pelos Centros
de Tradição Gaúcha (CTGs). Uma das mais tradicionais é a transformação
do Parque da Harmonia em Porto Alegre no Acampamento Farroupilha,
com direito a casas oficiais de diversos órgãos do governo e da imprensa,
churrasco de fogo de chão, danças típicas e brigas e mortes por lutas de
facas. Estima-se que quase um milhão de pessoas visite o evento por
edição12.
Tamanha movimentação não passa despercebida pela imprensa,
que aproveita a data para retomar elementos tradicionais da identidade
gaúcha. Em 2014, o jornal da maior empresa privada de comunicação
da região Sul, Zero Hora, enviou dois repórteres para seis cidades que
foram palco do conflito há mais de 17 anos, Piratini, Herval, Quaraí,
Santana do Livramento, Alegrete e Rosário do Sul.

Imaginário farroupilha
O repórter Nilson Mariano e o fotógrafo Carlos Macedo são
responsáveis por um especial de sete matérias, publicado entre os dias
10. A Guerra dos Farrapos termina em 1º de março de 1845, já no período do Segundo
Reinado. Suas lideranças maçons e seu brabo “O centro explora o Sul” se fez sentir
nos movimentos liberais de São Paulo e praticamente colou-se à história do Império
(SCHARCZ; STARLING, 2015, p. 261).
11. O hino do estado do Rio Grande do Sul, oficializado em 1933, durante os preparativos
para o “Centenário da Revolução Farroupilha”, é um poema sobre o episódio.
12. Ver Histórico do Acampamento Farroupilha, publicado pela Prefeitura de Porto
Alegre. Disponível em bit.ly/POAFarroupilha.

Prêmio Freitas Nobre 175


Costa e Barros | O retrato da lenda...

13 e 20 de setembro de 2014, na versão online do jornal Zero Hora. São


reportagens multimídia típicas do webjornalismo: possuem texto, séries
de fotografias e, por vezes, vídeos.
O primeiro texto já pontua, como quem pede permissão aos
cânones do jornalismo, a que ameaças esses repórteres estão sujeitos.
“Lugares por onde pisaram tanto farrapos republicanos quanto legalistas
defensores do Império do Brasil irradiam algum tipo de vibração, o qual
induz as pessoas a se sugestionarem com situações que ultrapassam a
fronteira do real” (MARIANO, 2014a). A série de matérias especiais
começa com uma espécie de introdução, da qual faz parte esta explicação.
É um texto típico da escola do jornalismo literário, com vocabulário não
usual e frases bem construídas, que explica o tom da aventura a que a
reportagem convida. Ainda assim, vigilante da ponderação racional e da
objetividade que lhe é imposta, o jornalista alerta: “Cabe esclarecer que
[essas narrativas de aparições, magias, sustos e maldições] são apenas
lendas, nada mais” (MARIANO, 2014a).
O eu lírico desta reportagem, entretanto, não deixa de se render
ao encantamento – nem que seja como estratégia textual: “Quem já
entrou no casarão que pertenceu a Bento Manuel Ribeiro (o general que
combateu por farroupilhas e imperiais, trocando de lado), lá na cidade
do Alegrete, admite: é impossível não sentir um arrepio, por mais
leve que seja, percorrer a espinha”. (MARIANO, 2014a). Por motivos
de espaço disponível neste artigo, apresentaremos a seguir as imagens
seguidas de uma breve explicação de cada uma das lendas retratadas
para logo em seguida trazer uma breve análise de seu conjunto:

Figura1
Lagoa da Corneta
Foto: Carlos Macedo/
Agência RBS, 2014a

Prêmio Freitas Nobre 176


Costa e Barros | O retrato da lenda...

Moradores de Rosário do Sul dizem escutar frequentemente


o toque do clarim de um corneteiro morto durante um confronto na
Guerra dos Farrapos. O fantasma, companheiro, tocaria também para
alertar quando crianças correrem perigo de afogamento.

Figura 2
Antigo Palácio da
República Rio-
Grandense, em Piratini.
Fonte: Carlos Macedo/
Agência RBS, 2014b

Em Piratini, município que abrigou a sede do governo da


República Rio-Grandense na época do confronto, visitantes afirmam
sentir-se acompanhados dentro dos prédios históricos. São barulhos de
botas na retaguarda, batidas à porta, sussurros dos mais variados.

Figura 3
Cidade de Piratini
Fonte: Carlos Macedo/
Agência RBS, 2014c.

Ainda em Piratini, a terceira reportagem faz uma angulação mais


abrangente das lendas que falam sobre os farrapos e que “[...] oscilam
entre a maldição e o encantamento” (MARIANO, 2014c). São narrativas
sobre um padre contrário aos farrapos que rogou uma praga contra a

Prêmio Freitas Nobre 177


Costa e Barros | O retrato da lenda...

prosperidade da cidade, a estátua de um cão que ganha vida à noite, um


demônio que afunda barcos, uma noiva suicida que reaparece na praça.

Figura 4
Cerro do Jarau
Fonte: Carlos Macedo/
Agência RBS, 2014d.

Uma das mais famosas lendas do Rio Grande do Sul conta a


história da Salamanca do Jarau. A história fala sobre o carbúnculo, um
lagarto com cristal na testa escondido numa gruta no Cerro do Jarau,
conjunto montanhoso na fronteira do Brasil com o Uruguai, onde se
localiza o município de Quaraí. À noite, se transformaria numa princesa
moura, por isso o nome da província espanhola de Salamanca. Quem a
encontrasse, ganharia infindáveis tesouros.

Figura 5
Herval
Fonte: Carlos Macedo/
Agência RBS, 2014e.

Em Herval, na fronteira com o Uruguai, existe a lenda de um


cavaleiro fantasma que persegue os que se atrasam para voltar para
casa. Lá está enterrado o corpo do coronel farrapo Verdum. O túmulo

Prêmio Freitas Nobre 178


Costa e Barros | O retrato da lenda...

é até hoje cuidado por uma descendente do imperial que o matou. A


mulher assume que já se aproveitou da lenda para exigir que os filhos
não voltassem muito tarde das festas.

Figura 6
Manoel Paoli nas ruas
de Alegrete
Fonte: Carlos Macedo/
Agência RBS, 2014f.

Somente na penúltima reportagem da série encontramos um


personagem na fotografia principal. Muito embora não seja a fonte
principal da matéria, é o morador que acompanha os jornalistas na visita
ao Centro de Pesquisa e Documentação do Alegrete. Lá encontram
a certidão de óbito do vice-presidente da República Rio-Grandense,
Paulino da Fontoura, assassinado num casarão da cidade.

Figura 7
Cerro do Topador, em
Santana do Livramento
Fonte: Carlos Macedo/
Agência RBS, 2014g.

A última reportagem da série é, talvez, a menos representativa.


Dizem que os moradores dos arredores do Arroio Sarandi, em Santana
do Livramento, escutam frequentemente sons de esporas. Foi nessa

Prêmio Freitas Nobre 179


Costa e Barros | O retrato da lenda...

região que Bento Gonçalves travou duelo com Onofre Pires por
honra, em 1844, após o assassinato do vice-presidente da República no
Alegrete. A série de reportagens da Semana Farroupilha de 2014 encerra
visitando o local da famosa luta, o Cerro do Torpador, hoje parte de
uma propriedade privada rural.

O manto preto e azul do mistério farrapo


Ao não poder representar literalmente qualquer aspecto de
manifestação direta do lendário, o fotojornalista Carlos Macedo tomou
algumas decisões editoriais. Independente das orientações ou reflexões
particulares do profissional, cujos detalhes apenas ele poderia esclarecer,
pudemos identificar alguns padrões de composição, as redundâncias
da leitura simbólica: as fotografias em destaque na série Imaginário
Farroupilha mostram uma regularidade em relação (1) ao recorte do
espaço geográfico, (2) a uma tendência de construção pelo viés da
antítese e (3) ao elemento masculino.
Quando descrevemos lendas, retomamos, necessariamente,
aspectos vinculados a certa região geograficamente localizável. Quando
as lendas viram notícia justamente por sua data comemorativa, sua
característica regional pronuncia-se ainda mais destacadamente. A Semana
Farroupilha é o cenário das lendas locais narradas, e a reverberação deste
acontecimento histórico é parte constitutiva do imaginário da região, o
que justifica a relevância do assunto. É justamente esta característica de
um cenário objetificável, encontrável fisicamente em determinado tempo
e espaço, que abre uma das possibilidades para as opções fotográficas do
especial. Todas as fotos da série de Zero Hora são fotos situadas em lugares
históricos. Num primeiro momento, parecem registros paisagísticos de
zonas rurais e urbanas, mas a reportagem nos situa em um novo lugar
sobreposto ao mesmo que é retratado em 2014. Mesmo a única fotografia
com um personagem em destaque (FIG. 6) dá, em sua legenda original13,
ênfase ao espaço em que o retrato é executado.
O conjunto de fotos, como descrito, utiliza-se a maior parte do
tempo de elementos da natureza, mais pronunciadamente paisagens.

13. “Quando passa pela Rua Vasco Alves, Manoel Paoli do Santos lembra do assassinato
histórico” (MARIANO, 2014e).

Prêmio Freitas Nobre 180


Costa e Barros | O retrato da lenda...

Como opção para acompanharem um texto complicado que integra


um discurso sobre o real (o jornalismo), as fotografias se valem de
imagens da natureza para capturar uma possível abertura de sentido:
a natureza, que é incontrolável, mas precisa ser respeitada; que é cheia
de contrastes, mas ainda assim forte e resistente; que protege e também
ameaça. A fotografia de elementos naturais tem este duplo potencial de
ao mesmo tempo nos deixar olhar para os animais e paisagens e também
nos localizar frente ao mundo, seja geográfica seja antropologicamente.
Os locais retratados nos ajudam a tomar uma perspectiva
ampliada frente à narrativa mais localizada. Quer dizer, enquanto o
texto se vale de relatos pessoais e muitas aspas, para explicar melhor os
contextos de certa história fantástica, a foto não pode fazer o mesmo. Por
isso mesmo, a foto do lendário no jornalismo vai encarnar o olhar do
transeunte, reproduz sua experiência local, como um visitante no cenário
onde se deu a história, um observador da história. A câmera então visita
a lagoa, entra na escola, sobre o cerco, entra no prédio histórico. A parte
visual da reportagem se depara, então, com a necessidade de retratar
um “ausente”, algo que não estava lá. Se prosseguirmos perseverando
no entendimento de que o fotojornalismo, stricto sensu, está de alguma
maneira obrigado a performatizar certa referencialidade, segundo o
valor testemunhal de um acontecimento, certas pautas seriam, então, no
mínimo infotografáveis. Mobilizar a lógica do índice para ler fotografias
que ilustram um texto sobre acontecimentos fantásticos é como pedir
a um cético que elabore um estudo etnográfico sobre bruxaria, como
no trabalho de Fraveet-Saada, quando é possível simplesmente deixar a
“Verdade” escorrer sobre o “real”, e este, pelo “observável” (2005).
Além da escolha das paisagens naturais e urbanas para ilustrar
e ampliar o assunto tratado nos textos, é preciso atentar também para
a forma como esta representação foi elaborada. Somente retratos
burocráticos destes ambientes não impulsionariam com força suficiente
a experiência sugerida pela reportagem. Através de um contra-plongée14,
14. Plongée significa mergulho em francês. Também chamado simplesmente de “câmera
baixa”, é o nome dado no cinema e na fotografia ao enquadramento produzido ao
posicionar-se a câmera abaixo da linha dos olhos, inclinando-a para cima. O plongée
simula a visão que temos da piscina quando saltamos de um alto mergulho. Ao contrário,
o contra-plongée seria a visão do trampolim do ponto de vista da piscina.

Prêmio Freitas Nobre 181


Costa e Barros | O retrato da lenda...

quase todas as fotos da série nos remetem a símbolos ascensionais,


como o céu, a montanha, o sol, a luz – numa rápida associação literal
de termos. Durand (1997) explica que os símbolos são uma forma
de manifestação de esquemas de pensamento, ou seja, neste caso, os
símbolos ascensionais apontariam para a mobilização de valores como
a ampla visão, a correta distinção sobre o certo do errado, o estímulo à
formação da antítese.
Como se pode perceber em fotografias de paisagens, há várias
fotografias em que pudemos apontar a presença de fortes elementos
contraditórios, como jogos de luz e sombra, o dentro e o fora, o perto
e o longe. No entanto, se nos ativermos estritamente ao que está “dado
a ver” nas fotografias, ou seja, seu aspecto visual e literal, estaremos
trabalhando com um método de análise iconológica – e, se alongarmos o
aspecto de estudo das materialidades, iconográfica. Esta leitura depende
daquilo que é possível ver a “olhos nus”, o que é descrito em visualidade,
ou seja, o que é representado em forma ou em contexto – o que não é
nosso objetivo aqui. Esta seria uma perspectiva de análise que atende a
uma mitologia especular, como chamou Barros (2014), um viés que tem
direcionado a maioria dos estudos de fotografia no país.
Estes símbolos ascensionais remetem ao transcendental. Durand
lembra ainda que eles aparecem “[...] marcados pela preocupação da
reconquista de uma potência perdida” (1997, p. 145). Afinal, se há
uma ascensão, deve ter havido uma queda. E a reconquista do tônus
degradado por esta queda pode se traduzir em busca por poder, pureza
ou sublimação da carne. Durand (1997) cita alguns símbolos de ascensão
que permitem ao homem percorrer esse trajeto das imagens: são asas,
escadas, flechas, tudo que possa levá-lo em direção aos céus.
Nesse sentido, é especialmente relevante a fotografia do Cerro
do Jarau (FIG. 4). Dentre as fotografias de destaque, a única que carrega
um tom terroso frente um cabedal de variações de azul celeste. Lá está
uma cordilheira tal qual uma Montanha Sagrada, imagem simbólica
ligada às histórias dos xamãs. Quase não há céu nesta figura, as
montanhas preenchem o horizonte. Toda transcendência acompanha
de métodos de distinção e de purificação. Assim, do mesmo modo
em que vimos que toda subida pressupõe uma queda, os símbolos de

Prêmio Freitas Nobre 182


Costa e Barros | O retrato da lenda...

ascensão sempre buscam a antítese. Algo que, entretanto, representa


bem a peculiaridade da cobertura de mitos e lendas pelo jornalismo é
justamente o tensionamento e a hesitação entre os contrários.
O único céu diferente em destaque é o céu feminino da Teniaguá,
alaranjado, em crepúsculo. O céu que não ilumina e dá luz à ver todos os
meandros da história coincide com a única reportagem que não desgasta
à exaustão a lenda narrada. A presença marcada do céu e a utilização de
angulações contra-plongée nos remetem a uma composição fotográfica
ascensionista. É onipresente no “imaginário farroupilha” da reportagem
a imensidão do céu, que abraça todas as histórias e harmoniza com um
sereno azul mesmo a história mais tétrica desses mistérios relatados.
Na incapacidade de comprovar ou refutar o lendário, o recurso
imagético da fotografia alaranjada do Jarau (FIG. 4) é o crepúsculo, que
é a hesitação entre dia e noite, entre real e mágico, assim recriando a
sensação de mistério. Permanece o mistério do Jarau, o único ambiente
retratado que não obedece, também, à paisagem constante quer dos
pampas, quer das cidades. A paisagem plana, onde o olhar tudo alcança
e desvenda – ainda mais em tantas fotos grande-angulares e contra-
plongée – , é desafiada pelo cerro de montanhas, que esconde e preserva
suas grutas, suas princesa. A princesa, diga-se, a única lenda que não
sussurra, que não se faz presente, antes, se esconde. Frente a tantas
fotografias do pampa sob o azul luminoso, constrastante, e magnânimo,
de um céu sem nuvens15, a abundância de imagens noturnas da lenta
– ou do mito – Teniaguá. Ela é a imagem do contraditório, da mulher
que é terrível e sedutora (BARROS, 2008, p.157-158), maravilhosa e
mortífera, tal qual as lendas – isto mas também aquilo.
O símbolo que, diferente do ascencional, carrega a ideia de uma
fusão, uma confusão, um si que é “ao mesmo tempo” outro. Essa imagem
desafia a luminosidade do saber, materializada pela simbólica ascensional
nas demais fotografias azuis do corpus. O “imaginário farroupilha”, na
maioria das vezes em que é traduzido em imagem fotográfica, parece
também querer fugir desse seu lado mais laranja e menos azul, mais
feminino e menos masculino, mas imagético e menos objetivo.
15. Conta-se que o compositor Atahualpa Yupanqui ouviu um gaúcho falar que o pampa
é o céu ao contrário. Desde então o bordão veio sendo repetido por diversas criações da
cultura regional, inclusive por Jorge Luis Borges.

Prêmio Freitas Nobre 183


Costa e Barros | O retrato da lenda...

Considerações Finais
Pela perspectiva do imaginário, ainda que produzida por
indivíduos que contam com suas próprias referências, histórico e
determinada ingerência, a obra cultural não pode ser vista sem levar
em consideração sua capacidade de catalizar o universo simbólico da
sociedade na qual está inserida. Podemos observar nesta leitura simbólica
algumas práticas recorrentes no contexto de uma série de reportagens –
produzidas por um mesmo fotógrafo, dentro do mesmo eixo temático:
as redundâncias da ascenção, do masculino e das ausências.
Seria um erro, neste momento, propor qualquer tipo de
universalização destas experiências. Ainda assim, as forças que nos
levam para o céu transcendental ou para o íntimo da gruta não são meras
escolhas individuais, mas pulsões no simbólico que nos permitem em
última instância reconhecer no outro a nós mesmos.
Neste mesmo sentido, voltar-se para o folclore e as tradições
é estar atento para os modos de sentir, pensar e agir de um povo. Um
jornalismo que seja capaz de abarcar os fatos folclóricos como elementos
complexos, identitários e constitutivos da sociedade será um jornalismo
que superou as próprias limitações iconoclastas da modernidade.
Enquanto a eficiência e o progresso servirem de direcionamento
para o pensamento, no entanto, o lugar do saber local permanecerá
marginalizado.
Pontua este artigo a necessidade de estudos continuados desta
relação entre jornalismo e imaginário. Buscar o inefável, o sensível e o
invisível num ambiente que tradicionalmente os recusa – tanto na teoria
quanto nas práticas – pode ser o caminho para desnaturalizar processos,
refletir sobre as práticas tão automatizadas pelo ethos profissional, e (re)
encontrar o lugar do jornalismo em suas mais diversas instâncias neste
contexto de crises permanentes e turbulências constantes.

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FIM

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