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Coordenação: Maria Rosa Catullo (Univ. Nacional de La Plata, Argentina) e Ellen Fensterseifer
Woortmann (UnB, Brasil)
∗
Equipe do Inventário Nacional de Referências Culturais – produção de doces tradicionais pelotenses:
Flavia Maria Silva Rieth (Coordenadora), Fábio Vergara Cerqueira, Maria Letícia Mazucchi Ferreira,
Francisca Ferreira Michelon (consultora em imagem), Mario Osorio Magalhães (consultor em história),
Tiago Lemões da Silva e Marília Floôr Kosby.
A realização do INRC - Produção de doces tradicionais pelotenses tem como proponente a Câmara de
Dirigentes Lojistas de Pelotas e conta com a parceria da Secretaria Municipal de Cultura e do Instituto de
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. A Universidade Federal de Pelotas é executora desta
investigação, por intermédio do Laboratório de Ensino e Pesquisa em Antropologia e Arqueologia. O
Inventário é financiado pela Unesco e pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento.
Tal riqueza era investida na cidade, desenvolvendo um estilo de vida
predominantemente urbano, que contrastava com os hábitos gauchescos de uma
sociedade pastoril. Neste contexto, os doces finos, ou doces de bandeja, produzidos
pelas mucamas e sinhás, no interior dos sobrados e casarões, faziam referência ao gosto
pelo convívio social elegante e solene das famílias “de sociedade”. Uma primeira
referência, com respeito à tradição doceira em Pelotas, cita a prática das zeladoras dos
festejos da Irmandade do Santíssimo Sacramento e São Francisco de Paula de
oferecerem bandejas de doces para as comemorações no dia da procissão do padroeiro
no largo da igreja matriz - podendo-se afirmar que este fato ocorria na cidade desde os
anos de 1840.
A referência de Freyre ao nordeste o situa como
“área por excelência do bolo aristocrático, do doce fino, da
sobremesa fidalga tanto quanto – contraditoriamente – do doce e do bolo de
rua, do doce e do bolo de tabuleiro, da rapadura de feira rústica, que o
pobre gosta de saborear com farinha, juntando a sobremesa ao alimento de
substância”(FREYRE, 1997)
1
A palavra “pelotas”, nesta expressão, começa com letra minúscula por referir-se a uma denominação genérica do
bem imaterial inventariado, no caso, tipos de doces produzidos particularmente na região da cidade de Pelotas.
Configuração sugerida pela equipe de pesquisadores do INRC - produção de doces tradicionais pelotenses.
2
Rituais, alimentos, música, arte e tudo o que “possa formar e determinar m elenco substancial de motivos e de
realizações do ser africano no Brasil e do ser afro-brasileiro” (LODY, 2006)
reforçavam essa invisibilidade da cultura afro-brasileira para a tradição doceira da
cidade:
Mas eu acho que o negro não entrou aí com nada. Entrou com o
trabalho de mexer os tachos. Com isso ele entrou, porque as sinhazinhas
andavam sempre bonitonas. Então, quem fazia tudo era a negrada; iam
para a beira dos tachos e dê-lhe a mexer tacho! (CONCEIÇÃO 3).
3
Os nomes atribuídos aos informantes são fictícios.
4
Deusa cultuada nas diferentes religiões afro-brasileiras de culto aos orixás, voduns ou inquices.
5
A expressão “de religião” é utilizada por muitos informantes para identificar as pessoas iniciadas na Nação.
6
“Terreira”, além de ser o nome dado às festas de outra religião, a umbanda, é um termo utilizado pelos informantes
para se referirem aos templos afro-religiosos onde ocorrem os batuques. Na maioria das terreiras visitadas por ocasião
desta pesquisa são realizadas cerimônias referentes aos dois cultos – Umbanda e Nação – porém em condições
temporais e espaciais rigidamente distintas.
Comer e alimentar são ações que mediam qualquer relação entre os orixás e os
homens, o sagrado e o profano. Portanto, conhecer os ingredientes, condimentos, os
modos-de-fazer das frentes e das comidas oferecidas em serviços7 ou como presentes,
bem como dos tabus interditos, é tarefa primordial para que as respostas sejam dadas,
para que os fins sejam alcançados:
“... a gente faz a comida para evocar o orixá, para botar ele a
trabalhar para nós, para fazer um pedido para ele. Na igreja, as pessoas
rezam, rezam, fazem uma oração. A gente, da religião afro, faz um axé8,
bate o sino, para o orixá responder.” (CARMO, iniciada)
7
Serviços são oferendas, elaboradas para que os orixás respondam a pedidos específicos feitos pelos iniciados, ou
encomendados por clientes não iniciados.
8
A palavra axé vem do dialeto iorubá, de origem sudanesa, e significa força, a energia vital que gere o mundo, refere-
se à energia que emana do panteão africano. Toda comida ou presente que se dá para o orixá também é chamado de
axé. É um termo genérico para designar força.
9 Os termos “terreiro” e “terreira” têm o mesmo significado, neste contexto. Utilizo o segundo porque é a
denominação de que se valem meus informantes.
10
SEGALEN, 2002
A realização de entrevistas semi-estruturadas circunscreveu sete sacerdotes, um
tamboreiro e cinco iniciados, sendo as observações participantes desenvolvidas em sete
casas-de-santo diferentes, abarcando cinco batuques.
No batuque, a festa, os doces não se encontram exatamente no salão - onde os
orixás, em seus cavalos11, embalam-se em danças milenares - mas em um lugar bastante
privilegiado: o quarto-de-santo12. A pequena peça fica repleta de oferendas: flores,
frutas e as frentes dos orixás – estas últimas são as comidas prediletas de cada santo,
bem cozidas e caprichosamente preparadas, oferecidas em recipientes adequados, na
frente de suas imagens; fazendo referência à intimidade, ao aconchego do lar, é o
universo socialmente elaborado, permitindo a integração de coisas que estavam
separadas. O axé materializado na comida está sempre presente no quarto-de-santo,
mesmo quando não há festa, é a garantia de zelo constante do pai13 (orixá) pelos seus
filhos. Além das frentes, e em maior número, durante a festa há pudins, bolos, balas e,
finalmente, alguns dos considerados doces tradicionais pelotenses: dentre outros,
bandejas adornadas de ninhos, camafeus, bem-casados, cocadas, quindins, pêssegos e
figos em calda.
Essas festas são abertas ao público, recebendo convidados de outros templos,
com os quais a família-de-santo anfitriã compartilhará desde o salão e as rezas, as
comidas e alguns dos doces dispostos nos aposentos dos orixás. São os batuques as
noites de requintada sociabilidade do povo-de-santo, eventos que coroam toda uma
rotina de devoção e culto constante dos filhos aos seus pais. Segundo um pai-de-santo
entrevistado, a elaboração do quarto-de-santo resume-se da seguinte forma:
Na verdade, o doce é para isso: a gente oferece para o orixá aquilo que a
gente quer também na vida da gente, é harmonia, é paz, é tranqüilidade.
Como a fruta é prosperidade, a flor. Então, fruta, flor e doce é isso:
prosperidade, harmonia, tranqüilidade e fartura. (BATISTA, pai-de-santo)
11
“Cavalo-de-santo” é uma denominação para o iniciado que empresta seu corpo ao transe.
12
Cômodo da casa do sacerdote ou de iniciado pronto para ter seus santos em casa, no qual ficam seus orixás e onde
são dispostas as oferendas. No caso de um iniciado que tem filhos-de-santo, nessa peça também ficam os santos
destes.
13
A pessoa que tem determinado seu orixá anjo-da-guarda através do jogo de búzios, pode-se dizer filho de tal santo.
Ex: “Eu sou filho de Xangô.”
Nos templos de Nação Jeje com Igexá14 o batuque é uma festa em que a fartura,
representada na comida e na beleza do ambiente, deve ser compartilhada – o que não
descarta esse tipo de representação em outras Nações, como a Cabinda, considerada a
mais numerosa em Pelotas. Todos os agrados, tudo que se oferece, se oferece no
sentido de aproximar cada vez mais deus e devoto; e o elemento que faz este papel é a
comida, cozida, feita dos melhores ingredientes, escolhidos com minúcia, picados
delicadamente e dispostos da forma mais agradável possível aos olhos e ao paladar. A
comensalidade vai unir homens, deuses e natureza:
... a festa deles [dos orixás] é compartilhar com o povo. Na verdade, a festa
que a gente faz para os orixás e oferece para o povo, é para os orixás
compartilharem com a gente aquela fartura. O que fica para os orixás é o
axé, aqueles doces que tu viste no quarto de santo são repartidos com o
pessoal da casa. Tu comes a noite inteira. (BATISTA, pai-de-santo)
14
A Nação se divide em “lados” ou “nações”. Conforme Oro, historicamente as mais representativas do Rio Grande
do Sul seriam: Oyó, nagô, Jeje e Igexá – representadas por escravos Sudaneses – e Cabinda, de origem Bantu. Como
em solo brasileiro, nas senzalas, os povos africanos passaram a dividir o mesmo território, o mesmo aconteceu com as
diferenças nos fundamentos de suas crenças. Então, muitos templos se denominam mistos, outros puros – o que
segundo alguns autores é mais uma maneira de marcar a origem de seus fundamentos. Acredita-se que Cabinda seja a
nação predominante em Pelotas.
15
Obrigação é todo o ritual no qual o iniciado dá axé ao orixá dono de sua cabeça, seja através do sangue de animais,
seja através do banho com plantas litúrgicas.
trocas, não só chamam ou evocam os deuses, mas os presenteiam – só oferece doce
quem quer ganhar alegria, felicidade, carinho; só agrada quem quer ser agradado:
...é que dá para dividir as frentes. Tem as frentes para festa e tem a comida.
Quando tu estás só dando comida para o orixá, não tem doce. Agora,
quando tu vais fazer uma frente de presente, uma bandeja de presente, tem
doce... É um agrado. Tu enfeitas, botas tudo o que o orixá gosta. Eu sou do
Oxalá: eu boto cocada, boto coco, boto uva branca, tudo na bandeja. Mas
se eu for fazer só uma frente, é só canjica branca. (SEBASTIÃO, iniciado)
A frente para a obrigação é uma, e a frente para o teu orixá é outra. O doce
é o agrado... Se tem obrigação, se é quatro pés16, vão todas as frentes, mais
simples, básicas. (CRISTÓVÃO, pai-de-santo)
...em algumas casas fazem com compota, se eu fosse fazer, faria com o figo
cristalizado, aquele que vem com açúcar na volta. Porque o açúcar
cristalizado é da Iansã, a mulher do movimento; e o figo é do Ossanha, que
é o dono da erva e da caminhada. (CARMO, iniciada)
16
Festa de “quatro pés” é um batuque realizado quando há a obrigação de corte de animais com quatro patas.
- assumem se repete, mas extrapola o uso da tradição doceira material na sociabilidade
pública entre as famílias-de-santo, pontuando o caráter imaterial desde patrimônio, nas
mais íntimas relações entre deuses e homens, a partir dos significados e valores que
carregam termos como doçura e amargura nos rituais e cerimônias.
Protagoniza o colorido do quarto-de-santo, o quindim, lembrado pela lenda
citada acima, e por muitos informantes, considerado um híbrido das culinárias
luso/africanas em solo brasileiro: combinação da mistura de ovos e açúcar com o coco
ralado, os quindins destacam-se na doçura das oferendas17. Da cor do ouro e feitos de
ovos, são os doces consagrados à Oxum, deusa da gestação, da fertilidade e da riqueza.
Ao ver as fotografias do quarto-de-santo num batuque de aniversário de Xangô e Oxum,
o pai-de-santo da casa afirma:
Então, aquele dia tinha muito doce de Oxum porque, não adianta, o doce é
dela. Todos os orixás têm seus doces, mas ela é que gosta mesmo. O bolo, a
confeitaria, é da Oxum. Não é que os outros não gostem, mas por mais que
tu te esforces, automaticamente, é ela que ganha mais. É natural. Às vezes
tu programas um bolo para cada um, e quando tu vês chega alguém com
outro bolo para Oxum, quindins para ela... É uma coisa natural (Batista)
Esses doces estão aí porque são os nossos doces, são os doces tradicionais
aqui de Pelotas. Se fosse em outro lugar ou outra época, seriam só algumas
papinhas coloridas... Por isso, os mais usados são os doces de frutas.
(ROQUE, pai-de-santo – fonte: diário de campo)
Analisar o uso dessa tradição nos batuques, além de declarar a importância dos
doces na sociabilidade de Pelotas, ultrapassa fronteiras geográficas e temporais quando
desvenda as representações que o povo-de-santo faz, ao transportar para o campo do
17
Segundo Paula Pinto e Silva, em “Farinha, feijão e carne-seca”, a permeabilidade do caráter português, negro e
indígena, pode ser representado também na flexibilidade alimentar: “Nessa mistura de processos e sabores, o exótico
se torna familiar e passa a fazer parte de uma nova tradição. Assim, quem diria, o ‘quindim do reino’, feito com
quinze gemas de ovos e manteiga lavada, ganhou coco, cravo e canela e continuou a chamar-se quindim, mas agora
‘de iaiá’.
18
O termo “reino” refere-se ao grupo de iniciados que se institui numa certa família-de-santo, coordenada por um pai
ou mãe de santo, que por conseqüência tem o orixá dono de sua cabeça como o Pai ou Mãe de seu reino.
sagrado, quindins, camafeus, compotas, doces cristalizados, ninhos, bem casados – e
tantos outros doces pelotenses – contribuindo a partir de elaborações de fim litúrgicos
para a perpetuação e atualização deste patrimônio cultural da cidade de Pelotas. Este
apreço pelo doce como um elemento de integração, de refinamento, que envolve as
ocasiões de comensalidade para os pelotenses, se revela no discurso dos religiosos,
quando estes falam dos momentos sagrados em que compartilham comidas com seus
deuses: “Se tu fores a Porto Alegre, as coisas não são assim, é tudo mais simples. A
gente aqui em Pelotas é que gosta de enfeitar com doce. Quem é que não gosta de
ganhar uma bandeja de doces?... Coisa bem linda é uma bandeja com ninhos!”
(BÁRBARA, mãe-de-santo)
Referências bibliográficas:
FREYRE, Gilberto. Açúcar: uma sociologia do doce, com receitas de doces e bolos
do Nordeste do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
LODY, Raul. O povo do santo: religião, história e cultura dos orixás, voduns,
inquices e caboclos. 2. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2006. (Raízes)