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VII RAM - UFRGS, Porto Alegre, Brasil, 2007 - GT 44 Memória, Identidade e Patrimônio.

Coordenação: Maria Rosa Catullo (Univ. Nacional de La Plata, Argentina) e Ellen Fensterseifer
Woortmann (UnB, Brasil)

“Nós cultuamos todas as doçuras”: a contribuição negra


para a tradição doceira de Pelotas.

Flávia Rieth; Marília Kosby e equipe INRC - doces pelotenses∗


UFPel/RS/Brasil

O Inventário Nacional de Referências Culturais – produção de doces


tradicionais pelotenses, busca integrar Pelotas à geografia do doce no Brasil. Esta
observação nos remete a Gilberto Freyre, que localiza o nordeste brasileiro como sub-
região açucareira - juntamente com o Rio de Janeiro – as quais rivalizam com Pelotas,
no sul riograndense, na tradição dos doces finos.
Pelotas é situada a partir de circunstâncias específicas, como a acumulação de
riquezas que a atividade saladeril propiciava desde meados do século XIX. A cidade
produzia e exportava charque, que servia de alimento para os escravos brasileiros e,
importava, na troca com o nordeste, o açúcar. Conforme Magalhães (2003), registros do
ano de 1876, apontam para as trocas comerciais de grande monta:
“os navios ‘Tampico’ e ‘Leonília’, de bandeiras norte-americana e
brasileira respectivamente, atracaram no porto de Pelotas, levando para o
nordeste grande carregamento de charque e deixando na cidade 1.200
barricas de farinha de trigo e açúcar”(Magalhães, 2003).


Equipe do Inventário Nacional de Referências Culturais – produção de doces tradicionais pelotenses:
Flavia Maria Silva Rieth (Coordenadora), Fábio Vergara Cerqueira, Maria Letícia Mazucchi Ferreira,
Francisca Ferreira Michelon (consultora em imagem), Mario Osorio Magalhães (consultor em história),
Tiago Lemões da Silva e Marília Floôr Kosby.
A realização do INRC - Produção de doces tradicionais pelotenses tem como proponente a Câmara de
Dirigentes Lojistas de Pelotas e conta com a parceria da Secretaria Municipal de Cultura e do Instituto de
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. A Universidade Federal de Pelotas é executora desta
investigação, por intermédio do Laboratório de Ensino e Pesquisa em Antropologia e Arqueologia. O
Inventário é financiado pela Unesco e pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento.
Tal riqueza era investida na cidade, desenvolvendo um estilo de vida
predominantemente urbano, que contrastava com os hábitos gauchescos de uma
sociedade pastoril. Neste contexto, os doces finos, ou doces de bandeja, produzidos
pelas mucamas e sinhás, no interior dos sobrados e casarões, faziam referência ao gosto
pelo convívio social elegante e solene das famílias “de sociedade”. Uma primeira
referência, com respeito à tradição doceira em Pelotas, cita a prática das zeladoras dos
festejos da Irmandade do Santíssimo Sacramento e São Francisco de Paula de
oferecerem bandejas de doces para as comemorações no dia da procissão do padroeiro
no largo da igreja matriz - podendo-se afirmar que este fato ocorria na cidade desde os
anos de 1840.
A referência de Freyre ao nordeste o situa como
“área por excelência do bolo aristocrático, do doce fino, da
sobremesa fidalga tanto quanto – contraditoriamente – do doce e do bolo de
rua, do doce e do bolo de tabuleiro, da rapadura de feira rústica, que o
pobre gosta de saborear com farinha, juntando a sobremesa ao alimento de
substância”(FREYRE, 1997)

Entretanto, registros históricos com relação aos doces de tabuleiro em Pelotas,


são vagos e imprecisos. A hipótese mais provável para essa invisibilidade se assenta nas
próprias circunstâncias que situam Pelotas enquanto “região do doce” – e não “região
do açúcar” – o que mostra o doce como um produto muito caro e restrito às camadas da
sociedade que se beneficiavam das trocas de charque por açúcar, restringindo sua
circulação entre as frações mais populares; incluído-se aqui a população negra
pelotense, que - ao contrário do caso do Nordeste onde as escravas e negras libertas
vendiam os doces nos tabuleiros – não teve acesso à rara matéria-prima dos doces finos,
nem oportunidade de fazer circular para fora dos casarões as caras sobremesas, receitas
dos herdeiros dos portugueses.
Voltando a Magalhães (2004), a Pelotas do século XIX se caracteriza como uma
civilização do sal, que se sustenta pelo “suor do negro, pela punição do escravo, na
faca assassina, na degola do boi, no arroio tinto de sangue, no cheiro de carniça, nas
mantas de carne sob o calor do sol. Uma sociedade escravocrata em que a elite de
emergentes, de novos barões e novos bacharéis, se cercavam de cortesias, amabilidades
e saudações solenes.
Nesta civilização urbana, distinta em cultura e opulência, o sal e o açúcar não
rivalizam. A perpetuação desta tradição doceira da cidade – mesmo com a crise das
charqueadas, em razão da abolição da escravatura e da competição com a carne
frigorificada – deveu-se a três motivos principais: porque os fundadores eram
portugueses ou descendentes destes, trazendo da metrópole o apreço por tal arte,
porque, enriquecidos e com tempo livre, os charqueadores podiam exercitar sua
sociabilidade e, por fim, estes tinham facilidades para importar o açúcar do nordeste
brasileiro, nos mesmos navios que levavam o charque.
Considerando ainda a tradição dos doces de frutas, ou coloniais, também sob a
rubrica doce de pelotas1, observa-se a mesma invisibilidade com relação à contribuição
da etnia negra.
A safra das charqueadas era curta, o trabalho se realizava de novembro a abril.
No período da entressafra, os escravos eram deslocados para as chácaras, localizadas na
Serra dos Tapes, no interior do município, para produzir renda extra no cultivo de
milho, feijão, batata, abóbora, etc.
Após a abolição estas propriedades são vendidas ou arrendadas pelos
charqueadores e transformadas em lotes rurais. Daí se originam as várias colônias que
compõem a região rural do município, as quais receberam imigrantes franceses,
alemães, pomeranos e italianos, a quem se vincula a origem dos doces de passas e
compotas de frutas.
Pensar quais contribuições das diversas etnias que compõem o mapa étnico da
tradição dos doces de pelotas, neste estudo, significa buscar analisar a dimensão das
matrizes culturais que constituem, diversificam e atualizam essa tradição - seja nas
singulares técnicas culinárias, no uso de certos ingredientes ou ainda nos diferentes
significados que atribuem a comida. Portanto, tratar de etnia, aqui, é debruçar-se sobre
relações de afirmação de identidade calcadas na diversidade cultural, identificação de
crenças e visões de mundo que fazem com que o sujeito sinta-se membro de uma
comunidade simbólica, que não é igual a outra.
Neste sentido, a pergunta sobre a contribuição negra – de sujeitos que partilham,
adaptam e reinventam o patrimônio cultural afro-brasileiro2 - para a tradição doceira de
Pelotas se impõem no percurso de entrevistas e investigações para o INRC – produção
de doces tradicionais pelotenses, recebendo respostas instigantemente repetitivas, que

1
A palavra “pelotas”, nesta expressão, começa com letra minúscula por referir-se a uma denominação genérica do
bem imaterial inventariado, no caso, tipos de doces produzidos particularmente na região da cidade de Pelotas.
Configuração sugerida pela equipe de pesquisadores do INRC - produção de doces tradicionais pelotenses.
2
Rituais, alimentos, música, arte e tudo o que “possa formar e determinar m elenco substancial de motivos e de
realizações do ser africano no Brasil e do ser afro-brasileiro” (LODY, 2006)
reforçavam essa invisibilidade da cultura afro-brasileira para a tradição doceira da
cidade:
Mas eu acho que o negro não entrou aí com nada. Entrou com o
trabalho de mexer os tachos. Com isso ele entrou, porque as sinhazinhas
andavam sempre bonitonas. Então, quem fazia tudo era a negrada; iam
para a beira dos tachos e dê-lhe a mexer tacho! (CONCEIÇÃO 3).

O mesmo ambiente que as obras historiográficas se ocupam em analisar, é o


ambiente aos quais as doceiras e pessoas envolvidas com a produção e tradição dos
doces de pelotas, quando indagadas sobre a contribuição negra nessa cultura, se
reportavam imediatamente. Suas narrativas contextualizavam-se com os tempos das
charqueadas e dos escravos, dos casarões e suas festas, versavam sobre o cotidiano das
cozinhas das sinhás, em que se retratava o exercício do trabalho escravo.
Informações que se restringiam ao serviço de “mexer os tachos” repetiram-se
muitas vezes, o que ocasionou a necessidade de se indagar sobre a contribuição dos
negros para os próprios sujeitos a quem nos referíamos. Já na primeira intervenção,
apresentaram-se novas perspectivas para a investigação. A interlocutora, uma mãe-de-
santo, cuidou de apontá-las:
“Conta a lenda que uma escrava desejava muito engravidar e não
conseguia, então prometeu a Oxum4 que lhe daria uma quantia de cem
quindins caso tivesse um filho... Mas só sabe contar essa história o negro
que é de religião” (MIGUELINA).

A partir deste relato, o terreno das investigações transportou-se para o universo


dos negros de religião5, esfera dos rituais e das crenças afro-brasileiras, dos pais-de-
santo e suas numerosas famílias, circuito de sociabilidade pontuado, entre outros, pelos
batuques das terreiras6 de Nação. Este último termo é uma denominação utilizada pelos
interlocutores deste estudo para se referirem ao Batuque, religião de culto aos orixás,
praticada pelos africanos e seus descendentes, que se instalaram no Rio Grande do Sul
como escravos - conjunto de crenças e rituais no qual alimento e comida são elementos
litúrgicos fundamentais, o que se afirma no dizer de que o “bom batuqueiro se faz na
cozinha”. Porque desconhecer as receitas dos ebós (comidas-oferendas) pode significar
arrumar quizila, arranjar briga, ofender os deuses.

3
Os nomes atribuídos aos informantes são fictícios.
4
Deusa cultuada nas diferentes religiões afro-brasileiras de culto aos orixás, voduns ou inquices.
5
A expressão “de religião” é utilizada por muitos informantes para identificar as pessoas iniciadas na Nação.
6
“Terreira”, além de ser o nome dado às festas de outra religião, a umbanda, é um termo utilizado pelos informantes
para se referirem aos templos afro-religiosos onde ocorrem os batuques. Na maioria das terreiras visitadas por ocasião
desta pesquisa são realizadas cerimônias referentes aos dois cultos – Umbanda e Nação – porém em condições
temporais e espaciais rigidamente distintas.
Comer e alimentar são ações que mediam qualquer relação entre os orixás e os
homens, o sagrado e o profano. Portanto, conhecer os ingredientes, condimentos, os
modos-de-fazer das frentes e das comidas oferecidas em serviços7 ou como presentes,
bem como dos tabus interditos, é tarefa primordial para que as respostas sejam dadas,
para que os fins sejam alcançados:
“... a gente faz a comida para evocar o orixá, para botar ele a
trabalhar para nós, para fazer um pedido para ele. Na igreja, as pessoas
rezam, rezam, fazem uma oração. A gente, da religião afro, faz um axé8,
bate o sino, para o orixá responder.” (CARMO, iniciada)

Portanto, ao tratar de doces, foco principal desta pesquisa – o povo-de-santo


contribui para a inscrição do alimento, do sabor e do comer, no campo das
representações daquilo que é sagrado. Por isso se apresentam os “negros de religião”
como sujeitos investigados neste estudo. Porque, historicamente, as terreiras tentam
manter e dinamizar o rico conjunto de expressões, idiomas, hierarquias, gastronomia,
dança, música, enfim, os mais diversos tipos de manifestações artísticas, políticas e
religiosas da cultura africana. No entanto, as cosmovisões fundadas na cultura africana
devem recebem um olhar relativizado, devido às incorporações de signos advindos de
matizes culturais diferentes, sejam cores, sabores, ou divindades: “...a história confere
aos terreiros9 uma espécie de autoridade criativa que remete à memória remota
africana e, ao mesmo tempo, constrói uma memória próxima, afro-brasileira.” (LODY,
2006)
Buscando repertoriar os significados daquilo que representaria a comida, e mais
especificamente os doces, para o povo-de-santo, a observação de campo abrange o
âmbito dos rituais, sejam cerimônias de iniciação, festas e demais ritos de obrigação
religiosa. Por situarem as coisas sagradas e profanas em âmbitos específicos, como já
afirmou Durkheim10, os rituais religiosos mostram-se como momentos cruciais para a
apreensão das representações coletivas presentes nas crenças e incrustadas por estas
condutas regulamentadas, ou seja, permitem ver como determinado grupo estabelece as
regras de comportamento frente aos elementos sagrados, sua natureza e relação com o
profano.

7
Serviços são oferendas, elaboradas para que os orixás respondam a pedidos específicos feitos pelos iniciados, ou
encomendados por clientes não iniciados.
8
A palavra axé vem do dialeto iorubá, de origem sudanesa, e significa força, a energia vital que gere o mundo, refere-
se à energia que emana do panteão africano. Toda comida ou presente que se dá para o orixá também é chamado de
axé. É um termo genérico para designar força.
9 Os termos “terreiro” e “terreira” têm o mesmo significado, neste contexto. Utilizo o segundo porque é a
denominação de que se valem meus informantes.
10
SEGALEN, 2002
A realização de entrevistas semi-estruturadas circunscreveu sete sacerdotes, um
tamboreiro e cinco iniciados, sendo as observações participantes desenvolvidas em sete
casas-de-santo diferentes, abarcando cinco batuques.
No batuque, a festa, os doces não se encontram exatamente no salão - onde os
orixás, em seus cavalos11, embalam-se em danças milenares - mas em um lugar bastante
privilegiado: o quarto-de-santo12. A pequena peça fica repleta de oferendas: flores,
frutas e as frentes dos orixás – estas últimas são as comidas prediletas de cada santo,
bem cozidas e caprichosamente preparadas, oferecidas em recipientes adequados, na
frente de suas imagens; fazendo referência à intimidade, ao aconchego do lar, é o
universo socialmente elaborado, permitindo a integração de coisas que estavam
separadas. O axé materializado na comida está sempre presente no quarto-de-santo,
mesmo quando não há festa, é a garantia de zelo constante do pai13 (orixá) pelos seus
filhos. Além das frentes, e em maior número, durante a festa há pudins, bolos, balas e,
finalmente, alguns dos considerados doces tradicionais pelotenses: dentre outros,
bandejas adornadas de ninhos, camafeus, bem-casados, cocadas, quindins, pêssegos e
figos em calda.
Essas festas são abertas ao público, recebendo convidados de outros templos,
com os quais a família-de-santo anfitriã compartilhará desde o salão e as rezas, as
comidas e alguns dos doces dispostos nos aposentos dos orixás. São os batuques as
noites de requintada sociabilidade do povo-de-santo, eventos que coroam toda uma
rotina de devoção e culto constante dos filhos aos seus pais. Segundo um pai-de-santo
entrevistado, a elaboração do quarto-de-santo resume-se da seguinte forma:

Na verdade, o doce é para isso: a gente oferece para o orixá aquilo que a
gente quer também na vida da gente, é harmonia, é paz, é tranqüilidade.
Como a fruta é prosperidade, a flor. Então, fruta, flor e doce é isso:
prosperidade, harmonia, tranqüilidade e fartura. (BATISTA, pai-de-santo)

11
“Cavalo-de-santo” é uma denominação para o iniciado que empresta seu corpo ao transe.
12
Cômodo da casa do sacerdote ou de iniciado pronto para ter seus santos em casa, no qual ficam seus orixás e onde
são dispostas as oferendas. No caso de um iniciado que tem filhos-de-santo, nessa peça também ficam os santos
destes.
13
A pessoa que tem determinado seu orixá anjo-da-guarda através do jogo de búzios, pode-se dizer filho de tal santo.
Ex: “Eu sou filho de Xangô.”
Nos templos de Nação Jeje com Igexá14 o batuque é uma festa em que a fartura,
representada na comida e na beleza do ambiente, deve ser compartilhada – o que não
descarta esse tipo de representação em outras Nações, como a Cabinda, considerada a
mais numerosa em Pelotas. Todos os agrados, tudo que se oferece, se oferece no
sentido de aproximar cada vez mais deus e devoto; e o elemento que faz este papel é a
comida, cozida, feita dos melhores ingredientes, escolhidos com minúcia, picados
delicadamente e dispostos da forma mais agradável possível aos olhos e ao paladar. A
comensalidade vai unir homens, deuses e natureza:

... a festa deles [dos orixás] é compartilhar com o povo. Na verdade, a festa
que a gente faz para os orixás e oferece para o povo, é para os orixás
compartilharem com a gente aquela fartura. O que fica para os orixás é o
axé, aqueles doces que tu viste no quarto de santo são repartidos com o
pessoal da casa. Tu comes a noite inteira. (BATISTA, pai-de-santo)

A reciprocidade é um princípio sempre presente no discurso dos sacerdotes: tudo


que se oferece representa o que se quer em retribuição. Os doces, junto com as frutas,
neste caso, ultrapassam o sentido do alimento enquanto fonte de energia, não se quer
mais apenas a presença do deus, mas agradá-lo, acarinhá-lo. Ultrapassam as conotações
sugeridas pelas comidas e pelo sangue, trazem intrínsecas categorias de classificação
mais complexas:
Todo ritual que nós fizermos, seja no dia do corte ou no dia do toque,
sempre tem flor, fruta e doce. Não na mesma quantidade. Aqui na minha
casa, desde uma obrigação pequena até uma obrigação maior, sempre tem
que ter pelo menos um galhinho de flor, umas frutinhas e nem que seja um
bolo ou uma compota, um axé doce – porque é prosperidade, é alegria e é
fartura, é doçura. Não interessa o tamanho da obrigação15. (BATISTA,
pai-de-santo)

Os doces, então, estariam em um patamar de civilidade ainda maior, porque


“são um agrado a mais, são um presente”, agregam em seu significado todas as
características associadas à harmonia, à sociabilidade, ao prazer de estar junto e de
comer junto; transpõem o caráter natural porque respondem a acordos de comunhão e

14
A Nação se divide em “lados” ou “nações”. Conforme Oro, historicamente as mais representativas do Rio Grande
do Sul seriam: Oyó, nagô, Jeje e Igexá – representadas por escravos Sudaneses – e Cabinda, de origem Bantu. Como
em solo brasileiro, nas senzalas, os povos africanos passaram a dividir o mesmo território, o mesmo aconteceu com as
diferenças nos fundamentos de suas crenças. Então, muitos templos se denominam mistos, outros puros – o que
segundo alguns autores é mais uma maneira de marcar a origem de seus fundamentos. Acredita-se que Cabinda seja a
nação predominante em Pelotas.
15
Obrigação é todo o ritual no qual o iniciado dá axé ao orixá dono de sua cabeça, seja através do sangue de animais,
seja através do banho com plantas litúrgicas.
trocas, não só chamam ou evocam os deuses, mas os presenteiam – só oferece doce
quem quer ganhar alegria, felicidade, carinho; só agrada quem quer ser agradado:
...é que dá para dividir as frentes. Tem as frentes para festa e tem a comida.
Quando tu estás só dando comida para o orixá, não tem doce. Agora,
quando tu vais fazer uma frente de presente, uma bandeja de presente, tem
doce... É um agrado. Tu enfeitas, botas tudo o que o orixá gosta. Eu sou do
Oxalá: eu boto cocada, boto coco, boto uva branca, tudo na bandeja. Mas
se eu for fazer só uma frente, é só canjica branca. (SEBASTIÃO, iniciado)

A frente para a obrigação é uma, e a frente para o teu orixá é outra. O doce
é o agrado... Se tem obrigação, se é quatro pés16, vão todas as frentes, mais
simples, básicas. (CRISTÓVÃO, pai-de-santo)

Reforçando essa especificidade das oferendas de alimento ou comida, os


batuques sofrerem uma diferenciação quanto ao que se dá aos deuses: há a festa de
“quatro pés”, os quais ocorrem quando há a obrigação de corte de animais de quatro
patas, onde as oferendas são as carnes destes e não se encontram doces no quarto-de-
santo, em seguida o “batuque dos peixes” (nos quais são oferecidas apenas carnes
destes animais de sangue frio), e por último, no dia de encerramento das obrigações, o
“batuque de terminação”, também chamado de “batuque dos doces”. Além destes, há
também a chamada “quinzena dos doces”, batuques realizados sem que tenham sido
feitos cortes de animais. Quando há toque de aniversário para algum orixá, ou quando se
faz algum serviço, os doces também predominam entre as oferendas:
Geralmente, nos fins dos batuques se dá [os doces] – é a quinzena dos
doces, como se diz. A princípio saem os salgados, as carnes de galinha,
carne de cabrito; se tem, carne de carneiro; se tem, carne de porco, que é
do Odé, quer dizer que é o princípio do batuque. O amalá também: dá o
amalá no prato, conforme as condições das pessoas, e dá o amalá na
gamela. (BÁRBARA, mãe-de-santo)

O quindim é para muita coisa, para dinheiro, para engravidar. É para a


doçura do corpo... O doce de figo é para Ossanha. Se tu queres fazer para
dinheiro, fazes uma bandeja de pipoca - com um pouquinho de miãmiã, se
tem, se não tem, vai só a pipoca mesmo... Podes levar num verde, na ponta
de um cruzeiro para ele trazer dinheiro.. Tem que ser doce... (BÁRBARA,
mãe-de-santo)

...em algumas casas fazem com compota, se eu fosse fazer, faria com o figo
cristalizado, aquele que vem com açúcar na volta. Porque o açúcar
cristalizado é da Iansã, a mulher do movimento; e o figo é do Ossanha, que
é o dono da erva e da caminhada. (CARMO, iniciada)

As bandejas de doces finos que representavam o requinte dos saraus e banquetes


na opulência de Pelotas, ainda hoje, carregam este significado. Na cosmovisão
batuqueira este significado de requinte que os doces – tanto de bandeja, quanto coloniais

16
Festa de “quatro pés” é um batuque realizado quando há a obrigação de corte de animais com quatro patas.
- assumem se repete, mas extrapola o uso da tradição doceira material na sociabilidade
pública entre as famílias-de-santo, pontuando o caráter imaterial desde patrimônio, nas
mais íntimas relações entre deuses e homens, a partir dos significados e valores que
carregam termos como doçura e amargura nos rituais e cerimônias.
Protagoniza o colorido do quarto-de-santo, o quindim, lembrado pela lenda
citada acima, e por muitos informantes, considerado um híbrido das culinárias
luso/africanas em solo brasileiro: combinação da mistura de ovos e açúcar com o coco
ralado, os quindins destacam-se na doçura das oferendas17. Da cor do ouro e feitos de
ovos, são os doces consagrados à Oxum, deusa da gestação, da fertilidade e da riqueza.
Ao ver as fotografias do quarto-de-santo num batuque de aniversário de Xangô e Oxum,
o pai-de-santo da casa afirma:

Então, aquele dia tinha muito doce de Oxum porque, não adianta, o doce é
dela. Todos os orixás têm seus doces, mas ela é que gosta mesmo. O bolo, a
confeitaria, é da Oxum. Não é que os outros não gostem, mas por mais que
tu te esforces, automaticamente, é ela que ganha mais. É natural. Às vezes
tu programas um bolo para cada um, e quando tu vês chega alguém com
outro bolo para Oxum, quindins para ela... É uma coisa natural (Batista)

Na ocasião de não haver uma doceira na família-de-santo – pois geralmente


“todo reino tem uma doceira”18 - que se encarregue de coordenar a preparação dos
doces, na própria cozinha da casa-de-santo, eles são comprados no comércio local. O
que, em se tratando da cidade de Pelotas, pode explicar a grande variedade de confeitos
encontradas nas oferendas, inclusive os considerados doces tradicionais pelotenses:

Quando a encomenda de quindins é muito grande a gente já sabe que é para


religião. (Doceira não iniciada na Nação. Fonte: diário de campo)

Esses doces estão aí porque são os nossos doces, são os doces tradicionais
aqui de Pelotas. Se fosse em outro lugar ou outra época, seriam só algumas
papinhas coloridas... Por isso, os mais usados são os doces de frutas.
(ROQUE, pai-de-santo – fonte: diário de campo)

Analisar o uso dessa tradição nos batuques, além de declarar a importância dos
doces na sociabilidade de Pelotas, ultrapassa fronteiras geográficas e temporais quando
desvenda as representações que o povo-de-santo faz, ao transportar para o campo do
17
Segundo Paula Pinto e Silva, em “Farinha, feijão e carne-seca”, a permeabilidade do caráter português, negro e
indígena, pode ser representado também na flexibilidade alimentar: “Nessa mistura de processos e sabores, o exótico
se torna familiar e passa a fazer parte de uma nova tradição. Assim, quem diria, o ‘quindim do reino’, feito com
quinze gemas de ovos e manteiga lavada, ganhou coco, cravo e canela e continuou a chamar-se quindim, mas agora
‘de iaiá’.
18
O termo “reino” refere-se ao grupo de iniciados que se institui numa certa família-de-santo, coordenada por um pai
ou mãe de santo, que por conseqüência tem o orixá dono de sua cabeça como o Pai ou Mãe de seu reino.
sagrado, quindins, camafeus, compotas, doces cristalizados, ninhos, bem casados – e
tantos outros doces pelotenses – contribuindo a partir de elaborações de fim litúrgicos
para a perpetuação e atualização deste patrimônio cultural da cidade de Pelotas. Este
apreço pelo doce como um elemento de integração, de refinamento, que envolve as
ocasiões de comensalidade para os pelotenses, se revela no discurso dos religiosos,
quando estes falam dos momentos sagrados em que compartilham comidas com seus
deuses: “Se tu fores a Porto Alegre, as coisas não são assim, é tudo mais simples. A
gente aqui em Pelotas é que gosta de enfeitar com doce. Quem é que não gosta de
ganhar uma bandeja de doces?... Coisa bem linda é uma bandeja com ninhos!”
(BÁRBARA, mãe-de-santo)

Referências bibliográficas:

FREYRE, Gilberto. Açúcar: uma sociologia do doce, com receitas de doces e bolos
do Nordeste do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

LODY, Raul. O povo do santo: religião, história e cultura dos orixás, voduns,
inquices e caboclos. 2. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2006. (Raízes)

MAGALHÃES, Mario Osório. Opulência e cultura na província de São Pedro do


Rio grande do Sul: Um estudo sobre a história de Pelotas (1860-1890). Pelotas:
Editora da UFPel, 1993.

_________________________ Pelotas, capital nacional do doce. In: Diário Popular,


2004.

_________________________ Charque por açúcar. In: Diário Popular, 2003.

PINTO E SILVA, Paula. Farinha, feijão e carne-seca: Um tripé culinário no Brasil


colonial. Ed. Senac: São Paulo, 2005.

SEGALEN, Martine. Ritos e rituais contemporâneos. Rio de Janeiro: Editora FGV,


2002.

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