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VOL.

3 | nº 3 Apoio: Realização:
Abril de 2019
Suplemento Gratuito
ISSN 2596-1373
FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA

04 06 07
João Dummar Neto
presidência

André Avelino de Azevedo


direção administrativo-financeira

Raymundo Netto
ARTIGO FLORES DE AÇUCENA CHAPULETADAS
gestão de projetos
O Sertão de Marica Lessa O marujo que mexeu Jarid Arraes
Emanuela Fernandes
e Dona Guidinha do Poço na abóbora da Ribinha e as fraturas do cordel análise de projetos
Bruno Paulino Audifax Rios contemporâneo
Gisa Carvalho
MARACAJÁ
Um livro a ser
descoberto* Raymundo Netto
curadoria, pesquisa e edição geral
Alfredo Monte
(in memoriam) Emanuela Fernandes
assistência editorial

Bruno Paulino, Gisa Carvalho, Alfredo Monte,

11 12 15
Daniel Dias, Sarah Diva Ipiranga, Alexandre
Henrique e Raymundo Netto colaboraram
nesta edição com textos, cartuns e quadrinhos
(exceto os da seção “Radiadora”)

Audifax Rios (in memoriam)


ilustrações
GENTE ILUSTRADA CRISTALEIRA RADIADORA
Amaurício Cortez
Daniel Dias Jáder de Carvalho Sânzio de Azevedo editor de design
entre a presença Lucirene Façanha
e a ausência Giselle Fernandes
Rejane Nascimento projeto gráfico e editoração eletrônica
Sarah Diva Ipiranga
Cupertino Freitas Karlson Gracie
tipografia Maracajá
Almir Mota

24
revistamaracaja@gmail.com
Talles Azigon
contato
Rita Brígido
Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução
Raisa Christina sem autorização prévia e escrita. Todas as
Magna Maricelle informações e opiniões são de responsabilidade dos
respectivos autores, não refletindo a opinião deste
TIRAGOSTOS Fabricio Saldanha suplemento ou de seus editores.
Alexandre Henrique Luana Braga
Este suplemento literário mensal é parte integrante
Raymundo Netto Valdemar Neto Terceiro do Programa Fortaleza Criativa, em decorrência
do Termo de Fomento celebrado entre a Fundação
Artista da capa José Jackson
Demócrito Rocha e a Secretaria Municipal da Cultura
Coelho Sampaio
Audifax Rios de Fortaleza, sob o nº 05/2018.
(in memoriam) Alan Mendonça
ISSN 2596-1373

Todos os direitos desta edição reservados à:

Para ler todas as edições da revista Maracajá


e assistir a todas as suas videoentrevistas, acesse:

fdr.org.br/maracaja
Fundação Demócrito Rocha
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Do Alpendre

Maracajá não precisa de vocês


Maracajá, em 7 de abril de 1929

Olhe, menino, você não deve comprar esta


revista. Compre o seu chocolate e vá ao
cinema berrar seu entusiasmo pelo cowboy.

Abril é um mês de comemoração, mas também de saudade.


Olhe, menina (sei lá quantos anos você
Foi em abril, num dia 17 (1946), que fez pouso nesse plano o santanense (de
tem...), você não deve comprar esta revista.
Compre o seu ruge, o seu carmim – faça do
Marco) Audifax Rios. Também em abril, em 25 (2015), a onça caetana o arrastou para

rosto duas papoulas e dos lábios anêmicos – outra morada.


com que você desperta o coração sangrento Quem o conheceu e/ou conheceu a sua vasta e múltipla obra (crônicas, roman-
que ri para toda gente fútil da cidade. ces, pesquisas, pinturas, gravuras, cenários, almanaques e revistas, ilustrações e DE
UM TUDO mais), sabe o tamanho da lacuna que esse sempre jovem, inquieto e cria-
Olhe, coronel, você não deve comprar esta
tivo artista, no vigor dos seus 69 anos, nos deixou.
revista. Você não entenderá nada do que
Pessoa simples, tímido demais, a contrastar de suas camisas berrante-coloridas,
ela contém e ficará arrependido dos níqueis
desfilava entre rostos de apáticos a admirados, carregando sua bolsa de couro com
que arrancou da bolsa. Guarde o seu dinhei-
sua marca pirografada imitando ferro de marcar boi, não dispensando uma boa con-
ro para o champanhe da francesinha.
versa, falando baixinho das gaiatices da vida, da literatura de todo mundo – lia que
Olhe, almofadinha, você não deve comprar era um danado – e contando causos e histórias dos bares de Fortaleza, cheio de ideias
esta revista para fingir que sabe ler e que é e disponibilidades.
rapaz de espírito. Guarde seu dinheiro para É em homenagem a essa saudade inapagável e raramente coletiva desse nosso
as prestações do alfaiate. “tipo inesquecível”, que a Maracajá de Demócrito nos traz uma edição AUDIFAX
RIOS especial, reverenciando a imortalidade daqueles que não morrem mesmo, pois
Olhe, garoto, você não apregoe Maracajá.
Água, conselho e Maracajá só devemos dar
que o talento não deixa. Daí, o convidamos para ilustrar essa edição, e ele, como de

a quem chama a gente a um canto e pede costume e sem cangapés, nos disse “Eu faço é na hora!”
baixinho.
Raymundo Netto
Olhem, vocês todos, fiquem certos que Ma-
Curador e editor de Maracajá
racajá é um gato selvagem de boas garras e
Último cabrito a ser entronizado por Audifax
basta-lhe o mato para viver.
na Galeria Caprina do Clube do Bode (nº 225),
Antônio Garrido (Demócrito Rocha) Ata nº 690, Livro de Atas nº 38, em 11 de abril de 2015.

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Artigo

O Sertão
de Marica Lessa e
Dona Guidinha do Poço
“O sertão é o homizio. Quem lhe rompe as trilhas, ao divisar à beira da muitos anos na fazenda “Canafístula” – palco principal da tra-
estrada a cruz sobre a cova do assassinado não indaga do crime, tira gédia – no tempo de Damião Carneiro, o bandeirante do sertão,
o chapéu e passa.” como o definiu Armando Falcão em livreto escrito sobre o fazen-
 (Euclides da Cunha, Os Sertões) deiro.  Quando o vovô trabalhou por lá, anos 50 do século XX, a
história de Marica Lessa, antiga dona daquelas terras, ainda esta-
va fresca na memória de muita gente que morava por ali. Ele aca-
uando era criança, meu avô Luís bou guardando muitas delas, e eu tive a sorte de ouvi-lo contar.
Paulino foi quem primeiro me Hoje quase ninguém se lembra dessas histórias na região.
contou sobre “a história da mu- Da casa grande de Marica não resta mais uma parede
lher que mandou matar o mari- sequer em pé, porém, é possível encontrar muitas porcela-
do”, como ficaria conhecida no nas nos escombros, o que demonstra quão rica de fato, ela era.
imaginário dos rincões de Quixeramobim a tragédia greco- Da velha “Canafístula” resta apenas a capelinha da Sagrada
sertaneja ocorrida em 1853, envolvendo a matriarca e eter- Família (Jesus, Maria e José), onde ainda se reza missa pelo
na personagem do sertão Maria Francisca de Paula Lessa, a menos uma vez no mês.
Marica Lessa, e seu marido o cel. Victor de Abreu Vasconcelos. Uma história que meu avô contava era que quando Marica
O coronel fora assassinado em seu lar, pelo escravo Lessa foi presa na fazenda, após preso Corumbé e ele acusá-la
Corumbé, supostamente a mando da esposa. O vô Luís trabalhou de mandante do crime, vinha ela escoltada para a vila por um

4
Artigo
enorme cortejo de homens e, na altura e da consulta dos documentos cartoriais lembro de o vovô me garantir como
de uns seis quilômetros da “Canafístula”, do caso, e resolveu escrever o romance, verdade absoluta. 
ela mandou que parassem numa casa e que só veio a ser publicado na íntegra Outro fato relevante: Marica Lessa
pediu que o morador, seu agregado, pas- em 1952, através do esforço da crítica é a madrinha de batismo de Antônio
sasse um café, que logo ela viria, após re- literária Lúcia Miguel-Pereira, que re- Vicente Mendes Maciel, o “Antônio
solver um mal-entendido, para tomarem cebeu um original das mãos do escritor Conselheiro”. Muitos historiadores
esse café juntos. Porém, Marica Lessa Américo Facó, que, por sua vez, o havia sustentam que, quando ela foi presa,
nunca mais voltaria à sua “Canafístula”. recebido de Antônio Sales .  1
Antônio teria testemunhado todos esses
Proprietária de uma imensidão de O historiador Ismael Pordeus, acontecimentos e que, certamente, aque-
terras e de grandes rebanhos de gado, natural de Quixeramobim, publicou las cenas deram-lhe um entendimento
além de teres e haveres de ouro e prata, em 1961 o festejado estudo  À margem de como funcionava a Justiça, afinal,
a matriarca sertaneja despertou a inve- de Dona Guidinha do Poço: história ro- muitos creem que Marica foi vítima de
ja de seus inimigos e a cobiça de alguns manceada, história documentada,  em uma intriga política.  Ismael Pordeus afir-
membros da Justiça. Ao ser acusada que comprova que a ficção de Oliveira ma ainda no seu estudo que o “crime” de
do crime, Marica, uma mulher rica e Paiva teria sido inspirada no caso real Marica Lessa teve como pena 20 anos de
mandona numa sociedade patriarcal de Marica Lessa. Desse modo, os nomes reclusão, mas segundo Gustavo Barroso
do século XIX, ficou à mercê de seus Marica Lessa e Guidinha do Poço são ela ficou muito mais tempo presa, resul-
desafetos. Aos poucos, foi se desfazendo hoje indissociáveis na memória social tando morrer na miséria, aos 85 anos, nas
dos seus bens, vendidos a preço de de Quixeramobim, num entrelaça- ruas de Fortaleza, como uma “semilouca”,
banana para cobrir as despesas com o mento perfeito entre ficção e história, a bradar reiteradamente: “Deus é teste-
processo do qual nunca pôde se livrar. embora não esqueçamos o alerta do munha que não mandei matar ninguém!”
Depois que o vô Luís me contou a escritor Milan Kundera: “o romance não
história da mulher que mandou matar tem compromisso com a realidade”. Bruno Paulino é escritor, professor
o marido, fiquei curioso para saber mais Nesse sentido, outra lenda que e pesquisador, autor de A Menina da
sobre o assunto. Logo passei a pergun- muito se divulgou e que ainda hoje en- Chuva, Pequenos Assombros, Sertão:
tar aos adultos sobre aquela história. contra eco foi que Marica Lessa teria poetas e prosadores, entre outros.
Descobri que tinha se escrito um livro mandado construir – destinando a bruno_enxadrista@hotmail.com
sobre a trama, mas naquela idade não maior parte dos seus recursos – o pré-
atinei para ler o afamado romance dio de Câmara e Cadeia, e que teria sido
Dona Guidinha do Poço, do escritor ce- ela a primeira prisioneira do recinto. Dona Guidinha do Poço, de
arense Oliveira Paiva (1861-1892). Só Esse fato é refutado por quase todos Oliveira Paiva, pode ser encon-
depois, já na faculdade é que o li.  os historiadores que consultei, mas me trada facilmente na internet
Em 1889, atacado pela crise da tu- 1 Nota do Editor: Antônio Sales havia entre- em editoras diversas e em sebos
berculose e em busca de um clima que gado uma cópia dos originais para Lopes Fi- virtuais. Não deixe de ler essa
lho, seu confrade na Padaria Espiritual, que
lhe fosse mais aprazível, Oliveira Paiva a perdeu. Outra cópia havia sido entregue a obra. LER TAMBÉM do autor
José Veríssimo, que não chegou a publicá-la
pousou em Quixeramobim. Foi aí que por conta da falência da Revista Brasileira, A Afilhada, publicada original-
teve contato com a trágica história de ainda nos anos de 1940. Felizmente, mais mente em folhetim em 1889.
tarde, Lúcia Miguel-Pereira encontrou essa
Marica Lessa, por meio da tradição oral cópia com Américo Facó.

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Flores de Açucena

O marujo que mexeu


na abóbora da Ribinha
Não pergunte pelo louro em Icó e nem fale de muriçoca em Sobral,
se quiser se dar bem. E em Natal, peça tudo para acompanhar a sa-
borosa carne de sol – macaxeira, manteiga da terra, cebola verme-
lha, farinha d’água – menos jerimum.
Maria do Ribamar era de Caiçara do Rio dos Ventos, ali en-
costada à Cachoeira do Sapo, no sertão do Cabogi, no vizinho esta-
do do Rio Grande do Norte. A coisa por lá andava também preta, a
família mudou-se para estas bandas de cá, onde o pai vislumbrava
um meio de vida melhor para sustentá-la. Caiu na construção civil,
a mulher lavava roupa nas mansões da Aldeota e os filhos ficaram
jogados num barraco espremido no vão das dunas mortas do Morro
de Santa Terezinha.
De tanto olhar para o Farol Velho, fascinada por um não sei
o quê, a Ribinha desceu definitivamente e sentou praça no “Sereno
da Madrugada”, um cabaré malafamado, enfestado de marginais e
marujos vindos d’além-mar.
Anos de infortúnio passados, um dia, o farol piscou uma luz ala-
ranjada, como há muito não ousava brilhar. Aportara um cargueiro
da Holanda assim de marujos ruivos, cabelos cor do brilho do farol, a
barba roxa afogueada.
Um deles gamou pela Ribinha e quis demonstrar sua gratidão,
além dos euros, com um presente singular: uma camisa da seleção
do tempo do carrossel holandês, dizia até que era a do Cruyjf.
O marujo arrastava um pouco do português, saldo de inúme-
ras viagens a estes brasís, e, ao dar o presente, fez alusão à cor da
camisa, não laranja, mas, sim, abóbora. Pra quê! A Ribinha ficou
possessa, mandou o Popeye lá socar a camisa no seu baú mais inde-
vassável, que comedor de jerimum era a mãe, e um bocado mais de
desaforos que o gringo fogoió jamais irá traduzir.

Extraído de O Riso, a Fé e a Dor, vol. 1, Edições Livro Técnico,


Fortaleza, Ceará, 2002.

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Chapuletadas

Jarid Arraes
e as fraturas
do cordel
contemporâneo
cordel cearense está mudando. Aliás, todo o uni-
verso do cordel está em transformação constante,
a despeito da vontade de muitos daqueles que in-
sistem em situar a poesia tradicional em um passa-
do supervalorizado e conservador. Mas as mulhe-
res estão enfrentando essas situações e fraturando as definições de cordel situadas
no passado. E Jarid Arraes está na vanguarda desse movimento.
Falar sobre a poesia de Jarid aciona em mim muitos afetos. Demorei a conhe-
cê-la pessoalmente, ainda que os trabalhos de seu pai e de seu avô eu já conhecesse
há cerca de 10 anos, quando comecei a estudar sobre a poesia de cordel. Na segun-
da metade do mestrado, não sei exatamente de que modo, mas tive acesso às suas
produções. Desconfio que tenha sido a partir das redes sociais de seu pai, Hamurabi
Batista, que mediava meus contatos com Abraão – pai de Hamurabi, avô de Jarid –
poeta cujas produções eu estudava na época.

7
Chapuletadas

narrativas sobre as vidas de Antonieta em suas composições. Discussões sobre


Está inserida em um contexto
combativo, militante. Parte de
uma reconstrução das memórias,
lançando luz ao que estava deixado
no plano do esquecimento
de Barros, Aqualtune, Carolina Maria de gênero, sobre sexualidade, sobre corpo,
Jesus, Dandara dos Palmares, Esperança peso, cabelos, autoaceitação são trazidas
Garcia, Eva Maria do Bonsucesso, em seus folhetos de uma forma didática
Laudelina de Campos, Luísa Mahin, e lúdica, e isso significa transformação.
Maria Felipa, Maria Firmina dos Reis, O que Jarid traz para o cordel são
Mariana Crioula, Na Agontimé, Tereza quebras de tabus, tanto nas temáticas
de Benguela, Tia Ciata e Zacimba Gaba. quanto na própria definição do “que é
A proposta de Jarid é quase que cordel”? Um questionamento cujas res-
uma meta-historiografia. Está inserida postas passam pela forma, pela estrutu-
em um contexto combativo, militante. ra, pelos suportes, pelas temáticas. Cuja
Parte de uma reconstrução das memó- história aponta para uma ampla diver-
rias, lançando luz ao que estava deixado sidade de “origens”. Mas essas definições
no plano do esquecimento. Salete Maria, todas terminam por serem muito mais
Fanka Santos, Dalinha Catunda, Arlene excludentes do que agregadoras.
Holanda, a recém-conhecida por mim Ser mulher, poeta, cordelista e
Auritha Tabajara, Bastinha... todas tam- falar sobre feminismo e questões ra-
bém trazem, aos seus modos, a política, ciais, desafiar a institucionalidade que
a resistência, a militância em sua poesia. tenta definir o cordel a partir do conhe-
A marca poética de Jarid está si- cimento de um pequeno grupo de ho-
tuada no feminismo negro. Ela conta mens compõem a desestabilização que
que sempre teve muita dificuldade em Jarid traz a um universo que muitos
conhecer histórias de mulheres e, prin- pretendem congelar. Mais do que fe-
cipalmente, sobre mulheres negras. Por char um conceito para o cordel, a poe-
isso, se dedica a pesquisar e conhecer sia de Jarid ajuda a pensá-lo em dimen-
essas mulheres de forma a contribuir sões simbólicas, culturais, históricas e,
com a visibilidade dos trabalhos delas e sobretudo, política.
de tantas outras que ainda devem estar A existência do cordel é um ato
escondidas, mas que iremos encontrá-las. político.
A poesia de Jarid é potente. É resis-
Jarid publicou em 2017 um livro tência, é questionamento. É rompimen- Gisa Carvalho
de cordéis, Heroínas Negras Brasileiras to. É a saída dos lugares-comuns do que Jornalista e doutora em Comunicação
em 15 cordéis, que somou-se aos seus se pretende – institucionalmente – que a pela Universidade Federal de Minas
mais de 60 títulos de folhetos. O livro poesia de cordel seja. Ela é o próprio con- Gerais (UFMG). Pesquisa poesia de cor-
Heroínas... conta as histórias de mu- ceito de tradição, que depende de reno- del desde 2009 e tem interesse nas ma-
lheres, que foram escolhidas a partir vações para que permaneça. Assim, ela nifestações e performances contempo-
de uma série de cordéis sobre heroínas usa redes sociais, recursos digitais e uma râneas dessa prática. 
negras que a autora já produzia. São série de elementos contemporâneos mgisacarvalho@gmail.com

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Chapuletadas
Um livro
a ser
descoberto*
esmo não levando em conta o res-
tante da sua prolífica obra, Nilto
Maciel (1945-2014) teria lugar garan-
tido na melhor literatura brasileira
com Os Guerreiros de Monte-Mor.
Transcorrendo na virada do século XVIII para o XIX, até os tu-
multuosos anos da Independência e as décadas do Império, é incrível
como o autor cearense não parece fazer qualquer esforço para apre-
sentar uma narrativa “histórica”. E ainda assim, com seus tipos huma-
nos bizarros, exagerados, Os Guerreiros de Monte-Mor nos transporta
convincentemente para uma época arcaica, ainda marcada pela
“longa duração”: as quatro gerações do clã Cardoso, através dos seus
“varões assinalados”: Antônio, João, Pedro (este, na verdade, destoará
nessa continuidade) e José.
O que os une é a utopia separatista: parcialmente descenden-
tes de um povo indígena (Jenipapo), o sonho é expulsar os portugue-
ses e recriar uma grande nação nativa.  Encantando-se com todos os
movimentos revoltosos (desde a Inconfidência até a Confederação
do Equador), desconfiados do proclamado Império, cada geração se
propõe a efetivar a justa rebelião. Antônio estagnará numa existên-
cia pacata (com seu hobby de idear armas estrambóticas) e Pedro
também optará pela rotina de colono conformado (mais tarde, será
malvisto como um “espião” dentro da família). Já João (cujas peram-
bulações e ziguezagues ideológicos da juventude acompanhamos
com mais detalhe) e o neto José, mais exaltados, se conluiam a certa

9
Chapuletadas

altura, com o acréscimo de um escudeiro, Chicó, índio velho E em meio a todas essas extravagâncias e esturdices, daque-
da etnia Xocó e Sancho Pança desses quixotes sertanejos, para les que foram sendo deixados para trás no processo político na-
mirabolar a estratégia da invasão da Vila de Monte-Mor (na cional, uma linguagem de admirável precisão (além de deliciosa).
serra de Baturité, no Ceará) e proclamar a nova nação. É um mundo Ariano Suassuna coado no filtro
Lastimavelmente, nas suas reuniões conspiratórias, não machadiano. Nada falta, nada sobra.
chegam a um acordo sobre o nome a adotar do nascedouro
país, nem sequer a hierarquia entre eles, e mesmo de que Alfredo Monte (1964-2018)
forma comunicarão ao mundo essa sacudida geopolítica. Crítico literário e doutor em Teoria Literária e Literatura
A principal arma na invasão da vila: morcegos adestra- Comparada (USP)
dos por Chicó, e este aproveita essa circunstância para, num
inesperado golpe de estado, reivindicar a chefia da empreita- (*) Resenha publicada originalmente em A Tribuna, de Santos,
da, justamente quando ela é levada a cabo. em 6 de maio de 2014.

Portanto, o cômico (chegando ao ridículo) e o patético se


unem na caracterização do trio visionário, conforme seu pro-
jeto utópico vai se tornando mais obsessivo. Para saber mais sobre Nilto Maciel:
Mas o que faz de Os guerreiros de Monte-Mor um grande e Nilto Maciel (perfil biográfico) da Coleção Terra Bárbara,
inesperado romance, além da maneira sinuosa, mas firme, com por Raymundo Netto (EDR)
que incorpora os acontecimentos políticos daquelas décadas livrariadummar.com.br
em que o país passou de colônia a Império (usando a técnica Para adquirir Os Guerreiros de Monte-Mor, de Nilto
do “ouviu dizer”, do que foi contado e aumentado), é o fato de Maciel (Armazém da Cultura)
que os personagens não se limitam a caricaturas. Das relações armazemdacultura.com.br
familiares tensas até o compartilhamento belicoso da loucura
revolucionária, o trio sempre parece muito verossímil para o
leitor. Inclusive pelas suas contradições: João quer instaurar
uma grande nação indígena, mas seu vocabulário e imaginário
estão repletos do cancioneiro e dos mitos importados (não há
a mais leve alusão a nenhum elemento da cultura pré-homem
europeu): “De conversa  em conversa, compreendeu João a ne-
cessidade de criação de um exército, antes de iniciar a guerra
nativista, a maior guerra desde o começo do mundo. Coisa para
ficar nos livros, nunca ser esquecida.”

10
Gente Ilustrada

Daniel Dias

Ilustrador e artista gráfico.


Nasceu em Fortaleza - CE, no
ano de 1976. A maior parte da
sua produção é destinada ao pú-
blico infantil e infantojuvenil.
Seu trabalho tem como base a
pesquisa de materiais e estilos,
envolvendo estudo de técnicas
tradicionais de pintura, dese-
nho, fotografia e colorização di-
gital. Atualmente, trabalha em
projetos editoriais de fomento à
leitura e de acesso ao livro.
A ilustração “A conversa dos jo-
vens com os clássicos” integra o
livro do Programa Círculos de
Leitura: a arte do encontro, do
Instituto Fernand Braudel de
Economia Mundial (2018).

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Foto: Arquivo Nirez
Cristaleira

Cristaleira

Jáder de
Carvalho
entre a presença
e a ausência
“Às vezes fico tanto no passado/ que, vendo o luar na noite, vejo o leite/
correr do peito de uma escrava negra...” (Jáder de Carvalho)

a revista Maracajá, de abril de 1929, encontramos uma


bela e persuasiva carta de Jáder de Carvalho (1901-1985)
a Paschoal Carlos Magno, ator, poeta e teatrólogo que
estava visitando o Ceará a fim de divulgar os ideais do
projeto modernista para o país. Mal sabia Magno que
já éramos modernos antes de o Brasil o ser e que Jáder,
como poucos, tinha a noção da brasilidade assentada em si e na sua luta social: “Você
não avalia o trabalho que nos vem dando o Brasil. É lá brincadeira! Mal a gente acaba
o Acre, já está ouvindo o grito de São Paulo chamando a gente! Olhe: até o Peru pre-
cisou de nós. Dá-se o suor, o braço, o sangue! E depois? Depois... o cearense se volta de
mãos vazias. E, se vem do Amazonas – aquela terra menina, onde mal reportam os
seios – é deste jeito: escapando do impaludismo para morrer de beribéri”.
O Jáder que transparece nessa fala representa sua feição mais engajada, a mesma
que, dois anos antes, em 1927, havia participado de uma publicação, O canto novo da
raça, juntamente com outros três autores, apontada, por Sânzio de Azevedo, como
o marco do Modernismo no Ceará. A filiação ao Grupo dos Modernos, entretanto,

12
Cristaleira
finda rapidamente, pois Jáder, de caráter irreverente e icono- A luz solar, que se expande nos versos, em alguns mo-
clasta, esquivou-se de ‘escolas’ para criar seu rumo nas letras. mentos passa a atormentar o poeta, que busca nos versos mais
Independente, tanto política quanto literariamente, íntimos uma sombra para uma outra dor: a da solidão. Daí os
construiu uma carreira que oscila entre o lirismo, a melan- títulos dos livros que seguem: Delírios da solidão e Menino só.
colia e o compromisso social. Suas obras mais conhecidas são Mais próximo da sua morte, publica Rua da minha vida,
aquelas cuja ênfase social é dominante (Classe média, Doutor produção amadurecida, em que o poeta retoma o local de ori-
Geraldo e Sua majestade, o Juiz,), assim como o regionalismo gem, tão presente e cantado em Terra bárbara, mas agora com
(Terra bárbara e Terra de ninguém). No entanto, Jáder tem na um tom de nostalgia e despedida e assume-se como um sujeito
poesia autobiográfica um acento literário especial, em livros poético melancólico e entristecido. Sai o vaqueiro errante ou
que tratam da sua infância (Menino só), do envelhecimento e o sertanejo valente e imiscui-se um agricultor de lembranças,
da morte (Cantos da morte, Delírio da solidão e Rua da minha cuja lavra é de poemas adormecidos na saudade e na despedi-
vida). Há que se fazer menção também que foi ganhador do da próxima. Por isso, a ausência, na sua conformação geográ-
prêmio Olavo Bilac de Poesia, da Academia Brasileira de fica, emocional ou espiritual, é a dor mais sublinhada, cons-
Letras, pelo conjunto poético de Água da fonte. tituindo-se o centro de irradiação da sua lírica. Se no poema
“Terra bárbara” afirma sua pertença valorosa ao Quixadá, em

De braços com o poeta “Joaquim”, retorna nostalgicamente ao nascedouro, marcado


agora pelo silêncio e pela falta:
Para compreender um pouco desse homem de várias faces, olhe-
mos novamente para “Terra bárbara”, poema mais emblemático
Não me chamaste, Quixadá. Mas eu vou. [...]
da vertente telúrica, lírica e regionalista do poeta e sua feição mais
Há quantos anos não nos vemos? [...]
conhecida e assentada no imaginário local. Nele encontramos as
Lembras-te, Quixadá, do primeiro arado
marcações clássicas do pertencimento e da filiação identitária:
Que te rasgou a terra?

Eu nasci nos tabuleiros mansos do Quixadá


O comprometimento de Jáder de Carvalho com os mo-
E fui crescer nos canaviais do Cariri,
vimentos sociais e políticos do estado acabou retendo-o em
Entre glebas e caboclos belicosos e ágeis.
Fortaleza, o que ocasionou o abandono de uma carreira no sul
Filho da gleba, fruto em sazão ao sol dos trópicos,
do país, como fizeram muitos cearenses em busca de reconhe-
Eu sou o índice do meu povo:
cimento. O fixar-se na terra, entretanto, se conferiu prestígio
Se o homem é bom – eu o respeito.
local, acabou por causar um leve desgosto no poeta. Por isso, ao
Se gosta de mim – morro por ele.
final do poema, após o reencontro bucólico com a terra natal,
Se, porque é forte, entendesse de humilhar-me,
muda de tom e rumo e lamenta a escolha que poeticamente
Ai, sertão!
também o afastou de si e da possibilidade de se dedicar a outro
manejo poético, mais confessional e autobiográfico e, ao mesmo
A dramaticidade e a valentia que imprime ao poema
tempo, mais próximo de uma projeção nacional. Assim, a quei-
serão marcas que distinguirão o poeta, sobretudo em Terra de
xa invade o antes bárbaro sertão e deseja outras geografias:
ninguém e Terra bárbara, nos quais guarda no mesmo embor-
nal súplica e revolta, injustiça e regeneração.

13
Cristaleira

Quixadá, sinto-me desiludido do meu nome. Assim, no princípio e no fim, as angústias se instalam e
Nome que não anda. Não deixa o Ceará. Parado. se tocam. Como dar sustentação à velhice e aliviar o futuro,
Dize ao teu vigário com a morte à porta? Resta ao poeta, em seu isolamento, físico
Que desejo rebatizar-me, agora nas águas do Cedro. e psicológico, reclamar essa falta. Entre presença e ausência, o
O novo nome? Joaquim, ato poético se faz.
Vamos ver se esse não é como Jáder: gosta de andar...
Sarah Diva Ipiranga
A solução encontrada, ao final da vida, é singela e, ao Professora Adjunta de Literatura Comparada do curso de
mesmo tempo, dolorida: mudar de nome. O nome sugeri- Letras da Universidade Estadual do Ceará (Uece). Pós-doutora
do, Joaquim, é o do bisavô que veio de Portugal e representa em Literatura Brasileira pelo Centro de Estudos Comparatistas
o ethos do viajante que Jáder nunca conseguiu incorporar. da Universidade de Lisboa. Coordenadora do Grupo de Estudos
Percebe-se, portanto, que, com o envelhecimento, é comum AMI (Autobiografia, memória e identidade) e autora do livro O
o desejo do não feito, do deixado para trás, do sofrimento da sol na palavra: a literatura cearense sob o signo solar.
ausência e da incompletude. Por isso, busca-se refazer um sarahdiva31@gmail.com
caminho já sabido impossível. Dessa forma, a dor duplica-se:
além dela mesma, a impossibilidade da cura. Bem exemplar
dessa feitura é o poema “Outra infância”, que resgata o sen- Para conhecer Jáder de Carvalho
timento do irreversível mediado pela proximidade da morte: Nascido em Quixadá, Ceará (29 de dezembro de
1901) e falecido em Fortaleza (7 de agosto de 1985),
Imagino um Deus, é um dos nomes mais representativos da literatu-
Dono de todos os poderes, ra produzida no Ceará. Com 16 anos, em Iguatu,
capaz de ver através de olhos cegos, de falar muito alto por meio de uma tipografia, iniciou a publicação
de dentro de toda mudez, de seus escritos, além de sonetos de Olavo Bilac.
para que me devolva a infância: Em 1928, fundou o jornal A Esquerda. Mais tarde,
a infância que perdi em 1947, o Diário do Povo e, nos anos de 1960, a
antes do tempo de perdê-la. convite de Paulo Sarasate, passou a publicar em
O POVO. Entre 1943 e 1945 esteve preso, acusado
O Deus que invoca tem algo de mórbido e vidente, cego de comunista e por criticar o governo de Getúlio
como Tirésias e poderoso como um oráculo: Vargas. Foi membro da Academia Cearense de
Letras e, em 1974, foi eleito Príncipe dos Poetas
Repito: Cearenses. Para saber mais sobre o poeta, acesse
Devolve-me a infância o documentário “PERFIL: Jáder de Carvalho”, da
Ó Deus que enxerga pelos olhos dos cegos, TV Assembleia do Ceará.
Escutas o mundo
Pelos ouvidos mortos
E falas, com clareza,
Nas línguas paralíticas.

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Radiadora

A Capa de Chuva
Era tempo de chuva. Um rapaz que gostava de festas e tinha naquela mesma semana em um clube do bairro, olhou-o fixa-
fama de namorador encontrou, num baile de clube suburba- mente e disse, a voz trêmula:
no, uma jovem que lhe chamou a atenção pela beleza: alva, — Tive apenas uma filha, e se chamava Alzira... Mas ela
loura e de olhar tristonho. Tirou-a para dançar, e tão bem se morreu. Morreu há mais de cinco anos. Entre, por favor.
entenderam que, naquela noite, nenhum outro rapaz dançou Como ele insistisse na história, com o forte argumento
com ela, nem ele dançou com outra moça. de que a moça lhe havia dado nome e endereço, a senhora foi
Tarde da noite, quando ela se despediu, revelando que buscar um álbum de retratos e, passando as páginas, pediu que
prometera à mãe não se demorar muito no baile, pediu-lhe ele apontasse a moça com a qual havia dançado.
que não procurasse segui-la. — É esta aqui!
No momento em que a jovem ia saindo, começou a cho- — Impossível. Esta é a Alzira, mas ela morreu, como eu
ver. O rapaz, por gentileza ou por vontade de revê-la, empres- lhe disse. Vamos ao cemitério, que não fica longe, para que o
tou-lhe sua capa de chuva, ao mesmo tempo em que, rindo, senhor se convença de uma vez por todas.
perguntava como a receberia de volta e qual o seu nome. Tomaram um ônibus e já caíam os primeiros pingos de
— Meu nome é Alzira. Anote meu endereço. chuva quando entraram no campo-santo. Com a força do
Dois dias depois, numa tarde de céu nublado ameaçando vento, os ciprestes farfalhavam. Mas antes que a mulher de
chuva, foi ele à rua indicada e, chegando à casa cujo número cabelos grisalhos mostrasse ao rapaz o jazigo da filha, ele re-
havia anotado, bateu palmas. Ao ser atendido por uma senhora cuou, lívido. Sobre um dos túmulos estava estendida a sua
de cabelos grisalhos, indagou se ali morava a senhorita Alzira. capa de chuva...
A mulher esboçou um gesto de espanto e perguntou
Sânzio de Azevedo
de onde ele a conhecia. Ao saber que jovem havia dançado
sanziodeazevedo@gmail.com

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Radiadora

A Conexão
Ao sentar na cama, sonolento, o ar frio eriçando os pelos, olha – Vou para o Sul a trabalho. – Devolve o pacote já aberto.
com saudade a cidade. As luzes acesas, sem carros ou tran- – Onde está sua mãe?
seuntes nas ruas. Uma manhã atípica. O termômetro marca Como em resposta, uma mulher alta, bastante magra, de
21ºC. O sol poderoso que enche seu quarto todas as manhãs longos cabelos está ao lado deles, olhando-o curiosa:
está descansando. Aguardando, quem sabe, sua movimen- – Desculpe, ele está importunando?
tação, um truque, talvez? Resoluto enfrenta. A hora chegou. A pergunta proferida diverge do olhar de censura e des-
Reescrever sua história, como um poema: uma linha e outra, confiança, ao pousar no pacote sendo consumido pelo menino.
e mais outra. – Eu que peço desculpas por ter atendido ao pedido dele sem
Essa sensação de força e esperança o acompanha. Optara consultá-la. Não me importunou de maneira alguma. Boa sorte!
pela mudança. Escolha certa após rompimento. As dúvidas o Dirige-se ao garoto já arrastando sua mala para afastar-
assaltaram no início. A proposta de trabalho, depois de todas se. Observa no painel que seu voo atrasara. Senta-se distante,
as etapas do processo seletivo, enriquecera-o, encorajara-o. onde uma nesga de céu escuro e chuvoso deixa-se ver através
No saguão do aeroporto, resgatando-o dos pensamentos das vidraças. Aquela conexão estava minando o bem-estar
que preenchem sua mente, um menino animado, roliço, de que sentira ao acordar. Fechou os olhos. Ao ouvir o chamado
olhos negros e cabelos abundantes o aborda: de seu voo, caminha na outra fila e vê o garoto com a mãe. Um
– Por favor, tio, abre esse pacote para mim? olhar de desdém o insulta.
Com o braço distendido mostrava um pacote de chips. Meses depois, totalmente incorporado ao ritmo da nova
Olhou em volta procurando alguém que acompanhasse aque- empresa e aos ares da cidade que o recebera acolhedoramen-
la criança. te, é convocado para um seminário. Encontra diversas pessoas
– Machuquei o dedo brincando – continua o menino –, com as quais travara conhecimento. Caminha entre as cadei-
fica difícil pressionar. ras, buscando um lugar central de boa visualização. Ao sentar
Põe a mão no ombro do garoto, recebendo o pacote, en- é que observa. Ela o olha entre divertida e curiosa:
quanto isso seus olhos vasculham o ambiente buscando al- – Olá, trouxe chips?
guém que demonstre observá-los. Em vão. Indaga:
Lucirene Façanha
– Está com fome? Vai viajar para onde?
lucymlffacanha@hotmail.com
– Não é fome. Minha mãe me proibiu de usar o celular ou
outro jogo. Vamos para o Nordeste de férias e você?

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Radiadora
Asas para Rute
Rute, 15 anos, entrou em casa com o olhar diferente e cor inde- Um pouco de paz Rute só encontrava na casa de
cifrável nas faces salientes. O pai, um rude homem do campo, Damiana. E era lá que, dia após dia, entre o feijão no fogo e
não conseguia decifrar o que ali se passava. Nem queria. Na as panelas espelhadas ou uma troca de mantimento, que Rute
sua ignorância ruminava como a vaca magra que lá longe cor- tecia suas asas para a acalentada liberdade.
tava o mato: “conheço essa inquietação. Mas se essa menina – Abra, Rute! – vociferou o homem!
está pensando que vai ser como a danada da mãe e a sem-ver- – Está aberta, pai – tratou de responder a menina para
gonha da irmã... não vai mermo”. não piorar sua situação.
Caminhou decidido até o único cômodo com porta no O pai trazia na mão o açoite e seu olhar escaneou o quarto
casebre quente, mas limpinho, como a mulher tinha ensinado. e parou na cesta de vime em que repousavam tubos de linhas
Rute sentia saudade da mãe, morena com o rosto sempre coloridas recém-comprados, agulha e tesoura sobre a humil-
em brasa, como gritava o pai nas horríveis discussões motiva- de mesa. Ao lado uma camisa do patriarca. Envergonhado, o
das pelo demônio verde – era assim que a vizinha Damiana homem olhou para a menina, fez que enfiava o tal cinto no cós
tinha explicado o ciúme do seu pai – quando a mãe criou asas da calça e por nada beijou-lhe a testa e saiu.
e partiu. Recuperada do susto, a menina esticou a mão e retirou de
A mãe voara após a surra que lhe deixou marcas pelo sob a toalha da dita mesa um papel bem dobrado. Seus olhos
corpo bonito. Rute ainda guardava o calor dos lábios da mãe correram ligeiros e alegres as linhas em que se lia: “Ficha de
ao se despedir dela e da irmã naquela maldita noite. O pai bê- Inscrição para o EJA Ensino Fundamental” – sorriu. Mais uma
bado e inerte na cozinha. A mãe juntou seus molambos e se- etapa de suas asas estava concluída e as suas não eram de cera.
guiu a vida. Rute tinha então 10 anos.
Rejane Nascimento
Sua irmã, Sula, estava à época com 16. Assumiu a casa,
rejanasc@gmail.com
mas não os carinhos da mãe, nem o colo, nem os cafunés. Sula
partira com um motorista dois anos depois da mãe. Rute ficara
com a casa e o pai – carcereiro e catapulta!

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Radiadora

Desterrada
Fizeram ouvidos moucos quando os cumprimentou. Num mo- Ela não portava o objeto que poderia transportá-la para o
vimento sincopado, os amigos de décadas simplesmente a igno- universo onde estavam seus possíveis interlocutores. Por isso
raram, olhando para a mesa ao lado, para a tevê desligada ou não teria como interagir, embora desejasse tanto. Não que ela
para as telhas. Em seguida baixaram a cabeça, um após o outro, não pudesse conseguir um artefato daqueles. Podia. Mas não
pegaram objetos de plástico e vidro, e começaram a arrastar queria possuir algo tão viciante. Restava aguardar. Quem sabe
as pontas dos dedos indicadores sobre suas superfícies lisas e um par de olhos qualquer iria, em dado momento, cansar de
brilhantes. Quem os via, podia afirmar que eram compulsivos olhar para baixo e virar em sua direção. Ela esperou paciente-
tentando eliminar, em vão, manchas que insistiam em ficar. mente. Até que perdeu a esperança; todos permaneceram sur-
Às vezes ficavam a mirar seus objetos sem pestanejar e dos, completamente alheios à sua presença. Nem mesmo nota-
abriam sorrisos de canto da boca. Ou então expressavam nojo, ram quando ela, resignada, se levantou e tomou o rumo de casa.
indignação, medo, dó, numa sucessão de emoções que persis- O dia chegou em que ela já não se sentia reconhecida por
tiam por segundos, apenas — já que, de pronto, retomavam o ninguém. Estava presente, perto de todos, mas vivia desterra-
movimento impaciente com os dedos. da, isolada do mundo, com seu celular de abrir e fechar, mode-
Ela ficou ali, bem ali, bem real, esperando o momento lo antigo, que apenas ligava e atendia chamadas. Foi quando
certo de se manifestar. Queria muito expor seus pontos de se deu por vencida e pediu para o cunhado trazer de Miami o
vista sobre os últimos acontecimentos. Queria ser ouvida. E smartphone mais moderno que pudesse encontrar, lindo, com-
queria ouvir. Podia ser qualquer voz. Nem que fosse esganiça- pleto, ostensivo. Criou perfil numa rede social, numa segunda,
da, desagradável e usada unicamente como mecanismo para a numa terceira — marcou presença em todas as redes relevan-
emissão de tolices. Estava disposta a conversar com qualquer tes. Os amigos se regozijaram e disseram “que bom te ver por
um deles sobre qualquer assunto: o melhor local para comer aqui”, mas em pouco tempo ficaram entediados e fizeram de
sushi, a chacina da noite passada, o Trump, a carreira inter- novo ouvidos moucos, pois ela passou a lhes dar bom dia dia-
nacional da Anitta. Podia até mesmo ser sobre o BBB, que ela riamente às sete da manhã com fotos de gatinhos fofos.
tanto detestava. Mas a realidade não interessava àqueles pou-
Cupertino Freitas
cos. Só lhes importava o que era visto em telas. A eles, basta-
josecdefreitasjr@yahoo.com
va-lhes o movimento repetitivo de dedos para continuarem
imersos no mundo estranho que rodopiava sob superfícies
cristalinas movidas a lítio e metais raros.

18
Radiadora
Mortança em Saboeiro
Aquele galo esperava o amigo gato todas as manhãs. Ele vinha quando estava com fome mandava logo vir buscar umas duas
com seu andar macio pelo muro, até a cerca no fundo do quin- das suas galinhas”.
tal. Trazia as notícias mais recentes da casa. Foi ele que alertou – Não me fale naquele homem. Perdi muitas para matar
ao amigo que a galinha Joaninha seria o prato do aniversário a fome dele. – lamentou o galo.
do membro mais novo dos Braga. – Pois é melhor que venha muita chuva e que tenhamos
Não deu outra, foi muita correria, mas o galo não conseguiu muitos peixes, que, aliás, eu gosto muito, senão você vai ficar,
fazer nada. Agora tem de passar horas agradando as galinhas res- amigo galo, só administrando ovos.
tantes, dizendo coisas, como “Você está magra, fique tranquila!” Era janeiro e o galo imaginava que o gato estava certo:
Em Saboeiro uma casa com visitas tem sempre um al- não haveria mortança no galinheiro e logo iriam se lembrar da-
moço de galinha à cabidela, ou cabrito guisado. E falando na quele bode velho que já estava passando da hora. O gato assim
peste, o cabrito – só berra bobagens – não deu as caras. também pensava, pois o bode não era da família, tinha chegado
O galo procurava saber alguma coisa sobre o próximo a há poucos meses, devia ter alguma serventia. “Ainda bem que
ir à panela para fazer um trabalho de conscientização no gali- este povo não come gato”, imaginava, e ria-se por dentro como
nheiro. Ele não se importava com o peru, aquele que serviu ao sempre fazia sobre o destino dos outros bichos do quintal, en-
Natal da família. Achou foi bem feito, que o bicho era metido. quanto, por fora, ele se condoía todo, achava uma injustiça.
Mas o gato não tinha novidade, só sabia que os bichos O papo se esticava, já quase sete da amanhã, e o gato
podiam ficar sossegados: “Estão fartos de tantas ceias nesses tinha seus afazeres, como acordar as crianças em férias e ga-
dias de fim de ano.” nhar torresmo do café da manhã do senhor da casa.
O galo não acreditava muito nisso. Bastava chegar algum E por falar em bode, vinha ele por ali, mascando capim,
conhecido ou parente distante para que uma panela fosse ao quando os dois amigos diriam, ao mesmo som: “Lá vem aque-
fogo e a cozinheira descesse até o quintal com aquela cara de le besta!”
poucas amizades. “Será que eles não se lembram da igreja, das
Almir Mota
coisas que prometem ao seu Deus?” “Que nada!”, miava o gato,
historiasdoalmir@hotmail.com
“Você se lembra do padre Geraldo? Era um santo homem, mas

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Radiadora

bairro Mendigos
antes das seis ACORDASTE!
quando o céu indeciso Debaixo da ponte... sem destino!
não mostra luz nem trevas  ACORDEI!
paradas de ônibus enchem-se Sob o teto que dormi, a solidão de menino!
de pessoas sonolentas Teu frio de cobertor,
meu frio de amor...
bocejos e bom dias tímidos raios solares,
dinheiro trocado para não atrapalhar em todas as pontes...
o tráfego de pessoas nas catracas em todos os lares...
portões de rolar janelas grandes de ferro ACORDEI!
deslizam para abrir Contas a pagar, frutas e solidão,
cheiro de café cheiro de pão leite e pão...
ACORDASTE!
a vida está assando nos fornos industriais das padarias Lixos fedidos,
sobras de pães dormidos...
a rua não fica limpa num passe de mágica Amanhã, quem sabe, tua alegria nas contas a pagar
são senhoras gordas pretas magras brancas e na solidão a amar...
que sacam piaçabas limpam calçadas Serás bem mais feliz
enquanto os homens do caminhão do lixo  do que o destino me quis?
rebolam no meio da rua os tambores  Amanhã, meu olhar de ponte sobre os olhos das amantes
para raiva e resmungo das senhoras ... sobre os olhos das mães
e a partilha dos dormidos pães!
logo tudo parado Serei bem mais feliz
se move do que o destino te quis!
ACORDASTE! ACORDEI!
carros bicicletas adolescentes raivosos indo pra escola Silêncio... Dorme o companheiro, o mendigo herdeiro
as principais notícias vencidas de ontem das lágrimas de meu verso rotineiro:
cruzam nas esquinas de sacolas nas mãos Tu ficaste sem comer
E chamas isto de fome.
todo dia é único Eu fiquei sem amar
e, para isso, não tem nome!!!
Talles Azigon
tallesazigon@gmail.com Rita Brígido
ritabrigido@yahoo.com.br

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Radiadora
civil Ossos
eu odeio você e teria voltado Esgaravatar
quantos anos fossem necessários com as unhas
para fazer tudo diferente e nunca as crostas da terra
pisar o chão do lugar onde escutei em busca de restos Corpos
seu nome mas penso que agora para imprimir
ao erguer com certa desenvoltura na brancura Corpos que vão velejar

toda uma estrutura óssea que me faz dos meus ossos Corpos caindo do andaime ao luar

andar e arriscar mundos meu último verso Corpos cortando a cana

sob risco de me julgarem mal Corpos consumidos na cama

posso tomar um atalho súbito Magna Maricelle Corpos frívolos como papelão

e desrespeitar minha conduta magna.moraes@uece.br Corpos ausentes na locomoção

e desconsiderar seu casamento Corpos enclausurados sendo torturados

e beijar sua boca em horário comercial Corpos minerando o ar soterrado

na calçada de sua agência Corpos bêbados de alegria banal

com flexibilidade para abrir pernas Corpos mortos em uma agonia social

mover quadris e sofrer colapsos Corpos exclusos, sem voz e sem chão
Corpos abandonados no alicerce da nação

Raisa Christina
raisa.christina@gmail.com Fabricio Saldanha
fabriciosaldanha2010@hotmail.com

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Radiadora

ipumirim soberbo (o poema)


I
mas e agora que o poema silencia?
o que resta além do devaneio feito de passado
e trevas? – o que resta, alencar?
a baunilha que recendia do campo agora é
a fumaça feita de verdes árvores e vermelhos bichos;
a relva que mal roçava o pé hoje é a bruta mata
seca queimada ao relento e embebida de fuligem.
a ará que não canta mais a predestinação da raça
daqueles que partem rasgando sertões sem que voltem
– o poema silencia.

II
sob a jaci nua e o vento cadente do juripari,
corre a caapora torpe do cauim, lançando notas
perdidas na argêntea noite com seu toró melindroso;
a melodia é aquela que devolve o espírito das pessoas
porque onde havia melodia, havia a lenda que o vinho
da jurema guardava em virgindade – mas a lenda virou
um verbo sem volta, virou o avesso da verdade que serviu
de padrão pra cidade dormente sob essa jaci nua prateada,
virou o desatino de quem o passado corre
Meu Carnaval: independe de fevereiro. É – grita caapora.
março, é janeiro. Eu, carnaval: eu sou: ano intei-
ro. E carnaval é em mim: e para mim um desterro. III
Carnaval sou eu toda: minhas veias-serpentinas; era o teu testamento, mel-redondo, por quem foi sem volta
minhas hemácias-purpurina; minhas sardinhas: eu- e quem voltou sem ida; o bélico deus latino vindo
confete; minha carne, meu cerne. Vem e me dança: de ignota arma tirou-te da terra pra embranquecer osso perto do mar;
um samba qualquer, uma bossa de deus-quiser. Eu, tua virgem velada pela canto poente deixou a semente da dor
carnaval: meu sangue verte um frevo-amarelo- varar oceanos pela nau daquele pai de sangue na mão e fronte branca;
quente. O ano-todo: malemolência carnavalescente. ficou na língua lusíada o destino do teu povo; e nesta lenda absurda
Eu só sou um samba-bom que ferve quente. – tua raça silencia.

Luana Braga Valdemar Neto Terceiro


luanamenezesbraga@gmail.com valdemarneto_ipu@hotmail.com

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Radiadora
Gosto Fundamental – se –
fundamental é o imenso prazer de estar vivo e se eu criasse a rua, a calçada, as casas numeradas
com as inverdades tão próprias delas
fazer amor com a mulher querida se os segredos que dividem a porta da frente
e embrulhar em cheiros púbicos e as poeiras das famílias
o sono lasso tudo criado
num ouvi dizer
correr a mais de cem inventado
pela manhã recém-lavada e se na rua que liga a igreja ao cemitério houvesse
através da chuva fria vidas
da chuva friíssima e criadora e se o padre largasse do capeta e os políticos
das tetas do profano santificado
não necessariamente resolver e se a máquina-mostro parasse de asfaltar as ruas,
mas existir as árvores
em meio ao fascinante jogo dos conflitos e os pés e a saudade
morresse esquecida
fundamental é o gosto de mel na boca numa esquina da infância
por estar vivo
e se a poesia servisse de alguma coisa...
já sei que não serei jamais o grande poeta
que minha adolescência alucinou Alan Mendonça
mas a melhor parte de mim é a poesia radiadora@gmail.com

é esta parte que me nutre de ritmo e de esperança

José Jackson Coelho Sampaio


jose.sampaio@uece.br

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Tiragostos

Chegada de Audifax no Céu de Alexandre Henrique

artista
da capa
Audifax Rios

Audifax nasceu em 17 de abril de


1946. Iniciou-se nas artes com a irmã
e professora de desenho Diana Rios.
Garoto, já era convidado a pintar
panos de lapinhas de Natal. Vindo
morar em Fortaleza, ingressaria na
TV Ceará como cenógrafo e dese-
nhista. Participou e foi premiado em
diversas exposições individuais, cole- Publicado originalmente no Almanaque DE UM TUDO
tivas e salões no país e no exterior. É
autor de vários murais, aberturas de
Os FitoManos de Raymundo Netto
filmes e novelas, ilustrações, capas,
álbuns, crônicas, artigos, ensaios,
cordéis, infanto-juvenis, romances,
entre outros. Faleceu em 25 de abril
de 2015, publicando o almanaque
DE UM TUDO, com livros no prelo
e muita vontade de conquistar o
mundo, como já nos havia conquista-
do “a priscas eras”..

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