Documenti di Didattica
Documenti di Professioni
Documenti di Cultura
MARGINAL DE ANA C.
Adriana Maria de Abreu Barbosa
Cristina Cesar à literatura marginal brasileira dos anos 70. Breve contribuição, devido à sua
morte precoce, porém intensa e revolucionária e por isso mereceu e merece tantas leituras. Só
para citar alguns temas evocados por sua obra, poderíamos falar da sua inserção como
poesia antiliterária do cotidiano ligada à proposta estética da literatura marginal, da qual fazia
parte indubitavelmente1. E mais, sua inscrição no pós-modernismo pelo uso e abuso das
paródias remetendo incessantemente a tantas (re)leituras que por vezes desnorteiam o leitor:
percebe-se que os vazios da significação seriam preenchidos com leituras implícitas, nem
sempre recapituladas. Sem falar, é claro, nas pistas da temática da morte que o leitor curioso
sempre perseguirá para unir vida-obra, tentando, entre outras coisas, responder se o texto de
Ana C é mais ficcional ou confessional. A mim parece impossível separar tais atributos de
qualquer texto, restando-nos apenas aferir os graus de aproximação que este estabelece com o
real.
Entretanto, de tudo isso que a princípio poderia ser dito depois de ler Ana, minha
leitura gendrada2 sensibilizou-se com o título de sua última publicação em vida – A teus pés.
Como ler esse título, em pleno deflagramento do feminismo no Brasil, sob a assinatura
de uma autora marginal, cuja postura ética/estética frente à convivência nos ambientes
2
intelectuais da época evidenciava “(o) ódio visceral que Ana nutria por esses climas
machistas brasileiros, de clube do bolinha [...] (e) a postura das próprias luluzinhas [...] que
queriam pulular em volta do clube do bolinha!” (nas palavras do amigo, poeta e crítico
Sob o título de A teus pés (ATP), Ana C publica em 1982 uma coletânea de novos
poemas, reunindo-os, nesta mesma publicação, ao seus livros anteriores Cenas de abril,
importantes para este trabalho uma entrevista e alguns ensaios jornalísticos da autora reunidos
A TEUS PÉS
assim posso falar de identidade. Sob a abordagem psicanalítica, somos retirados do princípio
mãe) que parecia ser parte nossa. Daí, crescer implica reconhecer o outro e as derivações
informação relacional (metamensagem) o que delineia uma fala mais indireta, no intuito de
preservar as relações com os outros. Lakoff, pioneira nos estudos lingüísticos de gênero5,
aponta uma linguagem que é ensinada à mulher para que pareça uma “dama”, e ilustra isto de
forma bem clara, ao analisar a fala de Marilyn Monroe: ela podia não saber o que estava
3
falando (mensagem), mas sabia para quem (interlocutor) estava falando. Em outro ensaio,
Menos pela essência feminina (como algo inerente a um corpo de mulher), do que pela
rótulo de literatura feminina, textos que retratem esse universo confessional e intimista das
cartas pessoais, ou mesmo dos diários íntimos; nestes desloca-se um “eu” para fora de si,
colocando-o no lugar do outro, nesse escrever para si mesmo. Sob esta perspectiva, importa
menos o sexo de quem escreve e mais um deflagrar de uma experiência, que, entretanto, na
Contudo, falar sobre esta experiência feminina recai sempre nos conceitos
cristalizados socialmente pelo senso comum que conceituou e ainda conceitua o feminino
como oposição binária ao masculino. A crítica a esta posição binária está nas palavras da Ana
C ensaísta, no temor do que poderia significar o rótulo de poesia feminina como apropriação
... alas da dicção nobre, do bem falar, do lirismo distinto, da delicada perfeição.
Quando as mulheres começam a produzir literatura, é nessa via que se alinham.
Repare que não estou criticando Cecília, mas examinando a recepção da sua poesia, o
lugar que ela abre [...] Marcaram [ Cecília Meireles e Henriqueta Lisboa ] não
presença de mulher, mas a dicção que se deve ter, a nobreza e o lirismo e o pudor que
devem caracterizar a escrita de mulher.7
Porém a mesma Ana C, três anos depois, ao comentar o livro de Marilene Felinto, As
autora:
4
corrobora para o delinear de um acordo tácito sobre gêneros. Acordo este que mesmo, ou
A leitura que se faz aqui da “derradeira” poesia de Ana Cristina Cesar, no conturbado
cenário dos anos 70-80, propõe uma nova significação dentro deste abrangente senso comum
sobre gêneros feminino/masculino. Para tal (re)direcionamos o olhar sobre a poesia de Ana
mobiliza uma energia de construção de identidade nos textos de Ana, uma identidade
feminina energia esta que corre o risco de não conseguir nos levar a perceber o que
EROS E O DESEJO
à influência dos astros sobre o destino gerou considerare e desiderare. O primeiro designando
examinar com cuidado e veneração, enquanto o segundo remete a um cessar de olhar para o
5
“alto”10. Isto é, ao desejar, se é tomado por uma vontade de decidir o próprio destino,
privando-se das certezas causadas por um saber de um futuro já inscrito nas estrelas.
ausência. Para Freud, o desejante é aquele que perdeu algo e é para sempre cindido por esta
Curioso notar, segundo esta abordagem, que o desejo nasce da interdição “já que no
Princípio do Prazer não se pode falar exatamente em desejo justamente pela vinculação
minha mãe não é minha, nem eu sou dela. Ela é “outra” pessoa, ela não sou eu. De modo
alteridade imposta.
revivê-la com outros objetos de desejo possíveis, é seguir a pulsão de Eros, energia sexual,
que impulsiona o assumir-se como sujeito da sua própria história, ao invés de entregar-se aos
embala a busca afetiva. Esta simbiose perfeita estaria metaforizada no próprio ato sexual:
dois corpos que se tornam um. E desta união resultaria o gozo, experiência revivida da
satisfação primeira, daí o orgasmo ser chamado de petite mort. Eros realizado aproxima-se de
Thanatos, o que nos faz crer que Freud devia ter razão ao definir essas duas pulsões como
determinantes para o sujeito cindido. Mas o ciclo não pára. A cada aplacar de um desejo,
6
instaura-se outro. Viver resultaria, então, nesta decisão de deslocar o desejo para diversos
objetos de desejo.
O que falar então dos desejos sexuais femininos que sofrem, segundo o próprio Freud,
duplo abandono: do clitóris, à vagina; da mãe, ao pai ? E ainda, segundo ele, como instaurar
a lei pelo medo, se elas não têm nada a perder? Em “Sexualidade feminina”13 Freud faz
vista que nelas, diferentemente do que ocorre com os meninos, a castração não é uma ameaça
Se o desejo nasce concomitante à imposição de reprimi-lo, o que falar dos desejos das
mulheres que viveram e ainda vivem sob as mais diversas interdições? Sabe-se que até hoje,
de outras mulheres com giletes porque isso é imposto e justificado pela cultura religiosa local.
lógica, instaura-se uma outra poética, que é a de fazer falar aquilo que a razão calou. Refiro-
me à força poética que, movida por Eros, resgata os desejos inconscientes da memória que
Nesse sentido, relemos o texto de Ana Cristina Cesar, em sua força de resgate dos
desejos femininos despertados no cenário dos anos 70/80 pela forte influência feminista no
Interessa-nos, entretanto, ir além dessa consciência de gênero que marca uma geração
de mulheres pioneiras. Buscamos o sujeito, no caso feminino, onde ele não fala. Interessa-
ELABORANDO DESEJOS
O primeiro poema de A teus pés não têm título, ocupa quatro páginas de texto que
início: “Trilha sonora ao fundo; piano no bordel, vozes barganhando uma informação
difícil”. Mais adiante esse “desejo” se explicita no uso de uma terminologia típica da
Uma biografia de mulher que oscila entre “muito sentimental” “Agora pouco
sentimental” que “pensa no seu amor de hoje que sempre dura menos que o seu amor de
ontem”, mas afirma “agora sou profissional”. E neste diálogo com o outro vai se delineando
cultura para mulheres e proibido para os homens”14 não mais em atos, mas em histórias
amor distante”, confidencia: “não posso mais duvidar dos meus passinhos”.
[...] Ah que estou sentida e portuguesa, e agora não sou mais, veja,
não sou mais severa e ríspida: agora sou profissional.
Segunda história sobre a felicidade descendo a colina
ao escurecer meu amor ficou longe, com seu ar de não ter
dúvida, e dizia: meus pais... não posso mais duvidar dos
meus passinhos, neste sítio[...] (ATP,p.39-40)
8
Hesitante e cindida pela perda de um amor, a persona se diz profissional. Quando ela
afirma identidade autônoma na metáfora da recusa de duvidar dos próprios passos, utiliza da
para uma fala feminina, o uso do diminutivo contribui para a construção de um self
impregnado de afeto tão desejável a uma “lady”. Isto também fora percebido por Ana C
ensaísta, ao discutir o gênero literatura feminina e considerá-la como marcada por “uma
poesia de Ana C. Sabe-se que o diminutivo costuma marcar afetividade na fala feminina, mas
O riso desencadeado pela ironia fora por muito tempo reservado ao mundo masculino.
Não ficava bem a uma dama nem se dar muito a risos, muito menos provocá-los. A lingüista
completa inabilidade para contar piadas. O universo do humor, principalmente o picante, era
falar de desejos femininos, e esteticamente, ao fazê-lo numa dicção de deboche. Essa dicção
irônica, peculiar a sua obra, marca nuances estéticas distintas na abordagem do tópico sexo
humor tão “antenada” às primeiras discussões feministas, que proclamavam a igualdade por
localizar nas “diferenças” o pretexto para justificar as desigualdades. Segundo Rosiska Darcy
Oliveira “as mulheres passaram a fronteira do mundo dos homens escamoteando o lado
“preparar o chá” e “o enjôo do desejo”, a referência ao tipo de higiene “deficiente” para uma
mulher, somada à força do vocábulo “sovaco” em contraste com os demais termos femininos,
feminina diz diretamente o que, até então, não se esperava ouvir das mulheres da realidade
dita, desconsidera recursos que podem modalizar possíveis afetos despertados pelos
enunciados.
Em Cenas de abril a diretividade é a dicção prestigiada para tratar de sexo, seja ele o
ato, ou órgão:
Arpejos
Ana poeta escreve sobre os genitais femininos, sem aquela dicção, supostamente
esperada para o feminino, conforme fora definida pela própria Ana em textos de crítica
literária: “feminina delicadeza, aflorando coisas, os seres, com dedos fugidios... dedos não
agarram20. Essa abstração, supostamente feminina, que não delimita, não se interessa pelo
10
concretizar, mas sim o transfigurar, não cabe no descrever sem eufemismos de uma vagina
que coça. “Passei pomada branca até que a pele (rugosa e murcha) ficasse brilhante”.
consiste neste dizer as verdades masculinamente (registro), isto é, no que era uma fala
esperada como masculina, dita “doa a quem doer”, porque assim se faz revolução
cotidianidade como recusa à idealização do real, na poesia de Ana C, recusa uma idealização
da mulher. “[...] não haveria por trás dessa concepção fluídica de poesia um sintomático calar
Entretanto, resvala nessas certezas um sujeito feminino que hesita e desconfia de que
“fala onde não é”: “meus olhos leigos na certa/não percebem que um rouge a mais/tem
significado a mais”
Algo escapa a consciência dessa persona sobre esse significado a mais dessa cor
“rouge” da sua própria vagina. Em A teus pés, parece-me que mais liberta de uma
ditatorial, embora necessário, conforme nos orienta a própria Ana C, crítica literária: “O que
me está parecendo é que essa virada dá no mesmo: recorta novamente com alguma precisão,
o exato espaço e tom em que a mulher (agora moderna) deve fazer literatura23. Neste sentido,
deboche para reconhecer-se como alguém que não sabe de si: “cara pálida que desconhece o
Samba-canção
Nesse cair em si, a persona reconstitui uma série de máscaras usadas para “ser
normas vigentes. Às vezes mais retrógradas outras, avançada, a persona enuncia-se: fui
Numa tentativa do enquadrar-se, que é muito mais ser reconhecido por um outro, do
os diversos papéis sociais reservados a uma mulher, a persona acaba representando para si e
da vagina, como fora o “rouge”) desloca um pelo outro metonimicamente para falar de
necessariamente um saber de seu sexo. Algo que fora negado às mulheres durante séculos.
utópica que consumia a persona em Cenas de Abril. Mas o “fogo”24 ainda está lá em A teus
Em A teus pés a força estética consiste em brincar mais com as ambigüidades, apesar
Sete chaves
Vamos tomar chá das cinco e eu te conto minha
grande história passional, que guardei a sete
chaves, e meu coração incompassado entre
guafrettes. Conta mais essa história, me
aconselhas como um marechal do ar fazendo alegoria. Estou tocada pelo fogo. Mais
um roman à clé?
Eu nem respondo. Não sou dama nem mulher moderna
Nem te conheço. Então:
É daqui que eu tiro versos, desta festa – com arbítrio silenciosos e origem que não
confesso – como quem apaga seus pecados de seda, seus três monumentos pátrios, e
passa o ponto e as luvas.(ATP,p.32)
chá está mais uma vez preservado, entretanto, já não há tanta ironia ao retratá-lo. O prazer do
13
riso está garantido nas delícias do paradoxo – “te conto (o) que guardei a sete chaves / tiro
versos(cuja)[...] origem não confesso[...] Não sou dama, nem mulher moderna”.
Inverno europeu
... Recomendo cautela. Não sou personagem do seu livro e nem que você queira não
me recorta no horizonte teórico da década passada [...].eu de conviva não digo nada e
indiscretíssima descalço as luvas(no máximo), à direita de quem entra.” (ATP,p.41)
Valendo-se dos paradoxos para deslizar e não ser capturada pelos conceitos, a persona
transgride por repetição25: cala-se, não diz nada. Não tira os véus, mas descalça as luvas num
mostrar-se parcialmente (no máximo as luvas), criando uma atmosfera de sedução. Primeiro
Eros apresenta-se sob outros contornos. Nem sinal de “hímen que coça”, embora deva
haver algum por trás da “história passional”, do “coração incompassado” e da “festa” de onde
tira os versos. Todos esses signos nos remetem aos desejos de uma persona “tocada pelo
fogo”. Entretanto, há mais insinuação e menos deboche, nesta nova dicção do dizer dos
desejos. Mas ainda há desejo que pulsa, embora manifestado em outra linguagem.
feminismo da diferença e glossarizado pela própria autora em ensaio crítico. Nesse falar mais
femininamente do que masculinamente destaca-se a nova dicção de A teus pés. Uma das
principais marcas desta dicção está na questão da fala outro-centrada feminina, sugerida pelo
autora: “Isso significa que aqui existe, de uma maneira muito obsessiva, essa preocupação
com o interlocutor, que eu acho, inclusive, que é um traço duma literatura feminina.”26
Mais “tocada pelo fogo”, em A teus pés, a persona deseja mais entrega e menos riso.
O poema-sonho desrepressor dos desejos, faz com que estes fiquem à mercê dos leitores,
14
conforme nos orientam as palavras da autora em entrevista: “Eu estou a teus pés leitor. Isso
Por isso a autora insiste em dizer da alegria da entrega em A teus pés. “A teus pés é
um livro alegre.28 Alegria proveniente do desejo da entrega erótica: desejo de tornar um.
Mas A teus pés também remete a imagem religiosa de “aos pés da cruz”, uma
referência sugerida pela própria autora: “Eu gosto deste título, porque, em primeiro lugar, ele
sugere uma devoção religiosa, é a primeira coisa, não é?”29. Em suma, A teus pés fala da
entrega amorosa que pode, inclusive, remeter à imagem religiosa, já que eros, força de
psicanalítica: “a nostalgia humana da unidade perdida que a fusão dos seres aplaca na relação
erótica, também encontra seu momento de resgate na experiência religiosa, bastando lembrar
Ficar aos pés da cruz é, na verdade, fortalecer-se a partir da entrega. Cristo ao beijar
os pés dos infermos, curava-os, pois a força estava nele31. Nessa ressemantização do curvar-
se como fortaleza/grandiosidade de quem se curva e não submissão parece estar o chiste desta
poesia marginal, escrita por uma mulher de vanguarda. Repetir, para transgredir.
em um eu lírico subjugado. Ao contrário, é preciso muito livre arbítrio para ficar aos pés do
outro. Talvez haja alguma melancolia, reflexo da ausência que impulsiona o desejo na
persona, recuperando, assim, a etimologia da palavra proposta por Chauí: decisão e ausência.
Mas há sobretudo gozo. Gozo feminino da entrega, no destemor com que as mulheres fazem
Entretanto, o gozo da entrega não é pleno, algo fica engasgado na garganta. “A teus
pés é um livro alegre [...]agora sempre há uma coisa que não foi dita”33. Quanto maior a
15
inconsciente. A entrega, ao aproximar-nos dos desejos represados, nos deixa à mercê de uma
Noite carioca
Nesse mostrar-se que dispensa as palavras, ao valer-se dos suspiros, há uma mulher
que se apresenta a alguém discreta, mas sem segredos. E suspira. Comunica-se no pré-
socialmente à feminilidade, porém, uma outra forma de comunicação. Calar-se, não por
submissão, mas para valer-se de outros códigos. Um silêncio estratégico e por escolha.
moderna que desafia o cânone em plena vigência do patriarcado. Quando foram silenciadas,
as mulheres não foram apenas impedidas de falar, mas foram consideradas “histéricas” por
falarem uma linguagem que fugia às normas da eficiência comunicativa. Centrada nos
perplexidade masculina eternizada na célebre indagação: afinal o que quer uma mulher?
Assim, entrar no mundo masculino exigiu num primeiro momento, calar essa linguagem das
IDENTIDADE x OUTRICIDADE
Ou melhor, o próprio desejo insinua-se com mais ternura, sem o deboche do “enjôo do
desejo” (Cenas de abril), entretanto ainda oscila entre a entrega e o esquecimento. Resiste.
Cabeceira
Intratável.
Não quero mais pôr poemas no papel
nem dar a conhecer minha ternura.
Faço ar de dura,
muito sóbria e dura,
não pergunto
“da sombra daquele beijo
que farei?”
é inútil
ficar à escuta
ou manobrar a lupa
da advinhação.
Dito isto
o livro de cabeceira cai no chão.
Tua mão que desliza
distraidamente?
sobre a minha mão.(ATP,p.65)
A partir do cenário dos anos 70, o medo de “perder a cabeça por amor”, que era
Ante a possibilidade da dor do amor – “não pergunto/ da sombra daquele beijo/ que
adivinhação” resisto à manifestação dos desejos: “Não quero mais por poemas no papel.”
teus pés, a resistência é menor e o desejo do encontro sempre retorna, acha brechas e
manifesta-se, porque há uma persona mais desejante; “o livro de cabeceira cai no chão / Tua
mão que desliza/ distraidamente? / sobre a minha mão”. Depois do dito − “Dito isto” − ,
afirmado. “ Nem (quero) dar a conhecer minha ternura” escondia o desejo inverso da persona:
quero dar-te minha ternura. Desejo este revelado na mão que desliza “distraidamente”.
Há resistência à entrega desejada. Essa faceta moderna da persona feminina oscila entre a
Não me toques
nesta lembrança.
Não perguntes a respeito
que viro mãe-leoa
ou pedra-lage lívida
ereta
na grama
muito bem-feita
Estas são as faces da minha fúria [...](ATP,p.68-69)
lembrança”. A persona insiste com ameaça: “Não perguntes a respeito / que viro mãe-leoa /
ou pedra-lage lívida ereta.” Reações bem distintas: uma nos fala da animosidade da fera que
habita a fêmea, pronta a defender com violência, neste caso, não os filhotes, mas as
lembranças; outra inanimada por uma firmeza que abole os sentimentos e não se curva
(ereta). “Estas são as faces da minha fúria.” Ora, movida por uma ausência (mãe-leoa), ora
à mulher moderna, comportando-se como já fora previsto pela psicanalista Maria Rita Khel,
“sapato”, que em Cenas de abril podia ser lido (e foi por muitos críticos) como referência à
imagem da mãe) que rejeita a transferência do amor para o pai . Já em A teus pés o signo
“Aviso que vou virando um avião. Cigana do horário nobre do adultério [...] Pulo para
fora (mas meu salto engancha no pedaço de pedal?), não me afogo mais, não abano o
rabo sem gás de decolagem. [...] Não olho para trás [...] Não olho para trás. e sai da
frente que essa é uma rasante: garras afiadas, e pernalta.”(ATP,p.53)
sobretudo, liberdade de ação. Na metáfora do avião, a persona pode voar grande imagem
da liberdade. No ideário da igualdade feminista, nos anos 60-70, o único salto permitido é o
salto para fora das relações amorosas que aprisionaram a mulher, impondo condutas. Na
A animosidade da fera que tem garras afiadas, assim como a mãe leoa do outro
poema, não está mais a serviço da sedução do outro. É usada como força motriz (libido?) de
ela negue três vezes algum possível embaraço: ela não se afoga mais, não abana mais o rabo e
não olha para trás. Contradizendo-se, a persona não fica “aos pés de ninguém”, descobre-se
sujeito desejante de outros vôos. Não basta mais ser objeto do desejo do outro.
O medo do chiste às avessas desse “a teus pés”, que embora não deseje mais ser lido
como submissão, teme o paradoxo que propõe, enrijece: “atravanco na contramão”. Aliás,
19
contramão é palavra que aparece repetidamente na obra de Ana C, apontando sempre algum
independente” a iniciativa sexual é tomada pela persona feminina. Isso é feito com fúria e
violência, características atribuídas ao desejo sexual masculino, visto socialmente como algo
Mocidade independente
“Pela primeira vez infringi a regra de ouro e voei pra cima sem medir as
conseqüências. Por que recusamos ser proféticas? E que dialeto é esse pra a pequena
audiência de serão? Voei pra cima: é agora, coração, no carro em fogo pelos ares, sem
uma graça atravessando o Estado de São Paulo, de madrugada, por você, e furiosa: é
agora, nesta contramão.” (ATP, p.44)
A persona está furiosa pelas condutas impostas: não podemos ser proféticas? Que
dicção devemos usar em público? Furiosa, também, pelo desejo que arde em fogo pelos ares
A outricidade pode não ser privilégio feminino, mas de fato tem sido a temática das
mulheres que ousaram transgredir pela escrita. A persona feminina que proclama
feminino, de onde pulsam as paixões “que não medem conseqüências”? Como conciliar o
salto para fora (mundo público) com o salto fino do sapato que embaraça, ao mesmo tempo
Como ficar “a teus pés” pelo próprio prazer e não mais por submissão? Como aceitar
o gozo da entrega sem pudores, sem perder-se nas máscaras? O que fazer com o fogo
despertado?
“ FOGO DO FINAL”
No cenário das ideologias arrefecidas pelo período pós-ditadura, não parecia haver
fossem elas do mundo ficcional ou daquela realidade histórica. Havia mais consolo no
apaziguamento das paixões (pulsão de morte): uma maneira de calar os desejos que embora
despertados não conseguiam ainda realizações satisfatórias. No “fogo do final” há “um papel
que desistiu de dar recados” (e) “Nele eu sou eu e você é você mesmo”37. O ideal erótico da
junção dos corpos em um só, na busca da plenitude, não suporta a realidade: Eros arrefece,
O fogo do final
Os desejos de Ana poeta, manifestados nos poemas que criou, gerou e ainda gera
afrouxam os limites que as separam. O desconforto sinalizado nos quatro poemas finais de A
téus pés, culminando no fogo do final, acena o fim de um desejo que me parece relacionado
gêneros38
Diante do impasse causado pela transgressão, não foi apenas o “fogo” da ficção que
arrefeceu. Logo após o lançamento de A teus pés, Ana Cristina Cesar enfrenta forte depressão
AZEVEDO, Maria Helena Castro. Tesão do Talvez: a prosa de Ana C. Cesar o ato auto
biográfico. Tese PUC-RIO, 1989.
_____. Mulheres que falam demais. In: Escrita: revista dos alunos do Programa de
Mestrado e Doutorado em Letras da PUC-Rio. Rio de Janeiro, PUC, Depto. de Letras.
n. 3, jul./dez 1997. p. 225-226.
CAMARGO, Maria Lucia de Barros. Ana Cristina Cesar: uma leitura do feminino. In:
GAZZOLA, Ana Lucia Almeida (org). A mulher na Literatura. Belo Horizonte, UFMG,
1990.
CHAUI, Marilena. Laços do desejo. In: O Desejo. Adauto Novaes (org). São Paulo,
Companhia das Artes, 1990. p. 19-66.
CUNHA, Helena Parente. Mulheres Inventadas 2. Tempo brasileiro, Rio de Janeiro, 1997.
FREUD, Sigmund. Sexualidade feminina. In: Pequena Coleção das Obras de Freud. livro
9. Rio de Janeiro, Imago, 1974. p.77-97.
KEHL, Maria Rita. O desejo da realidade. In: O Desejo. Adauto Novaes (org). São Paulo,
Companhia das Artes, 1990. p. 363-82.
_____. A dor do amor, o Amor da Dor. In: A mínima diferença: masculino e feminino na
cultura. Rio de Janeiro, Imago, 1996. p. 89-95.
KEHL, Maria Rita. A psicanálise e o domínio das paixões. In: Os Sentidos da Paixão.
Adauto Novaes (org). São Paulo, Companhia das Artes, 1997. p.469-496.
LIMA, Regina Helena Souza da Cunha. O desejo na Poesia de Ana Cristina Cesar
(1953/1983) Escritura de T(es)Sex. São Paulo, AnnaBlume, 1993.
MORICONI, Ítalo. Ana Cristina César. O sangue de uma poeta. Rio de Janeiro, Relume
Dumará,1996 (Perfis do Rio).
OLIVEIRA, Rosiska Darcy de. Elogio da diferença. O feminismo emergente. 3 ed. São
Paulo, Brasilense,1993.
VIEGAS, Ana Cláudia. Bliss & Blue: Segredos de Ana C. São Paulo, AnnaBlume, 1998.
NOTAS
1
Moriconi, Ítalo. Ana Cristina César. O sangue de uma poeta. Rio de Janeiro, Relume Dumará, 1996 ( Perfis do
Rio).
2
“Leitura gendrada refere-se às particularidades próprias a meu universo cultural, à maneira distintiva como
minha subjetividade (construída nas relações intersubjetivas com essas mesmas e outras produções simbólico-
discursivas postas à disposição dos sujeitos sociais) se reconhece ao reconhecer aquilo que as práticas, os discursos, os
dispositivos sociais, enfim, circunscrevem sob o nome de feminino o qual, por ação dos mesmos dispositivos, se cola
a minha condição de mulher, definida pelo sexo a que pertenço.” (Segundo a definição de Vera Maria de Queiroz
Costa. Crítica Literária e estratégias de gênero. Depto. de Letras. PUC-Rio, Tese de Doutorado 1995, p. 14)
3
Moriconi, Ítalo. Op. cit., p. 69-70.
4
Oliveira, Rosiska Darcy de. Elogio da diferença. O feminismo emergente. 3 ed. São Paulo, Brasilense, 1993.
5
Lakoff, Robin. Language and woman’s place. New York, 1975.
6
Barbosa, Adriana Maria de Abreu. Mulheres que falam demais. In: Escrita: revista dos alunos do Programa de
Mestrado e Doutorado em Letras da PUC-Rio. Rio de Janeiro, PUC, Depto. de Letras. n. 3, jul./dez 1997. p. 226
7
Cesar, Ana Cristina. Escritos no Rio. São Paulo, Brasiliense, 1993. p. 141-142.
8
No sentido que nos propõe Roberto Corrêa dos Santos: glossarizar não para aprisionar ou tranqüilizar, mas sim para
fazer evadirem-se as significações. (Em, Para uma teoria da interpretação – Semiologia Literatura e
interdisciplinaridade. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1989. p. 132-133).
9
Cesar, Ana Cristina.Op. cit., p. 175.
10
Chaui, Marilena. Laços do desejo. In: O Desejo. Adauto Novaes (org). São Paulo, Companhia das Artes, 1990.
p. 22.
11
Kehl, Maria Rita. O desejo da realidade. In: O Desejo. Adauto Novaes (org). São Paulo, Companhia das Artes,
1990. p. 367.
12
Op. cit.
13
Freud, Sigmund. Sexualidade feminina. In: Pequena Coleção das Obras de Freud. livro 9. Rio de Janeiro,
Imago, 1974. p. 77- 97.
14
Moriconi, Ítalo. Op. cit., p. 99.
15
Cesar, Ana Cristina. Op. cit., p. 164.
16
Oliveira, Rosiska Darcy de. Op. cit., p. 55.
17
Op. cit., p. 83.
18
Cesar, Ana Cristina. Op. cit., p. 145.
19
Barbosa, Adriana Maria de Abreu. Envolvimento e Estilo Conversacional: Quando o sexo faz a diferença.
Análise de Estratégias de envolvimento nas cartas do(a) editor(a) em revistas femininas e masculinas. Departamento
de Letras. PUC-Rio, 1996. (Dissertação de Mestrado)
20
Cesar, Ana Cristina. Escritos no Rio. p. 139.
21
Cesar, Ana Cristina. Op. cit., p. 139.
22
Sob este argumento, já em 1930, Pagu criticava nas páginas do tabloide O Homem do Povo a masculinização das
feministas. O femininismo da diferença em meados de 80, revisita este primeiro momento feminista que impunha à
transgressão um apagamento das diferenças, que acabava por recalcar o feminino, assim como fazia o machismo,
sendo que com objetivo diferente: libertar as mulheres da “essência feminina” imposta pelo patriarcado.
23
Cesar, Ana Cristina.Op. cit., p. 145-146.
24
Palavra repetidamente usada nos poemas de ATP.
25
Argumento defendido por Gayatri Spivak, para quem não há ruptura sem repetição (em, Quem reivindica
alteridade? O feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro, Rocco, 1994. p. 187-205).
26
Entrevista dada aos alunos no curso ministrado pela profa. Beatriz Resende, na Faculdade da Cidade em 6 de
abril de 1983. Cesar, Ana Cristina. Escritos no Rio.
27
Cesar, Ana Cristina. Op. cit.,. p. 201.
28
Op. cit., p. 196.
29
Op. cit., p. 199.
30
Cunha, Helena Parente. Mulheres Inventadas 2. Tempo brasileiro, Rio de Janeiro, 1997. p. 53.
31
Imagem recordada pela conversa informal em minha casa, com o amigo, mestre em Literatura, professor e leitor de
Ana C. Idemburgo Frazão Felix.
32
Kehl, Maria Rita. A dor do amor, o Amor da Dor. In: A mínima diferença: masculino e feminino na cultura.
Rio de Janeiro, Imago, 1996. p. 92.
33
Cesar, Ana Cristina. Op. cit., p. 196.
34
Kehl, Maria Rita. Op. cit, . p. 90.
35
Moriconi, Ítalo. Op. cit.p.101
36
Kehl, Maria Rita. Op.cit., p. 89.
37
Cesar, Ana Cristina. A teus pés. São Paulo, Ática,1998. p. 81-83.
38
Moriconi, Ítalo. Op. cit., p.71