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TRANSGRESSÃO, IDENTIDADE FEMININA E OUTRICIDADE NA POESIA

MARGINAL DE ANA C.
Adriana Maria de Abreu Barbosa

DAS MARGENS POR/EM ANA CRISTINA CESAR

Tantas considerações poderiam ser feitas a respeito da contribuição literária de Ana

Cristina Cesar à literatura marginal brasileira dos anos 70. Breve contribuição, devido à sua

morte precoce, porém intensa e revolucionária e por isso mereceu e merece tantas leituras. Só

para citar alguns temas evocados por sua obra, poderíamos falar da sua inserção como

militante e escritora, mulher de conscientização política sobre o ato de escrever no cenário

político-cultural em que vivia, produtora de textos nos quais há um freqüente

entrecruzamento entre crítica e poesia. Ou ainda considerar as marcas do literário numa

poesia antiliterária do cotidiano ligada à proposta estética da literatura marginal, da qual fazia

parte indubitavelmente1. E mais, sua inscrição no pós-modernismo pelo uso e abuso das

paródias remetendo incessantemente a tantas (re)leituras que por vezes desnorteiam o leitor:

percebe-se que os vazios da significação seriam preenchidos com leituras implícitas, nem

sempre recapituladas. Sem falar, é claro, nas pistas da temática da morte que o leitor curioso

sempre perseguirá para unir vida-obra, tentando, entre outras coisas, responder se o texto de

Ana C é mais ficcional ou confessional. A mim parece impossível separar tais atributos de

qualquer texto, restando-nos apenas aferir os graus de aproximação que este estabelece com o

real.

Entretanto, de tudo isso que a princípio poderia ser dito depois de ler Ana, minha

leitura gendrada2 sensibilizou-se com o título de sua última publicação em vida – A teus pés.

Como ler esse título, em pleno deflagramento do feminismo no Brasil, sob a assinatura

de uma autora marginal, cuja postura ética/estética frente à convivência nos ambientes
2

intelectuais da época evidenciava “(o) ódio visceral que Ana nutria por esses climas

machistas brasileiros, de clube do bolinha [...] (e) a postura das próprias luluzinhas [...] que

queriam pulular em volta do clube do bolinha!” (nas palavras do amigo, poeta e crítico

literário Italo Moriconi3).

Sob o título de A teus pés (ATP), Ana C publica em 1982 uma coletânea de novos

poemas, reunindo-os, nesta mesma publicação, ao seus livros anteriores Cenas de abril,

Luvas de pelica e Correspondência completa. No presente ensaio seleciono e analiso poemas

de A teus pés em comparação com os de Cenas de abril. Foram também referências

importantes para este trabalho uma entrevista e alguns ensaios jornalísticos da autora reunidos

no livro Escritos no Rio.

A TEUS PÉS

Desde o título há referência a outrem. O outro é o centro. O outro me centra, e só

assim posso falar de identidade. Sob a abordagem psicanalítica, somos retirados do princípio

do prazer pelo corte profundo causado pelo reconhecimento da existência de um outro (a

mãe) que parecia ser parte nossa. Daí, crescer implica reconhecer o outro e as derivações

afetivas deste reconhecimento no/do outro.

A leitura interdisciplinar aqui proposta revisita o conceito de alteridade defendido pela

crítica feminista de abordagem francesa4, que define a possibilidade de uma escritura

feminina como uma escrita/fala outro-centrada. A linguagem da conexão feminina prioriza a

informação relacional (metamensagem) o que delineia uma fala mais indireta, no intuito de

preservar as relações com os outros. Lakoff, pioneira nos estudos lingüísticos de gênero5,

aponta uma linguagem que é ensinada à mulher para que pareça uma “dama”, e ilustra isto de

forma bem clara, ao analisar a fala de Marilyn Monroe: ela podia não saber o que estava
3

falando (mensagem), mas sabia para quem (interlocutor) estava falando. Em outro ensaio,

abordei as características e conseqüências desta suposta linguagem feminina:

Educadas para agradar, as mulheres engendraram uma identidade que provém da


interação com os outros. Para tal, desenvolveram habilidades comunicativas nas quais
se prioriza a informação relacional. As mulheres já sabiam [...] fala-se,
principalmente, para que relacionamentos sejam estabelecidos e mantidos.6

Menos pela essência feminina (como algo inerente a um corpo de mulher), do que pela

experiência (como algo vivido/experienciado na cultura feminina), sugere-se inscrever sob o

rótulo de literatura feminina, textos que retratem esse universo confessional e intimista das

cartas pessoais, ou mesmo dos diários íntimos; nestes desloca-se um “eu” para fora de si,

colocando-o no lugar do outro, nesse escrever para si mesmo. Sob esta perspectiva, importa

menos o sexo de quem escreve e mais um deflagrar de uma experiência, que, entretanto, na

maioria das vezes, aparece sob uma assinatura de mulher.

Contudo, falar sobre esta experiência feminina recai sempre nos conceitos

cristalizados socialmente pelo senso comum que conceituou e ainda conceitua o feminino

como oposição binária ao masculino. A crítica a esta posição binária está nas palavras da Ana

C ensaísta, no temor do que poderia significar o rótulo de poesia feminina como apropriação

de uma cultura machista:

... alas da dicção nobre, do bem falar, do lirismo distinto, da delicada perfeição.
Quando as mulheres começam a produzir literatura, é nessa via que se alinham.
Repare que não estou criticando Cecília, mas examinando a recepção da sua poesia, o
lugar que ela abre [...] Marcaram [ Cecília Meireles e Henriqueta Lisboa ] não
presença de mulher, mas a dicção que se deve ter, a nobreza e o lirismo e o pudor que
devem caracterizar a escrita de mulher.7

Porém a mesma Ana C, três anos depois, ao comentar o livro de Marilene Felinto, As

mulheres de Tijucopapo, o define como um livro de mulher, por contar femininamente

(destaque meu e da autora) a história. E sobre a rubrica do feminino, Ana C glossariza8 o

advérbio “femininamente” da maneira como este ensaio reconhece a própria poesia da

autora:
4

Femininamente significa aqui: de forma errante, descontínua, desnivelada, expondo


com intensidade muito sentimento em estado bruto. Significa também: dirigindo-se
eternamente a um interlocutor, falando sempre para alguém, como uma carta imensa.
Mas ao mesmo tempo esse feminino trasborda um excesso inquietante (...) à beira de
uma impossibilidade de afirmar, afirmar-se, dar forma, acabar-se.9

Esse femininamente tem, por obviedade, um “masculinamente” que lhe é opositor e

corrobora para o delinear de um acordo tácito sobre gêneros. Acordo este que mesmo, ou

sobretudo, na transgressão será evocado para ser desconstruído.

É assim que, por oposição, escrever/falar masculinamente significa fazê-lo sem

desvios, com objetividade, centrado na clareza da mensagem e não no interlocutor. O estilo

masculino seria então caracterizado por mensagens claras, diretas e impessoais.

A leitura que se faz aqui da “derradeira” poesia de Ana Cristina Cesar, no conturbado

cenário dos anos 70-80, propõe uma nova significação dentro deste abrangente senso comum

sobre gêneros feminino/masculino. Para tal (re)direcionamos o olhar sobre a poesia de Ana

C. E com a ajuda da abordagem psicanalítica, procuramos suscitar a força de Eros, que

mobiliza uma energia de construção de identidade  nos textos de Ana, uma identidade

feminina  energia esta que corre o risco de não conseguir nos levar a perceber o que

deveria ser apenas um chiste  A teus pés.

EROS E O DESEJO

Em suas considerações sobre o desejo, Marilena Chaui retoma a origem da palavra

desiderium resgatando uma ambigüidade semântica: decisão ou carência. Sidera relacionado

à influência dos astros sobre o destino gerou considerare e desiderare. O primeiro designando

examinar com cuidado e veneração, enquanto o segundo remete a um cessar de olhar para o
5

“alto”10. Isto é, ao desejar, se é tomado por uma vontade de decidir o próprio destino,

privando-se das certezas causadas por um saber de um futuro já inscrito nas estrelas.

A psicanálise parece resolver esta ambigüidade ao designar Eros como o desejo de

decidir viver  em contraposição a um desejo de decidir morrer, Thanatos  em busca de

reviver a lembrança de uma satisfação e plenitude, isto é um desejo/decisão de saciar a

ausência. Para Freud, o desejante é aquele que perdeu algo e é para sempre cindido por esta

perda e apegado a ela.

Curioso notar, segundo esta abordagem, que o desejo nasce da interdição “já que no

Princípio do Prazer não se pode falar exatamente em desejo justamente pela vinculação

imediata entre a necessidade e a satisfação”11. Temos, então, a primeira das interdições:

minha mãe não é minha, nem eu sou dela. Ela é “outra” pessoa, ela não sou eu. De modo

que o nascer do desejo se dá simultaneamente à descoberta do “outro”, e conseqüentemente, à

descoberta da identidade. A subjetividade se constrói desde a sua origem por oposição à

alteridade imposta.

É assim que o Princípio da Realidade (códigos sociais) desde a primeira interdição

instaura o desejo através da repressão. Admitir a perda da plenitude enfrentá-la e decidir

revivê-la com outros objetos de desejo possíveis, é seguir a pulsão de Eros, energia sexual,

que impulsiona o assumir-se como sujeito da sua própria história, ao invés de entregar-se aos

apelos tensionadores de Thanatos, um convite à satisfação primitiva de não ser sujeito.12

Entretanto, o desejo reprimido é empurrado para o território da ilegalidade: o inconsciente.

O sonho de matar as saudades da paixão pré-edípica  eu e o outro somos um só 

embala a busca afetiva. Esta simbiose perfeita estaria metaforizada no próprio ato sexual:

dois corpos que se tornam um. E desta união resultaria o gozo, experiência revivida da

satisfação primeira, daí o orgasmo ser chamado de petite mort. Eros realizado aproxima-se de

Thanatos, o que nos faz crer que Freud devia ter razão ao definir essas duas pulsões como

determinantes para o sujeito cindido. Mas o ciclo não pára. A cada aplacar de um desejo,
6

instaura-se outro. Viver resultaria, então, nesta decisão de deslocar o desejo para diversos

objetos de desejo.

O que falar então dos desejos sexuais femininos que sofrem, segundo o próprio Freud,

duplo abandono: do clitóris, à vagina; da mãe, ao pai ? E ainda, segundo ele, como instaurar

a lei pelo medo, se elas não têm nada a perder? Em “Sexualidade feminina”13 Freud faz

considerações sobre as possíveis implicações do Complexo de Édipo nas mulheres, tendo em

vista que nelas, diferentemente do que ocorre com os meninos, a castração não é uma ameaça

que acarreta a internalização das leis sociais e, conseqüentemente, a criação do superego.

Fascinado e amedrontado, como todos os meninos, Freud responde parcialmente questões

relacionadas à sexualidade feminina, deixando perpetuada até os nossos dias, a imagem da

mulher como enigma.

Se o desejo nasce concomitante à imposição de reprimi-lo, o que falar dos desejos das

mulheres que viveram e ainda vivem sob as mais diversas interdições? Sabe-se que até hoje,

em comunidades orientais e africanas, mulheres retiram o clitóris e cortam os grandes lábios

de outras mulheres com giletes porque isso é imposto e justificado pela cultura religiosa local.

Assim como o sonho, a poesia é escritura do desejo, ao valer-se de metáforas

(condensação de significados) e metonímias (deslocamento para outros objetos). Ao abolir a

lógica, instaura-se uma outra poética, que é a de fazer falar aquilo que a razão calou. Refiro-

me à força poética que, movida por Eros, resgata os desejos inconscientes da memória que

nunca é somente pessoal, mas também coletiva.

Nesse sentido, relemos o texto de Ana Cristina Cesar, em sua força de resgate dos

desejos femininos despertados no cenário dos anos 70/80 pela forte influência feminista no

repensar das questões de gênero.

Interessa-nos, entretanto, ir além dessa consciência de gênero que marca uma geração

de mulheres pioneiras. Buscamos o sujeito, no caso feminino, onde ele não fala. Interessa-

nos o inconsciente feminino sinalizado/indiciado na poesia erótica de Ana C. , na medida em


7

que o trabalho onírico do texto-sonho deseja/decide resgatar ausências no intuito de criar

novas biografias de mulher.

ELABORANDO DESEJOS

O primeiro poema de A teus pés não têm título, ocupa quatro páginas de texto que

“despistam” a estética do poema, metamorfoseando-o em roteiro para teatro ou TV, logo de

início: “Trilha sonora ao fundo; piano no bordel, vozes barganhando uma informação

difícil”. Mais adiante esse “desejo” se explicita no uso de uma terminologia típica da

dramaturgia “Primeiro ato da imaginação”. E nesse gozo da criação poética desfazem-se os

limites dos gêneros literários (roteiro/poesia/confidências/diário) e inventa-se não uma

realidade, mas uma biografia de persona feminina:

[...] Memórias de Copacabana. Santa Clara às três


da tarde.
Autobiografia. Não, biografia.
Mulher. [...] (ATP, P. 35)

Uma biografia de mulher que oscila entre “muito sentimental” “Agora pouco

sentimental” que “pensa no seu amor de hoje que sempre dura menos que o seu amor de

ontem”, mas afirma “agora sou profissional”. E neste diálogo com o outro vai se delineando

uma mulher de confidências: “E a última, eu já te contei?”

Ainda no mesmo poema, nesse cenário de intimidades, “algo permitido em nossa

cultura para mulheres e proibido para os homens”14 não mais em atos, mas em histórias

narradas  “Segunda história rápida sobre a felicidade”  a persona, ao contar “então do

amor distante”, confidencia: “não posso mais duvidar dos meus passinhos”.

[...] Ah que estou sentida e portuguesa, e agora não sou mais, veja,
não sou mais severa e ríspida: agora sou profissional.
Segunda história sobre a felicidade  descendo a colina
ao escurecer  meu amor ficou longe, com seu ar de não ter
dúvida, e dizia: meus pais...  não posso mais duvidar dos
meus passinhos, neste sítio[...] (ATP,p.39-40)
8

Hesitante e cindida pela perda de um amor, a persona se diz profissional. Quando ela

afirma identidade autônoma na metáfora da recusa de duvidar dos próprios passos, utiliza da

ironia do diminutivo, tão apropriado às mulheres de outrora. Dentre as marcas apontadas

para uma fala feminina, o uso do diminutivo contribui para a construção de um self

impregnado de afeto tão desejável a uma “lady”. Isto também fora percebido por Ana C

ensaísta, ao discutir o gênero literatura feminina e considerá-la como marcada por “uma

sintaxe meio infantil, às vezes levemente estropiada e cortada por diminutivos”15.

O uso do diminutivo parece estratégico para a atmosfera de deboche característica da

poesia de Ana C. Sabe-se que o diminutivo costuma marcar afetividade na fala feminina, mas

pode também ser interpretado como infantilização. Os “passinhos” remetem a uma

fragilidade inapropriada à mulher que agora é “profissional”.

O riso desencadeado pela ironia fora por muito tempo reservado ao mundo masculino.

Não ficava bem a uma dama nem se dar muito a risos, muito menos provocá-los. A lingüista

Lakoff aponta entre as características de uma suposta linguagem feminina a demonstração de

completa inabilidade para contar piadas. O universo do humor, principalmente o picante, era

reservado à fala masculina.

É assim que a persona na poesia de Ana C transgride duplamente: ideologicamente, ao

falar de desejos femininos, e esteticamente, ao fazê-lo numa dicção de deboche. Essa dicção

irônica, peculiar a sua obra, marca nuances estéticas distintas na abordagem do tópico sexo

em Cenas de abril e em A teus pés.

Em Cenas de abril, a transgressão consistia em utilizar uma dicção masculina de

humor tão “antenada” às primeiras discussões feministas, que proclamavam a igualdade por

localizar nas “diferenças” o pretexto para justificar as desigualdades. Segundo Rosiska Darcy

Oliveira “as mulheres passaram a fronteira do mundo dos homens escamoteando o lado

feminino da vida”16. Para se afirmarem como seres autônomos e independentes no espaço

público, elas introjetaram a norma do discurso masculino17.


9

Em Cenas de abril, a ironia consiste em comentar masculinamente, em deboche, o que

“.... você jamais podia esperar da senhora sua tia”.18

Ele é o quarto Augusto. Avisou que vinha.


Lavei os sovacos e os pezinhos. Preparei o chá.
Caso ele me cheirasse... Ai que enjôo me dá o
açúcar do desejo (ATP,p.93)

Apesar da atmosfera feminina desencadeada pelos signos a espera , “os pezinhos”

“preparar o chá” e “o enjôo do desejo”, a referência ao tipo de higiene “deficiente” para uma

mulher, somada à força do vocábulo “sovaco” em contraste com os demais termos femininos,

desmistifica a suposta fragilidade da mulher aos encontros “sexuais”. A persona debocha

desse lugar da espera, dos desmaios, dos preparos para o homem.

Em Ana C, a diretividade, complementa o riso desencadeado pelo deboche. A persona

feminina diz diretamente o que, até então, não se esperava ouvir das mulheres da realidade

histórica. A diretividade contribui para o que se considerou a fala do relato masculina em

oposição à fala relacional feminina19, já que aquela, ao priorizar a informação propriamente

dita, desconsidera recursos que podem modalizar possíveis afetos despertados pelos

enunciados.

Em Cenas de abril a diretividade é a dicção prestigiada para tratar de sexo, seja ele o

ato, ou órgão:

Arpejos

Acordei com coceira no hímen. No bidê com espelhinho


examinei o local. Não surpreendi indícios de moléstia. Meus
olhos leigos na certa não percebem que um rouge a mais tem
significado a mais. Passei pomada branca até que a pele(rugosa
e murcha) ficasse brilhante ... (ATP,p.96)

Ana poeta escreve sobre os genitais femininos, sem aquela dicção, supostamente

esperada para o feminino, conforme fora definida pela própria Ana em textos de crítica

literária: “feminina delicadeza, aflorando coisas, os seres, com dedos fugidios... dedos não

agarram20. Essa abstração, supostamente feminina, que não delimita, não se interessa pelo
10

concretizar, mas sim o transfigurar, não cabe no descrever sem eufemismos de uma vagina

que coça. “Passei pomada branca até que a pele (rugosa e murcha) ficasse brilhante”.

Inserida na estética marginal da poesia do cotidiano, a transgressão em Cenas de abril

consiste neste dizer as verdades masculinamente (registro), isto é, no que era uma fala

esperada como masculina, dita “doa a quem doer”, porque assim se faz revolução

(ideologia). E a revolução consistia, entre outras coisas, em desmistificar uma suposta

essência feminina colada a todas as mulheres. Deste modo, o projeto modernista da

cotidianidade como recusa à idealização do real, na poesia de Ana C, recusa uma idealização

da mulher. “[...] não haveria por trás dessa concepção fluídica de poesia um sintomático calar

de temas de mulher, ou de uma possível poesia moderna de mulher, violenta, briguenta,

cafona onipotente, sei lá?”21

Entretanto, resvala nessas certezas um sujeito feminino que hesita e desconfia de que

“fala onde não é”: “meus olhos leigos na certa/não percebem que um rouge a mais/tem

significado a mais”

Algo escapa a consciência dessa persona sobre esse significado a mais dessa cor

“rouge” da sua própria vagina. Em A teus pés, parece-me que mais liberta de uma

consciência coletiva de gênero daquele contexto revolucionário22, a persona

recupera/relembra desejos inconscientes, reprimidos duplamente: primeiro pela vigência do

patriarcado em nossa cultura falocêntrica, depois pelas exigências de um feminismo às vezes

ditatorial, embora necessário, conforme nos orienta a própria Ana C, crítica literária: “O que

me está parecendo é que essa virada dá no mesmo: recorta novamente com alguma precisão,

o exato espaço e tom em que a mulher (agora moderna) deve fazer literatura23. Neste sentido,

em A teus pés há dupla transgressão.

Em A teus pés o “rouge”/vermelho transmuta-se em cor-de-rosa e não há mais

deboche para reconhecer-se como alguém que não sabe de si: “cara pálida que desconhece o

próprio cor-de-rosa”. Esteticamente menos “ousada”, porque perdeu a força da ironia, em


11

“Samba-Canção” a persona feminina se apresenta menos arrogante (nova dicção), delineando

alguém menos “masculino” (nova mulher?):

Samba-canção

Tantos poemas que perdi.


Tantos que ouvi, de graça,
pelo telefone  taí,
eu fiz tudo pra você gostar,
fui mulher vulgar,
meia-bruxa, meia -fera,
risinho modernista
arranhado na garganta,
malandra, bicha,
bem viada, vândala,
talvez maquiavélica,
e um dia emburrei-me,
vali-me de mesuras
(era uma estratégia)
fiz comércio, avara,
embora um pouco burra,
porque inteligente me punha
logo rubra, ou ao contrário,cara
pálida que desconhece
o próprio cor-de-rosa,
e tantas fiz, talvez
querendo a glória, a outra
cena à luz de spots,
talvez apenas teu carinho,
mas tantas, tantas fiz.....(ATP,p.72)

Nesse cair em si, a persona reconstitui uma série de máscaras usadas para “ser

mulher”. Máscaras socialmente oferecidas, não importando se mais ou menos adaptadas às

normas vigentes. Às vezes mais retrógradas outras, avançada, a persona enuncia-se: fui

mulher vulgar,”/meia-bruxa, meia fera,/risinho modernista”

Numa tentativa do enquadrar-se, que é muito mais ser reconhecido por um outro, do

que reconhecer-se, a persona perde-se na teatralização. No jogo de representar para o outro

os diversos papéis sociais reservados a uma mulher, a persona acaba representando para si e

cai em contradições: “… emburrei-me, / vali-me de mesuras / (era uma estratégia) / fiz

comércio, avara, / embora um pouco burra / porque inteligente me punha”.


12

Além das estratégias, persistiam as máscaras, e as maquiagens já mencionadas

naquele “rouge” transformado em branco da pomada que agora é o cor-de-rosa escondido

pela máscara pálida da cara.

Essa mistura de referências à face e ao sexo (o cor-de-rosa também como metáfora

da vagina, como fora o “rouge”) desloca um pelo outro metonimicamente para falar de

identidade e sexualidade. E, embora distinta nas formas de dizer-se, tematizam uma

identidade e uma sexualidade em construção simultâneas. Esse saber de si, implica

necessariamente um saber de seu sexo. Algo que fora negado às mulheres durante séculos.

Perdida nas representações para os outros, como saber de si?

Do vermelho ao rosa há pistas de um desejo de abandonar a violência da paixão

utópica que consumia a persona em Cenas de Abril. Mas o “fogo”24 ainda está lá em A teus

pés, embora se reaja menos abruptamente (irônica e violentamente) ao seu calor.

MAIS “TOCADA PELO FOGO”

Em A teus pés a força estética consiste em brincar mais com as ambigüidades, apesar

delas serem evocadas muito assertivamente. A assertividade da dicção não esconde a

ambigüidade como tema do feminino; um deslizar do desejo.

Sete chaves
Vamos tomar chá das cinco e eu te conto minha
grande história passional, que guardei a sete
chaves, e meu coração incompassado entre
guafrettes. Conta mais essa história, me
aconselhas como um marechal do ar fazendo alegoria. Estou tocada pelo fogo. Mais
um roman à clé?
Eu nem respondo. Não sou dama nem mulher moderna
Nem te conheço. Então:
É daqui que eu tiro versos, desta festa – com arbítrio silenciosos e origem que não
confesso – como quem apaga seus pecados de seda, seus três monumentos pátrios, e
passa o ponto e as luvas.(ATP,p.32)

O “universo feminino” delimitado entre as confidências/aconselhamentos da hora do

chá está mais uma vez preservado, entretanto, já não há tanta ironia ao retratá-lo. O prazer do
13

riso está garantido nas delícias do paradoxo – “te conto (o) que guardei a sete chaves / tiro

versos(cuja)[...] origem não confesso[...] Não sou dama, nem mulher moderna”.

Ambigüidade é acordada socialmente como atributo do feminino, um dos quais

justifica a imagem do enigma: toda mulher é uma esfinge pedindo deciframentos.

Inverno europeu

... Recomendo cautela. Não sou personagem do seu livro e nem que você queira não
me recorta no horizonte teórico da década passada [...].eu de conviva não digo nada e
indiscretíssima descalço as luvas(no máximo), à direita de quem entra.” (ATP,p.41)

Valendo-se dos paradoxos para deslizar e não ser capturada pelos conceitos, a persona

transgride por repetição25: cala-se, não diz nada. Não tira os véus, mas descalça as luvas num

mostrar-se parcialmente (no máximo as luvas), criando uma atmosfera de sedução. Primeiro

nega, depois se cala, por fim seduz: persona enigmática.

Eros apresenta-se sob outros contornos. Nem sinal de “hímen que coça”, embora deva

haver algum por trás da “história passional”, do “coração incompassado” e da “festa” de onde

tira os versos. Todos esses signos nos remetem aos desejos de uma persona “tocada pelo

fogo”. Entretanto, há mais insinuação e menos deboche, nesta nova dicção do dizer dos

desejos. Mas ainda há desejo que pulsa, embora manifestado em outra linguagem.

Esta outra linguagem parece aproximar-se de um femininamente defendido pelo

feminismo da diferença e glossarizado pela própria autora em ensaio crítico. Nesse falar mais

femininamente do que masculinamente destaca-se a nova dicção de A teus pés. Uma das

principais marcas desta dicção está na questão da fala outro-centrada feminina, sugerida pelo

título, materializada esteticamente e ideologicamente nos poemas e apontada nas palavras da

autora: “Isso significa que aqui existe, de uma maneira muito obsessiva, essa preocupação

com o interlocutor, que eu acho, inclusive, que é um traço duma literatura feminina.”26

Mais “tocada pelo fogo”, em A teus pés, a persona deseja mais entrega e menos riso.

O poema-sonho desrepressor dos desejos, faz com que estes fiquem à mercê dos leitores,
14

conforme nos orientam as palavras da autora em entrevista: “Eu estou a teus pés leitor. Isso

representa, digamos, o escancaramento do desejo”27.

Por isso a autora insiste em dizer da alegria da entrega em A teus pés. “A teus pés é

um livro alegre.28 Alegria proveniente do desejo da entrega erótica: desejo de tornar um.

Entregar-se ao outro apaziguaria a tensão do sujeito desejante, pois através da “religação” o

sujeito mataria as saudades pré-edípicas.

Mas A teus pés também remete a imagem religiosa de “aos pés da cruz”, uma

referência sugerida pela própria autora: “Eu gosto deste título, porque, em primeiro lugar, ele

sugere uma devoção religiosa, é a primeira coisa, não é?”29. Em suma, A teus pés fala da

entrega amorosa que pode, inclusive, remeter à imagem religiosa, já que eros, força de

comunhão, pode manifestar-se na prática religiosa, conforme nos orienta a abordagem

psicanalítica: “a nostalgia humana da unidade perdida que a fusão dos seres aplaca na relação

erótica, também encontra seu momento de resgate na experiência religiosa, bastando lembrar

o re-ligar da origem etimológica.”30

Ficar aos pés da cruz é, na verdade, fortalecer-se a partir da entrega. Cristo ao beijar

os pés dos infermos, curava-os, pois a força estava nele31. Nessa ressemantização do curvar-

se como fortaleza/grandiosidade de quem se curva e não submissão parece estar o chiste desta

poesia marginal, escrita por uma mulher de vanguarda. Repetir, para transgredir.

À mercê, ou a teus pés ressemantizam-se, na poesia de Ana C e já não podemos pensar

em um eu lírico subjugado. Ao contrário, é preciso muito livre arbítrio para ficar aos pés do

outro. Talvez haja alguma melancolia, reflexo da ausência que impulsiona o desejo na

persona, recuperando, assim, a etimologia da palavra proposta por Chauí: decisão e ausência.

Mas há sobretudo gozo. Gozo feminino da entrega, no destemor com que as mulheres fazem

dom de sua castração, com um saber que é o prazer apesar da dor.32

Entretanto, o gozo da entrega não é pleno, algo fica engasgado na garganta. “A teus

pés é um livro alegre [...]agora sempre há uma coisa que não foi dita”33. Quanto maior a
15

entrega, maior a incomunicabilidade do dizer-se sob a égide do Princípio da Realidade:

normas masculinas do discurso, Lei do Pai.

Sem transgressão da lógica que estrutura os discursos (sintagmas nominais e verbais,

sentenças gramaticais aceitáveis), não há contato real com as emoções represadas no

inconsciente. A entrega, ao aproximar-nos dos desejos represados, nos deixa à mercê de uma

linguagem outra, inconsciente, corpórea.

Noite carioca

Diálogo de surdos, não: amistoso no frio.


Atravanco na contramão. Suspiros no
contrafluxo. Te apresento a mulher mais discreta
do mundo: essa que não têm nenhum segredo.(ATP,p. 42)

Nesse mostrar-se que dispensa as palavras, ao valer-se dos suspiros, há uma mulher

que se apresenta a alguém discreta, mas sem segredos. E suspira. Comunica-se no pré-

simbólico, com a linguagem corpórea, tão apropriada ao assunto do poema: conversa de

amor. Menos palavras, mais entrega.

Vários poemas fazem referência a um silenciar. Não mais o silêncio imposto

socialmente à feminilidade, porém, uma outra forma de comunicação. Calar-se, não por

submissão, mas para valer-se de outros códigos. Um silêncio estratégico e por escolha.

Esta linguagem estratégica do feminino parece recusada pela faceta da mulher

moderna que desafia o cânone em plena vigência do patriarcado. Quando foram silenciadas,

as mulheres não foram apenas impedidas de falar, mas foram consideradas “histéricas” por

falarem uma linguagem que fugia às normas da eficiência comunicativa. Centrada nos

sentimentos do interlocutor, a fala feminina sempre foi considerada confusa, daí a

perplexidade masculina eternizada na célebre indagação: afinal o que quer uma mulher?

Assim, entrar no mundo masculino exigiu num primeiro momento, calar essa linguagem das

pulsões, que o novo feminismo da diferença veio resgatar.


16

Quantos séculos de civilização, quanta ideologia, quantos interesses mais dignos –


profissionais, narcísicos, políticos – tiveram que se interpor entre as mulheres e seu
bem maior, o amor, para nos defender de sofrer assim.34

IDENTIDADE x OUTRICIDADE

A outricidade evocada femininamente em A teus pés fala-nos desse desejo da persona

feminina em entrar em contato com as pulsões represadas, primeiro pelo falocentrismo,

depois pelo “politicamente correto” do feminismo.

Assim, o fogo repetidamente enunciado em A teus pés, evidencia o desejo de entrega.

Ou melhor, o próprio desejo insinua-se com mais ternura, sem o deboche do “enjôo do

desejo” (Cenas de abril), entretanto ainda oscila entre a entrega e o esquecimento. Resiste.

Cabeceira
Intratável.
Não quero mais pôr poemas no papel
nem dar a conhecer minha ternura.
Faço ar de dura,
muito sóbria e dura,
não pergunto
“da sombra daquele beijo
que farei?”
é inútil
ficar à escuta
ou manobrar a lupa
da advinhação.
Dito isto
o livro de cabeceira cai no chão.
Tua mão que desliza
distraidamente?
sobre a minha mão.(ATP,p.65)

A partir do cenário dos anos 70, o medo de “perder a cabeça por amor”, que era

fantasia apenas masculina, passa a aterrorizar também o imaginário feminino da “mulher

moderna”, já que transgredir, naquele momento, exigia abandonar, temporariamente, os

territórios do feminino, que impossibilitaram a mulher por tantos anos de ingressar no

domínio público, subjugando-as ao domínio do pátrio poder.


17

Ante a possibilidade da dor do amor – “não pergunto/ da sombra daquele beijo/ que

farei?” e da dor do não entendimento – “é inútil/ ficar à escuta/ ou manobrar a lupa/ da

adivinhação” resisto à manifestação dos desejos: “Não quero mais por poemas no papel.”

Como bem observa Moriconi35, “a concretização de eros na poesia de Ana aparece

sempre como algo intrinsecamente problemático, complicado, hesitante”. Entretanto, em A

teus pés, a resistência é menor e o desejo do encontro sempre retorna, acha brechas e

manifesta-se, porque há uma persona mais desejante; “o livro de cabeceira cai no chão / Tua

mão que desliza/ distraidamente? / sobre a minha mão”. Depois do dito − “Dito isto” − ,

manifesta-se em outra linguagem , a do toque, justamente o contrário daquilo que foi

afirmado. “ Nem (quero) dar a conhecer minha ternura” escondia o desejo inverso da persona:

quero dar-te minha ternura. Desejo este revelado na mão que desliza “distraidamente”.

Nesta discrição/indiscrição deste contar/não contar, o desejo desliza. Ambigüidades.

Há resistência à entrega desejada. Essa faceta moderna da persona feminina oscila entre a

decisão da entrega, ou o fixar-se na melancolia da perda (ausência). Em “Pour mémoire” o

desejo desliza entre o lembrar e o esquecer .

Não me toques
nesta lembrança.
Não perguntes a respeito
que viro mãe-leoa
ou pedra-lage lívida
ereta
na grama
muito bem-feita
Estas são as faces da minha fúria [...](ATP,p.68-69)

Contrapondo o título, os dois primeiros versos ordenam: “Não me toques nesta

lembrança”. A persona insiste com ameaça: “Não perguntes a respeito / que viro mãe-leoa /

ou pedra-lage lívida ereta.” Reações bem distintas: uma nos fala da animosidade da fera que

habita a fêmea, pronta a defender com violência, neste caso, não os filhotes, mas as

lembranças; outra inanimada por uma firmeza que abole os sentimentos e não se curva

(ereta). “Estas são as faces da minha fúria.” Ora, movida por uma ausência (mãe-leoa), ora

por uma decisão (pedra-lage): desejo de esquecer.


18

Entretanto, a persona se mantém sob controle, ao controlar emoções tão inapropriadas

à mulher moderna, comportando-se como já fora previsto pela psicanalista Maria Rita Khel,

em suas recentes considerações sobre o imaginário feminino: “Que mulher pós-feminismo

aceitaria viver o arrebatamento, a entrega e depois o dilaceramento...?”36

Ainda sobre esse desajustamento frente à entrega, notamos a mudança da metáfora do

“sapato”, que em Cenas de abril podia ser lido (e foi por muitos críticos) como referência à

um homossexualismo  a menina narcísica (apaixonada por si mesma, embora refletida na

imagem da mãe) que rejeita a transferência do amor para o pai . Já em A teus pés o signo

sapato ressemantiza-se, passando a ser adereço da feminilidade.

Atrás dos olhos das meninas sérias

“Aviso que vou virando um avião. Cigana do horário nobre do adultério [...] Pulo para
fora (mas meu salto engancha no pedaço de pedal?), não me afogo mais, não abano o
rabo sem gás de decolagem. [...] Não olho para trás [...] Não olho para trás. e sai da
frente que essa é uma rasante: garras afiadas, e pernalta.”(ATP,p.53)

O salto, que ora é do sapato, ora é movimento abrupto em relação ao outro, é,

sobretudo, liberdade de ação. Na metáfora do avião, a persona pode voar  grande imagem

da liberdade. No ideário da igualdade feminista, nos anos 60-70, o único salto permitido é o

salto para fora das relações amorosas que aprisionaram a mulher, impondo condutas. Na

transgressão ela é “cigana do adultério”.

A animosidade da fera que tem garras afiadas, assim como a mãe leoa do outro

poema, não está mais a serviço da sedução do outro. É usada como força motriz (libido?) de

libertação. Entretanto o salto do sapato, adereço feminino, atrapalha os movimentos, embora

ela negue três vezes algum possível embaraço: ela não se afoga mais, não abana mais o rabo e

não olha para trás. Contradizendo-se, a persona não fica “aos pés de ninguém”, descobre-se

sujeito desejante de outros vôos. Não basta mais ser objeto do desejo do outro.

O medo do chiste às avessas desse “a teus pés”, que embora não deseje mais ser lido

como submissão, teme o paradoxo que propõe, enrijece: “atravanco na contramão”. Aliás,
19

contramão é palavra que aparece repetidamente na obra de Ana C, apontando sempre algum

desajuste, alguma incompletude. E, conseqüentemente, muita libido.

A persona está na contramão da história, ao infringir as regras e adotar outras

condutas afetivas/sexuais que não as oferecidas às mulheres até então. Em “Mocidade

independente” a iniciativa sexual é tomada pela persona feminina. Isso é feito com fúria e

violência, características atribuídas ao desejo sexual masculino, visto socialmente como algo

mais intenso e sem pudores:

Mocidade independente

“Pela primeira vez infringi a regra de ouro e voei pra cima sem medir as
conseqüências. Por que recusamos ser proféticas? E que dialeto é esse pra a pequena
audiência de serão? Voei pra cima: é agora, coração, no carro em fogo pelos ares, sem
uma graça atravessando o Estado de São Paulo, de madrugada, por você, e furiosa: é
agora, nesta contramão.” (ATP, p.44)

A persona está furiosa pelas condutas impostas: não podemos ser proféticas? Que

dicção devemos usar em público? Furiosa, também, pelo desejo que arde em fogo pelos ares

e me faz até sair de madrugada por você. De novo o outro.

A outricidade pode não ser privilégio feminino, mas de fato tem sido a temática das

mulheres que ousaram transgredir pela escrita. A persona feminina que proclama

independência, em plena mocidade, está tocada por eros e busca plenitude.

Furiosa por essa contradição da mulher moderna: independente e desejosa de amar e

ser amada. Entre a consciência de identidade e o desejo de outricidade em pleno ato

transgressor. Outra contramão da história.

Como situar-se na transgressão, na vanguarda, sem abolir totalmente os territórios do

feminino, de onde pulsam as paixões “que não medem conseqüências”? Como conciliar o

salto para fora (mundo público) com o salto fino do sapato que embaraça, ao mesmo tempo

em que deseja, o salto para o outro?


20

Como ficar “a teus pés” pelo próprio prazer e não mais por submissão? Como aceitar

o gozo da entrega sem pudores, sem perder-se nas máscaras? O que fazer com o fogo

despertado?

“ FOGO DO FINAL”

No cenário das ideologias arrefecidas pelo período pós-ditadura, não parecia haver

muitas saídas eróticas (pulsão de vida) para as personalidades femininas transgressoras,

fossem elas do mundo ficcional ou daquela realidade histórica. Havia mais consolo no

apaziguamento das paixões (pulsão de morte): uma maneira de calar os desejos que embora

despertados não conseguiam ainda realizações satisfatórias. No “fogo do final” há “um papel

que desistiu de dar recados” (e) “Nele eu sou eu e você é você mesmo”37. O ideal erótico da

junção dos corpos em um só, na busca da plenitude, não suporta a realidade: Eros arrefece,

thanatos acena o fim do amor-sonho. Apaga-se o fogo, “o fogo do final”:

O fogo do final

“[...]Ultimamente deu para me turvar a vista.


alerta não sou mais a mesma, vertigem das alturas.
Você está errado: não é o romance da longa vida que começa.
Não foi nossa razão que deu com os burros n’água. Nem o frio
na espinha dentro do ar engarrafado no aterro do Flamengo.
Rush . Não foi a pressa. O estabanamento na escada em espiral.
O livro que falta na estante e no entanto deveria ficar lá onde
está. A amizade recente com o carteiro do Brasil, que entra vila
adentro e bate na janela e me entrega o envelope pelo nome.
Os grunhidos do ciúme. Minhas escapadas pelo grande mundo,
suas retiradas para dentro da sólida mansão. Não foi nada disso.
Então o quê?”(ATP,p.83)

Os desejos de Ana poeta, manifestados nos poemas que criou, gerou e ainda gera

conflito e desconforto para as mulheres da realidade. Nesse ponto, ficção e realidade

afrouxam os limites que as separam. O desconforto sinalizado nos quatro poemas finais de A

téus pés, culminando no fogo do final, acena o fim de um desejo que me parece relacionado

ao “mal-estar existencial de Ana”, segundo as palavras de Moriconi:

O mal-estar existencial de Ana esteve sempre enraizado neste conflito : querer


21

ocupar um lugar no universo intelectual e ao mesmo tempo preservar a especificidade

da condição de mulher, desenvolvendo uma reflexão, uma prática e sobretudo uma

estética que representassem um abalo na divisão tradicional de lugares entre os

gêneros38

Diante do impasse causado pela transgressão, não foi apenas o “fogo” da ficção que

arrefeceu. Logo após o lançamento de A teus pés, Ana Cristina Cesar enfrenta forte depressão

e suicida-se aos trinta e um anos de idade.


BIBLIOGRAFIA

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VIEGAS, Ana Cláudia. Bliss & Blue: Segredos de Ana C. São Paulo, AnnaBlume, 1998.
NOTAS
1
Moriconi, Ítalo. Ana Cristina César. O sangue de uma poeta. Rio de Janeiro, Relume Dumará, 1996 ( Perfis do
Rio).
2
“Leitura gendrada refere-se às particularidades próprias a meu universo cultural, à maneira distintiva como
minha subjetividade (construída nas relações intersubjetivas com essas mesmas e outras produções simbólico-
discursivas postas à disposição dos sujeitos sociais) se reconhece ao reconhecer aquilo que as práticas, os discursos, os
dispositivos sociais, enfim, circunscrevem sob o nome de feminino o qual, por ação dos mesmos dispositivos, se cola
a minha condição de mulher, definida pelo sexo a que pertenço.” (Segundo a definição de Vera Maria de Queiroz
Costa. Crítica Literária e estratégias de gênero. Depto. de Letras. PUC-Rio, Tese de Doutorado 1995, p. 14)
3
Moriconi, Ítalo. Op. cit., p. 69-70.
4
Oliveira, Rosiska Darcy de. Elogio da diferença. O feminismo emergente. 3 ed. São Paulo, Brasilense, 1993.
5
Lakoff, Robin. Language and woman’s place. New York, 1975.
6
Barbosa, Adriana Maria de Abreu. Mulheres que falam demais. In: Escrita: revista dos alunos do Programa de
Mestrado e Doutorado em Letras da PUC-Rio. Rio de Janeiro, PUC, Depto. de Letras. n. 3, jul./dez 1997. p. 226
7
Cesar, Ana Cristina. Escritos no Rio. São Paulo, Brasiliense, 1993. p. 141-142.
8
No sentido que nos propõe Roberto Corrêa dos Santos: glossarizar não para aprisionar ou tranqüilizar, mas sim para
fazer evadirem-se as significações. (Em, Para uma teoria da interpretação – Semiologia Literatura e
interdisciplinaridade. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1989. p. 132-133).
9
Cesar, Ana Cristina.Op. cit., p. 175.
10
Chaui, Marilena. Laços do desejo. In: O Desejo. Adauto Novaes (org). São Paulo, Companhia das Artes, 1990.
p. 22.
11
Kehl, Maria Rita. O desejo da realidade. In: O Desejo. Adauto Novaes (org). São Paulo, Companhia das Artes,
1990. p. 367.
12
Op. cit.
13
Freud, Sigmund. Sexualidade feminina. In: Pequena Coleção das Obras de Freud. livro 9. Rio de Janeiro,
Imago, 1974. p. 77- 97.
14
Moriconi, Ítalo. Op. cit., p. 99.
15
Cesar, Ana Cristina. Op. cit., p. 164.
16
Oliveira, Rosiska Darcy de. Op. cit., p. 55.
17
Op. cit., p. 83.
18
Cesar, Ana Cristina. Op. cit., p. 145.
19
Barbosa, Adriana Maria de Abreu. Envolvimento e Estilo Conversacional: Quando o sexo faz a diferença.
Análise de Estratégias de envolvimento nas cartas do(a) editor(a) em revistas femininas e masculinas. Departamento
de Letras. PUC-Rio, 1996. (Dissertação de Mestrado)
20
Cesar, Ana Cristina. Escritos no Rio. p. 139.
21
Cesar, Ana Cristina. Op. cit., p. 139.
22
Sob este argumento, já em 1930, Pagu criticava nas páginas do tabloide O Homem do Povo a masculinização das
feministas. O femininismo da diferença em meados de 80, revisita este primeiro momento feminista que impunha à
transgressão um apagamento das diferenças, que acabava por recalcar o feminino, assim como fazia o machismo,
sendo que com objetivo diferente: libertar as mulheres da “essência feminina” imposta pelo patriarcado.
23
Cesar, Ana Cristina.Op. cit., p. 145-146.
24
Palavra repetidamente usada nos poemas de ATP.
25
Argumento defendido por Gayatri Spivak, para quem não há ruptura sem repetição (em, Quem reivindica
alteridade? O feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro, Rocco, 1994. p. 187-205).
26
Entrevista dada aos alunos no curso ministrado pela profa. Beatriz Resende, na Faculdade da Cidade em 6 de
abril de 1983. Cesar, Ana Cristina. Escritos no Rio.
27
Cesar, Ana Cristina. Op. cit.,. p. 201.
28
Op. cit., p. 196.
29
Op. cit., p. 199.
30
Cunha, Helena Parente. Mulheres Inventadas 2. Tempo brasileiro, Rio de Janeiro, 1997. p. 53.
31
Imagem recordada pela conversa informal em minha casa, com o amigo, mestre em Literatura, professor e leitor de
Ana C. Idemburgo Frazão Felix.
32
Kehl, Maria Rita. A dor do amor, o Amor da Dor. In: A mínima diferença: masculino e feminino na cultura.
Rio de Janeiro, Imago, 1996. p. 92.
33
Cesar, Ana Cristina. Op. cit., p. 196.
34
Kehl, Maria Rita. Op. cit, . p. 90.
35
Moriconi, Ítalo. Op. cit.p.101
36
Kehl, Maria Rita. Op.cit., p. 89.
37
Cesar, Ana Cristina. A teus pés. São Paulo, Ática,1998. p. 81-83.
38
Moriconi, Ítalo. Op. cit., p.71

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