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CONTROVÉRSIAS PÚBLICAS
Paula Montero
organizadora
Diagramação e capa
Antonio Kehl
Conselho Editorial
Assistente editorial
Presidente
Henrique Fernandes Antunes
Eduardo Guimarães
Preparação
Elinton Adami Chaim - Esdras Rodrigues Silva
Hebe Ester Lucas
Guita Grin Debert - Julio Cesar Hadler Neto
Revisão Luiz Francisco Dias - Marco Aurélio Cremasco
Fábio Fujita Ricardo Antunes - Sedi Hirano
7 Apresentação
MELVINA ARAÚJO
11 Introdução
PAULA MONTERO
Apresentação
9
a restringe exclusivamente à observação e a descrição de fenômenos também
considerados marginais.
São Paulo, 24 de abril de 2015.
Introdução
PAULA MONTERO
1
Agradecemos à FAPESP o apoio concedido ao projeto Religiões e controvérsias públicas: experiências,
práticas sociais e discursos, n. 11/02948-6.
2
Expressão utilizada por Bertrand Binoche (2012) para descrever como a noção de opinião pública
passa a constituir-se, no lugar da religião, em novo elo da vida civil.
Introdução
13
brasileiro, entre Igreja Católica e sociedade civil. E, como sugere Binoche
(2012, p. 15-16), quanto mais essa disjunção se aprofunda, mais as religiões
passam a ser relativas, ficando progressivamente reduzidas “a simples opiniões
irredutivelmente plurais”. Esse modelo de democracia subjacente à reflexão
do autor supõe que nenhum corpo substantivo de crenças consegue mais, so-
zinho, regular a totalidade da vida coletiva, e, consequentemente, a doutrina
política da tolerância vai ganhando força como princípio de normatividade,
tornando-se gradualmente o modo correto de sancionar a convivência entre
as diferenças. No caso brasileiro, o processo de relativização das religiões está
apenas se iniciando, uma vez que o substrato cristão da sociedade é ainda cla-
ramente hegemônico. Mesmo assim, como veremos adiante, nos diversos casos
aqui analisados, os agentes religiosos (ou não) já são obrigados a se justificar e,
por consequência, objetivar suas posições publicamente. Embora em nenhum
dos casos em estudo neste volume a democracia se constitua como objeto das
controvérsias, não resta dúvida, pelo jargão encenado nas narrativas, que o
jogo dos confrontos é jogado no tabuleiro do que poderíamos chamar de uma
democracia liberal. Com efeito, a acusação de intolerância, por exemplo, tem
sido cada vez mais acionada nas últimas três décadas por agentes religiosos
de todos os horizontes (inclusive católicos) para disputar posições na arena
pública brasileira. Mas é interessante destacar as peculiaridades do caso bra-
sileiro quando comparado com os processos europeus descritos por Binoche.
Na França, a noção de tolerância entendida como um desacordo regulado de
opiniões se tornou a solução histórica para responder aos desafios de uma vida
comum desprovida de fé comum (BINOCHE, 2012, p. 109). No Brasil, ao
contrário, o desenvolvimento do pluralismo religioso como conceito político
e como prática vem acompanhado do confronto religioso. Isso porque a forma
como as religiões disputam a definição e sua presença no espaço público está
intimamente associada ao modo como, historicamente, a sociedade brasileira
se produziu como secular. Se, no caso francês, o conceito de “opinião pública”
pode ser considerado o efeito da ideia de “religião privada”, no caso brasileiro,
como demonstramos em trabalhos anteriores, a esfera civil foi se construindo
no processo de separação da Igreja Católica em relação ao Estado. Uma vez que
as dinâmicas de diferenciação das esferas apenas começavam a produzir efeitos
e a própria esfera pública estava em gestação, a privatização da religião não se
colocava nem como tema, nem como problema (MONTERO, 2006, 2014).
Nossa expectativa é que os estudos aqui apresentados venham a iluminar as
configurações específicas do modelo democrático brasileiro contemporâneo e
permitam compreender essa nova maneira de as religiões se colocarem na cena
3
O autor se refere a uma diversidade de trabalhos de autores franceses, como Luc Boltanski e Bruno
Latour, que colocam no centro da análise o conceito de “épreuve”, que consiste em privilegiar os
processos de disputa na observação sociológica. O autor prefere chamar essa corrente de uma
“sociologie des épreuves” por considerar que o pragmatismo como corrente filosófica inspira uma
gama muito mais variada de autores, de Durkheim a Pierce, passando por Dewey.
4
Em seu balanço das pesquisas de viés praxeológico desenvolvidas na França na década de 1980, Daniel
Cefäi (2009) menciona três grandes centros de irradiação: o Centre de Sociologie de l’ Étique, criado
por Paul Ladrière, François-Isambert e Jean Paul Terrenoire em 1978 na École des Hautes Études
en Sciences Sociales e que, em diálogo com a obra de Jürgen Habermas, dá atenção aos sentimentos
morais e aos procedimentos de avaliação ética; o Centre d’ Études des Mouvements Sociaux, fundado
por Alain Touraine em 1970 também na EHESS e dedicado à análise dos movimentos sociais por meio
de suas lideranças e instituições políticas (sindicatos, partidos, movimentos sociais, etc.). Com seu
afastamento nos anos 1990, as novas gerações sob a liderança de Louis Quéré e Patrick Pharo se
distanciaram dessa abordagem, interessando-se pelas dinâmicas infraestruturais e infraestatais das
formas de engajamento e reivindicação. Nesse período introduziram novas problemáticas como a
do “espaço público” e “experiências-limite”, experimentando novas metodologias e rearticulando
a pesquisa sobre mobilizações em torno de uma teoria das arenas públicas e de uma praxeologia
da opinião pública; e, finalmente, o grupo de Sociologie Politique et Moral fundado em 1985 por
Luc Boltanski e Laurent Thévenot, cujos esforços se concentram em um projeto de investigação
gramatical das formas de justiça, de denúncia ou de reivindicação em público.
Introdução
15
dinâmicas de “problematização” e “publicização” (QUÉRÉ, 1990); ou, ainda,
em reação à noção de ação instrumental tão predominante na ciência política,
descreve a gramática das formas de falar em público, as formas de justificação,
de denúncia e de reivindicação (BOLTANSKI, 2000, 2002).
Os trabalhos aqui apresentados estão em diálogo mais ou menos explícito com
esse conjunto de problemas, com sua inspiração teórica e modos de trabalhar
a questão da publicidade. Ainda assim, deles se diferenciam pelo menos em
duas dimensões estratégicas: no lugar heurístico atribuído ao conceito de
controvérsia e no espaço privilegiado atribuído ao agenciamento religioso, e
não aos movimentos sociais em geral, na produção de um “senso cívico” ou na
“praxeologia da opinião” (CEFÄI, 2009).
Introdução
17
dissenso não era tanto a de atestar a competência crítica dos atores, como no
caso de Boltanski, e sim a de identificar e descrever a particular configuração
social do secularismo que emerge dessa dinâmica que associa atores, textos,
instituições e acontecimentos. É com base nesse enquadramento teórico que
Eduardo Dullo parte da nota de repúdio da Arquidiocese de São Paulo, em
2012, a um texto escrito pelo pastor Marcos Pereira, coordenador da campa-
nha do candidato à prefeitura, Celso Russomano, pelo Partido Republicano
Brasileiro (PRB); Carlos Gutierrez, da cerimônia de posse de Rogério Hamm,
também do PRB, à Secretaria do Desenvolvimento Social do Governo de São
Paulo em 2013; Lílian Sales, da audiência pública convocada pelo Superior
Tribunal de Justiça para definir o “início da vida”; César Silva, da ameaça de
fechamento pelo Ministério da Educação das escolas bilíngues para surdos
em 2010 de inspiração protestante; Milton Bortoleto, do evento da quebra
de imagens em um centro espírita do Rio de Janeiro por jovens evangélicos
em 2008; Henrique Antunes, da inserção da Banisteriopsis, um dos vegetais
que compõem a ayahuasca, na lista dos produtos proscritos pelo Ministério da
Saúde; Aramis Luis Silva, da fala do papa Francisco aos jornalistas, em 2013,
sobre a posição da Igreja Católica a respeito da homossexualidade; Jacqueline
Moraes Teixeira, do enorme sucesso do livro de Cristiane Macedo, filha de
Edir Macedo – fundador da Igreja Universal do Reino de Deus –, em 2007,
destinado à mulher, Melhor que comprar sapatos; José Edilson Teles, do ciclo de
fundadores de microigrejas pentecostais e a disputa por autenticidade de suas
atividades, tomando como recorte empírico o caso da revelação divina sonhada
por José Ribamar que o levou a fundar a Igreja Manjedoura de Cristo; Asher
Brum, do livro de memórias publicado em 2006 por Antonio Carlos Brolezzi,
que denuncia abusos perpetrados contra ele pelo Opus Dei; Paula Montero,
da denúncia publicada pela revista Época em 2009 do ex-pastor Gustavo Alves
da Rocha sobre os abusos cometidos contra ele por Edir Macedo.
Desse modo, tomando como referência eventos pontuais que envolveram
entidades religiosas diversas – um debate público, uma denúncia, uma decisão
governamental, um sucesso editorial ou conflitos entre pastores e Igrejas –,
o esforço inicial dos trabalhos foi o de descrever a cena na qual o evento se
manifesta e circunscreve, e compreender o que está em jogo no modo como
ele aparece publicamente. É por essa razão que, em nossa perspectiva, não
estamos tomando as controvérsias como fenômenos empíricos a descrever.
Se subjacentes a todos os casos estudados podem-se reconhecer dinâmicas de
conflito, a passagem do evento à controvérsia dependeu, em maior ou menor
grau em função de cada caso, de uma construção analítica que procurou, como
5
Descentramento com relação às instituições (prisões, hospitais e, acrescentaríamos, Igrejas),
deixando de estudá-las a partir de suas lógicas internas; descentramento com relação às funções
esperadas das instituições (cura, regeneração); descentramento com relação aos objetos empíricos
e já dados das instituições (doença mental, criminosos, etc.) (FOUCAULT, 2008, p. 156-158).
Introdução
19
Em sua crítica à teoria dos problemas públicos de Jürgen Habermas, Louis
(Queré 2011)6 se pergunta sobre o modo como os problemas são constituídos
enquanto tal na esfera pública. A seu ver, antes de se tornarem problemas
públicos e serem objeto de debate, os acontecimentos são elaborados e orga-
nizados em diferentes níveis até ganhar importância e se constituir em “campo
problemático”, na expressão cunhada por Deleuze.
Estamos de acordo com Quéré quanto à necessidade de levar em conta os
modos como os problemas se instituem como públicos. Ainda assim, nos casos
aqui em estudo, muitos dos processos relativos à formação e configuração da
esfera pública como contraparte do Estado são de longa duração. Os aconteci-
mentos, aqui analisados em suas dinâmicas de visibilidade, agenciam questões
cujos termos já estão relativamente bem estabelecidos no plano temporal.
Com efeito, ao fazermos uma leitura transversal dos casos apresentados neste
volume, pode-se perceber que apenas à luz de “campos problemáticos” de
longa duração na história política brasileira é possível compreender os nexos
que agenciam os elementos das controvérsias em análise. É no campo do debate
sobre a laicidade, por exemplo, que se jogam as denúncias contra o PRB e a Igreja
Universal do Reino de Deus (IURD) descritas por Dullo e Gutierrez; é no campo
do debate entre fé e ciência que se desenvolvem os argumentos em torno do
início da vida descritos por Sales; é no campo do debate entre universalismos
nacionais e particularismos étnicos que Assis Silva situa a disputa pela escola
bilíngue para surdos; é no campo do debate sobre liberdade religiosa que Bor-
toleto e Antunes discutem a regulação do religioso; é no campo dos direitos
humanos e do planejamento familiar que Brum, Silva e Teixeira descrevem o
debate sobre religião, sexualidade e aborto; é no campo do debate que opõe
seita à Igreja que Teles e Montero analisam a instituição e a legitimidade da
autoridade pastoral evangélica.
Ainda que os problemas públicos aqui em estudo se articulem de maneira
recorrente a esses “campos problemáticos” mais ou menos pactuados histori-
camente ao longo dos processos de ordenamento republicano e democrático,
ao observarmos o que diz e faz o variado leque de agentes quando está em
litígio a noção de bem coletivo, pode-se perceber um rearranjo ou redefini-
ção das questões “clássicas” que disputa seus sentidos contemporâneos. Essa
dinâmica que, a exemplo de Quéré, chamamos de “praxeologia da opinião”,
6
Entrevista concedida para Leandro Lage e Tiago Salgado e publicada na revista EcoPos-UFRJ, v. 14,
n. 2, 2011.
Introdução
21
formas de engajamento e a trajetória de alguns problemas públicos, tais como
as controvérsias relativas a fé, política, sexualidade, aborto e poder pastoral.
Introdução
23
afrodescendentes e aos homossexuais, exclusão das pequenas Igrejas). Desse
modo, pode-se perceber que se o pacto em torno da laicidade está relativa-
mente bem estabilizado, as acusações mútuas de “intolerância” mostram que
o reconhecimento do pluralismo religioso, ao tornar a escolha religiosa uma
expressão da opinião, introduziu a disputa como forma específica da própria
configuração da laicidade. Já no plano das categorias morais, se os conceitos de
“direitos humanos” e “liberdade religiosa” também parecem ser um horizonte
político moral consensual, as acusações mútuas de “seitas”, “racismo”, “abuso
de poder”, “perseguição religiosa” indicam que a própria configuração do que
é religioso está em disputa. Na produção de suas fronteiras, os agenciamentos
nomeiam as figuras de alteridade contra as quais representam seus próprios
coletivos como homogêneos: “as batinas púrpuras de Roma”, “imposição de
minorias autoritárias”, “cientistas assassinos”, “apartheid escolar”, “fanáticos”,
“traficantes, drogados”, “exploradores da fé”, “idólatras”, etc. Como sugere
Latour (2005), essas figurações dão forma e carne à ação, proibindo ou dire-
cionando o que se pode fazer e dizer em nome da religião.
Finalmente, as ações de mobilização também estão temporalmente demar-
cadas. Elas se iniciam com os primeiros encontros de deficientes em 1980,
1981 e 1983. Mas a tomada das ruas se concentra mais visivelmente no final
dos anos 2000 e na década seguinte. Em setembro de 2008, o delegado Ivanir
e a babalaô da comissão de Combate à Intolerancia Religiosa do Estado do
Rio de Janeiro (CIR-RJ) organizam a 1a Caminhada pela Liberdade Religiosa.
Em maio de 2011, uma caravana de mobilização pelo dia do surdo contra o
fechamento do Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES) promove
em Brasília o “Setembro Azul”. Em setembro do mesmo ano, uma passeata
em defesa da escola bilíngue para surdos sai em São Paulo da prefeitura, no
Viaduto do Chá, em direção à Secretaria da Educação na Praça da República e,
em seguida, para a Câmara dos Vereadores no Viaduto Maria Paula. Em junho
de 2011, o pastor Tupirani organiza diante do Fórum Criminal a 1a Passeata do
Dia do Pastor Perseguido. Em junho do ano seguinte, o movimento ganha uma
expressão mais cívica ao realizar a 2a Passeata em Copacabana. Em dezembro
de 2013, o movimento Força Jovem, sob a liderança do vereador Madeira, do
PRB, faz uma caminhada “por uma vida sem drogas”, que sai da Pinacoteca em
São Paulo e vai até o Anhangabaú.
Vemos, pois, que a tomada das ruas como forma de agenciar pessoas, ideias
e coisas nesse campo político-moral é bastante recente. Por sua novidade e
importância na reconfiguração do espaço público, essas dinâmicas de mobili-
zação merecem, com certeza, um estudo à parte. O que se pode dizer preli-
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1
Doutor em antropologia social pelo Museu Nacional/UFRJ, pesquisador associado do CEBRAP e pós-
-doutorando junto ao Departamento de Antropologia da USP. Atualmente é visiting scholar junto
ao Social Anthropology Division na Universidade de Cambridge e bolsista FAPESP, processo número
2013/16433-3. Agradeço as sugestões de Regina Novaes, de Diana Lima, de Evandro Bonfim e de
Paula Montero a uma versão anterior deste texto.
2
Disponível em: <http://www.estadao.com.br/noticias/politica,crescimento-de-russomanno-e-
-homogeneo-aponta-diretora-do-ibope,930608,0.htm>.
Inicia-se, assim, a denúncia pública4 feita pela Igreja Católica. Seguindo a pro-
posta de Boltanski (2000), a denúncia pública envolve quatro atores formando
o sistema: (1) o denunciante, (2) o denunciado, (3) a vítima e (4) o juiz. No
presente caso, eles são: (1) o Arcebispado da Igreja Católica em São Paulo, (2)
Marcos Pereira, coordenador da campanha do candidato Celso Russomanno
(PRB), (3) a Igreja Católica, os fiéis católicos e a democracia em um Estado laico,
e (4) os eleitores, que votarão ou não no candidato do partido denunciado.
Não cabe, porém, ao analista julgar qual o objetivo ou plano secreto deste ou
daquele agente, e sim, seguindo a proposta de análise de uma denúncia e de
3
“Nota de repúdio”. Disponível em: <http://www.arquidiocesedesaopaulo.org.br/sites/arquidioce-
sedesaopaulo.pucsp.br/files/nota%20rep%C3%BAdio%20marcos%20pereira%20%281%29.pdf>.
4
A dimensão pública do evento tem lugar nos meios de comunicação de massa, centralmente os
jornais impressos, on-line (que privilegiei como material de pesquisa, dada a facilidade de acesso
tanto para o autor quanto para o leitor) e televisivos, responsáveis pela amplificação e pela visibi-
lidade dos discursos. Os sites tanto da Arquidiocese quanto do PRB também foram considerados
para esta análise.
5
Além disso, é preciso atenção para a dimensão pública do trabalho de análise, na medida em que a
sua publicação orientada para o lado A ou B incidirá como mais um elemento da disputa e não como
uma explicação científica externa. Esse ponto fica claro na presença de professores universitários,
geralmente sociólogos, cientistas políticos, antropólogos e filósofos políticos que são chamados a
expressar sua opinião em jornais, seja na forma de entrevistas, na de colunas de opinião ou como
citações autorizadas (“o sociólogo X, da Universidade Y, nos afirma que...”). Todos esses apareci-
mentos na esfera pública são parte do material e concorrem para o argumento de um ou outro dos
atores na esfera pública.
6
Nesse sentido, a análise de controvérsias proposta por Boltanski se opõe por um lado à de Latour
(2005), que propõe uma ontologia plana com apenas duas posições (mediador e intermediário) e,
por outro, à proposta de Bourdieu (1986), na medida em que procura deslocar a “sociologia crítica”
para uma “sociologia da crítica” operada pelos próprios agentes sociais (BOLTANSKI, 2011).
7
Todas as traduções são de minha responsabilidade.
A denúncia
A denúncia pode ser resumida em um ponto central: o texto do coordenador
da campanha de Russomanno “cheira a intolerância religiosa”. Porém, isso
pode ser desdobrado: a acusação deve-se a dois argumentos do texto original
de Pereira, que foram interpretados como falsas acusações em relação à Igreja
Católica e como incitação à discórdia. Além disso, a categoria de acusação into-
lerância religiosa faz menção a um rompimento da fronteira entre “religião” e
“política”, que deveriam ser mantidas em separado – e de maneira ainda mais
clara durante as eleições. Vejamos os trechos:
Atribuir o malfadado “Kit Gay” e os males da educação no Brasil à Igreja Católica
não faz nenhum sentido e cheira a intolerância religiosa, que nunca foi e nem deverá
ser alimentada ou incentivada.
O trecho de Pereira, cujo texto tem por título “Qual o futuro da educação no
Brasil?” (doravante “QFEB”), que motivou a resposta é o seguinte:
Agora, tentam nos impor os famigerados “kits gays”. Até quando o Vaticano terá
o controle das ações do governo, seja federal, estadual ou municipal? Até quando
o Brasil do século 21 continuará se curvando às “batinas púrpuras” de Roma? Pre-
cisamos salvar o Brasil e torná-lo um país verdadeiramente laico, completamente
livre da influência da religião (grifos meus).
8
Perfil em: <http://noticias.r7.com/blogs/marcos-pereira>.
9
“Integrantes das campanhas de José Serra (PSDB) e Haddad já esperavam reação da Igreja Católica
que apontasse as ‘contradições’ do candidato do PRB, por causa da ligação de integrantes do partido
com a Igreja Universal. Embora tenham se encontrado recentemente com d. Odilo, negam que
fomentaram a reação.” Arquidiocese diz que partido de Russomanno fomenta discórdia. Disponível
em: <http://www.estadao.com.br/noticias/politica,arquidiocese-diz-que-partido-de-russomanno-
-fomenta-discordia,930304,0.htm>. Acesso em: 14 set. 2012, data da publicação.
10
Arquidiocese diz que partido de Russomanno fomenta discórdia. O Estado de S. Paulo, 14 set. 2012.
11
Presidente do PRB diz lamentar uso eleitoral de seu texto por Igreja Católica. Disponível em: <http://
www1.folha.uol.com.br/poder/1154745-russomanno-diz-que-pretende-falar-com-arcebispo-sobre-
-ofensiva.shtml>. Acesso em: 14 set. 2012, data da publicação.
12
Set. 2012, “Política com ofensas à Igreja, não!”. Disponível em: <http://www.arquidiocesedesao-
paulo.org.br/?q=node/173688>. Acesso em: 16. set. 2012.
– Como bom cristão que sou, o que a gente precisa é amar o próximo. Eu não vou
plantar uma guerra santa. Nós estamos na campanha para a prefeitura de São Paulo.
Não é uma campanha religiosa14 (grifo nosso).
13
Russomanno minimiza carta da Igreja Católica contra PRB. Disponível em: <http://www.estadao.
com.br/noticias/politica,russomanno-minimiza-carta-da-igreja-catolica-contra-prb,930617,0.htm>.
Acesso em: 14 set. 2012, data da publicação.
14
Russomanno diz ser ‘bom cristão’ e promete não criar ‘guerra santa’. Disponível em: <http://
oglobo.globo.com/pais/russomanno-diz-ser-bom-cristao-promete-nao-criar-guerra-santa-
-6116649#ixzz26wBBUL62>. Acesso em: 19 set. 2012, publicado em 17 set. 2012.
“Só para encerrar o que você colocou: hoje dom Fernando, da Igreja Católica da
região sul, saiu em minha defesa. Ele me conhece. Não preciso dizer que sou católico.
Eu sou o que sou. As pessoas me conhecem há muitos anos”, afirmou Russomanno,
em entrevista ao SPTV, da TV Globo16 (grifo nosso).
15
Para bispo do padre Marcelo, Russomanno é “boa pessoa”. Disponível em: <http://www1.folha.uol.
com.br/poder/1156261-para-bispo-do-padre-marcelo-russomanno-e-boa-pessoa.shtml>. Acesso
em: 20 set. 2012, data da publicação.
16
Russomanno comemora defesa feita por bispo do padre Marcelo. Disponível em: <http://www1.
folha.uol.com.br/poder/1156461-russomanno-comemora-defesa-feita-por-bispo-do-padre-marcelo.
shtml>. Acesso em: 20 set. 2012, data da publicação.
17
Disponível em: <http://www.arquidiocesedesaopaulo.org.br/?q=node/173688>.
18
Ver Anexo.
Após insistência de jornalistas para que falasse sobre denúncias que vêm sendo
veiculadas na imprensa, Russomanno não quis comentar. “Quero falar sobre São
Paulo. Vamos parar. Se vocês quiserem falar sobre São Paulo estou a toda disposição,
com todo o entusiasmo”, disse20.
Dom Odilo, que se prepara para embarcar para Roma em outubro, alegou um
problema de agenda para não receber Russomanno antes do debate promovido
pela Igreja Católica, mas não descartou receber o candidato antes da viagem. Outro
19
Não vamos fazer de São Paulo uma guerra santa. Disponível em: <http://www.estadao.com.br/
noticias/impresso,nao-vamos-fazer-de-sao-paulo-uma-guerra-santa-,931619,0.htm>. Acesso em:
17 set. 2012, data da publicação.
20
“Religião é religião e política é política”, diz Russomanno. Disponível em: <http://www.estadao.
com.br/noticias/nacional,religiao-e-religiao-e-politica-e-politica-diz-russomanno,931111,0.htm>.
Acesso em: 15 set. 2012, data da publicação.
21
Russomanno é alvo da Igreja Católica em missas dominicais. Disponível em: <http://www1.folha.
uol.com.br/poder/1154520-russomanno-e-alvo-da-igreja-catolica-em-missas-dominicais.shtml>.
Acesso em: 17 set. 2012, data da publicação.
22
Russomanno diz que arcebispo de SP precisa conhecê-lo de perto. Disponível em: <http://
oglobo.globo.com/pais/russomanno-diz-que-arcebispo-de-sp-precisa-conhece-lo-de-perto-
-6129265#ixzz26wAsnNCr>. Acesso em: 19 set. 2012, publicado em: 18 set. 2012.
que isso poderia causar um mal-estar com os outros candidatos, uma vez que não
estava previsto nas regras do encontro23.
23
Cardeal nega encontro com Russomanno antes de debate. Disponível em: <http://g1.globo.com/sao-
-paulo/eleicoes/2012/noticia/2012/09/cardeal-nega-encontro-com-russomanno-antes-de-debate.
html>. Acesso em: 19 set. 2012, data da publicação.
24
Russomanno busca desfazer mal-estar com arcebispo. Disponível em: <http://www.estadao.com.
br/noticias/nacional,russomanno-busca-desfazer-mal-estar-com-arcebispo-,934407,0.htm>. Acesso
em: 22 set. 2012, data da publicação.
Indagado se tal posicionamento deveria valer para outras igrejas, respondeu: “Den-
tro da minha perspectiva, valeria. No mundo democrático, o papel que cabe ao
Estado e aos leigos não é o mesmo da Igreja, cuja função é de orientar o eleitor.”
Ainda segundo o líder da CNBB, não cabe à Igreja assumir papel de protagonista no
campo político”25.
25
“Não se pode instrumentalizar a religião para obter voto”, diz presidente da CNBB. Disponível em:
<http://www.estadao.com.br/noticias/politica,nao-se-pode-instrumentalizar-a-religiao-para-obter-
-voto-diz-presidente-da-cnbb,930783,0.htm>. Acesso em: 14 set. 2012, data da publicação.
Essa orientação tem como meta, implícita, informar aos fiéis que há can-
didatos que possuem uma posição moral que difere dos seus princípios e
de suas convicções religiosas cristãs. Isso se tornaria ainda mais grave na
medida em que é “a família” o alvo, pois ela é o ponto de transmissão de
valores, é da família que se “herdam” as benesses ou os “muitos problemas”.
A transformação da família enceta uma dificuldade grande para uma Igreja
que tem se pautado pela via da “formação das almas”, isto é, que atua mais
na política societária que na institucional. Tal decisão eleitoral poderia,
assim, fazer com que o futuro seja contrário ao esperado. Nesse sentido,
vemos que é a única das orientações que traz um tom denunciatório ou de
ameaça. Entretanto, da maneira como foi colocado, o texto sugere ainda
uma relação estreita com a cidadania moderna pela via da responsabilidade,
já que tem em vista possíveis consequências das ações políticas do sujeito.
Além disso, faz valer o princípio secular de liberdade religiosa, pontuando
que se há candidatos que diferem da convicção cristã do fiel, é legítimo que
Conclusão
A controvérsia entre o arcebispo de São Paulo e a campanha de Celso Rus-
somanno se mostrou particularmente instrutiva para que compreendêssemos
como a Igreja Católica se posicionou publicamente diante das fronteiras
traçadas acerca de “religião” e “política”. Vimos que ela se coloca numa sin-
gular posição bifronte: é ao mesmo tempo o paradigma de religião legítima e
de promotora da democracia secular no Brasil. A delimitação dessa posição
só foi possível ao vermos os pontos de discordância perante o denunciado. A
conclusão é a de que existe uma forte concordância entre a formação secular
brasileira, a definição de laicidade e a posição oferecida pela Igreja Católica.
Como é percebida, pelos agentes sociais, a intromissão da religião na política?
Podemos elencar, a princípio, três pontos. O primeiro é o pertencimento de
um indivíduo como membro de uma Igreja e como membro de um partido
político: ser ao mesmo tempo pastor e candidato – posição rechaçada pela
Igreja Católica para seus membros. O segundo é a intolerância religiosa, em
que se evita o “bem comum” e promove a própria fé (particular), incitando
a discórdia e o conflito interno – ofendendo o princípio básico da tolerância,
característico do fim das guerras religiosas e de fortalecimento do Estado.
O terceiro é a condução tutelar do rebanho, fazendo dos templos um local
de propaganda política e apresentando candidatos aos eleitores – o que nos
leva para a conceituação de uma variante evangélica do “poder pastoral” em
detrimento da consolidação do cidadão livre e autônomo, como responsável
pelas suas escolhas.
A reação neste episódio foi tímida e não visou uma autoafirmação de sua
posição, como ocorreu posteriormente com outro caso, o do pastor Marco
Feliciano na Comissão de Direitos Humanos. Percebo, porém, que os dois ca-
sos estão conectados. Há a emergência de um novo paradigma, de articulação
dos termos em disputa, como os três pontos identificados acima permitem
entrever. Nesse novo paradigma, ainda em gestação e indeterminado, não
parece ser problemático que um pastor seja um representante político, nem
parece ser problemático lutar pelos princípios que ancoram a sua fé, ou, ainda,
que o pastor conduza o seu rebanho. Esse paradigma em gestação está num
horizonte de indeterminação e de ameaça de mudança, tanto para o cenário
político quanto para a definição do que cabe no conceito de laicidade.
1
Disponível em: <http://www.estadao.com.br/noticias/nacional,prb-assume-pasta-social-de-
-alckmin-e-leva-a-posse-projeto-anti-crack-da-universal,1036494,0.htm>. Acesso em: 4 jun. 2013.
2
Disponíveis em: <http://www.brasil247.com/pt/247/sp247/103499/Alckmin-abre-as-portas-
-do-Estado-para-a-Universal.htm> e <http://www.tribunahoje.com/noticia/65221/politi-
ca/2013/05/29/alckmin-abre-as-portas-do-estado-para-a-igreja-universal-do-reino-de-deus.html>.
Acesso em: 4 jun. 2013.
3
Disponível em: <http://www.tse.jus.br/partidos/partidos-politicos/partido-republicano-brasileiro>.
Acesso em: 9 dez. 2013.
4
Disponível em: <http://ultimosegundo.ig.com.br/politica/2012-07-15/voz-da-universal-no-
-congresso-prb-quer-dobrar-numero-de-prefeitos-e-mira-2014.html>. Acesso em: 10 fev. 2014.
5
Disponível em: <http://noticias.terra.com.br/brasil/politica/eleicoes/prb-de-russomanno-tem-66-
-dos-dirigentes-ligados-a-universal,9cb99782ac66b310VgnCLD200000bbcceb0aRCRD.html>.
Acesso em: 18 fev. 2014.
6
Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/poder/65365-russomanno-usa-estrutura-da-
-universal-na-campanha.shtml>. Acesso em: 19 fev. 2014.
7
Disponível em: <http://noticias.terra.com.br/brasil/politica/eleicoes/giannazi-critica-igrejas-e-diz-
-russomanno-39instrumentaliza39-religioes,3c999782ac66b310VgnCLD200000bbcceb0aRCRD.
html>. Acesso em: 17 fev. 2014.
8
Disponível em: <http://www.valor.com.br/eleicoes2012/2845694/serra-acusa-record-e-igreja-
-universal-de-protegerem-russomanno>. Acesso em: 19 fev. 2014.
vador – para servir como o braço político do bispo Edir Macedo, líder da Igreja
Universal. Para fundar o partido, os pastores coletaram mais de 400 mil assinaturas
nos templos da Igreja em todo o país. Em seu livro Plano de poder – Deus, os cris-
tãos e a política, Edir Macedo afirma que “Deus tem um grande projeto de nação
elaborado por ele mesmo e que é nossa responsabilidade apresentá-lo e colocá-lo
em prática”. Apesar de os fiéis da Universal serem uma minoria no universo dos
evangélicos, Edir Macedo dita regras de como todos devem votar9.
9
Disponível em: <http://revistacrescer.globo.com/Revista/Crescer/0,,ERT91575-10541,00.html>.
Acesso em: 5 fev. 2014.
Formação de jovens
Antes de entrarmos na discussão acerca das técnicas para produção dos jovens
à ação política, cabe fazer uma breve introdução à Força Jovem Universal.
Trata-se do grupo jovem da IURD, que conta com uma série de projetos, dos
quais se destacam o Dose Mais Forte, oferecendo palestras e encaminhando
dependentes químicos a casas de tratamento; Jovem Nota 10, com curso pré-
-vestibular, reforço escolar, idiomas, informática, ensino profissionalizante e
realização de vestibulares sociais, com concessão de bolsas aos membros; e o
FJUNI, que visa aprimorar a qualidade acadêmica dos jovens universitários, pro-
movendo grupos de estudos, palestras motivacionais, orientações vocacionais,
contando ainda com uma central de estágios.
Cada cenáculo da Universal conta com um núcleo da Força Jovem, que pode
dispor ou não de todas as atividades listadas acima, dependendo da capacidade
física do local e da presença de professores/monitores voluntários. Atualmente,
o grupo é coordenado pelo bispo Marcelo Brayner, após o pastor Jean Madeira
10
Diálogo entre diversos jovens, obreiros e alguns pastores.
Manter a postura; falar em posição horizontal; usar roupas adequadas para a ocasião,
sem exagerar; evitar vícios de linguagem. Ex.: né, tá, certo, entendeu, ããããã; manter
um volume de voz adequado do início ao final; não ultrapassar o horário; não ter
medo de errar (caso aconteça peça desculpas e continue); demonstre autoridade em
relação ao assunto do qual está falando; procure ter a plateia como companheira.
Dê-lhes motivos para sentir-se bem com o que ouve, vê e sente; desperte o interesse
da plateia com bons argumentos, bom vocabulário e boas figuras de linguagem; para
não criar conflitos ou tumultos, deixe os questionamentos para o final.
11
A realização de diversas etnografias na sede da Força Jovem Universal, no cenáculo do Brás, em
São Paulo, possibilitou a descrição das técnicas utilizadas para produção de corpos “jovens, cultos
e cidadãos”.
12
Apostilas do curso de “Marketing Pessoal” e do “Cultura Jovem”. Acervo pessoal.
13
O ingressante deve ter mais de 16 anos e ser portador de título de eleitor.
14
Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/poder/57373-na-campanha-russomanno-liga-
-maquina-de-promessas.shtml>. Acesso em: 17 jan. 2014.
15
Discurso proferido na Câmara dos Deputados, em Brasília.
16
Disponível em: <http://g1.globo.com/distrito-federal/noticia/2012/02/manifestantes-colo-
cam-513-pedras-na-esplanada-em-ato-contra-crack.html>. Acesso em: 24 fev. 2014.
17
Disponível em: <http://www.estadao.com.br/noticias/cidades,manifestantes-colocam-513-pedras-
-na-esplanada-em-ato-contra-crack,830101,0.htm>. Acesso em: 24 fev. 2014.
18
Disponível em: <http://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/manifestantes-colocam-513-pedras-na-
-esplanada-em-ato-contra-crac/n1597609428125.html>. Acesso em: 24 fev. 2014.
19
Informações cedidas pela Polícia Militar do Estado de São Paulo.
20
Sinal tipográfico “#” usado para indexar palavras-chave a uma informação em redes sociais como
Twitter, Instagram, Facebook e Google Plus.
21
Um dos vídeos que retrata o episódio e que me foi repassado por um membro da Igreja Universal:
<http://www.youtube.com/watch?v=_9GroPl4I-Y>.
22
Termo popularmente relacionado a manifestações organizadas em redes sociais.
23
Do álbum que projetou o sucesso de mesmo nome, Thriller. O videoclipe conta com coreografias
de zumbis.
Políticas públicas
Desde que Rogério Hamam assumiu a Secretaria de Desenvolvimento Social
do Governo do Estado de São Paulo, a principal política da pasta no que tange
à questão do crack é o programa Recomeço. Trata-se do encaminhamento do
usuário a uma clínica de recuperação conveniada que recebe cerca de R$ 1.350
para custear seu tratamento. Muitos membros do PRB, entre eles o vereador
Jean Madeira e o presidente municipal do partido, Aildo Rodrigues, afirmam
a necessidade de estreitar laços com entidades religiosas, pois, historicamen-
te, “tem um bom resultado na recuperação de dependentes químicos” (Jean
24
Entidades sem fins lucrativos que oferecem abrigo e tratamento para dependentes químicos.
Caracterizam-se pelo fato de os próprios usuários ajudarem no processo de tratamento uns dos
outros.
25
Disponível em: <http://drogasedireitoshumanos.org/2012/06/26/nem-comunidades-nem-
-terapeuticas-reportagem-na-revista-caros-amigos/>. Acesso em: 4 mar. 2014.
26
Política anticrack: Epidemia do desespero ou do mercado antidroga? Disponível em: <http://www.
cepad.ufes.br/content/pol%C3%ADtica-anti-crack-epidemia-do-desespero-ou-do-mercado-anti-
-droga>. Acesso em: 4 mar. 2014.
27
Disponível em: <http://www.neip.info/index.php/content/view/2469.html>. Acesso em: 5 abr.
2013.
28
Um dos primeiros bispos da IURD e ex-usuário de drogas, conforme seu próprio relato.
29
O material audiovisual elaborado por agentes do PRB também se encontra disponível em uma
infinidade de vídeos no YouTube. Exemplo: I Encontro Uma Juventude Contra o Crack: <http://
www.youtube.com/watch?v=IadsyEnHMQs>.
30
Tradução da professora doutora Katia Mello, disponível no artigo: MELLO, Katia. Sofrimento e
ressentimento: dimensões da descentralização de políticas públicas de segurança no município de
Niterói. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 53, 2010.
Considerações finais
A controvérsia em torno do secularismo mobiliza uma série de acusações em
relação à participação de agentes da Universal e do próprio PRB nas institui-
ções governamentais. Para os críticos, a presença de membros da Universal
nas diferentes esferas governamentais fere o princípio de laicidade do Estado
e não visa o bem público, mas sim os interesses da instituição. A participação
dos membros da Universal na política é encarada como parte de seu “projeto
de poder”, gerando uma série de denúncias por parte da mídia e de organiza-
ções da sociedade civil, mais especificamente no tocante ao envolvimento de
agentes da Universal nas políticas públicas em relação ao combate ao crack.
Esse cenário obriga os atores da Universal a desenvolver uma série de justifi-
cativas acerca de seu pertencimento religioso, recorrendo, entre outros meios,
ao próprio princípio de laicidade para legitimar sua filiação à IURD. Os agentes
também passam a encarar como necessária uma série de procedimentos, que
chamei aqui de governamentalidade voltada à política, para a “formação de
jovens cultos, educados e cidadãos”, com disciplinas para apreensão de lingua-
gem, conduta, escolarização e noções de política por meio dos cursos do PRB.
No processo de interação discursiva, os agentes acreditam que é importante não
Referências bibliográficas
ALMEIDA, Ronaldo. Religião em transição. In: MARTINS, Carlos B. (Coord.); DUARTE, Luiz F. D.
(Org.). Horizontes das ciências sociais. Antropologia, São Paulo, Anpocs, 2010.
ASAD, Talal. Formations of the secular: christianity, islam, modernity. Stanford: Stanford University
Press, 2003.
1
Iniciamos o mapeamento dessa controvérsia identificando os argumentos arregimentados pelos
agentes favoráveis a ADI em artigos e notícias publicados em vários meios de comunicação, como
no site da CNBB e no site da TV Canção Nova. O primeiro foi escolhido por ser o site oficial da
Confederação e o segundo por se tratar de um dos sites católicos mais acessados da atualidade,
pertencente ao canal Canção Nova de rádio e televisão. Também analisamos as notícias publicadas
em três revistas semanais de circulação nacional durante o ano de 2008.
A voz da CNBB
A Igreja Católica no Brasil tem constantemente formulado posições e defendido
argumentos nos debates públicos nacionais. Uma visita ao site da CNBB torna
perceptível essa forma de ação dos representantes do catolicismo: diariamente
estão presentes notícias, discussões e campanhas a respeito de temas relaciona-
dos à “política” e à “sociedade” brasileira. O posicionamento da Igreja Católica
na arena pública nacional já vem sendo abordado por autores que estudam o
catolicismo desde longa data.
Embora desde a formação da república a Igreja Católica venha se afastando da
política institucional, algumas entidades que a representam permanecem ativas
na formulação de posturas que “esclareçam e engajem” a população, como na
participação direta em campanhas, entre outras ações. A CNBB é exemplo disso.
Ernesto Seidl (2007) demonstra que a CNBB, enquanto instituição, procura inter-
vir na “política” e no “social”, produzindo discursos que justifiquem sua posição
e conclamando seus fiéis a apoiá-la. O autor demonstra que a informação e as
discussões sobre a “conjuntura nacional e mundial” adquirem lugar central nas
reuniões da CNBB. Os posicionamentos são produzidos internamente, havendo
conferências e discussões para informar e problematizar sobre “a realidade do
país e do mundo”. Cada tema é debatido e, após cada congresso, a Conferência
produz documentos analíticos. A CNBB, portanto, formula posicionamentos, que
posteriormente serão colocados em circulação nos debates públicos nacionais.
A Igreja Católica vinha adotando uma postura de orientação da ação dos indiví-
duos, sempre tendo por base os valores do catolicismo, que se colocavam como
hegemônicos na sociedade brasileira. Entretanto, mais recentemente, a hipótese
de necessidade de justificação dos valores católicos na arena pública nacional
vem sendo colocada (MONTERO, 2013). Segundo a autora, até pouco tempo
atrás, os valores presentes na arena pública brasileira eram coadunantes com
os valores do catolicismo. A necessidade de justificação dos posicionamentos
2
André de Souza (2012) aponta esses dados em sua análise sobre o censo desde a década de 1940.
Segundo o autor, “em 1940, os católicos compunham 96,2% no primeiro censo demográfico em
que o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) considerou o quesito religião. Essa
cifra chegou no ano 2000, último recenseamento com dados disponíveis, a 73,9%, fazendo com
que aproximadamente ainda ¾ da população brasileira se declare seguidora da Igreja romana. Em
contrapartida, os protestantes, tanto de missão ou históricos quanto os pentecostais, abrangiam
naquele primeiro censo 2,6%, vindo a compor seis décadas mais tarde 15,6% da população total”
(SOUZA, 2012, p. 130).
3
A eleição para a Constituinte, em 1986, apresentou relevante mudança em relação ao número
de parlamentares que se autodeclaravam evangélicos pentecostais. A Igreja Assembleia de Deus,
que contava com apenas dois parlamentares, conseguiu, a partir da formulação de uma pedagogia
identitária do voto, eleger outros 18 parlamentares. Aquele é o ano de fundação da Bancada Cons-
tituinte Evangélica, que veio se ampliando paulatinamente a partir de então. Nas eleições federais
ocorridas no ano de 2010, a bancada evangélica cresceu quase 100%. Antes desse período, a bancada
era formada por 41 deputados e dois senadores. No ano de 2011 a bancada passou a integrar 80
deputados e três senadores (MACHADO, 2012).
A audiência pública
No dia 20 de abril de 2007 o Supremo Tribunal Federal (STF) realizou a
primeira audiência pública de sua história, no intuito de reunir informações
para julgar o processo da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3510,
proposta pela Procuradoria-Geral da República (PGR) contra dispositivos da
Lei de Biossegurança (Lei no 11.105/2005). A ADI contestava especificamente
o artigo 5o da lei. Esses dispositivos referem-se à utilização de células-tronco
de embriões humanos em pesquisas e terapias.
Essa audiência pública se iniciou com as falas do ministro relator Carlos Ayres
de Britto, antecedidas pelas da ministra Ellen Grace. A ministra cumprimentou
a disposição de seu colega em convocar essa audiência de cunho instrutório,
buscando esclarecer o voto dos ministros por meio de uma discussão “científi-
ca” sobre o tema das pesquisas com células embrionárias. A ministra também
agradeceu a presença dos experts sobre o tema, que se dispuseram a tratar de
seus trabalhos e de suas pesquisas na audiência.
Esse breve momento inicial já indica que a audiência pública deverá tratar de
instruções trazidas por experts, por cientistas a respeito do “início da vida”. A
audiência foi tratada pelos ministros como de caráter exclusivamente “científi-
co”. Estavam presentes e foram ouvidos dois blocos de cientistas, um formado
por expositores favoráveis à liberação das pesquisas com células embrionárias
(bloco pró-pesquisas) e outro contrário (bloco pró-vida). O bloco contrário foi
indicado pelo procurador-geral da república e pela CNBB, aceita como amicus
curiae no julgamento, e o segundo bloco pelos requeridos na ADI (Congresso
Nacional e presidente da República).
Havia uma demarcação que separava os expositores escalonados e pessoas que
apenas assistiam à audiência. Apenas os expositores podiam se manifestar ao
longo do evento. Nenhum tipo de manifestação por parte do público, como
aplausos ou ações de apoio ao expositor ou a algum dos blocos, era aceito pelo
ministro relator. A audiência teve caráter apenas informativo, no intuito de
informar/esclarecer os ministros do STF sobre aspectos ditos “científicos” re-
lativos ao “início da vida”. Esse ponto foi em mais de um momento destacado
pelo ministro relator do processo, Carlos Ayres de Britto, que fez questão de
4
Essa igualdade é estabelecida pelo STF e pelos agentes envolvidos na indicação dos expositores,
porém, Naara Luna (2013), ao analisar essa audiência pública, demonstra que os cientistas do bloco
pró-pesquisas possuíam maior capital simbólico no campo acadêmico-científico: eram pesquisadores
específicos na área, estavam à frente dos principais laboratórios sobre o tema e possuíam postos de
maior status junto às universidades mais prestigiosas do país.
5
Esse aspecto nos lembra as colocações de Ultrich Beck a respeito da falência e da continuidade da
ciência na modernidade reflexiva. A falibilidade dos fatos produzidos cientificamente é evidente
desde meados do século xx. O questionamento deles passa a ser corriqueiro desde então. Apesar
disso, a importância e a necessidade da ciência se mantêm. O questionamento das verdades esta-
belecidas cientificamente leva à produção de mais ciência, e a exposição dos erros das ciências leva
ao fortalecimento dela mesma.
6
Movimento em prol da vida em defesa das pesquisas com células-tronco embrionárias. A ONG entrou
com pedido no Supremo Tribunal Federal para ingressar como parte interessada no processo que
discute a constitucionalidade do artigo 5o da Lei de Biossegurança.
7
Projeto em defesa das pesquisas com as CTE composto por pessoas com deficiência e seus familiares.
8
As Campanhas da Fraternidade são anualmente lançadas pela CNBB abordando um tema específico
a cada ano, que é recolocado a cada ritual celebrado durante o ano litúrgico. Elas são compostas
por pregações, cânticos, passagens bíblicas que são repetidos durante os rituais católicos em todas
as paróquias brasileiras, especialmente nas missas, ao longo do ano.
9
A referência à defesa da vida, presente desde o título da Campanha, volta-se para temas sobre o
início e o fim da vida: aborto, eutanásia, englobando discussões sobre o estatuto do embrião.
10
A “defesa da vida” é repetida de diversas maneiras nos locais onde essa controvérsia se desenvolveu,
sendo o argumento em torno do qual se agregam as posturas da Igreja contra o aborto, a eutanásia,
a fertilização in vitro, além do uso de células-tronco embrionárias em pesquisas.
11
Na primeira etapa deste trabalho de pesquisa nos detivemos na análise de artigos e notícias publi-
cados nas mídias laicas e católicas sobre o julgamento da ADI 3510. Nesse momento percebemos
a organização dos agentes posicionados contrariamente às pesquisas em torno do argumento “em
defesa da vida”.
12
Para a análise dos documentos foi utilizado o software de análise de discurso Atlas TI. Com a ajuda
dessa ferramenta, notamos que o código “defesa da vida do início ao fim” foi o que mais se repetiu
nesses documentos, estando presente ao menos uma vez em cada uma das notícias ou dos artigos
de bispos.
13
Publicada no segundo semestre de 2008, essa instrução trata dos temas relacionados às novas
tecnologias reprodutivas. As rápidas mudanças nas tecnologias e ciências impulsionaram a escrita
e publicação desse texto pelo Vaticano.
14
Em artigo anterior, demonstramos a presença da “defesa da vida” em todos os níveis hierárquicos
e instâncias do catolicismo ao longo dessa controvérsia. Esse argumento se repetia a partir de dife-
rentes estratégias nos diversos níveis analisados.
15
Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.510, p. 13. Distrito Federal, 2008.
16
Estamos nos utilizando da proposta teórico-metodológica de Bruno Latour. O autor coloca a im-
portância de se levantarem os elementos que são capazes de reagregar a vida social. No caso dessa
controvérsia específica, a “defesa da vida” e os argumentos construídos em torno dela aparecem
como centrais. Segundo Latour, o estudo das controvérsias é sobretudo interessante para se avaliar
processos em construção, em que nada parece estabilizado. Essa proposta nos foi útil na análise deste
episódio, sobre a qual a disputa argumentativa em torno da “vida humana”, especialmente sobre o
seu início, norteou todo o julgamento, estando presente nas diversas instâncias que a compuseram:
na mídia laica, na mídia católica, na audiência pública, na fundamentação e nos encaminhamentos
dados ao julgamento por parte dos agentes representantes do Jurídico, como no caso do procurador-
-geral da república e do ministro relator do processo.
17
Uma das cientistas menciona uma de suas pacientes, uma menina de três anos de idade, que sofre
de uma doença degenerativa que a impede de caminhar. Segundo ela, a garotinha lhe pede para
que sejam colocadas pilhas, para que ela possa andar como suas bonecas.
Essas ideias não são exclusivas do universo da reprodução assistida, pelo con-
trário, estão também presentes entre os agentes envolvidos na controvérsia
sobre as CTE, como constatado por César Ranquetat: “[...] o embrião, mesmo o
embrião extracorporal fecundado in vitro, já é uma vida humana” (2011, p. 41).
18
Em cada uma das apresentações analisadas foi constatada a sobreposição dos códigos que mencio-
navam a fecundação como o início da vida e a condição de pessoa do embrião. Em seguida, sempre
era apresentado algum dado científico que buscasse evidenciar a característica humana do embrião.
Considerações finais
Os valores expressos nessa controvérsia vêm de diversas gramáticas: dos direitos
humanos (dignidade da pessoa humana), das ciências (justificativas construídas
com base em pareceres de cientistas), de uma moralidade de fundo cristão. Os
discursos dos agentes, religiosos ou não, se apropriam da gramática da ciência,
bem como das gramáticas governamental e jurídica.
Além disso, observamos a articulação simultânea de argumentos morais,
científicos e jurídicos ao longo de toda a controvérsia, estando presente nas
estratégias discursivas dos agentes. As noções de direito à vida e dignidade
humana se constituem em um campo amplo de disputa, não sendo possível
restringi-lo a uma “esfera” específica de debate.
Apesar da tentativa de definição estrita da audiência pública como “científi-
ca” por parte de membros do STF, a presença de argumentos de ordem moral
foi constante. A fundamentação última da disputa seria sim “o humano”, “o
valor da vida”, e não uma disputa estrita em torno do “início da vida”, como
apresentado pelo ministro relator. As estratégias discursivas adotadas, em es-
pecial as imagéticas, demonstraram claramente a presença de valores morais
permeando as apresentações.
O que está em pauta nessas apresentações são questões relativas ao sofrimento
e à felicidade dos homens, à dignidade da vida e/ou à crueldade das pesquisas.
Esses valores norteiam a apresentação dos cientistas escalonados para a au-
diência pública, estando subjacentes às suas falas.
Paralelamente, o uso de concepções caras à modernidade, como indivíduo e
autonomia, surge no discurso de atores posicionados nos diferentes polos dessa
Referências bibliográficas
BOLTANSKI, Luc. La souffrance à distance. Morale humanitaire, médias et politique. Paris: Métailié,
1993.
________; THÉVENOT, Laurent. On justification. Economies of worth. Princeton: Princeton Uni-
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Os contornos da questão
Os primeiros anos do século XXI geralmente são referidos como um período de
muitos avanços com relação à institucionalização da língua brasileira de sinais
(libras). Desde então, está em curso o desenho de uma política linguística
para sua consolidação em todo o território nacional. Por meio da Lei Federal
10.436/2002, regulamentada pelo Decreto Federal 5.626/2005, a libras foi
reconhecida como meio legal de expressão e comunicação oriundo das co-
munidades surdas. O efeito mais imediato dessa legislação é que as agências
concessionárias de serviço público precisam garantir o atendimento aos surdos
por meio dessa língua, sendo necessário que 5% de seus funcionários a conhe-
çam, tendo se tornado ainda disciplina obrigatória em cursos de graduação em
educação especial, fonoaudiologia, pedagogia e todos os cursos de licenciatura.
Além disso, a educação bilíngue deve ser ofertada para crianças surdas.
Para o cumprimento dessa legislação, a Secretaria de Educação Especial do
Ministério da Educação passou a implementar uma ampla política de uso e
difusão da libras. Entre as iniciativas fundamentais, podemos citar: a criação
do curso de Letras Libras a distância, centralizado pela Universidade Federal
de Santa Catarina (UFSC), mas com polos em 18 universidades federais, para
a formação de licenciatura em libras e bacharelado em tradução/interpretação
libras/português, modalidade a distância – esses mesmos cursos também são
ofertados em modalidade presencial na UFSC; criação da graduação em pedago-
1
Dados informados na Nota técnica n. 05/2011, de 27 de abril de 2011, do Ministério da Educação,
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão.
2
O que comumente se denomina movimento social surdo é algo mais amplo que a atuação da Feneis.
Contudo, a maioria das lideranças surdas de algum modo já esteve vinculada a essa instituição,
ocupando ela inegável protagonismo no cenário brasileiro.
3
Disponível em: <http://www.camara.gov.br/sileg/integras/831421.pdf>. Acesso em: 14 abr. 2014.
4
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso
em: 11 abr. 2014.
5
Apesar de ainda não analisado, no interior do movimento de pessoas com deficiência e na insti-
tucionalização do tema no Estado, há uma prevalência hierárquica da deficiência física sobre as
outras (visual, auditiva e intelectual), sendo esta uma das explicações de tensão nessa área. O não
comprometimento da razão, da oralidade e da visualidade das pessoas com deficiência física (re-
cursos necessários para a boa interação e condição do fazer político) garante a assimetria de poder
entre sujeitos com deficiência.
6
Entre as federações citadas acima, fazem parte atualmente do Conselho Nacional dos Direitos da
Pessoa com Deficiência (Conade) somente a Feneis e a Onedef.
7
Esse processo está estruturalmente vinculado ao que Paula Montero afirmou na Introdução sobre a
passagem do paradigma do sincretismo para o da inclusão. Nesse novo modelo, a sociedade brasileira
é descrita como algo composto por um leque muito diversificado de diferenças, sendo a deficiência
uma delas.
8
Cf. Constituição Federal 1988, artigo 208, III; Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei Federal
8.069/90, Art. 54, III; LDB, Lei Federal 9.394/96, capítulo V; Plano Nacional de Educação, Lei
Federal 10.172/01, cap. 8; Diretrizes Nacionais para a Educação Especial na Educação Básica,
resolução no 2/2001; Declaração de Salamanca (UNESCO, 1994). Política Nacional de Educação
na Perspectiva da Educação Inclusiva, Portaria Ministerial 555/2007. Convenção Internacional dos
Direitos da Pessoa com Deficiência, Decreto Federal 6.949/2009, Artigo 24; Decreto 7.611/2011.
9
Entre as que atuam no Brasil podemos citar: Congregação das Irmãs de Nossa Senhora do Calvário
(São Paulo-SP, Rio de Janeiro-RJ e Brasília-DF); Gualadianos da Pequena Missão para Surdos (Londri-
na-PR, Cascavel-PR e Campinas-SP), Irmãs Salesianas do Sagrado Coração (Belém-PA, Fortaleza-CE,
Pouso Alegre-MG, Manaus-AM); Congregação das Irmãs Franciscanas de Nossa Senhora Aparecida
(Porto Alegre-RS); Congregação Sociedade das Filhas do Coração de Maria (Curitiba-PR); Filhas da
Providência para Surdos Mudos (São Paulo-SP), Associação das Obras Pavonianas de Assistência
(Brasília-DF), Congregação das Filhas de Nossa Senhora do Monte Calvário (Belo Horizonte-MG).
Sobre as relações entre Igreja Católica e surdez, ver Assis Silva, 2012b.
10
Apesar disso, emerge dela o primeiro dicionário brasileiro de sinais, de autoria do padre redentorista
norte-americano Eugênio Oates ([1969] 1988), posteriormente apropriado por protestantes.
11
“Quando estou entre os fracos na fé, eu me torno fraco também a fim de ganhá-los para Cristo.
Assim eu me torno tudo para todos a fim de poder, de qualquer maneira possível, salvar alguns” (I
CORINTIOS, 9:22).
12
Os dados sobre Conae 2010 foram retirados da Revista da Feneis (n. 40, jun.-ago. 2010) e Carta
da Feneis para o ministro da Educação Fenando Haddad, de 19 de maio de 2011.
13
Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=Bs4wZYYgcSQ >. Acesso em: 16 abr. 2014.
14
Disponível em: <http://www.peticaopublica.com.br/pview.aspx?pi=LutaINES>. Acesso em: 15
abr. 2014.
15
Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=kEHXG_6EesY>. Acesso em: 15 abr. 2014.
16
Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=uZvHSaqAYLw>. Acesso em: 14 abr. 2014.
17
Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=eGJ_Q3PwTLo>. Acesso em: 15 abr. 2014.
18
Dados sobre a manifestação em Brasília foram retirados da Revista da Feneis (n. 44, jun./ago. 2011)
e da etnografia de Eudenia Magalhães Barros (2011), pesquisadora do movimento social surdo e
mestranda em sociologia na UNICAMP.
A cópia da carta para o ministro da Educação foi entregue também aos parla-
mentares presentes.
O dia 20, sexta-feira, foi marcado com uma grande passeata, quando de fato
chegaram diversas caravanas de todo o Brasil, estimando-se que, como já foi
comentado, 4 mil pessoas tenham participado. A caminhada partiu do Museu
Nacional e foi até o Congresso Nacional. O ambiente foi bastante festivo, com
trio elétrico, apitos e instrumentos musicais para chamar a atenção de todos.
De acordo com Barros, que realizou etnografia na passeata:
Jovens surdos com nariz de palhaço carregavam faixas, onde estava escrito “Respeito
à cultura surda”, e em vermelho “Fora Martinha Clarete”, até então diretora de
Políticas de Educação Especial; “Não à inclusão homogeneizadora”, “Inesquecível
para a educação dos surdos – INES”, “Professores Surdos Já” (Barros, 2013, p. 13).
19
Assim como o laço vermelho é adotado pela luta contra a aids, o laço azul passou a ser adotado
como símbolo do “ser surdo”, o que se fortaleceu ainda mais em setembro de 2011.
20
Decreto 52.785/2011, regulamentado pela Portaria 5.707/2011.
21
Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=Uj839Xcp9Mc>. Acesso em: 15 abr. 2014.
A segunda reivindicação visa garantir que professores que vão atuar nas escolas
de surdos tenham formação específica e continuada sobre a história, aspectos
linguísticos, culturais e de identidade das comunidades surdas do Brasil e do
mundo. Nesse caso, visa-se garantir que a educação seja bilíngue e, também,
que seja aplicada a pedagogia surda, que concebe o surdo não como deficiente,
menos válido, alguém a ser corrigido, mas como membro de um povo com
língua e cultura específicas. Essa reivindicação enfatiza a importância do ensino
da história do “povo surdo” para os professores.
A terceira reivindicação é a garantia do ingresso de surdocegos e surdos com
outras deficiências nas escolas ou classes de surdos na perspectiva da educação
inclusiva, assegurando o seu direito a uma educação bilíngue, com professor
assistente para atender suas necessidades especiais. Nesse caso, a Feneis se
alinha à educação inclusiva para surdocegos e surdos com outras deficiências
dentro da escola bilíngue para surdos.
A quarta reivindicação demanda que o texto do Plano Nacional de Educação
acrescente surdos após se referir aos grupos de estudantes que demandam aten-
dimento específico (principalmente após citar os indígenas). Como afirmam:
O PNE separa as necessidades específicas das populações do campo e de áreas
remanescentes de quilombos (Artigo 8, § 1o) e as necessidades educacionais es-
pecíficas da educação especial (Artigo 8, § 2o). Os surdos melhor se enquadram
entre as populações de história, língua e cultura específicas que entre os grupos
que compõem a educação especial. Aquilo que é previsto para a educação es-
colar indígena deve ser também propiciado para a educação de surdos. TUDO
O QUE O PNE PREVÊ PARA A EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA CABE
PARA A EDUCAÇÃO DE SURDOS, visto que tanto indígenas como surdos
têm uma língua própria e uma cultura diferenciada. O texto do PNE fala das
“especificidades socioculturais e linguísticas de cada comunidade”, alertamos
que esta especificidade sociocultural e linguística aplica-se também aos surdos
(FENEIS, 2011, p. 21-22).
22
Disponível em: <http://www.peticaopublica.com.br/pview.aspx?pi=EBS2012>. Acesso em: 16
abr. 2014.
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________. Lei 13.005, de 25 de junho de 2014. Aprova o Plano Nacional de Educação – PNE e dá outras
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l13005.htm>. Acesso em: 7 nov. 2012.
CONGRESSO NACIONAL. Projeto de lei 8.035/2010. Plano Nacional de Educação, 2010.
FENEIS. Carta para dr. Fernando Haddad, Ministro da Educação da República Federativa do Brasil.
Brasília, 19 maio 2011.
Este trabalho consiste na análise de um estudo de caso que pode ser tomado
como exemplar na agenda de pesquisa do “conflito entre adeptos das religiões
pentecostais e afro-brasileiras”, como mapeei em trabalhos anteriores (BOR-
TOLETO, 2014), especialmente por descrever um episódio em que quatro
jovens evangélicos “invadem” um centro espírita na cidade do Rio de Janeiro
em junho de 2008 e ali quebram diversas “imagens de escultura”. Esse proce-
dimento fomenta um intenso debate público acerca das práticas discursivas
desses jovens, de em qual figura jurídica eles devem ser enquadrados e de
como a “intolerância religiosa” deve ser tratada na jurisprudência brasileira,
assim como quais são os limites da liberdade religiosa no Brasil.
Optar pela análise desse caso também me permite experimentar a viabilidade
de uma abordagem que focalize os discursos dos mais variados atores sociais
envolvidos nesse debate, atentando para suas argumentações, quais termos as
constituem e quais sentidos os atores envolvidos nessas contendas acionam,
deslocando a análise dos aspectos que compõem as religiões a que os atores
declaram pertencimento para o conteúdo exposto nas práticas discursivas que
tais atores produzem ao envolver-se nessas contendas públicas.
Pensando metodologicamente, a viabilidade deste experimento analítico pode-
ria ser avaliada sob diversas formas, dialogando com as mais variadas tradições
da filosofia da linguagem ou da análise do discurso. Entretanto, a antropologia
1
Os principais trabalhos desses autores e que utilizarei nesta investigação, seja citando-os ex-
pressamente ou somente tendo-os como inspiração, são: Boltanski, 1984, 1990; Boltanski &
Chiapello, 1991; Boltanski & Thévenot, 1987, 1991, 1999; Chiapello, 2003; Thévenot, 1990,
1992a, 1992b, 1998.
2
Em um dos seus principais trabalhos, o “ensaio/manifesto” Jamais fomos modernos: ensaio de
antropologia simétrica, publicado em 1991, Latour ressalta a centralidade das investigações da
chamada sociologia pragmática. Diz o autor: “Luc Boltanski e Laurent Thévenot esvaziaram a
denúncia moderna em um livro tão importante para este ensaio quanto o de Steve Shapin e Simon
Schaffer. Fizeram, em relação ao trabalho de indignação crítica, o que François Furet já havia feito
em relação à Revolução Francesa. ‘A denúncia acabou’: este poderia ser o subtítulo de Economies
de la grandeur” (LATOUR, 1991, p. 48).
3
Não somente por proporem o desvencilhamento investigativo de um edifício teórico fechado na
explicação dos mais diversos fenômenos sociais, como também faz Latour através da ANT.
4
“Você só deve entrar em pânico se seus atores não tiverem feito tudo isso da mesma forma, cons-
tantemente, ativamente, reflexivamente, obsessivamente: eles também comparam, eles também
produzem tipologias, eles também elaboram padrões, eles também disseminam suas máquinas, bem
como suas organizações, ideologias e estados mentais. Por que você seria aquele que faz o trabalho
inteligente enquanto eles agiriam como um bando de retardados? O que eles fazem para expandir,
para relacionar, para comparar e para organizar é também o que você tem a descrever. Não há
outra camada a ser adicionada à ‘mera descrição’. Não tente trocar a descrição pela explicação:
simplesmente continue a descrição. As suas próprias ideias sobre a companhia não interessam se
comparadas à questão de como essa parte da empresa tem feito para se desenvolver” (LATOUR,
2006, p. 346, grifo nosso).
5
“Segundo Edmar Castelo Branco, a responsável pelo centro, as provocações começaram na fila.
‘Tinha uma fila com mais de 60 pessoas e aí eles começaram a provocar na fila. Aí empurraram
a porta, abriram a porta e entraram já xingando e quebrando todos os santos.’ Segundo a 9ª DP
(Catete), em depoimento, os suspeitos afirmaram ser evangélicos. Pelo menos cinco carros do 2o
BPM (Botafogo) foram para o local na tentativa de conter o tumulto. A polícia ainda não divulgou
os nomes dos invasores. Ninguém ficou ferido. […] De acordo com o delegado Fábio Pereira, da
9ª DP (Catete), os quatro jovens foram detidos em flagrante e levados para a delegacia, onde pres-
taram depoimento. Eles não pareciam arrependidos e testemunhas contaram que o grupo gritava
que aquilo era ‘coisa do diabo’ enquanto quebrava as imagens do Centro, segundo Pereira. “O dano
não tinha como objetivo causar prejuízo às vítimas, mas impedir a realização da prática religiosa”,
explicou. Eles foram autuados por crime contra o sentimento religioso e liberados depois de se
comprometer a comparecer à audiência no 1o Juizado Especial Criminal de Botafogo na data a ser
marcada pela Justiça.” (Portal G1.com. Publicado em 3 jun. 2008. Disponível em: <http://g1.globo.
com/Noticias/Rio/0,,MUL587620-5606,00-PASTOR+REPUDIA+ATO+VIOLENTO+DE+FI
EIS+CONTRA+CENTRO+ESPIRITA.html>. Acesso em: 3 ago. 2011).
6
Jornal Bom Dia Brasil. Rede Globo de Televisão. Publicado em 2 jun. 2008. Disponível em: <http://
g1.globo.com/bomdiabrasil/0,,16020-p-25062009,00.html>. Acesso em: 3 ago. 2011.
7
Segundo os trabalhos do antropólogo Nilton Rodrigues Júnior (2012) e da antropóloga Ana Paula
Mendes Miranda (2010, 2012; MIRANDA; GOULART, 2009), pode-se afirmar que a origem da
CCIR-RJ remete a casos de expulsão de diversos sacerdotes das religiões afro-brasileiras da Ilha do
Governador (RJ) por “traficantes evangélicos” entre os anos de 2007 e 2008 (MIRANDA, 2010,
2012). Após esses casos, que geraram certo debate público acerca da relação conflituosa entre
pentecostais e religiões afro-brasileiras no Rio de Janeiro, diversos sacerdotes umbandistas e
candomblecistas organizaram-se e realizaram uma “manifestação pública em frente à Assembleia
Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj), processo que fomentou a articulação da CCIR-RJ em
torno do combate a atitudes discriminatórias contra os cultos de matriz afro-brasileira, entendidas
como formas de manifestação de ‘intolerância religiosa’, bem como visou pressionar as autoridades
a tomarem medidas em relação aos ataques. A primeira atividade da Comissão foi a realização de
uma audiência pública na Assembleia Legislativa. No entanto, como os deputados e demais autori-
dades não compareceram, estando presente apenas um representante do Secretário de Segurança,
os religiosos presentes decidiram realizar um protesto na escadaria da Assembleia, de onde saíram
em caminhada pelas ruas do centro da cidade” (MIRANDA; GOULART, 2009, p. 3).
8
Conforme Rodrigues Júnior, que pesquisou em sua tese de doutorado a CCIR-RJ, Carlos Alberto
Ivanir dos Santos é o babalawô Ivanir dos Santos. Formado em pedagogia, sua biografia evidencia
um ator em constante relação com os movimentos sociais e que teve profunda experiência junto
ao Partido dos Trabalhadores (PT), ao qual pediu desfiliação em 2010, após 20 anos de militância.
Nesse período, Ivanir foi agraciado com diversos prêmios em prol dos direitos humanos. Iniciou-se
no candomblé em 1981 em Salvador no terreiro de Edinho de Oxóssi, onde cumpriu suas obriga-
ções e tornou-se babalorixá. Em 2006, após estadia na Nigéria, sagrou-se Olowo Jokotoye Bankole,
babalawô, sacerdote do culto a Ifá, deus dos oráculos (RODRIGUES JÚNIOR, 2012, p. 207-210).
Peço a todos que puderem que compareçam à audiência, pois necessitamos nos fazer
presentes para que os culpados da invasão, discriminação e depredação ao Centro
Espírita Cruz de Oxalá, possam ser condenados dentro da Lei Caó, no rigor da Lei.
Agora devemos fazer presença, dentro da lei, da ordem e da justiça, para que
essas pessoas possam ser punidas devidamente. Não na banalidade da lei, mas
naquilo que realmente elas fizeram que foi um ato do maior preconceito religioso
que foi o de invadir e depredar uma casa santa, agredindo a nossa fé, a nossa
religiosidade. Temos que mostrar união, força, resistência e cobrar das autori-
dades que a lei, dentro do seu rigor, seja cumprida e os culpados condenados.
E isso também depende de nós, de nossa luta, de nossa determinação (Perfil da
CCIR-RJ no Orkut, publicado em 13 set. 2008. Disponível em: <http://www.
9
Carlos Alberto Oliveira, conhecido como Caó, é ex-deputado federal pelo Partido Democrático
Trabalhista (PDT) e compôs a assembleia constituinte, onde foi o responsável pelo inciso XLII do
artigo 5o da Constituição Federal do Brasil que “determina que a prática do racismo constitui crime
inafiançável e imprescritível”. Apesar de longe dos pleitos eleitorais, Carlos Alberto Caó ainda é
filiado ao PDT e ativo militante do movimento negro. (Agência Brasil. Publicado em 20 nov. 2008.
Disponível em: <http://memoria.ebc.com.br/agenciabrasil/noticia/2010-01-21/rio-lanca-primeiro-
-nucleo-de-combate-intolerancia-religiosa-da-policia-civil>. Acesso em: 3 ago. 2011).
10
“No dia 20 de dezembro de 1985, uma lei federal estabelecia como crime o tratamento discrimina-
tório no mercado de trabalho, entre outros ambientes, por motivo de raça/cor. A chamada ‘Lei Caó’
(Lei nº 7.437/85) classifica o racismo e o impedimento de acesso a serviços diversos por motivo
de raça, cor, sexo, ou estado civil como crime inafiançável, punível com prisão de até cinco anos e
multa.” (Fundação Cultural Palmares. Publicado em: 20 dez. 2011. Disponível em: <http://www.
palmares.gov.br/2011/12/ha-26-anos-era-sancionada-a-lei-cao/>. Acesso em: 31 mar. 2014).
11
Para mais detalhes da proposição da Lei 7.437/85: <http://www.senado.gov.br/atividade/materia/
detalhes.asp?p_cod_mate=24048>. Acesso em: 31 jul. 2014.
12
Reza o artigo 20 da Lei Caó, já reformulado pela Lei 9.459 de 1997: “Art. 20. Praticar, induzir ou
incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Pena:
reclusão de um a três anos e multa. § 1o Fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos,
emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins
de divulgação do nazismo. Pena: reclusão de dois a cinco anos e multa. § 2o Se qualquer dos crimes
previstos no caput é cometido por intermédio dos meios de comunicação social ou publicação de
qualquer natureza. Pena: reclusão de dois a cinco anos e multa. § 3o No caso do parágrafo anterior,
o juiz poderá determinar, ouvido o Ministério Público ou a pedido deste, ainda antes do inquérito
policial, sob pena de desobediência: i – o recolhimento imediato ou a busca e apreensão dos exem-
plares do material respectivo; ii – a cessação das respectivas transmissões radiofônicas, televisivas,
eletrônicas ou da publicação por qualquer meio; iii – a interdição das respectivas mensagens ou
páginas de informação na rede mundial de computadores. § 4o Na hipótese do § 2o, constitui efeito
da condenação, após o trânsito em julgado da decisão, a destruição do material apreendido.” (Brasil.
Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989.)
13
Sem dúvida que diversos debates produzidos por uma gama de atores das mais diversas proce-
dências foram os responsáveis por estas três principais modificações que a Lei Caó passou nestes
quase 30 anos desde sua primeira aprovação. Modificações que, cada uma delas, permitem um
conjunto de investigações, como por exemplo, a sua utilização em casos de “discriminação racial”
ou até mesmo a reformulação de 1989, que suprimiu a discriminação por “sexo” e “estado civil”
de seu escopo, dentre outras modificações menores que o texto da lei sofreu. Longe de abarcar
a multiplicidade de debates entre os mais diversos atores que a Lei Caó sinaliza existir em sua
história, o foco central desta investigação é o de observar um estudo de caso específico, ocorri-
do na cidade do Rio de Janeiro no ano de 2008, que sinaliza um multifacetado debate público
acerca da utilização inédita da Lei Caó na tipificação do crime de “discriminação religiosa”. Esse
debate ilumina diversos atores nas mais variadas posições sociais, reconstituindo justificações
acerca do que entendem por “intolerância religiosa” e “liberdade religiosa”, assim como suas
garantias legais.
14
Reza o artigo 140 do Código Penal brasileiro: “Art. 140 – Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade
ou o decoro: Pena – detenção, de um a seis meses, ou multa. § 1o – O juiz pode deixar de aplicar a
pena: i – quando o ofendido, de forma reprovável, provocou diretamente a injúria; ii – no caso de
retorsão imediata, que consista em outra injúria. § 2o Se a injúria consiste em violência ou vias de
fato, que, por sua natureza ou pelo meio empregado, se considerem aviltantes: Pena – detenção, de
três meses a um ano, e multa, além da pena correspondente à violência. § 3o Se a injúria consiste
na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa
idosa ou portadora de deficiência: Pena – reclusão de um a três anos e multa.” (Brasil, Código
Penal Brasileiro, 2013).
15
Reza o artigo 208 do Código Penal brasileiro: “Art. 208 – Escarnecer de alguém publicamente, por
motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso;
vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso: Pena – detenção, de um mês a um ano,
ou multa. Parágrafo único – Se há emprego de violência, a pena é aumentada de um terço, sem
prejuízo da correspondente à violência.” (Art. 208 do Código Penal Brasileiro. Decreto-lei nº 2.848,
de 7 de dezembro de 1940).
16
Revista Época. Publicado em: 25 jun. 2009. Disponível em: <http://revistaepoca.globo.com/
Revista/Epoca/0,,ERT79088-15228-79088-3934,00.html>. Acesso em: 3 ago. 2011.
17
“É possível associar casos bem diferentes se se aceita a ideia de que as disputas sobre o justo sempre
dizem respeito a um desacordo cujo objeto é a importância ou a grandeza (la grandeur) relativa dos
diferentes seres presentes na situação” (BOLTANSKI; THÉVENOT, 1999, p. 363).
18
“Assim, um quadro de análise da atividade de disputa deve, com as mesmas ferramentas, ser hábil
em ocupar-se das críticas, a qualquer ordem, social ou situacional, assim como da sua justificação.
Além disso, essas situações [sob requisito de justificação] são necessariamente provisórias porque
quebram o curso corriqueiro da ação. Ninguém pode viver constantemente em um estado de crise.
Logo, um dos modos de sair de uma crise é retomar um acordo. O quadro de análise deve, por-
tanto, ser capaz de manejar o acordo e o desacordo com as mesmas ferramentas” (BOLTANSKI;
THÉVENOT, 1999, p. 361, grifo nosso).
19
Conforme a antropóloga Ana Paula Mendes Miranda, que estuda a CCIR-RJ desde o ano de 2008,
“Fátima Damas [é] presidente da Congregação Espírita Umbandista do Brasil (CEUB) e foi uma
das principais responsáveis pela criação da Comissão, que se reúne até hoje na sede da CEUB, no
bairro do Estácio, na região do centro do Rio de Janeiro” (MIRANDA; GOULART, 2009, p. 3).
Formada em administração de empresas e umbandista desde 1970, dirige o Templo Umbandista
Vovó Maria Conga, que funciona no mesmo espaço físico da CEUB (MIRANDA; GOULART, 2009;
RODRIGUES JÚNIOR, 2012, p. 221-225).
20
“Se considerarmos que o preconceito não é um fenômeno novo no Brasil, faz-se necessário com-
preender qual é o significado dado à intolerância religiosa como uma bandeira de luta, já que ela
tem sido considerada a ‘outra face do racismo’ por integrantes do chamado movimento negro”,
sendo Ivanir um destes militantes (MIRANDA, 2012, p. 61).
21
“Pode-se dar a conhecer o requisito de legitimidade através da afirmação bem prática: uma crítica ou
justificação pode ser tida como legítima em uma situação concreta quando o seu formulador puder
mantê-la quaisquer que sejam as características sociais que os seus interlocutores recém-chegados
puderem apresentar. O efeito do requisito de legitimidade é, portanto, pôr em movimento um
processo de generalização” (BOLTANSKI; THÉVENOT, 1999, p. 364).
22
“Nos conflitos da vida cotidiana, atores ‘ordinários’ fornecem ampla evidência de sua capacidade
para assumir diferentes pontos de vista, distanciar-se da situação e envolver-se em complexos
discursos de crítica e justificação. A fragilidade da ordem social e a pluralidade de regimes de
justificação tanto possibilitam quanto exigem dos atores que ajam de um modo reflexivo e crítico”
(CELIKATES, 2012, p. 35).
23
“As denúncias de ofensa à religião vêm crescendo no estado do Rio de Janeiro, onde até novembro
de 2008 a Lei Caó, que considera crime de intolerância religiosa, não estava incluída no sistema
É visando maior projeção pública desses termos, que seus integrantes reconhe-
cem como eficazes na argumentação, que a CCIR-RJ organizou a 1a Caminhada
pela Liberdade Religiosa no dia 21 de setembro de 2008. A data foi escolhida
após o babalawô Ivanir dos Santos consultar Ifá através do jogo oracular, que
respondeu ser o terceiro domingo de setembro o melhor dia para o evento.
A caminhada se concretizou na orla de Copacabana contando com o apoio de
diversos parceiros, incluindo a Rede Globo de Televisão, emissora que veiculou
diversas vinhetas durante a sua programação convidando a população do Rio
de Janeiro a comparecer ao evento. A manifestação pública reuniu em sua
primeira edição
Cerca de 10 mil pessoas [...] para pedir o fim da discriminação religiosa. Sob chu-
va, a manifestação reuniu artistas, intelectuais e representantes de várias crenças,
com predomínio das religiões afro-brasileiras, que denunciaram o preconceito e a
perseguição por parte de outros grupos.
das delegacias legais. Com a mudança recente, ainda não há números ou estatísticas para mensurar
esse movimento, mas, segundo o delegado Henrique Pessoa, coordenador do setor de inteligência
da Polícia Civil, hoje há praticamente um registro por dia nas delegacias do estado. Nessa ‘guerra
da fé’, os seguidores de religiões afro-brasileiras são vítimas mais frequentes. ‘Nos anos anteriores,
tínhamos limitações do sistema, que não estava atualizado. Não tínhamos como fazer o registro
como intolerância religiosa, de acordo com a Lei Caó’, explicou o delegado, acrescentando que o
sistema foi corrigido em novembro de 2008. ‘Com a demonstração por parte da polícia de que vai
apurar os casos, os registros são estimulados e estão aumentando expressivamente. É praticamente
um por dia’.” (Portal G1. Publicado em: 26 jan. 2009. Disponível em: <http://g1.globo.com/
Noticias/Rio/0,,MUL972701-5606,00-AUMENTAM+DENUNCIAS+CONTRA+INTOLERA
NCIA+RELIGIOSA+NO+RIO.html>. Acesso em: 14 out. 2012).
24
Folha de S.Paulo. Publicado em: 21 set. 2008. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/
cotidiano/2008/09/447346-mais-de-10-mil-pedem-fim-da-intolerancia-religiosa-no-rio.shtml>.
Acesso em: 16 set. 2013.
25
“Cerca de 200 mil manifestantes eram esperados na praia de Copacabana, onde líderes religiosos
afro-brasileiros, católicos, muçulmanos, judeus, espíritas, protestantes, budistas e baha’i se jun-
taram, envergando trajes tradicionais das respectivas confissões. ‘Desde há 25 anos que acenam
com a Bíblia sobre as nossas cabeças. Nas escolas, as nossas crianças são tratadas como adeptos do
diabo’, disse Ivanir Santos, um dos organizadores da Marcha pela Liberdade Religiosa, citado pela
agência France Press.” (Portal JN. Publicado em: 18 set. 2013. Disponível em: <http://www.jn.pt/
PaginaInicial/Brasil/Interior.aspx?content_id=2003412&page=-1)>. Acesso em: 1o abr. 2014.
26
Segundo meu acompanhamento, as caminhadas frutos da reivindicação pública dos sacerdotes das
religiões afro-brasileiras por resoluções de diversas questões oriundas da relação com os pentecostais
tornaram-se um instrumento de reivindicação corriqueiro nos últimos anos. Tal é o caso da Caminha-
da pela Vida e Liberdade Religiosa de Salvador, iniciada em 2004, e da Caminhada do Recôncavo,
iniciada em 2010 no município de Cachoeira, ambas na Bahia. Em Pernambuco há a Caminhada
dos Terreiros de Matriz Africana em Recife, iniciada em 2006, e a Caminhada Caruaruense pela
Igualdade Racial e Tolerância Religiosa, que ocorre no município de Caruaru desde 2011. Na Pa-
raíba há a Caminhada pela Liberdade Religiosa e Resistência, Jurema, Umbanda e Candomblé em
João Pessoa. No Ceará ocorre a Caminhada pela Liberdade Religiosa em Juazeiro do Norte desde
2009. No Pará há a Caminhada Estadual pela Liberdade Religiosa em Belém, iniciada em 2010. No
Maranhão há a Caminhada Maranhense pela Liberdade Religiosa que ocorre anualmente na cidade
de São Luís desde 2011. No Rio Grande do Norte há a Caminhada Contra a Intolerância Religiosa,
que teve seu início em 2011 na cidade de Natal. No Centro-Oeste observa-se a Caminhada de
Enfrentamento da Intolerância Religiosa em Brasília desde o ano de 2009, assim como a Caminhada
em Defesa da Liberdade Religiosa desde 2011 no município de Corumbá, em Mato Grosso do Sul.
Santos pediu ao papa que a igreja se engaje na luta contra a intolerância religiosa,
o genocídio da juventude negra e a perseguição religiosa às crianças da umbanda e
do candomblé nas escolas. “O papa foi receptivo e falou da importância do estado
laico”, relatou27.
No Sul observa-se a Marcha Estadual pela Vida e Liberdade Religiosa, iniciada em 2011 no município
de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, e a Caminhada pela Liberdade Religiosa e pela Liberdade
de Culto em Curitiba, Paraná, desde 2008. No Sudeste observam-se a Caminhada Cultural pela
Liberdade Religiosa, com início em 2009 em Belo Horizonte, assim como a Caminhada de Cultura
de Paz contra a Intolerância Religiosa, iniciada em 2011 em São Paulo, a Marcha pelo Respeito e a
Ancestralidade Africana no Brasil, que ocorre na cidade de Ribeirão Preto desde 2011, assim como
o maior evento que reivindica liberdade religiosa no Brasil, a Caminhada pela Liberdade Religiosa
que ocorre na cidade do Rio de Janeiro desde 2008.
27
O Estado de S. Paulo. Publicado em: 27 jul. 2013. Disponível em: <http://www.estadao.com.br/
noticias/geral,autoridades-deixam-o-theatro-apos-encontro-com-o-papa,1057913,0.htm>. Acesso
em: 1o ago. 2013.
28
O programa Na Moral, comandado pelo apresentador Pedro Bial, discutiu no dia 1o de agosto de
2013 o tema “Estado laico” e para tanto chamou “representantes” de diversos posicionamentos
sobre o assunto, dentre eles um padre negro ligado à CNBB representando a Igreja Católica, o pastor
Silas Malafaia representando os “evangélicos”, o ateu Daniel Sottomaior, “representante da maior
associação de ateus do Brasil”, e Ivanir dos Santos, “representante das religiões afro-brasileiras” e
que pouco falou durante o debate. (Rede Globo de Televisão, programa Na Moral. Exibido em 1o
ago. 2013. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=rMgtncZk0JE>. Acesso em: 15
set. 2013).
29
Vagner Gonçalves da Silva, para citar um dos pesquisadores contemporâneos que tematizam o con-
flito entre pentecostais e religiões afro-brasileiras, aponta essa característica histórica na segmentação
das religiões afro-brasileiras, indicando nelas o caráter de disputa existente entre as umbandas e
os candomblés. Segundo o autor, o “candomblé [a partir da década de 1960 nas grandes cidades
do Sudeste] sempre procurou marcar sua distinção em relação à umbanda criticando-a como uma
versão ‘fraca’ e ‘deturpada’ de suas tradições transformadas sob a influência exacerbada do cato-
licismo e do espiritismo kardecista” (SILVA, 2007b, p. 234-235). Entre tantas adversidades, “o
povo de santo tem procurado se articular e superar as divergências entre as várias denominações
religiosas (candomblé e umbanda, por exemplo) e entre os diferentes modelos de culto existentes
no interior destas (candomblé queto e angola, por exemplo). Historicamente essas religiões têm
se desenvolvido muito mais por dissidências ou contraposições do que por aglutinação em torno
de entidades de representação coletiva. O modelo de organização federativa dos centros espíritas,
por exemplo, foi adotado com relativo sucesso pelos terreiros de umbanda, mas pouca influência
teve entre os de candomblé. Mesmo assim, algumas entidades federativas [em forma de associações
civis] têm procurado encaminhar posições e estabelecer interlocução com outros agentes do poder
público, do movimento negro, de organizações não governamentais, etc.” (SILVA, 2007a, p. 22).
Eu, como discípulo de Jesus Cristo, como discípulo da verdade, eu estou aqui
agora para esclarecer. Não para me justificar ou dar satisfação para ninguém! Mas
para falar a verdade! [...]
30
“Afonso Henrique publicou um vídeo no YouTube em que declara desprezo pelas instituições poli-
ciais e judiciárias, além de afirmar que todos os pais de santo são homossexuais e que todo centro
espírita cultua o demônio. No vídeo, Afonso confessa, com requinte de detalhes, a invasão do
Centro Espírita Cruz de Oxalá, e diz que naquela noite dormiu tranquilo” (Portal Terra. Publicado
em: 19 jun. 2009. Disponível em: <http://noticias.terra.com.br/brasil/policia/pastor-e-fiel-sao-
-presos-acusados-de-atacar-centro-espirita,417c6ce675e4b310VgnCLD200000bbcceb0aRCRD.
html>. Acesso em: 3 set. 2011).
E nós, com sede e fome de justiça, fomos à rua alertar o povo da Universal e aquelas
pessoas também que desejam conhecer a verdade.
Então, estávamos lá, por volta das 19h, quando paramos e fomos dar uma volta
para descansar. Passamos pelo Catete e vimos uma fila e fomos perguntar o que era
aquela fila. E lá eles nos responderam que era um centro espírita e que a reunião
começaria às 19h30 e eles estavam esperando a porta abrir para eles subirem e se
consultarem.
Como todo mundo sabe, centro espírita é lugar de invocação ao diabo, lugar onde as
pessoas vão adorar o Satanás, vão levar sua oferenda. Cigarro, cachaça, farofa, essas
coisas podres, essas palhaçadas, que esses servos do diabo insistem em fazer! [...]
Chama a atenção o motivo que faz os jovens irem ao centro da cidade, pois
eles não foram para aquela região com o intuito de “invadir” o Centro Espírita
Cruz de Oxalá ou converter os membros das religiões afro-brasileiras, mas sim
para “alertar os membros da Igreja Universal do Reino de Deus sobre como
as obras do demônio têm operado naquela Igreja”. Cabe retomar que a Igreja
Geração de Jesus Cristo já apresentava, como o jornal Bom Dia Brasil da
Rede Globo anunciou na manhã seguinte ao ocorrido, uma disputa com outras
denominações “evangélicas” na Baixada Fluminense, e não o conflito aberto
contra as religiões afro-brasileiras, como o caso se constituiu. Sendo assim,
Afonso Henrique não reconhece a IURD como uma Igreja, já que a “Universal”
permite que “obras do diabo” sejam realizadas em seu espaço, cabendo aos
adeptos da Igreja Geração de Jesus Cristo “alertar” as pessoas que congregam
nela a respeito desse aspecto.
Talvez a oposição sugerida por Afonso Henrique entre Igreja Geração de Jesus
Cristo e Igreja Universal do Reino de Deus possa indicar profundas caracte-
rísticas de sua congregação. Seguindo a proposta de investigação de Almeida,
Nós não ficamos ofendidos com isso, porque isso é normal, já que o Diabo veio para
matar, roubar e destruir! Mas ele sabe que ele não pode nada contra nós, contra a
Igreja do Deus vivo. Então ficou naquela ameaça e nós aceitamos aquele desafio,
porque falar em nos matar é um desafio! Então aceitamos o desafio!
Então eu toquei a campainha do centro espírita, eles abriram a porta pra mim e eu
subi. Subindo, o que eu vi: um monte de imagem de escultura, um pai de santo, um
homossexual, é claro!, porque todos os pais de santo são homossexuais! Vi pessoas
oprimidas se preparando para aquele culto ao Diabo. E nisso eu perguntei para elas:
Cadê o Diabo? Cadê o tranca-rua? Cadê Maria-molambo? Cadê os demônios pra
quem vocês estão oferendo essas imundices? Onde estão eles para que eu possa
pisar na cabeça deles, para provar que Jesus Cristo é maior? É soberano?
E nisso elas ficaram desesperadas, porque nunca viram tal ousadia, e começaram
a gritar, pois elas acharam que nós estávamos querendo agredi-las, coisa que não
Nisso a polícia chegou naquele local, eu já tinha quebrado tudo! Os policiais fa-
laram que teríamos que comparecer à delegacia. Chegando à delegacia, é aquela
palhaçada de sempre, aqueles policiais militares ignorantes, não sabem nem as leis
que eles dizem servir, aqueles policiais civis, completamente ignorantes também.
Pensam que são autoridade, mas não são autoridade! Pensam que são autoridade!
Mas não são autoridade! Para a Igreja não são autoridade! E já nos colocaram como
réus. Começaram a dizer que nós estávamos errados, que nós iríamos prestar de-
poimento, que nós iríamos a juízo e que poderíamos ser presos. Aquela baboseira
de sempre! Então nós, apenas, falamos o que realmente aconteceu. Eles registra-
ram e não tivemos direito nenhum à defesa lá dentro. Então eles falaram que nós
deveríamos comparecer no Juizado em tal data [...].
Eu particularmente dormi muito bem aquela noite, com minha consciência tranquila!
E no dia seguinte o que nós vimos: a Rede Globo fazendo uma grande confusão em
cima daquilo, distorcendo completamente. Dizendo que nós agredimos pessoas.
Publicando na capa do Extra, do jornal O Globo, diversos repórteres deles dizendo
que cometemos um crime, colocando isso como uma coisa horrenda.
Na verdade o que aconteceu é que a Globo, como também é uma emissora com-
pletamente dominada pelo Diabo, onde há uma série de espíritas, dezenas de ma-
cumbeiros lá dentro! Todo mundo conhece a Globo, mas ninguém tem coragem de
falar, mas hoje estamos falando aqui! Por isso a Globo sentiu-se ofendida. Por isso
distorceu tudo isso e nos colocou como criminosos. Mas nós não somos criminosos,
pelo menos para nosso Deus não! Então eu tô aqui hoje para estar esclarecendo todos
esses fatos! Então, para os macumbeiros, espíritas ou satanistas, como queiram, o
desafio tá lançado. Vamos ver, vamos colocar a prova: quem realmente tem Deus?!
E quanto à Rede Globo: vocês sabem que vocês servem ao Diabo, vocês são men-
tirosos distorcendo os fatos! Então eu tô aqui usando esta mídia, que é a internet,
para mostrar a verdade.
E quanto às autoridades, que pensam que são autoridade, policiais militares, policiais
civis, juízes e advogados, estou aqui para dizer: julgai entre vós mesmos se antes é
lícito nós obedecermos a vocês ou a Deus, porque eu não posso deixar de falar do
que eu tenho visto e ouvido!
31
Vídeo-resposta às autoridades. Publicado em: 22 jun. 2009. Disponível em: <https://www.youtube.
com/watch?v=lDibSEjt-Zo>. Acesso em: 1o abr. 2014.
Pela primeira vez, o crime de intolerância religiosa levou acusados à prisão no país.
O pastor Tupirani da Hora, líder da Igreja Geração Jesus Cristo, e o fiel Afonso
Henrique Lobato estão detidos no Rio desde sexta-feira (19). Eles são acusados
de ser responsáveis por invadir e depredar um templo espírita em junho do ano
passado. A Justiça decretou a prisão temporária dos dois baseada no artigo 20 da
Lei Caó (7.716/89), de autoria do ex-deputado negro Carlos Alberto Caó (PDT/RJ),
que define crimes de preconceitos de raça, religião, etnia, entre outros.
“Antigamente, um caso como esse era enquadrado como injúria ou dano ao pa-
trimônio. É um marco histórico”, afirma Jorge Mattoso, secretário da Comissão
de Combate à Intolerância Religiosa (CCIR). A organização surgiu no ano passado
para defender a liberdade de práticas religiosas, e foi responsável por denunciar o
episódio da depredação do templo ao Ministério Público (MP). O pastor Tupirani e
[Afonso Henrique] Lobato podem pegar até cinco anos de prisão. Eles foram detidos
após um culto da Igreja Geração Jesus Cristo, que fica no Morro do Pinto, região
portuária do Rio de Janeiro. Além de serem acusados de envolvimento na invasão
ao templo espírita há um ano, a polícia investiga os dois por vídeos na internet em
que fazem ofensas a outras religiões32.
32
Revista Época. Publicado em: 25 jun. 2009. Disponível em: <http://revistaepoca.globo.com/
Revista/Epoca/0,,ERT79088-15228-79088-3934,00.html>. Acesso em: 3 ago. 2009.
33
“O Delegado Henrique Pessoa, representante da Polícia Civil na CCIR-RJ, diz que as imagens obtidas
na internet foram importantes para o inquérito. ‘Eles produziram provas contra si mesmos. Sem
isso, seria muito mais difícil provar a incitação ao crime’, diz. Foi uma vitória, porque em geral o
incitador fica isento de qualquer punição’.” (Jornal Extra. Publicado em: 22 jun. 2009. Disponível
em: <http://extra.globo.com/blogs/feonline/posts/2009/06/22/mp-denuncia-pastor-fiel-por-
-intolerancia-198095.asp>. Acesso em: 3 ago. 2011).
34
Eduardo Banks é católico praticante, escritor, jornalista e presidente da Associação Eduardo
Banks. Tal associação é responsável por protocolar junto ao Supremo Tribunal Federal (STF)
diversos recursos. Dentre eles, é digno de nota o recurso contra a lei que permite a união entre
pessoas do mesmo sexo, a revogação da Lei Áurea assinada pela Princesa Isabel em 1888 e o fim
do feriado de Yom Kippur na cidade do Rio de Janeiro. Em 2008 Eduardo Banks candidatou-se
a deputado estadual pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), angariando 220 votos “sem fazer
campanha”, diz Banks em um de seus vídeos na internet. Em 2011 o professor de direito penal
da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Nilo Batista produziu uma carta de repúdio a
Eduardo Banks, chamando-o de homofóbico, fato que fez Eduardo Banks processar o professor
buscando que o mesmo pague R$ 150 mil em indenização. A ação corre na Justiça. (Processo
n. 0006692-65.2008.4.02.5101 no STF).
35
“Não durou nem um mês a prisão de Tupirani da Hora Lores, de 43 anos, pastor da Igreja Geração
Jesus Cristo, e do fiel Afonso Henrique Alves Lobato, de 26. Acusados dos crimes de intolerância
religiosa, injúria qualificada e incitação ao crime, eles tiveram a prisão preventiva decretada em 19 de
junho, pela juíza Maria Elisa Lubanco, da 20a Vara Criminal. Entretanto, os dois foram soltos semana
passada, após conseguirem um habeas corpus concedido pelo desembargador Luiz Felipe Haddad,
da 6a Câmara Criminal. O pedido de habeas corpus foi feito pelo escritor Eduardo Banks. Afonso
divulgou na internet, em março, um vídeo no qual faz ofensas às religiões afro-brasileiras, às polícias
Civil e Militar e à imprensa. O vídeo foi publicado com o consentimento do pastor Tupirani. Nas
imagens, Afonso afirma, entre outras coisas, que “todo pai de santo é homossexual” e que “centro
espírita é lugar de invocação do diabo”. Eles foram os primeiros presos em todo o país com base no
crime de intolerância religiosa, previsto na Lei 7.437, de 1985 – mais conhecida como Lei Caó”.
(Jornal Extra. Publicado em: 14 jul. 2009. Disponível em: <http://extra.globo.com/noticias/rio/
pastor-fiel-que-atacaram-religioes-afro-ja-estao-soltos-395617.html>. Acesso em: 3 ago. 2011).
36
O termo “caô” no jargão popular carioca significa que aquilo que está se dizendo é uma mentira,
uma enganação, uma brincadeira despropositada ou até mesmo uma forma de contar vantagem
sobre algo sem realmente a vantagem existir.
[...]
Numa época em que o Estado procura se distanciar tanto dos valores cristãos, é
de estranhar sua aproximação aos valores ocultistas. Onde está a tão proclamada
separação de Estado e religião?
Para Julio Severo, a diferença que distingue o pastor Tupirani dos demais “cris-
tãos que creem em libertação espiritual” é uma questão de “estilo”. Segundo
37
Jornal Extra. Publicado em: 19 jul. 2009. Disponível em: <http://extra.globo.com/noticias/religiao-
-e-fe/>. Acesso em: 3 ago. 2011.
38
Antes de apresentar suas argumentações, saliento o impacto da página de Julio Severo nos mais
variados temas em que o blogueiro se envolve. O alcance de suas postagens no blog juliosevero.
blogspot.com pode ser medido pelo número de comentários que o espaço virtual recebe, algumas
ultrapassando o número de 50 comentários e dezenas de compartilhamentos nas redes sociais. O
formato de suas postagens também merece atenção, pois enquanto o autor desenvolve seu argu-
mento textualmente, faz diversas citações de passagens bíblicas, cita pesquisas acadêmicas e fontes
jornalísticas, disponibilizando, ao fim do texto, o hiperlink para o acesso às fontes.
39
Blog do Julio Severo. Publicado em: 1o jul. 2009. Disponível em: <http://juliosevero.blogspot.
com/2009/07/lei-contra-intolerancia-religiosa-faz.html>. Acesso em: 20 abr. 2012.
40
Comentário no blog do Julio Severo. Publicado em: 2 set. 2009. Disponível em: <http://juliosevero.
blogspot.com/2009/07/lei-contra-intolerancia-religiosa-faz.html>. Acesso em: 20 abr. 2012.
41
Conforme site Facebook. Disponível em: <https://www.facebook.com/tupirani.hora>. Acesso
em: 1o jun. 2014.
Tupirani aponta para outra faixa e diz: O complô do MP: Átila Nunes (que é
deputado), Henrique Pessoa (delegado), Helen Sandenberg (delegada), Daniel
(outro delegado). Mas estes dois, Henrique e Daniel, são delegados, espíritas e
macumbeiros. E aqui, Maria Elisa, a juíza que arbitrariamente, que é autoridade
autônoma no Judiciário, nos mandou prender infringindo todos os nossos direitos,
de endereço fixo, de trabalho, 45 anos morando no mesmo endereço. Tá aqui! O
complô do MP!
Essa faixa é pra denunciar que democracia e liberdade de expressão no Brasil ain-
da são uma farsa. Tem muita gente manipulando o poder público conforme seus
próprios interesses nepotistas42.
42
1a Passeata do Dia do Pastor Perseguido. Gravado em: 19 jun. 2011. Disponível em: <https://www.
youtube.com/watch?=uBJq4XaEecE&feature=player_detailpage>. Acesso em: 3 ago. 2011.
Mas outro promotor, isso nós estamos divulgando na internet, outro promotor veio
e falou completamente o contrário. Disse que não havia incitação ao ódio, disse que
Mas o importante é que hoje o espírita pode achar que tudo é satanismo, só ele é
certo. Essa lei foi desativada por nós. Não pode mais prender o espírita que achar
isso. Nós abrimos a porta para todos os cristãos, verdadeiros!, que queiram pregar
o evangelho de ousadia de Jesus Cristo. A lei não pode prender mais ninguém. Eu
já sabia que essas coisas iriam acontecer, por isso um tempo atrás nós gravamos
um DVD intitulado Acima da Lei Caó, porque já sabíamos que iríamos ficar acima.
[…]
Dizem que temos que pagar uma indenização, mas não há indenização nenhuma!
E tem mais, não vamos pagar porque se trata de 6 mil reais, nem que fossem 10
centavos ao mês. Não iríamos pagar! Não viemos para fazer aliança nem acordo! Nós
viemos para brigar! Para mostrar que a Geração Jesus Cristo não se curva à lei de
homens! A sentença deles para nós não tem valor, estou cuspindo e rasgando. Como
já rasguei vários documentos e vários símbolos de documentos, rasgando a lei mesmo.
E por pouco estou rasgando até a Constituição. Porque eu tenho direito de seguir
a lei que eu quero. E a lei do meu Deus é a mais nobre de todas!43 (grifo nosso).
43
2a Passeata do Dia do Pastor Perseguido. Gravado em: 19 jun. 2012. Disponível em: <www.youtube.
com/watch?v=aw2Jd6E0lqc>. Acesso em: 3 ago. 2011, grifo nosso.
Conclusão
Como defendi em trabalho anterior, a noção de “intolerância religiosa” emerge
nos trabalhos antropológicos e sociológicos brasileiros no final da década de
1990, quando um conjunto de sacerdotes das religiões afro-brasileiras e, espe-
cialmente, um conjunto de acadêmicos começam a empregar o termo a fim de
referir-se aos casos associados à rubrica de pesquisa do “conflito religioso entre
pentecostais e religiões afro-brasileiras”, substituindo o termo “guerra santa”,
até então amplamente utilizado por sacerdotes pentecostais, pela imprensa
e na literatura acadêmica (BORTOLETO, 2014). Não coincidentemente, é
nesse mesmo período que a Lei 7.716, de 1989, recebe sua última atualização
no ano de 1997, permitindo já na segunda metade dos anos 2000 sua inédita
utilização na tipificação da “intolerância religiosa” como crime, iluminando
múltiplas acepções de “intolerância religiosa” e “liberdade religiosa” pelos mais
diversos atores sociais envolvidos nessas situações sob requisito de justificação,
como o estudo de caso dos três jovens que invadem o centro espírita no Rio
de Janeiro parece sinalizar.
O desenvolvimento da atual investigação em torno de um estudo específico
de caso indica algumas das acepções que termos como “liberdade religiosa” e
“intolerância religiosa” recebem ao serem debatidos quando há uma nova uti-
lização da lei que os aciona como forma de justificação, processo que evidencia
“o jogo da reflexibilidade e a maneira pela qual cada um expõe discursivamente
as próprias imagens de mundo em contraposição às imagens alheias, de modo
a jogar as cartas das pretensões de validade das interpretações de mundo tor-
nadas visíveis pelos discursos” (Cf. MONTERO, 2009, p. 204), processo que
se desdobra, no referido caso, em profundos rearranjos do que concebemos
por pluralismo religioso brasileiro e laicidade estatal no Brasil.
Sem dúvida que a projeção pública de Ivanir dos Santos, Henrique Pes-
soa, Fatima Damas e outros membros ligados à CCIR-RJ começa antes da
“invasão”/“entrada” dos quatro jovens ao Centro Espírita Cruz de Oxalá e não
acaba na 6a Caminhada na orla de Copacabana, que presenciei com menos de
4 mil pessoas no ano de 2013, assim como o ministério sob liderança do pastor
Tupirani não possui a mesma projeção pública que a alcançada pela CCIR-RJ quan-
do conseguiu organizar a caminhada na orla de Copacabana com mais de 200
Referências bibliográficas
ALMEIDA, R. A universalização do Reino de Deus. 1996. Dissertação (Mestrado em Antropologia
Social)–IFCH-UNICAMP, Campinas, 1996a.
________. A universalização do Reino de Deus. Novos Estudos – CEBRAP, São Paulo, n. 44, p. 12-23,
1996b.
________. A Igreja Universal e seus demônios: um estudo etnográfico. São Paulo: Terceiro Nome, 2009.
BOLTANSKI, L. (1984) “Lá dénonciation”. Actes de la Reserche en Sciences sociales, 51, p. 3-40, 1984.
________. (1990) L’amour et la justice comme compétences: trois essais de sociologie de l’action.
Paris: Métailié, 1990.
________.; CHIAPELLO, É. O novo espírito do capitalismo. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes,
1991.
________.; THÉVENOT, L. Les economies de la grandeur. Cahiers du Centre d’Études de l’Emploi.
Paris: PUF, 1987.
Citações bíblicas
ÊXODO. A Bíblia: tradução ecumênica. São Paulo: Paulinas, 2002.
REIS I. A Bíblia: tradução ecumênica. São Paulo: Paulinas, 2002.
ATOS. A Bíblia: tradução ecumênica. São Paulo: Paulinas, 2002.
1
A ayahuasca é uma decocção com propriedades psicoativas produzida a partir de duas plantas
nativas da região amazônica – o cipó Banisteriopsis caapi e as folhas de um arbusto, a Psicothrya
viridis – que contêm, dentre outros princípios ativos, a DMT (n,n-dimetiltriptamina), uma substân-
cia proibida internacionalmente sob a Convenção de Substâncias Psicotrópicas (CSP) de 1971 das
Nações Unidas (LABATE, 2012, p. 155).
2
O Centro Espírita Beneficente União do Vegetal (Cebudv) é uma instituição ayahuasqueira fundada
na década de 1960 em Rondônia por José Gabriel da Costa. No ano de 2011, a União do Vegetal
contava com aproximadamente 14 mil sócios, os quais integravam os mais de cem núcleos espalhados
por todas as regiões do Brasil e alguns países da Europa e América do Norte (BERNARDINO-
-COSTA; SILVA, 2011).
3
Esquadrinhei em minha dissertação (ANTUNES, 2012) os argumentos relacionando a progressiva
associação do uso da ayahuasca ao estigma das drogas – e ao fato de a bebida tornar-se foco de
políticas públicas – com a inserção do fenômeno em novos regimes de circulação, quando uma
prática pouco conhecida e geograficamente circunscrita à região Norte do Brasil inseriu-se em novas
dinâmicas, adquirindo um novo status e visibilidade crescente, sobretudo a partir do posicionamento
de novos agentes no debate, como cientistas, intelectuais, instituições governamentais e veículos
midiáticos.
4
Cabe destacar aqui o fato de o relatório incluir a obra em questão, a qual foi elaborada no contexto
do pós-Segunda Guerra Mundial a partir de uma iniciativa da Organização das Nações Unidas para
a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), que, ainda sob o impacto do Holocausto, definia uma
agenda contra o racismo (MAIO; SANTOS, 2010).
5
O Santo Daime é uma instituição ayahuasqueira fundada na década de 1930 no Acre, por Raimun-
do Irineu Serra, a qual possui atualmente diversas vertentes, sendo que a maior delas, a Igreja do
Culto Eclético da Fluente Luz Universal (ICEFLU), conta com filiais em todas as regiões do Brasil
e diversos países do mundo. De acordo com Feeney e Labate (2012, p. 155), o Santo Daime e a
União do Vegetal, duas das principais instituições brasileiras que fazem uso da ayahuasca, estão
presentes em pelo menos 38 países.
6
Em um artigo anterior (ANTUNES, 2011), problematizei a forma como a história do uso da
ayahuasca no Brasil é formulada ao longo de três décadas de debate acadêmico, analisando os
elementos e argumentos que possibilitaram a construção de filiações entre heranças históricas e
práticas rituais das instituições ayahuasqueiras brasileiras a uma tradição ameríndia amazônica de
uso da ayahuasca de longa duração.
7
De acordo com MacRae (2008, p. 295), dentre os fatores responsáveis pela medida tomada pelo
Conad, destacam-se o surgimento de denúncias de uso inadequado da bebida, algumas delas vei-
culadas pela imprensa, outras direcionadas diretamente aos órgãos do poder público.
8
Cabe aqui destacar a realização do I Congresso sobre o Uso Ritual da Ayahuasca (I Cura), organizado
por Beatriz Caiuby Labate, em 1997. O evento, realizado na Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP), contou com a presença dos principais pesquisadores do tema, incluindo antropólogos,
historiadores, médicos, psicólogos, psiquiatras, representantes do Confen e de diversas entidades
ayahuasqueiras. De acordo com Labate, foram discutidas questões relacionadas à regulamentação
da ayahuasca no Brasil, além de aspectos psicológicos, éticos, legais e socioculturais que envolvem
o seu uso (ARAÚJO; LABATE [Orgs.], 2002). Um dos principais frutos do I Cura diz respeito à
publicação da primeira coletânea sobre o tema no Brasil, O uso ritual da ayahuasca (ARAÚJO;
LABATE [Orgs.], 2002), a qual teve uma seção dedicada exclusivamente às “religiões ayahuasqueiras
brasileiras”, tornando-se uma das principais referências na literatura acadêmica sobre a ayahuasca
a partir dos anos 2000.
Considerações finais
Procurou-se ao longo do texto apresentar um mapeamento da controvérsia
pública sobre o uso da ayahuasca no Brasil, enfocando principalmente a ca-
tegorização do fenômeno enquanto manifestação religiosa e cultural credora
de proteção estatal. Para isso, foi empreendida uma análise de uma série de
documentos produzidos por Confen e Conad com o intuito de compreender a
consolidação de tal categorização. Argumentou-se que a possibilidade da regu-
lamentação da ayahuasca – em função de uma legislação pautada na defesa da
liberdade religiosa e na salvaguarda de manifestações culturais –, assim como
o recente enquadramento do fenômeno na categoria de patrimônio cultural,
só foi possível a partir da atuação de intelectuais no debate que deu suporte à
elaboração das políticas públicas. Ao construírem, no plano do debate acadê-
mico, uma concepção das instituições ayahuasqueiras enquanto manifestações
religiosas e culturais, produziram os fundamentos a partir dos quais o uso da
bebida pôde ser regulamentado.
Desse modo, procurou-se demonstrar que os processos de legitimação e de
reconhecimento das instituições ayahuasqueiras enquanto manifestações reli-
giosas e culturais implicaram a tipificação de suas práticas, desembocando em
um modo específico de regulá-las em nome do “uso responsável” da “droga”.
Assim, foi indicado que a categorização do uso da ayahuasca enquanto “reli-
gião” e “cultura” garantiu o reconhecimento da legitimidade das instituições
ayahuasqueiras, mas ao mesmo tempo impôs uma configuração particular
às instituições ayahuasqueiras, uma deontologia, a qual prescrevia que o uso
da bebida deveria ocorrer em um contexto ritual, sem fins lucrativos, sem a
associação com substâncias ilícitas, dentre outros pontos.
Por fim, foram brevemente apresentados alguns pontos do pedido, ainda
em fase de avaliação pelo IPHAN, do reconhecimento da ayahuasca enquanto
Leis e documentos
Portaria n. 02/1985 – Divisão de Medicamentos (Dimed)
Resolução n. 04/1985 – Conselho Federal de Entorpecentes (Confen)
Resolução n. 06/1986 – Conselho Federal de Entorpecentes (Confen)
Relatório Final do Grupo de Trabalho 1987 – Conselho Federal de Entorpecentes (Confen)
Parecer do Dr. Domingos Bernardo de Sá – 02/06/1992 – Conselho Federal de Entorpecentes (Confen)
Resolução n. 26 – 31/12/2002 – Conselho Nacional de Política sobre Drogas (Conad)
Parecer da Câmara de Assessoramento Técnico-Científico – 17/08/2004 – Conselho Nacional de
Política Sobre Drogas (Conad)
Resolução n. 05 – 04/11/2004 – Conselho Nacional de Política sobre Drogas (Conad)
Relatório Final – Grupo Multidisciplinar de Trabalho Ayahuasca – 23/11/2006 – Conselho Nacional
de Política sobre Drogas (Conad)
Resolução n. 01 – 25/01/2010 – Conselho Nacional de Política sobre Drogas (Conad)
Pedido de Tombamento da Ayahuasca, 2008
Projeto de Decreto Legislativo 2.491/10
1
Declaração extraída do site G1, disponível em: <http://g1.globo.com/mundo/noticia/2013/07/
declaracao-do-papa-francisco-sobre-gays-gera-reacoes.html>. Acesso em: 31 jul. 2013. Ver outras
versões, como no UOL, disponível em: <http://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noti-
cias/2013/07/29/papa-diz-que-gays-nao-devem-ser-julgados-e-porta-esta-fechada-para-ordenacao-
-de-mulheres.htm>.
2
O texto da L’Espresso tem autoria do jornalista e vaticanista Sandro Magister e data de 18 de
julho de 2013. Ver site da publicação, disponível em: <http://espresso.repubblica.it/dettaglio/
papa-francesco-e-la-lobby-gay-in-vaticano/2211434>. Acesso em: 31 jul. 2013.
3
Declaração extraída do site da BBC Brasil, disponível em: <http://www.bbc.co.uk/portuguese/
noticias/2013/07/130729_papa_gays_entrevista_jp.shtml>. Acesso em: 31 jul. 2013.
4
A imagem metafórica que sustenta esse conceito está ligada ao sentido fixado pelos dicionários.
Locutórios são aqueles compartimentos geralmente separados por grades ou vidros utilizados em
prisões e conventos para garantir a comunicação entre internos e aqueles que se situam para além
dos limites dessas instituições totais. Os sentidos e a pertinência do uso dessa metáfora ficarão
mais evidentes a seguir.
5
Acepção de dialética tomada justamente para nos afastar qualquer ideia de causa e efeito entre os
termos em relação.
6
As declarações estão disponíveis no site Verdade Gospel em: <http://www.verdadegospel.com/
papa-cede-a-lobby-gay-pr-silas-malafaia-comenta/?area=1>. Acesso em: 31 jul. 2013.
7
Segundo dados do Censo 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a Assembleia
de Deus não só é a maior denominação evangélica do Brasil como também foi o grupo religioso que
apresentou o maior crescimento entre os censos de 2000 e 2010, passando de 8,4 milhões de fiéis
no ano de 2000 para 12,3 milhões em 2010.
8
O vídeo está disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=_3LFfboY2EU>. Acesso em:
17 ago. 2013.
9
Idem.
10
Idem.
11
Referência à pesquisa “O pastorado gay e a controvérsia homoerótica – A (re)conquista do sagrado
pela produção de sujeitos de direitos”, projeto de pós-doutoramento em fase de desenvolvimento
junto ao Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP).
12
Igreja inclusiva se impõe enquanto uma categoria nativa. Está associada às experiências religiosas
de grupos que visam compatibilizar espiritualidade cristã com a vivência de uma sexualidade dife-
rente da heterossexual. Contudo, como bem nos lembram autores como Weiss de Jesus (2012a)
e Musskopf (2012), o termo é alvo de disputas internas entre as próprias igrejas ditas inclusivas,
que negociam os limites e termos dessa inclusão. Assim define Marcelo Tavares Natividade, autor
que inaugura de forma mais sistemática o estudo das ditas Igrejas inclusivas: “‘Igreja inclusiva’
corresponde a autoidentidade de segmento religioso que pretende romper com esse dogma (com-
preensão da prática homossexual como pecado) e formular leituras bíblicas que compatibilizem a
homossexualidade e a prática de religiões cristãs” (2008, p. 24).
13
A expressão aqui em nada se refere à acepção habermasiana. Referido a um diálogo propositivo
com a tipologia da ação social de Max Weber, o conceito de Habermas diz respeito a uma possível
interação entre sujeitos capazes de linguagem orientados à produção do consenso (o médium lin-
guístico). Distanciando-nos do caráter normativo da abordagem do filósofo, isto é, a proposição de
um modo de ação adequado ao fortalecimento do modelo democrático, aqui, agir comunicativo
restringe-se a um item tipológico. Um tipo de prática social orientado à conquista da visibilidade
pública, mesmo que tal caminho implique a transformação do dissenso em estratégia discursiva.
14
Vale ressaltar que o pastorado não precisa necessariamente ser traduzido pela figura social do pastor.
Assim, ao apresentarmos a seguir a trajetória de Dário, ele jamais deverá ser confundido como
um pastor da sua Igreja. Os passos seguintes deste projeto de pesquisa envolverão justamente a
reconstituição das trajetórias dos efetivos pastores desse núcleo religioso. Esses, sim, personagens
os quais o pastorado faz coincidir com suas personas institucionais.
15
Um balanço condensado dessas controvérsias foi bem apresentado por Marcelo Tavares Natividade
em sua tese de doutorado (2008).
16
Diferentemente do que aconteceu nos Estados Unidos (um dos principais pontos de eclosão do
movimento LGBT), país no qual se assistiu à emergência dos movimentos gays cristãos paralelamente
à formação de demais organizações civis afinadas em torno da dita causa homossexual, no Brasil o
surgimento de grupos religiosos associados em torno das bandeiras LGBT ocorre com força a partir
do final da década de 1990, depois da formação das organizações não religiosas. Todavia, autores
como Facchini (2005), Natividade (2007, 2008) e Weiss de Jesus (2012) nos fornecem pistas em
suas produções de como ocorreu o entrelaçamento de relações entre as organizações civis laicas
e as instituições religiosas, processo marcado pelo trânsito de agentes de uma instância à outra.
Marcelo Natividade, particularmente, sugere a ideia da formação nascente de um “movimento gay
cristão no Brasil” (2007, p. 82).
17
A entrevista gravada com Dário Neto ocorreu em São Paulo no dia 23 de julho de 2013.
18
Levi e Josiane participam do coral da ICM-SP.
19
Além dos posts e polêmicas em que se engalfinha na rede social do Facebook, Dário mantém o blog
Discursos Periféricos, disponível no endereço: <http://discursosperifericos.blogspot.com.br/>. Sua
textualidade também pode ser conferida em publicações periódicas que faz no site da ICM-SP. Ver
em: <http://www.icmsp.org/>.
20
Grupo Corsa – Cidadania, Orgulho, Respeito, Solidariedade, Amor.
21
Em texto divulgado no site da ICM, Troy Perry conta com mais detalhes: “Eu sabia que os homens
me atraíam. Porém não havia um nome para isso naquela época, naquele tempo as pessoas acredi-
tavam que se alguém incorria em atos homossexuais era um heterossexual que andava mal, era um
comportamento doentio, mau, criminoso, pecaminoso. A homossexualidade era nomeada somente
às escondidas... Eu pensava que era o único.” Disponível em: <http://www.icmsp.org/icm/index.
php/sobre-a-igreja/historia-da-icm>. Acesso em: 5 ago. 2013. Uma versão mais detalhada pode
ser encontrada no site oficial da organização em inglês. Disponível em: <http://mccchurch.org/
overview/history-of-mcc/>. Ambos estão baseados no livro autobiográfico de Perry, The Lord is
My Shepherd, and He Knows I’m Gay.
22
“Deus me disse: amo-te, Troy. Eu não tenho enteados nem enteadas, tenho filhos e filhas”, conta
o reverendo. Antes de fundar a ICM, o religioso buscou inúmeras Igrejas para frequentar mediante
a condição de que pudesse contar às demais pessoas que era gay. “Disse à minha mãe que não ia
mentir a ninguém sobre quem eu sou.” Os trechos foram extraídos do site da ICM. Disponível em:
<http://www.icmsp.org/icm/index.php/sobre-a-igreja/historia-da-icm>. Acesso em: 5 ago. 2013.
23
A História da ICM. Ver o site da ICM. Disponível em: <http://www.icmsp.org/icm/index.php/
sobre-a-igreja/historia-da-icm>. Acesso em: 5 ago. 2013.
Porém, ele destaca que foram necessárias certas mediações para estabelecer o
trânsito entre estes dois âmbitos: o religioso e o político. Pois alguns integran-
tes do movimento de direitos LGBT suspeitaram da ideia de ter como aliados
pessoas que se assumiam como religiosas. A sua interpretação para o fato nos
parece ainda mais significativa, pois evidencia sua visão crítica e reformadora
do papel das organizações cristãs: “Eles já haviam sido muito feridos pela Igreja
e não importava que esta fosse uma Igreja gay ou lésbica”, conta o religioso,
reconhecendo que a experiência comunitária baseada no ideário tradicionalista
cristão se impunha para muitas trajetórias de vida como fonte de exclusões,
violências e sofrimentos. Seu projeto compreendia a fundação de uma Igreja
baseada em uma nova visão de comunidade.
Atualmente, a ICM está presente em mais de 50 países no mundo, seja em
forma de Igrejas formalmente instituídas ou missões (projetos de assistência
social). Ela está inclusive em países como a Arábia Saudita, onde as práticas
homoeróticas são punidas com a pena de morte. Segundo informações de fontes
da ICM de São Paulo, a Igreja, por meio de relações com entidades médicas
locais, funciona nesses países como núcleos que garantem a transferência de
pessoas que estão sob ameaça das autoridades nacionais para outros países.
Nos Estados Unidos, a ICM enfrenta forte oposição das Igrejas cristãs, princi-
palmente aquelas de orientação fundamentalista. Por conta disso, Troy Perry
precisa viajar regularmente sob a vigilância de guarda-costas e já sofreu 22
vezes o amargor da notícia de uma filial da sua Igreja ter sido arrasada por
incêndios criminosos. Em contrapartida, a organização vem colhendo há alguns
anos alguns trunfos nesse país. Perry, por exemplo, assumiu uma cadeira na
Comissão de Direitos Humanos do Condado de Los Angeles, foi convidado
pelo ex-presidente Jimmy Carter para a discussão sobre direitos homossexuais
na Casa Branca em 1977, e foi hóspede do ex-presidente Bill Clinton em 1997
durante a Conferência sobre Crimes de Ódio. Por sua vez, a reverenda Nancy
Wilson, que ocupa atualmente o principal cargo na hierarquia da Igreja, por
meio de um convite para participar de uma celebração na Casa Branca, foi
reconhecida publicamente pelo presidente norte-americano Barack Obama
como uma liderança religiosa local.
24
Musskopf (2012) nos lembra que a presença da ICM é anterior. Segundo o autor, em 2003 foi reali-
zada a I Conferência das Igrejas Metropolitanas no Brasil com o objetivo de adensar o trabalho que
a instituição mantinha no país via rede eletrônica de computadores. A meta era abrir núcleos locais
e presenciais. Já no ano seguinte, o reverendo e fundador Troy Perry viajou para o Rio de Janeiro
para participar da criação da ICM carioca. Porém, dois anos depois, o núcleo foi descredenciado da
organização internacional por divergências administrativas e regimentais.
25
A liderança da Fraternidade Universal das Igrejas da Comunidade Metropolitana é exercida desde
2005 pela reverenda Nancy Wilson, sob o cargo de “moderadora”. No livro memorialístico Nossa
tribo: gays, Deus e a Bíblia, editado no Brasil pela editora Metanoia, ela se define como uma pen-
sadora do ecumenismo terrorista, numa alusão bem-humorada ao seu trabalho de fazer convergir
a teologia e a Teoria Queer.
26
Certamente a leitura, a interpretação e o trabalho de transposição da Teologia da Libertação para
a Teologia Inclusiva realizados pelos intelectuais/teólogos da ICM despontam como uma frente de
investigação a ser realizada.
27
O Grupo Corsa – Cidadania, Orgulho, Respeito, Solidariedade, Amor é uma entidade civil criada
há 13 anos e direcionada à luta pelos direitos civis humanos de lésbicas, gays, bissexuais, travestis
e transexuais. Sediado na cidade de São Paulo, a partir de 2001 tornou-se uma organização não
29
Esquematicamente, as etapas do culto são: acolhida; prelúdio; boas-vindas; oração inicial; leitura
do Salmo; momentos de louvor; testemunhos de gratidão; hino de contrição; mensagem; cântico
de louvor; momento de entrega do dízimo; Santa Ceia; anúncios; oração final; bênção apostólica;
poslúdio (WEISS DE JESUS, 2012a, p. 102). Os cultos geralmente são presididos pelo pastor-
-mediador Cristiano Valério, sempre com a intensa participação de outros membros, seja na leitura
bíblica, nas evocações ou nos cantos. Além do pastor, também podem presidir o culto diáconos ou
outros religiosos convidados.
30
O surgimento da Igreja Cristã Contemporânea está associado à primeira tentativa de abertura da
ICM no Rio de Janeiro.
O trecho da carta aos Coríntios opera no contexto da ICM como índice de legiti-
midade espiritual para o seu projeto específico de Teologia Inclusiva, ou, como
também define a reverenda Nancy Wilson (2012), de Teologia Queer. “Somos
um movimento que proclama fielmente o amor inclusivo de Deus para todas as
pessoas e que testemunha com orgulho a sagrada integração entre espiritualidade
e sexualidade”, anuncia o texto no qual a instituição declara publicamente sua
Missão e Visão31. Reconhecendo a historicidade constituinte da moralidade cris-
tã, bem como as influências culturais que a moldam através dos séculos, a dita
Teologia Inclusiva ergue-se como um projeto desconstrutivista de forte inspiração
na tradição da teologia bíblica (alemã), interessada em recuperar os sentidos
históricos dos textos tornados cânones. Assim exemplifica o reverendo Marcio
Retamero a execução prática desse projeto teológico dentro da sua Igreja inclusiva:
Não há outro, para uma leitura inclusiva da Bíblia, senão o viés ou método histórico-
-crítico de análise dos textos que compõem a Bíblia. A leitura inclusiva da Bíblia
pressupõe que o leitor ou o pregador bíblico assuma a tarefa – nem sempre fácil – de
31
O texto pode ser encontrado na íntegra no site da ICM-SP. Disponível em: <http://www.icmsp.org/
icm/index.php/sobre-a-igreja/historia-da-icm>. Acesso em: 5 ago. 2013.
Referências bibliográficas
AGAMBEN, Giorgio. O reino e a glória: uma genealogia teológica da economia e do governo: homo
sacer II. São Paulo: Boitempo, 2011.
BOURDIEU, Pierre. A crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp; Porto Alegre: Zouk, 2007.
Citações bíblicas
I CORINTIOS. In: Bíblia Sagrada. Nova tradução na linguagem de hoje. Barueri: Sociedade Bíblica
do Brasil, 2001.
1
Iniciado em 2010, o projeto Godllywood é voltado para a participação de mulheres membros da
Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), que, divididas em faixas etárias específicas, se reúnem
para cumprir tarefas que são avaliadas num modelo pedagógico muito semelhante ao modelo escolar
mais tradicional.
2
Vale ressaltar que a noção de genealogia cunhada por Foucault tem herança nietzcheana, que pro-
põe uma genealogia da moral que distancia sua genealogia de uma ideia de natureza, ao contrário,
a moral passa a ser fomentada, desde os gregos, perpassando instituições sociais como religião,
família e política.
3
Regime de enunciado é uma noção desenvolvida por Foucault a partir do conceito de dispositivo
e diz respeito a agenciamentos coletivos de resposta e exercício do poder. Em Arqueologia do
saber, o enunciado corresponde ao conjunto objetivo de frases ditas, dimensionadas pelo tempo e
por um espaço definido. Apesar da concepção de enunciado aparecer delimitada em textos espe-
cíficos sobre metodologia e análise do discurso, o texto Vigiar e punir apresenta uma importante
síntese da dimensão do enunciado no processo social de configuração dos dispositivos de poder
(DELEUZE, 1991).
4
Para um aprofundamento do tema da Confissão Positiva, ver Mafra (2001) e Mafra, Swatowiski e
Sampaio (2012).
5
Fundada pelo missionário canadense Robert MacAlister, a Igreja Nova Vida foi o local de conversão
de Edir Macedo e Rosildo Rômulo Soares, que, no final da década de 1970, fundaram a Igreja
Universal. Os títulos de Osborn traduzidos para o português nas décadas de 1970 e 1980 foram:
Curai enfermos e expulsai demônios; Ganhando almas; O plano de amor de Deus; A vida abundante;
Impacto; Conquistando almas lá fora onde os pecadores estão. Todos esses títulos pertencem hoje à
Graça Editorial, editora da Igreja Internacional da Graça de Deus, fundada por R. R. Soares. (Para
mais detalhes, ver MACEDO, 2012).
6
Trata-se de uma publicação inicial, uma espécie de manifesto, que resultou, mais tarde, no periódico
semanal Word of Faith, uma importante revista divulgadora do ministério fundado por Hagin, a
saber, Rhema (http://www.rhema.org/).
7
Em outubro de 2007, mês marcado para possível votação no Congresso Nacional do PL 1.135/91,
projeto que pretendia descriminalizar o aborto no Brasil, Edir Macedo concedeu uma entrevista ao
jornal Folha de S.Paulo declarando sua posição com relação ao aborto e sua legalização. A mesma
declaração foi reafirmada em outros textos publicados em seu blog pessoal e em sermões (ver mais
em TEIXEIRA, 2012).
8
Bourdieu entende razão pedagógica, ou o domínio prático das regras de polidez, explicando que
“artifício da razão pedagógica reside precisamente no fato de extorquir o essencial sob aparência
de exigir o insignificante, como o respeito às formas e as formas de respeito que constituem a
manifestação mais visível e ao mesmo tempo mais ‘natural’ da submissão à ordem estabelecida”
(2009, p. 114).
9
Ver Folha Universal n. 845, n. 870, n. 928 e n. 929.
10
Disponível em: <http://www.revistaplenitude.com.br>.
11
O método de seleção dessas reportagens consistiu em usar palavras-chave para busca no site. Decerto
pode haver mais reportagens.
12
Ver em: <http://escandalosdoreino.blogspot.com/2010/10/ora-crivella-ou-o-aborto-e-o-grande.
html>.
13
Esse título tornou-se best-seller no ano de 1974. A autora, que se autodenominava cristã, decidiu
escrever um livro com dicas de sexo para mulheres cristãs casadas.
14
Pin ups é uma expressão utilizada para classificar algumas mulheres nas décadas de 1940 e 1950,
nos Estados Unidos, reconhecidas como símbolo sexual. Exaltadas como expressão ideal da femi-
nilidade, as pin ups sempre eram fotografadas com seus vestidos rodados e coloridos, e com gestos
e expressões reconhecidamente dóceis.
15
Esses dois livros foram traduzidos para 12 línguas. Eles dividem o ranking com outros três títulos,
que são Casamento blindado, Nada a perder1 e Nada a perder 2. Não há aqui qualquer investigação
acerca do método utilizado pelo site para chegar a esse dado. Ainda assim, esse dado nos parece
relevante para pensar a circulação e a posição que a literatura aqui citada ocupa dentro dessa lógica.
16
Ao falar sobre os modos de produção dessa diferenciação que acaba por se naturalizar na forma
de habitus, Bourdieu (2009, p. 127) afirma que os sentidos atribuídos ao corpo se revestem dos
17
Após imensa adesão de fiéis de vários países ao programa Godllywood, em 2013, o bispo Renato
Cardoso, marido de Cristiane, criou o projeto Intelimen, voltado exclusivamente para homens.
18
Disponível em: <http://melhordoquecomprarsapatos.blogspot.com/p/godllywood.html>.
19
Disponível em: <http://www.arcauniversal.com/iurd/noticias/entenda_o_que_e_o_sis-
terhood-2926.html>. Acesso em: 20 jan. 2011.
20
Disponível em: <http://melhordoquecomprarsapatos.blogspot.com/2010/11/pedi-e-vos-sera-
-dado-dia-viii.html>.
21
Ver o Desafio Godllywood na página de Cristiane Cardoso: <http://www.cristianecardoso.com/
pt/portfolio/desafio-godllywood/>.
22
A página de Cristiane Cardoso, “Desafio Godllywood”, no Facebook conta hoje com pouco mais de
200 mil assinantes e traz uma troca intensa de posts e incentivos à perseverança durante a realização
do desafio.
23
Como citado brevemente no primeiro capítulo, A mulher V faz alusão a um trecho do livro de
Provérbios, na Bíblia. A letra V faz referência à palavra virtuosa, que no texto bíblico é utilizada
como uma licença poética de Salomão ao descrever a mulher.
[...] ao mesmo tempo que controla as finanças do casal, a mulher V também fica
de olho em novas oportunidades de aumentar seus ganhos. Ela poderia usar seu
lucro para comprar roupas para si ou para a sua família, mas ela decide investir o
seu dinheiro para aumentar os ganhos da sua família (CARDOSO, 2011, p. 114).
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FRESTON, Paul. Protestantes e política no Brasil: da Constituinte ao impeachment. Tese de Douto-
rado, Campinas, IFCH-UNICAMP, 1993.
1
Por esfera pública, pensarei aqui, alinhado com a proposta deste livro, como espaços dos discursos.
Por sua vez, a noção de controvérsia será tomada como um instrumento descritivo desse espaço.
Trata-se, portanto, de entender esse espaço como “esfera das interações”, “produção de sentidos”
(MONTERO, 2009, p. 201) e “arena de mediações” no mundo vivido (SCHELIGA, 2010, p. 22).
2
Recentes pesquisas apontam para a necessidade de se pensar a constituição da noção de pessoa
pentecostal na sociedade brasileira, tais como Roberta Campos, que discute os modos de circu-
lação do carisma pentecostal e a construção da “fala sincera” (2011); e Clara Mafra, que sugere
investigações no que chamou de “ideologia da sinceridade/santidade” (2014). Este ensaio pretende
contribuir para esse debate.
3
Os dados de que disponho provêm dos fragmentos de minha pesquisa de iniciação científica financiada
pelo Programa de Bolsa de Iniciação Científica da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo
(Pibic-FESP-SP), desenvolvido durante os primeiros anos de graduação (2009 e 2010), sob orientação
do professor Gabriel Pugliese. A segunda fase da pesquisa (2011-2013) deve-se ao projeto Religiões
e controvérsias públicas: experiências, práticas sociais e discursos, coordenado pela professora. Paula
Montero, sob financiamento do Fundo de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) e apoio
do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP). A pesquisa empírica foi realizada num bairro
da periferia de Santana de Parnaíba, cidade localizada a 35 km da capital paulista, na região oeste
da Grande São Paulo, acessível pelas rodovias Anhanguera (km 29) e Castelo Branco (vide mapa,
Vasos rebeldes
233
de prestígio –, José Ribamar também atuava como mediador e representante
regional de uma federação de Igrejas conhecida como Convenção Nacional e
Estadual das Assembleias de Deus (Conead)4, instituição político-eclesiástica
cujo objetivo é estabelecer redes de alianças entre microigrejas pentecostais
em Santana de Parnaíba (SP) e região. A natureza dessas inusitadas alianças, o
modo como dissidentes e rivais disputam a distinção de liderança legítima e
o status de instituição autêntica merecem um estudo à parte. Aqui, faremos
apenas breves apontamentos com o objetivo de tecer fios de uma rede de
interações nas atividades dos fundadores, neste caso, uma disputa específica
em torno do poder pastoral5 e sua relação com a noção tradicional de Igreja
legítima. Podemos, por exemplo, começar por suspeitar do “óbvio” e nos
perguntar pelos critérios coletivos e performáticos dos modos de nominação
e estatuto jurídico implicados no ser Igreja6. O ciclo de José Ribamar, bem
Figura 1). Segundo o cadastro elaborado pela Associação de Moradores do Bairro, a população atual
do referido bairro é de aproximadamente 15 mil habitantes, sendo 8 mil seu eleitorado. O relatório
aponta ainda para a existência de 2,5 mil a 3 mil casas e 25 templos pentecostais; os dados que coletei
apontavam para 30 templos. Aproveito estas linhas para agradecer aos professores Ricardo Mariano e
Eduardo Dullo pelos comentários e sugestões ao texto durante o seminário “Religiões e controvérsias
públicas: experiências, práticas sociais e discursos”, realizado em 29 e 30 de maio de 2014 na USP;
agradeço aos professores Gabriel Pugliese, Delcides Marques, Alexandre Chaves, Ricardo Bitun e
Sonia Nussenzweig Hotimsky pelas provocações que suscitaram reflexões a este ensaio; agradeço
especialmente à professora Paula Montero e a Jacqueline Moraes Teixeira. Evidentemente, pois
possíveis equívocos nos resultados de minha análise não lhes devem ser atribuídos.
4
Convenção é uma espécie de federação ou rede de alianças entre instituições regidas por estatutos
jurídicos burocráticos, cujos quadros políticos-eclesiásticos são altamente disputados. Há no Brasil
uma diversidade de Convenções, cuja estrutura organizacional é estabelecida em níveis “nacionais”,
“estaduais” e “regionais”. Tal federação é concebida pelos próprios agentes como organização de
natureza político-eclesiástica ou “entidade civil de natureza religiosa”, que confere legitimidade
às instituições e aos líderes filiados. No caso da Conead, sua sede nacional localiza-se em Brasília
(DF) e a sede estadual em Osasco (SP). José Ribamar atua em Santana de Parnaíba como mediador
entre a convenção estadual e o que ele chama de “subconvenção”, que teria como finalidade formar
alianças entre as chamadas “Igrejas independentes”.
5
A noção de “poder pastoral” aproxima-nos das análises de Michel Foucault, para quem a gênese
das tecnologias de poder seriam exteriores às instituições. Ao descrever os dispositivos de poder
do Estado, Foucault chamou a técnica de governo dos homens de “governamentalidade”, cuja
característica seria o poder pastoral “que se exerce mais sobre uma multiplicidade do que por um
território” (2008, p. 174) ou “uma multiplicidade em movimento” (2008, p. 169).
6
Apesar de implícita na disputa, a noção “Igreja legítima” não é necessariamente uma categoria nativa e
não pretende ser uma tipologia analítica; trata-se de um recurso que nos permite narrar um conjunto
de argumentos colocados em circulação por diferentes agentes que disputam a autenticidade de
pessoas e instituições num determinado contexto de interação. De acordo com Paula Montero, a
“legitimidade de um agente ou instituição não é uma qualidade inerente, mas o resultado de uma
dinâmica simbólica que é preciso descrever” (2012, p. 177). A construção da legitimidade é vista aqui
como um processo e não como uma essência, motivo pelo qual investimos na dimensão das práticas
Cajamar
São Paulo
Araçariguama Centro
Alphaville
Rodovia Caste
lo Branc
o
Barueri
e das experiências; esforço-me, mais adiante, por esclarecer essa formulação (vide esquema, Figura
4). Prescindo, pois, da clássica tipologia weberiana Igreja-seita, já suficientemente problematizada
pela literatura antropológica enquanto conceito analítico (cf. CAROZZI, 1994; GIUMBELLI,
2002). Se por um lado a tipologia analítica é suspensa, por outro essas categorias circulam entre os
nativos para qualificação de suas atividades, sendo essa a dimensão que nos interessa.
Vasos rebeldes
235
expectativas protocolares), passou a contar-me acerca da experiência de um
sonho que afirmara ter tido semanas antes da minha chegada a campo, no qual
um suposto personagem descrito por ele como tendo um “caderno” na mão (ou
objeto similar) procurava-o para conversar. Além de uma câmera fotográfica,
eu estava com um pequeno bloco de notas na mão – o famoso “caderno de
campo” –, fato pelo qual minha presença naquela circunstância foi imediata-
mente relacionada ao personagem onírico e interpretada em seus termos como
tendo sido “revelada” pelo Espírito Santo, motivo pelo qual Ribamar afirmava
não sentir-se “surpreso” com minha presença7.
Apenas num momento posterior dei-me conta de que esta modalidade de
encontro emoldurada pela cosmologia nativa certamente facilitou minha inser-
ção; é possível supor o contrário caso o personagem onírico fosse relacionado à
cosmologia cristã dos demônios: minha presença teria sido vista de outro modo,
senão como um potencial emissário digno da desconfiança nativa8. Suspeito
ainda que a partir daquele momento passei a ser visto não mais como pesquisa-
dor, mas como um convertido em potencial; era sempre recebido com a típica
saudação “a paz do Senhor” ou com o tratamento de “irmão” dirigido aos pares;
fui de fato algumas vezes convidado a ir à frente, próximo ao púlpito, para
receber oração ou “testemunhar” algo. Descrevo mais adiante algumas dessas
situações com o objetivo de situar o leitor na estratégia narrativa que adoto.
Após a descrição do sonho divinatório, sentamo-nos no pilar de acesso do
pequeno templo e José Ribamar passou a reagir às minhas perguntas sobre sua
trajetória de pastor e acerca dos fiéis que o seguem. Num tom assertivo e disfar-
çando as lágrimas ao narrar as dificuldades de manter os fiéis em sua Igreja – e
assim sustentá-la financeiramente –, sua resposta buscava tirar-me do nível de
7
As transcrições de algumas falas de Ribamar, analisadas mais adiante, são reproduções desse encontro,
chamado aqui de recepção cosmológica. As categorias nativas aparecerão entre aspas sempre que
houver necessidade de distingui-las de minhas análises; na transcrição das entrevistas introduzo
colchetes a fim de contextualizar o leitor no sentido das narrativas.
8
Essa experiência de “encontro” ou de ser colocado na moldura de uma cosmologia nativa lembra-nos
o trabalho de Marshall Sahlins (1990) ao descrever o polêmico caso do capitão James Cook e sua
tripulação, que teriam sido interpretados pela cosmologia havaiana, por um lado pela expectativa
da vinda do deus Lono, que estabeleceria um período de paz, e por outro em função da divindade
Ku, associado ao período de guerra. O capitão Cook situava-se em lugares diferentes em relação
a ambas as expectativas. Clifford Geertz (1989) também narra uma experiência em Bali, onde
procurou um modo de “situar-se” na expectativa nativa e conseguir a confiança dos balineses. Para
Geertz, a cientificidade do texto antropológico não consiste na descrição da realidade objetiva,
mas num “situar-se” (1989, p. 10). Utilizando-me dessa situação, trato de produzir, assim como
Roy Wagner (2010) e Marilyn Strathern (2014), uma etnografia que leva em conta o estatuto
epistemológico de invenção, isto é, os construtos nativos em seus próprios termos.
9
“[...] e ela [Maria] deu à luz o seu filho primogênito [Jesus], envolveu-o com faixas e reclinou-o
numa manjedoura, porque não havia lugar para eles na sala [hospedaria]”, Bíblia de Jerusalém
(1981). Esses arranjos criativos para a composição da nominação lembra-nos o que Claude Lévi-
-Strauss chamou de “bricolagem” (1989, p. 32), isto é, o modo pelo qual o artista ou o pensamento
mítico opera novos sentidos a partir de fragmentos que possuíam significados distintos. No caso de
José Ribamar, a noção simbólica de Igreja é construída a partir de elementos díspares, tais como
a referência a constelações (“estrelas”), a composição textual de “letras de ouro” e “números”, o
cenário mítico e objetos da narrativa natalina. É também curioso o fato de que outro pastor e amigo
de José Ribamar, Claudinei de Jesus (nascido em 1978), também fundador de sua própria Igreja em
2009 (a Assembleia de Deus – Ministério Deus Restaura), tenha se referido a um sonho no qual lhe
teria sido revelado o nome de sua Igreja por meio de “letras de ouro”. Paradoxalmente, conforme
Claudinei, as “letras” estavam em hebraico e, apesar de afirmar não conhecer esse idioma, teria
decifrado a mensagem divina por meio do que chamou de “dom de interpretação”. Esses elemen-
tos, provindos de diferentes dimensões de significados, somam-se, como no caso da bricolagem,
na construção de novos sentidos. No plano das práticas, penso os modos de nominação como uma
performance ritual de distinção, como veremos mais adiante no hino de fundação composto por
José Ribamar. Cabe-nos descrever como esses sentidos são performatizados.
Vasos rebeldes
237
do Poder] de Manjedoura?” Aí eu fiquei com aquela confusão [acerca do significado
do sonho]... Aí numa outra tarde eu estava dormindo, aí eu vi a mesma coisa
[“confirmação” do sonho]. Eu vi as letras e os números... o capítulo da manjedoura,
o versículo e uma faixa [escrito:] “Manjedoura de Cristo”... Eu mesmo discerni o
nome que não pude entender. O nome de Manjedoura significa o símbolo humil-
dade. Temos que ser humildes, temos que ser pequenos diante de Deus. Nós pra
ter uma Igreja temos que ser o último, o mais pequeno... [a manjedoura] era um
lugar desprezado pelo homem e Jesus nasceu lá. Nós temos que ser assim [sic].
A situação descrita não é tão simples quanto parece. Desse fragmento discursivo
podemos destacar alguns elementos da disputa pastoral, como a construção
performática da sinceridade e exemplaridade da humildade como distinção
do fundador, assim como a construção material e simbólica da noção de Igreja
legítima, isto é, seu estatuto jurídico e nominação. Como esses elementos se
relacionam e de que modo podemos apreender um conjunto de categorias no
contexto vivencial de disputas? Minha proposta é levar a sério epistemologi-
camente os interstícios dessa recepção cosmológica e relacioná-la numa rede
mais ampla de interações. Como pude adiantar, interessa-me a construção de
justificativas, tal como sugere o contexto da fala de José Ribamar.
10
A propósito, é clássico na literatura antropológica a problematização da interpretação dos dados
coletados em campo, como, por exemplo, nas formulações de Vincent Crapanzano (1991), cuja
abordagem explora os novos sentidos – ou “ficções” – que a etnografia adquire no momento da redação.
James Clifford chamou isso de “escrita direcionada” e levanta a questão sobre “quem realmente é
autor das anotações feitas em campo?” (2011, p. 45). Essa observação leva-nos a considerar, como
formulado por Clifford, que “se muito da escrita etnográfica é produzida em campo, a real elaboração
da etnografia é feita em outro lugar” (p. 39). Por que não explicitar seu processo de elaboração?
Vasos rebeldes
239
nativo (a noção de “revelação”) e apreender a relação entre “objetos e eventos
agregados”, como diz Talal Asad (2010, p. 265), não seria plausível estender
(também) um tratamento antropológico à cosmologia pentecostal assim
como se procede em relação a outras cosmologias (e práticas)? Tratando-se
do pentecostalismo, apesar da vasta produção acadêmica, o desnível de trata-
mento analítico dispensado ao objeto só recentemente vem sendo superado
(BIRMAN, 2006; VITAL DA CUNHA, 2008; CAMPOS, 2011; MARQUES,
2013; MAFRA, 2014). Tendo sido construído como uma alteridade sempre em
desvantagem, o pentecostalismo (com raras exceções) tem sido lido como uma
espécie de “outro repugnante” – para usar o termo de Susan Harding (2000)
ao caracterizar a postura acadêmica perante os grupos fundamentalistas – ou
como uma “cosmologia repulsiva”. A provocação de Delcides Marques em
relação a uma análise simétrica da teologia cristã por parte da antropologia soa
aqui como eco: “Se em relação à cosmologia indígena é interessante discorrer
sobre ‘pensamento’, ‘conceito’ ou ‘filosofia’, por que evitar um tratamento
simétrico do cristianismo a partir da teologia?” (2013, p. 269).
Nesse caso, a experiência onírica de José Ribamar e os sentidos convencionados
por seus pares (ou ciclo) acerca do que seria uma revelação são geralmente
concebidos como uma modalidade de saber, um modo de orientação divina,
sendo assim, valorizado e disputado pelos pentecostais como um modo de aferir
a verdade. O que chamei de “recepção cosmológica” pode ser tomado como
exemplo e serve-me como exercício para narrar a produção de categorias em
seu contexto vivencial de interações11. Nesse sentido, esforço-me para des-
crever a performatividade da fala sincera que se pretende digna de obediência
e passividade do outro. Conforme Paul Veyne, a “modalidade mais difusa de
crença é aquela em que se acredita na palavra do outro” (2014, p. 55); Veyne,
ao se perguntar se “os gregos acreditavam em seus mitos”, problematiza a noção
de “crença” e a substitui por “regimes de verdades”, argumentando que cada
11
Considero fundamental levar em conta a compreensão que meus interlocutores têm da Bíblia, bem
como a noção de pessoa do Espírito Santo. Otávio Velho (1987) formulou algo semelhante em
outro contexto e pode servir de exemplo. Ao analisar alguns aspectos das lutas dos camponeses no
Brasil, Velho sugeriu que a categoria “cativeiro”, por vezes acionada pelos cientistas sociais de modo
anacrônico, isto é, de uma teorização moderna para outro contexto, só seria bem compreendida
caso se levasse em conta o reconhecimento de uma “cultura bíblica”, de onde essa categoria teria
surgido. De acordo com Velho, categorias como essas, provenientes de um contexto distintamente
religioso, seriam ignoradas por pesquisadores, que insistiriam em atribuir-lhes significados tendo em
vista outras dimensões políticas e culturais. Para Velho, o reconhecimento dessa cultura bíblica como
recurso metodológico “serviria de referência para se pensar as experiências vividas”. A utilização
desse recurso nas ciências sociais, conforme Velho, lhe permitiria “atingir o nível das crenças e
atitudes profundas” (1987, p. 8). É nesse sentido que me refiro ao conceito de contexto vivencial.
12
A noção de “plataforma”, apesar de ser uma abstração teórica, pretende descrever situações con-
cretas da produção de práticas discursivas, suas ressonâncias e seus modos de circulação. Visto que
tal plataforma não está dada, é preciso construí-la e descrevê-la.
13
A própria etimologia da palavra “sincera” (sine cera, “sem cera”) exige do profeta um comportamento
autêntico construído socialmente. É nesse sentido que argumento que a noção de Igreja legítima é
uma extensão dos corpos que ritualizam discursivamente a performatividade da sinceridade.
Vasos rebeldes
241
pesquisadores que se dedicam à questão. Apesar de uma aparente imperceptibi-
lidade institucional devido aos ínfimos recursos de publicidade (se comparados
aos recursos financeiros e midiáticos das grandes instituições neopentecostais),
pode-se afirmar que a presença dessas microigrejas aponta empiricamente para
os dados estatísticos dos últimos censos referentes à expansão dos pentecos-
tais e novas configurações do espaço urbano. Seria interessante dispor de um
georreferenciamento dos modos de ocupação do espaço urbano, tal como faz
Ronaldo Almeida (2009) em relação aos lugares de culto na região metropolitana
de São Paulo. Entretanto, uma dificuldade logo se impõe devido à mobilidade
e à natureza provisória dos templos; a maioria dispõe de pequenos imóveis
alugados, motivo pelo qual são também chamados pejorativamente de “Igrejas
de garagens” ou “Fundo de quintal”, conforme categorias nativas.
Para fins comparativos, é importante destacarmos a pesquisa de Peter Fry
(2000) sobre o sucesso da expansão pentecostal em Moçambique. Fry destaca
pelo menos três interpretações recorrentes, próximas do que podemos obser-
var no caso brasileiro. Segundo Fry, no contexto de Moçambique, a primeira
interpretação, denominada por ele de “explicação funcionalista”, atribui o
sucesso das Igrejas à desintegração social causada pela guerra civil: o sentido
de “comunidade” daria uma resposta às necessidades sociais. A segunda inter-
pretação, chamada de “manipulativa”, associa o sucesso das Igrejas às ambições
políticas e econômicas dos pastores; agindo por “esperteza”, os líderes religiosos
explorariam a fé dos seguidores14.
Entretanto, Fry descarta essas interpretações por serem insuficientes para
compreender o fenômeno e investe numa terceira via denominada “eficácia
cosmológica”: a análise leva em conta as práticas e narrativas dos agentes
acerca da eficácia da conversão promovida pelo Espírito Santo em oposição às
práticas tradicionais de feitiçaria (2000, p. 78). No caso brasileiro, de modo
semelhante, Ronaldo Almeida e Paula Montero (2001) sugerem investir na
14
Essas duas formas de interpretação aparecem ao longo deste ensaio acionados por diferentes agentes,
especialmente os intelectuais da imprensa. A propósito de exemplo para a “explicação funcionalista”,
uma reportagem da revista Veja, de 24 de janeiro de 2001, intitulada “A explosão da periferia”,
buscava caracterizar o que considerava ser a “tragédia brasileira em torno das grandes metrópoles”.
O argumento central da reportagem de Alexandre Secco e Larissa Squeff é que as Igrejas evangélicas
teriam encontrado nas periferias um terreno fértil para seu crescimento, apontando, por exemplo,
que seriam os “primeiros estabelecimentos a surgirem ao lado dos bares”, com os quais passavam
a disputar os espaços. A reportagem mobiliza uma série de dados estatísticos sobre criminalidade,
desemprego e miséria como os princípios determinantes para o fenômeno. O argumento é que o
fenômeno religioso resulta de desequilíbrio ou vulnerabilidade social e ausência do Estado, isto é,
de políticas públicas: <http://veja.abril.com.br/240101/p_086.html>.
15
É possível sugerir um exemplo: ao multiplicarem-se, as atividades dessas microigrejas são percebi-
das pela opinião pública, em alguns casos, como um “caos” à ordem pública. A controversa “Lei do
Silêncio” (Programa de Silêncio Urbano – Psiu), por exemplo, aprovada no estado de São Paulo por
volta de 1997 a fim de punir a “poluição sonora” de alguns estabelecimentos a partir de determinados
horários, foi recebida por alguns líderes religiosos como “perseguição” contra a liberdade de culto.
Essa lei, que resultou em multas para algumas Igrejas, mobilizou uma série de debates por parte dos
líderes evangélicos. A título de exemplo, a lei, por meio da intervenção de um pastor e vereador,
foi alterada no município de Jaú (SP) para “atender as Igrejas evangélicas”: <http://www.jaunews.
com.br/noticias/geral/1102/lei-do-silencio-e-alterada-para-atenderigrejas.html>.
Vasos rebeldes
243
especialmente em relação aos pentecostais. Emerson Giumbelli (2002, p. 275),
por exemplo, cujo trabalho problematiza a questão da liberdade religiosa, faz
referência a uma reportagem do jornal O Estado de S. Paulo, de 1990, na qual
os repórteres simularam a fundação da “Igreja do Deus do Amor Livre” com o
objetivo de demonstrar a facilidade de criar tal empreendimento e denunciar
a fragilidade das leis do Estado16. De modo semelhante, uma recente repor-
tagem de O Globo, de 2 de julho de 2014, recolocou em pauta o problema
da legitimidade desses empreendimentos. Publicada com o título “Criação
de Igreja é negociada até em anúncio de classificados”, a reportagem narra
o caso de um suposto anúncio publicado numa seção de classificados de um
jornal de Brasília, no qual um anunciante chamado Francisco procurava “duas
pessoas para fundarmos juntos uma Igreja”. Procurado por repórteres que se
apresentaram como possíveis “sócios”, logo a denúncia esclarece os projetos
pessoais do anunciante, descrito como um sujeito que expõe sem rodeios
seus objetivos: “[Francisco] quer fundar uma Igreja pentecostal como muitas
outras que existem por aí e ganhar muito, muito dinheiro. Basta usar técnicas
de hipnose coletiva, simular milagres e recolher dízimo.” Por fim, a denúncia
classifica tal empreendimento como sinal de “bom negócio”17. Nosso argumento
é que a denúncia da imprensa, por sua vez, pressupõe uma essência da religião
ao normatizar sua presença na esfera pública.
A fim de construir uma plataforma com esses exemplos – e assim compor esta
análise –, delimito-me ainda numa denúncia específica, um caso da Folha de S.
Paulo publicado em 2009, a fim de contrastar com a narrativa performática de
justificação dos fundadores, como José Ribamar18. Como nos casos supracita-
dos, a publicação da Folha tinha um duplo objetivo: por um lado, denunciar as
atividades religiosas como “má-fé”19, exemplificadas na simulação de fundação
de uma instituição jurídico-religiosa; e por outro, denunciar a fragilidade do
Estado brasileiro em relação à fiscalização e normatização dessas atividades. No
16
Sob a categoria “escândalo”, práticas protagonizadas por lideranças religiosas ganham notoriedade
e ressonâncias (cf. ALMEIDA, 1996; MARIANO, 1999). Sobre algumas dessas situações, remeto
o leitor aos trabalhos de Paula Montero e Milton Bortoleto, nesta coleção.
17
Disponível em: <http://oglobo.globo.com/pais/criacao-de-igreja-negociada-ate-em-anuncio-de-
-classificados-8883673>. Acesso em: 30 jul. 2014.
18
Delimito-me na denúncia da Folha, de 2009, com objetivo de contextualizar com a pesquisa de campo,
também desenvolvida entre 2009 e 2010. Trata-se de estabelecer uma temporalidade do debate.
19
Paul Veyne argumenta que a noção de “má-fé” resulta das “relações de forças”, isto é, das disputas
entre diferentes modalidades de “relações de verdades” (2014, p. 71). A esse propósito, ver capí-
tulo tratado por Paula Montero nesta coleção, em que a autora faz uma análise da categoria “abuso
espiritual” no contexto protestante.
20
Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc2911200909.htm>. Acesso em: 30
jan. 2014.
Vasos rebeldes
245
de fala de José Ribamar destacado no prelúdio: as categorias de distinção e os
aspectos materiais (jurídicos) e simbólicos das atividades do fundador e seu
empreendimento são aqui invertidos. Como podemos observar, a equipe de
articulistas simulou a fundação da Igreja Heliocêntrica do Sagrado EvangÉlio
com o objetivo de denunciar a “facilidade” de se abrir uma Igreja, bem como
as “vantagens fiscais” que os ministros religiosos teriam para se isentar de
impostos e privilégios em relação à “prisão e dispensa de serviços militares”.
Bastou-lhes, conforme a narrativa, algumas despesas com os documentos jurí-
dicos e sem que houvesse “requisitos teológicos” ou “doutrinários” – ou mesmo
um “número mínimo de fiéis” – a Igreja estava criada. É possível supor que
mesmo preenchendo esses “requisitos”, o sistema de acusação mobilizaria o
jogo com outras regras, uma vez que o processo de normatização é disputado
e definido nas relações.
A redação do texto é habilmente construída com jogos de palavras e sutis
ironias, a começar pelos epônimos “Hélio” e “EvangÉlio” na composição do
nome jurídico-simbólico da Igreja, derivados de seu “fundador”. Temos aqui
uma clara referência à dimensão simbólica dos modos de nominação das ins-
tituições religiosas, ao passo que os colaboradores da reportagem são também
chamados ironicamente de “bispos”, uma alusão à estrutura hierárquica adotada
por algumas instituições. O trocadilho tem a intenção de inverter a lógica de
um sentido compartilhado, recolocando novas ambiguidades. Duas observa-
ções podem ser feitas acerca disso: em primeiro lugar, a mobilização do plano
teológico para construção da denúncia pretende torná-la eficaz ao inverter os
sentidos da cosmologia e dos símbolos relacionando-os às práticas denunciadas,
ou seja, às práticas de “má-fé”, a interesses pessoais, e, por isso mesmo, con-
siderado espúrio; por outro lado, a mobilização do plano jurídico questiona a
capacidade do Estado em regular tais práticas, como na exigência de formação
teológica e de fiscalização das atividades financeiras dos empreendimentos
religiosos. Por fim, os articulistas levantam a questão da legalidade dessas ati-
vidades religiosas, tidas como “crimes” se não estivessem dentro nos limites
da lei brasileira, o que coloca um dilema normativo para o Estado, que “não
pode negar-lhes fé”21. Ainda é interessante notar que a denúncia possui como
alvo principal a ineficácia da legislação brasileira.
Podemos ainda observar a ressonância da narrativa denunciante na opinião
pública por meio do filtro de recepção de um círculo de leitores da Folha. Al-
21
Quanto à controvérsia em torno do uso religioso da ayahuasca, também citado no artigo da Folha,
ver Henrique Antunes nesta coleção.
22
Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/semanadoleitor/sl0612200901.htm>. Acesso
em: 30 jan. 2014.
Vasos rebeldes
247
dispositivos jurídicos, teológicos e econômicos cujo objetivo é normatizar e de-
finir o papel do religioso na esfera pública: a questão é o ser religião ou Igreja
autêntica. No plano empírico, penso na temporalidade da controvérsia que nos
permite situar o “magma” da disputa sob a perspectiva de variados agentes.
Nessa temporalidade há uma inversão do ser Igreja autêntica. Podemos for-
mular brevemente a ideia de que a narrativa denunciante produz uma noção
de Igreja em que a comunidade está ausente (apenas o aspecto jurídico), ao
passo que a narrativa de justificação primeiro produz uma comunidade e depois
a institucionalização jurídica23. Conforme venho argumentando, a narrativa de
justificação é construída e performatizada pelos corpos em disputa. Esse ponto
será retomado mais adiante ao tratar das categorias de distinção e os critérios
de sucesso do fundador.
23
Devo essa formulação da temporalidade da controvérsia a Eduardo Dullo, cujos comentários
ajudaram-me a clarear o argumento.
24
A categoria “rebelião” é extraída de situações das narrativas de diversos personagens bíblicos con-
siderados arquétipos da desobediência, como, por exemplo, a versão mítica da rebelião de Lúcifer
e uma classe angelical contra Deus, que teria resultado em sua expulsão dos céus; uma análise
bastante útil do mito dos anjos decaídos pode ser vista em Luigi Schiavo (2000) e Paulo Augusto
de Souza Nogueira (2006). Um texto bíblico muito citado para classificar casos de rebelião indivi-
dual e institucional encontra-se no I Livro de Samuel 15:23, “porque a rebelião é como pecado de
feitiçaria” (essa locução é atribuída ao profeta Samuel ao censurar uma situação de desobediência
do rei Saul – antecessor de Davi). Desse modo, os ritos de rebelião, no sentido dado por Max Glu-
ckman (2011) como subversão das regras, não são concebidos apenas contra o grupo, mas contra
a divindade do grupo, de modo que, acerca do acusado, se diz que “prestará contas a Deus” pelo
cisma e desordem na unidade do grupo. Nestes termos, os rebeldes são vistos como arquétipos do
caos, do espírito cismático.
Vasos rebeldes
249
interlocutores, na maioria membros de algumas Igrejas pentecostais, também
davam suas razões para o crescente número de novas Igrejas no bairro. Alguns
davam conta de que muitas Igrejas foram “fundadas” e “afundadas” (ironia nativa
para qualificar o fracasso) em pouco tempo. Para alguns, a fundação de uma
Igreja seria resultado da ambição de um líder cuja ação não estaria de acordo
com a “vontade de Deus”, um dos critérios levados em consideração. Um pas-
tor, líder da Igreja Evangélica Assembleia de Deus Ministério do Belém (filial
do Belenzinho, SP), uma das mais expressivas na região, afirmava, por exemplo
– apontando com o dedo indicador na direção de uma pequena instituição
dissidente –, não compreender por que “pessoas analfabetas” e “sem instrução
teológica” se aventurariam numa “coisa tão séria” como fundar uma Igreja,
interpretando tal prática como um ato de “desobediência”. Nessas condições,
o sucesso pessoal e institucional é suspeito e fadado a um possível fracasso.
Meus interlocutores, entretanto, distinguiam alguns casos. Consideravam al-
guns fundadores como “homens de Deus” e classificavam suas iniciativas como
necessárias, ao passo que outros eram considerados “rebeldes” e motivados
por ambição e “interesses financeiros”; estes prestariam contas a Deus. Nesses
casos, a classificação levava em conta a exemplaridade de conduta moral do
fundador. De modo geral, os critérios de sucesso dependem das condições
que resultaram em sua origem e do modo como sua trajetória é construída,
visto que o processo de cissiparidade é geralmente conflituoso e mobilizado
por acusações mútuas.
Podemos resumir essas acusações nos seguintes termos: inexpressividade teo-
lógico-tradicional, que coloca o problema de suas origens histórico-teológicas
marcadas por cissiparidades e divergências doutrinárias; clandestinidade ju-
rídico-religiosa, que coloca, por um lado, o problema jurídico de visibilidade
no espaço público e, por outro, as acusações de charlatanismo, que consistem
numa classificação das atividades como projetos pessoais regidos por interesses
financeiros espúrios ou pela exploração da fé25.
25
De modo crítico, irônico e provocador em relação aos neopentecostais, Gedeon Alencar classifica-
-os como “a expressão mais brasileira do protestantismo”, afirmando que “são Igrejas que surgi-
ram de forma autônoma, na maioria das vezes, como um projeto pessoal” (2005, p. 84). O autor
esforça-se por esclarecer o fato de que o termo “projeto pessoal” não é utilizado para desqualificar
tais empreendimentos e arremata: “Afinal, nenhuma Igreja nasceu como projeto do coração ou
revelação expressa de Deus, apesar de algumas insistirem nessa falácia”. A observação crítica de
Alencar continua: “Evidentemente que o Zezinho da Vila Vintém que se atreve a fundar uma Igreja
é ‘herege’, ‘rebelde’, ‘divisionista do Corpo de Cristo’, o que jamais diríamos de Lutero, Calvino
ou Wesley.” Por fim, Alencar sustenta: “A questão básica para estas novas Igrejas é: como elas não
têm tradição, podem fazer qualquer coisa” (2005, p. 93, grifos do autor).
Vasos rebeldes
251
categorias de distinção e as narrativas performáticas de justificação, ou seja,
a relação entre o poder pastoral e os ritos de obediência/rebeldia do rebanho
em relação à aferição da verdade.
De que modo a performance da sinceridade é disputada? A situação do pre-
lúdio nos permite compreender essa dimensão da experiência. Para meus in-
terlocutores, especialmente José Ribamar, a noção de revelação em suas várias
modalidades (seja por sonho ou inspiração profética ou por uma interpretação
do texto bíblico) é concebida como um modo especial de conhecimento, um
saber mediado pelo Espírito Santo e não raro instrumentalizado por uma pessoa
excepcional, o “profeta” ou “homem de Deus”, cujas categorias nativas são
abarcadas pela noção de “vaso”, tal como aparece na quinta linha do hino de
fundação. Tal modo de enunciar ou fazer-se conhecer (revelar) no contexto
dessas relações exige do profeta (vaso) a construção de uma performance
que consiste na ritualização de atos de sinceridade, isto é, modos de ser e agir
compartilhados na experiência em comunidade, cujo objetivo é convencer
acerca de que o que se vê, ouve e diz não procede de si (vontade humana ou
da “carne”), mas da divindade. A fonte de autoridade da palavra ou do discurso
verdadeiro é atribuída ao Espírito Santo, sobre quem há um risco iminente do
exercício da dúvida, compreendido entre os nativos como “blasfêmia” contra
o Espírito Santo, pecado considerado imperdoável (conforme interpretação
que fazem do texto bíblico, Mateus 12:31)26.
Como, então, aferir a veracidade do discurso sem incorrer no perigo de blas-
fêmia? A instância do perigo é construída com sutileza e seria interessante
também pensar nas justificativas para escapar-lhe. Temos aqui a questão do
26
Foi possível observar em situações de campo que nos momentos de inspiração ou êxtase nos cultos,
a pessoa considerada vaso “é usada pelo Espírito Santo” e passa a transmitir uma mensagem que
não é considerada como sendo sua, mas da divindade; fazem distinção entre “mensagem da carne”,
isto é, “vontade” do próprio profeta e “mensagem do Espírito Santo”. Quando por algum motivo
o “vaso” se recusa a “desenrolar o manto”, ou seja, “entregar” a mensagem divina na íntegra, diz-se
que “engoliu” a mensagem ou foi “covarde”, de modo que sofrerá penalidades divinas por sua deso-
bediência e seu medo. Segundo José Ribamar, o “vaso” muitas vezes teme pronunciar algo que não
“provém de Deus”. Contou, por exemplo, que para considerar uma profecia verdadeira, costumava
esperar no mínimo por três “confirmações”, de preferência por diferentes profetas, que não tenham
relação direta um com o outro, garantindo-lhe uma certeza. É altamente respeitável o profeta que
“revela” os segredos íntimos de uma pessoa, de modo a provar que não poderiam ser uma possível
fraude. Entretanto, não raro há sátiras e gracejos entre os pentecostais sobre profecias frustradas
e sem credibilidade; apesar disso, o ceticismo (se é que poderíamos assim chamar) não é de todo
aplicado a alguns casos; há situações consideradas “perigosas” para se “duvidar” ou “brincar”, pois
se corre o risco de acusação de “blasfêmia” contra o Espírito Santo, considerado pelos pentecostais
como um pecado imperdoável.
27
Usa-se, por exemplo, a categoria “vaso rachado” para qualificar a condição duvidosa do profeta, não
apenas para se referir a vaticínios não cumpridos, como também para classificar comportamentos
associados à desobediência e rebeldia; não apenas a fala, mas os atos de obediência devem ser sinceros.
Num dos cultos de que participei, por exemplo, José Ribamar dirigiu-se a mim com a revelação
de que eu tinha uma “chamada divina” para ser “pastor” e “pregador”, afirmando ser uma “grande
obra”, mas que, para isso, eu deveria tirar a “dúvida do coração”. Afirmava, ao final, que não se
importava se eu acreditasse ou não, simplesmente fazia-lhe conforme lhe foi “mandado” por Deus.
De pesquisador, passei a ser visto como um potencial vaso e, apesar de minha condição “rebelde”,
em várias ocasiões fui chamado à frente para receber oração, ler algum “versículo da Bíblia” ou
contar algum “testemunho”. Além disso, fui considerado como tendo me convertido ao aparecer
num dos cultos com o cabelo cortado (tendo me aproximado de seu ethos). Apesar da timidez e do
constrangimento, resolvi ir à frente uma vez (após sucessivas insistências) e agradecer pela recepção
Vasos rebeldes
255
A construção de uma trajetória ou espaço biográfico no sentido dado por
Leonor Arfuch como “horizonte analítico para dar conta da multiplicidade,
do lugar de confluência e circulação” (2010, p. 22) depende de um conjunto
de relações que se entrelaçam. Se por um lado a narrativa que Ribamar faz
de sua própria trajetória for caracterizada pelo que Pierre Bourdieu (1996a)
chamou de ilusão biográfica28, por outro há não menos uma ilusão etnográfica
no esforço de minha descrição. Vincent Crapanzano chamou esse recurso nar-
rativo de “ficção” da etnografia (1991), tarefa que, segundo Marilyn Strathern,
consiste em “transmitir a complexidade dos conceitos nativos com referência
ao contexto particular em que são produzidos” (2006, p. 32).
Visto que algumas categorias nativas relacionadas às noções de obediência e
rebeldia foram explicitadas, vejamos alguns traços entre passado e presente
na narrativa que Ribamar faz de si a fim de compreender sua trajetória de
católico leigo a pastor e fundador de sua própria Igreja. Conforme Ribamar,
a aprendizagem das práticas e experiências pentecostais (leitura da Bíblia,
pregação e proselitismo) remonta ao ano de 1995, quando narra sua conversão
do catolicismo para o pentecostalismo. Entretanto, convém sublinhar que, tal
como observam Ronaldo Almeida e Paula Montero, o conceito weberiano de
conversão, que pressupõe “um processo subjetivo de adesão a um novo credo”
(2001, p. 92), perde aqui força analítica. No plano das práticas, a noção de
conversão deve ser mais abrangente e não pressupor fronteiras entre cosmo-
logias. A narrativa de conversão de José Ribamar, para além do modelo webe-
riano que marcou grande parte da literatura sociológica, pode ser pensada na
modalidade de “testemunho” no sentido dado por Eduardo Dullo, como um
“ato de fala (não apenas informativa, mas) performativa” (2014, p. 54). Assim,
não pressupomos fronteiras entre cosmologias, mas buscamos compreender
como os agentes as elaboram na dimensão das experiências.
A narrativa de José Ribamar remonta a experiências da infância, quando afirma
ter tido uma familiaridade com o Espírito Santo, experiência que ganharia novos
que tive, o que a seus olhos não deixava de ser um “testemunho”. Cumprimentavam-me com a
saudação “a paz do Senhor”, sempre dirigida aos pares; a essa altura, minha descrição não poderia
fugir da relação que Jeanne Favret-Saada (2005) chamou de etnografia afetada ao problematizar a
chamada “observação participante”.
28
Se pensarmos uma trajetória em termos da noção de ilusão biográfica proposta por Pierre Bourdieu,
diversos tipos de narrativas (biográficas ou autobiográficas) “propõem acontecimentos que, sem
terem se desenrolado sempre em sua estrita sucessão cronológica, tendem ou pretendem organizar-
-se em sequências ordenadas segundo relações inteligíveis” (1996b, p. 184).
29
Tateando-se para demonstrar a concreticidade do sonho, chamou-me a atenção a descrição do
personagem Jesus. A descrição lembra as típicas iconografias do chamado “catolicismo popular”,
somando-se a iconografias apocalípticas: o personagem é descrito como tendo barba branca, cabelos
grisalhos, “olhos de fogo”, típicas vestes com cintos de ouro, cicatrizes dos cravos nas mãos e voz
“meiga”. Essas características lembram o capítulo 1 do livro do Apocalipse bíblico.
30
Tal vocação pode ser vista como no caso do profeta Jeremias, a quem a tradição javista atribui a fala
divina “A mim veio a palavra do Senhor, dizendo: antes que eu te formasse no ventre materno, eu te
conheci, e antes que tu saísses da madre, te consagrei e te constituí profeta às nações” (Jer. 1:4-5).
31
Classificação proposta pela literatura sociológica para descrever práticas de um catolicismo de tipo
“rústico” em oposição ao “catolicismo urbano” ou “oficial” (STEIL, 1996; DULLO, 2008).
Vasos rebeldes
257
da calça e com um maço de cigarros no bolso e quando eu terminava de tomar a
hóstia eu não respeitava, pois eu não conhecia a verdade (sic) (25/10/2009).
José Ribamar afirma que poucos meses após o aparecimento de Jesus no re-
ferido sonho, começou a “pregar” como leigo no pequeno grupo que passou
a frequentar, mas que sua pregação já apresentava críticas às práticas devo-
cionais do catolicismo, afirmando que seus amigos não estavam dispostos a
“abandonar” a “adoração de imagens”, que considerava “idolatria”. Está claro
que sua narrativa é justificada com categorias acumuladas ao longo da expe-
riência pentecostal, o que implica uma linha tênue entre uma rejeição das
práticas católicas precedentes e uma nova elaboração da mesma pela prática
pentecostal. Neste ponto, a mudança de vida no plano das práticas não deve
ser lida na chave do sincretismo, mas, conforme formulação de Clara Mafra
(que segue uma linha de abordagem da Antropologia do Cristianismo de Joel
Robbins), o foco deveria estar na “cultura que está sendo mudada” e na “arti-
culação entre os elementos do processo” (MAFRA, 2009, p. 73). Conforme
Mafra, “mesmo que os pentecostais continuem a recorrer a elementos culturais
antigos – referentes católicos, espiritistas, umbandistas, candomblecistas –, a
lógica pentecostal passou a ter precedência sobre as demais” (MAFRA, 2009,
p. 74). Apesar do interesse de Mafra em descrever episódios específicos de
humilhação capazes de promover o abandono de um conjunto de valores por
outros, sua formulação é interessante para pensarmos o ciclo de José Ribamar.
Disposto a abandonar o “culto idólatra” e sem saber que estava no “lugar er-
rado”, apesar de intuir o que considerava a “verdade”, José Ribamar narra um
encontro com um pastor que havia fundado uma filial da Igreja Assembleia de
Deus Ministério Ferraz de Vasconcelos32, próximo de sua residência; este, por
sua vez, teria sido o responsável por “iluminar” sua mente acerca do “evangelho
verdadeiro” que julgava professar entre seus amigos e familiares católicos. Des-
se modo, José Ribamar, sua primeira esposa e três filhas tornam-se membros
ativos nessa igreja. A partir de então, Ribamar, que ainda não era pastor orde-
nado, mas considerado em potencial, descreve sua passagem por mais quatro
Igrejas pentecostais nas circunferências do bairro onde reside entre os anos
de 1996 e 200033. Apesar de reconhecer-se tributário delas, afirma também
32
Pouco tempo depois, o referido pastor, conhecido como Zezinho, teria rompido com essa Igreja e
fundado em 1997 uma nova chamada Igreja Pentecostal Apocalipse de Jesus Cristo, mas, devido
à sua morte, a Igreja fechou. Seu espaço é atualmente ocupado por uma filial da Assembleia de
Deus – Ministério do Belém, uma das primeiras a se instalarem na região (Santana de Parnaíba).
33
José Ribamar afirma ser tributário de todas elas em relação ao que aprendeu na carreira de pastor,
aplicando em sua Igreja o que considerou ser a “doutrina verdadeira”, acompanhado pelo “fervor
Vasos rebeldes
259
mas eu não quis mais tomar de frente, porque muitos vasos [profetas] já tinham
falado que Deus ia colocar um ministério [uma Igreja] em minhas mãos (sic)
(26/04/2009).
35
A princípio reuniam-se em seu “barraco” para realizar os cultos e, não comportando o crescente
número de pessoas, teriam alugado um salão próximo de sua residência. A partir daí, orientado
por outras revelações, passou a nutrir a expectativa de transferir sua Igreja para um antigo salão
de festas (um antigo bar que estava à venda), onde uma de suas filhas afirma ter “dançado muito
forró” (vide Anexos). Por ser também músico, ele mesmo teria também tocado nesses bailes. Esse
salão passou a ser o templo-sede onde fui recepcionado.
36
Disponível em: <http://www.jusbrasil.com.br/legislacao/696781/lei-2534-04-santana-de-
-parnaiba-sp>.
37
Conforme os auxiliares de Ribamar que passaram a ser os responsáveis pela Manjedoura na época
desse ocorrido, havia um regimento disciplinar básico para casos de condutas reprováveis pelos valores
Vasos rebeldes
261
aproximadamente cinco anos no qual lhe seria restrito o exercício público das
atividades eclesiásticas, como a pregação; não se trata de uma exclusão do grupo,
mas uma disciplina exemplar que podemos conceber como uma pedagogia da
sinceridade e da conduta moral.
Apesar dos desencontros e imprecisões dos relatos e memórias dos envolvidos
na crise, a instituição Manjedoura de Cristo, cuja comunidade era formada
por algumas famílias (inclusive a de Ribamar), teria fechado suas portas por
aproximadamente dois meses (alguns fiéis se dispersaram), sendo retomadas
suas atividades por dois jovens auxiliares treinados por José Ribamar, Ageu e
Marcelo, que, por sua vez, viriam a propor como solução da crise a aplicação
da disciplina do líder. O termo “fechar as portas” exprime a sensação nativa
de fracasso do empreendimento e frustração pessoal.
A preocupação dos novos líderes era recompor os fiéis que haviam se disper-
sado para outras Igrejas na região. Assim, na perspectiva de Ribamar, seus
auxiliares teriam introduzido novos elementos litúrgicos dos quais discordava,
chamados por ele de “inovações” e “meninice”, ao passo que, na perspectiva
de seus discípulos, tratava-se de um “avivamento” e volta às origens. Apesar
de discordar, Ribamar pouco podia fazer, visto que cumpria o período discipli-
nar que consistia na destituição de seu poder como presidente. Nesse ponto,
pode-se observar a mudança de posições: ora revestido de um poder atribuído
pela comunidade, ora destituído pela mesma. Apesar do silêncio disciplinar
e de não poder exercer atividades pastorais em público, Ribamar afirma que
não cessaram as revelações divinas.
O clímax da crise de unidade, entretanto, se dá quando Ribamar, três anos
após o ocorrido (já divorciado do primeiro casamento e casado com a jovem
com quem havia “caído em pecado”), reivindica a presidência da instituição;
segundo seus auxiliares, Ribamar não teria cumprido as regras disciplinares
dentro do período estabelecido (que seria de cinco anos) e lhe fazem resistên-
cia, o que resultou em conflitos que gerariam duas novas microinstituições:
Igreja Pentecostal Soldados de Cristo: Ministério Porta Estreita e a Igreja
do grupo. Entretanto, tiveram de lidar com algo novo para a jovem Igreja, que só tinha na ocasião
três anos de fundação. Buscaram estabelecer determinada punição conforme o grau hierárquico.
Por exemplo, um membro comum recebia uma punição equivalente a seis meses de “banco”, isto
é, não lhe era permitido exercer nenhuma atividade eclesiástica até o cumprimento do prazo. No
caso de um líder, o prazo poderia ser de dois anos ou mais, dependendo do tipo de conduta. A
conclusão a que chegaram em relação ao caso de Ribamar seria de cinco anos de punição. Afirmam
ainda que muitos não resistiram à “provação” e aos constrangimentos pelos quais são submetidos:
ou se “desviavam” ou procuravam outra Igreja para iniciar novas trajetórias.
38
Minha chegada a campo em 2009 deu-se, portanto, num contexto de conflitos recentes. Recons-
tituir a dinâmica desses conflitos não é tarefa tão simples, pois não disponho de documentos, mas
de memórias e narrativas, a exemplo da ilusão biográfica. Atualmente, apesar da rivalidade, José
Ribamar afirma que não há entre si “inimizades”, simplesmente “diferentes formas de pensar” e de
conduzir suas Igrejas. Não é raro encontrar membros que “visitam” umas às outras sem proibição
declarada de seus pastores.
39
O nome Soldados de Cristo teria sido adotado de um antigo grupo de jovens da Manjedoura liderado
pelo jovem Ageu (ainda há na parede do templo da Manjedoura um antigo cartaz com o nome do
grupo, atualmente composto por outros jovens); ao passo que Justiça de Deus, segundo Marcelo,
teria sido um nome confirmado por revelações em cultos rituais realizados nos “montes”. “Subir ao
monte” é uma prática cultivada por muitos pentecostais no bairro; trata-se literalmente de morros da
região, considerados como lugares consagrados e mais eficazes que os cultos realizados nos templos.
Periodicamente há grupos que se reúnem em montes para realizar cultos na madrugada; entretanto,
não é recomendável a qualquer pessoa, sendo-lhes prescrita uma vida de santificação e purificação; o
“monte”, apesar de ser considerado um lugar sagrado, é também um lugar perigoso para os que não são
“ungidos” por Deus, isto é, para os não vasos. Nesse caso, podemos pensar como Mary Douglas, “que
a santidade é exemplificada pela integridade” (2012, p. 70). Comumente, tratam esses lugares como
ideais na “busca dos dons” e revestimento do “poder do Espírito Santo” para combater os demônios.
Vasos rebeldes
263
performatizada como atos de sinceridade.
Origem?
Assembleia de Deus
Madureira Manjedoura de Cristo
José Ribamar
Justiça de Deus
Soldados de Cristo
Legenda:
Cissisparidades
Outras trajetórias de José Ribamar
Mediação entre as alianças
40
Descrevendo situações em que teria sido alvo de perseguições, menosprezo e “zombarias” por
parte de seus pares, José Ribamar reage afirmando que as chamadas “Igrejas modernas”, também
chamadas de “Igrejas grandes”, “não querem pregar nas favelas para os drogados e para os pobres”,
missão que, segundo ele, Igrejas pequenas como a Manjedoura de Cristo assumiriam. Em contra-
partida às acusações de que afirma ser vítima, acusa também outras instituições de estarem mais
interessadas em “dinheiro” do que em salvação de “almas”. É interessante observar que conceitos
surgidos no interior da academia, como “neopentecostal” (cf. MARIANO, 1999; GIUMBELLI,
2000), circulam entre os nativos como acusação de “modernidade” das Igrejas evangélicas. “Ne-
opentecostal” aparece como negação e distorção do pentecostalismo considerado genuíno. Ser
“moderno” é deixar de “ser Igreja”.
Vasos rebeldes
265
de sua própria aposentadoria (os dízimos e contribuições eram exíguos). Para
Ribamar, “fechar” a Igreja implicava a “contradição” de que a “obra não era de
Deus”, mas de sua própria vontade. Assim, concebia suas dificuldades financeiras
e a inconstância dos fiéis como uma “provação” divina para uma “obra maior”;
fechá-la significaria negar sua vocação divina e admitir o fracasso, cedendo às
acusações de que se tratava de um projeto ou ambição pessoal.
A inconstância dos fiéis, as dificuldades financeiras e a cissiparidade que resul-
tou em duas novas microigrejas Ribamar procurou entender como os termos
de uma provação divina. Na conversa da referida recepção cosmológica, em
26 de abril de 2009, Ribamar diz:
Muitas pessoas que estavam em outras Igrejas eram machucadas por uma palavra
mal interpretada ou às vezes eram encostadas na última cadeira sem ter uma
oportunidade, porque tem muitas pessoas que têm um desenvolvimento tanto na
Palavra [pregação] quanto no Espírito Santo e a gente conhece quando as pessoas
têm uma expressão de Deus dentro delas, né? Aí elas correm pra Manjedoura e a
Manjedoura tem erguido a cabeça dessas pessoas, embora muitas delas não tenham
ficado na Manjedoura, mas estão fazendo a obra por onde vai. A Manjedoura é um
símbolo de humildade diante do Senhor. Ela representa desde criancinha minha
própria vida. A Manjedoura hoje tem pouca gente, mas muitas pessoas conheceram
Deus na Manjedoura. É um lugar de refúgio, é também um lugar de conserto, é um
lugar de crescimento. Eu vejo uma modificação aqui no [bairro] 120 por causa da
Manjedoura. Aqui tem pessoas que estavam nas drogas, que matavam e hoje são
missionários. Deus tem me usado para ganhar essas pessoas (sic).
Vasos rebeldes
267
frustradas de manter uma filial no estado do Piauí, em sua cidade natal). Em
março de 2014, Ribamar comemorou a inauguração de uma nova filial no
município vizinho de Cajamar, SP (vide mapa, Figura 1). Havia tentado em
outras ocasiões, mas sem sucesso. Seu auxiliar e responsável pela nova filial
havia também fundado sua própria Igreja, mas não teria tido sucesso, vindo a
filiar-se com alguns de seus seguidores à Manjedoura.
Desse modo, Ribamar e sua comunidade põem-se a cantar o hino de fundação:
“A Manjedoura venceu, vamos todos cantar; a Manjedoura venceu, vamos to-
dos se alegrar... se levanta você que é vaso... o Senhor dos exércitos está nesta
jornada.” Outro coro composto por Ribamar com estrutura semelhante ao hino
de fundação é sugestivo e emblemático do conflito bélico que supõe viver: “A
ordem é pra marchar, a ordem é pra marchar.” Assim, os vasos acusados de
rebeldia veem-se como depositários da verdade e vocacionados a cumprir uma
missão nem sempre levada a cabo por seus desafetos. Como se pode observar,
a performance de sinceridade que busca convencer os outros de tais propósitos
não se dá sem conflitos: sem que tenha controle de seus desdobramentos, novos
grupos são produzidos nessa dinâmica, ou, como diz José Ribamar, “toda Igreja
marcha dessa forma”, em constante tensão.
Podemos resumir o dinamismo do ciclo dos vasos rebeldes nos seguintes ter-
mos: dependendo da perspectiva, os vasos são, pois, rebeldes potenciais e os
rebeldes são vasos a seu modo. O espírito cismático, estigma do qual evitam
ser associados, está sempre à espreita.
Vasos rebeldes
269
neopentecostais, pode-se pensar também que, apesar das rupturas, há continui-
dades das práticas e mimetização dos modelos de gestão de suas “genitoras”.
Apesar dos conflitos, José Ribamar atua como mediador de inusitadas alianças
entre dissidentes e rivais como um modo de produzir respostas às acusações
de inexpressividade tradicional e clandestinidade jurídico-teológica; ao mes-
mo tempo reproduz e faz circular essas acusações aos seus rivais e desafetos.
Se o modelo micro de disputa for estendido para os modelos de Convenções
nacionais e estaduais e suas de alianças, então teríamos uma federação de vasos
rebeldes e uma plataforma mais ampla de disputa pelo poder pastoral, pelo
cuidado e pela direção das pessoas. Deixemos esses modelos de alianças por
meio de Convenções para explorar em outros momentos, adiantando apenas
uma hipótese provisória, a saber, que essas alianças seriam uma estratégia
para produção de legitimidade de suas atividades (formação de seminários
teológicos, modos de representação no espaço público, etc.).
No caso do ciclo de microigrejas e suas alianças, apesar de não possuírem força
suficiente que pretendem demonstrar, não podemos subestimar seus modos
de produção de respostas. Não teríamos nesse modelo de federação uma plata-
forma de visibilidade das práticas numa rede de interações mais amplas e que,
isoladas, pouco aparecem? Não teríamos um conjunto de novos elementos para
pensar a produção de autenticidade e suas ressonâncias na esfera pública? Com
essas questões, pretendemos contribuir para uma antropologia das controvérsias
que se dedica a compreender os diversos aspectos da diversidade brasileira e
as tensões entre múltiplos agentes sociais que disputam a legitimidade de suas
atividades na esfera pública.
Em suma, do que discutimos até aqui em três ritmos etnográficos ou en-
saísticos – um prelúdio que antecipa problemas, um interlúdio que busca
conectar plataformas e ciclos de agentes (práticas e interações) e um poslúdio
que sugere novas questões –, podemos dizer, como Clifford Geertz, que
temos a possibilidade de ver “coisas particulares contra o pano de fundo
de outras coisas particulares, com isso aprofundando a particularidade de
ambas” (2001, p. 128).
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Vasos rebeldes
273
Introdução
Tomando como referência o trabalho de Boltanski (2000), examinamos a
construção e o desenrolar da denúncia pública de Antonio Carlos Brolezzi
contra o Opus Dei e alguns de seus representantes, em 2006. A denúncia
fundamenta-se em abusos perpetrados por parte de seus diretores espirituais
durante a sua pertença à instituição. Preocupamo-nos em demonstrar como
essa denúncia se constituiu por meio da produção de uma concepção específica
do que é o Opus Dei e como se desenvolve agregando novos atores e, desse
modo, produzindo novas concepções acerca dessa instituição. Analisamos essa
denúncia em três momentos: 1) a construção da denúncia por meio do lança-
mento do livro, de caráter testemunhal, Memórias sexuais no Opus Dei; 2) o
desenrolar da denúncia, quando Brolezzi concedeu entrevistas à revista Época
e ao programa SuperPop para falar sobre seu livro; 3) a (ausência de) resposta
por parte dos denunciados. Observamos como, a partir da narrativa de Brolezzi,
se constroem publicamente entendimentos diversos do que seria o Opus Dei.
Brolezzi aciona categorias como “abusos” e “injustiça” para situar sua denúncia
no campo da violação dos direitos humanos e, ao mesmo tempo, criar uma
interface de discussão pública entre religião e sexualidade. A própria categoria
“sexualidade” é agenciada por Brolezzi de modo a colocá-la em diálogo com
diferentes discursos e pontos de vista, tais como o psicanalítico, o entendimento
1
Os numerários são membros celibatários do Opus Dei que residem nos Centros e se dedicam às
atividades realizadas ali, principalmente às de formação espiritual. Podem ser leigos ou padres or-
denados pela própria prelazia. Geralmente têm empregos comuns e destinam toda a sua renda ao
Opus Dei, além de prestarem obediência aos seus diretores e membros superiores hierarquicamente.
Realizam dois anos de estudos teológicos e possuem diplomas acadêmicos. Os numerários do sexo
masculino ocupam as posições mais privilegiadas na hierarquia do Opus Dei. Um dos aspectos mais
A denúncia de Brolezzi
277
concisa em torno dos traumas e abusos que teria sofrido durante esse extenso
tempo de pertença à instituição. Embora tenha o formato de testemunho, sua
narrativa tem, antes de tudo, um evidente caráter de denúncia. Brolezzi (2006,
p. 4) evoca um sentimento de responsabilidade para sustentar esse caráter:
Quem quiser ler estas linhas, que tire as suas próprias conclusões. Quanto a mim,
eu já não poderia mais conviver com o sentimento de estar faltando à minha res-
ponsabilidade. Todos os dias, quantos jovens caem nas mesmas armadilhas que
eu me meti? Quantas famílias são destroçadas? Quantos fantasmas ambulantes
são fabricados? Quanta distorção de coisas belas e importantes, como é o caso da
sexualidade humana, transformadas em sujeira e motivo de humilhação! Quantas
mulheres são rebaixadas em sua dignidade humana! Quanta escravidão disfarçada
ainda existe no Opus Dei?
Desse modo, por meio dessa denúncia pública, tem início uma das principais
controvérsias envolvendo o Opus Dei no Brasil, a qual ganhou notoriedade nas
Américas do Sul e Central (PINOTTI, 2008, p. 315). Pouco antes do lançamen-
to de Memórias sexuais no Opus Dei, Brolezzi foi entrevistado pela revista Época,
cuja matéria de capa tratava do Opus Dei, e participou de vários programas em
rede nacional – o principal deles foi o SuperPop, na Rede TV. Até hoje Brolezzi
oferece palestras sobre o tema. Ante essa controvérsia, os representantes do
Opus Dei no Brasil nunca responderam publicamente. Calaram-se. O livro de
Brolezzi faz parte de uma rede de denúncias de ex-membros que decidiram vir
a público, por volta de 2006, e perpetrar ataques contra a instituição.
A denúncia de Brolezzi foi a primeira de caráter testemunhal publicada no Brasil
e, portanto, a que teve maior ressonância na imprensa. Por ser uma instituição
quase invisível publicamente, que não faz questão de divulgar concepções e
que realiza práticas consideradas medievais, arbitrárias e humilhantes, faz
despertar o imaginário das pessoas e torna-se polêmica. O testemunho de Bro-
lezzi projetou publicamente a instituição e alguns de seus membros, além de
explorar questões controversas. Pensando a partir do trabalho de Paula Montero
(2009a), entendemos o Opus Dei como um segmento religioso que procura
se manter fora do fluxo da opinião pública – seus membros não reivindicam
o direito de usar a linguagem persuasiva na esfera pública nem desenvolvem
processos públicos de argumentação. Tanto é que John Allen (2006) fala sobre
polêmicos envolvendo os numerários são as práticas regulares de mortificação corporal por meio
do uso do cilício e das disciplinas. A outra categoria principal de membros do Opus Dei é a de
supernumerários, que são membros que podem casar-se e não têm todas as exigências e dedicação
que possuem os numerários. Os diretores espirituais dos supernumerários são numerários leigos.
2
O diretor espiritual dos numerários é um numerário leigo, que também é o diretor administrativo
do Centro, responsável por realizar a “conversa fraterna” uma vez por semana. Nessa conversa, os
numerários relatam como anda a sua vida espiritual (normas de piedade, problemas de pureza, apos-
tolado, etc.) e recebem orientações práticas do seu diretor. Juntamente com o sacerdote confessor
dos Centros – sempre um numerário –, o diretor espiritual desenvolve a “direção espiritual”. Após
conversarem abertamente sobre seus pecados, problemas e atividades apostólicas com o diretor
espiritual, os numerários confessam-se com o sacerdote. A direção espiritual dos frequentadores
dos Centros que não são numerários nem membros do Opus Dei é feita com o sacerdote, que
A denúncia de Brolezzi
279
pelo mundo: o abuso por parte de seus diretores espirituais. Segundo John
Allen (2006, p. 7), “[...] a organização [o Opus Dei] é criticada por uma certa
porcentagem de ex-membros com impressionante veemência, incluindo o uso
de expressões como ‘abuso espiritual’ ou mesmo violação de direitos humanos”.
Pretendemos, por conseguinte, examinar o processo de construção da denúncia
de Brolezzi, o seu desenrolar e a sua mutação conforme transita por diferentes
âmbitos. São eles: as narrativas de Brolezzi expostas em Memórias sexuais
no Opus Dei, no programa SuperPop e na revista Época, as quais explicitam o
desenrolar da controvérsia e das formas de entendimento do Opus Dei pro-
duzidas no processo. Damos preferência ao livro por ser, além do estopim da
controvérsia, a descrição mais densa e sistemática de Brolezzi acerca de sua
experiência no Opus Dei. Além disso, o livro é a base das outras duas entre-
vistas. Buscaremos analisar as formas narrativas de construção de injustiças
nas exposições de Brolezzi, partindo do pressuposto de que elas são fruto das
interações de Brolezzi com atores do Opus Dei. Nosso intuito não é abordar
essas narrativas como uma descrição objetiva da realidade, mas questionar o
que Brolezzi pretendia defender e demonstrar com elas – propomos observar
qual é sua mensagem para além da descrição.
As narrativas de Brolezzi foram compostas por descrições que demonstram
particularidades e produzem alteridade. Sua narrativa permite compreender-
mos as formas de convivência e as relações no interior de duas residências do
Opus Dei, dando vida aos personagens em interação. Ao mesmo tempo, as
entrevistas concedidas por Brolezzi produziram entendimentos do que seria
o Opus Dei, uma vez que havia mais agentes envolvidos. Interessa-nos, aqui,
tanto a construção da denúncia por meio do livro, como seu desenrolar com
as entrevistas publicadas no SuperPop e na Época.
O autor da denúncia
Antônio Carlos Brolezzi nasceu em 6 de fevereiro de 1965, em Santo André,
na região metropolitana de São Paulo. Seus pais participaram ativamente da
JOC (Juventude Operária Católica)3 no ABC Paulista, onde se conheceram. Seu
é seu diretor espiritual. No caso de Brolezzi, os papéis do diretor espiritual leigo e do sacerdote
confessor se confundiam, pois quem o aconselhava e lhe dava diretrizes práticas de como lidar com
seus problemas era o próprio sacerdote, o padre Vicente.
3
Segundo Scott Mainwaring (1989, p. 141-142), a JOC (Juventude Operária Católica) foi fundada
pelo sacerdote belga Joseph Cardjin em 1923. Tanto na Europa quanto no Brasil, foi um movimento
voltado para a classe operária urbana. Os primeiros grupos da JOC no Brasil foram criados na década
de 1930. No entanto, somente em meados da década de 1940, com a organização da Ação Católica,
começaria a se tornar um movimento importante. A Igreja Católica via a JOC como realizadora de
um importante trabalho pastoral entre os operários. Por volta de 1950, ano em que Brolezzi relata
que seus pais se conheceram, a JOC era mais um movimento jovem da Igreja do que uma organização
de operários. Estava intimamente vinculada à vida sacramental da Igreja e suas celebrações. Além
das discussões sobre família e problemas pessoais, o movimento também organizava atividades de
lazer, tais como bailes, piqueniques e excursões.
4
Ferruccio Pinotti é um jornalista português. Reuniu, no livro Opus Dei secreta, entrevistas de de-
núncias de abusos contra o Opus Dei relatados por ex-numerários da Europa, dos Estados Unidos
e da América do Sul. Brolezzi foi um dos entrevistados – o único brasileiro.
A denúncia de Brolezzi
281
de trabalhar como officeboy no Banco Bamerindus. Pretendia se preparar para
o vestibular, o que despertou seu interesse no tal curso de astronomia, que
anunciava palestrantes renomados. Segundo Brolezzi (2006, p. 10), imaginava
tratar-se de um curso oferecido pela Universidade de São Paulo (USP): “Eu
achava que era a USP [...]. Nunca tinha ido à famosa USP”. Nesse período, por
conta do emprego e do estudo, Brolezzi também não estava frequentando com
regularidade as atividades da Paróquia de Santo Antônio. Voltou ao Centro
mais algumas vezes para o curso de astronomia, que era administrado por
professores da USP. Espantava-o o fato de não haver meninas ali, só rapazes
universitários muito bem-vestidos.
Quando ingressou no curso de matemática da USP, Brolezzi (2006) conta que
a relação com as pessoas do Centro mudou. Todos queriam conversar com ele.
Foi, então, levado pela primeira vez ao oratório do Centro. Antes disso, sequer
imaginava que se tratasse de um ambiente religioso. Em seguida, foi chamado
a uma salinha por um numerário, que disse que ele deveria começar a ter aulas
de doutrina católica. Eram aulas que ofereciam uma visão teológica dos temas
da Igreja: pecado, céu e inferno, virtudes cristãs, etc. Ao mesmo tempo, foi
sendo levado a falar de assuntos pessoais. Quando se mudou para São Paulo,
por conta das aulas na USP, começou a frequentar retiros, os círculos de São
Rafael5 e a ajudar no Centro. Finalmente, em 1985, tornou-se numerário do
Opus Dei sem saber sequer, segundo seu próprio relato, que eles eram membros
celibatários ou que precisavam praticar mortificações corporais diariamente.
Permaneceu no Opus Dei durante dez anos.
Memórias sexuais no Opus Dei, publicado aproximadamente dez anos depois
de Brolezzi se desligar da instituição, reúne descrições de sua trajetória du-
rante o tempo em que foi membro do Opus Dei. O texto, escrito em estilo
sarcástico e informal, descreve a experiência de Brolezzi para ilustrar eventos
que se circunscrevem em um contexto de relações de poder entendidas pelo
autor como abusivas, configurando injustiças que devem ser denunciadas pu-
blicamente. A narrativa de Brolezzi coloca-o na situação de vítima do Opus
Dei e dos seus representantes. O Opus Dei, entendido ora como um ator
abstrato, ora como representado por sujeitos específicos, confere à narrativa o
5
Os círculos de São Rafael se constituem por aulas de formação doutrinal para estudantes que
frequentam os Centros. Geralmente são grupos pequenos, com menos de dez pessoas, e as aulas
são ministradas por um numerário leigo. Do mesmo modo, existem os círculos de São Miguel,
compostos por numerários, e os círculos de São Gabriel, voltados aos profissionais frequentadores
dos Centros.
A denúncia de Brolezzi
283
e entraram conscientemente na minha intimidade para mexer com meus sentimentos
e tentar me programar, não pedirei desculpas se eventualmente fiz um retrato não
muito fiel de vocês ou se casualmente não foram apresentadas ao público como
gostariam que fossem. Na verdade, fiquei com essa impressão após ter sido objeto
em suas mãos. Já que vocês nunca mais me procuraram para saber se eu estava
vivo ou morto, depois do que fizeram comigo, isso foi o que restou. Tantos anos
de convivência íntima e depois vocês fazerem de conta que eu não tinha existido!
Vocês sabem muito bem o que fizeram, e continuam fazendo, em nome da “Obra
de Deus”. [...]. Pensem um pouco melhor antes de meter os pés e as mãos dentro
da cabeça das pessoas. Cheguei a gostar muito de vocês, amar de verdade, senão
não teriam conseguido que eu fizesse tantos absurdos (BROLEZZI, 2006, p. 6).
6
O Centro de Estudos do Sumaré é um Centro do Opus Dei onde são formados os numerários
recém-ingressados na instituição. É destinado à formação de numerários do sexo masculino. A for-
mação dos numerários consiste em dois anos de estudos teológicos e filosóficos. Após esse período,
os numerários formados são encaminhados para outros Centros, de acordo com a deliberação da
Comissão Regional.
A denúncia de Brolezzi
285
Talvez o aspecto mais interessante da denúncia de Brolezzi seja o fato de
estar atacando uma instituição pouco conhecida no Brasil. Em consequência,
sua narrativa precisa, mais do que atacar atores, descrever práticas, relações
e contextos de modo a situá-los. Precisa, portanto, construir o modo de ser
dos sujeitos que descreve e, assim, criar alteridade. Em sua narrativa, há uma
clara produção de “eles”, de “o Opus Dei” – ora se refere a uma instituição
entendida de forma reificada e abstrata, ora qualifica atores específicos como
representantes institucionais. Há um esforço de descrever, explicar, qualificar
e situar. Mas, é claro, esse esforço não se dissocia da intenção primeira de
denunciar. Sobretudo, a forma de Brolezzi traduzir a diferença está na chave
da denúncia. No esforço de traduzir para os leitores e ouvintes o que seria o
Opus Dei, Brolezzi recorre à denúncia para estabelecer as diferenças entre
“nós” e “eles” e as especificidades daquele grupo – diferenças que, mesmo
entendidas em contextos específicos, seriam condenáveis.
A narrativa mescla o sarcástico e o dramático ao descrever os casos concretos
de abusos por parte dos seus diretores para, desse modo, construir narrativa-
mente a injustiça. Como recurso retórico de convencimento, o autor descreve
sentimentos e sensações ao narrar esses abusos. A narrativa possui, a meu
ver, quatro movimentos importantes: 1) o pedido de admissão de Brolezzi no
Opus Dei, no Centro Cultural Itaim; 2) o curso de formação de numerários
no Centro de Estudos do Sumaré; 3) a volta para o Centro Cultural Itaim; 4)
a saída do Opus Dei.
Durante nossa pesquisa de campo, pudemos compreender a lógica da formação
de numerários no Brasil. Eles pedem admissão nos Centros que frequentam
como rapazes de São Rafael. Após um período de aproximadamente um ano,
mudam-se para o Centro de Estudos do Sumaré, onde receberão uma forma-
ção teológica e filosófica intensiva durante dois anos. O Centro de Estudos é
o único centro de formação do Brasil, de modo que mesmo os numerários de
outros estados são enviados para esse Centro, localizado na cidade de São Paulo.
Brolezzi (2006, p. 45) descreve sua passagem pelo Centro de Estudos como
uma “vida de quartel”. Diz que era obrigado a fazer coisas “sem questionar”
(BROLEZZI, 2006, p. 47) e que era submetido à realização de, praticamente,
“trabalho escravo” (BROLEZZI, 2006, p. 47) e “sem nenhuma possibilidade
de atraso ou falha” (BROLEZZI, 2006, p. 48). Se toda a narrativa de Brolezzi
aponta para os abusos que sofreu por parte de seus diretores enquanto foi
membro do Opus Dei, quando narra sua passagem pelo Centro de Estudos,
ele dá descrições específicas do que considera esses abusos. Oferece, portanto,
Padre Vicente fez a gentileza de me utilizar como cobaia de sua experiência sádica.
Sobre a minha cama apareceu o tal escafandro dobradinho, pronto para ser usado
pela primeira vez. Vesti a calça jeans ao contrário e introduzi meus braços nas
mangas longas da camisa. [...]. O colarinho incomodava a minha garganta. Caí na
cama e me arrastei como pude para baixo dos lençóis. Naquela noite, mal preguei
os olhos, embora o sono e o sentimento de ser um louco preso em um hospício
por erro de diagnóstico me fizessem romper em lágrimas madrugada adentro. No
dia seguinte, entorpecido pelo sono e por sentimentos de baixa estima, cambaleei
entre um afazer e outro aguardando a oportunidade de cair na cama e dormir [...]
(BROLEZZI, 2006, p. 50).
[...] aceitei tudo isso iludido com a ideia de que, por amor a Deus, amor à huma-
nidade, que eu pensava estar ajudando a salvar, eu assumia toda ordem vinda do
meu diretor espiritual como se fosse diretamente do Espírito Santo e que estas
eram para a minha própria santidade (BROLEZZI, 2006, p. 50).
Após falar do ocorrido para outro diretor, Brolezzi conta que o padre Vicente
abordou-o no corredor e disse que não precisaria mais usar o macacão.
Simples, não?! Sem pedidos de desculpas. Onde já se viu o Vicentão admitir que
estava errado? Esse assunto acabou ali e somente agora vem a público nestas linhas,
pois acho que pode servir de ilustração de como o Opus Dei encara a sexualidade.
Além disso, sendo o padre Vicente o vigário regional do Opus Dei no Brasil, ou
A denúncia de Brolezzi
287
em prática (BROLEZZI, 2006, p. 50).
7
Josemaria Escrivá fundou o Opus Dei em 1928. Foi canonizado pelo papa João Paulo II em 2002.
Os membros do Opus Dei têm uma forte devoção pela sua figura e seus livros são amplamente
difundidos nos Centros como guias doutrinais e de condutas práticas.
A denúncia de Brolezzi
289
Escrivá com relação à santa pureza – trata-se do modo específico como o fun-
dador do Opus Dei interpretou a castidade, prescrita no catecismo da Igreja
Católica. Segundo Caminho, um dos principais livros de Escrivá (1999), ele
dá ensinamentos práticos de como evitar pecados contra a santa pureza. De
fato, Escrivá é sempre evocado quando é necessário justificar as práticas dos
numerários com relação à sexualidade ou de qualquer outra natureza. Em sua
narrativa, Brolezzi desqualifica duramente a figura de Escrivá, pois, segundo
ele, seria este o propiciador de tais práticas. Essa desqualificação representa um
elemento interessante na narrativa. Todos os membros do Opus Dei têm uma
forte vinculação afetiva com a figura de Escrivá, mesmo, muitas vezes, não o
tendo conhecido. Falam sobre ele com carinho e entusiasmo. Desse modo, ao
atacar a figura de Escrivá, Brolezzi não está atacando somente ela, mas todas
as pessoas do Opus Dei. Trata-se de uma ofensa muito clara aos membros da
prelazia. Apesar de Escrivá ter sido canonizado em 2002, Brolezzi não questiona
a resolução da Igreja Católica de torná-lo santo.
Brolezzi (2006, p. 57) conclui sua passagem pelo Centro de Estudos da se-
guinte maneira:
Os dois anos no Centro de Estudos tinham servido para afundar a minha alma em
uma espécie de humildade histérica. Sentia-me, como nas delicadas palavras do
fundador, a lata do lixo. Padre Vicente tinha inventado uma doença para me dar,
a qual denominou “erotismo mental”. [...] Era difícil para minha cabeça admitir
que um diretor estivesse enganado. [...] O remédio consistia em doses cavalares de
mortificação corporal, muito trabalho, muito estudo, e uma dedicação completa
para o apostolado e a “vida em família” na Obra8.
8
“Obra” é a forma como os membros e frequentadores dos Centros se referem ao Opus Dei entre si.
Essa passagem da narrativa de Brolezzi vem logo depois de ele ter relatado a
Nacho seu desejo de sair do Opus Dei. Mais uma vez, mostra ter se sentido
traído pelo seu diretor – essa figura paternal à qual dedicava amor e obediência.
Essa forma de convivência construída em torno da vida em família e do amor
a Deus é evocada por Brolezzi para demonstrar a natureza da injustiça sofrida:
a traição e abusos por parte dos seus diretores. Percebe-se que, para Brolezzi,
essas relações são criadas pelos diretores de forma estratégica, de modo que se
tornem capazes de manipular os numerários como bem entenderem a fim de
servir ao Opus Dei. Fernando, que protagonizou a narrativa até esse momento
como subdiretor, agora assume o papel de diretor. Em uma passagem longa,
Brolezzi (2006, p. 110) descreve o que Fernando lhe teria dito antes de ele
abandonar o Opus Dei:
Você acha que está sendo esperto e fica pensando em como será boa sua vida fora
da Obra. Pois bem, será completamente infeliz fora da Obra. Não existe pior
crime que queime mais a consciência que o crime de traição. Você é um traidor,
um desertor, que não está ligando a mínima para os seus irmãos da Obra. Vai fazê-
-los sofrer muito, eles que sempre o ajudaram. Quando uma mulher aborta de
propósito, nunca deixa de ouvir à noite as gemidos do bebê que assassinou. Com
você será pior. Terá pesadelos toda noite e jamais poderá voltar para a Obra. Se
arrependerá tanto, tanto, que irá querer voltar para a Obra, mas não poderá mais,
pois a Obra não aceita traidores como você. Acha que vai se casar e ter uma família
linda. Deus não o fez para o casamento. Quem rejeita a vocação para o celibato
apostólico nunca será feliz com o amor de uma simples mulher. Nosso padre diria
que você até pode fazer feliz a uma moça, mas a moça nunca o fará feliz. Você não
nasceu para ter filhos. Fica imaginando filhos lindos. “MEU FILHO!” Você é um
bunda-mole, não servirá nunca para nada. O pior de tudo é depois de ter uma vida
medíocre, que não se sabe se vai durar muitos anos, ter, ainda, muita dificuldade
para ir para o céu, pois fora da Obra um cara como você não tem como se salvar.
Você vai se arrepender amargamente. Mas agora é tarde: Inês é morta.
A denúncia de Brolezzi
291
seu relato dizendo que não poderia mais adiar o momento de sua história vir
à tona, pois alunos da USP, seus alunos, recém-aprovados na Fuvest, poderiam
ser as próximas vítimas do Opus Dei. Por fim, diz ter escrito seu relato íntimo
para sua filha.
Brolezzi se formou em um ambiente católico. Participava da vida cotidiana da
paróquia de Santo André e cresceu em um ambiente familiar católico. Se, em
um primeiro momento, o catolicismo da paróquia se distanciava do catolicismo
do Opus Dei, aquela formação lhe atribuiu modelos de comportamento na
Igreja, na vida familiar, nas devoções e na prática dos sacramentos. A narrativa
de Brolezzi cria um distanciamento entre esses dois tipos de catolicismo. Em-
bora não descreva sua experiência na paróquia de Santo André em seu livro,
é possível perceber a construção de um estranhamento mediante as práticas
do Opus Dei, mas o conjunto de valores, tais como Deus, Jesus, santos, etc.,
fazia sentido desde o início. Sua experiência no Opus Dei atribuiu-lhe outros
modelos de comportamento, mas que faziam sentido por conta de elementos
comuns. O cotidiano minuciosamente controlado pelos diretores, as mortifi-
cações corporais, a sistematicidade da oração, as normas de piedade ordenadas
em uma cadência muito precisa, a vida em família no Opus Dei, etc., foram
práticas que configuraram outra experiência. Essa experiência é que dá suporte
à sua denúncia por ser manipulada pelos diretores em relações hierárquicas
unilaterais de poder, segundo a narrativa de Brolezzi.
A ênfase da denúncia é explícita: os diretores espirituais. Na passagem em que
relata sua experiência no Centro de Estudos do Sumaré, Brolezzi denuncia
as tentativas do padre Vicente de controlar seus pensamentos e discipliná-los
por meio de práticas específicas, tais como o macacão antimasturbação. Na
passagem em que relata sua conversa com Fernando, trata-se explicitamente
de uma denúncia contra a manipulação de sentimentos e emoções. Percebemos
que Brolezzi considerava essas práticas ilegítimas como forma de emprego do
poder pastoral, práticas que, segundo ele, não são isoladas, mas constitutivas do
Opus Dei, entendidas de forma abstrata. A injustiça se configura, justamente,
pela utilização dessas práticas para atingir um fim escuso: servir ao Opus Dei,
“uma instituição com pretensos fins espirituais” (BROLEZZI, 2006, p. 5).
Interessante observar na narrativa que alguns elementos não aparecem em sua
denúncia, embora estejam diretamente relacionados a ela. Trata-se, portanto,
de estratégias retóricas para aumentar a aceitabilidade ou legitimidade de sua
denúncia. Qualquer autor de uma narrativa preserva, omite, isola e enfatiza
determinados elementos, de acordo com seus interesses particulares e com a
9
O programa completo está disponível na página de Brolezzi no site YouTube: <https://www.youtube.
com/user/tonebrol>. Acesso em: 10 fev. 2014.
A denúncia de Brolezzi
293
teria entrado em contato com representantes do Opus Dei, mas estes não
quiseram comentar o assunto. O programa era composto por três entrevista-
dores, além de uma psicóloga, a apresentadora Luciana Gimenez e Antônio
Carlos Brolezzi. A plateia era unanimemente composta por mulheres. Dos
três entrevistadores, o que mais fez intervenções foi o jornalista da Rede TV e
ativista gay Felipe Campos.
O programa SuperPop, apresentado pela Rede TV desde 1999, possui um
caráter marcadamente polêmico ao abordar temáticas variadas, o que levou
diversos críticos a desqualificá-lo por conta de um sensacionalismo exagerado.
É transmitido por volta das 22 horas e varia do quinto ao primeiro lugar da
audiência nacional. Alcança de 1,5 a 3 pontos de média na Grande São Paulo.
Trata-se de um dos maiores faturamentos da Rede TV. Segundo Palacce (2009),
o público do programa é formado principalmente por mulheres de 25 a 50
anos, compreendidas entre as classes A, B e C.
Segundo Brolezzi, logo no início do programa:
O objetivo de escrever o livro é um objetivo educacional. É para alertar os jovens
e as famílias acerca dessa seita que está tomando conta da Igreja Católica. Apesar
de seu número ser pequeno, são pessoas muito influentes, muito poderosas, que
detêm muito poder econômico, que fazem uma perversão muito grande na vida
das pessoas e que querem fazer da Igreja Católica o seu escudo.
Frisa-se a palavra “seita” na fala de Brolezzi, pronúncia que ele faz questão de
enfatizar, pois demonstra uma mudança de foco em sua denúncia. Em seu livro,
ele usa o termo “seita” em tom acusatório somente uma vez, na introdução.
Tão destacada era a ênfase oral dada a essa palavra, que um dos entrevistado-
res (eram cinco) questionou Brolezzi sobre isso. O autor apresentou, então,
um entendimento de seita como um grupo ou instituição separado da Igreja
Católica: “Eles dizem que não são seita porque são reconhecidos pela Igreja
Católica.” Em seguida, a psicóloga, que era uma das entrevistadoras, emendou:
“Seita, por definição, é tudo aquilo que divide, que rompe, que separa...”
Brolezzi concluiu: “Por isso que eles dizem que não são seita, porque eles per-
tencem à Igreja Católica. Mas eles são assim: o Opus Dei manda um relatório
para o Vaticano a cada cinco anos dizendo o que eles fazem.” Informou, ainda,
que o Opus Dei pagaria 30% das contas do Vaticano (dado trazido por outro
entrevistador e com o qual Brolezzi concordou) e por isso ganha aprovação.
Durante o programa, Brolezzi ressalta várias vezes que é católico e conclui:
“Acredito que a Igreja vai melhorar, como tem melhorado ao longo dos sé-
A denúncia de Brolezzi
295
e sobre as formas de manipulação da sexualidade pelo Opus Dei, o jornalista
Felipe Campos enfatizou ter encontrado dados de que o Opus Dei seria res-
ponsável pelo pagamento de 30% das contas do Vaticano. O outro entrevistador
recorreu ao discurso psicanalítico e falou sobre as sequelas provenientes da
repressão sexual, além de explicar que essa repressão “é a cultura deles [do
Opus Dei]”. A outra entrevistadora não fez nenhuma intervenção relevante.
A psicóloga também proferiu falas que recorriam ao discurso psicanalítico
e psiquiátrico. Luciana Gimenez, por sua vez, conduziu o programa sempre
tocando em pontos polêmicos, tais como a mortificação corporal – o cilício
e as disciplinas10 foram mostrados no programa – e a história do macacão
antimasturbação.
O programa era entrecortado por vídeos de Brolezzi falando sobre a sua ex-
periência e, algumas vezes, por falas de Jacob Goldberg, um psicanalista que
também falou sobre a repressão sexual e a manipulação da sexualidade. Em um
desses vídeos, Brolezzi retorna ao Centro Cultural Itaim com um microfone de
lapela, a pedido da produção do SuperPop. A imagem mostra Brolezzi entrando
na residência e, após sentir-se mal durante a espera para ser recebido, recebeu
a mensagem de que não poderia visitar a residência. Segundo ele, o diretor
teria lhe dito que estaria difamando o Opus Dei. Luciana Gimenez comenta,
mais de uma vez, que pessoas do Opus Dei foram procuradas pelo programa,
mas não quiseram se posicionar.
No programa, Brolezzi demonstra uma fala mais agressiva do que no livro. Se
em Memórias sexuais no Opus Dei, ele se constrói como vítima, no SuperPop
assume a postura do denunciante que ataca. Na prática, nos dois casos essas
posições se mesclam, pois Brolezzi assume o papel de vítima e de denunciante
da injustiça. Na verdade, em cada caso específico e em função dos interlo-
cutores, uma posição é mais enfatizada que a outra. No programa, Brolezzi
acusa o Opus Dei de antiético, racista, preconceituoso, dentre outras coisas.
Diferentemente, no livro, ele enfatiza sua experiência no Opus Dei, embora
alguns juízos semelhantes apareçam muito timidamente. Em uma passagem
emblemática durante o SuperPop, Brolezzi diz ter conhecido somente um negro
durante os dez anos em que permaneceu no Opus Dei – diz que os critérios
de seleção da instituição são étnico-raciais. Complementou dizendo que essa
10
O uso do cilício e das disciplinas faz parte do conjunto de mortificações corporais regulares de-
sempenhadas pelos membros numerários do Opus Dei. O cilício é uma espécie de corrente com
pontas de ferro usada em torno da coxa duas horas por dia. As disciplinas são um chicote de cordas
com que açoitam as nádegas uma vez por semana enquanto rezam uma oração.
A revista Época
Em janeiro de 2006, logo após a publicação de O Código Da Vinci e no ano
em que seria lançado o filme homônimo, a Época – uma das revistas de maior
circulação nacional – lançou uma reportagem de capa intitulada “Por dentro
do Opus Dei – os segredos da organização mais poderosa e influente dentro
da Igreja Católica”. A reportagem foi assinada pelas jornalistas Eliane Brum e
Debora Rubin. Uma pequena matéria sobre a relação do governador do estado
de São Paulo, Geraldo Alckmin, com o Opus Dei foi assinada por Eliane Brum
e Ricardo Mendonça. A ênfase da matéria estava no fato de que ex-membros
do Opus Dei de perfil brasileiro estariam aproveitando o lançamento de
O Código Da Vinci para travar “uma guerra contra a poderosa prelazia do
papa” (ÉPOCA, 2006, p. 62). A reportagem reúne depoimentos de alguns
ex-membros e de dois numerários. Brolezzi foi um dos ex-numerários mais
explorados pela reportagem.
A denúncia de Brolezzi
297
masturbação que Brolezzi teria sido obrigado a usar e qualifica seu livro, que
ainda não havia sido lançado, como “o próximo míssil editorial lançado contra a
conservadora organização católica” (ÉPOCA, 2006, p. 63). O livro de Brolezzi
é situado entre as publicações de denúncias contra o Opus Dei que surgiram
no Brasil desde outubro de 2005. A primeira entrevista exposta na matéria é
a de Brolezzi, seguida pela de Elizabeth Silberstein, que alega ter tido o filho
“roubado” pela prelazia; de Augusto Silberstein, o numerário filho de Eliza-
beth Silberstein; de Thelma Pavesi, uma ex-numerária; de Renato da Silva,
um ex-numerário que teria tido seu e-mail violado por um de seus diretores;
de Carlos Alberto DiFranco, jornalista e numerário que seria responsável por
ministrar aulas de formação espiritual para Geraldo Alckmin; e, por fim, de
Maria Lúcia Alckmin, uma numerária.
Apesar de o entendimento do Opus Dei construído pela reportagem situar-se
na chave do secretismo, da repressão e do poder, a entrevista com Brolezzi é
voltada para a questão da sexualidade. A chamada da entrevista é a seguinte:
“Ex-numerário escreve um livro com dicas para quem abandona a Obra e quer
reabilitar o desejo” (ÉPOCA, 2006, p. 64) – informação que foi desmentida
pelo próprio Brolezzi na entrevista que realizamos. O autor afirmou que esse,
definitivamente, não era o objetivo do seu livro. Na entrevista, Brolezzi começa
contando como entrou para o Opus Dei. Em seguida, disse achar “muito inte-
ressante olhar para o Opus Dei sob o ponto de vista da sexualidade” (ÉPOCA,
2006, p. 65) e narra algumas passagens amplamente desenvolvidas no livro.
Apesar de a ênfase da entrevista ser conduzida à sexualidade, Brolezzi ainda man-
tém o caráter de denúncia aos diretores. Sua narrativa coloca-o como vítima de
agentes mais fortes. É emblemática a passagem em que o autor diz: “Foi chocante
para mim quando decidiram que eu não podia mais beijar no rosto de colega
de faculdade” (ÉPOCA, 2006, p. 65). Logo na sequência, narra um episódio,
também contado no livro, em que Nacho, seu diretor espiritual no Centro do
Itaim, gritava após Brolezzi ter visto uma capa de revista com uma mulher nua
na banca. Segundo Brolezzi, seu diretor queria que ele visse sujeira nas coisas se-
xuais. Nas falas subsequentes, Brolezzi relata suas primeiras experiências sexuais
após sair do Opus Dei, seus complexos, a história do macacão antimasturbação
e por que decidiu escrever o livro. Sobre esse último tema, Brolezzi (ÉPOCA,
2006, p. 65) relata tê-lo escrito pois queria falar com naturalidade sobre sua
experiência no Opus Dei, “porque foi problemático fazer essa desprogramação”.
Durante toda a entrevista, Brolezzi faz uso de sujeitos na terceira pessoa do
plural: “decidiram, disseram, falavam, eles...” Produz-se, dessa forma, uma
A resposta do denunciado
Apesar de Memórias sexuais no Opus Dei ter ganhado visibilidade considerá-
vel na imprensa – além dos meios de comunicação citados, ganhou notícias de
menor destaque em sites como abril.com e Folha de S.Paulo on-line, dentre
outros –, a prelazia não publicou uma nota sequer em sua defesa, tampouco
se dirigiu a Brolezzi diretamente. Quando procurado pela revista Época, João
Gustavo Racca, do escritório de informação do Opus Dei no Brasil, afirmou
que o Opus Dei já havia passado pela experiência de ser criticado por ex-
-membros em outros países. Diz: “Ainda que a imensa maioria dos que se
aproximam das atividades apostólicas e formativas do Opus Dei conserve
sempre um enorme carinho e agradecimento, não é de estranhar que ocorram
algumas exceções” (ÉPOCA, 2006, p. 67). Quando procurados pela produ-
ção do SuperPop, os representantes da prelazia recusaram-se a participar do
programa ou se posicionar.
Josemaria Escrivá sempre deu diretrizes claras de como os membros do Opus
Dei deveriam se portar nos negócios, na educação e na imprensa – essas
diretrizes sempre são evocadas pelos atores para justificar práticas diversas.
Graças a isso, membros – numerários e supernumerários – fundaram escolas
de negócios, colégios e cursos de formação de jornalistas (muitos não vincu-
lados diretamente ao Opus Dei, fruto de iniciativas privadas). Com relação
à imprensa, sempre defendeu que esta deveria ter caráter apostólico, dado
seu grande potencial de influência – é o chamado “apostolado da opinião
pública”. Para ele, a imprensa deveria ser um instrumento que veiculasse
a verdade. No caso de Brolezzi e dos ex-numerários, seus depoimentos e
ataques seriam manifestações de desvirtuamento da função apostólica da
imprensa, transmitindo inverdades sobre o Opus Dei. Por que, então, não
usar a imprensa para desmenti-los? Uma resposta possível seria para dissipar
a controvérsia, em vez de dar mais visibilidade a ela por meio de debates. Se
A denúncia de Brolezzi
299
a força. De uma forma ou de outra, a publicidade do caso de Brolezzi perdeu
força após 2006. Segmentos da imprensa que parecem ter pegado carona com
a publicação de O Código Da Vinci deixaram o assunto de lado em pouco
tempo. Alguns anos depois, o site contendo denúncias de ex-membros man-
tido no Brasil também desapareceu. Brolezzi conta que, ainda hoje, continua
oferecendo palestras sobre sua experiência. Mas, de fato, sua presença na
imprensa se apagou.
Conclusões
No processo que envolve a denúncia de Brolezzi, o Opus Dei configura-se
como uma categoria que se torna objeto de disputa. Os atores nomeados
acima tentam, de uma forma ou de outra, criar concepções acerca do que é
o Opus Dei. A concepção produzida por Brolezzi em seu livro – o estopim
da denúncia – e recriada nas entrevistas envolve a formulação do Opus Dei
como uma categoria generalizada. Dito de outra forma: sua denúncia não
ataca somente seus diretores, mas “eles”, “o Opus Dei”. Utiliza esse processo
de generalização e abstração como forma de dar legitimidade à sua denúncia.
Brolezzi utiliza mecanismos que acionam sensos de justiça comuns ao público
que visa atingir, tais como: a sexualidade como saudável, o sofrimento e a
autoflagelação como práticas condenáveis e medievais, o secretismo como
forma de conspiração, etc.
A controvérsia instaurada tem uma característica específica: a denúncia de
injustiças contra um agente que não julga necessário se defender publicamente.
Apesar de o autor nomear seus diretores – representantes institucionais – e
atacá-los diretamente, mesmo esses atores não vêm a público. Desse modo,
por meio da narrativa de Brolezzi, essa denúncia vai ganhando um desenvolvi-
mento particular, no qual vão se produzindo entendimentos públicos diversos
do que seria o Opus Dei. Como procuramos demonstrar, Brolezzi inicia sua
denúncia construindo-se como vítima de diretores que, abusando de seu poder
espiritual consolidado por relações afetivas, levaram-no a perpetrar práticas
violentas e humilhantes com base em fins escusos. Brolezzi, em todas as suas
entrevistas, não deixou de lado esse caráter de sua narrativa – a denúncia aos
diretores, entendidos como representantes institucionais. O fato de a narrativa
do macacão antimasturbação sempre ser mencionada atesta isso. No entanto,
quando outros atores são envolvidos, como no SuperPop e na revista Época,
entendimentos diversos começam a ser produzidos, distanciando-se daquele
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1
Em seu livro O fim da religião: controvérsia acerca das “seitas” e da “liberdade religiosa” no Brasil
e na França, Emerson Giumbelli (2002) toma como objeto as controvérsias religiosas suscitadas
pelo surgimento da Igreja Universal do Reino de Deus no Brasil nos anos 1980. Seu objetivo, no
entanto, diferentemente do que estamos propondo neste trabalho, é comparar como Brasil e
França definem e regulam o religioso tomando como referência a ação estatal no que diz respeito
à “liberdade religiosa”.
A cena
Já é bastante consensual entre os observadores da cena pública contemporânea
caracterizar o movimento de expansão do neopentecostalismo pelo modo da
competição e controvérsia. Essa forma, no entanto, começou a tornar-se visível
muito recentemente. Em levantamento realizado na mídia impressa brasileira3,
pode-se perceber que até o final da década de 1990, jornais e revistas ainda
parecem estar aprendendo o que seria o neopentecostalismo e suas diferenças
com relação ao pentecostalismo e às outras denominações.
2
Segundo Foucault, toda forma de poder (pastoral ou estatal) produz certo número de “contracondu-
tas” que se opõem e têm por objeto os próprios elementos que dão sustentação a cada configuração
particular de governamentalidade (no caso do pastorado, ascetismos, revoltas, a escritura, etc.; no
caso da razão estatal, a oposição da sociedade civil, da população, da nação ao Estado).
3
Agradecemos a colaboração de Rafael Quintanilla e Henrique Antunes no levantamento dos dados
que dão apoio ao texto aqui apresentado.
4
O sociólogo e pastor presbiteriano Antonio Gouveia de Mendonça define “seita” em contraposição
à “Igreja” como um “empreendimento local, dependente de uma liderança individual, sem estabili-
dade e doutrina definida, sem corpo fixo de fiéis e voltada para a solução de necessidades práticas
imediatas como saúde e emprego” (1990).
5
No caso brasileiro, a Conferência Nacional dos Bispos começa a preocupar-se com o tema em 1982,
quando realiza o primeiro levantamento sobre as “seitas” no Brasil. Desde então, o tema volta a apa-
recer nas Assembleias de 1990 e em seminários sobre o pluralismo em 1991, 1992 e 1994. Também
no campo protestante surgem novas instituições preocupadas com o tema, tais como a Associação
dos Apologistas Cristãos, de 1985, o Instituto Cristão de Pesquisa, trazido para o Brasil pelo pastor
Giréton de Alencar em 1983, e o Centro Apologético Cristão de Pesquisa, fundado em 1982.
6
Além desse livro, também coletamos casos publicados na internet e fizemos algumas entrevistas.
É preciso, no entanto, assinalar que as narrativas pessoais de crítica a Igrejas e/ou pastores não se
apresentam como “abuso”. Foi preciso que um campo de conhecimento e de práticas institucionais
começasse a se constituir, como é o caso do pastor Ed Kivitz e do projeto Timóteo, de que falaremos
adiante, para que as narrativas pudessem ser lidas a partir desse critério e que respostas organizadas
segundo esse “diagnóstico” fizessem sentido.
7
A psicanalista Caroline Eliacheff e o advogado Daniel Soulez Larivière escreveram um trabalho
interessante e provocador sobre a generalização dos processos de vitimização nos anos 1980 que se
alimentam do ideal igualitário e do individualismo democrático. Segundo os autores, nos primeiros
anos do século XXI uma grande mudança jurídica afetou as relações de trabalho: o surgimento de
ações por discriminação, assédio moral e sexual. Desde os anos 1990 as cortes de Justiça europeias
vinham estimulando as ações de assalariados que se julgassem discriminados por razões sexuais,
políticas ou religiosas. Esse estímulo implicou a mudança da responsabilidade da prova. Se antes
eram os demandantes que deviam trazer as provas, nesse novo sistema cabe ao empregador provar
a ausência de discriminação (2007, p. 139). No caso brasileiro, o tema é bastante recente. Uma
dissertação de mestrado foi defendida em Campo Grande sobre “Assédio moral no serviço público”
por Inácio Vacchiao. A ministra e vice-presidente do Tribunal Superior de Justiça, Maria Cristina
Pedezzi, observa o crescimento geométrico de casos desse tipo chegando às barras dos tribunais.
Vários projetos de lei já tramitam na Câmara sobre esse tema.
8
Disponível em: <http://www.santovivo.net/gpage226.aspx>. Acesso em: 11 nov. 2012.
9
O autor cita aqui o livro do pastor Paulo Romeiro, da Igreja Cristã da Trindade, Decepcionados
com a Graça: esperanças e frustrações no Brasil neopentecostal, resultante de sua dissertação no
12
Diferentemente do caso brasileiro, as controvérsias e o modo como foram combatidas as novas reli-
giões cristãs e não cristãs marcaram profundamente a maneira reticente e denominacionalista como
a sociedade americana formulou sua ideia de pluralismo religioso. A emergência e a consolidação
dessa figura “abuso espiritual” no contexto do protestantismo americano tem como pano de fundo
uma convicção tanto teórica quanto ideológica de que o indivíduo tem direito a uma escolha livre de
sua opção religiosa em um mercado competitivo de diferentes denominações. Segundo José Casa-
nova (2007, p. 10), na peculiar estrutura do pluralismo religioso americano codificado pela Primeira
Emenda, todas as religiões, Igrejas, seitas, independentemente de suas origens, demandas doutrinárias
ou identidades eclesiais se converteram em “denominações”, formalmente iguais e em competição.
13
Em um rápido levantamento das disputas nesse campo publicadas na internet no ano de 2013 ano-
tamos o pastor presbiteriano Caio Fábio criticando os escândalos financeiros de Igrejas evangélicas
e acusando-as de não assistir os pobres, mas de servir a seus próprios interesses escusos. Caio Fábio
também critica o pastor Silas Malafaia, da Assembleia de Deus, por violar o estatuto da psicologia
ao promover a “cura gay”, e o pastor Marcos Pereira, da Igreja Assembleia de Deus dos Últimos
Dias, pela farsa de conversão de presidiários em Bangu. Em matérias mais doutrinárias, o pastor
Silas Malafaia critica Edir Macedo, da IURD, pela prática do rito extático de “cair pelo poder de
Deus”, que seria coisa do diabo. O pastor batista Zé Bruno critica a falta de mensagens espirituais
nas músicas veiculadas pelo movimento gospel da Igreja Renascer em Cristo, enquanto o pastor
Mario Botelho critica a “cultura idólatra” desse mercado musical.
14
Segundo o Censo do IBGE de 2010, a categoria dos “sem Igreja” – aqueles que se identificam como
evangélicos sem aderir a nenhuma denominação particular – é aquela que mais cresceu na última
década em São Paulo, chegando a representar a terceira maior corrente na cidade, atrás apenas dos
católicos e dos sem religião.
15
Ver também Ricardo Mariano, Novos Estudos – CEBRAP, n. 44, 1996.
Nas polêmicas suscitadas pela emergência e pela expansão das práticas neo-
pentecostais, muitas lideranças evangélicas de outras denominações desqua-
lificaram essas proposições teológicas como “mágicas” e, portanto, falsas. O
conceito de magia é aqui acionado como uma categoria de acusação: fazendo
eco à vasta literatura teológico-antropológica que desde o final do século XIX
se ocupa em distinguir magia de religião, muitos pastores e líderes consideram
uma “falsa crença” ensinar que se pode “obrigar” Deus a mudar as coisas neste
mundo. Esse trecho do depoimento citado acima, ao narrar em terceira pessoa
Vemos, pois, que aquilo que se transforma pela “declaração” ou pelo “decreto”
não é o mundo material propriamente, mas sim a nossa circunstância nele.
Parece-nos que está em pauta aqui uma interessante reconfiguração do dis-
curso dos agentes religiosos que se move entre uma interpretação de fundo
representacionista16 condensada na categoria “crença” para outra de fundo
linguístico que se expressa na categoria “decreto”.
Em trabalho anterior, procurei examinar as limitações, para a compreensão
dos fenômenos religiosos contemporâneos, da noção antropológica clássica de
crença (MONTERO, 2014). Desde Durkheim subjaz ao conceito de “crença” a
ideia de um erro de cognição, uma inadequação entre as imagens do real e o real
tal como ele é verdadeiramente. Essa concepção tornou-se um lugar-comum
quando se fala de “magia”: seja como uma forma primitiva de pensamento ou
16
Representacionismo: doutrina filosófica de inspiração cartesiana que supõe que as ideias corres-
pondem à realidade e a representam.
17
Confissão positiva é definida por autores críticos do neopentecostalismo, como o pastor da Igreja
assembleiana Cristã da Trindade Paulo Romeiro, como a capacidade de trazer à existência o que
declaramos com nossa boca. O autor, doutor em ciências da religião pela Universidade Mackenzie,
critica os teólogos Kenneth Hagin e Valnice Milhomens, propagadores dessa teologia no Brasil.
Ver Supercrentes: o Evangelho segundo Kenneth Hagin, Valnice Milhomens e os Protestantes da
Prosperidade, Editora Mundo Cristão, 1993.
[...] O convívio era fraternal e íntimo. As pessoas contavam seus problemas mais
difíceis e oravam umas pelas outras. Havia muitas libertações de alma. As pessoas
eram amigas e os pastores transmitiam confiança. Eles viviam o que pregavam. [...]
[...] Os ensinamentos do pastor faziam a gente acreditar que podia sair da depressão
e da tristeza e ter uma vida firme e alegre, em Jesus. [...]
[...] Como lidar com a adversidade sem conhecer o que a Bíblia diz sobre aquele
assunto específico? [...]
[...] É muito importante para o cristão conhecer essa opinião dessas pessoas “es-
peciais” que, ao menos em teoria, conhecem a Bíblia melhor do que ele, são mais
consagradas espiritualmente do que ele. É fundamental descobrir o que o pastor
pensa e o que a Bíblia fala sobre o problema, já que para o cristão ela é a palavra
inspirada pelo próprio Deus. É o manual do fabricante. [...]
[...] Durante muitos anos reverenciei meus pastores como pessoas especiais, que
traziam recados proféticos, parecendo ter acesso a algum canto exclusivo da presen-
ça de Deus só reservado para eles. Desenvolvi uma confiança profunda naquelas
pregações, e elas me proporcionaram experiências espirituais de crescimento. [...]
[...] Apesar de enxergar os abusos, Adriano viveu praticamente todo esse período –
cerca de dez anos – acreditando que o pastor fosse merecedor de todas aquelas bênçãos.
Afinal, ele levava muitas pessoas aos pés de Jesus. Muitos se convertiam com suas
pregações emotivas e carismáticas. O crescimento da Igreja era uma das provas. As
coisas aparentemente iam bem na casa do senhor (CÉSAR, 2009, grifos nossos).
18
“Assim se espalharam, por não haver pastor, e se tornaram pasto para todas as feras do campo.
As minhas ovelhas andam desgarradas por todos os montes e por todo elevado outeiro; as minhas
ovelhas andam espalhadas por toda a terra, sem haver quem as procure ou quem as busque”
(EZEQUIEL, 34).
Fui chamado, aos berros, de feiticeiro, porque estava me colocando contra a vontade
de meu guia espiritual (ALEXANDRE apud CÉSAR, 2009, p. 68).
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Para além das narrativas que iluminam o modo de descrever o mundo e a experiência, seria preciso
também investigar, em um trabalho de maior fôlego, as tecnologias corporais que tornam a palavra
do pastor sedutora – gestos, uso do palco, repetições, tom de voz, etc. – e as novas tecnologias
institucionais, tais como a do crescimento através de células, G 12, divulgada no Brasil pela pastora
Valnice Milhomens, ao trazer para o país em 1999 o criador do movimento, o pastor colombiano
César Castelhanos Dominguez.
Sair dali era abandonar uma arca divina e o castigo viria para todos que deixassem
a cobertura espiritual do projeto (ex-adepta, CÉSAR, 2009:120).
20
Em sua crítica a essa doutrina, o teólogo e jornalista Thomas Magnum considera que ao fazer do
pastor um “guru”, ela enseja uma “absurda forma de intervenção” na vida pessoal do crente. Dis-
ponível em: <www.pulpitocristao.com/2014>.
21
O relato completo está repertoriado no Anexo.
[...] Eu e Edir Macedo saíamos pelo menos duas vezes por semana para procurar
um teatro, um galpão onde desse para abrir uma nova igreja. A gente olhava pri-
meiro a vizinhança. Se tivesse outra Igreja na região, não valia a pena investir. E
olhávamos se o povo era pobre ou de classe média. Se a área fosse pobre, era mais
interessante, a Igreja cresce mais. O bispo Macedo dizia que gente pobre tem todo
tipo de problema. Então, é fácil ter argumento para atrair essas pessoas. Se fosse
um pessoal com mais dinheiro, ele já pensava duas ou três vezes se valia a pena
investir, porque apenas uma minoria frequentaria a igreja. Quando o bairro era de
classe média, o pastor tinha de falar bom inglês e ter cultura, porque colocar um
pastor escandaloso, ignorante, não dava certo. Em Londres, presenciei a criação
de duas Igrejas. Uma foi em Brixton e a outra em Peckham. Os cultos eram em
inglês, 2% ou 3% dos fiéis da Igreja eram brasileiros, 2% ou 3% eram britânicos,
e o restante eram africanos e jamaicanos. Havia uma preferência por colocar um
pastor negro, para que os fiéis se identificassem mais.
[...] Ele disse que não me deixaria em Portugal porque ele precisava de um pastor
com bom inglês nos Estados Unidos. No dia 13 de maio de 1999, eu cheguei a
Nova York. Eu passei a tocar piano na igreja principal, no Brooklyn. Depois de uns
15 dias, o bispo Macedo chegou a Nova York e me disse que eu não deveria ficar
só tocando, passaria a pregar. Foi a primeira vez em que fui responsável por uma
igreja, a igreja de Utica, no Brooklyn. E, como eu era um pastor registrado pela
Universal, passei a ter um salário. Ganhava US$ 600 brutos por mês. Era pouco,
mas não tinha despesa com água, luz, aluguel porque eu morava na igreja. [...] Em
Utica, em dois meses, a igreja encheu. Cabiam 70 pessoas. O bispo Macedo achou
que tinha valido a pena investir em mim.
[...] Quanto mais eu ganhava para a Igreja, mais privilégios eu tinha. O meu pior
carro foi um Toyota Corolla, era o primeiro carro de todo pastor. Do Corolla, passei
para um Ford Focus, zero quilômetro. Do Focus, tive um Honda Civic, do ano.
Do Civic, fui para um Honda Accord. Nos Estados Unidos, morei em três casas
diferentes. Conforme cumpria a meta, as casas aumentavam de tamanho, melho-
[…] Logo depois que eu casei, o bispo Macedo me obrigou a fazer vasectomia. Ele
justificava dizendo que um filho traria despesas e dificuldades para que eu fizesse a
obra de Deus, já que com filho era mais difícil mudar de país. Ele dizia que a saída
era, quando eu me tornasse um bispo, adotar, seguir o exemplo dele, dos genros
dele, Renato Cardoso e Júlio Freitas. Os três primeiros médicos que procurei se
recusaram a me operar. Eu tinha 21 anos e nenhum filho. O quarto topou, mas me
disse que não recomendava. Fiz uma vasectomia irreversível. Enquanto eu estava
nos Estados Unidos, dos 26 pastores que trabalhavam em Nova York, sete também
fizeram. Se você não faz a vasectomia, perde a chance de crescer e chegar a bispo,
vai ser só mais um pastor que fica 15 anos na mesma igreja e não sai do lugar.
[...] Eu sofri por ter entrado na Igreja muito jovem, abandonei a família, não termi-
nei os estudos. Eu não tinha amigos que não fossem pastores ou bispos, não sabia
o que era lutar por um emprego, não sabia quanto era um aluguel. Perdi tudo. Eu
sempre me lembro da frase que o bispo Macedo costumava me falar: “Se você sair
da Igreja um dia, todos esses demônios que você expulsou nestes anos vão voltar
para sua vida.”
Gustavo Rocha fez parte da Igreja por oito anos, cinco deles como pastor
(18/09/2009).
Considerações finais
Em suas considerações críticas com respeito ao pentecostalismo, o pastor ba-
tista Paulo Romeiro pondera que “em termos de governo o neopentecostalismo
verticalizou a Igreja. O líder forte no topo da pirâmide, que não presta contas
a ninguém, que toma decisões sozinho em questões financeiras e doutrinárias,
acaba tirando das pessoas a oportunidade de funcionarem como um corpo.
Em tais circunstâncias os abusos se multiplicam. Alguns líderes religiosos têm
dificuldade de administrar o poder” (2005, p. 232). Embora não coloquem
em questão o modelo do poder pastoral, as Igrejas protestantes históricas
consideram que, com seus conselhos e assembleias, suas instituições são mais
democráticas e menos tentadas ao abuso.
Os relatos reunidos acima apontam para a adesão, por parte das lideranças de
algumas Igrejas, a uma forma de pastorado que, paradoxalmente, em nome do
aprendizado da autonomia e do risco, instaura um tipo de submissão individual
exaustiva, total e permanente bastante diferente da relação de obediência
instituída pela lei ou pela política. Os benefícios monetários e imagéticos
auferidos, em contrapartida, parecem ser extremamente compensadores. No
entanto, a coetânea expansão das denúncias de “abuso espiritual” que acom-
panha o crescimento desse tipo de organização parece indicar que, se a ordem
legal ao encapsular essas práticas no campo religioso as exime de escrutínio,
as controvérsias teológico-doutrinárias, ao contrário, contribuem para impor
certos limites ao desenvolvimento dessa forma de governo de pessoas. Embo-
ra legalmente reconhecidas como religiões, as contínuas denúncias públicas
de alguns pastores contra essas Igrejas, as acusações de “falsos profetas” e
impostura, o acúmulo de literatura acadêmica e produções mediáticas que
progressivamente empurram essas práticas para fora do campo religioso, e a
criação de associações de acolhimento das vítimas, obrigam pastores acusados
a justificar-se, a prestar contas e a tornar mais transparentes e ajustadas as suas
práticas. O pastor presbiteriano Ricardo Agreste, responsável pelo projeto
Timóteo, voltado para a reflexão das práticas pastorais, formula a tensão na
luta pela legitimidade nesse campo do seguinte modo: nessa “demanda por
destacar-se”, as lideranças pentecostais escolhem o formato carismático (“Deus
fala por meio de mim”), as igrejas históricas, a conquista de poder institucional
(ser presidente do presbitério, do sínodo) ou a legitimação social por meio
Referências bibliográficas
BOLTANSKI, Luc. Nécessité et justification. Revue Économique, v. 53, n. 2, p. 275-289, 2002.
BROMLEY, David; SHUPE, Anson. Anticults mouvements in the cross-cultural perspective. New York:
Garland Publishers, 1994.
CAMPOS, Leonildo Silveira. A Igreja Universal do Reino de Deus e seus modos de expansão. Luso-
topie, 1999, p. 27-40.
________. Teatro, templo e mercado. Petrópolis: Vozes, 1997.
CASANOVA, José. Reconsideración de la secularización: una perspectiva comparada mundial. Revista
Academica de Relaciones Internacionales, UAM-AEDRI, v. 7, 2007.1-20.
Citações bíblicas
BÍBLIA on-line ACF. Disponível em: <http://bíblia.golpelprime.com.br>.
Outros documentos
Bispo MACEDO. Os mistérios da Fé. Rio de Janeiro: Universal, 1999.
BOFF, Clodovis. Comunidade Eclesial, comunidade política. Petrópolis: Vozes, 1978.
BOFF, Leonardo. A Trindade e a sociedade. Petrópolis: Vozes, 1987.
BROWN, Robert; BROWN, Rosemary. They lie in wait to deceive: a study in anti-mormon deception.
Mesa, AZ: Brownsworth Publishing Co. Inc., 1984 [1986]. v. 2 e 3.
Anexo
Eu nasci no Rio de Janeiro, mas quando tinha 12 anos fui morar com uma tia em
Londres. Uma tarde eu estava passeando com minha tia pelas ruas de Finsbury
Park e vi um teatro. Resolvemos entrar. Na porta estava escrito apenas Teatro
Arco-Íris. Aí eu vi um piano e, como sempre tive paixão pela música, pedi para
tocar um pouco. Quem veio até mim foi o Edir Macedo. Ele me pediu para que
eu tocasse “Yesterday”, dos Beatles. Ele elogiou e me perguntou: “Você sabe tocar
música gospel?” Eu respondi que não, mas consegui acompanhar no piano quando
ele colocou umas músicas gospel para tocar no rádio. Ele disse que precisavam de
um tecladista e eu, que tinha 16 anos, aceitei tocar todos os domingos em troca
de algo em torno de R$ 50. Depois de uns quatro meses, minha tia procurou Edir
Macedo para dizer que eu voltaria ao Brasil. Daí Edir veio com uma proposta:
“Não, a gente vai ajudá-lo. Se você permitir, nós queremos investir nele. A Igreja
se propõe a pagar uma escola para ele aqui na Inglaterra.” A Igreja pagou para mim
por dois anos uma escola de idiomas, a London Capital College. Eu passei a morar
na igreja e não tinha salário.
[...]
Quando fui morar na igreja, eu dividia um quarto com outros obreiros. Passei a tocar
todos os dias, fazia a limpeza do templo, a evangelização, distribuía jornal da igreja
de porta em porta. Eu não tinha dinheiro para ligar para minha família no Brasil,
nem no Natal. Fiquei praticamente confinado. Minha tia deixou de me visitar, achou
que eu estava fanático. Eles fizeram comigo um processo de preparação para ser
um futuro pastor. Quando chegava alguém à igreja para pedir um conselho, o bispo
Macedo me chamava: “Senta aqui do meu lado para você conhecer os problemas
do povo e aprender a orientar as pessoas.” Foram dois anos sentado ao lado dele.
Quando o fiel ia embora, ele perguntava: “Entendeu? Essa moça está com problema
financeiro e está tão fragilizada que, se você disser ‘Faça isso!’, ela vai fazer. Você
tem de despertar essa fé que está nela para que ela venha e traga uma oferta para
[...] Eu e Edir Macedo saíamos pelo menos duas vezes por semana para procurar
um teatro, um galpão onde desse para abrir uma nova igreja. A gente olhava pri-
meiro a vizinhança. Se tivesse outra Igreja na região, não valia a pena investir. E
olhávamos se o povo era pobre ou de classe média. Se a área fosse pobre, era mais
interessante, a Igreja cresce mais. O bispo Macedo dizia que gente pobre tem todo
tipo de problema. Então, é fácil ter argumento para atrair essas pessoas. Se fosse
um pessoal com mais dinheiro, ele já pensava duas ou três vezes se valia a pena
investir, porque apenas uma minoria frequentaria a igreja. Quando o bairro era de
classe média, o pastor tinha de falar bom inglês e ter cultura, porque colocar um
pastor escandaloso, ignorante, não dava certo. Em Londres, presenciei a criação
de duas Igrejas. Uma foi em Brixton e a outra em Peckham. Os cultos eram em
inglês, 2% ou 3% dos fiéis da Igreja eram brasileiros, 2% ou 3% eram britânicos,
e o restante eram africanos e jamaicanos. Havia uma preferência por colocar um
pastor negro, para que os fiéis se identificassem mais.
[…]
[…]
As minhas metas sempre eram alcançadas. Edir me dizia: “Agora a meta é US$ 4
mil”, eu fazia 4 mil. “Agora é US$ 5 mil”, eu fazia US$ 5 mil. E, a cada mês que
eu alcançava minha meta, eu ganhava mais crédito, até o ponto de o bispo Macedo
falar: “Você não é pastor para essa Igreja, você é pastor para uma Igreja melhor.
Vou te colocar numa igreja maior, onde a meta já não é US$ 5 mil, a meta é US$
30 mil.” Fiquei seis meses em Utica e fui para a igreja de Bedford. Vinham umas
400 pessoas, e a meta mensal era de US$ 25 mil. Alcancei todas as metas outra
vez. Peguei a igreja com US$ 25 mil e deixei com quase US$ 40 mil de doações
mensais. Aprendi a extorquir o povo, tenho até vergonha de falar. Uma vez coloquei
uma piscina de plástico no altar por 15 dias, cheia de água. Disse que aquela era
uma água do rio Jordão, onde Jesus foi batizado. Eu dizia que as pessoas iam ser
batizadas na mesma água que Jesus, desde que dessem uma oferta. E era água de
torneira. Uma vez consegui fazer os fiéis doarem três carros. Eles iam embora e me
deixavam as chaves e o documento. A Igreja vendia para fazer dinheiro. Entre os
pastores, a conversa sempre era: “E aí, já pegou o mês?” “Pegar o mês” significava
[…]
Quanto mais eu ganhava para a Igreja, mais privilégios eu tinha. O meu pior carro
foi um Toyota Corolla, era o primeiro carro de todo pastor. Do Corolla, passei
para um Ford Focus, zero quilômetro. Do Focus, tive um Honda Civic, do ano.
Do Civic, fui para um Honda Accord. Nos Estados Unidos, morei em três casas
diferentes. Conforme cumpria a meta, as casas aumentavam de tamanho, melho-
ravam de localização. O bispo Macedo pegava o relatório do mês, via a progressão
de rendimentos e te perguntava: “Você está morando onde? E vai para a igreja com
que carro? Faz o seguinte: fala com o bispo responsável para ele te mudar para tal
casa.” Ele olhava em uma relação de pastores os bens que cada um estava usando e
dizia: “Esse carro aí que você tem, dê para o pastor Álvaro e pega o carro do pastor
Álvaro para você.” Era frequente essa troca de carros e casas entre os pastores.
Como a gente não podia comprar mobília nem bens, só coisas pessoais, roupas, a
mudança era bem rápida. Pastor não pode ter nada em seu nome, todos os carros
que eu tive e casas em que morei estavam no nome da Universal.
[…]
Em 2001, eu tinha 21 anos, era um pastor promissor e ainda era solteiro. Namorava
havia dois anos uma americana que era obreira da Igreja. Houve uma dessas reuniões
de bispos e pastores e o Edir Macedo estava chamando a atenção de todo mundo.
Ele olhou para mim: “Fica de pé. Você está namorando?” Eu disse que sim. “Mas
quem autorizou seu namoro? Está tudo errado. Você vai pegar o meu celular e vai
ligar para sua namorada. Você vai dizer para ela que Deus não quer mais que vocês
fiquem juntos.” Eu fiquei indeciso, mas não teve jeito. Peguei o telefone, liguei
para minha namorada no viva-voz e rompi com ela. Quando desliguei, ele disse
para os pastores: “Estão vendo? A obra de Deus precisa de homens assim. Por você
ter obedecido, vai ser abençoado agora. Você vai para o Brasil e vai conhecer uma
mulher que Deus preparou para você. E você vai casar com ela. Você é um pastor
da minha confiança, mas nela eu confio ainda mais do que em você, porque ela
mora na minha casa, ela é minha empregada doméstica.” Embarquei para o Brasil
no dia seguinte. Só conheci a Jacira no cartório. Dois dias depois, a gente casou
no religioso. O bispo João Batista (ex-deputado federal) fez o casamento e pagou
a lua de mel em Poços de Caldas (Minas Gerais). No dia em que partimos para a
lua de mel, ele disse: “Gasta à vontade, porque quem está pagando isso é o povo.
Não tem limite, fica tranquilo.”
[…]
Logo depois que eu casei, o bispo Macedo me obrigou a fazer vasectomia. Ele jus-
tificava dizendo que um filho traria despesas e dificuldades para que eu fizesse a
obra de Deus, já que com filho era mais difícil mudar de país. Ele dizia que a saída
era, quando eu me tornasse um bispo, adotar, seguir o exemplo dele, dos genros
dele, Renato Cardoso e Júlio Freitas. Os três primeiros médicos que procurei se
recusaram a me operar. Eu tinha 21 anos e nenhum filho. O quarto topou, mas me
disse que não recomendava. Fiz uma vasectomia irreversível. Enquanto eu estava
nos Estados Unidos, dos 26 pastores que trabalhavam em Nova York, sete também
fizeram. Se você não faz a vasectomia, perde a chance de crescer e chegar a bispo,
vai ser só mais um pastor que fica 15 anos na mesma igreja e não sai do lugar.
[...]
Quando cheguei a Nova York com a Jacira, Edir Macedo e a mulher dele, a Ester,
quiseram que ela fosse morar com eles. Eu era casado com ela. Daí eles me disse-
ram: “Faz o seguinte. Pega um quarto aí e mora aqui com a gente.” Passei a morar
no dúplex do Edir Macedo. [...] Quanto se gastava na casa do bispo Macedo era
uma coisa que nem se fazia um cálculo, porque não precisava. Os outros bispos
também viviam muito bem. Como os pastores, eles também tinham um contra-
cheque bem baixo, mas era só fachada, para mostrar em caso de investigação. Mas
o salário que vinha por fora era muito maior. Eu já presenciei durante a contagem
da oferta os bispos dividirem o dinheiro entre si, esse ou aquele bispo tirar US$
10 mil de uma oferta de US$ 50 mil. Eu também ganhava coisa por fora. Quando
trabalhei com alguns bispos e a oferta era muito boa, o próprio bispo dizia para eu
pegar um dinheiro para mim. Quando saí da Igreja, eu tinha uns US$ 15 mil na
conta que eu tinha tirado das doações dos fiéis.
[…]
Uns quatro meses depois de fazer a vasectomia, comecei a ter problemas com a
cirurgia. Descobri que o médico que me operou acabou cortando uma veia que não
deveria ter sido cortada. Tive uma espécie de trombose nos testículos. Tive de usar
Voltei para o Brasil, me separei da Jacira um ano depois. Eu sofri por ter entrado
na Igreja muito jovem, abandonei a família, não terminei os estudos. Eu não tinha
amigos que não fossem pastores ou bispos, não sabia o que era lutar por um emprego,
não sabia quanto era um aluguel. Perdi tudo. Eu sempre me lembro da frase que
o bispo Macedo costumava me falar: “Se você sair da Igreja um dia, todos esses
demônios que você expulsou nestes anos vão voltar para sua vida.”
Gustavo Rocha fez parte da Igreja por oito anos, cinco deles como pastor (ÉPOCA,
18/09/2009).