Sei sulla pagina 1di 344

RELIGIÕES E

CONTROVÉRSIAS PÚBLICAS

Religiões e controvérsias Final.indd 1 18/08/2015 09:59:05


Religiões e controvérsias Final.indd 2 18/08/2015 09:59:43
RELIGIÕES E
CONTROVÉRSIAS PÚBLICAS
Experiências, práticas sociais e discursos

Paula Montero
organizadora

Religiões e controvérsias Final.indd 3 18/08/2015 09:59:43


Coleção Antropologia Hoje

Conselho Editorial José Guilherme Cantor Magnani


(diretor) – NAU/USP
Luiz Henrique de Toledo – UFSCar
Renata Menezes – MN/UFRJ
Ronaldo de Almeida – Unicamp/Cebrap
Luis Felipe Kojima Hirano (Coord.) – FSC/UFG

Editora Terceiro Nome


Direção
Mary Lou Paris
Universidade Estadual de Campinas
Edição e Assessoria de imprensa
Daniel Navarro Sonim Reitor
José Tadeu Jorge
Administração e vendas
Dominique Ruprecht Scaravaglioni Coordenador Geral da Universidade
Douglas Bianchi Alvaro Penteado Crósta

Diagramação e capa
Antonio Kehl
Conselho Editorial
Assistente editorial
Presidente
Henrique Fernandes Antunes
Eduardo Guimarães
Preparação
Elinton Adami Chaim - Esdras Rodrigues Silva
Hebe Ester Lucas
Guita Grin Debert - Julio Cesar Hadler Neto
Revisão Luiz Francisco Dias - Marco Aurélio Cremasco
Fábio Fujita Ricardo Antunes - Sedi Hirano

Nesta edição, respeitou-se o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.


Copyright © Paula Montero 2015
Todos os direitos desta edição reservados à

EDITORA TERCEIRO NOME EDITORA UNICAMP


Rua Cayowaá, 895 Rua Caio Graco Prado, 50 – Campus Unicamp
05018-001 – São Paulo – SP Cep 13083-892 – Campinas – SP – Brasil
fone 55 11 3816 0333 Tel./Fax: (19) 3521-7718 / 7728
www.terceironome.com.br www.editora.unicamp.br vendas@editora.unicamp.br

Religiões e controvérsias Final.indd 4 18/08/2015 09:59:47


Sumário

7 Apresentação
MELVINA ARAÚJO

11 Introdução
PAULA MONTERO

27 Política secular e intolerância religiosa na disputa eleitoral


EDUARDO DULLO

49 Igreja Universal e política: controvérsia em torno do


secularismo
CARLOS GUTIERREZ

75 A controvérsia em torno da liberação das pesquisas com


células-tronco embrionárias no Brasil: justificativas e
moralidades
LÍLIAN SALES

97 Controvérsias sobre a educação de surdos no Plano Nacional


de Educação
CÉSAR AUGUSTO DE ASSIS SILVA

127 “Não cultuais imagens de escultura”: alguns aspectos do


debate público acerca da tipificação jurídica da “intolerância
religiosa” e da “liberdade religiosa”
MILTON BORTOLETO

Religiões e controvérsias Final.indd 5 18/08/2015 09:59:47


163 Políticas públicas, religião e patrimônio cultural: mapeando a
controvérsia pública sobre o uso da ayahuasca no Brasil
HENRIQUE FERNANDES ANTUNES

181 A homossexualidade de um militante cristão: identidades e


práticas como objetos de reflexão política e teológica
ARAMIS LUIS SILVA

207 A hermenêutica dos corpos: notas sobre o pastorado das


mulheres na Igreja Universal
JACQUELINE MORAES TEIXEIRA

231 Vasos rebeldes: modos de distinção e autenticidade na


constituição de um pastor pentecostal e sua Igreja
JOSÉ EDILSON TELES

275 A denúncia de Brolezzi: abusos e injustiças sofridos no Opus Dei


ASHER BRUM

303 Controvérsias dos cultos, pluralismo e movimentos anticulto:


“abuso espiritual” como denúncia
PAULA MONTERO

Religiões e controvérsias Final.indd 6 18/08/2015 09:59:47


Apresentação
MELVINA ARAÚJO

Alguns dos temas tratados no livro Religiões e controvérsias públicas: experiên-


cias, práticas sociais e discursos já foram analisados em trabalhos anteriores,
tais como o secularismo, as discussões em torno da liberação de pesquisas
sobre as células-tronco embrionárias ou a intolerância religiosa, por exemplo.
Entretanto, enquanto na maior parte das publicações que lidam com esses
temas o tratamento dado a eles se insere em perspectivas que os pensam como
eivados por um deslocamento da esfera religiosa para o espaço público, nos
textos aqui reunidos os autores buscam se debruçar sobre eles para pensar
a configuração do modelo democrático brasileiro contemporâneo, no qual o
secularismo se coloca sob a forma de confrontação entre ideias advindas de
diversas perspectivas religiosas. Assim, em lugar de tratar a inserção de atores
religiosos em debates que têm marcado a cena pública nos últimos anos como
um desvio, a ideia é a de tratá-los como constituintes de um tipo específico
de democracia que está se desenvolvendo no Brasil.
Nesse sentido, os autores buscam observar como os atores ligados a diversas
denominações religiosas se inserem em determinados debates e terminam por
conformá-lo ao modelo do confronto. E são os momentos ápices desses confron-
tos os privilegiados para observação e análise, já que representam momentos nos
quais as ideias que esses atores têm sobre o justo são mais claramente expostas.
Ou seja, ao apresentarem essas ideias sob a forma de manifestações, passeatas,

Religiões e controvérsias Final.indd 7 18/08/2015 09:59:47


8 caravanas e caminhadas, esses atores o fazem se contrapondo a outras posições,
buscando deixar mais evidentes suas discordâncias em relação a elas. Ao fazer
isso, esses atores buscam ressaltar, ao mesmo tempo, suas concepções de justiça
e suas críticas em relação às ideias sobre o justo defendidas por aqueles que
têm posições diversas das suas.
Esse novo modo de apresentação de posições – sob a forma de debate – tem
como uma de suas consequências a construção de uma maneira específica de
conformar a opinião pública baseada numa confrontação regulada de opiniões.
Por outro lado, é preciso salientar que a forma de regulação dessas posições
não é dada de antemão nem existe um agente específico cuja função seria
a de coibir excessos ou o uso de linguagens inadequadas ao desenrolar das
controvérsias, mas sua constituição ocorre pari passo ao desenvolvimento
dos debates. Assim sendo, os autores tomaram como uma de suas tarefas
compreender como determinadas disputas e agenciamentos conformam a
esfera pública e definem o que pode ser dito, quem pode dizer o que e em
que situação pode fazê-lo.
Dar conta da compreensão da conformação da esfera pública a partir da ob-
servação de disputas e agenciamentos requer a mobilização de outro tipo de
esforço: o de compreender o que está em jogo quando um determinado evento
vem a público. Trata-se de uma tarefa complexa, que requer o empenho não
apenas na descrição da cena na qual se desenrola o evento, mas, sobretudo,
na compreensão de seus elementos propulsores, ou seja, das conexões e dis-
putas de que depende para ser conformado, bem como das justificações que
os atores responsáveis por sua conformação lançam mão para apresentar seus
argumentos como sendo válidos ou mais justos em relação aos argumentos dos
demais partícipes da controvérsia. E isso, é preciso ressaltar, os autores deste
livro fazem com primor.
Também é digna de nota a forma ao mesmo tempo sensível e competente com
a qual os autores descrevem o desenrolar de eventos, disputas e agenciamentos,
demonstrando como, nesses processos, o político e o religioso se reinventam
mutuamente, e como, ao fazer isso, modelam a cena pública.
Por fim, faz-se necessário dizer que uma das grandes virtudes do livro Religiões
e controvérsias públicas: experiências, práticas sociais e discursos é a de inserir
a antropologia num campo de debates no qual outros cientistas sociais têm se
engajado. Assim, ao tomar como orientadoras da análise questões relativas à
conformação da esfera pública no Brasil, os autores aqui reunidos colaboram
para recolocar a disciplina enquanto possível contribuidora no desenvolvi-
mento de conhecimentos sobre a sociedade e na conformação de espaços de

Religiões e controvérsias Final.indd 8 18/08/2015 09:59:47


disputa de poder, retirando-a, com o mesmo golpe, de um lugar marginal que

Apresentação
9
a restringe exclusivamente à observação e a descrição de fenômenos também
considerados marginais.
São Paulo, 24 de abril de 2015.

Religiões e controvérsias Final.indd 9 18/08/2015 09:59:47


Religiões e controvérsias Final.indd 10 18/08/2015 09:59:47
Introdução
11

Introdução
PAULA MONTERO

Este livro reúne os principais resultados dos trabalhos desenvolvidos no âmbito


do projeto Religiões e controvérsias públicas (2011-2014) apoiado pela Funda-
ção de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP)1. Como anunciado
já no título desta obra, a noção de controvérsia, tanto como inspiração teórica
quanto como critério de escolha dos casos aqui apresentados, tornou-se o eixo
central sobre o qual se articulou nosso modo particular de organizar o proble-
ma, já clássico, das relações entre religiões e a constituição da esfera pública
moderna. Pela sua centralidade nesta pesquisa, parece-nos necessário descrever
rapidamente o modo como esse conceito foi analiticamente apropriado, e até
mesmo transformado por este projeto, além de explicitar as razões que nos
levaram a atribuir-lhe posição tão estratégica em nossa forma de observação e
interpretação das configurações da esfera pública brasileira nas últimas décadas.
Ainda que não caiba no escopo deste trabalho nos deter nas razões históricas,
sociais e políticas das transformações da sociedade civil brasileira e o papel
das religiões na sua formação, esforço já parcialmente empreendido em
trabalhos anteriores (MONTERO, 2006, 2009), as investigações que deram
origem a este livro partem da percepção de que está em curso uma profunda
mutação no modo como os brasileiros se percebem como parte de uma so-

1
Agradecemos à FAPESP o apoio concedido ao projeto Religiões e controvérsias públicas: experiências,
práticas sociais e discursos, n. 11/02948-6.

Religiões e controvérsias Final.indd 11 18/08/2015 09:59:47


12 ciedade. Essa matéria, devemos reconhecer, é por demais complexa para ser
abarcada de uma só vez; além disso, muito já foi escrito a esse respeito pela
via do papel das religiões e, em particular, da Igreja Católica, na formação
de nossa nacionalidade (BRANDÃO, 1988; PEREIRA DE QUEIRÓZ, 1988;
SANCHIS, 2001). Não é nossa intenção voltar aqui a esse tema, ao menos
não por essa via. Há algumas décadas as ciências sociais deixaram para trás
a identidade nacional como problema de investigação. Digamos, para chegar
mais rapidamente ao ponto que aqui nos interessa, que as questões da nacio-
nalidade deram lugar, nas últimas décadas, às questões relativas à construção
da cidadania. Nesse novo cenário, cujo marco temporal pode ser situado nos
anos 1980, década que assistiu a promulgação da nova Constituição cidadã
em 1988, o paradigma do sincretismo – até então elo imaginário integrador de
diversidades raciais e culturais – vai cedendo lugar ao paradigma da inclusão
que nomeia a sociedade a partir de um leque muito mais vasto de diferenças:
de crenças, de cor, de posição social, de gênero, etc.
Essa mutação, à primeira vista de pequena monta, tem significado, a nosso
ver, uma revolução coperniciana com relação ao modo como a sociedade se
autorrepresenta e atua sobre si mesma. O deslocamento das questões de
nacionalidade para as questões da cidadania tem obrigado ao exercício cada
vez mais explícito e desafiador do “desacordo regulado de opiniões”2, na feliz
expressão de Binoche, como forma de fazer parte da dinâmica social.
Ainda que a forma debate seja, a nosso ver, relativamente recente como ca-
racterística marcante do modo de operação da sociedade civil brasileira, ao
relacionar o problema da construção da cidadania aos processos de formação das
opiniões, nosso trabalho entra em interlocução com as questões inauguradas por
Jürgen Habermas em seus escritos sobre a formação da esfera pública moderna.
Tornou-se consensual na literatura recente atribuir a esse autor a proposição
axiológica do debate como forma de invenção e funcionamento do espaço
público. Independentemente do conjunto de críticas de que essa invenção foi
objeto, a proposição nos pareceu bastante estimulante: ela nos sugeria uma
pista desafiadora para compreender como esse novo modo de apresentar-se
publicamente, que exige que todas as certezas (religiosas ou não) sejam capazes
de objetivar-se e relacionar-se a diversos pontos de vista (MONTERO, 2009),
começa a afetar, no caso brasileiro, tanto as configurações de seu espaço público
quanto as maneiras como as narrativas religiosas contemporâneas passam a
disputá-lo. A hipótese de fundo que orientou esse conjunto de investigações

2
Expressão utilizada por Bertrand Binoche (2012) para descrever como a noção de opinião pública
passa a constituir-se, no lugar da religião, em novo elo da vida civil.

Religiões e controvérsias Final.indd 12 18/08/2015 09:59:47


diz respeito, pois, ao declínio progressivo da identificação imaginária, no caso

Introdução
13
brasileiro, entre Igreja Católica e sociedade civil. E, como sugere Binoche
(2012, p. 15-16), quanto mais essa disjunção se aprofunda, mais as religiões
passam a ser relativas, ficando progressivamente reduzidas “a simples opiniões
irredutivelmente plurais”. Esse modelo de democracia subjacente à reflexão
do autor supõe que nenhum corpo substantivo de crenças consegue mais, so-
zinho, regular a totalidade da vida coletiva, e, consequentemente, a doutrina
política da tolerância vai ganhando força como princípio de normatividade,
tornando-se gradualmente o modo correto de sancionar a convivência entre
as diferenças. No caso brasileiro, o processo de relativização das religiões está
apenas se iniciando, uma vez que o substrato cristão da sociedade é ainda cla-
ramente hegemônico. Mesmo assim, como veremos adiante, nos diversos casos
aqui analisados, os agentes religiosos (ou não) já são obrigados a se justificar e,
por consequência, objetivar suas posições publicamente. Embora em nenhum
dos casos em estudo neste volume a democracia se constitua como objeto das
controvérsias, não resta dúvida, pelo jargão encenado nas narrativas, que o
jogo dos confrontos é jogado no tabuleiro do que poderíamos chamar de uma
democracia liberal. Com efeito, a acusação de intolerância, por exemplo, tem
sido cada vez mais acionada nas últimas três décadas por agentes religiosos
de todos os horizontes (inclusive católicos) para disputar posições na arena
pública brasileira. Mas é interessante destacar as peculiaridades do caso bra-
sileiro quando comparado com os processos europeus descritos por Binoche.
Na França, a noção de tolerância entendida como um desacordo regulado de
opiniões se tornou a solução histórica para responder aos desafios de uma vida
comum desprovida de fé comum (BINOCHE, 2012, p. 109). No Brasil, ao
contrário, o desenvolvimento do pluralismo religioso como conceito político
e como prática vem acompanhado do confronto religioso. Isso porque a forma
como as religiões disputam a definição e sua presença no espaço público está
intimamente associada ao modo como, historicamente, a sociedade brasileira
se produziu como secular. Se, no caso francês, o conceito de “opinião pública”
pode ser considerado o efeito da ideia de “religião privada”, no caso brasileiro,
como demonstramos em trabalhos anteriores, a esfera civil foi se construindo
no processo de separação da Igreja Católica em relação ao Estado. Uma vez que
as dinâmicas de diferenciação das esferas apenas começavam a produzir efeitos
e a própria esfera pública estava em gestação, a privatização da religião não se
colocava nem como tema, nem como problema (MONTERO, 2006, 2014).
Nossa expectativa é que os estudos aqui apresentados venham a iluminar as
configurações específicas do modelo democrático brasileiro contemporâneo e
permitam compreender essa nova maneira de as religiões se colocarem na cena

Religiões e controvérsias Final.indd 13 18/08/2015 09:59:47


14 pública pelo confronto. Foi levando em conta essa novidade que o conceito
de controvérsia nos pareceu estratégico para pensar esse novo momento no
qual a diversidade religiosa passa a ter um papel fundamental na formação e
no exercício da ideia de opinião pública.
A abordagem das dinâmicas sociais pelo viés da noção de controvérsia não é
propriamente uma novidade. Cyril Lemieux (2007), aluno de Luc Boltanski,
a associa ao surgimento, na França da década de 1980, de uma sociologia prag-
mática3 ou praxeológica que procurou colocar em novos termos as teorias do
conflito de Alain Touraine e Pierre Bourdieu. O ambicioso programa de pes-
quisa a que se propôs essa nova abordagem é extremamente vasto, envolvendo
influências que vão da herança pragmática de John Dewey, William James e
George Mead à fenomenologia de Paul Ricoeur e à filosofia da linguagem de
Wittgenstein (CEFÄI, 2009)4. Mas, no que dizem respeito ao seu diálogo crí-
tico com a obra de Jürgen Habermas, muitas de suas análises introduziram a
questão do “público” em vários níveis que aqui nos interessam: em contraponto
com as teorias do processo político se interrogam sobre a emergência de um
“senso cívico” (PHARO, 1985), enfatizando as experiências e as perspecti-
vas dos atores engajados na ação coletiva; em contraste com a literatura dos
movimentos sociais que os definem como “infraestrutura material de mobi-
lização”, destacam seu papel no agenciamento de objetos, coisas e pessoas e
no ordenamento de uma “praxeologia da opinião pública” que se volta para o
que os indivíduos podem fazer, ver ou dizer, ou, em oposição à uma sociolo-

3
O autor se refere a uma diversidade de trabalhos de autores franceses, como Luc Boltanski e Bruno
Latour, que colocam no centro da análise o conceito de “épreuve”, que consiste em privilegiar os
processos de disputa na observação sociológica. O autor prefere chamar essa corrente de uma
“sociologie des épreuves” por considerar que o pragmatismo como corrente filosófica inspira uma
gama muito mais variada de autores, de Durkheim a Pierce, passando por Dewey.
4
Em seu balanço das pesquisas de viés praxeológico desenvolvidas na França na década de 1980, Daniel
Cefäi (2009) menciona três grandes centros de irradiação: o Centre de Sociologie de l’ Étique, criado
por Paul Ladrière, François-Isambert e Jean Paul Terrenoire em 1978 na École des Hautes Études
en Sciences Sociales e que, em diálogo com a obra de Jürgen Habermas, dá atenção aos sentimentos
morais e aos procedimentos de avaliação ética; o Centre d’ Études des Mouvements Sociaux, fundado
por Alain Touraine em 1970 também na EHESS e dedicado à análise dos movimentos sociais por meio
de suas lideranças e instituições políticas (sindicatos, partidos, movimentos sociais, etc.). Com seu
afastamento nos anos 1990, as novas gerações sob a liderança de Louis Quéré e Patrick Pharo se
distanciaram dessa abordagem, interessando-se pelas dinâmicas infraestruturais e infraestatais das
formas de engajamento e reivindicação. Nesse período introduziram novas problemáticas como a
do “espaço público” e “experiências-limite”, experimentando novas metodologias e rearticulando
a pesquisa sobre mobilizações em torno de uma teoria das arenas públicas e de uma praxeologia
da opinião pública; e, finalmente, o grupo de Sociologie Politique et Moral fundado em 1985 por
Luc Boltanski e Laurent Thévenot, cujos esforços se concentram em um projeto de investigação
gramatical das formas de justiça, de denúncia ou de reivindicação em público.

Religiões e controvérsias Final.indd 14 18/08/2015 09:59:47


gia dos grupos, propõem que as dinâmicas de mobilização são correlativas às

Introdução
15
dinâmicas de “problematização” e “publicização” (QUÉRÉ, 1990); ou, ainda,
em reação à noção de ação instrumental tão predominante na ciência política,
descreve a gramática das formas de falar em público, as formas de justificação,
de denúncia e de reivindicação (BOLTANSKI, 2000, 2002).
Os trabalhos aqui apresentados estão em diálogo mais ou menos explícito com
esse conjunto de problemas, com sua inspiração teórica e modos de trabalhar
a questão da publicidade. Ainda assim, deles se diferenciam pelo menos em
duas dimensões estratégicas: no lugar heurístico atribuído ao conceito de
controvérsia e no espaço privilegiado atribuído ao agenciamento religioso, e
não aos movimentos sociais em geral, na produção de um “senso cívico” ou na
“praxeologia da opinião” (CEFÄI, 2009).

A controvérsia como publicidade


O modo como as controvérsias foram compreendidas e trabalhadas nas cor-
rentes de uma sociologia dos conflitos é bastante amplo e variado. Lemieux
(2007, p. 191-192) sugere que hoje duas grandes correntes metodológicas se
oferecem aos pesquisadores das ciências sociais que se interessam pelo estudo
das controvérsias: a mais clássica, que a entende como um meio de revelar
relações de força, posições institucionais ou redes sociais dificilmente acessíveis
à observação direta. Nessa ótica, o pesquisador se dá como programa a obser-
vação das mudanças sociais e institucionais, a trajetória dos atores e o tipo de
recurso que mobilizam e, enfim, o curso de uma controvérsia e sua conclusão.
Uma segunda abordagem, iniciada pela história das ciências e retomada na
França pela corrente pragmática acima mencionada – seja no campo de uma
“sociologia do confronto” no sentido dado a ela nos trabalhos da antropologia
das ciências de Bruno Latour (2005) e Michel Callon (2001), seja no sentido
de uma sociologia dos regimes de ação de Luc Boltanski (2002) –, consiste
em tomar os processos de disputa como objeto privilegiado de investigação
e, mais precisamente, “ações coletivas que conduzem à transformação do
mundo social”. Esta corrente que toma como objeto os regimes de ação e
de visibilidade nos pareceu particularmente útil para pensar os processos de
formação do pluralismo na sociedade brasileira e as dinâmicas que envolvem
o aprendizado do exercício da opinião.
No volume de 2007 da Mil neuf cent. Revue d´histoire intelectuelle, intei-
ramente dedicado ao tema das controvérsias, elas se apresentam como uma
abordagem metodológica que renovou, em primeiro lugar, o campo da história

Religiões e controvérsias Final.indd 15 18/08/2015 09:59:48


16 das ciências, e generalizou-se em seguida como uma nova abordagem para a
história das ideias. No entanto, fora desses campos, a controvérsia ainda não
foi objeto das ciências humanas em geral. Bruno Latour (2000) e Fabiani
(2007) procuram estender o interesse pelo estudo das controvérsias para
uma sociologia da crítica, mas que permaneceu em grande parte associada aos
debates científicos e intelectuais. Talvez tenham sido os autores Luc Boltanski
e Laurence Thévenot, ao procurarem integrar a filosofia política à pragmáti-
ca dos julgamentos morais, os primeiros a alargar o conceito de modo a que
pudessem abranger as formas de debate exteriores ao mundo das ideias e
aos campos acadêmicos. Para esses autores, o desenvolvimento das disputas,
“quando eliminam a violência, revelam constrangimentos fortes na busca de
argumentos, apoiados sobre provas sólidas, manifestando esforços de conver-
gência no coração do diferendo” (1991, p. 27, tradução nossa). Embora os
autores prefiram a noção de crítica à de controvérsia, essa orientação teórica
também implica, no plano do método, privilegiar os momentos de confronto
como eixo principal da observação. Além disso, o modo como essa abordagem
pelo diferendo e pela justificação problematiza a noção do público interessa
particularmente a muitos dos trabalhos que compõem este livro.
Diferentemente dos estudos mencionados anteriormente, de uma forma geral
nosso trabalho não se desenvolveu, entretanto, no interior do campo de uma
sociologia da crítica. Na verdade, em diálogo com a vasta literatura sobre o
secularismo (ASAD, 2003; CALHOUN, 2012; CASANOVA, 1994; 2007;
MODOOD; LEVEY, 2009; TAYLOR, 1998; 2007), desde o primeiro mo-
mento interessava-nos compreender a formação e a configuração recente do
espaço público na sociedade brasileira e o relevante papel dos agenciamentos
religiosos nessa construção.
Como se pode notar a partir dos casos aqui analisados, a dissensão e a crítica
começaram a tornar-se o modo de ação cada vez mais recorrente dos agentes
religiosos na sua relação entre si e na sua relação com o Estado. Esse fato
passou a nos interessar, embora não soubéssemos, em um primeiro momento,
como abarcá-lo e reuni-lo de um modo sistemático e abrangente. O conceito
de controvérsia nos ofereceu um caminho para a construção de um paradigma
analítico a partir do qual toda forma de confronto nesse campo pudesse ser
compreendida como parte de um mesmo problema: uma manifestação das
configurações singulares do secularismo brasileiro cujo modelo pretendíamos
descrever. A noção de “momento crítico” de Luc Boltanski (2000) – momentos
de manifestação mais ou menos pública de indignação ou desacordo – nos per-
mitiu diferenciar a observação do que fazem os atores (acusações, denúncias,
críticas e justificações) da controvérsia entendida como forma que só pode

Religiões e controvérsias Final.indd 16 18/08/2015 09:59:48


ser alcançada analiticamente. Mas nossa intenção ao observar as formas de

Introdução
17
dissenso não era tanto a de atestar a competência crítica dos atores, como no
caso de Boltanski, e sim a de identificar e descrever a particular configuração
social do secularismo que emerge dessa dinâmica que associa atores, textos,
instituições e acontecimentos. É com base nesse enquadramento teórico que
Eduardo Dullo parte da nota de repúdio da Arquidiocese de São Paulo, em
2012, a um texto escrito pelo pastor Marcos Pereira, coordenador da campa-
nha do candidato à prefeitura, Celso Russomano, pelo Partido Republicano
Brasileiro (PRB); Carlos Gutierrez, da cerimônia de posse de Rogério Hamm,
também do PRB, à Secretaria do Desenvolvimento Social do Governo de São
Paulo em 2013; Lílian Sales, da audiência pública convocada pelo Superior
Tribunal de Justiça para definir o “início da vida”; César Silva, da ameaça de
fechamento pelo Ministério da Educação das escolas bilíngues para surdos
em 2010 de inspiração protestante; Milton Bortoleto, do evento da quebra
de imagens em um centro espírita do Rio de Janeiro por jovens evangélicos
em 2008; Henrique Antunes, da inserção da Banisteriopsis, um dos vegetais
que compõem a ayahuasca, na lista dos produtos proscritos pelo Ministério da
Saúde; Aramis Luis Silva, da fala do papa Francisco aos jornalistas, em 2013,
sobre a posição da Igreja Católica a respeito da homossexualidade; Jacqueline
Moraes Teixeira, do enorme sucesso do livro de Cristiane Macedo, filha de
Edir Macedo – fundador da Igreja Universal do Reino de Deus –, em 2007,
destinado à mulher, Melhor que comprar sapatos; José Edilson Teles, do ciclo de
fundadores de microigrejas pentecostais e a disputa por autenticidade de suas
atividades, tomando como recorte empírico o caso da revelação divina sonhada
por José Ribamar que o levou a fundar a Igreja Manjedoura de Cristo; Asher
Brum, do livro de memórias publicado em 2006 por Antonio Carlos Brolezzi,
que denuncia abusos perpetrados contra ele pelo Opus Dei; Paula Montero,
da denúncia publicada pela revista Época em 2009 do ex-pastor Gustavo Alves
da Rocha sobre os abusos cometidos contra ele por Edir Macedo.
Desse modo, tomando como referência eventos pontuais que envolveram
entidades religiosas diversas – um debate público, uma denúncia, uma decisão
governamental, um sucesso editorial ou conflitos entre pastores e Igrejas –,
o esforço inicial dos trabalhos foi o de descrever a cena na qual o evento se
manifesta e circunscreve, e compreender o que está em jogo no modo como
ele aparece publicamente. É por essa razão que, em nossa perspectiva, não
estamos tomando as controvérsias como fenômenos empíricos a descrever.
Se subjacentes a todos os casos estudados podem-se reconhecer dinâmicas de
conflito, a passagem do evento à controvérsia dependeu, em maior ou menor
grau em função de cada caso, de uma construção analítica que procurou, como

Religiões e controvérsias Final.indd 17 18/08/2015 09:59:48


18 sugere Boltanski, ordenar agências heterogêneas. Estamos trabalhando, pois,
com o conceito de controvérsia ao mesmo tempo como um método para reu-
nir e recortar casos empíricos colocando-os em relação e como instrumento
heurístico que nos permitiu observar acontecimentos e práticas reunidos de
um modo mais ou menos arbitrário (a não ser pelo fato de que todos remetem
necessariamente a entidades religiosas). Levando-se a sério o que dizem os
personagens envolvidos na cena, procuramos compreender simultaneamente
o que está em disputa e como diferentes formas discursivas em interação
conformam o espaço público enquanto secular.
A nosso ver, tal formulação foi capaz de produzir, no campo de estudos das
religiões, os deslocamentos necessários sugeridos por Michel Foucault5 em sua
abordagem das genealogias e disciplinas. Em vez de observarmos instituições
religiosas e/ou grupos tomando-os de antemão como entes empíricos, a abor-
dagem pelo caminho das controvérsias nos levou a observar antes práticas dis-
cursivas do que lógicas institucionais, cosmologias, valores e comportamentos.
Isso porque, como reconhece a corrente pragmática, na esteira dos trabalhos
de Austin, a linguagem não se restringe à função de descrição ou representação
do mundo, mas também faz o mundo. Essa nova perspectiva teórica nos fez
ver que certa tradição de estudos das religiões que privilegiava a descrição das
cosmologias, dos rituais e das instituições foi instrumento ativo na produção
dos próprios fenômenos que pretendia explicar. Desse modo, uma desontolo-
gização dos grupos religiosos nos pareceu atual e necessária, uma vez que, ao
contrário do que pretendem os estudiosos com suas definições e seus sistemas
de classificação, os grupos empíricos não preexistem às linguagens usadas para
descrevê-los e recortá-los. O mesmo se pode dizer do “religioso”. As práti-
cas discursivas o constroem e o distribuem. Nas condições contemporâneas
tornou-se difícil localizá-lo; parafraseando Bruno Latour com relação ao social,
“o religioso parece estar diluído em toda a parte (e em lugar nenhum)”. Se
não há nada que se possa definir como específico ao religioso, o recorte pela
controvérsia nos permite observar como entidades variadas se conectam em
função de contextos, produzindo um tipo de mundo que se acorda a respeito
das configurações necessárias de uma sociedade secular.

5
Descentramento com relação às instituições (prisões, hospitais e, acrescentaríamos, Igrejas),
deixando de estudá-las a partir de suas lógicas internas; descentramento com relação às funções
esperadas das instituições (cura, regeneração); descentramento com relação aos objetos empíricos
e já dados das instituições (doença mental, criminosos, etc.) (FOUCAULT, 2008, p. 156-158).

Religiões e controvérsias Final.indd 18 18/08/2015 09:59:48


Agenciamentos religiosos e praxeologia da opinião

Introdução
19
Em sua crítica à teoria dos problemas públicos de Jürgen Habermas, Louis
(Queré 2011)6 se pergunta sobre o modo como os problemas são constituídos
enquanto tal na esfera pública. A seu ver, antes de se tornarem problemas
públicos e serem objeto de debate, os acontecimentos são elaborados e orga-
nizados em diferentes níveis até ganhar importância e se constituir em “campo
problemático”, na expressão cunhada por Deleuze.
Estamos de acordo com Quéré quanto à necessidade de levar em conta os
modos como os problemas se instituem como públicos. Ainda assim, nos casos
aqui em estudo, muitos dos processos relativos à formação e configuração da
esfera pública como contraparte do Estado são de longa duração. Os aconteci-
mentos, aqui analisados em suas dinâmicas de visibilidade, agenciam questões
cujos termos já estão relativamente bem estabelecidos no plano temporal.
Com efeito, ao fazermos uma leitura transversal dos casos apresentados neste
volume, pode-se perceber que apenas à luz de “campos problemáticos” de
longa duração na história política brasileira é possível compreender os nexos
que agenciam os elementos das controvérsias em análise. É no campo do debate
sobre a laicidade, por exemplo, que se jogam as denúncias contra o PRB e a Igreja
Universal do Reino de Deus (IURD) descritas por Dullo e Gutierrez; é no campo
do debate entre fé e ciência que se desenvolvem os argumentos em torno do
início da vida descritos por Sales; é no campo do debate entre universalismos
nacionais e particularismos étnicos que Assis Silva situa a disputa pela escola
bilíngue para surdos; é no campo do debate sobre liberdade religiosa que Bor-
toleto e Antunes discutem a regulação do religioso; é no campo dos direitos
humanos e do planejamento familiar que Brum, Silva e Teixeira descrevem o
debate sobre religião, sexualidade e aborto; é no campo do debate que opõe
seita à Igreja que Teles e Montero analisam a instituição e a legitimidade da
autoridade pastoral evangélica.
Ainda que os problemas públicos aqui em estudo se articulem de maneira
recorrente a esses “campos problemáticos” mais ou menos pactuados histori-
camente ao longo dos processos de ordenamento republicano e democrático,
ao observarmos o que diz e faz o variado leque de agentes quando está em
litígio a noção de bem coletivo, pode-se perceber um rearranjo ou redefini-
ção das questões “clássicas” que disputa seus sentidos contemporâneos. Essa
dinâmica que, a exemplo de Quéré, chamamos de “praxeologia da opinião”,

6
Entrevista concedida para Leandro Lage e Tiago Salgado e publicada na revista EcoPos-UFRJ, v. 14,
n. 2, 2011.

Religiões e controvérsias Final.indd 19 18/08/2015 09:59:48


20 coloca sob as lentes de nossa observação as ações discursivas e pedagógicas do
poder pastoral nos mais diferentes níveis. Inspira-nos a proposição de Boltanski
de que é possível supor a existência de múltiplas gramáticas de justificação
capazes de propor reivindicações coletivas, até mesmo antitéticas, com relação
a um regime cívico-republicano tal como, por exemplo, a campanha do pastor
Tupirani “Bíblia sim. Constituição não” mencionada no trabalho de Bortoleto.
A ideia central não é, pois, afirmar simplesmente que os “valores religiosos”
exercem poder de influência sobre a vida pública, mas sim examinar as formas
contemporâneas de percepção do que é justo ou injusto em diferentes situações
e compreender como elas estruturam o campo de ação das pessoas.
A exigência de que todas as certezas, mesmo religiosas, sejam capazes de
objetivar-se e negociar com diferentes pontos de vista nos parece uma novidade
no processo de secularização que merece ser investigada. Em trabalho anterior,
já havíamos chamado a atenção para a necessidade de enfrentar de uma nova
maneira a questão das relações entre religião e política, deixando de privilegiar
o problema da “invasão” da esfera política pelos agentes religiosos e tomando o
próprio secularismo como objeto privilegiado da reflexão da antropologia e das
ciências sociais (MONTERO, 2013). Como parte dessa agenda, os trabalhos
que compõem esta obra colocaram o contraponto entre enunciados e o modo
como as categorias são agenciadas no centro de sua observação. Demo-nos como
tarefa compreender como disputas e agenciamentos modelam a esfera pública
definindo o que pode ser dito, como pode ser dito e por quem. Boltanski e
Thévenot (1991) nos proveram de instrumentos úteis para examinar e des-
crever essas formas discursivas de qualificação e codificação do “bem comum”
e da “justiça”. Os trabalhos de Dullo, Gutierrez, Sales, Bortoleto, Antunes e
Brum se beneficiaram diretamente dessa abordagem. Interrogando-se sobre as
formas de desaprovação, de denúncia, de reivindicação e de mobilização, como
sugere Pharo (1985), foi possível perceber as dinâmicas de uma configuração
particular de senso cívico (e de religião). Além disso, levando-se em conta que
as formas de julgamento se apoiam em certezas de como o mundo é ou deve
ser, e que as percepções do bom e do justo só podem ser compreendidas de
maneira situada, alguns trabalhos se moveram na direção de examinar certos
contextos da experiência associados a organizações religiosas. Partindo de
algumas “situações-problema”, tal como aparecem nos casos aqui elencados,
procuramos tratar essas organizações como conjunturas prático-sensíveis,
como sugere Cefäi, que agenciam objetos, normas e pessoas ordenando o que
os participantes de uma rede ou organização podem fazer ou dizer (2009, p.
19). Assim, os trabalhos de Gutierrez, Silva, Teixeira, Teles, Brum e Montero
procuram descrever as mutações das experiências e os processos de codifica-

Religiões e controvérsias Final.indd 20 18/08/2015 09:59:48


ção de situações problemáticas dos atores envolvidos, de modo a iluminar as

Introdução
21
formas de engajamento e a trajetória de alguns problemas públicos, tais como
as controvérsias relativas a fé, política, sexualidade, aborto e poder pastoral.

Controvérsias públicas e configuração de um senso cívico


Os trabalhos aqui apresentados, embora compartilhem o mesmo interesse
pelos problemas elencados acima, são bastante heterogêneos em seu recorte,
em sua temporalidade e no modo de acompanhar os atores e situá-los. Ainda
assim, ao apresentá-los em conjunto neste volume, nos oferecem uma visão
panorâmica das configurações contemporâneas da res pública brasileira e suas
variações nos diversos fóruns nos quais agenciamentos religiosos disputam no-
ções de justiça e do bem comum. Por essa razão, mesmo que de modo bastante
preliminar, nos parece interessante propor ao leitor um quadro de leitura mais
geral resultante da comparação dos casos estudados.
Em primeiro lugar, é preciso notar que o escopo temporal das experiências,
ações e formas institucionais relatadas recobre um período de apenas três
décadas. Os eventos que, a nosso ver, servem de marcadores interessantes
das dinâmicas que estamos procurando elucidar são de três ordens: criação
de agenciamentos institucionais específicos, produção de legislação e ações
de mobilização.
No que diz respeito aos novos agenciamentos organizacionais, os mais recua-
dos no tempo foram a criação da Coordenadoria para a Integração da Pessoa
Portadora de Deficiência (Corde) em 1986 e a criação da Federação Nacio-
nal de Educação e Integração dos Surdos (Feneis) em 1987. Nessa década
temos também a fundação da IURD e a criação da Força Jovem Universal. Na
década seguinte temos a formação de um Conselho de Pastores e a criação da
Convenção de Pequenas Igrejas com CNPJ de Santana de Parnaíba, em 1996.
A Igreja de Ribamar – Manjedoura de Cristo – é criada em 2001. Em 2005 o
Partido Republicano Brasileiro obtém seu registro definitivo como partido e no
ano seguinte o núcleo Igreja da Comunidade Metropolitana se instala em São
Paulo. A Comissão de Combate à Intolerância do Estado do Rio de Janeiro é
de 2007/2008. Em 2010 temos a inauguração do Núcleo de Combate à Into-
lerância Religiosa no Rio de Janeiro e o lançamento do projeto para mulheres
da IURD – Godllywood. O que se pode perceber, portanto, é que o período
foi extremamente fértil na invenção de formas de agenciamento de pessoas
caracterizadas por descentralização, flexibilidade burocrática, heterogeneidade
de pertencimentos e hierarquia pouco acentuada. Essas organizações estão

Religiões e controvérsias Final.indd 21 18/08/2015 09:59:48


22 voltadas para a produção de um discurso público engajado, para a pedagogia
de empreendimentos de militância e para a mobilização das opiniões em torno
de algumas pautas específicas que vão sendo produzidas no (e pelo) confronto.
O agenciamento das ações coletivas também foi materialmente vertebrado e
retroalimentado pela criação de leis. A proscrição da ayahuasca pelo Ministério
da Saúde data de 1985 e a Lei Caó, de 1989; a Lei do Silêncio, promulgada
em São Paulo em 1997, limita a atuação das pequenas Igrejas evangélicas; em
2002, o Conselho Nacional de Políticas Sobre Drogas (Conad) estabeleceu
uma resolução para definir as normas de controle social referente ao uso da
ayahuasca no Brasil e uma lei federal reconhece a Libras como meio legal de
expressão dos surdos; em 2005 a Lei de Biossegurança é aprovada no Congresso
Nacional. Muitas das controvérsias analisadas neste volume descrevem como
essa regulamentação é, ao mesmo tempo, ponto de partida e resultado de uma
série de disputas que põe em interação uma gama bastante heterogênea de
atores: cientistas, legisladores, pastores, jornalistas, representantes de organi-
zações, militantes, ocupantes de cargos públicos, teólogos. Essa heterogenei-
dade nos leva a sublinhar o fato de que, se estamos efetivamente observando
cenas nas quais diferentes “regimes de ação” estão em disputa, como sugere
Boltanski, não é mais possível distinguir o “discurso religioso” em oposição
ao “científico”, “jurídico”, “mediático”, etc. Tem-se, desse modo, apenas um
“discurso público” cujas configurações dependem em grande parte das arenas
onde ele é dito e dramatizado. Desse modo, na expressão pública de alguns
segmentos religiosos a respeito de questões controversas, o “discurso religioso”
não é simplesmente traduzido para o discurso político, como propôs Jürgen
Habermas; pode-se dizer com mais propriedade que o político e o religioso se
reinventam na disputa e, ao fazê-lo, configuram e modelam aquilo que pode
ser compreendido como público.
Nos casos aqui elencados, as arenas públicas são bastante diversificadas: o fórum
do Supremo Tribunal Federal (STF), cena partidária, conselhos governamentais,
conselhos e reuniões de organizações religiosas, entrevistas mediáticas. As
questões que ali são mobilizadas se revelam pelas narrativas de “injustiça” que
os atores constroem. Um olhar transversal dos diferentes casos aqui reunidos
nos mostra que os sentidos de injustiça se agrupam em torno de dois grandes
eixos: o político e o moral. No primeiro caso, os debates se desenvolvem em
torno do enquadramento das atitudes que podem ser consideradas como sinal
de “intolerância religiosa” (as acusações de Russomano contra a Igreja Católica,
a reação dos obreiros da IURD às críticas da mídia contra a ação política da Força
Jovem, as acusações mútuas entre os responsáveis pelo centro espírita invadido
por membros da Igreja Geração dos Mártires), e as que podem ser lidas como

Religiões e controvérsias Final.indd 22 18/08/2015 09:59:48


vontade de “exclusão das minorias” (marginalidade dos surdos, perseguição aos

Introdução
23
afrodescendentes e aos homossexuais, exclusão das pequenas Igrejas). Desse
modo, pode-se perceber que se o pacto em torno da laicidade está relativa-
mente bem estabilizado, as acusações mútuas de “intolerância” mostram que
o reconhecimento do pluralismo religioso, ao tornar a escolha religiosa uma
expressão da opinião, introduziu a disputa como forma específica da própria
configuração da laicidade. Já no plano das categorias morais, se os conceitos de
“direitos humanos” e “liberdade religiosa” também parecem ser um horizonte
político moral consensual, as acusações mútuas de “seitas”, “racismo”, “abuso
de poder”, “perseguição religiosa” indicam que a própria configuração do que
é religioso está em disputa. Na produção de suas fronteiras, os agenciamentos
nomeiam as figuras de alteridade contra as quais representam seus próprios
coletivos como homogêneos: “as batinas púrpuras de Roma”, “imposição de
minorias autoritárias”, “cientistas assassinos”, “apartheid escolar”, “fanáticos”,
“traficantes, drogados”, “exploradores da fé”, “idólatras”, etc. Como sugere
Latour (2005), essas figurações dão forma e carne à ação, proibindo ou dire-
cionando o que se pode fazer e dizer em nome da religião.
Finalmente, as ações de mobilização também estão temporalmente demar-
cadas. Elas se iniciam com os primeiros encontros de deficientes em 1980,
1981 e 1983. Mas a tomada das ruas se concentra mais visivelmente no final
dos anos 2000 e na década seguinte. Em setembro de 2008, o delegado Ivanir
e a babalaô da comissão de Combate à Intolerancia Religiosa do Estado do
Rio de Janeiro (CIR-RJ) organizam a 1a Caminhada pela Liberdade Religiosa.
Em maio de 2011, uma caravana de mobilização pelo dia do surdo contra o
fechamento do Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES) promove
em Brasília o “Setembro Azul”. Em setembro do mesmo ano, uma passeata
em defesa da escola bilíngue para surdos sai em São Paulo da prefeitura, no
Viaduto do Chá, em direção à Secretaria da Educação na Praça da República e,
em seguida, para a Câmara dos Vereadores no Viaduto Maria Paula. Em junho
de 2011, o pastor Tupirani organiza diante do Fórum Criminal a 1a Passeata do
Dia do Pastor Perseguido. Em junho do ano seguinte, o movimento ganha uma
expressão mais cívica ao realizar a 2a Passeata em Copacabana. Em dezembro
de 2013, o movimento Força Jovem, sob a liderança do vereador Madeira, do
PRB, faz uma caminhada “por uma vida sem drogas”, que sai da Pinacoteca em
São Paulo e vai até o Anhangabaú.
Vemos, pois, que a tomada das ruas como forma de agenciar pessoas, ideias
e coisas nesse campo político-moral é bastante recente. Por sua novidade e
importância na reconfiguração do espaço público, essas dinâmicas de mobili-
zação merecem, com certeza, um estudo à parte. O que se pode dizer preli-

Religiões e controvérsias Final.indd 23 18/08/2015 09:59:48


24 minarmente a partir dos poucos exemplos aqui elencados é que, por um lado,
a escolha do nome dado a essas iniciativas é significativa: caravanas, passeatas,
caminhadas são formas distintas de anunciar publicamente o que se está fa-
zendo, para que e contra quem; por outro lado, os roteiros escolhidos traçam
linhas e associações de instituições na geografia das cidades que, a cada vez,
desenham uma forma específica de espaço público cuja gramática ainda precisa
ser estudada. Esse regime de ação, menos dependente da justificação do que
da performance, expressa, de outra forma, as modalidades do comum e do
público. O que nos parece interessante sublinhar é que nessa figuração cada vez
mais recorrente do público que essas manifestações reiteram, a ideia mesma
de arena pública como forma de expressar as opiniões se incorpora às práticas
e passa a orientá-las. No interior do marco institucional de uma democracia
participativa inaugurada nos anos 1980, o exercício das ruas enuncia novos
repertórios de pertencimentos coletivos e regras de engajamento público. As
regras que regulam esse desacordo de opiniões, no entanto, ainda estão em
gestação e disputa; mas é delas que se espera a construção de um fundo comum
que dê forma inteligível e aceitável à nossa “cultura pública”.

Referências bibliográficas
ASAD, Talal. Formation of the secular: christianity, islam, modernity. Stanford: Stanford University
Press, 2003.
BINOCHE, Bertrand. Religion privée, opinion publique. Paris: Librairie Philosophique J. Vrin, 2012.
BOLTANSKI, Luc. La denuncia pública. In: ________. El amor y la Justicia como competencias: tres
ensayos de la sociologia de la acción. Buenos Aires: Amorrotu, 2000.
________. Nécessité et justification. Revue Économique, v. 53, n. 2, p. 275-289, 2002.
________. THÉVENOT, Laurent. De la Justification. Les économies de la grandeur. Paris: Gallimard,
1991.
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Ser católico: dimensões brasileiras – um estudo sobre a atribuição de
identidade através da religião. In: FERNANDES, Rubem César, SACHS, Viola e outros. (Org.).
Brasil & EUA: religião e identidade nacional. Rio de Janeiro: Graal, 1988.
CALHOUN, Craig. Time, world and secularism. In: KIM, David Kyuman; TORPEY, John; VANAN-
TWERPEN, Jonathan; GORSKI, Philip S. The post-secular in question: religion in contemporary
society. New York: New York University Press, 2012.
CALLON, Michel; LASCOUMES, Pierre; BARTHE, Yannick. Agir dans un monde incertain. Essay
dur da démocracie technique. Paris: Seuil, 2001.
CASANOVA, José. Public religion in the modern world. Chicago: The University of Chicago Press, 1994.
________. Reconsideración de la secularización: una perspectiva comparada mundial. Revista Academica
de Relaciones Internacionales, UAM-AEDRI, v. 7, 2007.
CEFAÏ, Daniel. Como nos mobilizamos? A contribuição de uma abordagem pragmatista para a sociologia
da ação coletiva. Dilemas, 2009.

Religiões e controvérsias Final.indd 24 18/08/2015 09:59:48


FABIANI, Jean-Louis. Disputes, polémiques et controveerses dans les mondes intellectuels. Vers une

Introdução
25
sociologie historique des formes de débat agonistique. Mil neuf cent. Revue d´Histoire intellectual,
v. 25, 2007.
FOUCAULT, Michel. Segurança, território, população. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
LATOUR, Bruno. A ciência em ação. São Paulo: UNESP, 2000.
________. Reassembling the social. An introduction to Actor-Network Theory. Oxford: Oxford Uni-
versity Press, 2005.
LEMIEUX, Cyril. À quoi sert l’analyse des controverses? Mil neuf cent. Revue d’Histoire Intelectuelle,
v. 1, n. 25, 2007.
MODOOD, Tariq; LEVEY, Geoffrey Brahm. Secularism, religion and multicultural citizenship. Cam-
bridge: Cambridge University Press, 2009.
MONTERO, Paula. Religião, pluralismo e esfera pública no Brasil. Novos Estudos – CEBRAP, v. 74, 2006.
________. Secularização e espaço público: a reinvenção do pluralismo religioso no Brasil. Etnográfica,
v. 13, n. 1, 2009.
________. Jürgen Habermas: religião, diversidade cultural e publicidade. Novos Estudos – CEBRAP, v.
84, jul. 2009.
________. O campo religioso, secularismo e a esfera pública no Brasil. Boletim Cedes, PUC-RJ, 2011.
________. Multiculturalismo, identidades discursivas e espaço público. Sociologia e Antropologia, v.
2, 2012.
________. Religião, laicidade e secularismo: um debate contemporâneo à luz do caso brasileiro. Revis-
ta Cultura y Religión, Instituto de Estudios Internacionales (Inte) de la Universidad Artur Prat,
Chile, v. VII, n. 2, 2013.
________. Secularism and religion in the public sphere in contemporary Brazil. The Brill Handbook
of Contemporary Religions in Brazil, 2014.
PHARO, Patrick. Le civisme ordinaire. Paris: Merediens-Klincksieck, 1985.
QUEIRÓZ, Maria Isaura Pereira de. Identidade nacional. Religião, expressões culturais: a criação
religiosa no Brasil. SACHS, Viola (Org.). Brasil & EUA: religião e identidade nacional. Rio de
Janeiro: Graal, 1988.
QUÉRÉ, Louis. L´Opinion: l’économie du vraisemblable. Introduction à un approche praxéologique
de l´Opinion Publique. Réseaux, 1990.
________. L’espace Public comme lieu de láction collective. Revista ECO – Rio de Janeiro, UFRJ, vol.
12, n. 2 , 2011.
________. La estructure cognitive et normative de la confiance. Réseaux, vol 4, n. 108, 2001.
SANCHIS, Pierre (Org.). Fiéis & cidadãos. Percursos do sincretismo no Brasil. Rio de Janeiro: UERJ,
2001.
TAYLOR, Charles. A secular age. Cambridge: Harvard University Press, 2007.
________. Modes of secularism. In: BHARGAVA, Rajeev (Ed.). Secularism and its critics. Delhi:
Oxford University Press, 1998.

Religiões e controvérsias Final.indd 25 18/08/2015 09:59:48


Religiões e controvérsias Final.indd 26 18/08/2015 09:59:48
Política secular e intolerância religiosa na
disputa eleitoral
EDUARDO DULLO1

No dia 13 de setembro de 2012, a menos de um mês da eleição para prefei-


to, a Arquidiocese de São Paulo publica em seu site e divulga aos meios de
comunicação uma “Nota de repúdio” a um texto escrito por Marcos Pereira,
coordenador da campanha do candidato Celso Russomanno, do Partido Repu-
blicano Brasileiro (PRB). Naquele momento, segundo as pesquisas2, o candidato
do PRB possuía 35% das intenções de voto, sendo o primeiro da lista. O segundo
colocado era José Serra, do PSDB, com 19%, e em terceiro, Fernando Haddad, do
PT, com 15%. Celso Russomanno aparecia como uma grande surpresa, com um
avanço inesperado mesmo para os membros de seu próprio partido. A possível
eleição de Celso Russomanno para prefeito da maior cidade brasileira era vista
pelos adversários como uma ameaça iminente. De acordo com Abreu (2013), a
ameaça em um futuro próximo inverte a relação de causalidade, fazendo com
que a indeterminação do futuro opere como causa do presente. Esse parece ser

1
Doutor em antropologia social pelo Museu Nacional/UFRJ, pesquisador associado do CEBRAP e pós-
-doutorando junto ao Departamento de Antropologia da USP. Atualmente é visiting scholar junto
ao Social Anthropology Division na Universidade de Cambridge e bolsista FAPESP, processo número
2013/16433-3. Agradeço as sugestões de Regina Novaes, de Diana Lima, de Evandro Bonfim e de
Paula Montero a uma versão anterior deste texto.
2
Disponível em: <http://www.estadao.com.br/noticias/politica,crescimento-de-russomanno-e-
-homogeneo-aponta-diretora-do-ibope,930608,0.htm>.

Religiões e controvérsias Final.indd 27 18/08/2015 09:59:48


28 o caso na disputa eleitoral, a partir do prognóstico de vitória divulgado pelos
meios de comunicação com base nas pesquisas de intenção de voto.
O cenário trazia a profunda insatisfação do eleitorado com a linha de conti-
nuidade da prefeitura, com o PSDB como o partido da situação. Mesmo sendo
Kassab (DEM) o prefeito na ocasião (eleito em 2009), ele ganhara notoriedade
publicamente como o vice de Serra na eleição de 2004, assumindo o posto em
2006 quando este último renunciou para se candidatar ao governo do Estado. A
emergência de Celso Russomanno evidenciava o descontentamento da popula-
ção com as duas principais legendas: o PSDB e o PT, num cenário que se tornaria
mais dramático nacionalmente em 2013 com as manifestações durante o mês
de junho e com o rompimento parcial da polarização nas eleições presidenciais
de 2014, graças à candidatura de Marina Silva pelo PSB.
O primeiro parágrafo da “Nota” publicada pela Arquidiocese de São Paulo é este:
O “Pastor” Marcos Pereira, presidente do Partido Republicano Brasileiro (PRB), do
candidato à Prefeitura de São Paulo, Celso Russomanno, partido que é manifesta-
damente ligado à Igreja Universal, publicou no seu Blog, em um site vinculado ao
portal da Record, uma série de ataques à Igreja Católica (“Qual o futuro da educação
no Brasil?” – R7). Numa clara demonstração de destempero, ele atribui à Igreja o
tal “kit gay” do governo e se coloca totalmente contra o ensino religioso nas escolas,
esquecendo-se que o “Acordo Brasil-Santa Sé” poderá ser interpretado a favor de
todas as religiões. E não se impõe a ninguém, sendo a matrícula de livre escolha3.

Inicia-se, assim, a denúncia pública4 feita pela Igreja Católica. Seguindo a pro-
posta de Boltanski (2000), a denúncia pública envolve quatro atores formando
o sistema: (1) o denunciante, (2) o denunciado, (3) a vítima e (4) o juiz. No
presente caso, eles são: (1) o Arcebispado da Igreja Católica em São Paulo, (2)
Marcos Pereira, coordenador da campanha do candidato Celso Russomanno
(PRB), (3) a Igreja Católica, os fiéis católicos e a democracia em um Estado laico,
e (4) os eleitores, que votarão ou não no candidato do partido denunciado.
Não cabe, porém, ao analista julgar qual o objetivo ou plano secreto deste ou
daquele agente, e sim, seguindo a proposta de análise de uma denúncia e de

3
“Nota de repúdio”. Disponível em: <http://www.arquidiocesedesaopaulo.org.br/sites/arquidioce-
sedesaopaulo.pucsp.br/files/nota%20rep%C3%BAdio%20marcos%20pereira%20%281%29.pdf>.
4
A dimensão pública do evento tem lugar nos meios de comunicação de massa, centralmente os
jornais impressos, on-line (que privilegiei como material de pesquisa, dada a facilidade de acesso
tanto para o autor quanto para o leitor) e televisivos, responsáveis pela amplificação e pela visibi-
lidade dos discursos. Os sites tanto da Arquidiocese quanto do PRB também foram considerados
para esta análise.

Religiões e controvérsias Final.indd 28 18/08/2015 09:59:48


uma controvérsia pública, analisar os argumentos mobilizados, as justificativas

Política secular e intolerância religiosa na disputa eleitoral


29
apresentadas e as estratégias articuladas nos discursos (cf. BOLTANSKI, 2000;
BOLTANSKI; THÉVENOT, 2006; BOLTANSKI; CLAVERIE, 2007). Ao re-
cusar a posição de juiz do acontecimento, o analista não está, necessariamente,
evitando a atitude crítica, mas ressaltando que essa posição está socialmente
ocupada: os juízes legítimos dessa controvérsia são os eleitores e é a eles que
tanto o denunciado quanto o denunciante se dirigem5.
A metodologia de análise de controvérsias é particularmente instrutiva por
colocar em destaque as diferentes conceituações que os agentes possuem a
respeito de determinado assunto ou conceito. Além disso, essa abordagem evita
que o trabalho do pesquisador torne-se a descrição de uma (única) visão de
mundo ou ponto de vista sobre o acontecimento, elevando-o a um status que
não encontra ressonância no mundo social (maximizando sua visibilidade ou
tornando-o legítimo) ou utilizando-o para realizar um julgamento moral sobre
a situação. Ao levar a sério múltiplas posições contrastantes e em conflito, o
pesquisador é levado a analisar não apenas como os agentes se apresentam
publicamente, mas, sobretudo, como se constroem as relações (assimétricas)
entre eles e o exercício de poder de um sobre o outro6 – e deles em relação à
normatividade reinante. Torna-se, assim, imperativo que a controvérsia como
metodologia traga para a análise o ponto de vista de mais de um nativo. No
presente caso, tanto do Arcebispado da Igreja Católica quanto da campanha de
Celso Russomanno pelo PRB. O caso sob análise neste texto é particularmente
instrutivo para a compreensão dos sentidos sociais da laicidade, ao tornar
evidente como os envolvidos retraçam, a partir de suas posições, as fronteiras
entre religião e política. Isso ocorre por termos o representante máximo da
Igreja Católica local apresentando-se publicamente como um defensor da de-
mocracia e da laicidade na eleição, ao mesmo tempo que o denunciado é um
pastor licenciado da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), que reivindica

5
Além disso, é preciso atenção para a dimensão pública do trabalho de análise, na medida em que a
sua publicação orientada para o lado A ou B incidirá como mais um elemento da disputa e não como
uma explicação científica externa. Esse ponto fica claro na presença de professores universitários,
geralmente sociólogos, cientistas políticos, antropólogos e filósofos políticos que são chamados a
expressar sua opinião em jornais, seja na forma de entrevistas, na de colunas de opinião ou como
citações autorizadas (“o sociólogo X, da Universidade Y, nos afirma que...”). Todos esses apareci-
mentos na esfera pública são parte do material e concorrem para o argumento de um ou outro dos
atores na esfera pública.
6
Nesse sentido, a análise de controvérsias proposta por Boltanski se opõe por um lado à de Latour
(2005), que propõe uma ontologia plana com apenas duas posições (mediador e intermediário) e,
por outro, à proposta de Bourdieu (1986), na medida em que procura deslocar a “sociologia crítica”
para uma “sociologia da crítica” operada pelos próprios agentes sociais (BOLTANSKI, 2011).

Religiões e controvérsias Final.indd 29 18/08/2015 09:59:48


30 para si, também, o epíteto de defensor da laicidade num regime democráti-
co. Vemos, assim, duas posições contrastantes. A primeira veicula a posição
historicamente consolidada, e a segunda, a emergência de um novo paradigma
de articulação social dos conceitos de religião e política e, consequentemente,
disputa o sentido da laicidade.
Além do deslocamento metodológico, proveniente do uso da “controvérsia”,
outra precaução teórico-metodológica advém da perspectiva sendo construída
por pesquisadores como Casanova, Asad e Taylor, entre outros (DULLO, 2012).
Tais trabalhos discutem como se formulou e como se atualiza a formação de
sociedades seculares (para o caso brasileiro, DULLO, 2013, 2014). Ao adentrar
nessa literatura, torna-se essencial não confundir o termo socialmente em dis-
puta, laicidade, com instrumentos conceituais do analista, como “secularismo”,
definido como o conjunto de crenças ou doutrinas políticas que sustentam o
mundo secular e que, assim, são muito mais amplas do que a separação entre
Igreja e Estado, envolvendo noções de subjetividades, de corporalidade, a re-
flexividade científica e ainda de temporalidade (ASAD, 2011; BUTLER, 2008;
CASANOVA, 2011; KOSELLECK, 2003; TAYLOR, 2007), pouco ou nada
utilizado pelos agentes sociais. A análise de controvérsias se dá sempre entre
perspectivas discordantes dos agentes sociais posicionados, tornadas visíveis a
partir de momentos críticos. Por isso, e seguindo as propostas de Asad (2010),
cabe ao pesquisador analisar a maneira pela qual a religião é definida histórica
e situacionalmente ao invés de apresentar uma definição universal e trans-
-histórica do fenômeno. Uma das preocupações do analista, portanto, deve ser
menos a tentativa de definir, antropológica ou sociologicamente, o que é (ou
deveria ser) “religião” e/ou quais ações são intromissões ou “contaminações”
da “religião” na esfera da “política” e, mais, a de analisar as maneiras pelas
quais essas fronteiras são traçadas pelos agentes em disputa.
Enquanto o sistema de classificação da realidade religioso/secular pode ter
se globalizado, o que permanece bastante disputado e debatido em quase
todo lugar, hoje, no mundo, é como, onde e por quem as fronteiras entre o
religioso e o secular podem ser desenhadas com propriedade (CASANOVA,
2011, p. 637).
Nesse movimento, tomamos categorias como “religião”, “política” e a defe-
sa da “laicidade” como conceitos nativos a serem examinados. A união das
duas abordagens – o estudo da controvérsia e a sociologia/antropologia do
secularismo – tem o mérito de nos permitir analisar as maneiras pelas quais,

7
Todas as traduções são de minha responsabilidade.

Religiões e controvérsias Final.indd 30 18/08/2015 09:59:48


historicamente, se configurou a secularidade no Brasil, ao invés de avaliar a

Política secular e intolerância religiosa na disputa eleitoral


31
nossa maior ou menor adequação aos padrões de laicidade derivados de países
europeus ou norte-americanos.
Avançarei, assim, o meu argumento central de que a Igreja Católica possui uma
posição bifronte no cenário brasileiro: por um lado ela é o paradigma social-
mente legítimo de “religião”; por outro, ela é um dos agentes fundamentais da
constituição de uma sociedade civil secular nacional, tendo agido em favor da
democracia e contra os regimes autoritários. O caso empírico aqui analisado
nos permitirá observar como essa posição se reatualiza no confronto com a
emergência de uma nova configuração entre os conceitos, proposta por uma
crescente presença evangélica na esfera pública.
Façamos, portanto, uma sistematização. Primeiro: quais os pontos da denúncia?
Como eles se referem ao texto de Marcos Pereira publicado no blog? A quais
contestações iniciais essa denúncia responde? E, ainda, quais são as estratégias
utilizadas para o engrandecimento de si e para a diminuição do outro? Um
segundo momento de análise se referirá às tentativas do denunciado e de seus
associados de evitar a instauração de uma disputa prolongada. Por fim, fecha-
remos com a tentativa de Celso Russomanno de encontrar-se pessoalmente
com Dom Odilo Scherer, o arcebispo, e sua ausência no colóquio organizado
pela Igreja Católica com os cinco candidatos com maiores índices de intenção
de voto. A partir desses elementos veremos quais foram as ações vistas como
afronta à “laicidade” por cada um dos envolvidos e quais os limites socialmente
aceitos para a presença da “religião” na esfera pública e/ou na “política”.

A denúncia
A denúncia pode ser resumida em um ponto central: o texto do coordenador
da campanha de Russomanno “cheira a intolerância religiosa”. Porém, isso
pode ser desdobrado: a acusação deve-se a dois argumentos do texto original
de Pereira, que foram interpretados como falsas acusações em relação à Igreja
Católica e como incitação à discórdia. Além disso, a categoria de acusação into-
lerância religiosa faz menção a um rompimento da fronteira entre “religião” e
“política”, que deveriam ser mantidas em separado – e de maneira ainda mais
clara durante as eleições. Vejamos os trechos:
Atribuir o malfadado “Kit Gay” e os males da educação no Brasil à Igreja Católica
não faz nenhum sentido e cheira a intolerância religiosa, que nunca foi e nem deverá
ser alimentada ou incentivada.

Religiões e controvérsias Final.indd 31 18/08/2015 09:59:48


32 Qual seria o motivo para ataques tão gratuitos, infundados e ridículos à Igreja
Católica em tempo de Campanha Eleitoral? Lamentavelmente, se já fomentam
discórdia, ataques e ofensas sem o Poder, o que esperar se o conquistarem, mesmo
parcialmente, pelo voto? (“Nota”, grifos meus).

O trecho de Pereira, cujo texto tem por título “Qual o futuro da educação no
Brasil?” (doravante “QFEB”), que motivou a resposta é o seguinte:
Agora, tentam nos impor os famigerados “kits gays”. Até quando o Vaticano terá
o controle das ações do governo, seja federal, estadual ou municipal? Até quando
o Brasil do século 21 continuará se curvando às “batinas púrpuras” de Roma? Pre-
cisamos salvar o Brasil e torná-lo um país verdadeiramente laico, completamente
livre da influência da religião (grifos meus).

Para além da polêmica do “kit gay” ou de combate à homofobia – e que não


foram implantados –, o texto de Pereira traz a acusação similar à da Arquidio-
cese de que há uma ingerência da religião na política, impedindo o caráter laico
do Estado de se consolidar de fato, sendo apenas de direito. Não apenas isso,
o trecho faz referência ao centro hierárquico de decisões da Igreja Católica, ao
usar os termos “Vaticano” e “Roma”, localizando, portanto, a fonte de influência
no Estado brasileiro fora do território nacional. Nesse sentido, é importante
atentar para o fato de que uma das três palavras-chave (os tags) com que ele
marcou a sua publicação foi “Roma”, sendo as outras duas “Estado laico” e
“kit gay”. A marcação e o uso de um localizador espacial específico em vez
de Igreja “Católica”, que quer dizer universal, serve como uma estratégia de
diminuição do adversário, evitando a generalização de uma posição (o cristia-
nismo eurocêntrico romano) como válida para outros contextos (o brasileiro).
A marcação de “Estado laico” é utilizada como bandeira política também na
crítica do “Acordo Brasil-Santa Sé” (para uma discussão do Acordo, ver GIUM-
BELLI, 2011), recusando-se o ensino religioso em escolas públicas como parte
dessa interferência. Com isso, Pereira reivindica para si a posição de defensor
da laicidade brasileira. Em seu blog, Pereira apresenta-se da seguinte forma:
Marcos Pereira é especialista em Direito e Processo Penal pela Universidade
Presbiteriana Mackenzie, professor universitário de Direito, advogado no Brasil
e em Portugal e membro fundador da CJLP – Comunidade de Juristas de Língua
Portuguesa. Foi membro colaborador nas comissões de Direito à Adoção e Seleção
e Inscrição da OAB/SP (Ordem dos Advogados do Brasil). Atualmente é Presidente
Nacional do PRB (Partido Republicano Brasileiro)8.

8
Perfil em: <http://noticias.r7.com/blogs/marcos-pereira>.

Religiões e controvérsias Final.indd 32 18/08/2015 09:59:48


É relevante analisarmos a apresentação de si tendo em vista as estratégias de

Política secular e intolerância religiosa na disputa eleitoral


33
engrandecimento e de legitimação do próprio discurso. Em momento algum
aparece o seu pertencimento religioso, como pastor da IURD. Ao contrário,
o que se divulga é uma carreira secular, preocupada com o regramento da
sociedade, sua legislação. Além disso, sua estratégia de engrandecimento vem
pela associação com diferentes entidades coletivas da sua área profissional:
“colaborador na comissão...”, “membro fundador da...”, “professor universi-
tário de...”, terminando com um engrandecimento fundamental na dimensão
política: “Presidente nacional do...”.
Em contraposição a esse engrandecimento, podemos marcar a diminuição
que a “Nota” da Arquidiocese opera em Pereira. Em primeiro lugar, devemos
marcar o uso de aspas ao se dirigir a ele com os termos “pastor” e “jurista”,
implicando uma reflexão acerca do sentido colocado. Ou seja, será ele real-
mente um pastor, termo religioso cujo uso a Igreja Católica deseja restringir,
reivindicando-o para seus membros, se o que ele faz é promover a discórdia?
Que pastor é esse que recai no pecado da vaidade ao se autoproclamar, se
“pavonear”? E será realmente um jurista apesar de seus títulos universitários
se ele se apresenta tão distante do conhecimento da justiça a ponto de fazer
acusações infundadas? É nessa dupla direção – tanto religiosa quanto secular
– que chega a afirmação contida na “Nota”: “Ele se pavoneia gritando um
currículo invejável, como se isso lhe desse o direito de falar inverdades, para
não dizer bobagens.” Esse duplo ataque já nos permite vislumbrar a posição
bifronte da Igreja Católica.

Instaurando ou dissolvendo a controvérsia?


Retornemos, portanto, à denúncia. As pesquisas de opinião apresentavam uma
grande vitória de Celso Russomanno, o que desagradava as duas grandes forças
políticas que se imaginaram as únicas com real capacidade de vitória: o PT e o
PSDB. Sendo o PRB um partido de menor expressão no cenário político local, a
existência de uma denúncia, vinda de fora da disputa eleitoral, foi um duro
golpe para a candidatura9. Para Russomanno era necessário, portanto, que se

9
“Integrantes das campanhas de José Serra (PSDB) e Haddad já esperavam reação da Igreja Católica
que apontasse as ‘contradições’ do candidato do PRB, por causa da ligação de integrantes do partido
com a Igreja Universal. Embora tenham se encontrado recentemente com d. Odilo, negam que
fomentaram a reação.” Arquidiocese diz que partido de Russomanno fomenta discórdia. Disponível
em: <http://www.estadao.com.br/noticias/politica,arquidiocese-diz-que-partido-de-russomanno-
-fomenta-discordia,930304,0.htm>. Acesso em: 14 set. 2012, data da publicação.

Religiões e controvérsias Final.indd 33 18/08/2015 09:59:48


34 apresentasse uma defesa e, na melhor das hipóteses, que se evitasse a instau-
ração de uma disputa prolongada e, se possível, que se retirasse a denúncia.
O primeiro argumento de defesa da campanha foi o da não coetaneidade do
texto do blog e o da denúncia. Assim, reivindicaram que o texto de Pereira
era de maio de 2011 e, portanto, não dizia respeito a uma polêmica atual. Se-
ria a Igreja Católica, por meio de sua Arquidiocese de São Paulo, que estaria
utilizando esse texto em tempo de eleição?
Segundo Pereira, o texto é antigo. “Era uma época em que eu estreava o blog e
vivíamos um momento específico, que era o possível lançamento do famigerado
kit gay. Querem ressuscitar uma coisa do passado.” O presidente do PRB disse que
o artigo não foi um ataque à Igreja Católica. “Foi uma opinião sobre questão espe-
cífica naquele momento10.”

“Lamento que tal exercício de pensamento publicado há um ano e quatro meses


seja usado de maneira indevida às vésperas da eleição para a prefeitura de São
Paulo”, escreveu Pereira11.

Esse argumento procura fazer a denúncia da denúncia, virar a mesa e mostrar


a Igreja como a verdadeira responsável pela intromissão religiosa da política. A
essa estratégia a Arquidiocese respondeu que o texto do blog era atual por estar
on-line, disponível para quem quisesse ver – o texto estava no arquivo do blog.
A Arquidiocese não aceita a afirmação de que o fato foi trazido à tona por ela
mesma, ou por um “falso blogueiro”, uma vez que nem o próprio autor negou a
autoria do escrito, que se encontra atualmente no seu blog, e também nos “sites”
relacionados com o mesmo partido. Portanto, o artigo já estava sendo usado na
campanha eleitoral, antes da manifestação da Arquidiocese12.

Outro argumento mobilizado, e este foi mais recorrente, foi o de minimizar


a presença da IURD no partido e na campanha de Russomanno, e ampliar a
visibilidade católica. Nessa direção, o candidato afirmou em vários momentos
que o PRB contaria com 80% de católicos ante 20% de evangélicos, sendo que
apenas 6% do total seria da Universal e 14% de outras denominações cristãs.
Além disso, na tentativa de impedir o prolongamento da disputa, tanto Perei-

10
Arquidiocese diz que partido de Russomanno fomenta discórdia. O Estado de S. Paulo, 14 set. 2012.
11
Presidente do PRB diz lamentar uso eleitoral de seu texto por Igreja Católica. Disponível em: <http://
www1.folha.uol.com.br/poder/1154745-russomanno-diz-que-pretende-falar-com-arcebispo-sobre-
-ofensiva.shtml>. Acesso em: 14 set. 2012, data da publicação.
12
Set. 2012, “Política com ofensas à Igreja, não!”. Disponível em: <http://www.arquidiocesedesao-
paulo.org.br/?q=node/173688>. Acesso em: 16. set. 2012.

Religiões e controvérsias Final.indd 34 18/08/2015 09:59:48


ra quanto o próprio Russomanno reivindicaram para o último a condição de

Política secular e intolerância religiosa na disputa eleitoral


35
“católico” e a independência do candidato em relação aos membros do partido
ou aos apoios.
Pereira também destacou que Russomanno é católico e foi irônico ao comentar
trecho da nota que diz que integrantes da campanha “fomentam a discórdia”.
“Russomanno é católico. É ele que vai estar no poder, se vencer. E, portanto, não
oferece nenhum risco, já que é católico”13 (grifo nosso).

– Como bom cristão que sou, o que a gente precisa é amar o próximo. Eu não vou
plantar uma guerra santa. Nós estamos na campanha para a prefeitura de São Paulo.
Não é uma campanha religiosa14 (grifo nosso).

Os dois trechos são sumamente importantes: o primeiro aponta para a ideia


de que um candidato católico “não oferece nenhum risco”; o segundo pontua
que ele não está interessado em fazer da campanha eleitoral uma campanha
religiosa, em que a lógica imperante é a de uma “guerra santa”. Vê-se que es-
ses dois argumentos mostram como ele assume a posição normativa da Igreja
Católica em sua tentativa de evitar os danos à sua imagem. Afirmando-se como
católico – e não como evangélico ou como cidadão –, ele explicita o fato de que
essa é uma posição legítima e dominante. Por outro lado, quando associada à
segunda afirmação, vemos que o fato de o candidato ser católico não faz com
que sua campanha seja religiosa, mas esteja dentro das regras socialmente
válidas para a laicidade. Além disso, o fato de que ele retrocedeu, assumindo
discursivamente uma posição católica, demonstra a assimetria de poder na
relação entre esses dois agentes e/ou coletivos.
Em consonância a essas declarações, Russomanno conseguiu o apoio do bispo
da região sul e de um dos sacerdotes mais midiáticos da Igreja Católica, o padre
Marcelo Rossi – que teria celebrado o casamento do candidato com a segunda
esposa (ele é viúvo) e faria o batismo do futuro filho do candidato, posto que
a mulher deste estava grávida.
Em meio à crise entre a Arquidiocese de São Paulo e Celso Russomanno, o bispo
da Diocese de Santo Amaro, dom Fernando Antônio Figueiredo, defendeu ontem
o candidato do PRB a prefeito como um “bom católico”.

13
Russomanno minimiza carta da Igreja Católica contra PRB. Disponível em: <http://www.estadao.
com.br/noticias/politica,russomanno-minimiza-carta-da-igreja-catolica-contra-prb,930617,0.htm>.
Acesso em: 14 set. 2012, data da publicação.
14
Russomanno diz ser ‘bom cristão’ e promete não criar ‘guerra santa’. Disponível em: <http://
oglobo.globo.com/pais/russomanno-diz-ser-bom-cristao-promete-nao-criar-guerra-santa-
-6116649#ixzz26wBBUL62>. Acesso em: 19 set. 2012, publicado em 17 set. 2012.

Religiões e controvérsias Final.indd 35 18/08/2015 09:59:48


36 “Confio muito na sinceridade, na honestidade e no modo de agir e pensar de
Russomanno e de D’Urso. Serão totalmente independentes na questão religiosa”,
disse o bispo, também se referindo ao candidato a vice, Luiz Flávio Borges D’Urso
(PTB). “Eles são pessoas boas, conhecidas e de igreja15.”

“Só para encerrar o que você colocou: hoje dom Fernando, da Igreja Católica da
região sul, saiu em minha defesa. Ele me conhece. Não preciso dizer que sou católico.
Eu sou o que sou. As pessoas me conhecem há muitos anos”, afirmou Russomanno,
em entrevista ao SPTV, da TV Globo16 (grifo nosso).

Podemos observar esse núcleo de contra-argumentos da campanha como um


núcleo “religioso”, na medida em que é pela tentativa de associar-se com uma
imagem e identidade católica e não com uma cidadania desprovida de pertenci-
mentos religiosos. A inclusão de um membro da hierarquia como o bispo dom
Fernando e do sacerdote padre Marcelo Rossi, que é o mais midiático de todos os
padres brasileiros e possui forte apelo popular, garantiriam a legitimidade de sua
fala. Entretanto, como podemos notar pela última citação, a necessidade de
dizer que ele não precisa se afirmar católico é exemplar da crise em que ele
se encontra. Certamente, uma conclusão a tirar dessa linha de argumentação
de Russomanno é que podemos ver associações inesperadas, como a do apoio
recebido por parte da hierarquia católica. Porém, mais relevante ainda para a
nossa análise é que todo esse conjunto de justificações traz como aceita a iden-
tidade católica de um candidato, mas recusa a aproximação com os evangélicos.
Por qual razão apresentar-se como católico não é visto como problemático?
Ou como interferência da religião na política? Qual é a lógica subjacente às
afirmações do bispo ao dizer que ele seria isento na questão religiosa e, ao
mesmo tempo, afirmar que ele é uma pessoa “de Igreja”?
Renova-se, assim, a percepção de que não há uma interferência da religião
na política quando um candidato é católico, mas há um problema quando o
candidato aparece como vinculado a uma instituição religiosa não católica,
principalmente se for evangélica ou neopentecostal. Nesse caso, como as
justificativas mostraram, há a suspeita de que exista algum interesse escuso
na associação entre partido e Igreja. O maior problema, nesse sentido, é a
referência implícita à “bancada evangélica”, isto é, candidatos que, se eleitos,

15
Para bispo do padre Marcelo, Russomanno é “boa pessoa”. Disponível em: <http://www1.folha.uol.
com.br/poder/1156261-para-bispo-do-padre-marcelo-russomanno-e-boa-pessoa.shtml>. Acesso
em: 20 set. 2012, data da publicação.
16
Russomanno comemora defesa feita por bispo do padre Marcelo. Disponível em: <http://www1.
folha.uol.com.br/poder/1156461-russomanno-comemora-defesa-feita-por-bispo-do-padre-marcelo.
shtml>. Acesso em: 20 set. 2012, data da publicação.

Religiões e controvérsias Final.indd 36 18/08/2015 09:59:48


propõem projetos de lei e votam nas câmaras de acordo com os princípios

Política secular e intolerância religiosa na disputa eleitoral


37
morais de sua “crença”. Esse aspecto será retomado na conclusão, mas é
possível adiantar que esse ponto merece consideração na medida em que não
existe uma “bancada católica” formalmente organizada, ainda que exista forte
influência de políticos que são leigos católicos e, ainda, da instituição, na forma
da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).
A nossa delimitação metodológica da controvérsia não termina com esses
pronunciamentos. Dom Odilo Scherer reforçou a sua posição no dia 16 de
setembro. Ele escreveu uma nota que deveria ser lida durante as homilias das
missas dominicais, por aproximadamente 300 padres, repercutindo em milhares
de fiéis. Com o título “Política com ofensas à Igreja, não!”17, ele afirma que:
Arquidiocese, através de seu Arcebispo e dos Bispos Auxiliares, também deu
orientações e critérios sobre a participação dos fiéis na campanha eleitoral e na
vida política da cidade e sobre a escolha de candidatos idôneos, embora sem citar
nomes ou partidos. Essas orientações estão amplamente divulgadas18. Entendemos
que o voto dos cidadãos é livre e não deve ser imposto aos fiéis, como por “cabresto
eleitoral”, pelos ministros religiosos; nem devem nossos templos e organizações
religiosas ser transformados em “currais eleitorais”, reeditando práticas de uma
política viciada, que deveriam estar superadas. A manipulação política da religião
não é um benefício para o convívio democrático e pluralista e pode colocar em
risco a tolerância e a paz social.

Esse trecho é particularmente instrutivo para que compreendamos as diferenças


de posições e avancemos mais na tese de que a Igreja Católica sustenta-se em
uma posição bifronte. Do ponto de vista da Arquidiocese, o que está em jogo
é uma “manipulação política da religião”, em que os fiéis não são mobilizados
como cidadãos, livres e independentes, capazes de realizar as próprias escolhas,
mas conduzidos, governados por um pastor que os leva para o terreno mais
propício para eles, numa prática pouco democrática que remete ao coronelis-
mo da primeira metade do século XX. Assim, os termos “cabresto eleitoral” e
“curral eleitoral” trazem a imagem de uma população entendida como animal,
como um gado que precisa ser levado e direcionado, ao contrário de sujeitos
capazes de reflexão e decisão própria. Tal postura seria oposta à da própria
Igreja Católica, que, sem desconsiderar a importância da vida cidadã, não
impõe aos seus fiéis um determinado candidato, mas “apresenta orientações”.

17
Disponível em: <http://www.arquidiocesedesaopaulo.org.br/?q=node/173688>.
18
Ver Anexo.

Religiões e controvérsias Final.indd 37 18/08/2015 09:59:48


38 Além da leitura denunciatória dessas práticas, poderíamos nos perguntar se
o que está em jogo não pode ser analisado sob a ótica do “poder pastoral”, tal
como delimitado por Foucault (2003, 2008). Nos termos do autor, algumas
das características dessa relação é que um pastor “exerce seu poder sobre um
rebanho, mais do que sobre uma terra”; “reúne, guia e conduz seu rebanho”;
e visa assegurar a sua salvação (2003, p. 359). Não está fora dessa relação a
imagem do “curral”, pois é tarefa do pastor “conduzi-lo [o rebanho]a uma
boa pastagem ou reuni-lo no curral” (2003, p. 360). Por fim, tudo que o
pastor faz é pelo bem de seu rebanho. Esse último aspecto é importante
para uma diferenciação que faremos adiante, entre duas variações do poder
pastoral – uma evangélica e outra católica. O pastor representante político
pode ser lido como aquele que luta, ele mesmo, para garantir a salvação
do seu rebanho, ao passo que a forma católica é a de incentivar/governar
os leigos, de maneira a motivá-los a se manifestarem politicamente para
defender os valores e princípios de sua fé. Essa primeira diferenciação é
crucial: enquanto o poder pastoral evangélico é marcado pela ação do pastor
representante político, no poder pastoral católico o sacerdote estimula o
fiel a agir politicamente.
Lançadas em 15 de agosto de 2012, as “orientações” católicas (ver Anexo) para
as eleições municipais continham dez instruções. Cada uma delas possuía uma
frase em negrito, que resumia a ideia do parágrafo, e um trecho mais explica-
tivo. Em resumo, eram: 1. Participe e vote; 2. Vote em quem você conhece;
3. Prefeito e vereadores devem promover o bem comum; 4. Candidato de
quem?; 5. Confira a ficha; 6. Não venda o voto, nem o troque por favores; 7.
Vote com consciência e liberdade; 8. Questione se os candidatos...; 9. Política,
religião e família; 10. Fique de olho.
Considerando todas as dificuldades encontradas na tentativa de evitar a que-
rela, a campanha de Russomanno decide evitar o embate “religioso”, alterando
o foco para a questão “política”, como a de suas propostas de governo para a
prefeitura. Sua fala se torna, então, mais uma vez de defesa da cidadania e da
laicidade, pois ele afirma que “Religião é religião e política é política”. Assim, a
denúncia ocorrida nos permite observar de maneira clara as (não) delimitações
entre religião e política no Brasil. A candente questão e a luta por definição do
que é ou não “religião” pode ser observada na entrevista do candidato ao SPTV,
da Rede Globo. Ali, após ser questionado seguidamente acerca da presença
de membros da IURD em seu partido e/ou em sua campanha, ele respondeu ao
entrevistador: “Posso te pedir um favor? Vamos falar sobre São Paulo? Vamos
parar de discutir religião?”

Religiões e controvérsias Final.indd 38 18/08/2015 09:59:48


“Acho triste, essa apelação não leva a nada, não constrói cidadania, não respeita

Política secular e intolerância religiosa na disputa eleitoral


39
o eleitorado, não está respeitando o cidadão que quer saber das propostas para a
cidade”, ponderou Russomanno19.

Após insistência de jornalistas para que falasse sobre denúncias que vêm sendo
veiculadas na imprensa, Russomanno não quis comentar. “Quero falar sobre São
Paulo. Vamos parar. Se vocês quiserem falar sobre São Paulo estou a toda disposição,
com todo o entusiasmo”, disse20.

A disputa parecia suficientemente forte e, para que não afetasse a campanha,


restou aos membros do partido a mesma estratégia utilizada pelo site institu-
cional do PRB e do site ao qual está vinculado o blog de Pereira (R7, da Record,
vista como o braço midiático da IURD): o silêncio sobre o assunto, na tentativa
de fazê-lo extinguir-se. “Contatado, Pereira disse que não comentaria a carta,
para tentar ‘encerrar o assunto’21.”
Porém, essa última estratégia não foi bem-sucedida e, diante dos constantes
ataques que sofreu, Russomanno se retira do “Colóquio” organizado pela Igreja
Católica com os candidatos. Sua equipe tentou, em vão, organizar um encontro
com dom Odilo Scherer, que recusou com um argumento que figuraria entre
as posições da transparência democrática:
Questionado sobre se sua participação no debate de quinta-feira depende do
encontro com o arcebispo, o candidato do PRB disse que sua equipe considera
aconselhável a conversa. – Eu estou trabalhando com toda uma equipe e a equipe
acha prudente que eu converse com ele antes de ir para um debate onde eu não
sei o que vai acontecer – afirmou22.

Dom Odilo, que se prepara para embarcar para Roma em outubro, alegou um
problema de agenda para não receber Russomanno antes do debate promovido
pela Igreja Católica, mas não descartou receber o candidato antes da viagem. Outro

19
Não vamos fazer de São Paulo uma guerra santa. Disponível em: <http://www.estadao.com.br/
noticias/impresso,nao-vamos-fazer-de-sao-paulo-uma-guerra-santa-,931619,0.htm>. Acesso em:
17 set. 2012, data da publicação.
20
“Religião é religião e política é política”, diz Russomanno. Disponível em: <http://www.estadao.
com.br/noticias/nacional,religiao-e-religiao-e-politica-e-politica-diz-russomanno,931111,0.htm>.
Acesso em: 15 set. 2012, data da publicação.
21
Russomanno é alvo da Igreja Católica em missas dominicais. Disponível em: <http://www1.folha.
uol.com.br/poder/1154520-russomanno-e-alvo-da-igreja-catolica-em-missas-dominicais.shtml>.
Acesso em: 17 set. 2012, data da publicação.
22
Russomanno diz que arcebispo de SP precisa conhecê-lo de perto. Disponível em: <http://
oglobo.globo.com/pais/russomanno-diz-que-arcebispo-de-sp-precisa-conhece-lo-de-perto-
-6129265#ixzz26wAsnNCr>. Acesso em: 19 set. 2012, publicado em: 18 set. 2012.

Religiões e controvérsias Final.indd 39 18/08/2015 09:59:48


40 motivo mencionado pelo líder religioso para não se encontrar com o candidato do
PRB na véspera do colóquio, segundo a assessoria de imprensa da arquidiocese, foi

que isso poderia causar um mal-estar com os outros candidatos, uma vez que não
estava previsto nas regras do encontro23.

Russomanno não vai ao “Colóquio” organizado pela Arquidiocese com os


cinco candidatos com maior intenção de voto nas pesquisas. Na mesa em que
figurariam, lado a lado, permanece vago o local destinado a ele, com o seu
nome visível, tornando concreta a sua ausência. Esse é mais um dos momentos
em que podemos observar a assimetria de poder entre os envolvidos: a Igreja
Católica foi capaz de organizar um evento e convocar os candidatos para que
respondessem a perguntas feitas pelo seu clero. Essa prática, normalmente
restrita aos meios de comunicação de massa com a justificativa de tornar visíveis
as propostas dos candidatos, foi realizada por uma Igreja. Para Russomanno,
sobrou apenas a decisão quanto a ir ou não ao evento.
Seu encontro com dom Odilo ocorre, portanto, após o “Colóquio” e marca o
término da controvérsia. Em dez dias de intensas discussões, o candidato do
PRB saiu enfraquecido, tendo que se explicar ao arcebispo de São Paulo para
tentar readquirir a confiança de muitos eleitores católicos e não católicos.
O cardeal confirmou que, na reunião, Russomanno procurou se desvincular do
episódio que gerou o desconforto com a Igreja. Ele também disse esperar que o fato
seja considerado agora “letra morta”. “Quanto ao artigo, eles tomaram distância. E
espero que daqui por diante isso seja considerado letra morta. Agora a gente precisa
ver os passos seguintes”, afirmou o cardeal24.

A posição bifronte do catolicismo


O desfecho do último tópico demonstra a reatualização da posição católica
como dominante, ao mesmo tempo que torna explícita a crescente presença
de outras formas, contestatórias de sua normatividade. Assim, ela é o modelo
legítimo de uma Igreja que se mantém circunscrita ao domínio socialmente
estabelecido como “religioso”, ao mesmo tempo que se manifesta como agente
de defesa e constituição de uma sociedade civil democrática e secular.

23
Cardeal nega encontro com Russomanno antes de debate. Disponível em: <http://g1.globo.com/sao-
-paulo/eleicoes/2012/noticia/2012/09/cardeal-nega-encontro-com-russomanno-antes-de-debate.
html>. Acesso em: 19 set. 2012, data da publicação.
24
Russomanno busca desfazer mal-estar com arcebispo. Disponível em: <http://www.estadao.com.
br/noticias/nacional,russomanno-busca-desfazer-mal-estar-com-arcebispo-,934407,0.htm>. Acesso
em: 22 set. 2012, data da publicação.

Religiões e controvérsias Final.indd 40 18/08/2015 09:59:48


Poderia parecer inusitado que a Igreja Católica, que tem por princípio a au-

Política secular e intolerância religiosa na disputa eleitoral


41
toridade da mediação com o divino, fosse compreendida como promovendo
uma discussão democrática e secular. Porém, isso só seria incompreensível caso
não atentássemos para a sua posição histórica no Brasil e para a singularidade
do caso nacional. O que é preciso compreender é que não é a Igreja Católica
no Brasil que está promovendo uma democracia secular, ou melhor, não é
apenas isso. Trata-se, em suma, da uma constituição histórica da secularidade
democrática brasileira a partir do entendimento católico do tema. Isto é, meu
argumento é o de que a percepção consolidada do que é uma posição “laica”
no debate político é derivada da própria posição católica. Não é, portanto, a
Igreja que se tornou laica, mas a laicidade brasileira que está prenhe de um
determinado catolicismo.
Para que possamos alcançar uma alternativa analítica aos posicionamentos
mobilizados pelos agentes, sugiro a recuperação da dimensão histórica. Nesse
sentido, o caso brasileiro se deu por uma predominância da Igreja Católica
como o paradigma do que é uma religião (GIUMBELLI, 2008; MONTERO,
2009). Desde a separação entre Igreja e Estado, com a constituição republicana
no final do século XIX, a Igreja veio progressivamente adotando uma postura
de “formação das almas” em vez de tentar recuperar o poder estatal (cf. RO-
MANO, 1979). Seguramente diversos foram os momentos em que houve a
busca por um retorno a essa ligação, mas não tem sido a posição dominante
– o que pode ser evidenciado já nos anos 1920 com a recusa de criação de um
partido católico por parte de dom Leme (em contraposição ao leigo Jackson
de Figueiredo, que teve de se contentar com a Liga Eleitoral Católica, como
forma de influenciar o eleitorado para não votar em determinados candidatos).
Essa postura, expandida na figura de seu sucessor Amoroso Lima, vem coroar a
disposição da Igreja em afastar-se da política institucional e optar pela política
societária, pela relação de esclarecimento da população quanto aos verdadeiros
valores e princípios a serem seguidos e defendidos, bem como na denúncia
de determinados candidatos como contrários a esses ideais. Essa postura fica
bem expressa na posição da Igreja em desmontar candidaturas que estão na
posição antagônica aos seus princípios e não na adoção do simples apoio a um
ou outro candidato. Além disso, a Igreja Católica foi um importante agente
na oposição ao regime militar e na luta pelos direitos humanos e políticos (cf.
KADT, 2003; PAIVA, 2003), o que a fez identificar-se com a democracia atual,
aspecto utilizado por ela em suas justificações.
A denúncia e a polêmica que se seguiu estão em consonância com essa postura
histórica. A minha sugestão é a de que a Igreja Católica articulou os termos
“religião” e “política” (e, com isso, formulou um determinado sentido para a

Religiões e controvérsias Final.indd 41 18/08/2015 09:59:48


42 “laicidade”) com base em sua experiência e, mais importante, essa é uma forma
de secularidade que se consolidou ao longo do século XX (cf. DULLO, 2013).
Assim, quero ressaltar os pontos de discordância entre os agentes para tornar
visível a forma secular católica e como ela é entendida como a referência tanto
para o nosso entendimento de “religião” quanto de respeito à “laicidade” do
Estado. A interpretação que ofereço é a de que a Igreja Católica alcançou uma
posição bifronte: ao mesmo tempo que é a referência legítima para o que é uma
religião, ela é a referência de agente secular capaz de fomentar a democracia, po-
sição que é, apenas, reatualizada no presente caso. Enquanto a primeira posição
já foi objeto de análise – como em Giumbelli e em Montero –, a segunda posi-
ção ainda precisa ser elucidada. Vejamos, portanto, uma primeira delimitação.
Nas “orientações” que apresentou aos seus fiéis, a Arquidiocese listou dez di-
retrizes, já citadas. Em sua maioria, elas projetam uma grande abstração, como
afirmações de princípios: “[os candidatos] devem promover o bem comum”,
“o bom governante deve governar para todos”, “seu voto é sua dignidade”,
“não deixe de seguir a campanha”, “fique atento a toda prática de corrupção
eleitoral” e, ainda, “depois das eleições, acompanhe as ações e decisões [...].”
Ao contrastar a orientação católica com a posição denunciada (subentendida
como evangélica), podemos ver que não há referentes concretos, como pautas
específicas pelas quais os católicos deveriam se mobilizar. Não há, tampouco,
a recusa de candidatos, partidos ou pautas – com uma única exceção sobre a
qual voltarei adiante. Essa retórica possibilita um engrandecimento da posição
e uma maior generalização, nos termos de Boltanski (2000), fazendo com que
ela seja mais facilmente aceita na esfera pública. Sua preocupação com o “bem
comum” é característica de toda uma tradição democrática e dificilmente
seria rotulada como “religiosa”. Em suma, todo o folheto está inscrito numa
retórica secular, democrática, de aconselhamento e conscientização daquele
que deve, livremente, realizar a sua escolha. O fiel católico, aqui, não aparece
como sujeitado ao cabresto religioso da Igreja, como na imagem veiculada de
um “curral eleitoral”. A livre escolha, cidadã, é o tom dominante.
Essa posição foi reiterada na afirmação do arcebispo na abertura do “Colóquio”
com os candidatos: “Nós devemos orientar, mas não indicar um candidato.
Escolher o candidato é função do leigo católico e não da Igreja.” Porém, aqui é
importante fazer uma dissociação entre cidadão e leigo. O material veiculado e
as falas dos religiosos católicos marcam sempre a qualificação daqueles a quem
endereçam sua mensagem: são os fiéis, os leigos e não o cidadão indiferenciado.
Essa importante marcação de pertencimento combina-se com o comentário
feito acima acerca das variações do “poder pastoral”. A Igreja Católica opera,
governando e conduzindo seu rebanho, de maneira a que eles sejam agentes pú-

Religiões e controvérsias Final.indd 42 18/08/2015 09:59:48


blicos de uma democracia secular. Nessa posição bifronte, cabe à Igreja Católica

Política secular e intolerância religiosa na disputa eleitoral


43
manter-se afastada da “política” enquanto instituição, respeitando a legislação
acerca da “laicidade” estatal. Porém, a presença e a participação de seus fiéis
na esfera pública e nas disputas eleitorais e democráticas fazem parte da lógica
socialmente estabelecida ao longo da experiência brasileira do século XX.
A diferenciação entre ação de leigos e ação da Igreja remonta, no Brasil, ao
final dos anos 1930, em que, com a Ação Católica, Amoroso Lima subscreve
a separação pontuada por Maritain (cf. CROCHET, 2003; VILLAÇA, 1975).
Podemos, assim, ver como o descontentamento expresso pelo arcebispo em
relação ao texto do blog de Marcos Pereira segue nessa direção. Seria o pastor
da IURD, agora um secular coordenador de campanha, que estaria ferindo um
determinado sentido da “laicidade”, ao associar-se a duas instituições que
deveriam ser mantidas em separado? Ou seria uma transgressão a associação
da Igreja Católica por via do Acordo Brasil-Santa Sé? Instada a se defender, a
Arquidiocese assume na “Nota” não apenas a sua própria defesa, o que dimi-
nuiria a força do argumento, mas apresenta-se como defensora da democracia
secular ao acusar o pastor de intolerância religiosa, isto é, de não respeitar
o princípio da tolerância, fundamental na experiência liberal moderna desde
as guerras de religião no século XVII. Sua acusação, como vimos, é a de que é
o pastor, apresentado sempre entre aspas (“[...] o “pastor” [...]”), que fere a
laicidade da política ao ser presidente de um partido e coordenador de uma
campanha eleitoral, postura rechaçada pela Igreja para seus próprios membros
e generalizada como norma – reforçando a posição da Igreja Católica como
paradigmática do conceito de “religião” no Brasil.
Na sexta, ao comentar a mistura entre religião e política na campanha eleitoral
de São Paulo, d. Raymundo foi enfático: “A posição da Igreja Católica, enquanto
instituição, é de que não deve assumir nenhuma posição político-partidária. O papa
Bento 16, numa de suas encíclicas, Deus É Amor, foi muito claro ao dizer que a
Igreja não pode nem deve tomar nas suas mãos a batalha política. Isso é próprio
dos políticos, dos leigos. A igreja não pode ter pretensões de poder.”

Indagado se tal posicionamento deveria valer para outras igrejas, respondeu: “Den-
tro da minha perspectiva, valeria. No mundo democrático, o papel que cabe ao
Estado e aos leigos não é o mesmo da Igreja, cuja função é de orientar o eleitor.”
Ainda segundo o líder da CNBB, não cabe à Igreja assumir papel de protagonista no
campo político”25.

25
“Não se pode instrumentalizar a religião para obter voto”, diz presidente da CNBB. Disponível em:
<http://www.estadao.com.br/noticias/politica,nao-se-pode-instrumentalizar-a-religiao-para-obter-
-voto-diz-presidente-da-cnbb,930783,0.htm>. Acesso em: 14 set. 2012, data da publicação.

Religiões e controvérsias Final.indd 43 18/08/2015 09:59:48


44 Outro fato que corrobora essa posição bifronte da Igreja Católica em relação
à democracia secular está na realização de um “colóquio” com os candidatos a
prefeito no dia 20 de setembro. A opção por “colóquio” em vez de “debate”,
como preferem os jornalistas e muitos políticos, traz, por um lado, a marca
acadêmica de enunciação de posições e, por outro, a ênfase na explicação e
na resposta a perguntas em vez do confronto direto (e sensacionalista) entre
candidatos. Boa parte da imprensa insistiu em chamar o evento de “debate”,
ao que manifestou seu descontentamento com o pouco confronto direto.
Ao colocar os candidatos para responderem a perguntas de dez sacerdotes
católicos a respeito de questões importantes para a promoção social ancorada
nos princípios do evangelho – como a preocupação com os moradores de rua
–, a Igreja reafirma sua prática de constituir a democracia secular a partir de
sua posição de separação entre Igreja e Estado, não ultrapassando os limites
estabelecidos pelo último como necessários para a laicidade.
A conclusão que se torna imperativa é a de que a percepção dominante é a
de que a Igreja Católica não representa uma ingerência na política. A única
modificação digna de nota diante do cenário consolidado é a orientação de
número 9. Transcrevo-a na íntegra:
9. Política, religião e família. Vote em candidatos que respeitem a liberdade de
consciência, as convicções religiosas e morais dos cidadãos, seus símbolos religiosos
e a livre manifestação de sua fé; da mesma forma, apoie candidatos que amparem a
família e a protejam diante das ameaças à sua identidade e missão natural. A cidade
que descuida ou abandona a família herdará muitos problemas.

Essa orientação tem como meta, implícita, informar aos fiéis que há can-
didatos que possuem uma posição moral que difere dos seus princípios e
de suas convicções religiosas cristãs. Isso se tornaria ainda mais grave na
medida em que é “a família” o alvo, pois ela é o ponto de transmissão de
valores, é da família que se “herdam” as benesses ou os “muitos problemas”.
A transformação da família enceta uma dificuldade grande para uma Igreja
que tem se pautado pela via da “formação das almas”, isto é, que atua mais
na política societária que na institucional. Tal decisão eleitoral poderia,
assim, fazer com que o futuro seja contrário ao esperado. Nesse sentido,
vemos que é a única das orientações que traz um tom denunciatório ou de
ameaça. Entretanto, da maneira como foi colocado, o texto sugere ainda
uma relação estreita com a cidadania moderna pela via da responsabilidade,
já que tem em vista possíveis consequências das ações políticas do sujeito.
Além disso, faz valer o princípio secular de liberdade religiosa, pontuando
que se há candidatos que diferem da convicção cristã do fiel, é legítimo que

Religiões e controvérsias Final.indd 44 18/08/2015 09:59:48


ele escolha um que manifeste as mesmas preocupações que ele e, por fim,

Política secular e intolerância religiosa na disputa eleitoral


45
que respeite a “livre manifestação de sua fé”.

Conclusão
A controvérsia entre o arcebispo de São Paulo e a campanha de Celso Rus-
somanno se mostrou particularmente instrutiva para que compreendêssemos
como a Igreja Católica se posicionou publicamente diante das fronteiras
traçadas acerca de “religião” e “política”. Vimos que ela se coloca numa sin-
gular posição bifronte: é ao mesmo tempo o paradigma de religião legítima e
de promotora da democracia secular no Brasil. A delimitação dessa posição
só foi possível ao vermos os pontos de discordância perante o denunciado. A
conclusão é a de que existe uma forte concordância entre a formação secular
brasileira, a definição de laicidade e a posição oferecida pela Igreja Católica.
Como é percebida, pelos agentes sociais, a intromissão da religião na política?
Podemos elencar, a princípio, três pontos. O primeiro é o pertencimento de
um indivíduo como membro de uma Igreja e como membro de um partido
político: ser ao mesmo tempo pastor e candidato – posição rechaçada pela
Igreja Católica para seus membros. O segundo é a intolerância religiosa, em
que se evita o “bem comum” e promove a própria fé (particular), incitando
a discórdia e o conflito interno – ofendendo o princípio básico da tolerância,
característico do fim das guerras religiosas e de fortalecimento do Estado.
O terceiro é a condução tutelar do rebanho, fazendo dos templos um local
de propaganda política e apresentando candidatos aos eleitores – o que nos
leva para a conceituação de uma variante evangélica do “poder pastoral” em
detrimento da consolidação do cidadão livre e autônomo, como responsável
pelas suas escolhas.
A reação neste episódio foi tímida e não visou uma autoafirmação de sua
posição, como ocorreu posteriormente com outro caso, o do pastor Marco
Feliciano na Comissão de Direitos Humanos. Percebo, porém, que os dois ca-
sos estão conectados. Há a emergência de um novo paradigma, de articulação
dos termos em disputa, como os três pontos identificados acima permitem
entrever. Nesse novo paradigma, ainda em gestação e indeterminado, não
parece ser problemático que um pastor seja um representante político, nem
parece ser problemático lutar pelos princípios que ancoram a sua fé, ou, ainda,
que o pastor conduza o seu rebanho. Esse paradigma em gestação está num
horizonte de indeterminação e de ameaça de mudança, tanto para o cenário
político quanto para a definição do que cabe no conceito de laicidade.

Religiões e controvérsias Final.indd 45 18/08/2015 09:59:48


46 Referências bibliográficas
ABREU, Maria José A. de. Technological indeterminacy: medium, threat, temporality. Anthropological
Theory, v. 13, n. 3, p. 267-284, 2013.
ASAD, Talal. A construção da religião como uma categoria antropológica. Cadernos de Campo, USP,
v. 19, p. 263-284, 2010.
________. Reflexões sobre crueldade e tortura. Revista Pensata, UNIFESP, v. 1, p. 164-187, 2011.
________. Formations of the secular: christianity, islam, modernity. Stanford: Stanford University
Press, 2003.
BOLTANSKI, Luc. La denuncia pública. In: ________. El amor y la Justicia como competencias: tres
ensayos de la sociología de la acción. Buenos Aires: Amorrotu, 2000.
________. Luc. 2011. On critique: A sociology of emancipation. Cambridge: Polity Press.
________; THÉVENOT, Laurent. On justification. Economies of worth. Princeton: Princeton Uni-
versity Press, 2006.
________; CLAVERIE, Elisabeth. Du monde social en tant que scène d’un procès. In: BOLTANSKI,
L.; CLAVERIE, E.; OFFENSTADT, N.; VAN DAMME, S. (Orgs.). Affaires, scandales et grandes
causes. Paris: Stock, 2007.
BOURDIEU, Pierre. Distinction. A social critique of the judgment of taste. London, New York: Rou-
tledge, 1986.
BUTLER, Judith. Sexual politics, torture and secular time. The British Journal of Sociology, v. 59, n.
1, p. 1-23, 2008.
CASANOVA, José. Public religions in the modern world. Chicago, London: The University of Chicago
Press, 1994.
________. The secular, secularizations, secularisms. In: CALHOUN, C.; JUERGENSMEYER, M.;
VAN ANTWERPEN, J. (Ed.) Rethinking secularism. New York: Oxford University Press, 2011.
CHEVALLIER, P. Michel Foucault et le christianisme. Lyon: ENS Éditions, 2011.
CROCHET, Eduardo José. A revista A Ordem e o pensamento católico no Brasil (1921-1948). 2003.
Dissertação (Mestrado em História Social)–Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
2003.
DULLO, Eduardo. Após a (antropologia/sociologia da) religião, o secularismo? Mana, v. 18, n. 2, 2012.
________. A produção de subjetividades democráticas e a formação do secular no Brasil a partir da
Pedagogia de Paulo Freire. 2013. Tese (Doutorado em Antropologia Social)–Museu Nacional,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.
________. Paulo Freire, o testemunho e a pedagogia católica: a ação histórica contra o fatalismo. Revista
Brasileira de Ciências Sociais, v. 29, n. 85, p. 49-61, 2014.
FOUCAULT, Michel. Segurança, território, população. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
________. Omnes et Singulatim: uma crítica da razão política. In: Estratégia, poder-saber. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2003. (Ditos e Escritos, v. 4).
GIUMBELLI, Emerson. A presença do religioso no espaço público: modalidades no Brasil. Religião &
Sociedade, v. 28, n. 2, p. 80-101, 2008.
________. O acordo Brasil-Santa Sé e as relações entre Estado, sociedade e religião. Ciências Sociais
e Religião, Porto Alegre, ano 13, n. 14, p. 119-143, 2011.
KADT, Emanuel de. Católicos radicais no Brasil. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2003.
KOSELLECK, Reinhardt. Aceleración, prognosis y secularización. Valencia: Pre-textos, 2003.

Religiões e controvérsias Final.indd 46 18/08/2015 09:59:48


LATOUR, Bruno. Reassembling the Social – An Introduction to Actor-Network-Theory. Oxford: Oxford

Política secular e intolerância religiosa na disputa eleitoral


47
University Press, 2005.
MONTERO, Paula. Max Weber e os dilemas da secularização. Novos Estudos – CEBRAP, v. 65, p. 34-
44, 2003.
________. Religião, pluralismo e esfera pública no Brasil. Novos Estudos – CEBRAP, n. 74, 2006.
________. Secularização e espaço público: a reinvenção do pluralismo religioso no Brasil. Etnográfica,
Lisboa, v. 13, p. 7-16, 2009.
PAIVA, Angela. Católico, protestante, cidadão: uma comparação entre Brasil e Estados Unidos. Belo
Horizonte: Editora UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ, 2003.
ROMANO, Roberto. 1979. Brasil: Igreja contra Estado (Crítica ao populismo católico). São Paulo:
Kairós Livraria e Editora
TAYLOR, Charles. A secular age. Cambridge, Mass.: Cambridge University Press, 2007.
VILLAÇA, Antonio Carlos. O pensamento católico no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1975.

Religiões e controvérsias Final.indd 47 18/08/2015 09:59:48


Religiões e controvérsias Final.indd 48 18/08/2015 09:59:48
Igreja Universal e política: controvérsia em
torno do secularismo
CARLOS GUTIERREZ

Neste texto, nos deteremos em torno da controvérsia em relação às diferentes


concepções de secularismo, isto é, em como agentes distintos atribuem signi-
ficados diversos ao princípio de separação entre instituições governamentais
e religiosas. Para que possamos delimitar e abordar essa controvérsia, vamos
tomar dois casos emblemáticos: o debate em torno da ligação entre o Partido
Republicano Brasileiro (PRB) e a Igreja Universal, e a participação da Universal
no combate ao crack. Esta última, em particular, articula uma complexa eco-
nomia de relações que envolvem legislação, elaboração de políticas públicas,
ocupação do espaço urbano, assistência e formação de agentes para atuação na
política, assim como o questionamento de outros atores que percebem essa
presença como uma quebra no princípio de laicidade.
Em maio de 2013, o empresário Rogério Hamam, do Partido Republicano
Brasileiro (PRB), foi nomeado para a Secretaria de Desenvolvimento Social
do Governo do Estado de São Paulo. Na cerimônia de posse, realizada no
Palácio dos Bandeirantes, estavam presentes diversos membros da “Juven-
tude Contra o Crack”, grupo da Força Jovem Universal, núcleo jovem da
Igreja Universal do Reino de Deus (IURD). O jornal O Estado de S. Paulo
questionou a presença dos membros da Universal no evento e a própria
participação da instituição na política de combate às drogas, em reportagem
denominada “PRB assume pasta social de Alckmin e leva à posse projeto

Religiões e controvérsias Final.indd 49 18/08/2015 09:59:48


50 anticrack da Universal”1. O diário Tribuna Hoje e o portal de notícias 247
também repercutiram o fato com reportagem intitulada “Alckmin abre as
portas do Estado para a Igreja Universal do Reino de Deus”2.
O Estado de S. Paulo voltou a ressaltar a presença de membros da Universal
em cargos do governo paulista. Na reportagem “Secretário de Alckmin põe
dupla da Universal em cargos de chefia”, de outubro de 2013, o jornal afirma
que “Hamam (PRB) descumpriu uma ordem do tucano ao nomear pessoas liga-
das à Igreja Universal do Reino de Deus para cargos na pasta. Até agora, dois
membros da Igreja estão abrigados na Secretaria e ocupam postos de chefia”.
Em todas as reportagens citadas, a participação de membros da Universal,
tanto em cargos quanto na elaboração de políticas públicas, aparece como
um problema. À época da candidatura de Celso Russomanno à prefeitura de
São Paulo, o partido foi questionado pela imprensa como “braço político da
Universal”, o que foi desmentido por Russomanno, que afirmou que 80% do
partido era constituído por católicos. Em artigo no jornal O Estado de S. Paulo,
o cientista político Cláudio Gonçalves Couto, professor da Fundação Getulio
Vargas (FGV), contestou os dados apresentados pelo então candidato a prefeito
e afirmou que 55% da Executiva Nacional do PRB e 85% dos dirigentes estaduais
são ligados à Igreja Universal, na condição de fiéis, obreiros, pastores e bispos.
A maior parte dos agentes ligados à Universal, entrevistados neste trabalho, en-
cara a questão do crack como um dos “principais problemas do país”. Destaca-se
o engajamento desses agentes em diversos projetos relacionados ao combate
ao crack. O projeto “Juventude Contra o Crack” realiza campanhas contra as
drogas, com manifestações no espaço público, recolhimento de usuários de
drogas, promoção de debates sobre o crack, reinserção de usuários no ambiente
escolar/profissional. É considerado, pelos principais atores da Universal, como
o “trabalho mais importante” da instituição e também o “principal na área
de prevenção e atendimento do Brasil”. Concomitantemente, os discursos
apontam a “importância de eleger representantes do PRB”, que seriam, segun-
do a visão êmica, compromissados com o combate ao crack. Além disso, o
partido é encarado por alguns líderes e também fiéis/militantes como o “ideal
para que o povo de Deus possa participar, propor ideias, lutar pelo futuro do

1
Disponível em: <http://www.estadao.com.br/noticias/nacional,prb-assume-pasta-social-de-
-alckmin-e-leva-a-posse-projeto-anti-crack-da-universal,1036494,0.htm>. Acesso em: 4 jun. 2013.
2
Disponíveis em: <http://www.brasil247.com/pt/247/sp247/103499/Alckmin-abre-as-portas-
-do-Estado-para-a-Universal.htm> e <http://www.tribunahoje.com/noticia/65221/politi-
ca/2013/05/29/alckmin-abre-as-portas-do-estado-para-a-igreja-universal-do-reino-de-deus.html>.
Acesso em: 4 jun. 2013.

Religiões e controvérsias Final.indd 50 18/08/2015 09:59:48


Brasil e participar da democracia” (vereador Jean Madeira, também pastor da

Igreja Universal e política


51
Universal, na cerimônia de posse de coordenadores da Juventude do partido).
A importância atribuída ao projeto político passa pela produção de corpos para a
ação na política. Os jovens que mais se destacam nas atividades da Força Jovem
Universal são convidados por pastores a começar a frequentar o PRB, realizam
curso de formação política da “Fundação Republicana”, ligada ao partido, e
passam a integrar a militância, ocupando, muitas vezes, cargos de assessoria de
vereadores e deputados, ou sendo lançados como candidatos. Esse processo
de formação dos jovens abrange tanto a instrução formal, muitas vezes com
bolsa, em universidades privadas, como uma série de palestras e técnicas para
a produção de “jovens cidadãos, conscientes, atuantes na política, educados,
cultos e que contribuam para a democracia” (bispo Marcelo Brayner, no 1o
Fórum dos Universitários da Universal).
Conforme os dados até aqui apresentados, podemos identificar três grandes
eixos na forma como a Universal participa na esfera pública: sua presença no
poder legislativo, com a eleição de representantes e participação em audiências
públicas; a ocupação do espaço urbano, na realização de suas manifestações; e a
elaboração de políticas públicas. A partir desses elementos, podemos observar
como os agentes da Universal realizam, discursivamente, uma separação entre
seu pertencimento à Igreja e a participação no plano político, na elaboração de
políticas públicas, audiências, estabelecendo fronteiras entre a “fé pessoal” e
o mundo “laico”, operacionalizando categorias distintas conforme a ocasião.
Entretanto, essa construção de laicidade por parte dos atores da Universal será
questionada por outros agentes. Sendo assim, a presença da IURD no debate
em torno do crack, com todas as suas implicações e os seus enfrentamentos,
servirá de subsídio para a análise da controvérsia envolvendo a interpretação
do secularismo, fornecendo discursos, estratégias e posições, a fim de anali-
sarmos essa disputa.
A participação da Universal nas instâncias governamentais de combate ao crack
produz processos de justificação. De acordo com Boltanski e Thévenot (2006),
nas situações de disputa os atores buscam justificar suas práticas, estabelecer
críticas às posições contrárias, a fim de angariar legitimidade às suas ações.
Para tanto, utilizam-se de referenciais apreendidos durante a vivência social.
Segundo os autores, é necessário compreender como os atores argumentam para
defender um determinado posicionamento em situações de desentendimento.
Os processos de produção de legitimidade social exigem certa generalidade
argumentativa para que se tornem convincentes e, dessa forma, efetivamente
legítimos junto aos outros atores sociais. Segundo Boltanski e Thévenot, quanto

Religiões e controvérsias Final.indd 51 18/08/2015 09:59:48


52 mais um discurso possa ser generalizado, maior será seu poder de convenci-
mento e de mobilização coletiva. As justificativas da Universal acerca de sua
presença na esfera pública são fundamentais para compreender sua visão em
torno do conceito de laicidade e também para analisar como os agentes operam
categorias distintas, dependendo do contexto e a quem se dirige o discurso
(MONTERO, 2013).
Para facilitar o entendimento do fenômeno, o texto será dividido em três
incisos: legislativo, espaço urbano e políticas públicas. Em cada um deles, dis-
cutiremos as formas discursivas pelas quais os agentes da Universal constituem
sua participação na esfera pública, como produzem corpos preparados, em sua
visão, à vida cívica, como justificam suas práticas, como defendem um princípio
organizatório de bem comum. Assim como abordaremos os fluxos discursivos
de outros atores que condenam a participação de agentes da Universal, de-
nunciam sua presença nas instituições governamentais, criticam suas posições
e concepções acerca da política de drogas. Enfim, questionam a legitimidade
da atuação de membros da Universal no universo político.

Legislativo – Breve introdução ao Partido Republicano


Brasileiro, seus representantes e a produção de corpos à
ação política
De acordo com informações do Tribunal Superior Eleitoral (TSE)3, o PRB en-
contra-se organizado como partido desde 2003 e obtém seu registro definitivo
em 2005, sob a sigla de PMR (Partido Municipalista Renovador). O nome foi
trocado no ano seguinte, por meio da Resolução/TSE no 22.167. Em 2006, no
seu primeiro processo eleitoral, o partido participou da coligação que reelegeu
Lula e elegeu um deputado federal, o pastor Léo Vivas, do Rio de Janeiro.
Na eleição de 2010, o número de deputados passou para oito federais e 17
estaduais, além da eleição do senador Marcelo Crivella, que deixou o cargo
para Eduardo Lopes (PRB-RJ), a fim de assumir o Ministério da Pesca. Após a
nomeação do advogado Marcos Pereira, o site IG, em reportagem intitulada
“Voz da Universal no Congresso, PRB quer dobrar número de prefeitos e mira
2014”4, afirma que “a data marcou uma mudança na legenda que, embora
tente descolar sua imagem da Igreja Universal, ampliou o espaço de pastores

3
Disponível em: <http://www.tse.jus.br/partidos/partidos-politicos/partido-republicano-brasileiro>.
Acesso em: 9 dez. 2013.
4
Disponível em: <http://ultimosegundo.ig.com.br/politica/2012-07-15/voz-da-universal-no-
-congresso-prb-quer-dobrar-numero-de-prefeitos-e-mira-2014.html>. Acesso em: 10 fev. 2014.

Religiões e controvérsias Final.indd 52 18/08/2015 09:59:48


e ex-pastores em seus quadros. Um exemplo é o próprio presidente da legen-

Igreja Universal e política


53
da, o advogado Marcos Pereira, que assumiu em maio daquele ano. Pereira é
membro da IURD e também trabalhou na TV Record”.
Em entrevista ao site Terra, meses depois, Pereira argumentou que está cansado
de ter que responder sobre essas questões e que o partido é laico, frisando
que no PRB “não se discute religião”. A mesma reportagem afirma que “66%
dos dirigentes do PRB são ligados à Universal”5, o que levou o presidente do
partido, segundo o texto, a considerar uma revisão na estrutura de indicação
dos presidentes estaduais.
O questionamento acerca da ligação entre PRB e Universal ganhou mais destaque
durante a campanha de Celso Russomanno (PRB-SP) à prefeitura paulistana.
Em reportagem da Folha de S.Paulo intitulada “Russomanno usa estrutura da
Universal na campanha”6, o diário afirma que a campanha de Russomanno
conta com “trabalho voluntário de fiéis da Igreja Universal” e que também teria
recebido cerca de cem doações, no valor de R$ 300,00 cada. Além disso, apre-
sentaram fotos de vans do candidato estacionadas no Templo da avenida João
Dias, atual sede da Universal em São Paulo. Após a divulgação de notícias com
conteúdo semelhante, alguns candidatos ao pleito municipal manifestaram-se.
Carlos Gianazzi (PSOL-SP) declarou, em entrevista7 ao site Terra, que “não po-
demos instrumentalizar as religiões, como acontece com o Celso Russomanno.
Trata-se de voto de cabresto, pegando pessoas com menor escolaridade, que é o
público especificamente da Igreja Universal, do bispo Edir Macedo”. Fernando
Haddad (PT-SP) declarou, à época, que a introdução de um debate doutrinário
no debate político é um equívoco grave e que “falta responsabilidade de quem
precisa defender o Estado laico”. Já para José Serra, a Igreja Universal fez a
campanha de Russomanno8.
Em situações de disputa, que Boltanski e Thévenot (2006) chamam de “mo-
mentos críticos”, temas não consensuais tornam-se objeto de disputa. De acordo

5
Disponível em: <http://noticias.terra.com.br/brasil/politica/eleicoes/prb-de-russomanno-tem-66-
-dos-dirigentes-ligados-a-universal,9cb99782ac66b310VgnCLD200000bbcceb0aRCRD.html>.
Acesso em: 18 fev. 2014.
6
Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/poder/65365-russomanno-usa-estrutura-da-
-universal-na-campanha.shtml>. Acesso em: 19 fev. 2014.
7
Disponível em: <http://noticias.terra.com.br/brasil/politica/eleicoes/giannazi-critica-igrejas-e-diz-
-russomanno-39instrumentaliza39-religioes,3c999782ac66b310VgnCLD200000bbcceb0aRCRD.
html>. Acesso em: 17 fev. 2014.
8
Disponível em: <http://www.valor.com.br/eleicoes2012/2845694/serra-acusa-record-e-igreja-
-universal-de-protegerem-russomanno>. Acesso em: 19 fev. 2014.

Religiões e controvérsias Final.indd 53 18/08/2015 09:59:48


54 com os autores, o consenso se desfaz e os agentes se sentem coagidos a justificar
suas posições, a fim de estabelecer um acordo em torno de um tema e no valor
a ser atribuído a pessoas, objetos e situações. Para constituição dessas justifica-
tivas é necessário o estabelecimento de princípios de equivalência, ou seja, uma
medida comum que torne possível a comparação entre pessoas, objetos e ideias.
Durante o “momento crítico”, Russomanno disse acreditar no princípio de
laicidade e que conta com coordenadores de campanha de diversas religiões,
disse ainda que a Universal não deu dinheiro para sua candidatura e tampou-
co influenciaria seu governo. O coordenador de campanha de Russomanno e
também presidente nacional do PRB, o advogado Marcos Pereira, confirmou
que a Universal apoiava o candidato e que permitira a distribuição de santinhos
eleitorais nas portas da Igreja. O coordenador também condenou a presença das
vans de Russomanno no templo. Segundo ele, as vans faziam a campanha do
candidato a vereador, pastor Jean Madeira, e pediram para estacionar ali, pois
os panfleteiros precisavam ir ao banheiro. Porém, afirma que deixou claro ao
candidato que o espaço não poderia ser utilizado e que acreditava que Madeira
não estava usando o local como base de campanha. Dessa forma, a medida co-
mum operacionalizada pelos agentes envolvidos para atribuir valor e comparar
pessoas e situações foi a própria noção de laicidade. Por meio dela, agentes
criticaram o que encararam como uma presença religiosa imprópria, enquanto
que outros se valeram dessa presença para justificar a “pluralidade e diversidade”
da base eleitoral e reafirmar sua crença na separação entre religião e política.
Uma das principais críticas à presença da Universal no legislativo é que ela
“leva seus projetos”. Essa crítica, feita por diversos setores da mídia, considera
que deve haver uma separação entre instituições governamentais e religião, e
que “esse partido (PRB) serve como braço político”. Tomemos como exemplo
o discurso da revista Crescer:
PRB, um partido criado em 2003 com outro nome – Partido Municipalista Reno-

vador – para servir como o braço político do bispo Edir Macedo, líder da Igreja
Universal. Para fundar o partido, os pastores coletaram mais de 400 mil assinaturas
nos templos da Igreja em todo o país. Em seu livro Plano de poder – Deus, os cris-
tãos e a política, Edir Macedo afirma que “Deus tem um grande projeto de nação
elaborado por ele mesmo e que é nossa responsabilidade apresentá-lo e colocá-lo
em prática”. Apesar de os fiéis da Universal serem uma minoria no universo dos
evangélicos, Edir Macedo dita regras de como todos devem votar9.

9
Disponível em: <http://revistacrescer.globo.com/Revista/Crescer/0,,ERT91575-10541,00.html>.
Acesso em: 5 fev. 2014.

Religiões e controvérsias Final.indd 54 18/08/2015 09:59:49


De acordo com Boltanski e Thévenot (2006), quando agentes apresentam

Igreja Universal e política


55
críticas e defendem um ponto de vista, “os modos de justificação” aparecem,
a fim de garantir argumentos convincentes para justificar suas práticas e legi-
timar suas ações. Nesse processo, os atores recorrem à dessingularização para
generalizar um argumento e assim obter maior possibilidade de convencimento
e mobilização. Os membros do PRB, ligados à Universal, pautam sua justificação
no direito de liberdade religiosa e também questionam a “filiação religiosa”
que lhes é imputada, por meio de comparações: “Seria errado dizer que o PT é
dos sindicalistas, assim como é equivocado dizer que o PRB é dos evangélicos”,
afirma o senador Eduardo Lopes (PRB-RJ).
Encerrado o primeiro turno, o Tribunal Regional Eleitoral (TRE) de São Paulo
aplicou multa de R$ 5 mil a Russomanno e D’Urso, seu vice, após denúncias
sobre a pregação de um pastor da Universal que teria incitado o voto em Rus-
somanno. Após reunião da Força Jovem Universal, no início de 2013, obreiros e
jovens questionaram a avaliação feita pela mídia e pelo Tribunal Eleitoral sobre
o candidato do PRB. De acordo com os participantes, “dois pesos e duas medi-
das. O Chalita é católico, a Igreja [Católica] apoiou abertamente, distribuíam
material dele e ninguém falou nada. Os católicos mandam no país e ninguém
percebe. Agora, com a gente [Universal] é essa perseguição”10.

Formação de jovens
Antes de entrarmos na discussão acerca das técnicas para produção dos jovens
à ação política, cabe fazer uma breve introdução à Força Jovem Universal.
Trata-se do grupo jovem da IURD, que conta com uma série de projetos, dos
quais se destacam o Dose Mais Forte, oferecendo palestras e encaminhando
dependentes químicos a casas de tratamento; Jovem Nota 10, com curso pré-
-vestibular, reforço escolar, idiomas, informática, ensino profissionalizante e
realização de vestibulares sociais, com concessão de bolsas aos membros; e o
FJUNI, que visa aprimorar a qualidade acadêmica dos jovens universitários, pro-
movendo grupos de estudos, palestras motivacionais, orientações vocacionais,
contando ainda com uma central de estágios.
Cada cenáculo da Universal conta com um núcleo da Força Jovem, que pode
dispor ou não de todas as atividades listadas acima, dependendo da capacidade
física do local e da presença de professores/monitores voluntários. Atualmente,
o grupo é coordenado pelo bispo Marcelo Brayner, após o pastor Jean Madeira

10
Diálogo entre diversos jovens, obreiros e alguns pastores.

Religiões e controvérsias Final.indd 55 18/08/2015 09:59:49


56 licenciar-se do cargo, a fim de tomar posse como vereador. Não obstante as
atividades de evangelização, a Força Jovem tem como foco maior a “formação”
dos jovens11.
Assim que os jovens começam a participar, são convidados a falar sobre si,
seus desejos profissionais e acadêmicos, e incentivados a prosseguir no ensino
superior, ou retomar os estudos, dependendo do caso. Dessa forma, todos são
instruídos a participar da Força Jovem Universitária (FJUNI) e Jovem Nota 10 e a
optar entre Dose Mais Forte e o UniForça, que presta auxílio aos bombeiros em
situações de atendimento, fornecendo água e alimentos, e cuida da organização
de eventos da Universal. Após o primeiro contato, o jovem recebe uma série
de instruções por meio de pastores, obreiros e/ou outros jovens, a respeito da
forma como falam, como se vestem, o que chamam de “marketing pessoal”.
Em apostilas12 para os membros da FJU, constam as seguintes instruções para
expressão oral e escrita:
Usar frases curtas é uma maneira eficiente de demonstrar objetividade e concisão.
Utilize o mínimo de palavras, evite advérbios subjetivos, como extremamente,
fortemente e outros. Inicie frases com verbos de ação, como construí, reduzi, au-
mentei, implantei, administrei, supervisionei, melhorei, expandi, organizei, treinei,
encontrei, descobri, planejei, etc. Mas ao mesmo tempo que os verbos podem vir
na primeira pessoa, evite utilizar o pronome pessoal eu, pois ele passa a impressão
ofensiva de falta de modéstia, quando usado em demasia [...].

Manter a postura; falar em posição horizontal; usar roupas adequadas para a ocasião,
sem exagerar; evitar vícios de linguagem. Ex.: né, tá, certo, entendeu, ããããã; manter
um volume de voz adequado do início ao final; não ultrapassar o horário; não ter
medo de errar (caso aconteça peça desculpas e continue); demonstre autoridade em
relação ao assunto do qual está falando; procure ter a plateia como companheira.
Dê-lhes motivos para sentir-se bem com o que ouve, vê e sente; desperte o interesse
da plateia com bons argumentos, bom vocabulário e boas figuras de linguagem; para
não criar conflitos ou tumultos, deixe os questionamentos para o final.

A noção de governamentalidade de Foucault (2008), isto é, o governo que se


exerce sobre pessoas, é extremamente útil para pensar esse poder pastoral
de “salvação, cuidado e proteção”. Por meio de um exercício constante de
repetição, o jovem apreende a “forma adequada” de falar, de se vestir, de se

11
A realização de diversas etnografias na sede da Força Jovem Universal, no cenáculo do Brás, em
São Paulo, possibilitou a descrição das técnicas utilizadas para produção de corpos “jovens, cultos
e cidadãos”.
12
Apostilas do curso de “Marketing Pessoal” e do “Cultura Jovem”. Acervo pessoal.

Religiões e controvérsias Final.indd 56 18/08/2015 09:59:49


portar, em um processo de ordenamento e controle do cotidiano. Os jovens

Igreja Universal e política


57
são convidados a falar na frente dos outros, a ler apostilas com dicas de ex-
pressão e a escrever. A cada “frase errada”, ou gíria utilizada, o professor que
ministra o curso de “marketing pessoal” parava, corrigia o jovem e lhe pedia
para recomeçar. A forma de se sentar, de andar, a discussão acerca dos trajes
masculinos e femininos, são trabalhadas a todo momento, mesmo nas atividades
de lazer. Podemos encarar a noção de “razão pedagógica” como útil para pen-
sar o processo de disciplinamento dos jovens. Segundo o colaborador do FJU,
Jefferson do Carmo, o material distribuído aos jovens é retirado de apostilas
profissionalizantes, de cursos como, por exemplo, secretariado, telemarketing,
recepção, pois:
A Igreja sempre analisa tudo o que vai para a mão do jovem, todo projeto que a
gente vai fazer com ele. Tudo tem que passar pelo bispo. Esse material é bom, pois
são de profissões que demandam ter educação, saber falar bem, se comunicar, ter
uma boa apresentação pessoal. Então, a gente usa muito para trabalhar com a garo-
tada. Além de melhorar eles como pessoas, cidadãos, ainda ensina uma profissão,
o que é melhor (Jefferson do Carmo, colaborador em projetos do Força Jovem
Universal e obreiro da IURD).

De acordo com o bispo Marcelo Brayner, a intenção maior do projeto é “agregar


jovens de diversos lugares, pois não é um projeto religioso. Ele está aberto a
todos, para produzir jovens cidadãos, formados, cultos e atuantes na política”.
Em reunião do 1o Fórum dos Universitários, Brayner destacou a importância
da linguagem: “Precisa saber falar, mas não é só se comunicar bem, mas saber
usar as palavras dependendo da ocasião. Você não pode falar de Cristo em
certos meios, aí você tem que falar Dele pela sua conduta, não com as palavras.
É assim que se ganha.”
Com a realização de vestibulares sociais, isentando-os de matrícula e forne-
cendo bolsas de 50%, muitos jovens conseguem ingressar no ensino superior.
A maior parte dos jovens entrevistados cursa administração, secretariado,
marketing e direito. Os que se destacam nas atividades da Força Jovem, já
formados, preferencialmente, ou em vias de terminar uma graduação, são con-
vidados a participar da Juventude do PRB13. O convite, muitas vezes, é dirigido
diretamente ao jovem em ocasiões informais, ou em reuniões fechadas para
os “líderes da juventude”.
Após o primeiro contato por meio de palestras na sede do PRB, o jovem é apre-
sentado ao partido e entra em contato com a Fundação Republicana Brasileira,

13
O ingressante deve ter mais de 16 anos e ser portador de título de eleitor.

Religiões e controvérsias Final.indd 57 18/08/2015 09:59:49


58 órgão responsável pela formação dos quadros. O ingressante deve fazer o curso
presencial e on-line de política, oferecido pela Fundação. A atividade é minis-
trada pelo cientista político Leonardo Barreto (doutor em ciência política pela
Universidade de Brasília – UNB) para cerca de cem pessoas, por ocasião, e cada
aula dura cerca de quatro horas. O conteúdo abordado no curso é extenso e
inclui noções de cidadania, democracia, estrutura eleitoral, ética, militância
e políticas públicas. Além disso, conta com sugestões bibliográficas variadas
como, por exemplo, Hobbes, Montesquieu, Weber, etc.
A cada aula são realizadas avaliações de múltipla escolha e debates com os
participantes. São criadas situações e a turma é dividida em grupos, a fim de
opinarem sobre as questões colocadas e elaborarem soluções. O caso mais
emblemático era em relação à “epidemia de crack” e como enfrentá-la den-
tro do Estado democrático. Ao final do curso, obtendo média maior de 5 nas
avaliações e frequência superior a 75%, o militante obtém um certificado em
política. Após essa etapa, cada membro pode participar mais ativamente do
partido, coordenando núcleos, frequentando reuniões e, muitas vezes, com-
pondo parte do gabinete de vereadores e deputados.
O discurso das principais lideranças políticas do PRB-SP pede engajamento aos
jovens na participação política. Nesse processo, podemos observar um novo
fenômeno: a presença da produção de corpos voltada ao debate político e
a tentativa de construção de um discurso que seja aceito na esfera pública,
dotando os agentes de uma gramática distinta da presente na Universal. Os
jovens são chamados a participar de passeatas do partido, audiências públicas,
elaboração de políticas públicas, desenvolvimento do PRB nos bairros periféricos,
entre outras atividades partidárias.
A presença da Universal na militância jovem do PRB também é questionada pela
mídia. Em reportagem intitulada “Na campanha, Russomanno liga máquina
de promessas”14, do jornal Folha de S.Paulo, é denunciada a participação da
Universal nas campanhas de rua:
A relação com a Universal fica clara, por exemplo, pela campanha na rua ser animada
pela Força Jovem, grupo da Igreja. Em um deles, um líder grita: “Reúne aqui, Força
Jovem! Digo, PRB Jovem!” Um adolescente pergunta: “O que é PRB?”

Uma das justificativas adotadas pelos militantes do partido é de que não é


possível desassociar o lado religioso do político a todo o momento e que o
mais importante é saber separar as duas coisas quando no poder. O argumen-

14
Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/poder/57373-na-campanha-russomanno-liga-
-maquina-de-promessas.shtml>. Acesso em: 17 jan. 2014.

Religiões e controvérsias Final.indd 58 18/08/2015 09:59:49


to da intolerância religiosa também é operacionalizado, pois, segundo eles, a

Igreja Universal e política


59
participação de católicos praticantes e devotos não é questionada pela mídia.
Isso acontece, de acordo com os atores do PRB, pelo fato de pertencerem à
“Igreja mais perseguida do Brasil, a que é vista com os piores olhos”. Na visão
êmica, a crítica à participação religiosa no processo político é, na verdade,
consequência de um projeto de secularização que não se completou, já que
somente determinadas segmentações religiosas são questionadas, enquanto
que o catolicismo e outras religiões são encarados com naturalidade. Dessa
forma, ao serem contrastados com o argumento de romper com a laicidade
estatal, reafirmam que são os “que mais desejam um estado laico para acabar
com os privilégios da Igreja Católica” (Juliana Betti, 20 anos, militante do PRB
e fiel da Universal).
Em uma reunião da juventude do partido, lideranças cobraram dos jovens
a participação mais incisiva nos posicionamentos em relação ao combate ao
crack. Segundo eles, falta uma presença mais enfática na posição contrária às
drogas no ambiente acadêmico e que “não se previne ou se ganha uma dis-
cussão com discurso religioso, tem que apresentar dados, relatos de viciados,
informação de pesquisas”. A valorização de determinados saberes em detri-
mento de outros é fruto da participação no próprio jogo, com a apreensão
de uma noção da prática, que faz com que os atores tenham a capacidade de
qualificar e justificar posições (BOLTANSKI; THÉVENOT, 2006). Há uma
economia dos discursos, e a circulação e a efetividade de cada um encontra-se
em disputa constante. Os agentes da Universal entendem que a melhor forma
de participação não passa pela invocação de um saber teológico, mas em um
calcado nos dados, em pesquisas, em narrativas de sofrimento, a fim de que
esses fluxos discursivos possam circular dentro de um determinado regime de
verdade (FOUCAULT, 2008).
Uma das maiores preocupações nas palestras e nos cursos de formação é en-
sinar aos jovens militantes o que significa “Estado laico” e a separação entre
“política e religião”. A presença da Igreja Católica, segundo os entrevistados,
na composição da burocracia estatal no Brasil colônia e sua influência na
política são tudo o que o Estado é, mas que não deveria ser. Ao abordarem o
tema por esse viés, trabalham (de forma não consciente) com uma imagem
que o membro pertencente à Universal já tem, incorporada como esquema de
percepção (BOURDIEU, 2009) por conta dos discursos de pastores e bispos
que denunciam o “privilégio que os católicos tiveram e ainda têm”.
Entretanto, os agentes defendem que sua visão política e de mundo tem “va-
lores cristãos” que, segundo eles, não entram em conflito com o princípio de

Religiões e controvérsias Final.indd 59 18/08/2015 09:59:49


60 laicidade, pois “o Estado é laico e não ateu”. Para eles, a principal diferença
entre o PRB e os outros partidos é ter a moral cristã que, de acordo com os
atores, significa maior responsabilidade social, preocupação e respeito com o
dinheiro público e honestidade na política. Toma-se como exemplo o discurso
do deputado federal Antônio Bulhões (PRB-SP):
O novo, na política brasileira, está em trazer para o ambiente público o que prezamos
nas nossas casas. O novo é o inverso daquilo que se tem feito até hoje – misturar o
público com o privado. Não se trata de utopia moral ou religiosa, é a realização da
ética que fez os países desenvolvidos. [...] O novo na política brasileira é o PRB. E
é novo justamente por trazer verdadeiramente a ética cristã, bastante testada pelo
tempo. Ética que fundou o país, mas que, de tempos para cá, foi perdendo relevân-
cia, porque a mentalidade modernosa a considerava conservadoramente atrasada15.

Dessa forma, o princípio organizador dos discursos reconhecidos como públicos


pelos agentes é a moralidade cristã. Entretanto, conforme analisado na fala de
Brayner, há uma preocupação com relação à linguagem operacionalizada, pois
em muitos contextos “não se deve falar de Jesus”. Nisso, é fundamental nesse
processo de produção de corpos para a política a formação de um repertório
cívico tanto dentro das Igrejas quanto no PRB. É interessante ressaltar a busca que
os agentes promovem por uma linguagem pública e como pensam a tradução
de uma mensagem religiosa (HABERMAS, 1989) para o discurso “secular”.
Segundo Brayner, para se ganhar uma discussão contra um ativista a favor da
liberação das drogas, deve-se usar uma “linguagem adequada à situação, pois,
caso contrário, ele vai rir de você”, citando pesquisas, jornais e sites da internet,
literatura especializada, narrativas de sofrimento e mobilização da experiência
pessoal de “quem já esteve em um lugar como a Cracolândia”.
Deve-se ressaltar a noção de “tradução” do discurso político, conforme termo
usado pelos próprios nativos. Em cerimônia de posse dos coordenadores do PRB
Jovem, em fevereiro de 2014, na sede do partido em São Paulo, o vereador
Jean Madeira tomou a palavra para, segundo ele, “traduzir o politiquês”:
Vamos adotar um tom mais informal, porque aqui estamos trabalhando com os
jovens. O PRB não é o partido da Igreja Universal, mas de todo o povo brasileiro. E
vocês fazem parte disso, a gente quer que vocês participem. Ninguém aqui quer
militante massa de manobra, mas que vocês pensem com a gente, que ajudem a
elaborar políticas públicas. Que saiam às ruas, que não fiquem só no blábláblá, mas
que ajudem e façam o bem, gente. Ação, gente! Lutem contra o crack, ajudem as
pessoas. Amém, gente? (risos)... É brincadeira, brincadeira (vereador Jean Madeira).

15
Discurso proferido na Câmara dos Deputados, em Brasília.

Religiões e controvérsias Final.indd 60 18/08/2015 09:59:49


O discurso de Madeira despertou comentários em boa parte dos presentes,

Igreja Universal e política


61
em sua maioria fiéis da Universal, que acharam engraçado o fato de o verea-
dor ter feito uma “pregação”. Madeira ainda aproveitou o ensejo para criticar
o programa Braços Abertos, do prefeito Fernando Haddad, que abriu postos
de trabalho na varrição pública em troca de R$ 15 e o pernoite em um hotel
da região central da cidade. Para boa parte dos líderes e militantes presentes,
trata-se de uma “bolsa crack, para usar drogas e não resolve o problema”.
A preocupação com a separação entre Universal e PRB pode ser vista nos vídeos
de divulgação do partido, antes do início da cerimônia. Neles, há uma série de
imagens de passeatas e manifestações realizadas pela Força Jovem Universal,
mas que, naquele contexto, foram apresentadas como ações do PRB Jovem, sem
quaisquer menções à Igreja Universal. Um dado marcadamente importante, que
abordaremos no próximo inciso, é a confluência de projetos entre o PRB Jovem e
a Força Jovem Universal, e o trabalho dos agentes para incentivar essa participa-
ção múltipla e separar um do outro, no momento de publicização dessas ações.

Ocupação do espaço urbano: manifestações, passeatas e


protestos
De acordo com boa parte dos agentes ligados à Universal, os eventos promo-
vidos por ela são extremamente importantes, pois mostram, segundo eles, o
trabalho da Igreja, sua responsabilidade social, seu engajamento com boas causas
e o compromisso que a instituição tem para com o país. Notadamente, as prin-
cipais manifestações da Universal, ou as que conseguem maior visibilidade, são
as relacionadas ao combate às drogas e também contra a violência doméstica.
Em 2012, a Força Jovem Universal realizou a campanha “Crack, tire essa pedra
do seu caminho”, de caráter nacional, a fim de alertar “jovens e adultos”. Na
Esplanada dos Ministérios, em Brasília, membros da Força Jovem colocaram
513 pedras pintadas de branco (em alusão ao crack), representando o número
de deputados no Congresso Nacional. O fato repercutiu nos principais portais
de notícia como, por exemplo, G116, O Estado de S. Paulo17, Último Segundo18.
Os veículos citados referiram-se aos organizadores como “Movimento Força

16
Disponível em: <http://g1.globo.com/distrito-federal/noticia/2012/02/manifestantes-colo-
cam-513-pedras-na-esplanada-em-ato-contra-crack.html>. Acesso em: 24 fev. 2014.
17
Disponível em: <http://www.estadao.com.br/noticias/cidades,manifestantes-colocam-513-pedras-
-na-esplanada-em-ato-contra-crack,830101,0.htm>. Acesso em: 24 fev. 2014.
18
Disponível em: <http://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/manifestantes-colocam-513-pedras-na-
-esplanada-em-ato-contra-crac/n1597609428125.html>. Acesso em: 24 fev. 2014.

Religiões e controvérsias Final.indd 61 18/08/2015 09:59:49


62 Jovem Brasil” e não questionaram o pertencimento à Universal. Deve-se
ressaltar que, à época, o nome oficial do grupo era “Força Jovem Brasil”. A
mudança foi fruto de intensos debates dentro da instituição. Os contrários à
troca argumentavam que uma das principais características do programa era
“não ter vínculo com nenhuma religião, ser laico”, enquanto que os favoráveis
diziam que era importante tornar as ações da Universal públicas e que o novo
nome não implicaria, necessariamente, associação religiosa.
Conforme citado no item anterior, nenhum dos projetos da Força Jovem leva o
nome “Universal”, pois é consenso entre os agentes entrevistados que, mesmo
havendo disputas em relação ao nome, a Força Jovem deve “continuar sendo
uma iniciativa aberta a todos os jovens, para que todos possam participar,
sem restrição”. Percebe-se aí uma estratégia discursiva de dessingularização,
ao apresentar os jovens como “manifestantes em prol do combate ao crack”,
“movimento para redução de desigualdade social”, “grupo de jovens unidos
por cultura e esporte”, sem marcar o pertencimento religioso.
Esse esforço por parte dos atores da Universal também passa pela questão da
ocupação do espaço público. Em dezembro de 2013, o movimento “Juventude
Contra o Crack”, em parceria com a Clínica Grand House (centro de reabili-
tação para dependentes) e o vereador Jean Madeira (PRB-SP), realizou a “Cami-
nhada por uma Vida sem Drogas”. Cerca de 1,2 mil pessoas19 se encontraram
na Pinacoteca do Estado, em São Paulo, e se deslocaram, ao som da bateria
da escola de samba Nenê da Vila Matilde, até o Vale do Anhangabaú, onde
havia um palco com apresentações musicais. A maior parte dos manifestantes
usava uma camisa branca, personalizada, com os dizeres da campanha. Muitos
carregavam cartazes com dizeres contra as drogas como: “as drogas matam”,
“viciado em crack, hoje estou liberto” e “é possível vencer”. Diversos cartazes
continham a hashtag20 “#PorUmaVidaSemDrogas”. O uso desses indexadores
é visto como muito importante pelos agentes da Universal, pois, segundo eles,
“ajudam a bombar o evento e ganhar mais pessoas, porque hoje o jovem está
ligado nas redes sociais”.
Durante a semana que antecedeu o evento, diversos artistas e apresentadores
contratados da TV Record, usando a camisa da campanha, deram depoimentos
de apoio e pediram a presença do público. Na caminhada, muitos estiveram
presentes, tirando fotos com os participantes e distribuindo autógrafos.

19
Informações cedidas pela Polícia Militar do Estado de São Paulo.
20
Sinal tipográfico “#” usado para indexar palavras-chave a uma informação em redes sociais como
Twitter, Instagram, Facebook e Google Plus.

Religiões e controvérsias Final.indd 62 18/08/2015 09:59:49


É muito importante chamar nomes como Popó, Romário, Marcos Mion, pois isso

Igreja Universal e política


63
chama a atenção do jovem e desperta a vontade de vir e estar ao lado dos ídolos.
Sem contar que isso mostra que a Força Jovem não está ali isolada, mas tem apoio
da sociedade, tanto que os eventos são abertos a todos (bispo Jacenir).

De acordo com Boltanski e Chiapello, a “grandeza” de um agente implica sua


capacidade de se ligar a novos projetos e a se desligar destes (2009). Para os
autores, o projeto é a “ocasião e o pretexto para a conexão, reunindo tempo-
rariamente um conjunto de pessoas bem diferentes e apresentando-se como
um extremo de rede, fortemente constituída durante um curto período de
tempo, mas que permite forjar vínculos mais duradouros” (BOLTANSKI;
CHIAPELLO, 2009, p. 155). Relacionando-se com “grandes” nomes, atores
ligados à ordem da fama, os agentes da Universal conseguem maior inserção
na rede, aumentando a possibilidade de suas causas serem encaradas como
problemas públicos. Ao realizarem conexões com outros autores, ampliam a
possibilidade de interações na rede.
No final da passeata, havia tendas de atendimento dos Alcoólatras Anônimos e
dos Narcóticos Anônimos. Alguns dos voluntários das duas irmandades citadas
eram ligados à Igreja Católica, segundo discurso dos agentes da Universal, que
fizeram questão de frisar o fato, a fim de mostrar que “não importa sua religião,
se é espírita, ou católico, pois temos parceiros nos dois e estamos unidos pelo
mesmo ideal”. É importante ressaltar que as imagens dessa passeata foram uti-
lizadas em contextos distintos por agentes do PRB e da Universal. Os primeiros
destacaram a força da militância republicana e seu engajamento na luta contra
as drogas; já os outros frisaram o compromisso e a responsabilidade social da
Força Jovem Universal para com a sociedade brasileira.
De acordo com Novaes (2012), a diversidade cultural e religiosa passou a
ser “moeda de uso e troca” no espaço público. A autora aponta como a va-
lorização da diversidade é repetida como um mantra e como as religiões são
atualmente impelidas a “se apresentar no espaço público por meio de ações
contra o sectarismo, os fundamentalismos e em defesa da paz e dos direitos”.
Diversos agentes da Universal operacionalizam o conceito de “diversidade”,
a fim de destacar, em sua visão, a própria “laicidade” do projeto e, por conta
disso, seu maior alcance junto à sociedade civil. Tendo em vista essa noção de
“diversidade”, uma das hashtags mais utilizadas pelo grupo é a #TamoJunto-
EMisturado, já que, segundo seus esquemas de percepção, todas as diferenças
deixam de fazer sentido com relação a temas que são de “interesse coletivo”.
Muitos dos jovens participantes afirmam que passaram a ter “noção de respeito
pelo outro” por meio das práticas da Força Jovem Universal.

Religiões e controvérsias Final.indd 63 18/08/2015 09:59:49


64 Meu amigo aqui é católico e veio participar hoje. Tenho uma amiga que é da
“macumba” também. A gente respeita todo mundo. Isso aqui não é religião, é
uma coisa pro jovem, pra alertar, pra dar cultura. Eu aprendi a respeitar todo
mundo depois que entrei. Tamo junto e misturado” (Silvana, membro da Força
Jovem de Osasco).

Antes de qualquer manifestação/protesto da Força Jovem há um intenso debate


entre os participantes (bispos, pastores, obreiros, jovens, etc.). Acompanhei as
discussões a respeito da organização do evento “Saiba Dizer Não” (campanha
contra o crack), realizado em janeiro, no Parque da Juventude, em São Pau-
lo. Nas reuniões, os membros, na maior parte da Força Jovem Universitária,
debatiam como produziriam os cartazes, como deveriam estar vestidos e que
acessórios deveriam levar.
O pastor Sílvio, responsável pelo núcleo do Brás, afirmou que gostaria que os
universitários marcassem presença com boas roupas, com estilo mais casual,
mas bem arrumados, pois “essa é a imagem que o universitário precisa passar,
de próspero, bem-educado”. Os jovens concordaram com o apontamento do
pastor e pensaram em usar chapéus e pulseiras com as cores do Brasil, pois
“é importante mostrar patriotismo e estamos em ano de Copa do Mundo,
temos que mostrar respeito pelo país”. Houve um dissenso e outros jovens
disseram que o “verde-amarelo tem que ser usado para protestar contra
a corrupção na Copa”. Após um breve debate acerca da Copa, os jovens
entraram em consenso quanto à “liberdade de cada um fazer seu cartaz” e
com relação às vestimentas. Enquanto discutiam a hashtag a ser utilizada,
um jovem deu a ideia de utilizar #VemPraRua, que se popularizou durante
as manifestações de junho de 2013.
Imediatamente, o pastor Sílvio afirmou que esse termo estava proibido pela
Igreja, pois muitos manifestantes, segundo ele, ofenderam diversas sedes da
Universal em todo o país21, durante as manifestações de junho. De acordo
com o pastor, as críticas foram feitas por conta da controvérsia envolvendo o
deputado e pastor Marcos Feliciano (PSC-RJ) em relação à homossexualidade.
“Nós nunca falamos nada de ruim dos gays. Não temos a mesma postura dele
[Feliciano], pelo contrário. Só que aí o pessoal associou tudo numa coisa só
e começou a agredir a gente” (Sílvio). A discussão acabou por revelar como
esse tipo de manifestação é operacionalizado sempre como um contraponto,
um modelo que não deve ser seguido.

21
Um dos vídeos que retrata o episódio e que me foi repassado por um membro da Igreja Universal:
<http://www.youtube.com/watch?v=_9GroPl4I-Y>.

Religiões e controvérsias Final.indd 64 18/08/2015 09:59:49


Os manifestantes, em seus discursos, relacionam os eventos da Universal às

Igreja Universal e política


65
manifestações de junho e também às mais recentes, relacionadas aos grupos
black blocks.
Você vê que aqui a gente avisa a Polícia Militar, a CET, tudo dentro da lei. É um
protesto pacífico, sem destruição do patrimônio público. Outra coisa, é sempre
no final de semana. Quem trabalha e estuda não tem tempo de protestar no meio
da semana. Só aí a gente vê quem tem compromisso, trabalha e quem não tem.
Essas manifestações de junho não me representam. Só quebraram, badernaram e
não propuseram nada. Eu não sou a favor desse tipo de coisa e não acho que o povo
brasileiro seja. Para mim, foi tudo filhinho de papai que queria fazer arruaça. Já a
gente tem um objetivo, que é tirar o jovem do crack, lutar contra as drogas, mas
respeitando todo mundo, de forma civilizada. O que marca nosso protesto é ser
civilizado, esse é o grande diferencial, na minha opinião (Luana, 19 anos, secretária
e membro da Força Jovem Carapicuíba).

Os discursos dos manifestantes da Universal acerca de seus protestos e ma-


nifestações são sempre relacionados à sua noção de “civilidade”, que implica
boa conduta dos participantes, aviso prévio à Polícia Militar e à Companhia
de Engenharia de Tráfego (CET), respeito aos horários acordados com o poder
público e oferecimento de estrutura de “apoio ao evento”, com ambulância,
paramédicos, bombeiros, socorristas e setor de achados e perdidos. Durante
o evento no Parque da Juventude, os jovens diziam que não haveria quaisquer
problemas com relação à integridade física e que “protesto tem que ser dentro
da ordem, respeitando as pessoas, por isso que aqui pode vir [gente de] qual-
quer idade, pois temos civilidade, e o mais importante é que temos uma causa:
a luta contra as drogas” (Wellington, 18 anos, Força Jovem de São Mateus).
Outra estratégia muito valorizada pelos agentes da Universal é a performance.
Em todas as manifestações etnografadas e também naquelas a que tive acesso
por meio de fotos e relatos, membros do Cultura Jovem (grupo teatral da
IURD) se fantasiavam como zumbis para retratar viciados em crack. Os atores
denominam essa prática como flash mob22 e a consideram como sendo de suma
importância para “chamar a atenção dos jovens e de toda a sociedade para o
problema do crack”. Durante o trajeto da caminhada no Parque, os atores dan-
çavam ao som da música “Thriller”23, de Michael Jackson. Muitos eram os que
pediam para tirar fotos com os “zumbis”, que afirmaram também realizar ações

22
Termo popularmente relacionado a manifestações organizadas em redes sociais.
23
Do álbum que projetou o sucesso de mesmo nome, Thriller. O videoclipe conta com coreografias
de zumbis.

Religiões e controvérsias Final.indd 65 18/08/2015 09:59:49


66 esporádicas em pontos de São Paulo próximos ao bairro da Luz, denominado
por muitos como “Cracolândia”, por ter uma grande concentração de usuá-
rios de crack. Muitos pesquisadores do Núcleo de Estudos Interdisciplinares
sobre Psicoativos (NEIP), integrantes da Frente Nacional de Drogas e Direitos
Humanos enxergam essa maneira de retratar o usuário como uma forma de
desumanização, contribuindo para que ele seja visto como um indivíduo sem
“vontades e virtudes”, controlado e escravo da droga, de modo a justificar o
argumento pró-internação compulsória.
Mas, afinal, o que os membros da Universal pretendem com suas manifesta-
ções? Não é possível essencializar e qualificar os agentes em um todo coeso e
homogêneo, pois há uma grande heterogeneidade de posições em relação ao
combate ao crack. Por meio do mapeamento dos discursos, podemos auferir que
há um consenso em relação à internação compulsória. Por outro lado, a maior
parte dos entrevistados é contra a criminalização dos usuários, enxergando-os
como vítimas. Outra grande reivindicação é a criação da Secretaria Municipal
de Prevenção às Drogas (será mais abordado no próximo tópico). No evento
“Saiba Dizer Não”, o prefeito de São Paulo, Fernando Haddad (PT-SP), sofreu
duras críticas pelo programa Braços Abertos, que oferece três refeições diá-
rias, hotel e R$ 15 por quatro horas trabalhadas, além de cursos, assistência
psicológica e médica.
De acordo com os membros entrevistados da Universal, o projeto não tiraria as
pessoas do vício, sendo apenas “uma fachada para varrer a sujeira para debaixo
do tapete em ano de Copa”. Segundo eles, é necessária uma política efetiva
contra as drogas, internações compulsórias, a fim de “enfrentar o problema
para valer”, e investir maciçamente em prevenção. No próximo tópico, abor-
daremos como os agentes ligados à Universal e ao PRB participam da elaboração
de políticas públicas e os conflitos que emergem em torno dessa participação.

Políticas públicas
Desde que Rogério Hamam assumiu a Secretaria de Desenvolvimento Social
do Governo do Estado de São Paulo, a principal política da pasta no que tange
à questão do crack é o programa Recomeço. Trata-se do encaminhamento do
usuário a uma clínica de recuperação conveniada que recebe cerca de R$ 1.350
para custear seu tratamento. Muitos membros do PRB, entre eles o vereador
Jean Madeira e o presidente municipal do partido, Aildo Rodrigues, afirmam
a necessidade de estreitar laços com entidades religiosas, pois, historicamen-
te, “tem um bom resultado na recuperação de dependentes químicos” (Jean

Religiões e controvérsias Final.indd 66 18/08/2015 09:59:49


Madeira). O debate em relação à utilização de verbas por comunidades tera-

Igreja Universal e política


67
pêuticas24 de cunho religioso é intenso. A Frente Nacional Drogas e Direitos
Humanos, que reúne entidades e movimentos sociais, é radicalmente contrária
ao repasse de verbas para entidades religiosas, pois acredita que é uma forma
de restabelecer uma política manicomial com relação às drogas25. Além disso,
critica comunidades que “pautam o tratamento na religião”, sem assistência
psiquiátrica e psicológica, e que atenderiam a interesses religiosos e eleitoreiros.
Após pressão da Frente, a Secretaria Nacional de Política Sobre Drogas (Senad)
passou a exigir em seus editais que as comunidades providenciassem duas visitas
médicas a cada interno em um intervalo de 15 dias. Além disso, não poderiam
obrigar os internos a participarem dos cultos religiosos. Apesar da medida, a
Frente Nacional Drogas e Direitos Humanos, assim como deputados ligados a
ela, como Ivan Valente (PSOL-SP), acredita que ainda há muitas “comunidades
exclusivamente religiosas que sobrevivem por meio do repasse cedido pelo
governo” e pedem que o controle nos editais seja mais rigoroso.
Em artigo sobre a política anticrack26, o presidente da Associação Brasileira
de Saúde Mental e pesquisador da Fiocruz, Paulo Amarante, afirma que o
financiamento às comunidades terapêuticas foi rejeitado pela Associação.
Segundo ele, o modelo baseado na internação compulsória é equivocado, pois
é “imediatista, mas após a alta 90% voltam às drogas”. Em nota, o Conselho
Regional de Psicologia de São Paulo criticou o apoio financeiro às comunidades
religiosas, pois isso não promoveria a reinserção do indivíduo no meio social,
não tem ligação com o Sistema Único de Saúde (SUS) e não há participação da
família do usuário. O PL 7.663/2010, de autoria do deputado federal Osmar
Terra (PMDB-RS), propõe o tratamento nas comunidades terapêuticas e regula-
menta a internação compulsória em todo o país. Muitos agentes da Universal
já manifestaram seu apoio ao projeto, conforme pude observar em reuniões.
O coordenador da Comissão Nacional de Direitos Humanos do Conselho
Federal de Psicologia, Pedro Bicalho, posicionou-se de forma contrária ao PL,
pois acredita que o trabalho forçado e o desrespeito às opções de gênero são
constantes nas comunidades terapêuticas, já que baseados em dogmas religiosos

24
Entidades sem fins lucrativos que oferecem abrigo e tratamento para dependentes químicos.
Caracterizam-se pelo fato de os próprios usuários ajudarem no processo de tratamento uns dos
outros.
25
Disponível em: <http://drogasedireitoshumanos.org/2012/06/26/nem-comunidades-nem-
-terapeuticas-reportagem-na-revista-caros-amigos/>. Acesso em: 4 mar. 2014.
26
Política anticrack: Epidemia do desespero ou do mercado antidroga? Disponível em: <http://www.
cepad.ufes.br/content/pol%C3%ADtica-anti-crack-epidemia-do-desespero-ou-do-mercado-anti-
-droga>. Acesso em: 4 mar. 2014.

Religiões e controvérsias Final.indd 67 18/08/2015 09:59:49


68 e não em princípios laicos. No seminário “A Cracolândia muito além do crack”,
a professora Cássia Baldini, da Escola de Enfermagem da USP, afirmou que os
dependentes necessitam de proteção social, não de exorcismo.
Diversos integrantes do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos
(NEIP)27 questionam essa política de internação compulsória, classificando-
-a como higienista, autoritária e ineficaz, na contramão do que pensam os
agentes da Universal, que defendem a medida. Outro ponto de divergência
é quanto à apresentação dos usuários, retratados como viciados nos discursos
dos atores da Universal e repudiados por pesquisadores do NEIP e integrantes
do Coletivo Desentorpecendo a Razão (DAR), que veem nesse termo um
“julgamento moral”.
No meio desse embate, a Universal se prepara para lançar a Fundação Renato
Maduro28, em São João de Meriti, município da Baixada Fluminense, região
metropolitana do Rio de Janeiro. O local contará com centro de triagem, aten-
dimento médico, psiquiátrico e psicológico, além de espaço para atividades
culturais e desportivas, assim como cursos de alfabetização e profissionalizantes.
Madeira já afirmou que não vê problema na obtenção de recursos estaduais
para incentivar projetos da Universal. Uma das formas de garantir apoio, se-
gundo o vereador, é mostrar a “experiência que os grupos religiosos têm com
o problema das drogas”.
Para isso, os agentes consideram a participação de ex-viciados e hoje “libertos”
no debate como fundamental. Nas audiências públicas realizadas na Câmara
Municipal de São Paulo, as discussões abertas à sociedade civil contam com a
presença maciça de jovens oriundos da Força Jovem e do PRB Jovem. Aqui, a
governamentalidade (FOUCAULT, 2008) focada na produção de corpos à ação
política mostra-se, mais uma vez, presente. Por meio de um habitus, isto é, o
conjunto de disposições, práticas, processos linguísticos e esquemas de ação
(BOURDIEU, 2006) incorporados por meio das técnicas disciplinares tanto
na Força Jovem quanto no PRB, esses agentes têm uma determinada percepção
acerca das possibilidades discursivas nas audiências.
Durante as sessões que pude acompanhar, as narrativas de sofrimento são
extremamente operacionalizadas pelos atores. Em uma delas, um ex-viciado
destaca seu período nas drogas, as condições em que vivia e o que o levou a
“se libertar” da antiga condição:

27
Disponível em: <http://www.neip.info/index.php/content/view/2469.html>. Acesso em: 5 abr.
2013.
28
Um dos primeiros bispos da IURD e ex-usuário de drogas, conforme seu próprio relato.

Religiões e controvérsias Final.indd 68 18/08/2015 09:59:49


Eu não tinha documento, eu não tinha dignidade diante da sociedade e os outros

Igreja Universal e política


69
não me viam como uma boa pessoa. Hoje, por onde eu passo, as pessoas me abra-
çam e veem que realmente eu estou mudado. Casei, minha esposa está grávida e a
expectativa é que minha vida melhore cada vez mais (Edson Santos, ex-dependente
químico, 32 anos).

O termo transformação é extremamente mobilizado, assim como a noção de


experiência. Segundo os atores ligados à Universal, só quem passou pela condi-
ção de “viciado” tem legitimidade para atuar junto a usuários de drogas e propor
políticas públicas adequadas, pois tem uma “visão de dentro”, em oposição aos
que estão de fora e “não sabem como o problema funciona”. Deve-se ressaltar
que esse saber específico da vivência se constitui enquanto um saber-poder
(FOUCAULT, 2008), na tentativa de imposição de um monopólio em torno do
estabelecimento de resoluções para a questão do crack: a exclusividade dos que
“viveram o problema”. Nesse processo, afirmam que a melhor política pública
passa pela entidade religiosa, “pois sem ela não se conseguem resultados [...],
só consegui quando tive esse apoio”. Também exaltam o projeto Dose Mais
Forte, da Universal, colocando-o como adequado aos usuários, pois “usam a
mesma linguagem, sabem as gírias, pois é gente que já esteve do outro lado,
como nós” (Fernanda Alves, ex-usuária e assessora parlamentar). Além disso,
destacam o papel que a Igreja teve no processo de recolocação acadêmica e
profissional, “oferecendo uma oportunidade”.
Para produzir legitimidade junto a outros vereadores, diversas narrativas de
sofrimento foram mobilizadas por Jean Madeira para a criação do PL 262/2013,
que cria a Secretaria Municipal de Prevenção às Drogas, uma das suas principais
bandeiras de campanha e uma das maiores reivindicações do PRB Jovem. Na
cerimônia de assinatura de adesão do município ao programa federal Crack,
É Possível Vencer, em maio de 2013, Madeira esteve presente com diversos
jovens da Juventude Contra o Crack. Após a fala do ministro da Justiça José
Eduardo Cardozo e do prefeito Fernando Haddad (PT-SP), os ex-usuários deram
depoimentos enfatizando a importância da prevenção, já que atribuíam a au-
sência desse fator como determinante para a sua entrada no mundo das drogas
e da criminalidade. Em suas narrativas, os ex-usuários destacavam quanto se
sofre na condição de “viciado” tendo que, segundo eles, muitas vezes roubar,
comer do lixo e se prostituir para sustentar o vício. Muitas vezes, os relatos
causam comoção e não é raro que os jovens chorem durante sua fala.
Em seu livro La souffrance à distance (1993), Luc Boltanski busca analisar as
demandas morais e as questões políticas que o “sofrimento a distância” impõe
ao telespectador ao veicular imagens de extremo sofrimento. Façamos aqui

Religiões e controvérsias Final.indd 69 18/08/2015 09:59:49


70 uma analogia, transportando o mesmo conceito e implicações às narrativas de
sofrimento expressas diretamente por ex-usuários ou veiculadas em vídeos29.
Segundo o autor, o sofrimento não deve ser encarado como um sentimento
individual, mas sim como construção social operacionalizada estrategicamente
para angariar direitos (BOLTANSKI apud MELLO, 2010):
[...] nada é mais favorável à formação de causas do que o espetáculo do sofrimento.
[...] É inicialmente em torno do sofrimento dos infelizes que as pessoas, até então
indiferentes, se sentem inclinadas a aderir a uma causa (BOLTANSKI, 1993, p. 53)30.

Segundo o autor, o espectador pode tanto ignorar a mensagem como mostrar


“piedade” com relação aos que sofrem, o que já é suficiente para a formação
de uma “palavra pública”, comunicando a emoção provocada pela narrativa a
um público maior. Porém, a narrativa desses ex-usuários, nas audiências, acaba
por abordar a Igreja Universal e agentes ligados a ela nos agradecimentos. Disso
surge o questionamento acerca da participação de agentes que compõem a Uni-
versal nas instituições governamentais por parte de diversos atores. Conforme
Giumbelli (2002) aponta, um traço em comum dos “novos movimentos reli-
giosos” é ter sua legitimidade contestada e não gozar de muito prestígio social.
Ainda no universo das políticas públicas, a vereadora Séfora Mota (PRB-RS), de
Porto Alegre, ganhou notoriedade com o PL 386/2013, que prevê a realização
de laqueadura em usuárias de crack, caso haja pedido de um familiar. O projeto
recebeu parecer positivo da Procuradoria do município e segue em tramitação
na Câmara Municipal de Porto Alegre. A filiação religiosa de Mota não foi
questionada, ao contrário, por não pertencer à Universal, segundo o diário
gaúcho Zero Hora, o PRB apostava em seu nome para uma vaga na Assembleia
Legislativa no pleito de 2014.
No Rio de Janeiro, a deputada estadual e também presidente da Comissão de
Prevenção ao Uso de Drogas da Assembleia Legislativa do Rio, Rosângela Go-
mes (PRB-RJ), propôs o PL 1.303/2012, que instituiu o Programa de Atendimento
Integral a Usuários de Crack em Situação de Rua, oferecendo atendimento
itinerante no estado, com médicos, enfermeiros, psicólogos e assistentes so-
ciais. Em junho de 2013, Gomes foi uma das deputadas na audiência pública
“Crack – Internação compulsória é a solução?”. O evento contou com outros

29
O material audiovisual elaborado por agentes do PRB também se encontra disponível em uma
infinidade de vídeos no YouTube. Exemplo: I Encontro Uma Juventude Contra o Crack: <http://
www.youtube.com/watch?v=IadsyEnHMQs>.
30
Tradução da professora doutora Katia Mello, disponível no artigo: MELLO, Katia. Sofrimento e
ressentimento: dimensões da descentralização de políticas públicas de segurança no município de
Niterói. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 53, 2010.

Religiões e controvérsias Final.indd 70 18/08/2015 09:59:49


parlamentares da casa e com frequentadores da “Cracolândia” do Parque da

Igreja Universal e política


71
União, no Complexo da Maré, no Rio de Janeiro. A deputada defendeu a inter-
nação compulsória em caso de “risco de vida”, pois “o crack tira a capacidade
de escolha do indivíduo”, mas colocou-se contrária à criminalização do usuário
e voltou a enfatizar a necessidade de prevenção e de políticas de atendimento.
Rosangela viu-se no meio de um debate intenso após propor o PL 2.761/2014,
que institui o Dia da Força Jovem Universal, a ser comemorado em agosto,
com a realização de uma série de atividades preventivas contra o crack, con-
forme consta no projeto de lei. O deputado federal Antônio Bulhões (PRB-SP)
defendeu a medida e afirmou que:
Estado laico é aquele que não impõe nem proíbe aos cidadãos uma religião, mas
que tem a tarefa de garantir a liberdade de culto. No Legislativo, onde há a repre-
sentação de vários e indistintos setores e segmentos da sociedade, não há problema
algum haver deputados engajados em defender uma bandeira ou causa. É justo que
todos os cidadãos se vejam defendidos nas Casas das Leis, onde se determina a
convivência social. Isso, no entanto, é inadmissível no Executivo e no Judiciário.
Não queremos um governo religioso. Queremos, sim, um governo justo!

Considerações finais
A controvérsia em torno do secularismo mobiliza uma série de acusações em
relação à participação de agentes da Universal e do próprio PRB nas institui-
ções governamentais. Para os críticos, a presença de membros da Universal
nas diferentes esferas governamentais fere o princípio de laicidade do Estado
e não visa o bem público, mas sim os interesses da instituição. A participação
dos membros da Universal na política é encarada como parte de seu “projeto
de poder”, gerando uma série de denúncias por parte da mídia e de organiza-
ções da sociedade civil, mais especificamente no tocante ao envolvimento de
agentes da Universal nas políticas públicas em relação ao combate ao crack.
Esse cenário obriga os atores da Universal a desenvolver uma série de justifi-
cativas acerca de seu pertencimento religioso, recorrendo, entre outros meios,
ao próprio princípio de laicidade para legitimar sua filiação à IURD. Os agentes
também passam a encarar como necessária uma série de procedimentos, que
chamei aqui de governamentalidade voltada à política, para a “formação de
jovens cultos, educados e cidadãos”, com disciplinas para apreensão de lingua-
gem, conduta, escolarização e noções de política por meio dos cursos do PRB.
No processo de interação discursiva, os agentes acreditam que é importante não

Religiões e controvérsias Final.indd 71 18/08/2015 09:59:49


72 usar uma linguagem religiosa, a fim de conseguir estabelecer contatos e vencer
debates, promovendo argumentos de outra ordem. Há todo um esforço desses
atores na forma como se colocam na esfera pública, por meio da legislação, da
ocupação do espaço urbano e da produção de políticas públicas.
Em cada âmbito, os agentes, por meio de seu senso prático (BOURDIEU,
2009), tentam operacionalizar discursos, termos e linguagem que julgam
adequados a cada contexto. Seguindo a noção de “regimes de circulação”
(MONTERO, 2013), o trabalho buscou não decifrar o significado das catego-
rias, mas sim entender como são acionadas. Deve-se ressaltar que os agentes
ligados à Universal constroem uma noção de “bem comum” (BOLTANSKI;
THÉVENOT, 2006), sustentando-a na “preocupação com a juventude, com-
bate às drogas, políticos e políticas ancorados em uma moralidade cristã”. Essa
ideia de “bem comum” é um princípio organizador de práticas que orienta a
forma como os manifestantes da Universal protestam, quais bandeiras levan-
tam no espaço público, como prega valores cristãos na política e a elaboração
de políticas públicas que “resolvam” a situação do crack. De certa forma, é a
noção que irá coordenar as ações dos agentes da Universal e seus esquemas
de percepção sobre o mundo, assim como o “bem comum” é composto por
discursos e práticas de membros da Universal, em uma relação dialética. En-
tretanto, a principal acusação dos outros atores é de que esses cuidados não
visam o “bem comum”, mas sim a instrumentalização da política para os planos
de poder da instituição.
Observamos que, apesar de todo o esforço dos agentes ligados à Universal em
relação aos discursos, ao uso de determinada gramática normativa e à construção
de um “bem comum”, quando a filiação religiosa dos agentes é revelada, ou se
deixa transparecer por meio das narrativas, a presença deles nas instituições
governamentais é questionada e o pertencimento, denunciado. Em resposta,
atores da Universal mobilizam a noção de “intolerância religiosa” e afirmam
que seus acusadores não realizam os mesmos apontamentos em relação à Igreja
Católica. Em todo caso, permanece a disputa em torno da ideia de secularismo
e a tentativa de atores distintos de conferir um significado final à questão.

Referências bibliográficas
ALMEIDA, Ronaldo. Religião em transição. In: MARTINS, Carlos B. (Coord.); DUARTE, Luiz F. D.
(Org.). Horizontes das ciências sociais. Antropologia, São Paulo, Anpocs, 2010.
ASAD, Talal. Formations of the secular: christianity, islam, modernity. Stanford: Stanford University
Press, 2003.

Religiões e controvérsias Final.indd 72 18/08/2015 09:59:49


________. Trying to understand French secularism. In: VRIES, H. de; SULLIVAN, L. (Orgs.). Political

Igreja Universal e política


73
theologies: public religions in a post-secular world. New York: Fordham University Press, 2006.
BOLTANSKI, Luc. L’Amour et la justice comme compétences. Trois essais de sociologie de l’action.
Paris: Métailié, 1990.
________. La souffrance à distance. Morale humanitaire, médias et politique. Paris: Métailié, 1993.
________; THÉVENOT, Laurent. On justification: economies of worth. Princeton/Oxford: Princeton
University Press, 2006. [Orig.: De la justification: les économies de la grandeur. Paris: Gallimard,
1991.]
________; CHIAPELLO, Ève. O novo espírito do capitalismo. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009.
BOURDIEU, Pierre. Senso prático. Rio de Janeiro: Vozes, 2009.
________. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006.
CASANOVA, José. Public religion in the modern world. Chicago: The University of Chicago Press, 1994.
________. A secular age: dawn or twilight? In: WARNER, Michael. Varieties of secularism in a secular
age. Cambridge: Harvard University Press, 2010.
________. Public religions revisited. In: VRIES, H. de (Ed.) Religion: beyond the concept. New York:
Fordham U.P., 2008. p. 101-119.
FOUCAULT, Michel. Segurança, território e população. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
________. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Trad. Raquel Ramalhete. 35. ed. Petrópolis: Vozes, 2008.
________. Nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
________. A microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 2012.
GIUMBELLI, Emerson. O fim da religião. CNPQ/PRONEX, 2002.
GOMES, Edlaine. A era das catedrais: a autenticidade em exibição. Rio de Janeiro: Garamond, 2011.
HABERMAS, J. Entre naturalismo e religião. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007.
________. Era das transições. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.
________. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.
v. I e II.
________. Consciência moral e agir comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989.
________. Teoría de la acción comunicativa I: racionalidad de la acción y racionalización social. Madrid:
Taurus, 1987.
LATOUR, Bruno. Reassembling the social. An introduction to Actor-Network Theory. Oxford: Oxford
University Press, 2005.
MELLO, Katia. Sofrimento e ressentimento: dimensões da descentralização de políticas públicas de
segurança no município de Niterói. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 53, 2010.
MONTERO, Paula. Religião, pluralismo e esfera pública no Brasil. Novos Estudos – CEBRAP, n. 74, p.
47-65, 2006.
________. Controvérsias religiosas e esfera pública: repensando as religiões como discurso. Religião e
Sociedade, v. 32, n. 1, p. 167-183, 2012.
________. A teoria do simbólico na antropologia clássica de E. Durkheim e Claude Lévi-Strauss e seus
desdobramentos contemporâneos no estudo das religiões. São Paulo: Mackenzie, 2013.
________. Multiculturalismo, identidades discursivas e espaço público. Sociologia e Antropologia, v.
2, n.4, 2012.
________. O campo religioso, secularismo e a esfera pública no Brasil. Boletim Cedes. PUC-RJ, n.40, 2011.
NOVAES, Regina. Juventude, religião e espaço público: exemplos “bons para pensar” tempos e sinais.
Religião e sociedade, vol.32, n.1, p. 184-208, 2012.

Religiões e controvérsias Final.indd 73 18/08/2015 09:59:49


74 VANDENBERGUE, Fredrick. Construção e crítica na nova sociologia francesa. Sociedade e Estado,
Brasília, v. 21, n. 2, p. 315-366, maio-ago. 2006.
VENTURINI, T. (2012). Building on faults: how to represent controversies with digital methods.
Public Understanding of Science, 21(7), 796-812.

Religiões e controvérsias Final.indd 74 18/08/2015 09:59:49


A controvérsia em torno da liberação das
pesquisas com células-tronco embrionárias
no Brasil: justificativas e moralidades
LÍLIAN SALES

Em grande parcela dos estudos sobre religião, do ponto de vista simbólico


e sociológico, o domínio religioso e a sua separação do domínio político são
tomados como autoevidentes. Nessa forma de entendimento, a tensão entre
religião e poder é vista como tensão entre duas esferas distintas, não sendo
tratadas como um problema histórico conceitual.
Mais recentemente, porém, esses antigos paradigmas vêm sendo substituídos
por discussões sobre o papel da religião na constituição do espaço público,
buscando compreender seu papel enquanto definidor de códigos e valores de
cidadania (POMPA, 2012). A análise se desloca, então, para outras dimensões,
estando embasada em conceitos como interação, fluxo, trânsito, mediação,
construção discursiva, negociação, códigos compartilhados...
Com base nesse enfoque, nos propomos a analisar uma parte da controvérsia
em torno do uso de células-tronco embrionárias em pesquisas no Brasil. A Lei
de Biossegurança foi aprovada em 2005 pelo Congresso Nacional autorizando
as pesquisas com células-tronco embrionárias, desde que provenientes de em-
briões gerados por fertilização in vitro (FIV) considerados inviáveis ou congelados
há mais de três anos. Entretanto, em 16 de maio de 2005, o procurador-geral
da república Cláudio Fonteles, reagindo contra essa definição da lei, entrou
com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 3510) contra o artigo 5o
da Lei de Biossegurança.

Religiões e controvérsias Final.indd 75 18/08/2015 09:59:49


76 A ação foi a julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) em maio de 2008. Nos
meses que antecederam o julgamento houve um grande debate público, estabe-
lecido sobretudo na mídia, polarizando opositores e defensores da liberação das
pesquisas com uso de células-tronco embrionárias. Essa controvérsia, e a constela-
ção de argumentos que a constituiu, foi também explicitada na audiência pública
convocada pelo STF em abril de 2007, bem como durante o julgamento da ação.
Realizaremos esta análise com base em uma perspectiva que se utiliza do con-
ceito de controvérsias. Nessa perspectiva, para observar as particularidades
e configurações da arena pública de uma sociedade determinada é preciso
examinar a natureza de suas controvérsias. A observação dos argumentos e das
interações entre eles é fundamental para a compreensão do desenho de uma
arena pública (MONTERO, 2013).
Neste capítulo observaremos os argumentos e interações presentes em uma
cena específica: a audiência pública convocada pelo STF para se informar so-
bre “o início da vida”. Centraremos nossa análise nos discursos produzidos
pelos cientistas convocados. A audiência pública foi dividida em dois blocos,
um composto por cientistas favoráveis à liberação de pesquisas e outro bloco
contrário, sendo que a indicação de parte dos cientistas deste segundo bloco
foi realizada pela Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).
Apesar de o foco desta apresentação estar na audiência pública, alguns elemen-
tos da controvérsia mais ampla, como a sua presença nas mídias, deverão ser
retomados. Esse foi o alvo da primeira etapa de nosso trabalho de pesquisa, o
mapeamento da controvérsia referente à ADI 3510 na mídia nacional1. A par-
tir desse primeiro mapeamento notamos o destaque da participação da CNBB
nessa controvérsia. A Confederação Nacional dos Bispos do Brasil foi agente
de grande destaque na produção de discursos públicos, sendo também aceita
como amicus curiae no processo.
Neste artigo nos deteremos nos agentes e discursos que dão corpo a essa
controvérsia na audiência pública: por um lado, os argumentos e estratégias
utilizados pelos cientistas para se posicionarem contrariamente ao uso de células
embrionárias em pesquisa. Por outro, os argumentos e estratégias desenvolvidos
pelos cientistas, médicos e biomédicos favoráveis à liberação das pesquisas.

1
Iniciamos o mapeamento dessa controvérsia identificando os argumentos arregimentados pelos
agentes favoráveis a ADI em artigos e notícias publicados em vários meios de comunicação, como
no site da CNBB e no site da TV Canção Nova. O primeiro foi escolhido por ser o site oficial da
Confederação e o segundo por se tratar de um dos sites católicos mais acessados da atualidade,
pertencente ao canal Canção Nova de rádio e televisão. Também analisamos as notícias publicadas
em três revistas semanais de circulação nacional durante o ano de 2008.

Religiões e controvérsias Final.indd 76 18/08/2015 09:59:49


Observaremos que esses agentes são detentores de uma capacidade de lançar

A controvérsia em torno da liberação das pesquisas com células-tronco embrionárias no Brasil


77
mão de diferentes estratégias discursivas diante das situações de disputa, va-
lendo-se de múltiplos usos das categorias, como no caso da “vida”, acionada
a partir de sentidos plurais que remetem a códigos de valores variados nos
discursos ao longo da audiência pública. Os múltiplos sentidos em torno dessa
categoria mobilizam essa controvérsia, estando presente em todas as instâncias
que a constituíram, como veremos em relação à sua presença constante nos
discursos durante a audiência pública.

A voz da CNBB
A Igreja Católica no Brasil tem constantemente formulado posições e defendido
argumentos nos debates públicos nacionais. Uma visita ao site da CNBB torna
perceptível essa forma de ação dos representantes do catolicismo: diariamente
estão presentes notícias, discussões e campanhas a respeito de temas relaciona-
dos à “política” e à “sociedade” brasileira. O posicionamento da Igreja Católica
na arena pública nacional já vem sendo abordado por autores que estudam o
catolicismo desde longa data.
Embora desde a formação da república a Igreja Católica venha se afastando da
política institucional, algumas entidades que a representam permanecem ativas
na formulação de posturas que “esclareçam e engajem” a população, como na
participação direta em campanhas, entre outras ações. A CNBB é exemplo disso.
Ernesto Seidl (2007) demonstra que a CNBB, enquanto instituição, procura inter-
vir na “política” e no “social”, produzindo discursos que justifiquem sua posição
e conclamando seus fiéis a apoiá-la. O autor demonstra que a informação e as
discussões sobre a “conjuntura nacional e mundial” adquirem lugar central nas
reuniões da CNBB. Os posicionamentos são produzidos internamente, havendo
conferências e discussões para informar e problematizar sobre “a realidade do
país e do mundo”. Cada tema é debatido e, após cada congresso, a Conferência
produz documentos analíticos. A CNBB, portanto, formula posicionamentos, que
posteriormente serão colocados em circulação nos debates públicos nacionais.
A Igreja Católica vinha adotando uma postura de orientação da ação dos indiví-
duos, sempre tendo por base os valores do catolicismo, que se colocavam como
hegemônicos na sociedade brasileira. Entretanto, mais recentemente, a hipótese
de necessidade de justificação dos valores católicos na arena pública nacional
vem sendo colocada (MONTERO, 2013). Segundo a autora, até pouco tempo
atrás, os valores presentes na arena pública brasileira eram coadunantes com
os valores do catolicismo. A necessidade de justificação dos posicionamentos

Religiões e controvérsias Final.indd 77 18/08/2015 09:59:49


78 católicos aconteceria no momento em que o “consenso” católico passa a ser
questionado, como mostra uma série de ações levadas aos tribunais recente-
mente. Essa necessidade de justificação se deveria, em parte, à expansão das
religiões pentecostais e neopentecostais no país, acompanhada de uma mudança
na sensibilidade e na percepção daquilo que seria de interesse coletivo.
A controvérsia aqui analisada é um exemplo dessa necessidade de justificação
do discurso proferido por agentes ligados ao catolicismo. Em todos os meios,
esses agentes buscavam justificar seus argumentos: na mídia e também na
audiência pública.
Dessa maneira, se o catolicismo, historicamente, com sua forte presença insti-
tucional e sua força simbólica, ocupou posição-chave como agência reguladora
da vida social, fomentadora de formas de mobilização e construção de uma
cultura cívica brasileira e de uma moralidade pública, mais recentemente o
protestantismo vem surgindo como uma nova matriz político-cultural cívica
contemporânea.
Desde a década de 1970 estudos de sociologia da religião apontam a retração
do número de pessoas que se denominam católicas, paralelamente ao aumento
do número de adeptos do protestantismo, especialmente em sua versão pen-
tecostal e, mais recentemente, neopentecostal. Essa retração, que se iniciou
lenta, ganhou força nas décadas de 1980 e 1990, assim como ganhou força a
expansão daqueles que se declaram evangélicos2.
Entretanto, essa mudança de sensibilidade não está apenas associada à saída dos
fiéis do catolicismo, mas principalmente às formas de ação e inserção na esfera
pública realizadas pelas denominações evangélicas, processo que desencadeou,
inclusive, uma crescente disputa por legitimidade na esfera pública entre as
instituições católicas e instituições eclesiásticas classificadas como evangélicas,
que já foi tema de uma extensa produção bibliográfica (GIUMBELLI, 2004;
ORO, 2003; dentre outros).
As estratégias de ação na esfera pública por parte dos evangélicos são variadas,
tendo início com a busca de fortalecimento da representação de políticos

2
André de Souza (2012) aponta esses dados em sua análise sobre o censo desde a década de 1940.
Segundo o autor, “em 1940, os católicos compunham 96,2% no primeiro censo demográfico em
que o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) considerou o quesito religião. Essa
cifra chegou no ano 2000, último recenseamento com dados disponíveis, a 73,9%, fazendo com
que aproximadamente ainda ¾ da população brasileira se declare seguidora da Igreja romana. Em
contrapartida, os protestantes, tanto de missão ou históricos quanto os pentecostais, abrangiam
naquele primeiro censo 2,6%, vindo a compor seis décadas mais tarde 15,6% da população total”
(SOUZA, 2012, p. 130).

Religiões e controvérsias Final.indd 78 18/08/2015 09:59:49


evangélicos no Congresso Nacional, com a formação da chamada Bancada

A controvérsia em torno da liberação das pesquisas com células-tronco embrionárias no Brasil


79
Constituinte dos Evangélicos, processo iniciado ainda na década de 19803.
Além disso, formas de atuação e ocupação do espaço público, como por
meio de grandes eventos e marchas, como a Marcha para Jesus, vêm sendo
constantemente realizadas pelas diversas denominações evangélicas. Por fim,
estudos mais recentes apontam que denominações evangélicas, como a Igreja
Universal do Reino de Deus, desenvolvem estratégias de formação de um novo
habitus evangélico pentecostal, contribuindo para a constituição de uma nova
sensibilidade contemporânea no Brasil.
Dessa forma, mais recentemente outras instituições vêm ocupando esse espaço
quase exclusivo do catolicismo no início do século XX. A junção desses ele-
mentos parece colaborar para esta alteração na sociedade brasileira, na qual o
catolicismo não deixa de ser a religião hegemônica, mas precisa justificar suas
posições na esfera pública. Nesse processo, a defesa de suas posições teológicas
na arena pública acontece pela utilização de justificativas que articulam um
modo de ver o mundo a categorias científicas e enunciados jurídicos. É esse
modo particular de certos agentes associados à Igreja Católica argumentarem
quando em interação com outros agentes que será analisado neste capítulo:
colocaremos em foco a construção de seus repertórios de justificativas na cena
específica do debate em torno do uso de células-tronco.
No caso da audiência pública realizada no STF, a Igreja, por meio da CNBB, e,
mais especificamente, por meio dos cientistas indicados por essa congregação,
produz justificativas contrárias à liberação das pesquisas, “em defesa da vida
humana iniciada na fecundação”. Esse é o argumento agregador na controvérsia,
formado a partir de uma multiplicidade de argumentos e elementos. Assim,
embora a Igreja Católica apareça na audiência pública representada pela voz
unívoca do bloco de cientistas contrários à liberação das pesquisas, esse argu-
mento é constituído por uma pluralidade de elementos e justificativas.
A presença das moralidades informadas pela teologia católica tem sido notada
nas controvérsias que colocam em jogo o estatuto do embrião. Essas contro-
vérsias foram alvo de ações bastante recentes no Supremo Tribunal Federal

3
A eleição para a Constituinte, em 1986, apresentou relevante mudança em relação ao número
de parlamentares que se autodeclaravam evangélicos pentecostais. A Igreja Assembleia de Deus,
que contava com apenas dois parlamentares, conseguiu, a partir da formulação de uma pedagogia
identitária do voto, eleger outros 18 parlamentares. Aquele é o ano de fundação da Bancada Cons-
tituinte Evangélica, que veio se ampliando paulatinamente a partir de então. Nas eleições federais
ocorridas no ano de 2010, a bancada evangélica cresceu quase 100%. Antes desse período, a bancada
era formada por 41 deputados e dois senadores. No ano de 2011 a bancada passou a integrar 80
deputados e três senadores (MACHADO, 2012).

Religiões e controvérsias Final.indd 79 18/08/2015 09:59:49


80 (STF), como a que versa sobre a permissão da interrupção da gravidez de fetos
anencéfalos e a Ação Direta de Inconstitucionalidade sobre a liberação de
pesquisas com células-tronco embrionárias, sobre a qual nos debruçamos.

A audiência pública
No dia 20 de abril de 2007 o Supremo Tribunal Federal (STF) realizou a
primeira audiência pública de sua história, no intuito de reunir informações
para julgar o processo da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3510,
proposta pela Procuradoria-Geral da República (PGR) contra dispositivos da
Lei de Biossegurança (Lei no 11.105/2005). A ADI contestava especificamente
o artigo 5o da lei. Esses dispositivos referem-se à utilização de células-tronco
de embriões humanos em pesquisas e terapias.
Essa audiência pública se iniciou com as falas do ministro relator Carlos Ayres
de Britto, antecedidas pelas da ministra Ellen Grace. A ministra cumprimentou
a disposição de seu colega em convocar essa audiência de cunho instrutório,
buscando esclarecer o voto dos ministros por meio de uma discussão “científi-
ca” sobre o tema das pesquisas com células embrionárias. A ministra também
agradeceu a presença dos experts sobre o tema, que se dispuseram a tratar de
seus trabalhos e de suas pesquisas na audiência.
Esse breve momento inicial já indica que a audiência pública deverá tratar de
instruções trazidas por experts, por cientistas a respeito do “início da vida”. A
audiência foi tratada pelos ministros como de caráter exclusivamente “científi-
co”. Estavam presentes e foram ouvidos dois blocos de cientistas, um formado
por expositores favoráveis à liberação das pesquisas com células embrionárias
(bloco pró-pesquisas) e outro contrário (bloco pró-vida). O bloco contrário foi
indicado pelo procurador-geral da república e pela CNBB, aceita como amicus
curiae no julgamento, e o segundo bloco pelos requeridos na ADI (Congresso
Nacional e presidente da República).
Havia uma demarcação que separava os expositores escalonados e pessoas que
apenas assistiam à audiência. Apenas os expositores podiam se manifestar ao
longo do evento. Nenhum tipo de manifestação por parte do público, como
aplausos ou ações de apoio ao expositor ou a algum dos blocos, era aceito pelo
ministro relator. A audiência teve caráter apenas informativo, no intuito de
informar/esclarecer os ministros do STF sobre aspectos ditos “científicos” re-
lativos ao “início da vida”. Esse ponto foi em mais de um momento destacado
pelo ministro relator do processo, Carlos Ayres de Britto, que fez questão de

Religiões e controvérsias Final.indd 80 18/08/2015 09:59:49


ressaltar e resguardar o que ele entendia ser o caráter exclusivamente infor-

A controvérsia em torno da liberação das pesquisas com células-tronco embrionárias no Brasil


81
mativo e “científico” da audiência.
Os escalados eram cientistas da área da medicina, da biomedicina e da biologia,
e também uma antropóloga especialista em bioética. Os dois grupos agiram de
fato enquanto bloco, ou seja, cada apresentador complementava, ou desenvolvia
mais a fundo, um tema apenas apontado pelos cientistas anteriores, de acordo
com suas especialidades de pesquisa e experiências de trabalho.
A defesa da dimensão científica da audiência pelo ministro ficou clara em
vários momentos, como no tratamento dado por ele aos expositores enquanto
“autoridades científicas”, ou ainda nas intervenções realizadas quando algum
dos expositores expressava valores morais ou termos jurídicos. Veremos mais
adiante que essas dimensões aparecem profundamente imbricadas nessa con-
trovérsia, porém, na concepção do ministro, a defesa de dados e elementos
exclusivamente científicos, sem a interferência de elementos de outras áreas,
estava presente. Nessa concepção, a ciência (ou os cientistas, no caso) surge
como capaz de determinar o fato “científico” de quando a vida humana se
inicia. Dessa maneira, nos momentos em que os expositores se afastavam dos
dados científicos, o ministro relator imediatamente intervinha e solicitava que
o expositor voltasse à “exposição científica”.
A valorização da dimensão científica torna-se evidente já no momento da
convocação da audiência pública. Os agentes considerados legítimos para se
pronunciar sobre esse tema eram todos cientistas4. Além disso, todas as apresen-
tações foram repletas de dados, citações e resultados de pesquisas científicas.
Todo um arsenal simbólico e o modus operandi do universo acadêmico-científico
permeou essa controvérsia desde o seu início, tornando-se ainda mais evidente
durante a audiência pública.
A discussão foi empreendida no campo da biomedicina, em torno de pesquisas
e conceitos desse campo. As apresentações traziam resultados de pesquisas
e referências, geralmente de autores ou de revistas de grande prestígio no
universo acadêmico, como textos da revista científica Nature, entre outras.
Dados e formato acadêmico caracterizaram as apresentações, sendo por meio
deles que os autores questionavam e buscavam invalidar os argumentos de

4
Essa igualdade é estabelecida pelo STF e pelos agentes envolvidos na indicação dos expositores,
porém, Naara Luna (2013), ao analisar essa audiência pública, demonstra que os cientistas do bloco
pró-pesquisas possuíam maior capital simbólico no campo acadêmico-científico: eram pesquisadores
específicos na área, estavam à frente dos principais laboratórios sobre o tema e possuíam postos de
maior status junto às universidades mais prestigiosas do país.

Religiões e controvérsias Final.indd 81 18/08/2015 09:59:49


82 seus interlocutores. A justificativa e a crítica eram elaboradas a partir do uso
rigoroso do saber-fazer acadêmico científico.

Agentes, justificativas e gramáticas


1) A legitimação dos expositores: cientistas
As qualificações acadêmicas foram centrais nessa audiência, legitimando a
fala de cada um dos expositores e indicando a importância dada à validação
científica na controvérsia. Todos os expositores da audiência pública sobre o
início da vida eram cientistas ou médicos, e todos eles iniciavam suas falas men-
cionando suas qualificações profissionais, como doutorados e pós-doutorados
em universidades de peso no exterior, sendo muitos deles professores em
importantes universidades brasileiras.
No que se refere ao bloco pró-pesquisas, quase todos estavam vinculados
aos laboratórios que já desenvolviam pesquisas com células-tronco, e alguns
eram responsáveis por hospitais onde testes clínicos com esse tipo de célula
vinham sendo desenvolvidos. Os cientistas desse bloco possuíam maior capital
simbólico no campo acadêmico-científico: eram pesquisadores específicos na
área, estavam à frente dos principais laboratórios sobre o tema e possuíam
postos de maior status junto às universidades mais prestigiosas do país. Já os
cientistas contrários à liberação, apesar da formação acadêmica, não ocupavam
posições de grande destaque no campo científico, e muitos deles não eram
pesquisadores especificamente dessa área.
Essa característica foi também notada e detalhada por Naara Luna (2013), que
realizou pesquisa sobre esse julgamento. A autora se deteve sobre o currículo
Lattes de cada um dos pesquisadores, demonstrando que as qualificações de
maior prestígio no campo científico estavam presentes entre os pesquisadores
do bloco pró-pesquisas, sendo que entre os pesquisadores do bloco pró-vida a
titulação geral era menor (nem todos apresentavam doutorado, como no caso dos
pesquisadores pró-pesquisa) e alguns não possuíam cadastro no sistema Lattes.
Segundo a autora, isso evidenciaria uma falsa impressão de igualdade na au-
diência pública, pois numericamente estaria apresentada uma igualdade entre
dois grupos “de cientistas”: 11 de cada bloco. Como não estamos realizando
uma análise do campo científico, mas sim de argumentos, estratégias e posicio-
namentos construídos na conjuntura desse debate, não aprofundaremos esse
tema. Porém, parece-nos importante ressaltar que na arena pública represen-
tada pela audiência informativa da ADI 3510 ambos os grupos são colocados

Religiões e controvérsias Final.indd 82 18/08/2015 09:59:49


como igualmente capazes de postular a verdade sobre o início da vida. Todos

A controvérsia em torno da liberação das pesquisas com células-tronco embrionárias no Brasil


83
os expositores são tratados como cientistas nessa arena, e igualmente capazes
de formular “cientificamente” quando a vida teria início.
As divergências e disputas em torno desse tema no campo acadêmico científico
são reconhecidas, sendo conhecida a inexistência de consenso sobre o início
da vida humana. O STF, por meio da figura do ministro relator da ADI 3510, ao
convocar a audiência para se elucidar sobre o tema, demonstra reconhecer a
falta de consenso. Apesar disso, as pessoas consideradas aptas a trazer elemen-
tos para essa discussão são os cientistas. A ciência é o domínio considerado
capaz de proclamar, ou ao menos disputar, uma concepção com potencial de
verdade a respeito desse tema5.

2) A conexão entre os agentes e os regimes de circulação dos


argumentos e categorias
As relações e conexões estabelecidas pelos agentes de cada um dos blocos
também apresentam algumas diferenças. Os cientistas favoráveis à liberação
das pesquisas circulam sobretudo no meio acadêmico, com participação em
congressos e palestras, sendo muitos deles membros da Academia Brasileira
de Ciências.
Durante o período da controvérsia, ocorrida tanto no poder Legislativo (ante-
riormente à aprovação da Lei de Biossegurança) quanto no Judiciário, após a
instalação da ADI 3510, alguns deles estiveram em contato com movimentos e
grupos que defendiam as pesquisas com células-tronco embrionárias, muitos
estando ligados a organizações e projetos defendidos por pessoas com defi-
ciências e seus familiares. Exemplos disso foram a ONG Movitae6 e o Projeto
Ghente7, ambos ativos defensores da liberação do uso das células embrionárias
em pesquisas científicas.
A primeira expositora do bloco em defesa das pesquisas representa essa conexão
entre cientistas e movimentos. Ela foi considerada ao longo da controvérsia

5
Esse aspecto nos lembra as colocações de Ultrich Beck a respeito da falência e da continuidade da
ciência na modernidade reflexiva. A falibilidade dos fatos produzidos cientificamente é evidente
desde meados do século xx. O questionamento deles passa a ser corriqueiro desde então. Apesar
disso, a importância e a necessidade da ciência se mantêm. O questionamento das verdades esta-
belecidas cientificamente leva à produção de mais ciência, e a exposição dos erros das ciências leva
ao fortalecimento dela mesma.
6
Movimento em prol da vida em defesa das pesquisas com células-tronco embrionárias. A ONG entrou
com pedido no Supremo Tribunal Federal para ingressar como parte interessada no processo que
discute a constitucionalidade do artigo 5o da Lei de Biossegurança.
7
Projeto em defesa das pesquisas com as CTE composto por pessoas com deficiência e seus familiares.

Religiões e controvérsias Final.indd 83 18/08/2015 09:59:49


84 como voz central em defesa das pesquisas com células-tronco embrionárias
(CTE), realizando a ponte entre a comunidade científica e organizações civis.
Os cientistas do bloco pró-vida também possuem conexões com agentes
não pertencentes ao universo acadêmico científico e que se pronunciaram
ativamente nessa controvérsia. A investigação das conexões dos três primei-
ros expositores contrários às pesquisas com células embrionárias mostrou a
existência de vínculos entre os membros desse bloco e a sua circulação por
eventos organizados pela CNBB, bem como a participação desses cientistas na
produção bibliográfica produzida por esta instituição.
A primeira expositora do bloco pró-vida, Lenise Martins, é exemplo disso.
Observamos sua participação em eventos, congressos e palestras promovi-
dos pela CNBB, como o Simpósio de Bioética, realizado durante o Congresso
Eucarístico Nacional de 2010, em Brasília. Esse simpósio foi organizado pela
pesquisadora e contou com a participação de outros expositores da audiência
pública, como a pesquisadora Cláudia Batista, segunda expositora desse bloco,
tendo sido convidada pelo procurador Cláudio Fonteles para a audiência pú-
blica. Dessa forma, mesmo entre os expositores convidados pela CNBB e pelo
procurador da república foram verificados conexões e contatos. A participação
em eventos promovidos por entidades católicas, inclusive, não se restringe
à CNBB. A pesquisadora também participa de programas na rádio Maria, em
Brasília, por exemplo.
Já a terceira expositora, Lilian Piñero Eça, teve seus trabalhos citados pelo
procurador-geral da república no texto da ADI, sendo professora na Universi-
dade Sagrado Coração, em Bauru. Mais de um pesquisador indicado pela CNBB
ocupa posto de trabalho nessa universidade católica.
As relações e vínculos entre os pesquisadores e entidades católicas foram
notados entre vários dos expositores seguintes, e poderíamos prosseguir com
os exemplos. Entretanto, os elementos citados parecem ser suficientes para
demonstrar as conexões entre os expositores e as suas relações com entidades
e instituições católicas.
Na verdade, se invertermos o material analítico, partindo do material produzi-
do pela CNBB sobre bioética, observaremos conexões bastante semelhantes: há
circulação/repetição entre os participantes/porta-vozes/autores/expositores em
congressos e palestras promovidos sobre os temas bioética e vida. Não apenas
em exposições orais junto a entidades católicas, mas também na produção de
textos sobre bioética, cuja autoria é de cientistas e a divulgação realizada pelas
entidades, como a CNBB.

Religiões e controvérsias Final.indd 84 18/08/2015 09:59:49


O texto-base da Campanha da Fraternidade de 2008, por exemplo, é de autoria

A controvérsia em torno da liberação das pesquisas com células-tronco embrionárias no Brasil


85
de uma das expositoras da audiência pública. No mesmo ano do julgamento da
ADI, a campanha da fraternidade8 lançada pela CNBB tinha como tema “Frater-
nidade e Defesa da Vida”9. O texto-base traz as concepções centrais a serem
trabalhadas sobre o tema, possuindo formato acadêmico-científico e sendo
escrito com a participação de cientistas.
As concepções presentes no texto-base são posteriormente traduzidas em uma
linguagem menos cientificista, de forma a atingir um grupo cada vez maior de
pessoas, chegando até as bases do catolicismo. Primeiro para os sacerdotes,
padres e bispos responsáveis pela condução da campanha em suas paróquias,
em seguida para os católicos em geral, frequentadores de missas, novenas,
entre outros rituais. Nessa etapa, imagens, como cartazes e vídeos, e hinos
são produzidos com base nas ideias centrais do texto-base da Campanha da
Fraternidade.
Dessa forma, há circulação e conexão entre os agentes, sendo que as concepções
e argumentos presentes na audiência pública no STF circulam nas diferentes
instâncias e entidades católicas, especialmente nas ações, campanhas e eventos
criados pela CNBB. Ou vice-versa, argumentos e ideias divulgados institucional-
mente pela CNBB estão presentes no discurso dos cientistas na audiência pública.
É fato que os termos e elementos que compõem os discursos nas diferentes
instâncias variam, assim como a forma do discurso. Quanto mais erudita a
instância, mais presente se encontra o modus operandi acadêmico-científico,
como foi o caso da audiência pública, porém, de diferentes maneiras, agregam-
-se em torno da “defesa da vida”.

3) A defesa da vida: o argumento agregador


O argumento em torno do qual se agregam os agentes posicionados contraria-
mente à liberação das pesquisas com CTE é a “defesa da vida”. Esse argumento
tem força na controvérsia, adquirindo ampla penetração e divulgação10. Em

8
As Campanhas da Fraternidade são anualmente lançadas pela CNBB abordando um tema específico
a cada ano, que é recolocado a cada ritual celebrado durante o ano litúrgico. Elas são compostas
por pregações, cânticos, passagens bíblicas que são repetidos durante os rituais católicos em todas
as paróquias brasileiras, especialmente nas missas, ao longo do ano.
9
A referência à defesa da vida, presente desde o título da Campanha, volta-se para temas sobre o
início e o fim da vida: aborto, eutanásia, englobando discussões sobre o estatuto do embrião.
10
A “defesa da vida” é repetida de diversas maneiras nos locais onde essa controvérsia se desenvolveu,
sendo o argumento em torno do qual se agregam as posturas da Igreja contra o aborto, a eutanásia,
a fertilização in vitro, além do uso de células-tronco embrionárias em pesquisas.

Religiões e controvérsias Final.indd 85 18/08/2015 09:59:49


86 todos os artigos e notícias publicados11, a “defesa da vida, desde seu princípio
até seu fim natural”, está presente12. Para a Igreja Católica, desde o momento
da fecundação há vida, por isso todas as práticas mencionadas são condenadas.
Além de amplamente presente nos artigos, essa posição também aparece na
Instrução Dignitas Personae13, em textos da Comissão de Bioética e foi tema
da Campanha da Fraternidade de 2008.
A vida, nessa concepção, é compreendida como vida humana. Trata-se da defesa
da vida de pessoas humanas – desde a fecundação considera-se a existência de
uma pessoa humana. Esse entendimento está calcado na doutrina católica, que
afirma o início da vida na fecundação por ser este o momento em que a alma é
incorporada ao ser. Como a condição humana no catolicismo está relacionada
à presença da alma, a partir do momento em que há alma, há também vida
humana, e desde este momento a humanidade estaria estabelecida (RAN-
QUETAT, 2011). Considera-se, portanto, o embrião, o feto ou simplesmente
a célula fecundada como pessoa humana.
Esse argumento, adotado e reproduzido à exaustão pelos agentes ligados à
CNBB14, também estava presente entre agentes do poder Judiciário. O próprio
texto da ADI 3510, elaborado pelo procurador-geral da república, estava em-
basado na “defesa da vida”, no caso, na defesa da vida e da dignidade humana
dos embriões. O subprocurador Cláudio Fonteles embasou a ação em textos
e falas de cientistas brasileiros e estrangeiros que colocam que a vida humana
teria início na fecundação.
Dessa maneira, a “defesa da vida” foi o argumento geral recorrente na contro-
vérsia em questão, e também presente no texto da ADI 3510, como podemos
observar na seguinte passagem:

11
Na primeira etapa deste trabalho de pesquisa nos detivemos na análise de artigos e notícias publi-
cados nas mídias laicas e católicas sobre o julgamento da ADI 3510. Nesse momento percebemos
a organização dos agentes posicionados contrariamente às pesquisas em torno do argumento “em
defesa da vida”.
12
Para a análise dos documentos foi utilizado o software de análise de discurso Atlas TI. Com a ajuda
dessa ferramenta, notamos que o código “defesa da vida do início ao fim” foi o que mais se repetiu
nesses documentos, estando presente ao menos uma vez em cada uma das notícias ou dos artigos
de bispos.
13
Publicada no segundo semestre de 2008, essa instrução trata dos temas relacionados às novas
tecnologias reprodutivas. As rápidas mudanças nas tecnologias e ciências impulsionaram a escrita
e publicação desse texto pelo Vaticano.
14
Em artigo anterior, demonstramos a presença da “defesa da vida” em todos os níveis hierárquicos
e instâncias do catolicismo ao longo dessa controvérsia. Esse argumento se repetia a partir de dife-
rentes estratégias nos diversos níveis analisados.

Religiões e controvérsias Final.indd 86 18/08/2015 09:59:49


19. Estabelecidas tais premissas, o artigo 5o e parágrafos, da Lei no 11.105, de 24

A controvérsia em torno da liberação das pesquisas com células-tronco embrionárias no Brasil


87
de março de 2005, por certo inobserva a inviolabilidade do direito à vida, porque
o embrião humano é vida humana, e faz ruir fundamento maior do Estado demo-
crático de direito, que radica na preservação da dignidade da pessoa humana15.

Dessa maneira, a “defesa da vida”, em diferentes termos – jurídicos, científicos,


teológicos e morais –, foi o argumento que agregou agentes representantes de
diversos setores da sociedade: juristas, cientistas e religiosos. Tornou-se, pois,
o argumento representativo de um posicionamento nessa controvérsia16.
A importância da categoria “vida” nesse julgamento, especialmente a discussão
relativa ao seu início, fica ainda mais evidente na convocação da audiência pú-
blica realizada pelo ministro relator do processo, Carlos Ayres de Britto, cujo
tema seria “O início da vida”, a ser informada por cientistas das áreas médica
e biomédica. O debate sobre a vida e seu início, especificamente, foi a questão
ordenadora dessa controvérsia.

4) Vida humana: autonomia e satisfação


A categoria vida apareceu com frequência no discurso dos agentes durante a
audiência pública, sendo, porém, acionada em diferentes argumentos e com-
pondo as justificativas dos diferentes blocos. Ela aparece na fala dos expositores
e também nas imagens projetadas por eles em um telão durante a exposição.
Entre o bloco dos pesquisadores favoráveis à liberação das pesquisas, a palavra
vida raramente apareceu associada a seu início ou a seu final. Eles usaram
o tempo de exposição para mostrar os resultados científicos e clínicos de
seus trabalhos. O principal foco dessas apresentações foram os resultados
positivos das pesquisas utilizando células-tronco adultas (resultados clínicos)
ou embrionárias (dados biomédicos sobre a sua maior potencialidade). Espe-
cialmente no contexto dos resultados clínicos obtidos e esperados, a palavra
vida era mencionada.

15
Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.510, p. 13. Distrito Federal, 2008.
16
Estamos nos utilizando da proposta teórico-metodológica de Bruno Latour. O autor coloca a im-
portância de se levantarem os elementos que são capazes de reagregar a vida social. No caso dessa
controvérsia específica, a “defesa da vida” e os argumentos construídos em torno dela aparecem
como centrais. Segundo Latour, o estudo das controvérsias é sobretudo interessante para se avaliar
processos em construção, em que nada parece estabilizado. Essa proposta nos foi útil na análise deste
episódio, sobre a qual a disputa argumentativa em torno da “vida humana”, especialmente sobre o
seu início, norteou todo o julgamento, estando presente nas diversas instâncias que a compuseram:
na mídia laica, na mídia católica, na audiência pública, na fundamentação e nos encaminhamentos
dados ao julgamento por parte dos agentes representantes do Jurídico, como no caso do procurador-
-geral da república e do ministro relator do processo.

Religiões e controvérsias Final.indd 87 18/08/2015 09:59:49


88 Os resultados apresentados atribuíam valor positivo às pesquisas, demonstrados
na forma de gráficos, tabelas, evolução da divisão das células, mas também
enfatizando os resultados clínicos, que atribuem concretude aos dados mos-
trados. Podemos dizer que os resultados clínicos atribuem vida às pesquisas.
Nesse contexto, a apresentação de imagens da vida de pacientes, a melhoria
na qualidade de vida das pessoas decorrente do tratamento com células-tronco
compôs parte importante do discurso do bloco pró-pesquisa. Em meio às ima-
gens e aos discursos surge uma concepção de valorização da vida de pessoas
que estão em situação de sofrimento e que poderão ser beneficiadas com a
liberação das pesquisas com CTE. Os cientistas usaram imagens impactantes –
um dos relatos, por exemplo, mostra um homem antes do tratamento, quase
sem condições de se movimentar devido a graves problemas cardíacos, e de-
pois do tratamento, passeando com a família, trabalhando na roça, realizando
atividades que a sua disfunção cardíaca antes impedia. Esse é apenas um dos
casos de uso de imagens de pacientes após o tratamento clínico decorrente das
pesquisas com células-tronco; outros exemplos do mesmo tipo foram utilizados.
Os cientistas do bloco pró-pesquisas, ao mostrarem esses resultados clínicos
e o impacto deles na vida dos pacientes, atribuem valor humano a seus tra-
balhos de pesquisa. Humanizam os pacientes ao explicitar suas fragilidades,
estendendo essa humanização a si próprios. Essa forma de justificação rebate
a crítica de que o uso de embriões em pesquisas representaria o assassinato
de seres (crianças?) inocentes. A ideia de que os embriões seriam pessoas
humanas, com dignidade e direitos, defendida pelo bloco opositor à liberação
das pesquisas, traz embutida em si a colocação de que os cientistas que usam
ou defendem o uso das células embrionárias seriam assassinos, desumanizando
seus trabalhos. Em relação a esse ponto, a fala de um dos pesquisadores pró-
-pesquisa é bastante ilustrativa: após mostrar o sucesso do tratamento na vida de
uma série de pacientes, ele termina enfatizando: “Estes pacientes estão vivos.”
A vida, então, para esse bloco de pesquisadores, é uma categoria acionada a
partir da melhoria na vida dos pacientes tratados nas clínicas e hospitais nos
quais desenvolvem suas pesquisas.
Nesse aspecto, os cientistas pró-pesquisa, embora aceitem a vida como um
valor moral, reposicionam o debate em outros termos, recusando o desafio de
definir cientificamente quando a vida se inicia, tema norteador da audiência
pública. Fato semelhante foi observado por Letícia Cesarino (2007) em rela-
ção ao debate sobre a Lei de Biossegurança ocorrido no Poder Legislativo. No
cenário dessa discussão, a estratégia do lobby pró-pesquisa ocorreu no terreno
da argumentação pragmática, em que duas possibilidades se apresentavam: lixo
ou pesquisa. Segundo o grupo pró-pesquisa, a inevitabilidade do descarte dos

Religiões e controvérsias Final.indd 88 18/08/2015 09:59:49


embriões excedentes estava presente. Dessa forma, fugiram do debate sobre

A controvérsia em torno da liberação das pesquisas com células-tronco embrionárias no Brasil


89
o início da vida, detendo-se em uma questão pontual sobre o que fazer com
os embriões excedentes produzidos pela fertilização in vitro (FIV).
É interessante observar que, embora o debate sobre as células embrionárias
seja mundial, o modo como ele se desenvolveu no Brasil foi bastante particular.
No caso da Inglaterra, por exemplo, nos debates que precederam a aprovação
da legislação, os cientistas mudaram a imagem do embrião, criando uma nova
categoria, o pré-embrião, que ganhou força após a publicação na revista Nature
de um artigo no qual esta classificação (o pré-embrião) foi apresentada como
uma massa de células gerada pelo ovo fertilizado. Nesse debate, a desperso-
nalização da figura do embrião foi fundamental para a aprovação da legislação.
No Brasil, os cientistas não centraram o debate no estatuto do embrião,
certamente para evitar uma disputa, pouco produtiva em termos de dados
científicos e com resultados incertos, que desembocasse em uma decisão legal
sobre o momento do início da vida humana. Preferiram tomar um caminho
mais consensual em termos de sociedade brasileira, que foi o de oferecer uma
resposta ao sofrimento humano pelo caminho da pesquisa e de seus resultados
terapêuticos. No debate ocorrido no Legislativo, o lobby pró-pesquisa, em vez
de tentar demonstrar a “pré-humanidade” do embrião que, como veremos
adiante, não é defendida nos meios médicos e serviços associados à reprodu-
ção assistida, preferiu propor uma hierarquia entre as vidas (pessoas) que se
devem salvar e proteger, sugerindo que o sacrifício inevitável dos embriões
excedentes que não podem mais gerar vidas é, por outro lado, capaz de salvá-las
(CESARINO, 2007, p. 367). Na audiência pública ocorrida no STF, as imagens
da vida dos pacientes são o elemento marcante. Os resultados clínicos das
pesquisas e seu impacto na vida dos atendidos compõem o elemento acionado
para legitimarem o uso das células embrionárias.
Nesse aspecto, define-se uma sensibilidade de interesse coletivo, na qual as
pesquisas contribuiriam para a minoração do sofrimento das pessoas e/ou para a
melhoria de sua qualidade de vida. Nessa hierarquia de interesses, a vida de pessoas
já nascidas (e em estado de sofrimento) ganha centralidade em relação à “vida”
dos embriões (elemento central do argumento do bloco pró-vida), sendo o debate
em torno do “início da vida” deslocado pelo bloco pró-pesquisa para a vida dos
possíveis beneficiários dos resultados das pesquisas com as células embrionárias.
Nas imagens exibidas, os pacientes aparecem em dois momentos: o primeiro
de sofrimento, antes de receberem o tratamento; e no segundo, com melhores
condições de vida e felizes. Para isso são usadas imagens da “vida” dos pa-
cientes antes do tratamento, em que ficam patentes o sofrimento e a falta de

Religiões e controvérsias Final.indd 89 18/08/2015 09:59:49


90 autonomia, e imagens após o tratamento, enfocando a retomada da chamada
“qualidade de vida”, enfatizando as atividades que conseguiram retomar e
retratando momentos de alegria. Esse discurso (imagético, sobretudo) remete
a um código de valores contemporâneo no qual o sofrimento humano gera
piedade e deve ser extirpado. Por essa ótica, imagens mostrando a crueldade
das doenças degenerativas (para as quais as pesquisas com CTE representariam
uma esperança de cura), que levam os pacientes a perderem paulatinamente
sua autonomia, estão também presentes. Elas utilizam uma lógica semelhante
de exposição do sofrimento humano17.
Segundo Boltanski (1993), a produção de sentimentos a distância é um fe-
nômeno cada vez mais observado nos séculos XX e XXI, responsável por uma
transformação na questão humanitária. Discursos e ações institucionais são
produzidos a partir da difusão do sofrimento coletivo. Casos individuais tam-
bém podem contribuir para isso, pela exposição pública de imagens de pessoas
em sofrimento. Nesse código, a vida sem qualidade, sem autonomia e com
sofrimento passa a ser considerada desprovida de sentido.
As doenças expostas pelos cientistas levam as pessoas a sofrimentos atrozes
até o fim da vida. Nesse código, essa não seria uma vida digna de ser vivida.
Em suas justificativas, ao defenderem a qualidade de vida e exporem a me-
lhora no quadro clínico dos pacientes, é a gramática contemporânea na qual o
sofrimento é considerado sem sentido que está sendo acionada. E esse valor
é extremamente sensibilizador no mundo contemporâneo.
Deslocam o debate para a vida de pessoas concretas, expostas em imagens, nas
quais se evidencia a manutenção da autonomia e a minoração do sofrimento
(até mesmo sua extirpação, pensando-se na cura definitiva de algumas doenças)
de pessoas com doenças cuja evolução leva à dor e à dependência.
Estas duas concepções, felicidade e autonomia, aparecem nas imagens, muitas
vezes estando associadas. Ambas constituem valores caros no mundo con-
temporâneo. A busca de satisfação individual – felicidade – tem um estatuto
especial, por estruturar a experiência emotiva na cultura ocidental moderna
(DUARTE, 1996). O prazer é concebido como objeto central de produção de
sentidos para o viver na contemporaneidade, e esse prazer pode estar associa-
do à autonomia. A imagem de felicidade e satisfação dos pacientes tratados
com células-tronco adultas (CTA) foi central na construção das justificativas

17
Uma das cientistas menciona uma de suas pacientes, uma menina de três anos de idade, que sofre
de uma doença degenerativa que a impede de caminhar. Segundo ela, a garotinha lhe pede para
que sejam colocadas pilhas, para que ela possa andar como suas bonecas.

Religiões e controvérsias Final.indd 90 18/08/2015 09:59:49


favoráveis às pesquisas com CTE. Pacientes felizes, satisfeitos e com autono-

A controvérsia em torno da liberação das pesquisas com células-tronco embrionárias no Brasil


91
mia compunham as imagens, em oposição aos horrores de dor e sofrimento
enfatizados nas imagens da evolução de suas doenças.
Dois valores contemporâneos, a extirpação do sofrimento humano e a au-
tonomia do indivíduo, estão presentes nas justificativas desse grupo. Esses
valores, somados ao repertório de dados científicos exposto, traz generalidade
ao argumento desenvolvido por esses cientistas.

5) O embrião: vida humana, individualismo e autonomia


A concepção de que o embrião é uma pessoa humana aparece na apresentação
de todos os expositores do bloco contrário à liberação das pesquisas com CTE.
Evidências e dados científicos são apresentados para comprovar a presença de
condição humana nos embriões desde o momento da fecundação18.
Ao possuir vida, o embrião humano é concebido como um ser humano único,
que tem direitos e deve ter esses direitos garantidos pelo Estado. Autores que
se detiveram sobre temas que envolvem a bioética, como a reprodução assistida
(RA), já haviam constatado a pessoalização do embrião. Naara Luna (2007)
constatou a tendência a se humanizar o embrião fora do corpo pelas usuárias
dos serviços de reprodução assistida (RA). Tânia Salem (1997) observou que
o embrião é tratado como pessoa pelos agentes envolvidos na RA, como é o
caso dos médicos. O feto possui o mesmo estatuto que a mãe, sendo conce-
bido enquanto pessoa e tendo direitos, como o direito a tratamento médico,
inclusive independentemente da vontade da mãe.
Nesse aspecto, segundo Rothman (1987), técnicas médicas recentes, como
a ultrassonografia e a cirurgia fetal, vêm contribuindo para a construção de
representações do feto como indivíduo.
A tecnologia da gravidez é uma tecnologia de separação e de individuação – a tec-
nologia está ajustada para estabelecer o reconhecimento do feto como separado da
mãe (ROTHMAN, 1987, p. 114).

Essas ideias não são exclusivas do universo da reprodução assistida, pelo con-
trário, estão também presentes entre os agentes envolvidos na controvérsia
sobre as CTE, como constatado por César Ranquetat: “[...] o embrião, mesmo o
embrião extracorporal fecundado in vitro, já é uma vida humana” (2011, p. 41).

18
Em cada uma das apresentações analisadas foi constatada a sobreposição dos códigos que mencio-
navam a fecundação como o início da vida e a condição de pessoa do embrião. Em seguida, sempre
era apresentado algum dado científico que buscasse evidenciar a característica humana do embrião.

Religiões e controvérsias Final.indd 91 18/08/2015 09:59:50


92 No caso específico da audiência pública, três elementos se destacam e se re-
petem na fala dos apresentadores para buscar comprovar a presença de vida
humana no embrião: sua unicidade (as características específicas que lhe atri-
buiriam individualidade), sua autonomia (a independência) e sua capacidade
de comunicação.
A unicidade e a individualidade do embrião estariam presentes, segundo os
pesquisadores pró-vida, no código genético único e irrepetível que se forma no
momento da fertilização. De acordo com os expositores, no momento da fe-
cundação ocorre a formação de um novo genoma, um novo programa de células
que irá determinar as características específicas do ser. Todas as características
do indivíduo já estariam presentes e determinadas por esse novo “programa”.
A característica humana do embrião seria constatada nessa especificidade e
unicidade. Uma cientista é bastante enfática, dizendo que: “A carteira de iden-
tidade genética está lá desde o primeiro dia.” Um dos documentos principais
que caracterizam o indivíduo no Brasil, classificando-o enquanto cidadão e
sujeito de direitos, é utilizado como metáfora pela expositora.
As justificativas trazem referências a valores da pessoa moderna, que caracte-
rizam o indivíduo como único e específico. Elementos científicos compõem as
estratégias utilizadas para comprovar essa unicidade. Imagens mostrando cada
etapa do desenvolvimento, desde a fecundação até o nascimento, enfatizam que
aquele bebê recém-nascido (com a imagem do bebê) seria a continuidade de
um processo iniciado na fertilização. O processo é demonstrado em imagens,
por meio das quais o embrião – feto – bebê surge como um continuum de de-
senvolvimento originado naquela primeira célula fecundada. Nessas imagens,
em momento algum o embrião – feto – bebê aparece conectado com a figura
da mãe, ou sequer com o útero materno.
Assim, a autonomia do embrião humano é outro elemento central que emerge
das argumentações e dos dados apresentados por esse bloco de cientistas. Esse
elemento foi apreendido de diversas formas na fala da maioria dos partici-
pantes. As etapas do desenvolvimento humano mostradas seriam capazes de
demonstrar a autonomia na formação do embrião, também referida por uma
cientista como “autoformação”.
A autonomia é outro princípio central do indivíduo moderno presente nas
justificativas desse bloco de pesquisadores. Vale destacar que a presença ou
necessidade da mãe é absolutamente ausente no discurso desse grupo de apre-
sentadores. O enfoque constante encontra-se em elementos que destacam a
unicidade/especificidade do embrião, que comprovaria a sua individualidade,
e elementos que demonstram a sua autonomia/independência.

Religiões e controvérsias Final.indd 92 18/08/2015 09:59:50


Valores do indivíduo moderno perpassam toda a audiência pública, estando

A controvérsia em torno da liberação das pesquisas com células-tronco embrionárias no Brasil


93
presentes em ambos os blocos. A discussão em torno da autonomia do embrião
é exemplo disso. Por um lado, os cientistas contrários às pesquisas ignoram a
figura da mãe, demonstrando por meio de imagens todo o processo de desenvol-
vimento do embrião. Em nenhuma dessas imagens ou na fala dos apresentadores
desse bloco, a mãe, ou sequer o corpo materno, ou apenas muito vagamente
o útero (aparentemente um órgão também independente e autônomo) são
mencionados. Ou seja, o desenvolvimento do embrião aconteceria de forma
absolutamente autônoma.
Por outro lado, os cientistas favoráveis às pesquisas enfocam a necessidade do
corpo materno. Sem o útero, sem a instalação do embrião no corpo de uma mu-
lher, não haveria possibilidade do desenvolvimento do embrião. Para esse bloco,
o embrião representa o oposto da autonomia, ele seria totalmente dependente
do útero e do corpo da mulher. O argumento da inviabilidade dos embriões fora
do útero materno foi central entre os expositores do bloco pró-pesquisas. Para
eles, a questão é clara e pragmática: os embriões excedentes produzidos pela FIV
para se desenvolver precisariam ser implantados no útero materno. Quando isso
não ocorre, os embriões são descartados e não se desenvolvem. O útero materno
surge como elemento imprescindível para o desenvolvimento da vida humana.
As apresentações do bloco pró-pesquisa colocam que sem o corpo materno não
há possibilidade de desenvolvimento da vida humana. Não haveria nenhuma
autonomia no desenvolvimento dos embriões humanos de forma extracorporal.
Nesse caso, as justificativas disputam sentido em torno da vida humana, estando
calcadas, por parte de ambos os blocos, em um código de valores no qual a
autonomia é característica central do indivíduo. Sendo o embrião autônomo,
ele teria as características da pessoa moderna, comprovando a sua condição
humana. Já sendo o embrião dependente do corpo da mãe, sua individualidade,
e portanto sua condição de pessoa, seria questionável.
Nesse ponto é interessante notar a proximidade no uso de argumentos e cate-
gorias entre cientistas contra as pesquisas com uso de embriões e sacerdotes.
Os sacerdotes usam as evidências da ciência para legitimar suas posições em
defesa da vida. Os cientistas defendem a vida devido às evidências da ciência
(que são produzidas por eles mesmos). Porém, as categorias vida humana,
dignidade da pessoa, embrião pessoa, direitos humanos aparecem todas im-
bricadas nos discursos de ambos.
Destacamos que, durante a audiência pública, argumentos teológicos ou
doutrinais não foram utilizados pelos opositores às pesquisas; sua gramática

Religiões e controvérsias Final.indd 93 18/08/2015 09:59:50


94 foi estritamente científica. Também a filiação religiosa desses cientistas não
foi mencionada, e, embora a proximidade de alguns deles com instituições da
Igreja Católica tenha sido constatada, nesse contexto esses vínculos não são
explicitados.
Quando os argumentos são direcionados a outros cientistas, ou a juristas e à
opinião pública, os laços dos agentes com o catolicismo, bem como o uso de
termos ou argumentos que remetam à doutrina ou à fé católica, não estão pre-
sentes. Nesse plano de análise, agentes e discursos que possuem legitimidade
são aqueles do universo acadêmico-científico, sendo que o uso de pressupostos,
argumentos e vocabulário teológico doutrinal não produz convencimento.

Considerações finais
Os valores expressos nessa controvérsia vêm de diversas gramáticas: dos direitos
humanos (dignidade da pessoa humana), das ciências (justificativas construídas
com base em pareceres de cientistas), de uma moralidade de fundo cristão. Os
discursos dos agentes, religiosos ou não, se apropriam da gramática da ciência,
bem como das gramáticas governamental e jurídica.
Além disso, observamos a articulação simultânea de argumentos morais,
científicos e jurídicos ao longo de toda a controvérsia, estando presente nas
estratégias discursivas dos agentes. As noções de direito à vida e dignidade
humana se constituem em um campo amplo de disputa, não sendo possível
restringi-lo a uma “esfera” específica de debate.
Apesar da tentativa de definição estrita da audiência pública como “científi-
ca” por parte de membros do STF, a presença de argumentos de ordem moral
foi constante. A fundamentação última da disputa seria sim “o humano”, “o
valor da vida”, e não uma disputa estrita em torno do “início da vida”, como
apresentado pelo ministro relator. As estratégias discursivas adotadas, em es-
pecial as imagéticas, demonstraram claramente a presença de valores morais
permeando as apresentações.
O que está em pauta nessas apresentações são questões relativas ao sofrimento
e à felicidade dos homens, à dignidade da vida e/ou à crueldade das pesquisas.
Esses valores norteiam a apresentação dos cientistas escalonados para a au-
diência pública, estando subjacentes às suas falas.
Paralelamente, o uso de concepções caras à modernidade, como indivíduo e
autonomia, surge no discurso de atores posicionados nos diferentes polos dessa

Religiões e controvérsias Final.indd 94 18/08/2015 09:59:50


controvérsia. Ao serem usadas de formas diversas, é também em torno delas

A controvérsia em torno da liberação das pesquisas com células-tronco embrionárias no Brasil


95
que se organiza o embate.
Os agentes, na construção de seus argumentos, se utilizam de estratégias para
dar visibilidade e generalidade a seus discursos. O que importa no debate, e
portanto nos argumentos construídos, é a sua capacidade de generalização. Esse
aspecto norteia a configuração das justificações produzidas, estando o modo
como se apresentam relacionado ao fracasso ou ao sucesso das iniciativas, no
caso, dos posicionamentos assumidos na audiência pública.

Referências bibliográficas
BOLTANSKI, Luc. La souffrance à distance. Morale humanitaire, médias et politique. Paris: Métailié,
1993.
________; THÉVENOT, Laurent. On justification. Economies of worth. Princeton: Princeton Uni-
versity Press, 2006.
CESARINO, Letícia. Nas fronteiras do “humano”: os debates britânico e brasileiro sobre a pesquisa
com embriões. Mana, v. 13, n. 2, p. 347-380, 2007.
DUARTE, Luiz Fernando Dias. Distanciamento, reflexividade e interiorização da pessoa no Ocidente.
Mana, v. 2, n. 2, p. 163-176, 1996.
DUMOND, Louis. Essais sur l’individualisme. Paris: Essais, 1985.
GIUMBELLI, Emerson. O fim da religião: dilemas da liberdade religiosa no Brasil e na França. São
Paulo: Atar Editorial, 2002.
________. “Religião, Estado, modernidade: notas a propósito de fatos provisórios”. Estudos Avançados,
São Paulo, v. 18(52). 2004.
________. A presença do religioso no espaço público: modalidades no Brasil. Religião e Sociedade, v.
28, n. 2, p. 80-101, 2008.
GOMES, Edlaine; NATIVIDADE, Marcelo Tavares T.; MENEZES, Renata. Parceria civil, aborto e
eutanásia: controvérsias contemporâneas. In: GOMES, Edlaine (Org.). Perspectivas de pesquisa
em Religião. São Paulo: Ideias e Letras, 2009.
HARVEY, David. A condição pós-moderna. São Paulo: Edições Loyola, 1992.
LATOUR, Bruno. La cartographie des controverses. Technology Review, n. 0, p. 82-83, 2007.
LUNA, Naara. A personalização do embrião humano: da transcendência na biologia. Mana, v. 13, n.
2, p. 411-440, 2007.
________. As novas tecnologias reprodutivas e o estatuto do embrião: um discurso do magistério da
Igreja Católica sobre natureza. Antrophológicas, ano 6, v. 13, n. 1, p. 57-74, 2002.
________. O direito à vida no contexto do aborto e da pesquisa com células-tronco embrionárias: dis-
putas de agentes e valores religiosos em um estado laico. Religião e Sociedade, v. 33, p. 71-97. 2013.
MONTERO, Paula. Religião, pluralismo e esfera pública no Brasil. Novos Estudos – CEBRAP, n. 74, p.
47-65, 2006.
________. Religião, laicidade e secularismo: um debate contemporâneo a luz do caso brasileiro. Cultura
y Religion, v II, P.132-150, 2013.
ORO, Ari. “Apolítica da Igreja Universal e seus reflexos nos campos político e religioso brasileiro”.
Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, vol. 18, 2003.

Religiões e controvérsias Final.indd 95 18/08/2015 09:59:50


96 PIERUCCI, Antônio Flávio. Realidade social das religiões no Brasil. São Paulo: Hucitec, 1996.
POMPA, Cristina. Introdução ao Dossiê Religião e Espaço Público. Religião e Sociedade, Rio de Janeiro,
v. 32, n. 1, p. 157-166, 2012.
PORTIER, Philippe. Droit, étique et religion: d’age théologique á l’âge bioétique. Paris: Bruyant, 2012.
RANQUETAT, César Alberto. Ciência e religião: os debates em torno das pesquisas com células-tronco
embrionárias no Brasil. Ciências Sociais e Religião, ano 12, n. 13, p. 37-56, 2011.
ROTHMAN, Barbara. The tentative pregnancy: prenatal diagnosis and the future of motherhood. New
York: Penguin Books, 1987.
SALEM, Tania. As novas tecnologias reprodutivas: o estatuto do embrião e a noção de pessoa. Mana
– Estudos de Antropologia Social, v. 3, n. 1, p. 75-94, 1997.
SEIDL, Ernesto. Um discurso afinado: o episcopado católico frente à “política” e ao “social”. Horizontes
Antropológicos, v. 13, n. 27, p. 145-164, 2007.
SOUZA, André Ricardo. O pluralismo cristão brasileiro. Caminhos, v. 10, p.129-141, 2012.
VENTURINI, Tommaso. Diving in Magma. (forthcoming) Public Understanding of Science, v. 19, n.
3, p. 258, 2009.

Religiões e controvérsias Final.indd 96 18/08/2015 09:59:50


Controvérsias sobre a educação de surdos no
Plano Nacional de Educação
CÉSAR AUGUSTO DE ASSIS SILVA

Os contornos da questão
Os primeiros anos do século XXI geralmente são referidos como um período de
muitos avanços com relação à institucionalização da língua brasileira de sinais
(libras). Desde então, está em curso o desenho de uma política linguística
para sua consolidação em todo o território nacional. Por meio da Lei Federal
10.436/2002, regulamentada pelo Decreto Federal 5.626/2005, a libras foi
reconhecida como meio legal de expressão e comunicação oriundo das co-
munidades surdas. O efeito mais imediato dessa legislação é que as agências
concessionárias de serviço público precisam garantir o atendimento aos surdos
por meio dessa língua, sendo necessário que 5% de seus funcionários a conhe-
çam, tendo se tornado ainda disciplina obrigatória em cursos de graduação em
educação especial, fonoaudiologia, pedagogia e todos os cursos de licenciatura.
Além disso, a educação bilíngue deve ser ofertada para crianças surdas.
Para o cumprimento dessa legislação, a Secretaria de Educação Especial do
Ministério da Educação passou a implementar uma ampla política de uso e
difusão da libras. Entre as iniciativas fundamentais, podemos citar: a criação
do curso de Letras Libras a distância, centralizado pela Universidade Federal
de Santa Catarina (UFSC), mas com polos em 18 universidades federais, para
a formação de licenciatura em libras e bacharelado em tradução/interpretação
libras/português, modalidade a distância – esses mesmos cursos também são
ofertados em modalidade presencial na UFSC; criação da graduação em pedago-

Religiões e controvérsias Final.indd 97 18/08/2015 09:59:50


98 gia bilíngue libras/português no Instituto Nacional de Educação de Surdos/RJ;
provas de proficiência no uso e no ensino de libras e na tradução/interpretação
libras/português (já foram realizados seis exames desde 2006); continuidade
do Projeto Interiorizando a Libras, o qual realiza cursos em diversos estados
brasileiros para difusão da libras; realização de formação continuada de profes-
sores na educação especial; criação dos Centros de Formação de Profissionais
da Educação e Atendimento às Pessoas com Surdez (CAS), visando à oferta
de cursos de libras para professores de diferentes disciplinas na rede pública;
ampliação de salas de recursos multifuncionais e distribuição de livros didá-
ticos, paradidáticos, de literatura em libras e dicionários libras/português1.
Ou seja, há um amplo investimento estatal no âmbito da educação para a
constituição de um arcabouço institucional que visa ao uso e à difusão da libras.
Tais feitos são reconhecidos pelo movimento social surdo, bem representado
pela Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos (Feneis)2, como
avanços inegáveis da legislação e no papel do Estado para garantir a consoli-
dação da libras.
Contudo, apesar de ter ocorrido, na última década, a disseminação do modo
de compreender a surdez como uma particularidade linguística e cultural, num
plano federal, o período compreendido entre 2011 e 2013 foi marcado por
uma ampla mobilização nacional do movimento social surdo. Diferentemente
do modo como a representação política dessa população estava organizada
em anos anteriores – isto é, com uma grande concentração de lideranças em
capitais das regiões Sul e Sudeste –, os últimos anos foram caracterizados pela
atuação de ativistas surdos em todos os estados da federação, de modo que
muitos agentes afirmaram que os eventos recentes foram importantes para o
fortalecimento da dita comunidade surda brasileira.
Em verdade, essa organização nacional única emerge em resposta aos eventos
que foram experimentados como um completo retrocesso na educação de
surdos, como se todos os avanços da última década pudessem estar em risco,
iniciando um movimento de neo-oralismo na educação dessa população, isto é,
um retorno ao período do oralismo, quando as línguas de sinais eram proibidas
e o foco da educação de surdos era a provisão de oralidade (algo dominante
ao longo do século XX).

1
Dados informados na Nota técnica n. 05/2011, de 27 de abril de 2011, do Ministério da Educação,
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão.
2
O que comumente se denomina movimento social surdo é algo mais amplo que a atuação da Feneis.
Contudo, a maioria das lideranças surdas de algum modo já esteve vinculada a essa instituição,
ocupando ela inegável protagonismo no cenário brasileiro.

Religiões e controvérsias Final.indd 98 18/08/2015 09:59:50


O engajamento do movimento social surdo girou em torno do Plano Nacional

Controvérsias sobre a educação de surdos no Plano Nacional de Educação


99
de Educação (PNE), para o decênio 2011-2020. Esse é um documento norma-
tivo fundamental que estabelece diretrizes, metas, responsabilidades, formas
de avaliação, prioridades e meios de integrar a educação nacional de maneira
sistêmica. O projeto de lei desse PNE foi enviado para o Congresso Nacional
em 15 de dezembro de 2010 (PL 8.035/2010 na Câmara, e PLC 103/2012 no
Senado) e sancionado na Lei Federal 13.005, de 25 de junho de 2014. Ele
é composto por dez diretrizes e 20 metas, sendo que essas últimas acompa-
nham estratégias específicas para a sua consecução. Entre seus objetivos estão
a universalização e a ampliação do acesso à educação para alunos de quatro
a 17 anos. Dada a exclusão histórica de determinadas minorias do acesso à
educação, a universalização desejada exige estratégias específicas para garantir
o acesso dessas populações. Assim, há no PNE cláusulas voltadas para garantir
a educação de alunos com deficiência, indígenas, quilombolas, estudantes do
campo e alunos em regime de liberdade assistida.
O tema da educação especial está posicionado na meta 4 do projeto, onde se
afirma:
Universalizar, para a população de quatro a dezessete anos, o atendimento escolar
aos estudantes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas
habilidades ou superdotação na rede regular de ensino3 (grifo nosso).

Em outras palavras, entende-se por educação especial, como se constituiu histo-


ricamente, a educação voltada para a população de estudantes com deficiência,
transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação. O
projeto de lei do PNE ratifica de maneira exclusiva a educação inclusiva, isto é,
a educação desses alunos em escola regular, não fazendo menção alguma em
sua meta à possibilidade de educação nas escolas especiais.
Em verdade, o projeto de lei do PNE dá continuidade a um processo iniciado na
Constituição Federal de 1988, quando desde então o Estado brasileiro passou
a expressar preferência pelo atendimento educacional especializado na escola
regular, como se lê em seu artigo 208, item III:
O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de: [...] III)
atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencial-
mente na rede regular de ensino4.

3
Disponível em: <http://www.camara.gov.br/sileg/integras/831421.pdf>. Acesso em: 14 abr. 2014.
4
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso
em: 11 abr. 2014.

Religiões e controvérsias Final.indd 99 18/08/2015 09:59:50


100 As seis estratégias que visam à efetivação da meta 4 do plano de lei do PNE
giram em torno da implementação da educação inclusiva. Assim, todos os
alunos que demandam educação especial devem estudar na sala de aula regu-
lar. Contudo, devido a suas necessidades educacionais especiais, eles seriam
também abarcados pelo Atendimento Educacional Especializado (AEE), ou
seja, um apoio para garantir a sua plena inserção escolar, algo que se daria em
um período diferenciado da aula regular, no contraturno, em uma sala de aula
com recursos multifuncionais, na própria escola regular ou em instituições
especializadas – ou seja, estas, em certos casos, não seriam extintas, mas ofer-
tariam o AEE, tornando-se instituições de referência. Para tanto, conforme o
plano de lei do PNE, tornam-se necessários: a contabilização de dupla matrícula
para o repasse de verba viabilizadora de tal educação; o investimento em salas
com recursos multifuncionais; a formação continuada de professores para o
AEE; ampliação do AEE; a remoção de toda e qualquer barreira (arquitetônica,
de atitude e de comunicação) com o aprofundamento da política nacional de
acessibilidade na escola pública.
A única menção que é feita à libras, no projeto original do PNE, está no item
4.4, que trata da acessibilidade:
4.4) Manter e aprofundar o programa nacional de acessibilidade nas escolas públicas
para adequação arquitetônica, oferta de transporte acessível, disponibilização de
material didático acessível e recursos de tecnologia assistiva, e oferta da educação
bilíngue em língua portuguesa e Língua Brasileira de Sinais – Libras.

Tendo em vista a posição da surdez ocupada na estrutura do texto, junto às


demais deficiências, a educação bilíngue é vista como um meio de acessibili-
dade, entre outros, tal como a adequação arquitetônica, a oferta de transporte
acessível para cadeirantes ou o material didático acessível. Algo que pode ser
resolvido com o AEE.
Há uma premissa que embasa a educação inclusiva que precisa ser considerada.
Acredita-se que uma sociedade justa, igualitária e que abarque a diversidade
inicia-se na escola (MANTOAN; PRIETO, 2006). Assim, técnicos e intelectuais
da educação preferem a escola inclusiva com base no ideal de que, quanto mais
a escola estiver preparada para receber todo tipo de diversidade e quanto antes
crianças conviverem com as diferenças, uma nova sociedade será construída. Isso
motiva o fim das escolas especiais e a construção das escolas regulares inclusivas.
Contudo, o tratamento dado à surdez pelo projeto de lei do PNE destoa em
grande medida da legislação referente à libras, já citada, bem como de cartas
internacionais que orientam o tema da educação especial, a saber, a Declara-

Religiões e controvérsias Final.indd 100 18/08/2015 09:59:50


ção de Salamanca (UNESCO, 1994), bem como a Convenção Internacional

Controvérsias sobre a educação de surdos no Plano Nacional de Educação


101
sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência (Decreto Federal 6.949/2009).
Além disso, fere as conquistas recentes do movimento social surdo, bem como
contraria uma crescente produção acadêmico-científica que tem demonstrado
como mais eficiente a educação bilíngue libras/português para surdos. As refe-
rências teóricas fundamentais certamente são os trabalhos de Ronice Quadros
(UFSC) e Carlos Skliar (Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS)
e seus orientandos, que constituíram as linguísticas das línguas de sinais e os
estudos surdos brasileiros. Outra referência capital são os trabalhos de Fernando
César Capovilla (Universidade de São Paulo – USP), que tem demonstrado que
crianças surdas aprendem mais e melhor em escolas bilíngues. Tais intelectuais
guardam relação de extrema solidariedade com o movimento social surdo em
defesa das escolas bilíngues, bem como vários deles possuem trajetória religiosa
protestante (luterana e batista, sobretudo).
Por conta dessa legislação e da produção científica recente, um largo movimen-
to social, composto por ativistas e intelectuais posicionados em instituições
político-representativas e universitárias, milita contrariamente à educação
inclusiva, à meta 4 desse projeto de lei, e defende a manutenção e ampliação
das escolas bilíngues libras/português para surdos.
O princípio fundamental da educação bilíngue é a garantia de exposição
da criança surda à língua de sinais, o mais cedo possível, para sua aquisição
como primeira língua, tal como crianças ouvintes são expostas à língua oral.
A importância de ser a língua de sinais aquela a ser incorporada primeiro, é
que essa criança surda pode internalizar espontaneamente, sem instrução es-
pecífica, o que não seria o caso com a língua oral. Isso seria importante para o
seu pleno desenvolvimento linguístico e cognitivo no tempo esperado. Tendo
incorporado a língua de sinais, por meio dela a criança terá acesso ao português
como segunda língua, bem como às demais disciplinas do currículo escolar.
Isso se daria na escola bilíngue, ou na sala de aula bilíngue, ou ainda, quando
não for possível essas duas alternativas, seriam criados espaços de convivência
entre pares, para o compartilhamento de língua de sinais e “cultura surda”. O
objetivo é que a criança esteja num espaço linguístico confortável, onde possa
estabelecer relação com pares em sua própria língua, e que a instrução e meio
de comunicação com professores e funcionários da escola se deem nessa lín-
gua. Como geralmente crianças surdas nascem em famílias ouvintes, a escola
ocupa essa posição fundamental de garantir o pleno acesso à língua de sinais.
Nesse sentido, o projeto da educação bilíngue libras/português contraria plena-
mente a política de educação inclusiva. Para os que defendem o bilinguismo, a

Religiões e controvérsias Final.indd 101 18/08/2015 09:59:50


102 escola inclusiva é vista como uma catástrofe, uma instituição segregadora. Nela
a criança surda não estaria em condição de igualdade linguística (LACERDA,
2006), pois está imersa em meio a uma sala com 40 crianças ouvintes, com
as quais não pode se comunicar plenamente. Além disso, ainda que ela tenha
intérprete de língua de sinais, este não substituiria a contento uma escola com
colegas, professores e funcionários fluentes em língua de sinais, ou seja, uma
pequena comunidade linguística. O aluno surdo estaria isolado em meio a um
ambiente desconfortável do ponto de vista linguístico.
Do outro lado da controvérsia estão os defensores da educação inclusiva, os
quais militam pelo desmonte da separação histórica que pessoas com defi-
ciência sofreram em instituições totais isolacionistas. Tais ativistas parecem
não compreender o desejo do movimento social surdo de fortalecer a escola
específica, de modo que o acusam de segregacionista.
Antes de entrarmos nos eventos recentes da controvérsia, para melhor com-
preender o seu quadro no período 2011-2013, torna-se necessário olhar para o
processo de constituição dessas duas formações no processo da democratização.

A constituição da noção de deficiência como tema de Estado


Para compreender a controvérsia em questão, torna-se fundamental analisar
minimamente um quadro histórico de constituição da noção de deficiência
como tema de Estado, no período democrático. Há um processo que precisa
ser considerado: ao mesmo tempo que a noção de deficiência é uma catego-
ria geral que abarca uma população bastante diferenciada e define normas e
procedimentos gerais, ela também é organizada por áreas, divisão esta que
geralmente constitui focos históricos de tensão.
Ao contrário do que podemos pensar, a noção geral de deficiência é bastante
recente. Num processo de longa duração, os elementos que atualmente a
compõem estavam separados em domínios específicos (surdez, cegueira, lepra,
paralisias, amputações, retardo mental, síndromes diversas, doenças raras, etc.),
com saberes e instituições próprios, ainda que alguns contassem com o apoio
de iniciativas estatais. De acordo com Rabinow (1999, p. 146), a categoria
deficiência emerge somente após a II Guerra, na Inglaterra, para classificar e
gerenciar vitimados do front que precisavam de reabilitação.
No Brasil, a emergência da categoria geral deficiência como um problema de
Estado possui alguns marcos fundamentais. Como exemplo, em 1973 foi criado
o Centro Nacional de Educação Especial (Cenesp), para tratar da educação de

Religiões e controvérsias Final.indd 102 18/08/2015 09:59:50


alunos com deficiência (ou excepcionais, como também eram classificados).

Controvérsias sobre a educação de surdos no Plano Nacional de Educação


103
Posteriormente, durante o período da democratização, na passagem dos anos
1970 para os 1980, caracterizado pela mobilização social de diversos setores
da sociedade brasileira, emergiu também um movimento social unificado de
pessoas deficientes (liderado por deficientes físicos)5. Tais sujeitos puderam se
organizar politicamente, pois suas biografias foram anteriormente vinculadas em
instituições para pessoas deficientes. Esse movimento realizou seus primeiros
encontros nacionais de entidades de pessoas deficientes em Brasília (1980),
Recife (1981) e São Bernardo do Campo (1983). Ele também foi fortalecido
com a promulgação pela Organização das Nações Unidas (ONU) do Ano Inter-
nacional da Pessoa Deficiente, em 1981, quando foi gerado um amplo debate
sobre o tema, inclusive nas mídias televisiva e escrita, acerca dos direitos de
tal população. Além disso, o setor deficiência também se fortaleceu em torno
de reivindicações particulares durante a Assembleia Constituinte, em 1987
(LANNA JUNIOR, 2010).
Com efeito, ao mesmo tempo que ocorreu uma unificação em torno da ca-
tegoria deficiência, esse processo levou ao fortalecimento das deficiências
particulares, renomeadas como auditiva, visual, física, intelectual (categorias
vistas como politicamente corretas, substituindo as anteriores). Como exem-
plo, o movimento social de pessoas deficientes fomentou inicialmente uma
coalizão para a fundação de uma Federação Nacional de Entidades de Pessoas
Deficientes, que representaria de maneira unificada a deficiência no país,
algo fortalecido nos dois primeiros encontros (1980 e 1981). Contudo, devi-
do a não conciliação de pautas das deficiências particulares e conflitos entre
lideranças, ocorreu uma divisão no terceiro encontro (1983), potencializando
a fundação e o fortalecimento do poder de federações nacionais por área da
deficiência (algumas já existentes), as quais ganharam posição de protagonistas
no processo a seguir. Em 1981, foi fundado o Movimento de Reintegração das
Pessoas Atingidas pela Hanseníase (Morhan). Em 1984, nasceram a Organi-
zação Nacional das Entidades de Deficientes Físicos (Onedef) e a Federação
Brasileira de Entidades de e para Cegos (Febec). Em 1987, foi fundada a Fe-
deração Nacional de Educação e Integração dos Surdos (Feneis), que ganhou
progressivamente o estatuto de legítima representante nacional da surdez/

5
Apesar de ainda não analisado, no interior do movimento de pessoas com deficiência e na insti-
tucionalização do tema no Estado, há uma prevalência hierárquica da deficiência física sobre as
outras (visual, auditiva e intelectual), sendo esta uma das explicações de tensão nessa área. O não
comprometimento da razão, da oralidade e da visualidade das pessoas com deficiência física (re-
cursos necessários para a boa interação e condição do fazer político) garante a assimetria de poder
entre sujeitos com deficiência.

Religiões e controvérsias Final.indd 103 18/08/2015 09:59:50


104 deficiência auditiva nas relações travadas com âmbitos do Estado e dentro do
movimento geral da deficiência6.
Em verdade, a Feneis emergiu dos escombros de outra instituição, a Federa-
ção Nacional de Educação e Integração dos Deficientes Auditivos (Feneida),
fundada em 1977. Nesta, a surda Ana Regina de Souza Campello conseguiu
chegar à presidência, em 1986, momento que historicamente marca a tomada
da direção da federação por sujeitos surdos. Após isso, em 1987, em uma
reunião, encerrou-se a Feneida e fundou-se a Feneis (substituindo o termo
deficiente auditivo por surdo), rumando progressivamente, nos anos seguintes,
para a defesa da língua de sinais.
Desde o processo de democratização ocorreu uma institucionalização do tema
deficiência dentro dos órgãos do Estado. Em 1986, foi fundada a Coordenadoria
para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência (Corde). Após sucessivas
mudanças de pastas, atualmente o assunto deficiência está localizado na Secre-
taria Nacional de Promoção dos Direitos das Pessoas com Deficiência, órgão
da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência. Além disso, o estabeleci-
mento de Conselhos em âmbito federal (Conselho Nacional dos Direitos da
Pessoa com Deficiência – Conade), estadual e municipal garante a audiência
de reclamos dessa população, bem como constitui um mecanismo institucional
que garante a representação política.
Desse modo, o tema deficiência, historicamente vinculado à educação, saúde e
assistência social, progressivamente tem sido um tema transversal e transetorial
a outras instâncias do Estado, como lazer, trabalho, previdência, habitação, cul-
tura, desporto, política urbana e, sobretudo, direitos humanos. Um indicativo
do enraizamento do tema no Estado é o seu complexo conjunto de normas.
Mais recentemente, desde o censo do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE) 2000, deficiência entrou como um marcador estatístico da
população brasileira, perfazendo 14% da população neste censo e, no último,
IBGE 2010, 23,9% da população, o que corresponde a 45,6 milhões de pessoas
com algum tipo de deficiência, em algum grau.
Para entendermos a controvérsia com relação às escolas especiais versus a
inclusiva, é de fundamental importância considerar os paradigmas que his-
toricamente constituíram a deficiência. Uma característica disciplinar geral
desenhada no processo de democratização precisa ser analisada: a emergência

6
Entre as federações citadas acima, fazem parte atualmente do Conselho Nacional dos Direitos da
Pessoa com Deficiência (Conade) somente a Feneis e a Onedef.

Religiões e controvérsias Final.indd 104 18/08/2015 09:59:50


do paradigma da inclusão substituindo criticamente os paradigmas de segre-

Controvérsias sobre a educação de surdos no Plano Nacional de Educação


105
gação (em instituições totais) e normalização-integração (ARANHA, 2001)7.
O paradigma dominante, de longa duração, da deficiência foi a segregação em
instituições totais. Estas eram instituições que iam desde asilos, nos quais a
pessoa poderia viver toda a vida, devido ao abandono das famílias, ou então
escolas que funcionavam em regime de internato, onde crianças passavam a
semana, ou mesmo todo o período escolar, retornando para suas famílias nas
férias. O que de modo geral caracteriza essas instituições é a padronização
coletiva de todos os hábitos dos internos: horário, vestimenta e atividades
escolares e laborais, resultando, em certos casos, na despersonalização do in-
divíduo e na não potencialização de projetos futuros individuais. Geralmente
as instituições totais são descritas como locais de violência física e simbólica
sobre os internos.
Contudo, o paradigma da instituição total vem sendo revisto e desmontado
internacionalmente desde os anos 1960. Apesar de não extinto, não é mais uma
política oficial de Estado. Como já foi afirmado, após a Constituição Federal
de 1988, a política reivindicada, planejada e executada tem sido a educação de
pessoas com deficiência preferencialmente em escolas regulares (comuns)8.
Tal alteração normativa tem levado a uma desterritorialização do tema defi-
ciência e sua difusão para outras instâncias sociais. A questão da deficiência
não está restrita a um problema de uma instituição específica, nem somente à
educação especial ou básica, mas diz respeito a todos os níveis de educação e,
no limite, a todas as instituições sociais, tendo em vista a garantia normativa
de ampla circulação dos sujeitos com deficiência em condição de igualdade,
tornando a acessibilidade um problema público geral.
Historicamente, após a segregação em instituições totais, a integração-normali-
zação foi um segundo paradigma, no qual a pessoa com deficiência deveria ter
o seu corpo normalizado, isto é, ajustado a um ideal normal, em instituições de
passagem (não mais totais), para possibilitar o convívio em sociedade. A inclu-

7
Esse processo está estruturalmente vinculado ao que Paula Montero afirmou na Introdução sobre a
passagem do paradigma do sincretismo para o da inclusão. Nesse novo modelo, a sociedade brasileira
é descrita como algo composto por um leque muito diversificado de diferenças, sendo a deficiência
uma delas.
8
Cf. Constituição Federal 1988, artigo 208, III; Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei Federal
8.069/90, Art. 54, III; LDB, Lei Federal 9.394/96, capítulo V; Plano Nacional de Educação, Lei
Federal 10.172/01, cap. 8; Diretrizes Nacionais para a Educação Especial na Educação Básica,
resolução no 2/2001; Declaração de Salamanca (UNESCO, 1994). Política Nacional de Educação
na Perspectiva da Educação Inclusiva, Portaria Ministerial 555/2007. Convenção Internacional dos
Direitos da Pessoa com Deficiência, Decreto Federal 6.949/2009, Artigo 24; Decreto 7.611/2011.

Religiões e controvérsias Final.indd 105 18/08/2015 09:59:50


106 são também faz o desmonte desse paradigma na educação. Com as alterações
normativas impostas pelo espírito da Declaração de Salamanca (UNESCO,
1994), que dá as diretrizes mundiais para a educação especial, a pedagogia não
deve mais estar focada na correção do sujeito, mas nos potenciais intrínsecos de
cada criança, vista em sua unicidade. Além disso, são sobretudo as instituições
sociais que devem ser corrigidas (e não o sujeito), pois elas devem diminuir
barreiras arquitetônicas, de comunicação e de atitudes, por meio de diversos
modos de acessibilidade. Com o fim de um modelo normativo uno (o normal)
a ser alcançado via medicalização e normalização na educação, o diferencialismo
crescente torna-se a tônica da educação especial. Deficiência passa a ser con-
cebida como uma expressão da diversidade humana e não algo a ser corrigido.
Além disso, há uma redefinição nos termos de entendimento do que seria a
deficiência, constituindo a passagem do modelo médico para o social (DINIZ,
2007). Ela não seria algo intrínseco ao corpo do sujeito. De outro modo, ela
é produzida na interação do corpo com o meio social (barreiras devidas ao
ambiente e às atitudes).
Em síntese, deficiência tornou-se um tema forte no Estado; a Feneis ganhou
progressivamente o estatuto de representante da deficiência auditiva/surdez,
além de haver, do ponto de vista disciplinar, uma normatividade em prol da
desterritorialização, desmedicalização, despatologização e diferencialismo na
deficiência sob a égide da inclusão.

A constituição da surdez como particularidade linguística e


cultural
Paralelamente a este processo de constituição da deficiência como uma catego-
ria geral que classifica uma população heterogênea e que se torna um tema de
Estado, transversal e transetorial, algo desenhado nos últimos 30 anos, ocorreu
também a formulação histórica da surdez como particularidade linguística e
cultural. Esta se inicia nos anos 1980, ganha força e contornos mais claros nos
anos 1990 e se traduz em normatividade jurídica no século XXI. Tal quadro
precisa ser considerado, pois é ele que tem entrado em choque com o tema
da deficiência e da educação inclusiva.
O movimento social surdo nasce, ganha força e se ampara no movimento de
pessoas com deficiência. É por conta de o tema da deficiência ter se tornado
uma questão pública na Nova República que a surdez também pôde ganhar os
contornos e dimensões que possui atualmente.

Religiões e controvérsias Final.indd 106 18/08/2015 09:59:50


Alguns indicativos da relação entre surdez e deficiência podem ser considerados.

Controvérsias sobre a educação de surdos no Plano Nacional de Educação


107
Já nos primeiros encontros do nascente movimento de pessoas deficientes,
havia algumas lideranças representando a deficiência auditiva – por exemplo,
o padre Vicente de Paulo Penido Burnier e Antonio de Campos Abreu (em
1980) e Ana Regina de Souza e Campello (em 1983). Estes dois últimos
posteriormente se tornaram presidentes na Feneis. Além disso, na reunião
de fundação da Feneis, em 1987, já foi eleito um representante, José Carlos
Lavíola, da Associação dos Surdos do Rio de Janeiro, para compor a equipe
da Coordenadoria Nacional de Integração da Pessoa Portadora de Deficiência
(Corde). No relatório anual de 1988, a Feneis declara ter recebido repasse
financeiro da Corde. Ou seja, a Feneis nasce com uma forte imbricação com
assuntos de Estado e progressivamente ganha legitimidade para representar a
deficiência auditiva perante outras deficiências.
A Feneis possui uma trajetória de grande ascendência política. Atualmente
possui escritórios regionais em oito capitais. Foi fundada com 16 associações
filiadas e hoje possui mais de cem. Além disso, ocupa posição no Conselho
Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência, Conselho Nacional de Saú-
de e Conselho Nacional de Assistência Social. É filiada à World Federation
of Deaf, que por sua vez ocupa posições na ONU, na Organização das Nações
Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), na Organização dos
Estados Americanos (OEA) e na Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Foi considerada de utilidade pública federal, estadual e municipal. De acordo
com o seu estatuto social, não possui interesse político-partidário e religioso
e não tem fins lucrativos. Ela afirma representar os interesses da comunidade
surda brasileira e ter por principal objetivo defender o uso e a difusão da
língua brasileira de sinais.
O processo de fortalecimento político da Feneis e a defesa de uma determinada
concepção de surdez por essa instituição levaram ao desenho de um paradoxo
que precisa ser considerado. Por um lado, a Feneis trata dos assuntos da defi-
ciência auditiva e está assim alocada nos assuntos de Estado. Milita para que
a libras seja vista também como um meio de acessibilidade necessário para a
construção de uma sociedade inclusiva, tal como a rampa, o braile, a legenda
em língua portuguesa. Contudo, ela também defende que a surdez seja vista
como expressão de uma particularidade linguística e cultural. Nesse mesmo
processo, discursivamente ela nega as categorias “deficiência auditiva” e “de-
ficiente auditivo”, vistas como pejorativas. Nesse argumento, não seria a falta
de audição que caracterizaria verdadeiramente os surdos, mas suas marcas
linguísticas e culturais, sendo um efeito da opressão ouvinte a classificação de
surdos como deficientes.

Religiões e controvérsias Final.indd 107 18/08/2015 09:59:50


108 Assim, a emergência do argumento da existência de uma língua que de-
finiria a população surda instituiu uma descontinuidade radical entre ela
e as demais deficiências. Foi condição desse processo a entrada de outros
saberes, agentes e instituições, os quais constituíram uma nova formulação
discursivo-histórica da surdez – como analisei de maneira pormenorizada
em Assis Silva (2012a).
A ciência linguística teve um papel-chave nesse caso, pois, evidentemente, o
argumento fundamental do estatuto de língua das línguas de sinais é proveniente
dela, sendo ela o árbitro da questão. Esse processo é primeiro norte-americano,
tendo iniciado com a publicação do livro de William Stokoe (1960), no qual
ele demonstra processos de estruturação fonológica na American Sign Langua-
ge. Este, entre outros intelectuais – Klima e Beluggi (1979), por exemplo –,
tornou-se referência importante para a constituição da linguística das línguas
de sinais. No Brasil, essa área de estudo data do início dos anos 1980, pelo
menos em duas importantes frentes.
Em primeiro lugar, em Porto Alegre, no contexto da Escola Especial Concórdia
para surdos, vinculada à Igreja Evangélica Luterana do Brasil, inicia-se a afirma-
ção do estatuto de língua do que chamaram Linguagem de Sinais do Brasil, pela
linguista Gládis Rehfeldt. Com a vinda do reverendo George Kraus, presidente
da Associação dos Amigos Luteranos dos Surdos (Mill Neck, Nova York), e
a consequente incorporação da produção científica sobre a American Sign
Language, este se tornou um importante contexto para o início do desmonte
histórico do oralismo e a difusão da comunicação total, que consistiu na filo-
sofia pedagógica na qual diversos meios de comunicação podem ser utilizados
para a educação de surdos (teatro, mímica, escrita, desenho, língua oral e de
sinais) (HOEMANN; OATES; HOEMANN, 1983). É desse meio luterano que
emergem importantes intelectuais focados no estudo da surdez, por exemplo,
Ronice Quadros (UFSC) e Lodenir Karnopp (UFRGS). Além disso, o pedagogo
e pastor luterano Ricardo Sander, originário desse meio, é um pioneiro da
profissão de intérprete de língua de sinais, fundador da Federação Brasileira
das Associações dos Profissionais Tradutores-intérpretes e Guias-intérpretes
de Língua de Sinais (Febrapils), da qual foi presidente (2008 a 2011).
Uma segunda frente de pesquisa sobre língua de sinais são os trabalhos de
Lucinda Ferreira Brito (Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ) e Eu-
lália Fernandes (Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ), intelectuais
que tiveram uma importância capital para a oficialização da libras, sendo elas
as referências fundamentais para a constituição do campo da linguística das
línguas de sinais no Brasil.

Religiões e controvérsias Final.indd 108 18/08/2015 09:59:50


A elaboração discursiva do estatuto de língua da língua de sinais é paralela à

Controvérsias sobre a educação de surdos no Plano Nacional de Educação


109
apropriação das categorias da etnicidade para a descrição dessa população.
Desse modo, termos como “comunidade”, “povo”, “identidade”, “cultura” e
“história” passaram a fazer parte da surdez. Devido à proximidade dos estu-
dos sobre educação bilíngue de minorias linguísticas com a linguística, logo
a educação de surdos tornou-se uma questão importante para os linguistas
engajados na pesquisa sobre língua de sinais, como a própria atuação de Ronice
Quadros (1997) revela – além de descrever a língua de sinais, ela é pedagoga
e defensora da educação bilíngue para surdos.
A partir de então, desde os anos 1980 foi se consolidando a área de pesquisa
das línguas de sinais que confere legitimidade a essa língua. Além disso, esse
momento é paralelo a rupturas e descontinuidades que se estabeleceram
num plano sociológico amplo. Isso se deu sobretudo no universo empírico das
instituições religiosas.
A Igreja Católica possui uma relação de longa duração com a surdez, desde o
século XVI. Dada a continuidade histórica entre a educação e a Igreja Católica,
a educação de surdos emerge também com padres dedicados a essa questão.
Desde então, diversas congregações9 foram fundadas com carisma para a
educação de surdos, fazendo parte do imaginário católico diversos padres,
santos, beatos dedicados a essa educação. Pelo fato de a Igreja Católica ter
uma relação de longa duração criando institutos e escolas para surdos, os pro-
cessos associativos primários de sujeitos surdos estão vinculados a ela – o que
é complementado com as associações de surdos, redes esportivas e locais de
sociabilidade. Contudo, é importante considerar que as congregações católicas
foram historicamente oralistas e visavam reproduzir o milagre cristão da cura
do surdo-mudo (MARCOS, 7.31-37), provendo os surdos com a oralidade e
a capacidade de leitura labial10.
No Brasil, a entrada, na questão da surdez, de protestantes batistas e luteranos
marca uma importante descontinuidade histórica. De modo geral, o projeto

9
Entre as que atuam no Brasil podemos citar: Congregação das Irmãs de Nossa Senhora do Calvário
(São Paulo-SP, Rio de Janeiro-RJ e Brasília-DF); Gualadianos da Pequena Missão para Surdos (Londri-
na-PR, Cascavel-PR e Campinas-SP), Irmãs Salesianas do Sagrado Coração (Belém-PA, Fortaleza-CE,
Pouso Alegre-MG, Manaus-AM); Congregação das Irmãs Franciscanas de Nossa Senhora Aparecida
(Porto Alegre-RS); Congregação Sociedade das Filhas do Coração de Maria (Curitiba-PR); Filhas da
Providência para Surdos Mudos (São Paulo-SP), Associação das Obras Pavonianas de Assistência
(Brasília-DF), Congregação das Filhas de Nossa Senhora do Monte Calvário (Belo Horizonte-MG).
Sobre as relações entre Igreja Católica e surdez, ver Assis Silva, 2012b.
10
Apesar disso, emerge dela o primeiro dicionário brasileiro de sinais, de autoria do padre redentorista
norte-americano Eugênio Oates ([1969] 1988), posteriormente apropriado por protestantes.

Religiões e controvérsias Final.indd 109 18/08/2015 09:59:50


110 evangelístico de batistas e luteranos, desde os anos 1980, foi contraoralista,
pois tomaram a língua de sinais como meio de evangelização e não a oralidade.
Inspirados na máxima paulina de “ser fraco para com os fracos”11, procuraram
ser “surdos para com os surdos”. Além disso, com a incorporação da nascente
produção científica, seus projetos missiológicos ganharam progressivamente um
caráter culturalista. Em congregações protestantes tornou-se corrente a ideia
de que surdos são um “povo não alcançado” pelo cristianismo, que precisa ter
o evangelho traduzido para sua língua. Além disso, são dotados de “cultura”,
“identidade” e “história” particulares.
A questão fundamental é que as Igrejas protestantes passaram a ocupar a dian-
teira no processo de formação de intérpretes de língua de sinais, tornando-se
esse o principal local de aquisição de sinais por ouvintes (famílias e escolas não
produziam tal habitus linguístico). Isso foi em grande medida impulsionado
por congregações batistas históricas, sendo o pastor Marco Antonio Arriens,
gaúcho radicado em Curitiba, uma referência fundamental, tendo formado
mais de 12 mil intérpretes, em todos os estados brasileiros, desde o final
dos anos 1980. Por isso, o protestantismo tornou-se o meio fundamental de
elaboração, fortalecimento, disseminação e naturalização da surdez afirmada
como particularidade linguística e cultural.
Esse processo, em grande medida, não ficou restrito a protestantes históricos.
Ele logo se dissemina para pentecostais e uma nova surdez retorna para a Igreja
Católica, com a incorporação da prática de interpretação, o que gera tensões
internas nessa instituição. Além disso, no meio batista, ocorrem novas formas
de dicionarização da língua, bem como essa instituição é parte da trajetória
de outros intelectuais posicionados na academia que pesquisam o tema da
surdez/língua de sinais.
A descontinuidade fundamental que marca as Igrejas protestantes na surdez
é a instituição da fala pública em língua de sinais. Algo sem paralelo ao que
estava constituído nas escolas e nas famílias, em que a hierarquia adulto-ouvinte
versus criança-surda estava bem estruturada, estabelecendo uma assimetria
clara entre língua oral e língua de sinais. A língua a ser alcançada pela criança
tinha de ser a oral (meio de comando, ordem, instrução, educação), sendo
a língua de sinais coibida, não utilizada, fraca, marginal, desacreditada, com
pouca função performativa. De outro modo, no meio protestante, a língua de
sinais foi liberada publicamente, passando a ocupar o palco no culto, dividindo

11
“Quando estou entre os fracos na fé, eu me torno fraco também a fim de ganhá-los para Cristo.
Assim eu me torno tudo para todos a fim de poder, de qualquer maneira possível, salvar alguns” (I
CORINTIOS, 9:22).

Religiões e controvérsias Final.indd 110 18/08/2015 09:59:50


o mesmo espaço com a língua oral e adquirindo muitas de suas funções comu-

Controvérsias sobre a educação de surdos no Plano Nacional de Educação


111
nicativas (estudo, canto, testemunho, pregação, aviso, orientação, expressão:
língua para todos os efeitos).
É somente com a emergência do intérprete que a fala pública em língua de
sinais pôde ser efetiva. Sem ele, os sinais são inócuos: uma plateia ouvinte não
entende uma apresentação pública em sinais. Do mesmo modo, é somente
com o intérprete que o surdo pode desobrigar-se a ler os lábios e oralizar.
Assim, a formulação histórica do intérprete de língua de sinais/língua oral é
condição da emergência do surdo com fala pública em sinais – fala efetiva e
com efeitos sociológicos.
Daí o papel-chave de protestantes nessa questão, quer seja para ocupar a
posição de intérprete, professor de língua de sinais, intelectual ou ativista em
prol da educação bilíngue para surdos. Em minha pesquisa de campo, todos
os funcionários ouvintes e intérpretes da Feneis com os quais estabeleci con-
tato possuem trajetória religiosa protestante. Além disso, os intérpretes bem
posicionados nessa rede possuem essa trajetória. São eles que interpretam a
fala de ativistas políticos, lideranças surdas e intelectuais, bem como ocupam
a posição de professores de outros intérpretes. Em síntese, intérpretes de
trajetória protestante conformam a ortodoxia do campo dessa profissão.

Conae e o fechamento do INES


O embate entre o projeto de escola inclusiva versus regular não é algo tão recen-
te. Acontecimentos anteriores já indicavam os desenhos de uma controvérsia.
Em 13 de abril de 2005, no site Rede Saci, que veicula notícias e artigos sobre
educação especial, Anahi Guedes Mello, surda oralizada, não falante de libras,
militante do movimento de pessoas com deficiência, então presidente do Cen-
tro de Vida Independente (CVI) de Florianópolis, assina o artigo intitulado As
línguas de sinais são inclusivas?, no qual acusa os surdos de segregacionistas
e de quererem o apartheid. Tarcísio de Arantes Leite, então doutorando do
Departamento de Letras Modernas da USP, respondeu à Anahi por meio da
Rede Saci, em 19 de abril de 2005, com o artigo intitulado De fato precisamos
discutir o modelo de inclusão, pois os surdos querem o FIM do apartheid. Nele,
Leite explica os objetivos e os pressupostos da educação bilíngue, argumen-
tando que na política bilíngue, a valoração da primeira língua da criança e de
uma cultura particular não implica em hipótese alguma a desvalorização da
língua e da cultura majoritárias. Leite desmonta a concepção de que a educação

Religiões e controvérsias Final.indd 111 18/08/2015 09:59:50


112 bilíngue seria segregadora, invertendo a proposição: a inclusão seria o apartheid
para os surdos, pois cada aluno surdo estaria isolado em meio a 40 ouvintes.
No mês seguinte, maio de 2005, um novo embate se deu. Em entrevista à
revista Nova Escola, Maria Teresa Eglér Mantoan, professora da Faculdade
de Educação da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), defensora
da educação inclusiva e crítica das escolas especiais, afirmou ser positivo que
um professor de criança surda não saiba libras, visto que ela deve entender o
português escrito, sendo o ensino da libras e do português como segunda língua
uma prerrogativa do profissional de Atendimento Educacional Especializado
(AEE), algo a ser ministrado no contraturno. Tal afirmação gerou indignação de
ativistas políticos e de intelectuais como Fernando César Capovilla, professor
do Instituto de Psicologia da USP, o qual, por meio da Rede Saci, em 10 de maio
de 2005, escreveu uma nota de repúdio à afirmação de Mantoan. Capovilla,
em seu artigo, se interrogou sobre como pode uma pedagoga valorizar uma
educação sem comunicação, além de contrariar toda a normatização vigente
sobre a educação de surdos.
Em 2010 e 2011, o embate entre escola inclusiva e bilinguismo toma a cena
pública novamente devido a dois novos episódios, que podemos compreender
como sendo o momento crítico da controvérsia: o tratamento que os delegados
da educação de surdos tiveram durante a Conferência Nacional de Educação,
em 2010, e, em segundo lugar, a ameaça de fechamento da educação básica
do Instituto Nacional de Educação de Surdos/RJ.
A Conferência Nacional de Educação (Conae) foi realizada em Brasília, de 28
de março a 1o de abril de 2010, no Centro de Convenções Ulysses Guimarães.
Nela, reuniram-se mais de 3 mil pessoas de todos os estados brasileiros para
definir as propostas que serviriam de base para a redação do Plano Nacional da
Educação (2011-2020). A Conae é a etapa nacional de uma discussão que se
iniciou no plano municipal e, posteriormente, estadual. Nessas etapas anteriores
foram definidos as propostas e os delegados para esta última etapa nacional.
Os 12 delegados que foram defender a educação dos surdos eram provenientes
de São Paulo, Minas Gerais, Paraná e Rio Grande do Sul. A conferência estava
dividida em seis grandes eixos, sendo que o tema da educação de surdos ficou
no eixo “Justiça social, educação e trabalho: inclusão, diversidade e igualdade”12.
O primeiro problema experimentado pelos delegados defensores da educação
de surdos foi a ausência das propostas que tinham sido aprovadas nas etapas

12
Os dados sobre Conae 2010 foram retirados da Revista da Feneis (n. 40, jun.-ago. 2010) e Carta
da Feneis para o ministro da Educação Fenando Haddad, de 19 de maio de 2011.

Religiões e controvérsias Final.indd 112 18/08/2015 09:59:50


estaduais nos documentos de referência, ou seja, elas foram suprimidas na etapa

Controvérsias sobre a educação de surdos no Plano Nacional de Educação


113
nacional. Além disso, outras perdas vieram ao longo do evento. Nas palavras
do militante Neivaldo Zovico:
Durante a fase de discussão interna ao eixo seis fizemos um acordo de que todos
votaríamos a favor das propostas apresentadas pelos diferentes grupos – negros,
quilombolas, Movimento dos Sem-terra, dentre outros. Partimos do princípio de
que ninguém conhece melhor a realidade do que aqueles que a vivenciam (ZOVICO
apud REVISTA DA FENEIS, 2010, p. 22).

As propostas apresentadas diziam respeito à manutenção e criação das escolas


bilíngues para surdos. Contudo, sete das propostas foram rejeitadas e três
aprovadas. De acordo com Zovico, houve manobras para garantir a educação
na perspectiva da educação inclusiva:
Nas nossas costas, depois de sairmos da plenária, os participantes do eixo seis
foram chamados para uma reunião com representantes do Governo Federal e de
ONGs conveniadas ao Ministério da Educação (MEC). Eles os convenceram a votar

contra as propostas destacadas pelo grupo de surdos, acusando nossas ideias de


segregacionistas. Os únicos movimentos que nos apoiaram até o fim foram a Liga
Brasileira de Lésbicas (LBL) e a Educação do Campo (ZOVICO apud REVISTA
DA FENEIS, 2010, p. 22).

De acordo com a Feneis, em carta para o ministro da Educação Fernando


Haddad, de 19 de maio de 2011, além de os delegados serem acusados de
segregacionistas, a própria atuação dos intérpretes foi questionada:
Os fatos vivenciados naquela ocasião, em muitos momentos, levaram o grupo em
defesa da Educação de Surdos a se sentir menosprezado em suas falas e experiên-
cias de vida. Nossas falas foram tidas como inválidas. A atuação dos profissionais
intérpretes foi questionada em várias oportunidades, em pronunciamentos públicos
proferidos por formadores de opinião e que fizeram com que, especialmente os
delegados que desconheciam por completo essa área de atuação (ou seja, em torno
de 90% dos presentes) também passassem, inclusive, a questionar a validade e a
necessidade desse profissional nas mediações comunicativas entre surdos e ouvintes
(FENEIS, 2011, p. 30).

Por fim, tendo a maioria de suas propostas rejeitadas, os 12 delegados utilizaram


o recurso de moção, que consiste no direito de colocar as propostas rejeitadas
anexas ao documento final. Contudo, com a posterior publicação do projeto
de lei do PNE, as demandas desses delegados não foram atendidas. De acordo
com a Feneis, as propostas

Religiões e controvérsias Final.indd 113 18/08/2015 09:59:50


114 [...] receberam um tratamento indevido da comissão responsável pela elaboração
do documento final. Referimo-nos especificamente às propostas não aprovadas e
apresentadas no formato de moção, e que são objeto de discussão no decorrer desse
documento. Tais propostas foram simplesmente excluídas do documento final, sem
justificativa ou qualquer menção (FENEIS, 2011, p. 4).

Em contraposição a esse relato dos delegados defensores da educação bilíngue


para surdos, a diretora de políticas educacionais especiais do MEC, Martinha
Clarete, afirmou para a Revista da Feneis que não há fundamento nos reclamos
dos delegados que defenderam a educação de surdos:
A conferência é um espaço democrático e o resultado foi fruto do debate. A maioria
da plenária reconheceu que há um princípio da educação inclusiva a ser seguido e
que votar pela escola de surdos é ir contra esse princípio. [...] Ao MEC coube apre-
sentar argumentos em defesa das orientações do governo e das políticas educacionais
vigentes (CLARETE apud REVISTA DA FENEIS, 2010, p. 23).

Além disso, Clarete defende os fundamentos da educação inclusiva, afirmando


que a educação bilíngue não é favorecida no espaço segregado:
[...] o contrário, a pluralidade humana precisa estar na escola e esta precisa, cada
dia mais, ter diferentes ferramentas pedagógicas que sejam capazes de desenvolver
a educação plural (CLARETE apud REVISTA DA FENEIS, 2010, p. 23).

Sobre a valorização da cultura e da identidade surdas que o projeto das escolas


bilíngues visa alcançar, a diretora respondeu que
Do ponto de vista da educação inclusiva, o MEC não acredita que a condição sensorial
institua uma cultura. As pessoas surdas estão na comunidade, na sociedade e com-
põem a cultura brasileira. Nós entendemos que não existe cultura surda e que esse
é um princípio segregacionista. As pessoas não podem ser agrupadas nas escolas
de surdos porque são surdas. Elas são diversas. Precisamos valorizar a diversidade
humana (CLARETE apud REVISTA DA FENEIS, 2010, p. 23).

Tal declaração gerou bastante indignação nas redes sociais. Posteriormente,


Martinha Clarete seria alvo de crítica pelos defensores da educação bilíngue.
Os eventos Conae e a posterior publicação do projeto de lei do PNE certamente
representaram derrotas do movimento das escolas bilíngues em relação ao
movimento inclusivo. Mas o fato determinante para gerar diversas mobiliza-
ções foi a ameaça de fechamento da educação básica do Instituto Nacional
de Educação de Surdos (INES/RJ). Fundado em 1857, é o colégio mais antigo
para surdos do Brasil, tido como um patrimônio histórico da comunidade
surda brasileira, referido também como berço da língua de sinais e da “cultura

Religiões e controvérsias Final.indd 114 18/08/2015 09:59:50


surda”. De acordo com o andamento das políticas inclusivas, ele passaria a

Controvérsias sobre a educação de surdos no Plano Nacional de Educação


115
ofertar exclusivamente o Atendimento Educacional Especializado, fechando
sua escola básica em 2011.
Diante desse quadro, um líder carioca surdo, Nelson Pimenta, realizou um
vídeo publicado no site YouTube13, em março de 2011, bastante disseminado
pelo site de rede social Facebook, denominado Fechamento INES absurdo. No
vídeo, Pimenta afirma exaltado que o fechamento do INES seria a perda de um
espaço importante de convivência em língua de sinais, algo fundamental para a
cultura e a identidade surdas. Sem o INES, os surdos iriam retornar para a opres-
são ouvinte, agora nas escolas inclusivas. Por fim, Pimenta conclama a todos os
surdos a ficarem atentos e se posicionarem contrários ao fechamento do INES.
Foram esses dois eventos que levaram à organização de caravanas em defesa das
escolas bilíngues dos surdos para Brasília, em maio de 2011, e à mobilização
nacional em todos os estados da federação no mês em que se comemora o Dia
do Surdo, que ficou denominado como Setembro Azul.

Caravanas em defesa das escolas bilíngues e o


Setembro Azul
O vídeo de Nelson Pimenta motivou várias iniciativas posteriores. A líder surda
Mariana Hora, assistente social de Pernambuco, elaborou um abaixo-assinado
contra o fechamento do INES pela internet14. Além disso, um grupo foi formado
no Facebook para organizar as mobilizações em defesa das escolas bilíngues,
a partir do qual foi fundado o Movimento Surdo em Favor da Educação e da
Cultura Surda, um grupo com representantes em todos os estados da federação.
Foi marcada então uma audiência com o ministro da Educação, Fernando
Haddad, para o dia 19 de maio de 2011. Por meio do Facebook, caravanas de
diversos estados brasileiros se organizaram para estar presentes em Brasília nos
dias 19 e 20 de maio (quinta e sexta-feira).
A mobilização passou a contar com o apoio de algumas figuras públicas. As
atrizes globais Renata Sorrah15 e Marieta Severo – esta última possui uma irmã
surda, Lucia Severo, ex-aluna do INES – enviaram vídeos em apoio à causa do

13
Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=Bs4wZYYgcSQ >. Acesso em: 16 abr. 2014.
14
Disponível em: <http://www.peticaopublica.com.br/pview.aspx?pi=LutaINES>. Acesso em: 15
abr. 2014.
15
Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=kEHXG_6EesY>. Acesso em: 15 abr. 2014.

Religiões e controvérsias Final.indd 115 18/08/2015 09:59:50


116 movimento, conclamando a todos para comparecerem em Brasília. A fala de
Marieta Severo foi inclusive em libras16. A modelo e dançarina russa Elke
Maravilha não somente gravou um vídeo17 em apoio à mobilização, como
esteve em Brasília no dia da manifestação, ocupando inclusive o trio elétrico
que guiava os manifestantes.
Ao todo, mais de 4 mil pessoas – entre elas alunos, professores e funcionários
das escolas para surdos, familiares de surdos, intérpretes de língua de sinais,
intelectuais, ativistas e simpatizantes da causa – estiveram presentes para de-
fender as escolas bilíngues para surdos em Brasília, nos dias 19 e 20 de maio
de 2011. Em tais dias, o movimento social foi bastante efetivo para estabelecer
diálogos com diferentes instâncias do Estado18.
No dia 19, o primeiro compromisso foi com o ministro da Educação, Fernando
Haddad. De acordo com a Revista da Feneis (2011), enquanto manifestantes
empunhavam faixas e batucavam na porta do ministério, alguns líderes foram
recebidos pelo ministro. Na reunião, Haddad fez uma breve explanação da
política inclusiva do governo federal. Rebateu de antemão a possibilidade de
fechamento da educação básica do INES e do Instituto Benjamim Constant (para
cegos). Defendeu também a dupla matrícula, que garante a possibilidade de o
aluno com deficiência estudar na escola regular e obter o Atendimento Educa-
cional Especializado (AEE) em outra instituição. Afirmou ainda ser do interesse
do ministério oferecer as melhores condições para alunos com deficiência,
sendo a dupla matrícula uma forma de somar possibilidades e não de subtrair.
Em resposta, a diretora de políticas educacionais da Feneis, Patrícia Rezende,
explicou que, na prática, a atual política do Ministério da Educação (MEC) ne-
gligencia a libras como língua de instrução, relegando-a apenas aos espaços de
AEE, como atividade complementar. A língua de instrução na escola inclusiva
continuaria sendo o português, pois é impossível dar aula para surdos e ouvintes
em duas línguas ao mesmo tempo.
Nessa reunião, os ativistas surdos entregaram uma carta para o ministério
narrando todo o episódio da Conae 2010, o sentido que o INES tem para a
comunidade surda e reivindicaram as propostas que foram excluídas do texto
final do projeto de lei do Plano Nacional da Educação. Além disso, foi entregue

16
Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=uZvHSaqAYLw>. Acesso em: 14 abr. 2014.
17
Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=eGJ_Q3PwTLo>. Acesso em: 15 abr. 2014.
18
Dados sobre a manifestação em Brasília foram retirados da Revista da Feneis (n. 44, jun./ago. 2011)
e da etnografia de Eudenia Magalhães Barros (2011), pesquisadora do movimento social surdo e
mestranda em sociologia na UNICAMP.

Religiões e controvérsias Final.indd 116 18/08/2015 09:59:50


o abaixo-assinado contrário ao fechamento da educação básica no INES. Propuse-

Controvérsias sobre a educação de surdos no Plano Nacional de Educação


117
ram também a criação de um grupo de trabalho para discutir o tema educação
de surdos, composto por representantes do MEC, pesquisadores da área de
linguística e de educação de surdos e integrantes do movimento social surdo.
Participaram dessa reunião: Paulo Bulhões, vice-presidente da Feneis; Flaviane
Reis (Universidade Federal de Uberlândia); Nelson Pimenta, mestre em linguís-
tica pela UFSC e autor do vídeo de protesto que conclamou um posicionamento
de todos os surdos brasileiros; Messias Ramos, diretor da Feneis do Distrito
Federal; Mariana Hora, autora do abaixo-assinado; e Sueli Fernandes, pesqui-
sadora da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Não vinculados à surdez,
participaram o presidente do Conselho Nacional dos Direitos das Pessoas com
Deficiência, Moisés Bauer, e representantes da Associação de Pais e Amigos
dos Excepcionais (APAE), estes últimos também defensores da manutenção do
ensino regular nas escolas específicas.
Após a reunião no MEC, os manifestantes se deslocaram para o Senado Federal,
onde foi realizada uma audiência pública convocada pelo senador Lindberg
Faria (PT/RJ), presidente da Subcomissão Permanente de Assuntos Sociais
das Pessoas com Deficiência, que possui uma filha com síndrome de Down.
Participaram da reunião Mara Gabrili (PSDB/SP), Eduardo Barbosa (PSDB/MG),
Otávio Leite (PSDB/RJ) e Wellington Dias (PT/PI). Os parlamentares em suas
falas foram unânimes em reconhecer o caráter democrático do movimento,
cujas demandas não podem ser ignoradas pelo Ministério da Educação. De
acordo com o diretor regional da Feneis do DF, Messias Ramos,
A acolhida calorosa dos senadores e deputados e a ampla participação popular
trouxeram para nós, surdos, a esperança de que a luta pela nossa língua e pela
nossa cultura não é em vão (RAMOS apud REVISTA DA FENEIS, 2011, p. 11).

Os ativistas novamente se colocaram contrários à política de educação inclusiva,


bem como criticaram a postura técnica não democrática da gestão do MEC. O
relato do professor de filosofia Emiliano Aquino, cearense, pai de uma criança
surda, que atuou fortemente na organização do movimento, emocionou os
presentes. Ele afirmou na ocasião:
As funcionárias comissionadas do MEC trabalham na perspectiva de tirar o direito
dos pais de escolherem em qual escola os seus filhos devem estudar. Como pai,
eu quero poder escolher, e eu escolho a escola bilíngue para meu filho (AQUINO
apud REVISTA DA FENEIS, 2011).

A cópia da carta para o ministro da Educação foi entregue também aos parla-
mentares presentes.

Religiões e controvérsias Final.indd 117 18/08/2015 09:59:50


118 Após a reunião com o Senado, a multidão se concentrou no gramado do Con-
gresso Nacional. Ao escurecer, o gramado foi iluminado pelas chamas das velas
que os ativistas surdos levaram. Sentados, os manifestantes formaram um laço
com as velas acesas19. A intenção foi fazer uma homenagem aos ex-alunos do
INES. Estes foram lembrados como bravos resistentes, que não deixaram de
conversar em língua de sinais, à luz de vela, nos dormitórios, banheiros, cor-
redores, longe dos olhos de professores e vigilantes, quando a língua de sinais
era proibida, período que se seguiu ao Congresso Internacional de Educação
de surdos de Milão, em 1880. Karin Strobel, presidente da Feneis, estabeleceu
em sua fala a relação entre as velas em homenagem aos alunos do INES e as
escolas bilíngues:
Na ausência de uma escola bilíngue, não teremos como nos comunicar, nos desen-
volver e nos transformar em sujeitos atuantes no mundo. Estamos buscando essa
luz, por meio de uma educação melhor (STROBEL apud FENEIS, 2011, p. 13).

O dia 20, sexta-feira, foi marcado com uma grande passeata, quando de fato
chegaram diversas caravanas de todo o Brasil, estimando-se que, como já foi
comentado, 4 mil pessoas tenham participado. A caminhada partiu do Museu
Nacional e foi até o Congresso Nacional. O ambiente foi bastante festivo, com
trio elétrico, apitos e instrumentos musicais para chamar a atenção de todos.
De acordo com Barros, que realizou etnografia na passeata:
Jovens surdos com nariz de palhaço carregavam faixas, onde estava escrito “Respeito
à cultura surda”, e em vermelho “Fora Martinha Clarete”, até então diretora de
Políticas de Educação Especial; “Não à inclusão homogeneizadora”, “Inesquecível
para a educação dos surdos – INES”, “Professores Surdos Já” (Barros, 2013, p. 13).

De acordo com fotos publicadas na Revista da Feneis (2011), outras faixas


também compuseram o cenário: “Nada sobre nós sem nós”, “As políticas pú-
blicas não podem ser gestadas sem a participação do povo surdo”, “O INES é
do povo surdo – O berço de nossa língua”, “Respeito ao bilinguismo”.
O segundo dia iniciou-se de maneira festiva, contudo, o período da tarde foi
o momento mais tenso de toda manifestação. Líderes surdos foram convida-
dos a uma reunião com o Conselho Nacional dos Direitos das Pessoas com
Deficiência (Conade).
O debate foi conflituoso e girou em torno da interpretação da legislação sobre
educação especial. Enquanto representantes do MEC afirmaram garantir a educa-

19
Assim como o laço vermelho é adotado pela luta contra a aids, o laço azul passou a ser adotado
como símbolo do “ser surdo”, o que se fortaleceu ainda mais em setembro de 2011.

Religiões e controvérsias Final.indd 118 18/08/2015 09:59:50


ção bilíngue por meio do Atendimento Educacional Especializado (AEE), Patrícia

Controvérsias sobre a educação de surdos no Plano Nacional de Educação


119
Rezende, da Feneis, afirmou que o AEE secundariza a língua de sinais e a relega
a um aprendizado complementar. O conselheiro Joiram Medeiros da Silva, re-
presentante do MEC no Conade, apresentou dados referentes ao investimento do
MEC na política de inclusão de surdos e ao crescimento do número de matrículas
de crianças surdas na rede regular, mantendo em sua fala uma clara posição em
defesa das escolas inclusivas. De acordo com a Revista da Feneis, nessa reunião,
“à acusação de que os surdos são segregacionistas, somou-se o discurso de que
os surdos são também contra a escola pública, gratuita de qualidade” (REVISTA
DA FENEIS, 2011, p. 16). A então presidente da Feneis Karin Strobel avaliou
a recepção de alguns membros do Conade como profundamente desrespeitosa,
contudo, considerou como positivo o firme posicionamento de líderes surdos
diante dos partidários da educação inclusiva do MEC.
A diretora da Feneis, Patrícia Rezende, explicou bem os termos da questão:
A perspectiva cultural da educação de surdos ainda não é amplamente compreendi-
da. Paira o estigma da deficiência e das escolas especiais como o lugar da segregação
e do antigo modelo médico da reabilitação. Convencer os gestores de que a escola
bilíngue é o real lugar da inclusão é o nosso principal desafio (REZENDE apud
REVISTA DA FENEIS, 2011, p. 18).

A organização nacional sem precedentes das caravanas de maio teve um impacto


nacional duradouro, principalmente durante o ano de 2011. O Movimento
Surdo em Favor da Educação e da Cultura Surda, com lideranças em todas
as capitais do Brasil, passou a organizar passeatas e audiências públicas em
câmaras legislativas com a intenção de conscientizar parlamentares e a opinião
pública acerca da educação bilíngue de surdos. As audiências ocorreram em
todas as capitais (com exceção de São Luiz e Palmas) entre os dias 9 e 16 de
setembro de 2011. No Dia Nacional do Surdo, 26 de setembro, em diversas
cidades foram realizadas marchas em defesa das escolas bilíngues. Esse mês
de comemoração e reivindicação passou a ser chamado de Setembro Azul,
tendo sido um momento de estabelecimento de alianças entre líderes surdos
e parlamentares.
Na cidade de São Paulo, realizaram uma audiência em defesa das escolas bilín-
gues na Assembleia Legislativa, em 12 de setembro de 2011. Após esse evento,
uma pequena caminhada com velas foi realizada fora do auditório. No dia do
surdo, 26 de setembro, uma passeata saiu de frente da prefeitura, no Viaduto
do Chá, rumou até a Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, na Praça
da República, e terminou na Câmara dos Vereadores, na rua Maria Paula. Esse
evento coincidiu com a aprovação da transformação das escolas municipais

Religiões e controvérsias Final.indd 119 18/08/2015 09:59:50


120 de educação especial para surdos em escolas bilíngues para surdos20. Ou seja,
no plano do município, o movimento alcançou plenamente os seus objetivos
(ASSIS SILVA; ASSÊNSIO, 2011).
Nesse mesmo mês, quando a mídia passou a noticiar tal questão, a professora
de filosofia da USP, Marilena Chaui, também gravou um vídeo em apoio ao mo-
vimento social dos surdos21. A filósofa ratificou a importância dos movimentos
sociais para a construção de direitos numa sociedade democrática. Em suas pa-
lavras, o movimento social dos surdos possui conhecimento das condições reais
dos surdos e demandas próprias, de modo que não pode ser atropelado pelo
governo, pelo MEC e pelo Estado, por melhores que sejam as intenções destes.
Além disso, o modo homogeneizador como opera a inclusão escolar poderia
levar ao seu inverso, o risco da exclusão. Para ela, somente os surdos podem de
fato saber o que seria a verdadeira inclusão nesse caso, condição para garantir
a igualdade. Chaui concluiu seu vídeo sugerindo três propostas: i) o MEC deve
atender às reivindicações e demandas do movimento social surdo; ii) que se abra
um amplo diálogo entre esse ministério e o movimento, para um avanço nessa
questão; e, por fim, iii) que todo o país esteja concernido a esse problema: que a
igualdade pode advir, em certos casos, de uma educação específica, diferenciada.

Carta entregue para o ministro da Educação


A carta entregue para o ministro da Educação, em 19 de maio de 2011, solicita
quatro emendas no Plano Nacional de Educação e as justifica com base na
legislação e em argumentos provenientes de pesquisas acadêmicas.
A primeira reivindicação é a garantia da continuidade das escolas de surdos, da
educação infantil até as séries finais da educação básica. Quando a população
de surdos não for suficiente para existência de uma escola, devem-se garantir
salas de surdos, ou ainda, em último caso, espaços de compartilhamento da
língua de sinais e demais aspectos culturais.
Como afirma a carta, “não se trata de educação complementar, trata-se de
educação regular para surdos” (FENEIS, 2011, p. 9), ou seja, a língua de sinais
não é um tema do AEE, mas meio de instrução regular. Complementam:
Se a criança indígena tem garantida a consideração para com o uso da sua língua
materna na alfabetização (5.5), a criança surda também tem o mesmo direito; se

20
Decreto 52.785/2011, regulamentado pela Portaria 5.707/2011.
21
Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=Uj839Xcp9Mc>. Acesso em: 15 abr. 2014.

Religiões e controvérsias Final.indd 120 18/08/2015 09:59:50


está garantido para os estudantes do campo, quilombolas e indígenas a preservação

Controvérsias sobre a educação de surdos no Plano Nacional de Educação


121
de sua identidade cultural (7.17), ao estudante surdo também deve-se dar o mesmo
direito (FENEIS, 2011, p. 9).

A segunda reivindicação visa garantir que professores que vão atuar nas escolas
de surdos tenham formação específica e continuada sobre a história, aspectos
linguísticos, culturais e de identidade das comunidades surdas do Brasil e do
mundo. Nesse caso, visa-se garantir que a educação seja bilíngue e, também,
que seja aplicada a pedagogia surda, que concebe o surdo não como deficiente,
menos válido, alguém a ser corrigido, mas como membro de um povo com
língua e cultura específicas. Essa reivindicação enfatiza a importância do ensino
da história do “povo surdo” para os professores.
A terceira reivindicação é a garantia do ingresso de surdocegos e surdos com
outras deficiências nas escolas ou classes de surdos na perspectiva da educação
inclusiva, assegurando o seu direito a uma educação bilíngue, com professor
assistente para atender suas necessidades especiais. Nesse caso, a Feneis se
alinha à educação inclusiva para surdocegos e surdos com outras deficiências
dentro da escola bilíngue para surdos.
A quarta reivindicação demanda que o texto do Plano Nacional de Educação
acrescente surdos após se referir aos grupos de estudantes que demandam aten-
dimento específico (principalmente após citar os indígenas). Como afirmam:
O PNE separa as necessidades específicas das populações do campo e de áreas
remanescentes de quilombos (Artigo 8, § 1o) e as necessidades educacionais es-
pecíficas da educação especial (Artigo 8, § 2o). Os surdos melhor se enquadram
entre as populações de história, língua e cultura específicas que entre os grupos
que compõem a educação especial. Aquilo que é previsto para a educação es-
colar indígena deve ser também propiciado para a educação de surdos. TUDO
O QUE O PNE PREVÊ PARA A EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA CABE
PARA A EDUCAÇÃO DE SURDOS, visto que tanto indígenas como surdos
têm uma língua própria e uma cultura diferenciada. O texto do PNE fala das
“especificidades socioculturais e linguísticas de cada comunidade”, alertamos
que esta especificidade sociocultural e linguística aplica-se também aos surdos
(FENEIS, 2011, p. 21-22).

7. Conquistas efetivas: alteração no PNE


Os anos que se seguiram às manifestações de Brasília foram de marcação
cerrada do movimento social surdo sobre as atividades parlamentares com

Religiões e controvérsias Final.indd 121 18/08/2015 09:59:50


122 relação à tramitação do PNE. Enquanto ele tramitava pelo Senado, um novo
abaixo-assinado foi feito para garantir a educação bilíngue dos surdos22.
Com o andamento desse processo, a maioria das reivindicações feitas foi
descartada. A tentativa de aproximar a educação de surdos das populações
tradicionais, sobretudo indígena, foi algo que não ganhou espaço. Em verdade,
o próprio movimento percebeu como necessário concentrar esforços na reivin-
dicação do direito à escola bilíngue para surdos, abrindo mão por ora de outras
demandas. Nesse sentido, o movimento teve êxito em frear parcialmente a
radicalização da educação inclusiva. A versão definitiva do PNE, promulgado
pela lei federal 13.005, de 25 de junho de 2014, apresenta modificações na
meta 4, como pode ser vista a seguir:
Meta 4: universalizar, para a população de 4 (quatro) a 17 (dezessete) anos com
deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou super-
dotação, o acesso à educação básica e ao atendimento educacional especializado,
preferencialmente na rede regular de ensino, com a garantia de sistema educacional
inclusivo, de salas de recursos multifuncionais, classes, escolas ou serviços especia-
lizados, públicos ou conveniados (grifos nossos).

Assim, apesar de manter a preferência da educação especial na rede regular de


ensino, a meta 4 concebe também a permanência de classe, escola ou serviço
especializado. Ou seja, a educação especial adquiriu um caráter mais hetero-
gêneo do que o plano de lei de 2010.
Com relação à educação de surdos, o movimento conseguiu a criação de uma
cláusula específica, que é bastante explícita nos termos da educação bilíngue,
libras como primeira língua e português como segunda, podendo ser ofertada
em diferentes estabelecimentos, com base nas principais cláusulas que nor-
matizam essa educação, como segue:
4.7) garantir a oferta de educação bilíngue, em Língua Brasileira de Sinais – Libras
como primeira língua e na modalidade escrita da Língua Portuguesa como segunda
língua, aos (às) alunos(as) surdos(as) e com deficiência auditiva de 0 (zero) a 17
(dezessete) anos, em escolas e classes bilíngues e em escolas inclusivas, nos termos
do art. 22 do Decreto n. 5.626, de 22 de dezembro de 2005, e dos arts. 24 e 30
da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, bem como a adoção
do Sistema Braille de leitura para cegos e surdos-cegos (grifos meus).

22
Disponível em: <http://www.peticaopublica.com.br/pview.aspx?pi=EBS2012>. Acesso em: 16
abr. 2014.

Religiões e controvérsias Final.indd 122 18/08/2015 09:59:50


Referências bibliográficas

Controvérsias sobre a educação de surdos no Plano Nacional de Educação


123
ARANHA, Maria Salete Fabio. Paradigmas da relação da sociedade com as pessoas com deficiência.
Revista do Ministério Público do Trabalho, ano XI, n. 21, p. 160-173, mar. 2001.
ASSIS SILVA, César Augusto de. Cultura surda: agentes religiosos e a construção de uma identidade.
São Paulo: Terceiro Nome, 2012a. 248 p.
________. Igreja Católica e surdez: território, associação e representação política. Religião & Sociedade
[on-line], v. 32, n. 1, p. 13-38, 2012b.
________; ASSÊNSIO, Cibele Barbalho. Setembro Azul: mobilização política nacional a favor das
escolas bilíngues para surdos. Ponto Urbe (USP), v. 9, p. 1-13, 2011.
BARROS, Eudenia Magalhães. Ações coletivas, identidade e os (novos) agentes sociais: uma breve
experiência etnográfica sobre a comunidade surda no Brasil. In: REUNIÃO EQUATORIAL DE
ANTROPOLOGIA, 4. e REUNIÃO DE ANTROPÓLOGOS DO NORTE E NORDESTE, 13.,
2013, Fortaleza. Anais... Fortaleza, 2013.
CAPOVILLA, Fernando César. Modelo de Mantoan para surdos está errado, contrariando leis federais
e declarações internacionais. Rede Saci, 10 maio 2005. Disponível em: <http://saci.org.br/index.
php?modulo=akemi&parametro=16092>. Acesso em: 28 maio 2012.
DINIZ, Débora. O que é deficiência. São Paulo: Brasiliense, 2007.
HOEMANN, Harry; OATES, Eugênio; HOEMANN, Shirley (Orgs.). Linguagem de sinais do Brasil.
Porto Alegre: [s.e.], 1983.
KLIMA, E. S.; BELLUGI, U. The signs of language. Cambridge: Harvard University, 1979.
LACERDA, Cristina Broglia Feitosa de. A inclusão escolar de alunos surdos: o que dizem alunos, profes-
sores e intérpretes sobre esta experiência. Cadernos Cedes [on-line], v. 26, n. 69, p. 163-184, 2006.
LANNA JUNIOR, Mário Cleber Martins. História do movimento político das pessoas com deficiência
no Brasil. Brasília: Secretaria de Direitos Humanos. Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos
da Pessoa com Deficiência, 2010. 443 p.
LEITE, Tarcísio de Arantes. De fato precisamos discutir o modelo de inclusão, pois os surdos querem
o FIM do Apartheid. Rede Saci, 19 abr. 2005. Disponível em: <http://www.saci.org.br/index.ph
p?modulo=akemi&parametro=15863>. Acesso em: 5 nov. 2008.
MANTOAN, Maria Teresa Eglér. Inclusão é o privilégio de conviver com as diferenças. Entrevista por
Meire Cavalcante. Revista Nova Escola, maio 2005. Disponível em: <http://revistaescola.abril.
com.br/inclusao/inclusao-no-brasil/maria-teresa-egler-mantoan-424431.shtml>. Acesso em: 28
maio 2012.
________. PRIETO, Rosângela Gavioli. Inclusão escolar: pontos e contrapontos. São Paulo: Summus,
2006. 103 p.
MELLO, Anahi G. As línguas de sinais são inclusivas? O que precisamos discutir é que modelo de
inclusão queremos, visto que os surdos querem o apartheid. Rede Saci, 13 abr. 2005. Disponível
em: <http://www.saci.org.br/?modulo=akemi&parametro=15805>. Acesso em: 5 nov. 2008.
OATES, Eugênio. Linguagem das mãos [1969]. Aparecida: Santuário, 1988.
QUADROS, Ronice M. de. Educação de surdos: a aquisição de linguagem. Porto Alegre: Artes Mé-
dicas, 1997.
RABINOW, Paul. Artificialidade e iluminismo: da sociobiologia à biossociabilidade. In: ________. An-
tropologia da razão. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999.
STOKOE, William. Sign language structure. Silver Spring: Linstok Press, 1960.

Religiões e controvérsias Final.indd 123 18/08/2015 09:59:50


124 Citações bíblicas
I CORINTIOS. Bíblia Sagrada. Nova tradução na linguagem de hoje. Barueri: Sociedade Bíblica do
Brasil, 2001.
MARCOS. Bíblia Sagrada. Nova tradução na linguagem de hoje. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil,
2001.

Leis e documentos
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 6 nov. 2012.
________. Lei 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e
dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm>.
Acesso em: 24 set. 2013.
________. Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação na-
cional. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/seed/arquivos/pdf/tvescola/leis/lein9394.pdf>.
Acesso em: 21 maio 2012.
________. Lei 10.172, de 9 de janeiro de 2001. Aprova o Plano Nacional de Educação e dá outras
providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10172.htm>.
Acesso em: 21 maio 2012.
________. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Parecer CNE/CEB 17/2001. Di-
retrizes Nacionais para a Educação Especial na Educação Básica. Diário Oficial da União de 17
de agosto de 2001, Seção 1, p. 46. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/
CEB017_2001.pdf>. Acesso em: 21 maio 2012.
________. Lei 10.436, de 24 de abril de 2002. Dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais – Libras e
dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10436.
htm>. Acesso em: 7 jan. 2012.
________. Decreto 5.626, de 22 de dezembro de 2005. Regulamenta a Lei n. 10.436, de 24 de abril de
2002, que dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais – Libras, e o art. 18 da Lei n. 10.098, de 19 de
dezembro de 2000. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/
decreto/d5626.htm>. Acesso em: 7 nov. 2012.
________. Ministério da Educação. Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação
Inclusiva. Documento elaborado pelo Grupo de Trabalho nomeado pela Portaria Ministerial n. 555,
de 5 de junho de 2007, prorrogado pela Portaria n. 948, de 9 de outubro de 2007. Disponível em:
<http://portal.mec.gov.br/seesp/arquivos/pdf/politica.pdf>. Acesso em: 21 maio 2012.
________. Decreto 6.949, de 25 de agosto de 2009. Promulga a Convenção Internacional sobre os
Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 30
de março de 2007. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/
decreto/d6949.htm>. Acesso em: 21 maio 2012.
________. Decreto 7.611, de 17 de novembro de 2011. Dispõe sobre a educação especial, o atendimento
educacional especializado e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Decreto/D7611.htm>. Acesso em: 21 maio 2012.
________. Lei 13.005, de 25 de junho de 2014. Aprova o Plano Nacional de Educação – PNE e dá outras
providências. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/
l13005.htm>. Acesso em: 7 nov. 2012.
CONGRESSO NACIONAL. Projeto de lei 8.035/2010. Plano Nacional de Educação, 2010.
FENEIS. Carta para dr. Fernando Haddad, Ministro da Educação da República Federativa do Brasil.
Brasília, 19 maio 2011.

Religiões e controvérsias Final.indd 124 18/08/2015 09:59:50


MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Nota técnica 05. MEC. SECADI. GABI. Assunto: Implementação de

Controvérsias sobre a educação de surdos no Plano Nacional de Educação


125
educação bilíngue. 27 abr. 2010.
REVISTA DA FENEIS, n. 40, jun./ago. 2010.
REVISTA DA FENEIS, n. 44, jun./ago. 2011.
SÃO PAULO (Município). Portaria 5.707, de 12 de dezembro de 2011. Regulamenta o Decreto 52.785,
de 10/10/11 que criou as Escolas de Educação Bilíngues para Surdos – EMEBS na Rede Municipal de
Ensino e dá outras providências. Disponível em: <http://portalsme.prefeitura.sp.gov.br/Projetos/
supervisao/Anonimo/DOC%202011/P5707EMEBS.htm>. Acesso em: 21 maio 2012.
________. Decreto 52.785, de 10 de novembro de 2011. Cria as Escolas de Educação Bilíngue para
Surdos – EMEBS na Rede Municipal de Ensino. Disponível em: <http://dobuscadireta.imprensa-
oficial.com.br/default.aspx?DataPublicacao=20111111&Caderno=DOC&NumeroPagina=1>.
Acesso em: 21 maio 2012.
SENADO FEDERAL. Projeto de lei 103/2012. Plano Nacional de Educação, 2013.
UNESCO. Declaração de Salamanca. Sobre Princípios, Políticas e Práticas na Área das Necessidades
Educativas Especiais. Conferência Mundial de Educação Especial, 7 a 10 de junho de 1994. Dis-
ponível em: <http://portal.mec.gov.br/>.

Religiões e controvérsias Final.indd 125 18/08/2015 09:59:50


Religiões e controvérsias Final.indd 126 18/08/2015 09:59:50
“Não cultuais imagens de escultura”: alguns
aspectos do debate público acerca da
tipificação jurídica da “intolerância religiosa”
e da “liberdade religiosa”
MILTON BORTOLETO

Este trabalho consiste na análise de um estudo de caso que pode ser tomado
como exemplar na agenda de pesquisa do “conflito entre adeptos das religiões
pentecostais e afro-brasileiras”, como mapeei em trabalhos anteriores (BOR-
TOLETO, 2014), especialmente por descrever um episódio em que quatro
jovens evangélicos “invadem” um centro espírita na cidade do Rio de Janeiro
em junho de 2008 e ali quebram diversas “imagens de escultura”. Esse proce-
dimento fomenta um intenso debate público acerca das práticas discursivas
desses jovens, de em qual figura jurídica eles devem ser enquadrados e de
como a “intolerância religiosa” deve ser tratada na jurisprudência brasileira,
assim como quais são os limites da liberdade religiosa no Brasil.
Optar pela análise desse caso também me permite experimentar a viabilidade
de uma abordagem que focalize os discursos dos mais variados atores sociais
envolvidos nesse debate, atentando para suas argumentações, quais termos as
constituem e quais sentidos os atores envolvidos nessas contendas acionam,
deslocando a análise dos aspectos que compõem as religiões a que os atores
declaram pertencimento para o conteúdo exposto nas práticas discursivas que
tais atores produzem ao envolver-se nessas contendas públicas.
Pensando metodologicamente, a viabilidade deste experimento analítico pode-
ria ser avaliada sob diversas formas, dialogando com as mais variadas tradições
da filosofia da linguagem ou da análise do discurso. Entretanto, a antropologia

Religiões e controvérsias Final.indd 127 18/08/2015 09:59:50


128 e a sociologia que vêm estudando o conflito entre religiões pentecostais e
afro-brasileiras podem receber profundas contribuições ao terem em seu seio
trabalhos que se inspirem nas proposições teóricas de Luc Boltanski, Laurent
Thévenot e Éve Chiapello1 (CEFÄÏ, 2009; CELIKATES, 2012; LEMIEUX,
2007; VANDENBERGUE, 2006).
Antes de tudo, cabe salientar que os estudos empreendidos pela sociologia
de Luc Boltanski, o mais renomado nome desse grupo, já possuem amplo uso
em outras áreas de investigação das ciências sociais como aponta Daniel Cefäï
(2009), assim como impactaram decisivamente o antropólogo Bruno Latour na
confecção das bases de sua principal proposição teórica, a Actor-Network-The-
ory (ANT)2. Robin Celikates, um dos principais comentadores dessa temática,
afirma que as proposições de Bruno Latour em seu Reassembling the social: an
introduction to Actor-Network-Theory, de 2005, está em estreito diálogo com
as investigações de Boltanski, Chiapello e Thévenot confeccionados no decorrer
das décadas de 1980 e 1990, momento em que emerge em suas investigações
uma máxima metodológica que é a um só tempo simples e desafiadora: “siga os
próprios atores.” Os sociólogos [e antropólogos] têm de seguir os atores “ordinários”
em suas ações, interpretações e avaliações porque são estes que possuem conheci-
mento relevante sobre o mundo social. Eles já não devem ser considerados meros
informantes produzindo dados adicionais, mas sim sociólogos leigos produzindo
interpretações e explicações do que estão fazendo que não são nem um pouco
menos sofisticadas do que aquelas de seus colegas profissionais (CELIKATES,
2012, p. 36-37, grifo nosso).

Para além de uma antropologia “latouriana”, já recorrente na literatura antro-


pológica e sociológica, esta pesquisa visa o uso de algumas proposições de Bol-
tanski3 por centrarem suas atenções nas práticas discursivas dos atores sociais,
base empírica que pode evidenciar profícuas análises sociológicas expostas nas

1
Os principais trabalhos desses autores e que utilizarei nesta investigação, seja citando-os ex-
pressamente ou somente tendo-os como inspiração, são: Boltanski, 1984, 1990; Boltanski &
Chiapello, 1991; Boltanski & Thévenot, 1987, 1991, 1999; Chiapello, 2003; Thévenot, 1990,
1992a, 1992b, 1998.
2
Em um dos seus principais trabalhos, o “ensaio/manifesto” Jamais fomos modernos: ensaio de
antropologia simétrica, publicado em 1991, Latour ressalta a centralidade das investigações da
chamada sociologia pragmática. Diz o autor: “Luc Boltanski e Laurent Thévenot esvaziaram a
denúncia moderna em um livro tão importante para este ensaio quanto o de Steve Shapin e Simon
Schaffer. Fizeram, em relação ao trabalho de indignação crítica, o que François Furet já havia feito
em relação à Revolução Francesa. ‘A denúncia acabou’: este poderia ser o subtítulo de Economies
de la grandeur” (LATOUR, 1991, p. 48).
3
Não somente por proporem o desvencilhamento investigativo de um edifício teórico fechado na
explicação dos mais diversos fenômenos sociais, como também faz Latour através da ANT.

Religiões e controvérsias Final.indd 128 18/08/2015 09:59:51


mais diversas “justificações” desses atores acerca das contendas sociais em que

“Não cultuais imagens de escultura”


129
estão envolvidos. Portanto, segundo Boltanski, há na própria argumentação dos
envolvidos nas contendas sociais as noções acerca do que eles compreendem
por religião, política e justiça, dentre outras “esferas”, cabendo ao investigador
compreender essa rede de argumentos e daí produzir suas análises sobre tais
fenômenos sociais. Esse processo é distinto ao proposto por Latour, que centra
sua análise nos atores sociais, mas vê com desconfiança o afastamento analítico
a posteriori produzido pelo investigador4.
Como ponto de partida e de forma interessada para a análise do presente estudo
de caso, saliento os conceitos de momentos críticos e situações sob requisito de
justificação disponíveis nas proposições teóricas de Boltanski e seus colabo-
radores. Esses dois conceitos são centrais para que a análise focalize os atores
sociais e suas argumentações, pois as noções de momentos críticos (moments
critiques) e situações sob requisito de justificação são propostas confeccionadas
por Luc Boltanski e Laurent Thévenot a fim de dar conta dos momentos em
que determinados atores sociais produzem “escândalos e controvérsias” (e que
aqui chamarei de debates públicos), constituindo situações que coagem os mais
diversos atores sociais a justificarem suas posições com o intuito de pôr um
fim aos litígios e contendas sociais em que estão envolvidos (BOLTANSKI;
THÉVENOT, 1991, 1999).
Portanto, analiso o referido estudo de caso como um momento crítico que obriga
os mais diversos atores sociais a se posicionarem publicamente, justificando
suas posições por meio de argumentos que visam persuadir seus interlocutores
com vistas a pôr um fim ao conflito ao fazerem prevalecer seus termos, impac-
tando (como um de seus dividendos) a forma como a opinião pública conduz
o debate. Observar como a opinião pública acerca do conflito entre religiões
pentecostais e afro-brasileiras é atingida e muda sua trajetória, configurando o
que concebemos por esfera pública, é o referido distanciamento analítico que
procuro sinalizar à guisa de conclusão deste estudo de caso.

4
“Você só deve entrar em pânico se seus atores não tiverem feito tudo isso da mesma forma, cons-
tantemente, ativamente, reflexivamente, obsessivamente: eles também comparam, eles também
produzem tipologias, eles também elaboram padrões, eles também disseminam suas máquinas, bem
como suas organizações, ideologias e estados mentais. Por que você seria aquele que faz o trabalho
inteligente enquanto eles agiriam como um bando de retardados? O que eles fazem para expandir,
para relacionar, para comparar e para organizar é também o que você tem a descrever. Não há
outra camada a ser adicionada à ‘mera descrição’. Não tente trocar a descrição pela explicação:
simplesmente continue a descrição. As suas próprias ideias sobre a companhia não interessam se
comparadas à questão de como essa parte da empresa tem feito para se desenvolver” (LATOUR,
2006, p. 346, grifo nosso).

Religiões e controvérsias Final.indd 129 18/08/2015 09:59:51


130 Sobre atualizações de softwares e caminhadas
No final da tarde do dia 1º de junho de 2008 quatro jovens desentendem-
-se com um conjunto de adeptos das religiões afro-brasileiras em uma das
calçadas do bairro do Catete, zona sul da cidade do Rio de Janeiro. Ali, após
algumas trocas de ameaças, os quatro jovens adentram ao Centro Espírita
Cruz de Oxalá, que se preparava para atender aqueles que esperavam na rua.
Em meio a uma discussão dentro do salão de culto, os jovens exasperam-
-se e expulsam os sacerdotes presentes, quebram as imagens de escultura
do local e são presos em flagrante5. Levados à delegacia mais próxima, não
tardou a chegada da imprensa, que fez ampla cobertura do caso em seus
meios de divulgação:
Narrador da reportagem: Presos, os jovens não explicaram o motivo da invasão.
Disseram que faziam parte de uma Igreja evangélica chamada “Geração Jesus
Cristo”. Horas depois saíram sem dar nenhuma declaração.

Repórter em frente à delegacia: O pastor que comanda a Igreja evangélica há oito


anos se disse surpreso com o ataque, e afirmou que a ação dos jovens foi um ato
isolado sem a aprovação da congregação religiosa. O responsável pela Geração Jesus
Cristo [Pastor Tupirani da Hora Lores] reforçou, ainda, que a Igreja ainda repudia
manifestações de vandalismo e de invasão à propriedade.

Narrador da reportagem: Na página que a congregação mantém na internet, vídeos


e textos apresentam diversas críticas a outras doutrinas e crenças religiosas, e com
palavras agressivas. Num dos textos, intitulado “alerta para a população”, há um
relato de que outros incidentes como da noite dessa última segunda-feira já tinham
acontecido. Os seguidores da Igreja teriam trocado socos e tapas com integrantes

5
“Segundo Edmar Castelo Branco, a responsável pelo centro, as provocações começaram na fila.
‘Tinha uma fila com mais de 60 pessoas e aí eles começaram a provocar na fila. Aí empurraram
a porta, abriram a porta e entraram já xingando e quebrando todos os santos.’ Segundo a 9ª DP
(Catete), em depoimento, os suspeitos afirmaram ser evangélicos. Pelo menos cinco carros do 2o
BPM (Botafogo) foram para o local na tentativa de conter o tumulto. A polícia ainda não divulgou
os nomes dos invasores. Ninguém ficou ferido. […] De acordo com o delegado Fábio Pereira, da
9ª DP (Catete), os quatro jovens foram detidos em flagrante e levados para a delegacia, onde pres-
taram depoimento. Eles não pareciam arrependidos e testemunhas contaram que o grupo gritava
que aquilo era ‘coisa do diabo’ enquanto quebrava as imagens do Centro, segundo Pereira. “O dano
não tinha como objetivo causar prejuízo às vítimas, mas impedir a realização da prática religiosa”,
explicou. Eles foram autuados por crime contra o sentimento religioso e liberados depois de se
comprometer a comparecer à audiência no 1o Juizado Especial Criminal de Botafogo na data a ser
marcada pela Justiça.” (Portal G1.com. Publicado em 3 jun. 2008. Disponível em: <http://g1.globo.
com/Noticias/Rio/0,,MUL587620-5606,00-PASTOR+REPUDIA+ATO+VIOLENTO+DE+FI
EIS+CONTRA+CENTRO+ESPIRITA.html>. Acesso em: 3 ago. 2011).

Religiões e controvérsias Final.indd 130 18/08/2015 09:59:51


de uma outra Igreja evangélica em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, e

“Não cultuais imagens de escultura”


131
também no interior do estado, no município de Mendes6 (grifo nosso).

Momentos após a invasão e ainda no encaminhamento dos jovens à delegacia,


membros da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa do Estado do Rio
de Janeiro (CCIR-RJ7) estiveram no centro espírita prestando auxílio a Edmar
Castelo Branco, responsável pelo terreiro. Nesse primeiro momento de auxílio,
o interlocutor da CCIR-RJ (o babalawô Ivanir do Santos8) ofereceu assessoria
jurídica ao sacerdote, que permitiu à Comissão somar esse caso dos quatro
jovens a dezenas de outros casos que a CCIR-RJ defende no estado do Rio de
Janeiro sob a bandeira da “luta contra a intolerância religiosa”.
Diante de tamanha publicidade em torno do caso, já no mês de agosto de
2008 ocorreu no I Juizado Especial Criminal do Rio de Janeiro (I Jecrim-RJ)
a primeira audiência que procurou julgar os quatro jovens. Porém, ela não
chegou ao fim devido a diversos conflitos entre um dos réus e a juíza, fato
que levou os quatro jovens e os demais membros da Igreja Geração de Jesus
Cristo a retirarem-se, obrigando a juíza responsável pelo caso a remarcar a
audiência para outro momento, que se concretizou no dia 15 de setembro
daquele mesmo ano.

6
Jornal Bom Dia Brasil. Rede Globo de Televisão. Publicado em 2 jun. 2008. Disponível em: <http://
g1.globo.com/bomdiabrasil/0,,16020-p-25062009,00.html>. Acesso em: 3 ago. 2011.
7
Segundo os trabalhos do antropólogo Nilton Rodrigues Júnior (2012) e da antropóloga Ana Paula
Mendes Miranda (2010, 2012; MIRANDA; GOULART, 2009), pode-se afirmar que a origem da
CCIR-RJ remete a casos de expulsão de diversos sacerdotes das religiões afro-brasileiras da Ilha do
Governador (RJ) por “traficantes evangélicos” entre os anos de 2007 e 2008 (MIRANDA, 2010,
2012). Após esses casos, que geraram certo debate público acerca da relação conflituosa entre
pentecostais e religiões afro-brasileiras no Rio de Janeiro, diversos sacerdotes umbandistas e
candomblecistas organizaram-se e realizaram uma “manifestação pública em frente à Assembleia
Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj), processo que fomentou a articulação da CCIR-RJ em
torno do combate a atitudes discriminatórias contra os cultos de matriz afro-brasileira, entendidas
como formas de manifestação de ‘intolerância religiosa’, bem como visou pressionar as autoridades
a tomarem medidas em relação aos ataques. A primeira atividade da Comissão foi a realização de
uma audiência pública na Assembleia Legislativa. No entanto, como os deputados e demais autori-
dades não compareceram, estando presente apenas um representante do Secretário de Segurança,
os religiosos presentes decidiram realizar um protesto na escadaria da Assembleia, de onde saíram
em caminhada pelas ruas do centro da cidade” (MIRANDA; GOULART, 2009, p. 3).
8
Conforme Rodrigues Júnior, que pesquisou em sua tese de doutorado a CCIR-RJ, Carlos Alberto
Ivanir dos Santos é o babalawô Ivanir dos Santos. Formado em pedagogia, sua biografia evidencia
um ator em constante relação com os movimentos sociais e que teve profunda experiência junto
ao Partido dos Trabalhadores (PT), ao qual pediu desfiliação em 2010, após 20 anos de militância.
Nesse período, Ivanir foi agraciado com diversos prêmios em prol dos direitos humanos. Iniciou-se
no candomblé em 1981 em Salvador no terreiro de Edinho de Oxóssi, onde cumpriu suas obriga-
ções e tornou-se babalorixá. Em 2006, após estadia na Nigéria, sagrou-se Olowo Jokotoye Bankole,
babalawô, sacerdote do culto a Ifá, deus dos oráculos (RODRIGUES JÚNIOR, 2012, p. 207-210).

Religiões e controvérsias Final.indd 131 18/08/2015 09:59:51


132 A segunda audiência dos jovens ocorreu sob forte pressão dos sacerdotes das
religiões afro-brasileiras ligados à CCIR-RJ, uma vez que os membros da Comis-
são fizeram diversos convites junto ao “povo de santo” carioca, justificando da
seguinte forma a pressão que deveria ser exercida:
Caros Irmãos Umbandistas e Candomblecistas,

Dar-se-á no dia 15/09/08, no I Jecrim, Botafogo, Rio de Janeiro/RJ, às 14h10, a 2a


AUDIÊNCIA DO CENTRO ESPÍRITA CRUZ DE OXALÁ.

É relevante a presença dos membros da Comissão de Combate à Intolerância


Religiosa na audiência e do Povo do Santo (Umbanda e Candomblé).

Peço a todos que puderem que compareçam à audiência, pois necessitamos nos fazer
presentes para que os culpados da invasão, discriminação e depredação ao Centro
Espírita Cruz de Oxalá, possam ser condenados dentro da Lei Caó, no rigor da Lei.

Na 1a audiência os acusados, simplesmente, deixaram o tribunal. O que foi uma


grande afronta à lei, à justiça e ao nosso povo, como se eles estivessem acima de
quaisquer penalidades.

Agora devemos fazer presença, dentro da lei, da ordem e da justiça, para que
essas pessoas possam ser punidas devidamente. Não na banalidade da lei, mas
naquilo que realmente elas fizeram que foi um ato do maior preconceito religioso
que foi o de invadir e depredar uma casa santa, agredindo a nossa fé, a nossa
religiosidade. Temos que mostrar união, força, resistência e cobrar das autori-
dades que a lei, dentro do seu rigor, seja cumprida e os culpados condenados.
E isso também depende de nós, de nossa luta, de nossa determinação (Perfil da
CCIR-RJ no Orkut, publicado em 13 set. 2008. Disponível em: <http://www.

orkut.com/Main#CommMsgs?tid=5245522706273149027>. Acesso em: 3


ago. 2011, grifo nosso).

Cabe salientar no texto acima a argumentação utilizada pela CCIR-RJ a fim


de mobilizar os sacerdotes das religiões afro-brasileiras a acompanharem a
segunda audiência, pois se por um lado o convite acusa os quatro jovens de
não respeitarem à lei, atitude caracterizada pela “invasão” e pela “afronta”
ao poder judiciário e o “povo de santo”, por outro os sacerdotes das religiões
afro-brasileiras colocam-se como religiosos que “estão em conformidade com
a lei”, respeitando todo o seu processo jurídico, da denúncia à condenação.
Propõem, inclusive, uma inédita tipificação para os crimes que eles consideram
como “intolerância religiosa”, fazendo com que os jovens sejam “condenados
dentro da Lei Caó, no rigor da lei”, mesmo essa tipificação jurídica nunca tendo
sido utilizada para casos considerados “intolerância religiosa” ou “discriminação

Religiões e controvérsias Final.indd 132 18/08/2015 09:59:51


religiosa”, mas sim como “discriminação racial” e “preconceito de cor/raça”,

“Não cultuais imagens de escultura”


133
como visou o legislador na década de 1980.
De proposição do deputado Carlos Alberto Caó9 e aprovada no ano de 1989
sob o número de lei 7.716/89, a chamada Lei Caó visou tornar a “discrimi-
nação racial” crime, mais especificamente buscando tornar o “preconceito de
cor e raça” crime inafiançável e imprescritível, dispositivo em sintonia com a
Constituição Federal brasileira promulgada no ano de 1988.
Entretanto, alguns militantes do movimento negro associam a origem da Lei
Caó à promulgação da Lei 7.437/8510, de autoria do senador Nelson Carneiro11,
que visou atualizar o texto da Lei Afonso Arinos (Lei 1.390), promulgada no
ano de 1951. Para além do debate das origens da Lei Caó, cabe salientar que
é a Lei 7.716/89 que torna crime a “discriminação racial” e outras formas de
discriminação, já que suas antecessoras falam em contravenção. Outro ponto
a destacar em torno da Lei Caó é que no texto de 1989 é prevista a tipificação
como crime das discriminações de “etnia, religião e procedência nacional”.
Apesar do estreito diálogo com a Lei 7.437/85, a Lei Caó não manteve em seu
texto a discriminação por “sexo e estado civil”, ausência que se manteve em sua
última revisão no ano de 1997, quando diversos artigos foram reformulados,
merecendo atenção seu artigo 2012, que trouxe novo detalhamento acerca dos

9
Carlos Alberto Oliveira, conhecido como Caó, é ex-deputado federal pelo Partido Democrático
Trabalhista (PDT) e compôs a assembleia constituinte, onde foi o responsável pelo inciso XLII do
artigo 5o da Constituição Federal do Brasil que “determina que a prática do racismo constitui crime
inafiançável e imprescritível”. Apesar de longe dos pleitos eleitorais, Carlos Alberto Caó ainda é
filiado ao PDT e ativo militante do movimento negro. (Agência Brasil. Publicado em 20 nov. 2008.
Disponível em: <http://memoria.ebc.com.br/agenciabrasil/noticia/2010-01-21/rio-lanca-primeiro-
-nucleo-de-combate-intolerancia-religiosa-da-policia-civil>. Acesso em: 3 ago. 2011).
10
“No dia 20 de dezembro de 1985, uma lei federal estabelecia como crime o tratamento discrimina-
tório no mercado de trabalho, entre outros ambientes, por motivo de raça/cor. A chamada ‘Lei Caó’
(Lei nº 7.437/85) classifica o racismo e o impedimento de acesso a serviços diversos por motivo
de raça, cor, sexo, ou estado civil como crime inafiançável, punível com prisão de até cinco anos e
multa.” (Fundação Cultural Palmares. Publicado em: 20 dez. 2011. Disponível em: <http://www.
palmares.gov.br/2011/12/ha-26-anos-era-sancionada-a-lei-cao/>. Acesso em: 31 mar. 2014).
11
Para mais detalhes da proposição da Lei 7.437/85: <http://www.senado.gov.br/atividade/materia/
detalhes.asp?p_cod_mate=24048>. Acesso em: 31 jul. 2014.
12
Reza o artigo 20 da Lei Caó, já reformulado pela Lei 9.459 de 1997: “Art. 20. Praticar, induzir ou
incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Pena:
reclusão de um a três anos e multa. § 1o Fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos,
emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins
de divulgação do nazismo. Pena: reclusão de dois a cinco anos e multa. § 2o Se qualquer dos crimes
previstos no caput é cometido por intermédio dos meios de comunicação social ou publicação de
qualquer natureza. Pena: reclusão de dois a cinco anos e multa. § 3o No caso do parágrafo anterior,
o juiz poderá determinar, ouvido o Ministério Público ou a pedido deste, ainda antes do inquérito

Religiões e controvérsias Final.indd 133 18/08/2015 09:59:51


134 procedimentos penais que a lei prevê, abrindo um leque de novas abordagens
em torno de seus termos13.
Apesar desse breve percurso em torno da Lei Caó e de o convite da CCIR-RJ
aludir a esse dispositivo legal, visando tipificar a ação dos jovens como “discri-
minação religiosa”, a prática dos quatro jovens não foi tipificada na delegacia
nem pela promotoria como “intolerância religiosa” ou “discriminação racial”,
como o texto do convite acima procurou demonstrar, mas sim como injúria
e vilipêndio, crimes tipificados pelos artigos 14014 e 20815 do Código Penal
brasileiro. Sendo assim, quando a juíza, na segunda audiência, foi julgar o
caso, ela o fez com base nos artigos do Código Penal, condenando os jovens
ao pagamento de cestas básicas, já que todos eram réus primários.

policial, sob pena de desobediência: i – o recolhimento imediato ou a busca e apreensão dos exem-
plares do material respectivo; ii – a cessação das respectivas transmissões radiofônicas, televisivas,
eletrônicas ou da publicação por qualquer meio; iii – a interdição das respectivas mensagens ou
páginas de informação na rede mundial de computadores. § 4o Na hipótese do § 2o, constitui efeito
da condenação, após o trânsito em julgado da decisão, a destruição do material apreendido.” (Brasil.
Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989.)
13
Sem dúvida que diversos debates produzidos por uma gama de atores das mais diversas proce-
dências foram os responsáveis por estas três principais modificações que a Lei Caó passou nestes
quase 30 anos desde sua primeira aprovação. Modificações que, cada uma delas, permitem um
conjunto de investigações, como por exemplo, a sua utilização em casos de “discriminação racial”
ou até mesmo a reformulação de 1989, que suprimiu a discriminação por “sexo” e “estado civil”
de seu escopo, dentre outras modificações menores que o texto da lei sofreu. Longe de abarcar
a multiplicidade de debates entre os mais diversos atores que a Lei Caó sinaliza existir em sua
história, o foco central desta investigação é o de observar um estudo de caso específico, ocorri-
do na cidade do Rio de Janeiro no ano de 2008, que sinaliza um multifacetado debate público
acerca da utilização inédita da Lei Caó na tipificação do crime de “discriminação religiosa”. Esse
debate ilumina diversos atores nas mais variadas posições sociais, reconstituindo justificações
acerca do que entendem por “intolerância religiosa” e “liberdade religiosa”, assim como suas
garantias legais.
14
Reza o artigo 140 do Código Penal brasileiro: “Art. 140 – Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade
ou o decoro: Pena – detenção, de um a seis meses, ou multa. § 1o – O juiz pode deixar de aplicar a
pena: i – quando o ofendido, de forma reprovável, provocou diretamente a injúria; ii – no caso de
retorsão imediata, que consista em outra injúria. § 2o Se a injúria consiste em violência ou vias de
fato, que, por sua natureza ou pelo meio empregado, se considerem aviltantes: Pena – detenção, de
três meses a um ano, e multa, além da pena correspondente à violência. § 3o Se a injúria consiste
na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa
idosa ou portadora de deficiência: Pena – reclusão de um a três anos e multa.” (Brasil, Código
Penal Brasileiro, 2013).
15
Reza o artigo 208 do Código Penal brasileiro: “Art. 208 – Escarnecer de alguém publicamente, por
motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso;
vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso: Pena – detenção, de um mês a um ano,
ou multa. Parágrafo único – Se há emprego de violência, a pena é aumentada de um terço, sem
prejuízo da correspondente à violência.” (Art. 208 do Código Penal Brasileiro. Decreto-lei nº 2.848,
de 7 de dezembro de 1940).

Religiões e controvérsias Final.indd 134 18/08/2015 09:59:51


“A pena deles (jovens que invadiram o templo) foi pagar uma cesta básica”, disse

“Não cultuais imagens de escultura”


135
[Jorge] Mattoso, secretário da CCIR.

“Entendemos que essas ações são atitudes independentes de determinados grupos.


Normalmente partem de pequenas Igrejas, em comunidades onde há uma inter-
pretação fanática do evangelho”, afirma16 (grifo nosso).

A declaração de Jorge Mattoso é de lamento pela pena aplicada aos jovens na


segunda audiência no I Jecrim, porém salienta que atitudes como essas não
são corriqueiras, pois “normalmente partem de pequenas Igrejas onde há uma
interpretação fanática do evangelho”. Argumentação que faz Mattoso minimizar
o caso ao demonstrar que este está em vias de resolução, já que o judiciário é
o lugar apropriado na solução de conflitos que colocam em xeque a “liberdade
religiosa” como uma grandeza legítima17.
Segundo Boltanski e Thévenot, “o momento crítico é precisamente aquele em
que uma discordância acerca do estado de grandeza das pessoas se manifesta”
(BOLTANSKI; THÉVENOT, 1999, p. 365), ou seja, é o momento em que
os valores que transcendem os atores sociais são postos em xeque, como é o
caso da “invasão” dos quatro jovens ao centro espírita, que colocou em dúvida
a noção de “liberdade religiosa” como uma ordem de grandeza que deve ser
respeitada, produzindo um rearranjo em que os envolvidos nessa contenda se
veem sob o imperativo da justificação, sendo obrigados a tecer justificações “a
fim de darem suporte às suas críticas, assim como os atores sociais alvejados
precisam justificar suas ações para defender suas causas”18.
Segundo meu acompanhamento, a presença da CCIR-RJ na assessoria de casos de
“intolerância religiosa” no estado do Rio de Janeiro é recorrente. Na maioria dos
casos, quem ganha projeção no debate público oriundo da assessoria prestada
a essas ocorrências são seus coordenadores, notadamente o seu interlocutor

16
Revista Época. Publicado em: 25 jun. 2009. Disponível em: <http://revistaepoca.globo.com/
Revista/Epoca/0,,ERT79088-15228-79088-3934,00.html>. Acesso em: 3 ago. 2011.
17
“É possível associar casos bem diferentes se se aceita a ideia de que as disputas sobre o justo sempre
dizem respeito a um desacordo cujo objeto é a importância ou a grandeza (la grandeur) relativa dos
diferentes seres presentes na situação” (BOLTANSKI; THÉVENOT, 1999, p. 363).
18
“Assim, um quadro de análise da atividade de disputa deve, com as mesmas ferramentas, ser hábil
em ocupar-se das críticas, a qualquer ordem, social ou situacional, assim como da sua justificação.
Além disso, essas situações [sob requisito de justificação] são necessariamente provisórias porque
quebram o curso corriqueiro da ação. Ninguém pode viver constantemente em um estado de crise.
Logo, um dos modos de sair de uma crise é retomar um acordo. O quadro de análise deve, por-
tanto, ser capaz de manejar o acordo e o desacordo com as mesmas ferramentas” (BOLTANSKI;
THÉVENOT, 1999, p. 361, grifo nosso).

Religiões e controvérsias Final.indd 135 18/08/2015 09:59:51


136 babalawô Ivanir do Santos e a mãe de santo Fátima Damas19. No referido caso
dos quatro jovens que invadem o centro espírita surge a figura do delegado
Henrique Pessoa (membro da CCIR-RJ como representante da Polícia Civil) com
determinada projeção, pois é Pessoa o responsável por denunciar os quatro
jovens e o pastor da Igreja Geração de Jesus Cristo ao Ministério Público,
assim como um dos principais responsáveis no monitoramento dessa Igreja e
nas articulações em torno da criminalização de seus atos para além dos artigos
dispostos no Código Penal.
Baiano de Salvador, Henrique Pessoa integrou a Comissão logo após a invasão
dos quatro jovens ao centro espírita no Catete, sendo designado pelo então
chefe geral da Polícia Civil Gilberto Cruz (RODRIGUES JÚNIOR, 2012).
Segundo Miranda, a figura do delegado Henrique Pessoa possui grande projeção
dentro da Comissão, pois “atualmente, toda vez que uma pessoa não consegue
registrar um caso de ‘intolerância religiosa’, procura a Comissão que repassa
o caso para o delegado Henrique Pessoa, e este procura a autoridade policial,
pessoalmente, para ‘conversar’ sobre discriminação religiosa” (MIRANDA,
2010, p. 15). Dessa forma, Pessoa tornou-se um dos principais articuladores
dos casos de conflito religioso junto às delegacias e na transformação deles
em processos jurídicos.
Segundo as pesquisas em torno da CCIR-RJ, ao compor a Comissão, o delegado
procurou modificar a imagem da Polícia Civil junto a seus membros e foi um
dos incentivadores da utilização da Lei 7.716/89 nas delegacias, visto que
“mesmo sendo federal, há várias polícias estaduais que se recusam a utilizá-la,
alegando o artigo 208 do Código Penal não se encontrar revogado em face da
Lei Caó (PESSOA, 2009 apud MIRANDA; GOULART, 2009, p. 16).
Apesar de Henrique Pessoa não concordar com a ideia da criação de uma
“delegacia especializada em intolerância religiosa”, como ocorre no estado de
São Paulo, o que a seu ver “enfraqueceria as delegacias de bairro” (MIRANDA,
2012, p. 63), em 2010 a Polícia Civil do Rio de Janeiro inaugurou o Núcleo
de Combate à Intolerância Religiosa na região da Gamboa, zona portuária da
cidade. O núcleo, sob coordenação do delegado, teve como objetivo sistematizar
os diversos casos de “intolerância religiosa” que chegam às demais delegacias,

19
Conforme a antropóloga Ana Paula Mendes Miranda, que estuda a CCIR-RJ desde o ano de 2008,
“Fátima Damas [é] presidente da Congregação Espírita Umbandista do Brasil (CEUB) e foi uma
das principais responsáveis pela criação da Comissão, que se reúne até hoje na sede da CEUB, no
bairro do Estácio, na região do centro do Rio de Janeiro” (MIRANDA; GOULART, 2009, p. 3).
Formada em administração de empresas e umbandista desde 1970, dirige o Templo Umbandista
Vovó Maria Conga, que funciona no mesmo espaço físico da CEUB (MIRANDA; GOULART, 2009;
RODRIGUES JÚNIOR, 2012, p. 221-225).

Religiões e controvérsias Final.indd 136 18/08/2015 09:59:51


assim como orientar os policiais que elaboram os boletins de ocorrência nas

“Não cultuais imagens de escultura”


137
delegacias de bairro a utilizarem a Lei 7.716/89 em seu artigo 20 em vez dos ar-
tigos 140 e 208 do Código Penal (RODRIGUES JÚNIOR, 2012, p. 227-232).
Em um levantamento preliminar das ocorrências de “intolerância religiosa”
havia praticamente incidência zero. A partir disso, o Delegado Henrique Pessoa
fez uma pesquisa com os registros de ocorrência e identificou que, geralmente,
apesar de haver motivação religiosa, a discriminação religiosa normalmente era
tipificada como ameaça, dano ou injúria [tipificada pelos artigos 140 e 208 do
Código Penal brasileiro]. Quando um Centro Espírita era invadido e as imagens
quebradas, por exemplo, era considerado apenas o dano material e não se levava
em conta o aspecto religioso do crime, como ocorreu no caso do Centro Espírita
Cruz de Oxalá.

Ao aprofundar seu levantamento descobriu que no Sistema Delegacia Legal [sistema


da Polícia Civil que sistematiza os casos fichados] onde basta selecionar o crime
numa lista de títulos para o registro de ocorrência, não havia referência nenhuma
à discriminação religiosa. Isso porque o texto da Lei Caó era o original de 1985
[Lei 7.437/85], sem as alterações sofridas posteriormente, referentes à questão
religiosa, acrescentadas em 1989 [tornando-se Lei 7.716/89, a qual recebeu nova
redação em seu artigo 20 no ano de 1997]. Como a Lei atualizada não havia sido
colocada no sistema da Polícia, não era possível registrar um crime de discriminação
religiosa com base na Lei Caó (MIRANDA; GOULART, 2009, p. 17).

Outro ponto a destacar nos posicionamentos públicos empreendidos por Ivanir


dos Santos e Henrique Pessoa em nome da CCIR-RJ é que ambos consideram
os crimes de “discriminação racial” e “intolerância religiosa contra as religiões
afro-brasileiras” duas faces do mesmo personagem preconceituoso. Em diver-
sas declarações, o interlocutor da CCIR-RJ deixou claro que essas duas formas
intolerantes devem ser punidas conjuntamente, posicionamento que indica o
porquê da utilização da Lei Caó na tipificação dos casos que a Comissão consi-
dera “intolerância religiosa”, visto a lei ser originalmente utilizada na denúncia
e na condenação de “práticas racistas” desde o começo da década de 199020.
O termo “intolerância” não parece ser utilizado de forma aleatória por Ivanir,
já que o artigo 20 da Lei Caó traz em seu texto a expressão “discriminação
religiosa”. Nesse sentido, Ivanir justifica que o termo “intolerância” possui

20
“Se considerarmos que o preconceito não é um fenômeno novo no Brasil, faz-se necessário com-
preender qual é o significado dado à intolerância religiosa como uma bandeira de luta, já que ela
tem sido considerada a ‘outra face do racismo’ por integrantes do chamado movimento negro”,
sendo Ivanir um destes militantes (MIRANDA, 2012, p. 61).

Religiões e controvérsias Final.indd 137 18/08/2015 09:59:51


138 maior generalização que o termo “discriminação”, o que permite maior apoio
da opinião pública às demandas da Comissão:
“Intolerância une. Quando fala discriminação atinge apenas determinados segmentos
[...]. Intolerância une negros, religiosos, homossexuais. Hoje, ninguém quer ser
taxado de intolerante”, discursou Ivanir dos Santos no auditório da 5a DP durante o
aniversário de 203 anos da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro (MIRANDA,
2012, p. 61).

Pode ser que em outros contextos o termo “discriminação”, especialmente a


“discriminação racial”, seja eficaz em produzir generalizações21 entre os mais
distintos atores sociais, unindo-os em prol de determinada pauta, porém, no
referido contexto em que Ivanir dos Santos está envolvido, o termo “intolerân-
cia religiosa” é o melhor termo generalizador, que faz os mais diversos atores
sociais compactuarem com as propostas da CCIR-RJ.
Portanto, traçar generalizações é uma das principais atividades dos atores sociais
que querem fazer valer seus argumentos em determinado debate público. Dizer
que o termo discriminação “atinge apenas determinados segmentos” e o termo
intolerância “une negros, religiosos, homossexuais”, pois “hoje, ninguém quer
ser taxado de intolerante”, mostra como Ivanir está ciente de sua reflexividade
nesse jogo argumentativo22 (BOLTANSKI, 1987; BOLSTANKI; THÉVENOT,
1983; THÉVENOT, 1984).
No bojo dessa reflexividade na generalização de termos apresentada por Ivanir,
há de salientar que as articulações empreendidas pelo delegado Henrique Pessoa
também demonstram o mesmo efeito reflexivo, já que no mês de janeiro de
2009 surge um expressivo crescimento de casos de “intolerância religiosa”,
registrados nas delegacias do estado do Rio de Janeiro devido a seu trabalho
junto às delegacias, que passou necessariamente pela atualização do software
que gerencia os boletins de ocorrência23.

21
“Pode-se dar a conhecer o requisito de legitimidade através da afirmação bem prática: uma crítica ou
justificação pode ser tida como legítima em uma situação concreta quando o seu formulador puder
mantê-la quaisquer que sejam as características sociais que os seus interlocutores recém-chegados
puderem apresentar. O efeito do requisito de legitimidade é, portanto, pôr em movimento um
processo de generalização” (BOLTANSKI; THÉVENOT, 1999, p. 364).
22
“Nos conflitos da vida cotidiana, atores ‘ordinários’ fornecem ampla evidência de sua capacidade
para assumir diferentes pontos de vista, distanciar-se da situação e envolver-se em complexos
discursos de crítica e justificação. A fragilidade da ordem social e a pluralidade de regimes de
justificação tanto possibilitam quanto exigem dos atores que ajam de um modo reflexivo e crítico”
(CELIKATES, 2012, p. 35).
23
“As denúncias de ofensa à religião vêm crescendo no estado do Rio de Janeiro, onde até novembro
de 2008 a Lei Caó, que considera crime de intolerância religiosa, não estava incluída no sistema

Religiões e controvérsias Final.indd 138 18/08/2015 09:59:51


Outro ponto a destacar é a projeção pública que a CCIR-RJ começa a alcançar a

“Não cultuais imagens de escultura”


139
partir do segundo semestre de 2008, quando a Comissão se torna conhecida
como núcleo onde “luta-se por liberdade religiosa e propõe o diálogo inter-
-religioso”:
Ressalta-se que a agenda estabelecida pelo grupo “lutar contra a intolerância reli-
giosa” e “defender a liberdade religiosa” são ações correspondentes, e não há uma
distinção clara entre elas. Porém, durante o desenvolvimento da pesquisa foi possível
observar que o “combate à intolerância” corresponde à realização de atos públicos
que demonstrem que “todas as religiões são uma só”, que devem conviver harmo-
nicamente, e à divulgação da necessidade de realização de registros de ocorrências
em delegacias para a proposição de ações judiciais (MIRANDA, 2012, p. 63).

É visando maior projeção pública desses termos, que seus integrantes reconhe-
cem como eficazes na argumentação, que a CCIR-RJ organizou a 1a Caminhada
pela Liberdade Religiosa no dia 21 de setembro de 2008. A data foi escolhida
após o babalawô Ivanir dos Santos consultar Ifá através do jogo oracular, que
respondeu ser o terceiro domingo de setembro o melhor dia para o evento.
A caminhada se concretizou na orla de Copacabana contando com o apoio de
diversos parceiros, incluindo a Rede Globo de Televisão, emissora que veiculou
diversas vinhetas durante a sua programação convidando a população do Rio
de Janeiro a comparecer ao evento. A manifestação pública reuniu em sua
primeira edição
Cerca de 10 mil pessoas [...] para pedir o fim da discriminação religiosa. Sob chu-
va, a manifestação reuniu artistas, intelectuais e representantes de várias crenças,
com predomínio das religiões afro-brasileiras, que denunciaram o preconceito e a
perseguição por parte de outros grupos.

De acordo com um dos organizadores da manifestação, o babalawô Ivanir dos


Santos, são inúmeros os casos de preconceito no Rio, principalmente, contra as
religiões de matriz africana como umbanda e candomblé. Segundo ele, os ataques

das delegacias legais. Com a mudança recente, ainda não há números ou estatísticas para mensurar
esse movimento, mas, segundo o delegado Henrique Pessoa, coordenador do setor de inteligência
da Polícia Civil, hoje há praticamente um registro por dia nas delegacias do estado. Nessa ‘guerra
da fé’, os seguidores de religiões afro-brasileiras são vítimas mais frequentes. ‘Nos anos anteriores,
tínhamos limitações do sistema, que não estava atualizado. Não tínhamos como fazer o registro
como intolerância religiosa, de acordo com a Lei Caó’, explicou o delegado, acrescentando que o
sistema foi corrigido em novembro de 2008. ‘Com a demonstração por parte da polícia de que vai
apurar os casos, os registros são estimulados e estão aumentando expressivamente. É praticamente
um por dia’.” (Portal G1. Publicado em: 26 jan. 2009. Disponível em: <http://g1.globo.com/
Noticias/Rio/0,,MUL972701-5606,00-AUMENTAM+DENUNCIAS+CONTRA+INTOLERA
NCIA+RELIGIOSA+NO+RIO.html>. Acesso em: 14 out. 2012).

Religiões e controvérsias Final.indd 139 18/08/2015 09:59:51


140 são “sistemáticos”, inclusive pelos veículos de comunicação. “Há 20 anos sabemos
de casos de invasão a casas, ofensas, violência. Algumas pessoas põem a Bíblia na
nossa cabeça. Na escola, as crianças são chamadas de macumbeiras, dizem que
seguem o diabo. São várias coisas”, disse24.

A caminhada na orla de Copacabana, por exemplo, manteve-se de 2008 até


os dias atuais e nesse período foi ganhando maior projeção, tanto que no ano
de 2011 o evento, em sua quarta edição, reuniu cerca de 200 mil pessoas,
sendo coberto por diversas agências de notícias nacionais e internacionais25,
abrangendo não somente membros das religiões afro-brasileiras como também
católicos, segmentos protestantes, bahai’s, ciganos, segmentos pentecostais,
budistas e outros, os quais possuem espaço na coordenação da Comissão e nela
realizam determinadas atividades sob organização e coordenação de Ivanir dos
Santos. Também nota-se a presença de diversos artistas no evento desde então,
como atores da Rede Globo de Televisão e músicos populares.
A realização de caminhadas que reivindicam a “liberdade religiosa” e o fim
da “intolerância religiosa” é uma atividade pública corriqueira organizada por
sacerdotes das religiões afro-brasileiras desde o começo dos anos 2000 em
diversos pontos do Brasil26, processo que permite a sacerdotes dessas religiões

24
Folha de S.Paulo. Publicado em: 21 set. 2008. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/
cotidiano/2008/09/447346-mais-de-10-mil-pedem-fim-da-intolerancia-religiosa-no-rio.shtml>.
Acesso em: 16 set. 2013.
25
“Cerca de 200 mil manifestantes eram esperados na praia de Copacabana, onde líderes religiosos
afro-brasileiros, católicos, muçulmanos, judeus, espíritas, protestantes, budistas e baha’i se jun-
taram, envergando trajes tradicionais das respectivas confissões. ‘Desde há 25 anos que acenam
com a Bíblia sobre as nossas cabeças. Nas escolas, as nossas crianças são tratadas como adeptos do
diabo’, disse Ivanir Santos, um dos organizadores da Marcha pela Liberdade Religiosa, citado pela
agência France Press.” (Portal JN. Publicado em: 18 set. 2013. Disponível em: <http://www.jn.pt/
PaginaInicial/Brasil/Interior.aspx?content_id=2003412&page=-1)>. Acesso em: 1o abr. 2014.
26
Segundo meu acompanhamento, as caminhadas frutos da reivindicação pública dos sacerdotes das
religiões afro-brasileiras por resoluções de diversas questões oriundas da relação com os pentecostais
tornaram-se um instrumento de reivindicação corriqueiro nos últimos anos. Tal é o caso da Caminha-
da pela Vida e Liberdade Religiosa de Salvador, iniciada em 2004, e da Caminhada do Recôncavo,
iniciada em 2010 no município de Cachoeira, ambas na Bahia. Em Pernambuco há a Caminhada
dos Terreiros de Matriz Africana em Recife, iniciada em 2006, e a Caminhada Caruaruense pela
Igualdade Racial e Tolerância Religiosa, que ocorre no município de Caruaru desde 2011. Na Pa-
raíba há a Caminhada pela Liberdade Religiosa e Resistência, Jurema, Umbanda e Candomblé em
João Pessoa. No Ceará ocorre a Caminhada pela Liberdade Religiosa em Juazeiro do Norte desde
2009. No Pará há a Caminhada Estadual pela Liberdade Religiosa em Belém, iniciada em 2010. No
Maranhão há a Caminhada Maranhense pela Liberdade Religiosa que ocorre anualmente na cidade
de São Luís desde 2011. No Rio Grande do Norte há a Caminhada Contra a Intolerância Religiosa,
que teve seu início em 2011 na cidade de Natal. No Centro-Oeste observa-se a Caminhada de
Enfrentamento da Intolerância Religiosa em Brasília desde o ano de 2009, assim como a Caminhada
em Defesa da Liberdade Religiosa desde 2011 no município de Corumbá, em Mato Grosso do Sul.

Religiões e controvérsias Final.indd 140 18/08/2015 09:59:51


apresentarem-se publicamente como “representantes” de suas denominações

“Não cultuais imagens de escultura”


141
religiosas, como foi o caso do babalawô Ivanir dos Santos, que “representou
as religiões afro-brasileiras” na visita do Papa Francisco ao Brasil em julho de
2013 durante a Jornada Mundial da Juventude (JMJ), que ocorreu na cidade
do Rio de Janeiro.
Representante do Candomblé e da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa,
o babalawô Ivanir dos Santos foi convidado pela Arquidiocese do Rio a participar
da festa. “Isso mostra uma postura muito diferente do papa e do Vaticano”, disse
[Ivanir dos Santos], ao sair do municipal. [...]

Santos pediu ao papa que a igreja se engaje na luta contra a intolerância religiosa,
o genocídio da juventude negra e a perseguição religiosa às crianças da umbanda e
do candomblé nas escolas. “O papa foi receptivo e falou da importância do estado
laico”, relatou27.

Após ser apresentado como “representante do candomblé” pela imprensa na


JMJ em julho de 2013 e atuar como tal ao comparecer ao programa Na Moral,
da Rede Globo, que foi ao ar no dia 1o de agosto de 201328, dentre outros
fatores, a popularidade de Ivanir dos Santos e, consecutivamente, da CCIR-RJ
foi questionada por diversos sacerdotes das religiões afro-brasileiras com quem
conversei durante a 6a Caminhada pela Liberdade Religiosa ocorrida na orla
de Copacabana no dia 8 de setembro de 2013. Aliás, o número de presentes
nessa sexta edição não chegou a 4 mil, esvaziamento que foi justificado por
diversos sacerdotes que entrevistei como:

No Sul observa-se a Marcha Estadual pela Vida e Liberdade Religiosa, iniciada em 2011 no município
de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, e a Caminhada pela Liberdade Religiosa e pela Liberdade
de Culto em Curitiba, Paraná, desde 2008. No Sudeste observam-se a Caminhada Cultural pela
Liberdade Religiosa, com início em 2009 em Belo Horizonte, assim como a Caminhada de Cultura
de Paz contra a Intolerância Religiosa, iniciada em 2011 em São Paulo, a Marcha pelo Respeito e a
Ancestralidade Africana no Brasil, que ocorre na cidade de Ribeirão Preto desde 2011, assim como
o maior evento que reivindica liberdade religiosa no Brasil, a Caminhada pela Liberdade Religiosa
que ocorre na cidade do Rio de Janeiro desde 2008.
27
O Estado de S. Paulo. Publicado em: 27 jul. 2013. Disponível em: <http://www.estadao.com.br/
noticias/geral,autoridades-deixam-o-theatro-apos-encontro-com-o-papa,1057913,0.htm>. Acesso
em: 1o ago. 2013.
28
O programa Na Moral, comandado pelo apresentador Pedro Bial, discutiu no dia 1o de agosto de
2013 o tema “Estado laico” e para tanto chamou “representantes” de diversos posicionamentos
sobre o assunto, dentre eles um padre negro ligado à CNBB representando a Igreja Católica, o pastor
Silas Malafaia representando os “evangélicos”, o ateu Daniel Sottomaior, “representante da maior
associação de ateus do Brasil”, e Ivanir dos Santos, “representante das religiões afro-brasileiras” e
que pouco falou durante o debate. (Rede Globo de Televisão, programa Na Moral. Exibido em 1o
ago. 2013. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=rMgtncZk0JE>. Acesso em: 15
set. 2013).

Religiões e controvérsias Final.indd 141 18/08/2015 09:59:51


142 “A tentativa de Ivanir se colocar como representante das religiões afro-brasileiras.
O que é um absurdo!” (L. V.).

“Ao apagamento da única representante da umbanda na Comissão [a mãe de santo


Fatima Damas], que está na comissão desde sua fundação, permitindo que seu
centro seja a sede da CCIR-RJ, mas nunca foi escolhida como a principal represen-
tante.” (A. D.).

As duas justificações que destaco acima retomam alguns argumentos centrais da


bibliografia acadêmica sobre o conflito entre pentecostais e religiões afro-brasi-
leiras, que indicam o desconforto que os sacerdotes das religiões afro-brasileiras
possuem quanto a uma possível segmentação social hierárquica entre as casas de
culto nas religiões afro-brasileiras. Desconforto indicado no momento em que
tais trabalhos observam que a segmentação dos diversos terreiros de umbanda
e candomblé não possui uma hierarquização piramidal que perdura por muito
tempo, como é o caso, por contraste, da Igreja Católica, centralizada em Roma
na figura do papa, ou de instituições como a Igreja Universal do Reino de Deus
(IURD), centralizada na figura de Edir Macedo e seus bispos29.
Entretanto, apesar de a bibliografia acerca das religiões afro-brasileiras apontar
para sua fragmentação como um “calcanhar de Aquiles” em suas respostas pú-
blicas aos “ataques” neopentecostais, como o faz Oro ao se perguntar acerca das
“fracas reações das religiões afro-brasileiras” (ORO, 1997), há de se salientar
que neste estudo de caso dos quatro jovens que invadem o centro espírita o
desconforto gerado pela fragmentação religiosa afro-brasileira não consegue
impedir que um ator como Ivanir dos Santos se coloque como interlocutor de
uma Comissão de Combate à Intolerância Religiosa, seja reconhecido como
tal pela Igreja Católica e tenha a liberdade de conversar pessoalmente com o

29
Vagner Gonçalves da Silva, para citar um dos pesquisadores contemporâneos que tematizam o con-
flito entre pentecostais e religiões afro-brasileiras, aponta essa característica histórica na segmentação
das religiões afro-brasileiras, indicando nelas o caráter de disputa existente entre as umbandas e
os candomblés. Segundo o autor, o “candomblé [a partir da década de 1960 nas grandes cidades
do Sudeste] sempre procurou marcar sua distinção em relação à umbanda criticando-a como uma
versão ‘fraca’ e ‘deturpada’ de suas tradições transformadas sob a influência exacerbada do cato-
licismo e do espiritismo kardecista” (SILVA, 2007b, p. 234-235). Entre tantas adversidades, “o
povo de santo tem procurado se articular e superar as divergências entre as várias denominações
religiosas (candomblé e umbanda, por exemplo) e entre os diferentes modelos de culto existentes
no interior destas (candomblé queto e angola, por exemplo). Historicamente essas religiões têm
se desenvolvido muito mais por dissidências ou contraposições do que por aglutinação em torno
de entidades de representação coletiva. O modelo de organização federativa dos centros espíritas,
por exemplo, foi adotado com relativo sucesso pelos terreiros de umbanda, mas pouca influência
teve entre os de candomblé. Mesmo assim, algumas entidades federativas [em forma de associações
civis] têm procurado encaminhar posições e estabelecer interlocução com outros agentes do poder
público, do movimento negro, de organizações não governamentais, etc.” (SILVA, 2007a, p. 22).

Religiões e controvérsias Final.indd 142 18/08/2015 09:59:51


sumo pontífice do catolicismo romano, não sem antes lograr êxito na tipifica-

“Não cultuais imagens de escultura”


143
ção da “intolerância religiosa” como crime, visto que, a partir da atuação de
Henrique Pessoa e Ivanir dos Santos, a confecção de um boletim de ocorrência
com base no artigo 20 da Lei Caó em qualquer delegacia de bairro tornou-se
um procedimento com respaldo da opinião pública, especialmente por ser esta
uma das principais bandeiras das caminhadas organizadas pela CCIR-RJ, entidade
que conseguiu “levar 200 mil pessoas” à orla de Copacabana no ano de 2011
ao pedir “liberdade religiosa” e o fim da “intolerância religiosa”.

“Não cultuais imagens de escultura”


Meses depois da 1a Caminhada pela Liberdade Religiosa em 2008 e de manche-
tes jornalísticas apresentarem um crescimento exponencial no número de casos
de “intolerância religiosa” sendo registrados nas delegacias com base no artigo
20 da Lei 7.716/89, já no mês de março de 2009 um dos jovens “invasores”
do Centro Espírita Cruz de Oxalá gravou um vídeo com duração de 7’45’’ e o
postou no site YouTube com o nome “vídeo-resposta às ‘autoridades’”30. Nessa
gravação, que transcrevo na íntegra a seguir, o jovem procura dar uma resposta
à imprensa, aos espíritas e às autoridades sobre o ocorrido:
Meu nome é Afonso Henrique, sou do Império Geração de Jesus Cristo. Para
quem não me conhece, eu sou um dos quatro jovens que entraram naquele Centro
Espírita e destruíram as imagens de escultura que lá estavam. Esse episódio ocorreu
em junho de 2008 e repercutiu em todo o Brasil, na sociedade de uma maneira
muito rápida, mas de uma forma distorcida. A imprensa divulgou de uma maneira
completamente equivocada e não procurou saber a verdade dos fatos.

Eu, como discípulo de Jesus Cristo, como discípulo da verdade, eu estou aqui
agora para esclarecer. Não para me justificar ou dar satisfação para ninguém! Mas
para falar a verdade! [...]

O vídeo de Afonso Henrique traz diversos elementos para análise, especial-


mente porque o jovem começa seu testemunho declarando que não quer se
“justificar ou dar satisfação”, apesar de todo o seu discurso permear a cons-

30
“Afonso Henrique publicou um vídeo no YouTube em que declara desprezo pelas instituições poli-
ciais e judiciárias, além de afirmar que todos os pais de santo são homossexuais e que todo centro
espírita cultua o demônio. No vídeo, Afonso confessa, com requinte de detalhes, a invasão do
Centro Espírita Cruz de Oxalá, e diz que naquela noite dormiu tranquilo” (Portal Terra. Publicado
em: 19 jun. 2009. Disponível em: <http://noticias.terra.com.br/brasil/policia/pastor-e-fiel-sao-
-presos-acusados-de-atacar-centro-espirita,417c6ce675e4b310VgnCLD200000bbcceb0aRCRD.
html>. Acesso em: 3 set. 2011).

Religiões e controvérsias Final.indd 143 18/08/2015 09:59:51


144 trução de uma justificação baseada em determinada interpretação bíblica que
ele chama de “verdade”, noção compartilhada com outros membros da Igreja
Geração de Jesus Cristo, como demonstrarei adiante ao aprofundar o posi-
cionamento do pastor Tupirani, líder dessa Igreja. Outro ponto é que o vídeo
de Afonso Henrique chama-se “vídeo-resposta às autoridades”, demonstrando
que o jovem está sob uma situação que necessita de uma resposta pública a
fim de justificar o porquê de suas atitudes na ocasião.
O que ocorreu naquele dia foi que eu e mais três irmãos estávamos no largo do
Machado, na zona sul do Rio de Janeiro, fazendo um trabalho de estar alertando o
povo da Igreja Universal, porque lá não é uma Igreja e nosso ministério combate
arduamente as obras do diabo que se encontrarem dentro da Universal.

E nós, com sede e fome de justiça, fomos à rua alertar o povo da Universal e aquelas
pessoas também que desejam conhecer a verdade.

Então, estávamos lá, por volta das 19h, quando paramos e fomos dar uma volta
para descansar. Passamos pelo Catete e vimos uma fila e fomos perguntar o que era
aquela fila. E lá eles nos responderam que era um centro espírita e que a reunião
começaria às 19h30 e eles estavam esperando a porta abrir para eles subirem e se
consultarem.

Como todo mundo sabe, centro espírita é lugar de invocação ao diabo, lugar onde as
pessoas vão adorar o Satanás, vão levar sua oferenda. Cigarro, cachaça, farofa, essas
coisas podres, essas palhaçadas, que esses servos do diabo insistem em fazer! [...]

Chama a atenção o motivo que faz os jovens irem ao centro da cidade, pois
eles não foram para aquela região com o intuito de “invadir” o Centro Espírita
Cruz de Oxalá ou converter os membros das religiões afro-brasileiras, mas sim
para “alertar os membros da Igreja Universal do Reino de Deus sobre como
as obras do demônio têm operado naquela Igreja”. Cabe retomar que a Igreja
Geração de Jesus Cristo já apresentava, como o jornal Bom Dia Brasil da
Rede Globo anunciou na manhã seguinte ao ocorrido, uma disputa com outras
denominações “evangélicas” na Baixada Fluminense, e não o conflito aberto
contra as religiões afro-brasileiras, como o caso se constituiu. Sendo assim,
Afonso Henrique não reconhece a IURD como uma Igreja, já que a “Universal”
permite que “obras do diabo” sejam realizadas em seu espaço, cabendo aos
adeptos da Igreja Geração de Jesus Cristo “alertar” as pessoas que congregam
nela a respeito desse aspecto.
Talvez a oposição sugerida por Afonso Henrique entre Igreja Geração de Jesus
Cristo e Igreja Universal do Reino de Deus possa indicar profundas caracte-
rísticas de sua congregação. Seguindo a proposta de investigação de Almeida,

Religiões e controvérsias Final.indd 144 18/08/2015 09:59:51


a IURD constituiu seu escopo simbólico ao produzir diversos casos beligerantes

“Não cultuais imagens de escultura”


145
com ampla repercussão pública contra as religiões afro-brasileiras e a Igreja
Católica, processo que fomentou a expansão de seu universo simbólico a cada
novo caso de conflito, permitindo a consagração de um lugar privilegiado para
a IURD junto à opinião pública, onde ela é reconhecida pela sua eficiência na
produção de contrafeitiços (ALMEIDA, 1996a, 1996b, 2009, p. 106-107).
Desse modo, a Igreja Geração de Jesus Cristo pode também ser pensada por
meio de sua exacerbação beligerante, assim como a IURD, porém nega qualquer
atividade ligada a “feitiçarias”, já que “feitiço” ou “contrafeitiço” são formas
distintas das “obras do demônio”, práticas comuns “que esses servos do diabo
gostam de fazer!”. Nota-se, portanto, que Afonso Henrique considera tanto a
IURD como o centro espírita locais onde a “obra do diabo” acontece, o primeiro
como lugar onde o diabo ludibria as pessoas e o segundo como local onde as
pessoas invocam o demônio.
Então começamos a expor a verdade e a falar do evangelho de Jesus Cristo. Nós
provamos pela Bíblia que eles estavam ali para invocar o diabo e isso é um caminho
de morte que leva a pessoa ao inferno, à condenação eterna. E nós, como discípu-
los de Jesus Cristo, nós não podemos deixar de falar a verdade a ninguém. Então
nós começamos a expor a verdade sem agredir ou ofender ninguém, porque esse
não é o propósito do evangelho. Cristo Jesus veio salvar a humanidade e condenar
quem não cresse nele, mas não para ofender ninguém. Mas as pessoas se sentiram
ofendidas com a verdade, acusadas com o pecado que estavam praticando! E elas
sabem disso, tinham consciência disso! Por isso elas nos ameaçaram de morte. Pra
gente ter cuidado com os carros, pois o nosso nome seria levado pros demônios
delas. Que a gente poderia sofrer algum acidente por estar ali perturbando elas.

Nós não ficamos ofendidos com isso, porque isso é normal, já que o Diabo veio para
matar, roubar e destruir! Mas ele sabe que ele não pode nada contra nós, contra a
Igreja do Deus vivo. Então ficou naquela ameaça e nós aceitamos aquele desafio,
porque falar em nos matar é um desafio! Então aceitamos o desafio!

Então eu toquei a campainha do centro espírita, eles abriram a porta pra mim e eu
subi. Subindo, o que eu vi: um monte de imagem de escultura, um pai de santo, um
homossexual, é claro!, porque todos os pais de santo são homossexuais! Vi pessoas
oprimidas se preparando para aquele culto ao Diabo. E nisso eu perguntei para elas:
Cadê o Diabo? Cadê o tranca-rua? Cadê Maria-molambo? Cadê os demônios pra
quem vocês estão oferendo essas imundices? Onde estão eles para que eu possa
pisar na cabeça deles, para provar que Jesus Cristo é maior? É soberano?

E nisso elas ficaram desesperadas, porque nunca viram tal ousadia, e começaram
a gritar, pois elas acharam que nós estávamos querendo agredi-las, coisa que não

Religiões e controvérsias Final.indd 145 18/08/2015 09:59:51


146 aconteceu! Isso é mentira, não houve tentativa nem ameaça. Nosso desafio foi
somente com palavras! E nisso elas já ligaram para a polícia [...].

Se para a IURD o tratamento previsto era “alertar” as pessoas sobre as “obras do


diabo que ali são realizadas”, o tratamento para as pessoas que esperavam na
fila do Centro Espírita Cruz de Oxalá foi inesperado, pois as partes envolvidas
desentendem-se e um “desafio” é lançado aos jovens “membros da Igreja do
Deus Vivo”. “Desafio” que é respondido com a “entrada” no centro espírita.
Chama a atenção que para Afonso Henrique houve a “entrada” no centro
espírita, já que ele tocou a campainha e abriram a porta para ele “entrar”,
enquanto para os membros da CCIR-RJ e o Judiciário que condenou os jovens
houve “invasão”. O “desafio” lançado aos jovens (“que eles sofreriam infor-
túnios, podendo ser atropelados pelos carros na rua”) é respondido com um
“desafio” aos “demônios” que os médiuns estavam prestes a receber: “Onde
estão eles para que eu possa pisar na cabeça deles, para provar que Jesus Cristo
é maior?”, questiona. O “desafio” é respondido na chave da subjugação dos
“demônios” em face da “superioridade divina de Jesus Cristo” materializada nas
palavras de Afonso Henrique, o que não configura, aos olhos do fiel, agressão
às pessoas, mas sim aos “demônios”.
Nós, já chegando lá dentro, e como o Diabo já havia corrido, então eu peguei todas
aquelas imagens de escultura e comecei a quebrar. A Bíblia diz que “a imagem de
escultura é uma abominação, adoração à imagem de escultura é abominação”. Então
eu repudio aquelas imagens também e comecei a tacar tudo para o alto, a quebrar!

Nisso a polícia chegou naquele local, eu já tinha quebrado tudo! Os policiais fa-
laram que teríamos que comparecer à delegacia. Chegando à delegacia, é aquela
palhaçada de sempre, aqueles policiais militares ignorantes, não sabem nem as leis
que eles dizem servir, aqueles policiais civis, completamente ignorantes também.

Pensam que são autoridade, mas não são autoridade! Pensam que são autoridade!
Mas não são autoridade! Para a Igreja não são autoridade! E já nos colocaram como
réus. Começaram a dizer que nós estávamos errados, que nós iríamos prestar de-
poimento, que nós iríamos a juízo e que poderíamos ser presos. Aquela baboseira
de sempre! Então nós, apenas, falamos o que realmente aconteceu. Eles registra-
ram e não tivemos direito nenhum à defesa lá dentro. Então eles falaram que nós
deveríamos comparecer no Juizado em tal data [...].

Há uma clara hierarquização para Afonso Henrique entre distintas ordens


de grandeza, pois as “Leis de Deus” estão acima das “Leis dos Homens”. Os
homens, por sua vez, “não possuem certeza de quais leis servem”, enquanto o
jovem justifica saber quais são as Leis de Deus que servem, inclusive quando

Religiões e controvérsias Final.indd 146 18/08/2015 09:59:51


ele proíbe o culto a imagens de escultura. Nesse trecho, o jovem remete ao

“Não cultuais imagens de escultura”


147
livro de Êxodo da Bíblia, em seu capítulo 20, versículo 4, quando Deus elenca
diversas leis que devem ser seguidas pelo povo escolhido, dentre elas uma que
diz: “Não farás para ti imagens de escultura, nem alguma semelhança do que
há em cima nos céus, nem embaixo da terra, nem nas águas debaixo da terra”
(ÊXODO, 20:04).
E nisso os policiais militares, corruptos, como sempre, caras de pau, eles já chamaram
a imprensa, que eles são “mancomunados”. Tanto a imprensa como a Polícia Militar
servem ao mesmo Deus, que é o Diabo. Nisso a imprensa já chegou fazendo aquele
alvoroço dentro da delegacia. E quando terminou toda aquela palhaçada dentro
da delegacia, a imprensa veio querendo colocar palavras em nossas bocas, mas não
demos satisfação e fomos para as nossas casas.

Eu particularmente dormi muito bem aquela noite, com minha consciência tranquila!

E no dia seguinte o que nós vimos: a Rede Globo fazendo uma grande confusão em
cima daquilo, distorcendo completamente. Dizendo que nós agredimos pessoas.
Publicando na capa do Extra, do jornal O Globo, diversos repórteres deles dizendo
que cometemos um crime, colocando isso como uma coisa horrenda.

Na verdade o que aconteceu é que a Globo, como também é uma emissora com-
pletamente dominada pelo Diabo, onde há uma série de espíritas, dezenas de ma-
cumbeiros lá dentro! Todo mundo conhece a Globo, mas ninguém tem coragem de
falar, mas hoje estamos falando aqui! Por isso a Globo sentiu-se ofendida. Por isso
distorceu tudo isso e nos colocou como criminosos. Mas nós não somos criminosos,
pelo menos para nosso Deus não! Então eu tô aqui hoje para estar esclarecendo todos
esses fatos! Então, para os macumbeiros, espíritas ou satanistas, como queiram, o
desafio tá lançado. Vamos ver, vamos colocar a prova: quem realmente tem Deus?!

E quanto à Rede Globo: vocês sabem que vocês servem ao Diabo, vocês são men-
tirosos distorcendo os fatos! Então eu tô aqui usando esta mídia, que é a internet,
para mostrar a verdade.

E quanto às autoridades, que pensam que são autoridade, policiais militares, policiais
civis, juízes e advogados, estou aqui para dizer: julgai entre vós mesmos se antes é
lícito nós obedecermos a vocês ou a Deus, porque eu não posso deixar de falar do
que eu tenho visto e ouvido!

Então, tá dado meu recado!31

31
Vídeo-resposta às autoridades. Publicado em: 22 jun. 2009. Disponível em: <https://www.youtube.
com/watch?v=lDibSEjt-Zo>. Acesso em: 1o abr. 2014.

Religiões e controvérsias Final.indd 147 18/08/2015 09:59:51


148 Assim, a prática discursiva de Afonso Henrique argumenta no sentido de operar
uma clara inversão de quais procedimentos e leis guiaram os acontecimentos
ocorridos naquele 1o de agosto de 2008, reacendendo o momento crítico ao
colocar em xeque a hierarquização entre distintas ordens de grandeza, de um
lado a “liberdade religiosa” assegurada pelas “Leis dos Homens” e expressa
na Constituição Federal brasileira, do outro a “liberdade religiosa” assegurada
pela “Lei de Deus”, expressa na Bíblia Sagrada e tendo na evangelização sua
execução diária, como já salientado por R. Mariano em outro contexto (MA-
RIANO, 1999, p. 122).
Se os membros da CCIR-RJ procuram produzir a descrição dos fatos a partir
de uma grandeza que é constituída por um léxico que possui termos como
“lei”, “artigo”, “injúria”, “vilipêndio”, “invasão”, “discriminação”, “intole-
rância religiosa” e “liberdade religiosa”, já o léxico empregado por Afonso
Henrique aciona em sua argumentação termos como “verdade”, “obras do
diabo”, “desafio”, “entrada”, “fome de justiça”, “ousadia”, “pisar na cabeça”,
“autoridade” e o uso de expressões como se elas fossem passagens bíblicas:
“Julgai entre vós mesmos se antes é lícito nós obedecermos a vocês ou a
Deus”. Esses léxicos demonstram como são distintas grandezas que estão
em jogo nas justificações dos atores sociais envolvidos na “invasão”/“entrada”
no centro espírita.
Após a divulgação do vídeo de Afonso Henrique no site YouTube e em diversos
meios de comunicação, Henrique Pessoa e membros do Ministério Público do
RJ (MP-RJ) começaram a monitorar as atividades do pastor Tupirani e do fiel
Afonso Henrique. Três meses após a divulgação do vídeo, em junho de 2009
(após um dos cultos da igreja Geração de Jesus Cristo), pastor e fiel foram
detidos pela polícia na saída da igreja – o crime de “intolerância religiosa”, se-
gundo Henrique Pessoa, parecia ter se comprovado a partir do monitoramento
dos discursos do pastor Tupirani em seus cultos e em seus vídeos na internet,
ambos disponíveis no site Seminario1.com.
Presos, os acusados foram enquadrados no artigo 20 da lei 7.716/89, “sendo
os primeiros presos por intolerância religiosa do Brasil”, como a revista Época
na edição da semana seguinte descreveu:
O pastor Tupirani, líder da Igreja Geração Jesus Cristo, foi indiciado e teve a prisão
decretada porque o MP e a Justiça entenderam que ele é o mentor intelectual da
invasão ao templo. À época da depredação, Tupirani se disse surpreso com a atitude
do grupo de fiéis da sua Igreja. Em um vídeo no site YouTube, o pastor nega que
sua obra seja intolerante com outras religiões, já que diz não reconhecer o que é

Religiões e controvérsias Final.indd 148 18/08/2015 09:59:51


praticado em algumas Igrejas como religião. “Eu não respeito satanismo; se alguns

“Não cultuais imagens de escultura”


149
vão chamar isso de religião, é problema deles”, diz ele.

[Afonso Henrique] Lobato é investigado pelos crimes de intolerância religiosa,


injúria qualificada e incitação ao crime desde março deste ano, quando postou
um vídeo no YouTube confessando participação na invasão do templo e fazendo
afirmações difamatórias a outras religiões. […]

Pela primeira vez, o crime de intolerância religiosa levou acusados à prisão no país.
O pastor Tupirani da Hora, líder da Igreja Geração Jesus Cristo, e o fiel Afonso
Henrique Lobato estão detidos no Rio desde sexta-feira (19). Eles são acusados
de ser responsáveis por invadir e depredar um templo espírita em junho do ano
passado. A Justiça decretou a prisão temporária dos dois baseada no artigo 20 da
Lei Caó (7.716/89), de autoria do ex-deputado negro Carlos Alberto Caó (PDT/RJ),
que define crimes de preconceitos de raça, religião, etnia, entre outros.

“Antigamente, um caso como esse era enquadrado como injúria ou dano ao pa-
trimônio. É um marco histórico”, afirma Jorge Mattoso, secretário da Comissão
de Combate à Intolerância Religiosa (CCIR). A organização surgiu no ano passado
para defender a liberdade de práticas religiosas, e foi responsável por denunciar o
episódio da depredação do templo ao Ministério Público (MP). O pastor Tupirani e
[Afonso Henrique] Lobato podem pegar até cinco anos de prisão. Eles foram detidos
após um culto da Igreja Geração Jesus Cristo, que fica no Morro do Pinto, região
portuária do Rio de Janeiro. Além de serem acusados de envolvimento na invasão
ao templo espírita há um ano, a polícia investiga os dois por vídeos na internet em
que fazem ofensas a outras religiões32.

No âmbito jurídico, o caso da prisão do pastor Tupirani e de Afonso Henrique


também foi alvo de intenso debate. Após a prisão dos acusados, diversos ope-
radores da lei, dentre eles advogados e juízes, começaram a discutir o alcance
da Lei Caó quando utilizada para o crime de “intolerância religiosa” ou “dis-
criminação religiosa”, como os membros da CCIR-RJ por meio das atividades do
delegado Henrique Pessoa33 procuraram imputar. Um dos principais críticos à

32
Revista Época. Publicado em: 25 jun. 2009. Disponível em: <http://revistaepoca.globo.com/
Revista/Epoca/0,,ERT79088-15228-79088-3934,00.html>. Acesso em: 3 ago. 2009.
33
“O Delegado Henrique Pessoa, representante da Polícia Civil na CCIR-RJ, diz que as imagens obtidas
na internet foram importantes para o inquérito. ‘Eles produziram provas contra si mesmos. Sem
isso, seria muito mais difícil provar a incitação ao crime’, diz. Foi uma vitória, porque em geral o
incitador fica isento de qualquer punição’.” (Jornal Extra. Publicado em: 22 jun. 2009. Disponível
em: <http://extra.globo.com/blogs/feonline/posts/2009/06/22/mp-denuncia-pastor-fiel-por-
-intolerancia-198095.asp>. Acesso em: 3 ago. 2011).

Religiões e controvérsias Final.indd 149 18/08/2015 09:59:51


150 utilização da Lei Caó é o escritor Eduardo Banks34, que, após conseguir libertar
pastor e fiel35, afirmou sua posição para o jornal Extra:
Por e-mail, o escritor Eduardo Banks, autor do pedido de habeas corpus que soltou
Tupirani e Afonso, disse que “considera a Lei Caó um monstrengo jurídico”. E
mais: diz que, agora que foi revogada a única prisão feita no Brasil com base nela,
a acentuação deve caminhar para o grave e mudar o nome da Lei Antirracismo de
Lei Caó para “Lei Caô36” (JORNAL EXTRA, 20 jun. 2009).

As proposições de Eduardo Banks repercutiram entre os membros da CCIR-RJ


e membros do movimento negro do Rio de Janeiro. Após diversas notícias
sobre o caso e entrevistas com membros de entidades que apoiam a utilização
da Lei Caó para situações que podem ser denunciadas como “intolerância
religiosa”, o jornal Extra entrevistou o propositor da lei em debate, o ex-
-deputado federal Carlos Alberto Caó, que rebateu as declarações de Eduardo
Banks ao afirmar que o escritor estaria contrariando a própria Constituição
Federal, pois a criminalização do “preconceito por religião” está prevista na
Carta Magna:

34
Eduardo Banks é católico praticante, escritor, jornalista e presidente da Associação Eduardo
Banks. Tal associação é responsável por protocolar junto ao Supremo Tribunal Federal (STF)
diversos recursos. Dentre eles, é digno de nota o recurso contra a lei que permite a união entre
pessoas do mesmo sexo, a revogação da Lei Áurea assinada pela Princesa Isabel em 1888 e o fim
do feriado de Yom Kippur na cidade do Rio de Janeiro. Em 2008 Eduardo Banks candidatou-se
a deputado estadual pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), angariando 220 votos “sem fazer
campanha”, diz Banks em um de seus vídeos na internet. Em 2011 o professor de direito penal
da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Nilo Batista produziu uma carta de repúdio a
Eduardo Banks, chamando-o de homofóbico, fato que fez Eduardo Banks processar o professor
buscando que o mesmo pague R$ 150 mil em indenização. A ação corre na Justiça. (Processo
n. 0006692-65.2008.4.02.5101 no STF).
35
“Não durou nem um mês a prisão de Tupirani da Hora Lores, de 43 anos, pastor da Igreja Geração
Jesus Cristo, e do fiel Afonso Henrique Alves Lobato, de 26. Acusados dos crimes de intolerância
religiosa, injúria qualificada e incitação ao crime, eles tiveram a prisão preventiva decretada em 19 de
junho, pela juíza Maria Elisa Lubanco, da 20a Vara Criminal. Entretanto, os dois foram soltos semana
passada, após conseguirem um habeas corpus concedido pelo desembargador Luiz Felipe Haddad,
da 6a Câmara Criminal. O pedido de habeas corpus foi feito pelo escritor Eduardo Banks. Afonso
divulgou na internet, em março, um vídeo no qual faz ofensas às religiões afro-brasileiras, às polícias
Civil e Militar e à imprensa. O vídeo foi publicado com o consentimento do pastor Tupirani. Nas
imagens, Afonso afirma, entre outras coisas, que “todo pai de santo é homossexual” e que “centro
espírita é lugar de invocação do diabo”. Eles foram os primeiros presos em todo o país com base no
crime de intolerância religiosa, previsto na Lei 7.437, de 1985 – mais conhecida como Lei Caó”.
(Jornal Extra. Publicado em: 14 jul. 2009. Disponível em: <http://extra.globo.com/noticias/rio/
pastor-fiel-que-atacaram-religioes-afro-ja-estao-soltos-395617.html>. Acesso em: 3 ago. 2011).
36
O termo “caô” no jargão popular carioca significa que aquilo que está se dizendo é uma mentira,
uma enganação, uma brincadeira despropositada ou até mesmo uma forma de contar vantagem
sobre algo sem realmente a vantagem existir.

Religiões e controvérsias Final.indd 150 18/08/2015 09:59:51


A reação dele [Eduardo Banks] é despropositada, primitiva e inconstitucional,

“Não cultuais imagens de escultura”


151
porque a Constituição resguarda a inviolabilidade da crença religiosa. É a Consti-
tuição que estabelece que a prática de racismo é crime inafiançável — disse Caó37.

Diante desse debate público acerca do posicionamento do pastor Tupirani e


do jovem Afonso Henrique, o blogueiro Julio Severo também se posicionou ao
tecer uma longa postagem sobre a “primeira prisão por intolerância religiosa
no Brasil”38.
Abaixo transcrevo o excerto do texto de Julio Severo, publicado no dia 1o
de julho de 2009, que evidencia sua posição perante a prisão de Tupirani e
Afonso Henrique:
Eu e a maioria dos cristãos que creem em libertação espiritual não seguimos o estilo
do Pr. Tupirani e do jovem negro Afonso Henrique, mas todos nós seguimos e obe-
decemos aos mandamentos claros de Deus, que condenam explicitamente práticas
de bruxaria. De que forma então o combate à intolerância religiosa fomentado pelo
estado poderá implicar em prejuízos para nós evangélicos e católicos?

[...]

Numa época em que o Estado procura se distanciar tanto dos valores cristãos, é
de estranhar sua aproximação aos valores ocultistas. Onde está a tão proclamada
separação de Estado e religião?

O preço do combate estatal à intolerância religiosa é a satanização das leis, onde


o Estado sob possessão socialista sacralizará o que não é sagrado, trazendo como
consequência direta a demonização do cristianismo e seus valores, e a censura e
perseguição aos cristãos39.

Para Julio Severo, a diferença que distingue o pastor Tupirani dos demais “cris-
tãos que creem em libertação espiritual” é uma questão de “estilo”. Segundo

37
Jornal Extra. Publicado em: 19 jul. 2009. Disponível em: <http://extra.globo.com/noticias/religiao-
-e-fe/>. Acesso em: 3 ago. 2011.
38
Antes de apresentar suas argumentações, saliento o impacto da página de Julio Severo nos mais
variados temas em que o blogueiro se envolve. O alcance de suas postagens no blog juliosevero.
blogspot.com pode ser medido pelo número de comentários que o espaço virtual recebe, algumas
ultrapassando o número de 50 comentários e dezenas de compartilhamentos nas redes sociais. O
formato de suas postagens também merece atenção, pois enquanto o autor desenvolve seu argu-
mento textualmente, faz diversas citações de passagens bíblicas, cita pesquisas acadêmicas e fontes
jornalísticas, disponibilizando, ao fim do texto, o hiperlink para o acesso às fontes.
39
Blog do Julio Severo. Publicado em: 1o jul. 2009. Disponível em: <http://juliosevero.blogspot.
com/2009/07/lei-contra-intolerancia-religiosa-faz.html>. Acesso em: 20 abr. 2012.

Religiões e controvérsias Final.indd 151 18/08/2015 09:59:51


152 o blogueiro, enquanto a maioria dos “cristãos que creem em libertação” não
deflagra invasões e nega essa prática, Tupirani propõe um estilo próprio na
forma de combater “as práticas de bruxaria”, o que demonstra que a diferença
de “estilo” nesse segmento cristão repousa sobre o nível de beligerância que
será imputado contra “as obras do demônio condenadas pelos mandamentos
de Deus”.
Esta noção de uma segmentação religiosa cristã apresentada por Severo é jus-
tificada pelo blogueiro ao constituir um inimigo comum a todos aqueles que
creem em libertação, pois se as “Leis do Estado” começarem a ferir as “Leis
de Deus” expressas na Bíblia haverá uma “demonização do cristianismo”, o
qual começará a ser perseguido, pondo um fim à liberdade religiosa no Brasil,
destituindo o Estado democrático de direito brasileiro de um dos seus principais
pilares, a saber, “a separação de Estado e religião”. Nesse sentido, classificar o
“estilo” do pastor Tupirani no escopo do crime de “intolerância religiosa” ou
“discriminação religiosa” é, para Julio Severo, combater uma forma específica,
mesmo que pequena, do cristianismo.
Em linhas gerais, a generalização empreendida na argumentação de Julio
Severo repousa sobre a ideia de que punir determinadas práticas religiosas
como “intolerância religiosa” fere a própria noção de “liberdade religiosa” e
põe em perigo o cristianismo, já que “o preço do combate estatal à intolerância
religiosa é [...] a demonização do cristianismo e seus valores, e a censura e
perseguição aos cristãos”.
Se o movimento proposto por Henrique Pessoa e Ivanir dos Santos procura ti-
pificar a “intolerância religiosa” como crime, produzindo um escopo de práticas
discursivas passíveis de serem punidas por meio do artigo 20 da Lei 7.716/89,
Julio Severo justifica sua argumentação ao indicar que criar um escopo de
práticas religiosas como “intolerância religiosa” é atentar contra a “liberdade
religiosa”, tornando ainda mais complexa a legitimidade da “intolerância reli-
giosa” como uma ordem de grandeza válida e modificando profundamente o
debate público acerca de “quais práticas compõem o escopo do que pode ser
concebido juridicamente por intolerância religiosa” para “o questionamento
em torno do que a opinião pública compreende por liberdade religiosa”.
Nesse novo patamar, as ordens de grandeza que giram em torno do que é
compreendido por “liberdade religiosa” são colocadas novamente em xeque
e esse debate público parece estar longe de um término, pois cada vez mais,
conforme generalizações são produzidas, determinadas grandezas são postas
no centro do debate e atores sociais das mais distintas origens são atraídos
para esse momento crítico. Se o debate público neste estudo de caso começou

Religiões e controvérsias Final.indd 152 18/08/2015 09:59:51


girando em torno da noção de “intolerância religiosa” como forma de assegurar

“Não cultuais imagens de escultura”


153
a “liberdade religiosa”, agora a “intolerância religiosa” é acusada de aleijar a
própria “liberdade religiosa”.
Outro ponto a ser tematizado é que o blogueiro Julio Severo propõe uma
“coalizão” entre todos os “cristãos que creem em libertação”, pois o preço a ser
pago pelo distanciamento do Estado dos valores cristãos e do apoio na criação de
um escopo de práticas religiosas como intolerância religiosa é a “demonização
do cristianismo e seus valores, e a censura e perseguição aos cristãos”. Porém,
apesar de propor uma segmentação dentro do cristianismo brasileiro (“cristãos
que creem em libertação”, mas que diferem em seus “estilos”), o blogueiro não
consegue lograr êxito com essa tentativa de produção de generalizações entre
os mais distintos “estilos” cristãos, já que o próprio jovem Afonso Henrique
questiona as argumentações de Severo ao comentar em seu blog:
Por acaso algo que procede do Estado poderá ser benéfico à sociedade ou até
mesmo à Igreja de Cristo? Você acha que o Sacerdócio de Cristo é submisso a
alguma autoridade constituída por ímpios na Terra? Se a Igreja desde a sua queda
não tivesse pensado igual a você, por que se levantaria nos tempos de hoje um
Ministério de Restauração? E se a Bíblia diz que nesse tempo haveria uma apos-
tasia geral na Igreja, por que Jesus não te usou para combatê-la, ao invés de ter
te desprezado pela sua falta de conhecimento bíblico e coragem? Você acha que
realmente o Pr. Tupirani e eu somos passivos a julgamentos de homens, aos quais
você define como “justiça”?40

Portanto, Afonso Henrique reifica seu “estilo” particular na prática da beli-


gerância de sua Igreja e relembra que pouco ou nada tem em comum com os
demais “cristãos que creem em libertação”, já que a Igreja Geração de Jesus
Cristo é um “Ministério de Restauração” e não pode, nem deve, ser “submissa
a alguma autoridade constituída por ímpios na Terra”. Assim, ressurge na ar-
gumentação de Afonso Henrique a ideia de que a noção de justiça está ligada
às “Leis de Deus” e a elas o pastor Tupirani e os membros de sua congregação
devem obedecer, pois Tupirani é a própria figura de Elias, profeta bíblico
perseguido pelo rei Acabe de Israel (I REIS 17:1-22) e que combateu o culto
a deuses estrangeiros, destruindo-os após desafiar os “450 profetas de Ba’al”,
mostrando que o culto de Javé deveria ser o único do reino, fazendo com que o
rei Acabe aceitasse seu lugar de único profeta, matando a espada os sacerdotes
de cultos estrangeiros (I REIS 18:1-46).

40
Comentário no blog do Julio Severo. Publicado em: 2 set. 2009. Disponível em: <http://juliosevero.
blogspot.com/2009/07/lei-contra-intolerancia-religiosa-faz.html>. Acesso em: 20 abr. 2012.

Religiões e controvérsias Final.indd 153 18/08/2015 09:59:51


154 Portanto, Tupirani e Afonso Henrique propõem um “Ministério de Restaura-
ção”, ancorado na destruição de falsos deuses, na destruição de “imagens de
escultura”, no seguimento das “Leis de Deus” em detrimento das “Leis dos
Homens” e na crítica a alianças ao elegerem o profeta Elias como figura central
de inspiração para seu ministério, tanto que o avatar do pastor Tupirani na rede
social Facebook chama-se “Elias – O retorno”41.

“Bíblia sim! Constituição não!”


Diante da publicidade alcançada pelo debate público em torno do alcance
da Lei Caó, o pastor Tupirani e seus fiéis alicerçam a campanha “Bíblia sim!
Constituição não!”. Tal campanha propõe um conjunto de práticas discursivas
que se baseiam na interpretação de determinada passagem bíblica disposta
em Atos dos Apóstolos, capítulo 5, versículo 29, em que o apóstolo Pedro
é preso pelo sumo sacerdote do povo saduceu. A acusação recaía sobre suas
atitudes acerca da cura dos enfermos, da reunião de uma multidão em Israel
e da pregação do nome de Jesus junto a esse povo. Ao serem interrogados
pelo conselho sacerdotal dos saduceus, “Pedro e os apóstolos disseram: Mais
importa obedecer a Deus do que aos homens” (ATOS, 05:29). E mesmo
condenados ao açoite público e à proibição de falar em nome de Jesus, os
apóstolos “retiraram-se, pois, da presença do conselho, regozijando-se de
terem sido julgados dignos de padecer afronta pelo nome de Jesus. E todos
os dias, no templo e nas casas, não cessavam de ensinar, e de anunciar a Jesus
Cristo” (ATOS, 05:41-42).
A interpretação do pastor Tupirani acerca do excerto bíblico disposto em
Atos dos Apóstolos, assim como a inspiração no personagem bíblico Elias, o
profeta do livro de Reis, é corriqueira em seus discursos, especialmente nos
divulgados no site Seminario1.com, em que divulga seus vídeos, livros e o link
para ouvir em tempo real os cultos de sua Igreja, que ocorrem todas as quartas
e sábados, às 19h e às 21h.
No bojo da condenação de Tupirani e da campanha “Bíblia sim! Constituição
não!”, o ministério sob liderança do pastor decidiu modificar a fachada da
Igreja e rebatizar a congregação para “Igreja Geração de Mártires”. Em diversos
discursos do pastor e de seus fiéis, estes referem-se à Igreja como “A Igreja do
Primeiro Pastor Perseguido pela Ditadura Democrática do Brasil”.

41
Conforme site Facebook. Disponível em: <https://www.facebook.com/tupirani.hora>. Acesso
em: 1o jun. 2014.

Religiões e controvérsias Final.indd 154 18/08/2015 09:59:51


Ainda no bojo da resposta à prisão do pastor Tupirani e à projeção do caso,

“Não cultuais imagens de escultura”


155
os membros da Igreja Geração de Jesus Cristo elegeram 19 de junho, dia da
prisão de Tupirani, o Dia do Pastor Perseguido. Já em 19 de junho de 2011
ocorreu a 1a Passeata do Dia do Pastor Perseguido, a qual foi gravada em vídeo
na íntegra por um dos fiéis e disponibilizada no site YouTube. Segundo o vídeo
disponível na internet, a primeira passeata começou no Morro do Pinto em
frente ao templo, onde os membros da Igreja desceram o morro em marcha
assoprando diversos apitos, todos vestidos com camisetas pretas com os dizeres
“Bíblia Sim! Constituição Não!” e “Jesus voltará no século XXI”. Embarcaram
no metrô cantando hinos evangélicos e desembarcaram na região central da
cidade do Rio de Janeiro, onde seguiram até o fórum criminal. Em frente ao
fórum, Tupirani fez discursos explicando aos presentes o sentido do Dia do
Pastor Perseguido e o lema da campanha “Bíblia sim! Constituição não!”:
Tupirani fala apontando para uma das faixas: Todos nós sabemos o motivo de
estarmos aqui: Jesus, nossa Lei. Bíblia sim! Constituição não! Soberano é DEUS!

O significado dessa faixa demonstra nosso conhecimento das coisas espirituais e


da soberania de Deus. A única lei que rege a conduta e o caráter do ser humano é
o evangelho de Jesus Cristo. Portanto, que façam leis no congresso à vontade, que
aprovem o que quiserem aprovar. Nós só nos curvamos à lei da Bíblia! Esse é um
recado que vai rodar o mundo nessa primeira faixa!

Mas temos outras faixas!

Tupirani aponta para outra faixa e diz: O complô do MP: Átila Nunes (que é
deputado), Henrique Pessoa (delegado), Helen Sandenberg (delegada), Daniel
(outro delegado). Mas estes dois, Henrique e Daniel, são delegados, espíritas e
macumbeiros. E aqui, Maria Elisa, a juíza que arbitrariamente, que é autoridade
autônoma no Judiciário, nos mandou prender infringindo todos os nossos direitos,
de endereço fixo, de trabalho, 45 anos morando no mesmo endereço. Tá aqui! O
complô do MP!

Essa faixa é pra denunciar que democracia e liberdade de expressão no Brasil ain-
da são uma farsa. Tem muita gente manipulando o poder público conforme seus
próprios interesses nepotistas42.

A passeata dos membros da Igreja Geração de Mártires sob coordenação de


Tupirani apresenta um caráter didático, especialmente pelo fato de o pastor
argumentar sobre o porquê da manifestação pública e o significado daquele

42
1a Passeata do Dia do Pastor Perseguido. Gravado em: 19 jun. 2011. Disponível em: <https://www.
youtube.com/watch?=uBJq4XaEecE&feature=player_detailpage>. Acesso em: 3 ago. 2011.

Religiões e controvérsias Final.indd 155 18/08/2015 09:59:51


156 dia no calendário de sua Igreja. A hierarquização entre as leis que orientam o
Judiciário e as leis expostas na Bíblia é reiterada continuamente, sobretudo
porque a manifestação teve como objetivo último protestar em frente ao fórum
que Tupirani e o jovem Afonso Henrique foram julgados após terem se tornado
“os primeiros presos por intolerância religiosa no Brasil”.
O principal ponto da argumentação repousa sobre a ideia de que há “um
complô” no Ministério Público, encabeçado por legisladores e delegados,
membros do funcionalismo público e que estariam utilizando o MP a seu favor.
A proposta de Tupirani procura, utilizando os termos de Boltanski, instaurar
um novo momento crítico ao denunciar como um órgão que deveria fiscalizar
irregularidades na sociedade civil e os demais poderes do Estado (notadamente
o Legislativo, o Executivo e o Judiciário) estão corrompidos, pois “tem muita
gente manipulando o poder público conforme seus próprios interesses nepo-
tistas”. Assim, a denúncia de Tupirani culmina na ideia de que “democracia
e liberdade de expressão no Brasil ainda são uma farsa”, argumentação que
agrega ao debate mais uma grandeza, agora a liberdade de expressão associada
à liberdade religiosa.
As ideias expostas na 1a Passeata foram levadas adiante pelo ministério, que,
no ano seguinte, promoveu a 2a Passeata do Dia do Pastor Perseguido no mês
de junho de 2012. Entretanto, neste segundo ano, os membros da congrega-
ção mudaram o trajeto da passeata e, em vez de se dirigirem para a frente do
Fórum Criminal como no ano anterior, seguiram de metrô em direção à praia
de Copacabana, onde levantaram suas bandeiras com os lemas da campanha
“Bíblia sim! Constituição não!”.
Após percorrerem a orla, saíram do calçadão e foram para a faixa de areia, onde
Tupirani fez novos discursos explicando aos presentes os fatos que culminaram
na criação desse dia de protesto. Dentre as argumentações, afirmou:
Nós estamos divulgando na internet a declaração de um promotor. O que este pro-
motor diz: ele contraria tudo aquilo que foi dito a nosso respeito. Incitação ao ódio,
violência... Essa palhaçada toda! Tudo aquilo que aquela delegada desocupada escre-
veu! Depois um outro promotor veio e confirmou realmente o que ela havia escrito.
Dizendo que era realmente delito, era incitação ao ódio, que incentivava a violência,
que tudo que aconteceu por aí de ruim no mundo era culpa minha. Faltou pouco para
ele dizer que eu inspirei Hitler, que inspirei Mussolini, que eu inspirei todo mundo
que foi assassino por aí. Que inspirei Fernandinho Beira-Mar, só faltou ele dizer isso!

Mas outro promotor, isso nós estamos divulgando na internet, outro promotor veio
e falou completamente o contrário. Disse que não havia incitação ao ódio, disse que

Religiões e controvérsias Final.indd 156 18/08/2015 09:59:51


nossas pregações são característica de todos os pregadores do mundo. Em todo o

“Não cultuais imagens de escultura”


157
mundo há a tendência de achar que a sua religião é a certa. Por isso que a pessoa se
torna religiosa em determinado segmento religioso, porque acha aquela religião a
certa. Um promotor, inclusive, com uma mente brilhante, faz essas declarações [...].

Seguindo o tom didático já presente na 1a Passeata, Tupirani apresenta as di-


versas bandeiras que compõem a caminhada, justificando seu posicionamento
e a campanha “Bíblia sim! Constituição não!”. Nesse trecho inicial, o pastor
chama a atenção para o fato de, entre os próprios operadores do direito, haver
diversas posições acerca dos discursos proferidos por Tupirani disponibilizados
na internet. Enquanto um promotor baseia-se na proposição de que o pastor
comete o crime de “intolerância religiosa”, passivo de pena pelo artigo 20 da
Lei Caó, outro promotor julga o comportamento do pastor como um proce-
dimento “normal” no que compete às expressões religiosas.
Nesse trecho do discurso de Tupirani fica evidente como o centro do debate
deste estudo de caso é a tentativa por determinados atores sociais de fazer
valer suas respectivas noções de justiça, expressas em determinadas confi-
gurações acerca da hierarquização entre grandezas comunicadas por termos
como “intolerância religiosa”, “liberdade religiosa” e “liberdade de expressão”.
Se para Tupirani “liberdade de expressão” e “liberdade religiosa” caminham
juntas, configurando o que pode ser compreendido por “liberdade de expressão
religiosa”, garantindo aos membros de seu ministério o direito de seguir a Lei
de Deus quando ela entra em contradição com a Lei dos Homens, para Julio
Severo a noção de “liberdade religiosa” não pode possuir um escopo de práticas
religiosas passivas de punição por “intolerância religiosa”, enquanto para Ivanir
dos Santos e Henrique Pessoa a noção de “liberdade religiosa” necessita de leis
infraconstitucionais para o seu pleno gozo, definindo um escopo de práticas
que violam a “liberdade religiosa” e constituem o que esses atores chamaram
de “intolerância religiosa”, apesar de o artigo 20 da Lei Caó utilizar o termo
“discriminação religiosa”.
Em resumo desta história, com todos esses argumentos. Fica claro, esta tal de Lei
Caó, que a gente chama de Caô, porque não passa de uma palhaçada, é 7.716 de
1989... Essa lei não pode mais prender ninguém, porque nós, Geração de Jesus
Cristo, desativamos essa lei! Essa lei não pode mais prender ninguém, porque nós
fomos acusados por aquela lei e ela não conseguiu fazer efeito sobre nós. Vocês
estão entendendo o que nós fizemos? Nós garantimos não só a liberdade de pregação
do evangelho, nós garantimos a liberdade de pregação do católico, do espírita, do
budista, do muçulmano. Porque essa lei não pode prender ninguém. Porque ficou
caracterizado que todos têm o direito de pregar a sua religião.

Religiões e controvérsias Final.indd 157 18/08/2015 09:59:51


158 [...]

Mas o importante é que hoje o espírita pode achar que tudo é satanismo, só ele é
certo. Essa lei foi desativada por nós. Não pode mais prender o espírita que achar
isso. Nós abrimos a porta para todos os cristãos, verdadeiros!, que queiram pregar
o evangelho de ousadia de Jesus Cristo. A lei não pode prender mais ninguém. Eu
já sabia que essas coisas iriam acontecer, por isso um tempo atrás nós gravamos
um DVD intitulado Acima da Lei Caó, porque já sabíamos que iríamos ficar acima.

[…]

Dizem que temos que pagar uma indenização, mas não há indenização nenhuma!
E tem mais, não vamos pagar porque se trata de 6 mil reais, nem que fossem 10
centavos ao mês. Não iríamos pagar! Não viemos para fazer aliança nem acordo! Nós
viemos para brigar! Para mostrar que a Geração Jesus Cristo não se curva à lei de
homens! A sentença deles para nós não tem valor, estou cuspindo e rasgando. Como
já rasguei vários documentos e vários símbolos de documentos, rasgando a lei mesmo.
E por pouco estou rasgando até a Constituição. Porque eu tenho direito de seguir
a lei que eu quero. E a lei do meu Deus é a mais nobre de todas!43 (grifo nosso).

O posicionamento de Tupirani pode parecer a não aceitação da “Lei dos Ho-


mens” e a campanha “Bíblia sim! Constituição não!” o embasamento desse
posicionamento. Porém, ao se colocar na posição de argumentador (“Em resumo
desta história, com todos esses argumentos. Fica claro [...]”), Tupirani procura
debater a validade da noção de “intolerância religiosa”, já que ela é uma forma
de dizer o que é válido e não válido dentro da noção de “liberdade religiosa”,
sendo as argumentações expostas em ambas as passeatas bons indicadores de
como há, por parte do pastor, a busca do convencimento alheio ao visar fazer
valer suas pretensões nesse jogo.
Ainda nessa segunda passeata nota-se como a Caminhada pela Liberdade Reli-
giosa organizada pela CCIR-RJ influenciou o roteiro da manifestação pública feita
pelo ministério do pastor Tupirani. E estando no mesmo lugar da caminhada,
Tupirani procura argumentar como a Lei Caó não surtiu efeito sobre ele e o
jovem acusado de “intolerância religiosa” (“Essa lei não pode mais prender
ninguém, porque nós, a Geração de Jesus Cristo, desativamos essa lei!”).
Assim, a Igreja Geração de Jesus Cristo coloca-se como “guardiã da liberdade
religiosa cristã”, de um Ministério de Restauração e garantidora, também, de
uma noção de “liberdade religiosa” ampla e em estreito diálogo com a noção
de “liberdade de expressão”, inclusive garantindo a “liberdade de expressão

43
2a Passeata do Dia do Pastor Perseguido. Gravado em: 19 jun. 2012. Disponível em: <www.youtube.
com/watch?v=aw2Jd6E0lqc>. Acesso em: 3 ago. 2011, grifo nosso.

Religiões e controvérsias Final.indd 158 18/08/2015 09:59:51


religiosa” para aquelas religiões que ele acusa de abrigarem as “obras do diabo”:

“Não cultuais imagens de escultura”


159
“Nós garantimos não só a liberdade de pregação do evangelho, nós garantimos
a liberdade de pregação do católico, do espírita, do budista, do muçulmano.”

Conclusão
Como defendi em trabalho anterior, a noção de “intolerância religiosa” emerge
nos trabalhos antropológicos e sociológicos brasileiros no final da década de
1990, quando um conjunto de sacerdotes das religiões afro-brasileiras e, espe-
cialmente, um conjunto de acadêmicos começam a empregar o termo a fim de
referir-se aos casos associados à rubrica de pesquisa do “conflito religioso entre
pentecostais e religiões afro-brasileiras”, substituindo o termo “guerra santa”,
até então amplamente utilizado por sacerdotes pentecostais, pela imprensa
e na literatura acadêmica (BORTOLETO, 2014). Não coincidentemente, é
nesse mesmo período que a Lei 7.716, de 1989, recebe sua última atualização
no ano de 1997, permitindo já na segunda metade dos anos 2000 sua inédita
utilização na tipificação da “intolerância religiosa” como crime, iluminando
múltiplas acepções de “intolerância religiosa” e “liberdade religiosa” pelos mais
diversos atores sociais envolvidos nessas situações sob requisito de justificação,
como o estudo de caso dos três jovens que invadem o centro espírita no Rio
de Janeiro parece sinalizar.
O desenvolvimento da atual investigação em torno de um estudo específico
de caso indica algumas das acepções que termos como “liberdade religiosa” e
“intolerância religiosa” recebem ao serem debatidos quando há uma nova uti-
lização da lei que os aciona como forma de justificação, processo que evidencia
“o jogo da reflexibilidade e a maneira pela qual cada um expõe discursivamente
as próprias imagens de mundo em contraposição às imagens alheias, de modo
a jogar as cartas das pretensões de validade das interpretações de mundo tor-
nadas visíveis pelos discursos” (Cf. MONTERO, 2009, p. 204), processo que
se desdobra, no referido caso, em profundos rearranjos do que concebemos
por pluralismo religioso brasileiro e laicidade estatal no Brasil.
Sem dúvida que a projeção pública de Ivanir dos Santos, Henrique Pes-
soa, Fatima Damas e outros membros ligados à CCIR-RJ começa antes da
“invasão”/“entrada” dos quatro jovens ao Centro Espírita Cruz de Oxalá e não
acaba na 6a Caminhada na orla de Copacabana, que presenciei com menos de
4 mil pessoas no ano de 2013, assim como o ministério sob liderança do pastor
Tupirani não possui a mesma projeção pública que a alcançada pela CCIR-RJ quan-
do conseguiu organizar a caminhada na orla de Copacabana com mais de 200

Religiões e controvérsias Final.indd 159 18/08/2015 09:59:51


160 mil pessoas, pois são atores sociais com distintos pesos junto à opinião pública.
Entretanto, o referido estudo de caso demonstra como o debate público pode
seguir as mais inusitadas trajetórias quando os mais distintos atores sociais são
atraídos para determinadas contendas sociais, evidenciando argumentos que
realocam a trajetória dos termos salientados nesta investigação.
O estudo de caso aqui compreendido demonstra como são tortuosos os passos
pelos quais determinadas concepções corriqueiras na sociedade civil passam,
não permitindo ao investigador utilizar determinados termos “êmicos” sem
as devidas desconfianças analíticas. Tipificar determinado caso como “into-
lerância religiosa” (seja do ponto de vista jurídico ou não) é incidir sobre um
intenso processo de debate público que aciona os mais diversos atores sociais
a argumentarem em prol de fazer valer suas intenções acerca do que constitui
esse termo. Esses atores sociais, ao buscarem fazer valer suas noções acerca do
que compreendem por “intolerância religiosa”, trazem à tona debates acerca
de termos mais amplos, como as noções de “liberdade religiosa” e “liberdade
de expressão”.
Tupirani, para retomar o exemplo deste estudo de caso, não se coloca de
antemão contra as “leis que os homens fizeram”, mas revela que em caso
de conflito entre elas e a “Lei de Deus”, não há dúvida de que ele seguirá
a segunda, “a lei mais nobre de todas”. O jovem Afonso Henrique, o pastor
Tupirani e o blogueiro Julio Severo podem ser tomados como pontos fora do
eixo da trajetória do debate acerca da “liberdade religiosa” no Brasil e serão
coagidos quando não aceitos publicamente, porém o presente estudo de caso
demonstra como eles são centrais por fazer a trajetória acerca deste debate
público se modificar.

Referências bibliográficas
ALMEIDA, R. A universalização do Reino de Deus. 1996. Dissertação (Mestrado em Antropologia
Social)–IFCH-UNICAMP, Campinas, 1996a.
________. A universalização do Reino de Deus. Novos Estudos – CEBRAP, São Paulo, n. 44, p. 12-23,
1996b.
________. A Igreja Universal e seus demônios: um estudo etnográfico. São Paulo: Terceiro Nome, 2009.
BOLTANSKI, L. (1984) “Lá dénonciation”. Actes de la Reserche en Sciences sociales, 51, p. 3-40, 1984.
________. (1990) L’amour et la justice comme compétences: trois essais de sociologie de l’action.
Paris: Métailié, 1990.
________.; CHIAPELLO, É. O novo espírito do capitalismo. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes,
1991.
________.; THÉVENOT, L. Les economies de la grandeur. Cahiers du Centre d’Études de l’Emploi.
Paris: PUF, 1987.

Religiões e controvérsias Final.indd 160 18/08/2015 09:59:51


________; ________. De la justification: Les économies de la grandeus. Paris: Gallimard, 1991.

“Não cultuais imagens de escultura”


161
________; ________. The sociology of critical capacity. European Journal of Social Theory, v. 2, n. 3,
p. 359-377, 1999.
BORTOLETO, M. Não viemos para fazer aliança. Faces do conflito entre adeptos das religiões pente-
costais e afro-brasileiras. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social)–Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências, Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014.
CEFÄI, D. Como nos mobilizamos? A contribuição de uma abordagem pragmatista para a sociologia
da ação coletiva. Revista Dilemas, Vol. 2 – n. 4 – ABR-MAI-JUN, 2009.
CELIKATES, R. (2012) O não reconhecimento sistemático e a prática da crítica: Bourdieu, Boltanski
e o papel da teoria crítica. Novos Estudos – CEBRAP, São Paulo, n. 93, jul. 2012.
CHIAPELLO, É. Reconciling the two principal meanings of the notion of ideology. European Journal
of Social Theory, v. 6, n. 2, 2003.
LATOUR, B. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. São Paulo: Editora 34, 1991.
________. Reassembling the social: an introduction to Actor-Network-Theory. Oxford: Oxford Uni-
versity Press, 2005.
________. Como terminar uma tese de Sociologia: pequeno diálogo entre um aluno e seu professor
(um tanto socrático). Cadernos de Campo (USP), São Paulo, v. 14, n. 14/15, p. 83-98, 2006.
LEMIEUX, C. À quoi sert l’analyse des controverses? Mil neuf cent. Revue d’Historie Intelectuelle,
v. I, n. 25, 2007.
MARIANO, R. Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no Brasil. São Paulo: Loyola, 1999.
MIRANDA, A. P. M. Entre o privado e o público: considerações sobre a (in)criminação da intolerância
religiosa no Rio de Janeiro. Anuário Antropológico, v. 2009-2, p. 125-152, 2010.
________. A força de uma expressão: intolerância religiosa, conflitos e demandas por reconhecimento
de direitos no Rio de Janeiro. Comunicações do Iser, v. 66, p. 60-73, 2012.
________.; GOULART, J. B. Combate à intolerância ou defesa da liberdade religiosa: paradigmas
em conflito na construção de uma política pública de enfrentamento ao crime de discriminação
étnico-racial-religiosa. In: ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS, 33, 2009, Caxambu. Anais...
Caxambu: Anpocs, 2009.
MONTERO, P. Magia, racionalidade e sujeitos políticos. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São
Paulo, ano 9, n. 26, out. 1994.
________. Jürgen Habermas: religião, diversidade cultural e publicidade. Novos Estudos – CEBRAP,
São Paulo, n. 84, 2009.
ORO, A. P. (1997) “Neopentecostais e Afro-Brasileiros: quem vencerá esta guerra?”. Debates do NER,
Porto Alegre, v. 1, n. 1.
RODRIGUES JR., N. (2012) Liberdade religiosa ou uma questão de política de identidade?. Tese de
doutorado. IFCS-UFRJ. Rio de Janeiro.
SILVA, V. G. da. Prefácio ou notícias de uma guerra nada particular: os ataques neopentecostais às
religiões afro-brasileiras e aos símbolos da herança africana no Brasil. In: ________. (Org.). Into-
lerância religiosa: impactos do neopentecostalismo no campo religioso afro-brasileiro. São Paulo:
Edusp, 2007a. p. 9-28.
________. Entre a gira de fé e Jesus de Nazaré: Relações socioestruturais entre neopentecostalismo e
religiões afro-brasileiras. In: ________. (Org.). Intolerância religiosa: impactos do neopentecosta-
lismo no campo religioso afro-brasileiro. São Paulo: Edusp, 2007b. p. 29-70.
THÉVENOT, L. L’action qui convient. In: PHARO, L.; QUÉRÉ, L. (sous la dir. de). Les formes de
l’action: semantique et sociologie. Paris: E.H.E.S.S., 1990. p. 39-69.
________. Jugements ordinaires et jugements de droit. Annales ESC, v. 6, p. 1279-1299, 1992a.

Religiões e controvérsias Final.indd 161 18/08/2015 09:59:51


162 ________. Un pluralisme sans relativism? Théories et pratiques du sens de la justice. In: AFFICHARD,
J.; FOUCAULD, J. de (sous la dir. de) Justice sociale et inégalités. Paris: Éd. Esprit, 1992b. p.
221-253.
________. Pragmetiques de la connaissance. In: BORZEIX, A.; BOUVIER, A.; PHARO, P. (sous la dir.
de) Sociologie et connaissance: nouvelles approches cognitives. Paris: CNRS Èditions, 1998.
VANDENBERGUE, F. Construção e crítica na nova sociologia francesa. Sociologia & Estado, Brasília,
v. 21, n. 2, ago. 2006.

Citações bíblicas
ÊXODO. A Bíblia: tradução ecumênica. São Paulo: Paulinas, 2002.
REIS I. A Bíblia: tradução ecumênica. São Paulo: Paulinas, 2002.
ATOS. A Bíblia: tradução ecumênica. São Paulo: Paulinas, 2002.

Religiões e controvérsias Final.indd 162 18/08/2015 09:59:51


Políticas públicas, religião e patrimônio
cultural: mapeando a controvérsia pública
sobre o uso da ayahuasca no Brasil
HENRIQUE FERNANDES ANTUNES

O escopo do presente trabalho é mapear alguns dos principais desdobramentos


que contribuíram para a consolidação da categorização do uso da ayahuasca1
no Brasil enquanto manifestação religiosa e cultural, por meio da análise de
documentos provenientes de políticas públicas elaboradas nas últimas décadas.
A escolha pela análise das políticas públicas deve-se, sobretudo, ao fato de es-
tas apresentarem pontos de estabilização de um debate nos quais categorias e
terminologias consolidam-se, além de culminar em recomendações, prescrições
e procedimentos normativos. Procurar-se-á demonstrar ao longo do texto que
a regulamentação da ayahuasca para uso exclusivamente religioso efetivou-se
principalmente a partir da atuação de intelectuais na elaboração das políticas
públicas, que, valendo-se de seu conhecimento acadêmico, contribuíram para
sua normatização.
Desse modo, buscaremos apreender o debate que se desenvolveu em torno
do tema em fóruns governamentais – Confen, Conad e IPHAN – enquanto um
campo de disputas sobre a definição de significados e categorias, cuja correlação
de forças definiu o modo de tipificar as práticas ayahuasqueiras desembocando
em consensos sobre o modo específico de regulá-las.

1
A ayahuasca é uma decocção com propriedades psicoativas produzida a partir de duas plantas
nativas da região amazônica – o cipó Banisteriopsis caapi e as folhas de um arbusto, a Psicothrya
viridis – que contêm, dentre outros princípios ativos, a DMT (n,n-dimetiltriptamina), uma substân-
cia proibida internacionalmente sob a Convenção de Substâncias Psicotrópicas (CSP) de 1971 das
Nações Unidas (LABATE, 2012, p. 155).

Religiões e controvérsias Final.indd 163 18/08/2015 09:59:51


164 As primeiras políticas públicas sobre a ayahuasca:
“alucinógenos” e “cultura”
Em 1985, a Banisteriopsis caapi, um dos vegetais que compõem a ayahuasca, foi
inserida na lista de produtos proscritos a partir da Portaria n. 02/85 da Divisão
de Medicamentos (Dimed), órgão atrelado ao Ministério da Saúde responsável
na época por elaborar a lista de substâncias proscritas e de uso controlado no
Brasil. Meses depois, representantes da União do Vegetal (UDV)2 solicitaram
ao Conselho Federal de Entorpecentes (Confen) que avaliasse a questão3. A
ayahuasca permaneceu proibida até o início de 1986, quando um Grupo de
Trabalho (GT) instituído pelo Confen encaminhou um parecer que sugeria a
suspensão provisória da inclusão da B. caapi na lista da Dimed até que seus
trabalhos fossem concluídos (RESOLUÇÃO n. 06/86). Após alguns meses de
avaliação, período em que foram realizadas visitas, observações e entrevistas
com integrantes das entidades que fazem uso da ayahuasca, o Confen liberou
provisoriamente o consumo do chá. Em 26 de agosto de 1987, foi apresen-
tado o relatório final do grupo de trabalho, redigido pelo jurista Domingos
Bernardo de Sá, então conselheiro do Confen, com um parecer favorável à
exclusão definitiva da B. caapi da listagem de substâncias proscritas da Dimed
(LABATE, 2005, p. 409).
De acordo com o relatório, grande parte das indagações formuladas pelo grupo
de trabalho ao longo das investigações sobre os usos da ayahuasca aludiam a
duas categorias em especial: “alucinógeno” e “culturas”.
Estes quase dois anos durante os quais a “ayahuasca” foi objeto das preocupações
do Grupo de Trabalho, em que foram mantidos inúmeros contatos com usuários
dos mais diversos estratos sociais, como no Rio de Janeiro, na capital da República
ou no interior da selva amazônica, numerosas indagações foram formuladas, mas
que na realidade, implicavam já um juízo prévio e condenatório. Essas indagações

2
O Centro Espírita Beneficente União do Vegetal (Cebudv) é uma instituição ayahuasqueira fundada
na década de 1960 em Rondônia por José Gabriel da Costa. No ano de 2011, a União do Vegetal
contava com aproximadamente 14 mil sócios, os quais integravam os mais de cem núcleos espalhados
por todas as regiões do Brasil e alguns países da Europa e América do Norte (BERNARDINO-
-COSTA; SILVA, 2011).
3
Esquadrinhei em minha dissertação (ANTUNES, 2012) os argumentos relacionando a progressiva
associação do uso da ayahuasca ao estigma das drogas – e ao fato de a bebida tornar-se foco de
políticas públicas – com a inserção do fenômeno em novos regimes de circulação, quando uma
prática pouco conhecida e geograficamente circunscrita à região Norte do Brasil inseriu-se em novas
dinâmicas, adquirindo um novo status e visibilidade crescente, sobretudo a partir do posicionamento
de novos agentes no debate, como cientistas, intelectuais, instituições governamentais e veículos
midiáticos.

Religiões e controvérsias Final.indd 164 18/08/2015 09:59:51


gravitaram, mais frequentemente, em torno de duas palavras, “alucinógeno” e

Políticas públicas, religião e patrimônio cultural


165
“culturas”. A “ayahuasca” é “alucinógeno”? É possível admitir seu uso pelo homem
da cidade, tendo em vista as diferentes “culturas”, urbana e rural? (RELATÓRIO
FINAL DO GT, CONFEN, 1987, p. 29).

Nota-se que os argumentos são polarizados a partir de duas frentes: a ques-


tão das substâncias psicoativas, explicitada pela ênfase na possibilidade de a
ayahuasca conter propriedades alucinógenas, e a temática cultural, enfocando
especialmente as implicações da disseminação do fenômeno, culminando com
a introdução do uso da ayahuasca nos grandes centros urbanos do Brasil.
Com relação à temática dos psicoativos, o texto apresenta uma crítica ao de-
terminismo médico e farmacológico, a partir do questionamento do próprio
significado e das implicações do termo “alucinógeno”. Consta no relatório que
a busca de uma forma peculiar de percepção empreendida pelos usuários da
ayahuasca não se assemelha à alucinação – na acepção de desvario ou insanidade
mental. De acordo com Bernardo de Sá, foi constatado, ao longo das visitas às
instituições ayahuasqueiras, um projeto comum relacionado à busca do sagrado
e do autoconhecimento. O jurista argumentou que não cabe ao GT definir se as
formas empregadas pelas instituições em pauta para experienciar o sagrado ou
o autoconhecimento são ilusões, devaneios ou fantasias, termos comumente
relacionados à alucinação (RELATÓRIO FINAL DO GT, CONFEN, 1987).
Quanto à perspectiva culturalista, é possível destacar preocupações com rela-
ção à expansão do uso da ayahuasca em um âmbito nacional, problematizando
principalmente as possíveis consequências da inserção nas metrópoles brasi-
leiras de um fenômeno atrelado à configuração cultural da região amazônica,
tanto no que diz respeito a uma possível proliferação desenfreada de usuários,
quanto aos supostos riscos da utilização da ayahuasca fora de seu contexto
de origem. Sobre a questão em pauta, cabe citar a fala da antropóloga Regina
Abreu, apresentada no final do relatório de 1987:
Resta, ainda, acrescentar outras considerações à questão que apontamos anterior-
mente, relativa à conversão à doutrina de segmentos da sociedade urbano-industrial,
fato que gera temores por parte de grupos religiosos, autoridades civis e militares e
setores da sociedade civil. A adoção da Doutrina do Santo Daime nas cidades tem,
evidentemente, características peculiares à vida urbana. Não encontraremos nela,
obviamente, os trabalhos próprios do meio rural [...]. Mas a conversão à doutrina
pode levar os convertidos a práticas rituais e de vida que guardem as características
básicas das comunidades religiosas rurais. [...] De tudo resulta que essas comuni-
dades, do campo ou da cidade, que adotam a Doutrina do Santo Daime, podem
parecer, aos olhos de muitos, grupamentos exóticos, mas a convivência com essa

Religiões e controvérsias Final.indd 165 18/08/2015 09:59:52


166 diversidade somente poderá ser enriquecedora para os indivíduos e para sociedade
como um todo (RELATÓRIO FINAL DO GT, CONFEN, 1987, p. 31-32).

A colocação da antropóloga parte de noções como “conversão”, “práticas rituais”


e “comunidades religiosas rurais”, para inferir que a inserção das instituições
ayahuasqueiras nos grandes centros urbanos do Brasil fazia parte de um legítimo
processo social de expansão e disseminação de manifestações religiosas. Nesse
âmbito, é digno de nota que a última citação do relatório seja um trecho de
Raça e história4, de Lévi-Strauss, no qual o antropólogo afirma que nenhuma
cultura está plenamente só, sendo sempre capaz de se coligar a outras culturas,
edificando séries cumulativas, de modo que a única fatalidade que pode afligir
um grupo humano é impedi-lo de realizar plenamente sua natureza, obrigando-o
a ser só (RELATÓRIO FINAL DO GT, CONFEN, 1987).
A escolha da citação da obra do antropólogo na conclusão do relatório do
Confen pode ser entendida como um expediente para encarar a diversidade
cultural a partir de uma chave política para transformar um possível temor da
expansão do uso da ayahuasca em um processo histórico legítimo. Desse modo,
o argumento da antropóloga e o recurso ao texto de Lévi-Strauss propõem uma
leitura do fenômeno do uso da ayahuasca e de sua disseminação pelo Brasil na
chave da diversidade cultural.
No início da década seguinte, o enquadramento da disseminação do uso da
ayahuasca nos grandes centros urbanos a partir de uma perspectiva culturalista
foi reafirmado em um parecer emitido pelo Confen em 1992, também elabo-
rado pelo jurista Domingos Bernardo de Sá, o qual contou com a assessoria de
pesquisadores das áreas de antropologia, psiquiatria e psicofarmacologia. Ber-
nardo de Sá assinalou que o uso da ayahuasca apresentava uma clara dimensão
social e ritual, utilizando-se dos argumentos de Clodomir Monteiro da Silva
(1983), autor da primeira dissertação sobre uma instituição ayahuasqueira de
origem brasileira, o Santo Daime5. No relatório, o jurista cita uma fala na
qual o antropólogo afirma que “o uso do Santo Daime é quase exclusivamente

4
Cabe destacar aqui o fato de o relatório incluir a obra em questão, a qual foi elaborada no contexto
do pós-Segunda Guerra Mundial a partir de uma iniciativa da Organização das Nações Unidas para
a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), que, ainda sob o impacto do Holocausto, definia uma
agenda contra o racismo (MAIO; SANTOS, 2010).
5
O Santo Daime é uma instituição ayahuasqueira fundada na década de 1930 no Acre, por Raimun-
do Irineu Serra, a qual possui atualmente diversas vertentes, sendo que a maior delas, a Igreja do
Culto Eclético da Fluente Luz Universal (ICEFLU), conta com filiais em todas as regiões do Brasil
e diversos países do mundo. De acordo com Feeney e Labate (2012, p. 155), o Santo Daime e a
União do Vegetal, duas das principais instituições brasileiras que fazem uso da ayahuasca, estão
presentes em pelo menos 38 países.

Religiões e controvérsias Final.indd 166 18/08/2015 09:59:52


social, o que implica sempre uma sequência de atos ou ritos a observar-se”

Políticas públicas, religião e patrimônio cultural


167
(PARECER CONFEN, 1992, p. 16). Ainda no parecer de 1992, Sá vale-se da
análise do assessor Edward MacRae – antropólogo estudioso das temáticas que
envolvem o consumo de psicoativos e que possui diversas publicações sobre a
ayahuasca e seus usos – sobre a questão:
A propósito é oportuno verificar o que diz MacRae: “Quanto ao interesse cultu-
ral da ayahuasca ter um uso ritual urbano no Brasil há quase 70 anos, lembra-se
que esse é aproximadamente o mesmo tempo de existência da umbanda e que,
assim como no caso dela, o uso religioso do chá psicoativo ensejou a criação de
instituições que provêm a muitas pessoas os arcabouços éticos, sociais e culturais,
em torno dos quais construíram suas vidas. Os diversos estudos antropológicos e
históricos realizados sobre esse uso da bebida tem ressaltado a conduta pacífica e
ordeira dos adeptos das diversas seitas, cujos valores básicos coincidem com aqueles
considerados emblemáticos das sociedades cristãs ocidentais. Longe de levar a um
uso abusivo e destrutivo de substâncias psicoativas, a tendência mais notada é a de
promover estilos de vida recatados e austeros, voltados para o culto à espiritualidade
e aos valores familistas e comunitaristas” (PARECER CONFEN, 1992, p. 12-13).

Em um artigo que se propõe a uma retrospectiva das políticas públicas con-


cernentes à ayahuasca no Brasil, MacRae (2008) reafirma que os aspectos
socioculturais constituíram fatores determinantes para a decisão do Confen
apresentada no Relatório Final de 1987. No texto, o antropólogo salientou a
relevância das “regras”, dos “valores” e dos “rituais religiosos” para que fosse
fundamentada a referida decisão de regulamentar a ayahuasca para fins reli-
giosos. De acordo com MacRae (2008, p. 293):
O relatório de 1987 reconhecia que as religiões ayahuasqueiras contribuíram para o
reforço de valores considerados emblemáticos de sociedades ocidentais influencia-
das pelo cristianismo, além de promover sentimentos de coesão social tais como a
disciplina, a generosidade, o amor familial, o sentimento comunitarista e o respeito
à natureza. Hoje, os antropólogos também consideram esses cultos como “ritos
de ordem” e o uso religioso da ayahuasca um bom exemplo de redução de danos
relacionados ao uso de psicoativos, por prover um quadro de regras e valores, rituais
religiosos e sociais para o uso, estrutura de vida para os seguidores e controle da
disponibilidade da substância.

Nota-se a recorrência de análises e argumentos, tanto na literatura antropo-


lógica quanto nas políticas públicas, indicando que é precisamente o caráter
religioso das práticas das instituições ayahuasqueiras, com suas “regras”, “ritos”
e “valores”, que promove a coesão social entre seus integrantes, inviabilizando
um uso abusivo e destrutivo comumente associado ao consumo de substâncias

Religiões e controvérsias Final.indd 167 18/08/2015 09:59:52


168 psicoativas. É necessário ressaltar que a preponderância e o lugar de destaque
de análises produzidas por antropólogos explicam-se, em parte, pela ausência
de pesquisas biomédicas sobre o uso da ayahuasca, as quais tiveram início
na primeira metade da década de 1990, de modo que boa parte dos dados e
argumentos presentes nos primeiros relatórios acerca da ayahuasca baseou-se
principalmente na emergente produção acadêmica centrada na área das ciên-
cias humanas (SILVA, 1983; FRÓES, 1985; HENMAN, 1986; LANGDON
et al., 1986)6.
Partindo desse breve recuo, é possível constatar que argumentos provenientes
da literatura acadêmica – em especial a concepção apresentada pela literatura
antropológica que encara o fenômeno do uso da ayahuasca enquanto mani-
festação religiosa socialmente integradora, oriunda de uma tradição cultural
amazônica – tornaram-se parte integrante das análises presentes nas políticas
públicas, sendo de fundamental importância para a decisão de não proibir o
uso da bebida no país. Esse conjunto de indicações permite assinalar que a
produção acadêmica e a atuação de pesquisadores assumiram um papel pre-
ponderante na controvérsia pública, definindo a agenda das primeiras políticas
públicas voltadas para o controle do uso da ayahuasca no Brasil. O conjunto de
argumentos antropológicos que prevaleceram abriu caminho para consolidar
a leitura das instituições ayahuasqueiras enquanto religiões legítimas e, por
consequência, para definir a regulamentação do uso da ayahuasca para fins
exclusivamente religiosos.

Desdobramentos recentes das políticas públicas: a


salvaguarda da cultura
Apesar do posicionamento favorável do Confen nas décadas de 1980 e 1990,
a questão da regulamentação da ayahuasca para uso religioso foi reexaminada
na década de 2000. Em 31 de dezembro de 2002, o Conselho Nacional de
Política sobre Drogas (Conad) estabeleceu a Resolução n. 26, a qual partia do
princípio de “que o uso ritualístico do ‘chá ayahuasca’ constitui-se em mani-
festação cultural e religiosa regional de há muito reconhecida pela sociedade
brasileira”, e que determinava a criação de um grupo de trabalho com o objetivo

6
Em um artigo anterior (ANTUNES, 2011), problematizei a forma como a história do uso da
ayahuasca no Brasil é formulada ao longo de três décadas de debate acadêmico, analisando os
elementos e argumentos que possibilitaram a construção de filiações entre heranças históricas e
práticas rituais das instituições ayahuasqueiras brasileiras a uma tradição ameríndia amazônica de
uso da ayahuasca de longa duração.

Religiões e controvérsias Final.indd 168 18/08/2015 09:59:52


de estabelecer “normas de controle social referente ao uso do chá ‘ayahuasca’”

Políticas públicas, religião e patrimônio cultural


169
7
(RESOLUÇÃO N. 26 DO CONAD, 2002).
A resolução em questão foi emitida no último dia da administração do ex-
-presidente Fernando Henrique Cardoso e o Grupo de Trabalho acabou não
se constituindo (MACRAE, 2008). Contudo, em março de 2004, o Conad
solicitou à sua Câmara de Assessoramento Técnico-Científico (CATC) a ela-
boração de um novo estudo e parecer técnico acerca dos diversos usos da
ayahuasca. A CATC realizou discussões sobre a questão, contando novamente
com a participação de Edward MacRae e com as assessoras Sandra Lucia
Goulart e Beatriz Caiuby Labate, antropólogas estudiosas do tema (MACRAE,
2008). As discussões resultaram em um parecer aprovado e promulgado na
Resolução n. 5 do Conad, de 4 de novembro de 2004 (RESOLUÇÃO N. 5
DO CONAD, 2004).
Dentre os pontos específicos da Resolução n. 5, é assinalado o reconhecimen-
to jurídico da legitimidade do uso religioso da ayahuasca, cujo processo de
regulamentação iniciara-se há 18 anos com a suspensão provisória das plantas
que compõem a bebida da lista de substâncias proscritas da Dimed. O texto
aponta a importância de garantir o direito constitucional ao exercício de culto,
indicando que este deve ser alicerçado em uma ampla gama de informações,
provenientes de profissionais de diversas áreas do conhecimento, órgãos públi-
cos e pela experiência comum. Por fim, a resolução indica a formação de um
Grupo Multidisciplinar de Trabalho (GMT) para: empreender um levantamento
e acompanhamento do uso religioso da ayahuasca, assim como para pesquisar
sobre a utilização terapêutica em caráter experimental; promover o cadastro
nacional de todas as instituições que adotam o uso da ayahuasca; e elaborar
um documento que traduza a deontologia do uso da ayahuasca, como forma
de prevenir o seu uso inadequado (RESOLUÇÃO N. 5 DO CONAD, 2004).
A composição do GMT incluiu membros das áreas de antropologia, farma-
cologia/bioquímica, serviço social, psicologia, psiquiatria e direito. Também
integraram o grupo representantes das instituições que utilizam a ayahuasca.
Segundo MacRae (2008, p. 296), os peritos e cientistas do GMT Ayahuasca
foram selecionados entre pesquisadores que já haviam prestado assessoria ao
Confen e ao Conad em ocasiões anteriores, contando inclusive com a presença
de estudiosos que participaram da elaboração de relatórios do Confen sobre
a ayahuasca. De acordo com o antropólogo, a escolha dos representantes das

7
De acordo com MacRae (2008, p. 295), dentre os fatores responsáveis pela medida tomada pelo
Conad, destacam-se o surgimento de denúncias de uso inadequado da bebida, algumas delas vei-
culadas pela imprensa, outras direcionadas diretamente aos órgãos do poder público.

Religiões e controvérsias Final.indd 169 18/08/2015 09:59:52


170 entidades ayahuasqueiras ocorreu em um seminário organizado pelo Conad
em março de 2006, em Rio Branco-AC (MACRAE, 2008).
O GMT Ayahuasca publicou um Relatório Final em novembro de 2006, o qual
reiterou a legitimidade da liberdade de uso religioso da ayahuasca, partindo do
argumento da inviolabilidade de consciência e de crença e a garantia de proteção
do Estado às manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras,
com base nos artigos 5o, capítulo VI e 215, inciso 1o da Constituição Federal.
Na seção “Uso religioso da ayahuasca”, o documento aponta que o “uso ritua-
lístico da ayahuasca [...] tem sido reconhecido pela sociedade brasileira como
prática religiosa legítima” (RELATÓRIO FINAL GMT AYAHUASCA, 2006,
p. 6-7). Como consta no relatório:
Trata-se, pois, de ratificar a legitimidade do uso religioso da ayahuasca como rica
e ancestral manifestação cultural que, exatamente pela relevância de seu valor
histórico, antropológico e social, é credora de proteção do Estado [...]. Devem-se
evitar práticas que possam pôr em risco a legitimidade do uso religioso tradicio-
nalmente reconhecido e protegido pelo Estado brasileiro, incluindo-se aí o uso da
ayahuasca associado a substâncias psicoativas ilícitas ou fora do ambiente ritualístico
(RELATÓRIO FINAL GMT AYAHUASCA, 2006, p. 7).

De acordo com o documento, o GMT Ayahuasca reconhecia o caráter religio-


so de todos os atos que envolvem a ayahuasca, desde a coleta das plantas, o
preparo, o armazenamento e a ministração, tratando-se de “ato de fé e não de
comércio”, de modo que o consumo com a finalidade de obtenção de lucro
seria incompatível com o uso religioso. Cabe destacar também a questão da
proibição de turismo envolvendo a ayahuasca. No entanto, o relatório assegura
que as entidades têm o direito de promover eventos dentro dos limites legais
estabelecidos, devendo-se evitar que uma “prática religiosa responsável” venha
a se transformar em “mercantilismo de substância psicoativa, enriquecendo
pessoas ou grupos, que encontram no argumento da fé apenas o escudo para
práticas inadequadas” (RELATÓRIO FINAL GMT AYAHUASCA, 2006, p. 9).
Quanto à difusão de informações, o relatório destacou que a “publicidade da
ayahuasca” tem sido alvo de deturpações e abusos, principalmente na internet,
e estabeleceu que o “uso ritual responsável é incompatível com a publicidade e
a oferta de promessas de curas milagrosas, de transformações pessoais arreba-
tadoras [...]” (RELATÓRIO FINAL GMT AYAHUASCA, 2006, p. 9). Assim,
o parecer advertiu as entidades para que tratassem do tema com discrição,
sem fazer alardes quanto aos efeitos da substância. No que concerne à organi-
zação das entidades, recomendou que fossem constituídas em “organizações
formais, com personalidade jurídica, consolidando a ideia de responsabilidade,

Religiões e controvérsias Final.indd 170 18/08/2015 09:59:52


identidade e projeção social, que possibilite aos usuários a prática religiosa em

Políticas públicas, religião e patrimônio cultural


171
ambiente de confiança” (RELATÓRIO FINAL GMT AYAHUASCA, 2006, p.
11), e que contassem com a presença de pessoas experientes que saibam lidar
com os diversos aspectos que envolvem o uso da ayahuasca.
Partindo dos pontos apresentados no relatório, foram aprovados enquanto
princípios deontológicos para o uso religioso da ayahuasca: o uso restrito aos
rituais religiosos, sendo vetado seu uso associado a substâncias psicoativas
ilícitas; a proibição de comercialização da ayahuasca; busca de autossustenta-
bilidade por parte das entidades; evitar qualquer tipo de promoção turística
do uso da ayahuasca; não fazer propaganda; a recomendação para os grupos se
constituírem em organizações jurídicas; exercer controle sobre o sistema de
ingresso de novos adeptos, mantendo-se fichas cadastrais dos participantes,
dentre outros pontos. A conclusão do documento afirma:
Considerando, por fim, que o uso ritualístico religioso da ayahuasca, há muito re-
conhecido como prática legítima, constitui-se manifestação cultural indissociável
de identidade das populações tradicionais da Amazônia e de parte da população
urbana do país, cabendo ao Estado não só garantir o pleno exercício desse direito
à manifestação cultural, mas também protegê-la por quaisquer meios de acautela-
mento e prevenção [...] (RELATÓRIO FINAL GMT AYAHUASCA, 2006, p. 13).

Em janeiro de 2010, o Conad aprovou a resolução n. 1, que dispõe acerca da


observância, pelos órgãos da Administração Pública, das decisões do conse-
lho sobre as normas e os procedimentos compatíveis com o uso religioso da
ayahuasca, assim como seus princípios deontológicos. A resolução determina
a publicação na íntegra do Relatório Final do Grupo Multidisciplinar de Tra-
balho, decidindo também dar ampla publicidade ao relatório, encaminhando-o
a todos os conselheiros integrantes do Conad e às instituições que fazem uso
da ayahuasca (RESOLUÇÃO N. 1 DO CONAD, 2010).
A partir desse panorama sobre a elaboração de políticas públicas acerca da
ayahuasca, depreende-se o papel estratégico da participação de pesquisado-
res especialistas no tema, seja prestando assessoria aos órgãos públicos, seja
inserindo-se progressivamente nas comissões e nos grupos de trabalho cons-
tituídos com o objetivo de investigar questões concernentes à bebida e seus
usos. Com efeito, o antropólogo Edward MacRae (2008, p. 302) – que prestou
assessoria ao Confen na década de 1990 e foi membro do GMT Ayahuasca do
Conad – destacou o papel dos intelectuais no processo de regulamentação da
ayahuasca no Brasil, comparando-o, inclusive, às articulações de médicos e
antropólogos para a legitimação das religiões afro-brasileiras.

Religiões e controvérsias Final.indd 171 18/08/2015 09:59:52


172 [...] as tentativas de regulamentação do uso religioso da ayahuasca apresentam
numerosos pontos em comum com o processo de legitimação dos cultos afro-
-brasileiros. Entre eles figura também a importância do papel desempenhado
por intelectuais estudiosos ou simpatizantes do tema, especialmente médicos e
antropólogos [...], lembrando-se que em muitos casos eram também associados em
diferentes graus à prática das religiões em questão. Da mesma forma como Nina
Rodrigues, Arthur Ramos, Edison Carneiro, Gilberto Freyre, Jorge Amado e outros
foram de grande importância em legitimar os cultos afro-brasileiros, constituindo
um campo de estudos em seu entorno e organizando eventos científico-políticos
como os Congressos Afro-Brasileiros realizados na década de 1930, também médicos
e cientistas sociais [...] têm contribuído para ampliar e difundir os conhecimentos
sobre o tema (MACRAE, 2008).

É possível afirmar, portanto, que a atuação de intelectuais foi fundamental não


apenas para dar visibilidade e amplitude ao tema, mas também para modelar
a percepção pública dos fenômenos em disputa. Tal atuação, seja por meio da
produção acadêmica, seja na realização de congressos8 ou na participação nos
fóruns voltados para a elaboração de políticas públicas, contribuiu para confe-
rir legitimidade legal às instituições ayahuasqueiras ao reconstruir as práticas
de consumo do chá enquanto manifestação religiosa e cultural tradicional de
origem amazônica. Mas também contribuiu para definir o que pode ser en-
tendido como uso “ritual” em contraposição com o uso “mercantil” da droga
e para delinear os parâmetros aceitáveis de regulamentação dessas “religiões”
por parte do Estado, tais como a proibição da publicidade e de modos de
produção não artesanais da bebida.
Em retrospecto, é necessário ressaltar que as primeiras medidas tomadas pelo
Confen na década de 1980 enfocavam basicamente a questão da inclusão de
um dos vegetais que compõem a ayahuasca na lista de substâncias proscritas
da Dimed e os aspectos referentes à produção e consumo da bebida. Assim,
em um primeiro momento, o debate era polarizado pela problemática droga/

8
Cabe aqui destacar a realização do I Congresso sobre o Uso Ritual da Ayahuasca (I Cura), organizado
por Beatriz Caiuby Labate, em 1997. O evento, realizado na Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP), contou com a presença dos principais pesquisadores do tema, incluindo antropólogos,
historiadores, médicos, psicólogos, psiquiatras, representantes do Confen e de diversas entidades
ayahuasqueiras. De acordo com Labate, foram discutidas questões relacionadas à regulamentação
da ayahuasca no Brasil, além de aspectos psicológicos, éticos, legais e socioculturais que envolvem
o seu uso (ARAÚJO; LABATE [Orgs.], 2002). Um dos principais frutos do I Cura diz respeito à
publicação da primeira coletânea sobre o tema no Brasil, O uso ritual da ayahuasca (ARAÚJO;
LABATE [Orgs.], 2002), a qual teve uma seção dedicada exclusivamente às “religiões ayahuasqueiras
brasileiras”, tornando-se uma das principais referências na literatura acadêmica sobre a ayahuasca
a partir dos anos 2000.

Religiões e controvérsias Final.indd 172 18/08/2015 09:59:52


cultura e centrava-se principalmente na questão da proibição ou na possibilidade

Políticas públicas, religião e patrimônio cultural


173
de regulamentação da ayahuasca. Desse modo, os principais argumentos dos
primeiros relatórios focaram na defesa da legitimidade do uso da ayahuasca
enquanto manifestação religiosa e cultural sociointegradora.
A partir da década de 2000, as resoluções do Conad param de associar o uso da
ayahuasca à temática das drogas. Sua legitimidade deixa de ser objeto de debate
e torna-se um consenso bem estabelecido de que as entidades ayahuasqueiras
devem ser respeitadas como religiões herdeiras de uma tradição cultural ama-
zônica. Nesse novo momento, passa-se a debater quais seriam os mecanismos
sociais e legais necessários para garantir o “uso responsável da ayahuasca”,
entendido aqui como estritamente ritual e sem fins lucrativos. Essa nova pre-
ocupação culminou na iniciativa de estabelecer princípios deontológicos para
o consumo da ayahuasca, apresentando um conjunto de recomendações com
a finalidade de impedir o desenvolvimento de usos descontextualizados que
ameaçassem a legitimidade conquistada dessa manifestação agora respeitada
porque cultural e religiosa. Assim, o processo de regulamentação empreendido
pelo Conad para consumo da ayahuasca veio acompanhado de um constrangi-
mento sobre as formas aceitáveis (responsáveis) desse uso, tal como explicitadas
no relatório final do GMT Ayahuasca.

A ayahuasca como patrimônio imaterial da cultura brasileira


Em abril de 2010, a Assembleia Legislativa do Acre concedeu os títulos de cidadão
do Acre a Raimundo Irineu Serra (fundador do Santo Daime), Daniel Pereira de
Mattos (fundador da Barquinha) e José Gabriel da Costa (fundador da União do
Vegetal) (ALEAC, 2010). Dois anos antes, em abril de 2008, essas três vertentes
religiosas haviam entrado com um pedido de reconhecimento da ayahuasca como
patrimônio cultural imaterial brasileiro junto ao Instituto do Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional (IPHAN) [...]. Em setembro de 2006, as instalações da vertente
do Santo Daime, denominada Centro de Iluminação Cristã Luz Universal – CICLU-
-Alto Santo – foram tombadas como patrimônio histórico e cultural do Acre por um
decreto do governador Jorge Viana e do prefeito Raimundo Angelim. Esse processo
representa uma importante conquista na história dos grupos ayahuasqueiros, que
têm sido, desde a sua origem, frequentemente perseguidos. A relação desses gru-
pos com o poder público do Acre e a transição da ayahuasca do estigma de droga
perigosa para status de patrimônio cultural regional e nacional representam uma
importante transformação, e muito pouco foi escrito sobre isso até o momento
(LABATE, 2010c, p. 1).

Religiões e controvérsias Final.indd 173 18/08/2015 09:59:52


174 Beatriz Labate refere-se a um dos principais desdobramentos recentes da
controvérsia pública sobre a ayahuasca no Brasil: o pedido empreendido em
2008 por representantes responsáveis pelas fundações culturais do estado do
Acre e do município de Rio Branco, a partir de um diálogo com representantes
do Santo Daime, Barquinha e UDV, solicitando ao então ministro da Cultura
Gilberto Gil que, por meio do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (IPHAN), fosse instaurado um processo de reconhecimento do uso da
ayahuasca em rituais religiosos como patrimônio imaterial da cultura brasilei-
ra. Em novembro de 2011, o IPHAN deu início à avaliação do pedido, abrindo
uma licitação para que fosse empreendido um levantamento preliminar do
Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC) sobre bens e referências
culturais associados ao uso ritual da ayahuasca no estado do Acre. De acordo
com a solicitação feita ao IPHAN:
[...] a atuação destes três mestres fundadores – Irineu, Daniel e Gabriel [Santo
Daime, Barquinha e União do Vegetal, respectivamente] – estabeleceu as bases
doutrinárias de uma nova tradição religiosa, sincreticamente brasileira e tipicamente
amazônica, que possibilitou a formação de comunidades organizadas em torno do
uso ritual da ayahuasca e que passaram a ter importante papel (político, social
e cultural) na própria formação da sociedade brasileira na Amazônia Ocidental
(PEDIDO DE TOMBAMENTO DA AYAHUASCA, 2008).

O texto indica que as instituições em pauta tornaram-se parte indissociável da


sociedade brasileira, sendo aptas a receber o reconhecimento como patrimônio
cultural. Consta na solicitação que a utilização ritual da ayahuasca em doutrinas
religiosas preenche os quesitos que caracterizam a noção de patrimônio imaterial,
na acepção de “práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas
que comunidades ou grupos reconhecem como parte integrante do seu patri-
mônio cultural” (PEDIDO DE TOMBAMENTO DA AYAHUASCA, 2008).
Um mês antes de o IPHAN dar início ao período de avaliações, foi realizado o
Encontro da Diversidade Ayahuasqueira na cidade do Rio de Janeiro. De acordo
com uma carta do representante do ICEFLU, Alex Polari de Alverga, o evento
contou com a participação de integrantes de diversas instituições ayahuasqueiras,
representantes do IPHAN e do Ministério da Cultura, e teve como objetivo iden-
tificar e registrar a “diversidade ayahuasqueira” de modo a ampliar o pedido de
salvaguarda da ayahuasca como patrimônio imaterial da cultura brasileira feito
pelas entidades ayahuasqueiras do estado do Acre. Segundo Alverga (2011), o
Ministério da Cultura e o IPHAN consideraram necessário incluir, além das prin-
cipais entidades ayahuasqueiras – Santo Daime, Barquinha e UDV –, as diversas
instituições que não integravam inicialmente o debate.

Religiões e controvérsias Final.indd 174 18/08/2015 09:59:52


Não obstante o processo de reconhecimento ainda encontrar-se em andamento,

Políticas públicas, religião e patrimônio cultural


175
constata-se que, apesar das divergências e disputas entre entidades ayahuas-
queiras com relação às práticas e instituições que devem ser contempladas
pela categoria de patrimônio cultural, a discussão está pautada de antemão
em uma categorização prévia do fenômeno em questão enquanto manifestação
religiosa e cultural legítima. Tais desdobramentos, os quais só foram possíveis
após décadas de discussões e de desenvolvimento de políticas públicas, possi-
bilitam atestar a consolidação da associação ayahuasca/religião/cultura na atual
configuração da controvérsia pública no Brasil.

Considerações finais
Procurou-se ao longo do texto apresentar um mapeamento da controvérsia
pública sobre o uso da ayahuasca no Brasil, enfocando principalmente a ca-
tegorização do fenômeno enquanto manifestação religiosa e cultural credora
de proteção estatal. Para isso, foi empreendida uma análise de uma série de
documentos produzidos por Confen e Conad com o intuito de compreender a
consolidação de tal categorização. Argumentou-se que a possibilidade da regu-
lamentação da ayahuasca – em função de uma legislação pautada na defesa da
liberdade religiosa e na salvaguarda de manifestações culturais –, assim como
o recente enquadramento do fenômeno na categoria de patrimônio cultural,
só foi possível a partir da atuação de intelectuais no debate que deu suporte à
elaboração das políticas públicas. Ao construírem, no plano do debate acadê-
mico, uma concepção das instituições ayahuasqueiras enquanto manifestações
religiosas e culturais, produziram os fundamentos a partir dos quais o uso da
bebida pôde ser regulamentado.
Desse modo, procurou-se demonstrar que os processos de legitimação e de
reconhecimento das instituições ayahuasqueiras enquanto manifestações reli-
giosas e culturais implicaram a tipificação de suas práticas, desembocando em
um modo específico de regulá-las em nome do “uso responsável” da “droga”.
Assim, foi indicado que a categorização do uso da ayahuasca enquanto “reli-
gião” e “cultura” garantiu o reconhecimento da legitimidade das instituições
ayahuasqueiras, mas ao mesmo tempo impôs uma configuração particular
às instituições ayahuasqueiras, uma deontologia, a qual prescrevia que o uso
da bebida deveria ocorrer em um contexto ritual, sem fins lucrativos, sem a
associação com substâncias ilícitas, dentre outros pontos.
Por fim, foram brevemente apresentados alguns pontos do pedido, ainda
em fase de avaliação pelo IPHAN, do reconhecimento da ayahuasca enquanto

Religiões e controvérsias Final.indd 175 18/08/2015 09:59:52


176 patrimônio cultural. Destaca-se que, apesar das divergências e disputas em
torno do tema, o debate está previamente pautado na categorização do uso da
ayahuasca como manifestação religiosa e cultural, possibilitando assim atestar a
preponderância da associação ayahuasca/religião/cultura na atual configuração
da controvérsia pública no Brasil.
Contudo, a consolidação da concepção do uso da ayahuasca enquanto religião
e manifestação cultural não acarretou uma superação de alguns elementos
presentes no debate, principalmente no que tange à polarização a partir do
estigma das drogas. É comum encontrar argumentos e temas recorrentes sobre
o tema das drogas em um olhar atual do debate. Um exemplo relativamente
recente foi o programa de televisão MTV Debate, veiculado em março de 2010,
que enfocou a questão do uso da ayahuasca no Brasil. Intitulado “Daime:
droga ou religião?”, o programa contou com a presença de profissionais das
áreas de psicanálise, psiquiatria, psicologia, antropologia, toxicologia, alguns
deles membros de entidades ayahuasqueiras ou estudiosos do tema. Durante
o programa foram discutidas principalmente questões envolvendo políticas
públicas, liberdade religiosa e consumo de psicoativos.
Em fevereiro do mesmo ano, a revista IstoÉ publicou uma reportagem – logo
após a publicação da Resolução n. 1 do Conad de 2010 – abordando as recomen-
dações do GMT Ayahuasca e problematizando a regulamentação da ayahuasca
para uso religioso no Brasil. Segundo indica a reportagem:
Tudo começou no início do século passado, no coração da Amazônia. Caboclos
nordestinos atraídos pela extração da borracha mergulharam na cultura secular
dos povos da floresta, inevitavelmente absorvendo muito de sua essência. Logo
nasceram as chamadas religiões ayahuasqueiras, grupos em sua maioria cristãos que
incorporaram o consumo de um chá alucinógeno utilizado pelos indígenas em seus
rituais. Hoje, essas mesmas seitas estão no centro de uma polêmica que envolve
questões delicadas e perigosas, como o respeito à liberdade de crença, tráfico de
drogas e morte (REVISTA ISTOÉ, 5 fev. 2010).

A reportagem sublinhou os possíveis riscos de a regulamentação da ayahuasca


abrir precedentes para a criação de religiões que incorporem drogas ilícitas
como a maconha e a cocaína, criando um problema de saúde pública. Outra
reportagem que gozou de grande visibilidade foi veiculada pela revista Veja em
março de 2010, após a morte do cartunista Glauco, dirigente de um centro
daimista em Osasco: “A loucura e o Daime.” O texto dá ênfase principalmente
aos riscos de pessoas com distúrbios mentais ingerirem a bebida, apontando
também o risco da interação da DMT, presente na ayahuasca, com outras subs-
tâncias psicoativas. A reportagem aponta que a decisão do Confen de retirar a

Religiões e controvérsias Final.indd 176 18/08/2015 09:59:52


ayahuasca da lista de substâncias proscritas da Dimed, regulamentando-a para

Políticas públicas, religião e patrimônio cultural


177
uso religioso em 1987, constituiu “o primeiro de uma sucessão de erros que
culminou com a consagração do chá como ‘bebida sagrada’, título concedido à
substância alucinógena pelo Estado brasileiro em janeiro passado” (REVISTA
VEJA, 24 mar. 2010).
Na ocasião, alguns intelectuais se pronunciaram questionando o enfoque dado
a algumas reportagens que abordam a questão da regulamentação da ayahuasca.
Nesse contexto, a antropóloga Beatriz Labate publicou alguns artigos (2009,
2010a, 2010b) problematizando as reportagens publicadas nas revistas IstoÉ e
Veja, procurando apontar supostos erros grosseiros nas análises e argumentos
apresentados sobre a ayahuasca e seus usos.
Outra iniciativa digna de nota durante o período em questão diz respeito ao
Projeto de Decreto Legislativo 2.491/10, de autoria do deputado Paes de Lira
(Partido Trabalhista Cristão-SP), visando revogar a resolução do Conad com
relação à regulamentação do uso da ayahuasca, alegando que “o uso, mesmo que
religioso, de uma droga, no caso em tela o ‘chá do santo daime’ ou ‘ayahuasca’,
deve ser vetado quando gera malefício à saúde do indivíduo, esse é o motivo
de se proibir as drogas: o direito à saúde, à vida” (PROJETO DE DECRETO
LEGISLATIVO 2.491/10, p. 3-4). Após ser duramente criticado por estu-
diosos do tema e juristas que participaram das discussões que envolveram o
processo de regulamentação da ayahuasca no Brasil, o projeto acabou sendo
arquivado em janeiro de 2011.
Depreende-se, portanto, que o debate em torno da legitimidade do uso da
ayahuasca, longe de configurar um consenso, continua objeto de disputas,
estendendo-se entre vários segmentos, inserindo-se em articulações políticas,
fomentando debates nos meios de comunicação e em círculos acadêmicos.
Apesar de as disputas serem constantemente atualizadas, é possível argumentar
que tais articulações não tiveram ainda força suficiente para colocar em xeque a
capacidade persuasiva dos argumentos antropológicos em contraposição com os
biomédicos. Desse modo, mantém-se o consenso em torno do enquadramento
do uso da ayahuasca enquanto legítima manifestação religiosa e cultural, tendo
em vista que, apesar das tentativas mais recentes de fazer o Conad rever sua
decisão, ela foi mantida e até mesmo reafirmada. Já o movimento mais recente
de instauração do processo de reconhecimento do uso da ayahuasca em rituais
religiosos como Patrimônio Imaterial da Cultura Brasileira pelo IPHAN terá
como resultado, a nosso ver, retirar definitivamente o tema do consumo da
ayahuasca do campo do uso das drogas para o campo das práticas patrimoniais
imateriais a serem protegidas.

Religiões e controvérsias Final.indd 177 18/08/2015 09:59:52


178 Referências bibliográficas
ALVERGA, Alex Polari de. Comunicado da Igreja do Santo Daime (ICEFLU- Igreja do Culto Eclético
da Fluente Luz Universal. Patrono: Padrinho Sebastião Mota). Carta enviada ao Encontro da Di-
versidade Ayahuasqueira, 2011.
ANTUNES, Henrique Fernandes. A literatura antropológica e a reconstituição histórica do uso da
ayahuasca no Brasil. R@U: Revista de Antropologia Social dos Alunos do PPGAS-UFSCAR, v. 3, n. 2,
p. 76-103, 2011.
________. Droga, religião e cultura: um mapeamento da controvérsia pública sobre o uso da ayahuasca
no Brasil. 2012. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social)–Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2012.
ARAÚJO, Wladimyr Sena; LABATE, Beatriz Caiuby (Orgs.). O uso ritual da ayahuasca. Campinas:
Mercado de Letras/FAPESP, 2004 [2002].
BERNARDINO-COSTA, Joaze; SILVA, Flávio Mesquita da. Construindo o mundo da Hoasca: a
organização da União do Vegetal. In: BERNARDINO-COSTA, Joaze (Org.). Hoasca: ciência,
sociedade e meio ambiente. Campinas: Mercado de Letras, 2011.
FEENEY, Kevin; LABATE, Beatriz Caiuby. Ayahuasca and the process of regulation in Brazil and inter-
nationally: implications and challenges. International Journal of Drug Policy, v. 23, p. 154-161, 2012.
FRÓES, Vera. História do povo Juramidam: a cultura do Santo Daime. Manaus: Suframa, 1985.
HENMAN, Anthony. Uso del ayahuasca en un contexto autoritario. El caso de la União do Vegetal en
Brasil. América Indígena, Cidade do México, v. XLVI, n. 1, p. 219-234, 1986.
LABATE, Beatriz Caiuby. Dimensões legais, éticas e políticas da expansão do consumo da ayahuasca.
In: LABATE, Beatriz Caiuby; GOULART, Sandra Lúcia (Orgs.). O uso ritual das plantas de poder.
Campinas: Mercado de Letras, 2005.
________. As encruzilhadas da imprensa: uma análise da reportagem de capa da revista IstoÉ sobre
a ayahuasca. R@U: Revista de Antropologia Social dos Alunos do PPGAS-UFSCAR, v. 1, n. 2, p. 105-
-115, 2009.
________. Notas sobre a pseudo-reportagem de capa da revista IstoÉ sobre a ayahuasca. São Paulo:
Casa Amarela, 2010a. Disponível em: <http://carosamigos.terra.com.br>. Acesso em: 20 abr. 2010.
________. A lamentável reportagem da revista Veja sobre a morte de Glauco. São Paulo: Casa Amarela,
2010b. Disponível em: <http://carosamigos.terra.com.br>. Acesso em: 20 abr. 2010.
________. As religiões ayahuasqueiras, patrimônio cultural, Acre e fronteiras geográficas. Revista
PontoUrbe, ano 4, n. 7, p. 1-9, 2010c.
________. Paradoxes of ayahuasca expansion: the UDV-DEA agreement and the limits of freedom of
religion. Drugs: Education, Prevention and Policy, v. 19, n. 1, p. 19-26, 2012.
LANGDON, Esther J. et al (Orgs.). América Indígena, v. XLVI, n. 1, 1986.
MACRAE, Edward John Baptista das Neves. A elaboração das políticas públicas brasileiras em relação
ao uso da ayahuasca. In: LABATE, Beatriz Caiuby et al. (Orgs.). Drogas e cultura: novas perspec-
tivas. Salvador: EDUFBA, 2008.
MAIO, Marcos Chor; SANTOS, Ricardo Ventura. Cientificismo e antirracismo no pós-2a Guerra
Mundial: uma análise das primeiras Declarações sobre Raça da UNESCO. In: ________. (Orgs.). Raça
como questão: história, ciência e identidades no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2010.
SILVA, Clodomir Monteiro da. O Palácio Juramidam – Santo Daime: um ritual de transcendência e
despoluição. 1983. Dissertação (Mestrado em Antropologia Cultural)– Universidade Federal de
Pernambuco, Recife, 1983.

Religiões e controvérsias Final.indd 178 18/08/2015 09:59:52


Reportagens em periódicos

Políticas públicas, religião e patrimônio cultural


179
A ENCRUZILHADA DO DAIME. São Paulo: IstoÉ, 5 fev. 2010.
A LOUCURA E O DAIME. São Paulo: Veja, 24 mar. 2010.

Leis e documentos
Portaria n. 02/1985 – Divisão de Medicamentos (Dimed)
Resolução n. 04/1985 – Conselho Federal de Entorpecentes (Confen)
Resolução n. 06/1986 – Conselho Federal de Entorpecentes (Confen)
Relatório Final do Grupo de Trabalho 1987 – Conselho Federal de Entorpecentes (Confen)
Parecer do Dr. Domingos Bernardo de Sá – 02/06/1992 – Conselho Federal de Entorpecentes (Confen)
Resolução n. 26 – 31/12/2002 – Conselho Nacional de Política sobre Drogas (Conad)
Parecer da Câmara de Assessoramento Técnico-Científico – 17/08/2004 – Conselho Nacional de
Política Sobre Drogas (Conad)
Resolução n. 05 – 04/11/2004 – Conselho Nacional de Política sobre Drogas (Conad)
Relatório Final – Grupo Multidisciplinar de Trabalho Ayahuasca – 23/11/2006 – Conselho Nacional
de Política sobre Drogas (Conad)
Resolução n. 01 – 25/01/2010 – Conselho Nacional de Política sobre Drogas (Conad)
Pedido de Tombamento da Ayahuasca, 2008
Projeto de Decreto Legislativo 2.491/10

Religiões e controvérsias Final.indd 179 18/08/2015 09:59:52


Religiões e controvérsias Final.indd 180 18/08/2015 09:59:52
A homossexualidade de um militante cristão:
identidades e práticas como objetos de
reflexão política e teológica
ARAMIS LUIS SILVA

Introdução – Controvérsia a partir dos locutórios


Pelos ares da noite de 28 de julho de 2013, no avião que o reconduzia do Brasil
ao estado do Vaticano após sua primeira viagem internacional em seu novo
posto eclesiástico, Jorge Mario Bergoglio, então recém-eleito Sumo Pontífice
da Igreja Católica sob o nome de papa Francisco, declarou aos jornalistas a
bordo que o inquiriam sobre a sua posição em relação à homossexualidade:
“Se uma pessoa é gay, busca Deus e tem boa vontade, quem sou eu para
julgá-la?”1 Respondendo aos questionamentos sobre o “escandaloso caso de
amor” entre o monsenhor Battista Ricca, nomeado pelo novo vigário de Cristo
para um cargo estratégico no Banco do Vaticano, e Patrick Haari, ex-capitão
da guarda suíça, entrevero amoroso transformado em notícia havia poucos
dias pela revista italiana L’Espresso2 por conta de um suposto “lobby gay” que

1
Declaração extraída do site G1, disponível em: <http://g1.globo.com/mundo/noticia/2013/07/
declaracao-do-papa-francisco-sobre-gays-gera-reacoes.html>. Acesso em: 31 jul. 2013. Ver outras
versões, como no UOL, disponível em: <http://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noti-
cias/2013/07/29/papa-diz-que-gays-nao-devem-ser-julgados-e-porta-esta-fechada-para-ordenacao-
-de-mulheres.htm>.
2
O texto da L’Espresso tem autoria do jornalista e vaticanista Sandro Magister e data de 18 de
julho de 2013. Ver site da publicação, disponível em: <http://espresso.repubblica.it/dettaglio/
papa-francesco-e-la-lobby-gay-in-vaticano/2211434>. Acesso em: 31 jul. 2013.

Religiões e controvérsias Final.indd 181 18/08/2015 09:59:52


182 teria levado Ricca ao alto posto eclesiástico, o bispo de Roma explicou que
a questão não seria ter ou não essa orientação sexual. “O problema é fazer
lobby dessa orientação, ou lobbies de pessoas gananciosas, lobbies políticos,
lobbies maçônicos, tantos tipos de lobby3.” Em outra passagem, citando o
Catecismo da Igreja Católica numa tentativa de demonstrar que sua posição
estava referendada pela tradição, o herdeiro do trono de São Pedro emendou
em tom afetuoso, garantiram os vaticanistas: “(O catecismo) diz que eles (os
homossexuais) não devem ser marginalizados por causa disso, mas precisam ser
integrados à sociedade.” Trocando em miúdos, condenou-se o “pecado”, isto
é, os “atos homossexuais pecaminosos”, e não o “pecador”, aquele que carrega
uma orientação sexual interdita, restando-lhes, assim, entre a concretização
do desejo carnal e a danação, a contenção e a castidade.
Em velocidade proporcional a qual foram replicadas internacionalmente pelos
meios eletrônicos de comunicação, as declarações de Bergoglio provocaram
reações de agentes nacionais que despontam como lideranças religiosas concor-
rentes, mas agora todos conectados por conta daquilo que estamos chamando
aqui de “controvérsia do homoerotismo” – formulação conceitual de inspiração
latouriana que nos ajuda a circunscrever um conjunto de situações marcadas
pela performatividade discursiva de múltiplos agentes que se engajam virtual
e publicamente em torno de um objeto que lhes parece comum, mesmo que
não haja intenção para a compatibilização dos sentidos que lhes são atribuí-
dos. Interconectados numa arena virtual, esses produtores e propagadores de
sentidos e significados se projetam como lideranças que também disputam a
maneira como esse dado objeto deverá ser inscrito em uma memória coletiva
eletronicamente materializada pelo emaranhado de discursos que se fixam na
rede. No caso da nossa análise, o trabalho de inscrição da homossexualidade
enquanto um alvo de uma política teológica e espiritual.
Dos seus próprios locutórios, ou seja, de posições estruturais que ao mesmo
tempo interconectam e separam grupos específicos no interior de uma arena
discursiva interessada em metaforizar aquilo que um dia foi descrito como
opinião pública4, esses sujeitos comungam a condição de se projetar à cena
comum, todos à sua maneira, transformando a figura do “homossexual” em

3
Declaração extraída do site da BBC Brasil, disponível em: <http://www.bbc.co.uk/portuguese/
noticias/2013/07/130729_papa_gays_entrevista_jp.shtml>. Acesso em: 31 jul. 2013.
4
A imagem metafórica que sustenta esse conceito está ligada ao sentido fixado pelos dicionários.
Locutórios são aqueles compartimentos geralmente separados por grades ou vidros utilizados em
prisões e conventos para garantir a comunicação entre internos e aqueles que se situam para além
dos limites dessas instituições totais. Os sentidos e a pertinência do uso dessa metáfora ficarão
mais evidentes a seguir.

Religiões e controvérsias Final.indd 182 18/08/2015 09:59:52


objeto dos seus próprios projetos teológicos e/ou espirituais. Dito de outra

A homossexualidade de um militante cristão


183
maneira, em torno da imagem-ideia “gay”, todos disputam nesse campo
virtual generalizado de predicação o reconhecimento (e a legitimidade) de
serem os melhores intérpretes do Senhor, ou seja, aqueles que seriam os mais
habilitados a decifrar as mensagens deixadas pela divindade que definiriam,
entre outros tópicos do universo, o destino – espiritual e civil – de homens
e mulheres que mantêm intercursos sexuais com aqueles descritos como os
seus iguais.
Estamos aqui, em sintonia com os demais autores desta coletânea, assumindo a
controvérsia como uma nova e dinâmica abordagem antropológica para obser-
varmos a relação dialética entre processos de ressignificação e transformação
social5. Ou seja, como uma maneira teoricamente situada para observar agentes
que convergem à cena pública para representar e defender diferentes posições
mediante a produção e a veiculação de determinadas categorias simbólicas que
os perfazem no mesmo instante em que eles se põem em disputa do seu sig-
nificado. Antes de prosseguir, vejamos algumas das reações que as declarações
do papa Francisco suscitaram no interior daquilo que estamos chamando de
sistema de discursos orientado à reconfiguração e à visibilidade das significações
das condutas sexuais e afetivas descritas como homossexuais. Esse caminho
nos levará até o agente que será especialmente posto em observação neste
texto, nos ajudando a delinear, pelo contraste, o cenário no qual ecoam seus
discursos em progressiva formação e determinados por sucessivas condições
de anunciação, como demonstraremos.

Locutório 1. Na página eletrônica Verdade Gospel 6, o pastor Silas Malafaia,


liderança da Assembleia de Deus, a mais numerosa denominação evangélica
do Brasil7, não perdeu a oportunidade de voltar a se posicionar na controvérsia
acusando o papa de leniência e de ter cedido ao tal “lobby gay”, tendo em
vista a forma como o religioso católico abordou a questão. “Faltou ao papa a
firmeza de dizer que a prática homossexual é pecado. Uma maneira subjetiva

5
Acepção de dialética tomada justamente para nos afastar qualquer ideia de causa e efeito entre os
termos em relação.
6
As declarações estão disponíveis no site Verdade Gospel em: <http://www.verdadegospel.com/
papa-cede-a-lobby-gay-pr-silas-malafaia-comenta/?area=1>. Acesso em: 31 jul. 2013.
7
Segundo dados do Censo 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a Assembleia
de Deus não só é a maior denominação evangélica do Brasil como também foi o grupo religioso que
apresentou o maior crescimento entre os censos de 2000 e 2010, passando de 8,4 milhões de fiéis
no ano de 2000 para 12,3 milhões em 2010.

Religiões e controvérsias Final.indd 183 18/08/2015 09:59:52


184 e covarde de não assumir uma posição firme que a Bíblia não negocia”, escre-
veu o pastor pentecostal no dia 30 de julho, poucos meses depois de ter se
engalfinhado em uma polêmica televisiva com a jornalista Marília Gabriela,
arregimentando, ironicamente, argumentos bem antropológicos de que a
homossexualidade não tinha nada a ver com natureza ou genética, mas sim
com comportamento e aprendizado8. Em seu novo texto na internet, Mala-
faia foi mais enfático no ataque ao papa e à tal homossexualidade, há tempos
transformada em alvo de uma cruzada moral e espiritual: “Por que o papa
não diz que a prática homossexual é pecado e Deus condena na sua palavra?
(1 Coríntios 6.10 e Romanos 1 26.27). Pecado à luz da Bíblia está na ordem
do absoluto, não podemos negociar com ele, se assim o fizermos, deixamos
de ser a Igreja de Jesus”9, escreveu o líder evangélico, que ainda disparou o
escárnio. “Depois a Igreja Católica reclama que está perdendo gente para a
Igreja evangélica. Falta-lhe condenar o pecado”10, sentenciou o líder religioso
de maneira enfática.

Locutório 2. No mesmo dia e pelo Twitter, as declarações de Bergoglio ganha-


ram um improvável defensor localizado, entre tantas posições, no Congresso
Nacional brasileiro: o pastor e deputado Marco Feliciano, agente que parece
encarnar em pessoa o avesso do projeto normativo do secularismo ao eclipsar
os pretensos limites entre o político e o religioso. Aproveitando a deixa para se
reposicionar na polêmica sobre os homossexuais e ao mesmo tempo criticar a
imprensa, instituição que, segundo ele, o perseguiria por dar ampla cobertura
aos protestos dos movimentos sociais contra a sua designação e permanência
na presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos
Deputados, Feliciano acusou a mídia de ser desleal e tendenciosa por fazer
parecer que o papa aceitou aquilo que a Bíblia proibiu. “A imprensa só deveria
ser mais honesta e colocar com letras garrafais que, entretanto, o papa disse
que a Igreja não muda seus posicionamentos. Ou seja, ela ama o pecador, mas
não ama o pecado. Aceita o homossexual, mas não aceita o ato homossexual. A
Igreja não muda o que a Bíblia diz.” Mas revelando disposição para concorrer
ao rebanho gay desgarrado, em outro trecho afirma: “Li todas as reportagens
da entrevista com o papa sobre homossexuais. O que ele diz faz sentido, nin-
guém pode julgar ninguém. Também concordo que as Igrejas estejam abertas

8
O vídeo está disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=_3LFfboY2EU>. Acesso em:
17 ago. 2013.
9
Idem.
10
Idem.

Religiões e controvérsias Final.indd 184 18/08/2015 09:59:52


para receber os gays que procuram Deus, aliás, isso sempre foi feito pela Igreja

A homossexualidade de um militante cristão


185
evangélica”, declara o deputado pastor, que entrou para os anais da política bra-
sileira por conta das polêmicas em que esteve envolvido. Assim como apontou
uma série de analistas, Feliciano, ao se tornar o antípoda da causa gay, soube
converter o projeto da visibilidade de uma minoria em benefício próprio. De
um obscuro político do interior paulista a uma personalidade, para o bem e
para o mal, de projeção nacional, à custa, entre outras razões, da polêmica gay.

Locutório 3. Usando como de costume a rede social Facebook como sua


tribuna pública, Dário Neto, diácono da Igreja da Comunidade Metropoli-
tana de São Paulo (ICM), congregação vinculada à organização internacional
dita inclusiva Fraternidade Universal das Igrejas da Comunidade Metropo-
litana (FUICM), e eleito em 2013 como representante da macrorregião da
Grande São Paulo para o Conselho Estadual LGBT do Estado de São Paulo,
em parte graças ao forte engajamento das pessoas da sua Igreja durante a
campanha eleitoral realizada entre junho e julho do mesmo ano, ironizou a
polêmica iniciada por Sua Santidade: “Papa diz que não se deve discriminar
homossexuais, mas que homossexualidade continua a ser pecado. Nossa,
me emocionou... até correu uma lágrima. Traduzindo: pode andar na moda,
pode comprar Prada, Zara, Cavalera e o escambau. Pode fazer performance
de Madonna, Lady Gaga, Cher, Anita. Só não pode fazer coisinhas diver-
tidas. Olha a minha cara na pista, rodando bolsinha...”, debochou Dário,
doutorando do Departamento de Letras da Universidade de São Paulo,
especializado na obra de Machado de Assis. Em publicações seguintes, ele
enaltece o ativismo das feministas e cantarola a marchinha entoada dias antes
nos protestos da Marcha das Vadias, ocorrida na cidade do Rio de Janeiro,
para onde viajara no dia 27 de julho de 2013: “‘O ESTADO É LAICO E O
CU É MEU! SOU FEMINISTA, MACONHEIRO E ATEU’. Lindo vídeo!
Amei essa musiquinha...”, escreveu despudoradamente o ativista cristão,
nascido e criado na periferia da metrópole paulistana por uma mãe pente-
costal (Assembleia de Deus). Sujeito que afirma ter descoberto na política
uma forma de viver a sua religião: lutar pelos direitos humanos como uma
forma de evangelização. Diante das possíveis visões relacionadas às suas
posições polêmicas e provocativas, o militante e religioso não se incomoda.
“Sou um cristão que não sente culpa; sinto prazer.”

Religiões e controvérsias Final.indd 185 18/08/2015 09:59:52


186 O sujeito focal em uma cena teórica e o pastorado gay
Dário Neto surge entre tantos outros agentes no horizonte de uma pesquisa11
em curso interessada em analisar a participação das ditas Igrejas inclusivas12
no interior de uma controvérsia específica aqui representada por meio de um
modelo alusivo e metafórico exposto acima: a controvérsia do homoerotis-
mo. Um esforço, todavia, que faz parte de uma empreitada intelectual maior
vinculada ao grupo de pesquisadores reunidos nesta publicação, todos, cada
um ao seu modo, interessados em reposicionar teoricamente o problema da
participação das religiões na esfera pública por meio da análise das lógicas das
práticas (discursivas) de uma multiplicidade de ditos agentes religiosos que
ganham relevo em função das específicas controvérsias nas quais se envolvem.
Mas, antes de dirigir nossa atenção ao nosso sujeito focal, vale a pena compre-
ender como nos situamos no interior desse grupo. Bom caminho para isso é
evidenciar o que, como e por que estamos nos apropriando de alguns supostos
desse coletivo de pesquisadores para a montagem do nosso argumento.
Em primeira instância, ao abordarmos essas problemáticas por meio daquilo
que começa a ser descrito como o paradigma da controvérsia, além de nos
livrarmos de circunstanciar fenômenos pelo viés dos limites reificadores dos
grupos, que podem passar a ser vistos como resultantes do processo e não
elemento causal, isso nos permite dar outro estatuto teórico-metodológico
aos processos de comunicação social, elementos estruturantes e estruturados
dessas controvérsias. Afinal, tais processos nos garantem muito mais do que um
posto de observação para analisarmos o entrelaçamento entre política, religião
e sexualidade. Superando uma perspectiva em que a antropologia permane-
ce amarrada a categorias que não têm nada de universal, tentar apreender a
dinâmica dos processos de comunicação que fazem e desfazem grupos nos
coloca na direção do entendimento da produção e constante significação dessas

11
Referência à pesquisa “O pastorado gay e a controvérsia homoerótica – A (re)conquista do sagrado
pela produção de sujeitos de direitos”, projeto de pós-doutoramento em fase de desenvolvimento
junto ao Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP).
12
Igreja inclusiva se impõe enquanto uma categoria nativa. Está associada às experiências religiosas
de grupos que visam compatibilizar espiritualidade cristã com a vivência de uma sexualidade dife-
rente da heterossexual. Contudo, como bem nos lembram autores como Weiss de Jesus (2012a)
e Musskopf (2012), o termo é alvo de disputas internas entre as próprias igrejas ditas inclusivas,
que negociam os limites e termos dessa inclusão. Assim define Marcelo Tavares Natividade, autor
que inaugura de forma mais sistemática o estudo das ditas Igrejas inclusivas: “‘Igreja inclusiva’
corresponde a autoidentidade de segmento religioso que pretende romper com esse dogma (com-
preensão da prática homossexual como pecado) e formular leituras bíblicas que compatibilizem a
homossexualidade e a prática de religiões cristãs” (2008, p. 24).

Religiões e controvérsias Final.indd 186 18/08/2015 09:59:52


mesmas categorias que são postas como universais justamente por um efeito

A homossexualidade de um militante cristão


187
dos processos que as constituem.
Assim, livres dos compromissos epistemológicos restritivos que um dia defini-
ram a própria “natureza” do fazer antropológico – a compreensão da alteridade
objetivada e encarnada em um outro (essencialmente outro) –, podemos
deslocar nossa atenção para os processos de produção de sujeitos que ganham
seu relevos próprios enquanto portadores de diferenças que só podem fazer
sentido no interior desses mesmos sistemas processuais que os constituem pari
passu às suas diferenças. Trata-se de uma forma de enquadrar a alteridade,
vale a pena explicitar diálogos ocultos, próximo às proposições de Stuart Hall
acerca da intricada relação entre comunicação e interculturalidade (2003).
O caminho que está sendo proposto para a execução dessa tarefa é o foco
no agir comunicativo13 desses agentes que se projetam como lideranças pú-
blicas no instante em que tecem discursivamente suas diferenças enquanto
objetos marcadores de projetos políticos referidos a determinados coletivos
situacionalmente em contraste com os demais. Isto é, numa forma específica
de agência social baseada no exercício da representação pública de um grupo,
algo entendido por nós como uma prática modeladora de coletivos sociais. Um
construto teórico, que, no nosso caso, se torna correlato à ideia de processo
de comunicação social. Enfim, agir comunicativo, como de certo modo já foi
posto em questão por outras frentes teóricas, de Fredrik Barth a Roy Wagner,
que, por efeito do processo de criação e compartilhamento de códigos de
comunicação, é num mesmo instante produto e produtor de grupos.
Sob o ângulo desse conjunto de pesquisas em que estamos nos inserindo, os
agentes promotores das controvérsias são encarados (bourdieunamente) como
expressões de trajetórias de vida sempre situadas a determinadas posições
sociais e repertórios simbólicos. Agentes dos quais determinados pontos bio-
gráficos se lançam à cena pública como portadores de discursos que almejam
o status de verdade. Ação que implica em um só tempo a produção de signifi-
cações verossímeis perante os seus diversos públicos-alvo e a construção de si
enquanto figura autorizada a proferi-las em uma rede pontuada por diversos

13
A expressão aqui em nada se refere à acepção habermasiana. Referido a um diálogo propositivo
com a tipologia da ação social de Max Weber, o conceito de Habermas diz respeito a uma possível
interação entre sujeitos capazes de linguagem orientados à produção do consenso (o médium lin-
guístico). Distanciando-nos do caráter normativo da abordagem do filósofo, isto é, a proposição de
um modo de ação adequado ao fortalecimento do modelo democrático, aqui, agir comunicativo
restringe-se a um item tipológico. Um tipo de prática social orientado à conquista da visibilidade
pública, mesmo que tal caminho implique a transformação do dissenso em estratégia discursiva.

Religiões e controvérsias Final.indd 187 18/08/2015 09:59:52


188 nichos caracterizados em função dos seus tipos de interação, como poderemos
ver a seguir por meio da análise da trajetória do nosso agente focal.
Mas, para que possam circular por múltiplas arenas de interlocuções, esses
agentes e seus discursos – sempre em construção e numa relação de retroa-
limentação – precisam antes conquistar interna e externamente a posição de
porta-vozes de um coletivo. Isto é, sustentar “verdades” para interlocutores
referidos a outros ambientes sociais, sempre em nome dos seus supostos grupos
de pertencimento, ou, nos valendo de termos inspirados pela metodologia ge-
nealógica de Michel Foucault (2008) acerca da governamentalidade moderna,
de coletivos derivados do exercício de determinados pastorados.
Esse tal efeito dobradiça da liderança/representação no interior de uma arena
de argumentação pública pode ser mais bem visualizado a partir dos locutó-
rios, essas posições relacionais que produzem situacionalmente um ponto de
encontro entre um fora versus um dentro (equivalente a um nós versus eles no
interior do jogo da representação) no interior de um sistema de controvérsias.
Isso porque, vistos de fora dos locutórios, esses sujeitos que despontam como
lideranças aparecem mesmo como porta-vozes de um coletivo, aqueles que
representam grupos e falam em nome deles. Já em sua contraface, é dentro
desses locutórios que esses agentes desempenham o papel de pastores, ou
melhor, operadores do poder pastoral, tecnologia de poder que se caracteriza
por ser exercida não sobre um território, mas sobre uma coletividade humana
imaginada e em produção, que passa a ser, não pela soberania, mas pela sal-
vação e cuidado, o seu objeto de produção e conquista14. Enfim, como bem
define Foucault, uma forma específica de poder que tem como fim a conduta
dos homens e a produção de subjetividades. Uma forma de poder, aliás, bem
compatível com a orquestração de comunidades virtuais contemporâneas, acima
de tudo desterritorializadas e organizadas em nome de interesses pontuais.
Porém, afastando-se do suposto de que se trata de observar “crenças” e “repre-
sentações religiosas” dessas lideranças/representantes sendo convertidas para
a linguagem da política, a proposta teórica aqui defendida em comum acordo
com essas pesquisas visa justamente uma torção em relação a isso. Como bem
formulou Paula Montero em texto preparatório para a execução deste projeto
bibliográfico, “sugere-se que a antropologia das religiões deva se perguntar, não

14
Vale ressaltar que o pastorado não precisa necessariamente ser traduzido pela figura social do pastor.
Assim, ao apresentarmos a seguir a trajetória de Dário, ele jamais deverá ser confundido como
um pastor da sua Igreja. Os passos seguintes deste projeto de pesquisa envolverão justamente a
reconstituição das trajetórias dos efetivos pastores desse núcleo religioso. Esses, sim, personagens
os quais o pastorado faz coincidir com suas personas institucionais.

Religiões e controvérsias Final.indd 188 18/08/2015 09:59:52


sobre o sentido das crenças, mas sim como os discursos constroem a religião

A homossexualidade de um militante cristão


189
no mundo” (2013).
Diante desse contexto teórico, Dário e a trajetória de sua formação discursiva
são agora postos em cena pela capacidade que têm de ilustrar um fenômeno
associado à emergência das Igrejas inclusivas que muito nos interessa. Em meio
a uma série de denominações religiosas que despontaram na cena pública bra-
sileira mediante acalorada participação na controvérsia em torno das relações
homoeróticas e dos tópicos temáticos que delas se desdobram (união civil
entre pessoas do mesmo sexo, tratamento psicológico para redefinir orientação
sexual, intervenções cirúrgicas para mudança de sexo, práticas corporais alter-
nativas orientadas ao prazer, etc.)15, as ditas inclusivas atuam como instigantes
elementos no interior de um sistema de discursos orientado à reconfiguração e
à visibilidade dos significados dessas condutas sexuais e afetivas. Indo além, elas
se configuram como loci de produção de sujeitos e discursos que desestabilizam
pressupostos que organizam os fenômenos sociais em esferas hermeticamente
determinadas por lógicas próprias, como bem ilustra a experiência de Dário
Neto, que em breve veremos com mais atenção.
Contrariando a imagem de um campo de disputas simbólicas concebido como
resultante de uma clivagem entre uma militância laica civil versus religiosos
tradicionalistas, essas Igrejas operam no interior desse sistema como aparelhos
produtores de agentes vistos como “híbridos”, isto é, militantes civis engajados
em prol da “causa LGBT” (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e
Transgêneros) inspirados e mobilizados por argumentos ditos religiosos. Uma
configuração na qual a trajetória dessas organizações autoproclamadas cristãs,
sob o enquadramento das políticas de identidade, passam a se confundir na
história recente com a própria trajetória do movimento homossexual brasileiro
(FACCHINI, 2005; NATIVIDADE, 2007)16.

15
Um balanço condensado dessas controvérsias foi bem apresentado por Marcelo Tavares Natividade
em sua tese de doutorado (2008).
16
Diferentemente do que aconteceu nos Estados Unidos (um dos principais pontos de eclosão do
movimento LGBT), país no qual se assistiu à emergência dos movimentos gays cristãos paralelamente
à formação de demais organizações civis afinadas em torno da dita causa homossexual, no Brasil o
surgimento de grupos religiosos associados em torno das bandeiras LGBT ocorre com força a partir
do final da década de 1990, depois da formação das organizações não religiosas. Todavia, autores
como Facchini (2005), Natividade (2007, 2008) e Weiss de Jesus (2012) nos fornecem pistas em
suas produções de como ocorreu o entrelaçamento de relações entre as organizações civis laicas
e as instituições religiosas, processo marcado pelo trânsito de agentes de uma instância à outra.
Marcelo Natividade, particularmente, sugere a ideia da formação nascente de um “movimento gay
cristão no Brasil” (2007, p. 82).

Religiões e controvérsias Final.indd 189 18/08/2015 09:59:52


190 O perfil de um militante cristão
A trajetória de Dário Neto é tensionada por três vertentes que podem ser
artificialmente separadas pelas categorias “religiosidade”, “militância política”
e “intelectualidade”. Três eixos que hoje, aos seus 36 anos, encontram uma
unidade em torno de uma quarta categoria: “sexualidade”. É ela o nó articu-
lador de elementos que nem sempre foram tão harmonicamente associados.
Dário Ferreira Sousa Neto, publicamente conhecido como Dário Neto, nasceu
em Ferraz de Vasconcelos, na Grande São Paulo, e foi criado em Guaianazes,
área limítrofe da zona leste da cidade, local onde atualmente reside. De lá,
só se mudou aos 20 anos, quando foi morar no Conjunto Residencial da Uni-
versidade de São Paulo (CRUSP), onde se graduou, fez mestrado e desenvolve
seu doutorado no Departamento de Letras da Faculdade de Filosofia, Letras
e Ciências Humanas – um projeto sobre a produção literária de Machado de
Assis sob forte influência foucaultiana, como o próprio formula.
É filho de imigrantes do norte do estado de Minas Gerais que se casaram
em São Paulo. A mãe sempre trabalhou como empregada doméstica e o pai,
falecido em 1994 e separado da família havia anos, foi um auxiliar de enferma-
gem aposentado por invalidez. Dos seis irmãos, concebidos entre separações
e conciliações dos mesmos pais, cinco estão vivos. Além de Dário, Levi, mais
velho, também se declara homossexual e cristão. Josiane é de formação cristã,
é trans e atualmente adepta do candomblé. Os três frequentam hoje em dia os
cultos da Igreja da Comunidade Metropolitana de São Paulo (ICM-SP), núcleo
inclusivo que abordaremos com mais atenção a seguir.
A religião Dário herdou da mãe, até hoje ligada à Assembleia de Deus, de-
nominação evangélica pentecostal. Foi esse âmbito o espaço gerador do seu
habitus religioso, Igreja a qual frequentou até entrar na universidade, com um
intervalo de afastamento. “Era frequentador de escola dominical. Aliás, muito
mais dedicado à Igreja que os jovens da nossa comunidade. Era, por exemplo,
um dos poucos meninos que participavam da reunião das irmãs, os chamados
círculos de oração”17.
Reconhecendo-se mais fervoroso que a média dos jovens de então, Dário
aponta, porém, para uma diferença percebida dentro da própria casa. “Meus
irmãos tinham essa coisa de cantar18, essa coisa mais profética. Eu tinha uma
relação de curiosidade racional, de conhecimento. E por isso mesmo eu era

17
A entrevista gravada com Dário Neto ocorreu em São Paulo no dia 23 de julho de 2013.
18
Levi e Josiane participam do coral da ICM-SP.

Religiões e controvérsias Final.indd 190 18/08/2015 09:59:52


como um patinho feio, pois era uma figura questionadora. Muitos ficavam até

A homossexualidade de um militante cristão


191
ofendidos”, conta.
A primeira lembrança associada à ideia de homossexualidade é a imagem de
um policial militar, sujeito que veio ao socorro da família durante um entrave
de violência doméstica quando ele tinha quatro anos. “Tenho plena noção de
que era o que hoje eu entendo ser um desejo sexual. Obviamente que eu não
elaborava desse jeito. Mas posso dizer que era desejo porque eu me lembro
desse sentimento. É algo que eu trago comigo.”
A primeira experiência sexual ocorreu aos 13 anos em um hotel com um ho-
mem mais velho que acabara de conhecer na estação da Luz, no centro de São
Paulo, onde fazia alguns bicos com os irmãos visando complementar a renda
familiar. “Eu confesso que gostei (da experiência sexual), mas foi conflituoso.
Mas não foi um conflito religioso. Foi mais identitário. Comecei a me achar
menos homem.”
Dos 13 aos 15 manteve outras relações sexuais esporádicas. “Aos 15 anos saí
da Igreja por conflito de adolescente mesmo.” Rebeldia. Retorna poucos anos
mais tarde por imposição da mãe, fato que ele julga benéfico. “Porque, do
modo que eu estava administrando minha vida naquele período, eu poderia
ter feito algumas bobagens, como me envolver com drogas, ser morto.” E foi
nesse período de retorno, dos 17 anos até a sua entrada na USP, que ele vivencia
aquilo que é descrito como conflito entre sexualidade e religião. Todavia, é
interessante observar, a memória de Dário apresenta uma configuração desse
conflito diversa da forma automática que poderíamos relacionar à tensão entre
práticas sexuais, corporalidade e identidade.
“Foi total repressão. Nem masturbação podia ter. O conflito era justamente a
masturbação. Eu acabava me masturbando, mas me sentia culpado. Nem era
tanto uma culpa de desejar outros caras ou transar. Porque eu nem transava
nessa época. Isso acabou virando um tumulto na minha vida a ponto de eu me
masturbar dormindo.” Mais que certos conteúdos de um imaginário sexual,
Dário vivenciava a interdição do seu próprio corpo. Como ele nos explica, antes
mesmo do prazer homossexual ser formulado como perigoso/pecaminoso, o
próprio corpo como instrumento de prazer lhe era imposto como inviável,
impraticável, sob a condição da culpa.
A única pessoa em quem confiou para compartilhar nessa época seus dilemas
em relação ao binômio corpo/prazer foi um pastor da Igreja (Assembleia de
Deus), mas sem mencionar alvos identitários ou fantasias. “Acho que eu nem
tinha um objeto (sexual). Como eu me reprimia muito, só de tocar já me

Religiões e controvérsias Final.indd 191 18/08/2015 09:59:52


192 excitava.” Mas a reação e a tratativa do pastor foram fundamentais para sua
maior reclusão e conflito. “Ele falou que daquela vez ele perdoava (o fato
de ter se masturbado), mas da próxima ele iria me levar à igreja-sede. Tinha
lá uma reunião com os obreiros. As pessoas que haviam cometido pecado
tinham de ir confessar na frente de todo mundo”, conta Dário, que, segundo
ele, felizmente se livrou dessa situação vexatória. “Ainda bem que eu não me
expus, mas paguei um preço, pois tive de lidar com a culpa sozinho”, completa.
O desejo sexual ficou mais evidente quando ele foi fazer o cursinho pré-vestibu-
lar no Núcleo de Consciência Negra, instância, aliás, em que ele começou a ter
contato com pessoas que eram ligadas ao candomblé, naquela época então para
ele, “os macumbeiros”. A figura dos professores, lembra, começou a afetá-lo,
a atraí-lo. “Ali eu comecei a me questionar de forma mais estruturada sobre a
legitimidade desse sentimento. Isso não significa que eu não sentisse atração
antes. Mas eu não elaborava. Antes eu tinha instrumentos para coibir.” Sendo
assim, entrou na USP em 1998 com uma pergunta semiesboçada em relação às
práticas sexuais homossexuais e o prazer: e por que não?
A universidade, concebida no período pelo jovem evangélico nascido e criado
na periferia paulista como uma dádiva de Deus, também se abriu como um
universo de novas possibilidades e conflitos. Lá, teve acesso à internet, onde,
usando nome feminino, pela primeira vez travou contato eletrônico com um
suposto homem. Foi também pela rede eletrônica que voltou a ter efetivamen-
te novas relações homossexuais. A primeira delas desse período foi com uma
dupla interessada em “uma transa a três”. E no Centro de Práticas Esportivas
da USP (CEPEUSP) experimentou o que ele chama de “mudança paradigmática”
com um certo regime de corporalidade. Os corpos seminus e desinibidos da
piscina no complexo poliesportivo universitário contrastavam com o recato do
universo da Assembleia de Deus.
“Naquela época usava uma camiseta por baixo de uma camisa. Eu era um
assembleiano típico. Fedia à Assembleia de Deus.” Aliás, Dário lembra que
o tal ethos assembleiano também se transformou em motivo de conflitos
com moradores do CRUSP ligados à Igreja Batista. Rivais históricos, os colegas
encontraram na sexualidade instrumentos para atacar o moço da Assembleia.
O “crente” era uma “bichinha”, acusavam. Em cascata, identidades eram
convertidas em estigmas no ambiente universitário. Vale notar que o valor
semântico de “crente” estava por deveras associado a outro marcador: a classe
social. O “crente” seria um tipo de pobre. E aquele aos olhos dos colegas seria
um crente/pobre e homossexual.

Religiões e controvérsias Final.indd 192 18/08/2015 09:59:52


Mas no desenrolar da vida universitária uspiana, Dário se afastou da Assembleia,

A homossexualidade de um militante cristão


193
que sempre fora concebida como sendo a sua família, mesmo que conflituosa.
Para ocupar esse lugar, sempre procurou se aproximar de outros grupos cristãos.
“Eu precisava encontrar os meus, né?” Essa declaração nos parece reveladora.
Remete à ideia de um constante desejo/projeto de se construir sempre em rela-
ção a um grupo de pertencimento que partilhasse e lhe conferisse sentido. “Eu
tinha que estar na Igreja. Se eu não fosse, estaria no pecado”, diz mais adiante,
aproximando-se aqui de uma cosmologia coercitiva cristã em ação. Paralelamente
a essa procura espiritual e comunitária, mantinha atividades sexuais e o conflito.
O trânsito religioso o leva até a Igreja Presbiteriana, segundo ele, um espaço
de classe média alta e mais propício para o exercício de sua intelectualidade.
Para exemplificar essa percepção, Dário usa como argumento a presença
entre os frequentadores do núcleo religioso de professores da própria USP.
Nessa operação discursiva ele nos dá outra pista para reforçar o lugar que a
universidade ocupava em seu imaginário: um espaço/instituição produtor de
distinção social (BOURDIEU, 2007).
É nessa Igreja, que se apresentava diferenciada do universo periférico e in-
telectualmente limitado da Assembleia de Deus, que Dário experimenta a
primeira sensação de libertação em relação à sua sexualidade. Isso porque,
segundo o próprio explica de modo emblemático, essa instituição o ajudou a
diluir a ideia de religião. “Primeiro pela prática, né? Prática de não cobrar. Você
vai à Igreja quando quer... Você continua sendo membro. Participa das ceias,
não precisa confessar nada... Não tinha nada para ser confessado. A palavra era
outra, o espaço era muito mais propício para os debates teológicos.” É nessa
Igreja também que conversa abertamente pela primeira vez com um pastor
sobre sua orientação sexual. A interlocução estabelecida até hoje é percebida
como acolhedora e libertadora. O pastor presbiteriano lhe disse que ele não
poderia julgá-lo. Assim Dário relembra o que o religioso lhe teria dito: “Eu
tenho duas filhas. Se uma delas virar lésbica, eu não vou deixar de ser pai,
deixar de amá-la por isso.”
Para Dário, a experiência da anunciação homossexual naquele âmbito (religioso
e marcado por uma intelectualidade, importante lembrar) foi crucial. “Foi a
primeira pessoa com quem me senti à vontade em falar. Quando eu falei...
Foi um grande peso que eu tirei. Eu rompi com a culpa. Porque ouvi da boca
de um pastor... Essa performatividade discursiva, quer dizer, ele me libertou
naquele momento, eu me senti liberto quando ele disse isso”, lembrando Dário
que o conflito nunca o afastara da espiritualidade definitivamente. “Foi nesse
momento que eu me assumi, em 2001.”

Religiões e controvérsias Final.indd 193 18/08/2015 09:59:52


194 Segundo Dário, outro fator determinante em sua trajetória foi o seu envol-
vimento nessa época com as questões políticas da universidade e com o mo-
vimento estudantil. Esse percurso lhe teria dado acesso a partidos políticos
como o Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado – PSTU (porém, está
filiado ao Partido Socialismo e Liberdade – PSOL desde 2012) e, mais tarde, ao
movimento LGBT. Este último vínculo, ele mesmo destaca, teria representado
uma grande ruptura em sua biografia.
Dário conta que já na fase inicial da vida acadêmica ouvira falar de núcleos
como o Centro Acadêmico de Estudos do Homoerotismo da USP (CAEHUSP), mas
não se envolveu na época. “Imagina, isso era um pecado. Embora eu estivesse
fazendo, me envolver com gente homossexual era como se eu oficializasse
(uma identidade). A sexualidade que eu praticava era o meu fantasma. E eu
lidava com ela como fantasma”, comenta, lembrando que o desejo um dia fora
tratado em sua vida como uma tentação do diabo.
O envolvimento com o universo político relacionado à USP continuou a lhe
abrir portas (acesso a novas redes), tal qual a profecia evangélica que um dia
lhe fora proferida por uma “irmã” da Assembleia de Deus ao saber de sua
aprovação na universidade pública. Para lembrar de Sahlins, uma estrutura da
conjuntura estava pronta e apta para dar conta de um novo sentido e fazê-lo
expandir os velhos sentidos relacionados à providência divina. E assim Dário
foi progressivamente aprendendo a galgar posições em nome da representação,
burilando algo que lhe parecia como um dom e em ambientes que surgem
como uma espécie de torneios que garantem a ele certo gozo: o exercício
da retórica em polêmicas públicas19. No seu percurso, Dário foi membro do
Conselho Universitário da USP, diretor da Associação de Pós-Graduandos –
APG Capital, membro fundador do Grupo Prisma DCE-USP (grupo de discussão
sobre diversidade sexual) e, antes de ganhar a cadeira no Conselho Estadual
LGBT do Estado de São Paulo, tornou-se membro do Conselho Municipal de
Atenção à Diversidade Sexual de São Paulo.
“Participar da vida política foi muito importante para o meu processo de eman-
cipação. Foi quando encontrei amigos. Conheci outra lógica, outras pessoas.” Em
outra passagem ele esclarece: “Até então eu não tinha convivência com pessoas
que não eram cristãs.” Dário experimentou cada vez mais as consequências do
trânsito pelas redes e do contato com as suas diversas lógicas discursivas (que ele

19
Além dos posts e polêmicas em que se engalfinha na rede social do Facebook, Dário mantém o blog
Discursos Periféricos, disponível no endereço: <http://discursosperifericos.blogspot.com.br/>. Sua
textualidade também pode ser conferida em publicações periódicas que faz no site da ICM-SP. Ver
em: <http://www.icmsp.org/>.

Religiões e controvérsias Final.indd 194 18/08/2015 09:59:52


aprende habilmente a manejar e a intercambiar). E sobre sua orientação política,

A homossexualidade de um militante cristão


195
diz ter uma propensão a uma leitura crítica da sociedade anterior até mesmo
à sua entrada na universidade. “Até pela realidade que eu vivia: miséria. E pela
vida marginal a que eu era condicionado. Na escola, na Igreja... Mas você sabe
que nunca me senti incomodado com a marginalidade da sexualidade? Porque
eu lidava com outras marginalidades.” Segundo Dário, antes de se tornar um
militante LGBT, ele se fez um militante de esquerda comprometido com a luta
contra a exclusão social, entendida por ele de forma abrangente.
Essa plataforma se traduz em posições práticas em sua militância LGBT. Dário,
por exemplo, em meio à sua campanha para a eleição do conselho estadual
de representantes da entidade civil, colocou em pauta a questão dos gays,
lésbicas e trans residentes na periferia. Segundo o ideário de Dário, um mito
deveria ser explicitado (em sua falsidade) para ser erradicado: o “gay” das ca-
tegorizações publicitárias. Aquele gay consumidor, cuja conquista da cidadania
estaria sendo mediada por um dito poder aquisitivo diferenciado e um modo
de vida hedonista.
Todavia, foi com a identidade de militante gay de esquerda já formulada e a
relação com a religiosidade em rota de pacificação (“tinha aprendido que a
Igreja não precisa intermediar minha relação com Deus”) que Dário conhece
a Igreja da Comunidade Metropolitana (ICM), na qual hoje ele atua como
uma expressiva liderança e tem sua expertise acadêmica reconhecida como
seu grande diferencial entre os demais membros do seu núcleo religioso. Em
agendas especiais, como os Retiros Anuais de Páscoa, que reúnem lideranças e
membros de várias ICMs do Brasil, cabe a Dário a tarefa de ministrar palestras
sobre temas como análise de discursos, no intuito de fornecer instrumental
crítico às comunidades. No primeiro semestre de 2013, comandou na Igreja
curso sobre a história da sexualidade, de Michel Foucault.
Mas, se aparentemente na época do seu encontro com a ICM Dário não precisava
mais de uma Igreja, ele ainda necessitava de uma comunidade. Seria com essa
entidade (a comunidade) e por meio dela que continuaria a vivenciar a sua
experiência religiosa, agora também posta em prol de uma causa: a inclusão,
no âmbito dessa Igreja, deliberadamente pensada de forma generalizada e
extensível, como veremos a seguir.
O primeiro contato com a ICM aconteceu enquanto era integrante do Grupo
Corsa20. Sensibilizados pela condição de a Igreja ter sido desalojada, os dire-
tores da entidade LGBT entenderam que deveriam apoiar uma organização,

20
Grupo Corsa – Cidadania, Orgulho, Respeito, Solidariedade, Amor.

Religiões e controvérsias Final.indd 195 18/08/2015 09:59:52


196 mesmo que religiosa, por estar comprometida com a causa da inclusão do seu
mesmo público-alvo. Assim, cederam espaço e agenda para que ela realizasse
os cultos em sua sede. Dário, que começou a assistir aos cultos por conta de
uma coabitação institucional provisória, logo passou a participar efetivamente
das reuniões e em breve se tornaria a primeira pessoa a ser ordenada como
diácono da ICM-SP.
Segundo ele, foi uma relação de identificação. Isso porque encontrava uma
Igreja que assumia a luta pelos direitos humanos como missão e profissão de
fé. De maneira enfática ele formula: “Se existe alguma fé a qual eu devo me
apegar, se existe alguma religião, se existe algo, é isso. Então comecei a traduzir
a militância como esse ser religioso, esse fazer religioso.”
Será sua veia intelectual que lhe entregará o caminho para compatibilizar
militância e religião. “Eu até brinco, falo que Foucault me devolveu minha
fé. Porque quando eu comecei a ler... Ele ataca, sobretudo, os discursos
científicos, ele desmonta esses discursos.” Mais adiante, explica: “Foi nesse
momento em que li o primeiro livro dele que eu deparei com a Microfísica
do Poder, que grosseiramente se pode dizer que é uma espécie de síntese do
trabalho dele. Ali, no primeiro texto em que ele fala sobre Nietzsche, ele fala
sobre o perspectivismo, essa coisa de você assumir o seu lugar de injustiça,
você reconhecer de onde você fala. Esse lugar de injustiça é construído com
sua história. A partir disso... Eu fui criado como cristão, esse é meu modo de
conceber o mundo, esse é meu modo de entender as coisas. Então passei a
assumir isso, inclusive na militância.”
Desloquemos agora o foco. De um plano circunscrito em torno do nosso
sujeito focal, passemos para uma moldura institucional. A partir de um breve
perfil organizacional, vejamos o que sustentou a identificação entre o militante
cristão e sua Igreja. Esta, espaço sociológico não da “religião”, mas do ponto de
vista do nosso sujeito, da experimentação indissociável dos quatro eixos que
o constituem como tal anunciados anteriormente: “religiosidade”, “militância
política”, “intelectualidade” e “sexualidade”.

Igreja da Comunidade Metropolitana


A Igreja da Comunidade Metropolitana de São Paulo e as demais existentes
no país fazem parte de uma organização global, criada em 1968, nos Estados
Unidos, em meio às reivindicações pelos direitos civis que colocaram os de-
nominados grupos minoritários em evidência no cenário norte-americano.
Marcada tanto pelo forte caráter ecumênico (pelo menos, enquanto um valor

Religiões e controvérsias Final.indd 196 18/08/2015 09:59:52


a ser expresso) quanto por suas raízes protestantes, a Igreja foi fundada pelo

A homossexualidade de um militante cristão


197
reverendo Troy Perry, filho de mãe batista e pai pentecostal, sujeito que fora
expulso quando jovem do Midwest Bible College, em Chicago, por ter con-
fessado a um pastor “ser homossexual”21.
Depois de idas e vindas entre Igrejas, o fim de um casamento com uma filha
de pastor (interpretado como uma malsucedida tentativa de “cura gay”),
estadia na Alemanha por conta de um alistamento militar e uma tentativa de
suicídio, a criação da ICM surge na biografia de Perry como ponto culminante
de um processo de autoaceitação e de combate à homofobia externa e inter-
nalizada22. Um caminho no qual a proposição de uma renovação hermenêutica
dos ensinamentos morais bíblicos e o engajamento político pelos direitos (e
visibilidade) gays tornaram-se indissociáveis.
“A ICM prega um evangelho inclusivo de três pontos: salvação cristã, comuni-
dade cristã e igualdade de direitos”, afirma o reverendo em trecho divulgado
no site da instituição23, sugerindo-nos em que termos a liderança religiosa
pode convergir com a política e o associativismo militante. A Confissão de fé
inclusiva, texto ritualmente lido em todos os cultos, e no caso da ICM de São
Paulo, afixado nas paredes da igreja, é ainda mais eloquente:
Creio em Deus, Pai de todos, que deu a terra a todos os povos e a todos ama sem
distinção. Creio em Jesus Cristo, que veio para nos dar coragem, para nos curar
do pecado e libertar de toda a opressão. Creio no Espírito Santo, Deus vivo que
está entre nós e age em todo o homem e em toda a mulher de boa vontade. Creio
na Igreja, posta como um farol para todas as nações, e guiada pelo Espírito Santo a
servir todos os povos. Creio nos direitos humanos, na solidariedade entre os povos,

21
Em texto divulgado no site da ICM, Troy Perry conta com mais detalhes: “Eu sabia que os homens
me atraíam. Porém não havia um nome para isso naquela época, naquele tempo as pessoas acredi-
tavam que se alguém incorria em atos homossexuais era um heterossexual que andava mal, era um
comportamento doentio, mau, criminoso, pecaminoso. A homossexualidade era nomeada somente
às escondidas... Eu pensava que era o único.” Disponível em: <http://www.icmsp.org/icm/index.
php/sobre-a-igreja/historia-da-icm>. Acesso em: 5 ago. 2013. Uma versão mais detalhada pode
ser encontrada no site oficial da organização em inglês. Disponível em: <http://mccchurch.org/
overview/history-of-mcc/>. Ambos estão baseados no livro autobiográfico de Perry, The Lord is
My Shepherd, and He Knows I’m Gay.
22
“Deus me disse: amo-te, Troy. Eu não tenho enteados nem enteadas, tenho filhos e filhas”, conta
o reverendo. Antes de fundar a ICM, o religioso buscou inúmeras Igrejas para frequentar mediante
a condição de que pudesse contar às demais pessoas que era gay. “Disse à minha mãe que não ia
mentir a ninguém sobre quem eu sou.” Os trechos foram extraídos do site da ICM. Disponível em:
<http://www.icmsp.org/icm/index.php/sobre-a-igreja/historia-da-icm>. Acesso em: 5 ago. 2013.
23
A História da ICM. Ver o site da ICM. Disponível em: <http://www.icmsp.org/icm/index.php/
sobre-a-igreja/historia-da-icm>. Acesso em: 5 ago. 2013.

Religiões e controvérsias Final.indd 197 18/08/2015 09:59:52


198 na força da não violência. Creio que todos os homens e mulheres são igualmente
humanos. Creio que só existe um direito igual para todos os seres humanos, e que
eu não sou livre enquanto uma pessoa permanecer escrava. Creio na beleza, na sim-
plicidade, no amor que abre os braços a todos, na paz sobre a terra. Creio, sempre
e apesar de tudo, numa nova humanidade e que Deus criará um novo céu e uma
nova terra, onde florescerão o amor, a paz e a justiça. Amém.

Porém, ele destaca que foram necessárias certas mediações para estabelecer o
trânsito entre estes dois âmbitos: o religioso e o político. Pois alguns integran-
tes do movimento de direitos LGBT suspeitaram da ideia de ter como aliados
pessoas que se assumiam como religiosas. A sua interpretação para o fato nos
parece ainda mais significativa, pois evidencia sua visão crítica e reformadora
do papel das organizações cristãs: “Eles já haviam sido muito feridos pela Igreja
e não importava que esta fosse uma Igreja gay ou lésbica”, conta o religioso,
reconhecendo que a experiência comunitária baseada no ideário tradicionalista
cristão se impunha para muitas trajetórias de vida como fonte de exclusões,
violências e sofrimentos. Seu projeto compreendia a fundação de uma Igreja
baseada em uma nova visão de comunidade.
Atualmente, a ICM está presente em mais de 50 países no mundo, seja em
forma de Igrejas formalmente instituídas ou missões (projetos de assistência
social). Ela está inclusive em países como a Arábia Saudita, onde as práticas
homoeróticas são punidas com a pena de morte. Segundo informações de fontes
da ICM de São Paulo, a Igreja, por meio de relações com entidades médicas
locais, funciona nesses países como núcleos que garantem a transferência de
pessoas que estão sob ameaça das autoridades nacionais para outros países.
Nos Estados Unidos, a ICM enfrenta forte oposição das Igrejas cristãs, princi-
palmente aquelas de orientação fundamentalista. Por conta disso, Troy Perry
precisa viajar regularmente sob a vigilância de guarda-costas e já sofreu 22
vezes o amargor da notícia de uma filial da sua Igreja ter sido arrasada por
incêndios criminosos. Em contrapartida, a organização vem colhendo há alguns
anos alguns trunfos nesse país. Perry, por exemplo, assumiu uma cadeira na
Comissão de Direitos Humanos do Condado de Los Angeles, foi convidado
pelo ex-presidente Jimmy Carter para a discussão sobre direitos homossexuais
na Casa Branca em 1977, e foi hóspede do ex-presidente Bill Clinton em 1997
durante a Conferência sobre Crimes de Ódio. Por sua vez, a reverenda Nancy
Wilson, que ocupa atualmente o principal cargo na hierarquia da Igreja, por
meio de um convite para participar de uma celebração na Casa Branca, foi
reconhecida publicamente pelo presidente norte-americano Barack Obama
como uma liderança religiosa local.

Religiões e controvérsias Final.indd 198 18/08/2015 09:59:52


No Brasil, a Igreja está estabelecida oficialmente desde 2006, com templos

A homossexualidade de um militante cristão


199
e missões em cidades brasileiras como São Paulo, Fortaleza, Rio de Janeiro,
Maringá, Vitória, Belo Horizonte, João Pessoa, Teresina e São João de Meri-
ti24. E todos esses núcleos – nacionais e internacionais – estão organizados em
torno da Fraternidade Universal das Igrejas da Comunidade Metropolitana
(FUICM)25; possuem um clero escalonado em níveis hierárquicos com pastores
formados em seminários e cursos especializados; liturgia unificada organizada
e executada por ministérios locais; e defendem aquilo que eles chamam de
Teologia Inclusiva, vertente segundo a qual alguns informantes dizem estar
fortemente inspirada pela Teologia Feminista e pela Teologia da Libertação26.

ICM de São Paulo – Um olhar mais de perto


“Somos uma comunidade de pessoas que compartilham do desejo de viver a
mensagem de Jesus de forma a incluir, e não excluir; curar, e não ferir; pacificar,
e não guerrear; libertar, e não aprisionar; incentivar a liberdade e a criativida-
de de pensamento”, exemplifica no estilo retórico da organização o texto de
apresentação da ICM São Paulo, núcleo atualmente sediado em uma sobreloja
instalada no número 231 da rua Sebastião Pereira, próximo à estação de me-
trô Santa Cecília, no centro da cidade de São Paulo. Endereço discretamente
sinalizado por uma pequena placa à porta estampando uma bandeira-símbolo
do movimento LGBT: o arco-íris.
Fundada em agosto de 2006 pelo hoje pastor Cristiano Valério, psicólogo e
ex-ativista do Grupo Corsa27 e atual moderador local e responsável pela coor-

24
Musskopf (2012) nos lembra que a presença da ICM é anterior. Segundo o autor, em 2003 foi reali-
zada a I Conferência das Igrejas Metropolitanas no Brasil com o objetivo de adensar o trabalho que
a instituição mantinha no país via rede eletrônica de computadores. A meta era abrir núcleos locais
e presenciais. Já no ano seguinte, o reverendo e fundador Troy Perry viajou para o Rio de Janeiro
para participar da criação da ICM carioca. Porém, dois anos depois, o núcleo foi descredenciado da
organização internacional por divergências administrativas e regimentais.
25
A liderança da Fraternidade Universal das Igrejas da Comunidade Metropolitana é exercida desde
2005 pela reverenda Nancy Wilson, sob o cargo de “moderadora”. No livro memorialístico Nossa
tribo: gays, Deus e a Bíblia, editado no Brasil pela editora Metanoia, ela se define como uma pen-
sadora do ecumenismo terrorista, numa alusão bem-humorada ao seu trabalho de fazer convergir
a teologia e a Teoria Queer.
26
Certamente a leitura, a interpretação e o trabalho de transposição da Teologia da Libertação para
a Teologia Inclusiva realizados pelos intelectuais/teólogos da ICM despontam como uma frente de
investigação a ser realizada.
27
O Grupo Corsa – Cidadania, Orgulho, Respeito, Solidariedade, Amor é uma entidade civil criada
há 13 anos e direcionada à luta pelos direitos civis humanos de lésbicas, gays, bissexuais, travestis
e transexuais. Sediado na cidade de São Paulo, a partir de 2001 tornou-se uma organização não

Religiões e controvérsias Final.indd 199 18/08/2015 09:59:52


200 denadoria de desenvolvimento das ICMs do Brasil, a ICM-SP está organizada em
um corpo administrativo escalonado entre pastor, diáconos e demais lideranças
escolhidas em assembleias gerais para ocupar posições em “departamentos/
ministérios”, “conselhos” e “diretoria”, esta última composta por presidência
da Igreja, vice-presidência, secretaria da Igreja, tesouraria e conselho fiscal.
Os pastores devem ser ordenados e nomeados pela Fraternidade Universal das
Igrejas da Comunidade Metropolitana mediante formação teológica referendada
pela ICM, mais complementação teológica oferecida pela entidade. Os diáconos
dependem da indicação do pastor e da aprovação da comunidade religiosa. Im-
portante também destacar o lugar simbólico que as assembleias gerais ocupam
na organização. Como expressões rituais da reafirmação do seu compromisso
com os ideais democráticos e de igualitarismo participativo – princípios para o
seu modelo de exercício de poder –, a promoção periódica de tais assembleias
é marcada por certa suntuosidade reflexiva a fim de destacar o caráter especial
daquele evento, que se configuraria como um sinal diacrítico da Igreja.
As lideranças são responsáveis por coordenar uma agenda que tem semanal-
mente três dias fixos de atividades, congregando, em média, 60 pessoas, a
maioria formada por homens que se identificam como homossexuais. Além
deles, um pequeno grupo de mulheres (10% da audiência), organizado em
torno do Ministério de Mulheres (o ICM Delas, responsável pelo culto pelo
menos uma vez ao mês), que engloba inclusive aqueles que seriam descritos
pela terminologia LGBT como transgêneros, e pessoas com deficiência auditiva,
organizados no Ministério de Surdos (5% da audiência).
Às quintas – Quinta-feira de Adoração – a igreja fica aberta das 14h às 21h.
Este é o intervalo para o atendimento pastoral à tarde, sessões de estudo sob
o comando do Departamento de Formação e Ensino a partir das 17h30 (foi
nesse âmbito que ocorreu o curso de Foucault28) e o Culto de Celebração e
Adoração, iniciado a partir das 20h. Aos domingos, desde as 18h, a igreja fica
por conta do culto, no qual também acontece a Santa Ceia (partilha da hóstia
e do cálice de Cristo) que, ao lado do batismo, se constituem como os dois
únicos sacramentos professados pela ICM. Os cultos são regidos por uma estru-
tura litúrgica regulada pela matriz, cabendo ainda variações e acentos rituais
locais decorrentes das Igrejas de referência dos seus membros. Frequentemente

governamental (ONG) concentrada em projetos de intervenção social na área de prevenção às DST/


Aids e na formação de professores da rede pública em relação à temática da diversidade sexual, entre
outros. Nos primeiros anos de atividade da ICM, a Igreja dividiu espaço físico com o Corsa, mantendo
até hoje, além do pastor, outro agente que também pertencia às fileiras da ONG, o diácono Dário Neto.
28
Atualmente está sendo promovido um curso de especialização em Libras.

Religiões e controvérsias Final.indd 200 18/08/2015 09:59:53


roteiros de celebração são postos nas cadeiras, como o do Boletim Informativo

A homossexualidade de um militante cristão


201
da Igreja da Comunidade Metropolitana29. Os sábados, enfim, estão reserva-
dos às atividades e cerimônias especiais, como celebrações de aniversários e
casamentos. Em algumas ocasiões, são promovidas rodas de conversas, em que
são debatidos assuntos diversos. Vale destacar ainda que frequentemente as
reuniões e cerimônias também são promovidas fora do espaço físico da igreja.
A ICM já esteve sob a mira de análises acadêmicas (NATIVIDADE, 2008;
MUSSKOPF, 2012; MARANHÃO FILHO, 2011; WEISS DE JESUS, 2012a,
2012b), que hoje podem nos municiar com importantes informações sobre a
estrutura dessa organização e sua história, bem como fornecer elementos que
nos ajudem a compreender as dinâmicas internas que entrelaçam seus membros
em projetos institucionais específicos. Particularmente na seara antropológica,
a entidade de São Paulo ganhou especial atenção na época da produção da
tese de doutorado de Fátima Weiss de Jesus, defendida em 2012 no Programa
de Pós-graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa
Catarina (PPGAS/UFSC). Segundo a autora, orientada por questões teóricas dis-
tintas das nossas, sua intenção foi compreender as articulações entre gênero,
sexualidade e vivência religiosa nesse espaço específico dito inclusivo, focando
sua análise em “como se dá a construção e a valorização de ‘femininos’ entre
gays, lésbicas, travestis, transexuais e drag queens (2012b)”.
Mas, a partir do produtivo diálogo que estabelece com o trabalho de Marcelo
Natividade, que anos antes usara a Igreja da Comunidade Metropolitana (em
geral) como um espelho para identificar as especificidades do seu objeto de
estudo de então, a Igreja Cristã Contemporânea (ICC)30, a autora chega a
termos que nos interessam particularmente. Lendo o Código de Conduta e
Disciplina dos/as Clérigos/as da ICM, documento existente dentro do Manual
do Clero, organizado pela Fraternidade Universal das Igrejas da Comunidade
Metropolitana, Weiss de Jesus, também se valendo de interessantes entrevis-
tas com membros da Igreja, identifica a sexualidade como o “eixo teológico
estruturante da ICM” (2012a, p. 104). Indo além, uma vez que a “sexualidade é

29
Esquematicamente, as etapas do culto são: acolhida; prelúdio; boas-vindas; oração inicial; leitura
do Salmo; momentos de louvor; testemunhos de gratidão; hino de contrição; mensagem; cântico
de louvor; momento de entrega do dízimo; Santa Ceia; anúncios; oração final; bênção apostólica;
poslúdio (WEISS DE JESUS, 2012a, p. 102). Os cultos geralmente são presididos pelo pastor-
-mediador Cristiano Valério, sempre com a intensa participação de outros membros, seja na leitura
bíblica, nas evocações ou nos cantos. Além do pastor, também podem presidir o culto diáconos ou
outros religiosos convidados.
30
O surgimento da Igreja Cristã Contemporânea está associado à primeira tentativa de abertura da
ICM no Rio de Janeiro.

Religiões e controvérsias Final.indd 201 18/08/2015 09:59:53


202 positivada, entendida como um dom de Deus, que não está limitada às relações
estáveis, à reprodução, preocupa-se com relações igualitárias e consentidas”
(WEISS DE JESUS, 2012a, p. 104), esse dispositivo é também, como já havia
demonstrado Natividade ao seu modo, assumido como uma linguagem para a
organização dos múltiplos gêneros e código para a expressão performativa de
múltiplas humanidades possíveis, organizadas por novos regimes de regulação
de conduta compartilhados em vida comunitária.

Sexualidade como um campo de batalha... política e espiritual


Portanto, irmãos, vocês que receberam o chamado de Deus, vejam bem quem são
vocês: entre vocês não há muitos intelectuais, nem muitos poderosos, nem muitos
de alta sociedade. Mas, Deus escolheu o que é loucura no mundo, para confundir os
sábios; e Deus escolheu o que é fraqueza do mundo, para confundir o que é forte. E
aquilo que o mundo despreza, acha vil e diz que não tem valor, isso Deus escolheu
para destruir o que o mundo pensa que é importante. Desse modo, nenhuma criatura
pode se orgulhar na presença de Deus. Ora, é por iniciativa de Deus que vocês
existem em Jesus Cristo, o qual se tornou para nós sabedoria que vem de Deus,
justiça, santificação e libertação, a fim de que, como diz a Escritura: “Aquele que
se gloria, que se glorie no Senhor” (I CORÍNTIOS 1:26-31).

O trecho da carta aos Coríntios opera no contexto da ICM como índice de legiti-
midade espiritual para o seu projeto específico de Teologia Inclusiva, ou, como
também define a reverenda Nancy Wilson (2012), de Teologia Queer. “Somos
um movimento que proclama fielmente o amor inclusivo de Deus para todas as
pessoas e que testemunha com orgulho a sagrada integração entre espiritualidade
e sexualidade”, anuncia o texto no qual a instituição declara publicamente sua
Missão e Visão31. Reconhecendo a historicidade constituinte da moralidade cris-
tã, bem como as influências culturais que a moldam através dos séculos, a dita
Teologia Inclusiva ergue-se como um projeto desconstrutivista de forte inspiração
na tradição da teologia bíblica (alemã), interessada em recuperar os sentidos
históricos dos textos tornados cânones. Assim exemplifica o reverendo Marcio
Retamero a execução prática desse projeto teológico dentro da sua Igreja inclusiva:
Não há outro, para uma leitura inclusiva da Bíblia, senão o viés ou método histórico-
-crítico de análise dos textos que compõem a Bíblia. A leitura inclusiva da Bíblia
pressupõe que o leitor ou o pregador bíblico assuma a tarefa – nem sempre fácil – de

31
O texto pode ser encontrado na íntegra no site da ICM-SP. Disponível em: <http://www.icmsp.org/
icm/index.php/sobre-a-igreja/historia-da-icm>. Acesso em: 5 ago. 2013.

Religiões e controvérsias Final.indd 202 18/08/2015 09:59:53


desconstrução do pensar teológico, inclusive o dogmático, para, a partir daí, construir

A homossexualidade de um militante cristão


203
este novo edifício que chamamos de “Teologia Inclusiva” (RETAMERO, 2010).

A Teologia Inclusiva coloca em cena a figura do homossexual, articulando uma


vida espiritual com orientações e práticas sexuais para além daquelas estabelecidas
como moralmente aceitas. Mas, como bem demonstrou Natividade, “partindo do
pressuposto de que não existe ‘homossexualidade’, mas ‘homossexualidades’”, se
existem múltiplas experiências e mediação nesse campo inclusivo nacional em
formação (NATIVIDADE, 2010, p. 111), a ICM se posiciona nesse campo sob
o compromisso de ir além da simples positividade das ditas orientações sexuais
heterodiscordantes. Interpretando suas mensagens pastorais, que assumem com-
bativamente o tema da homofobia e da exclusão de gays, lésbicas, transgêneros
como importantes tópicos discursivos, podemos afirmar que seu projeto está
fundado na ideia de uma crítica radical da heteronormatividade e de qualquer
configuração na qual a inclusão figure como uma concessão ao status quo. A
partir dessa posição, ganhamos chave de interpretação para as suas posturas
ditas libertárias em relação a temas como relações sexuais fora do casamento,
poligamia, práticas sexuais alternativas, trânsito entre gêneros, etc.
Observando o discurso elaborado pela Igreja Cristã Contemporânea sobre a
homossexualidade – marcado pelo desejo de extinguir ou minimizar a separa-
ção entre os ditos homossexuais e heterossexuais – Marcelo Natividade bem
nos lembra que:
[...] a busca por reconhecimento social é perpassada por uma constante reflexão
sobre como proceder na promoção da igualdade: tomar a diferença como eixo das
reivindicações ou elaborar discursos que tendem a apagá-la, forjando fendas e for-
çando rachaduras em sistemas de valores tradicionais, de modo a obter mudanças
estruturais mais profundas? (NATIVIDADE, 2010, p. 112).

A resposta da ICM, como expressam seus discursos pastorais ou textos de


divulgação, é inequívoca. “Na ICM, nós acreditamos que na nossa humanidade
somos santos. Somos libertos das definições que as outras pessoas fazem de
nós”, registra a Missão e Visão da instituição. Mais adiante, sinalizando de que
modo se distancia de qualquer orientação que faz ver a castidade, a contenção
de conduta ou a valorização à discrição (seja ela em nome de uma masculinidade
ou feminilidade alinhada a uma norma) como o caminho para uma “santidade”,
para fazermos alusão ao termo empregado por Natividade, os ideólogos dessa
Igreja inclusiva formulam:
Na ICM, nós acreditamos que Jesus presidiu o caminho com atos de compaixão e
atos de justiça. Por termos sido um povo nas margens da sociedade, compreendemos

Religiões e controvérsias Final.indd 203 18/08/2015 09:59:53


204 completamente a graça que Deus estendeu a nós. Nós buscamos nos distanciar da
exclusão e nos aproximar da inclusão de todos os que são de alguma forma margi-
nalizados. Com ousadia, colocamo-nos do lado daqueles que resistem às estruturas
de exclusão, como Jesus fez, e trabalham para garantir liberdade para todas as
pessoas. Na margem, somos abençoados.

Experiência que compreende a comunhão comunitária da aceitação, não do


estranho, interdito, impuro e/ou imoral, mas da figura social que metafori-
zaria essas condições, isto é, o “homossexual”, aquele que existe em muitas
formas de ser. “Nós vivemos a nossa crença de que é na margem que somos
abençoados/as e fornecemos muitas formas para as pessoas encontrarem
nossa mensagem de libertação e inclusão.” Mais adiante, evidenciando de que
forma a religião se impõe como uma língua para uma atuação política, o texto
institucional arremata:
Na ICM, nós experimentamos a destruição de almas que vem da retórica carregada
de ódio. Ao restaurarmos nossas almas, descobrimos que nossas vozes falarão a
libertação que vem através da paz, da compaixão, do amor, do respeito e da graça.
Como seguidores de Jesus, nós acreditamos no privilégio sagrado de todas as pessoas
trabalharem por sua salvação. Embora sejamos uma Igreja cristã que segue Jesus,
nós respeitamos as outras tradições de fé e trabalhamos junto com elas para libertar
todos os que são oprimidos pelo ódio, pela falta de consideração e pela violência.

Interessante notar que no contexto discursivo da ICM, “libertação” e “salvação”


são textos de assinatura teológica, no sentido que Agamben deu ao termo,
que, em vez de registrarem em sua memória semiótica sua vinculação religiosa
para se fazer referência a ela em uma nova matriz secularizada, expressariam
a relação de imanência entre história e cosmologia, em uma primeira escala,
e corpo e espírito, em outra. Num sentido diametralmente oposto observado
por Natividade em relação às “curas milagrosas” e aos rituais de “libertação”
(da homossexualidade) pentecostal, nos quais tais fenômenos “reportariam à
necessidade de ordenar, submeter o indivíduo divergente ou sem fé às regras
vigentes entre os crentes” (NATIVIDADE, 2007, p. 102), a batalha sexual que
metaforizaria uma batalha espiritual na ICM se daria em nome da autonomia
reflexiva e não da repressão como expressão de força espiritual.

Referências bibliográficas
AGAMBEN, Giorgio. O reino e a glória: uma genealogia teológica da economia e do governo: homo
sacer II. São Paulo: Boitempo, 2011.
BOURDIEU, Pierre. A crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp; Porto Alegre: Zouk, 2007.

Religiões e controvérsias Final.indd 204 18/08/2015 09:59:53


COSTA, Jurandir Freire. A inocência e o vício: estudo sobre o homoerotismo. Rio de Janeiro: Relume-

A homossexualidade de um militante cristão


205
-Dumará, 1992.
FACCHINI, Regina. Sopa de letrinhas? Movimento homossexual e a produção e identidades coletivas
nos anos 90. Rio de Janeiro: Garamond, 2005.
FOUCAULT, Michel. Segurança, território e população. Curso dado no Collège de France (1977-1978).
São Paulo: Martins Fontes, 2008.
HALL, Stuart. Da diáspora. Identidades e mediações culturais. São Paulo: Humanitas, 2003.
LÉVY, Pierre. O que é o virtual? São Paulo: Editora 34, 1996.
________. Cibercultura. São Paulo: Editora 34, 1999.
MARANHÃO FILHO, Eduardo Meinberg de Albuquerque. “Jesus me ama no dark room e quando
faço programa”: narrativas de um reverendo e três irmãos evangélicos acerca da flexibilização do
discurso religioso sobre sexualidade na ICM (Igreja da Comunidade Metropolitana). Polis e Psique,
v. 1, número temático, 2011.
MONTERO, Paula. Secularização e espaço público: a reinvenção do pluralismo religioso no Brasil.
Revista Etnográfica, v. 13, n. 1, p. 7-16, 2011.
________. Religiões e controvérsias públicas: experiências, práticas sociais e discursos. Relatório Parcial
do Projeto Regular. Processo 2011/02948-6. Período: 30/07/2012 a 01/08/2013.
MUSSKOPF, André. Via(da)gens teológicas: itinerários para uma teologia queer no Brasil. São Paulo:
Fonte Editorial, 2012.
NATIVIDADE, Marcelo T. O combate da castidade: autonomia e exercício da sexualidade entre homens
evangélicos com práticas homossexuais. Debates do NER, Porto Alegre, ano 8, n. 12, p. 79-106, 2007.
________. Deus me aceita como eu sou? A disputa sobre o significado da homossexualidade entre evan-
gélicos no Brasil. 2008. Tese (Doutorado em Antropologia e Sociologia)–Universidade Federal do
Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008.
________. Uma homossexualidade santificada? Etnografia de uma comunidade inclusiva pentecostal.
Religião & Sociedade, Rio de Janeiro, v. 30, p. 90-120, 2010.
RETAMERO, Marcio. Pode a Bíblia incluir? Por um olhar inclusivo sobre as sagradas escrituras. Rio
de Janeiro: Metanoia, 2010.
VENTURINI, Tommaso. Diving in Magma. How to explore controversies with Actor-Network The-
ory, 2011. Disponível em: <http://www.tommasoventurini.it/web/uploads/tommaso_venturini/
Diving_in_Magma.pdf>. Acesso em: 16 ago. 2013.
________. Piccola introduzione alla cartografia delle controversie. Etnografia e Ricerca Qualitativa,
v. 3, 2008.
WEISS DE JESUS, Fátima. Unindo a cruz e o arco-íris: vivência religiosa, homossexualidades e trân-
sitos de gênero na Igreja da Comunidade Metropolitana de São Paulo. 2012. Tese (Doutorado em
Antropologia Social)–Programa de Pós-graduação em Antropologia Social da Universidade Federal
de Santa Catarina, Florianópolis, 2012a.
________. A existência drag em uma igreja inclusiva no Brasil. In: CONGRESSO INTERNACIONAL
DE ESTUDOS SOBRE A DIVERSIDADE SEXUAL E DE GÊNERO DA ABEH, 6, Salvador,
2012. Anais... Salvador: ABEH, 2012b.
WILSON, Nancy. Nossa tribo: gays, Deus e a Bíblia. Rio de Janeiro: Metanoia, 2012.

Citações bíblicas
I CORINTIOS. In: Bíblia Sagrada. Nova tradução na linguagem de hoje. Barueri: Sociedade Bíblica
do Brasil, 2001.

Religiões e controvérsias Final.indd 205 18/08/2015 09:59:53


Religiões e controvérsias Final.indd 206 18/08/2015 09:59:53
A hermenêutica dos corpos: notas sobre o
pastorado das mulheres na Igreja Universal
JACQUELINE MORAES TEIXEIRA

A ideia geral deste texto consiste em mapear a produção de saberes sobre


formas de falar, de apreender e de experienciar o corpo feminino. A partir
do desenvolvimento de algumas técnicas de governo pastoral, tais práticas
constituem uma política específica de gerenciamento desses corpos. Para es-
quadrinhar tais práticas e saberes, lançaremos mão de alguns conceitos foucaul-
tianos fundamentais. O primeiro deles diz respeito à noção de poder pastoral.
Associada a ela também utilizaremos como referência analítica os conceitos de
dispositivo e cuidado de si. A partir dessa abordagem, buscar-se-á descrever
algumas das tecnologias, das relações e dos condicionamentos disciplinares que
constituem certas práticas pastorais neopentecostais contemporâneas que têm
como finalidade primeira definir um regime de enunciação no qual a noção de
“prosperidade” delimita as formas e os sentidos do ser mulher.
Apresenta-se como objeto empírico a recente produção na Igreja Universal do
Reino de Deus (IURD) de saberes, sujeitos e técnicas voltados para a produção
da “Mulher V”, emblema que remete à figura descrita na Bíblia por Salomão
como “mulher virtuosa”. Trata-se de um conjunto de práticas que mobilizam a
noção teológica de “vida em abundância” a partir de uma disciplina focada na
divisão binária de gêneros cujo gerenciamento da prosperidade se dá a partir
do espraiamento de tecnologias para cuidado de si e para o casamento. Como
discorreremos mais adiante, tais formas são incorporadas por meio da produ-

Religiões e controvérsias Final.indd 207 18/08/2015 09:59:53


208 ção pedagógica de um calendário de desafios semanais destinados a mulheres
participantes do movimento Godllywood1.

Circunscrevendo regimes de enunciado


Como dito anteriormente, esta proposta analítica consiste em pensar o modus
operandi de um governo pastoral na IURD voltado para a regulação de algu-
mas práticas reprodutivas e formação de um grupo de mulheres autorizadas
a elaborar e instituir conceitos sobre a “Mulher V”. Inspirada na concepção
foucaultiana de poder como ação social, o foco desta análise está na produção
de tecnologias de intervenção, que funcionam como mecanismos para criar
relações, suscitar práticas e promover os sentidos partilhados na vida social.
Como se sabe, um dos primeiros deslocamentos propostos pela análise foucaul-
tiana do poder em relação às análises de caráter genealógico2 diz respeito à sua
sugestão de pensá-lo como uma prática social que se constitui historicamente.
No caso que aqui nos interessa mais particularmente, o modelo do pastorado
cristão, o poder se desenvolve como disciplina de auxílio na condução dos
indivíduos em direção à salvação, da observância da lei e da conquista da ver-
dade, configurando um regime baseado em tecnologias de controle do outro
e, consequentemente, de controle de si (FOUCAULT, 2008, p. 235).
Para pensar como tal forma de poder agencia esse coletivo particular de mu-
lheres, far-se-á uso da noção de regime de enunciado3 tentando descrever não
apenas o que é dito ou escrito pelo corpo eclesiástico autorizado, mas também
o modo como tais discursos são performatizados, disputados e visibilizados a
partir de mecanismos para fazer ver e para fazer falar.

1
Iniciado em 2010, o projeto Godllywood é voltado para a participação de mulheres membros da
Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), que, divididas em faixas etárias específicas, se reúnem
para cumprir tarefas que são avaliadas num modelo pedagógico muito semelhante ao modelo escolar
mais tradicional.
2
Vale ressaltar que a noção de genealogia cunhada por Foucault tem herança nietzcheana, que pro-
põe uma genealogia da moral que distancia sua genealogia de uma ideia de natureza, ao contrário,
a moral passa a ser fomentada, desde os gregos, perpassando instituições sociais como religião,
família e política.
3
Regime de enunciado é uma noção desenvolvida por Foucault a partir do conceito de dispositivo
e diz respeito a agenciamentos coletivos de resposta e exercício do poder. Em Arqueologia do
saber, o enunciado corresponde ao conjunto objetivo de frases ditas, dimensionadas pelo tempo e
por um espaço definido. Apesar da concepção de enunciado aparecer delimitada em textos espe-
cíficos sobre metodologia e análise do discurso, o texto Vigiar e punir apresenta uma importante
síntese da dimensão do enunciado no processo social de configuração dos dispositivos de poder
(DELEUZE, 1991).

Religiões e controvérsias Final.indd 208 18/08/2015 09:59:53


Ao pensarmos o conjunto de agenciamentos e disposições discursivas que

A hermenêutica dos corpos


209
acompanham os frequentadores da IURD na esfera pública, certamente a Teo-
logia da Prosperidade (TP) emerge como um código fundamental. De fato, há
uma centralidade do discurso teológico sobre a prosperidade no cotidiano dos
frequentadores da IURD, porém, pretende-se demonstrar que tais falas – para
além de oferecer conteúdos e um referencial cosmológico ou explicativo dessas
práticas – configuram uma forma, uma performance pública da vida privada.
A tradição socioantropológica especializada em pensar tipologias do campo
religioso brasileiro classifica a Teologia da Prosperidade como crença difusa no
eixo das Igrejas evangélicas denominado neopentecostal (MARIANO, 1999;
ORO, 2003; PIERUCCI, 1998). Freston (1993) descreve a IURD como a
principal representante da TP no Brasil. As práticas desenvolvidas na IURD têm
como lógica as diretrizes da TP que, no discurso dos fiéis, aparecem sempre
representadas pelo ideal da “vida em abundância”.
A Teologia da Prosperidade preza a confissão positiva, que remete diretamente
a uma postura que se deve adotar para a realização daquilo que se deseja. Numa
espécie de exercício de pensamento, deve-se antecipar mentalmente a meta a
ser alcançada (GOMES, 2004). Segundo a TP, a antecipação mental do desejo
deve vir acompanhada da ritualização de palavras de ordem e de posse daquilo
que se deseja. O demônio emerge como causa dos obstáculos impostos à vida do
fiel, de modo que caberá a este expulsá-lo. Após a expulsão demoníaca, encarada
como libertação espiritual, o fiel poderá acessar os benefícios que a vida terrena
pode oferecer, gozando de bem-estar físico, harmonia conjugal, riqueza material e
poder espiritual para subjugar o demônio sempre que necessário (LIMA, 2008)4.
Segundo o Dicionário do Movimento Pentecostal (p. 283), a tradição teológica
da confissão positiva, ou, como ficou conhecida no Brasil, a Teologia da Pros-
peridade, emergiu nos Estados Unidos num movimento teológico liderado
por Essek William Kenyon, um pastor de origem batista que, preocupado
com alguns insucessos de cura e com a grande depressão econômica na década
de 1930, passou a ensinar aos frequentadores que a crença na realização de
uma graça se daria atrelada à realização de exercícios mentais constantes de
antecipação da graça desejada. Kenneth Hagin, também de tradição batista,
que foi discípulo de Kenyon, aparece como responsável pela sistematização e
pela expansão dessa confissão ao criar um seminário teológico e escrever os
primeiros livros, nas décadas de 1950 e 1960. O seminário fundado por Hagin

4
Para um aprofundamento do tema da Confissão Positiva, ver Mafra (2001) e Mafra, Swatowiski e
Sampaio (2012).

Religiões e controvérsias Final.indd 209 18/08/2015 09:59:53


210 formou pastores conhecidos no movimento pentecostal brasileiro, tais como
Kenneth Copeland, Frederick Price, Charles Capps e Thomas Lee Osborn,
que teve vários dos seus livros traduzidos para o português graças ao apoio de
pastores da Igreja Nova Vida, no Rio de Janeiro5.
Para Hagin, em I believe in visions, what faith is, Bible faith6, na confissão
positiva, questões como pobreza, doença e infelicidade no casamento podem
ser considerados sinais de “maldição”. Para se libertar desses sinais e garantir a
vida em abundância, o crente deve seguir os quatro eixos da chamada “fórmula
da fé”, que são: 1. Diga a coisa – “De acordo com o que o indivíduo quiser,
ele receberá”; 2. Faça a coisa – ou seja, depois de afirmar, faça conforme a sua
afirmação, como se já tivesse recebido aquilo que você determinou ou decretou;
“De acordo com sua ação, você será impedido ou receberá”; 3. Receba a coisa
– viva como se já tivesse recebido o que você decretou; 4. Conte a coisa – fale
da coisa às pessoas como se você já a tivesse recebido. Essa mesma fórmula
é reproduzida por Macedo em O poder sobrenatural da fé (2011a). Assim, a
lógica da prosperidade física, material e espiritual perpassa toda a produção
teológica da IURD. Nesse universo teológico, o dinheiro emerge como um me-
diador-ritual que vincula a fé ao ideal de um “viver em abundância”. Não raras
são as publicações no jornal Folha Universal de reportagens com sugestões de
investimentos financeiros (GOMES, 2004; LIMA, 2008; SCHELIGA, 2010).
As críticas aos pressupostos teológicos da TP perpassam não apenas os textos
de teóricos de algumas denominações cristãs (a parte do Dicionário do Movi-
mento Pentecostal, reservada para a TP, a classifica de “teologia espúria” e de
“falsa interpretação da Bíblia”), mas também de alguns teóricos das ciências
sociais, que tendem a relacionar a TP e as práticas rituais da IURD a uma lin-
guagem mercadológica operando com a noção de “mercantilização da fé” (ver
PIERUCCI, 1998; 2005).
Mariz (1998) analisa alguns desses argumentos que acabam por conformar uma
tradição depreciativa das Igrejas classificadas como neopentecostais, dentre as

5
Fundada pelo missionário canadense Robert MacAlister, a Igreja Nova Vida foi o local de conversão
de Edir Macedo e Rosildo Rômulo Soares, que, no final da década de 1970, fundaram a Igreja
Universal. Os títulos de Osborn traduzidos para o português nas décadas de 1970 e 1980 foram:
Curai enfermos e expulsai demônios; Ganhando almas; O plano de amor de Deus; A vida abundante;
Impacto; Conquistando almas lá fora onde os pecadores estão. Todos esses títulos pertencem hoje à
Graça Editorial, editora da Igreja Internacional da Graça de Deus, fundada por R. R. Soares. (Para
mais detalhes, ver MACEDO, 2012).
6
Trata-se de uma publicação inicial, uma espécie de manifesto, que resultou, mais tarde, no periódico
semanal Word of Faith, uma importante revista divulgadora do ministério fundado por Hagin, a
saber, Rhema (http://www.rhema.org/).

Religiões e controvérsias Final.indd 210 18/08/2015 09:59:53


quais a IURD sempre obteve grande destaque, bem como aparece como alvo de

A hermenêutica dos corpos


211
manifestações de repúdio. Os traços dessa depreciação expressam-se no uso de
categorias como charlatanismo, magia, superficialidade teológica e exploração
financeira dos pobres ao fetichizar o dinheiro com promessas de cura e êxito
econômico (LIMA, 2008).
Apresenta-se essa breve descrição apenas para esclarecer o argumento que
será desenvolvido aqui. A proposta deste texto consiste em pensar a pros-
peridade não como um princípio causal das práticas dos fiéis da IURD, mas
como forma de agenciamento de discursos sistematizados por uma razão
pedagógica voltada para o governo do estado e do estilo de vida. Essa forma-
ção pedagógica para a prosperidade pode ser observada, sobretudo, no corpo
de práticas que integra uma espécie de programa disciplinador baseado nos
direitos reprodutivos e na formação das mulheres como gerenciadoras da
família, tais como o projeto Godllywood.
Em texto anterior buscou-se analisar alguns discursos de Edir Macedo e de
outros líderes da IURD acerca da legalização do aborto e o modo como, num
período de quatro anos, a defesa do aborto deixou de ser uma posição pessoal
do bispo fundador da Igreja e passou a ser divulgada e discutida por outras
lideranças e projetos7. Publicações dessa natureza tornaram-se ainda mais
incisivas em 2010, entre os meses que antecederam as eleições presidenciais,
mais especificamente no curto período que corresponde ao intervalo de tempo
entre o primeiro e o segundo turnos. Para a maioria dos noticiários vinculados
na época, o segundo turno ocorreu devido ao posicionamento favorável à le-
galização do aborto, mantido pela então candidata Dilma Rousseff, originando
protestos por parte de inúmeras agências religiosas que engendraram um
movimento maciço de boicote de votos (LUNA, 2013; MACHADO, 2012;
TEIXEIRA, 2012).
Ao seguir a temporalidade desses enunciados performatizados por meio da
produção de mecanismos para fazer ver e fazer falar pode-se intuir que o
controle do nascimento, e o aborto como tecnologia legítima desse controle,
são percebidos como formas materiais de execução e de universalização da
boa vida. Isso porque a prosperidade não pode ser lida apenas na chave do
compromisso pessoal, ela deve se instaurar como estilo de vida. Nesse jogo

7
Em outubro de 2007, mês marcado para possível votação no Congresso Nacional do PL 1.135/91,
projeto que pretendia descriminalizar o aborto no Brasil, Edir Macedo concedeu uma entrevista ao
jornal Folha de S.Paulo declarando sua posição com relação ao aborto e sua legalização. A mesma
declaração foi reafirmada em outros textos publicados em seu blog pessoal e em sermões (ver mais
em TEIXEIRA, 2012).

Religiões e controvérsias Final.indd 211 18/08/2015 09:59:53


212 dialético e lógico, para se acessar a boa vida é preciso circundar suas causas e
produzir dispositivos que garantam, ainda que processualmente, a extinção do
sofrimento, que, nesse caso específico, emerge representado pela pobreza. O
aborto torna-se, assim, um instrumento plausível na construção de um modelo
social para a extinção da pobreza e do sofrimento.

Corpo e reprodução: tecnologias para fazer falar e fazer ver


Como dito anteriormente, a prosperidade não consiste em conteúdos teológi-
cos circunscritos apenas ao âmbito financeiro. As noções de prosperidade e de
vida em abundância estão em constante disputa, suas formas e seus sentidos se
formulam e reformulam em todas as instâncias da vida, tendo o foco no corpo
feminino e na performance familiar estruturada no modelo de conjugalidade
heterossexual. Nesse contexto, a prática abortiva, comumente relacionada à
clandestinidade e à ilegitimidade, aparece como uma recomendação diretamente
ligada à disciplina familiar rumo ao bom viver (TEIXEIRA, 2012, 2014).
No caso das frequentadoras e frequentadores da IURD envolvidos no projeto
Godllywood, os discursos mobilizados na construção pedagógica de uma per-
formance para a prosperidade se distanciam de categorias como “imediatismo”
ou “riqueza instantânea”, e se aproximam das categorias “revolta”, “sacrifício”,
“desafio”, “perseverança” e “aprendizado”, apontando para a produção de uma
razão pedagógica8 voltada para o pastorado dos corpos para o alcance da boa
vida e de bem viver.
Segundo essa pedagogia, a prosperidade permanece na lógica da conquista, porém
essa conquista deve ser apreendida a cada dia. Seu aprendizado se dá por meio
da produção de tecnologias educacionais – cultos, campanhas especiais, reuniões
etárias, livros, cursos específicos e programas de televisão –, configurando um
importante circuito de atividades que passam a gerenciar a vida e os corpos.
Apresentaremos agora alguns dispositivos considerados importantes na for-
mação dessa pedagogia.
O jornal Folha Universal é considerado o periódico mais lido entre os fiéis
da IURD, atingindo a tiragem semanal de quase 2 milhões de exemplares. No

8
Bourdieu entende razão pedagógica, ou o domínio prático das regras de polidez, explicando que
“artifício da razão pedagógica reside precisamente no fato de extorquir o essencial sob aparência
de exigir o insignificante, como o respeito às formas e as formas de respeito que constituem a
manifestação mais visível e ao mesmo tempo mais ‘natural’ da submissão à ordem estabelecida”
(2009, p. 114).

Religiões e controvérsias Final.indd 212 18/08/2015 09:59:53


ano de 2010, dentre suas seções, foi acrescentada a seção “Seu corpo” e o

A hermenêutica dos corpos


213
caderno especial “Folha Mulher”. Nela semanalmente são publicadas notícias
sobre doenças sexualmente transmissíveis e métodos contraceptivos, dentre
as quais cinco reportagens foram sobre o aborto. A lógica das reportagens é
sempre muito semelhante: começa apresentando inúmeros dados sobre a
mortalidade feminina resultada pela prática clandestina do aborto e classifica
como desastroso o nascimento de filhos não desejados ou não planejados. Todo
o enredo das reportagens baseia-se na contraposição de exemplos negativos
e positivos. Os exemplos negativos são sempre associados a mulheres que,
por medo ou por insistência familiar, não realizaram aborto, e que por causa
dessa escolha perderam seus empregos, não estudaram e foram abandonadas
por seus maridos ou namorados. Os exemplos positivos, por sua vez, falam de
mulheres que, apoiadas por seus parceiros e familiares, realizaram o aborto em
clínicas clandestinas de luxo, meses depois foram promovidas nas empresas,
se casaram, constituíram família e passaram a se dizer felizes ao lado de seus
parceiros. A síntese da reportagem apresenta sempre uma mulher como uma
via de bênçãos celestiais para a família, de modo que caberá a ela a decisão do
momento mais adequado para iniciar sua família9.
O número 732 da Folha Universal trouxe a seguinte manchete: “Sem filhos:
pesquisa do IBGE mostra que casais sem filhos têm uma renda maior.” A repor-
tagem apresentava um cálculo do gasto médio anual que se deve ter com um
filho; em seguida, um cálculo aproximado de quanto uma família economizaria
se optasse por não ter filhos. O texto termina com a seguinte conclusão: “Casais
sem filhos economizam uma pequena fortuna.” Semelhante à reportagem já
citada neste texto, esta também se estrutura com base na contraposição de
exemplos tidos como negativos e positivos. Os negativos apresentam casais que
tiveram filhos e que estão financeiramente endividados, em oposição a casais
que optaram por não ter filhos e que, por esse motivo, mantiveram certo êxito
profissional e financeiro. Na reportagem, a mulher é citada como alguém que
ajuda a família, ou seja, parte-se do pressuposto de que se a mulher alcançar
seu êxito profissional, ela ajudará seu parceiro a progredir de tal maneira que
toda a sua família será beneficiada. Assim, o modelo familiar sem filhos faci-
litaria a dedicação profissional da mulher, bem como seu apoio incondicional
ao marido, aos objetivos e à carreira profissional dele.
Outra importante fonte de circulação de informação entre os membros da
IURD é a revista Plenitude10. De periodicidade mensal, a revista tem uma

9
Ver Folha Universal n. 845, n. 870, n. 928 e n. 929.
10
Disponível em: <http://www.revistaplenitude.com.br>.

Religiões e controvérsias Final.indd 213 18/08/2015 09:59:53


214 tiragem bastante inferior se comparada à da Folha Universal – seu campo
de distribuição se restringe mais aos membros da Igreja. Nos anos de 2008 e
2009, foram catalogadas pelo menos 12 reportagens11 relacionando trabalho
e bom desempenho financeiro a planejamento familiar. Destaca-se a reporta-
gem publicada em 31 de dezembro de 2008, cujo título é “Casais mudam de
comportamento e decidem por família menor em troca de melhor qualidade
de vida”. Essa matéria enfatiza a histerectomia masculina como importante
método contraceptivo e incentiva os homens a participarem do planejamento
familiar optando por esse tipo de intervenção cirúrgica.
O incentivo à vasectomia como um método contraceptivo necessário para o
planejamento da família aparece em muitos outros veículos de informação
produzidos pela IURD, bem como no relato de muitos casais frequentadores
da Igreja. Não foi possível ainda realizar um exercício de quantificação desse
dado, mas é certamente possível pensar em suas implicações. De alguma forma
ele ajuda no desenho desse modelo de família em que a quantidade de filhos
deve diminuir para apenas um, tornando perfeitamente aceitável, inclusive,
a escolha por um modelo familiar sem filhos. Esse modelo parece se espraiar
mais claramente na formação do corpo sacerdotal da IURD: a maioria dos bispos
e pastores ordenados tem apenas um filho; entre os mais jovens, é comum
encontrar o relato de casais que afirmam optar por não ter filhos. Num discurso
proferido para a abertura das atividades da AMC (Associação de Mulheres Cristãs
da IURD), Edir Macedo afirma que a Igreja financia cirurgias de vasectomia para
todos os pastores e líderes12. A mulher aparece nesse contexto como a principal
gerenciadora desses métodos e, consequentemente, da família.
Machado (1996) aborda o tema da família analisando as relações de gênero
dentro de duas vertentes religiosas, o pentecostalismo e o movimento de reno-
vação carismática da Igreja Católica. Para ela, na constituição de famílias tanto
no movimento pentecostal como na renovação carismática católica, a mulher
assume um lugar de destaque na esfera privada, pois uma vez convertida,
caberá a ela a missão de preservar os laços familiares. No caso específico do
pentecostalismo, a autora acredita que suas práticas constituem um importante
instrumento para garantir às mulheres que seus maridos “uma vez convertidos
abandonem o consumo de bebida alcoólica, as visitas às prostitutas e o vício do
cigarro, canalizando o dinheiro para a família e suas demandas” (MACHADO,

11
O método de seleção dessas reportagens consistiu em usar palavras-chave para busca no site. Decerto
pode haver mais reportagens.
12
Ver em: <http://escandalosdoreino.blogspot.com/2010/10/ora-crivella-ou-o-aborto-e-o-grande.
html>.

Religiões e controvérsias Final.indd 214 18/08/2015 09:59:53


1996, p. 122). O capítulo intitulado “Sexualidade e Reprodução” apresenta

A hermenêutica dos corpos


215
a IURD como a principal agência religiosa a incentivar o uso de métodos de
contracepção (no texto da autora, que data de 1994, o aborto não aparece na
lista de métodos contraceptivos incentivados pela IURD). Ela diz: “Dentre as
mulheres entrevistadas, as filiadas à Igreja Universal do Reino de Deus foram
as que mais destacaram as orientações recebidas na igreja sobre métodos
contraceptivos” (MACHADO, 1996, p. 167). A autora destaca também que,
no que diz respeito a métodos contraceptivos, a IURD é a instituição que mais
incentiva a participação masculina por meio do uso de métodos cirúrgicos.
As práticas teológicas pentecostais fortalecem o papel da mulher no modelo
nuclear de família, abrindo espaço para uma redefinição dos gêneros. Pode-se
pensar, contudo, que o modelo de estrutura familiar das Igrejas pentecostais
traz novos elementos em relação ao modelo de família nuclear criticado nos
escritos feministas, estabelecendo uma relação de submissão mútua, pois
muito embora a esposa continue submetida ao jugo do esposo, este também
passa a ser subjugado à família, direcionando seus esforços financeiros e físicos
para a manutenção da estrutura do lar, que aparece sempre representada pela
mulher. Parece-nos que, no caso da IURD, esse processo pode ser demonstrado
por meio de incentivos a cuidados estéticos com o corpo e da visibilidade pro-
fissional da mulher, marcada pela noção de empreendedorismo. Visibilidade
essa que aparece diretamente relacionada ao seu papel de mantenedora do lar,
como se a valorização da estética e da atividade empreendedora atestassem
sua posição de submissão ao companheiro e à família. A profissionalização e
o empreendedorismo da mulher emergem não mais como uma característica
de oposição ao bem-estar da família, mas sim como extensão das atividades
da mulher no seio familiar.
Na segunda metade da década de 1990, Edir Macedo publicou três livros que
compunham uma série, cujos títulos eram: Perfil do homem de Deus (1994),
Perfil da mulher de Deus (1997) e Perfil da família de Deus (1999). É inte-
ressante notar nas três obras a centralidade da mulher, mesmo naquela em
que o homem aparece como objeto retratado. Em Perfil do homem de Deus,
mais da metade do conteúdo do livro é dedicado ao “perfil da mulher sábia”,
ressaltando sempre o papel da mulher na família, relacionando a “mulher sábia”
à prosperidade familiar. Esse empoderamento da mulher tem o casamento
como um rito necessário de passagem.
No ano de 2007, a Unipro (editora da IURD) lançou três títulos destinados
às mulheres: trata-se de Melhor que comprar sapatos, escrito por Cristiane
Cardoso (uma das filhas de Edir Macedo), O desafio de criar filhos, escrito

Religiões e controvérsias Final.indd 215 18/08/2015 09:59:53


216 por Sylvia Jane Crivella (esposa do senador Marcelo Crivella) e Finas joias, de
Ester Bezerra, esposa de Edir Macedo. Os três livros apresentam um formato
muito semelhante – os capítulos são divididos em pequenas leituras devocio-
nais. O livro de Cristiane é o mais vendido dentre eles e está dividido em duas
partes. A primeira, intitulada “De dentro para fora”, discute diversos assuntos
relacionados à estética e ao corpo da mulher. A segunda, intitulada “De sol-
teira à vida de casada”, traz inúmeras discussões sobre mercado de trabalho,
atividades empreendedoras, dicas para conservar o casamento e versículos que
ressaltam uma atitude de submissão para com o esposo. Pode-se dizer que
essas três publicações dão início a uma nova fase na literatura produzida pela
IURD para consumo de seus membros, pois mulheres que ocupam posição de
destaque passam a escrever textos devocionais cujas receptoras centrais são
as próprias mulheres.
Durante o ano de 2008, a editora da IURD lançou a série Eu e o tempo, com
três livros escritos por mulheres: o primeiro deles intitula-se Tempo de pausa,
também escrito por Sylvia Jane Crivella; o segundo e o terceiro intitulam-se,
respectivamente, Qualidade de vida e Marcas, escritos por Nádia Suhett.
Em todos eles nota-se a presença constante de prescrições concernentes ao
tempo, ao cuidado com o corpo, às técnicas contraceptivas, e até mesmo ao
momento da decisão de ter filhos.
Em 2010, três outros livros foram publicados sobre relacionamentos, sexu-
alidade e família. Logo no início do ano, a Unipro lançou Sexo com o Diabo:
dormindo com o inimigo. Trata-se da breve biografia de Maria de Fátima da
Cruz Carvalho, que, nascida em São Tomé e Príncipe, conta sobre a libertação
espiritual que ela e sua família vivenciaram após sua conversão na IURD. O
testemunho de Maria foi publicado em pequenos capítulos no blog de Edir
Macedo, que sempre alertava para o importante papel espiritual da mulher na
família. Nesse mesmo ano, Nanda Bezerra lançou 40 segredos que toda solteira
deveria saber. Este pode ser considerado o primeiro livro dedicado a mulheres
solteiras. Na maior parte dos tópicos apresentados no livro, a condição de não
estar casada é tratada como um estado permanente, e não como algo transi-
tório e passageiro. Assuntos como beleza, cuidados com o corpo, profissão e
constituição de família são tratados de tal forma que o casamento ainda apa-
rece como eixo central. O casamento é, pois, um marco que deve ser buscado
pela mulher. Ainda assim, ele deve ser sempre mediado pela espera em Deus.
Além disso, pode-se perceber um caminho argumentativo semelhante entre
todos esses livros. O casamento é apresentado como foco para a vida da mu-
lher, é a partir dele que o destino da mulher será traçado. A importância do

Religiões e controvérsias Final.indd 216 18/08/2015 09:59:53


casamento não pode ser considerada propriamente uma novidade. Tal valor é

A hermenêutica dos corpos


217
recorrente no pensamento comum sobre as mulheres, e está presente em muitas
outras redes sociais. Parece, porém, que a diferença aqui consiste no fato de se
produzir uma disjunção, até então naturalizada, entre casamento e maternidade.
Outro livro lançado em português em 2010, desta vez pela editora Zelo, que
também é ligada à IURD, intitula-se A mulher total. Originalmente lançado nos
Estados Unidos no ano de 1973, e escrito por Marabel Morgan, esse título
chegou a vender 10 milhões de cópias nas décadas de 1970 e 198013. Segundo
relatos coletados em blogs, o pedido para a tradução e publicação desse livro
em português foi de Cristiane Cardoso, que afirmou utilizá-lo nas palestras
que ministrava para mulheres iurdianas nos Estados Unidos. Originalmente
escrito como uma espécie de crítica ao crescimento dos ideais feministas que,
segundo Morgan, tomavam boa parte da sociedade estadunidense, a autora,
sem tocar muito em questões envolvendo filhos e relações geracionais, discute
o papel da mulher no núcleo familiar tendo como foco a relação entre marido
e esposa. Reunindo dicas sobre intercurso sexual e cuidados estéticos, a obra
pretende evocar o modelo de mulher vivido na década de 1950, evidenciado
pela imagem de sexualidade provocante mas bem-comportada das pin ups14.
Dando continuidade à linha argumentativa de Morgan, em 2011 houve o
lançamento de um título considerado bastante significativo para esta análise,
A mulher V: moderna à moda antiga. Trata-se do segundo livro escrito por
Cristiane Cardoso, com estrutura textual e ilustrações muito semelhantes às
utilizadas por Morgan. Apesar de conservar um tom devocional – com espaço
para que cada leitora escreva em seu próprio livro suas apreciações ao final de
cada capítulo –, A mulher V inicia-se com uma importante afirmação, classifi-
cando a obra como um manifesto que desafia os conceitos e valores da mulher
atual, andando em oposição a tudo que pensou e conquistou o movimento
feminista. Com capítulos que visam uma espécie de “resgate do feminino”, é
possível encontrar no livro frases que reforçam seu papel didático em ensinar
a mulher a ser mulher. Os capítulos de A mulher V fazem alusão a um trecho
do livro de Provérbios: na Bíblia, a letra V faz referência à palavra virtuosa,
que no texto bíblico é utilizada como uma licença poética de Salomão ao
descrever a mulher. O livro de Cris Cardoso (como a autora é chamada pelas

13
Esse título tornou-se best-seller no ano de 1974. A autora, que se autodenominava cristã, decidiu
escrever um livro com dicas de sexo para mulheres cristãs casadas.
14
Pin ups é uma expressão utilizada para classificar algumas mulheres nas décadas de 1940 e 1950,
nos Estados Unidos, reconhecidas como símbolo sexual. Exaltadas como expressão ideal da femi-
nilidade, as pin ups sempre eram fotografadas com seus vestidos rodados e coloridos, e com gestos
e expressões reconhecidamente dóceis.

Religiões e controvérsias Final.indd 217 18/08/2015 09:59:53


218 leitoras e seguidoras do seu blog) permite pensar que, dentro dessa lógica, a
categoria mulher emerge esvaziada, em termos de sua dimensão natural. O
texto sugere um processo no qual ser mulher é algo que se apreende, por isso
a importância de se produzirem dispositivos de acesso e inculcação desse gê-
nero. Esse aprendizado se dá por meio do corpo, logo é essencial compor um
conjunto de aulas com técnicas para se modificar a postura, controlar o peso,
as roupas, e cuidar de si. A docilidade do corpo é o caminho para se apreender
a ser mulher e assim garantir que a família prospere.
Esses livros podem ser considerados de ampla circulação. O portal Arca Uni-
versal apresenta uma espécie de ranking dos livros mais vendidos produzidos
pelas editoras ligadas à Igreja, desde o início de 2011, e Melhor que comprar
sapatos e A mulher V 15estão entre os mais vendidos.
Além da circulação de textos específicos sobre esse assunto, semanalmente ocorre
em todos os templos duas importantes reuniões: a Terapia do Amor (aos sábados)
e a Terapia da Família (aos domingos). Nesses eventos, assuntos como estrutura
familiar, vida profissional, estética corporal, etc., são abordados pelos dirigentes
(no caso da sede da Igreja na cidade de São Paulo, acompanhamos algumas
reuniões dirigidas pelo próprio Edir Macedo) ou por fiéis que apresentam seus
testemunhos. Além desses encontros, portais e comunidades da internet funcio-
nam como importantes vias de circulação de todo o material aqui apresentado.
Dentre as muitas formas de mídia exclusivas para mulheres, destaco o programa
televisivo Coisas de Mulher, exibido pela Record News de 2008 a 2010. Esse
programa tinha um formato muito semelhante aos encontrados em programas
semanais, com discussões voltadas para o público feminino. Uma das quatro
apresentadoras, Vivi Freitas, é filha do bispo Edir Macedo. Anteriormente o
programa também chegou a ser apresentado por Cristiane Cardoso. No início
de 2014, outro programa com o mesmo formato passou a ser transmitido pelo
canal 21, na rede aberta de televisão. Trata-se de Viva Melhor, que possui um
modelo muito semelhante ao programa exibido anteriormente – é apresentado
por Nanda Bezerra, esposa de um dos bispos da Igreja e sobrinha de Edir Macedo.
A partir dessa farta literatura, pode-se concluir, portanto, pelo desenvolvimento
sistemático de uma razão pedagógica voltada para o domínio de regras e para
a realização de desafios capazes de inculcar um estilo de vida voltado para a

15
Esses dois livros foram traduzidos para 12 línguas. Eles dividem o ranking com outros três títulos,
que são Casamento blindado, Nada a perder1 e Nada a perder 2. Não há aqui qualquer investigação
acerca do método utilizado pelo site para chegar a esse dado. Ainda assim, esse dado nos parece
relevante para pensar a circulação e a posição que a literatura aqui citada ocupa dentro dessa lógica.

Religiões e controvérsias Final.indd 218 18/08/2015 09:59:53


prosperidade. Os modelos dessa pedagogia emergem como disposições para o

A hermenêutica dos corpos


219
trabalho e para o serviço eclesiástico a partir de um exercício de diferenciação
sexual. O domínio sobre o corpo se dá a partir do estabelecimento de divisão
sexual do rito que coloca homens e mulheres em posições diferentes e, con-
sequentemente, com funções eclesiais distintas.

Divisão sexual do rito e pastorado das mulheres


Mencionamos antes a publicação de uma série de livros e a constituição de uma
linha editorial voltada para o público feminino. É interessante notar, no entanto,
que o processo de empoderamento de algumas mulheres na escrita autorizada
de textos sobre e para outras mulheres é acompanhado pela intromissão da
performance feminina nos espaços anteriormente destinados aos homens.
Gomes (2004, p. 123-124) analisa a segmentação congregacional da IURD. Nela
seus frequentadores podem ser divididos numa tipologia composta por três
posições dispostas de forma hierárquica. No primeiro segmento encontram-
-se os membros convertidos, os obreiros, os pastores e os bispos, todos de-
nominados “servos de Deus”. Esse segmento é considerado diferenciado por
concentrar toda a organização eclesiástica da IURD. O segundo é composto
por pessoas que já foram batizadas nas águas e no Espírito Santo, bem como
aquelas que ainda se encontram em processo de conversão. Esse segmento
corresponde àqueles que não foram ainda batizados com o Espírito Santo.
Nesse estágio, são reconhecidos como frequentadores assíduos da Igreja e
identificados como iurdianos. O terceiro e último segmento compreende
dois tipos: os frequentadores esporádicos que procuram a Igreja em busca da
bênção imediata e aqueles sem qualquer vínculo, denominados “pessoas do
mundo”, que acessam as reuniões da Igreja através de alguns meios de difusão
do evangelho mobilizados pela IURD.
O pertencimento aos primeiros segmentos da tipologia congregacional faz
com que o fiel se sujeite a um conjunto de regras e doutrinas, o que torna a
relação de pertencimento com a IURD familiar a qualquer outra denominação
evangélica (MAFRA; SWATOWISKI; SAMPAIO, 2012).
O primeiro segmento, a saber, das disposições hierárquicas que organizam
a Igreja, se fundamenta numa espécie de divisão do trabalho eclesiástico,
constituído por três posições distintas – obreiros, pastores e bispos –, que se
estruturam a partir de dois espaços sagrados, o átrio e o altar. Tais espaços
configuram uma espécie de divisão geográfica dentro dos templos. O átrio
corresponde à nave, ou ao serviço de apoio aos frequentadores – serviço rea-

Religiões e controvérsias Final.indd 219 18/08/2015 09:59:53


220 lizado por muitas obreiras e obreiros –, e o altar corresponde ao púlpito e ao
sacerdócio, cujo serviço é realizado por pastores e bispos.
Dentro desse esquema organizacional, mulheres atuam apenas no átrio, o sa-
cerdócio feminino só é reconhecido mediante o casamento com um sacerdote.
O casamento serve como sinal de comprovação do “chamado” de Deus para
servir no altar. Logo, a divisão do trabalho eclesiástico se baseia numa divisão
sexual do trabalho. O serviço no átrio seria uma espécie de “rito de passagem”
para servir no altar. Todos os fiéis, homens e mulheres que desejam desenvolver
uma carreira eclesiástica, devem servir no átrio. Já o acesso ao altar tem como
condição a incorporação de uma série de disposições e a avaliação minuciosa
desse processo se dá pelo êxito obtido com os serviços prestados no átrio.
No altar, a divisão do serviço se dá entre pastores e bispos e suas respectivas
esposas. O reconhecimento da posição de bispo se dá apenas após uma avaliação
meticulosa da atuação do casal no ministério pastoral e um parecer sistemático
de sua esposa. Quando o homem é ordenado e reconhecido pelo título de bispo,
a esposa recebe e passa a ser reconhecida pelo título de Dona. O casamento é
a única maneira de ascensão feminina na divisão do trabalho eclesiástico. Sem
um marido atuante no altar, a mulher só pode aspirar ao trabalho de obreira.
Nesse contexto, o casamento com um pastor se torna, portanto, condição sine
qua non para a mulher atuar no altar, de modo que, com o divórcio, ela perde
sua posição e volta a servir no átrio.
No livro Escolhida para o altar, Tânia Rubim, casada com um bispo da IURD,
conta a história de uma jovem que sempre se sentiu chamada para o altar e
por isso se casou com um pastor:
Lembro-me do caso de um casal, com dez anos de união, que servia a Deus no
altar. A esposa sempre tinha sido uma mulher de Deus, esforçada, amava as almas,
ajudava o seu marido em tudo, e ele também era muito trabalhador. Tudo indicava
que os dois eram felizes; ela se sentia ditosa e realizada. Certo dia, o marido disse
a ela que nunca a amou e que não queria mais servir a Deus no altar. Ele então
abandonou a ambos, deixando o coração dela em sofrimento, sem o amor dele.
O pior de tudo é que ele a tirou do lugar mais precioso para ela, e que ela tanto
amava, o ALTAR (RUBIM, 2011, p. 56).

No rito, os agentes organizam os espaços de atuação reservados para a mulher e


para o homem. Tais espaços se dão a partir da associação de esquemas classifi-
catórios que têm no corpo um instrumento de diferenciação16. A diferenciação

16
Ao falar sobre os modos de produção dessa diferenciação que acaba por se naturalizar na forma
de habitus, Bourdieu (2009, p. 127) afirma que os sentidos atribuídos ao corpo se revestem dos

Religiões e controvérsias Final.indd 220 18/08/2015 09:59:53


entre masculino e feminino se dá por meio da construção de um sistema de

A hermenêutica dos corpos


221
oposições, que naturaliza no corpo determinadas posturas corporais, produzindo
um senso das capacidades exclusivas ao homem e das capacidades exclusivas
da mulher. Desse modo, o conjunto de categorias modeladoras do corpo da
mulher seria composto de “discrição”, “leveza”, “emoção”, e sua esfera de ação
estaria no privado. Já o homem, dotado de atributos como “retórica”, “cora-
gem”, “razão”, teria o campo de ação voltado ao mundo público, da interação
social. Um trecho do livro A mulher V: moderna à moda antiga, escrito por
Cristiane Cardoso, parece ilustrar bem essa questão:
Os homens são diferentes de nós, foram feitos para se concentrar e conquistar.
Nós lutamos para fazer as mesmas coisas que eles fazem e ainda ser mãe, esposa e
rainha do lar. Mas nós não somos eles, e não podemos querer fazer os dois papéis
sem que nos prejudiquemos (CARDOSO, 2011, p. 109).

Esse mesmo processo de diferenciação sexual orienta as práticas no contexto


da IURD. A divisão sexual operada no rito, por meio da diferenciação dos espa-
ços sagrados (átrio e altar), se desdobra para uma diferenciação de disciplinas
para o mundo da vida. É interessante notar que mesmo com o fato de as
mulheres estarem impossibilitadas de ocupar autonomamente uma posição
no altar (que só pode ocorrer pela mediação do casamento), há na Igreja uma
produção constante de dispositivos de educação do corpo da mulher. Macedo,
ao falar sobre fé racional, refere-se à mulher como naturalmente emocional,
tendo mais dificuldade para desenvolver os princípios da fé inteligente, o que
exigiria do pastorado alguns cuidados extras para moldá-la (MACEDO, 2010).
É interessante observar que o jogo de oposições entre racional e emocional
retoma para si a naturalização da diferença entre os sexos. No entanto, apesar
de a mulher ser considerada mais emocional (e, assim, relativamente incapaz
de ter uma fé racional), ela ainda emerge como a principal agenciadora da
prosperidade. Esse aparente paradoxo talvez possa ser explicado pelo fato de
que o campo no qual se dá a manutenção e o engendramento dessas regras
esteja inteiramente sob sua responsabilidade de ação, a saber, a casa, seu corpo
e as relações familiares.
As primeiras programações e livros com temática geracional começaram a ser
produzidos na segunda metade da década de 1990. No caso dos livros, os pri-
meiros foram escritos por Edir Macedo, visando discutir o que se denominou
perfil segundo o coração de Deus.

sentidos forjados na relação de oposição e diferenciação estabelecida na divisão sexual do trabalho.


No caso da IURD, essa divisão se dá por meio da disposição hierárquica entre os espaços sagrados
(átrio e altar), que acabam por se tornar espaços de diferenciação entre os sexos.

Religiões e controvérsias Final.indd 221 18/08/2015 09:59:53


222 No que diz respeito à produção de programas e de uma literatura específica
sobre gênero, é preciso dizer que a posição das mulheres na cena eclesiástica
e a profusão de temáticas relacionadas a controle de natalidade e aos cuidados
com o corpo feminino são recorrentes na história da IURD, principalmente
na representatividade dessas temáticas na mídia mantida pela Igreja (ver
MACHADO, 1999). Porém, é ao final da primeira década do século XXI que
começou a proliferar um quadro de atividades, livros, programas televisivos e
blogs especificamente voltado para as mulheres cujo tema central consiste em
falar acerca das diferenças entre o feminino e o masculino, as regulações para
o casamento e a constituição da família. Apesar de esses assuntos serem, em
tese, familiares aos títulos publicados na década de 1990, os livros produzidos
nos últimos anos são fruto da construção progressiva de um corpo autorizado
a abordar essa temática, constituído por mulheres que ocupam uma posição
de destaque de liderança no primeiro segmento hierárquico da Igreja. Todas
elas obtiveram o título de Dona, são casadas com bispos considerados impor-
tantes e juntos constituíram uma trajetória em meio ao campo de práticas que
configuram a IURD, e que as legitima como detentoras de domínios específicos
considerados centrais nesse campo. A posição social legítima das autoras se
evidencia na circulação e generalização de seus livros e blogs, que passam a ser
amplamente utilizados como referências essenciais em atividades específicas
cujo foco são o relacionamento, a sexualidade e os cuidados com o corpo.
Essas mulheres não são muitas e, embora distribuídas por diversos países,
podem ser rapidamente localizadas. Em uma lista talvez incompleta, as mais
influentes são: Ester Bezerra (esposa de Edir Macedo); Silvia Jane Crivella (es-
posa de Marcelo Crivella); Viviane Freitas (filha caçula de Macedo e D. Ester,
casada com o bispo Julio Freitas); Nanda Bezerra (sobrinha de Macedo, também
casada com bispo); Tânia Rubim (de nacionalidade portuguesa, converteu-se
à IURD em Portugal, casou-se com bispo e vive nos Estados Unidos); Marelis
Brum (também casada com bispo); Márcia Paulo (casada com bispo, atuam na
IURD na África do Sul); Raphaela Castro (também casada com bispo, vivem nos
Estados Unidos); e, por fim, Cristiane Cardoso (filha mais velha de Macedo
e D. Ester, casada com o bispo Renato Cardoso e idealizadora dos programas
Goodllywood e The Love School).
Todas são casadas com bispos e muitas vivem fora do Brasil, atuando em comu-
nidades da IURD em outros países. Apesar desse deslocamento geográfico, seus
blogs são acompanhados assiduamente no país e seus livros são incorporados
como temas de palestras e cursos. Tal constatação sugere uma hipótese que
diz respeito ao modo como as disposições de poder que se constituem como
legítimas para o fazer falar e o fazer ver são produzidas; elas, na verdade,

Religiões e controvérsias Final.indd 222 18/08/2015 09:59:53


se estendem para além do eixo São Paulo/Rio de Janeiro, constituindo uma

A hermenêutica dos corpos


223
comunidade transnacional situada em países da Europa, nos Estados Unidos
ou na África do Sul.
Vale ressaltar também outro aspecto interessante da trajetória de vida das
Donas, em especial das destacadas acima. O único caso de conversão (de pri-
meira geração) é o de Rubim, que é nascida em Portugal. As demais mulheres,
todas brasileiras, pertencem ou à família de Edir Macedo ou a famílias oriundas
da primeira geração de membros da IURD. A posição de fala dessas mulheres
está, pois, diretamente relacionada à sua linhagem, de modo a colocá-las numa
posição de valor superior numa espécie de mercado de bens matrimoniais.
Com efeito, é possível acompanhar a trajetória de alguns bispos importantes
na hierarquia eclesiástica da IURD, homens sem linhagem reconhecida na Igreja
e perceber que a posição de poder ocupada por eles no altar se configurou,
sobretudo, após o casamento com uma dessas mulheres. Nesse sentido o
casamento parece constituir um mecanismo de empoderamento não apenas
para essas mulheres que encontram nele justificativa para a ação de pastorado
que desenvolvem, mas também para os homens que, por meio do casamento,
passam a usufruir posições de centralidade no espaço eclesiástico.
Dentro desse corpo autorizado para pensar e agir tendo como foco a produção
de um saber sobre o feminino, Cristiane Cardoso ocupa posição central. Filha
mais velha de Edir Macedo e Ester, Cristiane se descreve como alguém que
sempre foi muito tímida, que vivia à sombra de sua irmã, Viviane, e que, em
razão dessa característica, era sempre notada e elogiada por sua superação
(CARDOSO, 2011 apud MACEDO, 2012). Em suas palavras, essa superação
deu-se por meio de seu casamento, que a transformou em mulher de fato,
a fez descobrir sua beleza, a fez cuidar de si e a se assegurar como mulher
(CARDOSO, 2008).
Cristiane Cardoso não é a primeira Dona a escrever textos devocionais volta-
dos para o público feminino da IURD, porém é a primeira a pensar o papel da
mulher de forma mais sistematizada, propondo uma espécie de continuidade
aos argumentos desenvolvidos por Edir Macedo em O perfil da mulher de Deus
de 1997. Apesar de ainda sugerir um formato devocional, seus livros tentam
mobilizar conceitualmente um modelo de feminilidade e de conjugalidade
heterossexual que emerge atrelada à noção de uma crença racional. A ascese
cotidiana necessária para a constituição dessa razão prática configura-se assim
como um conjunto de prescrições de gênero voltado para a formação de mu-
lheres. Os dois livros escritos por Cristiane acabam lhe servindo de inspiração
para fundar o projeto Godllywood.

Religiões e controvérsias Final.indd 223 18/08/2015 09:59:53


224 A ideia geral em Godllywood seria promover princípios para uma nova concep-
ção de vida conjugal que exaltasse o prazer sexual feminino, em vez de reprimi-
-lo e restringi-lo à função de reprodução, mas, ao mesmo tempo, colocasse
a conjugalidade no bojo de projeto forjado por Deus17. O gerenciamento do
corpo da mulher para o planejamento equilibrado desse tipo de conjugalidade
se desdobra de modo a gerenciar outros corpos, na medida em que a mulher
é interpretada como centro da vida familiar.
Ao justificar, em posts de seu primeiro blog, o caminho percorrido para a
criação do projeto, Cristiane diz o seguinte:
Esses grupos foram criados por mulheres para mulheres, como todos sabemos,
quem pode compreender melhor a mulher do que nós mesmas? Nós sabemos
exatamente por que fazemos o que fazemos. Nós estivemos lá, fizemos o que foi
feito e sentimos o que se sentiu também. Através de nossas muitas experiências do
passado, aprendemos muito mais do que nas escolas, ou mesmo do que as reuniões
na Igreja puderam nos ensinar.18

A estrutura disciplinar do Godllywood consiste basicamente em três programas


etários. São eles: Pré-sisterhood (para meninas de quatro a 13 anos), Sisterhood
(para mulheres de 15 a 30 anos) e Mulher V (que compreende a fase adulta,
atendendo mulheres casadas ou com mais de 30 anos de idade). O objetivo
geral do projeto consiste em “resgatar a essência feminina colocada por Deus
em cada mulher”19 (TEIXEIRA, 2012, 2014).
Pouco tempo antes de Godllywood se constituir como programa disciplinador,
ainda em 2009, Cristiane começou a fazer reuniões com adolescentes na igreja
em que trabalhava com seu marido, no estado do Texas, Estados Unidos. O
grupo era composto por meninas entre 14 e 17 anos. Dessa experiência, surgiu
a ampliação do projeto e a implementação do Godllywood.
Nas palavras de Cristiane em entrevista concedida à Folha Universal:
Hoje, somos mais de mil membros em todo o mundo e continuamos crescendo.
A Sisterhood tem crescido tanto, que tivemos que fechar as inscrições em alguns
lugares por falta de disponibilidade de ‘Big Sisters’ […]20.

17
Após imensa adesão de fiéis de vários países ao programa Godllywood, em 2013, o bispo Renato
Cardoso, marido de Cristiane, criou o projeto Intelimen, voltado exclusivamente para homens.
18
Disponível em: <http://melhordoquecomprarsapatos.blogspot.com/p/godllywood.html>.
19
Disponível em: <http://www.arcauniversal.com/iurd/noticias/entenda_o_que_e_o_sis-
terhood-2926.html>. Acesso em: 20 jan. 2011.
20
Disponível em: <http://melhordoquecomprarsapatos.blogspot.com/2010/11/pedi-e-vos-sera-
-dado-dia-viii.html>.

Religiões e controvérsias Final.indd 224 18/08/2015 09:59:53


A disposição de atividades dos grupos etários que compõem o Godllywood se

A hermenêutica dos corpos


225
organiza por meio da circulação da ideia de desafio21. Os desafios são temáticos
e as atividades diárias, que podem envolver privações tais como não ingerir
açúcar; ir para o trabalho, ou para a escola, de saia; ler algumas páginas de um
livro por dia; dedicar-se a ajudar a alguém, como uma pessoa idosa; não con-
sumir carne vermelha; não consumir fritura; não comprar roupas ou sapatos
durante um período; poupar dinheiro para empregá-lo em outra finalidade,
etc., são sistematizadas num calendário semanal. Ao final de cada desafio, as
participantes são estimuladas a narrar o êxito conquistado com a realização
da tarefa. Essa narrativa se dá, sobretudo, por meio da página do projeto no
Facebook22, de modo a oferecer a cada participante os diferentes resultados
(TEIXEIRA, 2014). O princípio motor dos desafios, que se modifica em fun-
ção da variação etária das mulheres participantes, é o de naturalizar no corpo
o conceito da mulher virtuosa23. Para tanto, as características que devem ser
perseguidas são aquelas descritas no livro de Cristiane Cardoso.
O retrato da mulher virtuosa engloba prescrições do tipo:
– Ter uma aparência agradável, cuidar de si mesma para agradar ao marido. A mu-
lher jamais deve andar largada, porque ao se arrumar, ela transparece o amor que
tem por si e pela família.
– Ter um caráter piedoso. Ter prazer de ajudar no que seja, sem esperar receber
algo de volta.
– Ser eficiente na administração do lar, que inclui tarefas domésticas e a adminis-
tração do dinheiro da família.
– Dar assistência espiritual ao marido. Ter sempre uma palavra de ânimo e fé.
– Ter disposição e interesse para ajudar as pessoas na Igreja.
– Ter determinação e coragem para lutar contra as adversidades.
– Ter equilíbrio, cuidar das coisas da Igreja e das coisas do lar. [...] Ela cuida da
saúde do marido, prepara refeições saudáveis usando a criatividade, pois está
sempre querendo fazer algo novo para surpreendê-lo (CARDOSO, 2011, p. 120).

21
Ver o Desafio Godllywood na página de Cristiane Cardoso: <http://www.cristianecardoso.com/
pt/portfolio/desafio-godllywood/>.
22
A página de Cristiane Cardoso, “Desafio Godllywood”, no Facebook conta hoje com pouco mais de
200 mil assinantes e traz uma troca intensa de posts e incentivos à perseverança durante a realização
do desafio.
23
Como citado brevemente no primeiro capítulo, A mulher V faz alusão a um trecho do livro de
Provérbios, na Bíblia. A letra V faz referência à palavra virtuosa, que no texto bíblico é utilizada
como uma licença poética de Salomão ao descrever a mulher.

Religiões e controvérsias Final.indd 225 18/08/2015 09:59:53


226 Os desafios são vistos, portanto, como medidas para a formação disciplinar,
isso porque a disciplina está entre os atributos fundamentais da “mulher V”:
[...] a mulher V é disciplinada. O que é a disciplina senão uma maneira de lidar
com a vida de maneira mais organizada?

[...] ao mesmo tempo que controla as finanças do casal, a mulher V também fica
de olho em novas oportunidades de aumentar seus ganhos. Ela poderia usar seu
lucro para comprar roupas para si ou para a sua família, mas ela decide investir o
seu dinheiro para aumentar os ganhos da sua família (CARDOSO, 2011, p. 114).

Nesse aprendizado, o corpo é o principal instrumento a ser disciplinado. Des-


se modo, em seu pastorado, Cristiane entende que é essencial compor um
conjunto de aulas com técnicas para modificar a postura, controlar o peso,
as roupas, e cuidar de si. A docilidade do corpo é, a seu ver, o caminho para
saber falar e saber ver, adquirindo atributos para ser mulher acessando formas
e performances de gênero.
Sisterhood e Mulher V compartilham a mesma lista de desafios sob o título de
“desafio Godllywood”. Ao propor a execução, durante o prazo de uma semana,
de algumas atividades cotidianas, o desafio amplia a temporalidade do ritual,
transferindo a ação que permanecera reservada ao espaço sagrado – entendido
como espaço de culto – ao corpo, que por meio da realização de pequenos
sacrifícios cotidianos passa a incorporar o sagrado como estilo de vida.
O desafio Godllywood também marca uma importante transformação na
natureza do projeto. Por passarem a ser divulgados ostensivamente pelo
perfil do grupo no Twitter e no Facebook, os desafios deixaram de direcionar-
-se a um grupo restrito, selecionado ad hoc para as tarefas presenciais do
programa, e passaram a alcançar um contingente cada vez maior de pessoas
(TEIXEIRA, 2014).
Com o advento do uso da internet como fonte central de promoção e espraia-
mento das atividades promovidas pelo Godllywood, a internet emerge como
principal estratégia de divulgação e universalização dessas práticas. As reuniões
passam a ser transmitidas por vídeos pelo canal do programa no site YouTube.
As provas das realizações de tarefas são partilhadas pelas participantes de vá-
rias partes do Brasil e do mundo, tornando possível observar, pelos discursos
publicados e pelas fotos, a generalização de uma performance do feminino.

Religiões e controvérsias Final.indd 226 18/08/2015 09:59:53


Considerações finais

A hermenêutica dos corpos


227
O objetivo deste artigo foi apresentar algumas disposições discursivas acerca
do processo de formação de um poder pastoral voltado para a produção de
uma pedagogia da boa vida cujos princípios fundamentais circundam o corpo
feminino e modelos de reprodução e família.
Para isso, procurou-se descrever um conjunto de tecnologias, na Igreja Uni-
versal, voltado para a produção da “Mulher V”. Tais tecnologias remetem a
um dispositivo de poder sistematizado de modo a configurar um regime de
enunciado alicerçado nas dimensões do saber falar e do saber ver, conformando
um conjunto de práticas que mobilizam disciplinas focadas na divisão binária
de gêneros cujo gerenciamento da prosperidade se dá a partir do espraiamento
de tecnologias para cuidado de si e para o casamento.
Sob o domínio de disposições para saber falar e saber ver, as noções nativas
de prosperidade funcionam como forma de agenciamento de discursos siste-
matizados por uma razão pedagógica voltada para o governo dos estados de
vida. O corpo emerge como espaço de sacrifício diário que visa a apreensão de
técnicas que ajudem a alcançar a promessa, a prosperidade. É sob esse prisma
que corpo, casamento e família devem ser planejados.

Referências bibliográficas
BEZERRA, Ester. Diário fonte a jorrar. Rio de Janeiro: Unipro, 2012.
________. Finas joias: mensagem para a reflexão feminina. Rio de Janeiro: Unipro, 2007.
BIRMAN, Patrícia. Feitiçarias, territórios e resistências marginais. Mana (UFRJ), v. 15, p. 321-348, 2009.
________. O Espírito Santo, a mídia e o território dos crentes. Ciências Sociais & Religião, v. 8, p. 41-
-62, 2006.
________. Mediação feminina e identidades pentecostais. Cadernos Pagu, n. 6-7, p. 201-226, 1996.
BOURDIEU, Pierre. O senso prático. Rio de Janeiro: Vozes, 2009.
________. El baile de los solteros. La crisis de la sociedad campesina en el Bearne. Barcelona: Agrama, 2004.
CARDOSO, Cristiane. A mulher V: moderna à moda antiga. Rio de Janeiro: Unipro, 2011.
________.Melhor que comprar sapatos. Rio de Janeiro. Unipro, 2008
________; CARDOSO, Renato. Casamento blindado: seu casamento à prova de divórcio. Rio de
Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2012.
DELEUZE, Gilles (1991). “Mil platôs não formam uma montanha, eles abrem mil caminhos filosó-
ficos”. In: Dossie Deleuze. Entrevista com Gilles Deleuze.
FOUCAULT, Michel. Arqueologia do saber. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.
________. História da sexualidade III: o cuidado de si. São Paulo: Graal, 2007.
FRESTON, Paul. Protestantes e política no Brasil: da Constituinte ao impeachment. Tese de Douto-
rado, Campinas, IFCH-UNICAMP, 1993.

Religiões e controvérsias Final.indd 227 18/08/2015 09:59:53


228 GIUMBELLI, Emerson. O fim da religião: dilemas da liberdade religiosa no Brasil e na França. São
Paulo: Attar, 2002.
________. A vontade do saber: terminologias e classificações sobre o protestantismo brasileiro. Religião
& Sociedade, Rio de Janeiro, v. 21 (1), n.1, p. 87-119, 2001.
GOMES, Edlaine Campos. A religião em discurso: a retórica parlamentar sobre o aborto. In: DUARTE,
L. F. D.; GOMES, E.; NATIVIDADE, M.; MENEZES, R. (Orgs.). Valores religiosos e legislação
no Brasil: a tramitação de projetos de lei sobre temas controversos. Rio de Janeiro: Garamond/
FAPERJ, 2009.
________. A ‘Era das Catedrais’ da IURD: a autenticidade em exibição. 2004. Tese (Doutorado em
Ciências Sociais)–Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2004.
Kenneth Hagin, I Believe in Visions, What Faith Is, Bible Faith; A Study Guide, 1989
LIMA, D. Alguns fiéis da Igreja Universal do Reino de Deus. Mana (UFRJ), v. 16, p. 351-374, 2010.
________. Prosperidade na década de 1990: etnografia do compromisso de trabalho entre Deus e o
fiel da Igreja Universal do Reino de Deus. Dados, Rio de Janeiro, v. 51, p. 7-36, 2008.
LUNA, Naara. O direito à vida no contexto do aborto e da pesquisa com células-tronco embrioná-
rias: disputas de agentes e valores religiosos em um estado laico. Religião & Sociedade, vol. 33,
n.1, p. 71-97, 2013.
MACEDO, Edir. Nada a perder: momentos de convicção que mudaram a minha vida. São Paulo:
Planeta, 2012.
________. O poder sobrenatural da fé. Rio de Janeiro: Unipro, 2011a.
________. Nos passos de Jesus. Rio de Janeiro: Unipro, 2011b.
________. Fé racional. Rio de Janeiro: Unipro, 2010.
MACEDO, Edir; OLIVEIRA, Carlos. Plano de poder: Deus, os cristãos e a política. Rio de Janeiro:
Thomas Nelson Brasil, 2008.
________; ________. O perfil da família de Deus. Rio de Janeiro: Unipro, 1999.
________; ________. O perfil da mulher de Deus. Rio de Janeiro: Unipro, 1997.
________; ________. O perfil do homem de Deus. Rio de Janeiro: Unipro, 1994.
MACHADO, Maria D. C. Aborto e ativismo religioso nas eleições de 2010. Revista Brasileira de
Ciência Política, Brasília, n. 7, jan./abr. 2012.
________. Religião, família e individualismo. In: DUARTE, L. F. D.; HEILBORN, M. L.; LINS DE
BARROS, M.; PEIXOTO, C. (Orgs.). Família e religião. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2006.
________. O tema do aborto na mídia pentecostal. Revista Estudos Feministas, v. 8, p. 200-211, 2000.
________. (1999), “SOS mulher – A identidade feminina na mídia Pentecostal”. Revista de Ciencias
Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 1, n. 1: p. 167-188.
________. Carismáticos e pentecostais: adesão religiosa na esfera familiar. São Paulo: Anpocs/Editores
Associados, 1996.
________. Corpo e moralidade sexual em grupos religiosos. Estudos Feministas, v. 3, n. 1, 1995.
MAFRA, Clara; SWATOWISKI, Cláudia; SAMPAIO, Camila. O projeto pastoral de Edir Macedo:
uma igreja benevolente para indivíduos ambiciosos?. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 27,
p. 81-96, 2012.
________ . Os Evangélicos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
MARIANO, Ricardo. Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no Brasil. São Paulo: Loyola,
1999.
MARIZ, Cecília L. A opinião dos evangélicos sobre o aborto. In: FERNANDES, R. C. (Org.). Novo
nascimento: os evangélicos em casa, na igreja e na política. Rio de Janeiro: Mauad, 1998.

Religiões e controvérsias Final.indd 228 18/08/2015 09:59:53


ORO, Ari Pedro; CORTEN, André; DOZON, Jean-Pierre (orgs.). Igreja Universal do Reino de Deus:

A hermenêutica dos corpos


229
os novos conquistadores da fé. São Paulo: Paulinas, 2003.
PIERUCCI, A.F. 1998. Secularização em Max Weber: Da contemporânea serventia de voltarmos a
acessar aquele velho sentido. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 13(37).
RUBIM, Tânia. Escolhida para o altar: um manual para a futura esposa de pastor. Rio de Janeiro:
Unipro, 2011.
SCHELIGA, Eva Lenita. Educando sentidos, orientando uma práxis: etnografia das práticas assistenciais
de evangélicos brasileiros. 2010. Tese (Doutorado em Antropologia Social)–Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.
TEIXEIRA, Jacqueline Moraes. Da controvérsia às práticas: conjugalidade, corpo e prosperidade como
razões pedagógicas na Igreja Universal. 2012. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) –
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012.
Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8134/tde-05032013-120422/>.
________. Mídia e performances de gênero na Igreja Universal: O desafio Godllywood. Revista Religião
& Sociedade, Rio de Janeiro , v. 34, n. 2, p. 232-256, Dec. 2014 . Available from <http://www.
scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-85872014000200232&lng=en&nrm=iso>

Religiões e controvérsias Final.indd 229 18/08/2015 09:59:53


Religiões e controvérsias Final.indd 230 18/08/2015 09:59:53
Vasos rebeldes: modos de distinção e
autenticidade na constituição de um pastor
pentecostal e sua Igreja
JOSÉ EDILSON TELES

Uma “Antropologia” que jamais ultrapasse os limites de suas


próprias convenções, que desdenhe investir sua imaginação no
mundo de experiência, sempre haverá de permanecer mais uma
ideologia que uma ciência (WAGNER, 2010, p. 29).
A análise antropológica consegue aproximar-se de seu objeto de
investigação e replicar a compreensão dos sujeitos investigados,
através de uma forma de compreensão, de conhecimento, que lhe
é distintamente própria (STRATHERN, 2006, p. 21).

O presente capítulo tem como ponto de partida uma específica situação de


campo, isto é, uma situação de encontro na qual – conforme cosmologia nativa
– minha presença como pesquisador foi enunciada por um de meus interlocu-
tores como tendo sido revelada pelo Espírito Santo. A princípio não me parecia
relevante, mas essa recepção (certamente) não apenas facilitou minha inserção,
como também nos permite apreender no plano das experiências um conjunto
de categorias e práticas discursivas relacionadas aos modos de distinção de
pessoas e instituições. Chamarei essa situação de recepção cosmológica.
Minha proposta é tomar essa narrativa situacional (GLUCKMAN, 1987) como
eixo a fim de descrever a dinâmica das cissiparidades e a fundação de novas
microigrejas pentecostais, e assim, lançar luz sobre controvérsias mais amplas
na esfera pública1. Para fins comparativos, pode-se com proveito colocar em

1
Por esfera pública, pensarei aqui, alinhado com a proposta deste livro, como espaços dos discursos.
Por sua vez, a noção de controvérsia será tomada como um instrumento descritivo desse espaço.

Religiões e controvérsias Final.indd 231 18/08/2015 09:59:53


232 relevo cosmologias e práticas de um ciclo de fundadores leigos na disputa por
autenticidade de suas atividades. O argumento central consiste em demonstrar
que não se trata apenas de uma disputa no plano doutrinário ou teológico, mas
também no plano das experiências, isto é, na performatividade dos corpos
que disputam ritualmente a sinceridade2. Assim, prescindimos de uma leitura
dualista das cosmologias e práticas.

Prelúdio: recepção cosmológica ou modos de ver e ser visto


Começo, portanto, pela temporalidade e pela espacialidade da referida situa-
ção de campo, para em seguida desdobrar algumas implicações teóricas desse
procedimento metodológico. Trata-se de uma ensolarada tarde de domingo,
26 de abril de 2009, ocasião na qual eu procurava “sondar” e estabelecer os
primeiros contatos para minha pesquisa de campo, considerando tal horário
pertinente para abordagem de alguns interlocutores, pois supunha que algumas
pessoas se preparavam para os cultos dominicais. Nesse dia, ao apresentar-me
como pesquisador ao pastor José Ribamar – piauiense nascido em 1957 e líder
da Igreja Pentecostal Manjedoura de Cristo: Ministério Santana de Parnaíba,
fundada por ele e uma equipe de auxiliares em meados de 2001 –, logo fui
convidado a sentar-me no estreito pilar da porta de acesso do pequeno tem-
plo (vide foto, Figura 3). No interior do templo havia um pequeno grupo de
mulheres que ensaiavam cânticos para o culto, entre elas a esposa do pastor,
líder do grupo feminino e atual vice-presidente da Igreja. Sob o fundo musical,
passamos a conversar sobre possíveis agendamentos de entrevistas e minha
participação nos cultos, o que se sucedeu ao longo da pesquisa3. Descobri

Trata-se, portanto, de entender esse espaço como “esfera das interações”, “produção de sentidos”
(MONTERO, 2009, p. 201) e “arena de mediações” no mundo vivido (SCHELIGA, 2010, p. 22).
2
Recentes pesquisas apontam para a necessidade de se pensar a constituição da noção de pessoa
pentecostal na sociedade brasileira, tais como Roberta Campos, que discute os modos de circu-
lação do carisma pentecostal e a construção da “fala sincera” (2011); e Clara Mafra, que sugere
investigações no que chamou de “ideologia da sinceridade/santidade” (2014). Este ensaio pretende
contribuir para esse debate.
3
Os dados de que disponho provêm dos fragmentos de minha pesquisa de iniciação científica financiada
pelo Programa de Bolsa de Iniciação Científica da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo
(Pibic-FESP-SP), desenvolvido durante os primeiros anos de graduação (2009 e 2010), sob orientação
do professor Gabriel Pugliese. A segunda fase da pesquisa (2011-2013) deve-se ao projeto Religiões
e controvérsias públicas: experiências, práticas sociais e discursos, coordenado pela professora. Paula
Montero, sob financiamento do Fundo de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) e apoio
do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP). A pesquisa empírica foi realizada num bairro
da periferia de Santana de Parnaíba, cidade localizada a 35 km da capital paulista, na região oeste
da Grande São Paulo, acessível pelas rodovias Anhanguera (km 29) e Castelo Branco (vide mapa,

Religiões e controvérsias Final.indd 232 18/08/2015 09:59:53


nessa ocasião que, além de fundador-presidente da Igreja – marcador social

Vasos rebeldes
233
de prestígio –, José Ribamar também atuava como mediador e representante
regional de uma federação de Igrejas conhecida como Convenção Nacional e
Estadual das Assembleias de Deus (Conead)4, instituição político-eclesiástica
cujo objetivo é estabelecer redes de alianças entre microigrejas pentecostais
em Santana de Parnaíba (SP) e região. A natureza dessas inusitadas alianças, o
modo como dissidentes e rivais disputam a distinção de liderança legítima e
o status de instituição autêntica merecem um estudo à parte. Aqui, faremos
apenas breves apontamentos com o objetivo de tecer fios de uma rede de
interações nas atividades dos fundadores, neste caso, uma disputa específica
em torno do poder pastoral5 e sua relação com a noção tradicional de Igreja
legítima. Podemos, por exemplo, começar por suspeitar do “óbvio” e nos
perguntar pelos critérios coletivos e performáticos dos modos de nominação
e estatuto jurídico implicados no ser Igreja6. O ciclo de José Ribamar, bem

Figura 1). Segundo o cadastro elaborado pela Associação de Moradores do Bairro, a população atual
do referido bairro é de aproximadamente 15 mil habitantes, sendo 8 mil seu eleitorado. O relatório
aponta ainda para a existência de 2,5 mil a 3 mil casas e 25 templos pentecostais; os dados que coletei
apontavam para 30 templos. Aproveito estas linhas para agradecer aos professores Ricardo Mariano e
Eduardo Dullo pelos comentários e sugestões ao texto durante o seminário “Religiões e controvérsias
públicas: experiências, práticas sociais e discursos”, realizado em 29 e 30 de maio de 2014 na USP;
agradeço aos professores Gabriel Pugliese, Delcides Marques, Alexandre Chaves, Ricardo Bitun e
Sonia Nussenzweig Hotimsky pelas provocações que suscitaram reflexões a este ensaio; agradeço
especialmente à professora Paula Montero e a Jacqueline Moraes Teixeira. Evidentemente, pois
possíveis equívocos nos resultados de minha análise não lhes devem ser atribuídos.
4
Convenção é uma espécie de federação ou rede de alianças entre instituições regidas por estatutos
jurídicos burocráticos, cujos quadros políticos-eclesiásticos são altamente disputados. Há no Brasil
uma diversidade de Convenções, cuja estrutura organizacional é estabelecida em níveis “nacionais”,
“estaduais” e “regionais”. Tal federação é concebida pelos próprios agentes como organização de
natureza político-eclesiástica ou “entidade civil de natureza religiosa”, que confere legitimidade
às instituições e aos líderes filiados. No caso da Conead, sua sede nacional localiza-se em Brasília
(DF) e a sede estadual em Osasco (SP). José Ribamar atua em Santana de Parnaíba como mediador
entre a convenção estadual e o que ele chama de “subconvenção”, que teria como finalidade formar
alianças entre as chamadas “Igrejas independentes”.
5
A noção de “poder pastoral” aproxima-nos das análises de Michel Foucault, para quem a gênese
das tecnologias de poder seriam exteriores às instituições. Ao descrever os dispositivos de poder
do Estado, Foucault chamou a técnica de governo dos homens de “governamentalidade”, cuja
característica seria o poder pastoral “que se exerce mais sobre uma multiplicidade do que por um
território” (2008, p. 174) ou “uma multiplicidade em movimento” (2008, p. 169).
6
Apesar de implícita na disputa, a noção “Igreja legítima” não é necessariamente uma categoria nativa e
não pretende ser uma tipologia analítica; trata-se de um recurso que nos permite narrar um conjunto
de argumentos colocados em circulação por diferentes agentes que disputam a autenticidade de
pessoas e instituições num determinado contexto de interação. De acordo com Paula Montero, a
“legitimidade de um agente ou instituição não é uma qualidade inerente, mas o resultado de uma
dinâmica simbólica que é preciso descrever” (2012, p. 177). A construção da legitimidade é vista aqui
como um processo e não como uma essência, motivo pelo qual investimos na dimensão das práticas

Religiões e controvérsias Final.indd 233 18/08/2015 09:59:54


234 como sua trajetória – de leigo católico a fundador de sua própria Igreja – é per-
tinente para ilustrar alguns casos de disputa pelo poder pastoral e a construção
de narrativas performáticas de justificação, isto é, uma performance da fala
sincera. Empiricamente, interessa-nos as relações entre obediência pastoral e
rebeldia subjacente ao surgimento de novos grupos em disputa.

Cajamar

Pirapora do Bom Jesus


Fazendinha
Bairro 120

São Paulo
Araçariguama Centro

Alphaville

Rodovia Caste
lo Branc
o

Barueri

Figura 1. Mapa: Santana de Parnaíba.


Fonte: Google maps (internet) – adaptação do autor.

Quanto à minha inserção, apesar de possuir um roteiro prévio (projeto de pes-


quisa) e do exercício de estranhamento que eu julgava praticar como aprendiz de
antropólogo, o fato é que demorei a dar-me conta de que já estava lidando com
dados etnográficos relevantes para compreender a dimensão das experiências e
práticas discursivas entre os fundadores dessas instituições: pode-se dizer que, por
um lado, o fundador “rebelde” convive com a acusação de espírito cismático cujo
estigma pressupõe uma expectativa de fracasso de suas atividades, ao passo que
disputa a distinção de homem de Deus ou ungido (“vaso”). Exploro mais adiante
a construção dessas categorias e as performances de acusação e justificação.
No instante em que busquei esboçar os objetivos de minha pesquisa (praxe
ético-protocolar) e estabelecer um contato de confiança (praxe de alteridade
antropológica), fui interpelado por Ribamar que, para minha surpresa (devo

e das experiências; esforço-me, mais adiante, por esclarecer essa formulação (vide esquema, Figura
4). Prescindo, pois, da clássica tipologia weberiana Igreja-seita, já suficientemente problematizada
pela literatura antropológica enquanto conceito analítico (cf. CAROZZI, 1994; GIUMBELLI,
2002). Se por um lado a tipologia analítica é suspensa, por outro essas categorias circulam entre os
nativos para qualificação de suas atividades, sendo essa a dimensão que nos interessa.

Religiões e controvérsias Final.indd 234 18/08/2015 09:59:54


dizer, “surpresa de antropólogo” que se fascina por “sinais” que suspendem

Vasos rebeldes
235
expectativas protocolares), passou a contar-me acerca da experiência de um
sonho que afirmara ter tido semanas antes da minha chegada a campo, no qual
um suposto personagem descrito por ele como tendo um “caderno” na mão (ou
objeto similar) procurava-o para conversar. Além de uma câmera fotográfica,
eu estava com um pequeno bloco de notas na mão – o famoso “caderno de
campo” –, fato pelo qual minha presença naquela circunstância foi imediata-
mente relacionada ao personagem onírico e interpretada em seus termos como
tendo sido “revelada” pelo Espírito Santo, motivo pelo qual Ribamar afirmava
não sentir-se “surpreso” com minha presença7.
Apenas num momento posterior dei-me conta de que esta modalidade de
encontro emoldurada pela cosmologia nativa certamente facilitou minha inser-
ção; é possível supor o contrário caso o personagem onírico fosse relacionado à
cosmologia cristã dos demônios: minha presença teria sido vista de outro modo,
senão como um potencial emissário digno da desconfiança nativa8. Suspeito
ainda que a partir daquele momento passei a ser visto não mais como pesquisa-
dor, mas como um convertido em potencial; era sempre recebido com a típica
saudação “a paz do Senhor” ou com o tratamento de “irmão” dirigido aos pares;
fui de fato algumas vezes convidado a ir à frente, próximo ao púlpito, para
receber oração ou “testemunhar” algo. Descrevo mais adiante algumas dessas
situações com o objetivo de situar o leitor na estratégia narrativa que adoto.
Após a descrição do sonho divinatório, sentamo-nos no pilar de acesso do
pequeno templo e José Ribamar passou a reagir às minhas perguntas sobre sua
trajetória de pastor e acerca dos fiéis que o seguem. Num tom assertivo e disfar-
çando as lágrimas ao narrar as dificuldades de manter os fiéis em sua Igreja – e
assim sustentá-la financeiramente –, sua resposta buscava tirar-me do nível de

7
As transcrições de algumas falas de Ribamar, analisadas mais adiante, são reproduções desse encontro,
chamado aqui de recepção cosmológica. As categorias nativas aparecerão entre aspas sempre que
houver necessidade de distingui-las de minhas análises; na transcrição das entrevistas introduzo
colchetes a fim de contextualizar o leitor no sentido das narrativas.
8
Essa experiência de “encontro” ou de ser colocado na moldura de uma cosmologia nativa lembra-nos
o trabalho de Marshall Sahlins (1990) ao descrever o polêmico caso do capitão James Cook e sua
tripulação, que teriam sido interpretados pela cosmologia havaiana, por um lado pela expectativa
da vinda do deus Lono, que estabeleceria um período de paz, e por outro em função da divindade
Ku, associado ao período de guerra. O capitão Cook situava-se em lugares diferentes em relação
a ambas as expectativas. Clifford Geertz (1989) também narra uma experiência em Bali, onde
procurou um modo de “situar-se” na expectativa nativa e conseguir a confiança dos balineses. Para
Geertz, a cientificidade do texto antropológico não consiste na descrição da realidade objetiva,
mas num “situar-se” (1989, p. 10). Utilizando-me dessa situação, trato de produzir, assim como
Roy Wagner (2010) e Marilyn Strathern (2014), uma etnografia que leva em conta o estatuto
epistemológico de invenção, isto é, os construtos nativos em seus próprios termos.

Religiões e controvérsias Final.indd 235 18/08/2015 09:59:54


236 questionamento que Bruno Latour (2004) denunciou como “duplo-clique”, visto
que minhas perguntas pretendiam “decifrar” a cosmologia nativa (inicialmente
imbuída de uma noção de crença e representação). Conforme Latour, o próprio
discurso contém uma variedade de níveis, e tomar como marco de referência
determinados tipos de perguntas que não levam em conta a dimensão em que
se localiza o tipo de enunciado implicado na fala religiosa significa torná-la “va-
zia”, “tediosa”, “repetitiva”. Para Latour, o discurso religioso “busca justamente
frustrar a tendência ao duplo-clique, desviá-la, rompê-la, subvertê-la, torná-la
impossível” (2004, p. 335). Desse modo, Latour compara o discurso religioso
ao discurso amoroso, cujo sentido só é compreendido na correspondência deste.
Os enunciados da fala conteriam uma diversidade de dimensões, de modo que
as perguntas devem ser feitas considerando os distintos planos.
Segue a resposta de Ribamar na ocasião do referido encontro, sugerindo nas
entrelinhas uma suspensão da assimetria entre pesquisador e interlocutor:
Ah não, isso não foi ideia minha, não! Agora vou entrar no lado espiritual, isso não
foi ideia [puramente humana]. A minha Igreja não foi trazida assim no sentido meu
de caçar um nome bonito, não! Foi trazida pela parte [vontade] de Deus mesmo.
É sério, você pode acreditar nisso? [retoricamente respondo que sim]. O nome da
Manjedoura foi algo que veio do céu, de Deus. Foi numa madrugada dormindo que
tive a revelação. Eu vi o formato de uma estrela brilhar e chegar perto de mim, na
visão. E ali eu abri bem os olhos e olhei, mas estava dormindo. Aí eu vi umas letras
de ouro, umas letrinhas tudo amarelinhas, vi os números, vi tudo. Vi as estrelas
que formou [sic] o céu. Vi a Bíblia que se abriu ali no livro de Lucas. E ali estava o
capítulo e o versículo [Lucas 2:7]9. Aí eu espantei e perguntei: “Senhor, será que

9
“[...] e ela [Maria] deu à luz o seu filho primogênito [Jesus], envolveu-o com faixas e reclinou-o
numa manjedoura, porque não havia lugar para eles na sala [hospedaria]”, Bíblia de Jerusalém
(1981). Esses arranjos criativos para a composição da nominação lembra-nos o que Claude Lévi-
-Strauss chamou de “bricolagem” (1989, p. 32), isto é, o modo pelo qual o artista ou o pensamento
mítico opera novos sentidos a partir de fragmentos que possuíam significados distintos. No caso de
José Ribamar, a noção simbólica de Igreja é construída a partir de elementos díspares, tais como
a referência a constelações (“estrelas”), a composição textual de “letras de ouro” e “números”, o
cenário mítico e objetos da narrativa natalina. É também curioso o fato de que outro pastor e amigo
de José Ribamar, Claudinei de Jesus (nascido em 1978), também fundador de sua própria Igreja em
2009 (a Assembleia de Deus – Ministério Deus Restaura), tenha se referido a um sonho no qual lhe
teria sido revelado o nome de sua Igreja por meio de “letras de ouro”. Paradoxalmente, conforme
Claudinei, as “letras” estavam em hebraico e, apesar de afirmar não conhecer esse idioma, teria
decifrado a mensagem divina por meio do que chamou de “dom de interpretação”. Esses elemen-
tos, provindos de diferentes dimensões de significados, somam-se, como no caso da bricolagem,
na construção de novos sentidos. No plano das práticas, penso os modos de nominação como uma
performance ritual de distinção, como veremos mais adiante no hino de fundação composto por
José Ribamar. Cabe-nos descrever como esses sentidos são performatizados.

Religiões e controvérsias Final.indd 236 18/08/2015 09:59:54


tenho que colocar o nome da Manjedoura [até então a Igreja chamava-se Corrente

Vasos rebeldes
237
do Poder] de Manjedoura?” Aí eu fiquei com aquela confusão [acerca do significado
do sonho]... Aí numa outra tarde eu estava dormindo, aí eu vi a mesma coisa
[“confirmação” do sonho]. Eu vi as letras e os números... o capítulo da manjedoura,
o versículo e uma faixa [escrito:] “Manjedoura de Cristo”... Eu mesmo discerni o
nome que não pude entender. O nome de Manjedoura significa o símbolo humil-
dade. Temos que ser humildes, temos que ser pequenos diante de Deus. Nós pra
ter uma Igreja temos que ser o último, o mais pequeno... [a manjedoura] era um
lugar desprezado pelo homem e Jesus nasceu lá. Nós temos que ser assim [sic].

A situação descrita não é tão simples quanto parece. Desse fragmento discursivo
podemos destacar alguns elementos da disputa pastoral, como a construção
performática da sinceridade e exemplaridade da humildade como distinção
do fundador, assim como a construção material e simbólica da noção de Igreja
legítima, isto é, seu estatuto jurídico e nominação. Como esses elementos se
relacionam e de que modo podemos apreender um conjunto de categorias no
contexto vivencial de disputas? Minha proposta é levar a sério epistemologi-
camente os interstícios dessa recepção cosmológica e relacioná-la numa rede
mais ampla de interações. Como pude adiantar, interessa-me a construção de
justificativas, tal como sugere o contexto da fala de José Ribamar.

Figura 2. Vista panorâmica do Bairro 120 – ao centro, a Manjedoura de Cristo.


Fonte: Foto de Genaldo Alves, 2010. Arquivo pessoal.

Religiões e controvérsias Final.indd 237 18/08/2015 09:59:54


238

Figura 3. Pastor José Ribamar, fundador da Igreja Manjedoura de Cristo.


Fonte: Foto de Genaldo Alves, 2010. Arquivo pessoal.

Porém, antes de avançarmos, é preciso problematizar essa proposta e nos


precaver de possíveis equívocos acerca do recurso narrativo. Em primeiro
lugar, a narrativa desse encontro, por certo, poderia suscitar uma diversidade
de problemas e objeções em relação aos modos de produzir uma etnografia,
isto é, implicaria uma construção textual que tomaria a noção de campo como
uma “particularidade de seu procedimento” e exemplificaria “veracidade de
seu discurso” (PULMAN, 2007, p. 230), em que estaria pressuposto o que
James Clifford chamou de “autoridade etnográfica” (2011, p. 17). Apesar dos
limites da produção etnográfica em dar conta de todos os aspectos das relações
estabelecidas em campo, ainda é um instrumento privilegiado no conhecimento
antropológico (PEIRANO, 1992); é preciso começar por algum lugar e, apesar
das limitações, há mais ganhos que desvantagens; assumo, pois, o risco de levar
adiante essa estratégia narrativa10.

10
A propósito, é clássico na literatura antropológica a problematização da interpretação dos dados
coletados em campo, como, por exemplo, nas formulações de Vincent Crapanzano (1991), cuja
abordagem explora os novos sentidos – ou “ficções” – que a etnografia adquire no momento da redação.
James Clifford chamou isso de “escrita direcionada” e levanta a questão sobre “quem realmente é
autor das anotações feitas em campo?” (2011, p. 45). Essa observação leva-nos a considerar, como
formulado por Clifford, que “se muito da escrita etnográfica é produzida em campo, a real elaboração
da etnografia é feita em outro lugar” (p. 39). Por que não explicitar seu processo de elaboração?

Religiões e controvérsias Final.indd 238 18/08/2015 09:59:54


Extensivo ao procedimento que pretende “levar a sério” a modalidade de saber

Vasos rebeldes
239
nativo (a noção de “revelação”) e apreender a relação entre “objetos e eventos
agregados”, como diz Talal Asad (2010, p. 265), não seria plausível estender
(também) um tratamento antropológico à cosmologia pentecostal assim
como se procede em relação a outras cosmologias (e práticas)? Tratando-se
do pentecostalismo, apesar da vasta produção acadêmica, o desnível de trata-
mento analítico dispensado ao objeto só recentemente vem sendo superado
(BIRMAN, 2006; VITAL DA CUNHA, 2008; CAMPOS, 2011; MARQUES,
2013; MAFRA, 2014). Tendo sido construído como uma alteridade sempre em
desvantagem, o pentecostalismo (com raras exceções) tem sido lido como uma
espécie de “outro repugnante” – para usar o termo de Susan Harding (2000)
ao caracterizar a postura acadêmica perante os grupos fundamentalistas – ou
como uma “cosmologia repulsiva”. A provocação de Delcides Marques em
relação a uma análise simétrica da teologia cristã por parte da antropologia soa
aqui como eco: “Se em relação à cosmologia indígena é interessante discorrer
sobre ‘pensamento’, ‘conceito’ ou ‘filosofia’, por que evitar um tratamento
simétrico do cristianismo a partir da teologia?” (2013, p. 269).
Nesse caso, a experiência onírica de José Ribamar e os sentidos convencionados
por seus pares (ou ciclo) acerca do que seria uma revelação são geralmente
concebidos como uma modalidade de saber, um modo de orientação divina,
sendo assim, valorizado e disputado pelos pentecostais como um modo de aferir
a verdade. O que chamei de “recepção cosmológica” pode ser tomado como
exemplo e serve-me como exercício para narrar a produção de categorias em
seu contexto vivencial de interações11. Nesse sentido, esforço-me para des-
crever a performatividade da fala sincera que se pretende digna de obediência
e passividade do outro. Conforme Paul Veyne, a “modalidade mais difusa de
crença é aquela em que se acredita na palavra do outro” (2014, p. 55); Veyne,
ao se perguntar se “os gregos acreditavam em seus mitos”, problematiza a noção
de “crença” e a substitui por “regimes de verdades”, argumentando que cada

11
Considero fundamental levar em conta a compreensão que meus interlocutores têm da Bíblia, bem
como a noção de pessoa do Espírito Santo. Otávio Velho (1987) formulou algo semelhante em
outro contexto e pode servir de exemplo. Ao analisar alguns aspectos das lutas dos camponeses no
Brasil, Velho sugeriu que a categoria “cativeiro”, por vezes acionada pelos cientistas sociais de modo
anacrônico, isto é, de uma teorização moderna para outro contexto, só seria bem compreendida
caso se levasse em conta o reconhecimento de uma “cultura bíblica”, de onde essa categoria teria
surgido. De acordo com Velho, categorias como essas, provenientes de um contexto distintamente
religioso, seriam ignoradas por pesquisadores, que insistiriam em atribuir-lhes significados tendo em
vista outras dimensões políticas e culturais. Para Velho, o reconhecimento dessa cultura bíblica como
recurso metodológico “serviria de referência para se pensar as experiências vividas”. A utilização
desse recurso nas ciências sociais, conforme Velho, lhe permitiria “atingir o nível das crenças e
atitudes profundas” (1987, p. 8). É nesse sentido que me refiro ao conceito de contexto vivencial.

Religiões e controvérsias Final.indd 239 18/08/2015 09:59:54


240 período histórico produz uma “pluralidade de programas de verdade”, desde
a noção de verdade como “testemunho” (narrativa mítica) às investigações das
“fontes” (históricas) e à busca por sua “comprovação” (científica).
No caso dos pentecostais, conforme Roberta Campos, o texto bíblico é oralizado
e “tornado parte da própria performance do carisma do líder” (2011, p. 1014),
ou seja, a autoridade do texto é deslocada para o profeta. A noção de revelação
pode ser ainda concebida como um modo de textualidade, isto é, vai além da
palavra escrita, conforme propõe Campos. Não há razão para negligenciá-la
ou reduzi-la da dimensão dos valores que os agentes lhes atribuem. Podemos
pensar, portanto, na constituição de uma disputa pela “fala sincera” (CAMPOS,
2011, p. 1029) e pela “ideologia semiótica de santidade” (MAFRA, 2014, p.
175) no ciclo dos fundadores. Se levarmos essas formulações adiante, podemos
pensar a noção de revelação como uma modalidade de saber ou textualidade,
cuja veracidade é construída na dinâmica dos corpos em disputa: o rito de
distinção de sinceridade, para que tenha êxito de adesão pretendida, depende
da exemplaridade dos corpos; sua eficácia no outro depende da plausibilidade
da performance, sempre sujeita à circunspecção.
Vejamos, pois, como podemos relacionar esses elementos micros a um conjunto
mais amplo de interações: penso aqui – de modo que ficará mais claro adiante
– numa plataforma de debate ou denúncia e justificação12. Interessa-me, pois,
“perseguir”, no sentido dado por Tommaso Venturini (2009), a constituição de
uma disputa em torno do que chamarei de controvérsia da sinceridade13. Para
Venturini, uma controvérsia estaria sempre num estado líquido das tensões,
de modo que, quando passamos a descrevê-las ou “persegui-las”, começamos
a ver a solidificação do “magma”, os processos de construção de consensos e
normatividades. Nesse caso, qual o ideal de Igreja legítima?

Interlúdio: construindo uma plataforma de controvérsias –


denúncia e justificação
A expansão pentecostal tem sido um tema recorrente nas ciências sociais.
Entretanto, a fundação de microigrejas pentecostais, bem como a dinâmica da

12
A noção de “plataforma”, apesar de ser uma abstração teórica, pretende descrever situações con-
cretas da produção de práticas discursivas, suas ressonâncias e seus modos de circulação. Visto que
tal plataforma não está dada, é preciso construí-la e descrevê-la.
13
A própria etimologia da palavra “sincera” (sine cera, “sem cera”) exige do profeta um comportamento
autêntico construído socialmente. É nesse sentido que argumento que a noção de Igreja legítima é
uma extensão dos corpos que ritualizam discursivamente a performatividade da sinceridade.

Religiões e controvérsias Final.indd 240 18/08/2015 09:59:54


cissiparidade entre si, não tem sido, até pouco tempo, objeto privilegiado dos

Vasos rebeldes
241
pesquisadores que se dedicam à questão. Apesar de uma aparente imperceptibi-
lidade institucional devido aos ínfimos recursos de publicidade (se comparados
aos recursos financeiros e midiáticos das grandes instituições neopentecostais),
pode-se afirmar que a presença dessas microigrejas aponta empiricamente para
os dados estatísticos dos últimos censos referentes à expansão dos pentecos-
tais e novas configurações do espaço urbano. Seria interessante dispor de um
georreferenciamento dos modos de ocupação do espaço urbano, tal como faz
Ronaldo Almeida (2009) em relação aos lugares de culto na região metropolitana
de São Paulo. Entretanto, uma dificuldade logo se impõe devido à mobilidade
e à natureza provisória dos templos; a maioria dispõe de pequenos imóveis
alugados, motivo pelo qual são também chamados pejorativamente de “Igrejas
de garagens” ou “Fundo de quintal”, conforme categorias nativas.
Para fins comparativos, é importante destacarmos a pesquisa de Peter Fry
(2000) sobre o sucesso da expansão pentecostal em Moçambique. Fry destaca
pelo menos três interpretações recorrentes, próximas do que podemos obser-
var no caso brasileiro. Segundo Fry, no contexto de Moçambique, a primeira
interpretação, denominada por ele de “explicação funcionalista”, atribui o
sucesso das Igrejas à desintegração social causada pela guerra civil: o sentido
de “comunidade” daria uma resposta às necessidades sociais. A segunda inter-
pretação, chamada de “manipulativa”, associa o sucesso das Igrejas às ambições
políticas e econômicas dos pastores; agindo por “esperteza”, os líderes religiosos
explorariam a fé dos seguidores14.
Entretanto, Fry descarta essas interpretações por serem insuficientes para
compreender o fenômeno e investe numa terceira via denominada “eficácia
cosmológica”: a análise leva em conta as práticas e narrativas dos agentes
acerca da eficácia da conversão promovida pelo Espírito Santo em oposição às
práticas tradicionais de feitiçaria (2000, p. 78). No caso brasileiro, de modo
semelhante, Ronaldo Almeida e Paula Montero (2001) sugerem investir na

14
Essas duas formas de interpretação aparecem ao longo deste ensaio acionados por diferentes agentes,
especialmente os intelectuais da imprensa. A propósito de exemplo para a “explicação funcionalista”,
uma reportagem da revista Veja, de 24 de janeiro de 2001, intitulada “A explosão da periferia”,
buscava caracterizar o que considerava ser a “tragédia brasileira em torno das grandes metrópoles”.
O argumento central da reportagem de Alexandre Secco e Larissa Squeff é que as Igrejas evangélicas
teriam encontrado nas periferias um terreno fértil para seu crescimento, apontando, por exemplo,
que seriam os “primeiros estabelecimentos a surgirem ao lado dos bares”, com os quais passavam
a disputar os espaços. A reportagem mobiliza uma série de dados estatísticos sobre criminalidade,
desemprego e miséria como os princípios determinantes para o fenômeno. O argumento é que o
fenômeno religioso resulta de desequilíbrio ou vulnerabilidade social e ausência do Estado, isto é,
de políticas públicas: <http://veja.abril.com.br/240101/p_086.html>.

Religiões e controvérsias Final.indd 241 18/08/2015 09:59:54


242 lógica interna dos grupos a fim de compreender a dinâmica do trânsito reli-
gioso. Clara Mafra argumenta que para compreender a formação da noção
de pessoa cristã no Brasil, deve-se levar em conta que o pentecostalismo tem
uma composição mista, construída numa tensão em dois polos: a noção de
“pessoa sincera” estaria no polo de uma herança protestante, e os aspectos de
uma “personalidade encantada” no polo de uma herança da tradição católica
regional (2014, p. 176). Para Mafra, investir na “ideologia da santidade” e
na “ideologia da sinceridade” abriria novos caminhos para o debate. É o que
empreendemos neste ensaio.
Essa terceira via não exclui outros fatores, mas procura colocar em relevo
outros aspectos a partir dos construtos nativos; trata-se de mapear a qualifi-
cação que os próprios agentes em disputa fazem dessas atividades. A noção de
controvérsia nos possibilita “perseguir” essas disputas e seus desdobramentos.
O processo de fragmentação ou cissiparidade dessas microigrejas, fenômeno
geralmente relacionado como intrínseco às origens protestantes (BITUN,
2007) e chamado ironicamente de “fogo amigo” por Antônio Flávio Pierucci
(2008, p. 14), tem chamado a atenção da opinião pública e gerado certo mal-
-estar por parte de alguns agentes15. Pretende-se organizar, por um lado, um
conjunto de acusações mobilizadas por intelectuais da imprensa como modelo
desse mal-estar em relação à presença dessas atividades religiosas; por outro,
busca-se descrever também a circulação de categorias acusação e justificação
entre os próprios fundadores. Temos, pois, vários planos entrelaçados e que
precisam ser descritos.
Em que consistem as acusações? As contribuições teóricas de Luc Boltanski
em La denuncia pública (2000) e Necessité et justification (2002) inspiram-
-me a organizar minimamente a produção dos argumentos em distintos planos
da experiência. Chamarei o primeiro plano de narrativa denunciante: trata-se
da percepção dos intelectuais da imprensa sobre essas atividades religiosas na
esfera pública. Não raro é possível observar casos de denúncias mobilizadas
por intelectuais da imprensa envolvendo algum tipo de atividade religiosa,

15
É possível sugerir um exemplo: ao multiplicarem-se, as atividades dessas microigrejas são percebi-
das pela opinião pública, em alguns casos, como um “caos” à ordem pública. A controversa “Lei do
Silêncio” (Programa de Silêncio Urbano – Psiu), por exemplo, aprovada no estado de São Paulo por
volta de 1997 a fim de punir a “poluição sonora” de alguns estabelecimentos a partir de determinados
horários, foi recebida por alguns líderes religiosos como “perseguição” contra a liberdade de culto.
Essa lei, que resultou em multas para algumas Igrejas, mobilizou uma série de debates por parte dos
líderes evangélicos. A título de exemplo, a lei, por meio da intervenção de um pastor e vereador,
foi alterada no município de Jaú (SP) para “atender as Igrejas evangélicas”: <http://www.jaunews.
com.br/noticias/geral/1102/lei-do-silencio-e-alterada-para-atenderigrejas.html>.

Religiões e controvérsias Final.indd 242 18/08/2015 09:59:54


reacendendo a questão de sua legitimidade na esfera pública; há diversos casos,

Vasos rebeldes
243
especialmente em relação aos pentecostais. Emerson Giumbelli (2002, p. 275),
por exemplo, cujo trabalho problematiza a questão da liberdade religiosa, faz
referência a uma reportagem do jornal O Estado de S. Paulo, de 1990, na qual
os repórteres simularam a fundação da “Igreja do Deus do Amor Livre” com o
objetivo de demonstrar a facilidade de criar tal empreendimento e denunciar
a fragilidade das leis do Estado16. De modo semelhante, uma recente repor-
tagem de O Globo, de 2 de julho de 2014, recolocou em pauta o problema
da legitimidade desses empreendimentos. Publicada com o título “Criação
de Igreja é negociada até em anúncio de classificados”, a reportagem narra
o caso de um suposto anúncio publicado numa seção de classificados de um
jornal de Brasília, no qual um anunciante chamado Francisco procurava “duas
pessoas para fundarmos juntos uma Igreja”. Procurado por repórteres que se
apresentaram como possíveis “sócios”, logo a denúncia esclarece os projetos
pessoais do anunciante, descrito como um sujeito que expõe sem rodeios
seus objetivos: “[Francisco] quer fundar uma Igreja pentecostal como muitas
outras que existem por aí e ganhar muito, muito dinheiro. Basta usar técnicas
de hipnose coletiva, simular milagres e recolher dízimo.” Por fim, a denúncia
classifica tal empreendimento como sinal de “bom negócio”17. Nosso argumento
é que a denúncia da imprensa, por sua vez, pressupõe uma essência da religião
ao normatizar sua presença na esfera pública.
A fim de construir uma plataforma com esses exemplos – e assim compor esta
análise –, delimito-me ainda numa denúncia específica, um caso da Folha de S.
Paulo publicado em 2009, a fim de contrastar com a narrativa performática de
justificação dos fundadores, como José Ribamar18. Como nos casos supracita-
dos, a publicação da Folha tinha um duplo objetivo: por um lado, denunciar as
atividades religiosas como “má-fé”19, exemplificadas na simulação de fundação
de uma instituição jurídico-religiosa; e por outro, denunciar a fragilidade do
Estado brasileiro em relação à fiscalização e normatização dessas atividades. No

16
Sob a categoria “escândalo”, práticas protagonizadas por lideranças religiosas ganham notoriedade
e ressonâncias (cf. ALMEIDA, 1996; MARIANO, 1999). Sobre algumas dessas situações, remeto
o leitor aos trabalhos de Paula Montero e Milton Bortoleto, nesta coleção.
17
Disponível em: <http://oglobo.globo.com/pais/criacao-de-igreja-negociada-ate-em-anuncio-de-
-classificados-8883673>. Acesso em: 30 jul. 2014.
18
Delimito-me na denúncia da Folha, de 2009, com objetivo de contextualizar com a pesquisa de campo,
também desenvolvida entre 2009 e 2010. Trata-se de estabelecer uma temporalidade do debate.
19
Paul Veyne argumenta que a noção de “má-fé” resulta das “relações de forças”, isto é, das disputas
entre diferentes modalidades de “relações de verdades” (2014, p. 71). A esse propósito, ver capí-
tulo tratado por Paula Montero nesta coleção, em que a autora faz uma análise da categoria “abuso
espiritual” no contexto protestante.

Religiões e controvérsias Final.indd 243 18/08/2015 09:59:55


244 caso do simulacro de fundação, é interessante observar a construção material
e simbólica da noção de Igreja mobilizada e invertida pela denúncia.

1. Modelo de narrativa denunciante: caso da imprensa brasileira


A denúncia publicada numa coluna da Folha de S. Paulo em 29 de novembro
de 2009 é assinada pelo filósofo e articulista Hélio Schwartsman em colabo-
ração com os editores Claudio Angelo e Rafael Garcia. Sua repercussão, na
época, aqueceu os ânimos da opinião pública, criando ressonâncias acerca da
regulação das atividades religiosas por parte do Estado e sua legitimidade na
esfera pública, especialmente em relação aos fundadores de novas Igrejas pen-
tecostais, acusados de se beneficiarem de alguns privilégios; tal modelo pode
ser útil para a construção da temporalidade e a constituição da controvérsia
de autenticidade das práticas religiosas na esfera pública. Vejamos um trecho
da publicação e sua ressonância:
Bastaram dois dias úteis e R$ 218,42 em despesas de cartório para a reportagem
da Folha criar uma Igreja. Com mais três dias e R$ 200, a Igreja Heliocêntrica do
Sagrado EvangÉlio já tinha CNPJ, o que permitiu aos seus três fundadores abrirem
uma conta bancária e realizarem aplicações financeiras livres de IR (Imposto de
Renda) e de IOF (Imposto sobre Operações Financeiras). Seria um crime perfeito, se
a prática não estivesse totalmente dentro da lei. Não existem requisitos teológicos
ou doutrinários para a constituição de uma Igreja. Tampouco se exige um número
mínimo de fiéis. Basta o registro de sua assembleia de fundação e estatuto social
num cartório... A Igreja Heliocêntrica do Sagrado EvangÉlio, por exemplo, pode
sem muito exagero ser descrita como uma monarquia absolutista e hereditária.
Nesse quesito, ela segue os passos da Igreja da Inglaterra (anglicana), que tem
como “supremo governador” o monarca britânico... Voltando ao Brasil, há até o
caso de cultos religiosos que obtiveram licença especial do poder público para
consumir ritualisticamente drogas alucinógenas. Desde os anos 1980, integrantes
de Igrejas como Santo Daime, União do Vegetal, A Barquinha estão autorizados
pelo Ministério da Justiça a cultivar, transportar e ingerir os vegetais utilizados na
preparação do chá ayahuasca – proibido para quem não é membro de uma dessas
Igrejas. Se a Lei Geral das Religiões, já aprovada pela Câmara e aguardando vo-
tação no Senado, se materializar, mais vantagens serão incorporadas. Templos de
qualquer culto poderão, por exemplo, reivindicar apoio do Estado na preservação
de seus bens, que gozarão de proteção especial contra desapropriação e penhora20
(FOLHA DE S.PAULO, 2009).

20
Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc2911200909.htm>. Acesso em: 30
jan. 2014.

Religiões e controvérsias Final.indd 244 18/08/2015 09:59:55


Vários elementos compõem essa denúncia, assim como no caso do fragmento

Vasos rebeldes
245
de fala de José Ribamar destacado no prelúdio: as categorias de distinção e os
aspectos materiais (jurídicos) e simbólicos das atividades do fundador e seu
empreendimento são aqui invertidos. Como podemos observar, a equipe de
articulistas simulou a fundação da Igreja Heliocêntrica do Sagrado EvangÉlio
com o objetivo de denunciar a “facilidade” de se abrir uma Igreja, bem como
as “vantagens fiscais” que os ministros religiosos teriam para se isentar de
impostos e privilégios em relação à “prisão e dispensa de serviços militares”.
Bastou-lhes, conforme a narrativa, algumas despesas com os documentos jurí-
dicos e sem que houvesse “requisitos teológicos” ou “doutrinários” – ou mesmo
um “número mínimo de fiéis” – a Igreja estava criada. É possível supor que
mesmo preenchendo esses “requisitos”, o sistema de acusação mobilizaria o
jogo com outras regras, uma vez que o processo de normatização é disputado
e definido nas relações.
A redação do texto é habilmente construída com jogos de palavras e sutis
ironias, a começar pelos epônimos “Hélio” e “EvangÉlio” na composição do
nome jurídico-simbólico da Igreja, derivados de seu “fundador”. Temos aqui
uma clara referência à dimensão simbólica dos modos de nominação das ins-
tituições religiosas, ao passo que os colaboradores da reportagem são também
chamados ironicamente de “bispos”, uma alusão à estrutura hierárquica adotada
por algumas instituições. O trocadilho tem a intenção de inverter a lógica de
um sentido compartilhado, recolocando novas ambiguidades. Duas observa-
ções podem ser feitas acerca disso: em primeiro lugar, a mobilização do plano
teológico para construção da denúncia pretende torná-la eficaz ao inverter os
sentidos da cosmologia e dos símbolos relacionando-os às práticas denunciadas,
ou seja, às práticas de “má-fé”, a interesses pessoais, e, por isso mesmo, con-
siderado espúrio; por outro lado, a mobilização do plano jurídico questiona a
capacidade do Estado em regular tais práticas, como na exigência de formação
teológica e de fiscalização das atividades financeiras dos empreendimentos
religiosos. Por fim, os articulistas levantam a questão da legalidade dessas ati-
vidades religiosas, tidas como “crimes” se não estivessem dentro nos limites
da lei brasileira, o que coloca um dilema normativo para o Estado, que “não
pode negar-lhes fé”21. Ainda é interessante notar que a denúncia possui como
alvo principal a ineficácia da legislação brasileira.
Podemos ainda observar a ressonância da narrativa denunciante na opinião
pública por meio do filtro de recepção de um círculo de leitores da Folha. Al-

21
Quanto à controvérsia em torno do uso religioso da ayahuasca, também citado no artigo da Folha,
ver Henrique Antunes nesta coleção.

Religiões e controvérsias Final.indd 245 18/08/2015 09:59:55


246 guns comentários (selecionados) foram publicados na coluna “Painel do leitor”,
do dia 6 de dezembro de 200922. A maioria dos leitores identifica-se como
moradores de São Paulo. O espaço não permite a reprodução dos argumentos
na íntegra, mas uma breve análise é suficiente para apontar o consenso acerca
das fragilidades da legislação brasileira em relação às atividades religiosas,
reforçando a denúncia de Schwartsman em diversos planos.
Vejamos a recepção da denúncia: um leitor pergunta ironicamente: “devo
insistir em abrir uma pequena empresa... ou abro uma igrejinha, tiro o pé da
lama e, arregimentando um bom número de seguidores, me candidato a um
cargo eletivo com suas inumeráveis benesses pagas pelo contribuinte?”; outros
leitores se referem às atividades religiosas denunciadas no artigo como “ex-
ploradores da fé”, ao passo que outro generaliza afirmando que “o Brasil só é
pensado para os que têm má-fé”, e que o artigo “corrobora esta tese”; um dos
leitores faz o seguinte elogio: “Magnífico o texto sobre a Igreja Heliocêntrica,
do sumo sacerdote Hélio Schwartsman e dos bispos Claudio Angelo e Rafael
Garcia. Pena que esse excepcional trabalho, cheio de sutileza e ironia, não
tenha sido devidamente apreciado e repercutido”; o mesmo leitor observa que
Schwartsman “denuncia com sarcasmo bem temperado as falhas da legislação
e aponta o caminho percorrido pelos exploradores da fé em benefício próprio
aqui mesmo na Terra”, ao passo que outro leitor aponta para as brechas que
esses empreendimentos encontram nas “facilidades existentes para evitar a
tributação brasileira”; outro considera “oportuna e jornalisticamente correta a
‘fundação’ de uma Igreja para mostrar como a legislação pode ser usada para
fraudes e fins escusos”. Finalmente, um leitor afirma que “o problema é que
tais ‘religiões’, que antes financiavam campanhas políticas, agora estão assu-
mindo diretamente cadeiras nos parlamentos e contam com partidos políticos”.
Como podemos observar nos casos acima, a denúncia mobiliza diversos planos:
o aspecto jurídico por meio da simulação de fundação, o aspecto teológico por
meio da acusação de charlatanismo, o aspecto econômico ao relacioná-los a fins
financeiros e o aspecto político, que coloca em questão a possibilidade de esses
grupos contribuírem para a formação de quadros partidários e interesses afins.
Temos aqui uma possível conexão para pensar a relação entre a “religião” e o
“secular”.
De que modo as narrativas de acusação e justificação se aproximam e se
distanciam? Num plano geral e abstrato, é possível conjecturar que ambas

22
Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/semanadoleitor/sl0612200901.htm>. Acesso
em: 30 jan. 2014.

Religiões e controvérsias Final.indd 246 18/08/2015 09:59:55


as narrativas reproduzem na disputa, cada um a seu modo, um conjunto de

Vasos rebeldes
247
dispositivos jurídicos, teológicos e econômicos cujo objetivo é normatizar e de-
finir o papel do religioso na esfera pública: a questão é o ser religião ou Igreja
autêntica. No plano empírico, penso na temporalidade da controvérsia que nos
permite situar o “magma” da disputa sob a perspectiva de variados agentes.
Nessa temporalidade há uma inversão do ser Igreja autêntica. Podemos for-
mular brevemente a ideia de que a narrativa denunciante produz uma noção
de Igreja em que a comunidade está ausente (apenas o aspecto jurídico), ao
passo que a narrativa de justificação primeiro produz uma comunidade e depois
a institucionalização jurídica23. Conforme venho argumentando, a narrativa de
justificação é construída e performatizada pelos corpos em disputa. Esse ponto
será retomado mais adiante ao tratar das categorias de distinção e os critérios
de sucesso do fundador.

2. Narrativas de justificação: a performance da sinceridade e do sucesso


Consideremos, pois, os critérios de sucesso e fracasso na fundação de uma
Igreja. Qual é a marca do sucesso? Ao analisar a circulação do carisma pente-
costal como ação performática, Roberta Campos coloca o problema em nova
perspectiva e levanta a seguinte questão em suas considerações finais: “Algumas
Igrejas pentecostais já nascem com a marca do sucesso?” (2011, p. 1042).
Podemos contribuir para o debate ao nos perguntar pelos critérios de sucesso.
O primeiro passo da autora é problematizar a noção de carisma e pensá-la
em outros termos. Na literatura clássica, o sucesso (ou fracasso) do profeta,
como na formulação de Max Weber, depende de sua capacidade de “fazer-se
acreditar”, visto que a “dominação carismática é uma relação social especifi-
camente extracotidiana e puramente pessoal” (WEBER, 1999, p. 138, grifo
do autor). Em Weber, o carisma é concebido como uma qualidade pessoal e
subjetiva. Em Pierre Bourdieu (2011), aspectos objetivos como condições
sociais e econômicas (capitais culturais) são somados à noção weberiana.
Pode-se concluir que a literatura sociológica brasileira nutriu-se desse binômio
subjetivo-objetivo do carisma para análise da ascensão de líderes religiosos,
especialmente os pentecostais.
Na tentativa de superar a noção weberiana de carisma como qualidade subjetiva
do líder e a noção objetiva bourdieuana, Roberta Campos sugere a performa-
tividade do carisma como uma terceira via: “O sucesso do profeta, para além

23
Devo essa formulação da temporalidade da controvérsia a Eduardo Dullo, cujos comentários
ajudaram-me a clarear o argumento.

Religiões e controvérsias Final.indd 247 18/08/2015 09:59:55


248 de suas capacidades extraordinárias, depende da capacidade de compartilhar
e fazer circular o carisma” (2011, p. 1019). A noção de performance seria um
modo de pensar para além da noção de dominação, presentes em Weber e
Bourdieu, sem, entretanto, negá-la. Em Paula Montero, o esforço para superar
a leitura do carisma como dominação é mobilizado pela noção de controvérsia,
pois esta “permite observar as manipulações de diversas formas discursivas por
diferentes agentes sem a necessidade de supor que eles estão todos disputando
no interior de um mesmo campo e que manejam visões de mundo de um só
campo” (2012, p. 178).
O modo que encontro para descrever os valores atribuídos aos critérios de su-
cesso e fracasso é levando em conta o construto nativo acerca de obediência e
rebeldia. No caso de José Ribamar, se por um lado sua atividade como fundador
confere-lhe prestígio perante os liderados (status de “pastor-presidente”), por
outro sua liderança não nasce com a “marca do sucesso”, mas com a expec-
tativa de fracasso marcada pelo estigma da cissiparidade e pela condição de
“rebelde”. A partir dessa observação, pode-se concluir o desconforto causado
pela acusação de rebeldia visto que, nos termos nativos, equivale às acusações
de “feitiçaria”, “sectarismo” ou “heresia”24. O dissidente, portanto, nasce com
a expectativa de fracasso devido à sua condição liminar de rebeldia, estigma
que busca evitar, apesar de não controlar seus desdobramentos. O sucesso
consiste em performatizar a noção de sinceridade e santidade: as narrativas
de dificuldades, quase sempre ressaltando uma vocação divina em relação às
impossibilidades pessoais, conferem ao fundador uma narrativa de vencedor,
como distinto homem de Deus. A exposição do fracasso compromete a convic-
ção da vocação ou do “chamado”, além do constrangimento perante os pares
e si mesmo.
Em 2009, durante pesquisa de campo, na ocasião em que buscava interlocutores
que me colocassem em contato com alguns fundadores, José Ribamar era men-

24
A categoria “rebelião” é extraída de situações das narrativas de diversos personagens bíblicos con-
siderados arquétipos da desobediência, como, por exemplo, a versão mítica da rebelião de Lúcifer
e uma classe angelical contra Deus, que teria resultado em sua expulsão dos céus; uma análise
bastante útil do mito dos anjos decaídos pode ser vista em Luigi Schiavo (2000) e Paulo Augusto
de Souza Nogueira (2006). Um texto bíblico muito citado para classificar casos de rebelião indivi-
dual e institucional encontra-se no I Livro de Samuel 15:23, “porque a rebelião é como pecado de
feitiçaria” (essa locução é atribuída ao profeta Samuel ao censurar uma situação de desobediência
do rei Saul – antecessor de Davi). Desse modo, os ritos de rebelião, no sentido dado por Max Glu-
ckman (2011) como subversão das regras, não são concebidos apenas contra o grupo, mas contra
a divindade do grupo, de modo que, acerca do acusado, se diz que “prestará contas a Deus” pelo
cisma e desordem na unidade do grupo. Nestes termos, os rebeldes são vistos como arquétipos do
caos, do espírito cismático.

Religiões e controvérsias Final.indd 248 18/08/2015 09:59:55


cionado com frequência, na maioria das vezes como alvo de acusações. Meus

Vasos rebeldes
249
interlocutores, na maioria membros de algumas Igrejas pentecostais, também
davam suas razões para o crescente número de novas Igrejas no bairro. Alguns
davam conta de que muitas Igrejas foram “fundadas” e “afundadas” (ironia nativa
para qualificar o fracasso) em pouco tempo. Para alguns, a fundação de uma
Igreja seria resultado da ambição de um líder cuja ação não estaria de acordo
com a “vontade de Deus”, um dos critérios levados em consideração. Um pas-
tor, líder da Igreja Evangélica Assembleia de Deus Ministério do Belém (filial
do Belenzinho, SP), uma das mais expressivas na região, afirmava, por exemplo
– apontando com o dedo indicador na direção de uma pequena instituição
dissidente –, não compreender por que “pessoas analfabetas” e “sem instrução
teológica” se aventurariam numa “coisa tão séria” como fundar uma Igreja,
interpretando tal prática como um ato de “desobediência”. Nessas condições,
o sucesso pessoal e institucional é suspeito e fadado a um possível fracasso.
Meus interlocutores, entretanto, distinguiam alguns casos. Consideravam al-
guns fundadores como “homens de Deus” e classificavam suas iniciativas como
necessárias, ao passo que outros eram considerados “rebeldes” e motivados
por ambição e “interesses financeiros”; estes prestariam contas a Deus. Nesses
casos, a classificação levava em conta a exemplaridade de conduta moral do
fundador. De modo geral, os critérios de sucesso dependem das condições
que resultaram em sua origem e do modo como sua trajetória é construída,
visto que o processo de cissiparidade é geralmente conflituoso e mobilizado
por acusações mútuas.
Podemos resumir essas acusações nos seguintes termos: inexpressividade teo-
lógico-tradicional, que coloca o problema de suas origens histórico-teológicas
marcadas por cissiparidades e divergências doutrinárias; clandestinidade ju-
rídico-religiosa, que coloca, por um lado, o problema jurídico de visibilidade
no espaço público e, por outro, as acusações de charlatanismo, que consistem
numa classificação das atividades como projetos pessoais regidos por interesses
financeiros espúrios ou pela exploração da fé25.

25
De modo crítico, irônico e provocador em relação aos neopentecostais, Gedeon Alencar classifica-
-os como “a expressão mais brasileira do protestantismo”, afirmando que “são Igrejas que surgi-
ram de forma autônoma, na maioria das vezes, como um projeto pessoal” (2005, p. 84). O autor
esforça-se por esclarecer o fato de que o termo “projeto pessoal” não é utilizado para desqualificar
tais empreendimentos e arremata: “Afinal, nenhuma Igreja nasceu como projeto do coração ou
revelação expressa de Deus, apesar de algumas insistirem nessa falácia”. A observação crítica de
Alencar continua: “Evidentemente que o Zezinho da Vila Vintém que se atreve a fundar uma Igreja
é ‘herege’, ‘rebelde’, ‘divisionista do Corpo de Cristo’, o que jamais diríamos de Lutero, Calvino
ou Wesley.” Por fim, Alencar sustenta: “A questão básica para estas novas Igrejas é: como elas não
têm tradição, podem fazer qualquer coisa” (2005, p. 93, grifos do autor).

Religiões e controvérsias Final.indd 249 18/08/2015 09:59:55


250 Igreja Legítima

Aspecto material Aspecto simbólico

Categorias de Acusação Categorias de legitimação Acusação Legitimação/distinção


Clandestinidade jurídica Estatuto jurídico Rebeldes/rebelados Vasos/homens de Deus/ungidos
Fundo de quintal/igrejola Alianças/federações Profetas falsos Profeta verdadeiro/fala sincera
Inexpressividade institucional Projeto divino Manipulação Honestidade/sinceridade
Ausência de tradição teológica Contribuição social (resgate Charlatanismo Humildade/simplicidade/pobreza
Fins nanceiros espúrios de drogados, famílias...) Sectarismo/heresia Religião/teologia verdadeira
Projeto pessoal Feitiçaria
Caos à ordem pública Religião distorcida
Cosmologia repulsiva
Teologia repugnante Modos de nominação
como extensão das
práticas discursivas

Figura 4. Noção de Igreja Legítima: sistema de acusação e legitimação.


Fonte: Elaboração do autor.

Vasos e rebeldes: distinção e alteridade


A Manjedoura venceu
Vamos todos cantar
A Manjedoura venceu
Vamos se alegrar
Levanta você que é vaso e vamos todos cantar
O capeta correu com as pernas quebradas
Porque o Senhor dos exércitos está nessa jornada
E quem tem Deus em sua vida a boca não fica fechada.

A estrofe acima é um hino ou canto de triunfo composto por José Ribamar


por ocasião da fundação da Manjedoura de Cristo, em 2001. Esse cântico ri-
tual do drama de fundação, cuja estrutura breve e repetitiva é conhecida nos
termos nativos como “corinho”, é cantado em alguns cultos (acompanhado
por palmas) como narrativa do triunfo bélico sobre os “inimigos” e construção
de uma memória heroica coletiva, afirmando sua própria tradição mítica de
origem. Nesse breve canto, a comunidade sintetiza a trajetória institucional
e coletiva diante do que considera triunfo sobre as dificuldades cotidianas,
desde situações econômicas a perseguições reais ou em potencial. Podemos
explorar alguns elementos desse cântico ritual e aproximá-lo da situação que

Religiões e controvérsias Final.indd 250 18/08/2015 09:59:55


chamei de recepção cosmológica; assim, pode-se compreender a construção de

Vasos rebeldes
251
categorias de distinção e as narrativas performáticas de justificação, ou seja,
a relação entre o poder pastoral e os ritos de obediência/rebeldia do rebanho
em relação à aferição da verdade.
De que modo a performance da sinceridade é disputada? A situação do pre-
lúdio nos permite compreender essa dimensão da experiência. Para meus in-
terlocutores, especialmente José Ribamar, a noção de revelação em suas várias
modalidades (seja por sonho ou inspiração profética ou por uma interpretação
do texto bíblico) é concebida como um modo especial de conhecimento, um
saber mediado pelo Espírito Santo e não raro instrumentalizado por uma pessoa
excepcional, o “profeta” ou “homem de Deus”, cujas categorias nativas são
abarcadas pela noção de “vaso”, tal como aparece na quinta linha do hino de
fundação. Tal modo de enunciar ou fazer-se conhecer (revelar) no contexto
dessas relações exige do profeta (vaso) a construção de uma performance
que consiste na ritualização de atos de sinceridade, isto é, modos de ser e agir
compartilhados na experiência em comunidade, cujo objetivo é convencer
acerca de que o que se vê, ouve e diz não procede de si (vontade humana ou
da “carne”), mas da divindade. A fonte de autoridade da palavra ou do discurso
verdadeiro é atribuída ao Espírito Santo, sobre quem há um risco iminente do
exercício da dúvida, compreendido entre os nativos como “blasfêmia” contra
o Espírito Santo, pecado considerado imperdoável (conforme interpretação
que fazem do texto bíblico, Mateus 12:31)26.
Como, então, aferir a veracidade do discurso sem incorrer no perigo de blas-
fêmia? A instância do perigo é construída com sutileza e seria interessante
também pensar nas justificativas para escapar-lhe. Temos aqui a questão do

26
Foi possível observar em situações de campo que nos momentos de inspiração ou êxtase nos cultos,
a pessoa considerada vaso “é usada pelo Espírito Santo” e passa a transmitir uma mensagem que
não é considerada como sendo sua, mas da divindade; fazem distinção entre “mensagem da carne”,
isto é, “vontade” do próprio profeta e “mensagem do Espírito Santo”. Quando por algum motivo
o “vaso” se recusa a “desenrolar o manto”, ou seja, “entregar” a mensagem divina na íntegra, diz-se
que “engoliu” a mensagem ou foi “covarde”, de modo que sofrerá penalidades divinas por sua deso-
bediência e seu medo. Segundo José Ribamar, o “vaso” muitas vezes teme pronunciar algo que não
“provém de Deus”. Contou, por exemplo, que para considerar uma profecia verdadeira, costumava
esperar no mínimo por três “confirmações”, de preferência por diferentes profetas, que não tenham
relação direta um com o outro, garantindo-lhe uma certeza. É altamente respeitável o profeta que
“revela” os segredos íntimos de uma pessoa, de modo a provar que não poderiam ser uma possível
fraude. Entretanto, não raro há sátiras e gracejos entre os pentecostais sobre profecias frustradas
e sem credibilidade; apesar disso, o ceticismo (se é que poderíamos assim chamar) não é de todo
aplicado a alguns casos; há situações consideradas “perigosas” para se “duvidar” ou “brincar”, pois
se corre o risco de acusação de “blasfêmia” contra o Espírito Santo, considerado pelos pentecostais
como um pecado imperdoável.

Religiões e controvérsias Final.indd 251 18/08/2015 09:59:55


252 risco do exercício da dúvida contra a veracidade do profeta, quando este exige
obediência do outro; a temporalidade, portanto, não é da elaboração escrita,
mas da palavra espontânea que exige adesão imediata e passividade. Assim, este
agenciamento entre “humanos e não humanos”, para usar os termos de Bruno
Latour (1994), não é concebido de modo ingênuo, se por isso concebermos
que os indivíduos “aceitam” tudo acriticamente e sem dissenso; pelo contrário,
a plausibilidade da veracidade do profeta ou a “eficácia cosmológica”, como
diz Peter Fry (2000), é submetida a um crivo performatizado construído na
dimensão das experiências. Apesar de meus interlocutores partilharem da
ideia comum de que o Espírito Santo instrumentaliza pessoas (por meio de
capacidades especiais, conhecidas como dons, sem os quais não se veem aptos
a realizar suas atividades), não raro há suspeitas e acusações mútuas, além de
sátiras, gracejos e constrangimentos acerca da procedência e da veracidade
do profeta ou da revelação, suscitando categorias acusatórias tais como “fal-
so profeta”, “revelação da carne”, entre outros correlatos; assim, em vez de
concentração de prestígio e poder, podemos notar que a instância do perigo
(blasfêmia) que coloca o profeta num lugar inquestionável é contestada pela
ausência de plausibilidade da sinceridade. Podemos comparar a situação do
profeta ou “vaso” à situação de Quesalid, personagem descrito por Claude
Lévi-Strauss (1973, p. 202), que apesar de cético em relação ao poder dos
feiticeiros e cujo objetivo consistia em desmascará-los, via-se aos poucos se
tornando xamã pelo consenso social e refletindo sobre sua própria condição. A
aferição coletiva da verdade coloca em circulação novos modos performatizar
a fala sincera, aliás, uma diversidade de posições acerca dela.
Neste ponto, podemos explorar um pouco mais a noção de pessoa do Es-
pírito Santo e os ritos de sinceridade e desobediência. Como notou Clara
Mafra, os pentecostais enfatizam a mediação do Espírito Santo para superar
o problema da distância e da perfeição que o cristianismo concebe acerca de
Deus. Mafra distinguiu pelo menos três modos de mediação, em que estaria
suposta a subjetividade ou a fala interior: a fusão humano e transcendente,
de onde surgiria uma classificação entre “ungidos” e os outros, e o transe
coletivo ou individual em cultos, vigílias, etc. (MAFRA, 2009, p. 81-86).
Mafra ainda aponta para essas categorias como sendo construídas a partir de
noções subjetivas de sinceridade e verdade (2009, p. 82). Há, portanto, um
conjunto de práticas ou “fluxo emocional e corporal do carisma pentecostal”,
para usar os termos de Roberta Campos (2011, p. 1033), nas quais a noção
de sinceridade é construída nessas relações. Nesse contexto, a sinceridade
se realiza por meio da palavra espontânea, numa relação de corporificação
da palavra divina.

Religiões e controvérsias Final.indd 252 18/08/2015 09:59:55


Vasos rebeldes
253

Figura 5. Faixa de divulgação do culto “Encontro de Vasos”. Lê-se na faixa: “este


[o apóstolo Paulo] é para mim um vaso escolhido para levar o meu nome (Deus)...”
(Atos, 9:15).
Fonte: José Edilson Teles, 2011, arquivo pessoal.

Figuras 6 e 7. Publicidade de eventos pentecostais em redes sociais.


Fonte: Redes sociais (Facebook).

Religiões e controvérsias Final.indd 253 18/08/2015 09:59:55


254 A categoria nativa “vaso”, tal como se observa nas figuras 5, 6 e 7, circula en-
tre alguns grupos pentecostais como uma metáfora para designar uma pessoa
excepcional e distinta concebida como depositária dos dons ou das revelações
do Espírito Santo (cf. RICCI, 2007; MAFRA, 2009). Como se pode notar na
publicidade dos “encontros de vasos”, há uma “homogeneidade dos corpos”
(MAFRA, 2014, p. 181), uma exemplaridade coletiva do ethos da santidade
implicado nas vestes e comportamentos correspondentes. Portanto, a categoria
“vaso” aponta para um ator social construído coletivamente equivalente às no-
ções de “pessoa consagrada” ou “ungida” (MAFRA, 2009), “homem espiritual”
(MARQUES, 2009); “profeta” ou “pessoa pentecostal” (CAMPOS, 2011)
e “homem de Deus” (BIRMAN, 2012), cujo status é altamente respeitável
e desejável entre os pentecostais. É plausível, pois, ao ciclo de fundadores,
como no caso de José Ribamar, disputarem a distinção como homens de Deus
e desse modo construírem critérios de sucesso para suas atividades pastorais.
Espera-se dos “vasos” que suas intenções sejam sinceras.
Entretanto, como já foi destacado, a veracidade do discurso é vista sempre
como objeto de disputa e suspeição ou circunspecção. Venho argumentando
que a veracidade do profeta é submetida a um crivo performatizado, um crité-
rio coletivo de aferição da verdade. Tenho aqui a oportunidade de deixar isso
mais claro por meio de exemplos etnográficos observados nos cultos. Gestos
corporais e ritualização da locução profética utilizada por um profeta ao dirigir-
-se a alguém em profecia mimetizam o profetismo hebreu devido à familiari-
dade com a leitura que fazem da Bíblia. Ou seja, procura-se pronunciar frases
introdutórias, como “eis que te digo”, “assim diz o Senhor” ou ainda “Deus
manda te dizer”, uma fala ritual geralmente acompanhada pelo fenômeno da
glossolalia (“falar em línguas”) que lhe imprime o aspecto sobrenatural e busca
distinguir-se da fala habitual. A execução dessa performance é considerada
como tendo a “autoridade do Espírito Santo” e consiste na demonstração de
poder e persuasão27. Vejamos agora o contexto de construção dessas categorias.

27
Usa-se, por exemplo, a categoria “vaso rachado” para qualificar a condição duvidosa do profeta, não
apenas para se referir a vaticínios não cumpridos, como também para classificar comportamentos
associados à desobediência e rebeldia; não apenas a fala, mas os atos de obediência devem ser sinceros.
Num dos cultos de que participei, por exemplo, José Ribamar dirigiu-se a mim com a revelação
de que eu tinha uma “chamada divina” para ser “pastor” e “pregador”, afirmando ser uma “grande
obra”, mas que, para isso, eu deveria tirar a “dúvida do coração”. Afirmava, ao final, que não se
importava se eu acreditasse ou não, simplesmente fazia-lhe conforme lhe foi “mandado” por Deus.
De pesquisador, passei a ser visto como um potencial vaso e, apesar de minha condição “rebelde”,
em várias ocasiões fui chamado à frente para receber oração, ler algum “versículo da Bíblia” ou
contar algum “testemunho”. Além disso, fui considerado como tendo me convertido ao aparecer
num dos cultos com o cabelo cortado (tendo me aproximado de seu ethos). Apesar da timidez e do
constrangimento, resolvi ir à frente uma vez (após sucessivas insistências) e agradecer pela recepção

Religiões e controvérsias Final.indd 254 18/08/2015 09:59:55


Contexto vivencial: construindo trajetórias

Vasos rebeldes
255
A construção de uma trajetória ou espaço biográfico no sentido dado por
Leonor Arfuch como “horizonte analítico para dar conta da multiplicidade,
do lugar de confluência e circulação” (2010, p. 22) depende de um conjunto
de relações que se entrelaçam. Se por um lado a narrativa que Ribamar faz
de sua própria trajetória for caracterizada pelo que Pierre Bourdieu (1996a)
chamou de ilusão biográfica28, por outro há não menos uma ilusão etnográfica
no esforço de minha descrição. Vincent Crapanzano chamou esse recurso nar-
rativo de “ficção” da etnografia (1991), tarefa que, segundo Marilyn Strathern,
consiste em “transmitir a complexidade dos conceitos nativos com referência
ao contexto particular em que são produzidos” (2006, p. 32).
Visto que algumas categorias nativas relacionadas às noções de obediência e
rebeldia foram explicitadas, vejamos alguns traços entre passado e presente
na narrativa que Ribamar faz de si a fim de compreender sua trajetória de
católico leigo a pastor e fundador de sua própria Igreja. Conforme Ribamar,
a aprendizagem das práticas e experiências pentecostais (leitura da Bíblia,
pregação e proselitismo) remonta ao ano de 1995, quando narra sua conversão
do catolicismo para o pentecostalismo. Entretanto, convém sublinhar que, tal
como observam Ronaldo Almeida e Paula Montero, o conceito weberiano de
conversão, que pressupõe “um processo subjetivo de adesão a um novo credo”
(2001, p. 92), perde aqui força analítica. No plano das práticas, a noção de
conversão deve ser mais abrangente e não pressupor fronteiras entre cosmo-
logias. A narrativa de conversão de José Ribamar, para além do modelo webe-
riano que marcou grande parte da literatura sociológica, pode ser pensada na
modalidade de “testemunho” no sentido dado por Eduardo Dullo, como um
“ato de fala (não apenas informativa, mas) performativa” (2014, p. 54). Assim,
não pressupomos fronteiras entre cosmologias, mas buscamos compreender
como os agentes as elaboram na dimensão das experiências.
A narrativa de José Ribamar remonta a experiências da infância, quando afirma
ter tido uma familiaridade com o Espírito Santo, experiência que ganharia novos

que tive, o que a seus olhos não deixava de ser um “testemunho”. Cumprimentavam-me com a
saudação “a paz do Senhor”, sempre dirigida aos pares; a essa altura, minha descrição não poderia
fugir da relação que Jeanne Favret-Saada (2005) chamou de etnografia afetada ao problematizar a
chamada “observação participante”.
28
Se pensarmos uma trajetória em termos da noção de ilusão biográfica proposta por Pierre Bourdieu,
diversos tipos de narrativas (biográficas ou autobiográficas) “propõem acontecimentos que, sem
terem se desenrolado sempre em sua estrita sucessão cronológica, tendem ou pretendem organizar-
-se em sequências ordenadas segundo relações inteligíveis” (1996b, p. 184).

Religiões e controvérsias Final.indd 255 18/08/2015 09:59:55


256 sentidos com a conversão pentecostal; a trajetória passada é lida e organizada
à luz da experiência presente. Ao narrar sua experiência de conversão, por
exemplo, afirma ter recebido na ocasião (em 1995) uma revelação, um sonho
que descreve como sendo uma “experiência real”, no qual um personagem
identificado por ele como o próprio Jesus29, reconhecido pelas “mãos feridas”
– uma referência às feridas da crucificação – o teria chamado para “mudança
de vida”. Desse modo, Ribamar aproxima sua narrativa de conversão à expe-
riência do apóstolo Paulo em dois aspectos, conforme a tradição de Atos dos
Apóstolos atribuída a Lucas (Atos 9): primeiro em termos de uma aparição
(epifania) de Jesus e, por conseguinte, uma exclusividade marcada pela au-
sência de intermediários na conversão (visto que é vocacionado diretamente
por Jesus). A noção de revelação, nesse caso, é estendida para um plano mais
amplo da trajetória, aliás, uma explicação para a vida, tendo como modelo a
tradição dos profetas hebreus que buscam os sentidos de convicção de sua
missão desde o nascimento pela noção de “vocação” ou “escolhido”30. Assim,
temos uma relação entre a distinção do fundador vocacionado e a performance
do discurso sincero.
Conforme sua descrição, a experiência de “mudança de vida” não o leva di-
retamente à convivência com os pentecostais. Inicialmente, teria passado a
frequentar assiduamente um pequeno grupo de leigos católicos formado por
alguns amigos e familiares (migrantes do estado do Piauí), que se reuniam
periodicamente em lares para rezar e manter devoções do chamado “catolicis-
mo popular”31. Apesar de considerar-se católico pela tradição familiar desde
criança, afirma que não se enquadrava na categoria de “católico praticante”.
Entretanto, essa leitura do passado é filtrada a partir da experiência presente,
que contrasta modos de vida e percepções de transformação, como podemos
observar na fala abaixo:
No catolicismo eu fumava, eu bebia, eu jogava, fazia coisas indecentes e conde-
natórias, fazia tudo que tinha direito. E quando chegava a noite, eu tomava a ceia

29
Tateando-se para demonstrar a concreticidade do sonho, chamou-me a atenção a descrição do
personagem Jesus. A descrição lembra as típicas iconografias do chamado “catolicismo popular”,
somando-se a iconografias apocalípticas: o personagem é descrito como tendo barba branca, cabelos
grisalhos, “olhos de fogo”, típicas vestes com cintos de ouro, cicatrizes dos cravos nas mãos e voz
“meiga”. Essas características lembram o capítulo 1 do livro do Apocalipse bíblico.
30
Tal vocação pode ser vista como no caso do profeta Jeremias, a quem a tradição javista atribui a fala
divina “A mim veio a palavra do Senhor, dizendo: antes que eu te formasse no ventre materno, eu te
conheci, e antes que tu saísses da madre, te consagrei e te constituí profeta às nações” (Jer. 1:4-5).
31
Classificação proposta pela literatura sociológica para descrever práticas de um catolicismo de tipo
“rústico” em oposição ao “catolicismo urbano” ou “oficial” (STEIL, 1996; DULLO, 2008).

Religiões e controvérsias Final.indd 256 18/08/2015 09:59:55


que era a hóstia, e tinha vez que eu tomava a hóstia até com uma faca por dentro

Vasos rebeldes
257
da calça e com um maço de cigarros no bolso e quando eu terminava de tomar a
hóstia eu não respeitava, pois eu não conhecia a verdade (sic) (25/10/2009).

José Ribamar afirma que poucos meses após o aparecimento de Jesus no re-
ferido sonho, começou a “pregar” como leigo no pequeno grupo que passou
a frequentar, mas que sua pregação já apresentava críticas às práticas devo-
cionais do catolicismo, afirmando que seus amigos não estavam dispostos a
“abandonar” a “adoração de imagens”, que considerava “idolatria”. Está claro
que sua narrativa é justificada com categorias acumuladas ao longo da expe-
riência pentecostal, o que implica uma linha tênue entre uma rejeição das
práticas católicas precedentes e uma nova elaboração da mesma pela prática
pentecostal. Neste ponto, a mudança de vida no plano das práticas não deve
ser lida na chave do sincretismo, mas, conforme formulação de Clara Mafra
(que segue uma linha de abordagem da Antropologia do Cristianismo de Joel
Robbins), o foco deveria estar na “cultura que está sendo mudada” e na “arti-
culação entre os elementos do processo” (MAFRA, 2009, p. 73). Conforme
Mafra, “mesmo que os pentecostais continuem a recorrer a elementos culturais
antigos – referentes católicos, espiritistas, umbandistas, candomblecistas –, a
lógica pentecostal passou a ter precedência sobre as demais” (MAFRA, 2009,
p. 74). Apesar do interesse de Mafra em descrever episódios específicos de
humilhação capazes de promover o abandono de um conjunto de valores por
outros, sua formulação é interessante para pensarmos o ciclo de José Ribamar.
Disposto a abandonar o “culto idólatra” e sem saber que estava no “lugar er-
rado”, apesar de intuir o que considerava a “verdade”, José Ribamar narra um
encontro com um pastor que havia fundado uma filial da Igreja Assembleia de
Deus Ministério Ferraz de Vasconcelos32, próximo de sua residência; este, por
sua vez, teria sido o responsável por “iluminar” sua mente acerca do “evangelho
verdadeiro” que julgava professar entre seus amigos e familiares católicos. Des-
se modo, José Ribamar, sua primeira esposa e três filhas tornam-se membros
ativos nessa igreja. A partir de então, Ribamar, que ainda não era pastor orde-
nado, mas considerado em potencial, descreve sua passagem por mais quatro
Igrejas pentecostais nas circunferências do bairro onde reside entre os anos
de 1996 e 200033. Apesar de reconhecer-se tributário delas, afirma também

32
Pouco tempo depois, o referido pastor, conhecido como Zezinho, teria rompido com essa Igreja e
fundado em 1997 uma nova chamada Igreja Pentecostal Apocalipse de Jesus Cristo, mas, devido
à sua morte, a Igreja fechou. Seu espaço é atualmente ocupado por uma filial da Assembleia de
Deus – Ministério do Belém, uma das primeiras a se instalarem na região (Santana de Parnaíba).
33
José Ribamar afirma ser tributário de todas elas em relação ao que aprendeu na carreira de pastor,
aplicando em sua Igreja o que considerou ser a “doutrina verdadeira”, acompanhado pelo “fervor

Religiões e controvérsias Final.indd 257 18/08/2015 09:59:56


258 ter se desligado por uma série de conflitos internos, alegando “perseguição” e
“inveja” por parte de seus pares e líderes. José Ribamar apresenta uma série de
motivos pelos quais um líder não reconhece outro líder em potencial, de modo
que os que rompem com uma instituição de origem podem ser estigmatizados
como “rebeldes” ou “falsos profetas”. Como pude antecipar, a acusação de
rebelião não é uma classificação confortável para a vítima acusada. Além disso,
a nova instituição tende a ser vista como “clandestina”. Conforme Ribamar, a
Manjedoura foi muitas vezes classificada pejorativamente por seus desafetos
como “igrejola”, “casca de ovo” ou “fundo de quintal”, ou seja, acusações de
inexpressividade tradicional/teológica e clandestinidade jurídica. Podemos
notar a construção da ação performática de justificação em reação às acusações
de clandestinidade de que afirma ser vítima.
Vejamos a trajetória de ascensão que o tornou fundador de sua própria Igreja.
Ribamar afirma que sempre ocupou cargos expressivos pelas Igrejas em que
passou – da tesouraria a auxiliar nas atividades dos cultos –, mas teria recebido a
“unção de pastor”34, isto é, teria sido ordenado e reconhecido institucionalmente
na Igreja Assembleia de Jesus Cristo, com a qual romperia para fundar sua própria
Igreja em 2001, inicialmente chamada Corrente do Poder e mais tarde rebatizada
como Manjedoura de Cristo por orientação de uma revelação divina. Temos na
trajetória de Ribamar uma “série de posições”, “colocações” e “deslocamentos”
de que fala Bourdieu (1996b) e nos permite situá-lo melhor nessas interações.
Vejamos duas narrativas de Ribamar sobre momentos diferentes:
Quando eu saí da última Igreja que eu era, a Igreja Assembleia de Jesus Cristo, eu
já saí como pastor e com discípulos... [na época outros pastores] me chamaram

espiritual” (também chamado de “primeiro amor”) e “dons espirituais”. A narrativa cronológica


por essas Igrejas é: Assembleia de Deus – Ferraz de Vasconcelos, onde chegou ao cargo de segun-
do dirigente; Igreja Pentecostal Cristo é o Senhor, onde auxiliou uma missionária fundadora da
Igreja, período o qual não soube precisar, mas afirmou ser entre 1997-1998; Igreja Assembleia de
Deus – Madureira, onde afirma ter desenvolvido outras habilidades espirituais, principalmente seu
conhecimento bíblico adquirido na Escola Bíblica Dominical e Igreja Assembleia de Jesus Cristo,
cujos pastor e membros eram dissidentes da Igreja Cristo é o Senhor. Todas as Igrejas citadas ainda
existem no bairro e deram origem a novas rupturas (ver Esquema da Cissiparidade, Figura 8).
34
Para Ribamar, “ungir” a si mesmo como “pastor” ou “líder” não tem reconhecimento divino ou
social, o que indicaria um sinal de “fracasso”. Para que haja o reconhecimento é preciso haver uma
vocação, uma “chamada de Deus” e ser “ungido” por outra autoridade religiosa, no caso, por outro
pastor. Afirma ter presenciado a fundação de diversas Igrejas porque o “homem” (um líder) não
reconhece a chamada de Deus para outra pessoa, fazendo com que esta busque em outro lugar
tal reconhecimento ou funde a sua própria Igreja. Há também casos de fundadoras, que, nesse
universo dominado por figuras masculinas nas posições pastorais, enfrentam outras resistências,
como a “feminilização” do pastorado. Porém, essa disputa, que muito poderia render às questões
de gênero, já seria outro trabalho a desenvolver. Fica a sugestão aos interessados.

Religiões e controvérsias Final.indd 258 18/08/2015 09:59:56


[para cuidar de] duas ou três Igrejas para entrar, para tomar de frente [liderar],

Vasos rebeldes
259
mas eu não quis mais tomar de frente, porque muitos vasos [profetas] já tinham
falado que Deus ia colocar um ministério [uma Igreja] em minhas mãos (sic)
(26/04/2009).

O fragmento de fala acima – conforme a data – se contextualiza com a situação


de campo que chamei de recepção cosmológica no prelúdio deste ensaio. Após
romper com a Assembleia de Jesus Cristo, Ribamar narra:
Nessa época [2001] eu coloquei um nome apresentado por mim e juntamente com
uma equipe que nós fizemos para formar a diretoria. No formato dessa diretoria
tinha oito membros já conhecedores [da Bíblia]. Então nós colocamos o nome da
Igreja [de] Corrente do Poder, pois nós estávamos naquela base da Igreja pente-
costal, que tinha a ousadia do Espírito Santo. E ficamos com esse nome por dois
meses (sic) (25/10/2009)35.

Nesses fragmentos de fala, José Ribamar narra as origens de fundação da


Manjedoura; como se pode observar, não se trata de um esforço solitário e
isolado, mas de um empreendimento coletivo: trata-se da existência de uma
comunidade. O registro jurídico junto à prefeitura do município de Santana
de Parnaíba é datado de 200436, o que mostra que a existência de uma comu-
nidade (fundada em 2001) precede a instituição jurídica. Porém, não bastam
à comunidade os elementos simbólicos; ela precisa também dos elementos
materiais para se afirmar no espaço público como Igreja legítima, visto que
fundar uma instituição e não providenciar seu registro jurídico incorre numa
possível acusação de clandestinidade.
A mudança do nome Corrente do Poder para Manjedoura, apesar de ter sido
justificada por Ribamar como uma revelação divina, não agradou parte de seus
auxiliares, que consideravam o novo nome “feio” e inadequado para uma Igreja;
o primeiro nome, segundo Ribamar, não teria sido escolhido pela “vontade
divina”, mas pela conveniência ou, nos termos nativos, pela “vontade humana”,
também chamada de “vontade da carne”. Apesar da resistência e contestação,
a nova nominação se impôs.

35
A princípio reuniam-se em seu “barraco” para realizar os cultos e, não comportando o crescente
número de pessoas, teriam alugado um salão próximo de sua residência. A partir daí, orientado
por outras revelações, passou a nutrir a expectativa de transferir sua Igreja para um antigo salão
de festas (um antigo bar que estava à venda), onde uma de suas filhas afirma ter “dançado muito
forró” (vide Anexos). Por ser também músico, ele mesmo teria também tocado nesses bailes. Esse
salão passou a ser o templo-sede onde fui recepcionado.
36
Disponível em: <http://www.jusbrasil.com.br/legislacao/696781/lei-2534-04-santana-de-
-parnaiba-sp>.

Religiões e controvérsias Final.indd 259 18/08/2015 09:59:56


260 De que modo a construção de distinção do fundador se relaciona com os
modos de nominação institucional? Conforme tenho argumentado, os modos
simbólicos de nominação sugerem um ritual performático, uma extensão dos
corpos que performatizam uma noção de sinceridade. Ao afirmar que sua
preocupação não era fundar uma Igreja com “nome bonito”, reiterando que
se tratava de um propósito divino (apesar da resistência de seus auxiliares),
vimos na fala de José Ribamar elementos de uma ritualização discursiva de
exemplaridade de humildade e simplicidade (DULLO, 2008; CAMPOS,
2011) construída como uma possível resposta a outros interlocutores em
disputa pelo sentido tradicional da noção de Igreja. Trata-se de uma reação
às acusações de inexpressividade e clandestinidade. A nominação Manjedou-
ra (disciplina de humildade) aponta para um contraste entre frugalidade e
luxo, a exemplo da manjedoura natalina, que, segundo a tradição cristã, teria
servido de “berço” para Jesus em oposição à “hospedaria”, que lhe teria sido
recusado. As noções de pobreza e humildade aparecem como distinção de
exemplaridade de Igreja legítima. Em uma de suas falas, Ribamar diz: “A
Manjedoura representa minha própria vida desde criancinha.”

Crise de unidade: pedagogia da moral


Pelo que sugerem os relatos, uma crise institucional na Manjedoura de Cristo
teria ocorrido entre 2003 e 2007, ocasião em que Ribamar teria sido afastado
da presidência da Igreja fundada em 2001, passando a frequentá-la espora-
dicamente, mas sem autoridade eclesiástica. O motivo de seu afastamento
deveu-se a um caso de conduta moral, um “escândalo” para a comunidade
(Ribamar teria cometido infidelidade conjugal com uma jovem da Igreja, que
viria a ser sua atual esposa e vice-presidente da Igreja). Entre fatos e boatos,
Ribamar e sua Igreja ficaram estigmatizados no bairro, de modo que ainda é
lembrado com frequência, inclusive pelos referidos interlocutores. Esse é um
dos motivos pelos quais, em 2009, por ocasião de minha inserção em campo,
os fiéis da Igreja e auxiliares de Ribamar tinham se dispersado; havia surgido
duas novas dissidentes, descritas mais adiante.
Como a comunidade de Ribamar procurou resolver o problema de condu-
ta moral? Os pecados de natureza sexual são tidos como dos mais graves e
exige-se uma punição exemplar, especialmente para os líderes, conhecida
entre os nativos como “disciplina” ou “ficar de banco”37. Levado à confissão,

37
Conforme os auxiliares de Ribamar que passaram a ser os responsáveis pela Manjedoura na época
desse ocorrido, havia um regimento disciplinar básico para casos de condutas reprováveis pelos valores

Religiões e controvérsias Final.indd 260 18/08/2015 09:59:56


prescreveu-se a José Ribamar uma punição correspondente a um período de

Vasos rebeldes
261
aproximadamente cinco anos no qual lhe seria restrito o exercício público das
atividades eclesiásticas, como a pregação; não se trata de uma exclusão do grupo,
mas uma disciplina exemplar que podemos conceber como uma pedagogia da
sinceridade e da conduta moral.
Apesar dos desencontros e imprecisões dos relatos e memórias dos envolvidos
na crise, a instituição Manjedoura de Cristo, cuja comunidade era formada
por algumas famílias (inclusive a de Ribamar), teria fechado suas portas por
aproximadamente dois meses (alguns fiéis se dispersaram), sendo retomadas
suas atividades por dois jovens auxiliares treinados por José Ribamar, Ageu e
Marcelo, que, por sua vez, viriam a propor como solução da crise a aplicação
da disciplina do líder. O termo “fechar as portas” exprime a sensação nativa
de fracasso do empreendimento e frustração pessoal.
A preocupação dos novos líderes era recompor os fiéis que haviam se disper-
sado para outras Igrejas na região. Assim, na perspectiva de Ribamar, seus
auxiliares teriam introduzido novos elementos litúrgicos dos quais discordava,
chamados por ele de “inovações” e “meninice”, ao passo que, na perspectiva
de seus discípulos, tratava-se de um “avivamento” e volta às origens. Apesar
de discordar, Ribamar pouco podia fazer, visto que cumpria o período discipli-
nar que consistia na destituição de seu poder como presidente. Nesse ponto,
pode-se observar a mudança de posições: ora revestido de um poder atribuído
pela comunidade, ora destituído pela mesma. Apesar do silêncio disciplinar
e de não poder exercer atividades pastorais em público, Ribamar afirma que
não cessaram as revelações divinas.
O clímax da crise de unidade, entretanto, se dá quando Ribamar, três anos
após o ocorrido (já divorciado do primeiro casamento e casado com a jovem
com quem havia “caído em pecado”), reivindica a presidência da instituição;
segundo seus auxiliares, Ribamar não teria cumprido as regras disciplinares
dentro do período estabelecido (que seria de cinco anos) e lhe fazem resistên-
cia, o que resultou em conflitos que gerariam duas novas microinstituições:
Igreja Pentecostal Soldados de Cristo: Ministério Porta Estreita e a Igreja

do grupo. Entretanto, tiveram de lidar com algo novo para a jovem Igreja, que só tinha na ocasião
três anos de fundação. Buscaram estabelecer determinada punição conforme o grau hierárquico.
Por exemplo, um membro comum recebia uma punição equivalente a seis meses de “banco”, isto
é, não lhe era permitido exercer nenhuma atividade eclesiástica até o cumprimento do prazo. No
caso de um líder, o prazo poderia ser de dois anos ou mais, dependendo do tipo de conduta. A
conclusão a que chegaram em relação ao caso de Ribamar seria de cinco anos de punição. Afirmam
ainda que muitos não resistiram à “provação” e aos constrangimentos pelos quais são submetidos:
ou se “desviavam” ou procuravam outra Igreja para iniciar novas trajetórias.

Religiões e controvérsias Final.indd 261 18/08/2015 09:59:56


262 Pentecostal Justiça de Deus, fundadas respectivamente por seus discípulos,
Ageu e Marcelo, entre 2006 e 200738.
O problema de legitimidade, do ponto de vista nativo, é que esses dois au-
xiliares, apesar de treinados por Ribamar e agora tidos como “rebeldes”, não
haviam sido ordenados pastores; eram jovens auxiliares que eventualmente
pregavam nos cultos. Devido às circunstâncias, tornaram-se pastores acla-
mados pela comunidade dissidente; além disso, não eram casados, estado
civil levado em conta para a ordenação, o que se tornou um dos pontos das
acusações de inautenticidade por parte de Ribamar; recomenda-se que o
pastor deva ser casado a fim de lidar com questões de exemplaridade fami-
liar. Os elementos simbólicos da nominação “soldados” (disciplina bélica),
“porta estreita” (disciplina ascética) e “justiça” (disciplina de retidão) marcam
ritualmente as novas etapas do grupo performatizadas por atos sinceros: em
ambos os casos, há primeiro a existência de uma comunidade que reconhece
seu líder e em seguida a necessidade de institucionalização jurídica, repetindo
o ciclo de sua genitora39. Como argumentamos, além do aspecto simbólico
da nominação, um dos traços distintivos para o reconhecimento como Igreja
legítima é o aspecto jurídico (CNPJ).
Apesar de demonstrar aparente constrangimento em narrar fatos delicados
da vida pessoal e de conhecimento público em seu círculo de relações, José
Ribamar esforçava-se por construir sinais de sucesso de suas atividades atuais
diante de situações do passado que se reiteram no presente. Um ano após a
minha chegada a campo, em 2010, a questão ainda era lembrada com fre-

38
Minha chegada a campo em 2009 deu-se, portanto, num contexto de conflitos recentes. Recons-
tituir a dinâmica desses conflitos não é tarefa tão simples, pois não disponho de documentos, mas
de memórias e narrativas, a exemplo da ilusão biográfica. Atualmente, apesar da rivalidade, José
Ribamar afirma que não há entre si “inimizades”, simplesmente “diferentes formas de pensar” e de
conduzir suas Igrejas. Não é raro encontrar membros que “visitam” umas às outras sem proibição
declarada de seus pastores.
39
O nome Soldados de Cristo teria sido adotado de um antigo grupo de jovens da Manjedoura liderado
pelo jovem Ageu (ainda há na parede do templo da Manjedoura um antigo cartaz com o nome do
grupo, atualmente composto por outros jovens); ao passo que Justiça de Deus, segundo Marcelo,
teria sido um nome confirmado por revelações em cultos rituais realizados nos “montes”. “Subir ao
monte” é uma prática cultivada por muitos pentecostais no bairro; trata-se literalmente de morros da
região, considerados como lugares consagrados e mais eficazes que os cultos realizados nos templos.
Periodicamente há grupos que se reúnem em montes para realizar cultos na madrugada; entretanto,
não é recomendável a qualquer pessoa, sendo-lhes prescrita uma vida de santificação e purificação; o
“monte”, apesar de ser considerado um lugar sagrado, é também um lugar perigoso para os que não são
“ungidos” por Deus, isto é, para os não vasos. Nesse caso, podemos pensar como Mary Douglas, “que
a santidade é exemplificada pela integridade” (2012, p. 70). Comumente, tratam esses lugares como
ideais na “busca dos dons” e revestimento do “poder do Espírito Santo” para combater os demônios.

Religiões e controvérsias Final.indd 262 18/08/2015 09:59:56


quência. Ou seja, exige-se uma conduta moral do líder que, por sua vez, é

Vasos rebeldes
263
performatizada como atos de sinceridade.

Origem?

Assembleia de Deus Ferraz Cristo é o Senhor


de Vasconcelos
Assembleia de Jesus Cristo Comunidade católica

Assembleia de Deus
Madureira Manjedoura de Cristo
José Ribamar
Justiça de Deus
Soldados de Cristo

Convenção Nacional das


Assembleias de Deus (CONEAD)

Legenda:
Cissisparidades
Outras trajetórias de José Ribamar
Mediação entre as alianças

Figura 8. Fluxograma da cissiparidade.


Fonte: Elaboração do autor.

Distinção e nominação: extensão dos corpos na produção da


Igreja legítima
Os modos de nominação condensam um repertório material e simbólico
construído na dimensão das experiências; como vimos, tal repertório pode ser
invertido pelo sistema de acusação, como no caso da simulação de fundação
realizada pela equipe da Folha de S. Paulo, introduzindo nas entrelinhas sentidos
opostos. Temos argumentado que, ao contrário da simulação de fundação de
uma instituição jurídica, no caso de José Ribamar e seus discípulos a existência
de uma comunidade precede o estatuto jurídico. Enquanto a noção de Igreja
legítima é disputada a partir do repertório simbólico e de parâmetros de afe-
rição da verdade, o estatuto jurídico é um modo de apresentar-se no espaço
público em reação às acusações de clandestinidade.
Assim como para Marcel Mauss a prece é tomada como uma dimensão da
fala ou discurso ritual, isto é, como um “ponto de convergência” entre mito e

Religiões e controvérsias Final.indd 263 18/08/2015 09:59:56


264 rito (pensamento e ação) por consistir numa “série de palavras com sentido
determinado e disposta numa ordem reconhecida pelo grupo” (2001, p. 246),
podemos também pensar a nominação como uma ação ritual que constitui
sua dimensão simbólica na exemplaridade do fundador. É nesse sentido que
José Ribamar insiste que um líder precisa ser “humilde” e “pequeno diante de
Deus”, crítica dirigida aos seus detratores, que, em seus termos, deixaram de
ser Igreja; o inimigo a ser combatido é associado ao “moderno”40.
Pode-se apreender, a partir dessas práticas, que a noção material e simbólica
da noção de Igreja, ou seja, os modos de nominação perpassam por uma cons-
trução estética e performática, podendo ser concebida como uma dimensão
do trabalho artístico, no sentido de que expressam significados formativos e
transformativos das experiências (TURNER, 2005). Os elementos estéticos
e performáticos da nominação estão presentes no fragmento de fala de José
Ribamar quando afirma, por exemplo, que o sucesso de sua Igreja se deve à
exemplaridade da humildade. Isso, a nosso ver, coloca a questão um passo
além das decifrações das cosmologias: trata-se de uma extensão performática
dos corpos que disputam ritualmente a distinção de homens de Deus e sua
alteridade indesejável, o rebelde. Semelhantes são as observações de Delcides
Marques (2009, p. 103-104) em seu trabalho de campo acerca dos modos
como os pregadores de rua – na Praça da Sé, em São Paulo – constroem a noção
de culto e de Igreja a partir da delimitação espacial de um risco na calçada.
Marques chama a atenção para a distinção que os pregadores da Sé (descritos
também como sendo fundadores de suas próprias Igrejas) fazem entre templo
(paredes e prédios) e Igreja (comunidade e corpos).
Apesar das dificuldades de manter os fiéis em sua Igreja, perguntava-me por que
Ribamar não desistia; o trânsito dos fiéis era constante. Houve cultos em que
só havia eu, Ribamar e sua esposa na porta para recepcionar possíveis visitantes,
enquanto as crianças (seus filhos) brincavam no estreito corredor. De acordo com
José Ribamar, a escassez de recursos financeiros faz com que tal empreendimen-
to se torne um desafio ao esforço pessoal empreendido, a ponto de afirmar ter

40
Descrevendo situações em que teria sido alvo de perseguições, menosprezo e “zombarias” por
parte de seus pares, José Ribamar reage afirmando que as chamadas “Igrejas modernas”, também
chamadas de “Igrejas grandes”, “não querem pregar nas favelas para os drogados e para os pobres”,
missão que, segundo ele, Igrejas pequenas como a Manjedoura de Cristo assumiriam. Em contra-
partida às acusações de que afirma ser vítima, acusa também outras instituições de estarem mais
interessadas em “dinheiro” do que em salvação de “almas”. É interessante observar que conceitos
surgidos no interior da academia, como “neopentecostal” (cf. MARIANO, 1999; GIUMBELLI,
2000), circulam entre os nativos como acusação de “modernidade” das Igrejas evangélicas. “Ne-
opentecostal” aparece como negação e distorção do pentecostalismo considerado genuíno. Ser
“moderno” é deixar de “ser Igreja”.

Religiões e controvérsias Final.indd 264 18/08/2015 09:59:56


mantido por vários anos as despesas básicas da Igreja (água, luz) com os recursos

Vasos rebeldes
265
de sua própria aposentadoria (os dízimos e contribuições eram exíguos). Para
Ribamar, “fechar” a Igreja implicava a “contradição” de que a “obra não era de
Deus”, mas de sua própria vontade. Assim, concebia suas dificuldades financeiras
e a inconstância dos fiéis como uma “provação” divina para uma “obra maior”;
fechá-la significaria negar sua vocação divina e admitir o fracasso, cedendo às
acusações de que se tratava de um projeto ou ambição pessoal.
A inconstância dos fiéis, as dificuldades financeiras e a cissiparidade que resul-
tou em duas novas microigrejas Ribamar procurou entender como os termos
de uma provação divina. Na conversa da referida recepção cosmológica, em
26 de abril de 2009, Ribamar diz:
Muitas pessoas que estavam em outras Igrejas eram machucadas por uma palavra
mal interpretada ou às vezes eram encostadas na última cadeira sem ter uma
oportunidade, porque tem muitas pessoas que têm um desenvolvimento tanto na
Palavra [pregação] quanto no Espírito Santo e a gente conhece quando as pessoas
têm uma expressão de Deus dentro delas, né? Aí elas correm pra Manjedoura e a
Manjedoura tem erguido a cabeça dessas pessoas, embora muitas delas não tenham
ficado na Manjedoura, mas estão fazendo a obra por onde vai. A Manjedoura é um
símbolo de humildade diante do Senhor. Ela representa desde criancinha minha
própria vida. A Manjedoura hoje tem pouca gente, mas muitas pessoas conheceram
Deus na Manjedoura. É um lugar de refúgio, é também um lugar de conserto, é um
lugar de crescimento. Eu vejo uma modificação aqui no [bairro] 120 por causa da
Manjedoura. Aqui tem pessoas que estavam nas drogas, que matavam e hoje são
missionários. Deus tem me usado para ganhar essas pessoas (sic).

Em outra conversa, em 11 de outubro de 2009, Ribamar fez a seguinte leitura


das rupturas de sua Igreja:
Igreja pequena como a Manjedoura salva muita alma [pessoas], embora [elas] não
fiquem no rebanho pequeno. Porque quando elas crescem [ascendem ao pastorado],
nunca olham para o lado do pastor que realmente doutrinou, estruturou e ensinou
elas. Já olha pra um lado diferente. Por quê? Porque a nossa carne [fraquezas hu-
manas], embora tenha o Espírito Santo dentro de nós, mas tem aquele pequeno
egoísmo de querer ser líder. Outros não é por causa disso, mas é porque tem o
desejo de ir a diante. Já se fizeram [líderes] aí o trabalho deles não vai ser mais
aqui. Só que se considerasse iam fazer uma filial da Manjedoura em outro lugar [e
não fundar uma nova]. Mas depois que cresce não quer ficar como servo, já quer
ficar como cabeça [líder]. Aí vai e levanta seu ministério [funda sua Igreja], pra
não ser mais servo, pra ser líder. E a Igreja Manjedoura marcha dessa forma. Toda
Igreja marcha dessa forma (sic).

Religiões e controvérsias Final.indd 265 18/08/2015 09:59:56


266 As falas acima apresentam, além de outros elementos que podem ser explorados
em outros momentos, os ritos de passagem e a mobilidade das posições discur-
sivas: o vaso (embora tenha “o Espírito Santo”) é um devir rebelde (“egoísmo
de querer ser líder”). Não se trata, pois, de oposições binárias rígidas, mas
de condições ou posições liminares fluidas. Se permitem o trocadilho: como
constatado por Marcel Mauss e Henri Hubert (2003, p. 63) acerca das qua-
lidades sociais atribuídas ao mágico, pode-se também pensar que “não é vaso
quem quer”, mas eventualmente é “rebelde quem não quer”. Desejar o status
de liderança implica uma capacidade de performatizar os sinais da chamada
divina construída pelo consenso coletivo.
A categoria “rebanho” remete à relação entre o pastor e a ovelha e a expectativa
de cuidado e obediência que se espera nas relações do poder pastoral. Ribamar
constrói o índice de sucesso institucional da Manjedoura ao concebê-la como
um “lugar de refúgio”, de “conserto” e de “crescimento”, isto é, um processo
ritual de acolhimento, transformação e desenvolvimento, cujo ciclo culmina
numa emancipação, criando novas fissões ou cissiparidades na produção de
novos ciclos de vasos rebeldes. Na impossibilidade de manter a unidade do
grupo ou mesmo a normatividade da obediência, submissão e exemplaridade
de humildade, José Ribamar admite que as “rebeliões” são inevitáveis, de uma
das quais também foi fruto. A frase “toda Igreja marcha dessa forma” dá-nos
uma leitura de como interpreta o processo bélico das rebeliões e de que modo
se esforça pela legitimidade de suas atividades diante de seus pares. Eis uma
possível (micro)leitura da disputa pelo poder pastoral.
Recentemente, no final de 2013, a convite de José Ribamar, pude participar
do primeiro “congresso” da Manjedoura de Cristo, também chamado de “fes-
tividade”, ocasião na qual comemorariam 12 anos de fundação. Seria realizado
em três dias; participei de dois. No primeiro dia, uma sexta-feira, o culto foi
realizado no pequeno templo com poucos convidados; nos outros dias (sábado
e domingo) o culto foi realizado no pátio de uma escola municipal (Escola
Governador Franco Montoro), cedido pela prefeitura do município de Santa-
na de Parnaíba. O conjunto de mulheres e o conjunto musical (devidamente
uniformizados para a ocasião) preparavam-se para a gravação de um DVD do
evento (eu mesmo adquiri um exemplar), que contava com a presença de
representantes de Igrejas da região. A programação contava ainda com a par-
ticipação de cantores e pregadores escalados para o calendário festivo; entre
os pregadores convidados havia um pastor e um vereador da cidade.
Para José Ribamar, o sucesso atual da Manjedoura é resultado das “provas”
ou dificuldades superadas. Como marca do sucesso institucional, seu objetivo

Religiões e controvérsias Final.indd 266 18/08/2015 09:59:56


é expandi-la para outros bairros, quiçá outros estados (já houve tentativas

Vasos rebeldes
267
frustradas de manter uma filial no estado do Piauí, em sua cidade natal). Em
março de 2014, Ribamar comemorou a inauguração de uma nova filial no
município vizinho de Cajamar, SP (vide mapa, Figura 1). Havia tentado em
outras ocasiões, mas sem sucesso. Seu auxiliar e responsável pela nova filial
havia também fundado sua própria Igreja, mas não teria tido sucesso, vindo a
filiar-se com alguns de seus seguidores à Manjedoura.
Desse modo, Ribamar e sua comunidade põem-se a cantar o hino de fundação:
“A Manjedoura venceu, vamos todos cantar; a Manjedoura venceu, vamos to-
dos se alegrar... se levanta você que é vaso... o Senhor dos exércitos está nesta
jornada.” Outro coro composto por Ribamar com estrutura semelhante ao hino
de fundação é sugestivo e emblemático do conflito bélico que supõe viver: “A
ordem é pra marchar, a ordem é pra marchar.” Assim, os vasos acusados de
rebeldia veem-se como depositários da verdade e vocacionados a cumprir uma
missão nem sempre levada a cabo por seus desafetos. Como se pode observar,
a performance de sinceridade que busca convencer os outros de tais propósitos
não se dá sem conflitos: sem que tenha controle de seus desdobramentos, novos
grupos são produzidos nessa dinâmica, ou, como diz José Ribamar, “toda Igreja
marcha dessa forma”, em constante tensão.
Podemos resumir o dinamismo do ciclo dos vasos rebeldes nos seguintes ter-
mos: dependendo da perspectiva, os vasos são, pois, rebeldes potenciais e os
rebeldes são vasos a seu modo. O espírito cismático, estigma do qual evitam
ser associados, está sempre à espreita.

Poslúdio: considerações finais


Neste capítulo propomo-nos a explorar um conjunto de práticas a partir de
uma situação de campo específica, isto é, as disputas em torno dos modos
de produção de autenticidade de pessoas e instituições, especialmente os
sentidos tradicionais da noção de Igreja legítima em seus aspectos materiais e
simbólicos. Buscamos em primeiro lugar problematizar a situação de encontro
(recepção cosmológica) e reposicionar o debate sobre as controvérsias religiosas
em outros termos, chamando a atenção para um tratamento analítico que leve
a sério epistemologicamente a cosmologia pentecostal.
Em seguida, coube-nos contrastar dois casos de fundação jurídico-simbólica de
uma instituição religiosa, sendo a primeira uma narrativa denunciante (caso
da Folha de S. Paulo) e a segunda uma narrativa de justificação (caso de José
Ribamar), com o objetivo de construir uma plataforma de debates, buscando

Religiões e controvérsias Final.indd 267 18/08/2015 09:59:56


268 posicionar os agentes em diferentes planos da experiência. Tentei demonstrar
que, apesar das finalidades opostas dos planos discursivos na fundação de uma
instituição, ambas possuem em comum a mobilização de um conjunto de dis-
positivos jurídicos e teológicos. Ou seja, submetendo cada caso a uma análise,
pode-se dizer que enquanto o ciclo de Schwartsman (a equipe de fundadores
da Igreja Heliocêntrica) privilegia o estatuto jurídico pressupondo um processo
normativo, o ciclo de José Ribamar, ao fundar a Manjedoura de Cristo, privi-
legia a existência de uma comunidade. Ribamar e seus discípulos dissidentes
primeiro precisam agir em comunidade para em seguida buscar a legitimidade
jurídica entre seus pares, recorrendo inclusive a inusitadas alianças com seus
rivais. Além disso, a trajetória individual de José Ribamar é lida como parte
integrante de uma comunidade – ora dispersa e novamente constituída – sem
a qual não se estabelecem sentidos; o consenso ou dissenso de sua liderança e
disputa pelo poder pastoral devem ser contextualizados com a existência de
uma comunidade, em contraste com o caso da Igreja de Schwartsman, onde
a comunidade está ausente.
O argumento central deste ensaio é que a produção de autenticidade institu-
cional, isto é, o reconhecimento como Igreja legítima, pode ser lido como uma
extensão dos corpos que disputam ritualmente a credibilidade (sinceridade) de
si numa construção de distinção como homens de Deus, ungidos ou profetas.
Chamamos a atenção para a construção das narrativas de si por meio de duas
categorias de distinção, o “vaso” como construção do profeta autêntico e o
“rebelde” como construção da alteridade indesejada. Entretanto, procuramos
demonstrar que não se trata de um dualismo rígido, mas de posições flexíveis:
a condição vaso/rebelde é uma posição discursiva. A performatividade do
líder – por meio dos ritos de sinceridade – e os critérios de sucesso de suas
atividades como fundador são lidos aqui a partir dessa disputa das posições.
Apesar do universo micro, sustentamos a hipótese de que o ciclo de fundado-
res, como o caso de José Ribamar e as pequenas comunidades rebeldes, pode
nos ajudar a tecer pontos de uma rede de interações mais amplas no campo
evangélico brasileiro. Se no caso de Schwartsman e sua equipe temos uma
narrativa denunciante por meio de instrumentos de credibilidade jornalística
construída numa plataforma de visibilidade (DALMONTE, 2009), no caso
de Ribamar e sua Igreja teríamos uma narrativa performática de justificação,
cujo discurso de veracidade é construído no plano das experiências. Apesar de
situarem-se em planos distintos quanto às experiências e situações que produ-
zem os enunciados, não os tomamos como um dualismo, como se um estivesse
reagindo ao outro, mas como ressonâncias de uma disputa mais ampla, além
de estarem contextualizados numa temporalidade específica, o ano de 2009.

Religiões e controvérsias Final.indd 268 18/08/2015 09:59:56


Como demonstra Ricardo Bitun (2007, 2011) acerca da cissiparidade entre os

Vasos rebeldes
269
neopentecostais, pode-se pensar também que, apesar das rupturas, há continui-
dades das práticas e mimetização dos modelos de gestão de suas “genitoras”.
Apesar dos conflitos, José Ribamar atua como mediador de inusitadas alianças
entre dissidentes e rivais como um modo de produzir respostas às acusações
de inexpressividade tradicional e clandestinidade jurídico-teológica; ao mes-
mo tempo reproduz e faz circular essas acusações aos seus rivais e desafetos.
Se o modelo micro de disputa for estendido para os modelos de Convenções
nacionais e estaduais e suas de alianças, então teríamos uma federação de vasos
rebeldes e uma plataforma mais ampla de disputa pelo poder pastoral, pelo
cuidado e pela direção das pessoas. Deixemos esses modelos de alianças por
meio de Convenções para explorar em outros momentos, adiantando apenas
uma hipótese provisória, a saber, que essas alianças seriam uma estratégia
para produção de legitimidade de suas atividades (formação de seminários
teológicos, modos de representação no espaço público, etc.).
No caso do ciclo de microigrejas e suas alianças, apesar de não possuírem força
suficiente que pretendem demonstrar, não podemos subestimar seus modos
de produção de respostas. Não teríamos nesse modelo de federação uma plata-
forma de visibilidade das práticas numa rede de interações mais amplas e que,
isoladas, pouco aparecem? Não teríamos um conjunto de novos elementos para
pensar a produção de autenticidade e suas ressonâncias na esfera pública? Com
essas questões, pretendemos contribuir para uma antropologia das controvérsias
que se dedica a compreender os diversos aspectos da diversidade brasileira e
as tensões entre múltiplos agentes sociais que disputam a legitimidade de suas
atividades na esfera pública.
Em suma, do que discutimos até aqui em três ritmos etnográficos ou en-
saísticos – um prelúdio que antecipa problemas, um interlúdio que busca
conectar plataformas e ciclos de agentes (práticas e interações) e um poslúdio
que sugere novas questões –, podemos dizer, como Clifford Geertz, que
temos a possibilidade de ver “coisas particulares contra o pano de fundo
de outras coisas particulares, com isso aprofundando a particularidade de
ambas” (2001, p. 128).

Referências bibliográficas
ALENCAR, Gedeon Freire. Protestantismo tupiniquim: hipóteses sobre a (não) contribuição evangélica
à cultura brasileira. São Paulo: Arte Editorial, 2005.
ALMEIDA, Ronaldo. A universalização do reino de Deus. Novos Estudos – CEBRAP, n. 44, p. 12-23, 1996.

Religiões e controvérsias Final.indd 269 18/08/2015 09:59:56


270 ________. Pluralismo religioso e espaço metropolitano. In: MAFRA, Clara; ALMEIDA, Ronaldo
(Orgs.). Religiões e cidades: Rio de Janeiro e São Paulo. São Paulo: Terceiro Nome, 2009. (Coleção
Antropologia Hoje).
________; MONTERO, Paula. Trânsito religioso no Brasil. São Paulo em Perspectiva, v. 15, n. 3, p.
92-101, 2001.
ARFUCH, Leonor. O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea. Rio de Janeiro:
Editora UERJ, 2010.
ASAD, Talal. A construção da religião como uma categoria antropológica. Cadernos de Campo (FFLCH/
USP), São Paulo, ano 18, p. 263-284, 2010.

BIRMAN, Patrícia. O Espírito Santo, a mídia e o território dos crentes. Ciencias Sociales y Religión/
Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 8, n. 8, p. 41-62, 2006.
________. O poder da fé, o milagre do poder: mediadores evangélicos e deslocamentos de fronteiras
sociais. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 18, n. 37, p. 133-153, 2012.
BITUN, Ricardo. Igreja mundial do poder de Deus: rupturas e continuidades no campo religioso
neopentecostal. 2007. Tese (Doutorado em Ciências Sociais)Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo, São Paulo, 2007.
________. Mochileiros da fé: nomadismo religioso e neopentecostalismo no Brasil. São Paulo: Reflexão,
2011.
BOLTANSKI, Luc. La denuncia pública. In: El amor y la Justicia como competencias: tres ensayos de
la sociología de la acción. Buenos Aires: Amorrotu Editores, 2000.
________. Nécessité et justificacion. Revue Économique, v. 53, n. 2, p. 275-289, 2002.
BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Pa-
pirus, 1996a.
________. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. São Paulo: Companhia das Letras,
1996b.
________. Economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2011.
CAMPOS, Roberta Bivar Carneiro. O profeta, a palavra e a circulação do carisma pentecostal. Revista
de Antropologia da USP, São Paulo, v. 54, n. 2, p. 1013-1049, 2011.
CAROZZI, Maria Julia. Tendências no estudo dos novos movimentos religiosos na América: os últimos
20 anos. Boletim Informativo e Bibliográfico de Ciências Sociais da Anpocs, Rio de Janeiro, n. 37,
p. 61-78, 1994.
CLIFFORD, James. A experiência etnográfica: antropologia e literatura no século XX. Rio de Janeiro:
Editora UFRJ, 2011.
CRAPANZANO, Vincent. Diálogo. Anuário Antropológico, n. 88, p. 59-80, 1991.
DALMONTE, Edson Fernando. O discurso jornalístico. Salvador: EDUFBA, 2009.
DOUGLAS, Mary. Pureza e perigo. São Paulo: Perspectiva, 2012.
DULLO, Eduardo. Políticas de inclusão e de salvação: transmissão, transformação e aprendizado de
uma visão de mundo cristã e cidadã. 2008. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) PPGAS
Museu Nacional, Rio de Janeiro, 2008.
________. Após a (antropologia/sociologia da) religião, o secularismo? Mana, v. 18, n. 2, p. 379-391,
2012.
________. Paulo Freire, o testemunho e a pedagogia católica: a ação histórica contra o fatalismo. Revista
Brasileira de Ciências Sociais, v. 29, n. 85, p. 49-61, 2014.
FAVRET-SAADA, Jeanne. Ser afetado. Cadernos de Campo, São Paulo, ano 14, n. 13, p. 155-161, 2005.
FOUCAULT, Michel. Segurança, território, população. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

Religiões e controvérsias Final.indd 270 18/08/2015 09:59:56


FRY, Peter. O Espírito Santo contra o feitiço e os espíritos revoltados: “civilização” e “tradição” em

Vasos rebeldes
271
Moçambique. Mana, v. 6, n. 2, p. 65-69, 2000.
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989.
________. Nova luz sobre a antropologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
GIUMBELLI, Emerson. A vontade do saber: terminologias e classificações sobre o protestantismo
brasileiro. Religião & Sociedade, Rio de Janeiro, v. 21, n. 1, p. 87-119, 2000.
________. O fim da religião: dilemas da liberdade religiosa no Brasil e na França. São Paulo: Attar
Editorial, 2002.
GLUCKMAN, Max. Análise de uma situação social na Zululândia moderna. In: FELDMAN-BIANCO,
Bela (Org.). Antropologia das sociedades contemporâneas. São Paulo: Global, 1987.
________. Ritos de rebelião no sudoeste da África. Brasília: Universidade de Brasília, 2011.
HARDING, Susan Friend. The book of Jerry Falwell: fundamentalist language and politics. Princeton:
Princeton University Press, 2000.
LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos: ensaios de antropologia simétrica. São Paulo: Editora 34,
1994.
________. Não congelarás a imagem, ou, como não desentender o debate ciência-religião. Mana:
Estudos de Antropologia Social, v. 10, n. 2, p. 349-376, 2004.
LÉVI-STRAUSS, Claude. O feiticeiro e sua magia. Antropologia estrutural. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1973.
________. O pensamento selvagem. Campinas: Papirus, 1989.
MAFRA, Clara. Distância territorial, desgaste cultural e conversão pentecostal. In: ALMEIDA, Ro-
naldo (Orgs.). Religiões e cidades: Rio de Janeiro e São Paulo. São Paulo: Terceiro Nome, 2009.
(Coleção Antropologia Hoje).
________. Santidade e sinceridade na formação da pessoa cristã. Religião & Sociedade, Rio de Janeiro,
v. 34, n. 1, p. 173-191, 2014.
MARIANO, Ricardo. Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no Brasil. São Paulo:
Loyola, 1999.
MARQUES, Delcides. Confissões e ficções de um antropólogo: etnografia dos pregadores da Praça da
Sé. 2009. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) IFCH/UNICAMP, Campinas, 2009.
________. Da vida santificada: a moralidade do caminho estreito. 2013. Tese (Doutorado em Antro-
pologia Social) IFCH/UNICAMP, Campinas, 2013.
MAUSS, Marcel. A prece. In: Ensaios de Sociologia. São Paulo: Perspectiva, 2001.
________. HUBERT, Henri. Esboço de uma teoria geral da magia. In: Sociologia e antropologia. São
Paulo: Cosac & Naify, 2003.
MONTERO, Paula. Max Weber e os dilemas da secularização: o lugar das religiões no mundo contem-
porâneo. Novos Estudos CEBRAP, n. 65, p. 34-44, mar. 2003.
________. Jürgen Habermas: religião, diversidade cultural e publicidade. Novos Estudos CEBRAP, n.
84, p. 199-213, jul. 2009.
________. Controvérsias religiosas e esfera pública: repensando as religiões como discurso. Religião &
Sociedade, Rio de Janeiro, v. 32, n. 1, p. 167-183, 2012.
NOGUEIRA, Paulo Augusto de Souza. O mito dos vigilantes: apocalípticos em crise com a cultura
helenista. Religião & Cultura (PUC-SP), v. V, n. 10, p. 145-155, 2006.
PEIRANO, Mariza. A favor da etnografia. In: Série Antropológica. Brasília: Universidade de Brasília,
1992.

Religiões e controvérsias Final.indd 271 18/08/2015 09:59:56


272 PIERUCCI, Antonio Flávio. De olho na modernidade. Tempo Social: Revista de Sociologia da USP, v.
20, n. 2, p. 9-16, 2008.
PULMAN, Bertrand. Por uma história da noção de campo. Cadernos de Campo (FFLCH/USP), ano 16,
jan./dez., p. 221-232, 2007.
RICCI, Maurício. Glossolalia, iniciação e alteridade no pentecostalismo. Cadernos de Campo (FFLCH/
USP), ano 16, jan./dez., p. 221-232, 2007.

SAHLINS, Marshall. Ilhas de história. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990.


SCHELIGA, Eva Lenita. Educando sentidos, orientando uma práxis: etnografia das práticas assisten-
ciais de evangélicos brasileiros. 2010. Tese (Doutorado em Antropologia Social) FFLCH-USP, São
Paulo, 2010.
SCHIAVO, Luigi. O mal e suas representações simbólicas: o universo mítico e social das figuras de
Satanás na Bíblia. Estudos de Religião, São Bernardo do Campo, ano XIV, n. 19, p. 65-83, 2000.
STEIL, Carlos Alberto. O sertão das romarias: um estudo antropológico sobre o Santuário de Bom
Jesus da Lapa-Bahia. Petrópolis: Vozes, 1996.
STRATHERN, Marilyn. O gênero da dádiva: problemas com as mulheres e problemas com a sociedade
na Melanésia. Campinas: Editora da UNICAMP, 2006.
________. O efeito etnográfico e outros ensaios. São Paulo: Cosac & Naify, 2014.
TURNER, Victor. Dewey, Dilthey e drama: um ensaio em antropologia da experiência. Cadernos de
Campo (FFLCH-USP), ano 13, p. 177-185, 2005.
VELHO, Otávio. O cativeiro da Besta-Fera. Religião & Sociedade, n. 14/1, mar. p. 4-27, 1987.
VENTURINI, Tommaso. Diving in Magma: how to explore controversies with actor-network theory.
Public Understanding of Science, maio. s/p, 2009.
VEYNE, Paul. Os gregos acreditavam em seus mitos? Ensaio sobre a imaginação constituinte. São
Paulo: UNESP, 2014.
VITAL DA CUNHA, Christina. Traficantes evangélicos: novas formas de experimentação do sagrado
em favelas cariocas. Plural (Revista do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da USP), São
Paulo, v. 15, p. 23-46, 2008.
WAGNER, Roy. A invenção da cultura. São Paulo: Cosac & Naify, 2010.
WEBER, Max. Os três tipos puros de dominação legítima. In: COHN, Gabriel (Org.). Weber: socio-
logia. São Paulo: Ática, 1999.

Matérias publicadas em periódicos


A EXPLOSÃO da periferia. Veja, 24 jan. 2001.
BASTAM R$ 418 para criar uma igreja e se livrar de impostos. Folha de S. Paulo, 29 nov. 2009.
CRIAÇÃO de igreja é negociada até em anúncio de classificados. O Globo, 2 jul. 2014.

Religiões e controvérsias Final.indd 272 18/08/2015 09:59:56


Anexos

Vasos rebeldes
273

Figura 9. Faixa provisória da Igreja com CNPJ.


Fonte: Foto de José Edilson Teles, 2009. Arquivo pessoal.

Figura 10. Panorama externo.


Fonte: Foto de Genaldo Alves, 2010. Arquivo pessoal.

Religiões e controvérsias Final.indd 273 18/08/2015 09:59:56


Figuras 11 e 12. Por dentro da Manjedoura: púlpito e objetos – espaço de cerca
de 4 x 12 metros.
Fonte: Fotos de Genaldo Alves, 2010. Arquivo pessoal.

Figuras 13 e 14. Momentos de um dos cultos. “Santa Ceia”.


Fonte: Fotos de José Edilson Teles, 2009. Arquivo pessoal.

Religiões e controvérsias Final.indd 274 18/08/2015 09:59:57


A denúncia de Brolezzi: abusos e injustiças
sofridos no Opus Dei
ASHER BRUM

Introdução
Tomando como referência o trabalho de Boltanski (2000), examinamos a
construção e o desenrolar da denúncia pública de Antonio Carlos Brolezzi
contra o Opus Dei e alguns de seus representantes, em 2006. A denúncia
fundamenta-se em abusos perpetrados por parte de seus diretores espirituais
durante a sua pertença à instituição. Preocupamo-nos em demonstrar como
essa denúncia se constituiu por meio da produção de uma concepção específica
do que é o Opus Dei e como se desenvolve agregando novos atores e, desse
modo, produzindo novas concepções acerca dessa instituição. Analisamos essa
denúncia em três momentos: 1) a construção da denúncia por meio do lança-
mento do livro, de caráter testemunhal, Memórias sexuais no Opus Dei; 2) o
desenrolar da denúncia, quando Brolezzi concedeu entrevistas à revista Época
e ao programa SuperPop para falar sobre seu livro; 3) a (ausência de) resposta
por parte dos denunciados. Observamos como, a partir da narrativa de Brolezzi,
se constroem publicamente entendimentos diversos do que seria o Opus Dei.
Brolezzi aciona categorias como “abusos” e “injustiça” para situar sua denúncia
no campo da violação dos direitos humanos e, ao mesmo tempo, criar uma
interface de discussão pública entre religião e sexualidade. A própria categoria
“sexualidade” é agenciada por Brolezzi de modo a colocá-la em diálogo com
diferentes discursos e pontos de vista, tais como o psicanalítico, o entendimento

Religiões e controvérsias Final.indd 275 18/08/2015 09:59:58


276 da sexualidade como saudável, e mesmo outros discursos católicos (que não
o do Opus Dei). No caso descrito, põe-se em relação uma gama considerável
de atores: o denunciante (Brolezzi), jornalistas, psicanalistas, membros do
Opus Dei, entre outros. Constituem-se em arenas mediáticas, por meio da
denúncia de Brolezzi, formas específicas de qualificação da “justiça” e ações de
mobilização por parte de atores contra o denunciado – o Opus Dei. Trata-se,
aqui, de um sentido de injustiça localizado em um eixo exclusivamente moral.
Por conseguinte, ao tratar de categorias morais, tais como “direitos humanos”,
“abuso”, “seita”, etc., indica-se que a própria definição do que é o religioso
torna-se objeto de disputa.
O livro de Brolezzi surge como o relato de um ex-membro do Opus Dei que
vem a público para denunciar abusos de poder espiritual e violação dos direitos
humanos – injustiças sofridas durante sua pertença à instituição. Desse modo,
concepções específicas do que seria o Opus Dei começam a ser construídas:
uma instituição que desempenharia práticas medievais, a realização de trabalho
escravo e repressão à sexualidade. A partir da narrativa de Brolezzi, criou-se um
outro desprezível, condenável, concepção que circulou por um foro de debate
mediático no qual exploraram-se os relatos de traumas, abusos, manipulações
e humilhações narrados por Brolezzi. O autor da denúncia estende a posição
de vítima que ocupou a todos os jovens, entendidos como indefesos ou mal
informados, que poderiam vir a passar pelas mesmas situações que ele teria
passado por dedicar amor e obediência aos seus diretores espirituais. O fato de
Brolezzi ser um ex-membro dá o tom de veracidade ao relato e legitimidade
para falar sobre o que fala. Desse modo, agregam-se novos atores por meio da
denúncia contra as formas de normatividade da sexualidade e da obediência
desempenhadas pelos atores do Opus Dei. Portanto, sua denúncia ganhou
corpo na mídia ao indicar o consenso em torno dos direitos humanos e da
sexualidade como algo saudável.
No ano de 2006, logo após a publicação de O Código Da Vinci, de Dan Brown,
o então professor do Instituto de Matemática da Universidade de São Paulo
(IME/USP), Antônio Carlos Brolezzi, lançou um livro intitulado Memórias sexuais
no Opus Dei. O intuito de Brolezzi era chamar a atenção para sua experiência
como membro numerário1 do Opus Dei, ao qual pertenceu durante dez anos,

1
Os numerários são membros celibatários do Opus Dei que residem nos Centros e se dedicam às
atividades realizadas ali, principalmente às de formação espiritual. Podem ser leigos ou padres or-
denados pela própria prelazia. Geralmente têm empregos comuns e destinam toda a sua renda ao
Opus Dei, além de prestarem obediência aos seus diretores e membros superiores hierarquicamente.
Realizam dois anos de estudos teológicos e possuem diplomas acadêmicos. Os numerários do sexo
masculino ocupam as posições mais privilegiadas na hierarquia do Opus Dei. Um dos aspectos mais

Religiões e controvérsias Final.indd 276 18/08/2015 09:59:58


na cidade de São Paulo. Por meio do livro, Brolezzi constrói uma narrativa

A denúncia de Brolezzi
277
concisa em torno dos traumas e abusos que teria sofrido durante esse extenso
tempo de pertença à instituição. Embora tenha o formato de testemunho, sua
narrativa tem, antes de tudo, um evidente caráter de denúncia. Brolezzi (2006,
p. 4) evoca um sentimento de responsabilidade para sustentar esse caráter:
Quem quiser ler estas linhas, que tire as suas próprias conclusões. Quanto a mim,
eu já não poderia mais conviver com o sentimento de estar faltando à minha res-
ponsabilidade. Todos os dias, quantos jovens caem nas mesmas armadilhas que
eu me meti? Quantas famílias são destroçadas? Quantos fantasmas ambulantes
são fabricados? Quanta distorção de coisas belas e importantes, como é o caso da
sexualidade humana, transformadas em sujeira e motivo de humilhação! Quantas
mulheres são rebaixadas em sua dignidade humana! Quanta escravidão disfarçada
ainda existe no Opus Dei?

Desse modo, por meio dessa denúncia pública, tem início uma das principais
controvérsias envolvendo o Opus Dei no Brasil, a qual ganhou notoriedade nas
Américas do Sul e Central (PINOTTI, 2008, p. 315). Pouco antes do lançamen-
to de Memórias sexuais no Opus Dei, Brolezzi foi entrevistado pela revista Época,
cuja matéria de capa tratava do Opus Dei, e participou de vários programas em
rede nacional – o principal deles foi o SuperPop, na Rede TV. Até hoje Brolezzi
oferece palestras sobre o tema. Ante essa controvérsia, os representantes do
Opus Dei no Brasil nunca responderam publicamente. Calaram-se. O livro de
Brolezzi faz parte de uma rede de denúncias de ex-membros que decidiram vir
a público, por volta de 2006, e perpetrar ataques contra a instituição.
A denúncia de Brolezzi foi a primeira de caráter testemunhal publicada no Brasil
e, portanto, a que teve maior ressonância na imprensa. Por ser uma instituição
quase invisível publicamente, que não faz questão de divulgar concepções e
que realiza práticas consideradas medievais, arbitrárias e humilhantes, faz
despertar o imaginário das pessoas e torna-se polêmica. O testemunho de Bro-
lezzi projetou publicamente a instituição e alguns de seus membros, além de
explorar questões controversas. Pensando a partir do trabalho de Paula Montero
(2009a), entendemos o Opus Dei como um segmento religioso que procura
se manter fora do fluxo da opinião pública – seus membros não reivindicam
o direito de usar a linguagem persuasiva na esfera pública nem desenvolvem
processos públicos de argumentação. Tanto é que John Allen (2006) fala sobre

polêmicos envolvendo os numerários são as práticas regulares de mortificação corporal por meio
do uso do cilício e das disciplinas. A outra categoria principal de membros do Opus Dei é a de
supernumerários, que são membros que podem casar-se e não têm todas as exigências e dedicação
que possuem os numerários. Os diretores espirituais dos supernumerários são numerários leigos.

Religiões e controvérsias Final.indd 277 18/08/2015 09:59:58


278 uma inabilidade do Opus Dei, em todos os países, de expor publicamente suas
concepções. Inabilidade ou estratégia institucional, o certo é que os processos
discursivos construídos pelo Opus Dei não envolvem a produção de visibili-
dades naquela esfera. Desse modo, segmentos da imprensa, juntamente com
Brolezzi, tiveram facilidade em moldar a opinião pública e produzir concepções
a respeito do que seria o Opus Dei.
Para Boltanski (2000, p. 247), uma denúncia pública instaura um sistema de
relações entre quatro atores: 1) o que denuncia (denunciante); 2) aquele em
cujo favor se realiza a denúncia (vítima); 3) aquele contra quem se apresenta a
denúncia (denunciado ou perseguidor); 4) aquele a quem se dirige a denúncia
(juiz). No caso aqui analisado, o denunciante e a vítima são uma só e mesma
pessoa: Brolezzi. Ele escreve para expor seu próprio caso à opinião pública e
denunciar as injustiças que considera ter sofrido. Na narrativa de Brolezzi, o
denunciado oscila entre indivíduos singulares e aquilo que o autor qualifica
como “o Opus Dei”, descrito por ele como um ator abstrato, despersonali-
zado. Mas, mesmo quando se refere a indivíduos singulares (o padre Vicente
Ancona Lopes é o mais recorrente), Brolezzi os constrói narrativamente como
representantes desse ator abstrato que é o Opus Dei. Por fim, o juiz da de-
núncia é a opinião pública, vista a ampla exposição de Brolezzi na mídia. O
autor sempre se posiciona no sentido de buscar a condenação pública para as
injustiças que considera ter sofrido. Desse modo, tenta angariar legitimidade
para sua denúncia por meio da descrição da experiência pessoal.
O problema que orienta meu olhar sobre o relato de Brolezzi é o processo da
transformação de experiências em uma narrativa de injustiças que se funda-
mentam por abusos de poder espiritual. Se o livro tem o intuito de transformar
essas experiências no conteúdo de uma denúncia pública e, por conseguinte,
num entendimento específico do que seja o Opus Dei, esse entendimento vai
sendo modificado no processo à medida que novos atores são envolvidos. Essa
narrativa apelou, sobretudo, para a denúncia dos abusos cometidos por pessoas
do Opus Dei localizadas em posições privilegiadas dentro de um sistema espiri-
tual – basicamente os diretores espirituais2. A denúncia de Brolezzi enquadra-se

2
O diretor espiritual dos numerários é um numerário leigo, que também é o diretor administrativo
do Centro, responsável por realizar a “conversa fraterna” uma vez por semana. Nessa conversa, os
numerários relatam como anda a sua vida espiritual (normas de piedade, problemas de pureza, apos-
tolado, etc.) e recebem orientações práticas do seu diretor. Juntamente com o sacerdote confessor
dos Centros – sempre um numerário –, o diretor espiritual desenvolve a “direção espiritual”. Após
conversarem abertamente sobre seus pecados, problemas e atividades apostólicas com o diretor
espiritual, os numerários confessam-se com o sacerdote. A direção espiritual dos frequentadores
dos Centros que não são numerários nem membros do Opus Dei é feita com o sacerdote, que

Religiões e controvérsias Final.indd 278 18/08/2015 09:59:58


num registro no qual constam várias denúncias de ex-membros do Opus Dei

A denúncia de Brolezzi
279
pelo mundo: o abuso por parte de seus diretores espirituais. Segundo John
Allen (2006, p. 7), “[...] a organização [o Opus Dei] é criticada por uma certa
porcentagem de ex-membros com impressionante veemência, incluindo o uso
de expressões como ‘abuso espiritual’ ou mesmo violação de direitos humanos”.
Pretendemos, por conseguinte, examinar o processo de construção da denúncia
de Brolezzi, o seu desenrolar e a sua mutação conforme transita por diferentes
âmbitos. São eles: as narrativas de Brolezzi expostas em Memórias sexuais
no Opus Dei, no programa SuperPop e na revista Época, as quais explicitam o
desenrolar da controvérsia e das formas de entendimento do Opus Dei pro-
duzidas no processo. Damos preferência ao livro por ser, além do estopim da
controvérsia, a descrição mais densa e sistemática de Brolezzi acerca de sua
experiência no Opus Dei. Além disso, o livro é a base das outras duas entre-
vistas. Buscaremos analisar as formas narrativas de construção de injustiças
nas exposições de Brolezzi, partindo do pressuposto de que elas são fruto das
interações de Brolezzi com atores do Opus Dei. Nosso intuito não é abordar
essas narrativas como uma descrição objetiva da realidade, mas questionar o
que Brolezzi pretendia defender e demonstrar com elas – propomos observar
qual é sua mensagem para além da descrição.
As narrativas de Brolezzi foram compostas por descrições que demonstram
particularidades e produzem alteridade. Sua narrativa permite compreender-
mos as formas de convivência e as relações no interior de duas residências do
Opus Dei, dando vida aos personagens em interação. Ao mesmo tempo, as
entrevistas concedidas por Brolezzi produziram entendimentos do que seria
o Opus Dei, uma vez que havia mais agentes envolvidos. Interessa-nos, aqui,
tanto a construção da denúncia por meio do livro, como seu desenrolar com
as entrevistas publicadas no SuperPop e na Época.

O autor da denúncia
Antônio Carlos Brolezzi nasceu em 6 de fevereiro de 1965, em Santo André,
na região metropolitana de São Paulo. Seus pais participaram ativamente da
JOC (Juventude Operária Católica)3 no ABC Paulista, onde se conheceram. Seu

é seu diretor espiritual. No caso de Brolezzi, os papéis do diretor espiritual leigo e do sacerdote
confessor se confundiam, pois quem o aconselhava e lhe dava diretrizes práticas de como lidar com
seus problemas era o próprio sacerdote, o padre Vicente.
3
Segundo Scott Mainwaring (1989, p. 141-142), a JOC (Juventude Operária Católica) foi fundada
pelo sacerdote belga Joseph Cardjin em 1923. Tanto na Europa quanto no Brasil, foi um movimento

Religiões e controvérsias Final.indd 279 18/08/2015 09:59:58


280 pai, militante católico e sindicalista da indústria da borracha em Santo André,
participou da JOC e do movimento sindical na era pré-Lula, nas décadas de
1950 e 1960. Segundo Brolezzi, o fato de sua família ter sido criada no âm-
bito da experiência sindical e do trabalho da Igreja nesse meio conferia-lhe
uma visão positiva dessa instituição. Lembra que havia muitos padres e casais
envolvidos, que depois vinham a casar-se. Além de seus pais, muitos de seus
tios também se conheceram nos bailes e atividades da JOC. Tratava-se de um
engajamento cotidiano com a Igreja, que se tornava parte da vida das pessoas
envolvidas nessa dinâmica.
Em entrevista ao jornalista italiano Ferruccio Pinotti4, Brolezzi (PINOTTI,
2008, p. 315-316) relata ser o terceiro de quatro filhos. Conta que sua mãe
trabalhou durante 14 anos em uma fábrica de tecidos em Santo André e depois
conseguiu comprar um frigorífico. O pai dividia-se entre diversas atividades,
tais como o trabalho de técnico em análises de sangue num laboratório, agente
imobiliário e líder do sindicato dos trabalhadores da indústria de pneus (Pirelli).
Brolezzi conta que a paixão do seu pai era a política. Candidatou-se várias vezes
às eleições, mas nunca conseguiu se eleger. Desse modo, teria perdido o que
restava dos seus rendimentos após ter criado quatro filhos.
Segundo Brolezzi, foi o fato de ter participado da vida cotidiana da Igreja, por
meio da JOC, que gerou a sua formação religiosa antes de conhecer o Opus Dei.
Até o dia em que começou a frequentar o Centro Cultural Itaim, o Centro onde
conheceu o Opus Dei, participava das atividades da Comunidade de Jovens
da Paróquia de Santo Antônio, em Santo André – basicamente na década de
1970 e início de 1980. Interessante notar que, de início, não foi a trajetória
religiosa de Brolezzi que o levou ao Opus Dei. O autor sempre ressalta que,
quando foi pela primeira vez ao Centro do Itaim, não sabia que se tratava de
uma instituição vinculada à Igreja Católica. Segundo ele, foi levado pelo irmão
a um curso de astronomia.

voltado para a classe operária urbana. Os primeiros grupos da JOC no Brasil foram criados na década
de 1930. No entanto, somente em meados da década de 1940, com a organização da Ação Católica,
começaria a se tornar um movimento importante. A Igreja Católica via a JOC como realizadora de
um importante trabalho pastoral entre os operários. Por volta de 1950, ano em que Brolezzi relata
que seus pais se conheceram, a JOC era mais um movimento jovem da Igreja do que uma organização
de operários. Estava intimamente vinculada à vida sacramental da Igreja e suas celebrações. Além
das discussões sobre família e problemas pessoais, o movimento também organizava atividades de
lazer, tais como bailes, piqueniques e excursões.
4
Ferruccio Pinotti é um jornalista português. Reuniu, no livro Opus Dei secreta, entrevistas de de-
núncias de abusos contra o Opus Dei relatados por ex-numerários da Europa, dos Estados Unidos
e da América do Sul. Brolezzi foi um dos entrevistados – o único brasileiro.

Religiões e controvérsias Final.indd 280 18/08/2015 09:59:58


Nesse período, em 1983, Brolezzi frequentava um cursinho pré-vestibular, além

A denúncia de Brolezzi
281
de trabalhar como officeboy no Banco Bamerindus. Pretendia se preparar para
o vestibular, o que despertou seu interesse no tal curso de astronomia, que
anunciava palestrantes renomados. Segundo Brolezzi (2006, p. 10), imaginava
tratar-se de um curso oferecido pela Universidade de São Paulo (USP): “Eu
achava que era a USP [...]. Nunca tinha ido à famosa USP”. Nesse período, por
conta do emprego e do estudo, Brolezzi também não estava frequentando com
regularidade as atividades da Paróquia de Santo Antônio. Voltou ao Centro
mais algumas vezes para o curso de astronomia, que era administrado por
professores da USP. Espantava-o o fato de não haver meninas ali, só rapazes
universitários muito bem-vestidos.
Quando ingressou no curso de matemática da USP, Brolezzi (2006) conta que
a relação com as pessoas do Centro mudou. Todos queriam conversar com ele.
Foi, então, levado pela primeira vez ao oratório do Centro. Antes disso, sequer
imaginava que se tratasse de um ambiente religioso. Em seguida, foi chamado
a uma salinha por um numerário, que disse que ele deveria começar a ter aulas
de doutrina católica. Eram aulas que ofereciam uma visão teológica dos temas
da Igreja: pecado, céu e inferno, virtudes cristãs, etc. Ao mesmo tempo, foi
sendo levado a falar de assuntos pessoais. Quando se mudou para São Paulo,
por conta das aulas na USP, começou a frequentar retiros, os círculos de São
Rafael5 e a ajudar no Centro. Finalmente, em 1985, tornou-se numerário do
Opus Dei sem saber sequer, segundo seu próprio relato, que eles eram membros
celibatários ou que precisavam praticar mortificações corporais diariamente.
Permaneceu no Opus Dei durante dez anos.
Memórias sexuais no Opus Dei, publicado aproximadamente dez anos depois
de Brolezzi se desligar da instituição, reúne descrições de sua trajetória du-
rante o tempo em que foi membro do Opus Dei. O texto, escrito em estilo
sarcástico e informal, descreve a experiência de Brolezzi para ilustrar eventos
que se circunscrevem em um contexto de relações de poder entendidas pelo
autor como abusivas, configurando injustiças que devem ser denunciadas pu-
blicamente. A narrativa de Brolezzi coloca-o na situação de vítima do Opus
Dei e dos seus representantes. O Opus Dei, entendido ora como um ator
abstrato, ora como representado por sujeitos específicos, confere à narrativa o

5
Os círculos de São Rafael se constituem por aulas de formação doutrinal para estudantes que
frequentam os Centros. Geralmente são grupos pequenos, com menos de dez pessoas, e as aulas
são ministradas por um numerário leigo. Do mesmo modo, existem os círculos de São Miguel,
compostos por numerários, e os círculos de São Gabriel, voltados aos profissionais frequentadores
dos Centros.

Religiões e controvérsias Final.indd 281 18/08/2015 09:59:58


282 caráter de uma crítica generalizada. Dito de outra forma: o autor não se limita
a denunciar o Centro Cultural do Itaim, tampouco o padre Vicente; trata-se
de uma crítica à instituição Opus Dei.

Os abusos dos diretores


A natureza das injustiças da qual Brolezzi se considera vítima é de caráter
espiritual. Não se trata, em um primeiro momento, de danos materiais ou
físicos. Desse modo, seu caso pode ser enquadrado no registro de abusos
cometidos por autoridades espirituais do Opus Dei. Para qualificarmos a na-
tureza dessas injustiças, recorremos à noção de poder pastoral (FOUCAULT,
2008). O poder pastoral, entendido como um governo da vida cotidiana, se
aplica adequadamente à lógica de funcionamento do Centro do Opus Dei no
qual Brolezzi contextualiza sua narrativa. Os pastores descritos por Brolezzi –
são sempre dois, o padre e o diretor espiritual leigo –, seus guias espirituais,
tinham o poder de penetrar profundamente na intimidade dos membros sob
seu governo. Como um de seus deveres como pastores consistia em mapear as
fraquezas e os pecados dos membros numerários, a fronteira que circunscrevia
sua jurisdição era extremamente ampla. Consistia em saber o que um numerário
fazia quando estava sozinho, se teve desejos sexuais, se praticou masturbação,
se teve algum pensamento sexual ou pecaminoso enquanto andava na rua, etc.
Esse olhar exaustivo sobre os governados provocava um voltar-se a si mesmo
tipicamente cristão: o exame de consciência.
A denúncia de Brolezzi reside, justamente, no abuso desse poder pelos pas-
tores (principalmente pelo padre Vicente). Em seu livro, ele narra como o
padre Vicente – que, na prática, acumulava a função de confessor e diretor
espiritual – usava o conhecimento de seus pensamentos e de sua intimidade
para conduzi-lo a práticas humilhantes, estressantes e agressivas. O texto de
Brolezzi tem um caráter de confissão íntima. Diz ele que, já que teve de expor
sua intimidade e sua sexualidade durante dez anos, não teria problema em
expô-las novamente no livro. Brolezzi sempre enfatiza, tanto no livro quando
nas entrevistas, o nome do padre Vicente Ancona Lopez; não o designa com
nenhum tipo de pseudônimo. Ressalta, ainda, que ele é, atualmente, o Vigário
Regional do Opus Dei no Brasil, ou seja, o responsável pelo governo do Opus
Dei no território brasileiro. Diz Brolezzi (2006, p. 5):
Nesta breve narrativa, em sete capítulos, concentro-me na relação com os diretores,
que são os que receberam minha alma inteira em suas mãos, entregue como argila
mole, para fazer de mim o que quisessem.

Religiões e controvérsias Final.indd 282 18/08/2015 09:59:58


Às pessoas que tive de mencionar, porque foram demais protagonistas na minha vida

A denúncia de Brolezzi
283
e entraram conscientemente na minha intimidade para mexer com meus sentimentos
e tentar me programar, não pedirei desculpas se eventualmente fiz um retrato não
muito fiel de vocês ou se casualmente não foram apresentadas ao público como
gostariam que fossem. Na verdade, fiquei com essa impressão após ter sido objeto
em suas mãos. Já que vocês nunca mais me procuraram para saber se eu estava
vivo ou morto, depois do que fizeram comigo, isso foi o que restou. Tantos anos
de convivência íntima e depois vocês fazerem de conta que eu não tinha existido!
Vocês sabem muito bem o que fizeram, e continuam fazendo, em nome da “Obra
de Deus”. [...]. Pensem um pouco melhor antes de meter os pés e as mãos dentro
da cabeça das pessoas. Cheguei a gostar muito de vocês, amar de verdade, senão
não teriam conseguido que eu fizesse tantos absurdos (BROLEZZI, 2006, p. 6).

As passagens citadas ilustram o objetivo de Brolezzi em seu livro. O foco de sua


narrativa é, especificamente, a sua relação com os diretores – com os pastores.
Esses fragmentos oferecem indícios interessantes com relação à economia dos
vínculos entre pastores e governados no contexto descrito por Brolezzi. Fica
claro na descrição do autor – pude perceber o mesmo em minha etnografia
em um Centro do Opus Dei – que o vínculo entre os numerários se dá de
forma afetiva. Evoca-se, frequentemente, a categoria família para descrever
os numerários residentes em um mesmo Centro. O diretor associa-se à figura
do pai e os demais são como seus filhos. Desse modo, compreende-se quando
Brolezzi diz que chegou a “amar de verdade” seus diretores. Evoca sentimentos
de amor e decepção por não ter sido procurado após sua saída do Opus Dei.
Portanto, a natureza da obediência dos numerários aos diretores espirituais é de
caráter afetivo. É isso que produz relações de confiança para com os diretores,
a quem se revela a sua intimidade, seus pensamentos, e a quem se obedece. É
como o pai que aconselha os filhos. Trata-se de um tipo de obediência exaus-
tiva, total e permanente, muito similar ao que se afigura nos casos de “abusos
espirituais” analisados por Montero neste volume.
O catolicismo do Opus Dei não é somente feito de dogmas, mas, sobretudo, de
um saber prático. Trata-se de como trabalhar, como se comportar com relação
à sexualidade, como controlar pensamentos. A função dos diretores, no caso
narrado por Brolezzi, é conduzir esse como fazer. Quando o autor emprega o
termo “argila mole”, é possível perceber claramente o aspecto de deixar-se
conduzir pelo pastor – a obediência por amor. Mais ainda, abrir a intimidade
para que os diretores possam conhecê-la e manipulá-la. Em vários momentos
de sua narrativa, Brolezzi descreve conversas fraternas com seu diretor espiri-
tual que, em tese, deveria ser um leigo. Mas, na prática, era o padre Vicente.
Conta que uma vez por semana ia até a salinha do padre, falava sobre seus

Religiões e controvérsias Final.indd 283 18/08/2015 09:59:58


284 pensamentos sexuais, suas dúvidas sobre a vocação de numerário, etc. O padre
Vicente sugeria-lhe possibilidades práticas: evitar passar em frente a bancas de
revista, por exemplo, que poderia despertar seus pensamentos eróticos. Falava
que suas dúvidas sobre a vocação eram normais, geralmente problemas de
soberba por resistir a abrir mão da própria vida e entregá-la a Deus – deveria,
portanto, rezar mais.
Ao falar do padre Vicente, Brolezzi assume um tom sarcástico na escrita. De
modo geral, descreve-o como um diretor autoritário, cujo domínio criava um
ambiente sufocante e opressivo, mas que todos obedeciam porque, dentro do
sistema de poder do Centro de Estudos6, ele era o pai. Esse é o clima criado
pela narrativa. Diz ele: “Mas o Vicentão mandava em tudo e em todos de um
jeito que só assistindo aos filmes da máfia siciliana podemos imaginar. Sabe
aquele poder exercido apenas por prazer ou mesmo tédio? Era assim que
acontecia” (BROLEZZI, 2006, p. 40). Ainda, refere-se ao “[...] jeito medie-
val e onipotente do padre Vicente” (BROZELLI, 2006, p. 45). O sentido da
narrativa de Brolezzi é claro: enquanto numerário, era incapaz de perceber a
forma injusta como o padre Vicente exercia seu poder, pois tinha com ele uma
relação afetiva. Era a pessoa que penetrava na sua intimidade. Mesmo com
esse forte vínculo afetivo – da ovelha para com o pastor –, Brolezzi (2006, p.
40) recorre, frequentemente, a enunciações como “a sensação de usurpação
da própria intimidade e de autodeterminação [...]” para ilustrar como se sentia
naquele ambiente.
Portanto, a fundamentação da denúncia de Brolezzi reside em abusos exer-
cidos por seus diretores – principalmente o padre Vicente. Essa é a natureza
das injustiças das quais o autor se considera vítima: ter prestado obediência a
pastores que usaram injustamente o poder legítimo que exerciam. De forma
distorcida, usaram esse poder para fins escusos, que não a condução das ove-
lhas à salvação. Para Brolezzi, as formas como seus diretores espirituais – e ele
generaliza para o Opus Dei – conduziam as pessoas eram errôneas e abusivas.
Para ele, a condução se dava no sentido de criar sujeitos autômatos, sem per-
sonalidade, a quem os diretores poderiam manipular tranquilamente.

6
O Centro de Estudos do Sumaré é um Centro do Opus Dei onde são formados os numerários
recém-ingressados na instituição. É destinado à formação de numerários do sexo masculino. A for-
mação dos numerários consiste em dois anos de estudos teológicos e filosóficos. Após esse período,
os numerários formados são encaminhados para outros Centros, de acordo com a deliberação da
Comissão Regional.

Religiões e controvérsias Final.indd 284 18/08/2015 09:59:58


A construção narrativa da denúncia

A denúncia de Brolezzi
285
Talvez o aspecto mais interessante da denúncia de Brolezzi seja o fato de
estar atacando uma instituição pouco conhecida no Brasil. Em consequência,
sua narrativa precisa, mais do que atacar atores, descrever práticas, relações
e contextos de modo a situá-los. Precisa, portanto, construir o modo de ser
dos sujeitos que descreve e, assim, criar alteridade. Em sua narrativa, há uma
clara produção de “eles”, de “o Opus Dei” – ora se refere a uma instituição
entendida de forma reificada e abstrata, ora qualifica atores específicos como
representantes institucionais. Há um esforço de descrever, explicar, qualificar
e situar. Mas, é claro, esse esforço não se dissocia da intenção primeira de
denunciar. Sobretudo, a forma de Brolezzi traduzir a diferença está na chave
da denúncia. No esforço de traduzir para os leitores e ouvintes o que seria o
Opus Dei, Brolezzi recorre à denúncia para estabelecer as diferenças entre
“nós” e “eles” e as especificidades daquele grupo – diferenças que, mesmo
entendidas em contextos específicos, seriam condenáveis.
A narrativa mescla o sarcástico e o dramático ao descrever os casos concretos
de abusos por parte dos seus diretores para, desse modo, construir narrativa-
mente a injustiça. Como recurso retórico de convencimento, o autor descreve
sentimentos e sensações ao narrar esses abusos. A narrativa possui, a meu
ver, quatro movimentos importantes: 1) o pedido de admissão de Brolezzi no
Opus Dei, no Centro Cultural Itaim; 2) o curso de formação de numerários
no Centro de Estudos do Sumaré; 3) a volta para o Centro Cultural Itaim; 4)
a saída do Opus Dei.
Durante nossa pesquisa de campo, pudemos compreender a lógica da formação
de numerários no Brasil. Eles pedem admissão nos Centros que frequentam
como rapazes de São Rafael. Após um período de aproximadamente um ano,
mudam-se para o Centro de Estudos do Sumaré, onde receberão uma forma-
ção teológica e filosófica intensiva durante dois anos. O Centro de Estudos é
o único centro de formação do Brasil, de modo que mesmo os numerários de
outros estados são enviados para esse Centro, localizado na cidade de São Paulo.
Brolezzi (2006, p. 45) descreve sua passagem pelo Centro de Estudos como
uma “vida de quartel”. Diz que era obrigado a fazer coisas “sem questionar”
(BROLEZZI, 2006, p. 47) e que era submetido à realização de, praticamente,
“trabalho escravo” (BROLEZZI, 2006, p. 47) e “sem nenhuma possibilidade
de atraso ou falha” (BROLEZZI, 2006, p. 48). Se toda a narrativa de Brolezzi
aponta para os abusos que sofreu por parte de seus diretores enquanto foi
membro do Opus Dei, quando narra sua passagem pelo Centro de Estudos,
ele dá descrições específicas do que considera esses abusos. Oferece, portanto,

Religiões e controvérsias Final.indd 285 18/08/2015 09:59:58


286 elementos que sustentam sua denúncia. Importante lembrar que o diretor
espiritual do Centro de Estudos, na prática, era o padre Vicente.
A narrativa assume, em dados momentos, a intenção de chocar o leitor. A
passagem de sua denúncia que ganhou mais destaque na mídia, narrada tanto
no SuperPop quanto na revista Época, foi a do macacão antimasturbação. É
uma passagem com uma poderosa força retórica.
Em uma ocasião fui dizer ao padre Vicente que, após horas sem dormir com uma
ereção que não queria desaparecer por si só, eu havia me masturbado na madrugada.
Padre Vicente pensou por um segundo e teve uma ideia brilhante: “Seu problema
é que você se toca sob os lençóis com muita facilidade e, por isso, se masturba.
Vamos fazer o seguinte, você arruma uma calça jeans sua, bem grossa, e uma ca-
misa de manga comprida, de preferência, a mais grossa que tiver. Vou pedir para
alguém da sessão feminina costurar a camisa na calça. Você, então, irá vestir esse
‘equipamento’ ao contrário, ou seja, a bunda da calça irá ficar na sua frente e você
não terá como se tocar, pois irá vestir a camisa ao contrário, de modo que a costura
impeça o acesso de suas mãos. Creio que quinze dias sem se masturbar serão su-
ficientes para acabar com esses problemas de pureza” (BROLEZZI, 2006, p. 49).

Padre Vicente fez a gentileza de me utilizar como cobaia de sua experiência sádica.
Sobre a minha cama apareceu o tal escafandro dobradinho, pronto para ser usado
pela primeira vez. Vesti a calça jeans ao contrário e introduzi meus braços nas
mangas longas da camisa. [...]. O colarinho incomodava a minha garganta. Caí na
cama e me arrastei como pude para baixo dos lençóis. Naquela noite, mal preguei
os olhos, embora o sono e o sentimento de ser um louco preso em um hospício
por erro de diagnóstico me fizessem romper em lágrimas madrugada adentro. No
dia seguinte, entorpecido pelo sono e por sentimentos de baixa estima, cambaleei
entre um afazer e outro aguardando a oportunidade de cair na cama e dormir [...]
(BROLEZZI, 2006, p. 50).

[...] aceitei tudo isso iludido com a ideia de que, por amor a Deus, amor à huma-
nidade, que eu pensava estar ajudando a salvar, eu assumia toda ordem vinda do
meu diretor espiritual como se fosse diretamente do Espírito Santo e que estas
eram para a minha própria santidade (BROLEZZI, 2006, p. 50).

Após falar do ocorrido para outro diretor, Brolezzi conta que o padre Vicente
abordou-o no corredor e disse que não precisaria mais usar o macacão.
Simples, não?! Sem pedidos de desculpas. Onde já se viu o Vicentão admitir que
estava errado? Esse assunto acabou ali e somente agora vem a público nestas linhas,
pois acho que pode servir de ilustração de como o Opus Dei encara a sexualidade.
Além disso, sendo o padre Vicente o vigário regional do Opus Dei no Brasil, ou

Religiões e controvérsias Final.indd 286 18/08/2015 09:59:59


seja, o chefe máximo por aqui, suas ideias criativas devem continuar a ser postas

A denúncia de Brolezzi
287
em prática (BROLEZZI, 2006, p. 50).

Ao descrever de forma dramática essa passagem, Brolezzi busca apoio no discurso


da sexualidade como elemento saudável da vida cotidiana moderna. Sua denúncia
é construída, justamente, sobre as práticas coercitivas do Opus Dei (entendido
de forma abstrata) sobre a sexualidade. Percebe-se, ao longo de sua narrativa,
que um aspecto que deveria ser considerado saudável é tratado pelo Opus Dei
de forma repressiva, de modo a censurar qualquer alusão à sexualidade. Padre
Vicente é retratado como representante do Opus Dei e a força motriz dessas
práticas. Estabelece-se a seguinte lógica indutiva na narrativa: se padre Vicente,
que é o Vigário Regional do Opus Dei no Brasil, conduz os numerários a esse
tipo de prática, logo toda a instituição Opus Dei age dessa forma, pois ele é um
representante institucional legítimo. A falha do pastor ao conduzir não está,
somente, em defender concepções com relação à sexualidade consideradas me-
dievais pelo autor da denúncia; está, sobretudo, em conduzir a práticas coercitivas
e repressivas com base nessas concepções. É muito claro o movimento: Brolezzi
vai das concepções abstratas da instituição Opus Dei e de São Josemaria Escrivá7
sobre a sexualidade às práticas coercitivas do padre Vicente. Desse modo, sua
denúncia ganha generalidade, não se limita a um caso singular. Não é somente o
padre Vicente que está sendo denunciado, mas a instituição Opus Dei.
Se a natureza da obediência de Brolezzi ao padre Vicente estava no amor pelo
pastor e no seu poder espiritual, nessa passagem fica claro que o amor a Deus
projeta-se no amor ao pastor. O fundamento da obediência ao que considera
uma “experiência sádica” é o amor ao pastor, que é reflexo do amor a Deus.
Desse modo, Brolezzi denuncia que o padre Vicente valeu-se do conhecimento
desse amor para conduzi-lo a práticas que, segundo o autor, foram agressivas
e traumáticas. Aqui, a evocação de sentimentos, tais como “amor”, “ser um
louco”, “irromper em lágrimas”, etc., é usada como recurso retórico para ganhar
empatia e, portanto, ter sua denúncia legitimada pelo público. Para Brolezzi,
mesmo os momentos festivos e alegres descritos no livro – poucos – foram
utilizados pelos seus diretores para acirrar seu vínculo afetivo. Esse vínculo,
segundo ele, era utilizado por eles para conduzi-lo a fins escusos, como é o
caso do macacão antimasturbação ou do proselitismo que era obrigado a fazer.
Os últimos enunciados citados acima demonstram a tentativa de Brolezzi de
generalizar sua crítica a todo o Opus Dei, entendido em abstrato. Segundo ele,

7
Josemaria Escrivá fundou o Opus Dei em 1928. Foi canonizado pelo papa João Paulo II em 2002.
Os membros do Opus Dei têm uma forte devoção pela sua figura e seus livros são amplamente
difundidos nos Centros como guias doutrinais e de condutas práticas.

Religiões e controvérsias Final.indd 287 18/08/2015 09:59:59


288 a passagem do macacão antimasturbação é “uma ilustração de como o Opus
Dei encara a sexualidade”. E conclui dizendo que, como o padre Vicente “é
o chefe máximo por aqui”, ainda deve-se ter esse tipo de atitude extremada
para coagir práticas sexuais. No entanto, nessa passagem, Brolezzi opta por não
discorrer sobre o funcionamento administrativo do Opus Dei. As atribuições
do Vigário Regional são basicamente administrativas, de tal sorte que pratica-
mente não tem contato com Centros de numerários mais jovens, tampouco
exerce a função de diretor espiritual. O Centro da Comissão Regional, que
fica ao lado do Centro de Estudos, é composto por numerários mais velhos.
Não digo isso para fazer uma espécie de defesa do padre Vicente, mas para
refletir sobre o porquê de Brolezzi ter deixado isso de fora de sua narrativa.
Sua denúncia correria o risco de perder a generalidade se limitasse a figura do
padre Vicente, como Vigário Regional, a um posto administrativo. Segundo o
que Brolezzi narra, a posição do padre Vicente como Vigário Regional confere-
-lhe o privilégio de poder continuar pondo suas ideias em prática, tais como
o macacão antimasturbação.
Brolezzi manifesta sua presença nessa enunciação – e, de um modo geral, ao
longo de toda a sua narrativa – qualificando-se como vítima de seu diretor
espiritual. Desse modo, vai construindo a si mesmo como vítima que, por
obediência e devoção afetiva, não reagia ao poder exercido pelo padre Vicente.
Ao mesmo tempo, Brolezzi afirma que esse caso ilustra não só como o Opus
Dei compreende a sexualidade, mas também exemplifica como a instituição
forma pessoas. No entendimento de Brolezzi, o Opus Dei, por meio dos seus
diretores, forma sujeitos passivos, dóceis e suscetíveis a quaisquer ordens
vindas de seus diretores ou de qualquer numerário hierarquicamente supe-
rior. Sua narrativa procura demonstrar, portanto, como ele próprio se tornara
uma espécie de autômato, cuja individualidade era totalmente exposta e cuja
personalidade era moldada por seus diretores.
A passagem descrita se desenrola em um contexto que permanece por muito
tempo na narrativa: o Centro de Estudos. Logo após, a história passa a am-
bientar-se no Centro Cultural Itaim. Nesses cenários, segundo a perspectiva
de Brolezzi, as relações de poder são bem específicas: trata-se de um poder
exercido de maneira unilateral pelos diretores, os quais determinam e os demais
numerários obedecem. Esse poder é exercido, portanto, por meio de relações
de conhecimento. O caso do macacão antimasturbação é emblemático, pois
demonstra que o diretor detinha um poder sobre o conhecimento da sexua-
lidade que deveria ser ensinado e, ao mesmo tempo, tinha legitimidade para
coagir práticas sexuais como julgasse apropriado.

Religiões e controvérsias Final.indd 288 18/08/2015 09:59:59


Brolezzi associa essas práticas aos escritos e determinações de Josemaria

A denúncia de Brolezzi
289
Escrivá com relação à santa pureza – trata-se do modo específico como o fun-
dador do Opus Dei interpretou a castidade, prescrita no catecismo da Igreja
Católica. Segundo Caminho, um dos principais livros de Escrivá (1999), ele
dá ensinamentos práticos de como evitar pecados contra a santa pureza. De
fato, Escrivá é sempre evocado quando é necessário justificar as práticas dos
numerários com relação à sexualidade ou de qualquer outra natureza. Em sua
narrativa, Brolezzi desqualifica duramente a figura de Escrivá, pois, segundo
ele, seria este o propiciador de tais práticas. Essa desqualificação representa um
elemento interessante na narrativa. Todos os membros do Opus Dei têm uma
forte vinculação afetiva com a figura de Escrivá, mesmo, muitas vezes, não o
tendo conhecido. Falam sobre ele com carinho e entusiasmo. Desse modo, ao
atacar a figura de Escrivá, Brolezzi não está atacando somente ela, mas todas
as pessoas do Opus Dei. Trata-se de uma ofensa muito clara aos membros da
prelazia. Apesar de Escrivá ter sido canonizado em 2002, Brolezzi não questiona
a resolução da Igreja Católica de torná-lo santo.
Brolezzi (2006, p. 57) conclui sua passagem pelo Centro de Estudos da se-
guinte maneira:
Os dois anos no Centro de Estudos tinham servido para afundar a minha alma em
uma espécie de humildade histérica. Sentia-me, como nas delicadas palavras do
fundador, a lata do lixo. Padre Vicente tinha inventado uma doença para me dar,
a qual denominou “erotismo mental”. [...] Era difícil para minha cabeça admitir
que um diretor estivesse enganado. [...] O remédio consistia em doses cavalares de
mortificação corporal, muito trabalho, muito estudo, e uma dedicação completa
para o apostolado e a “vida em família” na Obra8.

Após deixar o Centro de Estudos do Sumaré e voltar a residir no Centro Cul-


tural Itaim, a narrativa de Brolezzi apresenta algumas mudanças de foco: deixa
de dar tanta ênfase à sexualidade, embora ainda seja recorrente; sua denúncia
deixa de se dirigir ao padre Vicente e volta-se para seus novos diretores leigos,
Nacho e Fernando, dando mais ênfase a este último, o subdiretor do Centro do
Itaim. Brolezzi descreve Fernando com mais pormenor. Diz que era um tipo
atlético, gostava de atividades físicas e organizava excursões perigosas. Não
descreve, em momento algum, elementos como a família ou o emprego de
Fernando. Suas descrições do cotidiano no Centro do Itaim não têm passagens
como a do macacão antimasturbação. São descrições mais gerais, contando
um ou outro caso em que se sentiu humilhado ou manipulado pelos diretores.

8
“Obra” é a forma como os membros e frequentadores dos Centros se referem ao Opus Dei entre si.

Religiões e controvérsias Final.indd 289 18/08/2015 09:59:59


290 Brolezzi (2006, p. 109) relata a saída de Nacho da direção do Centro, fazendo
uma comparação com Fernando:
Se as coisas estavam ruins com o Nacho, ficariam piores sem ele. Senti que ele me
abandonara à própria sorte. Nunca mais o vi. Com certeza, ele não tinha nenhum
apreço pela minha pessoa, apenas pela possibilidade de eu servir à Obra. O Nacho
se foi, e quem mandava agora era o gladiador Fernando. Minha vida estava nas
mãos dele.

Essa passagem da narrativa de Brolezzi vem logo depois de ele ter relatado a
Nacho seu desejo de sair do Opus Dei. Mais uma vez, mostra ter se sentido
traído pelo seu diretor – essa figura paternal à qual dedicava amor e obediência.
Essa forma de convivência construída em torno da vida em família e do amor
a Deus é evocada por Brolezzi para demonstrar a natureza da injustiça sofrida:
a traição e abusos por parte dos seus diretores. Percebe-se que, para Brolezzi,
essas relações são criadas pelos diretores de forma estratégica, de modo que se
tornem capazes de manipular os numerários como bem entenderem a fim de
servir ao Opus Dei. Fernando, que protagonizou a narrativa até esse momento
como subdiretor, agora assume o papel de diretor. Em uma passagem longa,
Brolezzi (2006, p. 110) descreve o que Fernando lhe teria dito antes de ele
abandonar o Opus Dei:
Você acha que está sendo esperto e fica pensando em como será boa sua vida fora
da Obra. Pois bem, será completamente infeliz fora da Obra. Não existe pior
crime que queime mais a consciência que o crime de traição. Você é um traidor,
um desertor, que não está ligando a mínima para os seus irmãos da Obra. Vai fazê-
-los sofrer muito, eles que sempre o ajudaram. Quando uma mulher aborta de
propósito, nunca deixa de ouvir à noite as gemidos do bebê que assassinou. Com
você será pior. Terá pesadelos toda noite e jamais poderá voltar para a Obra. Se
arrependerá tanto, tanto, que irá querer voltar para a Obra, mas não poderá mais,
pois a Obra não aceita traidores como você. Acha que vai se casar e ter uma família
linda. Deus não o fez para o casamento. Quem rejeita a vocação para o celibato
apostólico nunca será feliz com o amor de uma simples mulher. Nosso padre diria
que você até pode fazer feliz a uma moça, mas a moça nunca o fará feliz. Você não
nasceu para ter filhos. Fica imaginando filhos lindos. “MEU FILHO!” Você é um
bunda-mole, não servirá nunca para nada. O pior de tudo é depois de ter uma vida
medíocre, que não se sabe se vai durar muitos anos, ter, ainda, muita dificuldade
para ir para o céu, pois fora da Obra um cara como você não tem como se salvar.
Você vai se arrepender amargamente. Mas agora é tarde: Inês é morta.

Brolezzi deixou o Opus Dei em 11 de março de 1995. No último capítulo de


sua narrativa, o autor qualifica a sua experiência como traumática e diz que

Religiões e controvérsias Final.indd 290 18/08/2015 09:59:59


se passaram dez anos até que conseguisse voltar a falar sobre o tema. Termina

A denúncia de Brolezzi
291
seu relato dizendo que não poderia mais adiar o momento de sua história vir
à tona, pois alunos da USP, seus alunos, recém-aprovados na Fuvest, poderiam
ser as próximas vítimas do Opus Dei. Por fim, diz ter escrito seu relato íntimo
para sua filha.
Brolezzi se formou em um ambiente católico. Participava da vida cotidiana da
paróquia de Santo André e cresceu em um ambiente familiar católico. Se, em
um primeiro momento, o catolicismo da paróquia se distanciava do catolicismo
do Opus Dei, aquela formação lhe atribuiu modelos de comportamento na
Igreja, na vida familiar, nas devoções e na prática dos sacramentos. A narrativa
de Brolezzi cria um distanciamento entre esses dois tipos de catolicismo. Em-
bora não descreva sua experiência na paróquia de Santo André em seu livro,
é possível perceber a construção de um estranhamento mediante as práticas
do Opus Dei, mas o conjunto de valores, tais como Deus, Jesus, santos, etc.,
fazia sentido desde o início. Sua experiência no Opus Dei atribuiu-lhe outros
modelos de comportamento, mas que faziam sentido por conta de elementos
comuns. O cotidiano minuciosamente controlado pelos diretores, as mortifi-
cações corporais, a sistematicidade da oração, as normas de piedade ordenadas
em uma cadência muito precisa, a vida em família no Opus Dei, etc., foram
práticas que configuraram outra experiência. Essa experiência é que dá suporte
à sua denúncia por ser manipulada pelos diretores em relações hierárquicas
unilaterais de poder, segundo a narrativa de Brolezzi.
A ênfase da denúncia é explícita: os diretores espirituais. Na passagem em que
relata sua experiência no Centro de Estudos do Sumaré, Brolezzi denuncia
as tentativas do padre Vicente de controlar seus pensamentos e discipliná-los
por meio de práticas específicas, tais como o macacão antimasturbação. Na
passagem em que relata sua conversa com Fernando, trata-se explicitamente
de uma denúncia contra a manipulação de sentimentos e emoções. Percebemos
que Brolezzi considerava essas práticas ilegítimas como forma de emprego do
poder pastoral, práticas que, segundo ele, não são isoladas, mas constitutivas do
Opus Dei, entendidas de forma abstrata. A injustiça se configura, justamente,
pela utilização dessas práticas para atingir um fim escuso: servir ao Opus Dei,
“uma instituição com pretensos fins espirituais” (BROLEZZI, 2006, p. 5).
Interessante observar na narrativa que alguns elementos não aparecem em sua
denúncia, embora estejam diretamente relacionados a ela. Trata-se, portanto,
de estratégias retóricas para aumentar a aceitabilidade ou legitimidade de sua
denúncia. Qualquer autor de uma narrativa preserva, omite, isola e enfatiza
determinados elementos, de acordo com seus interesses particulares e com a

Religiões e controvérsias Final.indd 291 18/08/2015 09:59:59


292 ocasião (HERRNSTEIN, 1980). Ao nomear o objeto de sua narrativa – o Opus
Dei –, Brolezzi refere-se a uma instituição reconhecida pela Igreja Católica.
Mais do que isso, que teve seu fundador, Josemaria Escrivá, canonizado e que
está em vias de ter a segunda canonização – o sucessor de Escrivá no governo
do Opus Dei, dom Álvaro del Portillo. No entanto, Brolezzi limita-se a atacar a
instituição e seu fundador, sem, com isso, questionar a vinculação do Opus Dei
com a Igreja, ou mesmo colocar em xeque o processo da canonização de Escrivá.
Segundo entendemos, Brolezzi não pretende perder o apoio dos católicos com
sua denúncia, pelo contrário, é um de seus objetivos ganhá-lo. Se construísse
sua denúncia pela via da crítica à Igreja, certamente essa tentativa se tornaria
mais delicada. O mesmo acontece em Opus Dei: os bastidores, escrito por
Ferreira, Lauand e Silva (2005). Embora esses autores toquem tangencialmente
no assunto, a solução que dão é simples: o Opus Dei, por gozar de prestígio
dentro do Vaticano, teria articulado relações e manipulado situações para que
a instituição fosse reconhecida e seu fundador canonizado. Segundo Pinotti
(2008, p. 315), em Opus Dei secreta, “o testemunho, publicado em abril de
2006, provocou em toda a América Central e do Sul um violento debate,
porque houve quem acusasse Brolezzi de querer fazer sensacionalismo a todo
preço, fazendo apelo ao moralismo dos leitores católicos”. Na mesma entrevista,
Brolezzi (PINOTTI, 2008, p. 328) comenta:
No fundo, a Opus Dei é uma seita que se inseriu na Igreja Católica por meio
da política e dos apoios dados pelos pontífices, sempre concedidos na base de
documentos que nada revelam da verdadeira e macabra composição desta coisa
chamada Opus Dei.

O desenrolar da controvérsia pública


O programa SuperPop
Logo após a publicação de Memórias sexuais no Opus Dei, em 2006, Brolezzi
participou duas vezes, no mesmo ano, do programa SuperPop9, na Rede TV.
Na segunda vez, em junho, participou durante o programa todo – mais de 90
minutos. A apresentadora, Luciana Gimenez, anunciou que traria novamente
ao programa o homem que ficou conhecido por revelar, pela primeira vez, o
que acontece dentro do Opus Dei. Tratava-se de oferecer a visão de um ex-
-numerário que passou sete anos dentro da instituição (dez anos, segundo o

9
O programa completo está disponível na página de Brolezzi no site YouTube: <https://www.youtube.
com/user/tonebrol>. Acesso em: 10 fev. 2014.

Religiões e controvérsias Final.indd 292 18/08/2015 09:59:59


relato de Brolezzi no livro). A apresentadora afirma que a direção do programa

A denúncia de Brolezzi
293
teria entrado em contato com representantes do Opus Dei, mas estes não
quiseram comentar o assunto. O programa era composto por três entrevista-
dores, além de uma psicóloga, a apresentadora Luciana Gimenez e Antônio
Carlos Brolezzi. A plateia era unanimemente composta por mulheres. Dos
três entrevistadores, o que mais fez intervenções foi o jornalista da Rede TV e
ativista gay Felipe Campos.
O programa SuperPop, apresentado pela Rede TV desde 1999, possui um
caráter marcadamente polêmico ao abordar temáticas variadas, o que levou
diversos críticos a desqualificá-lo por conta de um sensacionalismo exagerado.
É transmitido por volta das 22 horas e varia do quinto ao primeiro lugar da
audiência nacional. Alcança de 1,5 a 3 pontos de média na Grande São Paulo.
Trata-se de um dos maiores faturamentos da Rede TV. Segundo Palacce (2009),
o público do programa é formado principalmente por mulheres de 25 a 50
anos, compreendidas entre as classes A, B e C.
Segundo Brolezzi, logo no início do programa:
O objetivo de escrever o livro é um objetivo educacional. É para alertar os jovens
e as famílias acerca dessa seita que está tomando conta da Igreja Católica. Apesar
de seu número ser pequeno, são pessoas muito influentes, muito poderosas, que
detêm muito poder econômico, que fazem uma perversão muito grande na vida
das pessoas e que querem fazer da Igreja Católica o seu escudo.

Frisa-se a palavra “seita” na fala de Brolezzi, pronúncia que ele faz questão de
enfatizar, pois demonstra uma mudança de foco em sua denúncia. Em seu livro,
ele usa o termo “seita” em tom acusatório somente uma vez, na introdução.
Tão destacada era a ênfase oral dada a essa palavra, que um dos entrevistado-
res (eram cinco) questionou Brolezzi sobre isso. O autor apresentou, então,
um entendimento de seita como um grupo ou instituição separado da Igreja
Católica: “Eles dizem que não são seita porque são reconhecidos pela Igreja
Católica.” Em seguida, a psicóloga, que era uma das entrevistadoras, emendou:
“Seita, por definição, é tudo aquilo que divide, que rompe, que separa...”
Brolezzi concluiu: “Por isso que eles dizem que não são seita, porque eles per-
tencem à Igreja Católica. Mas eles são assim: o Opus Dei manda um relatório
para o Vaticano a cada cinco anos dizendo o que eles fazem.” Informou, ainda,
que o Opus Dei pagaria 30% das contas do Vaticano (dado trazido por outro
entrevistador e com o qual Brolezzi concordou) e por isso ganha aprovação.
Durante o programa, Brolezzi ressalta várias vezes que é católico e conclui:
“Acredito que a Igreja vai melhorar, como tem melhorado ao longo dos sé-

Religiões e controvérsias Final.indd 293 18/08/2015 09:59:59


294 culos.” Ao acusar o Opus Dei de seita, há uma clara tentativa de desvincular
a imagem do Opus Dei da Igreja Católica, de tal modo que a Igreja não seja
atacada diretamente. Desse modo, sua denúncia pode tornar-se simpática
também aos católicos. Ao classificar o Opus Dei como seita, produz-se uma
categoria de denúncia por meio da narrativa oral, uma vez que o termo seita
não é articulado, nesse contexto, para explicar, mas para acusar. Ao mesmo
tempo, constrói-se um entendimento de que o Opus Dei e a Igreja Católica
são instituições separadas, em que há meramente um vínculo burocrático e
financeiro. Interessante notar que, se no livro Brolezzi se constrói como vítima,
no programa assume, em grande parte, um tom acusatório – que está presen-
te no livro em menor escala. Acusa agressivamente o Opus Dei, entendido
como agente abstrato, mais do que simplesmente narrar sua experiência para
demonstrar como fora vítima de situações e de pessoas.
Brolezzi, ao longo do programa, declara que “o Opus Dei é uma das insti-
tuições mais antiéticas do mundo”. Fundamenta sua acusação no fato de os
Centros do Opus Dei não serem declaradamente instituições religiosas, pois
não há nenhuma alusão ao nome Opus Dei na fachada ou no ambiente interno,
a não ser nos oratórios, os quais possuem o símbolo do Opus Dei no altar.
Relembra sua história, narrada no livro, de ter ido ao Centro Cultural Itaim
acreditando tratar-se da USP. Conta que demorou algum tempo até descobrir
que se tratava de um ambiente e de pessoas do Opus Dei. Faz, ainda, menção
aos clubes organizados anexos aos Centros, cuja finalidade é, em meio a ati-
vidades culturais e recreativas diversas, dar aulas de catequese para crianças
a partir dos sete anos – geralmente trata-se de filhos de supernumerários e
seus amigos. As crianças do clube também começam a ter conversas regulares
com o padre do Centro.
No SuperPop dedicado ao relato de Brolezzi, percebe-se a construção de um
entendimento do que é o Opus Dei por meio da denúncia pública de Brolezzi.
O autor comenta que a maneira como o Opus Dei – evocado por ele de forma
abstrata – compreende a sexualidade é a chave para entendê-lo. Fala, clara-
mente, que o Opus Dei manipula seus membros pela sexualidade. Comenta,
novamente, a passagem do macacão antimasturbação como exemplo de prá-
ticas da instituição para controlar os numerários – essa passagem é comentada
enfaticamente em todas as entrevistas concedidas por Brolezzi. Nesse progra-
ma, ao mencionar essa passagem, rememora a participação do padre Vicente
no evento, e reitera: “É quem manda no Opus Dei no Brasil.” Por meio do
relato de Brolezzi sobre suas experiências sexuais, um conjunto de atores vai
produzindo um entendimento específico do Opus Dei como uma instituição
que usa seu poder espiritual e sobre os corpos para manipular seus membros.

Religiões e controvérsias Final.indd 294 18/08/2015 09:59:59


Dentre várias perguntas e comentários sobre as práticas sexuais de Brolezzi

A denúncia de Brolezzi
295
e sobre as formas de manipulação da sexualidade pelo Opus Dei, o jornalista
Felipe Campos enfatizou ter encontrado dados de que o Opus Dei seria res-
ponsável pelo pagamento de 30% das contas do Vaticano. O outro entrevistador
recorreu ao discurso psicanalítico e falou sobre as sequelas provenientes da
repressão sexual, além de explicar que essa repressão “é a cultura deles [do
Opus Dei]”. A outra entrevistadora não fez nenhuma intervenção relevante.
A psicóloga também proferiu falas que recorriam ao discurso psicanalítico
e psiquiátrico. Luciana Gimenez, por sua vez, conduziu o programa sempre
tocando em pontos polêmicos, tais como a mortificação corporal – o cilício
e as disciplinas10 foram mostrados no programa – e a história do macacão
antimasturbação.
O programa era entrecortado por vídeos de Brolezzi falando sobre a sua ex-
periência e, algumas vezes, por falas de Jacob Goldberg, um psicanalista que
também falou sobre a repressão sexual e a manipulação da sexualidade. Em um
desses vídeos, Brolezzi retorna ao Centro Cultural Itaim com um microfone de
lapela, a pedido da produção do SuperPop. A imagem mostra Brolezzi entrando
na residência e, após sentir-se mal durante a espera para ser recebido, recebeu
a mensagem de que não poderia visitar a residência. Segundo ele, o diretor
teria lhe dito que estaria difamando o Opus Dei. Luciana Gimenez comenta,
mais de uma vez, que pessoas do Opus Dei foram procuradas pelo programa,
mas não quiseram se posicionar.
No programa, Brolezzi demonstra uma fala mais agressiva do que no livro. Se
em Memórias sexuais no Opus Dei, ele se constrói como vítima, no SuperPop
assume a postura do denunciante que ataca. Na prática, nos dois casos essas
posições se mesclam, pois Brolezzi assume o papel de vítima e de denunciante
da injustiça. Na verdade, em cada caso específico e em função dos interlo-
cutores, uma posição é mais enfatizada que a outra. No programa, Brolezzi
acusa o Opus Dei de antiético, racista, preconceituoso, dentre outras coisas.
Diferentemente, no livro, ele enfatiza sua experiência no Opus Dei, embora
alguns juízos semelhantes apareçam muito timidamente. Em uma passagem
emblemática durante o SuperPop, Brolezzi diz ter conhecido somente um negro
durante os dez anos em que permaneceu no Opus Dei – diz que os critérios
de seleção da instituição são étnico-raciais. Complementou dizendo que essa

10
O uso do cilício e das disciplinas faz parte do conjunto de mortificações corporais regulares de-
sempenhadas pelos membros numerários do Opus Dei. O cilício é uma espécie de corrente com
pontas de ferro usada em torno da coxa duas horas por dia. As disciplinas são um chicote de cordas
com que açoitam as nádegas uma vez por semana enquanto rezam uma oração.

Religiões e controvérsias Final.indd 295 18/08/2015 09:59:59


296 pessoa seria filha de um piloto de avião e, usando argumentação indutiva,
conclui que seria de classe alta. Logo após, relata que os membros do Opus
Dei têm de ter um padrão intelectual ocidental, conhecer literatura, ser de
família rica e de tradição, fazer universidade, ser virgem e não podem ser filhos
de pais solteiros.
O formato do programa permitiu que Brolezzi, ao construir os personagens
e o Opus Dei como outros, fosse capaz de acionar outros referenciais para
justificar e condenar essa diferença – não só Brolezzi, mas os demais atores
envolvidos, modificando a concepção inicial produzida pelo livro. Todo o
conteúdo do programa, seguindo a fala de Brolezzi, construiu o Opus Dei
como uma instituição de repressão à sexualidade. Desde os atores que acio-
naram o discurso psicanalítico para mostrar a sexualidade como “um impulso
natural”, até Brolezzi evocando o sexo como uma coisa bela e saudável, foram
produzindo conjuntamente uma concepção do que seria essa instituição. Em
Memórias sexuais no Opus Dei, apesar do título, dá-se pouca ênfase à sexua-
lidade propriamente dita – sua denúncia parece abrir um leque mais amplo
de aspectos que vão além da sexualidade. O foco está na denúncia aos abusos
por parte dos seus diretores. No programa, por outro lado, a ênfase está no
Opus Dei – entendido sempre de forma reificada e abstrata – e a sexualidade.
Brolezzi, em dado momento, afirma: “[Escrivá] criou tudo isso da cabeça dele.
Essas práticas nefastas de mortificação. Tudo isso para combater o quê? Para
combater o sexo!” Brolezzi resume todas as práticas de mortificação do Opus
Dei ao combate ao sexo – em seu livro, pelo contrário, ele trata a mortificação
de forma mais refinada, sem associar essas práticas diretamente à sexualidade.

A revista Época
Em janeiro de 2006, logo após a publicação de O Código Da Vinci e no ano
em que seria lançado o filme homônimo, a Época – uma das revistas de maior
circulação nacional – lançou uma reportagem de capa intitulada “Por dentro
do Opus Dei – os segredos da organização mais poderosa e influente dentro
da Igreja Católica”. A reportagem foi assinada pelas jornalistas Eliane Brum e
Debora Rubin. Uma pequena matéria sobre a relação do governador do estado
de São Paulo, Geraldo Alckmin, com o Opus Dei foi assinada por Eliane Brum
e Ricardo Mendonça. A ênfase da matéria estava no fato de que ex-membros
do Opus Dei de perfil brasileiro estariam aproveitando o lançamento de
O Código Da Vinci para travar “uma guerra contra a poderosa prelazia do
papa” (ÉPOCA, 2006, p. 62). A reportagem reúne depoimentos de alguns
ex-membros e de dois numerários. Brolezzi foi um dos ex-numerários mais
explorados pela reportagem.

Religiões e controvérsias Final.indd 296 18/08/2015 09:59:59


O primeiro parágrafo da matéria já faz menção à passagem do macacão anti-

A denúncia de Brolezzi
297
masturbação que Brolezzi teria sido obrigado a usar e qualifica seu livro, que
ainda não havia sido lançado, como “o próximo míssil editorial lançado contra a
conservadora organização católica” (ÉPOCA, 2006, p. 63). O livro de Brolezzi
é situado entre as publicações de denúncias contra o Opus Dei que surgiram
no Brasil desde outubro de 2005. A primeira entrevista exposta na matéria é
a de Brolezzi, seguida pela de Elizabeth Silberstein, que alega ter tido o filho
“roubado” pela prelazia; de Augusto Silberstein, o numerário filho de Eliza-
beth Silberstein; de Thelma Pavesi, uma ex-numerária; de Renato da Silva,
um ex-numerário que teria tido seu e-mail violado por um de seus diretores;
de Carlos Alberto DiFranco, jornalista e numerário que seria responsável por
ministrar aulas de formação espiritual para Geraldo Alckmin; e, por fim, de
Maria Lúcia Alckmin, uma numerária.
Apesar de o entendimento do Opus Dei construído pela reportagem situar-se
na chave do secretismo, da repressão e do poder, a entrevista com Brolezzi é
voltada para a questão da sexualidade. A chamada da entrevista é a seguinte:
“Ex-numerário escreve um livro com dicas para quem abandona a Obra e quer
reabilitar o desejo” (ÉPOCA, 2006, p. 64) – informação que foi desmentida
pelo próprio Brolezzi na entrevista que realizamos. O autor afirmou que esse,
definitivamente, não era o objetivo do seu livro. Na entrevista, Brolezzi começa
contando como entrou para o Opus Dei. Em seguida, disse achar “muito inte-
ressante olhar para o Opus Dei sob o ponto de vista da sexualidade” (ÉPOCA,
2006, p. 65) e narra algumas passagens amplamente desenvolvidas no livro.
Apesar de a ênfase da entrevista ser conduzida à sexualidade, Brolezzi ainda man-
tém o caráter de denúncia aos diretores. Sua narrativa coloca-o como vítima de
agentes mais fortes. É emblemática a passagem em que o autor diz: “Foi chocante
para mim quando decidiram que eu não podia mais beijar no rosto de colega
de faculdade” (ÉPOCA, 2006, p. 65). Logo na sequência, narra um episódio,
também contado no livro, em que Nacho, seu diretor espiritual no Centro do
Itaim, gritava após Brolezzi ter visto uma capa de revista com uma mulher nua
na banca. Segundo Brolezzi, seu diretor queria que ele visse sujeira nas coisas se-
xuais. Nas falas subsequentes, Brolezzi relata suas primeiras experiências sexuais
após sair do Opus Dei, seus complexos, a história do macacão antimasturbação
e por que decidiu escrever o livro. Sobre esse último tema, Brolezzi (ÉPOCA,
2006, p. 65) relata tê-lo escrito pois queria falar com naturalidade sobre sua
experiência no Opus Dei, “porque foi problemático fazer essa desprogramação”.
Durante toda a entrevista, Brolezzi faz uso de sujeitos na terceira pessoa do
plural: “decidiram, disseram, falavam, eles...” Produz-se, dessa forma, uma

Religiões e controvérsias Final.indd 297 18/08/2015 09:59:59


298 ideia de sujeitos abstratos e generalizados. Trata-se do mesmo efeito retó-
rico de quando ele refere-se ao Opus Dei, entendido de forma reificada e
abstrata. Sua narrativa produz alteridade e diferença – criam-se “eles”, que
são diferentes de “nós”. No livro, “eles” são qualificados e concretos, são os
diretores. Nas duas entrevistas, “eles” fica difuso. No entanto, “Opus Dei”
aparece sempre na forma abstrata de um bloco monolítico. O esforço de
Brolezzi é o de expor o modo de ser de um outro; mais do que isso, trata-se
de denunciar esse modo de ser, pois a denúncia das injustiças que sofreu não
se limita aos seus diretores, mas ao modo de ser do Opus Dei, do qual os
diretores são apenas representantes legítimos.

A resposta do denunciado
Apesar de Memórias sexuais no Opus Dei ter ganhado visibilidade considerá-
vel na imprensa – além dos meios de comunicação citados, ganhou notícias de
menor destaque em sites como abril.com e Folha de S.Paulo on-line, dentre
outros –, a prelazia não publicou uma nota sequer em sua defesa, tampouco
se dirigiu a Brolezzi diretamente. Quando procurado pela revista Época, João
Gustavo Racca, do escritório de informação do Opus Dei no Brasil, afirmou
que o Opus Dei já havia passado pela experiência de ser criticado por ex-
-membros em outros países. Diz: “Ainda que a imensa maioria dos que se
aproximam das atividades apostólicas e formativas do Opus Dei conserve
sempre um enorme carinho e agradecimento, não é de estranhar que ocorram
algumas exceções” (ÉPOCA, 2006, p. 67). Quando procurados pela produ-
ção do SuperPop, os representantes da prelazia recusaram-se a participar do
programa ou se posicionar.
Josemaria Escrivá sempre deu diretrizes claras de como os membros do Opus
Dei deveriam se portar nos negócios, na educação e na imprensa – essas
diretrizes sempre são evocadas pelos atores para justificar práticas diversas.
Graças a isso, membros – numerários e supernumerários – fundaram escolas
de negócios, colégios e cursos de formação de jornalistas (muitos não vincu-
lados diretamente ao Opus Dei, fruto de iniciativas privadas). Com relação
à imprensa, sempre defendeu que esta deveria ter caráter apostólico, dado
seu grande potencial de influência – é o chamado “apostolado da opinião
pública”. Para ele, a imprensa deveria ser um instrumento que veiculasse
a verdade. No caso de Brolezzi e dos ex-numerários, seus depoimentos e
ataques seriam manifestações de desvirtuamento da função apostólica da
imprensa, transmitindo inverdades sobre o Opus Dei. Por que, então, não
usar a imprensa para desmenti-los? Uma resposta possível seria para dissipar
a controvérsia, em vez de dar mais visibilidade a ela por meio de debates. Se

Religiões e controvérsias Final.indd 298 18/08/2015 09:59:59


uma das partes não tomasse partido (o denunciado), a controvérsia perderia

A denúncia de Brolezzi
299
a força. De uma forma ou de outra, a publicidade do caso de Brolezzi perdeu
força após 2006. Segmentos da imprensa que parecem ter pegado carona com
a publicação de O Código Da Vinci deixaram o assunto de lado em pouco
tempo. Alguns anos depois, o site contendo denúncias de ex-membros man-
tido no Brasil também desapareceu. Brolezzi conta que, ainda hoje, continua
oferecendo palestras sobre sua experiência. Mas, de fato, sua presença na
imprensa se apagou.

Conclusões
No processo que envolve a denúncia de Brolezzi, o Opus Dei configura-se
como uma categoria que se torna objeto de disputa. Os atores nomeados
acima tentam, de uma forma ou de outra, criar concepções acerca do que é
o Opus Dei. A concepção produzida por Brolezzi em seu livro – o estopim
da denúncia – e recriada nas entrevistas envolve a formulação do Opus Dei
como uma categoria generalizada. Dito de outra forma: sua denúncia não
ataca somente seus diretores, mas “eles”, “o Opus Dei”. Utiliza esse processo
de generalização e abstração como forma de dar legitimidade à sua denúncia.
Brolezzi utiliza mecanismos que acionam sensos de justiça comuns ao público
que visa atingir, tais como: a sexualidade como saudável, o sofrimento e a
autoflagelação como práticas condenáveis e medievais, o secretismo como
forma de conspiração, etc.
A controvérsia instaurada tem uma característica específica: a denúncia de
injustiças contra um agente que não julga necessário se defender publicamente.
Apesar de o autor nomear seus diretores – representantes institucionais – e
atacá-los diretamente, mesmo esses atores não vêm a público. Desse modo,
por meio da narrativa de Brolezzi, essa denúncia vai ganhando um desenvolvi-
mento particular, no qual vão se produzindo entendimentos públicos diversos
do que seria o Opus Dei. Como procuramos demonstrar, Brolezzi inicia sua
denúncia construindo-se como vítima de diretores que, abusando de seu poder
espiritual consolidado por relações afetivas, levaram-no a perpetrar práticas
violentas e humilhantes com base em fins escusos. Brolezzi, em todas as suas
entrevistas, não deixou de lado esse caráter de sua narrativa – a denúncia aos
diretores, entendidos como representantes institucionais. O fato de a narrativa
do macacão antimasturbação sempre ser mencionada atesta isso. No entanto,
quando outros atores são envolvidos, como no SuperPop e na revista Época,
entendimentos diversos começam a ser produzidos, distanciando-se daquele

Religiões e controvérsias Final.indd 299 18/08/2015 09:59:59


300 inicial. Se, nas falas de Brolezzi, a denúncia aos diretores está sempre presente,
aquelas mídias preocuparam-se mais com a ênfase na sexualidade e no secre-
tismo que envolvem o Opus Dei. Ao ser apropriada pela mídia, a denúncia de
Brolezzi tem o seu lado mais polêmico explorado.
Construída a denúncia, os representantes do Opus Dei fazem uma manobra
interessante para tentar dissipar a controvérsia: o silêncio. Ignorar os denun-
ciantes parece a melhor forma de deixar morrer a denúncia, afinal, se se diri-
gissem diretamente aos denunciantes, acabariam por dar múltipla atestação às
denúncias, conferindo-lhes veracidade. Quando se pronunciou à revista Época,
mesmo que rapidamente, o representante do Opus Dei formulou uma resposta
genérica e evasiva, conferindo naturalidade às denúncias contra a prelazia.
Pronunciar-se de forma aberta, diferentemente de ignorar, poderia dar mais
visibilidade à controvérsia. Seja como for, após 2006, as denúncias e críticas
públicas proferidas contra o Opus Dei perderam quase que por completo a
visibilidade de que gozavam naquele ano.

Referências bibliográficas
ALLEN, John. Opus Dei: os mitos e a realidade. Rio de Janeiro: Elsevier, 2006.
BOLTANSKI, Luc. La denuncia pública. In: ________. El amor y la Justicia como competencias: tres
ensayos de la sociología de la acción. Buenos Aires: Amorrotu Editores, 2000.
________; THÉVENOT, Laurent. On justification. Economies of worth. Princeton: Princeton Uni-
versity Press, 2006.
BROLEZZI, Antonio Carlos. Memórias sexuais no Opus Dei. São Paulo: Panda Books, 2006.
CASANOVA, José. Public religions in the modern world. Chicago/London: The University of Chicago
Press, 1994.
ESCRIVÁ, Josemaría. Caminho. 9. ed. São Paulo: Quadrante, 1999.
FERREIRA, Dario Fortes; LAUAND, Jean; SILVA, Marcio Fernandes. Opus Dei: os bastidores. Cam-
pinas: Verus, 2005.
FOUCAULT, Michel. Segurança, território, população: curso dado no Collège de France (1977-1978).
São Paulo: Martins Fontes, 2008.
HABERMAS, Jürgen. Teoría de la acción comunicativa I: racionalidad de la acción y racionalización
social. Madrid: Taurus, 1987.
________. Consciência moral e agir comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989.
HERRNSTEIN, Barbara. Narrative versions, narrative theories. Critical Inquiry, The University of
Chicago Press, v. 7, n. 1, p. 213-226, Autumn 1980.
MAINWARING, Scott. A Igreja Católica e a política no Brasil (1916-1985). São Paulo: Brasiliense,
1989.
MONTERO, Paula. Religião, pluralismo e esfera pública no Brasil. Novos Estudos – CEBRAP, n. 74, p.
47-65, 2006.
________. Jürgen Habermas: religião, diversidade cultural e publicidade. Novos Estudos – CEBRAP, n.
84, p. 199-213, 2009a.

Religiões e controvérsias Final.indd 300 18/08/2015 09:59:59


________. Secularização e espaço público: a reinvenção do pluralismo religioso no Brasil. Etnográfica,

A denúncia de Brolezzi
301
Lisboa, v. 13, p. 7-16, 2009b.
PALACCE, Jamile Marinho. Superpop: um programa eleito pelo público – quais as motivações da
audiência ao selecionar este produto. In: CONGRESSO METODISTA, 12, 2009, São Bernardo
do Campo. Anais... São Bernardo do Campo: UMESP, 2009.
PINOTTI, Ferruccio. Opus Dei secreta. Porto: Campo das Letras, 2008.

Periódicos
ÉPOCA. São Paulo: Editora Globo, n. 400, jan. 2006.

Religiões e controvérsias Final.indd 301 18/08/2015 09:59:59


Religiões e controvérsias Final.indd 302 18/08/2015 09:59:59
Controvérsias dos cultos, pluralismo e
movimentos anticulto: “abuso espiritual”
como denúncia
PAULA MONTERO

Tendo como referência a sociologia dos regimes de ação de Luc Boltanski


(2002), tomaremos como objeto de investigação privilegiado neste trabalho
as disputas internas ao campo religioso protestante em torno da definição e
limites do poder pastoral. Interessa-nos descrever e compreender o que está
em jogo nessas dinâmicas de confronto. Para além dos ganhos de visibilidade
pública que toda forma de conflito promove, está em questão, a nosso ver,
uma disputa que tem por objeto as novas formas de autoridade inauguradas
(ou exacerbadas) pelos pastores evangélicos neopentecostais1.
O pastorado cristão foi bem caracterizado por Michel Foucault (2008) em
sua genealogia do Estado moderno, que a ele se refere como uma modali-
dade particular de poder na qual prevalecem a dependência e a obediência.
Perante as formas modernas de governamentalidade estatal, o exercício e
a manutenção das figuras pastorais de governo dos homens nas sociedades
seculares contemporâneas e, em particular a brasileira, podem ser tomadas

1
Em seu livro O fim da religião: controvérsia acerca das “seitas” e da “liberdade religiosa” no Brasil
e na França, Emerson Giumbelli (2002) toma como objeto as controvérsias religiosas suscitadas
pelo surgimento da Igreja Universal do Reino de Deus no Brasil nos anos 1980. Seu objetivo, no
entanto, diferentemente do que estamos propondo neste trabalho, é comparar como Brasil e
França definem e regulam o religioso tomando como referência a ação estatal no que diz respeito
à “liberdade religiosa”.

Religiões e controvérsias Final.indd 303 18/08/2015 09:59:59


304 como dinâmicas de “contraconduta”, no sentido que Foucault dá ao termo,
uma vez que procuram, de alguma forma, emancipar-se das injunções e das
tutelas do Estado2. No entanto, tomando como referência esse modelo, o
que nos interessa neste texto é examinar as dinâmicas de governo pastoral
colocadas em exercício pelo movimento evangélico brasileiro em expansão,
pelo viés das “contracondutas” que ele mesmo suscitou. Imputamos ao cres-
cimento neopentecostal e à forte influência que exerceu no meio evangélico
a partir da década de 1980 o surgimento de uma disputa em torno das formas
de poder do pastorado cristão. Interessa-nos examinar esse debate recente
que se estabeleceu no campo evangélico brasileiro em torno da autoridade do
pastor. Partimos da hipótese de que a categoria nativa “abuso espiritual”, que
começa a circular nesse campo na década de 1990, designa um conjunto de
práticas pastorais consideradas autoritárias por alguns setores do protestantismo
e do aparato governamental. Entendemos que acompanhar a sistematização
teológica e prática dessa “figura jurídica” cristaliza um conjunto variável de
práticas de “contraconduta” com relação às formas pastorais contemporâneas
de governo dos homens que ilumina os procedimentos e tecnologias utilizadas
nesse campo para conduzir pessoas. O tema do “abuso espiritual” nos parece
particularmente interessante para dar inteligibilidade a um dos aspectos mais
característicos das formas religiosas neocristãs em crescimento no Brasil con-
temporâneo: sua associação com a disputa pelo aprendizado e pela expansão
de formas de afirmação de “si” entre as classes médias baixas em ascensão por
meio da difusão de um habitus da confiança.

A cena
Já é bastante consensual entre os observadores da cena pública contemporânea
caracterizar o movimento de expansão do neopentecostalismo pelo modo da
competição e controvérsia. Essa forma, no entanto, começou a tornar-se visível
muito recentemente. Em levantamento realizado na mídia impressa brasileira3,
pode-se perceber que até o final da década de 1990, jornais e revistas ainda
parecem estar aprendendo o que seria o neopentecostalismo e suas diferenças
com relação ao pentecostalismo e às outras denominações.

2
Segundo Foucault, toda forma de poder (pastoral ou estatal) produz certo número de “contracondu-
tas” que se opõem e têm por objeto os próprios elementos que dão sustentação a cada configuração
particular de governamentalidade (no caso do pastorado, ascetismos, revoltas, a escritura, etc.; no
caso da razão estatal, a oposição da sociedade civil, da população, da nação ao Estado).
3
Agradecemos a colaboração de Rafael Quintanilla e Henrique Antunes no levantamento dos dados
que dão apoio ao texto aqui apresentado.

Religiões e controvérsias Final.indd 304 18/08/2015 09:59:59


Dois grandes eventos públicos chamam a atenção da mídia para a Igreja

Controvérsias dos cultos, pluralismo e movimentos anticulto


305
Universal do Reino de Deus (IURD) em 1990: a compra da TV Record por 45
milhões de cruzeiros em abril, e a concentração de 150 mil pessoas no Ma-
racanã, que ofereceu ao telespectador da TV Globo a imagem de uma fila de
obreiros carregando nos ombros volumosos sacos com ofertas dos fiéis. Quando
a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) se reúne em maio daquele
ano, preocupada em reagir ao avanço pentecostal, a IURD, em sua silenciosa
existência de 17 anos, já havia fundado 700 templos pelos quais transitavam
pelo menos 500 mil pessoas, e já era proprietária de uma construtora, uma
gráfica e 14 emissoras de rádio. Ainda que a compra da TV Record tenha sido
em função talvez da ameaça que ela pareceu representar para os grandes meios
de televisão, um dos estopins que projetou a IURD nas manchetes de jornal,
o padrão competitivo do tipo “guerra santa”, como a questão foi tratada na
época, não se limitou à década de 1990 e à disputa com a Globo. A campa-
nha contra a idolatria católica e o satanismo afro foi o modus operandi desta
instituição desde o momento de sua fundação em 1977. Além de uma guerra
entre emissoras comerciais cuja temperatura acabou por exigir até mesmo a
intervenção do ministro das Comunicações do governo Fernando Henrique
Cardoso, Sérgio Mota, estava no tabuleiro da disputa religiosa a luta contra
a hegemonia institucional e doutrinária católica, a apropriação da força de
convicção das práticas rituais afro entre a população mais pobre e a institu-
cionalização de mecanismos de centralização do poder pessoal dos pastores
na gestão das Igrejas.
O ponto alto desses conflitos, no entanto, em termos de visibilidade midiá-
tica, foi o conhecido gesto do pastor Von Helder em outubro de 1995 que,
desafiando o dia da celebração de Nossa Senhora de Aparecida pelos católi-
cos, tocou várias vezes com o pé e as mãos na imagem de gesso da santa para
demonstrar cabalmente que ali não havia divindade alguma. O escândalo que
essa provocação causou no meio eclesiástico e nas camadas cultas foi imenso.
Na narrativa do biógrafo de Edir Macedo, Douglas Tavolaro, “o assunto invadiu
os noticiários [...]. Uma enxurrada de queixas inundou delegacias e fóruns de
Justiça. Pessoas comuns, delegados e promotores acusavam Sérgio Von Helder
de crimes como vilipêndio – o menosprezo público a objetos de cunho religio-
so – e desrespeito ao direito constitucional de liberdade de culto” (2007, p.
196). Edir Macedo sentiu a pressão, pediu desculpas aos católicos e afastou
Von Helder do programa e do cargo em São Paulo. Mas a percepção da IURD
como uma seita radical consolidou-se naquela década, ameaçando a sua posição
no campo da religião. Segundo o próprio pastor Edir Macedo (TAVOLARO,
2007), o golpe foi grande: afugentou fiéis, travando o crescimento da Igreja,

Religiões e controvérsias Final.indd 305 18/08/2015 09:59:59


306 afastou anunciantes e contratos da Record, estimulou dissidências, revoltou a
opinião pública. Mas, ao mesmo tempo, fez crescer enormemente o interesse
da grande imprensa pela IURD e suas práticas heterodoxas.
As discordâncias e acusações mútuas que passam a circular naquele momento
colocavam em confronto, de maneira cada vez mais virulenta, diversos pastores
entre si no campo evangélico, a grande mídia, representantes da hierarquia
católica, lideranças afro. A IURD é descrita como “seita” pela imprensa, pela
Igreja Católica e estudiosos da religião4. Categoria de longa duração no âmbito
das disputas religiosas, essa nomenclatura foi recorrentemente utilizada desde
os anos 1980 do século XX pela Igreja Católica para reservar para si o domínio
do que se podia entender como autenticamente religioso5. No entanto, sem
se deterem demasiadamente nos sentidos dessa categoria originada no campo
da apologética cristã e apropriada pelos estudiosos da religião na esteira dos
trabalhos de Weber sobre o protestantismo, os meios de comunicação a incor-
poram e utilizam de maneira pejorativa, mas também meramente descritiva
para caracterizar organizações que parecem dissonantes com o modelo católico
ou protestante clássico. Nesse sentido, no âmbito da mídia, a categoria circula
naquele momento de maneira mais ou menos imprecisa para designar toda espé-
cie de “minoria religiosa” impregnada de um caráter mais ou menos “fanático”.
A oposição seita/Igreja também remete, no caso brasileiro, às fronteiras do
religioso definidas pelo código penal. Como bem demonstrou o trabalho de
Emerson Giumbelli (2002), se no Brasil não se estabeleceu uma distinção jurí-
dica entre religiões e outras associações civis, a noção de “seita” se cristaliza para
enquadrar associações que estimulariam atos de natureza delituosa no campo
penal. Nesse sentido, um dos limites legais impostos à liberdade religiosa se
desenha na fronteira entre a superstição e o crime de impostura que retira as
seitas do campo da religião. Foi nessa chave de leitura que, já em 1988, Edir
Macedo é processado por curandeirismo, charlatanismo, figuras clássicas do
direito brasileiro na sua longa história de controle das práticas mediúnicas. No

4
O sociólogo e pastor presbiteriano Antonio Gouveia de Mendonça define “seita” em contraposição
à “Igreja” como um “empreendimento local, dependente de uma liderança individual, sem estabili-
dade e doutrina definida, sem corpo fixo de fiéis e voltada para a solução de necessidades práticas
imediatas como saúde e emprego” (1990).
5
No caso brasileiro, a Conferência Nacional dos Bispos começa a preocupar-se com o tema em 1982,
quando realiza o primeiro levantamento sobre as “seitas” no Brasil. Desde então, o tema volta a apa-
recer nas Assembleias de 1990 e em seminários sobre o pluralismo em 1991, 1992 e 1994. Também
no campo protestante surgem novas instituições preocupadas com o tema, tais como a Associação
dos Apologistas Cristãos, de 1985, o Instituto Cristão de Pesquisa, trazido para o Brasil pelo pastor
Giréton de Alencar em 1983, e o Centro Apologético Cristão de Pesquisa, fundado em 1982.

Religiões e controvérsias Final.indd 306 18/08/2015 09:59:59


entanto, a categoria, que permanece ancorada principalmente no campo da

Controvérsias dos cultos, pluralismo e movimentos anticulto


307
apologética cristã, não se cristaliza suficientemente no campo social e jurídico
de modo a conferir uma grade de leitura consistente que permitisse reunir e
caracterizar um conjunto de práticas enquanto criminosas.
Mas o outro limite legal diz respeito à relação jurídica histórica que determinou
os termos da separação entre Estado e entidades religiosas atribuindo-lhes
o estatuto de “filantrópicas”, isto é, dissociando-as dos “empreendimentos
mercantis” e “de finalidades privadas”. Essa distinção retira do campo religioso
atividades comerciais que promovam o enriquecimento privado dos gestores
institucionais. Foi nessa chave de leitura que, na década seguinte, instauraram-
-se mais de 20 outros processos criminais contra Edir Macedo que envolviam
estelionato, descaminho, falsidade ideológica, crime contra a Fazenda Pública,
sequestro de bens, incitação ao crime, calúnia e difamação.
Associada a essa dimensão jurídica, outro elemento, também de longa duração,
constrange as atividades que se pretendem religiosas: ele diz respeito à conces-
são de capacidade civil às organizações para transações econômicas e direitos
de propriedade. Essa competência, que depende do registro em cartório de
uma personalidade jurídica responsável, distingue a “liberdade de consciência”
da capacidade civil das associações religiosas (GIUMBELLI, 2002, p. 230). Os
estatutos dessas associações lhes conferem soberania para definir seu regime
de funcionamento e a relação entre seus membros. Desse modo, o Estado
abre mão das prerrogativas de controle da gestão dos bens patrimoniais das
associações que adquirem o direito de receber doações. Ainda assim, os bens
da organização, em caso de sua dissolução, devem ser partilhados entre seus
sócios, ou, se a assembleia assim o determinar, “ser transferidos para algum
estabelecimento público ou outra associação nacional que promova fins idên-
ticos ou análogos” (lei 173, de 10/09/1983). Nesse sentido, o Estado, como
sucessor potencial dos bens administrados pelas associações, preserva, em
última instância, suas prerrogativas de interferir nas decisões econômicas de
uma associação civil que impliquem o acréscimo ou declínio de seu patrimônio.
É no âmbito desse preceito que Edir Macedo será denunciado por extorsão.
Em seu acompanhamento dos processos criminais nos quais Edir Macedo é
indiciado nas décadas de 1980 e 1990, Giumbelli (2002, p. 307-327) co-
menta que a Delegacia Especializada de Crimes contra a Fé Pública, ligada à
Polícia Civil em São Paulo, se torna uma central de recebimento de denúncias
anônimas contra pastores, muitas delas associadas aos constantes pedidos de
dinheiro e exigências de doações de pertences pessoais. No entanto, apesar
das figuras jurídicas disponíveis – “exploração da fé pública”, “extorsão”, “es-

Religiões e controvérsias Final.indd 307 18/08/2015 09:59:59


308 telionato” –, as denúncias não se transformam em condenações. Isso porque,
na impossibilidade de demonstrar a existência de uma relação de coação ou
violência entre pastores e frequentadores (já que as doações são aparentemente
voluntárias), de má-fé entre os pastores (já que parecem realmente convictos
do que pregam) ou ainda de consciência por parte dos frequentadores de que
foram ludibriados (já que compartilham com o pastor a ideia de que os de-
mônios estão por detrás de seus problemas), não há como comprovar que as
práticas pastorais incorrem nos crimes previstos no código penal. E mais, ao
apoiar-se nos elementos rituais (música, exorcismos) ou teológicos (ameaças de
punições sobrenaturais e a intermediação do dinheiro nas relações com Jesus)
para tipificar os “artifícios” pelos quais os fiéis são enganados, a denúncia corre
o risco de caracterizar-se como ato de “intolerância religiosa”.
No relato que nos oferece Giumbelli sobre esses casos, um dos investigadores,
que a pedido do delegado Darci Sassi investiga as práticas da IURD em janeiro de
1990, ao não presenciar coação no pedido de ofertas, conclui que os pastores
usam “técnicas de convencimento” eficazes (2002, p. 311). O comentário do
investigador nos parece interessante porque intui, a nosso ver, a presença de
um elemento fundamental na dinâmica das relações entre pastores e pastora-
dos que é, na formulação judicial, seu “artifício” ou poder de iludir, mas que
nós gostaríamos de formular no plano mais sociológico das condições sociais
de produção das crenças.

Controvérsias religiosas: o “abuso espiritual” como denúncia


Vimos que, apesar das inúmeras denúncias contra a IURD, a figura da vítima
não conseguiu se desenhar, no plano penal e civil, ao longo da década de 1990.
Com efeito, o ímpeto denunciatório no plano jurídico acabou declinando já
no final do período. Mas, na década seguinte, no campo das disputas internas
ao campo protestante, ao contrário, o testemunho de ex-adeptos que se di-
zem abusados por pastores começa a crescer e ganhar relativa visibilidade. Os
episódios de “má conduta” propalados pelos meios de comunicação, como os
vídeos cedidos em 1994 pelo ex-pastor da IURD, Carlos Miranda, à Rede Globo
nos quais Edir Macedo lança mão do bordão “ou dá ou desce” para demonstrar
como se deve fazer para solicitar ofertas aos fiéis, estimularam a proliferação
de testemunhos de ex-fiéis que afirmam ter sido vítimas da Igreja sob falsa
promessa de obtenção de riqueza e cura. Sintomaticamente elas se multiplicam
à medida que se exacerba, no campo protestante, a luta política da IURD pela
hegemonia na representação do conjunto dos evangélicos.

Religiões e controvérsias Final.indd 308 18/08/2015 09:59:59


Os confrontos que põem em xeque as formas de pastoreio de Edir Macedo já

Controvérsias dos cultos, pluralismo e movimentos anticulto


309
produziram alguma literatura, basicamente no campo teológico. A que ganhou
mais notoriedade, talvez por ter sido escrita por uma evangélica jornalista, foi
o livro de Marília de Camargo César, que em 2009 publica, pela editora Mun-
do Cristão, o livro Feridos em nome de Deus. Neste trabalho, ela se propôs a
reunir, pela primeira vez, um conjunto de histórias pessoais de ex-adeptos sob
a expressão de “abusos espirituais”. O pastor Paulo Romeiro havia feito uma
incursão nessa área alguns anos antes (2005), e, embora tenha sido um livro
muito vendido, ficara restrito ao plano teológico e acadêmico, sem constituir-se
em uma denúncia pública e sem atribuir ao fenômeno uma roupagem “jurídica”:
o título de seu trabalho se referia aos “decepcionados com a graça”. Já a obra
de Marília César, por assumir um caráter testemunhal e não teológico, ganha
um apelo mais dramático e alcança o público leigo.
Segundo a autora, o livro foi escrito “com o coração em luto”, reconhecendo
que suas linhas carregam “uma boa dose de dor e desamparo, sentimentos que
[teve] que acolher, diferir esperar que [lhe] ensinassem suas lições até poder
traduzi-las [...] e contar adequadamente as histórias [...]”. Embora afirme que
o livro não é “nenhuma tentativa de um ato heroico, de denúncia [...], é um
alerta [...] sobre os abusos emocionais que acontecem na esteira do crescimento
acelerado da população evangélica no Brasil” (entrevista revista Época, 2009),
a autora pretende, com o livro, tornar públicas as distorções que envolvem as
lideranças das Igrejas neopentecostais. “Idealizar e mistificar o pastor, acre-
ditando ser ele a voz de Deus na terra, uma pessoa sempre madura, ética e
bem resolvida do ponto de vista emocional, contribui significativamente para
difundir a prática do abuso espiritual, tema principal das histórias relatadas a
seguir” (CÉSAR, 2009, p. 17). Assim, partindo de experiências pessoais de
ex-adeptos, ela apresenta a história de vida de alguns evangélicos que, após
uma trajetória relativamente longa em suas Igrejas, acabaram por se declarar
“vítimas” da ação discricionária do pastor.
O livro alcança também alguma repercussão na grande mídia e chegou a mere-
cer, entre outras, uma entrevista na IstoÉ com a autora. Tomaremos, portanto,
esse livro como ponto de partida para construir analiticamente a “controvérsia”
que, no campo protestante, se estabelece em torno da autoridade pastoral6.

6
Além desse livro, também coletamos casos publicados na internet e fizemos algumas entrevistas.
É preciso, no entanto, assinalar que as narrativas pessoais de crítica a Igrejas e/ou pastores não se
apresentam como “abuso”. Foi preciso que um campo de conhecimento e de práticas institucionais
começasse a se constituir, como é o caso do pastor Ed Kivitz e do projeto Timóteo, de que falaremos
adiante, para que as narrativas pudessem ser lidas a partir desse critério e que respostas organizadas
segundo esse “diagnóstico” fizessem sentido.

Religiões e controvérsias Final.indd 309 18/08/2015 09:59:59


310 É interessante acompanhar nessa entrevista como Marília César circunscreve
o fenômeno. De modo geral, ela define que há abuso quando o pastor não
respeita as fronteiras entre vida pessoal e vida espiritual – “é a intromissão
radical do pastor na vida das pessoas”, afirma ela. No plano teológico, esse
problema estaria emergindo porque as Igrejas neopentecostais, que pregam
a Teologia da Prosperidade, estariam reintroduzindo a figura do profeta (o
pastor como o “ungido de Deus”) como mediador entre os homens e Deus.
Essa tendência, que faz do pastor um sacerdote ou messias, lhe conferiria
uma autoridade institucional e simbólica sem limites, tornando as pessoas
suscetíveis ao “abuso”. O problema da autoridade assim formulado se alimenta
de uma contradição que não pode ser superada: a valorização concomitante
da sujeição e da autonomia. Citando o pastor Ricardo Agreste, Marília Cesar
afirma que a vida comunitária cristã implica o “princípio de sujeição”: “No
modelo pastoral, a Bíblia não me deixa margem de dúvida de que eu devo me
submeter aos meus guias, aos meus orientadores” (2009, p. 154). Nesse sen-
tido, a independência estaria na raiz do pecado original. Ao mesmo tempo, a
narradora define o “abuso” como o desrespeito à fronteira entre “vida pessoal
e espiritual”. Essa linha que separaria o “religioso” da “vida íntima” é bastante
difícil de traçar. Os depoimentos oscilam entre conceber a religião como “uma
escolha subjetiva” e o ensinamento do pastor como um “estímulo à busca de
respostas por si mesmo” e a necessidade da obediência e da tutela pastoral. A
figura do “abuso espiritual” vai constituindo, paradoxalmente, a vida íntima
como um limite à intromissão do religioso.
A narrativa de Marília César e seu relato de como se interessou pelo tema
ilustra bastante bem como é tênue a linha que separa o que se entende por
tutela pastoral e abuso de poder.
Meu interesse pelo tema surgiu de uma dolorosa experiência de divisão da Igreja que
frequentava. De uma semana para outra, uma congregação aparentemente sólida
e sedimentada em uma visão missionária e de intercessão pelas nações foi abalada
pela notícia do afastamento de um de seus pastores, por motivo de saúde. Mal ele
saíra de cena, pessoas amarguradas e revoltadas por seu estilo de liderança deram
início a uma série de acusações, como abuso de poder, manipulação e vantagens
financeiras. Em um período de cerca de seis meses, a Igreja perdeu quase mil de
seus 1.500 membros, e cinco pastores auxiliares se afastaram. Os que permane-
ceram estavam atônitos.

Vários elementos desse relato chamam nossa atenção. Em primeiro lugar,


que os limites da autoridade do pastor estão definidos pela sua capacidade de
reter as suas ovelhas, menos por meio de instrumentos de caráter burocrático-

Religiões e controvérsias Final.indd 310 18/08/2015 09:59:59


-administrativo do que pelo modo do consentimento e da persuasão. Em se-

Controvérsias dos cultos, pluralismo e movimentos anticulto


311
gundo lugar, percebe-se que, apesar da presença de sentimentos de insatisfação
com relação ao pastor, a construção do personagem da “vítima” é um processo
de longa duração que depende da convergência de vários elementos em uma
mesma situação para que se realize7: a consolidação de um conjunto de saberes
teológicos, psiquiátricos, jurídicos e sociológicos que definam, descrevam e
interpretem a condição de vítima e lhe confiram uma forma coletiva (crianças
maltratadas, mulheres vítimas de violência conjugal, jovens vítimas das seitas,
assédio moral, assédio espiritual, etc.); a visibilização e reiteração midiática
de denúncias que venham a constituir um conjunto de casos assemelhados; a
criação de associações, organizações que apareçam como caminhos alternativos
à experiência dessas pessoas, produzam seu reconhecimento público enquanto
vítimas e ofereçam formas de reparação.
Ao contrário da grande mídia, os meios de comunicação evangélicos repercu-
tiram com mais interesse e preocupação o problema. Tomando como uma de
suas fontes o livro de Marília César, o pastor da Igreja Evangelho Quadrangular,
J. Dias, publica em seu site Santo Vivo um alerta: “Abuso espiritual, como não
ser vítima”8. Ali define o termo como sendo “o uso da posição de liderança
ou do poder de seduzir, influenciar e manipular as pessoas a fim de alcançar
interesses próprios”. Em seu diagnóstico da situação, atribui o problema à
“abertura de Igrejas por pessoas totalmente despreparadas que se autointi-
tulam pastores”; à “verticalização da Igreja [que coloca] o líder no topo da
pirâmide, [sem prestar] contas a ninguém, [tomando] decisões sozinho em
questões financeiras e doutrinárias, [...] [retirando das pessoas] a oportunidade
de funcionarem como um corpo, como deve ser a Igreja”9.

7
A psicanalista Caroline Eliacheff e o advogado Daniel Soulez Larivière escreveram um trabalho
interessante e provocador sobre a generalização dos processos de vitimização nos anos 1980 que se
alimentam do ideal igualitário e do individualismo democrático. Segundo os autores, nos primeiros
anos do século XXI uma grande mudança jurídica afetou as relações de trabalho: o surgimento de
ações por discriminação, assédio moral e sexual. Desde os anos 1990 as cortes de Justiça europeias
vinham estimulando as ações de assalariados que se julgassem discriminados por razões sexuais,
políticas ou religiosas. Esse estímulo implicou a mudança da responsabilidade da prova. Se antes
eram os demandantes que deviam trazer as provas, nesse novo sistema cabe ao empregador provar
a ausência de discriminação (2007, p. 139). No caso brasileiro, o tema é bastante recente. Uma
dissertação de mestrado foi defendida em Campo Grande sobre “Assédio moral no serviço público”
por Inácio Vacchiao. A ministra e vice-presidente do Tribunal Superior de Justiça, Maria Cristina
Pedezzi, observa o crescimento geométrico de casos desse tipo chegando às barras dos tribunais.
Vários projetos de lei já tramitam na Câmara sobre esse tema.
8
Disponível em: <http://www.santovivo.net/gpage226.aspx>. Acesso em: 11 nov. 2012.
9
O autor cita aqui o livro do pastor Paulo Romeiro, da Igreja Cristã da Trindade, Decepcionados
com a Graça: esperanças e frustrações no Brasil neopentecostal, resultante de sua dissertação no

Religiões e controvérsias Final.indd 311 18/08/2015 09:59:59


312 Independentemente dos méritos teológicos do debate, o texto chama a atenção
para a especificidade de um modelo organizacional de Igreja neopentecostal
cuja forma hierárquica não prevê mecanismos de controle da autoridade, pro-
cedimentos institucionais que confiram transparência às decisões e ampliem os
canais de participação das bases. É interessante notar que tal configuração or-
ganizacional floresça justamente em um momento histórico no qual a exigência
de accountability10 tornou-se um dos parâmetros de medida da confiabilidade
das instituições públicas e associações civis sem fins lucrativos e no qual os
legisladores vêm construindo progressivamente os parâmetros de controle da
governança estatal por parte da sociedade.
Diferentemente do campo evangélico americano, no qual todos esses elemen-
tos organizacionais e institucionais já estão bastante desenvolvidos, no Brasil,
apesar do contínuo intercâmbio de certas Igrejas com associações e lideranças
dos Estados Unidos, o debate teológico sobre o tema, a acumulação de saberes
acadêmicos e a presença de organizações de proteção das vítimas praticamente
inexistem. O pastor batista Ed Réné Kivitz, que prefacia o livro de Camargo,
é um dos poucos que reconhece o problema e recebe em sua Igreja da Água
Branca inúmeras pessoas que se dizem vítimas de abuso. Mas, apesar de ter
algumas ideias a respeito das causas do problema – má-formação dos pastores,
distorção do papel de líderes espirituais em mentores da vida pessoal, extensão
de sua autoridade no governo da Igreja para a experiência pessoal do devoto
na sua relação com Deus –, Kivitz não se dedicou a escrever sistematicamen-
te sobre o tema. Os poucos textos evangélicos encontrados na internet que
tratam do problema de maneira mais cultivada, como o postado no portal
Gospelprime11, retomam os trabalhos acadêmicos de pastores americanos tais
como Ronald M. Enroth, um dos pioneiros a lançar mão da expressão “abuso
espiritual” para definir o problema. Vejamos, pois, com um pouco mais de
detalhes, como essa forma se constituiu no campo evangélico brasileiro.

Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo.


10
Accountability é um conceito da esfera ética frequentemente usado para denotar a exigência de
responsabilidade civil, imputabilidade, obrigações e prestação de contas. Na administração, é con-
siderada um aspecto central da governança, tanto na esfera pública como na privada. Do ponto de
vista do problema da liderança, supõe a assunção de responsabilidade para ações, produtos, deci-
sões e políticas, incluindo a obrigação de informar, explicar e responder pelos atos (WIKIPEDIA.
Disponível em: <pt.wikipedia.org/wiki/>).
11
Disponível em: <http://noticias.gospelprime.com.br>. Acesso em: 11 nov. 2012.

Religiões e controvérsias Final.indd 312 18/08/2015 09:59:59


O “abuso espiritual” no contexto do pluralismo religioso

Controvérsias dos cultos, pluralismo e movimentos anticulto


313
brasileiro
A figura do “abuso espiritual” começou a desenhar-se como um “desvio” no
campo religioso protestante dos Estados Unidos em torno dos anos 1980. Inte-
lectuais, pensadores e religiosos ainda estavam sob o impacto do grande trauma
que a morte em massa de mulheres e crianças em Jonestown, na Guiana, em
1978, representara para a causa da liberdade de culto. Desde então, muitos
pensadores se dedicaram a militar contra “religiões” consideradas destrutivas
e perigosas. Ronald Enroth, professor de sociologia na Westmont College,
Santa Barbara, foi um dos autores que mais se destacaram no campo evangé-
lico na tentativa de definir o que seriam exatamente esses “novos movimentos
religiosos”, qualificados então, pejorativamente, como “cults”. Seus livros se
tornaram, no Brasil, a principal referência para lidar com o problema no campo
evangélico. Em 1993, Enroth lança sua obra mais polêmica, na qual acusa os
pastores da Jesus People de “abuso espiritual”: Recovering from churches that
abuse. O livro suscitou grande debate e foi bastante criticado por intelectuais
bem situados no establishment acadêmico americano, tais como James Ri-
chardson, ex-presidente da Associação de Sociologia da Religião e professor
de sociologia e estudos jurídicos da Universidade de Nevada.
Emergindo à margem do protestantismo mais intelectualizado, predominante-
mente calvinista e reformado, o problema dos cultos não foi reconhecido como
tal pelo establishment protestante, segundo o pastor metodista John Gordon
Melton (2003), até os anos 1970, quando a controvérsia dos cultos atraiu a
atenção para a expansão do pluralismo religioso na sociedade americana12.
No caso brasileiro, por razões que seriam demasiadamente longas para serem
retomadas aqui, a “controvérsia dos cultos” permaneceu um tema relativamente
periférico ao mainstream do mundo acadêmico e desenvolveu-se preferencial-
mente nas universidades confessionais e faculdades de teologia. O tema do
pluralismo religioso foi tratado pela sociologia e pela antropologia brasileira
dos anos 1990 sob a rubrica de “novos movimentos religiosos” e, por essa

12
Diferentemente do caso brasileiro, as controvérsias e o modo como foram combatidas as novas reli-
giões cristãs e não cristãs marcaram profundamente a maneira reticente e denominacionalista como
a sociedade americana formulou sua ideia de pluralismo religioso. A emergência e a consolidação
dessa figura “abuso espiritual” no contexto do protestantismo americano tem como pano de fundo
uma convicção tanto teórica quanto ideológica de que o indivíduo tem direito a uma escolha livre de
sua opção religiosa em um mercado competitivo de diferentes denominações. Segundo José Casa-
nova (2007, p. 10), na peculiar estrutura do pluralismo religioso americano codificado pela Primeira
Emenda, todas as religiões, Igrejas, seitas, independentemente de suas origens, demandas doutrinárias
ou identidades eclesiais se converteram em “denominações”, formalmente iguais e em competição.

Religiões e controvérsias Final.indd 313 18/08/2015 09:59:59


314 razão, não herdou diretamente os conceitos de “culto” e “seita” oriundos das
controvérsias teológicas. A categoria continua, no entanto, a circular no campo
das disputas entre grupos religiosos alimentando um sistema de acusações que
remete, como veremos adiante, às ideias de “falsa religião” e “falso profeta”.
Em contraste ao contexto protestante americano, algumas diferenças carac-
terizam a expansão do neopentecostalismo brasileiro. Em primeiro lugar, o
establishment protestante no Brasil não tem a mesma densidade institucional
e acadêmica, nem a mesma potência editorial. Desse modo, embora o pro-
testantismo tradicional não veja com bons olhos a expansão neopentecostal,
as controvérsias públicas no plano doutrinário e/ou teológico são bastante
rarefeitas, pouco eruditas e bastante pontuais13. Em segundo lugar, e por via de
consequência, embora as iniciativas de organizar federações produzam certas
alianças em um campo marcado pelas dinâmicas da dissidência, como mostra
o texto de José Teles neste volume, essas formas institucionais político-ecle-
siásticas não têm força suficiente para promover a autorregulação do campo.
Em terceiro lugar, as controvérsias religiosas, na tradição brasileira, foram
dominadas historicamente pela doutrina católica, que sempre tratou na chave
da “seita” as práticas que desejava empurrar para fora do campo religioso. A
imensa literatura sobre o tema já demonstrou que a leitura de certas práticas
na chave da “seita” punha em interlocução os discursos do direito, da medicina
e teológicos. Ainda assim, a “seita” nunca foi transformada em figura jurídica.
Finalmente, embora as cortes judiciais também venham exercendo por aqui
um papel importante na regulação das práticas religiosas – regulando o uso de
drogas, como no caso estudado por Henrique Antunes neste volume; enqua-
drando atos de racismo e intolerância, como descritos por Milton Bortoleto –,
elas não estão informadas, como no caso dos Estados Unidos, pelos mesmos
debates doutrinários protestantes que embasaram a expulsão dos “cultos” do
campo religioso. É interessante perceber, ao contrário, que a ideia de “culto”
guardou, no Brasil, uma conotação positiva e encompassadora. Tornou-se uma
forma de designar toda prática de espírito comunitário e, até mesmo, um modo

13
Em um rápido levantamento das disputas nesse campo publicadas na internet no ano de 2013 ano-
tamos o pastor presbiteriano Caio Fábio criticando os escândalos financeiros de Igrejas evangélicas
e acusando-as de não assistir os pobres, mas de servir a seus próprios interesses escusos. Caio Fábio
também critica o pastor Silas Malafaia, da Assembleia de Deus, por violar o estatuto da psicologia
ao promover a “cura gay”, e o pastor Marcos Pereira, da Igreja Assembleia de Deus dos Últimos
Dias, pela farsa de conversão de presidiários em Bangu. Em matérias mais doutrinárias, o pastor
Silas Malafaia critica Edir Macedo, da IURD, pela prática do rito extático de “cair pelo poder de
Deus”, que seria coisa do diabo. O pastor batista Zé Bruno critica a falta de mensagens espirituais
nas músicas veiculadas pelo movimento gospel da Igreja Renascer em Cristo, enquanto o pastor
Mario Botelho critica a “cultura idólatra” desse mercado musical.

Religiões e controvérsias Final.indd 314 18/08/2015 09:59:59


de criticar a religião e as organizações do tipo Igreja. Assim, de um modo apa-

Controvérsias dos cultos, pluralismo e movimentos anticulto


315
rentemente paradoxal, a figura do “abuso espiritual” dissociou-se, no Brasil,
do debate doutrinário sobre os cultos e tornou-se uma porta de saída para os
decepcionados com a “religião” – os evangélicos “sem Igreja”14.
O crescimento desse grupo parece apontar para um problema interessante.
Apesar da relativamente longa presença no Brasil de movimentos que foram
definidos como “cultos” nas controvérsias religiosas americanas – Mórmons,
Testemunhas de Jeová, Adventistas do Sétimo Dia, e muitos outros –, quando
se observam no campo religioso protestante brasileiro as acusações de “abu-
so espiritual”, pode-se perceber que elas recaem, preferencialmente, sobre
pastores pentecostais e, sobretudo, neopentecostais. Muitos dos que hoje se
autodenominam “sem Igreja” se dizem decepcionados, humilhados, feridos com
o modo de conduta desses pastores. Assim, se o impressionante crescimento
evangélico no Brasil foi em grande parte impulsionado pelas inovações introdu-
zidas pelas Igrejas neopentecostais no campo do protestantismo brasileiro dos
anos 1980 e 1990 – rupturas estéticas e comportamentais, teológicas e pastorais
–, paradoxalmente a rápida expansão advinda dessas rupturas foi acompanhada
de uma expressiva desinstitucionalização das práticas, nos termos propostos
por Danielle Hervé-Lévier (2008), seja via multiplicação de pequenas Igrejas
segmentadas, seja pelo surgimento de movimentos paraeclesiais sintonizados
com a cultura jovem – roqueiros de Cristo, Atletas de Cristo, etc. –, seja pela
reunião informal daqueles que se decepcionaram. Essa tendência parece de-
monstrar que, por um lado, o debate acadêmico sobre os novos movimentos
religiosos não nasce, no Brasil, no bojo das controvérsias doutrinárias protestan-
tes e que, por outro, o que está em jogo no caso brasileiro não é o controle das
crenças por um establishment protestante que está longe de ser hegemônico,
mas sim, em contraposição à clara hierarquia institucional católica, definir
os parâmetros de autonomia do pastor para falar e agir em nome da religião.
Sem que possamos detalhar, no curto escopo deste texto, o desenvolvimento
da polêmica sobre o “abuso espiritual” no Brasil e a caracterização de seus
principais formuladores, gostaríamos de tratar aqui de uma das principais
dimensões desse problema: a disputa doutrinária sobre o “abuso espiritual”
nos pareceu um fio condutor estratégico para colocar em evidência a contro-
vérsia, no campo protestante, em torno do papel e da autoridade do pastor na

14
Segundo o Censo do IBGE de 2010, a categoria dos “sem Igreja” – aqueles que se identificam como
evangélicos sem aderir a nenhuma denominação particular – é aquela que mais cresceu na última
década em São Paulo, chegando a representar a terceira maior corrente na cidade, atrás apenas dos
católicos e dos sem religião.

Religiões e controvérsias Final.indd 315 18/08/2015 09:59:59


316 condução do seu rebanho. Isso porque, diferentemente da catolicidade que
instaurou a centralidade do poder papal sobre o colegiado episcopal e conferiu
ao padre uma posição subalterna, mas bem definida na hierarquia, além de um
papel dogmaticamente bem controlado como mediador de Jesus Cristo e de
Deus, o pastor evangélico, sobretudo nas denominações de criação recente,
tem desenvolvido um estilo de pregação pessoal teológica e institucionalmente
autônomo. Em razão disso, este poder muitas vezes considerado autocrático
começa a ser visto com desconfiança pelas autoridades clericais históricas e,
até mesmo, pelo aparato jurídico estatal, tornando-se, cada vez mais, sujeito
à polêmica.

A autoridade pastoral: o governo dos homens pela fé


No Brasil, o debate em torno do “abuso espiritual” é bastante recente e perma-
nece quase invisível fora do campo protestante. Ele ganhou certa organicidade
institucional, como mencionamos no início, em torno da figura do pastor batista
Ed Réné Kivitz, mestre em ciências da religião pela Universidade Metodista
de São Paulo e pastor presidente da Igreja Batista da Água Branca. Talvez a
sua abertura para o problema tenha resultado de seu interesse, para o qual
dedicou grande parte de seus escritos, pela questão da formação de lideranças.
Em consonância com sua preocupação em desenvolver e ensinar a “arte de
tomar decisões” que pudesse, ao mesmo tempo, levar ao sucesso profissional
e à autonomia individual, sua Igreja tem se notabilizado pelo acolhimento e
aconselhamento de pessoas que se sentiram moral e psicologicamente “abu-
sadas” pelo seu pastor. Mas, como veremos a seguir, o conceito de “abuso” é
coetâneo a uma pedagogia do ego que requalifica a “fé”, em contraposição à
ideia de crença, a partir de três grandes princípios: a negociação permanente
com Deus, o aprendizado do risco pelo desafio e o desenvolvimento de uma
prática da confiança.

1. A negociação com Deus: a fé como o aprendizado da autonomia


O tema do “abuso espiritual”, enquanto uma “situação problema”, nos parece
particularmente interessante para iluminar um dos aspectos mais característicos
das formas religiosas neocristãs em crescimento no Brasil contemporâneo: sua
associação com o aprendizado e a expansão de formas de pedagogia do “ego”
entre as classes médias baixas em ascensão. Uma das características mais mar-
cantes que vale a pena ressaltar nesse processo é o fato de que a codificação da
promessa de ascensão dessas camadas sociais não está diretamente associada

Religiões e controvérsias Final.indd 316 18/08/2015 09:59:59


ao estímulo de engajamento ao mercado de mão de obra fabril e/ou industrial

Controvérsias dos cultos, pluralismo e movimentos anticulto


317
como assalariado, que mobilizaria as noções de obediência e disciplina, mas
sim ao setor de pequenos serviços e negócios como empreendedor autônomo,
que implica o fortalecimento das dinâmicas da vontade e a capacidade de
tomar decisões.
A assertiva, bastante recorrente no meio pentecostal, “Deus é um bom negó-
cio”, merece nossa atenção. Ela nos permite compreender porque o indivíduo
que se encontra desempregado, ao passar a frequentar os cultos, é estimulado
não a procurar um emprego, mas sim a abrir um pequeno negócio.
Levando-se em conta a centralidade do negócio próprio como fator de mudança
da vida pessoal, a empresa como forma de organização e de valores éticos passa a
inspirar a gramática que serve como referência para julgamentos e justificações
das escolhas individuais (BOLTANSKI, 2002). Com efeito, um dos temas que
vêm sendo levantados pela literatura sobre as denominações evangélicas e, em
particular, sobre a Igreja Universal do Reino de Deus, é a importância dada pelos
pastores em despertar esse espírito “empreendedor” de seu rebanho (CAM-
POS, 1997, 1999; FIGUEIREDO, 2007). Tendo como referência a Teologia
da prosperidade, já tratada por Jacqueline Moraes neste volume15, valoriza-se
o sucesso financeiro para que a promessa de vida com abundância contida na
Bíblia seja efetivamente cumprida. Mas o caminho para esse sucesso não é,
como no caso do protestantismo clássico, a autodisciplina, o trabalho árduo
e a acumulação de excedentes ao longo do tempo. Expande-se, ao contrário,
nesse segmento do campo evangélico um ethos do empreendedorismo que
tem objetivos de curto prazo e que estimula garantir, por meio de um negócio
próprio, ao mesmo tempo, a ampliação dos rendimentos e a conquista do que
pode ser lido como um ganho de autonomia pessoal (FIGUEIREDO, 2007).
Mas o que nos interessa ressaltar não é simplesmente uma mudança no plano
dos valores; trata-se de compreender como essa reconfiguração do sentido da
fé renova a tecnologia pastoral de condução das pessoas.
Nessa nova conjuntura prático-sensível que é a reorganização da experiência
da fé, a própria noção clássica de trabalho é requalificada. Segundo Figueire-
do, “confiando na negociação estabelecida com Deus”, o indivíduo adota uma
posição pró-ativa com relação ao trabalho, sentindo-se “desconfortável como
subordinado, com baixos salários, como desempregado ou dono de uma em-
presa fracassada” (2007, p. 42-43). Desse modo, embora todo tipo de trabalho
possa ser considerado abençoado, enfatiza-se cada vez mais a qualidade do

15
Ver também Ricardo Mariano, Novos Estudos – CEBRAP, n. 44, 1996.

Religiões e controvérsias Final.indd 317 18/08/2015 09:59:59


318 trabalho que passa pelo grau de autonomia, ou de capacidade de decisão de
que dispõe o trabalhador. O trabalho per si não é necessariamente virtuoso, mas
pode, ao contrário, tornar-se uma carga que aferrolha eternamente o indivíduo
a um lugar social subalterno. Na narrativa neopentecostal, o trabalho ganha
novo sentido, associado agora não mais ao plano divino, mas à capacidade do
indivíduo de conquistar os meios de alcançar a autonomia de sua vontade. O
pastor Edir Macedo, por exemplo, estabelece claramente a “decisão pessoal”
como virtude magna do homem religioso, pois “quem decide nosso destino
somos nós mesmos” (MACEDO, 1999, p. 27). Ao requalificar desse modo a
noção de trabalho, as tecnologias pedagógicas da pastoral visam promover a
emergência desse novo sujeito empreendedor, capaz de disciplina, cálculo e
autogestão, qualidades cogentes à prosperidade de um negócio.
Esses exemplos nos indicam que estamos assistindo a uma clara reconfiguração
do paradigma prático-discursivo cristão da “libertação” no modo como a “sal-
vação” é apresentada e praticada. Em seu trabalho sobre a formação do secular
na sociedade brasileira, Carlos Dullo (2013) sugere que a gramática católica
da “libertação” desenvolveu no contexto imediatamente anterior ao Concílio
Vaticano II, inspirado no educador Paulo Freire, um estilo de “mundanização”
que, ao inserir a concepção cristã de salvação no mundo social, constrói o
“oprimido” como objeto privilegiado de sua prática pedagógico-libertadora.
Inspirada em parte na pedagogia freiriana do oprimido e tomando como re-
ferência o contexto de dependência econômica da América Latina, a Teologia
da libertação (GUTIERREZ, 1976; L. BOFF, 1987; C. BOFF, 1978) elabora
uma utopia do novo homem centrada no dualismo “opressão-libertação”.
Esse entendimento da prática libertadora transcende o universo eclesial em
direção à cidade política. O que se pretende produzir, nesse caso, são grupos
mobilizados politicamente, dotados de competência para diagnosticar suas
necessidades e transformá-las em demandas pontuais capazes de interpelar o
Estado e movê-lo na direção de alguma forma de resposta no campo das leis.
Em contrapartida a essa proposição teológica, a Teologia da prosperidade,
embora também não fique confinada às fronteiras eclesiais, se volta, no
entanto, não mais para a cidade política, mas sim para a cidade econômica,
construindo no caminho a figura do “fracassado” como objeto de sua interven-
ção libertadora. “[...] As pessoas que mais focamos são as fracassadas. E por
quê? Porque o Deus em que cremos é um Deus vivo. Em razão disso, Deus se
torna obrigado a corresponder às necessidades das pessoas. Ou Deus existe e
atende ao clamor delas ou Deus simplesmente não existe”, afirma, como quem
diz uma verdade revelada, o pastor Tavolaro (2007, p. 209). Vale a pena que
nos detenhamos aqui em uma comparação mais detalhada das diferenças e

Religiões e controvérsias Final.indd 318 18/08/2015 10:00:00


semelhanças de como a ideia de libertação faz fazer coisas distintas em cada

Controvérsias dos cultos, pluralismo e movimentos anticulto


319
um desses dois paradigmas.
Nos dois casos, a discursividade teológica está pautada por uma economia
da salvação na qual o poder pastoral se desenvolve no mundo histórico.
No entanto, eles diferem, como diria Foucault, quanto ao seu campo de
referência. Enquanto a pastoral do oprimido incide sobre a “consciência”
de sujeitos históricos visando despertar nela a verdade, ou produzir a indig-
nação do sujeito com relação à sua circunstância, a pastoral da prosperidade
incide sobre o poder de Deus visando desafiá-lo e torná-lo instrumento das
necessidades humanas. Essa diferença de inflexão no modo de impulsionar
a ação no mundo, uma que aponta para as potencialidades transformadoras
da ação humana, outra que aponta para a mobilização do poder divino sobre
o mundo, exige o uso de instrumentos teóricos e práticos bem distintos para
que o êxito da ação pastoral seja conquistado. Se a pretensão é, no primeiro
caso, “ver e julgar” corretamente o mundo para transformá-lo, o instru-
mento maior dessa ação é o conhecimento técnico-científico e seu objeto
é a sedimentação de uma comunidade solidária em suas finalidades; já se a
pretensão é “desafiar Deus” para a mudança de uma trajetória de fracasso,
o instrumento da ação passa a ser o da promoção do “exercício da fé” que
implica a aquisição da capacidade de tomar decisões, o fortalecimento da
vontade e o aprendizado do risco.
Essa oposição torna visível um interessante paradoxo. A Teologia da libertação,
ao propor uma redefinição das práticas religiosas inserindo-as em causas sociais
submetidas aos avatares e necessidades da luta histórica, desqualificou a fé como
solo fundador dos compromissos éticos. Trata-se, aqui, mais de fazer justiça
do que de fazer caridade. Já no caso da Teologia da prosperidade, trata-se de
requalificar e aprofundar a fé. A mensagem reiteradamente anunciada “Jesus
vive” (em contraste ao Jesus Cristo morto anunciado na ideia de salvação da
eclesiologia católica) reposiciona a “negociação” com Deus como a condição
de possibilidade da ação humana. Assim, o lugar histórico aparentemente mais
distante e oposto à vida eclesial, o domínio do mercado, empresta sua retórica
para descrever o exercício correto da fé como instrumento por excelência da
intervenção no mundo – a negociação com Deus. Eis, aqui, portanto, deli-
neada a seguinte aporia: o processo de construção de uma vida cívica inscrito
na perspectiva da Teologia da libertação, ao subsumir a ação eclesial à ação
política, sacraliza as tecnologias de saber deste mundo – técnicas de organiza-
ção, de diagnóstico, de mobilização, etc. – e torna menos relevante a distinção
entre este mundo e o outro mundo; já o processo de construção do mundo
humano inscrito na perspectiva da Teologia da prosperidade, ao associar o su-

Religiões e controvérsias Final.indd 319 18/08/2015 10:00:00


320 cesso à habilidade de instrumentalizar o poder de Deus, repõe enfaticamente
a distinção entre os dois domínios e recoloca a necessidade, e as condições de
inteligibilidade das condições contemporâneas, dos modos de intervenção de
Deus no mundo. De certo modo, não há aqui grande novidade; trata-se de
uma releitura do núcleo doutrinal luterano clássico da “justificação pela fé”,
no qual as ações individuais de nada valem para a conquista da salvação. O
homem se justifica apenas pela fé. Desse modo, apesar do uso neopentecostal
da retórica do mundo do mercado – investimento e risco –, a reposição da
cesura este mundo/outro mundo implica o fato de que a ação humana não
pode se desenvolver no campo da previsibilidade e do cálculo. A justificação
depende da intervenção divina. Mas, ao contrário da doutrina de Lutero, o
dom gratuito da salvação corresponde a uma ação humana que pode “negociar
com Deus” e “contratar” a sua graça redentora. Nesse sentido, “ter fé” é um
estado permanente de “desafio a Deus” que implica, ao mesmo tempo, apostar
no que não se conhece e arriscar o fracasso.

2. O desafio a Deus: a fé como aprendizado da vontade


Em uma de nossas entrevistas, P. formula com bastante clareza o modo neo-
pentecostal de postular a relação com o divino:
[...] Existe nos pentecostais a crença de que aquilo que você fala produz, vamos
dizer assim, no universo espiritual, uma força capaz de mudar a realidade material
que a gente vive. Então o que você pronuncia, você vai pronunciando, falando, fa-
lando, e, portanto, produz a mudança de circunstância no meio em que você vive.
Esse tipo de pensamento norteia muito do comportamento do neopentecostal. É
por isso que você vê uma linguagem do neopentecostal de decretar determinadas
coisas: “Eu decreto que vai acontecer tal coisa, eu decreto que vou ter tal emprego,
eu decreto que vou possuir tal carro”, geralmente voltada para o materialismo,
para possuir coisas, progredir socialmente, esse tipo de coisa, financeiramente.
“Eu declaro que vou conseguir uma promoção”, então esse declarar tem um poder
mágico de trazer à realidade aquilo que ele está desejando.

Nas polêmicas suscitadas pela emergência e pela expansão das práticas neo-
pentecostais, muitas lideranças evangélicas de outras denominações desqua-
lificaram essas proposições teológicas como “mágicas” e, portanto, falsas. O
conceito de magia é aqui acionado como uma categoria de acusação: fazendo
eco à vasta literatura teológico-antropológica que desde o final do século XIX
se ocupa em distinguir magia de religião, muitos pastores e líderes consideram
uma “falsa crença” ensinar que se pode “obrigar” Deus a mudar as coisas neste
mundo. Esse trecho do depoimento citado acima, ao narrar em terceira pessoa

Religiões e controvérsias Final.indd 320 18/08/2015 10:00:00


a “crença” de um outro (“existe nos pentecostais a crença de que...”) torna

Controvérsias dos cultos, pluralismo e movimentos anticulto


321
visível uma posição discursiva no campo religioso (e também intelectual) que
entende a “falsificação” como o resultado da incongruência entre as ideias
formuladas no plano das palavras e a realidade das coisas no plano empírico:
nesse caso, “crer” na possibilidade de que o falar possa mudar a “realidade
material que a gente vive” (grifo nosso). No entanto, uma nuance no mesmo
trecho parece indicar que a própria ideia de “crença” pode ser requalificada
na narrativa neopentecostal. Quando o entrevistado diz “a crença produz” e
acrescenta a modulação “vamos dizer assim” acrescida de uma especificação
espacial “no universo espiritual”, percebe-se em um primeiro momento uma
hesitação quanto ao campo de inserção da “ação da crença”. Na sequência, a
narrativa orienta os efeitos da produção da linguagem para o “universo espi-
ritual”, qualificando a ação no mundo como intermediada por uma força que
não está neste mundo. Nesse primeiro deslizamento, o entrevistado repõe a
ideia de intermediação divina, reatualiza o dualismo mundo das representações
versus mundo material necessário à proposição de que “isto é uma crença”
pentecostal e aloca essa representação no campo das ideias religiosas. Em um
segundo momento, ao introduzir a noção de “decreto”, a narrativa elimina a
ideia de intermediação e empurra a “crença” para o campo da magia, campo
das ideias falsas sobre o mundo. Mas a própria hesitação do narrador nos dá a
pista para uma terceira possibilidade de interpretação. Ele diz:
[...] Você pronuncia, você vai pronunciando, falando, falando, e, portanto, produz
a mudança de circunstância no meio em que você vive (grifo nosso).

Vemos, pois, que aquilo que se transforma pela “declaração” ou pelo “decreto”
não é o mundo material propriamente, mas sim a nossa circunstância nele.
Parece-nos que está em pauta aqui uma interessante reconfiguração do dis-
curso dos agentes religiosos que se move entre uma interpretação de fundo
representacionista16 condensada na categoria “crença” para outra de fundo
linguístico que se expressa na categoria “decreto”.
Em trabalho anterior, procurei examinar as limitações, para a compreensão
dos fenômenos religiosos contemporâneos, da noção antropológica clássica de
crença (MONTERO, 2014). Desde Durkheim subjaz ao conceito de “crença” a
ideia de um erro de cognição, uma inadequação entre as imagens do real e o real
tal como ele é verdadeiramente. Essa concepção tornou-se um lugar-comum
quando se fala de “magia”: seja como uma forma primitiva de pensamento ou

16
Representacionismo: doutrina filosófica de inspiração cartesiana que supõe que as ideias corres-
pondem à realidade e a representam.

Religiões e controvérsias Final.indd 321 18/08/2015 10:00:00


322 de prática, o uso da categoria comumente designa uma concepção enganosa
quanto ao funcionamento das coisas no mundo ou quanto àquilo que confere
poder aos objetos. O interessante no depoimento acima é que ele aponta para
a possibilidade de se pensar a ação no mundo não como derivada da “crença”
(equivocada), mas sim das práticas de enunciação. Afirmar que a linguagem
é capaz de modificar as “circunstâncias” do meio em que se vive aponta para
outra percepção do “real”. Em primeiro lugar, remete à ideia de uma condi-
ção ou estado de alguém ou algo no momento presente, consequentemente,
uma situação passageira, provisória, sujeita a mudanças. Em segundo lugar, a
ideia de “meio em que se vive” sugere que a matéria das “circunstâncias” são
as interações sociais. Nesse sentido, a concepção de “mundo material” sofre
uma mutação, já que sua inteligibilidade anterior dependia do pressuposto de
uma clara oposição entre “mente” e “mundo”.
Sabemos que muitas transformações nas sociedades contemporâneas tornaram
nossas convicções a respeito da materialidade e causalidade do mundo real um
invólucro sem conteúdo (LATOUR, 2005). Desde os trabalhos dos filósofos
da linguagem, tais como John Austin e Gilbert Ryle, entre outros, a lingua-
gem – e seus efeitos sobre o que se entende por “realidade”, seja ela social ou
física – se tornou um dos principais temas do pensamento contemporâneo.
Rompendo com a tradição cartesiana, a linguagem cotidiana passa a ser objeto
de interesse não tanto pelas suas funções de representação do mundo, mas,
sobretudo, pelo modo como ela age no mundo e “faz realidade”. A linguagem
deixa de ser compreendida como palavra que descreve o mundo para passar
a ser ação sobre o mundo e, por via de consequência, ação sobre os outros.
As formulações teológicas citadas acima parecem indicar que essa nova com-
preensão das funções da linguagem – que já vinha sendo desenvolvida por
diversas teorias científicas desde meados do século XX – se incorporou de
algum modo à linguagem comum. Os depoimentos parecem indicar que esse
poder de “fazer coisas” da linguagem entrou na prática reflexiva da teologia
neopentecostal e transformou o sentido clássico da palavra tal como circulava
no meio evangélico. O entrevistado menciona, por exemplo, a grande influência
que o livro Há poder em suas palavras, do pregador americano Don Gossett,
exerceu no meio evangélico nacional dos anos 1990. Nessa espécie de manual
“para o desenvolvimento de uma conduta positiva”, o pastor procura desen-
volver técnicas que ajudem o indivíduo a fortalecer sua vontade de vencer as
contrariedades que o mundo lhe apresenta. A palavra, em sua forma decla-
ratória, deve afirmar o controle da vontade sobre as dificuldades cotidianas:
afirmar que “eu posso” é a nova forma de fé que, segundo ele, “não é uma
questão de sentimentos”, mas, sim de “decisão” (1992, p. 17). Nessa pedagogia

Religiões e controvérsias Final.indd 322 18/08/2015 10:00:00


da vontade, na qual “você terá o que diz” ao mudar “sua maneira negativa de

Controvérsias dos cultos, pluralismo e movimentos anticulto


323
pensar”, o segredo está em aprender a dizer as coisas “em harmonia com a
palavra de Deus”, porque “as palavras não têm um poder em si, mas porque
elas tornam possível o poder de Deus operar em nosso benefício” (1992, p.
26). Nesse trecho torna-se perfeitamente claro o lugar-chave do pastor como
intérprete da verdadeira palavra de Deus de modo a que nossas declarações
possam “concordar com Deus” naquilo que somos e podemos.
A noção clássica de palavra – enquanto conhecimento, conselho, transmissão de
virtudes, etc. – começa, pois, a emergir nos enunciados neopentecostais como
performação: ao ser pronunciada, e apenas pelo fato de ser dita e repetida,
ela é capaz de mudar a percepção das circunstâncias e, em consequência, as
relações entre as pessoas, suas conexões e as linhas de suas trajetórias.
Uma das boas coisas que Marcos diz ter aprendido com seu pastor foi fazer orações
assertivas, repetindo em alta voz – para que os ouvidos registrassem a mensagem
e o cérebro pudesse captá-la – as afirmações da palavra de Deus a respeito de
sua própria identidade como filho de Deus, amado e redimido […]. Sobre esse
aprendizado Marcos passou a se autoafirmar. [...] Cansou de ouvir que as emoções
humanas não são dignas de confiança, pois, segundo a Bíblia, “enganoso é o coração
e desesperadamente corrupto” (JEREMIAS, 17-9). Somente a palavra de Deus
poderia ser tida por verdadeira, pois traduzia o pensamento divino a respeito da
natureza humana. (CÉSAR, 2009)

Estamos distante aqui do exercício do autoconhecimento, do exame de cons-


ciência, da introspecção como prática religiosa. As “orações assertivas” (leia-
-se aquelas pronunciadas com fé, entendidas como “confissões positivas”)17,
pelo fato mesmo de serem pronunciadas, alteram as circunstâncias – nesse
caso, a percepção de si. “Marcos foi mudando. Ele passou a descobrir uma
firmeza até então desconhecida e uma alegria que nunca experimentara”
(Cesar, 2009:26dem). No fazer da linguagem um instrumento de ação no
mundo ao introduzir o elemento da enunciação reside, a nosso ver, uma das
inovações tecnológicas da prática pastoral neopentecostal, pois ela desfaz o
dualismo entre ideias religiosas e mundo material implícito na noção de crença
e, em consequência, desconstrói o fundamento do próprio conceito de magia.

17
Confissão positiva é definida por autores críticos do neopentecostalismo, como o pastor da Igreja
assembleiana Cristã da Trindade Paulo Romeiro, como a capacidade de trazer à existência o que
declaramos com nossa boca. O autor, doutor em ciências da religião pela Universidade Mackenzie,
critica os teólogos Kenneth Hagin e Valnice Milhomens, propagadores dessa teologia no Brasil.
Ver Supercrentes: o Evangelho segundo Kenneth Hagin, Valnice Milhomens e os Protestantes da
Prosperidade, Editora Mundo Cristão, 1993.

Religiões e controvérsias Final.indd 323 18/08/2015 10:00:00


324 A ritualização da palavra pelo louvor, pela oração, pela pronúncia, pela fé altera
o conjunto de possibilidades que definem uma situação: ter ou não ter amigos,
encontrar ou não alguém com quem se casar, ser ou não aceito por um grupo,
ter ou não acesso a chances fora do alcance de um universo particular.

3. A pedagogia do risco: a fé como confiança


Muitos estudiosos do neopentecostalismo têm afirmado que a IURD é uma
Igreja dos momentos de crise (LIMA, 2007; FARINA, 2011). Ela representaria
uma ruptura, por decisão pessoal, com o universo religioso familiar e marcaria
momentos de mudança na trajetória de uma vida. Essas mudanças estão rela-
cionadas a transformações no contexto mais geral de inserção das experiências.
Como bem sugeriu Richard Sennett (2012) ao examinar as transformações do
universo do trabalho no mundo contemporâneo, o fim dos empregos estáveis,
bem definidos e de longo prazo corroeu os princípios de confiança, lealdade
e compromisso mútuo que ordenavam as relações entre as pessoas no mundo
fordista. A capacidade de desprender-se do próprio passado e aceitar a frag-
mentação passa a ser o traço mais característico dessas formas flexíveis de
trabalho. A mobilidade social aí implicada nem sempre é ascensional: pode ser
também apenas lateral ou mesmo descendente, implicando em perdas. Essa
nova forma de “estar em risco”, isto é, “permanecer em um estado contínuo de
vulnerabilidade” (SENNETT, 2012, p. 90-93) situa a pessoa em um contexto
de constante ambiguidade e incerteza. Embora no caso brasileiro a informali-
dade laboral tenha sido uma experiência constante na vida das camadas mais
pobres da população, empreender um negócio pessoal exigiu o aprendizado
de afetos e a construção de pessoas que passem a lidar com a incerteza não
como destino, mas como campo de possibilidades.
A valorização do risco e o inconformismo com relação à situação presente
encontram no discurso teológico da prosperidade uma narrativa normalizadora
da incerteza, uma vez que parece capaz de organizar acontecimentos aleatórios
inerentes a cada decisão cotidiana em relações causais ou temporais consis-
tentes. “Esperança”, “confiança”, “responsabilidade mútua” são categorias
recorrentes nessa narrativa de mudança e de promessa.
O problema da confiança não é novo como objeto de reflexão das ciências
sociais. Louis Quéré (2001, p. 9) o remete a George Simmel, que sublinhou
seu papel como mecanismo de integração social. Hoje são os economistas que
se interessam pelo tema e o tratam como um “dispositivo econômico para fazer
frente à ignorância, compensar a incompletude da informação, fazer frente à
opacidade e à incerteza das situações, reagir ao oportunismo dos comporta-

Religiões e controvérsias Final.indd 324 18/08/2015 10:00:00


mentos e tratar sua imprevisibilidade” (QUÉRÉ, 2001, p. 10). A nosso ver,

Controvérsias dos cultos, pluralismo e movimentos anticulto


325
diante das condições de imprevisibilidade nas quais a ruptura com relações
familiares e patronais projeta sujeitos de alguns segmentos sociais, o paradigma
de fé proposto pelos pastores oferece um novo modelo de dispositivos práticos
de produção de confiança. O caráter muitas vezes caótico inerente a esse modo
de vida em que a todo o momento está se “tentando a sorte” (mudando de
emprego, de casamento, de lugar social e mesmo de Igreja) tem como con-
traponto essa imagem relativamente estável, e também muito recorrente nas
narrativas, do pastor guiando suas ovelhas.
Mas em que consistem esses mecanismos de confiança e quais as condições
de sua reprodução e/ou ruptura? Quéré sugere que a confiança que deposi-
tamos em alguém não tem nenhuma dimensão moral: assumimos o risco de
confiar em alguém supondo que o outro, por meio de suas ações, contribuirá
para o meu bem-estar e se absterá de me fazer mal (QUÉRÉ, 2001, p. 133).
Nos excertos a seguir pode-se perceber que, na formulação dos que viveram
a experiência, a produção da confiança no pastor depende em grande parte
do reconhecimento da “unção” em seu saber bíblico e, consequentemente, na
suposição de que seus ensinamentos são caminho de proteção contra o risco
e promessa de futuro. A força da palavra do pastor também exige provas: ela
deve fazer referências contínuas à produção de exemplos empíricos de eficácia
de sua força, seja pelo testemunho, seja pelos sinais de afluência do pastor,
seja pelo sucesso de público da Igreja.
[...] Escutar um conselho fundamentado na palavra de Deus transmite segurança.
Além disso, aconselhamentos e orações, juntos, não raro nos inspiram e trazem à
luz ideias novas e alternativas antes impensadas.[...]

[...] O convívio era fraternal e íntimo. As pessoas contavam seus problemas mais
difíceis e oravam umas pelas outras. Havia muitas libertações de alma. As pessoas
eram amigas e os pastores transmitiam confiança. Eles viviam o que pregavam. [...]

[...] Os ensinamentos do pastor faziam a gente acreditar que podia sair da depressão
e da tristeza e ter uma vida firme e alegre, em Jesus. [...]

[...] Como lidar com a adversidade sem conhecer o que a Bíblia diz sobre aquele
assunto específico? [...]

[...] É muito importante para o cristão conhecer essa opinião dessas pessoas “es-
peciais” que, ao menos em teoria, conhecem a Bíblia melhor do que ele, são mais
consagradas espiritualmente do que ele. É fundamental descobrir o que o pastor
pensa e o que a Bíblia fala sobre o problema, já que para o cristão ela é a palavra
inspirada pelo próprio Deus. É o manual do fabricante. [...]

Religiões e controvérsias Final.indd 325 18/08/2015 10:00:00


326 [...] O pastor vira um confessor. Um cúmplice. Um psicólogo de quem se exige
larga sabedoria. Um oráculo. [...]

[...] Durante muitos anos reverenciei meus pastores como pessoas especiais, que
traziam recados proféticos, parecendo ter acesso a algum canto exclusivo da presen-
ça de Deus só reservado para eles. Desenvolvi uma confiança profunda naquelas
pregações, e elas me proporcionaram experiências espirituais de crescimento. [...]

[...] Apesar de enxergar os abusos, Adriano viveu praticamente todo esse período –
cerca de dez anos – acreditando que o pastor fosse merecedor de todas aquelas bênçãos.
Afinal, ele levava muitas pessoas aos pés de Jesus. Muitos se convertiam com suas
pregações emotivas e carismáticas. O crescimento da Igreja era uma das provas. As
coisas aparentemente iam bem na casa do senhor (CÉSAR, 2009, grifos nossos).

Apesar de essas narrativas terem sido formuladas a partir do olhar crítico


daqueles que se justificam por terem sido traídos em sua confiança pelo
pastor, pode-se perceber, à contraluz, que pelo menos dois veículos funda-
mentais estão presentes nas dinâmicas de produção da confiança que levam
à decisão de assumir o risco de delegar o cuidado de si ao pastor: a qualidade
abençoada da pregação bíblica e a força de convicção que ela transmite na
arregimentação do dinheiro.
A imagem de que a Bíblia é o “manual do fabricante” do funcionamento da vida,
acionada na formulação acima, é bastante elucidativa. Ela sintetiza a natureza
do poder social do pastor que consiste em ter o monopólio da palavra inspirada,
única capaz de decifrar as adversidades e oferecer um caminho, “ideias novas
e alternativas antes impensadas”. Uma vez que as dinâmicas de produção da
confiança funcionam aquém do sistema de regras, é indispensável que o pastor
apresente provas de que tem acesso à verdade. Mas o que torna a palavra do
pastor verdadeira? Quais são as formas aceitáveis de evidência? No regime de
verdade no qual ele opera, o pastor não diz “vi com meus próprios olhos”, ou
“digo isso com base em evidências”, mas sim, tomando como referência, por
exemplo, o texto bíblico de profeta Ezequiel18, afirma que a missão do pastor
é “apaziguar as ovelhas, fortalecer as fracas, achar as desgarradas e buscar as
perdidas”. E ele pode fazê-lo, posto que pela performance rotineira de seu tipo
de conhecimento bíblico, envia “recados proféticos” que parecem comprovar
“seu acesso a algum canto exclusivo da presença de Deus só reservado para ele”.

18
“Assim se espalharam, por não haver pastor, e se tornaram pasto para todas as feras do campo.
As minhas ovelhas andam desgarradas por todos os montes e por todo elevado outeiro; as minhas
ovelhas andam espalhadas por toda a terra, sem haver quem as procure ou quem as busque”
(EZEQUIEL, 34).

Religiões e controvérsias Final.indd 326 18/08/2015 10:00:00


A competência do pastor reside, pois, na demonstração pela sua performance

Controvérsias dos cultos, pluralismo e movimentos anticulto


327
da presença da unção em sua palavra e do domínio de um vasto repertório
inspirado sobre os excertos bíblicos que orienta sua capacidade de indexá-los
de maneira verossímil a cada pequena variação da experiência pessoal.
Como uma profecia que se autorrealiza, esse poder oferece garantias ao re-
velar sua capacidade de agregar pessoas e fazer circular coisas e imagens19:
Adriano acreditava que o pastor fosse merecedor de todas aquelas bênçãos, já
que “levava muitas pessoas ao pé de Jesus”, o “crescimento da Igreja era uma
das provas”. Mas então, o que essa atitude de confiança faz fazer? Como ela
estrutura o campo de ação das pessoas?
Em uma das narrativas registradas por Marília César, o pastor diz no púlpito:
“Vou prestar contas a Deus pelo que fizer a vocês”. Temos aqui a caracteri-
zação mais típica desse poder pastoral que, tal como sugeriu Foucault, se dá
por objeto a conduta dos homens e por alvo a maneira como se conduzem
(CÉSAR, 2009, p. 256). Em algumas narrativas de “abusados”, esse poder de
controle sobre as condutas é descrito como efeito de um jogo de intrigas que
favorece a obediência:
O pastor gostava de promover competição entre os seminaristas, prática que causava
divisão e intrigas. Ele escolhia propositalmente um dos obreiros, um para elogiar
em público e outro para humilhar, realçando defeitos e opiniões discordantes. [...]
Ninguém tinha coragem de retrucar, pois seria questionar um homem de Deus.
Seria insubordinação, rebeldia (ADRIANO apud CÉSAR, 2009, p. 57).

São muitas as narrativas que, em um campo caracterizado pela contínua dis-


sidência, descrevem as dinâmicas de controle da rebeldia.
Detonar o moral dos que serviam na Igreja tinha sempre uma conotação moral, a
Bíblia recomenda que os irmãos exortem uns aos outros, que corrijam entre si os
desvios de rumo e de procedimento. Ficávamos morrendo de medo, achando que,
se divergíssemos das broncas, estaríamos resistindo à disciplina de Deus em nossas
vidas (ADRIANO apud CÉSAR, 2009, p. 58).

Fui chamado, aos berros, de feiticeiro, porque estava me colocando contra a vontade
de meu guia espiritual (ALEXANDRE apud CÉSAR, 2009, p. 68).

19
Para além das narrativas que iluminam o modo de descrever o mundo e a experiência, seria preciso
também investigar, em um trabalho de maior fôlego, as tecnologias corporais que tornam a palavra
do pastor sedutora – gestos, uso do palco, repetições, tom de voz, etc. – e as novas tecnologias
institucionais, tais como a do crescimento através de células, G 12, divulgada no Brasil pela pastora
Valnice Milhomens, ao trazer para o país em 1999 o criador do movimento, o pastor colombiano
César Castelhanos Dominguez.

Religiões e controvérsias Final.indd 327 18/08/2015 10:00:00


328 Deixar a Igreja, Jesus, a verdade que marca, segundo as profecias do pastor Araujo,
seria entrar debaixo de uma maldição (ex-adepta em CÉSAR, 2009, p. 119).

Sair dali era abandonar uma arca divina e o castigo viria para todos que deixassem
a cobertura espiritual do projeto (ex-adepta, CÉSAR, 2009:120).

A promoção do medo de perder a proteção divina é um dos instrumentos de


garantia da obediência ao pastor. Essa tecnologia de poder está em parte em-
basada na controversa doutrina da “cobertura espiritual”. Na leitura de Marília
César, essa “nova doutrina difundida pelo movimento neopentecostal” contribui
para o “abuso espiritual”20, pois confere ao pastor um excesso de autoridade e
responsabilidade sobre o grupo (CÉSAR, 2009, p. 73). Com efeito, no conjunto
das queixas dos que criticam esse poder, o registro que mais chama a atenção
pela sua recorrência é a extensão da autoridade do pastor sobre o campo das
decisões pessoais, tais como casamento, filhos, emprego.
Mas a autoridade pastoral não diz respeito apenas aos efeitos da tutela do
pastor sobre a vida pessoal e íntima de sua ovelha agenciada pelos mecanis-
mos produtores de confiança. É possível reunir um conjunto de narrativas de
“abusados” que criticam a própria lógica institucional sobre a qual se assenta
o poder pastoral de Igrejas como a IURD. A intensa polêmica que se seguiu à
denúncia do ex-pastor Gustavo Alves da Rocha contra Edir Macedo, e que
envolveu sua ex-mulher Jacira Aparecida da Silva, a TV Record e a Globo,
além de inúmeros outros pastores em 2009, é um bom exemplo do caráter
ambíguo e do potencial explosivo desse tipo de institucionalidade, que es-
timula a decisão de obediência e de submissão ao caráter tutelar do pastor
sobre o destino pessoal e sobre a vida íntima de sua ovelha. Vale a pena ouvir
seu extenso depoimento publicado pela revista editada pela Globo, Época21:
[…] [Edir Macedo] me disse que precisavam de um tecladista e eu, que tinha
16 anos, aceitei tocar todos os domingos em troca de algo em torno de R$ 50.
Depois de uns quatro meses, minha tia procurou Edir Macedo para dizer que eu
voltaria ao Brasil. Daí Edir veio com uma proposta: “Não, a gente vai ajudá-lo. Se
você permitir, nós queremos investir nele. A Igreja se propõe a pagar uma escola
para ele aqui na Inglaterra.” A Igreja pagou para mim por dois anos uma escola de
idiomas, a London Capital College. Eu passei a morar na igreja e não tinha salário.

20
Em sua crítica a essa doutrina, o teólogo e jornalista Thomas Magnum considera que ao fazer do
pastor um “guru”, ela enseja uma “absurda forma de intervenção” na vida pessoal do crente. Dis-
ponível em: <www.pulpitocristao.com/2014>.
21
O relato completo está repertoriado no Anexo.

Religiões e controvérsias Final.indd 328 18/08/2015 10:00:00


[..] Quando fui morar na igreja, eu dividia um quarto com outros obreiros. Passei

Controvérsias dos cultos, pluralismo e movimentos anticulto


329
a tocar todos os dias, fazia a limpeza do templo, a evangelização, distribuía jornal
da Igreja de porta em porta. [...] Fiquei praticamente confinado. [...] Eles fizeram
comigo um processo de preparação para ser um futuro pastor. Quando chegava
alguém à igreja para pedir um conselho, o bispo Macedo me chamava: “Senta aqui
do meu lado para você conhecer os problemas do povo e aprender a orientar as
pessoas.” Foram dois anos sentado ao lado dele. Quando o fiel ia embora, ele per-
guntava: “Entendeu? Essa moça está com problema financeiro e está tão fragilizada
que, se você disser ‘Faça isso!’, ela vai fazer.” [...]

[...] Eu e Edir Macedo saíamos pelo menos duas vezes por semana para procurar
um teatro, um galpão onde desse para abrir uma nova igreja. A gente olhava pri-
meiro a vizinhança. Se tivesse outra Igreja na região, não valia a pena investir. E
olhávamos se o povo era pobre ou de classe média. Se a área fosse pobre, era mais
interessante, a Igreja cresce mais. O bispo Macedo dizia que gente pobre tem todo
tipo de problema. Então, é fácil ter argumento para atrair essas pessoas. Se fosse
um pessoal com mais dinheiro, ele já pensava duas ou três vezes se valia a pena
investir, porque apenas uma minoria frequentaria a igreja. Quando o bairro era de
classe média, o pastor tinha de falar bom inglês e ter cultura, porque colocar um
pastor escandaloso, ignorante, não dava certo. Em Londres, presenciei a criação
de duas Igrejas. Uma foi em Brixton e a outra em Peckham. Os cultos eram em
inglês, 2% ou 3% dos fiéis da Igreja eram brasileiros, 2% ou 3% eram britânicos,
e o restante eram africanos e jamaicanos. Havia uma preferência por colocar um
pastor negro, para que os fiéis se identificassem mais.

[...] Ele disse que não me deixaria em Portugal porque ele precisava de um pastor
com bom inglês nos Estados Unidos. No dia 13 de maio de 1999, eu cheguei a
Nova York. Eu passei a tocar piano na igreja principal, no Brooklyn. Depois de uns
15 dias, o bispo Macedo chegou a Nova York e me disse que eu não deveria ficar
só tocando, passaria a pregar. Foi a primeira vez em que fui responsável por uma
igreja, a igreja de Utica, no Brooklyn. E, como eu era um pastor registrado pela
Universal, passei a ter um salário. Ganhava US$ 600 brutos por mês. Era pouco,
mas não tinha despesa com água, luz, aluguel porque eu morava na igreja. [...] Em
Utica, em dois meses, a igreja encheu. Cabiam 70 pessoas. O bispo Macedo achou
que tinha valido a pena investir em mim.

[...] Quanto mais eu ganhava para a Igreja, mais privilégios eu tinha. O meu pior
carro foi um Toyota Corolla, era o primeiro carro de todo pastor. Do Corolla, passei
para um Ford Focus, zero quilômetro. Do Focus, tive um Honda Civic, do ano.
Do Civic, fui para um Honda Accord. Nos Estados Unidos, morei em três casas
diferentes. Conforme cumpria a meta, as casas aumentavam de tamanho, melho-

Religiões e controvérsias Final.indd 329 18/08/2015 10:00:00


330 ravam de localização. O bispo Macedo pegava o relatório do mês, via a progressão
de rendimentos e te perguntava: “Você está morando onde? E vai para a igreja com
que carro? Faz o seguinte: fala com o bispo responsável para ele te mudar para tal
casa.” Ele olhava em uma relação de pastores os bens que cada um estava usando e
dizia: “Esse carro aí que você tem, dê para o pastor Álvaro e pega o carro do pastor
Álvaro para você.” Era frequente essa troca de carros e casas entre os pastores.
Como a gente não podia comprar mobília nem bens, só coisas pessoais, roupas, a
mudança era bem rápida. Pastor não pode ter nada em seu nome, todos os carros
que eu tive e casas em que morei estavam no nome da Universal

[…] Logo depois que eu casei, o bispo Macedo me obrigou a fazer vasectomia. Ele
justificava dizendo que um filho traria despesas e dificuldades para que eu fizesse a
obra de Deus, já que com filho era mais difícil mudar de país. Ele dizia que a saída
era, quando eu me tornasse um bispo, adotar, seguir o exemplo dele, dos genros
dele, Renato Cardoso e Júlio Freitas. Os três primeiros médicos que procurei se
recusaram a me operar. Eu tinha 21 anos e nenhum filho. O quarto topou, mas me
disse que não recomendava. Fiz uma vasectomia irreversível. Enquanto eu estava
nos Estados Unidos, dos 26 pastores que trabalhavam em Nova York, sete também
fizeram. Se você não faz a vasectomia, perde a chance de crescer e chegar a bispo,
vai ser só mais um pastor que fica 15 anos na mesma igreja e não sai do lugar.

[...] Eu sofri por ter entrado na Igreja muito jovem, abandonei a família, não termi-
nei os estudos. Eu não tinha amigos que não fossem pastores ou bispos, não sabia
o que era lutar por um emprego, não sabia quanto era um aluguel. Perdi tudo. Eu
sempre me lembro da frase que o bispo Macedo costumava me falar: “Se você sair
da Igreja um dia, todos esses demônios que você expulsou nestes anos vão voltar
para sua vida.”

Gustavo Rocha fez parte da Igreja por oito anos, cinco deles como pastor
(18/09/2009).

Esse depoimento, cuja veracidade foi publicamente desmentida pela ex-mulher,


pela Record e por outros pastores, nos parece particularmente interessante
por mencionar, a partir de uma trajetória de vida, muitos dos elementos que, a
nosso ver, alimentam, do ponto de vista institucional, a dinâmica desse tipo de
poder pastoral. Temos em primeiro lugar algumas tecnologias de formação de
um jovem pastor que incluem: o rompimento com os laços familiares originais;
a assunção das tarefas de educação, formação e sustento assumidas pelo pastor
como investimento em um futuro quadro eclesiástico; o adestramento nas
técnicas de orientar e despertar o exercício da fé; o aprendizado da obediência
como caminho seguro do sucesso, prestígio e afluência. Em segundo lugar, as
tecnologias de multiplicação das igrejas: cada pastor em formação é considera-

Religiões e controvérsias Final.indd 330 18/08/2015 10:00:00


do um líder potencial de uma nova igreja. Essas instituições estão ranqueadas

Controvérsias dos cultos, pluralismo e movimentos anticulto


331
em função de sua capacidade de angariar recursos e são estimuladas por um
permanente estado de competição: alcançar metas, “pegar o mês” e “pegar a
tua igreja” coloca a todos em um sistema de disputa pelo prestígio – “Quanto
mais eu ganhava para a Igreja, mais privilégios eu tinha”, conta Gustavo. Em
terceiro lugar está a tecnologia de aferição pública do prestígio. “[...] Conforme
cumpria a meta, as casas aumentavam de tamanho, melhoravam de localização”
(ÉPOCA, 2009). O que nos parece interessante nessa lógica é que as pessoas
circulam em um sistema de objetos que servem de indexadores de prestígio. Em
função da progressão dos rendimentos das igrejas, os pastores mudam de casa
e de carro. Desse modo, apesar de todos os sinais exteriores de riqueza que os
pastores bem-sucedidos ostentam, eles, em princípio, não se apresentam como
proprietários pessoais desses bens: “Como a gente não podia comprar mobília
nem bens, só coisas pessoais, roupas, a mudança era bem rápida. Pastor não
pode ter nada em seu nome, todos os carros que eu tive e casas em que morei
estavam no nome da Universal” (ÉPOCA, 2009). Ainda assim, como sugere a
narrativa, a contabilidade das ofertas também depende do poder discricionário
da autoridade pastoral que, embora isso não possa ser dito publicamente, tem
liberdade de retirar para si quantias que ele mesmo determina.
Garantir o monopólio e o controle dos quadros institucionais que se organizam
para fundar uma rede de igrejas, agregar pessoas dispostas a contribuir com
ofertas via pregação e meios de comunicação, adquirir propriedades que garan-
tam a circulação desses quadros e controlar via “metas” o equilíbrio da relação
entre capital investido e rendimentos são, portanto, algumas das alavancas que
propulsionam as dinâmicas desse novo paradigma de poder institucional. A
contraface individual desse poder é a escolha e a aceitação da obediência como
garantia de cuidado e proteção, mas também como moeda de progressão na
carreira. A extensão desse poder para a vida íntima – a escolha da esposa e a
proposição da vasectomia – é parte do jogo dessa forma de submissão: “A obra
de Deus precisa de homens assim. Por você ter obedecido, vai ser abençoado
agora.” Gustavo concorda jogar o jogo uma vez que “se você não faz a vasec-
tomia, perde a chance de crescer e chegar a bispo, vai ser só mais um pastor
que fica 15 anos na mesma igreja e não sai do lugar” (ÉPOCA, 2009).
O jogo se rompe quando Gustavo, doente, deixa de ser produtivo para o
sistema. Percebendo que sua rede de proteção ameaça ruir, rompe a regra da
fidelidade e procura na justiça uma reparação pessoal. Com a denúncia, ele
se constrói individualmente como vítima e as categorias do direito, tais como
“danos morais”, transmutam as relações de confiança em abuso. É o fim do
jogo e a profecia de Edir Macedo se realiza: os demônios que Gustavo expul-

Religiões e controvérsias Final.indd 331 18/08/2015 10:00:00


332 sara em sua vitoriosa carreira de pastor e no pacto de lealdade que fizera com
Jesus voltam a insinuar-se para fragilizá-lo em seu ostracismo.

Considerações finais
Em suas considerações críticas com respeito ao pentecostalismo, o pastor ba-
tista Paulo Romeiro pondera que “em termos de governo o neopentecostalismo
verticalizou a Igreja. O líder forte no topo da pirâmide, que não presta contas
a ninguém, que toma decisões sozinho em questões financeiras e doutrinárias,
acaba tirando das pessoas a oportunidade de funcionarem como um corpo.
Em tais circunstâncias os abusos se multiplicam. Alguns líderes religiosos têm
dificuldade de administrar o poder” (2005, p. 232). Embora não coloquem
em questão o modelo do poder pastoral, as Igrejas protestantes históricas
consideram que, com seus conselhos e assembleias, suas instituições são mais
democráticas e menos tentadas ao abuso.
Os relatos reunidos acima apontam para a adesão, por parte das lideranças de
algumas Igrejas, a uma forma de pastorado que, paradoxalmente, em nome do
aprendizado da autonomia e do risco, instaura um tipo de submissão individual
exaustiva, total e permanente bastante diferente da relação de obediência
instituída pela lei ou pela política. Os benefícios monetários e imagéticos
auferidos, em contrapartida, parecem ser extremamente compensadores. No
entanto, a coetânea expansão das denúncias de “abuso espiritual” que acom-
panha o crescimento desse tipo de organização parece indicar que, se a ordem
legal ao encapsular essas práticas no campo religioso as exime de escrutínio,
as controvérsias teológico-doutrinárias, ao contrário, contribuem para impor
certos limites ao desenvolvimento dessa forma de governo de pessoas. Embo-
ra legalmente reconhecidas como religiões, as contínuas denúncias públicas
de alguns pastores contra essas Igrejas, as acusações de “falsos profetas” e
impostura, o acúmulo de literatura acadêmica e produções mediáticas que
progressivamente empurram essas práticas para fora do campo religioso, e a
criação de associações de acolhimento das vítimas, obrigam pastores acusados
a justificar-se, a prestar contas e a tornar mais transparentes e ajustadas as suas
práticas. O pastor presbiteriano Ricardo Agreste, responsável pelo projeto
Timóteo, voltado para a reflexão das práticas pastorais, formula a tensão na
luta pela legitimidade nesse campo do seguinte modo: nessa “demanda por
destacar-se”, as lideranças pentecostais escolhem o formato carismático (“Deus
fala por meio de mim”), as igrejas históricas, a conquista de poder institucional
(ser presidente do presbitério, do sínodo) ou a legitimação social por meio

Religiões e controvérsias Final.indd 332 18/08/2015 10:00:00


da titulação acadêmica (fazer mestrado ou doutorado). No seu conjunto, os

Controvérsias dos cultos, pluralismo e movimentos anticulto


333
pastores que esperam reconhecimento social sentem-se desprestigiados quan-
do a carreira que escolheram virou sinônimo de oportunismo e picaretagem
(CÉSAR, 2009, p. 139-140). Nesse difícil trade off da importância social,
quanto mais se ganha em legitimidade mais se perde em poder carismático
sobre as massas.
Além disso, a figura do “abuso espiritual” pode ser lida como um momento
de crise que leva ao fim da relação de confiança produzida pelo “exercício da
fé”. Como no caso relatado por Brum neste volume, é difícil definir o mo-
mento em que o zelo do pastor passa a ser visto como humilhação e abuso, e
compreender por que uma vítima decide expor-se publicamente e falar. De
maneira geral, a metáfora do pastor soa bastante anacrônica como modo de
governança no mundo contemporâneo. Ainda assim, sua presença ativa na dis-
cursividade evangélica contemporânea nos indica que a capacidade mobilizadora
dessa metáfora é bastante atual e o campo cristão não parece disposto a dela
abrir mão como método. Vimos que em parte essa mobilização se sustenta
nessa nova força desencadeada pela palavra que empodera a vontade. Mas as
ovelhas também desejam ser “apaziguadas” e “fortalecidas’. Como toda forma
de governo dos homens (jurídica, política, pastoral, etc.), o pastorado supõe
uma responsabilidade recíproca entre a comunidade e aquele que responde
por ela. Talvez se possa sugerir que essa forma de contraconduta que o “abuso
espiritual” representa como prática de contrapoder com relação a certo tipo
de autoridade pastoral emerge quando, de alguma forma, a percepção de
equilíbrio nessa responsabilidade recíproca se rompe. Tendo em vista que a
confiança não é um dever, mas sim uma escolha daquele que a concede, que
ela engaja não apenas a pessoa que a concede, mas também sua depositária,
ela é uma relação inconstante, frágil e sem garantias formais. Nesse paradoxo
reside, talvez, a força e a fragilidade dessa nova forma de exercício da fé.

Referências bibliográficas
BOLTANSKI, Luc. Nécessité et justification. Revue Économique, v. 53, n. 2, p. 275-289, 2002.
BROMLEY, David; SHUPE, Anson. Anticults mouvements in the cross-cultural perspective. New York:
Garland Publishers, 1994.
CAMPOS, Leonildo Silveira. A Igreja Universal do Reino de Deus e seus modos de expansão. Luso-
topie, 1999, p. 27-40.
________. Teatro, templo e mercado. Petrópolis: Vozes, 1997.
CASANOVA, José. Reconsideración de la secularización: una perspectiva comparada mundial. Revista
Academica de Relaciones Internacionales, UAM-AEDRI, v. 7, 2007.1-20.

Religiões e controvérsias Final.indd 333 18/08/2015 10:00:00


334 DULLO, Carlos Eduardo Valente. A produção de subjetividades democráticas e a formação do secular
no Brasil a partir da pedagogia de Paulo Freire. 2013. Tese (Doutorado em Antropologia Social)–
Museu Nacional, Rio de Janeiro, 2013.
ELIACHEFF, Caroline; LARIVIÈRE, Daniel Soulez. Les temps des victimes. Paris: Albin Michel, 2007.
FARINA, Raquel Neves. Inovações tecnológicas de Edir Macedo. Rio de Janeiro: Universidade do
Estado do Rio de Janeiro/Instituto de Psicologia, 2011.
FIGUEIREDO, Carolina Dantas. O espírito empreendedor na IURD: as representações sobre o empreen-
dedorismo. 2007. Dissertação (Mestrado em Sociologia )–UFPE, Recife, 2007.
FOUCAULT, Michel. Segurança, território, população. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
GIUMBELLI, Emerson. O fim da religião: dilemas da liberdade religiosa no Brasil e na França. São
Paulo: Attar, 2002.
HERBERT, Will. Protestant-catholic-jew. Garden City: Doubleday, 1960.
HERVÉ-LÉVIER, Danièle. O peregrino e o convertido: a religião em movimento. Petrópolis: Vozes, 2009.
LATOUR, Bruno. Reassembling the social: an introduction to actor-network theory. New York: Oxford
University Press, 2005.
LIMA, Diana. Trabalho, mudança de vida e prosperidade entre fiéis da IURD. Religião & Sociedade,
v. 27, n. 1, 2007, s/ n.
MARIANO, Ricardo. Os neopentecostais e a teologia da prosperidade. Novos Estudos – CEBRAP, v.
44, 1996, p. 24-44.
MELTON, Gordon. The rise of the study of new religions. Pensilvânia: Cesnur, 1999.
________. The countercult monitoring movements in historical perspective. In: BECKFORD, James
A.; RICHARDSON, James (Orgs.). Challenging religion. Nevada: The University of Nevada, 2003.
MENDONÇA, Antônio Gouvêa de. Evolução histórica e configuração atual do protestantismo no
Brasil. In: MENDONÇA, Antônio Gouveia de; VELASQUEZ FILHO, Prócoro. Introdução ao
protestantismo no Brasil. São Paulo: Loyola/IMS, 1990.
MONTERO, Paula. A teoria do simbólico em Emile Durkheim e Claude Lévi-Strauss: desdobramentos
contemporâneos no estudo das religiões. Novos Estudos – CEBRAP, v. 98, 2014, p. 47-66.
QUÉRÉ, Louis. Presentation. Reseaux, La Découverte, v. 108, n. 4, 2001.
RICHARDSON, James T. Regulating religion. Case studies from around the globe. Nevada: The
University of Nevada, 2004.
SENNETT, Richard. A corrosão do caráter: o desaparecimento das virtudes com o novo capitalismo.
Rio de Janeiro: Best Bolso, 2012 [1998].
SIEGLER, Elijeh. New religious movements. s/l.: Prentice Hall, 2007.
TAVOLARO, Douglas. O bispo. A história revelada de Edir Macedo. São Paulo: Larousse, 2007.

Citações bíblicas
BÍBLIA on-line ACF. Disponível em: <http://bíblia.golpelprime.com.br>.

Outros documentos
Bispo MACEDO. Os mistérios da Fé. Rio de Janeiro: Universal, 1999.
BOFF, Clodovis. Comunidade Eclesial, comunidade política. Petrópolis: Vozes, 1978.
BOFF, Leonardo. A Trindade e a sociedade. Petrópolis: Vozes, 1987.
BROWN, Robert; BROWN, Rosemary. They lie in wait to deceive: a study in anti-mormon deception.
Mesa, AZ: Brownsworth Publishing Co. Inc., 1984 [1986]. v. 2 e 3.

Religiões e controvérsias Final.indd 334 18/08/2015 10:00:00


CÉSAR, Marília de Camargo. Feridos em nome de Deus. São Paulo: Mundo Cristão, 2009.

Controvérsias dos cultos, pluralismo e movimentos anticulto


335
ENROTH, Ronald M. Recovering from churches that abuse. Michigan: Ed. Grand Rapids, 1992.
GOSSET, Don. Há poder em Suas Palavras. São Paulo: Vida, [1979], 1992.
GUTIERREZ, Gustavo. Teologia da Libertação. Petrópolis: Vozes, 1976.
ROMEIRO, Paulo. Decepcionados com a Graça: esperanças e frustrações no Brasil pentecostal. São
Paulo: Mundo Cristão, 2005.
________. Supercrentes: o Evangelho segundo Kenneth Hagin, Valnice Milhomens e os Protestantes
da Prosperidade. São Paulo: Mundo Cristão, 1993.
REVISTA ÉPOCA de 02/07/2009.

Anexo
Eu nasci no Rio de Janeiro, mas quando tinha 12 anos fui morar com uma tia em
Londres. Uma tarde eu estava passeando com minha tia pelas ruas de Finsbury
Park e vi um teatro. Resolvemos entrar. Na porta estava escrito apenas Teatro
Arco-Íris. Aí eu vi um piano e, como sempre tive paixão pela música, pedi para
tocar um pouco. Quem veio até mim foi o Edir Macedo. Ele me pediu para que
eu tocasse “Yesterday”, dos Beatles. Ele elogiou e me perguntou: “Você sabe tocar
música gospel?” Eu respondi que não, mas consegui acompanhar no piano quando
ele colocou umas músicas gospel para tocar no rádio. Ele disse que precisavam de
um tecladista e eu, que tinha 16 anos, aceitei tocar todos os domingos em troca
de algo em torno de R$ 50. Depois de uns quatro meses, minha tia procurou Edir
Macedo para dizer que eu voltaria ao Brasil. Daí Edir veio com uma proposta:
“Não, a gente vai ajudá-lo. Se você permitir, nós queremos investir nele. A Igreja
se propõe a pagar uma escola para ele aqui na Inglaterra.” A Igreja pagou para mim
por dois anos uma escola de idiomas, a London Capital College. Eu passei a morar
na igreja e não tinha salário.

[...]

Quando fui morar na igreja, eu dividia um quarto com outros obreiros. Passei a tocar
todos os dias, fazia a limpeza do templo, a evangelização, distribuía jornal da igreja
de porta em porta. Eu não tinha dinheiro para ligar para minha família no Brasil,
nem no Natal. Fiquei praticamente confinado. Minha tia deixou de me visitar, achou
que eu estava fanático. Eles fizeram comigo um processo de preparação para ser
um futuro pastor. Quando chegava alguém à igreja para pedir um conselho, o bispo
Macedo me chamava: “Senta aqui do meu lado para você conhecer os problemas
do povo e aprender a orientar as pessoas.” Foram dois anos sentado ao lado dele.
Quando o fiel ia embora, ele perguntava: “Entendeu? Essa moça está com problema
financeiro e está tão fragilizada que, se você disser ‘Faça isso!’, ela vai fazer. Você
tem de despertar essa fé que está nela para que ela venha e traga uma oferta para

Religiões e controvérsias Final.indd 335 18/08/2015 10:00:00


336 a igreja.” Oferta significava dinheiro, mas no começo ele não falava muito a palavra
“dinheiro”, para não me assustar. Dependia dele para ter roupas e comida. Aqueles
que eram bispos tinham muito privilégio. Queria ter a vida que o bispo Macedo e
outros bispos tinham, então eu me submetia a tudo o que mandavam. Cheguei a
fazer um jejum e só beber água durante sete dias. Nesses dois anos não fui sequer
uma vez ao médico. O bispo Macedo me dizia que eu tinha de usar minha fé para
curar a gripe, a dor de cabeça. Fazia parte do processo de sacrifício.

[...] Eu e Edir Macedo saíamos pelo menos duas vezes por semana para procurar
um teatro, um galpão onde desse para abrir uma nova igreja. A gente olhava pri-
meiro a vizinhança. Se tivesse outra Igreja na região, não valia a pena investir. E
olhávamos se o povo era pobre ou de classe média. Se a área fosse pobre, era mais
interessante, a Igreja cresce mais. O bispo Macedo dizia que gente pobre tem todo
tipo de problema. Então, é fácil ter argumento para atrair essas pessoas. Se fosse
um pessoal com mais dinheiro, ele já pensava duas ou três vezes se valia a pena
investir, porque apenas uma minoria frequentaria a igreja. Quando o bairro era de
classe média, o pastor tinha de falar bom inglês e ter cultura, porque colocar um
pastor escandaloso, ignorante, não dava certo. Em Londres, presenciei a criação
de duas Igrejas. Uma foi em Brixton e a outra em Peckham. Os cultos eram em
inglês, 2% ou 3% dos fiéis da Igreja eram brasileiros, 2% ou 3% eram britânicos,
e o restante eram africanos e jamaicanos. Havia uma preferência por colocar um
pastor negro, para que os fiéis se identificassem mais.

[…]

Depois de dois anos na Universal em Londres, meu visto de estudante venceu e


não conseguimos renovar. Eu já estava com 18 anos. O bispo Macedo conversou
comigo e disse que Deus estava me enviando para Portugal. Fiquei lá um mês e meio,
morando em Lisboa, até que o bispo Macedo me avisou que ele iria me registrar
como pastor da Universal e em 15 dias eu estaria em Nova York. Ele disse que não
me deixaria em Portugal porque ele precisava de um pastor com bom inglês nos
Estados Unidos. No dia 13 de maio de 1999, eu cheguei a Nova York. Eu passei a
tocar piano na igreja principal, no Brooklyn. Depois de uns 15 dias, o bispo Mace-
do chegou a Nova York e me disse que eu não deveria ficar só tocando, passaria a
pregar. Foi a primeira vez em que fui responsável por uma igreja, a igreja de Utica,
no Brooklyn. E, como eu era um pastor registrado pela Universal, passei a ter um
salário. Ganhava US$ 600 brutos por mês. Era pouco, mas não tinha despesa com
água, luz, aluguel, porque eu morava na igreja. [...] Em Utica, em dois meses, a
Igreja encheu. Cabiam 70 pessoas. O bispo Macedo achou que tinha valido a pena
investir em mim. Comecei a fazer programas de TV e de rádio para a Igreja e a
participar das reuniões de pastores e bispos. Nessas reuniões, Edir Macedo nos

Religiões e controvérsias Final.indd 336 18/08/2015 10:00:00


ensinava a atingir as metas que ele criava para cada igreja. E a meta era financeira.

Controvérsias dos cultos, pluralismo e movimentos anticulto


337
Não era de fiéis. No primeiro mês, a minha igreja rendeu US$ 3 mil. Daí o bispo
Macedo me falou: “Olha, Gustavo, este mês fez US$ 3 mil. Então, se no mês que
vem você conseguir arrecadar só US$ 2.900, eu tiro a igreja de você. Você vai se
virar para fazer US$ 3.500, senão eu vou descontar do seu salário, você não vai
mais participar das reuniões e vai voltar para o piano.”

Fiquei tranquilo porque eu já tinha aprendido o trabalho. Ele me ensinou o seguinte:


como era uma igreja pequena, primeiro eu tinha de fazer um atendimento corpo a
corpo, conversar com cada um dos membros da igreja, visitar a casa, participar da
vida. Eu levantava toda a vida da pessoa e determinava o dízimo. E eu ia colocando
isso na cabeça das pessoas. Elas chegavam para me contar alguma coisa: “Pastor, fui
viajar e bati meu carro.” Eu dizia: “A senhora está sendo fiel no seu dízimo?” Ela
dizia que não. Então eu falava que era por isso que ela tinha batido o carro. Óbvio
que não tinha nada a ver, mas era uma questão de mexer com o psicológico, para
que ela pensasse que as coisas ruins aconteciam por causa de um erro dela, e não
por um erro da Igreja ou um erro de Deus. Eu tinha de fazer aquela pessoa acreditar
que o dízimo dela era uma coisa sagrada. Noventa e nove por cento das pessoas
que vão à Igreja, e isso eu ouvi do bispo Macedo, não vão para adorar a Deus. Vão
para pedir, porque têm problemas no casamento, nas finanças, de saúde. Então o
bispo falava: “Você chega para a pessoa e diz: ‘Você está com problema financeiro,
não está? Eu sei, eu estou vendo que sua vida financeira não está boa.’ É muito
fácil. Por serem pessoas humildes, elas estão mais propensas a certos problemas.

[…]

As minhas metas sempre eram alcançadas. Edir me dizia: “Agora a meta é US$ 4
mil”, eu fazia 4 mil. “Agora é US$ 5 mil”, eu fazia US$ 5 mil. E, a cada mês que
eu alcançava minha meta, eu ganhava mais crédito, até o ponto de o bispo Macedo
falar: “Você não é pastor para essa Igreja, você é pastor para uma Igreja melhor.
Vou te colocar numa igreja maior, onde a meta já não é US$ 5 mil, a meta é US$
30 mil.” Fiquei seis meses em Utica e fui para a igreja de Bedford. Vinham umas
400 pessoas, e a meta mensal era de US$ 25 mil. Alcancei todas as metas outra
vez. Peguei a igreja com US$ 25 mil e deixei com quase US$ 40 mil de doações
mensais. Aprendi a extorquir o povo, tenho até vergonha de falar. Uma vez coloquei
uma piscina de plástico no altar por 15 dias, cheia de água. Disse que aquela era
uma água do rio Jordão, onde Jesus foi batizado. Eu dizia que as pessoas iam ser
batizadas na mesma água que Jesus, desde que dessem uma oferta. E era água de
torneira. Uma vez consegui fazer os fiéis doarem três carros. Eles iam embora e me
deixavam as chaves e o documento. A Igreja vendia para fazer dinheiro. Entre os
pastores, a conversa sempre era: “E aí, já pegou o mês?” “Pegar o mês” significava

Religiões e controvérsias Final.indd 337 18/08/2015 10:00:00


338 cumprir a meta. Eu chegava para um pastor que tinha uma igreja melhor que a
minha e perguntava: “Já pegou o mês?” “Já, fiz US$ 80 mil”, ele dizia. Eu respondia:
“Olha, meu mês está em US$ 50 mil, mas vou fazer uma loucura, vou passar o teu
mês e vou pegar tua igreja, hein?!”

[…]

Quanto mais eu ganhava para a Igreja, mais privilégios eu tinha. O meu pior carro
foi um Toyota Corolla, era o primeiro carro de todo pastor. Do Corolla, passei
para um Ford Focus, zero quilômetro. Do Focus, tive um Honda Civic, do ano.
Do Civic, fui para um Honda Accord. Nos Estados Unidos, morei em três casas
diferentes. Conforme cumpria a meta, as casas aumentavam de tamanho, melho-
ravam de localização. O bispo Macedo pegava o relatório do mês, via a progressão
de rendimentos e te perguntava: “Você está morando onde? E vai para a igreja com
que carro? Faz o seguinte: fala com o bispo responsável para ele te mudar para tal
casa.” Ele olhava em uma relação de pastores os bens que cada um estava usando e
dizia: “Esse carro aí que você tem, dê para o pastor Álvaro e pega o carro do pastor
Álvaro para você.” Era frequente essa troca de carros e casas entre os pastores.
Como a gente não podia comprar mobília nem bens, só coisas pessoais, roupas, a
mudança era bem rápida. Pastor não pode ter nada em seu nome, todos os carros
que eu tive e casas em que morei estavam no nome da Universal.

[…]

Em 2001, eu tinha 21 anos, era um pastor promissor e ainda era solteiro. Namorava
havia dois anos uma americana que era obreira da Igreja. Houve uma dessas reuniões
de bispos e pastores e o Edir Macedo estava chamando a atenção de todo mundo.
Ele olhou para mim: “Fica de pé. Você está namorando?” Eu disse que sim. “Mas
quem autorizou seu namoro? Está tudo errado. Você vai pegar o meu celular e vai
ligar para sua namorada. Você vai dizer para ela que Deus não quer mais que vocês
fiquem juntos.” Eu fiquei indeciso, mas não teve jeito. Peguei o telefone, liguei
para minha namorada no viva-voz e rompi com ela. Quando desliguei, ele disse
para os pastores: “Estão vendo? A obra de Deus precisa de homens assim. Por você
ter obedecido, vai ser abençoado agora. Você vai para o Brasil e vai conhecer uma
mulher que Deus preparou para você. E você vai casar com ela. Você é um pastor
da minha confiança, mas nela eu confio ainda mais do que em você, porque ela
mora na minha casa, ela é minha empregada doméstica.” Embarquei para o Brasil
no dia seguinte. Só conheci a Jacira no cartório. Dois dias depois, a gente casou
no religioso. O bispo João Batista (ex-deputado federal) fez o casamento e pagou
a lua de mel em Poços de Caldas (Minas Gerais). No dia em que partimos para a
lua de mel, ele disse: “Gasta à vontade, porque quem está pagando isso é o povo.
Não tem limite, fica tranquilo.”

Religiões e controvérsias Final.indd 338 18/08/2015 10:00:00


Depois que voltei da lua de mel, passamos 15 dias na casa do João Batista, até que

Controvérsias dos cultos, pluralismo e movimentos anticulto


339
o visto da Jacira saísse. Era um apartamento por andar, com oito quartos. O João
Batista guardava uma boa quantidade de dinheiro no escritório, notas de dólar
e real. A Jacira me disse que estava acostumada a ver aquilo na casa dos bispos.
Quando voltei aos Estados Unidos levando a Jacira, o bispo Macedo me disse:
“Que bom que deu tudo certo. O visto dela já tinha sido negado antes, mas você
conseguiu trazê-la.” O casamento garantiu a entrada da empregada doméstica dele
nos Estados Unidos.

[…]

Logo depois que eu casei, o bispo Macedo me obrigou a fazer vasectomia. Ele jus-
tificava dizendo que um filho traria despesas e dificuldades para que eu fizesse a
obra de Deus, já que com filho era mais difícil mudar de país. Ele dizia que a saída
era, quando eu me tornasse um bispo, adotar, seguir o exemplo dele, dos genros
dele, Renato Cardoso e Júlio Freitas. Os três primeiros médicos que procurei se
recusaram a me operar. Eu tinha 21 anos e nenhum filho. O quarto topou, mas me
disse que não recomendava. Fiz uma vasectomia irreversível. Enquanto eu estava
nos Estados Unidos, dos 26 pastores que trabalhavam em Nova York, sete também
fizeram. Se você não faz a vasectomia, perde a chance de crescer e chegar a bispo,
vai ser só mais um pastor que fica 15 anos na mesma igreja e não sai do lugar.

[...]

Quando cheguei a Nova York com a Jacira, Edir Macedo e a mulher dele, a Ester,
quiseram que ela fosse morar com eles. Eu era casado com ela. Daí eles me disse-
ram: “Faz o seguinte. Pega um quarto aí e mora aqui com a gente.” Passei a morar
no dúplex do Edir Macedo. [...] Quanto se gastava na casa do bispo Macedo era
uma coisa que nem se fazia um cálculo, porque não precisava. Os outros bispos
também viviam muito bem. Como os pastores, eles também tinham um contra-
cheque bem baixo, mas era só fachada, para mostrar em caso de investigação. Mas
o salário que vinha por fora era muito maior. Eu já presenciei durante a contagem
da oferta os bispos dividirem o dinheiro entre si, esse ou aquele bispo tirar US$
10 mil de uma oferta de US$ 50 mil. Eu também ganhava coisa por fora. Quando
trabalhei com alguns bispos e a oferta era muito boa, o próprio bispo dizia para eu
pegar um dinheiro para mim. Quando saí da Igreja, eu tinha uns US$ 15 mil na
conta que eu tinha tirado das doações dos fiéis.

[…]

Uns quatro meses depois de fazer a vasectomia, comecei a ter problemas com a
cirurgia. Descobri que o médico que me operou acabou cortando uma veia que não
deveria ter sido cortada. Tive uma espécie de trombose nos testículos. Tive de usar

Religiões e controvérsias Final.indd 339 18/08/2015 10:00:00


340 um dreno e fui afastado pelo médico da pregação, mas o bispo Macedo me mandava
trabalhar mesmo assim, usar a fé para me curar. Tive de fazer mais três cirurgias.
O bispo Macedo dizia que eu devia estar endiabrado, que eu estava recebendo
salário da Igreja para não fazer nada. A pressão para que eu voltasse a trabalhar era
tanta que tive de mostrar ao bispo Macedo todos os papéis, exames, porque ele
não acreditava que eu realmente estava doente. Quando ele viu os laudos médicos,
notou que tinha havido um erro. Foi logo me dizendo que um processo daria uma
indenização milionária. Procurei um advogado, que me disse que era uma causa
ganha e que o processo duraria um ano e meio e deveria render por volta de US$
500 mil. Quando o Edir soube que eu procurei outro advogado e não o da Igreja,
ele ficou bravo. Disse que eu tinha de procurar o advogado da Universal para abrir
o processo e que deveria passar uma procuração para ele, porque o dinheiro que
viesse deveria ser dado para a Igreja, para a obra de Deus. Eu me recusei, disse
que precisaria do dinheiro, que teria de me tratar. E aí começou uma pressão, e eu
resolvi desistir do processo e fazer um acordo de US$ 65 mil com o médico. No
mesmo dia em que assinei o acordo, o dinheiro já estava na minha conta. Quando
contei ao bispo Macedo, ele começou a gritar comigo, dizer que eu era maluco,
perguntou onde estava o dinheiro. Eu disse que estava na minha conta. Ele me
mandou ir ao banco na mesma hora, sacar o dinheiro e depositar na conta da Igreja.
Eu me recusei. E aí ele me disse que eu estava fora: “A partir de hoje, você não é
mais pastor da Igreja Universal. Você vai embora para o Brasil e não procure mais
a Igreja.” Isso foi em julho de 2004. E eu, doente, com quatro cirurgias feitas, fui
mandado embora sem receber um dólar da Igreja, depois de cinco anos de trabalho
na Igreja. Nunca tive férias, não tinha dia de folga certo. Eu me senti usado.

Voltei para o Brasil, me separei da Jacira um ano depois. Eu sofri por ter entrado
na Igreja muito jovem, abandonei a família, não terminei os estudos. Eu não tinha
amigos que não fossem pastores ou bispos, não sabia o que era lutar por um emprego,
não sabia quanto era um aluguel. Perdi tudo. Eu sempre me lembro da frase que
o bispo Macedo costumava me falar: “Se você sair da Igreja um dia, todos esses
demônios que você expulsou nestes anos vão voltar para sua vida.”

Gustavo Rocha fez parte da Igreja por oito anos, cinco deles como pastor (ÉPOCA,
18/09/2009).

Religiões e controvérsias Final.indd 340 18/08/2015 10:00:00


Sobre os autores

Paula Montero – Possui graduação em psicologia – Université Réné Descartes


Sorbonne (1976) e graduação em ciências sociais – Université de Paris VII –
Vincennes (1973), mestrado em antropologia social – Université de Paris VII
(1974) e doutorado em antropologia pela Universidade de São Paulo (1983).
Foi presidente do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento – CEBRAP (2008-
2015), coordenadora adjunta da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de
São Paulo – FAPESP e professora titular da Universidade de São Paulo.
Eduardo Dullo – Doutor em antropologia social pelo Museu Nacional/UFRJ
(2013), pesquisador associado do CEBRAP e pesquisador de pós-doutorado como
bolsista FAPESP (2013/16433-3) junto ao Departamento de Antropologia da USP.
Atualmente é Visiting Scholar (2015-2016) no Departamento de Antropologia
Social da Universidade de Cambridge.
Carlos Gutierrez – Doutorando em antropologia social (sob financiamento da
FAPESP) no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social na UNICAMP –
Universidade Estadual de Campinas, é mestre em antropologia social pela
USP. Atualmente, realiza estágio doutoral na EHESS – École des Hautes Études
en Sciences Sociales, em Paris, no LIER – Laboratoire Interdisciplinaire des
Études sur les Réflexivités. É pesquisador assistente do CEBRAP e pesquisador
no Institut Marcel Mauss, da França.

Religiões e controvérsias Final.indd 341 18/08/2015 10:00:00


Lílian Sales – Possui graduação em ciências sociais pela Universidade Estadual
de Campinas (1996), mestrado (2003) e doutorado (2009) em antropologia
social pela Universidade de São Paulo. Atualmente é professora adjunta de
antropologia na Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) e pesquisadora
associada do CEBRAP.
César Augusto de Assis Silva – Possui bacharelado (2003) e licenciatura
(2009) em ciências sociais pela Universidade de São Paulo e doutorado em
antropologia social (2010) pela mesma instituição. Realizou seu pós-doutorado
no Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP) onde também atua
como pesquisador. Atualmente trabalha como psicanalista.
Milton Bortoleto – Doutorando em sociologia pela Universidade de São Paulo
(USP), mestre em antropologia social pela Universidade de São Paulo (USP) e
bacharel em ciências sociais pela mesma universidade, atualmente é pesqui-
sador associado do CEBRAP.
Henrique Fernandes Antunes – Doutorando em antropologia social na Univer-
sidade de São Paulo, é mestre em antropologia social pela mesma universidade
(2012). Possui licenciatura plena em ciências sociais (2006) e bacharelado em
antropologia (2008) pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita
Filho (UNESP-FFC). É pesquisador associado do CEBRAP.
Aramis Luis Silva – Doutor (2011) e mestre (2006) pelo Departamento de
Antropologia Social da Universidade de São Paulo (USP), possui graduação
em ciências sociais pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
USP (2003) e graduação em comunicação social – jornalismo pela Faculdade
Cásper Líbero (1997). Atualmente é pós-doutorando pelo Programa de Ciên-
cias Sociais da UNIFESP e pesquisador associado do CEBRAP.
Jacqueline Moraes Teixeira – Doutoranda em antropologia social na Univer-
sidade de São Paulo (USP) onde obteve o título de mestre em antropologia,
tendo sido financiada pela FAPESP. Possui graduação em ciências sociais (USP)
e graduação em teologia (Faculdade Batista e Universidade Presbiteriana
Mackenzie). Atua como pesquisadora no CEBRAP e no NAU (Núcleo de Antro-
pologia Urbana da USP)
José Edilson Teles – Graduado em teologia, é graduando em ciências sociais
pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESP-SP) e pesqui-
sador associado do CEBRAP.
Asher Brum – Doutorando do Programa de Ciências Sociais, com financia-
mento da FAPESP, do IFCH/UNICAMP, mestre em sociologia pela Universidade

Religiões e controvérsias Final.indd 342 18/08/2015 10:00:00


Estadual de Campinas (2011) e graduado em ciências sociais pela Universidade
Estadual do Oeste do Paraná (2008). Atualmente é pesquisador visitante no
Departamento de Antropologia da Universidade da Califórnia, Berkeley. Tam-
bém é pesquisador associado do CEBRAP.

Religiões e controvérsias Final.indd 343 18/08/2015 10:00:00


Religiões e controvérsias Final.indd 344 18/08/2015 10:00:00

Potrebbero piacerti anche