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DIALÉTICA DAS NUVENS

Marcos Ioshua Ribeiro


DIALÉTICA DAS NUVENS
Marcos Ioshua Ribeiro

São Paulo - outono de 2019


© 2019 Marcos Ioshua Ribeiro

Todos os direitos reservados ao autor.


Nenhum trecho desta publicação
poderá ser reproduzido
sem prévia autorização

Projeto gráfico e edição


BAR editora

Capa
A partir da obra ‘‘Caminhante sobre o mar
de névoa’’ de Caspar David Friedrich

Revisão
Tamiris Vianna

Ribeiro, Marcos Ioshua

Dialética das nuvens. São Paulo, SP:


BAR editora, 2019
96 p.

1. Poesia brasileira I.Título

www.facebook.com/bareditora
para a minha familia,
e Matheus Alves, meu amigo.
aos possíveis leitores: Álvares de Azevedo,
em prefácio da 'Lira dos vinte anos' escreve:
''São os primeiros cantos de um pobre poeta.
Desculpai-os. As primeiras vozes do sabiá
não têm a doçura dos seus cânticos de amor. ''
da minha parte, confesso: não foi ainda nesse
livro que arquivei o mistério e a fascinação
que escorre dos automóveis abertos; das
nuvens de vertiginosa brancura; dos lugares
onde o ar é saudável; das mulheres e das
crianças; da comunhão sincera e gratuita de
duas ou mais pessoas.
contudo, esse livro é testemunha de meus
momentos de sensibilidade, por meio da qual
em meus olhos deslizaram o que foi antes de
mim, chamado de ''a tinta do coração'';
testemunha dos momentos em que senti um
santo alívio: seja ao ler nos ônibus; ouvir
músicas; não dormir por estar eufórico ou
fazer do sábado um monumento de alegria...
também dos momentos quando achei que me
diluiria para sempre no centro da escura
noite, dos combates com o Dom Quixote
taciturno e perdido que há em mim, das
intermináveis crises que atravessei sozinho
num pântano maligno.
invocação à palavra amor.
para a professora, Tamiris Vianna.

amor compõe edifícios no ar,


constrói castelos de vidros
e arquiteta mares de solidões.

amor é um bálsamo em forma de selo,


pregado ao espírito]
e às afeições das criaturas humanas.
amor dilui as formas, pasmando flores,
deuses,]
ventos de sertões, chamas sem pecado.
e, nesse pasmar, casam, diariamente, no céu
e na terra:]
animal e luz, concreto e abstrato.
todo sólido, toda matéria, todo núcleo,
tem no corpo a substância neutra de amar.
todo gesto tem no fundo um resquício de
amor.]
todo fio de vida, facho de luz, crepitar de
respiração]
nasce puramente do dourado arco do amor.

amar traz na brancura do seu vestido a

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invenção do tempo.]
só o amor apresenta a resoluta existência.
amar nunca se satura no ato de da amação.
é amando que almas se expandem e se
envolvem, até serem uma só:]
no chão, sacada, hotel, rua escura.
o resultado é o relaxamento do cosmos.

amor em madureza, amor em juventude...


amar nunca foi questão de rugas ou de
transparência,]
aquilo que se ama não tem idade.
amor... o giz da tua palavra contorna a
silhueta da alma humana...]
e só em amor a alma se basta, se resolve, se
sacia]
e volta a ser o que um dia foi.
retorna às origens, quando os seres se
iniciaram em um breve primeiro estágio,
e logo se transformaram em uma ebulição,
pronta para desaguar na terra virgem.

amor mastiga o puro silêncio e nos devolve


rosa aberta,]
estalo de beijo, cama feita ao anoitecer, água
na concha das mãos,]

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caminho sem obstáculo,
e, por fim, um outro mundo
um outro mundo sonhado,
como um dia sonharam os anjos,
quando compuseram a natureza humana.

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mestiçagem.

a minha pátria é não ter raça.


existo órfão de antepassados:
sou transparência sem água
e pegada sem chão.

alvejo-me na luz da manhã.


meu destino é ser poente.
remoço minha tardia infância.
caminho para me curar de sofrer.

vou me escrever de alegria.


pois qual maior infortúnio
se não ainda em vida
ter saudades de viver?

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o mito de Sísifo.

vertigem, suor e bagaço de homem.


o mesmo enjoo e fardo de ter olhos e não
ter horizontes.]
as mil e uma faces apagadas no cotidiano.
eu vou de automóvel nas avenidas.
(alguns rostos passam e se perdem na cor
da velocidade)]
minha vida é tão sensível. poderia se
quebrar com um]
acidente qualquer. e faria falta alguma.
vivi de palavras. não obstante, nenhuma
delas se daria ao trabalho,]
de prestar homenagem ou de fazer que
alguém se lembre do pouco que algum dia
fui.]

eu tenho um corpo, um peso e um nome.


não levanto voo e não mergulho em
abismos.]
rumino frases e mastigo ausências.
levo comigo a costumeira febre de viver.
e, na completa falta de ser autêntico,
eu inventei uma realidade mais amena.

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contudo, a descobri falho e desprezível
e amanheci sem parede ou porta.
sem saída ou esconderijo.
sem terra, pão ou abraço.

essa tarefa de nascer de mulher


e cumprir penas diárias:
isso deveria ser apenas para santos.
ou para falsos deuses, já mortos.

não para homens medíocres como eu.


homens sem absolutamente nada de divino.
homens de tamanho romantismo
que quase optaram pelo celibato.
homens que foram censurados
por chorarem na infância.
homens que, de tanto seguirem os
caminhos do coração, esqueceram os
caminhos do mundo.

a pedra Sisífo continua firme:


o sol tem um arco de delírio na boca
e despeja os homens ao trabalho.
as farmácias são seguras de seus contadores.
os mercados são depósitos de lixo
industrial.]

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os escritórios são mártires de inveja e de
adultério.]
e as casas, embotadas de ruídos e de
náuseas.]

eu sou melancólico como uma pausa dentro


de um solo de flauta.]

15
espera.

ali no útero da tarde


eu te esperava como a solidão
espera um homem ficar sóbrio.

16
lavoura.

semeie tua palavra


nos gomos áridos
desse espaço em branco.

enquanto ainda é estação.

17
ode a Jorge Ben,
emissário da onibenevolência.

de 1945, Zé Pretinho veio.


45 marca o fim da barbárie nazista.
marca a iniciação de um emissário.

a frase agra-
matical. O morro
se enchendo de graça,
a voz rouca de roda de samba
e cachaça.

alquimista cósmico
que trabalha o ritmo metálico.
desfila maquinarias dissolutas
e retifica uma cultura de nevoa.

tudo é Cadê Tereza.


tudo é País Tropical.

eu não sou flamengo


mas sou fluente no estudo
das décadas de preto e branco
onde Fio Maravilha só não entrou

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com bola e tudo porque teve humildade.

já quis ser tu, Jorge Ben.


nas me contento em ser Marcos.
contento-me com o magro invento.
e não almejo o espaço final
que é só teu.

oh! meus delírios boiando


nas águas da madrugada.
experimentalismos e mutações
também compõem meu caminho.

eu e o povo somos sementes


do seu ritmo alegre e miscigenado.

que não acabe sua música,


Jorge, que é uma gentileza
e motivo de sorriso
aos que sofrem a falta do pão.

19
confessionário.

eu não amei as contradições do mundo.


não levei nos ombros os santuários
dos quais os homens veneram com toda
fibra das vísceras.]
e a vontade de chorar imobilizava minha
vida.]

eu não amei a espiritualidade da solidão.

contudo, me exilei do convívio humano,


não tencionava morrer, pois a morte é
demasiado exílio.]
ambicionava, sim, me ausentar do tempo;
apagar-me do presente; regressar ao ventre;
desinventar essa angústia de nascença;
diluir a sofrência grudada àboca...
não existir, para não me doer a vida.

neu corpo foi um chacal atordoado,


uma várzea irremediavelmente abandonada,
um giz de loucura e de profunda confusão.
passei os dias em um escuro encenamento
de como morrer silenciosamente.

20
eu não amei nem mesmo esse que sou.
vivia buscando reconstruir o mito do
passado.]
e essa brancura na minha voz
não deixava cumprimentar o futuro.

21
ardência.

eu pronuncio teu nome como quem toca


um verão feito de palavras.

22
anúncio.

larvas de amor
comendo minha palavra.
sede azul e quente
azulando meu desejo.

tardes de agosto
enchendo minha nostalgia.
fumaças e signos
desenhando teu nome.

substâncias cíclicas
aflorando em fogo
meu corpo à procura do seu.
e na procura um delírio
encarnado em forma de espasmo.
sentimento paterno
trazendo vontade
de te ter como filha.
coragem e ternura
fazendo te ver como irmã.

ídolos de suor e febre


fazendo eu te querer como amante.

23
choque.

o mar bate em pedras.


poetas batem na porta da desgraça.

24
odisseia, 1998.

um homem atravessa o litoral.


uma sereia de seios de algas
de longe o observa.

o homem ignora. surda marcha até o centro


do mar.
a seria canta uma melodia precisa.
o homem mergulha no oceano.
vai indo ao encontro das cidades submersas.

pretende nascer de novo


nos fundos do vestido de sal
que coroa sua noiva
de nome mar.

25
recurso linguístico.

a pessoa amada dizendo sobre amor é


metalinguagem.

26
aurora.

ah! sensação de contentamento,


se reconstruíram as ruínas do meu peito,
antes oprimido.]
eu quero uma grinalda verde e uma mulher
de marfim]
objetos cheios de luz e frutas macias.
aos poucos, fico menos rígido
desaprendo lentamente como sorve o leite
ínsone,]
ao qual fui acostumado desde a tenra
infância.]
recuso aos poucos o fermento de angústia
que antes dominava minhas veias.]

o amanhã nasce sem os percalços do


ontem. eu já arquiteto outra pátria]
onde jacintos e flores de crepom enfeitam a
noite luminosa!]

27
morto na tarde.

simultaneamente
as enxadas vão escavando
a terra. sou enterrado vivo.

a nudez do céu vai sendo ofuscada.

28
surreal.

girassóis fulminantes
assassinam estátuas
sedentárias e inócuas.

eu não aguento mais


esse estado de decomposição.
desintegro-me aos poucos
em pura tragédia.

preciso subverter.

não vejo a hora


de me libertar do meu corpo.
regressar à luminosidade
de ser apenas ideia.

29
companheiro.

por de baixo do invólucro


fica o sincero não dito.
assim esquecemos o dito
que era melhor ser guardado
no quase dito.

arde essa solidão a dois.


onde somos testemunhas
desse silêncio lessa-vida.

minerais compõem
nosso rosto, onde escorrem
águas juvenis.

desde cedo: te acompanho.


nossa irmandade é feita
de delitos de infância.
iniciações incomuns.

companheiro significa:
aquele que divide o pão.

e mais que isso:

30
dividimos a fuligem
da incomunicação e a amargura
quase hereditária.

desperta de nós,
um córrego triste.

31
poesia, liberdade.

reinvento-me de vozes
e ludibrio a linguagem.
sou a solidão da assa
no espaço inócuo.

eu, raiz exposta


sangrando vida e latência.

não amo o mundo.


nem nada do que dele
se compõe, na vastidão.

estou pronto
a morrer como divindades.
pronto a escurecer
mesmo no centro da luz.

32
insigths.

nos meus olhos passam insigths tecnicolor


duros intactos. trechos do que foi e não mais
é. relances do que será e ainda não é. o sábado
é cruel. especialmente no inicio do meses.
desmistifica minha carne. reduz as coisas a
um estado bruto. não levanta solução
nenhuma. deixa em aberto os porquês. traz
uma redoma de fumê. exilando-me de tudo.
não assistirei Strip-tease nem os noticiários.
será escasso entretenimento. desgastarei
palavras com pressa, fúria ou simplesmente
indiferença. terei ansiedade e exercícios de
respiração. buscarei ar, na superfície, como na
volta de um escafandrista. faltará até mesmo
uma moedinha. minhas economias são
curtas. não posso beber cerveja, muito menos
corote. e não tenho o costume de beber.
enfrentarei a severidade do momento total-
mente sóbrio. ou não? talvez essa lucidez que
se passe no meu corpo seja enganadora.
talvez tenha enlouquecido horas atrás. penso
nos estudantes de medicina que desmaiam ao
ver cadáveres na iniciação científica. árduo

33
trabalho ver o cru da vida. e por dentro so-
mos crus. falta alguma palavra para justificar a
vida. essa justificação não é filosófica, é de um
campo menos racional. não tenho mulher.
desperdiço todas. sofro por amar. toda hora
parece querer arrebentar de mim desenfrea-
dos instintos e gestos. mal me seguro. com
um gesto eu tento dispensar um conflito que
se faz onipresente na minha consciência.
apago e acendo a luz. tenho medo que a
lâmpada queime. o escuro esconde os móveis
e cria um olho no teto que me julga e diz o que
tento negar. diz o que esconde de mim, desde
o início dessa temporada. nessa última
semana, estou em crise. jogo o jogo do
contente e tento pensar nas crianças que
sofrem de subnutrição e têm os pés
mordazmente sujos. eu tenho os pés sujos, e
eles mancham o lençol azul. penso em nunca
mais sair de casa. impus quarentena.
tudo é não-amor. tudo é caos jorrando do
ventilador.

34
ternura.

aprenda a me querer.
meu carmim,
minha seda de brancura.
da ocupação ao feitiço
do meu coração.

sofra por mim.


se encolerize, morra,
troque tudo por mim.

conto os minutos
para no fruto da noite
te mutilar de ternura.

quero tocar na sua nudez


como quem toca em Deus.

35
um novo poema da necessidade.

(a Carlos Drummond de Andrade.)


é necessário remendar os panos da vida.
é necessário abrir a noite, com a chave de
um sonho.]
é necessário construir um novo edifício
para abrigar os mendigos sentimentos.
é necessário encontrar Deus, ainda nessa
vida.]
é necessário parar de fumar e pedir dinheiro
emprestado.]
é necessário ouvir uma música que fale da
amplidão,]
e esquecer o sentimento do nada.
é necessário, mesmo que doa, arrancar os
olhos]
e ver a vida por um outro ângulo.
é necessário nascer de novo, quantas vezes
for preciso.]
é necessário deixar as margens desse rio
solitário]
e entrar na cidade, com as mãos pálidas,
anunciando que o sol ainda brilha, mesmo
que nos olhos escorram trevas.]

36
eu estou procurando.

eu estou procurando, varrendo os subsolos,


à procura de alguma coisa palpável.]
eu estou desencaixotando velharias e
tentando ser irmão]
do absoluto que mora na existência.
são tantos objetos já anoitecidos e ocultos.
meu amor, que horas você passará por aqui?
trará um pouco do que fui?
eu não aguento mais meu estado atual.
eu sou uma casa velha a mastigar a
paisagem.]
essa agitação é natural, meu bem, isso não é
cocaína.]
é apenas uma intensa vontade de fugir,
criar com os pés um país distante e patético
onde de manhã todos podem chorar nas
praças]
e deixar de fingir que aguentam o
espetáculo da vida,]
vontade de entrar em jardins verdes, roxos,
de todas as cores.]
se eu entrasse num jardim, tentaria
reinventar meu mundo inteiro.

37
por enquanto, estou viajando na carne desse
dia.]
e, nesse ritmo distante, saio na rua, sem
pátria, sem dinheiro,]
apenas por andar de forma errante.
e, na minha cidade, principalmente a essas
horas, não existe nem sinal de jardins...]

38
linguística.

os signos são arbitrários

o significante de amor não é seu nome.


o referente não é seu rosto.

39
comtemplação.

as nuvens são os icebergs do céu.

40
mar de java.

teus dois olhos


mais parecem filhos
do mar de Java,
irmãos de palavras que sonham,
úteros de vida, selos, pés de romãs

teus dois braços


abraçam o núcleo da vida,
feito uma mãe lacrimosa
um cão fiel
um senhor benevolente

teus dois pés


são construídos de luz,
moldados em máquinas gasosas

seu silêncio é o timbre de uma flauta porosa

amor é linguagem transitória


quando passa
deixa vestígios na carcaça

41
trégua.

os mais violentos combates são aqueles que


não envolvem sangue.]

felizmente
hoje de manhã sangrei um pouco.

42
tempo.

o que põe em uma reta os sofrimentos...

43
depois.

estou cheio de paredes após sorver o caldo


do sofrimento.]

44
esperança.

um cavalo galopando
rumo a uma cidade de ouro.

45
entranhas.

aquilo que levo na ponta dos dedos.

46
erótico.

teus seios na foto


são poemonografias.

47
crucificação.

eu, crucificado em setas negras.


nergulhado em águas turvas.

não ambiciono nada.


não prossigo através de nada.

reticente por conta


de um anteontem,
não tenho velocidade
ou massa para abrir
o flanco verde musgo
do tempo vestido de carrasco.

48
inconsciência.

naquele momento, desmaiei.


minha boca ficou tingida de branco.
era um branco tão forte e solitário
que mais parecia a violeta branca da agonia.

49
cotidiano.

fábrica de produzir desencantos.

50
demiurgo.

o descobrimento do demiurgo já não me atrai


tanto. antes, era um sempre querer. aos
poucos, não me fascina mais. estou perdendo
o desespero em descobrir o que há na
antimatéria da máquina do mundo. não é
mais urgente saber quais minerais formaram
o caldo humano ou quem foi o primeiro
homem.
antes, eu imaginava seres superiores por
graus, que nos olhavam cotidianamente e,
com estranheza, viam nossas aventuras as-
salariadas ou a fome da falta do dinheiro. nos
olhavam, tendo todas as respostas e palavras
que nos faltam. superiores em graus como
somos diante de formigas. faziam anotações
sobre o drama terrestre. nessa visões eu me
perdia. não sabia o que falta a seres humanos.
e o que faltaria a nós? temos, claro, uma
esperança quase auriverde. ajuda-nos nas
pequenas coisas, como, por exemplo, supor-
tar os fardos, sem o auxílio do álcool. ou
encontrar razões nas sem razões do fluxo
habitual do tempo. por vezes mistifica, um

51
estado bruto, que poderia nos fazer abaixar
a cabeça e nunca mais voltar à tona.
contudo, a quase auriverde esperança não
impede um desmanche na superfície da
realidade e voltas compulsivas no calor abso-
luto do interior. não impede de não conseguir
entrar em assuntos corriqueiros por conta de
um estado de sítio interno. não faz nada para
impedir desmaios e aves noturnas que bicam
nossos corpos, trazendo a peste da insônia.
ou o encerramento em solidão, por medo ou
precaução de não mais amar, pois o estado é
líquido e volúvel e amanhã poderemos ser
outro.
sempre somos outros. sempre somos os
mesmos outros
mas foge ao meu léxico o que nos falta. é uma
falta que dói como um membro apodrecido.
certa vez, eu senti essa falta. deitado em uma
cama estranha. era outra cidade. minha
companhia havia me deixado por alguns
minutos. corria um blues pelo ar. ali, dei conta
da minha humanidade e um vazio devorava
meus órgãos. eu sentia que faltava. lateava
uma ausência monstruosa. depois disso,
nunca mais fui o mesmo. em uma festa

52
naquela semana, chorei no banheiro,
salgando a pia, ao ponto de peixes negros
brotarem nos ralos.
mas me conformo aos poucos, a lentidão dos
ciclos. não protesto. não grito. calo. espero.
deixo a fluidez escorrer no meu corpo. vivo
minha vida sul-americana, sem mistérios. sem
encantamentos. convencido de que minha
procura foi alucinada. nessas mansardas onde
vivo, me acostumo aos ratos e à fartura da
miséria.

53
o que restou.

de ipês amarelos
meu caminho sonhei,
apenas raízes amargas achei.

54
uma tarde em fevereiro de 2019.

desprovido de sentido último.


sou apenas um homem e não levo comigo
um único botão de fazer auroras.]
um único dispositivo de acionar milagres.
a vida passa entre canaviais de angústias
e um enferrujado rio de dúvidas.
o sol ilumina, mas também castiga.
eu improviso um blues, enquanto sinto na
carne]
o líquido verde, de mil maneiras de morrer.
eu não tenho casa e nem pátria.
atordoado no prado escuro, confuso e
relutante]
em uma massa disforme de milhões de
outros homens.]
eu me confundo na multidão.
eu iludo, eu minto e me calo.
e com um beijo cômico e desesperançoso
aquilo que eu levava no selo da alma,
me traiu. e tudo, inclusive o amor, é uma
apagada lembrança.]
um rosto esquecido, um ídolo morto,
uma mentira esganada por um facho de

55
verdade.]
e faltou no momento mais necessário do
campeonato uma mulher dessas que dizem
coisas mansas e paradas.]
mma mulher que dissolvesse a ausência,
a falta, o vazio, a obscuridade da noite.
uma mulher. uma mulher.

durante as tardes, o clima é favorável.


à noite, é quando ocorrem súbitos
desmaios.]
é quando a disputa se acirra, e minha cabeça
é posta a prêmio.]
é quando alguma coisa sem nome se
personifica em caminhos medrosos e
verdes.]
caminho esses que, ao palmilhar meus pés,
se tornam cada vez mais desgastados.
e me dói manter o equilíbrio.
e o tempo é uma surda máquina de
construir]
mortalhas e melodias fúnebres.
e o cortejo é cada vez mais inevitável.
e, mesmo beijando o presente, eu pressinto
os passos de marfim da minha derradeira
morte.]

56
e eu, espectador e receoso, espero a
qualquer momento um tiro na garganta.]

a vida é um incêndio que molha.

57
composição.

não fui feito da mesma


substância do ferro.
sinto os universais humanos:
fome, medo, sensibilidade.

em noites como essa,


alguma coisa se revela em mim.
divide o tempo, rouba a consciência,
me faz nascer novamente.
e morro na sucessão
de segundos, para voltar
mais racional, calmo, compenetrado.
tantas ciências, nesse vasto mundo,
e tudo é tão raso e pouco.
algumas palavras, no minuto errado,
custam uma vida, um abismo na emoção.

nos vazios da tarde,


entra uma luz diminuta.
convence-me de que o necessário é viver.
mas, no momento, escorre
nos vidros da pupila,
um sinalizador de vida.

58
salgando o chão.
abrindo um mar aos pés.

tantos requisitos,
tantos protestos contra a existência.
tanto amor deixado às traças.
tanto parcelamento e esquecimento.

o futuro há de ser melhor.


a esperança
ainda intoxica
os pulmões da vida.

59
controle.

fazer caminhada é arar a ansiedade.

60
sobre um desejo.

meu desejo é uma fome,


fome que não procura o saciamento.
procura sentir cada vez mais o prazer
de semi realizações e de vindouras fomes.

antevejo o início da curvatura do seus seios.


há pequenas manchas, simbolizando
pequenas estrelas de fogo e água.
procuro adivinhar seu corpo despido,
esse corpo de clarão e tempero marítimo.

sonho, sentado e sentindo espasmos,


o contato da língua com a língua,
numa confluência sagrada.

cai nos meu pensamentos,


o choque dos corpos, como ilhas
se fundindo até ser continente.

61
santidade.

o silencio é que verdadeiramente foi feito à


imagem e semelhança de Deus.

62
alucinação.

o mar é uma alucinação,


um espelho do céu,
um monstro azul soterrado.
e os vidros se quebram
ao som do rumor das águas
que são como seus olhos:
puros e transparentes.
demonstram na cerração das pálpebras
todos os crepúsculos possíveis e
imagináveis.]
desconfio que te amo porque em ti
vejo a figura do meu passado,
aquele outro eu,
que andava em secretos jardins,
amava a solidão, criava luzes,
num tempo em que as tardes cheiravam a
orquídeas]
e a primavera arrumava distrações,
aniversários e um contentamento
espontâneo.]
no teu rosto, vejo a tocha do futuro,
a promessa de um novo verão,
o fim da seca no meu íntimo,

63
vejo uma descoberta, um analgésico.

todos os meus sonhos de menino


são estampados na tua pequena boca,
boca manchada de batom, que diz palavras
que constroem altares e bandeiras no ar,
no tempo, na concha de mil e um instantes.
boca de saída de pássaros que não têm
nomes,]
de rotações marítimas e flores em fogo,
isso tudo, atrelado a suas pernas
que dão a volta nos moldes do meu
coração.]
e sua voz é um cisnei dourado,
que dança num compasso de Galácia,
restaurando o que um dia todos os homens
foram.]
por isso te amo. amo vigorosamente, sem
reticências, amo como um anjo ama]
um suicida afogado e como um suicida
um dia amou sua vida.

64
sem recurso.

nem Bach salva as catedrais da dor.

65
dialética africana.

a minha melancolia
tem sua raiz no fundo
do meu primeiro grito preso ao navio
negreiro.]

entretanto, a minha alegria


é antiga como os oceanos
que se banham de luz nas minhas terras...

e a minha glória já era viva e acessa


antes do primeiro risco de fogo!

66
pedra.

uma pedra toca meu joelho.


doce milagres de cura
num cíclico mundo.
ruídos e conversas, vindas
de um ontem azul
descaducou minhas paredes.

contudo, me desintegro em substâncias


de todas as cores e não sei
se ainda serei homem amanhã.
ou se estarei de corpo inteiro
no trajeto que delimitei a mim.

67
sempre mais.

teu corpo é água que duplica a sede.

68
uma hora.

uma hora os botecos fecham,


e já não podes comprar fiado.
uma hora, a noite desce veloz e furiosa
dentro da tua confusa alma.]
uma hora, o vazio costura um pano
e tu trabalhas com uma mordaça na voz.
uma hora, faz frio e chove muito,
e fica impedido o acesso ao entretenimento.
uma hora, o medo veste capuz
e sai cantarolando no meio das avenidas.
uma hora, a casa se torna um retrato
de um pesadelo lento e cumprido.
uma hora, tentas o recurso de um tiro
contra o inimigo incolor e tu mesmo acabas
ferido.]
uma hora, o silêncio ensurdece os teus
tímpanos]
e não podes ouvir a música de fundo,
que serve de trilha sonora deste teatro.
uma hora, o reflexo mostra
distorcidamente,]
apenas o que procuras ocultar
e tu és tentado ao suicídio na praia.

69
uma hora, guardas um segredo
e ficas empobrecido...
porque perdestes o chão.

70
pedido.

quero
atender
todos
os teus caprichos
e ser servo de incomensurável fidelidade
e ser o rei do circo do teu coração.

quero
admirar
tua teimosia
e refletir minha paixão
no teu rosto
e beber do teu copo
e abrir caminho ao teu céu
e borrar o sangue do teu batom
e dividir a mesma nota
e a mesma concha
e o mesmo sonho
sonhando na luz dos teus sinais
e bebendo das carícias da tua manha
e como ave, voar no teu corpo
e como maré banhar
teu porte de sereia

71
e ir naufragando no teu canto
e deslizar no solo dourado do teu sexo.

72
equilíbrio.

nada mais do que a simples e efetiva


estruturação do caos.]

73
falemos baixo.

uma melancolia cochila na tarde.

conversas rasas e baixas


para não acordar o pesadelo.

74
diagnóstico.

meu coração oprimido


nadando em cinza escuro.
de raízes sujas e algas
lilases da cor do medo.

devastação de agosto,
de sempre, de ontem,
devastação que aconteceu
amanhã.

devastação no meu corpo,


na menina dos meus olhos,
resquícios por toda parte
mais uma parte imaginária.

além de mim, nasce um outro eu


homem-bicho resultado da batalha.

75
biografia.

a minha vida está apodrecendo como o


silêncio em um sítio abandonado.]

76
saudade.

os incêndios das semanas


varrem minha carne.

cada vez, mais distante do ponto alto, onde


a neve]
formou um busto de mulher.

antevejo-me cada vez mais


irremediavelmente perdido.

faiscando numa usina de escuridão.

77
após uma recusa.

minha solidão tem corpo e ela sim, gosta de


dançar comigo.]

78
deserto.

miragem foi ter visto essa oportunidade.


e ter tomado aço sulfúrico, ao invés de
água.]

79
verbete.

o sonho é o único ato de rebeldia realmente


significativo, livre e gratuito.]

80
mar de areia.

perdido nesse mar de areia, eu confesso ao


vazio todas minhas angústias. na presença de
gentes, pouco me abro. mas, quando estou só,
todo me dispo e choro. e sofro, companheiro,
sofro até mesmo pelo inútil.
às vezes, tenho medo. medo de desaprender a
me comunicar na linguagem humana. regres-
sar a um estado completamente animalesco.

81
troca.

o meu coração foi trocado por um rio de


águas enferrujadas. quando percebi, era
muito tarde. e não tinha a quem reclamar
sobre essa troca silenciosa. na margem, me
sento. a paisagem é uma coleção de antigas
angústias. os arpões do passado se fazem
presentes. eu tenciono uma fuga da vida. um
subterfúgio marítimo e definitivo.
os meus pés deslizam em uma superfície feita
de ar e não tenho onde depositar o fardo de
existir.

82
você poderia.

você poderia ser tudo que alguém pode ser.


poderia ser o plural de alguém. aparecia
inaceitável você não ser nada. tudo caminhou
para você simplesmente ser. e o que você
seria, se tivesse tornado o que poderia ser?
você seria o palco que sustenta o artista. seria
o discurso que o faz emancipado e proprie-
tário de uma grave voz para se comunicar
com as massas. você poderia. você poderia.
você poderia. você poderia. você poderia ser
uma nuvem e, nos sábados, enfeitar o azul
metileno. poderia ser a novidade, que faz
furacões dentro da alma do artista. poderia
ser o tiro que o matou e o reviveu para a
eternidade. poderia ser a quebra do ritmo e a
dissolução da monotonia. você poderia tanta
coisa. mas foi indiferente, mediante as sensi-
bilidades. e fez do artista um galho seco jo-
gado na grama. onde algumas crianças uri-
nam ao amanhecer.

83
a minha musa e eu.

a minha musa é uma morte secreta


ou um carinho desastrado,
que levo comigo,
quando passo a linha do Equador.

a minha musa tem nos olhos


vozes que dizem de afetos e histórias.
é um escuro seiva vegetal, capaz de dar vida
a tudo que já passou e não mais é.

a minha musa é como o som de passos


em Copacabana, Leblon ou Tunísia.
ela é os desmaios da manhã ensolarada
e os acordes de uma viola sertaneja.

e eu sou o que retornou logo de manhã


depois de saquear os governos celestiais e]
trazer ouro puro para fazer uma pétala]
dourada e enfeitar seus cabelos.]

84
25 de dezembro, 2017.

o óleo do dia escorre em forma natalina.


tenho 19 anos e uma brancura interior.
e estou convencido de que Santo Anselmo
e Descartes erraram tragicamente:
a existência não é uma qualidade.
existir não é mais perfeito do que não
existir.]

85
promessa.

meus olhos irão voar novamente.


minha alma vestirá o seu melhor terno.
haverá uma varanda feita de girassóis,
nos quintais de cada esquina.
eu apagarei minha profunda saudade de
Deus.]
eu irei fazer um vestido de sol para vestir
um anjo esculpido em mármore e em]
ternura.]

tudo isso quando morrer, as engrenagens


assassinas do mundo]
e num solavanco nascer uma cidade
dourada.]

86
solidão vazia.

assaltam-me substâncias oriundas dos núcle-


os e poros do meu desespero. tristezas
deslizam nos solos das emoções, revertendo
meu riso em pranto. e não tenho para onde
galgar, falta som, falta a conexidade das coisas
firmes.
levo comigo uma branca incerteza. aconche-
gada no regaço da minha existência, levo
grandes reticências e conflitos, que, mesmo
tardios, insistem em alvejar meu espírito,
sedento de liberdade e de afago. cansei-me de
estar cansado; não obstante, fico perdido nas
linhas e nos borrões do meu truculento cora-
ção.
as noites são ásperas e cheias de espáduas
monstruosas. am vertigens e surtos, saio à
rua, fumando e desgastando a concha do
tempo. nenhum abraço. nenhum beijo, na
madrugada interminável.

87
anjo da guarda.

nunca mais irei apagar o batom de alguma


menina.]
estou condenado aos subterrâneos da
solidão.]
meu anjo da guarda, de tão cansado de fazer
vigília,]
ficou dormindo no último abismo que caí.

88
estação.

primavera

te penso
a vera

89
reverso.

dormir é a única forma possível de estar na


realidade. A vida é apenas a metáfora do]
sonho.]

90
sozinho.

caminhas assaltado.
já não tens seu cão.
tua casa de vento e areia
se dilui nas horas gastas.

teus diversos caminhos


sumiram e ficastes suspenso.
forras, então, de sonho
o ar, essa viva substância.

dormes! não vale a pena chorar.


é cedo, dormes, a aurora vem.
dormes, pois o período escuro
é um piscar, antes do sol maior.

91
andaluz

um cão andaluz
cruza a linha da imaginação.

tem suas plumas


já umedecidas de sono.

alcançará o sonho
onde levemente deitará
na cama do meu poema...

92
consolo.

teus olhos são estatuas floridas que sonham.

93
o amor.

só se ama a si mesmo.
pois o amor é o encontro
de fragmentos perdidos
da própria alma em outro.

94
Sobre o autor

Marcos Ioshua Ribeiro, 1998, natural de São


José do Rio Preto, cursa Letras-Italiano, é
fascinado por significações e pela subida além
de si. entende a poesia como o exercício de
exprimir o mistério naturalmente embutido
na estrutura do mundo.

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