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Teoria da Literatura II

Prof. Inara Ribeiro Gomes

A disciplina

Uma das competências fundamentais do graduado em Letras é a capacidade de ler poesia e ficção de
forma especializada. O papel da Teoria da Literatura, nessa formação, é dotar o estudante de princípios
teóricos e de instrumentos conceituais que aperfeiçoem sua percepção da arte literária como
manifestação linguística e cultural.

A Teoria da Literatura é uma disciplina que se consolidou durante o século XX tratando a obra literária
como um espaço de linguagem simbólica e polissêmica. Ela chamou a atenção para o texto em si mesmo,
como um fato de linguagem que possui uma organização peculiar e que implica uma forma de
comunicação especial, diferenciada de outras formas de troca linguística.

A ficção e a poesia, justamente por essa polissemia, resistem a formalizações e, por isso, provocam
desconforto naqueles que esperam encontrar, na teoria, esquemas mais ou menos seguros de
interpretação. A literatura não gera um saber teórico plenamente positivo, que se transmita como o
saber científico. Ela é da ordem da estética e da sensibilidade e convida a um tipo de participação afetiva.
Tampouco se pode atribuir à literatura uma função pedagógica essencialmente crítica.

A Teoria da Literatura surge do esforço de se tomar o texto literário como objeto de um estudo
metodologicamente orientado por princípios científicos. Ser um leitor especializado significa apropriar-se,
em certa medida, dos produtos teóricos desses estudos.

Nesta disciplina, o enfoque dos elementos constitutivos do texto poético e do texto narrativo tem o
objetivo de auxiliar o estudante na leitura e interpretação dos textos literários. Por isso, a teoria é
acompanhada da análise prática de textos representativos da literatura brasileira e ocidental.

Trata-se de um tipo de abordagem interna do texto, que o considera como um todo autônomo, fechado
em si mesmo, como uma estrutura independente de fatores externos. Essa abordagem é, por si só,
insuficiente, uma vez que a obra literária é um objeto histórico, sujeito a variações no tempo e no
espaço, não podendo, por isso, ser compreendido sem conexão com seu contexto de origem. Sendo
insuficiente, ela é, contudo, uma etapa necessária nessa compreensão.

A separação entre estudo intrínseco e extrínseco da literatura foi formulada, pela primeira vez, por René
Wellek e Austin Warren, em Teoria da literatura, obra de 1942 que tem sido considerada como um marco
dos estudos literários modernos. A história literária sempre deu mais ênfase ao estudo da vida do autor e
das circunstâncias políticas, sociais e econômicas em que é produzida a literatura. Nesse livro, os autores
registravam, em relação a esse tipo de estudo, uma “saudável reação”, detectada em vários países,
especialmente entre os formalistas russos e seus seguidores tchecos e poloneses. Em suma, o que todos
propunham era uma atenção maior aos métodos artísticos empregados na composição do texto: ritmo,
metro, repetições fônicas, figuras, técnicas narrativas, ponto de vista, etc.

Os estudos intrínsecos alcançaram um grande desenvolvimento durante o século XX. A ideia de que o
leitor (especializado) deve conhecer os componentes estruturais que transformam um texto em obra de
arte decorre desses estudos, que fundamentam a Teoria da Literatura como disciplina integrante dos
currículos de Letras.

Inara Ribeiro Gomes

Ementa

Estudo e análise da poesia e da prosa como formas de expressão estética, sociohistórica; como
elementos da cultura.

OBJETIVO GERAL:

● Introduzir o aluno ao estudo da poesia e da prosa, fornecendo-lhe subsídios teórico-crítico-


metodológicos e culturais;

● Conhecer a natureza e a estrutura do texto poético e da prosa.

OBJETIVOS ESPECÍFICOS:

● Identificar a poesia e a prosa como uma expressão estética resultante das necessidades históricas e
espirituais do ser humano;

● Ccompreender as relações do texto poético e da prosa com o contexto sociohistórico-cultural;

● Compreender a estrutura da prosa e da poesia com apoio em abordagens teórico-críticas e culturais.

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Sumário

1. Teoria e análise do texto poético

1.1 O estrato gráfico

1.2 O estrato sonoro

1.3 O estrato lexical

1.4 O estrato sintático

1.5 O estrato semântico

2. Teoria e análise do texto narrativo

2.1 Narração, diálogo, descrição, digressão

2.2 A narrativa como uma estrutura

2.3 O plano do conteúdo: a história

2.3.1 O enredo

2.3.2 A personagem

2.3.3 O espaço

2.4 O plano da expressão: o discurso da narrativa

2.4.1 O foco narrativo

2.4.1.1 O narrador

2.4.1.2 O narratário

2.4.1.3 O discurso da personagem

2.4.1.4 As visões da narrativa e os modos de focalização

2.4.2 O tempo da história e o tempo do discurso

1. Teoria e análise do texto poético

Na tradição literária ocidental, a poesia lírica aparece entre os gregos antigos, ao lado da poesia narrativa
(épica) e dramática (teatral). Nessa classe de obras, compreendem-se as composições que associavam
ritmo, metro e canto. Embora o registro de acontecimentos da vida pública, como as batalhas e os jogos,
seja predominante nessa poesia, nela já se manifesta um tipo de expressão pessoal e subjetiva.

Até o Renascimento, a épica e o drama foram vistos como as realizações mais elevadas da literatura. A
partir do Romantismo, com a valorização do sentimento e da emoção individual, a poesia lírica alcança
um prestígio inédito, passando a ser vista como a expressão de uma subjetividade privilegiada, a do
poeta inspirado.
Contemporaneamente, o poema é menos visto como a representação dos sentimentos íntimos de um
sujeito individual do que como uma elaboração especial da linguagem. A partir do Modernismo, começa a
predominar a concepção de que o poema resulta de um trabalho com a linguagem, de uma
experimentação com as palavras, de modo a haver uma integração entre seus aspectos semânticos
(sentidos) e não-semânticos (som e ritmo). A teoria da literatura que enfoca a poesia discute, entre
outras coisas, a construção verbal do poema, o modo como a linguagem organiza os elementos sonoros,
rítmicos e imagéticos.

Nessa estrutura verbal, os significados estão condensados, pois o poema é um texto curto que significa
muito com poucas palavras. Daí sua alta densidade simbólica. Os signos linguísticos adquirem a carga
semântica dos símbolos, que são signos com sentido plural – um sentido que não se esgota, pois pode
encerrar significações múltiplas e contraditórias.

O poema é também uma organização sonora e rítmica, pois apresenta uma estrutura versificada e de
repetições fônicas. As repetições – de fonemas, de palavras, de elementos gramaticais – estabelecem
associações linguísticas inusitadas, criando relações de sentido que não se encontram no uso linguístico
cotidiano. Por isso se diz que, na poesia, existe uma cooperação entre elementos sonoros e semânticos.

Outro componente, virtualmente existente no poema, é o visual. Ele foi explorado por poetas de todas as
épocas, mas é no século XX que as vanguardas poéticas fazem-no um elemento fundamental do poema,
como ocorre no concretismo e na poesia visual. O poema passa a integrar o som, o sentido e a
visualidade das palavras, o modo como elas estão dispostas na página.

Em função de sua estrutura específica, o poema pode ser analisado considerando-se cinco níveis ou
estratos. Seguimos, a seguir, um roteiro que pode ser conferido em dois livros que enfocam a análise do
poema: Teoria do texto 2: teoria da lírica e do drama, de Salvatore D’Onofrio, e Versos, sons, ritmos, de
Norma Goldstein.

1.1 O estrato gráfico (ou visual)

O poema é um todo disposto na página (ou na tela do computador ou em


outro suporte que lhe sirva de veículo). O fato de ser, na maior parte das
vezes, composto em versos, que por sua vez são organizados em estrofes,
lhe dá uma identidade visual que facilmente reconhecemos. Além disso, ele
presta-se à exploração de uma configuração gráfica mais elaborada, como
podemos observar na obra do poeta Guillaume Apollinaire (1880-1918), com
seus caligramas, que são uma espécie de escrita-imagem. Observe o
seguinte exemplo, seguido da tradução de Álvaro Faleiros:

Fonte: http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_visual/apollinaire.html
reconheça
essa adorável pessoa é você

sem o grande chapéu de palha

olho
nariz
boca

aqui o oval do seu rosto

seu lindo pescoço

um pouco
mais abaixo
é seu coração
que bate

aqui enfim
a imperfeita imagem
de seu busto adorado
visto como
se através de uma nuvem

(APOLLINAIRE, 2008)

A poesia concreta e a poesia visual buscam dar ênfase aos aspectos


não-verbais e gráficos do signo linguístico. O poema é também um
objeto visual (além de sonoro e semântico), donde a importância dos
elementos tipográficos na sua composição. Veja o célebre poema
“beba coca cola” (1957) do concretista brasileiro Décio Pignatari:

Fonte: http://www.poesiaconcreta.com.br/poetas.php?poeta=dp

O poeta opera uma “desconstrução” sonora e gráfica nos


termos de um slogan publicitário altamente representativo da
sociedade de consumo. Os termos originais são transformados
por meio de uma permutação de fonemas (beba→babe; coca-
cola→caco→cloaca). O termo resultante (cloaca) provoca um
efeito de depreciação paródica do enunciado original. Em outro
poema, mais recente, de Arnaldo Antunes, a aproximação
sonora e gráfica PER/DER/BER integra-se à aproximação
semântica entre a ideia de perda e a de liberdade:

Fonte:
http://www.arnaldoantunes.com.br/sec_livros_imagens.php?id=113
1.2 O estrato sonoro

Este é, talvez, o nível mais importante a considerar na análise do poema, uma vez que o texto poético
caracteriza-se por ser um arranjo verbal em que o lado material da palavra (seu som, ou seja, o
significante do signo) é tão importante quanto seu significado. Isso porque a poesia está ligada, nas suas
origens, à música. Só tardiamente, por volta do século XV, é que o texto poético emancipa-se da música
e passa a ser apreciado também através da leitura (inclusive silenciosa). Mas essa ligação se mantém na
estrutura do poema; daí a se falar, por analogia, na musicalidade da poesia.

Um elemento central a considerar é o ritmo. Ele resulta de dois fatores: da construção métrica do verso e
da alternância entre sílabas átonas e tônicas em seu interior.

O verso, que corresponde a uma linha do texto poético, pode ser divido em sílabas. O número de sílabas
em cada verso é seu metro ou medida. A metrificação ou escansão é a técnica de contagem das sílabas
poéticas. Essa contagem não corresponde exatamente à divisão silábica convencional. Na metrificação do
verso, pode-se unir a vogal do final de uma palavra com a do começo de outra. Também é permitido unir
as vogais de um hiato ou separar as de um ditongo. Esses recursos serão utilizados ou não, dependendo
do padrão rítmico do poema como um todo. Além disso, a contagem é feita somente até a última sílaba
tônica. Vejamos a primeira estrofe do poema “Pregão turístico do Recife”, de João Cabral de Melo Neto:

Aqui o mar é uma montanha


regular redonda e azul,
mais alta que os arrecifes
e os mangues rasos ao sul.

(MELO NETO, 1997, p. 119)

Fazendo a escansão dos versos, teremos as seguintes sílabas métricas:

A /qui+o / mar /é+u /ma /mon /ta /nha

1 2 3 4 5 6 7

re/gu/lar/ re/don/da+e+a/zul,

1 2 3 4 5 6 7

mais /al/ ta /que+os/ ar /re /ci /fes

1 2 3 4 5 6 7

e+os / man/ gues / ra/ sos / ao /sul.

1 2 3 4 5 6 7
Essa estrofe é uma quadra (formada de quatro versos). Os versos são heptassílabos, pois eles têm, cada
um, sete sílabas métricas. Essa medida também recebe o nome de redondilha maior. No primeiro e no
terceiro verso, desprezamos, na contagem, a última sílaba, pois as palavras finais são paroxítonas
(montanha e arrecifes), o que não ocorre nos outros versos, já que as palavras finais são oxítonas (azul
e sul).

Dissemos que o ritmo é proveniente da alternância de sons átonos e tônicos. Assim, feita a escansão do
verso, pode-se averiguar o esquema rítmico (ER). Um ER 7(3-7), por exemplo, significa que o verso tem
7 sílabas métricas e que as mais fortes são a terceira e a sétima. A última sílaba tônica do verso sempre
será pronunciada com mais ênfase. Dentre as outras, é preciso escolher quais, na leitura, ganharão mais
acento ou ênfase. Em alguns poemas, o padrão rítmico é reconhecível, porque ele está de acordo com
modelos encontráveis na tradição literária. Em outros poemas, especialmente os que utilizam o verso
livre, não é tão fácil determinar o ritmo e ele dependerá da leitura, do modo como a cadência será
marcada pelo leitor ou recitador. Vejamos o ritmo da estrofe acima:

A /qui o / MAR /é u /ma /mon /TA /nha ER 7(3-7)

1 2 3 4 5 6 7

re/gu/LAR/ re/DON/da e a/ZUL, ER 7(3-5-7)

1 2 3 4 5 6 7

mais /AL/ta /que os/ ar /re /CI /fes ER 7(2-7)

1 2 3 4 5 6 7

e os / MAN/ gues / RA/ sos / ao /SUL. ER 7(2-4-7)

1 2 3 4 5 6 7

Em poemas que seguem as regras clássicas encontramos ritmos mais simétricos. Vejamos o exemplo do
poeta romântico Álvares de Azevedo, com a primeira estrofe de “Meu sonho”:

Cavaleiro das armas escuras,


Onde vais pelas trevas impuras
Com a espada sanguenta na mão?
Por que brilham teus olhos ardentes
E gemidos nos lábios frementes
Vertem fogo do teu coração?

(AZEVEDO, 1996, p. 68)


Fazendo a escansão do primeiro verso, obteremos:

Ca /va /LEI /ro /das/ AR/mas /es/CU/ras ER 9 (3,6,9)

1 2 3 4 5 6 7 8 9

Você pode verificar este mesmo ritmo em todos os demais versos, pois ele vai se manter constante em
todo o poema. Ele é muito comum em hinos. Tente, como exercício, verificá-lo no hino de Pernambuco.

No estrato fônico temos de considerar também as rimas e outras figuras de som que produzem efeitos
sonoros, os quais se combinam com os efeitos rítmicos. A rima é a coincidência de sons nos finais das
palavras, a partir da vogal tônica. Observe esta estrofe de um poema de Fernando Pessoa:

Entre o luar e a folhagem, A


Entre o sossego e o arvoredo, B
Entre o ser noite e haver aragem A
Passa um segredo. B
Segue-o minha alma na passagem. A

(PESSOA, 1973, p. 157)

A identidade sonora que forma as rimas A (AGEM) e B (EDO) ocorre a partir da vogal tônica (A e E,
respectivamente). Desse modo, as palavras “folhagem” e “virgem”, por exemplo, não rimam, porque
embora a terminação seja a mesma, ela não abarca a vogal tônica (a vogal tônica de folhagem é A e a de
virgem é I). Esse tipo de rima, que facilmente identificamos sonoramente, é chamada rima CONSOANTE.

O outro tipo de rima, menos perceptível sonoramente, é a rima TOANTE. Vejamos as estrofes iniciais do
poema “A morte”, de Ivan Junqueira:

A morte fecha o cerco.


Pouco a pouco o seu cheiro
se alastra em labaredas
e gruda-se aos afrescos,

ao mármore, aos tapetes,


às úmidas paredes,
às cinzas da lareira,
à poeira das gavetas.

(JUNQUEIRA, 1995, p. 314)

Como você pode perceber, as palavras finais de cada verso apresentam a mesma vogal tônica (E). Isso
não é casual. O poeta elegeu essas sonoridades como parte daquilo que quer transmitir, não só em
termos de conteúdo, mas também em termos de sensações.
As chamadas figuras de som ou de efeito sonoro são – além da rima, cujo efeito é também sonoro – as
assonâncias (repetição de sons vocálicos), as aliterações (repetição de sons consonantais), as
onomatopéias (quando a palavra imita o som do objeto representado), as anáforas (repetição de termos
no início dos versos) e outras repetições de palavras, a paronomásia (quando se usam palavras
semelhantes no som e de sentidos diferentes). Veja o trecho de um poema do poeta simbolista Cruz e
Souza:

Quando os sons dos violões vão soluçando,


Quando os sons dos violões nas cordas gemem,
E vão dilacerando e deliciando,
Rasgando as almas que nas sombras tremem.

(CRUZ E SOUSA, 2009)

Que ocorrências sonoras dignas de nota nós encontramos aí? Primeiro, veja o grande número de
ocorrências do fonema /s/: oS sonS doS violõeS soluÇando / oS sonS doS violõeS naS cordaS /
dilaCerando deliCiando / raSgando aS almaS que naS SombraS.

Embora representado por letras diferentes, é o mesmo som que se repete.

Em seguida, observe as repetições de vogais nasais:

Quando os sons dos violões vão soluçando,

Quando os sons dos violões nas cordas gemem,

E vão dilacerando e deliciando,

Rasgando as almas que nas sombras tremem.

Que sugestões essas repetições sonoras (de palavras e de fonemas) sugerem? Será que elas não
sugerem, no tecido sonoro do poema, aquilo que ele comunica como significado? Ou seja, será que esses
sons nasalados e sibilantes não sugerem a música plangente e melancólica que sai das cordas dos
violões? É por isso que se diz que som e sentido colaboram entre si na poesia.

1.3 O estrato lexical

Cada palavra é importante no poema como significado e como som, mas também como forma. Por que o
poeta escolheu estas palavras e não outras? A que registro de linguagem elas pertencem? A um registro
mais culto ou a um mais coloquial? O poeta usa neologismos (invenção de novas palavras) ou modifica a
morfologia das palavras? Tem preferência por certas classes gramaticais ou exclui outras? Estas são
algumas das questões pertinentes à análise do plano lexical e morfológico do poema.
Veja a “tradução” paródica que Manuel Bandeira faz de um poema de Joaquim Manuel de Macedo,
alterando todo o léxico de modo a obter uma linguagem próxima do registro cotidiano e coloquial, como
queriam os modernistas:

Mulher, irmã, escuta-me: não ames,


Quando a teus pés um homem terno e curvo
Jurar amor, chorar pranto de sangue,
Não creias, não mulher: ele te engana!
As lágrimas são galas da mentira
E o juramento manto da perfídia.

(Macedo apud MASINI, 2002)

Teresa, se algum sujeito bancar o sentimental em cima de você


E te jurar uma paixão do tamanho de um bonde
Se ele chorar
Se ele se ajoelhar
Se ele se rasgar todo
Não acredita não Teresa
É lágrima de cinema
É tapeação
Mentira
CAI FORA

(Bandeira apud MASINI, 2002)

Quando o poeta Manoel de Barros inicia um poema assim:

No descomeço era o verbo.


Só depois é que veio o delírio do verbo.

(BARROS, 1997, p. 15)

ele está unindo, de modo inusitado, o prefixo des (que pode significar privação ou negação) e o
substantivo começo. Ele está criando um neologismo. São próprios da criação literária estes
experimentos com a língua, que ampliam suas potencialidades expressivas. Veja o depoimento de Manuel
Bandeira sobre isso:

Neologismo

Beijo pouco, falo menos ainda.


Mas invento palavras
Que traduzem a ternura mais funda
E mais cotidiana.
Inventei, por exemplo, o verbo teadorar.
Intransitivo:
Teadoro, Teodora.

(BANDEIRA, 1990)

O poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto tem preferência pelos substantivos concretos; daí a se
dizer que ele faz “poesia com coisas”. Mesmo quando fala de coisas abstratas, ele o faz através de
imagens que lhe conferem um aspecto concreto. Veja o poema abaixo:

A palavra seda

A atmosfera que te envolve


atinge tais atmosferas
que transforma muitas coisas
que te concernem, ou cercam.

E como as coisas, palavras


impossíveis de poema:
exemplo, a palavra ouro,
e até este poema, seda.

É certo que tua pessoa


não faz dormir, mas desperta;
nem é sedante, palavra
derivada de seda.

E é certo que a superfície


de tua pessoa externa,
de tua pele e de tudo
isso que em ti se tateia,

nada tem da superfície


luxuosa, falsa, acadêmica,
de uma superfície quando
se diz que ela é “como seda”.

Mas em ti, em algum ponto,


talvez fora de ti mesma,
talvez mesmo no ambiente
que retesas quando chegas,
há algo de muscular,
de animal, carnal, pantera,
de felino, da substância
felina, ou sua maneira,

de animal, de animalmente,
de cru, de cruel, de crueza,
que sob a palavra gasta
persiste na coisa seda.

(MELO NETO, 1997, p. 230)

Para falar da “atmosfera” que envolve uma determinada mulher (a quem o poeta se dirige, na sua fala),
o poeta (o sujeito poético) utiliza, como termo de comparação, a palavra “seda”. O termo “atmosfera”,
usado em sentido figurado, pode ser associado ao magnetismo pessoal, à atratividade ou poder de
encantamento de uma pessoa. O que significa uma atmosfera de seda? Pois é justamente o sentido
comum, associado ao tecido, que por extensão refere-se à suavidade e delicadeza, que o poeta vai
desconstruir. Começando por sua associação com “sedante”, do verbo “sedar” (acalmar, serenar), que
origina o termo “sedativo”. A presença de tal ser não acalma, antes desperta. No final, essa
desconstrução de significado vai chegar ao oposto do que se associa comumente à “seda”, oposição que
é expressa pelos termos presentes nas duas últimas estrofes (muscular, animal, carnal, pantera, felino,
animal, crueza, etc.), que são a antítese da suavidade e delicadeza esperadas. Ou das palavras que, no
poema, definem a qualidade “de seda” aplicada ao termo “superfície”: luxuosa, falsa, acadêmica.

Assim, esse poema é uma espécie de lição de poesia: uma das funções da poesia é justamente renovar
as palavras “gastas” pelo uso (as palavras “impossíveis de poema”, como ouro e seda, porque são
demasiadamente utilizadas e perdem força e expressividade). A relação entre a palavra e a coisa é que
sai renovada dessa lição de poesia. A palavra volta a brilhar, purificada e livre de toda “superfície
luxuosa, falsa, acadêmica”. A poesia requer uma palavra viva, vibrante, pulsante, e não uma palavra
luxuosa e artificial.

1.4 O estrato sintático

A sintaxe da poesia, em geral, difere da sintaxe da prosa, pois esta tende a ser mais discursiva, mais
lógica, mais racional, ao contrário da poesia, que associa livremente palavras, imagens, idéias, muitas
vezes sem indicar relações lógicas entre elas. Na poesia, a conexão entre os sintagmas é mais frouxa, daí
a predominar a coordenação, já que a subordinação é mais adequada à argumentação racional.

A poesia tem, de certa forma, uma gramática própria. A frase poética opera desvios na forma da frase.
São constantes as chamadas figuras de construção ou de sintaxe. Temos figuras que se originam da
repetição de palavras, de sintagmas ou frases em posição igual ou invertida, as enumerações (repetição
de atributos), as gradações (acumulação progressiva de uma idéia ou tema), o polissíndeto (uso
reiterado de conectivos coordenativos). A repetição é própria da poesia e cria não só efeitos sintáticos,
mas também sonoros, porque quando se repetem palavras idênticas ou homófonas, repetem-se também
os sons. Quando se repetem construções sintáticas, temos o paralelismo sintático.

Vejamos um exemplo em que aparecem muitas dessas repetições. Trata-se de um trecho do poema V de
“O guardador de rebanhos”, de Fernando Pessoa (através de seu heterônimo Alberto Caeiro):

Mas se Deus é as flores e as árvores


E os montes e sol e o luar,
Então acredito nele,
Então acredito nele a toda a hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.

Mas se Deus é as árvores e as flores


E os montes e luar e o sol,
Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;
Porque, se ele se fez, para eu ver,
Sol e luar e flores e árvores e montes,
Se ele me aparece como sendo árvores e montes
E luar e sol e flores,
É que ele quer que eu o conheça
Como árvores e montes e flores e luar e sol.

E por isso eu obedeço-lhe,


(Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?)
Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,
Como quem abre os olhos e vê,
E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,
E amo-o sem pensar nele,
E penso-o vendo e ouvindo,
E ando com ele a toda a hora.

(PESSOA, 1980, p. 40)

Observe também as duas primeiras estrofes da letra da canção “O quereres”, de Caetano Veloso, onde a
repetição de uma mesma estrutura sintática cria um paralelismo que se mantém por todo o texto.

Onde queres revólver, sou coqueiro


E onde queres dinheiro, sou paixão
Onde queres descanso, sou desejo
E onde sou só desejo, queres não
E onde não queres nada, nada falta
E onde voas bem alto, eu sou o chão
E onde pisas o chão, minha alma salta
E ganha liberdade na amplidão

Onde queres família, sou maluco


E onde queres romântico, burguês
Onde queres Leblon, sou Pernambuco
E onde queres eunuco, garanhão
Onde queres o sim e o não, talvez
E onde vês, eu não vislumbro razão
Onde o queres o lobo, eu sou o irmão
E onde queres cowboy, eu sou chinês

(VELOSO, 2009)

Mas além das repetições, que criam uma espécie de excesso, o seu contrário também ocorre na poesia,
ou seja, a supressão ou omissão de termos da oração, pois poesia é também linguagem condensada,
discurso conciso. Assim ocorrem as elipses (omissão de um termo) e os assíndetos ou parataxe (omissão
de conectivos de coordenação), entre outras figuras. Veja, abaixo, um trecho do poema “O cão sem
plumas”, de João Cabral de Melo Neto, no qual se percebem tanto repetições quanto elipses:

Entre a paisagem
o rio fluía
como uma espada de líquido espesso.
Como um cão
humilde e espesso.

Entre a paisagem
(fluía)
de homens plantados na lama;
de casas de lama
plantadas em ilhas
coaguladas na lama;
paisagem de anfíbios
de lama e lama.

Como o rio
aqueles homens
são como cães sem plumas
(um cão sem plumas
é mais
que um cão saqueado;
é mais
que um cão assassinado.

Um cão sem plumas


é quando uma árvore sem voz.
É quando de um pássaro
suas raízes no ar.
É quando a alguma coisa
roem tão fundo
até o que não tem).

(MELO NETO, 1997, p. 71)

Nos versos “Um cão sem plumas / é quando uma árvore sem voz” percebe-se a ausência de predicado
para “uma árvore sem voz”. Do mesmo modo, faltam termos e elementos sintáticos para que os versos
“É quando de um pássaro /suas raízes no ar” formem um período. É como se essa falta, no nível da
sintaxe, expressasse a privação que os homens presentes na paisagem descrita (e que é a do rio
Capibaribe) sofrem. Afinal o que seria um cão sem plumas? Um cão tem plumas? Evidentemente, não. O
próprio poema responde: é quando um ser sofre tamanha privação que perde até aquilo que não tem.

Também são comuns as inversões sintáticas – os hipérbatos –, que ocorrem quando há alteração da
ordem natural dos elementos da frase:

Ó santa inspiração! Fada noturna


Por que a fronte não beijas do poeta?

(AZEVEDO, 1996, p. 89)

A ordem sintática habitual para o segundo verso seria “Por que não beijas a fronte do poeta?” Há
hipérbatos de maior extensão, como se vê nos versos da epopeia Os lusíadas (século XVI), de Luís de
Camões:

As armas e os barões assinalados


Que da Ocidental praia Lusitana,
Por mares nunca dantes navegados
Passaram ainda além da Taprobana,
Em perigos e guerras esforçados
Mais do que prometia a força humana
E entre gente remota edificaram
Novo Reino, que tanto sublimaram;

E também as memórias gloriosas


Daqueles Reis que foram dilatando
A Fé, o Império, e as terras viciosas
De África e de Ásia andaram devastando,
E aqueles que por obras valerosas
Se vão da lei da Morte libertando
Cantando espalharei por toda a parte
Se a tanto me ajudar o engenho e arte.

(CAMÕES, 1980, p. 71)

A inversão atinge as duas estrofes, de modo que a oração principal, a qual subordina todas as outras
orações, só vai aparecer no final da segunda. A ordem sintática, natural ao idioma, poderia ser
restabelecida do seguinte modo: “Cantando espalharei por toda a parte, se a tanto me ajudar o engenho
e arte, as armas e os barões assinalados (...) e também as memórias gloriosas daqueles reis (...)”.
Perceba que “as armas e os barões assinalados” e “as memórias gloriosas daqueles reis” são objetos
diretos do verbo “espalharei” e funcionarão, por sua vez, como antecedentes dos sujeitos de orações que
são introduzidas pelo pronome relativo “que” (no segundo verso da primeira estrofe e no segundo verso
da segunda). Perceba também que, no interior dessas orações, ocorrem outras inversões. No seu sentido
geral, essa construção comunica que o poeta (o eu que fala) vai “cantar” e “espalhar”, através de seu
poema épico, as façanhas dos grandes homens, guerreiros e nobres (armas e barões assinalados), que
empreenderam as grandes viagens marítimas e conquistaram novos reinos (Taprobana era o nome dado
pelos portugueses à ilha que mais tarde viria a se chamar Ceilão e hoje em dia atende pelo nome de Sri
Lanka); também vai cantar, para glorificar, a história dos reis de Portugal que contribuíram para a
formação de um império.

Interessa ainda à análise do estrato sintático, a verificação da pontuação, o uso da exclamação e da


interrogação, das reticências, com a carga expressiva que esses sinais carregam. Também o uso de
parêntese, que serve para intercalar uma ou mais orações ou expressões, formando um sentido à parte.
Veja o uso do parêntese nas estrofes do poema “O cão sem plumas”, acima transcritas.

Um tópico especial é o do enjambement (se usarmos o termo francês) ou encadeamento. Significa a


passagem do sentido do verso para o verso imediato. Isso ocorre quando a unidade de uma construção
sintática é interrompida pelo final de um verso, quando se faz necessariamente uma pausa, para se
completar no outro, de modo que podem ser separados o sujeito do verbo, o verbo de seu complemento,
o substantivo do adjetivo ou o artigo do nome. A organização do discurso em verso separa, assim, o que
seria inseparável sintática e semanticamente O enjambement é um fenômeno que envolve o estrato
fônico, o sintático e o semântico. Porque a unidade métrica do verso requer uma pausa que não coincide
com as pausas da frase da prosa. Existe, assim, uma tensão entre dois modos de leitura: uma leitura
prosaica (conforme o ritmo da prosa), que garante a continuidade sintática e semântica da frase ou
sintagma, e uma leitura métrica, melódica ou poética, que obedece, em primeiro lugar, às leis do verso.
Essa segunda leitura, fazendo rupturas na sintaxe e na semântica, pode criar novas relações entre as
palavras e novas conotações. Tente ler, em voz alta, o poema seguinte, do poeta português Vasco Graça
Moura, cada vez de um modo diferente. Observe que há, nele, o uso constante de enjambements, que
ocorrem não somente entre versos, mas também entre estrofes:
fanny

fanny, a grande
amiga de minha mãe,
ossuda, esgalgada, de
cabelo escuro e curto, e
filha de uma inglesa,

tinha um sentido prático


extraordinário e era
muito emancipada, para
os costumes da foz
daquele tempo.

uma vez, estando


sozinha no cinema, sentiu
a mão do homem a
seu lado deslizar-lhe
pela coxa. prestou-se a isso e

deixou-a estar assim,


com toda a placidez. mas abriu
discretamente a carteira de pelica,
tirou a tesourinha das unhas
e quando a mão no escuro

se imobilizou mais tépida,


apunhalou-a num gesto
seco, enérgico, cirúrgico.
o homem deu um salto
por sobre os assentos e

fugiu num súbito


relincho da
mão furada.
fanny foi sempre
de um grande despacho,

na sua solidão muito


ocupada num escritório. um dia
atirou-se da janela
do quinto andar
e pronto.

(MOURA, 2010)

1.5 O estrato semântico

Este é o nível de análise dos sentidos do poema. Ora, quando abordamos os outros estratos, a questão
do sentido sempre esteve presente, pois todos os elementos sonoros, lexicais e sintáticos concorrem para
a geração de significados. Aqui, busca-se examinar, especificamente, as figuras de sentido.

A primeira, e mais importante, é a metáfora, não a metáfora já estabelecida pelo uso linguístico, mas a
inédita, a que o poeta cria, pois a operação metafórica é fundamental na poesia. As metáforas
corriqueiras, muito usadas, constituem o que chamamos clichê ou lugar-comum. Estas não interessam à
poesia.

A metáfora é uma figura de similaridade porque aproxima dois elementos que, a princípio, não têm nada
em comum, e podem mesmo ser antagônicos. Costuma-se dizer que a metáfora é uma comparação
abreviada enquanto que a comparação (ou símile) é uma metáfora explícita, em que se mantém o
“como”. Se eu digo “o garoto é um touro” está implícito “o garoto é como um touro”, porque, do ponto de
vista lógico, a primeira proposição seria absurda. Existe um terceiro termo, oculto, que une os dois
termos comparados. Neste exemplo poderíamos dizer que é a força – está subentendido que o garoto é
forte como um touro. A metáfora caracteriza-se, assim, pela transferência do sentido de um termo para
outro, por associação analógica. Há uma analogia entre garoto e touro, pela qual o sentido de touro é
transferido para garoto.

O escritor pernambucano Osman Lins, em seu romance Avalovara (1973, p. 55), dá a seguinte
explicação sobre o mecanismo da metáfora: conhecemos dois irmãos e não vemos nenhuma semelhança
entre eles até que conhecemos um terceiro, que se parece com os dois ao mesmo tempo. O terceiro
elemento, que une dois dessemelhantes, nem sempre é fácil de determinar e, por isso, a poesia pode
parecer hermética ou difícil, pois seu sentido permanece oculto. De que forma eu poderia ver
semelhanças entre os dois irmãos sem conhecer esse terceiro irmão que as revela?

Vejam-se exemplos em poemas transcritos acima, como os versos de João Cabral de Melo Neto “Aqui o
mar é uma montanha/ regular, redonda e azul”. Quais são os termos que compõem a metáfora? O que
une os dois termos?

No poema “A palavra seda”, o poeta explicita o próprio ato de comparar, ao aproximar dois elementos:
por um lado, a atmosfera que cerca a mulher com quem o poeta dialoga, por outro, a seda. Mas ele,
como vimos, desconstrói a metáfora corriqueira que o senso comum identifica na palavra “seda”.
A metáfora assume muitas formas. Ela nem sempre apresenta essa estrutura de definição (isto é aquilo).
Ela pode adquirir um sentido bem amplo. Por exemplo, num gênero como o romance, podemos
identificá-la com o texto inteiro, na medida em que reconhecemos, ao acabar de ler, que a história
contada funciona como uma metáfora de certa situação social ou condição humana. Na poesia, a
metáfora ocorre mais ao nível da palavra e do sintagma, envolvendo não somente substantivos, mas
também outras classes gramaticais, como verbos, adjetivos e advérbios. No exemplo “Vi flores de pedra
azul” (Murilo Mendes), a metáfora se apresenta através do adjunto adnominal de pedra azul, por uma
comparação implícita com flores.

Uma forma de metáfora é a que chamamos de personificação ou prosopopéia, que é a atribuição de


qualidades a seres e coisas que não lhes são próprias ou específicas. Citamos apenas exemplos
corriqueiros, que já não têm força poética: a fonte murmura, os dias correm, o vento geme.

Outra forma são as sinestesias, que são associações entre diferentes percepções sensoriais, como no
exemplo “palavras amargas” em que se unem dois dos cinco sentidos: audição e sabor. Veja como Cecília
Meireles trabalha as sinestesias em um poema escrito para crianças. As sensações visuais, táteis e
auditivas ligadas ao rio são reforçadas, no plano sonoro, pela assonância da vogal /i/ e pela disposição
gráfica do poema, cujos versos curtos desenham a figura longitudinal do rio:

Rio na sombra

Som
frio.

Rio
sombrio.

O longo som
do rio
frio.

O frio
bom
do longo rio.

Tão longe,
tão bom,
tão frio
o claro som
do rio
sombrio!

(MEIRELES, 2002, p. 18)

A alegoria costuma ser definida como uma metáfora ampliada ou como uma sequência de metáforas,
através da qual se representa um objeto para significar outro. Por exemplo, uma história de amor pode
trazer, implicitamente, um sentido político. Dizemos, então, que há uma alegoria política. Há alegorias
mais claras, em que o sentido segundo ou implícito, é mais facilmente perceptível, e alegorias mais
obscuras, que se confundem com o enigma. Determinados gêneros são alegóricos por definição, como a
fábula, o apólogo e a parábola, nos quais coisas abstratas ou inanimadas personificam-se (portanto, a
alegoria vale-se muitas vezes da personificação). Como a alegoria parece ser mais própria da narrativa,
ela vai aparecer no poema quando este contém alguma forma de narração. Vejamos o caráter alegórico
do poema abaixo transcrito, de Cacaso, poeta representante da geração de poetas dos anos 1970:

Aquarela

O corpo no cavalete
é um pássaro que agoniza
exausto do próprio grito.
As vísceras vasculhadas
principiam a contagem
regressiva.
No assoalho o sangue
se decompõe em matizes
que a brisa beija e balança:
o verde – de nossas matas
o amarelo – de nosso ouro
o azul – de nosso céu
o branco o negro o negro

(Apud SOARES, 2007, p. 5)

O texto faz alusão à canção “Aquarela do Brasil”, de Ari Barroso, composição marcada pelo ufanismo, o
orgulho patriótico. Por isso, precisamos atentar para o contexto histórico em que Cacaso produziu seu
poema. A década de 70 foram os anos mais duros da ditadura militar. Começamos a perceber a alegoria
quando descobrimos que a “aquarela” pintada descreve, na verdade, uma cena de tortura (o corpo no
cavalete evocando o “pau-de-arara”, conhecido instrumento de tortura utilizado pelos militares nesse
período) e que suas cores – as cores da pátria – se originam do vermelho do sangue derramado.

Contrastam com a metáfora a metonímia e a sinédoque. Pois na metonímia a transferência de sentido


não se dá entre elementos que, a princípio, nada tem a ver um com o outro, mas entre elementos
próximos. Assim, quando Camões, em Os lusíadas, diz “Cesse tudo o que a Musa antiga canta”, Musa
está em lugar de Poesia não em sentido metafórico, mas metonímico, porque Musa é a entidade
mitológica, entre os gregos, que representa a inspiração poética. A sinédoque diferencia-se da metonímia
somente porque, nesta última, existe uma relação de correspondência entre os elementos, como no
exemplo acima, enquanto que naquela os elementos estão implicados um no outro, como no exemplo “As
velas estavam no mar”, em que a palavra “velas”, que é apenas uma parte da embarcação, está no lugar
desta.
Por fim temos a antítese que, tal como o oxímoro e o paradoxo, é uma figura de sentido baseada numa
oposição semântica. Exemplo muito conhecido é o de um soneto de Camões, do qual transcrevemos a
primeira estrofe:

Amor é um fogo que arde sem se ver;


É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer;

Observe que as ideias opostas (amor é um fogo que arde X sem se ver, etc.) constroem-se através de
metáforas (amor = fogo; amor = ferida, etc). O mesmo nós podemos averiguar na letra da canção de
Caetano Veloso, acima citada:

Onde queres revólver, sou coqueiro


E onde queres dinheiro, sou paixão
Onde queres descanso, sou desejo
E onde sou só desejo, queres não
E onde não queres nada, nada falta
E onde voas bem alto, eu sou o chão
E onde pisas o chão, minha alma salta
E ganha liberdade na amplidão

Vejamos um exemplo de análise dos cinco estratos no poema “Ou isto ou aquilo”, que dá título ao livro
de poesia infantil de Cecília Meireles (2002):

Ou isto ou aquilo

1 Ou se tem chuva e não se tem sol


2 ou se tem sol e não se tem chuva!

3 Ou se calça a luva e não se põe o anel,


4 ou se põe o anel e não se calça a luva!

5 Quem sobe nos ares não fica no chão,


6 quem fica no chão não sobe nos ares.

7 É uma grande pena que não se possa


8 estar ao mesmo tempo em dois lugares!

9 Ou guardo o dinheiro e não compro o doce,


10 ou compro o doce e gasto o dinheiro.

11 Ou isto ou aquilo: ou isto ou aquilo...


12 e vivo escolhendo o dia inteiro!
13 Não sei se brinco, não sei se estudo,
14 se saio correndo ou fico tranqüilo.

15 Mas não consegui entender ainda


16 qual é melhor: se é isto ou aquilo.

Nível gráfico:

Apreendido pela visão, o poema apresenta um título (nem sempre os textos poéticos apresentam título) e
distribui-se como um conjunto de oito estrofes, cada qual constituída por dois versos. Uma estrofe de
dois versos recebe o nome de dístico. O título “Ou isto ou aquilo”, por apresentar uma estrutura dual
(neste caso, uma estrutura de dois termos que se apresentam numa relação de alternância, dada pela
alternativa ou...ou) pode, então, associar-se, em nossa percepção visual, às estruturas duais (de dois
versos) das estrofes. Veremos que tal dualidade pode ser verificada em outros níveis de análise do
poema.

Nível sonoro:

Ou/ se /tem /CHU/va+e/ não/ se/ tem/ SOL ER9(4,9)


ou/ se/ tem/ SOL/ e/ não/ se/ tem/ CHU/va! ER9(4,9)

Ou/ se/ cal/ça+a/ LU/va+e/ não/ se/ põe/ o+a/NEL, ER11(5-11)


ou/ se/ põe/ o+a/NEL/ e/ não/ se/ cal/ça+a/ LU/va! ER11(5-11)

Quem/ so/ be/ nos/ A/ res/ não/ fi/ ca/ no/ CHÃO, ER11(5-11)
quem/ fi/ ca/ no/ CHÃO/ não/ so/ be/ nos/ A/ res. ER10(5-10)

É / u / ma/ gran/ de/ PE/ na/ que/ não/ se/ POS/ as ER11(6-11)
Es/ tar/ ao/ mes/ mo/ TEM/ po/ em/ dois/ lu / GA/ res! ER11(6-11)

Ou/ guar/do+o/ di/ NHEI/ ro+e/ não/ com/pro+o/ DO/ ce, ER10(5-10)
ou/ com/ pro+o/ DO/ ce+e/ gas/to+o/ di/ NHEI/ ro. ER9(4-9)

Ou/ is/ to+ou/ a/ QUI/ lo: /ou/ is/ to+ou/ a/ QUI/ lo... ER11(5-11)
e/ vi/ vo+es/ co/ LHEN/ do+o/ di/ a / in/ TEI/ ro! ER10(5-10)

Não/ sei/ se/ BRIN/ co,/ não/ sei/ se+es/ TU/do, ER9(4-9)
se/ sai/ o/ cor/ REN/ do+ou/ fi/ co/ tran/ QUI/ lo. ER10(5-10)

Mas/ não/ con/ se/ GUI/ en/ ten/ der/ a/ IN/ da ER10(5-10)
qual/ é/ me/ LHOR:/ se+é/ is/ to+ou/ a/ QUI/ lo. ER9(4-9)

O poema apresenta um esquema métrico em que os versos têm entre nove e onze sílabas e as sílabas
fortes são distribuídas de forma a manter um ritmo semelhante por toda a composição: ER 9 (4-9); ER
10(5-10); ER 11(5-11) ou (6-11). Optamos por acentuar, além da tônica final, apenas uma tônica no
interior de cada verso. Desse modo, cada verso fica dividido em dois segmentos rítmicos, pois a tônica
interna cria uma cesura (pausa que indica um limite rítmico no interior de um verso). Isto reforça aquela
dualidade de que falamos antes e põe em destaque sonoro as palavras que se opõem semanticamente
entre si, como chuva e sol, anel e luva, etc.

As rimas são alternadas e ocorrem sempre entre os versos finais de cada par de dísticos. Assim, se
considerarmos apenas as rimas consoantes, o esquema será: AB-CB / DE-FE / GH-IH / JI-LI. Observe
que as rimas B (chuva/luva), E (ares/lugares), H (dinheiro/inteiro) e I (tranquilo/ aquilo) unem
sonoramente dois dísticos, do que resultam quatro pares de dísticos.

Pode-se, ainda, salientar o parentesco sonoro entre os ditongos abertos decrescentes em sol/anel, entre
as vogais tônicas de “possa” e “doce” (rima toante entre um “O” aberto e um “O” fechado) e entre as
vogais tônicas de “ainda” e “aquilo” (rima toante entre um “I” nasal e um “I” oral).

Além das rimas finais, ocorrem as coincidências sonoras provocadas pela repetição de palavras ao longo
do poema. Nas três primeiras estrofes, os versos de cada dístico são compostos das mesmas palavras
colocadas em ordem diferente em cada verso. Na 5ª estrofe, ocorre uma pequena variação: a autora
prefere dizer “gasto” ao invés de “não guardo” (mesmo assim é mantida uma semelhança de fonemas).
No 1º verso da 6ª estrofe, as duas metades são idênticas.

Observa-se, ainda, a correspondência entre a similaridade sonora e semelhança de sentido: no par


ares/lugares e no par opositivo isto/aquilo.

As repetições de palavras ou expressões nas mesmas posições constituem a anáfora: “ou”, “não”,
“quem”.

Nível lexical/morfológico:

O texto apresenta um léxico pertencente ao falar cotidiano, caracterizando-se pela simplicidade e clareza
vocabulares. Predominam os substantivos concretos e os verbos de ação. Não há destaque para os
adjetivos, que apresentam um número reduzido. Os conectivos coordenativos (ou, e) têm fundamental
importância: estabelecem a relação de alternância e adição e auxiliam na marcação do ritmo. O advérbio
“não” é muitas vezes repetido, podendo dar a idéia de exclusão (1ª, 2ª, 3ª e 5ª estrofes) e alternância (7ª
estrofe) ou servir para expressar o inconformismo e a incompreensão da criança diante da necessidade
de escolha (4ª e 8ª estrofes). Os pronomes demonstrativos “isto” e “aquilo” resumem todos os
substantivos apresentados no poema.
Nível sintático:

Existe a ordem direta da gramática, pois o recurso estilístico da inversão sintática não é utilizado. Cada
dístico é um período, sendo que predomina a coordenação. Apenas a 4ª e a 8ª estrofes apresentam
orações subordinadas. As orações coordenadas entre si dão, simultaneamente, idéia de alternância e
adição, sendo que as orações aditivas aparecem na forma negativa conforme ocorre nos seguintes
versos: 1, 2, 3, 4, 5, 6 e 9.

Na 3ª estrofe, o pronome relativo “quem” é empregado com uma função semelhante à da conjunção
“ou”; da mesma forma, a oração principal “Não sei” (verso 13) quer dar o sentido de alternância. Tais
estruturas estão correlatas no texto e geram um paralelismo gramatical.

Em “ou isto ou aquilo” (título e verso 11) ocorre a elipse do verbo. Esta figura de construção é utilizada
para conferir maior força expressiva aos pronomes.

A reticência, além de um operador poético gráfico, é figura de construção – “ou isto ou aquilo...” – que
indica continuidade, que as alternativas “ou...ou” não se esgotam, mas continuam a ser aplicadas a um
sem número de objetos e ações.

Nível semântico:

A composição é organizada a partir de oposições ou antíteses, que estabelecem um paralelismo de


sentido por antinomia. São representadas pelos contrastes existentes entre: isto/aquilo; chuva/sol;
luva/anel; ares/chão; dinheiro/doce; brinco/estudo; saio correndo/fico tranqüilo.

As dessemelhanças de sentido que determinam as antíteses são enfatizadas se levado em conta o


universo de valores infantil. Para a criança, muito mais que para os adultos, há oposição entre sol/chuva,
anel/luva, chão/ares; mais especialmente entre dinheiro/doce, brinco/estudo, saio correndo/fico
tranquilo.

“Ou isto ou aquilo” é uma composição cuja sonoridade está baseada principalmente no ritmo estabelecido
pela repetição de palavras e de estruturas sintáticas, rimas, métrica e organização estrófica. O ritmo está
de acordo com os contrastes semânticos: assim como a criança está constantemente dividida entre duas
alternativas, os versos são divididos em duas partes pelas cesuras ou pausas em seu interior. A principal
característica estrutural do poema é o ludismo sonoro associado ao ludismo semântico, o jogo de
relações entre o ritmo e as antíteses.

A seleção de palavras está de acordo com a linguagem e universo da criança. Os verbos de ação e os
substantivos concretos estão próximos de seus valores e referências. O vocabulário é reduzido, pois há
grande repetição de palavras. Assim, apesar dos versos longos, o texto é facilmente assimilado pela
criança.
A sintaxe é simples e direta. Predominam os períodos compostos por coordenação, que se caracterizam
por apresentar paralelismo sintático e semântico.

O poema expressa a indecisão comum à criança nas situações de alternativas e sua incompreensão face
à necessidade de escolha, que exclui momentaneamente um prazer. É um depoimento, pela voz da
criança, sobre seus desejos e expectativas, pois o “eu” que fala no poema é um “eu” infantil. À sua
inquietação, indecisão e inconformismo são atribuídos valores positivos.

2. Teoria e análise do texto narrativo

Um dos gêneros literários mais antigos, a narrativa tem sua primeira manifestação na epopeia, com os
poemas épicos Ilíada e Odisseia (séc. IX a.C.), de Homero, ou com as posteriores epopeias da Índia,
Mahabharata, de Vyasa, e Ramayana, de Valmike. Como texto literário escrito em prosa, entretanto, ela
só se consolida muito tempo depois, particularmente a partir do século XVIII, com o desenvolvimento do
romance.

O termo narrativa não designa somente um gênero literário, pois ao contrário do que ocorre com a lírica,
a narrativa encontra-se em diversas situações e contextos comunicacionais (narrativa de imprensa,
historiografia, relatórios, anedotas, etc.). Nem, tampouco, ela se limita à linguagem verbal, seja oral ou
escrita, mas pode se concretizar através da imagem, fixa ou em movimento, como nos quadrinhos ou no
cinema, ou do gesto, como na mímica ou na dança.

É somente da obra escrita em prosa ficcional, ou seja, do romance, da novela ou do conto, que iremos
tratar aqui. Vamos tratá-la da perspectiva da teoria da narrativa, ou narratologia, disciplina que se
preocupa em descrever suas qualidades intrínsecas, o modo como ela é estruturada por um conjunto de
componentes essenciais: enredo, personagem, tempo, espaço, foco narrativo. Ao lado da teoria da
narrativa, que não tem como objeto exclusivo a narrativa literária, interessando-se também pelas
narrativas fílmicas (cinema), dos quadrinhos ou da mídia, há teorias específicas voltadas aos gêneros
literários, no caso do conto e do romance. Todas essas teorias fornecem subsídios teóricos para a
discussão das categorias narrativas.

Antes de abordar cada um dos componentes estruturais da narrativa, vamos fazer uma distinção entre
narrativa e narração, mostrando que a primeira pode conter outras modalidades discursivas além da
narração.

2.1 Narração, diálogo, descrição, digressão


A narrativa foi definida por Platão como um modo de discurso misto, uma vez que ela não é somente a
concretização da narração, isto é, do ato de relatar eventos encadeados, executado por um narrador,
mas compreende também a apresentação direta das falas das personagens que nela figuram.

Ao analisar os modos de representação na poesia e na prosa, em A república, Platão observa que há uma
maneira imitativa, como na comédia e na tragédia, em que o poeta se esforça por dar a ilusão de que
não é ele quem fala e sim as personagens, e uma maneira narrativa, como nos ditirambos, em que o
poeta fala em seu próprio nome. Na epopeias, ocorre a combinação dos dois modos, uma vez que se
alternam “narrativa pura” e imitação. Ele distingue, deste modo, a narrativa pura (sem diálogo) da
narrativa mista, em que a narração se mescla com o diálogo – recurso próprio do gênero dramático.

A distinção platônica entre imitação (mimesis) e narração (diegesis) foi rediscutida pela teoria moderna
através do par opositivo showing (mostrar) e telling (narrar), proposta por Percy Lubbock, em A arte da
ficção. Na técnica do showing, a representação dos eventos da história é dramatizada, privilegiando os
diálogos das personagens. Na técnica do telling, a representação dos eventos é feita exclusivamente pelo
relato do narrador.

O showing se identifica com a cena, termo utilizado para designar o modo de representação que ocorre,
sobretudo, através do diálogo dramatizado, mas não somente, pois temos uma cena toda vez que a
narrativa apresenta o acontecimento como se ele estivesse ocorrendo no mesmo momento em que está
sendo narrado, com os detalhes contínuos de tempo, lugar, ação e personagem. O telling é um relato
generalizado que se distancia temporalmente e espacialmente dos acontecimentos, apresentando-os
através de um resumo, designado por sumário narrativo.

A cena e o sumário são duas opções de representação dos eventos narrativos que costumam aparecer de
modo alternado nas narrativas de ficção. Ora o narrador “mostra” os acontecimentos através da cena,
ora ele os resume, apresentando-os indiretamente e de forma condensada.

Embora seja mais comum a narrativa clássica iniciar por um sumário que fornece dados da vida das
personagens, mesclado a descrições de suas características e dos cenários em que elas se situam, ocorre
também que o início se dê através da cena, antes que o narrador nos tenha apresentado as personagens
que nela estão presentes. Vejamos o começo de A mão e a luva, de Machado de Assis:

– Mas que pretendes fazer agora?


– Morrer.
– Morrer? Que ideia! Deixa-te disso, Estevão. Não se morre por tão pouco...
– Morre-se. Quem não padece estas dores não as pode avaliar. O golpe foi
profundo e o meu coração é pusilânime; por mais aborrecível que pareça a ideia
da morte, pior, muito pior do que ela, é a de viver. Ah! Tu não sabes o que isto
é?
– Sei: um namoro gorado....
– Luís!
– ... E se em cada caso de namoro gorado morresse um homem, tinha já
diminuído muito o gênero humano, e Maltus perderia o latim. Anda, sobe.

Estevão meteu as mãos nos cabelos com um gesto de angústia; Luís Alves
sacudiu a cabeça e sorriu. Achavam-se os dois no corredor da casa de Luís
Alves, à Rua da Constituição, – que então se chamava dos Ciganos; – então,
isto é, em 1853, uma bagatela de vinte anos que lá vão, levando talvez consigo
as ilusões do leitor, e deixando-lhe em troca (usurários!) uma triste, crua e
desconsolada experiência.

Eram nove horas da noite; Luís Alves recolhia-se para casa, justamente na
ocasião em que Estevão o ia procurar; encontraram-se à porta. Ali mesmo lhe
confiou Estevão tudo o que havia, e que o leitor saberá daqui a pouco, caso não
aborreça estas histórias de amor, velhas como Adão, e eternas como o céu. Os
dois amigos demoraram-se algum tempo no corredor, um a insistir com o outro
para que subisse, o outro a teimar que queria morrer, tão tenazes ambos, que
não haveria meio de os vencer, se a Luís não ocorresse uma transação.

(MACHADO DE ASSIS, 1959, p. 113)

Somente após a cena dialogada é que o narrador fornece referências espaciais e temporais e resume, no
último parágrafo transcrito, os acontecimentos que a antecederam (sumário narrativo). Apresentando um
procedimento distinto, Helena, também de Machado de Assis, começa com um sumário:

O conselheiro Vale morreu às 7 horas da noite de 25 de abril de 1859. Morreu


de apoplexia fulminante, pouco depois de cochilar a sesta, – segundo costumava
dizer, – e quando se preparava a ir jogar a usual partida de voltarete em casa
de um desembargador, seu amigo. O Dr. Camargo, chamado à pressa, nem
chegou a tempo de empregar os recursos da ciência; o padre Melchior não pôde
dar-lhe as consolações da religião: a morte fora instantânea.

(MACHADO DE ASSIS, 1959, p. 185)

Além do diálogo, a narrativa pode conter também outras modalidades discursivas, como a descrição e a
dissertação.

A descrição é o procedimento discursivo através do qual as características de objetos, seres, lugares e


processos são enumeradas de modo a formar uma figura, uma representação visual do objeto descrito. A
descrição não abrange somente características físicas ou exteriores (de um objeto, paisagem,
personagem, atividade etc.), mas pode referir-se a traços morais ou psicológicos de personagens. A
teoria costuma opor narração e descrição como dois procedimentos que contrastam entre si. A narração é
o procedimento de relatar eventos e conflitos que configuram o desenvolvimento de uma história,
apresentando progressão temporal e dinamismo. A descrição tende a apreender o objeto descrito de
modo estático, mesmo que esse objeto seja em si mesmo dinâmico (uma atividade, por exemplo). No
processo descritivo, não há transcurso temporal, pois a descrição se dá fora do nível da progressão da
história.
O exemplo a seguir demonstra uma pausa descritiva. A primeira parte de Madame Bovary, romance do
escritor francês Gustave Flaubert, publicado em 1857, inicia com a cena da chegada do novato Charles
Bovary, estudante de quinze anos, à escola. A descrição do boné, que provoca a pausa na narração,
acentua seu aspecto provinciano e um tanto ridículo aos olhos da classe:

O boné era uma dessas coisas complicadas, que reúnem elementos de chapéu
de feltro, chapéu redondo, fez turco, gorro de peles, barrete de algodão, enfim,
um desses pobres objetos cuja muda fealdade possui a mesma profundeza de
expressão que o rosto de um idiota. Ovóide, guarnecido de barbas de baleia,
começava por três peças circulares; depois, separados por uma franja vermelha,
alternavam-se losangos de veludo e de pele de coelho; em seguida vinha uma
espécie de saco terminado num polígono cartonado e coberto por um bordado
complicadíssimo, do qual pendiam, na ponta de um cordão comprido e muito
fino, umas pequenas borlas de fio de ouro. Era novo; a pala reluzia.

(FLAUBERT, 1982, p. 12)

A dissertação se apresenta na narrativa literária quando ocorre a exposição de ideias, comentários sobre
a matéria narrada, opiniões sobre as personagens e o ambiente social, considerações filosóficas, morais
ou estéticas. Esses comentários, quando feitos pelo narrador, interrompem o fluxo narrativo e são
chamados de digressões, por se constituírem num desvio da sequência narrativa. As digressões reflexivas
têm caráter genérico e abstrato, apresentando-se como uma extrapolação do concreto dos eventos
relatados.

Vejamos este exemplo retirado do romance Esaú e Jacó, de Machado de Assis. No começo do capítulo
XXXVI, o narrador faz uma pausa na narração da história dos gêmeos Pedro e Paulo, para tecer um
comentário a propósito da constante rivalidade entre os dois, que vai se acentuar na disputa pelo amor
de Flora. A “discórdia” é tratada através de um discurso abstrato e genérico, que traz argumentos sobre
a produtividade desse tema na literatura:

A discórdia não é tão feia como se pinta, meu amigo. Nem feia, nem estéril.
Conta só os livros que tem produzido, desde Homero até cá, sem excluir... Sem
excluir qual? Ia dizer que este, mas a Modéstia acena-me de longe que pare
aqui. Paro aqui; e viva a Modéstia, que mal suporta a letra capital que lhe
ponho, a letra e os vivas, mas há de ir com ela e com eles. Viva a Modéstia, e
excluamos este livro; fiquem só os grandes livros épicos e trágicos, a que a
Discórdia deu vida, e digam-me se tamanhos efeitos não provam a grandeza da
causa. Não, a discórdia não é tão feia como se pinta.

(MACHADO DE ASSIS, 1959, p. 919)

Em Tom Jones, romance do escritor inglês Henry Fielding, publicado em 1749, são constantes as
digressões do narrador, que insere longos comentários, muitos dos quais não estão diretamente ligados
ao andamento da história. Logo nas primeiras páginas do romance, após descrever uma das personagens
com que a história inicia, ele faz uma digressão em que, curiosamente, alerta o leitor sobre essa sua
prática e declara sua autoridade de escritor para proceder desse modo sempre que achar conveniente,
sem prestar contas aos “críticos”, aos quais não confere nenhuma autoridade. Vejamos o trecho (do qual
suprimimos algumas linhas) da descrição da personagem Bridget Allworthy, seguida do parágrafo em que
o narrador adverte o leitor sobre o caráter digressivo de sua obra:
Essa senhora já passara algum tempo a idade dos trinta, época na qual, na
opinião dos maliciosos, pode ser assumido sem impropriedade o título de
solteirona. Pertencia à espécie de mulheres que antes recomendais pelas boas
qualidades do que pela beleza, e geralmente chamadas, pelo próprio sexo,
mulheres muito boazinhas – tão boazinha, minha senhora, como a que mais
desejardes conhecer. Tão longe estava, com efeito, de lamentar a falta de
beleza, que nunca se referia a essa perfeição, se é que de tal pode ser
capitulada, sem desprezo; e agradecia frequentemente a Deus o não ser tão
bonita como a Srta. Fulana, a quem a beleza talvez tivesse induzido a praticar
erros que ela, de outra forma, evitaria. A Srta. Bridget Allworthy (tal era o nome
dessa senhora) entendia, muito justamente, que os encantos físicos de uma
mulher não passavam de aranhóis, assim para ela como para os outros; e, sem
embargo, tão discreto era o seu termo de proceder, que a sua prudência vivia
tão de sobreaviso como se lhe cumprisse precaver-se contra todas as ciladas
que já foram armadas para todo o seu sexo. (...)

Cuido razoado, leitor, antes de prosseguirmos juntos, significar-te que pretendo


fazer digressões no decurso de toda esta história sempre que me ensejar
ocasião, da qual sou melhor juiz do que qualquer lastimoso crítico que exista; e
cumpre-me pedir aqui a todos esses críticos que tratem da sua vida, e não se
metam em negócios ou obras que, de maneira nenhuma, lhes dizem respeito;
pois, enquanto não apresentarem a autoridade por cuja virtude se constituíram
juízes, não me sujeitarei à sua jurisdição.

(FIELDING, 1971, p. 15)

Tanto a descrição quanto a digressão podem manifestar-se como blocos discursivos separados da
narração. É o que se observa, de modo geral, no romance do século XVIII e XIX. Neste caso, elas
provocam uma pausa no relato. A descrição, entretanto, pode estar mesclada e mesmo fundida à
narração, quando, ao narrar, o narrador fornece, ao mesmo tempo, elementos descritivos, seja de um
personagem, de um grupo de personagens, de uma paisagem etc. Aliás, é muito difícil que a narração
não contenha elementos descritivos. Quanto à dissertação, ela tanto pode ocorrer no discurso do
narrador – caso em que há uma suspensão do relato – quanto na fala de uma personagem – caso em
que o relato não se interrompe, uma vez que a fala da personagem é uma ação ou evento e, como tal, é
objeto da narração.

2.2 Narrativa como uma estrutura

O mundo possível, criado pela ficção, apresenta seu próprio universo de referência, sua própria lógica,
que pode ser mais ou menos próxima da lógica do mundo real. Os contos de fada e as narrativas
fantásticas, de fantasmas ou de ficção científica são exemplos de mundos ficcionais em que seres e
situações escapam às leis naturais, ao contrário das narrativas de caráter realista, em que eles são
regidos pelas mesmas leis que regem o mundo real. Tanto num caso como no outro, a teoria da narrativa
nos alerta para o fato de que não podemos estabelecer uma relação de continuidade entre esses dois
mundos, por mais que personagens, espaços e acontecimentos do mundo possível da ficção se
assemelhem aos do mundo real. Do ponto de vista da lógica que rege a construção da ficção, não existe
distinção de grau entre uma narrativa fantástica e uma realista, ou seja, não se pode afirmar que a
primeira é “mais ficcional” que a segunda.
Portanto, não podemos fazer da ficção uma leitura imediatamente referencial, como a que aplicamos a
situações, eventos e pessoas do mundo empírico. Essa é uma questão complicada, porque, conforme
argumenta Umberto Eco, no livro Seis passeios pelos bosques da ficção (1994, p. 81-102), o mundo
ficcional é parasitário do mundo real. Tanto a produção quanto a recepção da ficção baseia-se na nossa
experiência de mundo e mesmo a ficção mais imaginosa depende dessa experiência. O leitor de
Chapeuzinho Vermelho aceita que um lobo fale e, desse modo, joga o jogo da ficção e acata suas regras.
Mas as regras da ficção nunca são totalmente desvinculadas das regras do mundo empírico. Quando o
lobo devora a menina, o leitor ou ouvinte pensa que ela morreu, porque assim seria conforme a lei
natural, e dessa crença depende o efeito final da narrativa, o prazer diante da ressurreição de
Chapeuzinho.

No entanto, embora suas fronteiras sejam ambíguas, admite-se a relativa autonomia da obra de ficção
frente à realidade imediata. Por isso, ela pode ser estudada como uma “estrutura, um todo completo
cujas partes se articulam para fazê-lo funcionar. A teoria da narrativa (ou narratologia) preocupa-se em
estabelecer determinadas categorias de análise que são decorrentes dessa estrutura e que ajudam a
torná-la perceptível ao leitor analista.

A narrativa é uma totalidade textual passível de análise e pode ser examinada levando-se em
consideração cinco elementos ou componentes estruturais: o enredo, a personagem, o espaço, o tempo e
o foco narrativo (também comumente denominado “perspectiva” ou “ponto de vista”).

A teoria da narrativa identifica, na estrutura do texto de ficção, dois níveis ou planos de análise: o nível
dos conteúdos narrativos e o nível de expressão desses conteúdos. O enredo, a personagem e o espaço
pertencem ao plano dos conteúdos, enquanto que o tempo e o foco narrativo pertencem ao plano da
expressão. Na discussão sobre o enredo, feita a seguir, essa divisão será discutida.

O termo “estrutura”, aplicado à narrativa, implica que os elementos que a compõem estão intimamente
associados numa relação de interdependência. Isso significa que estudá-los separadamente é um artifício
metodológico para tentar apreendê-los em sua especificidade. No entanto, na análise de um texto
concreto essa separação artificial serve somente como ponto de partida, tendo de ser adaptada às
características particulares de cada obra literária.

2.3 O plano do conteúdo: a história

2.3.1 O enredo

Uma história é constituída por um conjunto de acontecimentos que envolvem personagens e suas ações e
que podem ser, na sua origem, reais ou imaginários (isso não importa, porque sejam eles reais ou
imaginários, ao serem transmitidos de acordo com as convenções da literatura, situam-se
automaticamente na lógica da ficção, que lhe é inerente). Esse conjunto de eventos interligados que
forma a matéria narrada (a história) por si só não constitui a obra literária. Esta resulta da maneira
peculiar com que a matéria narrada é estruturada em um enredo, que é, portanto, fruto do trabalho
artístico do escritor, pois a arte narrativa depende mais do modo como se conta uma história do que
daquilo que se conta.

Geralmente pensamos no enredo como o arranjo dos acontecimentos que formam uma história, como
uma configuração de eventos dispostos numa sequência e articulados entre si.

O formalismo russo, corrente teórica do início do século XX, fez uma distinção entre fabula e sjuzet. O
primeiro termo pode ser traduzido como fábula ou história; o segundo, como trama, intriga ou enredo. A
fábula é a história (constituída de acontecimentos e personagens) que é representada, enquanto que a
trama é o modo de representação da história, ou seja, é o resultado de uma elaboração estética do
material da fábula. A fábula pode não ser criada pelo escritor, como acontece quando ele a aproveita da
História ou da mitologia, por exemplo. A trama, ao contrário, é sempre uma criação singular.

Uma história pode ser contada sem sequência linear, sem obedecer à cronologia dos acontecimentos,
fazendo um vaivém no tempo. Mesmo nos nossos relatos orais e cotidianos, procedemos assim. Para
reconstruirmos a fábula de uma narrativa literária, reordenamos esses acontecimentos na sua sequência
temporal. Enquanto que, para reconstruirmos sua trama, devemos obedecer à sequência de
apresentação dos eventos, conforme a disposição que o narrador lhes deu.

Podemos ter uma história sem enredo, como ocorre nas formas simples, que são os contos populares de
modo geral, as lendas e mitos. Eles são geralmente apresentados como uma sequência linear de fatos,
sem a complicação de um enredo. Isso porque essas histórias, mesmo que tenham sido fixadas
posteriormente pela escrita, são na sua origem narrativas de transmissão oral. Mas não é o que ocorre
com a chamada narrativa culta, em que o enredo é, quase sempre, elemento indispensável.

A terminologia utilizada mais frequentemente pela teoria da narrativa procura dar conta dos diferentes
planos ou dimensões que, metodologicamente, podemos distinguir na narrativa ficcional. A essa primeira
distinção entre história (fábula) e enredo (trama, intriga), acrescenta-se um terceiro termo: o discurso. E
forma-se uma nova oposição: história e discurso.

Quando lemos um conto, uma novela ou um romance, o que acessamos é um discurso a partir do qual
depreendemos uma história e um enredo (nessa oposição entre história e discurso, o enredo é situado ao
lado da história). O enredo e a história são inferidos pelo leitor a partir do discurso narrativo. Tanto é que
podemos fazer do enredo uma paráfrase ou um resumo. Ele pode ser transposto para outra linguagem ou
meio, como quando ele é transposto da literatura para o cinema, por exemplo. Mas o texto do escritor
(seu discurso) é irredutível, porque sua arte consiste em decidir sobre um modo singular de narrar, sobre
as técnicas narrativas de que se utiliza, bem como sobre as palavras que seleciona. Uma mesma história
pode ser contada em diferentes “versões” ou em diferentes narrativas, e cada uma dessas versões
apresentará um discurso específico.
A teoria da narrativa costuma referir-se, assim, à oposição entre história (o que se narra) e discurso
(como se narra), como dois planos a ser considerados na análise. O plano da história – e o modo como
ela se organiza em enredo – pode ser identificado com o conteúdo do texto narrativo (conjunto de
eventos, personagens e cenários representados), enquanto que o plano do discurso diz respeito aos
modos de expressão desses conteúdos (as técnicas narrativas empregadas para elaborar a perspectiva
ou foco narrativo e organização temporal da narrativa, como veremos mais adiante). Adaptando um
esquema de Eco (1994, p. 41), teríamos:

Texto → Conteúdo (matéria narrada, conjunto de acontecimentos) → história (fábula)

Texto → Conteúdo (organização específica da matéria narrada) → enredo (trama, intriga)

Texto → Expressão (modo de narrar) → discurso

Essa distinção é puramente operatória, sendo pertinente para fins de análise. No entanto, o que o leitor
tem, diante de si, é unicamente o texto narrativo, ou seja, o discurso do narrador é a única realidade
material a partir da qual ele pode vir a conhecer uma história. Nesse sentido, história e discurso são
interdependentes e inseparáveis.

Podemos pensar, então, no enredo como um produto da articulação entre dois planos: o do discurso que
narra e o da história que é narrada, conforme argumenta Samira Nahid de Mesquita, em O enredo (1987,
p. 33-40). O enredo não é uma função da linguagem (não é um discurso), mas uma estrutura que pode
ser traduzida de um para outro sistema semiótico (como da linguagem da literatura para a linguagem do
cinema). Mas também não se confunde com a história, se esta é compreendida como o material fabular.

Outro conceito interligado é o de ação, que é muito próximo ao de enredo ou trama, uma vez que o
enredo compreende uma sequência de conflitos e tensões que se resolvem ou não. O enredo é o
resultado da ação das personagens. A ação é entendida como o processo de desenvolvimento de
acontecimentos, envolvendo as personagens e as transformações das situações vivenciadas por elas. A
ação de uma narrativa geralmente conduz a um desenlace (também denominado desfecho) irreversível,
ou seja, um evento ou conjunto de eventos que encerram a história.

A ação se manifesta de modo peculiar nos diferentes gêneros narrativos. Por exemplo, no conto, que é
uma narrativa curta, a ação é única e concentrada, enquanto que o romance, narrativa de estrutura mais
complexa, admite várias ações paralelas.

Aristóteles, na sua Poética, deu grande importância ao enredo. A organização coesa dos eventos garante
uma boa história e cria o sentimento da verossimilhança. Os fatos devem se concatenar numa relação de
causa e efeito, mostrando a alteração de um estado de coisas inicial, através de uma série de peripécias
e transformações, para um estado final. Entre o início e o fim, há o desenvolvimento de um conflito, cuja
resolução, seu desenlace ou desfecho, marca o advento de uma situação final, diferente da inicial.
O enredo da narrativa de estrutura tradicional (como o conto popular e também a ficção do século XVIII
e XIX) baseia-se nesse esquema, em que a ação se desenrola a partir de uma situação inicial de
equilíbrio, seguida de um motivo desequilibrador que gera uma série de transformações até o desfecho e,
consequentemente, a uma situação final de novo equilíbrio.

Esse tipo de enredo pode ser dividido em fases sucessivas mais ou menos identificáveis: apresentação,
na qual são conhecidas as personagens, os cenários, as circunstâncias do enredo; complicação, quando
surge um conflito que, no entanto, já pode estar virtualmente presente na apresentação;
desenvolvimento, que compreende a transformação processual de situações criadas em torno do conflito;
clímax ou ápice da ação em que, tendo chegado a narrativa a um estado de forte tensão, aparecem
novos elementos ou circunstâncias determinantes da resolução do conflito; desenlace, que é o epílogo da
narrativa, quando ela chega a uma situação de equilíbrio ou de ausência de conflito.

Certa parcela da literatura moderna, especialmente a que explora os processos psíquicos das
personagens, tende a pulverizar e diluir o enredo, não dando ênfase às ações dos personagens,
responsáveis pelas transformações de estado que são típicas do modelo tradicional. São narrativas em
que nada parece acontecer, de ritmo lento, em que se ausenta o princípio da concatenação lógica, e às
vezes cronológica, entre os acontecimentos.

Teóricos da narrativa e linguistas falam de uma competência narrativa, análoga à competência


linguística, que desenvolvemos desde a infância, porque narrar é uma atividade básica do ser humano.
Interessamo-nos imensamente pelo desenrolar de uma história bem contada. Sabemos, sem que para
isto tenhamos de receber uma instrução formal, quando uma história não funciona, quando a série de
eventos não está bem disposta, quando algo fica “mal-ajambrado”.

2.3.2 A personagem

Uma das primeiras questões que se colocam quando pensamos na personagem de ficção é a da sua
relação com os seres reais. A teoria da literatura enfatiza o fato de que essa relação não se dá por meio
de uma cópia ou simples reflexo, isto é, a personagem não é, do ponto de vista da teoria, uma
reprodução do ser humano. Isto seria impossível, uma vez que a complexidade do ser humano é
irrepresentável em sua totalidade.

A narrativa de ficção, ao construir um universo particular, cria seres que simulam os seres humanos
através de mecanismos linguísticos e narrativos que lhes são específicos. Devemos, pois, voltar nossa
atenção para esses mecanismos a fim de compreender como um ser criado apenas por meio de palavras
pode dar essa impressão de “vida” e habitar, como tal, o nosso imaginário. Isso porque não podemos
aplicar a esses seres os julgamentos e apreciações que aplicaríamos a um ser empírico.
Em um ensaio muito conhecido, intitulado “A personagem do romance”, Antonio Candido procurou
deslindar os modos com que a ficção constrói personagens. Para ele, nas relações entre ser fictício e ser
real, as diferenças são tão importantes quanto as semelhanças. Uma diferença essencial reside no fato de
que os seres reais, por serem inacabados e instáveis, nunca podem ser plenamente conhecidos, nem
pelos outros nem por si próprios. O conhecimento que temos de outros seres é inevitavelmente
fragmentário. Enquanto que a personagem de ficção se apresenta para o leitor como uma totalidade
acabada, fixada por um conjunto de características. Mesmo que a personagem passe ao leitor a ideia de
um ser instável, ilimitado e complexo, essa percepção resulta de um conjunto finito de traços que o
escritor maneja para transmitir a impressão de infinitude.

O sentimento de verossimilhança que emana de uma personagem é resultado de um processo de


caracterização que cria uma lógica própria, uma linha de coerência. A construção lógica da personagem
não depende somente de sua caracterização, mas de sua conexão com outras personagens e com o
enredo. Isso nos leva a considerar a personagem mais pela ótica de sua verossimilhança interna, aquela
que se estabelece pela coerência de sua composição e de sua ação em relação ao mundo possível da
narrativa, do que pela ótica de sua verossimilhança externa, ou seja, por sua semelhança com figuras do
mundo real. Segundo essa ótica, a personagem seria tanto um produto do enredo, da estrutura
específica criada pela narrativa, em que todos os elementos estão em interrelação, quanto um produto do
discurso do narrador, do modo como ele a descreve e caracteriza.

Existe uma gama de modos de representação da personagem na literatura, de maneira que podemos ter
personagens que simulam, em diferentes graus de complexidade, os seres reais.

Há aquelas personagens simples e esquemáticas que apenas representam um determinado


comportamento social típico, facilmente reconhecível. A literatura de todas as épocas nos fornece
exemplos de tais personagens, que são qualificadas por um traço predominante, uma qualidade ou
característica única, que os torna modelos de certos comportamentos sociais. Teríamos, assim, o
burguês, o corrupto, o sedutor, o fanfarrão, o pícaro, a moça recatada, a mulher fatal etc. Todos estes
são exemplos do que se denomina tipo. As personagens típicas não representam seres humanos
singulares, mas tendências comportamentais presentes na vida coletiva e, algumas vezes, podem tender
à caricatura, decorrente da acentuação de uma única característica definidora, que provoca uma
deformação ridicularizadora e satírica.

E há as personagens complexas, cujo comportamento não é nem previsível nem característico de um tipo
social. Elas são qualificadas por um conjunto de traços e não apenas por um traço definidor e
predominante, como o são as personagens consideradas tipo. Poderíamos supor, então, que as
personagens complexas são aquelas que reproduzem de modo mais perfeito a multidimensionalidade da
pessoa viva. Mas, como demonstra Antonio Candido, esses traços qualificadores nem de longe
reproduzem as múltiplas e flutuantes qualidades de um ser real. O que ocorre é que através de poucas
características o ficcionista consegue transmitir uma impressão de complexidade e ele consegue isso por
meio de técnicas e artifícios narrativos.
A teoria da narrativa adota, com frequência, a classificação que foi proposta, em 1927, pelo crítico e
romancista inglês E. M. Forster (apud CANDIDO, 1976): personagem plana (flat) e personagem redonda
(round). Estes dois termos recobrem aproximadamente as duas possibilidades acima descritas.

A personagem plana é construída pela reiteração, ao longo da narrativa, de certos gestos, falas e
comportamentos, que se tornam marcantes. Ela é estática, pois é caracterizada através da repetição de
um número reduzido de atributos, que se mantêm inalteráveis. Quando essas marcas ou traços
característicos são socialmente representativos é que temos o tipo. O tipo é uma personagem que ilustra
certas figuras sociais, marcadas por traços culturais, regionais, morais, ideológicos, psicológicos,
econômicos, profissionais etc. Não é, portanto uma personagem individualizada, mas representante de
certa categoria de indivíduos ou de uma tendência comportamental.

As personagens redondas (ou esféricas) distinguem-se das planas, como a denominação indica, pela
impressão de profundidade que provocam. Sua caracterização é variável ao longo da narrativa, de modo
que ela foge da previsibilidade. Essa variabilidade não sugere mudanças superficiais de comportamento,
mas uma dimensão psicológica complexa.

2.3.3 Espaço

Toda narrativa se desenvolve num espaço mais ou menos definido. Em primeiro lugar, a categoria espaço
se refere ao ambiente físico onde acontece a história, aos lugares fechados ou abertos, urbanos ou
rurais, reais ou imaginários, naturais ou sobrenaturais, determinados ou indeterminados, em que decorre
a ação.

Por extensão, pode-se entender o espaço como o ambiente social (espaço social) ou ainda como a
atmosfera psicológica (espaço psicológico) em que se movimentam as personagens. Por isso, alguns
teóricos reservam o termo espaço para definir o lugar físico enquanto que preferem o termo ambiente
para nomear o “lugar” social ou psicológico das ações da narrativa. Ligada à noção de espaço, a
atmosfera refere-se a algo mais abstrato, a uma espécie de clima – de angústia, de mistério, de euforia,
de violência, de opressão etc. – que envolve as personagens.

Tanto o conceito de espaço social quanto o de espaço psicológico são, desse modo, extensões da noção
de espaço que, no seu sentido próprio, designa o conjunto de elementos físicos que servem como cenário
para a movimentação das personagens. O que acontece é que os dados de realidade concreta (mesmo
que imaginária) que compõem o espaço físico podem funcionar como dados simbólicos para conotar certo
ambiente social ou psicológico. Desse modo, só se pode falar em espaço psicológico quando ocorre,
efetivamente, essa interação entre meio físico e psicologia das personagens.

Para a caracterização do espaço social, contribuem outros aspectos, além dos espaciais: econômicos,
históricos, culturais. O espaço, neste caso, combina-se com o tempo, para configurar uma época ou
contexto específico em que transitam tipos, categoria de personagens que contribuem para caracterizar
determinado meio social. Já a constituição do espaço psicológico está conectada, geralmente, com a
presença da personagem complexa, de cujo comportamento surgem atmosferas densas, dramáticas ou
poéticas. Nas narrativas em que predomina o espaço psicológico e subjetivo, as ações externas das
personagens e o enredo bem estruturado em começo meio e fim tendem a perder a importância que têm
nas narrativas em que predomina o espaço social.

É preciso observar, porém, que há romancistas que conseguem aliar perfeitamente o espaço social e o
espaço psicológico, como Machado de Assis fez em Memórias póstumas de Brás Cubas, romance em que,
a partir da subjetividade do protagonista (seu mundo mental, espiritual, intelectual, afetivo), se divisa
uma realidade social própria do contexto sócio-histórico representado na obra.

Dependendo do tipo de narrativa, o espaço pode ser mais ou menos determinante das ações das
personagens e do desenvolvimento da intriga. Em romances brasileiros como O cortiço, de Aluísio
Azevedo, ou Vidas Secas, de Graciliano Ramos, é notória a importância do espaço físico, social ou
geográfico para o significado dos textos, uma vez que ele estabelece a natureza do conflito vivido pelas
personagens, na sua interação com o meio em que vivem.

De modo geral, o romance brasileiro, como diz Antonio Candido em Formação da literatura brasileira
(apud DIMAS, p. 16), “tem fome de espaço e uma ânsia topográfica de apalpar todo o país”. O romance
regionalista, desde o período romântico, faz parte desse intuito de representar os tipos e peculiaridades
das diversas regiões do país. Também a cidade, desde José de Alencar e Machado de Assis, é assunto
literário. Na narrativa contemporânea brasileira, tem-se sublinhado o predomínio do espaço urbano como
o lugar privilegiado em que se inserem acontecimentos e personagens.

É comum encontrarmos, na designação de certas formas ou subgêneros narrativos uma qualificação


espacial, como quando se alude ao romance urbano ou ao romance regionalista, por exemplo, o que
demonstra que, nesses textos, a categoria espaço assume grande relevância.

A ação, a personagem e o espaço são, como vimos, elementos estruturais que pertencem ao plano dos
conteúdos narrativos. Sua importância variável pode servir de parâmetro para classificações tipológicas,
como aquela que Wolfgang Kayser (1958), em Análise e interpretação da obra literária, estabeleceu para
o romance (como toda classificação, é apenas uma tentativa, entre outras, de conferir uma organização à
diversidade de formas romanescas que nem sempre se enquadram em tipologias rígidas).

O romance de ação ou de acontecimento, segundo esse autor, é caracterizado pela primazia do enredo,
pela importância dada à sucessão de situações e episódios e sua concatenação lógica. As aventuras das
personagens e suas ações heróicas, suas peripécias, o suspense criado na sucessão dos episódios e que
prepara o clímax e o desenlace são aspectos de destaque desse tipo de romance, que é exemplificado
com autores como Walter Scott e Alexandre Dumas. Outros autores falam em romance de aventura.
No romance de personagem, a caracterização do protagonista, especialmente quanto aos seus aspectos
psicológicos, suas concepções de mundo, sentimentos e sensações, assume uma relevância maior que
outros aspectos, como o enredo e a representação do meio físico, geográfico ou social. Como ocorre em
um dos exemplos referidos por Kayser, o romance Os sofrimentos do jovem Werther, de Goethe, esse
tipo de narrativa propicia o subjetivismo lírico e o tom confessional.

No romance de espaço, é preponderante a representação dos ambientes sociais e do meio histórico,


criando-se grandes painéis sociais, como ocorre na obra de grandes escritores realistas do século XIX,
como Emile Zola, Tolstoi, Balzac, Eça de Queirós. Ou então a representação do meio geográfico que,
como já vimos, ocorre em grande parte da ficção brasileira de caráter regionalista. Neste caso, a
caracterização de tipos humanos serve, sobretudo, para a representação do ambiente regional.

2.4 O plano de expressão: o discurso da narrativa

2.4.1 O foco narrativo

Em Teoria literária: uma introdução (1999, p. 84-94), Jonathan Culler propõe que façamos algumas
perguntas na abordagem analítica de um texto narrativo: (1) Quem fala? – cuja resposta nos leva ao
exame da categoria do narrador; (2) Quem fala para quem? – que implica a categoria do narratário ou
audiência do narrador; (3) Quem fala quando? – que diz respeito à organização temporal da narrativa;
(4) Quem fala que linguagem? – que se refere à linguagem utilizada pela voz narrativa e sua relação com
a linguagem das personagens; (5) Quem fala com que autoridade? – que nos leva ao exame do tom ou
atitude do narrador diante da história que narra; (6) Quem vê?– que é uma questão que, de certo modo,
envolve todas as anteriores e que implica uma teoria sobre a perspectiva, ponto de vista ou foco
narrativo.

Todas essas questões são pertinentes ao plano da expressão e não ao do conteúdo narrativo; são,
portanto, questões relativas ao discurso narrativo, que é o modo de apresentação ou maneira de retratar
os conteúdos de uma história. Com exceção da questão 3 (quem fala quando?), que se relaciona com o
elemento estrutural “tempo” e será discutida mais adiante, trataremos, neste tópico, de todas as outras,
agrupado-as na discussão sobre o foco narrativo.

Um dos elementos estruturais mais importantes da narrativa é o ponto de vista ou perspectiva através da
qual uma história é contada. Essa questão envolve a relação que o narrador estabelece com o mundo
ficcional – como ele vê e avalia esse mundo e que tipo de envolvimento ele estabelece com ele – e como
ele mostra esse mundo ao leitor – o tipo de percepção tem o leitor das personagens e dos espaços.
Muitas teorias que discutem o foco narrativo tendem a confundir duas categorias que certos autores,
como Gérard Genette, procuraram separar: voz (quem é o narrador?) e visão (qual é a personagem cujo
ponto de vista orienta a perspectiva narrativa?). Por isso, Culler coloca estas duas questões distintas:
Quem fala?; Quem vê? Se existe a confusão, é porque são as vozes narrativas, suas falas, que
geralmente definem um modo de ver. Voz e visão estão relacionadas, mas é preciso distingui-las porque
aquele que fala (o narrador) e aquele que vê não coincidem necessariamente, uma vez que o narrador
pode mostrar o universo diegético a partir da ótica da personagem, renunciando, de certo modo, à sua
própria visão.

2.4.1.1 O narrador

Quem fala na narrativa é o narrador. Não só ele, as personagens também falam. Só que elas têm suas
falas reportadas ou citadas pelo narrador, quer seja através do discurso direto (em diálogos ou
monólogos) ou através do discurso indireto, quando o narrador cita apenas o conteúdo da fala da
personagem, mas não a repete literalmente. Voltaremos a falar do discurso da personagem no tópico
2.4.1.3.

Portanto, a voz narrativa dominante é a voz do narrador. Às vezes, o narrador se restringe a ser
meramente uma voz, como aquele das histórias tradicionais, que introduz seu relato com a fórmula “Era
uma vez...”. Ele se limita a relatar, sem acrescentar a esse relato suas próprias percepções, sentimentos
e opiniões sobre a história. A narração ocorre, então, num registro impessoal e objetivo.

Outras vezes, o narrador se faz mais presente, manifestando-se como um “eu” que intervém no relato
através da emissão de reflexões e de intromissões enquanto narra os acontecimentos, quer ele se
posicione fora do relato, meramente como narrador, quer ele seja uma das personagens da história.

O narrador pode ser, desse modo, uma entidade mais ou menos “corpórea”. Tradicionalmente, fala-se
em narrativa em primeira pessoa – quando é uma personagem que conta a história – e em terceira
pessoa – quando a história nos é transmitida por alguém que se coloca numa posição exterior aos fatos
narrados. A categoria gramatical da pessoa, no entanto, às vezes pode confundir, porque a primeira
pessoa do discurso, o “eu”, pode ser empregada por um narrador que não é uma personagem atuante na
história. Isso é muito comum em contos ou romances em que se manifesta uma voz autoral, que fala em
seu próprio nome e conversa com o leitor. Portanto, a presença do “eu” não caracteriza necessariamente
uma narrativa em primeira pessoa.

Tome-se como exemplo os narradores de Esaú e Jacó e de Tom Jones, nos mesmos trechos já citados.
Ambas são narrativas em terceira pessoa, mas apresentam um narrador intruso, que se expressa
subjetivamente. Essas intrusões se manifestam não somente através de digressões que interrompem a
narrativa dos acontecimentos para interpolar comentários do narrador, mas também em passagens
narrativas ou descritivas. Observe as passagens em itálico, que configuram intrusões do narrador de A
mão e a luva, num trecho também já citado:
Estevão meteu as mãos nos cabelos com um gesto de angústia; Luís Alves
sacudiu a cabeça e sorriu. Achavam-se os dois no corredor da casa de Luís
Alves, à Rua da Constituição, – que então se chamava dos Ciganos; – então,
isto é, em 1853, uma bagatela de vinte anos que lá vão, levando talvez consigo
as ilusões do leitor, e deixando-lhe em troca (usurários!) uma triste, crua e
desconsolada experiência.

Eram nove horas da noite; Luís Alves recolhia-se para casa, justamente na
ocasião em que Estevão o ia procurar; encontraram-se à porta. Ali mesmo lhe
confiou Estevão tudo o que havia, e que o leitor saberá daqui a pouco, caso não
aborreça estas histórias de amor, velhas como Adão, e eternas como o céu. Os
dois amigos demoraram-se algum tempo no corredor, um a insistir com o outro
para que subisse, o outro a teimar que queria morrer, tão tenazes ambos, que
não haveria meio de os vencer, se a Luís não ocorresse uma transação.

(MACHADO DE ASSIS, 1959, p. 113)

As intrusões do narrador adquirem muitas feições, mas se referem sempre à expressão de uma posição
pessoal do narrador, a suas avaliações, apreciações, juízos. Na narrativa em primeira pessoa, esse tipo
de intrusão é quase uma decorrência natural do fato de a narração ser efetuada por uma personagem
diretamente envolvida com os acontecimentos. Na narrativa em terceira pessoa, a intrusão vai marcar,
em certas narrativas, a forte presença do narrador no relato, o modo como ele dirige a compreensão do
leitor. Retomando o trecho descritivo de Tom Jones, acima citado, percebe-se que a caracterização da
personagem em questão não é, de modo algum, neutra e objetiva. Ao contrário, é clara a ironia do
narrador ao referir-se à sua aparência física e à sua atitude de desprezo pela beleza feminina. Ele conta,
para isso, com certa cumplicidade da “leitora”, dirigindo-se diretamente a ela, como se observa na
passagem em itálico:

Essa senhora já passara algum tempo a idade dos trinta, época na qual, na
opinião dos maliciosos, pode ser assumido sem impropriedade o título de
solteirona. Pertencia à espécie de mulheres que antes recomendais pelas boas
qualidades do que pela beleza, e geralmente chamadas, pelo próprio sexo,
mulheres muito boazinhas – tão boazinha, minha senhora, como a que mais
desejardes conhecer. Tão longe estava, com efeito, de lamentar a falta de
beleza, que nunca se referia a essa perfeição, se é que de tal pode ser
capitulada, sem desprezo; e agradecia frequentemente a Deus o não ser tão
bonita como a Srta. Fulana, a quem a beleza talvez tivesse induzido a praticar
erros que ela, de outra forma, evitaria. A Srta. Bridget Allworthy (tal era o nome
dessa senhora) entendia, muito justamente, que os encantos físicos de uma
mulher não passavam de aranhóis, assim para ela como para os outros; e, sem
embargo, tão discreto era o seu termo de proceder, que a sua prudência vivia
tão de sobreaviso como se lhe cumprisse precaver-se contra todas as ciladas
que já foram armadas para todo o seu sexo.
(FIELDING, 1971, p. 15)

Gérard Genette denominou o narrador que não participa do mundo narrado de narrador heterodiegético.
A palavra diegese é utilizada pela teoria da narrativa moderna na acepção de mundo narrado, universo
representado na ficção. Por oposição, temos o narrador homodiegético, que é o narrador que também
está presente na narrativa como personagem. O narrador homodiegético pode ser a personagem
principal – caso em que também recebe a designação de narrador autodiegético, pois conta sua própria
história – ou pode ser uma personagem secundária, que tem uma situação mais ou menos periférica
dentro da história. Esses diferentes narradores têm implicações importantes para a definição do foco
narrativo, como veremos mais adiante.
No caso do narrador homodiegético, especialmente quando autodiegético, deve-se distinguir entre o seu
papel de narrador, aquele que conta a história, e o seu papel de personagem, aquele que vive a história.
Eles geralmente se situam em planos temporais diferentes, sendo o ato de narrar quase sempre posterior
ao de viver os acontecimentos narrados, embora existam narrativas que simulam uma simultaneidade
entre narrar e viver. A distância temporal entre narrador e personagem pode ser pequena, como no caso
dos romances epistolares, estruturados através da correspondência trocada entre personagens, ou
daqueles que assumem a forma de um diário íntimo da personagem central. Um exemplo de distância
temporal máxima entre narrador e personagem – que, todavia, referem-se a um só indivíduo – é o
narrador-personagem de Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. Ele se apresenta
como um “narrador-defunto” para relatar suas memórias, como indica o título. Isso, presumivelmente,
lhe dá isenção para ver seu passado e a sociedade da qual participou sem nenhuma complacência, o que
não seria totalmente possível se ele fosse ainda vivo.

O narrador heterodiegético tende a adotar uma atitude demiúrgica em relação à história que conta,
apresentando-se com uma autoridade inconteste e com um domínio absoluto sobre o material narrado,
como uma voz que expressa uma verdade que normalmente não é posta em causa.

Em outros casos, o autor se utiliza de um dispositivo ficcional através do qual delega a um ou mais
narradores a responsabilidade sobre a veracidade (fingida) da história que apresenta ao leitor. O texto de
ficção, especialmente a ficção clássica, costuma estabelecer com o leitor uma espécie de contrato
narrativo, um acordo tácito para permitir a ilusão ficcional. Esse procedimento se tornou uma convenção
nos séculos XVIII e XIX. Para dar um caráter de veracidade ao relato, o autor pode se apresentar apenas
como editor ou transcritor de uma narrativa que não lhe pertence. Ele pode declarar que encontrou um
manuscrito perdido ou esquecido ou então que apenas transcreveu o relato oral de alguém.

O romance As ligações perigosas, de Choderlos de Laclos, que foi publicado pela primeira vez na França
em 1782, mostra um procedimento parecido. Trata-se de um romance epistolar: a narrativa é construída
através das cartas que as personagens trocam entre si. Não existe, portanto, um narrador que assuma o
relato como um todo. No “prefácio do redator”, lemos o seguinte:

Esta obra, ou antes, esta coletânea, que o público achará talvez muito volumosa
ainda, não contém, entretanto, senão um número muito reduzido das cartas que
constituíam a totalidade da correspondência da qual foi extraída. Encarregado de
organizá-las pelas pessoas a quem fora ter, só pedi, como paga, a permissão de
podar tudo o que me parecesse perfeitamente inútil; e procurei, com efeito,
conservar tão-somente as cartas que se me afiguravam necessárias, tanto à
inteligência dos acontecimentos como ao desenvolvimento dos caracteres.

(LACLOS, 1980, p. 11)

No entanto, uma “advertência do editor”, que antecede esse prefácio, nos previne para a falsificação
efetuada pelo “redator”: “Julgamos de nosso dever prevenir o público de que, apesar do título desta obra
e do que dela diz o redator em seu prefácio, não garantimos a autenticidade da coletânea, e temos
mesmo fortes razões para pensar que se trata apenas de um romance” (LACLOS, 1980, p. 9).
Naturalmente, tanto “redator” quanto “editor” são entidades tão fictícias quanto as cartas e as
personagens que as escrevem. O romance é uma crônica dos costumes eróticos do século XVIII. O jogo
de contradição entre a pretensa autenticidade das cartas, garantida pelo “redator” a fim de conferir
verossimilhança a seu texto, como era de praxe na época, e a ficcionalidade indicada pelo “editor”, de
certa maneira atenua seu conteúdo escandaloso. Especialmente quando este último assegura “que se
trata apenas de um romance”, sem poder nem autoridade, portanto, de apresentar-se como um
documento fiel da realidade.

Modernamente surge um tipo de narrador que expressa desconfiança na sua própria capacidade de
relatar uma história ou que procura expor ao leitor os mecanismos empregados na construção da
narrativa. Podemos qualificar esse narrador como auto-reflexivo, já que ele problematiza o próprio ato de
narrar.

É o que ocorre com o narrador de A hora da estrela, de Clarice Lispector, que, nas primeiras páginas do
romance, se apresenta como um personagem-autor chamado Rodrigo S.M. Ele declara ser o responsável
pela narração da história de uma nordestina de dezenove anos, que tenta sobreviver no Rio de Janeiro
trabalhando como datilógrafa. Não se decide, entretanto, a começar a história, protelando-a por muitas
páginas, enquanto expõe seus dilemas ao leitor:

Não, não é fácil escrever. É duro como quebrar rochas, mas voam faíscas e
lascas como aços espelhados.

Ah que medo de começar e ainda nem sequer sei o nome da moça. Sem falar
que a história me desespera por ser simples demais. O que me proponho contar
parece fácil e à mão de todos. Mas a sua elaboração é muito difícil. Pois tenho
que tornar nítido o que está quase apagado e que mal vejo. Com mãos de dedos
duros enlameados apalpar o invisível na própria lama.

De uma coisa tenho certeza: essa narrativa mexerá com uma coisa delicada: a
criação de uma pessoa inteira que na certa está tão viva quanto eu.

(LISPECTOR, 1984, p. 25)

Desse modo, o leitor pode acompanhar o difícil nascimento de uma história e de sua protagonista. Mesmo
depois, quando a narrativa deslancha, o narrador-autor se mostra intruso, interrompendo-a a todo
instante para expressar insegurança quanto ao conteúdo da história e ao estilo de sua escrita:

Será que eu enriqueceria este relato se usasse alguns difíceis termos técnicos?
Mas aí é que está: esta história não tem nenhuma técnica, nem de estilo, ela é
ao deus-dará. Eu que também não mancharia por nada deste mundo com
palavras brilhantes e falsas uma vida parca como a da datilógrafa. Durante o dia
eu faço, como todos, gestos despercebidos por mim mesmo. Pois um dos gestos
mais despercebidos é esta história de que não tenho culpa e que sai como sair.

(LISPECTOR, 1984, p. 44)


Na consideração do discurso do narrador é preciso atentar para o fenômeno da ironia que,
tradicionalmente, tem sido tratada como uma figura de linguagem, tal como a metáfora, uma vez que
implica um sentido diferente daquele que o enunciado significa literalmente. É possível, entretanto, ver
na ironia um fenômeno de sobreposição de vozes, em que um locutor assume a fala de outrem, a qual
considera absurda, para desmerecê-la, ridicularizá-la ou criticá-la. Como quem fala é, aparentemente,
responsável pelo que diz, nem sempre se percebe uma fala irônica. Nesta, o locutor afasta essa
responsabilidade, ao pôr em foco a fala ou o ponto de vista de uma personagem que ele considera
ridícula. Na descrição de Bridget Allworthy, o narrador de Tom Jones é irônico porque ao expor o que a
personagem pensa sobre a beleza feminina, desprezada por ela em nome da virtude, ele mostra, ao
mesmo tempo, a incongruência desse pensamento, do qual parece se afastar, mesmo que não o diga
explicitamente.

2.4.1.2 O narratário

Uma categoria correlata ao narrador é a do narratário, pois quem fala, fala para alguém. Entendida como
ato comunicativo, a narrativa literária é uma mensagem transmitida por um emissor para um receptor.
No mundo exterior ao texto, o emissor é um escritor que destina sua obra a uma comunidade de leitores.
No mundo ficcional, a voz narradora dirige-se a uma audiência que pode estar explícita ou apenas
subentendida. Nos exemplos citados, de Machado de Assis e de Henry Fielding, é comum a interpelação
do leitor ou leitora, figuras que são projeções do leitor de cada um destes escritores, conforme o contexto
histórico e cultural de produção e de recepção da obra específico a cada um.

A esse destinatário do relato é que chamamos de narratário. Muitas vezes, ele é apenas pressuposto,
confundindo-se com o leitor virtual da obra. Com efeito, grande parte das narrativas não explicita uma
situação de interlocução e, desse modo, não torna perceptível a presença de um narratário. No entanto,
todo texto ficcional pressupõe um leitor, que não se confunde com o leitor real. Umberto Eco defende a
idéia de um leitor implícito que é projetado – de certo modo desenhado – pelo texto.

Em algumas narrativas, o narratário é uma personagem. Isso pode ocorrer em narrativas que
apresentam mais de um nível diegético, ou seja, que apresentam histórias encaixadas dentro de uma
outra. Neste caso, um ser ficcional que é apenas uma personagem em um nível, torna-se narrador em
outro nível, para contar uma história destinada a outra personagem ou grupo de personagens que se
tornam, assim, sua audiência.

No romance O Morro dos Ventos Uivantes, da escritora britânica Emily Brontë, publicado em 1847, um
primeiro narrador-personagem, Lockwood, chega a Wuthering Heights, a propriedade da família
Earnshaw, e conhece Heathcliff, o protagonista de uma história que ele vai conhecer depois, através da
narrativa de Helen Dean, a governanta da família. Toda a história é contada por essa testemunha ocular
dos acontecimentos. O narratário da narrativa de Helen Dean é Lockwood, enquanto que o narratário de
Lockwood é o leitor virtual do romance.
Uma situação semelhante ocorre em Sonata a Kreutzer, novela do escritor russo Tolstói, publicada pela
primeira vez em 1891. Um primeiro narrador faz uma longa viagem de trem, onde conhece, entre outras
personagens, um homem chamado Pódznichev, cuja estranha conduta demonstra uma grande
perturbação de espírito. Mais tarde, ele começa a relatar sua trágica história – uma história de ciúme,
adultério e assassinato –, assumindo o papel de narrador enquanto o primeiro narrador, agora seu
ouvinte, assume o papel de um narratário interno. Temos, assim, duas situações de interlocução: o
primeiro narrador fala para um possível leitor da novela; Pódznichev tem como interlocutor (narratário)
esse primeiro narrador, que é quem assume o relato como um todo. Ele não se identifica, não diz quem
é, nem o que faz. Tendemos a identificá-lo com o autor. Mas é preciso fazer uma distinção entre o autor
e o escritor de carne e osso, Tolstói, já que o primeiro é uma criação que figura em um mundo ficcional.

Essa observação vale de modo geral, mesmo para os narradores externos ao mundo narrado. A voz
narradora, seja ela intrusa, seja impessoal, é parte integrante do mundo possível criado pela ficção. A
fala do narrador, por mais que projete uma voz autoral, não pode ser confundida com a fala do escritor,
que a cria para desempenhar seu papel naquele universo específico.

Da mesma maneira que se distingue o autor do escritor, o leitor, seja ou não invocado pelo narrador,
deve ser distinguido do público que lê efetivamente o texto. Ele é, antes de tudo, uma peça necessária na
situação comunicativa criada pelo texto.

2.4.1.3 O discurso da personagem

O discurso da narrativa de ficção apresenta, com frequência, a feição de uma polifonia, uma vez que
várias vozes confluem no seu enunciado. O narrador relata acontecimentos com sua própria voz, mas
também cita, de modo direto, frases de outras personagens, imitando eventualmente a sua voz, a sua
mímica e até seus gestos. Em outros momentos resume, de modo indireto, algumas de suas expressões,
dizendo com suas próprias palavras o que a personagem falou. Neste caso, ocorre uma espécie de
“tradução” do discurso da personagem pelo narrador. Mesmo que a palavra não esteja com a
personagem e sim com o narrador, este pode assumir, quando se reporta indiretamente à fala da
personagem, suas inflexões, sua maneira de falar.

Do ponto de vista linguístico, existem três processos de citação do discurso de outrem: o discurso direto,
o indireto e o indireto livre. Na narrativa literária, o processo de citação ocorre quando o narrador se
reporta à enunciação das personagens. Naturalmente, na literatura o processo de citação faz parte da
ilusão narrativa, é fingido, já que todas as falas são criadas pelo autor e não verdadeiramente citadas.

Quanto ao discurso direto, ele ocorre tanto no monólogo quanto no diálogo. Vimos que o diálogo (e
eventualmente o monólogo) é um recurso próprio do gênero dramático que já estava presente nas
narrativas épicas. Mas o diálogo, na narrativa, é sempre conduzido por um narrador que, no texto
dramático, está ausente. Não teria sentido, assim, dizer que o diálogo, na peça teatral, se trata de
“discurso direto”, porque esta expressão é uma modalidade de discurso citado, enquanto que no teatro
as falas não são citadas por ninguém, uma vez que o autor se ausenta do texto.

O discurso direto pretende ser uma transcrição fiel da fala da personagem, não só de seu conteúdo como
de sua maneira de dizer: a entonação, o sotaque, a cadência, o registro de linguagem, as expressões
faciais, etc. A voz da personagem se torna autônoma, com todas as marcas gramaticais da primeira
pessoa e da situação em que ela profere sua fala.

No discurso indireto, a fala da personagem não é reproduzida literalmente, com seus significantes, mas
sim quanto ao seu sentido. O narrador fornece, com suas próprias palavras, um equivalente semântico
das frases proferidas pela personagem. Ele pode, supostamente, escolher entre reproduzir as expressões
originais ou modificá-las completamente. De qualquer modo, a fala da personagem perde sua autonomia.

O conto intitulado “Nada de Novo na Frente Ocidental”, de Lygia Fagundes Telles, inicia com a citação das
falas de uma das personagens em discurso indireto e, seguida, reproduz um diálogo em discurso direto.
Tudo o que é discurso da personagem está em itálico. Neste caso, como se trata de um narrador-
personagem, é preciso diferenciar quando ele exerce sua função de contador da história de quando ele
fala como personagem participante da trama:

Ela estendeu na mesa a toalha de algodão de xadrez vermelho e branco. Trouxe


as xícaras, o açucareiro e a manteiga dentro da tigela com água, quem não
tinha geladeira devia conservar a manteiga fresca dentro de uma vasilha de
água diariamente renovada. Avisou que o pão com queijo já estava no forno, ia
demorar um pouco. Mas eu podia ir comendo a mandioca cozida, disse e deixou
na minha frente o prato de mandioca ainda fumegante. A Faculdade estava em
greve, eu estava de folga nessa manhã. E ela já estava pronta para tomar o
ônibus na rodoviária, ia cumprir uma promessa na cidade de Aparecida, era uma
ardorosa devota de Nossa Senhora.
– Andei ligando o rádio, ela disse enquanto ia polvilhando a mandioca com
açúcar. Hoje as notícias estão mais calmas, parece que a guerra está mesmo no
fim, louvado seja Deus!
– Nada de Novo na Frente Ocidental.
Ela me encarou:
– O que é isso?

(TELLES, 2004, p. 228)

No exemplo seguinte, do conto “A cartomante”, de Machado de Assis, a citação em discurso indireto


altera radicalmente a fala original, pois, segundo se infere da caracterização de Rita, ela não seria capaz
de citar Shakespeare. Isso fica por conta do narrador culto, que observa ao leitor o fato de ela ter usado
“outras palavras”, palavras bem mais simples, como se deduz:

Hamlet observa a Horácio que há mais cousas no céu e na terra do que sonha a
nossa filosofia. Era a mesma explicação que dava a bela Rita ao moço Camilo,
numa sexta-feira de Novembro de 1869, quando este ria dela, por ter ido na
véspera consultar uma cartomante; a diferença é que o fazia por outras
palavras.
(MACHADO DE ASSIS, 1983)

O discurso indireto não se separa, como o direto, da fala do narrador, mas forma uma continuidade com
esta, com as referências e as marcas gramaticais próprias da sua pessoa. Como observa Dominique
Maingueneau, em Elementos de linguística para o texto literário (1996, p. 108), o discurso indireto só é
discurso citado por seu sentido, especialmente o sentido dos verbos dicendi, ou seja, verbos “de dizer”
(falar, afirmar, responder etc.). Do ponto de vista sintático não se pode distinguir Paulo diz que João
dorme de Paulo vê que João dorme, mas somente o primeiro enunciado contém uma citação, introduzida
por um verbo de locução seguido de uma subordinada objetiva.

No discurso direto, a presença do verbo de locução não é imprescindível, pois a mudança das falas é
também marcada por grafemas (dois pontos, travessão, aspas) e pode ser deduzida do contexto. Na
literatura moderna, às vezes desaparecem algumas dessas marcas, o que provoca certa dificuldade de
identificar quem são os responsáveis pelas réplicas.

O escritor português José Saramago, por exemplo, tem uma forma singular de citar em discurso direto,
separando as falas com vírgula e dispensado sua pontuação própria. Geralmente, ele mantém o verbo
dicendi para introduzir o discurso da personagem, que é marcado ainda pelo uso de maiúscula inicial.
Observe o trecho a seguir, retirado do romance Memorial do convento. O romance tem, como pano de
fundo, um acontecimento histórico, a construção do Convento de Mafra, no século XVIII, como
pagamento de uma promessa feita por D. João V para que a rainha conseguisse gerar um filho varão. Da
cena, que mostra as circunstâncias em que a promessa foi feita, participam três personagens, o rei, o
bispo D. Nuno da Cunha e um frade franciscano, António de S. José. O verbo dicendi que introduz a fala
do bispo no discurso do narrador está grifado em negrito e, em itálico, a passagem em discurso direto:

Mas vem agora entrando D. Nuno da Cunha, que é o bispo inquisidor, e traz
consigo um franciscano velho. Entre passar adiante e dizer o recado há vênias
complicadas, floreios de aproximação, pausas e recuos, que são as fórmulas de
acesso à vizinhança do rei, e a tudo isto teremos de dar por feito e explicado,
vista a pressa que traz o bispo e considerando o tremor inspirado do frade.
Retiram-se a uma parte D. João V e o inquisidor, e este diz, Aquele que além
está é frei António de S. José, a quem, falando-lhe eu sobre a tristeza de vossa
majestade por lhe não dar filhos a rainha nossa senhora, pedi que
encomendasse vossa majestade a Deus para que lhe desse sucessão, e ele me
respondeu que vossa majestade terá filhos se quiser, e então perguntei-lhe que
queria ele significar com tão obscuras palavras, porquanto é sabido que filhos
quer vossa majestade ter, e ele respondeu-me, palavras enfim muito claras, que
se vossa majestade prometesse levantar um convento na vila de Mafra, Deus
lhe daria sucessão, e tendo declarado isto, calou-se D. Nuno e fez um aceno ao
arrábido.

(SARAMAGO, 2001, p. 13-14)

Com o verbo de locução (diz), o narrador passa a palavra a D. Nuno da Cunha. Mas sua fala, que
compreende todo o trecho em itálico, por sua vez, cita em discurso indireto as falas de um diálogo entre
ele mesmo e o outro personagem, o frade franciscano. Desta vez não é mais o narrador quem cita, mas a
personagem. Veja abaixo, na passagem em discurso direto já destacada, os verbos e as citações em
discurso indireto:
Aquele que além está é frei António de S. José, a quem, falando-lhe eu sobre a
tristeza de vossa majestade por lhe não dar filhos a rainha nossa senhora, pedi
que encomendasse vossa majestade a Deus para que lhe desse sucessão, e ele
me respondeu que vossa majestade terá filhos se quiser, e então perguntei-
lhe que queria ele significar com tão obscuras palavras, porquanto é sabido que
filhos quer vossa majestade ter, e ele respondeu-me, palavras enfim muito
claras, que se vossa majestade prometesse levantar um convento na vila de
Mafra, Deus lhe daria sucessão,

Na continuação da mesma cena, o rei conversa primeiro com o frade, depois com o bispo, e, finalmente,
com outros personagens presentes na cena. Todas as passagens em itálico estão em discurso direto:

Perguntou el-rei, É verdade o que acaba de dizer-me sua eminência, que se eu


prometer levantar um convento em Mafra terei filhos, e o frade respondeu,
Verdade é, senhor, porém só se o convento for franciscano, e tornou el-rei,
Como sabeis, e frei António disse, Sei, não sei como vim a saber, eu sou
apenas a boca de que a verdade se serve para falar, a fé não tem mais que
responder, construa vossa majestade o convento e terá brevemente sucessão,
não o construa e Deus decidirá. Com um gesto mandou el-rei ao arrábido que se
retirasse, e depois perguntou a D. Nuno da Cunha, É virtuoso este frade, e o
bispo respondeu, Não há outro que mais o seja na sua ordem. Então D. João, o
quinto do seu nome, assim assegurado sobre o mérito do empenho, levantou a
voz para que claramente o ouvisse quem estava e o soubessem amanhã cidade
e reino, Prometo, pela minha palavra real, que farei construir um convento de
franciscanos na vila de Mafra se a rainha me der um filho no prazo de um ano a
contar deste dia em que estamos, e todos disseram, Deus ouça vossa
majestade, e ninguém ali sabia quem iria ser posto à prova, se o mesmo Deus,
se a virtude de frei António, se a potência do rei, ou, finalmente, a fertilidade
dificultosa da rainha.

(SARAMAGO, 2001, p. 14)

O terceiro procedimento de citação, o discurso indireto livre tem sido descrito como um discurso híbrido,
em que a voz do narrador e a voz da personagem parecem soar juntas. Ele é perceptível quando as falas
ou pensamentos de uma personagem, sem serem citadas de modo explícito pelo narrador, se associam à
voz narrativa, imprimindo suas marcas próprias: um ponto de vista, uma maneira de dizer, um
vocabulário, um sotaque, a expressão de ideias singulares. O narrador permite que a personagem e seu
ponto de vista específico manifestem-se verbalmente na narração, sem que ele lhe conceda,
formalmente, a palavra, como ocorre no discurso direto. É uma forma de citação mais complexa e mais
difícil de ser identificada, porque não apresenta marcas linguísticas inequívocas que possibilitem
demarcar suas fronteiras.

A invenção do discurso indireto livre foi creditada pela crítica literária ao escritor Gustave Flaubert, que a
teria apresentado, pela primeira vez, no romance Madame Bovary, de 1857. Ele a utilizou para
representar a vida mental de suas personagens, para expor os conteúdos de sua consciência sem as
tradicionais manipulações do narrador. Tradicionalmente, o narrador fala sobre a interioridade
psicológica da personagem, analisa sua realidade mental. A vida interior da personagem se torna, neste
caso, objeto de descrição do narrador, que faz sua análise a partir de sua posição onisciente, de modo
objetivo e distanciado.
Vejamos um exemplo desta técnica tradicional para poder compará-la, depois, com o discurso indireto
livre como técnica inovadora de representação da interioridade. Trata-se de um trecho do romance Os
miseráveis, de Victor Hugo (1802-1885), escritor francês do século XIX, que foi extraído de um capítulo
denominado “O interior do desespero”, título que já anuncia que a narrativa vai focalizar o estado d’alma
de Jean Valjean, protagonista da história. Depois de relatar, no capítulo anterior, sua condenação pelo
roubo de um pedaço de pão e sua permanência na prisão por quase vinte anos, o narrador, ao constatar
a mudança que se operou, nesse tempo, no comportamento de Jean Valjean, questiona: “Que se passou
naquela alma?”. O aludido capítulo é a resposta a essa questão:

Tentemos explicar.

É realmente necessário que a sociedade olhe para essas coisas, já que é ela que
as produz. Jean Valjean, como dissemos, era um ignorante, mas não um
imbecil. A luz natural brilhava nele. O infortúnio, que também possui sua
claridade, aumentou um pouco a luz que havia naquele espírito. Apesar dos
castigos, das correntes, do calabouço, do cansaço, do sol ardente das galés, da
cama de tábua, ele voltou-se para sua consciência e refletiu.

Constituiu-se em tribunal.

Principiou por julgar-se a si mesmo.

E então reconheceu que não era um inocente injustamente punido. Confessou a


si próprio que cometera uma ação extrema e repreensível; que talvez não lhe
recusassem aquele pão se o tivesse pedido; que, em todo caso, teria sido
melhor esperá-lo, ou da compaixão ou do trabalho; que não é uma razão
indiscutível dizer: “pode-se esperar quando se tem fome?”; que, primeiramente,
é muito raro que se morra literalmente de fome; depois que, feliz ou
infelizmente, o homem é moldado de tal forma que pode padecer muito e por
muito tempo, quer física, quer moralmente, sem morrer; que devia, portanto,
ter paciência; que o mesmo teria sido melhor para aquelas pobres criancinhas;
que fora um ato de loucura o seu, mesquinha criatura impotente, querer arcar
com a sociedade inteira e imaginar que se sairia da miséria através do roubo;
que, em todo caso, seria uma péssima porta para sair da miséria, aquela pela
qual se entra para a infâmia; enfim, que havia errado.

(HUGO, 2007, p. 106-107)

O narrador é quem sempre fala e domina o ponto de vista. Em contrapartida, vejamos como Flaubert dá
a conhecer os pensamentos de Emma Bovary, deixando que ela assuma o ponto de vista dominante na
narração. O trecho seguinte mostra Emma com uma charuteira encontrada por seu marido após um baile
em que ela tivera, pela primeira vez, contato com a vida luxuosa da nobreza. O objeto refinado dá ensejo
a que ela sonhe com esse estilo de vida, muito diferente daquele que leva com seu marido Charles, um
médico de aldeia:

Muitas vezes, depois de Charles sair, Emma tirava do armário, entre a roupa
onde a deixara, a charuteira de seda verde.

Olhava-a, abria-a e chegava mesmo a aspirar-lhe o perfume do forro, misto de


verbena e de fumo. A quem pertenceria?... Ao visconde. Era talvez presente da
amante. Fora bordada nalgum bastidor de jacarandá, trabalho de muitas horas,
sobre o qual tinham pendido os cabelos da pensativa bordadeira. Um bafo de
amor perpassara as malhas da tela; cada picada da agulha fixara ali uma
esperança ou uma recordação, e todos aqueles fios de seda entrelaçados não
eram senão a continuidade da mesma paixão silenciosa. Depois, numa
madrugada, o visconde levara-a consigo. O que teriam conversado, enquanto
ele se conservava junto às lareiras majestosas, entre os vasos de flores e os
relógios Pompadour? Como seria aquela Paris? Que nome imenso! Emma sentia
prazer em repeti-lo, a meia-voz, ecoava-lhe nos ouvidos como um sino de
catedral, flamejava-lhe diante dos olhos até mesmo nos rótulos dos potes de
cosmético.

(FLAUBERT, 1982, p. 61)

O trecho em itálico é considerado como discurso indireto livre. Mantém-se o registro da terceira pessoa,
que é o do narrador, mas as conjecturas e o modo de expressá-las não são dele e sim de Emma, com
suas interrogações e exclamações. Os conteúdos da consciência da personagem associam-se à narração
e “contaminam” o discurso do narrador, proporcionando que o leitor se instale nessa consciência de modo
mais direto. Ao mesmo tempo, o narrador restringe seu campo de visão. Trata-se, neste caso, de um
narrador heterodiegético e onisciente, uma vez que o narrador-personagem não tem poder de penetrar
nos pensamentos das personagens. Por isso, essa técnica é um dos recursos daquilo que os teóricos
chamam de focalização restritiva ou onisciência seletiva (ver tópico 2.4.1.4, a seguir).

O discurso indireto livre não é só utilizado para representar os conteúdos não pronunciados de uma
consciência, mas serve também para inserir as características linguísticas próprias do falar social das
personagens no fio narrativo. No texto abaixo, parte inicial do conto “Pomba enamorada ou Uma história
de amor”, de Lygia Fagundes Telles, percebe-se o entrecruzamento das vozes das personagens,
introduzidas pelo narrador por meio do discurso direto, do indireto e do indireto livre. Utilizando esses
três processos de modo equilibrado, a autora privilegia o estilo das personagens, com sua linguagem
popular e expressões chulas:

Encontrou-o pela primeira vez quando foi coroada princesa no Baile da


Primavera e assim que o coração deu aquele tranco e o olho ficou cheio d’água
pensou: acho que vou amar ele pra sempre. Ao ser tirada teve uma tontura,
enxugou depressa as mãos molhadas de suor no corpete do vestido (fingindo
que alisava alguma prega) e de pernas bambas abriu-lhe os braços e o sorriso.
Sorriso meio de lado para esconder a falha no canino esquerdo que prometeu a
si mesma arrumar no dentista do Rôni, o Doutor Élcio, isso se subisse de
ajudante para cabeleireira. Ele disse apenas meia dúzia de palavras, tais como,
Você é que devia ser a rainha porque a rainha é uma bela bosta, com o perdão
da palavra. Ao que ela respondeu que o namorado da rainha tinha comprado
todos os votos, infelizmente não tinha namorado e mesmo que tivesse não ia
adiantar nada porque só conseguia coisas a custo de muito sacrifício, era do
signo de Capricórnio e os desse signo têm que lutar o dobro pra vencer. Não
acredito nessas babaquices, ele disse, e pediu licença pra fumar lá fora, já
estavam dançando o bis da Valsa dos miosótis e estava quente pra danar. Ela
deu a licença. Antes não desse, diria depois à rainha enquanto voltavam pra
casa. Isso porque depois dessa licença não conseguiu mais botar os olhos nele,
embora o procurasse por todo o salão e com tal empenho que o diretor do clube
veio lhe perguntar o que tinha perdido. Meu namorado, ela disse rindo, quando
ficava nervosa, ria sem motivo. Mas o Antenor é seu namorado?, estranhou o
diretor apertando-a com força enquanto dançavam Nosotros. É que ele saiu logo
depois da valsa, todo atracado com uma escurinha de frente única, informou
com ar distraído. Um cara legal mas que não esquentava o rabo em nenhum
emprego, no começo do ano era motorista de ônibus, mês passado era
borracheiro numa oficina da Praça Marechal Deodoro mas agora estava numa
loja de acessórios na Guaianazes, quase esquina da General Osório, não sabia o
número mas era fácil de achar. Não foi fácil assim ela pensou quando o
encontrou no fundo da oficina, polindo uma peça. Não a reconheceu, em que
podia servi-la? Ela começou a rir, Mas eu sou a princesa do São Paulo Chique,
lembra? Ele lembrou enquanto sacudia a cabeça impressionado. Mas ninguém
tem este endereço, porra, como é que você conseguiu? E levou-a até a porta:
tinha um monte assim de serviço, andava sem tempo pra se coçar mas
agradecia a visita, deixasse o telefone, tinha aí um lápis? Não fazia mal,
guardava qualquer número, numa hora dessas dava uma ligada, tá? Não deu.

(TELLES, 2004, p. 19-20)

Durante a cena do baile, os diálogos entre a “princesa” e Antenor e, depois, entre ela e o diretor do
clube, alternam o discurso direto com o indireto. O primeiro trecho em itálico é uma fala do diretor do
clube em discurso indireto, mas de onde se ausenta o verbo de locução que lhe é peculiar. O segundo
trecho em itálico já pertence ao domínio do indireto livre, pois se a primeira parte do enunciado pertence
ao discurso do narrador (Não a reconheceu), a segunda (em que podia servi-la?) pertence a Antenor.
Esta fala em discurso direto seria: “Em que posso servi-la?”; em discurso indireto teríamos: “perguntou
em que poderia servi-la”. Temos então a sobreposição das vozes do narrador, com o verbo na terceira
pessoa, e da personagem, caracterizada pela ausência do verbo dicendi e pela presença do ponto de
interrogação. A mesma sobreposição fica ainda mais explícita no último trecho grifado.

Como os modos de representação do discurso das personagens abrangem também as suas falas internas,
não pronunciadas, o discurso indireto livre pode ser uma transição ao monólogo interior. Nesta técnica, a
voz da personagem se emancipa totalmente da voz do narrador, que desaparece do relato. O monólogo,
assim como o diálogo, está presente nas narrativas de todas as épocas, como forma convencional de
apresentar os pensamentos e sentimentos de uma personagem que fala “a sós”, de si para si mesma.
Essa fala é apresentada de forma direta e clara, distinguindo-se nitidamente do discurso do narrador, que
a cita e depois retoma a narração.

Diferentemente, o monólogo interior é uma técnica moderna que procura aprofundar os processos
mentais, permitindo que eles se manifestem de modo espontâneo. Assim, uma das suas características é
a falta de nexos sintáticos próprios de um discurso lógico. A sintaxe do discurso citado tradicional é
subvertida, não se observando a correção gramatical, a fim de expressar o modo não ordenado de os
pensamentos se sucederem na mente humana. Por isso, alguns teóricos denominam-no de fluxo de
consciência. Procura-se simular uma verdade psicológica, captar os conteúdos da consciência de modo
mais autêntico. O monólogo interior pode aparecer tanto em relatos de terceira pessoa quanto em relatos
de primeira. No primeiro caso, o narrador aproxima-se cada vez mais da consciência da personagem até
que a narração é substituída pelo seu fluxo mental; no segundo caso, o narrador-personagem deixa que
seu eu interior se manifeste verbalmente de modo caótico e incoerente.

O exemplo mais citado é Ulisses, de James Joyce, considerado um romance revolucionário quanto ao
emprego de técnicas narrativas. Nele se apresentam extensos trechos em monólogo interior. Vejamos
um exemplo de outro escritor moderno, William Faulkner, extraído de Enquanto agonizo, romance que
apresenta vários narradores-personagens, cada qual com uma perspectiva própria da história da família
da qual fazem parte. Observe a precária organização sintática, pelas repetições excessivas e pela
ausência de elementos coesivos e de pontuação:

Quando eu dormia ao lado de Vardaman uma vez tive um pesadelo em que


achei que estava acordada mas não podia ver e não podia sentir não podia
sentir a cama debaixo de mim e não podia pensar o que eu era não podia
pensar em meu nome não podia nem mesmo pensar que sou uma menina não
podia nem mesmo pensar nem ao menos pensar que queria acordar nem
lembrar que era o contrário de acordar então eu poderia fazer aquilo eu sabia
que alguma coisa estava acontecendo mas não podia nem pensar no tempo
então de repente eu soube que alguma coisa acontecia e era o vento que
soprava sobre mim era como se o vento viesse soprar atrás de mim de onde ele
estava eu não soprava o quarto e Vardaman dormia e todos os outros debaixo
de mim de novo e indo embora como uma peça de seda fria que roçava minhas
pernas nuas

(FAULKNER, 2002, p. 105)

2.4.1.4 As visões da narrativa e os modos de focalização

Um dos primeiros teóricos a sistematizar numa classificação os diferentes pontos de vista apresentados
no romance foi o crítico francês Jean Pouillon. Em O tempo no romance, ele discute “os modos da
compreensão” da personagem romanesca a partir da maneira como ela é vista pelo romancista,
estabelecendo três “visões”. A postulação dessas visões pressupõe que existe um “dentro” e um “fora”, a
saber: o universo psíquico – a interioridade da personagem; o aspecto físico e a conduta – a
exterioridade da personagem.

Na visão “por detrás”, o narrador demonstra um conhecimento irrestrito sobre a vida da personagem,
tanto de suas ações quanto de suas motivações internas, do que ela pensa e sente. Ele a analisa de
modo objetivo e direto, colocando-se por detrás, ora aproximando-se, ora distanciando-se para melhor
observá-la. Trata-se, neste caso, de um narrador onisciente, que detém o poder de penetrar no âmago
da personagem e observar sua vida psíquica, mas que se afasta para interpretá-la e avaliá-la, oferecendo
dela uma imagem completa. Isso não significa, necessariamente, transmitir uma imagem pronta,
acabada, cristalizada. Pouillon considera como um desvio ou um erro a posição de “divindade onisciente”
adotada por alguns romancistas, que tolhem a autonomia de suas criaturas, transformando-as em meros
fantoches. Num dos exemplos citados por Pouillon, o do romancista russo Dostoievski, esse erro não
ocorreria, uma vez que, mesmo adotando uma visão “por detrás”, o narrador não impõe sua visão
pessoal, mas deixa ao leitor a faculdade de compreender as personagens à sua maneira.

Na visão “com”, a personagem é o centro a partir do qual se podem ver os acontecimentos, os espaços e
as outras personagens. O leitor vê “com” a personagem o que ela própria testemunha no seu meio, como
ela o percebe e avalia. Seria a visão própria dos romances em primeira pessoa, mas estes não
apresentam exclusivamente uma visão “com”. O que identifica esse tipo de visão não é a análise da
personagem central, mas o fato de observarmos as imagens de outros personagens e dos ambientes
através do olhar e da inteligência dessa personagem. Quando a personagem passa a analisar a si própria,
então ela se distancia de si mesma para tomar-se como objeto de análise e aí, então, já estaríamos na
visão “por detrás”.
Na visão “de fora”, a personagem é mostrada apenas de seu exterior: sua conduta, seus gestos, sua
aparência. O narrador limita-se a descrever os acontecimentos, falando do exterior, sem que possamos
nos adentrar nos pensamentos, emoções, intenções ou interpretações das personagens.

Essa classificação em três modos, embora útil pela sua abrangência, dificilmente dá conta da
multiplicidade de modos que aparecem efetivamente nos textos concretos. Existem muitas outras
classificações das modalidades de focalização narrativa, como a do citado crítico Gérard Genette, no livro
Discurso da narrativa. Norman Friedman é outro estudioso da narrativa a apresentar uma minuciosa
classificação, que pode ser conferida no livro introdutório O foco narrativo, da professora brasileira Ligia
Chiappini Moraes Leite. Optamos por apresentar aqui a classificação que foi proposta pelo crítico
português Vítor Manuel de Aguiar e Silva em Teoria da literatura.

O autor elabora cinco pares de categorias alternativas ou “díades antitéticas”, ou seja, que se excluem
mutuamente, não podendo aparecer simultaneamente:

a) Focalização heterodiegética versus focalização homodiegética

Esse primeiro par está baseado nos tipos de narrador estabelecidos por Genette, como vimos acima. A
primeira modalidade faz referência à focalização estabelecida por um narrador que narra da exterioridade
dos fatos e que tem um conhecimento amplo e ilimitado acerca das personagens e de seus destinos. O
que lhe dá a liberdade de relatar e de se posicionar de muitas maneiras. Essas múltiplas possibilidades
ficarão evidentes mais adiante.

Na focalização homodiegética, o narrador pode ser o protagonista, que conta uma história na qual ele é o
principal agente (e neste caso podemos falar de uma focalização autodiegética), uma personagem
secundária que também participa da trama ou, ainda, uma personagem cujas ações são insignificantes
na evolução da trama, funcionando mais como observador ou testemunha dos fatos.

Nessa segunda modalidade é importante destacar a diferença entre o eu que narra (eu como instância
narrativa) e o eu narrado (eu como agente diegético), como já observamos ao falar do narrador. Isso é
evidente numa ficção autodiegética em que o narrador relata fatos de sua vida há muito acontecidos.
Assim, o eu que narra já não é exatamente o mesmo eu que vive a história, pois entre os dois a distância
temporal pode dar ao primeiro uma visão mais abrangente e amadurecida dos fatos ou mesmo distorcê-
los por uma deficiência da memória. No romance Dom Casmurro, de Machado de Assis, o narrador-
protagonista Bentinho relembra sua infância, adolescência e seu relacionamento amoroso com Capitu, de
modo que os fatos nos são revelados pela perspectiva de um narrador velho e solitário. No conto “Missa
do galo”, do mesmo autor, parece que o distanciamento no tempo não tornou os acontecimentos mais
inteligíveis, mas, ao contrário, lançou uma espécie de névoa sobre eles. Diz o narrador, no começo do
conto: “Nunca pude entender a conversação que tive com uma senhora, há muitos anos, contava eu
dezessete, ela trinta”. E o efeito do conto depende essencialmente desse não-entendimento.
Pode ocorrer também que os fatos relatados pelo narrador autodiegético estejam próximos no tempo ou
mesmo que sejam quase simultâneos à narração, como ocorre nos romances epistolares, em que a
história é contada através das cartas de uma ou de várias personagens, ou em romances que assumem a
forma de diário. Aqui as diferenças entre o eu que escreve e o eu que vive os acontecimentos parecem
menores, mas não deixam de existir. Isso porque o ato de contar (de escrever, no caso de cartas, diário
ou memórias) implica uma situação própria, que a Linguística denomina situação de enunciação,
envolvendo, além de um enunciador e um destinatário, um momento e um lugar particulares. Então,
temos inevitavelmente um duplo cenário: o da história contada e o da narração desta história, embora
existam, como já dissemos, narrativas que tentam eliminar essa distância, fingindo uma simultaneidade
entre narrado e narração, ou seja, entre o vivido e o ato de narrá-lo, como ocorre na técnica do
monólogo interior.

A focalização feita por uma personagem secundária é substancialmente diferente daquela feita por uma
personagem central, porque a perspectiva que temos do mundo (tanto interno quanto externo) do
protagonista fica limitada ao que sabe esse observador. Já não teremos acesso, neste caso, à
interioridade psicológica das personagens nucleares da trama.

b) Focalização interna versus focalização externa

As personagens podem ser focalizadas internamente – na sua vida mental, subjetiva, afetiva – ou
através de sua conduta, gestos, ações. Na narrativa de focalização homodiegética, teremos uma
focalização interna em relação ao próprio narrador, caso este seja um narrador autodiegético. Em relação
a outras personagens, entretanto, a focalização será externa. Voltando ao exemplo de Dom Casmurro,
Bentinho é focalizado internamente, pois é ele mesmo que narra sua própria história, mas Capitu é vista
por ele apenas do exterior; nem ele nem o leitor têm acesso à sua vida mental e, por isso, o romance
pode provocar uma leitura ambígua: Capitu traiu-o ou não?

No caso de o narrador ser uma personagem secundária, a focalização interna tenderá a desaparecer, pois
ele não tem a capacidade de explorar a interioridade das outras personagens, uma vez que só pode
observá-las de fora.

Na narrativa de focalização heterodiegética, há muitas possibilidades de combinar focalização interna com


externa. O narrador poderá escolher apenas uma personagem da qual nos serão revelados os
pensamentos secretos e os sentimentos ocultos, enquanto as demais são focalizadas externamente, ou
pode adotar uma focalização interna generalizada, por exemplo.

Nas narrativas em que predomina a focalização externa, o narrador não demonstra possuir qualquer
conhecimento sobre as motivações internas das personagens, sobre os seus pensamentos e sentimentos
não exteriorizados. São narrativas que adotam a técnica da representação dramática, ou seja, tendem a
apresentar as personagens e suas ações através da cena, preferindo mostrar (showing) a narrar através
do sumário (telling).
c) Focalização onisciente versus focalização restritiva

O narrador heterodiegético pode se comportar como um demiurgo, que tudo sabe e tudo vê,
apresentando uma visão panorâmica e total, ou pode restringir sua onisciência, mostrando menos do que
sabe.

Na focalização restritiva (que, na terminologia de Norman Friedman corresponde à onisciência seletiva),


os acontecimentos são vistos pela perspectiva da personagem. O narrador heterodiegético está presente
e comanda a narrativa, mas prefere focalizar adotando o ponto de vista mais limitado da personagem e,
desse modo, renuncia à visão privilegiada do narrador onisciente tradicional, capaz de posicionar-se em
qualquer ângulo de visão. O romancista francês Flaubert foi um dos primeiros a utilizar essa técnica, em
Madame Bovary, em que notamos a alternância entre uma focalização onisciente, com o narrador
explicitamente controlando e dirigindo o desenvolvimento das ações, e uma focalização restritiva, com a
perspectiva transferida para suas duas personagens, Charles e Emma Bovary.

Contribuiu para a evolução dessa técnica o discurso indireto livre, através do qual a fala do narrador se
mistura à fala da personagem – especialmente a fala “interna”, não-pronunciada, de modo que as
fronteiras entre ambos ficam indefinidas. Temos, assim, a associação de duas vozes numa única
enunciação, dois pontos de vista sobrepostos. Desse modo, o narrador cede a palavra à personagem,
deixa que seu ponto de vista se manifeste durante a narração.

d) Focalização interventiva versus focalização neutral

Trata-se aqui de o narrador escolher entre intervir na narrativa, através de digressões que a
interrompem para incluir reflexões de várias ordens, ou limitar-se a narrar e descrever sem imprimir no
texto suas próprias opiniões e julgamentos.

A focalização interventiva caracteriza-se pelas intrusões do narrador heterodiegético, que marca sua
presença através de um discurso pessoal, enquanto que a focalização neutral tende à impessoalidade.
Nesta, o narrador fica como que oculto e a história parece contar-se a si própria, dando a impressão de
objetividade e de neutralidade.

Os comentários intrusivos do narrador podem se voltar diretamente para a matéria narrada, quando ele
avalia as ações das personagens, mostrando sua adesão ou sua distância moral em relação a elas, ou
podem ser considerações de ordem mais geral sobre a vida, os costumes, a moral, a própria literatura,
etc. É muito comum também que essas intromissões tenham a função de orientar o leitor em relação ao
andamento da história, conduzindo, inclusive, sua interpretação.

Não teria sentido aplicar essa classificação à narrativa de focalização homodiegética. Nela o discurso é
sempre pessoal, pois o eu que narra uma história em que atua como protagonista ou personagem
secundária não pode se ausentar de seu discurso, particularmente no primeiro caso, o do narrador
autodiegético.
A focalização neutral combina-se com a externa em certas narrativas que adotam o modo dramático, em
que as personagens falam mais que os narradores, de modo que a história é transmitida principalmente
através de seus diálogos, como no texto teatral. O modo dramático é reconhecido como uma categoria à
parte na tipologia de Norman Friedman. Ele se manifesta em textos curtos, conto e novelas. A tendência
a eliminar o narrador heterodiegético ou ocultá-lo ao máximo, faz com que as próprias personagens
sejam responsáveis pela narração, podendo-se falar, neste caso, em focalização homodiegética.

e) Focalização fixa versus focalização variável e múltipla

Esta dupla se refere a todas as outras anteriores porque diz respeito ao fato de se manter uma
focalização constante em toda a narrativa ou de variá-la ou ainda de adotar uma focalização múltipla. A
focalização onisciente pode se conjugar com a restritiva, pode a restritiva estar centrada em uma ou
várias personagens, podem-se alternar a focalização heterodiegética e a focalização homodiegética, etc.

Nos romances epistolares constituídos pelas cartas de várias personagens, como no caso de As ligações
perigosas, de Laclos, a focalização é variável e múltipla, pois cada personagem apresenta, de acordo com
seu caráter, suas intenções, seu destinatário, uma perspectiva própria dos acontecimentos e das outras
personagens.

No romance moderno, é comum a técnica da variação e multiplicação de focalizações restritivas, de modo


a se obter uma pluralidade de visões, o que contribui para o teor confuso e ambíguo de certos enredos
que exigem do leitor um esforço de reconstrução da história.

2.4.2 O tempo da história e o tempo do discurso

A questão do tempo é abordada pela teoria da narrativa sob duas dimensões: existe o tempo dos eventos
que formam a história – sua localização numa determinada época e sua duração –; e existe o tempo da
narração que, por ser quase sempre posterior à história, possui uma temporalidade própria. Voltando ao
exemplo de Dom Casmurro, o tempo em que se situa a narração de Bentinho não é o mesmo tempo da
história que ele conta, pois ele mostra a sua vida em retrospecto, posicionando-se a uma distância
temporal dos acontecimentos.

Essa não-coincidência entre o tempo da história e o tempo da narração (do discurso narrativo) permite
que o narrador organize a história de modo não-linear, não obedecendo à cronologia dos fatos. O início
da trama pode não coincidir com o início da fábula. Já nas epopéias clássicas se encontra o recurso de
iniciar a narrativa in media res, ou seja, começa-se a narrar episódios e situações que estão situados
num ponto adiantado da história, tendo-se de depois voltar atrás para recuperar os fatos anteriores. A
esse movimento de recuo no tempo dá-se a designação de flashback. O flashback, também chamado por
Genette de analepse, é bastante utilizado para esclarecer ao leitor os antecedentes de determinadas
situações ou a vida pregressa de personagens que são introduzidas na narrativa.
Também pode ocorrer o movimento oposto, a antecipação de acontecimentos, designada por
flashforward ou prolepse. Menos comum, esse procedimento aparece, por exemplo, em ficções de
narrador autodiegético, o qual, por possuir logicamente um domínio sobre sua própria história, pode
adiantar os fatos futuros.

Além desses desencontros entre a ordem natural e cronológica dos eventos da história (da fábula) e a
ordenação com que o discurso dispõe esses eventos na trama, existem outros descompassos entre o
tempo da história e o tempo do discurso. Esses outros descompassos dizem respeito à duração dos
eventos. Pois o discurso pode transmitir episódios de longa duração de modo resumido (sumário
narrativo), o que contrai sua temporalidade; pode mostrá-lo no seu “tempo real” através da cena; pode,
ainda, dilatar sua temporalidade.

No primeiro caso, o do sumário narrativo, o tempo da história é maior que o tempo do discurso. Aqui,
cabe um parêntese: fala-se em duração do discurso de modo aproximativo, pois como determinar esse
tempo? Estaria relacionado com a extensão do texto? Seria o tempo que a leitura demanda? Mas esse
tempo varia de leitor para leitor, não se podendo determiná-lo com precisão. Em todo caso, é fácil
perceber essa diferença quando, em poucas linhas ou parágrafos, o narrador nos relata acontecimentos
que decorrem num longo período de tempo. Para resumir, o narrador precisa omitir muitos detalhes,
procedendo através de elipses, que é um recurso essencial na narrativa, pois não se pode contar tudo. A
velocidade narrativa é maior quando se narra através de resumos narrativos.

No segundo caso, o da cena, o tempo da história é relativamente igual ao do discurso. Trata-se, em


particular, da cena dialogada em que quase não ocorre a intervenção do narrador. O discurso apenas
reproduz diretamente os diálogos das personagens.

No terceiro caso, o tempo do discurso é maior que o tempo da história. A narrativa se torna lenta quando
há abundância de descrições e análises minuciosas ou quando explora a dimensão temporal própria da
vida psíquica. O tempo psicológico não é mensurável pelos padrões de medida do tempo objetivo. É um
tempo interno que reflete a duração que os acontecimentos provocam no espírito da personagem. O
monólogo interior é uma das formas de representar essa duração interna do tempo.

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