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Introdução ou O Começo
“Para uma semiótica, o único conceito operatório permanece, o texto literário. Uma
hermenêutica, em compensação, preocupa-se em reconstruir arco inteiro das
operações pelas quais a experiência prática se dá; obras, autores, e leitores. (...) O
desafio é pois o processo concreto pelo qual a configuração textual faz a mediação
entre a prefiguração do campo prático e sua refiguração pela recepção da obra”.
(Ricoeur, 1994 p.86).
Assim, as operações conduzidas pela semiótica não seriam mais que uma parte
do círculo hermenêutico. Ultrapassando essa contraposição, esse artigo pretende
agrupar contribuições da semiótica, da estética da recepção, entre outras filiações
teóricas no intuito de pensar uma abordagem do fenômeno musical, em especial da
canção popular, que alcance toda extensão da hermenêutica literária pensada por
Ricoeur. Para essa empreitada, tomaremos como guia o terceiro capítulo de Tempo e
Narrativa, onde Paul Ricoeur trata do conceito de mimese, e o modo como sua
subdivisão em mimese I, II e III pode ajudar a se pensar a relação entre tempo e
narrativa. Empregar o termo narrativa para tratar da canção popular é, no mínimo,
arriscado. Porém, que propomos aqui é, antes, partir de algumas discussões propostas
por Ricoeur para pensar a canção popular e não necessariamente comparar canção e
narrativa – apesar de ser possível traçar alguma relação entre os dois. Essa relação é
possível porque, tanto na narrativa quanto na música, o que está em jogo é a tensão
permanente entre as forças organizadoras da ordem e da concordância e as forças da
discordância, do caos, da surpresa, do inesperado e arbitrário do destino. É no relação
entre concordância e discordância (tensões) que a música, tal qual a narrativa, constrói
seu percurso.
Ricoeur busca na Poética de Aristóteles as noções de mimese e de intriga,
enquanto agenciamento dos fatos (muthos), como estruturantes da noção de narrativa.
A etimologia da palavra mimese nos leva a mimoi, que seria traduzido por imitação,
representação. Porém, é preciso ter em mente que o termo mimese em Aristóteles não
representa a pura cópia, como poderia deixar transparecer pelas concepções de seu
mestre Platão. “Se continuarmos a traduzir mimese por imitação, deve-se entender
totalmente o contrário do decalque do real preexistente e falar de imitação criadora, (...)
se traduzirmos mimese por representação, não se deve entender, por esta palavra,
alguma duplicação de presença, como se poderia entendê-lo na mimese platônica, mas
o corte que abre o espaço de ficção” (Ricoeur, 1994 p.76). Ricoeur chega à definição
de mimese como “a imitação ou a representação da ação no meio da linguagem
métrica” (Ricoeur, 1994 p.59). Dessa forma, a mimese está na base de qualquer obra
poética, e seu entendimento seria a chave para entender seu sentido.
Na poética, Aristóteles se concentra na configuração narrativa no texto, apesar
de tratar marginalmente de outros aspectos – como a relação entre a obra e o público
intermediada pela katharsis. Para expandir o conceito de mimese, Ricoeur o diferencia
em três categorias. Os três níveis da operação mimética (mimeses I, II e III)
correspondem aos tempos da prefiguração, configuração e refiguração,
respectivamente. O ato narrativo passa de um tempo prefigurado da ação, no nível do
vivido e da experiência humana em mimese I, para um tempo configurado
simbolicamente pela composição narrativa em mimese II. Tendo em vista que toda obra
visa comunicar uma experiência a alguém, tem-se o tempo refigurado em mimese III –
que restitui à ação o tempo vivido do leitor, completando o ciclo dessas operações
narrativas, onde o sentido nunca se encerra num fechamento ou cristalização.
A mimese II é a tratada, preferencialmente, por Aristóteles na Poética. Mas,
diferente de uma perspectiva hermética, uma perspectiva hermenêutica reconhece a
importância de mimese II, não em sua estrutura interna, mas em sua posição
intermediária entre a “montante” e a “jusante” do sentido. A configuração narrativa
encontra seu sentido na relação entre seu ancoramento na experiência humana
(mimese I) e seu encontro com o espectador (mimese III). A mimese III é um local
privilegiado de estudo na medida em que é lá que o sentido se forma, no encontro da
obra com o ouvinte. Em mimese III, a prefiguração e a configuração se atualizam no
ato da refiguração, dando à obra o porque de sua existência. O leitor é o operador por
excelência que assume por seu fazer a unidade do percurso de mimese I até mimese
II, por intermédio de mimese II. Dessa forma, esse texto se concentrará na relação
entre texto e leitor, entre música e ouvinte, identificada em mimese III – sem esquecer,
porém, os outros níveis do sentido.
Por mais inovadora e original que uma obra possa parecer, sua existência é
ancorada em fatores que a antecedem, em uma pré-compreensão da experiência do
mundo. Qualquer forma artística seria incompreensível se não viesse a configurar o
que, na vida humana, já é configurado. “É sobre essa pré-compreensão, comum ao
poeta e a seu leitor, que se ergue a tessitura da intriga e, com ela, a mimética textual e
literária” (Ricoeur, 1994 p.101). Dessa forma, os aspectos da experiência humana
funcionam como pano de fundo para a produção/compreensão de qualquer obra – não
poderia ser diferente uma vez que, se supõe, tanto o artista quanto o espectador sejam
seres humanos, de carne e osso. Ricoeur chama de mimese I essa área de interseção
entre o mundo “real” e o mundo da representação – a “transposição ‘metafórica’ do
campo prático pela intriga” (Ricoeur. 1994 p.77).
A relação entre a compreensão prática do mundo e a compreensão narrativa é
um ponto chave para se compreender a relação entre texto e leitor. Olha que essa
relação já foi assunto para muita discussão. Por um lado, se salienta o papel
inaugurador da arte na ruptura com o opacismo do cotidiano, fundando novos mundos
muito mais interessantes que o nosso. Por outro, devemos também levar em
consideração que qualquer compreensão narrativa pressupõe uma compreensão
prática e que a obra de arte pressupõe uma certa familiaridade com alguns traços
básicos da vivência cotidiana. Compreender uma obra seria compreender ao mesmo
tempo a linguagem do fazer e a tradição cultural na qual esse fazer se inscreve.
Ricoeur condiciona esta exigência a três fatores: estrutural, simbólico e temporal.
Em primeiro lugar, se a intriga é representação da ação, ela encontra seu
primeiro ancoradouro em nossa competência de diferenciar a ação humana do simples
movimento físico. A ação poderia ser definida como aquilo que alguém faz e se
diferencia do movimento físico na medida que pressupõe motivos, agentes, finalidades,
circunstâncias – ou seja, a ação humana apresenta uma pré-narratividade própria.
Dessa forma, faz parte da compreensão de uma ação humana identificar perguntas
como quem fez, o que, como e porque. O mais importante é que empregar de modo
significativo um ou outro desses termos é ser capaz de identificá-los como um conjunto,
onde cada um deve seu sentido a todos os outros, e não como elementos isolados.
"Dominar a trama conceitual no seu conjunto, e cada termo na qualidade de membro
do conjunto, é ter a competência que se pode chamar de compreensão prática"
(Ricoeur, 1994 p.89).
Na canção popular e na música em geral, também podemos identificar alguns
elementos da pré-compreensão do mundo importante para a compreensão da obra. A
dialética entre som ou ruído tratada por José Wisnik em O Som e o Sentido pode
esclarecer bem como essa pré-narratividade ocorre no campo da música. Apesar das
diferenças culturais entre o que pode ser considerado som ou ruído, podemos notar
que existe um aspecto anterior, estrutural nessa diferenciação. Um som pode ser
definido como freqüências regulares, constantes, estáveis enquanto um ruído como
freqüências irregulares, instáveis. Para Wisnik, “um som afinado pulsa através de um
período reconhecível, uma constância freqüencial, enquanto um ruído é uma marcha
em que não distinguimos freqüência constante, uma oscilação que nos soa
desordenada” (Wisnik, 1989 p.27). Da mesma forma que a ação se contrapõe ao
fenômeno físico por sua pré-narratividade, também o som se diferencia do ruído. Pode-
se até mesmo chegar a descrever a música como a extração de sons ordenados e
periódicos em meio à caoticidade dos ruídos. Porém, o que não se pode é levar essa
oposição ao extremo, é sabido que em qualquer cultura a música dialoga com o ruído,
a instabilidade, a dissonância, incorporando-o. É exatamente essa dialética que dá
mobilidade à música.
Um outro tipo de relacionamento entre som e ruído é percebida por Murray
Schaffer em seu livro A Afinação do Mundo. Partindo da questão de como se dá a
relação entre os homens e os sons de seu ambiente e o que acontece quando esses
sons se modificam, o livro procura demonstrar como uma boa parte do que é tomado
como música foi, a princípio, parte do cotidiano - além de como os sons do cotidiano
influenciam a composição musical. Assim, percorremos um longo caminho de como, na
história da música ocidental, os sons da natureza foram transformados em música -
assim como os sinos, o canto dos pássaros, armas de fogo, trompas de caça, o barulho
do trem, as correias das máquinas, etc. Para Schaffer, "os pesquisadores e analistas
têm-se concentrado em mostrar como os músicos extraem a música da imaginação ou
de outras formas de música. Mas eles também vivem no mundo real e, por vários
caminhos distintos, os sons e os ritmos de diferentes épocas e culturas têm
influenciado o seu trabalho, tanto consciente quanto inconscientemente" (Schaffer,
2001 p.151).
O segundo ponto no qual a compreensão narrativa se encontra com a
compreensão prática está nos recursos simbólicos do campo prático. Antes de ser
configurada em texto, a ação é prefigurada por uma mediação simbólica que lhe
confere uma primeira legibilidade. Para Ricoeur, se uma ação pode ser narrada é
porque ela já é articulada em signos, regras e normas, é porque ela é desde sempre
simbolicamente mediatizada (Ricoeur, 1994 p.91). Por mediação simbólica entende-se
um conjunto de símbolos que embasam a ação a ponto de constituir seu sentido mais
consensual, antes de uma estruturação mais forte (como no caso do signo linguístico).
Esse conjunto de símbolos teriam uma significação imanente – Ricoeur chega mesmo
a chamá-los de quase-texto. Na medida que apresenta um conjunto de regras
previamente estabelecidas, esse simbolismo fornece um contexto de descrição no qual
as ações particulares podem ser interpretadas. Porém, Ricoeur não deixa de levar em
consideração seu caráter normativo. “Passa-se assim, sem dificuldade, sob o título
comum de mediação simbólica, da idéia de significação imanente à de regra,
considerada no sentido de regra de descrição, depois à de norma, que equivale à idéia
de regra considerada no sentido prescritivo do termo” (Ricoeur, 1994 p.94)
O papel de qualquer sistema de ordenação musical, do sistema tonal no caso da
canção popular, é de atuar exatamente como um contexto simbólico. Umas das
principais características do desenvolvimento musical do ocidente, o sistema tonal têm
seu último refúgio na canção popular. O tom é a chave do sentido de uma canção
popular (em inglês tom é key, chave), sendo seu percurso uma história da busca por
equilíbrio, não mais o equilíbrio inicial, mas um equilíbrio conquistado em meio à
dialética entre a negação e a reiteração do tom. Para Wisnik, “a música tonal produz a
impressão de um movimento progressivo, de um caminhar que vai evoluindo para
novas regiões, onde cada tensão se constrói buscando o horizonte de sua resolução
(...) ela põe em questão uma procura permanente, uma demanda que só se
reencontrará com seu próprio fundamento à custa de um percurso muitas vezes longo”
(Wisnik, 1989 p.114).
Porém, a compreensão da ação não se limita a uma familiaridade preliminar com
a trama conceitual da ação e a mediação simbólica. Um ponto ainda mais primordial
deve ser levado em conta: o reconhecimento das estruturas temporais que configuram
a narração. A tese central do livro de Paul Ricoeur é a inter-relação entre o tempo
humano e a narrativa, para ele “o tempo torna-se tempo humano na medida em que é
articulado de um modo narrativo, e a narrativa atinge seu pleno significado quando se
torna uma condição da exigência temporal” (Ricoeur, 1994 p.85). Dessa forma, um dos
principais aspectos que prescrevem o ato de narrar é o caráter temporal da experiência
humana – do qual o tempo narrativo seria uma representação, uma mimese. A relação
com o tempo tem na música uma importância ainda mais central, Herman Parret afirma
que "a música, na hierarquia das belas artes, é a arte do tempo par excellence,
diametralmente oposta à arquitetura, arte do espaço" (Parret, 1997 p.66). Pode-se até
dizer que o ingredientes da música, além das ondas sonoras, é o próprio tempo. Desde
o ritmo até a melodia, do timbre à harmonia, nada mais há a não ser o tempo.
Por fim, é necessário recusar a tese do estruturalismo limitado que proíbe que se
saia do texto e de um marxismo dogmático que procura encontrar a transposição do
plano social para a obra e avaliar as relações desse álbum com a sociedade na qual
ele foi criado. Jauss trata de borrar a fronteira entre texto e sociedade afirmando que “a
literatura pré-forma a compreensão de mundo do leitor, repercutindo então em seu
comportamento social”. No caso da música popular esse intercâmbio pode ser
facilmente demonstrado. Uma das principais dificuldades no estudo da música popular
está exatamente no fato de seu sentido não poder ser resumido à sua esfera mais
formal – timbre, tempo, ritmo, melodia, harmonia, volume, arranjo, letra – mas devem
ser levados em conta outros aspectos, tal como os grupamentos que se formam tendo
na música sua força centrípeta (headbangers, punks, pagodeiros, entre tantos outros),
esses grupos de ouvintes demonstram como os limites canção popular ultrapassam a
esfera formal.
BORBA, Maria Antonieta Jordão de Oliveira. Teoria do Efeito Estético. Niterói: EdUFF, 2003.
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JANOTTI JUNIOR, Jeder. A Procura da Batida Perfeita:a importância do gênero musical para a
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RICOUER, Paul. Tempo e narrativa (tomo I). São Paulo: Papirus, 1994.
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S.d. Comunicação e corporeidades. Jõao Pessoa: Ed. UFPB, Compós, 2000, p, 87-100.
WISNIK, José Miguel. O som e o sentido. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.