Os direitos fundamentais foram objecto de particular atenção na CRP / 1976. Trata-se de um extenso catálogo, que nos aparece subdividido em direitos, liberdades e garantias e direitos sociais. Os primeiros, ainda definem direitos perante o poder (perspectiva liberal); pretendem, de algum modo, limitar a esfera de intervenção do legislador ordinário, consagrando para o efeito, um apertado regime jurídico, no sentido de os considerar normas preceptivas (são direitos que “não custam dinheiro”, ou seja, não envolvem o dispêndio de recursos por parte do poder estadual). Os chamados direitos sociais, pressupõem prestações estaduais, na medida em que vinculam o legislador ordinário, à execução de determinadas tarefas (prestações) conducentes à sua concretização, e, deste modo, podem ser interpretados como normas impositivas de legislação. Os direitos fundamentais tanto podem ser vistos enquanto direitos de todos os homens, em todos os tempos e em todos os lugares - perspectiva filosófica ou jusnaturalista; como podem ser considerados direitos de todos os homens, em todos os lugares, num certo tempo - perspectiva universalista ou internacionalista; como ainda podem ser referidos aos direitos dos homens, num determinado tempo e lugar, isto é, num Estado concreto – perspectiva estadual ou constitucional. Perspectiva filosófica ou jusnaturalista - os direitos fundamentais são, nesta sua dimensão natural, direitos absolutos, imutáveis e intemporais, inerentes à qualidade de homem dos seus titulares, e constituem um núcleo restrito que se impõe a qualquer ordem jurídica; os direitos fundamentais, antes de serem um instituto no ordenamento positivo ou na prática jurídica das sociedades políticas, foram uma ideia no pensamento dos homens; se quisermos salientar o seu aspecto jurídico, teremos de dizer que os direitos fundamentais relevam em primeira instância do chamado direito natural; em termos filosóficos, na Grécia antiga - Sócrates, já concebia a existência de um direito natural anterior ao direito legal; em Roma, Cícero demonstra igual preocupação; no Cristianismo, a carta de S. Paulo aos Coríntios revela o ascendente da Lei Divina; na Idade Média, não obstante um certo retrocesso, importa recordar o pensamento de S. Tomás de Aquino, influenciado pela escolástica; no pensamento moderno, através dos importantes contributos de Montesquieu e Locke, se “desprovidencializa” a justiça por recurso ao princípio da igualdade. Na actual CRP, conserva-se ainda esta concepção jusnaturalista, desde logo, no seu artigo 1º - alusão à dignidade da pessoa humana; exemplo, igualmente significativo, é aquele que nos é dado pelo nr. 6 do artigo 19º: enumeram-se um conjunto restrito de direitos (núcleo fundamental, essencial ou irredutível), que mesmo em declaração de estado de sítio ou de estado de emergência, nunca podem ser postos em causa. Perspectiva universalista ou internacionalista - questiona-se agora se o cidadão pode ser detentor de direitos internacionais, isto é, se o cidadão não é já portador de direitos da comunidade internacional, desde logo, contra o seu próprio Estado. Já no tempo da Sociedade das Nações (1919), se tinha revelado a necessidade de garantir internacionalmente certos direitos (fundamentais) de grupos religiosos, culturais ou rácicos. Mas foi após a II Grande Guerra Mundial, que se sentiu de modo particularmente intenso a necessidade de criar, ao nível da comunidade internacional, mecanismos jurídicos capazes de proteger os direitos fundamentais dos cidadãos nos diversos Estados; a experiência da guerra e dos totalitarismos, sobretudo num momento em que já não se pode condenar o Estado à abstenção, consagram definitivamente a tese da corrente internacionalista. Assim, são disso importantes manifestações, a Carta das Nações, elaborada em S. Francisco, em 1945 e, mais tarde, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, em Paris em 10 de Dezembro de 1948. Seguem-se-lhes um elevado número de Convenções internacionais no mesmo sentido. A evolução do direito internacional positivo, embora lenta, aponta para uma evolução clara, no sentido de se reconhecer, normas e princípios, que regulem, não apenas as relações entre os Estados, mas em geral, todas as relações que importem à comunidade internacional. A CRP não ficou, igualmente, indiferente a esta corrente - é o caso do artigo 16º, que constitui uma cláusula aberta, para recepção do direito internacional (nr. 1), estabelecendo, inclusive, a analogia com a já citada Declaração Universal do Direitos do Homem (nr. 2) Perspectiva estadual ou constitucional - existiu ao longo dos tempos, em diversos países, a preocupação de constitucionalizar alguns direitos tidos como fundamentais: a Magna Charta de 1215, em certo sentido, já representava uma manifestação dessa vontade; contudo, os “direitos ingleses”, assumem particular relevância durante o século XVII (Glorious Revolution), onde a Petition of Right, o Habeas Corpus Act e, sobretudo, o Bill of Right, são testemunho da consagração desses direitos. A França revolucionária, representa também, um dos momentos altos na preocupação de formulação de direitos fundamentais - Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, em 1789. Por um lado, liga os direitos fundamentais, concebidos a partir dos quadros jusracionalistas, à separação dos poderes, na função comum que lhes cabe de instrumentos de limitação do poder absoluto; por outro lado, essa limitação efectiva do poder alcança-se através da consagração constitucional dos direitos. Os direitos fundamentais tornam-se assim direitos constitucionais, reunindo, por força dessa sua dignidade formal, as condições para que lhes seja reconhecida relevância jurídica positiva com um valor superior ao da própria lei. Depois de consagrados no texto constitucional as duas correntes (jusnaturalista e internacionalista) dos direitos fundamentais, a CRP, entende ainda, positivar alguns direitos, a que vai atribuir a categoria de fundamentais. As três perspectivas sumariamente recortam círculos de direitos que não são coincidentes, mas tendem a ser concêntricos: o mais vasto seria o círculo dos direitos constitucionais e o mais restrito o dos direitos naturais. Assim, a qualidade de naturais só pode ser reivindicada para um núcleo limitado de direitos, mais directamente ligados à dignidade da pessoa humana e de que são paradigma figuras como o direito à vida, à integridade pessoal ou à liberdade (física e de consciência); são os primeiros a obter reconhecimento histórico (interno e internacional), gozando de relevo sistemático e, por vezes, de uma protecção especialmente intensa nas constituições dos Estados. Num segundo grau, surge um conjunto de direitos que é hoje património comum da generalidade dos Estados, que inclui os direitos naturais, mas não se circunscrevendo a eles: alargam-se, por exemplo, às liberdades cívicas e direitos políticos, atingindo o domínio dos direitos económicos, sociais e culturais. Estes direitos “acrescidos”, situados num plano internacional, não representam em toda a extensão exigências imediatamente decorrentes e indissoluvelmente vinculadas à natureza humana, mas dela derivando, tomando a sua forma em virtude das particulares circunstâncias históricas e sociais em que se desenrola a vida dos indivíduos. Por último, num terceiro grau, os catálogos constitucionais, pelo menos nos países da Europa Ocidental e, seguramente, no caso português, são mais ambiciosos, assegurando a protecção formal de novos aspectos da personalidade dos cidadãos e conferindo-lhes garantias de conteúdo mais concreto e de alcance mais vasto. NOTAS: - a expressão direitos fundamentais, sem deixar de ser um super-conceito, designaria em sentido estrito os direitos constitucionalmente previstos; à perspectiva internacionalista atribuir-se-iam os termos “direitos do homem”, ou, melhor ainda, “direitos humanos”; guardar-se-iam a s fórmulas “direitos naturais”, “direitos originários”, e em geral, as que transportam uma carga efectiva (direitos imprescritíveis, inalienáveis, invioláveis) para uma dimensão filosófica ou naturalista. 2. O CONTEXTO DA SUA EVOLUÇÃO HISTÓRICA 2.1. Do liberalismo para a democracia - os direitos fundamentais triunfaram nos fins do século XVIII com as revoluções liberais. Aparecem, por isso, fundamentalmente, como liberdades, esferas de autonomia dos indivíduos em face do poder do Estado, a quem se exige que se abstenha - “status negativus” - os direitos dos cidadãos são, antes do mais, direitos de defesa contra o Estado, exigindo-se deste uma não acção (Estado negativo). O liberalismo pressupõe o indivíduo como ponto de partida; a construção individual da “vontade geral” exige cidadãos esclarecidos (ilustrados), que tenham tempo para se cultivarem e que não vejam a realidade distorcida por necessidades que corrompem; daí que se reservasse o direito de voto e o de ser eleito aos proprietários, a uma nova aristocracia, absolvida de interesses, rica porque diligente e abençoada, e que constituía a “nação activa” - a propriedade transformava-se assim, mais que o conteúdo de um direito fundamental, numa condição objectiva de liberdade. Na expansão do liberalismo para a democracia, surgem os chamados direitos de segunda geração, ou seja, os direitos são agora assegurados em simultâneo com a própria construção de um certo modelo de Estado: direitos de reunião, de participação, partidos políticos; o Estado detêm já, um certo papel na garantia e aplicação desses direitos - “status activus” - pede-se ao Estado que actue em matérias predominantemente políticas (lei eleitoral, recenseamento, prestações jurídicas); o catálogo dos direitos fundamentais, vê-se assim enriquecido com alguns direitos objectivos, ou seja, os direitos fundamentais deixam de ter uma orientação exclusivamente subjectivista. Este processo de democratização não poderia de deixar de influenciar decisivamente a matéria dos direitos fundamentais precisamente na medida em que faz sobressair as garantias de igualdade no contexto das relações indivíduo-Estado. Este é o aspecto mais significativo da influência do factor democrático, porque modifica o próprio sentido dos direitos fundamentais - ao lado de uma dimensão subjectiva, tende agora a reconhecer-se-lhes uma dimensão objectiva. A democracia torna-se, nesse contexto, numa condição e numa garantia dos direitos fundamentais e, em geral, da própria liberdade do homem. 2.2. O processo de socialização - a superação do liberalismo não foi apenas uma obra de raiz política. A industrialização e o progresso técnico desenraizaram os homens das suas terras, amontoando-os nas cidades e impondo-lhes um acelerado ritmo de vida. O Estado começa a ser cada vez mais solicitado a intervir na vida social e a Administração ultrapassa definitivamente a sua condição de esquadra de polícia e repartição de finanças. Surgem os direitos de terceira geração, por via de um processo de socialização - actuação do Estado em ordem a garantir os chamados direitos sociais - “status positivus” - é a consagração dos também denominados direitos a prestações ou direitos de quota-parte. A CRP é especialmente sensível a esta perspectiva social. A CRP integra os direitos, liberdades e garantias, nas duas primeiras fases deste processo evolutivo - são ainda direitos que nada solicitam do Estado, revelando-se, inclusive, de defesa contra o próprio Estado; no que diz respeito aos direitos sociais, a CRP já reclama uma intervenção estadual na positivação desses mesmos direitos (terceira fase do processo evolutivo). NOTA: - quando se referem três fases neste processo evolutivo, segue-se a trilogia de Jellinek (status negativus, activus e positivus): esta foi a exposição do Prof. Manuel Vaz na aula de 20/05/96; contudo, o Prof. Vieira de Andrade, no seu livro (cujo estudo foi recomendado), retrata esta evolução histórica em apenas duas fases: do liberalismo à democracia e processo de socialização (ver páginas 43/54); estabelecendo uma analogia com estas duas perspectivas, poder-se-á dizer que as duas primeiras fases expostas pelo Prof. Manuel Vaz se integram naquilo a que o Prof. Vieira de Andrade chama “Do liberalismo para a democracia”, bem como, também será razoável afirmar que ao terceiro período (“status positivus”) corresponde “O processo de socialização”. 3. TEORIAS DE ENTIDIMENTO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS 3.1. Teoria liberal (burguesa ou oitocentista) - os direitos fundamentais apenas tem razão de ser a fim de acentuarem a raiz estritamente subjectiva (o homem enquanto sujeito jurídico na sua defesa contra o Estado); é o período do já citado “status negativus - é o primado do radical subjectivo. 3.2. Teoria democrática - acentua a vertente do “status activus” - primado da democracia – o homem deve realizar-se numa sociedade democrática; relevam-se os direitos de associação, de participação política. 3.3. Teoria institucionalista - ligada à teoria democrática, vai privilegiar os direitos fundamentais como valores normativos - é a institucionalização dos direitos fundamentais; potencia a intervenção do Estado no sentido de conformar esses direitos em valores objectivos. 3.4. Teoria de ordem dos valores - privilegia o aspecto cultural; os direitos fundamentais são valores que se apoiam na comunidade política; afirmam-se como valores culturais da comunidade política, correndo o risco de se assistir a uma hierarquização desses valores. 3.5. Teoria do Estado de direito social - chama a atenção para o facto dos direitos fundamentais serem hoje acentuados pelo Estado social, sem que isso signifique o carácter subjectivo desses direitos - é uma perspectiva liberal moderna (Prof. Vieira de Andrade); é um Estado de direito social que não entra em ruptura com o estado liberal (apenas lhe são impostas algumas limitações); assiste-se, igualmente, a um enriquecimento e complexização dos direitos fundamentais, estabelecendo-se o regime jurídico dos direitos, liberdades e garantias através de uma ordenação jurídico-constitucional desses direitos. 3.6. Teoria marxista-leninista - é a superação do estado de direito social - promoção do homem em termos objectivos - não há liberdade quando os modos de produção são capitalistas - desenvolve-se nos estados socialistas de carácter totalitário; a prioridade vai para a organização económica em detrimento dos direitos fundamentais; nesta lógica, as constituições socialistas começam, via de regra, pela constituição económica; seguidamente aparecem os extensos catálogos de direitos sociais (assistência hospitalar, emprego, habitação), e, por fim, alude-se aos direitos fundamentais, na medida em que estes não colidam como interesse colectivo - funcionalização ou institucionalização dos direitos fundamentais a que corresponde um manifesto prejuízo da vertente subjectivista desses direitos (oposto da concepção liberal). 4. O CONJUNTO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NA CRP/1976 O âmbito material dos direitos fundamentais não se reconduz pura e simplesmente ao catálogo contido na Parte I da Constituição - esta parece, ser a óbvia conclusão do artigo 16º, nr. 1 - releva-se o princípio da não tipicidade (ausência de “numerus clausus”); dito de outro modo, depreende-se que é possível a existência de outros direitos fundamentais em leis ordinárias ou em normas internacionais e, ainda, que pode haver direitos previstos em outras partes da Constituição que devam ser considerados como fundamentais. Em último termo, podemos afirma que o legislador português não é o “dono exclusivo” da catalogação desses direitos. Sendo assim, significa que o carácter fundamental dos direitos não corresponde à sua previsão ou especificação no texto constitucional e que se torna necessário um critério de substância para determinar o âmbito dessa matéria; só assim se poderão encontrar, nas leis e nas normas internacionais e mesmo na parte organizatória do texto constitucional, os direitos daquela espécie. Haverá assim direitos fundamentais em sentido material que não o são formalmente, porque estão incluídos no catálogo constitucional. Tal como a inversa se torna viável: isto é, poderá haver preceitos incluídos no catálogo que não incluam matéria de direitos fundamentais, ou seja, numa linguagem simplificada, “direitos” só formalmente fundamentais. Decisivo, é, pois, o critério material a utilizar. No que diz respeito aos direitos fundamentais extra-constitucionais, a própria CRP parece admitir a constitucionalização de, pelo menos, alguns deles, ao estender, no artigo 17º, o regime de direitos, liberdades e garantias aos direitos de natureza análoga; deste modo, os direitos previstos na lei e em normas internacionais aplicáveis que sejam análogos, pela sua natureza, aos enumerados no Título II da Parte I da Constituição, são equiparados para efeitos de regime, a direitos, liberdades e garantias, isto é, equiparados a direitos fundamentais constitucionais. Assim, por força do referido artigo 17º conjugado como artigo 8º (defende a subordinação do legislador às normas internacionais), não parece de rejeitar aquela analogia. O mesmo se diga em relação a preceitos contidos no catálogo material que não contenham matéria de direitos fundamental (será os casos, por exemplo, dos artigos 61º e 62º - iniciativa privada e propriedade privada), e, também, dos artigos 268º e 270º, direitos e garantias dos administrados e restrições ao exercício de direitos).Como exemplo de um direito fundamental fora do texto constitucional, pode-se citar o direito de personalidade consagrado no artigo 70º do Código Civil. Em conclusão, impõe-se afirmar, que é efectivamente possível definir a periferia dos direitos fundamentais, dando assim autonomia institucional ao conjunto que formam. Em primeiro lugar, pela importância do seu radical subjectivo, na medida em que os direitos fundamentais se distinguem dos outros direitos por atribuírem posições jurídicas subjectivas (universais e permanentes) a todas ou a certas categorias de indivíduos; numa palavra, um direito fundamental terá uma estrutura normativa própria, que em último termo atribui um direito (e não uma competência) a uma pessoa. Em segundo lugar, a função própria de todos os preceitos há-de ser a protecção e a garantia de determinados bens (jurídicos) das pessoas ou de certo conteúdo das sua posições ou relações na sociedade. Em terceiro lugar, a consagração de um conjunto de direitos tem uma intenção própria: explicitar uma ideia de Homem, decantada pela consciência universal ao longo dos tempos, que no âmbito da nossa cultura se manifesta juridicamente num princípio de valor, que é o primeiro da Constituição portuguesa: o princípio da dignidade da pessoa humana. Da aplicação prática do critério proposto para delimitação da matéria dos direitos fundamentais conclui-se que são dois os campos em que se colocam as questões fronteiriças: a) por um lado, saber em que medida se pode estender a qualidade subjectiva, que consideramos o núcleo desta matéria, às posições jurídicas específicas das pessoas colectivas: do ponto de vista do Prof. Vieira de Andrade, os direitos das pessoas colectivas só devem ser integrados no núcleo subjectivo dos direitos fundamentais na medida em que deles se possa dizer que são reconhecidos ao indivíduo “no seio das formações sociais em que se manifesta a sua personalidade” e não quando sejam direitos próprios, específicos, exclusivos das pessoas colectivas, e por isso mesmo muitas vezes por essa via denegados aos indivíduos que formam o substrato delas (continuarão a ser ainda, neste último caso, direitos fundamentais, se pela sua função e intenção formarem garantias institucionais); b) por outro lado, determinar por onde passa a linha de demarcação que separa as garantias institucionais de direitos das condições objectivas jurídicas, económicas e políticas da sua efectivação; os direitos fundamentais ganham em sentido e em realidade pelo facto de serem pensados e exercidos no quadro de um regime político (democrático e pluralista) onde ao Estado cabe um papel interveniente activo na criação e manutenção das condições de gozo efectivo, por todos os cidadãos, desses direitos; nesta perspectiva, as decisões constitucionais em matéria de organização económica, social e política constituem garantias gerais, e, em certo sentido, condições da efectivação dos direitos fundamentais; torna-se assim indispensável, distinguir as normas e os institutos que visam directamente garantir a dignidade humana, em qualquer das suas múltiplas manifestações - garantias institucionais dos direitos fundamentais (campo dos direitos fundamentais), daquelas normas e institutos que explicitam princípios de conformação económica, social ou política da comunidade estadual – condições objectivas da realização desses direitos (campo da constituição económica ou organização política e administrativa). Assim, por exemplo, os princípios da separação dos poderes, da representação política de base electiva, do pluralismo de expressão e organização políticas, etc., condicionam e garantem o exercício dos direitos políticos e das liberdades cívicas, dos direitos pessoais e dos direitos sociais, mas não constituem em si, matéria de direitos fundamentais. 5. CARACTERÍSTICAS ESSENCIAIS DO CONCEITO DE DIREITO SUBJECTIVO FUNDAMENTAL Verificado que a posição central e caracterizadora dos direitos fundamentais cabe à sua dimensão subjectiva, importa desde já definir os traços gerais identificadores desse direito subjectivo fundamental. Cinco posições jurídicas se perfilam. A saber: 5.1. Subjectiva - visa-se aqui fundamentalmente excluir a figura das “garantias institucionais”, que representa as situações juridicamente reguladas ou protegidas para salvaguarda da dignidade individual, mas que, pelo seu carácter objectivo, não são susceptíveis de ser imputadas às pessoas concretas; justifica-se, a este propósito, uma definição mais clara da fronteira do direito subjectivo, atentando na diferença e prevenindo a confusão entre garantias institucionais e os “direitos-garantia”, por vezes simplesmente designados como “garantias”. Assim, quando a CRP fala de “direitos, liberdades e garantias”, inclui nessas “garantias” os “direitos-garantia” - por exemplo, os princípios que garantem a liberdade e a integridade dos indivíduos em matéria penal, a inviolabilidade domiciliária e as garantias em matéria informática, são “direitos-garantia”; são garantias, porque contem normas de competência ou regras de acção estadual que visam proteger outros direitos, que constituem, para este efeito, posições primárias (exemplo: os nrs. 2 a 5 do artigo 35º, estabelecem normas protectoras de utilização da informática, tendo em vista a protecção de direitos fundamentais subjectivos - intimidade da vida privada): os “direitos-direitos”, conceito normalmente utilizado quando se refere uma posição que tem como objecto imediato um bem específico da pessoa (vida, honra, liberdade física, nome, integridade); por outro lado são direitos, porque as normas de organização e acção que os constituem se referem a actuações do Estado que interferem na esfera de cada indivíduo, tornando por isso, possível definir e recortar, a um nível individual, os interesses a proteger e, consequentemente, autonomizar posições jurídicas subjectivas, ao contrário do que se passa com as garantias institucionais, que são indivisíveis e, por isso, insusceptíveis de atribuição subjectiva; é ainda subjectiva porque se refere à titularidade pessoal dos direitos - a própria pessoa - direitos de autonomia, direitos potestativos ou direitos de vontade. 5.2. Individuais - pretende-se entender que o direito fundamental terá como titular o indivíduo, a pessoa física - motivo óbvio: só os indivíduos poderão ter direitos fundamentais, pois a dignidade humana que os fundamenta só vale para as pessoas físicas (pessoas humanas) e não para as pessoas jurídicas ou colectivas. Importa, a este propósito, fazer uma importante distinção entre direitos de exercício colectivo ou de acção colectiva - aqueles direitos fundamentais que não podem ser exercidos por cada indivíduo isoladamente, pressupondo a actuação convergente ou concertada de uma pluralidade de sujeitos (exemplos: direito à greve, das liberdades de associação, de reunião) - nestes casos, o elemento colectivo integra o conteúdo do próprio direito, ou seja, este só ganha sentido se for pensado em termos comunitários, pois estão em causa interesses partilhados por uma categoria de pessoas (ideia de titularidade colectiva de direitos fundamentais) - o titular do direito não deixa de ser cada um dos indivíduos, na medida em que os “colectivos”, aliás muitas vezes momentâneos, são instrumentos do exercício, mas não sujeitos dos direitos; e direitos das pessoas colectivas, previstos no artigo 12º, nr. 2, significando isto que a nossa CRP, reconhece a titularidade de alguns direitos fundamentais por pessoas colectivas, o que equivale a afirmar, que alguns direitos fundamentais não são puros direitos do homem - excluindo os direitos que pressupõem uma referência humana, como por exemplo, o direito à vida e o direito de constituir família, todos os outros, à partida, podem ser gozados pelas pessoas colectivas, havendo, inclusive, alguns direitos exclusivos destes (o direito de antena e os direitos de organização sindical); em todo o caso, acresce estabelecer algumas considerações a respeito destes direitos das pessoas colectivas: por um lado, ficam logo deles excluídos todos os direitos fundamentais que são inseparáveis da personalidade singular, pelo que os restantes direitos, susceptíveis de titularidade colectiva, não são por isso direitos de todas as pessoas jurídicas, na medida em que se deve ter em conta o princípio da especialidade, segundo o qual estas pessoas só tem capacidade de gozo de direitos necessários ou convenientes à realização dos seus fins; por outro lado, os referidos direitos fundamentais em sentido estrito, isto é, aqueles que apenas se aplicam às pessoas colectivas, em bom rigor, são competências, ou seja, poderes concedidos no quadro normativo de uma organização política ou administrativa, económica ou social - podem ser incluídos na matéria dos direitos fundamentais se se entender que visam directamente e em primeira linha proteger ou promover a dignidade humana. Podemos, assim, concluir que os direitos subjectivos fundamentais representam posições jurídicas individuais, embora em alguns casos e em certos aspectos eles possam ser directamente encabeçados por pessoas colectivas privadas - neste caso estamos perante direitos subjectivos fundamentais por analogia, que devem ser considerados direitos atípicos. Quanto aos chamados direitos fundamentais colectivos das organizações privadas e públicas, eles não são direitos subjectivos, mas sim, competências no quadro de organização da sociedade política que, tiverem como objecto principal a defesa da dignidade humana individual, devem ser considerados como garantias institucionais no campo dos direitos fundamentais. 5.3. Universais e permanentes - significa que os direitos fundamentais são direitos de igualdade, gerais, e não privilégios de alguns; são, por isso, atribuídos a todos os homens por eles serem humanos, e, nessa medida, independentes, quanto à sua existência, de condições temporais ou de situação; também nesta vertente, a questão não se afigura linear; com efeito, há direitos fundamentais que não são de facto de todos os homens: uns são reservados aos cidadãos, excluindo os estrangeiros; os menores de certa idade não gozam de certos direitos; há direitos atribuídos apenas a trabalhadores por conta de outrem, a crianças ou jovens, a mães, a pessoas idosas ou deficientes; subjacente a esta componente dos direitos fundamentais, está o princípio de igualdade, não uma igualdade formal de tendência niveladora e uniformizadora, mas uma igualdade material, que exige a consideração da realidade em que as pessoas se movem e, consequentemente, a diversidade de tratamento e de estatuto daqueles que pelas suas qualidades específicas ou pela sua situação no processo social, precisam de uma protecção (diferente) necessária à sua (igual) dignidade de homens - o princípio de igualdade tem hoje um tratamento positivo, na medida em que para a impor, não raras vezes, tem de se recorrer à desigualdade - não se trata de privilegiar certas castas ou classes, mas tão só de realizar efectivamente a igualdade em situações sociais específicas e, por isso mesmo, representadas em categorias abertas. 5.4. Fundamentais - refere-se à fundamentalidade do ponto de vista material, que corresponde à sua importância para a salvaguarda da dignidade humana num certo tempo e lugar, definida, por isso, de acordo com a consciência jurídica geral da comunidade; esta fundamentalidade, tem a sua máxima expressão na constitucionalização dos direitos fundamentais, o que, de imediato, lhes confere um ascendente e uma primazia, quando confrontados com outros direitos. 6. OS DIREITOS, LIBERDADES E GARANTIAS E OS DIREITOS SOCIAIS Importa agora, apontar as linhas de fractura e de classificação e a salientar a diferença essencial estabelecida pela Constituição quando separa direitos, liberdades e garantias dos demais direitos fundamentais. Um primeiro aspecto que cumpre realçar diz respeito à própria estrutura dos direitos fundamentais; isto é, num mesmo direito fundamental unitariamente designado podemos encontrar combinados poderes de exigir um comportamento negativo (das potências públicas) com poderes de exigir ou de pretender prestações positivas, jurídicas ou materiais, ou com poderes de produzir efeitos jurídicos na esfera de outrem, poderes que tem muitas vezes recortes diferentes aos quais correspondem, conforme os casos, deveres de abstenção ou de não-intromissão, deveres de prestação ou de acção ou sujeições (deveres de tolerar); por outro lado, os sujeitos passivos dos direitos podem ser, simultaneamente mas em medida diversa, o legislador, a administração, o poder judicial ou, em certos casos, entidades privadas. Quando se fala de um direito subjectivo fundamental não se pode, pois, pensar num “singular poder ou pretensão jurídica unidimensional ou unidireccional”, antes a representação mais adequada é a de um feixe de faculdades por poderes de tipo diferente e diverso alcance, apontados em direcções distintas. Tendo em conta a evolução histórica dos direitos fundamentais, poderíamos tentar distingui-los conforme a sua matriz liberal (direitos de liberdade), democrática (direitos políticos) ou social (direitos sociais); esta opção não se revela muito rigorosa, não obstante o seu interesse político e histórico. Próxima desta, aparece uma distinção entre direitos de defesa, direitos de participação e direitos a prestações, na qual os direitos são separados conforme o conteúdo, ou, mais exactamente, o modo de protecção (esta distinção funda-se na célebre tríade de Jellinek). Todavia, a clivagem principal dentro dos direitos fundamentais é a que divide em “direitos, liberdades e garantias” e restantes direitos, a que poderemos chamar “direitos económicos, sociais e culturais” ou, abreviadamente, “direitos sociais”. Isto, não por a Constituição dividir assim os títulos que dedica à matéria, mas por definir um regime geral específico para os direitos, liberdades e garantias. Acresce que as características próprias do regime indiciam e pressupõe um recorte material da categoria a que se aplicam, que só pode ser conseguido com a ajuda de critérios de diferenciação relativos, por exemplo, ao conteúdo de sentido e à eficácia ou força jurídica dos preceitos constitucionais. Embora a CRP baptize os direitos incluídos no título II da Parte I como direitos, liberdades e garantias, não basta esse elemento formal e sistemático para resolver a questão do âmbito desta categoria. Isso mesmo resulta do artigo 17º, que estabelece a aplicabilidade do regime aos direitos enunciados no título II e aos direitos fundamentais de natureza análoga. Não se pode assim, deixar de descobrir que “natureza” é essa, ou seja, desde logo, qual o critério material que nos permite descobrir fora do título II (noutras partes da Constituição ou eventualmente em leis ordinárias ou norma de direito internacional) direitos a que se aplique o regime dos direitos, liberdades e garantias por terem determinada natureza. Da actual arrumação constitucional, parece ser lícito concluir, que estão sujeitos ao regime dos direitos, liberdade e garantias todos os direitos que não consistam em direitos a prestações estaduais; um argumento parece apontar nesse sentido: tratar-se-ia de conferir especial protecção ao núcleo de direitos tido por “mais valioso, mais homogéneo ou no momento mais avançado” - esse núcleo seria precisamente aquele que de mais perto toca a dignidade da pessoa humana enquanto ser livre e autónomo. Em geral, a tese ora apresentada parece indiscutível; todavia, não é totalmente rigorosa, na medida em que existem direitos liberdades e garantias que exigem prestações estaduais (designadamente aqueles que revestem a forma de normas preceptivas não exequíveis por si mesmas - exemplo: o direito de sufrágio é um DLG; contudo, o seu exercício pressupõe que o Estado elabore os cadernos eleitorais; igualmente, o direito à segurança é um DLG, que apenas pode ter aplicação mediante protecção policial a cargo do Estado). O critério que verdadeiramente explica esta distinção entre DLG (direitos, liberdades e garantias) e DS (direitos sociais), vai, justamente, residir no conteúdo (estrutura) da norma constitucional - critério da determinabilidade constitucional; ou seja, a Constituição prevê dois tipos de direitos: aqueles cujo conteúdo é essencialmente determinado (ou determinável) ao nível das opções constitucionais (normalmente traduzidos em normas preceptivas “completas” - exemplo: artigo 43º, nr. 1 - os restantes nrs. destinam-se unicamente a afastar a possibilidade do Estado intervir, e se intervir, será apenas para limitar essa sua eventual intervenção - “intervenção reactiva) e aqueles outros cujo conteúdo terá de ser, em maior ou menor medida, determinado por opções do legislador ordinário, ao qual a Constituição confere poderes de determinação ou concretização (normalmente traduzidos em normas programáticas ou normas impositivas de legislação - exemplo: artigo 74º - a realização do direito ao ensino já reclama uma intervenção estadual - “intervenção expansiva”). Dito de outro modo: no primeiro caso (direitos definidos ao nível das opções constitucionais = DLG), o direito é de aplicabilidade imediata (artigo 18º, nr. 1), isto é o legislador não vem viabilizar esse direito; o seu conteúdo está desde logo contido na própria norma (direito constituído); no segundo caso (direitos definidos por opções do legislador ordinário = DS), a estrutura das normas não comporta (não determina à priori) a sua imediata aplicação, isto é o legislador constituinte não sentiu necessidade de consagrar, definir ou determinar constitucionalmente esses preceitos, relegando para o legislador ordinário, em função das diferentes concepções político-partidárias, essa tarefa de aplicação dos direitos sociais. Poderá, deste modo, avançar-se mais um pouco e afirmar-se que a linha de separação introduzida por este critério leva a incluir no âmbito de aplicação do regime dos direitos, liberdades e garantias (além dos direitos de defesa, imediatamente aplicáveis) os direitos a prestações (faculdades) que tenham por objecto um comportamento estadual que possa dizer-se de execução vinculada da Constituição; pelo contrário, exclui os direitos a prestações materiais ou jurídicas a que corresponda um comportamento mais ou menos livre do legislador. Esta conclusão é importante, a propósito dos direitos a prestações materiais, que são considerados “direitos sociais” por excelência. Na verdade, certos direitos (direitos de habitação, saúde, assistência, cultura) dependem de determinadas condições de facto. Para que o Estado possa satisfazer as prestações a que os cidadãos tem direito, é preciso que existam recursos materiais suficientes e é preciso ainda que o Estado possa dispor desses recursos. A escassez dos recursos à disposição do Estado para satisfazer as necessidades económicas, sociais e culturais de todos os cidadãos é um dado da experiência, pelo que não está em causa a mera repartição desses recursos segundo um princípio de igualdade, mas sim de uma verdadeira opção quanto à respectiva afectação material. Esta opção terá de ser tomada em face da complexa conjuntura em que se insira, isto é, pesando todas as coordenadas que a possam influenciar. Por estes motivos, não se afiguraria razoável solicitar à Constituição, as respostas para estas situações. É assim que se entende a filosofia dos direitos a prestações materiais do Estado, como objectivos políticos de realização gradual (direitos sob a “reserva do possível”). A Constituição não pode dizer qual o conteúdo exacto da prestação, como há-de processar-se a respectiva distribuição e sob que condições ou pressupostos. O mesmo não acontece com o DLG; aí, a actividade estadual é perfeitamente desnecessária (o que se exige, muitas vezes, é justamente a abstenção), ou, quando é precisa a cooperação estadual, esta não depende de condições materiais relevantes. A respeito deste tema, importa distinguir duas definições: Concretização jurídico-política da Constituição - também denominada por conformação do conteúdo dos direitos fundamentais: como já se disse, as políticas de habitação, saúde, segurança social, educação, cultura, etc., dadas as suas complexidades não podem estar determinadas nos textos constitucionais e a sua realização implica opções autónomas e específicas de órgãos que disponham simultaneamente de capacidade técnica e de legitimidade democrática para se responsabilizarem por essas opções; não é por isso legítimo ao intérprete - seja o juiz, para justificar a assunção de poderes fiscalizadores, seja o próprio legislador, para se eximir da sua responsabilidade política - imputar à Constituição uma intencionalidade que ultrapasse o conteúdo mínimo que decorre do estabelecimento de directivas de legislação; podemos, neste caso, falar da necessidade de uma concretização jurídico-política da Constituição ou de uma conformação do conteúdo dos direitos fundamentais. Concretização jurídico-interpretativa da Constituição - o contrário se poderá passar, quando se pensa em certas prestações materiais ou jurídicas, por exemplo, as indispensáveis ao gozo efectivo dos direitos de participação política (designadamente o direito de voto); a emissão de uma lei eleitoral, que permite o efectivo exercício do direito de voto pelos cidadãos, corresponde a uma intervenção vinculada do legislador; isto é, o legislador não tem neste caso qualquer liberdade para optar, pois está em causa um elemento essencial do sistema democrático, cuja ausência é intolerável para a Constituição; em todos estes casos a Constituição vincula apertadamente o legislador e, expressa ou implicitamente, determina no essencial as soluções que este deve consagrar; ou seja, não está em causa apenas o dever que o legislador tem de organizar ou assegurar o fornecimento das prestações, ou seja, a obrigatoriedade da intervenção legislativa, mas também sobretudo o grau de determinação do conteúdo da intervenção legislativa organizadora ou prestadora, ou seja a sua vinculação; por outras palavras, estamos perante uma concretização jurídico- interpretativa da Constituição. Como se referiu anteriormente, as normas que prevêem os DLG, são normas preceptivas e conferem verdadeiros poderes de exigir de outrem (do Estado, pelo menos) um certo comportamento (geralmente a abstenção), ao mesmo tempo que impõem o dever correspondente. Igualmente se adiantou, que as normas que prevêem os direitos (sociais) a prestações contem directivas ao legislador, sendo por isso impositivas de legislação. Não significa isso, que se trate de normas meramente programáticas, no sentido de simplesmente declamatórias, visto que tem força jurídica e vinculam efectivamente o legislador (este não pode deixar de actuar, sob pena de inconstitucionalidade por omissão); por outro lado, também não são normas meramente organizatórias: ao impor tarefas, a Constituição fornece critérios para determinação e do conteúdo mínimo das pretensões individuais, que constituam deste modo posições jurídicas subjectivas. Todavia, estas tarefas ou incumbências não estão suficientemente determinadas pela Constituição para vincularem imediatamente os poderes públicos para além desse mínimo – nem podem, sem prejuízo da divisão constitucional dos poderes, ser determinadas pelos juízes quanto aos destinatários ou quanto aos pressupostos e à extensão do conteúdo dos direitos respectivos. Para se determinarem como direitos, é necessária uma actuação legislativa que defina o seu conteúdo concreto, fazendo opção num quadro de prioridades a que obrigam a escassez de recursos, o carácter limitado da intervenção do Estado na vida social e, em geral, o próprio princípio democrático. Os preceitos constitucionais não são, por isso, nesse sentido, aplicáveis imediatamente, muto menos constituem preceitos exequíveis por si mesmos. Por outro lado, gozam de uma protecção constitucional menor, já que os tribunais não podem, em princípio, controlar, quanto ao seu conteúdo, as opções legislativas a não ser, excepcionalmente, quando haja uma violação evidente e arbitrária, pelo legislador, da incumbência constitucional (situação pouco provável, pelo que resta, apenas, a possibilidade de recurso à inconstitucionalidade por omissão). Temos pois de concluir que se não é legítimo negar o carácter subjectivo dos direitos sociais, há, pelo menos, que distingui-los dos outros, já que não há poder de exigir um determinado comportamento dos poderes públicos. Como se trata de uma figura com autonomia, designaremos os direitos a prestações por pretensões jurídicas, querendo deste modo mostrar que são mais que interesses juridicamente protegidos, ainda que não verdadeiros direitos subjectivos. Só após ter sido emitida legislação destinada a executar os preceitos constitucionais em causa é que os direitos sociais se consolidarão como direitos subjectivos, mas, então não valem como direitos fundamentais, mas enquanto direitos concedidos por lei. O regime especial dos direitos, liberdades e garantias está previsto nos artigos 18º a 22º e ainda nos artigos 168º, nr. 1, b), 272º, nr. 3 e 288º, d). Destes preceitos decorre a preocupação de proteger com especial intensidade, aqueles direitos, garantindo-lhes um máximo de efectividade. Neste regime sobressai o carácter limitado com que é admitida a intervenção restritiva do legislador, que tem de invocar uma valor constitucionalmente reconhecido e, em qualquer caso, de respeitar o conteúdo essencial dos direitos; o carácter de direito imediatamente aplicável, independentemente da intervenção legislativa concretizadora, afastando o perigo de um reconhecimento pura e simplesmente platónico dos direitos; o cuidado em garantir os direitos em face de todos os poderes públicos (e privados), não esquecendo o poder de revisão e as situações excepcionais do estado de sítio ou de emergência. Quanto ao âmbito de aplicação do regime, estabelece o artigo 17º que se refere aos direitos, liberdades e garantias incluídos no título II e aos direitos fundamentais de natureza análoga. Deve retirar-se daqui que o regime só se aplica a posições jurídicas subjectivas e não a garantias institucionais (ou figuras equiparáveis), mesmo que estejam expressa ou implicitamente contidos no título II da Parte I das Constituição. Por maioria de razão, não será aplicável a posições subjectivas ou garantias institucionais que não pertençam à matéria dos direitos fundamentais. Depois, o regime é ainda aplicável aos direitos de natureza análoga e, ao que parece, a todos eles, isto é, quer aos que constam de outros preceitos constitucionais, quer aos que estão contidos em leis ordinárias ou tratados internacionais. Esta analogia de natureza deve respeitar cumulativamente a dois elementos: tratar-se de uma posição subjectiva individual que possa ser referida de modo imediato e essencial à ideia de dignidade da pessoa humana; poder essa posição subjectiva ser determinada a um nível que deva ser considerado materialmente constitucional. Nesta lógica, serão direitos análogos aos direitos, liberdades e garantias, a liberdade de iniciativa económica privada (artigo 61º) e o direito de propriedade (artigo 62º), o direito de resistência (artigo 21º), os direitos dos administrados (artigo 268º, nrs. 1 e 3), o direito de defesa em processo disciplinar (artigo 269º, nr. 3). Discute-se, igualmente, se o artigo 18º estende apenas o regime material ou também o regime formal (competência exclusiva da Assembleia da República), dos direitos, liberdades e garantias. Para o Prof. Vieira de Andrade, não há razões para entender que o artigo 18º não se refira à totalidade do regime, e que, pelo contrário, a analogia substancial com os direitos, liberdades e garantias justifica que também os direitos abrangidos gozem da protecção resultante da reserva de lei formal. 7. OS LIMITES DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS Os direitos fundamentais não são absolutos nem ilimitados. Não o são na sua dimensão subjectiva, pois que os preceitos constitucionais não remetem para o arbítrio do titular a determinação do âmbito e do grau de satisfação do respectivo interesse (mesmo na época liberalista, os direitos fundamentais tinham como limite a necessidade de assegurar aos outros o gozo dos mesmos direitos). Não o são enquanto valores constitucionais, visto que a comunidade não se limita a reconhecer o valor da liberdade; ou seja, liga-os a uma ideia de responsabilidade social e integra-os no conjunto dos valores comunitários. Assim, além de limites “internos” , que resultam do conflito entre os valores que representam diversas facetas da dignidade humana, os direitos fundamentais tem também limites “externos”, pois tem de conciliar as suas naturais exigências com as exigências próprias da vida em sociedade (a ordem pública, a ética ou moral social, a autoridade do Estado, a segurança social). Nestes termos, poderá talvez afirmar-se que o problema dos limites dos direitos fundamentais se coloca, afinal, na maior parte dos casos, como um conflito prático entre valores - entre os valores próprios dos direitos ou entre esses e outros valores comunitários. Este conflito não se apresenta sempre da mesma maneira e assume, visto da perspectiva do direito limitado, formas diferentes que convêm separar. 7.1. Os limites imanentes Sempre que a limitação do direito atinge o seu próprio âmbito de protecção constitucional, de tal maneira que exclui em termos absolutos certas formas ou modos do seu exercício (exemplos: artigo 45º, nr. 1 e artigo 46º, nr. 4) - tratam-se de fronteiras definidas pela própria Constituição que os cria ou recebe Fala-se de limitações ou limites, porque a protecção constitucional não abrange todas as situações, formas ou modos de exercício pensáveis para cada um dos direitos - são limites máximos de conteúdo. Esses limites podem ser expressamente formulados no texto constitucional, quer no próprio preceito relativo ao direito fundamental (exemplos: artigo 45º, nr. 1 - “pacificamente e sem armas”; artigo 46º, nr. 4: “não são consentidas associações armadas...), quer em preceitos incluídos noutras partes da Constituição (exemplo: artigo 88º e o correspondente artigo 63º, nr. 2). Por vezes, os efeitos limitadores resultam da consagração de deveres fundamentais inequivocamente dirigidos a certos direitos, devendo por isso ser contados entre os limites imanentes expressos (exemplo: o dever de pagar impostos como limite ao direito de propriedade). Outras vezes, há limites imanentes dos direitos fundamentais que só são determináveis por interpretação, pelo facto de estarem apenas implícitos no ordenamento constitucional - limites imanentes implícitos (exemplo: poder-se-á invocar a liberdade religiosa para efectuar sacrifícios humanos). A ideia de limites imanentes não é nova e tem sido objecto de teorizações diversas. Aquela que se adopta, é a que parte da interpretação dos preceitos constitucionais que prevêem cada um dos direitos fundamentais. Isto é, o que se pergunta em cada caso é se a esfera normativa do preceito em causa inclui ou não uma certa situação ou modo de exercício, ou seja, até onde vai o domínio de protecção da norma. 7.2. As colisões ou conflitos de direitos Haverá colisão ou conflito sempre que se deva entender que a Constituição protege simultaneamente dois valores ou bens em contradição concreta. A esfera de protecção de um certo direito é constitucionalmente protegida em termos de intersectar a esfera de outro direito ou de colidir com uma norma ou princípio constitucional. O problema agora é outro: é o de saber como vai resolver-se esta contradição no caso concreto, como é que se vai dar solução ao conflito entre bens, quando ambos se apresentam efectivamente protegidos como fundamentais (exemplo: a liberdade de expressão ou de imprensa oposta à intimidade da vida privada, ou ao direito ao bom nome; poderão os jornais discutir problemas de segurança do Estado? Não poderão os governantes ser criticados na sua pessoa ou nos seus actos ? Poder-se-á colar cartazes de propaganda nos muros limítrofes de propriedades de terceiros ?). A solução dos conflitos e colisões não pode ser resolvida com o recurso à ideia de uma ordem hierárquica dos valores constitucionais. Não se pode sempre (ou talvez nunca) estabelecer uma hierarquia entre os bens para sacrificar os menos importantes. Os próprios bens da vida e da integridade pessoal, que o artigo 19º, nr. 6 parece positivamente considerar como bens supremos, podem ser sacrificados, total ou parcialmente (exemplo: os casos dos raptos em que os Governos se recusam a negociar com os terroristas e proíbem até as famílias de satisfazerem os pedidos de resgate). A Constituição protege os diversos valores ou bens em jogo, não sendo lícito sacrificar um deles ao outro, sobe pena de, confundindo-se os casos de colisão ou conflito com os de limites imanentes, resolver-se estes últimos como se fossem os primeiros; como nesse caso, a solução não podia deixar de ser o sacrifício total de um dos alegados direitos (ele não estava, nessa medida, protegido), a justificação tinha de ser a hierarquia. Terá, pois, de respeitar-se a protecção constitucional dos diferentes direitos ou valores, procurando a solução no quadro da unidade da Constituição, isto é, tentando harmonizar da melhor maneira os preceitos divergentes. Este princípio de concordância prática como critério de solução dos conflitos não deve, todavia, ser aceite ou entendido como um regulador automático: por um lado, a sua aceitação pressupõe que o conflito entre direitos nunca afecte o conteúdo essencial de nenhum deles. Se um dos direitos é afectado no seu conteúdo essencial, então é porque se está perante uma situação de limites imanentes (não é possível, sob pena de falta de unidade constitucional, que possam colidir os conteúdos essenciais de dois direitos; por outro lado, o princípio da concordância prática não prescreve propriamente a realização óptima de cada um dos valores em jogo, em termos matemáticos - é apenas um método e um processo de legitimação das soluções que impõe a ponderação de todos os valores constitucionais aplicáveis, para que se não ignores algum deles, para que a Constituição seja preservada na maior medida possível. O princípio da concordância prática executa-se através de um critério de proporcionalidade na distribuição dos custos do conflito: por um lado, exige-se que o sacrifício de cada um dos valores constitucionais seja necessário e adequado à salvaguarda dos outros; por outro lado, perante a ideia de proporcionalidade em sentido estrito, impõe-se que a escolha entre as diversas maneiras de resolver a questão concreta se faça em termos de comprimir o menos possível cada um dos valores em causa segundo o seu peso na situação. 7.3. A intervenção legislativa na matéria dos direitos, liberdades e garantias A lei ordinária intervêm, por vezes, no quadro dos direitos, liberdades e garantias; as normas constitucionais tem necessariamente um certo grau de fluidez e estão, por isso, com alguma frequência, demasiado longe da realidade para poderem garantir, na prática, a clareza e a segurança desejáveis nas relações da vida social. Nesta perspectiva, o legislador ordinário, emite continuamente normas destinadas a regular a aplicação dos preceitos constitucionais, fixando melhor os contornos dos direitos (e os deveres) dos cidadãos, ou, em certos casos, restringindo mesmo alguns deles, a fim de permitir a realização ou de defender valores comunitários. A CRP admite a existência dessas leis restritivas, mas rodei-as de um especial regime a fim de limitar a sua acção. Esta intervenção legislativa não decorre de um facto evidente ou necessário, porque, em face do valor jurídico (formal e material) dos preceitos relativos aos direitos, liberdades e garantias, o legislador não pode dispor desses direitos, nem a sua intervenção é sequer pressuposto da aplicabilidade dos respectivos preceitos. Igualmente, não se pode classificar esta intervenção legislativa de excepcional, na medida em que, por um lado, não tem já aceitação o conceito liberal que, partindo de um princípio absoluto de autonomia privada, via em cada norma uma restrição aos direitos individuais, e, por outro lado, a já referida imprecisão dos preceitos constitucionais nesta matéria, exige, na prática, para que os direitos possam ser efectivamente usados, que o legislador os organize, condicione, adapte e introduza na ordem jurídica real. Vejamos agora, os três tipos (concretizador, regulamentador e restritivo), que a intervenção legislativa, em de direitos fundamentais, pode revestir. Em primeiro lugar, há que caracterizar rigorosamente a intervenção legislativa em causa. A lei pode intervir na matéria dos direitos fundamentais apenas para concretizar os preceitos constitucionais, nada lhes acrescentado ou nada lhes retirando, limitando-se tão- só a “explicar” os conceitos, interpretando-os e repetindo mais claramente o seu conteúdo: trata-se de uma intervenção legislativa concretizadora, na medida em que não carece de uma autorização expressa da Constituição. Para além da concretização, e, em segundo lugar, há ainda outros tipos de intervenção legislativa na matéria dos direitos fundamentais que não podem, igualmente, ser classificados de restritivos. Será o caso das normas que se destinam a organizar e a disciplinar a “boa execução” dos preceitos constitucionais, adaptando-os à vida real e assegurando o fortalecimento desse direito fundamental constitucionalmente declarado: trata-se, aqui, de uma intervenção legislativa regulamentadora, que, quando muito, estabelece condicionamentos ao exercício dos direitos. Finalmente, noutros casos, o legislador vai mais longe e atinge ou afecta o conteúdo do direito fundamental. Estamos perante leis restritivas propriamente ditas. É neste domínio (das leis restritivas) que interessa ser mais preciso. A CRP distingue os três tipos de intervenção legislativa, determinando certas cautelas constitucionais contra as leis restritivas (consagradas nos artigo 18º), que não tem sentido quanto às normas concretizadoras e regulamentadoras. É justamente quanto às leis restritivas que se levantam alguns problemas em virtude da necessidade de autorização constitucional expressa para a restrição (artigo 18º, nr. 3). Nalguns casos, a Constituição autorizou a lei a restringir este ou aquele aspecto de determinados direitos fundamentais ou atribui-lhe expressamente uma competência de regulação geral da matéria que inclui também poderes de restrição (exemplos: artigo 26º, nr. 3, artigo 27º, nrs. 2 e 3, artigo 29º, nr. 1, artigo 34º, nrs. 2 e 4 - no que respeita à regulação geral: artigo 29º, nr. 6, artigo 36, nr. 2 e artigo 52º, nr. 2). No entanto, há preceitos constitucionais, como, por exemplo, os relativos às liberdades de criação cultural (artigo 42º) e de aprender e ensinar (artigo 43º), aos direitos de deslocação e emigração (artigo 44º), de reunião e manifestação (artigo 45º), ou o direito à greve (artigo 57º), que não prevêem quaisquer restrições. Coloca-se, então a questão, de saber, se será possível invocar o artigo 18º, nr. 3, para considerar inconstitucional, por exemplo, uma lei que proíbe ou restrinja a divulgação de obras de valor artístico (afectando o artigo 42º, que, como se indicou, não contem qualquer preceito autorizador de uma possível restrição) ? De facto, o artigo 18º, nr. 2 deve ser interpretado como proibição de uma relativização dos direitos fundamentais, ao consagrar o princípio da excepcionalidade da restrição, que só deverá ser admitida quando se trate de salvaguardar um outro valor ou interesse constitucionalmente protegido (a este respeito, e como curiosidade, veja-se a posição defendida pelo Prof. Vieira de Andrade, não subscrita pelo Prof. Manuel Vaz, segundo a qual, dada a escassez de situações em que na CRP se verifica a existência de preceitos constitucionais que prevejam a possibilidade de restrição, seria essa falta suprida por recurso, nos termos do artigo 16º, nr. 2, à Declaração Universal do Direitos do Homem - ver pagina 231/232). Deste modo, e como o poder de restrição não é absoluto, importa observar em casos práticos essas limitações previstas no artigo 18º. Desde logo, o próprio preceito constitucional que autoriza a restrição pode indicar os fins ou outros pressupostos específicos da restrição (exemplo: artigo 27º, nr. 3, artigo 34º, nr. 4 e artigo 47º, nr. 1). Para além disso, e em geral, a CRP estabelece certos requisitos para as leis restritivas. A saber: a) exigência do respeito pelo conteúdo essencial dos preceitos constitucionais que consagram os Direitos, liberdades e garantias (artigo 18º, nr. 3) - a este respeito desenvolvem-se duas teorias: a teoria absoluta, nos termos da qual o conteúdo essencial consistiria num núcleo fundamental, determinável em abstracto, próprio de cada direito e que seria, por isso, intocável; em último termo, cada direito, liberdade e garantia, erradicam do postulado da dignidade da pessoa humana; a teoria relativa, ao abrigo da qual, se reconduz o conteúdo essencial aos princípios da exigibilidade e da proporcionalidade (isto é, a restrição só seria legítima quando fosse exigida para a realização de bens jurídicos que devessem ser considerados como mais valiosos); b) princípios da necessidade e da proporcionalidade da lei restritiva (artigo 18º, nr. 2 - segunda parte) - trata-se de uma proibição qualificada de arbítrio quanto à restrição dos direitos fundamentais, ou seja, a legitimidade da lei restritiva, decorre da “mínima” necessidade de salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, que eventualmente possam estar ameaçados por um determinado direito, liberdade ou garantia, e ainda assim, na justa e proporcional medida que essa salvaguarda justifique; c) exigências materiais de generalidade e abstracção ( artigo 18º, nr. 3) - a lei restritiva tem de ser geral, isto é, deve ser aplicável a todas as pessoas ou a toda uma categoria de pessoas (proíbem-se as leis de carácter individual), e deve ser abstracta, ou seja, não pode ter como objecto um caso concreto, ou melhor, deve ser susceptível de aplicação a um número indeterminável de casos (proíbem-se as leis concretas); embora não haja acordo na doutrina quanto à definição de generalidade e abstracção, deve entender-se que, no domínio dos direitos fundamentais, aqueles dois conceitos, referem-se em primeira linha ao princípio da igualdade, enquanto manifestação do carácter universal desses direitos fundamentais; d) exigência de não retroactividade (artigo 18º, nr. 3) - esta exigência foi introduzida pela Revisão Constitucional de 1982, e apresenta-se como a consagração de um princípio indiscutido e repetidas vezes afirmado pele ex-Comissão Constitucional; contudo, esta proibição poderá encerrar algumas dificuldades, nomeadamente se ela deve ser considerada absoluta, ou, em certos casos, a “protecção da confiança” dos particulares deve ceder perante exigências mais valiosas do bem comum; e) exigência de lei em sentido formal - trata-se de apurar o titular da competência para emanação de leis restritivas; de acordo com a CRP, em sede de direitos, liberdades e garantias, esta é matéria da competência relativa da Assembleia da República (artigo 168º, nr. 1 , b), o que equivale a dizer que apenas podem ter validade formal, para este efeito, as leis da Assembleia da República, ou os decretos-leis do Governo emanados no uso de uma autorização legislativa. NOTAS: - referimo-nos até aqui ao poder legal de restrição dos direitos da generalidade das situações; importa, todavia, acrescentar que, em casos de excepcional gravidade, os direitos, liberdades e garantias, podem ser afectados - artigo 19º da CRP (note-se que já não se está no domínio das leis restritivas, mas sim no âmbito da suspensão do exercício de direitos); - por outro lado, as referências ao poder legal de restrição, até agora formuladas, dizem respeito à generalidade dos indivíduos; importa excepcionar a situação dos militares e dos agentes militarizados, cujo exercício de direitos, liberdades e garantias, pode igualmente, ser afectado - artigo 270º da CRP (também aqui não se pode integrar o caso no âmbito das leis restritivas, mas sim em sede de restrição ao exercício de direitos). A última referência contida na NOTA acima indicada (relativa à aplicação do artigo 270º da CRP), conduz-nos para a importante definição de relações especiais de poder - à partida todos os indivíduos, seja qual for a situação em que se encontrem, gozam dos direitos fundamentais. Mas, deve admitir-se que a ordenação de certos sectores de relações (especiais) entre os indivíduos e o poder possa fundar (dar motivo) a restrições de alguns dos seus direitos - o bem estar da comunidade, a existência do Estado, a segurança nacional, a prevenção e repressão criminal, etc, são valores comunitários com assento ou reconhecimento constitucional e não podem ser sacrificados a uma concepção puramente individualista dos direitos fundamentais. Só que essa restrição terá de obedecer aos requisitos gerais, isto é, terá de respeitar os pressupostos constitucionais (a exigência de um valor que justifique uma ordenação especial) e os limites expressamente formulados na Constituição. Deve, desde logo, deixar intocado o limite absoluto constituído pela dignidade humana, não pode ser ilimitado no tempo e deve prever sempre a possibilidade de o indivíduo optar pelo direito fundamental, dissolvendo a relação de poder. 8. OS LIMITES DOS DIREITOS SOCIAIS Tudo o que até aqui foi referido a respeito de limites imanentes (ver 7.1.), do princípio da concordância prática para definir os contornos de aplicação imediata de dois preceitos constitucionais (ver 7.2.) e quanto ao conteúdo essencial enquanto limite ao poder de restrição do legislador ordinário (ver 7.3.), apenas teve em vista os direitos, liberdades e garantias. É que, no âmbito dos direitos sociais, a Constituição não remete para o legislador apenas a criação dos pressupostos ou das condições concretas de exercício de direitos com conteúdo certo. Em sede de direitos a prestações, o dever que lhes corresponde da parte do Estado é precisamente, em primeira linha, o dever de legislar, já que a feitura das leis é a tarefa devida (no caso de direitos a prestações jurídicas) ou a condição organizatória necessária (no caso dos direitos a prestações materiais). Assim, o conteúdo do direito há-de depender da tarefa imposta ao legislador, designadamente do grau de vinculação constitucional a que este está sujeito. Se se concluir que a Constituição confere ao legislador uma margem substancial de autonomia na definição da forma e medida em que o direito social deve ser assegurado, então, o legislador determina, por delegação constitucional, o próprio conteúdo do direito, e não tem sentido falar de um “limite máximo constitucional” desse direito, nem será adequado falar em intervenções legais restritivas. Todavia, a vinculação do legislador à Constituição, no âmbito dos direitos económicos, sociais e culturais, não dever ser absoluta nem sequer a sua actuação deve ser, no essencial, determinada pela Constituição. Por um lado, o legislador deve dispor da sua liberdade de conformação e estabelecer autonomamente a forma e a medida em que concretiza as imposições constitucionais respectivas, sobe pena (se assim não for), da Constituição deixar de ser o quadro normativo fundamental e aberto que exprime o consenso cultural de uma comunidade política, para se transformar num instrumento de domínio nas mãos de um qualquer “defensor da Constituição”. Por outro lado, isto não significa que essa liberdade de conformação do legislador seja total e que os preceitos constitucionais que estabelecem os direitos sociais não tenham força jurídica. O legislador, além de estar obrigado a agir (dever de legislar), está vinculado jurídico-constitucionalmente pela directivas materiais que expressamente ou por via de interpretação decorrem das normas que lhe impõem tarefas concretas. Este grau de vinculação jurídico-constitucional (nomeadamente a partir da Revisão de 1982, que acentuou o vector democrátrico-pluralista), não obriga o legislador senão a assegurar as condições que permitam, pelo menos, a realização mínima do direito social respectivo de cada cidadão - isto é, só o conteúdo mínimo dos direitos sociais pode considerar-se constitucionalmente determinado. Deste modo, só em relação a este conteúdo mínimo se poderia falar eventualmente de restrições legislativas - nos casos excepcionais de violação positiva - ou de actualização judicial - nos casos de omissão legialativa. As restrições dos direitos sociais serão sempre ilegítimas, porque delas só se pode verdadeiramente falar quando está em causa o conteúdo mínimo da imposição constitucional. NOTA: Aspectos a ter em conta para a resolução de casos práticos de direitos fundamentais: 1. Identificar com o máximo rigor o assunto sobre que versa o enunciado do caso prático. 2. Caracterizar os direitos fundamentais: permanentes (mantêm-se na n/esfera jurídica, independentemente do número de vezes que a ele recorremos), universais ( extensíveis a todo e qualquer ser humano), subjectivos (esferas de soberania do indivíduo - serve para distinguir dos direitos fundamentais colectivos atribuídos a pessoas colectivas, bem como, para distinguir direitos fundamentais de garantias institucionais, cuja finalidade é assegurar a garantia de acções políticas, sociais ou económicas, com vista à concretização de um direito fundamental), individuais (são exercidos individualmente; distinguir do direito de exercício colectivo, como por exemplo, a liberdade de associação e de reunião, que só fazem sentido quando exercidos colectivamente) e fundamentais (derivam em último termo do princípio da dignidade da pessoa humana; podem comportar direitos, liberdades e garantias ou direitos sociais; os primeiros tem um regime jurídico próprio na CRP, assim se distinguindo materialmente dos segundos; aludir, também, à distinção formal - os DLG aparecem na CRP anteriormente aos DS; aludir ao artigo 17º - critério da determinabilidade constitucional relativamente aos DLG e definir os DS como aqueles cujo conteúdo é determinado, ou só possa ser determinado, por opções do legislador ordinário contidas em normas programáticas). 3. Tratando-se de um caso prático sobre um DLG (hipótese mais do que provável), aludir ao regime jurídico específico dos DLG’s: artigos 18º a 22º, artigo 168º, nr. 1, b), artigo 272, nr. 3 e 288º, d). 4. A partir daqui, em princípio, deve o caso prático dizer respeito a um limite imanente, a uma colisão de direitos ou a uma intervenção legislativa. Nesta última hipótese (a mais provável, dada a sua grande variedade), ter presente, as intervenções do tipo regulamentador, concretizador e restritivo (leis restritivas). Desta última (hipótese muito provável), considerar os requisitos do artigo 18º, nrs. 2 e 3 (ver ponto 7.3. acima), artigo 168º, nr. b) e artigo 201º, b). OBS: - relacionar sempre as considerações teóricas da exposição anterior com os elementos do caso prático em apreço; - referir sempre os artigos da Constituição.