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cO

Dagon

Editorial contos, têm vida própria e uma


força avassaladora, são obras
Rita Comércio e Roberto Mendes
prima de autores nacionais e
E depois da espera…a obra! internacionais, aclamados
mundialmente como o Turco Kerem
Sou mais que uma revista, mais Beyit.
que um lugar onde a informação, a
divulgação e a crítica se Representando a música, e as
encontram! Sinto que sou um suas origens e inspirações na
espaço de convergência, onde as fantasia e na ficção científica estão
mais diversas artes se tocam, onde gravadas na minha pele uma
a ilustração faz parte do conto banda mítica e um projecto
original, que é lido no compasso de espectacular que reúne os
uma melodia que se ouve, suave e melhores músicos do género.
pura. As cenas de um filme mágico
As entrevistas representam a
acompanham-me a cada virar de
cereja no topo do bolo. Respondem
página, a cada palavra escrita,
às questões Jorge Candeias, Luís
lida, lançada ao sabor terno da
Filipe Silva, Pedro Ventura e o
memória.
Britânico Ian R. MacLeod, autor
Mais que tudo, em mim contam-se incontornável da Ficção Científica
histórias do fantástico: tenho a Mundial, aclamado e laureado com
fantasia de Pedro Ventura, Carla o prémio Arthur C. Clarke de 2009
Ribeiro e do jovem Francisco e também com o prémio Campbell
Norega; Tenho uma aproximação de 2009 .
ao terror com o conto “a última
As palavras cravadas no meu
viagem” de Roberto Mendes e
corpo falam por mim, anseiam ser
tenho Ficção Científica de Luís
descobertas, lidas e relidas…são o
Filipe Silva e Jorge Candeias.
meu sangue que corre sem cessar,
A crítica surge, os artigos de fervilhando de vontade de ser algo
excelente qualidade, onde se mais, de fazer mais e melhor.
destacam “O que fazer com estes Deixa-me entrar em ti, fundir-me
clichés” e “O Original, ou sua contigo, até as minhas palavras se
Ausência, na ficção científica misturarem com as tuas ideias, lê-
portuguesa, face a outros países” me, escreve-me, reinventa-me…
dão-me um toque de maturidade.
Eu sou a Dagon!
A ilustração traça a minha alma,
são mais que capas para os
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Lá fora o acampamento
Conto: Darwar permanecia rendido a numa
sinfonia de sonoridades típicas

de Celénia; do descanso, entrecortada pelo


ocasional relinchar dos cavalos.

Inquieto, Darwar decidiu


Pedro Ventura
levantar-se e ir até à cidade. Não
Assim que abriu os olhos, a tinha qualquer compromisso ou
consciência invadiu-o não tão objectivo certo, mas a sua
lentamente quanto desejaria. unidade estava de licença e não
Pensamentos imutáveis lhe apetecia ficar por ali a
acossaram-no de imediato, sem escutar aquelas mesmas
darem tempo ao limbo indolente conversas, repetidas até à
de um suave despertar. Não exaustão pelos seus camaradas
tardou a invejar aqueles que de armas. Faltava-lhe a
acordavam felizes, disposição para confraternizar, o
despreocupados e que não gosto por conversas fúteis e
voltavam a abandonar o sorriso carecia de lembranças familiares
que lhes brotava dos lábios. que pudesse partilhar… Do que
Como o conseguiam? Não lhes iria falar? Da jovem donzela
percebia como esses conseguiam que o destroçara e o fizera
evitar aquela invisível névoa que alistar-se? Iria confessar-lhes
parecia cobrir todos os seus que ainda a amava, mesmo
momentos. Era impossível que a sabendo que ela já desposara
vida não os furtasse ao amargo outro? Que não conseguia
sabor daquela insatisfação, esquecer… Iria suportar vê-los
daquela amarga e vazia rir e dizerem-lhe que haviam
frustração que sentia. Talvez a muitas outras mulheres, quando
vida fosse mais afável e festiva ele sabia que isso era mentira.
para com eles… Mas não Valia mais estar sozinho… Mas
entendia porquê. Não entendia não se pense que este desejo de
os erros, as escolhas ou a sorte solidão brotava de altivez
que o haviam feito ficar de fora desmedida ou aversão ao seu
dessa quotidiana festividade. semelhante. Não… A introversão
Tudo lhe parecia tão sem era genuíno adorno de carácter e
sentido, vazio… a discrição escondia um

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discernimento e sensibilidade costas sobressaíam ainda os


muito profundos. impressionantes punhos de duas
espadas, recordando que aquela
Porém, assim que saiu da
não era uma rainha vulgar…
tenda uma trombeta ecoou,
tocando a alvorada e logo depois Demonstrando uma
o reunir. Cabeças desgrenhadas graciosidade atlética, a rainha
levantaram-se um pouco por desmontou do seu cavalo e
toda a parte, tentando adivinhar aproximou-se dos homens. Ali
a razão daquele inesperado estava ela, a grandiosa rainha
alvoroço. Gar-Dena, lenda viva, guerreira
inigualável e mais poderosa do
— Equipem-se e formem!
que qualquer outro ser humano.
— berrava um oficial, enquanto
Poderosa… Apesar de estar na
percorria o acampamento e
terceira fila, Darwar conseguia
pontapeava os que permaneciam
vê-la bem. Como parecia
entregues à preguiça — Vamos,
transfigurado aquele belo rosto
seus inúteis! Levantem-se!
com os golpes do gélido cinzel do
Os homens resmungaram, padecimento. Perdera o marido e
mas obedeceram prontamente. o filho. Pelo que dizia o povo, que
Correu de imediato o boato de tanto a adorava, ela perdera tudo
que iriam receber ordens de o que realmente possuía ao
Nimelian. Estavam certos. O que perder aqueles que mais amava.
não podiam era adivinhar o seu O seu olhar era vazio e distante.
teor e quem lhas traria… Tão vazio que nos
questionaríamos se a vida ainda
A unidade formou um o habitava. O que a faria
rectângulo em frente do continuar? O que nos faz
acampamento e aguardou. Mas continuar, quando já nada nos
não seria preciso esperar muito. resta?...
Em breve chegava um grupo de
oficiais da Guarda Real e, entre — Escutem-me, filhos dos
eles, vinha a rainha Gar-Dena. O dhorians! — bradou a rainha,
espanto foi contido, mas após terminar a revista às tropas
generalizado. A soberana — Sei que muitos de vocês não
impressionava com a sua acreditam na existência dos
couraça prateada e um longo e keepk que se preparam para
imaculado manto branco. Nas atravessar a nossa fronteira.
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Sim… Muitos de vocês estariam vós serem sublimes nesse


agora a rir de mim, se momento decisivo! Mas
pudessem… Bem, é chegado o desenganem-se aqueles que
momento de vos resgatar da esperam vitória ou glória pessoal
ignorância! para posteriores paradas nas
avenidas de Nimelian… Estes
A rainha fez um gesto e os
não são dias propícios a tais
soldados que a acompanhavam
tiraram a manta de linho grosso frivolidades! Tudo o que podem
que cobria uma carroça. Um almejar é conseguir esse precioso
burburinho ergueu-se de tempo! E acreditem que o iremos
imediato. Lá repousava o enorme conseguir, nem que a minha
corpo de um Keepk. Eram seres única companhia no regresso
descomunais, uma abominável seja a minha montada… Não
mistura entre homem e animal.
guardem ilusões nos vossos
As mãos e os pés tinham garras
afiadas e as bocas eram espíritos! Estou a pedir-vos que,
rasgadas e preenchidas com em breve, tenham uma morte
duas fileiras de enormes dentes que não poderá ser célere.
triangulares. Os seus enormes Lutarão até à vossa última gota
olhos eram de um negro de sangue e morrerão com as
profundo e inexpressivo e os
espadas nas mãos! Pelo futuro
acentuados contornos dos rostos
peludos faziam adivinhar a raiva de muitos, cabe-vos lutar até ao
animal que os devia afervorar. último homem! Partiremos de
— Vejam! Observem bem madrugada.
porque o próximo que
O silêncio caiu sobre todos.
encontrarem poderá estar vivo e
A rainha foi-se embora, após
ser a última coisa que verão! —
lançar-lhes um último olhar e
continuou a rainha, enquanto
foram dadas as ordens de
apontava para a carcaça —
dispersar. Os soldados foram
Estas são criaturas terríveis e
regressando lentamente ao
sanguinárias, cujo único
acampamento sem trocaram
propósito é extinguir toda a vida
muitas palavras entre si.
que lhes surja no caminho…
Cabe-nos a nós ir ao seu Darwar permaneceu na
encontro e atrasá-las para que clareira agora deserta. A
as pessoas dessas regiões mensagem daquele discurso só
tenham tempo de se refugiarem agora o atingia em toda a sua
nas cidades fortificadas. Cabe a plenitude. A rainha não fizera
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qualquer esforço para amaciar acreditar em qualquer daquelas


minimamente a realidade. Como explicações. Vento?... Animais?!
era fria e amarga a soberana em Plantas… Que interessa ser
quem tantos colocavam a qualquer uma dessas coisas
derradeira esperança… Mas, quando já fomos Homens? Para
realmente, talvez não houvesse ele essas eram explicações
como adocicar a verdade. Ela demasiado simplistas. Estórias
certamente sabia-o bem… A para entreter pessoas ingénuas.
morte rondava, apesar de todos, Desculpas para não se pusesse
tal como ele, pensarem sempre em causa muitas das coisas
que seriam os contemplados pelo absurdas que tomam por certas
destino a escaparem ao repouso durante a vida! Talvez se
no seu insensível regaço… Gar- deixasse simplesmente de existir
Dena conseguira roubar-lhes ou talvez houvesse algo muito
muita dessa humana e ilusória diferente… Fosse o que fosse a
confiança. A morte… A ideia de morte, não lhe apetecia
tombar num qualquer campo descobrir… Não já…
enlameado, onde seria pasto de
A certa altura, Darwar
uma miríade de criaturas, sem
estranhou aquele seu sentimento
que houvesse quem levasse o
desesperado de apego à vida…
seu corpo até ao cimo de uma
Era tão irónico que alguém como
pira funerária, enojava-o, tal
ele sentisse aquele inconfessável
como anojaria qualquer
pavor. Alguém que ele pensava
guerreiro dhorian, desejoso de
não ter nada a perder…
uma morte digna e honrada. Mas
o que lhe causava verdadeiro — O que nos move? —
terror era a ideia de deixar de perguntou a si próprio — O que
existir. Arrepiava-o… Os mitos me faz continuar?...
do seu povo diziam-lhe que os
espíritos dos mortos tornavam-se Darwar passou pelo
vento que soprava em lugares acampamento. Lá a inquietação
aprazíveis ou tenebrosos, era disfarçada, mas de um modo
consoante o que se fizera em quase patético. Sentia-se o medo
vida. Os condra acreditavam que no ar e até os oficiais superiores
os espíritos regressariam à pareciam embrenhados nesse
Natureza e animariam árvores, odor pérfido. Eles tinham plena
animais… Como lhe era difícil consciência que Gar-Dena os

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colocaria na primeira linha, sem nobre Adugar. Darwar tivera


atender à posição social ou sobreviver pelos seus próprios
riqueza. Desta vez não lhes iria meios e ainda era um mero
valer de nada a influência que aspirante a oficial. A
pudessem ter e que, em muitos transferência da sua unidade de
casos, lhes permitira ascender a cavalaria para Nimelian e a
tais posições no exército consequente conjuntura política
dhorian, sem que tivessem as em que se viram envolvidos,
mínimas capacidades para o parecera-lhe uma boa
fazer… oportunidade, mas mais uma vez
o destino pregava-lhe uma
O dhorian deu por si a
partida… As palavras da rainha
sorrir enquanto passava por
voltaram a ecoar-lhe na mente e
alguns oficiais que ele bem
o seu espírito voltou a
conhecia. A singular conjuntura
ensombrar-se. Confuso, dirigiu-
deu-lhe mesmo o ensejo para dar
se para a beira-mar, onde
voz a algo que já guardava para
encontrou um companheiro de
si à muito tempo:
armas seu conhecido.
— Corja ociosa…
— Darwar, viste bem o
Era impossível que os tamanho daqueles bichos? E
oficiais não tivessem escutado aquelas garras? Porque temos de
aquele audacioso comentário, ser nós a ir lutar contra aquelas
que seria suficiente para que o coisas?
chicote disciplinador surgisse de
— Ugh! Não ficou óbvio?
imediato. No entanto, os oficiais
Nós somos de Celénia… A
fingiram não ouvir e nada
nobreza de Celénia não
disseram. Darwar sorriu. A sua
reconhece Gar-Dena como sua
satisfação era compreensível,
rainha e apoiou o velho
após anos de injustiças e
Drumglar, que a encarcerou
afrontas. Ele também era nobre
como uma criminosa. Ao
e tinha uma educação distinta,
chegarmos, os nossos oficiais só
mas a sua família era pouco
lhe juraram lealdade porque
influente, o que nunca lhe
foram arrastados pelos
permitira ascender na
acontecimentos e não tiveram
apodrecida hierarquia militar de
outra hipótese. Ela sabe-o e a ter
Celénia, controlada pelo corrupto
de sacrificar alguém…
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O corpulento soldado, que — Sim… Talvez. Mas não


era quem Darwar tinha de mais entendo porque quer ir
parecido com um amigo, cruzou connosco.
os braços e esboçou uma
— É estranho, não é? Julgo
expressão de descontentamento.
que ela pretende garantir que
— Pois, vamos pagar pelos cumprimos a nossa missão…
erros de outros… Mas não é Lutar até ao último homem.
verdade que ela é uma Porém, há algo mais. O modo
estrangeira? Porque temos de lhe como ela olhou para o corpo
obedecer? daquela criatura… Talvez queira
vingar-se. Ou então talvez queira
Darwar olhou para o
mostrar-nos algo…
horizonte e perdeu-se numa
distância incerta. Nesse momento, o soldado
soltou uma sonora gargalhada.
— Hulgro, ela é a mulher
que o nosso rei Feaglar escolheu — Pensas demais, Darwar!
desposar e, como tal, ela é a Mostrar-nos o quê? Bah! Uma
legítima rainha dos dhorians. coisa te garanto! Não são aquelas
Porquê essa desconfiança? Só coisas feias que vão acabar
por ser estrangeira? Tu viste que comigo! Aposto contigo que
ela tinha razão sobre as dentro de dias estarei aqui em
criaturas! Ela não é nada daquilo Nimelian, numa taberna,
que nos diziam em Celénia. Já afogado em vinho e com um
escutaste os feitos que ela colar de dentes desses monstros
realizou? Já sentiste o imenso ao pescoço! Vais ver!
carinho que o povo tem por ela?
Darwar sorriu, deu uma
Eu próprio não tenho dúvidas,
palmada nas costas do
Gar-Dena é a nossa melhor
companheiro e afastou-se.
hipótese de derrotar Calicíada e
Enquanto caminhava ao longo
estes monstros.
do paredão, o guerreiro não pôde
Apesar de rendido às deixar de considerar curioso o
evidências expostas por Darwar, facto de ter defendido a rainha
o camarada ainda tinha algumas perante o camarada.
incertezas:

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— Devo estar a breve não haverá um único lugar


enlouquecer… — reflectiu em voz seguro…
alta.
Furioso, pisou
Mas a verdade é que repetidamente um ninho de
acreditava genuinamente naquilo formigas, até a terra ficar plana.
que dissera. Apesar das Depois acalmou-se e observou
circunstâncias, havia algo nela atentamente os muitos pequenos
que apelava àquela cega insectos que haviam ficado
lealdade. Algo soturno, é mortos ou a contorcerem-se e
verdade, mas muito real e sentiu um profundo
intenso. E também era realmente arrependimento pelo seu gesto.
difícil ficar indiferente às estórias
Depois de alguns dias de
que o povo e os soldados da
cavalgada desenfreada pelo
cidade contavam. Os seus feitos
nordeste do reino, onde já eram
já superavam os de heróis
visíveis os horríveis resultados
lendários como Arlac ou Replar!
de algumas incursões das
Muitos chegavam mesmo a
criaturas, a unidade militar
considerá-la indestrutível. No
deteve-se perto de uma colina
entanto, era o seu lado humano
que se situava frente à
que parecia cativar quem a
desembocadura de um
conhecia. Sim, ela era admirável
desfiladeiro que atravessava as
e já provara ser capaz de
montanhas de Silaciar. A rainha
sobreviver aos piores tormentos.
tinha sido informada por
Já ele não era nada disso… Era
batedores que o grosso das
um simples humano. Que
criaturas iria em breve romper
hipóteses teria contra aquelas
por ali, mas ela parecia saber
criaturas monstruosas? Essa
exactamente quando seria esse
recordação trouxe-lhe de volta
momento. Ajudou a organizar a
uma sufocante angústia.
última caravana de refugiados
Desalentado, sentou-se no muro
dos povoados próximos e no
de pedra e deixou a cabeça
terceiro dia começou a preparar
tombar.
a batalha. Ao amanhecer os
— Porque me fui oferecer cerca de 150 cavaleiros foram
para o exército?! Como sou dispostos em três linhas sobre a
estúpido! Devia era desertar!... colina, cortando qualquer
Bah! Mas para onde iria? Em passagem para a planície nas
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suas costas. Darwar estava na — Agora! — bradou


primeira linha, junto de Gar- finalmente, quando os inimigos
Dena e dos seus oficiais. Após chegaram ao sopé da colina e
alguns instantes de espera, a abrandaram — Acabem com
rainha ergueu um braço e as eles!
lanças foram levantadas de
O embate entre ambas as
imediato, apesar de ninguém
forças foi violentíssimo e
ainda descortinar qualquer sinal
reclamou de imediato muitas
do inimigo. Mas a excepcional
vidas. A desproporção numérica
sensibilidade da soberana era
era esmagadora e aquela
bem real e não foi preciso
primeira vaga dhorian viu-se de
esperar muito mais… Em breve
imediato numa luta
surgiam no fim do desfiladeiro
desesperada. Darwar não tardou
cerca de uma dezena de
a ver-se apeado, após a sua
criaturas. E assim que estas
montada ser esventrada nos
notaram a presença dos
primeiros instantes da refrega. O
humanos, emitiram furiosos
caos instalou-se rapidamente.
rugidos. Num instante, surgiram
Uma profusão de gritos e rugidos
milhares em louca correria,
parecia agregar-se num único e
como uma praga de insectos
horrível som. Até os guerreiros
vorazes.
mais duros e experientes
— Mantenham posições! — estavam estarrecidos. Lutar
ordenou a rainha com uma naquele campo era como tentar
inesperada serenidade. deter uma enxurrada…O
dhorian mantinha-se em guarda,
As criaturas aproximavam-
mas nenhuma criatura se deteve
se cada vez mais.
perto de si. A pouca distância,
— Senhora… — sussurrou Hulgro vibrava furiosos golpes
um dos oficiais do terceiro num inimigo já ferido de morte.
exército dhorian que viera Ao ver que Darwar o observava,
consigo. o extrovertido soldado não pode
deixar de se gabar:
A rainha manteve-se
imóvel. As criaturas iam-se — Ei, Darwar! Viste como
aproximando. eu fiz? — berrou — Eu bem te
disse que…

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As suas palavras foram sangue, tentando em vão


subitamente interrompidas. Um respirar. Antes de tombar
esgar de dor e de incredulidade pesadamente no solo, o keepk
dominou-o. Sem que tivesse ainda feriu o dhorian com uma
dado conta, uma segunda chicotada do seu braço, num
criatura aproximara-se de si gesto que teve mais de desespero
pelas costas e trespassara-o com do que propriamente de
as enormes garras. Um segundo agressão. Darwar nem se
golpe decepou-o… Irado, Darwar apercebeu disso, pois parecia
investiu no intuito de vingar o hipnotizado com a visão da
camarada, mas acabou por ser criatura, como se ainda nem
derrubado por um outro acreditasse que era ela e não ele
monstro. O dhorian rebolou pelo quem estava por terra. Porém, o
chão e, assim que se levantou, dhorian teve de despertar
foi novamente derrubado por um rapidamente… Duas criaturas
dos enormes braços da criatura. aproximavam-se e pareciam
O soldado embateu dispostas a desforrar-se da
violentamente com as costas no morte do semelhante. Darwar
chão e sentiu na pele a tremenda estava desarmado… O primeiro
força do oponente. Dolorido, ataque deixou-o de imediato com
abriu os olhos e distinguiu o rosto coberto de sangue. O
claramente a branca fiada de segundo deitou-o por terra. No
dentes abrir-se e cinco afiadas entanto, parecia que as criaturas
garras erguerem-se para o golpe não o queriam matar de
final. O que poderia fazer?... Ele imediato, preferindo entreter-se
já tinha perdido a espada… Seria um pouco com ele, tal como um
aquele o seu derradeiro felino se diverte com a presa…
momento? A morte… Procurou
Enquanto isso, a rainha já
rapidamente a sua adaga e
mandara avançar a segunda
desembainhou-a a tempo de
linha de cavalaria. Mas esse
travar as garras que se
reforço de pouco adiantara… Os
precipitavam sobre si. E antes
dhorians estavam a ser
que a criatura tivesse tempo de
massacrados, não obstante os
reagir, Darwar correu para ela e
muitos actos de heroísmo que
enterrou-lhe a lâmina na
faziam as criaturas pagarem com
garganta. O animal estrebuchou
sangue cada palmo de terra
e começou a expelir golfadas de
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conquistada. Mas a verdade é — Como te chamas?


que elas eram demasiadas e
— Darwar… — balbuciou o
cada soldado que entrava no
dhorian.
combate via-se imediatamente
rodeado por dois ou três — Escuta-me com atenção,
oponentes. Gar-Dena decide Darwar! Vai dizer ao covarde que
então fazer sinal à derradeira está no cimo da colina que eu o
linha dhorian, mas o oficial mato com as minhas próprias
dessa unidade recusa-se a mãos se ele não avançar…
avançar. Irada, a rainha manda
repetir a ordem mas, nesse Ele esforçou-se por manter
momento, o seu corneteiro é os olhos abertos.
despedaçado por duas criaturas. — Senhora… —
Ela olha em redor e vê-se tartamudeou — Não vale a
rapidamente cercada por mais de pena… Nós já não…
uma dúzia de keepk. No interior
desse círculo apenas está ela e A rainha abanou-o e
um outro monstro que se aproximou-o mais do seu rosto,
prepara para aplicar o golpe de fixando nele o seu enigmático e
misericórdia a um soldado caído intenso olhar.
e muito maltratado. Sem perder
— Não vale, soldado?! Não
tempo, aproxima-se das costas
sabes o que nos impele? A
da criatura e desfere-lhe um
mesma coisa que te fará subir a
golpe com tal força, que foi
colina, mesmo que até tu penses
possível escutar o som dos ossos
que não o conseguirás… Não há
a estalarem. Uivando com as
outra resposta. Agora vai! Eu
dores, a criatura caiu para a
entretenho-os…
frente e as duas espadas da
rainha puseram fim ao seu Sem dizer mais nada,
sofrimento... As outras que a Darwar assentiu e começou a
cercavam hesitaram perante correr aos tropeções pelo campo,
aquela demonstração de poder. passando por entre os inimigos
Gar-Dena percebeu que tinha de que pareciam apenas
aproveitar aquele instante. concentrados em Gar-Dena, que
Agarrou o soldado ferido pela não precisara de se esforçar
couraça, levantou-o e olhou-o muito para ter essa atenção.
nos olhos.
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— Pensam que me vocês que esta luta tem de ser


assustam?! — bradou a rainha, travada. Vocês são os defensores
enquanto se mantinha em de tudo o que foi, é e ainda será.
guarda, empunhando ambas as O destino está nas nossas mãos.
espadas — Hoje pagarão pela Sim, a morte aguarda-vos… Mas
vida do meu querido Gar-Del! a vossa coragem não será em
Antes de o dia acabar, haverá vão. Não… Ela viverá para
um rio de sangue keepk neste sempre nos sorrisos dos vossos
vale… filhos, netos e em todas as
gerações vindouras. Assim
Já no topo da colina, após
enganareis a morte e sereis
uma dolorosa e esforçada
eternos! È isso que nos impele! O
subida, o dhorian aproximou-se
que vão escolher, meus irmãos?
do oficial e transmitiu as ordens:
Irão viver toda a vida como
— A rainha manda-vos covardes ou morrer hoje como
avançar! dhorians?!

O oficial franziu o sobrolho. Um a um, os cavaleiros


ergueram as lanças na
— Quem é este horizontal e depois bradaram a
moribundo?! És tão louco como uma só voz, enquanto faziam a
ela, rapaz! Seremos chacinados! sua carga.
Vamos retirar e regressar a
Celénia. Se prezas a tua vida, Enquanto os via partir,
vem connosco. Darwar escutou um grito
aterrador. Quis virar-se para ver
— Não! — contrariou o que se estava a passar, mas o
Darwar. seu corpo não o permitiu. Depois
O oficial agarrou-o com a sentiu as forças abandonarem-
intenção de o afastar, mas o no e caiu. Tudo ficou escuro e
soldado deitou-o por terra com silencioso…
um soco, deixando-o Passado algum tempo, já a
inconsciente. Depois reuniu as noite tinha caído, um militar
suas últimas forças e dirigiu-se com um archote examinava os
aos camaradas de armas: muitos dhorians que haviam
— Companheiros! Todo exalado o seu último suspiro.
este mundo… Não é apenas por
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— Majestade! Este está criaturas a aproximarem-se. As


muito combalido, mas ainda está trompetas tocam e os arqueiros
vivo… posicionam-se para tentar
rechaçar mais uma investida.
A rainha debruçou-se na
Darwar sorri e passa lentamente
sua montada e olhou para o
os dedos pelas cicatrizes do
ferido.
rosto.
— Trá-lo connosco e trata
— O que sempre nos fará
dele!
continuar… O que nos fará
Enquanto era carregado vencer…
para uma carroça, Darwar
recuperou momentaneamente a
consciência. Pedro Miguel Rodrigues Gomes Ventura ( Montijo, 14 de
Agosto de 1974 ) é um escritor português
de romances/crónicas épicas.

— O que se passa?... —
Em 1989, acompanhando a família, passa a residir nas
perguntou a custo. Termas de São Pedro do Sul, onde conclui os estudos
secundários. Em 1996 vai viver para Viseu, cidade que
escolha para fixar a sua residência. É aí que tira a
O soldado que o encontrara licenciatura em Estudos Portugueses e Ingleses, na
Universidade Católica Portuguesa. Casou-se em 2004 e tem
sorriu. um filho.

Conta com influências bastante diversificadas que vão de


— Sossega, rapaz… Muitos Homero a Rod Serling, passando por Tolkien, Camus, Júlio
Verne, Teófilo Braga, C.S. Forester, George Orwell, Bernardo
de nós morreram, mas Santareno, Ray Bradbury, Isaac Asimov, Aldous Huxley,
Paul Brickhill, Enid Blyton, etc…
conseguimos afugentar as
“Goor - A Crónica de Feaglar sempre existiu no meu
criaturas. Conseguimos! Elas imaginário, apesar de apenas ter ganho forma escrita em

irão voltar e acabarão por 1996, por entre as aulas da Faculdade de Letras e muitas
noites perdidas, sempre ajudado pelas sonoridades
conseguir passar, mas já ficaram apropriadas – Enigma, Deep Forest, Enya, Within
Temptation e muitos outros, dependendo das situações que
a conhecer o valor dos dhorians ia escrevendo - não escrevo sem música, não viveria sem
ela. Foi nessa altura que a estória de Goor se diferenciou de
e da sua rainha! Hoje esses muitas outras, saindo do limbo mental em que se
encontrava. Mas não foi fácil… Nunca poderá ser fácil
monstros souberam o que é ter transpor para o papel algo cujo suporte é meramente
mental e decorre a um ritmo próprio, que nunca se
medo… E nós soubemos o que é compadece com as circunstâncias ou com o tempo real.”

ter esperança…

Muitas batalhas depois, já


com as insígnias de oficial,
Darwar observa atentamente os
campos em redor das muralhas
da cidade de Tekum. Ao longe
descortinam-se hordas de
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que li assim que aprendi o


significado das letras. O mais
certo é ter sido decisão de

Entrevista a: ambos. Mas foi o pai quem me


levou ao cinema ver um filme
animado de ficção científica, o
Jorge Candeias! meu primeiro, e também foi o pai
quem me introduziu ao Júlio
Verne, à colecção Argonauta, etc.
É um grande fã do Bradbury e
(Entrevista publicada no Correio tinha uma pequena colecção de
do Fantástico) livros de ficção científica desde
jovem, que eu rapidamente
O nome de Jorge Candeias devorei e comecei a ampliar. E o
dispensa apresentações no resto é história.
universo da Literatura
Fantástica portuguesa. Escritor, Quais os autores que mais o
tradutor e entusiasta do género influenciaram?
fantástico (como prova a criação
da bibliowiki- projecto pioneiro Na forma de escrever? Nem sei
em Portugal), é sem dúvida uma bem. Houve uma altura em que
das figuras mais importantes do andei maravilhado com a escrita
Fantástico em Portugal. O do Saramago e escrevi uma série
Correio do Fantástico decidiu ser de saramaguices, das quais
tempo de apostar em entrevistas algumas estão publicadas e as
que poderão ser importantes outras talvez o sejam um dia.
para se perceber os mais Suponho que, apesar de me ter
diversos quadrantes deste libertado entretanto desse
enorme "mundo" do fantástico fantasma, ainda é capaz de se
nas artes. Aqui fica então uma notar a sua presença naquilo
entrevista muito interessante que escrevo. Também talez haja
onde o nosso interlocutor expõe pelo meu texto resquícios de
as suas opiniões sobre os mais outra gente, desde o Barreiros
diversos temas: até àqueles que tenho traduzido
nos últimos tempos, em especial
Roberto - O que o despertou o Martin. E no princípio, nas
para a literatura fantástica? primeiras coisas que escrevi e
nunca serão publicadas, havia
Jorge: O meu pai, e por lá Mário-Henrique Leiria a
provavelmente também a mãe. rodos.
Não sei qual dos dois me deu os
contos de Grimm, que foram Mas um escritor é uma esponja.
praticamente a primeira coisa Tudo o que entra pelos olhos
18
Dagon

pode acabar a sair pelas mãos, haver uma enorme resistência do


às vezes da forma mais público perante formas de ficção
inesperada. Ou pelo menos serve curta, que considero
para tomar decisões e fazer fundamentais para a renovação e
selecções. Isto sim, isto não, isto desenvolvimento dos produtores
talvez resulte, isto nunca. E eu, de ficção fantástica, e de haver
como gosto de fazer experiências, um foco tão grande na literatura
ando sempre a variar a forma de juvenil por parte de algumas das
passar as coisas ao texto, as pessoas e empresas activas no
abordagens, os temas, os sector. Está certo que para
géneros. Chateia-me a cativar novos leitores convém
monotonia, o escrever-se sempre agarrá-los cedo, e a existência de
a mesma coisa da mesma uma forte literatura fantástica
maneira. De modo que juvenil é importante, mas não
provavelmente certas leituras pode ser vista como o alfa e o
minhas influenciam mais alguns ómega do fantástico, como
dos meus textos e outras outros. alguns parecem vê-la.

E assim às vezes saem coisas Mas têm-se publicado coisas


com algum interesse, a acreditar excelentes nos últimos tempos.
no que algumas almas Excelentes e adultas.
particularmente caridosas me
têm dito. Outras, provavelmente Quanto ao material escrito cá,
a maioria, não. lamento que quem não escreve
sagas de fantasia e/ou literatura
O que pensa da realidade juvenil tenha tão poucas
actual da literatura possibilidades de publicação em
fantástica em Portugal? editoras maiores. O que tem
saído têm sido basicamente
Anda movimentada, graças em séries mais ou menos juvenis e
grande medida à actividade de mais ou menos derivativas da
editoras como a Saída de fantasia épica anglo-saxónica ou
Emergência, a Gailivro e a da fantasia céltica. Há uma
Presença, agora que as editoras excepção: O David Soares, um
"tradicionais" no género (Livros bom autor que nos últimos anos
do Brasil, Caminho e Europa- publicou dois romances
América, basicamente) dão fortes (independentes um do outro e
sinais de desgaste ou pura e tudo!) e um livro de contos com
simplesmente fecharam as base no horror e em Lisboa. O
portas ao género. Só tenho pena resto, são sagas de fantasia,
de se focar tanto na fantasia em umas melhores outras piores,
detrimento de géneros que me umas mais infanto-juvenis
agradam mais, como a FC, de outras menos. Ou material
19
Dagon

relegado para editoras sem Qual o valor que atribui aos


visibilidade nem peso no blogs sobre o fantástico,
mercado. especialmente os
portugueses? Na sua opinião
Note-se que não tenho nada existem blogs, ou sites, sobre o
contra que se publique este tipo fantástico com qualidade
de coisa. Não sou daqueles suficiente para conquistar
snobes que do alto do seu cada vez mais novos públicos?
narizinho empinado se arrogam E que blogs ou sites destaca
o direito de decretar, com base actualmente?
nos seus gostos pessoais, aquilo
que deve ou não deve ser lido. Acho que os blogues são muito
Mas digo que é pena que as importantes como modo de
editoras só pareçam ter as formar comunidades e manter as
portas abertas a esse tipo de pessoas em contacto. São uma
coisa. Onde estão os livros de das várias formas que existem
contos? Em especial os de um hoje para fazer isso (fóruns,
autor só, dado que antologias até listas de email, sites sociais,
vão aparecendo de vez em twitter...), e todas essas formas
quando. Onde estão os livros de entrelaçam-se. Mais do que a
ficção científica? Onde estão os sua qualidade intrínseca, é esse
livros de horror que não sejam o seu grande potencial. As
escritos pelo David Soares? pessoas juntarem-se para
escrever sobre as coisas (ou
Mas enfim, tudo isto é um escrever coisas), mesmo que não
caminho que se faz, e há muito escrevam muito bem, mesmo
de cíclico nas enfatuações de que sem grandes bases, é muito
público e editoras por este ou importante. Foi por isso que
aquele tipo de livro e história. apoiei desde o início a ideia do
Tarde ou cedo a bolha da agregador, o Odisseias
fantasia esgota-se, e os pratos da Fantásticas, e foi por isso que
balança penderão para outro aceitei o convite que o Bruno me
lado. Convinha era irmos fez para ser seu editor, apesar do
preparando esse futuro desde já, pouco tempo que tenho livre.
quanto mais não seja para ir
mantendo os autores em Já não tenho muitas certezas
actividade. Escrever é como jogar quanto ao potencial dos blogues
à bola: ou treinas regularmente, para conquistar, propriamente,
ou quando vais tentar fazer os públicos. Duvido que haja
alguma coisa nem aguentas até muita gente a frequentar blogues
ao fim da primeira parte. ou fóruns ligados duma forma
ou outra ao fantástico que não
seja já de certo modo público do
20
Dagon

fantástico. Parece-me que o detectivesco por alfarrabistas e


papel dos blogues pode ter mais bibliotecas, ainda é possível
a ver com fidelização do que encontrar. Comecei a sucessão
propriamente com conquista. de encarnações daquele projecto
Alguém encontra um blogue que convencido de que não se tinha
lhe agrada, provavelmente a editado muita coisa além da
partir de uma busca no google sacrossanta Argonauta e de mais
por algo que tenha lido ou esteja algumas colecções; hoje, temos
a pensar ler, e vai ficando, vai ali listados mais de mil e
visitando. Ou visita todos os dias quinhentos romances além de
o local onde todos eles se vários milhares de outras obras.
reúnem. Ou recebe as novidades E tenho também plena
por RSS. consciência de que há ainda
montes de material de fora.
Quanto a destaques, prefiro não Especialmente o não-português,
os fazer no que toca aos blogues. ainda pouco mais que residual
A minha condição de editor do no conteúdo do wiki.
Odisseias aconselha a não me
pôr a dizer se gosto mais de A do Mudando de assunto e falando
que de B. Não vale a pena o risco um pouco sobre o seu projecto,
de ferir susceptibilidades, “Por Vós lhe Mandarei
embora, evidentemente, haja ali Embaixadores”, pelo qual
blogues que me interessam mais desde já o felicito, quais os
do que outros. No que diz projectos que tem
respeito a sites, e se me é programados para esta
permitido puxar a brasa à minha história? Passará o futuro do
sardinha, gostava de mencionar “hoog” pela publicação no
o Bibliowiki. Porque dá uma universo editorial português?
trabalheira do caraças e por isso
eu falo dele sempre que posso, e Obrigado pela felicitação.
porque é a mais completa
(apesar de ainda muito O futuro imediato do "hoog"
incompleta), volumosa e, sim, passa por uma edição de autor
rigorosa compilação de em print on demand. O plano
informação que já se fez acerca inicial era ter esta edição pronta
do que se edita e editou em mais ou menos a meio da edição
português. O Bibliowiki é, penso electrónica, mas infelizmente
eu, outra forma de promover o quem se tinha comprometido a
fantástico, informando as fazer a capa levou dois meses a
pessoas daquilo que existe e, engonhar e depois apresentou-
tendo embora por vezes de me um projecto de capa que eu
recorrer a doses elevadas de achei nada ter a ver com a
determinação e trabalho história. De modo que esse plano
21
Dagon

foi por água abaixo, mas só no Para já, os dados parecem


que toca aos timings: o resto confirmar o que eu pensava. O
continua de pé. Google Analytics diz-me que o
blogue foi visitado por menos de
Além disso, a ver vamos. Tenho 200 pessoas, com um belo pico
mais umas ideias aqui quando o romance chegou ao
guardadas algures no hemisfério fim. Dessas 200, ajuizando pelos
esquerdo, mas como tudo aquilo tempos de permanência no
é experimental, e uma das coisas blogue e o número de páginas
que a experiência quer medir é vistas, a grande maioria nem lê;
que impacto tem cada ideia, se é limita-se a passar os olhos.
que tem algum, uma revelação Mesmo descontando a chatice
precoce estragaria o efeito. que é para muita gente (eu
próprio incluído) ler no écran,
Considera, agora que a acho um resultado muito
história conheceu o seu fim, fraquinho. E mesmo tendo em
que a publicação electrónica, conta que uma sátira de FC não
através de um blog, é viável? é propriamente a coisa mais
popular que eu poderia ter
Bem, a publicação em si é viável, escrito: muitos dos que gostam
tanto assim que o romance está de FC não gostam de sátira, e o
lá, disponível para ser lido por resto vê por lá extraterrestres ou
quem quiser lê-lo. Se tem futuro ouve falar em FC, fica de cabelos
em termos de forma de chegar ao em pé e foge mais depressa do
público, isso já tenho algumas que estivesse a correr uma Tona.
dúvidas. Já as tinha quando
comecei: sempre encarei com Mas a experiência ainda não
bastante cepticismo todo o hype terminou. Vamos lá a ver se
em volta das ideias do Cory algumas das coisas que tenho
Doctorow acerca das vantagens pensadas modificam os
que a disponibilização gratuita resultados ou não. Depois logo
de literatura traz. Achava que o vos digo.
mais certo era a coisa resultar,
eventualmente, para gente com Para finalizar, sendo uma das
nome firmado e uma enorme pessoas mais importantes da
base de fãs, mas para quem não literatura fantástica da
tem nem uma coisa nem outra, actualidade portuguesa,
como eu, provavelmente não. considera que o futuro do
Mas como acho estúpido fazer fantástico nas artes, em
afirmações sem base concreta, Portugal, será grandioso?
resolvi embarcar nesta
experiência. Esta provocou-me um sorriso.
Ou dois.
22
Dagon

Grandioso é uma palavra colocar areia nas engrenagens


muito... grandiosa. Se julgo que que cria. Há quem se regale em
há futuro para o fantástico, não ficar à margem, a atirar vidros
tenho dúvidas em afirmar que para a estrada na esperança de
sim. O fantástico é um conjunto furar algum pneu e ter o
de formas de contar histórias gostinho de ir depois ver e
que se baseiam na imaginação, comentar o acidente. Esta gente
por contraponto ao realismo. Há, garante que nunca nada chegue
e haverá sempre, quem só goste a atingir o potencial que poderia
de histórias que lhe pareça que atingir. É uma luta. Mas a única
se poderiam passar ou ter resposta possível a dar-lhes é
passado mesmo na realidade não parar nunca de fazer coisas.
concreta do mundo que os
rodeia. Tudo bem, estão no seu É o que eu tenho tentado fazer
direito. Mas também há, e ao longo dos últimos anos. E não
haverá sempre, quem só goste de faço planos de mudar de atitude.
histórias que incluam magia ou
aquele tipo especial de realismo
imaginativo que é característico
Crítica a : Brisingr!
da ficção científica. Ou quem as Fábio Júnio -
prefira às outras. Ou quem goste
de ir debicando ora de um prato, O Crítico
ora de outro. Basta isso para
garantir que o fantástico tem
futuro. Mas não nos diz nada
sobre a forma que esse futuro
assumirá. Eu gostaria de o ver o
mais múltiplo e variado possível,
com o bom e o mau, com sagas e
mini-contos, com fantasia,
horror e ficção científica,
fantástico clássico e surrealismo,
com traduções e trabalhos
originais, com tudo, tudo
disponível e em quantidade. Esse
era o meu particular paraíso, a
minha utopia pessoal. Mas não
acredito que se realize, a menos
que a mentalidade prevalecente
aqui no rectângulo à beira mar Quantos mais exemplos
plantado sofra algumas vejo mais acho que algumas
alterações de monta. Portugal é séries de literatura fantástica
um país que simplesmente adora
23
Dagon

apenas alcançam o sucesso, ou mistérios dos volumes


não, devido ao tempo decorrido precedentes e prepará-lo para o
entre o lançamento dos diversos último, pois a história e a intriga
volumes. É que, lendo o que propriamente dita quase não
escrevi acerca de Eragon e existem.
Eldest, percebo que o Ciclo da Ainda assim, existem momentos
Herança, de Christopher Paolini, de acção e algumas revelações
já não me entusiasma tanto que justificam a leitura desta
como noutros tempos. obra. Seja em Surda, em Farthen
O mais recente livro deste ciclo, Dûr ou Ellesméra, com as
Brisingr, revelou-se uma obra aventuras de Roran ou os
demasiado mediana, demasiado desafios de Eragon e Saphira, é
previsível e demasiado possível reencontrar a
concentrada em pormenores. criatividade do autor e voltar a
Não foi uma desilusão nem uma ser arrebatado pelos detalhes
leitura desprovida de qualidades que fizeram milhares de leitores
mas, com 800 páginas e dois querer acompanhar a demanda
livros precedentes aos quais do jovem rapaz que encontra um
compará-lo, esperava muito grande ovo azul.
mais.
O volume anterior terminou com O tom épico, a magia, as
uma batalha épica e o batalhas e as personagens tão
reencontro dos primos Eragon e familiares, mas ainda
Roran. Muitas questões foram surpreendentes, fizeram-me
deixadas no ar e esperava que os continuar a ler atentamente cada
volumes seguintes trouxessem página, mesmo com a monotonia
as respostas. O que não e o lento desenvolvimento da
esperava é que o autor se acção. Os pontos fortes da
sentisse tão forçado a dá-las, demanda de Eragon
facto notório pelas inúmeras mantiveram-se, mas foram muito
situações descontextualizadas pouco explorados.
por ele criadas para explicar
Não diria que o estilo do autor
pormenores com pouca
mudou, mas neste livro as suas
importância. Fiquei ainda com a
intenções foram diferentes: ao
sensação de que este livro serve
invés de contar uma nova
apenas para esclarecer os
história ele limitou-se a justificar
24
Dagon

ou concluir o que iniciou nas


primeiras obras. Tal permite aos
fãs compreender muito melhor a
Alagaësia, os seus habitantes e
os desafios de Eragon, mas
resultou num livro pouco
estimulante.
Se vale a pena ler? Sim, diria
que sim, mas sem demasiadas
expectativas. Quanto a mim
resta-me esperar pelo próximo
volume que, espero eu, só pode
ser melhor do que este, dando
uma conclusão justa a esta
grande aventura.
Boas Leituras!

25
Dagon

26
Dagon

27
Dagon

sangue jorrou, conspurcando-me


Conto:
de um doce cheiro almiscarado
do prazer inalterado com que o vi
A Ultima Viagem; na morte prostrado.

Roberto Mendes Desço as ruas da cidade,


deixando o corpo para trás. Aqui
o cheiro da noite sempre fora
Abrem-se portas de ouro, diferente de qualquer outro. As
fulminantes de fulgor. Na esfera janelas altas escondem abutres
do invisível voa o espírito da execráveis que não a ousam
morte libertadora, um vento forte enfrentar: a noite! Não é muito
sopra rompendo a noite que se escura a rua que me fará sair
abatera sobre o mundo, lua de deste bairro nojento, ouço a
tormentos defuntos, noite sem minha voz praguejar contra os
fim, mas não para mim! Os seus candeeiros que ousam iluminar
olhos fulminam-me num patético a escuridão e faço um
pedido de piedade, não vêm que movimento automático,
em mim não vive a bondade. E é procurando a arma de que me
assim que os seus olhos havia despojado, deixando-a
percebem o que sou, um repousar com ele, a minha
espectro dos meus próprios centésima vítima. Nunca percebi
pensamentos, um fantasma de porque os contava, e por mais
mim mesmo: a morte de olhar que pensasse sobre isso
faminto que, de pé, o olhava nenhuma explicação me ocorria.
pedinte! E na noite retorcida de Certo dia havia lido em algum
tormentos os seus olhos lugar um verso que nunca me
odiaram-me, dementes, até que o saíra da cabeça: ―quando
som fulminou o silêncio e o seu matares cem corvos, arrancando

28
Dagon

a vida às suas asas destroçadas, Mas nunca como hoje ansiara a


surgirão soluços de raiva ausência dos meus pares, para
incandescente e cem gargalhadas me poder perder na completa
de cem vidas despedaçadas te solidão.
acompanharão na última viagem,
Ah…avisto a sua entrada, de
rindo de ti”. Que raiva, serei
perfeição imaculada! Dou por
assim tão estúpido? Ao ponto de
mim a correr para ela e logo
temer um simples verso...
abrando o passo, não quero
Estou agora perto do meu deixar que os meus impulsos me
destino, anseio por me infiltrar controlem. Tremo de suores
no submundo que se esconde no frios, o meu coração parece
metro. Ali, debaixo da terra, querer rebentar. Mas que raio se
onde nem a lua me ilumina, é passa comigo esta noite? Sou
onde me sinto melhor. Quero ávido a entrar. À medida que
entrar nos túneis negros e não desço os sujos degraus vou-me
mais sair, labirinto diabólico que sentindo mais calmo, qual presa
acalma a minha alma. São já que sente escapar do seu
duas da manhã. No metro predador. Paro em frente da
certamente que encontrarei as maldita máquina que me veda
minhas almas gémeas, momentaneamente o acesso.
noctívagos silenciosos e Sinto uma picada nos olhos
solitários, que se misturam com enquanto aquele pedaço de
a monotonia do negrume cortado hardware me analisa, deixando-
pelas portas que abrem e fecham me depois entrar lançando o
sem levarem a lado nenhum. meu nome ao ar naquela voz
Apesar de solitárias são muitas inumana a que chamaram um
as almas penadas que viajam de dia progresso…bah…o progresso
noite, procurando o seu destino. chegou na forma de controlo, o

29
Dagon

big brother derradeiro, perfeito. Sinto-me num mundo só meu,


Mas a estação era antiga, oh, onde posso repousar. Ouço ao
uma das primeiras, construída longe o aproximar do comboio,
séculos e séculos antes de ter o se ao menos estivesse também
prazer de a respirar. Ao alcançar vazio. Levanto-me e espero. O
o último degrau deparo-me com gigantesco comboio chega em
o impensável. A estação, sempre velocidade pairando sobre os
fervilhante de actividade, carris. Pára. É um dos modelos
aparecia-me agora deserta, com mais recentes e a forma como
as suas sete linhas velando pelo contrasta com o ambiente da
incrível marasmo que consumia estação é quase malévola, qual
o subsolo. O enorme relógio ferida mortal num corpo jovem e
amarelo marcava as horas. Dou são. Entro, para meu espanto a
por mim a olhá-lo fixamente, carruagem está vazia. Olho pela
como sempre faço, apesar de não última vez a estação e espero
perceber os números que o que a porta feche. Ouço um grito
adornam…‖são romanos‖ ouço o que ressoa no vazio, fazendo-me
meu pai dizer e sinto-me de novo tremer. É um grito de mulher,
com oito anos, segurando a sua desesperado, miserável… oh
mão enquanto a construção como conheço este grito, mas
desta estação me maravilhava não pode ser… tento olhar para
pela primeira vez. Entro, fora do comboio mas a porta
apreciando o silêncio. É a fecha, cortando o som do grito
primeira vez que vejo qualquer que tantas vezes me havia
estação completamente vazia e despertado do sono. Assustado
isso fascina-me. É como se olho em volta, respirando
tivesse entrado para um mundo pesadamente, tentando acalmar-
diferente, distante, antigo, me. Estou sozinho…sento-me e
soberbo! Sento-me e descontraio.
30
Dagon

encosto a cabeça no vidro, fecho grito de susto, não estou


os olhos. sozinho… um homem gordo está
sentado num banco a três filas
Lá fora uma tempestade brindava
do meu, de costas para
o mundo, os trovões faziam-se
mim…como é que eu não o vi
ouvir, logo iluminados por
antes? Estamos perto da
relâmpagos que se abatiam sobre
próxima estação. Pelo que
a noite e que entravam pela
consigo ver deve ser um homem
janela mostrando
na casa dos cinquenta anos, usa
espasmodicamente o seu corpo:
um casaco antiquado com
deitado de costas na velha cama
padrões verde e bege. Na cabeça
do meu pai. Sentia o sangue
usa um chapéu que cobre o que
escorrer, caindo do nariz; Todo o
parece ser um antigo lenço
meu corpo doía, latejando em
manchado de vermelho…consigo
gritos mudos que reclamavam
ver que segura algo, parece um
dos seus mais recentes golpes,
cabo vermelho de algum objecto
daquele que tinha tomado o lugar
que leva ao colo. Curioso,
do meu pai e que matara a minha
caminho até ele, não parece ser
mãe…o machado que segurava
do tipo de pessoas que
abateu-se sobre o seu crânio
frequentam o metro a estas
separando-o em dois bocados
horas…talvez tenha algo valioso
afogados no sangue negro e
que eu possa roubar. Coloco a
viscoso que irrompeu do
mão direita no bolso das calças
golpe…novo relâmpago e a arma
onde guardo uma pequena
do crime fica cravada na sua
navalha. Sento-me no banco à
cabeça, qual assinatura…
sua frente e olho-o nos olhos, ou
Ouço o som do relâmpago e vejo pelo menos tento…usa um tipo
o machado na sua curva de lenço que não via há muito
descendente…abro os olhos e tempo. Cobre-lhe todo o rosto,
31
Dagon

deixando apenas um pequeno adornado apenas por um olho e


buraco onde se distinguia um metade do nariz e boca, o sangue
olho azul profundo, cansado. O a jorrar de um golpe colossal que
lenço parece ensanguentado; tinha desfeito o rosto da minha
Decido recuar, talvez o tivesse primeira vítima!
subestimado, além disso segura
―A próxima estação‖, grita o meu
o que parece ser um pequeno
cérebro enquanto retiro e
machado. Levanto-me…
empunho a navalha.
- Não, fica! – O meu
- Vejo que te fartastes das
coração pára momentaneamente.
lâminas grandes – sorri
Aquela voz… e a frase que tinha
venenosamente;
sido proferida. Não era um
pedido: era uma ordem. - Mas como…? E o que
queres? – Tremo
- Quem és? E a quem
incessantemente enquanto tento
pensas que estás a dar ordens? –
recuperar o equilíbrio mental,
Ouço-me responder, tentando
tem de ser uma ilusão.
imprimir na voz a confiança que
não sinto. - Hum…vejamos. Penso
que talvez queira apenas
- Ah, Ah, Ah…não precisas
perguntar-te porquê?
que te diga quem sou…não, tu
não precisas mesmo. Olha-me e - Mataste a minha mãe seu
diz-me que não me reconheces – porco nojento…ainda perguntas
As suas grandes mãos largam o porquê?
machado e retiram o
- Não matei a tua mãe, ela
chapéu…num ápice o lenço é
morreu com uma overdose
removido e eu olho-o: o seu
miúdo… - E olhando-me com o
crânio deformado, dividido,
seu grande olho azul a imagem
32
Dagon

atingiu-me: a minha mãe numa


qualquer casa de banho imunda,
O que sou? Certamente tudo ou
uma seringa…a minha mãe
talvez um nada completo, misto
morta!
infeliz de trevas com raios doces
Vejo a sua cabeça retalhada do calor da madrugada onde mil
mostrar um gesto de sóis dourados velam por mim,
desaprovação, sinto-me mal, moribundo devorado pelo
como se alguém me tivesse mundo, um ser monstruoso de
retirado todo o ar do universo e força bruta, um louco que se
não pudesse mais esquece e se reinventa na
respirar…chegamos à estação, o fantasmagórica noite sem fim
comboio pára. Viro-me e corro trazendo a morte em mim. Sou
para a porta que não abre enfim um vácuo nocturno: cego,
enquanto ouço a sua gargalhada taciturno!
defunta…o comboio começa nova
O seu semblante enrugado olha-
viagem: olho e não vejo ninguém
me, enquanto eu, no chão
na carruagem. As minhas pernas
prostrado, começo a sentir o
cedem e eu caio, encostado a
sangue aveludado que me beija a
uma porta que eu sabia não ir
pele retalhada da face
abrir… Lembro-me agora, aquele
desfigurada. Vai embalando o
verso, não o tinha lido. Tinha-o
bebé que chora de medo, a seu
sonhado e fora o meu pai a
lado uma criança agarra-lhe o
proferi-lo enquanto olhava para
braço. Um pequeno orifício
mim desiludido. Não era um
avermelhado na sua barriga
simples verso, era uma profecia!
estraga-lhe a camisa branca
soberbamente engomada. Fora aí
que o atingira. À velha tinha-a
degolado, e agora que a olho com
33
Dagon

o único olho que me resta, vejo o ser antigo de experiência


seu sangue cansado no seu ancestral.
pescoço amarrado. Ao bebé,
- Foi apenas um trabalho –
oh…ao bebé tinha-o sufocado! O
a minha voz soa de forma
meu primeiro serviço: Uma velha
inumana, consequência da
mãe e os seus dois filhos! Eu
minha chaga – Para mim vocês
tinha apenas quinze anos…e ali
foram apenas dinheiro, nada
estavam eles, sentados olhando-
mais!
me com um cínico sorriso nos
lábios. A minha cabeça parece - Mas como conseguiste?
explodir, levanto-me a custo e Assassinar-me a mim, uma velha
preparo-me para o susto alma que muito tinha visto da
enquanto arranjo coragem para vida…isso consigo perceber – as
olhar o meu reflexo no vidro lágrimas rolavam pela sua face
espelhado que adorna a que me parecia agora gentil,
carruagem: mas no fundo eu já o como pude eu fazer-lhe mal? –
sei; Olho, o que vejo? Uma Mas magoar duas inocentes
cabeça dividida, em sangue crianças, um bebé! – E eu senti-
embebida. Metade da face o, a cada palavra eu sentia uma
desfigurada, ferida de guerra dor profunda, dilacerante, como
acabada. O meu primeiro golpe, se milhares de mãos me
que agora era realmente meu! espancassem; o bebé chorou e
Sofreria eu os estigmas da eu senti-me sufocado; o miúdo

minha maldade? olhou-me, penetrando em mim e


revolvendo todo o meu ser pelo
- Porquê? – A questão
caminho e eu senti a minha
impunha-se mas eu não a queria
barriga esfaqueada. A velha
ouvir. Odeia-a por isso. A sua
olhou-me demoradamente, até se
voz soou melodiosa, vinda de um
sentir satisfeita. Será que ela
34
Dagon

percebeu o que ia na alma? Que beijando-me o coração. Os


pior que os estigmas que se lugares estão repletos. Em todo o
abatiam sobre mim, as feridas lado vejo os defuntos enfermos a
eu causei e que me matavam quem arrebatei o sopro da vida.
lentamente, pior que isso era a Levanto-me, caminho entre eles.
dúvida que se abatia sobre mim, Conheço todos os seus rostos, oh
o que era eu? Porque matava? E sim…conheço-os de todas as
que prazer sentia ao fazê-lo? E noites em que fecho os olhos.
porquê? A gargalhada que se Que assombração divina, Eu, o
ouviu ecoou no meu ser, Carrasco e eles, as minhas
arrebatando-me de dor, fazendo- mortes! Percebo agora, percebo
me tremer. Riam os três, riam de que morri a cada golpe, a cada
mim! Sinto o comboio parar mas divina vida que fiz sepultar.
não olho as portas, sabia que Matei demais, ou será que existe
não iam abrir! Fecho os olhos um limite? Parece-me agora que
por instantes reflectindo no que cruzei esse limite invisível logo
posso vir ainda a enfrentar. no primeiro golpe. Olham-me e
Estou fraco, uma enorme poça matam-me um pouco mais,
de sangue envolve os meus pés e enquanto recebo, agora de
sinto-me desmaiar…sinto o meu braços abertos, as suas dores, as
peso abater-se no lodo nojento suas chagas. ―Porquê”, “Porquê
do meu próprio sangue e perco eu?”, “Porquê” … Todos me
os sentidos… perguntam e eu vou balbuciando
as minhas respostas, mas que
Acordo…o barulho é
poderei eu responder? Se fui eu
ensurdecedor, húmido e morno,
quem já deu a resposta,
uma muralha de treva onde ouço
arrancando da minha alma toda
passos que viajam através do
a humanidade que nela deveria
silêncio frio e obscuro da morte,
existir…ou será esta a natureza
35
Dagon

do ser humano? Matar…ser mais gemido, parto, simples espectro


forte, prevalecer! Procuro-a, de um mundo defunto.
quero vê-la, Eles levantam-se,
escondem-na mas eu preciso
dela, amor lançado ao vento.
Corro e afasto-os, sinto-a, sinto a
sua chaga embeber o meu corpo
dilacerado. E ela aparece, o meu
único amor, sonho bordado de Roberto Mendes é o criador do blogue “Correio do
Fantástico”, um apaixonado pelas artes, em especial
incerteza, na sua face traços de a literatura. Os seus géneros preferidos vão desde o
policial ao existencialismo, com um interesse maior
piedade, ou será tristeza? nos géneros do fantástico. Recentemente tem
trabalhado em dois projectos na literatura
fantástica, a antologia de contos “Vollüspa” e a
Certamente beleza… Mas já não presente “Dagon”.

é a mesma, era outra luz, outro


brilho superior à própria
natureza. Quero abraça-la, num
desfalecimento profundo, um
abraço capaz de engolir o
mundo. Um último suspiro de
um moribundo! Envolvo-a nos
meus braços: uma dor como
nenhuma outra abate-se sobre
todo o meu ser e vejo-os morrer,
um a um, como num flash que
consumia o tempo, e enquanto
todos se riem de mim, deixo-me
ir no vácuo eterno de silêncio
glacial, e neste sonho doloroso
levo as mãos ao peito, arranco o
coração desfeito e, num último
36
Dagon

agressivas, Jude compreende que o


Crítica: Heart- seu único objectivo é a vingança.
Mas a verdade é como as moedas,
Shaped Box tem mais do que uma face, e
quando Jude, Georgia (a sua actual
João Seixas namorada) e os dois fiéis pastores
alemães partem rumo à Florida
para por cobro àquela ameaça, o
que descobrem é ainda mais
sinistro e surpreendente do que à
partida podiam contar.

O confronto do leitor moderno com


uma história de fantasmas, quase
um século depois de M.R. James
ter (praticamente) esgotado as
variações do género, obriga-o a
formular, uma e outra vez, a velha
questão que Lafcadio Hearn
levantou no seu Nightmare-Touch
(in Shadowings, 1900):‖para
aqueles que acreditam em
Jude Coyne, famosa estrela de fantasmas, qual é a razão do
heavy-metal e praticamente o medo inspirado por eles?‖ E a
único sobrevivente do grupo Jude’s resposta aventada, a título
Hammer, adquire um fantasma na especulativo, permite-nos tactear a
Internet. O que podia ser apenas real inquietação que escorre, quase
uma brincadeira ou excentricidade, física, das páginas desta primeira
acaba por revelar-se um assunto obra de fôlego de Joe Hill.
bastante mais sério, uma vez que ―Qualquer medo que possa sentir-
Jude foi escolhido, se, é sempre resultado da
propositadamente, como alvo e experiência – experiência do
recipiente daquele fantasma: o indivíduo ou da espécie –
espírito de Craddock McDermott, experiência da vida presente, ou
um velho hipnotista e veterano do de outras já esquecidas. O
Vietnam, que faleceu pouco depois próprio medo do desconhecido
do suicídio da enteada, a última não pode ter outra causa. E o
namorada de Jude. E, à medida medo de fantasmas, só pode ser
que as aparições do fantasma se resultado de uma dor já
vão tornando mais e mais experimentada‖.

37
Dagon

nos apresentado como sendo uma


O fantasma torna o passado táctil. criatura verdadeiramente
Obriga ao reviver de uma dor desprezível, não muito distante
pretérita. O fantasma é, afinal, a daquela faceta de si próprio, que
vingança da memória, o remorso Jerry Lewis nos mostrou no
corporizado. Quando conhecemos sublime The King of Comedy
Jude Coyne, ele é o que (Scorcese, 1982). Aliás, observe-se
esperaríamos que fosse uma velha (como Georgia o faz também), que
estrela de Heavy Metal, semi- ―Jude Coyne‖, é homófono de
retirada, depois do suicídio de um ―Judas Coin‖, das moedas com que
elemento da sua banda (disfarçado Judas vendeu Cristo.
sob a capa de um acidente de Sintomaticamente, dizem-nos as
automóvel) e da morte dolorosa (às fontes bíblicas, Judas acabou por
mãos de um cancro incurável) de se suicidar, ele próprio, por
um outro: ou seja, tudo menos remorsos…
assolada por remorsos. A sua cama
é frequentada por uma série A chegada do fantasma, porém,
sucessiva e ininterrupta de com o seu fato negro e olhar de
roadies, groupies, ou jovens sarrabisco, como se oculto sob os
góticas, pelo menos trinta anos traços furiosos de uma caneta (um
mais novas que os seus cinquenta e aspecto curioso, incomum mesmo,
seis, e a vida suficientemente mas que evoca uma estética mais
abastada para que as possa tratar japonesa, da tradição dos
com o desprezo que as gothic kwaidan, ou o hábito
chicks buscam nas divindades do mediterrânico de cobrir os olhos
hard rock. Suficientemente dos cadáveres com moedas, para
abastada, mesmo, para se entregar pagar a passagem a Caronte), vai
a pequenas indulgências macabras, forçar o leitor a alterar, progressiva
como seja coleccionar artigos do e radicalmente, a forma como
oculto e do extremo (desde a encara Jude Coyne; vai mostrar
confissão de uma bruxa, assinada que por baixo da barba hirsuta do
no século XVIII, até um filme roqueiro, se encontra ainda (o
snuff). Por isso, Jude não hesita fantasma?) de Justin Cowzynski,
quando lhe surge a possibilidade de um rapaz pobre de uma família
adquirir na Internet um fantasma pobre do sul, vítima de maus-tratos
verdadeiro, que acompanha um fato familiares (da violência do pai e da
que lhe é entregue numa caixa cobardia da mãe), e que apenas
negra, em forma de coração. queria tocar guitarra.

Verdade seja dita, Jude Coyne é- A narrativa, conforme sintetizada

38
Dagon

acima, admite níveis de leitura que praticamente criou o horror


diversificados, traduzindo o contemporâneo, será difícil resistir
imperecível potencial do horror a fazer comparações com as obras
para minar o inconsciente colectivo do pai; os carros fantasma de
das sociedades modernas; mas, Christine e From a Buick 8 estão
sobretudo, explora de forma aqui presentes, tal como os cães
apaixonada os processos de sobrenaturais de Cujo; os dedos
formação/desintegração da decepados e a porta riscada no solo
personalidade individual, de The Dark Tower, o recurso aos
elaborando um jogo de espelhos e brand names que polvilham os
miragens entre as várias personae diálogos e as descrições [quando
(no sentido de máscara social), Jude diz a Geórgia que comprou o
representadas pela sua identidade fato assombrado numa mera
pública, auto-imposta (Jude Coyne, imitação do eBay, (―a third-rate
que acoberta sob a sua persona clone‖) e lhe explica que por um
violenta, fria e indiferente, a qualquer motivo era necessário que
personalidade mais afável de ele comprasse o fato, concluindo ter
Justin, ou daquilo que Justin a certeza de que existe ali uma
poderia ter sido, tivesse crescido qualquer mensagem moral mais
num outro ambiente) ou imposta profunda, a resposta da
por outrem (Marybeth, que primeiro companheira é simplesmente
tem a persona de Morphine, a ―Yeah. Stick with eBay‖], e os
stripper, sob cuja máscara diferentes tipos de fonte impressa
pretende ultrapassar – em excesso, para representar diferentes tipos de
assim redimindo – os pecados de discurso, são tudo elementos
ter sido uma prostituta aos treze característicos da obra de King
anos; e depois a de Geórgia, que lhe (como antes de John dosPassos,
é atribuída por Jude, que não quer John Sladeck ou John Brunner).
saber do seu passado, até ambas Mas, por via da sua popularidade,
serem quase submersas pela espalharam-se rapidamente pela
personalidade de Florida, a rapariga paisagem literária, encontrando-se,
maníaco-depressiva cujo suicídio o de uma forma ou outra, na obra de
fantasma do padrasto parece qualquer autor. Onde Hill segue as
querer vingar). Mas o próprio passadas de King é na soberba
fantasma, nas suas motivações, habilidade narrativa, na
não passa de uma máscara. sobreposição da arte do
storytelling à da mera escrita
Joe Hill escreve de uma forma novelesca (experimente-se ler o
surpreendente; para aqueles que texto em voz alta, para depressa
sabem ser filho de Stephen King, notar o ritmo e a cadência quase

39
Dagon

musical das frases). Tal como um estilo sobre o conteúdo, é com


bando de aves que nos prende o agrado que se vê um autor (quase)
olhar para logo nos ludibriar com estreante adoptar a difícil arte do
uma súbita e coordenada mudança estilo invisível, onde a palavra
de direcção, Hill agarra o volante da escrita se transforma
atenção do leitor e passa a conduzi- imediatamente em imagens e
lo a seu bel-prazer, por cenários sensações no cérebro do leitor.
cada vez mais inesperadas. Também o narrador é uma
máscara, um fantasma,
O estilo de escrita consegue fazer o reproduzindo a nível estilístico o
texto parecer mais sórdido do que próprio tema da novela (chegados
realmente é (um feito, ele próprio, ao final, sentimos como
digno de nota); a imaginação visual perfeitamente justificadas as
e descritiva é (para recorrer a um informações que o narrador nos vai
cliché) verdadeiramente dando nos primeiros capítulos,
transbordante; e o ritmo é de obrigando-nos a testemunhar a
montanha russa. A tal acresce a reacção das personagens àquilo que
riqueza de caracterização das nós já conhecemos).
personagens, desde as principais,
aos meros intervenientes
secundários numa única cena
(inesquecível o homem da laringe
electrónica e a esposa gorda numa Heart-Shaped Box devolve-nos,
casa de fast-food) que permitem sobretudo, o raro prazer de contar e
uma identificação imediata por ouvir contar uma história de
parte do leitor, a par de uma fantasmas junto à lareira.
honestidade de autor
surpreendente, que permite que as
personagens se mantenham fiéis
até aos aspectos negativos da sua Obra Publicada pela editora
personalidade. E, não menos Civilização com o título “Uma
relevante, é um dos raros livros de Caixa em forma de Coração”
horror que é verdadeiramente
implacável na criação de um
ambiente credível e capaz de
transcender os limites das próprias
páginas.

Numa paisagem literária quase


obnubilada pela predominância do

40
Dagon

41
Dagon

E então, subitamente, a
Conto: O Úúltimo
verdade invadiu o recinto do seu
Deus; conhecimento e, de uma forma
Carla Ribeiro inexplicável aos seus olhos
cerrados, Orodun compreendeu
que estava sozinho nos desertos
Acordou para uma do reinado divino. Que
escuridão sem som nem cor, acontecera, pois, aos seus
mórbida no velho odor dos iguais? Ter-se-iam afastado de
espectros que pareciam ter tal forma que já não os podia
preenchido o espaço. Há muito pressentir?
tempo que a sua mente não
Não… Era impossível.
despertava para a consciência da
Mesmo durante a mais
sua própria divindade, tanto que
prolongada das ausências, o
o lugar que sabia ser o seu
sopro vital de um deus nunca
espaço de repouso deixara de ser
deixava de ser perceptível
reconhecido pela percepção.
naquele local. O fúnebre silêncio
Sentiu a totalidade do que ali reinava não podia ter,
silêncio em seu redor, o macabro pois, senão um significado: todos
vazio que parecia espelhar muito os outros deuses haviam
mais que um profundo sono e, perecido.
lentamente, como se ainda
Nesse momento, Orodun
entorpecido pelos séculos de
entendeu a ameaça que sobre ele
ausência, sondou com o
se estendia, ainda que não a
pensamento as trevas
pudesse ver. Algo havia no
circundantes, à procura de um
mundo dos viventes que
sinal que lhe indicasse a
ameaçava erradicar da mente
presença dos seus congéneres.
humana toda a fé que, sem que o
42
Dagon

soubessem, continha a por momentos, dos seus


totalidade da existência divina. pensamentos mórbidos.
Mas, se ele ainda estava vivo,
Poucos meses antes, ela fora
então ainda havia alguém… Um
ainda a alta sacerdotisa do
murmúrio de esperança entre os
templo de Orodun, guia e
mortais.
intérprete da vontade do senhor
A ordem brotou-lhe do do fogo. Haviam sido inúmeros
espírito quase os que acorriam em peregrinação
inconscientemente, mas, ainda ao santuário que vigiava,
assim, com a imperiosa chegados tanto da mais poderosa
intensidade do deus que era. E a das casas nobres como do mais
sua voz percorreu o vácuo do pobre povoado. Todos eles
tempo e do espaço como um tinham, contudo, algo em
grito no deserto. comum: os seus motivos.
Vinham de todos os pontos do
- Encontra-me!
império, trazendo consigo o
* melhor que tivessem para
oferece, em busca dos favores e
Não havia senão a etérea
da orientação do deus que
luminosidade do luar que
representava e, sob a sábia
atravessava a pequena janela
orientação da serena Ruana, o
com grades, uma frágil luz para
templo prosperara em fama e em
atenuar a penumbra da gélida e
fortuna.
silenciosa cela onde, quebrada
pela dor e pelo medo do que viria Depois, o imperador
depois, Ruana procurava, em morrera e Coldanus, o seu
vão, um vestígio de sono capaz tirânico filho, tomara para si a
de a afastar, ainda que apenas posse e o poder da coroa
universal. Contrariamente ao
43
Dagon

seu pai, que, apesar de um ente silêncio do espaço. Quando,


soturno, fora, ainda assim, um entre gritos e maldições
líder justo e um homem de invocando a cólera de Orodun, a
princípios rectos, Coldanus era haviam arrastado até à cela que
controlado pela ambição e cedo a agora ocupava, o ar era
sua fome de poder lhe ordenara constantemente preenchido por
que devorasse todos aqueles que uma cacofonia de gritos, preces e
com ele competiam pelas lamentações. Agora, contudo,
atenções do seu povo. não podia ouvir mais que a sua
própria respiração, debilitada
Iniciara-se então a violenta
pelo frio e atormentada por uma
catástrofe que se abatera sobre
fúnebre certeza. Durante muitas
as religiões do império. Sob o
das noites que ali passara ouvira
domínio do velho Iseren, haviam
os gritos e os gemidos da tortura
sido múltiplos os cultos a
e da morte e, ainda que por
florescer sobre a bondosa
motivos que lhe eram
protecção imperial. Com a
desconhecidos, Coldanus lhe
ascensão de Coldanus, contudo,
tivesse preservado a vida
não tardara muito até que o fogo
durante todo aquele tempo, não
deflagrasse entre os templos e,
lhe restavam dúvidas de que em
em poucas semanas, as
breve seria a sua vez.
masmorras haviam passado a
ser a mísera habitação de todos Suspirou, procurando
os sacerdotes. controlar as suas apreensões,
enquanto, simultaneamente,
Lentamente, Ruana deixou
tentava encontrar na escuridão a
que
presença do deus a quem
os seus olhos se fechassem, sempre servira com absoluta
abrindo o coração ao lúgubre fidelidade. A sua consciência

44
Dagon

dizia-lhe estar pronta para olhavam com uma máscara de


aceitar a morte, mas havia ainda desprezo estampada nos rostos.
algo dentro de si que se revoltava
- De pé, sacerdotisa! – ordenou
contra os factos e que implorava
um deles, e o trovejar da sua voz
à eternidade pela misericórdia de
feriu os seus ouvidos adaptados
Orodun.
ao silêncio da iminente
E foi nesse momento de catástrofe.
desespero que, como um grito no
Lentamente, controlando o
deserto, a sua mente foi
medo que lhe entorpecia os
preenchida pela voz do seu
movimentos e a fraqueza que o
senhor. Em silêncio, Ruana
cárcere lhe infiltrara no corpo,
prometeu obedecer à sua ordem
Ruana obedeceu. O som das
e tudo fazer para o encontrar,
correntes que a manietavam
preservando-o no seu
agitou o ar, para depois silenciar
pensamento mesmo perante a
quando a mulher se quedou,
dor. Encontraria em si a fé em
inerte, à espera do que viria a
Orodun e, mesmo quando tudo
seguir.
parecesse perdido, o seu deus
salvá-la-ia. Estremeceu, enquanto o
soldado que lhe falara a
*
contemplava com um olhar
Despertou com a violenta apreciador, como se avaliasse a
sensação de um golpe sobre o qualidade de um animal que
seu corpo enroscado no chão e, ponderava comprar. No silêncio
por entre as sombras do sono e dos seus pensamentos, o
da dor, conseguiu distinguir as coração de Ruana erguia-se
formas de dois homens que a numa desesperada prece ao seu
deus, implorando por uma

45
Dagon

misericórdia que não sabia poder mãos dos soldados agarraram-


alcançar senão nas mãos das na, surpreendendo-se ao ver
esferas superiores. como, sem resistência, a última
sacerdotisa se deixava conduzir
- O imperador quer ver-te. –
até aos níveis superiores do
declarou o soldado, pondo fim às
palácio.
suas meditações.
*
- Porquê? – inquiriu Ruana,
sentindo que a palavra lhe Havia algo de sinistro no
voava, inconscientemente, dos rosto de Coldanus, um laivo de
lábios. sadismo que, apesar de ténue,
parecia prolongar-se até ao
- Isso gostava eu de saber. –
infinito. E o esboço de sorriso,
admitiu o homem – Por mim,
gélido e artificial, que lhe aflorou
bem que te podia ter deixado ao
aos lábios quando a sacerdotisa
mesmo destino dos teus
foi conduzida à sua presença,
companheiros de bruxaria. Eu ia
era já, aos olhos da mulher, um
gostar… Mas – prosseguiu,
prenúncio de iminente tragédia.
recordando subitamente a sua
posição – não me compete a mim - Salve, sacerdotisa de Orodun! –
questionar as decisões do cumprimentou o imperador, e
imperador. Se ele te quer ver, cada palavra parecia ser uma
ver-te-á. troça velada.

Ruana assentiu, perguntando-se - Salve, excelso imperador. –


secretamente se poderia ser que replicou Ruana, inabalável na
a estranha decisão de Coldanus sua aparente serenidade.
fosse já um sinal da acção dos
poderes de Orodun sobre a terra.
Nesse momento, contudo, as
46
Dagon

Coldanus sorriu ante o desafio de execução. Outros deixaram a


implícito nas palavras da vida na escuridão das
mulher. masmorras. Nenhum deles
passou diante dos meus olhos.
- Sabes – disse – que não sou
Nenhum – acrescentou – excepto
propriamente um adepto da vida
tu.
religiosa. Creio, aliás, que apesar
da tua reclusão, poderás Mais uma vez, os pensamentos
imaginar o destino final que de Ruana voltaram-se para o
atribuí aos teus semelhantes. deus. Teria sido a mão de
Orodun a provocar aquela
- Tenho uma vaga ideia. –
alteração? Seria aquela mudança
concordou Ruana, forçando-se a
de Coldanus a sua salvação, ou
preservar, apesar das apreensões
apenas um novo tormento na
que se infiltravam no seu
sua via dolorosa?
espírito, uma máscara de
inabalável tranquilidade. - Posso perguntar – inquiriu
Ruana – quais os motivos de tal
- Bem, deixa-me que te
excepção?
esclareça. – prosseguiu o
imperador – Uma a uma, todas Coldanus respondeu-lhe com um
as almas ligadas à perpetuação sorriso, enquanto, com um olhar
da fé foram aprisionadas. Não onde o ódio e a luxúria pareciam
houve um templo do qual fundir-se, percorria, de ponta a
restasse pedra sobre pedra. E, de ponta, o corpo debilitado da
entre todos os meus cativos, sacerdotisa.
todos foram entregues, de uma
- Surpreender-te-ia – inquiriu o
ou outra forma, à dor e à morte.
imperador – se te dissesse que
Alguns encontraram o seu fim
me interessas? A forma como
perante a multidão, nas arenas
manténs essa máscara de
47
Dagon

altivez, mesmo quando, na povo acreditará. E, em troca,


verdade, estás apavorada… Não dar-te-ei a tua vida, exaltada ao
finjas. – acrescentou, vendo um poder de imperatriz e à paixão de
esgar de desprezo aflorar no consorte do divino.
rosto da prisioneira – Eu sei que
Inesperadamente, Ruana soltou
é verdade e tu também o sabes.
uma gargalhada.
Essa tua duplicidade, aliada à
beleza do teu corpo e ao fascínio - E se eu recusar? – perguntou –
da tua enigmática pessoa, Oh, podeis matar-me, claro. Mas
podiam fazer de ti uma quem falará ao povo da vossa

imperatriz. divindade?

Ruana estremeceu. Coldanus esbofeteou-a com


violência.
- O que quereis de mim? –
perguntou. - Insolente! – exclamou – Quando
morreres, não precisarei de
- Não é óbvio? – replicou o
ninguém que me aclame como
imperador – Quero tudo. Para
deus, pois todos verão o que
começar, - explicou, acariciando
sucede àqueles que insistam em
levemente o rosto da sacerdotisa
venerar outro deus que não o
– quero o teu corpo.
seu imperador! Pede ao teu deus
Evidentemente que o terei, de
que te salve, mulher, porque
qualquer das formas, mas podia
amanhã morrerás!
poupar-te a muito sofrimento se
te entregasses de livre vontade. Por um momento, a cólera que o
Além disso, tu és a última consumia impediu-o de
mulher de fé do império. Se continuar. Depois, forçando-se a
reconheceres perante as gentes o retomar a sua gélida
meu estatuto de divindade, o austeridade, ordenou, fitando os

48
Dagon

soldados que seguravam, ainda, sua essência esse mesmo poder.


a altiva prisioneira: E um sorriso indelével iluminava
o seu rosto, enquanto, entregue
- Preparai a cruz e o fogo na
à luxúria e ao sadismo do
arena da execução. E convocai o
imperador, Ruana se forçava a
povo para que venha assistir. É
manter a sua decisão,
uma ordem imperial.
caminhando em direcção à morte
Depois, fitando Ruana com um sem mais que a fé no seu divino
sorriso lascivo, acrescentou: senhor.

- Mas antes levai a mulher aos E Orodun estava com ela, de


meus aposentos. facto, com a mulher que, através
da sua crença inabalável, o
*
tornaria todo-poderoso. Como
Como uma erupção de fogo um suspiro por entre marés de
rasgando as trevas, a luz invadiu dor, a sua voz sussurrava ao
o etéreo espaço da divindade, ouvido da sacerdotisa, incitando-
inebriando Orodun com o a a que permanecesse fiel e
florescer de uma nova força, à acreditasse, pois ele estava ao
medida que, perante o desespero seu lado e não a abandonaria
da dor e do medo, os jamais, uma vez que a sua fé se
pensamentos da sua sacerdotisa manifestaria.
se voltavam para si, plenos de fé
Faltava pouco… No dia
e ávidos de auxílio.
seguinte, Ruana enfrentaria o
No silêncio do que era seu derradeiro momento. E seria
agora o seu território exclusivo, o no limite do fim, quando todos
último deus sentia como, em os olhos se encontrassem presos
cada provação, a fé da mulher no à figura da supliciada, que a
seu poder superior devolvia à força de Orodun voltaria a ecoar
49
Dagon

sobre o mundo dos vivos, de Vacilante devido à dor, mas


uma forma que mortal algum se perseverante na sua decisão de
atreveria a esquecer. colocar nas mãos do deus o seu
destino, deixou que a
*
conduzissem para o exterior das
Quase suspirou de alívio quando masmorras e, daí, através de
a porta da cela se abriu e os uma pequena passagem, até à
soldados entraram, anunciando- antecâmara dos condenados.
lhe que chegara a sua hora e que
Foi desse local sombrio que
seria conduzida à arena da
ouviu o arauto do império
execução. Não havia no seu
anunciar à multidão as
corpo partícula alguma que não
acusações que a condenavam a
se contraísse de dor, depois dos
morrer. Subversão de mentes,
tormentos a que o imperador a
encorajando o povo a venerar
submetera. Primeiro fora a
outro entre que não o seu
lascívia com que Coldanus
imperador. Blasfémia contra a
profanara o seu corpo virgem,
divindade imperial. Insolência.
misturando violência e avidez em
Rebelião. E tudo o que fizera,
medidas devastadoras. Depois
afinal, fora manter-se fiel à fé
fora a tortura, a lâmina que lhe
que a nomeara representante do
havia rasgado a carne e as mãos
seu deus na terra. Não deixava,
que lhe haviam sufocado o grito.
contudo, de acreditar que, no
Quando, finalmente, a haviam
momento certo, Orodun se
devolvido ao silêncio da cela,
manifestaria, libertando-a da
Ruana já não sabia se era pela
vergonha e da morte a que a
morte ou pela vida que devia
destinavam.
suplicar à misericórdia de
Orodun. Como se alheada do tempo,
voltou a sentir as mãos que a
50
Dagon

agarravam, mas não reagiu de corpo, silenciando a voz da


forma alguma, mesmo enquanto, mulher para fazer com que, do
perante as vaias da multidão, os iridescente ondular das chamas,
soldados a erguiam na cruz e, brotassem, profundas e
com grossas cordas, a prendiam aterradoras, as suas próprias
ao madeiro, para que, depois, palavras:
um pequeno grupo de servos se
- Vem, Coldanus!
ocupasse de empilhar, até lhe
roçar os pés, a lenha que O imperador tentou
constituiria a sua pira. resistir, mas as suas pernas
recusavam-se a obedecer-lhe. O
E então os olhos de Ruana
deus tomara posse do seu corpo
cruzaram-se com os do
e, por mais que tentasse
imperador, que, triunfante,
debater-se, os seus passos
entrava na arena, posicionando-
avançavam lentamente em
se, acompanhado da sua guarda,
direcção ao fogo, enquanto,
no que dizia ser o melhor local
irredutível, a estranha voz
para contemplar a fogueira da
prosseguia:
herege. Mas o fogo despoletou
sem que Coldanus o ordenasse, - Eu sou Orodun, o senhor do
nascido, para espanto da fogo. Sou o último dos deuses
multidão, do próprio corpo da que tentaste exterminar através
sacerdotisa, que parecia arder dos seus representantes. Foste
sem se consumir. insensato, humano. Devias saber
que eu sou mais forte que tu.
Não deixava, contudo, de ser
Nunca poderás ser um deus.
uma agonia excruciante e a
Vem, Coldanus. – ordenou –
primeira reacção de Ruana foi
Abraça a tua extinção.
um grito desesperado. Depois, a
presença do deus invadiu o seu
51
Dagon

Petrificada pelas palavras E Ruana… Que humana mais


que haviam ecoado no espaço, a tonta… Fora o seu dever
multidão viu a figura do responder ao chamado do deus,
imperador avançar até à pira e, claro, e, ao ouvir a sua voz, não
como se possuído por uma poderia deixar de acreditar. Mas
entidade desconhecida, entrar não conseguia evitar a surpresa
nas chamas, enrolando os perante a ingenuidade da
braços sobre o corpo da mulher, que pensara que a sua
sacerdotisa. Depois, os seus ordem para que o encontrasse
lábios abriram-se num grito e, lhe salvaria a vida.
como num sonho, ambos os
―Não.‖, pensou Orodun,
corpos irromperam numa
sorrindo. ―A minha ordem era
violenta explosão de chamas,
para que me salvasses.‖
gravando para sempre na
memória do povo a supremacia
de Orodun.

Carla Ribeiro, natural de S. Martinho de Mouros, nasceu a


20 de Julho de 1986. Começou a escrever por volta dos
catorze anos, colaborando por várias vezes no jornal local
“Ventos da Mogueira”. Em 2005, publica “Estrela sem
No silêncio do deserto dos Norte”, o primeiro livro de poesia, pela Corpos Editora, na
colecção Nus, a mesma colecção que, um ano depois, recebe
o livro “Alma de Fogo”, primeira incursão da autora pela
deuses, Orodun sorriu, ao sentir literatura fantástica. Em 2007, na colecção O Espelho desta
Hora, da mesma editora, publica “Canto de Eternidade”, o
segundo volume de poesia, bem como “Herdeiros de
a devastadora onda de fé que Arasen”, vol. I e vol. II, correspondentes à continuação da
saga iniciada com o livro publicado em 2006. A 27 de Maio
de 2008, lança o seu sexto livro, “O Deus Maldito”, na
emanava da multidão. Na colecção A Voz Dentro do Corpo, também da Corpos
Editora. A 15 de Junho de 2008, o poema “Grita” é
declamado por Dionísio Dinis no programa “Lusitânia
verdade, devia um Expresso” da rádio Algarve FM. Participa ainda na
antologia “Nas Águas do Verso” com o soneto
agradecimento a Coldanus. Na “Regressar”.Actualmente com vinte e três anos, frequenta
o quinto ano do curso de Medicina Veterinária na
Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro e tem já
sua ânsia de alcançar a vários trabalhos prontos, bem como outros em progresso,
tanto na poesia como em prosa.

divindade, fora ele quem o


tornara, afinal, único e
omnipotente.

52
Dagon

às mãos erradas poderá ser o fim


Crítica a: O Alquimista do Mundo.

Fábio Júnio Quando comecei a ler O


Alquimista sabia apenas o que
acima transcrevi e desconhecia
totalmente que tipo de livro iria
ler. O nome do autor, Michael
Scott, também me era totalmente
desconhecido. A surpresa foi
grande, pois trata-se de um livro
sem igual. A série tem por título
Os Segredos de O Imortal
Nicholas Flamel, mas mesmo
este não permite antever do que
trata a narrativa.
A história começa numa tarde de
Verão como qualquer outra, na
Califórnia actual. Josh, de 15
A verdade: Nicholas Flamel anos, trabalha na pequena
nasceu em Paris, em 28 de livraria de Nick Fleming e da sua
Setembro de 1330. Quase esposa, Perry. No bar da frente
setecentos anos depois, é trabalha Sophie, a sua irmã
reconhecido como o maior gémea. Como, a certa altura, diz
Alquimista de todos os tempos. o autor, todas as mitologias têm
Diz-se que descobriu o segredo alguma história sobre gémeos.
da vida eterna. Os registos Nesta obra, os dois irmãos farão
certificam que morreu em 1418. também parte da mitologia e
Mas o seu túmulo está vazio. percebem-no quando Dr. John
Dee, antigo alquimista e
A lenda: Nicholas Flamel está
conselheiro da rainha Isabel I de
vivo, graças ao elixir da vida que
Inglaterra, invade a livraria de
produz há séculos. O segredo da
Nick rodeado por monstros de
vida eterna está escondido no
barro, em busca do Livro de
livro que protege – o Livro de
Abrão.
Abraão, o Mago, o livro mais
poderoso de sempre. Se for parar Josh e Sophie são, assim,
transportados para uma

53
Dagon

aventura impar que os fará estar Gostei bastante de ler este livro,
frente a frente com antigos interessante e surpreendente do
deuses egípcios, nórdicos ou início ao fim. Os protagonistas
celtas, com bruxos e homens tentam, recorrentemente, negar
imortais e com bestas e seres a existência de tudo aquilo que
míticos. Os irmãos, até então vêem, por ser impossível haver
jovens comuns agarrados ao misticismo no mundo moderno.
computador e ao telemóvel, vê-se Também eu o nego, mas é
dentro de um universo novo, fascinante perceber que durante
mitológico, do qual não mais a leitura deste livro nada me
conseguirão escapar. Os donos parecia ilógico ou impossível. É
da livraria são afinal Nicholas e essa a magia da fantasia...
Perenelle Flamel, e o livro A obra faz parte de uma série
procurado pelo Dr. John Dee é, que conta já com dois livros
afinal, o Codex, um misterioso publicados na versão original,
livro de alquimia e história que The Alchemyst e The Magician,
permite criar a Pedra Filosofal e estando The Sorceress previsto
o elixir da vida eterna e que para 2009 e mais três livros, The
descreve uma velha lenda Necromancer, The Warlock e The
segundo a qual surgirão dois Enchantress, previstos para os
gémeos com o poder de salvar o anos seguintes. Consta, também,
mundo... ou de o destruir que a adaptação cinematográfica
está já em pré-produção.
O autor usa uma linguagem Entretando já foi publicado O
simples e demonstra conhecer Mágico, que espero ler em breve,
muito das principais mitologias pois gostei da escrita de Michael
do nosso mundo, tal é o número Scott, apelidado de rei da
de referentes e personagens fantasia na Bretanha, e porque
mitológicas e lendárias presentes estou bastante curioso quanto
na obra. A história é contada de ao destino dos irmãos Josh e
um ponto de vista muito actual, Sophie. Um livro a não perder.
criando um ambiente único no
qual tecnologia e mitologia
coexistem, havendo mesmo
deuses com telemóveis e noções
de genética.

54
Dagon

55
Dagon

fim. Ela, que observava todo o


Conto: Deste Lado de percurso, e eu perdido no vale,
Cá; criança à espera de crescer. Ela
conhecendo a dor que me iria
Luís Filipe Silva causar, e ainda assim,
determinada.

Mas se causares uma


grande dor a quem amas, mesmo
Esquecerás, Miguel. Mesmo que te convenças que é por seu
que forces o contrário. Tudo a bem, a quem é que continuas a
meu respeito. Tudo a nosso enganar?
respeito. Apenas restará uma
sensação vaga, e imagens que os
sonhos vão confundir com a
verdade. Mesmo as histórias do
São cinco da manhã e o
nosso passado irão desaparecer
escritório está ainda deserto.
da tua memória. O tempo não vai
Gosto de entrar nesta metáfora
ter piedade de ti só por teres
de mim. Os corredores ocos mas
escolhido continuar neste mundo.
cheios de eco. O som dos passos
E agora estás para lá do contra betão e o clique suave das
tempo, no reino da memória luzes que notam a minha
eterna? Se o tempo não existe presença e se vão acendendo e
para ti, como se transforma uma apagando numa dança
imagem em outra e as duas combinada. Nada mais que
numa história? Se o tempo não automatismos, apenas reflexos
existe, o que significa o passado, confortáveis. Mesmo a fechadura
e como se honra a nostalgia? é três partes mecânica, uma
Como podes tu presumir que parte digital. Tenho uma porta
fizeste a melhor escolha? Como só para mim. Que não conhece o
consegues dizer que continuas meu nome nem o meu rosto.
viva? Que não conhece mais do
mundo que a chave que trago à
E ainda assim, ela cheia de cintura. Nem deve conhecer.
razão. Ela feliz, encostada à
janela, antevendo um caminho O silêncio dos papéis
que não me iria revelar até ao aguarda-me. Pouso a pasta,

56
Dagon

dispo o sobretudo, retiro as


canetas. Trinta centímetros de
O dia no bairro amanhece
pastas e processos no depósito
cheio de decisões. Visto o nosso
das «Entradas». Vai ser um dia
estatuto especial, não
atarefado. Apresso-me a colocar
participamos remotamente, o
as luvas e a tapar a boca e cobrir
que obriga à presença física. A
o cabelo. Tantos cuidados
minha primeira decisão é de ir –
porque sei que, para eles, basta
não quero chamar atenções
uma gota de saliva ou uma
depois de três ausências
partícula de pele que o olho não
sucessivas, por muito que
detecta.
tenham sido justificadas por
A matriz de aprovações do ligeiras doenças. A reunião é
dia encontra-se onde a deixei, na num pequeno centro (o bairro
noite anterior. Familiarizo-me não é grande) de paredes
com os códigos e os critérios. brancas e muito vazias. Alguns
Não variam muito de dia para olhares vêem-me chegar com
dia. Abro o primeiro processo. fome manifesta. Mesmo entre os
Começo: a ler os critérios, a refugiados há aqueles que se
conferi-los contra a matriz. No refugiam ainda mais, e pertenço
final, tomo uma decisão a essa classe. A fome que vejo é
automática e inscrevo uma de saber. Estar longe de tudo o
marca numa das dez caixas de que seja comunicação
resultado final, para leitura electrónica não nega a vontade
óptica. Avanço para o próximo. de saber. Todo o bom viciado que
evita a tentação apenas quer
Totalmente rígido,
submergir nela e não regressar,
totalmente mecânico, sem
até atingir o êxtase eterno.
qualquer margem para erro,
estupidamente repetitivo de dia Mas não conheço ninguém
para dia para dia. Algo tão e não deixo que me conheçam.
distintamente impessoal que Sento-me ao fundo e leio a
qualquer outra pessoa poderia ordem do dia deixada em
estar no meu lugar. formato papel na cadeira. Existe
apenas um artigo, e enche-me os
Adoro o meu trabalho.
olhos. Ouço murmúrios de
preocupação e olhares trocados.
Algumas defesas de privacidade
57
Dagon

são quebradas entre vizinhos dos nossos estatutos especiais,


que se sentam em cadeiras caso a caso.
contíguas. Os poucos pares do
Após quinze minutos de
bairro que compareceram dão as
discussão infrutífera, na qual se
mãos. O tema é suficientemente
decidia já fazer manifestações e
angustiante para que ninguém
convocar a imprensa, num claro
se sinta confiante.
desrespeito ao que
«O tema de hoje», diz o representávamos, começo a
presidente da comissão quando tossir fortemente e saio
a sessão tem finalmente início, apressadamente da sala,
«tem a ver com a nova lei do acompanhado por olhares de
estatuto dos protegidos, que se suspeita. Eis uma desculpa que
encontra em aprovação no resulta sempre.
Parlamento. Vamos passar em
E como sempre penso: é
revista todos os pontos
tão fácil apanhar-me. A derme
importantes e depois vamos
aqui não funciona, mas uma
ouvir as vossas opiniões. Este
bactéria treinada para reagir aos
debate está a ser iniciado em
meus genes... Que conseguisse
todos os bairros de refugiados da
passar pelas biodefesas quase
Europa e é nossa opinião que
militares, que agora já devem
devemos manifestar-nos. Em
estar ultrapassadas. Algo
particular, porque se trata de um
deixado no papel, ou melhor
assunto que começa a preocupar
ainda, transmitido no dinheiro.
a comunidade europeia e até a
Com uma certeza eficiente de
mundial.»
atingir o alvo, pois somos os
O assunto é simples: maiores utilizadores dessa forma
estamos a tornar-nos caros, e a monetária arcaica. Mas cheguei
nossa produtividade situa-se tão ao refúgio mais protegido de
abaixo das normas – afinal, os todos, e não posso deixar-me
nossos meios de produção têm intimidar mais.
séculos de idade, totalmente
Embora este assunto seja
desajustados – que a
deveras preocupante. Será que
comunidade começa a ficar farta
Mr. M me pode ajudar? Terei de
de pagar as contas. Querem
ter muito cuidado com a
reduzir o nosso numero; para
tal, pretendem rever a validade
58
Dagon

abordagem. Anda muito armadura biológica. Ficaram


estranho ultimamente. mais nus do que quando tinham
vindo ao mundo.

Mr. M começou a
barafustar, ao que apontei de
imediato para o sinal na parede
que anunciava em mais de cem
Hoje o Mr. M trouxe visitas línguas, incluindo mandarim:
ao escritório. Quer vender as
instalações.

Abriu a porta do meu ZONA DE TRABALHO OFFLINE.


gabinete a dois asiáticos TECNOLOGIA DIGITAL E
baixinhos, de aspecto geriátrico AFINS PROIBIDA POR LEI (D.L
(a mania daquelas gentes de 30/12, 2035 - Lei da
confundir rugas com Diversidade Social).
conhecimento), cobertos de AUTORIZA-SE O USO DE
detectores patogénicos, derme MEDIDAS EXTREMAS NÃO-
activa, leitores de informação de LETAIS PARA PREVENIR
mercado, rede privada entre eles VIOLAÇÃO
e com a família, várias camadas
de spyware e intelliware,
câmaras escondidas, djinns Mr. M já me conhecia:
espirituais, djinns de raciocínio, engoliu a resposta. Abordou-me
impulsionadores de lealdade com a maior das calmas, embora
empresarial, avaliadores de ardesse por dentro. Os
comportamento público, asiaticozinhos reclamavam em
restrictores financeiros, boa voz, entre si e com ele.
restrictores legais e alguns
«São compradores
difusores de spam escondidos.
potenciais», explicou entre
O impulso electromagnético dentes. «Andam desesperados
de alta magnitude fritou num por um lugar a menos de 30km
nanossegundo toda a da Baixa. Temos aqui uma
parafernália. Enquanto oportunidade...»
recuperavam da tontura,
«Eu e os outros protegidos
ataquei-os com um aerossol de
temos direito de recusar, M, se o
fabrico militar que lhes limpou a
59
Dagon

novo lugar não for Os asiáticos tinham


suficientemente recluso.» desaparecido ao fim de vinte
segundos, não sem antes
«Mas... novas instalações,
jurarem ao Mr. M que iriam
melhor localização...»
encher a Internet de comentários
Ele não agia como se apropriados à sua conduta.
conhecesse a discussão da nova
Encarou-me com olhar
lei.
assassino.
«Esta é a única bolha
«Um destes dias, Miguel…»
offline a menos de 100 km da
Urbania. Ou pensas mandar-nos «… farás o quê?»,
para a província?» perguntei, levantando-me. Ele
dava-me pelo peito, um
«Discutimos isso mais
hispânico magro, moreno e por
tarde! Agora não!»
vezes seboso (a derme andava
«Informaste os teus caros sempre sobre activa de tantos
visitantes das condições negócios paralelos em todo o
especiais da Lei dos Protegidos?» mundo) contra um emigrante
nórdico cujo avô tinha sido
«Parece-me que isso é campeão de pesos pesados. A
competência da Câmara de genética mantém precedência
Comércio…» sobre a cultura.
«E também a de qualquer Suspiro de derrota.
cidadão», e apurando o meu
mandarim, expliquei em breves «Não compreendes, Miguel,
mas claras palavras que a o dinheiro que estou a perder
compra em espaços reservados aqui…»
para a protecção das pessoas
Sabia. Não devia impor-me.
especiais que não podiam, por
Impedi-lo de continuar a vida só
motivos de saúde, viver no
porque alguns anos antes tomou
mundo moderno da informação
a decisão, então necessária, de
implicava o acolhimento pessoal
instalar negócio numa zona
e profissional obrigatório das
protegida e receber o devido
mesmas.
apoio do Estado.

60
Dagon

Que se lixe o dever! No fim Dizia-se comunidade para


de tudo, o que conta é continuar referir o que um dia se chamou
vivo. Não tenho de pedir Estado. É que comunidade
desculpas por nada. confere uma ilusão de pertença e
que se interessam com a tua
opinião.

«Se for avante, todos os


Sabes, há noites em que estatutos serão prontamente
ainda sinto a tua falta na cama. reavaliados… vou ser obrigado a
comunicar a identidade de quem
trabalha comigo…»

Suores frios. Se fosse


Mr. M apareceu a meio da verdade, o cabrão tinha-me na
manhã a querer saber como me mão.
andava a sentir no trabalho, o «Não que me agrade perder-
que significava que me ia pedir vos… mas se forem restringir os
um favor. Chegou ao assunto um estatutos… se atribuírem menos
demorado quarto de hora depois. licenças, como querem… se
«No outro dia estive a ouvir forem mais duros na avaliação…
as notícias… a lei dos protegidos bem, talvez até tenha de fechar…
vai a aprovação esta semana.» sabes como dependo dos
subsídios…»
Fiquei logo alerta. Então
agora já sabia. Abriu gavetas de arquivo
cheias de papel. Tirou e abriu
«Pois, pensei que devia pastas. Não estava, obviamente,
dizer-te… uma vez que não estás a ler. Estava a passar uma
online… querem encurtar o mensagem muito clara.
período de revisão… fazer mais
análises… há uma grande «Irei ter saudades… é como
petição contra vocês… custos se fossem da minha família…»
elevados… dizem que estão a Conferiu despachos. Pela
comer às custas da primeira vez desde que eu tinha
comunidade…» começado a trabalhar.

61
Dagon

«Que é tu que queres?», fiz «Dei-te apoio quando a tua


a pergunta que ele aguardava. mulher...»

«Eu? Nada…», respondeu «Também ficaste a ganhar


com ar ausente. «A propósito, na com isso!»
próxima semana hão-de aparecer
«E então?! E então?! Podia
umas pessoas interessadas no
ter escolhido a merda dum
local. Espero a máxima cortesia
emigrante que não me
da vossa parte.»
importasse despedir passado um
«Se vierem como os outros, ano! Escolhi-te a ti. E tens
cheios de infobôs numa zona continuado aqui, ao contrário
restrita e protegida, terão a dos outros!»
mesma recepção.»
Não tive resposta. Parecia
«Sim, compreendo… bem, que o dia temido tinha chegado.
não terás de te preocupar com
«Vais ficar em casa e não
isso. Tens trabalhado de mais e
me atrapalhas mais.»
mereces uma folga. Porque não
ficas uns dias em casa? Que
tal… na próxima semana?»

«Não precisas de mim para


fazer as honras da casa?» e com Caminho de cabeça baixa
isto não consegui evitar um de regresso a casa, chapéu largo
sorriso cínico. na cabeça, principalmente se o
tempo estiver bom, para limitar a
Ele não levantou a cabeça. vigilância dos satélites: nunca se
Percebi que tremia. sabe se a lei está a ser cumprida
à risca ou não. Não olho para os
«Miguel, vais ficar em
vizinhos e eles não olham para
casa.»
mim. Não nos conhecemos, e vai
«Ora bolas, o que tu continuar assim. Há sem dúvida
queres…» muitos refugiados nesta bolha.
Mas enquanto aqui estivermos, e
«Ficas em casa, Miguel, e
se não houver contacto com o
não me atrapalhas a vida.»
exterior, não virão buscar-nos,
«Não faças isso, porra. em situações normais.
Tanto que…»
62
Dagon

É surpreendente o quanto reconhecem entre elas e não


a minha situação, embora já não sugerem arrumações novas.
sendo nova, continua a estar
Sem tudo isto, poderia
presente, de tal forma que
sentir-me bastante sozinho. Mas
raciocino sobre ela e justifico-a
não há mesmo tempo para isso.
constantemente. É talvez a isto
que designam estado de Estar distraído é bastante
permanente consciência. A terapêutico. Desde que o
minha relação com o mundo problema se resolva, entretanto,
tornou-se física, quase um sem o nosso conhecimento, e
casamento a que é preciso dar não aguarde o nosso regresso.
atenção total. Há que aprender
novas formas de estar. A fazer Há noites em que sinto
concessões. A oferecer elogios e mesmo a tua falta na cama. Mas
carícias. A ouvir. Não se está só. de dia sei que não quero que
Não há tempo para isso. voltes. Estás morta.

Mesmo em casa a comida


não se cozinha sozinha, não se
encomenda sozinha à loja, é
preciso pensar no que se precisa, Quando regresso, Mr. M
ir buscá-la, ter o cuidado de acolhe-me com um sorriso
pagar com dinheiro para não satisfeito. O negócio deve ter
deixar traços e padrões de corrido bem. Não o culpo, este
consumo. É preciso ter o ninho de ratos deve dar mais
cuidado de medir os gastos com preocupações que lucro. Existe,
energia regularmente e saldar a afinal, com o verdadeiro
conta no centro comunitário. É propósito de empregar falhados
preciso saber poupar e fazer do mundo moderno. Situa-se
trocos com os dedos e a naquele espaço fictício das
memória. É preciso escovar, pois noções de justiça e comiseração
não há acumuladores de pó que que tornam a civilização
leiam o ar e saibam quando é bastante satisfeita consigo
necessário proceder a limpezas. mesma. E ele está só a proteger
É preciso ter algum sentido de o investimento. Por isso não
estética, pois as mobílias não falamos. Não é pessoal. Sento-
conhecem o espaço, não se me à mesa, começo a classificar

63
Dagon

documentos. Ele é quem acaba comigo. Isso não pode ser bom!»
por quebrar o silêncio. Sorria. Não procurava confronto.

«Isto satisfaz-te? Passar os Olhei-o agressivamente.


dias a olhar para relatórios?»
«Ouve lá, se tens algo a
«É um desafio intelectual dizer, desembucha. Não tentes
tentar perceber o que dizem…» suavizar as coisas fazendo
parecer que é pelo meu bem.»
«Pois, imagino.»
Mr M suspira de
«Estou a falar a sério.»
desconsolo. Levanta-se, passeia
Mostrei o documento que
pelo escritório. Olha para os
classificava. «Por exemplo, eis
avisos em diversas línguas.
uma acta de reunião para decidir
Teriam estado lá durante a visita
se o novo padrão de diâmetro de
dos compradores?
gargalos para garrafas de
refrigerantes é 35 milímetros ou «Eras um gajo porreiro.
38. Houve uma clara divisão de Inteligente, ambicioso. Classe C,
opiniões, e a decisão acabou por a avançar para a B. Tinha-te
ser adiada, após três horas de como exemplo, sabes? Ainda
discussão. Isto não te faz pensar hoje penso, quando tomo
em teorias de conspiração e decisões, se era isso que tu
histórias escondidas?» terias feito… antigamente.»

«Não brinques… É isto que «Lamento ter-te desiludido.»


queres da vida? Perder os
«Pois…» Mr M mastiga o
próximos trinta anos numa
pensamento, indeciso se vai dizê-
rotina apagada?»
lo. Percebo a sua decisão ainda
«Tu conheces o meu estado antes dele. «Espero que ela tenha
de saúde. Que queres que faça?» valido a pena.»

«Sei lá. Um país menos «Vai-te embora antes que te


exigente? Comunidades parta os cornos.»
agrárias? Os novos hippies? Em
Ele nunca mais a
algum lugar deve ser possível
mencionou.
teres uma vida mais…
motivante. Passas o tempo todo

64
Dagon

consecutivo. M fez um único


reparo.
Viver no presente significa
estarmos todos ligados. Não «Foi à entrevista
podes fugir, a não ser que lutes. anteontem. Não lhe renovaram o
Jamais sozinhos, jamais estatuto.»
isolados. O que não significa
Tinha-o encontrado um dia
companhia. Mas existes como
na casa de banho a olhar
um ponto na georeferência, como
estupefacto para as entranhas
uma presença no comércio,
de um autoclismo avariado.
como uma força na tendência de
Consertei o mecanismo em dez
mercado. Influencias na tua
segundos. Olhou-me como se me
pequenez. O que não significa
tivesse visto a tirar um elefante
companhia. Se olharem
do bolso. Quanto tempo é que
individualmente para ti, é pela
iria durar lá fora?
negativa, pela vigilância. A não
ser que reclames o teu lugar
num oásis de paz, controlado e
rodeado pela selva. Sem puderes
fugir, mas ao menos com Do alto do sótão que me
algumas possibilidades de acolhe enquanto casa, observo a
respirar. Apenas mais um de selva. Distante, cerca-me. Eu
entre tantos que escolheram o vim da selva, sou filho, mas não
refúgio. O que não significa posso voltar. Tal como o vizinho
companhia. que fala com as plantas. Tal
Estar morto é estar no como aqueles que enchem o
inferno. Estar vivo é estar no bairro. Desta selva, ou de outras
céu. Tenho de repetir, pois às iguais. Todos eles refugiados,
vezes confundo. hipersensíveis, angustiados
perante a vertigem do mundo
todo ele feito de plástico. Um
mundo que fez da corrida e do
excesso a crença de viver.
Hoje o negro do fundo do
E a derme invade a selva,
corredor, que costumava chegar
alimenta a selva. Os geodomos,
após de mim mas sair antes, não
com as famílias de patriarcas
apareceu pelo terceiro dia
imortais que saltam de corpo em
65
Dagon

corpo com transplantes de que consegue, alguém que


cérebro, seguindo no comboio da desiste. Afastados de mim: a
imortalidade. Os bairros dos barriga deitada do domo.
jogos, territórios onde jogadores Afastados: os prédios convolutos
e peões se encontram na mais que serpenteiam entre colinas. A
estranha simbiose do século. A zona rica e vibrante da
comunidade ecológica, plataforma que uniu as margens
perseguindo a pureza com as e cobriu o leito do Tejo. Nos
suas casas de celulose e seiva, montes do outro lado, os bairros
que crescem e se reproduzem, dos independentes ostentam
casas que os alimentam e vestem manifestos luminosos. Feixes de
e educam. Os marginais luz dirigidos ao céu iluminam os
integrados, na verdade nómadas aviões que se aproximam.
que habitam temporariamente a Transportes passam velozmente
cidade, parasitando a assistência nas condutas elevadas. As sete
social. E os clássicos, a cultura pontes até perder de vista.
que me deu à luz, integrados na Ondas fluorescentes rebentam à
velha tradição de querer, distância no lado do oceano. Até
planear, executar. Vivendo lado os Territórios, para lá da vista
a lado, o conceito de mas presentes na vida do
conglomerado ou colmeia, mais cidadão comum, estão afastados
volátil que um bairro mas mais de mim.
fiel que uma nação.
Isto não é vida, a minha.
Nas minhas noites de Fiquei para trás. Quem existe
insónia ela chama-me. Arrisco não fica para trás. Avança. Um
aproximar-me da janela. Algures, dia vou dar-te razão. Existir é
ao longe, na cidade, dezenas de estar morto.
câmaras com infravermelhos
podem estar a descobrir-me as
feições. A mapear o meu rosto,
que não quis mudar. A dizer-lhe
onde estou. Que choro. O rapaz das entregas –
suponho que seja jovem, pois
M tem razão. Não quero apenas lhe ouço a voz pela
esta vida. Anseio pelo ritmo que conduta – presenteia-me com
apercebo ao longe. As luzes uma segunda caixa a meio do
denunciam histórias. Alguém dia.
66
Dagon

«Isto hoje está concorrido!» colheita experimental do novo


milho, instruções para a
«Somos cada vez menos»,
combinação possível de cores
comento, pensando que teria de
nas indumentárias do
fazer horas extraordinárias pois
Departamento de Sócio-
ainda não terminei o lote do dia.
Biométrica, promoções,
«Isso ajuda mas não foi só despedimentos, datas para
isso. Todos receberam a dobrar.» lançamentos de estirpes de
nanobôs, atribuição de
«Esperemos que não se responsabilidades. O mundo –
mantenha». ou melhor, uma parte muito
Devolvo-lhe o impresso específica, mas muito
assinado, despeço-me e fecho a movimentada e cheia de vida do
portinhola. A caixa vem selada mundo – passa-me pelas mãos.
dos gabinetes oficiais, como é Conheço os nomes e as formas
hábito. Abro com um estilete de de escrever daquelas pessoas, e
plástico, que não tem embora me cheguem anónimos,
consistência suficiente para nos atribuo-lhes identidades, como o
suicidarmos. Como de todas as Major ou a Directora
vezes, o coração bate-me Empertigada ou a Secretária
depressa e despacho-me. Se tiver Divorciada, e alguns são
de ser, que seja depressa. Mas, constantes, facilmente
mais uma vez, nada explode, reconhecíveis.
nada esguicha contra a minha E depois chega a vez deste
cara, nada me pica os dedos. documento.
Retiro os papéis e coloco-os na
bandeia de ENTRADA. Fazem
um monte considerável, muitas
Despacho 34.5533.45,
horas de leitura e trabalho.
Gabinete de Segurança
Há vários dias que M não Interna. Processos de
surge e hoje não é excepção. As investigação criminal activos
horas passam sem que as note. pendentes de prescrição por
Memorandos voam pelas minhas carência de desenvolvimentos.
mãos. Quantidades produzidas Processo 4533.45. Descrição
em excesso de lacticínios, abreviada: falecimento de
resultados detalhados da Investigadora Especial Silvana

67
Dagon

Faria Mendes no cumprimento Morto? Não há nada de


do dever. Parecer: por se belo nisso. O céu não existe,
aproximar a data prevista pela nem o inferno, apenas uma
lei actual de prescrição de ilusão eterna, que poderia ser a
processos de investigação da vida se não estivesse ao nosso
criminal, venho por este meio, controlo. São assim os mortos:
após análise cuidada do estagnados, solitários, fingindo
historial do processo e dada a que vivem, com amigos
ausência de desenvolvimentos imaginários em lugares
adicionais por parte da equipa imaginários. Nada entra, nada
de investigação assinada, sai. Não admira que sejam como
recomendar que o presente animais. A memória apagada,
processo seja doravante resta a fome. A razão inibida,
classificado como suspenso, resta a necessidade de
até serem apresentados factos reencontrar companhia.
que, pela sua relevância, Prisioneiros de si mesmos são os
conduzam, mediante avaliação mortos. Não mudam mais. O dia
apropriada pelo oficial é eterno. O tempo parou. As
coordenador, a uma eventual rugas imutáveis.
re-activação ou anulação.
Não me falem da beleza da
Assinado: director-coordenador
imortalidade. Nós, os vivos, é que
do Gabinete de Segurança
estamos no céu. Quando se
Interna (assinatura-padrão,
morre, vai-se para o inferno.
grau de confiança 90%).

Encosto-me à cadeira. As
mãos tremem-me. Há muito que A condenação chegou
não via o teu nome. vestida de papel. Apenas dizia
«apresente-se no Gabinete de
Não vou conseguir atingir
Avaliação do Estatuto Especial.»
os objectivos do dia. Estas
lágrimas não vão parar tão «Isto fica no meio da
depressa. urbania. Eles não podem fazer
isto.»

«Não podem? São eles que


montaram esta bolha!», diz M.
68
Dagon

«O que faço agora? Estou antigo, que ele detestava. «Tenho


tramado.» as minhas razões. Conheces-me
há anos, conheceste a Silvana.»
«Calma, também não será
assim tão complicado. Olha, «Corres o risco de
como teu chefe de longa data antagonizares o Gabinete...»
preciso de ir contigo. Alugo um
«Tenho de correr esse risco.
carro especial onde a derme não
Há piores.»
entra. Saímos na garagem deles,
que também deve estar limpa. M suspira.
Eles não seriam tão
desconsiderados assim.» «Vou ver o que posso fazer.»

«Ela vai saber...», pois é a


única conclusão inevitável.

«Perdão?» Saio e volto a entrar. Uma


«Aluga o carro mas não entrevista rápida, uma
uses o teu nome. Nem o meu», manifestação genuína de asco
digo-lhe com autoridade, perante a tecnologia. Deixar o
pensando depressa. «Outros da medo tomar conta de mim. Não
secção devem ter sido me será tão útil noutra ocasião.
convidados, vou na vez de outro. Rápido como um foguete. Não:
Ouviste? Vais procurar quem como uma mensagem de e-mail e
mais é que tem de apresentar-se o retorno.
e vais marcar um veículo por
outra pessoa, sem dizer nada a
ninguém, nem ao Gabinete.
Quando lá chegarmos, dizemos
A cidade mudou. Ou pelo
que houve uma confusão ou o
menos, as zonas que separam o
outro estava doente, e que não
bairro da Baixa. As roupas são
houve tempo de avisar.»
diferentes. As lojas iluminam-se
«Estás paranóico?» M olha- quando alguém se aproxima,
me com um misto de espanto e captando a identidade do
receio. interessado e mostrando no
vidro o seu reflexo envergando o
«Promete-me, Manel!» produto que vendem (embora
Ainda me lembro do seu nome
69
Dagon

tenha notado, enquanto SÓ envergava um arnês onde se


aguardava os semáforos montavam três câmaras, duas
libertarem a via, que quando o pequenas e uma com lente de
potencial cliente tinha um grande angular. Falava
aspecto mais redondinho, a animadamente e esbracejava
figura no espelho reflectia traços para a câmara apontada para
mais delgados. O eterno truque ele, enquanto fazia rodar a outra
do comércio está em nunca pequena. A grande angular
lembrar ao comprador a pessoa olhava para mim.
que este realmente é). O trânsito
Não conseguia respirar.
flui mais rapidamente – nota-se
que está a ser controlado e «M, quando o semáforo
vigiado minuto a minuto. abrir, volta para trás. Volta para
o bairro!»
«Aposto que sentes
saudades», diz M, que conduz. O «Estás maluco?»
painel é mais moderno do que
pensei, cheio de indicadores de «Tens de fazer isso! Ou
tráfego e a condição do veículo. morremos os dois.»
Informação a mais, penso, e que O semáforo abriu. O da rua
distrai da estrada. Com sorte, contígua não se tinha fechado.
não existe aqui uma câmara. Ou
um microfone. «Volta para trás!»

«Estás muito enganado. M avançou calmamente.


Confusão, multidões, progresso,
«Ouve, Miguel. Acalma-te.
mudança constante. Deixa-me
Não há razões para medos...»
cansado só de pensar.» E não era
totalmente mentira. Senti que M «Há, sim, meu idiota!
engolia uma resposta – não Porque é que pensas que estou
havia maneira de me entender. refugiado naquele antro de
leprosos? Porque gosto?
Parámos em mais um
Querem-me matar!»
semáforo.
«Que dizes?»
«É longe», comentei
distraidamente. Olhei para fora. «Silvana! Ela quer-me
Um homem vestido com um fato matar.»
que dizia O CANAL DO HOMEM
70
Dagon

«Mas ela não morreu?» Debruçando-se, indicou outro


destino ao carro.
«Foi o que disseram, Manel.
O corpo nunca apareceu. Ela «Obrigado, M, obrigado.»
trabalhava numa agência do
«Olha, Miguel, sabes o que
governo. Os gajos eram espiões.»
penso?»
Falava muito depressa.
«Desaparecia durante meses sem Mas nunca viria a saber.
dizer nada. Espionagem Um camião cortou-lhe o
tecnológica ou coisa assim. Ela pensamento.
percebia de redes neurais. Meses
depois do funeral, recebo uma
mensagem. Era ela. Estava viva.
Mas estava morta.»
Acordo numa sequência de
«Explica-te.» fade in, como nos filmes, e antes
Olhei para o trânsito. Devia que os contornos fiquem nítidos
haver câmaras nos postes, nos penso «Porra, estou morto», mas
semáforos? Estaria a ver-me? afinal paramédicos envergando
chapéus de análise e gravação
«Criou uma personalidade olham-me de forma clínica. O
artificial que anda à solta na net. céu é o cenário por detrás deles.
Falou comigo dessa vez. Disse
que me queria ao pé dela. «Recuperou a consciência.»
Quando recusei, começou a «Ainda bem, ao menos não
tentar-me matar. Tive de fugir ali perdemos todos.»
para dentro.»
«Não consigo encontrar a
M piscou os olhos, estava a identidade deste gajo!»
ser difícil lidar com aquilo.
«Eles vinham da zona
«Volta para trás, falamos protegida…»
melhor lá dentro. Ela pode ligar-
se ao Olho Público. Vê tudo e «Ainda temos chatices por
sabe tudo. Voltamos outro dia. causa disso…»
Vá, é mais seguro.»
«Tento no que dizes. Não
M suspirou finalmente, e vos quero ver no Olho Público.»
limpou o suor da testa.
71
Dagon

«Senhor, consegue ouvir-


me? Consegue ouvir-me? Pisque
os olhos se consegue.» Literatura Fantástica:
«Cuidado!
convulsões!»
Está em
breve História e
«Não são convulsões… está
desmistificação
a rir!» Fábio Júnio

«Traumatismo?»

«Pela tomografia, não.» Quando lemos uma obra


E rio. Cada convulsão do como O Senhor dos Anéis
riso, mesmo limitada pelo arnês sabemos que estamos perante
que me tinha colocado, desperta ficção fantasiosa, composta por
marés de dor que embatem em situações e acontecimentos
todos os contornos do meu irreais. E não é necessário que o
corpo. autor o verbalize explicitamente
para termos a certeza disso.
«Era capaz de jurar… o gajo Apenas pelos elementos que nos
está feliz!» são apresentados nós, leitores,
temos a noção que histórias
«Senhor, consegue falar?
como aquela passam-se num
Qual é a graça?»
universo inexistente. Quando
Também te amo!; quero assim é, estamos perante
gritar às câmaras que me Literatura Fantástica, uma
rodeiam. Mas não consigo. literatura que se debruça sobre o
irreal e sobre a fantasia, que leva
a imaginação ao limite mas que é
Luís Filipe Silva foi galardoado em 1991 com o prémio
Caminho de Ficção Científica pela colectânea O Futuro à também, a meu ver, aquela que
Janela. É autor do Ciclo da GalxMente, composto à data pelos
romances Cidade de Carne e Vinganças, e colaborou com João
Barreiros no "Terrarium" - Um Romance em Mosaicos.
nos leva a reflectir mais
Tem contos publicados em diversas revistas e jornais profundamente sobre a
nacionais, bem como em Espanha, Brasil e Sérvia, e na
antologia luso-americana «Breaking Windows». Colaborou na
área do Fantástico como crítico literário no Diário de Notícias,
realidade, já que nos possibilita
como editor de romances na Devir e como organizador nos
Encontros de FC&F da Associação Simetria. uma visão simultaneamente
É também organizador de uma tertúlia de leitura de textos
literários. Nos últimos anos tem mantido uma presença
externa e inovadora acerca dela.
assídua na internet, onde publicou uma revista por email
(«Eventos») que se transformou no actual site Ora, livros como aquele,
TecnoFantasia.com.
com componente irracional, já

72
Dagon

existem, literalmente, há nas civilizações clássicas e nos


séculos. Desde a Odisseia, de vikings, com as suas complexas
Homero, passando pelos mitologias e crenças, ou na
romances medievais, pelas época dos descobrimentos, com
aventuras fantásticas de o gigante Adamastor e outras
cavaleiros e princesas, monstros criaturas monstruosas, para
e locais secretos, que estas obras percebermos como a sociedade
são publicadas e agradam ao vivia o sobrenatural. Porém, a
público. civilização ocidental evoluiu no
sentido da defesa do
racionalismo e da necessidade de
nos concentrarmos no real.

Contudo, só a partir dos


finais do século XVIII é que se Foi então que escritores
pode falar do fantástico românticos, desse século,
enquanto género literário propuseram a recuperação do
autónomo. Até aí, o que hoje ―equilíbrio perdido‖, recusando a
consideramos mera ficção era racionalização e o desencanto da
vivido com naturalidade e fé. O vida moderna e reintroduzindo a
surreal e a magia faziam parte magia e o surreal nas suas
da cosmo visão do homem obras. A Literatura Fantástica
ocidental, do seu dia-a-dia. surgiu, portanto, como a busca
Basta pensarmos, por exemplo, do que era sentido ―como
73
Dagon

ausente e perdido‖, ou seja, a


componente sobrenatural e
onírica da vida humana. Desde
aí, diversos autores incluíram o Hoje em dia, podemos
fantástico nos seus romances, dividir o género em vários
alguns dos quais ainda hoje são subgéneros, embora tal divisão
lidos. Júlio Verne e Edgar Alan seja sempre subjectiva e
Poe são dois dos autores que se provisória. O Terror, a Ficção
destacam, sendo, ainda hoje, Científica e a Fantasia são,
admirados por leitores com as claramente, os subgéneros
mais diversas preferências. dominantes mas, na verdade,
No entanto, o interesse pela cada um deles possa ser dividido
literatura fantástica, em termos em dezenas de outros
teóricos e práticos, surgiu subgéneros. O primeiro pretende
apenas na década de 70 do séc. provocar a sensação de medo,
XX. A partir daí a popularidade como é óbvio, e, para isso, os
deste género ficcional continuou autores recorrem ao mórbido,
a aumentar e hoje o seu sucesso repelente e ameaçador. Já o
é notório, não fossem títulos segundo lida com a influência da
como Harry Potter, Eragon, ciência e da tecnologia, reais ou
Crepúsculo e O Senhor dos Anéis não, na sociedade, sendo,
conhecidos por toda a gente. provavelmente, aquele que mais
propicia a sua análise. Já o
último subgénero concentra a
magia, o sobrenatural e o surreal
em geral para transportar o leitor
para mundos fantásticos ou
situações imaginárias. Este é,
claramente, o subgénero
dominante.

74
Dagon

inexistentes, funcionam segundo


regras e leis, tal como sucede no
mundo real.
Acima de tudo, é essa
relação com o mundo real que
torna a Literatura Fantástica tão
fascinante. É essencial que o
leitor se reconheça nas
personagens e considere a
narrativa fidedigna pois, caso
isso não aconteça, não sentirá o
choque que a intromissão do
fantástico na sua vida provoca,
Apesar da diversidade, choque esse que é o objectivo
une-os o mesmo objectivo: final deste género literário.
debruçar-se sobre o impossível, Afinal, a Literatura Fantástica é
colocando-o no centro da uma reacção a determinados
narrativa. A história até pode comportamentos sociais e
desenvolve-se num ambiente culturais, desvendando o que
real, mas há sempre um não é dito ou observado na
elemento fantasioso a sociedade, o que foi silenciado ou
impulsionar a acção. escondido. Assim, fica claro que
as raízes do mundo fantástico
têm de estar, inevitavelmente,
Em cada obra, seja qual for enterradas no mundo real.
o subgénero, encontramos
mundos que o leitor reconhece Neste sentido, é importante
como simultaneamente reter que, ao contrário do que
familiares e estranhos, reais e ainda se pensa, neste género não
impossíveis, e aos quais reage de existem apenas mundos
forma emocional e intuitiva, seja desordenados, de sonhos e de
por via da identificação com os devaneios, mas universos
heróis, humanos ou não, ou pela criados, metódicos, com regras
sugestibilidade das suas próprias e longamente
peripécias. Ao virar de cada trabalhados, quer ao nível do
página, o leitor passa a conhecer estilo, quer ao nível do conteúdo.
aqueles mundos que, apesar de

75
Dagon

Tendo isso em mente, ao constituindo, por isso, leitura


leitor de Literatura Fantástica obrigatória.
resta acreditar ou, por
momentos, fingir que acredita
em todos os elementos
irracionais das histórias, sejam Resta-me dizer que me
eles zombies, extraterrestres ou parece necessário desmistificar
dragões. este género pois, ainda hoje, é
considerado marginal, mesmo
com a importância editorial que
tem vindo a assumir e de tudo
aquilo que nos pode ensinar. No
fundo, pretendo apenas fazer ver
que a Literatura Fantástica pode
ser encarada como qualquer
outro género literário, pois tem
fundamentos e boas obras. Para
além disso, toda a ficção é irreal
e o irreal em que acreditamos diz
A complexidão deste mapa da Terra-Média, tanto de nós como o real que nos
cenário de O Senhor dos Anéis, demonstra o rodeia.
quão complexos os trabalhados podem ser nos
universos criados na Literatura fantástica.

Felizmente, há muito por


onde escolher. Quando originais
e bem estruturadas, as obras de
Literatura Fantástica tornam-se
clássicos. O Senhor dos Anéis, de
J. R. R. Tolkien, e o ciclo
Terramar, de Ursula K. Le Guin,
são apenas dois exemplos claros
da originalidade, da
complexidade e da riqueza
simbólica que a literatura
fantástica pode possuir,

76
Dagon

77
Dagon

Conto: O Viajante no — Desculpe, dr. Penedo,

tempo! estávamos aqui a... aaaah...


conversar sobre... aaaah... o
Jorge Candeias programa de ontem à noite.

— Man, esta cena não vai — Sim? E foi interessante, o


resultar!... programa de ontem à noite?

— Tás-te a passar, chavalo? — Sim, sim, dr. Penedo, de


Essa cena tem que resultar, facto muito interessante. O João
man! O man é bué da cota, se a dormiu com a...
cena não resulta o tipo ainda
— Não interessa. Quero é
bate a bota, e isso era bué fatela,
saber dos progressos no
man!...
projecto. Como vai o projecto?
— Iá, man, mas, sei lá, há
— O p... eeeeh... o projecto
aqui uma cena qualquer que me
vai decorrendo conforme o
diz que esta cena não vai
planeamento, dr. Penedo.
resultar, tás a ver? Assim uma
cena tipo, sei lá, mística, ou o — Sim, contamos ter tudo
quê... operacional dentro de um mês,
sem falta.
— Ouve, tu não deixes que o
cota te ouça, man! O cota que — O tanque criogénico já
não te ouça, man!... está pronto?

— O que é que o "cota" não — Está quase, dr. Penedo.


pode ouvir, meus meninos? Estamos a instalar a unidade
energética de emergência e
— Aaaah...
depois disso só faltará pôr no
— Eeeeh... lugar o écran solar e fazer as
ligações.

78
Dagon

— O computador?... — Xi! Que cena, man!

— O computador está já em — Iá, o cota é cheio de cenas


testes, dr. Penedo. Estamos a com a linguagenzinha dele...
fazer os últimos ajustes no
— Não é isso, dude. Quase
cronómetro, e os circuitos
que nos apanhava a falar mal
linguísticos também já só
desta cena, tás a ver? Ouve: era
precisam de uns ajustes.
bué da marado, se o gajo nos
— Espero que não tenham ouve a dizer que a cena não vai
metido no computador nenhuma resultar!...
dessas palavras bárbaras que
— Iá. Mas a gente safou-se
vocês têm a mania de usar hoje
altamente...
em dia! Eu odeio esse linguajar
de docas! — Iá. Podes crer...

— Não, com certeza que — Mas olha lá, tens a


não, dr. Penedo! Só palavras que certeza que o compas não se põe
constam do dicionário!... a falar assim com o cota?

— Bom. Vão lá trabalhar, — Man, eu pus-lhe


então. E ai de vocês se eu ouvir restrições. Espero que elas
algum dia o computador a sair- aguentem. Sei lá o que é que os
se com um... com um... bué. chavalos de 3034 vão fazer à
maquineta?
— Esteja descansado, dr.
Penedo. Isso não acontecerá. — Iá, é foleiro. Mas o cota
meteu na cabeça que havia de
viajar pró futuro, ainda bem —
*** pelo menos temos trabalho...

79
Dagon

— Ouve lá, não digas essa — Perdão, dr. Penedo. Foi


cena, man. Isto é trabalho de um laps...
responsabilidade tás a ver?
— Um lapso?! Que esses
— Então cala-te e trabalha... lapsos não voltem a ocorrer
nunca, na minha presença,
— Olha-me este, armado em
ouviste garoto? Caso contrário, o
dred!...
olho da rua está à tua espera, e
— Iá... sabes que fazem na rua a
rapazes bem apessoados como
tu, não sabes?
***
— S... sim... com certeza, dr.
Penedo. N... não voltará a

— Dr. Penedo, temos o acontecer.

projecto quase pronto, mas — Bom. Substitui o


demos aqui com este componente e põe-me a máquina
componente que tá foleiro... a funcionar.

— O quê?! O componente — Com certeza. Com


está o quê?!?! licença.

— Aaaah... perdão, dr.


Penedo é o comp...
***
— Foleiro?!?! O componente
está foleiro?!?! Que quer dizer
foleiro, não me explica, jovem? É — Man, ganda flash!
algum termo técnico? É alguma
— Ouve, o velho passa-se
palavra do jargão dos
com estas cenas. É que nem te
engenheiros?
passa! Mudou de cor! Tás a ver a

80
Dagon

cor habitual do chavalo? Aquele 3034, a carga nas baterias de


amarelado? Man, ficou quase emergência está completa, e tudo
roxo, só vendo. a funcionar. Se quiser ir já, é só
entrar na máquina.
— Iá. Mas ficou tudo
bacano, não? — Relembrem-me o
procedimento de saída.
— Iá, ficou-se bem. Mas,
ouve, caiu-me tudo quando o — É tudo automático até o
cota falou em rua, man. Passei- dr. acordar e sair da máquina.
me de todo. É que nem te Depois, quando encontrar os...
passa!... bem... indígenas, é só carregar
neste botão aqui, e o
— Iá, já percebi. Bute mas é
computador encarregar-se-á de
bulir, caga nisso, que não
ensinar-lhes a nossa língua para
adianta ficar à toa por causa
comunicação. O botão está do
dessas cenas...
lado de fora para que os próprios
— Iá. Tens razão. Bute lá. indígenas se encarreguem de
aprender a língua eles próprios,
se quiserem.
***
— Como assim?

— Bem, uma vez que a


— Dr. Penedo, o projecto máquina está programada para
está pronto. se abrir dentro de mil anos

— Excelente, rapazes, exactos, nós colocámos este

excelente. Quando poderei por- painel aqui, um pouco

me a caminho? escondido, a explicar tudo. Pode


acontecer que os indígenas
— Quando quiser, dr. O compreendam e resolvam...
cronómetro já está marcado para aaaah... adiantar serviço.
81
Dagon

— Ah! Óptimo, óptimo. Está — Olá, olá!... Então


tudo funcional, então? consegui? Estou no futuro? E
vocês falam a minha língua?
— Com certeza, dr. Penedo.
Testámos tudo até aos mais — Iá, man, bué da bem, tás
pequenos pomenores. a ver? O comp é brilhante nesta
cena! Ensinou-nos tudo em bué
— Parto amanhã, então.
da pouco tempo, e eu e os
Tenham tudo preparado às 10
chavalos sentimo-nos altamente
da manhã.
a praticar esta língua, que é uma
— Com certeza dr. Penedo. curte. Ouve, o teu nome é Cota,
não é? Sou o Maanee, mas, ouve,
pra que a tua chegada aqui seja
*** bué da curtida, podes chamar-
me Joca, tás a ver? E ali a
malta...
— Lá se foi o cota, man.
— Ouve, que há com o
— Iá. Ouve lá, ainda achas Cota?
que esta cena não vai resultar,
man? — Sei lá, man. Ficou azul de
repente...
— Sei lá. Mas bem que
gostava de saber, chavalo. Bem
Jorge Candeias foi Editor do E-nigma, revista electrónica de ficção
que gostava de saber... científica e fantástico, responsável pela divulgação de ficção
portuguesa e brasileira durante vários anos e organização da antologia
O Planeta das Traseiras, de contos sobre Marte, com prefácio de
João Barreiros e que também conta com a presença do britânico
Keith Brooke . João Barreiros. Publicou, em conjunto com Luís Filipe
Silva, “Por Universos Nunca dantes Navegados”.Publicou em Portugal,
Argentina, Brasil e Reino Unido, destacando-se Sally (edição da
Colibri juntamente com a Câmara Municipal de Portimão que foi
Menção Honrosa no Prémio Teixeira Gomes) e o conto curto The
*** Place Where Lost Things Go, publicado na revista britânica
Nemonymous.Além da actividade como tradutor, criou uma Bibliowiki
que pretende reunir obras de todas as vertentes do fantástico
publicadas em Portugal. Assina ainda um blogue, A Lâmpada Mágica.

— Olá! Bem vindo a 3034!

82
Dagon

futuro fosse participar na criação


de longas metragens de
animação).
Ou seja, algures a partir dos 8,
10 anos comecei vincadamente a
gostar
de Ficção Científica, e o salto
para a leitura em prosa foi
mínimo.

Entrevista: Quanto ao motivo do interesse,


sem dúvida o sentido do
maravilhoso e o
Luís Filipe Silva deslumbramento da ciência. Não
seria um pensamento
Com que idade começou o seu consciente, mas por
interesse pelo fantástico? Bem base estaria a admiração
sei que profunda por o universo não só
é uma pergunta difícil mas... ser mais
sabe porque começou este complexo e admirável do que
interesse? éramos capazes de conceber na
nossa
O despertar terá ocorrido algures imaginação como ser passível de
nos primórdios da leitura, entendimento. Quantos livros de
quando física
tudo o que existia era a banda e astronomia devorei na
desenhada e as séries televisivas. adolescência...
Era
impossível afastar-me do ecrã Que livros o despertaram para
quando começava um Espaço: a literatura Fantástica?
1999, uma
Galactica, um Twilight Zone, um TEMPESTADE NO TEMPO de
Conan - O Rapaz do Futuro... Gordon R Dickson foi sem
(por dúvida o que me
sinal, já então o Star Trek não impeliu a escrever a sério, aos 12
despertava grande interesse). anos. Até então tudo o que
Lembro-me distintamente de conseguia encontrar a nível da
desenhar álbuns inteiros de colecção de bolso da Europa-
odisseias América foi
espaciais com personagens imprescindível para o meu
inspiradas na Disney (queria amadurecimento progressivo e a
então que o meu percepção que
a FC era muito mais do que
83
Dagon

viagens e aventuras no espaço. múltiplas e variadas as fontes


Não há como de influência de quem procura
fugir ao encontro com NO escrever, e não se limitam
BLADE OF GRASS e UBIK e necessariamente a autores ou
AVATAR, e outros, que obras - por vezes, no meio do
me fizeram expandir, em poucos filme mais disparatado, surge
meses, a minha ideia do que a uma fala ou um truque de
literatura - em particular a enredo que brilha como um
fantástica - era capaz de diamante deitado para o lixo. É
alcançar. uma questão de estar atento, de
Nesses tempos, até as ter um problema ou uma
―novelizações‖ de séries e filmes interrogação em mente ("como é
eram que tiro o herói deste
inteligentes, e em particular, o ―enrascanço", "como é que a
trabalho de Robert Thurston com aldeia vai reagir à confissão do
os miúdo", "que tempo narrativo
primeiros quatro livros da série usar para uma história de saltos
Galáctica são bons exemplos de no tempo"). E nem sempre o que
como influenciará uma história servirá
se pode enriquecer o material de para outra. Lembro-me que um
base em termos de profundidade conto em particular, já lá vai o
temática e complexidade dos tempo, a "Série Convergente",
personagens (que decididamente que recorre a uma forma
a série entrecortada a nível temporal
televisiva não tinha). para apresentar um enredo
simples resultou da influência
Depois estaria atento aos mista de várias bandas
autores do género, e isso levar- desenhadas, dois filmes e um
me-ia conto, cada qual contribuindo
rapidamente a descobrir um com uma sugestão distinta para
Heinlein em capa cinzenta o resultado final. Efectivamente
pequena, e por não há nada debaixo do sol,
este saber que existia algo excepto as sombras que traça na
chamado Argonauta. O resto, paisagem, e estas contam muitas
como dizem, é histórias.
enredo...
A nível global, os críticos
Quais são os autores que mais ajudaram-me tanto quanto os
o influenciaram? autores. Os bons críticos
explicam o que funciona e o que
Penso que esta é uma simpática está desenquadrado, apontam
pergunta de algibeira... Isto para exageros ou faltas de
porque na verdade serão ambição. Tudo o que se escreve
84
Dagon

resulta de opções, e por vezes é preciso que se criem as


preciso alguém que está atento condições necessárias para o
entender que rumo o autor autor poder crescer e aprender.
pretendia seguir e porque não Não é à toa que equacionamos os
conseguiu lá chegar. Como em escritores estrangeiros com
tudo, Portugal tem também falta qualidade.
de bons críticos, embora
tenhamos alguns excepcionais, E não se trata propriamente da
momento em que gostava de questão estatística dos números
destacar o bom trabalho do João - a quantidade ajuda,
Seixas nesta área. obviamente, mas se têm muitos
bons escritores, têm escritores
Não quero com isto afirmar que maus e horríveis em maior
não tenho os meus autores número... O que está em causa é
preferidos, e que eles não me que os melhores de entre eles
influenciaram. Em diversos estão acima dos melhores de
graus de importância, o meu entre nós - é isso que deve ser
modo de pensar e escrever seria comparado.
bastante diferente se não
tivessem existido Ursula LeGuin, Aqui entra a questão das
Theodore Sturgeon, Bruce condições - condições de
Sterling, William Gibson, Lucius mercado que permitam a um
Shepard, João de Melo, Sartre, autor profissionalizar-se, ou seja,
Ellery Queen, Ruth Rendell, viver da escrita e da profissão de
Frank Herbert, James Tiptree Jr, autor (incluindo palestras,
Frank Miller, só para retirar entrevistas televisivas, etc, que
alguns da tômbola. são pagas no estrangeiro mas
aqui não); ao viver da escrita,
Acha que os escritores ser-lhe-á possível dedicar-se à
portugueses podem rivalizar literatura a tempo inteiro, e logo
em qualidade com escrever mais ou trabalhar
os escritores estrangeiros? melhor o que escreve.

Perfeitamente. Todas as línguas As condições não são só


têm os seus escritores de financeiras, mas de discurso
destaque, e a nossa tem uma literário. Quando muitos
forte tradição a nível literário, autores, leitores e críticos se
além de ter uma riqueza juntam nasce um movimento.
suficiente para permitir a Um movimento é o que resulta
qualquer autor exprimir-se no de uma prática que se vai
limite da sua capacidade. melhorando. Os críticos
constroem um padrão e
Claro que para isto acontecer é estabelecem normas, os autores
85
Dagon

quebram as normas e torna difícil, ou mesmo


enriquecem o conjunto, os impossível, o surgimento de uma
leitores divertem-se no processo abordagem nacional, de uma
e incentivam à continuação. Este literatura fantástica de cariz
tipo de discurso tem lusitano.
possibilitado à FC no estrangeiro
evoluir de meros contos pulp de O mundo não precisa de FC
máquinas, monstros e enredos americana escrita em português
imberbes para uma especulação (já existem afinal tantos
efectiva sobre o futuro e o americanos a fazê-lo) mas sim de
movimento das civilizações e o autores que consigam aproveitar
significado do ser humano a distância cultural e, livres dos
quando confrontado com o vícios históricos e conjunturais
Outro. dos seus colegas além-mar,
reinterpretem o género, renovem
A nós falta-nos esse discurso, e as fundações em que assenta e o
se aprendemos com a transportem, no seio da própria
manifestação alheia, e por ela língua, para o século XXI. Dessa
conseguimos avaliar a nossa forma conseguiremos ter
escrita e utilizar algumas das autonomia e legitimidade para
lições ditadas pelos outros, a contribuir para o panorama
verdade é que não é um processo mundial do fantástico, com
que consiga desenvolver-se com autores que assumam
alguma autonomia - os nossos orgulhosamente que pertencem
críticos regem-se pelos ditames ao género.
alheios, os leitores em grande
medida desconhecem a história
nacional do género, e os autores, Como vive o actual "boom" de
por falta de tempo, jeito ou literatura fantástica em
vontade, não tentam sequer Portugal? Ou
entender que não podem será este "boom" uma ilusão?
começar do zero e que há que
passar a um nível de sofisticação O boom é um facto: a literatura
elevado por estarem numa fantástica impôs-se como
competição internacional que mercado e preenche uma boa
dura há décadas... Não digo que percentagem das prateleiras
se deva virar as costas ao que se disponíveis. Existem secções
faz lá fora nem isso seja dedicadas ao género nas
minimamente benéfico, mas a principais livrarias e tem-se
condição permanente de assistido a uma agradável
estarmos constantemente a disputa entre as editoras para
espreitar a festa pela janela e a conquistar leitores pela
tentar imitá-la no meio da rua introdução rápida das mais
86
Dagon

recentes obras internacionais, bom senso, para um punhado de


algo que até há poucos anos bons haverá muitos que não
acontecia por acaso. Ora, edição mereciam igual atenção. E para
(permanente e crescente) não o lado foram afastados autores
existe sem interesse, e interesse de outras gerações, ou que não
implica leitores. Pelo que se pode abordam exactamente o assunto
afirmar que o boom da edição é do momento, mas que teriam
na verdade um boom da leitura, mais para dizer (e fascinar).
o que só pode ser positivo. Por
arrastamento, vem a Colocando-lhe uma questão
contribuição dos autores semelhante à colocada ao
portugueses, pois as editoras Jorge Candeias,
começam a procurar a prata da acha que os blogues sobre
casa para complementar o literatura fantástica
catálogo... apresentam qualidade
suficiente para conquistar
O boom é uma ilusão: novos públicos?
quantidade não implica
variedade, e nunca representou Depende. Há vários tipos de
necessariamente qualidade. Não blogues - alguns mais pessoais e
existe um boom de literatura de ocasião, outros com
fantástica, mas um crescimento aspirações de maior formalismo.
de alguns temas dentro do vasto Entre a opinião e a crítica
universo da literatura fantástica. experiente e fundamentada
Abundam os livros de vampiros, existe um espectro de variações.
goblins, jovens mágicos a quem é Creio que o grande ponto a favor
prometido o universo sem ainda é que, mais importante que o
terem tido oportunidade de factor de qualidade é a mera
demonstrar o seu valor. Ficam diversidade, que por um lado
no caminho os romances, demonstra o tal interesse atrás
outrora preferidos, de exploração referido e por outro possibilita
espacial, contacto com que cada gosto particular
alienígenas, sociedades futuras, encontre o que procura.
hiper-tecnologia. Ficam
esquecidas as temáticas O que me parece que falte serão
surrealistas, o terror, o blogues interessados no passado
sobrenatural não urbano. É dado da literatura fantástica, em
destaque desmesurado a jovens particular o passado nacional. A
autores que ainda agora história é a grande lacuna da
começaram a escrever, que não internet - quem entrasse no
apresentam ideias novas e nosso mundo e se limitasse a
originais sobre os temas que analisar esta biblioteca virtual
abordam - como dita a regra do ficaria com a ideia que a
87
Dagon

sociedade humana teria nascido pouco do tema, mas cujos


há poucas décadas, tal é o autores vão mantendo presença
interesse (relativo) que se confere assídua em fóruns de discussão.
aos acontecimentos do dia a dia. E outros ainda que gostaria que
A memória é importante para iniciassem ou regressassem a
cada ser, para cada cultura. uma presença bloguistica.
Depois de nós virá quem nos
tenha esquecido. Se nos cumpre A nível dos "portugueses" de
manter o registo de quem somos além-mar, que segundo uma
e o que fizemos, também nos notícia do Google, são o segundo
cumpre lembrar quem nos país que mais contribui para o
antecedeu. De destacar o fenómeno bloguista, refiro, de
excelente trabalho que João entre as dezenas de sítios
Seixas fez no seu blogue Blade interessantes, o Universo
Runner em Novembro passado, Fantástico, a Cristina Lasaitis, o
durante o qual foi buscar às Fábio Fernandes, Hugo Vera,
prateleiras edições de antanho e Bráulio Tavares, Ana Cristina
as apresentou, ao ritmo de uma Rodrigues, Tibor Moricz,
por dia, aos leitores. Fernando Trevisan, a Maria
Helena Bandeira, o Octávio
E que blogues portugueses Aragão, e tantos outros.
destaca neste momento?
E será que a literatura
Sigo com muito interesse os fantástica tem hoje maior
blogues de quem mais de perto incidência nos
contribui para a literatura leitores através da internet ou
fantástica - entre autores, continua a mensagem a passar
críticos e editores. Sem prejuízo através
dos restantes, faço notar os dos livros? Ou seja, será que o
blogues do David Soares, da "Boom" foi criado pela
Safaa Dib, do João Seixas, da internet?
Cristina Alves, do Nuno Fonseca.
O Rui Pedro Baptista tem, Bem, só uma análise estatística
recentemente, apresentado poderia responder com
recensões a um ritmo invejável, legitimidade à pergunta. Mas a
que espero possa manter. internet sem dúvida que
Blogues colectivos como o contribuiu, pela facilidade de
Correio do Fantástico são comunicação e divulgação de
imprescindíveis mas têm uma qualquer tema. E contribuiu em
semi-vida curta (sendo a «Trilha grande medida a nível do
de Moebius» talvez o caso mais fantástico português, permitindo
flagrante). Existem outros que que se concretizassem projectos
entretanto se afastaram um que de outra forma seriam quase
88
Dagon

impossíveis de chegar ao fim


(veja-se, a título de exemplo, o Artigo de Opinião:
exercício que tentei construir à
volta da elaboração alternativa
da antologia "Por Universos
Que Fazer com estes
Nunca Dantes Navegados" num
universo sem internet, publicado
clichés?
na Bang! 4).

Estará o futuro do fantástico


nas artes em Portugal
assegurado,
contando com valores tão
importantes como o próprio
Luís Filipe Silva,
como o David Soares ou o
Jorge Candeias, entre outros? Jorge Candeias

Durante os últimos dois


O futuro do fantástico nas anos e picos tenho estado, por
artes em Portugal estará obrigação da profissão de
assegurado desde que se consiga tradutor, mergulhado a fundo no
garantir o sagrado triângulo da mundo da fantasia épica. E não
criação: aquele que tem por há grandes sinais disso poder vir
cantos o autor, o leitor e o a mudar em breve, pois o género
crítico, cada qual a contribuir está em pleno boom comercial,
com a sua função, de forma ainda que venha contando nos
equiparada e em dinâmico últimos anos com a concorrência
equilíbrio. cada vez mais forte dum certo
tipo de fantasia urbana
razoavelmente vampírica e muito
dirigida a raparigas bastante
jovens. Nem um nem outro são
géneros que eu aprecie
particularmente, apesar de
reconhecer a excelência de
alguns trabalhos, em especial a
série das Crónicas do Gelo e
Fogo em que tenho tido a sorte
de trabalhar: sou mais homem
89
Dagon

da ficção científica, da weird É reconhecido por


fiction, de coisas a atirar para o praticamente toda a gente,
surrealista, etc. Principalmente incluindo muitos dos seus fãs,
da ficção científica. E são os que a fantasia épica é, em
olhos do fã de ficção científica grande medida, um mundo de
que, ao olharem para o material clichés. Pega-se num livro do
com que tenho trabalhado, me género e há imediatamente
têm levado a reflectir sobre as características que saltam à
características que explicam o vista e que o identificam como
seu sucesso actual, por pertencente ao género. O
contraponto à obscuridade por ambiente medieval, a
que passa a literatura que organização feudal das
prefiro. Quando me convidaram sociedades, as espadas e os
para escrever algo para a Dagon, cavaleiros que as manejam são
achei que aí estava um tema que um substrato relativamente
podia ser interessante, ainda que realista (ainda que muitas vezes
deva alertar quem estiver a ler idealizado) que vai buscar
estas linhas para que não espere inspiração aos romances de
obter daqui algo que tenha mais cavalaria medievais. Bruxos e
semelhanças com um resultado feiticeiros, que também já
sólido e firme do que a pura marcavam presença nessas
coincidência de todos os alertas obras medievais, fornecem-lhe a
deste género. A reflexão foi fantasia, acompanhados por
iniciada, mas não concluída, e, objectos mágicos (armas, jóias e
embora me pareça que já livros, basicamente) e animais
consegui chegar a algumas legendários, com grande
conclusões razoavelmente preponderância de dragões, ou
sólidas, continua a haver pontas animais comuns na fauna
soltas e perguntas sem resposta. europeia mas dotados de
ligações especiais com as
Mas comecemos.
personagens, seja como amigos
dos heróis, seja como agentes
das forças que se lhes opõem. A
O mundo dos clichés própria existência de heróis é
também característica quase
universal do género, bem como
quase universal é que esses
90
Dagon

heróis representem um bem Têm uma base de leitores fiel, a


maniqueísta em confronto qual, longe de se sentir
aparentemente desigual com um incomodada com os clichés, os
mal absoluto. Tudo isto é de tal usa como forma de
modo usado e repetido que reconhecimento e de conforto.
ultrapassa a condição de meros Quando abrem um livro do seu
traços identificativos de um género favorito, sabem à partida
género para se transformar em com o que podem contar, e num
clichés. A esmagadora maioria mundo real muitas vezes
da fantasia épica, da pior à imprevisível e desconcertante,
melhor, apoia-se pesadamente ter livros que funcionam como
em quase todos ao mesmo um refúgio de ordem e
tempo. previsibilidade é muito
importante para muita gente.
Poder-se-ia pensar que
quem gosta de ler acabasse mais
tarde ou mais cedo por se fartar
Leitores: todos diferentes,
de ler histórias que, nos seus
todos… diferentes
pressupostos básicos, são todas
mais ou menos iguais umas às
outras. No entanto, não é isso
que acontece. Oh, é verdade que É uma questão de
alguns se cansam e vão em personalidade. Esta influencia, e
busca de outras coisas. Tenho em grande medida determina,
ouvido (ou lido) com alguma aquilo que cada um de nós,
frequência fãs de fantasia épica a leitores, procura no que lê. Dito
dizer que estão cansados do de outra forma, a leitura
género, que o acham todo igual e responde a diferentes tipos de
sem novidade, etc. Mas, como as necessidade nos leitores. Pode
vendas comprovam, a maioria ser conforto, pode ser escapismo,
dos leitores mantém-se fiel e pode ser divertimento puro e
consome quase religiosamente simples, pode ser conhecimento,
saga atrás de saga. É um pouco pode ser medo ou adrenalina ou
o que acontece com outros tipos ginástica intelectual, pode ser
de literatura, nos quais o cliché qualquer combinação destas
marca presença forte, da coisas e de mais algumas.
literatura romântica à policial. Leitores mais conservadores têm
tendência para procurar a
91
Dagon

realidade em detrimento de clichés. Não foi uma nem duas


obras mais imaginativas, e/ou as vezes que me aconteceu ler
ambientes do passado por opiniões sobre livros em que se
contraponto ao presente ou ao elogiava a sua originalidade, e
futuro. Leitores mais depois, ao lê-los, encontrar
aventureiros preferem a acção de clichés espalhados por todo o
livros de aventuras (seja qual for lado. Como? Engano deliberado
o género; há livros de aventuras do pobre leitor indefeso?
em quase todos) à contemplação Geralmente não. O que acontece
da perícia estilística do autor A é que os clichés que há nesses
ou B. Uns leitores preocupam-se livros são aqueles em que o
sobremaneira com o texto autor da opinião nem repara
propriamente dito, chegando até, porque estão naquilo que não lhe
por vezes, ao ponto de nem interessa ou interessa menos.
repararem quando não existe Alguns tecem loas de
nada por trás do texto, quando originalidade a livros ―literários‖,
ele não passa de artifício escritos com toda a atenção ao
estilístico completamente oco. E detalhe linguístico do texto, mas
se reparassem provavelmente com uns enredos do mais banal
não se incomodavam. Outros que se possa crer, outros a livros
ficam tão mais satisfeitos quanto cheios de ideias mirabolantes,
mais retorcido e amigo de mas com personagens de cartão
reviravoltas é o enredo; outros iguais a milhares de outras
querem é ideias mirabolantes; personagens de cartão
outros só se interessam pela vida inventadas por séculos de
interior das personagens e pelas literatura, etc., etc. Foi tal a
suas motivações; outros estão-se frequência com que me deparei
nas tintas para tudo o que não com este tipo de opinião que
seja a ascensão e queda de hoje, assim que vejo alguém a
civilizações e espécies inteiras. tecer grandes encómios à
originalidade duma obra, fico
O mais curioso é que tenho
imediatamente de pé atrás com o
reparado que, dependendo
opinador. O mais certo é ele tê-la
daquilo que preferem encontrar
olhado sob o estreito prisma dos
no que lêem, os vários tipos de
seus próprios gostos e
leitores fecham alegremente os
motivações e não ter reparado
olhos a conjuntos diferentes de
em todas as fraquezas e
92
Dagon

características repetitivas que A questão, parece-me, tem


saltariam à vista de quem a mais a ver com a inteligência e
olhasse desde outro ponto de subtileza com que se tratam os
vista. E isto refere-se tanto ao clichés do que propriamente com
leitor comum, aquele que não a sua presença ou ausência. O
tem nenhum objectivo além de principal problema da fantasia
transmitir, com toda a singeleza, épica que é vista como repetitiva
a sua opinião a quem a queira é o facto da maioria dos autores
ouvir ou ler, como a gente que mostrar muito reduzida
escreve críticas em jornais, quantidade duma e doutra coisa.
revistas e blogues. Ninguém Em alguns casos é de propósito:
parece estar imune a esta há autores que remastigam
percepção selectiva de clichés, o conscientemente obras
que talvez aconselhasse alguma anteriores, muito em especial o
humildade a muitos de nós (sim, avô de quase todos, J. R. R.
que eu também vou debitando Tolkien. Fazem-no por um misto
opiniões por aí; esta crítica de instinto comercial, de vontade
também me é dirigida). de vender algo que sabem que
está a render no negócio dos
livros, algo que está na moda,
E no entanto há clichés e com a tendência para imitar
há clichés aqueles que são vistos como
mestres de que toda a gente
sofre ao começar a escrever.
E no entanto, há obras que Esses autores talvez até tenham
são consideradas por capacidade para lidar com os
praticamente toda a gente clichés com inteligência e
remastigações de temas e obras subtileza mas preferem não o
anteriores, e outras que a grande fazer, escolhendo a segurança de
maioria vê como interessantes, voltar a trilhar caminhos já
de boa qualidade e originais. muito percorridos em detrimento
Porquê? E em que é que isso do risco que existe sempre que
afecta o modo como cada tipo de se tenta chegar ao mesmo
leitor as encara, e destino e passar pelos mesmos
consequentemente o sucesso lugares, mas a corta-mato, fora
comercial que elas poderão vir a do caminho bem trilhado. Quem
ter? gosta de se ver como leitor
93
Dagon

sofisticado ou quem o é de facto Porque Martin trata os


torce o nariz a este tipo de obra, clichés com uma mestria e uma
e não é raro que lhe sejam elegância que são raras na
colados rótulos, muitas vezes fantasia épica. As personagens,
mais ou menos merecidos, de ainda que muitas se encaixem
sucedâneos puramente melhor ou pior em estereótipos,
comerciais da verdadeira estão caracterizadas com uma
literatura de género. solidez que as eleva da
bidimensionalidade em que, de
Mas nestas coisas tudo é um
outra forma, poderiam ter caído.
contínuo sem fronteiras rígidas,
Os dragões são ainda, a meio da
e, partindo dessas obras
série, criaturas possuidoras de
derivativas, pode chegar-se a
um carácter mal definido,
livros e séries inteiras que são
contraditório, e por isso mesmo
quase unanimemente elogiadas,
interessante. O mal que há que
embora aquilo que realmente se
vencer não é necessariamente o
elogia possa variar bastante
típico mal maniqueísta de outras
entre os vários leitores.
histórias e mantém-se em aberto
Mas vamos a um exemplo a possibilidade de não haver na
que conheço bem para tentar verdade mal algum, mas apenas
explicar isto melhor: criaturas forçadas pelas
circunstâncias a entrar em
As Crónicas do Gelo e Fogo choque com o mundo dos
estão cheias de clichés. Lá está homens. Os reis, cavaleiros e
escarrapachado o típico princesas pouco ou nada têm a
ambiente medieval de matriz ver com as criaturas idealizadas,
europeia, lá estão os dragões, lá possuidoras ou de todas as
estão os animais com ligações virtudes ou de todos os defeitos,
especiais aos protagonistas, lá dos contos de fadas e da fantasia
está o perigo de cariz mágico que épica mais simplista: são
há que vencer para conquistar a pessoas de carne e osso com
sobrevivência, etc., etc., etc. No características próprias,
entanto, quase todos elogiam fortemente influenciadas pela
profusamente a série como um cultura e ambiente do mundo em
todo, ou pelo menos alguns dos que vivem. Ou seja: os clichés
livros que a compõem. Porquê? estão todos lá, mas é quase
como se não estivessem porque a
94
Dagon

maneira como Martin os trata as transformam em algo mais. É


anula o aborrecimento do ―já vi a execução que as torna únicas.
isto em qualquer lado‖. É a espécie de vida que o autor
nelas consegue insuflar que as
Depois há o enredo, no qual
destaca da mediocridade em que
se entrelaça uma quantidade
de outro modo poderiam ter
apreciável de tropos já
caído.
conhecidos (a difícil relação
inter-geracional da família Mas não é a presença ou
Lannister, a típica demanda da ausência de clichés.
fantasia, presente quer em Bran,
quer em Dany, quer em Brienne,
as questões de honra que se Que tem isto a ver com
vêem nesta e também em Jaime FC?
e Catelyn, etc. e muitos etcs.),
mas com uma qualidade tal que
muitas vezes nem nos damos Boa pergunta. Mas é
conta de estarmos a reler algo precisamente respondendo-lhe
que muitos outros autores já que se conseguirá, talvez,
antes nos contaram. Tudo encontrar pistas para a outra
parece fazer sentido, tudo parece pergunta que esbocei no início
estar no seu devido lugar, tudo deste texto, sobre os porquês de
tem uma solidez quase palpável, haver actualmente um
independentemente dos clichés. desequilíbrio tão grande entre o
Esta série de GRRM não é público disposto a ler fantasia e
única, claro; outras há que, aquele que não torce o nariz a
melhor ou pior, conseguem um bom livro de ficção científica.
atingir uma qualidade que talvez Parte dessa resposta é óbvia.
não se esperasse do material que Se leitores mais conservadores
têm por base. Se resumirmos preferem ambientes históricos
estas histórias a uma página, em detrimento de outros mais
ficamos geralmente com aquilo contemporâneos ou com os olhos
que aparenta não passar duma postos no futuro, é natural que
simples sucessão de clichés leitores mais conservadores
atrás de clichés, um simples prefiram a fantasia de carácter
conjunto de ideias já lisas de tão medieval à ficção científica, a
gastas. São os pormenores que qual tipicamente (mas nem
95
Dagon

sempre) se debruça sobre o que ainda que tenha um pendor mais


talvez possa ainda vir a audiovisual do que propriamente
acontecer. Se houver mais literário. Existem outras, que
leitores conservadores do que demonstram que a ficção
progressistas, parte do científica nada no vasto mar de
desequilíbrio explica-se por si. clichés que constitui boa parte
Mas não sei se há ou não, e da base de toda a literatura e do
parece-me no mínimo arriscado cinema como baleia num mar de
fazer o exercício oposto, isto é, krill.
dizer que o facto de haver mais
O que é curioso é que quem
leitores de fantasia do que de FC
tenha algumas bases sobre a
significa que há mais leitores
história da ficção científica vai
conservadores do que
descobrir nestas listas uma
progressistas. É uma explicação
percentagem significativa que
fácil, mas, como acontece quase
tem origem na chamada golden
sempre com as explicações
age. Para os outros, segue-se um
fáceis, ou está errada ou não
breve parêntesis explicativo.
explica mais do que parte dos
factos. E limitarmo-nos a ela
pode levar-nos a fechar os olhos
a outras características ou Golden quê?
tendências que possam ter uma
influência mais decisiva. Ora,
andar por aí de olhos fechados é Golden age. Idade dourada.
o caminho mais seguro para dar Uns dizem que é aos 14 anos
grandes trambolhões. (brincadeira interna, não
liguem), outros explicam que se
De modo que prefiro deixar trata de um termo
por agora de lado essa explicação americocêntrico que designa um
e tentar encontrar outras. período entre 1938 e 1946,
A FC não está imune a durante o qual John W.
clichés, naturalmente. Aliás, Campbell reuniu nas páginas da
basta fazer na net uma busca revista Astounding Science
por algo como ―The Grand List of Fiction, antepassada da actual
Overused Science Fiction Analog, um conjunto de jovens
Clichés‖ para se descobrir uma escritores que vieram a
página que os lista às dezenas, constituir boa parte dos

96
Dagon

monstros sagrados da FC de Mas também é certo que,


meados do século XX em diante apesar disso, raramente a FC foi
(muitos deles tiveram carreiras mais popular do que durante a
longas, que se estenderam pela golden age. E só escrevo aqui
segunda metade do século XX e, ―raramente‖ e não ―nunca‖
em alguns casos, continuam porque existem países aos quais
ainda hoje), ao mesmo tempo a ficção científica americana
que, para o melhor e para o pior, pouco chegou e que mantiveram
impunha a sua peculiar visão do uma saudável independência
que o género era e devia ser. relativamente ao ―padrão‖
Outros estendem o termo um Campbeliano que se estava a
pouco mais, por forma a incluir desenvolver, ao mesmo tempo
também outros nomes grandes que os autores locais gozavam de
que começaram as respectivas uma popularidade e prestígio
carreiras um pouco mais tarde, que nem os americanos alguma
em finais dos anos 40 e inícios vez alcançaram no seu país: a
dos 50. União Soviética acima de tudo,
mas também outros países do
Seja como for, uma coisa é
Leste europeu e, até certo ponto
certa: a FC Campbeliana,
e durante algum tempo, a
embora nunca tenha sido a
França.
única forma de encarar a ficção
científica, acabou por dominar a Dito de outra forma: houve
FC mundial, e mais ainda a uma época em que a ficção
ocidental, e acima de tudo a científica esteve mais ou menos
anglófona, durante muitos anos. no lugar onde hoje está a
E gerou uma série de ondas de fantasia. Uma época em que
choque que ainda hoje se fazem Tolkien não passava dum senhor
sentir. Com ela veio uma atitude inglês algo excêntrico, idolatrado
de predomínio da ―ideia‖ sobre por um número reduzido de
tudo o mais, qualidade de texto adolescentes bizarros que
incluída, e, paradoxalmente q.b., preferiam passar o seu tempo a
a verdadeira catadupa de clichés jogar uma coisa nova, um tal de
que se podem apreciar em toda a RPG, ou Dungeons and Dragons,
sua pujança nas listas de que ou lá como se chamava a
falo acima. bizarria, em vez de se porem ao
volante dos seus power cars e

97
Dagon

irem engatar miúdas ao som do entanto, isso é estranho. Afinal,


twist. Enquanto isso, os outros a FC, diz-se, tem no seu fulcro a
sonhavam com máquinas e ideologia da ideia über alles.
planetas, carros high-tech, Como é que uma literatura que
robots, computadores e naves teoricamente se baseia na ideia
espaciais. ganha uma quantidade tão
grande de clichés?
E também então, tal como
hoje, se vendiam como ginjas as Por duas vias. Uma são os
histórias carregadinhas de tais clichés secundários que
clichés. As histórias de cowboys permeiam tudo simplesmente
no espaço. As histórias de porque não são encarados como
batalhas navais no espaço. As suficientemente importantes
histórias tantas vezes mal para que se tente evitá-los.
escritas, tantas vezes Escritores e leitores que
literariamente indigentes, mas procuram no que escrevem e
que davam ao seu público a lêem novidade nas tecnologias,
imagem de futuro que ele nos métodos de propulsão, nas
procurava, uma imagem que, por raças alienígenas, em armas,
baixo do verniz superficial de artefactos e ambientes, não se
futuro e exotismo, nunca deixou incomodam quando as
de ser inteiramente americana, e personagens não têm
contemporânea a cada momento consistência, quando as
em concreto. histórias repetem fielmente
enredos anteriores, usados
E também então, tal como
dentro ou fora do género,
hoje, histórias e autores houve
quando não existe a mínima
que foram capazes de pegar nos
novidade no tratamento da
clichés e fazer com eles algo
língua (além da profusão de
mais.
neologismos, que é um traço
distintivo e inevitável da ficção
científica), etc. Então, como
Neste vasto universo tudo agora, desde que os escritores
envelhece… logrem transmitir o que
pretendem transmitir e aos
leitores seja entregue aquilo que
Parece o estado em que está procuram, tudo o resto é
hoje a fantasia, não parece? E no
98
Dagon

irrelevante e pode aparecer dificuldade em libertar-se. Esta


ajoujado sob o peso de centenas é, talvez, a parte boa, pois é
de clichés, que não tem possível que a FC não se tivesse
nenhuma importância. Às vezes, conseguido impor nos Estados
nem reparam neles. Unidos (e consequentemente no
cinema e na TV, e, a partir daí,
Outra, é o envelhecimento.
no mundo inteiro) sem ela.
Todos os clichés são sintomas de
Embora outras formas de
envelhecimento, por definição.
encarar a FC tivessem até obtido
São ideias e técnicas já
um sucesso maior noutros
utilizadas antes, e (muito) mais
países, os povos e as suas
que uma vez, e que portanto se
histórias e culturas são
tornam gastas e repetitivas. E a
diferentes, e é muito provável
FC não está imune ao
que a FC à Campbell fosse a
envelhecimento, muito pelo
única capaz de se impor nos
contrário.
EUA da Segunda Guerra
Na verdade, o modo como Mundial e do Pós-Guerra. Nuns
ideias e histórias envelhecem é Estados Unidos
um dos factores que mais militarizadíssimos, e em pleno
distingue a ficção científica da boom tecnológico e industrial,
fantasia e, na verdade, de todos nos quais a atitude
os outros géneros. predominante era ―só o essencial
importa‖, despir a FC de tudo o
que não fosse a ideia, ou seja, o
… mas nem tudo essencial, é bem capaz de ter
envelhece da mesma forma sido o segredo do seu sucesso na
época.

A outra coisa que Campbell


Campbell, ao reduzir a ―sua‖ conseguiu, no entanto, foi
ficção científica à ideia, catastrófica, e estamos hoje a
conseguiu duas coisas. sofrer-lhe as consequências.
Deixem-me dar um passo atrás
Uma delas é uma
para explicar melhor.
popularidade muito grande no
curto prazo que gerou a médio e Tudo no universo envelhece,
longo prazo um formato de que a e a literatura, que apesar de
ficção científica tem tido enorme abrir outros universos aos
99
Dagon

leitores, continua a fazer parte conseguir lê-los mais ou menos


deste, também envelhece. como os leria um
Envelhecem os temas, contemporâneo.
envelhecem os estilos,
Para a ficção científica, pelo
envelhecem as ideias, toda ela
contrário, importa, e muito. Ao
envelhece, ganha rugas,
basear-se primordialmente no
amarelece. Mas nem tudo no
futuro ou em ideias científicas e
universo envelhece da mesma
tecnológicas de ponta, a FC corre
forma ou ao mesmo ritmo. Uma
o risco constante de se ver
mosca envelhece e morre no
ultrapassada bem depressa por
decurso de um verão; um fotão é
novos desenvolvimentos
capaz de passar milhões de
científicos e tecnológicos, embora
milhões de anos quase sem
também possa acontecer que as
sofrer alterações. Também na
suas especulações acabem mais
literatura isto é verdade.
ou menos confirmadas na
Pouco importa se uma prática, pelo menos durante
história de fantasia medieval ou algum tempo. O problema é que
um romance histórico é escrito a maior parte das ideias não têm
hoje ou há 100 anos; o seu tema futuro, e é impossível saber de
está suficientemente afastado de antemão quais as que o têm e
nós, no passado, para que não quais as que não têm. Ora, o que
faça grande diferença ler uma julgam vocês que acontece a
obra ou a outra. Há diferenças, uma obra literária reduzida
desde que os autores estejam em quase por completo a uma ideia
sintonia com as tendências quando essa ideia morre?
literárias da respectiva época, há
Pois.
também algumas diferenças de
linguagem, mas nada que possa A opção de Campbell teve
pô-las em causa. Isto tem como esta devastadora consequência.
consequência que o leitor Extirpando da sua noção de FC
moderno que se queira informar tudo o que não fosse a ideia,
sobre as origens do género, que Campbell condenou uma
queira ir ler os clássicos, não vai proporção enorme da FC do seu
encontrar nenhuma grande tempo não só ao envelhecimento
barreira a erguer-se entre rápido mas à morte prematura.
presente e passado, e vai Ler hoje a maior parte do que se

100
Dagon

publicou nessa época causa uma percentagem significativa da


bizarra sensação de estar a matriz. Da raiz.
desenterrar cadáveres. A
E quando a raiz morre, o
suspensão da descrença não
que acontece à planta?
funciona. Os clichés saltam à
vista como gafanhotos. As ideias Pois.
parecem ingénuas, estúpidas ou
tratadas de forma deficiente. E
não existe literatura que consiga A FC morreu, vai morrer,
compensar a morte das ideias, não morre nunca
porque um texto cuidado e uma
elaboração das histórias era a
última das coisas que Campbell
―Oh, não‖, pensarão alguns,
queria a meter-se no caminho da
―lá vem também este com a velha
sua sacrossanta essência. Aquilo
conversa de chacha sobre a
que poderia hoje salvar a FC do
morte da FC!‖ Oh, não, respondo
tempo não a salva porque não
eu. A mim não me apanham a
existe, nunca existiu, e
disseminar esse cliché; poucos
deliberadamente. É por isso que
há que sejam mais aborrecidos e
é mais agradável ler hoje as
menos dignos de resgate.
histórias de Júlio Verne, H. G.
Wells, Conan Doyle e outros Mas é inegável que um
bons escritores da ―pré-FC‖ do género sem raízes é um género
século XIX e princípio do XX do com dificuldades em impor-se e
que a esmagadora maioria das desenvolver-se. Ter contacto com
histórias Campbelianas, apesar os clássicos é fundamental para
destas estarem mais próximas de se conseguir realmente
nós no tempo. compreender o que se tem entre
mãos. Sem esse contacto, ainda
Poderão perguntar: ―E daí?
que parcial, ainda que coado por
Que é que isso interessa?‖
terceiros, há sempre algo que
Interessa, porque é aí que se não parece completo.
encontra parte dos clássicos da
No mainstream, e, dentro
FC. É aí que está a base de
deste, na literatura portuguesa,
muito do que se faz hoje. É aí
o contacto com os clássicos é
que se vai encontrar uma
feito na escola e a partir de tenra

101
Dagon

idade. Nem sempre da melhor que preferem, e só não o são por


forma, é certo, mas ele existe. completo porque continuam a
Quem passa pela disciplina de reeditar-se os clássicos da pré-
português fica com uma noção, FC, os grandes romances de
mesmo que muito rudimentar, Verne, Wells, Doyle e o
de como foi que a literatura Frankenstein de Shelley. Um
portuguesa chegou àquilo que é punhado de autores cuja ficção
hoje, e conhece, ainda que científica, tão irremediavelmente
vagamente, alguns dos seus datada como a Campbeliana,
modos principais. Duma forma consegue todavia sobreviver
mais autónoma mas não menos porque não se resume à ideia. O
eficaz, o contacto com os mesmo se poderá dizer de alguns
clássicos também acontece livros de Bradbury, e de outros
noutros géneros. É quase autores pós-campbelianos.
impensável que um fã de Trata-se de livros completos, que
fantasia não tenha lido Tolkien, não têm medo de se assumir
tal como é impensável a um fã de como ―literatura propriamente
horror não ler Lovecraft ou parte dita‖, e envolvem a ideia em algo
da miríade de escritores do mais, algo capaz de manter
fantástico vitoriano e gótico. interessado o público de um
tempo que não é o seu.
Mas um fã de FC
dificilmente conseguirá ler O problema é que a proto-FC
alguma da FC da época dourada, e um punhado de outras coisas
e se a ler provavelmente não não são suficientes. E com a FC
ficará lá muito bem Campbeliana a encaminhar-se a
impressionado. Se for português, passos largos para se tornar
então, pior um pouco, pois essa completamente ilegível, corre-se
FC está publicada por cá duma o risco de ver parte importante
forma pouco criteriosa, não raro dos ancestrais da FC moderna a
extremamente mal traduzida, e transformar-se num buraco
em edições de há 20, 30 anos ou negro que tudo consome e do
mais, que se vão tornando cada qual nada sai. A menos que se
vez mais difíceis de encontrar, faça o que fizeram os
mesmo em alfarrabistas. Os fãs dinamizadores da nova space
de FC são, pois, leitores em boa opera.
medida desenraizados do género

102
Dagon

OK, confesso: não gosto de deixar-se enterrar. E lá pelos


space opera. Nunca gostei, nem anos 80 houve quem tivesse
da original, nem da nova. Mas pegado nos seus clichés e
tenho de dar a mão à palmatória: começado a mexer-lhes e
o caminho seguido por quem remexer-lhes, acrescentando-
gosta é muito provavelmente o lhes novos ingredientes, mais
único caminho capaz de reavivar capazes de produzir literatura
a ficção científica. válida (cuidado com o texto,
personagens mais desenvolvidas,
A space opera foi, apesar dos
esse tipo de coisas que muito
estrondosos êxitos que conheceu
teriam irritado Campbell),
no cinema (ou talvez por causa
acabando assim por dar origem à
deles) a primeira parte da FC
chamada ―nova space opera‖. Os
Campbeliana a entrar num
velhos clichés do subgénero
colapso quase completo.
continuam em grande medida
Acusada, muitas vezes
presentes na sua nova
justamente, de pateta, infantil e
encarnação, mas, tal como
ninho de clichés, foi activamente
acontece com os da fantasia,
rejeitada a partir do surgimento
quando são manuseados por
da new wave, nos anos 60. Não
mãos competentes transformam-
que tenha propriamente
se e quase se eclipsam.
desaparecido. Mas foi relegada
Funcionam como âncoras, fios
para ―novelizações‖ baratas e
condutores usados para
geralmente de muito má
recuperar de um passado
qualidade dos êxitos
moribundo aquilo que ainda é
audiovisuais, para dois ou três
recuperável e fornecer às
autores persistentes, que nunca
gerações contemporâneas um
deixaram de produzir novas
certo sentido das origens.
histórias pertencentes às suas
longas séries space operáticas, e Provavelmente será isso que
para um grupo razoavelmente teremos de fazer com quase toda
reduzido de fãs nostálgicos das a FC anti-literária que foi sendo
glórias do passado. Houve quem produzida ao longo das décadas.
afirmasse a pés juntos que a Pegar nas suas ideias, nos seus
space opera estava morta. Mas clichés, até nos seus enredos, e
como geralmente acontece com modernizá-los, trazê-los para a
estas coisas, ela recusou-se a contemporaneidade e tentar,

103
Dagon

pelo menos tentar, fornecer-lhes dizer. Parabéns a quem chegou


suficientes motivos de interesse até aqui. Não planeei este artigo
para que não se percam de novo assim tão longo, mas ele
no tempo quando a ciência e a aconteceu desta maneira. Coisas
tecnologia voltarem a ficar complicadas como estas não se
obsoletas. Porque isso, que a explicam em duas linhas, e
ciência e a tecnologia ficarão quando apanham reflexões em
obsoletas, é o que temos de curso pior se torna. Confesso
realmente garantido em tudo que este artigo foi difícil de
isto. escrever, não só por causa da
complexidade do tema e da
Se resulta com Shakespeare,
minha própria falta de certezas,
cujas peças foram sofrendo ao
não só pela quantidade de vias
longo dos séculos inumeráveis
travessas que tive de tomar para
versões e reinterpretações, não
chegar até aqui, mas também
vejo por que não possa resultar
porque me esforcei para não o
com a FC. Se resulta no cinema,
deixar cair na chatice. Ser chato
que sempre que adapta uma
é, decididamente, chato. Se tive
obra da FC de há 50 anos a
ou não sucesso, cabe-vos a vós
moderniza, e por vezes até o faz
dizer.
bem, não vejo por que não possa
resultar na literatura. Desde que
se abandone de vez a daninha
ficção de que a FC é a ―literatura
das ideias‖. Como se não
houvesse ideias nas outras
literaturas. Como se a FC não
precisasse de mais nada. Como
se vivêssemos nos Estados
Unidos do tempo de Campbell.

Enfim…

Então era mais ou menos


isto o que eu tinha para vos

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107
Dagon

campo de batalha parecia ter


congelado no tempo.
Desviei os olhos do horizonte,
Conto: crispando a mão direita sobre o
punho da minha espada. Toquei
levemente os meus quatro
Batalhas Interiores companheiros, e formámos de
novo um círculo, virados de
Francisco Norega costas para o centro. Pus a
espada em riste e brandi-a,
Para a Catarina,
para o Zé, para o Ricardo e para a Carina. grunhindo ao emoshi mais
próximo, que me olhou com um
brilho de dúvida nos olhos.
Longe, ouviram-se os ruídos da
Parte I – Emoshi debandada geral, quando os
cavaleiros atingiram o campo de
batalha, a galope e de lança em
Sorri, tomado por uma nova riste. Os cavaleiros poushi eram
esperança. conhecidos por serem
No horizonte apareciam implacáveis em combate, mas só
estandartes verde lima com um matavam se estritamente
punho de indicador esticado. O necessário, e os guerreiros nas
indicador que os poushi armaduras negras sabiam-no.
espetavam aos mais próximos Era pouco provável que algum
em jeito de cumprimento, assim morresse naquele dia, às mãos
como os ocidentais outrora dos Cavaleiros, se fugissem.
apertavam as mãos, era o seu As duas dezenas de guerreiros
símbolo. que nos rodeavam estremeceram
«Poushi!!!», gritou um dos meus quando um grupo de cavaleiros
companheiros, erguendo a galopou na nossa direcção;
espada e fazendo todos estacar. entreolharam-se durante alguns
Os emoshi, Guerreiros do Ódio, momentos, e correram com tanta
olharam-no surpresos, para velocidade quanto as armaduras
depois seguirem o nosso olhar negras lhes permitiam.
até às colinas, a leste. Pouco a Os Cavaleiros, nas suas
pouco, uma força de quinhentos ofuscantes túnicas verde-lima,
cavaleiros revelou-se, enquanto o tiraram os elmos de prata,
108
Dagon

enquanto os cavalos passavam


de galope a trote, revelando
longos cabelos castanhos e «Onde…», comecei a perguntar,
pretos. A rapariga que esforçando-me por abrir os
encabeçava o grupo dirigiu-se a olhos.
mim, sem abrandar a velocidade «Castro Índigo, estamos em
do cavalo, estendendo-me a mão. Castro Índigo.», respondeu uma
Agarrei-a, sem pensar, e fui voz masculina, que me era
puxado para cima do garanhão, levemente familiar. Tentei
sujando o seu imaculado pelo soerguer-me, apoiado nos
branco com o sangue que saía do cotovelos. «E não penses em
coto em que terminava o meu levantar-te, perdeste demasiado
braço esquerdo. sangue.» Não liguei, até o meu
«Procurem os feridos e garantam braço latejar. Gritei, deixando-
que nenhum emoshi», cuspiu a me cair na cama, inundado pela
palavra, «ceifa mais nenhuma dor. Água caiu sobre os meus
vida hoje!», gritou, enquanto o lábios, e engoli-a avidamente.
cavalo dava meia volta, sempre a «Já devias ter aprendido a seguir
trote. «Vou para Castro Índigo. os conselhos do teu irmão. Estás
Todos os feridos graves que a melhorar surpreendentemente
encontrarem deverão ser rápido, mas vais ter de ficar em
transportados para lá o mais repouso durante alguns dias.»
rapidamente possível!», Abri os olhos, finalmente, para
terminou, pondo o cavalo a contemplar a cara do meu irmão,
galope. assombrada por umas enormes
A última coisa que senti foi uma olheiras. Uma das caras que
dor latejante no meu braço, mais familiar me era em todos os
enquanto a imagem de uma vales idishi – não era meu irmão
planície onde os restos da nossa de sangue, mas fora uma das
hoste eram rodeados pelos poucas pessoas que me acolhera
nossos salvadores se esbatia na ali, esquecendo todo o meu
minha mente. negro passado.
Esforcei-me por emitir algum
som. «Quanto… ah… tempo…?»
Parte II – Castro Índigo Pelo estado miserável da minha
garganta, devia ter sido muito.
«Alguns dias.»
109
Dagon

Levantei-me abruptamente, Tentei organizar os meus


ignorando a dor. A minha mão pensamentos, ao mesmo tempo
direita procurou rapidamente que me esforçava por retirar a
uma arma, infrutiferamente. expressão de espanto da minha
Senti a ligadura que tapava o fim cara. «Como… está… o nosso…
do meu braço empapar-se em exército?»
sangue, e gritei. «Está… ahhh… a salvo»,
O tecido que tapava a abertura começou ela, insegura. «O que
da divisão foi levantado, para restou, pelo menos.»
deixar passar uma rapariga de Não podia continuar deitado.
estatura média, os seus cabelos Não podia deixar o meu povo
castanhos e encaracolados indefeso, não podia. «Está
caindo sobre uma túnica verde quieto», disse o meu irmão,
lima. assim que comecei a levantar-
«Está quieto, idiota.», disse, me. «Nesse estado, ainda que
aproximando-se da cama com fosse preciso, não irias ajudar
passadas rápidas. «Hmph.» A sua ninguém. Tenta é deixar-te de
mão suave mas forte empurrou- parvoíces dessas, e restabelecer-
me novamente para a cama e te rapidamente.»
espetou-me um dedo na barriga. «Ele tem razão», concordou ela.
«Não arrisquei os meus «Quanto mais rápido melhorares,
Cavaleiros e cavalguei um dia e melhor. Sobraram menos de mil
uma noite sem parar para te de vocês. Apesar de tudo,
esvaíres em sangue a primeira quando chegámos, já só restava
vez que abres os olhos.» um cento de vós no campo de
Olhei-a, espantado, enquanto batalha. Os outros oito centos
relembrava os últimos são os que conseguiram fugir, e
acontecimentos da batalha. Os as reservas que tinham ficado
cavaleiros poushi. O exército nos castros.»
emoshi debandando. A rapariga. Mil homens, ainda que ajudados
Envergonhado, soltei um «Ahhh» por outras tantas centenas de
rouco. Aquela rapariga arriscara Cavaleiros, não eram suficientes
imenso por mim, e eu nem para proteger as duas dezenas
sequer a conhecia. E a primeira de castros e aldeias espalhados
vez que me levantava punha em pelos vales idishi. Estávamos
risco todos os seus esforços. perdidos, às mãos do instável
ódio emoshi.
110
Dagon

«Não é tão mau assim, sua companhia, agradecendo-me


descansa.» Tomou a minha mão por ter sido tão bravo em
entre as suas, suaves. «Os batalha, e por ter lutado por
emoshi fugiram como baratas, eles, até ao fim. Senti-me
quando nós aparecemos. A culpado – perdera a esperança
Senhora dos Corvos e os seus muito antes do fim, e
guerreiros dizimaram os que considerara fugir. Não merecia
fugiram para oeste, nos nada do que o meu povo me
Desfiladeiros. E muitos dos que estava a dar. Traíra-o, ainda que
entraram nas florestas cakeshi apenas em pensamento.
também de lá não saíram.» Ainda assim, nada disse.
Pousou-a de novo no colchão. Desiludira-me a mim mesmo,
«Devem ter chegado às Cidades não iria desiludir o meu povo.
do Sul menos de um quarto dos Depositavam toda a esperança
que de lá partiram, mas mesmo nos seus guerreiros, em nós, e
assim poderemos vir a precisar não seria eu a retirar-lha. Por
do maior número possível de isso, fingi-me confiante e
mãos que possam empunhar extremamente agradecido,
uma espada. Descansa, e escondendo a culpa.
melhora rápido. Tenta não fazer Em relação ao cansaço, no
nenhuma loucura.» entanto, não tinha de fingir. Mal
o sol se escondeu atrás dos
edifícios de mármore, a rapariga
e o meu irmão não deixaram
۶ entrar mais ninguém no quarto.
Agradecido, deixei-me acolher
pelo calor dos lençóis. Somente o
acto de falar cansava-me, e já me
Na primeira noite, e durante todo
havia levantado duas ou três
o segundo dia, recebi inúmeras
vezes. Estava exausto. Adormeci
visitas, como receberam todos os
rapidamente, ao som calmo do
que haviam batalhado e
esmorecer da actividade de
sobrevivido para contá-lo.
Castro Índigo.
Inúmeras pessoas de Castro
A alvorada do terceiro dia, no
Índigo, das mais variadas idades
entanto, nasceu com os ruídos
e profissões, trouxeram-me
do Castro em frenesim. Gritos
presentes e honraram-me com a
ansiosos acordaram-me,
111
Dagon

misturando-se com os sons de que me poderia servir de arma –


cascos a bater na pedra e de aço a malga.
a bater em aço. Uma malga jazia O meu irmão entrou no quarto,
em cima da mesa, vibrando com num passo irritado, falando
a agitação do Castro, mas, desenfreadamente. Eu, pelo
aparte isso, o quarto estava contrário, ficara mudo de susto e
vazio. espanto.
Uma pequena indecisão passou- «Larga isso», disse. «Deita-te,
me pela mente, mas rapidamente ainda não estás em condições de
a bani dos meus pensamentos. andar por aí levantado. E deves
Não importava se me tinham dito ter fome, vou-te buscar mais
para repousar, acontecesse o uma sop…»
que acontecesse. Tinha de «Eh», consegui interromper, a
ajudar. Se Castro Índigo caísse, custo, «calma, calma. E Castro
não me valeria de nada ter ficado Índigo?»
ali, com medo de uma «Castro Índigo o quê? E porque
reprimenda. raio é que estás a olhar para
Ao tentar levantar-me, apoiado mim com essa cara? Larga a
nos cotovelos, senti os músculos malga.»
fracos. Já não devia comer há Larguei a malga, mas não
mais de meio dia. Cambaleei até consegui afastar o espanto da
à mesa de madeira, sorvendo minha expressão. O que raio
sofregamente a sopa. Senti o estava a acontecer? «Ahh, não
espesso líquido a aquecer-me as estamos a ser atacados?»
entranhas, a dar-me forças, ao «Não, rapaz. Uma aldeiazita a
mesmo tempo que a adrenalina uma dezena de vales daqui é que
me corria no sangue. O forte não está. E queriam levar o Castro
era muito longe dali e, por isso, em força para auxiliá-los. São
deveria conseguir arranjar loucos. Deixar isto desprotegido.
rapidamente uma arma. E deita-te, por amor de Deus!»,
Dei um passo para a saída do concluiu, agarrando em mim
quarto, determinado, ao mesmo como se de um bebé me tratasse,
tempo que uma sombra crescia, e depositando-me na cama.
projectada no pano da entrada. «Por amor de Deus, digo eu.
Parei, assustado, procurando Podia ser a nossa aldeia. Eles
com a mão direita a única coisa precisam da nossa ajuda. É o
nosso povo!»
112
Dagon

«E deixar aqui todos estes Estava tudo demasiado calmo –


feridos, sem uma guarnição? do exterior, nenhum som ou
Loucos!», quase gritou, movimento chegava, enquanto
indignado. que, da povoação, não se ouviam
«Aqui estamos protegidos por as habituais actividades
uma muralha que vale por duas matinais levadas a cabo com
centenas de homens. Com entusiasmo e alegria. Naquele
cinquenta camponeses nas dia, no entanto, o torpor e o
muralhas, o Castro pode medo haviam tomado conta da
aguentar vários dias. E, de população – da aldeia que fora
qualquer maneira, se os emoshi atacada na alvorada do dia
triunfarem lá, seremos um anterior não havia notícias. Um
potencial alvo. Devias ir, para caçador do Castro voluntariara-
cortarem o mal pela raiz.» se para ir à aldeia que fora
«Não», respondeu, inflexível. «Vou atacada ver o que tinha
ficar aqui. Ponto final. E vou acontecido, e partira ao anoitecer
buscar mais alguma coisa para do dia anterior, mas ainda não
tu comeres. E ai de ti que te voltara. E o sol já se erguia forte
levantes.» acima do horizonte.
Naquele momento, as minhas
pernas fraquejaram e uma dor
۶ lancinante preencheu-me o
peito.
Apoiei-me pesadamente na
muralha, perscrutando os vales
na direcção da aldeia que fora
Os montes erguiam-se uns
atacada. Também eu sentia um
acima dos outros, para leste,
forte temor. Só tinha visto aquela
tornando-se cada vez mais
rapariga uma dúzia de vezes, a
íngremes e altos. No horizonte
primeira das quais há menos de
distante, os montes de cume
duas semanas, mas um novo e
arredondado davam lugar às
forte sentimento nascera dentro
escarpadas montanhas dos clãs
de mim. Durante aqueles três
da Senhora dos Corvos.
dias, habituara-me à sua
Apoiei-me numa ameia, para
presença, e aos indicadores
descansar um pouco.
sempre prontos a espetarem-se
na minha barriga. Tornara-se
113
Dagon

uma das pessoas mais região alguma que eu


importantes para mim. E agora, conhecesse – e não eram poucas.
sem mais nem menos, não sei se Preparei-me para me voltar e
voltarei a vê-la. começar a correr para dar o
Senti as lágrimas a correrem-me alerta, quando a minha mente se
pela face, mas não as tentei iluminou. Mais tarde, admirei-
reter. me por não ter reconhecido
Para que destino cavalgara ela? antes aquele tão característico
Batalhar numa batalha que não andar, ligeiro, rápido e seguro, e
era a sua. Lutar por um povo indumentária, que haviam
que não era o seu. Por mim. Não estado presentes na minha vida
o merecia. E agora, sem mais desde que tinha memórias. No
nem menos, não sei se voltarei a entanto, naquele momento
vê-la, soou novamente, na minha apenas consegui descer a
mente. muralha apressadamente,
Subitamente, um movimento prostrando-me no largo portão
quebrou a sinistra quietude que principal, pelo qual podiam
inundava os vales. Uma forma passar três cavalos lado-a-lado,
humana deslocava-se numa a galope. Passei o peso do corpo
colina do outro lado do vale, de um pé para o outro, ansiando
descendo a encosta suave com por rever aquela cara amiga mas,
enorme rapidez, mas com principalmente, por notícias do
movimentos calmos e fluidos. exterior, enquanto uma pontada
Movimentava-se como se fizesse de esperança se esforçava por
parte da própria natureza, de tal aparecer, entre a culpa e a
modo que quase passava angústia de poder não mais ver a
despercebido sob o meu olhar. rapariga.
À medida que se aproximou, as «Boas!», disse jovialmente,
minhas suspeitas confirmaram- quando chegou. «Soube que
se – aquele não era o caçador estavas mal. Já andas de pé?»
que tinha partido para a aldeia «Já, estou a melhorar depressa»,
no dia anterior. Nem ele nem respondi, com a voz trémula.
qualquer habitante dos vales, «Que novas há, lá de fora?»
pelas suas vestes. Aliás, as «Não pareces bem. Acho que é
vestes que ele envergava não melhor voltares para o teu
eram características de povo ou quarto. Partilho as novidades lá»
Baixou os olhos.
114
Dagon

dizia. »Ontem alguns emoshi


adiantaram-se, numa aldeia
۶ perto daqui, e foram
completamente chacinados pelos
cavaleiros poushi. Não pouparam
nenhum quando, ao chegarem,
os viram a queimar e a matar
O dia passou, abafado.
tudo o que lhes aparecia à
Assim que haviamos chegado ao
frente.»
quarto, ele pusera-nos,
A surpresa apoderara-se
apreensivamente, a par do que
imediatamente de mim. A coisa
acontecia lá fora. Ao que parecia,
que os poushi mais prezavam
toda a civilização idishi estava
era a vida e, para eles, os
prestes a colapsar , sob os
sentimentos eram sagrados. Para
ataques emoshi.
aquele povo matar era preciso
Contrariamente ao que seria de
muito.
esperar, os emoshi haviam-se
Agora que os emoshi haviam
dividido em inúmeros pequenos
levado a guerra ao povo inocente,
grupos e preparavam-se para
a sua tolerância para com eles
atacar as aldeias e os castros
devia ter acabado.
mais pequenos em simultâneo,
aniquilando de uma só vez todas
as pequenas guarnições que se
O lanche trazido ao meu quarto
haviam deixado espalhadas pelos
foi farto, mas nenhum de nós lhe
vales.
tocou, assim como nenhum de
«Parece que eles se preparam
nós manteve uma conversa
para atacar quando o sol atingir
coerente a tarde inteira.
o zénite, amanhã», dissera ele.
Já não voltaria a ver a rapariga,
Menos de um dia.
e provavelmente o Castro nem
«Eu sabia!», praguejara o meu
mais uma semana sobreviveria.
irmão. «Elas nunca deviam ter
A minha visão turvou-se, com as
saído daqui! Eram a nossa única
lágrimas. Tentei controlá-las,
esperança. Agora estamos
infrutiferamente, mas eles
perdidos.» A sua voz declinava,
fingiram não reparar. Fraco,
em desespero.
soou uma voz, desdenhosa, na
«Têm de ter esperança.» Mas nem
minha mente, és um fraco.
ele parecia convencido do que

115
Dagon

O meu irmão saiu, para procurar Estava na muralha, sob um sol


novas do exterior, mas essas não escaldante do Sul, um sol que já
existiam. O meu mais antigo não experimentava havia anos,
amigo tamborilava nervosamente que me fazia recordar tempos
com os dedos na mesa, e há passados, que me
muito tempo que era o único envergonhavam. O fio de
som no quarto. A certa altura, pensamentos perdeu-se,
levantou-se e saiu, para informar felizmente, tão rápido como
quem estava encarregue do aparecera, quando uma mão se
Castro da situação no exterior. pousou nas minhas costas.
Pouco depois, o dia deu lugar à «Vamos embora, precisas de
noite, e a pouca actividade do descansar», disse o meu irmão,
Castro esmoreceu. Tentei preocupado. As pernas
dormir, mas não consegui. começavam a fraquejar-me, e a
Mudei de posição, chorei, mas dor no braço esquerdo estava a
não consegui adormecer. aumentar.
Quando o fiz já a lua ia bem alta «Sim, talvez seja melhor.»
no céu sem nuvens, iluminando Comecei a virar-me, para
o Castro com a sua luz leitosa. principiar a subida em direcção
à parte alta do Castro, onde
dormia, mas algo me prendeu a
۶ atenção. Naquele momento, algo
quebrou a sinistra calma em que
tudo estava emergido havia
vários dias. «Espera.»
O sol descia sobre o horizonte Durante longos segundos de
pela quinta vez desde que expectativa, nada se mexeu. E
acordara pela primeira vez após então, quando o Sol tocava o
a batalha, mas parecia já ter topo da colina, um cavaleiro
passado uma eternidade. Nesse apareceu, a cavalgar em direcção
curto espaço de tempo, ao Castro. A mão amiga que se
conhecera a rapariga, ela tinha pousada no meu ombro
tornara-se inexplicavelmente havia momentos tornou-se
uma das pessoas que mais me tensa, subitamente, ao mesmo
importavam no mundo, perdera- tempo que descia para
a, provavelmente, e reencontrara desembainhar a espada.
o meu mais antigo amigo.

116
Dagon

«Não vais precisar de lutar, não creio que tenham de se


irmão, não agora», tranquilizei-o. preocupar com aqueles
asquerosos nos próximos
Ela voltara. tempos.»
Atrás de mim, ouvi um suspiro
de alívio mesclado com um grito
de alegria. Sorri – estávamos
salvos.
Parte III – Inconformados «Obrigado. Muito obrigado, por
tudo», agradeci, espetando-lhe
um dedo na barriga. «Deves
querer comer e descansar,
Ainda antes de ela descer do certo?»
cavalo, atirei-me na sua «Sim, não me importava nada.»
direcção, enrolando os meus Sorriu. «Nunca cavalguei tanto
braços à sua volta. Por num só dia. E este meu amigo»,
momentos, esqueci a mão que disse, acariciando a crina do
não tinha, e apertei contra mim, cavalo, «também merece uma
com todas as forças que tinha, a recompensa.»
rapariga que pensei que não «Eu trato dele», ofereceu-se o
mais iria ver. Não a tinha meu amigo, saindo da sombra.
perdido. Graças aos céus, ela
estava viva.
«O que aconteceu?», perguntou o ۶
meu irmão, após longos
momentos, referindo-se à
situação em que todo o nosso
povo se encontrava.
Ela afastou-se um pouco de Gritos de terror entraram pelo
mim, encarando o meu irmão meu quarto a dentro. Primeiro
com uma expressão cansada, poucos e distantes até,
mas que deixava transparecer a progressivamente, todo o Castro
vitória. «Acho que conseguimos gritar desordenadamente. Gritos
livrar-vos da praga emoshi. aflitos de mulheres e crianças
Alguns de nós, e de vós, irrompiam pela abertura do meu
morreram, mas todas as aldeias quarto, misturando-se com
estão, agora livres de perigo. E ordens gritadas pelos homens

117
Dagon

que tentavam organizar o olhou-me com um lampejo de


pequeno exército que se reconhecimento, aterrorizada, e
encontrava em Castro Índigo. fugiu de mim, tão rápido quanto
Pessoas corriam de um lado para pôde. Depois de isto se repetir
o outro, desorientadas, pela rua pela terceira vez, com diferentes
para a qual dava o meu quarto, pessoas, desisti, confuso (Seria
sem destino nenhum. pelo coto? Não, certamente que
O que estaria a acontecer? Todos não.), e tentei passar
os emoshi haviam sido repelidos despercebido, até avistar o forte,
para fora dos vales, pelo que a por cima dos telhados baixos das
rapariga dissera na noite casas idishi.
anterior, e finalmente a calma Parei à frente da maciça porta, a
sinistra dos vales fora única entrada conhecida para o
substituída por uma calma forte, observando a torrente de
genuína. Se tudo se tinha guerreiros que de lá saía – três
resolvido, o que poderia estar a dezenas de homens dos clãs da
acontecer? Senhora dos Corvos, a pé e
Saltei da cama e vesti-me montados em pequenos e
desajeitadamente, tão rápido robustos cavalos-das-
quanto o meu braço me permitia. montanhas, que haviam chegado
Saí do quarto, quase a correr, na noite anterior, três centenas
enquanto tentava perceber o que de cavaleiros poushi e uma
estava a acontecer. Olhei o céu, centena e meia de guerreiros
procurando fumo que indicasse idishi, a pé.
um incêndio, esperançoso. Mas o Ao passarem por mim, todos
sol brilhava, forte, num céu azul pareciam saber quem eu era. Os
imaculado – e o meu maior guerreiros idishi viravam-me a
receio confirmou-se. Só cara, depois de me dirigirem um
podiamos estar sob ataque. Mas olhar de desdém e repulsa,
um ataque de quem? enquanto as cavaleiras poushi
Subi em direcção ao forte, me transmitiam calor e
erigido no topo da colina, confiança com o olhar. Todos
correndo, enquanto tentava pareciam saber quem eu era,
confirmar a minha suspeita. No como se eu fosse importante,
entanto, assim que interpelei mas a razão para isso
uma mulher que corria na ultrapassava-me.
mesma direcção que eu, ela
118
Dagon

Quando todos os guerreiros E durante doze longos Verões ali


saíram do forte, entrei, vivi, nunca suficientemente
procurando alguém que me perfeito para ascender a um anel
pudesse fornecer uma explicação mais interior da cidade. Sob o sol
para o que se estava a passar. escaldante do Sul, observei o
Encontrei um dos principais eterno ciclo da cidade, desde que
homens do castro, que me lembro. Colheitas,
comandava permanentemente a Acasalamento, Cultivo, Partos.
guarnição que se encontrava em Num ritmo mecânico, totalmente
Castro Índigo. Conhecia-o há desprovido de sentimento, de
algum tempo. emoções, no qual nunca me
«O que se está a passar?» consegui imiscuir. Um ritmo com
O homem levantou os olhos do um único objectivo – manter
que estava a fazer e olhou-me, aquela Utopia.
espantado por ter entrado Aquele não era o meu lugar, e a
alguém. Quando se apercebeu de cada curto Inverno que passava
quem eu era, hesitou, e mais crescia esse sentimento.
desdenhoso, cuspiu-me nos pés. Precisava de uma vida com
«Inconformados.» sentido.
E no início do décimo terceiro
Inverno, parti.
۶

As recordações corriam, à frente


dos meus olhos, sem as
conseguir controlar.
Um edifício branco erguia-se no
extremo norte da cidade. De um
lado, uma enorme cidade, a mais
Durante quatro dias e quatro
setentrional do Império, estendia-
noites, andei, rumando a Norte,
se até ao horizonte; do outro, uma
fugindo daquela civilização sem
vastidão interminável de areia.
sentido. Procurando algo que não
Haviam-me aqui colocado quando
sabia muito bem o que era.
eu fora encontrado, em bebé. Na
Durante quatro dias e quatro
zona da ralé, dos menos
noites, a paisagem manteve-se
importantes entre os menos
inalterável. De noite, tiritava de
importantes.
frio; de dia, o calor abatia-se
119
Dagon

sobre mim como nunca antes sempre conhecera. Andei


havia feito, em todos os doze maravilhado por toda a casa, até
Verões que eu vivera. Em quatro dar de caras com uma imponente
dias e quatro noites, quatro novas porta de madeira. Abri-a,
sensações conheci – o frio, o calor hesitante, e saí.
extremo, a fome e a eminência da Fui imediatamente encharcado
morte. por uma torrente de água, que
Não me arrependera, não. Tudo provinha não sabia muito bem de
era melhor que uma vida no onde. De cima, sim, era de onde
Império. Mesmo a morte. vinha a água. Que coisa
estranha. Não havia nada
daquilo no meu Mundo.
Durante anos, guardara estas Ao fim de algum tempo, depois de
recordações nos mais recônditos afastar o espanto da minha
lugares da minha mente, e mente, descobri que gostava
nunca mais havia remexido daquilo.
naquele meu longínquo Passado. Que sítio maraviloso era aquele?

Quanto tempo passara, nunca Lágrimas correram-me pelos


soube. olhos, recordando o que
Quando acordei estava numa acontecera a seguir.
cama tão confortável como nunca
antes experimentara. Um cobertor
cobria-me e a sala estava quente, Um barulho fez-me voltar,
com um calor acolhedor, encarando uma deslumbrante
totalmente diferente do calor do rapariga. Os seus cabelos
Sul. castanhos, molhados,
Ignorando os protestos do meu balouçavam com o trote do
fragilizado organismo, levantei- cavalo. Ela saltou, ágil, e caiu à
me, percorrendo aquela divisão minha frente, a túnica verde-lima
de madeira com o olhar. Era confundindo-se com a erva.
maravilhoso! Emoções e
sentimentos estavam presentes
em cada disposição, objecto, A rapariga. Fora ela que me
decoração, ao contrário da fria salvara.
organização das casas que eu
120
Dagon

Não aguentei mais, e os meus antigo amigo. Não condenaria à


joelhos cederam. Cobri a cara morte a pessoa que mais
com as mãos, e chorei. importava para mim, a rapariga
Como não me lembrara antes? que me salvara quando estava
moribundo no meio do deserto,
que me conduzira até estes
fantásticos vales e que me
۶ salvara no meio duma sangrenta
batalha contra os emoshi. Só
tinha uma hipótese – entregar-
me.
Voltei a descer as escadas que
Deixei o forte para trás, correndo
me haviam conduzido,
desvairadamente em direcção às
momentos atrás, às ameias, e
muralhas.
dirigi-me calmamente para o
O que teria trazido os
portão principal. O céu
Inconformados até tão longe?
começava a ficar escuro, prestes
Eu, certamente. Tudo se tornou
a chorar por mim. Choraria por
claro, subitamente. Queriam-me
mim, mas não pelo meu povo e
de volta, onde não pudesse
pelos meus amigos. Não o
revelar os seus segredos.
permitiria.
Segredos que nunca revelei, nem
Um cavalo desceu a galope as
pretendia revelar. Mas quem iria
escadas atrás de mim.
convencê-los disso?
«Não o farás.» Soube que a
Cheguei às ameias, e observei as
rapariga ficaria ao meu lado até
colinas cobertas de
ao fim. Mas tinha de me
Inconformados. Milhares e
entregar, ou condenaria o meu
milhares. Que destruiriam tudo
povo à morte. Ela só o tornaria
aquilo se não obtivessem o que
mais difícil.
queriam.
Esforcei-me por pôr um sorriso
Não conduziria o meu povo até à
na cara, e voltei-me, espetando o
destruição. Não condenaria à
meu indicador na macia barriga
morte o meu irmão, que me
dela. «Obrigado por tudo. Eu
acolhera neste Admirável Mundo
adoro-te,» era completamente
Novo. Não condenaria à morte
sincero, «e tu sabe-lo. A ti e a
quem há mais tempo me
tudo isto.» Fiz um gesto que
acompanhava nesta longa
abrangia todo o Castro, todos os
batalha que é a vida, o meu mais
121
Dagon

vales idishi. «Não posso permitir vertentes das colinas, os


que tudo isto desapareça por guerreiros fugiam, aterrorizados.
minha causa.» E chorei, mais uma vez.
«Nós temos gente suficiente para Lágrimas de alegria.
aguentar durante imensos dias,
talvez uma estação inteira.
Muitos dos aldeões sabem
disparar um arco. Por cada um
de nós que morrer, dezenas de
Inconformados morrerão.»
Lágrimas escorriam-lhe pela Francisco Norega é a primeira aposta da Dagon no
que diz respeito aos jovens autores. Tem apenas 15
face. anos, é natural de Coimbra, frequenta o10º ano em
Ciências e, como o próprio diz, um apaixonado por
«Sabes que não é verdade.» literatura fantástica. É o autor do Blogue
“Anagrama Anárquico” e o criador do forúm “O
Abracei-a, puxando-a para o Cantinho dos Livros”.
chão.
«Não podes!», gritou, batendo-
me. Agarrou-se a mim com tal
força que eu não conseguia
mexer-me.
E o céu chorou, encharcando-
nos. Chorou como se todos os Entrevista:
Deuses chorassem em
simultâneo, e rapidamente a Pedro Ventura
água chegou aos nossos
tornozelos. Como surgiu em ti o interesse
Afastei a rapariga e tomei-a pela pela literatura fantástica?
mão, ao ouvir sons Do mesmo modo que me interessei
desorganizados do outro lado do por muitas outras coisas... O
Fantástico encaixa perfeitamente
portão. Voltámos a subir até às
no leque de temáticas que me
ameias, para observarmos uma
cativam. Mas nunca foi um
cena surreal.
interesse predominante. A opção
Nada poderia quebrar as fileiras pelo Épico Fantástico foi quase
de um exército de inconsciente. Mas estou muito
Inconformados. Nada senão o satisfeito com essa minha escolha.
desconhecido. Por entre a água
que descia em torrentes as
Uma das questões mais

122
Dagon

interessantes que se pode fazer a de idêntica importância e que se


um escritor é, precisamente, qual interligam para formar um todo. É
a razão que o leva a escrever; curioso que o menos me influenciou
Qual é a tua razão para seres um foi o percurso escolar. Nunca gostei
artesão na arte da escrita? de ler por imposição, nem do
pensamento uniformizado que por
vezes domina o nosso Ensino.
No início escrevia por impulso -
Enquanto alguns miúdos liam os
uma fase que quase todos os jovens
"livros de programa" e faziam o
atravessam a dada altura. Depois
hediondo TPC, eu era daqueles (na
tornou-se quase vício. Hoje em dia
altura até éramos muitos!) que lia
sinto uma enorme necessidade de
Júlio Verne, pasmava com o que via
escrever. Porém, devido às
nos "livros de capa preta" lá de casa
circunstâncias do quotidiano, nem
ou ia simplesmente para a rua
sempre posso satisfazer essa
pilotar o Viper do Starbuck, que
vontade. Essa negação é
estava sempre estacionado no
angustiante! Para mim, escrever é
quintal de um dos meus colegas.
estar a ser realmente eu próprio,
Um bom começo, sem dúvida! Acho
algo que, infelizmente, não posso
que se juntaram os "ingredientes"
ser no meu dia-a-dia. E depois a
certos, no momento certo, para
minha escrita tem um ritmo próprio
criar mais um "fantasiador".
e incerto. Perder esse ritmo é algo
que me preocupa por demais. Mas
não desisto! Goor é formado por dois volumes
brilhantes, onde o ritmo
Quais são as tuas influências frenético e as cenas
literárias? Serão as influências cinematográficas se multiplicam,
imprescindíveis na vida de um levando o leitor a uma viagem
autor? que nunca irá esquecer; como
nasceu Goor?
As minhas influências literárias
foram variadas e continuam a ser.
Os últimos três livros que li eram Goor nasceu por acaso, como
de Gerald S. Snyder, Carla Ribeiro e tantas outras estórias que
Gastão Sousa Dias. Padrão? Não acabaram por não ter continuidade.
existe... Leio por prazer e apenas O parágrafo escrito algures numa
quando tenho vontade ou aula da Faculdade acabou por ser
curiosidade para o fazer. excepção, depois de passar alguns
A influência literária é meses esquecido num caderno. O
obviamente basilar para quem ritmo e esse cariz cinematográfico
escreve (e não só!), mas há outras de Goor acabam por brotar
123
Dagon

naturalmente, pois foi assim que ficou muito por contar em Goor I e
visualizei os acontecimentos na II...
minha mente, apesar de nem
sempre ser fácil captá-los e
Goor II beneficia de um maior
transpô-los para o papel. Mas
amadurecimento literário, pois o
esforço-me por fazê-lo pois esse é o
primeiro volume foi ainda escrito
género de escrita que me dá prazer.
em tempo de faculdade.
Eu fiz essa viagem juntamente com
Existindo um salto evolutivo tão
as personagens e pretendo que o
grande de um volume para o
leitor também a faça com essa
outro o que poderemos agora
mesma intensidade e emoção.
esperar de Goor III? Ou seja, é o
Quando um leitor me transmite a
Pedro Ventura hoje um escritor
sua apreciação da obra e refere
diferente daquele que projectou e
determinados aspectos, então eu
compôs os dois primeiros
sei que ele também fez essa
volumes?
"viagem" e essa é a melhor
O próximo livro (que espero ter
recompensa que posso ter como
pronto até ao final do ano) não será
escritor -- a partilha e o tal "click"
propriamente uma continuação de
que prova que tocámos alguém.
Goor, apesar de recuperar o mesmo
espaço físico, algum do enredo
Foi Goor influenciado por alguma (num sentido lato) e uma ou outra
mitologia, como aconteceu por personagem. Neste novo livro
exemplo com a obra de Tolkien? pretendo destapar um pouco o véu
sobre certas coisas que As Crónicas
de Feaglar não explicaram
Sempre me interessei pela
(baralhando um pouco mais o
mitologia/religião. Não esqueçamos
género daquilo que escrevo) e
que qualquer crença religiosa tem
corrigir algo que sempre me
por fundamento eventos
incomodou, desde que terminei
fantásticos, nos quais podemos ou
essas obras.
não acreditar. Mas esse interesse
As expectativas que tenho são
não se reflecte propriamente em
grandes... Mas é verdade que
Goor, onde apenas existe um
depois de um interregno na
sistema de crenças muito simples e
produção de obras extensas,
uma profunda incredulidade (quase
também eu me interrogo sobre
aversão) relativamente a tudo
como será a minha escrita.
aquilo que ultrapasse essa
Veremos...
simplicidade. Sim, existem os
Holkan no enredo, os tais "divinos",
mas o que eram eles afinal? Ainda
124
Dagon

Um dos pontes mais fortes das mais fantasioso dos mundos pode
tuas histórias são, sem dúvida, as olvidar. Quanto ao Bem e ao Mal,
personagens; As personagens que propriamente ditos, julgo que estes
usas, como Feaglar, Caledra, Gar- dois conceitos não são estanques,
Dena, sempre existiram no teu apesar de saber que todos nós
imaginário ou foram frutos de tomamos decisões que se revelam
momentos de inspiração? certas ou erradas à luz de
Essas personagens surgiam e determinados conceitos morais. Isto
moldavam-se à medida que a acontece diariamente na realidade e
história se desenvolvia. Isso da também em Goor. Julgo ser esta
inspiração... O que será? O que humanização o que torna as
recordo são as noites em branco, personagens tão apelativas. E
muita música e demasiados depois não são personalidades que
cigarros... estejam num pedestal que as torne
inalcançáveis. Não... São
personagens com quem qualquer
A forma como exploras as
pessoa se pode realmente
personagens, filosofando sobre a
identificar pois, no fundo, são como
condição do ser humano,
qualquer um de nós. Mas não
mostrando os seus lados solares
existiu qualquer planeamento
mas também os lunares, tem
nessa faceta. As personagens
resultados magníficos... Como
saíram assim e pronto... O que
constróis as evoluções das
aprendi desse "convívio" com
personagens? Delineias tudo ao
Feaglar e companhia? Muita coisa!
pormenor ou vais deixando as
Sim, tornei-me um pouco dhorian...
personagens crescerem à medida
que também tu cresces com elas?
Podemos, através de um conto
Não acredito que não haja ninguém publicado por esta revista, tomar
que, em dado momento, não se contacto com os mundos de
questione sobre si próprio, sobre o Goor; Teremos também a
sentido da vida ou sobre aquilo que oportunidade de ler um conto
o rodeia. Também não acredito na teu, de diferente estilo ( na onda
perfeição, naquela utópica e de Twilight Zone) na Vollüspa;
intocável aura de bondade e virtude Podemos contar ainda com mais
que caracteriza as personagens incursões tuas noutros géneros
consideradas "heróis", apesar de literários?
isso não deslustrar os seu feitos,
pelo contrário. Todos nós temos O conto que escrevi para a Vollüspa
defeitos e virtudes e essa é uma foi uma modesta homenagem a
realidade incontornável que nem o essa série de culto ainda a preto e
125
Dagon

branco, que foi uma das tais É uma situação lamentável mas, de
influências marcantes na minha momento, não vou tecer qualquer
maneira de conceber o Fantástico e, comentário sobre o assunto. Espero
porque não, a própria realidade. que esteja para breve o fim deste
Não me importava de voltar a conflito.
escrever algo dentro desse género Para finalizar, achas que o mundo
no futuro, caso este meu pequeno da literatura fantástica
conto "experimental" tenha um portuguesa conta com valores
feedback positivo. suficientes para elevar o nome
deste género literário? Destacas
alguém que tenha desenvolvido
Que importância teve para a tua
um bom trabalho no universo do
obra as críticas do correio da
fantástico português?
manha, bem como a entrada de
goor nas recomendações do Ao contrário do que alguns querem
Professor Marcelo Rebelo de fazer crer, não acredito que haja
Sousa? uma deficiência cultural ou
genética nos portugueses que os
Esse tipo de divulgação foi impossibilite de escrever obras de
obviamente muito importante e deu Fantástico ao mesmo nível dos
maior visibilidade a Goor. autores estrangeiros. Isso é
Pessoalmente, os momentos mais ridículo. O preconceito contra os
marcantes foram a primeira crítica escritores nacionais emana de
"pública", vinda (curiosamente...) certos interesses particulares e de
da Galiza e a minha ida à RTP como uma sociedade que sempre
convidado do programa Entre Nós. sacralizou doentiamente tudo
Foi uma estreia algo nervosa e aquilo que vem de fora. Mas parece-
desajeitada, mas foi um baptismo me que estamos a vencer
de fogo, num mundo que eu só lentamente esta batalha. Nomes
conhecia "do outro lado". como Filipe Faria ou Sandra
Carvalho, para citar apenas alguns,
vão-se impondo. Mas ainda há um
Mudando de assunto, tenho
longo caminho a percorrer, muitas
acompanhado a revolta conjunta
batalhas a travar e muitas vezes
dos autores que publicavam na
vamos para essas batalhas com
papiro editora, pois a editora não
uma mão atada atrás das costas...
respeitou o trabalho e os sonhos
Mas parece-me que, tal como as
dos autores. Como imaginas que
nossas personagens, já aprendemos
a situação se resolverá?
a lidar com a adversidade.

126
Dagon

127
Dagon

Strauss, e os músicos dos anos


Entrevista: 70, especialmente Robert Fripp e
King Crimson. Também adoro o
trabalho de Joni Mitchel e

Ian R. Macleod
Richard Thompson. E depois
temos o cinema, especialmete o
trabalho de Nick Roeg e Kubrick.
Vencedor do Prémio Arthur C. Clarke de 2009;
E tenho ainda descoberto novas
Vencedor do Prémio Campbell de 2009; coisas, especialmente aquelas
Roberto Mendes
que desafiam preconceitos.

Como e quando surgiu a sua Sendo um dos melhores


paixão pela literatura, escritores de ficção cientifica,
especialmente pelo género da o que pensa do presente do
ficção científica? género e da literatura
Como a maioria das pessoas, fantástica em geral? E o que
essa paixão começou quando eu podemos esperar no futuro?
era ainda miúdo. Comecei por ler Bem, em primeiro lugar
John Wyndham e Asimov, e obrigado pelo elogio! Para ser
depois as leituras começaram a honesto, terei de dizer que o
seguir outros caminhos. Era género está numa espécie de
uma época interessante para a depressão moral. Terás de
Ficção Cientifica, com o trabalho perguntar às pessoas se por
dos Clássico como Clarke e acaso lêem ficção científica, se
Heinlein a serem desafiados forem da minha idade as pessoas
pelos escritores da New Wave. devem responder que
costumavam ler, mas que não
Quais são as suas influências? lêem mais. Se forem mais novas
Dentro do género, terei de falar que eu, muitos não conseguirão
de Robert Silverberg, Keith sequer perceber o género, à
Roberts e, especialmente, em J G excepção de casos
Ballard. Mas também li uma contextualizados em jogos de
grande variedade de Clássicos, e computador, em filmes ou em
tenho a maior das admirações banda desenhada. Existe
por autores como D H Lawrence, também a questão de as pessoas
Thomas Hardy e F Scott preferirem não pensar no futuro,
Fitzgerald. Mas não tenho pois acham a ideia aterradora,
apenas influencias de escritores. ao invés de excitante. Estas
Passei uma enorme quantidade pessoas são ainda afastadas do
de tempo a ouvir música, gosto género pelas trilogias dos
especialmente dos compositores dragões e também de naves
românticos como Mahler e espaciais que surgem no
mercado sem qualquer cuidado
128
Dagon

editorial, desvirtuando o género, para o seu passado, e que


afastando possíveis leitores. Mas considera agora o ―salto‖ para
acredito que o género apenas uma espécie de máquina que
poderá ir numa direcção: para permite uma existência artificial,
cima. Não poderá descer mais. podendo ou não dar-lhe a
Mas para que tal aconteça temos imortalidade. É uma história
de reflectir sobre o que significa sobre o futuro, sobre a música, o
ficção científica e o que significa amor e a vida. Sim, foi bastante
fantasia. O presente apresenta difícil de escrever, não tanto pela
demasiadas obras ―coladas‖ ao história em si, mas pelo facto de
sonho do voou no espaço dos ser difícil encontrar um público
anos cinquenta e à fantasia de alvo para vender o livro.
Tolkien.
Sendo um escritor que está Que outros géneros para além
habituado a ser nomeado e a da ficção científica o
ganhar prémios, qual é a fascinam?
importância para si de ter sido Terei de responder todos os
considerado o vencedor do géneros e até não-géneros. De
prémio Arthur C. Clarke? facto, é curioso mas não leio
Bem, este prémio deu-me a mim assim tanta ficção científica.
e à minha obra uma maior Penso que se não escrevesse no
publicidade, o que é sempre bom Âmbito desse género leria muito
para um escritor. E também te mais.
faz pensar que deves estar a
fazer algo de certo com o teu Que está a ler neste momento?
trabalho. Estou a ler ―The Suspicious Mr
Whicher‖, uma obra de não
Considera “The Song Of Time” ficção sobre um assassínio que
a sua obra-prima? ocorreu em 1960.

Não! Tal como em tudo o que Acredita que os jovens


faço, considero este livro escritores têm o potencial
simplesmente a minha melhor necessário para assegurar um
tentativa naquilo que me propus futuro brilhante ao género da
alcançar. Ficção Científica?
Sim e não. Gostaria de pensar
Como descreve “The Song of que os jovens não irão apenas
Time”? Foi um livro difícil de garantir o futuro do género mas
escrever? também fazer-nos a nós, a velha
guarda, pensar sobre o género e
É uma história sobre uma as suas evoluções. Contudo não
mulher que viveu a sua vida me parece que se possa pensar
neste século, olhando sempre num futuro assegurado, apesar
129
Dagon

de existir bastante potencial nos Eu sinto, verdadeiramente, que a


jovens autores. expressão mais pura da
literatura fantástica é
Que tipo de escritor é: a) Um conseguida através da ficção
trabalhador metódico, que curta, especialmente agora que
trabalha com um horário os romances tendem, a ser
apertado, sem lugar para demasiado grandes. Mas podes
desvios ou b) Um autor que fazer muito mais coisas com um
apenas escreve quando se romance, os cotos são sobre as
sente inspirado? ideias enquanto a ficção longa
Sou os dois! É sempre necessário permite desenvolver os
tentar coisas novas, que podem personagens e explorar temas
ou não resultar, mas é também que cheguem a um mercado alvo
imprescindível que o autor seja consideravelmente superior.
disciplinado, pelo menos se
espera escrever durante tantos
anos como e o tenho feito.

Que conselhos pode dar aos


autores amadores?
That, and follow your heart.
Têm de ler, ler e ler um pouco
mais. É essencial.

O que podemos esperar si num


futuro próximo? Regressará à
ficção curta?

Tenho uma nova colecção de


contos que sairá pela
Subterranean Press este ano.
Para além disso estou a terminar
um romance chamado ―Wake Up
and Dream‖. A história passa-se
numa versão alternativa da
―Golden Age Hollywood‖.

Considera os romances mais


importantes que a ficção
curta, ou serão os contos a
melhor expressão da literatura
fantástica?

130
Dagon

No apelo das esferas celestes


Poesia Em representação dos olhos que se
Carla Ribeiro cruzam em perpendicular

E concretizam na carne a abstracta


É pica fusão do divino.

Como um estrondear por dentro de


um gemido no vento,
Silêncio sobre a mistificação das
O grito de uma trompa de batalha eras…

E o esvoaçar de estandartes sobre o Jaz por terra o corvo que cantava no


cinzento dos céus, estandarte do martírio

Como bandeiras de linhagens E a cruz fez-se de sangue


ancestrais.
Na página derradeira de uma
epopeia incompleta,

Sinfonia de aurora exaltada em De uma lenda desfalecida.


compassos de tambor

No bailado dos exércitos em marcha


Como um fogo disperso no
E na fantasia escarlate de um trono crepúsculo do tempo,
que se derruba
O som de passos em fuga
Sobre as cinzas do que foi o limite
Sem mais que um vago olhar em
da pedra
traços de elegia
Mas que cintila na poeira de um
Amortalhando o cadáver dos
sudário.
derrotados.

Súbito, um fulgor solar

Resplandecendo como uma vaga de


espelho entre as espadas

Da profecia que brota

Como um clamor renascido na fusão


de mil gargantas

131
Dagon

Onde o raio cruza o ar até à água


Mágica
Para incendiar nos momentos a
sombra da perfeição.

E se eu encontrasse os teus olhos


nas brumas da profecia?
Teço-te em mil sentidos na teia de
cada memória

Cartas de mistério nos silêncios da E repito-te dentro de mim


inquietude,
Como uma corda enrolada nas veias
Silentes braços de morte envolvendo dos meus feitiços
o rei de espadas
Para te enlaçar por entre poções
Como um profetizar de miragens em multicores…
olhos de oráculo.
Vermelho como o sangue que te
Uma mente que divaga inflama nos meus olhos,

Por entre os fumos do incenso que Violeta como a sombra que me


prenuncia o ritual, contempla na tua voz

Dedos de bruma bailando nas E negro como os céus que recebem


linhas do pentagrama, em mãos de berço

Algures entre o fogo e a cruz As invocações que prendi por entre


entes e divindades
De Lilith adormecida sob a árvore do
bem e do mal. Para guiar os teus passos até ao
meu lugar.

E as minhas mãos estendidas até ti,


Mas e se o meu mundo não te
Como num infinito portal de
encontrar?
espelhos adormecidos,

Um presságio de milagre

Concretizado em pele e fogo e


sangue e terra e morte

E fundido no crepúsculo das


tempestades

132
Dagon

Como um sudário plantado no corpo


Gótica da quimera

Perante os vultos que se afastam.

Fugi da luz

Para dentro de um cântico pintado Caí dos céus


com a noite e o fogo
Como um fantasma adormecido na
Entre traços de pele e pinceladas de mordaça da aurora
sangue
E espalhei-me nas cinzas do
Divagando sobre o tremor da carne universo
que embala os séculos
Para morrer num olhar imortal.
Sobre o berço de ninguém.

Sob um céu de espelhos abertos no


céu primordial,

Fiz-me face predadora

Num véu de origens dispersas


sussurrando o meu nome

De imortal.

E os céus tremeram

Sob o ascendente crepúsculo da


minha divindade

De entidade tenebrosa,

Soltando o grito da presa na


mensagem dos incêndios,

Escarlate fulgor derramado entre


braços que se debatem.

E um sorriso cruzou os laivos


iridescentes do olhar

133
Dagon

tom conversacional, e não


O Original, ou Sua académico, não vá algum leitor
sofrer de vertigens.»
Ausência, na FC A diferença na FC [Ficção

Portuguesa, Face a Científica] portuguesa


contemporânea não deverá ser
medida tanto face à FC que se
Outros Países publica fora de Portugal (e aqui
afirmo Portugal em desfavor de
Malabarismos Fora da Tenda do Circo "língua portuguesa", porque, mau-
grado a existência de um
movimento literário de FC no
Brasil, com o qual tem havido
algum intercâmbio, nomeadamente
através do Prémio Caminho, do
Atlântico Tem Duas Margens, e da
publicação de autores portugueses
nas fanzines brasileiras, não há na
verdade uma FC em língua
portuguesa, se bem que possa
haver uma FC portuguesa e uma
brasileira. A falta de intercâmbio
não é necessariamente problema da
FC, se não um problema que de
facto existe na literatura dos dois
países, a todos os níveis) - deverá
ser medida, dizia eu, contra si
mesma, face a uma evolução no
tempo, lenta mas marcante.
Luís Filipe Silva
Segundo a Enciclopédie de l'Utopie
O autor comenta: «Há cerca de um et de la Science Fiction, de Pierre
ano fui entrevistado por uma Versins, a necessidade de escrever
jornalista francesa, que me colocou FC em português nasce nos anos
uma série de perguntas por email 40/50, talvez impulsionada pelas
sobre o estado da FC portuguesa. O transformações vindas de fora,
objectivo era fazer o proverbial pelas descobertas científicas, e sem
dúvida pelo surgimento de uma
artigo, cujo destino final não me foi
colecção regular, a Argonauta,
relevado, ou sequer se teve precisamente em 1957. Se quiser
progresso. Ficou um conjunto de compreender o caminho da
respostas longas, que aqui mentalidade da FC portuguesa,
principiarei a reproduzir para vosso deverá conhecer a evolução das
conhecimento. Avisa-se que é em obras disponíveis ao público na
mesma língua. É de facto com esta
134
Dagon

colecção, com o ritmo de publicação questionar, satirizar, ou enaltecer,


regular, de 1 livro por mês, que se a posição do nosso país no mundo.
vai ganhar um mercado, abrir o Recordo-me da Euronovela, do Vale
horizonte a leitores que nem de Almeida; recordo-me de A
tinham acesso às obras Cidade da Luz, do José Murta
estrangeiras nem saberiam lê-las Lourenço; recordo-me até certa
nas referidas línguas. medida, de Medo Em Seis
Andamentos, de Valério Romão;
Mesmo assim, nos anos 40, é recordo-me essencialmente do
publicada em Angola uma obra recente Quatro Andamentos, do
(cujo autor e título não retenho na Luís Sequeira. Em quase todas
memória) que apresenta um mundo estas obras, em particular naquelas
em que os países europeus são que são nitidamente primeiras
matriarcados, e Portugal é, por obras ou de escritores ainda pouco
sinal, um patriarcado. Em que as maduros na escrita, o peso da
maravilhas tecnológicas e História acaba por esmagar o da
arquitecturais de Lisboa se Estória, como se as alterações do
misturam com um presente território nacional, a sua nova
saudosista e poético. A fantasia dá geografia de gentes e lugares tivesse
lugar ao sonho, a um nacionalismo necessariamente predomínio sobre
exacerbado, e não é por acaso que o território interior, ou não
os dirigentes de Portugal se casam conseguisse viver com ele de forma
com as líderes de França ou harmoniosa.
Inglaterra, e o livro acaba com uma
ou duas mensagens humanistas, A maior parte destes livros
enquanto se contempla o horizonte encontram-se em edições de autor
do mar... ou de editoras de pequena
dimensão - são extremamente
Vamos voltar a encontrar este difíceis de encontrar. O que nos
nacionalismo romântico em tempos leva a outro factor determinante na
recentes, O Enigma de Titã, de evolução da FC portuguesa: o do
António Bettencourt Viana, Editora espaço de publicação.
Nova Arrancada, Lisboa, 1999.
Neste livro, o autor leva-nos a bordo Autores de mainstream sempre
de uma nave com destino a cometeram o pecado de entrar um
Saturno, em missão exploratória, e ou dois pés nas águas do
com uma equipa mista de cientistas fantástico: Romeu de Melo, Natália
portugueses e espanhóis. Depois de Correia, José Saramago. Não
muitas aventuras, a maioria das assumidamente como tal (com
quais de natureza inter-pessoal, o excepção do Romeu), e quase
livro acaba em matrimónio para os sempre no início das respectivas
principais personagens. carreiras literárias. As editoras não
contribuíram para o crescimento
De facto, se há um factor deste espaço: a própria edição de
demarcante na FC portuguesa, é a FC traduzida, aparte o fenómeno
sua utilização como veículo de extraordinário da Argonauta (e
135
Dagon

mesmo esta tem sofrido abalos de como indivíduos, participantes de


qualidade bastante graves, em Estórias.
particular nos últimos 15 anos), foi
sempre errática, e apesar de O prémio daria origem a uma
colecções que ainda duraram algum colecção, a colecção à participação
tempo, como a DH Ciência e a (errática) de um conjunto de nomes
Panorama, foi só nos anos 80, com que por ali foram surgindo (eu
o surgimento de outra colecção inclusive). O apogeu aconteceu em
regular, da Europa-América, com 1993: todo o ano editorial da
traduções mais bem cuidadas colecção da Caminho - 6 volumes -
(nesses tempos, uma vez que publicaria apenas ficção científica
rapidamente a qualidade começou a portuguesa, feita por portugueses.
decrescer), que algumas obras que Foi notícia de jornal, foi
se iam lançando lá fora foram acontecimento na Feira do Livro de
surgindo por cá. Essas obras eram Lisboa, foi objecto de reportagem e
mais modernas, mais recentes, análise em alguns periódicos
mais ao ritmo dos tempos. O nacionais.
mercado devia prometer, pois entre
1985 e 1987 nasceram e morreram Que coesão posso encontrar nas
várias colecções, em particular a obras apresentadas? Por sinal, as
colecção Contacto, da Gradiva, que são mais fáceis de classificar
liderada pelo João Barreiros. são aquelas nas quais Portugal é o
protagonista - são demarcadamente
O surgimento da FC portuguesa, de análise histórica, enaltecentes
moderna e actual, com maior ou românticas. Recentemente, têm
qualidade e assumida como tal surgido algumas mais cínicas e
(nem que fosse pelo facto de ser frias, feitas por autores jovens cujas
publicada sob a égide de uma influências são diferentes da
colecção de ficção científica) terá geração anterior (o que se percebe
lugar na Editorial Caminho, que, ao pela capacidade de enquadrar
abrir um prémio, em 1985, Portugal numa perspectiva mais
assumidamente de fantástico, internacional). Uma das obras mais
permitiu o reconhecimento do cínicas de recente estirpe será
género. O lançamento de Os Morte Certa, de Carlos Águas
Caminhos Nunca Acabam, do João Amaral, que invoca o ressurgimento
Aniceto, e A Vocação do Círculo, do do fascismo num Portugal daqui a
Daniel Tércio, inauguram, de certa trinta anos...
forma, o outro lado da FC
portuguesa, aquele que não se As restantes são invariavelmente
preocupa com questões de mais complexas e difíceis de
nacionalismo. Se de facto há enquadrar. Nascem de uma não-
portugueses nas histórias destes tradição: são obras singulares e
autores, e nas dos que se lhes isoladas (falo de o Demónio de
seguiram, não são como Maxwell e a Pedra de Lúcifer, do
representantes de uma nação, mas Daniel Tércio; falo da sequência de
romances e contos do Aniceto; falo
136
Dagon

da minha própria GalxMente; falo de acordo com Valerio Evangelisti


do Terrarium, que fiz com o João na introdução à antologia
Barreiros). Ou melhor, a tradição Fragments d'un mirroir brise, está a
existe, mas não é portuguesa, e não despertar de um sono antigo (uma
é coerente, porque se baseia nas das causas que aponta é o da bota
leituras e influências temáticas de fascista de Mussolini ter impedido o
cada autor - todas elas divergentes. avanço cultural do país - o que de
Este facto já tinha sido apontado certa forma explica também a nossa
antes, e acaba por ser verdade. Por situação); Alemanha parece ir mais
estranho que pareça, os autores atrasada, com excepção da
portugueses não se influenciam Fantasia, em particular a Fantasia
entre si. São, isso sim, Heróica, de cujos mitos a sua
extremamente permeáveis ao que cultura é abundante.
vem de fora.
Aliás, note-se, se não fosse a
E o que vem de fora são obras França a traduzir obras de
anglo-saxónicas, quase espanhóis, italianos, polacos,
exclusivamente. O mal não é alemães e russos, a unir, digamos,
apenas nosso, é de toda a Europa. o tecido da FC europeia numa
A falta de união linguística única língua, menos ainda se
europeia, aliada à tremenda conheceria e estaria difundido, pois
capacidade produtiva dos EUA, a FC anglo-saxónica, mesmo de
levou a que o imaginário secular de natureza britânica, rejeita tudo o
França e Inglaterra fossem que não seja de "marca nacional"...
dominados pelas preocupações e
abordagens socio-científicas dos O problema da FC portuguesa é
autores americanos (há um artigo precisamente o carácter errático: as
brilhante do britânico Brian colecções são de má qualidade, e
Stableford a analisar este facto). Há não percebem, e não enquadram, o
países que entretanto recuperaram, que publicam. Sem informação, não
ajudados pelo estatuto hermético há crescimento sustentado. Não
da língua: falo de Espanha, França, tivemos movimentos literários
Itália, Alemanha. Nestes países, em dignos de nome, não tivemos outros
que o contacto com a cultura movimentos a contestar os
estrangeira surge traduzido ou primeiros. A arte é um discurso
adaptado para a cultura nacional feito de manifestações, e em
com publicações abundantes e Portugal, em FC (e na literatura de
recentes, torna-se mais fácil a mainstream, mas isso é outra
leitura e desenvolvimento de discussão), o discurso não existe,
temáticas e discursos - pois a FC está quebrado em váriadas e
acaba por ser um discurso à escala pequeninas conversas.
mundial sobre a situação do tempo
presente e do nosso futuro próximo. Daí que livros como Estórias de
Espanha tem encontrado um Clausura, de José Leonardo, ou o
surgimento massivo de fc nacional, Metacarne, do Manuel Pais, embora
França há muito que o tem, e Itália, publicadas com a chancela de uma
137
Dagon

editora de renome, a Oficina do


Livro, cometam os mesmos erros de
estilo, interpretação e facilitação de
enredo que outros autores já
tinham provado não serem
deficiências da FC portuguesa.
Livros como estes, que surgem do
nada, sem conhecimento do que foi
anteriormente feito, contribuem
para o afastamento do público, que
atribui a má qualidade a um
pseudo-facto: FC portuguesa é uma
aberração conceptual.

A afirmação pode ser um pouco


exagerada, concedo. Mas na minha
perspectiva pessoal, estamos longe
do que se conseguiu na década
passada, em particular na
Caminho, naquilo a que já foi
chamado a última tertúlia
portuguesa do século XX.

Estamos longe, e não há sinais de


conseguirmos retornar à costa nos
próximos anos.

138
Dagon

terror. Frederick Andrew Lerner


Ficção Científica: observa que mesmo os autores,
editores, críticos e fãs de ficção
A difícil definição científica ―não chegam a
qualquer consenso de
de um Género; delimitação do género‖.

O grande problema prende-se


com o facto de textos muito
diferentes pertencerem ao
género, o que não acontece com
muitos dos géneros literários. Na
ficção cientifica podem ser
integrados textos como ―The
Roberto Mendes
Demolished Man ―(Alfred Bester
1953), um obra barroca que
toma lugar num tempo futuro
A ficção Cientifica é, sem dúvida, onde poderes psíquicos impedem
um género difícil de definir. No o acontecimento de assassínios,
seu seio demarcam-se vários pertencem também ao género
subgéneros, cada um com estilos textos como ―Flash Gordon‖ (Alex
e incidências muito Raymond 1934), uma Space
determinadas, quer nos Opera onde um bravo grupo de
encontremos perante uma humanos lutam para derrotar as
história de Cyberpunk, história forças do mal de Ming, ou ―A
alternativa, Space Opera, Space Stranger in a Strange Land‖
Western, entre os demais. (Heinlein 1961), uma sátira onde
São várias as tentativas de o amor, o casamento o sexo e a
definir este género tão religião são o pano de fundo.
importante da literatura, É neste contexto que o autor e
contudo todas falham em editor Damon Knight profere
delimitar de forma precisa as uma das mais célebres frases da
balizas, o que pode ou não ser ficção cientifica ― Science Fiction
considerado ficção científica, o is What we point to when we say
que realmente apenas pertence it‖ . Na senda de Knight, Mark
aos géneros da ficção Glassy diz que ―a definição da
especulativa, da fantasia ou do ficção científica é como a
139
Dagon

definição da pornografia: não Frankenstein e The Last Man,


sabemos delimitar o que é, mas ajudaram a definir esta evolução.
sabemos o que é quando a Autores incontornáveis da velha
vimos‖. vaga da ficção científica são, sem
qualquer dúvida, HG Wells e Jules
Para que possamos facultar uma Verne. Estes autores, após a
humilde definição do género é descoberta das novas tecnologias
necessário não descurar uma como a electricidade e o telégrafo,
apreciação historicista do desenvolveram uma enorme obra
mesmo. Nestes termos somos que se tornou, rapidamente,
reconhecida pela sociedade. Nascia
obrigados a tomar um pequeno
assim um género. O sec. XX chegou
desvio, para vos apresentar um
e com ele a grande evolução do
breve parêntese sobre a história
género. Foram criadas as Pulp
da ficção científica, as suas Magazines, onde uma geração de
origens, primeiras obras e autores, sobretudo americanos,
autores, movimentos e puderam dar largas ao seu génio.
ramificações que criaram os Em 1930 Campbell tornou-se editor
subgéneros. da Astounding Science Fiction, e
com ela surgiu uma nova vaga de
Breve história da Ficção autores nova-iorquinos. Eram os
Cientifica ―Futurians‖, e nos seus quadros
emergiam autores como Isaac
A origem da ficção científica
Asimov, Damon Knight, Donald A.
remonta à mitologia. As primeiras
Wollheim, entre outros. Contavam-
obras literárias com pontos de
se também como grandes autores
conexão com a ficção científica são,
neste período Heinlein, Arthur C.
por exemplo, os Arabian Tales e
Clarke, ou Stanislaw Lem. Estavam
Voyage de la terre à la lune de
reunidas as condições para o
Cyrano de Bergerac no sec. XVII. As
surgimento da saudosa Golden Age
viagens de Gulliver foram, sem
da Ficção Científica, encabeçada
dúvida, um dos trabalhos que mais
por Campbell. Em 1970 surge,
se aproximava da ficção científica,
especialmente na Britanha, a New
tal como Somnium de Kepler.
Wave com autores como Ray
Asimov considera esta obra o
Bradbury, Theodore Sturgeon, Fritz
primeiro verdadeiro produto de
Leiber, entre outros. Mas a New
ficção científica. Depois do grande
wave foi também um período em
desenvolvimento do romance
que mais autoras surgiram na
enquanto forma literária também a
ficção científica, trazendo novas
ficção científica se desenvolveu. Os
ideias de socialismo, feminismo,
livros de Mary Shelley:
140
Dagon

radicalismo às obras de ficção admitido demasiado extensivo,


científica. Ursula Le Guin e Joanna pensamos ser importante a tomada
Russ são os expoentes máximos de posição. Seja ela uma
desta vaga feminina. O Cyberpunk interpretação mais restritiva ou o
conheceu os seus melhores anos seu contrário. Na senda de autores
em meados de oitenta, como Asimov urge diferenciar a
principalmente através da obra ficção especulativa da verdadeira e
Necromancer de William Gibson; as boa ficção científica. Mais que
Space Opera‘s ganharam nova força simples histórias conceptuais é
com a história de Star Wars. As necessário um certo conhecimento
séries televisivas como Star Trek e das variáveis científicas, a boa
Babylon five trouxeram novos fãs. ficção científica deve assentar
São muitos os subgéneros da ficção numa verdadeira base científica, ou
científica: a Hard Science Fiction, tecnológica, correndo o risco de, na
Social e Soft Science Fiction, falta destes pressupostos, não
Cyberpunk, História alternativa, passar de ideias especulativas. Não
ficção científica pós apocalíptica, basta que a história se passe num
história alternativa, Sapce Opera, certo planeta como Marte, é
Space Western, entre muitos necessário que o autor faça um
outros. bom trabalho de pesquisa, e
forneça assim dados científicos
A Definição do Género
suficientemente certos e precisos
Mas o que definirá a ficção para que a obra seja enquadrada.
científica enquanto género? Serão Sem este requisito pode até ser
as ideias exploradas associadas a uma boa história de horror ou de
um futurismo científico? Ou poderá fantasia, mas não será verdadeira
uma obra ser considerada ficção ficção científica. Mais que
científica apenas por a sua base ser privilegiar a ideia, deve ser o
uma viagem no tempo, sem conteúdo a definir o que faz e o que
qualquer informação científica não faz parte deste maravilhoso
associada? Poderá uma simples género. Mas poderá a ideia ser
referência a um futuro distante ser sacrificada pela importância da
suficiente para inserir um conto pesquisa e cuidado científico ou
num certo género? Parece-nos que tecnológico? Autores como Ian
não. Num campo em que é difícil Hocking respondem a esta questão
não ceder à tentação de desistir, num sentido negativo.
pela dificuldade inerente de uma Recomendamos especialmente o
tomada de decisão que possa excelente artigo ―The Science in
afastar obras, algumas verdadeiros Science Fiction‖ deste autor. Mas é
clássicos, de um género que se tem um artigo do qual discordamos em

141
Dagon

parte. Não deve ser desconsiderada


a ideia, mas uma ideia sem
enquadramento científico ou
tecnológico pode dar excelente
literatura, mas não será Ficção
Científica.

142
Dagon

São narrativas originais que


Por Universos Nunca responderam a um apelo dos
organizadores da antologia, durante
Dantes Navegados o Verão de 2005, no qual se
Antologia da Nova Literatura Fantástica em anunciava a abertura de um novo
Língua Portuguesa espaço de publicação para todos os
autores de língua portuguesa que
Autores portugueses e brasileiros apresentam um
manifestassem interesse pelo
conjunto de narrativas inéditas de ficção científica e
fantasia, demonstrando que o género fantástico em
género.
língua portuguesa continua intenso e criativo.
Organização e Selecção de Jorge Candeias e Luís O projecto teve, desde o início,
Filipe Silva, Edição Final de Luís Filipe Silva como objectivos responder a um
conjunto de lacunas consideradas
primordiais pela comunidade de
entusiastas do género, sempre que
se tentava publicar ficção científica
e fantasia em português:

 aceitar obras provenientes de


qualquer parte do mundo, desde
que escritas na língua portuguesa;
 aceitar toda a multiplicidade de
temas actualmente abarcadas pelo
que se designa de literatura
fantástica, desde a ficção científica
de especulação séria à fantasia
urbana, do terror gótico ao gore, da
história de passados alternativos à
história do futuro porvir;
 aceitar contos de extensão superior
às 8000 palavras, criando assim
condições para obras de maior
dimensão e complexidade que as
normalmente utilizadas por outras
iniciativas semelhantes, ou nas
revistas da especialidade.

Do volume de narrativas
POR UNIVERSOS NUNCA DANTES submetidas, que ultrapassou
NAVEGADOS é uma antologia de largamente a meia centena, entre
contos e novelas de literatura colaborações portuguesas e
fantástica da mão de autores brasileiras, foram seleccionadas
portugueses e brasileiros. catorze, que compõem a presente
edição (Novembro de 2007).
A organização e selecção é de Jorge
Candeias e Luís Filipe Silva, e a > Para Adquirir o Livro
edição final de Luís Filipe Silva.

143
Dagon

Conteúdo saudade, porque assume o mundo


um manto de tristeza que comanda
Luís Filipe Silva, Introdução: O os actos e convocta os espectros e
Estranho Caso da Prospectória finalmente faz convergir o outro
Amnésica plano da existência no nosso?

Um breve percurso pela história da Octavio Aragão, Para Tudo se


ficção científica portuguesa e uma Acabar na Quarta Feira
tentativa de entender o fenómeno
peculiar de ser uma literatura que Um regresso ao ambiente das
em todas as gerações consegue favelas do Rio de Janeiro que nos
feitos imediatamente ignorados ou faz recordar o filme «Cidade de
esquecidos pelas gerações Deus», onde uma luta pelo poder
posteriores, numa constante entre grupos rivais terá uma
quebra de continuidade. consequência devastadora. Uma
história emocionalmente forte.
João Ventura, Resíduos Sólidos
Urbanos Jorge Candeias, Littleton

Tudo o que uma civilização O que prometia ser uma


moderna produz acaba descontracção num ambiente
eventualmente tornando-se num artificial feito à medida do utilizador
resíduo: os objectos que utiliza, a transforma-se numa história de
tecnologia, os meios de fabrico, a acção e perigo...mas fará mesmo
comida, o vestuário, os parte da história? Ou por detrás do
medicamentos... tudo o que tem cenário existirá de facto quem
uso acaba por eventualmente procure matar John Walker?
encontrar caminho para o grande
caudal de matérias para reciclagem Gabriel Boz, Digital Éden
e despejo em distantes aterros
sanitários... será que aqui estamos Uma visita a um mundo virtual e a
incluidos nós próprios?... uma eterna saudade.

Wolmyr Alcantara, Oberon Telmo Marçal, O Pico de Hubert

Que fome sentem os demónios? Quando se acabar a utopia da


Que aspecto assumem no nosso nossa civilização, de recursos
mundo? E porque é tão sedutora a inesgotáveis e fontes de energia
promessa que oferecem de um permanentes, que mundo de
paraíso eterno, ainda que ilusório e intensa brutalidade resultará?
falso? Como será possível sobreviver?

Yves Robert, Fome de Pássaro Carlos Orsi, Disse a Profetisa

Quando se perde o amor, onde se Nem sempre quem cai dos céus é
recolhe a memória, quem guarda a um deus ou um anjo...
144
Dagon

João Ventura, Assassinos de Carla Cristina Pereira, Xochiquetzal


Sobreiros em Cuzco - Uma Princesa Asteca no
Reino dos Incas
Quando a posse mais procurada
são árvores, os parques florestais E se Vasco da Gama tivesse
são equipados com os mais procurado dominar a feitoria da
modernos sistemas de defesa de América Latina, antecipando os
ataques de guerrilha... espanhóis e nunca permitindo que
o Tratado de Tordesilhas se
Carlos Patati, A Irmandade concretizasse? Toda a América
Latina falaria português, estaria
Dentro de nós somos um ou uma controlada pelos portugueses do
multidão? Devemos ouvir a século XVI... que ameaças
multidão, escutar as suas ordens? existiriam então ao Novo Mundo,
E se essa multidão for real, e existir que povos seriam nossos aliados...
mesmo? e inimigos?

Sofia Vilarigues, O Nevoeiro que


Desvendou Realidades
Onde Encontrar
Um neto regressa a casa e às raízes
da sua infância, num momento de Poderá encomendar-nos
transformação e esquecimento, e directamente o livro, mediante a
encontra o rumo da vida que nunca opção de cobrança postal pelos CTT
pensou existir. (apenas para Portugal). Sugerimos
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em que existiu até então era Poderá encomendar-nos
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das Gaivotas enviaremos-lhe o livro mediante
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Um homem numa praia deserta mais informações. Apenas
sonha com histórias, e as histórias disponível para Portugal.
sonham-no a ele, visitam-no pela
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145
Dagon

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A loja aceita diversas modalidades


de pagamento, entre as quais
cartões de crédito. Caso tenha
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informe-se sobre as condições do
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A loja apresenta condições


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Latina, com descontos apreciáveis.

Apenas indicamos como referência,


para seu conhecimento, que
quaisquer questões relacionadas
directamente com a sua encomenda
(e não com o conteúdo do livro em
si) deverão ser apresentadas à loja
directamente, uma vez que se trata
de um mero canal de distribuição.

146
Dagon

Espaço Dúvendor: Mas agora elas prometem


conquistar um reino ainda
maior. É difícil escapar do
fascínio das histórias de bruxos,
espadas mágicas e guerreiros. E
isso por dois motivos: as
narrativas fazem parte da
formação da literatura na
Um espaço de encontro entre um dos melhores
Europa e, mesmo distantes,
tributos brasileiros ao mestre Tolkien com os fascinam outras regiões do
leitores portugueses. Os artigos são aqui
apresentados na sua forma original, o que
mundo. E foram reconstruídas
promove um encontro saudável entre estas com habilidade por autores que
duas formas de pensar e escrever o português. souberam tirar partido da
Para lerem mais artigos, originais de autores
brasileiros ou traduzidos, basta acederem a cultura dos antepassados. Uma
duvendor.com.br antiga lenda diz que, em tempos
remotos, existia nas terras do
A Sopa Mitológica norte o mais famoso de todos os
grandes palácios. Heorot era seu
Europeia: nome; e, em sua sala principal,
sentava-se o rei Hrothgar, líder
Marcelo Ferroni
dos dinamarqueses.

Sua corte vivia em meio a festas


e riquezas, sem saber que a
movimentação fazia sofrer um
poderoso monstro, chamado
Grendel, que habitava uma
região pantanosa nas cercanias
Cuidado com dragões, gnomos e do palácio. A alegria prosseguiu
magos; eles estão por toda a até Grendel decidir acabar com a
parte. Essas criaturas já fazem festa. Não foi preciso muito, pois
sucesso há anos, seja no mundo sua força era monumental; com
fantástico criado pelo escritor um só golpe, atingia 30
inglês J.R.R. Tolkien, ou na guerreiros. Os homens do rei
recente série de livros do Hrothgar nada podiam contra a
aprendiz de feiticeiro Harry criatura e, assim, foram
Potter. sistematicamente dizimados por
mais de uma década. Até que o
sofrimento chegou ao fim. Ao
saber da violência de Grendel,

147
Dagon

um bravo guerreiro deixou suas disseminada naquela época que


terras na Suécia e ofereceu ao rei algumas cortes possuíam seus
Hrothgar uma ajuda para acabar próprios magos e, nas Sagas
com o monstro. Seu nome, todos islandesas aparecem mulheres
vieram a saber depois, era com poderes divinatórios ou que
Beowulf. praticam a bruxaria.

A Moda dos Chapéus Pontudos Essa história bem poderia ter


saído de algum livro escrito pelo
mestre da ficção fantástica John
Ronald Reuel Tolkien (1892-
O mundo dos magos faz sucesso 1973). Professor de anglo-saxão
nos dias de hoje. Basta se (uma forma antiga do inglês) na
lembrar das peripécias do conceituada Universidade de
aprendiz de feiticeiro Harry Oxford, no Reino Unido, Tolkien
Potter. A magia era um tema passou mais de meio século
muito popular na Idade Média e, escrevendo histórias desse tipo.
entre os livros sobre o assunto, o Suas terras, habitadas por elfos,
personagem que se tornou mais dragões e magos, tornaram-se
conhecido é o mago Merlin. "Ele uma referência para tudo o que
é uma figura muito antiga, que foi feito posteriormente, de filmes
aparece em lendas celtas como Willow (EUA, 1988), a
transcritas entre os séculos 12 e jogos de RPG como Dungeons
13, mas que devem datar dos and Dragons.
anos 600" - conta José Roberto
de Almeida Mello, ex-professor
de história medieval da USP. Em
alguns escritos, Merlin é Mas trata-se de uma narrativa
retratado como uma pessoa bem anterior. Faz parte de um
criada em estado selvagem e, em poema heróico composto na
outros, ele se refugia na floresta metade do século 8, que chegou
depois de ficar louco ao provocar até os nossos dias por meio de
uma batalha. E seu nome não um único manuscrito, datado
era Merlin; nas versões galesas, por volta do ano 1000. Se as
é grafado como Myrddin. semelhanças com os livros e
"Acreditava-se, na Idade Média, filmes atuais são grandes, é
que os loucos tinham o dom da porque o épico, chamado
profecia", diz o professor. E isso Beowulf (nota #1) serviu de
pode ter contribuído para a inspiração a inúmeros autores
formação do personagem. A modernos e, principalmente,
crença na magia estava tão Tolkien. "Ele deu aulas sobre
148
Dagon

Beowulf, fez traduções e escreveu na Idade Média. Entre os


sobre ele" - conta Verlyn Flieger, germânicos, acreditava-se que os
professora de literatura da elfos causavam doenças nos
Universidade de Maryland, nos humanos e no gado. E , à noite,
Estados Unidos, especialista em traziam pesadelos ao sentar
Tolkien - "Quando começou a sobre o peito de uma pessoa
escrever suas histórias, muito do adormecida. Já os gnomos eram
que Tolkien conhecia acabou pequenas criaturas deformadas,
permeando o seu trabalho." que viviam nos subterrâneos
guardando tesouros.

Os Baixinhos estão em Todas


O que não quer dizer que ele
tenha copiado trechos do épico
anglo-saxão. Como professor,
Seres pequenos, semelhantes Tolkien acabou se envolvendo
aos humanos, povoam os livros com outras narrativas antigas,
de Tolkien e de Harry Potter. germânicas, nórdicas e celtas. E,
Eles podem ser os amigáveis como diz Ronald Kyrmse,
Hobbits, de pequena estatura e engenheiro e revisor técnico das
pés peludos, os valentes elfos ou traduções de Tolkien no Brasil,
os terríveis guerreiros orcs. "ele acabou criando seu mundo a
Elfos, gnomos e anões também partir do conjunto de tudo o que
estão na literatura medieval. absorveu". Em O Senhor dos
"Eles parecem ser comuns a Anéis, nota-se a homenagem
diversas tradições" - conta a prestada a esses épicos.
professora Verlyn Flieger. Os
nórdicos mencionam
freqüentemente a existência de
gnomos, possuidores de grande Um dos personagens principais
inteligência e habilidade manual. da obra de Tolkien, o mago
A respeito dos elfos, os Edda Gandalf, por exemplo, se parece
citam a existência dos elfos muito com Merlin, figura
luminosos, "de aparência mais enigmática das histórias que
formosa que o Sol", e os elfos tratam do lendário rei Artur,
escuros, que habitam as escritas principalmente entre os
profundezas da terra. "A beleza séculos 12 e 13. Mas a aparência
dos elfos, ressaltada nos livros de Gandalf - um homem velho,
de Tolkien, também aparece na de capuz e cajado, vagando pelas
cultura celta", conta Flieger. estradas - é extraída de outra
Essas criaturas, no entanto, nem narrativa. Para a professora
sempre eram consideradas boas Verlyn Flieger, as características
149
Dagon

do velho mago são as mesmas do fundadoras da literatura alemã.


deus nórdico Odin (nota Nela, conta-se que um dos
#2) descrito em duas obras heróis, Siegfried, tornara-se
islandesas do século 13. Esses invencível ao se banhar no
dois livros, o Edda em Prosa e o sangue de um dragão que havia
Edda em Verso (nota #3), derrotado. "O dragão é uma
narram a criação e o fim do figura muito antiga, e é difícil
mundo sob o ponto de vista dos rastrear sua origem", conta
nórdicos, que habitavam a região Mello, ex-professor da USP. É
onde hoje fica a Escandinávia. O importante lembrar que, antes
próprio nome Gandalf aparece da influência cristã, os dragões
no Edda em Prosa, e não se não eram necessariamente
refere a um mago, mas a um maus. Na maior parte das vezes,
gnomo. estavam apenas interessados em
guardar seus tesouros, e só
reagiam se provocados.

Fogo nas Entranhas

As influências nórdicas são


muito fortes nas obras de
Na história de Beowulf, literatura fantástica. "Muitas das
composta entre os anos de 720 e características dos heróis de
750, o herói não enfrenta só Tolkien se devem aos épicos
monstros que atacavam os nórdicos e anglo-saxões", conta
dinamarqueses. Na segunda Flieger. São homens destemidos,
parte do poema, Beowulf, já em alguns casos aventureiros,
velho e agora rei, enfrenta um que enfrentam desafios
dragão que devastava seu reino. impossíveis às pessoas comuns.
A luta prova-se fatal e, apesar de Na maioria dos casos, usam
derrotar a criatura, o herói espadas, ou outras armas, de
também morre. Os dragões poder mágico. Além de Beowulf e
infestam as sagas e épicos dos Edda, esses personagens
medievais, e estão presentes até aparecem com freqüência nas
no folclore celta. Muitas vezes, chamadas Sagas. Também
estão associados a grandes escritas na Islândia entre os
riquezas. Eles estão nos Edda, séculos 11 e 13, essas histórias
em histórias do rei Artur e até relatam o cotidiano de famílias
em um épico germânico, A nórdicas e as aventuras de
Canção dos Nibelungos, uma alguns ousados - e
compilação do século 13 de encrenqueiros - guerreiros.
materiais mais antigos, que se
tornou uma das obras
150
Dagon

No entanto, há uma diferença espada Balmung. Nos romances


básica entre o comportamento de cavalaria, Artur assume o
desses heróis e dos personagens trono ao retirar a poderosa
das histórias fantásticas atuais. espada Excalibur de uma pedra.
"Em O Senhor dos Anéis, há o E o Edda em Prosa descreve os
sacrifício do herói por uma causa poderes do martelo mágico
maior, e uma distinção clara Mjölnir, do encrenqueiro deus
entre o Bem e o Mal" - conta nórdico Thor.
Flieger - "Isso não existe nas
Sagas." Mais uma vez, essa idéia
de um cavaleiro ético e justo faz
parte dos romances de cavalaria. A base de sua composição vem
Essas obras, escritas no principalmente de lendas celtas,
noroeste da França, eram muito como a de Merlin (nota #4), mas,
populares nas cortes européias. ao longo das décadas, foi se
mesclando a diversas outras
histórias germânicas, nórdicas e,
principalmente, cristãs. A
Uma ideia na Cabeça e Uma influência do cristianismo é
Espada na Mão muito forte em todas as obras
que tratam de dragões, elfos e
magos. Isso ocorre porque,
apesar de abordarem mitos
Guerreiros ousados são parte pagãos, esses épicos só foram
essencial das histórias que lidam parar no papel entre os séculos 8
com mágica e reinos fantásticos. e 14, em um momento da
Na literatura medieval, não é História em que toda a Europa
diferente. Eles normalmente são Ocidental era aos poucos
pessoas muito fortes e, por convertida à nova religião.
vezes, confiantes ao extremo. Em
A Canção dos Nibelungos, o Invisíveis e Seguros
bravo Siegfried se adianta aos
seus homens para fazer um
reconhecimento das forças do
inimigo. Como é dito, "eram bem O que seria dos heróis se não
40 mil homens, ou talvez ainda fossem seus utensílios mágicos?
mais". E o herói não se assusta: Esses objetos, que vão de anéis a
"Siegfried viu isso com grande capas, estão tanto nas histórias
entusiasmo". Normalmente, eles atuais como na literatura antiga.
vêm acompanhados de uma O manto que dá invisibilidade ao
arma mágica, ou, no mínimo, jovem Harry Potter, por exemplo,
mais eficaz que as demais. encontra equivalente em A
Siegfried, por exemplo, carrega a Canção dos Nibelungos: Siegfried
151
Dagon

tem a mesma vestimenta, contadas, recontadas, unidas ou


roubada de um anão maligno. desmembradas para formar
Um dos anéis descrito em O novas histórias, e acabaram se
Senhor dos Anéis, o mais confundindo. Para Tolkien, toda
poderoso deles, dá o dom da essa mistura acabou formando
invisibilidade a quem for uma sopa de referências. "É
necessário. A Idade Média está difícil traçar a origem de cada
recheada de anéis e amuletos lenda, seja ela celta, anglo-saxã
usados para espantar os maus ou nórdica", diz o professor
espíritos ou garantir proteção na Almeida Mello. Mas, se isso não
batalha. No mundo nórdico, é possível, pelo menos é fácil
acreditava-se que algumas encontrá-las espalhadas pela
inscrições também tinham poder Idade Média e,
mágico. Trata-se das runas, o surpreendentemente, pelos dias
alfabeto usado em culturas na de hoje.
Escandinávia e Islândia. Seu
surgimento, contam os Edda,
também tinha origem mágica:
Odin conquistou o poder de usá- Escrito por Marcelo Ferroni
las ao se pendurar por nove Disponível em:
noites na árvore Yggdrasil (nota Duvendor.com.br
#5).

"As obras, que antes só eram


transmitidas oralmente,
começaram a ser redigidas
principalmente por monges" -
conta José Roberto de Almeida
Mello, professor aposentado de
história medieval
da Universidade de São Paulo -
"E esses monges decidiam usar
as lendas um pouco modificadas,
para que elas tivessem um fim
didático, ou seja, passassem
valores cristãos à população da
época." As narrativas desse
período que chegaram até nós
não sofreram só alterações
cristãs. Ao longo dos séculos, até
o fim dos anos 1300, foram
152
Dagon

Portanto, se como os
especialistas dizem, isso não é
alegoria, então seus trabalhos
são recheados com personagens
e fatos paralelos a este mundo.
Em O Senhor dos Anéis estive
pesquisando as similaridades
entre os eventos ocorridos na
história, religião e em outros
trabalhos de Tolkien. A trilogia O
Senhor dos Anéis é baseada em
fatos históricos, religiosos, e em
pessoas e outros trabalhos do
autor. Na trilogia do
O Senhor dos anel, Tolkien tem uma guerra
entre o Oeste e o Leste. Em
Anéis, mito ou ambas as Guerras Mundiais esse
foi o caso. Alemanha ou Prússia
realidade ? foram os poderes do Leste e
América e a pátria de Tolkien,
Inglaterra, foram o Oeste. Muitas
Michael Tagge pessoas comparam a guerra no
Senhor dos Anéis à Primeira
Guerra Mundial.

Como C.S. Lewis diz em seu


e livro, Tolkien e os Críticos:

A complexidade da trama de
"...essa guerra tem aquela
causa e efeito que Tolkien tece,
qualidade de guerra que minha
as interações de motivos e
geração conheceu. Tem tudo lá:
vontades, natural ou
o interminável, o movimento sem
sobrenatural são
sentido, o silêncio sinistro do
extraordinários, e sem contar o
front quando enfim tudo está
lado fantasioso é profundamente
pronto. Os civis fugindo, as
realístico.
grandes e vívidas amizades, o
pano de fundo de algo como
desespero e a frente uma
disfarçada alegria e um pouco de
153
Dagon

tabaco a mando divino salvo das apresentada. A própria


ruínas..." experiência de Tolkien da
destruição gradual da vida e
saúde como que se aproximando
do Front Oeste na guerra de
Tolkien foi ele próprio afetado 1914-18, e o deserto de
pela Primeira Guerra Mundial. trincheiras que marcavam o fim
Ele serviu num regimento daquela jornada; e da
country regiment na guerra, intensidade deste relato pode-se
com 23 anos na época, e como perceber que este tipo de
toda a sua geração de ingleses, paisagem deixou marcas mais
jovens leões sob o mando do profundas que qualquer outra.
burro, foram para o Alguns críticos dizem que a
abatedouro... Tolkien serviu no Guerra teve um papel
papel de soldado de infantaria fundamental na sua carreira
nos Fuzileiros de Landcashire, como escritor. Seu serviço na
um dos bons regimentos, good infantaria e o fim da guerra
country regiments que faziam parte de uma única força
inevitavelmente sofreu grandes que o uniu consigo mesmo e iria
perdas, diz William Ready em A levá-lo ao destino que ele queria
relação Tolkien: um inquérito e que o surpreendeu na fama
pessoal, The Tolkien Relation: que veio mais tarde. Uma outra
a Personal Inquiry. De fato, grande referência de sua vida
alguns críticos afirmam que pessoal veio de sua experiência
Mordor é uma imagem das de guerra nas trincheiras em
linhas de frente da Primeira Somme. Seus relatos detalhados
Guerra Mundial pela visão de das preparações para a guerra, a
J.R.R. Tolkien. estratégia, o ritmo diário que faz
parte do tempo de guerra, são
Quando os hobbits adentravam muito fiéis e precisos, como se
mais em Mordor, já passado o esperaria de um antigo soldado.
escabroso acampamento militar É mencionado que ele chegou
dos orcs e através das planícies mesmo a usar um almanaque
de Gorgoroth "cheias de para calcular até aonde soldados
crateras, como se, quando a pé poderiam se mover dado um
ainda era apenas um deserto certo período.
de lama mole, foi crivado com
uma chuva de pedras", Tolkien foi afetado pela guerra e
rastejando de cratera em cratera, pode até ter usado seus escritos
nós começamos a perceber o que para escapar da dor sofrida
pode haver atrás do poder com a durante e depois da guerra,
qual esta paisagem foi como diz Ready em The Tolkien

154
Dagon

Relation: A Personal Inquiry. a possibilidade que Sauron


Por tudo isso a guerra jogou uma conquistará o Oeste. a manhã
sombra sobre Tolkien; ele era um virá e o bem florescerá por
fuzileiro, e é preciso estar mais completa que a
pessoalmente sob a sombra da destruição causada pelo mal
guerra para sentir sua opressão. pareça".
"Por volta de 1918, todos os
seus amigos, com a exceção de Alguns compararam o Anel com
um, estavam mortos". a bomba de hidrogênio e Mordor
Finalmente Tolkien afirma que com a Rússia, como C.S. Lewis
um conto de fadas, pelo uso da diz em Tolkien and the Critics:
fantasia, fornece um meio de "Uma analogia natural
escape e consolo. aparece entre a bomba de
hidrogênio e o Anel do Poder
No Senhor dos Anéis, os que por sua natureza não
personagens de Tolkien poderia ser usada para
percebem a guerra contra conseguir nada de bom". Na
Sauron da mesma maneira que Segunda Guerra Mundial, Hitler
os povos europeus faziam depois experimentou uma grande
da Primeira Guerra Mundial. "O variedade de experimentos
público em geral via a genéticos para melhorar a raça
Primeira Guerra Mundial ariana, e foi relativamente bem
como a guerra para acabar sucedido nas suas tentativas. No
com todas as guerras, assim Senhor dos Anéis, Saruman
pensavam os sobreviventes da também trabalha com genética...
Guerra do Anel. Entretanto, ele produz um novo tipo de orc
Gandalf avisa que enquanto que é melhor lutador e se adapta
houver o mal, sempre haverá ao sol melhor que os orcs
a guerra. Se for banido de normais, e são maiores. Em The
alguma forma, aparecerá de Fiction of J.R.R. Tolkien:
outra". Master of Middle-earth, Kocher
diz: "Saruman está
No Senhor dos Anéis, uma continuando estas
conversa entre Gandalf e experiências e produzindo
Denethor parece ter saído uma nova variação (não uma
diretamente de uma das Guerras nova espécie) de orcs da Mão
Mundiais. Como Kocher repete Branca, maiores e melhores
em "A ficção de J.R.R. Tolkien: O guerreiros."
mestre da Terra-média: "A
resposta de Gandalf a Hitler, durante a Segunda
Denethor afirmando que ele Guerra Mundial, empregou
também é um regente, aceita centenas de espiões. Seu serviço

155
Dagon

era coletar informação tez escura armas e armaduras, e


relacionada à guerra. No Senhor sugerem outros exércitos não-
dos Anéis, Sauron emprega uma europeus no uso de ancestrais
rede vasta de agentes inimigos de elefantes, enquanto os Wain
que estão comprometidos em riders do leste vêm em vagões
achar o Um Anel. Como Fuller como aqueles das hordas de
diz em Tolkien and the Critics: Tártaros. Os homens de Gondor
"com tantas desvantagens, vivem e lutam num estilo
contra um adversário tão legendário Arturiano, proto-
formidável, um fator medieval, e os Rohirrim se
significante provê um diferenciam dos antigos Anglo-
elemento de esperança na Saxões primariamente por
desagradável rede de agentes viverem em função dos cavalos
do Sauron que estão atrás do como os Cossacos.
anel... esse fator é a pequenez
e fragilidade de Frodo." Na história da Inglaterra, houve
várias diferentes migrações.
Quando o infindável bombardeio Acontece o mesmo no Senhor
pelos alemães caía, o povo inglês dos Anéis. Kocher diz o seguinte
nunca perdia as esperanças ou a sobre isso em The Fiction of
coragem de lutar, e como Gimli J.R.R. Tolkien: Master of
diz no Senhor dos Anéis, "Há Middle Earth: "percebo nas
boa rocha aqui; esta terra tem páginas anteriores há várias
ossos fortes". No Senhor dos partes na obra de Tolkien que
Anéis, há várias alusões a ganham credibilidade por
eventos que aconteceram na introduzir episódios de vários
história antiga. Muitos países tipos que nos tentam com sua
diferentes de muitas diferentes semelhança com episódios que
direções atacaram a Inglaterra nós sabemos ter acontecido
em sua historia. Os Romanos, realmente em nosso passado
tribos Germânicas, e muitos não muito distante. como a
outros. Também a Europa lutou Terra tem visto ondas e ondas
desde antigamente contra Árabes de migrações tribais na
e Persas do sul, Mongois, Turcos Europa de leste e norte, assim
do leste. Similarmente Gondor também na Terra-média os
resiste aos povos do leste e do Elfos, os Edain, os Rohirrim, e
sul, que pressionavam contra os Hobbits, vagaram para
suas fronteiras por milênios, e se oeste em vários períodos das
transformaram em aliados mesmas direções."
naturais contra Sauron. Os
Haradrim do Sul lembram No Senhor dos Anéis, o conflito
mesmo os Sarracenos com sua também se encaixaria na

156
Dagon

descrição das batalhas religiosas sobre a Cristandade ocidental


durante a Segunda Grande nos anos 30's quando O Hobbit
Guerra Mundial. Como Fuller diz foi escrito. A Trilogia foi
em Tolkien and the Critics: "O produzida durante e depois da
Senhor dos Anéis foi para Segunda Grande Guerra
mim uma revelação alegórica Mundial..."
do conflito entre a
cristandade ocidental contra
as forças englobadas O Senhor dos Anéis também tem
sucessivamente, mas muitas referências a Bíblia e
entrelaçadas do nazismo e religião. Essas são as referências
comunismo. O trabalho foi a Adão e Eva e a queda do
concebido e continuado homem. Em The Fiction of
quando a sombra mais negra J.R.R. Tolkien: Master of
da história foi lançada sobre Middle-earth, Kocher diz: "as
o Oeste e, por um tempo idéias que Durin (um dos pais
crucial, sobre a Inglaterra em dos anões) foi o primeiro
particular." nascido sem companhia e saiu
dando nomes às coisas lembra
O Senhor dos Anéis foi escrito Adão e Eva." No Senhor dos
durante a Segunda Grande Anéis, não há menção de Deus,
Guerra Mundial. A batalha em mas nomes como O Ser
Mordor e o Anel sendo destruído Supremo, o Um, e outros vagos,
e, portanto finalizado a guerra mas claras alusões a Deus.
lembra-me dos últimos estágios Tolkien disse, numa entrevista
da Segunda Grande Guerra que Gandalf era um anjo, e em
Mundial quando os EUA uma entrevista a rádio em 1971
derrubaram a bomba atômica revelou que Ilúvatar era Deus.
em Hiroshima. Fuller diz em
Tolkien and the Critics o Há várias outras referências a
seguinte: Cristo. Frodo e/ou Gandalf
poderiam ser antecipações
parciais de Cristo. Cristo, antes
de ser crucificado rezou para que
"...em algum momento nos o cálice fosse afastado dele.
estágios finais de seu Frodo faz a mesma coisa quando
desenvolvimento, uma visão ele pergunta se outra pessoa
ampliada da trilogia veio a ele poderia fazê-lo. Gandalf também
(Tolkien), e o aumento da se assemelha a Cristo. Ele passa
escuridão e desesperança sobre por uma ressurreição e tentação
o resto do Ocidente na Terceira quando Frodo lhe oferece o Anel.
Era da Terra-média cresceu da
escuridão e ameaças pendentes Com Frodo, muito singelo e
157
Dagon

comovente, está no seu desejo Kocher em The Fiction of


vão de que o cálice seja tirado J.R.R. Tolkien: Master of
dele, e que já que isso não é Middle-earth: "todas as raças
possível, ele vai a sua longa, mortais especulam com algum
dolorosa jornada como O tipo de vida após a morte em
Portador do Anel -um tipo de algum lugar não específico, e
carregador da cruz a vir. Mais a expectativa de acordar
misticamente com Gandalf, depois da morte é tradicional
indicativo de uma operação de entre os anões".
um poder não explícito atrás dos
acontecimentos, o sábio passa A terra chamada de Condado
por uma experiência similar a lembra muita a parte rural da
morte, descendo ao inferno, e Inglaterra. Os hobbits na
ressurgindo dos mortos. história habitam uma região
Também ele vivência algo da tranqüila que tem muita
tentação na selva na sua recusa semelhança com Cotswold
do Anel que ele tem poder Country. Tolkien se certifica que
suficiente para manipular. em pequena escala seu terreno
local, clima, flora, e fauna
No Senhor dos Anéis há boas dominante são bem como nós os
criaturas e más. As boas conhecemos hoje em dia. No O
criaturas são tipicamente cristãs Senhor dos Anéis, Tolkien
e as criaturas más são satânicas descreve estrelas e constelações;
e demoníacas. "O Mundo de as mesmas que nós vemos hoje.
Tolkien tem uma variedade de Para aumentar a visibilidade, e
criaturas malévolas. No centro para também contra balançar a
há os poderes demoníacos, o topografia estranha da Europa
maior de todos é Sauron, que da Terra-média, Tolkien ilumina
certamente é uma figura o céu noturno com planetas e
satânica, que provavelmente é constelações que conhecemos,
nada menos que um anjo entretanto com nomes diversos.
caído, cujo nome sugere a Orion é vista pelos hobbits e
serpente." elfos se encontrando nas
florestas do Condado "lá
No Senhor dos Anéis também há alinhado, enquanto ele sobe
várias referências à ressurreição. pela borda do mundo, O
Na religião cristã, isso é uma Espadachim do Céu,
parte da maior importância. O Mendelvagor com seu cinturão
tom predominante é muito brilhante". Olhando pela janela
Cristão. As boas pessoas do da estalagem de Bri, "Frodo viu
Senhor dos Anéis agem como que a noite estava clara. A
pessoas cristãs e crêem da Foice brilhava por sobre os
mesma maneira. Como diz ombros de Breehill". Tolkien
158
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continua dizendo que "a Foice" é Anéis, a forma mais comum de


o nome que os Hobbit davam ao governo é uma monarquia
Arado ou o Grande Urso. benigna, mas o Condado dos
Brilhando qual jóia de fogo, e Hobbits é uma pequena vila
Borgil em vermelho pareceria ser democrática e o reino de Sauron,
Marte. A estrela de Eärendil é Mordor, é claro uma ditadura
certamente Vênus, porque Bilbo totalitária e escravagista.
descreve-a como brilhando logo
após o sol se por atrás do sol e a O Senhor dos Anéis tem
luz da lua, e logo antes do semelhanças com outras obras
nascer do sol,,, uma chama literárias. Já foi comparado a
distante antes do sol, uma obras como King Arthur. A terra
maravilha na aurora. mágica fica no misterioso oeste,
depois do mar, e alguns
Na Europa, a maior parte das personagens velejam para lá
línguas são línguas de romance, numa imagem parecida a
todas exceto Alemão. Alemão é passagem de Arthur em Avalon.
muito diferente de qualquer O Senhor dos Anéis parece se
outra língua Européia. Como baseado numa ópera de Wagner.
Kocher diz em The Fiction of A estrutura é a mesma e várias
J.R.R. Tolkien: Master of similaridades aparecem entre
Middle-earth: "A rivalidade ambas. Como Fuller diz em
entre Westron e a língua Tolkien and the Critics: "A
negra de Sauron, falado pelos estrutura em quatro partes da
seus servidores, tipifica a obra é análoga ao Anel do
inimizade entre as duas Nibelungo de Wagner. Uma
culturas". Isto poderia muito estória mais curta e mais
bem estar descrevendo alemão infantil (Das Rheingold e O
ou mesmo russo no sentido Hobbit respectivamente) em
citado na sentença anterior. cada caso introduz uma
trilogia grande. È estranho e
Sauron também "detestava interessante que um Anel do
qualquer outra liberdade que poder é central em ambas as
não a sua". A Alemanha nazista estórias e dá o seu nome aos
também detestava liberdade e títulos, e que dragões e uma
democracia durante a Segunda espada quebrada para ser
Grande Guerra Mundial. reforjada por um guerreiro
Durante a guerra, Hitler ocorre em cada".
governava num regime totalitário
e fascista. Eles controlavam Se fantasia é baseada em fatos
tudo, e conquistavam os países reais então O Senhor dos Anéis
que não acreditavam no que eles é completamente baseado em
acreditavam. No O Senhor dos eventos históricos, terras,
159
Dagon

religião, governos, e outros


trabalhos de diferentes autores.
Citando autores diversos,
mostrei que é impossível não ser
perseguido por paralelos entre
nosso aqui e agora. Eu também
descobri que dá para ter diversas
interpretações do Senhor dos
Anéis, e diferentes sentidos
podem ser extraídos das mesmas
cenas. Mas de todo modo, O
Senhor dos Anéis foi baseado
em várias coisas combinadas
para formar uma das maiores
obras literária que o mundo já
viu.

Trabalhos Citados:

 Behind The Lord of the Rings -


www.auburn.edu/~speedhe/lotr.ht
ml
 Issacs, Neil D. "Tolkien and the
Critics": Essays on J.R.R. Tolkien'
The Lord of the Rings University of
Notre Dame Press, 1968
 Kocher, Paul H. The Fiction of
J.R.R. Tolkien: Master of Middle-
Earth Ballentine Books, 1972
 Manlove, C.N. Modern Fantasy:
Five Studies Cambridge University
Press, 1975
 Ready, William. The Tolkien
Relation: A Personal Inquiry Henry
Regnery Company, 1968

Escrito por Michael Tagge em


Duvendor.com
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com cerca de trinta minutos de


duração, é relatada uma das
The Hunt for Gollum histórias mais obscuras que se
alicerçam nos apêndices da obra
de Tolkien, um dos episódios
mais misteriosos e decisivos da
saga: a perseguição de Gollum
feita por Aragorn!Até aqui não
existe nada de especial, pois os
filmes dirigidos por fãs não são
poucos, contudo nunca nenhum
prometeu tanto como este. Basta
ver o trailer e ficar maravilhado.
Os pormenores estão geniais, os
actores soberbos ( o actor que
interpreta Aragorn é muito
parecido com o actor que
interpretou esta personagem nos
filmes oficiais de LOTR) e a
história é nada mais nada menos
que mágica, criada pela pena do
mestre supremo dos épicos
fantásticos.

O filme está disponível no site


thehuntforgollum.com
E se eu vos disser que o melhor
filme do ano pode não nascer de :
um orçamento bilionário? E se
eu vos disser que este filme se
arrisca a ser fenomenal sem
sequer visar o lucro, pois será
completamente grátis?
Provavelmente por esta altura os
leitores já estão a achar que
estou doido… Passo a explicar:
Um grupo de fãs da obra de
Tolkien, em especial da trilogia
de o O Senhor dos Anéis, decidiu
criar um novo filme inspirado na
obra do mestre! Neste filme, que
terá um baixo orçamento (dez mil
dólares) e que contará apenas Roberto Mendes
174
Dagon

pudesse provir dos capítulos de um


livro ou do cinema de carne e osso!
A magia de que vos falo irrompe do
O Castelo Andante sublime cheiro das cores do pincel
de Hayao Miyakazi. Tamanha
magia apenas podia ter nascido de
um Anime!!!

“Já ninguém faz animação com


este nível de requinte”

Howls Moving Castle é


absolutamente brilhante, nascendo
de um argumento adaptado de um
pequeno romance não muito
conhecido de Diana Jones.
Adaptado nada mais, nada menos
que pelo genial Miyazaki esta obra
transporta-nos para um universo em
que Sophie, uma típica adolescente
de 18 anos, vê a sua vida mudar
É curioso que uma das melhores por completo quando se cruza
histórias de fantástico que já tive o acidentalmente com o misterioso
prazer de apreciar não respire do mas belo feiticeiro Howl e,
talento de um escritor que emana a subsequentemente, é transformada
sua magia através de palavras numa mulher de 90 anos pela
medidas na perfeição, em linhas e vaidosa e perversa Bruxa do Nada.
parágrafos onde vive o maravilhoso Transportada para uma incrível
e onde se refugia o puro talento; é odisseia para quebrar a sua
curioso que também não surja maldição, Sophie encontra refúgio no
através da clássica tela do cinema Castelo Andante onde conhece
onde pessoas reais, como nós, Markl, um aprendiz de feiticeiro, e
interpretam tramas de cortar a um impetuoso demónio de fogo que
respiração, sempre acompanhados se dá a conhecer pelo nome de
de cenários belos: umas vezes Calcífer. Pelo caminho Sophie
serenos de normalidade, outras conhece ainda uma misteriosa
vezes irascíveis de imaginação personagem, um espantalho com
fantasiosa. Não. E por muito que cabeça de nabo que a ajuda nas
tente, e sim já tentei, oh se tentei… suas aventuras. Invocando a
Mas onde ia eu? Ah, sim, por muito importância de valores como a
que tente não consigo, é-me família, a amizade, o
impossível imaginar que tal magia reconhecimento das limitações do
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ser humano e a força especial dos nomeado para um Óscar merece o


laços de amor, esta é uma obra que lugar que ocupa presentemente na
me deixou abismado pela sua história de animação Japonesa onde
qualidade. Desde que começou até é considerado um dos grandes
ao final foi-me impossível deixar de colossos de genialidade pintada
me sentir abismado, não com o pela magia da imaginação!
conceito da história, que considero
bastante simples, mas sim pela Roberto Mendes
forma como os personagens nos são
apresentados e que a pouco e pouco
se nos vão tornando familiares até
nos sentir-mos realmente bem na
sua companhia e pela forma como a Spirited Away
trama se desenvolve. O único defeito
desta animação é, sem dúvida, o
facto de ter um fim, pois muito
desejei poder viver por mais tempo a
magia de um Japão reinventado,
onde Howl e todos os outros
batalham pela paz no seio de uma
guerra que ameaça engolir toda uma
nação.

Se a magia de Howl‘s Moving Castle


me havia arrebatado, dando-me a
conhecer um mundo em que as
cores do pincel de Miayazaki criam
uma poesia mágica que se sente a
Um Anime que recomendo cada momento, então, com Spirited
vivamente, mesmo a quem sente um Away, o talento puro deste autor
pouco de preconceito pelo género. tornou-se na referência máxima no
Pode-se gostar ou não, pois a beleza que ao Anime diz respeito. No
da arte é a sua subjectividade. A interior de uma história mágica que
minha opinião é que este filme no fundo é uma perfeita metáfora

176
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com os anos da infância de cada


um de nós, Miyakazi cria
personagens que têm tanto de
bizarro como de extraordinário,
tanto de mágico como de
fenomenal! E são as personagens
que formam o maravilhoso na
história. Personagens como Haku (a Durante algum tempo assumi que
minha personagem favorita) ou nada poderia ser tão fantástico
Chihiro, uma miúda de dez anos quanto a viagem de Sophie pelo
que de súbito sente uma mudança castelo andante, contudo, Spirited
radical na sua vida, sendo obrigada Away (vencedor de um Óscar em
a mudar de cidade e 2003) reclamou o primeiro lugar na
consequentemente de escola, minha lista de melhor animação
deixando os seus amigos para trás. com argumentos tão mágicos que
Chihiro, a personagem principal, durante horas, depois de visionar o
cedo percebe que as mudanças não filme, a minha imaginação voou até
se ficariam por aí, quando se vê um universo que, bebendo
forçada a entrar num mundo onde influencias da mitologia Japonesa,
nada parece real, e onde até o seu me prendeu para sempre num
próprio nome mundo onde tudo é possível…e
onde o amor acontece, com a
se perde por um túnel misterioso e subtileza única de um autor que já
uma cidade fantasma que a é uma lenda da animação…
conduzem a sua família à terra dos
espíritos, povoada por deuses e Roberto Mendes
monstros, e governada pela
gananciosa Yu-Baba. Depois de
comerem uma refeição proibida, os
pais de Chihiro são castigados e
transformados em porcos. Para os
tentar salvar ela terá que renunciar
o seu nome e prestar serviço no
mundo dos espíritos. Aborrecida e
desinteressada de inicio, Chihiro
vai encontrar, na sua viagem,
amigos e aliados, bem como
descobrir uma força interior que
desconhecia e estabelecer uma
identidade no estranho novo
mundo em que se encontra
encurralada. Mas será que ela vai
conseguir recuperar o seu nome e
regressar a casa?

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completaram o grupo. Antes de


se chamarem ―Dream Theater‖,
sugestão do pai de Mike e nome
Música: de uma sala de espectáculos
muito importante na Califórnia,
eram conhecidos por ―Majesty‖.
Dream Theater Este nome surgiu durante um
concerto do Rush, durante a
digressão do álbum ―Power
Windows‖. John Petrucci, John
Myung e Mike Portnoy dormiram
na rua para poderem comprar
ingressos para assistir ao
espetáculo e, ao ouvirem a
canção ―Bastille Day‖, surgiu o
comentário de que aquela
música era ‗majestosa‘, ficando
assim o nome.

Contudo, descobriu-se que já


existia uma banda de jazz com o
mesmo nome. Lançaram a sua
Os Dream Theater são uma das primeira demo com seis músicas,
bandas que mais inspiração uma pequena amostra do seu
buscam na literatura fantástica, metal progressivo com
dando ao seu metal progressivo e referências da música clássica
de fusão um intenso sabor a que influenciou muitas bandas
fantasia criando letras mágicas, posteriormente. Após isso,
ambientes fantásticos, aliando a demitiram o vocalista Chris
tudo isto uma sonoridade Collins, que não se conseguiu
inconfundível e única. A adaptar ao estilo que a banda
mitologia nórdica é uma das procurava. Para substituí-lo
grandes influências da banda de chamaram Charlie Dominici, e
metal progressivo originária de com essa formação gravaram o
Nova Iorque, Estados Unidos e primeiro disco da banda,
formada em 1985 por John intitulado ―When Dream and Day
Myung, Mike Portnoy e John Unite‖, em 1989. O disco foi bem
Petrucci, enquanto frequentavam aceite pela crítica e bem
o curso de Música da difundido nas rádios, o que
Universidade de Berklee. possibilitou um reconhecimento
dos fãs e diversos shows em
Posteriormente o vocalista Chris pequenos clubes, sempre
Collins e o teclista Kevin Moore lotados. Novamente, por
179
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diferenças musicais, despediram recepção pela MTV e quase


o seu vocalista. Durante algum quebraram os índices de vendas
tempo não tiveram um vocalista no Japão, levando a banda à sua
fixo, mas mesmo assim não primeira digressão mundial. No
pararam de compor novas processo de gravação do terceiro
músicas, nem de fazer disco, o teclista Kevin Moore
apresentações, ainda que resolveu abandonar o grupo para
inteiramente instrumentais. seguir carreira solo. Sem um
Nesse período, passaram pela substituto para Kevin,
banda, no vocal, John Arch, terminaram as gravações de
Steve Stone e Chris Cintron, até ―Awake‖ (álbum que contém a
que, finalmente, encontraram o faixa ―The Silent Man‖), que
vocalista ideal. Era Kevin LaBrie, rapidamente conquistou os
o vocalista da banda ―Winter mercados americanos e europeu.
Rose‖. Pouco depois, o lugar de Moore
foi ocupado por Derek Sherinian
(que havia tocado em digressões
com o KISS e com Alice Cooper).
Em 1995, foi lançado o EP ―A
Change of Seasons‖, contendo a
gigantesca faixa homónima (com
23:09 minutos) e ainda alguns
covers (―Funeral For a
Friend/Love Lies Bleeding‖, de
Elton John, ―Perfect Strangers‖,
do Deep Purple, as fusões de
―The Rover, Achilles Last Stand e
The Song Remains The Same‖,
dos Led Zeppelin, e de ―In The
Flesh?‖, ―Carry On My Wayard
Son‖, ―Bohemian Rhapsody‖,
―Lovin‘ Touchin‘, Squeezin‘‖,
―Cruise Control‖ e ―Turn It On
Juntou-se então à banda, Again‖, respectivamente de Pink
adoptando o nome de James Floyd, Kansas, Queen, Journey,
LaBrie, no intuito de não deixar Dixie Dregs e Genesis), gravados
a banda com dois Kevins (LaBrie ao vivo no Ronnie Scott‘s Jazz
e Moore) e dois Johns (Myung e Club, em Londres.
Petrucci). Em 1992, lançaram o
álbum ―Images and Words‖ e, Em Outubro de 1999, foi
então, foram convidados para lançado o álbum ―Scenes From a
abrir alguns shows dos Iron Memory‖, descrito por Mike
Maiden. Tiveram uma excelente Portnoy como ―algo que ele
180
Dagon

sempre quis fazer‖. O álbum teve O disco apresenta uma banda


grande sucesso e repercussão. mais focada em canções (ainda
Durante a digressão mundial a com as passagens instrumentais
banda gravou, em Nova York, já tradicionais) devido a uma
um DVD genial, um dos enorme pressão da editora. O
melhores dvd‘s musicais dos tiro saiu pela culatra, embora o
últimos anos. O concerto, de três disco, mesmo com as suas
horas e meia, foi lançado com canções mais acessíveis, seja
um CD triplo. A data do excelente. Na verdade, é
lançamento, infelizmente, incorrecto dizer que Derek
coincidiu com os atentados de Sherinian influenciou a banda a
11 de Setembro de 2001, e mais compor canções mais
infelizmente ainda, a capa do CD comerciais, já que ele compôs as
trazia as torres gémeas dentro de partes mais técnicas do álbum, o
chamas. Todos os CDs foram que é uma característica do
recolhidos e a capa refeita, teclista, como constata na sua
trazendo o símbolo da banda no discografia solo. Devido à
lugar da maçã (que fazia alusão pressão da gravadora, Mike
à cidade de Nova Iorque – ―Big Portnoy quis deixar a banda,
Apple‖) e das torres. Entretanto, mas foi convencido a ficar, já que
alguns poucos CDs com a capa ainda havia a digressão do
original, com as torres gémeas álbum a ser realizada. Portnoy,
em chamas, continuam nas então, permaneceu nos Dream
mãos de fãs e coleccionadores, e Theater, e visitou o Brasil em
passaram a ser considerados 1997, durante a digressão do
raridades. O quarto álbum, álbum. No entanto, apesar de
―Falling into Infinity‖, chegou em tantas controvérsias e
1997 com músicas um pouco complicações, conforme já
mais melódicas, não tão mencionado ―supra‖, trata-se de
agressivas quanto as de ―Awake‖. um álbum excelente, aclamado
por todos os fãs. Em 1998, a
banda lançou o seu segundo
disco ao vivo, ―Once In a Live
Time‖. Um vídeo, nomeado ―5
Years in a Live Time‖ surgiu
também, com os principais
momentos da banda nos cinco
anos anteriores ao lançamento
do disco. Seguiu-se nova troca
de teclista, todavia, tal não
abalou a criatividade da banda,
que se fechou a sete chaves para
gravar um novo álbum, um disco
181
Dagon

duplo, experimental e do que os álbuns anteriores, não


controverso, intitulado ―Six deixando o progressivo, nem a
Degrees of Inner Turbulence‖, virtuosidade e a técnica da
lançado em 2002. Trazia banda de lado, destacando as
músicas bastante extensas no faixas ―As I Am‖, ―Endless
primeiro CD, e um épico Sacrifice‖ e ―In the Name of God‖.
impressionante de 42 minutos Destaque ainda para a faixa
de duração, dividido em 8 partes ―This Dying Soul‖, na qual
no segundo CD. Portnoy continua a sua saga,
explorando os doze passos do
Destaque também para o plano de recuperação do A.A.,
trabalho iniciado por Mike sendo que esta faixa perpassa
Portnoy, denominado ―Portnoy pelas etapas IV e V,
Alcoholics Anonymous Suite‖, no denominadas ―Reflections of
qual o baterista explora o Reality (Revisited)‖ e ―Release‖.
programa de recuperação do A.A. Em 2004, os Dream Theater
(Alcoólicos Anónimos) em doze realizam novas gravações ao
etapas, sendo as três primeiras – vivo, e lançam um DVD em
―Reflection‖, ―Restoration‖ e álbum triplo: ―Live at
―Revelation‖ – temas da faixa Budokan‖.Gravado no Budokan
―The Glass Prison‖, de 13:52 Hall, em Tokyo, Japão. O DVD
minutos de duração. traz as principais faixas do
álbum ―Train of Thought‖ e
ainda faixas dos outros álbuns,
dando destaque para um
―medley‖ instrumental
mostrando toda a técnica e
destreza dos músicos da banda,
denominado ―Instrumedley‖, que
passa por trechos de várias
músicas instrumentais do
Dream Theater, inclusive por
algumas do ―Liquid Tension
Experiment‖, projecto
instrumental paralelo de John
Petrucci, Mike Portnoy e Jordan
Rudess, juntamente com o
No final de 2003 surge o álbum baixista Tony Levin. Em meados
―Train of Thought‖, que, como o de 2005, lançam o seu oitavo
álbum anterior, mudou um álbum, ―Octavarium‖, marcando
pouco a linha musical da banda, vinte anos da existência da
levando a críticas severas de fãs banda, caracterizado como algo
antigos. Um álbum mais pesado ―incrivelmente lindo‖ pelo
182
Dagon

baterista Mike Portnoy. Destaque japonês Gonzo, tiveram boa


para mais uma música épica, repercussão ( nova colaboração
―Octavarium‖, com 24 minutos entre artes fantásticas). Neste
de duração. Destaca-se também álbum, destaca-se o grande
a continuação da compilação de trabalho de John Petrucci, que
―Portnoy Alcoholics Anonymous escreveu quatro das músicas do
Suite‖, com a faixa ―The Root of álbum, trazendo uma narrativa
All Evil‖, que traz profunda fictícia em cada, principalmente
análise das etapas VI e VII do em ―In The Presence of
programa: ―Ready‖ e ―Remove‖. Enemies‖, que é uma verdadeira
Em Dezembro do mesmo ano, os epopéia musical, digna de uma
DT chegam de novo ao Brasil. A banda como o Dream Theater, e
banda, que no dia 1° de abril de que foi dividida em duas partes,
2006 gravou um DVD em Nova por ser longa demais para uma
York para comemorar seus 20 faixa inicial. No primeiro dia de
anos de carreira, surpreendeu o Abril de 2008, foi lançada o
público tocando clássicos e primeiro ―best of‖ da banda, um
músicas do último CD com a CD duplo intitulado ―Greatest
presença de uma orquestra. Hit (…and 21 Other Pretty Cool
Songs)‖. O título do álbum é uma
brincadeira referindo-se à
música ―Pull Me Under‖, que foi
o único verdadeiro hit de sucesso
do grupo. Um novo DVD duplo
chamado ―Chaos in Motion
2007–2008‖, com músicas dos
concertos da digressão ―Chaos in
Motion‖, foi lançado pela
Roadrunner Records em 23 de
Setembro de 2008; a edição
especial inclui três CDs com o
O DVD foi lançado dia 29 de áudio das músicas do DVD. A
banda entrou em estúdio em
agosto do mesmo ano, intitulado
Setembro de 2008 para, então,
―Score‖. Foi lançado, em 2007, o
começar as gravações do novo
álbum ―Systematic Chaos‖. Neste
álbum, ―Black Clouds and Silver
álbum, Portnoy dá sequência à
sua saga, e explora os passos Linings‖, lançado mundialmente
no dia 23 de junho de 2009.
VIII (―Regret‖) e IX (―Restitution‖)
na faixa ―Repentance‖. As faixas
Hoje em dia os Dream Theater
―Constant Motion‖ e ―Forsaken‖,
são uma das bandas de metal
a última com um clipe anime
progressivo mais bem sucedidas
desenvolvido pelo estúdio
183
Dagon

desde o auge deste estilo musical simples projecto, os Ayreon são


em meados da década de 1970. uma pura experiencia musical,
que culmina na apresentação de
Roberto Mendes
um estilo completamente
original, deambulando entre o
Ayreon: Rock Opera clássico e o ―Melodic
Metal‖, com a participação de
A Ficção Científica e a instrumentos de música clássica
como os violinos e as flautas.
Música!

O primeiro CD do Ayreon,
lançado em 1995, foi ―The Final
Experiment‖. Neste álbum é
Ayreon é um dos projectos do contada a história de um homem
multi-instrumentista holandês da Bretanha, do século 6 d.C., o
Arjen Anthony Lucassen, um ―Ayreon ― que, cego de nascença,
trabalho que tem o mérito de possui um sexto sentido que lhe
reunir muitos dos melhores permite receber mensagens de
intérpretes do metal e do Rock, almas do futuro, mais
reunindo talentos espantosos precisamente do ano 2084,
como Fábio Lione, dos Raphsody quando a humanidade quase se
of Fire, Sharon Den Adel dos auto destruiu numa última
Within Temptation , Andi Deris grande guerra. O álbum conta
dos Heloween e até Bruce com treze cantores e sete
Dickinson dos míticos Iron músicos, a maioria holandeses.
Maiden, num total de noventa e ―The Final Experiment‖ é
dois músicos. Mais que um geralmente citado como um dos
184
Dagon

primeiros álbuns de metal opera


e um álbum que retoma a rock
opera. O nome original do álbum
era ―Ayreon: The Final
Experiment‖, mas, após o
relançamento, o título foi
mudado para ―The Final
Experiment‖. O álbum que se
seguiu foi ―Actual Fantasy‖ no
ano de 1996. É o único CD do
Ayreon que não possui uma
história contínua. Com as suas
histórias de fantasia individuais,
Ali, uma voz misteriosa fala com
este álbum pode, inclusive, ser
eles, guiando-os na sua perigosa
considerado um ―álbum
missão para encontrar o
conceito‖. Em ―Actual Fantasy‖
caminho de casa através do
cantam apenas três diferentes
―Castelo Eléctrico‖. A história é
vozes e apenas existem três
contada com recurso ao Rock
músicos instrumentais. Os
Psicadélico por oito cantores,
temas inspirados pelas músicas
cada um com um papel único, e
de ―Actual Fantasy‖ podem ser
por onze músicos. O álbum
encontrados em lançamentos
duplo ―The Universal Migrator
posteriores dos Ayreon,
(2000)‖ é baseado na literatura
principalmente nos dois álbuns
de ficção científica ,
―The Universal Migrator‖ e ―Into
apresentando a história do
the Electric Castle (1998)‖. O
último humano vivo, numa
álbum duplo ―The Electric
colónia em Marte. Na história do
Castle‖ conta a história de oito
primeiro CD ―Universal Migrator
pessoas de diferentes eras da
Pt. 1 - The Dream Sequencer‖,
humanidade, trancadas juntas
este humano faz uma viagem ao
num estranho ―lugar sem tempo
passado através de uma imersão
e sem espaço‖.
em memórias de diferentes
pessoas que marcaram a história
da humanidade, memórias que
ele aparentemente viveu em
vidas passadas, usando um

185
Dagon

aparelho chamado interpretando cada uma delas,


―Sequenciador de Sonhos‖. Este várias passagens da sua vida.
primeiro álbum apresenta um
Rock Progressivo leve e
atmosférico. Mais tarde, ele ―pré-
encarna‖ num tempo longínquo,
algures no passado remoto,
ainda antes do Big Bang; é esta
a origem do segundo álbum,
mais pesado, chamado
―Universal Migrator Pt. 2 - The
Flight of the Migrator‖. Mais uma
vez, ambos os álbuns têm por
volta de dez cantores e vários
músicos. Um dos convidados
para o álbum foi Bruce
Depois de mudar da editora
Dickinson dos Iron Maiden, que
―Transmission Records‖ para a
fez a sua participação na quinta
―InsideOut‖ , Arjen começou, em
faixa apelidade de‖ Flight of the
2004, a lançar CDs anteriores
Migrator: Into the Black Hole‖. O
álbum ―The Human Equation‖,
de 2004, como em ―Into the
Electric Castle‖, contou com
vários cantores, cada um em
assumindo o papel de
personagem. Com ―The Human
Equation‖, Ayreon deixa um
pouco de lado a sua temática de
ficção científica e fantasia e
apresenta uma história que se
passa dentro da cabeça de um
homem que se encontra em dos Ayreon , com algumas
estado de coma, depois de sofrer mudanças, desde pequenas (The
um estranho acidente de carro. Universal Migrator lançado em
As suas emoções são um CD duplo, ao invés de dois
personificadas, o que faz surgir CDs separados) até bastante
uma variedade de personagens, drásticas (Actual Fantasy
186
Dagon

―Revisited‖ teve todo o trabalho correlacionadas, particularmente


de bateria, baixo, flauta e a música e a literatura. Sem
sintetizadores, gravado literatura a música estaria ainda
novamente). Em 2005, num estado primitivo (...) Os
coincidindo com o décimo compositores não teriam onde
aniversário dos Ayreon, ―The buscar inspiração, e seria uma
Final Experiment‖ foi relançado perda de tempo tornar a musica
como um disco bónus semi- numa profissão, pois a musica
acústico. No fim de setembro de como a conhecemos não poderia
2006, depois de terminar seu existir enquanto arte, se não
novo disco, Arjen começou a tivéssemos literatura…‖;
trabalhar num novo álbum do
Ayreon.

Outros projectos de Arjen


Lucassen, como ―Star One‖ e
―Ambion‖ são inspirados
A grande inspiração de Arjen
unicamente pela ficção científica.
Lucassen provém de uma das
Ayreon é um dos projectos mais
suas grandes paixões, a
importantes no que toca ao
literatura, especialmente os
Opera Metal, a não perder pelos
géneros da fantasia e ficção
apaixonados deste estilo
científica. Este projecto é uma
musical, mas também a não
prova de que literatura e música
poder ser ignorado por quem lê
se influenciam mutuamente,
ficção científica, mas que não
como escreve Daniel Bloomfield
aprecia muito o Metal.
no dia 27 de Setembro de 1906 Roberto Mendes
na edição do New York Times ―
todas as artes estão
187
Dagon

Dagon nº 0 Ian R. MacLeod

29/Agosto/2009

Editores: Desenhistas

Roberto Mendes Tan Sing Yung (Sandara)

Rita Comércio Kerem Beyit

Autores Residentes: Capa

João Paulo Kerem Beyit

Fábio Júnio Edição Gráfica

Pedro Ventura Rafael Mendes

Luís Filipe Silva

Rita Comércio Os direitos de autor pertencem aos


autores dos textos e das ilustrações.
Roberto Mendes
Os direitos de autor referentes aos
Autores neste número:
desenhos do artista Kerem Beyit estão
João Paulo protegidos por Copyright © 2004-2009
KeremBeyit - All Rights Reserved.
Fábio Júnio

Pedro Ventura

Luís Filipe Silva

Roberto Mendes

Francisco Norega

Carla Ribeiro

Jorge Candeias

João Seixas
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