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Atualização 13.

Construindo Uma Crença


ou
Quais as minhas mais prováveis verdades?

José Guilherme Barreto Ávila


jgbavila@gmail.com
Índice

Índice .................................................................................................................................................... 2
Prefácio ................................................................................................................................................ 4
Introdução ............................................................................................................................................ 7
Religião ................................................................................................................................................ 9
Visões da divindade ........................................................................................................................... 15
Bíblia .............................................................................................................................................. 16
Bertrand Russell ............................................................................................................................. 17
Leibniz ........................................................................................................................................... 18
Voltaire........................................................................................................................................... 20
Michael Behe ................................................................................................................................. 22
Spinoza ........................................................................................................................................... 23
George Berkeley ............................................................................................................................ 24
Siddharta Gautama ......................................................................................................................... 26
Amit Goswami ............................................................................................................................... 27
Possibilidades pós-morte.................................................................................................................... 32
Nada ............................................................................................................................................... 33
Ressurreição da carne..................................................................................................................... 34
Inferno ............................................................................................................................................ 35
Paraíso ............................................................................................................................................ 37
Purgatório ....................................................................................................................................... 37
Visão muçulmana ........................................................................................................................... 38
Inconsciência .................................................................................................................................. 38
Reencarnação ................................................................................................................................. 39
Nirvana ........................................................................................................................................... 41
Algo mais ........................................................................................................................................... 43
Percepção extrassensorial .............................................................................................................. 45
Contato com espíritos..................................................................................................................... 46
Bilocação ........................................................................................................................................ 46
Fotografias Kirlian ......................................................................................................................... 47
Cura mediúnica .............................................................................................................................. 47
Pintura mediúnica .......................................................................................................................... 49
Psicografia ...................................................................................................................................... 49
Experiência de quase-morte ........................................................................................................... 49
Visões no leito de morte................................................................................................................. 50
Viagem Astral ................................................................................................................................ 51
Experiência religiosa ...................................................................................................................... 51
Regressão a vidas passadas ............................................................................................................ 52
Lembranças de vidas passadas ....................................................................................................... 53
Xenoglossia .................................................................................................................................... 54
Diferenças pessoais ........................................................................................................................ 54
A hora certa .................................................................................................................................... 55
Campos morfogenéticos ................................................................................................................. 57
Alinhavando ................................................................................................................................... 58
Questões práticas................................................................................................................................ 60
O Ponto de Contato ........................................................................................................................ 62
Outras similaridades ....................................................................................................................... 66
Cristianismo e Hinduísmo .............................................................................................................. 67
Cristianismo e Budismo ................................................................................................................. 72
Alinhavando ................................................................................................................................... 80

2
Construindo uma crença..................................................................................................................... 81
A Aposta de Pascal ........................................................................................................................ 81
Matéria ........................................................................................................................................... 82
Visão da divindade ......................................................................................................................... 84
Consequências ................................................................................................................................ 86
Espírito (ou alma)........................................................................................................................... 89
Pós-morte ....................................................................................................................................... 91
Alinhavando ................................................................................................................................... 93
Conclusão ........................................................................................................................................... 96
Bibliografia ........................................................................................................................................ 99
Páginas na internet ....................................................................................................................... 103

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Prefácio

Não entendo

Isso é tão vasto que ultrapassa qualquer entender.


Entender é sempre limitado.
Mas não entender pode não ter fronteiras.
Sinto que sou muito mais completa quando não entendo.
Não entender, do modo como falo, é um dom.
Não entender, mas não como um simples de espírito.
O bom é ser inteligente e não entender.
É uma benção estranha, como ter loucura sem ser doida.
É um desinteresse manso, é uma doçura de burrice.
Só que de vez em quando vem a inquietação:
quero entender um pouco.
Não demais: mas pelo menos entender que não entendo.

Clarice Lispector

Antes de qualquer afirmação, racionalização, alegação ou testemunho, é importante que fique


claro o fato de que a filosofia da religião é estudada pela metafísica, e que, segundo um dos mais
influentes pensadores, desde os gregos, Immanuel Kant, a metafísica é um oceano escuro sem costa
ou farol, juncado de destroços filosóficos. A partir daqui estaremos embrenhando-nos neste oceano,
onde os objetos de estudo não são factíveis, a princípio e em sua maioria, de percepção sensorial.
Também dou ciência de que farei uso dos mencionados destroços filosóficos sem muita parcimônia,
pois além de me ajudar na correta explanação das ideias que desejo comunicar, coadunar alguma
autoridade ao que afirmo e enriquecer este livro, ainda poderão despertar uma salutar curiosidade
em algum leitor no sentido de conhecer mais a fundo um dos escritores, filósofos, poetas,
dramaturgos, religiosos, cientistas, romancistas, místicos ou pensadores aqui citados.

Uma religião, qualquer que seja ela e desde que não seja exercida de maneira fanática,
costuma trazer tranquilidade filosófica e paz existencial a seus seguidores, pois responde qualquer
pergunta inoportuna que se faça, explica o passado, justifica o presente e consola o futuro. Caso
algum acontecimento ou acidente de percurso ameace suas bases, as nuvens que possam se formar
por alguns instantes são rapidamente debeladas com argumentos similares a ...Deus escreve certo
por linhas tortas, foi Deus quem quis assim, não podemos compreender claramente muitos dos
desígnios de Deus, trata-se do meu karma, foi necessário para minha evolução espiritual, foi devido
à minha casta, etc.

Outro ponto a ser considerado é o freio colocado pelas religiões. Já me foi argumentado que a
falta de uma religião faria com que instintos controlados perdessem as amarras e, liberados,
causariam grande mal às pessoas e às sociedades em geral. Algo me dizia que essa forma de pensar
não era correta, pois são muitos os exemplos de pessoas que se dizem religiosas e cometem
atrocidades, bem como de ateus que vivem de forma extremamente altruísta, mas, por via das
dúvidas, sempre tive receio em escrever algo que pudesse ameaçar crenças enraizadas. Esses
receios foram aos poucos sendo reduzidos, talvez por estar gradativamente me convencendo de que
somos bons – ou maus – independentemente da religião, e, em parte, por raciocínios semelhantes a
este, de Albert Einstein: E como o comportamento moral do homem se fundamenta eficazmente
sobre a simpatia ou os compromissos sociais, de modo algum implica uma base religiosa. A
condição dos homens seria lastimável se tivessem de ser domados pelo medo do castigo ou pela
esperança de uma recompensa depois da morte. Colocando em palavras minhas, se os indivíduos
em geral agem por motivos egoístas, se são morais por medo da vergonha de ter suas iniquidades
expostas ou se são caridosos visando recompensas pessoais futuras, realmente têm pouco valor e
são miseráveis. Mais definitivo foi o escritor C. S. Lewis (autor d’As Crônicas de Nárnia), citado no
best-seller A Cabana: Rezemos para que a raça humana jamais escape da terra para espalhar sua

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iniquidade em outros lugares. Religião e ética humanista, definitivamente, não estão
necessariamente vinculadas. Lembremo-nos das brutalidades e das tomadas de posição favoráveis a
dogmas religiosos e contrárias ao bem do ser humano que ocorreram no passado e que continuam a
ocorrer nos dias de hoje. Não acredito que a falta de religião iria barbarizar as relações humanas,
mas sim que sempre esteve em andamento um lento processo civilizatório, onde após a transposição
de determinados degraus, não mais é possível o retorno ao anterior estado primitivo da mente e que
é factível a possibilidade do agir bem pelo próprio agir e, ao invés de entravar esse curso, este livro
pode favorecê-lo. Já que mencionei “processo civilizatório”, lembro-me da cosmologia
evolucionária de Charles Peirce, chamada por ele de sinequismo, que é a visão pela qual existe no
universo uma tendência na direção de um desenvolvimento contínuo e uniforme. Faço notar que
esse filósofo foi o fundador do pragmatismo, escola filosófica caracterizada pela descrença no
fatalismo e pela certeza de que só a ação do homem, movida pela inteligência e pela energia, pode
alterar os limites da condição humana. Este paradigma filosófico caracteriza-se, pois, pela ênfase
dada às consequências – utilidade e sentido prático – como componentes vitais da verdade.

(Foi com muita satisfação que alguns anos após escrever o parágrafo acima, lendo E o
Cérebro Criou o Homem, do médico neurologista e neurocientista português António Damásio,
encontrei a seguinte citação: Há evidências crescentes de que, ao longo de muitas gerações,
transformações culturais levam a mudanças no genoma. Talvez uma comprovação científica do
mencionado lento processo civilizatório).

Como as crenças religiosas costumam criar raízes a partir do berço, questionamentos podem
ser considerados heresias e podem acarretar um forte sentimento de culpa, sem mencionar a
possibilidade de castigos iminentes e vindouros. No meu caso, após um processo lento e muitas
vezes doloroso, consegui romper as amarras da religião primeira. Isto feito, passei por um período
excitante, diga-se, pois o sentimento de liberdade é grande, mas foi uma fase onde faltou o chão,
onde exacerbou-se o sentimento de solidão e onde senti-me como descrito nos primeiros versos de
“A Divina Comédia”, escrita pelo poeta Dante Alighieri:

Da nossa vida, em meio da jornada,


Achei-me numa selva tenebrosa.

A partir daí permiti-me conhecer outras crenças, despido de preconceitos. Pude passear por
filosofias ateias, agnósticas, monoteístas, politeístas, místicas, espiritualistas e panteístas. Pude
avaliar cada uma delas de acordo com minhas inclinações pessoais, e aqui tento deslindar um pouco
esse caminho, tento resumir alguns conceitos estudados e mostrar como, se não saí completamente
daquela selva tenebrosa, passei a apreciar sua beleza, sentir-me parte dela e percorrê-la com
familiaridade, conhecedor de muitos dos seus recantos, encantos, perigos e mazelas.

Não posso deixar de mencionar que, embora me considere um indivíduo racional, que, antes
de adotar, procura entender e aceitar como logicamente coerente toda e qualquer afirmação
metafísica, tenho em mente a seguinte afirmação de Chesterton: É sempre inútil falar de alternativa
entre a razão e a fé. A razão já é de per si uma questão de fé. É um ato de fé afirmar que os nossos
pensamentos têm qualquer relação com a realidade. Essa asserção, quase um sofisma, sem levá-la
ao pé da letra, me permite alguma “licença poética”, através da qual evito ser dogmático ou mesmo
ortodoxo.

Também estou longe do ponto de vista de Alberto Caeiro, um dos heterônimos do Poeta,
quando diz:

O meu misticismo é não querer saber.


É viver e não pensar nisso.

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Ao contrário dele, apesar da consciência do muito que não está ao alcance das nossas atuais
faculdades cognitivas, quero saber e me agrada bastante pensar e estudar isso.

Não é questão relevante para mim a crença (ou não) nos dogmas das diversas religiões; aliás,
considero esses “pontos de doutrina indiscutíveis e necessários à fé de determinada crença”
absolutamente sem importância. Não passam de verdadeiras prisões intelectuais. O fato de alguém
acreditar na virgindade de Maria, que o anjo Gabriel falou diretamente a ela ou que esse mesmo
anjo transmitiu o Alcorão ao profeta Maomé, em nada beneficia esse crente. O fato de alguém
acreditar que Jesus Cristo ressuscitou após ter sido crucificado e morto, que a hóstia e o vinho
consagrados são literalmente sua carne e seu sangue ou que Siddharta Gautama apresentava em seu
corpo os 32 sinais revelando que possuía as condições indispensáveis para se tornar um Buda, em
nada beneficia o mundo. O fato de alguém acreditar que Jesus devolveu a vida a Lázaro morto, que
transformou água em vinho ou que Maomé ascendeu aos céus, em absolutamente nada ajudará a
mitigar o sofrimento no mundo. O fato de alguém acreditar que Krishna é a oitava encarnação do
deus Vishnu, que Devaqui, sua mãe, é um Deva, um Espírito Superior encarnado para servir ao
Criador de Todas as Coisas ou que durante a meditação em que Siddharta, o Buda, alcançou a
Iluminação, caiu uma chuva e ele foi protegido por uma serpente naja gigante em nada aumentará o
amor entre os seres.

Uma última consideração. Parece haver em nossa sociedade uma repulsa dissimulada à
“dúvida”. Quem a possui está em processo de aprendizagem, é limitado intelectualmente ou
teimoso, dependendo do contexto. Os sábios não estão sujeitos a esse mal. Mais valorizada é a “fé”,
digna de homens circunspectos e abnegados. Não percebo dessa maneira. A fé cega, a meu ver,
funciona como autodefesa justamente da dúvida, muitas vezes angustiante, também servindo de
escudo para a preguiça de se buscar soluções mais satisfatórias. A fé cega permite a delegação de
esforços que deveriam ser nossos, permite a acomodação a conceitos socialmente aceitos, mesmo
que racionalmente criticáveis. Aqui peço ajuda ao sábio Jiddu Krishnamurti: A dúvida é uma coisa
preciosa. Ela limpa, purifica a mente. O próprio ato de questionar, o próprio fato de que a semente
da dúvida está na pessoa, ajuda a esclarecer nossas investigações. Ainda no século XX, Pierre
Teilhard de Chardin dizia que nossas dúvidas, como nossos males, são propriamente o preço e a
condição para um aperfeiçoamento universal. E finalizo este prefácio afirmando, como o escritor
cristão Philip Yancey, que inclino-me a escrever para enfrentar minhas próprias dúvidas.

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Introdução

Cristãos, pagãos, maometanos,


A qual de vós fará o Mistério a vontade?
A incerteza do que é a morte é o que nos vale na vida.
O desconhecimento do que é a morte é o sentido da vida.
O desconhecermos a morte é que faz a beleza da vida.

Quem sabe o valor exacto de uma vida?


Sei que há uma vida, e que apagam essa vida – não sei é quem apaga.
Mas sei que de cada vida que passa há um universo em mim.

Fernando Pessoa

É fato facilmente observável que as pessoas costumam abraçar a religião da família onde
cresceram, ou seja, absorvem a religião, juntamente com outras manifestações culturais, da
sociedade em que vivem. Quanto mais repressora e fechada essa sociedade, mais difícil é a adoção
de códigos e padrões de comportamento e de crenças diferentes dos estabelecidos como corretos e
verdadeiros.

Nas sociedades mais abertas, com facilidade pode-se tomar conhecimento de outras culturas, e
consequentemente, de outras religiões. Também é mais fácil o questionamento a crenças e dogmas,
sem medo de retaliação. Essas características permitem que não seja rara a mudança de crença
religiosa por parte das pessoas. Eu diria que, gradativamente, a religião está deixando de ser um
fenômeno cultural, algo próprio da vida coletiva, e passando a ser uma questão de foro íntimo, onde
cada consciência julga as crenças que mais lhe parecem convincentes. Sem dúvida, trata-se de um
processo ainda incipiente, embora, não posso deixar de recordar que, ainda no século XIX, Ralph
Waldo Emerson já dizia: O exclusivista em religião não enxerga que fecha a porta do céu a si
mesmo ao esforçar-se por fechá-la aos outros.

Dito isso, só posso formar minhas opiniões baseando-me em fatos e argumentos que
convençam a minha razão, não a de outras pessoas. Não as posso formar baseando-me em livros
milenares, escritos por-não-sei-quem e nem sob que circunstâncias. Mesmo considerando as muitas
“revelações”, somente teriam valor se fossem feitas a mim, pois qual a credibilidade da moral e da
sanidade de pessoas que não conheço, além do que, a grande maioria das religiões possui na sua
história algumas “revelações” muitas vezes contraditórias entre si. Em qual acreditar? Não tenho
dúvida quanto à resposta: em nenhuma. Neste ponto, tomo emprestada uma citação de Descartes,
retirada do Discurso do Método: Quando não está em nosso poder o discernir as opiniões mais
verdadeiras, devemos seguir as mais prováveis. Partindo do fato de que nunca tive nenhuma
revelação sobrenatural, que, verdadeira ou fruto de algum tipo de alucinação, indicariam as minhas
verdades, não está em meu poder “discernir as opiniões mais verdadeiras”, seguirei o caminho da
busca das opiniões “mais prováveis”, e elas serão decididas com base em razões individuais. O
próprio Siddharta Gautama, fundador do budismo, uma das mais antigas religiões atualmente
praticadas disse: Não aceitem nada do que vos disse. Aceitem apenas o que passar pelo crivo da
vossa experiência.

Não tenho a pretensão de montar um conjunto de crenças perfeito, pois seria muita presunção,
embora acredite que essa busca nos aperfeiçoa. Também não pretendo aqui levantar as bases de
nenhuma nova crença religiosa, até porque as religiões têm um talento especial para separar os
povos, mas apenas avaliar as religiões mais comuns, suas liturgias e principais crenças, um pouco
do que se falou sobre Deus, possibilidades pós-morte e questões práticas advindas das crenças
religiosas. Juntar tudo isso organizadamente em um cadinho e formar meu conjunto de crenças,
minha própria ‘religião’, caso a semântica dessa palavra me permita tal afirmação. É uma ‘religião’,
diga-se de passagem, dinâmica e variável, pois neste campo tratamos de coisas pouco concretas e

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palpáveis, além do acréscimo de experiências e conhecimentos poderem alterá-la
significativamente. Não há problema algum. Só um ponto não será alterado, diferentemente da
maioria das religiões, esta não se pavoneará de ser a única certa.

O processo que me trouxe até aqui não foi simples e nem fácil. Contradizer dogmas
impingidos desde a mais tenra infância transporta-nos, em primeiro lugar, a ferrenhas lutas e culpas
internas, para em seguida conduzir-nos a dolorosos embates com a família e a sociedade em que
vivemos. Trata-se de uma sucessão de estados e mudanças lenta e, principalmente no seu início,
aflitivo. Ao final da catarse, o alívio é grande, e não me sinto nem um pouco inclinado a adotar
qualquer religião estabelecida; ao contrário, sinto-me liberto de todas as prisões culturais às quais
um dia estive aferrado. Todas foram criadas por homens que, com maior ou menor grau de
similaridade à minha racionalidade e às minhas necessidades, a criaram, a iniciaram ou a
desenvolveram. Faço minhas as seguintes palavras de Hermann Hesse, escritor alemão, naturalizado
suíço, nascido em 1877 e filho de pais missionários: Quem, lutando, conseguiu a duras penas,
desatar sua personalidade das peias de suas origens não se sente inclinado a aprisionar sua
liberdade e sua responsabilidade, conseguidas a alto preço, em quaisquer tipos de esquemas,
programas, escolas, correntes ou igrejinhas.

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Religião

Novo Gênesis

No primeiro dia
o Demônio criou o universo e tudo o que nele há
e viu que era bom.

No segundo dia
criou a cobiça, a usura, a inveja, a gula, a preguiça, a soberba, a ira
a que chamou de sete virtudes capitais
e viu que era bom.

No terceiro dia criou as guerras.


No quarto dia criou as epidemias.
No quinto dia criou a opressão.
No sexto dia criou a mentira
e no sétimo dia, quando ia descansar,
houve uma rebelião na hierarquia dos anjos
e um deles, de nome Deus,
quis reverter a ordem geral das coisas,
mas foi exilado
na pior parte do Inferno – os Céus.

Desde então
o Demônio e suas hostes continuam firmes
na condução dos negócios universais,
embora volta e meia um serafim, um querubim
e algum filho de Deus, desencadeiem protestos, milagres, revoluções
querendo impingir o Bem onde há o Mal.
Porém não têm tido muito êxito até agora,
exceto em alguns casos particulares
que não alteram em nada a marcha geral da história.

Affonso Romano de Sant’Anna

Existem muitas definições de “religião”, algumas com pontos contrários a outras. Algumas
não abarcando crenças que outras significações englobam. Vejamos definições dadas pelo
dicionário Aurélio: 1. Crença na existência de uma força ou forças sobrenaturais, considerada(s)
como criadora(s) do Universo, e que como tal deve(m) ser adorada(s) e obedecida(s). 2. A
manifestação de tal crença por meio de doutrina e ritual próprios, que envolvem, em geral,
preceitos éticos. Passemos às definições do dicionário Michaelis: 1. Serviço ou culto a Deus, ou a
uma divindade qualquer, expresso por meio de ritos, preces e observância do que se considera
mandamento divino. 2. Sentimento consciente de dependência ou submissão que liga a criatura
humana ao Criador. Tentarei buscar conceitos melhores, mais puros, significativos e inclusivos.
Vejamos uma definição que possui um maior alcance, de Helmuth von Glasenapp (1891-1963): A
religião é a convicção de que existem poderes transcendentes, pessoais ou impessoais, que atuam
no mundo, e se expressa por insight, pensamento, sentimento, intenção e ação. A enciclopédia
Wikipédia coloca: “um conjunto de crenças relacionadas com aquilo que a humanidade considera
como sobrenatural, divino, sagrado e transcendental, bem como o conjunto de rituais e códigos
morais que derivam dessas crenças”. Essa última trata-se de uma definição que abarca uma maior
quantidade de convicções, onde não há preconceito contra a fé de ninguém e, particularmente, tenho
preferência por esse tipo de significação, ou seja, por definições mais abrangentes, que englobam
todas as crenças e práticas de aspecto místico, como as seitas e mitologias. Por falar em definições
abrangentes, cito dois pensadores, A. Leterre e Jacob Boehme, o sapateiro filósofo. O primeiro
comparava Deus a um prisma, onde cada religião vê uma das cores refratadas. O segundo falou:
Consideremos os pássaros da floresta: eles louvam Deus, cada um à sua maneira, sobre todos os
tons e modos. Pensais que Deus se ofende com essa diversidade e faça calar todas as vozes

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discordantes, todos esses cismas sonoros? Todas as formas do Ser são caras ao Infinito. Nessa
mesma linha de pensamento encontramos o monge, iogue e filósofo hindu Swami Vivekananda
(1863-1902), que não nutria preconceito contra nenhuma religião e afirmava que a diversidade é a
beleza da vida e não devemos assustar-nos por causa dela, nem pretender uma uniformidade
monótona. Sua definição de religião pode ser resumida nas seguintes palavras, retiradas de
“Epopeias da Índia Antiga”: [Religião] é o reconhecimento de nossa riqueza divina, é a união com
Deus, é o convencimento de que o espírito humano está relacionado com o Espírito Universal e
todas as suas manifestações... É o exercício da virtude, a efetividade do amor, a prática do bem
sem esperança de prêmio nem temor do castigo, é o cumprimento do dever; não é, porém, egotismo
teológico, nem subtileza escolástica, fé cega, devoção egoísta ou pietismo supersticioso. Esse sábio
ainda nos chama a atenção para o fato de que, se observarmos a vida dos grandes Instrutores, de
todas as épocas e todos os países, veremos que há apenas uma pequena diferença, entre eles.
Também é pertinente, e muito acrescenta, a seguinte definição (de profundo significado) dada pelo
estudioso nova-iorquino de mitologia e religião comparada, Joseph Campbell: A mitologia pode,
num real sentido, ser definida como a religião de outro povo. E a religião pode, num certo sentido,
ser entendida como uma incompreensão popular da mitologia. Posteriormente ele recolocou de
outra forma: Minha definição favorita de mitologia: a religião das outras pessoas. Minha definição
favorita de religião: a incompreensão da mitologia.

Esse esclarecimento foi necessário para evitar perda de tempo com argumentações sobre o que
é e o que não é religião. Já ouvi católicos que não queriam admitir ser a religião budista mais antiga
que a sua através da argumentação de que aquela não é uma religião, mas apenas uma filosofia de
vida. Achei muito estranho negarem-se os livros especializados, além do fato de que o budismo em
geral, possui templos, ritos, orações, ética, fieis, monges, escrituras sagradas, etc. Como poderia
deixar de ser considerado, além de filosofia de vida, uma religião?

Sendo um fenômeno cultural, é inegável a imensa participação de uma crença religiosa,


qualquer que seja ela, na vida dos seres humanos, desde os seus primórdios. Podemos afirmar que
praticamente todos os povos organizados pautaram seu comportamento, suas leis, sua ética, sua
moral, seus medos e suas esperanças em preceitos religiosos. Merleau-Ponty diz que a religião faz
parte do equipamento ou da aparelhagem mental do século XVI. Eu diria que sempre fez e continua
fazendo até hoje. Mesmo ateus estão constantemente discutindo religião. Estão constantemente
buscando provas das suas convicções, para os outros e para si próprios.

Qual a força propulsora desse fato? Segundo Édouard Schuré, a diversidade de religiões
provém do fato do homem não realizar a divindade senão através do seu próprio ser, que é finito e
relativo. Podemos visualizar outras razões, não apenas para a diversidade, mas principalmente para
a própria existência das religiões. Há alguma necessidade biológica, ou mesmo psicológica? Seria
algum instinto natural? Intuição? Busca de explicação para o incompreensível? Apenas medo do
desconhecido e da morte? Necessidade humana de para tudo obter uma explicação – falsa ou
verdadeira, que seja? Um misto das opções anteriores ou alguma outra? Sabemos que há
controvérsias entre os estudiosos deste assunto. Particularmente, acredito em uma série de fatores
que, unidos em diferentes proporções, formam o amálgama gerador das crenças religiosas;
proporções essas que variam para cada povo e época. A seguir colocarei alguns desses fatores.
Perdoem-me as interseções e sobreposições, ou mesmo a colocação de um mesmo fator visto por
um diferente ângulo.

Nos primórdios da humanidade as religiões desempenharam importante papel na


sobrevivência de muitos povos. Segundo suas crenças, boas colheitas dependiam das graças de
deuses, bem como a saúde, a paz ou simplesmente o nascer do sol (lembremos a deusa romana
Aurora, deusa do amanhecer, encarregada de abrir as portas do oriente ao sol). Os homens atribuíam
qualidades e defeitos aos deuses (ou ao deus), remotos e inatingíveis, que eram nada mais que as

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qualidades e defeitos humanos mais fundamentais. Deus sempre estava à mão para nos proteger de
qualquer eventualidade. Santo Agostinho, nos primeiros séculos após o nascimento de Cristo, se
dirigia a Deus com as seguintes palavras: ...aprendi, na medida em que me foi possível, que éreis
alguma coisa de grande e que podíeis, apesar de invisível aos sentidos, ouvir-nos e socorrer-nos.

O filósofo e místico indiano Jiddu Krishnamurti apresentou mais uma variável, o medo: “Por
causa do medo, inventaram-se deuses e salvadores”. Concorda com ele o filósofo inglês Bertrand
Russell: “A religião baseia-se, penso eu, principalmente e antes de tudo, no medo. É, em parte, o
terror do desconhecido e, em parte, como já o disse, o desejo de sentir que se tem uma espécie de
irmão mais velho que se porá do nosso lado em todas as nossas dificuldades e disputas. O medo é a
base de toda essa questão: o medo do mistério, o medo da derrota, o medo da morte”. O simples
fato das pessoas estarem, em geral, buscando algo que lhes confirme serem seus medos infundados,
faz com que sejam influenciáveis e crédulas, e, consequentemente, creiam. Falando especificamente
do medo da morte, Schopenhauer disse: É, em especial, em torno desse fim [da vida] que se dirigem
todos os sistemas religiosos e filosóficos, que são, portanto, como que o antídoto que a razão, por
força de suas reflexões, fornece contra a certeza da morte. Pessoalmente conheço pessoas que não
conseguem disfarçar o medo da morte; um desespero dilacerante, contido e solitário. Aqui cabe
mais uma citação, esta gutural, do filósofo fenomenologista Merleau-Ponty: A religião faz parte de
uma cultura não como dogma, nem mesmo como crença – mas como grito. Ainda poderíamos,
elevando o “medo” a um patamar superior, dizer que temos medo de saber quem realmente somos.

Com similar objetivo, aqui muito bem cabe citar o filósofo dinamarquês, conhecido como o
“pai do existencialismo”, Soren Kierkegaard: Assim como talvez não haja, dizem os médicos,
ninguém completamente são, também se poderia dizer, conhecendo bem o homem, que nem um só
existe que esteja isento de desespero, que não tenha lá no fundo uma inquietação, uma
perturbação, uma desarmonia, um receio de não se sabe o quê de desconhecido ou que ele nem
ousa conhecer, receio duma eventualidade exterior ou receio de si próprio; tal como os médicos
dizem de uma doença, o homem traz em estado latente uma enfermidade, da qual, num relâmpago,
raramente um medo inexplicável lhe revela a presença interna.

O alemão Ludwig Feuerbach identificou outra possibilidade: estamos alienados de nossa


essência e projetamos nossos sentimentos em um ser transcendente. Neste caso, Deus é uma ilusão,
uma projeção de nossa natureza íntima idealizada, e o que é verdadeiro no sentimento religioso é,
na realidade, o amor à humanidade. É dele a afirmação que diz: Quando a moral se baseia na
teologia, quando o direito depende da autoridade divina, as coisas mais imorais e injustas podem
ser justificadas e impostas. É muito fácil concordar com ele quando olhamos para fenômenos
similares à Inquisição, ao fundamentalismo islâmico e outros.

Sempre houve uma necessidade de explicação e de controle dos fenômenos físicos que nos
rodeiam, tantos os bons como os ruins, como a chuva e as tempestades, os maremotos e as erupções
vulcânicas, o frio e o calor. Em cima dessa necessidade foram criados deuses que castigavam,
recompensavam e que deveriam ser bajulados através de sacrifícios, ritos e da submissão a leis a
eles atribuídas.

Independentemente das crenças, as religiões também promovem a integração social,


satisfazendo necessidades emocionais dos praticantes.

Outro fator, não menos importante, nos foi intuído pelo gênio da literatura brasileira,
Guimarães Rosa, que através do seu personagem Riobaldo, disse: O que ele explicado mandou, eu
fui e principiei, que obedecer é mais fácil do que entender. É muito comum não haver
questionamento a nenhum dogma, a nenhuma crença, a qualquer “lenda oficial”, desde que relatada
com bizarria. Quanto maior o pundonor, mais crível. Questionar é trabalhoso, pois temos de ir

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contra a opinião de pessoas que consideramos sábias. E temos de pensar. É muito mais simples
obedecer. Mantendo-nos agrupados ao rebanho, não corremos o risco de alterar o modus vivendi
estabelecido, que, bom ou ruim, estamos a ele acostumados. O desconhecido assusta. Riobaldo
repetia constantemente que viver é negócio muito perigoso. Entender também é.

Mais outro fator a ser levantado, e que está relacionado ao caráter social das religiões, é o
“hábito”. Para explaná-lo trago as palavras de Charles Peirce, considerado por muitos historiadores
da filosofia como o maior e mais original pensador que já surgiu na América do Norte: Os hábitos
têm graus de força variados, que vão desde a dissociação completa até associação inseparável...
Prontidão para agir de certa forma em dadas circunstâncias e movido por um determinado motivo
constitui um hábito; e um hábito deliberado, ou autocontrolado, constitui precisamente uma
crença.

A religião também serve de consolo, fornecendo uma perspectiva de melhora após a morte, a
uma visão pessimista da existência, uma visão como a de um personagem capaz dos seguintes
dizeres: Qual, seu Turíbio Todo... Com perdão da palavra, mas este mundo é um monte de estrume!
Não vale a pena a gente ficar alegre... Não vale a pena, não. Aqui, mais uma vez me encontro na
companhia de Guimarães Rosa; desta vez retirei as palavras do conto Duelo, do livro Sagarana.

Chesterton (1874-1936), jornalista e pensador inglês, em Ortodoxia, livro onde descreve o


processo interno de sua conversão ao cristianismo, nos descortina mais um possível fator, quando
afirma: É o misticismo que conserva os homens sãos. Enquanto tiverdes mistério, tereis saúde;
quando destruirdes o mistério, criareis a morbidez. Imagino que essa afirmação possa ser válida
para algumas pessoas, mas não é universal.

Ainda posso depreender do meu dia-a-dia outro fator: a “necessidade de chefe” que as pessoas
em geral sentem. É muito comum vermos indivíduos que carecem de alguém que lhes diga o que
fazer, alguém que assuma a responsabilidade pelos fatos, bons e ruins, da vida, alguém que tome as
decisões. Com a religião, o “chefe” passa a ser o Papa, o sacerdote, o pastor, ou mesmo Deus. Não
se questionam as ordens e muito menos as suas origens. Por que são extremamente raras as pessoas
que, sendo seguidoras de alguma religião baseada na Bíblia, já a leram completamente? Não é
estranho alguém pautar toda a sua vida em um livro que nunca leu, exceto pequenos trechos
previamente selecionados pelos sacerdotes, padres, bispos e pastores? Talvez não interesse
realmente o que esteja escrito, basta que alguém o interprete e diga o que fazer. As pessoas fazem,
ou pensam fazer, e pronto.

Não posso deixar de mencionar uma causa, mundana, diga-se, mas não menos importante, que
são as relações de poder instituídas a partir da religião. Aqui se olha de cima para baixo. No
parágrafo anterior, sobre a “necessidade do chefe”, olhamos de baixo para cima. Muito bem falou
sobre este ponto Albert Einstein, em seu livro Como Vejo o Mundo, de 1953: Com frequência o
chefe, o monarca ou uma classe privilegiada, de acordo com os elementos de seu poder e para
salvaguardar a soberania temporal, se arrogam as funções sacerdotais. Ou então, entre a casta
política dominante e a casta sacerdotal se estabelece uma comunidade de interesses.

Edward Wilson lembrou outro fator. Na realidade a combinação de três fatores: textos
sagrados contendo incertezas, incoerências, palavras obscuras e invocações místicas, prestando-se a
uma variedade de interpretações, associados à inocente credulidade da raça humana e à inevitável
necessidade que o homem tem de algum tipo de herói sobre-humano.

Ainda há o enfoque evolucionista. Cientistas buscam na seleção natural darwiniana uma


explicação para a existência das religiões, que normalmente são crenças que contradizem fatos
científicos, consomem grandes quantidades de recursos e tempo, mata-se e morre-se por elas.

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Também existem hipóteses de que a religião não traz benefícios diretos como vantagem evolutiva,
mas é um subproduto de algo que realmente tem (ou teve) vantagem evolutiva. Como exemplo
citarei resumidamente Richard Dawkins. Ele menciona o fato de que as mariposas voam para a
chama de uma vela em um determinado ângulo e parecem estar cometendo suicídio. O autor lembra
que a luz artificial é uma invenção recente e que o ato de voar em determinado ângulo relativamente
aos raios luminosos traz grandes vantagens para a mariposa, e diz: Só vemos as mariposas voando
para a nossa vela, e fazemos a pergunta errada: por que todas essas mariposas estão cometendo
suicídio? Deveríamos, em vez disso, perguntar por que elas têm sistemas nervosos que se orientam
mantendo um ângulo fixo em relação aos raios de luz, uma tática que só notamos quando dá
errado. Quando a pergunta é reformulada, o mistério evapora. Jamais foi correto chamar aquilo
de suicídio. Trata-se de um subproduto indesejado de uma bússola normalmente útil. A partir daí
chega-se à suposição de que o comportamento religioso pode ser um subproduto indesejado e
infeliz de uma propensão psicológica subliminar que, em outras circunstâncias, é, ou foi um dia,
útil. E Richard Dawkins arrisca um palpite (entre vários fornecidos por outros cientistas) baseando-
se na tendência das crianças para acreditar piamente em tudo que é afirmado pelos adultos: A
criança não tem como saber que “Não nade no Limpopo infestado de crocodilos” é um bom
conselho, mas que “Você deve sacrificar um cabrito na época da lua cheia, senão as chuvas não
virão” é no mínimo um desperdício de tempo e de cabritos. As duas advertências soam igualmente
confiáveis. As duas vêm de uma fonte respeitável e são feitas com uma honestidade solene que pede
respeito e exige obediência. Sem grandes questionamentos, os ensinamentos serão repassados para
as gerações seguintes. Devo colocar ainda o lembrete feito por Richard Dawkins: Lembre-se,
porém, de que minha sugestão específica sobre a útil credulidade da mente infantil é apenas um
exemplo do tipo de coisa que pode ser análogo à navegação das mariposas pela lua ou pelas
estrelas.

Em todas as épocas, um dos principais fatores formadores das crenças religiosas são as
tradicionais “questões existenciais”: Quem sou? (Kahlil Gibran refez essa pergunta: quem é esse
estranho a quem chamo de ‘Eu’?) De onde venho? Para onde vou? Cada crença responde essas
questões de uma maneira, e as respostas devem fornecer sentido à vida. Com base nesse “sentido”,
Rubem Alves, psicanalista, educador, teólogo e escritor mineiro, possui uma definição de religião
da qual gosto bastante, embora se adapte mais à religiosidade nos tempos atuais, onde a ciência
ocupa grandes áreas antes ocupadas pela religião. Segundo ele, as religiões constituem “o esforço
para pensar a realidade toda a partir da exigência de que a vida faça sentido”. Nos incomoda a
possibilidade da vida ser apenas um passatempo inútil entre o nascimento e a morte. Além disso,
imagino não ser difícil observar que a vida no nível do ego, por mais bem-sucedida que seja,
contém inquietação e carece de alegria.

***

Um ponto sobre o qual voltarei a falar ao longo deste texto é que não importa a definição que
se dê à religião se ela não for vivida na sua essência, se seus preceitos não forem fundidos ao ser-
em-si de cada seguidor, se ela for apenas a casca social que fornece uma egoística paz de espírito.
Sobre isso, muito bem falou o 14o Dalai Lama: Para que uma religião tenha um impacto em tornar
o mundo um lugar melhor, creio ser importante que cada participante siga sinceramente os
ensinamentos daquela religião. Ele precisa incorporar os ensinamentos religiosos à sua vida, onde
quer que se encontre, para poder recorrer a eles como uma fonte de força interior. E é preciso
adquirir uma compreensão mais profunda das ideias da religião, não apenas num nível intelectual,
mas com uma profundidade de sentimento, tornando-as parte da nossa experiência interior.
Infelizmente não observo essa predisposição na quase totalidade das pessoas que se dizem
religiosas. Exemplificando, são percentualmente insignificantes os cristãos que seguem os
ensinamentos de Jesus Cristo.

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Como disse o padre Vilson Groh, ou vivemos de acordo com o que acreditamos, ou não
acreditamos.

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Visões da divindade

Há metafísica bastante em não pensar em nada.

O que penso eu do mundo?


Sei lá o que penso do mundo!
Se eu adoecesse pensaria nisso.

Que ideia tenho eu das cousas?


Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?
Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma
E sobre a criação do Mundo?

Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos


E não pensar. É correr as cortinas
Da minha janela (mas ela não tem cortinas).

O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério!


O único mistério é haver quem pense no mistério.
Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a não saber o que é o sol
E a pensar muitas cousas cheias de calor.
Mas abre os olhos e vê o sol,
E já não pode pensar em nada,
Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos
De todos os filósofos e de todos os poetas.
A luz do sol não sabe o que faz
E por isso não erra e é comum e boa.

Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores?


A de serem verdes e copadas e de terem ramos
E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar,
A nós, que não sabemos dar por elas.
Mas que melhor metafísica que a delas,
Que é a de não saber para que vivem
Nem saber que o não sabem?

"Constituição íntima das cousas"...


"Sentido íntimo do Universo"...
Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.
É incrível que se possa pensar em cousas dessas.
É como pensar em razões e fins
Quando o começo da manhã está raiando, e pelos lados das árvores
Um vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão.

Pensar no sentido íntimo das cousas


É acrescentado, como pensar na saúde
Ou levar um copo à água das fontes.

O único sentido íntimo das cousas


É elas não terem sentido íntimo nenhum.
Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta dentro
Dizendo-me, Aqui estou!

(Isto é talvez ridículo aos ouvidos


De quem, por não saber o que é olhar para as cousas,
Não compreende quem fala delas
Com o modo de falar que reparar para elas ensina.)

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Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e sol e o luar,
Então acredito nele,
Então acredito nele a toda a hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.

Mas se Deus é as árvores e as flores


E os montes e o luar e o sol,
Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;
Porque, se ele se fez, para eu o ver,
Sol e luar e flores e árvores e montes,
Se ele me aparece como sendo árvores e montes
E luar e sol e flores,
É que ele quer que eu o conheça
Como árvores e montes e flores e luar e sol.

E por isso eu obedeço-lhe,


(Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?).
Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,
Como quem abre os olhos e vê,
E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,
E amo-o sem pensar nele,
E penso-o vendo e ouvindo,
E ando com ele a toda a hora.

Fernando Pessoa

Neste capítulo farei um rápido apanhado de algumas maneiras como é vista a divindade, ou
Deus. Apenas a título de ilustração, utilizei o nome de personalidades que compactuavam, ou
mesmo criaram, a forma descrita, para intitular os itens. Aqui veremos como algumas pessoas
responderam, dentre outras, as seguintes perguntas, elaboradas por Joseph Campbell: Que sou eu?
Sou a lâmpada que contém a luz ou sou a luz de que a lâmpada é o veículo?

Concordo com São Tomás de Aquino, o grande teólogo da igreja católica, criador do maior
sistema teológico-filosófico de toda a Idade Média, quando disse na Súmula Contra os Gentios: Há
verdades sobre Deus que excede toda a capacidade da razão humana... Mas há algumas que a
razão natural também é capaz de alcançar. Por exemplo, que Deus existe (embora minha definição
de ‘deus’ seja bem diferente da dele).

É bom salientar que mesmo entre seguidores de uma mesma fé sempre houve discordâncias
relevantes a este respeito. Posso fornecer como exemplo o fato de John Duns Scot, religioso da
ordem dos franciscanos, além de teólogo e filósofo, defender a ideia de que o raciocínio filosófico
nunca poderia alcançar o conceito do Deus cristão; somente a fé poderia prover tal conhecimento;
compreensão essa que retirava a subserviência da filosofia com relação à teologia, como vinha
ocorrendo ao longo da Idade Média. É bem diferente do que defendia São Tomás de Aquino, que
havia falecido alguns anos antes do nascimento de Duns Scot. Talvez seja útil mencionar que John
Duns Scot, embora tenha morrido em 1308, foi beatificado em 1993 pelo Papa João Paulo II.

Bíblia

Começo falando sobre o Deus apresentado pela Bíblia. Já escrevi um livro, intitulado O
Cristão, onde respondo à pergunta: Por que não pertenço a nenhuma religião cristã? Lá procurei
embasar minha crença, ou a falta dela, na própria Bíblia, mostrando muitos de seus erros e de suas
contradições. Também expus as razões de não ver o personagem principal dessa coletânea de livros

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– Jeová, Javé ou Iahweh – como um verdadeiro Deus. Há muito não aceito o deus dos judeus
primitivos como Deus. Trata-se de um deus extremamente fútil, malévolo, rigoroso, legislador,
frívolo, protetor, destruidor, vingativo, guerreiro, jactancioso, ciumento e possuidor de uma série de
outros atributos não muito dignificantes. Mesmo com relação ao deus apresentado por Jesus Cristo,
apesar da radical, absoluta e total diferença de caráter e de personalidade com relação ao anterior,
do Antigo Testamento, também possuo uma série de restrições.

Com relação ao Antigo Testamento, concluo que o vejo como uma coleção de livros que
contam a história de um povo, os judeus, com todos os seus problemas, sucessos e fracassos; lutas,
vitórias e derrotas; crenças, temores, lendas e sagas, crimes que cometeram e sofreram, onde a
maioria das passagens possui como personagem principal o seu deus particular, Iahweh.

Já com relação ao Novo Testamento, procurei mostrar os principais pontos que me fazem não
vê-lo como um livro sagrado; não o tenho como um livro que descreve verdadeiramente como
nasceu, viveu e o que Jesus Cristo, filho de Deus, fez pela humanidade, mas que contém o que
disseram sobre o nascimento, a vida e as obras de Jesus Cristo, o homem, e que o transformaram
no messias profetizado pelo Antigo Testamento.

Naquele livro ainda há uma parte na qual procuro mostrar que os autointitulados cristãos,
mesmo, ou principalmente, os dignitários das principais religiões cristãs, passam ao largo das
maravilhosas doutrinas trazidas por Jesus Cristo.

Acredito ter sido bastante claro no embasamento do porquê essas são algumas das poucas
certezas que possuo no campo religioso, não necessitando, aqui, de maiores explicações. E é pelas
razões apresentadas naquele livro que vejo apenas uma pálida sombra de Deus na visão da
divindade apresentada pelos livros contidos na Bíblia, principalmente os do Antigo Testamento.

Bertrand Russell

Estou utilizando o aristocrata inglês Bertrand Russell (1872-1970) como representante da


visão de todo ateu. E que representante! Em seus quase 100 anos de vida foi um incansável defensor
da paz, matemático, lógico e filósofo, que alcançou enorme prestígio internacional, tendo recebido
o prêmio Nobel de Literatura em 1950.

Russell buscou invalidar racionalmente os principais argumentos sobre os quais se baseia a


crença em Deus e um dos mais utilizados sempre foi o da Causa Primeira, que, resumidamente,
afirma a obrigatoriedade de uma causa para tudo, sendo Deus a primeira. Em seu livro “Porque Não
Sou Cristão”, falando sobre este argumento, coloca: Se tudo tem de ter uma causa, então Deus deve
ter uma causa. Se pode haver alguma coisa sem uma causa, pode muito bem ser tanto o mundo
como Deus, de modo que não pode haver validade alguma em tal argumento. Outra maneira de
dizer a mesma coisa é: se um deus pode ser encarado como eterno, então o universo também pode
ser encarado como eterno.

Encontrei uma forma diferente de invalidar este argumento, o da Causa Primeira, no livro
“Buda - O Mito e a Realidade”, de Heródoto Barbeiro, jornalista que apresenta o Jornal da CBN,
gerente de jornalismo do Sistema Globo de Rádio, colunista do jornal Diário de São Paulo, da
Revista Imprensa e do America On Line, apresentador do Jornal da Cultura e autor de vários livros.
O trecho menciona: Buda...não vê a existência a partir de um começo ou fim, mas a partir de um
círculo que não tem começo nem fim. Se começo e fim são a mesma coisa, estão interligados um ao
outro, sem espaço entre eles, Deus não pode ser “a causa primeira”.

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Outro argumento utilizado a favor da crença em Deus são as experiências transcendentais, ou
experiências pessoais, ou mesmo experiências místicas; em suma, experiências que geram
afirmações do tipo “eu sinto a presença de Deus”. Os ateus contra argumentam alegando que todas
essas experiências são internas à mente.

Sobre o argumento de que a maior parte da humanidade acredita em algum deus, pode-se
alegar que a verdade não é decidida através do voto.

O religioso, teólogo e filósofo Anselmo de Aosta, mais tarde passando a ser chamado de
Anselmo de Cantuária e hoje mais conhecido como Santo Anselmo, é considerado um dos maiores
representantes do pensamento escolástico, linha filosófica medieval que procurou conciliar a razão
e a fé. Foi Santo Anselmo quem formulou o célebre argumento ontológico a favor da existência de
Deus, em seu livro Proslógio, de 1078. Antes de iniciar o raciocínio em questão, ele prepara o que
virá: Então comecei a pensar comigo mesmo se não seria possível encontrar um único argumento
que, válido de si e por si, sem nenhum outro, permitisse demonstrar que Deus existe
verdadeiramente e que ele é o bem supremo, não necessitando de coisa alguma, quando, ao
contrário, todos os outros seres precisam dele para existir e serem bons. Não demora muito e o
raciocínio se inicia: ...existe na inteligência “o ser do qual não se pode pensar nada maior”... Mas
“o ser do qual não se pode pensar nada maior” não pode existir somente na inteligência. Se, pois,
existisse apenas na inteligência, poder-se-ia pensar que há outro ser existente também na
realidade; e que seria maior. Cabe acrescentar aqui, a título de esclarecimento, que, para Santo
Anselmo, uma coisa é certamente maior (mais perfeita) se existente na inteligência (pensada) e na
realidade do que existente apenas na inteligência. Ele continua: ...logo, “o ser do qual não se pode
pensar nada maior” existe, sem dúvida, na inteligência e na realidade. É um argumento que foi
utilizado, com algumas alterações, por outros filósofos, inclusive René Descartes, que nas suas
Meditações chegou a dizer: Não seria possível... eu ter em mim a ideia de um Deus, se Deus não
existisse realmente. O argumento ontológico é rebatido através da observação de que ele depende
não apenas da razão, mas também da fé; pode-se dizer que ele pressupõe ser a existência um
atributo, quando na realidade é um dado adquirido. Muitos simplificam esse argumento à forma
“algo existe em meu pensamento, logo, existe também no mundo material!”, para ridicularizá-lo.

Embora eu encontre argumentos que me convençam com maior eficácia em outras formas de
ver a divindade, sinto-me obrigado a reconhecer que esta visão, a ateia, não deve ser desprezada,
tanto na sua forma racional, aqui representada por Russell, como na sua forma mística, representada
por Buda, nas palavras de Heródoto Barbeiro.

Leibniz

Para o matemático que desenvolveu o cálculo integral, cientista que, entre outros feitos, criou
uma máquina de calcular, diplomata, advogado, engenheiro, historiador e filósofo racionalista
Gottfried Wilhelm Leibniz, dada a natureza de Deus como todo-misericordioso e todo-poderoso,
segue-se que este mundo deve ser o melhor possível. Falando por outras palavras, entre tantos
mundos possíveis (existentes em Deus como possibilidades), Deus dá existência a um só e a escolha
obedece ao critério do melhor, que é a razão suficiente de existir do nosso mundo.

Para Leibniz, o mundo, como finito, é imperfeito para distinguir-se de Deus. O Mal
Metafísico, sendo a imperfeição, é inevitável na criatura. Ao produzir o mundo tal como ele é, Deus
escolheu o menor dos males, de tal forma que o mundo comporta o máximo de bem e o mínimo de
mal. Voltaire caricaturou Leibniz e suas ideias no romance Cândido, através do personagem
chamado Pangloss.

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Foi Leibniz quem cunhou o termo teodiceia, o qual designa a doutrina que procura conciliar a
bondade e onipotência divinas com a existência do mal no mundo. Segundo ele, o Mal Moral que
existe no mundo é o mínimo necessário para que haja um máximo de bem. O Mal Físico tem a sua
justificação para dar ocasião a valores mais altos. Por exemplo, a adversidade dá ocasião a que
exista a fortaleza de ânimo, o heroísmo, a abnegação, ou seja, Deus autoriza o sofrimento porque
este é necessário para a produção de um Bem Superior. Com a palavra, o próprio filósofo:
Experimenta-se suficientemente a saúde, sem nunca se ter estado doente? Não é preciso que um
pouco de Mal torne o Bem sensível, isto é, maior? À parte a validade da teoria (que apresenta
semelhanças com a do grego Heráclito), espanta-me ele ter utilizado a palavra pouco para se referir
ao mal existente no mundo. Parece uma teoria fabricada sob encomenda para justificar, explicar e,
sobretudo, desculpar, fatos pouco dignos.

O “problema do mal” é estudado desde os primórdios da filosofia. Vejamos o que pensava a


esse respeito Epicuro, filósofo nascido em 341 antes de Cristo: Deus, ou quer impedir os males e
não pode, ou pode e não quer, ou não quer nem pode, ou quer e pode. Se quer e não pode, é
impotente: o que é impossível em Deus. Se pode e não quer, é invejoso: o que, do mesmo modo, é
contrário a Deus. Se nem quer nem pode, é invejoso e impotente: portanto, nem sequer é Deus. Se
pode e quer, o que é a única coisa compatível com Deus, donde provém então a existência dos
males? Por que razão é que não os impede? Não acredito que Leibniz respondeu essa questão.
Descontando o tom de ironia e o sarcasmo, acho mais convincente a fala de Gloster, personagem da
tragédia Rei Lear, de Shakespeare, quando diz: O que para os garotos são as moscas, nós somos
para os deuses: matam-nos por brinquedo.

Outro famoso filósofo que se dedicou a essa questão foi Santo Agostinho, de Hipona; um dos
homens que configuraram a religião católica da maneira em que é vista hoje em dia. Segundo ele,
tudo o que Deus criou é bom, e o mal só ocorre quando sua criação é corrompida. É sua a
concepção do “pecado original” como fonte de todo o sofrimento, de acordo com o Gênesis.
Falando mais claramente, a culpa de Adão e Eva, personagens já vistos como fictícios pela própria
igreja, é a justificativa para a punição de toda a raça humana. Usando palavras de Santo Agostinho:
Deus não é a fonte dos males... eles existem devido ao pecado voluntário da alma, à qual Deus deu
livre escolha. De acordo com esse ponto de vista, o mal é causado pelo próprio homem, através do
mau uso do seu livre-arbítrio. Muitos milhões de anos antes do homem existir já havia animais, que
se devoravam uns aos outros e estavam sujeitos a todos os males naturais, como maremotos,
terremotos, incêndios naturais, fome, pestes, etc. Não se pode atribuir ao livre-arbítrio dos homens a
responsabilidade por todo o sofrimento ocorrido nesse longo período. Mesmo que fosse verdadeira
a hipótese de que o homem - e não Deus - é responsável pelo mal, ela justificaria apenas o mal
moral. Ainda há o mal natural, que atinge os seres vivos de uma maneira totalmente aleatória e
brutal, sem discriminação de raça, credo, caráter, idade ou sexo.

Também há alegações de que é através do mal que crescemos espiritualmente. Isso não
justifica o sofrimento de crianças, seguido da sua morte, onde não houve sequer tempo para
nenhuma espécie de crescimento. Também não justifica o sofrimento dos animais, caso esses
possuam espírito que possa “crescer”, como creem muitos. Da mesma maneira, não explica algumas
espécies de sofrimento que, ao invés de causar crescimento, causa traumas e perturbações psíquicas
que duram toda a vida de uma pessoa.

(Pessoalmente, prefiro uma visão que não vê opostos, similar à do calor e do frio, que
essencialmente são a mesma coisa, apenas apresentando uma diferença quantitativa de temperatura.
Explicando. O que diferencia uma impressão da outra, o calor do frio, é uma maior ou menor
temperatura em determinado ambiente ou objeto. Quando passamos do frio ao calor, em algum
ponto desta subida de temperatura, a sensação muda de nome, passando a ser chamada de “calor”,
sendo que este ponto é diferente de uma pessoa para outra, pois a sensibilidade à temperatura é

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variável. Da mesma forma, o que diferencia pequeno de grande é uma diferença quantitativa de
comprimento ou de volume, e o que diferencia escuro de claro é uma diferença quantitativa de
luminosidade. Resumindo, os opostos não são essencialmente diferentes, possuem a mesma
natureza, a mesma ideia principal, o mesmo espírito, diferindo apenas quanto à quantidade de algo,
que faz parte dos dois extremos. Utilizando o mesmo raciocínio, o bem e o mal não são duas coisas
distintas e opostas, podem ser vistos de maneira similar, como os extremos de uma mesma e única
coisa, separados por uma maior ou menor quantidade de amor e de ignorância. Endossando este
ponto de vista, o padre Teilhard de Chardin, jesuíta, geólogo e paleontólogo nos disse: O fogo do
inferno e o fogo do céu não são duas forças diferentes, e sim manifestações contrárias da mesma
energia).

Acredito ser um sério agravante ao problema do mal, a característica de Deus, colocada por
Leibniz e Santo Agostinho, entre muitos outros, que é a sua onisciência. Se isso é verdadeiro, ele
conhece o passado, o presente e o futuro, ou seja, sabe de antemão o resultado de toda a epopeia
humana, tem prévio conhecimento de todas as torturas a que serão submetidos os homens e os
animais, bem como as resoluções tomadas pelos envolvidos em cada mínima querela, mas, mesmo
assim, deixa que aconteça. Outra consequência decorrente da onisciência de Deus é que João
Calvino, teólogo francês que viveu no século XVI, estava certo quando disse que os homens já
nascem predestinados à salvação ou à condenação (informo também, a título de curiosidade, que
Calvino era um daqueles líderes religiosos que possuía o péssimo hábito de matar quem pensasse de
forma diferente da dele). Acrescento que, nessas circunstâncias, não haveria o livre-arbítrio, pois
Deus, sendo onisciente, sabe de antemão tudo que farei, ou seja, não tenho liberdade no agir, só
posso fazer aquilo que Deus já sabia. Se tenho o livre-arbítrio, forçosamente temos de negar a
onisciência de Deus. Vou complicar um pouco mais. Se Deus, ao criar um espírito, desconhece seu
destino, mais uma vez, teremos que contestar sua onisciência. Se Ele, onisciente, conhecendo um
mau destino, insiste em criar esse espírito, teremos que negar sua bondade e seu amor. Se tal
espírito criou-se por si só, teremos que negar sua onipotência. Realmente, não há saída lógica para
esta visão da divindade.

Já com relação à onipotência divina existem alguns jogos de palavras curiosos. São
“brincadeiras” que já colocaram muitos filósofos para pensar. Darei um exemplo. O que aconteceria
se alguém pedisse que o Deus, da forma como é visto por Leibniz, criasse uma pedra que ele
próprio não conseguisse levantar? Caso ele atendesse ao pedido, deixaria de ser onipotente, já que
seria incapaz de levantar a pedra. Caso ele não conseguisse criar uma pedra com tal característica,
não seria onipotente devido a essa impossibilidade. Ainda poderíamos imaginar uma terceira
alternativa. Este Deus poderia recusar-se a atender ao pedido, afinal, ninguém pode ser obrigado a
gerar prova contra si próprio.

Estas constatações, entre muitas outras, bastante exploradas no livro O Cristão, mostram-me
claramente que há um grande erro na visão de Deus como um criador, separado da sua criação,
bom, onipotente e onisciente. Vejo o termo teodiceia como contraditório em si mesmo.

Voltaire

Quando olho para meu relógio, o que vejo? Plástico, vidro, engrenagens, reações químicas
gerando energia elétrica na bateria, metal, algumas letras escritas em uma determinada linguagem e
uma infinidade de pequenas coisas que, dispostas como estão, fazem-no capaz de indicar-me as
horas e a data, números que, devido a algumas convenções centenárias, marcam a passagem do
tempo.

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Imaginemos a seguinte sequência de fatos: há bilhões de anos, um átomo de ferro rolando
montanha abaixo se encontrou com outro, e mais outro, e ainda outro, e esse encontro repetiu-se
milhares de vezes até a formação de um pedaço expressivo de ferro. Como esse movimento ocorria
em milhares de montanhas, milhares de vezes por dia, aconteceu que um dos pedaços expressivos
de ferro possuía a forma de uma perfeita engrenagem, com todos os seus dentes igualmente
espaçados e sua exata forma circular. Muito tempo levou para que essa engrenagem encontrasse
outras, formadas da mesma maneira, e se encaixassem, através de pinos igualmente metálicos,
igualmente formados. Processo semelhante ocorreu com partes bem determinadas de sílica,
alumina, sódio, cálcio, magnésio e potássio, dando origem a um belo pedaço hexagonal de vidro.
Simultaneamente e similarmente iam sendo formados o plástico, a tinta, a bateria e todos os
componentes necessários para compor um relógio. É claro que seria muito difícil a ocorrência de
tudo isso, mas não esqueçamos que foram bilhões de anos e uma quantidade ainda maior de
“tentativas”. Comparação similar encontrei em Alan Watts, filósofo britânico. Ele diz: O ser
humano foi considerado um golpe de sorte, um acaso estatístico, com a mesma chance de que
milhões de macacos batendo em milhões de máquinas de escrever durante um milhão de anos
acabassem por escrever a Enciclopédia Britânica.

Ninguém em sã consciência daria crédito a tal delírio evolucionista. Vamos dar mais um
passo: comparemos a diminuta complexidade de um relógio quando posto ao lado de qualquer ser
vivo; uma simples bactéria, por exemplo, que é um ser unicelular, porém com capacidade de
reprodução através da fissão binária, possuindo uma membrana citoplasmática que delimita um
compartimento contendo DNA, RNA, proteínas e pequenas moléculas. Se a visão de um relógio
sendo formado da maneira descrita acima é vista como absurda, porque desenvolvimento
semelhante é aceito quando se trata de bactérias? Compliquemos um pouco mais. Tomemos apenas
os olhos e todo o sistema que permite a visão aos seres superiores. Imaginemos todos os processos,
elétrico, físico, biológico e químico, envolvidos no sentido da visão. Acrescentemos o sistema
respiratório, o reprodutor, o locomotor. Demos uma olhada nos instintos, esta “programação de
fábrica”, este firmware visto nos animais (nós inclusos). É difícil conceber o surgimento de tudo
isso devido a encontros casuais de átomos, mesmo disponibilizando, para isso, bilhões de anos.
Darwin talvez não explique tamanha complexidade e precisão.

Acredito que a Evolução seja inegável, suas geniais hipóteses e argumentos são por demais
convincentes e observáveis, mas acredito que seus mecanismos de atuação ainda não foram
desvendados por completo, bem como, juntamente com todo o universo, sua origem. Questiono o
fato da vida ter surgido devido apenas ao acaso. O que pega é a palavra “apenas”. Parece-me uma
crença tão ingênua quanto o mito bíblico da criação. Tomarei emprestada uma citação de Helena
Blavatsky, encontrada em A Chave Para a Teosofia: Acreditamos em um princípio sempre
incognoscível, pois apenas uma aberração cega pode fazer com que alguém sustente que o
universo, o homem pensante e todas as maravilhas contidas mesmo no mundo da matéria possam
ter crescido sem poderes inteligentes que efetuassem a organização extraordinariamente sábia de
todas as suas partes.

A seguir, uma passagem de Voltaire, retirada de “O Filósofo Ignorante”: Seria preciso que
fosse um físico muito ignorante, ou um sofista cheio de orgulho bem estúpido, para não reconhecer
uma Providência todas as vezes que respirava e que sentia seu coração bater, pois a respiração e o
movimento do coração são efeitos de uma máquina tão industriosamente complicada, arranjada
com uma arte tão potente, dependendo de tantas molas concorrendo todas ao mesmo fim, que é
impossível imitá-la, e impossível um homem de bom senso não admirá-la.

Nesse mesmo livro, Voltaire resume suas crenças: Sou tomado de admiração e de respeito ao
perceber a ordem, o artifício prodigioso, as leis mecânicas e geométricas que reinam no universo,
os meios, os fins inumeráveis de todas as coisas. Incontinenti julgo que, se os trabalhos dos

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homens, mesmo os meus, forçam-me a reconhecer uma inteligência em nós, devo reconhecer uma
outra bem superior, agindo na multiplicidade de muitas obras. Admiro essa inteligência suprema
sem temer que um dia possam fazer-me mudar de opinião. Nada abala em mim este axioma: “Toda
obra demonstra um obreiro”. Mais a frente ele complementa: ...quero saber se essa inteligência
divina é alguma coisa absolutamente distinta do universo (mais ou menos como o escultor se
distingue da escultura) ou se essa alma do mundo está unida a ele e o penetra. Voltaire não sabe
responder, ele reconhece, mas não deixa de ser curiosa e simpática a visão monista aqui esboçada.

Eu não estaria sendo totalmente honesto se não mencionasse o fato de que quando um
raciocínio similar ao que apresentei no início da ‘visão de Voltaire’, o da formação aleatória de um
relógio, foi apresentado pela primeira vez, ainda não havia sido descoberto o evolucionismo
darwiniano, o qual nos mostrou que a evolução não é, em nenhuma hipótese, um processo aleatório.
Dessa maneira perdeu-se grande parte do poder argumentativo desta espécie de raciocínio e o dito
de Alan Watts, acima, sobre os macacos que escrevem a Enciclopédia Britânica passa a soar falso.
Não sei se o deísta Voltaire manteria sua opinião se tivesse vivido após Darwin.

Michael Behe

A visão do bioquímico Michael Behe é similar à colocada acima (pode-se dizer, um


acréscimo), batizada como a “visão de Voltaire”, porém resolvi apresentá-la separadamente;
primeiro, para quebrar a linha de raciocínio iniciada e permitir que o leitor tome fôlego; segundo,
para dar um maior destaque ao raciocínio introduzido por este homem de ciência e que ganhou
grande destaque na imprensa.

Ele introduziu o conceito de “complexidade irredutível”, significando “um único sistema


composto de várias partes em interação, que contribuem para a função básica, e no qual a
remoção de qualquer das partes faz o sistema deixar de funcionar com eficiência”, que caracteriza
os sistemas orgânicos. Qualquer ser vivo é composto de várias partes interdependentes, podendo ser
apenas órgãos ou mesmo sistemas inteiros, que não evoluem simultaneamente. A falta do sistema
respiratório inviabilizaria o sistema circulatório, a falta do estômago inviabilizaria os intestinos. Se
os órgãos não evoluem concomitantemente, como pode ter ocorrido a evolução da forma descrita
por Darwin? Não custa lembrar que, apesar da genialidade da teoria darwiniana, a literatura
científica aponta nela várias lacunas e furos. Aliás, o próprio Darwin reconhecia um problema
potencial na sua teoria evolucionista: de que maneira ela pode explicar o altruísmo? Se o objetivo
supremo do indivíduo é assegurar sua sobrevivência, por que ele ajudaria outra pessoa, muitas vezes
um desconhecido, pondo em risco sua própria vida? (É importante que seja mencionado que hoje há
vários cientistas que levantaram teorias que compatibilizam o evolucionismo darwiniano com o
altruísmo).

Para que uma bicicleta funcione, é necessária a cooptação de todas as suas partes essenciais. O
flagelo de uma simples bactéria consiste em mais de 40 partes distintas. Sem uma delas as bactérias
seriam incapazes de se mover. Michel Behe disse: As células são complexas demais para terem
evoluído aleatoriamente; foi preciso inteligência para produzi-las.

O raciocínio não é novo, mas o termo “Projeto Inteligente” ou “Design Inteligente” passou a
ser utilizado há poucos anos e seus defensores buscam fazer com que seja visto como uma teoria
científica, daí evitam menções às características ou à identidade do designer. Seus detratores dizem
tratar-se de pseudociência, já que a hipótese não pode ser testada por métodos científicos e buscam
contra argumentar dizendo que algo que evoluiu para um determinado fim pode passar a
desempenhar outras funções, ou que pequenas melhorias podem vir a se tornar essenciais, ou ainda

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que meia asa é melhor que uma asa inteira e meio olho é melhor que um olho inteiro (vale lembrar
que encontramos na natureza ‘meias asas’ e ‘meios olhos’).

Toda a questão se resume a uma única pergunta: a seleção natural pode explicar a
complexidade irredutível? Muitos dizem que sim, muitos que não e muitos dizem que ainda não foi
encontrado um exemplo válido de complexidade irredutível.

Coloco um comentário de Amit Goswami que, acredito, endossa a ideia aqui defendida.
Primeiramente ele nos lembra da ínfima probabilidade para sintetizar em laboratório os
componentes básicos de uma célula viva – a proteína e o DNA – individualmente, a partir de
aminoácidos e nucleotídeos. Depois nos situa em uma interessante circularidade: os componentes
do DNA – os genes – têm o código para que os aminoácidos se reúnam em proteínas. Acontece que
são necessárias proteínas para fazer o DNA.

Gostaria de acrescentar mais uma observação de Amit Goswami, quando ele justifica que a
criatividade de Deus ocorre por saltos quânticos e não de forma contínua (daí a existência das
lacunas fósseis): Um órgão complexo não pode se desenvolver pouco a pouco. Um fragmento de
olho não pode ver. Assim, essa ‘macro evolução’ deve ser descontínua, exigindo um ritmo
acelerado.

Spinoza

René Descartes, em suas “Meditações”, dizia: Pois, por natureza considerada em geral, não
entendo agora outra coisa senão o próprio Deus, ou a ordem e a disposição que Deus estabeleceu
nas coisas criadas. Spinoza ficou com a primeira alternativa. Segundo ele, Deus é a única
substância da qual derivam todas as coisas existentes e da qual consiste o universo; uma substância
não-causada e infinita. O pensamento e a extensão são atributos de Deus; por outras palavras, Deus
é uma coisa pensante e Deus é uma coisa extensa. Deus e Natureza são a mesma coisa, um ser que
possui infinitos atributos.

Usando as palavras do próprio Spinoza, transcrevo algumas proposições da primeira parte do


seu livro Ética. Proposição XI: Deus, ou, por outras palavras, a substância que consta de infinitos
atributos, cada um dos quais exprime uma essência eterna e infinita, existe necessariamente.
Proposição XV: Tudo o que existe, existe em Deus, e sem Deus nada pode existir nem ser
concebido. Proposição XXV: Deus não é somente causa eficiente da existência das coisas, mas
também da essência delas.

Mesmo hoje é fácil imaginar o quanto suas ideias foram execradas; mais ainda levando-se em
consideração que viveu no século XVII, tendo sido, inclusive, excomungado pelos judeus de
Amsterdã aos 24 anos de idade. Acredito ser importante falar um pouco sobre a personalidade e o
caráter de Spinoza, mas deixarei que um dos seus críticos o faça: ...derrubava todos os princípios
da moral, e, no entanto, praticava uma moral rígida; sóbrio, a ponto de beber apenas uma pinta de
vinho em um mês; desinteressado, a ponto de devolver aos herdeiros do desafortunado João de Witt
uma pensão de duzentos florins, que esse grande homem lhe dava; generoso, a ponto de dar seus
bens; sempre paciente em seus males e em sua pobreza; sempre uniforme em sua conduta. São
palavras de Voltaire, que tecia irônicas censuras às teorias de Spinoza.

Como mencionei um “crítico”, colocarei uma faceta da crença hindu, mostrando que as teorias
de Spinoza não estavam tão longe de uma das mais antigas religiões da humanidade. Quem fala por
mim é o sábio Swami Vivekananda: Cremos, os hinduístas, como creem os cristãos, em um Deus

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individual; nós, porém, vamos além e cremos que somos Ele, isto é, que se manifesta em nós e que
vivemos e estamos em Deus.

Tenho restrições a alguns momentos da condução de seu raciocínio, mas muita simpatia pela
sua conclusão, talvez devido à aura de misticismo associada ao seu panteísmo, talvez às
semelhanças com o budismo, talvez ao fato de várias pessoas que admiro serem simpáticas às
teorias de Spinoza, como Einstein, que, em um telegrama enviado a um jornal judaico, disse:
Acredito no Deus de Spinoza, revelado na harmonia de tudo o que existe, mas não em um Deus que
se preocupa com o destino e as ações dos homens. É uma visão da divindade que não descarto de
imediato, mas guardo para análise posterior, quando houver menos alternativas a serem analisadas e
eu puder melhor me debruçar sobre as que restarem.

George Berkeley

Bem antes de o filósofo George Berkeley escrever seu Tratado Sobre os Princípios do
Conhecimento Humano, René Descartes, em suas Meditações, conduzia uma linha de raciocínio
que passava pela seguinte consideração: E, portanto, pelo próprio fato de que conheço com certeza
que existo, e que, no entanto, noto que não pertence necessariamente nenhuma outra coisa à minha
natureza ou à minha essência, a não ser que sou uma coisa que pensa ou uma substância da qual
toda a essência ou natureza consiste em pensar. Nesse ponto, segundo o autor, a existência de Deus
já havia sido provada inquestionavelmente, e estavam sendo apresentadas as provas da existência
das coisas materiais, corpóreas. O raciocínio segue fluente e fácil, baseando-se no ...simples fato de
que Deus não é enganador. Mais à frente Descartes chega, sobre um corpo físico, à seguinte
ponderação: E esta substância é ou um corpo, isto é, uma natureza corpórea, na qual está contida
formal e efetivamente tudo o que existe objetivamente e por representação nas ideias; ou então é o
próprio Deus, ou alguma criatura mais nobre do que o corpo, na qual isto mesmo esteja contido
eminentemente. Deixemos que Descartes continue seu caminho e fiquemos por aqui, pois é deste
ponto que parte a visão da divindade que pretendo tratar neste momento.

George Berkeley foi filósofo, além de bispo da igreja anglicana, e possuía uma visão no
mínimo curiosa do mundo e do papel de Deus nele. Sua filosofia pode ser resumida pelo princípio
“ser é ser percebido”, querendo dizer que a matéria existe apenas quando percebida, ou que ...só há
uma substância, o espírito, o percipiente. Se não existe a matéria, o que faz com que duas pessoas
vejam a mesma coisa? Deixemos que o próprio Berkeley responda: Quando abro os olhos de dia
não posso escolher se verei ou não, nem determinar os objetos particulares que se me apresentam à
vista; como para o ouvido e para os outros sentidos as ideias neles impressas não são criaturas da
minha vontade. Há, portanto, alguma outra vontade ou espírito que os produz. Essa “outra vontade
ou espírito”, em diferentes momentos, Berkeley chama de Autor, Espírito soberano, Mente cósmica,
Sujeito cognoscente absoluto, ou simplesmente, Deus. O filósofo diz: Não argumento contra a
existência de alguma coisa que apreendo pelos sentidos ou pela reflexão. O que os olhos veem e as
mãos tocam existe; existe realmente, não o nego. Só nego o que os filósofos chamam matéria ou
substância corpórea.

Resumidamente, Berkeley concebe o mundo como um conjunto de coisas corpóreas existentes


na mente divina e tendo nela toda sua razão de ser. Vejamos como ele próprio sintetiza suas teorias:
As ideias impressas nos sentidos são coisas reais ou existem realmente; não o negamos, mas
negamos que existam fora do espírito percipiente ou que sejam semelhanças de arquétipos
exteriores ao espírito, pois uma sensação ou ideia consiste em ser percebida, e uma ideia só pode
assemelhar-se a uma ideia. Insisto em que as ideias dos sentidos podem chamar-se externas quanto
à origem, visto não geradas pelo espírito, mas nele impressa por um Espírito diferente daquele que
as percebe.

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Como uma pessoa religiosa, é natural que ele veja suas ideias como “protetoras” das crenças
religiosas e da religião propriamente dita. Como vimos, Deus passa a ter um papel muito mais
atuante em cada momento da vida das pessoas. Vejamos o texto seguinte, também de Berkeley: A
doutrina da matéria ou substância corpórea foi verdadeiro pilar ou suporte do ceticismo e sobre a
mesma base assentaram os sistemas do ateísmo e da irreligião… Os seus monstruosos sistemas
tanto e de tal modo dependem disso, que, se esta pedra de canto se remove, toda a fábrica há de
cair pela base e perde todo valor, desde que se examinem particularmente os absurdos de cada
seita miserável de ateístas. Aqui é muito claro um forte preconceito e verdadeira ojeriza às teorias
ateias, e Berkeley acreditava ter resolvido de uma vez por todas a questão. Não acho que devamos
condená-lo por sua patente intolerância. Tudo indica que ele foi um homem honesto e coerente com
suas crenças. Citarei um exemplo: como acreditava que a incredulidade era a causa de grandes
males, tornou-se missionário nas Bermudas e, durante a epidemia de peste que ocorreu de 1737 a
1741, dedicou-se devotadamente aos doentes.

Em seus escritos, buscou responder aos vários questionamentos que suas teorias poderiam
engendrar, que, podemos imaginar, são muitos, pois é difícil admitir a existência das coisas apenas
no nosso espírito, impressas a todo momento por outro Espírito, Deus. O próprio Berkeley nos
lembra de que em sonho se reconhece que as coisas só têm existência no nosso espírito. Talvez não
seja tão difícil, passado o susto inicial, admitir a mesma possibilidade para os momentos em que
estamos despertos.

À luz dos conhecimentos científicos do século XXI, sabemos que tudo que vemos, ouvimos,
saboreamos, cheiramos e pegamos são decorrentes de impulsos elétricos transmitidos pelos órgãos
sensoriais ao cérebro. E se esses estímulos forem transmitidos por algo diferente? Em 1999, a
produção cinematográfica Matrix propôs um mundo onde esse algo era um supercomputador;
agradou milhões de espectadores. Berkeley vislumbrou essa possibilidade no século XVIII. Vamos
parar por aqui a exposição das teorias de George Berkeley. Quem desejar pode aprofundá-las
através dos seus livros, que, independentemente de concordarmos ou não com eles, são leituras
bastante agradáveis.

Caminhemos um século à frente e vejamos o que falou o filósofo utilitarista inglês John Stuart
Mill: A matéria, então, pode ser definida como uma possibilidade permanente de sensação. Se me é
perguntado se acredito na matéria, pergunto se o questionador aceita esta definição de matéria. Se
ele a aceita, acredito na matéria; e assim o fazem todos os berkelianos.

Vamos avançar mais cem anos e verificar a pertinente citação, já do século XX, de Patrick
Drouot: À medida que meditava, pude ver que o mundo, tal como o percebemos, é apenas uma
questão de semântica. Em física quântica, a escolha de um observador em medir uma propriedade
física particular faz passar essa propriedade do estágio de estado ao de existência, pelo simples
fato da observação. Partindo daí, perguntei-me se o mundo não era uma construção de nossos
pensamentos. Essa questão fazia-me recuar 15 anos, à época de meus primeiros questionamentos
sobre a natureza do Universo. Era possível que o Universo fosse apenas um arranjo sutil, uma
fabricação do conjunto de nossas consciências conectadas umas às outras? Falo aqui não apenas
do mundo da consciência e dos pensamentos, mas também do mundo físico. Pouco a pouco, uma
ideia vinha finalmente à luz. Não existem limites exceto os que impomos a nós mesmos. O mundo
mítico das ideias e das visões e o mundo real material se superpunham pouco a pouco em meu
espírito... Assim, do mesmo modo que cérebros inteligentes se acham na origem do
desenvolvimento da tecnologia da realidade virtual, que permite experimentar realidades
alternativas por meios artificiais, uma inteligência última está presente por trás da ilusão da
realidade de nosso modo de experiência habitual.

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Apenas acrescento que, apesar da aparente insensatez de Berkeley, sempre tive uma forte
simpatia por suas teorias, talvez por possuir uma sensação de que elas, em alguns pontos, possam
estar roçando a verdade. Ainda deixo uma informação que pode ser útil a quem desejar aprofundar-
se um pouco mais nesta “visão da divindade”. Fala-se de um homem que viveu no antigo Egito, há
milhares de anos atrás (supõe-se 2.700 aC), e era considerado o Mestre dos Mestres. Seu nome:
Hermes Trismegisto. Após sua morte (se é que foi um personagem real), os egípcios o deificaram
sob o nome de Thot. Anos depois os povos da antiga Grécia também o deificaram sob o nome de
Hermes, que corresponde ao deus romano Mercúrio. Vamos ao que interessa: um dos principais
princípios herméticos diz: O todo é mente; o Universo é Mental.

Siddharta Gautama

Trata-se do Buda histórico, o nobre nascido no século VI antes de Cristo entre o sul do Nepal
e o norte da Índia, que abandonou o palácio de seu pai aos 29 anos e passou a buscar as causas do
sofrimento humano e as formas para eliminá-lo, tendo, segundo seus seguidores, alcançado a
iluminação e se tornado Buda aos 35 anos de idade, vindo a morrer aos 80 anos. Foi o criador do
budismo.

O budismo é visto por muitos como uma religião ateia, uma religião sem Deus. Na verdade,
Siddharta não negava a existência da divindade, simplesmente se recusava, sistematicamente, a
especular sobre questões metafísicas e teológicas. Usando suas palavras: ...não é da crença de que o
mundo é eterno, finito, de que o corpo e a alma são distintos, ou de que o Buda continua a existir
depois da morte, que a vida religiosa depende. Se essas crenças, ou seus opostos, são tidas como
verdadeiras, continuará a haver reencarnações, velhice, morte, dor, lamento, sofrimento, tristeza e
desespero (...) Eu não falei sobre essas crenças porque elas não levam à ausência da paixão, ou à
tranquilidade e ao Nirvana. Siddharta sempre combateu as tentativas de definição do Absoluto,
pois acreditava se tratar de algo inexprimível em palavras; ele defendia a busca da experiência
direta, ou seja, a iluminação. Se fizermos uma compilação dos textos sagrados budistas,
constataremos que o Buda não via a possibilidade de um Deus criador personificado, mas de um
Ente Supremo, que se confunde com o Nirvana. Edward Conze, profundo conhecedor do budismo,
coligiu nesses textos, atributos que se aplicam tanto ao Nirvana como ao Ente Supremo:
permanente, estável, imperecível, imóvel, sem idade, imortal, que ainda não nasceu, que ainda não
veio a ser; é poder, bem-aventurança e felicidade, o refúgio seguro, o abrigo e o lugar de
segurança inexpugnável; é a Verdade real e a Realidade suprema; é o Bem, a meta suprema e a
primeira e única realização da nossa vida, a Paz eterna, oculta e incompreensível. Swami
Vivekananda também nos ajuda com a seguinte colocação: Gautama pregou a doutrina de se
praticar o bem pelo amor ao bem, sem esperar recompensa nem temor de castigo e desprezou toda
indagação e polêmica a respeito da existência de Deus, pois dizia que o homem era incapaz de
penetrar o insondável com sua mente.

Como minha formação religiosa foi católica, achei brilhante o entendimento que o monge
trapista e grande estudioso do budismo, Thomas Merton, nos apresentou a respeito do diálogo entre
cristianismo e budismo, quando enfatiza o aspecto prático desta: Ora, o grande obstáculo à
compreensão mútua entre cristianismo e budismo está na tendência ocidental de focalizar, não a
experiência budista, que é essencial, mas a explicação, que é acidental, a qual, de fato, o Zen
frequentemente considera como inteiramente trivial e até causa de engano e ilusão. Falando do
Buda, este mesmo autor complementa: Não era sua religião uma série de crenças e de convicções,
ou de ritos e sacramentos, mas uma abertura ao amor.

Mesmo entre os pensadores islâmicos, encontramos linhas filosóficas que apresentam alguma
semelhança à budista. Penso em Averróis (nome latino de Ibn Rushd), nascido na Espanha, em

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1126, no tempo do domínio islâmico. Segundo ele, o que é imortal nos seres humanos é uma alma
universal, isto é, uma única partilhada por todos. Assim, há uma imortalidade coletiva, mas não
sobrevivência pessoal.

Essencialmente, a visão da divindade de Siddharta Gautama é a não-visão de Deus. O


budismo não fala de Deus, mas do ser humano, seu sofrimento inerente e o caminho para livrar-se
dele. (Uma coisa eu ensino, disse ele, o sofrimento e o fim do sofrimento. É apenas o Mal e o fim do
Mal que eu proclamo). Como não leva em consideração nenhum deus, no budismo não existem
alguns paradoxos monoteístas, como a falta de respostas satisfatórias para várias perguntas, entre as
quais cito as seguintes: o que fazia Deus durante toda a eternidade, antes de criar o homem? A
vontade de satisfazer um desejo indica que falta algo e se algo falta, é imperfeito; o que o fez ter
desejado criar o Universo? Sua “vida” estava incompleta? Esses questionamentos e vários outros,
feitos dentro dos paradigmas monoteístas e dualistas – criador, criatura –, chegam a ser cômicos. O
budismo é uma religião essencialmente pragmática, voltada para o bem dos seres vivos no seu dia-
a-dia e em como sair do ciclo dos renascimentos; e pelo fato de não se manifestar a respeito de
Deus, não se mete em dificuldades metafísicas, que não teriam nenhuma relevância, sendo
consideradas inúteis e estéreis.

Eu não estaria sendo totalmente honesto se não mencionasse que a pergunta que fiz acima, “O
que fazia Deus antes da criação do mundo?”, foi respondida pelo “Santo Doutor” da igreja católica,
Santo Agostinho, que disse: Gosto mais de responder: não sei. Embora eu tenha críticas à doutrina
desse santo, devo reconhecer que ele foi corajoso em vários momentos; esse foi um deles. Sobre o
fato de Deus ter tido a vontade de criar o homem, ele diz: A vontade de Deus não é uma criatura.
Está antes de toda criatura, pois nada seria criado se antes não estivesse a vontade do Criador.
Essa vontade pertence à própria substância de Deus. Sobre o fato de haver transcorrido uma
infinidade de tempo antes da criação, ele pergunta: Como poderiam ter passado inúmeros séculos,
se Vós, que sois o Autor e o Criador de todos os séculos, ainda os não tínheis criado?
Educadamente, deixarei a última palavra com ele.

Amit Goswami

Recentemente tive a oportunidade de ler um livro de Amit Goswami, O Universo


Autoconsciente. Embora suas conclusões não tragam uma nova visão da divindade, a sua
abordagem, ao menos para mim, foi inovadora. Para quem não conhece, este autor participou como
um dos debatedores do filme Quem Somos Nós?, do original What The Bleep Do We Know? Cabe
advertir que a plena compreensão das hipóteses levantadas por Amit Goswami dificilmente será
alcançada através da leitura dos poucos parágrafos colocados a seguir, pois é necessário o
conhecimento de muitos conceitos relacionados à física quântica. Iniciarei este tópico com algo
mencionado vários anos antes.

Em livro publicado no ano de 1953, falando sobre o aparente vazio da nossa existência e a
busca por um sentido unitário do universo, Albert Einstein afirmou: O ser experimenta o nada das
aspirações e vontades humanas, descobre a ordem e a perfeição onde o mundo da natureza
corresponde ao mundo do pensamento. A existência individual é vivida então como uma espécie de
prisão e o ser deseja provar a totalidade do Ente como um todo perfeitamente inteligível. Notam-se
exemplos desta religião cósmica nos primeiros momentos da evolução em alguns salmos de Davi
ou em alguns profetas. Em grau infinitamente mais elevado, o budismo organiza os dados do
cosmos, que os maravilhosos textos de Schopenhauer nos ensinaram a decifrar. Ora, os gênios-
religiosos de todos os tempos se distinguiram por esta religiosidade ante o cosmos. Ela não tem
dogmas nem Deus concebido à imagem do homem, portanto nenhuma Igreja ensina a religião
cósmica. Temos também a impressão de que os hereges de todos os tempos da história humana se

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nutriam com esta forma superior de religião. Contudo, seus contemporâneos muitas vezes os
tinham por suspeitos de ateísmo, e às vezes, também, de santidade. Considerados deste ponto de
vista, homens como Demócrito, Francisco de Assis, Spinoza se assemelham profundamente. Logo
após, Einstein complementa: Mas eu afirmo com todo o vigor que a religião cósmica é o móvel
mais poderoso e mais generoso da pesquisa científica.

Algumas décadas depois vemos a concretização dessa previsão. Trata-se de, entre outros,
Amit Goswami, que possui duas características propícias para encarnar o cientista visualizado por
Einstein. Primeiro, nasceu na Índia e é filho de um guru hinduísta; segundo, é físico doutorado em
física nuclear, tendo sido pesquisador e professor titular de física teórica da Universidade de
Oregon, nos EUA, por 32 anos a partir de 1968. Foi materialista durante a maior parte de sua vida,
dos 15 aos 45 anos, passando a partir daí a defender uma visão monista idealista do Universo.

(O monismo é a perspectiva de que a realidade consiste de apenas uma única substância; a


multiplicidade de transformações incessantes e permanentes pela qual as coisas se constroem e se
dissolvem umas nas outras é algo superficial. O idealismo é uma doutrina metafísica sobre a
natureza do mundo. Afirma que a realidade última consiste de mentes – consciência – e ideias,
sendo que a matéria não tem existência independente das ideias a seu respeito. Acho que não é
necessário, neste ponto, frisar os paralelos com Berkeley e Spinoza).

Amit Goswami inicia seu raciocínio lembrando as principais características da física clássica e
do realismo materialista, que são as formas de ver o mundo tidas como verdadeiras pela maior parte
da comunidade científica. São elas: o princípio da objetividade forte, postulando que os objetos são
independentes e separados da mente (ou consciência); o princípio do determinismo causal, o qual
afirma que todo movimento pode ser exatamente previsto, dadas as suas leis e as condições iniciais
em que se encontravam os objetos (posição e velocidade), daí sendo possível prever os movimentos
dos astros, por exemplo; o princípio da localidade, que determina a necessidade das influências
entre objetos materiais se fazerem sentir no espaço-tempo localmente, ou seja, elas têm de viajar
através do espaço um pouco de cada vez, com uma velocidade finita, limitada pela da luz; o
princípio do monismo materialista, afirmando que todas as coisas existentes no mundo, incluindo a
mente e a consciência, são feitas de matéria (e de generalizações da matéria, como energia e campos
de força); e, finalmente, o princípio do epifenomenalismo, pois, já que ninguém sabe como extrair
mente e consciência de matéria, este princípio postula que todos os fenômenos mentais podem ser
explicados como fenômenos secundários da matéria.

Após essa introdução, nosso físico passa a nos dar uma pequena aula de física quântica, nos
apresentando alguns experimentos e teorias de físicos que fizeram história, como Max Planck,
Albert Einstein, Niels Bohr, Ernest Rutherford, De Broglie, Erwin Schrödinger 1, Werner
Heisenberg e Max Born, entre muitos outros. Somos apresentados a fenômenos observados na física
quântica que não permitem explicação através das leis da física clássica e que causam espanto nos
próprios físicos. Nos fala sobre o salto quântico e a descontinuidade quântica, onde é visto que um
elétron dá um salto de uma órbita para outra sem jamais passar pelo espaço entre elas, parecendo
desaparecer em uma e reaparecer em outra. Tece longos comentários sobre a dualidade onda-
partícula, onde vemos que as partículas quânticas se comportam ora como partículas e ora como
ondas, quando parecem ser capazes de estar em dois ou mais lugares ao mesmo tempo. Passa em
revista os estudos que levaram à possibilidade dos elétrons serem ondas confinadas, e ao

1
Não resisto à tentação de acrescentar aqui uma citação desse brilhante cientista, ganhador do prêmio Nobel de física
em 1933: “Essa sua vida que você está vivendo não é meramente um fragmento da existência integral, mas é num certo
sentido o todo, com a ressalva de que o todo não está constituído de um modo que possa ser avaliado mediante um
simples olhar. Isto... é o que os brâmanes expressam através daquela fórmula sagrada, mística que é, no entanto,
realmente tão simples e tão clara: Tat tvam asi, isto és tu”. (My View of the World, Erwin Schrödinger (Cambridge
University Press, 1964), p. 22).

28
consequente fato, admitido como possível por Einstein, de que a matéria poderia ser tão dual como
a luz. Menciona a criação do formalismo matemático, a mecânica quântica, que contém as fórmulas
e equações capazes de prognosticar as propriedades da física quântica, e também da física clássica,
abrangida pela primeira.

Amit Goswami também fala sobre o fato das ondas de elétrons serem ondas de probabilidades,
daí decorrendo o princípio da incerteza, segundo o qual não podemos simultaneamente determinar,
com certeza, a posição e a velocidade (ou momentum) de um elétron e, fala o autor, joga um
coquetel Molotov na filosofia do determinismo, a qual, como vimos, afirma que todo movimento
pode ser exatamente previsto. Da mesma maneira, são mencionadas experiências de laboratório que
parecem levar à afirmação de que o simples ato de medir um elétron provoca a sua redução do
estado ondulatório para o estado de partícula (na Bibliografia há um link para uma animação sobre
mecânica quântica, contendo duas partes. A primeira tenta dar uma ideia dos sentimentos e
possibilidades associados à existência de mais uma dimensão. A segunda apresenta a explicação
mais clara que já encontrei sobre o “experimento da fenda dupla”, que é um dos mais famosos e
intrigantes ensaios científicos sobre a influência do observador no estado de uma partícula).

Ainda são apresentados os princípios da correspondência e da complementaridade. O


primeiro fala da relação entre as físicas clássica e quântica, quando, nos casos de macro objetos (a
mecânica quântica estuda os sistemas físicos cujas dimensões são próximas ou abaixo da escala
atômica), os prognósticos quânticos correspondem aos da física clássica. O segundo princípio
afirma que os elétrons não são ondas nem partículas, pois sua verdadeira natureza transcende ambas
as definições. Além disso, só podemos medir um dos aspectos com qualquer arranjo experimental,
ou seja, escolhemos o aspecto, onda ou partícula, que queremos ver.

Neste ponto Amit Goswami sintetiza: E essa é a mensagem da mecânica quântica. O mundo
não é determinado por condições iniciais, de uma vez para sempre. Todo evento de medição é
potencialmente criativo e pode desvendar novas possibilidades. A partir daqui, o autor, baseando-se
nas observações e experimentos da física quântica, começa a desconstruir as suposições do realismo
materialista (objetividade forte, determinismo causal, localidade, materialismo e
epifenomenalismo), utilizando argumentos como: sujeito e objeto estão inextricavelmente
misturados; o princípio da incerteza quântica afirma que jamais poderemos determinar
simultaneamente, com absoluta certeza, a velocidade e a posição de um objeto; se as ondas se
espalham por enormes distâncias e, em seguida, instantaneamente desmontam quando fazemos
medições, então a influência da medição não viaja localmente; se a consciência é um epifenômeno,
de que modo ela pode provocar o colapso de uma onda espalhada de objeto quântico e transformá-la
em uma partícula localizada quando realizamos uma medição quântica? Em outro livro, “Deus Não
Está Morto”, Goswami esclarece que os neurofisiologistas afirmam que a consciência é um
epifenômeno ornamental e ilusório (um fenômeno secundário) da complexa caixa material que
chamamos cérebro... A premissa por trás disso é que a consciência é um objeto. Mas a consciência
também é um sujeito - esse que observa e pensa nos objetos. O aspecto “sujeito” da consciência
expõe uma fraqueza do modelo neurofisiológico baseado no cérebro.

Com base em tudo o que foi exposto, Amit Goswami pergunta: se o realismo materialista não
é uma filosofia adequada para a física, que filosofia pode acomodar toda a estranheza da física
quântica? Ele mesmo responde: A filosofia do idealismo monístico, que constitui a base de todas as
religiões, em todo o mundo. E apresenta o objetivo de sua teoria: Se o idealismo monístico satisfizer
a necessidade, a ciência, as humanidades e a religião poderão, pela primeira vez desde Descartes,
andar de braços dados em busca da verdade humana total. Essa afirmação se harmoniza com a
seguinte previsão de Allan Kardec: ... essas duas forças – Ciência e Religião – apoiando-se uma na
outra, marcharão combinadas e se prestarão mútuo concurso. No ano de 1889, Édouard Schuré
disse: Hoje, nem a Igreja aprisionada em seu dogma nem a Ciência encerrada na matéria sabem

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mais construir homens completos. A arte de criar e formar almas está perdida e só será
reencontrada quando a Ciência e a Religião, refundidas em uma força viva, a isso se aplicarem
juntas e de comum acordo, para o bem e a salvação da humanidade. Podemos, inclusive, retornar a
Pitágoras, alguns séculos antes de Cristo, quando já se falava em uma “religião científica”.
Percebemos que o desejo de acabar de uma vez por todas com as discórdias entre a matéria e o
espírito não é algo recente.

(Como coloquei acima alguns conceitos complexos em pouquíssimos parágrafos, sugiro uma
visita a alguns links da Internet, colocados na Bibliografia, que apresentam os capítulos de um
documentário da Discovery a respeito da velocidade da luz, do princípio da incerteza, do tempo e da
totalidade sem costura, da mecânica quântica. Trata-se de uma explanação interessante, montada
para o público leigo, que irá clarificar bastante algumas das ideias explanadas aqui sobre a física
quântica).

Voltando ao livro, o autor passa a expor a filosofia do idealismo monista, segundo a qual, a
consciência, e não a matéria, é fundamental. Tanto o mundo da matéria quanto o dos fenômenos
mentais, como o pensamento, são criados pela consciência... A consciência, portanto, é a realidade
única e final (dito de outra maneira, Deus). É passada em revista a visão idealista monista de
antigos textos religiosos. Cito a seguir alguns exemplos. Na literatura vedanta da Índia
encontramos: todo este universo sobre o qual falamos e pensamos nada mais é do que Brahman
(termo hinduísta que designa o princípio divino Uno). Do taoísmo retiramos: O Tao, o uno que
transcende suas manifestações complementares (ou seja, tudo que existe são manifestações
complementares do Tao). Até mesmo de um famoso cientista do século XX, Erwin Schödinger,
retiramos: A consciência é um singular para o qual não existe plural. Das palavras de Jesus Cristo,
retiradas do Novo Testamento, também podemos intuir o idealismo monista, conforme veremos
mais à frente, em comparativo do cristianismo com o hinduísmo. Dessa maneira, Amit Goswami
esclarece que não está trazendo nenhuma nova teoria, apenas apresentando hipóteses científicas que
explicam uma teoria milenar.

O livro sobre o qual estamos falando possui 366 páginas. O que foi mencionado até aqui está
contido nas primeiras 69. Daí em diante, o autor descreve uma série de experimentos, alguns
célebres, que fortalecem suas hipóteses, entre elas (e relativamente ao idealismo monista) a de que
“tudo é Um”, já que em nossa experiência comum nos sentimos tão separados; já que a sensação do
“eu” individual é a mais persistente em nossa vida. A afirmação dos místicos de que a
separatividade é uma ilusão, dificilmente nos satisfaz. É através de argumentos embasados nos
resultados dessas experiências que Amit Goswami afirma que tal como o dualismo mente-corpo
cartesiano, o dualismo de Deus e mundo não parece resistir ao exame científico, e que o cérebro-
mente deve ser visto como um mecanismo de medição e um sistema quântico. Então porque essa
opinião não é unânime? O autor é convincente ao dizer que, embora a mecânica quântica tenha
substituído a mecânica clássica como teoria fundamental da física, muitos de seus estudiosos,
condicionados pela antiga visão do mundo, ainda acham difícil engolir as implicações idealistas da
primeira. Hábitos de pensamento morrem lutando. Além disso, sabemos que as grandes inovações
na física comumente implicaram na renúncia a alguns grandes preconceitos.

Lembro o que disse certa vez o físico dinamarquês Niels Bohr (1885-1962): Os que não ficam
chocados quando tomam conhecimento da teoria quântica não podem possivelmente tê-la
compreendido. Imagino que seja pertinente a seguinte fala de Charles Peirce: Do mesmo modo que
dizemos que um corpo está em movimento e não que o movimento está no corpo, devemos dizer que
nós estamos no pensamento e não que os pensamentos estão em nós.

A essência das propostas de Amit Goswami não é nova; ele próprio reconhece que a ideia da
unidade constitui a mensagem básica da maioria das religiões mundiais; mas deixemos que ele

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finalize esta visão: A consciência é anterior e incondicionada. Ela é tudo o que há. Nada mais
existe, senão Deus.

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Possibilidades pós-morte

A Um Moribundo

Não tenhas medo, não! Tranquilamente,


Como adormece a noite pelo Outono,
Fecha os teus olhos, simples, docemente,
Como, à tarde, uma pomba que tem sono ...

A cabeça reclina levemente


E os braços deixa-os ir ao abandono,
Como tombam, arfando, ao sol poente,
As asas de uma pomba que tem sono...

O que há depois? Depois? ... O azul dos céus?


Um outro mundo? O eterno nada? Deus?
Um abismo? Um castigo? Uma guarida?

Que importa? Que te importa, ó moribundo?


– Seja o que for, será melhor que o mundo!
Tudo será melhor do que esta vida! ...

Florbela Espanca

Joseph Campbell disse muito acertadamente que só se chega a experimentar uma afirmação
incondicional da vida depois que se aceita a morte, não como algo contrário à vida, mas como um
aspecto da vida. Para a quase totalidade da humanidade, falando em termos de sensibilidade física,
o nascimento e a morte nos confinam entre duas eternidades intangíveis, entre dois períodos de
trevas insondáveis. Sendo uma das maiores angústias de grande parcela dos seres humanos e um
dos principais motivos para a existência das religiões, a morte tem maior destaque neste capítulo.
Não exatamente a morte, mas o que a sucede. A organização que adotei aqui não é definitiva, já que
existe uma infinidade de religiões, cada uma com sua maneira particular de encarar o pós-morte.
Mesmo dentro de uma corrente principal, como o cristianismo ou o budismo, há significativas
variações entre as suas subdivisões. Mesmo em uma subdivisão específica, como o catolicismo ou o
budismo tibetano, há crenças diferenciadas entre seus seguidores. Dessa forma, os itens que adotei
se sobrepõem e se complementam.

Obviamente não considero aqui todas as possibilidades, o que seria irrealizável, e também não
trato de algumas crenças muito distantes da minha racionalidade e pouco populares no ocidente,
como a possibilidade dos mortos tornarem-se espíritos de forças da natureza (kamis), adotada no
xintoísmo. A maior parte das proposições aqui constantes pressupõem uma natureza dualista do ser
humano, pois, como disse Platão, colocando as palavras na boca de Sócrates, a morte não é outra
coisa senão a separação da alma do corpo, podendo haver, é claro, alguma variação no conceito de
alma.

É desnecessário mencionar a antiguidade da crença em um pós-morte consciente, mas é


bastante instigante a fala do chefe Seattle, da tribo dos suquamishes, a Isaac Stevens, governador do
recém-criado estado de Washington, depois que os indígenas assinaram um tratado cedendo a maior
parte das terras tribais ao governo dos Estados Unidos, em 1854 (citado por Patrick Drouot): Depois
que o último homem vermelho tiver perecido e a memória de minha tribo já não passar de um mito
entre os homens brancos, estes rios serão habitados pelos mortos invisíveis de minha tribo, e
quando os filhos de seus filhos se acreditarem sozinhos na pradaria ou no silêncio das florestas
mais profundas, nunca estarão sozinhos. Quando à noite as ruas de suas cidades e povoados
estiverem silenciosas e vocês acreditarem que estão desertas, haverá uma multidão de almas de
todos aqueles que habitaram esta região e que continuam amando este recanto maravilhoso. O
homem branco nunca estará sozinho. Que ele seja justo e bom para com meu povo, pois os mortos

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não se acharão sem poder. Mortos, foi o que eu disse? Não há mortos, somente uma mudança de
mundos.

Para efeito comparativo, vejamos agora a poética forma de encarar a morte advinda de um
mestre do zen-budismo, Shunryu Suzuki: Você pode pensar que, quando morre, desaparece, deixa
de existir. Mas mesmo que desapareça, algo que é existente não pode ser inexistente. Essa é a
magia. Nós mesmos não podemos introduzir nenhuma fórmula mágica neste mundo. O mundo é sua
própria magia.

Gosto muito da forma como o padre Teilhard de Chardin encara a morte; uma visão, pode-se
dizer, independente de credo; ele nos diz: Em nosso atual Universo, está por demais claro que nada
pode, de nenhum modo, resistir, e tudo deve, cedo ou tarde, submeter-se ao império da morte. O
amor à vida que temos é um poder sadio e magnífico, e devemos manter zelosamente esse espírito
de resistência às restrições físicas, o que nos ajuda a passar pelo Mal. Mas, em nossa atitude ainda
falta algo: não chegamos a amar suficientemente toda a Vida, todo o Universo, a ponto de
sabermos aceitar (quando chega o momento inevitável), diminuir (na aparência) e passar
amorosamente para ele. Devemos lutar com todas as nossas forças contra a morte, pois é nosso
dever essencial de ser vivo. Mas, quando, em virtude de um estado de coisas (transitório, sem
dúvida, mas inevitavelmente ligado ao estado de crescimento do Mundo), a morte nos colher, é
preciso que tenhamos esse paroxismo de fé na Vida. Isso é o que faz com que nos entreguemos à
morte como a uma queda na mais-Vida. Amar de tal modo a Vida, e de tal modo que a ela nos
confiemos, nos abracemos e a ela nos lancemos, mesmo por intermédio da morte – eis a única
atitude que nos pode acalmar e fortificar. Quer dizer, amar loucamente aquilo que é maior do que
si mesmo. Toda união, sobretudo a algo que é maior, acarreta uma espécie de morte para si
mesmo. A morte só é aceitável se representar a passagem (fisicamente necessária) para uma união
– condição de uma metamorfose.

Nada

É fácil observar que muitas das atividades tidas como espirituais estão intimamente
relacionadas ao cérebro. Através de pequenas alterações físico-químicas podemos eliminar a
memória, alterar emoções, sensações, percepções e sentimentos, diminuir ou aumentar a
inteligência, a rapidez de raciocínio, desejos e propensões. Com base nessa constatação é
perfeitamente racional a possibilidade da destruição do espírito juntamente à morte do cérebro, ou
mesmo a negação do próprio espírito. Os seres vivos seriam complexas máquinas biológicas.

Independentemente da veracidade desta possibilidade, a sua factibilidade não me soa


desagradável. Muito se alegou que esta possibilidade retira o sentido da vida, mas essa falta de
sentido por si só não é um argumento válido, afinal por que deveria necessariamente haver sentido?
Passarei a argumentação a outros mais gabaritados. O filósofo Arthur Schopenhauer muito bem
colocou: Toda uma infinidade de tempo fluiu quando ainda não éramos, mas isso não nos aflige de
modo algum. Que pode ser complementado com esse mesmo autor: É absurdo considerar o não-ser
como um mal ... Assim, o tornar-se não-ser não pode nos afetar, da mesma forma que o não-ter-
sido. No poema “Da Natureza”, de Lucrécio (98? AC a 55? AC), que foi um grande poeta e filósofo
epicurista, encontramos: Vê, olhando para trás, como nada significou para nós toda a velha porção
de eternidade que se passou antes que nascêssemos. Eis o espelho que a natureza nos apresenta do
tempo futuro, do que virá depois da nossa morte. Surge nisto algum horror, alguma tristeza? Não é
tudo muito mais seguro do que o sono?

Apesar da aparente racionalidade desta possibilidade, algumas coisas ficam sem resposta.
Embora possamos construir robôs cada vez mais perfeitos e parecidos com seres humanos, eles são

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incapazes de apresentar consciência, e nada indica que isso venha a mudar, muito pelo contrário.
Mesmo os sentimentos, quando simulados mecanicamente, não são realmente sentidos. Se
partirmos para os fenômenos ligados à PES – Percepção Extra-sensorial, observados em seres
vivos, a imaterialidade de algumas particularidades fica ainda mais manifesta. Com isso estou
querendo dizer que é igualmente racional crer que existe algo não dependente do objeto “cérebro”,
mas que se utiliza dele, sendo, naturalmente, influenciado diretamente pelas suas condições físico-
químicas. Resta saber se este “algo” sobrevive à deterioração da máquina. Vamos avançar um
pouco mais antes de retomar este assunto.

Ressurreição da carne

Trata-se da crença de que, no final dos tempos (ou final do mundo) o corpo físico ressuscitará
e novamente se unirá à alma, quando haverá o julgamento final; os bons passarão à glória eterna e
os maus para a eterna condenação. É fundamentada na fé da ressurreição do corpo de Cristo, como
pode ser inferido da passagem a seguir, retirada da Bíblia, de uma carta de São Paulo aos romanos:
E se o Espírito daquele que ressuscitou Jesus dentre os mortos habita em vós, aquele que
ressuscitou Cristo Jesus dentre os mortos dará vida também a vossos corpos mortais, mediante o
seu Espírito que habita em vós (Rm 8,11).

Essa passagem possui uma impossibilidade lógica, já levantada por críticos à hipótese da
ressurreição da carne, resumida no simples fato de que, em momentos distintos, um mesmo átomo
pode fazer parte de vários corpos. Quando alguém exala o último suspiro, seus átomos poderão
passar a fazer parte do corpo de alguns vermes, que, ao morrerem adubarão a terra, promovendo a
migração dos mesmos átomos para gramíneas, as quais, por sua vez, serão ingeridas por bovinos,
que serão deglutidos por novas pessoas e incorporadas aos seus corpos. É um interessante exercício
mental tentar imaginar as inúmeras possibilidades desse ciclo que exemplifiquei, dispersá-las ao
longo de alguns milênios, olhar para nossos próprios corpos e procurar conjecturar sobre quantas e
quais pessoas, animais e vegetais já o possuíram, materialmente falando. Outro ponto a ser
considerado: ao longo da vida, diariamente nosso corpo recebe matéria através da respiração e da
ingestão de alimentos e líquidos, e expele matéria através da excreção, micção, suor, lágrimas,
cortes, etc.; cada célula, individualmente, também se alimenta e também excreta matéria; além
disso, nossas células morrem e são substituídas, diariamente e aos milhares, ou seja, materialmente
falando, nosso corpo atual não é o mesmo do ano passado; se não somos nossos corpos, quem ou o
que somos? Colocando de outra maneira, fisicamente já “morremos” inúmeras vezes. Através da
alimentação, estamos constantemente “substituindo” nosso corpo, que está em incessante
transformação. Não consigo evitar em fazer uma analogia a um importante ensinamento budista:
quando se olha com sabedoria toda essa dança da matéria que compõe nossos corpos, não há como
deixar de afirmar ‘isso não é meu’ e ‘isso não sou eu’ e ainda ‘isso não é o meu eu’. São como
ondas que se formam, alcançam uma fugaz ilusão de individualidade para em seguida retornar ao
imenso repositório comum, o oceano.

Voltando à questão principal, acredito estar clara a impossibilidade da ressurreição dos


mesmos corpos que viveram, pois um mesmo átomo não pode estar em dois corpos ao mesmo
tempo.

Antevendo uma possível saída racional por parte dos defensores desta doutrina, coloco a
seguinte passagem, retirada de outra carta de São Paulo: O mesmo se dá com a ressurreição dos
mortos; semeado corruptível, o corpo ressuscita incorruptível (1 Cor 15, 42). Será que a resposta é
essa? Um corpo, quando corruptível, é física e quimicamente diferente dele mesmo, incorruptível?
Caso seja isso, poderíamos dizer que “aquele que ressuscitou Cristo Jesus dentre os mortos dará
vida também a vossos corpos mortais”, “pero no mucho”. Afirmar que o corpo físico ressuscitado é

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diferente do corpo físico durante a vida, para tentar livrar a ressurreição da carne de suas
incongruências, mais me parece uma falácia decorrente do desespero de ver a hipótese ruir.

Baseando-me nos argumentos acima, em alguns conhecimentos de física, em experiências


pessoais sobre a decomposição de organismos animais e vegetais que perderam a vida e em minha
incredulidade a respeito de milagres despropositados e descabidos, acredito ser a crença na
ressurreição da carne digna das mais primitivas religiões, abalizada pela supervalorização da
matéria, da maneira como a conhecemos, e por um descomunal apego a esta vida, igualmente, da
maneira como a conhecemos.

A seguir, observo como outra religião, além das cristãs, vê o dogma da ressurreição da carne.
No Alcorão encontramos o seguinte texto: Juro, pelo Dia da Ressurreição, e juro, pela alma que
reprova a si mesma; porventura, o homem crê que jamais reuniremos os seus ossos? Sim, porque
somos capazes de restaurar as cartilagens dos seus dedos (75ª Surata 1-4). Como a Bíblia também
é base da religião muçulmana, é natural que possuam crenças semelhantes.

Inferno

Muito já se falou sobre este local. Já houve descrições detalhadas e minuciosas, já houve
descrições poéticas e assustadoras. Ao longo dos tempos as descrições foram se adaptando ao grau
de civilidade e de credulidade das pessoas, através de diferentes interpretações dos “textos
sagrados”. Podemos fazer uma ideia de como era visto este pungente local no século XIII, através
d’A Divina Comédia, quando os poetas Dante e Virgílio chegam à porta do inferno e encontram, em
letreiro escuro, ... por cima de uma porta, escrito:

Por mim se vai das dores à morada,


Por mim se vai ao padecer eterno,
Por mim se vai à gente condenada.
Moveu justiça o Autor meu sempiterno,
Formado fui por divinal possança,
Sabedoria suma e amor supremo.
No existir, ser nenhum a mim se avança,
Não sendo eterno, e eu eternal perduro:
Deixai, ó vós que entrais, toda a esperança!

O dicionário Aurélio diz que o inferno, em seu sentido religioso, é, segundo o cristianismo, o
lugar ou situação pessoal em que se encontram os que morreram em estado de pecado, expressão
simbólica de reprovação divina e privação definitiva da comunhão com Deus. Quando vou buscar
na fonte das religiões cristãs, a Bíblia, o que realmente é, segundo esse livro, o inferno, vejo que o
Aurélio apresenta uma definição extremamente suavizada; talvez seria melhor dizer, civilizada, ou,
melhor ainda, um pouco mais crível. No Novo Testamento vemos o próprio Jesus Cristo dirigindo-
se a pecadores: Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno preparado para o diabo e para os
seus anjos (Mt 25, 41). Ainda no evangelho de Mateus observamos: o Filho do Homem enviará
seus anjos e eles apanharão do seu Reino todos os escândalos e os que praticam a iniquidade e os
lançarão na fornalha ardente. Ali haverá choro e ranger de dentes (Mt 13, 41-42). Aqui temos uns
poucos exemplos de como o fundador do cristianismo via o inferno e qual a sua finalidade: o
castigo através do sofrimento eterno.

Bastante curiosa a maneira como é visto o inferno pelos muçulmanos, que fundamentam sua
religião além da Bíblia, no Alcorão, de onde foi retirada a seguinte passagem: Existem dois
antagonistas (crédulos e incrédulos), que disputam acerca do seu Senhor. Quanto aos incrédulos,

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serão cobertos com vestimentas de fogo e lhes será derramada, sobre as cabeças, água fervente, a
qual derreterá tudo quanto há em suas entranhas, além da totalidade de suas peles. Em adição,
haverá clavas de ferro (para o castigo). Toda a vez que dele (do fogo) quiserem sair, por angústia,
ali serão repostos e lhes será dito: Sofrei a pena da queima! (22ª Surata, 19-22).

Por mais que se queira “eufemizar” o inferno, a fim de torná-lo mais brando e mais afeito ao
“Deus pai” e a Jesus, que trouxe como principal mandamento o “amar ao próximo como a si
mesmo”, sua finalidade é clara e não dá margem a dúvidas. Neste local (ou situação espiritual)
estará quem morreu em pecado ou quem cometeu algum pecado imperdoável; e não haverá perdão,
jamais, por toda a eternidade – como se estivesse ao nosso alcance atingir a ideia da eternidade
através do pensamento. O próprio Jesus exemplificou: Por isso vos digo: todo pecado e blasfêmia
serão perdoados aos homens, mas a blasfêmia contra o Espírito não será perdoada. Se alguém
disser uma palavra contra o Filho do Homem, ser-lhe-á perdoado, mas se disser contra o Espírito
Santo, não lhe será perdoado, nem neste mundo, nem no vindouro (Mt 12, 31-32). Não perdoar
algo, seja lá o que for, nem neste mundo nem no vindouro, realmente não combina com a linha
mestra da mensagem de Jesus, e muito menos com um Deus dito misericordioso. Hoje, em um
mundo um pouco mais civilizado, tende-se a considerar o inferno, não como um local, mas um
estado de alma, onde haveria a separação eterna de Deus, ou a auto exclusão definitiva da
comunhão com Deus, seja lá o que isso possa significar. Independentemente de ser um local
tenebroso, um estado ou um local-estado, uma coisa é certa, sua finalidade é o castigo eterno, ou
para quem não gostar da palavra “castigo”, o sofrimento eterno.

Pessoalmente, vejo como insana a crença na existência de uma pena eterna a ser aplicada a
qualquer que seja o pecado. Não consigo conceber um único pecado (ou mesmo uma série de
pecados), por mais medonho, por mais horrendo, que seja capaz de merecer um castigo eterno. Por
piores que sejam os pecados, foram cometidos ao longo de umas poucas dezenas de anos; vejo
como totalmente inconcepta a possibilidade de que esses pecados sejam punidos por toda a
eternidade. Sob qualquer ponto de vista, há no ato da condução de uma alma ao inferno uma
desvairada desproporcionalidade da pena.

Mantidas as devidas proporções, imagine uma criança cometer uma pequena má-criação e ser
colocada de castigo por sua mãe pelo resto de sua vida. Parece absurdo? O inferno é muito mais,
pois a distância que há entre Deus e o ser humano é muito maior que entre uma mãe e seu filho; a
desproporção entre uma má-criação e um pecado grave não chega nem perto da que há entre o resto
da vida da criança e a eternidade, que é infinita.

Outro ponto a ser considerado é que, supondo a existência do Inferno, pressupomos a


existência do seu regente, o Diabo, personagem criado a partir de mitologias muito antigas para
justificar o Mal. Figura cômica que é um dos polos da dualidade Bem e Mal. Já que Deus não
poderia causar nenhum mal, se tornava necessário para as pobres inteligências da época um
responsável pelas misérias e injustiças da existência. É no mínimo divertido o seguinte raciocínio,
desenvolvido por A. Leterre: Ora, se o Princípio do Mal fosse criado pelo Princípio do Bem para
eternamente se oporem, sem que este pudesse exterminar aquele, ele deixaria, ipso facto, de ser o
Deus Onipotente e todo e qualquer sistema rui por terra. Mas se o Mal tende a desaparecer da face
do mundo, subjugado pelo Bem, o inferno terá de fechar suas portas, cessando, por consequência,
suas penas eternas, o que destrói o sistema católico, que coloca a humanidade entre duas
eternidades. E, se o diabo é eterno como seu reino, o Mal tem de existir eternamente, o que torna
evidente a impotência e a injustiça do Criador. Por outro lado, se o Mal tem de ser eterno, com um
domínio e um dominador, essa eternidade estabelece uma paridade entre o Criador e a Criatura e
aberra da sua Onipotência, Justiça e Misericórdia.

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Paraíso

Muitas religiões falam em paraíso. Pode ser um local onde não há fome, doença, guerra e
morte. Pode ser um local agradável que provê uma série de prazeres sensoriais aos seus habitantes.
Pode ser o Jardim do Éden, onde viveram Adão e Eva, segundo o mito descrito no Gêneses hebreu.
Também pode ser simplesmente a bem-aventurança, sem nenhuma descrição adicional. Hoje, vejo
muitos o considerarem como um estado da alma onde se vê Deus face-a-face (me questiono como
seria o eterno ócio na Sua contemplação e a Seus pés). Qualquer que seja o significado, parece ser
consenso considerar a vida no paraíso como a recompensa após a morte para as almas dos que
seguiram corretamente os preceitos da sua religião.

Qualquer que seja o conceito adotado, simplório ou elaborado, espiritualizado ou materialista,


civilizado ou bárbaro, todos deixam transparecer o medo da morte e a ânsia por justiça devido à
vida vivida, virtuosa ou viciosa. Isso faz com que eu tenha certa aversão ao termo, e essa sensação é
ampliada devido ao uso deste vocábulo, em minha mente, estar associado a contextos infantis e
carolas, ambientes cheios de nuvens e singelos anjinhos.

Uma consideração que pode ser feita quanto à possibilidade da existência de qualquer coisa
parecida com paraíso e inferno é a insensatez que há na existência de apenas duas penas possíveis
(o purgatório é um nada, já que seu fim é a eternidade do paraíso) para quaisquer que sejam os atos
e qualquer que seja a duração da vida dos réus.

Resumindo, das formas em que é utilizado, o termo paraíso representa desejos coletivos ou
individuais, mais que possíveis realidades merecedoras de análise.

Purgatório

O purgatório é simplesmente um lugar onde as almas dos justos sofrem por algum tempo para
que sejam purificadas, antes de obterem o direito de serem encaminhadas ao paraíso, à bem-
aventurança, à presença de Deus. Seria a antecâmara do paraíso.

Embora uma crença antiga, a Bíblia possui pouquíssimas passagens, tanto no Antigo como no
Novo Testamento, que permitem uma interpretação favorável à existência do purgatório. Nenhuma
referência direta. O teólogo e monge beneditino, Dom Estêvão Bettencourt, também considerado
um dos mais destacados intelectuais católicos do Brasil, nos diz: O purgatório há de ser
considerado como adro do céu, implicitamente revelado em alguns textos do Antigo e do Novo
Testamento.

No evangelho de Mateus encontramos uma passagem onde Jesus diz: Em verdade vos digo:
dali não sairás, enquanto não pagares o último centavo (Mt 5, 26), referindo-se a alguém que foi
lançado na prisão. Trata-se de uma parábola onde muitos veem essa prisão como uma metáfora do
purgatório. Outras passagens mostram alguém efetuando orações, fazendo doações e atos similares
pelos mortos, mostrando, segundo os que creem em uma justificação bíblica do purgatório, que esse
local existe. Posso citar um exemplo retirado do Antigo Testamento: Depois, tendo organizado uma
coleta individual, enviou a Jerusalém cerca de duas mil dracmas de prata, a fim de que se
oferecesse um sacrifício pelo pecado: agiu assim absolutamente bem e nobremente, com o
pensamento na ressurreição. De fato, se ele não esperasse que os que haviam sucumbido iriam
ressuscitar, seria supérfluo e tolo rezar pelos mortos (II Mc 12, 43-44).

Oficialmente, a igreja católica se pronunciou sobre o purgatório no Concílio de Lião II, em


1274, com as seguintes palavras: Se falecerem realmente possuídos de contrição e piedade, antes,

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porém de ter feito dignos frutos de penitência por suas obras más e por suas omissões, suas almas
depois da morte, são purificadas pelas penas purgatórias... Para aliviar estas penas, são de
proveito os sufrágios dos fiéis vivos, a saber: O sacrifício da Missa, as orações, esmolas e outras
obras de piedade que, conforme as instituições da Igreja, são praticadas habitualmente pelos
cristãos em favor de outros fiéis.

Da trilogia dantesca, inferno, purgatório e paraíso, simplesmente devido ao fato de ser um


local que, mesmo de forma simplória e ingênua (para não dizer, tola), permite a expiação e o
perdão, vejo o purgatório como o local mais verossímil, segundo minhas inclinações pessoais,
porém, não deixa de ser uma tentativa frágil de dar sentido lógico ao prêmio e ao castigo eternos.

Visão muçulmana

Aqui temos uma visão bastante vinculada aos conceitos que possuímos em nossa vida
conhecida de forma imediata e objetiva: esta vida material e carnal que ora experienciamos. É
patente a imensa dificuldade em dissociar o pós-morte da vida presente. É manifesta a pouca
espiritualidade dessas crenças, transparecendo seu primitivismo. Mas, comprovemos essas
afirmações com passagens do próprio Alcorão: Por outra, os tementes obterão a recompensa.
Jardins e videiras. E donzelas, da mesma idade, por companheiras. E taças transbordantes (78ª
Surata, 31-34). Outro trecho que bem exemplifica o desejo de levar para o paraíso os prazeres
usufruídos nesta vida encontra-se na 56ª Surata, 15-26, onde há uma (entre outras) descrição da vida
após a morte dos crentes: Estarão sobre leitos incrustados (com ouro e pedras preciosas).
Reclinados neles, frente a frente. Onde lhes servirão jovens (de frescores) imortais. Com taças,
jarras, e ânforas, cheias de néctares (provindos dos mananciais celestes). Que não lhes provocará
hemicrania, nem intoxicação. E (também lhes servirão) as frutas de sua predileção. E carne das
aves que lhes apetecerem. Em companhia de huris, de cândidos olhares, semelhantes a pérolas bem
guardadas. Em recompensa por tudo quanto houverem feito. Não ouvirão, ali, frivolidades, nem
(haverá) qualquer pestilência, A não ser as palavras: Paz! Paz!

Curioso como, nesta visão do pós-morte, as mulheres continuam sendo tratadas como objetos
(pobres huris) e continuam existindo serviçais, riqueza, finos objetos e aprazíveis alimentos. O
egoísmo em vida passa à posteridade celestial.

Vejo essa crença como fruto de ignorância e ingenuidade, além de uma profunda ligação aos
prazeres terrenos, da qual decorre verdadeiro pânico de perdê-los.

Inconsciência

Aqui não falo sobre o “nada”, mas da possibilidade de haver algo após a morte, não incluindo
esse “algo” as lembranças do “eu” atual (as nossas lembranças), não incluindo a consciência que faz
com que nos vejamos como uma pessoa específica. Mas, o que é essa consciência senão “uma longa
série de experiências diárias amarradas pelo fio da memória?”, como diria Helena Blavatsky.

Gostaria que me respondessem algumas perguntas, mas antes peço que as mesmas sejam
examinadas com total desprendimento e que as respostas sejam dadas isentas da possibilidade de
acusação de terem sido facciosas ou mesmo tendenciosas. Vamos a elas. Quais atos, de qualquer ser
humano, merecem ser lembrados por toda a eternidade? Que grandes coisas encontramos em nossos
dias de vida, entre o acordar e o dormir, que mereçam a imortalidade? Mereceriam a eterna
lembrança os cuidados com o nosso corpo, os banhos que tomamos, as vezes que escovamos os
dentes e penteamos os cabelos? E sobre nossos esforços para adquirir bens materiais, sendo esses

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esforços os maiores consumidores do nosso tempo? Ou seriam merecedores de especial apreciação
os momentos de prazer carnal, as lautas refeições e os gozos eróticos? Mesmo nossos trabalhos,
mesmo nossas construções, a maior parte de tudo que deixamos, fruto da labuta do dia a dia,
perecerá antes de nós mesmos. O que ficar, mais dia, menos dia, igualmente findará. A fome que
aplacamos retornará, a vida que ‘salvamos’ terminará.

Observemos a grande maioria das vidas humanas: são autômatos em busca de sustento, do
sucesso na sociedade e de prazeres, sensoriais e emocionais. Empregar o intelecto apenas para essas
finalidades torna a existência similar à de qualquer animal irracional. Subutilizar dessa maneira as
faculdades cognitivas torna qualquer existência miserável e desprezível, não havendo
absolutamente nenhuma perda no desaparecimento desse tipo de consciência. Parafraseando
Schopenhauer, o conteúdo dessa consciência não é, na sua maior parte, nada senão uma torrente
de pensamentos mesquinhos, terrenos, miseráveis e de preocupações intermináveis.

Porque será que a inconsciência assusta tanto as pessoas, se mesmo hoje, ainda vivos, já nos
esquecemos de muito mais da metade de tudo que vivemos, das pessoas que conhecemos, dos livros
que lemos e dos pensamentos que cultivamos? A inconsciência representaria o simples
esquecimento da parte restante.

Quer dizer que a vida é vivida em vão, dentro deste ponto de vista? Não necessariamente.
Podemos fazer as seguintes conjecturas (entre possíveis outras). Mesmo que de nada valha a
lembrança do que passou, dependendo da veracidade de outras crenças, muito podem ter valido as
ações e os pensamentos no momento em que ocorreram. Caso haja um espírito habitando cada
corpo, pode ter havido uma elevação ou diminuição do seu nível, relativamente a alguma escala de
valores. Sendo esse espírito parte de um único ser, a evolução de uma parte pode ter contribuído
para a evolução do todo.

Resumindo, a inconsciência não representa, necessariamente, uma visão ateia ou mesmo


materialista. Está mais próxima de um ponto de vista menos egocêntrico e menos egoísta, que não
dá muito valor ao pequeno “eu” que caracteriza cada existência animal, incluídas aí as humanas.
Nas minhas crenças, considero-a como uma possibilidade razoável, que não merece ser descartada
imediatamente, sem uma análise mais atenta.

Reencarnação

Segundo texto retirado da Wikipédia, em uma definição bastante abrangente, reencarnação é


uma ideia central de diversos sistemas filosóficos e religiosos, segundo a qual uma porção do Ser é
capaz de subsistir à morte do corpo. Chamada consciência, espírito ou alma, essa porção seria
capaz de ligar-se sucessivamente a diversos corpos para a consecução de um fim específico, como
o auto aperfeiçoamento ou a anulação do carma. A título de curiosidade, menciono que, segundo o
Jainismo, uma filosofia religiosa da Índia, a alma pode reencarnar sob forma humana, animal ou
vegetal, e que também há correntes que acreditam haver alma nos objetos inanimados do reino
mineral. Pitágoras via o Universo como um ser vivo, animado de uma grande alma e penetrado de
uma grande inteligência.

Trata-se de uma crença antiquíssima, não tendo sido criada, como alguns ainda acreditam,
pelo Espiritismo. Entre as provas apresentadas a seu favor estão relatos de pessoas que se recordam
de vidas passadas, inclusive de detalhes cuja lembrança seria impensável de outra maneira.
Também há relatos onde a pessoa possui marcas de nascença similares a ferimentos recebidos em
outra encarnação. O fato do esquecimento das existências anteriores não ser absoluto permite que a
lembrança possa ser obtida durante transe hipnótico. A quantidade desses relatos é imensa, o que,

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por si só, não é prova de veracidade. É óbvio que todos os milhares de relatos estão sujeitos a
fraudes, enganos ou mesmo interpretação errônea de fenômenos desconhecidos. Talvez, devido ao
fato da ciência em geral não considerar o homem como algo transcendente à matéria, ainda não
houve estudos irrefutáveis pela comunidade científica como um todo.

Hippolyte Léon Denizard Rivail, nascido na França em 1804, tornou-se conhecido como o
codificador da Doutrina Espírita sob o pseudônimo de Allan Kardec. Sobre as crianças mortas em
tenra idade, através do seu livro O Que é o Espiritismo, ele nos diz: Uma alma que apenas tenha
vivido alguns instantes, não tendo feito nem bem, nem mal, nem merece prêmio, nem castigo.
Porque, segundo o princípio de Cristo, de que a cada um será dado conforme as suas obras, seria
tão ilógico quanto contrário à justiça de Deus admitir-se que sem o menor trabalho fosse chamado
a gozar da perfeita ventura dos anjos, ou que desta ventura pudesse ver-se privado.

Coloco a seguir um pequeno texto coletado no livro A Chave Para a Teosofia, de Helena P.
Blavatsky. É conveniente lembrar que a Teosofia possui várias diferenças do Espiritismo, mas
compartilham maneira similar de ver a questão da justiça: A lei do karma é intimamente entretecida
com a da reencarnação... Apenas essa doutrina ...pode nos explicar o misterioso problema do bem
e do mal e reconciliar o homem com a terrível e aparente injustiça da vida. Nada a não ser essa
certeza pode tranquilizar nosso senso de justiça revoltado. Porque, quando alguém não
familiarizado com essa nobre doutrina olha em torno de si e percebe as desigualdades de
nascimento e fortuna, do intelecto e capacidades; quando vê honras prestadas a tolos e devassos,
sobre os quais a sorte acumulou seus favores por mero privilégio de nascimento, enquanto seu
vizinho mais próximo, com toda sua inteligência e nobres virtudes – muito mais merecedor em
todos os sentidos – morre por necessidades não satisfeitas e por falta de solidariedade; quando vê
tudo isso e tem de voltar as costas, incapaz de aliviar o sofrimento não merecido, com os ouvidos
zumbindo, e o coração doendo pelos gritos de dor à sua volta – apenas o abençoado conhecimento
do karma evita que amaldiçoe a vida e os homens, assim como o seu suposto criador.

Independentemente da veracidade ou não da reencarnação, sua lógica para explicar a “justiça


divina” é muito mais convincente, para mim, que a das principais religiões da atualidade
(cristianismo em geral e islamismo). Gosto da ilustração onde imagino dois irmãos gêmeos que
foram criminosos da pior espécie até a idade de 25 anos, tendo cometido todas as barbáries
imagináveis. Nessa idade, em tiroteio com a polícia, um deles morreu, sem nenhum tipo de
arrependimento de última hora, tendo sido encaminhado, pela lógica católica, por exemplo,
diretamente e sem escalas ao inferno. O que sobreviveu, durante o período que passou no hospital e
na prisão, conheceu algumas pessoas e vivenciou situações que o fizeram ver suas ações cometidas
no passado como erros, e arrependeu-se sinceramente, passando a viver, a partir daí, para o bem do
próximo, tendo morrido aos 80 anos de idade, quando, segundo a mesma lógica católica, foi
conduzido ao paraíso (talvez, após uma passagem pelo purgatório). Onde está a justiça? A alma do
que morreu primeiro irá passar toda a eternidade (observem que não é pouco tempo) no inferno sem
ter tido a mesma chance que o irmão teve. O destino (ou Deus?) foi benevolente com o segundo, já
que lhe proporcionou tempo e condições para o arrependimento, que foram negados ao primeiro.
Uns poucos atos (no curto espaço de tempo de uma vida humana, qualquer quantidade de atos é
pouca), tanto de um como do outro irmão, definiram seu destino durante o restante da eternidade.
Essa possibilidade parece-me ilógica e irracional, além de injusta, é claro. Já se valendo da hipótese
da reencarnação, os dois irmãos teriam as mesmas chances, pois o que morreu primeiro voltaria
quantas vezes fossem necessárias para o seu completo aperfeiçoamento. Esta sim é uma hipótese
misericordiosa. Com apenas uma vida não haveria justiça divina capaz de explicar uns nascerem
muito inteligentes e outros completamente estúpidos, uns pobres e outros ricos, uns com corpos
perfeitos e outros com os seus deformados, uns em ambientes propícios ao bem e outros ao mal, uns
com inclinações pessoais maléficas e outros angelicais desde o berço.

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(Na bibliografia, ao final deste texto, foram colocados os links para acesso a capítulos de um
interessante documentário do Discovery Channel a respeito de vidas passadas e de reencarnação).

Nirvana

Iniciemos pela etimologia da palavra, que nos ajudará bastante. Nir, em sânscrito, significa
“não” e vana significa “cordão”; assim, Nirvana pode ser traduzido literalmente como “não estar
preso”, ou “estar liberto”.

O termo nirvana, explicado de uma forma bem simples, pode ser, como encontrado no
dicionário Aurélio, um estado de ausência total de sofrimento; paz e plenitude a que se chega por
uma evasão de si que é a realização da sabedoria. Quietude perpétua. De forma um pouco mais
mística, pode-se dizer que é a cessação da ilusão do eu individual, ou seja, um estado de consciência
onde o ego não é mais o centro. O guia do Budismo da Terra Pura nos diz: O Nirvana é a meta da
vida budista – o apagar das paixões maléficas e a extinção do ego ignorante que conduz ao
nascimento de um ser desperto, um ser de sabedoria e compaixão.

Buscando em bibliografias especializadas, escritores conhecedores da religião budista e da


cultura oriental nos mostram diferentes etimologias. Nirvana pode significar extinção do desejo, do
ódio e da ilusão, a extinção do carma, ausência de vento, aniquilação, total desaparecimento e, de
forma mais completa, contraparte de sansara, palavra que se refere ao mundo dos renascimentos
contínuos, dos apetites e dos desejos, da ilusão dos sentidos, dos fenômenos do nascimento, do
envelhecimento, da doença e da morte.

Vejamos como um filósofo ocidental vê o nirvana. Trata-se de Arthur Schopenhauer, que, em


Da Morte, texto extraído da sua maior obra, O Mundo Como Vontade e Representação, nos fala
sobre a morte de um homem resignado: A existência que conhecemos, ele a abandona sem pena: o
que lhe cabe em vez desta é nada aos nossos olhos, porque justamente nossa existência, comparada
com aquela, é um nada. A crença budista chama essa existência de nirvana, isto é, extinção.
Mesmo quando o nirvana é definido como o Vazio, ou o Nada, essas palavras não devem ser
associadas ao niilismo, significando a descrença absoluta, mas a um Nada que pode ser Tudo, a algo
sempre pronto para assumir alguma forma particular e tem certas regras, princípios ou verdade
em sua atividade, segundo nos instrui o monge Shunryu Suzuki.

O filósofo criador do neoplatonismo, natural do Egito e nascido em 205, tinha como “primeiro
princípio” o Uno (o Bem), sobre o qual nada poderia ser falado, pois afirmar algo sobre ele era
impor-lhe limites. Também acreditava na reencarnação, dependente do tipo de pessoa que fomos, e
que indivíduos iluminados poderiam ascender à apreensão do Uno, alcançando a união mística com
ele. Estamos falando de Plotino, que está aqui colocado devido à óbvia semelhança de sua filosofia
com o budismo. Foi ele quem disse: Esforço-me para reunir o que há de divino em mim ao que há
de Divino no Universo. A título de curiosidade acrescento que o Uno de Plotino foi visto como
Iahweh pelos filósofos cristãos (Santo Agostinho, entre outros), e como Alá, pelos filósofos
muçulmanos (Avicena, entre outros).

Transcreverei os esclarecimentos a respeito do Nirvana fornecidos por alguém que dedicou


sua vida à pratica e ao estudo do budismo, o escritor John Blofeld. Vejo-o como uma pessoa
merecedora da nossa confiança para falar sobre este assunto, afinal, embora inglês, nascido em
Londres no ano de 1913, após sua morte em 1987, que ocorreu na cidade de Bangkok, suas cinzas
foram levadas para o templo chinês Guan Yin, que ele ajudou a construir e onde se encontram em
lugar de honra. Vejamos o que ele nos disse: Samsara é o fluxo universal em que as criaturas são
condenadas a vagar enquanto persiste a ilusão, nascida do ego, sobre a existência independente,

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pois nosso mundo é apenas uma fração infinitesimal do todo. O Nirvana é o ser-não-ser final, além
da concepção humana, e que não será alcançado até que a última parcela de ego-ilusão não tenha
sido descartada. No entanto, samsara e Nirvana não são dois! Não se vai de um para o outro, nem
há seres individuais que façam essa transferência; existe apenas a queda de uma ilusão, o súbito
reconhecimento das coisas como realmente são, a revelação da verdadeira natureza de si mesmo e
de todos quanto ainda possam existir. Para usar uma simples analogia — uma criança nascida e
criada num quarto escuro como breu deve imaginar seu ambiente vazio de cor e de forma visual;
então aparece a luz e tudo fica gloriosamente diversificado; no entanto, o quarto é o mesmo, nada
mudou, a não ser a concepção que a criança fazia sobre o seu ambiente.

Ainda vale a pena conhecer a definição do monge Thomas Merton, pois é um ocidental
católico, ou seja, está familiarizado com as formas de pensamento deste lado do globo terrestre. Ele
diz: No entanto, as intuições básicas do budismo são filosóficas e metafísicas; procuram penetrar o
fundamento do Ser e do conhecimento, não pelo raciocínio em relação a princípios abstratos e
axiomas, e sim pela purificação e expansão da consciência moral e religiosa, até que ela atinja o
estado de realização superconsciente ou metaconsciente, em que o sujeito e o objeto são uma só
coisa. Essa realização ou iluminação chama-se nirvana. Aproximando o nirvana do “amor de
Cristo”, este autor complementa: Nirvana é a sabedoria do perfeito amor alicerçado em si próprio
e brilhando através de tudo, sem encontrar oposição em coisa alguma.

O próprio Buda evitava definições positivas, insistindo que era “incompreensível,


indescritível, inconcebível, impronunciável”, embora às vezes tenha deixado escapar alguma frase
ligeiramente esclarecedora, como “Nibbana [Nirvana, em pali] é a felicidade máxima”, que consta
no Magandiya Sutta. Sempre que é mencionado o termo Nirvana, imediatamente me vem à
memória o Reino dos Céus (ou Reino de Deus), propalado por Jesus Cristo. Sempre associo os dois
conceitos, igualmente muito mencionados e igualmente pouco explicados. Acredito que o reduzido
esclarecimento seja devido ao fato de que, como disse Buda, se tratam de conceitos
incompreensíveis à nossa limitada condição atual. Talvez por isso mesmo Jesus falasse do Reino de
Deus apenas através de parábolas, nunca tendo fornecido uma descrição objetiva, mas uma vez
falou algo, para mim, extremamente significativo. Ele afirmou: Não se poderá dizer: ‘Ei-lo aqui!
Ei-lo ali!’, pois eis que o Reino de Deus está dentro de vós (Lc 17, 21). Jesus está nos dando uma
clara indicação de onde deve ser iniciada a busca de Deus.

Observa-se que as explicações apresentam um teor místico, o que dificulta a apreensão de


alguns detalhes de cunho prático, principalmente quando há divergência entre elas. Como no
hinduísmo védico (baseado nas milenares escrituras, os Vedas), existe a dissolução da alma no
Brahman universal? Ou como no hinduísmo bhakti (uma escola teísta), a união eterna e amorosa
com Krishna? Até onde é mantida a consciência, ou alguma parcela dela? Ao invés de perder-me
em uma infinidade de perguntas, prefiro acompanhar o próprio Buda histórico. Heródoto Barbeiro,
que recebeu da comunidade budista Soto Zen Shu o título de monge leigo, nos diz que, para
Siddartha, era irrelevante discutir coisas que os homens não podiam entender, então, não perdia
tempo com elas. Não era melhor descobrir a origem da dor e como impedir o ciclo de nascimento e
morte, em vez de discutir a natureza do divino e se os anjos existiam ou não? ...A vida é muito curta
para ser desperdiçada com discussões estéreis. O budismo é uma religião essencialmente prática,
pois ensina que a realidade deve ser vista e aceita como ela é, e a mente deve ser levada a libertar-se
de suas ilusões e tormentos derivados.

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Algo mais

Dos Milagres

O milagre não é dar vida ao corpo extinto,


Ou luz ao cego, ou eloquência ao mudo...
Nem mudar água pura em vinho tinto...
Milagre é acreditarem nisso tudo.

Mario Quintana

Espantos

Neste mundo de tantos espantos,


cheio das mágicas de Deus,
O que existe de mais sobrenatural
São os ateus...
Mário Quintana

Duvidar de tudo ou crer em tudo. São duas soluções igualmente cômodas, que nos dispensam,
ambas, de refletir, sabiamente nos disse Henri Poincaré, matemático, físico e filósofo francês. Não
nos esqueçamos dessas palavras durante a leitura deste capítulo, onde procurei enumerar fatos que
possam ser interpretados como indícios da existência de algo mais além da matéria tangível e
visível, embora não pretenda aqui aprofundar nenhum dos tópicos, o que poderá ser feito, entre
outros meios, através da bibliografia apresentada. Trata-se da explicitação do reconhecimento de
que não devemos fechar os olhos para fatos aparentemente contraditórios, que vão de encontro a
sistemas estabelecidos como incontestáveis. Devemos encarar com coragem acontecimentos que
possam ser desconcertantes devido a seu caráter misterioso e paradoxal. Devemos ter sempre em
mente o que disse Heráclito há milênios: A constituição real das coisas está frequentemente oculta.
Se surpreendo um cético com a pergunta “você acredita na existência de forças ocultas?”, e ele der
sua resposta rapidamente e sem refletir, certamente dirá “é claro que não”. Pode ser que logo após
ele se recorde da existência da força gravitacional ou do magnetismo ou ainda das ondas
eletromagnéticas e desculpe-se de sua resposta apressada. Todos concordamos na existência de
forças que agem sem serem vistas, algumas descobertas recentemente. Será que já conhecemos
todas? Tentemos não nos apressar em dar nossa resposta e muito menos esquecer que, apesar do
cego de nascença poder negar a existência do sol, ele existe.

É claro que no dia-a-dia pequeno de cada um de nós é farta a quantidade de evidências de que
tudo que existe é matéria e separado entre si. Como bem disse Amit Goswami: Quando olhamos em
volta, vemos geralmente apenas matéria. O céu não é um objeto tangível de percepção comum. E
não é só isso que nos leva a referirmo-nos à matéria como real, mas também o que nos induz a
aceitar a filosofia realista, que proclama que a matéria (e sua forma alternativa, a energia) é a
única realidade. Mas, uma coisa é fato: não conhecemos os limites do possível. Não percamos de
vista o fato de que algo é possível ou impossível apenas de acordo com certas suposições, de acordo
com as (atuais) leis da lógica, de acordo com as (atuais) leis da física, de acordo com as (atuais) leis
da química, e assim por diante.

Muito correta era a opinião de Estevão Jonas, administrador da vila fictícia de Tizangara. Ele,
personagem do escritor moçambicano Mia Couto em O Último Voo do Flamingo, em sua fala
simples, disse: Por baixo da base material do mundo devem de existir forças artesanais que não
estão à mão de serem pensadas. Caso alguém prefira a expressão dessa mesma ideia através de uma
citação erudita, podemos usar Hamlet, personagem de Shakespeare: Há muita coisa mais no céu e
na terra do que sonha a nossa pobre filosofia. Ainda posso oferecer uma “versão eclesiástica” da
ideia: Quando os céus estão acima da terra, tanto os meus caminhos estão acima dos vossos
caminhos, e os meus pensamentos acima dos vossos pensamentos (Is 55, 9).

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Eu não seria honesto se não mencionasse que para todos os fenômenos há explicações
espiritualizadas e materialistas. Apresento dois exemplos, relativos a curas de males físicos e
morais. Émile Coué foi um psicólogo e farmacêutico francês que nasceu ainda no século XIX e
introduziu métodos de psicoterapia, cura, e auto tratamento, baseados em autossugestão ou auto
hipnose. Obteve resultados fantásticos e seu método causou grande entusiasmo no início do século
XX. Ele costumava dizer que o homem é aquilo que pensa, porém tinha uma visão materialista dos
fatos e também afirmava que os processos adotados pelos curandeiros convergem todos para a
autossugestão... e isso nada tem de miraculoso. Já o Dr. Joseph Murphy, igualmente nascido no
século XIX, dizia: Lembre-se de que o seu futuro é o seu pensar presente tornado manifesto,
porque o seu subconsciente reproduz fielmente o seu pensamento habitual 24 horas por dia. Da
mesma forma que Émile Coué, Joseph Murphy acreditava que a lei da vida é a lei da crença, porém
atribuía causas espirituais; os fatos eram devidos à unidade de Deus e de cada ser humano e ao
poder daí decorrente. Constantemente utilizava-se de citações bíblicas, como: Tudo é possível para
quem tem fé (Mc 9, 23) ou E tudo o que vocês na oração pedirem com fé, vocês receberão (Mt 21,
22). Como podemos observar, os fatos não são discutidos, mas as causas. Mais recentemente, o
polêmico guru indiano Osho foi bem mais radical: Tudo o que se percebe como real torna-se real.
Tudo o que se percebe como irreal torna-se irreal. Lembre-se de que você é o criador de todo o
mundo a seu redor. Patrick Drouot ratifica essa opinião, como verificamos na seguinte citação:
Criamos o mundo por meio da linguagem e da consciência – termo que poderia significar
“conhecer juntos”, tratando-se, portanto, de um esforço coletivo. Se modificarmos nossa visão do
mundo, criaremos uma realidade diferente. Para colocar mais uma opinião que corrobora as
anteriores, transcrevo Rick Stack: O pensamento é o arquiteto da experiência... As pessoas são
obstinadas a respeito de seus pontos de vista porque suas experiências sempre lhes fornecem
provas em apoio daquilo em que acreditam, seja o que for. Vale a pena parar, reler e pensar um
pouco sobre essa última afirmação. Para os menos místicos, coloco duas citações, de dois norte-
americanos, a primeira vem de Henry Ford, o conhecido industrial: Quer você acredite que pode ou
que não pode fazer alguma coisa, você está certo. A segunda, de William James, o psicólogo e
filósofo: A maior descoberta da minha geração é que os seres humanos, alterando suas atitudes
mentais, podem alterar a própria vida.

Apenas ressalto que devemos tomar cuidado para não cairmos no misticismo irracional, pois
na época em que a humanidade acreditava piamente que a Terra era chata, ao invés de esférica, essa
crença não era suficiente, por si só, para torná-la efetivamente chata. Falando de outra forma, parece
ser inegável o poder das nossas crenças, mas há limites para ele. Como seres humanos, há coisas
possíveis e as há impossíveis. Por outro lado, não devemos enclausurar a mente contra certas
possibilidades só porque nos impressionaram de modo bizarro.

Uma última consideração, não de menor importância. Embora seja típico da nossa sociedade
um orgulho desmedido relativamente às conquistas científicas das últimas décadas, o fato é que
estamos engatinhando em muitas áreas e o preconceito ainda é renitente entre muitos cientistas, que
mais demonstram bazófia que honesto brio. São muito atuais os seguintes versos de Fernando
Pessoa, onde descortina um dos aspectos da nossa falta de saber:

O que é haver ser, o que é haver seres, o que é haver coisas,


O que é haver vida em plantas e nas gentes,
E coisas que a gente constrói –
Maravilhosa alegria de coisas e de seres –
Perante a ignorância em que estamos de como isto tudo pode ser.

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Percepção extrassensorial

Trata-se de experiências que transcendem os cinco sentidos. Podem ser enumerados vários
fenômenos associados, como por exemplo, a clarividência, que consiste na percepção de coisas e
situações à distância; a premonição, que é a capacidade de ver acontecimentos futuros; a telepatia,
que consiste na comunicação entre pessoas sem as restrições de tempo e espaço; a retrocognição,
que é a capacidade de ver acontecimentos no passado.

Esses fenômenos, e vários outros, têm sido estudados por parapsicólogos, místicos, espíritas,
médicos e curiosos em geral, e o número de casos relatados é espantosamente grande, sendo que, à
medida que vai diminuindo o preconceito e as pessoas vão se abrindo a essa “possibilidade
perceptiva”, aumenta o número de ocorrências. Vejamos algumas formas de manifestação:

 Algumas pessoas veem e/ou conversam com outras já falecidas, que vieram passar
alguma mensagem ou mesmo despedir-se (tenho exemplos desse fenômeno através de
pessoas próximas a mim, que professam a religião católica, a qual não admite a
comunicação com mortos).
 Sonhos indicam o local de um objeto perdido.
 Sonhos relatam acontecimentos que subsequentemente ocorrem.
 Visões indicam fatos que já aconteceram.
 Visões indicam fatos futuros que vêm a se confirmar.
 Pessoas sabem com precisão a data da própria morte.
 Pressentimentos desaconselham determinada ação, como uma viagem, que vem a se
confirmar como desastrosa.
 Pensa-se em uma pessoa e logo em seguida recebe-se um telefona dela.

Essas são apenas algumas possibilidades. Não me detive na enumeração de acontecimentos


práticos, dando nome às pessoas e localizando os episódios. Para isso a bibliografia é vasta, além de
ser muito comum termos vivenciado ou conhecermos alguém que vivenciou experiências de
percepção extrassensorial.

Muitas são as possíveis explicações. Cada linha de pensamento tenta justificar os fatos dentro
de suas crenças. Selecionei a interessante elucidação dada pelo Dr. Joseph Murphy: Não há tempo
nem espaço no princípio-mente; por isso, sempre que você mentalmente habita algum lugar, você
está lá literalmente, porque você é um ser mental e espiritual, usando o seu atual corpo
tridimensional como veículo; mas você tem outro corpo quadridimensional mais sutil que pode
percorrer o mundo independentemente do tempo ou do espaço. Em outro momento, este mesmo
autor afirma, de maneira mais resumida: O espírito é onipresente, livre de tempo e espaço. O que é
perfeitamente harmonioso com a sua fé de que Deus e o homem são um.

É comum encontrarmos autores que fazem questão de negar qualquer possibilidade espiritual
como causa dos fatos, tanto ateus como religiosos. Para a maioria deles, os fatos observados são
devidos a hiperestesia, que é um excesso de sensibilidade de um sentido ou órgão, a pantomnésia, a
qual afirma que tudo que já vimos e ouvimos desde as primeiras impressões captadas pelo recém-
nascido a toda e qualquer coisa que estimule nossos sentidos ficam armazenados em nossa memória
inconsciente, ou a um mero raciocínio dedutivo do inconsciente. Essas explicações não são capazes
de justificar a totalidade dos fatos relatados. Um dos fatores que dificulta a pesquisa nesta área é o
fato dos dados sobre percepção extrassensorial não serem rigorosamente replicáveis – ou serem
apenas estatisticamente.

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Contato com espíritos

Aqui trato especificamente de uma das singularidades da percepção extrassensorial. Há uma


grande quantidade de relatos oriundos de diferentes épocas e grupos sociais cujo tema é o contato
de pessoas com espíritos de mortos, variando consideravelmente o teor desses encontros. A própria
Bíblia, tanto no Antigo como no Novo Testamento, possui relatos de contatos com espíritos.
Enquanto os “diálogos” tratam de assuntos genéricos ou se reduzem a visões, pode-se alegar uma
grande quantidade de possibilidades cientificamente aceitas, como a existência de uma segunda
consciência, dupla personalidade, consciência subliminar, neurose, psicose, descarga do tecido
nervoso sobre os músculos, estímulo em áreas específicas do cérebro, disfunção cerebral ou uma
infinidade de outras justificativas. Explicações que não levam em consideração a possibilidade da
existência de algo não material.

A título de ilustração, cito que minha avó possuía uma prima com capacidade prever
acontecimentos futuros. A premonição se dava através de sonhos e visões que regularmente se
confirmavam. Contava uma ocorrência específica de quando ela viu uma pessoa conhecida próxima
a uma rede. Comunicou o fato aos parentes, que constataram haver aquela pessoa falecido muito
recentemente.

O grande problema, que dificulta a vida dos cientistas e céticos, é que vários relatos trazem a
previsão de acontecimentos futuros que vieram a se confirmar, ou o relato de episódios passados,
por parte de pessoas que não tinham como ter tido ciência dos mesmos. Pode ser coincidência?
Claro que sim, embora as circunstâncias relatadas e a quantidade de ocorrências contribuam para
diminuir a probabilidade dessa ocorrência. Pode ser fraude? Claro que sim, embora a variedade das
culturas onde os fatos são relatados, no tempo e no espaço, bem como a idoneidade de alguns
protagonistas também contribua para diminuir as chances de ocorrência dessa possibilidade. Não
podemos deixar de considerar que o fato de existirem moedas falsas não constitui prova da
inexistência das verdadeiras. Também se pode argumentar que são apenas histórias, mas são
milhares delas, e o número continua aumentando.

Bilocação

Consiste na presença simultânea de uma pessoa em dois lugares diferentes. O Dr. Joseph
Murphy, em seu livro A Magia do Poder Extrassensorial, descreve uma série de casos relatados por
indivíduos que assistiram suas palestras ou leram suas obras e sentiram-se encorajadas a narrar suas
experiências, sem o medo de serem ridicularizadas, consideradas loucas ou de estarem sofrendo
algum tipo de alucinação. Estando em um determinado local, essas pessoas conversaram, foram
vistas e tocadas por outras a centenas ou milhares de quilômetros de distância. Essa segunda
personalidade é um ser consciente e racional que funciona completamente independente de seu
corpo tridimensional, mantendo todas as características físicas e mentais da primeira personalidade,
aliás, é a própria personalidade, em sua totalidade e possuidora de todas as suas faculdades.

Embora seja um fenômeno estudado há muitas décadas, tem pouca divulgação. Um


pesquisador que muito falou sobre essa ocorrência foi Frei Albino Aresi, da Ordem dos
Franciscanos Menores, formado em Filosofia, Teologia e Psicanálise, com especialização em
Psicologia Educacional, Hipnologia, Neurologia, Parapsicologia e Sofrologia. Fundou em 1967 a
entidade filantrópica Mens Sana e faleceu em 1988. Acredito que essas informações sejam capazes
de conferir credibilidade aos estudos do Frei Albino Aresi. Eu cheguei a assistir a uma palestra
deste renomado religioso e cientista.

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Caso haja algum leitor da religião católica que torça o nariz ao ouvir falar na bilocação, e os
nomes, entre muitos outros, do Dr. Joseph Murphy e do Frei Albino Aresi atestando a existência
deste fenômeno não sejam suficientes para fazê-los vislumbrar esta possibilidade, sugiro que
busquem informações a respeito do Padre Pio de Pietrelcina, nascido em 1887 e canonizado pelo
Papa João Paulo II. Na sua biografia consta que ele possuía, utilizando o termo religioso, o carisma
da bilocação. São relatados vários episódios com variadas testemunhas. Embora tenha morrido em
1968, seu corpo, incorrupto2, encontra-se exposto na cripta da Igreja de Santa Maria das Graças, em
San Giovanni Rotondo. Lembro que o Padre Pio é apenas um entre muitos santos da igreja católica
que possuíam este dom.

Fotografias Kirlian

Hoje em dia conhecida como Bioeletrografia, as fotografias Kirlian têm sua origem no início
do século XX, no Brasil, através das experiências do padre jesuíta Roberto Landell de Moura, que
inventou uma máquina capaz de fotografar um halo luminoso em torno do corpo humano – e de
qualquer ser vivo. O mesmo fenômeno foi estudado em 1939 pelo russo Semyon Davidovitch
Kirlian, que reinventou o processo e tornou-o conhecido mundialmente, tendo sido divulgada com o
nome de fotografia Kirlian, a foto obtida com sua máquina. A partir de 1967, a Bioeletrografia foi
extensamente pesquisada pelo Prof. Newton Milhomens, físico brasileiro, reconhecido
internacionalmente pela comunidade científica. Sobre esse halo, batizado pelo Padre Landell como
perianto e chamado por muitos de aura, sabemos tratar-se do resultado da ionização de gases e
vapores exalados pelos poros da pele, um fenômeno físico-químico capaz de ser constatado através
de um espectrofotômetro. Quando fotografado através de uma máquina Kirlian, dependendo da
composição química desses gases e vapores, o halo apresenta diferentes cores, em diferentes
intensidades, e estruturas geométricas variáveis.

Muito curiosa é a relação que as fotografias apresentam com o estado físico e psíquico da
pessoa fotografada, permitindo seu uso no auxílio a diagnósticos médicos.

Mais curioso ainda é sua estreita vinculação à Medicina Tradicional Chinesa, quando
problemas de saúde identificados através de variações específicas nas fotografias Kirlian são
observados nas regiões dos meridianos e pontos de acupuntura relacionados aos órgãos afetados.

Vai além da curiosidade a possibilidade de podermos inferir, a partir de uma fotografia Kirlian
de duas pessoas juntas, o grau de afetividade, simpatia ou repulsa existente entre elas. Nos casos de
simpatia, os halos mostram-se unidos, como se estivesse havendo uma troca de energia entre as
pessoas. Quando o caso é de antipatia, os halos mostram-se imiscíveis. Será que a ionização de
gases e vapores possui alguma forma de inteligência? É claro que não, porém percebe-se que ainda
há muito o que se estudar sobre estes fenômenos.

Convém mencionar que no ano de 1999, a Academia de Ciências da Rússia considerou a


Kirliangrafia como sendo fato científico e, em 2000, o Ministério da Saúde da Rússia a recomendou
para a prática médica naquele país.

Cura mediúnica

A cura mediúnica consiste basicamente na atividade de uma pessoa com poderes de aliviar,
melhorar ou curar alguma enfermidade de um paciente. O termo “mediúnica” pressupõe, na crença

2
Corpo Incorrupto é o corpo humano que possui a propriedade de não se decompor após a morte, sem que tenham sido
utilizados métodos de embalsamamento.

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espírita, o auxílio de uma entidade (espírito desencarnado). O fenômeno pode ocorrer através de
duas modalidades: por processos invisíveis, sem sinais aparentes, e por intervenções físicas, como
cortes e perfurações.

Em geral, as cirurgias (intervenções) mediúnicas (espirituais) não resultam em dores físicas ou


infecções para os pacientes, mesmo sem o uso de anestésicos ou analgésicos. Pessoas que se
submetem às mesmas declaram não sentir qualquer dor ou mal-estar, mesmo com os cortes e
perfurações. Há quem diga, entre os detratores do fenômeno, que são utilizadas técnicas de hipnose,
aplicadas ao enfermo (mesmo que sejam não tira o mérito do sucesso da cirurgia).

Não esqueçamos de que esta atividade é executada desde os primórdios da humanidade,


apenas possuindo outros nomes, mais ou menos dignos. Posso citar algumas palavras relacionadas a
curas similares às aqui tratadas, como por exemplo, curandeiros, benzedeiras, xamanismo,
feiticeiros e pajelança. Outro ponto a frisar é que, independentemente da eficácia e das intenções
honestas de alguns, muitos exploram a ingenuidade e o desespero das pessoas, não raro se
beneficiando financeiramente, com favores monetários e donativos ou “presentes”. Daí um forte
indicativo de boas intenções é o fato de não haver absolutamente nenhuma cobrança pelo
atendimento.

Ilustrarei este tópico falando um pouco sobre um dos mais famosos e controversos
protagonistas de curas mediúnicas. Trata-se de José Pedro de Freitas, conhecido como Zé Arigó na
época em que atuava. Nasceu em 1921 e teve, segundo relatos, algumas experiências místicas até o
dia em que fundou uma clínica e passou a atender gratuitamente até 200 pessoas por dia. Sua fama
cresceu e, em certa ocasião, dois cientistas americanos vieram ao Brasil estudar os fenômenos da
cura mediúnica de Zé Arigó. Um deles, o Dr. Puahrich teve um lipoma extraído pelo médium em
cinco segundos, sendo utilizado para isso um canivete sem nenhuma assepsia, e muito menos algum
anestésico, como ele usualmente fazia. Em 1968, dois outros médicos estadunidenses chegaram a
Congonhas para complementar as pesquisas: os Drs. Laurence John e P. Aile Breveter, da William
Benk Psychic Foundation. Mesmo sem ter alcançado uma explicação conclusiva para o fenômeno,
comprovaram que a prática do médium não comportava ilusionismo ou feitiçaria, declarando que
95% dos diagnósticos do médium eram corretos e que, as operações realizadas com um canivete,
sem qualquer assepsia, só eram possíveis devido à sua sensibilidade, explicável apenas à luz da
parapsicologia (http://pt.wikipedia.org/wiki/Arig%C3%B3, em 21/02/2010). Zé Arigó foi preso
duas vezes, acusado de charlatanismo e prática ilegal da medicina, mas nunca parou de atender, sem
jamais aceitar pagamento pelos seus serviços. Faleceu em 1971, em acidente de carro, segundo
afirmam, por ele previsto.

Se havia incorporação de espírito, se havia autossugestão dos pacientes, se havia hipnose, ou


se é o caso de uma capacidade rara e ainda não conhecida pela ciência, são perguntas que não sei
responder, mas, pelos inúmeros relatos, filmagens, documentários e reportagens, acredito que curas
aconteceram, e não foram poucas. Zé Arigó foi um entre muitos. Seriam todos charlatões e
interessados em fama, já que não cobravam dinheiro ou bens materiais? Não acredito, apesar de
sabermos da existência de muitos trapaceiros que se valem da boa-fé das pessoas, bem como do
medo e da curiosidade diante do desconhecido, para obter lucro ilícito. Infelizmente, muitas vezes o
falso desacredita o verdadeiro. Na Bibliografia acrescentei os links para um documentário
apresentado pela Rede Globo em 2005, onde foi feita a encenação de vários episódios da vida de Zé
Arigó e são entrevistados alguns personagens, favoráveis e contrários a ele. Também lá se
encontram os links para um programa Globo Repórter, da Rede Globo, sobre Ciência e
Espiritualidade, onde são tratados fenômenos ditos espirituais de uma forma genérica.

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Pintura mediúnica

De teor semelhante à cura mediúnica, e igualmente aberto à pesquisa, é o fenômeno da pintura


mediúnica, onde o médium, em transe, executa obras com características semelhantes às de pintores
famosos. Posso citar entre aqueles, Luis Gasparetto, José Medrado e Florêncio Anton. Falando
especificamente de José Medrado, menciono que, além de suas faculdades mediúnicas, é
conferencista e escritor, e mantém uma imensa obra assistencial em Salvador, onde provê a
centenas de pessoas atendimento médico, entrega de cestas básicas e sopa, orfanato, centro de
adoção, fornecimento de palestras educativas em várias áreas, cursos de evangelização, oferta de
roupas, passagens rodoviárias para cidade de origem, aplicação de hábitos de higiene, etc. Sem
sombra de dúvida, uma grande obra, que testemunha diariamente a favor de sua honradez e
dignidade.

Psicografia

Impossível deixar de falar em Francisco Cândido Xavier e na psicografia, que, segundo a


doutrina espírita, consiste na escrita de textos de espíritos através das mãos de um médium, sendo
Chico Xavier o mais famoso deles. Durante a sua vida psicografou mais de 400 livros, não
assumindo a autoria de nenhum deles, e vendeu algumas dezenas de milhões de exemplares, sendo
traduzido para o inglês, espanhol, japonês, esperanto, italiano, russo, romeno, mandarim, sueco e
braile. Toda a fortuna arrecadada com a venda dos seus livros foi doada a instituições de caridade,
organizações espíritas e obras assistenciais. Também psicografou milhares de cartas de mortos para
suas famílias.

Posso lembrar alguns aspectos, no mínimo inquietantes, que permeiam sua biografia: muitas
assinaturas de pessoas mortas eram parecidas com as autênticas; não foram raras as ocasiões em que
uma carta psicografada possuía dados, nomes e fatos conhecidos apenas por poucas pessoas da
família do morto, ou mesmo, já completamente esquecidos pelos principais envolvidos, tendo tido
confirmação posterior; mesmo com apenas o curso primário, escreveu livros de filosofia, poesia,
crônicas, romances, etc. Difícil explicar tamanho conhecimento e erudição em uma pessoa com
limitada escolaridade e pouca vivência, ao menos no início de seu “apostolado”.

Fecho com uma citação do próprio Chico Xavier, um ensinamento não apenas apregoado, mas
praticado por ele ao longo de toda a sua vida: Tudo que pudermos realizar se condensa na
conjugação ativa do verbo servir. E, servindo, encontraremos a solução para todas as nossas lutas
e a resposta para todas as nossas indagações.

Experiência de quase-morte

Trata-se de experiências vividas por pessoas que estiveram clinicamente mortas. Um


considerável percentual delas, ao retomar a consciência como a conhecemos, relata uma série de
experiências místicas, como túneis que conduzem a luzes muito fortes, contato com seres
luminosos, com personagens importantes dentro da religião adotada e percepção de que se está
flutuando. Também há pessoas que observam os médicos trabalhando, bem como escutam os
diálogos ocorridos na sala de operação, encontram parentes que já morreram, são submetidas a uma
recapitulação da própria vida, sentem uma grande paz e leveza e, em determinado momento, uma
força os puxa de volta ao corpo. Afirmam que as sensações são indescritíveis e possíveis de serem
conhecidas apenas por quem as vivenciou. Com algumas variações, há considerável semelhança
entre os relatos e, como as pessoas são oriundas de diferentes culturas, faixas etárias, classes sociais
e religiões, esses fatores são descartados como possíveis causadores do fenômeno, bem como a

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possibilidade de ser fruto de mentira ou delírio. Outro dado que não deve ser omitido: também há
experiências negativas, na casa de 3% delas, nas quais podem ser vistas figuras assustadoras ou
experienciadas sensações angustiantes.

Uma observação essencial é o fato de que a quase totalidade das pessoas que passaram por
uma experiência de quase-morte volta transformada. Em geral perdem o medo da morte, passam a
dar muito mais importância ao amor e à solidariedade, e menos aos bens materiais. Trazem uma
sensação de que tudo no Universo está interligado e, quem já não o fazia, desenvolve um forte
sentido de valorização do “conhecimento”. Muitas vezes abandonam a religião antes professada e
passam a estudar os ensinamentos das grandes correntes religiosas, ou seja, tem ampliada sua
curiosidade espiritual.

Muitos médicos e cientistas afirmam tratar-se de reações normais de cérebros moribundos,


devidas à sua má oxigenação e a estímulos elétricos específicos. Essas hipóteses poderiam explicar
a “luz”, as sensações de se estar fora do corpo e de se fazer parte de um todo único, que engloba
todas as coisas e pensamentos, porém não há explicação para o fato de que algumas pessoas, após a
experiência, terem descrito diálogos que ocorreram na sala vizinha de onde estavam, ou mesmo a
quilômetros de distância, nem tampouco para as descrições dos procedimentos que foram adotados
durante a morte clínica.

Transcreverei uma pequena passagem de um estudioso deste assunto, o médico Sam Parnia:
Comecei a pensar nas implicações disso [as medidas obtidas pelo eletroencefalograma antes do
falecimento cardíaco]. Há alguma coisa que não se encaixa aqui, pensei. Temos um grupo de
pessoas tão gravemente doente que chegou a atingir o ponto clínico de morte, mas ainda assim eles
relatam ter processos de pensamento lúcidos e bem estruturados, com argumentação e formação da
memória daquela hora. Há também histórias confiáveis de pacientes que se lembram de
acontecimentos detalhados, ocorridos durante a ressuscitação. Como isso pode acontecer? Como
pode haver processos de pensamentos tão lúcidos quando o cérebro está, na melhor das hipóteses,
desligado e, tanto quanto pudemos medir, não funcionando?

É claro que se pode adotar a postura de negação dos relatos, mas prefiro a opinião da
psicóloga Maria Julia Kovács, coordenadora do Laboratório de Estudos Sobre a Morte da USP:
Podemos não explicar essas experiências, mas não dá para negar que elas existem.

Visões no leito de morte

Desde o século XIX são registradas visões de pessoas que se encontram muito próximas da
morte. Nelas o moribundo afirma ver e conversar com parentes, amigos ou mesmo desconhecidos,
todos já falecidos, e afirmam que estas pessoas vêm recebê-los e ajudá-los neste momento. Também
há casos onde a própria pessoa que está morrendo aparece a conhecidos que se encontram bem
distante do local onde ela está agonizando.

São muitos os casos onde é descartada a hipótese de simples alucinação. O registro mais
antigo deles é relatado por Sir William Fletcher Barret (1845-1926), físico do Royal College of
Science, em Dublin, Irlanda, casado com uma médica obstetra, que assistiu à morte de uma
paciente, após o parto. Antes de falecer ela relatou ter visto o pai, já falecido, e sua irmã. O que
deixou William Barret intrigado foi o fato da irmã haver falecido 18 dias antes e a família ainda não
ter contado a ela este acontecimento, tentando poupá-la do choque que a notícia poderia causar.
Este fato fez com que William Barret se tornasse um pioneiro no estudo sistematizado de tais
experiências.

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Décadas depois os doutores Karlis Osis, Ph.D., nascido na Letônia, e Erlendur Haraldsson, da
Islândia, empreenderam uma longa pesquisa, coletando e estudando milhares de novos casos, não só
nos Estados Unidos, um país predominantemente cristão, mas também de culturas não-cristãs, como
a Índia. Os resultados, a frequência e a natureza das visões dos moribundos foram muito
semelhantes, não importando o local da ocorrência.

Para não deixar de citar um pesquisador brasileiro, coloco o nome de Hernani Guimarães
Andrade, fundador do Instituto Brasileiro de Pesquisas Psicobiofísicas (IBPP) que muito contribuiu
na elucidação dos fenômenos paranormais.

Claramente intui-se uma grande similaridade entre as naturezas deste fenômeno e o da


experiência de quase-morte, porém, aqui a pessoa que vivencia a experiência está lúcida e pode
descrevê-la a quem estiver presente, facilitando a pesquisa e o estudo. Mais uma vez nos deparamos
com a possibilidade de crer ou não nos relatos.

Viagem Astral

Também conhecida como experiência fora do corpo. Podemos dizer que uma experiência de
quase-morte abrange em suas fases uma viagem astral, que consiste na saída, consciente ou não, do
próprio corpo físico.

Alguns pesquisadores do assunto mencionam que este tipo de experiência não é raro,
ocorrendo largamente, de forma inconsciente, durante o sono. Porém, poucas pessoas desenvolvem
a capacidade de induzi-las voluntariamente. Em rápido exame encontrei poucas e incipientes
pesquisas a respeito, porém há estudos em andamento e uma das organizações dedicadas a este
assunto é o Instituto Internacional de Projeciologia e Conscienciologia, que define o termo
Projeciologia da seguinte maneira: Ramo, subcampo, ou especialidade da ciência Conscienciologia,
que estuda as projeções energéticas da consciência e as projeções da própria consciência para
fora do corpo humano, ou seja, das ações da consciência operando fora do estado de
restringimento físico do cérebro e do corpo biológico. Além da experiência fora do corpo
propriamente dita, a Projeciologia também investiga dezenas de fenômenos projeciológicos
correlatos tais como: bilocação, clarividência, experiência de quase-morte, precognição,
retrocognição, telepatia e muitos outros. A Projeciologia constitui uma parte prática da
Conscienciologia.

Da mesma forma que na experiência de quase-morte, a viagem astral é uma experiência capaz
de modificar crenças e comportamentos, já que, segundo Rick Stack, através dela podemos obter
respostas. Podemos ter experiências culminantes de conhecimento e sabedoria que enriquecerão as
nossas vidas e os nossos seres.

Experiência religiosa

Em um texto que busca vestígios de algo mais sutil que a matéria, ou algo que a transcende,
não poderia faltar a menção à experiência religiosa, entendendo-se ela como experiências onde
indivíduos dizem ter tido contato direto com a divindade, ter tido a visão de deuses, santos e santas,
entre outros seres. Também pode ocorrer a místicos, nem que seja por um instante, serem
absorvidos em Deus, se perderem em Deus ou desaparecerem em Deus. O Místico experimenta a
sensação de ser indivisível de um “eu” maior, chamando-o de Deus, espírito universal, Eu ou Vazio.
Esse fenômeno pode ser igualmente chamado de experiência mística, transpessoal, sacra ou
transcendental. William James, um dos fundadores da psicologia americana, estudou as muitas

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similaridades entre os relatos. Observou que, apesar dos notáveis pontos em comum, são
experiências vinculadas às expectativas do sujeito, mais enfatizadas quando o místico interpreta sua
experiência, de maneira que as sensações possuem relação com a sua religião e a sua cultura. Essa
constatação pode indicar que as experiências são fruto exclusivo da mente que as vivenciou, e
também que a existência e a natureza de uma realidade espiritual sofrem alterações devido aos
medos, desejos e atitudes do corpo através do qual está se manifestando. Já John Blofeld afirma que
a suprema experiência mística é a mesma para todas as crenças, sejam elas inicialmente
concebidas como União com Deus Pai ou como realização de união com a Fonte, que nunca foi
interrompida desde o princípio, mas apenas perdida de vista. Este fenômeno também foi estudado
pelo monge católico trapista, escritor e poeta, Thomas Merton, que o define da seguinte maneira:
Experiência transcendente é algo mais nítido do que “experiência culminante”. É uma experiência
de auto transcendência metafísica ou mística e, ao mesmo tempo, uma experiência do
“Transcendente”, ou do “Absoluto”, ou de “Deus”, não tanto como objeto, mas como Sujeito.
Bastante sugestivo o “papel” de Deus segundo esse autor. Passarei a uns poucos e famosos
exemplos.

Em 6 de dezembro de 1273, São Tomás de Aquino teve uma experiência mística e parou de
escrever (deixando inacabada sua grande obra, a “Suma Teológica”), dizendo que tudo que
escrevera parecia insignificante comparado ao que lhe fora revelado, vindo a falecer quatro meses
depois, aos 49 anos de idade.

Aos trinta e cinco anos de idade, ao cair da noite, Siddharta Gautama sentou-se em postura
meditativa sob uma árvore bodhi e jurou que não sairia da meditação antes de atingir a perfeita
iluminação. Prosseguiu com sua meditação até o alvorecer, quando atingiu a última mente de um
ser limitado. Com essa concentração, ele removeu os derradeiros véus da ignorância e, no instante
seguinte, tornou-se um Buda, um ser plenamente iluminado.

Ramon Llull, igualmente conhecido como Raimundo Lúlio, foi um importante escritor,
filósofo, poeta, missionário e teólogo da língua catalã. Foi, outrossim, um prolífico autor também
em árabe e latim. Após ter tido uma visão de Cristo, ingressou na ordem franciscana e trabalhou
como missionário na África do Norte.

No dia 11 de fevereiro de 1858, em Lourdes, Marie-Bernard Soubirous afirmou ter visto uma
aparição de Nossa Senhora, a primeira de uma série. A partir daí foram registrados uma sucessão de
fatos tidos como milagrosos. Canonizada em 1933, Santa Bernadete faleceu em 16 de abril de 1879
e seu corpo não apresentou o menor sinal de putrefação (corpo incorrupto). Encontra-se exposto no
Convento de Saint Gildard de Nevers.

Podem ter sido experiências fabricadas na própria mente dos personagens? É claro que sim.
Podem ter sido todos os milhentos fatos conhecidos fraudes intencionais? Também podem. Podem
ser decorrentes de estímulos de partes do cérebro causados por rituais religiosos? Sem dúvida
alguma. Pode ter sido a manifestação de uma instância transcendental de alguma realidade espiritual
que possui algum vínculo com as crenças pessoais dos protagonistas? Sim, pode. Na verdade, pode
haver exemplos de todas essas possibilidades, e mais algumas. É a opção que acredito mais
provável.

Regressão a vidas passadas

A regressão a vidas passadas tem como pressuposto, para a maioria dos estudiosos que
reconhecem os fatos observados como verdadeiros, a crença na reencarnação, observada em várias
religiões, como o espiritismo, hinduísmo, jainismo, etc. Também é conhecida simplesmente como

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regressão, e pode ser alcançada através de hipnose ou variados métodos de relaxamento. Da mesma
forma que outros fenômenos de cunho espiritual, não recebe muita atenção da comunidade
científica. A técnica também é utilizada por psicólogos e psiquiatras com fins terapêuticos.

Muitos casos relatados possuem clara indicação de que o “paciente” usou conhecimentos
adquiridos durante sua própria vida para compor o personagem da vida anterior, apesar da
descrição, rica em detalhes, dar a impressão para todos os presentes de que realmente houve uma
vida anterior. O que intriga neste fenômeno é quando alguém fornece detalhes de uma vida passada
que vêm a ser confirmados posteriormente, fala idiomas há muito esquecidos (xenoglossia),
apresenta marca de nascença em local de ferimento sofrido em outra vida, e acontecimentos
semelhantes.

Há explicações que descartam a reencarnação; uma, fornecida pelo Dr. Joseph Murphy, é
baseada no monismo universal. Segundo ele, citando Ralph Waldo Emerson, há uma mente comum
a todos os indivíduos. Cada homem é uma entrada para a mesma, ou seja, o nosso subconsciente,
que é uno com a mente subjetiva universal de toda a raça humana, possui recordação de tudo o que
já transpirou na evolução do homem, tanto fisiológica como mentalmente. Todas as línguas que já
foram faladas, toda a música do mundo, mais as descobertas, as invenções e experiências de todos
os homens estão registradas indelével e infalivelmente na nossa mente subconsciente. Ele ainda cita
o Dr. Phineas Parkhurst Quimby, que disse: Nossas mentes misturam-se como atmosferas. Partindo
desses pressupostos, podemos nos recordar de qualquer vida anterior e imaginá-la como nossa,
afinal todos os seres humanos são extensões da Mente Única, de Deus. Outra explicação é dada pelo
Frei Albino Aresi. Segundo ele, a regressão não passa de uma projeção de nossas crenças ou da
pantomnésia do inconsciente.

A bibliografia relatando casos cuja explicação mais convincente é a reencarnação é enorme,


principalmente tratando de TVP – Terapia de Vidas Passadas. Reproduzo um depoimento, da Dra.
Edith Fiore: Permaneci agnóstica até que comecei a travar contato com vidas passadas através das
regressões dos meus pacientes. Desde então, venho pouco a pouco modificando a maior parte dos
meus conceitos religiosos e filosóficos. Atualmente, nem desacredito, nem acredito piamente na
reencarnação. Contudo, dia após dia, ao observar um número cada vez maior de pacientes e
sujeitos da hipnose explorarem vidas passadas, convenço-me gradativamente de que elas não são
meras fantasias. Um pouco mais enfático é o Dr. H. N. Banerjee, após o estudo de mais de 1.100
casos: A reencarnação é fenômeno baseado em fatos e não o resultado da imaginação humana ou
de influência de outras culturas.

Lembranças de vidas passadas

Trata-se de um fenômeno que apresenta uma linha de raciocínio similar à “Regressão a vidas
passadas”, ou seja, pressupõe a validade da reencarnação. Foi pesquisado por inúmeros estudiosos,
dentre os quais destaco um pioneiro, o médico psiquiatra canadense Ian Stevenson (1918-2007),
que dedicou especial atenção a crianças que apresentavam memórias de vidas passadas, as quais
puderam ser verificadas. Ele ia ao local, entrevistava a criança, os familiares, amigos e conhecidos.
Elaborava o perfil psicológico da criança e documentava todos os relatos, bem como gostos
pessoais, marcas de nascença, fobias e características físicas marcantes. Posteriormente visitava a
família à qual a criança alegava ter pertencido, comumente em outra cidade, e repetia todos os
procedimentos, seguindo uma rígida metodologia. Após isso as verificações eram feitas e anotadas.

Houve casos bastante ricos em detalhes onde a criança se recordava de nomes, pessoas, locais,
acontecimentos e especificidades da suposta personalidade anterior, casos onde a criança nasceu
com uma marca ou deformação congênita que foi significativa na vida ou na morte da suposta

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personalidade anterior, casos onde a criança possuía alguma habilidade posteriormente verificada
como pertencente à vida anterior, casos onde a criança indicava o caminho da “sua moradia
anterior”, sem que nunca tivesse ido àquela cidade e casos onde a criança se emocionava ao
encontrar um parente antigo da “outra vida”.

De forma bastante criteriosa, Ian Stevenson também avaliou outras possibilidades de


justificação das ocorrências, como fraude, criptomnésia, percepção extrassensorial, personificação
ou mesmo possessão. Ressalto que, ao longo de sua vida, documentou mais de 2.000 casos em
vários países, inclusive no Brasil, e que sua reputação como cientista metódico e confiável angariou
elogios até de materialistas renhidos, como o astrofísico Carl Sagan, o qual chegou a escrever em
seu livro O mundo assombrado pelos demônios que o fenômeno das lembranças de vidas passadas
merecia um estudo mais criterioso por parte da ciência.

Xenoglossia

Trata-se de um fenômeno que também foi estudado pelo psiquiatra canadense Ian Stevenson,
entre outros, que forneceu a seguinte definição: ‘falar uma língua real inteiramente desconhecida
[ao falante] em seu estado normal’. Observo que a xenoglossia pode se manifestar de forma oral ou
escrita.

Existem numerosos relatórios publicados sobre casos de xenoglossia, mas grande parte deles
não possui informação suficiente para permitir um teste de sua validade. E essa falha Stevenson
procurou sanar. Ele mesmo nos diz: Uma vez que definimos xenoglossia como a habilidade de falar
uma língua estrangeira não aprendida por meios normais, a consequência mais importante está
associada à nossa habilidade de dizer com segurança que o sujeito de um caso de xenoglossia não
aprendeu a língua por meios normais. Nos casos relatados, ele buscou exaustivamente por
evidência de fraude, visitando cidades, bairros, vizinhanças e escolas, realizando dezenas de
entrevistas e consultas a arquivos de diversas instituições, sempre tentando identificar a
possibilidade de aprendizado da língua estrangeira anteriormente à apresentação do fenômeno, que
se dava durante hipnose ou espontaneamente. Para os casos apresentados, ele conclui: Não
encontrei motivos para duvidar do que essas pessoas me contaram com relação à sua completa
ignorância, antes do desenvolvimento dos casos em que estavam envolvidos, da língua falada pela
nova personalidade que neles surgiu.

O indivíduo, durante a observação da xenoglossia, possuía outro nome, vivia em outro local e
mencionava características relativas à personalidade antiga e à sua vida que, em alguns casos,
permitiram a verificação da veracidade das afirmações. Durante a manifestação espontânea da
xenoglossia, o paciente chegava a falar, se vestir, se comportar, se alimentar e se relacionar com os
parentes conforme seria esperado de alguém que vivera no local e época da "vida anterior".
Desconhecia objetos não existentes na “outra vida” e, ao mesmo tempo, lembrava-se de meios de
locomoção e construções que haviam na época em que vivera.

Diferenças pessoais

Sempre que ocorre alguma catástrofe (a guerra é um exemplo típico), natural ou não, e as
amarras sociais são desfeitas, é comum homens que sempre apresentaram comportamento trivial,
passarem a mostrar uma conduta característica de um dos seguintes grupos distintos: no primeiro
estão os que liberam os mais puros instintos, há tempos sufocados, recheados de sadismo e
crueldade, passando a estuprar, matar e roubar, imbuídos de um egoísmo no seu mais puro estado,
podendo ser chamados de indivíduos com mentes de pensamento primário (não coloco neste grupo

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quem mata devido a uma necessidade premente, como a fome, ou obedecendo a ordens; deixo-os
para a psicologia social). No segundo grupo estão os que se descobrem insuflados de uma
compaixão desmesurada, se emocionando e sofrendo com o sofrimento alheio, fazendo o que
estiver a seu alcance para melhorar as condições de vida do grupo como um todo, mesmo colocando
em risco sua vida e seu bem-estar.

Os exemplos coletados nas inúmeras ocorrências desse “fenômeno” nos mostram que não há
relação com classe social, nível cultural ou religião. É algo intrínseco aos personagens envolvidos.
As pessoas possuem essas características e o episódio catastrófico as desencadeia. Os do primeiro
grupo, com a certeza da impunidade ou a proteção da lei instaurada, em casos de guerra, veem-se
subitamente alheios à espécie que pertencem (Homo sapiens) e indiferentes às necessidades dos
seus supostos semelhantes. Também se observa que não é obrigatória a apresentação, antes do
evento desencadeador, dos sentimentos de egoísmo inconsequente ou de compaixão, pelos
componentes de cada um dos dois grupos mencionados.

Não seria o caso dos taxonomistas criarem uma classificação específica para as pessoas do
primeiro grupo? A diferença entre os dois grupos é grotesca, apesar da semelhança física! Caberia
no mínimo uma subespécie diferente (Homo sapien brutus?). Quem sabe outra espécie (Homo
brutus?), ou mesmo um novo gênero?

Seriam essas diferenças oriundas apenas de causas biológico-físico-químicas? Não caberia


alguma explicação não material?

Raciocínios muito semelhantes podem ser conduzidos a respeito das diferenças observadas na
capacidade intelectual das pessoas. Seria causada apenas pela matéria a capacidade de uma criança
para compor magníficas peças instrumentais aos cinco anos de idade, como Mozart? Responda essa
questão tendo em mente uma criança qualquer de cinco anos, conhecida por você, para efeito de
comparação. Chopin também começou muito cedo; aos sete anos já possuía peças conhecidas.
Encontramos exemplos semelhantes em qualquer área do conhecimento que procuremos. Gauss,
filho de um jardineiro, foi considerado por muitos o maior gênio da história da matemática e
aprendeu a ler e escrever aos três anos de idade. Jeremy Bentham, filósofo inglês, aos quatro anos
de idade já sabia ler em grego e latim. A lista de “gênios precoces” é muito grande e é uma pesquisa
bastante prazerosa de ser feita. Volto a perguntar, esse aparente conhecimento prévio pode ser
proveniente apenas de causas físico-químicas? Será que não passamos por uma lenta e ininterrupta
evolução? Santo Agostinho descreve de maneira muito bela a evolução de uma alma (claro que ele
não considerava a possibilidade da metempsicose): Quando homem “carnal” – como menino em
Cristo que ainda se sustenta de leite –, não se considere abandonado na sua noite, mas esteja
contente com a luz da lua e das estrelas, até que alcance forças para poder mastigar alimentos
sólidos e fixar os olhos no brilho do sol.

A hora certa

Há dois anos li pela primeira vez o texto religioso hindu conhecido por Bhagavad Gita.
Gostei, sensibilizou-me um pouco e encontrei algumas semelhanças com os evangelhos canônicos
da Bíblia. Ao relê-lo recentemente, a identificação foi espantosa, o prazer da descoberta, quase
infantil. As semelhanças, que serão expostas mais à frente, entre as palavras de Krishna,
personagem do Bhagavad Gita, e de Cristo, personagem dos evangelhos, avolumaram-se a ponto
dos dois parecerem seguidores de uma mesma religião. O que aconteceu entre as leituras? Talvez,
na primeira, meu espírito ainda não estivesse preparado para o conhecimento contido no texto
hindu. Talvez ainda não fosse a hora certa para tê-lo lido. E, sendo isso verdadeiro, por que não era

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o momento? Há explicações dentro do campo de ação da psicologia, mas também há as que buscam
suas razões nos processos evolutivos do espírito humano.

A grande maioria das pessoas leigas que se dizem cristãs nunca leu o livro que contém todas
as histórias, estórias, prescrições e ensinamentos da sua religião, exceção feita a umas poucas
passagens, ínfimo percentual, indicadas pelos padres e pastores, no intuito de acompanhar a missa
ou o culto (coloco essa ordem de grandeza baseando-me no fato de que, nas minhas algumas
décadas de vida, ter conhecido apenas duas pessoas, leigas, que tenham lido a Bíblia integralmente).
Falando de outra maneira, posso afirmar que a grande maioria das pessoas que se dizem cristãs são
analfabetas bíblicas. Norteia-se toda a vida a partir de um livro não lido! Eu imaginava que a fé de
poucos crentes resistiria ao conhecimento das atrocidades cometidas de próprio punho pelo
personagem principal da Bíblia – Iahweh, o deus dos judeus – ao longo do Antigo Testamento.
Imaginava que os crentes ficariam chocados com algumas das absurdidades por ele apregoadas.
Imaginava que a confiança no caráter sagrado deste livro seria seriamente abalada depois de
identificadas e expostas as infindáveis contradições e discrepâncias existentes tanto no Antigo como
no Novo Testamento. Mas nada disso acontece. Quando algo desabonador é revelado, a primeira
reação é a negação, e quando mostrado, tornando-se a negação insustentável, então, rapidamente
são engendradas justificativas e exegeses, racionais ou não – isso não é importante – para justificar
e perdoar a falha. Aquelas passagens são imediatamente esquecidas e a fé continua como se nada
tivesse acontecido. Concluo que essas pessoas necessitam dessas crenças. O fato de fazerem
sentido, serem racionais, não supersticiosas ou coerentes, é irrelevante. Tentar mostrar as falhas
talvez seja um desserviço capaz de arrancar-lhes as muletas que permitem a continuidade de suas
vidas com um pouco menos de medo. Por quê? Mais uma vez, podemos responder com base na
ciência tradicional (me refiro aos esquemas3 estudados pela psicologia social) ou na evolução
espiritual.

Conheço um evangélico que se orgulha de ter lido toda a Bíblia, sequencialmente, por três
vezes. Em mais de uma ocasião comentei sobre determinadas passagens que tornam as palavras ou
atos do personagem principal merecedoras de sérias críticas ou de escárnio. De imediato ele se
ofendia e replicava afirmando a inexistência de tais citações. Eu fornecia o endereço – capítulo e
versículo – que, uma vez conferidos, causavam um rápido e passageiro mal-estar para, imagino,
serem prontamente esquecidos. Quando esta pessoa leu a Bíblia, com certeza passou por essas
passagens, que aparecem em uma quantidade imensa. Por que não as viu? Muitas são cristalinas,
não necessitando de nenhuma interpretação histórica ou semântica. Talvez ainda não fosse a hora
dele receber, ou perceber, determinados conhecimentos. Talvez seu espírito ainda não estivesse
preparado para tal despertar.

Heráclito, filósofo grego que viveu de 540 a 480 a.C. em Éfeso, já dizia naquela época: Os
olhos e os ouvidos humanos são más testemunhas, caso sua alma não esteja preparada para
compreender suas linguagens. Séculos após, Ralph Waldo Emerson, disse: Homem algum pode
aprender o que não esteja pronto para aprender, não importa quão próximo de seus olhos esteja o
objeto... Para sempre Deus nos protege de ideias prematuras. Nossos olhos ficam nublados, e não
podemos ver as coisas que nos encaram de frente, até que chegue a hora em que a mente está
madura; então as contemplamos, e o tempo em que não as vimos é como um sonho.

3
Estruturas mentais usadas pelas pessoas para organizar, por temas ou assuntos, seu conhecimento do mundo social. Os
esquemas afetam poderosamente as informações que notamos, em que pensamos, e que recordamos; funcionam como
filtros. Ao tomar contato com informações incongruentes com seus esquemas, as pessoas tendem a ignorá-las, depreciá-
las ou reinterpretá-las.

56
Campos morfogenéticos

Para falar deste fenômeno, transcreverei um pequeno texto, extraído do livro A Essência do
Sucesso, editado pela Martin Claret.

No livro “Life-Tide”, publicado nos Estados Unidos em 1979, o cientista e biólogo Lyall
Watson narra a impressionante história do que aconteceu numa tribo do macaco japonês Macaca
fuscata, submetida a uma experiência científica nas praias da ilha de Kochima, no Japão.

No início de 1952, cientistas jogaram batatas-doces cruas, parcialmente cobertas de terra,


nas praias da ilha. Os macacos deliciaram-se com o sabor das batatas-doces, mas não apreciavam
o gosto da terra que as envolvia.

Após vários meses, num determinado momento, uma jovem macaca chamada Imor
“descobriu” que lavar as batatas-doces resolvia o problema. Logo, vários macacos –
principalmente os mais jovens – estavam imitando ou modelando o comportamento dos macacos
“inteligentes”. O avanço cultural foi aprendido por quase todos os macacos da ilha de Kochima, e
tornou-se um “bem” cultural coletivo, usado por todos.

Então sucedeu um fenômeno aparentemente inexplicável. Os cientistas verificaram que, nas


colônias de macacos das outras ilhas, onde também estavam sendo distribuídas as batatas-doces,
muitos deles começaram a lavar as suas batatas-doces.

Surpreendentemente constatou-se que, quando um certo número crítico de seres atinge um


estágio superior de consciência, essa nova consciência pode ser comunicada de uma mente para
outra sem os recursos dos sentidos comuns, tornando-se um patrimônio cultural de todos. A
experiência da ilha de Kochima foi denominada de A Síndrome do Centésimo Macaco.

Era uma prova objetiva de que o universo é uma infinita unidade na diversidade, e que todo o
universo converge para o estado de perfeição.

Uma inteligência cósmica, viva e permanente, se auto aperfeiçoa.

Imagino não ser necessário mencionar que essa hipótese possui detratores, porém também há
os defensores. Cito o trabalho independente do doutor em biologia inglês Rupert Sheldrake, que
generalizou a hipótese dos campos morfogenéticos, ou mórficos, que são a memória coletiva a qual
recorre cada membro da espécie e para a qual cada um deles contribui. Seriam campos não físicos
que exercem influência sobre sistemas que apresentam algum tipo de organização inerente,
permitindo que haja o aprendizado de comportamentos à distância.

Independentemente da validade científica do experimento da ilha de Kochima, relatado acima,


Rupert Sheldrake elaborou outros que apresentaram resultados muito positivos. Gostem ou não, é
irrefutável a forma como essa teoria cai como uma luva na explicação de uma infinidade de fatos,
os quais posso exemplificar com a regeneração de organismos simples, o processo de diferenciação
e especialização celular, padrões de cristalização de substâncias químicas sintéticas, o próprio
crescimento dos organismos vivos e o instinto animal.

Rupert Sheldrake chamou sua teoria de Formação Causativa e a primeira vez que tomei
conhecimento dela foi através do jornalista, professor e publicitário Eduardo C. Borgonovi, o qual
nos diz que os campos mórficos seriam, também, as conexões invisíveis que ligam os membros de
grupos sociais. Os pássaros de um bando, por exemplo, fazem uma curva no ar todos ao mesmo
tempo. (Automaticamente me vêm à mente a comunicação e a organização social de grupos como

57
as formigas e as abelhas). Ele também descreve mais um dos experimentos feitos pelo biólogo:
Alguns pintinhos foram colocados sob uma luz amarela e tomaram uma injeção que lhes provocou
mal-estar. Depois de alguns dias nesse estado, outros pintinhos, que não haviam participado do
experimento, e não haviam tido contato com os da experiência nem haviam tomado a injeção,
desenvolveram rejeição pela luz amarela. A teoria fala, basicamente, sobre a maior facilidade de
aprendizado que animais de uma determinada espécie apresentam quando um novo padrão de
comportamento foi anteriormente aprendido por outros indivíduos.

Voltemos a Eduardo C. Borgonovi: Caso seja definitivamente demonstrado que campos


mórficos armazenam informações de nossa memória, e essas informações podem ser transmitidas à
distância, sem contato físico, a decorrência natural será a aceitação de que não existem separações
entre as mentes, individuais ou coletivas. Agora vamos escutar o próprio Sheldrake: Conseguimos
um novo modelo do Universo como um organismo em desenvolvimento. Não é difícil, fazendo
algumas concessões, é claro, tecermos um paralelo entre o campo mórfico total de Rupert
Sheldrake, a consciência do Universo de Amit Goswami, o inconsciente coletivo do psiquiatra suíço
Carl Jung, a Noosfera de Teilhard de Chardin e o Deus de Berkeley; ou mesmo com o Atman do
hinduísmo e o Espírito Santo do cristianismo.

Alinhavando

Imagino que meu objetivo já tenha sido alcançado, apesar do que ainda poderia me estender e
falar sobre uma série de outros fenômenos, dos quais cito alguns: Radiestesia, que é a sensibilidade
às radiações; Cumberlandismo, que trata do conhecimento dos pensamentos ou desejos de alguém
através de movimentos involuntários e inconscientes; Telecinesia, que consiste na movimentação
de um objeto, sem ação mecânica; Zoometarquia, que trata do poder exercido por alguns
indivíduos sobre animais; Paramnésia, que é a impressão de já ter visto algo ou já ter estado em
determinado local (dejavú); Metagnomia ou Criptestesia, que trata do conhecimento de coisas que
normalmente não podemos conhecer; Jetatura, popularmente conhecido como mau-olhado;
Incorporação, que designa a posse do corpo de um médium, que se encontra em estado de transe,
por um espírito desencarnado; Heteroscopia, que trata da visualização do corpo interno de outra
pessoa; Autoscopia, que é definida como uma experiência em que uma pessoa, enquanto
acreditando estar acordada, vê seu corpo, o ambiente e o mundo a sua volta como se estivesse fora
do seu corpo físico; sonhos telepáticos, quando o conteúdo do sonho de um receptor no estado
REM (sigla em língua inglesa para Movimento Rápido dos Olhos) é afetado pelos pensamentos de
um emissor; cura através da prece, onde um doente é curado devido a orações em sua intenção;
xamanismo, que compreende as práticas dos xamãs, indivíduos com muita importância na sua
sociedade, responsáveis pelo bem estar físico e espiritual de sua comunidade, e seus métodos
apresentam uma impressionante semelhança em sociedades primitivas de todo o mundo, mesmo
que difiram em outros aspectos culturais e sociais ou que estejam bastante separadas no espaço e no
tempo; transferência não-local de informações, quando duas pessoas escolhidas criteriosamente
(dois cérebros correlacionados) são conectadas a máquinas de eletroencefalograma e observa-se que
uma das pessoas – receptor – acusa sinais sempre que o cérebro da outra – emissor – é estimulado;
neurônio espelho (ou célula-espelho), que é um neurônio que dispara tanto quando um animal
realiza um determinado ato, como quando observa outro animal (normalmente da mesma espécie)
executando o mesmo ato; teoria das supercordas (ou teoria das cordas), que é um modelo físico,
ainda não consolidado, mas que apresenta sinais promissores de sua plausibilidade, e cujos
princípios matemáticos permitem aos físicos afirmarem que nosso universo possui mais dimensões
que as conhecidas atualmente; antimatéria, que é composta de átomos ou matéria constituída pelas
antipartículas do próton, do nêutron, do elétron, etc., onde um átomo de antimatéria em contato com
o seu análogo material levaria ao aniquilamento dos dois, com as transformações destes em
neutrinos e radiação gama; o seu estudo ainda conduz a vários mistérios para os físicos, como a
assimetria aparente entre matéria e antimatéria; transcomunicação instrumental, que consiste no

58
estudo da comunicação entre vivos e mortos através de aparelhos eletrônicos. Todos estes
fenômenos, que possuem farta literatura, nos permitem aprofundar ainda mais na convicção de que
realmente há “algo mais”.

A filosofia do positivismo lógico, ou empirismo lógico, bem como inúmeros e influentes


filósofos, assegurava que as proposições possuem sentido somente no caso destas serem de algum
modo empiricamente verificáveis, daí serem rejeitadas afirmações relacionadas com o
conhecimento de temas metafísicos, tais como a existência de Deus ou a imortalidade da alma. Sem
tirar sua razão quanto ao método de validação das proposições, busquei mostrar neste capítulo que
muitas das questões ditas metafísicas possuem, sim, a possibilidade de serem reportadas às
impressões simples dos sentidos, podendo ser, inclusive, estudadas cientificamente.
Inquestionavelmente, os fenômenos aqui abordados constituem uma imensa afronta ao sistema de
crenças materialista, acarretando tentativas de desmerecê-los, ridicularizar estudos a seu respeito,
desprezar evidências claras e dificultar qualquer avanço na sua pesquisa. Um grande entrave aos
progressos nessa área é o fato de que, por um lado, a ciência está ferrenhamente presa à matéria e,
por outro, as religiões estão completamente acorrentadas aos dogmas.

Como pudemos observar, a quantidade de fenômenos pouco ou mal explicados é muito


grande. Até mesmo alguns que à primeira vista podem parecer absurdos, como a bilocação, são
aceitos pela igreja católica, uma típica instituição conservadora, e grande parte dos seus fiéis não
faz a menor ideia disso. Por que não há um largo conhecimento desses fatos? É simples: se não
sabemos explicar, melhor esconder, melhor não divulgar, melhor, inclusive, nem neles pensar.
Temos medo de que novos conhecimentos possam alterar a vidinha mesquinha e pequena que
vivemos, baseada apenas na materialidade aparente do mundo. É muito mais cômodo negar todos
esses fenômenos e permanecer dentro dos limites das pressuposições materialistas, que ainda são
dominantes em nossa sociedade. Esquecemos que eles poderiam alargar nossas vivências, fornecer-
nos novos paradigmas e conduzir-nos a uma vida mais completa e próxima da verdade. Aqui é
muito pertinente a citação de H. Jackson Brown: A maior de todas as ignorâncias é rejeitar uma
coisa sobre a qual você nada sabe.

Prefiro agir como Claude Bernard, médico e fisiologista francês que viveu no século XIX. Ele
disse: Quando um fato contraria uma teoria dominante, abandone a teoria e conserve o fato,
mesmo que ela seja apoiada pelas maiores mentalidades da época. Igualmente pertinente é a
seguinte afirmação de Édouard Schuré: Nada é mais instrutivo do que a incredulidade indignada de
alguns sábios materialistas diante de todos os fenômenos que tendem a provar a existência de um
mundo invisível e espiritual.

Finalizarei este capítulo com uma visão “curiosamente otimista” da morte, que, além de
pertinente ao nosso assunto, é um belo poema de Fernando Pessoa.

A plácida face anônima de um morto.

Assim os antigos marinheiros portugueses,


Que temeram, seguindo contudo, o mar grande do Fim,
Viram, afinal, não monstros nem grandes abismos,
Mas praias maravilhosas e estrelas por ver ainda.

O que é que os taipais do mundo escondem nas montras de Deus?

59
Questões práticas

A Alvorada do Amor

Um horror grande e mudo, um silêncio profundo


No dia do Pecado amortalhava o mundo.
E Adão, vendo fechar-se a porta do Éden, vendo
Que Eva olhava o deserto e hesitava tremendo,
Disse:

Chega-te a mim! entra no meu amor,


E à minha carne entrega a tua carne em flor!
Preme contra o meu peito o teu seio agitado,
E aprende a amar o Amor, renovando o pecado!
Abençoo o teu crime, acolho o teu desgosto,
Bebo-te, de uma em uma, as lágrimas do rosto!

Vê! tudo nos repele! a toda a criação


Sacode o mesmo horror e a mesma indignação...
A cólera de Deus torce as árvores, cresta
Como um tufão de fogo o seio da floresta,
Abre a terra em vulcões, encrespa a água dos rios;
As estrelas estão cheias de calefrios;
Ruge soturno o mar; turva-se hediondo o céu...

Vamos! que importa Deus? Desata, como um véu,


Sobre a tua nudez a cabeleira! Vamos!
Arda em chamas o chão; rasguem-te a pele os ramos;
Morda-te o corpo o sol; injuriem-te os ninhos;
Surjam feras a uivar de todos os caminhos;
E, vendo-te a sangrar das urzes através,
Se emaranhem no chão as serpes aos teus pés...
Que importa? o Amor, botão apenas entreaberto,
Ilumina o degredo e perfuma o deserto!
Amo-te! sou feliz! porque, do Éden perdido,
Levo tudo, levando o teu corpo querido!

Pode, em redor de ti, tudo se aniquilar:


– Tudo renascerá cantando ao teu olhar,
Tudo, mares e céus, árvores e montanhas,
Porque a Vida perpétua arde em tuas entranhas!
Rosas te brotarão da boca, se cantares!
Rios te correrão dos olhos, se chorares!
E se, em torno ao teu corpo encantador e nu,
Tudo morrer, que importa? A Natureza és tu,
Agora que és mulher, agora que pecaste!

Ah! bendito o momento em que me revelaste


O amor com o teu pecado, e a vida com o teu crime!
Porque, livre de Deus, redimido e sublime,
Homem fico, na terra, à luz dos olhos teus,
– Terra, melhor que o Céu! homem, maior que Deus!"
Olavo Bilac

Toda religião pressupõe algumas crenças, obviamente de foro pessoal e, portanto, de difícil
comprovação. Diz-se: “Acredito!” E pronto. Está asseverado. Não se fala mais nisso. Mas, o que
decorre daí? Em termos práticos, qual a influência da religião? É evidente que uma crença religiosa,
qualquer que seja ela, possui grande influência no dia-a-dia das pessoas. Desde o poder de gerar a
“paz existencial” individual, até o de causar grandes males a pessoas em particular e a grandes
grupos, genericamente.
60
Com relação ao sentimento, peculiar a uma só pessoa, que a falta de uma religião pode causar,
de uma forma encantadora explanou Guimarães Rosa, através do seu personagem, Riobaldo:
Estremeço. Como não tem Deus?! Com Deus existindo, tudo dá esperança: sempre um milagre é
possível, o mundo se resolve. Mas, se não tem Deus, há-de a gente perdidos no vai-vem, e a vida é
burra.

Também se observa a religião funcionando como um aglutinante social, onde o que menos
importa são os seus ensinamentos (conhecê-los, muito trabalhoso; segui-los, nem pensar), mais
valendo o rótulo que permite a inclusão em um determinado grupo. É manifesta a hipocrisia daí
decorrente, ordinariamente inconsciente, onde o pragmatismo religioso é expresso através do fútil
seguir de vazios rituais e costumes, de liturgias externas e inúteis. É onde se encontra a quase
totalidade dos religiosos que conheço.

Já com relação à capacidade que a religião possui para afetar as pessoas em sua integridade
física, colocarei dois exemplos. O primeiro, retiro do Alcorão, versículos 12 e 13 da 8ª Surata, que
diz: E de quando o teu Senhor revelou aos anjos: Estou convosco; firmeza, pois, aos fiéis! Logo
infundirei o terror nos corações dos incrédulos; decapitai-os e decepai-lhes os dedos! Isso, porque
contrariaram Deus e o Seu Mensageiro; saiba, quem contrariar Deus e o Seu Mensageiro, que
Deus é Severíssimo no castigo. Quantas “guerras santas”, quantos males não causaram, e ainda
causam, essas palavras! Tudo em nome de Deus! O segundo exemplo, retiro da Bíblia, do versículo
17, capítulo 22 do livro Êxodo, onde o personagem principal fornece um dos seus preceitos legais:
Não deixarás viver a feiticeira. Quantas mulheres foram assassinadas durante a Inquisição devido a
essas simples palavras?! Tudo em nome de Deus! Exemplos similares a esses podem ser colhidos às
centenas dos preceitos sagrados de várias religiões (claro que não todas), mortas e vivas. Muito bem
resumiu esse fato Rabindranath Tagore, quando disse: Em nome da religião foram consumados
crimes que esgotariam todos os castigos do inferno, porque em seus credos e dogmas a religião
aplicou um enorme anestésico sobre boa parte dos sentimentos da humanidade.

Porém, os mesmos livros que legislam de forma cruel e irracional, como foi exemplificado
acima, manifestam momentos de sanidade e põem diante de nós belas e construtivas passagens.
Arrisco-me a afirmar que as religiões cristãs, ou a maioria dos seus seguidores, passaram por um
processo “civilizatório”, através do qual os versículos mais embrutecidos foram sendo filtrados e
deixados de lado, dando ensejo ao destaque de outros, mais humanos. Já com relação à religião
muçulmana, ainda há grupos influentes que não passaram pelo mesmo processo e estão aferrados a
versículos, digamos, mais selvagens, do Alcorão. Não tenho receio em afirmar que o problema não
é inerente às religiões, mas sim como cada um processa e professa sua religião preferida.

Como neste capítulo pretendo tratar de questões práticas relativamente às religiões, é


conveniente avançar sem perder de vista a recomendação de Siddharta Gautama, citada por John
Blofeld: Buda quem ensinou que o tempo gasto em especulação quanto ao “porquê” das coisas
seria mais bem gasto se se vivenciasse a essência dessas coisas. Se a chuva é produzida por
dragões celestes, como os chineses outrora julgavam, ou pela condensação da água retirada da
terra, é coisa que não faz diferença sobre o efeito da chuva. Sejam dragões ou não, sem chuvas não
há colheitas, não há vida! Essa citação pode ser muito bem complementada com: Milhões de
pessoas usam a eletricidade para iluminar e aquecer suas casas sem compreender sua natureza ou
saber como funciona. A vida é curta demais para fazermos exaustivas indagações sobre tudo aquilo
de que nos servimos. Essas afirmações devem servir como balizadores e alertas para o exagero
doentio da ânsia exclusiva pelo saber (desvinculada da ação), causadora de ansiedade e decepção, e
não como determinações impeditivas da pesquisa e da saudável busca por respostas.

61
Está claro que, em termos ritualísticos, que considero secundários, as religiões divergem
bastante. Para algumas devo fazer o sinal da cruz, para outras, tomar passes; ainda há variações
sobre se devo comungar ou devo pagar o dízimo; qual a forma correta de me vestir, de cortar meus
cabelos ou se devo cobrir a cabeça; muitas definem se devo comer ou não comer carne, ou mesmo
sobre quais carnes podem ser ingeridas; também são tratados os jogos de azar e, principalmente, o
comportamento sexual dos seguidores. Será que há, pragmaticamente falando, algum ponto de
contato comum a todas, alguma síntese, algo que possa unificá-las em torno de um centro, algo
através do qual as religiões possam esquecer suas divergências e dar as mãos em busca de um
objetivo único? Arrisco-me a responder que sim. As mensagens e ensinamentos dos fundadores das
principais religiões possuem um centro aglutinador, um ponto invariável em todas elas, que, sem
medo de engano, é a sua pedra angular.

O Ponto de Contato

O princípio basilar das principais religiões da humanidade é enunciado através de frases


expressando um ou mais dos seguintes sentimentos: amor, benevolência, compaixão, caridade, bem,
concórdia e outros de semelhante teor. Por mais que os livros sagrados das diversas religiões
possam apresentar momentos dignos de crítica (uns mais que outros), todos possuem
recomendações nobres. O amor ao próximo, para uns, o amor aos semelhantes, para outros, ou
ainda, o amor a qualquer ser senciente, para mais alguns. Vejamos exemplos práticos.

Talvez porque Confúcio tenha estipulado, além de regras morais, normas para a vida
religiosa, algumas bibliografias classificam o confucionismo como religião. Independentemente de
rótulos, Confúcio foi um homem que influenciou os chineses durante séculos, tendo inspirado
Mêncio, um dos mais conhecidos de seus discípulos, a dizer: Desde que o ser humano veio para
este planeta, nunca houve um maior do que Confúcio. Ainda hoje repetimos seus aforismos sem
saber a origem. Em Os Analectos, que é considerado o único registro confiável dos ensinamentos de
Confúcio (551-479 a.C.), encontramos a seguinte passagem no livro XII.22. Fan Ch’ih perguntou
sobre benevolência. O mestre disse: “Ame seus semelhantes”. Também é de Confúcio o dizer: O
cavalheiro instruído no Caminho ama seus semelhantes.

Vejamos o que disse Jesus Cristo sobre o amor ao próximo: Dou-vos um mandamento novo:
que vos ameis uns aos outros. Como eu vos amei, amai-vos também uns aos outros (Jo 13, 34). São
inúmeras as exortações de Jesus com relação ao amor aos nossos semelhantes, conhecidos ou
desconhecidos, amigos ou inimigos.

Allan Kardec, fundador do espiritismo, disse: o Espiritismo, restituindo ao Espírito o seu


verdadeiro papel na criação, constatando a superioridade da inteligência sobre a matéria, apaga
naturalmente todas as distinções estabelecidas entre os homens segundo as vantagens corpóreas e
mundanas, sobre as quais o orgulho fundou castas e os estúpidos preconceitos de cor. O
Espiritismo, alargando o círculo da família pela pluralidade das existências, estabelece entre os
homens uma fraternidade mais racional do que aquela que não tem por base senão os frágeis laços
da matéria, porque esses laços são perecíveis, ao passo que os do Espírito são eternos. Esses laços,
uma vez bem compreendidos, influirão pela força das coisas, sobre as relações sociais, e mais
tarde sobre a Legislação social, que tomará por base as leis imutáveis do amor e da caridade;
então ver-se-á desaparecerem essas anomalias que chocam os homens de bom senso, como as leis
da Idade Média chocam os homens de hoje.

Neste aspecto, o amor aos outros, até mesmo o Deus do judaísmo, Iahweh, manifestou-se:
Não te vingarás e não guardarás rancor contra os filhos do teu povo. Amarás o teu próximo como
a ti mesmo. Eu sou Iahweh (Levítico 19, 18).

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Guru Granth Sahib é o livro sagrado do sikhismo, religião fundada por Guru Nanak Dev
(1469-1538/1539). São dele as seguintes palavras: Porém, quando o intelecto está poluído e
manchado pelo pecado, só podem ser limpos com o Nome do Amor. É uma religião que possui três
pilares: manter Deus presente na mente em todos os momentos (Nam Japam); alcançar o sustento
através da prática de trabalho honesto (Kirt Karni) e partilhar os frutos do trabalho com aqueles que
necessitam (Vand Chhakna).

O taoísmo é uma religião originada na China alguns séculos antes de Cristo e Lao-Tsé, seu
fundador, disse: O homem pleni-realizado ajuda sempre ao menos realizado... E envolve em sincero
amor aquele que necessita de ti. Também é de Lao-Tsé a seguinte afirmação, que exalta o altruísmo
e a abnegação: O amor impele ao agir, mas não quer nada para si. Ele simplifica tudo em:
Sabedoria é paz e amor.

O Buda Siddharta Gautama não poderia deixar de ser mencionado aqui. É dele a afirmação:
Com amor bondade para todo o universo, cultive um coração sem limites: Acima, abaixo e em toda
a volta, desobstruído, livre da raiva e da má vontade.

A doutrina espiritualista Racionalismo Cristão, que surgiu no início do século XX, de uma
dissidência do movimento espírita brasileiro nos traz em sua principal obra, Racionalismo Cristão,
as seguintes afirmações: Quem vive sob os ditames da honra e do dever, quem molda os hábitos e
costumes com a argamassa do amor ao próximo e se mantém constantemente sob o dinâmico
estímulo das vibrações do bem, cria em volta de si uma barreira fluídica impenetrável às
arremetidas do mal.

Vejamos algo vindo do hinduísmo, uma das mais longevas e maiores religiões do mundo.
Krishna, divindade hindu, fala a seu discípulo Arjuna, no Bhagavad Gita: age também tu por amor
à humanidade (III, 20).

Helena Blavatsky foi uma das fundadoras da Sociedade Teosófica, e através de uma
afirmação sua, colocada a seguir, podemos conhecer um pouco dos seus princípios norteadores: O
membro juramentado (da Sociedade Teosófica) deve se tornar um completo altruísta, nunca pensar
em si mesmo e esquecer sua própria vaidade e orgulho para pensar no bem de seus semelhantes,
além do de seus companheiros do círculo esotérico.

O guru indiano Sathya Sai Baba nos disse: A todos ame. Reverencie todos. Ajude todos ao
máximo, de acordo com sua habilidade pessoal. Esforce-se para ser tão beneficente, tão doce, tão
suave quanto possível.

Hoje em dia a religião muçulmana é considerada violenta, principalmente pelos ocidentais,


mais por desconhecimento e pelos exemplos dados por grupos radicais (uma minoria), do que pelo
que preceitua seu livro sagrado. Foi do Alcorão que retirei a seguinte passagem: Não há utilidade
alguma na maioria dos seus colóquios, salvo nos que recomendam a caridade, a benevolência e a
concórdia entre os homens. A quem assim proceder, com a intenção de comprazer a Deus, agraciá-
lo-emos com uma magnífica recompensa (4ª Surata, 114).

É mundialmente conhecida a mensagem de amor aos homens, aos animais e à natureza em


geral, propagada pelo Movimento Hare Krishna, mas, para manter o “padrão”, transcrevo uma
citação de um famoso devoto, Srila Narayana Maharaja: Vocês não podem obter sneha, prema,
amor e afeição controlando os outros e acumulando dinheiro.

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Vardhamana Mahavira (599-467 a.C.) é considerado o fundador do jainismo, religião
surgida na Índia, e recomendou aos seus adeptos que tomassem cinco votos (mahavratas), que são
os seguintes: Ahimsa, não causar mal ou sofrimento a qualquer ser (não-violência); Satya, evitar a
mentira; Asteya, não se apropriar do que não foi dado; Brahmacharya, não faltar à castidade e
Aparigraha, não se apegar às posses materiais, não ter apego pelas coisas mundanas.

Também podemos mencionar grupos religiosos já desaparecidos, como os essênios, que


constituíam uma famosa seita judaica, considerada por muitos estudiosos os precursores do
cristianismo. O historiador e filósofo grego Fílon de Alexandria (citado por Edmond Wilson) disse
que o que reuniu os essênios foi seu zelo pela virtude e a paixão de seu amor pela humanidade.

Finalmente, para não ficarmos apenas nas religiões, transcrevo as palavras de um famoso ateu,
Bertrand Russell: A vida virtuosa é uma vida inspirada pelo amor e guiada pelo conhecimento.

Importante que se diga: esses nobres sentimentos devem ser direcionados a todos os seres
humanos, sem nenhuma distinção, conforme inferimos pelas passagens a seguir. Lao-Tsé disse:
Faça o bem para aquele que lhe fez uma injúria. Jesus Cristo disse: Amai os vossos inimigos, fazei
o bem aos que vos odeiam, bendizei os que vos amaldiçoam, orai por aqueles que vos difamam (Lc
6, 27). O profeta Maomé disse: Ó fiéis, sede perseverantes na causa de Deus e prestai testemunho,
a bem da justiça; que o ódio aos demais não vos impulsione a serdes injustos para com eles. Sede
justos, porque isso está mais próximo da piedade, e temei a Deus, porque Ele está bem inteirado de
tudo quanto fazeis (5ª Surata, 8). Krishna disse: O que o caracteriza [o sábio, o homem integral] é a
sua atitude de serena benevolência para com todos os que deles se aproximam, amigos ou inimigos,
conhecidos ou estranhos, bons ou maus, afetos ou desafetos – todos lhe merecem amor. Trazendo o
texto para tempos mais recentes, o Dalai Lama disse: A compaixão perfeita é o amor que sentimos
por nosso inimigo.

Resumindo, qualquer que seja a religião de alguém, basta que os principais mandamentos
sejam seguidos para que desapareça a guerra, o ódio, os preconceitos e abismos sociais. É uma pena
que as ações não costumem espelhar as crenças. Como disse Confúcio, se um homem aplica o seu
coração no caminho da benevolência, ele estará livre do mal. O grande problema é que as religiões
costumam ser professadas apenas nos preceitos ritualísticos, litúrgicos e, em vários casos, nos
intolerantes e preconceituosos. Vejamos que esclarecedora e bela passagem nos fornece o Tao Te
Ching:

Por isto, ó homem, reconhece:


Quem não tem a visão do Tao
Age por virtuosidade.
Quem não tem virtuosidade
Age pela caridade.
Quem nem disto é capaz
Obedece a ritos e tradições.

Gandhi exemplificou muito bem essa afirmação quando se dirigiu aos cristãos da seguinte
maneira: Não conheço ninguém que tenha feito mais para a humanidade do que Jesus. De fato, não
há nada de errado no cristianismo. O problema são vocês, cristãos. Vocês nem começaram a viver
segundo os seus próprios ensinamentos. De maneira semelhante se expressou Bhaktivedanta Swami
Prabhupada, o grande divulgador do Movimento Hare Krishna no ocidente: Quem se deixar guiar
por Jesus Cristo certamente obterá a libertação. Mas é muito difícil encontrar um homem que
esteja realmente sendo orientado por Jesus Cristo. Até mesmo Albert Einstein, que teve uma vida
não ligada diretamente ao assunto “religião”, embora tenha sido grande humanista e pacifista,
compartilha dessa opinião: Se se separa o judaísmo dos profetas, e o cristianismo tal como foi

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ensinado por Jesus Cristo de todos os acréscimos posteriores, em particular aqueles dos padres,
subsiste uma doutrina capaz de curar a humanidade de todas as moléstias sociais. Aqui também
cabe a opinião de Anatole France, citado por A. Leterre: dizia que o catolicismo não é outra coisa
senão a forma mais elegante de indiferença religiosa. Para quem preferir uma forma mais irônica,
transcrevo uma frase que já foi utilizada em camisetas populares: Jesus nos salve [...] dos seus
seguidores. Embora as citações colocadas neste parágrafo tenham sido direcionadas aos cristãos em
geral e católicos em particular, os mesmos raciocínios podem ser estendidos a outras religiões. Em
regra, não se vive segundo os principais preceitos das próprias crenças.

Os sentimentos baseados no amor, exemplificados acima, fundamentam uma ética natural,


pois são tratados por todas as religiões e estão no genótipo dos seres humanos (e outros animais),
compondo sua quididade e podendo ser vistos fazendo parte do dia-a-dia de pessoas que não
professam nenhuma crença formal. Não vejo necessidade desses belos sentimentos serem fruto de
normas, códigos ou imperativos de Deus, qualquer que seja a imagem que dele façamos. Basta que
o sentido de humanidade, de responsabilidade para com o próximo, seja despertado no coração dos
homens, e é aí que reside a grande dificuldade; é nesse ponto que há milênios pelejam as religiões e
as grandes “sabedorias”.

Aqui busco a ajuda de Tenzin Gyatso, o décimo quarto Dalai Lama, para corroborar essa
opinião: Há tanta gente que não tem religião, mas tem compaixão, afetividade, consciência do
direito dos outros. Por isso defendo uma terceira via de espiritualidade, através da educação. Não
pela meditação, nem pela oração, mas através da consciência. Parece também concordar comigo o
cardeal Carlo Maria Martini, pelo que inferimos a partir da seguinte citação: É possível ver crentes
e não-crentes vivendo o presente, dando-lhe sentido e empenhando-se com responsabilidade. Isto é
particularmente visível quando alguém se coloca, gratuitamente, por sua conta e risco, a serviço de
valores elevados, sem nenhuma retribuição visível. Quer dizer, portanto, que existe um húmus
profundo que crentes e não-crentes, pensantes e responsáveis, alcançam, sem que, no entanto,
consigam dar-lhe um mesmo nome. O que fazer para que os homens busquem a moralidade por ela
mesma, façam o que é bom almejando como recompensa o próprio ato em si? Buscar minimizar o
sofrimento alheio apenas pelo fato do outro estar sofrendo? Bastaria torná-los sábios, como se isso
fosse simples, pois não há nenhuma receita pronta que nos ensine como adquirir a sapiência.
Acredito que Sócrates estava certo quando afirmou que ninguém faz o mal voluntariamente, mas
por ignorância, pois a sabedoria e a virtude são inseparáveis. Além de mim, há uma outra pessoa
(essa de peso) que concorda com Sócrates. Trata-se de Jesus Cristo, que, quando foi crucificado,
referiu-se sobre seus algozes da seguinte maneira: Pai, perdoa-lhes: não sabem o que fazem (Lc 23,
34). Jesus estava dizendo claramente que aquelas atitudes impensadas, de violência desmesurada,
que estavam sendo tomadas contra ele, eram fruto da mais pura ignorância, portanto, merecedoras
de perdão. E acredito ser essa mesma ignorância, em sua essência, a causadora dos males que
vemos no mundo. É ela que está na base de todo preconceito e de todo egoísmo. Muito antes de
Jesus e de Sócrates, o Buda havia dito: Todos os tipos de sofrimento no mundo têm a ignorância
como condição.

Algum dia, disse o filósofo jesuíta Teilhard de Chardin, depois de termos dominado os ventos,
as ondas, as marés, a gravidade, dominaremos... as energias do amor. Como poderíamos chegar a
esse ponto? Amit Goswami nos dá uma sugestão: Desenvolver relacionamentos altruístas de amor
é uma maneira – talvez a mais direta – para romper o solipsismo do ego. Pessoalmente, acredito
que a pedra de toque para isso é o “serviço”. Servir ao próximo desinteressadamente, certamente
nos conduz à felicidade, e servir é mais fácil que amar, não possui nenhum pré-requisito, a não ser a
vitória sobre a inércia inicial. O amor será a consequência natural. Vejamos o que disse alguém que
compôs cerca de três mil poemas, duas mil canções, como também novelas, ensaios e contos; além
disso, foi o primeiro asiático a receber o Prêmio Nobel de Literatura (1913) e renunciou ao título de
Sir concedido pela Coroa Britânica. Trata-se do escritor indiano Rabindranath Tagore:

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Dormi e sonhei que a vida era alegria.
Acordei e vi que a vida era serviço.
Agi e, olhem só, serviço era alegria.

Outras similaridades

Acima analisamos o que as religiões falam sobre o amor ao próximo, o principal ponto de
contato entre elas, mas é claro que existem inúmeras outras similaridades. Devido ao fato do
cristianismo ser a linha doutrinária com a qual mais possuo familiaridade, mostrarei mais algumas
semelhanças entre o Novo Testamento e outras religiões.

No evangelho de Lucas vemos Jesus manifestar-se a respeito dos ricos com as seguintes
palavras: Como é difícil aos que têm riquezas entrar no Reino de Deus! (Lc 18, 24) Lao-Tsé, muitos
anos antes, possuía a mesma opinião. A seguir, uma passagem onde ele fala um pouco sobre a razão
desta convicção: Quem trilha o caminho da perfeição não acumula tesouros. Riqueza é para o
sábio o que ele faz pelos outros. Quanto mais ele dá aos outros, tanto mais rico se torna.
Realmente, muito semelhante ao que pregava Jesus, o Cristo.

Observemos o seguinte diálogo de Confúcio: O Mestre disse: “Estou pensando em desistir da


fala”. Tzu-kung disse: “Se o senhor não falasse, o que haveria para nós, seus discípulos,
transmitirmos?”. O Mestre disse: “O que fala o Céu? E, no entanto, quatro estações se sucedem e
centenas de criaturas continuam a nascer. O que fala o Céu?”. Agora vamos compará-lo com as
palavras que Jesus proferiu a respeito do desprendimento do homem associado à farta e benévola
natureza, encontradas em Mt 6, 25: Por isso vos digo: não vos preocupeis com a vossa vida quanto
ao que haveis de comer, nem com o vosso corpo quanto ao que haveis de vestir. Não é a vida mais
do que o alimento e o corpo mais do que a roupa? Olhai as aves do céu: não semeiam, nem colhem,
nem ajuntam em celeiros. E, no entanto, vosso Pai celeste as alimenta. Ora, não valeis mais do que
elas? Quem dentre vós, com as suas preocupações, pode acrescentar um só côvado à duração da
sua vida? E com a roupa, por que andais preocupados? Aprendei dos lírios do campo, como
crescem, e não trabalham e nem fiam. E, no entanto, eu vos asseguro que nem Salomão, em toda
sua glória, se vestiu como um deles. Independentemente das preocupações mundanas, a natureza
segue seu curso e seu papel provedor, é a mensagem implícita às citações. Osho resumiu muito bem
quando disse: Sentado, em silêncio, sem fazer nada, a primavera virá e a grama crescerá sozinha.

Lao-Tsé disse: Enfrentai o ódio com o amor no coração! Jesus disse: Amai os vossos inimigos
e orai pelos que vos perseguem (Mt 5, 44). Em outro momento, Lao-Tsé explicou: Ele [o sábio] é
bom com os bons e bom também com os não-bons, porque sua íntima atitude só lhe permite ser
bom. Mais uma vez, confirmamos que a sapiência é atemporal e apátrida.

No capítulo 7 do evangelho de Mateus, Jesus exorta os fiéis a seguir a seguinte regra: Tudo
aquilo, portanto, que quereis que os homens vos façam, fazei-o vós a eles (Mt 7, 12). Alguns
séculos antes, Confúcio havia dito: Não imponha aos outros aquilo que você não deseja para si
próprio. São as mesmas mensagens, nas formas positiva e negativa.

Lao-Tsé nos diz em seu Tao Te Ching: O poder do espírito e a harmonia das forças
preservam da dispersão a vida. Assim procedendo, se torna o homem semelhante à criança,
clarificando sempre sua visão e purificando sempre sua vida. Enfatizando essa forma de ver o
mundo, Jesus nos disse: Em verdade vos digo que, se não vos converterdes e não vos tornardes
como as crianças, de modo algum entrareis no Reino dos Céus (Mt 18, 3). Porque será que o estado
de espírito das crianças é exaltado por Jesus e Lao-Tsé? Não deve ser pelo fato de as crianças

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aceitarem dogmas que vão contra sua inteligência, como a crença de que Jesus nasceu de uma mãe
virgem, ou a determinação de que a hóstia é, literalmente, a carne de Jesus, pois uma criança
perspicaz não aceita indiferentemente dogmas desse tipo; ela precisa ter seus porquês satisfeitos
racionalmente ou intuitivamente, e não os aceita de forma imposta. Interessante a colocação de
Osho: Um místico é alguém tentando desvendar os mistérios da vida, que está se movendo rumo ao
desconhecido, que está explorando novos territórios, cuja vida é de exploração, de aventuras. É
assim que começa a vida de toda criança. A partir desse ponto de vista começo a entender as falas
de Jesus e de Lao-Tsé. Vejamos momentos onde estes iluminados enfatizam seus ditos. No
Evangelho de Marcos, mais uma vez Jesus exalta o estado de espírito das crianças: Em verdade vos
digo: aquele que não receber o Reino de Deus como uma criança, não entrará nele. (Mc 10, 15).
Lao-Tsé também enfatizou este ponto, como podemos comprovar a partir da citação seguinte: Quem
vive na plenitude do seu Ser [Tao] vive como criança recém-nascida.

Em geral, quando são tratados os sentimentos mais nobres, é onde as religiões mais se
parecem. É bastante conhecida a passagem onde Jesus recomenda que a caridade seja feita
reservadamente: Quando deres esmola, não te ponhas a trombetear em público, como fazem os
hipócritas nas sinagogas e nas ruas, com o propósito de serem glorificados pelos homens...
Quando deres esmola, não saiba a tua mão esquerda o que faz a tua direita (Mt 6, 2). Observemos
a recomendação do profeta Maomé sobre o mesmo tema: Se fizerdes caridade abertamente, quão
louvável será! Porém, se a fizerdes, dando aos pobres dissimuladamente, será preferível para vós, e
isso vos absolverá de alguns dos vossos pecados, porque Deus está inteirado de tudo quanto fazeis
(2ª Surata, 271).

O objetivo nesta parte não é transcrever uma infinidade de similaridades. Elas existem e são
incontáveis; desejo unicamente voltar a bater na tecla de que falta apenas que os crentes
internalizem e incorporem os mais básicos ensinamentos de suas religiões. Não basta compreender,
não basta crer, é preciso penetrar. Ilustrarei com o seguinte dizer de Jesus Cristo: Este povo me
honra com os lábios, mas o coração está longe de mim (Mt 15, 8). Situação muito bem expressa
também na seguinte passagem do evangelho de Lucas: Porque me chamais ‘Senhor! Senhor!’, mas
não fazeis o que digo? (Lc 6, 46). Aqui Jesus fala a todos que se dizem e se pensam cristãos, ou
seja, a quase totalidade dos seus pretensos seguidores. Também se manifestou de forma brilhante
Kahlil Gibran, quando disse: Acreditar é uma coisa ótima, mas pôr essas crenças em prática é um
teste de força. Muitos são os que falam como o rugido do mar, mas suas vidas são ocas e
estagnadas, como os pântanos infectos. Muitos são os que erguem suas cabeças acima dos topos
das montanhas, mas seus espíritos permanecem dormentes na escuridão da caverna.

Cristianismo e Hinduísmo

O poema Bhagavad Gita, “Sublime Canção” ou “Canto do Senhor”, é um texto religioso


hindu que faz parte do épico Mahabharata, o qual conta a história de uma disputa dinástica e foi
escrito originalmente em sânscrito. Relata um diálogo entre a divindade Krishna e Arjuna, seu
discípulo. É curioso lembrar que o Mahatma Gandhi relatou em sua autobiografia que o Bhagavad
Gita lhe deu forças para realizar sua obra de libertação da Índia sem derramamento de sangue. Deve
ter sido escrito alguns séculos antes de Cristo (segundo a maioria das fontes), e muito me
impressionou a grande semelhança desse livro com os Evangelhos canônicos do cristianismo, a
ponto de merecer um capítulo à parte. Passarei a reproduzir passagens de ambos os livros sagrados,
traçando alguns paralelos identificados. Se lido com o intuito de rapidamente se alcançar o fim,
pode ser maçante; se saboreando as mensagens contidas nesses textos, os mais publicados da
humanidade, os ensinamentos de duas das principais e mais remotas religiões ainda professadas,
permitindo-se a comparação entre elas, com as adequadas interpretações, pode ser uma prazerosa
experiência. Passemos às falas.

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Krishna disse: Não te apegues a lucros nem posses materiais (II, 45). Que pode ser
complementada com: Os que trabalham somente por lucro pessoal procedem mal e colherão os
frutos dos seus atos maus (III, 13). Jesus disse: Em verdade vos digo que um rico dificilmente
entrará no Reino dos Céus (Mt 19, 23). Este não é o único local no qual aparece esse assunto no
Novo Testamento. A explicação para a restrição feita por Jesus, acredito, está em um dos seus
principais mandamentos, amar ao próximo como a si mesmo. A riqueza de alguém é a prova
material inocultável do seu pecado. Muitos sábios, filósofos e religiosos se manifestaram da mesma
forma a respeito desse assunto. Vejamos o que disse Osho: Há muitos tipos de riqueza, e o homem
que é rico por causa de dinheiro está no ponto mais baixo da escala, se falarmos em termos das
categorias de riqueza.

Krishna disse: A Verdade se lhe revela, e se apoderar-se da Verdade, entrará na mansão da


suprema beatitude e repousará na paz da divindade (IV, 39). Cristo disse: Se permanecerdes na
minha palavra, sereis verdadeiramente meus discípulos, e conhecereis a verdade, e a verdade vos
libertará (Jo 8, 31).

Krishna disse: Uma vez que conheceste o Eu Supremo, supera os sentidos, a mente e as
emoções, pelo poder do EU SOU (III, 43). Cristo disse: Quando tiverdes elevado o Filho do
Homem, então sabereis que EU SOU (Jo 8, 28). Cabe esclarecer que a grafia “EU SOU” em
maiúsculas não é minha, mas das traduções que utilizei.

Krishna disse: Para proteger o bem e destruir o mal, encarno no seio da humanidade,
ensinando o caminho que leva à auto realização (IV, 8). Cristo disse: Eu, a luz, vim ao mundo para
que aquele que crê em mim não permaneça nas trevas (Jo 12, 46).

Krishna disse: O sábio que, pela força da verdade, renuncia a si mesmo, integra-se em
Brahman (V, 6). Cristo disse: Se alguém quer vir após mim, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz
cada dia e siga-me (Lc 9, 23).

Krishna disse: Portanto, reconhece [o puro de coração] que não é ele que age quando vê, ouve
e sente (V, 8). Cristo disse: As palavras que vos digo, não as digo por mim mesmo, mas o Pai, que
permanece em mim, realiza suas obras (Jo 14, 10). Aqui, Jesus Cristo parece ter complementado o
dizer de Krishna.

Krishna disse, sobre o monismo universal, e de uma forma abrangente: Uma vez atingida a
Verdade, ó príncipe, nunca mais sucumbirás à ignorância – e a Verdade te dirá que todos os
mundos estão em ti (IV, 35). Cristo disse: Nesse dia compreendereis que estou em meu Pai e vós em
mim e eu em vós (Jo 14, 20). É admirável o quanto Jesus Cristo revela o monismo da sua doutrina,
não reconhecido pelas religiões cristãs estabelecidas, através dessa afirmação. Como os leitores, em
geral, não retornam no texto, permitam-me repeti-la: Nesse dia compreendereis que estou em meu
Pai e vós em mim e eu em vós.

Krishna disse, falando positivamente: Quem a tudo renuncia, jubiloso, alcança, já agora, a
mais alta paz do espírito (V, 12). Cristo disse: Não ameis o mundo e nem o que há no mundo. Se
alguém ama o mundo, não está nele o amor do Pai (I Jo 2, 15).

Krishna disse: Quem domina o pequeno ego pelo grande Eu, esse é amigo de si mesmo; mas
se o ego não odiar a sua própria egoidade, então se torna inimigo do Eu (da alma) do homem (VI,
6). Cristo disse: Pois aquele que quiser salvar a sua vida [ego], vai perdê-la, mas o que perder sua
vida por causa de mim [Eu], vai encontrá-la (Mt 16, 25). )Os colchetes foram colocados por mim

68
para elucidar a similaridade entre as passagens, segundo sugestão de Humberto Rohden em nota ao
Bhagavad Gita).

Krishna disse: O que o caracteriza [o sábio, o homem integral] é a sua atitude de serena
benevolência para com todos os que dele se aproximam, amigos ou inimigos, conhecidos ou
estranhos, bons ou maus, afetos ou desafetos – todos lhe merecem amor (VI, 9). Cristo disse: Amai
os vossos inimigos, fazei o bem aos que vos odeiam (Lc 6, 27).

Krishna disse, como de costume, enfatizando o monismo: Eu sou a imanente Realidade em


todos os seres; quem me cultua como o Uno e o Absoluto em tudo permanece em mim,
independentemente das vicissitudes da sua vida aqui na terra (VI, 31). Cristo disse: Se observais
meus mandamentos, permanecereis no meu amor (Jo 15, 10).

Krishna disse: Entretanto, no meio de milhares de homens mal se encontra um que,


seriamente, vá em demanda da verdade (VII, 3). Cristo disse: Estreita, porém, é a porta e apertado
o caminho que conduz à Vida. E poucos são os que o encontram (Mt 7, 14). Algumas das falas aqui
transcritas são impressionantemente semelhantes, parecendo ter sido escritas por um único autor, e
as que foram colocadas neste parágrafo são um límpido exemplo.

Krishna disse: Eu sou o princípio dos mundos e sou o seu fim (VII, 6). No Apocalipse, último
livro do Novo Testamento, é transposta para Cristo uma qualidade de Deus: Eu sou o Alfa e o
Omega [a primeira e a última letra do alfabeto grego] (Ap 1, 8).

Krishna disse: A verdadeira natureza de cada ser sou eu, a imanente Realidade de todas as
coisas (VII, 22). Cristo disse: Não se poderá dizer: ‘Ei-lo aqui! Ei-lo ali!’, pois eis que o Reino de
Deus está no meio de vós (Lc 17, 21). Enfatizando ainda mais o monismo aqui patente, volto a
Krishna: Quando eu me revelo nos diversos seres, sou chamado o Universo dos fenômenos visíveis;
sou então o Brahman imanente em tudo, o Espírito que habita em todas as coisas. Eu sou a força
criadora em todas as criaturas (VIII, 4).

Krishna disse: Por meu poder se plasmaram as coisas, e estão em mim, eu, que eternamente
fui e sou (IX, 4). São Paulo, na epístola aos hebreus, disse: Jesus Cristo é o mesmo, ontem e hoje;
ele o será para a eternidade (Hb 13, 8)!

Krishna disse: Eu sou o caminho, a meta e o preservador, eu sou o juiz e a testemunha, a


casa, a vivenda, o refúgio, o amigo (IX, 18). Cristo disse: Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida
(Jo 14, 6).

Krishna disse: Quando alguém, com fé e amor, oferece-me algo, por menor que seja – uma
folha, uma flor, uma fruta, um gole d’água –, eu o aceitarei com prazer das suas mãos (IX, 26).
Cristo disse: E quem der, nem que seja um copo d’água fria a um destes pequeninos, por ser meu
discípulo, em verdade vos digo que não perderá sua recompensa (Mt 10, 42).

Krishna disse: Ergue-te, pois, e reveste-te de coragem! Conquista vitória e glória! O meu
poder já derrotou o inimigo – seja o teu braço apenas o instrumento do meu poder! (XI, 33) Cristo
disse: Não penseis que vim trazer paz à terra. Não vim trazer paz, mas espada (Mt 10, 34). Cabe
esclarecer que, provavelmente, nenhum dos dois está se referindo a uma “guerra justa”, afinal, a
grande mensagem de ambos é de união e amor. Prefiro ver as citações como metáforas da luta entre
o Eu divino no homem e seu ego humano.

Krishna disse: Verdade é que o saber espiritual é melhor que o fazer material; porém, melhor
que ambos é o amar integral – e isso requer total desapego; quem a tudo renuncia por amor, este

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está perto da meta final (XII, 12). Cristo disse: Qualquer de vós, que não renunciar a tudo o que
possui, não pode ser meu discípulo (Lc 14, 33).

Krishna disse: Mas acima de tudo está o Espírito, cuja força pervade o mundo inteiro, mundo
que ele enche e sustenta, ele, o Eterno, o Imortal (XV, 16). Cisto disse: O Espírito é que vivifica (Jo
6, 63).

Krishna disse, a respeito dos seres “que ignoram a sua origem e o seu fim”: Orgulhosos,
convencidos e inebriados de possessões, praticam obras boas só por ostentação e hipocrisia (XVI,
17). Cristo disse: Guardai-vos de praticar a vossa justiça diante dos homens para serdes vistos por
eles... Quando deres esmola, não te ponhas a trombetear em público, como fazem os hipócritas (Mt
6, 1).

Krishna disse: Quem castiga os elementos corpóreos que se acham no homem, castiga a mim
que habito em todas as coisas (XVII, 6). Cristo disse: Todas as vezes que o deixastes de fazer a um
desses pequeninos, foi a mim que o deixastes de fazer (Mt 25, 45)!

Krishna disse: Perecíveis são os corpos, esses templos do espírito – eterna, indestrutível,
infinita é a alma que neles habita (II, 18). Cristo disse: Não temais os que matam o corpo, mas não
podem matar a alma (Mt 10, 28).

Krishna disse: Livre de todos os desejos, é o homem senhor, e não servo dos prazeres; livre de
propriedade, une-se ele com o Todo e encontra a paz verdadeira (II, 71). Parecendo complementar
a fala de Krishna, Jesus disse: ...mas os cuidados do mundo, a sedução da riqueza e as ambições de
outras coisas os penetram [os homens que ouviram a Palavra], sufocam a Palavra e a tornam
infrutífera (Mc 4, 19).

Krishna disse: Não se limite o sábio a querer iluminar os que estão apegados aos sentidos e
aos atos sensoriais, instruindo-os com palavras – pratique ele mesmo atos livres de apego (III, 26).
Cristo disse: Dei-vos o exemplo para que, como eu vos fiz, também vós o façais (Jo 13, 15).

Krishna disse: Não é sábio nem santo quem apenas acende a chama do sacrifício ritual e se
recusa a trabalhar pela grande obra (VI, 1). Cristo disse: Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas,
que pagais o dízimo da hortelã, do endro e do cominho, mas omitis as coisas mais importantes da
lei: a justiça, a misericórdia e a fidelidade (Mt 23, 23). Estes dois grandes sábios, estes dois
grandes iluminados, aqui se dirigem à classe de pessoas que abarca a quase totalidade de pretensos
religiosos, que ante a dificuldade de vencer os apelos do pequeno ego e abrir-se à Totalidade,
satisfazem sua consciência através do seguimento de rituais e da doação de pequenas esmolas,
mantendo-se aferrados ao sentimento do ego-ísmo.

Quando o discípulo Arjuna pergunta: Qual o poder, Mestre, que impele o homem a cometer
pecado e, contra a sua vontade, o obriga a isto? (III, 36) Krishna responde: É o veemente desejo
oriundo do amor à posse; é este o maior inimigo do homem, vítima da ignorância, que o leva à
perdição (III, 37). Cristo disse: Ninguém pode servir a dois senhores: com efeito, ou odiará um e
amará o outro, ou se apegará a um e desprezará o outro. Não podeis servir a Deus e ao Dinheiro
(Lc 16, 13). Gostaria de salientar um ponto mencionado anteriormente e aqui ressaltado por
Krishna, que é fato do pecador ser uma vítima. Uma vítima da própria ignorância.

Krishna disse: Não é fácil conseguir união com o Ser Supremo enquanto o espírito não
disciplinar a carne (VI, 36). São Paulo, na epístola aos Romanos, parece complementar essa
afirmação de Krishna: ...pois os que estão na carne não podem agradar a Deus (Rm 8, 8).

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Krishna disse: Terra, água, fogo, ar e éter, vida, intelecto e espírito – tudo isso são revelações
do meu ser. Tudo isso são aspectos finitos da minha infinita Realidade; mas nada disso é minha
Essência Cósmica, que é a Consciência Vital pela qual todo esse Universo visível é sustentado
(VII, 4-5). São Paulo, na primeira epístola aos Coríntios, disse: Há diversidade de dons, mas o
Espírito é o mesmo; diversidade de ministérios, mas o Senhor é o mesmo; diversos modos de ação,
mas é o mesmo Deus que realiza tudo em todos (I Cor 12, 4).

Uma busca mais atenta aumentaria sobremaneira este capítulo. Não é o caso. Os itens
enumerados já são suficientes para ilustrar a imensa semelhança entre as duas mensagens religiosas.
Existem apenas duas grandes controvérsias: 1- o cristianismo oficial é dualista e o hinduísmo do
Bhagavad Gita prega um monismo universal, e 2- diferentemente do Bhagavad Gita, o cristianismo
oficial não aceita a reencarnação. É conveniente frisar que o monismo mencionado não se confunde
com o panteísmo comum, que afirma: tudo é Deus, e Deus é tudo, mas sim, trata-se de um
“monismo cósmico”, afirmando: tudo está em Deus, e Deus está em tudo, ou seja, Deus é a
Realidade Una e Única. Várias falas de Jesus conduzem ao monismo, algumas transcritas acima (Jo
14, 20; Mt 16, 25; Jo 15, 10 e Lc 17, 21). Acrescentarei mais uma, devido a sua beleza e ao seu
caráter contundente: Não rogo somente por eles, mas pelos que, por meio de sua palavra, crerão
em mim: a fim de que todos sejam um. Como tu, Pai, estás em mim e eu em ti, que eles estejam em
nós, para que o mundo creia que tu me enviaste. Eu lhes dei a glória que me deste para que sejam
um, como nós somos um: Eu neles e tu em mim, para que sejam perfeitos na unidade e para que o
mundo reconheça que me enviaste e os amaste como amaste a mim (Jo 17, 20-23). Uma releitura
dos Evangelhos com a mente aberta a essa possibilidade monista é surpreendente. Quão mais bela
não fica a passagem na qual Jesus institui o sacramento da eucaristia (segundo os católicos), agora
despida de qualquer conotação “canibalesca”, e revestida de nova significação unitária: Quem come
a minha carne e bebe o meu sangue permanece em mim, e eu nele (Jo 6, 56). Já com relação à
reencarnação, há passagens no Novo Testamento (e também no Antigo) que justificam com bastante
consistência a afirmação de que Jesus Cristo reconhecia esse fato e acreditava nele. Sobre esse
assunto, vide o livro O Cristão, onde ele foi tratado de forma detalhada. Feitas essas colocações,
segundo minha compreensão dos textos, desapareceram as presumidas controvérsias, passando
Krishna e Cristo a se assemelharem sobremaneira, não apenas no nome.

Vale a pena falar um pouco sobre a biografia de Krishna. Da mesma forma que os evangelhos
possuem divergências, elas também existem nos relatos sobre essa divindade hindu, ainda mais se
levarmos em consideração que essas histórias distam de nós mais de cinco mil anos, mas vejamos
alguns pontos menos controversos. Devaki, mãe de Krishna, foi fecundada pelo “Espírito dos
Mundos”, similarmente a Maria, mãe de Jesus, que o foi pelo Espírito Santo. Tal como Jesus, que
pertencia à Casa do Rei Davi, Krishna nasceu em família real, na dinastia Mathura. Ele era sobrinho
do rei Kamsa, que desejava o país de Mathura. Como foi previsto que o oitavo filho de Devaki, que
viria a ser Krishna, estava predestinado a reinar nessas terras, Kamsa aprisionou-a, bem como a seu
marido, o sábio Vasudeva, e passou a matar todos os seus filhos, assim que nasciam. Com algumas
artimanhas e o auxílio de divindades menores, os Devas, Krishna escapou. Quando Vasudeva fugia
com seu filho, deparou-se com as águas turbulentas do rio Yamunã, que lhes abriu passagem,
lembrando a milagrosa abertura do mar Vermelho, que permitiu a fuga dos judeus do Egito. Assim
que Kansa soube da fuga de Krishna, mandou matar todas as crianças nascidas em Mathura nos
últimos dias, tentando resolver seu problema da mesma maneira que Herodes o fez quando mandou
matar os meninos de Belém e arredores, com até dois anos de idade. Também existem versões onde
Devaki era virgem, e há lendas que mencionam sua ascensão aos céus. Krishna ensinou, acima de
tudo, o amor ao próximo, e multidões agrupavam-se à sua volta. Quando ele encontrou o rei Kamsa,
disse-lhe: “Tu não tens reinado senão pela violência e pelo mal. Merece mil mortes porque
assassinaste o velho Vasixta. Todavia, não morrerás ainda. Quero provar ao mundo que não é
matando que se triunfa dos inimigos vencidos, mas sim perdoando-lhes”. Imagino não ser

71
necessário acentuar ainda mais as grandes semelhanças entre as biografias de Krishna e de Jesus
Cristo.

Voltando ao monismo, gostaria de acrescentar algumas palavras proferidas pelo padre


católico, mais especificamente, da Ordem dos Cistercienses Reformados de Estrita Observância
(monge trapista) Thomas Keating: O início da jornada espiritual é o reconhecimento. Não apenas a
informação, mas a real convicção interior de que há uma força superior, ou Deus. Ou, para
facilitar ao máximo para todos, de que há um Outro, com “O” maiúsculo. Segundo passo: tentar se
tornar o Outro, ainda com “O” maiúsculo. E finalmente, o reconhecimento de que não há Outro.
Você e o Outro são um só. Sempre foram. Sempre serão. Você simplesmente acha que não é. Um
outro padre, o jesuíta Teilhard de Chardin, disse: Viver a vida cósmica significa viver com a
consciência dominante de que somos uma partícula do corpo de Cristo místico e cósmico. Pode-se
observar que mesmo em meios tipicamente dualistas encontramos eminentes personalidades que
defendem de forma tão bela o monismo.

Que conclusões podemos retirar das grandes similaridades entre as duas religiões, uma que
domina toda a civilização ocidental e outra seguida por significativa parcela da humanidade, pois
apenas a Índia possui mais de um bilhão de habitantes? Observamos claramente a positividade das
mensagens. Como enfatizei, a essência das principais religiões é permeada de compaixão e amor ao
próximo. Impossível não lembrar de Joseph Campbell, quando nos ensina: Penso na compaixão
como a experiência religiosa fundamental; quando ela não existe, você não tem nada. Não se deve
seguir mecanicamente os ritos de nenhuma religião, mas seus sectários devem estudá-las
profundamente, buscar nelas a sua substância, sua essência, sua ideia principal, seu cerne e, isto é o
mais importante, despertá-lo em si próprio e segui-lo. Precisamos de mais religiosidade e de menos
religião. Precisamos nos preocupar menos com deixar de comer guloseimas na quaresma e
passarmos a olhar as outras pessoas como verdadeiros irmãos, não apenas como semelhantes
merecedores de caridade.

Cristianismo e Budismo

As semelhanças entre os ensinamentos de Buda e de Jesus Cristo são imensas; não apenas os
ensinamentos, mas também os métodos. Os dois Mestres superaram os doutores de sua época,
venceram os tentadores e partiram para ensinar; tiveram suas missões profetizadas, nasceram
miraculosamente, eram seguidos por discípulos, viajavam pregando suas doutrinas, criticaram os
religiosos ortodoxos de suas épocas (Jesus aos fariseus e Buda aos brâmanes), falaram através de
parábolas e comparações ou símiles, e nada deixaram por escrito. Esclareço que não defendo a ideia
de que são doutrinas idênticas. As diferenças existem, é claro, mas, aqui, o foco está nas similitudes,
que são surpreendentes e inumeráveis.

Convém fazer uns poucos esclarecimentos a respeito das escrituras budistas. Alguns meses
após a morte do Buda, ainda cerca de 483 a.C., houve o primeiro concílio budista, em Rajagarra, e
seus discípulos fizeram a primeira compilação de suas palavras, que naquele tempo não eram
escritas, mas decoradas, embora a escrita já existisse. Por volta do segundo congresso de discípulos,
em 383 a.C., as palavras de Buda foram traduzidas para várias línguas, a partir do páli (língua
utilizada pelo Buda, uma forma popular do sânscrito, que por sua vez é uma língua utilizada na
Índia), e transmitidas oralmente até o século I a.C., quando foram pela primeira vez escritas, em
páli, passando a ser conhecidas como “cânon páli”.

Para a completa compreensão das citações a seguir, faz-se necessária a explicação de uns
poucos termos páli utilizados:

72
Arahant: literalmente “indivíduo nobre”, é aquele que trilhou o caminho budista até o fim e
realizou o nibbana.
Bhikkhu: um monge ou monja (bhikkhuni) budista; um homem ou mulher que desistiu da
vida em família para viver uma vida santa.
Bodisatva: literalmente “ser-sabedoria”; o termo utilizado para descrever o Buda antes dele se
tornar um Buda (no budismo Mahayana identifica o indivíduo que, embora iluminado, por
vontade própria se mantém no ciclo de nascimentos/renascimentos até que todos os seres
sencientes atinjam a iluminação).
Devas: são divindades que se situam entre os seres divinos superiores e os homens; há quem
os compare aos anjos.
Dhamma: ou Darma, do sânscrito dharma; na maioria dos contextos significa a doutrina do
Buda, o comportamento ético baseado nos ensinamentos do Buda.
Gotama: o Buda também era chamado de Gotama, ou contemplativo Gotama.
Nibbana: palavra páli que significa nirvana; o Buda o atingiu em vida e nesse caso é tido
como uma felicidade suprema; no entanto, é indescritível com palavras, pois não é uma
sensação, já que tudo se extingue; por isso, é experiência pessoal, impossível de ser
transmitida.
Parinibbana: é uma palavra da língua páli que significa falecimento.
Sutta: do sânscrito, sutra; são os discursos e sermões proferidos pelo Buda ou pelos seus
discípulos contemporâneos.
Tathagata: é o epíteto que o Buda empregava com mais frequência para referir a si mesmo.

Passemos às falas desses dois grandes Iluminados e ao que disseram sobre eles.

Maria, mãe de Jesus, recebeu a visita de um anjo na concepção do Mestre. O anjo entrou onde
ela estava, e disse: “Alegra-te, cheia de graça! O Senhor está contigo!” (Lc 1, 28). Já Maya, mãe
do Buda, acolheu visita semelhante no nascimento do Mestre: Os quatro jovens devas o recebem e
o colocam à frente da sua mãe dizendo: ‘Alegre-se, rainha, um filho com grande poder acaba de
nascer’ (Mahapadana Sutta, DN.14).

Conta a tradição, pois está escrito no evangelho de Lucas, que alguns prodígios aconteceram
quando Jesus nasceu. Vejamos: E de repente juntou-se ao anjo uma multidão do exército celeste a
louvar a Deus, dizendo: “Glória a Deus no mais alto dos céus e paz na terra aos homens que ele
ama” (Lc 2, 13-14). Alguns séculos antes, a tradição budista já relatava maravilhas semelhantes na
ocasião do nascimento do Buda: Quando o Bodisatva saiu do ventre da sua mãe, então uma grande
e imensurável luminosidade superando o esplendor dos devas apareceu no mundo com as suas
divindades, Maras e Brahmas, com os seus contemplativos e brâmanes, seus príncipes e povo
(Acchariya-abbhuta Sutta, MN.123).

Muito conhecidas são as passagens onde Jesus estimula e aconselha que compartilhemos
nossos bens. Exemplifico com a seguinte. Cristo disse: Quem tiver duas túnicas, reparta-as com
aquele que não tem. E quem tiver o que comer, faça o mesmo (Lc 3, 11). Não é nem um pouco
estranho que Buda tenha dado os mesmos conselhos. Buda disse: Se os seres soubessem, como eu
sei, os resultados de dar e compartir, eles não comeriam sem antes ter dado, nem permitiriam que a
mácula do egoísmo tomasse conta das suas mentes. Mesmo se fosse o seu último bocado, a sua
última mordida, eles não comeriam sem ter compartido, se houvesse alguém com quem compartir.
Mas porque os seres não sabem, como eu sei, os resultados de dar e compartir, eles comem sem ter
dado. A mácula do egoísmo toma conta das suas mentes (Dana Sutta, It.26).

Buda disse: Fácil é ver erros nos outros, mas difícil os nossos próprios (Darmapada, Cap.
XVIII, verso 18). Cristo disse: Por que olhas o cisco no olho de teu irmão, e não percebes a trave
que há no teu? Como podes dizer a teu irmão: ‘Irmão, deixa-me tirar o cisco do teu olho’, quando

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não vês a trave no teu próprio olho? Hipócrita! Tira primeiro a trave de teu olho, e então verás
bem para tirar o cisco do olho de teu irmão (Lc 6, 41-42).

Aqui é atacado o ato de falar de forma vazia, sem as ações esperadas e pertinentes. Buda
disse: São como uma flor atraente, cheia de cor, mas sem perfume, as boas palavras, sem fruto, de
quem por elas não agiu (Darmapada, Cap. IV, verso 8). Cristo disse: Este povo me honra com os
lábios, mas o coração está longe de mim (Mt 15, 8).

Não é difícil imaginar que tanto Buda como Jesus tiveram a mesma fonte de inspiração ao ler
os seguintes textos. Buda disse: Poucos aqueles entre os homens que passarão a outra margem
[nirvana] (Darmapada, Cap. VI, verso 10). Criando outra imagem, Buda mais ainda enfatizou sua
mensagem: Este mundo tornou-se cego, poucos aqui veem com clareza. Como aves que escapam da
rede, poucos são os que vão aos céus (Darmapada, Cap. XIII, verso 8). Cristo disse: Estreita,
porém, é a porta e apertado o caminho que conduz à Vida. E poucos são os que o encontram! (Mt
7, 14).

Maravilhosa a semelhança entre as seguintes citações. Buda disse: Mil vezes um milhar de
homens pode alguém vencer em batalhas; mas quem vencer-se uma só vez, este é o vencedor de
batalhas (Darmapada, Cap. VIII, verso 4). Cristo disse: Com efeito, que aproveita ao homem
ganhar o mundo inteiro, se ele se perder e arruinar a si mesmo? (Lc 9, 25).

O mal sempre tem consequências. Buda disse: Quem pratica o mal contra os bons, contra o
inocente, contra os puros, contra esse tolo o mal se volta, como o pó atirado ao vento (Darmapada,
Cap. IX, verso 10). São Pedro disse: Porque os olhos do Senhor estão sobre os justos e os seus
ouvidos estão atentos à sua prece, mas o rosto do Senhor se volta contra os que praticam o mal (I
Pd 3, 12).

Nas seguintes citações, vemos um importante mandamento colocado pelos Iluminados. Buda
disse: Todos têm medo do chicote, Todos se apavoram com a morte. Fazendo de ti um exemplo, não
mates, nem causes a morte (Darmapada, Cap. X, verso 1). Cristo disse: Tu conheces os
mandamentos: Não mates. (Mc 10, 19).

Qual o real valor dos bens materiais? Nossos Mestres respondem. Buda disse: Mesmo os ricos
carros reais se desgastam e também o corpo se torna decrépito, mas o darma dos bons não se
deteriora. Os sábios, pois, aos sábios isso transmitem (Darmapada, Cap. XI, verso 6). Cristo disse:
Não ajunteis para vós tesouros na terra, onde a traça e o caruncho os corroem e onde os ladrões
arrombam e roubam. Mas ajuntai para vós tesouros nos céus, onde nem a traça, nem o caruncho
corroem e onde ladrões nem arrombam nem roubam (Mt 6, 19-20).

Aqui, Buda e Cristo afirmam serem felizes as pessoas que efetivamente praticam os
ensinamentos. Buda disse: Correto e sem ser negligente, o darma adota bons hábitos. Viver o
darma é ser feliz, aqui neste mundo e nos próximos (Darmapada, Cap. XIII, verso 2). Jesus disse
(após uma mulher haver lhe falado “Feliz o ventre que te carregou, e os seios que te
amamentaram”): Felizes, antes, os que ouvem a palavra de Deus e a observam (Lc 11, 28).

Amor e bondade, a mensagem renitente. Buda disse: Dizer verdades, não se irar, dar, se
pedem, mesmo se pouco (Darmapada, Cap. XVII, verso 4). Cristo disse: Dá ao que te pede e não
voltes as costas ao que te pede emprestado (Mt 5, 42).

Incrível a semelhança. Os dois transmitem a mesmíssima ideia, utilizando-se de formas


completamente diferentes. Buda disse: Se ao infligir dor aos outros, o seu próprio bem conseguir,
quem conspurcar-se com o ódio, do ódio não se vai livrar (Darmapada, Cap. XXI, verso 2). Cristo

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disse: Guarde a tua espada no seu lugar, pois todos os que pegam a espada pela espada perecerão
(Mt 26, 52).

A riqueza material denota egoísmo, mostra-nos sem nenhum disfarce que estamos presos às
necessidades exclusivas deste nosso (e dos muito próximos) fugidio e efêmero corpo físico,
enquanto irmãos passam por grandes dificuldades. Não é sem razão que encontramos críticas ao
acúmulo de bens materiais nas palavras de quase todos os grandes Iluminados que estiveram entre
nós. Buda disse: Enamorados pelos prazeres e riqueza, cobiçosos, deslumbrados pelos prazeres
sensuais, eles não se dão conta que foram longe demais como o gamo que cai na armadilha. Mais
tarde o fruto amargo será deles, pois deveras ruim é o resultado (Appaka Sutta, SN.III.6). Jesus
disse: Mas, ai de vós, ricos, porque já tendes a vossa consolação! (Lc 6, 24). Um outro Sutta relata
o seguinte diálogo com o Buda: Nós lhe perguntamos Gotama, sobre o declínio do homem. Qual é
a causa para a ruína? ... Ele tem muita riqueza, muito ouro e comida, mas desfruta disso tudo
sozinho – essa é uma causa para a sua ruína (Parabhava Sutta, Snp I.6). Voltando a palavra para
Jesus, ele disse: Como é difícil aos que têm riquezas entrar no Reino de Deus! (Lc 18, 24).

Aqui, ainda com o foco na riqueza, vemos a abordagem de outro ângulo. Buda disse: Aquele
que deseja diferentes objetos dos sentidos, como terras, casas, jardins, ouro, dinheiro, gado,
cavalos, serviçais, empregados, mulheres, parentes, será subjugado pelas paixões, os perigos o
esmagarão, e a dor irá segui-lo, igual à água entrando num barco naufragando. (Kama Sutta,
Snp.IV.1). Jesus, na parábola do semeador, fala sobre as sementes que caíram no meio dos espinhos
e foram sufocadas por eles. O Mestre disse: Aquilo que caiu nos espinhos são os que ouviram, mas,
caminhando sob o peso dos cuidados, da riqueza e dos prazeres da vida, ficam sufocados e não
chegam a maturidade (Lc 8, 14).

Relacionado à riqueza, temos a ganância, mais um sentimento combatido. Buda disse:


Inebriados por prole e posses, esses homens de mente ávida, como a enchente, a vila dormida, a
morte leva de roldão (Darmapada, Cap. XX, verso 15). Cristo disse: Precavei-vos cuidadosamente
de qualquer cupidez [segundo o dicionário Aurélio, cúpido é o ávido de dinheiro ou bens materiais,
cobiçoso], pois, mesmo na abundância, a vida do homem não é assegurada por seus bens (Lc 12,
15).

Aqui podemos perceber a ênfase dada ao problema do acúmulo de bens materiais, ao acúmulo
de riqueza. São incompatíveis as escolhas entre o caminho que leva ao nirvana ou ao Reino de Deus
e o caminho que leva à riqueza material. Buda disse: Um caminho leva ao acúmulo, outro é o que
conduz ao nirvana. (Darmapada, Cap. V, verso 16). Jesus disse: Ninguém pode servir a dois
senhores: com efeito, ou odiará um e amará o outro, ou se apegará a um e desprezará o outro. Não
podeis servir a Deus e ao Dinheiro (Lc 16, 13).

Com relação aos sentimentos negativos, que trazem consequências ruins, especial atenção é
dada à raiva, ao ódio e à cólera. Buda e Jesus, reiteradas vezes, recomendam atenção e esforço para
que essas emoções sejam subjugadas. Buda disse: Quando surge a raiva em relação a uma pessoa,
ele deve desenvolver o amor bondade para com aquela pessoa. Dessa forma a raiva por aquela
pessoa deve ser subjugada (Aghatapativinaya Sutta, AN.V.161). Cristo disse: Todo aquele que se
encolerizar contra seu irmão, terá de responder no tribunal (Mt 5, 22). Quais algumas possíveis
consequências da raiva? Buda nos responde: A raiva, meu amigo, deixa você cego, faz com que
você perca a visão, faz de você um ignorante. Ela conduz à cessação da sabedoria, conduz a
problemas, e não conduz a nibbana (Channa Sutta, AN.III.71). A título de curiosidade, observo
que, neste mesmo sutta, Buda atribui essas mesmas consequências à ‘paixão’. E finalmente, como
enfrentar a raiva? Buda disse: Sem ira, os irados vencemos, com o bem, vencemos os maus,
vencemos os avaros dando, e com a verdade, os mentirosos (Darmapada, Cap. XVII, verso 3). São

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Paulo, ressaltando um dos grandes ensinamentos de Jesus, disse: Não te deixes vencer pelo mal,
mas vence o mal com o bem (Rm 12, 21).

Buda muito lutou contra o sistema de castas existente na Índia, e buscou vincular os bons às
suas práticas e ações. Ele disse: Não é devido ao nascimento que alguém é um pária; não é devido
ao nascimento que alguém é um brâmane. Através das ações alguém se torna um pária, através das
ações alguém se torna um brâmane (Vasala Sutta, Snp.I.7). Buda complementou: São as ações que
distinguem os seres entre inferiores ou superiores (Culakammavibhanga Sutta, MN.135). Jesus
também buscou ligar a Salvação às práticas e ações, reduzindo a importância de ritos e palavras
vazias. Ele disse: Nem todo aquele que me diz ‘Senhor, Senhor’ entrará no Reino dos Céus, mas
sim aquele que pratica a vontade de meu Pai que está nos céus (Mt 7, 21).

Em vários Suttas o Buda descreve alguns poderes supra-humanos, que ele possui. No exemplo
a seguir, coloco um pequeno extrato: Ele caminha sobre a água sem afundar como se fosse terra
(Iddhadidesana Sutta, SN.LI.19). Jesus também caminhava sobre a água: Na quarta vigília da noite,
ele dirigiu-se a eles, caminhando sobre o mar (Mt 14, 25). Será que eles realmente tinham este
poder? Não acho que a resposta seja importante, mas sim seus ensinamentos.

Uma palavra-chave da doutrina budista é ‘impermanência’, que significa “Tudo que está
sujeito ao surgimento está sujeito à cessação” (Ambattha Sutta, DN.3). Muito foi falado por Buda
sobre este assunto. Cito como exemplo: Aquilo que alguém imagina ser seu irá desaparecer com a
morte. Compreendendo isso, um sábio não terá apego a nada (Jara Sutta, Snp.IV.6). Jesus
transmitiu a mesma mensagem quando contou a parábola do homem que teve uma grande colheita e
passou a fazer planos para o acúmulo dos seus bens, acrescentando ao final: Mas Deus lhe diz:
‘Insensato! Nessa mesma noite ser-te-á reclamada a alma. E as coisas que acumulaste, de quem
serão?’ (Lc 12, 20).

Visando o bem de todos, Buda e Jesus enviaram seus discípulos em pregação pelo mundo.
Buda disse: Peregrinem, bhikkhus, pelo bem-estar de muitos, para a felicidade de muitos, por
compaixão pelo mundo, para o bem, bem-estar e felicidade de devas e humanos. Que dois não
sigam pela mesma estrada. Ensinem, bhikkhus, o Dhamma que é bom no início, bom no meio, bom
no final com o correto fraseado e significado. Revelem a vida santa que é perfeita e imaculada. Há
seres com pouca poeira sobre os olhos, que estão decaindo por não ouvir o Dhamma. Há aqueles
que entenderão o Dhamma (Marapasa - Dutiya Sutta, SN.IV.5). Cristo disse: Dirigindo-vos a elas
[às pessoas], proclamai que o Reino dos Céus está próximo. Curai os doentes, ressuscitai os
mortos, purificai os leprosos, expulsai os demônios. De graça recebestes, de graça dai. (Mt 10, 7-
8).

Quando Jesus enviou os apóstolos em missão, disse: Não leveis ouro, nem prata, nem cobre
nos vossos cintos, nem alforje para o caminho, nem duas túnicas, nem sandálias, nem cajado, pois
o operário é digno do seu sustento (Mt 10, 9-10). Buda foi ainda mais radical; falando do
comportamento correto do monge, disse que Ele se abstém de aceitar ouro e dinheiro (Kandaraka
Sutta, MN.51), completando, neste mesmo sutta com: Igual a um passarinho, aonde quer que ele
vá, voa com as asas como seu único fardo, assim também, o bhikkhu está satisfeito com os mantos
que protegem o seu corpo e com os alimentos esmolados que mantêm o seu estômago, e aonde quer
que vá ele apenas leva essas coisas consigo. Seriam essas recomendações seguidas hoje em dia?

Buda fala em recompensa para os generosos: Na dissolução do corpo, após a morte, aquele
que é generoso, um mestre da generosidade, renasce num destino feliz, no paraíso (Siha Sutta,
AN.V.34). Jesus também fala em recompensa para os generosos: Amai vossos inimigos, fazei o bem
e emprestai sem esperar coisa alguma em troca. Será grande a vossa recompensa (Lc 6, 35).

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Conforme já vimos, a palavra-chave das mensagens de Buda e de Jesus é ‘amor’. Vejamos um
exemplo de cada. Buda disse: Então, você deve treinar assim: ‘O amor bondade, como libertação
da minha mente, será desenvolvido e cultivado, farei dele o meu veículo, a minha base, estabilizá-
lo-ei, me exercitarei nele e o aperfeiçoarei’. Assim é como você deve treinar (Sankhitta Sutta,
AN.VIII.63). Cristo disse: Dou-vos um mandamento novo: que vos ameis uns aos outros. Como eu
vos amei, amai-vos também uns aos outros (Jo 13, 34).

Buda e Jesus aconselharam em várias áreas da vida, inclusive sobre a alimentação e, uma vez
mais, de forma semelhante. Buda disse: E como, bhikkhus, um bhikkhu é moderado no comer?
Neste caso, refletindo de maneira sábia, um bhikkhu não toma o alimento como forma de diversão
ou para embriaguez, tampouco com o objetivo de embelezamento e para ser mais atraente; mas
somente com o propósito de manter a resistência e continuidade deste corpo, como forma de dar
um fim ao desconforto e para auxiliar a vida santa, considerando: ‘Dessa forma darei um fim às
antigas sensações (de fome) sem despertar novas sensações (de comida em excesso) e serei
saudável e sem culpa e viverei em comodidade’ (Rathopama Sutta, SN.XXXV.239). Jesus disse:
Cuidado para que vossos corações não fiquem pesados pela devassidão [há traduções da Bíblia
onde esse termo é substituído por gula, glutonaria ou excesso no comer], pela embriaguez pelas
preocupações da vida. (Lc 21, 34). Ainda ressalto um momento em que Buda fala “Dos Dignos” e
reforça sua mensagem: Dos livres de todo veneno, da gula também já libertos (Darmapada, Cap.
VII, verso 4).

Ambos os Iluminados preveniram sobre os riscos advindos de pessoas que possam querer se
passar por Mestres. Buda disse: Porém seguindo um mestre inferior e tolo, que é invejoso e que não
realizou o Dhamma, você irá encontrar a morte sem ter compreendido o Dhamma e sem ter se
livrado da dúvida (Nava Sutta, Snp.II.8). Após quinhentos anos, Cristo disse: Pois hão de surgir
falsos Cristos e falsos profetas, que apresentarão grandes sinais e prodígios de modo a enganar, se
possível, até mesmo os eleitos (Mt 24, 11).

Não é nem um pouco estranho que as mensagens de Buda e de Jesus sejam muito
semelhantes. Trata-se de ensinamentos atemporais, que são perfeitamente aplicados em qualquer
época da epopeia humana. Um ótimo exemplo para essa afirmação são as seguintes citações. Buda
disse: Um homem não é conhecido com facilidade pela forma externa nem se deve confiar numa
rápida avaliação, pois com a aparência de bem controlados, homens descontrolados se apresentam
neste mundo (Sattajatila Sutta, SN.III.11). Jesus disse: Não julgueis pela aparência, mas julgai
conforme a justiça (Jo 7, 24).

Já mencionei a semelhança entre as doutrinas no que tange ao sentimento da ‘raiva’. Aqui, o


foco está na vingança. Buda disse: Quem retribui a um homem enraivecido com a raiva, desse
modo faz com que as coisas piorem para ele mesmo. Não repagando a raiva com a raiva, ele sai
vitorioso numa batalha difícil de ser vencida (Akkosa Sutta, SN.VII.2). Cristo disse: Eu, porém, vos
digo: não resistais ao homem mau; antes, àquele que te fere na face direita oferece-lhe também a
esquerda (Mt 5, 39). Ainda falando sobre vingança, enfatizando ainda mais sua posição, Buda
disse: Não será algo de pequena importância ter-se livrado do prazer de vingar-se. Quando cessar
toda violência na mente, todo sofrimento apaziguar-se-á (Darmapada, Cap. XXVI, verso 8). De
forma simbólica, Buda disse: Se, golpeado, não ressoares, como gongo roto, quebrado, então o
nirvana atingiste, onde as brigas não te acharão (Darmapada, Cap. X, verso 8). São Pedro, falando
de Jesus, disse: Quando injuriado, não revidava; ao sofrer, não ameaçava (I Pd 2, 23).

Tendo a convicção de estar ensinando a verdadeira doutrina, Buda disse: No Dhamma bem
proclamado por mim, dessa forma, que é claro ... livre de remendos, aqueles bhikkhus que possuem
fé suficiente em mim, amor suficiente por mim, estão todos destinados ao paraíso (Alagaddupama
Sutta, MN.22). Com a mesma convicção, Jesus disse: Quem tem meus mandamentos e os observa é

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que me ama; e quem me ama será amado por meu Pai. Eu o amarei e me manifestarei a ele (Jo
14,21).

Observamos que Buda e Jesus tinham o poder de conhecer os pensamentos de outras pessoas.
Encontramos nas escrituras budistas uma fala de um dos seus discípulos, o Venerável Anuruddha:
Sabendo os meus pensamentos, o Mestre, insuperável em todo o cosmo, veio até mim através do seu
poder num corpo feito pela mente (Anuruddha Sutta, AN.VIII.30). Encontramos nas escrituras
cristãs: Mas Jesus, conhecendo os seus pensamentos, disse: “Por que tendes esses maus
pensamentos em vossos corações?” (Mt 9, 4).

É bastante popular a “regra de ouro” da moral, vista nos evangelhos. Jesus disse: Como
quereis que os outros vos façam, fazei também a eles (Lc 6, 31). Proporcionou-me grande
contentamento encontrá-la em um sutta do Buda: Aquilo que é desprazeroso e desagradável para
mim também é desprazeroso e desagradável para outrem. Como posso impor a outrem aquilo que é
desprazeroso e desagradável para mim? (Veludvareyya Sutta, SN LV.7).

Com relação ao comportamento sexual, a postura preferível é o celibato, segundo Buda e São
Paulo. Buda disse: Um homem sábio deve evitar a luxúria como (se ele evitasse cair em) um buraco
cheio de brasas ardentes. Se não for capaz de conduzir uma vida celibatária, ele não deve buscar a
mulher do outro. (Dhammika Sutta, Snp.II.14). É bastante curiosa a semelhança entre esse conselho
de Buda e as seguintes palavras de São Paulo: Contudo, digo às pessoas solteiras e às viúvas que é
bom ficarem como eu [celibatário]. Mas, se não podem guardar a continência, casem-se, pois é
melhor casar-se do que ficar abrasado (I Cor 7, 8-9).

É muito conhecida a passagem onde Jesus diz: Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos
perseguem (Mt 5, 44). Até onde deve ir este amor? Utilizando uma contundência crua e chocante,
Buda nos responde: Bhikkhus, mesmo se bandidos decepassem com selvageria os seus membros,
um a um, com uma serra, aquele que fizer surgir uma mente cheia de raiva em relação a eles não
estará praticando os meus ensinamentos. Neste caso, bhikkhus, assim é como vocês deveriam
treinar: ‘Nossas mentes não serão afetadas e nós não diremos palavras ruins; nós permaneceremos
compassivos pelo bem-estar dele, com a mente plena de amor bondade, sem raiva.
Permaneceremos permeando aquela pessoa com a mente imbuída de amor bondade e começando
com ela, permaneceremos permeando todo o mundo com a mente imbuída de amor bondade,
abundante, transcendente, imensurável, sem hostilidade e sem má vontade.’ Assim é como vocês
deveriam se treinar, bhikkhus (Kakacupama Sutta, MN 21).

Não raras vezes tentavam refutar as doutrinas de Buda e de Jesus. Exemplificando, retiro das
escrituras budistas a seguinte passagem: Outra vez, venerável senhor, eu vi alguns nobres
instruídos, expertos, conhecedores das doutrinas dos outros, astutos como franco-atiradores
precisos; eles andam por aí, por assim dizer, demolindo as ideias dos outros com a sua inteligência
arguta. Ao ouvirem: ‘O contemplativo Gotama irá visitar tal e tal vilarejo ou cidade’, eles
elaboram uma questão assim: ‘Iremos até o contemplativo Gotama e faremos esta pergunta. Se ele
for perguntado assim, ele irá responder assim e portanto, iremos refutar a sua doutrina dessa
forma; ou se ele for perguntado assado, ele irá responder assado e portanto, iremos refutar a sua
doutrina dessa forma’ (Dhammacetiya Sutta, MN.89). Com relação ao cristianismo, exemplifico
com a seguinte citação: Quando eles partiram, os fariseus fizeram um conselho para tramar como
apanhá-lo [a Jesus] por alguma palavra (Mt 22, 15). Não é necessário dizer que nunca tinham
sucesso. Muitas vezes os detratores se tornavam seguidores de Buda ou de Jesus.

É inegável que tanto Buda como Jesus foram homens especialíssimos; sem nenhuma dúvida
eles enxergavam e sentiam bem mais e muito além do que a grande maioria da humanidade; e
ambos tinham a perfeita convicção desse fato. Vemos Buda dizer: Eu sou o Consumado no mundo,

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eu sou o Mestre Supremo (Ariyapariyesana Sutta, MN.26). Jesus disse a mesma coisa: Vós me
chamais de Mestre e Senhor e dizeis bem, pois eu o sou (Jo 13, 13). Ambos sabiam que estavam
trazendo luzes para as trevas da ignorância reinante entre os homens, como vemos nas seguintes
palavras de Buda: Eu sozinho sou um Perfeitamente Iluminado cujo fogo está saciado e extinto
(Ariyapariyesana Sutta, MN.26). E ainda em Jesus: Eu sou a luz do mundo. Quem me segue não
andará nas trevas, mas terá a luz da vida (Jo 8, 12). Ambos sabiam que eram líderes. Buda disse: O
Abençoado é um arahant, perfeitamente iluminado, ... um líder insuperável de pessoas preparadas
para serem treinadas (Ananda Sutta, SN.LV.13). Jesus disse: Não permitais que vos chamem
‘Guias’, pois um só é o vosso guia, Cristo (Mt 23, 10). Como, para a grande maioria dos seres
humanos, o ensinamento destes grandes homens é lido, mas não praticado; aprendido, mas não
apreendido; estudado, mas não infundido; a ignorância ainda impera.

Buda insiste repetidamente nos três tipos de ações que podem ser tanto benéficas como
prejudiciais, que são a ação corporal, a ação verbal (as palavras) e a ação mental (os pensamentos) e
cada uma dessas ações é tratada com bastante detalhe. Com relação às ações verbais transcrevo este
pequeno excerto: Bhikkhus, não se envolvam em conversas frívolas... Por qual razão? Porque,
bhikkhus, esse tipo de conversa não traz benefícios, não pertence aos fundamentos da vida santa e
não conduz ao desencantamento, ao desapego, à cessação, à paz, ao conhecimento direto, à
iluminação, a Nibbana (Tiracchanakatha Sutta, SN LVI.10). Foi com satisfação que encontrei este
paralelo no evangelho de Mateus: Eu vos digo que de toda palavra inútil, que os homens disserem,
darão contas no Dia do Julgamento (Mt 12, 36).

Muitos dos que conviveram com o Buda não seguiram o caminho indicado por ele. Muitos
dos que conviveram com Jesus não seguiram o caminho indicado por ele. Os Mestres indicaram o
caminho, mas não obrigaram ninguém a segui-lo. Buda disse: Da mesma forma brâmane, nibbana
existe e o caminho que leva a nibbana existe e eu estou presente como guia... O Tathagata é apenas
quem mostra o caminho (Ganakamoggallana Sutta, MN.107). Cristo disse: Eu sou o Caminho, a
Verdade e a Vida (Jo 14, 6).

Sabemos que para alcançar algum desejo não basta desejar, mas também é preciso agir para a
sua consecução. Quem nunca ouviu a frase “faça a sua parte”? A esse respeito Buda disse: Não é
adequado que o nobre discípulo que deseja a felicidade reze para isso ou se delicie agindo assim.
Ao invés disso, o nobre discípulo que deseja a felicidade deveria seguir o caminho da prática que
conduz à felicidade (Ittha Sutta, AN.V.43). Jesus também se manifestou sobre este assunto: Assim,
todo aquele que ouve essas minhas palavras e as põe em prática será comparado a um homem
sensato que construiu sua casa sobre a rocha (Mt 7, 24). Muito interessante e didático o seguinte
símile feito por Buda: Suponham que uma galinha tenha oito, dez ou doze ovos. Se ela não cobri-
los corretamente, aquecê-los corretamente ou incubá-los corretamente, então mesmo que ela tenha
o desejo, ‘Que as minhas crias rompam as cascas dos ovos com suas garras afiadas ou bicos e
saiam dos ovos com segurança!’ ainda assim não será possível que os pintos rompam as cascas
dos ovos com suas garras afiadas ou bicos e saiam dos ovos com segurança. Por que ocorre isto?
Porque a galinha não cobriu-os corretamente, aqueceu-os corretamente, incubou-os corretamente
(Nava Sutta, SN.XXII.101).

Tanto as escrituras budistas como as cristãs registram que Buda e Jesus tinham o
conhecimento antecipado de suas mortes. Buda disse: Não tardará muito até que ocorra o
parinibbana do Tathagata. Daqui a três meses o Tathagata realizará o parinibbana (Cetiya Sutta,
SN LI.10). Jesus disse: De fato, ele será entregue aos gentios, escarnecido, ultrajado, coberto de
escarros; depois de o açoitar, eles o matarão (Lc 18, 32-33). No momento em que chegou a morte
de ambos, portentos ocorreram. Quando Buda morreu ocorreu um grande terremoto, assustador e
aterrorizador e o estrondo de trovões sacudiram o céu (Mahaparinibbana Sutta, DN.16). Já quando

79
Cristo morreu, a terra tremeu, e as rochas se fenderam (Mt 27, 51). Algumas coincidências (?)
chegam a ser inquietantes.

Acho que as semelhanças apresentadas já são suficientes para comprovar o quão imensamente
estes dois sábios se igualam quanto aos seus ensinamentos e a alguns fatos acessórios. Não receio
afirmar que a moral budista e a moral cristã são quase idênticas, apresentando pequenas e pouco
significantes diferenças. Seria verdadeiramente benéfico para todos se, ao invés de desejarmos boas
coisas para nós, passássemos a desejar boas coisas em nós, ao invés de nos perder em discussões
metafísicas e teológicas, de pouca utilidade prática, tentando convencer outras pessoas de que nossa
religião é a melhor ou é a verdadeira – normalmente apunhalando uns aos outros usando palavras
como adagas, como diria o Buda – buscássemos simplesmente seguir os preceitos morais de nossa
própria religião, seja ela budista, cristã, hinduísta, taoísta, jainista, ou qualquer outra, pois todas elas
possuem uma moral semelhante no que tange ao amor, à bondade, à renúncia, à caridade e à
compaixão.

Alinhavando

Ramakrishna foi um sábio-místico da tradição hindu que viveu de 1836 a 1886 e sobre quem o
Mahatma Gandhi disse certa vez: A vida de Ramakrishna permite-nos ver Deus frente a frente.
Aqui, Ramakrishna é citado por Philip Novak e fala sobre a verdade nas religiões: A Natureza
Divina pode ser realizada e colocada em prática plenamente na vida cotidiana, trilhando-se com
sinceridade qualquer dos caminhos revelados... Kali, Krishna, Buda, Cristo, Alá – todos eles são
expressões plenas da mesma Consciência e Êxtase indivisíveis. Vejamos mais uma pertinente
citação de Ramakrishna: Não vos preocupeis com as doutrinas, com os dogmas, seitas, templos nem
igrejas. Nada valem, comparados com a essência espiritual do homem, que quanto mais
espiritualizado for, maior poder terá para o bem.

Há milênios, os grandes “iluminados” vêm falando, essencialmente, a mesma coisa; faltam


ouvidos que verdadeiramente os escutem. Aqui cabe ouvirmos mais uma vez o sábio hindu
Ramakrishna: Quando a renunciação, o altruísmo, o amor ao próximo e a caridade estiverem nas
obras e não nas palavras, facilmente se conciliarão em harmonioso laço todas as religiões do
mundo. Não custa lembrar que o próprio Ramakrishna, assim como Jesus, Buda e todos os grandes
“instrutores”, não apenas falou, mas viveu seus ensinamentos. Muitos dizem (apenas palavras) que
Deus é nosso Pai, mas poucos reconhecem (e agem de acordo com essa constatação) um verdadeiro
irmão em cada semelhante. Falando por diferentes palavras, podemos afirmar que é muito frequente
ouvirmos excelsas teorias a respeito de fraternidade, igualdade e direitos humanos. Mas, e a prática?
Essas teorias, provavelmente não saem da superfície mental, mais se prestando como acréscimo à
bagagem intelectual e cultural. Neste ponto peço ajuda ao grande poeta bengali Rabindranath
Tagore, que alerta: Despertai, ó despertai! Não deixeis que o tempo passe em vão!

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Construindo uma crença

Última Visio

Quando o homem, resgatado da cegueira


Vir Deus num simples grão de argila errante,
Terá nascido nesse mesmo instante
A mineralogia derradeira!

A impérvia escuridão obnubilante


Há de cessar! Em sua glória inteira
Deus resplandecerá dentro da poeira
Como um gasofiláceo de diamante!

Nessa última visão já subterrânea,


Um movimento universal de insânia
Arrancará da inscência o homem precito...

A Verdade virá das pedras mortas


E o homem compreenderá todas as portas
Que ele ainda tem de abrir para o Infinito!

Augusto dos Anjos

Todos buscam a verdade, mas podem tomar estradas diversas (e é claro, chegar a destinos
vários – basta conferir as grandes contradições entre todos os pretensos sábios de toda a história da
humanidade). Não sendo diferente, busco a minha, e aqui está a senda que escolhi. Como ninguém
possui a onipotência do bom e da verdade última, não pretendo agora estabelecê-la, mas apresentar
os rumos por onde divaguei na busca de uma doutrina que me satisfaça, se não plenamente, ao
menos até a próxima introspecção, o próximo livro, insight ou qualquer vivência que traga novas
informações, questionamentos ou mudanças de rumo. Gostaria de iniciar esta síntese com uma
citação de Curozero Muando, coveiro da ilha de Luar-do-Chão, do romance Um Rio Chamado
Tempo, Uma Casa Chamada Terra, de Mia Couto: O homem sábio é o que sabe que há coisas que
nunca vai saber. Coisas maiores que o pensamento.

E é com base no que falou Curozero que não pretendo estabelecer dogmas, nem para mim e
muito menos para outros. Como bem falou o filósofo romeno Emil Cioran: Só tem convicções
aquele que não aprofundou nada. Os ingredientes estão colocados à mesa. É chegada a hora de
selecioná-los, determinar suas porções, fixar a ordem para adicioná-los ao cadinho, estabelecer a
forma de preparo e elaborar a receita.

A Aposta de Pascal

No século XVII, o filósofo, físico e matemático francês Blaise Pascal (1623-1662) - aquele
que disse “O coração tem suas razões, que a razão não conhece” - elaborou a famosa “Aposta de
Pascal” (Pensamentos, Artigo III, 233). Nela, Pascal admite que a razão não pode determinar se
Deus existe ou não, daí imagina que devemos fazer uma aposta na sua existência ou não-existência.
Em um elaborado raciocínio, utilizando-se da teoria das probabilidades, para a qual ele deu grandes
contribuições, Pascal afirma que em se apostando na existência de Deus, “se ganhardes, ganhareis
tudo; se perderdes, não perdereis nada”. Da mesma forma vale o raciocínio inverso, se apostarmos
na inexistência de Deus, ganhando, não ganhamos nada e perdendo, perdemos tudo. Daí conclui que
é infinitamente mais vantajoso apostarmos na existência de Deus.

Com o raciocínio de Pascal em mente, encontramos a seguinte citação das escrituras cristãs:
Quem crê no Filho tem vida eterna. Quem recusa crer no Filho não verá vida. Pelo contrário, a ira

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de Deus permanece sobre ele (Jo 3, 36). Se conhecemos um pouquinho do Antigo Testamento,
sabemos que a “ira de Deus” não é coisa pouca, mas algo terrivelmente assustador. Quando Ele fica
com raiva não adianta se esconder, é fogo ou água ou pedra ou peste ou praga ou espada ou fome ou
qualquer outra forma de matar imaginada por Sua infinita criatividade. Não há o que questionar.
Pascal tem razão e devemos apostar na existência de Deus; de um Deus específico.

Passado algum tempo, encontramos a seguinte citação no Alcorão, a escritura sagrada do


islamismo: Este (Alcorão) é uma orientação. Quanto àqueles que negam os versículos do seu
Senhor, sofrerão a pena de uma dolorosa punição (Surata 45, 11). Aqui o Deus é o mesmo, mas
possuem nomes diferentes. Um, Alá, é adorado pelos muçulmanos; outro, Jeová, pelos cristãos e
judeus. Mesmo sendo o mesmo Deus, segundo os adeptos do islã, devo acreditar nos versículos do
Alcorão sob pena de sofrer uma dolorosa punição. Não sei se é pior conhecer uma punição ou
imaginá-la. E agora? Qual será minha aposta? Pascal não imaginou mais de uma possibilidade de
aposta. Era branco ou preto, existe ou não existe.

Ainda em dúvida, a cabeça girando entre a Bíblia e o Alcorão, descubro o seguinte comentário
de Swami Prabhupada ao verso 40, capítulo 4, do Bhagavad-Gita, escritura sagrada hindu: Dentre
as muitas escrituras reveladas básicas e autorizadas, o Bhagavad-Gita é a melhor. Pessoas que são
como animais não acreditam nas escrituras reveladas padrão e nem as conhecem. Agora a coisa
complicou muito, não sei mais em que apostar, é a ira de Deus ou uma dolorosa punição ou ainda
ser como um animal. Acho que prefiro a última alternativa, afinal sou um animal de qualquer
maneira.

O tempo passou e apareceu em minhas mãos um escrito do século VII, da autoria de Lu Tsu
(ancestral Lu), eminente autoridade do Taoísmo. Lá encontrei: Quando alguém fala sobre o
Caminho, muitas pessoas acrescentam observações e opiniões, até que a influência do clamor nos
cega, e as pessoas voltam-se do que é acurado para o que nos desvia dos nossos propósitos,
confundindo deste modo o verdadeiro com o falso. Isto é como cair de uma árvore num profundo
abismo. Surgiu uma nova possibilidade de pena, o metafórico “cair de uma árvore num profundo
abismo”.

Realmente a “Aposta de Pascal” é uma grande falácia. Ele não considerou os milhares de
deuses exclusivistas (e as consequentes milhares de alternativas de aposta), nem as muitas escrituras
“sagradas” conflitantes e inspiradas em deuses díspares e seus diferentes castigos, nem a
possibilidade de um deus onisciente (segundo ele) deixar-se enganar por uma escolha feita por puro
interesse. Pascal considerou que só há a possibilidade de crença (ou não) em um único deus, Jeová,
e em uma única descrição deste deus, a Bíblia. Realmente o caminho correto não passa por aí. Não
dá para se construir uma crença baseando-me, não na racionalidade, mas na aritmética de ganhos e
perdas que posso obter “acreditando” em uma ou outra coisa. Não. Não farei nenhuma aposta.

Matéria

Já se passou mais de um século, e um século de imensos avanços científicos, desde que John
Stuart Mill, no Sistema de Lógica, colocou-se impotente frente a um mistério: Assim como o corpo
é considerado alguma coisa misteriosa que excita a mente para sentir, também a mente é alguma
coisa misteriosa que sente e pensa. Será que esse mistério foi clarificado de lá para cá? Penso que
não. Talvez até tenha ficado ainda mais obscuro e ainda mais instigante.

Nos primórdios da filosofia, Demócrito de Abdera, cidade da costa da Trácia, elaborou a


Teoria Atômica, ou Atomismo, segundo a qual tudo o que existe é composto por elementos
indivisíveis chamados átomos. Essa teoria foi esquecida por séculos, ressuscitando na Era Moderna,

82
onde o nome “átomo”, que significa “não divisível”, foi mantido. Não nos esqueçamos de que já em
1704, um dos maiores gênios da ciência, Isaac Newton, afirmou que o átomo era tão duro e tão
elementar que nunca poderia ser quebrado em pedaços. Desde que se tornaram públicos os estudos
dos físicos Ernest Rutheford, James Chadwick e Niels Bohr, sabe-se que o átomo é amplamente
vazio (comparativamente, se retirarmos o espaço entre as partículas atômicas – elétrons, prótons e
nêutrons – dos átomos de uma pessoa ela passaria a ter as dimensões de um grão de sal). Quando
entramos no mundo subatômico vemos que este vazio é ainda maior; as partículas ocupam um
espaço insignificante nos átomos e movem-se em velocidades absurdas. Olhe para sua mão; é
divertido imaginar o estonteante turbilhão que há na sua aparente imobilidade. Da mesma forma, as
pedras, as montanhas, tudo está em permanente movimento. Se o universo é um grande vazio, o que
nos dá a sensação do tato? Por enquanto, a resposta mais plausível é que ela seja devida às cargas
elétricas, ou seja, energia. Fernando Pessoa já intuía algumas dificuldades: Onde é que os mortos
dormem? Dorme alguém/ Neste universo atomicamente falso?

Voltando à Grécia antiga, alguns acreditavam que tudo devia ser feito de uma única
substância, embora se discordasse sobre qual seria ela. Tales, o primeiro filósofo ocidental de que se
tem notícia, nasceu em uma cidade localizada na costa da Ásia Menor, Mileto, e acreditava que o
universo era feito de água, em diferentes formas. Desde Tales o mundo deu muitas voltas, teorias
surgiram e desapareceram, o pensamento passou por momentos de obscurantismo e clarividência,
ideias fervilharam, matou-se e morreu-se por elas, e, depois de tudo isso, parece que estamos
chegando à mesma conclusão. Após Einstein, a “substância primordial” passou a ser energia, e essa
constatação nos leva a algumas inferências bastante interessantes, como por exemplo o fato de que
estamos no mesmo nível, materialmente falando, que qualquer coisa do universo, viva ou não.
Somos energia. Os excrementos suínos são energia. As bactérias são energia. O monte Everest é
energia. Gandhi ou Jesus Cristo são energia. Tudo que existe é uma única e mesma coisa: energia;
energia concentrada. É claro que ainda estamos falando de matéria, já que energia pode ser
considerada como uma especificidade daquela, porém estamos entrando em um ambiente mais sutil,
talvez na iminência de cruzar alguma fronteira, talvez a dos campos quânticos covariantes, mas não
vamos adentrar essa teoria.

Passemos os olhos na interessante análise que Nietzsche fez de Tales de Mileto, fundador da
Escola Jônica, no livro A Filosofia na Idade Trágica dos Gregos: A Filosofia grega parece começar
com uma ideia absurda, com a proposição: a água é a origem e a matriz de todas as coisas. Será
mesmo necessário determo-nos nela e levá-la a sério? Sim, e por três razões: em primeiro lugar,
porque essa proposição enuncia algo sobre a origem das coisas; em segundo lugar, porque o faz
sem imagem e fabulação; e, enfim, em terceiro lugar, porque nela, embora apenas em estado de
crisálida (estado latente, prestes a se transformar), está contido o pensamento: “Tudo é Um”. A
razão citada em primeiro lugar deixa Tales ainda em comunidade com os religiosos e
supersticiosos, a segunda o tira dessa sociedade e o mostra como investigador da natureza, mas,
em virtude da terceira, Tales se torna o primeiro filósofo grego.

Ainda falando sobre “matéria”, não custa lembrar que os átomos que vemos hoje no universo
são os mesmos que sempre existiram (acrescentei na Bibliografia os links que remetem a um
competente documentário produzido pela BBC sobre a história do átomo). Eles combinam-se,
aglutinam-se e formam uma estrutura qualquer, senciente ou não, pensante ou não. Em algum
momento, essa estrutura se decompõe ou se arruína e sua matéria-prima retorna à ‘grande
disponibilidade’. Vivemos em um redemunho assustador e excitante. Partes de cada um de nós já
pertenceu a vários outros, e assim continuará sem data para um fim. Eu – minha matéria – já fui
muitos e ainda serei outros em demasia. Assim também você. Relembrando as considerações feitas
em Ressurreição da carne, concluo com bastante confiança que, materialmente falando, somos
todos Um, o universo é Um. Se não é a matéria o que nos diferencia, o que o faz? Algo o faz? Quais
as fronteiras entre o mineral, o vegetal e o animal? Onde termina um e começa outro? Deixo para o

83
leitor curioso a pesquisa sobre o trabalho do genial físico, biólogo, botânico, químico e cientista
indiano Sri Jagadis Chandra Bose, que entre muitos outros feitos notáveis, antecipou-se a Marconi
na transmissão de sinais elétricos sem fios. Ainda no ano de 1901, após apresentar seus
experimentos para a Real Sociedade, em Londres, acrescentou: Lidando com tais fenômenos, como
traçarmos uma linha de demarcação e dizer aqui termina o físico e além começa o fisiológico?
Não, não existem as barreiras absolutas.

Tendo-se em mente o que foi falado até aqui, é curioso relembrarmos Spinoza, para quem
tudo o que chamamos de “substâncias diferentes” é, na verdade, apenas a universalidade dos
diferentes atributos do Ser Supremo.

Dentro deste contexto, o que é consciência? O que é pensamento? Será que, da mesma
maneira que voltamos à filosofia grega, mesmo que tenhamos feito algumas correções, quando
falamos em substância primordial e em átomo, podemos voltar mais uma vez, rememorar Sócrates e
Platão, e falar de alma? Posso aumentar um pouco a dificuldade da questão trazendo a opinião do
padre Teilhard, que dedicou sua obra a instaurar uma nova concepção do Espírito, não mais em
oposição, mas como transformação e sublimação da Matéria. Em outra ocasião, esse religioso
complementou: A Evolução tem um sentido absoluto, o qual se orienta em direção ao Espírito.

Aqui faço um parêntese. Há uma frase atribuída a Tales de Mileto que diz: Todas as coisas
estão cheias de deuses. Não se sabe o significado que o filósofo quis dar a essa afirmação, porém,
como explicou Diané Collinson, autora de 50 Grandes Filósofos, a sua acepção mais comum é que
algum tipo de força vital permeia o mundo, que todas as coisas são de alguma forma animadas,
constituindo parte de um único conjunto ou de uma vitalidade unificadora. Da mesma forma que
Tales, nos primevos tempos da civilização moderna, visualizou a possibilidade de uma substância
primordial, reafirmada por Einstein, parece que ele também considerava real o monismo, aceito
como lógico por místicos e por algumas religiões, e defendido até mesmo por alguns cientistas,
como Amit Goswami e o próprio Einstein.

Acredito ter ficado patente a minha tendência para o monismo. Resta saber se a “substância
única” é material ou espiritual (ou ainda indefinida, como sugeria Anaximandro, outro filósofo pré-
Socrático). A cada avanço da ciência vemos a matéria desaparecer, gradativamente. Este é um bom
momento para apresentar o naturalista alemão Ernest Haeckel que, embora partidário de um
monismo materialista, nos oferece algumas interessantes observações: Cada vez se torna para nós
mais claro que todas essas manifestações admiráveis da natureza que nos cerca, orgânica e
inorgânica, são produções diferentes de uma única e mesma força primária, combinações
diferentes de uma única e mesma matéria fundamental. Sempre mais irresistível se mostra para nós
a noção de que a nossa alma humana é unicamente uma parte ínfima dessa alma universal que
engloba tudo, do mesmo modo que o corpo humano é apenas uma parcela individual do grande
corpo organizado do universo.

Visão da divindade

Antes de qualquer coisa, faz-se necessário dizer que todas as investidas neste campo, devido a
nossas próprias limitações, físicas, intelectuais e sensoriais, serão sempre suspeitas de erro. Mais se
destinam a satisfazer uma necessidade entranhada ao espírito do ser humano, que é a busca do seu
Eu superior. Cabem aqui algumas palavras de Krishna, citado por Édouard Schuré: Só o infinito e o
espaço podem compreender o infinito; só Deus pode compreender Deus. Esse mesmo autor cita
uma passagem atribuída a Hermes Trismegisto: Nenhum dos nossos pensamentos, dizia ele ao seu
discípulo Asclépio, saberá conceber Deus, nem nenhuma língua defini-lo. O que é incorpóreo,
invisível, informe, não pode ser apreendido pelos nossos sentidos: o que é eterno não pode ser

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medido pela curta regra do tempo. Falando através de um personagem, José Saramago
poeticamente põe termo à questão: As palavras dos homens são como sombras, e as sombras nunca
saberiam explicar a luz. Podemos afirmar que o mistério transcende o discurso, mas, teimosamente,
continuamos tentando.

Com relação ao modo como vejo a divindade, a primeira alternativa a ser considerada, e pela
sua simplicidade, talvez a mais atraente, seria a negação da possibilidade de discernimento aceitável
racionalmente sobre qualquer dos assuntos apresentados. Aliás, eu já havia sido aconselhado a isso
por Duns Scot, que, ainda no século XIII, disse: Deus não é sujeito da metafísica... Nenhuma noção
apropriada a respeito de Deus, concebível por nós, é apreendida imediatamente pelo intelecto
humano desta vida. Assim, nenhuma ciência naturalmente adquirida pode dizer respeito a Deus sob
alguma noção apropriada. A humanidade discute religião desde seus primórdios e nunca chegou a
consenso algum; muito pelo contrário, esse assunto costuma motivar desarmonia, ódios intratáveis,
discórdia, preconceito, fundamentalismos, sofrimento e até mesmo a guerra. Esse raciocínio me
levaria a um total agnosticismo (que defendi por vários anos), já que a metafísica nos apresenta
realidades incognoscíveis, sendo inúteis quaisquer discussões a seu respeito. Mas hoje não vejo
dessa maneira. Acredito poder avançar um pouco. E avançarei através da negação, dizendo em que
não acredito, afinal, o descarte de possibilidades facilita o raciocínio posterior, devido a um
“ambiente de trabalho” mais limpo e menos confuso. Mantendo a metáfora colocada no início deste
capítulo, começarei por apontar alguns ingredientes que não serão utilizados.

De início, descarto totalmente o Deus bíblico. As razões para esta certeza estão, a meu ver,
suficientemente exploradas no livro O Cristão, à disposição. Por razões semelhantes às apontadas
para o descarte racional do Deus bíblico, acrescidas dos problemas do mal e da onisciência (tratados
na parte relativa à visão de Leibniz), entre outros, pincelados ao longo deste livro, também não
aceito um deus visto através do dualismo do criador separado da criatura, ou seja, um deus pessoal,
onipotente, sumamente bom e onissapiente, que mantém seus bichinhos de estimação neste pasto
universal. Igualmente descarto um Deus todo-poderoso que distribui atos de criação, efetua curas
milagrosas, bisbilhota os pensamentos dos bilhões de humanos. Um Deus que através da
distribuição de suas recém-fabricadas almas favorece uns e penaliza outros, julga justos e
pecadores, utiliza-se de fenômenos naturais, como terremotos, vulcões, maremotos e vírus para
castigar os merecedores de castigo. Um Deus que passa seu divino tempo a escutar atentamente as
orações de suas criaturas e resolver a quais irá atender e a quais deixará sem resposta. Sem nenhuma
dúvida, é uma visão por demais ingênua, embora ainda seja a mais aceita no ocidente. Feito este
descarte, caminhei um pouco mais e, acredito, sem ter aberto mão da racionalidade. As certezas
obtidas aqui foram decorrentes, repito, de farta demonstração, expostas em O Cristão e apenas
através da sua leitura este parágrafo pode ser claramente compreendido.

Com relação aos raciocínios que embasam a hipótese ateia, que aqui foi representada por
Bertrand Russell, considero-os coerentes e consistentes. Aqui estenderei a discussão a respeito da
Causa Primeira e é com o foco nela que transcrevo um trecho de Stephen Law, sobre raciocínio
regressivo, retirado de seu livro, Filosofia:

As coisas caem quando não são sustentadas. Meu copo não cai porque uma mesa o sustenta.
A mesa não cai porque a terra a sustenta. Então, porque a terra não cai? Pensadores hindus
antigos supunham que a terra estava sobre as costas de um enorme elefante. O que segura o
elefante? Ora, uma tartaruga gigante. Você pode ver que aqui surge uma regressão: por mais
criaturas imensas que introduzamos, nunca conseguiremos explicar, de fato, porque tudo não cai.
A cada passo, apenas adiamos esse mistério. Os hindus evitavam essa regressão fazendo da
tartaruga a exceção à regra de que “as coisas caem”. Ela é a única coisa que não precisa ser
sustentada. Mas, se vamos introduzir uma exceção à regra, porque chegar até a tartaruga? Porque
não fazer da terra a exceção? Não temos, por enquanto, nenhuma justificativa para introduzir

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nenhum desses animais cósmicos. Problemas similares de regressão surgem em filosofia. Se tudo
tem uma causa, então Deus deve existir como causa do Universo. Mas se tudo tem uma causa, Deus
também tem. Parece que temos de introduzir um segundo Deus como causa do primeiro, um
terceiro como causa do segundo etc. É claro que, assim como os hindus fizeram da tartaruga a
exceção à regra, poderíamos insistir que Deus é a exceção à regra de que tudo tem uma causa.
Mas então porque não fazer do Universo a exceção?

Até aqui o encadeamento lógico de pensamentos e juízos está exato. A meu ver, o autor falha
na afirmação que vem logo a seguir, quando diz: Até agora não nos foram dadas mais razões para
supor que Deus existe do que para supor que uma tartaruga gigante existe. Considerando-se todos
os argumentos levantados nas visões da divindade que intitulei como de Voltaire e de Michael
Behe, que também apresentam bons raciocínios, acredito que, sim, existem fortes razões para supor
uma precessão, ou, melhor dizendo, uma simultaneidade inteligente ao Universo. É possível a
conciliação entre os raciocínios apresentados acima? É possível conciliar uma visão ateia com uma
visão criacionista (não falo aqui do criacionismo descrito no Gêneses bíblico e similares, por
demais ingênuos e primitivos, mas da “causação descendente”, onde a Consciência – Deus – é a
causadora da matéria e não o contrário)? Imagino que sim. Bastaria uma pequena concessão.

Quando Bertrand Russell diz que o Universo simplesmente está aí, e isso é tudo, encontra-se
justamente colocando o Universo como a exceção à regra de que tudo tem uma causa. Minha
opinião poderia estar conciliada com a dele se neste Universo, Russell admitisse algo mais além da
matéria.

Se concordarmos com Einstein, quando ele diz que tudo é redutível a energia, além de
estarmos admitindo como verdadeiro o monismo materialista, ou seja, materialmente falando,
somos Um, estaremos concordando também com Spinoza, na sua afirmação de que todo o Universo
é composto de uma única substância. Avançando um pouco mais, lembro que quanto mais
estudamos a matéria, mais sutil a descobrimos, menos “material” ela se mostra. Como eu já havia
eliminado a possibilidade de uma divindade pessoal, absoluta e separada de sua criação, e não abri
mão de uma inteligência justaposta ao desenrolar da existência tal qual a conhecemos, me restou
ceder a razão uma vez mais a Spinoza e aderir a algo próximo do seu panteísmo. Faço apenas mais
um acréscimo, que visa abarcar os fenômenos descritos no capítulo Algo mais: a “substância única”
ainda não é a energia, a qual não deixa de ser um “tipo” de matéria, mas algo mais sutil, mais
próximo da consciência (se não for ela própria), mais próximo da visão de Amit Goswami.
Considerando Deus e Natureza como uma mesma e única coisa, podemos afirmar que conhecemos
várias de suas características, tendo o próprio Spinoza apontado duas essenciais: o pensamento e a
extensão. Quantas mais, ainda desconhecidas, ou ininteligíveis, existem? Lembro que algumas
formas de energia muito usadas hoje em dia foram identificadas recentemente, como a energia
nuclear e a energia eletromagnética. Conheço as manifestações de inteligência no Universo, mas
não conheço sua essência. O fato de não conseguirmos tatear alguma coisa, não é razão para negá-
la. A partir deste ponto, me solidarizo à visão de Siddharta Gautama abstendo-me de dar
continuidade às especulações. Adoto o monismo relativamente ao Universo e finalizo este parágrafo
com uma citação de Hermann Hesse: Deus – o que, acima de todas as imagens e de tudo quanto
existe, é, em si mesmo, o único Espírito. Neste ponto encerro meus avanços na visão da divindade e
apenas aguardarei novos conhecimentos que possam me permitir ir mais longe. Por enquanto
prefiro assumir minha impossibilidade cognitiva para maior progresso, mas, acredito que o avanço
feito não foi pequeno.

Consequências

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Um ponto capital, e extremamente pragmático, dessa forma de encarar a divindade é o fato de
retirar a responsabilidade pelas mazelas mundanas de um ser exterior a nós e colocá-la diretamente
no nosso colo. Se há problemas no mundo, cabe a nós resolvê-los. Deixamos de ser simples
criaturas e passamos a ser manifestações finitas do Infinito, células do espírito do mundo, ou da
Alma do Mundo, como diria Emerson. Estamos no Criador e Ele em nós. Nossa tarefa para com
nossos semelhantes é compreendê-los como extensões de nós mesmos – facetas semelhantes da
mesma realidade (Christmas Humphreys).

Outro fator consequente do que foi afirmado é que o ser humano, sendo parte integrante da
Natureza, perde seu status ontológico superior, deixa de ser o centro da criação e seu administrador.
Passa a ser apenas mais um atributo complementar do Todo; uma das muitas manifestações da
mesma realidade indivisa; ou ainda, centelha de luz divina, segundo a religião órfica. Sendo “parte”,
depende de tudo e tudo dele depende; todo o Universo é interdependente. É fácil notar o quanto essa
visão é capaz de nos tornar mais humildes, mais preocupados com as consequências dos nossos atos
e, principalmente, mais compassivos com nossos semelhantes, sendo que a palavra “semelhante”
sofreu uma imensa amplificação no seu significado. Se buscarmos sua definição no dicionário
Aurélio, encontraremos pessoa ou coisa da mesma natureza de outra. Já que todo o Universo é
composto de uma única substância, o Todo está em cada parte, tudo é nosso semelhante.

Curiosa a similaridade entre o que foi aqui colocado com o que fala o budismo sobre uma das
causas do sofrimento, que é a falsa crença na dualidade entre sujeito e objeto, entre o eu e o outro,
ou seja, a crença no “eu independente”, geradora do egocentrismo, do desejo, do apego e da aversão
a tudo que o ameaça. Deste ponto de vista fica mais fácil, se não seguir, ao menos compreender, o
preceito de Jesus Cristo de “amar ao próximo como a si mesmo”, pois eu e o próximo somos algo
único. Da mesma forma, passa a ser mais compreensível o mandamento, comum a várias religiões,
que determina “amar a Deus sobre todas as coisas”. Não é necessário amar a Deus, um ser
desconhecido, sobre quem apenas ouvimos falar, mais que a um filho, a um pai, a uma mãe ou a um
cônjuge. Quando amamos um filho, um pai, uma mãe ou um cônjuge, o verdadeiro amor é dedicado
a Deus, presente no filho, no pai, na mãe ou no cônjuge.

Percebe-se que a compaixão, neste contexto, não é um puro sentimento; é, ao contrário, um


misto de amor e sabedoria, de discernimento e responsabilidade para com o próximo. Não custa
recordar que a palavra “compaixão” significa literalmente “sofrer com”. O que está na base desta
compaixão é um interesse coletivo, que na união se fortalece para enfrentar as dores do mundo.
Todos fazemos parte de um Uno.

Dentro deste enfoque, até Karl Marx, materialista, recebe uma parcela de razão. Segundo ele,
a religião é uma forma de alienação em que toda a bondade e sabedoria possíveis são atribuídas a
um Deus distante, em vez de reconhecê-las como capacidades essencialmente humanas. Agora,
Deus, com toda a bondade e sabedoria, saiu do seu esconderijo e veio para dentro da sua criação;
não como hóspede, mas como o próprio anfitrião; não como entidade à parte, mas como o Todo.
Aqui vem muito a propósito a opinião de Alan Watts: Mais adequada à ciência do século XX seria
uma imagem orgânica do mundo, o mundo como um corpo, um amplo padrão de energia
inteligente que tem um novo relacionamento conosco. Não estamos no mundo como súditos de um
rei, nem vítimas de um processo cego. Não estamos no mundo de modo algum. Somos o mundo! O
mundo é você. Nesse mito orgânico do mundo, cada indivíduo deve ver a si próprio como
responsável pelo mundo. Em outras palavras, na nossa essência, somos Deus, somos Um com o
transcendente, embora eu não considere a palavra “Deus” ideal, devido ao uso que tem recebido na
nossa civilização tê-la associado ao deus dos judeus, Iahweh, ou seja, personifica um ser
independente.

87
Concordo com o pesquisador francês Patrick Drouot quando ele diz que é-nos difícil
compreender que cada indivíduo é ao mesmo tempo único e intimamente conectado a cada um de
seus semelhantes. Sei que, na prática, esta visão não é simples (o mistério da unidade que se oculta
no véu da diversidade, segundo Carlos B. Conte), mas não é difícil observar que quanto menor é a
diferença que alguém estabelece entre si e os outros, melhor (mais altruísta) é essa pessoa. Fica
cristalina a fala de Jesus Cristo quando disse: Cada vez que o fizestes a um desses meus irmãos mais
pequeninos, a mim que o fizestes (Mt 25, 40). No início do século XX, Carl Jung já manifestava
essa possibilidade de visão do mundo quando fez seguinte questionamento: Que eu faça um
mendigo sentar-se à minha mesa, que eu perdoe aquele que me ofende e me esforce por amar,
inclusive o meu inimigo, em nome de Cristo, tudo isto, naturalmente, não deixa de ser uma grande
virtude. O que faço ao menor dos meus irmãos é ao próprio Cristo que faço. Mas o que acontecerá,
se descubro, porventura, que o menor, o mais miserável de todos, o mais pobre dos mendigos, o
mais insolente dos meus caluniadores, o meu inimigo, reside dentro de mim, sou eu mesmo, e
precisa da esmola da minha bondade, e que eu mesmo sou o inimigo que é necessário amar?

Se desfizermos a ilusão conceitual da existência de um “eu” independente, não haverá lugar


para o individualismo. A solidariedade e a compaixão passam a ser atitudes naturais. Como disse
Schopenhauer, o egoísmo consiste, na verdade, no fato de o homem limitar toda a realidade à
própria pessoa, presumindo existir apenas nessa pessoa e não na dos outros, ou, segundo esse
mesmo filósofo, é propriamente na palavra “eu” que reside o maior dos equívocos. Aqui vou
buscar o apoio de mais uma personalidade, o físico Amit Goswami: Como é que não podemos amar
quando só há uma consciência e sabemos que nós e os outros não estamos realmente separados?
Talvez seja verdadeira a afirmação de Swami Vivekananda, de que quanto menos o homem pensa
em sua personalidade mais se enche do espírito de Deus.

É muito gratificante observar que uma mente da qualidade, para usarmos um adjetivo
simplório, de Albert Einstein gerou a citação seguinte: O ser humano vivencia a si mesmo, seus
pensamentos, como algo separado do resto do universo - numa espécie de ilusão de ótica de sua
consciência. E essa ilusão é um tipo de prisão que nos restringe a nossos desejos pessoais,
conceitos e ao afeto apenas pelas pessoas mais próximas. Nossa principal tarefa é a de nos
livrarmos dessa prisão, ampliando o nosso círculo de compaixão, para que ele abranja todos os
seres vivos e toda a natureza em sua beleza. Ninguém conseguirá atingir completamente este
objetivo, mas lutar pela sua realização já é por si só parte de nossa liberação e o alicerce de nossa
segurança interior. Chega a ser curioso constatar a abrangência dessa visão de mundo vinda de um
homem conhecido pelos seus feitos na área da física. Pelos estereótipos estabelecidos, esse texto
seria mais facilmente atribuído a um místico oriental que a um alemão oriundo de uma família
judaica, que se tornou o maior físico do século XX.

Usando a menção de Einstein ao pensamento dos seres humanos e lembrando minha


convicção de que tudo no universo está interligado e é interdependente, gostaria de lembrar a
importância que deveríamos dar ao simples ato de pensar, e faço isto através do raciocínio lógico e
cristalino de Bhakti-Tirtha Swami, que foi uma personalidade de renome internacional no
movimento Hare Krishna e faleceu em 2005: Tudo remete à nossa consciência. Pensamentos geram
palavras. Palavras geram ações. Precisamos observar nossas ações, pois elas geram hábitos. Os
hábitos geram nosso caráter. E o caráter gera nossa cultura. Assim, temos uma cultura bem
violenta, temos muitos hábitos deploráveis, pois nossos pensamentos baseiam-se muito em medo,
violência e agressão. Édouard Schuré resumiu esse raciocínio da seguinte maneira: Ora, todo o mal
da inteligência se torna, a longo prazo, um mal da alma e, em consequência, um mal social. Ainda
posso voltar aos “homens da ciência” e mais uma vez citar Jung, onde a clareza na exposição da
ideia principal é nítida: De uma maneira ou outra somos partes de uma só mente que abarca a
todos, um único ‘grande homem’. Também cabe a definição de “deus impessoal” fornecida por
Joseph Campbell: Um fundamento transcendente ou energia em si mesma. A ideia da consciência

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búdica é a de uma consciência imanente, luminosa, que anima todas as coisas e vidas. Vivemos
irracionalmente, através de fragmentos daquela consciência, de fragmentos daquela energia. No
entanto, o caminho da vida religiosa não é viver de acordo com intenções egoístas para com este
corpo e tempo particulares, mas de acordo com aquela consciência mais ampla.

Acredito que, na exposição de minhas crenças, houve grande avanço até aqui. Segundo
William James, se nosso intelecto não pode decidir, nossas emoções e vontades devem fazê-lo. Na
vida diária, muitas vezes temos de formar crenças aceitando algum risco de erro, e foi isso que fiz
até este ponto, onde nenhuma concessão feita ofende minha racionalidade. Não custa lembrar que
nada criei, estou defendendo crenças milenares, que são a base de muitas e importantes religiões.

Espírito (ou alma)

Parto do princípio que está clara minha crença na existência da alma, ou seja, a unidade do ser
humano não é composta apenas da matéria visível, mas também de um componente mais sutil, o
espírito; e também que a divisão entre corpo e espírito existe apenas para fins didáticos, sendo
diferentes características de algo único. Pergunto: apenas os seres humanos? Antes de me arriscar
a uma resposta, cito Édouard Schuré: O que é a alma humana? Uma parcela da grande alma do
mundo, uma centelha do espírito divino, uma mônada eterna.

Einstein possuía um cérebro privilegiado para o raciocínio lógico e Mozart para a música. Da
mesma maneira, há cérebros mais capacitados para os raciocínios espacial, artístico e plástico, entre
outros. Olhando para o outro extremo, encontramos pessoas extremamente limitadas e broncas.
Quando falo em cérebro, estou me referindo a um órgão, um objeto físico-químico que é
responsável por muito da qualidade de nossas interações com o mundo. O que ocorre dentro do
cérebro pode determinar, inclusive, a maior ou menor propensão para comportamentos virtuosos ou
torpes, pois é certo que algumas substâncias são capazes de alterar drasticamente as tendências de
uma pessoa. Dentro de um ser qualquer que o possua, talvez seja a principal ferramenta que está à
disposição do espírito para que ele possa perceber e fazer-se percebido. Será que poderíamos
garantir que um espírito é “melhor” ou “mais evoluído” que outro baseando-nos apenas em suas
atitudes visíveis? Não está claro que o espírito de um gênio (tomando um extremo como exemplo)
possui melhores “ferramentas” para se manifestar que o de um imbecil (mencionando o outro
extremo)? Até onde vai esse “limite inferior”? Encontramos animais que são mais inteligentes que
alguns homens. Encontramos animais que são mais amorosos que outros. Encontramos homens (a
maioria?) que vivem sob o total domínio dos instintos. Uma observação mais atenta do poder da
bioquímica sobre o comportamento humano, certamente reduziria consideravelmente o seu livre-
arbítrio. Uma observação mais atenta de divergentes reações de diferentes animais a situações
semelhantes faria com que a eles fosse atribuída uma parcela de livre-arbítrio. Não acredito que
esteja fugindo da realidade ao afirmar que, em termos de sentimentos, os outros animais são
incrivelmente semelhantes a nós, animais humanos, pois somos todos capazes de compaixão
(sofrimento partilhado), senso de responsabilidade, tolerância, desejo, apego e até mesmo altruísmo.
Muito bem ilustrou este ponto de vista o biologista Ernest Haeckel, quando disse: Muito mais longe
está o homem superior do homem vulgar que o homem vulgar do macaco4.

Já escutei o argumento de que os animais não possuiriam um espírito devido ao único fato de
não terem a consciência de si próprios. Este simplório raciocínio tiraria a alma de um ser humano
insano ou possuidor de alguma grave deficiência, mental ou cerebral, inata ou adquirida. Por
semelhantes razões, entre outras, não podemos basear a posse do espírito em uma maior ou menor
capacidade cognitiva, inteligência ou instinto mais ou menos desenvolvido.

4
Citado por Fernando Pessoa em “O Livro do Desassossego”.

89
Um simples protozoário, composto de uma única célula, é capaz de realizar todas as funções
mantenedoras da vida: alimentação, respiração, excreção, reprodução e locomoção; será apenas a
matéria, contida, repito, em apenas uma célula, responsável por tudo? É surpreendente e tocante a
demonstração de sensibilidade por parte de alguns animais superiores quando morre um dos seus.
Impressiona a inteligência de cães e cavalos, para citar apenas dois exemplos. Não posso deixar de
observar que, dentro de uma mesma espécie, encontramos uma grande variedade de temperamentos,
mais ou menos agressivos e mais ou menos amorosos, assim como também uma grande variedade
de capacidades para o aprendizado, da mesma maneira que na espécie humana. Mesmo o altruísmo
e a abnegação podem ser observados nos animais. As baleias emitem dezenas de sons diferentes
para se comunicar; apenas, na nossa arrogante altivez, pouco conhecemos sobre seus significados.
Há vários estudos demonstrando que a música influencia decisivamente a saúde e o crescimento das
plantas.

A partir de 1960, a primatóloga, etóloga e antropóloga britânica Jane Goodall passou a


observar e estudar os chimpanzés do Parque Nacional de Gombe, na Tanzânia. Seu trabalho trouxe
inúmeras informações que revolucionaram a forma como eram vistos os primatas e nossa posição
neste pequeno planeta em que vivemos. Por exemplo, até bem pouco tempo atrás se acreditava que
os seres humanos eram os únicos animais capazes de fabricar ferramentas. Verificou-se que não era
verdade, pois nossos parentes vivos mais próximos, os chimpanzés, também possuem esta
capacidade. Também não era correto atribuir sentimentos humanos a animais. Comprovou-se que
também esta crença era falsa. Eles, os chimpanzés, possuem uma individualidade muito
pronunciada. Encontram-se indivíduos dotados de uma inteligência, generosidade ou coragem
muito acima da média do grupo, normalmente desempenhando papéis-chave na configuração dos
destinos de sua comunidade. Observaram-se nítidas diferenças entre as mães nas técnicas de criação
de filhotes. Encontram-se mães altamente competentes, afetuosas, tolerantes, brincalhonas e
protetoras. Porém também há as mães frias, intolerantes e bruscas. As primeiras gerando filhotes
autoconfiantes e positivos, e as segundas, ansiosos e dependentes. Ainda existem aquelas mães
cujos filhotes podem morrer como resultado de sua completa incompetência materna.
Independentemente de qualquer coisa, à medida que o jovem amadurece, o relacionamento com a
mãe se fortalece na forma de uma amizade estreita e mutuamente protetora, que pode durar por toda
a vida. Houve um chimpanzé que mesmo tendo mais de oito anos na época em que sua mãe faleceu,
apresentou sinais de profunda depressão e morreu três semanas depois dela. Eles também possuem
um lado obscuro. Em determinadas circunstâncias podem ser brutais, capazes de violência
intercomunitária e, mesmo que muito raro, já foi observada a ocorrência de canibalismo. Nada que
os torne muito diferentes dos humanos. São vistos relacionamentos complexos e cambiantes.
Verdadeiras coalizões visando a busca pelo poder, que, quando alcançado, traz para seu detentor
respeito e submissão por parte dos outros membros do grupo. Cada macho adulto tem seu próprio
estilo particular quando se trata de acasalamento. Também é notório que uma fêmea prefere alguns
machos a outros, e da mesma forma, existem certos indivíduos que ela pode tentar ativamente
evitar. Às vezes, um relacionamento invulgarmente estreito – uma real amizade – se desenvolve
entre um babuíno e um chimpanzé jovens. Os chimpanzés possuem grande facilidade para aprender
a linguagem de sinais, ou seja, são capazes de dominar uma linguagem humana, indicando poderes
mentais de generalização, abstração e formação de conceitos, bem como uma capacidade de
compreender e utilizar símbolos abstratos. Possuem aptidão até mesmo para inventar sinais.
Também são capazes de se reconhecerem em espelhos e de planejar antecipadamente, pelo menos
no que diz respeito a um futuro imediato. Embora tachados de irracionais, são capazes de fazer
raciocínios. Se coloco um chimpanzé em uma sala, penduro uma banana a uma altura fora do seu
alcance e acrescento um caixote em um canto qualquer, após algum tempo o símio irá arrastar o
caixote até que seja posicionado abaixo da banana, subir nele e alcançar o alimento. Claramente,
alguma forma de raciocínio foi utilizada. Embora chamados pejorativamente de animais, são
capazes de dividir o alimento e demonstram preocupação com os doentes ou feridos e disposição

90
para ajudar companheiros em perigo, mesmo quando isso signifique o risco de perder a vida. Em
suma, o longo trabalho de Jane Goodall e de seus colaboradores nos mostrou claramente que
existem semelhanças impressionantes entre humanos e chimpanzés no comportamento social, com
sofisticadas manipulações, na capacidade intelectual e nas emoções, nos laços afetivos, protetores e
duradouros entre membros da família, nos padrões de comunicação não-verbal, na colaboração para
a caçada, no senso agressivo de territorialidade e em toda uma variedade de comportamentos
prestativos de ajuda.

Embora não pretenda entrar em detalhes, menciono que é muito vasta a bibliografia relatando
a existência de surpreendentes atividades psíquicas nos animais. São muitos os relatos de aparições,
casos de telepatia, premonição e vidência ocorridos com bichos. Uma boa parte dos fenômenos
descritos no capítulo Algo mais, pode ser aplicada aos animais, ou seja, algumas demonstrações em
favor da sobrevivência da alma humana constituem também demonstrações relativamente à
sobrevivência da alma animal. Ao invés de relatar casos, transcrevo um simples questionamento do
estudioso italiano Ernesto Bozzano: Devemos considerar que os nossos primeiros ancestrais, bem
pouco evoluídos acima dos macacos antropoides, e certos selvagens de nossos tempos, dos quais
podemos dizer outro tanto, são bastante evoluídos espiritualmente para merecer o dom da
imortalidade, enquanto que um generoso representante da raça animal, que perde a vida tentando
salvar uma criança que se afoga, ou que morre de dor sobre o túmulo de seu dono, deverá morrer
para sempre, sem ter ultrapassado essa pretensa barreira dos imortais? Muito perspicaz é a
comparação feita por este mesmo autor, quando imagina uma chama colocada dentro de um
recipiente de cristal, onde a claridade brilha sem obstáculos, e compara a luz dissipada por esta
mesma chama quando posta em vasos cada vez mais opacos. A chama (espírito) é potencialmente a
mesma; variam os recipientes (corpos), que devido às características próprias, permitem a
dissipação de um maior ou menor brilho. De igual teor são as palavras colocadas na boca de Félix
Ventura, personagem do romance O Vendedor de Pássaros, do escritor angolano José Eduardo
Agualusa: Passa-se com a alma algo semelhante ao que acontece à água: flui. Hoje está um rio.
Amanhã estará mar.

Resumindo, acredito que todos os seres vivos, sem nenhuma exceção, possuem o componente
espiritual. Acontece que estes espíritos estão limitados ao corpo físico que o contém e é através dos
órgãos sensoriais deste corpo que eles podem captar o mundo do qual estão temporariamente
fazendo parte. É através deste corpo, com as suas limitações e qualidades, que eles podem se
manifestar. Com que facilidade nós, os que vivemos em corpos materiais, desvalorizamos o mundo
espiritual. Compartilho com Philip Yancey o espanto dessa constatação. Só não gostaria que fosse
perdido de vista o fato de que corpo e alma, considero como diferentes instâncias de uma mesma
coisa, diferentes em suas manifestações e iguais em sua essência mais íntima. Apenas para deixar
uma pulga atrás da orelha de quem acompanhou a leitura até este ponto, nada custa lembrar que há
pessoas que afirmam ver um “espírito” nos objetos inanimados, de maneira que uma pedra, por
exemplo, teria uma consciência rudimentar, capaz de manter a unidade de seus átomos. Como disse
Eckhart Tolle: Tudo está vivo. O sol, a terra, as plantas, os animais, as pessoas, todos são
expressões da consciência em níveis variáveis, a consciência se manifestando como forma.

Cito Pitágoras, que viveu 500 anos antes de Cristo: Os animais dividem conosco o privilégio
de ter uma alma. Também coloco um fragmento do manifesto “Positio Fraternitatis Rosae Crucis”,
publicado pela fraternidade Rosacruz em 2001: Ao seu nível, eles [os animais] são também veículos
da Alma Divina e participam no Plano Divino.

Pós-morte

91
Com relação ao que acontece após a morte, poderia me abster de tomar algum partido e seguir
Confúcio, cuja opinião – quase cômica – pode ser extraída da seguinte passagem, retirada do livro
XI.12 de Os Analectos: Chi-lu disse: Posso perguntar sobre a morte? “Você sequer entende a vida.
Como poderia entender a morte?”. Como estou falando de dúvidas universais, não há nenhuma
contradição em acrescentar o dito de um grande materialista, Bertrand Russell: Devemos apoiar-nos
em nossos próprios pés e olhar o mundo honestamente – as coisas boas, as coisas más, suas
belezas e suas fealdades; ver o mundo como ele é, e não temê-lo. Conquistar o mundo por meio da
inteligência, e não apenas abjetamente subjugados pelo terror que ele nos desperta...Um mundo
bom necessita de conhecimento, bondade e coragem.

Também posso, optando por uma visão um pouco menos cética, me expressar através de outro
escritor ocidental, Hermann Hesse: Acredito que, não obstante seu aparente absurdo, tem a vida um
sentido. Resigno-me a não conseguir entender, com o auxílio exclusivo de minha inteligência, qual
seja esse sentido último. Estou, entretanto, pronto a servir-lhe, ainda que para tal deva sacrificar-
me. O homem não pode impor essa fé nem se forçar a aceitá-la. Só podemos vivê-la. Quem não
consegue vivê-la, procura colocar sua fé numa igreja ou na ciência ou no patriotismo ou no
socialismo ou em qualquer lugar onde haja moral, programas, fórmulas já prontas. Outros ainda
procuram me mostrar que não vale a pena nos embrenhar mais nos labirintos aqui expostos. Foi
Lao-Tsé quem falou: Quanto mais falamos no Universo, menos o compreendemos. O melhor é
auscultá-lo em silêncio.

Mas, da mesma forma que fiz quanto à visão da divindade, irei tomar um partido com relação
ao pós-morte, pois, da mesma maneira que o filósofo Kierkegaard, estou tentando encontrar a
verdade para mim, encontrar a ideia pela qual eu posso viver e morrer. Outra importante opinião a
ser levada em consideração é a de Charles Peirce, filósofo americano que considerava o pensamento
uma coisa com a qual nós nos envolvemos para nos movermos da dúvida em direção à crença.
Vejam bem, não é em direção à certeza ou ao conhecimento exato, mas à crença.

Mantendo o padrão da metodologia adotada na visão da divindade, passarei a eliminar


possibilidades. A ressurreição da carne (que estabelece a ressurreição do corpo físico no final dos
tempos), da maneira como é vista pelos que nela creem, me parece algo extremamente burlesco, ou
em outras palavras, ridiculamente cômico, não merecendo nenhum comentário além do já exposto.
Quanto ao inferno, só tenho a relembrar sua total ilogicidade, que o transforma em uma aberração,
frente à justiça de um Deus misericordioso. O purgatório tenta apenas justificar o injustificável,
diminuir a quantidade de almas destinadas ao castigo eterno do inferno, permitindo uma expiação
redentora. Classifico a visão muçulmana e o paraíso sob o mesmo rótulo, sendo que a visão
muçulmana é mais mundana e o paraíso mais espiritualizado. Ambos não passam da transposição
para o futuro de desejos atuais, conceituação formal de anseios humanos, esperança na recompensa
por sofrimentos vividos ou por boas ações praticadas; em suma, conceitos primitivos e infantis.
Além do mais, venhamos e convenhamos, na atual sociedade ocidental não encontramos muitas
pessoas que levam o céu e o inferno tão a sério a ponto de sacrificarem o egoísmo. Endosso as
seguintes palavras de A. Leterre: Se subsistisse um inferno com um só homem condenado, o sangue
de Jesus teria corrido em vão e a Redenção seria uma ironia.

A possibilidade de nada sobreviver à morte possui um bom embasamento teórico, porém


alguns dos fenômenos vistos no capítulo Algo mais parecem contradizê-la de forma contundente.
Neste aspecto fico com a opinião de Schopenhauer: Pois que a substância mais imperfeita, a mais
vil, isto é, a substância inorgânica, prossiga tranquila a sua existência, e justamente os seres mais
perfeitos, os viventes, com seus organismos de uma complexidade infinita e de uma arte
inconcebível, em uma renovação radical e incessante, devam sempre nascer de novo, e depois de
um curto espaço de tempo retornar ao nada absoluto, para dar lugar aos novos seres, seus
semelhantes, que surgem do fundo do nada para a existência, é uma concepção tão evidentemente

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absurda, que não pode nunca ser a ordem verdadeira das coisas, mas sim apenas um invólucro que
a encobre.

Há muito simpatizo com a possibilidade da inconsciência, mais acentuadamente a partir do


momento em que conheci os escritos de Arthur Schopenhauer. Parecia-me conciliar a lógica do
nada ao sentimento intuitivo de que a morte, sendo o fim da vida, não o é do princípio da vida,
mesmo que eu não soubesse explicar o que vem a ser esse princípio imperecível. Porém, cada vez
que tomo conhecimento de ocorrências de experiência de quase-morte e outros fenômenos de
natureza semelhante, que indicam ser a vida independente do corpo físico, a possibilidade da
inconsciência vai perdendo terreno e dando lugar a outras que vão se mostrando mais satisfatórias.

Já o nirvana possui um grande atrativo, seu mistério, que nos poupa de muita pesquisa e
mixórdia, bastando aceitá-lo. Porém, o misticismo que seduz, incomoda, pois, por mais que eu tente
reduzir meu percentual racional, ainda estou grandemente aferrado a essa maneira de ser. O mistério
associado à possibilidade do nirvana, se me encanta a sua poesia por alguns momentos, me desafia
a sua incerteza em outros. Mas não preciso ser tão exigente. O nirvana é uma possibilidade a ser
atingida após uma infinidade de reencarnações, após a completa libertação da ilusão do “eu”, depois
de adquirido o conhecimento de que a grandeza deve ser procurada na pequenez, após se alcançar
um total desapego das insignificâncias mundanas e a consciência do Todo, após uma total paz de
espírito nos atingir, bem como uma serena compaixão para com todos os seres sencientes; em suma,
após a iluminação. Acredito que sou capaz de suportar, com relativa facilidade, um adiamento das
respostas a seu respeito.

Das possibilidades que aqui tratei, falta-me falar sobre a reencarnação. Das possibilidades
pós-morte aqui analisadas, ela é a que possui o menor número de restrições lógicas. Sem sombra de
dúvida, é a alternativa mais compassiva, justa e misericordiosa. Recorro mais uma vez a
Schopenhauer: A crença na metempsicose se apresenta como a convicção natural do homem, desde
que ele reflita, sem opinião preconcebida. Baseando-me apenas nisso, não estaria convencido da
sua realidade e a classificaria como ilusória e como mais um desejo humano teorizado. Acontece
que foram mostrados alguns fenômenos no capítulo “Algo mais” que só fazem sentido partindo-se
do pressuposto da veracidade da reencarnação. Trata-se de uma imensa quantidade de relatos,
oriundos de todas as épocas e de todos os recantos do mundo, cujos protagonistas pertenciam (e
pertencem) a todas as possíveis crenças, classes sociais e faixas etárias, bem como a qualquer
gênero. Toda essa profusão de relatos e toda essa abundância de informações são suficientes para
legitimar a crença na reencarnação? É claro que não. Se o fosse, não haveria questionamentos. Não
posso afirmar que possuo a certeza inatacável na existência real desse fenômeno, trata-se de uma
convicção intuitiva, claro que com embasamento empírico e racional.

Alinhavando

Acredito ser conveniente ir ficando por aqui. Avancei bastante, embora falte muito mais a
caminhar. Muitas questões pontuais eu até poderia me arriscar a responder, mas para a grande
maioria das perguntas eu responderia simplesmente: não sei. Religião não precisa e nem deve ser
algo fechado, alinhavado e concluído; deve haver espaço para a poesia e suas metáforas, para a
surpresa, para o mistério e para o assombro. E é por esse motivo que não me vejo participando de
nenhuma religião estabelecida; quase todas sabem tudo. Aqui me conforta Joseph Campbell,
quando diz: Quem pensa que sabe, não sabe. Quem sabe que não sabe, este sim, sabe. Mesmo entre
os construtores de sistemas filosóficos ou científico-filosóficos, a maioria também possui esta
esquisitice, que é achar-se sabedor de tudo. Prefiro adotar as poucas crenças que me satisfazem
intelectualmente, que, por coincidência (será coincidência?), estão no cerne da maioria das
religiões; e quanto aos infinitos questionamentos, ir aos poucos os movendo entre as prateleiras
“dúvidas de impossível solução”, “dúvidas passíveis de pesquisa”, “pesquisas em andamento”,

93
“possíveis crenças”, “crenças” e “certezas” (para mim, é claro). As experiências, intuições e o
estudo podem me fazer descobrir, se não novas respostas, novas minhas verdades, ou mesmo novas
perguntas, embora saiba que a maioria delas continuará sem solução. É evidente que também posso
mudar de opinião (não estou encabrestado mentalmente), e, mais óbvio ainda, não serei castigado
por isso. Neste aspecto, penso como Gandhi, que disse: A minha preocupação não está em ser
coerente com as minhas afirmações anteriores sobre determinado problema, mas em ser coerente
com a verdade. Um fato é claro, o processo de busca e pesquisa muito me empolga e diverte. Cada
novo insight gera um vivo entusiasmo e a energia necessária para a continuação dos
questionamentos e respostas. Já dizia Santo Tomás de Aquino: Dentre todos os estudos aos quais se
dedicam os homens, o estudo da sabedoria supera a todos em perfeição, em sublimidade, em
utilidade e em alegria que proporciona.

Gostaria de acrescentar que, na busca da minha verdade, precisei de muita cautela ao lidar
com os textos sagrados das mais diversas religiões. É muito comum encontrarmos passagens pouco
nobres em alguns livros ditos veneráveis. Arrisco-me a afirmar que quanto mais distante da
mensagem original, mais desabonador é o trecho. Fica a pergunta, qual é a mensagem original? Ao
logo deste ensaio busquei indicar alguns pontos que considero originais. Coincidentemente (?) são
os pontos de contato entre os ensinamentos religiosos.

Jesus Cristo, da mesma maneira que Buda, Sócrates e Pitágoras, entre outros, não deixou nada
escrito, daí a necessidade de maior cuidado na leitura do que colocaram na sua boca. Além disso, de
nada adianta se as mensagens forem apenas intelectualmente lidas. O mestre Zen Shunryu Suzuki
muito bem observou que ...Ensinamentos escritos no papel não são verdadeiros ensinamentos, são
alimento para o cérebro, ou seja, de nada adianta se não forem interiorizados, se não passarem a
fazer parte inseparável do nosso ser e forem naturalmente postos em prática.

O que mais pode ser adicionado? Julgo que uma síntese da minha profissão de fé.
Resumidamente, e mencionando apenas os principais pontos, com base no que foi explanado até
aqui, imagino que não haja grandes dificuldades na constatação de que, materialmente falando,
somos todos Um. Faz muito tempo que a matéria deixou de ser sólida; cada dia que passa vai
ficando mais fluida, e a cada avanço da ciência vai se apresentando ainda mais sutil, não faltando
muito para desaparecer por completo. Paralelamente, a física quântica vem nos colocando diante de
alguns paradoxos estimulantes, como por exemplo, o fato de que os objetos não são tão separados
da consciência como imaginávamos. Continuo a deslindar meu credo através da afirmação de que,
principalmente em virtude de uma infinidade de fenômenos empiricamente (e cientificamente)
observados, também acredito que a morte física, que pode ser vista apenas como uma
redisponibilização de átomos, não encerra a existência do indivíduo, pois subsiste uma alma, ou
espírito, que continuará seu presente através do uso de outros invólucros de matéria bruta, também
conhecidos como corpos. Devido ao fato da visão dualista criador-criatura não me satisfazer
racionalmente, apesar das iniciais dificuldades de percepção, acredito que, não apenas
materialmente, somos todos Um; estamos em Deus (esta eterna Vida Única debaixo de todas as
formas de vida5) e ele em nós, e todo o Universo está interligado e é interdependente. Somos apenas
uma fração infinitesimal do Todo, e como instâncias finitas do infinito, como “órgãos” de um único
Ser, limitados a um pequeno campo de visão, a um igualmente limitado cérebro, sujeitos a uma
série de ilusões e a apenas quatro dimensões, possuímos um restrito poder de entendimento
(lembremo-nos que estamos cercados e tendo nossos corpos sendo atravessados por miríades de
sinais televisivos, estações de rádio de todo o mundo, incontáveis conversas através de aparelhos
celulares, comunicações por satélites, luz ultravioleta, ultrassom e uma infinidade de outras formas
de energia que somos incapazes de ouvir, ver ou sentir; apenas sabemos que estão aí). Colocando de
outra forma, somos todos Um, mas a parcela espiritual finita que habita um corpo qualquer é

5
TOLLE, Eckhart. O Poder do Agora. Rio de Janeiro: Sextante, 2002.

94
prisioneira do mesmo, está cega ao que ocorre fora do limitado alcance do seu cérebro, e acredita-se
separada do Todo porque consegue lembrar-se apenas do que foi acumulando nesta sua provisória
massa encefálica. Duas pessoas são dois aspectos de uma só vida, e a sua aparente separação é
apenas resultado do modo como vivenciamos as formas, sob as limitações de tempo e espaço 6. É
claro que, quanto mais limitado for o físico, mais subjugada e limitada é a alma, e ao fazer essa
afirmação estou levando em consideração bactérias, protozoários, plantas, animais e seres humanos.
Pragmaticamente falando, a vida deve ser conduzida tendo-se em mente o principal ensinamento de
todas as religiões, o amor a tudo e a todos, que por coincidência (?) é o único sentimento capaz de
tornar-nos verdadeiramente felizes.

Colocado da forma acima, terminante e decisiva, pode dar a impressão de que considero essa a
verdade última. Não é correto, penso como Shunryu Suzuki, quando disse: O que vemos ou o que
ouvimos é só uma parte, ou uma ideia limitada, daquilo que realmente somos. E para me justificar
usarei palavras de Seiji Yokoyama, com as quais concordo integralmente, como um dos possíveis
significados da virtude “humildade”: Humildade é reconhecer que ignoramos quase tudo sobre a
vida e que as condições nas quais nos apoiamos contém uma margem de erro muito maior do que
podemos imaginar, tanto no que nos concerne, como em relação ao todo de que participamos.

6
Joseph Campbell citando Schopenhauer.

95
Conclusão

Olha!
É chegada a hora,
A hora que eu aguardava,
Liberto estou
Da vida e da morte.
Tristeza e prazer já me não visitam,
Liberto estou do apego na afeição,
Emancipado do mito dos Deuses.
Como o luar claro e sereno
Da estação das colheitas,
Assim sou
Na minha Libertação.
Simples como a tenra folha -
Pois em mim tenho guardados
Muitos Invernos e muitas Primaveras.
Como a gota de orvalho é filha do mar,
Assim também nasci
No oceano da Libertação.
Como o rio misterioso
Que no largo mar se lança,
Adentro me lancei
No mundo da Libertação:
A meta que eu conhecia.

Jiddu Krishnamurti

Tudo é passível de questionamento; nenhum conhecimento existe que não possa ser posto em
cheque e ao qual não se possa opor um argumento. Além do mais, parafraseando Schopenhauer,
posso afirmar que não importa a extensão da área que consigamos iluminar, nosso horizonte visível
e cognoscível continuará cercado por uma imensa noite iluminada. Pergunto-me se não avancei
mais do que deveria, mais do que recomenda a prudência, principalmente considerando-se a
barafunda em que podemos nos meter quando nos aprofundamos nesses assuntos religiosos,
metafísicos e intangíveis. Não dei muita importância às considerações de Nhô Augusto, personagem
de Guimarães Rosa, quando entendeu que essa história de se navegar com religião, e de querer
tirar sua alma da boca do demônio, era a mesma coisa que entrar num brejão, que, para a frente,
para trás e para os lados, é sempre dificultoso e atola sempre mais. Nada disso tem mais interesse,
pois o que foi escrito está dito.

É chegada a hora da introspecção. É chegada a hora de tentar viver a divindade, ou melhor,


viver o divino em nós e nos outros. A vida espiritualizada é essencialmente solitária e silenciosa.
Não cabe alarde das obras amorosas. Acertadamente, Humberto Rodhen disse que o nosso muito
falar nos afasta de Deus, porém é evidente que falar é necessário. Organizamos as ideias dessa
maneira, mas acredito ser mais profícua a vivência religiosa. Não me refiro aqui a liturgias e rituais,
muito menos a cultos mecânicos e vazios, mas a experiências amorosas e integradoras. Falo em
crescimento espiritual, e estou convencido que isso significa a superação do ego, do egoísmo. Não
era sem propósito que Siddharta Gautama, o buda histórico, acreditava que a vida não era um
enigma a ser resolvido, mas um mistério a ser vivido. Vamos viver esse mistério, mas não
simplesmente olhar para o próprio umbigo, buscar desesperadamente prazeres e bens, “segurança
material” e riquezas, enquanto pessoas passam fome ao nosso lado; e como compensação
psicológica para esse egoísmo, distribuirmos algumas moedinhas a título de esmola e participarmos
de algum ritual de adoração à divindade, como uma missa ou um culto. Procuremos, seguindo os
ensinamentos dos fundadores das principais religiões, amar ao próximo; não por caridade, quando
nos colocamos e nos sentimos em uma posição superior, mas por compaixão, quando nos
percebemos iguais. Falar apenas de nada vale, vamos agir. Sem ação a teoria se dissipa e

96
desaparece, mas não vamos seguir o conselho de Santo Agostinho, que recomendava distribuir aos
pobres igualmente os bens da terra para adquirir os do céu; tentemos distribuir os bens da terra aos
pobres pelo ato em si, por amor, e não em busca dos bens do céu (seja lá o que isso signifique) ou
de alguma recompensa futura, o que seria, mais uma vez, uma forma disfarçada de egoísmo. Será
tão difícil perceber (melhor dizer, sentir) que devemos ajudar ao ser que sofre, não para atender
ordem divina, atingir o nirvana, melhorar o karma ou alcançar a salvação, mas pelo simples fato de
que ele sofre? Mais um ponto a considerar: quando falo em próximo não estou me referindo aos
ditos parentes, mas a todos os seres deste, cada vez menor, planeta.

Este é o grande objetivo de vida da quase totalidade das pessoas – estas centelhas no vasto
mundo dos fenômenos, guiadas pelo desejo e pelo medo: gastá-la em busca de bens (estas
parafernálias da existência), do deleite sensorial (em todas as suas versões), da satisfação de
efêmeras vaidades pessoais e do poder, para em seguida, tendo tido sucesso ou não nessa
empreitada, morrer e ter seu corpo reintegrado à natureza. Sob o ponto de vista puramente
materialista, esse seria o ideal desembrulhar da existência, mesmo sendo vazia, mesmo fazendo
pouco, ou nenhum, sentido. E o pior: nossas crianças são educadas para esta mesmice autômata.
Acontece que já me coloquei ao lado dos que acreditam haver algo além da matéria bruta, alguma
finalidade mais nobre à vida em todas as suas formas, sem a primazia de nenhuma delas; um
moroso e claudicante, mas incessante, aperfeiçoamento da consciência universal. Sob esse novo
ponto de vista, a forma de vida descrita acima perde completamente sua importância, os nossos
entraves diários tornam-se desimportantes e as nossas maiores preocupações transformam-se em
ossos de borboleta. É a partir daqui que começam a fazer sentido as palavras de Jesus que
estimulavam atitudes, à primeira vista absurdas, como por exemplo, quando ele ensinava que
deveríamos vender tudo que possuímos e distribuir aos pobres. Esta e outras afirmações similares,
que parecem radicais em um primeiro momento, tornam-se óbvias e cristalinas através da óptica
monista. Adquirida essa compreensão, poderemos falar como Theo Fischer: A constante busca dos
nossos semelhantes por felicidade, sucesso e riqueza nos faz dar um sorriso indulgente. Pudemos
parar com estes esforços inúteis, pois entendemos que não é este o sentido da vida.

Minha avó materna repetia vez por outra o seguinte ditado: O que se leva da vida é a vida que
se leva. Sempre gostei dele e, por minha vez, usava-o com alguma frequência, afinal, devíamos
buscar a felicidade. Hoje, vejo o equívoco inerente a essa maneira de pensar, repleta de egoísmo, e
muito mais afeito estou à seguinte máxima: O que levamos da vida é o que nela deixamos. No
primeiro provérbio, o foco está na busca de benesses para si próprio; já no segundo, o objetivo são
as obras, não necessariamente materiais, aqui deixadas. Claro está para mim que a felicidade,
através desse novo enfoque, é muito mais profunda e completa. Recordo a seguinte citação do Dalai
Lama: Quanto mais você pensa nos outros, mais feliz você é.

Não passa pela cabeça da maioria dos seres humanos usar o excesso de bens para aliviar o
peso da vida de um semelhante. Quando sobra dinheiro, por exemplo, o que pensamos? Em trocar
de carro, comprar um imóvel a título de investimento, apenas aplicar visando mais e mais “sobras”,
ou coisas similares. Se temos de tudo, as sobras são usadas para multiplicar o que já possuímos,
surgindo coleções de dezenas, ou centenas de pares de sapatos, de peças de vestuário ou de joias.
Passamos a alimentar a indústria do luxo, criada exclusivamente para este fim, que é absorver o
excedente dos recursos de quem tem mais do que necessita, e não sabe o que fazer com o que
demasia. Em geral não se atina para a possibilidade mais óbvia, que é tentar fazer com que outras
pessoas possam ter a chance de serem felizes. A cegueira é patente e manifesta. Mesmo ao comprar
um carro, se temos dinheiro capaz de adquirir um modelo que custa muito, não pensamos em
comprar um que custa pouco e usar a diferença para mitigar o sofrimento de um próximo.

Essas afirmações são meras constatações, e também o é o fato de haver pessoas que pensam
de forma diferente; que sentem compaixão pelo sofrimento de outros seres e agem efetivamente na

97
tentativa de atenuá-lo. Não falo aqui nos que jogam uma moeda a um pedinte, com medo ou nojo de
ser por ele tocado, ou nos que contribuem com alguma instituição, muitas vezes desconhecida,
fornecendo regularmente uma irrisória quantia. Estou falando na verdadeira compaixão, que é
“sentir junto”, “sentir também”, “paixão-com”. Estou falando em um sincero engajamento, em
despender alegremente e com amor, tempo e recursos materiais em causa de outros seres vivos.
Nunca em busca de promoção pessoal e muito menos de recompensa futura, nesta ou noutra vida,
mas pelo ato em si, pela alegria proporcionada na realização de nosso potencial divino, pela
melhora, pequena que seja, promovida neste mundo.

Mas observamos que é uma minoria que pensa dessa maneira. Como o comportamento
dominante é o egoísta, essa é a atitude estabelecida socialmente como correta e, a partir daí, somos
educados para segui-la (muito bem falou Thomas Merton quando disse que todos os males e todas
as impurezas começam com o nosso apego ao eu). A visão altruísta é abafada e escondida. Não
acho que o interesse exclusivo em si próprio, ou ego+ísmo, seja a conduta natural dos seres
humanos, até porque todos (ou quase) se desdobram para cuidar dos seus muito próximos. Alguns
animais não amam nem os filhos, outros, além de si próprios, apenas eles. O humano mais comum
acrescenta pais, parceiros e irmãos. Outros, os primos e tios. Outro grupo adiciona os amigos mais
próximos. Precisamos trabalhar para aumentar este círculo de seres que, se não amamos, ao menos
nos importamos, para talvez um dia falar como Chico Xavier, quando disse: Nosso lar, meus filhos,
é o mundo inteiro. E a nossa família é a humanidade integral.

Sei que a prática aqui sugerida não é simples. A cultura dominante não ajuda. Somos
educados para o egoísmo. Somos acostumados a não nos importar com o sofrimento alheio. Não
deixa de ser uma autodefesa, pois no mundo há muitas coisas capazes de nos deprimir e, quando
realmente nos importamos com o que acontece aos outros (prefiro dizer: a nós nos outros), é difícil
evitar sentir muitas dores. É importante o esclarecimento de que não supervalorizo o resultado de
atitudes altruístas e amorosas; independentemente das ações executadas, os corpos materiais, tanto
de quem age, como de quem recebe algum benefício, em pouco tempo estarão decompostos, não
mais existirão. De muito mais valia é o sentimento envolvido no processo, é o esforço na melhora
pessoal, no exercício da compaixão (ou, como se expressa o budismo, do amor-bondade), em suma,
na extinção da ignorância. É dentro dessa linha que eu gostaria de fazer como Tagore, que na
véspera de sua morte, aos 80 anos de idade, em carta a um amigo, disse: Façamos o que estiver ao
nosso alcance para provarmos que o homem não é o maior erro da criação.

Embora tenha dedicado algumas dezenas de páginas ao objetivo de deslindar em que acredito,
gostaria de deixar como principal mensagem (espero que isso já tenha ficado suficientemente claro)
que não importa no que as pessoas acreditam nem a quais ritos estão manietadas, mas que
reconheçam que apenas o amor faz sentido, essa força que nos liga a todos e a tudo, esse sentimento
que nos faz dar e receber pelo simples prazer de dar e receber, enfim, essa emoção, única capaz de
proporcionar a verdadeira e duradoura felicidade e a elevação da consciência pessoal de cada um de
nós, com a consequente elevação da consciência coletiva, mundial, universal e cósmica.

98
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www.ebooksbrasil.org.

102
Páginas na internet

Durante a execução deste livro, foram consultados vários sites na WEB. Como de início não
havia a intenção de adotar nenhuma metodologia científica, não tomei nota de datas e nomes das
páginas. No momento em que resolvi acrescentar uma “Bibliografia”, vários links já estavam
perdidos no esquecimento. Abaixo, mesmo de forma incompleta, coloco alguns domínios que foram
utilizados, bem como links que possam ilustrar algo que foi dito:

http://pt.wikipedia.org
http://super.abril.com.br/superarquivo
http://www.unicefa.com.br
http://www.lema.not.br
http://www.montfort.org.br
http://www.catolicanet.com
http://www.bibliaonline.com.br
http://ateus.net
http://www.kirlian.com.br
http://www.iipc.org
http://www2.iskcon.com.br
http://www.paulosnetos.net
http://www.se-novaera.org.br
http://www.geae.inf.br
http://www.jornalinfinito.com.br
http://www.acessoaoinsight.net
http://mb-soft.com
http://www.saindodamatrix.com.br
http://www.saindodamatrix.com.br/archives/goswami.htm
http://pt.krishna.com
http://www.cidadedaluz.com.br
http://www.samsara.blog.br
http://www.espirito.org.br
http://www.amorc.com.br
http://catecismo-az.tripod.com
http://www.samsara.blog.br

Pequena animação sobre mecânica quântica, contendo duas partes. A primeira tenta dar
uma ideia dos sentimentos e possibilidades associados à existência de mais uma dimensão.
A segunda apresenta a explicação mais clara que já encontrei sobre o experimento da
fenda dupla:
http://www.youtube.com/watch?v=QKF-tvRV6AI&feature=related

Partes de um documentário da Discovery sobre mecânica quântica, falando a respeito da


velocidade da luz, do princípio da incerteza, do tempo e da totalidade sem costura:
Sobre o tempo e a totalidade sem costura:
http://www.youtube.com/watch?v=nIL0Q0fSU4M&feature=PlayList&p=EFEAA0D3
8FB75F04&index=74
Sobre a velocidade da luz e o princípio da incerteza:
http://www.youtube.com/watch?v=IAfnWnMshi4&feature=PlayList&p=EFEAA0D38
FB75F04&index=73

Documentário produzido pela BBC sobre a história do átomo:


1ª parte: http://www.youtube.com/watch?v=x0t-NBsSGNo

103
2ª parte: http://www.youtube.com/watch?v=VWuFPga3Mpg&NR=1
3ª parte: http://www.youtube.com/watch?v=BXFpkchTG6w&feature=related
4ª parte: http://www.youtube.com/watch?v=-15y_5CnAvE&feature=related
5ª parte: http://www.youtube.com/watch?v=sfM8FdGCPNY&feature=related
6ª parte: http://www.youtube.com/watch?v=XsXxc1GC8u0&feature=related

Documentário exibido na rede Globo de televisão sobre Zé Arigó, em 2005:


1ª parte: http://www.youtube.com/watch?v=yplKNPPsEjw
2ª parte: http://www.youtube.com/watch?v=vuuwwWR3nNs&feature=related
3ª parte: http://www.youtube.com/watch?v=IvBi0WkSdTM&feature=related
4ª parte: http://www.youtube.com/watch?v=OlRyMDmSAfs&feature=related
5ª parte: http://www.youtube.com/watch?v=IzbbjwhfCZM&feature=related
6ª parte: http://www.youtube.com/watch?v=rvcZs-22jjc&feature=related

Programa Globo Repórter, da Rede Globo, sobre Ciência e Espiritualidade:


1ª parte: http://www.youtube.com/watch?v=SpWz9FP3Sw0&feature=related
2ª parte: http://www.youtube.com/watch?v=YJwB1WP0X3E&feature=related
3ª parte: http://www.youtube.com/watch?v=3WxquctL5dc&feature=related
4ª parte: http://www.youtube.com/watch?v=dPhXVhzspg8&feature=related
5ª parte: http://www.youtube.com/watch?v=utTQcyb7wB8&feature=related

Documentário da Discovery a respeito de vidas passadas e de reencarnação:


1ª parte: http://www.youtube.com/watch?v=u9AKAg85xW4
2ª parte: http://www.youtube.com/watch?v=2ldDEI1oJI4&feature=related
3ª parte: http://www.youtube.com/watch?v=xSCBhiIX6cQ&feature=related
4ª parte: http://www.youtube.com/watch?v=2N3jQMCpmAc&feature=related
5ª parte: http://www.youtube.com/watch?v=mVupO0rbbs0&feature=related

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