Documenti di Didattica
Documenti di Professioni
Documenti di Cultura
O ÚLTIMO GRIMM
EDIÇÕES
ASA
Romance Jovem
Romance Jovem
TÍTULOS PUBLICADOS
ÁLVARO MAGALHÃES
O ÚLTIMO GRIMM
EDIÇÕES
ASA
SEDE
DELEGAÇÃO EM LISBOA
ÍNDICE
1.ª PARTE
AQUELE QUE VÊ ... 9
2.ª PARTE
- Estás acordado?
Peter sacudiu os lençóis e viu o irmão. Estava de pé, a
olhar para ele, com uma máquina fotográfica na mão.
- Sou eu. Vim buscar a tua máquina digital. Não queria
acordar-te.
- Por pouco matavas-me! - exclamou Peter a mexer-se,
para animar os músculos tolhidos.
- Não sabes o que me aconteceu - disse William a
aproximar-se da janela. - Vi dois duendes depois do jantar,
quando estava em cima da árvore, e há bocado vi mais três a
passarem ali debaixo do... Anda ver. Depressa! Vão ali mais
dois.
Peter ainda estava enferrujado, com os músculos
tolhidos, e o irmão puxou-o pelo pijama para a janela.
- Ali, debaixo do carvalho. Vês aqueles dois duendes?
Tu vês bem, melhor do que eu, que devia usar óculos. Vês?
- Só vejo um coelho cinzento - disse Peter. - Ou será
um ouriço?
- É um ouriço. Também o vejo. Os duendes estão mais
atrás, mesmo debaixo do carvalho. Estão a brincar, não vês?
Peter abanou a cabeça. Por mais que olhasse, só via o
coelho cinzento que era um ouriço.
- Pisca os olhos três vezes - disse o irmão.
Ele obedeceu, mas continuava a não ver nenhum duende.
- Vão agora ali a passar atrás da fonte - avisou
William. -Vou tirar uma fotografia.
Peter afastou-se e William abriu a janela e preparou-se
para fotografar os duendes.
- Então? - perguntou o irmão quando viu a sua expressão
de desalento.
- Não deu tempo. Não os viste? Como podes não os ter
visto? Estes tinham barbas e cabelos compridos, orelhas
pontiagudas com pêlos. Iam a brincar uns com os outros, mas
apressados. Iam à vida deles.
Excitado, William mal conseguia respirar.
32
- Tem calma, maninho - aconselhou Peter. - Estás pior
do que eu.
William deu duas voltas sobre si próprio, sem sair do
sítio.
- Será possível que só eu os veja? E como vão os outros
acreditar em mim, se só eu os vejo?
- Fala baixo! Olha a mãe!
William sentou-se na beira da cama, a tentar
acalmar-se.
- Tu vês mal - disse o irmão. - A mãe diz que devias
usar óculos.
- Será por isso que os vejo? Por ver mal? Vejo-os tão
bem... Quer dizer, estes pareciam-me tremidos, como se
estivesse a vê-los com uma lente desfocada.
Peter teve um sobressalto.
- Espera aí. Disseste que pareciam desfocados,
tremidos, e isso é a descrição de um espírito. Podem ser
fantasmas. Podem sair da casa e voltar a entrar. Sabes,
William, eu também vi alguém a levantar as pedras no
escuro.
- Aí está. Podiam ser os duendes que eu vi a passar.
Alguma coisa eles andam aqui a fazer. Talvez levantem as
pedras.
Peter torceu o nariz.
- Duendes? Para mim é a alma do Primeiro. O espírito
dele.
- Palerma! Acreditas em fantasmas e não acreditas em
duendes.
- Eu não acredito em fantasmas. Tenho medo deles.
- Vês? Também não os vês e acreditas que existem. E o
vento? Vês o vento? Não, mas sentes o vento e sabes que ele
existe. Podes dizer que ele não existe só porque não o
consegues ver? Há mais coisas no mundo do que os nossos
olhos podem ver.
Peter abanou a cabeça, pouco convencido.
- Pode ser, mas não temos tempo de ver tudo o que há
para ver. Para que havemos de nos preocupar com o que não
se vê? Sabes uma coisa? Lês muitos livros da mãe. És como
ela, que também diz que conhece uma fada que lhe sopra as
ideias para as histórias.
William agitou-se.
33
- Ela viu-a?
- Não, palerma! É a maneira dela de falar. Diz aquelas
fantasias como se fossem verdades. Não há fadas. Nem há
duendes. Só há histórias de fadas e duendes.
A mãe ouviu-os a falar e gritou a ordem de calar e
recolher. William caminhou para a porta e o irmão seguiu-o.
- Espera - disse ele. - Há outra coisa. Também vi um
livro a abrir-se sozinho no escritório da mãe. Ela disse
que tinha sido a fada dela, que lhe abria os livros. Achas
que podem ser os mesmos?
- Os mesmos quê?
- Os mesmos que levantam as pedras.
A mãe voltou a gritar e William foi para o quarto e
pôs-se à janela com a máquina fotográfica. Não haveria de
dizer a mais ninguém que via duendes sem ter uma boa
fotografia deles para mostrar. Por mais que se lhes
dissesse, as pessoas só acreditavam naquilo que os seus
olhos viam.
Nessa noite, porém, não voltou a ver passar mais nenhum
duende e, por fim, cedeu ao cansaço e caiu num sono
profundo.
Quando acordou, ao princípio da manhã, viu uma criatura
pequena de pé ao lado da cama. Era a pequena Tess, a filha
de Preston e Alicia. Por um momento, ele pensou que estava
a receber a visita de um daqueles duendes com que sonhara
durante toda a noite.
- Bom dia - disse Tess a abrir a portada de madeira da
janela.
A luz do Sol atingiu William em cheio e obrigou-o a
semicerrar os olhos.
- O Peter mandou-me chamar-te - disse ela. - Está lá em
baixo no jardim a ver as pedras azuis.
William levantou-se, beijou a pequena Tess e pôs-se a
ver como ela tinha crescido desde a última vez que ele
tinha estado lá em casa, na Páscoa.
Davam-se bem, aqueles dois. William costumava
contar-lhe histórias maravilhosas, de fadas e duendes,
princesas encantadas, dragões, mas agora tinha outras
notícias para ela.
34
- O que é isso?
- Não queiras saber.
William viu lágrimas nos olhos da mãe e condoeu-se.
Desde que enviuvara, há um ano, andava quase sempre assim.
Entraram no carro e seguiram para Tavistock. William
queria dizer à mãe que tinha visto os duendes, mas não
arranjava coragem. Pararam em Lugfield para ela pôr um ramo
de flores no túmulo dos pais e William ficou à espera no
carro, a ouvir música.
Como a mãe demorava, saiu para esticar as pernas e deu
uma volta pelo jardim com o lago e o pequeno duende de
bronze. Era parecido com os que ele vira, tirando talvez o
barrete e alguma desproporção. Aproximou-se mais para ler a
inscrição na base de pedra da escultura. Já a conhecia, mas
gostou de a reler: “Bem-aventurados os limpos de coração
porque verão as criaturas”.
“Serei eu um desses bem-aventurados?”, pensou. “E,
nesse caso, quantos haverá? Muitos? Poucos?”
A mãe, que já regressara ao carro, fez soar a buzina e
despertou-o daquele torpor. Já iam na estrada para
Tavistock quando William baixou o som do rádio e perguntou:
- O que quer dizer a inscrição na estátua do duende:
“Bem-aventurados os limpos de coração porque verão as
criaturas”?
- Crianças. Já te disse. Consta que algumas crianças
podem ver os duendes e as fadas em certas ocasiões.
- Tu também viste uma fada quando eras pequena... -
insistiu ele.
- Hoje não tenho a certeza. Talvez a tenha apenas
imaginado - respondeu a mãe.
- Achas então que os dois duendes que eu vi ontem à
noite no jardim também foram imaginados? Eu vi-os, mãe.
Duas vezes.
A mãe suspirou. Também para ela era sempre duas vezes.
Um tinha medo de fantasmas que levantavam pedras, outro via
passar duendes no jardim.
36
AQUELE QUE VÊ
45
também não a pudessem ver.
Seria então possível que também só ele a visse? Que
também ela não fosse uma criatura deste mundo e que, como
os duendes e as fadas, apenas ia a caminho da vida dela?
A mãe interrompeu-lhes os pensamentos.
- Quem era essa rapariga?
- Não sei. Cheirava bem. Mas não era perfume, era mesmo
o cheiro que a pele dela ia largando. Eu senti...
- William! - disse a mãe a olhar para ele.
Ele corou. Até as orelhas começaram a ferver de
repente.
- Chamou-me Grimm - disse por fim, com a cabeça baixa,
ainda a recuperar da onda de calor que o envolvera.
- Grimm?
- Eu disse que era Zimmer e ela insistiu e disse que
iam chamar-me sempre assim.
A mãe ia distraída, talvez a pensar na sua história.
- Porquê? - perguntou. Mas isso era o que William também
queria saber.
- Só sei que é por causa dos outros, os dois irmãos
alemães que recolheram as histórias. Será que eu vou fazer
o mesmo quando crescer? Ela disse: “Um Grimm! És outro como
ele. Ao tempo que não há nenhum!" Logo, sou o outro. O
outro Grimm.
- Pode ser - condescendeu a mãe. - Afinal, o nosso
Primeiro era tio deles e tu és filho de uma escritora. E
gostas de ler e de escrever. E de histórias. És o que se
chama “um pequeno Grimm”.
William não apreciou a ideia.
- Cala-te. Quando muito, sou um pequeno Zimmer, e não
sei o que vou fazer quando for grande, nem me interessa. E
talvez não seja bem isso. Ela disse que “Grimm” quer dizer
“aquele que vê”.
- Os melhores escritores são visionários. Chegam a ver
coisas que só acontecem mais tarde - explicou a mãe.
- Não se trata disso, mas de ver mesmo. E eu vi os
duendes.
46
e que não havia outro há muito tempo. Mas como? Como é que
eu sou outro como ele?
Peter fez um gesto de enfado.
- A rapariga, a rapariga... Já pensaste que podia ser
maluca?
- Não era, Peter. Era apenas estranha, misteriosa,
delicada, linda, perfumada...
Peter fechou uma arca e ergueu no ar uma nuvem de pó.
Depois, encarou o irmão de frente, que desviou o olhar.
- Estás apaixonado, Willy?
-Eu?
William corou e abriu outra vez o baú e pôs-se a mexer
nas fotografias, para disfarçar, e o irmão desatou a rir.
- O Willy está apaixonado - disse muito alto enquanto
caminhava para as escadas.
Tinha começado a escurecer e também para Peter estava
na hora de sair dali. O escuro trazia com ele as coisas que
apenas existem dentro do escuro e ele não queria estar ali
dentro quando isso acontecesse.
À noite, depois de um jantar animado em que Elisabeth
Zimmer contou as velhas histórias da família, os dois
rapazes subiram ao primeiro andar e montaram um laboratório
de observação na janela do quarto de William, que tinha a
melhor vista sobre o jardim. Este queria ver duendes e, se
possível, fotografá-los. Peter, com a ajuda de uns
binóculos velhos que tinha encontrado no sótão, procurava o
fantasma cavador.
As horas passaram e nenhum deles viu o que queria ver.
O cansaço, esse, chegou e passaram a alternar a vigia.
Quando um estava à janela, o outro descansava na cama.
Por volta da uma da madrugada, Peter acordou o irmão.
- Viste alguma coisa?
- Vi.
Os olhos de William “sorriram”.
- Viste um duende? Também os vês?
- Não. Mas alguém anda a cavar. Isso eu sei. Ora vê com
os binóculos, ali ao fundo do jardim, perto do pomar.
50
- William! William!
Era uma voz distante no meio de um sonho. Ele abriu os
olhos e era outra vez a pequena Tess, descalça e em pijama.
- Tess! O que estás aqui a fazer?
Ela estava pálida. Olhou em volta para ter a certeza de
que ninguém a poderia ouvir.
- O que foi? Viste-os? - perguntou William.
- Não, mas vi da minha janela coisas que iam pelo ar,
das traseiras da cozinha até à Casa das Tralhas.
A Casa das Tralhas era o edifício arruinado onde, nos
tempos áureos da quinta, se fabricaram vinhos, licores,
cidras e geleias. Agora estava atafulhada de tralhas
velhas, mas a mãe deles, sempre que ia entrava, sentia
ainda o cheirinho a geleia de cereja com Kirsch.
- Coisas pelo ar - repetiu William a tentar raciocinar.
- Que coisas?
- Uma lata de bolachas, um pacote de batatas fritas,
latas de Coca-Cola e cerveja, uma caixa de fugdes - disse a
pequena Tess, com o olhar no chão, como se estivesse
envergonhada por estar a dizer aquilo.
53
10
O OUTRO LADO É SEMPRE O OUTRO LADO
11
12
O SEGREDO
13
14
A CAIXA ENTERRADA
- Ouviste, Peter?
- Ouvi. Custa a acreditar.
- Só que o número da combinação não se vê. Tenho de
limpar melhor o papel.
Peter desligou a lanterna.
- Também ouvi passos aqui perto. Vem aí gente, Willy.
Vamos embora.
- Há duendes em Londres, também - prosseguiu William,
alheio a tudo o resto. - Este é que já lá não deve estar.
De certeza que já não existe, como já não existe o Wilhelm,
106
15
A FADA-DO-AR
16
O MENSAGEIRO
17
O RESOLVEDOR-DE-PROBLEMAS
18
19
20
A TERCEIRA CHAVE
21
A FÁBRICA DE NADA
22
23
RESOLVENDO PROBLEMAS
25
26
O ABISMO
- Bem, nesse caso... – disse Peter a percorrer as
linhas da história no ecrã. - Talvez aqui. Ora ouve:
- O abismo?
- Acho que sim, acho que sim. Faz isso.
Foi isso que William e o tio fizeram. Duzentos e
cinquenta passos certinhos desde a entrada e através do
túnel da esquerda e chegaram, não a um buraco que ninguém
conseguia fechar, mas a uma abertura lateral.
- É a entrada para um túnel. Já passámos por outros.
Não é o que nós procuramos - disse William.
- Talvez seja - discordou o tio. - Vamos entrar. Agora
que estou a ver isto, estou a lembrar-me de qualquer coisa.
Nathan Zimmer baixou-se e entrou no túnel, seguido pelo
rapaz. Depois de uns passos, recuou, assustado.
- O buraco - disse. - É aqui!
William colou-se a ele e espreitou, a medo.
- Era dos mineiros - disse ele. - Um poço, talvez.
Fazia parte da mina.
- Não - voltou a discordar o tio. - É como diz o livro:
um buraco que ninguém consegue tapar. A passagem.
Na borda do buraco estava um sapato pequeno de cabedal
castanho, pedras pequeninas, uma mala de couro, um pedaço
de sabão, um relógio de bolso, entre muitos outros objectos
que o buraco cuspia de vez em quando, como se fossem restos
de uma boa refeição. Por vezes, também saíam de lá de
dentro pequenos arrotos luminosos, pequenos clarões de uma
luz pálida, extenuada, que se dissolvia no ar. E também
havia momentos em que o buraco aspirava o ar com força e
arrastava alguns desses objectos, que voltavam a cair.
- Vês estas coisas que aqui estão? - perguntou o tio. -
São coisas que saem de lá de dentro.
- Como?
- Caem ao contrário. Quer dizer, descaem. E sabes
porquê? Porque isto é um sítio por onde se parte e também
por onde se chega. É um lugar de passagem.
“Um lugar de passagem.” Aquelas palavras soaram como
uma sirene nos ouvidos de William. Só que agora já não
estava tão confiante, tão apressado. A proximidade do
196
27
UM SALTO NO ESCURO
piscina, por exemplo. Era mais como nos sonhos, quando caía
devagar e quase flutuava no ar.
- Oito.
E então soaram as palavras das histórias. Palavras
soltas mas também frases inteiras: “Queres que te conte
outra vez?” ou “O tubarão tinha uma boca do tamanho de um
prédio de sete andares...” ou “Era uma vez uma princesa no
meio de um laranjal.”
Também soavam restos de canções, lengalengas, orações.
E sussurros, suspiros, resmungos, murmúrios, risinhos,
lamentos, rumores. Eram centelhas tremendo e dançando.
Brilhavam e reluziam. Não eram palavras mas coisas.
- Nove - disse William, um pouco atrasado.
Passou por um grupo de palavras-espelho (amor/roma,
rata/atar, aval/lava) e aí estava ele rodeado de pequenas
nuvens luminosas que choviam para cima. O quê? Minúsculas
faíscas de luz que se apagavam logo a seguir, como bichas
de rabiar na noite de S. João. O livro também falava disso.
O livro estava certo, pensava William para se animar. E
disse:
- Dez.
Era preciso travar a queda e ele começou a desfiar as
palavras esquecidas: acalanto, xícara, unguento. A
velocidade diminuiu imediatamente. Foi como abrir um
pára-quedas.
- Sequóia, cinerária, rodoendro, adejar - disse ele
muito depressa, e quase parou no ar.
Era melhor descer assim, devagar. Podia olhar em volta,
embora não houvesse nada para ver.
O problema era que não se lembrava de mais nenhuma das
palavras esquecidas. Também ele as esquecera.
- Inteiriçado, roçagar, colchete - continuou a pedra.
E ele:
- Brunir, sibilar, pipilar, orago, siroco, alumbrar,
rutilante, oniro, falua, golim.
E pronto, estava outra vez a flutuar. Até que a pedra
falou.
- Agora.
A Palavra Misteriosa estava na ponta da língua de
William e saltou. Ele não chegou a saber se a disse ou se
ela se disse sozinha.
204
2.ª PARTE
O OUTRO LADO
207
28
29
O GATO E O CORVO
- De hoje?
- Sim. As coisas mudam. E os reinos também. Muitas
coisas mudam de sítio ou desaparecem, e no lugar delas
aparecem outras. Olha a casa do sapateiro!
O Gato quebrou a ponta de um ramo e desenhou com ele um
mapa na terra. Primeiro fez um círculo e dividiu-o em duas
partes.
- Esta é a parte escura - disse ele a apontar para uma
dessas metades. - E esta é a nossa parte, a que recebe luz
da estrela mais próxima. Como o nosso pequeno planeta não
tem rotação nem translação (sabes o que isso é?), a parte
negra é sempre negra, mesmo de dia, em que o Sol é negro.
Por sua vez, a noite é cerrada, impenetrável. Diz quem lá
esteve que pode cortar-se aquela escuridão com uma faca
afiada.
- Esta parte clara é a única que me interessa. Mais
exactamente, o Reino da Rosa.
- Já vais ver - disse o Gato a dividir a parte clara em
quatro partes: o Reino da Terra, a norte, o Reino da Água,
a leste, o Reino do Ar, a oeste, e o Reino do Fogo, a sul.
- Percebo - disse William. - E só no Reino do Ar é que
há fadas e silfos, e no Reino da Água ondinas e sereias,
por exemplo?
- Nem por isso. Todas as criaturas circulam por todo o
lado, embora os silfos e as sílfides se sintam melhor no
Reino do Ar, os gnomos e duendes, no Reino da Terra, e por
aí adiante. É natural, não é? Quanto a ti, estás aqui. E
tens de chegar aqui. Vês?
- Tenho de caminhar para oeste? Há lá dentro uma
bússola. É antiga mas deve funcionar.
- Ou podes seguir o Sol, que também vai para lá, ou
caminhar na direcção da Grande Pedra, que fica no centro
dos quatro reinos e é na mesma direcção, muito perto do
Reino da Rosa. De qualquer lado deste mundo se vê a Grande
Pedra. E quando não se vê, como agora, vêem-se as nuvens
coloridas por cima dela. Ali ao fundo, vê...
219
30
cabeça dele com violência. Era uma chuva batida pelo vento,
ou antes, trazida por ele. O rapaz abrigou-se na
reentrância de uma rocha, mas não escapou aos primeiros
peixes, que o deixaram num estado lastimável.
- Que horror! Não posso aparecer assim à Princesa -
vociferou.
A chuva de peixe era uma verdadeira tempestade, que
durou algum tempo. Foi preciso esperar com paciência que
ela passasse. William lavou-se depois num regato, mais
adiante, o melhor que pôde, mas a roupa continuava a
tresandar a peixe. Subiu então a uma colina para se
certificar de que continuava a aproximar-se da Grande Pedra
e prosseguiu na sua direcção. Ao atravessar um desfiladeiro
coberto de pedras, desejou que o vento o elevasse no ar,
mas aqueles ventos não obedeciam aos desejos de ninguém e,
nessa altura, eram brisas suaves e refrescantes, bem
comportadas, que lhe acariciavam a pele e os cabelos. Até
que um dos ventos passou a correr no céu a arrastar uma
nuvem castanha. O que iria chover? Se chovia morangos e
peixes, podia chover mais o quê? Baleias, escaravelhos...
William estava num descampado pedregoso e não tinha
onde se refugiar, só podia apressar-se. Foi o que fez, e
avançou mais depressa entre os montes de pedras.
Era um sítio estranho, aquele. Embora só houvesse
pedras por ali, ouvia vozes, rumores, conversas, sussurros
e gritos abalados, como se estivesse a caminhar no meio de
uma multidão.
O rapaz parou por um instante, ficou à escuta e ouviu
então claramente uma voz que dizia:
- Sai de cima, és pesado!
william lembrou-se da pedra que trazia no bolso das
calças. Ela falava, embora com uma voz diferente.
-És tu? - perguntou.
- São elas - respondeu a pedra. - Não querias ouvir
pedras a falar?
229
31
O URSO PUFF
- Bom dia!
- Esta é boa. Muito boa - repetiu o Urso Puff a olhar
para ele, muito espantado. - És amigo do Cristóvão Robin?
És tão parecido com ele! Só que um bocadinho maior. E
também um bocadinho mais malcheiroso.
- Não sou amigo do Cristóvão Robin, embora o conheça
das histórias. E a ti também. Chamo-me William e dizem que
sou um Grimm. Sabes o que é isso?
- Já soube, acho eu, mas já não me lembro. Estou a
tentar lembrar-me de outra coisa e não consigo lembrar-me
dessa. Talvez quando puder pensar nisso com mais calma no
meu Recanto Pensante, que é o sítio onde tenho grandes
pensamentos acerca de nada. E de tudo também. Talvez então
me lembre disso que tu és. Como é que disseste?
- Grimm! Um Grimm! - disse William a sorrir, deliciado.
Conhecia tão bem aquele urso sem miolo nenhum que lhe
parecia muito natural estar ali a falar com ele. Não havia
mais ninguém à vista, mas não se admirava se visse aparecer
ali também o Coelho, o Mocho, o Tigre, o Inhon e o
Cristóvão Robin.
Quanto ao Urso Puff, estava a ver ali mais alguém.
- Quem é esse que está contigo? - perguntou ele a
contornar cuidadosamente a sombra do rapaz, para não a
pisar.
- É um amigo que nunca me larga - respondeu William.
- São irmãos?
- Mais do que irmãos, acho eu. É uma parte de mim. Lá,
de onde eu venho, um rapaz é um rapaz e a sua sombra.
- Onde fica isso?
- É longe. E também é perto. Por falar nisso, podes
dizer-me onde estou?
- Em cima de um montinho de neve - respondeu Puff.
- Pois - concordou William -, mas estou de passagem.
Vou para o Reino da Rosa. Será por aqui?
- Fica na Floresta dos Cem Acres?
- Não sei. Acabo de chegar. Mas acho que é mais longe.
No Reino do Ar.
234
- Que tal?
- Tens razão. Um pote de mel não voa. Tem de estar no
chão. Ou no armário onde o guardaste.
- Isso sei eu, mas não consigo encontrá-lo. Ia
perguntar ao Porquito se ele se lembrava de eu lhe ter dito
onde o guardei. Quando acordo, a primeira coisa que me vem
à cabeça é uma pergunta: “O que há para o pequeno-almoço?”
E a ti?
William coçou a cabeça, a pensar.
- Dada a situação, penso nas coisas extraordinárias e
excitantes que podem acontecer-me - respondeu por fim.
- É a mesma coisa - disse Puff.
E voltou a cantar:
Quanto mais
NEVA - olarilo-lái,
Mais tempo
LEVA - olarilo-lái,
Mais tempo
LEVA - olarilo-lái,
A
Nevar.
E de lés a
LÉS - olarilo-lái,
Sintos os meus
PÉS ~ olarilo-lái,
sinto os meus
PÉS - olarilo-lái,
A
Gelar.
Quanto mais
NEVA - olarilo-lái,
Mais tempo
LEVA - olarilo-lái,
Mais tempo
LEVA - olarilo-lái,
A
Nevar.
Quanto mais
NEVA - olarilo-lái,
Mais tempo
LEVA - olarilo-lái,
Mais tempo
LEVA - olarilo-lái,
A
Nevar.
239
32
33
- Achas?
- Acho.
- E qual é o problema da chave ter sido trocada? – quis
saber Peter.
- Nem imaginas. É o nosso mundo que está em perigo se a
terceira chave chegar às mãos da Criança Terrível.
Durante uns instantes, breves, Peter pensou e tentou
avaliar a gravidade do que acabara de ouvir. Não se
apercebia, talvez, do tamanho do problema, mas se o Outro
Lado estava em perigo, o irmão, que tinha acabado de lá
chegar, também estava.
Por essa altura, a luz esverdeada aproximou-se da
janela e rodopiou no ar, diante deles.
- Está a tentar atrair a nossa atenção - disse o
Resolvedor. - Estou certo ou estou certo?
- Estás certo.
- Talvez queira que o sigamos. Estou certo ou estou
certo?
- Estás certo. Este espírito nunca descansa?
255
34
NO REINO DA ROSA
35
ESPANTÁSTICO!
36
JÁ ALGUMA VEZ CAMINHASTE NUM MUNDO DE TREVAS?
E avançou.
A fada afastou-se e o soldado atingido aproximou-se
outra a medo. E foi então que um ogre monstruoso se
aproximou e gritou, muito alto:
- Apanha isto, ó Grimm!
Pelo ar vinha uma pedra e William apanhou-a. Era uma
pedra redonda, polida.
- Diz que te conhece - acrescentou o ogre. -
Encontrei-a a gritar na Floresta Azul. É uma pedra que não
se cala.
William apertou levemente a pedra na mão direita,
satisfeito.
- Obrigado. Já sentia a falta dela.
- Gostei de ouvir isso - disse a pedra. - Vindo da boca
de quem me abandonou no meio de uma montanha... Disseram-te
que eu também andava?
- Desculpa - disse William. - Com o medo do ciclope e a
pressa de chegar ao Reino da Rosa, não me lembrei de te
apanhar. Podias ter-me chamado.
- Eu chamei quando partiste. Nunca pensei que fosses
sem mim. Mas o ciclope ia a cantar muito alto. E tu
também...
- Vejo que vens mais faladora - disse William. - Ainda
bem. E também vês no escuro?
- Não, mas cheiro e ouço tudo em volta, o que vai dar
ao mesmo. Além disso, é a segunda vez que faço esta viagem.
- Foste lá com o Grimm? - perguntou Fric.
- Duvidas? Não foi ele que me levou para o lado de lá?
Então era porque eu era a pedra dele. E já te posso dizer
que nunca me abandonou no meio de uma floresta.
Afastaram-se da multidão, que continuava a entoar
cânticos e louvor e atracção da sorte. E Uveve voltou a
confundir-se com o vento.
Foram de uma luz pálida até uma penumbra acinzentada,
no vale árido e pedregoso que dividia os dois lados. A
partir daí, a escuridão adensava-se à medida que avançavam.
279
37
38
O ESCURO
Devagar, de uma forma escorregadia, entraram no Escuro.
- Estás com medo? - perguntou Fric.
- Não - respondeu William.
- Devias estar.
- E estou. Nem muito nem pouco, que é o medo melhor. As
palavras deles demoraram a apagar-se no silêncio imenso do
Escuro.
Estava a nascer o dia daquele lado, e era preciso
aproveitar essas primeiras horas, enquanto o Sol Negro não
estava completamente formado e havia umas centelhas de
claridade que amenizavam o negrume.
Mesmo assim, era tudo negro, não havia outra cor. As
árvores eram negras, como a terra, a neve, as nuvens, as
pedras, as ervas e o céu. Montanhas selvagens, mares
revoltos, lagos parados, vales, tudo mergulhava num mar de
sombras. E tudo isso parecia ser uma coisa só.
- Se isto é o dia, como será a noite? - disse William.
Uveve, quando os seus olhos se habituaram à escuridão,
avançou a grande velocidade. O vento, que não tinha cor,
empurrava-o para diante e guiava-o e levava-lhe às narinas
289
39
O PÂNTANO DA TRISTEZA
onde ir, sempre vivi aqui, nem sei mais o que fazer, sempre
fui da Guarda Aérea.
William não via onde o ogre tinha as asas para poder
voar.
- Disseste “Guarda Aérea”? - perguntou.
- Já vais ver - respondeu o ogre a lançar um assobio
estridente que fez William proteger os ouvidos com as duas
mãos. Até a pedra se assustou e soltou um gemido.
- O que estás a fazer? - perguntou William.
- A chamar o meu simorg. Enquanto eu não morrer, ele
não se afasta. Não pode estar longe.
- O que é o teu simorg?
- Já vais ver. Ficaram à espera.
- Porque não voltas à tua terra? - sugeriu William.
- Estava a pensar nisso - respondeu o ogre, com pouco
entusiasmo. - Arrisco-me a morrer de sono e de tristeza,
como no pântano, mas enfim...
Mais um assobio daqueles e lá apareceu o simorg. Era
uma ave medonha e portentosa, com quatro metros de
envergadura. Lembrava um albatroz, só que era cem vezes
maior, ou não serviria de montada a um ogre do tamanho de
um gorila avantajado.
O simorg pousou perto deles, com uma aterragem
perfeita, e o rapaz viu-o melhor. Tinha três olhos, o que
lhe garantia um angulo de visão de 360 graus, e dois pares
de asas de penas negras e lustrosas que usava
separadamente. Sob o bico, tinha uma boca negra e
retorcida, que segregava uma baba negra e viscosa que ele
cuspia regularmente. Era repugnante e assustador. Não para
o ogre negro, que lhe acariciou longamente o pêlo antes de
o Contar. Depois, estendeu a mão para puxar William, que
hesitou, entre a repugnância e o medo.
- Anda! Não queres salvar a Princesa e levar a chave? -
perguntou o ogre.
William espantou-se.
299
40
A PRINCESA DIOTIMA
41
A CRIANÇA TERRÍVEL
42
O RAPAZ INVISÍVEL
43
aquela voz apagada que não soava mas ele ouvia: “Não atires
o coração! Não atires o coração!”
Olhou para baixo uma última vez e depois voltou-se e
recomeçou a subida. Não tinha nenhum motivo para não fazer
o que tinha a fazer. No entanto, continuava inquieto.
Pouco depois, atingiu o cume da Grande Pedra e a
multidão, cá em baixo, entrou em delírio quando ele ergueu
no ar a caixinha de madeira com o que ele pensava ser o
coração do velho Zimmer.
Nesse instante, porém, um corvo chocou com a sua mão e
fez cair a caixa, que rolou pelas escadas e ali ficou, três
degraus abaixo.
Ouviu-se o clamor da multidão, lá ao fundo.
A Rainha de Copas, que estava agora na zona dos
convidados, entre outros reis e rainhas, já não dava ordens
mas continuava a dar sugestões, mesmo que ninguém as
aceitasse.
- Cortem-lhe a cabeça! - gritou.
A seu lado, o Rei de Copas tentou lembrar-se de uma
palavra rara e distinta que fosse adequada à ocasião, mas
só lhe ocorreram as palavras “degenerescência” e
“ignomínia”, que não lhe pareceram muito apropriadas. Por
isso, não disse nada.
Entretanto, o corvo pousou e ganhou a forma de um homem
alto e imponente, todo coberto por um manto negro.
Interpôs-se entre William e a caixa.
- Não lhe toques - disse. - É uma bomba potente, não o
que pensas que é.
O Mago recolheu a caixa e abriu-a cuidadosamente sob o
olhar ávido de William e o clamor crescente da multidão.
- É uma microbomba de neutrões.
- Mas então os Amigos não eram amigos?
- Um traidor. Havia lá um traidor a trabalhar para o
Barry Fortune, que, por sua vez, trabalha para os Escuros.
Era o Mestre de Cerimónias.
- Ah!
William ficou à espera que as ideias se arrumassem
dentro da sua cabeça. Lembrou-se do jantar no Clube, dos
incidentes, da luzinha esverdeada a atravessar o Sr.
329
EPÍLOGO
333
44
O PARQUE GRIMM
- Então já sabes.
Á hora do almoço, na Quinta da Pedra Azul, já toda a
família estava reunida. O problema da venda da propriedade
impediu que Elisabeth Zimmer se ocupasse da desobediência
de William, que aproveitou para se afastar com o irmão para
um recanto do jardim, onde os dois trocaram excitadamente
as alegrias das suas aventuras da noite anterior em dois
mundos diferentes. A pequena Tess, que não os largava,
nunca tinha ouvido tantas histórias no mesmo dia.
Por sua vez, na casa, o clima era pesado e
constrangedor. Alicia andava a chorar pelos cantos e
Preston tinha-se fechado no quarto e não queria ver
ninguém. Elisabeth Zimmer e o irmão também se fecharam no
escritório e, ao fim de algum tempo, tomaram a decisão
inevitável.
- Vamos vender a quinta - disse Elisabeth.
- Tem de ser - concordou o irmão.
Mais: se tinham de o fazer, era melhor que o fizessem
depressa. Cada dia que passassem ali, a partir daquele
momento, seria um dia de sofrimento. Por isso, ligaram para
a imobiliária e marcaram a assinatura do contrato para a
manhã seguinte.
No fim de tudo, estavam ambos arrasados, com os olhos
cobertos de lágrimas, e saíram do escritório em silêncio,
de cabeça baixa.
Ele deambulou vagamente pelo jardim, a bater, com ar
ausente, em montículos de tojo seco. Ela subiu as escadas
em silêncio e quando passou no hall, não teve coragem para
olhar o retrato do Primeiro Depois do Primeiro. Se o
tivesse feito, no entanto, teria reparado que ele não
parecia estar assim tão preocupado. Ou estaria contente por
ir viver para Londres? Já no quarto, Elisabeth Zimmer deu
duas voltas à chave por dentro e deixou-se cair na cama e
chorou, chorou, chorou.
Por essa altura, William e Peter, no jardim, também
eram atingidos pela onda de tristeza.
340
45
46
47
Talvez para sempre, já que nunca mais seria vista por ali.
O diamante foi guardado ciosamente no cofre da casa e o
retrato do Primeiro regressou ao seu lugar na parede. Cada
instante do resto daquele dia se transformou numa
celebração da felicidade geral. Uma energia renovada
invadiu-os a todos, como se também eles tivessem renascido.
E a própria casa parecia sorrir e respirar com eles.
A meio da tarde telefonaram do Clube dos Amigos das
Criaturas para William e passaram o telefone ao presidente
Jagger. O duende Sami já os tinha posto ao corrente de tudo
e ele deu os parabéns ao rapaz pelo sucesso da passagem e
da primeira viagem. Disse-lhe que estavam orgulhosos e
eufóricos por haver um novo Grimm. E que Grimm! “á Grimm!
Há Grimm!” eram as palavras que estavam agora na boca de
todos os membros do Clube, explicou o presidente Jagger. E
também lhe disse que o Sr. Potter, o traidor, tinha sido
expulso. Porém, aguardava-o ainda o castigo que lhe seria
aplicado, a decidir na próxima reunião do Clube. E,
finalmente, disse que iam organizar uma grande festa nessa
noite, a que ele não podia faltar, já que lhe iam entregar
a maior condecoração do Clube.
- Talvez noutra altura - disse William a bocejar. - Não
tenho um unicórnio branco, ou iria imediatamente. O que
tenho é uma mãe que não sabe nada destas coisas. Nem pode
saber! Deste lado sou apenas um rapaz como outro qualquer.
Além disso, cavei toda a noite e toda a manhã para
encontrar um tesouro que não estava enterrado e estou
cansado e com sono. Só me apetece dormir.
- Talvez noutra altura, então - concordou o presidente.
E voltou aos elogios e às felicitações.
Ficou combinado que a própria vice-presidente iria
levar-lhe à quinta, no dia seguinte, o coração do Primeiro
Depois do Primeiro, que tinha sido recuperado. Por isso,
combinaram um procedimento secreto.
363
Do mesmo Autor
EDIÇÕES
ASA
O Comércio do Porto
367
Impressão e Acabamentos
EIGAL
Rio Tinto - PORTUGAL
Contra-capa