Sei sulla pagina 1di 234

ÁLVARO MAGALHÃES

O ÚLTIMO GRIMM

EDIÇÕES
ASA

Romance Jovem

Romance Jovem

TÍTULOS PUBLICADOS

Artur e os Minimeus, Luc Besson


Artur e a Cidade Proibida, Luc Besson
Artur e a Vingança de Maltazard, Luc Besson
Artur e a Guerra dos Dois Mundos, Luc Besson
Artur e os Minimeus — A História do Filme, Luc Besson
O Livro das Estrelas I — Qadehar, o Feiticeiro, Erik
L’Homme
O Livro das Estrelas II — O Misterioso Lorde Sha, Erik
L’Homme
O Livro das Estrelas III — O Rosto da Escuridão, Erik
L’Homme
As Lágrimas do Assassino, Anne-Laure Bondoux
Os Perseguidos, Alex Shearer
Os Náufragos do Holandês Voador, Brian Jacques
Viagem Sem Fim, Brian Jacques
Epic, Conor Kostick
Os Cavaleiros do Conjuntivo, Erik Orsenna
As Extraordinárias Aventuras de Alfred Kropp, Rick Yancey
Grimpow — O Caminho Invisível, Rafael Abalos
A Ilha do Chifre de Ouro, Álvaro Magalhães
O Ultimo Grimm, Álvaro Magalhães
A Profecia das Pedras, Flavia Bujor
Leonardo e a Máquina da Morte, Robert J. Harris
Cidade Infernal, Melvin Burgess
O Segredo de Endymion Spring, Matthew Skelton
Sebastião e os Mundos Secretos I — O Cristal Dourado, João
Aguiar
Sebastião e os Mundos Secretos II — O Anel Roubado, João
Aguiar
O Último Elfo, Silvana De Mari
Ática — À Descoberta do Sótão, Garry Kilworth
A Minha Amiga Flicka, Mary O’Hara
A Guerra das Fadas, Herbie Brennan
O Rapaz-Soldado, Andy McNab e Robert Rigby
O Rapaz do Pijama às Riscas, John Boyne

ÁLVARO MAGALHÃES
O ÚLTIMO GRIMM

EDIÇÕES
ASA

© 2007, Álvaro Magalhães (texto)

© 2007, Pedro Pires (capa e ilustrações)

© Edições ASA II, S.A. - Portugal

1.ªedição: Junho de 2007

2.ªedição: Dezembro de 2007


Depósito legal nº 268601/07
ISBN 978-972-41-5078-9

Reservados todos os direitos

Edições ASA II, S.A.

SEDE

Av. da Boavista, 3265 - Sala 4.1

Telef.: 227537800 - Fax: 227531229


4101-137 PORTO
PORTUGAL

E-mail: edicoes@asa.pt Internet: www.asa.pt

DELEGAÇÃO EM LISBOA

Av. Eng. Duarte Pacheco, 19 - 1?


Telef.: 213802110 - Fax: 213802115
1070-100 LISBOA
PORTUGAL

ÍNDICE

1.ª PARTE
AQUELE QUE VÊ ... 9

1. Um tesouro sob uma pedra azul ... 11


2. Visões de uma noite de Verão ... 17
3. Toda a verdade sobre tesouros, espíritos, fadas e
duendes ... 23
4. Bem-aventurados os limpos de coração ... 31
5. A rapariga que lia ... 39
6. Aquele que vê ... 45
7. Umas cervejas a mais ... 53
8. Três coisas estranhas depois do almoço ... 61
9. Para onde vai o nosso tempo ... 67
10. O outro lado é sempre o outro lado ... 73
11. Ser ou não ser Grimm ... 79
12. O segredo ... 87
13. O Primeiro Antes do Primeiro ... 93
14. A caixa enterrada ... 101
15. A Fada-do-Ar ... 109
16. O mensageiro ... 115
17. O Resolvedor-de-Problemas ... 125
18. O poder das histórias ... 133
19. Uma palavra e um número ... 141
20. A terceira chave ... 149
21. A Fábrica de Nada ... 157
22. O Clube dos Amigos das Criaturas ... 165
23. Um jantar do outro mundo ... 171
24. Resolvendo problemas ... 179
25. O Primeiro Conto de Fadas ... 187
26. O abismo ... 193
27. Um salto no escuro ... 199

2.ª PARTE

O OUTRO LADO ... 207


28. O Povo das Histórias ... 209
29. O gato e o corvo ... 217
30. A Floresta dos Quatro Ventos ... 225
31. O Urso Puff ... 233
32. Uma dor cor-de-rosa ... 241
33. Estou certo ou estou certo? ... 249
34. No Reino da Rosa ... 257
35. Espantástico! ... 265
36. Já alguma vez caminhaste num mundo de trevas? ... 273
37. Um rapaz, um duende e uma luz esverdeada ... 281
38. O Escuro ... 289
39. O Pântano da Tristeza ... 295
40. A Princesa Diotima ... 303
41. A Criança Terrível ... 309
42. O rapaz invisível ... 317
43. Voa, corvo, voa! ... 325

EPÍLOGO ... 333


44. O Parque Grimm ... 335
45. Vai um bolinho de tempo? ... 343
46. Como nos livros ... 349
47. Os melhores contos dos irmãos Zimmer ... 357

O imaginário é aquilo que tende a tornar-se real.


André Breton
1ª PARTE
AQUELE QUE VÊ

UM TESOURO SOB UMA PEDRA AZUL

Eram quase onze horas da noite quando o carro conduzido


por Elisabeth Zimmer atravessou a rua principal da pacata
vila de Lugfield, algures no condado de Devon, Sudoeste da
Inglaterra.
Já não havia gente nas ruas mal iluminadas e ela abriu
mais o vidro do carro para deixar entrar o ar. Depois,
suspirou profundamente, reconfortada, como sempre acontecia
quando voltava à terra e à casa onde nascera e passara a
infância e a juventude.
Com ela vinham os dois filhos, William, de catorze
anos, e Peter, um ano mais novo, que dormitavam amparados
um ao outro no banco de trás. Uma lufada de ar fresco bateu
na cara de Peter, que abriu os olhos e ergueu um pouco a
cabeça.
- Chegámos? - perguntou ele, aliviado. - Até que enfim!
Aquela viagem, desde o centro de Londres, onde viviam,
tinha sido penosa, com um furo e duas avarias. Além disso,
ele detestava aquele mês de férias que sempre passavam na
Quinta da Pedra Azul, nos arredores da vila.
William também abriu os olhos e levantou a cabeça, e
viu o jardim da praça principal com o seu grande duende de
bronze no centro do lago. E, tal como a mãe, sentiu-se em
casa.
11

Eram parecidos, aqueles dois, e como só havia um ano de


diferença entre eles, não faltava quem os confundisse com
gémeos. Também porque eram inseparáveis: “Os dois somos
um”, era a sua divisa. Mas entre eles havia também um mar
de diferenças e, nesse Verão que despontava, iriam
descobrir a maior de todas elas.
O carro atravessou a Ponte Cutter, chegou à estrada
alcatroada para Tavistock e Elisabeth Zimmer começou a
assobiar uma canção da sua infância. A certa altura, porém,
calou-se de repente, travou o carro e encostou-o à berma.
- Outro furo? - perguntou William.
- Não. Está tudo bem. Volto já - respondeu a mãe, a
sair do carro.
Estava uma noite clara e temperada, própria dos
primeiros dias de Agosto. O céu era como um lençol negro
com pontinhos bordados e um buraco no meio: a Lua.
Os rapazes espreitaram pela janela e viram a mãe na
berma da estrada, entre as moitas de urze.
- O que está ela a fazer? - perguntou Peter. - Está
dobrada sobre um monte de pedras.
Ela voltou pouco depois com uma pequena pedra na mão.
Pousou-a cuidadosamente no banco vazio ao lado dela.
Parecia uma pedra igual às outras, mas quando a luz da Lua
lhe bateu, eles puderam ver o seu suave brilho azulado.
Eram pedras relativamente raras, aquelas, mas quem
viajasse pela região sempre encontrava uma ou outra se
olhasse com atenção.
- À noite, a Lua dá-lhes este tom azulado - explicou a
mãe. - É uma pedra da sorte.
- Outra? Já há tantas na quinta... - resmungou Peter,
com o seu ar mais carrancudo.
- Ensinaram-me a levá-las para casa sempre que as
encontrasse - prosseguiu a mãe. - E hoje não queria chegar
lá sem uma. Acho que, desta vez, preciso de sorte. Querem
saber a história das pedras azuladas da quinta?
12

- Agora não - suplicou Peter.


- Conta, mãe - pediu William.
A mãe acariciou a pedra com a palma da mão e pôs o
carro em movimento.
- O Carl Zimmer, nosso antepassado, comprou o terreno
da quinta e construiu a casa por volta de 1800. Dizem que
encontrou um diamante do tamanho de uma romã durante as
escavações dos alicerces e o enterrou depois na terra e pôs
uma daquelas pedras por cima para marcar o sítio. Dizia à
família que era uma pedra da sorte que protegia a casa e as
pessoas que lá viviam, desde que não desenterrassem o
tesouro que ela guardava. A menos, claro, que houvesse uma
desgraça ou estivessem em grandes dificuldades.
- E desenterraram-no? - perguntou William.
- Não se sabe. Já viveu e morreu ali tanta gente -
respondeu a mãe. - E algumas vezes estiveram em
dificuldades, isso sabe-se. Talvez o tenham encontrado.
- Não me parece - disse William, interessado em manter
o mistério. - Sempre houve lá muitas pedras azuis, ou a
quinta não se chamava assim. E cada vez há mais. Como
podiam eles saber qual era a pedra que guardava o diamante
do tamanho de uma romã?
- Bastava levantar todas - disse Peter, interessado em
exterminar de vez o mistério.
- Seja como for, ficou a história - concluiu a mãe. -
Todas as casas têm as suas. São contadas tantas vezes que
também elas vão mudando. Este conta àquele e tira uma coisa
e acrescenta outra, aquele conta a outro e tira outra coisa
e acrescenta mais uma. Às tantas, já não se sabe onde está
a verdade. Mas ela continua lá, escondida.
- Como o tesouro... - murmurou William.
O carro saiu da estrada e tomou o caminho de terra
batida que levava à quinta. Preston, o caseiro, veio abrir
o portão de ferro e o carro avançou até se deter suavemente
à porta da grande casa amarela e branca.
13

- Cá estamos nós! - anunciou Elisabeth Zimmer, depois


de engolir uma boa golfada de ar.
Quando saíram do carro, ela ficou de pé diante da casa,
enquanto segurava a pedra azulada com as duas mãos. E a
casa, subitamente iluminada, olhou para ela e pareceu
sorrir. Preston abriu a porta principal e também se abriu
uma janela no primeiro andar, e atrás dela apareceu Alicia,
a mulher de Preston, a acenar com os dois braços.
William ajudou a mãe a procurar um bom sítio para
pousar a pedra da sorte, perto da casa. Ele gostava tanto
das férias na quinta como a mãe. Ou mais. E, desta vez,
sentia que ia ao encontro de um destino extraordinário.
Logo, também iria precisar de alguma sorte.
Peter foi o primeiro a entrar na casa, mas estancou de
repente quando deparou com o retrato do Primeiro Zimmer,
que eles tratavam apenas por Primeiro, e que parecia
interrogar cada pessoa que cruzasse a porta.
Lá estava ele, com o seu bigode torcido, um alemão que
estava ali de passagem e se apaixonou por uma inglesa,
Dorothy, e jurou construir uma casa no sítio em que se
conheceram. Alicia, a empregada, dizia que em certas noites
de tempestade ele ainda percorria os corredores da casa,
enfurecido, enquanto noutras, mais calmas e afáveis, como
aquela, tomava chá de laranjeira enquanto Dorothy tocava
piano. E o Peter, pelo menos ele, acreditava nisso.
William veio a correr, empurrou o irmão para diante e
cumprimentou o retrato, enquanto lhe piscava um olho.
- Olá, “tio” Zimmer! Tudo bem? Chegámos.
William tinha uma relação cordial com o retrato do
Primeiro, Peter nem por isso. Aquela casa assustava-o, com
o tamanho dos seus mistérios, e o Primeiro estava no centro
de todos esses mistérios.
- Posso dormir no teu quarto? - perguntou ele ao irmão.
14

- Nem penses - respondeu William. - A mãe já disse que


é um quarto para cada um.
- E a divisa?
- Qual divisa?
- A nossa: os dois somos um.
- Não se aplica a isso.
Levaram as malas para os quartos e encontraram-se pouco
depois no alpendre das traseiras, onde Alicia serviu uma
ceia: sopa de tomate com ovo, um empadão de carne e
espinafres, queijos e enchidos.
- Lá se vai a minha dieta - queixou-se Elisabeth.
Peter aproveitou para os lamentos do costume. Não
percebia porque tinham eles de passar mais de um mês longe
da civilização, como ele dizia. Para ele, era como se
regressassem à Idade da Pedra. Ou, mais exactamente, à
Idade da Pedra Azul.
Porém, ninguém lhe dava importância. Toda a gente sabia
que ele ficava sempre assim nos primeiros dias. Só falava
para se queixar ou quando lhe faziam perguntas. Depois
passava-lhe.
- Mãe - murmurou ele a medo -, tens a certeza de que o
quarto onde eu vou dormir não era o quarto do Primeiro?
A mãe fez um gesto de enfado.
- Não! Já te disse que não. O quarto dele foi fechado e
nunca mais foi usado. Todos os anos te digo isto. E, já
agora, ouve também o resto: não há almas, espíritos ou
fantasmas, o que há são histórias de almas, espíritos e
fantasmas. Ouviste?
Completamente alheio a tudo isto, William subiu pelo
tronco de uma romãzeira e sentou-se num dos ramos mais
baixos. Via já a sua sombra a galopar à sua frente na
charneca, entre pedras e moitas de urze, e via-se a colher
maçãs verdes, pêssegos e ameixas, ou a apanhar peixes no
lago, ou a tomar banho no tanque nas tardes em que o Sol
fazia ferver as pedras.
O ar estava limpo e a Lua fazia brilhar as pedras
azuladas, que pareciam peixes de prata num mar nocturno.
Era por isso que também lhes chamavam “pedras da Lua”.
15

Um silêncio vagaroso acariciou William, que respirou


profundamente pelo nariz, disposto a sorver de uma vez
todos os aromas da quinta. E então sentiu que ali em volta,
no escuro que rodeava a quinta, e também lá dentro, na
claridade parda da casa, se estava a tecer uma história; e
ele, William Zimmer Wood, estaria no centro dessa história.
Tinha sentido isso quando passaram o portão da quinta, à
chegada, e agora que estava ali, em cima de uma romãzeira
em flor numa bela noite de Verão, apenas esperava que as
coisas começassem a acontecer.
- Sai daí de cima - gritou a mãe. - Já caíste uma vez.
Ele sorriu, mas procurou um galho mais largo. E foi
então que viu, junto à velha fonte de pedra, algo que o fez
estremecer.
Seria possível?
Piscou os olhos três vezes e aquilo continuava lá. Mas
o que era aquilo?
16

VISÕES DE UMA NOITE DE VERÃO


William queria acreditar no que os olhos dele estavam a
ver, mas era difícil. E o que viam eles? Junto à fonte,
duas criaturas estranhas brincavam animadamente enquanto
bebiam água.
A luz que vinha da casa iluminava um pouco aquela zona
e ele mudou de posição para ver melhor. Pareciam duas
pessoas muito pequenas com um ar rústico e antiquado. Mas
não eram pessoas como as pessoas são. O que eram então?
Anões? Ou antes, gnomos? Quer dizer, duendes? Ele nunca
tinha visto nenhum, apenas os conhecia dos muitos livros
que lera, e aqueles dois pareciam ter saído de um desses
livros.
Tinham pouco mais de meio metro mas aparentavam ser
idosos. Um deles tinha mesmo barbas e cabelos brancos,
encaracolados. Também tinham grandes orelhas pontiagudas,
cobertas de pêlos, e traziam ambos roupas rudimentares de
couro, castanhas e verdes. Moviam-se com uma agilidade
quase animal, embora os seus gestos fossem sempre gestos de
gente. Um deles ajoelhou-se e bebeu água na fonte com
sofreguidão. O outro puxou-o pelo colete de couro e
desapareceram ambos no meio das moitas de urze.
17

William piscou os olhos três vezes e eles já lá não


estavam. Teria sido uma visão de uma noite de Verão?
Tinha-os visto porque eles passaram realmente por ali ou
porque ele, do fundo do coração, desejou vê-los ali naquela
noite?
No alpendre, Alicia levantou a mesa e levou os pratos e
os restos de comida para a cozinha. Peter bocejou,
aborrecido, e depois chamou o irmão. Mas ele não o ouviu.
Estava ainda aturdido, ausente, incapaz de desviar os olhos
da fonte.
Soprou uma brisa mais forte e as teias de aranha, no
tecto do alpendre, balançaram suavemente como redes de
dormir. Era uma brisa perfumada, que tinha certamente
atravessado uma montanha carregada de trevos, e Elisabeth
Zimmer respirou-a inteirinha, sem deixar nada para os
outros.
- Chegou a minha fada - disse ela a olhar em volta, à
espera de encontrar por ali uma pequena fada parada no ar.
Não a viu, mas seguiu o rasto perfumado e entrou na casa. -
Vou escrever - disse ela. - Se precisarem de mim, estou no
escritório. E tu, William, desce já daí.
O rapaz desceu da romãzeira muito devagar, sempre a
olhar para a fonte, e depois aproximou-se de Peter e de
Alicia em silêncio. Queria dizer-lhes, e também à mãe, que
tinha visto dois duendes junto à fonte, mas sabia que não
iriam acreditar. Ele mesmo sorriria se alguém lhe dissesse
tal coisa.
- Peter - sussurrou ele a medo, a voz quase sumida, mas
o irmão já ia a caminho do quarto, muito maldisposto. -
Peter - repetiu, e o irmão voltou-se para trás a meio das
escadas.
- O que foi?
- Nada - disse ele.
Tinha decidido que não dizia nada a ninguém antes que a
visão se repetisse.
Peter entrou em casa e subiu as escadas a resmungar,
mas apressadamente. Queria deitar-se antes dos outros.
Assim, poderia adormecer sossegado, sabendo que eles ainda
andavam por ali com os seus gestos e os seus ruídos.
Acendiam luzes, falavam, e os fantasmas tinham de esperar a
sua vez de caminhar pela casa.
18

Já na cama, tapou a cabeça com os lençóis. Não queria


ver nada, nem queria ser visto. Depois, apagou a luz do
candeeiro e deixou-se engolir por aquela escuridão
amigável, cheia de vozes e ruídos familiares.
Por sua vez, William continuava no jardim, muito quieto
no meio do ar parado, à espera. Viu apagar-se a luz do
quarto do irmão e despediu-se de Alicia, que também foi
dormir. Os olhos dele continuavam a varrer cada recanto do
jardim, mas não viram mais nada que já não tivessem visto
antes: ratos-do-campo, coelhos, gatos, um esquilo e mais
umas tantas sombras velozes e rastejantes.
Foi então buscar uma lanterna que guardavam ao lado do
contador da electricidade e iluminou o caminho até à fonte
de pedra. Um milhafre passou perto da sua cabeça, um
esquilo saltou assustado, um mosquito desorientado chocou
com a cara dele.
Perto da fonte, William parou e ficou à escuta. Tinha
ouvido o marulhar das folhas novas e o som de passos sobre
a erva. Alguém, vindo do pomar, caminhava na sua direcção.
“São eles”, pensou, a apontar para lá o foco da
lanterna. E então reconheceu Preston, o caseiro, que vinha
da casa das sementes com um saco aos ombros. Era um homem
baixo, mas não tão pequeno como um duende. Pousou o saco no
chão e perguntou:
- Há algum problema, menino?
- Não - respondeu William quase sem voz. - Há bocado
pareceu-me ver dois duendes ali na fonte. Ou talvez fossem
gnomos, ou anões. Ou então... Não sei.
Preston tirou o boné da cabeça para poder coçá-la.
- Não me admira nada - disse ele. - Numa noite destas
andam muitos por aí. Fadas também, na zona do roseiral.
Preston disse aquilo com toda a naturalidade. Como
todas as pessoas da região, ele sabia que as criaturas
andavam por ali, numa zona vasta que abarcava todo o parque
natural de Dartmoor. Sempre assim fora. Ninguém sabia a
razão por que isso acontecia ali e não noutro sítio
qualquer, mas alguma explicação haveria.
19

Por isso havia uma estátua com um duende no jardim da


vila, que era uma declaração de fé na sua existência. E
havia a Caverna do Duende, a Pedra do Duende, o Largo do
Duende e o restaurante “Os Dois Duendes”. Para onde quer
que se olhasse, havia um sinal que lhes lembrava a passagem
dos duendes por ali.
William entusiasmou-se com a fé do caseiro e perguntou:
- Já viu aqui algum duende, alguma fada?
Preston era um homem grave e taciturno, sempre calado,
sempre a olhar para o chão, sempre entregue aos seus
pensamentos. Mas transfigurava-se quando ouvia falar das
criaturas.
- Nunca vi nenhum - respondeu. - Mas sinto-os. Acho que
usam a quinta para passarem quando vão à vida deles.
“A vida deles”, pensou William, “como será a vida
deles?” - Já alguém os viu? - quis saber. Preston olhou-o
friamente e disse:
- Há quem diga que sim, isso há. Uma mulher de idade
que vive em Lidyford diz que andam por aqui muitos duendes
que trabalham numa mina antiga, e também que, certa vez,
apanhou um e o teve preso durante dois dias. E há
camponeses que dizem que conhecem fadas da terra que lhes
dizem quando devem semear. E há outro homem, em Ivybridge,
que garante que a mulher foi levada por eles, não se sabe
para onde, e nunca mais apareceu. Há milhares de histórias
sobre gente que encontrou fadas e gnomos e duendes e são
todas histórias diferentes.
- Histórias... - disse William. - Histórias são
invenções.
- É verdade - concordou Preston. - Este conta àquele e
acrescenta isto e muda aquilo, aquele conta a outro e faz o
mesmo. E, às tantas, já não se sabe o que foi que
aconteceu.
- Pois é. Mas se há tantas histórias de fadas e
duendes, é porque um dia andaram fadas e duendes por aqui.
- Andam, ainda - garantiu Preston. - Só que não
conseguimos vê-los. As vezes, chocamos com qualquer coisa,
olhamos e não está lá nada. São eles, quando não têm tempo
de se desviar de nós. Outras vezes as mulheres vêem coisas
20

a mexer na cozinha sem ninguém lhes tocar: um pedaço de


queijo desaparece no ar uma chávena com leite ou um pote de
mel saem pela porta a deslizar no ar. São eles, também.
- E não poderá haver quem veja, por exemplo, dois
duendes a beber água na fonte? - perguntou William.
- Não - respondeu Preston, sem hesitar. - Mas podemos
sentir a respiração de um duende que passa por nós ou até
ouvi-lo tossir se levantarmos poeira com as botas. Ou então
sentir o perfume de uma fada das flores, das pequeninas,
talvez vinda do roseiral. Nesta altura passam muitas por
aqui. Só que também não as vemos.
Era uma boa explicação, pensou William. Aliás, nunca
lhe tinham dado uma tão boa. Fadas e duendes existiam, só
que não os podíamos ver. Era bem melhor do que dizer que
não os víamos, logo, eles não existiam, como toda a gente
fazia. O Peter, por exemplo. E também a mãe deles, que,
apesar de escrever histórias de fadas e duendes, não
acreditava que tais criaturas realmente existissem. Dizia
que existiam para quem acredita nelas, que existiam no seu
coração. Os escritores dizem muitas vezes estas coisas que
soam bem mas não querem dizer nada. Só que ele vira mesmo
dois duendes e não estavam no coração de ninguém. Bebiam
água da fonte, brincavam, e iam a caminho de qualquer lado.
Eram criaturas ocupadas, que andavam nas suas vidas, como
dizia Preston.
- Até amanhã - disse o homem a pôr o saco das sementes
às costas. - Não se vai deitar? É tarde.
-Já vou.
Preston foi sem pressa na direcção da casa pequena onde
vivia com Alicia e a pequena Tess, filha de ambos. William
caminhou devagar até à fonte de pedra. Sem pressa também.
Ninguém tinha pressa, naquela noite.
Aí, explorou minuciosamente as imediações e encontrou
um pequeno trilho de ervas pisadas. Podia ter sido feito
pelos muitos animais que se serviam da fonte, mas também
21

podia ser o trilho dos duendes que atravessavam a quinta a


caminho da vida deles, pensou ele a caminhar na direcção da
casa.
Ia carregado de dúvidas. Aqueles dois duendes tinham
sido vistos ou imaginados? Eram tão parecidos com os dos
livros de histórias que ele se pôs a pensar se aquela visão
não derivava das suas leituras. Adorava histórias
maravilhosas e não precisava de ir muito longe para as ler:
a mãe escrevia-as mesmo ali ao lado.
- Vai dormir, William - disse ela com a cabeça fora da
janela do escritório.
- Já vou - disse ele, mas deixou-se estar.
Viu a luz apagar-se em duas casas, uma mais próxima,
junto à estrada, outra mais distante, e continuou atento, à
espera.
22

TODA A VERDADE SOBRE TESOUROS, ESPÍRITOS, FADAS E


DUENDES

No quarto, Peter continuava a dormir um sono leve. Não


tinha um olho fechado e outro aberto, mas metade dele
dormia e a outra metade talvez continuasse acordada e
atenta. E foi certamente essa metade que ouviu o som de um
piano que alguém tocava num sítio não muito distante. Ou
seria mais perto ainda, ali mesmo, dentro de casa? A metade
que dormia sentiu-se abalada e, juntamente com a outra,
ficou à escuta.
Quem poderia tocar o piano da casa àquela hora da
noite? Além disso, nem a mãe nem o irmão tocavam piano.
Estava lá porque sempre estivera, era uma peça de
decoração.
Com os lençóis sobre a cabeça, fez a mão deslizar até
ao interruptor da corrente e acendeu a luz do candeeiro.
Depois, deu um tempo para que as criaturas do escuro
deslizassem para trás dos cortinados ou rastejassem para
dentro do roupeiro, ou atravessassem as paredes para as
divisões que não estavam iluminadas. Sabia que tudo isso
acontecia quando ele acendia a luz, e não queria ver tudo
isso a acontecer.
23

Quando levantou os lençóis da cabeça, cerca de dois


minutos depois, viu que não havia nada de especial dentro
do quarto. Aquele truque dava sempre resultado. Saiu da
cama e deslizou sem ruído até à porta, que abriu muito
devagar. Ouviu então perfeitamente o som do piano. E também
sentiu no ar o perfume a chá de flor de laranjeira acabado
de fazer. Seria então aquela uma das tais noites em que o
Primeiro se encontrava com a sua amada e bebia chá enquanto
ela tocava piano?
Assustado, correu para o quarto do irmão, entrou e
acendeu a luz, mas o quarto estava vazio, o que muito o
espantou.
- Mãe! - murmurou a medo, enquanto descia as escadas a
saltar os degraus de três em três.
Quando ia no corredor, Peter reparou que o som do piano
não vinha da biblioteca, onde estava o piano, mas do
escritório da mãe.
Deteve-se e ficou a pensar naquilo durante algum tempo
no meio do corredor mal iluminado. Tinha medo de avançar, e
tinha medo de recuar. E também tinha medo de estar parado.
Por isso, avançou e entrou de rompante no escritório.
- Mãe!
O escritório estava deserto, apenas iluminado pelo luar
que entrava pela janela. E lá estava a música do piano, que
saía da aparelhagem da mãe.
Foi à janela e espreitou para o jardim. Não viu o
irmão, que estava fora do seu ângulo de visão, nem viu a
mãe. Lá ao fundo do jardim, porém, distinguiu um vulto
dobrado sobre a terra, como se estivesse a cavar.
“O tesouro”, pensou. Só conseguia distinguir uma
silhueta escura no meio do escuro, talvez duas. Seria
William, ou a mãe, ou os dois, a procurarem o tesouro?
Seria possível que o fizessem a meio da noite sem ele
saber?
Acendeu a luz. Não havia vento, mas o cortinado
esvoaçou levemente, e uma poalha prateada, muita fina e
quase invisível, pairou no ar por um instante antes de cair
e pousar sobre os ombros dele.
24

Foi então que Peter reparou que um livro, sobre a


secretária, se abria muito lentamente sem que ninguém lhe
tocasse. Ficou aberto, mais ou menos a meio, e não voltou a
mexer-se.
Depois, ouviu passos no corredor e baixou-se atrás da
secretária.
Os passos soaram mais fortes e, por fim, Elisabeth
Zimmer apareceu à porta da biblioteca, vinda da cozinha.
Numa das mãos segurava uma chávena fumegante de chá de flor
de laranjeira.
Peter saiu do seu esconderijo e abraçou-a com tanta
força que a fez entornar meia chávena do chá.
- Peter! O que foi?
Ele engasgou-se com saliva quando ia falar e começou a
tossir. Estava muito pálido e, num instante, ficou
vermelho. A mãe deu-lhe palmadinhas nas costas e depois
abraçou-o.
- Sossega, sossega.
- Ouvi o piano... - gaguejou ele, por fim, a recuperar
a voz.
- Apeteceu-me ouvir um concerto - explicou a mãe. -
Ouço sempre quando trabalho. Estava muito alto, se calhar.
- Também me cheirou a chá de flor de laranjeira.
- Também me apeteceu.
A mãe voltou a abraçá-lo e Peter ganhou coragem para
contar o resto.
- Ouve, mãe. Vi gente lá fora a levantar as pedras
azuladas. Alguém estava a cavar no escuro. Talvez procurem
o tesouro. Cheguei a pensar que eras tu. Ou o Willy. Ou tu
e ele. Sabias que ele não está no quarto?
A mãe voltou a afagá-lo.
- Está no jardim, do outro lado. Já o mandei deitar.
- Será ele, então, que anda a cavar?
- Não é ele, não. Não é ninguém.
Peter espreitou pela janela. Agora não havia ninguém ao
fundo do jardim.
- Talvez seja o Primeiro - disse. - A alma dele, pois.
O espigo. A Alicia diz que há noites em que ele aparece.
Talvez não tenha descanso se o diamante não aparecer. E a
25

noite é a melhor altura para o procurar. A noite é o dia


dos que já morreram. A mãe ganhou uma expressão severa.
- Ora, Peter! Outra vez isso? E já proibi a Alicia de
te dizer esses disparates.
Ele baixou os olhos para o chão, envergonhado. Na
verdade, sentia vergonha por desenvolver tantas ideias
absurdas sobre fantasmas. Mas que havia de fazer?
A mãe sentou-se no sofá largo de couro onde costumava
ler e sentou-o no colo, como quando ele era mais pequeno.
- Vou contar-te a verdade - disse, com uma expressão
grave. E Peter preparou-se para uma revelação.
- Diz mãe, diz. Ela disse:
- Nunca houve diamante nenhum. O tesouro nunca existiu.
Foi uma bela mentira que o Primeiro inventou. Ele adorava
histórias. Era médico e cobrava uma história aos camponeses
pobres que o vinham consultar. Por isso é que ele dizia que
não deviam desenterrar o diamante, e também não se importou
que fossem trazendo mais pedras da sorte. Assim, com tantas
pedras, não sabiam onde procurar. E, então, acreditariam
sempre que o tesouro existia. E isso é que era importante,
que as pessoas acreditassem que o tesouro existia.
Sentiam-se confortadas e seguras porque sabiam que viviam
sobre um tesouro e, caso acontecesse alguma desgraça,
podiam sempre desenterrá-lo.
Peter abandonou o colo da mãe. Era outra vez um rapaz
crescido, embora continuasse com medo.
- Isso pode ser assim - disse ele -, mas também pode
não ser assim.
A mãe bebeu o que sobrara do chá.
- É assim, Peter. Mas nós temos, como os outros, de
acreditar que o tesouro existe. Por isso, quando contares
um dia a história aos teus filhos, não lhes contes a
história verdadeira, que é sempre mais triste e mais pobre.
26

- Aos meus filhos? - murmurou Peter a tentar pensar


nessa realidade distante. Ele, Peter Zimmer Wood, ou apenas
Peter, como lhe chamavam, a contar a história das pedras
azuis aos seus filhos...
Pensou nisso, isso pensou, mas pareceu-lhe impossível.
- E agora vai dormir - disse a mãe.
- Espera. Não é só o espírito do Primeiro, nem os que
procuram o tesouro. Há mais.
- Mais? - gemeu a mãe, mortificada.
- Sim. Há bocado vi este livro a abrir-se sozinho.
A mãe olhou para o livro sobre a velha secretária de
madeira. Era um dicionário de símbolos.
- É um belo livro, mas ainda não se abre sozinho -
disse. -De certeza que o abri eu. Estou sempre a abri-lo e
a fechá-lo.
- Eu vi, mãe. A capa levantou-se devagar e ele ficou
aberto.
- Nesse caso, foi a minha fada - concluiu a mãe. -
Ajuda-me quando preciso de encontrar qualquer coisa para as
minhas histórias. Abre-me um livro, por exemplo, ou um
jornal ou uma revista, para eu ver uma coisa que devo ver.
Realmente, não me lembro de abrir este livro aqui.
- A tua fada... - disse Peter com um ar reprovador.
Indiferente, a mãe prosseguiu:
- É verdade. E à noite, quando adormeço aqui neste
sofá, ela sopra-me aos ouvidos as mil ideias que são
precisas para escrever um livro. E também durante o dia,
quando fico absorta, a sonhar acordada.
- Preocupas-me - disse Peter, muito sério, a olhar para
a mãe. - Tens dificuldade em distinguir a realidade da
fantasia. Fadas... Não há fadas!
- Nem fantasmas, almas, espíritos. Só existem porque
pensas neles. Porque não pensas antes em fadas?
- Vou tentar - disse Peter a caminhar, cabisbaixo, em
direcção ao quarto. Antes, porém, espreitou pela janela
para a escuridão do jardim. Já não via ninguém a mexer nas
pedras, e pensou que talvez o seu medo o tivesse enganado.
27

Talvez a mãe, afinal, tivesse razão e só por ali andassem


pequenas fadas invisíveis e prestáveis, como aquela que lhe
abria os livros e lhe soprava as ideias.
Já no quarto, foi à janela e olhou mais uma vez a
escuridão cerrada que rodeava a casa. O que estaria lá
dentro escondido, à espera? E o irmão? O que estaria ainda
a fazer lá fora? Não era costume ele ficar sozinho no
jardim àquela hora.
Quando ele pensava no irmão, o irmão sabia que ele
estava a pensar nele. Acontecia. Havia até alturas em que
os dois pensavam a mesma coisa ao mesmo tempo. Eram assim,
aqueles dois. Por isso diziam que os dois eram um. Faziam
uma conta assim: um mais um é igual a um.
William olhou para a janela do quarto do irmão e viu a
luz a acender-se para se apagar logo a seguir. Sabia que o
irmão estava com medo, sentia o medo dele. No entanto, não
sentiu a chegada da mãe, que o veio procurar ao jardim e o
levou à frente dela para o quarto.
- Alguma vez viste um duende? - perguntou ele. - Desses
que dizem que andam por aí.
A mãe pensou duas vezes antes de responder.
- Vou contar-te um segredo - disse por fim. - Quando
era muito pequena, vi uma pequena fada entre as flores.
Assim, do tamanho da minha mão, com duas asas quase
transparentes. E de outra vez vi uma ondina a secar na
relva da margem do riacho. As pessoas daqui dizem que
certas crianças de coração puro conseguem ver fadas e
duendes em certas noites.
- E rapazes da minha idade? - interrompeu ele, ansioso.
- Não tens hipótese. Se nunca os viste, dificilmente os
verás agora. Mas podes sempre inventar uma história e
dizer: “Ontem à noite vi um duende a escapar-se para o meio
das ervas”. É um bom princípio para uma boa história.
Sabes, eu também vi hoje a minha fada e comecei uma
história nova. Começa assim: “De vez em quando o céu faz
nascer um rapaz diferente dos outros”. É a primeira frase.
É tudo o que tenho, para já. Mas chega. Quando um escritor
28

tem a certeza absoluta da primeira frase e a escreve, é


como se lançasse a primeira pedra de uma nova casa e
assinasse um contrato com o futuro. Nunca mais pode voltar
atrás. Aquele livro tem de ser escrito. E lá tem ele de
juntar as pedras todas até ao fim da construção.
William não se aborrecia com estas explicações da mãe
porque também ele sonhava ser escritor e inventar, um dia,
as suas histórias.
- E o livro que vinhas acabar aqui? - perguntou.
- Fica para mais tarde. Era demasiado triste. Vou
começar outro, este: é a história de um rapaz que recebe um
dom especial. Como lhe chamo, ao rapaz? William, Peter...
- Não - protestou William. - Não quero entrar mais nas
tuas histórias. Tenho medo de ficar lá preso e não viver as
minhas próprias histórias.
- Está bem - disse a mãe a apagar a luz. - Vou
chamar-lhe Marcus. Até amanhã.
- Até amanhã, mãe.
Mais tarde, já a noite ia avançada e todos dormiam, e
ainda William vigiava o jardim da janela do quarto. Se
tinha visto os duendes naquela noite, era porque aquela
noite era a noite de eles passarem por ali.
29

BEM-AVENTURADOS OS LIMPOS DE CORAÇÃO

A meio da noite, Peter dormia um sono leve. Mas a


metade dele que se recusava a adormecer ouviu o barulho da
fechadura da porta e acordou a outra. E ambas ouviram a
porta a deslizar, o soalho a ranger. Alguém ou algo tinha
entrado furtivamente no quarto. Ali, com a cabeça debaixo
da roupa, ele podia ouvir a sua respiração calma e regular.
Fosse quem fosse, dava também pequenos passos leves para
não o acordar. Ou seria para o apanhar desprevenido?
Um medo súbito paralisou-o. Queria mexer-se mas não
havia um único músculo do seu corpo capaz de reagir. Queria
gritar para chamar a mãe, mas também não conseguiu. Mexeu
os músculos do nariz e os dedos dos pés só para ter a
certeza de que não tinha sido transformado numa estátua de
pedra e depois deixou-se estar, quieto, a pensar. Só o
pensamento dele mexia.
“A luz”, pensou então. Era a luz que empurrava os
espíritos e o resto para o escuro.
Fez um esforço para estender o braço, acendeu a luz do
candeeiro e, como sempre, esperou mais um pouco com a
cabeça escondida sob os lençóis. Sentiu então que alguém o
abanava.
31

- Estás acordado?
Peter sacudiu os lençóis e viu o irmão. Estava de pé, a
olhar para ele, com uma máquina fotográfica na mão.
- Sou eu. Vim buscar a tua máquina digital. Não queria
acordar-te.
- Por pouco matavas-me! - exclamou Peter a mexer-se,
para animar os músculos tolhidos.
- Não sabes o que me aconteceu - disse William a
aproximar-se da janela. - Vi dois duendes depois do jantar,
quando estava em cima da árvore, e há bocado vi mais três a
passarem ali debaixo do... Anda ver. Depressa! Vão ali mais
dois.
Peter ainda estava enferrujado, com os músculos
tolhidos, e o irmão puxou-o pelo pijama para a janela.
- Ali, debaixo do carvalho. Vês aqueles dois duendes?
Tu vês bem, melhor do que eu, que devia usar óculos. Vês?
- Só vejo um coelho cinzento - disse Peter. - Ou será
um ouriço?
- É um ouriço. Também o vejo. Os duendes estão mais
atrás, mesmo debaixo do carvalho. Estão a brincar, não vês?
Peter abanou a cabeça. Por mais que olhasse, só via o
coelho cinzento que era um ouriço.
- Pisca os olhos três vezes - disse o irmão.
Ele obedeceu, mas continuava a não ver nenhum duende.
- Vão agora ali a passar atrás da fonte - avisou
William. -Vou tirar uma fotografia.
Peter afastou-se e William abriu a janela e preparou-se
para fotografar os duendes.
- Então? - perguntou o irmão quando viu a sua expressão
de desalento.
- Não deu tempo. Não os viste? Como podes não os ter
visto? Estes tinham barbas e cabelos compridos, orelhas
pontiagudas com pêlos. Iam a brincar uns com os outros, mas
apressados. Iam à vida deles.
Excitado, William mal conseguia respirar.
32
- Tem calma, maninho - aconselhou Peter. - Estás pior
do que eu.
William deu duas voltas sobre si próprio, sem sair do
sítio.
- Será possível que só eu os veja? E como vão os outros
acreditar em mim, se só eu os vejo?
- Fala baixo! Olha a mãe!
William sentou-se na beira da cama, a tentar
acalmar-se.
- Tu vês mal - disse o irmão. - A mãe diz que devias
usar óculos.
- Será por isso que os vejo? Por ver mal? Vejo-os tão
bem... Quer dizer, estes pareciam-me tremidos, como se
estivesse a vê-los com uma lente desfocada.
Peter teve um sobressalto.
- Espera aí. Disseste que pareciam desfocados,
tremidos, e isso é a descrição de um espírito. Podem ser
fantasmas. Podem sair da casa e voltar a entrar. Sabes,
William, eu também vi alguém a levantar as pedras no
escuro.
- Aí está. Podiam ser os duendes que eu vi a passar.
Alguma coisa eles andam aqui a fazer. Talvez levantem as
pedras.
Peter torceu o nariz.
- Duendes? Para mim é a alma do Primeiro. O espírito
dele.
- Palerma! Acreditas em fantasmas e não acreditas em
duendes.
- Eu não acredito em fantasmas. Tenho medo deles.
- Vês? Também não os vês e acreditas que existem. E o
vento? Vês o vento? Não, mas sentes o vento e sabes que ele
existe. Podes dizer que ele não existe só porque não o
consegues ver? Há mais coisas no mundo do que os nossos
olhos podem ver.
Peter abanou a cabeça, pouco convencido.
- Pode ser, mas não temos tempo de ver tudo o que há
para ver. Para que havemos de nos preocupar com o que não
se vê? Sabes uma coisa? Lês muitos livros da mãe. És como
ela, que também diz que conhece uma fada que lhe sopra as
ideias para as histórias.
William agitou-se.
33

- Ela viu-a?
- Não, palerma! É a maneira dela de falar. Diz aquelas
fantasias como se fossem verdades. Não há fadas. Nem há
duendes. Só há histórias de fadas e duendes.
A mãe ouviu-os a falar e gritou a ordem de calar e
recolher. William caminhou para a porta e o irmão seguiu-o.
- Espera - disse ele. - Há outra coisa. Também vi um
livro a abrir-se sozinho no escritório da mãe. Ela disse
que tinha sido a fada dela, que lhe abria os livros. Achas
que podem ser os mesmos?
- Os mesmos quê?
- Os mesmos que levantam as pedras.
A mãe voltou a gritar e William foi para o quarto e
pôs-se à janela com a máquina fotográfica. Não haveria de
dizer a mais ninguém que via duendes sem ter uma boa
fotografia deles para mostrar. Por mais que se lhes
dissesse, as pessoas só acreditavam naquilo que os seus
olhos viam.
Nessa noite, porém, não voltou a ver passar mais nenhum
duende e, por fim, cedeu ao cansaço e caiu num sono
profundo.
Quando acordou, ao princípio da manhã, viu uma criatura
pequena de pé ao lado da cama. Era a pequena Tess, a filha
de Preston e Alicia. Por um momento, ele pensou que estava
a receber a visita de um daqueles duendes com que sonhara
durante toda a noite.
- Bom dia - disse Tess a abrir a portada de madeira da
janela.
A luz do Sol atingiu William em cheio e obrigou-o a
semicerrar os olhos.
- O Peter mandou-me chamar-te - disse ela. - Está lá em
baixo no jardim a ver as pedras azuis.
William levantou-se, beijou a pequena Tess e pôs-se a
ver como ela tinha crescido desde a última vez que ele
tinha estado lá em casa, na Páscoa.
Davam-se bem, aqueles dois. William costumava
contar-lhe histórias maravilhosas, de fadas e duendes,
princesas encantadas, dragões, mas agora tinha outras
notícias para ela.
34

- Tess, ontem vi duendes lá fora no jardim. Iam a


passar. São como aqueles das histórias.
A mãe abriu a porta e interrompeu a revelação.
- Willy, tens dez minutos para ficar pronto se queres
ir comigo a Tavistock. Tenho horas marcadas.
- Já vou - disse ele a apressar-se. Não queria perder
aquela boleia por nada deste mundo. Agora é que ele
precisava de ir à biblioteca, onde ia pesquisar sobre
duendes. E até já estava vestido, já que não tinha chegado
a tirar a roupa na noite anterior.
E já que ele não foi ter com o irmão, o irmão veio ter
com ele. Entrou esbaforido no quarto e interrompeu a
descrição dos duendes que William estava a fazer à pequena
Tess.
- Sempre era verdade, Willy. Eu disse-te... Andaram a
cavar no jardim. Sabes onde? No sítio onde estão as pedras
azuis. E descobri que algumas têm uma marca. Uma cruz feita
com um prego ou coisa assim. Só ali, naquela zona, contei
doze pedras marcadas.
- Muito interessante - disse William.
- Foram os duendes? - perguntou a pequena Tess.
- Não se sabe ainda - respondeu ele. - Ora, vamos lá
ver isso.
Não houve tempo. A mãe tocou a buzina do carro e
William desceu as escadas a correr.
- Até logo. Logo vemos isso.
William encontrou a mãe a olhar a casa de frente, muito
tristemente. Tinha os olhos húmidos e inchados, como se
tivesse estado a chorar.
E a casa, com as suas duas janelas abertas no primeiro
andar, uma de cada lado, parecia também olhar para ela.
- Sempre temos de vender a quinta? - perguntou William.
- Achas que eu era capaz? - respondeu ela. - Mas está
difícil conservá-la se quiser ficar também com a casa de
Londres. E também há os palermas da Câmara que dizem que o
terreno pode ser expropriado para fazerem aquela palermice
do parque temático.
35

- O que é isso?
- Não queiras saber.
William viu lágrimas nos olhos da mãe e condoeu-se.
Desde que enviuvara, há um ano, andava quase sempre assim.
Entraram no carro e seguiram para Tavistock. William
queria dizer à mãe que tinha visto os duendes, mas não
arranjava coragem. Pararam em Lugfield para ela pôr um ramo
de flores no túmulo dos pais e William ficou à espera no
carro, a ouvir música.
Como a mãe demorava, saiu para esticar as pernas e deu
uma volta pelo jardim com o lago e o pequeno duende de
bronze. Era parecido com os que ele vira, tirando talvez o
barrete e alguma desproporção. Aproximou-se mais para ler a
inscrição na base de pedra da escultura. Já a conhecia, mas
gostou de a reler: “Bem-aventurados os limpos de coração
porque verão as criaturas”.
“Serei eu um desses bem-aventurados?”, pensou. “E,
nesse caso, quantos haverá? Muitos? Poucos?”
A mãe, que já regressara ao carro, fez soar a buzina e
despertou-o daquele torpor. Já iam na estrada para
Tavistock quando William baixou o som do rádio e perguntou:
- O que quer dizer a inscrição na estátua do duende:
“Bem-aventurados os limpos de coração porque verão as
criaturas”?
- Crianças. Já te disse. Consta que algumas crianças
podem ver os duendes e as fadas em certas ocasiões.
- Tu também viste uma fada quando eras pequena... -
insistiu ele.
- Hoje não tenho a certeza. Talvez a tenha apenas
imaginado - respondeu a mãe.
- Achas então que os dois duendes que eu vi ontem à
noite no jardim também foram imaginados? Eu vi-os, mãe.
Duas vezes.
A mãe suspirou. Também para ela era sempre duas vezes.
Um tinha medo de fantasmas que levantavam pedras, outro via
passar duendes no jardim.
36

- E ainda os vi outra vez do quarto do Peter -


acrescentou William. - Afinal, foram três vezes. E quando
se vê três vezes uma coisa, mesmo extraordinária, não a
estamos a imaginar.
A mãe voltou a suspirar, a ganhar fôlego e paciência.
- O Peter também os viu? - perguntou.
- Não.
- Então... Tu vês mal, William. Como ias distinguir
dois duendes pequenos no meio do escuro? À noite, há tanta
coisa que mexe e parece um duende...
Ele irritou-se.
- Os duendes são diferentes! Parecem pessoas pequenas!
- William! - interrompeu a mãe, a levantar a voz. -
Seja o que for que tu viste, não é real. Foi a tua
imaginação. Acontece a todos pelo menos uma vez na vida,
como me aconteceu quando era pequena. Nunca mais fui capaz
de ver nada.
William baixou mais ainda o som do rádio.
- Ouviste o que disseste?
- O quê?
- Disseste: “Nunca mais fui capaz”. É isso mesmo: nós
não somos capazes de ver os duendes e as fadas que passam
pelo jardim. Vemos mal. E eu então... É isso que me faz
pensar. Porque os vejo eu, se até vejo mal? Serei especial,
um desses bem-aventurados limpos de coração?
Elisabeth Zimmer travou para deixar um cão atravessar a
estrada. Depois, desligou o rádio e disse, num tom suave,
de mãe compreensiva:
- Filho, na tua idade todos querem ser especiais, ter
um Poder, um dom que mais ninguém tem. É natural. Mas
acredita que e melhor não o teres. Se também não vires as
fadas e os duendes, não faz mal. Ou se os vires uma vez,
como ontem à noite, e não os voltares a ver, considera isso
um bom sinal. És normal.
- Mas eu vi-os - disse William num sussurro.
A mãe não o ouviu. Já estava a pensar noutra coisa.
37

- Seja como for, acabas de me dar uma boa ideia para a


minha história - disse ela. - Um rapaz especial, que tem um
dom. Ninguém consegue ver as criaturas, excepto ele.
- Sempre as tuas histórias... Só pensas nisso -
protestou William.
- Que queres? Mesmo sem querer, os escritores estão
sempre a trabalhar e levam tudo o que apanham para dentro
das histórias.
Tinham entrado em Tavistock. Passaram a ponte de pedra
sobre o rio Tavi e seguiram até à Plymouth Road, onde
Elisabeth Zimmer deixou o filho à porta da Biblioteca
Municipal.
- Daqui a uma hora venho buscar-te - disse ela. - Não
saias daqui.
38

A RAPARIGA QUE LIA

Quando William entrou na biblioteca, foi surpreendido


por um perfume desconhecido. Era agradável, subtil, mas
estranho. Mais estranho ainda era que ali, onde costumava
cheirar a pó e a livros velhos, cheirasse tão bem. Seria um
aromatizador?
Cumprimentou o Sr. Beckford, que estava na recepção a
fazer palavras cruzadas. Quando o viu chegar, soltou um
sonoro “Olá, William!” e largou o jornal. Quis saber da mãe
dele e do irmão e disse-lhe que ele tinha crescido imenso.
- O tempo passa - acrescentou o homem a preparar-se
para uma boa conversa.
Mas William não estava para aí virado e, embora com
dificuldade, foi avançando.
Na grande sala de leitura, seleccionou três livros e
entregou a requisição à Sra. Peel, a senhora gorda e
irritadiça que também o conhecia bem e o achou muito
crescido. E acrescentou:
- Quando eras pequeno, costumavas sentar-te aqui nos
meus joelhos a brincar com os clips e as canetas enquanto a
tua mãe fazia as pesquisas.
39

Ele fez um esforço para sorrir. Não se lembrava disso e


preferia que não fosse verdade, porque a Sra. Peel tinha um
hálito repelente e era preciso estar a uma distância
estratégica para o evitar.
Depois, sentou-se numa mesa do canto, ao fundo. Além
dele, só havia mais três pessoas na sala: um homem idoso
que lia jornais desportivos e duas jovens estudantes que
estavam juntas na mesma mesa a estudar. Mais tarde, porém,
os olhos dele encontraram a rapariga que lia sentada no
chão, junto a uma das estantes laterais. Tinha os cabelos
de um castanho dourado que ele nunca vira antes e uma pele
muito branca, quase translúcida, como se vivesse sob um Sol
diferente. A roupa, essa sim, era normal: jeans e uma
t-shirt de carapuço, ambas tão largas que pareciam ser da
irmã mais velha. Mas os sapatos, de um couro rude, também
eram invulgares. Pareciam feitos à mão.
Nunca mais William foi capaz de ler o livro que tinha
diante dele. Os duendes e as fadas tinham deixado de o
interessar. Pelo canto do olho foi seguindo os passos da
rapariga que lia. E ela lia avidamente, como se quisesse
acabar com aquilo rapidamente. Tanto desfolhava um livro
como ia pô-lo na estante e desfolhava outro.
Ele mudou de lugar para a poder ver melhor e para
confirmar que o perfume que sentira à entrada emanava
daquela rapariga.
- Precisas de alguma coisa? - perguntou a Sra. Peel,
que não podia ver mexer uma mosca naquela sala.
- Nada - disse ele. - É por causa da luz da janela.
Bate-me nos olhos.
Aí estava a velha Sra. Peei, pensou William. Só não
percebia a razão por que fazia ela vista grossa à rapariga
que lia - e, por acaso, também não parava quieta. “Isto é
uma biblioteca, não é um café ou um bar”, era o que ela
costumava dizer quando via alguém naqueles preparos.
A rapariga voltou a trocar de livro e, quando o retirou
da estante, voou um papel que alguém guardara dentro dele.
40

William deslizou sem barulho e apanhou o papel ainda no


ar.
- Isto é teu? - perguntou.
Ela levantou os olhos para ele, mas não respondeu.
- Isto não é teu? - repetiu o rapaz a aspirar o ar em
volta dela. E então soube que o perfume emanava dela. Era o
perfume de uma rosa.
- Não - respondeu ela a tapar a cabeça com o carapuço
da t-shirt. - O que é isso?
Só então William reparou que era um bilhete do Metro de
Londres. Alguém o usara para marcar uma página e lá ficara.
- Estava dentro do livro - disse ele. - Muitas pessoas
usam coisas destas para marcar as páginas e deixam-nas
ficar. Não imaginas as coisas que as pessoas põem dentro
dos livros.
Ela ergueu-se e ficou de pé diante de William. O corpo
derivava, com o equilíbrio de uma pena, e as faces, tão
claras, ficaram rosadas e cintilaram como fogueirinhas.
- Estás a ver-me? - perguntou muito baixinho.
A voz era calma, fina, um pouco triste e muito musical.
- Claro - disse ele. - Vejo mal, mas não sou cego. A
menos que não estejas aqui e eu esteja a sonhar.
- Eu não estou aqui e tu estás a sonhar - disse ela a
escapar-se para a saída.
- Espera - disse William.
- Onde vais? Há algum problema? - perguntou a Sra. Peel
a olhar por cima dos óculos pousados no nariz.
Ele não respondeu e passou ao hall, onde viu a rapariga
a sair para a rua.
- Já vais embora, Willy? - perguntou o Sr. Beckford.
Ele ia demasiado lançado para poder responder, tão
lançado que apanhou a rapariga no meio do relvado da
entrada.
- Espera - disse ele.
Ela parou de caminhar quando o sentiu chegar. E
encarou-o com uma expressão de medo e espanto.
- Estás mesmo a ver-me?
41

Ele piscou os olhos três vezes e ela ainda lá estava,


tão fresca como uma haste de hortelã-pimenta.
Era uma rapariga, sem dúvida nenhuma, e linda, mas
também havia nela qualquer coisa de flor. Delicadeza,
suavidade, e o tal perfume que o entontecia quando se
chegava perto dela.
- Quem és tu? - perguntou com aquela voz melodiosa que
ficava a vibrar no ar.
- William Zimmer. Muito prazer. E tu?
- Mas então... És um Grimm? Que idade tens?
- Fiz catorze. E não sou Grimm, mas Zimmer. Eu disse
“Zimmer”, que também é um nome alemão. Há muitos anos, o
Primeiro Zimmer passou por aqui, apaixonou-se por uma
inglesa e jurou que havia de construir uma casa...
Ela sorriu, interessada.
- E cumpriu a promessa?
- Cumpriu. Ainda está lá a casa e eu, o meu irmão Peter
e a minha mãe, que somos os descendentes dele. Ora, esse
Zimmer, nós chamamos-lhe “Primeiro”, era irmão de Dorothea
Zimmer, a mãe dos irmãos Grimm, e tio deles...
- Então é isso... Um Grimm! Nunca mais houve outro.
William não percebia a insistência dela. Já lhe tinha dito
que não era Grimm, embora houvesse uma ligação.
- Anda cá. Vou mostrar-te uma coisa - disse ele a
puxá-la por um braço, e notou que a pele dela tinha a
suavidade e a delicadeza de uma pétala de rosa.
Regressaram ao hall da biblioteca, onde havia um
conjunto de vitrinas com edições raras de livros. Ele
dirigiu-se à maior de todas, onde estava exposta a primeira
edição do primeiro livro dos irmãos Grimm, “Histórias das
crianças e do lar”, publicado em 1810.
- Estás a ver? É uma raridade - explicou William. - Foi
a nossa família que o ofereceu à biblioteca. Tem uma
dedicatória do Wilhelm Grimm ao tio Zimmer. Os dois irmãos
Grimm costumavam passar férias aqui, na nossa quinta,
quando eram novos.
42

Mais o Wilhelm, que adorava o tio. Ainda lá está a


árvore do Wilhelm, a fonte do Wilhelm, etc.
- Então é isso... - disse ela. - És um Grimm. Seja como
for que te chames, vão sempre chamar-te assim.
- Assim como?
- Grimm.
- E quem? Quem vai chamar-me assim?
- Eles.
- Eles? - repetiu William.
- Eles - repetiu a rapariga. Ele não se conformava.
- E porque me vão chamar Grimm se eu não sou Grimm? Ela
voltou a escapar para a rua. E William seguiu-a para ouvir
a resposta:
- Porque és outro como ele. E na língua deles, "Grimm"
quer dizer “aquele que vê”.
- Eles? A língua deles? Mas quem são eles? - perguntou
William.
- Fazes tantas perguntas... - gemeu ela, contrariada. -
Tenho de ir embora. Já devia ter ido.
Ele seguiu a caminhar ao lado dela e durante algum
tempo não fez mais perguntas. Por fim, disse:
- Só mais uma, pode ser? Disseste que eu era um Grimm,
aquele que vê... Mas vê o quê? As criaturas? Os duendes e
as fadas que andam por aqui na vida deles? Há por aqui
muita gente que diz que viu duendes e fadas, mas eu vi-os
mesmo, ontem. O meu irmão olhou e não os viu. E ele vê
melhor do que eu.
Ela parou de caminhar.
- Viste mesmo os duendes?
- Por três vezes.
- Então não há dúvidas. És mesmo um Grimm! Ao tempo que
não há nenhum.
Atravessaram numa passagem para peões e William reparou
que ela se desviava sempre das pessoas que vinham em
sentido contrário, como se elas não fossem capazes de a
ver.
43

- O que é um Grimm? - insistiu ele. - Eu sei que só


faço perguntas, mas que hei-de fazer? Isto é estranho. Tu
não és uma rapariga como as outras e eu sou um Grimm,
apesar de me chamar Zimmer.
- Eu sei, mas não posso explicar-te mais nada. Alguém o
fará, acho eu. E não olhes para mim de frente...
- Porquê? As raparigas bonitas gostam de ser olhadas,
as feias é que se escondem. Mas tu és muito mais do que
bonita...
- Eu não te disse? Não deverias ter olhado para mim...
Acredita, é melhor para ti.
- Porquê? - insistiu ele.
Era mais uma pergunta e ela suspirou profundamente.
Depois disse:
- Só te posso dizer que este encontro não deveria ter
acontecido. E também que não podemos voltar a ver-nos.
Mesmo sendo tu um Grimm.
- Sim, mas o que é um Grimm? Faço muitas perguntas mas
é quase sempre a mesma. Se me desses alguma resposta...
Ela avançou, e não respondeu.
- Voltas amanhã? - continuou ele, a mudar de pergunta.
Ela acelerou o passo, que já era rápido, e depois começou a
correr.
Agora a rapariga que lia era uma rapariga que fugia. E,
deslizando entre as pessoas que desciam a rua, desapareceu
num instante. Só ficou o perfume delicado dela e que, aos
poucos, também se apagou no ar.
Aturdido e confuso, William vagueou ao acaso pelas
ruas, absorto, a cheirar o ar. Mas o ar só cheirava a ar.
As palavras da rapariga voltaram então com força à sua
cabeça: “És mesmo um Grimm! Ao tempo que não há nenhum.”
Muito perto dele um carro apitou e despertou-o. Era a
mãe. Ele continuava alheio e ela pôs a cabeça de fora e
gritou:
- Willy! Não te disse para esperares na biblioteca?
44

AQUELE QUE VÊ

A mãe pôs o carro em andamento e tomou o caminho da


quinta.
- Pregaste-me um susto - disse ela. - O que andavas a
fazer?
- Desculpa - disse William, ainda meio absorto. - Foi
por causa da rapariga que conheci na biblioteca. Estive a
mostrar-lhe o livro dos irmãos Grimm e depois saí com ela.
Era estranha e desapareceu sem dizer quem era.
- Qual rapariga? O Sr. Beckford disse-me que tu saíste
sozinho.
- Ele não a viu!? - admirou-se William.
- Pelos vistos...
- Estivemos os dois a ver o livro dos Grimm. Como é
possível que não a tenha visto? - insistiu o rapaz.
- Que queres que te diga? Ele disse que estavas
sozinho, que saíste e voltaste a entrar e voltaste a sair.
Sozinho, não me falou de nenhuma rapariga.
William ficou a pensar naquilo. Também a Sra. Peel
parecia não ver a rapariga quando ela estava a ler. Além
disso, também reparara que ela, na rua, se desviava sempre
das pessoas que vinham em sentido contrário, como se elas

45
também não a pudessem ver.
Seria então possível que também só ele a visse? Que
também ela não fosse uma criatura deste mundo e que, como
os duendes e as fadas, apenas ia a caminho da vida dela?
A mãe interrompeu-lhes os pensamentos.
- Quem era essa rapariga?
- Não sei. Cheirava bem. Mas não era perfume, era mesmo
o cheiro que a pele dela ia largando. Eu senti...
- William! - disse a mãe a olhar para ele.
Ele corou. Até as orelhas começaram a ferver de
repente.
- Chamou-me Grimm - disse por fim, com a cabeça baixa,
ainda a recuperar da onda de calor que o envolvera.
- Grimm?
- Eu disse que era Zimmer e ela insistiu e disse que
iam chamar-me sempre assim.
A mãe ia distraída, talvez a pensar na sua história.
- Porquê? - perguntou. Mas isso era o que William também
queria saber.
- Só sei que é por causa dos outros, os dois irmãos
alemães que recolheram as histórias. Será que eu vou fazer
o mesmo quando crescer? Ela disse: “Um Grimm! És outro como
ele. Ao tempo que não há nenhum!" Logo, sou o outro. O
outro Grimm.
- Pode ser - condescendeu a mãe. - Afinal, o nosso
Primeiro era tio deles e tu és filho de uma escritora. E
gostas de ler e de escrever. E de histórias. És o que se
chama “um pequeno Grimm”.
William não apreciou a ideia.
- Cala-te. Quando muito, sou um pequeno Zimmer, e não
sei o que vou fazer quando for grande, nem me interessa. E
talvez não seja bem isso. Ela disse que “Grimm” quer dizer
“aquele que vê”.
- Os melhores escritores são visionários. Chegam a ver
coisas que só acontecem mais tarde - explicou a mãe.
- Não se trata disso, mas de ver mesmo. E eu vi os
duendes.
46

A mãe sorriu longamente.


- Viste-os com o teu coração. Como o Grimm.
Lá vinha ela com aquelas tretas bonitas, que nada
queriam dizer, pensou William. O que seria isso, ver com o
coração?
- Os dois irmãos Grimm vinham mesmo cá à quinta passar
férias com o tio? - perguntou.
- Já te disse que sim. Está registado no diário do
Primeiro, que se perdeu quando se deu a inundação. Mas
muita gente o leu. E eu também. Há fotografias deles aqui,
quando eram novos, há as histórias que se contam, e há a
dedicatória do Wilhelm: “Ao meu querido tio Carl Zimmer.
Graças a ele, os meus olhos abriram-se para um novo mundo”.
- Os meus olhos também se abriram. Mas que novo mundo
será esse? - murmurou William. E perguntou, mais alto: -
Porque é que só um dos dois irmãos, o Wilhelm, escreveu a
dedicatória ao tio? Era só ele que cá vinha?
- Eles eram diferentes - explicou a mãe. - O Wilhelm
adorava o tio Zimmer e vinha cá muitas vezes sozinho, sem o
irmão.
- Pois, alguma coisa aconteceu a esse Wilhelm que não
aconteceu ao outro. E aconteceu-lhe aqui na quinta. Há
tantas histórias à volta da quinta. É verdade, e a tua
reunião? Vamos ficar sem a quinta?
- Achas que consigo? Mas está difícil. Amanhã vou a
Plymouth buscar o teu tio Nathan para tratarmos disso.
Metade do valor da quinta é dele.
Calaram-se. Elisabeth abriu mais o vidro e uma brisa
refrescante passou por eles. Ou teria sido outra coisa?
A tarde, na quinta, William discutiu interminavelmente
os acontecimentos dessa tarde com o irmão. Depois,
sentou-se a ler uma das várias recolhas de contos dos
irmãos Grimm que havia lá em casa, à sombra do salgueiro a
que chamavam “a árvore do Wilhelm”. Talvez fosse o sítio
onde ele também se recolhia para ler. Só que não conseguia
ler, apenas pensar na rapariga misteriosa. De vez em
quando, a brisa da tarde trazia um pouco do perfume do
47

roseiral. Então, ele fechava os olhos e via-a e ouvia


aquela voz que soava como um pequeno sino: “Não olhes para
mim de frente. Acredita, é melhor para ti”.
Isso ele compreendia. Agora que a tinha visto, não
conseguia pensar em mais nada durante muito tempo. Teria
sido melhor para ele não a ter visto. Até porque o
assaltava agora uma angústia desconhecida: voltaria ele a
encontrar a rapariga que lia? E aquele rosto, só o voltaria
a ver quando fechasse os olhos, nos seus sonhos e
imaginações?
A pequena Tess, que cheirava ao longe um livro de
histórias aberto, veio interromper-lhe os pensamentos.
- Que livro é esse? - perguntou a contorcer-se para
tentar ver a capa.
- Já te li estas histórias todas no ano passado -
respondeu William.
- Não me lembro.
- Não te lembras da história do Patinho Feio, da Bela
Adormecida, do Gato das Botas?
- Não me lembro dessa - afirmou ela, sem qualquer
dúvida.
- Também já ta li - garantiu o rapaz.
- Lê-me outra vez!
William sorriu. Também ele dizia o mesmo quando tinha a
idade dela: “Lê-me outra vez.”
- Sabes que o homem que escreveu essa história, um
deles, esteve aqui sentado, nesta árvore, quando era um
rapaz como eu - disse ele. - Talvez tenha dormido no meu
quarto, talvez ele também tenha visto os duendes... E
talvez eu tenha de fazer alguma coisa que já ele fez. Agora
ouve: “Era uma vez um moleiro que tinha três filhos. Um
dia, chamou-os para lhes dizer que ia repartir por eles
todos os seus bens. Ao mais velho deu o moinho, ao do meio
deu o burro e ao mais novo deu o gato. O filho mais novo
ficou muito triste porque o pai não tinha sido justo para
com ele. Mas, surpresa das surpresas, o gato começou a
falar!
- Dá-me um saco e um par de botas...”
48

Por essa altura, Peter prosseguia a sua visita ao


sótão, entre velharias: roupas, móveis, cartas,
fotografias, pequenos objectos, alguns bastante estranhos,
como monóculos, caixas de rapé, grafonolas. Tudo coisas que
tinham existido mas que já não havia, tal como já não havia
nenhum dos seus proprietários. Além das histórias, aquilo
era tudo o que ficara das pessoas que tinham vivido na
casa.
E, já ao fim da tarde, encontrou uma fotografia que
compensou o esforço. Veio à janela e pôs-se a chamar o
irmão, ao mesmo tempo que abanava os braços e a fotografia.
- William! Anda cá acima. Anda ver os Grimm.
Aquele nome fez William levantar-se e suspender a
história, para desagrado da pequena Tess. Correu para a
casa, subiu os dois lanços de escadas e, pouco depois,
entrava na penumbra poeirenta do sótão.
- Os Grimm - disse Peter a agitar no ar a fotografia.
O irmão levou-a para perto do postigo, onde havia mais
luz. E viu, na fotografia, os dois irmãos Grimm, com o
Primeiro no meio, junto à fonte de pedra. Procuraram na
mesma arca e encontraram uma outra fotografia de Wilhelm,
sozinho, sentado no chão, a ler.
- Não é nada parecido comigo - comentou William.
- É ao contrário - corrigiu Peter. – Tu é que não és
parecido com ele. E não admira. Afinal, és um Zimmer.
- A rapariga disse que eu sou um Grimm, “aquele que
vê”. E eu a pensar que era aquele que via mal.
Apareceu ainda uma outra fotografia de Wilhelm, a
montar um pónei, algures no parque de Dartmoor. E essa
tinha uma data escrita a tinta azul nas costas: 24 de
Fevereiro de 1799, dia do seu 13.º aniversário.
- 1799? - espantou-se Peter. - Coitado. Aos anos que
ele não faz anos.
william teve um sobressalto.
- Nascemos no mesmo dia - disse. - Temos o mesmo signo,
o mesmo destino? A rapariga disse que eu era outro como ele
49

e que não havia outro há muito tempo. Mas como? Como é que
eu sou outro como ele?
Peter fez um gesto de enfado.
- A rapariga, a rapariga... Já pensaste que podia ser
maluca?
- Não era, Peter. Era apenas estranha, misteriosa,
delicada, linda, perfumada...
Peter fechou uma arca e ergueu no ar uma nuvem de pó.
Depois, encarou o irmão de frente, que desviou o olhar.
- Estás apaixonado, Willy?
-Eu?
William corou e abriu outra vez o baú e pôs-se a mexer
nas fotografias, para disfarçar, e o irmão desatou a rir.
- O Willy está apaixonado - disse muito alto enquanto
caminhava para as escadas.
Tinha começado a escurecer e também para Peter estava
na hora de sair dali. O escuro trazia com ele as coisas que
apenas existem dentro do escuro e ele não queria estar ali
dentro quando isso acontecesse.
À noite, depois de um jantar animado em que Elisabeth
Zimmer contou as velhas histórias da família, os dois
rapazes subiram ao primeiro andar e montaram um laboratório
de observação na janela do quarto de William, que tinha a
melhor vista sobre o jardim. Este queria ver duendes e, se
possível, fotografá-los. Peter, com a ajuda de uns
binóculos velhos que tinha encontrado no sótão, procurava o
fantasma cavador.
As horas passaram e nenhum deles viu o que queria ver.
O cansaço, esse, chegou e passaram a alternar a vigia.
Quando um estava à janela, o outro descansava na cama.
Por volta da uma da madrugada, Peter acordou o irmão.
- Viste alguma coisa?
- Vi.
Os olhos de William “sorriram”.
- Viste um duende? Também os vês?
- Não. Mas alguém anda a cavar. Isso eu sei. Ora vê com
os binóculos, ali ao fundo do jardim, perto do pomar.
50

William correu para a janela e o irmão oríentou-lhe os


binóculos.
- Vês? - perguntou.
- Não. Só o escuro.
Peter agarrou os binóculos.
- Eu vejo. Um vulto a dobrar-se.
Ora aí estava qualquer coisa que só ele via.
- Pode ser uma sombra, um ramo - lembrou William.
- Vê outra vez. Ainda lá está.
William piscou os olhos três vezes. E depois outras
três.
- Nada - disse por fim. - Nem com binóculos nem sem
binóculos.
- E és tu aquele que vê. Vês mal, pá.
Peter voltou a assestar os binóculos.
- Agora, nem eu vejo nada - disse. - Mas vi, vi, como
vi ontem. Andam a cavar ali no jardim. Amanhã há uma nova
marca nas pedras. Vais ver. Tomei nota de tudo na agenda.
Agora vou dormir, mas na minha cama. Não aguento mais. Acho
que já estou a dormir enquanto digo isto.
William tinha espalhado o sono e ficou ainda mais algum
tempo à janela, mas era tarde e o sono também acabou por
vencê-lo, e ele adormeceu encostado ao caixilho da janela.
Foi então que alguém subiu silenciosamente as escadas,
empurrou a porta do quarto dele e entrou.
51

UMAS CERVEJAS A MAIS

- William! William!
Era uma voz distante no meio de um sonho. Ele abriu os
olhos e era outra vez a pequena Tess, descalça e em pijama.
- Tess! O que estás aqui a fazer?
Ela estava pálida. Olhou em volta para ter a certeza de
que ninguém a poderia ouvir.
- O que foi? Viste-os? - perguntou William.
- Não, mas vi da minha janela coisas que iam pelo ar,
das traseiras da cozinha até à Casa das Tralhas.
A Casa das Tralhas era o edifício arruinado onde, nos
tempos áureos da quinta, se fabricaram vinhos, licores,
cidras e geleias. Agora estava atafulhada de tralhas
velhas, mas a mãe deles, sempre que ia entrava, sentia
ainda o cheirinho a geleia de cereja com Kirsch.
- Coisas pelo ar - repetiu William a tentar raciocinar.
- Que coisas?
- Uma lata de bolachas, um pacote de batatas fritas,
latas de Coca-Cola e cerveja, uma caixa de fugdes - disse a
pequena Tess, com o olhar no chão, como se estivesse
envergonhada por estar a dizer aquilo.
53

- Estou a ver - disse o rapaz a imaginar uma fila de


coisas a deslocarem-se sozinhas no ar das traseiras da
cozinha até à Casa das Tralhas. Tinha visto coisas assim
nos filmes de desenhos animados, mas aquilo era a vida
real.
Lembrou-se então do que lhe dissera Preston: “... uma
chávena com leite ou um pote de mel saem pela porta a
deslizar no ar. São eles, também.” Seria isso? Seriam eles?
- Podem ser os duendes - disse. - Tu também não os vês,
apesar de seres uma criança de coração puro, mas viste as
coisas que eles levaram. Percebes?
A pequena Tess abanou a cabeça negativamente.
- Bem, vamos ver se é mesmo assim - disse William. - E,
pelo sim, pelo não, levo a máquina fotográfica.
Pouco depois, William e Tess atravessavam o escuro do
jardim e aproximavam-se cuidadosamente da Casa das Tralhas.
Já perto, ouviram vozes de gente lá dentro, vozes que
falavam e cantarolavam numa língua estranha.
- São eles - murmurou William. - Só pode ser.
De facto, quem mais poderia falar aquela língua? Ou seriam
as tais almas e espíritos que o irmão tanto temia? E a
esses, nem um Grimm os conseguia ver.
O coração dele batia descompassadamente quando subiu
para um caixote de madeira e chegou à janela. A portada de
madeira estava fechada, mas ele empurrou-a um pouco e
espreitou para dentro e viu claramente três duendes a
comerem e a beberem em redor de uma mesa velha, sob a luz
ondulante de uma tocha acesa. Dois deles tinham barbas
negras desordenadas, e um terceiro, que parecia mais novo,
grandes caracóis ruivos e faces rosadas.
William fez um sinal a Tess, que sim, que eram eles, e
depois abriu mais a portada para os ver melhor. Tinham para
aí um metro de altura. Os rostos tinham feições humanas,
sobrancelhas fartas, grandes narizes, um pouco aduncos, e
grandes orelhas pontiagudas, em forma de pêra, todas
cobertas de pêlos. Os pés e as mãos também eram grandes
54

para o tamanho do corpo, embora pernas fossem muito


delgadas. Vestiam roupas toscas de couro, verdes e
castanhas.
Sobre a mesa estavam várias latas de cerveja e
Coca-Cola vazias e ainda um pedaço de tarte de maçã,
bolachas de manteiga, três pedaços de queijos diferentes e
uma caixa de fudges.
O mais novo, de barba rala e caracóis ruivos,
levantou-se a cantarolar uma canção estranha mas animada, e
os outros bateram palmas e fizeram coro. Era uma festança.
Talvez o duende cantor tivesse já exagerado na cerveja,
porque cambaleava e chocava com as cadeiras velhas e outras
tralhas a todo o momento.
Quando tropeçou num ancinho e caiu, os outros desataram
a rir e um deles engasgou-se com um pedaço de tarte e
começou a cuspir e a tossir horrivelmente. E os outros dois
também desataram a rir. Riam por tudo e por nada.
William içou a pequena Tess para cima.
- Estás a vê-los? - segredou ao ouvido dela.
- Não. Mas estou a ouvi-los. E vejo as coisas.
Ela via as latas a mexerem-se sozinhas, os copos a
subirem no ar e a esvaziarem-se, os pedaços de queijo a
ficarem mais pequenos à medida que eram comidos até
desaparecerem de vez no ar. Também ela começou a rir e
William tapou-lhe a boca. Desceram os dois do caixote e
afastaram-se um pouco para poderem falar. William sentou-se
numa pedra e limpou o suor da testa com as costas das mãos.
Na cabeça dele soavam as palavras da rapariga que lia: “És
um Grimm. Aquele que vê. Ao tempo que não há nenhum”.
- Só eu os posso ver. É o que eu estou a ver - disse
ele. – Pois se nem tu, que és uma criança de coração puro,
os consegues ver... O Peter também não os vê. Nem o teu pai
nem a minha mãe. Ninguém. Por isso é que eles passam à
vontade. Só têm de ter cuidado para não chocarem com
ninguém.
A pequena Tess sorriu e encolheu os ombros.
55

Ela tinha acreditado, mas os outros...


- Provas! Preciso de provas. Vou fotografá-los - disse
William a avançar para a janela com a máquina fotográfica.
Voltou a subir para o caixote, ganhou uma posição
favorável, abriu um pouco mais a portada e disparou o
flash.
Lá dentro continuava a festança, mas um dos duendes
barbudos viu o clarão e sentiu a presença de William à
janela. Pôs-se a berrar para os outros e, num instante,
eles calaram-se e ficaram atentos, à escuta.
Depois, puseram-se a arrumar tudo e a meter as latas
vazias e os restos de comida para dentro de um saco. Uma
das regras deles era não deixar marcas nem rasto e, por
isso, em pouco tempo não havia sinal da presença deles,
embora só os dois barbudos trabalhassem. O outro usava
todas as forças que tinha para se manter de pé e balançava
como um barco parado no cais.
William saltou do caixote, puxou a pequena Tess e
afastaram-se um pouco.
- Já vão embora - explicou ele. - Devem ter dado por
nós. Mas uma fotografia deles já cá canta.
Esconderam-se atrás de uma árvore e ficaram à espera.
E, pouco depois, William viu os duendes a sair. Um dos
barbudos amparava o outro e empurrava-o para diante
enquanto o último carregava o saco com os despojos da
festança.
- Onde estão eles? - perguntou Tess, e William fez um
sinal para ela se calar.
Depois, avançou na direcção dos duendes e parou diante
deles. Mas os duendes limitaram-se a evitá-lo,
desviando-se. Estavam a vê-lo, mas pensavam que não estavam
a ser vistos.
William fez um movimento brusco e ficou outra vez à
frente deles.
- Olá! Boa noite! - disse.
Os três duendes ficaram a olhá-lo, muito espantados.
William acenou-lhes, a sorrir.
- Estou aqui.
56

Os dois duendes barbudos trocaram olhares rápidos entre


eles e depressa chegaram à conclusão espantosa de que
estavam a ser vistos.
Ou seria da cerveja? Começaram a falar nervosamente na
incompreensível língua deles, sem desviar os olhos de
William.
- Estou aqui. Sou amigo. Não fujam. Não quero fazer-vos
mal mas vejo-vos - disse o rapaz. - Sou aquele que vê.
Eles recuaram, assustados. Um dos barbudos caiu e o
ruivo, nada preocupado, desatou a rir agarrado à barriga.
- O que estão a fazer? - disse Tess. - Tenho medo.
William abraçou-a.
- Não tenhas medo. Eles é que estão com medo de nós.
Era verdade. O duende barbudo levantou-se e encostou-se
ao outro, que também se encostou a ele.
Por fim, desataram os três a correr com uma rapidez
inesperada e depressa desapareceram no escuro. Mas o duende
ruivo não estava em condições. Enrodilhou-se numa hera e
caiu e levantou-se e voltou a cair.
Os outros dois voltaram atrás, mas William avançou e
eles voltaram a esconder-se atrás das moitas de urze e
ficaram à espera. Então, o rapaz ajudou o duende ruivo a
levantar-se e sentiu a sua carne dura. Era real. E também o
seu cheiro forte, a cerveja, bosta de boi, fumo da lareira
e suor de duende, tudo misturado.
O duende encarou-o, com as pernas abertas, a tentar
equilibrar-se.
- Amigo - disse William. - Sou teu amigo. Não tenhas
medo. Percebes?
- Amigo - repetiu ele correctamente.
Saberia a língua dele ou só saberia repetir palavras?
- Estou mesmo a ver-te, não é da cerveja - explicou o
rapaz. - Percebes o que estou a dizer? Falas a nossa
língua?
O duende ficou muito sério, como se tivesse, de
repente, caído em si.
- Como é que me vês? - perguntou, com uma pronúncia
correcta.
57

- Vejo. És um duende ruivo de cabelo encaracolado com


um fato de couro castanho que tem uma nódoa de cerveja. O
teu cinto rebentou e as pontas estão a balançar. Dizem que
sou um Grimm.
- Um Grimm? - repetiu o duende a fazer uma grande
vénia.
Depois, pôs um joelho em terra e baixou a cabeça, e
cumprimentou o rapaz com a reverência com que se
cumprimenta um rei ou um imperador. Quando se ergueu, com
muita dificuldade, disse:
- Acho que exagerei nas cervejas. Não estou habituado,
foi a minha primeira viagem. Lá não há disto.
William aproveitou e perguntou:
- Lá, onde? De onde vens? O que andam vocês aqui a
fazer? O que é um Grimm?
- Tenho de ir embora - disse o duende a tentar apertar
o cinto, que tinha rebentado.
- Para onde?
- Para casa.
- No Outro Lado? Também vais para o Outro Lado?
- Sim.
- E o que é? Onde é o Outro Lado?
Os olhos piscos do duende varreram o escuro, à procura
dos companheiros. Não os viu, mas um deles assobiou e ele
respondeu com outro assobio.
- Não posso responder-te. Alguém virá e fará isso, fica
descansado. Talvez ainda não se saiba que há aqui um novo
Grimm.
William respirou fundo, a ganhar paciência. Também a
rapariga lhe tinha dito o mesmo, que alguém viria e
responderia às perguntas dele.
- Se fores ao Outro Lado e precisares de um ajudante,
de um guia, de um amigo, de um escudeiro, pergunta pelo
Fric - disse o duende.
- És tu?
- Sou.
58

Acendeu-se uma luz na casa dos caseiros e Alicia


apareceu à porta, muito aflita, a chamar a filha.
- Tess! Tess!
Alicia aproximou-se, a caminhar no escuro, e Tess
escondeu-se atrás de William, receosa.
Os dois duendes barbudos aproveitaram e desataram a
correr e arrastaram o outro com eles. Num instante,
desapareceram os três no escuro mais escuro do jardim.
- Esperem - disse William. - Quem é que vem falar
comigo? O que tenho de fazer? Onde fica o Outro Lado?
As perguntas vogaram no ar e o vento as levou.
Alicia repreendeu a filha e levou-a para dentro, a
resmungar. Como ela ameaçou acordar a mãe dele, William
também regressou à casa, e então lembrou-se da fotografia.
Ele tinha feito uma fotografia dos três duendes.
Veio até ao escritório da mãe, sem fazer ruído, ligou a
máquina ao computador e viu a fotografia que tinha tirado
aos três duendes na Casa da Tralha. Era uma boa fotografia,
com todos os pormenores bem definidos. Lá estava a mesa com
os queijos, os fudges e as latas de cerveja, mais todas as
tralhas em volta. Dos três duendes é que não havia sinal.
- Como é possível ? - murmurou William, completamente
desalentado. - Nem as máquinas fotográficas os vêem.
59

TRÊS COISAS ESTRANHAS DEPOIS DO ALMOÇO

Na manhã seguinte, Peter foi o primeiro a acordar.


Adorava o dia, com a sua definição das coisas. Olhava para
o jardim e só via o que realmente existia: árvores, fontes,
flores, ervas dispersas, abóboras a secarem ao Sol.
A pequena Tess encontrou-o a conferir as pedras com
marcas e contou-lhe, à sua maneira, os extraordinários
acontecimentos da noite anterior.
William também acordou cedo. Sabia que a mãe ia a
Plymouth buscar o irmão, Nathan Zimmer, que vinha passar
uns dias à quinta. Passava em Tavistock e ele queria voltar
à biblioteca. Tinha a esperança de voltar a ver a rapariga.
De certeza que ela não tinha acabado de fazer o que estava
ali a fazer, fosse o que fosse.
Peter veio procurá-lo. Queria ouvir todos os pormenores
do que acontecera na noite anterior, mas isso havia de
ficar para mais tarde. William estava decepcionado por os
duendes não aparecerem na fotografia, o que havia de levar
o irmão a acreditar de vez que eles não eram apenas visões.
E também o inquietava aquela ideia do Outro Lado. Por mais
que se olhasse para todos os lados, não se via mais lado
61

nenhum. Por outro lado, pensou, de algum lado os duendes


haviam de vir, para algum lado eles haviam de ir.
- Há outro lado, Peter. E não é longe, digo-te eu. É de
lá que eles vêm, é para lá que eles vão.
- O outro lado - repetiu Peter, como se estivesse à
espera que as palavras lhe dissessem o que elas queriam
dizer. - Mas o outro lado de quê?
- Não sei - respondeu William. - Se a Alicia não
tivesse aparecido, talvez o tal Fric me tivesse dito.
- William, sempre queres vir? - gritou a mãe ao fundo
das escadas.
- Já vou, já vou.
- Vais à procura da rapariga? - perguntou Peter com um
sorriso malicioso.
William corou e baixou os olhos para o chão.
- Ontem ela teve de sair à pressa da biblioteca. Talvez
tenha de voltar.
- Além disso, talvez estejas apaixonado - disse Peter.
- Lá estás tu! - reagiu William num tom exaltado. -
Preciso de saber coisas, mais nada. Há um mistério à volta
dela e é o mesmo mistério que anda à minha volta.
- Pois sim, e estás apaixonado, embora ainda não tenhas
idade para isso - insistiu Peter.
- Há idade para isso?
- Há idade para tudo. E tu ainda te interessas por
fadas e duendes, que é para menores de seis anos. Também
isso não é coisa para a tua idade.
William encarou o irmão, com um ar grave.
- As coisas estão a acontecer, Peter. E agora ninguém
pode pará-las. Nem eu.
A mãe fez soar a buzina do carro e William apressou-se.
- Esquece-a, Willy. Se te apaixonares, estás perdido.
Às tantas, também só tu é que a vês. Vais sempre parecer um
tolinho que fala sozinho.
62

- Quero lá saber disso - respondeu William a descer as


escadas. - Se não voltar a vê-la, se nunca se resolver o
mistério dela também vou ficar tolinho a falar sozinho.
Peter seguiu o irmão.
- Faz força para te esqueceres - disse. - É melhor.
William olhou para trás uma última vez.
- Quem me dera poder - disse. - Mas posso esquecer-me
de respirar?
Durante a viagem até Tavistock, William e a mãe pouco
falaram. Durante a maior parte do tempo ela foi a falar ao
telefone, em alta voz, com o advogado, e depois foi o resto
do tempo a vociferar contra os advogados em geral e a
lamentar-se por não ter tempo nem cabeça para escrever a
sua história.
Eram quase dez horas da manhã quando ela deixou o filho
à porta da Biblioteca Municipal de Tavistock e, sempre a
resmungar, seguiu para Plymouth.
William aproximou-se rapidamente da porta e cheirou o
ar. Mas não lhe cheirava a nada, só a mofo e a pó de
livros, como habitualmente. Mesmo assim, entrou e percorreu
todos os cantos e recantos da biblioteca. Mas não havia
sinal da rapariga que lia.
Sentou-se então na sala principal com dois livros na
mão e esperou, sempre a aspirar o ar, na esperança de ver
chegar o tal perfume. Cinco minutos antes do meio-dia, hora
a que a biblioteca fechava para o almoço, a Sra. Peei
começou a arrumar as coisas e ele levantou-se e veio até à
recepção, onde o Sr. Beckford também se preparava para
sair.
- Por acaso não viu aquela rapariga que estava aqui
ontem comigo a ver o livro dos Grimm? - perguntou.
O Sr. Beckford largou o que estava a fazer e olhou-o de
frente.
- Ainda bem que me perguntas isso - disse. - Estavas
sozinho e falavas como se estivesses com alguém. E depois
saíste sozinho a falar para ninguém. Dizes tu que estavas a
falar para uma rapariga?
63

- Não - disfarçou William. - Estava a falar com os meus


botões, como dizia a minha avó.
- Bem me parecia.
William saiu para a rua, a pensar naquilo. Afinal,
também só ele via a rapariga que lia. Logo, ela era da
mesma matéria que os duendes e as fadas, que mais ninguém
via, apesar de ser uma rapariga quase igual às outras que
ele conhecia.
Isso explicava a sua estranheza, a sua beleza, e também
o seu perfume e a sua delicadeza de flor, mas era
frustrante. Com tantas raparigas neste mundo, porque havia
ele de gostar de uma rapariga de um outro mundo?
Estava calor, muito calor, mas as nuvens juntavam-se no
céu e parecia que havia electricidade no ar. Ele caminhou
ao acaso pelas ruas, entregue aos seus pensamentos.
Sentia-se pesado, como se carregasse um fardo. Seria o
fardo do amor?
À cabeça dele chegavam perguntas, perguntas, perguntas.
Podia ouvir o rumorejar delas dentro da sua cabeça, como se
fosse um enxame de insectos voadores. Quem era a rapariga
que lia? De onde vinha? E o que fazia ali? Lia? Não haveria
livros no mundo dela, algures no Outro Lado? Porque não
podia olhar de frente para o seu rosto? Porque não podiam
eles voltar a encontrar-se? Porque lhe chamavam Grimm?
Porque via ele o que mais ninguém via?
Passou junto à estátua de Francis Drake, ao lado das
ruínas da abadia medieval, e caminhou ao longo da margem do
rio Tavi. Daí seguiu até ao centro, onde tinha combinado
encontrar-se com a mãe. E quando chegou à Bedford Square,
um delicado aroma de rosas chegou ao seu nariz e
sobressaltou-o.
Era ela, teve a certeza. Ela passara por ali, ou estava
perto. Ficou de nariz no ar, à procura de um rasto no ar
para seguir. Agitado, entrou numa loja de ferragens, numa
confeitaria, numa tabacaria e, por fim, numa loja de livros
usados e antigos que a mãe costumava frequentar.
Empurrou a velha porta de madeira, que rangeu
aflitivamente, e foi então que aquele perfume maravilhoso
acariciou o
64

Seu nariz. Um simples aroma e todas as emoções regressaram


e coração disparou, como se alguém tivesse acabado de lhe
dar corda com toda a força.
Entrou, varreu a sala pequena atafulhada de livros e lá
estava ela a rapariga que lia, no centro do seu perfume,
sob a escadaria central de madeira que levava ao primeiro
andar. Trazia os mesmos jeans demasiado largos e a mesma
t-sbirt de carapuço do dia anterior. E estava outra vez a
ler daquela maneira ávida e apressada.
A rapariga ergueu o olhar do livro. Viu William e, no
mesmo instante, protegeu instintivamente o rosto com as
duas mãos. Assim, à primeira vista, não parecia contente
por voltar a vê-lo, ou por voltar a ser vista. Ainda assim,
William reparou que ela corara e as maçãs do rosto pareciam
agora duas fogueiras pequenas acabadas de acender.
O Sr. Irving, um homenzinho baixo e redondo com um tufo
de cabelos brancos de cada lado da cabeça, desceu as
escadas de madeira vindo do primeiro andar com um livro na
mão.
- Boa tarde - disse William a aspirar ar com força pelo
nariz, como se quisesse embebedar-se de perfume de rosas.
O velho livreiro reconheceu-o.
- Viva! Vens com a tua mãe?
- Hoje não. Queria ver uns livros sobre duendes,
gnomos, criaturas maravilhosas. Ela disse-me que poderia
encontrar alguns aqui.
- Vai procurando, nesta estante - disse o homem a
preparar-se para sair. - Eu já volto. Vou aqui ao lado, ao
Barney. Está na hora do meu cornish...
William sorriu e anuiu com um movimento da cabeça. Era
mesmo uma óptima ideia.
A rapariga pousou o livro que estava a ler e sentou-se
num degrau da escada, à espera, sempre a proteger o rosto.
O Sr. Irving foi na direcção do sítio onde ela estava e
arrumou o livro que ela estava a ler no sítio certo. Para
ele, todos aqueles livros tinham um sítio certo. As pessoas
perguntavam por um livro, fosse qual fosse, e ele ia
65

direito ao sítio onde ele estava.


- Hoje, parece que os livros têm pernas e saem do sítio
- disse. - Já é o terceiro que vai de um lado ao outro sem
ninguém lhe mexer. É estranho. Bem, vou andando. O Barney
vai estranhar ver-me chegar atrasado. Não sei o que se
passa hoje, mas o tempo está a passar mais depressa. Quem
está parado no meio de livros velhos tem tempo para sentir
essas coisas.
A rapariga levantou-se e deslocou-se para uma zona de
penumbra.
William começou a procurar livros numa estante, sempre
com ela debaixo de olho, não fosse desaparecer por encanto.
- É estranho - disse o Sr. Irving antes de sair. - Há
aqui um perfume agradável, talvez deixado por alguma
senhora. E isso ainda é mais estranho porque não esteve cá
nenhuma hoje. Sentes? Parece que, de repente, alguém pousou
aqui no centro da loja um ramo de rosas. E onde está ele,
não é?
William abanou a cabeça afirmativamente.
- Cheira bem, realmente.
- Pois é. Aos anos que estou aqui metido e nunca
acontece nada e agora aconteceram três coisas estranhas
depois do almoço. O tempo ficou assim estranho de repente,
acelerado, até avariou o meu relógio, que nunca se atrasara
ou adiantara um minuto em mais de cinquenta anos; depois,
os livros começaram a mudar de sítio sem ninguém lhes mexer
e agora nasceu aqui este perfume.
William olhou para o relógio dele. Aparentemente,
estava normal.
- Eu já volto - disse o Sr. Irving a abrir a porta. -
Fica à vontade. De certeza que não aparece mais ninguém. Já
ninguém quer saber dos livros. Apenas estão aqui a
envelhecer, eles e eu.
66

PARA ONDE VAI O NOSSO TEMPO

Quando o Sr. Irving bateu a porta, a rapariga tentou


escapar mas William barrou-lhe o caminho.
- Espera - disse ele. - Vim à tua procura porque não
paro de pensar em ti e no que me disseste.
Ela escondeu o rosto.
- Não devias ter olhado a minha cara de frente. Avisei-
te. E eu também não devia ter olhado a tua. Fizemos mal os
dois.
Ele aproveitou para se aproximar e ficou no centro de
uma nuvem de perfume. Os olhos dele procuraram avidamente
os dela, mas não os encontraram. Ela esquivara-se com um
movimento ágil.
- As pessoas não te vêem - disse ele. - Não te viram na
biblioteca, não te vêem na rua, não te viu o homem da
livraria. Vejo-te eu porque também vejo os duendes. Ou não
é?
Ela recuou. Ele continuou a avançar. E prosseguiu:
- Ontem à noite vi três duendes que só eu podia ver,
como só eu te vejo a ti. Falei com um que me disse que ia
a caminho do Outro Lado. É para lá que vais também? E é por
isso que não te posso olhar de frente, porque és do Outro
Lado e eu deste?
67

Ela resguardou-se num canto e protegeu a cabeça com o


carapuço da t-shirt.
- Fazes sempre tantas perguntas - disse, como um
lamento.
- São sempre as mesmas. Quem és tu? De onde vens? Para
onde vais?
- Tu sabes isso? - perguntou ela. - Quem és? De onde
vens? Para onde vais?
- Sei que sou o William, venho de casa e vou para casa.
Pelo menos isso sei.
- Eu também. Chamo-me Ariteia, venho de casa e vou para
casa.
- No Outro Lado?
- Sim. No Outro Lado. Já devia lá estar. Não sei o que
se passa hoje com o tempo, com as horas... Pensei que
estava aqui há duas horas das vossas e já lá vão quase
três.
- É do tempo de trovoada. Há magnetismo ou
electricidade no ar. Podemos apanhar um choque, se
respirarmos com força. Até os relógios avariam. Mas não vás
ainda. Temos de falar.
- Não posso. Tenho o tempo contado e não devia sequer
cá estar. Não se pode, percebes? É proibido. Só os duendes
e algumas fadas podem passar, mas esses andam a trabalhar.
- A trabalhar em quê? E o Outro Lado é outro mundo, com
outro céu, e com outro Sol?
- É aqui, bastante perto, e é outro mundo, com outro
Sol e com outro céu. Há tantos. Milhões, biliões, triliões
de Sóis e mundos diferentes.
William engoliu em seco. Gostava mais de pensar que
havia só um Sol, e todos os mundos dispostos à volta dele,
como uma família à volta da lareira numa noite de Inverno.
Agora ela dizia-lhe que havia milhões de Sóis e mundos
diferentes e isso confundia-o.
Um homem de fato escuro com uma pasta na mão entrou na
livraria a limpar com um lenço o suor da testa.
Cumprimentou William e pôs-se a olhar em volta.
- O Sr. Irving foi ao Barney, aqui ao lado - avisou
William.
- O diabo! - queixou-se o homem a arfar. - Logo hoje
que estou tão atrasado. Volto mais tarde.
68

Todas as pessoas, nesse dia, andavam assim, apressadas,


desorientadas. Seria do magnetismo no ar? Afinal, as
pessoas também dependem de mecanismos, como os relógios.
Porque não haveriam de avariar?
O homem do fato escuro saiu apressadamente e a rapariga
aproveitou e saiu atrás dele. William seguiu-a. Ela tinha
um passo rápido e ele teve de correr para a apanhar. Era
capaz de a seguir de olhos fechados, só seguindo o rasto do
seu perfume.
Mais adiante, cruzaram-se com o Sr. Irving, que
regressava à livraria.
- Já vais? - perguntou ele. - Não encontraste os teus
livros?
- Depois volto. Hoje estou com pressa - respondeu o
rapaz.
O velho livreiro sorriu. Quem é que não estava com
pressa naquele dia? No Barney tinham-no despachado.
Costumava estar lá um quarto de hora, por vezes mais,
quando lhe pediam opiniões sobre futebol, o tempo ou a
história da região. Mas hoje tinham-no corrido em menos de
cinco minutos.
A cidade acelerara de repente, isso era verdade. E nem
ele sabia porque ia tão apressadamente para a livraria.
Costumava parar na florista para dois dedos de conversa, ou
na tabacaria, e passara por lá sem se deter.
A rapariga foi até ao fim da rua com o seu passo rápido
e miúdo, evitando agilmente as pessoas que se cruzavam com
ela. A cidade, habitualmente calma, estava frenética e as
pessoas corriam velozmente de um lado para o outro. “Onde
está a velha calma?”, pensou William, a lembrar-se de ouvir
a mãe dizer que ali o tempo passava mais devagar.
Atravessaram um jardim, passaram sob uma ponte de pedra
e desembocaram numa praça antiga. De vez em quando, a
rapariga sacudia as abelhas que namoravam a sua pele.
Abelhas, moscas e outros insectos perseguiam-na, como se
ela fosse uma flor fresca e viçosa carregada de pólen.
Também havia uma garça branca no ar, sobre a cabeça deles,
que os seguia há algum tempo. Não era normal ver uma garça
ali, à altura dos telhados das casas, mas só eles deram por
isso. Mais ninguém ousava levantar a cabeça para ver a
garça. Todos tinham mais que fazer.
69

- Não sei o que se passa hoje com esta cidade - disse


William a esforçar-se por não fazer mais perguntas. - Está
tudo louco.
- Escuros! - disse a rapariga. - São eles que põem o
tempo a correr para poderem roubá-lo.
William sorriu, como se estivesse no meio de uma
brincadeira.
- Quem são esses? Também são do Outro Lado?
- São.
- E andam por aqui?
- Suponho que sim. No escuro. Mas esses, nem tu, que
vês, os consegues ver.
- E como podem roubar o nosso tempo? Afinal o que é
isso, o tempo? Como é? Onde está? Não se pode agarrar. É o
mesmo que roubar ar, acho eu.
A rapariga riu de uma maneira encantadora e o seu riso
fininho e cristalino ficou a vibrar no ar durante algum
tempo, como uma música.
- E não podes encher um frasco com ar? - perguntou. Ele
esperou que o som da voz dela se apagasse no ar. Depois,
respondeu:
- Posso. Um frasco vazio está sempre cheio de ar. Na
verdade, nunca está vazio.
- Então também podes encher um frasco com tempo e
levá-lo. Há muitas coisas que se fazem que são fáceis para
quem as faz. Roubar tempo é fácil para quem sabe roubar
tempo.
Tinham saído dos limites da cidade e iam a caminhar na
berma da estrada para Ivybridge.
- Viste como as pessoas corriam de um lado para o
outro, enquanto diziam “Estou atrasado, não tenho tempo”? -
perguntou ela.
- Vi.
- Como é que não têm tempo? Talvez queiram dizer que
não têm tempo para ter tempo. Ora, se elas não têm tempo, o
tempo também não as tem a elas. Percebes? É por não
quererem perder tempo que o tempo se perde. Depois, dizem
que o tempo passa, quando elas é que passaram por ele a
correr.
70

- E também dizem que o tempo voa - acrescentou William.


- Dizem bem, porque não chegaram a dar por ele. Sabem
que ele passou pelos relógios e pelos calendários. Mas
poucos deram por isso. Depois de se fazer tudo à pressa,
fica o vazio. “Ter-me-ei esquecido de alguma coisa?”, dizem
as pessoas a olhar para trás. E sabes de que se esqueceram
elas? Do seu tempo. É esse que os Escuros apanham e levam
para o Outro Lado. Guardam-no numa caixa forte a que chamam
“Banco do Tempo”.
- Então, o tempo, é melhor perdê-lo - disse William
baixinho, com medo de estar a dizer uma asneira.
Não estava.
- Se o perderes, ele encontra-te - disse ela. - Quando
isso acontece, acertamos o nosso relógio com o relógio da
Natureza e damos horas certas.
- Onde aprendeste isso? - perguntou ele,
verdadeiramente admirado. - Deste lado ninguém nos ensina
essas coisas.
Ela parou de caminhar.
- Agora não me sigas mais - disse. - Fica aqui, por
favor.
- Não posso - disse ele, muito naturalmente. Ela abanou
a cabeça, contrariada. Ou talvez não.
- Não devias ter olhado para a minha cara - disse.
Depois, afastou-se da estrada e embrenhou-se nos campos,
sempre seguida por William.
O silêncio era agora como uma mão fresca que os
afagava. Quando chegaram à base de uma colina rochosa, ela
parou, enfim, de caminhar.
- Temos de nos despedir aqui - disse.
- Não! Ainda me falta saber tanta coisa...
- O quê?
- A verdade.
Ela suspirou profundamente.
- Para te dizer a verdade, tenho de revelar muitos
segredos, e isso tem um preço. Depois de a saberes, não
podes partilhá-la com ninguém.
- Isso é fácil. Já guardei muitos segredos.
71

- Não um segredo deste tamanho. Este é tão grande que


pode não caber dentro de ti.
- Eu sou capaz. Basta estar calado, não?
- É, mas um segredo destes é como uma coisa viva. Mexe
dentro de ti, faz-te cócegas por dentro, que são
impossíveis de coçar. E quando adormeces, fala aos teus
ouvidos: “Conta-me! Conta-me!”
Os olhos de William brilharam.
- Não há problema. Sou bom a guardar segredos. Já
guardei muitos. Alguns eram enormes. Podes contar-me todos
os segredos que quiseres.
O Sol escondera-se atrás de uma fieira de nuvens e
havia uma névoa rastejante que dava ao local um ambiente
estranho. Ela sentou-se numa pedra e inclinou-se para
diante.
- Só te digo a verdade porque, no fundo do teu coração,
tu já acreditas nela, tal como já acreditavas na existência
dos duendes antes de os veres. De facto, é como se já a
soubesses. Só que ainda não sabes que a sabes. Por isso,
diz-me o que queres saber. Uma pergunta de cada vez. E
contenta-te com a resposta que eu der. Não queiras saber
mais do que isso.
- OK - disse ele. - Quem és tu?
- Já te disse que me chamo Ariteia, que na língua do
meu povo quer dizer “nascida da rosa”.
- Isso nota-se - disse ele a aspirar, deliciado, uma
golfada de ar. - Prefiro saber quem és, a tua história, e o
que vens aqui fazer se vives no Outro Lado.
Ela respirou fundo, a ganhar fôlego. Depois disse:
- A minha história é uma história mil vezes contada, ou
eu não estaria aqui. Atrás de cada um de nós, que vivemos
no Outro Lado, há sempre uma história. O Grimm dizia que
nós éramos o Povo das Histórias. Também é por isso que
falamos as vossas línguas. Porque são as línguas das
histórias.
- Mas porquê? Também não percebo...
- Depois te explicam. Isso e o resto. Agora ouve a
minha história.
72

10
O OUTRO LADO É SEMPRE O OUTRO LADO

Ariteia, a rapariga que veio do Outro Lado, começou a


contar a sua história e tudo em volta susteve a sua marcha,
como se tudo também estivesse suspenso das suas palavras.
- A minha mãe, a Rainha do Reino da Rosa, numa noite de
Verão em que estava muito calor, foi dormir no roseiral do
palácio. Quase um ano depois, nasceram duas meninas lindas.
Ambas tinham uma rosa desenhada na testa.
William estremeceu. Uma princesa! Aquela rapariga era
uma daquelas duas princesas, filhas da Rainha do Reino da
Rosa. A Princesa Ariteia. Já tinha reparado na pequena rosa
na testa dela, numa altura em que a franja de cabelo que a
cobria se deslocara.
Ela sacudiu as abelhas, agitando os braços, e
continuou:
- As duas princesas cresceram e eram conhecidas pela
sua beleza delicada. Quem via os seus rostos de frente à
luz do dia ficava enfeitiçado e não conseguia pensar em
mais nada. Todas as pessoas que viam as princesas
apaixonavam-se por elas, embora elas não pudessem
apaixonar-se por ninguém daquele mundo.
73

William sentiu uma vontade de perguntar: “E deste lado?


E deste lado?” Mas aguentou-se e ficou calado. Não queria
perder uma única daquelas palavras, nem que fosse por estar
a pensar.
Ela prosseguiu:
- As princesas eram amadas mas não podiam amar. Era
esse o preço da sua beleza. E então perceberam que ela era,
afinal, uma condenação, já que tinham de viver escondidas e
raramente tinham sossego. Por isso, passaram a viver
fechadas numa das torres do palácio e, quando saíam à rua,
tapavam o rosto com um véu. Ainda assim, havia sempre quem
passasse as noites e os dias de olhos postos nas janelas da
torre, na esperança de as ver, por um momento que fosse. E
tanto se espalhou a fama delas que, um dia, ela chegou ao
coração do Escuro e o Rei do Reino do Sol Negro, que ocupa
cerca de metade do Outro Lado, mandou raptar as princesas,
que foram levadas para o seu castelo, nas profundezas da
escuridão. Estás a ouvir?
- Estou.
À medida que falava, a voz dela enfraquecia.
- Continua - pediu ele. - Não pares.
Ela tossiu, para aclarar a voz, e continuou:
- A Rainha do Reino da Rosa pediu a ajuda de todos os
reinos em volta. E foi assim que partiram grandes
expedições para o Reino do Sol Negro, mas todas elas foram
derrotadas em grandes batalhas, no centro da escuridão. Foi
então que a Rainha, em desespero, ofereceu ao Rei do Reino
do Sol Negro a segunda chave da caixa que guarda a magia
negra em troca da libertação das princesas. Ela sabia que
ele ambicionava ter as três chaves da caixa que guarda a
magia negra.
- E que caixa é essa? - interrompeu William, incapaz de
se conter.
- Perguntas bem. Mas essa é outra história, e, por
acaso, diz-te respeito - respondeu a Princesa.
- A mim?
- Sim. Ouve essa outra história: em tempos houve uma
guerra brutal entre todos os reinos do Outro Lado. Durou
tempos e tempos. Quando, enfim, se alcançou a paz, foi
74

decidido que a magia negra, que tantos males causara, nunca


mais seria usada, por isso a encerraram numa caixa que foi
fechada com três chaves. Duas delas foram entregues a cada
uma das metades, a clara e a escura, e a terceira foi
entregue ao Grimm, que muito os tinha ajudado a alcançar a
paz.
- Qual Grimm? - perguntou William, e logo a seguir
tapou a boca com uma mão.
- Era um dos irmãos Grimm. O Wilhelm - explicou ela,
pacientemente.
- Quem? O que escreveu a dedicatória no livro que te
mostrei? O Wilhelm Grimm?
- Sim. Era ele que tinha o dom. Foi o primeiro a ir lá,
ao Outro Lado.
- O Wilhelm... - murmurou William, a lembrar-se da
dedicatória no livro do tio Carl, que lhe “abriu as portas
de um novo mundo”.
Era mesmo assim, afinal. Um outro mundo, com outro Sol
e outro céu.
- Ele foi o primeiro e o último, já que não houve mais
nenhum - continuou ela. - No fim, trouxe as histórias que
todos vocês conhecem e nos mantêm vivos. E trouxe também a
terceira chave da caixa da magia negra.
- E em que é que isso me diz respeito? - perguntou
William, agitado. - Não estou a ver...
- Espera. Agora temos de voltar à outra história. Onde
é que eu ia?
Ele sabia.
- A Rainha do Reino da Rosa ofereceu ao Rei do Reino do
Sol Negro a segunda chave da caixa da magia negra, que
estava à guarda dela.
- Pois foi, e ele aceitou a troca porque a sua maior
ambição era reunir as três chaves e reabrir a caixa da
magia negra. E ter duas chaves era o melhor caminho para
chegar às três. Foi assim que, certa noite, chegou ao
coração do Escuro um mensageiro com a segunda chave.
75

O Rei do Reino do Sol Negro, a quem também chamam “Criança


Terrível”, deixou partir as princesas. Mas, logo a seguir,
arrependeu-se da decisão e só deixou partir uma delas,
quebrando o acordo. E foi assim que, pela primeira vez na
vida, as duas irmãs foram separadas.
A Princesa Ariteia calou-se e fez-se um silêncio tão
profundo que William ouviu o som de uma lágrima a cair na
terra.
- Tu és a que regressou - disse ele. - Essa Criança
Terrível... Não é esse que anda a roubar o nosso tempo?
Ela recompôs-se.
- Nem mais. E é para isso que a Criança Terrível o
quer: para ser uma criança. Embora tenha a idade e a
experiência de vários adultos, continua a ser uma criança.
E terrível, já te digo. A maior parte desse tempo que vos é
roubado vai direitinho para a cozinha do palácio dele. Duas
ou três empadas ou bolinhos de tempo, uma fatia de pudim de
tempo e duas colheres de xarope de tempo, e é um dia que
passa sem passar por ele.
- Estou a ver - disse William. - Ele usa o tempo
roubado como contratempo.
- Nem mais - continuou ela. - E em vez de crescer,
decresce. Quer dizer, não cresce nem decresce. O tempo
passa, ele fica. É criança há uns trezentos anos dos
vossos.
- Chiça! Aqui também há crianças terríveis, mas nenhuma
com trezentos anos. Nunca são crianças terríveis muito
tempo.
A garça branca quase roçou a cabeça da rapariga num voo
baixo, como se estivesse a avisá-la, e ela apressou-se.
- Ora, a Criança Terrível ficou numa fúria por a
Princesa se recusar a olhá-la mesmo quando lhe ofereceu a
cadeira de rainha do seu mundo negro. E então condenou-a à
morte.
Fez-se novo silêncio, com a rapariga a tentar recuperar
a voz, que se lhe sumira. Quando recomeçou, era só um
fiozinho, e ele aproximou-se mais dela e ficou outra vez à
escuta, como se nada mais restasse do mundo além daquela
voz.
- Então a Criança Terrível pediu à Princesa que
dissesse as suas últimas palavras. Palavras! Era tudo o que
lhe restava e ela agarrou-se a elas como se fossem a sua
76

tábua de salvação. Por isso, contou-lhe uma história.


“Sabes mais histórias dessas?”, perguntou ele a certa
altura, completamente fascinado. Afinal, a Criança Terrível
era uma criança e, embora não o soubesse, adorava
histórias, como todas as crianças. “Se me contares uma
dessas todas as noites, deixo-te viver”, disse. Ora, a
Princesa tinha a cabeça cheia de histórias, ou não tivesse
ela passado a vida fechada numa torre a ler histórias que
descreviam a vida, em vez de a viver. Mas o tempo foi
passando e, a certa altura, já estava a repeti-las. As
crianças gostam de ouvir muitas vezes a mesma história.
“Conta-me aquela outra vez”, pedem à noite. Mas a Criança
Terrível exigia sempre novas histórias. A Princesa passou a
inventá-las e pediu ajuda às criaturas do reino, que também
começaram a inventar histórias para ela. E todas as noites
o Mago do reino, na forma de um corvo negro, voava para o
Escuro e levava as histórias com que a Princesa alimentava
a Criança Terrível e a sua própria vida. Mas o tempo
continuava a passar, excepto para a Criança Terrível, é
claro, e, por fim, até os imaginadores do reino se
esgotaram e não conseguiam inventar mais histórias. Alguns
chegaram mesmo a enlouquecer. Além disso, nem todos podiam
estar sempre a inventar histórias. Tinham os seus assuntos
para tratar, as suas famílias para cuidar, as suas vidas
para viver.
- É isso que vens cá fazer? - interrompeu William. -
Vens procurar histórias para a tua irmã? E parece que a tua
história chegou ao fim, embora ainda não tenha acabado.
- Sim - disse ela -, acabou mas continua.
A garça voltou a roçar a cabeça deles e a Princesa
levantou-se e sacudiu uma borboleta que tinha pousado na
ponta do seu nariz.
- Agora sabes o que vim cá fazer - disse. - Mas não o
podes contar, seja a quem for, ou um grande mal cairá sobre
mim.
- No Outro Lado?
- No Outro Lado.
William deu uma volta sobre si mesmo, sem sair do
sítio.
- Quem me dera perceber onde fica o Outro Lado - disse.
77

Ela sorriu de um modo encantador e o ar, em volta dela,


resplandeceu. Depois disse:
- Só te posso dizer que, se estou aqui, como agora
estou, lá é o outro lado; quando estou lá, é este o outro
lado. É esquisito, mas a verdade é que, se andarmos de um
lado para o outro, nunca chegamos ao outro lado. O outro
lado é sempre o outro lado. E quanto ao segredo? És capaz
de o guardar?
- Não há problema - respondeu William, muito seguro de
si. - Também, quem iria acreditar? Nem o meu irmão.
O Sol furou as nuvens e arrancou luz das pedras, das
árvores. De repente, tudo brilhava.
William respirou fundo e olhou em volta à procura de
qualquer coisa que lhe garantisse que o mundo dele ainda
ali estava, e que era ali, naquele lado, que tudo aquilo
continuava a passar-se. Piscou os olhos três vezes e ali
estava ele, o seu mundo de sempre, só que agora havia
brilhos inesperados nas coisas.
“Uma princesa! Ontem falei com um duende e hoje com a
Princesa do Reino da Rosa”, pensou William, a saborear o
momento. Um momento tão dele que nenhum Escuro conseguiria
roubar.
E então o tempo encontrou-o e entrou nele e ele era o
tempo.
78

11

SER OU NÃO SER GRIMM

A Princesa Ariteia começou a subir a colina e William


acompanhou-a. E então reparou que a sombra dela caminhava
sozinha, não havia outra ao seu lado.
- Onde está a tua sombra? - quis ele saber, intrigado.
- Essa nem eu vejo.
- Não tenho - respondeu ela. - Somos criaturas
elementais. A luz atravessa-nos. A ti, não. Esbarra nas
tuas costas, que não a deixam passar. A tua sombra é esse
bocadinho sem luz no meio da luz. É por isso que, no Outro
Lado, vos chamamos assim: sombras.
- Sombras?
- Sim. Vocês são vocês e a vossa sombra.
- Essa é boa - disse o rapaz. - Para nós, as sombras
não existem. Apenas fazem o que nós fazemos, mais nada, e
acompanham-nos, ora atrás, ao lado, à frente.
A Princesa Ariteia não tinha a certeza que fosse assim.
- Já reparaste que ela, se falasse, poderia dizer o
mesmo?
Fosse como fosse, William não estava interessado
naquela discussão.
79

- E as fadas e os duendes também são elementais, também


não têm sombra? - quis ele saber.
- Não. E para que a queriam?
- Tem graça. Ontem à noite não reparei nisso. Estava
tão excitado por ver um duende! Um não, três. E o que fazem
aqui os duendes e as fadas?
- Trabalham. Têm as suas missões. Ou não estariam aqui.
Só esses estão autorizados a passar para este lado.
Ele agitou-se.
- O meu irmão acha que os duendes andam a cavar à noite
na nossa quinta, a levantar pedras, à procura de um
diamante que está enterrado.
- Não acredites nisso. Os vossos tesouros não nos
interessam. Só a energia das histórias contadas. Isso sim.
É nisso que os duendes andam a trabalhar. Um deles te
explicará isso em breve.
- E as fadas? Nunca vi nenhuma...
- Há muitas fadas, mas só poderás ver por aqui uma ou
outra Fada-Sopradora. São criaturas do ar, muito pequenas,
que sopram histórias e ideias para histórias a certas
pessoas.
- A minha mãe é escritora e diz que há uma fada que a
ajuda a escrever os livros. Diz aquilo a brincar, ela não
acredita que andem fadas por aqui.
- Ainda assim, podes acreditar nela - disse a Princesa.
- Quase todos os escritores conhecem uma dessas fadas. É
preciso espalhar as histórias pelo vosso mundo, fazê-las
circular, gerar a energia de qualidade que nos mantém
vivos. Em breve te vão explicar isto tudo. Eu não tenho
tempo para isso. Esgotou-se o meu tempo deste lado.
Estavam a chegar ao cimo da colina. Ela parou de
caminhar e voltou-se para William, sempre com a cabeça
baixa, oculta pelo carapuço.
- Tenho de ir embora - disse. - Não me sigas.
- Vais para o Outro Lado?
- Vou para o Outro Lado.
- Como é que chegas lá?
80

- É fácil. Basta abrir uma porta no ar.


- No ar?
- No ar.
Ele segurou-lhe as mãos, apenas lhes tocando levemente
com a polpa dos seus dedos, e, por um momento, os olhares
deles encontraram-se. E então ele sentiu que o coração da
Princesa Ariteia batia dentro dele, com o dele, ao mesmo
tempo, como se ambos os corações fossem um só. Pelo menos
foi o que lhe pareceu.
- Temos de nos despedir - murmurou ela num fiozinho de
voz. Cada vez falava mais baixo, mais devagar.
- O quê?
Ela fez um esforço e elevou a voz.
- Estou a ficar fraca, a perder energia rapidamente. Se
ficar mais tempo, posso ficar aqui para sempre.
Ele apreciou a ideia.
- Porque não ficas?
- Porque durava pouco. O tempo que dura uma flor que é
arrancada à terra.
A respiração da Princesa tornara-se ofegante e William
reparou que ela se inclinava perigosamente, como um caule
de uma flor dobrada pelo vento.
- Voltas? - perguntou, angustiado. Tinha a boca seca e
as pálpebras tremiam-lhe nervosamente.
- Não. É perigoso, posso pagar caro por isso -
respondeu ela. - Talvez outros façam o que eu vim fazer. Eu
não posso voltar.
- E não há um sítio onde possamos voltar a
encontrar-nos? - quis ele saber, inconformado.
Ela sentou-se numa pedra redonda e disse:
- És um Grimm. Vês as criaturas. Se fores também capaz
de dar o pequeno passo que te separa do Outro Lado, podes
encontrar-me na torre mais alta do palácio do Reino da
Rosa.
Uma brisa inesperada agitou os cabelos dourados da
Princesa Ariteia e William viu claramente o seu rosto
delicado pela primeira vez à luz do Sol.
81

- Quero ser um Grimm! Já! - disse ele, empolgado. -


Quero ir ter contigo à torre mais alta do palácio do Reino
da Rosa. Esperas lá por mim?
Ela suspirou:
- Já é a segunda vez que dizes isso. Olha que, para
nós, as palavras não são apenas palavras. Têm poderes. Não
podemos dizer e desdizer logo a seguir. Se dizemos, está
dito. Agora, se faltares à tua promessa, ou se contares a
alguém o meu segredo, transformo-me numa estátua tão dura e
parada como esta pedra em que estou sentada.
- No Outro Lado?
- No Outro Lado. Lá, as coisas são assim. Abre-se uma
caixa e todos os males saem a voar. Alguém come uma certa
maçã e há um reino inteiro que desaparece. Uma flor é
arrancada e o amor voa para longe. Uma promessa é quebrada
ou um segredo revelado e uma princesa transforma-se em
pedra.
Ele agitou os braços, incomodado.
- Por minha causa, não. Que horror! Se posso ir ao
Outro Lado, eu vou ao Outro Lado. Mas ainda não respondeste
à minha pergunta. Esperas por mim na torre mais alta do
palácio do Reino da Rosa?
Ela escondeu ainda mais a cabeça sob o carapuço.
- Espero - disse. - É o meu coração que o deseja.
- Então diz-me o que tenho de fazer para ser um Grimm -
animou-se William, possuído por uma estranha energia.
- Terás de esperar. Já te disse que alguém virá. Um
Duende-Mensageiro, acho eu. E descansa, que não deve
tardar. Se os duendes que encontraste ontem à noite já
sabem que és um Grimm, não vai demorar. O Outro Lado
precisa de ti. Ao tempo que não há um novo Grimm!
- Porquê? Para quê? O que faz um Grimm?
- Espalha as nossas histórias pelo vosso mundo. Nem
imaginas as novas histórias que há para contar. E elas têm
de ser contadas. Só assim o que existiu e existe ainda no
Outro Lado pode continuar a existir. É essa a missão de um
Grimm.
82

- Mas eu não sou Grimm, sequer. Sou do ramo dos Zimmer.


- Verás que não é bem assim. Não podias ser mais da
família dele. Tu e ele são dois ramos da mesma árvore. E o
teu destino é fazer, ou refazer, o que ele fez. Herdaste o
destino e a missão dele, que é unir os dois mundos.
Ele sentiu um calafrio pelo corpo todo.
- Ora - disse, a tentar sacudir aquele estremecimento
gelado -, só te falta dizer que também herdei a terceira
chave da caixa que guarda a magia negra.
- Talvez a tenhas herdado, realmente, embora ainda não
o saibas.
- Eu? - gemeu William.
Sentia-se um pouco incomodado com o que acabara de
ouvir. Era como se estivessem a pôr-lhe um peso em cima dos
ombros.
- Unir os dois mundos? - repetiu. - E isso não é muita
responsabilidade para um rapaz do meu tamanho e da minha
idade?
Ela sorriu daquele modo encantador, e soltou um risinho
muito fino que ficou a vibrar no ar. Depois disse:
- Tu és do tamanho daquilo que vês. Além disso, és
único. Não há outro como tu. Quanto à idade, acho que tens
a idade que o Grimm tinha quando passou a primeira vez.
William ficou uns instantes de cabeça baixa, a pensar
naquilo.
- Então também quero passar já - disse, muito convicto.
E acrescentou, depois de ter caído em si: - E se for lá, ao
Outro Lado, posso voltar?
- Facilmente. Podes viver cá e lá. O Outro Lado é
apenas mais um sítio onde podes ir se te apetecer ou se for
preciso. O dobro da vida é o que espera um Grimm. E nota
que só podes lá ir até ao dia em que fizeres dezasseis
anos. Depois, também para ti se fecham as portas do Outro
Lado.
- Porquê?
- Porque as coisas são assim.
Ele agitou os braços no ar, inquieto.
83

- Mas então não posso perder tempo - disse ele. - Já


basta o que me roubam. Quando chega o tal
Duende-Mensageiro?
- Talvez ainda esta noite. Já te disse que o Outro Lado
precisa de ti. Mas nota que nem todos os Grimm chegam a
sê-lo. Já houve outros que não conseguiram dar o pequeno
passo que os levaria ao Outro Lado.
- É difícil?
- Não há nada mais fácil e, ao mesmo tempo, mais
difícil -respondeu ela. - É o desconhecido, o que está do
Outro Lado. Não há monstro mais assustador para qualquer
sombra como tu.
- O desconhecido? Não para mim - reagiu ele, mais alto.
- Prometo-te. Desde que estejas lá à minha espera, no meio
desse desconhecido.
- Já te disse que lá estarei, à espera - disse ela. -
Agora fica aqui e não dês nem mais um passo. Nem me olhes
mais. Volta-te.
A garça desceu e fez um círculo no ar em volta da
cabeça deles.
- Volta-te - repetiu ela quase sem voz.
Ele obedeceu, ela afastou-se. Mas William não conseguiu
aguentar muito tempo e voltou-se, sem saber porquê, apenas
seguindo um impulso incontrolável.
Um raio de Sol ofuscou-o, e ele fechou os olhos e
protegeu-os com as mãos. Quando voltou a abri-los, à
procura da Princesa, já não a viu. Piscou os olhos três
vezes e ela ainda lá não estava. Tinha desaparecido. Mas
como? Estavam numa clareira e ela não tivera tempo de
chegar a lado nenhum para se esconder.
- Ariteia! Ariteia! - chamou.
Não houve resposta. Só ouviu um silvo agudo de um
pássaro sobre a sua cabeça. Seria uma resposta ao seu
chamamento? Olhou para cima e viu a grande garça, de asas
abertas. Ao lado dela havia agora uma outra, mais pequena.
Ambas bateram as asas, ganharam altura e voaram para longe.
“Será possível que aquela outra garça seja a rapariga
com quem estive a falar?”, pensou ele. Pelo sim, pelo não,
gritou:
84

- Espera por mim. Vou ter contigo à torre mais alta do


palácio do Reino da Rosa.
William deu uma volta sem sair do sítio, sempre com a
cabeça no ar.
Por alguma razão, a outra garça os seguira durante todo
o caminho e baixara várias vezes sobre a cabeça da
Princesa, como se quisesse avisá-la de algum perigo, ou
simplesmente chamá-la ou apressá-la.
Além disso, ela dissera que passava para o Outro Lado
através de uma porta no ar. Sendo uma garça, podia fazê-lo
mais depressa do que uma rapariga que caminhava com os pés
na terra.
A cabeça dele fervilhava, o corpo dele tremia. Grossas
gotas de suor pesavam-lhe nas pálpebras. Ainda havia
resquícios do perfume da Princesa no ar e ele ficou ali, de
pé, em silêncio, a aspirá-lo com força, enquanto olhava o
céu, à espera não sabia de quê, apenas a imaginar a
princesa-garça a abrir uma porta no ar.
Sentiu então o telemóvel a vibrar no bolso e despertou
daquele torpor. Ainda meio entorpecido, tirou-o do bolso e
só então reparou que tinha cinco chamadas não atendidas.
Todas da mãe.
Olhou para o relógio e ficou a saber que já estava meia
hora atrasado para o encontro com ela. O tempo passara. Ou
teria sido ele que passara pelo tempo?
85

12

O SEGREDO

A caminho da quinta, com a mãe e o tio Nathan, William


sofria por não poder contar tudo por que acabara de passar.
Sentia o segredo a palpitar dentro dele, como um coração
ansioso. Sem ele falar, sequer abrir a boca para bocejar,
ele já ia na garganta. Só faltava que lhe saltasse pela
boca fora.
Assim, começava a saber quanto lhe iria custar ser o
guardião de um segredo como aquele. E ainda só o carregava
há uma hora.
- Aconteceu alguma coisa, Willy? - perguntou a mãe. -
Estás esquisito.
Ele sorriu, com os lábios fechados.
- Não, não, não - disse. E sentiu o segredo a sossegar,
a descer pela garganta. Porém, sabia perfeitamente que ele
continuava dentro dele, atento, à espera de uma
oportunidade para poder escapar. Aquele segredo era uma
coisa viva. E lá estavam as tais cócegas por dentro, que
eram impossíveis de coçar.
O tio Nathan também veio calado, no banco de trás,
durante quase toda a viagem de regresso, cerca de trinta
quilómetros ate a Quinta da Pedra Azul. A irmã fazia-lhe
perguntas, mas ele respondia com poucas palavras e
calava-se logo a seguir.
87

Era um homem abúlico e taciturno, com os olhos


afundados no rosto por um qualquer desgosto. Nunca casara
nem tinha filhos. Vivia em Plymouth, onde tinha uma
ourivesaria, mas vinha à quinta sempre que podia na
esperança de se lembrar dos tempos que lá passara, já que
perdera a memória num acidente, há muito tempo, e não
recordava nada do que vivera para trás. Por isso, juntava
com amor todos os acontecimentos de que se ia lembrando ou
que as pessoas lhe contavam e tomava nota de tudo com muito
cuidado num livro pequeno que trazia sempre num bolso do
casaco.
Como se já não lhe bastasse esse problema, Nathan
Zimmer tinha acabado de regressar de um hospital, em
Londres, onde fizera mais uma operação de correcção da
coluna. Ainda assim, era evidente a curvatura acentuada.
Então, William pôs-se a pensar se ele não teria sido um
desses Grimm que falharam a sua missão. Afinal, era um
Zimmer e, dissera-lhe a mãe, também dizia que via duendes e
fadas quando era novo. Por fim, era corcunda e tinha
perdido a memória, que era o que acontecia aos Grimm que
não cumpriam o seu destino, explicara-lhe a Princesa. E,
como se tudo isso não chegasse, havia ainda uma outra
coincidência: também o tio nascera num 24 de Fevereiro, tal
como ele e Wilhelm Grimm. Lembrava-se da mãe lhe telefonar
sempre nessa noite e de sentir ciúmes, quando era pequeno,
já que achava escandaloso que aquele dia de aniversário não
fosse só dele.
- O que foi? - perguntou o tio quando o viu a olhar
para ele tão fixamente.
- Nada - disse ele a disfarçar.
Na estrada, havia dez vezes mais movimento do que era
habitual, já que toda a gente tinha muito que fazer, e a
mãe dele abespinhava-se com os condutores que queriam
ultrapassá-los de qualquer maneira.
- Esta gente enlouqueceu - desabafou ela, muito
irritada. - E venho eu para aqui para escapar ao trânsito
de Londres.
88

- Deixa-os ir. Também estás com pressa? - perguntou


William. - Correr atrás do tempo é tempo perdido. Pensas
que estás a ganhar tempo e estás a deitá-lo fora.
- Nem todos estão de férias, como nós - ripostou a mãe.
- Muita gente anda a trabalhar, a ganhar a vida.
- Como, se estão a perdê-la? Não se pode forçar o
tempo. Devíamos fazer com que passasse mais devagar, quando
passa por nós, e não mais depressa.
Elisabeth olhou para o filho, muito admirada. Nunca o
tinha ouvido falar assim.
- Também foi o Sr. Irving que te disse isso?
- Foi. Estivemos a conversar.
- E disse muito bem - concordou o tio Nathan, que, por
uma vez, falou.
William empolgou-se com o apoio e continuou:
- Diz ele que as pessoas, para fazerem tudo o que têm a
fazer, põem de lado as coisas que acham que são menos
importantes...
- Como, por exemplo... - interrompeu a mãe.
- Como, por exemplo, ver o pôr-do-Sol sentado em cima
de um muro no fim de uma bela tarde de Verão, enquanto se
come um gelado de limão.
- Hum!
- Ou de baunilha, se preferires. Ou de baunilha e
limão. É que, às vezes, as coisas menos importantes são as
mais importantes. Além disso, uma coisa, pouco importante
pode levar a uma coisa muito importante.
Elisabeth Zimmer abanou a cabeça afirmativamente.
- Tens razão. Não há nada mais importante do que ver o
pôr-do-Sol sentado em cima de um muro no fim de uma bela
tarde de Verão enquanto se come um gelado de baunilha e
limão. Obrigada por mo teres lembrado. Eu é que devia
ensinar-te essas coisas, que diabo!
- Pois é - voltou a concordar o tio Nathan. Era um
grande progresso.
89

À noite, na quinta, sentados no alpendre, ainda ouviam,


ao longe, o burburinho das pessoas que tinham muito que
fazer. O tio Nathan animara-se com o regresso de várias
recordações da sua infância passada na quinta e parecia
outro. Durante o jantar, e depois dele, discutiu com calor
a questão da venda da quinta.
Tal como a irmã, ele queria manter a Quinta da Pedra
Azul e não ceder aos que estavam interessados em que ali,
naqueles terrenos, fosse construído o tal parque temático.
E esses eram quase todos, já que se dizia que o
empreendimento ia dar muitos empregos à gente da terra e
atrair turistas e mais riqueza.
Depois do jantar, ele e a irmã afastaram-se a
conversar. Disse ela quando passaram sob o grande
salgueiro:
- Se a quinta está na família há mais de duzentos anos,
não vamos ser nós a livrar-nos dela. O que iria pensar o
Primeiro?
Quando ela disse isto, viu surgir mais adiante, entre
as moitas, um clarão amarelo. Era uma espécie de coluna de
ar luminoso que se retorceu durante uns instantes, breves,
e depressa se dissipou no ar sem deixar rasto.
- O que foi? - perguntou o irmão.
- Vi um clarão ali, junto ao carvalho.
O irmão não deu importância ao assunto. Um clarão
amarelado numa noite de Verão era uma coisa natural. Cada
qual via o que queria ver. E o melhor era nem perder tempo
a pensar no que seria cada uma dessas visões. Duendes,
fadas, fantasmas, vivos e mortos, todos partilhavam uma
noite assim, clara e perfumada.
- Se encontrássemos o diamante que ainda está escondido
debaixo de uma pedra destas... - disse Nathan Zimmer a
pontapear uma pedra azulada.
- Não me digas que ainda acreditas nisso! - admirou-se
a irmã.
- Às vezes - confessou ele. - Hoje é uma dessas vezes.
- Ora, já lá vão duzentos anos, Nathan. E isso é só uma
história. Quando somos pequenos, acreditamos, porque há um
90

mistério por detrás dessa história. É o que acontece ao


William e ao Peter. Mas tu já fizeste cinquenta anos.
- Cinquenta e dois - corrigiu o irmão. - E é por isso
que te digo que, um dia, vamos encontrar esse tesouro.
Quando a pequena Tess, à hora de dormir, veio
despedir-se deles, apenas encontrou Peter a jogar no Game
Boy, muito aborrecido, e o William, que estava deitado de
barriga para o ar, sobre a relva ainda morna, a olhar as
estrelas.
- Mais logo contas-me uma história? - perguntou ela a
William.
- Hoje não, Tess. Estou à espera de alguém.
- Quem?
- Não me perguntes, Tess. É melhor para mim.
Aquilo foi o suficiente para o segredo lhe subir pela
garganta. Ele engasgou-se e começou a tossir.
- Não faz mal - disse Tess, embora fosse evidente a sua
decepção. Uma criança de coração puro não consegue
escondê-la. Fosse como fosse, não estava com sorte, ou
Nathan Zimmer também não se teria esquecido de lhe trazer,
como sempre, uma caixa de fudges.
- Não haverá um fudge lá dentro, na cozinha? -
perguntou ela. - Estava a tentar não me lembrar de que o
teu tio se esqueceu de me trazer uma caixa deles, mas não
consigo.
William, que continuava alheio, levantou-se a sacudir
os pedacinhos de relva fresca que se lhe colaram à roupa.
- Eu tenho dois fudges no meu quarto - disse ele. -
Anda comigo.
Entraram na casa, subiram as escadas.
- Coitado do tio Nathan. Perdeu a memória - explicou
ele. - E como está sempre a tentar lembrar-se, também se
esquece do resto, como dos fudges.
- O que é a memória? - perguntou Tess.
Entraram no quarto e William ainda estava a pensar na
resposta. Por fim, disse:
91

- É assim: se disseres ao tio Nathan “vamos jantar que


são horas”, ele vem para a sala, mas, a meio do corredor,
já se esqueceu do que ia fazer e não sabe para onde ir.
Talvez não seja bem assim, mas é assim que eu sei
explicar-te. Perder a memória é um problema muito grande.
Por exemplo, se eu não me lembrasse de ter falado contigo
ontem e anteontem e no ano passado e nos outros anos todos,
passava por ti e não sabia que eras minha amiga. Todos os
dias tinha de fazer amizade contigo, todas as noites me
esquecia, e no dia seguinte tinha de recomeçar tudo outra
vez. Era cansativo.
Tess pôs-se a pensar. Pensar em qualquer coisa enquanto
comia um fudge era das suas actividades favoritas.
- Havia uma coisa boa - disse ela por fim. - Se eu me
esquecesse das histórias, podia estar sempre a ouvir a
mesma história. Todos os dias era a primeira vez. Era
sempre uma vez. Até amanhã, Willy!
- Até amanhã, Tess!
Peter cruzou-se com eles nas escadas, a caminho do
quarto.
- Até amanhã, Tess! Até amanhã, Willy!
- Até amanhã, Peter.
William não tinha sono, veio até ao jardim. Queria
estar só, não fosse aparecer o tal Duende-Mensageiro. A
Princesa dissera que ele viria em breve e talvez esse “em
breve” fosse aquela noite morna e perfumada.
Por isso, ficou estendido numa espreguiçadeira, no
alpendre, entregue à confusão dos seus pensamentos.
Mais tarde, quando o tio saiu do escritório da mãe,
veio a correr e interceptou-o no hall.
- Tio, é verdade que viu os duendes e as fadas quando
era pequeno? - perguntou sem mais rodeios.
92

13

O PRIMEIRO ANTES DO PRIMEIRO

O tio Nathan pousou um braço nos ombros do sobrinho e


veio a caminhar ao lado dele até ao alpendre.
- Dizem que sim, que eu dizia que via os duendes a
passarem aqui, neste jardim, em noites como esta. Mas não
me lembro. Há tantas coisas de que não me lembro...
- Que idade tinha o tio quando lhe aconteceu isso?
- Talvez a tua idade.
- Catorze?
- Sim. Catorze.
- Hum!
Era a idade, sabia William, em que as coisas começavam
a acontecer.
- Desde então, estive quase sempre doente - continuou o
tio.
- Foi quando começou a ter os problemas na coluna?
- Como é que sabes?
- Não sabia. Se soubesse, não tinha perguntado. Estava
a pensar se o tio não teria sido um daqueles Zimmer que
vêem as criaturas...
- Que história é essa? Também não me lembro.
93

- É outra história da família, como a do diamante


escondido debaixo de uma pedra azul.
- Essa conheço e acredito nela; a outra, nunca ninguém
ma contou.
- Conto-lha eu. Quer?
- Se quero!
- Então ouça, tio. Acho que começou por causa da
dedicatória que o Wilhelm Grimm fez ao Primeiro: “Para o
meu tio Carl, que me abriu as portas de um novo mundo”. A
partir daí nasceu a lenda de que os Zimmer, e os irmãos
Grimm, que eram descendentes de um ramo dos Zimmer, viam os
duendes e as fadas e podiam visitar o seu mundo e regressar
e espalhar as histórias deles pela Terra.
- É uma bela história. E, vendo bem, foi isso que
fizeram os dois Grimm - disse o tio a recostar-se melhor
numa espreguiçadeira. Estava a gostar daquilo. Ao tempo que
não lhe contavam histórias. Mesmo assim, estava a suar e um
pouco congestionado. E também respirava com dificuldade.
- Está bem, tio? - perguntou William a abanar o ar
diante da sua cara afogueada.
- Estou. Só um pouco cansado. Acho que me vou deitar.
Mas antes queria mostrar-te uma coisa de que acabo de me
lembrar. Acendeste uma luz na minha cabeça, rapaz.
Entraram na casa, subiram as escadas e passaram à ala
dos quartos fechados. Se não estivesse acompanhado, e na
pista de um novo segredo, William não ousaria estar ali
àquela hora da noite.
O tio Nathan abriu a porta de um dos quartos vazios, o
maior, que estava atravancado de mobílias velhas e objectos
caídos em desuso.
- Era aqui que dormia o velho Zimmer, o que construiu
esta casa - disse ele a arrastar uma cómoda que estava a
impedir a passagem.
William ajudou-o. Afastaram umas caixas cheias de
jornais velhos e chegaram ao canto do quarto. Aí, havia uma
cavidade,
94

ao nível do chão, que estava dissimulada na parede de


madeira e funcionava como um pequeno cofre.
O tio Nathan abriu-a sem dificuldade e retirou de lá um
rolo de papel duro e amaielecido que estava amarrado com
uma fita lilás.
- Cá está - disse ele. - É um Tratado entre o velho
Zimmer e as criaturas.
- As criaturas?
- Duendes, gnomos, fadas, isso. Eles existem mesmo,
Willy. E a história que me contaste, fica a saber, é uma
história verdadeira.
Nathan Zimmer sentou-se numa cadeira velha e abriu o
rolo de papel, com muito cuidado. Mesmo assim, o papel,
demasiado duro e seco, estalou e partiu aqui e ali.
William aproximou-se e os olhos dele percorreram o
documento, que estava escrito à mão, com uma letra incerta
numa língua estranha e impenetrável. Só reconheceu algumas
letras do nosso alfabeto, ou algo que se assemelhasse.
Palavras, nem uma. A única coisa que ele entendia era um
nome muito bem escrito no início do documento: Rudolf
Zimmer.
- O que é isto? - perguntou.
- Um Tratado. Entre Rudolf Zimmer e alguém que
representava as criaturas do Outro Lado. Foi feito em
Kassel, na Alemanha, que era também um portal de passagem
entre os dois mundos, em mil seiscentos e tal, a data já
está apagada.
- Um momento - disse William. - O Primeiro não se
chamava Rudolf, mas Carl.
- Nem era tão antigo - concordou o tio. - Por esta
altura, não tinha nascido. Quem assinou o Tratado foi o pai
dele e da Dorothea, a mãe dos dois irmãos Grimm.
- Ah!
william abriu a boca de espanto porque viu uma pequena
coluna de luz amarelada a rodopiar no centro da sala até se
comprimir contra o tecto e desaparecer no meio de uma
grande bolha de fumo.
95

O tio, que estava de costas, não deu por nada e


continuou:
- Este Zimmer que tem o retrato lá em baixo, no hall, o
que construiu esta casa, foi o primeiro em muitas coisas,
mas a relação com as criaturas já vinha do pai dele. Esse é
que foi o primeiro.
William estava pálido, a apontar para o tecto.
- O que foi?
- Vi uma coisa luminosa a subir no ar. Desapareceu no
tecto do quarto.
- Não ligues. São emanações de espíritos. Almas, ou
restos delas, não sei. Não dês atenção que desaparecem.
Andam por aí mas não interferem connosco. Acho eu.
- Não diga isso ao Peter, tio. Ele acha que há disso,
aqui.
- E acha bem. Mas escusa de ter a certeza. A verdade é
que nada disso interfere connosco.
O tio voltou a enrolar a folha de papel com muito
cuidado e amarrou-a com a fita lilás antes de a devolver ao
seu esconderijo.
- Que língua era essa em que estava escrito o Tratado?
- perguntou William.
- É a língua deles. Também não a entendo, mas já me
traduziram isto no passado - respondeu o tio. - O meu avô,
acho eu. E havia uma parte que eu adorava e estava sempre a
pedir-lhe para ma repetir. Ainda sou capaz de a dizer como
se a estivesse a ler, eu que não me lembro de nada. É
assim: “De vez em quando, o céu faz nascer um rapaz
diferente dos outros, capaz de ver coisas que mais ninguém
consegue distinguir. Se isso acontecer, é certo que
descende do Zimmer que ajudou as criaturas, e muitos dirão
que é maluco ou mentiroso. No entanto, se o seu coração for
puro e estiver cheio de amor pelas criaturas, ele poderá
vê-las em certas noites, a passarem no jardim, a caminho do
seu mundo. Alguns deles poderão mesmo dar o pequeno passo
que os separa desse outro mundo.”
William teve vontade de gritar: “Eu vejo-os. Eu vi-os.
Eu sou um desses Zimmer de coração puro e cheio de amor
pelas criaturas. E, tal como o Grimm, também vou passar
96

para o Outro Lado.”


O segredo ficou alerta, à espera de uma oportunidade.
Mas William não disse nada e ele amainou e voltou às
cócegas.
Saíram do quarto, com William coladinho ao tio, e
vieram em silêncio pelo corredor. Despediram-se à porta do
quarto de Nathan Zimmer.
- Obrigado, tio.
- Eu é que te agradeço. Não imaginas as lembranças que
já te devo.
O rapaz desceu as escadas e olhou para o retrato do
Primeiro com outros olhos. “Afinal não és o primeiro”,
murmurou, porque não precisava de elevar a voz para falar
com um retrato.
E se aquele não era o primeiro mas o segundo, deveriam
mudar-lhe o nome? É quase certo que ele não iria gostar,
nem era justo chamar-lhe agora “Segundo”. Logo, o melhor
talvez fosse passar a chamar-lhe “Primeiro Depois do
Primeiro”. O outro, o pai dele, seria o “Primeiro Antes do
Primeiro”.
Olhou para a cara do Primeiro, aliás, do Primeiro
Depois do Primeiro, e ele manteve o sorriso, como se
estivesse de acordo. E foi então que William reparou que
havia no retrato algo de diferente. Sobre a pedra azulada
que estava aos pés do “tio” Zimmer, havia agora também duas
palavras que nunca lá tinham estado.
Piscou os olhos três vezes e, quando os abriu de vez,
ainda lá estavam: “Unus mundus”. O que era aquilo? Subiu
para uma cadeira que encostou à parede e lá estava: “Unus
mundus”.
Desceu da cadeira a pensar naquilo. Tinha quase a
certeza de que aquelas palavras nunca lá tinham estado. E,
nesse caso, o que seria aquilo? Uma mensagem? Uma
indicação? Estaria o Primeiro Depois do Primeiro a
dizer-lhe qual era a pedra que guardava o diamante do
tamanho de uma romã?
Correu para o quarto do irmão e acordou-o e arrastou-o
por um braço até ao retrato, enquanto lhe contava
precipitadamente a história do tio, do Tratado e das
97
palavras na pedra. Tudo menos a aparição da luz amarela
enquanto estavam no quarto do Primeiro Depois do Primeiro.
Acenderam a luz e Peter piscou os olhos.
- Vês? Ali na pedra?
- Não.
- Sobe para a cadeira. Vê mais de perto.
- Não é preciso, vejo muito bem que não está lá
nenhum... como é?
- “Unus mundus”. Peter dirigiu-se às escadas.
- Pronto, é mais uma coisa que só tu vês. E, para isso,
escusavas de me acordar.
- Espera. Pode ser um sinal para eu procurar a pedra.
- Então, procura-a. De certeza que também só tu é que a
vês. William acompanhou o irmão ao longo das escadas.
- Ouve, Peter. Não tenho culpa que tu não vejas o que
eu vejo. Mas não é isso que nos vai separar. Lembras-te dos
irmãos Grimm? Eram dois e só um deles via as criaturas, o
Wilhelm. E o outro, o Jacob, fez todos os livros com ele.
Peter parou a meio das escadas e encarou o irmão.
- Sim, e depois?
- Estou a dizer-te que esta história também é contigo.
Não lhe podes fugir. É minha e tua. Por isso, amanhã de
manhã vais comigo procurar uma pedra onde esteja escrito
“Unus Mundus”. Deve haver por aí uma pedra com aquela
marca.
Peter bocejou.
- E tu achas então que o retrato do Primeiro Depois do
Primeiro te está a mostrar o mapa do tesouro? Só para os
teus lindos olhos?
William avançou em direcção ao quarto.
- Só encontrando a pedra se pode saber - disse. - Até
amanhã. Venho chamar-te quando nascer o Sol.
98

Já no quarto, William lançou-se para cima da cama de


ferro, que rangeu aflitivamente. Tinha a impressão de que
as noites deles nunca mais seriam as mesmas noites calmas e
sossegadas.
E o Duende-Mensageiro? Porque não aparecia? E o
segredo? Sentia-o dentro dele, a ronronar e a fazer aquelas
cócegas impossíveis de coçar. Tinha medo que ele lhe saísse
pela boca quando adormecesse. De certeza que os segredos
não dormiam. Havia de o guardar em qualquer lado, pensou.
Mas onde? Não era seguro guardar um segredo dentro de um
buraco. Já tinha lido histórias assim, em que alguém
guardava um segredo dentro de um buraco cavado na terra. De
uma vez nasciam ali flores que o espalhavam no vento, de
outra, canas que o contavam quando eram sopradas. Não era
ele que caía nessa.
Foi este o último pensamento que teve antes de
adormecer e dormir até de manhã, um sono sem sonhos,
profundo e reparador.
99

14

A CAIXA ENTERRADA

Quando William acordou, por volta das dez da manhã,


saltou da cama. Não queria dormir tanto, já que as coisas
estavam a acontecer.
Espreitou pela janela e viu o irmão no roseiral, a
caminhar entre as pedras azuis. Talvez ele até já tivesse
encontrado a pedra com a tal inscrição, pensou, e foi a
correr para lá.
- Só agora, maninho? - perguntou Peter quando o viu
chegar.
- Adormeci. Podias ter-me acordado.
- Tinha mais que fazer. Ontem à noite abriram e taparam
mais um buraco. Sabias? Tenho aqui tudo apontado, na
agenda.
- Não foram os duendes - esclareceu William. - Eles não
se interessam por tesouros.
Por acaso, Peter também já tinha outro suspeito.
Preston, o caseiro. Vira-o a sair de manhã muito cedo para
a fábrica de enchidos onde trabalhava e tinha ar de quem já
não dormia há umas noites. Seria possível que trabalhasse
de dia e cavasse de noite?
William não deu importância à suspeita do irmão. Estava
mais interessado na busca da pedra com a inscrição “Unus
mundus”.
- Ora bem - disse ele -, por onde começamos?
101

Era uma tarefa difícil, que Peter coordenou com o seu


espírito de organização, erguendo um plano em que cada um
deles tinha um território e um pedaço de giz para marcar as
pedras que iam sendo verificadas.
Começaram, sob o Sol escaldante. À medida que a manhã
avançava, também aumentava o calor e a dificuldade da
busca. Era preciso verificar cada pedra com muito cuidado,
já que a inscrição podia lá estar num tamanho reduzido ou
ter sido em parte apagada pela acção do tempo.
Até à hora do almoço tinham verificado, juntos, um
terço da área da quinta. E a única inscrição que
encontraram foi um “Sharon loves Teddy” dentro de um
coração a sangrar, atravessado por uma seta.
À tarde, prosseguiram a busca, já com a ajuda da
pequena Tess, que jurou guardar segredo, mas a sorte não
melhorou. Quando começou a escurecer e eles já tencionavam
deixar as pedras que faltavam para o dia seguinte, cerca de
um terço, Peter soltou um grito agudo, muito alto, que não
deixou dúvidas ao irmão. Tinha aparecido a pedra.
William correu para o irmão e encontrou-o a polir a
superfície da pedra azulada para se ver melhor a inscrição
que estava gravada mesmo no centro: “Unus mundus”.
- Cá está - disse Peter. - Era mesmo verdade. Bem me
parecia que estavam a acontecer aqui coisas que não eram
normais.
- Vês? - emitiu William, com o coração a bater mais
depressa. - E agora temos de cavar a terra por baixo dela.
- Amanhã de manhã. Agora está a ficar escuro - disse
Peter.
- És maluco? - reagiu William. - Achas que eu consigo
esperar até amanhã? Além disso, temos de aproveitar antes
que chegue a mãe e o tio.
Foram buscar duas pás à Casa da Tralha e começaram a
cavar. O Sol desceu no céu e eles a falarem e a cavarem.
Era tanto o entusiasmo que não lhes faltavam as forças. Só
que o negrume da noite cobriu o jardim e com ele vieram
todas as criaturas do escuro.
102

- Já chega - gemeu Peter a pousar a pá. - Também já me


doem as mãos. Estão cheias de bolhas.
Viram os faróis do carro da mãe a chegar ao portão e
vieram na direcção da casa depois de terem escondido as pás
entre as moitas.
- Já viste o buraco que nós fizemos? - perguntou
William com orgulho.
- Saiu-me do corpo - ripostou Peter.
- E a mim. Mas deve faltar pouco. Temos de continuar à
noite.
- Nem penses. Cava tu, que és o Grimm. Eu sou apenas o
teu irmão mais novo com as mãos cheias de bolhas. Não
contes comigo no trabalho antes de amanhã de manhã.
O tio Nathan vinha maldisposto e foi para o quarto sem
jantar. A Alicia levou-lhe um chá de tília e bolachas
integrais. A mãe também estava pouco faladora e depois de
jantar fechou-se no escritório a trabalhar na sua nova
história.
E então William lembrou a Peter que podiam continuar a
cavar.
- És maluco? - respondeu o irmão a olhar a mancha negra
para além do jardim e a pensar em toda a vida que havia lá
dentro, adormecida, à espera.
- Ontem à noite cavaram mais um sítio - disse. - Há
mais gente à procura do tesouro da casa. E agora é a vez
deles. Nós somos o turno de dia, eles, o turno da noite.
Mas William não se conformava.
- E se esses vêem o nosso buraco? Ou se alguém nos viu
a cavar ali durante o dia e vai acabar o que nós começámos?
Eram duas boas perguntas. Alguém podia acabar o que
eles tinham começado. Era ainda mais angustiante do que o
medo do escuro.
- Temos uma lanterna boa? - perguntou Peter.
E, pouco depois, ali estavam eles no meio do escuro,
entre as árvores ainda quentes, com os bichos a cantar.
103

- É melhor não ligarmos a lanterna ou ainda damos mais


nas vistas - disse William.
Era uma noite de luar e caminharam sem dificuldade até
ao sítio onde tinham estado a cavar durante o dia. Aí,
enquanto Peter procurava as pás atrás das moitas, William
viu passar uma luzinha esverdeada, fosforescente, que ia a
grande velocidade, por entre as copas das árvores, a
caminho da casa. Mas não disse nada, não fosse o irmão
convencer-se de que era um espírito e deixá-lo a cavar
sozinho.
Instalaram a lanterna no chão, entre duas pedras
pequenas, e cavaram, cavaram, cavaram. Uma hora depois,
ainda nada tinha acontecido, embora tivessem arrancado mais
meio metro de terra à terra. As mãos de William já
começavam a sangrar. Foi então que o bico da sua pá tocou
numa superfície metálica.
- Acho que bati numa chapa! - gritou, eufórico.
Cavou mais depressa, indiferente às dores, e depressa
pôs a descoberto uma pequena caixa de ferro muito
enferrujada.
- Trata disso que eu fico de vigia - disse Peter, que
jurava ter visto um vulto de um homem curvado, mais
adiante.
Apagaram a luz da lanterna para não serem vistos e
verem melhor o que estava à sua volta. William retirou a
caixa, que era leve, e sentiu que alguma coisa lá dentro
rolara. Talvez o diamante, pensou ele, muito excitado.
Pousou a caixa sobre a terra revolvida e sacudiu a que
a cobria para poder ver a inscrição na tampa. E lá estava
ela: “Unus mundus”.
- Já vi num dicionário da mãe - disse Peter. - É latim.
Quer dizer “mundos unidos”.
- Estou a ver... Este lado e o outro. Os dois mundos
unidos. É a minha missão de Grimm. Manter estes dois mundos
juntos.
- Abre a caixa - gemeu Peter, com um olho nela e outro
nas redondezas, em volta deles.
Não foi difícil abri-la, bastou desimpedir um pouco o
fecho, que enferrujara. E então os dois irmãos
debruçaram-se sobre o interior da caixa e viram que lá
104

dentro havia três objectos: uma pedra polida do tamanho de


uma bola de golfe, um livro velho encadernado com pele de
vaca e uma carta escrita à mão numa letra que a humidade
desbotara.
- Isto é um calhau, não é um diamante - disse Peter,
sem esconder a decepção.
William também estava decepcionado. Rolou a pedra na
mão e constatou que era mesmo uma pedra. Quanto ao livro,
não tinha nada registado na capa e todas as suas folhas
estavam em branco.
Peter dedicou-se à carta.
- Parece que é do Wilhelm Grimm - disse ele a
estendê-la ao irmão. - Deve ser para ti, que és outro como
ele.
Acenderam a lanterna e William confirmou que era a
mesma letra que estava na dedicatória do livro. E, sendo
assim, pensou ele, aquilo talvez fosse mesmo com ele, que
era o novo Grimm.
E era.

Disseram-me que haverá outros como eu, que vêem as


criaturas. Para esses deixo esta pedra. Parece uma pedra
vulgar, e aqui, é, já que as qualidades dela só se
manifestam no Outro Lado. Na verdade, é uma pedra que ouve,
fala e vê. Muita coisa terá já mudado neste mundo e no
outro quando esta caixa for outra vez aberta, mas há coisas
que permanecerão. E as qualidades da pedra também. Quem for
ao Outro Lado, não deve viajar sem ela. Quem não for, deve
deixá-la ficar para os que se seguirem. Quanto a chave que
me foi confiada, a terceira chave do cofre que guarda a
magia negra, e que também deveria transmitir aos que me
sucederem, não está aqui porque optei por a lançar para o
fundo de um pântano, onde deve enterrar-se no lodo e
apodrecer para sempre. A caixa da magia negra nunca será
reaberta. É melhor para todos.

Era tudo. Mais a assinatura de Wilhelm Grimm e uma


data: 1827.
105

- Em 1827, ele tinha para aí uns quarenta anos - disse


William. - É esquisito.
- Porquê? - quis saber Peter.
- Porque o Wilhelm Grimm só viajou para o Outro Lado
entre os catorze e os dezasseis. Era nessa altura que ele
devia ter enterrado a caixa e escrito a carta, não aos
quarenta anos.
William continuava a examinar a carta e fez uma
descoberta.
- Espera. Há aqui mais qualquer coisa escrita - disse
ele, quase com os olhos colados ao papel.
- Onde? Não vejo mais nada - afirmou Peter, outra vez
debruçado sobre a folha de papel.
- Vejo eu, mas é uma letra miúda e a tinta está
esborratada em alguns sítios. Começa assim: “Para ti que
vês”...
- Pois. É mais uma daquelas coisas só para os teus
lindos olhos.
- Mas nem eu, que vejo, a vejo - queixou-se William.
Limpou a humidade e a terra daquela zona com os dedos.
E, aos poucos, foi lendo o que só ele via:

Esta é a verdade: a chave é demasiado importante para


ficar aqui, ao alcance de qualquer um, mesmo que só um
Grimm apossa ver. Fixa este número de seis algarismos...
Não o escrevas em lado nenhum, nem o murmures movendo os
lábios, há quem saiba ler neles. É a combinação do cofre
onde está a chave, em Londres, à guarda do duende Sami.
Qualquer criatura te leva a ele. E não te esqueças de lhe
levar um queijo Cheddar, que ele adora.

- Ouviste, Peter?
- Ouvi. Custa a acreditar.
- Só que o número da combinação não se vê. Tenho de
limpar melhor o papel.
Peter desligou a lanterna.
- Também ouvi passos aqui perto. Vem aí gente, Willy.
Vamos embora.
- Há duendes em Londres, também - prosseguiu William,
alheio a tudo o resto. - Este é que já lá não deve estar.
De certeza que já não existe, como já não existe o Wilhelm,
106

há muito tempo. Ou ainda lá estará? Não se sabe quanto


tempo pode viver um duende. Por alguma razão não têm sombra
como nós, sabias?
- Cala-te - disse Peter.
William calou-se. E foi então que os dois irmãos viram,
quase ao mesmo tempo, que uma terceira sombra crescia ao
lado das sombras deles.
Peter deu um salto e acendeu a lanterna. William fechou
a caixa. Não tinha lá dentro nenhum diamante, apenas uma
pedra e uma carta, mas sabia-se lá o que poderia aquilo
valer.
E então soou uma voz familiar:
- Sou eu - disse o tio Nathan a aproximar-se. - Não se
assustem. Estava a ver-vos da janela e lembrei-me de tudo.
Eu também já fiz isto.
- Isto o quê? - perguntou William.
- Isto. Cavei um buraco e encontrei uma caixa velha, de
ferro. E depois voltei a guardá-la. Agora lembro-me bem
disso.
Peter, ainda a recompor-se do susto, olhou para o
irmão. Seria o tio quem andava a cavar à noite?
- Não foi agora - acrescentou o tio a aproximar-se da
caixa. - Foi há muito tempo. Talvez quando tinha a vossa
idade.
- O tio foi um Grimm? - perguntou William.
- Parece que sim, embora não me lembre. Ou talvez não
tivesse chegado a sê-lo. E o que estava dentro da caixa?
Acho que era uma pedra, uma pedra especial, e que mais? Um
livro. Um livro em branco. E uma carta.
William e Peter trocaram um olhar cúmplice. Era
verdade. Ou ele não poderia saber o que estava dentro da
caixa. A menos que tivesse estado a observá-los antes de
aparecer, pensou Peter, que era o mais desconfiado.
107

15

A FADA-DO-AR

Nathan Zimmer, de joelhos em terra, examinou


demoradamente a pedra, o Livro em Branco, leu e releu a
carta. Depois, sentou-se numa pedra e ficou algum tempo em
silêncio, a olhar o vazio, à espera, que tudo aquilo se
organizasse na cabeça dele. Por fim, disse:
- Eu fui um desses e falhei. Não fui capaz de passar.
Acho que tive medo. Quando se tem a vossa idade, não se
passa assim tão facilmente de um mundo para outro. Por
isso, enterrei a caixa depois de a ter encontrado. Como diz
a carta, quem não for ao Outro Lado, deve deixar as coisas
para os que se seguirem. Foi o que eu fiz.
Os dois rapazes mantiveram-se em silêncio e o tio
acariciou a pedra e rolou-a na palma da mão. Talvez isso
lhe trouxesse algumas recordações, já que esteve naquilo
algum tempo.
- Esta pedra não chegou a falar, o livro ficou em
branco. Não sei para que servia, só sei que não serviu para
nada.
- O desconhecido é um monstro horroroso - disse William
a tentar consolar o tio.
- É melhor irmos para dentro - sugeriu Peter, que
continuava inquieto, sempre a olhar em volta. Mas ninguém o
ouviu.
109

O tio Nathan pousou a pedra e o livro dentro da caixa e


encarou os dois rapazes.
- Mas, então, também um de vocês vê as criaturas -
disse ele.
- É ele - disse Peter.
Nathan Zimmer abraçou William.
- Malandro, que ainda não mo tinhas dito. E já os
viste? Já te contactaram?
William pensou duas vezes, a controlar o segredo, que
sentiu a acordar.
- Há coisas que me aconteceram, sim, mas não as posso
contar. É segredo. E um segredo tão grande que se me
atravessa na garganta, como agora. Está vivo e faz o que
pode para escapar. Nem tocar em certos assuntos me convém.
Sabe como é, palavra puxa palavra. É por isso que do Outro
Lado... Cala-te boca!
Os ouvidos ouviram e a boca calou-se.
- Compreendo - disse o tio. - Mas fico à espera da
altura em que me poderás contar tudo isso. E ouve: já não
sei o que te espera, mas tens de cumprir o teu destino. Faz
o que tiveres de fazer. Sem medo. Se não o fizeres, muitos
males daí virão, incluindo para ti próprio. Isso eu sei.
- Eu também sei - disse William com o ar de quem não
precisava de que lhe lembrassem o peso do fardo que levava
às costas.
- Saímos daqui? - insistiu Peter. - Podemos conversar
lá dentro.
- Sim - disse o tio. - Este ar da noite faz-me mal.
Dores nas articulações.
William segurou a pequena caixa enferrujada e Peter
iluminou o caminho até à porta da casa. Depois, o tio
Nathan recolheu ao quarto, já que tinha dores na coluna e
precisava de repousar, e os rapazes levaram a caixa para o
quarto e esconderam-na debaixo da cama. William só ficou
com a carta, já que precisava de limpar a parte que
escondia o número da combinação do cofre. Também não sabia
se devia procurar a terceira chave em Londres, como mandava
a carta, ou se apenas devia mantê-la guardada. Talvez o tal
Duende-Mensageiro, quando chegasse, o esclarecesse. Para
já, queria apenas ver o número e decorá-lo, não fosse a
tinta apagar-se.
110

- Para que serve essa chave? - perguntou Peter.


- É importante para o Outro Lado. Guarda a magia negra.
Não me perguntes mais nada, Peter, ou sai-me o segredo pela
boca fora - disse William numa aflição.
Sentira o segredo a deslizar na garganta, engasgou-se,
começou a tossir e ficou com o rosto vermelho e
congestionado.
- Olha que acordas a mãe... - avisou Peter.
- Maldito segredo. Ia saindo, o maldito...
- Eu não perguntei nada.
William tinha estendido a folha sobre a
mesinha-de-cabeceira e pusera sobre ela a luz do candeeiro.
Mesmo assim, tinha dificuldade com os números. E ninguém
podia ajudá-lo, já que mais ninguém os via.
- Preciso de material - disse. - Vou buscar cotonetes,
leite, talvez vinagre. Espera aqui.
Peter ficou no quarto a folhear o Livro em Branco.
Custa-valhe a crer que estivesse mesmo em branco. William
saiu do quarto e desceu as escadas, devagar, sem ruídos
escusados. Porém, a meio das escadas, parou de repente. Lá
em baixo, no hall, estava aquela luz esverdeada que passara
por ele no jardim a grande velocidade. Não era maior do que
uma maçã e largava uma poalha prateada que se dissolvia no
ar antes de chegar ao chão.
O que era aquilo? Não se parecia com o clarão amarelado
que vira no quarto do Primeiro Depois do Primeiro. Isto era
apenas um pequeno ponto de luz esvoaçante, mais ou menos do
tamanho de um passarinho. E brilhava, brilhava.
William desceu as escadas e, já mais perto, viu que a
luz era de uma criatura minúscula que voava em círculos, no
ar do hall, a procura de uma saída. Talvez estivesse a
contar que a bandeira de vidro, sobre a porta, estivesse
aberta, ou não chocaria duas vezes seguidas contra o vidro.
Era costume aquela bandeira estar aberta no Verão, mas o
vento tinha-a fechado.
Ele aproximou-se mais e ficou, de boca aberta, a olhar
para cima. E então viu claramente do que se tratava.
- Uma fada - disse ele para ninguém. - É linda!
111

Piscou os olhos três vezes e ela continuava lá, tão


viva e cintilante como um pequeno cometa. Era de certeza a
Fada-Sopradora da mãe, que vinha do escritório, pensou ele.
Ainda se podia ver no ar o rasto de poeira prateada.
O rapaz agitou os braços no ar e acenou-lhe, já que não
sabia o que havia de fazer, mas ela continuou, alheia, a
voar em volta da bandeira da porta. Até que uma brisa
nocturna empurrou o vidro e abriu-se uma pequena frincha
por onde a pequena fada escapou.
William abriu a porta.
- Ei, fada! Espera! - disse ele com o nariz no ar, à
entrada do jardim.
Ela bateu as asas e desceu no ar e ficou à altura da
cabeça de William, a cerca de meio metro dos olhos dele,
sempre a bater as asas minúsculas e transparentes.
E então ele viu que o rosto da fada tinha as feições de
uma mulher muito bela, apesar de tão pequena. Era de uma
beleza pura e desarmante. Tinha longos cabelos claros e
lisos, enfeitados com flores minúsculas e minúsculas penas
dos pássaros, e estava coberta por uma faixa de tecido
verde, vaporoso e esvoaçante.
Uma poalha prateada muito miudinha caiu na ponta do
nariz espetado de William, que murmurou:
- Estou a ver-te. Sabias?
Ela aproximou-se dele, quando ouviu aquilo, e ficou a
bater as asas no ar, a dois palmos do nariz de William, com
a boca, minúscula e perfeita, muito aberta. Podia lá ser!
- Sou um Grimm! - disse ele mais alto.
Uma chuva de perdigotos foi na direcção da fada, que se
afastou a espirrar baixinho e voou para mais alto. Depois,
baixou sobre a cabeça dele e pousou-lhe no ombro esquerdo,
junto ao ouvido. E então perguntou, com uma dicção
perfeita:
- Estás mesmo a ver-me ou estás só a adivinhar? Ele
olhou para ela pelo canto do olho.
- Estou a ver-te. És linda. É pena só existires para
mim. Todos deviam ver-te. Ainda não tinha visto nenhuma
fada. Só alguns duendes e...
112

O segredo voltou a atacar e ele tapou a boca com a mão.


- Um Grimm! - gritou a fada junto do ouvido dele. - És
um novo Grimm?
Ele começava a habituar-se àquilo.
- Sim, sou um Grimm.
A fada voltou a subir no ar e girou em volta dele
durante algum tempo, como se estivesse a observá-lo.
- Tenho de avisar o Conselho dos Quatro Reinos - disse
por fim. - Quem descobre um Grimm tem as suas recompensas e
as suas obrigações.
- Já fui descoberto - explicou ele. - Por três duendes.
Um deles falou comigo.
Ele falava demasiado alto para os ouvidos delicados
dela, o que a fez afastar-se. Também para evitar os
perdigotos da saliva dele, que a faziam fechar os olhos.
- Sendo assim - disse ela -, nem sequer posso falar-te,
não estou autorizada.
- Disseram-me que vinha um mensageiro... - queixou-se
William.
- Não sou eu - esclareceu a fada. - Deve ser o
Duende-Mensageiro. Olha se ele me apanha a falar contigo!?
Fica sabendo que gostei de te conhecer. Foi uma honra. E
que o meu coração está a cantar por haver um novo Grimm.
Mas não posso ficar.
- Espera - disse ele.
Porque tinham todas as criaturas sempre tanta pressa?
Saberiam elas, como sabia a Princesa Ariteia, que não
adiantava andar a correr atrás do tempo?
- Posso tocar-te? - perguntou ele.
- Não estou preparada para isso - respondeu a fada. -
Pode afectar-me, embora me pareças um rapaz delicado. Mas
posso pousar na palma da tua mão. Queres?
- Quero.
Ele estendeu o braço direito e ela pousou na palma da
sua mão aberta e recolheu as asas. William não sentia
sequer o peso dela, mas aquela visão deu-lhe um poder que
ele nunca antes sentira. Quem mais podia gabar-se de ter
113

uma pequena Fada-do-Ar pousada na palma da sua mão?


Foi só um instante. Ou uma eternidade?
A fada voltou a bater as asas e ergueu-se no ar.
- Adeus. Tenho de voar até Lydford, onde está outro
escritor. No Verão há tanto que fazer... E estou a ficar
sem forças. Chegas-me uma daquelas flores que estão na
jarra, lá dentro? Adoro rosas acabadas de apanhar...
William foi buscar uma rosa e segurou-a no ar. A fada
estendeu os dois braços muito brancos e segurou com ambos o
caule da rosa. Depois, arrancou metade de uma pétala e
mastigou-a.
- Comes flores!? - espantou-se William.
- O que querias que comesse? Para ti, a rosa é linda,
para mim, é fresca e boa. Muito boa. E para esta abelha que
aqui anda, é grande e doce. Aí está o que pode ser uma
flor. Grande, doce, boa, linda. Depende de para quem seja.
Quando restava apenas o caule da rosa, a pequena fada
devolveu-o a William.
- Boa sorte! - disse. - Se fores ao Outro Lado e
precisares de uma Fada-do-Ar, lá estarei ao teu dispor. Pôr
coisas na cabeça das pessoas, isso sei. Ou adivinhar
pensamentos, ou levá-los de um lado para o outro.
- Podes ver ou ouvir os meus pensamentos? - perguntou
ele, assustado.
Estava a pensar na Princesa Ariteia. E também lhe
ocorreu que ela pudesse adivinhar o segredo que guardava
dentro dele.
A fada apercebeu-se da sua aflição.
- Fica descansado - disse. - Não estou a fazer isso. É
só quando me apetece, ou quando é preciso. É um dom e os
dons devem ser usados com sabedoria. Adeus! E boa sorte.
A fada ganhou altura e, num instante, era apenas uma
luz minúscula no ar.
William ficou de boca aberta a olhar para o céu, a
cabeça a andar à roda, e um caule de rosa na mão.
Voltou a entrar em casa, absorto, e ficou ali algum
tempo, no hall, a tentar lembrar-se do que tinha ido fazer.
114

16

O MENSAGEIRO

Entretanto, no quarto, Peter inquietava-se com a demora


do irmão. Já tinha visto que o Livro em Branco estava em
branco e voltara a guardá-lo na caixa, debaixo da cama.
Estava sentado, à espera, quando ouviu claramente uma
voz, muito perto dele:
- Grimm!
Era alguém que estava dentro do quarto, embora não
houvesse mais ninguém ali dentro. Era uma voz rouca, de
gente. Pelo menos, assim parecia. Ou seria uma voz de
pedra? Se ela ralava, talvez quisesse falar com o irmão.
Ele é que era o Grimm.
Abriu a caixa e lá estava a pedra, quieta e calada como
uma pedra.
Foi então que a voz soou novamente.
- És o Grimm?
Peter voltou-se de repente. Não era a pedra que tinha
falado mas alguém que estava junto à porta. Era daí que
vinha o som. Só que ele não via nada nem ninguém. Mas havia
tanta coisa que ele não via...
115

Por isso, ficou de pé a cheirar o ar. Depois, seguindo


um instinto, correu na direcção da porta para sair dali. Só
que, ao segundo passo, esbarrou em qualquer coisa no ar,
onde nada havia, e rolou no chão.
O rapaz gemeu, levantou-se e voltou a correr para a
porta e, desta vez, chocou estrondosamente com o irmão, que
vinha a entrar no quarto.
Uma caixa de cotonetes, um limão e um pires de leite
voaram pelo ar.
- Está aqui alguém - disse Peter a levantar-se. -
Esbarrei com qualquer coisa num sítio onde não estava nada.
- Estava eu.
- Não foi agora, foi há bocado. Aqui, à entrada da
porta. Estava aqui alguém, embora eu não pudesse ver quem
era - explicou Peter, quase sem voz, enquanto apalpava a
medo o ar, e só encontrava ar, mais nada.
William olhou em volta.
- Também não vejo ninguém - disse.
- Mas estava aqui alguém. E chamou por ti. “Grimm! És
tu o Grimm?”, foi o que disse. Eu posso não ver isto e
aquilo mas ouço bem.
William deu uma palmada na testa.
- Era o Duende-Mensageiro. Estou à espera de um
mensageiro do Outro Lado. Talvez se assustasse e
desaparecesse. Estavas sozinho no meu quarto, confundiu-me
contigo.
- Tens a certeza? - perguntou Peter, sempre a agitar os
braços no ar, à procura não sabia de quê.
Por sua vez, William correu para a janela e viu um
duende a descer agarrado ao cano de escoamento das águas do
telhado.
- Vai ali - disse ele. - Assustaste-o.
- Ele é que me assustou.
- Espera! Estou aqui! - gritou William a meia-voz, com
a cabeça fora da janela. Não podia pôr-se ali aos gritos ou
acordaria toda a gente.
116

O duende desceu com uma agilidade inesperada, já que


era muito gordo e tinha uma barriga bem visível. E, num
instante, desapareceu a correr no escuro, na direcção do
pomar, com um saco de pano às costas, a coxear.
William saiu do quarto, desceu as escadas aos saltos,
abriu a porta principal e saiu para o jardim.
- Estou aqui! Sou eu! O Grimm! - disse ele a caminhar
no escuro.
Disse aquilo uma vez, duas... À terceira, o duende saiu
de trás de uma moita e ficou a um metro dele. Era um duende
como os outros, um pouco mais velho. Pelo menos tinha o ar
de quem tinha vivido uma vida inteira. A barba, longa e
espessa, era toda branca, tal como os poucos cabelos
desgrenhados que saíam do barrete verde.
- Também estou aqui - disse. - Então estás a ver-me?
- Perfeitamente. Ainda não tinha visto um duende com um
barrete verde. E também reparo que tens talvez abusado da
comida, também nunca vi um duende com uma barriga tão
grande.
- Chega, não digas mais nada. Já vi que me vês. Sou o
Duen-de-Mensageiro.
William avançou para ele a sorrir.
- Estava à tua espera - disse. - Confundiste-me com o
meu irmão. E assustaste-o, coitado...
- Já não consigo desviar-me a tempo. Acho que estou a
ficar velho! - disse o duende antes de pousar um joelho em
terra e baixar a cabeça, com reverência. Depois disse: - É
uma honra muito grande ser uma das primeiras criaturas a
falar com o novo Grimm. Vim logo que se soube.
- Bem, não é esse o meu nome - disse o rapaz. - Mas já
estou a habituar-me.
O duende ficou de pé, a apertar o cordão de couro que
segurava as calças.
- Eu sei que também te chamam William, mas, para nós,
só Podes ser o Grimm - disse ele com o ar de quem estudara
pelo menos uma vida inteira e conhecia tudo o que havia
117

para conhecer em todos os mundos que existiam. - Por isso,


é melhor que te habitues. Eu também não sou Ramin, que
significa, na nossa língua, “aquele que pensa duas vezes”,
mas agora até me esqueci do meu verdadeiro nome. Chamo-me o
que me chamam. E tu, também. E agora, vamos a isto?
- Força - disse William.
Afastaram-se da casa a caminhar, na direcção do
roseiral.
- Ora bem - disse o duende -, tenho de começar por te
dizer que fui enviado pelo Conselho dos Quatro Reinos para
te lembrar que tens um destino especial. Se o quiseres
cumprir, é claro. Nós desejamos muito que isso aconteça e
que possas visitar o nosso mundo, recolher as nossas
histórias e divulgá-las. É isso que esperamos de um Grimm.
- Eu sei - disse William, e logo tapou a boca com a
mão. Aquele segredo não lhe dava tréguas. Agora até já
punha palavras na boca dele.
O Duende-Mensageiro olhou de lado para o rapaz,
desconfiado.
- Ouvi dizer que falaste com um Duende-das-Pedras e com
uma Fada-Sopradora, mas espero que nenhum deles te tenha
dito mais do que devia.
- Não, não... - gaguejou William, e engoliu um pedaço
de saliva para empurrar o segredo para baixo.
Tinham chegado ao roseiral e pararam junto a um banco
de pedra. Então, o duende Ramin enfiou a mão no saco que
trazia às costas e tirou de lá um livro encadernado com
pele de vaca castanha e que era em tudo igual ao que estava
dentro da caixa enterrada.
- Toma! É para ti - disse ele a estender o livro para
William. - É um Livro em Branco. Se fores ao Outro Lado e o
levares contigo, as histórias escrevem-se nele, por si, e
encontram as palavras certas para serem contadas. E também
se escrevem outras que já aconteceram e aproveitam para
118

acontecer outra vez. Quando o livro se enche, fica uma


única história com todas as outras dentro, só tens de
separar os episódios de que mais gostares e pô-los circular
por aí. É isso que faz um Grimm, embora possa fazer muitas
mais coisas. Se não chegares a passar para o Outro Lado, o
livro ficará em branco. E não há nada mais triste do que um
livro em branco.
- Eu sei. Tenho ali um, debaixo da cama - disse William
a passar a palma da mão na pele rugosa da capa.
O duende Ramin sobressaltou-se.
- Espera! Não o abras ainda ou lá se vai a Palavra
Misteriosa. William ficou quieto.
- O quê? O que é isso? - perguntou. O duende
explicou-se:
- Não é verdade que o livro esteja em branco. Há nele
uma palavra. Uma só. É uma palavra nova, única, misteriosa,
que nunca foi dita. Quando abrires o livro, verás que ela
está escrita na primeira página. Nessa altura, terás de a
decorar porque ela apaga-se nesse momento e não poderás
voltar a vê-la. Por isso, tem de ficar guardada na tua
cabeça.
- Sim, mas porquê?
- Porque essa palavra é a chave que abre a porta para o
Outro Lado. É uma Palavra-Chave, uma Palavra-Mestra. Por
isso, pensa duas vezes antes de abrires o livro. Será
melhor que o faças só no dia da partida, por exemplo, ou
apenas uns minutos antes de partires. Se for essa a tua
vontade, é claro.
- É essa a minha vontade - garantiu William, com
firmeza. - Onde é essa porta?
- Calma, rapaz. Isto ainda agora começou. Antes disso,
vou visitar-te umas noites e explicar-te tudo o que
precisas de saber. Mudar de mundo não é como mudar de casa
ou de roupa.
- E quanto tempo demora isso? - quis saber William.
O duende coçou a barba durante algum tempo, e pensou no
assunto pelo menos duas vezes. Depois disse:
119

- Uma semana, no mínimo, ou um mês, no máximo. Depende


de ti. Eu saberei quando estiveres preparado.
William agitou-se.
- Não pode ser. Preciso de passar antes disso. É
urgente!
- Como? Porquê?
- Não me perguntes, que não posso dizer-te. As coisas
são assim.
William engoliu um pedaço de saliva para empurrar o
segredo para baixo.
- Hum!... Segredos... - murmurou o duende Ramin. - É
mau sinal, rapaz. Um segredo como esse que tu guardas pode
fazer-te muito mal. Toma cuidado. Pensa sempre duas vezes
antes de abrires a boca. Ouviste?
- Ouvi. Também és capaz de ler pensamentos?
- Como as fadas? Não. Mas sou capaz de adivinhar que
sobraram pãezinhos de passas do jantar. Estavam bons?
- Óptimos. Ninguém os faz melhor do que a Alicia. Vou
buscar-te dois e também uma fatia de tarte de ameixa;
talvez ainda haja, também - disse William a avançar para a
porta.
Mas o duende Ramin tinha voltado a pensar duas vezes.
- Espera! Não vás! - exclamou, mortificado. - Adoro
pãezinhos de passas, mas não é permitido. Tenho de me
concentrar na minha missão, que é convidar-te, em nome do
Conselho dos Quatro Reinos, a visitares o Outro Lado,
dizer-te que és desejado e serás muito bem-vindo. Até lá,
deves guardar o livro bem guardado, não vá alguém abri-lo.
Ou não vás tu abri-lo sem querer. Se isso acontecer,
lembra-te que tens de decorar a Palavra Misteriosa. Não
podes escrevê-la em lado nenhum, sequer murmurá-la. Uma vez
dita, falada ou escrita, perde o seu poder. Deixa de ser a
chave de que precisas para chegar ao Outro Lado.
Percebeste?
- Sim - disse William. - Mas não o abro tão cedo. Ainda
tenho de decorar um número de seis algarismos que é o
segredo do cofre que guarda a terceira chave.
120
O duende Ramin franziu a testa, ao mesmo tempo
surpreendido e preocupado.
- Espera aí! - disse. - A terceira chave não está
contigo?
- Não. Mas também não está em poder de ninguém. Está
guardada em Londres, num cofre bem fechado.
- Isso são más notícias - disse o duende,
verdadeiramente apreensivo. - Se juntarmos essa notícia a
outra, a de que o Rei do Reino do Sol Negro, que tem as
duas chaves, está a preparar uma invasão, e ainda a uma
outra que nos dá conta de estranhos movimentos dos Escuros
em Londres, temos sabes o quê?
William encolheu os ombros e o duende concluiu:
- Temos um grande problema. Tudo isso quer dizer que os
Escuros ou já têm a chave ou já estão a contar com ela.
Essa é que é essa.
- É?
- É. E, sendo assim, já não é comigo, que sou apenas um
mensageiro. Vou mandar-te um Resolvedor-de-Problemas que já
ande por aqui. Ele ajuda-te a encontrar a chave.
O duende ajeitou o saco nas costas e puxou o cordel das
calças, a preparar-se para partir.
- Espera - disse William - Disseram-me que um
Duende-Mensageiro me explicaria tudo o que preciso ainda de
saber. Não és tu?
- Sim, mas agora não posso ficar mais tempo. Estou
combalido do choque com o teu irmão, a gastar muita
energia. Não é fácil para nós, andar por aqui. Estive até
para ir embora e voltar amanhã à noite, mais fresco, mas
depois pensei nisso uma segunda vez...
- Pois, tu pensas sempre duas vezes...
- Pelo menos. E também penso que o melhor é ir andando.
Também é preciso começar a atacar esse problema da chave.
Mas descansa que o Duende-Resolvedor-de-Problemas não vai
demorar.
121

William encolheu os ombros, conformado. Que podia ele


fazer?
O duende Ramin voltou a pôr o joelho direito em terra.
- Foi uma honra conhecer o novo Grimm - disse. Depois,
levantou-se e caminhou devagar, a coxear, até desaparecer
no escuro.
William regressou a casa e ao quarto, onde o irmão
aproveitara o tempo da espera para limpar o pó e a terra
que encobriam parte do número.
- Então? - perguntou Peter quando viu o ar de desânimo
do irmão.
- O Duende-Mensageiro foi-se embora. Deu-me este Livro
em Branco que vai registar as histórias das criaturas do
Outro Lado, quando eu lá for. Mas disse-me que ainda é cedo
para isso. Ele vai treinar-me, ensinar-me, etc, mas isso
demora pelo menos uma semana. Antes disso, vão mandar-me um
Resolvedor-de-Problemas para me ajudar a encontrar a
terceira chave, que está em Londres, no tal cofre.
- Que história, Willy! Só não percebo qual é o meu
papel.
- Ainda é cedo para saberes isso. E também para eu
passar.
Peter abraçou o irmão.
- Tem calma. Qual é a pressa?
- Eu é que sei, mas não me perguntes nada.
O segredo levantou a cabeça e começou a ronronar, como uma
gatinha mimalha, e William mudou imediatamente de
pensamento.
- Vou esconder este livro. Se o encontrares, não o
abras. Só eu o posso abrir, e só quando estiver de partida.
A palavra que ele guarda é a minha chave.
- OK, maninho. Acalma-te, e vê agora o número na carta.
Já limpei a terra e o pó.
William debruçou-se sobre a carta.
- Já o vejo. É o nove, sete, sete...
- Não me digas - interrompeu Peter. - Diz na carta para
não o pronunciares, nem sequer a mexer os lábios.
122

William tapou a boca.


- Pois é.
Depois, fechou os olhos e tentou lembrar-se do número e
viu que ele já estava dentro da sua cabeça. Agora, só tinha
de lembrar-se dele de vez em quando.
Era tarde. A mãe ouviu-os e gritou umas tantas ameaças.
Peter voltou ao quarto e William estendeu-se na cama,
de costas, a pensar no sítio onde devia esconder o livro
com a Palavra Misteriosa e a carta. Seria melhor enterrá-lo
outra vez?
Pensou no assunto mais do que duas vezes, mas adormeceu
antes de chegar a qualquer conclusão, vencido pela emoção e
pelo cansaço. Tal como já acontecera ao irmão, no quarto ao
lado. E, durante o que restava dessa noite, nada mais de
especial aconteceu.
Estava a nascer o dia quando William foi abanado com
força e ouviu, no meio do seu sonho, um vozeirão:
- Então? Acorda, ó Grimm!
123

17

O RESOLVEDOR-DE-PROBLEMAS

A meio de um sonho confuso, William ouviu o seu novo


nome. Grimm. Talvez também já o considerasse seu, como lhe
dissera o duende Ramin. Despertou e abriu um olho, e depois
o outro.
- Aqui, deste lado - disse alguém.
Ele voltou-se e viu outro duende do outro lado da cama.
Era um duende como os outros, só que tinha o cabelo
curto, bem penteado, e a barba aparada. Via-se que
frequentava um bom barbeiro. Era jovem, notava-se bem, e
também muito elegante. Tinha mesmo um porte altivo. A
roupa, de couro castanho, é que era igual à dos outros
duendes, à excepção do belo boné de xadrez.
Estava com o joelho dobrado no chão quando disse:
- Viva, ó Grimm! É uma honra estar aqui a ajudar-te a
resolver um problema.
Porém, a sua reverência ficou por ali. A seguir,
levantou-se, olhou para o seu relógio de pulso e disse:
- Bem, vamos a isto. Não há tempo a perder. No Outro
Lado está quase a começar a Segunda Guerra.
125

William sentou-se na borda da cama a esfregar os olhos.


- Suponho que sejas o Resolvedor-de-Problemas - disse.
- Nem mais.
- Pensava que vocês só andavam por aqui à noite.
- Os outros, sim. Um Resolvedor-de-Problemas anda à
hora que for preciso. E garanto-te que, antes que a noite
chegue, temos o nosso problema resolvido. Seja lá como for.
Já estás bem acordado?
- Já.
- Então diz-me: já ouviste falar nas três chaves da
caixa da magia negra?
- Já.
- E sabias que o Rei do Reino do Sol Negro, a Criança
Terrível, tinha duas delas e só lhe faltava a que ficou na
mão do Primeiro Grimm?
- Faltava? - perguntou William. - Não falta ainda?
O Resolvedor coçou a barbicha bem aparada.
- Aí é que está - disse ele, apreensivo. - Consta que
eles encontraram a chave que devia estar em teu poder, ou
não estariam a preparar uma invasão. Pelo menos é isso que
nos dizem os nossos espiões. Mas não há uma certeza.
William vestiu os jeans e enfiou os pés nas sapatilhas.
- Então a chave não está no tal cofre, em Londres, à
guarda do duende Sami?
- Estará? Só tu sabes a combinação do cofre e,
portanto, só tu o podes abrir. É isso que vamos fazer a
Londres: abrir aquele cofre. Precisamos de saber se a chave
continua mesmo lá dentro. E, se for esse o caso, trazê-la e
guardá-la num sítio diferente. Tens o número do segredo do
cofre na tua cabeça, suponho...
William coçou a cabeça. Qual era o número? Tinha-o na
cabeça quando adormeceu. Agora, ele não estava lá. Só se
lembrava de números de telefone.
- Tenho de confirmar na carta - disse. - Mas eu meto-o
na cabeça. Isso meto. O problema é que não posso ir agora
para Londres. A minha mãe não me deixa. E como iria?
126

O Duende-Resolvedor sorriu, a afiar a barbicha. E


disse:
- Não te preocupes, eu resolvo isso. Não sou um
Resolvedor? Se, por exemplo, a tua mãe decidir ir a Londres
ainda esta manhã, aposto que tu eras rapaz para aproveitar
a boleia. E lá ias tu a Londres tratar do assunto. Estou
certo ou estou certo?
- A minha mãe vai a Londres? Agora!? - espantou-se
William.
- Ela mesmo te dirá se vai ou não. Não tarda aí.
Como sabia aquele duende o que a mãe ia fazer?
- Lês pensamentos ou escutas atrás das portas? -
perguntou William.
- Não. Resolvo problemas. Só isso.
William vestiu a t-sbirt, apertou os cordões das
sapatilhas e colocou-se diante do Resolvedor, que não
chegava aos seus ombros.
- Também tenho um problema - disse então, com uma voz
magoada. - Depois de tratarmos do problema da chave,
ajudas-me a passar para o Outro Lado?
O duende abanou a cabeça e torceu o nariz.
- Isso é com o Duende-Mensageiro. O que te disse ele?
- Que me falta pelo menos uma semana de treino. Mas eu
não posso esperar. Tenho um encontro com a Princesa Ariteia
na torre mais alta do palácio do Reino da Rosa.
Pronto. As palavras tinham saído pela boca fora sem ele
saber como. Palavra puxou palavra, e as outras todas vieram
atrás. Ele queria calar-se, parar de falar, mas as palavras
eram uma torrente invencível. Empurravam-se umas às outras
com pressa de sair e, num instante, ele contou tudo. Os
dois encontros com a Princesa Ariteia, a história das duas
irmãs e da Criança Terrível, a promessa de um encontro no
Outro Lado.
- Agora já sabes - disse ele muito tristemente, quando
já não havia nem mais uma palavra para sair.
O duende levou as duas mãos à cabeça.
127

- O que aí vai - disse ele. - Mas não te preocupes. Em


tempos de guerra eminente, não se dá tanta importância a
essas faltas.
- Mas soltei o segredo. Inteirinho - gemeu ele.
Sentia-se aliviado, isso era verdade, mas a angústia e
o medo ocupavam agora o lugar que ocupara o segredo.
- Isso sim - concordou o duende. - Soltaste o segredo.
- Não - disse William, muito aflito. - Só tu é que o
ouviste. Se te calares, ele continua a ser um segredo. Faz
de conta que não ouviste. Por favor. Esquece o que te
disse...
O Resolvedor abanou a cabeça negativamente.
- Não posso. Ouvi, está ouvido. Além disso, não
adiantava. O segredo já anda por aí, à solta. Qualquer um
poderá ouvi-lo quando o vento assobiar entre as rochas na
praia, ou agitar, à noite, os ramos das árvores.
- E pode chegar ao vosso mundo?
- Isso também é quase certo. Segredos, nada os detém.
Não tarda nada e já não é um segredo: não há quem o não
saiba. E deixa de o ser. É isso o que um segredo mais quer:
deixar de ser um segredo.
William sentou-se no chão e escondeu a cabeça entre os
joelhos.
- Estou perdido - disse. - A Princesa vai ficar
transformada numa estátua de pedra.
- Isso também está certo - disse o Resolvedor. - São
assim, as coisas no Outro Lado. Uma promessa é quebrada, um
segredo é revelado e uma linda princesa com pele de rosa
fica transformada numa linda estátua de pedra. Vê, ouve e
sente tudo à volta dela, mas não pode mexer-se ou falar.
- Cala-te! - interrompeu William. - É horrível. Quanto
tempo demora até isso acontecer?
O Resolvedor-de-Problemas pôs-se a afiar a barbicha com
os dedos.
- Estou a ver. Queres cumprir a promessa e, talvez,
chegar ao reino da Rosa antes do segredo. Não é fácil, já
te digo.
128

- Quanto tempo falta? Quanto tempo tenho? - insistiu


William, cada vez mais ansioso.
O duende pôs-se a olhar para o ar.
- O tempo, o tempo... De cá ou de lá?
- De cá e de lá.
O duende voltou a olhar para o ar.
- Espera, há uma maneira de ficares a saber quanto
tempo falta - disse ele por fim. - Anda daí comigo ao
jardim.
O Resolvedor desceu as escadas com William atrás, saiu
para o jardim e caminhou na direcção do roseiral, onde
arrancou uma rosa, que entregou a William.
Disse ele então:
- A Princesa Ariteia é nascida da rosa. Estou certo ou
estou certo?
- Estás certo - respondeu William.
- Então quando esta rosa murchar de vez, a Princesa
também estará transformada em pedra.
William olhou a rosa. Estava ainda viva e fresca,
cheirosa, com gotinhas de orvalho a escorrerem das pétalas,
mas ele sabia que era breve a vida de uma rosa arrancada à
terra.
- É pouco tempo - disse. - Quero passar já para o Outro
Lado. Ajudas-me?
O Resolvedor fez um gesto de aborrecimento.
- Já te disse que isso não é comigo. Arre! Além disso,
temos de resolver o problema da chave.
- E não posso ir ao Outro Lado e voltar para procurar a
chave? - insistiu William.
- É perigoso. Não estás preparado. E a chave é o mais
importante. O nosso mundo pode acabar. E a Princesa acaba
com ele. Depois vais. Pelas minhas contas, ainda chegas a
tempo se Passares amanhã à noite. Talvez até depois de
amanhã.
William voltou a olhar a rosa.
- Tens a certeza?
- tenho. Estou certo e estou certo.
129

Foi então que Peter apareceu de repente, saído do nada.


Tinha visto o irmão a sair para o jardim e queria
assustá-lo.
O Resolvedor também foi apanhado de surpresa e não teve
tempo de se desviar. Chocaram de lado e rolaram ambos na
relva húmida do jardim.
- Quem é este palerma? - vociferou o Resolvedor a
levantar-se, enquanto sacudia a terra das calças.
- É o meu irmão, Peter. E de palerma não tem nada, só
que não te vê.
Por sua vez, Peter, sentado no chão, percebeu o que se
passava. Era de dia e, de dia, as coisas eram mais simples
e fáceis de perceber.
- É o mesmo duende da outra vez? - perguntou ele,
sentado no chão.
- É outro - respondeu o irmão. - Este vem ajudar-me a
encontrar a terceira chave. É um Resolvedor-de-Problemas.
Peter levantou-se a olhar para todos os lados, já que
não sabia para que lado havia de se virar.
- Não será um “Arranjador-de-Problemas”? E onde é que
ele está?
- Estou aqui, rapaz, dois metros para a tua direita. Vê
lá se te pões à distância. Sim?
Peter não disse nada, mas fez algo de que ninguém - nem
ele, talvez - estava à espera. Movendo-se bruscamente, deu
dois passos largos para a sua direita e apanhou o duende
com um abraço.
- Larga-me. És doido ou quê? - gritou o duende a
debater-se.
Peter apertou-o com força, mas ele não era apenas
perspicaz, como competia a um Resolvedor-de-Problemas,
também era ágil. Escapou facilmente e afastou-se para uma
distância segura.
Ainda assim, Peter ficou feliz com a revelação, num
estado de euforia, próximo do êxtase.
- É mesmo verdade - disse ele. - Agora é que eu “vi” um
deles.
130

- És doido, pá? - resmungou o Resolvedor a apanhar o


boné, que voara para longe.
Peter não o ouviu. Continuava enlevado, com o olhar
perdido no vazio.
- É muito esquisito - disse ele. - Onde pensamos que
não está nada, há um bocadinho em que está qualquer coisa.
Agora é que eu sei. O invisível existe. Só que não se vê.
- És filósofo, pá? - resmungou o Resolvedor. - E se
fossem agora a casa ver o que quer a mãezinha? Está a
chamar pelos dois. E o que será que ela quer dizer?
- Que tem de ir a Londres? - adiantou William.
- Talvez, talvez. E, nesse caso, tu vais aproveitar a
boleia. Estou certo ou estou certo?
- Estás certo.
- A mãe vai a Londres? E tu? - perguntou Peter.
- E tu escusas de voltar a aparecer - disse o duende. -
Já deves ter percebido que isto não é contigo.
- É com ele também - esclareceu William. - Por isso,
vai connosco a Londres.
- Também vou a Londres? - espantou-se Peter.
- Vais. Já te explico tudo. Se eu for, também vais.
- Nem pensar - disse o Resolvedor. - Não é permitido.
- Tem de ser - respondeu William, muito seguro de si. -
Os dois somos um. Estás a ver? Um mais um é igual a um. É
esse o nosso lema. Por isso, ou ele vai ou temos aqui outro
problema.
O Resolvedor-de-Problemas encolheu os ombros e fez um
gesto de enfado.
- Isto não está a começar bem - disse.
Peter voltou-se para o irmão, que era quem ele via.
- Vamos a Londres? - perguntou. - Quando? Com quem?
Fazer o quê?
- Agora. Com a mãe. Procurar a chave. É muito
importante, o Outro Lado vai entrar em guerra.
- Que guerra?
131

- Anda, que eu explico-te pelo caminho.


A mãe apareceu no alpendre, esbaforida.
- William, Peter, vou a Londres e volto amanhã. Tenho
de gravar uma entrevista, logo à noite, para a televisão.
- Eu também vou - disse William.
- E eu. Tenho medo de ficar aqui sozinho - acrescentou
Peter. Depois, enquanto caminhavam na direcção da casa,
aproximou-se do irmão e perguntou-lhe, baixinho: - O tipo
adivinha?
- Não. Resolve problemas.
132

18

O PODER DAS HISTÓRIAS

A viagem para Londres decorreu normalmente. Elisabeth


Zimmer, antes de ir para o estúdio de televisão, ainda
queria passar pelo cabeleireiro, pela editora e mais uma
data de sítios. Por isso, deixou os filhos em casa, na
Kennington Road, por volta das três da tarde e partiu
novamente.
Eles mudaram de roupa e prepararam-se também para sair.
Tinham um encontro com o Duende-Resolvedor daí a meia hora.
Já estavam de saída quando William se pôs de lado diante do
espelho no hall.
- Achas que estou a ficar corcunda? - perguntou.
- És maluco? E porque havias de ficar corcunda?
- Eu é que sei. Deixei escapar um segredo que não era
um segredo qualquer. E agora alguém pode sofrer por causa
disso no Outro Lado.
Peter sorriu e perguntou:
- Por causa de um segredo?
É assim que as coisas são do Outro Lado. E eu também
Posso ser castigado e ficar corcunda. Eu é que sei. Deste
lado, as coisas são assim. E então? Estou a ficar corcunda
ou não?
- Acho que não, mas tu é que sabes - respondeu Peter.
133

- Vês esta flor? - perguntou o irmão a erguer a rosa no


ar.
A sua mão tremia e a rosa também. Aquela era uma bela
rosa, mas as pétalas começavam a dobrar-se.
- O que tem a rosa? - perguntou Peter.
- Quando ela morrer, alguém no Outro Lado morre também.
- Cala-te, Willy! Estás a delirar. E mexe-te! A que
horas combinaste com o duende?
William guardou a rosa no quarto, dentro de um copo com
água que talvez atrasasse a sua morte. E, antes de sair,
ainda voltou a olhar para o espelho.
- Tens a certeza de que não estou a ficar curvado? Ora
vê! O irmão arrastou-o para a rua.
Estava quase na hora, realmente. Caminharam até à
estação do Metro mais próxima. Estava calor, muito calor,
mas um rebanho de nuvens escuras juntava-se no céu.
- Achas que vai chover? - perguntou Peter.
- Trovoada - disse William. - Isto é tempo de trovoada.
Há electricidade no ar.
Saíram na estação de Sloane Square e depois foram a pé
até ao Ropers Garden, um pequeno jardim exterior à Chelsea
Old Church, na margem do Tamisa. Era esse o local do
encontro com o Resolvedor-de-Problemas, que viajara para
Londres sozinho, não se sabia como.
Faltavam ainda cinco minutos para a hora marcada quando
lá chegaram, mas o duende já lá estava. William viu-o junto
à estátua de bronze do menino, a apertar os cordões das
suas botas de cabedal, e caminhou para lá. Mas esqueceu-se
de avisar o irmão, que calcou um pé do duende.
- Cuidado, pá! Estou aqui.
- Onde? - perguntou Peter a recuar. E por pouco não
voltou a calcá-lo.
- Chiça, eu disse-te que estava aqui - resmungou o
Resolvedor. - Estou onde soa a minha voz. Se a minha voz
soa aqui, é porque estou aqui. Ouves mal?
134

- Já tinha reparado que, sem ver, ouço pior.


- Tenham calma. Vem aí gente - disse William no meio
dos dois a lembrar-se que eles chocavam sempre que se
encontravam.
- Vamos andando que há muito que fazer - disse o
duende. Depois, elevou a voz para se dirigir a Peter: - E
tu que não vês nem ouves, toma atenção: vou ao lado
esquerdo do teu irmão.
Caminharam pela margem do Tamisa na direcção da casa do
duende Sami, que, dizia o Resolvedor, morava ali perto.
Quando se cruzavam com pessoas, o Resolvedor escondia-se
atrás de William. Mesmo assim, não evitava ser calcado ou
tocado por algumas pessoas, o que muito o irritava.
O pior de tudo, porém, eram os cães, que o farejavam.
Alguns procuravam-no no nada e o focinho deles acabava por
o encontrar. E, por vezes, a seguir vinham os dentes.
Muitos duendes tinham sido apanhados por cães que lhes
abocanhavam as pernas e as nádegas ou que simplesmente
urinavam contra as pernas deles.
- Evitem os cães, por favor. Eles cheiram-nos - pediu
ele num tom de súplica.
- Aqui, em Londres, também andam duendes ? - perguntou
William enquanto caminhavam.
- Sim, sim. Aqui é que eles estão. Vive aqui tanta
gente que as pedras carregam-se rapidamente com a energia
das histórias. Onde há gente, há histórias, e onde há
histórias, há energia. Vais vê-los por aí, a trabalhar, e
perceber como eles fazem isso.
- E Fadas-Sopradoras, também há?
- Também, ou não houvesse aqui uma grande concentração
de escritores e outros contadores de histórias. E um bom
contador é o nosso melhor aliado. Sabes porquê? A beleza e
o interesse de uma história está no modo como é contada. Se
contares bem uma boa história, ela dá a volta ao mundo
enquanto o Diabo esfrega um olho. Estou certo ou estou
certo?
- Estás certo - respondeu William.
E ele prosseguiu, entusiasmado.
- Uma boa história voa. Vai de boca em boca pelas
linhas telefónicas, pela Internet, pela rádio e pela
televisão, ou pelo que for. Atravessa fronteiras, oceanos,
135

continentes, vence a neve e o deserto, sobe rios e torres,


cruza mares e céus, salta muros e abismos. Nada a detém.
Agora imaginem a quantidade de gente que conta e que ouve
essa história. Uma mãe conta-a a um filho pela milésima vez
e ele insiste: “Conta-me outra vez!” As histórias, como
vocês sabem, provocam emoções: medo, ternura, conforto.
Agora somem essas emoções e imaginem a energia que isso dá.
A maior parte dela perde-se, mas nós conseguimos recolher
parte dela em pedras que foram preparadas para isso.
- As pedras azuladas que há na quinta? - interrompeu
William.
- Sim. Essas são as melhores, mas há outras que também
são capazes de recolher a energia das histórias contadas.
- É isso que andam a fazer os duendes que passam na
quinta?
- É. Verificam as que estão carregadas e trocam-nas por
outras. São os Duendes-das-Pedras. Os que andam por aqui
fazem o mesmo mas de outra maneira. Verás.
Sempre a caminhar, afastaram-se da margem do rio, na
direcção de Cheyne Walk.
- E os Escuros? - insistiu William.
- Quem são esses? - perguntou Peter.
- Não são para os teus olhos - respondeu o Resolvedor.
- Nem para os meus. Andam por aí, isso sabe-se, mas nunca
são vistos, muito menos durante o dia. Nem precisam. Têm
homens ao serviço deles. E nota que basta controlar um
homem muito poderoso para controlar milhares, talvez
milhões de outros homens.
Um carro apitou, outro travou. Várias buzinas soaram.
Uma boa discussão entre dois condutores começou. “Você ia
com pressa”, gritou um deles. “Eu? Você é que me
ultrapassou pela esquerda.”
Eles afastaram-se para evitar a aglomeração de pessoas
que acorreram para aquele sítio.
- Aqui é que eles se fartam de roubar tempo - lembrou
William. - Põem toda esta gente a correr e depois
roubam-lhes o tempo.
136
- Também já sabes isso? - comentou o Resolvedor. -
Grandes conversas tiveste tu com a Princesa Ariteia.
- Isso é um disparate - disse Peter, a meter-se na
conversa. - Como é que nos podem roubar o nosso tempo?
William lembrou-se do que lhe dissera a Princesa.
- Roubar tempo é fácil para quem sabe roubar tempo -
disse. Peter parou de caminhar.
- Talvez, mas como é que eles o roubam? - perguntou.
William sorriu. Essa ideia também já tinha dado umas voltas
dentro da cabeça dele.
- Como te hei-de explicar? - disse ele a ganhar tempo.
Era difícil, mas o Resolvedor deu uma ajuda.
- Há dois tempos - disse ele. - Estou certo ou estou
certo?
- Estás certo.
- Ah! Um é o tempo que corre, sempre igual, o tempo dos
relógios que dão horas certas. O outro é o tempo de cada um
e que cada um vive e gasta à sua maneira. Estão a perceber?
- Mais ou menos.
- Ora bem, todas as horas são iguais e duram uma hora.
Estou certo ou estou certo?
- Não podias estar mais certo - disse Peter para o
apressar.
- Mas, dentro de ti, horas iguais passam de modo
diferente. Uma hora de uma aula aborrecida não é igual a
uma hora a cavalgar um pónei na charneca. Ou é?
- Não. Estás certo - respondeu Peter.
- Ora aí está - prosseguiu o duende, empolgado. - Esse
teu tempo interior que ora pára, ora voa, ora cresce, ora
encolhe, seja ou não seja usado, acaba também por ser
arrastado pelo Grande Tempo, o dos relógios, e lá vais tu
para diante como todas as coisas, folhinha seca no meio das
águas revoltas de um grande rio. Mas, antes que isso
aconteça, aparecem os Escuros e levam o teu rico tempo. Uns
segundos aqui, uns minutos ali. Quem dá Por isso?
Peter estava de boca aberta.
- Chiça, pá! - exclamou. - És filósofo?
137

Tinham acabado de chegar a Cheyne Walk e caminhavam


entre casinhas vitorianas modernizadas, com grades de ferro
e floreiras diante das entradas.
Peter deteve-se de repente e o Resolvedor, que vinha
atrás dele, por precaução, voltou a chocar com ele.
- O que foi agora?
- Não olhem para trás, mas acho que estamos a ser
seguidos - disse Peter entre dentes.
O Resolvedor podia olhar para trás à vontade que
ninguém o via. E foi o que fez.
- Quem são? - perguntou.
- O gordo com uma pasta e o outro que coxeia -
respondeu Peter sem se voltar. - Já os vi atrás de nós
quando vínhamos pela marginal.
O duende franziu o sobrolho e o seu “radar” entrou em
acção.
- Tens a certeza? - perguntou.
- Tenho.
- Então deixem-se estar aqui parados a conversar. Eu
vou chegar-me a eles para os ver melhor.
William viu o Resolvedor a aproximar-se dos dois homens
e a caminhar ao lado deles. A invisibilidade, pensou ele,
tinha as suas vantagens.
Os dois homens passaram pelos dois rapazes com o
Resolvedor ao lado. Aliás, seguiu com eles durante mais
alguns metros e depois regressou.
- Então? - quis saber Peter, ansioso.
- São tipos de negócios, da Bolsa. Só falam de
dinheiro. E de futebol.
- Tens a certeza?
- Tenho, rapaz. Vejo e ouço e cheiro os homens que
trabalham para os Escuros.
Continuaram a caminhar ao longo de Cheyne Walk,
apreciando as vistosas placas azuis nas casas onde vivera
gente famosa: músicos, escritores, políticos, pintores:
138

Keith Richard, que viera no n.º3, ou George Elliot, no 4,


ou ainda J. M. W. Turner, T S Elliot, Ian Fleming, Henry
James, Thomas Carlyle. Quando chegaram à casa onde havia
uma placa azul a indicar que ali vivera Mick Jagger, o
famosíssimo vocalista dos “Rolling Stones”, no n.º48, o
Duende-Resolvedor deteve-se. E disse:
- Vêem aquela galeria de arte, no rés-do-chão do 50?
Ali dentro encontrarão o duende Sami, o guardião da chave.
- É o mesmo a quem o Grimm deu a chave a guardar!? -
espantou-se William.
- Não. Podemos viver durante muito tempo, mas não tanto
assim. Este é um descendente dele. Outro Sami. Quando
estiverem lá dentro e não houver gente a olhar, empurrem o
segundo quadro da parede da esquerda depois da porta. É uma
passagem para a casa dele. A empregada sabe de tudo, é das
nossas, mas também não convém que saiba quem são e o que
procuram. Por isso, abram o quadro quando a sala estiver
vazia e ela também não estiver a olhar.
- Não vens connosco ? - perguntou William.
O Resolvedor esperou que passassem algumas pessoas.
Depois, pôs-se em bicos de pés e segredou ao ouvido de
William:
- Não posso ser visto pelos outros duendes. Tenho de
ser também invisível para os que me vêem. Um
Resolvedor-de-Problemas é como um agente secreto. Mas há
mais: há um duende traidor e pode ser qualquer um, até o
Sami. Também ando aqui a resolver esse problema. Por isso,
não lhe digam que vos trouxe, digam que foi um dos duendes
das pedras ou o Duende-Mensageiro. E agora vão. Eu estou
sempre por perto, mesmo que não me vejam. E se houver
problema, já sabem que eu o resolvo. Um Resolvedor tem de
ter problemas para resolver ou esquece-se do que anda aqui
a fazer. Estou certo ou estou certo?
- Estás certo - disse William a olhar para a fachada da
galeria.
139

19

UMA PALAVRA E UM NÚMERO

A empregada da galeria estendeu-lhes um catálogo da


exposição.
- Façam o favor.
Era uma jovem de cabelo liso, óculos e roupa
estilizada, com um sorriso artificial.
- Obrigado - disse William a recolhê-lo.
Peter reparou que ela ficou a olhá-los de soslaio,
talvez por não ser normal entrarem ali rapazes tão novos.
A exposição era de um pintor haitiano, Jean-Marie
Basquiat, como William vira no catálogo, que folheou com
interesse para se integrar no ambiente.
Havia pouca gente lá dentro: um casal de meia-idade
mais um jovem estudante barbudo, e estavam todos na
primeira sala. O estudante dirigiu-se à empregada, que foi
ao pequeno escritório procurar qualquer coisa. Eles
aproveitaram para passar à segunda sala, onde Peter
encontrou uma pequena alavanca na moldura do quadro.
- Depressa - pediu William.
141

Tanto Peter mexeu nessa zona da moldura que o quadro


deslizou, sem ruído, e deixou à mostra uma porta que
William empurrou imediatamente. Entraram, sem tempo para
pensar duas vezes, já que o quadro regressava ao seu lugar,
sem mais instruções.
Peter e William encontraram-se num corredor estreito e
escuro. A meio desse corredor havia uma porta por cujas
frestas saía a pouca luz que ali havia. Era também de lá
que vinha o barulho que eles ouviam: vozes alteradas,
cadeiras que eram arrastadas, coisas que caíam.
Aproximaram-se da porta para ouvir melhor.
- Estão a discutir - disse William.
- Quem?
- São pelo menos dois, não são? O Sami e a mulher,
talvez. Há uma voz mais fina.
Era a voz fininha, quase estridente, que mais se fazia
ouvir. Queixava-se da falta de ingredientes para cozinhar,
de andar a desviar-se das pessoas na rua e de ter de viver
escondida num buraco. Por fim, rematou o rol de queixas com
uma expressão chorosa:
- Tenho saudades do Outro Lado. Antigamente, íamos lá
duas e três vezes por mês, agora, nem uma.
- Pensas que eu também não tenho saudades? - disse a
outra voz.
E a voz fininha subiu de tom.
- Deixa-me. E vai ver quem entrou. Alguém abriu o
quadro. Não ouviste?
William e Peter trocaram um olhar cúmplice e Peter
bateu à porta com os nós dos dedos, não fossem pensar que
eles ouviam conversas atrás das portas.
Foi o próprio Sami quem abriu a porta logo a seguir.
Ficou a olhar para eles, muito espantado, talvez a pensar
no que eles estavam ali a fazer.
- Boa tarde. Procuramos o duende Sami - disse William a
olhar para ele, o que muito o perturbou.
142

O duende engoliu em seco. E não disse nada, ou iam


saber que ele estava ali.
E então William inclinou-se para ele e retirou um longo
cabelo castanho que estava sobre a gola da sua camisa de
linho branco.
- Com licença. Tem aqui um cabelo.
- É da minha mulher - respondeu ele, cada vez mais
espantado. - Mas então...
- Sim, estou a vê-lo - disse William. - Não devia?
- Bem, já não és uma criança de coração puro e
inocente, não senhor. Com a tua idade, já não devias
ver-me. Aquilo do cabelo foi um truque?
- Tem aqui outro - disse o rapaz a retirar mais um
cabelo castanho da gola da camisa de Sami. E acrescentou: -
Sou aquele que vê. Um Grimm. Venho por causa da chave.
Sami disse para dentro:
- Já venho.
- Livra-te de demorares - gritou a mulher. - Hoje vou
fazer sopa de trevo e cogumelos. Quem era?
- Uma emergência. Vieram chamar-me - disse Sami a sair
apressadamente para o corredor.
Fechou a porta e ficaram os três no corredor apertado.
- Desculpem não vos mandar entrar, mas ela hoje está
impossível - disse. - Além disso, a chave está lá fora.
William tirou da mochila um queijo Cheddar. Por sorte,
havia um na despensa da casa.
- Trouxe-te isto.
Sami segurou o queijo.
- Obrigado. Pensei que te tinhas esquecido - disse ele.
Foi a casa guardar o queijo e regressou, muito
apressado. Espreitou por uma grelha da ventilação, ao fundo
do corredor, e carregou numa alavanca.
- Podemos sair - disse. - Não está ninguém do lado de
lá.
Passaram à segunda sala da galeria e depois
atravessaram a primeira pelo meio de um grupo escolar que
acabara de entrar, com Sami a ziguezaguear habilmente entre
os jovens barulhentos. Via-se que estava habituado a andar
entre a multidão.
Saíram para a rua e procuraram um recanto sossegado,
onde Sami saudou o novo Grimm com a mesma reverência dos
outros e lhe disse o que todos lhe diziam: que tinham
esperado muito tempo por ele e que agora esperavam que ele
divulgasse as histórias, etc. Já estava cansado de ouvir
aquilo.
Depois, Sami esfregou as mãos, pronto para a acção.
Antes, porém, apontou para Peter.
- E ele? - perguntou.
- Não vos vê. É meu irmão e anda sempre comigo. Os dois
somos um.
- Não quando passares para o Outro Lado - disse Sami. -
Mas por enquanto...
- Olá - disse Peter para o sítio de onde vinha a voz de
Sami. - O meu nome é Peter.
- Muito prazer. Eu sou o Sami. Estou um metro à tua
frente. Peter estendeu o braço e sentiu uma mão áspera e
nodosa a apertar a sua.
- Muito prazer.
- E agora vamos andando - disse o duende. - E tu,
Peter, lembra-te que eu estou sempre à tua esquerda. Um
duende com setenta centímetros de altura, muito bem
parecido, de cabelos escuros, encaracolados.
- A chave sempre está contigo? - quis saber William a
tentar acompanhar o passo miúdo mas rápido do duende.
- Antes disso, preciso de me certificar de que tu és
mesmo tu, o novo Grimm. Não chega que me vejas. Tenho mesmo
de ter a certeza.
- Posso ir a casa buscar o meu bilhete de identidade -
disse William. - E tenho aqui o livro onde vou escrever as
histórias. Deu-me o Duende-Mensageiro. E tenho a pedra que
fala...
O duende parou de caminhar. Estavam em frente à estátua
de Thomas More, ainda em Cheyne Walk, e passavam poucas
pessoas.
144

- Ora mostra-me o livro - pediu ele.


William retirou o Livro em Branco da mochila e
segurou-o na mão.
Sami aproximou-se, mas não pegou no livro, ou as
pessoas na rua veriam um livro pousado no ar. Deixou-o
estar na mão do rapaz e apenas passou a polpa dos dedos
peludos pela capa de couro.
William abriu-o na primeira página para Sami ver que se
tratava do verdadeiro Livro em Branco. Era a primeira vez
que o fazia. E quando o fez, uma única palavra escrita
nessa primeira página brilhou por uma vez como uma pequena
estrela e apagou-se. O Livro em Branco ficou outra vez em
branco.
- Não devias abri-lo já - gritou Sami.
William fechou-o imediatamente.
- Eu sei. E agora?
- Viste a Palavra Misteriosa?
- Vi.
O duende Sami colou a sua mão à boca de William.
- Não a digas...
- Pois, não a posso dizer nem escrever. Nem sequer
pensar em a pronunciar, ou lá se vai o poder que ela tem.
- Isso. Tens de a dizer pela primeira vez quando
passares para o Outro Lado. Antes, nem sequer a murmures.
Além disso, nunca se sabe o que pode acontecer quando
alguém diz uma palavra pela primeira vez. Mas escusavas de
a ter visto tão cedo. E a culpa foi minha. Quando vais
passar?
- Em breve, acho eu.
- Ainda bem. Ou ela podia escapar da tua lembrança.
William suspirou profundamente. Mais uma dificuldade,
como se já não lhe bastasse saber de cor uma combinação de
seis algarismos. E, por pensar nisso, qual era o número?
Estava a pensar na palavra com tanta força que corria o
risco de esquecer o número. E sentia-se cheio, enfartado,
com tantas coisas que tinha de guardar.
145

- Bem. Pelo menos agora tenho a certeza de que és o


novo Grimm - disse Sami, muito satisfeito. - Há bocado
estava contente por te conhecer, agora estou contente por
ter a certeza de que estou contente.
William sorriu mas não disse nada. Ia demasiado ocupado
a decorar a palavra e a recordar o número. Não tanto que
não visse o que viu.
- Um duende - disse ele. - E ali está outro. E outro.
Estavam três duendes a meio da parede de uma daquelas
casas de tijolos que eram adornadas com pedras artificiais
azuladas. E o mais estranho era que os duendes estavam
suspensos no ar.
- O que estão eles ali a fazer? - perguntou William com
o nariz no ar. - A que estão seguros?
- Fala baixo, vai gente a passar - repreendeu-o Sami, e
explicou: - São Duendes-das-Pedras. Estão a recolher
energia. Estes são Duendes-Verificadores. Também há os
Colocadores e os Recolhedores, que trabalham à noite.
William ficou a olhá-los de boca aberta.
- Ah! Só nós os dois é que os vemos?
- Em princípio - respondeu Sami. - Às vezes, há uma
criança de coração puro que os vê lá no alto e diz à mãe,
mas quem é que acredita? Estão seguros por cintos, apoiados
na plataforma de uma grua e a usar ferramentas. Tudo coisas
que foram tornadas invisíveis e nem tu consegues ver. Ou
eu.
- Ah! - exclamou Peter. - Também há coisas que vocês
não vêem. Ao menos isso. É justo.
Saíram da Cheyne Walk e subiram a Oakley Street, de
costas voltadas para o rio.
- Atenção, Peter, agora estou ao teu lado direito -
avisou Sami.
- OK - disse Peter.
Ora, ali estava um duende bem-educado, que sabia
comportar-se, pensou ele. Com ele não havia choques. Sabia
que era invisível para ele e tomava precauções. O outro,
146

talvez por ser Resolvedor-de-Problemas, era bem mais


problemático.
Iam agora a caminhar mais depressa e, num instante,
chegaram à animada King’s Road, com as suas pequenas lojas
de moda cheias de jovens. Um táxi vazio parou perto deles.
Sami encarou William, com um ar grave, e disse-lhe:
- A partir daqui vamos no táxi. O Nobby, que o conduz,
trabalha para mim. Só que tens de seguir sozinho.
- Sozinho como? Nós somos inseparáveis - protestou
Peter imediatamente.
E pensar que tinha acabado de elogiar aquele duende.
- Se ele não for, eu também não vou - disse William. -
Nós os dois somos um.
147

20

A TERCEIRA CHAVE

O duende Sami levou as duas mãos à cabeça e alisou o


cabelo ruivo, encaracolado e áspero.
- Temos aqui um problema. Isso não é permitido. Vou ter
de falar com alguém - disse.
Depois, afastou-se um pouco e pôs-se a falar com alguém
numa espécie de telemóvel minúsculo, enquanto agitava no ar
o braço livre e dava voltas sem fim sobre si próprio. Por
fim, veio na direcção deles com um sorriso.
- Vá lá! Venham lá os dois - disse. - A
responsabilidade é minha, mas se os dois são um...
Entraram no táxi.
- Este é o Nobby - disse Sami. - Não sei o que faria
sem ele.
- Muito prazer - disse o condutor a pôr o táxi em
movimento.
Era um duende de meia idade, com o cabelo grisalho,
comprido e esvoaçante, com um ar muito simpático.
Enquanto seguiam pelas ruas a abarrotar de carros e
gente frenética que desperdiçava aflitivamente o seu tempo,
Sami explicou aos dois rapazes o programa do dia:
149

- Agora vamos buscar a chave e depois temos um jantar


secreto no Clube dos Amigos das Criaturas que foi fundado
pelo vosso antepassado Zimmer.
- O Primeiro? - perguntou Peter.
- Bem, ele foi o primeiro presidente do Clube, também
lhe podemos chamar assim. Desde então que o clube é mantido
em segredo, já que as criaturas, oficialmente, não existem,
e tem-nos ajudado ao longo do tempo nas nossas tarefas
deste lado. E não só.
Nobby criticou um automobilista que se lhe atravessou
no caminho, como se fosse um vulgar motorista de táxi, e
talvez fosse mesmo.
- Lembras-te do número? - perguntou Sami a William, que
ia ao seu lado. - Vais precisar dele.
William fez um esgar de aflição.
- Ó diabo, só me lembro da Palavra Misteriosa. Quando
quero lembrar-me do número, lembro-me da palavra, e quando
quero lembrar-me da palavra, lembro-me do número.
- Óptimo. Então pensa na palavra quando precisares do
número - disse Sami.
- Já estou a pensar e não me lembro. Nem do número nem
da palavra. Estou perdido!
- Pois, acontece. Mas a lembrança volta, descansa.
Quando não estiveres a pensar nisso.
O táxi parou e Peter reparou que estavam na Park Lane,
junto ao Hyde Park.
Saíram atrás de Sami e caminharam os três até uma
passagem subterrânea para peões que conduzia ao parque.
Dentro da passagem havia pouca gente, e um tocador de viola
com um chapéu diante das pernas cruzadas, entediado,
adormecera.
Aí a meio, Sami deteve-se e abriu os braços para travar
os dois rapazes. William chocou com ele e Peter chocou com
o irmão.
- É aqui - disse ele a compor a roupa.
150

Estavam diante de uma daquelas cabinas individuais onde


se pode obter fotografias rápidas. O duende entrou e trouxe
de lá um letreiro que colou na máquina: “Avariada. Fora de
serviço.”
- É aqui o quê? - perguntou William.
- A entrada para o sítio onde está o cofre secreto que
guarda a chave - respondeu Sami. - Quando se sentarem no
banco, ele desce. É fácil. Depois, só têm de seguir o
duende cego.
Os dois rapazes entraram na cabina e ficaram muito
juntinhos na mesma cadeira, à espera. Então, Sami fez rodar
uma chave numa ranhura e saiu rapidamente.
- Já está - disse ele. - Até já.
Os dois rapazes seguraram-se um ao outro quando
sentiram um solavanco. E então a cadeira começou a rodar,
como se estivesse a ser atarrachada no chão. Na verdade,
estava a descer na vertical. Muito lentamente. A medida que
eles desciam, outra cadeira que subia foi ocupar o lugar
daquela.
Eles continuaram a descer. Três ou quatro metros, não
mais, até chegarem ao chão de terra de uma sala quadrada
que era iluminada por dois archotes presos às paredes.
- Ora, vivam! Pensava que era só um - disse alguém.
William voltou-se e viu uma criatura com um hábito de
monge, incluindo um carapuço, que o encobria completamente.
Via-se, porém, que era bastante idoso, pela longa barba
branca que lhe chegava aos joelhos.
- Somos dois que é um - disse William.
- Quem é? - perguntou Peter a encostar-se ao irmão.
- É cego? - perguntou William, a pensar que ele só
podia ser o duende cego de que falara Sami.
- Como todos os que aqui trabalham - respondeu o
duende. - Guardamos coisas valiosas, segredos, riquezas,
coisas que devem estar longe da vista.
- Disseram-nos para seguirmos o duende cego - disse
William.
151

- Sou eu. Mas não se preocupem. Aqui dentro, ser ou não


ser cego pouco importa. E agora sigam-me. Vou levar-vos ao
cofre. E não me façam perguntas a que eu não possa
responder.
William seguiu o duende cego, que segurava um archote
aceso, e Peter seguiu o irmão por uma rede de túneis
estreitos, húmidos e escuros, cavados na terra. Cheirava a
mofo e humidade e o ar era velho e pesado. Também havia
ratos pequenos que corriam para os seus pequenos túneis
quando eles passavam. O duende cego dava pontapés aos que
se atrasavam e empurrava-os para os seus buracos. Aqui e
ali, passavam por uma porta de aço de alta segurança.
- O que guardam mais aqui? - perguntou William, a
pensar se aquela seria uma das tais perguntas a que ele não
podia responder.
Não era.
- Guardamos o ouro com que pagamos as despesas que
temos deste lado. Há muito, do Outro Lado, e não lhe dão
valor. E também guardamos coisas que, como o ouro, não
podem estar à vista.
Tinham chegado ao fim de um longo corredor e o duende
cego deteve-se diante de uma das muitas portas que lá havia
e abriu-a vagarosamente com as suas sete chaves.
- Sabes o número? - perguntou ele a seguir, enquanto
empurrava a porta pesada, que deslizou muito lentamente.
A porta era baixa, feita para ser usada por duendes, e
os dois rapazes tiveram de se baixar para entrarem numa
sala de paredes de pedra, ainda mais vazia do que a cela de
um prisioneiro. Não havia lá mais nada além de um cofre
pequeno, que estava embutido numa das paredes. Era um cofre
de segredo, com seis botões a que correspondiam outros
tantos números.
O duende cego colocou o archote num suporte de ferro na
parede e disse:
- Agora é contigo.
- O número - disse Peter a dar uma cotovelada no irmão.
152

William engoliu em seco. Queria lembrar-se do número


mas os algarismos misturavam-se na cabeça dele.
- Tem calma - disse Peter ao ouvido do irmão.
- Pensa bem - disse o duende cego. - Se não o abrires à
primeira, ele bloqueia e só podes voltar a tentar dez dias
depois. É um sistema de segurança.
William começou a suar, apesar do frio e da humidade
que ali se sentiam. Passou um minuto, passaram dois, um
tempo espesso e pesado que mais valia que tivesse sido
roubado.
Não se ouvia nada, só a respiração ansiosa de William.
- Tem calma - repetiu Peter.
- Já sei - gritou o irmão, eufórico, e a chama do
archote agitou-se como se tivesse passado por ali uma
rajada de vento.
- Tens a certeza? - perguntou o duende.
- Tenho - respondeu ele a marcar os números com
convicção.
Quando marcou o último dos seis algarismos, ouviu-se um
“clique” e a porta abriu sem ninguém lhe tocar.
O duende cego pegou no archote e iluminou o interior do
cofre. E então eles viram o que lá estava dentro: uma
pequena caixa de madeira castanha do tamanho de um baralho
de cartas, com uma tampa de marfim.
William abriu-a ali mesmo e viu, lá dentro, um objecto
de pedra em forma de “W” que só podia ser a terceira chave.
Estava ali, onde sempre estivera, e não em poder da Criança
Terrível, como se dizia. Mas havia mais qualquer coisa. Na
parte de dentro da caixa estava escrito, com aquela tinta
que só ele via, uma mensagem: “Leva esta chave, que é
falsa, e procura a verdadeira na lápide do túmulo do poeta
Blake, em Bunhill Fields. É o segundo “W”, que também só tu
vês.”
Peter esticou o pescoço e espreitou por cima do ombro
do irmão. E viu apenas uma caixa vazia forrada por dentro a
veludo vermelho.
- Está vazia? - perguntou.
153

- Não. Estou a ver a chave. Parece ser de pedra e tem a


forma de um “W”.
- Tudo em ordem? - perguntou o cego.
- Sim. Tudo em ordem.
- Posso vê-la? - perguntou o duende, já colado a eles.
“Como é que o cego quer ver?”, pensou William. Peter, que
era cego para certas coisas, sabia como.
- Deixa-o apalpar a chave - disse. - As mãos vêem.
- E então as minhas... - acrescentou o duende. William
segurou a mão direita do duende cego e pousou-a sobre a
chave.
- Ah! - exclamou ele assim que as polpas dos dedos
tocaram a chave.
- Estou a ver - disse ele a fazer deslizar os dedos
sobre a superfície da chave. - Tem mesmo a forma de um “W”,
mas sem arestas.
- Também posso vê-la? - pediu Peter a avançar com os
seus dedos para ela, e também ele a “viu”.
Depois, William fechou a tampa da caixa e guardou-a na
mochila.
- Guarda-a bem e também ela te guardará a ti - disse o
duende cego a fechar a porta do cofre. - Sabes que disso
dependem muitas vidas, suponho. A caixa da magia negra
nunca mais pode ser aberta.
- Por mim... - disse William, acabrunhado com tanta
responsabilidade. Tomara ele não ter de carregar mais
aquele fardo. Já lhe chegava o fardo do amor.
Saíram dali e voltaram a percorrer o labirinto de
corredores húmidos e escuros.
- O que é a magia negra? - perguntou William enquanto
caminhavam. E aí estava outra pergunta a que o duende cego
podia responder.
- Poder - disse ele. - O poder de transformar, de
paralisar, de reduzir a pó. Com tudo isso vem a cobiça, o
medo, a guerra.
154

William suspirou profundamente. Depois disse:


- Tenho tanto que guardar... Segredos, números,
palavras misteriosas, um livro, uma pedra, uma chave...
Sentia-se repleto, como um autocarro em hora de ponta.
Chegaram à sala quadrada onde tinham aterrado.
- Adeus - disse o duende depois de ter preparado a
saída deles.
Eles voltaram a sentar-se muito juntinhos na cadeira da
cabina das fotografias.
- Adeus, e obrigado.
Subiram devagar, sempre a rodar, como se fossem
sentados na cabeça de um parafuso, e voltaram à cabina,
onde irrompeu, logo a seguir, a cabeça do Sami pelo meio
das cortinas.
- Está ocupado - disse William.
- Correu bem? - perguntou o duende.
- Sim. Muito bem - respondeu William. - A chave já
canta aqui na minha mochila.
Atravessaram a passagem subterrânea e voltaram à Park
Lane, onde os aguardava o táxi de Nobby.
- Podes seguir - disse Sami. - Vamos para o Clube,
passando pela Fábrica, onde tenho de tratar de um assunto,
mas é coisa rápida. Não podemos chegar atrasados ao Clube.
- A Fábrica? - perguntou William.
- Sim, a Fábrica de Nada. É nossa.
- Sim, e de que é essa fábrica?
- Já te disse. De Nada.
- Deve ser uma repartição pública - comentou Peter.
- De quê? Uma fábrica de quê? - insistiu William, que
teve a mesma resposta.
- De Nada.
- Obrigado pela informação - concluiu ele, um pouco
amuado.
- De nada - voltou a dizer o duende.
155

21

A FÁBRICA DE NADA

Saíram da cidade e seguiram até aos subúrbios. Numa


zona industrial, árida e desolada, Nobby parou o táxi
diante de uma fábrica de tijolos refractários para
aquecimento. Afinal, a tal Fábrica de Nada era uma fábrica
de tijolos. Talvez fosse uma fábrica de tijolos
refractários onde não se fizesse nada.
Eram seis e dez e estavam a sair os operários mais
atrasados.
- Temos de esperar um pouco - avisou Sami.
- Isto é uma fábrica de tijolos refractários - disse
Peter.
- E está a fechar - acrescentou William.
- A fábrica vai fechar, logo, a Fábrica vai abrir -
ripostou o duende. - Além disso, não estavam à espera de
encontrar ali um letreiro a dizer “Fábrica de Nada”, pois
não?
Foi então que William viu chegar dois duendes. Entraram
pelo portão da fábrica a conversar animadamente.
Cruzaram-se com os últimos operários que saíam, os mais
atrasados, evitando-os habilmente. E depois chegou um grupo
de seis duendes, que se empurravam uns aos outros na
brincadeira. Aos poucos foram chegando mais e mais. Bem
dizia o Sami: a fábrica tinha fechado mas ia abrir.
157

Ele saiu do táxi.


- Esperem aqui. Eu não demoro.
- Podemos espreitar? - perguntou Peter.
- Querem ver como se faz Nada, já percebi. Bem, venham
daí. Em fila, atrás de mim.
Entraram os três, atrás de mais um grupo de duendes
apressados. Na recepção, onde antes trabalhavam dois
homens, estavam agora dois duendes, que controlavam as
entradas.
Eles subiram num elevador até ao gabinete de Sami, no
primeiro andar.
Era o gabinete do director de produção da fábrica de
tijolos, mas Sami também o usava.
- Aproveitem a vista - disse ele à procura de qualquer
coisa nas gavetas da secretária.
Uma das paredes daquele gabinete era de vidro e tinha
uma vista sobre a zona de produção. Lá em baixo, um grupo
de duendes acabara de transformar uma linha de produção de
tijolos refractários numa linha de montagem de Nada. Essa
zona da fábrica entrara em funcionamento e agora não se
tratava de fabricar tijolos para aquecedores. O Nada ia ser
feito.
Peter só via coisas a mexer por todo o lado. William
via todos os duendes compenetrados nas suas tarefas. Uns
traziam em carrinhos de metal os objectos mais diversos:
botas e roupas de duende, ferramentas, mangueiras, etc.
Outros separavam-nas e dispunham-nas no tapete rolante.
Sami aproximou-se dos dois rapazes.
- Vês aquele par de botas castanhas que entrou agora no
tapete?
- Vejo - disse William.
- Isso também eu vejo - disse Peter, muito satisfeito.
Já teria passado a ver?
- Então esperem até ele passar pela pulverização.
Ao fundo do tapete rolante, as botas receberam um jacto
de pó branco.
158

- O que está lá agora? - perguntou Sami.


Eles esperaram que se dissipasse a nuvem de pó para
poderem ver.
- Nada - disseram depois, ambos ao mesmo tempo, já que
as botas tinham desaparecido.
- Lá está - concluiu Sami. - É isso que aqui se faz:
Nada.
Outros duendes recolheram as botas invisíveis e
meteram-nas dentro de um saco de plástico onde um outro
duende colou uma etiqueta.
- O que é que eles guardaram?
- As botas. Ficarão invisíveis por algum tempo, mais ou
menos um dia dos vossos, até para ti, que és um Grimm e vês
coisas que os outros só conseguem imaginar. Mas elas
continuam lá.
- Ah! Como é que fazem? - perguntou William.
- Magia branca do Outro Lado. Nada mais simples para
quem sabe. Os nossos magos estudaram a vossa visão, que é
fraquinha. É fácil esconder dela qualquer coisa. Acho eu.
- É assim que os duendes que aqui trabalham passam
despercebidos. Eles e o material que usam... - disse Peter.
- Nem mais. Agora já sabem como se faz Nada. Dá muito
trabalho. Mas quando se faz Nada, nunca se deixa nada por
fazer.
- É assim que vocês ficam invisíveis? - perguntou
Peter.
- Não. Nós somos criaturas elementais, invisíveis para
os vossos olhos. Mas as nossas roupas não, nem as
ferramentas e apetrechos de que precisamos. Se nós
precisamos de umas galochas ou de um guarda-chuva, por
exemplo, temos de os pulverizar primeiro, ou ver-se-ia um
par de galochas a caminhar sozinho na rua com um
guarda-chuva por cima, suspenso no ar. Percebem?
- Sim, sim.
- Se eu passasse ali, ficava invisível? - quis saber
Peter, que sempre apreciara o dom da invisibilidade.
- Talvez - respondeu o duende. - Nunca experimentámos.
Mas sei que durava pouco, sobretudo se andasses ao ar
livre.
159

Talvez umas horas, duas ou três. Ou nem tanto. E agora


esperem aqui por mim. Cinco minutos no máximo. Ou preferem
ir para o carro?
- Antes quero ver isto - disse William.
- Eu também antes quero não ver isto - disse Peter. -
Ficamos aqui.
Sami foi à vida dele e, pouco depois de ele sair,
bateram à porta do gabinete.
Peter foi abri-la mas não viu ninguém. Apenas uma caixa
de ferramenta pousada no chão.
- Willy! - chamou.
O irmão veio e viu o Duende-Resolvedor-de-Problemas,
que fez um sinal para ele não fazer barulho. Estava visto
que não queria dar nas vistas.
- Estou aqui a resolver um problema - segredou ao
ouvido de William. - E a chave? Sempre estava no cofre?
- Sim. Está aqui na minha mochila.
- Óptimo! Óptimo! Óptimo! Guarda-a bem e ela te
guardará a ti.
- Quem é? - perguntou Peter.
- Ninguém. Não é ninguém. Deixa-te estar aí - respondeu
o Resolvedor. Depois, voltou a pôr-se em bicos de pés para
chegar ao ouvido de William e segredou-lhe: - Muito
cuidadinho no Clube dos Amigos das Criaturas, sim?
- Não são amigos?
- Sim, sim, mas há pelo menos um traidor entre nós. É
esse o problema que estou agora a tentar resolver. Seja
como for, estarei por perto. Vou daqui para lá. Ó diabo! E
agora tenho de ir andando. Adeusinho.
Sami tinha saído do elevador, ao fundo do corredor, e
estava de regresso.
- Vamos? - perguntou ele, a pôr no sítio as coisas que
tinha desarrumado. - Não podemos chegar atrasados ao Clube.
160

Vieram pelos corredores, com o duende a caminhar à


frente, apressadamente, que o tempo voava.
Havia um pó branco e fininho no ar, e eram sobras do
tal pó da invisibilidade.
- Aposto que aqui estão sempre a desaparecer coisas –
disse Peter.
E eles? Também estavam a atravessar aquela poeira.
Estariam a ficar invisíveis, mais invisíveis pelo menos?
Peter olhou de soslaio para o espelho do elevador e
continuava perfeitamente visível. Nem um bocadinho tremido
ou opaco. Nada.
Entraram no táxi a sacudir o pó da roupa, excepto
Peter, que não se importaria de ficar um bocadinho
invisível, e regressaram ao coração de Londres.
- Mais depressa - pediu Sami a certa altura. - O jantar
está marcado para as sete e eles vão detestar se chegarmos
atrasados.
Nobby olhou para o relógio no tablier do táxi e
acelerou. Iam a atravessar a City Road, no Este londrino,
quando Sami pediu a William para o deixar tocar na chave.
- É assim que se vê, não é?
- É - disse Peter. - Também foi assim que eu a vi.
William retirou a caixinha de madeira com a tampa de
marfim da mochila e segurou-a na palma da mão aberta.
- Aqui está - disse ele.
Sami estendeu a mão e tocou na caixa levemente.
-Posso abri-la?
- Podes.
Foi então que soou um estrondo e eles foram projectados
para diante e chocaram uns com os outros no ar. Um carro
tinha batido na traseira do táxi. William foi o primeiro a
recuperar, talvez por a mochila ter amortecido a sua queda.
Ajudou o irmão a levantar-se e procurou a caixa no chão e
encontrou-a.
Por sua vez, o duende Sami dera uma pancada com a cabeça
e estava atordoado, a tentar perceber o que se passava.
161

- Tudo bem? - perguntou William com a caixa na mão.


Porém, nesse momento abriu-se a porta do táxi e um
homem arrancou-lha da mão antes que ele tivesse tempo de
reagir. Depois, deu-lhe um encontrão que o lançou outra vez
ao chão.
Nobby foi o primeiro a reagir e saiu do táxi, mas o
homem que levara a caixa já estava dentro do carro que
chocara com eles, um Rover preto que arrancou dali a grande
velocidade.
William e Peter saíram para o passeio. Por essa altura,
Sami também já recuperara, ou não teria gritado para Nobby:
- Depressa! Vamos segui-los. Não podem fugir.
William correu para o táxi de braços abertos.
- Esperem! Esperem!
Eles não esperaram. Não tinham tempo a perder. O Rover
ia com um grande avanço e era mais rápido do que o táxi.
Mas iam a contar com o trânsito, que era intenso àquela
hora.
Sami pôs a cabeça de fora e gritou:
- Não saiam daí. Vamos apanhá-los.
William ainda gritou: “Não vale a pena. Não é preciso.
Aquela chave era falsa.” Mas eles já não o ouviram.
- Aquela chave era falsa!? - espantou-se Peter.
- Era. Na tampa da caixa está escrita uma daquelas
mensagens que só eu vejo e que diz onde está a verdadeira.
- Mas então todo aquele aparato do cofre era para
guardar uma chave falsa?
- Não. Também lá estava o segredo final. Esse é que
tinha de estar bem guardado. A chave verdadeira pode até
estar à vista de toda a gente, já que só eu a posso ver. Em
qualquer lado está bem guardada.
Estavam na City Road, no Este londrino, quase em frente
à Wesley’s House and Chapei, e muito perto do cemitério de
Bunhill Fields, onde estava guardada a verdadeira chave. E
William convenceu-se de que estava perante uma ajuda do
destino.
- Agora vamos buscar a verdadeira - disse ele. - A
chave falsa já cumpriu a sua função, que era ser roubada e
ocupar toda a gente enquanto eu recolho a outra. Era para
162

isso que ela servia, percebeste agora?


Serpenteando apressadamente entre os transeuntes,
passaram Chiswell Street e chegaram ao portão principal do
cemitério de Bunhill Fields.
- É aqui dentro que está a chave? - perguntou Peter com
um sorriso amarelo.
- No túmulo do poeta Blake - respondeu o irmão.
- Quem é esse?
- Também não sei. Só sei que também está aqui dentro a
descansar.
163

22

O CLUBE DOS AMIGOS DAS CRIATURAS

Estava quase na hora do fecho do cemitério e eles


apressaram-se. Peter perguntou a um guarda onde ficava o
túmulo do poeta Blake e ele indicou-o sem hesitar, o que
não admirava. O túmulo do poeta William Blake era o mais
frequentado daquele cemitério.
Quando eles lá chegaram, tiveram de esperar que se
afastassem as quatro pessoas que lá estavam a homenagear o
poeta e que se mantiveram numa admiração silenciosa durante
algum tempo, depois partiram, deixando algumas velas acesas
e dois ramos de cravos frescos.
Os dois rapazes esperaram que eles desaparecessem da
vista e avançaram.
- A lápide. Está na lápide - avisou William.
Foi, portanto, à lápide que dedicaram toda a atenção.
- Conheço este tipo - disse Peter. - Também havia uma
fotografia dele na cave da casa.
- Com o Primeiro?
- Sim. E com o Wilhelm Grimm e o irmão.
165

- Espera aí - disse William, a raciocinar. - O Grimm


escreveu a carta que estava na caixa enterrada em 1827,
tinha então quarenta e um anos...
- E então?
- Foi quando o poeta Blake morreu. O Wilhelm Grimm veio
ao funeral e decidiu esconder a chave. Algo o assustou. E
onde a escondeu? No túmulo do amigo, à vista de toda a
gente que não a pode ver. Que tal?
Peter leu a inscrição: “Aqui perto jazem os restos do
poeta-pintor William Blake.”
- Ouviste? O corpo dele não está aqui - disse.
- Isso não interessa - respondeu o irmão. - É na lápide
que está a chave. É o segundo “W”.
Começara a anoitecer e estavam sob uma espécie de
lusco-fusco, perto daquele único instante em que não é
noite nem dia. E nessa altura que as coisas acontecem.
- Diz-me, Peter. Quantos “W” vês?
Peter apontou com o dedo.
- Um. Este, de “William”.
- Pois... Não sei o que faria sem ti. Sem ti, não sabia
o que vejo a mais do que os outros.
- Vês mais algum? - quis saber Peter.
- Vejo outro por baixo desse.
William segurou a mão direita do irmão e passou-a na
pedra, acompanhando o desenho da letra.
- Agora também estou a vê-la - disse Peter. - Faz parte
da própria pedra. É de pedra?
- É.
Mas faltava ainda arrancar aquela chave de pedra à
pedra que a guardava. E, para isso, precisavam de uma
ferramenta qualquer. Algo duro para bater na superfície em
volta e a forçar a soltar-se.
William deu uma volta por ali. Um castiçal de ferro
encontrado num túmulo próximo serviu na perfeição. Algumas
boas pancadas em volta deslocaram a chave, que saiu cerca
de meio centímetro, o suficiente para os dedos dos dois
166

rapazes poderem puxá-la.


Caíram ambos para trás quando a conseguiram soltar e
foi Peter quem ficou com ela na mão, embora não a pudesse
ver.
- Algum problema? - perguntou um homem idoso que chegou
com um ramo de cravos.
- Tudo bem - disse William a levantar-se. - Isto está
escorregadio.
Peter passou a chave para as mãos do irmão, mesmo
diante do nariz do homem.
- Gostam de Blake? São estudantes? - perguntou ele a
pousar o ramo sobre o túmulo do poeta.
- Sim. Gosto de poesia - respondeu William.
- Pois. Quem gosta de poesia vem dar a Blake. O homem
acendeu uma vela.
- Sabem que o corpo dele não está aqui mas ali adiante.
- É?
- É. Mas é aqui que toda a gente deixa as flores e as
velas. O que interessa é que o nosso querido poeta, lá na
Eternidade, nunca sinta que está só.
- Nem mais - disse William. - Boa tarde.
Passou um guarda ao longe, e avisou-os que o cemitério
ia fechar e eles caminharam para a saída. William trazia a
chave apertada na mão, dentro do bolso das calças, e Peter
olhava em todas as direcções, à espera de ver por ali
alguém suspeito. Se tinham roubado a chave falsa, bem
podiam querer a verdadeira.
Saíram do cemitério e caminharam até à City Road, onde
Sami lhes pedira para esperarem. E lá estava ele quando
chegaram, em frente à Wesley’s House and Chapei, a olhar em
volta, à Procura deles.
- Escaparam - disse o duende quando viu chegar os dois
rapazes. - Não tivemos hipótese.
Havia gotas grossas de suor nas sobrancelhas espessas e
nos pêlos fartos das orelhas do duende.
- Não faz mal - segredou-lhe William. - Aquela chave
era falsa. Eu disse, mas vocês não ouviram.
167

Sami ficou de boca aberta, completamente pasmado. Num


ápice, a decepção e a raiva deram lugar a uma onda de
verdadeiro espanto. Limpou o suor que lhe escorria da
testa.
- Falsa? E a verdadeira, onde está? - perguntou.
- Aqui no meu bolso. Fui agora buscá-la ao Bunhill
Fields, ao túmulo do poeta Blake.
- Estou a ver - disse Sami a sorrir, verdadeiramente
aliviado.
Soltou um suspiro de alívio profundo, seguido de três
gritinhos que pareciam assobios de pássaro, e uma senhora
que ia a passar ficou a olhar para os dois rapazes. Com a
emoção, Sami distraiu-se e foi atingido por um transeunte
apressado e rolou no chão. William ajudou-o a levantar-se e
a regressar ao táxi.
- Agora vamos para o jantar. Já estamos atrasados -
disse ele.
E soltou mais daqueles gritinhos que lembravam silvos
de pássaros.
Estavam outra vez na Cheyne Walk quando o táxi parou. E
de volta à galeria de arte que escondia a habitação de
Sami. O que eles ainda não sabiam era que a galeria também
funcionava como passagem para a casa ao lado, a tal que
diziam ter sido em tempos habitada por Mick Jagger, o
mítico vocalista dos “Rolling Stones”.
- Estamos meia hora atrasados - disse Sami a ver as
horas no relógio do táxi. - E eles odeiam atrasos.
Não havia gente dentro da galeria, o que lhes facilitou
a vida. Apenas lá estava a empregada, a quem Sami se
dirigiu. Primeiro soltou o assobio que o identificava.
Depois disse:
- Olá, Bridget. Sou eu. Eles vêm comigo.
- OK - disse ela a olhar para o relógio. - Já vão
atrasados.
- Rápido! - disse Sami a apressar os rapazes. - Estamos
em Inglaterra, não podemos chegar assim tão atrasados.
Entraram num elevador pequeno, ao fundo da sala. Era um
elevador que, normalmente, só subia aos outros três andares
do edifício, mas Sami rodou uma chave minúscula numa
ranhura e ele começou a descer. Desceu a distância
equivalente a um piso e parou.
- Atrás de mim - disse Sami a empurrar a porta.
168

Subiram uma escadaria que os levou à cave da casa ao


lado, onde foram recebidos pelo próprio presidente do Clube
dos Amigos das Criaturas.
- Mick Jagger!? - disse Peter, incapaz de contar o
espanto.
- Ná, ná - disse ele. - Hoje não sou esse em quem estão
a pensar; apenas o actual presidente do Clube dos Amigos
das Criaturas. Sejam bem-vindos à nossa sede secreta.
Com Jagger, impecável no seu fato escuro, estava também
a vice-presidente do Clube, a escritora Zadie Smith.
A simpática vice-presidente também cumprimentou os dois
e depois dirigiu-se a Peter.
- É uma grande honra para o Clube dos Amigos das
Criaturas, poder receber um potencial Grimm.
- É ele - esclareceu Peter. - Eu sou o que não vê.
- Ah! Bem, é uma honra receber os dois: o futuro Grimm
e o irmão dele. Já ouvi dizer que vocês os dois são um.
- Sim, mas ele é que vê - reforçou Peter.
Subiram ao rés-do-chão e chegaram a uma sala decorada
com requinte, onde tomaram uma bebida de boas-vindas e
conversaram durante algum tempo. Nas paredes dessa sala
estavam os retratos pintados dos antigos presidentes do
Clube e outros membros ilustres. Um dos maiores era o de
Cari Zimmer, que fora o fundador do Clube e o seu primeiro
presidente.
- O Primeiro Depois do Primeiro - disse Peter a
aproximar-se do retrato.
Era diferente do que estava na quinta, mas era outra
vez o velho Zimmer a meter-se no caminho deles.
Também lá havia um retrato do poeta Blake, que fora
presidente entre 1819 e 1827, data da sua morte. Na base do
retrato dele estava escrita uma frase sua: “Tudo o que é
possível ser imaginado é uma imagem da verdade.”
- É verdade - disse William quando a leu.
Enquanto o presidente Jagger discutia animadamente
alguns assuntos com Sami, Zadie, a vice-presidente, guiou
os dois irmãos Pela galeria dos retratos.
169

Como ela explicou, havia uma maioria de escritores no


grupo de presidentes ou outros notáveis membros do clube,
como William Wordsworth, Edward Lear, Lewis Carrol, Charles
Dickens, H. G. Wells, Mark Twain, William Beckford, Oscar
Wilde, A. A. Milne, Arthur Conan Doyle ou P. D. James, que
fora a presidente anterior. Porém, também havia, entre
esses membros, pintores como Francis Bacon, realizadores de
cinema como Charlie Chaplin, ou actores como Lawrence
Olivier, ou livreiros, como Mark Newbery, filho de John
Newbery, que publicou o primeiro livro infantil, “Little
goody two shoes”, ou ainda cantores como Mick, o actual
presidente. E, claro, gente menos famosa ou conhecida, de
diferentes profissões, interesses e inclinações políticas,
mas que tinham em comum o amor pelas criaturas do Outro
Lado.
Também todos aqueles antigos membros do Clube dos
Amigos das Criaturas olhavam William a partir do outro lado
da vida. Uns tinham um ar severo e pareciam exigir-lhe o
cumprimento do seu dever. Por sua vez, havia outros que
pareciam estar a borrifar-se para aquilo tudo, como o Sr.
Oscar Wilde, e outros que o olhavam com benevolência,
atendendo à idade dele, e outros ainda que talvez se
lembrassem melhor do tempo em que tinham a idade dele e o
olhavam com admiração. Finalmente, havia o grupo dos
maldispostos, aqueles que o olhavam com inveja por ele
estar vivo, ser jovem e ter pela frente dois mundos e duas
vidas. Pelo menos.
Foi então que irrompeu na sala um homem muito hirto,
com um ar grave, num impecável smoking preto.
- Podemos passar à sala de jantar - disse ele.
E o presidente Mick apresentou-o.
- Este é o Sr. Potter, o nosso Mestre de Cerimónias.
Organiza todos os encontros do Clube. Na verdade, vive cá
sozinho para que a casa pareça uma normal e pacata
residência.
Um relâmpago riscou o céu e uma réstia da sua luz veio
pelo ar e entrou na sala.
- Trovoada! - disse o Sr. Potter a encolher os ombros.
- Não foi convidada mas apareceu.
170

23

UM JANTAR DO OUTRO MUNDO

O jantar foi servido numa salinha confortável, com


reposteiros grossos, de veludo, e móveis antigos de madeira
impecavelmente polida.
Na parede central, sobre a pedra da lareira apagada,
estava escrita a divisa do clube, e que era a mesma que
estava gravada na pedra que guardava a caixa enterrada:
“Unus mundus”.
- Os lugares estão marcados - avisou o Sr. Potter.
Tudo era dirigido por ele, da distribuição dos lugares
à mesa, a ementa e ao movimento dos criados. O Mestre de
Cerimónias também pediu a William a mochila para a arrumar
no bengaleiro, mas ele não aceitou a proposta.
- Percebo. Trazes aí a chave - comentou o Sr. Potter.
Peter acenou negativamente com a cabeça e disse:
- A chave está comigo. Mas tenho aí outras coisas de
que não gosto de me separar.
- Peço perdão - disse o Mestre de Cerimónias a recuar
delicadamente.
Era um homem muito polido, o Sr. Potter, embora
demasiado hirto e pomposo. Mas os Mestres de Cerimónia são
assim.
171

Por sua vez, Peter estava intrigado. Eram seis para o


jantar, com o Sr. Potter, e havia sete lugares postos à
mesa. Sobrava um. Inclinou-se para ler o nome que lá
estava: Carl Zimmer. Era o nome do Primeiro Depois do
Primeiro. Aliás, havia ali outro retrato dele na parede,
mesmo atrás do lugar vazio. Mas então...
- Podem sentar-se - disse o Sr. Potter. - O jantar vai
ser servido.
Peter precipitou-se e sentou-se no lugar destinado ao
falecido Zimmer e, logo a seguir, saltou da cadeira, como
se tivesse sido queimado por um ferro em brasa.
- O que foi? - perguntou o irmão.
- Não sei. Senti qualquer coisa. Foi como se alguém me
empurrasse dali.
- Não está ali ninguém - observou o Sr. Potter.
- Não é o lugar dele? - perguntou Peter a olhar para o
retrato do Primeiro Depois do Primeiro.
Zadie, a vice-presidente, explicou-se.
- Se não pusermos os pratos no lugar dele, acontecem
coisas.
- Que coisas? - perguntou Peter.
- Coisas. Problemas, incómodos, pequenos acidentes.
Ainda ela não tinha acabado de falar quando um jarro de
cerâmica muito antigo, que estava ali há anos, caiu da
cristaleira sem ninguém lhe tocar.
- Foste tu, Sami? - perguntou Mick.
- Não. Estou aqui, quieto, no meu lugar.
Levantaram-se todos.
- Há aqui um problema - considerou o presidente. -
Talvez o nosso primeiro presidente não goste desse lugar. O
lugar dele costuma ser deste lado. Ali há corrente de ar
quando se abre a porta. Os espíritos, as almas, os plasmas
espirituais, seja o que for, não suportam correntes de ar.
- Não se passa nada, valha-me Deus! - contestou o Sr.
Potter a sentar-se na cadeira.
E também ele saltou, logo a seguir, como se lhe
tivessem queimado o rabo.
172

- Livra! – disse, com a mão no rabo. - Desculpem, mas


alguma coisa se passou. Parecia um choque eléctrico.
- Foi o que eu senti - disse Peter com um ar
triunfante.
Todos os presentes olharam quase ao mesmo tempo para o
retrato do velho Zimmer, mas ninguém disse nada.
- Foi ele? - perguntou Peter.
- Numa noite como esta, anda electricidade no ar -
disse Sami a pegar em mais um dos saborosos croquetes de
vitela que estavam dispostos na mesa.
Sempre que ele fazia aquilo, Peter, Mick, Zadie e o Sr.
Potter viam um croquete a deslizar sozinho sobre a mesa
antes de desaparecer num buraco no ar, algures onde estava
a boca do duende.
O Sr. Potter chamou um empregado, que tratou da mudança
do lugar do Zimmer e recolheu os cacos do jarro partido. No
fim de tudo, anunciou:
- O jantar vai ser servido.
- Óptimo! - disse o presidente, que era talvez o mais
esfomeado.
Voltaram a sentar-se. Mick numa das cabeceiras, em
frente ao lugar vazio do Primeiro Depois do Primeiro.
William e Zadie de um lado, Peter e Sami do outro. Dois
criados de libré vermelha serviram um creme de legumes com
framboesa. Também pousaram um prato diante da cadeira vazia
do Primeiro, não fosse ele abespinhar-se. E, mais tarde,
quando trouxeram o folhado de cherne, os criados também lá
pousaram um prato depois de retirarem o prato intacto do
creme de legumes. Era evidente que o espírito do Primeiro,
se realmente ali estava, não podia comer, mas talvez
pudesse cheirar, pensou Peter, que não tirava de lá os
olhos.
Um trovão fez tremer as paredes da casa e as chamas das
velas na mesa agitaram-se como se alguém tivesse soprado
sobre elas. Que noite aquela para se jantar com um espírito
maldisposto, pensou Peter.
Por sua vez, William também não estava sossegado.
Sentia uma espécie de electricidade no corpo, como se
alguém quisesse avisá-lo da proximidade de um grande
173

perigo. Respirou fundo e bebeu mais um copo de água. Tinha


tanta sede que era capaz de beber o Tamisa inteiro. Fome é
que não. Os nervos roubavam-lhe a fome.
Depois do jantar passaram à sala da biblioteca, onde
seria servido o café e os digestivos. Havia lá fotografias
das antigas reuniões em que Wilhelm Grimm contava aos
membros do Clube as suas aventuras no Outro Lado. Tinha
talvez quinze anos, não mais, e falava de pé no meio da
sala para um pequeno grupo de membros. Um rapaz franzino a
falar e tantos homens sábios e experientes a ouvi-lo
atentamente, com um olhar ávido e uma expressão de rara
felicidade.
Também havia desenhos de paisagens e criaturas do Outro
Lado, feitas a partir das descrições dele e que pareciam
ilustrações de um conto de fadas.
- Enquanto ele falava, os nossos artistas desenhavam as
cenas que mais o impressionavam - explicou o presidente. -
Esperemos que também tu venhas aqui depois contar-nos as
tuas experiências, como ele fez. Quando tencionas passar?
- Logo que puder. Esta noite mesmo, se for capaz -
disse William sem tirar os olhos dos desenhos, e que eram
excertos do livro real que aguardava a sua leitura.
Sami caminhava ao lado dele, com um cálice de conhaque
na mão, que o sinalizava, e comentava alguns desenhos,
corrigindo ou acrescentando pormenores. Num deles, o maior
de todos, via-se Wilhelm Grimm a lançar o que parecia ser
uma pequena caixa para o interior de uma abertura no cimo
de uma pedra enorme.
- É a Grande Pedra - explicou Sami. - O centro da vida
no Outro Lado.
A vice-presidente Zadie completou a explicação:
- Toda a energia das histórias que as pequenas pedras
aqui acumulam vai lá parar. É como se fosse um caldeirão
onde borbulha a vida nova das criaturas.
- E o que está o Grimm a fazer? - quis saber William.
174

- A lançar à Grande Pedra o coração do velho Zimmer, o


pai do vosso e do nosso Primeiro. Já ouviram falar dele,
suponho.
- Sim, foi o que assinou o Tratado com as criaturas, em
Kassel.
- Nem mais. Quando ele morreu, deixou em testamento o
seu coração aos nossos amigos do Outro Lado.
Sami, muito entusiasmado, interrompeu Zadie e
continuou, animadamente:
- As criaturas levaram o coração e conservaram-no num
relicário, que era um símbolo da união dos dois mundos. Mas
o Zimmer tinha pedido para o lançarem na Grande Pedra, onde
também poderia transformar-se em energia para as criaturas.
E o Grimm foi escolhido para o fazer numa das suas
passagens, a última.
- É uma história tão bonita que merece ser contada
outra vez - disse o presidente Mick, enquanto fazia um
sinal com os dedos ao Sr. Potter.
O Mestre de Cerimónias abanou a cabeça afirmativamente
e abriu uma pequena câmara frigorífica que estava
disfarçada num móvel. Depois, retirou de lá um pequeno cubo
metálico.
- É o relicário que guarda o coração do nosso primeiro
presidente - explicou o Sr. Potter.
- O Primeiro Depois do Primeiro? - perguntou Peter,
alvoroçado. - Está aí o coração dele?
- Inteirinho e intacto - respondeu o presidente Jagger.
- Tem sido conservado a temperaturas muito baixas, à espera
que alguém vá ao Outro Lado. À tua espera.
William estremeceu. O coração gelado do Primeiro! Era
só o que lhe faltava!
- Guarda o coração contigo - disse o presidente a
estender o cubo gelado a William, que o guardou na mochila,
sem comentários.
E, assim de cabeça, fez o inventário do que passaria a
carregar na mochila: uma pedra que falava, um livro em
branco, o coração do Primeiro Depois do Primeiro, e ainda
uma chave que só ele via. Por sua vez, na cabeça, guardava
175

a Palavra Misteriosa e um número que já não era preciso mas


que se recusava a ir embora.
- Ufa! - disse.
Sami, que estava muito entusiasmado, serviu-se de mais
um conhaque e mostrou a William um desenho onde Wilhelm
Grimm segurava a terceira chave da caixa que guardava a
magia negra.
- É assim? - perguntou.
- Mais ou menos - respondeu o rapaz. - Estas arestas
são arredondadas. Fora isso...
- Poderíamos vê-la, quer dizer, tocar-lhe? - perguntou
Mick. William disse que sim com a cabeça. Não podia
negar-lhes esse prazer.
Meteu a mão debaixo da t-shirt e lá estava a chave,
colada ao seu peito, sobre o coração, pendurada numa volta
de ouro. Retirou-a e pousou-a sobre a folha de papel branco
onde antes desenhara a sua forma. Mas deixou ficar os dedos
sobre ela.
- Está aqui, dentro do desenho - disse. - Toquem-lhe.
Eles avançaram todos ao mesmo tempo e alguém tropeçou
no Sami, que também queria ser o primeiro a tocar na chave,
que deu um encontrão a William, que se desequilibrou.
- Cuidado! - gritou o duende. - E são vocês os melhores
amigos das criaturas.
Foi então que um trovão soou estrondosamente e se
apagaram todas as luzes da sala.
- Deve ser o quadro eléctrico. Ultimamente é isto.
Volta e meia, dispara. Não se preocupem, alguém o vai ligar
- disse o Sr. Potter.
William, cujos dedos tinham deixado de sentir a chave
por alguns instantes, procurou-a às escuras e encontrou-a
rapidamente. Não a podia ver no escuro, mas os dedos da sua
mão já a conheciam perfeitamente.
A luz regressou e lá estava ela, no centro do seu
próprio desenho. O rapaz guardou-a imediatamente e já
ninguém lhe tocou.
176

Estava na hora da despedida. O tempo voara.


Foi então que algo de muito estranho aconteceu. Um
vento súbito e gelado invadiu a sala e, num instante, a
temperatura baixou muito. Era como se tivessem mudado de
estação e estivessem agora no meio de uma noite de Inverno.
E, então, os quadros na parede, com as fotografias e os
desenhos, começaram a cair, um a um.
- Sami - chamou o presidente Mick.
- Estou aqui, ao teu lado - respondeu o duende.
- Então quem está a fazer isto?
As luzes tremeram, como velas de aniversário sopradas
por uma criança, e voltaram a apagar-se. E então todos
viram uma luzinha esverdeada com uma aura amarela a
deslocar-se em várias direcções no ar da sala.
Por fim, ficou a pairar a um metro do nariz do Sr.
Potter, que, tal como os outros, estava parado no escuro, à
espera.
- O que é isto? - perguntou o presidente.
Não houve resposta.
A luzinha esverdeada rodopiou no ar e depois, num
movimento rápido, atravessou o Sr. Potter de um lado ao
outro, deixando-o com os cabelos em pé, completamente
desnorteado.
O Mestre de Cerimónias avançou no escuro, à toa, a
tentar sacudir o frio cortante que o invadira, e bateu com
a cabeça num candeeiro de pé, que caiu estrondosamente.
Por essa altura, já a luzinha esverdeada se esmagara
contra o tecto da sala e desaparecera tão depressa como
tinha aparecido.
- Era ele! - disse Sami, à procura da garrafa de
conhaque no escuro. - Nunca o vi assim tão assanhado.
Talvez nos queira dizer alguma coisa.
- Ele quem? - perguntou Zadie.
- Quem havia de ser, valha-me Deus!? O espírito do
velho Zimmer. Nunca o vi tão assanhado. Será da trovoada?
A luz regressou, os quadros pararam de cair e a
temperatura do ar começou a subir.
177

William abraçou o irmão, que estava tão pálido como um


náufrago. Mick e Zadie seguraram o Sr. Potter, um de cada
lado, e faziam-lhe perguntas a que ele não podia responder.
O Mestre de Cerimónias continuava com os cabelos espetados
no ar e o olhar perdido no vazio.
- Os rapazes trouxeram os elefantes? - perguntou.
- Como?
- E os pauzinhos? Onde estão os pauzinhos? - insistiu.
- Como?
- É melhor levá-lo ao hospital - disse a
vice-presidente Zadie. - Ele não está bem.
178
24

RESOLVENDO PROBLEMAS

William, Peter e Sami regressaram à galeria de arte


pela escada de pedra e, depois, pelo elevador.
O duende estava muito preocupado com as horas. A mulher
tinha-lhe pedido para não chegar tarde, e um pedido dela
era uma ordem. Além disso, era o responsável pela energia
naquela zona e já deveria ter começado a trabalhar.
Saíram para a rua e ele procurou o táxi com o olhar
ansioso.
- O Nobby leva-vos a casa - disse ele. - Deve estar a
chegar.
Peter ligou o telemóvel e tinha várias chamadas não
atendidas da mãe.
- Já estará em casa? - perguntou William.
- Claro que sim! Aquilo da entrevista na televisão era
mentira. Foi um truque do Resolvedor para ela nos trazer a
Londres.
William deu uma palmada na testa.
- Pois... E agora?
Como nenhum deles tinha coragem para falar à mãe, Peter
enviou-lhe um SMS em que dizia que estavam no cinema com os
telemóveis em silêncio e já iam para casa. Depois, os dois
rapazes despediram-se de Sami, que também estava com a vida
179

atrasada. O duende, cada vez mais ansioso, deu as últimas


recomendações de segurança a William e foi apressadamente
na direcção da porta da galeria.
Eles ficaram à espera. Estava um calor abafado,
insuportável, que mal os deixava respirar. Era preciso
arrancar à força o ar ao ar.
Peter era o mais abalado. Os olhos dele não viam as
criaturas, mas almas ou espíritos era com eles.
- Viste agora com os teus olhos? - disse ele para o
irmão.
- O quê?
- O Primeiro Depois do Primeiro. A alma dele, ou o
espírito, ou lá o que é aquilo, anda por aí. Eu sabia. Só
não percebo porque estava tão furioso. Viste o que ele fez
ao Potter?
- Falta saber o que terá feito o Potter para ele lhe
fazer aquilo - disse o irmão. - Mas seria mesmo ele? Era
uma luz...
- O que querias que fosse?
Foi então que alguém bateu nas costas de Peter. Ele
voltou-se e não estava lá ninguém.
- Sou eu - disse o Resolvedor, e o rapaz voltou a
saltar.
Estava pálido, sem pinta de sangue.
- É ele - confirmou William a sossegar o irmão.
Foram para um recanto mais discreto, onde William pôs o
Resolvedor-de-Problemas ao corrente de tudo o que sucedera
desde a última vez que se tinham visto, incluindo, é claro,
o roubo da chave falsa.
- Óptimo - disse o duende no final da descrição, a
esfregar as mãos. - Assim não te aborrecem mais. E é um
problema resolvido. Só que tenho outro, ainda maior, para
resolver. O traidor. Ou os traidores. Sabemos que há pelo
menos um na Fábrica de Nada. E agora também tenho de
investigar aqui no Clube dos Amigos das Criaturas.
- O quê? Qual é o problema? - quis saber William.
- Ainda é cedo para falar nisso.
- São quase onze da noite - disse Peter. - Estou certo
ou estou certo?
180

- Estás enganado se pensas que to vou contar -


respondeu o duende.
- Também tenho um problema - disse William. - Será que
podias ajudar-me a resolvê-lo?
- É pessoal ou tem que ver com isto tudo? É verdade,
como é que vocês entraram no Clube?
- Pelo elevador - explicou Peter. - Mas é preciso uma
chave para descer à cave, onde há uma passagem para a casa
ao lado.
- Uma chave? Isso não é problema para um
Resolvedor-de-Problemas. Até breve e muito cuidado. A
melhor maneira de resolver problemas é evitá-los.
O duende avançou na direcção da galeria, evitando os
transeuntes.
- Espera! - disse William. - Não respondeste à minha
pergunta.
O duende deteve-se, contrariado.
- Nem tu à minha.
- Bem, é pessoal mas tem que ver com isto tudo.
O duende cruzou os braços e respirou fundo, a ganhar
paciência.
- Diz lá, então.
William encheu o peito de ar e disse:
- Tenho de passar esta noite para o Outro Lado. O
duende fez o mesmo e disse:
- O problema da chave está resolvido. Estou certo ou
estou certo?
- Estás certo.
- Ora, esse é que era o meu problema. O da tua passagem
e com o Duende-Mensageiro, embora ainda seja cedo para
isso. Podes perder-te na passagem, se não estiveres bem
preparado, tens de ter paciência, que é a arte de enganar a
impaciência.
Mas William não se conformava.
- E a minha missão? - perguntou. - Já tenho a terceira
chave, a pedra que fala, a Palavra Misteriosa. Para não
falar na rosa, que também está a murchar. O que estou aqui
a fazer?
181

Peter aproximou-se e aplicou uma cotovelada ao irmão.


- Tem calma, maninho. Fala mais baixo.
Havia uma senhora com um cão pela trela que estava
parada no meio do passeio a olhar para ele. Que coisas
estranhas estava aquele rapaz a dizer, como se estivesse a
falar com alguém! E o cão tentava arrastar a dona na
direcção do vazio, atraído pelo cheiro do Resolvedor.
William disfarçou como pôde e pôs-se a olhar para o
irmão, tentando dar a entender que tudo aquilo era com ele.
- Não posso fazer nada por ti. Procura o
Duende-Mensageiro - disse o Resolvedor, aproveitando para
se esgueirar na direcção da galeria.
Ouviram a buzina de um táxi. Nobby tinha chegado para
os levar a casa.
- Este Resolvedor não resolve nada - comentou Peter. -
Mas, por uma vez, tem razão. Não podes passar assim, sem
mais nem menos.
- O primeiro Grimm também passou antes do tempo,
sabias?
A mãe esperava-os à porta de casa. Estava numa fúria, e
os filhos desfizeram-se em desculpas.
- Pensámos que estavas ocupada com a entrevista e essas
coisas - desculpou-se Peter.
- E que tal? Correu bem? - perguntou William. A mãe
levou as duas mãos à cabeça.
- Fui enganada. Afinal, não havia gravação nenhuma,
ninguém sabia de nada na estação de televisão. Que
vergonha! E eu a insistir que me tinham telefonado a
combinar uma entrevista. Só queria saber quem me fez isto!
E para quê? Para quê?
William e Peter trocaram um olhar cúmplice. Tinham
acabado de falar com o responsável. Não fora isso, porém, e
William não teria ainda a terceira chave colada ao peito.
Só que, agora, também lhe dava jeito estar na quinta. Era
quase certo que o Duende-Mensageiro iria lá aparecer nessa
noite, à procura dele.
- Mãe, porque não regressamos já? Tu gostas de conduzir
à noite.
182

- Não nesta noite - disse ela. - Já tive a minha dose.


E vocês ajudaram. Agora vou trabalhar no meu livro. Fadas,
duendes, gnomos, é disso mesmo que eu estou a precisar, e
depois deitar-me e fechar os olhos sobre este dia estranho.
Amanhã viajamos, de manhã cedo, logo a seguir ao
pequeno-almoço. Vão dormir também.
Dormir. Como podiam eles dormir quando as coisas
estavam a acontecer? Juntaram-se no quarto de Peter.
- Achas que a alma do Primeiro Depois do Primeiro sabe
onde nós moramos? - perguntou ele a lançar-se de costas
para cima da cama.
William nem o ouviu. Estava à janela, o olhar perdido
no horizonte longínquo.
- Tenho de ir ainda esta noite para a quinta - insistiu
ele. - E tenho de passar esta noite para o Outro Lado.
Amanhã pode ser tarde.
- És maluco?
- Não. Sou um Grimm.
- E os Grimm são todos malucos? William ergueu a rosa
no ar.
- Olha para ela. O tempo da Princesa está a acabar. Se
não passo tão depressa, acabo por esquecer a Palavra
Misteriosa. E fico corcunda como ficou o tio, que não teve
a coragem de dar o passo que nos leva ao Outro Lado.
Enquanto falava, William via-se de lado no espelho do
guarda-fatos.
- Não te parece que já estou um bocado curvado?
Peter pôs-se ao lado dele.
- E maluco. Também estás maluco, sabes?
- Quem não passa fica corcunda, Peter. Ouve o que te
digo.
William afastou-se do espelho, a olhar de lado,
desconfiado. Continuava a pensar que as suas costas já
tinham começado a vergar. Ou seria talvez do peso das
coisas que ele andava a carregar?
183

- E como é que vais passar para o Outro Lado? - quis


saber o irmão.
- O Duende-Mensageiro ficou de aparecer todas as noites
durante uma semana. Ele vai ajudar-me a passar. Ou talvez o
tio se lembre da passagem a que chamam “Goela da Serpente”.
- Lindo. E como vais para a quinta?
- De camioneta, por exemplo. Há um expresso que sai
daqui a pouco e que passa em Tavistock. Aí é fácil apanhar
uma boleia até à quinta.
Peter agitou-se.
– E eu?
- Tens de ficar com a mãe; não podemos desaparecer os
dois.
- E o que lhe digo?
- Não sei. Estou demasiado ocupado a pensar na Palavra
Misteriosa. Não posso esquecê-la. Conta-lhe uma história
qualquer para ela não perceber a história verdadeira. E não
fiques assim. Talvez tu, deste lado, também entres nesta
história. Algo me diz isso.
- Só se for eu e a alma do Primeiro Depois do Primeiro.
Algo me diz também que ele não vai ficar por ali. Tu viste,
Willy? Era uma alma assim deste tamanho, verde. Sabias que
as almas eram verdes com uma aura amarela?
- Não - disse William, mas a cabeça dele acolhia outros
pensamentos.
Aproximou-se da janela e olhou a noite escura e morna.
Harry, o vizinho imbecil do prédio em frente, fez-lhe uma
careta mas ele não deu por nada.
O irmão aproximou-se por trás.
- Sem mim, Willy? Vais sem mim? - perguntou. - Os dois
somos um, lembras-te?
William encarou o irmão.
- Quem me dera que não fosse assim, mas já sabes que a
partir daqui é só comigo. Só eu posso passar para o Outro
Lado.
184

E não adianta ires comigo para a quinta se não vais passar.


E a mãe? Tinha um ataque!
Peter baixou o olhar, entre a tristeza e a conformação.
Ele era o que não via, o que estava condenado, como os
outros, a pisar o chão de um único mundo. Sabia isso do
mesmo modo que sabia que, no fim daquela noite negra, havia
uma manhã de Sol.
O irmão abraçou-o.
- Quem me dera levar-te.
- Tens medo? - perguntou Peter.
- Tenho.
- De quê?
- De tudo, acho eu.
185

25

O PRIMEIRO CONTO DE FADAS

Quando Peter acordou, uma hora depois, estava sozinho


no quarto.
- Willy! - chamou.
Precipitou-se para o quarto do irmão, que estava vazio.
Mas havia sobre a cama um bilhete que anunciava a sua
partida para a quinta nessa noite. E, provavelmente, para o
Outro Lado.
- Nãããão - gemeu Peter a sentar-se pesadamente na beira
da cama.
Depois, veio até à cozinha beber um sumo fresco e, no
regresso, espreitou para o escritório da mãe, que
adormecera no sofá com o computador portátil nos joelhos.
Entrou e pegou no computador, que estava prestes a
cair. Quando o pousou sobre a secretária, o ecrã
iluminou-se e apareceu o texto do livro que a mãe estava a
escrever: “O Primeiro Conto de Fadas”.
Curioso, Peter leu alguns excertos do primeiro
capítulo:

Era a primeira vez que Marcus e Wilfred Siegler vinham


a quinta do tio Hans na Cornualha. Marcus tinha acabado de
fazer catorze anos, Wilfred tinha menos um ano, mas eram
praticamente iguais e que as pessoas que os não conheciam
187

pensavam que eram gémeos. Por outro lado, nem pareciam


irmãos: davam-se bem. Eram inseparáveis, e onde estivesse
um, estava o outro. “Os dois somos um”, era o seu lema. Mas
ainda lhes faltava descobrir como eram diferentes.
- Viste aquilo? - perguntou Marcus quando atravessavam
o jardim na direcção da casa.
- O quê?
- Um homem baixo e peludo com umas roupas esquisitas.
Parecia um daqueles duendes que vêm desenhados nos livros
de histórias.

Peter parou de ler. Aquilo era muito parecido com a


história que ele e o irmão estavam a viver. Ou antes, era
tal e qual, descontando os nomes, que eram inventados.
Afinal, a mãe sabia de tudo e até estava a aproveitar para
escrever a história. Ou aquela história estava a acontecer
porque a mãe a estava a imaginar?
Elisabeth Zimmer acordou, abriu os olhos.
- Adormeci outra vez - disse a bocejar. - Vou para o
quarto. Onde está o computador?
- Está aqui. Estou a ler a tua história nova, “O
Primeiro Conto de Fadas”.
Ela afastou o filho do computador.
- Já sabes que não gosto que leiam os meus livros antes
de eles estarem prontos. É como aparecer à frente de alguém
em cuecas. Além disso, dá azar.
Peter nem a ouviu.
- Como te lembraste disto, mãe? É a nossa história. Há
outros nomes, mas é a nossa história. A nossa, ouviste?
Passa-se numa quinta como a nossa, os irmãos têm a nossa
idade e um deles vê duendes e fadas, o outro não...
- Ah! Um de vocês vê duendes e o outro não? -
interrompeu a mãe.
Peter acusou o toque.
- Isso não.
188

- Então já vês. Há coisas e pessoas parecidas com


outras coisas que existem à minha volta, é natural, mas o
resto é imaginação. Ou então é a minha fada que me sopra
essas coisas.
- Isso é verdade? Acreditas nisso, na tua fada?
- Achas que sim? - perguntou ela a sorrir. - É uma
coisa que eu digo quando me perguntam onde vou buscar a
inspiração.
- Pois, mas estes dois irmãos, que também são alemães,
parecem os Grimm, que visitaram o Primeiro, que era tio
deles.
- Pois. Isso é verdade - concordou a mãe.
- E porque nos comparas com os dois irmãos Grimm?
- São nossos antepassados. Tinham sangue Zimmer.
Recolheram contos de fadas. Isso estimulou a minha
imaginação. É natural.
- Não estou a perceber - disse Peter. - Isto é verdade
ou não? Ou é tudo imaginação?
- Isso é tudo verdade e é tudo imaginação. Percebeste?
- Não.
- Então vai pensar nisso para a cama.
Peter veio à frente da mãe até ao quarto, onde esperou
pacientemente que ela adormecesse. Depois, regressou ao
escritório em pezinhos de lã, ligou o computador e
continuou a leitura. Agora sabia que “O Primeiro Conto de
Fadas” era a história verdadeira dos jovens Wilhelm e Jacob
Grimm, que estava a ser soprada à mãe pela fada. Parte
dela, pelo menos.
Nesse momento, William acordou de repente, como se
tivesse sido abalado por um despertador. Mas era apenas o
homem que ia sentado ao lado dele na camioneta.
- Estamos em Tavistock, rapaz! Não é aqui que sais?
William deu um salto no banco, pôs a mochila às costas
e precipitou-se para a saída. Agora só lhe faltava apanhar
uma boleia Para chegar à quinta. Era fácil.
Meia hora depois, empurrava o portão de ferro da Quinta
da Pedra Azul. Eram quase quatro horas da madrugada e a
Lua, chiienha, iluminava difusamente o jardim. Já andaria
por ali o Duende-Mensageiro? Percorreu o jardim e não havia
189

sinal dele ou de qualquer outra criatura.


Talvez não fosse a noite delas, embora o
Duende-Mensageiro tivesse prometido aparecer todas as
noites durante uma semana das nossas. Ou já teria vindo e
regressado por não o ter encontrado? Ou talvez pensasse que
ele ainda estava em Londres, às voltas com o problema da
chave.
Foi então que apareceu o tio Nathan, em roupão, ao cimo
das escadas, talvez atraído pelas muitas luzes acesas.
Desceu as escadas a sorrir, radiante e feliz.
- Willy, não imaginas as coisas de que me lembrei. Mas
o que estás aqui a fazer?
- A rosa está a murchar. Tenho de passar esta noite
para o Outro Lado. Amanhã pode ser tarde. Por acaso o tio
não se lembrou também da passagem? Como é que se passa?
Esperava que o Duende-Mensageiro me ajudasse, mas não o
vejo. Talvez já tenha vindo e partido outra vez. Hoje não é
a noite deles, não vejo mais nenhum por aqui.
- Calma, rapaz. Tens tempo - disse Nathan Zimmer, e
abraçou o sobrinho. - Fazes bem. Não hesites. Não tenhas
medo. Quem se esquece de viver não pode queixar-se da vida.
Ajudava-te de boa vontade mas, infelizmente, não me lembro
da passagem. O abismo. Só sei que é um abismo. Negro, como
a goela de uma serpente.
- Isso. Chamam-lhe assim. Pense, tio.
Nathan Zimmer fez um esforço.
- Às vezes sonho com ele. Está cheio de coisas
estranhas, desconhecidas. Quando estamos muito perto
daquela escuridão, sentimos o bafo desses seres e dessas
coisas desconhecidas. Foi isso que me roubou aquele passo.
- O quê, tio?
- O medo do desconhecido. Avisaram-me disso.
- E onde será essa Goela da Serpente? - insistiu
William. - Será aqui na quinta?
190

O tio apertou a cabeça com as duas mãos, como se a


quisesse esmagar.
- Não me lembro. Não me lembro de nada. Só que é um
abismo negro.
William saiu para o alpendre e o tio seguiu-o.
- Se ao menos aparecesse um duende qualquer. Talvez me
deixassem passar com eles. Talvez eles passem pelo abismo
também.
- Não me parece - discordou o tio. - Acho que passam no
parque de Dartmoor, através de portas no ar. Eles são
criaturas elementais. Fazem coisas que não estão ao nosso
alcance. Já me explicaram isso, e disso lembro-me. Um Grimm
pode aprender a passar por essas portas, mas...
- Já sei. Leva tempo - interrompeu William. - Mas tempo
é tudo o que eu não tenho.
Foi então que o telefone da casa começou a tocar.
- Quem será a esta hora? - perguntou o tio Nathan.
- A minha mãe já deve ter dado pela minha falta. É
melhor nem atender.
William atendeu o telefone no hall da casa, mesmo em
frente ao retrato do Primeiro, à espera do pior. Mas era o
irmão, muito afogueado.
- Tens o telemóvel desligado. Estou farto de te ligar -
resmungou ele.
- Está sem bateria - explicou William.
- Já sabes se vais passar?
William olhou a rosa.
- Não vou. Não está cá o duende e o tio não se lembra
do sítio da passagem.
- E eu, William, e eu? Ouve. Estou a ler o livro novo
da mãe, “ Primeiro Conto de Fadas”. Conta a história do
Grimm. Ela diz que é imaginação, mas nós sabemos de onde
vem a inspiração dela. E cheguei agora a um capítulo que se
chama “O Abismo”.
- O quê?
191

- Acredita, Willy! A Fada-Sopradora está a soprar à mãe


a verdadeira história do Wilhelm Grimm. E o que lhe
aconteceu é o que te está a acontecer.
- Ora, Peter! Isso foi inventado pela mãe, é uma
coincidência.
- Aí é que está. Já li bastante e há demasiadas
coincidências. Ela não podia imaginar com tanta precisão.
Mas se não estás interessado em saber como o Wilhelm passou
para o Outro Lado numa noite de emergência como esta...
William não tinha outra alternativa e agarrou-se
àquela. Também ele estava perante uma emergência. E o que
lhe restava? A leitura.
- Lê, Peter. Lê.
O tio Nathan aproximou o ouvido do auscultador e também
ouviu a voz de Peter.

O Duende-Mensageiro sentou-se a sombra e disse:


- Muito bem. Aprendes depressa.
- Então sempre posso passar esta noite? - excitou-se
Marcus. - Por favor, é muito importante, embora não possa
dizer porquê. É segredo.

- Quem é esse Marcus? - interrompeu William.


- É o Wilhelm Grimm. A mãe mudou o nome.
- Ah! Continua. Peter assim fez:

- Tens apenas três dias de treino, é impossível - disse


o duende. - Se continuares assim, talvez dentro de uma
semana, semana e meia, possas atravessar uma porta no ar.
Há muitas por todo o parque de Dartmoor.
- Esta noite. Tenho de passar esta noite - insistiu
Marcus. - Não há outra maneira?

- Avança - pediu William. - Vê como ele passou para o


Outro Lado. Ele passou, não passou?
192

26

O ABISMO
- Bem, nesse caso... – disse Peter a percorrer as
linhas da história no ecrã. - Talvez aqui. Ora ouve:

- Chegou a altura de abrires o Livro em Branco - disse


o duende. - Na primeira página encontrarás uma palavra que
não deves pronunciar, apenas decorar. É a Palavra
Misteriosa.

- Avança também isso - pediu William, incapaz de


enganar a paciência. - Vê como ele passou, é isso que eu
preciso de saber.
Peter avançou com o cursor do computador.
- Talvez aqui - disse por fim. - Ora ouve:

O Duende-Mensageiro levou-o para além dos limites da


quinta, na direcção do mar. Atravessaram duas outras
propriedades, um grande urzal e as ruínas da antiga
queijaria. Mais adiante, perto da Pedra da Bruxa, entraram
na velha mina de estanho, que estava desactivada e fechada.
A entrada estava obstruída com traves de madeira, mas não
foi difícil remover uma delas para poderem entrar.
193

- Isso será verdade? - interrompeu William mais uma


vez.
O tio, que também estava a ouvir a história,
respondeu-lhe:
- Tudo isso existe: as duas propriedades, o grande
urzal, a Pedra da Bruxa. Da mina é que nunca ouvi falar.
- Se o resto é verdade, isso também pode ser -
animou-se William. E gritou para o irmão: - Vamos pôr-nos a
caminho.
- E o resto da história? - perguntou Peter. - Não
queres saber como se passa?
- Já te ligamos do telemóvel do tio. Primeiro, temos de
descobrir a tal mina. O resto é tudo verdade. Só nos
faltava que a mina fosse inventada.
William e o tio atravessaram as duas propriedades, o
urzal e as ruínas da velha queijaria e, meia hora depois,
chegavam a uma pedra que, vista de lado, lembrava o rosto
de uma bruxa com o seu nariz comprido e adunco.
- Até aqui está tudo bem. E a mina de estanho?
- Acho que precisamos de voltar a consultar o livro -
disse William.
Ligaram para o telemóvel de Peter, a pedir orientação.
- Ora bem - explicou ele -, aqui só diz que a velha
mina fica perto da Pedra da Bruxa. E que a entrada está
encoberta por uma camada de heras e tapada com tábuas.
- Mais nada?
- Mais nada. Sobre isso não há aqui mais nada. Só diz
que é perto da Pedra da Bruxa.
William e o tio, munidos de lanternas potentes,
procuraram num raio alargado em volta da Pedra da Bruxa,
mas sem resultado.
Por sua vez, Peter ligava de dez em dez minutos, a
saber se havia novidades.
- Lê, lê! Pode haver uma pista - pediu-lhe o irmão numa
dessas vezes.
- Não há. Já li esta parte umas dez vezes. A fada
esqueceu-se de soprar isso à mãe. Tens de abrir os olhos.
És capaz de ver duendes e não vês a entrada de uma mina?
Isso até eu via!
194

- Não me parece. Talvez essa parte seja mesmo


imaginação da mãe.
Foi então que o tio Nathan, mais adiante, soltou um
grito de vitória. William desligou o telefone e foi a
correr e encontrou-o afastar esforçadamente pedras e ervas
rasteiras.
- Olha para isto! - disse ele, muito satisfeito.
À vista estava agora um velho carril de
caminho-de-ferro todo enferrujado.
- Uma linha de comboio? Aqui!? - espantou-se William.
- Era para a mina - agitou-se o tio. - Se estava aqui,
só podia ser para isso. Se seguirmos a linha, encontramos a
entrada da mina. Agora tenho a certeza de que ela fica por
aqui.
Animaram-se ambos. E seguiram a linha soterrada sob
camadas de fetos. Uma barra de ferro aqui, umas traves de
madeira alinhadas mais adiante, e foram reconstruindo, sob
a luz da Lua, a antiga linha de comboio. Era como seguir
uma linha tracejada. E no final dessa linha chegaram ao que
bem poderia ser a entrada de uma mina, sob uma rocha
arredondada pelo tempo.
Removeram a espessa camada de fetos e depois, tal como
fizera Wilhelm Grimm e o seu Duende-Mensageiro, retiraram
uma das tábuas sem grande dificuldade e entraram.
Lá dentro, havia um cheiro insuportável a mofo, a ar
pesado, antigo. Era talvez o mesmo ar que tinham respirado
os últimos mineiros. Apontaram a lanterna para diante e
viram a velha rede de túneis e galerias da mina.
- E agora? Por onde vamos? - perguntou o tio.
William ligou ao irmão.
- Estamos na mina, Peter. Também isso era verdade. Lê
agora essa parte.
Peter soltou um gritinho de contentamento, que abafou
imediatamente, não fosse a mãe acordar. Depois disse, num
tom baixo:
- Já li essa parte. Tens de dar duzentos e cinquenta
passos certinhos desde a entrada e pelo túnel da esquerda,
e verás um buraco na parede que não adianta tapar já que
nada o pode fechar.
195

- O abismo?
- Acho que sim, acho que sim. Faz isso.
Foi isso que William e o tio fizeram. Duzentos e
cinquenta passos certinhos desde a entrada e através do
túnel da esquerda e chegaram, não a um buraco que ninguém
conseguia fechar, mas a uma abertura lateral.
- É a entrada para um túnel. Já passámos por outros.
Não é o que nós procuramos - disse William.
- Talvez seja - discordou o tio. - Vamos entrar. Agora
que estou a ver isto, estou a lembrar-me de qualquer coisa.
Nathan Zimmer baixou-se e entrou no túnel, seguido pelo
rapaz. Depois de uns passos, recuou, assustado.
- O buraco - disse. - É aqui!
William colou-se a ele e espreitou, a medo.
- Era dos mineiros - disse ele. - Um poço, talvez.
Fazia parte da mina.
- Não - voltou a discordar o tio. - É como diz o livro:
um buraco que ninguém consegue tapar. A passagem.
Na borda do buraco estava um sapato pequeno de cabedal
castanho, pedras pequeninas, uma mala de couro, um pedaço
de sabão, um relógio de bolso, entre muitos outros objectos
que o buraco cuspia de vez em quando, como se fossem restos
de uma boa refeição. Por vezes, também saíam de lá de
dentro pequenos arrotos luminosos, pequenos clarões de uma
luz pálida, extenuada, que se dissolvia no ar. E também
havia momentos em que o buraco aspirava o ar com força e
arrastava alguns desses objectos, que voltavam a cair.
- Vês estas coisas que aqui estão? - perguntou o tio. -
São coisas que saem de lá de dentro.
- Como?
- Caem ao contrário. Quer dizer, descaem. E sabes
porquê? Porque isto é um sítio por onde se parte e também
por onde se chega. É um lugar de passagem.
“Um lugar de passagem.” Aquelas palavras soaram como
uma sirene nos ouvidos de William. Só que agora já não
estava tão confiante, tão apressado. A proximidade do
196

abismo roubou--lhe a coragem.


O tio aproximou-se, a espreitar para baixo, a lembrar-
se, a lembrar-se.
- Ora ouve - disse. - Parece o barulho das ondas nos
recifes.
Dentro do abismo havia um rumorejar próprio do
movimento. Sons inapreensíveis, rumores, gemidos,
sussurros. Era uma espécie de motor que nunca parava de
trabalhar, nem de noite nem de dia.
William sentiu vertigens. Já estava a ficar enjoado só
de olhar para o abismo. Mas não conseguia desviar o olhar.
Peter ligou e o toque do telemóvel despertou William do
seu torpor.
- Então? - perguntou o irmão.
- Já demos com o buraco, o abismo, ou lá o que é. Se é
que é o que é. Lê agora essa parte, Peter.
A voz de William tremia e Peter perguntou:
- Estás com medo?
- Estou.
- Eu sei. Senti. Eu também estou com medo. Ouve o que
diz o livro sobre o buraco, o abismo, ou lá o que é isso.
- O que é isto, Peter?
- Ouve. Está aqui escrito. E uma explicação do duende
ao Wilfred:

Este buraco apareceu sem mais nem menos quando cavaram


uma nova galeria na mina. Tentaram tapá-lo com terra, com
tábuas, com cimento, mas não havia nada que pudesse tapá-lo
e ele continuava aberto. Às vezes, os mineiros lançavam
coisas para lá e não as ouviam cair em lado nenhum e
concluíram que era um buraco sem fundo. Nem uma simples
grade protectora para evitar quedas o buraco suportou, e
não se soube que mão de vento a empurrou para longe. Então
esqueceram o buraco e fecharam aquela galeria. Havia quem
dissesse que ia até ao centro da Terra, que ficava á
distância de seis mil quilómetros, quem achasse que era um
197

buraco onde, a certa altura, se caía para cima e que, por


isso, conduzia ao espaço sideral e, finalmente, havia quem
garantisse que ia direitinho ao fogo do Inferno. Eu
garanto-te que vai dar ao Outro Lado se fizeres o que tens
a fazer. Primeiro, deixa-te cair no escuro e conta
devagarinho até dez. Se caíres numa onda de pó, que é uma
onda de tempo, diz uma palavra de ida e volta, “ovo”,
“asa”, “osso”, por exemplo, ou perdes muito tempo. E quando
chegares perto das nuvens de pontinhos luminosos que chovem
para cima, abranda. Estás a chegar.
- Como? - interrompeu Marcus. - Como é que abrando se
vou a cair?
- As palavras. São sempre as palavras. Diz as palavras
esquecidas. Assim, não vais tão depressa quando chegares ao
sítio certo: acalanto, xícara, unguento, sequóia, oneraria,
rodoendro, inteiriçado, adejar, colchete, roçagar, brunir,
sibilar, pipilar, orago, siroco, alumbrar, rutilante, paul,
oniro, falua, golim... Há tantas.
Marcus repetiu algumas, para as memorizar: acalanto,
xícara, unguento, sequóia, cineraria, rodoendro...
- Depois saltas - disse o duende, interrompendo-o. - É
como se fosses num autocarro em movimento de que tens de
saltar na altura certa.
- Depois quando? E salto para onde? - perguntou Marcus.

Não houve resposta. Peter parara de ler. Estava a olhar


para a janela, onde um corvo negro acabara de pousar.
- Um corvo - murmurou ele. - O que está aqui a fazer um
corvo?
- O quê? Um corvo quê? - perguntou o irmão ao telefone.
O corvo ficou ali a olhar para o interior do quarto,
como se procurasse algo ou alguém, e depois abriu as asas e
voou.
198

27

UM SALTO NO ESCURO

- Peter! O que se passa? - perguntou William. - Estou à


espera.
- Desculpa. É que estava um corvo no parapeito da
janela a olhar cá para dentro - respondeu o irmão. - Nunca
vi nenhum por aqui. Onde é que íamos?
- Ele pergunta qual era a altura certa para saltar.
- Ah! Ouve:

- Depois quando? E salto para onde? -perguntou Marcus.


- Não te preocupes, a pedra avisa-te - esclareceu o
duende.
- Qual pedra?
O duende deu uma palmada na testa.
- Ainda não ta dei? Que cabeça a minha! Toma lá. Sabes
o que faz isto? É a pressa.
O duende enfiou a mão no bolso e tirou de lá uma pedra
polida, arredondada, mais ou menos do tamanho de uma bola
de ténis, e entregou-a a Marcus, que a segurou,
desconfiado.
- Ela avisa-me como? - quis saber.
- É uma pedra que fala; e ouve, é claro.
- Fala como? -perguntou o rapaz a rodar apedra na mão.
199

- Fala como uma pedra que fala - respondeu o duende. -


Confia nela. É uma boa pedra, embora digam que as pedras
que falam não são de fiar. Ah! E quando saltares, diz a
Palavra Misteriosa. Lembras-te dela?
Marcus torceu o nariz.
- Agora que me perguntas, não me lembro. E ainda há
pouco, quando vínhamos a caminho, me lembrava
perfeitamente. Talvez se não me perguntares...
- Tens de te lembrar na altura certa - recomendou o
duende.
Marcus suspirou profundamente.
- Eu sei. Ainda bem que esta não é a altura certa. E
que mais, que mais?
O duende tossiu para aclarar a voz. Depois disse:
- O resto é fácil. Verás três portas. Atrás de uma
delas está um monstro que se alimenta de quem lhe bate a
porta. Outra porta dá para lado nenhum. Abre para um sítio
onde podes perder-te para sempre. A última porta leva-te a
casa.
- E como sei qual é a certa?
- Fácil. A pedra. Ela sabe.
Marcus não queria acreditar que estava nas mãos de uma
pedra que nem sequer tinha mãos.
- E depois? -perguntou.
- Depois basta apanhares uma coluna de ar ascendente,
há muitas, e ficas diante de uma porta de madeira pintada
de verde. Estás em casa.
- Em casa? - gemeu Marcus. - De lá venho eu.
- Não tenhas medo - disse o duende. - E lembra-te que
tens de estar de volta quando nascer o Sol deste lado.
Marcus olhou mais uma vez a pedra. Se ao menos tivesse
a certeza de que a pedra falava...
- Olá, pedrinha! - disse.
Não teve resposta.
- Fala, pedra, fala! - gritou ele.
A pedra continuava calada.
200

- Só fala quando tem de falar - explicou o duende. -


Não responde a perguntas nem está disposta a conversar
contigo. Não contes com ela para discutir futebol. Afinal,
é uma pedra.
Marcus apertou a pedra na mão.
- Vou saltar - disse ele. - Antes que comece a pensar
nisso.
E então deu um pequeno passo e caiu no buraco negro.

- Não leias mais - interrompeu William. - Já percebi.


Vou saltar.
- Calma! Não podes saltar assim - gritou o irmão.
William já não o ouviu. Entregou o telemóvel ao tio,
retirou a pedra da mochila e segurou-a na mão. Depois,
aproximou-se do abismo, sentiu o bafo morno do desconhecido
e isso chegou para lhe paralisar os músculos. Fez um
esforço e reagiu e estremeceu para sacudir aquele horror,
como um cão que sacode a água do pêlo.
- É horrível - disse, completamente arrepiado.
O tio aproximou-se e abraçou-o.
- É o desconhecido. Nada é mais assustador.
William recuou alguns passos, limpou o suor do rosto,
respirou fundo.
- O que é isto, realmente? - perguntou. - A sério, sem
ser em nenhuma história.
O tio coçou a cabeça.
- Uma anomalia, acho eu. Um nó do espaço e do tempo. Os
cientistas chamam-lhe “Buraco de Verme”. É um lugar de
passagem entre espaços de dimensões diferentes.
William deu uma volta sobre si mesmo.
- Buraco de Verme, Goela de Serpente... Os nomes que
lhe dão não são muito animadores. E como pode conduzir a
outro mundo? Alguma coisa não é como no livro.
- Talvez tenhas razão. Há um sítio onde a realidade
acaba, e pode ser ali dentro. Pode não acontecer nada a não
ser um mergulho num buraco. Ainda não viste que não é um
buraco qualquer? Não o ouviste? Não o cheiraste? E, no
entanto, isto é tudo verdade. Já aconteceu a outro e em
201

parte aconteceu-me também. Já ouvi algumas dessas palavras


esquecidas, já soube uma Palavra Misteriosa, já tive essa
pedra na minha mão. Só que não fui capaz de saltar.
William acariciou a sua pedra.
- E se esta pedra for só uma pedra? - perguntou para
ninguém.
E a pedra, a própria pedra deu-lhe a resposta.
- Podes saltar. Estou pronta. Conta até dez, devagar, e
depois diz a Palavra Misteriosa. Lembras-te dela?
William exultou:
- Ela fala, tio. Ela fala!
- Eu sei.
De repente, na mente de William, todas as peças se
encaixaram. Era tudo verdade. Todas as histórias.
- O pior é este passo - disse. - O primeiro.
- Lembras-te da Palavra Misteriosa? - repetiu o tio.
Ele disse que sim com a cabeça e depois encarou o
abismo, deu um pequeno passo no vazio e caiu sem fazer
qualquer ruído.
- Willy! Willy! - gritou o tio debruçado sobre o abismo.
Não via nada. Não ouvia nada.
- Willy - repetiu, sem convicção, e a voz dele soou nas
galerias escuras e desertas da mina como um lamento
aflitivo.
Nesse momento, tocou o telemóvel. Ele atendeu e disse:
- Ele saltou, Peter.
- E agora?
- Vai correr tudo bem - disse o tio. - Espero aqui por
ele.
Peter sentiu o coração aos pulos, a querer saltar-lhe
do peito. Quase que sentia a aflição do irmão, a cair num
abismo negro e desconhecido. Inclinou-se para o computador
e leu:

Marcus viu-se a cair no vazio. Respirou profundamente e


começou a contar. Um. À medida que caía, a escuridão
tornava-se mais densa e cerrada. Ia depressa. Mais devagar,
porém, do que se tivesse saltado de uma prancha para uma
202

piscina, por exemplo. Era mais como nos sonhos, quando caía
devagar e quase flutuava no ar.

Peter parou de ler, certo de que a partir dali, pelo


menos nos próximos passos, dificilmente as duas histórias
coincidiriam. E, com o coração apertado, pensou no irmão, a
cair no abismo.

- Três - disse William, que já ia há algum tempo em


plena queda livre através do escuro enevoado.
Quatro.
À medida que ele caía, a escuridão tornava-se mais
espessa. Seria aquela a negrura do fim, ou seria a
escuridão que precede um nascimento para um lugar de cores
e fadas e barcos e Sol?
Cinco.
Tanto rodopiava como fazia grandes loopings. Não o
podia garantir, mas era quase certo que o túnel tivesse
alargado e já não fosse sequer um túnel. A cabeça dele
andava à roda. Sentia vertigens e um enjoo crescente. Fora
isso, não acontecia nada, não se via nada, não esbarrava em
nada. Talvez aquilo fosse o nada, onde tudo esperava para
voltar a ser.
- Seis - disse ele, na altura em que entrou num túnel
de pó que o fez cerrar os olhos.
Pó, havia muito pó no ar. Pó de tempo. Séculos de vidas
anteriores à dele. E ele a passar através de tudo isso:
feitos heróicos, batalhas encarniçadas, mesquinhas
traições, dores imensas e gritos de vitória. E então
percebeu que já não estava a cair mas a andar às voltas sem
sair do sítio.
Era a altura de dizer uma palavra de ida e volta.
- Osso, asa, ovo - disse, e voltou a cair.
Sete.
Tinha chegado a uma zona de luz pálida e tremida e
estava a cair mais depressa. Pelo menos, foi o que lhe
pareceu. Por isso, respirou fundo e disse:
203

- Oito.
E então soaram as palavras das histórias. Palavras
soltas mas também frases inteiras: “Queres que te conte
outra vez?” ou “O tubarão tinha uma boca do tamanho de um
prédio de sete andares...” ou “Era uma vez uma princesa no
meio de um laranjal.”
Também soavam restos de canções, lengalengas, orações.
E sussurros, suspiros, resmungos, murmúrios, risinhos,
lamentos, rumores. Eram centelhas tremendo e dançando.
Brilhavam e reluziam. Não eram palavras mas coisas.
- Nove - disse William, um pouco atrasado.
Passou por um grupo de palavras-espelho (amor/roma,
rata/atar, aval/lava) e aí estava ele rodeado de pequenas
nuvens luminosas que choviam para cima. O quê? Minúsculas
faíscas de luz que se apagavam logo a seguir, como bichas
de rabiar na noite de S. João. O livro também falava disso.
O livro estava certo, pensava William para se animar. E
disse:
- Dez.
Era preciso travar a queda e ele começou a desfiar as
palavras esquecidas: acalanto, xícara, unguento. A
velocidade diminuiu imediatamente. Foi como abrir um
pára-quedas.
- Sequóia, cinerária, rodoendro, adejar - disse ele
muito depressa, e quase parou no ar.
Era melhor descer assim, devagar. Podia olhar em volta,
embora não houvesse nada para ver.
O problema era que não se lembrava de mais nenhuma das
palavras esquecidas. Também ele as esquecera.
- Inteiriçado, roçagar, colchete - continuou a pedra.
E ele:
- Brunir, sibilar, pipilar, orago, siroco, alumbrar,
rutilante, oniro, falua, golim.
E pronto, estava outra vez a flutuar. Até que a pedra
falou.
- Agora.
A Palavra Misteriosa estava na ponta da língua de
William e saltou. Ele não chegou a saber se a disse ou se
ela se disse sozinha.
204

Nesse mesmo instante, ficou parado no ar, dentro de uma


bolha luminosa que o isolava do exterior. Dava pequenos
passos no ar e a bolha acompanhava-o. À volta, tudo
cessara: pó, imagens, todos os sons. E diante dele estavam
agora três portas de madeira grossa: uma grande, do tamanho
do portão de uma quinta, outra média, do tamanho de uma
porta normal, e uma terceira muito pequenina, mais ou menos
do tamanho da porta de uma casinha de cão.
- E agora? Qual escolho? - perguntou. - Tu sabes...
A pedra não respondeu. Nunca respondia quando lhe
faziam perguntas. As palavras que ele pronunciou ficaram
ali, a soar à volta dele, repetindo-se estridentemente: “E
agora? E agora? E agora? Qual escolho? Qual escolho? Qual
escolho? Tu sabes. Tu sabes. Tu sabes.”
Talvez soubesse, mas demorava a saber.
William pensou no que dizia o livro da mãe: atrás da
primeira estava um monstro disforme que se alimentava de
quem lhe batia à porta. Atrás da segunda estava um sítio
inóspito de onde nunca regressaria. A terceira levava-o à
sua outra casa. Era essa que ele queria abrir, a terceira.
Mas qual era?
- Escolhe a mais pequena - disse por fim a pedra.
Ele sorriu. Era a última que ele escolheria, talvez
porque duvidava que lá coubesse. Para ele, era essa a do
tal monstro.
No entanto, empurrou-a, sem hesitar, e passou para um
túnel húmido e pegajoso onde deslizou com dificuldade ao
longo de alguns metros. Depois, saiu para uma nova luz, um
outro túnel, e só aí se dissipou a bolha luminosa que o
envolvia. Uma coluna de ar ascendente elevou-o no vazio, em
direcção a uma nova luz. Ia outra vez a cair, só que para
cima.
Quando passou por uma porta verde, de madeira, desejou
parar e parou apenas por sua vontade.
“Cheguei”, pensou. “Mas onde? Onde é que cheguei?”
205

2.ª PARTE

O OUTRO LADO
207

28

O POVO DAS HISTÓRIAS

William estava agora parado no cimo de uma corrente de


ar ascendente e à sua frente havia uma porta. Uma porta,
sem mais, no meio do ar. Era velha, usada, de traves de
madeira. Não tinha puxador, o que lhe dizia que não era uma
porta de entrada, mas de saída. Só que ele estava a chegar
e queria entrar.
Empurrou-a e ela não cedeu. Enfiou então os dedos numa
das frinchas, puxou-a para si e ela abriu-se. Do lado de lá
havia uma sala de uma pequena cabana de madeira.
“A casa”, pensou. Era aí que ele queria chegar. Fez um
esforço e saltou para lá. Pelo menos ali podia pousar os
pés no chão. A porta fechou-se atrás dele sem ninguém lhe
tocar e ele viu o que nela estava escrito: “Não abrir”.
“Compreende-se”, pensou ele. Quem estivesse ali e a
abrisse encontraria um abismo e não uma despensa. A menos
que quisesse passar para o Outro Lado.
E em que lado estaria ele agora? No outro ou no mesmo?
Estava no interior de uma cabana de madeira, talvez
desabitada há muito, porque os móveis toscos e antigos, de
madeira, estavam cobertos de pó. Pó de tempo,
evidentemente.
209
Aquela cabana podia ser a casa de alguém que vivia no
seu mundo, já que nada tinha de extraordinário. Poderia
talvez ser a casa do seu bisavô, ou do seu trisavô, tão
antigos eram os móveis e os apetrechos que lá havia. Teria
viajado no tempo, para o passado?
A cabana só tinha uma divisão, e também uma única
janela, com os vidros cobertos de pó que não deixavam ver
para fora. Sobre uma lareira de pedra havia um azulejo
muito antigo onde estava escrito: “Lar, doce lar”.
O rapaz deu uma volta pela sala e encontrou um par de
binóculos, um candeeiro a petróleo, uma lanterna, dois
pares de botas antiquíssimas, um espelho grande numa
moldura de madeira, uma lamparina de azeite, um casaco de
pele de carneiro e dois guarda-chuvas.
De quem seria aquilo tudo?
Pousou a mochila sobre a tosca mesa de madeira e
levantou-se uma nuvem de poeira. Depois, tirou a pedra do
bolso e pousou-a também sobre a mesa.
- Onde estou? E agora, que faço? Onde posso encontrar a
Princesa? - perguntou.
Não houve resposta.
- Já sei. Só falas quando te apetece - resmungou.
E então a pedra falou:
- Estás em casa. Não vês?
- Ah! Já falas! Em casa? Que casa?
A pedra não lhe deu réplica. Talvez porque não tivesse,
de momento, mais nada a dizer.
“Em casa?”, repetiu ele a andar em volta. Um lar doce
lar que ele nunca conhecera? A sua outra casa na sua outra
vida?
Nesse caso, porque não haveria ninguém à espera dele em
casa? O Duende-Mensageiro que o visitava, por exemplo. Ou o
Fric, que se ofereceu para o ajudar. Ou a Fada-Sopradora,
que também ofereceu os seus serviços. Se precisavam assim
tanto de um Grimm, deviam estar à espera dele. Ou talvez
ele tivesse chegado antes da hora e não estivessem a contar
com ele.
210

Foi então que William deu por si diante do espelho.


Limpou pó acumulado na superfície com a palma de uma mão e
viu lá outro rapaz que também o olhava. Talvez ele não
fosse apenas um mas dois: aquele e o outro, que continuava
a olhá-lo. E, nesse caso, qual dos dois estaria ali, ao
nascer de um dia inesperado, num lar estranho,
desconhecido?
O rapaz abriu então a porta principal e saiu para o
exterior, onde havia um pequeno jardim, bonito, embora
maltratado, com um poço de pedra e um pequeno lago aquecido
pelo Sol, onde havia rãs, peixes dourados, nenúfares.
Do lado de fora da porta da cabana estava escrito a
tinta branca, com uma letra incerta: “Casa do Grimm”.
- Era a casa dele, do Wilhelm Grimm - disse ele para a
pedra, que trazia na palma da sua mão. - E é agora a minha
casa. Falas pouco mas sabes o que dizes. E podes dizer-me
onde estou? Como chego ao Reino da Rosa?
Mais uma vez, não houve resposta. Porém, bastava olhar
em volta para saber onde estava. Estava à porta de uma
cabana de madeira com um pequeno jardim no meio de um
bosque no cimo de uma colina. O céu sobre tudo aquilo era
um céu azul com duas nuvens brancas. Um céu como o outro,
que ele conhecia. Ou seria o mesmo? Aquela cabana, com
aquele lago, aquele poço, aquele céu e aquela paisagem
poderia estar no cimo de uma montanha do mundo dele. Até
aí, também não havia nada de extraordinário.
Por um lado, isso tranquilizava-o. Por outro,
inquietava-o. Podia não ter chegado ao Outro Lado, mas a
Lado Nenhum. Não havia vizinhos ou sinal de vida. Não
passava ninguém. Dali, ele podia ver uma pequena estrada de
terra ao fundo do jardim, mas também estava deserta.
Porém, ele já detectara uma diferença, e grande. Havia
tanto oxigénio que não era preciso aspirar o ar, ele
entrava e saía dos Pulmões sem se dar por nada. E a energia
redobrava. Sentia-se renovado, limpo, cheio de força, como
se tivesse acabado de acordar. Mas de que lhe serviria
isso?
211

Viu as horas no seu relógio de pulso. Eram quatro e


doze. Mas os dois ponteiros oscilavam como se não tivessem
a certeza. Entretanto, amanhecia, e um Sol redondo subia no
ar. Logo, ali não podiam ser quatro e meia da madrugada.
Talvez precisasse de outro relógio com as horas dali.
Ouviu então o ruído de cascos de cavalos e ficou
atento. O ruído aumentava e, pouco depois, viu passar na
estrada estreita de terra ao fim do jardim um coche puxado
por quatro cavalos brancos. Ia a grande velocidade, seguido
por duas fadas que riam e lançavam pós luminosos,
provocando pequenas explosões coloridas no ar.
Ora aí estava algo de extraordinário, o que o fez
acreditar que tinha chegado realmente ao Outro Lado. A
carruagem dourada levantou uma grossa onda de poeira, e
quando ela se dissipou, estava um gato junto à portinhola
da entrada para o jardim. Era muito maior do que um gato
normal e, vendo melhor, não era um gato normal. Trazia uma
jaqueta vermelha com botões dourados e uns calções em cetim
castanho seguros por um cinto largo de couro com uma grande
fivela dourada.
Para um gato, estava muito bem vestido. Caminhava de
pé, como as pessoas, usando apenas as duas patas de trás.
As outras duas seguravam o par de botas que trazia aos
ombros, como se fossem mãos e não patas. Não era, pois, um
gato como é um gato, mas um gato das histórias. O Gato das
Botas, talvez.
- Procuro um sapateiro de fadas e duendes - disse ele a
olhar em volta. - Não é aqui?
William limitou-se a encolher os ombros. Que sabia ele?
- Ia jurar que era aqui mesmo - continuou o Gato. - O
problema é que as coisas, por aqui, estão sempre a mudar.
Um homem pode sair de casa de manhã e não a encontrar no
mesmo sítio quando regressa.
O Gato reparou na sombra de William. Pisou-a, sem
querer, e recuou imediatamente.
- Ei lá! Quem é esse? - perguntou.
212

William olhou em volta, à procura de alguém.


- Aqui - disse o Gato das Botas a apontar para o chão.
- É maior do que tu, e, às vezes, é mais pequeno.
- Ah! É apenas a minha sombra. Faz tudo o que eu faço,
é obediente.
- Uma sombra - repetiu o Gato. - Sempre quis ver uma. É
feita de quê?
- Sendo uma sombra, acho que é feita de sombra -
respondeu William.
- Ah! E a sombra, por sua vez, é feita de quê?
- De nada, acho eu.
- Ah! É por isso que não está lá nada quando lhe
tocamos. Nem se consegue agarrar. E anda sempre contigo?
- Às vezes não a vejo, mas acho que sim.
- Sempre, sempre? - insistiu o Gato.
- Sim. Sempre, sempre.
- E faz tudo o que tu fazes?
- Sim. Tudo.
O Gato passou a mão pelos bigodes, desconfiado.
- Tenho a impressão de que ela, há pouco, se mexeu
antes de ti. Talvez tu sejas apenas a pessoa dela e faças
tudo o que ela faz.
- Não te fies nisso - disse William a sorrir.
O Gato pousou as botas no chão e rodopiou à volta dele.
- Mas então tu és um Sombra. Vieste do outro lado. Como
chegaste até aqui?
- Sou um Grimm. O último. Acabei de chegar e também me
sinto estranho.
O Gato deu duas voltas em torno do rapaz, a examiná-lo
minuciosamente.
- Um Grimm! - disse por fim. - Tens a certeza de que
não estás a exagerar?
- Nem um bocadinho.
- Um Grimm! - repetiu o Gato, cada vez mais espantado.
Ao tempo que não se via por cá nenhum...
213
- E tu és o Gato das Botas... - arriscou William.
- O Gato sem Botas - rectificou o Gato. - Têm as solas
gastas e já não são o que eram. Agora são apenas umas botas
que me magoam as patas quando calco as pedras bicudas.
- Já te conhecia das histórias - disse William. - És
tal e qual.
- Sou quê?
- Tal e qual como apareces nos livros de histórias do
outro lado - disse William.
- Acredito. Mas não penses que as minhas botas andam
sete léguas de cada vez. Nem metade. Nem a terça parte. São
umas boas botas e avançam depressa, isso é verdade, mas as
histórias exageram. Sete léguas! Quem me dera!
Enquanto falava, o Gato das Botas reparou na inscrição
na porta da cabana.
- Casa do Grimm! - disse ele. - Ia jurar que havia aqui
um sapateiro de fadas. Seja como for, acho que vou
estender-me ao sol e esperar. Quando não conseguimos
encontrar uma coisa, é melhor esperar que ela nos encontre
a nós. Também, com as botas neste estado e as patas cheias
de bolhas, não posso ir muito longe. E tu? Também ficas por
casa?
- Não. Tenho de chegar depressa ao Reino da Rosa. Sabes
o caminho? É longe?
O Gato estendeu-se de costas na relva a apanhar os
primeiros raios de Sol.
- É no Reino do Ar, a oeste - disse. - Como estás no
Reino da Terra, a norte, terás de andar aí uns mil
quilómetros.
- Mil?
- Eu disse mil? Tens de dividir por dois. Por dez,
talvez. Ou mais. Na verdade, depende do caminho que tomares
e da tua velocidade.
- Porque exageras? - queixou-se William. - Dá mais
trabalho perceber-te.
- Se não exagerar, não consigo dar a ideia de como as
coisas são. E olha quem fala. Foi um Sombra como tu que
escreveu:
214

O tubarão era tão grande como uma casa de cinco


andares, e as suas mandíbulas tão gigantescas que podiam
tragar facilmente um comboio.
- Isso é do Pinóquio - disse William. - Já li.
- Pois. Esse também anda por aqui. Esse e os outros
todos - disse o Gato.
- Estou a ver... O Povo das Histórias. Tu também
existes numa história e estás aqui.
- Acho que não estás a exagerar. Estão cá todos -
concordou o Gato.
William coçou a cabeça.
- Sempre é verdade! As histórias ganharam vida. Aqui. E
não é um sonho, acho eu. É realidade! Outra realidade.
- Não sabias, ainda? Ninguém te explicou nada?
- Não houve grande tempo. Mas já percebi que este é o
mundo onde a imaginação de alguns encontra a sua vida
própria. Como é possível? São apenas histórias. Palavras...
- E então? - replicou o Gato. - As palavras nasceram da
magia, são sons mágicos anteriores à linguagem, têm
poderes. Não foram elas que te guiaram na passagem: as
palavras esquecidas, as palavras de ida e volta, a Palavra
Misteriosa?
Também era verdade, concordou William.
- E o que acontece aqui? As histórias repetem-se?
Misturam-se? - quis ele saber.
- Às vezes - respondeu o Gato. - Outras vezes não. É
como na tua vida, no outro lado, acontece o que tem de
acontecer.
“Na tua vida, no outro lado”. Aí estavam algumas
palavras mágicas, pensou William. Só que, agora que estava
ali, o Outro Lado era esse lado. Bem dizia a Princesa que o
Outro Lado era sempre o outro lado.
- Custa a perceber - disse William a sentar-se na relva
ao lado do Gato.
E ele explicou-se melhor:
215

- Imagina que estás a ler um livro, uma história. Do


Gato das Botas, por exemplo. Ou do Pinóquio. Do Peter Pan.
Do Urso Puff. Da Casinha de Chocolate. Estás a ver?
- Sim.
- E a certa altura estás cansado e queres dormir e
pousas o livro sobre a mesinha-de-cabeceira.
- Sim.
- Ora, a história continua quando tu não estás a olhar
para ela. E mistura-se com as outras histórias e daí nascem
ainda mais histórias. Por exemplo, tu encontras o Gato das
Botas, que anda à procura de um sapateiro, e perguntas-lhe
onde fica o Reino da Rosa. É uma história que está a
começar. E faz parte da outra história que te trouxe aqui e
também da história que me trouxe aqui. Mais adiante eu
encontro o sapateiro e tu encontras outro alguém e as
histórias vão-se misturando. No entanto, se vires bem, tudo
é uma história só.
William levantou-se, a espreguiçar-se como se fosse um
gato, e respirou profundamente, sorvendo uma boa golfada
daquele ar lavado e puro que o revigorava. Depois
perguntou:
- O Reino da Rosa é longe?
- É longe, mas podes lá chegar a pé, mesmo com as tuas
botas esquisitas.
- São umas sapatilhas “Ali Star” - disse William. -
Achas que me levam lá?
216

29

O GATO E O CORVO

O Reino da Rosa! - repetiu o Gato das Botas, a alisar


os bigodes. - Estão a acontecer coisas por lá. A noite,
vêem-se as luzinhas que sobem no ar.
- O que é isso?
- Criaturas que se apagam. Energia que se recolhe.
- E morrem?
O Gato sorriu e deixou à mostra os seus dentes
impecavelmente brancos.
- Não é bem assim. Por isso, não usamos essa palavra.
Somos criaturas elementais e quando deixamos de ser
contados e nos apagamos, voltamos a ser o que realmente
somos: terra, fogo, ar, agua. E andamos por aí, nos rios,
no vento, nas nuvens, nos campos. Talvez sejamos água que
corre e que sente que é água, ou vento que sopra e sente
que é vento, ou uma planta que nasce e que sente que é
planta, ou uma chama que arde e sente que é chama. Até que
alguém do vosso lado descobre um livro esquecido no fundo
de um caixote de uma velha cave e lê a história à mulher,
que a lê ao filho, que a conta a um amigo, que a conta a
outro amigo. As histórias andam depressa. Voam.
217

- Eu sei - disse William.


- Ora, é assim que o que estava apagado volta a
aparecer.
- Estou a ver. Aqui, um velho está sempre pronto para
nascer.
- Sim, mas nota que não é só o tempo que nos apaga.
Muitas vezes, uma boa pancada na cabeça ou a espada de um
soldado da Rainha de Copas faz o mesmo. Ou um mau encontro
com um ogre, um ciclope ou um dragão alado. Ora, são coisas
dessas que estão a acontecer no Reino da Rosa, ou, à noite,
não subiriam tantas luzinhas no ar.
- Que coisas? O que está a acontecer? - perguntou
William, inquieto.
Mas o Gato não sabia ao certo.
- Certas coisas interessam-me pouco - disse. - Mas ouvi
dizer que a Rainha da Rosa entregou a chave da magia negra
aos Escuros sem consultar ninguém.
- Isso eu também sei. Foi por causa da filha -
interrompeu William, incapaz de se conter. - Foi para a
salvar... Por falar nisso, como vou para o Reino da Rosa?
Tenho lá um encontro a que não posso chegar atrasado.
O Gato das Botas olhou em volta à procura de qualquer
coisa.
- Não tens por aí um unicórnio branco? - perguntou.
-Eu?
- Sim, o Grimm deslocava-se num. Foi o que ouvi dizer.
E também devias ter um escudeiro. Como é que se esqueceram
de ti?
- Vim antes do tempo. Talvez não estivessem a contar
comigo tão cedo. Acho eu.
- Nesse caso, terás de caminhar. Emprestava-te as
minhas botas, mas estão sem solas.
- Obrigado. Talvez se me fizeres um mapa... Dizias que
estamos no Reino da Terra, a norte...
- Nem mais. Vou desenhar-te um mapa de hoje.
218

- De hoje?
- Sim. As coisas mudam. E os reinos também. Muitas
coisas mudam de sítio ou desaparecem, e no lugar delas
aparecem outras. Olha a casa do sapateiro!
O Gato quebrou a ponta de um ramo e desenhou com ele um
mapa na terra. Primeiro fez um círculo e dividiu-o em duas
partes.
- Esta é a parte escura - disse ele a apontar para uma
dessas metades. - E esta é a nossa parte, a que recebe luz
da estrela mais próxima. Como o nosso pequeno planeta não
tem rotação nem translação (sabes o que isso é?), a parte
negra é sempre negra, mesmo de dia, em que o Sol é negro.
Por sua vez, a noite é cerrada, impenetrável. Diz quem lá
esteve que pode cortar-se aquela escuridão com uma faca
afiada.
- Esta parte clara é a única que me interessa. Mais
exactamente, o Reino da Rosa.
- Já vais ver - disse o Gato a dividir a parte clara em
quatro partes: o Reino da Terra, a norte, o Reino da Água,
a leste, o Reino do Ar, a oeste, e o Reino do Fogo, a sul.
- Percebo - disse William. - E só no Reino do Ar é que
há fadas e silfos, e no Reino da Água ondinas e sereias,
por exemplo?
- Nem por isso. Todas as criaturas circulam por todo o
lado, embora os silfos e as sílfides se sintam melhor no
Reino do Ar, os gnomos e duendes, no Reino da Terra, e por
aí adiante. É natural, não é? Quanto a ti, estás aqui. E
tens de chegar aqui. Vês?
- Tenho de caminhar para oeste? Há lá dentro uma
bússola. É antiga mas deve funcionar.
- Ou podes seguir o Sol, que também vai para lá, ou
caminhar na direcção da Grande Pedra, que fica no centro
dos quatro reinos e é na mesma direcção, muito perto do
Reino da Rosa. De qualquer lado deste mundo se vê a Grande
Pedra. E quando não se vê, como agora, vêem-se as nuvens
coloridas por cima dela. Ali ao fundo, vê...
219

William olhou para mais longe e viu o pequeno rebanho


de nuvens baixas e coloridas que parecia ter sido pintado
por uma criança.
- Podes ver de quase todo o lado aquelas nuvens -
esclareceu o Gato. - Elas te guiarão, como as estrelas
guiam os marinheiros. Quanto ao caminho, aconselho-te uma
linha recta através de três florestas. A começar pela que
está mais próxima, já a seguir, a dos Quatro Ventos. É uma
floresta como outra qualquer, mas tem cuidado com as
chuvas; é a época delas. No teu lugar, levava um
guarda-chuva.
- Sim. Há muitos, aqui em casa.
- E leva também um casaco de pele de carneiro. Vais
precisar dele quando atravessares a Floresta dos Cem Acres.
- Também há um aqui em casa.
- Óptimo. Para atravessares a Floresta Azul, só
precisas de sorte. Também há disso aqui em casa?
William foi à cabana buscar a bússola, um guarda-chuva
e o casaco de pele de carneiro. Sorte, não a via, ou também
a traria. Mas o tempo estava tão bom que deixou ficar o
casaco e o guarda-chuva. A mochila com o livro, a chave, a
pedra e o coração do Primeiro já era carga suficiente para
quem tinha de atravessar três florestas.
- Bem, acho que é melhor ir andando - disse ele a
encarar o horizonte longínquo.
- Se encontrares o sapateiro, diz-lhe que o procuro -
lembrou o Gato das Botas, muito bem instalado numa rede de
dormir.
William pôs-se a caminho pela estrada de terra.
Sentia-se forte, pujante, senhor de uma nova energia e de
uma nova vida. E também angustiado por estar a caminhar
sozinho para o desconhecido. Se ao menos o Peter estivesse
com ele...
220

Por sua vez, Peter, no quarto, lia a história do


primeiro Grimm no computador portátil da mãe. Ia na parte
em que Marcus chegava ao Outro Lado pela primeira vez.
Parecia-lhe impossível que algo parecido com aquilo pudesse
estar a acontecer ao irmão. Ogres, dragões, unicórnios,
ciclopes, reinos encantados com castelos de marfim ou de
cristal. Só numa história como aquela tal poderia
acontecer. E, no entanto, era lá que William estava naquele
momento. E se estava lá, até podia ir, como o Grimm, a
cavalgar um unicórnio branco pelo meio de um bosque ou a
atravessar os céus no dorso de um dragão alado. Seria
possível?
Por um momento, desviou os olhos do computador e
reparou que havia outra vez um corvo pousado no peitoril da
janela, a olhar para o interior do quarto, como se
procurasse alguém. Peter pousou o computador e aproximou-se
da janela, mas o pássaro assustou-se e voou. Ficou pousado
sobre um fio telefónico, não muito longe.
Talvez por se sentir excluído daquela história, Peter
pôs-se a imaginar que aquele corvo negro não era apenas um
corvo negro. Além disso, lera no livro que alguns magos do
Outro Lado dominavam a técnica da transformação em aves.
Numa das janelas laterais do prédio em frente apareceu
o gordo Harry, um rapaz da mesma idade a quem ele e o irmão
tratavam por “O Imbecil”.
- Que pássaro é aquele? É feio como a noite - perguntou
Harry.
- É um perissodáctilo - respondeu Peter. - Não vês?
O corvo voltou a abrir as asas e voou para o parapeito
da janela do quarto de William. E aí ficou, a olhar para o
interior, a procura de qualquer coisa. Peter esticou o
pescoço para fora da janela e viu-o melhor, à luz da Lua.
Era um corvo como é um corvo, mas podia não ser apenas um
corvo. A imaginação dele estava a funcionar. Talvez ele já
estivesse, como a mãe e o irmão, mais dado à imaginação.
Pelo menos, já não acreditava apenas no que os seus olhos
viam.
221

Foi a correr para o quarto do irmão, entrou de rompante


e lá estava o corvo. Parado, à espera.
- Ele não está. Já foi para o Outro Lado - disse Peter.
E sentiu-se um pouco pateta por estar a falar com um
pássaro, embora tivesse a sensação de que ele o escutara e
o entendera.
Aproximou-se mais, sempre a falar para o corvo, mas ele
voltou a fugir.
- Espera aí. Não tenhas medo - disse Peter.
O corvo deu duas voltas no ar antes de pousar sobre o
muro que protegia o pequeno relvado em volta do prédio.
Talvez não o tivesse entendido tão bem, afinal. Ou talvez
fosse apenas um corvo.
Foi então que soou um tiro.
Alguém disparara uma carga de chumbos sobre o corvo,
que foi atingido numa asa e tombou para o relvado, no
rés-do-chão, depois de ter tentado abrir as asas para voar.
Harry, na janela do primeiro andar do prédio em frente,
segurava ainda a espingarda de chumbos que o pai usava na
caça.
- Assassino! Anormal! Não te chega ser imbecil?
- Devias agradecer-me - disse Harry. - Os corvos
arrancam os olhos a rapazes mariquinhas.
- Talvez só os arranquem a imbecis, atrasados e
anormais, como tu.
Abriram-se algumas janelas nos dois prédios e ainda
noutros das redondezas. Era gente que acordara com o
disparo e tentava saber o que se passava. Harry fechou a
janela e desapareceu. Peter fez o mesmo, não fossem pensar
que tinha sido ele a disparar, e as luzes nas janelas da
vizinhança, uma a uma, também se apagaram ao fim de algum
tempo.
Então Peter saltou para o relvado do rés-do-chão,
apesar de estar proibido pela mãe de o fazer, já que o
coronel reformado que lá vivia não gostava que lhe pisassem
a relva. Mas o coronel estava de férias e tinha a casa
fechada.
222

O corvo arrastava a asa direita, incapaz de voar, e,


desta vez, permitiu a aproximação do rapaz.
- Não tenhas medo. Vou tratar de ti - disse ele a abrir
a asa ferida do corvo. - Se procuravas o meu irmão, fica a
saber que ele partiu esta noite para o Outro Lado. E agora
vamos tratar da tua ferida. Espera aqui.
Peter trepou pela parede, apoiado nas reentrâncias, até
ao primeiro andar (desde pequeno que fazia aquilo) e foi
procurar desinfectantes e algodão.
A mãe ouviu os passos dele quando passou no corredor
dos quartos, vindo do quarto de banho.
- Peter! Willy!
- Sou eu, mãe, o Peter. Fui à casa de banho.
- Está tudo bem?
- Sim.
- Não ouviste um tiro ou coisa assim?
- Não.
- Então vai dormir, Peter, vai dormir.
223

30

A FLORESTA DOS QUATRO VENTOS

William avançava há algum tempo pela Floresta dos


Quatro Ventos.
Havia sítios inóspitos, de terra seca e vegetação
rasteira onde o Sol lhe esturricava a cabeça, e outros de
vegetação tão alta e cerrada que a escuridão era quase
total. Tanto pisava uma terra vermelha e ressequida como
pisava um fofo tapete de trevos. As coisas mudavam
rapidamente, por ali. Mesmo o céu mudava de cor, conforme a
paisagem. Era como se nunca se estivesse em lugar nenhum,
já que tudo mudava constantemente.
E havia o vento, é claro. Melhor, os quatro ventos.
Quando um deles lhe soprava pelas costas, William avançava
a grande velocidade, quase sem tocar com os pés no chão,
mas quando um outro soprava na direcção contrária, ele
tinha de se agarrar a qualquer coisa para não ser empurrado
para trás e desfazer o caminho que já estava feito. E
também havia os ventos laterais, que o levavam de um lado a
outro sem o deixarem avançar. Às vezes, os quatro ventos
juntavam-se e erguiam-no, a dois, três metros do chão, e
ele flutuava no ar, como um barco sem leme no meio de uma
tempestade.
225

Porém, como a paisagem continuava a mudar, ele


convenceu-se de que estava a avançar. Na sua caminhada, viu
um corvo empoleirado num ramo a comer um queijo redondo
como uma lua. E também viu passar por ele o Coelho Branco,
com um belo colete de lã. Ia muito apressado, sempre a
olhar para um relógio de bolso que estava preso ao colete
por uma corrente.
William acenou-lhe e gritou “Ei! Ei!” sem grande
convicção, mas o Coelho Branco ia demasiado apressado para
ouvir fosse o que fosse.
No ar, bem alto, passou a voar um rapaz com um fato
verde e um gorro na cabeça que lhe pareceu o Peter Pan, o
rapaz voador. Seria possível? Era ali que ele existia
realmente? Se também andavam por ali o Coelho Branco da
“Alice no País das Maravilhas”, o corvo da fábula e o Gato
das Botas...
O Povo das Histórias. Era assim que o Grimm chamava às
criaturas daquele lado. Mas as histórias e as suas
personagens misturavam-se de um modo inesperado. E ele
também estava no centro dessa confusão, que devia ser outro
nome para a vida daquele lado.
Também passou por dois castelos, que ladeou
cuidadosamente. Tinha sido avisado pelo Gato das Botas para
os evitar. Dissera ele que eram governados por criaturas
que andavam ao sabor dos ventos e que estavam sempre a
mudar de direcção e de opinião. Num momento pensavam uma
coisa e no seguinte pensavam o contrário. Chamavam-lhes
“Cabeças de Vento”.
Aliás, ele não queria encontrar ninguém que pudesse
atrapalhar a sua caminhada. E continuou a avançar, mas foi
ficando cansado, apesar do oxigénio muito puro e da energia
sempre renovada. Ao atravessar um bosque de vegetação
cerrada em que se fez noite, e negra, em pleno dia, deixou-
se guiar por uma luzinha que viu ao longe. À medida que se
aproximava, chegavam ao nariz dele os mais deliciosos
aromas: chocolate acabado de cozer, açúcar mentolado,
geleia de framboesa. O nariz guiou-o até uma pequena cabana
226

de chocolate. Saía luz pelas janelas e, pela chaminé, um


fumo que cheirava a açúcar caramelizado.
Uma velha vestida de negro, de nariz adunco, abriu a
porta feita de rebuçado.
- Ora, viva! - disse ela. - Andas perdido?
William também a reconheceu dos livros de histórias.
Era uma bruxa. E quem mais poderia viver numa casinha feita
de chocolate para atrair as crianças?
- Não, não - disse ele sem parar de caminhar. - Vou a
caminho do Reino da Rosa. Vou bem, ou não vou?
- Vais, mas ainda tens muito caminho à tua frente -
disse ela a falar cada vez mais alto. - Devias fazer uma
pausa para uma guloseima. Olha que a mesa da minha casa é
de massa de amêndoa com pedacinhos de nougat, as cadeiras
são de açúcar caramelizado e têm um delicioso recheio de
creme de avelãs. É tudo de comer. Até o poço é de melaço!
Podes entrar e comer o que quiseres.
- Não, obrigado. Já conheço essa história. E não posso
perder tempo, já vou atrasado - disse ele a apressar o
passo. E, num instante, desapareceu dali.
- Espera! - gritou a bruxa com uma voz estridente que o
arrepiou.
William correu sem olhar para trás, enquanto a bruxa
resmungava e vociferava. E assim saiu do bosque cerrado e
chegou a um desfiladeiro de vegetação rasteira onde
brilhava um Sol radioso.
- A bruxa da casinha de chocolate! - murmurou ele, a
tentar perceber onde estava.
Ali, as coisas organizavam-se com a lógica dos sonhos,
não da realidade que ele conhecia. E, no entanto, era tudo
real. A bruxa, a casinha de chocolate, o Coelho Branco, o
Peter Pan, o Gato das Botas. Era como estar acordado dentro
de um sonho. Ou de um livro. Um livro de histórias com
todos os outros livros de histórias dentro.
227

“E se, por outro lado, tudo isto não passar de um sonho


estranho?”, pensou ele. Uma rajada de vento lateral
empurrou-o contra o bico de uma rocha e ele arranhou um
braço. Doeu-lhe de um modo real. Ainda assim, continuou a
pensar que podia estar a sonhar que tinha sido lançado
contra o bico de uma rocha e arranhara um braço. Enquanto
sonhamos, não sabemos que estamos a sonhar. Por isso, só
quando ele acordasse haveria de saber que aquilo era uma
espécie de sonho. Mas, então, porque não acordava? Seria
porque já estava acordado?
Foi mais ou menos por essa altura que começaram as tais
chuvas de que lhe falara o Gato das Botas. De repente,
havia sobre a cabeça dele uma nuvem de morangos que
rodopiavam no ar. Até que pararam de rodopiar e caíram
sobre a terra com violência. Estava a chover morangos.
“Estou a sonhar”, pensou ele a abrigar-se sob a copa de
uma árvore. Como poderia não estar a sonhar se estava a
chover... morangos? Depois, pensou que talvez aqueles
ventos caprichosos arrancassem os morangos do sítio onde
eles estavam e os levassem pelo ar até se cruzarem com
outro vento que os fazia cair.
Como gostava de morangos, William aproveitou para comer
alguns, primeiro a medo, e depois com vontade, quando
percebeu que eram morangos como os que ele conhecia.
Melhores, muito mais doces e sumarentos. Ou não fossem
morangos do céu.
Mais adiante, porém, choveram limões vermelhos e maçãs
azuis. Pelos vistos, ali, os frutos tinham a cor que eles
queriam ter. Foram as chuvas pesadas que o fizeram
refugiar-se numa caverna cavada na rocha. O que valia era
que as chuvas duravam pouco. Logo chegava outro vento que
empurrava a nuvem de coisas para longe.
“Afinal, devia ter trazido um dos guarda-chuvas que
estavam na cabana”, pensou William. Mas já do outro lado se
esquecia sempre dele em casa.
Ao longo do seu caminho, William teve de defrontar
várias chuvas inesperadas. A mais inesperada de todas,
porém, foi uma chuva de peixe miúdo que se abateu sobre a
228

cabeça dele com violência. Era uma chuva batida pelo vento,
ou antes, trazida por ele. O rapaz abrigou-se na
reentrância de uma rocha, mas não escapou aos primeiros
peixes, que o deixaram num estado lastimável.
- Que horror! Não posso aparecer assim à Princesa -
vociferou.
A chuva de peixe era uma verdadeira tempestade, que
durou algum tempo. Foi preciso esperar com paciência que
ela passasse. William lavou-se depois num regato, mais
adiante, o melhor que pôde, mas a roupa continuava a
tresandar a peixe. Subiu então a uma colina para se
certificar de que continuava a aproximar-se da Grande Pedra
e prosseguiu na sua direcção. Ao atravessar um desfiladeiro
coberto de pedras, desejou que o vento o elevasse no ar,
mas aqueles ventos não obedeciam aos desejos de ninguém e,
nessa altura, eram brisas suaves e refrescantes, bem
comportadas, que lhe acariciavam a pele e os cabelos. Até
que um dos ventos passou a correr no céu a arrastar uma
nuvem castanha. O que iria chover? Se chovia morangos e
peixes, podia chover mais o quê? Baleias, escaravelhos...
William estava num descampado pedregoso e não tinha
onde se refugiar, só podia apressar-se. Foi o que fez, e
avançou mais depressa entre os montes de pedras.
Era um sítio estranho, aquele. Embora só houvesse
pedras por ali, ouvia vozes, rumores, conversas, sussurros
e gritos abalados, como se estivesse a caminhar no meio de
uma multidão.
O rapaz parou por um instante, ficou à escuta e ouviu
então claramente uma voz que dizia:
- Sai de cima, és pesado!
william lembrou-se da pedra que trazia no bolso das
calças. Ela falava, embora com uma voz diferente.
-És tu? - perguntou.
- São elas - respondeu a pedra. - Não querias ouvir
pedras a falar?
229

William olhou para o chão. Tinha os pés em cima de uma


pedra redonda. Teria sido ela?
- Vais ficar todo o dia em cima de mim? - voltou a voz.
Era ela, confirmou William quando saiu de cima da pedra
redonda.
- Obrigada. Tu pesas! - disse ela.
Mas aquela não era a única pedra que falava. Muitas
gemiam quando ele as calcava sem querer, outras conversavam
animadamente e algumas cantarolavam as suas cantigas de
pedras.
- Leva-me contigo - disse uma pedra bicuda, pequenina,
que estava muito próxima.
- Leva-me a mim - disse outra. - Posso ajudar-te.
Pedras falantes. Não era uma novidade, de facto. Ele
próprio trazia uma no bolso, embora fosse pouco faladora.
Talvez porque elas preferissem falar umas com as outras.
- Estás a ouvir isto? - perguntou ele.
E a pedra, no bolso, respondeu:
- Se estou! Quando quiseres livrar-te de mim, pousa-me
aqui. É a minha terra.
- Talvez possa trocar-te por uma que saiba guiar-me e
responda quando eu lhe faço perguntas. É nessas alturas que
eu mais gostava de ouvir uma pedra a falar.
- Disparate. Muito falo eu - disse a pedra.
- Ainda não me ajudaste, não me orientaste.
- Para quê? Vais muito bem. Continua. Já te disse que
só falamos quando temos de falar. Ou achas que por trazeres
uma pedra que fala no bolso estás dispensado de fazer pela
tua própria vida?
William calou-se. As pedras em volta também. E foi
então que a nuvem castanha sobre a cabeça dele se desfez e
choveram grossos pingos de mel.
Ele abrigou-se e esperou, mais uma vez, que passasse a
chuva. Mel era melhor que peixe, mas também o deixara
insuportavelmente peganhento.
230

Mais adiante, lavou-se num regato, mas continuava a


cheirar a morangos, peixe e mel. Uma mistura muito
estranha, e enjoativa.
O Sol brilhava esplendidamente, mas o ar arrefecera de
repente e, mais adiante, começou a nevar. Neve! Milhares de
floquinhos que rodopiavam no ar e caíam sobre ele sem
cessar. Ao fim de algum tempo, começou a ficar enregelado.
Lembrou-se então que deveria ter trazido o casaco de
pele de carneiro. Talvez Wilhelm Grimm tivesse feito também
aquele percurso e o usasse quando por ali passou, montado
no seu unicórnio branco, e bem acompanhado pelo seu
escudeiro, que deveria orientá-lo.
Isso, sim, era vida. Ele tinha apenas uma pedra que
falava quando lhe apetecia.
231

31

O URSO PUFF

Neve! À volta de William, tudo era agora branco e


gelado.
Cada vez mais enregelado, ele sacudiu a neve que se
acumulara atrás das orelhas. Bem, pelo menos ali só caía do
céu o que era costume cair, pensou ele, para se animar.
Também os ventos tinham cessado e o ar, embora frio,
estava parado, o que o levou a pensar que já tinha passado
a Floresta dos Quatro Ventos. Se assim fosse, estava agora
na Floresta dos Cem Acres. Por isso, não se espantou quando
viu caminhar na sua direcção um pequeno urso sem miolo
nenhum a quem chamavam Joanica. Joanica-Puff.
O ursinho, que tinha a aparência de um ursinho de
pelúcia, trazia um cachecol de lã enrolado no pescoço e
caminhava de cabeça baixa, como se procurasse qualquer
coisa no chão. De vez em quando, parava de caminhar e
dizia: “Esta é boa. Muito boa.” Depois, continuava. Só
parou quando estava a um metro do rapaz e quase calcou a
sua sombra, que se estendera ao comprido na neve.
Aí, levantou a cabeça e deu por William, que sorria
para ele, muito amistosamente, e disse-lhe:
233

- Bom dia!
- Esta é boa. Muito boa - repetiu o Urso Puff a olhar
para ele, muito espantado. - És amigo do Cristóvão Robin?
És tão parecido com ele! Só que um bocadinho maior. E
também um bocadinho mais malcheiroso.
- Não sou amigo do Cristóvão Robin, embora o conheça
das histórias. E a ti também. Chamo-me William e dizem que
sou um Grimm. Sabes o que é isso?
- Já soube, acho eu, mas já não me lembro. Estou a
tentar lembrar-me de outra coisa e não consigo lembrar-me
dessa. Talvez quando puder pensar nisso com mais calma no
meu Recanto Pensante, que é o sítio onde tenho grandes
pensamentos acerca de nada. E de tudo também. Talvez então
me lembre disso que tu és. Como é que disseste?
- Grimm! Um Grimm! - disse William a sorrir, deliciado.
Conhecia tão bem aquele urso sem miolo nenhum que lhe
parecia muito natural estar ali a falar com ele. Não havia
mais ninguém à vista, mas não se admirava se visse aparecer
ali também o Coelho, o Mocho, o Tigre, o Inhon e o
Cristóvão Robin.
Quanto ao Urso Puff, estava a ver ali mais alguém.
- Quem é esse que está contigo? - perguntou ele a
contornar cuidadosamente a sombra do rapaz, para não a
pisar.
- É um amigo que nunca me larga - respondeu William.
- São irmãos?
- Mais do que irmãos, acho eu. É uma parte de mim. Lá,
de onde eu venho, um rapaz é um rapaz e a sua sombra.
- Onde fica isso?
- É longe. E também é perto. Por falar nisso, podes
dizer-me onde estou?
- Em cima de um montinho de neve - respondeu Puff.
- Pois - concordou William -, mas estou de passagem.
Vou para o Reino da Rosa. Será por aqui?
- Fica na Floresta dos Cem Acres?
- Não sei. Acabo de chegar. Mas acho que é mais longe.
No Reino do Ar.
234

- Ah! Estás a chegar. Mas ainda tens de atravessar esta


floresta e a que está a seguir, a Floresta Azul.
- Já sei. Sabes porque é azul?
- Porque é desse género de floresta. As coisas são como
são e raramente são como não são.
- Pois - disse William.
Não podia estar mais de acordo. Aliás, se as coisas não
fossem como eram, não estaria ali, um pouco mais adiante,
uma bela macieira carregada de maçãs maduras e vermelhas.
Era estranho que estivesse ali, naquele sítio, com aquele
tempo, como se tivesse acabado de ser ali plantada, ou
desenhada por alguém mais distraído. Aliás, William era
capaz de jurar que não havia ali nada quando ele olhara
para lá da última vez, e só podia ser assim porque a
macieira estava intacta, enquanto todas as árvores daquela
floresta, incluindo os pinheiros mais altos, estavam
cobertas de neve.
Ele acabara de ter uma sensação de abatimento e sabia o
que isso queria dizer. Estava com fome. Por isso, caminhou
para lá, colheu uma maçã de um ramo baixo e rolou-a na
palma da mão.
- Pelo menos são vermelhas, como no outro lado - disse.
E trincou a maçã a medo antes de sorrir, muito agradado. -
São verdadeiras e sabem a maçã. És servido?
- Obrigado, mas os ursos não gostam de maçãs. Dava-me
jeito que houvesse por aqui uma árvore de potes de mel.
William comeu outra maçã e recolheu mais umas tantas.
- Já que ainda estou longe, é melhor levar provisões -
disse ele.
- Levar o quê? - perguntou o urso a arrebitar as
orelhas.
- Coisas para comer.
- Ah! Pensei que tinhas dito “provisões”. Talvez eu
também pudesse ceder-te um pote de mel, mas é disso que
ando à procura. Acho que me esqueci do sítio onde o
guardei. Ou então ainda não me lembrei. Até fiz uma canção
acerca disso. Queres ouvir?
William tinha a boca cheia, não respondeu logo, e o
urso Pôs-se a cantar:
235

Um pote cheio até cima,


Um pote de mel não voa,
Nem anda por aí a toa.
É muito, muito boa.

- Que tal?
- Tens razão. Um pote de mel não voa. Tem de estar no
chão. Ou no armário onde o guardaste.
- Isso sei eu, mas não consigo encontrá-lo. Ia
perguntar ao Porquito se ele se lembrava de eu lhe ter dito
onde o guardei. Quando acordo, a primeira coisa que me vem
à cabeça é uma pergunta: “O que há para o pequeno-almoço?”
E a ti?
William coçou a cabeça, a pensar.
- Dada a situação, penso nas coisas extraordinárias e
excitantes que podem acontecer-me - respondeu por fim.
- É a mesma coisa - disse Puff.
E voltou a cantar:

Um pote cheio até cima,


Um pote de mel não voa,
Nem anda por aí a toa.
É muito, muito boa.

- É uma cantiga bonita - disse William. - Mas diz-me: o


teu pote não é daqueles com asas, pois não?
- É. Mas não são asas dessas - respondeu Puff.
- Dessas quais?
- Dessas que voam. Servem para podermos pegar nele e
fazer escorrer os últimos bocadinhos do fundo. São desse
género de asas.
- Nesse caso, sem asas nem pernas, é quase certo que
esse pote de mel não vá longe.
Puff suspirou profundamente. Estava a ficar cada vez
mais abatido, isto é, com mais fome.
- Isso queria eu. Mas o mais parecido que há com o meu
pequeno-almoço és tu. Pelo menos, pelo cheiro. És de comer?
- perguntou o urso a lamber os beiços.
236

- Nem pensar! Sou um rapaz que também gosta de mel. Se


cheiro a ele, é porque atravessei uma chuva de pingos de
mel na Floresta dos Quatro Ventos.
- Que belo sítio, esse - disse o Urso Puff a empinar a
barriga. - Aqui temos de o apanhar e guardar dentro de
potes que nunca sabemos onde estão. Ou chove chuva ou chove
neve. É esse género de floresta. Por falar nisso, queres
ouvir a minha “Serenata à Neve”, especialmente concebida
para ser cantada ao ar livre?
- Adorava. Mas não tenho muito tempo.
O Urso Puff já ia lançado e não conseguiu parar. E
cantou:

Quanto mais
NEVA - olarilo-lái,
Mais tempo
LEVA - olarilo-lái,
Mais tempo
LEVA - olarilo-lái,
A
Nevar.

E de lés a
LÉS - olarilo-lái,
Sintos os meus
PÉS ~ olarilo-lái,
sinto os meus
PÉS - olarilo-lái,
A
Gelar.

- Sabes, não é tanto os pés, é as orelhas - disse


William.
- Posso emprestar-te o meu cachecol. É comprido e
largo, a de certeza para o teu pescoço e as tuas orelhas.
- Obrigado - agradeceu William. - Também precisas dele.
Vives aqui e eu estou de passagem. Talvez encontre a seguir
um deserto escaldante ou uma bela praia cheia de Sol, ou
então um jardim com milhares de rosas de todas as cores.
237

Achas que vou bem para o Reino da Rosa?


Puff olhou em volta, como se procurasse alguém que o
pudesse ajudar. Mas não havia ninguém à vista.
- O Reino da Rosa! - repetiu ele a ganhar tempo. -
Teria talvez de pensar muito nisso para saber. E, como
sabes, estou ocupado a pensar naquilo... Talvez o Porquito
saiba. Ou o Coelho. O Coelho é muito esperto e tem muitos
livros e sabe muitas coisas. É por isso que ele nunca
compreende nada. Vens comigo?
- Gostava muito, acredita. Mas suponho que não tenho
tempo.
Nesse momento, passou por eles o Coelho Branco, muito
apressado.
- Boa tarde! Com licença! Com licença! - disse ele
sempre a avançar, muito apressado, sempre a olhar para o
relógio de bolso preso ao colete por uma corrente.
Num instante, desapareceu.
William também consultou o seu relógio. O ponteiro das
horas rodava vertiginosamente em volta do mostrador, como
se estivesse envolvido numa corrida, enquanto o dos minutos
tremia sem sair do sítio.
- Está maluco! O meu relógio está maluco - disse. - Que
horas serão?
- Depende de para quem seja, não é? - explicou o Urso
Puff, muito pacientemente. - Para mim, são onze menos
cinco. O meu relógio da sala parou e há dias e dias que,
para mim, são sempre onze menos cinco. Só espero não chegar
fora de horas a casa do Porquito. Às vezes ele diz:
“Chegaste mesmo a horas para um bocadinho de alguma coisa.”
É a isso que se chama “chegar a horas”. E se ele não diz
nada, é porque é preciso esperar que as nossas horas
acertem. É por isso que nós, quando marcamos um encontro,
nunca dizemos: “Aparece às cinco horas no velho carvalho.”
É muito difícil que sejam cinco horas para os dois ao mesmo
tempo. Percebes?
238

- Perfeitamente - disse William. - Acho que também são


horas de eu me pôr a caminho outra vez. Adeus! Gostei de te
conhecer pessoalmente. Dá cumprimentos meus ao Porquito, ao
Coelho, ao Mocho, ao Inhon, ao Tigre, ao Kanga, ao
Cristóvão Robin... E a quem mais? Bem, dá cumprimentos a
todos.
William acenou carinhosamente e avançou. Quando olhou
para trás, já o Urso Puff ia longe, a cantarolar:

Quanto mais
NEVA - olarilo-lái,
Mais tempo
LEVA - olarilo-lái,
Mais tempo
LEVA - olarilo-lái,
A
Nevar.

O rapaz trincou outra maçã e seguiu o seu caminho, na


direcção das nuvens coloridas sobre a Grande Pedra. E só
soube que tinha deixado a Floresta dos Cem Acres quando o
tempo mudou.
A neve foi abrandando e, aos poucos, o ar tornou-se
quente e a neve dos caminhos deu lugar a pastos verdes e
floridos. As orelhas dele agradeceram a dádiva. E o resto
do corpo também. Mas na sua cabeça ecoavam ainda os restos
da canção de Puff:

Quanto mais
NEVA - olarilo-lái,
Mais tempo
LEVA - olarilo-lái,
Mais tempo
LEVA - olarilo-lái,
A
Nevar.
239

32

UMA DOR COR-DE-ROSA

Como estava sempre a mudar de estação, William teve a


sensação de que já passara muito tempo. E se passara muito
tempo, era quase certo que não ia chegar a tempo ao Reino
da Rosa.
Ia a pensar nisto quando entrou na Floresta Azul. A
erva era azul e os pinheiros altos também. Como se
confundiam com o céu azul, nem se percebia bem onde
acabavam. As flores que cresciam na beira do caminho também
eram todas de diferentes tons de azul. A terra era
cor-de-terra e as nuvens eram brancas e os troncos e os
ramos das árvores eram castanhos. O resto era tudo de
muitos tons de azul. Era como se alguém tivesse despejado
por ali um grande balde de tinta. Azul, evidentemente.
William pensava nos perigos que aquele género de
floresta lhe poderia causar, todos azuis, certamente, e da
sorte de que precisaria para os evitar, quando a pedra
falou.
- Cuidado. Atrás de ti.
William voltou-se de repente e apanhou um susto que,
por pouco, não o fez desfalecer de vez.
A poucos metros dele, estava um ciclope. Tinha cinco
vezes a sua altura e apenas um olho no centro da testa.
241

Era medonho. Pelo menos não era azul, mas cor-de-lama,


o que não admirava. Estava coberto de lama seca. Era
cinzento, embora fosse castanho.
- É um ciclope - disse a pedra, mais baixinho do que
era habitual, talvez para não ser ouvida pelo ciclope, que
olhava William com a curiosidade de um cientista e a tensão
de um caçador.
- Bem me parecia - disse William. - E o que faço?
A pedra não costumava dar-lhe instruções. Mas uma vez
não são vezes.
- Foge! - disse ela. - Ou diz-lhe quem és.
- Sou eu! - disse William. - O Grimm.
O ciclope estava a emitir sons estranhos e não deu por
nada.
Desesperado, William lembrou-se de uma história em que
um rapaz lançava uma pedra com força contra o único olho do
ciclope, cegando-o.
Era uma hipótese, talvez a única de que dispunha. E só
tinha uns poucos segundos para a aplicar.
Meteu a mão ao bolso e tirou de lá a pedra. O ciclope
continuava a olhá-lo, um pouco confuso.
Então William apertou a pedra na mão direita e
disse-lhe:
- Vai direitinha ao olho dele. Ouviste?
Não houve resposta. Mas o ciclope fez menção de avançar
e ele lançou a pedra com todas as forças que conseguiu
reunir.
Ia com força, a pedra, mas passou a mais de um metro de
distância da cabeça do ciclope. Era uma pedra que falava de
vez em quando, mas não acertava onde devia acertar. Ou
então só acertava de vez em quando.
O ciclope rugiu tenebrosamente e avançou para William,
que se voltou para fugir. Tinha sido esse, aliás, o
primeiro conselho da pedra. Mas já era tarde e o ciclope
segurou o rapaz pela mochila apenas com dois dedos grossos
da sua pata e ergueu-o no ar.
- Onde é que ias? - perguntou ele com um vozeirão que
fazia tremer o ar em volta.
242

E caminhou na direcção de casa a cantar muito alto uma


velha canção que os ciclopes cantavam sempre que apanhavam
uma presa.
- Sou um Grimm! - gritou William com todas as forças
que tinha.
Mas o ciclope ia a cantar muito alto e não podia
ouvi-lo.
Ali em cima, a espernear no ar, William sentia o cheiro
tremendo do ciclope, uma mistura de cavalariça com estrume
do campo.
Se aquilo era um sonho, agora é que lhe dava jeito
acordar, pensou.
Queria acreditar que estava num sonho e apenas morreria
como num sonho, acordando do outro lado, na sua cama. Mas
como podia ele acordar do outro lado se estava ali?
O ciclope entrou a cantarolar numa cabana tosca feita
com troncos de árvores e coberta com colmo.
- Sou um Grimm! - voltou William a gritar.
O ciclope ainda não tinha acabado a sua canção e não
conseguia ouvi-lo.
Dentro da cabana fumegava uma lareira e a William
ocorreu que o ciclope estivesse a preparar uma refeição.
Via naquela meia dúzia de gravetos que ardiam um inferno
que iria consumi-lo. Por isso, alegrou-se quando o ciclope
se dirigiu a uma velha arca de madeira e fez correr os
ferros que a trancavam. Só então parou de cantar.
- A tua sorte é eu já ter comido um carneiro ao almoço
- disse ele a lançar o rapaz pelo ar.
- Sou um Grimm! - gritou ele antes de aterrar ao lado
de dois carneiros e de um porco selvagem que estavam dentro
da caixa.
E depois também: “Sou um Grimm! Sou um Grimm!”, gritou
ele quando a tampa se fechou com força e ficou no meio do
escuro. Mal se podia mexer e, além disso, pouco ar ali
entrava. Isso e o cheiro dos carneiros e do porco iam
chegar para o apagar. Além disso, sabia que aquilo era uma
espécie de frigorífico do ciclope, e também sabia o que
243

acontecia às coisas que estão no frigorífico quando alguém


perto dele tem fome. E um monstro daqueles não devia passar
muito tempo sem comer.
William teve tempo de pensar no que lhe aconteceria se
se apagasse ali. Também seria reduzido a uma daquelas
luzinhas esverdeadas que se recolhiam e subiam ao céu? E,
nesse caso, regressaria, tal como as outras criaturas
elementais, à terra, ao ar, ao fogo, à água? E a sua
sombra? Se ele se apagasse, a sua sombra ia para onde?
Estava nisto quando a tampa se abriu e a cabeça do
ciclope se inclinou para ele. O seu hálito fedorento
atingiu em cheio o nariz do rapaz, que o tapou com as mãos
e suspendeu a respiração.
- És um quê? - perguntou ele.
O rosto de William foi salpicado por centenas de
perdigotos malcheirosos, mas nem isso o impediu de abrir a
boca e gritar:
- Sou um Grimm! Um Grimm!
O ciclope segurou-o no ar outra vez, à altura do olho.
- Um goblin? - perguntou, a fazê-lo rodar para o ver
melhor. - Sou alérgico a goblins das montanhas. Uma vez
comi um e ia morrendo.
- Um Grimm! Um Grimm!
O ciclope abriu a boca e deixou à mostra os horríveis
dentes amarelecidos pelo tempo e pelo mau uso. Depois,
examinou-o ainda mais de perto com o seu único olho muito
arregalado.
- Ah! - exclamou ele então, verdadeiramente espantado.
Levou depois o rapaz pelo ar, com todo o cuidado de que um
ciclope é capaz, e pousou-o sobre o tronco onde costumava
sentar-se quando estava à lareira.
O Sol, que entrava pela janela sempre aberta, desenhou
perfeitamente a sombra do rapaz no chão da cabana. E o
ciclope olhou-a com o seu único olho com espanto e
reverência.
- É verdade. És um Sombra. E se estás aqui... Um Grimm!
Nunca tinha visto nenhum. E pensar que poderia ter-te
comido. E até podia ter gostado; já estou enjoado de
carneiro.
244

- Eu fartei-me de gritar: “Sou um Grimm! Sou um Grimm!”


- disse William a saltar do tronco para o chão.
- Desculpa. Tenho só um olho e vejo bem, tenho duas
orelhas e ouço mal.
- Está tudo bem - disse William enquanto se livrava dos
pêlos de carneiro.
- És então filho do Grande Zê? - perguntou o ciclope.
- Quem é esse?
- Não sabes quem é? Tu, que és filho dele?
A William ocorreu que só poderia ser o Primeiro Antes
do Primeiro. O Primeiro Zimmer, o que iniciou a amizade com
as criaturas e com elas assinou o Tratado de Amizade.
- Somos da mesma família - explicou William -, mas não
sou filho dele, serei talvez tetraneto ou coisa assim...
- Estás a brincar. Todos os Grimm são filhos do Grande
Zê. E se não fosse o Grande Zê e os filhos dele, um ou
outro Grimm, como tu, não havia ciclopes como eu. Não é
preciso ter dois olhos para perceber isso.
- Obrigado - disse William. - Também estou aqui para
fazer o que tenho a fazer, embora ainda não saiba ao certo
o que é. Só sei que tenho de chegar depressa ao Reino da
Rosa.
- Ui. Talvez já não se chame assim - disse o ciclope. -
Foi ocupado pela Rainha de Copas. Não param de subir luzes
no céu, para aqueles lados.
- Já me falaram disso. E se for como no livro, onde
está a Rainha de Copas há sempre muitas cabeças cortadas.
- É a guerra outra vez - disse o ciclope. - O Grimm
demorou dois anos dos vossos a unificar os reinos. Então
acenderam-se quatro luzes sagradas em frente à Grande
Pedra. E agora uma delas foi apagada. Mas também é para
isso que aqui estás.
William tinha as suas dúvidas.
- Bem, eu vim mais cedo por causa da Princesa Ariteia
do Reino da Rosa - disse.
E então algo de extraordinário aconteceu. Quando ele
pronunciou o nome da Princesa, sentiu uma dor, melhor, uma
245
dorzinha a chegar ao seu peito. Chamava-lhe assim,
“dorzinha”, porque não sabia o que era aquela espécie de
comichão borbulhante. Movia-se no seu peito, como uma bolha
de ar, e não era incomodativa, apenas dava sinal de si.
Quando estava sobre o coração, doía um pouco mais. Ou seria
um pouco menos? Não era negra, muito ou apenas um pouco
negra, como são todas as dores, as que doem mesmo. Se as
dores tinham cor, aquela era cor-de-rosa: suave, delicada,
vagarosa, quase imperceptível.
Era uma dorzinha agradável, feita talvez de uma mistura
de medo, desordem, aflição e euforia. E como era dor, doía.
Mas não se ficava por aí. William começou a sentir uma
espécie de afrontamento e soube que algo lhe estava a subir
pela garganta acima. Abriu a boca e saiu dela uma bolha de
ar que cresceu diante dos seus olhos até ficar mais ou
menos do tamanho de uma abóbora.
Era uma bolha cor-de-rosa. Cresceu ainda mais um pouco
enquanto subia no ar e ficou ali, um metro acima da cabeça
dele, como uma nuvem parada no céu. Quando ele se movia,
ela acompanhava-o. Como se já não lhe bastasse ter uma
sombra a segui-lo pelo chão, tinha agora uma bolha
cor-de-rosa a segui-lo pelo ar.
William, incomodado, deu uma corrida para se livrar da
nuvem e ela acompanhou-o. Irritado, deu um salto no ar e
rebentou a bolha com a ponta do dedo, mas logo apareceu
outra no seu lugar, mais parecida com uma nuvem.
Espetou-lhe um dedo e ela continuou lá, espalhou-a com os
braços, partiu-a em muitos bocados e ela voltou a reunir-se
sobre a cabeça dele.
- Isto não me larga? - queixou-se.
O ciclope sorria, divertido, a olhar para ele.
- Estás apaixonado. Do outro lado essas coisas passam
despercebidas. Aqui não.
William corou imediatamente. E um rapaz corado com uma
nuvem cor-de-rosa por cima não podia negar que estava
apaixonado.
- Não dei por nada - disse ele a olhar a nuvem. - Tens
a certeza de que estas bolhas nunca se enganam?
246

- Nunca se enganam - confirmou o ciclope com um ar


grave; o amor era um assunto grave entre os ciclopes.
- Estavas então a dizer que vieste por causa da
Princesa Ariteia do Reino da Rosa... - disse ele.
- Temos um encontro, e se eu me atrasar, ela fica
transformada numa estátua de pedra. Ainda estou longe do
Reino da Rosa? Disseram-me que bastava atravessar esta
floresta.
- É verdade, mas acabas de entrar na zona mais
perigosa. Olha para mim. E há ogres e dragões alados e
outras criaturas ainda mais esfomeadas do que eu. Tão
esfomeadas que não te dão tempo de dizeres quem és. Eu
mesmo te levo lá, ao Reino da Rosa.
- Como?
- Às costas. Serei o teu escudeiro. Devias ter um. E um
unicórnio branco.
- Eu sei. Vim antes do tempo.
- Pois. Estás com pressa. Sendo assim, que tal um banho
de lama?
- Eu?
- Tu. Os dragões azuis são alérgicos à lama destes
charcos. É isso que me protege deles. Ciclope é um dos
pratos preferidos deles. E tu és, de certeza, um bom
aperitivo. Logo, convinha que também tomasses um banho.
William olhou o charco de lama imunda e malcheirosa que
havia à porta da cabana.
- É assim tão mau? - perguntou o ciclope a empurrá-lo
delicadamente com um único dedo.
William rebolou na lama. E voltou a pensar em Peter. Se
o irmão o visse a rebolar na lama enquanto falava com um
ciclope...
- Enquanto te lavas, vou comer um carneiro - disse ele
a caminhar na direcção da cabana. - É para a viagem. É
verdade que isto tudo me abriu o apetite.
247

33

ESTOU CERTO OU ESTOU CERTO?

Peter acabara de tratar, com grande competência, das


feridas do corvo. Tinha arrancado os chumbos da asa com uma
pinça e desinfectado as feridas.
- Estás melhor? - perguntou sem estar à espera de
resposta.
O corvo abriu as asas e tentou voar, mas voltou a
aterrar na relva.
- Descansa! - disse Peter. - Podes ficar aqui até
poderes voar. Não está ninguém em casa do coronel, ninguém
te incomoda, aqui.
Não achava nada estranho estar ali a falar com um corvo
que não lhe respondia. Preparou um recanto confortável com
duas peças de roupa que estavam a secar e aí pousou o
corvo. A vizinha do terceiro andar apareceu à janela e ele
deslizou para o escuro para não ser visto. Foi então que
viu rodopiar sobre a cabeça dele aquela luzinha esverdeada
que já conhecia do jantar no Clube dos Amigos das Criaturas
e que diziam ser a alma ou o espírito do Primeiro Depois do
Primeiro.
Ficou a pairar à altura da janela do quarto do irmão e
depois entrou por ela e desapareceu da vista dele. Teria
escolhido aquele sítio para repousar das suas canseiras de
249

espírito investigador e activo? Ou, tal como o corvo,


também precisava de falar com William?
Peter achou que era melhor ir ver o que se passava e
aconchegou o corvo no seu ninho de lã.
- Eu já volto. Descansa e logo voas.
Pouco depois, Peter entrava disparado no quarto do
irmão. Entrou de rompante e esbarrou com qualquer coisa que
estava no meio do caminho, embora os olhos dele nada
tivessem visto.
Soltou logo um grito abafado e aflitivo, convencido de
que tinha esbarrado com o espírito do Primeiro Depois do
Primeiro. Mas não foi o último a queixar-se.
- Ai! - gemeu alguém dolorosamente. - É sempre isto!
Peter conhecia aquela voz roufenha e arrastada. Tinha
chocado outra vez com o Duende-Resolvedor. Era só ele que
ali faltava... Mas o que estava ele ali a fazer?
- És tu? - perguntou para o vazio.
- Sou - gemeu o duende. - Quem mais magoas tu sempre
que vês?
- Sempre que não vejo, queres tu dizer.
Apesar disso, a inimizade deles já não era a mesma.
- Onde é que estás? - perguntou Peter a acariciar o
joelho dorido.
- Estou à tua frente.
- Não é boa ideia. Põe-te sempre ao meu lado esquerdo.
E qual é o problema agora?
- O teu irmão? Onde está o teu irmão? Preciso de falar
com ele...
Peter respirou fundo. Estava ofegante e agitado.
- Já foi - disse ele.
- Para onde?
- Para o Outro Lado. Eu mesmo o ajudei a passar. O
duende levou as mãos à cabeça.
- Não pode ser. E como passou ele?
250

- Pela velha mina, como passou o primeiro Grimm da


primeira vez. Eu sei como foi. Li o livro que a fada está a
soprar à minha mãe e que conta a verdadeira história do
primeiro Grimm. “O Primeiro Conto de Fadas”.
- Nem tudo é verdade, rapaz. Podias tê-lo enganado. Ele
sabia a Palavra Misteriosa?
- Sim. Não faltou nada.
- As palavras esquecidas?
- Sim.
- Estava com muito medo?
- Não sei.
O Resolvedor deu duas voltas sem sair do sítio.
- Bem, ele é um rapaz esperto, talvez tenha ido direito
para casa. Mas não está nada preparado... E não tinha
ninguém à espera. E, embora ele seja venerado do Outro
Lado, também vai encontrar muitos perigos.
- Foi por causa de uma rosa que estava a murchar -
explicou Peter.
- Eu conheço essa rosa - disse o duende.
Peter espreitou pela janela, à procura da luzinha
esverdeada.
- E agora? - perguntou.
- Bem, agora está feito. É mais uma grande história que
começa. O teu irmão tem coragem, carácter, ousadia. Temos
Grimm! Que o Grande Zê o guie. E que a nossa gente o
encontre depressa, esteja ele onde estiver. Vou mandar a
notícia para o Outro Lado.
Peter sentou-se pesadamente na borda da cama, com um ar
apreensivo.
- Talvez esteja agora no meio de fadas, ogres, bruxas,
ciclopes, monstros marinhos... Ou com o Capitão Gancho, a
Rainha de Copas...
- Não te preocupes. Ele é um Grimm, e um Grimm, no
Outro Lado, é tratado como um deus. O pior não é isso.
- Não?
251

- Não - disse o duende a acariciar a barriga. - Tens


alguma coisa de comer? Estou a sentir um abatimento.
Açúcar. Preciso de alguma coisa com açúcar.
- Há tarte de cereja no frigorífico...
- Serve. É com creme ou com geleia?
Vieram até à cozinha, pé ante pé, o Resolvedor ao lado
esquerdo de Peter, para se evitarem colisões. E Peter
estendeu um pires com uma fatia de tarte.
- Podes largar, agora - disse o Duende-Resolvedor a
segurar o pires, que ficou suspenso no ar.
Era esquisito, aquilo. E a tarte dentro do pires
desapareceu num abrir e fechar de olhos. E depois o pires
veio pelo ar até ficar pousado na mesa da cozinha.
- Isto é giro - disse Peter. - Mas o que é o pior,
afinal?
- Nem imaginas - respondeu o Resolvedor com a boca
cheia.
- O quê?
- Parece que o teu irmão levou uma chave falsa.
Trocaram-na durante o jantar no Clube dos Amigos das
Criaturas.
- Chhhee. Como é que sabes?
O Resolvedor acabou de engolir a tarte. Depois disse:
- Estive a investigar no Clube dos Amigos das Criaturas
e ouvi uma conversa entre o homem que a trocou, o traidor
e...
- Quem? Quem é o traidor?
- O Mestre de Cerimónias. Era ele o homem que eu
procurava. Entregou a chave verdadeira a outros dois homens
que partiram num carro preto guiado por um outro homem. Foi
por um triz que não consegui enfiar-me lá dentro. Então
abri a porta de um carro que estava estacionado e
persegui-os.
- Bonito! - disse Peter. - Um carro sem condutor que se
visse.
- É contra todas as nossas regras, isso é verdade; só
que era uma emergência, e também era de noite. Mas deixei o
carro no sítio onde o encontrei. Quanto à tarte, acho que
aceito mais uma fatia. Está mesmo boa.
Peter partiu outra fatia de tarte.
252

- Era então isso o que o espírito do Primeiro queria


dizer-nos durante o jantar - disse. - Houve até uma altura
em que atravessou o Potter de lado a lado. Ninguém
percebeu.
- Também foi ele que me guiou e me levou a ouvir a tal
conversa - confessou o Resolvedor.
- E agora está cá em casa - interrompeu Peter, muito
agitado. - Vi-o a entrar por esta janela.
- E eu vi-o a sair. Quando entrei no quarto, ele saiu
pela janela. Talvez me tenha seguido... Ou talvez queira
continuar a ajudar-nos. Ele sabe mais do que ninguém sobre
este caso. Estes vossos espíritos vêem e sabem muitas
coisas que nos escapam. Mas arrepiam-me. Os meus pêlos
ficam todos eriçados. E olha que tenho muitos.
- E eu? E eu? - interveio Peter.
Voltaram para o quarto depois de o duende ter comido
três boas fatias de tarte e ainda um iogurte de frutos
silvestres e um donut de chocolate. No corredor, o duende
derrubou a jarra de vidro com flores de lavanda. A mãe de
Peter acordou e veio ver o que se passava.
- Peter! Tu hoje não dormes?
- Fui comer qualquer coisa. Estava com fome - respondeu
o rapaz a pôr a jarra no sítio. - Mas a jarra salvou-se,
descansa.
Foi então que Elisabeth Zimmer soltou um gritinho agudo
e se encolheu toda.
- O que foi? - perguntou o filho.
- Alguém me deu um beliscão! No rabo!
- Quem? - perguntou Peter. - Vês aqui alguém?
- Mas eu senti, eu senti! - repetiu a mãe, à espera de
uma explicação.
Mas não havia explicação para semelhante coisa.
- O teu irmão não está por aí escondido? - perguntou ela
a olhar em volta, muito desconfiada. - Não estão a gozar
comigo?
- O William está a dormir, mãe. E não é invisível, como
os fendes da tua história.
253

- Pois... Os duendes da minha história... Às vezes,


parece-me que andam por aqui.
Peter foi andando para o quarto.
- Mãe, ultimamente têm acontecido coisas muito
estranhas.
- Isto é muito estranho, de facto - concordou ela. - Eu
senti. E o tiro? Há bocado pareceu-me ouvir um tiro lá
fora. Não ouviste um tiro?
- Não. Vai descansar, vai descansar.
Elisabeth Zimmer regressou ao quarto a apalpar a zona
beliscada.
Peter também entrou no quarto, desta vez muito
cuidadosamente.
- Estou encostado à janela - disse o Resolvedor quando
o viu chegar. - Já sei que não devia ter feito aquilo. Não
sei o que me deu, é contra todas as nossas regras.
Desculpa. E chega-te aqui com cuidado.
Peter foi até à janela, ainda aborrecido.
- O que foi agora?
- Ele está aqui - disse o duende.
- O espírito do Primeiro Depois do Primeiro?
- Esse todo. Está ali na rua, por cima do candeeiro.
Vês?
- Vejo. O que quererá ele daqui?
O Resolvedor fez uma pausa. Depois disse:
- O mesmo que eu, suponho. Avisar o teu irmão que a
chave foi trocada.
- E como é que lhe dizemos que William já partiu com a
chave falsa? Como se fala para um espírito? Falamos e ele
ouve? - perguntou Peter, a ficar muito agitado.
O Duende-Resolvedor acabou de lamber os restos de tarte
dos dedos.
- Não sei - disse. - Não percebo nada disso. Mas aquele
espírito vê e sabe coisas que mais ninguém sabe. Talvez ele
já saiba isso e queira agora ajudar-nos a resolver o
problema.
254

- Achas?
- Acho.
- E qual é o problema da chave ter sido trocada? – quis
saber Peter.
- Nem imaginas. É o nosso mundo que está em perigo se a
terceira chave chegar às mãos da Criança Terrível.
Durante uns instantes, breves, Peter pensou e tentou
avaliar a gravidade do que acabara de ouvir. Não se
apercebia, talvez, do tamanho do problema, mas se o Outro
Lado estava em perigo, o irmão, que tinha acabado de lá
chegar, também estava.
Por essa altura, a luz esverdeada aproximou-se da
janela e rodopiou no ar, diante deles.
- Está a tentar atrair a nossa atenção - disse o
Resolvedor. - Estou certo ou estou certo?
- Estás certo.
- Talvez queira que o sigamos. Estou certo ou estou
certo?
- Estás certo. Este espírito nunca descansa?
255

34

NO REINO DA ROSA

No Outro Lado, o dia avançava para o seu fim, e William


interrogou-se sobre o tempo que tinha passado desde que
chegara. Não ali, mas no outro lado da vida, onde estava em
falta.
Oculto no interior de uma cesta de verga que o ciclope
levava às costas, William soube que tinham chegado ao Reino
do Ar, ou não haveria tantas criaturas aladas a sobrevoar a
cabeça deles: silfos, sílfides e fadas, muitas fadas, de
todos os tamanhos. Mal se distinguiam porque voavam muito
alto, para além das nuvens. Ordens da Rainha de Copas, a
nova governante do reino, que proibira os voos baixos das
criaturas do ar. Dizia que lhe causavam vertigens e dores
de cabeça.
Quando o perfume de rosas chegou ao nariz de William,
ele soube também que tinha chegado onde queria chegar.
Junto aos portões de ferro que guardavam os muitos jardins
do palácio da bainha da Rosa, o ciclope pousou o saco e
abriu o cordel.
- Já sei - disse o rapaz. - Chegámos. Basta cheirar o
ar.
- Vês aquele castelo no meio do jardim? - perguntou o
ciclope. - É lá que poderás encontrar essa princesa.
257

- Terei chegado a tempo? - interrogou-se William, com o


coração aos saltos.
O castelo, cuja grande torre central parecia uma
sobreposição de pétalas de rosas, estava guardado por
centenas de soldados armados com lanças e espadas
reluzentes. Eram achatados e compridos, já que também eram
cartas de jogar. Copas, na sua maioria, mas também havia
alguns ouros, espadas e paus. Também havia outros que
estavam apenas armados com pincéis e latas de tinta e que
pintavam de vermelho as rosas brancas e amarelas. Nem as
rosas cor-de-rosa escapavam. Também eram ordens da Rainha
de Copas. Dissera ela: “Se não estiverem todas pintadas até
amanhã de manhã, vão rolar cabeças de cartas.”
Um grupo de soldados da Rainha de Copas, mais
exactamente dois ternos e três duques comandados pelo
Valete de Espadas, avançou para eles.
- Adeus - disse o ciclope a estender a William um dedo
da sua enorme pata enlameada. - Gostei de te conhecer.
- Fica comigo. Não conheço mais ninguém.
- Os ciclopes não são bem vistos por aqui. Vou andando.
Antes de se afastar, o ciclope olhou o Valete de
Espadas que comandava o grupo de soldados e disse-lhe, com
a sua voz de trovão:
- Ele é um Grimm! Sabiam?
O Valete parou de repente.
- Um Grimm?
William mudou de posição. Ficou contra a luz do Sol e a
sua sombra espalhou-se pelo chão. Nessa altura, tinha mais
de dois metros.
- Um Grimm! - repetiu o Valete de Espadas a recuar,
confuso e assustado.
- Preciso de entrar. Tenho um encontro na torre mais
alta do palácio - disse William com a sua voz mais grossa.
Porém, teve o cuidado de não pronunciar o nome da
Princesa ou apareceria outra vez aquela nuvem cor-de-rosa
sobre a cabeça dele. Acabara de se livrar da outra, talvez
258

por vir escondido no saco, e sentia-se melhor assim.


- Ora aí está um problema - disse o Valete de Espadas.
- Ninguém pode entrar. Ordens da Rainha de Copas.
Não admirava. Havia quem dissesse que a Rainha, certa
vez conseguira dar mil setecentas e doze ordens num só dia.
“Tudo em ordem” era o lema do reino. E só dando ordens se
conseguia manter tudo em ordem. Embora, dessa vez, o
excesso de ordens tenha causado uma grande desordem.
- Nem um Grimm? - perguntou William.
- Acho que também ninguém quer dizer isso - respondeu o
Valete.
- Ele não é ninguém - protestou o ciclope com o seu
vozeirão de ciclope. - É um Grimm! O filho do Grande Zê, a
quem todos vocês devem a vossa vida de cartas. Se não fosse
ele e outros como ele, vocês não passavam de um baralho de
cartas. Ouviram?
Alguns soldados não sabiam o que era um Grimm, mas
todos conheciam o Grande Zê e baixaram a cabeça e
curvaram-se reverentemente, como sempre faziam quando esse
nome era pronunciado.
- Prendam-no! Quer dizer, apanhem-no! - gritou o Valete
de Copas.
As cartas correram para William e cercaram-no
imediatamente.
- Não é ele - gritou o Valete, furioso. - O outro, o
maldito ciclope.
O ciclope acenou a Wiliam. Estava de partida, que
remédio.
- Se precisares de mim, sabes onde estou - disse. -
Agora faz o que tens a fazer. Boa sorte!
Depois, desapareceu num instante. Era incrível, a sua
rapidez, apesar de ser tão grande e tão pesado.
- Vão atrás dele! Quer dizer, sigam-no! - ordenou o
Valete de Espadas.
Depois, voltou-se para William e examinou-o longamente
com o olhar.
259

- Um Grimm! - disse. - Tem-se falado disso, mas não era


tão cedo que te esperávamos.
- Vim antes do tempo. É urgente. Por isso, preciso de
entrar...
O Valete interrompeu-o.
- Já te disse que tenho ordens da Rainha de Copas para
não deixar passar ninguém. Quer dizer, seja quem for.
- Eu não sou uma criatura.
- Eu sei, mas se a Rainha de Copas quisesse que tu
passasses, teria dito “excepto o Grimm”.
- Não sabia que eu viria tão cedo, talvez.
- Seja como for, não posso deixar de cumprir a ordem
que tenho, por amor à minha cabeça. Ninguém pode
desobedecer a uma ordem da Rainha e ficar com a cabeça no
sítio. Por isso, terás de esperar pela contra-ordem.
- Não posso. Preciso de entrar já! Tenho um encontro
com a filha da Rainha da Rosa, a Princesa...
A dor-de-rosa doeu, aquela dorzinha doce do costume,
mas a bolha cor-de-rosa não chegou a sair.
Por sua vez, o Valete de Copas fez sinal a um grupo de
cartas que passavam e também ele gritou a sua ordem:
- Avisem a Rainha que está aqui um Grimm!
Imediatamente! Quer dizer, depressa!
Depois, voltou-se para William e sorriu maliciosamente:
- Não tenhas pressa, que ela não pode fugir. Vês aquela
pérgula no meio do roseiral?
- Vejo.
- Lá está a princesa que procuras. À tua espera. Daqui
a cem anos ainda está no mesmo sítio, à tua espera. Podes
atrasar-te à vontade.
O que quereria dizer aquilo? William não teve dúvidas.
- A Princesa está transformada em pedra? - perguntou.
- Estás certo. Quer dizer, tens razão.
- Quero vê-la - disse William a avançar, enlouquecido
por uma dor negra, negra, aguda, dilacerante.
260
- À vontade - respondeu o Valete a franquear a
passagem. - Duvido é que ela te veja a ti. Ou verá?
O rapaz correu como um louco entre as duas sentinelas
do portão na direcção do roseiral. À medida que avançava,
ia ficando tonto com o perfume. Era tão intenso que lhe
queimava as narinas.
Quando chegou à pérgula, viu que lá estavam duas
estátuas de pedra, no meio das rosas que cresciam à sua
volta. Até essas rosas estavam a ser pintadas de vermelho
pelo Sete de Copas, que se afastou quando viu William a
chegar, tão afogueado.
A primeira estátua de pedra era a Rainha da Rosa, e a
segunda, a adorável Princesa Ariteia.
- Não! - gritou William, angustiado.
Encostou o ouvido à pedra do peito da Princesa e
sentiu-lhe o coração, a bater no interior da pedra.
Horrorizado, acariciou--lhe o rosto e uma lágrima saiu dos
olhos da Princesa e também ela se transformou em pedra logo
a seguir.
- Ela chorou! Esta lágrima não estava aqui - disse ele.
- Eu também vi - disse o Sete de Copas a aproximar-se.
- Talvez queira dizer-te qualquer coisa e não pode.
- Mas então, ela vê, ouve e sente; só não pode
exprimir-se ou mexer-se. É isso?
- Está viva, se é isso que queres saber. Mas não lhe
serve de nada, pois não? Foi condenada a cem anos de sono
de pedra, como a mãe. Ordens da Rainha de Copas.
- E agora, como pode ela despertar? - quis saber
William. O Sete de Copas pousou a lata de tinta vermelha no
chão.
- Perguntas bem - disse. - Só quando houver ordem da
Rainha de Copas. Acho eu. Por falar nisso, posso continuar
a pintar?
- Espera!
William abraçou-se à princesa de pedra e ali mesmo
jurou que haveria de a livrar daquele sono de morte. Foi
então que ouviu uma voz calma e suave, que lhe pareceu
familiar:
- A culpa não foi tua.
261

O rapaz voltou-se e viu Fric, o Duende-das-Pedras que


conhecera no lado de lá. Fora a primeira criatura com quem
tinha falado.
- Ainda te lembras de mim? - perguntou o duende.
- Muito bem. És o Fric. Gosto de voltar a ver-te.
- Vim cumprir a promessa de ser teu escudeiro quando
viesses a este lado. Lembras-te?
William disse que sim com a cabeça.
- Pois aqui estou para te servir. A ti e à tua sombra.
Escolheram-me por já te ter conhecido no outro lado. Se não
tivesses chegado sem avisar...
- Eu sei. Diz-me antes o que estavas a dizer. Eu não
tive culpa de a Princesa ter sido transformada em pedra?
Fric também olhou a Princesa muito tristemente. Depois
disse:
- Não foi por teres chegado atrasado ao encontro que
ela ficou assim. A Rainha de Copas descobriu que a Rainha
da Rosa dera a chave que estava à sua guarda à Criança
Terrível, ocupou o Reino da Rosa e conseguiu a expulsão
dela do Conselho e esta condenação para toda a família
real. Só escapou a outra princesa, que está prisioneira no
castelo da Criança Terrível.
- Essa Rainha de Copas... – “rosnou” William a dar uma
volta sobre si próprio. - Onde posso encontrá-la?
- No Quinto Reino, junto à Grande Pedra. É uma zona
neutra onde se trata da recolha de energia. É governado, à
vez, por cada um dos quatro monarcas. E agora é a vez
dela...
- Preciso de lhe falar - disse William. – Podes
levar-me a ela?
Fric olhou para o grupo de soldados que avançava com as
espadas e lanças em punho, comandados pelo Valete de
Espadas.
- Acho que ela também quer falar contigo. Ela e os
outros.
- Grimm! - gritou o Valete. - Tens de te apresentar ao
Conselho dos Reinos. Imediatamente! Quer dizer, depressa!
262

- Se é depressa, é melhor usares o teu próprio


transporte - disse Fric.
E depois, assobiou muito alto.
Um unicórnio branco chegou logo a seguir, no meio de
uma nuvem de pó. Estacou ao lado de William e acenou com a
cabeça várias vezes numa saudação calorosa.
- É teu - disse Fric. - Estaria lá em casa à tua espera
se tivesses chegado na altura prevista. Chama-se Uveve, que
na nossa língua quer dizer “o som do vento”.
William acariciou a crina de Uveve e passou a polpa dos
dedos pelo seu corno em espiral que os últimos raios de Sol
fizeram brilhar.
- Não sei montar - disse ele. - Tenho de aprender.
- Não precisas de aprender. Já sabes. És um Grimm, já
nasceste ensinado a montar um unicórnio.
- Não pode ser - disse o rapaz a subir para o dorso de
Uveve, onde se sentiu mais confortável e seguro do que
quando estava com os pés assentes na terra.
Era como se ele e Uveve fossem uma só criatura.
- Que tal? - perguntou Fric.
- Não pode ser, mas é verdade. Eu e ele somos um.
Que mais coisas saberia ele que ainda não sabia que
sabia fazer? E que triste era não se saber tudo o que se
sabia fazer.
Fric também subiu para o dorso do unicórnio e abraçou
William.
- Podes avançar - disse. - Uveve sabe o caminho,
qualquer caminho que tu desejes seguir.
- A Rainha deu ordens para o Grimm ser conduzido à
presença dela - vociferou o Valete de Espadas.
- A ordem da Rainha será cumprida - respondeu o duende.
- Fica descansado.
William tocou no pescoço de Uveve e ele avançou a toda
a velocidade e tornou-se parte do vento. Iam através de
vales, montanhas, desfiladeiros, florestas cerradas e
263

campos de flores. Atravessaram rios, subiram montes,


saltaram abismos.
“Como pode isto acontecer e ser real?”, pensou William.
E no entanto, era isso mesmo que estava a acontecer. E era
real. Ah, se o irmão o pudesse ver naquele momento...
264

35

ESPANTÁSTICO!

O Sol estava a desaparecer quando Uveve entrou no


Quinto Reino.
Havia uma luz baça, dourada e leve, que tornava tudo
irreal.
Uveve deteve-se e William e Fric desmontaram.
- A Grande Pedra! - disse o rapaz a olhar para cima.
Ali estava ela, finalmente! Era monumental, esmagadora,
imponente.
“Grande” era um bom adjectivo para ela, já que tinha o
tamanho de um prédio de cinco andares. Havia uma escadaria
de pequeninos degraus cavados no seu dorso e que conduziam
ao topo, onde havia uma abertura com alguns metros de
diâmetro, dentro dessa abertura, algures no interior da
pedra, algo fervia ou vibrava e libertava tufos de fumo
colorido que formavam aquelas nuvens que se viam ao longe.
Era também aí que ficavam as passagens dos
Duendes-das-Pedras, que andavam por ali nas suas funções,
mais exactamente de um lado para o Outro. Compridas filas
de duendes, e também de os e anões e outras criaturas
aparentadas, levavam pela escadaria as pedras azuis que
chegavam do Outro Lado, carregadas de energia, e eram
265

lançadas na Grande Pedra para aumentar o seu poder criador.


Mais abaixo, no sopé da Grande Pedra, havia também
pequenos grupos de criaturas enfraquecidas que se
arrastavam no chão. Algumas encostavam-se à Grande Pedra,
ou abraçavam-na desesperadamente, como se ela fosse a raiz
que lhes faltava.
- Quem são estes? - perguntou William.
- Mendigos de energia - respondeu Fric. - Criaturas que
deixaram de ser contadas e não se conformam com o
apagamento. Estão a tentar colher energia, tempo, mais
vida. Não adianta, mas enfim... Ali se apagam, sem remédio,
e transformam-se...
- Num rasto de energia que se recolhe e sobe no céu -
interrompeu William. - Isso já eu sei.
Mais adiante, estava montado um cenário grandioso para
a reunião extraordinária do Conselho dos Quatro Reinos, que
agora eram apenas três. Quem presidia era a Rainha de
Copas, que também acabara de descer do seu coche dourado e
caminhava apressadamente, com a sua saia vermelha de cetim,
muito rodada, a balançar. Era seguida pelo Rei de Copas,
que tentava acompanhar o seu passo miúdo e rápido. Um pouco
mais atrás ainda vinha o Valete de Copas, que transportava
a coroa da Rainha numa almofada de veludo carmesim.
Ela sentou-se, a arfar, no seu trono sumptuoso cavado
na Grande Pedra, todo forrado a veludo vermelho. O Rei
ficou de pé, ao seu lado, e o Valete de Copas também.
Diante do trono estavam as quatro chamas sagradas, que
agora eram só três. E, mais perto ainda, havia uma mesa
cheia de tartes de todos os tamanhos e sabores, embora
fossem todas vermelhas.
Na zona lateral à direita da Rainha estavam os Quatro
Magos dos Quatro Reinos, que agora eram só três, como os
reinos, em representação dos seus monarcas: um centauro
envolto por uma hera, que era o Mago do Reino da Terra, uma
salamandra, envolta numa língua de fogo, que era o Mago do
Reino do Fogo, e uma ondina dentro de uma concha aberta,
que era o Mago do Reino da Água. Era ao lado da ondina que
266

havia um lugar vazio, nue deveria ser ocupado pelo Mago do


Reino do Ar.
Na zona lateral à esquerda da Rainha estavam os
convidados entre os quais muitos reis e rainhas dos muitos
reinos que havia dentro de cada reino. Ao fundo, atrás de
uma cortina de soldados da Rainha de Copas, que também eram
cartas de jogar, achatadas e compridas, estavam as
criaturas anónimas de todos os reinos, e que também
quiseram saudar o novo Grimm.
Uma escolta de seis soldados armados com lanças
acompanhou William e Fric até eles chegarem à presença da
Rainha.
- Não tenhas medo de enfrentar a Rainha de Copas.
Lembra-te que és um Grimm! - segredou Fric ao ouvido do
rapaz, não fosse ele intimidar-se com tanto aparato.
Quando William entrou no recinto, foi saudado
ruidosamente pelas criaturas, que romperam em gritos e
vivas, acompanhados por cânticos exaltantes. E ele sentiu
pela primeira vez o que representava ser um Grimm.
Até que, a certa altura, a Rainha se levantou do trono
e gritou:
- Silêncio! Já chega!
E todos se calaram de repente. Uma ordem da Rainha de
Copas era para se cumprir imediatamente, ou começavam a
rolar cabeças.
- Está na hora! - disse muito alto o Coelho Branco, que
era o mestre daquela cerimónia.
Era ele o único que usava um relógio. Por isso, se ele
dizia que estava na hora, era porque estava na hora.
A Rainha fez-lhe então um sinal e ele tocou a trombeta
que segurava numa das mãos; na outra tinha um rolo de
pergaminho, que desenrolou a seguir. E leu, em voz alta,
quase gritada:
- Ó Grimm, em nome da Rainha de Copas, que preside ao
Conselho, nós, as criaturas que aqui estamos, te saudamos e
te esejamos dois belos anos dos teus junto de nós. É uma
experiência difícil mas que resulta maravilhosa: foi isto
que disse o teu antecessor no dia da partida. Por isso, que
o Grande Zê te dê a força e a coragem de que precisas para
cumprires a tua missão.
267

O Grande Zê, que William conhecia como “O Primeiro


Antes do Primeiro”, era para eles como um deus, e os Grimm,
os filhos que ele enviava periodicamente para garantir a
sobrevivência das criaturas, divulgando as suas histórias.
Todos sabiam isso, mesmo a Rainha de Copas, mas a
verdade é que ela estava num dia mau.
- Sê bem-vindo, ó Grimm - disse ela. - Estamos honrados
e felizes com a tua presença...
- ... Embora tenhas chegado sem estarmos à espera -
continuou o Valete de Copas, que acabava as falas mais
compridas da Rainha, para ela não se fatigar demasiado.
William agradeceu com uma ligeira vénia e um sorriso.
E, pelo menos por enquanto, achou que era melhor não dizer
nada.
A Rainha serviu-se de um pedaço de tarte. Era gulosa,
além de pomposa e afectada. E embora estivesse rodeada de
corações vermelhos, tinha o dela bastante empedernido.
- Só é pena que tenhas chegado nesta altura tão
DELICATASTROPANTE e nos encontres tão TRISTIZES - disse ela
com a boca cheia.
- Delicatastropante? Tristizes? - murmurou William.
Fric aproximou-se mais dele e fez a tradução:
- “Delicatastropante” quer dizer que é uma situação
delicada, catastrófica e preocupante.
Talvez também para não se fatigar demasiado, a Rainha
tinha o hábito de juntar duas ou mais palavras numa só.
Essas palavras, pronunciava-as num tom mais elevado, para
que se soubesse que não se tratava de uma palavra mas de
duas; ou três, como era o caso.
Como a Rainha não disse mais nada, apenas se serviu de
mais um pedaço de tarte, William achou que era a sua vez de
falar. E disse:
- Agora que cheguei até aqui, acho que já sei qual é a
minha missão. E queria que soubessem que farei tudo o que
estiver ao meu alcance para a cumprir.
268

- Grimm! Grimm! Grimm! - gritou a multidão.


E voltaram os cânticos.
- Alto! Já chega! - ordenou a Rainha de Copas, que,
desta só deixou cantar as primeiras estrofes.
William aproveitou o silêncio repentino para dizer mais
qualquer coisa.
- Agradeço a todos. Vejo que têm os Grimm em grande
conta. E é por isso que ouso começar por fazer um pedido.
Um pedido não era uma ordem. Mesmo assim, a Rainha
parou de mastigar e aproximou-se dele, curiosa.
- Diz lá! - ordenou ela.
- Vejo que falta ali uma chama sagrada - disse William.
- Há guerras, reinos ocupados, desconfiança, divisão. Isto
é, os mandamentos gravados aqui, na Grande Pedra, pelo
primeiro Grimm, não estão a ser cumpridos.
O Coelho Branco começou a tossir muito alto, talvez a
sugerir a William que mudasse de assunto, já que a Rainha
de Copas começara a ficar com a cara inchada e muito
vermelha. Mas ele continuou.
- Ora, devo dizer que gostaria muito de ver quebrado o
feitiço que empedreceu a Princesa do Reino da Rosa e a sua
mãe e...
Houve muitos aplausos, talvez demasiados, e a Rainha de
Copas entrou em fúria.
- Silêncio! - gritou muito alto, com tanta força que os
soldados que estavam diante dela ergueram os escudos para
desviarem o vento.
- Este assunto é muito importante - completou o Valete
de Copas.
- Muito IMPORTANTÍSSIMO - acrescentou ainda o Rei.
- O pedido é recusado - voltou a gritar a Rainha.
O Valete de Copas ia continuar a frase mas ela fez-lhe
um sinal para ele se calar e continuou:
- A Rainha da Rosa quebrou todas as leis do Conselho.
Mentiu. É uma MENTEROSA. Percebes? É da Rosa e mente. O que
ela fez foi uma TRAIFAME que não tem PERDULPA.
269
- Uma traição infame que não tem perdão nem desculpa -
traduziu Fric.
- Um DESPAUTÉRIO, foi o que foi! - exclamou o Rei de
Copas.
O Rei de Copas ficava-se quase sempre por uma única
palavra, desde que fosse uma palavra rara e distinta,
dessas de que só um rei se lembraria.
- O que quer dizer “despautério”? - perguntou o Terno
de Ouros ao Duque de Espadas, que estava a seu lado na
guarda da Rainha.
- É uma palavra dos Sombras que quer dizer
“despautério” - respondeu ele.
- Despautério - repetiu o Terno de Ouros, a querer
avaliar o peso daquela palavra áspera e pesada que se
enrolava na sua língua.
William pediu a palavra, que lhe foi concedida.
- Foi uma MENTIRESTA - gritou ele para se fazer ouvir.
Por esta altura, havia um certo burburinho.
- O quê? - perguntou a Rainha.
- Uma mentira honesta. Ela queria salvar a filha e
pensou que tanto fazia a Criança Terrível ter uma ou duas
chaves. Além disso, foi um acto sem qualquer consequência.
Ou gravidade.
- Estou PERPLEXO - disse o Rei de Copas. E fez uma cara
de quem estava bastante perplexo.
- Não são precisas três chaves para abrir o cofre da
magia negra? - continuou William.
- São! - responderam muitas criaturas em coro.
- Silêncio! - gritou a Rainha mais uma vez.
Fez-se silêncio e ela continuou, dirigindo-se a
William.
- Vou responder à tua pergunta - disse.
E o Valete de Copas continuou:
- É diferente, ter duas chaves, porque não sabemos onde
está a terceira. Só se tivermos uma chave connosco
poderemos dormir descansados.
270

- Tem razão, Sua Majestade - retorquiu William. - Por


isso é e aqui estou antes do tempo. Venho oferecer-vos a
minha chave, já que tanta falta vos faz a outra. Acho que
isso merece que se quebre o feitiço que empedreceu a
Princesa e a Rainha da Rosa.
- Impossível - disse a Rainha.
- Muitíssimo impossível - confirmou o Rei.
William pôs-se a caminhar nervosamente de um lado para
o outro e o Valete de Copas pediu-lhe para parar ou ainda
ia fazer dores de cabeça à Rainha.
- Não compreendo - disse o rapaz. - Se ficarem com a
minha chave e a guardarem no cofre sagrado, já poderão
adormecer descansados todas as noites. E a culpa da Rainha
da Rosa desaparece.
- Isso é muitíssimo impossível - gritou a Rainha de
Copas.
E o Valete continuou:
- Terão de passar mil sóis, pelo menos. Acho eu. Ou
terá de desaparecer a razão da sua culpa. Aceitamos a tua
chave, se é esse o teu desejo, e também te agradecemos, mas
só há uma maneira de quebrar o feitiço: aquela chave ser
devolvida.
William retirou do peito a terceira chave da magia
negra e segurou-a numa mão fechada.
- Ainda assim - disse ele -, quero que fiquem com esta
chave enquanto a outra não for recuperada. Assim, já podem
dormir outra vez descansados.
A Rainha de Copas avançou para William, que abriu a
mão.
- É verdade que ma tentaram roubar e não conseguiram -
disse ele.
- Estou a ver - disse a Rainha.
- Eu também a estou a ver - disse o Rei de Copas, a
espreita por cima do ombro da Rainha.
- E eu - disse o Valete de Copas, a espreitar por cima
do ombro do Rei.
William sorriu.
- Podem tocar-lhe - disse. - É assim que ela se vê.
271

- Não é preciso. Estamos a vê-la - confirmou a Rainha.


O rapaz caiu em si.
- Estão a vê-la? - perguntou, espantado.
- Eu estou - disse a Rainha. - Tem a forma de um “W”.
- E eu - disse o Rei de Copas.
- E eu - disse o Valete de Copas.
- É uma CHALSA - gritou a Rainha. E repetiu, muito
alto: - É uma CHALSA.
- Uma chave falsa - explicou Fric.
- Eu sei, mas como pode ser falsa? - interrogava-se
William. - Também a vês?
- Vejo.
O rapaz pôs-se a pensar em voz alta.
- Não percebo como pode ser falsa. O meu irmão não a
via, nem os duendes, nem os do Clube dos Amigos das
Criaturas. Só eu. A menos que tenha sido trocada. Mas
quando? Como?
- Isto é ESPANTÁSTICO! - disse a Rainha.
- Espantoso e fantástico - explicou Fric.
272

36
JÁ ALGUMA VEZ CAMINHASTE NUM MUNDO DE TREVAS?

Era só isto que nos faltava - disse a Rainha de Copas,


que estava vermelha de raiva.
E o Valete de Copas continuou:
- Agora também não sabemos onde está a terceira chave,
embora seja evidente que vai a caminho das mãos da Criança
Terrível. Percebes agora a falta que nos faz a nossa chave?
E a culpa da Rainha da Rosa? Já para não falar no teu
caso...
- Não sei o que dizer - balbuciou William. - Quando
regressar, vou fazer tudo o que puder para a recuperar.
- Não há tempo - gritou a Rainha.
E o Valete continuou, também a gritar:
- Quando a Criança Terrível tiver também a tua chave,
vai começar uma guerra que ninguém pode evitar.
- Ele pode, se quiser - disse Fric, elevando a voz.
- Cala-te! - ordenou a Rainha.
E o Valete continuou:
- Os escudeiros não estão autorizados a falar.
273

Fric continuou, como se nada tivesse ouvido.


- Queria lembrar que o outro Grimm foi ao Escuro e
conseguiu o acordo de paz com a Criança Terrível e unificou
os reinos.
- Cala-te e ouve - gritou a Rainha.
E o Valete continuou:
- A Criança Terrível é a mesma. O Grimm não. Há Grimms
e Grimms, essa é que é essa.
Foi então que chegou o Sete de Ouros a correr, muito
afogueado. Segredou algo ao ouvido do Coelho Branco, que
segredou algo ao ouvido do Valete de Copas, que segredou
algo ao ouvido do Rei de Copas, que segredou algo ao ouvido
da Rainha.
Havia por esta altura um grande burburinho entre os
assistentes, e também entre os três magos presentes.
- Silêncio! - ordenou a Rainha aos berros. - Quem tiver
alguma coisa a dizer que dê um passo em frente e fique
calado.
Ninguém percebeu aquilo, logo, ninguém se mexeu. Se era
para estarem calados, não valia a pena dar nenhum passo em
frente. Mas fez-se um silêncio pesado e, durante algum
tempo, ninguém falou.
Por fim, a Rainha disse, num tom mais calmo:
- A Criança Terrível está no Castelo do Leste, perto da
fronteira, com todo o seu exército reunido. A guerra vai
começar.
Houve novo alvoroço e novo grito de “Silêncio!” da
Rainha, que já estava a ficar sem voz.
- Isto é horrível - disse ela. - AFLITIVIANTE!
- É aflitivo e angustiante - traduziu Fric.
- Pior - disse o Rei. - É EXCRUCIANTE!
O Terno de Ouros voltou a inclinar-se sobre o Duque de
Espadas e perguntou:
- O que é “excruciante”? E não me digas que é uma
palavra dos Sombras que quer dizer “excruciante”.
- Bem, acho que excruciante é uma excrussão que acaba
de repante - respondeu o Duque de Espadas.
- Uma excursão que acaba de repente, queres tu dizer -
corrigiu o Terno de Ouros.
274

- Isso. Só que em vez de acabar de repente, acaba de


repante.
- De repante?
- Chiu. Queres que te cortem a cabeça?
Estava tudo em silêncio. Ninguém falava e todos fitavam
William à espera de uma reacção. E então o Rei de Copas
disse não uma mas três palavras raras e distintas (para o
seu gosto, evidentemente):
- Isto é um IMBRÓGLIO, uma HECATOMBE, uma IGNOMÍNIA.
- Não me expliques, eu percebi - murmurou o Terno de
Ouros para o Duque de Espadas, a seu lado.
O clima ficara tenso de repente. Já escurecera
completamente e acenderam-se as mais de mil tochas do
recinto.
- Então? - perguntou a Rainha, a apressar William, que
respirou fundo e limpou o suor da testa com um dos punhos.
- Não sei - disse por fim. - É a minha primeira viagem.
Não estava à espera disto. Nem sequer me habituei e
sinto-me fraco, enjoado...
- Fraco!? - espantou-se a Rainha.
- Bem, não é bem isso. Mas esta é a minha primeira
viagem. Disseram-me que tinha muito que aprender.
- Aprender!? - voltou a espantar-se a Rainha.
Fric deu uma cotovelada no amigo e pôs-se em bicos de
pés para lhe segredar ao ouvido:
- Um Grimm não se sente fraco nem tem que aprender...
- Não?
- Não.
A Rainha de Copas sentou-se no trono, à espera, e comeu
mais um pedaço de tarte. Mas William não tinha pressa.
Parecia-lhe que não era a ele que se destinava aquela
aventura mas a outro rapaz como ele, talvez o que o olhava
de dentro do especo quando chegou à casa do Grimm.
Ao fim de algum tempo, inclinou-se para Fric e
murmurou-lhe ao ouvido:
- O que é o Castelo do Leste da Criança Terrível?
275

- É o sítio para onde foi o Grimm. Fica a meio dia de


viagem desde a fronteira e é o limite máximo que uma
criatura, ou um Sombra que seja Grimm, aguenta no Escuro
antes de desfalecer. Logo, esta é a tua oportunidade de
recuperares a chave, uma ou outra, e impedires que a
Criança Terrível fique com as três e abra o cofre.
- Eu!? - espantou-se William. - E mais quem?
- Mais eu e Uveve, é claro.
O rapaz respirou profundamente e depois encarou a
Rainha, que continuava com os seus dois olhos redondos e
piscos cravados nele, tal como todos os outros.
- Chegou a altura de nos mostrares aquilo de que és
capaz - disse ela com a boca cheia de tarte de framboesa.
- Se o Grimm lá foi, também eu lá posso ir - disse
William, e ficou muito espantado com o que tinha acabado de
dizer.
Fric correu para ele e abraçou-o com tanta força que
por pouco não caíram os dois. Houve aplausos, vivas e
cânticos, mais cânticos, e, desta vez, a Rainha não os
interrompeu. E convidou William a provar uma das suas
tartes.
- Talvez esta - disse ele, a servir-se de uma fatia da
tarte de cereja com kirsch.
- Já alguma vez caminhaste num mundo de trevas? -
perguntou a Rainha numa voz inesperadamente baixa e doce.
William abanou negativamente a cabeça porque tinha a
boca cheia de tarte.
- O escuro entra em ti, entorpece-te, rouba-te a
vontade, a força. Tantos que lá foram e nunca mais
tornaram! Tantos! Guerreiros corajosos, magos poderosos...
William engoliu um resto de tarte. Depois disse:
- Há pouco, quando montei em Uveve, soube que era um
Grimm. Todos diziam que eu era um Grimm mas eu continuava a
sentir-me um rapaz como os outros.
- Não podes abreviar? - perguntou a Rainha a bocejar. -
Cansa-me ouvir frases muito compridas.
276

- Vou fazer por isso - respondeu William. - Nunca


camimhei num mundo de trevas, mas também nunca tinha
montado num unicórnio e foi como se sempre o tivesse feito.
Acho que não estou a fazer nada pela primeira vez, apesar
de estar a fazer tudo nela primeira vez. Ou então nasci
para o fazer, o que talvez seja a mesma coisa.
- Acho que percebi mais ou menos - disse a Rainha. -
Mas uma coisa é certa: vais ficar a saber porque tens medo
do escuro e porque temes a noite. Boa sorte, ó Grimm. E
agora vou descansar. Estas reuniões também me fazem dores
de cabeça.
A Rainha fez um sinal ao Coelho Branco, que tocou a sua
trompeta. A reunião extraordinária do Conselho tinha
terminado.
- Vamos - disse Fric a assobiar logo de seguida para
chamar Uveve, que avançou na direcção deles. - Está a
nascer o Sol Negro do outro lado. É a melhor altura.
Naquele momento, William desejou ardentemente acordar
na sua cama, do lado de lá, mas já estava acordado. Quando
muito, poderia adormecer, mas também não era apropriado.
- Sabes ao menos o caminho? - perguntou.
- Ele sabe - respondeu Fric a alisar a crina de Uveve.
As criaturas olharam-nos como se olha alguém que se
pode estar a ver-se pela última vez.
- Boa sorte! - disse alguém.
E todos repetiram: “Boa sorte!”
William e Fric, montados em Uveve, atravessaram a
multidão, rodeados por uma escolta de soldados com lanças.
As criaturas empurravam-se para chegarem perto do rapaz
e os soldados afastavam-nas. Mas não conseguiam contê-las a
todas. Uma Fada-do-Ar pousou no ombro de William.
- Não me reconheces? - perguntou. - Sou a
Fada-Sopradora da tua mãe.
- Ah! - exclamou ele a lembrar-se da mãe. Que pena ela
não ser também mãe dele naquele lado!
277

- Tem cuidado quando estiveres com a Criança Terrível


que é capaz de ler os teus pensamentos - avisou a
Fada-Sopradora. - Quando ele franzir as sobrancelhas, está
a tentar lê-los. Nessa altura, não penses em nada, ou então
pensa em lagostas, lavagantes, caranguejos. Eles ficam
enjoados só de alguém estar a pensar nisso. Ou pensa em
tardes de Sol na praia, o que também os enjoa.
Um soldado espantou a fada com a ponta da lança e ela
voou para longe.
- Boa sorte, ó Grimm!
Entretanto, uma corpulenta Fada-da-Terra, ruiva e
sardenta, escapou aos soldados e estendeu a William um
saquinho de couro amarrado com um cordel na ponta.
- Leva este elixir, feito com rosas da Montanha
Sagrada. Quando sentires que o medo te domina, toma um
gole. Só um, que o medo também tem a sua utilidade. Ele faz
de ti um rapaz atento e sempre pronto a reagir. Não podes
deixar de ter medo, ou ficarás indefeso perante os perigos.
Nem podes ter tanto que te tolha e paralise. Percebes?
- Sim, sim. Percebo.
Um soldado puxou a fada, mas ela acertou-lhe um sopapo
que o tombou e continuou a caminhar ao lado de William.
Entregou-lhe uma lanterna eléctrica que trazia escondida
sob o avental de couro.
- Isto protege-te das criaturas medonhas do Escuro. É
uma lanterna das vossas. Deu-ma um Duende-das-Pedras que a
trouxe às escondidas. É proibido trazer coisas de lá, seja
o que for, ou já estávamos todos aqui a usar telemóvel e a
ver televisão.
- Obrigado - disse William a guardar a lanterna. Uma
lanterna era a melhor prenda que se podia dar a quem se
preparava para entrar na escuridão.
- É mágica, basta tocar num botão e ela acende -
acrescentou a fada.
- Eu sei - disse o rapaz a sorrir.
278

E avançou.
A fada afastou-se e o soldado atingido aproximou-se
outra a medo. E foi então que um ogre monstruoso se
aproximou e gritou, muito alto:
- Apanha isto, ó Grimm!
Pelo ar vinha uma pedra e William apanhou-a. Era uma
pedra redonda, polida.
- Diz que te conhece - acrescentou o ogre. -
Encontrei-a a gritar na Floresta Azul. É uma pedra que não
se cala.
William apertou levemente a pedra na mão direita,
satisfeito.
- Obrigado. Já sentia a falta dela.
- Gostei de ouvir isso - disse a pedra. - Vindo da boca
de quem me abandonou no meio de uma montanha... Disseram-te
que eu também andava?
- Desculpa - disse William. - Com o medo do ciclope e a
pressa de chegar ao Reino da Rosa, não me lembrei de te
apanhar. Podias ter-me chamado.
- Eu chamei quando partiste. Nunca pensei que fosses
sem mim. Mas o ciclope ia a cantar muito alto. E tu
também...
- Vejo que vens mais faladora - disse William. - Ainda
bem. E também vês no escuro?
- Não, mas cheiro e ouço tudo em volta, o que vai dar
ao mesmo. Além disso, é a segunda vez que faço esta viagem.
- Foste lá com o Grimm? - perguntou Fric.
- Duvidas? Não foi ele que me levou para o lado de lá?
Então era porque eu era a pedra dele. E já te posso dizer
que nunca me abandonou no meio de uma floresta.
Afastaram-se da multidão, que continuava a entoar
cânticos e louvor e atracção da sorte. E Uveve voltou a
confundir-se com o vento.
Foram de uma luz pálida até uma penumbra acinzentada,
no vale árido e pedregoso que dividia os dois lados. A
partir daí, a escuridão adensava-se à medida que avançavam.
279

Na cabeça de William ecoavam ainda as palavras da


Rainha de Copas: “Vais ficar a saber porque tens medo do
escuro e porque temes a noite.”
E então as grandes vagas de escuridão abateram-se sobre
eles, envolvendo-os, recuando e rebentando novamente.
280

37

UM RAPAZ, UM DUENDE E UMA LUZ ESVERDEADA

Naquele momento, a meio da madrugada, Peter e o


Resolvedor seguiam pelas ruas escuras e quase desertas de
Londres no encalço de uma pequena luz esverdeada que se
deslocava um pouco acima das suas cabeças.
Aos poucos, embrenharam-se no centro e, pouco depois,
estavam na City, a zona dos negócios. Foi aí que a luzinha
esverdeada, finalmente, se deteve, a meio da Lime Street,
diante da porta de entrada de uma torre comercial de aço e
vidro. Na parede ao lado da recepção estava escrito: “BFI -
Barry Fortune Industries”.
- Era aqui que ele nos queria trazer? - perguntou Peter
a examinar o edifício. - Isto é a sede de uma empresa.
- Uma? - riu-se o Resolvedor. - A “Barry Fortune
Industries” é o centro de um império financeiro. E este
edifício é o seu coração tenebroso.
- E a chave verdadeira? Está aqui? - interrogou-se
Peter.
O duende não tinha dúvidas.
281

- Podes acreditar. Este espírito, ou lá o que é, sabe o


que vê e o que faz. E também já vi ali estacionado o carro
dos dois homens que a trouxeram do clube. Eu segui-os,
lembras-te?
- Barry Fortune... - murmurou Peter. - Acho que já vi
esse tipo na televisão.
- Pensando bem, é o parceiro ideal dos Escuros - disse
o Resolvedor. - Através dele podem controlar-se os milhões
de pessoas que ele controla.
Havia luzes acesas na recepção, onde dois seguranças
dormitavam apoiados aos balcões, e ainda em duas janelas do
edifício: uma no terceiro andar e outra muito acima, num
dos andares mais elevados. A luzinha esverdeada parecia
hesitar entre uma janela e outra, já que oscilou durante
algum tempo entre as duas.
- O que está ele a fazer? - interrogou-se Peter com o
nariz espetado no ar.
- Está a localizar a chave, acho eu - respondeu o
Resolvedor. Entretanto, a luzinha esverdeada fixara-se na
janela do terceiro andar, onde ficou a descrever pequenos
círculos no ar.
- Está a querer dizer-nos qualquer coisa. Estou certo
ou estou certo?
- Estás certo.
- Pois. Só é pena nenhum de nós ser um espírito
esverdeado. Ou então...
O Resolvedor lembrou-se de ter visto ali perto, na rua,
uma equipa de Duendes-das-Pedras que recolhiam energia. E
ocorreu-lhe que podiam chegar ao terceiro andar se
montassem ali os andaimes e as gruas invisíveis que eles
usavam para recolher a energia. Para isso, porém, precisava
da autorização e da ajuda do duende Sami.
- Vou ligar ao Sami - disse ele, à procura do telefone
no bolso. - Espera aí! Vai ali a sair daquele prédio uma
Fada-Sopra-dora. Acho eu. São tão pequenas que podemos
confundi-las com certos pássaros.
282

E foi com um canto parecido com o de um pássaro que ele


onseguiu atrair a atenção da Fada-Sopradora, que veio
pousar sobre uma sebe.
- Vou falar com ela - disse o Resolvedor. - Não saias
daqui.
Peter encolheu os ombros. Não via metade do que se
passava. Mas ouvia o duende a cochichar com a fada num
linguajar incompreensível.
Depois, o Resolvedor voltou a aproximar-se dele.
- Estou aqui - disse. - Um metro para a tua esquerda.
Agora só temos de esperar. A fada voou até ao terceiro
andar. Já lá está, a ver o que se passa dentro daquela
sala.
- Vês a luzinha?
-Vejo.
- A fada está um bocadinho mais abaixo. Talvez até
possa entrar, a janela tem uma abertura por onde ela cabe.
- Ah! - disse Peter com o nariz no ar, a tentar ver o
que os seus olhos lhe recusavam. - E agora, o que está a
acontecer?
A fada ficou algum tempo no parapeito da janela. Havia
três homens dentro daquela sala e um deles era o Sr. Barry
Fortune. Estava sentado na sua secretária enorme, quase
vazia, e falava ao telefone.
Em frente, num confortável sofá de couro preto, outros
dois homens esperavam em silêncio.
Ali, a fada podia ouvir perfeitamente o que eles
diziam. Por isso, ficou a ouvir a conversa telefónica do
Sr. Fortune e conseguiu mesmo ler-lhe alguns pensamentos
quando ele olhou, por uns instantes, na direcção da janela.
Depois, o Sr. Fortune deslocou-se para junto do sofá
onde estavam os outros dois homens e ela deixou de ouvir
fosse o que fosse. Resolveu então entrar pela janela
através da frincha.
E foi esse o mal.
Dentro do edifício soou o alarme anti-criatura.
Cá em baixo, também ninguém estava a contar com isso.
283

- Olalá! - disse o Resolvedor, muito aflito.


- O que foi?
- Um alarme anti-criatura. O Sr. Fortune está bem
equipado. Bem, pelo menos isso quer dizer que estamos a
bater à porta certa. Estou certo ou estou certo?
- Estás certo.
A fada também não devia estar a contar com aquilo.
Muito menos com a borrifadela de gás que foi lançada na sua
direcção. Ainda se desviou, mas apanhou de lado com parte
do gás e veio por ali abaixo, a descer em espiral, como um
avião danificado.
A luzinha esverdeada acompanhou-a durante a queda, como
se quisesse ampará-la, mas há muitas coisas que uma luzinha
esverdeada não consegue fazer. E essa era uma delas. Valeu
à fada que o Resolvedor lhe amparou a queda e conseguiu
evitar males maiores. Ainda assim, ela estava em muito mau
estado, quase a desfalecer e a respirar com dificuldade.
Nesse momento, alguém bateu nas costas de Peter.
- Sou eu, o Sami. Agora estou dois passos à tua frente.
O que se passa aqui?
- Aconteceu alguma coisa à fada e o Resolvedor está a
ajudá-la.
- Ah! Já os vejo.
Deslocaram-se os dois para lá e Sami debruçou-se sobre
a fada.
- Está a melhorar - informou o Resolvedor. - Não tarda
e já pode falar e dizer o que viu e ouviu.
Peter aproximou-se mais porque lhe pareceu ver a
pequena fada estendida no passeio, como se estivesse numa
fotografia tremida e desfocada.
- Estou a vê-la - disse. - Estou a vê-la.
Ninguém lhe prestou atenção, como se fosse a coisa mais
natural do mundo ele estar a ver uma fada.
- Estou a vê-la - repetiu Peter sem conseguir desviar
os olhos da fada.
284

Ele já acreditava na existência das criaturas, mas


ainda lhe faltava ver para acreditar completamente. E ali
estava uma Fada-do-Ar, pequena e frágil, tão delicada como
uma borboleta. Por akuns fugazes momentos, viu-a quase
nitidamente.
- Também sou um Grimm!
- Não te entusiasmes - disse o Duende-Resolvedor. - O
gás que lhe lançaram também serve para revelar as
criaturas.
- Ah!
- Pois. Se querem apanhá-las, têm de as ver. Mas o
efeito passa depressa.
“Talvez depressa de mais”, pensou Peter, que já não via
a fada.
Ainda assim, sentia-se estranhamente confortado. Quando
o irmão dissesse “uma fada”, ele sabia do que ele estava a
falar.
Foi então que a fada falou com a sua voz fininha e
melodiosa, que soava como uma pequena orquestra de sinos.
- A chave está lá dentro - disse.
O Duende-Resolvedor-de-Problemas quase colou a sua orelha
peluda à boca dela para a ouvir melhor.
- A chave está no bolso do casaco do homem de fato
preto, com o charuto, que está à secretária. Estão lá mais
dois, além dele.
- Talvez os que trouxeram a chave do Clube - disse o
Resol-vedor.
- O homem com a chave - continuou a fada - disse ao
telefone que ele próprio entregaria a chave dentro de duas
horas no sitio combinado, não sei qual. Mas o mais estranho
foi os pensamentos que li ao homem da secretária.
- Diz, diz - quase suplicou Sami.
E a fada, já quase sem voz, ganhou fôlego e disse, com
a voz a esvair-se:
- Os Escuros partiram da Terra, despediram-se dos
Homens por cem anos. Levaram todo o tempo que puderam e
disseram chegava para os manter vivos durante cem anos de
cá. Quando acabou de dizer isto, a fada desfaleceu.
285

- O que quer dizer isso? - perguntou o Resolvedor.


Mas ela já não respondeu. Queria falar mas só lhe saíam
uns tantos murmúrios fininhos e incompreensíveis.
Sami levou-a ao táxi conduzido por Nobby, que sabia
onde deveria levá-la.
- Ela vai ficar bem? - perguntou Peter.
- Vai para o Outro Lado. Basta lá chegar e fica outra.
O Duende-Resolvedor-de-Problemas dava voltas à cabeça,
já que lhe competia resolver aquele problema.
- E se montássemos aqui a grua invisível dos
Duendes-das-Pedras? - sugeriu ele a olhar para a janela
iluminada.
- Não vale a pena - respondeu Sami. - Eles têm o alarme
anti-criatura em todo o lado. Podemos tentar talvez uma
entrada pelo telhado, mas, lá dentro, deve haver detectores
por todo o lado. Este Fortune sabe o que faz.
A luzinha esverdeada estava novamente a rodopiar em
volta da janela depois de ter entrado e saído várias vezes.
Era como se também ela lhes quisesse dizer o que eles já
sabiam: a chave estava dentro daquela sala. E eles até
sabiam mais do que isso.
- Eu não sou uma criatura. Podem usar-me a mim - disse
Peter.
E admirou-se com a sua coragem.
- Eles vêem-te. Não tens hipóteses - disse Sami.
- Posso esconder-me - insistiu Peter.
- Não tens hipóteses - repetiu o duende. - A menos
que...
- A menos que... - repetiu Peter, a tentar arrancar-lhe
as palavras da boca.
- A menos que fiques invisível por algum tempo.
- Como?
- A Fábrica de Nada. Lembras-te? - Ah!
- Não há tempo para isso - disse o Duende-Resolvedor.
- Há - discordou Sami. - O Fortune não disse que ia
entregar a chave dentro de duas horas? Ora, eu ponho este
rapaz invisível em menos de quarenta minutos. É o tempo de
286

que precisamos para montar a grua.


- Invisível? - disse Peter a sorrir. - Isso é com o meu
irmão. Comigo não dá.
- Isso é o que tu pensas. Dá com qualquer um.
Tinha começado a choviscar e eles abrigaram-se sob o
coberto de uma paragem de autocarro vazia. Duendes à chuva
eram notados, porque não chovia no sítio onde eles estavam.
Quando havia pouco movimento nas ruas, as pessoas reparavam
naquela anomalia.
Peter acompanhou-os, enquanto pensava. Sempre sonhara
ser invisível, ainda para mais por pouco tempo. Mas agora a
ideia assustava-o. E se aquilo falhasse e ele ficasse
invisível para sempre? Era como se não existisse. E aí
estava um grande problema.
- Então? - insistiu o Resolvedor. - É o teu irmão e
todo um mundo, o outro, que está em causa.
- Ele está certo e está certo - disse Sami.
Peter engoliu em seco. Pensou no irmão, que podia estar
envolvido com ogres, ciclopes, centauros, baleias voadoras,
ou obrigado a longas caminhadas na escuridão. Por sua vez,
ele estava no lado conhecido do mundo. Só tinha de se haver
com um espírito, dois duendes e uma fada, todos amigáveis.
Levantou a cabeça para o céu e viu a luzinha esverdeada às
voltas por cima dele. Era como se também ela lhe dissesse o
mesmo. Vai, vai!
Enquanto Peter pensava, foi sendo empurrado
delicadamente por Sami para dentro do táxi. E não resistiu.
Afinal, o irmão tinha razão, pensou ele naquele momento.
Aquela história também lhe dizia respeito.
287

38

O ESCURO
Devagar, de uma forma escorregadia, entraram no Escuro.
- Estás com medo? - perguntou Fric.
- Não - respondeu William.
- Devias estar.
- E estou. Nem muito nem pouco, que é o medo melhor. As
palavras deles demoraram a apagar-se no silêncio imenso do
Escuro.
Estava a nascer o dia daquele lado, e era preciso
aproveitar essas primeiras horas, enquanto o Sol Negro não
estava completamente formado e havia umas centelhas de
claridade que amenizavam o negrume.
Mesmo assim, era tudo negro, não havia outra cor. As
árvores eram negras, como a terra, a neve, as nuvens, as
pedras, as ervas e o céu. Montanhas selvagens, mares
revoltos, lagos parados, vales, tudo mergulhava num mar de
sombras. E tudo isso parecia ser uma coisa só.
- Se isto é o dia, como será a noite? - disse William.
Uveve, quando os seus olhos se habituaram à escuridão,
avançou a grande velocidade. O vento, que não tinha cor,
empurrava-o para diante e guiava-o e levava-lhe às narinas
289

o cheiro dos obstáculos e das criaturas indesejáveis.


Por sua vez, a pedra, que seguia agora ao pescoço de
William, presa a um cordel, como se fosse um colar,
indicava o rumo daquela navegação no escuro. Ela falava e
William orientava Uveve, quando Uveve precisava de
orientação.
E assim seguiram durante muito tempo sem que nada de
especial acontecesse. Não havia qualquer sinal ou som de
vida, só o angustiante murmúrio das trevas, um ruído de
fundo constante, como um motor que alguém se esquecera de
desligar.
Fric cabeceava e teria caído se William não o agarrasse
e o sacudisse. Era um dos perigos. A monotonia escura
cerrava-lhes os olhos e empurrava-os para um sono profundo,
que podia ser fatal.
Depressa, cada vez mais depressa, penetraram naquela
negritude fria e enevoada, uma escuridão tão cerrada que,
de facto, se podia cortar com uma faca bem afiada. Quando
atravessaram o Deserto Negro, o frio aumentou e William e
Fric encostaram-se.
Aí havia ventos cruzados e Uveve teve de diminuir a
velocidade. Aí também eles puderam ver como algumas
criaturas se assemelhavam a ratos, baratas ou lombrigas
gigantes, todos cegos, com grossas narinas e enormes bocas
retorcidas.
Orientavam-se predominantemente pelo olfacto e eram de
uma rapidez inesperada. A pedra avisava William da chegada
dos mais rápidos e imprevistos e um golpe de luz da
lanterna chegava para os afastar. Mas a luz atraía outras
criaturas aladas, que os localizavam à distância e passavam
a segui-los. E não era conveniente usá-la muitas vezes.
Também havia uns morcegos muito rápidos, que tentavam
comer-lhes os olhos, e outras criaturas aladas semelhantes
a pássaros que faziam mover o ar mesmo por cima da cabeça
deles.
A meio do Deserto Negro juntaram-se nuvens no céu e
começou a chuviscar sobre eles, uma chuva fina e negra e
peganhenta que se lhes colava à roupa e à pele. Pouco tempo
depois também eles pareciam criaturas do escuro. E tudo
290

neles era tam-hém negro, incluindo os seus pensamentos.


- Isto é horrível - gemeu William. - Falta muito?
- Não. Estamos a chegar ao fim do deserto e vamos
ladear a Floresta Viva - explicou a pedra.
O Sol Negro era agora um círculo redondo, muito negro,
num céu igualmente negro. Os ventos cruzavam-se de modo
imprevisto, confundindo Uveve, e eles viram-se envolvidos
numa espécie de teia elástica e peganhenta que os abraçou e
cobriu, como um manto negro.
Uveve, enredado na teia, deteve-se.
- O que é isto? O que se passa? - perguntou William.
Estavam presos numa teia fina mas muito resistente, que não
conseguiam furar.
- É uma teia. Sacudam-na. Façam um buraco com a luz -
disse a pedra.
Experimentaram, mas a luz da lanterna não afectava a
teia, que continuava a resistir. Nem cedia aos sucessivos
golpes de punhal que Fric lhe aplicou.
- Uma aranha! - avisou a pedra.
Não teve, talvez, tempo de dizer que era uma aranha
gigante. De facto, ela tinha a altura de três pessoas
encavalitadas umas nas outras e a ponta de uma das suas
patas felpudas já estava muito próxima.
A luz da lanterna deteve-a por algum tempo, mas talvez
fosse preciso um projector para uma aranha daquele tamanho.
Ela avançou de repente e apanhou Fric com um movimento
rápido das suas patas grossas e felpudas.
William tentou segurá-lo e a lanterna caiu e apagou-se.
- Fric! - gritou, angustiado. E a sua voz soou
estrondosamente no meio da escuridão silenciosa e continuou
a soar durante algum tempo: - Fric! Fric!
Foi então que Uveve enterrou o seu corno portentoso no
re
da aranha, que recuou, enquanto se escapava pela ferida
291

uma lama negra e peganhenta que se espalhou pelo chão.


Depois o unicórnio acabou de romper a teia com o seu corno
e conseguiu um apoio para as patas, o que lhe permitiu
abrir um buraco maior na teia, por onde ele deslizou,
seguido por William.
- Fric - gemeu o rapaz a olhar para trás.
- Foge - disse a pedra.
- Fric - repetiu William a sondar o escuro.
- Foge - repetiu a pedra. - Ele já não pode vir
connosco. Oh! Vai ali!
William viu nitidamente um pequeno clarão de luz ora
amarela ora alaranjada que subiu no ar, riscando o céu
negro, e sentiu um aperto no peito. E não apenas um
desgosto, mas uma dor física que o fez dobrar-se sobre a
cintura.
- Depressa! Não podes perder tempo - disse a pedra.
Mecanicamente, William montou Uveve, que voltou a
avançar no escuro. Havia agora duas grossas lágrimas,
negras como tudo o resto, no rosto de William, e durante
muito tempo ele seguiu em silêncio, apenas executando as
indicações da pedra para se manter na rota. Até que a pedra
gritou:
- Alto!
- Alto! - repetiu William a acariciar o pescoço de
Uveve. Tinham chegado a uma encruzilhada de três caminhos,
todos cobertos por um tapete de trevos negros. À entrada de
cada um deles havia uma diferente escultura de pedra negra:
uma sereia no que estava em frente, uma árvore no que
estava à direita e uma ave no que estava à esquerda.
- E agora? - perguntou William.
A pedra não respondeu.
- E agora? Por onde vamos? - repetiu William.
Mas a pedra continuou calada.
Foi preciso esperar que ela se decidisse. As pedras não
pensam, apenas vêem, cheiram e ouvem. E talvez ela
estivesse a cheirar, ver ou ouvir e não a pensar.
292

Por fim, falou:


- Vai pelo caminho da ave - ouviu William, e fez Uveve
avançar em frente.
Avançaram e a escuridão começou a adensar-se mais e
mais. Era como se estivessem a chegar a uma outra noite
dentro daquela noite, e mais negra ainda.
- Onde estamos? - perguntou William.
- Nem eu sei - queixou-se a pedra. - Começo a pensar
que nos enganámos. Estamos a chegar a uma floresta quando
devíamos seguir pela margem de um rio.
Havia sombras que se agitavam por cima das cabeças
deles. Talvez os ramos negros daquelas árvores descarnadas
e disformes que estavam por todo o lado. Uma delas, a mais
próxima deles, estendeu os ramos negros como se os quisesse
agarrar.
- Tu viste isto? - perguntou William. - A árvore.
Parece que está viva.
- A Floresta Viva! - disse a pedra. - Estamos na
Floresta Viva! Tens a certeza de que vieste pelo caminho da
árvore?
- Da árvore? Tu disseste “caminho da ave”.
- Da árvore - insistiu a pedra.
- Da ave - insistiu William.
Fizeram uma pausa, e depois William voltou ao mesmo.
- Da ave. Eu ouvi claramente: “vai pelo caminho da
ave.”
- Os Papaletras - disse a pedra. - Foram eles.
- Os Papaletras? - repetiu William, à espera que a
pedra se explicasse.
E ela explicou-se:
- É assim que lhes chamamos, mas, na verdade, são
fulins, uns insectos pequenos, quase invisíveis, que comem
as letras no ar e mudam o sentido do que dizemos.
- Não estou a perceber.
- As minhas frases emagrecem, digamos assim, antes de
chegarem ao teu ouvido. Eu digo “árvore” e um Papaletras
come o “R”, o “O” e o “R”. O que fica? Ave.
293

- Foi o que eu ouvi - confirmou William. - Belos


bichinhos. Fazem isso de propósito?
- Bem, estão a alimentar-se - esclareceu a pedra. - E
talvez se divirtam. Ou não escolheriam tão bem as letras
que devem comer. Onde estão Papaletras, ninguém se entende.
Só há confusões. Mas há uma maneira de os afastar: dizes a
Palavra Repelente, “terreque”, soltando ar só pelo nariz e
colando a língua ao céu da boca. Até soar como se raspasses
as unhas numa chapa enferrujada.
- Terreque - disse William a pensar naquilo. - A que
saberá o som de uma letra apanhado no ar? De que é feito? O
que tem de comer?
- Vem da tua barriga, talvez saiba ao que lá tens
dentro -comentou a pedra.
- Acho que não tenho nada - disse William a sacudir uma
hera negra que se lhe enrolava à volta do pescoço; era
assim, na Floresta Viva.
As árvores não tinham ramos, mas cabelos negros soltos,
retorcidos e medonhos, tão flexíveis como corpos de
serpentes. Na verdade, eram ogres negros que se fixaram à
terra e ganharam raízes e braços, muitos braços, abertos
como ramos. Agora, eram ogres-árvores (ou seriam
árvores-ogres?) fortes e vorazes. Algumas pareciam ser
capazes de arrancar as suas raízes e correr atrás deles.
- Vamos voltar para trás - disse William.
Era bom de dizer. Mas “para trás” era para onde? Nem a
pedra sabia.
Uveve saltou para diante no momento em que uma
monstruosa árvore negra se inclinou para eles. Foram em
frente, na esperança de que, em frente, fosse também para
trás.
Valeu-lhes a velocidade de Uveve, que era bem mais
rápido do que a mais rápida árvore viva. Até que, de
repente, todos os ruídos cessaram.
Já não havia árvores negras e vivas, nem o barulho
infernal dos seus ramos agitados. Apenas silêncio,
escuridão e mais nada.
294

39

O PÂNTANO DA TRISTEZA

Tinham chegado a uma espécie de pântano lodoso e


escorregadio. Estavam entre maciços de juncos e caniços,
negros também, como tudo o mais. E havia uma calma de
morte. Nada bulia e o silêncio esmagava-os.
Uveve ia enterrado na lama peganhenta até meio do dorso
mas continuava a avançar, na esperança de encontrar uma
saída.
- Onde estamos? - perguntou William.
- Num pântano - respondeu a pedra. - Pelo menos
livrámo-nos das árvores furiosas.
- Pois... - murmurou William, pouco satisfeito.
Num sítio daqueles, pensou, até poderia haver coisas
piores. Pântanos eram bons para crocodilos negros, por
exemplo, se os houvesse por ali. Porém, continuava o
silêncio e a quietude. E, aos poucos, uma tristeza imensa
penetrou em William, e tornou o seu corpo pesado,
tolhendo-lhe os movimentos.
Ele ainda não o sabia, mas era exactamente esse o
poderoso mimigo que o aguardava naquele pântano silencioso
e quieto. Para espantar a tristeza que o consumia, pensou
em tardes felizes, de muito Sol, a brincar com o irmão na
Quinta da Pedra Azul. Mas até os mais belos e luminosos
295

pensamentos se tornavam sombrios e tristes.


- A tristeza! - disse a pedra. - Tens de lutar contra a
tristeza. A tua e a de Uveve.
William sacudiu aquele torpor e incitou Uveve, que já
perdera a vontade de lutar com o lodo negro e quase não
avançava.
- Anda, Uveve! Não pares! - disse o rapaz, a
acariciar-lhe o pescoço.
Era bom de dizer, mas eram apenas palavras simples e
sem poderes, nada podiam contra a onda de tristeza que se
entranhava neles e lhes dizia: “Pára!”, “Desiste!”,
“Afunda-te e dorme!”
- Sinto-me triste, sem forças - disse William por fim.
- Só me apetece parar e descansar.
- Aqui, nesta lama escura? - perguntou a pedra. - Estás
no Pântano da Tristeza. Tens de reagir. Pensa em coisas
alegres e sacode essa tristeza que mata. Se quiseres,
canto-te uma canção para te alegrar. Sei uma que as pedras
cantam quando regressam de uma grande viagem.
- Não me apetece ouvir canções alegres, obrigado -
disse William.
- Lembra-te da vida do teu lado - insistiu a pedra, que
não se calava. - Também é triste nunca mais a poderes ver.
Nem poderes ver o sorriso da Princesa Ariteia quando ela
acordar do sono de pedra.
Isso sim, era uma notícia alegre, tão alegre que
acendeu uma luz na cabeça do rapaz.
- O elixir! - gritou William, à procura do saquinho de
couro amarrado com um cordel que lhe oferecera a
Fada-da-Terra.
Bebeu-o sem hesitar e ficou à espera do efeito.
Enquanto esperava, desmontou de Uveve e ficou enterrado na
lama negra até meio do peito.
Fê-lo sem medo, já tinha percebido que ali não havia
outros perigos para além daquela tristeza mortal. Ou já
seria o elixir a fazer efeito?
296

- Vês aqueles pontinhos luminosos a subir no ar, no


cimo daquele monte? - perguntou a pedra, que também parecia
mais animada.
- Onde?
- Levanta a cabeça, rapaz. Ali é o fim do nosso
caminho, o castelo da Criança Terrível, e para lá chegar
basta atravessar este pântano.
- O elixir já deve estar a fazer efeito - disse William
a abanar vigorosamente o corpo, a sacudir os músculos, e
também a tristeza e o medo; depois, abraçou o pescoço de
Uveve e incentivou-o a avançar.
Iam outra vez a caminho. Mais adiante, já muito perto
da margem, passaram por um ogre negro que estava enterrado
na lama até ao pescoço.
- Ele faz mal - disse a pedra. Pelo menos foi o que se
ouviu. William contornou o ogre. Só lhe via a cabeça,
enorme, coberta de pêlos negros, o que lhe permitia
imaginar o resto.
- Porque foges dele? - admirou-se a pedra. - Ele
precisa de ajuda.
- Disseste que fazia mal.
- Disse que não. Foram os papaletras. Repito: Terreque,
ele não te faz mal. Ajuda-o. Está a apagar-se. A morrer,
como vocês dizem.
- Terreque. De quê?
- Terreque. De tristeza, de que havia de ser? Não
estamos no Pântano da Tristeza?
William aproximou-se do ogre, que se afundava
lentamente, incapaz de reagir. O rapaz arrancou-lhe um dos
braços da lama e admirou-se com o feito. Nunca tivera tanta
força assim. Seria do elixir de rosas da Montanha Sagrada?
Sentiu a pele escamosa do ogre, como a de um réptil, mas
não se importou e puxou-o com força, aquela força
desconhecida que agora tinha.
- Não me salves. Ajuda-me a afundar - suplicou o ogre.
E William ficou na dúvida.
297

- Desexistiu. Quer dizer, desistiu de existir - disse


ele a lembrar-se da Rainha de Copas.
De facto, às vezes dava jeito juntar duas palavras.
Quando se tinha pressa, por exemplo.
- Não o ouças - disse a pedra. - Puxa-o.
- Ele pesa. Eu tenho uma solução melhor. O elixir.
O ogre bebeu forçadamente dois goles do elixir de rosas
da Montanha Sagrada e ficaram à espera que fizesse efeito.
- Então? - perguntou William ao fim de algum tempo.
- Nada - disse o ogre, que continuava a afundar-se.
- Talvez não resulte com ogres. Ou então tens de
esperar mais tempo pelo efeito. Entretanto, faz um esforço
e tenta subir para o unicórnio. Ele leva-te para a margem.
- Deixa-me afundar - suplicou o ogre. - Estou quase.
Sem ninguém dar por nada, Uveve mergulhou a cabeça na lama
negra e, com ela, empurrou o ogre para cima. Era enorme e
William recuou, assustado, quando se apercebeu do tamanho
dele.
Dali para diante, foi fácil. O ogre reagiu, como se
tivesse acabado de acordar de um pesadelo. Tomou
consciência da situação e não precisou mais de ajuda. Pelo
contrário, foi ele quem ajudou William a alcançar a margem.
Aí, descansaram do esforço e sacudiram a lama da tristeza.
- Valeu-nos o elixir - disse William.
O ogre soltou um grande arroto perfumado, que cheirava
a água de rosas.
- Cheira mal - disse ele, que tinha os seus próprios
gostos. Bastava reparar no seu cheiro fétido. E também era
visível que continuava tão triste como antes.
- O que faço agora? - perguntou ele com uma voz
medonha. - Fui expulso da Guarda Aérea do castelo e lançado
ao pântano por ordem da Criança Terrível.
- Porquê?
- Castigo. O meu simorg adormeceu no ar e provocou um
acidente. Nada de especial. Mas a Criança é Terrível, não
é? Com ele ninguém falha duas vezes. Agora não tenho para
298

onde ir, sempre vivi aqui, nem sei mais o que fazer, sempre
fui da Guarda Aérea.
William não via onde o ogre tinha as asas para poder
voar.
- Disseste “Guarda Aérea”? - perguntou.
- Já vais ver - respondeu o ogre a lançar um assobio
estridente que fez William proteger os ouvidos com as duas
mãos. Até a pedra se assustou e soltou um gemido.
- O que estás a fazer? - perguntou William.
- A chamar o meu simorg. Enquanto eu não morrer, ele
não se afasta. Não pode estar longe.
- O que é o teu simorg?
- Já vais ver. Ficaram à espera.
- Porque não voltas à tua terra? - sugeriu William.
- Estava a pensar nisso - respondeu o ogre, com pouco
entusiasmo. - Arrisco-me a morrer de sono e de tristeza,
como no pântano, mas enfim...
Mais um assobio daqueles e lá apareceu o simorg. Era
uma ave medonha e portentosa, com quatro metros de
envergadura. Lembrava um albatroz, só que era cem vezes
maior, ou não serviria de montada a um ogre do tamanho de
um gorila avantajado.
O simorg pousou perto deles, com uma aterragem
perfeita, e o rapaz viu-o melhor. Tinha três olhos, o que
lhe garantia um angulo de visão de 360 graus, e dois pares
de asas de penas negras e lustrosas que usava
separadamente. Sob o bico, tinha uma boca negra e
retorcida, que segregava uma baba negra e viscosa que ele
cuspia regularmente. Era repugnante e assustador. Não para
o ogre negro, que lhe acariciou longamente o pêlo antes de
o Contar. Depois, estendeu a mão para puxar William, que
hesitou, entre a repugnância e o medo.
- Anda! Não queres salvar a Princesa e levar a chave? -
perguntou o ogre.
William espantou-se.
299

- Como é que sabes?


- Não paras de pensar nisso.
O rapaz lembrou-se que os Escuros eram seres mentais.
Disseia-lhe a Fada-do-Ar.
- Lês os meus pensamentos? - perguntou.
- Não que eu quisesse, mas esse pensamento está aos saltos
dentro da tua cabeça - respondeu o ogre.
Dali podiam ver-se as torres negras do Castelo do Leste
da Criança Terrível, e William reparou que do alto da torre
mais alta se soltavam pequenas faúlhas de luz que o escuro
devorava imediatamente.
- Estás a ver as luzinhas? - perguntou o ogre. - Saem
do jardim luminoso da princesa quando abrem um pouco a
clarabóia. Vou pôr-te lá, é fácil. Passamos despercebidos
no ar entre os outros guardas. Quando estivermos por cima
do jardim, desces por um fio da saliva do simorg.
- Um fio da saliva? - perguntou William a olhar para a
boca do simorg, que salivava e cuspia constantemente, e
diante dele já havia um monte de saliva.
- E Uveve? - perguntou William.
- Espera por ti, não te preocupes - disse o ogre. -
Basta assobiares e ele aparece quando voltares a precisar
dele.
- Eu não sei assobiar.
- Sei eu - disse a pedra. - Sobe! Ou preferes subir a
montanha a pé?
William estendeu a mão para o ogre e subiu para o dorso
de simorg.
- Agarra uma pena com força - disse o ogre. - Estás com
medo?
- Só um bocadinho - respondeu William. - Nem muito nem
pouco.
Levantaram voo, a uma velocidade moderada, rumo à
cúpula da torre mais alta do castelo, de onde continuavam a
sair aquelas faúlhas luminosas e que eram como centelhas de
uma fogueira. Pdo caminho, cruzaram-se com outros guardas
montados em simorgues, nada mais. Aquela zona era vedada a
300

outras criaturas voadoras, como uma espécie de grandes


baleias com asas de morcego que passavam a voar baixinho e
muito lentamente ao largo do castelo.
Quando o simorg começou a sobrevoar a cúpula da torre,
ficaram entre os fogachos de luz que subiam no ar e o ogre
inclinou-se para retirar um fio de saliva da boca do
simorg.
Entretanto, William bebeu mais um gole do elixir de
rosas da Montanha Sagrada. Não fora isso e onde ia ele
arranjar coragem para descer por aquele fio de saliva?
- Isto aguenta? - perguntou a segurar o fio com a mão,
que se ia tornando sólido e áspero em contacto com o ar; e
continuava a sair da boca do simorg. - É seguro? - tornou o
rapaz.
O ogre não respondeu, o que já era uma resposta.
- Agora - disse ele. - Salta!
William saltou e deslizou pelo fio de saliva até à
cúpula. Até ali, tinha sido fácil, realmente. Olhou para
cima e o ogre incentivou-o a abrir a tampa de vidro fumado
por onde se escapavam as faúlhas de luz.
Ele apoiou-se melhor e forçou a tampa num dos cantos,
que cedeu um pouco, o suficiente para ele poder enfiar a
cabeça e espreitar. E então viu uma espécie de estufa com
um grande foco de luz artificial, uma espécie de Sol que
alimentava o jardim e o roseiral perfumado que havia em
baixo. Era um refúgio de cor e luz: relva verde, muitas
árvores, fontes e um pequeno lago. Era assim que se
mantinha viva e viçosa uma rosa num reino de escuridão e
trevas.
E no centro de toda aquela luz, e frescura, estava uma
rapada tão bela, delicada e perfumada como uma rosa.
301

40

A PRINCESA DIOTIMA

William sabia quem era aquela rapariga, a Princesa


Diotima, irmã gémea da Princesa Ariteia. Não fora isso e
ele pensaria talvez que a irmã tinha acordado do seu sono
de pedra.
Olhou para cima, onde o simorg batia as quatro asas
para se manter parado no ar.
- Vai - disse o ogre.
O rapaz abriu mais aquela espécie de clarabóia e saíram
grandes golfadas de luz pela abertura.
- Entra e fecha a tampa ou vão dar por ti - disse o
ogre, que fez o simorg passar muito perto.
Não foi preciso dizer mais nada. O mesmo fio de saliva
serviu para William descer até ao roseiral, no centro da
estufa, depois de ter voltado a fechar a tampa da
clarabóia.
A Princesa assustou-se quando o viu pousar. Largou um
grito fininho e levou logo a mão à boca para o sufocar.
-Desculpa... Eu sou o...
- O Grimm! - interrompeu a Princesa, com a pequena mão
Pousada sobre a boca.
303

William suspirou, aliviado. Era bom, ser assim tão


conhecido. Mesmo numa prisão luminosa e perfumada algures
em pleno Escuro.
- Como é que sabes?
- Estou a ver a tua sombra. Assim, escuro, tu é que
pareces a pessoa dela.
- Atravessei o escuro e nadei num pântano. Acho que
preciso de me lavar - disse William a tentar livrar-se de
restos de saliva e lama negra.
- Estou a par de tudo o que se passa - continuou a
Princesa. - Diz-me tudo o Mago do Reino do Ar, que aqui vem
na forma de um corvo. Também me traz as histórias com que
entretenho a Criança. Aquela frincha na clarabóia é para
ele poder entrar. Mas agora deixou de aparecer. Há bocado,
quando desceste pelo fio, pensei que era ele.
- Aconteceram coisas - disse William. - A tua mãe e a
tua irmã foram transformadas em pedra. Estou aqui por causa
delas. Tenho de recuperar a chave. Só assim se quebra o
feitiço.
A Princesa escondeu a cara e afastou-se um pouco, para
chorar, e ele esperou pacientemente. Quando ela voltou, com
os olhos vermelhos e pisados, perguntou:
- Como chegaste aqui?
William sentou-se pesadamente num banco de pedra.
- Fui ajudado por um ogre que salvei no pântano e desci
por um fio de baba de um simorg. Custa-me a crer que isto
me está a acontecer. Eu, que ainda ontem estava na Quinta
da Pedra Azul.
Ela confortou-o.
- Alegra-te por não seres um rapaz como os outros e
teres acesso a outro mundo e a outra vida.
- E isso é bom? - perguntou ele.
- Não sei. Mas é a tua missão. Anda lavar essa lama
negra. Há ali uma fonte.
Caminharam até uma pequena fonte de água cristalina.
- E como tencionas levar a chave? - quis saber a
Princesa.
304

- Não tenho propriamente um plano. E perdi o meu


escudeiro, que talvez tivesse um. Foi apagado por uma
aranha gigante. Só tenho uma pedra que fala.
Nesse momento, soou um pequeno sino que estava
pendurado no centro do roseiral.
- É ele! - anunciou a Princesa.
- Quem?
- A Criança Terrível. Está a chegar ao quarto, que fica
atrás daquela porta de madeira. Vem dormir a sesta sempre a
esta hora. Tenho de continuar a minha história. Desta vez,
vou deixar a porta encostada e tu entras quando ele
adormecer.
- E a chave? - murmurou William. - Sabes onde está? Ela
sabia.
- Não a vejo, mas acho que está pendurada num cordel
que ele traz ao pescoço. Ele também não a vê e está sempre
a acariciá-la para ter a certeza de que ainda lá está.
Entra quando ele estiver a dormir e apanha-a. E volta para
aqui. É o único sítio em que estarás seguro.
Ele olhou para cima.
- Depois podemos subir os dois pelo fio de saliva. O
ogre, com o simorg, está lá em cima à minha espera. E o meu
unicórnio também.
Afinal, sempre havia um plano.
O sino voltou a tocar e a Princesa apressou-se.
- Ah! - lembrou-se ela. - E há o goblin que está sempre
aos pés da Criança.
- O que é isso?
- Um animal de estimação. Parece uma barata grande. O
rapaz estremeceu.
- Odeio baratas. Disseste grande? De que tamanho? – Já
vais ver. Apanha pétalas de rosa e dá-lhas. Ele adora.
William limpou o suor do rosto. Não tinha a certeza de
estar só com um pouco de medo, nem muito nem pouco. Por
isso, talvez fosse a altura de tomar mais um gole daquele
elixir milagroso.
305

Procurou a bolsinha de couro no bolso e abriu o cordel.


O aroma soltou-se no ar.
- O elixir de rosas da Montanha Sagrada - disse a
Princesa.
- Nem mais - confirmou William. - Deu-mo uma
Fada-da-Terra quando parti. É mágico. Ajuda-me a controlar
o medo. Dá-me força, coragem.
- Foi a Nuria, que foi a nossa ama - excitou-se a
Princesa. - Só ela o faz. Mas...
- Mas o quê?
- Os poderes mágicos do elixir são uma invenção dela.
Quando queria levar-nos a fazer qualquer coisa de que eu ou
a minha irmã não nos sentíamos capazes, dizia que o elixir
dava força e coragem. E dava. Quer dizer, não fazia efeito,
mas nós tínhamos força e coragem. Mais do que a que
pensávamos que tínhamos. O elixir só servia para nos
lembrarmos disso. E então sentíamo-nos fortes e corajosas.
William ficou decepcionado. Por outro lado, agradou-lhe
a ideia de não ter feito o que fez por artes mágicas, mas
apenas usando as suas qualidades. E, por o saber, sentiu-se
forte e corajoso.
- Seja como for, dá resultado - disse ele.
- Tens razão - disse a Princesa.
E tomou a bolsinha de couro e também tomou dois bons
goles.
O sino voltou a tocar e a Princesa apressou-se.
Empurrou a porta de madeira, que deixou mal fechada, entrou
no quarto da Criança e, como sempre fazia, foi abrir uma
bandeira que deixava passar um pouco da luz da estufa. Era
sempre assim, quando estava no quarto da Criança, já que os
olhos dela eram olhos para a luz.
William, por sua vez, foi recolher pétalas de rosa, com
que encheu os dois bolsos. Depois, espreitou pela frincha,
mas teve de esperar que os olhos se habituassem àquela
penumbra que havia na outra sala.
Por fim, viu uma sala redonda, sem janelas, onde as
coisas se amontoavam desordenadamente. Parecia o quarto de
uma criança a quem ninguém ousava corrigir ou contrariar.
306

No centro da sala havia uma cama desfeita onde repousava a


Criança Terrível.
Tinha mais ou menos o tamanho de um rapaz de dez, onze
anos, e o corpo dele era uma massa informe. A cabeça era
muito grande, desproporcionada, e confundia-se com o
tronco, já que ele não tinha pescoço que se visse. As
pernas eram grossas e muito curtas. E os dois braços, finos
e compridos, terminavam em dois dedos em forma de pinça.
Com eles ia a Criança Terrível recolhendo as bolinhas
negras que estavam empilhadas numa travessa colocada diante
dele.
Quando mastigava, a boca retorcia-se de um modo
aterrador e deixava distinguir uma fieira de dentes
afiados. Quando a fechava, ficava com um ar simpático, já
que a linha longa do maxilar fazia com que parecesse que
estava a rir.
Aos pés da Criança estava a tal barata grande, do
tamanho de um gato, e que ele acariciava de vez em quando.
Numa dessas ocasiões, William pôde ver a chave pendurada no
pescoço largo da Criança, presa a uma tira fina de couro.
Ele estava sempre a acariciá-la com os dois dedos em forma
de pinça, e só quando, por fim, fechou os dois olhos
piscos, minúsculos, e adormeceu, os dois dedos se afastaram
da chave.
- Vai agora - disse a pedra, num murmúrio.
- Já sei. Cala-te - disse o rapaz a guardar a pedra num
bolso.
Depois, respirou fundo. Estava a suar abundantemente
por causa do calor da estufa. As gotas acumulavam-se nas
pestanas e mal o deixavam abrir os olhos. Se aquilo não era
um sonho, ele estava metido numa bela alhada.
Além disso, o medo voltara a afligi-lo, talvez por
saber que o elixir, afinal, não fazia efeito. Ou faria? Se
ele acreditasse, fazia de certeza.
Empurrou um pouco mais a porta e avançou. Sem medo. Ou
antes, sem muito nem pouco medo, que era o medo melhor.
A Criança Terrível ressonava agora estrondosamente,
fazendo tremer os lábios finos e retorcidos. Por sua vez, a
Princesa Diotima continuava a contar a sua história, no
307

mesmo tom de voz, não fosse ele estranhar o silêncio e


acordar.
William avançou mais um pouco. A barata grande
levantou-se e veio cheirar-lhe as pernas. Ele afastou-a e
lançou-lhe algumas pétalas de rosa. A barata, ou o que
fosse, agradeceu com uma espécie de ronronar de gato e já
não quis saber de mais nada.
Mais perto da Criança, William sentiu o seu hálito
fétido, que empestava o ar em volta. Mais um passo e ali
estava ele, diante da criatura mais terrível dos dois lados
daquele mundo. E, no entanto, era uma criança, com pregas e
dobras na pele, como um bebé chorão. Tinha os anos sem os
ter, apesar de os ter vivido. Talvez tivesse decrescido
tanto que já estava perto do seu nascimento, pensou
William, que deu o passo final e ficou coladinho à Criança.
Tão perto, que aquele hálito pestilento lhe provocou uma
revolta no estômago e ele teve de suster um vómito.
Era melhor despachar-se e, por isso, apanhou o cordel e
puxou-o cuidadosamente. Era suficientemente largo para o
poder retirar. O suor quase lhe tapava os olhos, as mãos e
os joelhos tremiam. Mesmo assim, teria conseguido retirar o
cordel se a Criança, naquele preciso momento, não tivesse
abanado a cabeça com força. Estaria talvez a sonhar, a meio
de um pesadelo, ou não soltaria pequenos gemidos aflitivos.
William largou o cordel e recuou dois passos.
A Princesa continuou a sua lengalenga, como se nada se
passasse.
Entretanto, a barata gigante subiu pelas pernas de
William e ele sacudiu-a e lançou-lhe todas as pétalas de
rosa que ainda tinha no bolso.
A Princesa falou mais alto para abafar o ruído e
William continuou a recuar, de costas, sem desviar os olhos
da Criança Terrível, que acordou e piscou várias vezes os
olhos pequeninos. Ergueu a cabeça, fixou William e sorriu
com um esgar infantil de verdadeiro espanto antes de
perguntar com a sua voz fininha de criança:
- Quem é este?
308

41

A CRIANÇA TERRÍVEL

William preparou-se para o pior, mas não era caso para


isso. A Criança Terrível parecia estar contente por o ver
ali.
- O Grimm! - disse ele com um esgar de verdadeiro
espanto. Nesse momento, entraram de rompante pela outra
porta dois ogres e uma outra criatura que a William pareceu
uma mistura de chimpanzé com um morcego e à qual não
faltavam duas asas que trazia recolhidas.
A Criança Terrível ergueu o braço direito e eles
pararam de repente. Depois, fez um gesto a indicar-lhes o
caminho da porta e eles saíram apressadamente, com o
chimpanzé-morcego a empurrar os outros dois.
Outro sinal da Criança e também a Princesa se retirou
para a estufa.
- O Grimm com a sua sombra! Será possível? -
perguntou-se então ele a aproximar-se mais de William.
Caminhava quase a arrastar os pés pelo chão, com passos
curtos mas rápidos.
- Espera, estás diferente - disse ele a examinar
William.
309
- Eu sou diferente. Eu sou o que é diferente -
respondeu o rapaz, aliviado por ser reconhecido e tratado
com tão inesperada afabilidade. - Eu sou o novo Grimm. O
outro morreu há muito tempo.
A Criança arrotou e serviu-se de mais um daqueles
bolinhos negros que não parava de comer.
- Coitado! - disse então. - Era simpático. Mas vocês
morrem, não é? Crescem e morrem. É o que faz ter o tempo
contado.
Por acaso, William não sentia isso. Era jovem e
custava-lhe imaginar o dia em que o seu tempo chegaria ao
fim.
- Está bem - continuou a Criança -, mas porque
apareceste assim de repente no meu quarto, sem eu saber?
William engasgou-se com a própria saliva e começou a
tossir. Depois disse:
- Vim antes do tempo e não houve tempo. E, mesmo assim,
era tarde...
- Tempo... - murmurou a Criança a servir-se de mais um
bolinho. - E como entraste aqui no meu quarto de criança
sem que nenhum dos meus guardas desse por ti? Não
respondas. És um Grimm, tens os teus recursos. Seja como
for, o que interessa é que chegaste. Só que preferia ter
sido avisado. Afinal, sou uma criança, tenho as minhas
manias, não é?
- Não houve tempo - disse William.
- Tempo... - murmurou outra vez a Criança a servir-se
de mais um bolinho.
Agora, já não os apanhava; fazia-os deslocarem-se pelo
ar, da travessa até à sua mão. Não admirava que ele não
desenvolvesse mais os membros: não precisava de os usar.
- Diz-me só mais uma coisa: trazes contigo alguma
daquelas criaturas medonhas do lado claro? - perguntou a
Criança a recostar-se novamente na cama desfeita. -
Duendes, uma fada, algum mago? Seja o que for...
- Trazia um duende mas foi apagado por uma aranha
gigante - respondeu William. - Agora só está lá fora o meu
unicórnio, à espera.
310

- Óptimo! É que sou alérgico. Fico com a pele aos


papos. Sendo assim, podes sentar-te, ficar à vontade. O meu
coração negro saúda-te. É uma honra, receber-te no meu
castelo. A chegada de um filho do Grande Zê também é um
acontecimento para nós, que nos alimentamos da energia que
vem do mais escuro dos homens. E também temos com eles as
nossas relações, o nosso comércio. Contra eles, nada.
Enquanto ele falava, o seu hálito pestilento espalhava-
se no ar. Era desagradável. Fora isso, era uma simpatia de
criatura. Era, então, aquela simpática criança a terrível
criatura de que todos falavam com medo?
- Espero que fiques para a grande festa desta noite -
disse. - Há destes bolinhos de tempo à descrição para
todos.
Então era isso que ele estava a comer. Bolinhos de
tempo.
- Gostava muito, mas não posso ficar. Tenho de
regressar ao outro lado antes que o dia deste lado acabe -
explicou William, que começara a desconfiar de tanta
amabilidade.
Havia naquilo qualquer coisa de estranho, pensou o
rapaz. Então a Criança Terrível era amorosa? Não lhe
parecia. A sua boca torcida contraía-se de vez em quando
num riso maligno. Afinal, como ele dizia, era uma criança.
E terrível. Logo, podia estar a tramar alguma.
A Criança franziu as sobrancelhas espessas e disse:
- Estás a estranhar a minha simpatia, não é?
Compreendo. Tens ouvido histórias sobre mim.
- Não, não - gaguejou William, embaraçado.
E lembrou-se então do que lhe dissera a fada: a
Criança, em certas alturas, podia ler-lhe os pensamentos.
Mudou de posição, baixou a cabeça para o chão e tentou
pensar que não estava desconfiado. Não sabia como se
pensava nisso e começou a pensar nas lagostas e lavagantes
que estavam num aquário onde o pai costumava levá-lo a
almoçar.
A Criança arrepiou-se, incomodada, e também mudou de
posição e de assunto rapidamente.
- E o que te traz cá? É só uma visita de cortesia?
311

William aproveitou a deixa.


- A chave do cofre da magia negra que a Rainha da Rosa
te deu... - disse ele a medo. - Foi isso que me trouxe cá.
A Criança apertou a chave entre os dois dedos de uma
mão.
- Estás a vê-la, não estás? E também deves saber que me
foi oferecida de livre vontade.
- Sei - disse William. - Mas a Rainha não o devia ter
feito, já que a chave não lhe pertencia. Estava apenas à
guarda dela. Além disso, também trocaram a minha no outro
lado. E há quem diga que tu estás por detrás disso.
A Criança acariciou o goblin, que começou a ronronar,
enquanto se roçava nas pernas do dono. Depois disse:
- É mentira. Do outro lado só espero a chegada de um
novo carregamento de tempo. Sabes com certeza que
recolhemos algum tempo de que vocês não precisam, digamos
assim. Vocês desperdiçam-no, e a mim, dá-me jeito. Agora a
tua chave, para que a quereria eu?
William respirou fundo, a ganhar coragem, o que não era
difícil. O ambiente era tão amigável e a conversa estava a
ser tão calma...
- Sabes, há muitas histórias terríveis sobre mim, e
algumas são verdadeiras - disse por fim a Criança, a
deslocar-se na sala enquanto comia mais um daqueles
bolinhos de tempo. - É a minha natureza. Todos os dias luto
com ela, mas às vezes perco. Afinal, sou uma criança, não
sou? Mas ninguém pode dizer que alguma vez afrontei um
filho do Grande Zê. Se isso da chave é um problema para ti,
entrego-te já esta, que recebi da Rainha. Assim, podes ter
a certeza de que eu não cobiço a tua nem quero abrir o
cofre da magia negra.
Enquanto falava, a Criança retirou a chave e pousou-a
na mão aberta de William, que não queria acreditar em
tantas facilidades.
- Não sei como agradecer - disse ele.
- Não precisas. E agora, descontrai e come um bolinho
de tempo comigo. Ou preferes um caramelo? Ou compota? É
tudo de tempo. Ou antes, de contratempo.
312

- Não, obrigado - disse William. - Eu quero crescer.


- E um batido de raiz de mandrágora? É muito mau.
- Também não, obrigado.
A Criança Terrível mastigou mais um bolinho, deliciado,
com os olhos fechados, e depois arrotou e saiu-lhe da boca
um ventinho azulado que se dissipou rapidamente no ar. Era
então azul, o tempo? Ou seria dos outros condimentos dos
bolinhos? E cheirava a quê, o tempo? A sopa de legumes com
uma pitada de baunilha, foi o que pareceu ao rapaz. Era
enjoativo.
- Também se diz que estás a juntar um exército e a
preparar uma invasão - disse ele.
- Outra mentira - respondeu a Criança. - Hoje é o dia
do meu desaniversário. Fazia anos, se fizesse anos. Estão a
fazer um grande bolo de tempo na minha cozinha, mas sem
velas, é claro. Nunca sei quantos anos não tenho. São para
aí uns duzentos e cinquenta anos dos vossos. Ou mais. É
tempo.
- É muito tempo mesmo - concordou William.
- Ora bem - continuou a Criança. - Não faço anos, mas
faço não-anos, que são anos que não se fazem. E quantos
mais não faço, mais não cresço. Percebes? E as criaturas
vêm de todos os cantos do Escuro para me darem os
desparabéns. Se isso é um exército... Quando te vi, pensei
que vinhas fazer o mesmo.
William estendeu a mão.
- Os meus desparabéns!
- Obrigado - disse a Criança a cumprimentá-lo. - Aceito
porque é isso que merece felicitação: não fazer anos. Não
compreendo quem festeja os anos que faz e que os vão
matando.
- Talvez festejem porque estão vivos, apesar dos anos.
Às vezes é difícil - esclareceu William.
A Criança fez uma pausa para engolir mais um bolinho e
voltou a arrotar. Depois disse:
- Anos, o melhor é desfazê-los, como eu.
- Se soubesse, teria trazido uma prenda - disse
William.
- Não há problema - observou a Criança. - Faz de conta
que me dás uma desprenda, que é uma prenda que não se dá. E
313

como desfaço anos, sou eu quem oferece os presentes. Mas o


que posso oferecer a um Grimm? Talvez muitos anos que não
terás. Queres?
- Tempo, não, obrigado - respondeu William. - Não
preciso.
- É vosso, não pode fazer-te mal - insistiu a Criança.
- Eu sei, mas quero fazer anos todos os anos -
esclareceu o rapaz.
- E se te der um goblin como este? Ou então um masquim,
que é um bicho redondo com...
- Não, obrigado. Isso também não.
Fez-se silêncio. A Criança pensava, William também,
mas, ao mesmo tempo, fazia um esforço para mudar de
pensamento.
- A Princesa? - voltou a Criança. - Estás a pensar na
Princesa! Também gostas de adormecer a ouvir uma história?
William baixou o olhar, embaraçado, e a Criança
prosseguiu:
- Sei que conheceste a irmã e te tornaste amigo da
família. Aqui as notícias correm depressa. Vão de cabeça em
cabeça. E também já reparei que tens estado quase sempre a
pensar nela.
William sacudiu os pensamentos, mas alguns ficaram.
- Talvez - admitiu ele então. - Mas não sei porquê. Os
nossos pensamentos são assim. Aparecem quando lhes apetece.
Agora, por exemplo, estou a pensar numa ida à praia no
Verão. O mar, a areia a queimar a planta dos pés. E também
em caranguejos, lavagantes. Adoro apanhar caranguejos nas
rochas. Uma vez...
- Cala-te, por favor. Fico enjoado só de te ouvir a
pensar. Talvez possas evitar dizer as palavras também.
- Caranguejo? Lavagante? - insistiu William.
A Criança Terrível rangeu os dentes e fez um esgar de
nojo e dor ao mesmo tempo.
- Bem, onde é que íamos? - perguntou ele a mudar de
assunto. - Como te disse, podes levar a chave, como sinal
do meu respeito pelo Grande Zê e da minha boa vontade. Ah!
E também a bela irmã da tua bela Princesa. Sei que vocês
apreciam essas coisas: uma família unida, feliz.
314
A Princesa, que estava à escuta atrás da porta, entrou
de rompante quando ouviu aquilo e abraçou William,
envolvendo-o numa nuvem perfumada.
O rapaz sorriu, satisfeito, mas a Criança Terrível
sentiu a sua desconfiança e justificou-se:
- A Princesa é a própria beleza, mas nós cansamo-nos de
tudo, até da beleza. Chega-se a um ponto em que é preciso
desviar os olhos e ver uma coisa feia. Além disso, como o
meu tempo não passa, tenho a sensação de que ela sempre
esteve aqui. Podes levá-la. É a minha prenda para ti, que
gostas de fazer anos. E assim é da maneira que me livro
daquelas luzes lá fora.
- Obrigado. Era mesmo a prenda em que estava a pensar.
- Eu sei.
- Sabes que mais? - continuou William. - Não mereces a
fama que tens.
- Diz isso quando ouvires mais histórias terríveis
sobre a Criança Terrível.
- E também não sei como te agradecer.
- Eu também te agradeço - disse a Princesa, que não
cabia em si de contente.
- Ora essa - disse a Criança a fazer deslocar pelo ar
mais um bolinho de tempo. - Só é pena não ficarem para a
festa de logo à noite. Hoje há um grande banquete de tempo:
bolinhos de tempo, arroz de tempo, sopa de tempo, pudim de
tempo...
- Gostava muito, mas tenho de partir já para atravessar
o escuro durante o dia - disse William, e pôs-se a pensar
em caranguejos, lavagantes e em tardes ao Sol, na praia.
- Pois então, fica para a próxima - disse a Criança. -
Vou tratar da vossa escolta até à fronteira; não quero que
vos aconteça nada. Têm a certeza de que não querem levar um
bolinho Para o caminho?
William aceitou um, só um, por delicadeza, e meteu-o no
bolso, disposto a livrar-se dele na primeira oportunidade.
Seguiram-se amistosas despedidas. Depois, a Criança chamou
os três guardas que estavam lá fora e eles conduziram
315

William até à saída principal do castelo.


Atravessaram a ponte levadiça sobre um fosso negro onde
havia uma espécie de crocodilos cegos que nadavam à
superfície com as narinas de fora, como se estivessem a ler
as notícias do dia no jornal do ar.
- Que horror! - gemeu a Princesa, que apenas conhecia o
seu pequeno jardim privado.
William também reparou que havia por perto um
interminável exército de ogres e outras criaturas do
negrume.
- Uma festa de desaniversário? - perguntou ele, cada
vez mais desconfiado. - Isto parece mais um exército pronto
a avançar.
Um pequeno grupo de ogres rodeava Uveve. Riam e
davam-lhe pequenas palmadas, muito divertidos com a
estranheza daquele animal.
Afastaram-se quando viram chegar a escolta que
acompanhava William e a Princesa. Então, o rapaz saltou
para o dorso do unicórnio e estendeu um braço para ajudar a
Princesa, mas não foi preciso. Ela estava habituada a
montar unicórnios.
William voltou a pôr a pedra ao pescoço. Continuava a
olhar em volta, desconfiado.
- Isto não me cheira... - murmurou.
- A mim já me cheira ao jardim do meu castelo - disse a
Princesa, cuja alegria fazia vibrar o ar em volta dela.
Abraçou o rapaz pela cintura e ele sentiu-se invadido
pelo seu perfume e fechou os olhos e lembrou-se da Princesa
Ariteia.
Uma palmada suave e Uveve avançou no escuro a toda a
velocidade. Um amanhã ainda cego e desconhecido espreitava
timidamente lá ao fundo, no escuro mais escuro. E foi para
ele que correram desabridamente. As patas de Uveve mal
tocavam a terra negra.
E depressa a escolta ficou para trás e desistiu de os
seguir.
- Sempre em frente - disse a pedra. - Agora não há que
enganar.
316

42

O RAPAZ INVISÍVEL

Em Londres, a meio da noite, um táxi preto parou perto


da sede da “Barry Fortune Industries” e abriu-se a porta do
passageiro. Ninguém saiu, mas a porta voltou a fechar-se.
Foi isso que viu um vagabundo que ia a passar. Ou
antes, foi isso que ele não viu. E seguiu o seu caminho, a
pensar que talvez tivesse exagerado na bebida.
- Ele já saiu? - perguntou o Resolvedor a olhar para o
táxi.
- Acho que sim - respondeu Sami. E perguntou para o
vazio: - És tu, Peter?
E do vazio veio uma resposta:
- Sou eu, o Rapaz Invisível. Que tal? Não me vêem, pois
não?
- Não.
- Boa. Agora estamos quites. Só não percebo como não me
vêem se eu estou aqui. E também quero ver como vai ser isto
se não nos vemos uns aos outros.
Não era fácil, realmente. Peter não via os dois
duendes, nem os outros três que montavam a grua invisível,
sob aquela janela do terceiro andar; os dois duendes agora
também não o viam. Por cima de tudo, pairava uma luzinha
esverdeada que todos eles viam.
317

- Isto é estranho, mas sabe bem - disse o rapaz. - Dá


para fazer uma data de coisas interessantes. Estou a pensar
nelas...
- Primeiro, tens de falar mais baixo! - exclamou o
Resolvedor. - Há regras para quem é invisível. E estar
calado ou falar baixo é uma delas. Outra é que tens de te
desviar das pessoas. Agora elas não te vêem. Sai daqui, vem
aí gente.
Peter evitou dois homens que passaram a conversar e
ficou diante do vidro espelhado do edifício, onde não
aparecia a sua imagem reflectida. Onde estava ele? Não
existia? Ser é ser visto, e se ninguém o via, nem ele,
então era porque não existia.
Entretanto, Sami deu as últimas instruções e a grua
invisível ficou montada. Era uma estrutura metálica, muito
ágil, que constava de uma pequena plataforma e de um grande
braço movido por um motor silencioso.
- Peter, onde estás ? - perguntou.
- Aqui, ao lado do candeeiro - respondeu o rapaz.
Sami caminhou para ele, apalpou-o e depois deram as
mãos. Era a única maneira de cada um deles saber onde
estava o outro. Foi assim que o duende conduziu Peter até à
plataforma da grua.
- Também não se vê - queixou-se o rapaz. - Onde está? O
duende guiou a mão de Peter.
- Apalpa a grade de protecção, pisa a base...
- Estou a ver - disse o rapaz a pisar a plataforma. -
Qual é o tamanho disto?
- Um metro quadrado, mais ou menos. Apalpa a grade de
protecção em volta e verás.
- Eu também vou - disse o Resolvedor a pôr-se ao lado
do rapaz. - Podes precisar de ajuda.
Deram as mãos e a grua subiu lentamente no ar.
Com a aflição, Peter, que se via a subir sozinho no ar,
apalpava todas as superfícies da plataforma para ter a
certeza de que não ia cair de repente, como acontecia às
personagens dos desenhos animados. E foi ficando pálido,
apesar de a altura não ser muito significativa.
318

- Se não olhares para baixo, talvez não te aflijas


tanto. Estou certo ou estou certo? - disse o duende.
Peter desviou os olhos para o céu.
- Estás certo.
Pouco depois, estavam em frente à janela do terceiro
andar, mesmo ao lado da luzinha esverdeada, que os
acompanhou na subida, e puderam ver o amplo gabinete de
trabalho do Sr. Fortune, que estava sentado na secretária a
falar ao telefone. Havia ainda mais dois homens na sala. Um
deles estava afundado num sofá de couro preto, e o outro,
que coxeava ligeiramente, passeava nervosamente pela sala a
farejar o ar, à procura de qualquer coisa.
- São os que nos andavam a seguir. Eu disse, eu
disse... - murmurou Peter.
- E os que trouxeram a chave do Clube dos Amigos das
Criaturas - murmurou o duende, em bicos de pés, muito perto
do ouvido de Peter.
O homem que coxeava vinha de vez em quando à janela e
olhava em volta agitando os braços no ar, talvez à procura
de mais fadas invasoras.
Numa dessas vezes, Peter baixou-se, assustado.
- Ele não te vê - lembrou o Resolvedor quando o homem
se afastou.
- Posso não estar assim tão invisível - disse o rapaz.
- Não penses nisso. Olha! O Fortune tirou o casaco e
pendurou-o nas costas da cadeira. Vai lá agora e tira a
chave do bolso!
Peter sentiu um calafrio.
- Tens a certeza de que não me vêem?
O Resolvedor não respondeu. Abriu mais a janela de
vidro e empurrou Peter para dentro. E ali estava ele, na
sala. Ficou Parado, à espera que o vissem. Ainda não estava
habituado a ser invisível e custava-lhe a crer que os
outros não o estavam a ver se ele estava ali.
Quando percebeu que não viam, avançou sem ruído na
direcção do Sr. Fortune, que era um homem magro, de rosto
319

anguloso e olhar frio, penetrante. Era idoso, mas estava


muito bem conservado. Talvez ficasse com algum daquele
tempo que ajudava os Escuros a roubar, pensou Peter.
Pelo caminho, teve de evitar por duas vezes o Coxo, que
continuava agitado e, de vez em quando, se levantava e
começava a circular ao mesmo tempo que agitava os braços no
ar.
- O que estás a fazer? - perguntou o outro.
- Cheira-me que anda um cá dentro. Parece que o ouço a
respirar. Não ouves?
Peter susteve a respiração. Mas as pernas não pararam
de tremer e o coração batia desenfreadamente. Não o viam,
mas se estivessem à escuta podiam ouvir o bater do coração
dele e localizá-lo facilmente, pensou. Encostou-se então à
parede, num canto, e ficou à espera. Não o devia ter feito
porque o Sr. Fortune pegou no casaco, levantou-se,
atravessou a sala e entrou na sua casa de banho privativa,
sempre a falar ao telefone.
Por sua vez, o Coxo também se afundou no sofá, cansado
de apalpar o vazio.
- E também há o raio da luz verde que não sai daqui -
resmungou ele. - Para mim, também é um deles.
- Não é, caramba! Já esteve cá dentro e o detector não
tocou - disse o outro.
- O detector! De certeza que não os apanha a todos.
- Relaxa, homem. O mais importante já está feito. O que
interessava era que o rapaz levasse o que pensa ser o
coração do outro. Uma bomba de neutrões com a potência de
não sei quantas mil toneladas de dinamite. Como é possível,
não é?
O Coxo, inquieto, voltou a levantar-se.
- Eu sei, eu sei - disse -, mas isto enerva-me. Sinto
que esta aqui um, que queres?
Peter ficou aterrado. Olhou para a janela, à procura do
Resolvedor, mas não podia vê-lo. Se tinha ouvido bem, o
irmão levara para o Outro Lado não o coração do Primeiro
Depois do Primeiro mas uma bomba poderosa.
320

Estava calor lá dentro e ele começou a suar.


Entretanto, regressou o Sr. Fortune. Voltou a sentar-se
à secretária e pendurou outra vez o casaco nas costas da
cadeira e acendeu um charuto.
Peter viu aí a sua grande oportunidade e foi até lá em
pezinhos de lã. Sem fazer um único ruído, enfiou a mão no
bolso direito do casaco do Sr. Fortune e sentiu um molho de
chaves, um isqueiro e algumas moedas. Inclinou-se então
para o outro bolso e sentiu a chave em forma de “W”. Já a
tinha apalpado antes e os dedos dele conheciam-na bem.
Foi então que o Sr. Fortune desligou o telefone e puxou
outra vez o casaco. A chave caiu ao chão, embora ninguém a
visse cair, e Peter, ao tentar sair dali precipitadamente,
derrubou uma estatueta de bronze.
- Está aqui alguém - disse o Sr. Fortune a agitar os
braços no ar, e tanto os agitou que tocou nas costas de
Peter.
- Apanhei um sacaninha deles - gritou o homem a
segurar-lhe um braço.
Notava-se que sabia lidar com criaturas invisíveis, mas
não devia estar a contar com a reacção rápida de Peter, que
se libertou.
Só que o rapaz chocou logo a seguir com o Coxo, que
correra para lá.
- Está aqui! Já não foge! - disse ele. - É um duende
dos grandes. Eu disse que o detector deixava escapar
alguns. Cheguem-me o gás, não é fácil segurar estes gajos.
Peter debateu-se, mas as mãos do Coxo estavam cravadas
nele com a força de uma tenaz.
- Sou um rapaz - gritou então.
- Pois és - disse o Coxo. - E vieste a voar com duas
asinhas de menino.
- Sou um rapaz - repetiu Peter.
- Já vamos ver isso - disse o Coxo a apalpá-lo todo. E
explicou-se para o colega: - Só estou a ver onde fica a
cabecinha dele Para lhe dar uma boa porrada.
321

O Sr. Fortune pôs-se de joelhos no chão à procura da


chave que encontrou rapidamente. Entretanto, o outro homem
borrifou Peter com um spray e os três homens ficaram a
olhar para o sítio onde ele continuava a debater-se e a
gritar, à espera de verem aparecer ali qualquer coisa. Só
que o spray anti-criatura não fazia efeito num rapaz.
- Isso não dá - perguntou o Sr. Fortune a apertar a
chave na mão.
- Ele é grande, demora mais a fazer efeito - explicou o
Coxo.
- Sou um rapaz - repetiu Peter.
Foi então que a luz esverdeada com uma aura amarela
entrou pela janela e deu duas voltas no ar. Logo a seguir,
houve um curto-circuito na lâmpada do tecto, que ardeu numa
explosão de faúlhas, e a luz foi abaixo.
Um corvo negro saído da escuridão entrou a voar pela
janela e atacou os olhos do Sr. Fortune, que largou a
chave. O mesmo corvo a procurou no chão e a apanhou com o
bico. Depois, bateu as asas e saiu pela janela antes que
alguém pudesse perceber o que se passava.
- Apanhem o pássaro - gritou o Sr. Fortune. - Ia-me
cegando... E levou a chave, acho eu. E chamem mais gente! E
tratem da luz!
Eram talvez ordens a mais e os dois homens chocaram no
escuro.
Peter aproveitou para escapar e correu para a janela.
- Onde estás? - perguntou a apalpar o ar.
- Por aqui - respondeu o Duende-Resolvedor a
estender-lhe um braço.
Peter saltou para a plataforma invisível e calcou um pé
do duende, que gemeu dolorosamente. Desta vez, porém, não
se queixou.
- A chave? - perguntou ele. - Está contigo?
- O corvo - respondeu Peter a arfar. - Ele levou-a no
bico.
- Como sabes? A chave não se vê.
322

- Roubou-a ao Fortune, eu vi. Levava o bico entreaberto


como se segurasse qualquer coisa. Era a chave. Apanhou-a do
chão.
A grua começou a descer. O corvo saiu do escuro e
sobrevoou duas vezes a cabeça de Peter, como se quisesse
falar-lhe. Peter, por acaso, também tinha o que lhe dizer.
- Leva a chave ao William - gritou. - E não o deixes
lançar o coração do Primeiro na Grande Pedra. A caixa foi
trocada e leva uma bomba potente.
O Coxo apareceu à janela com uma pistola na mão, à
procura do corvo, e ele deu mais uma volta e voou para
longe. Num instante, desapareceu no escuro do céu.
- Falaste com o corvo! - disse o Resolvedor.
- E então? Eu conheço-o. Não é só um corvo, sabias?
Veio procurar o meu irmão, foi ferido e eu tratei dele. E
agora ele fez o que nenhum de nós conseguiu e apanhou a
chave. Achas que vai levá-la ao William, que vai para o
Outro Lado?
- Tu é que o conheces. Devias ter-lhe perguntado -
respondeu o Resolvedor. E logo a seguir deu uma palmada na
testa e continuou: - Não me digas que... Já sei. Aquele
corvo é o Mago do Reino do Ar. Estou certo ou estou certo?
- Deves estar certo - disse Peter.
A grua atingiu o chão e Sami dirigiu-se para lá.
- É verdade - disse o Resolvedor -, e aquilo do coração
e da bomba potente... O que querias dizer com aquilo?
323

43

VOA, CORVO, VOA!

Depressa! Têm de sair daqui - disse o duende Sami.


Tinham acorrido vários seguranças e também um polícia que
estava nas proximidades.
Sami começou a desmontar a grua com a ajuda de mais
três duendes e Peter e o Resolvedor afastaram-se, de mãos
dadas, para mais longe.
- Um dos homens disse ao outro que a caixa que o meu
irmão levou tinha uma bomba de neutrões superpotente. Será
possível?
O Resolvedor parou de caminhar. As ideias chocavam umas
com as outras dentro da sua cabeça.
- É absurdo - disse. - Mas se relacionarmos isso com o
que a fada ouviu, aquilo dos Escuros se terem despedido dos
Homens por cem anos... Pode ser esse o plano da Criança
Terrível. Sem a Grande Pedra, o nosso mundo não sobrevive
muito tempo, até Porque a ligação com a Terra fica
interrompida. E, lá está, serão precisos pelo menos cem
anos dos vossos para que o planeta retome a sua rotação e a
ligação a este lado volte a funcionar. Mas as criaturas não
resistem tanto tempo. Sem a energia a ser catalizada, vão
extinguir-se depressa. Os Escuros também, mas eles têm o
325

Banco do Tempo, que está a abarrotar. E também estavam a


contar com a magia negra. Peter agitou-se.
- E o meu irmão? Também corre perigo? Pode nunca mais
regressar?
- Estás certo.
- Corre perigo de morte?
- Sim.
Peter indignou-se:
- E se ele morrer daquele lado não volta mais a este
lado? O duende limitou-se a apertar mais a mão do rapaz, e
ele soube qual era a resposta.
Sami aproximou-se, chamado pelo Resolvedor, e
puseram-no a par de tudo.
- É preciso mandar um mensageiro, impedir que ele lance
a tal bomba na Grande Pedra - concluíram os dois
rapidamente.
- Ainda há tempo? - perguntou Peter.
- Talvez, talvez... - respondeu Sami, ainda abalado
pelo choque.
- O mensageiro mais rápido já partiu - disse o
Resolvedor. - É o Mago do Reino do Ar. Veio sem
autorização, isso é certo, mas ainda bem. Será que te ouviu
bem?
Peter tinha as suas dúvidas.
- Não sei.
Mas também tinha as suas certezas.
- Eu sabia que não era só um corvo. Olha se eu não o
tratava... Olha se eu não lhe falava... E quanto tempo leva
ele a chegar lá?
- É rápido, muito rápido mesmo, mas...
Peter olhou o céu nocturno através da janela do carro.
- Voa, corvo, voa!
O Resolvedor foi juntar-se a Sami, que estava mais
adiante, a gritar as suas ordens ao telefone.
- Vamos fazer tudo o que pudermos - disse ele a
confortar Peter. - Tu deves ir para casa, não podes fazer
mais nada. O Nobby leva-te. E vê lá se ficas quieto até
326

estares completamente visível. Ser invisível tem as suas


vantagens mas também muitos perigos, sobretudo para quem
não está habituado. Estou certo ou estou certo?
- Talvez estejas certo. Até quando dura o efeito?
- Fizeste o programa um ou o programa dois?
- Um. Estava nervoso, com pressa.
- Então dura pouco, uma hora, hora e meia no máximo.
Adeus!
Peter caminhou para o táxi privativo de Sami com o
coração apertado.
Já em casa, no quarto, pôs-se diante do espelho grande
do roupeiro. As pernas começavam a ficar visíveis, e também
uma parte do tronco, e uma mão e uma orelha. Era, por esta
altura, um rapaz semi-invisível e não tardava a ser o mesmo
rapaz de sempre.
Foi à cozinha beber leite gelado depois de ter
confirmado que a mãe dormia profundamente. Ainda bem. Não
queria que ela o visse assim. Nem que o não visse assim.
Quando voltou ao quarto, sentou-se de lado no parapeito da
janela, a olhar o horizonte distante, onde estava prestes a
acender-se um novo dia.
Chegaria o corvo a tempo ao Outro Lado? Tinha passado
quase uma hora desde que ele partira. E, no Outro Lado,
essa hora valia talvez o dobro ou o triplo do tempo. Tinha
aprendido isso no livro da mãe.
E também sabia que William estava no final da sua
viagem, já que não poderia ficar no Outro Lado para além
daquela noite que chegava ao fim.
Se era assim com o outro Grimm, também era assim com
ele. E se estava prestes a regressar, estava também prestes
a lançar o coração do Primeiro Depois do Primeiro na Grande
Pedra.
- Willy, não atires o coração! Não atires o coração! -
murmurou. E depois repetiu só para si: “Willy, não atires o
coração! Não atires o coração!”
Não abrira a boca e não soltara um som, apenas gritara
para dentro e, no entanto, sentiu que aquelas palavras
voavam. Poderia o pensamento poderoso que guardava aquelas
327

palavras atravessar dois mundos e chegar ao seu destino?


Dir-se-ia que era uma tarefa impossível se William,
naquele momento, não tivesse sido assaltado por uma
estranha sensação de desconforto. Ia a meio da escadaria da
Grande Pedra e levava com ele o coração do Primeiro Depois
do Primeiro.
“O que foi isto?”, pensou. Parecia que estava a ouvir a
voz do irmão, a chamá-lo, talvez a pedir-lhe que
regressasse, ou então a avisá-lo de qualquer perigo. Mas
que perigo poderia agora esperá-lo?
Parou a pensar naquilo, à espera que a sensação se
repetisse. Cá em baixo, na base da Grande Pedra, muitos
metros abaixo, as criaturas olharam-no com ansiedade. O que
se passava? Porque não continuava ele?
O rapaz voltou-se e fitou a multidão. E analisou tudo
em pormenor, à procura de uma resposta para a sua
ansiedade. Lá em baixo estava outra vez montado o
cerimonial do costume, só que agora estavam acesas as
quatro chamas sagradas dos quatro reinos. Lá estava também,
sentada no trono principal, a Rainha da Rosa, com as duas
filhas a seu lado. A Princesa Ariteia acenou a William, que
lhe acenou também. Talvez ela tivesse mesmo murmurado o seu
nome, porque havia uma nuvem cor-de-rosa sobre a sua
cabeça. Era igual àquela que saiu da sua boca e subiu no ar
quando ela acordou do seu sono de pedra e disse: “Estava à
tua espera!” Desde então, também a dor cor-de-rosa que
vivia no seu peito se tornara viva e entusiasmante.
Cavalgava à vontade dentro dele como um potro numa
planície, e doía maravilhosamente. Era uma dor que alegrava
ou uma alegria que doía? Não sabia. Sabia apenas que estava
tudo bem, em harmonia, todos os problemas resolvidos. O
clima era de festa e alegria como há muito não se via no
Outro Lado. E tudo isso acontecera graças a ele, o novo
Grimm.
Agora ia cumprir o ritual de entregar o coração do
Primeiro Depois do Primeiro à Grande Pedra para que ele
passasse a viver em todas as criaturas que tanto amou e
protegeu. Estava tudo certo, portanto. Certíssimo. Então,
porque continuava a sentir-se inquieto? E de onde viria
328

aquela voz apagada que não soava mas ele ouvia: “Não atires
o coração! Não atires o coração!”
Olhou para baixo uma última vez e depois voltou-se e
recomeçou a subida. Não tinha nenhum motivo para não fazer
o que tinha a fazer. No entanto, continuava inquieto.
Pouco depois, atingiu o cume da Grande Pedra e a
multidão, cá em baixo, entrou em delírio quando ele ergueu
no ar a caixinha de madeira com o que ele pensava ser o
coração do velho Zimmer.
Nesse instante, porém, um corvo chocou com a sua mão e
fez cair a caixa, que rolou pelas escadas e ali ficou, três
degraus abaixo.
Ouviu-se o clamor da multidão, lá ao fundo.
A Rainha de Copas, que estava agora na zona dos
convidados, entre outros reis e rainhas, já não dava ordens
mas continuava a dar sugestões, mesmo que ninguém as
aceitasse.
- Cortem-lhe a cabeça! - gritou.
A seu lado, o Rei de Copas tentou lembrar-se de uma
palavra rara e distinta que fosse adequada à ocasião, mas
só lhe ocorreram as palavras “degenerescência” e
“ignomínia”, que não lhe pareceram muito apropriadas. Por
isso, não disse nada.
Entretanto, o corvo pousou e ganhou a forma de um homem
alto e imponente, todo coberto por um manto negro.
Interpôs-se entre William e a caixa.
- Não lhe toques - disse. - É uma bomba potente, não o
que pensas que é.
O Mago recolheu a caixa e abriu-a cuidadosamente sob o
olhar ávido de William e o clamor crescente da multidão.
- É uma microbomba de neutrões.
- Mas então os Amigos não eram amigos?
- Um traidor. Havia lá um traidor a trabalhar para o
Barry Fortune, que, por sua vez, trabalha para os Escuros.
Era o Mestre de Cerimónias.
- Ah!
William ficou à espera que as ideias se arrumassem
dentro da sua cabeça. Lembrou-se do jantar no Clube, dos
incidentes, da luzinha esverdeada a atravessar o Sr.
329

Potter, como se quisesse avisá-los...


Nesse momento, cá em baixo, um Duende-das-Pedras
esbaforido ajoelhava-se diante da Rainha da Rosa e
comunicava a nova do mensageiro acabado de chegar. Era o
primeiro mensageiro de Sami, comunicando a ameaça.
A Rainha ergueu-se e olhou William e Ualala, o Mago do
seu reino, e percebeu tudo o que se passara.
- A Rainha da Rosa pede-vos que desçam! - gritou o
Coelho Branco com a ajuda de um megafone de lata.
William e o Mago desceram a escadaria de pedra e, cá em
baixo, tudo se esclareceu diante de todos e das quatro
chamas sagradas. Ualala, o Mago do Ar, entregou a William a
chave verdadeira e narrou-lhe tudo o que se passara nessa
noite do Outro Lado.
- Os dois somos um - comentou o rapaz, orgulhoso com o
feito do irmão. - Não sei como, mas ouvi a voz dele quando
ia lançar a caixa. Se não fosse isso, nem o Mago teria
chegado a tempo.
Conversaram, conviveram e festejaram. Quando William
sentiu tonturas, náuseas e as pernas a fraquejarem,
percebeu que o seu tempo, daquele lado, tinha chegado ao
fim.
O horizonte, ao longe, clareava, e também ali não
tardava a nascer o Sol de um novo dia.
- Tens de partir - disse a Princesa Ariteia. - Quando o
Sol nascer, já cá não deves estar.
Tinha acabado a primeira aventura de William no Outro
Lado.
- Quanto tempo passou do lado de lá? - perguntou
William.
- Uma noite inteirinha. Não mais - garantiu a Princesa.
- Uma noite! - espantou-se William. - É como se fosse
um sonho.
Não houve tristeza na despedida, embora ele fosse para
um outro mundo, ali ao lado.
Tim, o novo Duende-Escudeiro do novo Grimm
apresentou-se e assobiou para chamar Uveve.
330

A caminho de casa, o duende explicou a William que


teria de regressar pelo mesmo sítio por onde viera. Depois,
o Duende-Mensageiro se encarregaria de o ensinar a passar
num fortim ou num alinhamento de pedras através de uma
porta de ar.
Em casa, William sentiu-se realmente em casa.
- Temos de mudar a decoração - disse ele.
- Eu trato disso - prometeu Tim. - Vieste antes do
tempo, não te lembras?
William olhou de soslaio para o espelho e lá estava o
tal rapaz que o olhava. Sorria, satisfeito por ter feito o
que tinha a fazer. Depois, abriu a primeira página do Livro
em Branco, que agora estava a abarrotar de histórias, todas
escritas à mão, numa letra miúda e certinha. Histórias e
mais histórias, incluindo a história dele. Estavam
cruzadas, misturadas, e competia-lhe depois a ele escolher
as que mereciam ser contadas.
Uma bela tarefa, apesar de tudo.
William abriu a porta onde estava escrito “Não abrir”.
Viu a sua sombra a seu lado e teve mesmo a impressão de
que ela saltou para o vazio antes dele.

Pouco depois, em Londres, Peter sentiu um alívio


inexplicável. Talvez porque foi para ele o primeiro
pensamento de William quando emergiu no buraco da velha
mina, no cimo de uma coluna de ar ascendente.
“Está tudo bem”, pensou. “O William já vem a caminho.
Talvez até já tenha chegado.” Era como se um coração que
tivesse parado de repente voltasse agora a bater.
O telefone de casa tocou e ele foi a correr e tropeçou
no tapete, caiu, voltou a erguer-se e atendeu:
- Willy!
Era outro William, o Sr. William Bent, o advogado da
mãe. E, pela voz grave e arrastada, não tinha boas
notícias.
331

EPÍLOGO
333

44

O PARQUE GRIMM

William bateu várias vezes seguidas com os pés na terra


da velha mina para ter a certeza de que estava a pisar
outra vez solo firme.
E aí estava ele outra vez no seu velho mundo, onde ele
era apenas mais um rapaz entre tantos outros. Um sítio
óptimo para descansar das canseiras, pensou.
O tio, que tinha adormecido encostado a uma parede,
acordou e abriu os olhos.
- És tu? - gemeu ele a abraçar William, muito
emocionado. - Tive medo, tanto medo que tu não voltasses...
- Fui e voltei.
- É verdade, então?
- É tudo verdade, tio.
Saíram da velha mina abandonada e encararam o dia.
- Olá, lado de cá! - disse William muito alto.
Agora que estava deste lado, o Outro Lado era outra vez
o outro lado.
Ainda com os olhos a piscar, ligou o telemóvel e falou
ao irmão.
335

Peter ouviu o telemóvel a tocar e, antes de ver o nome


no ecrã, sentiu que era William.
- William! O corvo chegou a tempo? Estás bem? Sabes que
eu também entrei na história? E que fiquei invisível? E que
vi uma fada?
William respirou fundo. Dava-lhe jeito conhecer uma
palavra que dissesse tudo o que ele tinha para dizer.
- Tanta coisa, Peter! Tanta coisa!
- Vamos para aí! Vou acordar a mãe. Ligo-te pelo
caminho para irmos falando.
Elisabeth Zimmer ouviu o filho aos berros e saltos no
quarto e veio ver o que se passava.
- Foi o Willy. Chegou, mãe!
- Chegou de onde? Ele não estava no quarto a dormir?
- Está na quinta. Partiu ontem de madrugada, muito
cedo, com o tio Nathan, que veio a Londres e não quis
regressar sozinho.
- Como? Não está no quarto? Mas...
- Não quisemos acordar-te. Tem calma, está tudo bem.
Não íamos hoje? Eles foram andando...
- Está tudo mal - gritou a mãe, muito maldisposta. Mas,
também, ela era sempre assim na primeira meia hora depois
de acordar.
- E tu? Dormiste vestido? Parece que passaste a noite a
pé. Estás uma lástima.
- E então? Quanto pior se acorda, melhor se passou a
noite.
- O quê? O que passa aqui? Peter abraçou a mãe,
eufórico.
- Nada, mãe. Sossega. Olha, vou fazer-te um café.
Queres forte ou assim-assim?
- Muito forte. Acabo de receber uma má notícia. Muito
má mesmo.
William reparou que a mãe tinha os olhos vermelhos de
chorar e abraçou-a com força.
- O que foi?
336

- A quinta - disse ela. - Vamos ter de a vender.


Perdemos o recurso no Tribunal e temos de pagar as dívidas
da antiga firma do teu pai. Negócios! Nós não éramos gente
de negócios. Eu avisei-o.
- Não pode ser. É a nossa casa!? - alarmou-se Peter. -
A casa do Primeiro Depois do Primeiro.
- Pode ser, sim. Temos um prazo muito curto para
pagarmos as dívidas.
- Vendemos esta - sugeriu ele.
- Não podemos. É onde vivemos. Temos de vender a
quinta, embora metade seja do teu tio. Mas a minha parte dá
para pagar a dívida. Além disso, temos uma boa proposta da
imobiliária que quer lá construir o Parque Grimm.
- O Parque Grimm?
- Sim. Eles sabem que os Grimm passavam ali as férias e
querem recriar o universo dos livros deles. Já vi a maquete
lá na imobiliária: casas com jardins e piscinas, cavernas,
pontes de madeira sobre os canais de um grande lago. E,
claro, estátuas de duendes, fadas, bruxas, ogres, e das
personagens dos contos dos Grimm: o Patinho Feio, a Bela
Adormecida, a Branca de Neve e os Sete Anões...
- Estátuas de duendes em vez de duendes... - disse
Peter.
- O quê?
- Nada, nada. E a casa, vai ser destruída?
- Transformada num hotel moderno. Acho que só
aproveitam as paredes. Preferia vendê-la a alguém que a
mantivesse viva, com as suas criaturas invisíveis, a vê-la
transformada num hotel de luxo com estátuas de plástico,
mas não podemos dardos ao luxo de desperdiçar aquela
oferta.
- E o retrato do Primeiro? Onde vai ficar o retrato? -
quis saber Peter.
A mãe sorriu pela primeira vez naquela manhã pouco
prometedora.
337

- Acho que tem de vir viver connosco para aqui - disse.


- Talvez ele goste.
Peter torceu o nariz.
- Não me parece. Vai ficar furioso.
Nesse momento, William e o tio chegavam à Quinta da
Pedra Azul.
Alicia veio ter com eles, num alvoroço, já que não
estava a contar com gente tão cedo, e ofereceu-se para
fazer um bom pequeno-almoço.
- Não para mim - disse William. - Vou descansar para o
quarto.
- Vai, vai - concordou o tio. E explicou-se, para
Alicia: - Ele viajou na camioneta da noite. Mas eu aceito o
pequeno-almoço. Estou esfomeado.
A pequena Tess seguiu William até ao quarto,
metralhando-o com perguntas. Aí, William mostrou-lhe o
Livro em Branco, que agora já não estava em branco.
- Está cheio de histórias, vês? Histórias novas,
maravilhosas. É só escolher. Mas agora vou contar-te a
história de um rapaz que saltou para um abismo sem fundo e
foi ao outro lado do mundo, onde vivem os duendes e as
fadas que aparecem por aqui. Aqueles que nós apanhámos a
beber cerveja na Casa da Tralha, por exemplo.
- Eia!
William estava muito cansado, até de falar, já que
tinha contado quase tudo ao tio pelo caminho e também parte
disso ao irmão, pelo telefone. Por isso, adormeceu quando
contava a sua história. Ia ainda na conversa com o Gato das
Botas, que procurava um sapateiro.
Tess abanou-o e ele acordou e retomou a história mas
voltou a adormecer logo a seguir, e logo na parte em que um
ciclope empurrava o tal rapaz para dentro de uma caixa de
madeira.
338

- E depois? - reclamou Tess a abaná-lo.


Mas ele não reagiu. Tinha caído num sono sem sonhos,
profundo e impenetrável.
- Deixa-o dormir - disse o tio Nathan a espreitar pela
porta. - Anda que eu conto-te o resto. Onde é que ele ia?
- No ciclope. Apanhou o rapaz e meteu-o numa caixa onde
estavam dois carneiros e um porco, à espera de serem
comidos.
- Ah! Sei muito bem essa parte. O rapaz gritou muito
alto: “Sou um Grimm! Sou um Grimm!”
Foram para o alpendre das traseiras, onde Alicia serviu
o pequeno-almoço, e quando, uma hora depois, o tio Nathan,
estendido numa espreguiçadeira entre as abóboras que
secavam ao Sol, chegou ao fim da história, também estava a
dormir.
Entretanto, na estrada, Elisabeth e Peter vinham a
caminho da quinta. Ele também adormeceu durante parte da
viagem e só acordou quando já estavam perto.
- Sonhei com o diamante que está escondido na quinta -
disse ele então. - Estava em cima da mesa de jantar quando
acordámos de manhã. Era do tamanho de uma romã e brilhava
como um Sol. E já não era preciso vender a quinta. Achas
que foi um sinal? Agora é que dava jeito que ele
aparecesse.
- Já te disse que não há nenhum diamante escondido -
respondeu a mãe.
- Pois disseste, mas no teu livro também há uma
passagem onde as criaturas do Outro Lado oferecem um
diamante ao nosso Primeiro, que o escondeu debaixo de uma
pedra azulada.
- Já te disse que o tesouro era a história. Algumas
histórias são como as pedras. Quando encontramos uma, isso
é o sinal de que pode haver ali um tesouro escondido. E
esse tesouro é o que dessas histórias fica em nós e aí se
afunda para sempre, como aquelas pedras que as crianças
lançam aos poços. Isto também está no meu livro. Não leste?
- Já não me lembro - disse Peter. - Mas também tenho
algumas dessas pedras aqui dentro, no meu poço.
339

- Então já sabes.
Á hora do almoço, na Quinta da Pedra Azul, já toda a
família estava reunida. O problema da venda da propriedade
impediu que Elisabeth Zimmer se ocupasse da desobediência
de William, que aproveitou para se afastar com o irmão para
um recanto do jardim, onde os dois trocaram excitadamente
as alegrias das suas aventuras da noite anterior em dois
mundos diferentes. A pequena Tess, que não os largava,
nunca tinha ouvido tantas histórias no mesmo dia.
Por sua vez, na casa, o clima era pesado e
constrangedor. Alicia andava a chorar pelos cantos e
Preston tinha-se fechado no quarto e não queria ver
ninguém. Elisabeth Zimmer e o irmão também se fecharam no
escritório e, ao fim de algum tempo, tomaram a decisão
inevitável.
- Vamos vender a quinta - disse Elisabeth.
- Tem de ser - concordou o irmão.
Mais: se tinham de o fazer, era melhor que o fizessem
depressa. Cada dia que passassem ali, a partir daquele
momento, seria um dia de sofrimento. Por isso, ligaram para
a imobiliária e marcaram a assinatura do contrato para a
manhã seguinte.
No fim de tudo, estavam ambos arrasados, com os olhos
cobertos de lágrimas, e saíram do escritório em silêncio,
de cabeça baixa.
Ele deambulou vagamente pelo jardim, a bater, com ar
ausente, em montículos de tojo seco. Ela subiu as escadas
em silêncio e quando passou no hall, não teve coragem para
olhar o retrato do Primeiro Depois do Primeiro. Se o
tivesse feito, no entanto, teria reparado que ele não
parecia estar assim tão preocupado. Ou estaria contente por
ir viver para Londres? Já no quarto, Elisabeth Zimmer deu
duas voltas à chave por dentro e deixou-se cair na cama e
chorou, chorou, chorou.
Por essa altura, William e Peter, no jardim, também
eram atingidos pela onda de tristeza.
340

- A quinta está em perigo - disse Peter. - E o resto


também. Árvores, ervas, fontes, poços, bichos da terra e do
ar, duendes, fadas, gnomos... tudo isso acabará. Vão fazer
aqui o Parque Grimm. Sabes o que é?
- Não.
- Nem queiras saber. William agitou-se, incrédulo.
- Não pode ser. E aqui que há passagens, que o
Duende-Mensageiro me vem procurar.
- A menos que aparecesse o tesouro escondido - disse
Peter. William sorriu, incrédulo.
- Se existisse, já tinha aparecido.
- Também tu? Ouve: imprimi algumas folhas do livro da
mãe. Tens de as ler.
Sentaram-se num banco de pedra e Peter desdobrou duas
folhas de papel que tirou do bolso de trás das calças. E
leu:

Certa noite, Wilfred Siegler...

- Quem é esse? - interrompeu William.


- É o Primeiro. A mãe usou outros nomes. Cala-te e
ouve:

Certa noite, Wilfred Siegler recebeu um presente


inesperado dos duendes, que queriam agradecer-lhe todos os
favores e ajudas recebidas: uma pedra da sorte. Nem mais
nem menos do que um diamante do tamanho de uma romã que
brilhava como mil Sóis.

Peter parou de ler.


- Estás a ver? O diamante existe. William começou a
interessar-se.
- Sim, e depois?
- Depois, mais adiante, o sobrinho Hans, que era o
Grimm, Pergunta ao tio a quem se destinava aquele tesouro
que ele escondera. E ele respondeu assim; ora ouve:
341

O tesouro pertence a casa e só pode ser usado se um dia


ela estiver em perigo. Há uma pedra que guarda essa pedra.
É uma Pedra-Mãe e guarda-a como uma mãe guarda e vela por
um filho. Quando chegar a hora, e não antes, todos poderão
ouvir o seu grito de pedra. E poderão, finalmente, ver o
seu precioso coração de Pedra-Mãe.
- Que dizes a isto? - perguntou Peter. - E lembra-te
que esta história foi soprada à mãe pela fada. E a
verdadeira história do Grimm. Ou não foi graças a ela que
chegaste ao Outro Lado? Não era tudo verdade? Além disso,
tens no bolso uma pedra que fala. Não podes admirar-te por
haver por aí uma pedra que grita.
William bocejou.
- Está bem. Pode ser verdade. Mas, nesse caso, temos de
esperar que a pedra grite.
- Se for verdade, não temos de esperar muito. Chegou a
hora. E o livro diz que ela vai gritar quando chegar a
hora. E mostrar o seu precioso coração de Pedra-Mãe.
- O que será isso, uma Pedra-Mãe? - perguntou William
num tom mais elevado, na esperança de ser ouvido pela sua
pedra.
Mas já sabia que ela não respondia à maioria das
perguntas, sobretudo quando estavam deste lado, e ainda por
cima acompanhados.
Por sua vez, Peter olhou em volta. Perto deles havia
pelo menos umas seis pedras azuis, mas havia dezenas,
talvez centenas espalhadas pela quinta, e uma delas haveria
de se pôr a gritar quando chegasse a hora. Só tinham de
estar atentos.
- E se ela gritar baixinho? - perguntou William.
- Não penses nisso - respondeu Peter. - O livro diz:
“Todos poderão ouvir o seu grito de pedra.”
342

45

VAI UM BOLINHO DE TEMPO?

À noite, depois de um jantar silencioso que mais


parecia um velório, o tio Nathan foi descansar para o
quarto. Estava pior da coluna por causa da noitada na mina.
Por sua vez, a irmã dirigiu-se ao escritório.
- Mãe, não trabalhes esta noite - disse Peter a
abraçá-la ternamente. - Vai dar uma volta pelo jardim ou
fica aqui à escuta, a ouvir as pedras.
- A ouvir as pedras? Que conversa é essa?
- Olha quem pergunta - respondeu Peter. – Tu é que
dizes no teu livro que uma pedra vai gritar quando chegar a
hora. Uma Pedra-Mãe, que guarda o diamante escondido. Uma
Pedra-Mãe... Porque te lembraste disso?
- Sei lá. Era para aí que a minha imaginação estava
virada. Não gostaste da ideia? E uma pedra que guarda o seu
tesouro e o protege como uma mãe guarda e protege um filho.
- Gostei. É bonito. E, melhor ainda, pode ser verdade.
Se escreveste isso, tens de acreditar nisso. Vai dar uma
volta lá fora, mãe. Vai ouvir as pedras. Passa por elas e
ouve-as.
A mãe levou as mãos à cabeça, mortificada.
343

- Está bem, Peter. Vou tentar. Lá no escritório, em


silêncio, talvez possa ouvi-las. Se elas falarem, é claro.
Mas elas só falam nas histórias, não na vida, que é o sítio
onde estamos agora.
- É a mesma coisa - disse William. - Tu é que não
sabes.
- O quê? O que é que eu não sei?
- Nada, nada. Esquece. Peter voltou a abraçar a mãe.
- E, já agora, se vires uma luzinha esverdeada do
tamanho de uma maçã e com uma aura amarela, segue-a. Há
luzes que nos dizem onde as coisas estão.
A mãe perdeu a paciência de vez.
- Peter! Já chega! Tu não estás bem. Ele sorriu.
- Ouve, mãe: essa luzinha pode ser a tua fada, por
exemplo; tu acreditas nela, ou não?
A mãe também sorriu. Era difícil acreditar em fadas
quando não estava sentada diante do seu computador a
escrever as suas histórias.
- Vou tentar, Peter - disse. - Mas tenho tão pouco
tempo... William aproximou-se e estendeu à mãe um bolinho
de tempo que tinha acabado de encontrar, quando mexia no
bolso.
- Então toma lá - disse. - Tu é que mereces isto. - O
que é?
- Um bolinho de tempo.
- De tempo? - perguntou a mãe a examinar o bolinho com
o olhar. - Comia já uma dúzia. Parece-me mais um brigadeiro
de chocolate. E, por acaso, estou a precisar de um.
Elisabeth mastigou o bolinho e foi ficando com um esgar
de enjoo.
- O que era isto que eu comi? - perguntou.
- Já te disse. Era um bolinho de tempo. Dos melhores -
respondeu William.
- Que nojo! Sabe a espargos com açúcar. O que deu à
Alicia para fazer bolinhos de espargos com açúcar?
344

William riu com vontade. O bolinho podia não ter lá


muito bom sabor, mas era tempo do nosso; também não poderia
fazer-lhe mal.
- E vocês façam o possível por dormir esta noite, sim?
- Está bem - disse "William a bocejar.
- E se vires a luzinha... - lembrou Peter enquanto a
mãe se afastava.
Elisabeth Zimmer entrou no escritório, sentou-se à
secretária e ligou o computador. Porém, algo lá fora lhe
chamou a atenção. Levantou-se e abriu a porta que dava para
o jardim iluminado pela Lua.
Sentira-se, de súbito, invadida por uma inexplicável
sensação de calma. Sem olhar para o relógio, soube que
tinha ainda algum tempo, não sabia quanto, e foi dar uma
volta pelo jardim. Afinal, tinha prometido ao filho que o
faria, embora não tencionasse fazê-lo.
E o que se faz quando se tem tempo? Nada de especial. E
então dá-se atenção às coisas mais simples, pequenas e
banais. Chegou-lhe ao nariz o perfume das flores de lavanda
e resolveu seguir esse rasto. Depois, desviou-se para
acompanhar uma coluna de formigas obreiras até ao seu ninho
e também reparou no pirilampo verde que parecia um semáforo
a dar-lhes passagem, e no escaravelho que arrastava
esforçadamente um pedacinho de uma folha. Tantas coisas que
não via desde que deixara de ser pequena...
Sentou-se na relva húmida, sob a luz da Lua, a ver
passar o tempo. À volta dela, tudo se movia: os fetos, a
urze, os ramos do sabugueiro. E, no entanto, não havia uma
única aragem. Era como se as árvores, as pedras e os bichos
da terra quisessem dizer-lhe qualquer coisa.
Lembrou-se então de tudo o que tinha para fazer em
casa. Por um instante, só. Logo a seguir, pensou que tinha
ainda tempo. Não sabia quanto, só que tinha tempo. Reparou
então que, diante dos olhos dela, mais ou menos a um metro
de distância, estava uma luzinha esverdeada com uma aura
amarela.
345

Seria possível? Como poderia Peter adivinhar que ela ia


ver uma luzinha esverdeada com uma aura amarela? Sentia-se
a escorregar perigosamente para dentro de um sonho.
E o que era aquilo? Uma criatura elemental emitindo um
sinal? Por exemplo, a sua fada? Teria chegado também a
altura de ela ver uma? Ou seria matéria espiritual, uma
zona energética de um espírito, por exemplo? O Primeiro, ou
antes, o plasma visível da sua velha alma?
E estaria a indicar-lhe o sítio onde estava a pedra que
guardava outra pedra?
Recriminou-se por estar a dar crédito a hipóteses tão
fantasiosas. Mas que havia de fazer se estava a ver uma
luzinha esverdeada com uma aura amarela? Se aquela pedra
azulada mais próxima dela gritasse, como acontecia no seu
livro, também não se espantaria. Mas isso não aconteceu.
Um morcego passou perto da luzinha, que foi na direcção
da casa. Volteava no ar morno como se fosse um floco de
neve ao sabor do vento. E era uma luzinha cada vez mais
fraca, mais ténue.
Ela seguiu-a sem pensar no que estava a fazer, a
saltitar pelos carreiros poeirentos, e viu-a entrar em casa
pela porta aberta do escritório. Aí, percorreu salas e
corredores até chegar ao hall da entrada principal, onde se
deteve por um instante, à altura do retrato do Primeiro
Depois do Primeiro, como uma criança que se descobre,
espantada, num espelho.
Depois, foi pelas escadas acima e Elisabeth seguiu-a.
Sempre queria saber onde aquilo ia dar. Pôs a mão no
corrimão e algo ou alguém que vinha a descer por ele abaixo
chocou com o seu braço e fê-la cair.
Ela não via ninguém, além da luzinha, que piscava, cada
vez mais ténue, no cimo das escadas, e foi isso que mais a
assustou e a fez gritar. Era como se alguém viesse a descer
pelo corrimão e não conseguisse evitar o choque. Mas o quê?
Quem?
346

William e Peter, que estavam no alpendre, acorreram


imediatamente, e o tio Nathan também apareceu, em roupão.
- O que foi? - perguntou Peter, que foi o primeiro a
chegar. A mãe ainda estava pálida e assustada, a varrer o
ar em volta com os braços, à procura não se sabia de quê.
- A luzinha esverdeada com uma aura amarela - disse ela
por fim. - Vi-a no jardim e segui-a até aqui. Parecia que
queria levar-me a qualquer lado.
- Onde está? - perguntou Peter, muito excitado.
- Desapareceu - respondeu a mãe com a cabeça às voltas
no ar. -Já não a vejo. Mas juro que estava aqui.
- Não te canses - disse Peter. - Nós acreditamos em
luzinhas esverdeadas. Onde te apareceu? O que fez?
A mãe respirou fundo, a tentar ganhar fôlego.
- Vi-a no jardim quando fui dar uma volta, e como me
disseste para a seguir, segui-a.
- E depois?
- Primeiro ficou ali parada no ar, por cima de uma
pedra, junto da fonte e do sabugueiro grande. Até ser
assustada por um morcego que passou perto. Depois, veio
para aqui e eu segui-a, embora me sentisse estúpida. Ela
foi pelas escadas e eu pus a mão no corrimão para subir
mais depressa; e então qualquer coisa chocou com o meu
braço e me atirou ao chão.
- Estás magoada? - perguntou o irmão a inclinar-se para
ela.
- Não, mas ainda não recuperei do susto. E depois ouvi
o barulho de um corpo a cair pelas escadas. Só que não vi
nada, ninguém. Só a pancada, só o barulho.
William e Peter trocaram um olhar cúmplice. Estavam
ambos a pensar a mesma coisa: andava por ali um duende,
talvez o Duende-Mensageiro. Vinha certamente do quarto de
William e apeteceu-lhe descer pelo corrimão, como eles
próprios faziam quando eram mais novos.
- Talvez fosse só uma impressão minha, com o medo -
admitiu Elisabeth Zimmer, a cair em si.
347

- É o mais certo - disse William. - Ou então era um


duende, desses que dizem que andam por aí embora não se
vejam. Talvez tenha chegado a tua altura de chocar com um.
Acontece.
- Ora, William!
- Alguma coisa era, ou não?
Peter continuava preocupado com a luzinha. Subiu ao
primeiro andar, deu uma volta por ali e voltou, sempre com
o nariz no ar.
- Não viste para onde ela foi? - perguntou.
- Não vi - respondeu a mãe. - Mas ela já estava fraca.
De vez em quando apagava-se. E como é que sabias que eu
podia ver uma luzinha esverdeada com uma aura amarela? Isso
é que eu quero saber. Já a tinhas visto por aí, não tinhas?
Peter baixou os olhos para o chão e acenou
afirmativamente com a cabeça.
A mãe levantou-se, a friccionar a zona atingida.
- Bem me parecia que andavam a acontecer coisas nas
minhas costas. E agora também à frente do meu nariz.
Pela bandeira da porta entrou uma golfada de vento
nocturno e durante algum tempo ninguém disse nada. Uns
olhavam o retrato do Primeiro Depois do Primeiro, que
também nada dizia, e outros meditavam, de cabeça baixa.
Por fim, Nathan Zimmer recapitulou, a olhar para a
irmã:
- Ora bem, seguiste uma luzinha esverdeada com uma aura
amarela e chocaste com uma criatura invisível. Foi isso?
Ela sentou-se nos degraus da escada e passou a mão
pelos cabelos.
- Talvez esteja transtornada; ou doente, sei lá. Estes
dias têm sido tão difíceis...
348

46

COMO NOS LIVROS

O tio Nathan ofereceu-se para fazer um chá e levou a


irmã para a cozinha. Por sua vez, William e Peter saíram
para o jardim e procuraram a luzinha por todo o lado, sem
resultado. E do duende que chocara com a mãe também não
havia rasto.
Quando desistiram das buscas, foram até à cozinha, onde
a mãe recuperava com a ajuda de um chá de camomila.
- A luzinha desapareceu - disse Peter. - Talvez lhe
tenha acabado o gás ou a electricidade. Lembras-te da pedra
onde esteve pousada quando a viste?
- Não esteve pousada, esteve por cima dela durante um
tempo. Pouco. Se é que esteve. Já não tenho sequer a
certeza de que houvesse uma luz esverdeada. Talvez a tenha
visto porque me falaste nela, ou porque desejei vê-la. Acho
que não ando bem.
- Eu também a vi, noutras alturas - confessou Peter. -
E sei que nos quer ajudar, seja lá o que for. Talvez
quisesse mostrar-te a pedra que guarda a outra pedra. O
tesouro.
- Também pensei nisso, confesso, mas só nos faz mal.
Pode andar por aí uma luzinha esverdeada, seja o que for,
uma borboleta luminosa, um pirilampo voador que exagera na
iluminação, ou mesmo a aura de uma fada ou de um espírito.
349

Mas não há nenhum tesouro.


Ainda assim, Elisabeth Zimmer fez a vontade aos filhos
e levou-os até ao sítio onde vira a luzinha pela primeira
vez, junto da fonte e do sabugueiro grande. Afinal,
continuava a ter tempo para tudo. Mas já não se lembrava do
sítio ao certo. Tinha mesmo muitas dúvidas. “Acho que era
esta”, dizia. E logo a seguir: “Ou será aquela?” Eles
esperaram pacientemente e, por fim, ela concluiu:
- Uma destas foi - disse.
Fizeram as contas e havia quatro pedras sob suspeita de
esconderem o tesouro.
- Vamos a isto - disse William.
- Eu vou buscar as pás - disse Peter.
- Vão cavar!? - espantou-se a mãe.
- Não duvides - disse o irmão. - Quem me dera ter saúde
e força para os ajudar...
- Nathan! Também perdeste o juízo?
Ninguém dormiu naquela noite, e na casa havia sempre
uma ou mais luzes acesas, como se ela própria fosse incapaz
de fechar os olhos e descansar.
Um pouco mais tarde, Preston juntou-se aos dois rapazes
e ajudou-os a cavar. Não fez perguntas nem comentários,
apenas chegou com uma pá e começou a cavar ao lado deles.
Também ele acreditava no tesouro, tanto que já tinha feito
as suas escavações desde que soubera da venda eminente da
quinta.
Graças à força de Preston, por volta das duas da manhã
tinham diante deles um buraco com quase um metro de
profundidade. Era um buraco vazio, sem nada dentro, à
excepção de umas tantas raízes velhas e secas e dos bichos
da terra que eles tinham desassossegado.
- Não vale a pena cavar mais aqui - decidiu William. -
Mais vale passar a outra pedra. Ainda nos faltam três.
350

Fosse como fosse, houve uma onda de desânimo. Aquela


era a pedra em que depositavam mais esperanças. Porém, e aí
por volta das quatro e meia da madrugada, já o segundo
buraco estava feito. Mas era outro buraco vazio, sem nada
lá dentro.
- Ainda faltam duas pedras - disse William a tentar
animar os outros.
- Se aparecer, está na última. Isso é certo - disse
Peter, que era, de todos, o mais desalentado.
Preston retirou a terceira pedra e começou a cavar em
silêncio.
Elisabeth Zimmer vinha de vez em quando acompanhar as
operações e regressava ao escritório. Não tinha coragem
para impedir os filhos nem podia trabalhar ou dormir
descansada sabendo que eles estavam lá fora, no escuro, a
cavar a terra.
Nathan Zimmer, que também passou muito tempo com eles,
ajudando em tarefas mais leves, ou dando conselhos e
incentivos, obrigou a irmã a deitar-se e a descansar, já
que na manhã seguinte teria de receber os homens da
imobiliária e assinar o contrato.
- Eu tomo conta dos rapazes - disse. - Afinal, também
vi duendes quando era novo. E ainda acredito em tesouros
escondidos.
E, assim, as escavações continuaram pela noite fora.
Até que as gotas de orvalho escorregaram das folhas e
fugiram dos primeiros raios de Sol. Este subiu no ar,
varreu as sombras do jardim, iluminou todos os recantos e
tornou o mundo claro, legível, sem rasto de mistério.
Por essa altura, os dois rapazes e Preston já tinham
cavado o suficiente para saberem que sob a terceira pedra
também não havia nada, além de raízes secas e bichinhos da
terra.
- Passamos à última - sugeriu Peter. - É a que me
cheira.
- Porquê?
- Porque é sempre assim. E já temos pouco tempo.
351

Preston pousou a pá e explicou-se. Estava na hora de se


preparar para ir trabalhar para a fábrica.
- Nós cavamos - disse Peter.
- Cavamos? - perguntou William, quase sem voz, - Estou
de rastos.
Quando Preston saiu na sua motorizada barulhenta, meia
hora depois, a pequena Tess juntou-se a eles, disposta a
ajudar. Mas, nessa altura, já havia muito desânimo entre os
dois cavadores.
Por volta das dez da manhã chegou a comitiva da
imobiliária. O Sr. Lancaster, o próprio director-geral da
empresa, que ia assinar o contrato, um homem muito anafado
que mal cabia no fato, e o seu assistente, David Gross, um
ruivo sardento, ainda jovem, muito elegante e muito bem
penteado. Com eles vinha ainda um fotógrafo, que começou a
disparar em todas as direcções assim que saiu do carro e
pôs os pés no chão.
Traziam os três fatos pretos, impecáveis, e gravatas
também escuras, muito adequadas a um funeral.
O tio Nathan recebeu-os e levou-os a dar uma volta pelo
jardim, tendo o cuidado de não se aproximar da zona onde os
rapazes continuavam a cavar a terra. O Sr. Lancaster
aproveitou para se fazer fotografar junto à Fonte Grimm,
enquanto explicava onde ia ficar o hotel de cinco estrelas,
a ponte de madeira sobre o lago, as cavernas artificiais,
as grandes estátuas, a casinha de chocolate, o bosque
encantado, etc, etc.
William pousou a pá, desalentado.
- Não vale a pena cavar mais - disse. - Daqui a um
bocado está o contrato assinado.
Peter, pelo contrário, cavou ainda mais depressa.
- Seja como for, temos de cavar. Com contrato ou sem
contrato. Se o tesouro existir, não vamos deixá-lo cá
ficar. E ainda temos algum tempo.
- Pouco - disse William a cavar ainda com mais força.
352

Se ele era capaz de cavalgar um unicórnio e atravessar


a noite das noites e reunir reinos, também deveria ser
capaz de arrancar um tesouro à terra com as próprias mãos.
À mãe deles é que o tempo continuava a não faltar.
Demorou uma eternidade a acordar e outra a arranjar-se, e
às onze e meia ainda não tinha descido. Normalmente, era
pontual, mas agora nem sequer olhava para os relógios.
Achava que tinha tempo.
O irmão deixou o Sr. Lancaster e o assessor na sessão
fotográfica em frente ao retrato do Primeiro Depois do
Primeiro e foi bater-lhe à porta do quarto.
- Elisabeth, não sei o que tens. Sentes-te bem? -
perguntou ele.
- Sim... Quer dizer, é um dos dias mais tristes da
minha vida...
- Por isso mesmo. Faz com que passe depressa. E mexe-te
- resmungou ele.
Mas a irmã não tinha emenda possível.
- Tem calma - disse. - Há tempo para tudo.
Nathan Zimmer raramente perdia a paciência e a
compostura, mas teve um súbito ataque de irritação e fúria.
- Que raio! Estás sempre a dizer isso: “Há tempo para
tudo. Há tempo para tudo.” Tu podes ter, os outros não. Já
viste as horas que são?
Foi então que soou um estrondo no andar de baixo.
Elisabeth abriu a porta do quarto.
- O que foi agora? - perguntou.
- O retrato do Primeiro - respondeu o irmão. - Deve
ter-se atirado aos tipos da imobiliária. Bem feito!
Não fora bem assim, mas o retrato tinha caído quando o
Sr. Lancaster se fazia fotografar debaixo dele. Por pouco
não lhe apanhou uma perna, mas pregou-lhe um susto.
Nathan Zimmer desceu as escadas a resmungar e encostou
o retrato do Primeiro à parede.
353

- Parece que este senhor já queria ir-se embora - disse


o assessor do Sr. Lancaster a rir.
Nathan Zimmer não achou graça e fez questão de o
demonstrar.
- Vamos andando para o escritório - disse ele. - A
minha irmã teve uma indisposição, mas já vai descer. Querem
tomar alguma coisa? Um chá, talvez?
Já era quase meio-dia quando Elisabeth saiu do quarto e
desceu as escadas. O irmão, que andava nervosamente no hall
de um lado para o outro, empurrou-a para dentro do
escritório antes que ela dissesse que havia tempo para
tudo.
Entretanto, no jardim, William e Peter reuniram as
últimas forças e arrancaram mais um pedaço de terra. E era
só terra e mais terra o que viam. Estavam ambos exaustos,
cobertos de suor e terra, e sentaram-se um pouco no chão, a
descansar. O desalento voltara a invadi-los.
- Se a luzinha nos ajudasse agora... - disse Peter, em
tom de súplica. - Havias de ver o que ela fez em Londres.
Até deu cabo da luz. Ou se falasse a pedra que guarda a
pedra, se gritasse a Pedra-Mãe.
Calaram-se e só ouviam o som das suas respirações
ofegantes. Nada de falas ou gritos. Até que Peter garantiu
ter ouvido um gemido. Ou um suspiro, não sabia bem.
Pôs-se em pé, a olhar em volta. E disse:
- Alguma pedra destas aqui em volta gemeu. Talvez não
consiga gritar, só gemer. Geme, pedra! Geme!
Continuaram à escuta.
William não ouvia nada mas, pouco depois, Peter
garantiu ter ouvido novo gemido. O irmão era o que via, mas
ele era o que ouvia.
- E foi aqui perto de nós - disse. - E não eras tu e
não era eu. William teve um sobressalto.
- A minha pedra - disse ele a retirar do bolso a sua
pedra falante. - Nunca mais me lembrei dela. Falou? Ela
nunca fala deste lado. Ou fala pouco. Mas terá gemido?
354

Pousou-a no cimo de uma das pedras azuis e ficaram os


dois a olhar para ela, à espera.
- Foste tu? - perguntou William a olhar para a pedra. -
Tens alguma coisa a dizer? Sabes onde está a pedra que
guarda outra pedra? A Pedra-Mãe? É verdade, o que é uma
Pedra-Mãe?
Não houve resposta. Eram talvez perguntas a mais para
uma pedra tão discreta e silenciosa.
- Deste lado é só uma pedra. Surda como uma pedra -
explicou William ao irmão. Depois, dirigiu-se à pedra: - Se
é por estar aqui a pequena Tess e o meu irmão, fica a saber
que ela é uma criança de coração puro e o Peter faz parte
da história. Curou o Mago do Reino do Ar, que era um corvo,
ficou invisível e encontrou a chave verdadeira. Foi ele
quem...
- Poupa-me - interrompeu a pedra. - Estive a ouvir-vos
falar durante todo o dia. Não sou tão surda como pensas.
355

47

OS MELHORES CONTOS DOS IRMÃOS ZIMMER


Peter já tinha visto uma fada durante uns instantes e
acompanhado duendes e um espírito luminoso, mas ainda lhe
faltava ouvir uma pedra a falar.
- Por onde fala ela? - perguntou. - Não tem boca. Agora
já não me admira que, um dia, haja por aí uma pedra que
grite. Havia de ser agora. Eles estão todos no escritório,
vão assinar o contrato.
Tess tocou a medo na pedra, com a ponta dos dedos.
- O que é uma Pedra-Mãe? - voltou William a perguntar.
- Onde está? Vês por aqui alguma?
A pedra não respondeu logo. Mas eles sentaram-se diante
dela, à espera. E ela lá acabou por dizer:
- Sabes que isto é contra todas as regras, estar a
falar contigo deste lado na presença de outras pessoas,
sejam eles quem forem.
- Esquece isso - disse William. - A quinta vai ser
vendida e vai acabar tudo. Que interessam as regras? Por
isso, diz-me o que é uma Pedra-Mãe.
357

- Bem, como hei-de explicar? - replicou a pedra. - Há


pedras que geram outras pedras dentro de si, pequenos
cristais que vão crescendo dentro delas como se fossem
filhos.
- Ah! E vês por aqui alguma?
- Não sei quem são, não há sinais do estado delas.
Qualquer uma destas pedras azuladas que há por aí, na
quinta, pode ser uma delas.
- Dentro delas, dizes tu? Isso é novo - disse William.
- Por isso são mães. Trazem as outras pedras na barriga. É
isso?
- Não lhes cresce uma barriga de pedra, isso não. Mas
as outras pedras crescem dentro delas, isso sim - explicou
a pedra.
William raciocinou em voz alta.
- Uma pedra que guarda outra pedra como uma mãe guarda
um filho...
Peter, que seguia os gestos e os pensamentos do irmão,
agitou-se.
- Estás a pensar o mesmo que eu? - perguntou. - Queres
ver que procuramos debaixo das pedras e, afinal, o diamante
está dentro de uma delas?
- Estou - respondeu o irmão. - Não é preciso esconder
uma coisa que está escondida. Logo, a Pedra-Mãe deve estar
à vista de toda a gente. Pode ser esta, onde a mãe diz que
a luzinha pousou.
Examinaram melhor essa pedra azulada e bateram-lhe com
a pá. Mas se estava grávida de outra pedra, isso não se
notava à vista desarmada.
- Temos de esperar que ela grite. Se for ela, é claro -
disse William.
- Temos de a partir - disse Peter. - O parto pode estar
atrasado. Vou à casa das ferramentas, há lá uma marreta de
ferro.
Entretanto, no escritório, estavam lidos e relidos
todos os passos do contrato. Então, o Sr. Lancaster
passou-o a Nathan Zimmer, ao seu lado, para ser assinado.
Ele assinou-o e, depois, fê-lo deslizar pela mesa com os
dedos e pô-lo diante dos olhos da irmã, que continuava
lenta e absorta.
358

O irmão pôs-lhe a caneta nos dedos e todos se calaram e


ficaram à espera que ela o assinasse. Mas ela tinha tempo.
Ainda tinha tempo.
O Sr. Lancaster pôs-se atrás dela e sorriu para o
fotógrafo, que ajoelhou diante deles, pronto a captar o
momento da assinatura do contrato. Mas ela continuava a ter
tempo.
- Está tudo bem, minha senhora? - perguntou o Sr.
Lancaster a inclinar-se para ela. - Quer que o meu
funcionário o leia outra vez? Está com dúvidas?
- Não é preciso - respondeu ela, muito calmamente. - Já
vou assinar. Temos tempo.
Depois, levantou-se da cadeira e foi à janela espreitar
o jardim, como se esperasse a chegada de alguém. Viu os
filhos, que saíam da Casa da Tralha com duas marretas de
ferro na mão e enterneceu-se com tanta crença e
generosidade.
- Elisabeth! - chamou o irmão. - Estamos à tua espera.
- Desculpem - disse ela, como se tivesse caído em si. E
voltou a sentar-se com a caneta entre os dedos.
Lá fora, nesse momento, Peter e William seguraram uma
marreta no ar, a quatro mãos, e acertaram uma valente
pancada no centro da pedra azul.
E foi então que, algures numa das salas frias, escuras
e vazias da casa, retiniu um grito agudo e lancinante. Tão
alto que todos os que por ali estavam, dentro da casa ou
nas imediações, o puderam ouvir.
- Foi ela? - perguntou William a olhar para a pedra que
levou a pancada, mas continuava intacta e inteira.
- Não - disse Peter, que era aquele que ouvia. - Veio
da casa. Talvez do andar de cima, dos quartos fechados.
- E achas que foi um grito de pedra?
- Willy, gente não grita assim.
Sem mais palavras, correram para casa, seguidos pela
pequena Tess, que não sabia ao certo o que estava a
acontecer.
359

No escritório, o grito soara ainda mais nitidamente. No


exacto momento em que Elisabeth Zimmer pousara a ponta da
caneta no papel para assinar o contrato.
- O que foi isto? Foi gente? - perguntou o Sr.
Lancaster, completamente arrepiado.
De facto, nem nos filmes de terror se ouvira um grito
tão arrepiante.
- Parece que alguém não está de acordo com a venda -
disse o assessor do Sr. Lancaster.
- Veio do quarto do Primeiro - disse Nathan para a
irmã.
- Quem é o Primeiro? - perguntou o Sr. Lancaster.
Elisabeth Zimmer levantou-se, saiu disparada e subiu as
escadas, saltando os degraus de três em três, como quando
era rapariga. Não sabia o que ia encontrar no quarto do
Primeiro, mas quando lá chegou, empurrou a porta com força,
sem hesitar.
As persianas estavam corridas e ela tentou acender a
luz, mas o interruptor estava avariado. Foi então abrir uma
persiana e, quando o quarto ficou iluminado, entraram,
esbaforidos, William e Peter.
O quarto estava vazio e nada mexia.
- Quem foi? - perguntou Peter.
- A pedra - disse William a apontar para a velha
secretária encostada à parede.
Sobre ela estava uma pedra azul, que o Primeiro Depois
do Primeiro usava como pisa-papéis. Sempre ali estivera,
como tudo o mais, inerte e silenciosa como uma pedra. Agora
estava a quebrar e a abrir brechas, partindo-se como a
casca de um ovo.
- A Pedra-Mãe - disse Peter a aproximar-se
cuidadosamente.
E era ele o que estava mais próximo quando a pedra azul
se partiu ao meio e deixou à vista uma outra pedra, mais ou
menos do tamanho de uma romã, que brilhava na
semi-obscuridade como uma estrela branca. Ao lado,
repousavam os três bocados partidos da pedra azulada e que
eram tudo o que restava de uma mãe exausta.
360

Entretanto, chegou ao quarto a pequena Tess, que foi a


primeira a avançar para a pedra recém-nascida.
- O tesouro - disse ela a segurar o diamante do tamanho
de uma romã na palma da sua mão.
Os outros aproximaram-se a medo, incluindo Nathan
Zimmer, também acabado de chegar.
- Quem foi que gritou ? - perguntou ele.
- A pedra - respondeu a irmã. - Foi um grito de dor. Um
grito de mãe.
À cabeça dela chegavam as palavras do seu livro:

Há uma pedra que guarda essa pedra. É uma Pedra-Mãe e


guarda-a como uma mãe guarda e vela por um filho. Quando
chegar a hora, e não antes, todos poderão ouvir o seu grito
de pedra. E poderão, enfim, ver o seu precioso coração de
Pedra-Mãe.

- Viste, mãe? Não é só nas histórias que estas coisas


acontecem - disse-lhe William. - Acontecem porque estão nas
histórias.
- Já percebi - disse ela. - As minhas imaginações
realizam-se.
- Podes ter a certeza - comentou Peter.
- E pensar que esteve sempre aqui, debaixo do nariz de
toda a gente - disse Nathan Zimmer, espantado.
Depois, abriu mais as persianas, também a janela para
deixar entrar a luz do Sol, e observou cuidadosamente a
pedra recém-nascida durante algum tempo. Não era um
especialista em pedras preciosas, mas era um conhecedor, ou
não tivesse sido, em tempo, proprietário de uma
ourivesaria, em Plymouth.
Os outros esperaram, suspensos. E tentavam ler no seu
rosto um sinal que antecipasse a revelação que ele fez a
seguir.
- É um belo diamante. Puríssimo. Vale uma fortuna. Acho
eu.
- Estamos salvos! - gritou a irmã. - Já não precisamos
de vender a quinta. Precisávamos de um milagre e ele
aconteceu.
Houve um clamor de alegria, ou não estivessem a
festejar um nascimento, e todos se envolveram num único
abraço.
361

O Sr. Lancaster, cá em baixo, no hall da casa, olhou


para o assessor, que olhou para o fotógrafo, que olhou para
o Sr. Lancaster.
- Esta gente é doida - disse ele baixinho. - Temos de
ter paciência até o contrato estar assinado.
Tiveram paciência e esperaram mais algum tempo, o tempo
que durou a festa, a que, entretanto, também se juntou
Alicia, atraída pelo barulho.
Quando, meia hora depois, desceram as escadas todos
juntos, felicitando-se mutuamente, o Sr. Lancaster
colocou-se diante deles, à espera de uma explicação.
E então Elisabeth Zimmer explicou-se, com um sorriso
triunfal.
- Sr. Lancaster, lamento tê-lo feito perder tempo, mas
a Quinta da Pedra Azul já não está à venda.
- Como? - perguntou o homem, incrédulo, com as faces
mais coradas do que nunca.
Depois, olhou para o contrato, que segurava nas mãos.
No sítio onde devia estar a assinatura de Elisabeth Zimmer,
havia apenas uma letra, um “E” muito bem desenhado. Não
podia considerar-se uma assinatura.
- Quem é que gritou? Foi por causa disso, não foi? -
perguntou o assessor do Sr. Lancaster.
- Foi uma Pedra-Mãe - respondeu Elisabeth Zimmer.
- Doidos, é o que vocês são todos. Mas isto não fica
assim - gritou o Sr. Lancaster a empurrar o seu assessor
para a saída.
A luz do Sol entrou pela porta que eles deixaram aberta
e iluminou o retrato do Primeiro, que continuava encostado
à parede. Peter jurou que o viu sorrir por um instante, na
velha fotografia. Mas os outros duvidaram. O que todos eles
viram foi outra coisa.
- Olhem! A luzinha! - disse Peter a apontar para a
janela.
Os outros seguiram a indicação do seu polegar estendido
e viram uma luzinha esverdeada com uma aura amarela a sair
pela janela. Deu duas voltas no ar e lá foi à vida dela.
362

Talvez para sempre, já que nunca mais seria vista por ali.
O diamante foi guardado ciosamente no cofre da casa e o
retrato do Primeiro regressou ao seu lugar na parede. Cada
instante do resto daquele dia se transformou numa
celebração da felicidade geral. Uma energia renovada
invadiu-os a todos, como se também eles tivessem renascido.
E a própria casa parecia sorrir e respirar com eles.
A meio da tarde telefonaram do Clube dos Amigos das
Criaturas para William e passaram o telefone ao presidente
Jagger. O duende Sami já os tinha posto ao corrente de tudo
e ele deu os parabéns ao rapaz pelo sucesso da passagem e
da primeira viagem. Disse-lhe que estavam orgulhosos e
eufóricos por haver um novo Grimm. E que Grimm! “á Grimm!
Há Grimm!” eram as palavras que estavam agora na boca de
todos os membros do Clube, explicou o presidente Jagger. E
também lhe disse que o Sr. Potter, o traidor, tinha sido
expulso. Porém, aguardava-o ainda o castigo que lhe seria
aplicado, a decidir na próxima reunião do Clube. E,
finalmente, disse que iam organizar uma grande festa nessa
noite, a que ele não podia faltar, já que lhe iam entregar
a maior condecoração do Clube.
- Talvez noutra altura - disse William a bocejar. - Não
tenho um unicórnio branco, ou iria imediatamente. O que
tenho é uma mãe que não sabe nada destas coisas. Nem pode
saber! Deste lado sou apenas um rapaz como outro qualquer.
Além disso, cavei toda a noite e toda a manhã para
encontrar um tesouro que não estava enterrado e estou
cansado e com sono. Só me apetece dormir.
- Talvez noutra altura, então - concordou o presidente.
E voltou aos elogios e às felicitações.
Ficou combinado que a própria vice-presidente iria
levar-lhe à quinta, no dia seguinte, o coração do Primeiro
Depois do Primeiro, que tinha sido recuperado. Por isso,
combinaram um procedimento secreto.
363

À noite, depois de um jantar festivo que entrou pela


madrugada dentro, o cansaço e o sono alcançaram-nos a
todos, incluindo a pequena Tess, que também estava cansada
de ouvir histórias. Só Elisabeth Zimmer ficou acordada, e
não era só porque lhe custava ordenar na sua cabeça tantos
acontecimentos extraordinários.
- Vou dar um passeio pelo jardim, cumprimentar as
árvores, as flores, as pedras, as fontes, os bichos da
terra, os pássaros... Há tempo para tudo.
- Olha se cais nos buracos - disse Peter a rir.
Ela tinha sono, como os outros. E também estava
cansada, talvez mais até do que os outros. Mas tinha algo
que os outros não tinham: tempo. No dia seguinte, iria
voltar a correr de um lado para o outro enquanto dizia:
“Não tenho tempo, não tenho tempo.” Por enquanto, ainda
tinha algum.
William viu-a a partir e sorriu. Afinal, o bolinho de
tempo só lhe fizera bem. Não fora isso, pensou, e talvez o
contrato tivesse sido assinado antes da pedra gritar. Ou
não?
- Eu vou dormir. Mal me seguro em pé - disse Nathan
Zimmer. - E que bem eu vou dormir hoje.
Dormir, constataram os outros, era, naquelas
circunstâncias, uma palavra mágica. Estavam todos a
bocejar, com os olhos inchados e as pálpebras a fecharem-se
lentamente.
- Também eu - disse Peter.
- E eu - disse William.
Os dois irmãos subiram as escadas lado a lado, em
silêncio, e depois foram ao quarto de William ver o Livro
em Branco, onde agora havia mais de mil histórias
entrecruzadas, todas escritas com uma letra miúda e muito
certinha.
- Agora tens de me ajudar a escolher as histórias que
devem ser contadas - explicou William. - E a copiá-las e a
escrevê-las noutros livros ou cadernos, porque quando eu
voltar ao Outro Lado, estas apagam-se para dar lugar a
outras. E é preciso contá-las. É essa a minha verdadeira
missão.
364

- E é minha também - acrescentou Peter. - O que eu


puder fazer deste lado...
William pôs-se em pé na cama, que começou a ranger
aflitivamente, e abriu os braços.
- Já estou a ver o título dos nossos livros - disse. –
“Os melhores contos dos irmãos Zimmer”. Que tal?
Peter sorriu. Havia os irmãos Marx, os irmãos Lumière,
os irmãos Grimm, e agora haveria também os irmãos Zimmer.
Os famosos irmãos Zimmer.
William abriu o livro e começou a ler a primeira
página, e foi fechando lentamente os olhos e, sem dar por
nada, adormeceu tão profundamente como se deixasse de
existir.
Peter guardou o livro no fundo falso da terceira gaveta
da cómoda, onde já estava a pedra que falava, e foi para o
quarto dele a bocejar. Nem queria acreditar que o esperava
uma noite descansada.
No corredor, uma criatura encolheu-se para o deixar
passar. Depois, avançou na direcção do quarto de William,
fez rodar a maçaneta de latão muito devagar, empurrou a
porta e entrou.
William ressonava muito alto, deitado de costas, e a
criatura chegou-se a ele e abanou-o suavemente.
O rapaz resfolegou, parou de ressonar e rebolou para o
outro lado, enquanto soltava uma espécie de grunhido numa
língua incompreensível mas que talvez quisesse dizer:
“Deixa-me estar!”
A criatura voltou a abaná-lo, desta vez com mais força,
e continuou a fazê-lo até William acordar e abrir os olhos.
- Sou eu, o Duende-Mensageiro. Não me vês?
- Quem? - murmurou William a erguer a cabeça. Piscou os
olhos três vezes e o duende ainda estava lá.
- Estou acordado? - perguntou o rapaz.
- Estás.
- Ah! És tu... Vens para as lições para a passagem? Não
pode ficar para amanhã?
365

- Amanhã? Já cá estive ontem para falar contigo, mas


tive um acidente.
- Pois... Chocaste com a minha mãe quando ias a descer
o corrimão.
O duende pôs os olhos no chão, embaraçado.
- Não sei se já experimentaste, mas é impossível travar
quando vamos a descer por um corrimão. Magoei-me. Tive de
regressar depressa ao Outro Lado. E ainda não recuperei.
Foi um grande tombo. E agora vamos ao que interessa.
William sentou-se na beira da cama. Estava mais
interessado em dormir, mas enfim...
- Já ouviste falar no anel da Rainha do Reino da Água?
William bocejou enquanto abanava negativamente a
cabeça.
– Não. Porquê?
- Parece que foi roubado e veio parar a este lado, não
se sabe como.
William levantou-se e olhou para o espelho do roupeiro
e lá estava o tal rapaz igual a ele, a olhá-lo fixamente.
- E isso é mau? - perguntou.
- Ainda perguntas? - indignou-se o duende. - Ora, ouve.
Hoje temos muito que fazer.
366

Do mesmo Autor

A Ilha do Chifre de Ouro


Álvaro Magalhães

EDIÇÕES
ASA

A Ilha do Chifre de Ouro

Basta duvidar do que os nossos olhos vêem para se


chegar ao outro lado da cidade, onde começa sempre uma
história como esta, que levará um pacato distribuidor de
pizzas e uma misteriosa rapariga ruiva até uma ilha que não
vem em nenhum mapa - a Ilha do Chifre de Ouro.
Aí, Rui e Ana - ou Iur e Réa - têm uma missão a
cumprir. Eles são os Eleitos e a eles incumbe resgatar
aquela ilha perdida, pátria de anões, elfos, gnomos,
duendes...

“Um romance jovem com sabor a gelado: fresco,


doce, saboroso”.

O Comércio do Porto
367

Impressão e Acabamentos
EIGAL
Rio Tinto - PORTUGAL

Contra-capa

Conheces os irmãos Grimm? Os contos dos irmãos Grimm?


Então ouve a história dos irmãos Zimmer, dois jovens
ingleses, seus descendentes, que, duzentos anos depois,
estão prestes a descobrir o segredo escondido por detrás
dessas histórias.

Durante as férias de Verão, na Cornualha, William Zimmer


descobre que herdou o dom secreto de Wilhelm Grimm, e
também o seu destino extraordinário. Agora ele sabe que o
Outro Lado anseia pela sua chegada, porque o dobro da vida
é o que espera um novo “Grimm”, que é outro nome para
“aquele que vê”.

O que acontece às histórias quando ninguém está a olhar


para elas? Abre este livro e ficarás a saber. E verás:
ladrões de tempo, uma pedra que fala, uma fábrica de nada,
um livro que se escreve por si, um bolinho de tempo que
sabe a tempo e nos faz ver as coisas como elas são, ou uma
dor cor-de-rosa, que dói maravilhosamente. E ainda:
duendes, fadas, unicórnios, ogres, ciclopes, espíritos
inquietos, uma princesa nascida da rosa e um reino de
escuridão e pensamento governado por uma criança, embora
terrível.

Há muitas histórias à espera de serem contadas e esta é a


primeira de todas: a do último “Grimm”.

Potrebbero piacerti anche