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Análise Psicológica (1989), 1-2-3 (Vil): 435456

Profissão: Professor.
Reflexões Históricas e Sociológicas

ANTONIO NÓVOA (*)

OS PROFESSORES Estas palavras, escritas por Adolfo Lima


DE ((AGENTES DA IGREJA» em 1915, encerram uma crítica ao estatuto
A ((FUNCIONARIOSDO ESTADO» de funcionário público concedido aos pro-
fessores no final do século XVIII e por estes
((0recrutamento dos professores deve, assumido (e defendido) durante o século da
pois, obedecer ao critério de os corpos escola (que, em Portugal, se prolonga até ao
docentes serem exclusivamente compostos de princípio do Estado Novo). No seu pedido
competências pedagógicas. Deve evitar-se de demissão do cargo de director da Escola
com o maior escrúpulo, e quando se não Normal de Benfica, formulado em Outubro
tenha podido evitar, remediar, a existência no de 1920, Adolfo Lima regressa a este tema:
professorado de indivíduos que são profes- ((Tornei-meprofessor para, pela educação,
sores por mero acaso e que exercem essa pro- satisfazer uma necessidade ético-social. Não
fissão como amadores, il falta doutra que sou professor para ser mecanicamente, a s
Ihes dê mais lucros e que aborrecem, e até horas, um simples funcionário público» (2).
odeiam a criança. É indispensável defender Recuando aos primórdios da rnodernidade
a criança de indivíduos que não tendo outra escolar vale a pena recordar a frase emble-
profissão adoptaram a de professor, como mática de Leibniz - «A educação pode
poderiam adoptar outra qualquer. O recru- tudo, pois ela até faz dançar os ursos» -
tamento dos professores não pode ter por que é contemporânea da redescoberta das
base e critério a caça ao emprego públi- potencialidades de uma aqão educativa
co» (l). intencional, isto é, de uma acção metódica
e sistemática de transformação cultural.
Abre-se então uma época na história da
Humanidade, caracterizada pela crença na
(*) Professor auxiliar da Faculdade de Psicologia
e de Ciências da Educação/Universidade de Lisboa.
(*) Discurso proferido por Adolfo Lima no Conse-
Professor convidado do ISEWUniversidade Técnica de lho Escolar da Escola Normal Primária de Lisboa, no
Lisboa. dia 4 de Outubro de 1920 Livro de Actas da Comis-
(') Adolfo Lima, ((0 recrutamento de professores», são Instaladora e Conselho Escolar (1919-1920), guar-
Revista de Educação Geral e Técnica, série 111, n? 4, dado nos Arquivos da Escola do Magistério Primário
Abril de 1915, p. 359. de Lisboa.

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omnipotência da educação escolar, celebrada estatutos dos professores e dos mestres,
em Portugal desde meados de Setecentos (3). encontram um único denominador comum
Todavia, a instituição escolar, na sua con- na subordinação e na obediência a Igreja: até
figuração actual, é anterior a este período, ao século XVIII a educação é sobretudo
tendo a sua genése no afrontamento confli- uma empresa religiosa.
tuoso (ainda que, em certa medida, cúm- As ordens religiosas da actividade docente
plice!) entre a Reforma e a Contra-Reforma, vão acompanhar os professores ao longo de
movimentos que vão impulsionar, se bem toda a sua história sócio-profissional.
que a ritmos diferenciados, o processo de ((Agentes da Igreja)), os professores trans-
escolarização que tem atravessado as socie- formar-se-ão durante o século XVIII em
dades ocidentais desde o século XVI e). ((funcionários do Estado)), sem que grande
Os professores vão ser os intérpretes prin- parte das motivações originais da sua pro-
cipais deste processo que transformará de fissão tenham sido substituídas por outros
forma decisiva as práticas culturais e sociais, valores. O anarquista Adolfo Lima não
inscrevendo uma cultura escrita em comuni- hesita em proclamar, em pleno século XX,
dades de base oral e substituindo progressi- que a profissão de educador é muito exi-
vamente a ((aristocracia do sangue» pela gente, sendo «a mais perigosa, pelas suas
(aristocracia do mérito)). Entre os séculos funestas consequências, quando não é exer-
XVI e XVIII o ensino secundário (perdoe- cida como um sacerdócio, e por uma autên-
-se-nos o anacronismo da expressão) vai ser tica vocação» ('). E um outro pedagogo
assegurado fundamentalmente pelas congre- republicano, Álvaro Viana Lemos dirige-se
gações reiigiosas, com especial destaque para nestes termos aos alunos que entraram na
os jesuítas; Dominique Julia mostrou de Escola Normal de Coimbra em 1924: ((Ten-
forma brilhante as mutações sociológicas des três anos diante de vós e se logo neste
que têm lugar no seio de algumas destas primeiro de todo vos não sentirdes com a
congregações, transformando-as em verda- vocação, como costuma dizer-se, nem com
deiras (corporações docentes)) (5). Paralela- o entusiasmo necessário para este sacerdó-
mente, neste período histórico, o ensino das cio, melhor será não prosseguirdes, para bem
primeiras letras é da responsabilidade quase vosso e para bem da sociedade)) (*). O
exclusiva de mestres laicos que, através de recurso aos conceitos de vocação e de sacer-
acordos com as famílias ou com os notáveis dócio para definir a profissão docente é bem
locais, ou através de contratos com os muni- sintomático das referências religiosas de que
cípios, exercem o ensino quase sempre como continua impregnada em pleno século
actividade secundária ou acessória (6). xx (9).
A diversidade de situações e de práticas
educativas, bem como a heterogeneidade dos
(7) Adolfo Lima, Pedagogia Sociológica, Porto,
Livraria Escolar Progredior, vol. 11, 1936, p. 150.
(3) Cf. Jean-Claude Passeron, ((Pédagogie et Pou-
(8) Álvaro Viana Lemos, Discurso pronunciado no
voir)), in Encyclopaedia Universalis, vol, 12, 1980,
p. 677. dia 23 de Outubro de 1924 na recepção aos novos alu-
(4) Cf. François Furet e Jacques Ozouf, Lire et
nos da Escola Normal Primária de Coimbra:
&rire - L'alphaóétisation des français de Calvin a documento guardado nos Arquivos hvaro Viana
Jules Ferry, Paris, Minuit, vol. I, 1977, p.70 Lemos/Movimento da Escola Moderna.
( 5 ) Cf. Dominique Julia, «ia naissance du corps (7 Ver o interessante artigo de Daniel Hameline:
professoraln, Acta de la Recherche en Sciences Socia- (de praticien, l'expert et le militant)),in Du discours
les, nP 39, Setembro de 1981, pp. 71-86. a I'action - Les sciences sociales s'interrogent sur
(') Cf. António Nóvoa, Le Emps des Professeurs, elles-mêmes [sous Ia direction de Jean-Pierre Bouti-
Lisboa INIC, vol. I. 1987, pp. 99-116. net], Paris, CHarmattan, 1985, pp. 80-103.

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AS REFORMAS POMBALINAS E A ensina Pombal concedeu jurisdição plena i
CONSTITUIÇÁO DE UM CORPO LAICO DE Real Meza Censória (posteriormente substi-
PROFESSORES DEPENDENTES DO ESTADO tuída pela Real Meza da Comissão Geral
sobre o Exame e Censura dos Livros), o que
Quando o Marquês de Pombal inaugura não deixa qualquer dúvida quanto ao con-
na Europa católica as reformas estatais de trolo político e ideológico que iria ser exer-
ensino, primeiro em 1759 na sequência da cido sobre as práticas escolares e sobre o
expulsão dos jesuítas, depois de forma mais corpo docente (12).
sistematizada em 1772, a sua preocupação Aliás, nas cartas de nomeação dos profes-
primeira é a constituição de um corpo Zaico sores e dos mestres régios, o Rei não hesita
de professores que possam servir de agentes em exigir que eles ensinem «pelo método que
do Estado nas diversas localidades e povoa- em meu Aivará e Instruções determino [.. I
ções do Reino. As reformas pombalinas não enquanto Eu for servido, e não mandar o
pretendem instituir uma alternativa ao contrário)) (13). Depois de dois séculos sujei-
modelo escolar construído na Era Moderna tos a um firme controlo clerical, que não
graças i intervenção religiosa; bem pelo con- autorizava qualquer tipo de heresia (vejam-
trário, a proposta pombalina de estatização -se os processos da Inquisição a numerosos
do ensino vai organizar-se através de um pro- professores), o corpo docente vai ser colo-
cesso de apropriação das realidades escola- cado na alçada do Estado, que o manterá
res existentes em meados do Século XVIII. debaixo de uma subordinação estrita (vejam-
Para Pombal a «questão do ensino))resume- -se os processos instaurados aos professores
-se a um problema de poder: trata-se apenas pela governação pombalina): num Estado
de substituir o controlo da Igreja pela tutela em que a escola vai passar a funcionar como
do Estado. uma espécie de garante ideológico de uma
A definição da rede escolar foi feita com ordem económica baseada na propriedade
base num plano traçado pelos corógrafos privada dos meios de produção e na econo-
peritos do Reino, ((segundo a dignidade e mia de mercado, a autonomia dos professo-
situação das terras, combinadas com o res não poderia obviamente passar de uma
número de estudantes concorrentes de den- quimera, quimera que de resto ninguém ali-
tro e de fora delas)) (‘O). Para acorrer ao mentava, nem mesmo os próprios profes-
pagamento dos professores e dos mestres que sores.
seriam colocados nestas classes régias, o Importa ainda reter uma outra ideia de
Marquês de Pombal decretou uma medida primordial importância: a manutenção de
inédita na Europa Setecentista e de grande uma clivagem muito nítida entre os profes-
alcance político: a cobrança de um novo sores e os mestres régios ou, dito de outro
imposto, o subsidio literário (”). Para diri- modo, entre os professores do ensino secun-
gir toda esta operação de estatização do
(12) A este propósito é interessante consultar três
(‘4 Cf. a consulta da Real Meza Censória aprovada trabalhos estrangeiros fundamentais:
pelo Rei em 5 de Agosto de 1772 documento guar- - Margaret S. Archer, Social Origins of Educatio-
dado no Arquivo Nacional da Torre do Tombo Minis- na1 Systems, London, Sage Publications, 1979.
tério do Reino - Livro 417). - Jean-Michel Chapoulié, «ix Corps professoral
(”) Cf. António Nóvoa, «ix premier budget de dans la structure de classe)), Revue Fmnçaise de Socio-
l’éducation ou comment I’État portugais créa en 1772 logie, vol. XV, 1974, pp. 155-200.
un impôt en vue du développement de l’enseignement - Pascale Gruson, L’État enseignant, Paris, Mou-
public», in IMormationen Zur Erziehungs-Und BiI- ton, 1978.
dungshistorischen Forschung, 24 (II), 1984, pp. (”) Várias destas cartas de nomeação estão guarda-
221-235. das na Biblioteca Pública de &ora (códice CIX/l-i8).

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dário e os professores do ensino primário. recebe a seguinte resposta das autoridades
Por um lado, os primeiros auferem ordena- estatais em 19 de Agosto de 1977:
dos substancialmente superiores aos segun- ((Erradamentese persuade a Câmara de
dos; por outro lado, as regalias sociais Santarém, de que a Colecta, com que
concedidas aos professores, nomeadamente contribuem os Lavradores da referida
os privilégios de nobreza, só raramente são Vila, e sua Comarca, é única, e preci-
alargadas aos mestres (I4). Esta clivagem samente pedida, e aplicada para serem
dificulta a emergência de um espírito de pagos, e satisfeitos os Professores das
corpo e de uma solidariedade entre as diver- sobreditas Vila, e Comarca; quando se
sas categorias da profissão docente. deve considerar como uma parte da
A estratégia reformadora pombalina vai Colecta geral imposta em todo o Reino
e Conquistas para se sustentarem todos
subtrair os professores a influência religiosa,
os seus Professores.
mas também - é fundamental compreendê- Pede o Bem comum, que sejam mui-
-lo - a influência das comunidades e dos tos os Mestres, os q u i s distribuídos por
notáveis locais. O paradoxo é apenas ilusó- todo o Reino, ensinem a Mocidade
rio, pois se até aí os professores mantinham desde os primeiros Elementos da Lín-
uma transacção directa com as cornunida- gua Pátria até ao último Preparatório
des, muitas vezes através de uma relação sim- para os Escolares entrarem no estado
ples de oferta e de procura de educação, das Ciências Maiores; aplicando-se cada
realizando o seu serviço a troco de uma um segundo as medidas do Estado, que
remuneração paga pelos pais, pelos notáveis quer tomar, ou da ocupação, a que se
locais ou pelos municípios, doravante as con- quer aplicar; bastando a uns o saberem
tribuições monetárias (subsídio literário) são ler, e escrever; sendo necessário a outros
concentradas no Cofre do Erário Régio, a Língua Latina, e ainda a outros a Lín-
sendo depois distribuídas pelas autoridades gua Grega, a Retórica, e a Filosofia.
centrais no quadro de uma política educa- [..-I
tiva nacional. Isto & deixa de haver uma rela- Se este não fosse o Espírito da Lei,
ção directa entre os professores e as que estabeleceu o Subsídio, de que se
comunidades (ainda que supervisionada pela trata; e tivesse a mesma Lei o único
Igreja) e passa a existir uma mediação do Fim, de que cada Cidade, ou Vila con-
Estado: as comunidades devem dirigir-se a corresse para o pagamento dos seus res-
Real Meza Censória para todo e qualquer pectivos Mestres, e Professores; como
assunto que diga respeito a educação (pedido poderiam ser pagos os desta Corte,
de criação de uma classe régia, queixa con- Capital de todo o Reino.
tra o mestre régio, etc.), a qual por sua vez [...I
transmitirá ao professor ou ao mestre régio Com o exemplo da Vila de Santarém
competente as determinações que houver por poderiam com maior razão recorrer
bem tomar. aquelas Vilas, Aldeias, e Lugares, que
Um documento interessantíssimo da não têm Mestres; pedindo, que os seus
Câmara de Santarém, em que se pede isen- Moradores fossem absolvidos do Sub-
ção do subsídio literário argumentando com sídio Literário; com o bom Funda-
a existência de verbas concelhias suficientes mento, de que não têm Professores, aos
para fazer face as despesas com a educação, quais devam pagar: Cuja Petição seria
indiscreta, e inatendíveb (9.
('3 Cf. a este propósito a obra de Hélène Desbrous-
ses: Instituteurs et Professeurs - Matériaux pour (I5) Este documento está guardado no Arquivo do
I'analyse d'un groupe social, Roubaix, Edires, 1982. 'Ribunai de Contas (Coleqão «Erário Régio)), no3945).

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Esta longa citação impunha-se, pois este pos; e além do referido tem o Suplicado
documento ilustra uma mudança radical de pouca actividade para ensinar o que
atitude em relação às práticas educativas, que tudo redunda em prejuízo gravíssimo de
deixam de ser do foro local, passando para a seus Discípulos)) ('9.
alçada do Estado. Ele mostra também de que - Em 24 de Maio de 1780 queixa-se a
forma a criação do subsziiio literário (imposto Câmara da Vila de Cascais que o Mes-
que recai fundamentalmente sobre os vinhos tre Régio «tem cuidado tão pouco da
e as aguardentes) vai obrigar as zonas rurais sua obrigação, desamparando a aula nas
a financiarem o desenvolvimento da rede esco- contínuas digressões que faz a Lisboa
lar nos centros urbanos. onde tem a sua família, que os pais das
A transformação das práticas sociais no famíías cuidaram a maior parte deles
1
campo da ecucação não vai ser fácil e os em procurarem Mestres a que pa-
arquivos pombalinos guardam a memória das gam» (").
tensões que então se geram. Por ora, interessa- - Em 29 de Julho de 1793 os Oficiais da
-nos apenas assinalar os conflitos que vão Câmara da Vila de Moimenta da Beira
I
opor os professam e as comunidudts locu&, queixam-se da ((negligência com que o
e que constituem uma das principais dificul- Professor tem tratado o seu ministério,
dades na implementação das dinâmicas refor- não só deixando de empregar na Escola
madoras: diariamente o tempo que as Instruções
ordenam, mas fazendo muitas vezes
- Por um lado, as comunidades vão rei- substituir-se pelos próprios discípulos,
vindicar o direito de vigilância e de con-
incapazes disso; deixando outras vezes
trolo dos professores e dos mestres
régios, argumentando que eles são pagos
a Escola fechada por ocasião de jorna-
das, que faz, tudo em muito prejuízo
com o dinheiro que o Estado lhes cobra
dos discípulos» (").
através do subsídio literário;
- Por outro lado, os professores vão recla- Os arquivos pombalinos conservam nume-
mar o seu estatuto de especialistas do
rosos documentos do mesmo género, que nos
ensino e a sua competência no domínio
permitem confirmar a p m ã o que as comu-
educativo, afrmando alto e bom som
nidades locais exercem sobre os professores.
que só prestam contas da sua actividade
Uma análise mais atenta mostrar-nos-ia que
às autoridades centrais.
esta vigilância se exerce fundamentalmente a
três níveis: tempo de presença na escola, com-
Citem-se, a título de exemplo, três
portamento moral e capacidade para ensinar.
documentos do final do século XVIII con- Os professores, compelidos a escolher entre
tendo críticas das comunidades locais ao com- um controlo «muito próximo)) das comuni-
portamento dos professores nomeados pelo
Estado:
- Em 30 de Agosto de 1779 queixam-se os ('7 Este documento está guardado na Secçao de
Moradores da Vila de Belmonte, «que manuscritos da Biblioteca Geral da Universidade de
Coimbra (Papéis do Arquivo da Junta da Directoria
na dita Vila há um Mestre de Ler, Escre- Geral dos Estudos, ms. 1339, fl. 130).
ver, e Contar posto por Vossa Majestade (") Este documento esiá guardado na secção de
o qual só cuida em receber o estipêndio, manuscritos da Biblioteca Geral da Universidade de
que Vossa Majestade lhe manda dar; e Coimbra (Papéii relativos A Instrução pública neste
de nenhum modo cuida em cumprir Reino, ms. 2531, pp. 12-13).
('*) Este documento está guardado na secção de
com a sua obrigação como deve, porque manuscritos da Biblioteca Geral da Universidade de
muitas vezes se ausenta, e retira para a Coimbra (Papéis relativos A Instrução Publica neste
sua Pátria, onde se demora largos tem- Reino, ms. 2533, p. 58).

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dades e a dependência de um poder central vai perseguir e reprimir os mestres clan-
distante e longínquo não hesitam um só destinos (isto é, os indivíduos que se
segundo, construindo a sua autonomia face às dedicam ao ensino sem a respectiva
influências locais com base numa subordina- autorização estatal), vai isentar os pro-
ção às autoridades estatais. Registe-se, aliás, fessores de uma série de impostos e de
que os professores não estavam organizados obrigaçõespúblicas (por exemplo, impe-
como profmão antes da entrada do Estado dindo as Câmaras de exigirem aos pro-
no campo educativo. Deste modo, funciona- fessores a prestação gratuita de serviços),
rização dos professores vai ser uma condição vai conceder aos professores a reforma
necessária a sua independência profissional. ao fim de um certo número de anos de
Ou, dito de outro modo, o estatuto de fun- exercício profissional, etc.;
cionários do Estado (de funcionários públi- Os professores, pelo seu lado, vão
cos) vai conceder aos professores, através de assumir-se como verdadeiros instituido-
uma delegação de poder, a autoridade e a legi- res populares (na acepção forte do
timidade para actuarem num determinado termo) ajudando a consolidação de um
domínio social, a educação. Estado que faz da escola um dos seus
principais instrumentos de manutenção
e de reprodução, pois... «um funcioná-
DE POMBAL A l! REPÚBLICA: rio do Estado não pode nunca opor-se
A CONSOLIDAÇÃODO ESTATUTO ao Estado» ('3.
DE ((FUNCIONÁRIOS PÚBLICOS»
CONCEDIDOS AOS PROFESSORES Até a l? República a aliança entre o Estado
e os professores vai-se consolidando graças a
De f d do século XVIII até princípios do uma cumplicidade e a uma reciprocidade de
século XX assiste-se a funcionarização pro- interesses que ninguém ousa contestar.
gressiva dos professores e 5 consolidação do Em 1883, na sessão de abertura das Con-
estatuto que ihes tinha sido concedido no ferências Pedagógicas, José António Simões
período pombalino. Este estatuto era, simul- Raposo não hesita em afirmar que:
taneamente, imposto pelo Estado e reivindi-
((Entre todos os funcionários públicos
cado pelo professorado, numa conjugação de nenhuns há que mais assiduamente traba-
interesses tornada viável pela crença comum ihem pela prosperidade e bem-estar da
nas potencialidades da escola enquanto fac- nação do que os professores de instrução
tor de progresso social e económico. Diga-se, primária; porque são eles que diariamente
aliás, que as duas partes vão cumprir quase
se ocupam de inocular no comção da infân-
exemplarmente as obrigações decorrentes deste
cia, na alma dos futuros cidadãos, o amor
contmto:
ao trabalho e a prática de todas as virtudes,
a obediência as leis que nos regem, a sujei-
- O Estado vai assegurar aos professores ção e o respeito aos poderes constituídos,
um salário (miserávei é certo, sobretudo a dedicação a pátria que os viu nascem (9.
para os mestres) que os põe ao abrigo
das arbitrariedades locais ou de um mau
ano agrícola, vai proteger a profissão
docente através de um conjunto de nor- ('4 A afirmação é proferida, em tom crítico, no opús-
culo de Julio de Mattos: A Última reforma da instru-
mas de recnrtamento e de selecção, vai ção secundária (m$'exõm críticas), Porto, Livraria
reconhecer aos professores o estatuto de Universal de Magalhães & Moniz - 'Editores, 1881.
especialistas do ensino reservando-lhes (9José Anthio Simões Raposa, Conf+im &-
o monopólio de intervenção nesta área, gógicas de Lkboa. Lisboa, 1883, p. 8.
Quatro décadas mais tarde, é a vez de fidelidade dos seus professores de instruçção
André Velasco escrever na Revista &colar: primária, a República investiu-os como os
«O professor é encarregado pelo estado
principais apóstolos da sua causa e o Estado
da função de ensinar e educar a mocidade. Novo confiou-lhes a missão de ((salvadoresda
Pátria». A caricatura deste alinhamento, numa
Por outras palavras, nós somos primeiro
que tudo funcionários. [..I Haveria uma espécie de absurdo que ninguém parece levar
contradição inadmíssivel para o senso muito a sério, é-nos dada pelo facto dos pro-
fessores que exerceram a actividade docente
comum no procedimento dum professor
que, na escola, ensinasse a constituição do nas primeiras décadas deste século terem sido
obrigados a assinar, sucessivamente, declara-
Estado, e que, fora da escola, procurasse
destruí-la. Esta hipótese extrema mostra ções de fidelidade monárquica, de lealdade
bem os limites necessários da liberdade do republicana e de adesão aos ideais do Estado
cidadão no funcionário, e em particular no Novo! É evidente que este «alinhamento»
professor» (21). encontra a sua justificação última na fraca
tecnicidade da profissão docente e na possi-
Seria possível carrear muitos outros bilidade de substituir sem grande dificuldade
documentos em apoio da nossa tese; homens os professores «rebeldes» (veja-se, por exem-
como D. António da Costa, Luiz Filipe Leite, plo, a nomeação pelo regime republicano de
João Andrade Corvo, Bernardino Machado, professores para as «escolas móveis)), a expe-
dirigentes das associações de professores, pro- riência de que o Estado Novo se apropriaria,
fessores das escolas normais, entre outros, vol- adulterando-a, ao criar os «postos de ensino))
tam várias vezes a este tema, sem nunca e as ((regentes escolares»). Na verdade, a
defesa da autonomia dos professores implica
porem em causa a fidelidade devida pelo
corpo docente ao Estado, tanto dentro como inevitavelmente um contacto mais estreito da
fora da escola (”). profissão docente com abordagens científicas
e a compreensão da complexidade (técnica e
Aqui reside uma das expiicações para a ten- humana) do acto de ensinar.
dência, muito nítida na sua história profissio- Importa, todavia, problematizar um pouco
nal, de os professores se alinharem pelas
o raciocínio que temos vindo a desenvolver,
posições políticas e ideológicas dominantes. A introduzindo duas reflexões que impedem
Monarquia nunca teve razões para duvidar da uma visão simplista desta questão.
Em primeiro lugar, é fundamental perceber
~
que os professores são funcionáriospúblicos
(”) André Velasco, «Devem profmionais e cívicos de um tipo muito especial, pois a profissão
dos professores» (Conferência pronunciada em 1926 na docente está intimamente articulada com uma
Escola Normal Primária de Lisboa), Revista Escolar, prática e um discurso sobre as finalidades e
Ano VIII, Março de 1928, nP 3, pp. 71-81. os valores da sociedade. Os professores, con-
(”) Cf., por exemplo: - D. Antbnio da Costa, A ins- trariamente aos restantes funcionários, são
truçáo nacional, Lisboa, Imprensa Nacional, 1870; -
Luiz Filipe kite, «Dignidade das funções do professor portadores de uma mensagem cultural e social
primário)), Panomma, vol. XII, 1855, pp. 166 e seguin- e desempenham uma profissão carregada de
tes; - João de Andrade Corvo, A instrução pública - intencionalidade política e ideológica.
Discurso pronunciado nas sessoeS de 9 1 0 e 11 de Abril, Em segundo lugar, é preciso dizer que se o
Lisboa, Imprensa Nacional, 1866; - Bernardino Estado e os professores são solidários na
Machado, instruçáo Púòlica - Discurso parlamentar
defesa do estatuto de funcionário público,
projêrido a 16 de Julho, Lisboa, Imprensa Nacional,
1890. nem por isso deixa de haver problemas e atri-
Cf. também António Nóvoa, op. cit (1987), vol. I, tos constantes entre o corpo docente e as auto-
pp. 367-371. ridades centrais:
- Já referimos a reivindicação constante de pode ler: ((Contratado o pessoal, deve-
aumentos salariais, de forma a que os -se garantir a sua carreira)) (25).
professores deixem de ser ridicukizados Finalmente, não se podem deixar de
pela sociedade, que os considera uns... mencionar os atritos que se geram em
«mendicantes oficiais)); o próprio Direc- torno da constituição de associações de
tor-Geral da Instrução dirá em 1906 a professam, sistematicamente proíbidas
uma delegação de professores, que é pelos governos ou autorizadas unica-
urgente que eles deixem de passar a vida mente a debater assuntos da ((educação
a pedinchar! Nesta mesma ocasião, o nacional)), estando portanto impedidas
legalmente de intervir em defesa dos
primeiro-ministro João Franco dará
interesses sócio-profissionaisdos profes-
uma «excelente» sugestão aos professo- sores (26).
res no sentido da resolução dos proble-
mas económicos que os afectam, *
a f i i a n d o que «OS de Lisboa e do Porto * *
em aiguma coisa mais podiam aplicar a Em síntese: entre o final do século XVIII
sua actividade e os restantes, que é a e o princípio do século XX, os professores
maioria, que vivem ordinariamente nas vão-se constituir em profissão graças ao
suas terras, onde têm casas e uns terre- enquadmnento e a intervenção do Estado. O
nos em que cultivam umas batatas e estatuto de funcionários públicas permite-lhes
outras coisas, o que isto junto ao seu libertarem-se das influências locais a que esta-
ordenado alguma coisa representa)) (23). vam sujeitos até então; concede-lhes também
uma certa segurança no emprego e estabiii-
- Uma outra fonte de conflitos é a ausên- dade profissional, bem como a instituciona-
cia de uma carreira profisional, que iização de escolas de formação de professores.
faculte uma promoção aos professores A reacção emotiva dos professores e das suas
e as recompensas devidas aos mais com- associações (mesmo das mais radicais e pro-
petentes. Trata-se de uma reivindicação gressistas) contra as diversas tentativas de des-
«histórica» do professorado português, centralização do ensino - por exemplo,
pela qual se batia já em 1859 Luiz Filipe contra os projectos de descentralização da Lei
Leite, criticando que não houvesse uma de 1878 e da Reforma republicana (”) -
verdadeira camim pmfmional, existindo
apenas alguns aumentos salariais conce- (”) Cf. Bemardino Machado, O ensino primário e
didos por antiguidade: ora, uma carreira swmukkio, Coimbra, ?)lpographia França Amado, 1899,
p. 168.
organizada em função dos anos de ser- (’3 A propósito da história do movimento associa-
viço não pode funcionar como estímulo tivo dos professores neste período é útil consultar:
para ninguém... (”). O 3P Congresso do - A série de artigos publicada na revista Educação
Nacional (do nP 37 de 15 de Junho de 1913 ao nP 40
Magistério Primário, celebrado no Porto de 6 de Julho de 1913), da autoria de Eurico, com o
em Dezembro de 1897, regressará a este título: «A Mesa do Directório perante o professorado
tema aprovando uma resolução onde se primário português».
- A série de artigos publicada na revista Educaçüo
Nacional (do n!’ 24 de 17 de Março de 1918 ao n!’ 39
de 9 de Junho de 1918), da autoria de Manuel da Silva,
com o titulo: ((Apontamentospara a história da união
da classe».
(”) Este episódio é descrito na imprensa pedagógica
- A série de artigos publicada em A Errcola Primá-
da época com aiguma minúcia. Ver, por exemplo, a ria, a partir do n!’ 51 de 25 de Outubro de 1928, com
revista Educuçüo Nacional (li? ano, nP 530, 11 de o título: «Os acontecimentos da União - A sua histó-
Novembro de 1906). ria e os seus historiadores)).
(”) Luis Filipe Leite, «Instrução Pública)), Archivo (”) Cf. António Nóvoa, op cit. (1987), vol. 11, pp.
Universal, vol. 11, 15 de Agosto de 1859 e seguintes. 536-542.
justifica-se em grande parte pelo receio de per- em 1856, de instituir uma escola normal no
derem o estatuto de funcionários públicos e seio da sua corporação, de forma a que o pro-
de serem transformados em meros emprega- fessorado assuma a responsabilidade de for-
dos camaráros ou, pior ainda, de ficarem a mar autonomamente os seus profissionais ( 9
mercê dos pais e das comunidades.Em 1917, -, Júlio de Mattos vai escrever as seguintes
Manuel Ramos de Oliveira repetia nas pági- reflexões críticas em 1881:
nas da Educação Nacional, uma vez mais, o «Ao professor oficial, uma vez garantida
argumento central dos professores contra a pelo estado a sua subsistência e uma vez
descentraiização do ensino: «Dantes, o pro- garantido o respeito, ainda que fictício, do
fessor não tinha que c o m de pejo como seu ensino, que estímulos lhe restam para
agora, ao receber ordens de quem sabe menos estudar e progredir? [..I se não tem a dura
I do que ele» (28). E António Augusto Martins responsabilidade científica das opiniões que
terminou, por entre o aplauso geral, um bri- professa, porque ensina segundo programas
lhante discurso em defesa da Reforma e livros oficiais, nem a responsabilidade
Camoesas, pronunciado no V Congresso da moral dos seus votos.
União, com as seguintes palavras: ((Todavia,
o céu azul da Nova Reforma tem uma nuvem i... I
Ou a máxima liberdade tem lugar, e
que hoje é pequena, mas que amanhã será existe o mestre que ensina, ou a interven-
grande - a adminktmção do ensino entregue ção do estado, se faz sentir, e então existe
às Câmams - negando-se assim apenas a simplesmente o empregado que ficaliza.
classe do professorado primário o direito de
administrar o ensino)) ( '9. I.-l
Porque os governos portugueses essen-
Já referimos as vantagens que o estatuto de
cialmente rotineiros e conservadores, se
funcionário público trazia para os professo- reservam a faculdade de impor aos profes-
res. Já referimos também alguns dos incon- sores opiniões, pontos de vista, moldes dou-
venientes: salários baixos, inexistência de uma trinários. Porque, notemos o facto insólito,
carreira profissional, restrições ao associati- os governos não se limitam a determinar a
vismo dacente, enfim, ausência de autonomia área dos assuntos que devem ser estudados;
prof2sional. Esta constatação levará alguns vão mais longe e escrevem nos programas
professores, mais atentos a uma reflexão socio- a doutrim, as opiniões que têm de ser man-
lógica sobre a sua própria profissão, a avan- tidas pelos professores!
çarem desde finais do século XIX com
algumas propostas inovadoras de organizacão
I
I...
Se os cérebros dos professores têm de
da pmfwão docente, todas elas portadoras de submeter-se, como a estatura dos soldados,
uma visão crítica do profmor-funcionário a bitolas convencionais, como será o ensino
público. e como serão os discípulos?!
Retomando algumas tímidas sugestões lan-
çadas em meados do século XIX no sentido
L.1
Com que direito tudo isto, gloriosos esta-
de uma organização mais autónoma da pro- distas? Como haveis de obrigar-me a ensi-
fissão docente - veja-se, por exemplo, a deci- nar em filosofia que Deus criou o mundo
são tomada pela Asmciuçcfo dos h f m o m , e em direito público que a monarquia repre-
sentativa, em cujo cilindro girais, é a mais
(") Manuel Ramos de Oliveira, «Centdzação? Des- aceitável das formas de governo?)) (31).
~ntraiização%),Eüucação Nacional, nP 23,4 de M m p
de 1917. ('4 Cf. o editoriai da revista A Zmtrução Pública,
('3 Ver o Relato do Congresso no Jornal O Pqfks- nP 22, de 15 de Maio de 1856.
sor Primáíio, nP 201, de 23 de Agosto de 1923. (31) Julio de Mattos, op cit. (1881), pp. 8-19.

443
Este grito de alerta contra a funcionariza- económica mesquinha, mas subtraindo-os a
ção dos professores vai ganhar uma nova concorrência que conduz ao aperfeiçoamento
dimensão durante o período republicano, na [concluindo que no nosso país] o professorado
ambiência do mais importante movimento é um pretexto para viver do orçamento, sem
pedagógico que jamais ((atravessou))a socie- produzir))(33).
dade portuguesa: o Movimento da Educação Poderíamos invocar muitos outros testemu-
Nova. Então, a tentativa de imaginar um nhos desta época - a idade de ouro dospro-
outro estatuto para a proffisão de professor fessores - para demonstrar que, no perbdo
ganhará maior amplitude, em sintonia, por histórico em que se consolida a funcionariza-
um iado, com o incremento do associativismo cio dos professores, várias correntes de opi-
docente e com os esforços de automatização nião, internas e externas ao movimento
do professorado e, por outro lado, com o associativo dos professores, se interrogam
reconhecimento de uma maior dignidade pro- sobre os limites e os condicionaiismos que este
fissional e de uma intervenção mais consis- estatuto implica e procuram imaginar uma
tente na gestão do sistema educativo, de que outra forma de ser profmor. Neste âmbito,
a experiência das juntas escolares é um exem- a experiência das juntas escolares merece uma
plo paradigmático. referência especial. Criados em 1919, numa
Dois dos diredores da seqão portuguesa da reformulação das perspectivas republicanas
Liga Internacional pró-Educação Nova, sobre a descentralização do ensino, estes orga-
Adolfo Lima e António Sérgio, vão referir-se nismos vão concitar um largo consenso no
diversas vezes a esta questão, pugnando por seio do professorado, que vê neles uma forma
uma maior autonomia dos professom. de responsabilizar os técnicos do ensino pela
Num artigo polémico datado de 1915 sobre direcção do sistema escolar (%). Sintetizando
o recrutamento dos professores, Adolfo Lima o sentir da classe, Mário Sedas Nunes escre-
afirma que o professorado não se pode con- veu, em 1921, na Voz do ProfessoK
verter «num mero emprego público, manga de
aZpaca, exercido como um encargo burocrá- ((Bradava-se, e com razão, que o profes-
tico, rotineiro e mercenário, friamente, sem sorado primário, que esta classe de educa-
entusiasmo e paixão pela ciência, pelo saber dores, não podia estar a mercê das câmm
e pela educação da mocidade [concluindo municipais, que não escrupuiizavam a sua
que] a própria natureza das coisas está, pois, acção, que tinham algumas A frente do
a indicar que o Estado é incompetente para pelouro da instrução verdadeiros cabotinos,
tratar de assuntos pedagógicos e, nomeada- quase analfabetos.
mente, do recrutamento de professores)), o Bradava-se e com razão que os interes-
qual, na sua opinião, devia ser da inteira e ses do ensino primário não podiam estar ii
exclusiva responsabilidade do professorado disposição de criaturas que pouco ou nada
dos diversos estabelecimentos de ensino: «OS conheciam de assuntos pedagógicos.
males apontados evitar-se-iam desde que aos [...I
respectivos corpos docentes assistisse o direito O Estado concordando que só os profes-
de escolher e seleccionar todos os seus futu- sores primários, os técnicos, poderiam tra-
ros colegas)) (’7. tar de si e da instrução com o desvelado
Neste mesmo sentido se pronuncia Antó-
rio Sérgio, em 1918, quando escreve que o (”) António Sérgio, «A escola portuguesa, órgão
pamitário; necessidade da sua reforma sob a ideia direc-
sistema de ensino ((tendea constituir os pro-
triz do trabaiho produtivo», Pela Grei, vol. I, série 1, nP
fessores numa casta, dando-lhes uma situação 3, Julho de 1918, p. 170.
(”) Cf. António Nóvoa, op. cif. (1987), vol. 11, pp.
(’3 Adolfo Lima, art. cit (1915), pp. 360-362. 536-542.

444
carinho e aturada atenção que estes assun- para lembrar que qualquer profissão se orga-
tos merecem, e depositando confiança na niza com base num corpo especfico de
classe, entregou-lhes parte do ensino pri- conhecimentos e num conjunto de valores
mário. ético-deontológicos que lhe são próprios.
LI No caso da profissão docente, este
As juntas escolares que contam no seu
seio professores primários, os técnicos, se corpo específico de conhecimentos, estru-
deixassem de existir punham em cheque a turado em torno de um saber pedagógico,
nossa competência, o nosso interesse, o nunca conseguiu afirmar-se do ponto de
nosso zelo, o nosso entusiasmo, enfim, vista cientfico e social, mal-grado todos
numa palavra, a nossa dignidade profis- os esforços desenvolvidospelo menos há
sional» (”). um século. Em 1917j á António Wagode
falava da Pedagogia como «a arte tornada
Avessos a uma descentmlização administm- hoje ciência» p6) e oito anos mais tarde
tiva do ensino, os professores vão bater-se Adolfo Lima não hesita em afirmar que
durante os anos vinte por uma maior parti- está definido «O lugar da acção pedagó-
cipação na gestão do sistema educativo gica como sendo uma ciência e não ape-
(nomeadamenteatravés das juntas escolares), nas uma prática» (3’).
pela melhoria das condições de formação ini- Ora, o não reconhecimento da pedago-
cial e contínua, pelo reconhecimento de uma gia enquanto corpo autónomo de saberes,
maior autonomia na escolha dos conteúdos a não legitimidade de uma ciência da edu-
progrmáticos e dos métodos pedagógicos, cação, impedem obviamente que uma pro-
pela aquisição de um estatuto sócio-profis- fissão se possa constituir em torno dele,
sional mais prestigiado, enfim, pela valoriza- criando uma situação amblgua de relação
ção da profissão de professor. entre os profissionais do ensino e o saber
O Estado Novo vai cortar cerce todas as pedagógicq entendido mais como uma
veleidades de uma o?ganização mais autó- técnica instrumental de intervenção do
noma do profèssomdo, impondo-lhes um que como um conhecimento cient$ico
rigoroso controlo político, ideológico e pro- fundamental.
fBsional. Contudo, seria atultícia ignorar que Basta lembrar,por exemplo, que a hie-
as dificuldades na evolução do estatuto dos rarquização no seio da profissão docente
pmfeessoms mergulham muito fundo nas m’- se f a z por referência a um saber geral (a
zes sócio-históricas da profissão docente. uma cultura cientflica nas diversas áreas
E hoje? Neste tempo de transição para o disciplinares),pondo no topo do prestlgio
século XXI, que significa para nós serpmfes- os professores universitários, e não por
sor? É possível continuar a defender, na referência a um saber específicq isto é a
esteira de Pombal, que os professores devem um saber pedagógica.. isto obviamente se
ser funcionários do Estado? admitirmos que as diversas categorias de
professores pertencem a mesma profisão!
* O desabafo proferido em 1915 por José
* *
Permitam-me um breve parêntese teórico, (36) António Waigode, «A reforma primária e as
antes de procurar responder a estas perguntas, Escolas Normais»,Educação Nacional, nP 23, de 4 de
Março de 1917.
(37) Adolfo Lima, ((Evoluçãoda Educação», Edu-
(j’) Mário Sedas Nunes, «A dignidade da Classe)), cação Social, 2P ano, nP 12, 15 de Dezembro de 1925,
A Voz do Pqfmoc nP 3, de 1 de Abril de 1921. p. 407.

445
Santa Ritta, professor do Liceu de Pedro magistratura - conceitos claramente
Nunes, ainda hoje tem sentido: «importados» de outras instâncias da
«Para muitos, em Portugal, e por infe- sociedade -para definirem a sua própria
licidade para alguns professores, a peda- profissão. Aliás, a resistência «cúmplice»
gogia não é coisa de forma alguma das autoridades estatais e dos professores
necessária ao professor, pois, para esses, 6 elaboração de um código deontológico
nasce-se professor como se nasce poeta: da profissão docente não pode deixar de
questão de vocação e entendem que a merecer uma séria reflexão (39).
pedagogia se reduz a umas lérias com que É verdade que a emergência na cena
uns maníacos querem complicar esta coisa social, no princ@io do século X X de
simplicíssima de ensinar rapazes» (38). poderosas associações de professores, por-
E José Santa Ritta continua o seu texto tadoras de três grandes reivindicações -
defendendo a formação profissional e téc- meihoria do estatuto socioeconómico,
nica dos professores, tendo como eixo cen- maior autonomia profissional e definição
tral a ciência pedagógica, e observa com de uma carreira (40) - introduz novos
algum humor: apesar do curso de medi- dados nesta problemática. Num certo sen-
cina ter sido durante muito tempo incapaz tido, pode-se dizer que doravante a uni-
de preparar profissionais competentes, os dade extrínseca do professoradq que ihe
clamores que contra ele se levantaram não é imposta pelo Estado através do estatuto
tinham como fim extingui-lo e entregar a de funcionários públicos, tem o seu
curandeiros o exercício da medicina, mas reverso numa unidade intrínseca do pro-
quando se critica a formação de profes- fessorado, construída com base na solida-
sores é quase sempre para se «demons- riedade profissional e na defesa de
tram a sua inutilidade e para se entregar interesses comuns.
a educação das crianças nas mãos de... Todavia, este facto não foi suficiente
curandeircs do ensino! para permitir u m a autonomização pro-
Por outro lado, numa perspectiva deon- gressiva da profissão docente e o Estado
toiógica, é importante insistir num facto continuou a exercer um controlo muito
de grande relevância sociológica: os pro- estrito sobre os professores e a impedir
fessores começam por aderir a uma ética que as suas associações de classe assumis-
e a um sistema normativo que lhes são sem um maior poder na definição das
impostos do exterior pela Igreja, para em normas de acesso e de exercício da pro-
seguida os substituirem, ainda que apenas fissão.
parcialmente, por um novo conjunto de
valores, desta vez imposto pelo Estado. Enfim, insista-se, em jeito de conclusão,
Estas duas instituições vão desempenhar na ideia de que a consolidação do estatuto
o papel de mediadoras das relações inter- profissional dos professores se faz em simul-
nas e externas dos professores, impedindo tâneo com a institucionalizaçãodo modelo
que estes construam uma deontologia e escolar e a construção dos grandes sistemas
uma identidadepróprias. Não é por isso estatais de ensino, tal como existem ainda
de estranhar que ouçamos constantemente
os professores recorrerem a conceitos
como sacerdócio, vocação, missão ou ('4 Ver a este propósito o artigo de Maria Teresa
Estrela, Algumas considerações sobre o conceito de
profissionalismo docente, separata da Revista Portu-
(38) José Santa Ritta, «O recrutamento de profes- guesa de Pedagogia, Ano XX, 1986, pp. 301-309.
sores)), Revista de Educação Geral e Técnica, série IV, (40) Cf. António Nóvoa, op. cif. (1987), vol. I, pp.
nP 1, Julho de 1915, p. 30. 81-82.

446
nos nossos dias. Este estatuto consolida-se mente nos países mais alfabetizados do
numa época em que a uma visão linear da Mundo (fenómeno que os pedagogos da
evolução social impregnada da ideologia de época jamais conseguirão compreender!),
um progresso constante correspondia uma vão semear as incertezas e as dúvidas quanto
crença firme nas potencialidades da escola, a uma visão linear do progresso social e eco-
investida como um espaço privilegiado de nómico. Abre-se então um tempo de inter-
transformação colectiva e de promoção indi- rogações que, no quadro educativo, deu
vidual. Mais do que ninguém, os professo- origem ao que hoje designamos por crise da
res foram os apóstolos e os porta-vozes desta instituição escolar e crise da profissão
visão idílica da sociedade e da instituição docente.
escolar: citem-se, a título de exemplo, os Hoje em dia, a esmagadora maioria das
numerosos trabalhos ((demonstrando)) que crenças e das convicções que serviram de ali-
o analfabetismo era a causa de todos os cerce a construção dos sistemas de ensino
males e que, uma vez alfabetizado o povo, encontram-se seriamente abaladas e postas
todas as dificuldades se resolveriam, desde em causa. E, o que é pior, os professores não
os problemas do desenvolvimento econó- foram capazes de construir um outro uni-
mico até às questões de ordem social, pas- verso de referência, um universo que desse
sando pela extinção da delinquência e pela um novo sentido ético e social a sua inter-
eliminação da fome, da miséria e da prosti- venção quotidiana junto das crianças e dos
tuição e'). Não resistimos a referir o pará-
grafo final do célebre Manifesto de 1897, que
jovens.
Portugal 1988. Que professores temos?
teve em Bemardino Machado o seu primeiro Que professores queremos ser? I? possível
signatário: «Não será uma cruzada santa construir uma forma nova de ser professor?
arrancar quatro milhões de portugueses i É possível imaginar uma outra maneira de
mais sombria ignorância? Não há dúvida. estar na profissão docente?
Por isso, a semelhança das cruzadas que
atravessavam os mares para combater pela
fé, unamo-nos todos e combatamos pela luz, OS PROFESSORES: A PROCURA DE UM NOVO
porque neste momento é um dos maiores ESTATUTO PROFISSIONAL
serviços que se podem prestar a pátria)) c2). «No primeiro dia, o Deus-Estado criou
A profissão docente constrói-se no seio
desta ideologia herdada do «século das o aluno, que é a criança desligada da vida,
Luzes)), estando portanto reservada aos pro- desligada da realidade, condenada a viver
fessores a mais alta e a mais nobre de todas na sua cabeça. No segundo dia, foi criado
as missões sociais. Era um tempo de certe- o adolescente, que é o jovem adulto impe-
zas e de optimismos: ao incarná-los os pro- dido de crescer, pois não tem lugar na
fessores asseguravam o prestígio do ensino Cidade, nem trabalho, nem responsabili-
e, simultaneamente, o seu próprio prestígio dades, nem direitos. E eis-nos chegados ao
profissional. terceiro dia desta Criação as avessas.
As duas Grandes Guerras que, escândalo Agora é a vez de infantilízar o adulto,
dos escândalos, serão desencadeadas justa- condicionando-oa olhar para os superio-
res hierárquicos como se fossem seus pais
e para a sociedade como se fosse uma
c') Cf. António Nóvoa, op. cit. (1987), vol. 11, pp.
562-574.
grande família» e3).
(42) Ver a transcrição deste Manifesto na revista
Educação Nacional, 1P anno, nP 50, 12 de Setembro c3) Gérard Mendel, «ia Création A l'envers)),
de 1987. L'Éducation, nP 437-438, Dezembro de 1980, p. 52.

447
Estas palavras escritas por Gérard Men- uma procura crescente de formação - Jacky
de1 em 1980 situam-se na esteira das críticas Beillerot demonstrou, com algum humor,
formuladas a instituição escolar desde finais que a pedagogia é a primeira actividade da
da década de sessenta ("). Não se trata de nossa sociedade, a seguir ao sono: ((passa-
uma crise conjuntura1 dos sistemas educa- -se mais tempo em França, em 1981, a ensi-
tivos, mas antes de uma inadequação do nar e a ser ensinado do que a produzir
modelo escolar as necessidades sociais dos directamente bens e serviços» (") - e pela
nossos dias. transformação do ensino em factor de pro-
Nas últimas décadas assistiu-se a uma tri- dução, na forma de ((know-how» científico
pla expansão dos sistemas educativos: e tecnológico, que tende a assumir um papel
aumento substancial do número de alunos de relevo nas transacções económicas a
e de professores (no ensino secundário em escala mundial ("').
Portugal os efectivos escolares triplicaram Não é difícil traçar um ((quadro impres-
em cerca de vinte anos) e');
extensão das sionista» do nosso actual sistema de ensino.
práticas educativas a novos públicos (adul- Servimo-nos, para tanto, de um texto recente
tos, terceira idade, etc.), num processo que de Bártolo Paiva Campos: os alunos estão
já foi designado por pedagogização da socie- desmotivados e desencantados perante uma
dade e6);
diversificação dos recursos educa- escola onde se sentem a desperdiçar a vida;
cionais e implementação progressiva de as famílias vivem na intranquilidade do que
novas tecnologias educativas. Esta tripla pode suceder aos seus filhos na escola; os
expansão não é uma manifestação de vita- professores sentem-se socialmente desvalo-
lidade, mas antes um sintoma da crise gene- rizados e profissionalmente desapoiados e
ralizada em que «mergulharam» os sistemas irresponsabilizados; os empresários e os tra-
estatais de ensino, incapazes de dar uma res- balhadores constatam a falta de qualidade
posta coerente e inteligente aos desafios dos do ensino; as actividades escolares são ina-
tempos de hoje, obviamente incrédulos em dequadas às realidades do mundo de hoje;
relação a ((rapsódia do progresso» (") que etc. (50). Acrescente-se a este panorama uma
serviu de alicerce a construção do modelo gritante ausência de responsabilidades, o que
escolar. contrasta com o comportamento de qual-
É fundamental compreender que a crise quer empresa moderna com um mínimo de
da instituição escolar é acompanhada por dinamismo e de eficácia. A transição para
o século XXI não se compadece com uma
(") Ver, por exemplo, as obras de André Gorz, concepção centralizadora e estatizante do sis-
Étienne Verne, Ivan Illich ou Everett Reimer. Ver tam- tema de ensino, concepção herdada de uma
bém as obras publicadas neste período pelos autores época histórica completamente diferente da
institucionalistas (Jacques Ardoino, Georges Lapas- actual; precisamos de uma outra escola e de
sade, Michel Lobrot, etc.).
C') Cf: - José Salvado Sampaio, Portugal - A um outro professor. Já em 1885, no Relató-
educação em números, Lisboa, Livros Horizonte,
1980; - Análise conjunturak educação 1986, Lisboa,
(48) Jacky Beillerot, La société pédagogique, F'aris,
Gabinete de Estudos e Planeamento/Ministério da
PUF, p. 35.
Educação, 1987.
(47Ver, por exemplo: - H. Dauber e E. Verne, (44 Ver o documento de projecto do Programa
L'école a perpétuité, Paris, Seuil, 1977; - Carlos DELTA (Desenvolvimento do Ensino Europeu através
Lerena, Reprimir y liberar - Crítica sociológica de Ia do Progresso Tecnológico): Bruxelas, Comissão das
educación y de Ia cultura-contemporáneas,Madrid, Comunidades Europeias, ref. COM (87) 353 final,
Akal editor, 1983. nomeadamente pp. 6-11.
e') Expressão utilizada por Daniel Hameline: Cou-
mnts et contre-courants dans Ia pédagogie contempo-
('4 Bártolo Pava Campos, «Participação Social na
reforma educativa», Jornal de letras, artes e ideias,
raine, Sion, ÓDIS, 1986, p. 127. Ano VII, nP 295, 1-7 de Março de 1988, p. 6-JE.

448
rio do Conselho Superior de Instrução na lógica da situação... Lá lógicos são eles.
Pública, se entrava a compreender «que o Assim tivessem sido os republicanos...)) (52).
máximo de educação há-de ser o mínimo de Alimentar a ilusão de uma «grande»
governo)) (9. Reforma é simultaneamenterejeitar a neces-
Neste quadro não espanta que a Reforma sidade de criar dispositivos que permitam
do Sistema Educativo português seja um dos uma regulação dinâmica do sistema e impe-
leitmotive dos discursos políticos, pelo dir que os actores educativos se apropriem
menos desde a geração Veiga Simão cujo dos mecanismos de mudança da instituição
controlo da máquina estatal de ensino tem escolar. O equivoco da «grande» Reforma é
sido quase total desde o princípio dos anos que, independentemente de se apelar a uma
setenta. O tema ganha hoje uma nova actua- participação alargada e/ou a uma actuação
lidade, devido a publicação de uma série de mais interveniente dos agentes educativos,
documentos da Comissão de Reforma do ela acentua inevitavelmente o fosso que
Sistema Educativo (Comissão que parece separa os actores e os decisores, concen-
não ter tido qualquer coordenação, nem ter trando cada vez mais o poder nas mãos do
definido qualquer estratégia coerente de aparelho de Estado. Antoine Prost observa
actuação), documentos de qualidade desi- com muita pertinência que é essencial «evi-
gual, ainda que de um modo geral construí- tar grandes reformas, dotando o sistema
dos sem o recurso a metodologias científicas educativo das condições para se reformar a
de abordagem dos fenómenos educativos: ele próprio, no dia-a-dia» (53).
esta observação ganha maior amplitude em Dennis Carlson sublinha, num texto inti-
áreas como a teoria curricular, no âmbito tulado ((Teachersas Political Actorsn, o para-
das quais têm sido produzidos trabalhos de doxo das reformas educativas nas actuais
grande qualidade técnica e de grande rigor condições institucionais: o sistema não pode
científico. conceder aos professores e aos estudantes os
Não é este o lugar para uma análise téc- meios e os instrumentos para a procura da
nica dos materiais da Comissão. Saliente-se excelência do ensino sem lhes dar um con-
tão só o grande equívoco que esta Reforma trolo muito maior sobre o processo escolar;
constitui. O nosso século da escola é uma ora, não há nenhuma garantia que os pro-
longa sucessão de fracassos das «grandes» fessores e os estudantes usem este novo
Reformas do Ensino, desde Passos Manuel poder (ou definam a excelência) de forma
(1836) a João Camoesas (1923). Em jeito de consentânea com os interesses do Esta-
provocação, creio que é possível verificar que do (54).
apenas um regime político, o Estado Novo, Urge, portanto, desfazer os equívocos e
não caiu na tentação de fazer a Reforma do desmistificar a «grande» Reforma para
Ensino com R grande: ele terá sido, porven- podermos, finalmente, desencadear uma
tura, o único regime que teve êxito na sua dinâmica (auto)reformadora do nosso sis-
estratégia, conseguindo ajustar o sistema tema educativo. Uma dinâmica que seja coe-
educativo a medida das suas necessidades.
Como confidenciava Adolfo Lima ao seu (52) Carta de Adolfo Lima a Alvaro Viana Lemos
amigo Álvaro Viana Lemos, já em 1928: (17 de Outubro de 1928), guardada nos Arquivos
((Quanto 5 Reforma (?) normalista ela está Álvaro Viana Lemos/Movimento da Escola Moderna.
(53) Antoine Prost, Eloge des pédagogues, Paris,
Seuil, 1985, p. 146.
(51) Relatdrio Geral do Conselho Superior de Zns- (54) Dennis Carlson, dèachers as Political Actores:
trução Pública - Sessão de Outubro de 1985 [rela- From Reproductive Theory to the Crisis of Schoo-
tor: Jayme Moniz], Lisboa, Imprensa Nacional, 1886, ling)), Harvard Educational Review, vol. LVII, NP 3,
p. 34. Agosto de 1987, pp. 283-307.

449
rente com o princípio de uma maior parti- inércia estatal. O poder de decisão tem que
cipação e controlo dos diferentes actores estar mais próximo dos centros de interven-
(alunos, professores, pais, autarcas, etc.) ção, responsabilizando de forma mais directa
sobre o processo educativo. Uma dinâmica, os actores educativos. O Estado mestre-
que não contribua, por caminhos envieza- -escola, na expressão feliz de João de Deus
dos, para reproduzir um sentimento de Ramos ( 5 7 ) , cumpriu uma missão impor-
impotência face a mudança da instituição tante, que... chegou ao seu termo; que em
escolar e para bloquear os desejos de uma seu lugar apareça uma escola mestra de si
maior intervenção dos diferentes actores. própria.
Uma dinâmica, enfim, que não acentue o A reivindicação contemporânea da des-
que Linda McNeil chama uma atitude defen- centralização do ensino é fundamentalmente
siva dosprofessores (55), mais própria de um distinta de uma perspectiva de ((descentra-
funcionário do que de um profissional. lização administrativa)),veiculada, por exem-
O recente relatório da 15? sessão da Con- plo, nos projectos reformadores de 1878 e de
ferência Permanente dos Ministros Europeus 1911. Ela é também distinta da perspectiva
da Educação (Helsínquia, 1987), da autoria ((corporativa))de que enfermava o projecto
de Ulf P. Lundgren, aponta claramente no das juntas escolares. Trata-se de erigir as
sentido de uma política de descentralização escolas (e os agrupamentos de escolas) em
do ensino e de maior autonomia dosprofm- espaços de autonomia pedagógica, curricu-
sores, mostrando de que forma estes dois lar e profissional, o que implica um esforço
vectores são interdependentes (”). Gostaría- de compreensão do papel dos estabelecimen-
mos de terminar este artigo com uma refle- tos de ensino como organizações, funcio-
xão em torno destes dois princípios, ambos nando numa tensão dinâmica entre a
congruentes com a procura de uma nova produção e a reprodução, entre a liberdade
imagem social e de um novo estatuto pro- e a responsabilidade (58).
fissional para os professores. Neste contexto importa sublinhar o pará-
grafo inicial do prefácio de Michael Apple
ao livro Contradictions of Control - School
A descentralização do ensino de hoje uma Structure and School Knowledge:
pedagogia centrada na escola «Nas últimas duas décadas fizeram-se
grandes progressos na explicitação das
A modernização do nosso sistema educa- relações entre os curricula, a pedagogia e
tivo passa pela sua descentralização e por a avaliação nas escolas elementares e
um investimento das escolas (dos estabele- secundárias e as estruturas desiguais da
cimentos de ensino) como lugares deforma-
cio, na acepção forte do termo. As escolas
têm que adquirir uma mobilidade e uma fle- (57) João de Deus Ramos, O Estado mestre-escola

xibilidade que lhes permitam uma resposta e a necessidade das Escolas Primárias Superiores,
Lisboa, Sociedade Editora Portugal-Brasil, 1924,
eficaz aos problemas económicos e sociais, p. 16.
que não se compadecem com a habitual (’*) Cf. a este propósito: - Martin Cole, «ia ense-
fianza hasta e1 afio 2000. La conciencia de 10s profe-
(”) Linda McNeil, Contradictions of Control - sores en épocas de crisis)), Revista de Educación, nP
School Structure and School Knowledge, New York 283, Maio-Agosto de 1987, pp. 165-185; - P. Hallin-
and London, Routledge & Kegan Paul, 1986, pp. ger e J.F. Murphy, «The Social Context of Effective
157-190. Schoolw, American Journal of Education, vol. 94,
(56) Ulf. P. Lundgren, New challenges for teachers 1986, pp. 328-355; - Lise Demailly, ((Contributiona
and their education, Strasbourg, Conselho da Europa, une sociologie des pratiques pédagogiquew, Revue
1987, pp. 47-57. Française de Sociologie, vol. XXV, 1984, pp. 96-119.

450
sociedade em geral. Todavia, faltou um gem sociológica, a maneira de um
elemento central em muitos estudos sobre John Dewey ou de um Adolfo Lima.
o papel cultural, político e económico das A componente central da intervenção
instituições formais de educação. Estou- educativa era, no entanto, o indivri
-me a referir & tendência para ignorar - duo-aluno na sua tripla dimensão:
ou para tratar como um epifenómeno - cognitiva, afectiva e motora. Célestin
o trabalho interno das escolas como orga- Freinet (e poucos mais) era a excep-
nizações)) (59). ção, não a regra.
2 -0s movimentos ligados a ((dinâmica
Esta lacuna, que importa colmatar, vem de grupos)) que se desenvolvem sobre-
dar um novo sentido a edificação de uma tudo nos Estados Unidos durante a
pedagogia centrada na escola. década de 50 vão acentuar a impor-
Numa evocação breve das correntes peda- tância das inter-relações no processo
gógicas contemporâneas - e adaptando os educativo. Eles vão conduzir a s peda-
cinco níveis de análise de todo o conjunto gogias não-directivas que atingem o
humano estruturado utilizados pelos insti- seu ponto culminante no decorrer da
tucionalistas, nomeadamente por Jacques década de 60, período em que as
Ardoino (60), ainda que sem reproduzir o vivências escolares são assumidas
percurso unidireccional caminhando da pes- como o factor preponderante da
soa para a instituição - é possível ((arru- intervenção pedagógica. Durante os
mar» as ideias e as práticas educativas do ANOS 50/60 celebra-se o hic et nunc
seguinte modo: da formação; o que se passa numa
sala de aula é mais importante do que
o que aí se aprende!
5 -Quando, em plena década de 60,os
«sociólogos da reprodução)), com
particular destaque para Pierre Bour-
3 A turma I A sole de aula

ip
I ANOS 70180
dieu e Jean-Claude Passeron, desmis-
-??v.,..\.
ANOS 80190 ?
tificam as crenças algo ingénuas nas
potencialidades transformadoras da
acção pedagógica - «Nada do que se
passa na sala de aula pode ser resol-
vido no interior da sala de aula))
1 - ATÉ AOS ANOS 50 a pedagogia - gera-se alguma confusão no seio
esteve fundamentalmente centrada do professorado, até aí tão seguro nas
nos alunos, encarados numa óptica suas convicções ((iluministas)). Os
individual. Sofrendo grande influên- ANOS 60/70vão assistir a emergência
cia da psicologia, o discurso e as prá- da pedagogia institucional, da educa-
ticas pedagógicas assentavam numa ção permanente e da descolarização
perspectiva pedocêntrica, ainda que da sociedade, movimentos distintos,
aqui e ali matizada por uma aborda- mas onde é possível distinguir alguns
denominadores comuns: a crítica as
instituições escolares existentes, a pro-
(”) Michael Apple in Contmdictions. .., op. cit.,
p. ix.
(60) Jacques Ardoino, prefácio ao livro de Michel (61) Jean-Claude Passeron, «La relation pédagogi-
Lobrot (A pedagogia institucional, Lisboa, Iniciativas que dans le système d’enseignement)),Prospective, nP
Editoriais, s.d.), pp. 27 e seguintes. 14, Setembro de 1967, p. 154.

451
jecção da pedagogia para fora dos centralização do ensino não é hoje em dia
quatro muros da escola e a diversifi- uma reivindicação unicamente política ou
cação dos papéis dos professores, ideológica, nem é apenas uma necessidade
entre outros. técnica e administrativa: ela comporta uma
-A reacção a estes movimentos não se dimensão científica, adquirindo sentido no
fez esperar e, desde o princípio da quadro da evolução das ideias sobre a edu-
década de 70, assiste-se ao desenvol- cação e das práticas educativas (63). Por
vimento de correntes pedagógicas outro lado, nunca é de mais referir que a
preocupadas com a racionalização e implementação de uma estratégia descentra-
a eficácia do ensino, na linha da lizadora implica uma maior autonomia dos
((pedagogiapor objectivos)). A inves- professores.... e vice-versa.
tigação educacional, preocupada com
a ((análise do processo de ensino-
-aprendizagem» e com estudos desig- A autonomia dos professores: pedra-de-
nados de ((processo-produto» (62), -toque de um novo estatuto profissional?
contribuiu para este regresso a sala de
aula e as questões da didáctica. «O professor não é considerado, nem
Durante os ANOS 70/80 verifica-se pelos outros, nem, o que épior, por si pró-
um esforço muito grande na identifi- prio, como um especialista na dupla pers-
cação do ((irredutívelpedagógico)) e pectiva dm técnicas e da criação cientipca,
na tentativa de elaboração de uma mas como um simples transmissor de
pedagogia objectiva. saber, o que está ao alcance de qualquer
-As críticas recentes a esta perspectiva um» p").
e, sobretudo, a valorização da dimen-
são escola-organização deixam ante- Ao citar estas palavras escritas por Jean
ver que os ANOS 80/90 vão ser Piaget em 1965, Gilles Ferry acrescenta que
consagrados a construção de uma o acto de ensinar surge frequentementecomo
pedagogia centrada na escola, forte- um acto banal, que se efectua na continui-
mente baseada na teoria curricular e dade de uma actividade especulativa ou prá-
no investimento dos estabelecimentos tica: «A quem sabe alguma coisa, ou a quem
escolares como lugares de ensino sabe fazer alguma coisa, parece fácil e natu-
dotados de margens de autonomia ral transmiti-lo a outros)) (65). Esta visão é
pedagógica e curricular, como espa- incompatível com o nível das qualificações
ços de formação e de auto-formação que a sociedade exige actualmente aos pro-
participada, como centros de investi- fessores e com a complexidade técnica e cien-
gação e de experimentação, enfim, tífica dos serviços que eles são chamados a
como núcleos de interacção social e prestar. Neste domínio há que ter a coragem
de intervenção comunitária. de assumir uma ruptura frontal com ideias
e tradições conquistadas ao longo dos sé-
Esta «arrumação», talvez demasiado sim-
plista, permite-nos compreender que a des-
(63) Sobre esta matéria é indispensável a consulta
t')Ver o excelente mapa sinóptico da investigação da obra de Daniel Hameline: L'éducation - Ses Ima-
educacional apresentado por Lee Shulman: ((Para- ges et son propos, Paris, Éditions ESF, 1986.
digms and Research Programs in the Study of Ta- (64)Jean Piaget, «Éducation et instruction depuis
ching: A contempomy Perspective», in Handbook of 1935», in Encyclopédie Française, tome XV, 1965.
Research on Teaching, New York, Collier Macmillan, (65) Gilles Ferry, Le trajet de la formation, Paris,
1986, pp. 3-36. Dunod, 1987, p. 41.

452
culos. A complexidade do ensino tem sido sobre eles e a transformá-los em produtos
demasiadas vezes ignorada, banalizando-se passíveis de serem apreendidos pelas crian-
a actividade docente e desvalorizando-se as ças ou pelos jovens; por outro lado, mantem-
suas referências científicas. Ora, como -se a tradição de fornecer um conjunto
afirma Lee Shulman em reacção ao célebre genérico de conhecimentos pedagógicos,
slogan de Bernard Shaw - «Quem sabe, faz. cuja pertinência e eficácia deixam muito a
Quem não sabe, ensina.)) (") -, o teste desejar e que servem mais para afirmar o
Último A compreensão reside na capacidade prestígio dos ({especialistasem educação)) do
para transformar o conhecimento em ensino, que para formar professores. 13 urgente
concluindo: ((Quem sabe, faz. Quem com- desenvolver projectos de formação de pro-
preende ensina)) (67). A afirmação e o reco- fessores alicerçados numa reflexão sobre os
nhecimento social deste novo conhecimento processos e os itinerários de formação e
cientrlfico e técnico é o primeiro vector da baseados em estratégias operacionais que
fundação de um outro estatutoprofissional facilitem o transfert entre a situação de for-
dos profesores. mação e a futura situação profissional. Estes
Na sequência desta reflexão é importante projectos devem integrar um acompanha-
referenciar um outro artigo de Lee Shulman, mento dos ((jovens professores)) durante os
intitulado {(Knowledgeand Teaching: Foun- primeiros anos de exercício docente, período
dations of the New Reform)), onde se apre- decisivo da socialização profissional e da
senta um modelo da acção e do raciocínio aquisição dos conhecimentos, das atitudes e
pedagógicos [compreensão -,transformação dos gestos próprios A profissão docente (@);
4instrução + avaliação reflexão novas
-+ -+ não deixa de ser sintomática a pouca aten-
compreensões] e se propõe uma abordagem ção que tem sido dedicada a este momento
inovadora da formação de professores (68). chave da carreira docente. Finalmente, estes
De facto, é impensável que os programas de projectos devem perspectivar a formação
formação dos professores continuem a ser contínua dos profmom, em moldes distin-
estruturados com base numa mescla episte- tos do que tem sido corrente até agora; nos
mologicamente pouco consistente de ((sabe- próximos anos vai assistir-se a um excedente
res académico-científicos)) e de ((conheci- de recursos humanos, nomeadamente na
i mentos pedagógicos)): por um lado, ainda área da formação inicial dos professores:
não se percebeu que aos professores não esperemos que eles sejam canalizados no
basta adquirir certos saberes, sendo funda- sentido de uma adequada formação contí-
mental compreender o seu percurso his- nua, que pressupõe a dinamização de pro-
tórico de elaboração e o contexto social em jectos de investigação educacional centrados
que se impuseram, de modo a poderem agir
(@)Ver a este propósito os números especiais da
(66) Num artigo de 1930 da autoria de Eusébio Harvard Ehcational Review ((mchers, lbching and
Tamagnini já se encontra uma referência crítica a este Teacher Education», vol. 56, nP 4, Novembro de 1986)
slogan: (immbém o povo, cujo poder de intuição é sur- e da Revista de Educación (dTeoria de Ia formación
preendente, com fina ironia comenta: quem sabe faG* de1 profesoradon, nP 284, Setembro-Dezembro de
quem não sabe fazer ensina.» («A extinção das Esco- 1987).
las Normais Superiores)),Arquivo Rdagógico, vol. IV, Ver ainda: Corinna Ethington et al., ((Entring into
nP 1-4, Março-Dezembro de 1930, p. 109. the Teaching Profession: lèst of a Causal Model», The
(67) Lee Shulman, ((Knowledge Growth in lèa- Journal of Education Research, vol. 80, nP 3, Janeiro-
ching», Educational Researcher, vol. 15, nP 2, Feve- -Fevereiro de 1987, pp. 156-163; Lya Kremer-Hayon e
reiro de 1986, pp. 4-14. Miriam Ben-Peretz, ((Becominga Teacher: The Tran-
i e e Shulman, dnowledge and Teaching: Foun- sition from Teachers' College to Classroom Life»,
dations of New Reform», Harvard Educationai Internationai Review of Educatoa, voi. 32, nP 4, 1986,
Review, vol. 57, nP 1, Fevereiro de 1987, pp. 1-22. pp. 413-422.

453
nas escolas. A formação de professores é o Shulman, não creio que a atenção deva ser
segundo aspecto da fundação de um outro concentrada na melhoria das actuais condi-
estatuto profissional dos professores que ções de exercício da profissão docente, mas
importava evocar. antes num esforço de construção de uma
É justamente na senda das questões asso- outra maneira de ser professor: neste sentido
ciativas, sobretudo do problema da carreira devem-se sobrevalorizar as bases intelectuais
profissional, que gostaríamos de avançar e científicas necessárias ao exercício da acti-
algumas reflexões. Um dos aspectos mais vidade docente e não os aspectos compor-
gravosos do estatuto de funcionáriospúbli- tamentais ou as exigências técnicas (71).
cos a que têm estado submetidos os profes- E assim chegamos ao tema que tem estado
sores diz respeito a impossibilidade de presente ao longo de toda a nossa reflexão:
instituir uma verdadeira carreiraprofiional, a autonomia dos professores. Lorin Ander-
estruturada segundo o mérito e a competên- son, num artigo sobre este assunto publicado
cia e não segundo uma progressão linear na Revista Internacional de Pedagogia,
baseada no tempo de serviço. Um artigo de começa por recordar uma banalidade por
Maria José Rau situa frontalmente o pro- vezes esquecida: «a autonomia não pode ser
blema: concedida, tem que ser conquistada» (”).
Caso contrário estaríamos em presença de
«- sem uma carreira motivadora do pro-
uma heteronomia e não de uma autono-
gresso não há melhoria do ensino;
mia (73). Esta questão é fulcral, na medida
- só são motivadoras do progresso em que implica uma concepção diferente do
situações profissionais que impliquem,
associativismo docente, nomeadamente no
por um lado, alguma insegurança -
como seja, entre outras, a prestação de que diz respeito ao controlo do recrutamento
«contas», a apresentação de resultados, a dos professores e do exercício da actividade
avaliação do percurso e formação feitas - docente, e novas formas de organizaçãopro-
e, por outro, compensações e estímulos, fissional do professorado. A autonomia
nomeadamente os remuneratóriosn (70). constrói-se pela acção colectiva de um corpo
profissional e obriga a ocupação de novos
Esta questão não deve ser vista numa espaços de poder e de intervenção, o que
óptica corporativa, como uma espécie de comporta relações de força com outras ins-
prolongamento de um discurso reivindicativo tâncias pois, como dizia Jean-Claude Passe-
«tradicional»: melhores salários, melhores ron, «a educação não é coisa abandonada
condições de trabalho, maior estabilidade em nenhuma sociedade)) (74). A defesa da
profissional, valorização institucional da for- autonomia consagra uma crítica fundamen-
tal a funcionarização dos professores, ainda
mação, participação das estruturas sindicais
nas decisões respeitantes ao sector da Edu-
cação, etc.; sem pôr em causa a justeza (e a (’I) Cf. Linda McNeil, op. cit. (1986), pp. 214-216;
urgência) de muitas destas reivindicações, Cf. também Lee Shulman, art. cit. (1987), pp. 19-20.
julgo que o cerne do problema se situa numa (72) Lorin Anderson, «The Decline of Teacher Auto-

outra dimensão: a necessidade de conceber nomy: Tears or Cheers?)), International Review of


Education, vol. 33, nP 3, 1987, p. 370.
de outro modo a profissão de professor. Na
(73) O Professor Daniel Hameline tem no prelo uma
verdade, tal como Linda McNeil ou Lee obra sobre este tema que é uma complicação do curso
por ele regido na Universidade de Genebra e que tem
o título sugestivo de: Histoire d’une idée pédagogique:
(’9 Maria José Rau, ((Professores:formação, moti- I’autonomie des éducables.
vações e carreiras)), Correio Pedagógico, nP 13, (74) Jean-Claude F’asseron, ((F’édagogieet pouvoim,
Dezembro de 1987, p. 2. in Encyclopaedia Universalk,vol. 12, 1972, pp. 677-679.

454
hoje erradamente entendida como um fac- trar a complexidade do problema que aqui
tor de democratização e de igualização. As apenas afloramos.
palavras de Alain Touraine não podem dei- Enfim, terminemos com uma citação do
xar de interpelar uma visão estatizante da já célebre relatório norte-americano A
actividade docente: Nation at Rkk Teachersfor the fienty-First
«É preciso romper de uma vez por Century: «Os professores têm que ser capa-
todas com a ideia que a estatização e a zes de pensar por eles próprios se querem
burocracia são os fundamentos da demo- ajudar os outros a pensarem por eles pró-
cracia. [...] prios, têm que actuar com grande indepen-
A defesa dos profissionais contra os dência e autonomia e têm que ser capazes
aparelhos estatais e burocráticos da ges- de reflectir criticamente)) (78). Mas esta ati-
tão é uma questão mais fundamental do tude não pode ser assumida individual-
que a disputa entre a direita e a esquerda, mente: a autonomia implica a criação de um
do mesmo modo que no passado a irrup- espírito de corpo e o desenvolvimento de
ção do movimento operário se revelou uma solidariedade profissional (74.Só então
muito mais importante do que a oposição a aquisição de um novo estatuto profissio-
entre os monárquicos e os republica- nal, baseado numa política de descentrali-
nos» (75). zação do ensino, numa pedagogia centrada
na escola e na autonomia dos professores,
Romper com esta visão é também acabar ganhará sentido.
com a ideia que a autonomia dos professo- *
res é uma espécie de... «cada um faz o que * *
lhe apetece))! Pois, se assim fosse, certamente
que a dependência de um Estado «distante»
e «permissivo» continuaria a ser a melhor No final desta digressão sócio-histórica
solução. Dizer autonomia é reclamar simul- pela profissão docente espero ter deixado
taneamente a definição de níveis de respon- explícita a grande complexidade de que se
sabilidade. Pode-se mesmo, na linha de D. reveste hoje em dia o ensino e a impossibi-
W. Ryan, considerar que os professores lidade dos professores continuarem subme-
necessitam de maior autonomia em certos tidos as peias burocrático-administrativas
aspectos e de menor autonomia noutros ("). que têm impedido a transformação do seu
Pode-se também, tal como Lorin Anderson, estatuto profissional. Neste contexto, a
defender que a aquisição de autonomia deve pouca atenção concedida pela Comissão de
estar intimamente articulada com a progres- Reforma do Sistema Educativo português a
são na carreira docente e que, por exemplo, esta problemática merece ser assinalada uma
aos «jovens professores)) não deve ser dei- vez mais: continua-se a encarar os professo-
xada uma total liberdade, nem sequer na res como ((correias de transmissão))das deci-
escolha das estratégias pedagógicas (77). sões emanadas do poder central (indepen-
Estas observações servem apenas para mos- dentemente da correcção ou da pertinência

('*) Carnegies Task Force on Teaching as a Profes-


sion, A Nation af Rkk: Zèachersfor the 21st Century,
(75) Aiain Touraine, ((Universitt: le sens d'une Washington, Carnegie Forum on Education and the
révolte)), Le Nouvel Observateur, Maio de 1983, p. 39. Economy, 1986.
(76) D. W. Ryan, ((Redefining the Roles of Middle ('4 Ver a este propósito um artigo muito interes-
Managers in Outcome-Based Systems)), Outcomes, sante de Hugh T. Sockett: «Has Shulman Got he Stra-
vol. 2, nP 4, 1983, pp. 26-33. tegy Right?)), Harvard Eúucational Review, vol. LVII,
(") Lorin Anderson, ar?. cit. (1987), p. 370. nP 2, Maio de 1987, pp. 208-219.

455
destas decisões) e não como profissionais dagem científica dos conhecimentos de base
dotados de uma competência e de um saber do professor não sobrevalorizeuma imagem
próprios. Há que inventar uma outra técnica do ensino, não veja na actividade
maneira de ser professor. docente um empreendimento científico que
Depois de nos termos debruçado com perdeu a sua alma)) ('l)
alguma minúcia sobre a complexidade téc- Para tal é preciso ter a coragem de perce-
nica e cientllfica da profissão docente, não ber que o passado da profissão docente foi
podemos deixar de estar de acordo com as algures um dos futuros possíveis, não o
palavras de Daniel Hameline: ((É impossível único. Esta ideia liberta-nos para compreen-
educar sem acreditar, sem ter esperança, isto der que hoje em dia há também vários futu-
é sem nos indignarmos com o estado em que ros possíveis para a profissão docente e per-
se encontra actualmente o bem mais precioso mite-nos trabalhar nas margens da interven-
da humanidade, a sua infância, sujeita aos ção possível para que alg'uma coisa mude no
mais variados atentados, a estupidez, a incú- estatuto profissional dos professores. Tendo
ria da espéçie malfazente que é a nossa)) ('7. sempre presente que desta mudança depende
E com a reflexão pertinente de iee Shulman: o futuro dos nossos filhos e, portanto, o
«I? preciso ter cuidado para que uma abor- nosso próprio futuro enquanto comunidade.

('9 Daniel Hameline, op. cit. (1986), pp. 125-126. (81) Lee Shulman, art. cit. (1987), p. 20.

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