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O CERCO DE LENINGRADO

Uma história sem final

Autor José Sanchis Sinisterra


Tradução Maria Cecília Garcia

Personagens:
Natalia e Priscila, duas mulheres de certa idade

Lugar
Um teatro desativado

Época
Depois da derrota

Primeiro Ato

Cena 1

As luzes da sala se apagam. No escuro, a voz de Priscila vinda do alto do cenário.


VOZ DE PRISCILA – Que foi? (Silêncio) Natália! Que foi? Natália! Você está aí?
VOZ DE NATALIA – (Ao longe) Sim!
VOZ DE PRISCILA – O que aconteceu?
VOZ DE NATÁLIA – Priscila!
VOZ DE PRISCILA – O quê?
VOZ DE NATÁLIA – Acabou a luz!
VOZ DE PRISCILA – Já percebi, idiota! Você acha que sou cega?
VOZ DE NATÁLIA – Disse que a luz acabou!
VOZ DE PRISCILA – Também não sou surda! Onde você está?
VOZ DE NATÁLIA – A luz, estou te falando!
VOZ DE PRISCILA – Você mexeu no quadro de força? (Silêncio) Natália?
VOZ DE NATÁLIA – Já vou, já vou!
VOZ DE PRISCILA – Aonde você vai? O que você está fazendo?
VOZ DE NATÁLIA – É que não tem luz!
VOZ DE PRISCILA – Ah, não!
VOZ DE NATÁLIA – Priscila!
VOZ DE PRISCILA – O que?
VOZ DE NATÁLIA – Está meu ouvindo, Priscila?
VOZ DE PRISCILA – Estou te ouvindo muito bem!
VOZ DE NATÁLIA – Priscila!
VOZ DE PRISCILA – Que sim, mulher!
VOZ DE NATÁLIA – Trate de não se mexer! Não vai cair... O corrimão está firme?
VOZ DE PRISCILA – Sim...
VOZ DE NATÁLIA – Está me ouvindo, Priscila? Eu estou aqui, nos camarins, procurando uma
lamparina...
VOZ DE PRISCILA – Uma o quê?
VOZ DE NATÁLIA – Uma lamparina! Porque a luz acabou... Cuidado com o corrimão...
VOZ DE PRISCILA – Tem uma no segundo camarim!
VOZ DE NATÁLIA – O quê?

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VOZ DE PRISCILA – Que no segundo camarim tem uma!
VOZ DE NATÁLIA – Uma o quê?
VOZ DE PRISCILA – Uma lamparina! Cuidado com o vaso de Mari-Gaila...!
(Ruído de um vaso que cai e se quebra)
VOZ DE NATÁLIA – O que você está dizendo? Não estou te ouvindo muito bem...
VOZ DE PRISCILA – Nada, nada... Você se machucou?
VOZ DE NATÁLIA – Priscila!
VOZ DE PRISCILA – O quê?
VOZ DE NATÁLIA – Sabe o que tinha no segundo camarim?
VOZ DE PRISCILA – (Com ironia) Não me diga, vamos ver se acerto...
VOZ DE NATÁLIA – O vaso de Mari-Gaila! (Pausa) Já segurei!
VOZ DE PRISCILA – O que é que você segurou?
VOZ DE NATÁLIA – Priscila, já encontrei! Vou ver se posso acendê-la...
VOZ DE PRISCILA – Cuidado com os figurinos da Dona Rosita que são muito delicados! (Silêncio) Está
me ouvindo, Natália? (Silêncio) Natália!
(Entra Natália, com uma lamparina, uniforme de limpeza e lenço na cabeça)
NATÁLIA – Me dá uma coisa entrar nesse camarim... (Levanta a lamparina e fala para a parte superior
do cenário) Sabe Priscila?... Você está aí?
VOZ DE PRISCILA – (Com mau humor) Não. Desci pelas cordas, como o Tarzan.
NATÁLIA – Cada vez que entro nesse camarim... e ainda mais no escuro...
(O Teatro se ilumina, inclusive a platéia. O cenário é só isso: um palco vazio)
VOZ DE PRISCILA – Até que enfim! E fez-se a luz!
NATÁLIA - Deve ter sido um corte geral. Vou apagar a platéia. (Sai por onde entrou)
VOZ DE PRISCILA – Eu vou descer, a não ser que cortem outra vez... Amanhã eu limpo aqui encima...
VOZ DE NATÁLIA – Cuidado com a escada, tem dois degraus podres! Na semana passada quase caí...
(As luzes da platéia se apagam. O palco fica banhado por uma luz esfumaçada)
VOZ DE PRISCILA – Você quer dizer no ano passado. Há meses você não sobe...
VOZ DE NATÁLIA – Meses! Que exagerada!
(As duas entram, cada uma por um lado. Priscila, com um espanador nas mãos, vestida como Natália,
ainda a lamparina acesa. Cruzam o palco sem se olhar)
PRISCILA – E depois me acusa de ser mandona...
NATÁLIA – Além do mais, o porão é muito pior, com os ratos que tem lá...
PRISCILA – Deus os cria, e eles se juntam...
NATÁLIA – Claro que eles, pelo menos, escutam quando alguém fala com eles... E nem têm
obrigação... (Saíram cada uma pela lateral oposta)
VOZ DE PRISCILA – Agora compreendo por que cada vez tem mais ratos. Em vez de mata-los você os
convida para um lanche, para que te façam companhia...
VOZ DE NATÁLIA – Antes isso do que espiar a televisão dos vizinhos com binóculos.
(Entram, cada uma por um lado, com panos de limpar o chão nos pés. Enquanto conversam, vão
percorrendo o cenário em trajetos retilíneos).
PRISCILA – (Já sem o espanador). Eu ? Ver televisão? Provas... provas...
NATÁLIA – (ainda com a lamparina acesa) O dia que eu te pilhar, vou tirar uma foto.
PRISCILA – Não sei com que câmara.

2
NATÁLIA – Faço uma aquarela.
PRISCILA – Melhor um quadro a óleo.
NATALIA – Isso: e ganharei um galão.
PRISCILA – Não me estranharia. Do jeito que você gosta de vinho...
NATALIA – Eu gosto de vinho e você de champanhe, como uma boa burguesa.
PRISCILA – Olhem a proletária...! E o papai, latifundiário.
NATALIA – Acredito: tinha meia província quando morreu. E a outra metade, minha mãe comprou para
o chalé.
PRISCILA – (Emendando) E nesse camarim, o que você sente?
NATALIA (Idem) – Que está tudo tão igual, tão igual, que até me parece... como se cheirasse o Nestor.
PRISCILA – Mulher... cheiro forte ele tinha sim... mas em vinte anos...
NATALIA – Já sei, mas como meu olfato, eu o sinto.
PRISCILA – O que você sente é vontade de homem.
NATALIA – Vinte anos... ou vinte e dois?
PRISCILA – Você tratava o pobre Nestor como mártir.
NATALIA – E você como virgem.
PRISCILA – Vinte e dois ou vinte e três?
NATALIA – O caso é que cheira com se estivesse estado ontem ali.
PRISCILA – Ontem não foi quarta-feira?
NATALIA – Mais ou menos.
PRISCILA – E Dom Nazario não tinha que ter vindo?
NATALIA – Deve estar outra vez com anistia.
PRISCILA – Sim, tenho certeza, ele disse quarta-feira.
NATALIA – Pobre homem, cada dia pior...
PRISCILA – Amnésia.
NATALIA – O que?
PRISCILA – O que ele tem é amnésia, não anistia.
NATALIA – Então é isso: pior.
PRISCILA – Claro, com mais de oitenta anos...
NATALIA – Eu jogaria naftalina nele.
PRISCILA – Para trazer a nova escritura, ele disse.
NATALIA – Pelo menos assim os vestidos estariam protegidos.
PRISCILA – Ou disse sexta-feira?
NATALIA – Sexta-feira?
PRISCILA – Ou seja: você prefere sentir o cheiro da naftalina do que do Nestor.
NATALIA (Parando) – Não está cansada?
PRISCILA – É bom pra circulação.
NATALIA – Na sexta-feira tem que arrumar os arquivos.
PRISCILA – E daí?
NATALIA – Se Don Nazario vai vir...
PRISCILA – Pois deixamos os arquivos pra semana que vem.
NATALIA – Outra vez? Na sexta passada você inventou não sei que desculpa.
PRISCILA – Desculpa? Teu reumatismo...

3
NATALIA – Eu não tenho reumatismo! Simplesmente me doíam as costas. Todo mundo tem dor nas
costas, eu li numa revista. Mas foi você quem...
PRISCILA – Além do mais, quer que eu te confesse uma coisa?
NATALIA – Se começamos a baixar a guarda...
PRISCILA – Quem falou de baixar a guarda?
NATALIA – O que você vai me confessar?
PRISCILA – Você não pode me dar lições de...
NATALIA – Não será que você me enganava com teu marido...
PRISCILA – Acho que nunca o encontraremos.
NATALIA – O que? O programa?
PRISCILA – Sim. Faz tempo que venho pensando nele.
NATALIA – Essa é a tua confissão?
PRISCILA – Alguém esteve fuçando nos arquivos, não?
NATALIA – Quando?
PRISCILA – Me refiro.. . há poucas semanas.
NATALIA – Há poucas semanas começamos nós a fuçá-los.
PRISCILA – (Recomeçando a limpeza). Já estava todo remexido.
NATALIA – (Recomeçando a limpeza). Muito arrumado nunca esteve.
PRISCILA – (Pela lamparina que Natália leva) E você, aonde vai com isso?
NATALIA – (Repara) – Eu estava dizendo que estava me cansando o braço. (Sai)
PRISCILA – Você sabe muito bem porque nunca esteve muito arrumado.
VOZ DE NATÁLIA – Sim, porque você era a encarregada.
PRISCILA – E o que eu arrumava de dia, Nestor desarrumava à noite. Isso sem falar dos panfletos...
(Remedando alguém) “Pode guardar estes panfletos até terça-feira?”... “Naturalmente,
camarada”... E onde são guardados? Claro... nos arquivos. Em que outro lugar seria?... E tudo
de cabeça pra baixo, a começar outra vez. Para isto tem Priscila, que não é atriz, nem
militante... Companheira de viagem, isso sim. Mas é só a mulher do diretor. Bom, e a que se
encarrega das dívidas, claro... (Pára) E falando em dívidas, aproveito para convocar a reunião
do Conselho de Administração. Em caráter de urgência. (Pausa). Muito bem.. está aberta a
sessão. Leitura da ordem do dia. Primeiro e único ponto: pagamento imediato do imposto
predial. Informe da Tesouraria: a atual falta de liquidez nos obriga a vender os sanitários do
primeiro andar... já que os do térreo foram vendidos no ano passado. Para isso, se outorgam
as credenciais a nosso assessor legal e demais, don Nazario Porras. (Pausa) A proposta foi
aceita por unanimidade. (Recomeça a limpeza). Pedidos e perguntas.
NATALIA – (Entra sem a lamparina. Limpa) Você tem certeza que hoje é quinta-feira?
PRISCILA - Sim. E agora os pedidos.
NATALIA - Me empresta o casaco marrom, anda...
PRISCILA - Já está querendo sair?
NATALIA - Quem te disse que quero sair?
PRISCILA - Então, porque está me pedindo o casaco marrom?
NATALIA - Porque eu estou trocando o forro do meu.
PRISCILA - O forro, outra vez? Pode se saber o que você faz dentro desse casaco?
NATALIA – Não te interessa. Me empresta, sim ou não?

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PRISCILA - Ou seja, que você vai sair.
NATALIA – Vamos, me dá ....
PRISCILA - Além do mais, não é marrom.
NATALIA - Está bem, é castanho.
PRISCILA - Bege escuro.
NATALIA - Ocre claro.
PRISCILA - Pardo pálido.
NATALIA - Ou seja, marrom.
PRISCILA - Isso nunca.
NATALIA – E por que você acha que nunca o encontraremos?
PRISCILA - O que? O programa?
NATALIA - Sim.
PRISCILA - Eu já te disse: quando começamos a arrumar os arquivos...
NATALIA - Já estava todo revirado. Percebe como você se repete? Isso é senilidade.
PRISCILA - Isso é o que você não entende.
NATALIA - Está bem, vou sair. O que é?
PRISCILA - Outra vez? Você passa a vida na rua. Isso destrói o forro do teu casaco.
NATALIA - A vida na rua... Olha só quem fala.
PRISCILA - Até agora, nesse ano, pelo menos três vezes.
NATALIA - Duas
PRISCILA - Pois é, duas. E estamos somente em novembro.
NATALIA - Em novembro, já? Quem te falou?
PRISCILA - Domitila.
NATALIA - Belo calendário que você encontrou.
PRISCILA (Se detém e olha para o chão) - Ouve...
NATALIA - Essa sabe tanto de meses quanto eu de missas.
PRISCILA (Idem) - Natalia...
NATALIA - E as estações ela distingue pelas verduras e hortaliças...
PRISCILA (Idem) - Está me parecendo que...
NATALIA (Remedando) - "Senhora, já tem pepinos, estamos no verão"... Ou ao contrário: "Senhora,
estamos no verão, já tem pepinos"...
PRISCILA - Veja como sobressai o orgulho de classe...
NATALIA (Parando) - O que disse que te parece?
PRISCILA – De origem, é um vira-lata.
NATALIA - Mais vale ser um vira-lata que um rato.
PRISCILA (Apontando ao chão) - Veja isto.
NATALIA - O que?
PRISCILA - Aqui. Estes buracos.
NATALIA (Se aproxima de Priscila) - Onde?
PRISCILA - Aqui, não está vendo?
NATALIA (Inclinando-se) - O que você que eu veja, sem óculos.
PRISCILA - Como se chamam esses bichos que comem madeira?
NATALIA - Madeira? Bichos que comem madeira?

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PRISCILA - Sim, que fazem buracos e galerias...
NATALIA - Você está se referindo aos cupins?
PRISCILA - Não, mulher, menores.
NATALIA - Insetos?
PRISCILA - Não, menores.
NATALIA - Menores? Micróbios?
PRISCILA - Não tanto... Bem, não importa. Está me parecendo que aqui tem.
NATALIA (pensativa) - Formigas?
PRISCILA (Examinando, inquieta, outras áreas) - O chão está cheio de buracos...
NATALIA (pensativa) - Castores?
PRISCILA (apontando) - Veja aqui... (toca com o pé) A madeira cede.
NATALIA (pensativa) - Mandrís?
PRISCILA - Deve estar carcomida por dentro, como um queijo gruyère.. (Vai para outro lado) A mesma
coisa aqui....
NATALIA - Não: mandrís, não.
PRISCILA – Está ouvindo, Natália? Você se dá conta do que isso significa?
NATALIA (saindo da sua reflexão zoológica) - O que?
PRISCILA - Tantos anos lutando por este Teatro, enfrentando uns e outros, defendendo cada canto com
unhas e dentes...
NATALIA (Tocando a boca) - Bom: com dentes...
PRISCILA - Pra que agora venham esses bichos e o comam... que não sabemos nem como se
chamam, malditos sejam!
NATALIA - Não se preocupe, Priscila. Isso tem uma solução fácil. (Sai rapidamente)
PRISCILA - Que solução?... Natalia, aonde você vai?
VOZ DE NATALIA - Vou ver a Enciclopédia!
PRISCILA - Não seja idiota, Natalia! Além do mais, nós a vendemos há três anos...
NATALIA (entrando já sem os trapos nos pés) - Três anos? E por que?
PRISCILA - Não lembra? Pra pagar o conserto do telhado.
NATALIA - De qual telhado?
PRISCILA - Você já está pior que Don Nazario...
NATALIA - Ah, sim! As goteiras do teu quarto...
PRISCILA - Goteiras, aqueles jorros que caiam na cara cada vez que chovia? (tira o pano da cabeça)
Uma vez quase me afogo...
NATALIA - Isso te acontece por dormir com a boca prá cima.
PRISCILA (aponta o teto da platéia) - E já começava a apodrecer o teto da platéia...
NATALIA - E claro, por isso você ronca tanto.
PRISCILA - Mais vale roncar do que ser sonâmbula.
NATALIA - Quem é sonâmbula?
PRISCILA - Ninguém, ninguém... O que acontece é que você sonha em voz alta...
NATALIA - Eu, sonâmbula? Você quer é me difamar...
PRISCILA - E agora, ainda por cima, os cupins destruindo o chão...
NATALIA - Já sei!
PRISCILA - O que?

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NATALIA - O nome desses bichos: cupins.
PRISCILA - Cupins? Tem certeza? Como sabes?
NATALIA - Me veio à cabeça, de repente... Assunto resolvido. Então, vou indo. Me empresta o casaco?
Sim ou não?
PRISCILA - Como resolvido? Temos que fazer alguma coisa para acabar com eles. Você não percebe?
São...agentes objetivos do capitalismo.
NATALIA - Você acha? Tão pequenos?
PRISCILA - Se não detemos sua marcha, são capazes de comer toda a madeira do edifício. Então...
adeus Teatro do Fantasma!
NATALIA - Nós não vamos permitir. Era só o que faltava! (pisa violentamente o chão)
PRISCILA - Não! (Para-a) Que está fazendo? Assim não... Quer afundar o palco?
NATALIA - Quero... acabar com esses agentes.
PRISCILA - Mas não assim. Tem que se buscar um método... científico.(olha o chão).
NATALIA - Ah, claro... científico, sim... (pausa) Você acha que Engels escreveu alguma coisa sobre os
cupins?
PRISCILA – Não acho.
NATALIA - Porque, se fosse Marx, eu juraria que não.
PRISCILA - A mim também me estranharia. Ele tinha outros vôos...
NATALIA – Claro, agora que você o menciona...
PRISCILA – Em todo caso, eu buscaria por outro lado...
NATALIA - Don Nazario me comentou....
PRISCILA - Mais perto da praxis...
NATALIA - E não é a primeira vez...
PRISCILA - Por exemplo, na drogaria (vai sair)
NATALIA - Você está me ouvindo?
PRISCILA (para) - O que?
NATALIA - Você tem cada ausência, minha filha...
PRISCILA - O que Don Nazario te comentou, e não é a primeira vez?
NATALIA - Que o estão enganando.
PRISCILA - Don Nazario?
NATALIA - Não, Marx!
PRISCILA - Porque Don Nazario está sendo enganado há anos, mas veja...
NATALIA - Don Nazario, não.
PRISCILA - Se não fosse por ele, do Teatro não sobrariam nem os alicerces.
NATALIA - Estou te falando de Marx.
PRISCILA - Tem lacunas, é verdade, porém conhece todos os detalhes que... De Marx? O que
acontece com Marx?
NATALIA - Que está superado, que não acertou uma....
PRISCILA - Haja novidade!
NATALIA - É o que eu digo.
PRISCILA - Haja novidade e haja vulgaridade.
NATALIA - E haja maneira de evitar ler O Capital.
PRISCILA - Aí dói neles.

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NATALIA (depois de uma pausa) Você leu?
PRISCILA - A que hora fecham a drogaria?
NATALIA - Então, me empresta ou não empresta?
PRISCILA - O casaco? Não está vendo que vou sair?
NATALIA - Que casualidade.
PRISCILA (tira o avental) - Nada de casualidade: necessidade. Temos que atuar com rapidez, se não
quisermos que os cupins nos comam.
NATALIA - E o que você pensa fazer?
PRISCILA – O cupim é um inseto, não?
NATALIA - Se não é, falta pouco.
PRISCILA - Para o inseto, inseticida.
NATALIA - Inseticida? Com o tanto que isso fede?
PRISCILA - Cá estamos: você e seu olfato.
NATALIA - Tem certeza tem um método mais natural, menos violento...
PRISCILA (indo para a lateral) - Seguro: a dialética.
NATALIA - Com certeza: você leu ou não leu?
PRISCILA (saindo) - A que você está se referindo?
NATALIA (seguindo-a) - Ao Capital.
PRISCILA - Vão fechar a drogaria... (black-out)

Cena 2

(Entra Priscila por uma lateral, vestida com roupas caseiras, arrastando uma manta sobre a qual se
amontoam diversas caixas de papelão e pilhas de papel cheios de pó.. Pára em perto do
proscênio, numa parte mais iluminada que o resto do palco. Olfateia em volta e coça o nariz.
Tira do bolso um lenço e um vidro de água de colônia. Depois de morar o lenço com o perfume,
o coloca no nariz e inspira profundamente. Guarda o lenço e o vidro e volta a olfatear em volta.
Sai pela lateral oposta, gritando.)

PRISCILA – Vem, Natalia! Que quase não tem mais cheiro!


(Volta a entrar com uma cadeira baixa e a instala junto da manta. Senta e, enquanto ordena as caixas
ao seu redor, volta a gritar para fora.)

PRISCILA – Natalia, não está me ouvindo? De verdade que não cheira... E há muito mais luz que ali.
(Olfateia de novo, tira o lenço, passa pelo nariz e o guarda. Pega uns papéis e comprova que
estão cheios de pó). Eu me esqueci das luvas. Você pode me trazer?... Modéstia à parte, foi um
boa idéia vir com este arquivo para cá, sim ou não? Mais espaço, mais luz... menos umidade...
Acho que minhas dores nas costas vêm daí, de tantas horas nesse quartinho... (Encontra uma
velha fotografia) Veja como Nestor está bonito aqui. (Olha por trás) “Fuenteovejuna”... Você se
lembra, Natália, do lindo que estava Nestor fazendo de Frondoso?... Natália, quer vir de uma
vez? (continuando a olhar a fotografia) E isso apesar de que as meias ficavam horrorosas nele.
Vermelhas, não? Que horror.... Vamos, com o lencinho na cabeça... Claro: o pobre, para tapar a
careca... (Fica pensativa) às vezes penso... Sabe, Natalia? Às vezes penso que ele fez bem em
morrer: não saberia envelhecer... E se já com quarenta e poucos estava do jeito que estava...

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Bem, não estou falando da fachada... (Olhando a foto)... Veja: um homem completo. Forte, o
mais responsável de todos, cumpridor de seus deveres. (Pega o lencinho e o frasco e volta a
proteger seu olfato. Olfateia ao redor). Vem, mulher, que não vai se intoxicar. Que mania com
os cheiros.. Se já faz mais de uma semana que eu coloquei, e o prospecto dizia que três dias...

(Entra Natalia com roupas caseiras e uma máscara contra gás. Traz uma caixa de papelão velha cheia
de papéis e um banco, que põe junto a Priscila. Joga umas luvas sobre a manta. Enquanto sai
de novo, Priscila reage.)
PRISCILA – Mas é exagerada!...
(Natalia volta a entrar com várias pastas, vazias na maior parte, e se instala junto a Priscila. Esta,
depois de colocar os óculos, se põe a ordenar os papéis.)
PRISCILA – Acho que isso de separar os programas das críticas é um erro, assim como juntar as fotos
com os programas e as prévias com as críticas. Se muito mais lógico ter colocado as críticas
junto com as prévias no mesmo lugar que os programas, e as fotos a parte, com os cartazes.
Ou melhor ainda: as fotos e as criticas por um lado, mas junto dos programas, e por outro os
cartazes e as prévias, porém separados. Claro que, se colocarmos as fotos e os cartazes
juntos, e as prévias e as críticas também, em outro lugar, os programas poderiam ficar a parte.
O principal é que o tudo tenha uma lógica, mas não para nós, e sim para a posteridade. Nisso
você está de acordo, não? Pois já vai me dizer o que vai fazer a posteridade quando pegue um
programa... (Pega um papel) ...por exemplo, este... e pergunte: “Vamos ver o que disse a crítica
sobre Os Baixos Fundos, de Gorki?...
NATALIA (levantando um momento a máscara) Nem uma palavra.
PRISCILA – Um ponto a meu favor. Porque então podem se passar anos e anos sem saber aonde
buscar uma critica, que, ainda por cima, vai que não existe... (Pensa). E por que não disse nem
uma palavra?... Ah, sim! Não chegamos a estrear. Foi a primeira vez que fecharam o Teatro,
não foi?
NATALIA (levantando um momento a máscara) – A terceira.
PRISCILA – A terceira?... Quais foram as duas primeiras?... Bem, não importa. O caso é que os
programas estejam a parte, bem ordenados, porém junto com as críticas, também ordenadas.
Por que você não muda essa cara? Está ridícula... além do que, não te serve pra nada, porque
é elemento cênico.
NATALIA (mudando a cara) – Pra começar, não sei por que você mistura tudo. São coisas que não têm
nada a ver. E para terminar, a máscara é do personagem.
PRISCILA – Como se você soubesse de tudo!
NATALIA – Sim, sei.
PRISCILA – E sobre o que você sabe, posso saber?
NATALIA – Não, sou contra. (Se abana com um papel)
PRISCILA – Contra o que?
NATALIA (Mostrando o chão do palco) – Contra os pesticidas contaminantes.
PRISCILA – Vamos! Já te falei que não coloquei pesticida e sim inseticida.
NATALIA – E não é a mesma coisa?
PRISCILA – Você quer que o cupim acabe com o Teatro?
NATALIA – Antes isso do que acabar com a camada de ozônio.

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PRISCILA – De que?
NATALIA – Não te expliquei?
PRISCILA – Camada de que?
NATALIA – Eu li numa revista: a camada de.... o que é que eu falei?
PRISCILA – Agora você lê esse lixo da imprensa burguesa?
NATALIA – Em todo caso, como os meus pulmões sim, é que você vai acabar. Faz um mês que não
posso nem pisar no palco, por causa do veneno.
PRISCILA – Um mês! Se eu coloquei faz três dias...
NATALIA (Dando-lhe um recorte) – Toma.
PRISCILA (Sem pegar) – O que é isso?
NATALIA – A prévia dos Baixos Fundos. E você sabe que é meu ponto fraco.
PRISCILA – Seu ponto fraco vai da cabeça aos pés. Não sei o que Nestor encontrava em você, com
tantos achaques...
NATALIA – Encontrava o que buscava. (pelo recorte) Vai querer ou não?
PRISCILA – O quê?
NATALIA (pondo os óculos). – O de sempre... (Lê) “O Teatro do Fantasma estréia Os Baixos Fundos, de
Gorki... Na próxima quinta, em seu local na Rua da Paz, a companhia do Teatro do Fantasma
apresenta um áspero drama social do autor russo...”, etc. etc.... “Seu diretor, o polêmico homem
de teatro Nestor Caposo, afirma que se trata de uma ode contra....” (Pára)
PRISCILA – Aborrecer? A mim?
NATALIA – Que me dormia com o teu marido, te traía sem cuidado.
PRISCILA (Seca, pegando o recorte) – Traz, a colocarei com o programa. No fim, como desta peça não
tem críticas, nem fotos, nem cartazes, nem nada... Vê: dinheiro perdido, trabalho perdido... E
quase nos dão uma multa de não sei quantos mil... Se não fosse por Don Nazario....
NATALIA (conciliadora) – Priscila...
PRISCILA (sarcástica) – Mas, claro: fazer ou não fazer a obra era o de menos. Era pra provocar, né?
Deixar evidentes as contradições do sistema e obrigar o poder a mostrar sua cara repressiva
com...
NATALIA (conciliadora) – Ouça Priscila...
PRISCILA – A não ser que tivesse na peça um bom papel pra você...
NATALIA – Priscila, por favor!
PRISCILA (pausa) – O que?
NATALIA – Eu só as tirei umas duas vezes...
PRISCILA – Do que você está falando?
NATALIA – Eu dizia pra deixar você com raiva, mas, na verdade, só me deixou tirar umas duas vezes,
em tantos anos...
PRISCILA – Você se refere a...
NATALIA – A verdade é que você enchia o saco dele com essa obsessão. Mas reconheça que elas
ficavam feíssimas. Uma pele tão fina e, no entanto...
PRISCILA – Um par de vezes?
NATALIA – Bem, digamos três... ou quatro.
PRISCILA – Quatro.
NATALIA – Quatro sim. Nem uma mais. (Priscila fica de pé e sai pela lateral)

10
PRISCILA (saindo) – Você sempre foi muito perfeccionista.
NATALIA - Isso é verdade.
VOZ DE PRISCILA – E para que são essas pastas que você trouxe?
NATALIA (distribuindo-as sobre a manta) – Uma para os pontos prévios, outra para os programas, outra
para as críticas e outra para as fotos. Tudo por ordem cronológica, claro.
PRISCILA (entra com um rolo de papéis de diversos tamanhos). E os cartazes?
NATALIA – Eu tinha pensado que eles ficariam muito bem no vestíbulo.
PRISCILA (deixando o rolo sobre a manta e sentando-se) Sim. Como uma exposição.
NATALIA – É isso. A história do Teatro do Fantasma...
PRISCILA (pegando uma foto em uma caixa) – Veja quem aparece por aqui!
NATALIA – Quem?
PRISCILA – Você, em Antígona.
NATALIA – Até que enfim! (Rapidamente pega-a, olha-a e rasga-a).
PRISCILA – O que está fazendo?
NATALIA – Faz anos que quero enfiar as mãos nesta foto.
PRISCILA – E por que você a rasgou? É um documento histórico...
NATALIA – Por isso mesmo: não quero entrar pra a História com essas olheiras, essa papada. (Aponta
um pedaço da foto) Você acha que esta foto me fazia justiça?
PRISCILA (olhando o pedaço) – É bem verdade que você já estava um pouco mais velha para a
personagem...
NATALIA (pega e rasga ainda mais) – Antígona é um mito... e os mitos não têm idade.
PRISCILA – Os mitos não. Concordo. Mas as atrizes sim.
NATALIA – Pois sou mais jovem que você, ou seja, que....
PRISCILA - Isso ainda está para ser demonstrado.
NATALIA – Que mania! Você ainda vai acabar dizendo que fui eu quem bombardeou a igreja, queimou
o juizado...
PRISCILA – Me diga se não é estranho que não sobre nem um documento sobre a data do seu
nascimento, nem de batismo, nem...
NATALIA – Bem, já estou farta desse tema! Algum dia, sua amiga, a História, vai esclarecer tudo.
PRISCILA – Isso, ou a Arqueologia.
NATALIA – O que?
PRISCILA – Nada, nada...
NATALIA – Pois, sabe o que te digo? Que não foram quatro vezes, e sim cinco.
PRISCILA – Cinco? (silêncio) Cinco?
(Natalia não responde. Priscila pega uma das caixas e sai pela lateral que entrou. Natalia a vê sair de
soslaio, logo cheira ao seu redor com gesto de desagrado e, tomando uma das pastas, se
abana com força, e ao mesmo tempo, examina alguns lugares do assoalho que Priscila
descobrira carcomidos. Por causa dos movimentos caem da pasta alguns folhas de papel. Ela
as recolhe e a examina distraidamente, porém algo que le a sobressalta e solta um grito.
Examina as folhas muito excitada).
NATALIA (murmurando) Não... não pode ser.... (grita) Priscila! Encontrei! (murmura) Não pode ser, mas
é, ora se é! (grita) Priscila, vem! O programa! Eu encontrei!
(Entra Priscila com um casaco marrom claro e uma bolsa)

11
PRISCILA – O que?
NATALIA (acalmando-se do golpe) – Aonde você vai?
PRISCILA – Você encontrou o que?
NATALIA – Vai sair?
PRISCILA – O que foi que você encontrou, diga?
NATALIA – Depois fala de mim... Quem passa a vida na rua?
PRISCILA – E quem te disse que eu vou sair?
NATALIA – E o casaco e a bolsa, o que é?
PRISCILA – Que casaco, que bolsa?
NATALIA – E ainda fala de mim...
PRISCILA – Eu, falar de você?
NATALIA – Que casaco, que bolsa... Que hipócrita!
PRISCILA – Hipócrita... Olha quem fala! (remedando-a) “Quatro, mas nem uma mais...” E depois, no
final vai confessar que teu caso eram orgias de espinhas...
NATALIA – Está bem... Olha isto e vai, se for capaz. (coloca os papéis na sua cara).
PRISCILA – O que é isso?
NATALIA – Não sabe ler mais?
PRISCILA (sarcástica, enquanto lê) São os ciúmes, que me cegavam a ... (sobressaltada) O que?
(Pega os papéis, incrédula, e lê) “O Cerco de Leningrado”... Não é possível! (vê as outras
folhas)
NATALIA – Claro que é! Você vai bater pernas e eu encontro o programa...
PRISCILA – Não é possível... Onde está o resto?
NATALIA – E depois fala de mim...
PRISCILA (olhando das folhas) – Aqui só está o título, a lista de personagens... e uma folha em
branco...
NATALIA (mostrando a pasta vazia) – Estavam aqui...
PRISCILA (lendo) – “O Cerco de Leningrado”... parece mentira...
NATALIA (Indo para a manta onde se amontoam os papéis) O resto não pode estar longe. Onde há
fumaça... (procura nas pastas que trouxe). E você dizia que nunca iríamos encontrá-lo...
PRISCILA – Escrito com sua máquina, sim, que fazia os enes tortos...
NATALIA – Os enes, os eles e os pês.Tinha vocação para cursiva. (abre as pastas) Vazias...
PRISCILA – E do autor, nem sombra.
NATALIA (idem) – Tampouco.
PRISCILA – Tanto mistério...
NATALIA – Nada, nem sombra...
PRISCILA – Você acredita que era preciso?
NATALIA – Mas isso foi um sinal... (procura nas caixas)
PRISCILA – Diz, você acredita?
NATALIA – Que acredito o que?
PRISCILA – Que era preciso.
NATALIA – Preciso o que?
PRISCILA – Tanto mistério.
NATALIA – Mistério, qual?

12
PRISCILA – Com o autor.
NATALIA – Que autor?
PRISCILA – O autor da peça.
NATALIA – Que peça?
PRISCILA – De qual peça vai ser?
NATALIA – Do Cerco de Leningrado?
PRISCILA – O que você acha?
NATALIA – O que eu acho sobre o que?
PRISCILA – De qual peça vai ser?
NATALIA – Do Cerco de...?
PRISCILA – Basta!
NATALIA – Basta de que?
PRISCILA – Vou começar de novo: era preciso guardar tanto mistério sobre o autor?
NATALIA – Pois isso é o de menos. Pra mim, o pior era todo o resto.
PRISCILA – A que você está se referindo?
NATALIA – Todo o resto.
PRISCILA – Tá, tá... mas você não pode precisar um pouquinho?
NATALIA – Pra começar, o roteiro. Dá pra ensaiar uma peça sem ter o roteiro?
PRISCILA – Quem não tinha o roteiro?
NATALIA – Ninguém. Não você não continua procurando por ele?
PRISCILA – Como ninguém? (procura nas caixas, sem muita atenção)
NATALIA – Entre os atores, ninguém. Cada um tinha o seu papel e ponto final. E ainda por cima, em
pedaços, como um quebra-cabeça...
PRISCILA – Não te entendo.
NATALIA – E as folhas, sem numerar. Chegava um dia e Nestor nos dava uma folha ou duas para cada
um, e toca a ensaiar, como um quebra-cabeças. E você não sabia nem o que ia primeiro nem o
que ia depois.
PRISCILA – E por que isso?
NATALIA – Você acha que alguém pode ensaiar uma peça assim?
PRISCILA – Ou seja, ninguém tinha o texto completo...
NATALIA – Isso me tirava do sério.
PRISCILA – Ninguém além do Nestor, claro...
NATALIA – E eu dizia a ele todo dia: “Não sou uma foca amestrada. Sou uma atriz comprometida e
quero saber o que estou fazendo aqui... E além do mais, não há quem aprenda esses nomes
russos”.
PRISCILA – Mas por que tanto segredo?
NATALIA – Era verdade: uns nomes impossíveis, de três ou quatro palavras, e tinha que dizê-los
inteiros toda vez...
PRISCILA – Seria verdade.. . sobre os infiltrados?
NATALIA – “Como está você, Vladimirovich Stepanikov Trilietski?... Claro, claro, camarada
Vladimirovich Stepanikov Trikietski...”
PRISCILA – E por isso tanto segredo?
NATALIA – Meu papel era lindo, acho...

13
PRISCILA – Diga: você acha que era verdade?
NATALIA – O que?
PRISCILA – Que havia infiltrados na companhia.
NATALIA – Da polícia? Havia em todas as partes...
PRISCILA – E quem eram?
NATALIA – Na companhia, no sindicato, no partido. Mas agiam com muita discrição.
PRISCILA – Por isso Nestor estava tão esquisito, lembra?
NATALIA – Esquisito, o Nestor?
PRISCILA – Sim, naqueles dias, antes do... acidente...
NATALIA – Acidente?
PRISCILA – Quando estávamos nos últimos ensaios...
NATALIA – Acidente, você chama aquilo de acidente?
PRISCILA – Ficava tão histérico antes de cada estréia mas, naqueles dias... estava tranqüilo, não? E
tão calado...
NATALIA – Desde quando você decidiu que foi um acidente o que aconteceu...
PRISCILA – Eu não decidi nada! Eu chamo assim, porque não podemos chamar de outro jeito, né?
Você não lembra que, inclusive, fizemos um juramento?
NATALIA – O que juramos foi não chamar de assassinato, isso eu lembro bem.
PRISCILA – E se não chamamos assassinato nem acidente, como quer chamar?
NATALIA – Pelo menos, enquanto não possamos provar....
PRISCILA – Provar? O que vamos provar, depois de tantos anos?
NATALIA – Eu me lembro muito bem...
PRISCILA – Vinte e três? Em que ano estamos?
NATALIA – O que vamos provar, me diz?
PRISCILA – Diga: em que ano...?
NATALIA – Que vamos provar?(severa, deixa de procurar e tira os óculos). Bem, Priscila, isso é muito
grave e merece uma assembléia geral.
PRISCILA – O que?
NATALIA – O que está ouvindo: convoco a todos para uma assembléia geral, com caráter de urgência.
PRISCILA (indignada) – Não vale! Você faz isso por que vou sair!
NATALIA – Faço porque aqui há sintomas graves de astigmatismo.
PRISCILA – De que?
NATALIA – Não disse a palavra certa?
PRISCILA – Aqui não há sintomas de nada! Do que vocês está falando?
NATALIA – Ceticismo! É isso...
PRISCILA – Astigmatismo... Militante novata.
NATALIA – Ceticismo, digo. Aqui há sintomas de...
PRISCILA – Aqui não há sintomas de nada. Acontece que eu quero sair, e por isso...
NATALIA – O que vamos provar, diga! E para que procuramos o roteiro, hein? Por que o estamos
buscando há vinte anos?
PRISCILA – Vinte e três.
NATALIA – Para quê passamos metade da nossa vida enfiadas neste teatro? Vinte e três ou vinte e
quatro?

14
PRISCILA – Metade da vida, você disse...
NATALIA – Em que ano estamos?
PRISCILA – Você não pode me taxar de cética...
NATALIA – Eu disse: assembléia geral. Sou cinqüenta por cento.
PRISCILA – Nem você nem ninguém. Quem começou isto aqui fui eu.
NATALIA – Ah, sim? E de quem foi a idéia?
PRISCILA – Que idéia?
NATALIA – De ficarmos vivendo no Teatro.
PRISCILA – Tua sim... Mas depois que eu passei um mês aqui, fechada...
NATALIA – Duas semanas, duas...
PRISCILA – Agüentando as primeiras investidas, enquanto toda a companhia se evaporava
misteriosamente.
NATALIA – Eu não me evaporei! Quanto aos outros, eles estavam sendo procurados pela polícia, você
sabe muito bem.
PRISCILA – O que eu sei é o medo que passei aquela temporada, aqui sozinha...
NATALIA – Mesmo assim, eu cheguei três dias depois...
PRISCILA – E ainda por cima, com esse nomezinho: Teatro do Fantasma...
(Subitamente, Natalia muda de atitude e olha ao redor com ar inquieto e agitado)
NATALIA – Priscila! Onde você está Priscila?
PRISCILA (com evidente contrariedade) Não, por favor, Natalia! Agora não...
NATALIA (avança até o proscênio e grita para a platéia) – Sou eu: Natalia! Priscila, você está aí?
PRISCILA – Este não é o momento, Natalia. Já te disse que vou ...
NATALIA (sem escutá-la) – Não pude vir antes... (Se volta e olha Priscila, como surpreendida) Ah, você
está aqui...
PRISCILA (mal resignada) – Sim, estou aqui...
NATALIA (vai junto a ela e a abraça) Não pude vir antes, Priscila. Tive que me esconder. Parece que
pegaram o Félix e o Roberto... Como você está?
PRISCILA (a contragosto) Bem, bem...
NATALIA – Sim, o Roberto também, mas parece que vão soltá-lo amanhã. Não sabemos nada de Lola
nem de Cris... Eles não apareceram por aqui?
PRISCILA (idem) – Não.
NATALIA – E a polícia?
PRISCILA (idem) Está bem, obrigada.
NATALIA – Estou perguntando se a polícia veio.
PRISCILA – Ah, sim, claro...
NATALIA – E o juiz, o governador, o advogado, certo?
PRISCILA – Sim, todos...
NATALIA – E você?
PRISCILA – Sim, eu também...
NATALIA – Estou perguntando sobre você, o que você fez?
PRISCILA – Ah, sim, isso... estou aqui...
NATALIA – Registraram tudo, não? (Mostrando acima) E levaram o corrimão, certo?
PRISCILA – Sim, como você pode perceber.

15
NATALIA – E a você, não fizeram nada?
PRISCILA – Não, como você pode perceber.
NATALIA – Menos mal... Don Nazario disse... Falei com ele ontem... disse que você não tem porque se
preocupar, que ele cuidará de tudo.. só vai deixar passar alguns dias. E que contra você eles
não têm nada, que você só figura como proprietária do local... Bom, e como mulher de Nestor,
mas isso...
PRISCILA (interrompendo) – Como viúva, você quer dizer.
NATALIA – O que?... Ah, sim, claro... como viúva...
(Se olham em silêncio. Priscila agora também tem uma atitude estranha).
PRISCILA – Não esquece. Sou a viúva de Nestor Coposo, lembra? Quanto a você...
NATALIA – Priscila, por favor... Agora temos que estar unidas. Nestor... já não está aqui. Nós duas o
queríamos, não? E ele... ele queria a nós duas... Isso já não pode ser mudado. Foi assim, e
agora Nestor já não está, e ficamos você e eu.
PRISCILA – Você e eu... já não temos nada em comum.
NATALIA – Nada? Você tem certeza? E o amor de Nestor? E sua luta, que foi também a nossa? E este
teatro, pelo qual ele que deu a vida?
PRISCILA (voltando à atitude anterior) – Escuta Natalia... Como você ficou sensibilizada, fica
reconstruindo as lembranças sozinha, por sua própria conta...
NATALIA (sem perder a “sensibilidade”) – Tudo nos é comum, Priscila. E o que antes nos separou,
agora tem de nos unir. Sua morte não é o final, mas o princípio...
PRISCILA – De que folhetim você tirou isso?
NATALIA – Uma guerra perdida não decide uma batalha... (vacila) Ou ao contrário.. Mas nós... vamos
marchar unidas...até a luta final...
PRISCILA – Já ouvi isso antes.
NATALIA – E enquanto isso, já sabe que no bar tem várias latas de ervilhas...
PRISCILA – O que?
NATALIA – Melhor você ficar uns dias no teatro, se tentarem alguma jogada suja.
PRISCILA – Escuta Natalia...
NATALIA – Ah, e de sardinhas... Don Nazario teme que aproveitem a debandada da companhia pra
interditar o teatro e jogar uma pá de cal encima do caso.
PRISCILA – Vamos ver se esclarecemos uma coisa...
NATALIA – Você não tem lido os jornais, né? Que porcos! Só dez linhas e cheias de...
PRISCILA – Ou melhor, duas coisas... Primeira: para relembrar...
NATALIA – Ainda sobre as ervilhas, dá uma olhada antes de comer pra ver se não estão estragadas...
PRISCILA – Digo que para relembrar tem que haver unanimidade... E Segunda...
NATALIA – Dez linhas, digo, e cheias de mentiras... Dizem que foi um acidente....
PRISCILA – Uma coisa é relembrar e outra, delirar.
NATALIA (em brusca transição, grita) – Quem delira aqui?
(Se olham em silêncio. Logo, simultaneamente, olham para as caixas de papéis e para cima, na
vertical).
PRISCILA – Está chovendo?
NATALIA – Parece.
PRISCILA (olhando as caixas) – Goteiras...

16
NATALIA (idem) – Aqui também...
(correm as duas para lá. Priscila carrega alguma caixa, as pastas e a cadeira baixa. Natalia começa a
esticar a manta, com as outras caixas e a banqueta encima. Ambas se dirigem para a lateral
por onde entrou Priscila no começo da cena).
PRISCILA – Ratos, cupins, goteiras...
NATALIA – O tempo se revolta contra o Teatro do Fantasma.
PRISCILA – Para não falar de nós...
NATALIA – Não me inclua. Sou mais jovem que você.
PRISCILA – Isso ainda falta provar.
NATALIA – Você não ia sair?
PRISCILA – Quem te disse?
NATALIA – E o casaco?
PRISCILA – Que casaco?
NATALIA – E depois você fala de mim...
PRISCILA – Eu, falar de você?
NATALIA – Quem delira aqui?
PRISCILA (ri) – Astigmatismo!
NATALIA – Pois veja que você...
PRISCILA – Eu, o que?
NATALIA – Como fica por meia dúzia de espinhas...
PRISCILA – Meia dúzia? (Natalia não responde) Meia dúzia?
(Vão saindo. Black-out)

3
(Ainda no escuro, começa a se escutar uma música que vai se aproximando: é A Internacional. A luz
mostra vários cubos e recipientes distribuídos aqui e ali, pelo palco. Entra Natalia vestida para
sair, levando um enorme radio-cassette, de onde sai a música, a todo volume. Ao cruzar para a
lateral oposta, inspeciona distraidamente alguns recipientes e olha para cima. Sai. A música vai
se afastando e, quando desaparece, aparece Priscila pelo fundo, vestida com uma bata de usar
em casa. Avança para o proscênio, parecendo atraída por algum som procedente da platéia.
Tenta ver algo na escuridão da platéia, fazendo viseira com uma das mãos).
PRISCILA – Natalia... É você?... (escuta)... Está aí, Natalia?
(Ao não obter resposta, desiste e vai voltar ao fundo. Interrompe a ação e olha os cubos e recipientes
do palco, depois para o alto e, por último, percorre com a vista toda a amplitude da platéia, os
palcos, os pisos... Finalmente, parece interpelar em voz baixa a um auditório imaginário)
PRISCILA – Senhoras e senhores... (pausa) Distinto público... (quase ri) Querido Fantasma... Isto não
há quem o salve... (pausa) Não há quem o salve? ... Quem disse isso? (pausa) Ninguém.
Ninguém disse isso. E muito menos eu. (pausa) Eu, se o barco afunda, me afundo com ele.
(pausa) É uma metáfora, claro. Ou algo assim. (pausa) Em todo caso, ainda falta muita
travessia... (pausa) Muito bem: outra. Melhor ficar calada...
(Dá meia volta e se dirige até o fundo, com a luz diminuindo. Escuro)

17
(Soa durante o escuro uma música vivaz caribenha, a meio volume. Quando a luz volta, o palco está
vazio, salvo uma cadeira ao fundo, sobe a qual descansa o radio-cassete em marcha. Entra
Natalia vestida como para um pic-nic; traz uma toalha xadrez, que abre jovialmente no chão.
Observa à distância sua arrumação, a modifica um pouco e sai por onde entrou. Todos os seus
movimentos seguem levemente o ritmo da música. Pela outra lateral entra Priscila, não tão
campestre quanto Natalia, levando uma cesta coberta com um guardanapo. Observa a toalha,
deixa a cesta em cima e modifica sua colocação. Sai por onde entrou. Entra Natália arrastando
um caixão com rodas carregado de vasos com plantas diversas. Percebe a mudança de
posição da toalha e a modifica. Depois distribui ao seu redor os vasos de plantas. Observa o
efeito do conjunto, faz alguma mudança dos vasos e sai por onde entrou com o caixão. No
mesmo momento volta a entrar e coloca os vasos mudados na sua primeira posição. Enquanto
sai de novo, entra Priscila trazendo em uma das mãos uma gaiola com um pássaro e, na outra,
um suporte elevado para a mesma; o coloca no fundo e sobre ele a gaiola. Olha para a toalha e
modifica novamente sua posição. Ao sair, cruza com Natalia, que leva no ombro uma bandeira
vermelha com seu mastro. Instala perto da gaiola e no mesmo momento o pássaro começa a
cantar. Olha a toalha e retifica sua posição. Sai. Depois de uma pausa, entram as duas ao
mesmo tempo, cada qual por uma lateral. Priscila traz um garrafão cheio de vinho tinto; Natalia,
uma faixa enrolada, com dois paus nas extremidades, que deixa no chão. Sem se olhar,
sentam-se no chão, nos dois lados da toalha. Priscila põe o garrafão sobre a toalha, perto da
cesta, e começa a tirar dela as comidas típicas de um pic-nic. Natalia pega o garrafão e dá um
grande trago, vigiada de rabo de olho por Priscila. Finalmente, as duas começam a comer,
pegando as comidas desordenadamente dos diversos recipientes e bebendo de vez em
quando; sempre se ignorando o máximo que podem e olhando com aparente interesse e
satisfação ao redor. Natalia demonstra estar desfrutando especialmente a música caribenha.
Ocorrem pequenos incidentes quando coincidem em algum alimento ou no garrafão. Os
esporádicos cantos do pássaro também atraem às vezes sua atenção. Deve ficar evidente que
estão brigadas, mas que ambas fingem não dar importância à outra, ao mesmo tempo que
dissimulam sua irritação com uma fingida alegria. Depois de um tempo, surge por fim o diálogo.

NATALIA (com sarcástica jovialidade) – Que ótimo!


PRISCILA (idem) – O mesmo digo eu. (pausa)
NATALIA – Isto está muito concorrido.
PRISCILA – Um êxito de convocatória. (pausa)
NATALIA – Se continuarmos assim... não vamos caber todos.
PRISCILA – Haverá que fazer ampliações.
NATALIA – Ou celebrar do lado de fora.
PRISCILA – Ou jogar alguns na rua. (pausa)
NATALIA – Dá gosto.
PRISCILA – E o pastel, uma delícia. (Deposita na tigela, com certa violência, o pedaço que acabara de
provar. Pausa)
NATALIA (com extremado deleite pega o mesmo pedaço) – Claro, que nem comparação com os
canapés do ano passado, tão finos... (pausa)

18
PRISCILA (mexe nas coisas) – Pois onde haja uns croquetes, que se tire os demais...
NATALIA – Pois seus “vol-au-vent” foram os reis da festa. Don Nazario esteve se lembrando deles há
um mês... Na cama. (pausa)
PRISCILA – A saladinha é o de menos. Isso sim: que não falte a ideologia.
NATALIA – Não há saladinha sem ideologia. E vice-versa.
PRISCILA – O cortês não substitui o valente. Me empresta o garrafão um pouquinho?
NATALIA (dando-lhe o garrafão) – Talvez você preferisse licor.
PRISCILA – Cale-se, por Deus...Licor, num dia como hoje? (bebe)
NATALIA (em tom de arenga) – Em um dia como hoje do ano de 1886, a classe operária deu um passo
gigantesco para a emancipação de...!
PRISCILA (furiosa) – Não pode se controlar! Não, senhores! Ela não pode se controlar! Como o
cachorro do Pavlov!
NATALIA (idem) – Cachorro é o teu pai! E me controlo quando me dá vontade!
PRISCILA – Meu pai nunca teve cachorros!
NATALIA – O cachorro de quem você falou?
PRISCILA – Um convite normal não podia ser. Não, senhores... Havia que incitar a luta de classes.
NATALIA (fica de pé e esboça o ritmo da música) – Me controlo ou não me controlo?
PRISCILA (indicando em torno) – E depois, já vê: nenhuma alma...
NATALIA (ignorando-a, pergunta ao pássaro) – Ola, Maiakovski... Gosta dessa música? (o pássaro
canta)
PRISCILA (remedando-a em tom de arenga) – Em um dia como hoje do ano de 1886, o proletariado
conquistou... o pastel de oito ovos!
NATALIA (ao pássaro) – A música pode mudar, porém a letra... verdade, Maiakovski?... a letra...
PRISCILA – Isso. A letra, a de sempre. E depois, já vê: um êxito de convocatória! (levantando-se,
interpela a interlocutores invisíveis). Como está, Roberto?... Olá, Cristina! Que bom te ver...
Pois veja que a Lola... entra, entra, Félix... Um aplauso para Don Nazario!... Vicente e Ramona,
os amantes de Verona... Meu deus, Pepe! Você trouxe a guitarra e tudo...! (para a lateral) Eh,
calma, calma! Não se amontoem, porque há lugar para todos...!
(Natalia vai até o radio-cassette e aumenta o volume. Dança com atitude desafiante. Priscila interrompe
sua paródia, olha um momento com desprezo e, por fim, vai ao aparelho e o desliga. Natalia
pára de dançar e se senta junto da toalha e continua comendo. Priscila faz o mesmo. Comem
em silêncio, como se nada tivesse acontecido)
NATALIA (muito amável) – Me passa o vinho, por favor?
PRISCILA (idem, passando-lhe o garrafão) – Com muito gosto.
NATALIA (pegando-o) – O gosto é meu. (bebe)
PRISCILA – Já se nota, já.
NATALIA – Você não provou as almôndegas?
PRISCILA – Obrigada: para mim é suficiente seu perfume.
NATALIA – Pois Nestor tampouco acreditava no espontaneismo das massas...
PRISCILA – Você diz isso por causa das almôndegas?
NATALIA – A consciência revolucionária, dizia, deve fecundar o movimento operário para que seus
anseios de emancipação e tudo isso, certo? Não se dissolvam na agitação espontânea.
PRISCILA – Já se vê... E isso ele te dizia na cama?

19
NATALIA - Você não provou as almôndegas?
PRISCILA – Que almôndegas? Você se refere a isto? (pega uma e examina).
NATALIA – O que há agora é muito revisionismo, e por isso acontece o que acontece. Que também
está muito bem, eu não digo que não... Se não se revisam as coisas, pois tampouco... Meu
casaco, por exemplo, se não revisar os forros de tanto em tanto... Mas depois, claro, se vai
pegando gosto pela coisa, e um dia vai e te diz: e por que não reviso também estas golas, tão
largas que já não servem mais?... E você as muda e não acontece nada e fica contente... E
outro dia você vê que todas as tuas amigas usam casacos mais curtos e você começa a se ver
como uma samaritana e... que tal se encurto um porquinho pra ver como fica em mim? E você
encurta e bem... No outro ano alguém te diz que de tão largo parece um sino e que mais justo
realça a figura, e você ajusta, e se sente mais jovem e parece que te olham mais e que te
convidam para mais festas e ótimo... E então, claro, por que não trocar logo as ombreiras para
ficar com esse ar tão moderno e executivo? Pois veja que a cor... Não sei, não sei... Me parece
um tanto desbotada, não? E quase ninguém mais usa essa cor. E se mando ao tintureiro, para
que coloque um outra tonalidade?... E esses botões, que quase não se vêem... Talvez seja
melhor colocar aqueles quadrados, tão chamativos, para que vejam nas festas que também
posso ser original... E os bolsos? Para que bolsos? Para esconder as mãos, como um
ferroviário? Ou para guardar as sobras do lanche? Não, não... nada de bolsos... E assim vai
revisando tudo, de cima a baixo, de fora pra dentro, tira uma coisa, põe outra... E um belo dia,
numa dessas festas, se aproxima um garçom e diz: “Senhora, se me permite... Dá pra ver todo
o seu cú...
(Durante o monólogo de Natalia, Priscila foi enterrando almôndegas nos vasos)
PRISCILA – Tá. (Pausa, sem interromper sua atividade) – Escuta... e você, quando te convidam a
tantas festas?
NATALIA (depois de uma pausa) – Às quartas, querida. (pausa). E você, pode-se saber o que está
fazendo com os vasos?
PRISCILA – Estou semeando suas almôndegas.
NATALIA – Tá (pausa)
PRISCILA – Temos que semear para o futuro, porque o presente está negro. Claro, pra você, que é tão
jovem, essas coisas não te preocupam. Estou me referindo ao dia de amanhã. Você vive no
ápice da revolução, digamos assim, e não vê mais à frente. Não vê nada além do seu nariz,
quero dizer. Mas eu, como sou tão velha, tenho que pensar no dia de amanhã.. porque o
presente está negro. (observa uma almôndega). São tempos ruins para as almôndegas... É que
as massas, pobrezinhas, têm a espontaneidade muito castigada, hoje em dia. A própria
Domitila, vê?, tão popular, diz que sua família não quer nem experimentar. Me refiro às
almôndegas. Todos preferem hambúrguer, diz. Veja você, que espontaneidade...E vai dizer que
ela pertence às massas oprimidas, pendura o avental e nos deixa a ver navios. Ou nos recorda
o salário que estamos pagando. Pelo menos ela sabe como estamos de vida. Outro dia me
disse que comemos pior que sua família. (Enterra a almôndega no vaso). Enfim: maus tempos
para as almôndegas. Verdade que nas tuas festas nunca servem almôndegas?
NATALIA (ausente) – Enquanto durar o bloqueio, não se pode esperar uma melhora do abastecimento
de comestíveis...
PRISCILA (volta-se para Natália) – O que disse?

20
NATALIA – O que?
PRISCILA – Isso, o que?
NATALIA – O que o que?
PRISCILA – Isso que você disse...do bloqueio e do abastecimento de comestíveis...
NATALIA – Eu disse isso?
PRISCILA – Agora se faz de louca.
NATALIA – Quem se faz de louca?
PRISCILA (imitando-a) – Enquanto durar o bloqueio não sei quantos comestíveis...
NATALIA – Eu falei isso?
PRISCILA – Agora não se faz de louca, senão que já está.
NATALIA (estranhada) – Me veio assim, de repente...
PRISCILA – O que? A loucura?
NATALIA – Essa frase... E agora me vem outra... Haverá que reduzir o fornecimento...
PRISCILA – Não te preocupes: é só um delírio senil.
NATALIA - ... enquanto não expulsarmos o inimigo.
PRISCILA – É comum. Meu pai, aos noventa anos, começou a falar em aramaico...
NATALIA – Há que se dizer a verdade, por mais cruel que seja. Os bolcheviques nunca escondem nada
do povo...
PRISCILA – E com lua cheia, até cantava salmos... Que você disse?
NATALIA – O que?
PRISCILA – O que você disse dos bolcheviques?
NATALIA – E como sabe que era aramaico?
PRISCILA – Você falou de bolcheviques...
NATALIA – Por que? Já tá proibido?
PRISCILA – E essas outras frases: o fornecimento, o bloqueio, isso de expulsar o inimigo... Entende?
(Ambas ficam um momento em suspenso)
NATALIA – Quer dizer que...?
PRISCILA – Será possível que...?
NATALIA – Tem que ser! Senão, de onde viriam essas frases?
PRISCILA – De outra peça, talvez? Não creio... vamos ver, repete...
NATALIA – O que?
PRISCILA – As frases: enquanto dure o bloqueio...
NATALIA – Como vou repetir? Vieram na minha cabeça assim de chofre...
PRISCILA – Faz um esforço, mulher... De repente te vem mais e....
NATALIA – E o que?
PRISCILA – Nos deparamos com a chave.
NATALIA – Que chave?
PRISCILA – Francamente, Natalia, que desgaste! Se te fazem um teste de admissão, não entras no
asilo.
NATALIA – No asilo? Pôrra! Como você confia em mim, hein!!!???
PRISCILA – Pra que nós passamos metade da vida procurando o roteiro, hein?
NATALIA – Você vai rir, mas estou notando umas coisas aqui embaixo... (Se toca no baixo ventre).
PRISCILA – Deixe de frescura e responda: para que?

21
NATALIA (pícara) – Umas coisas aqui embaixo...
PRISCILA – Pois respondo eu: pra saber quem matou Nestor, e porque.
(Natalia vai continuar com sua burla, porém muda bruscamente de humor e se cala. Priscila se dá
conta e também se interrompe. Ambas têm o impulso de pegar o garrafão, porém desistem ao
comprovar a simultaneidade. Natalia se incorpora e vai até a bandeira vermelha. Limpa com ela
as mãos e a boca, e o pássaro começa a cantar)
NATALIA (ao pássaro) – Perdão. É que não tem guardanapo... (Vai até o proscênio e pega um lado da
faixa que deixou no chão. Desenrola parcialmente sem que a platéia veja o que está escrito
nela).
PRISCILA – E a festa de hoje, heim?, um êxito de convocatória. Mas ela tinha que enviar panfletos pré-
históricos, em vez de convites normais... (Tira uma folha do bolso e lê). “Camaradas: nestes
tempos de desmoralização e conformismo covarde, é necessário mais que nunca manter os
símbolos de uma luta que continua em todos os...
(Natalia joga ao chão o pau da faixa, e o golpe faz calar Priscila)
NATALIA – Pois meu avô nunca falou em aramaico, entende. Na minha família, todos morreram na hora
certa. E com as botas calçadas, assim como Nestor.
PRISCILA – Que botas? As ortopédicas?
NATALIA – Não eram ortopédicas!
PRISCILA – Pois quase. Com aquela artrite...
NATALIA – E saiba também que se ninguém veio não foi por causa do meu convite...
PRISCILA – Ah, não?
NATALIA - ... mas sim por causa dos teus canapés do ano passado.
PRISCILA – Claro, por causa dos meus canapés...
NATALIA – E teus “vol-au-vet”, e o licor. Parecia... um cocktail social-democrata.
PRISCILA (indicando o palco vazio) – Pois veja o que acontece com tua demagogia populista. Nem os
ratos vieram.
NATALIA – Os ratos, como se sabe, sempre acabam por abandonar o navio.
PRISCILA – Claro: quando notam que o navio está se afundando. Como este.
NATALIA – Lá vem você com teu derrotismo de novo. Este navio não está se afundando, viu?.
PRISCILA – Pois saiba, Natalia: vão afundar este navio em menos de um ano.
NATALIA – O que está dizendo agora?
PRISCILA – Em menos de um ano. E olha que não sou uma derrotista, e sim uma derrotada, como
você.
NATALIA – Não saia pela tangente. O que é isso de que vão afundar este navio... em menos de um
ano?
PRISCILA – Quanto tempo faz que você não vê Don Nazario?
NATALIA – Não sei.. por que diz isso?
PRISCILA – Claro, como você não faz nada prático...
NATALIA – Ah, não? E quem leva as plantas pra passear? Se não fosse por mim, já teriam morrido de...
de hidrofobia.
PRISCILA – Pois fala com ele, fala... Que te explique. Agora, com a dentadura nova, se entende quase
tudo.
NATALIA – E o arquivo do Nestor? Quem o investiga?

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PRISCILA – Se entende quase tudo... por desgraça.
NATALIA – Afundar, você diz?
PRISCILA – Ele que te explique, anda...
NATALIA – Não me diga que querem derrubar o teatro... outra vez!
PRISCILA – Lhe escorriam as lágrimas, pobrezinho...
NATALIA – Quantas vezes tentaram nestes anos? Quatro, cinco...?
PRISCILA – E quase tive que consolá-lo eu...
NATALIA (vai à lateral do proscênio e golpeia a boca de cena). E veja: firme como uma rocha. Contra
ventos e tempestades. Quantas vezes tentaram...? A última vez... lembra? Ou foi a penúltima?
Com aquele gordinho da Prefeitura, que suava tanto... lembra? (parodia-o) “Declaro que está
na ruína e pronto! Se acabou!”... Mas não puderam: firme como uma rocha. Don Nazario os
derrotou em seu próprio terreno. E eu também não me saí mal, reconhece... (Fala a um
interlocutor invisível): “O Teatro do Fantasma não se rende, fique sabendo! Diga isso aos seus
patrões, os especuladores! E diga-lhes também que esse fantasma, é verdade, já não percorre
a Europa... Porém, se refugiou aqui, para esperar tempos melhores! E não haverá quem o
expulse...”
PRISCILA – O estacionamento.
NATALIA – O quê?
PRISCILA – O estacionamento o expulsará... e nós junto com ele.
NATALIA – O estacionamento? Esse que fizeram na praça, vai nos expulsar?
PRISCILA – Pior que isso: um acesso.
NATALIA – Um acesso? De que?
PRISCILA – Um acesso ao estacionamento... que passará justo por aqui.
NATALIA – Um acesso de carros, por aqui? Não!
PRISCILA – De carros, de motos, de caminhões...
NATALIA – Não! Não passarão!
PRISCILA – Ah, se passarão! Fala com Don Nazario, ele te explica. Quanto tempo faz que não fala com
ele? Claro, faz um mês está preparando almôndegas...
(Natalia vai junto ao radio e muda a fita enquanto fala, contendo a raiva).
NATALIA – Tentaram muitas vezes, e nada. Você, o que quer, e estragar a festa!
PRISCILA – Eu, o que quero, é que ponha os pés no chão.
NATALIA – Pra que? Pra sujar os sapatos de pó ou de barro... ou de merda? (sapateia o chão) Aqui!
Aqui tenho meus pés postos! (No radiocassete começa a tocar, a meio volume, A Internacional .
Priscila fica de pé e olha para Natalia, que ficou quieta, respirando agitada. Ambas escutam a
música olhando-se e, depois, olhando o Teatro. Priscila vai junto a faixa e pega um de seus
paus).
PRISCILA – Vamos terminar a festa em paz?
NATALIA (comovida e hostil, dá de ombros) – Acaba você, se quiser.
PRISCILA (pausa) – Eu sozinha não posso. Uma faixa necessita duas pessoas.
(Natalia se volta, olha-a e vai pegar o outro pau. Agora sim se lê o que está escrito nela: “Viva o
Primeiro de Maio”. Ao abrir a faixa o pássaro se põe a cantar. Também Natalia e Priscila
cantam a meia voz. .Priscila olha para Natalia e vê que está segurando as lágrimas. Pega um

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lenço do bolso e vai dar a ela, porém reparam que, ao aproximar-se, a faixa se afrouxa. Então
desistem do lenço, tensionam de novo e continuam cantando baixinho enquanto fica escuro).

SEGUNDO ATO
5
(Várias caixas e montes de papéis se alinham no fundo do cenário e, no proscênio, as quatro pastas
que trouxera Natalia na segunda cena, agora cheias. No centro, sobre uma manta, outro monte
de papéis. Natalia, com óculos e ar mais juvenil, está arrumando o arquivo. Quer dizer: pega
papéis de uma caixa do fundo, sopra ou sacode o pó, os inspeciona e os leva a um ou outra
das pastas, ou ao monte do centro. Trabalha um tempo em silêncio. Ao encontrar o que parece
ser um manuscrito o copia, e fala sem dirigir-se a ninguém visível)
NATALIA - ... e esta, eu não queria, mas você se empenhou... (arremeda alguém). “Por que há de ser
velha, vamos ver? Naquela época, as mulheres começavam a parir aos treze ou quatorze
anos...” E eu, pobre de mim, com mais medo que um caracol... “Não, Nestor, não é pela idade.
O que acontece é que me falta estofo...” Mas você, quando tinha alguma idéia genial...
(arremeda) Uma Mãe Coragem jovem! Você imagina, que golpe para a reação?...” (pausa). Isso
de golpe, na verdade, nunca cheguei a entender... (vai ao monte do centro para deixar ali o
manuscrito, porém antes o folheia). Agora sim eu estaria no ponto... (Lê interpretando) “E as
duas sozinhas seguiremos adiante. E passará este inverno, o mesmo que os outros...Vamos,
puxa a carroça, e que não nos caia em cima a neve...” (Fica um momento pensativa folheando
o manuscrito. Depois o deixa no monte e volta para o fundo). E claro, àquele crítico demos de
bandeija: “Baby Coragem e seus tios”, entitulava a coisa, era muito sarrista... Eu, na verdade,
Nestor, não compreendo esse teu afã para provocar a todos. Já não era bastante perigoso
sermos vermelhos? Mas não: além do mais tínhamos que ser modernos, e extravagantes, e...
(Encontra um livro pequeno) Como este, por exemplo! Fazer um musical com o “Manifesto
Comunista”! Que idéia maluca...? Menos mal que tiramos isso da tua cabeça, senão... Com o
sentido de humor dos membros do Partido... Aí Priscila esteve muito bem, temos de
reconhecer... (Imita-a) “Pois o local é meu e aqui não vai fazer. Se quer, vai montar na
Catedral... (Vai ao monte do centro folheando o livro) Claro que isso, hoje, como estão as
coisas, não seria uma má idéia... (Lê cantarolando) “O governo do Estado moderno... é só uma
junta que administra... os negócios comuns... de toda a classe burguesa...” O difícil é colocar
tudo isso em versos... e que rimem... (Tenta novamente) “... e nas águas geladas / do cálculo
egoísta...” Ah, veja, isto não soa mal... (Esboça uns passos de dança, cantarolando) “... nas
águas geladas / do cálculo egoísta...” Ainda não sei... como dizem que é uma relíquia e que
está ultrapassado, igual não colava nem com bailados... (Folheia e lê) “A burguesia obriga
todas as nações, se não quiserem sucumbir, a adotar o modo burguês de produção...” (Reflete)
Já se vê que é antiquado. Isso agora não passa... (Lê) “... as força a introduzir a chamada
civilização, quer dizer, a se tornarem burguesas...” Um pouco exagerado, não? (Deixa o livro no
monte) Não sei, não sei... Teria que enfiar muita música... E sem você estar para... (Vai para o
fundo, mas pára, levando a mão ao baixo ventre) Ai! Está aí outra vez essa dorzinha... No
mesmo lugar e na mesma hora. Me dá vergonha dizer, Nestor, mas... Sim, sim, é como se...
(Segura uma risadinha) E dizer que da última vez até marquei um pouquinho... Tá, já sei que é
impossível, mas... O que você quer? Eu não invento. Nem os dos peitos tampouco... (Toca os

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seios, sorridente. Evoca). O que me dizias? “A revolução fará...” Como era? “A revolução fará
mais doce os leite das mães” ... Isso, mais doce... Sem-vergonha... E tudo porque você gostava
de me chupar... (Segue arrumando os papéis) Você heim? muita ditadura do proletariado, mas
nisso... mais liberal que Casanova... Sobretudo comigo, por ser a amante. Com certeza você
não amolava tanto a Priscila como a mim. E agora que falei nela, por que demora tanto? Olhe
que está te pondo chifres com Roberto... (Ri). Teria graça, nestas alturas... Claro que... quem a
segue a consegue. Ainda que você não soubesse, esse a está seguindo desde... Desde
quando?... Pelo menos desde “Esperando Godot”, se não antes... E você nem sabia....
(Encontra um feixe de papéis atados) Nossa, mais panfletos... (Lê) “Camaradas. os dias da
ditadura estão contados...” Dá pra ver: outro otimista... (Vai deixá-los no monte do centro)
Porque Roberto, bom ator não era, mas era imbatível em matéria de otimismo... “O povo unido,
jamais será vencido”... E agora, é assessor cultural... de quem ou de que?... É o que eu te dizia,
lembra? “Olho com Roberto, que aplaude por vicio...” (Continua arrumando os papéis) E era
verdade: o encantava aplaudir, se excitava aplaudindo, desmanchava as mãos, lembra? Nos
teatros, nas assembléias, nos atos... e até nos enterros, como daquela vez... Quando foi?... Ah,
sim, claro: no teu, lembra? Bem, não. Não vai se lembrar... Pois sim: aplaudindo e chorando
como um abissínio... E os da Polícia Secreta ali, a vinte metros, dissimulando, mas com uma
cara de...
(Priscila entra vestida de passeio e bolsa, muito alterada e compungida)
PRISCILA – Assembléia Geral! Assembléia Geral!
NATALIA – O que foi? Calma, filha...
PRISCILA – Sinto muito, Natalia, é que eu venho....
NATALIA – Não me diga que Roberto te violentou!
PRISCILA – Pior, Natalia, pior...
NATALIA – Pior? Te pediu em casamento?
PRISCILA – Na assembléia te conto.
NATALIA – Mas assembléia pra que? Não pode me contar assim, por cima...
PRISCILA – Não. Tenho que fazer uma autocrítica.
NATALIA – Autocrítica? A quem? Eu não fiz nada...
PRISCILA – A quem vai ser uma autocrítica? Pois a mim...
NATALIA – Ah, bem... (mostra a bolsa de Priscila) E isso, o que é?
PRISCILA – Isto? Uma bolsa.
NATALIA – Estou vendo. Você comprou? (pausa) Diga, você comprou uma bolsa?
PRISCILA – Sim, comprei. Que queria que eu fizesse? Me sentia tão mal, tão mal...
NATALIA (indignada) Sentia tão mal, tão mal... que comprou uma bolsa?
PRISCILA – Mais ou menos.
NATALIA (idem) Você percebe, Priscila? Percebe como você cai nas garras do consumismo? Vê o que
a sociedade de mercado está fazendo contigo? (transição) É pele autêntica? (inspeciona)
PRISCILA – Falaram que sim.
NATALIA – E quanto te custou?
PRISCILA – Estava em promoção...

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NATALIA (voltando a indignar-se) Em promoção! Essa é a armadilha mas vil do porco capitalismo, que
te suborna te dando umas migalhas da mais valia! Assim te faz cúmplice da relação de
exploração entre o empresariado e o...
PRISCILA – Basta, Natalia! Não me torture mais! Deixa que eu conto tudo...
NATALIA – Mas não por cima.... Assembléia Geral!... promoção...
PRISCILA – E isso não é o pior...
NATALIA – Não?
PRISCILA – Está bem: assembléia. Está aberta a sessão. Primeiro ponto da ordem do dia: eu me
acuso de...
NATALIA – Um momento! Solicito um ponto prévio.
PRISCILA – Três, se quiser. Pra ver se assim me acalmo.
NATALIA – Uma e obrigado.
PRISCILA – Adiante.
NATALIA – Havia alguma na cor vinho?
PRISCILA – Alguma o que?
NATALIA – Alguma bolsa.
PRISCILA – Não sei, acho que não... Por que pergunta?
NATALIA – Por nada, por nada... retiro o ponto prévio.
PRISCILA – Você não gosta da cor?
NATALIA – Bem... Para você, sim...
PRISCILA – Para mim, sim? Que quer dizer?
NATALIA – Nada, nada... Era por isso a autocrítica?
PRISCILA – Pela bolsa? Ai, mulher!... Me sentia tão mal, que entrei na primeira loja, para acalmar-me,
entende? E fazer um balanço da situação, saber se estava na linha correta, porque Roberto me
pegou de surpresa, e já sabe como ele é, e eu, na verdade, tal como estão as coisas, e o peso
dos anos, já não sei por onde sair, como você, ou não? Por não falar de Don Nazario, que cada
dia vê tudo mais negro, e agora, com a próstata nem te digo, mas não pensava em comprar
nada, é sério, só queria me acalmar, porque depois de dizer que sim, que de acordo, que
adiante, fiquei confusa, e foi entrar na loja, e pagar, e sair pra a rua e me ver com a bolsa nos
braços, sério que não gosta da cor?
NATALIA (depois de uma pausa) – Dizer que sim, a que?
PRISCILA – Pois essa é a coisa, que a princípio não entendia muito bem, sua proposta, quero dizer,
não captava, e já sabe como ele é, tão, tão...
NATALIA – Tão otimista.
PRISCILA – É. E quando se entusiasma, se atrapalha pra falar, como os jovens, e na verdade, não está
mal, pela idade que tem, deve ser pelo aplique japonês...
NATALIA – O que?
PRISCILA - ... e continua tendo boa aparência, não pense...
NATALIA – Que japonês?
PRISCILA – Enxerto japonês. Pois o caso é que eu não o entendia muito bem, mas tampouco queria
passar por tonta...
NATALIA – Quer dizer.... que se dedica a isso de.. cortar árvores?
PRISCILA – Não mulher, no cabelo. Uns apliques que os japoneses fazem...

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NATALIA – Era só o que me faltava....
PRISCILA – Assim que eu lhe disse que sim, que de acordo, que avante, que o principal era salvar o
Teatro, porque o tempo está passando, e o acesso ao estacionamento também, e já não
sabemos a quem recorrer, de modo que, um museu? Por que não? O caso é salvar o teatro,
você não acha?
NATALIA – Não acho o que?
PRISCILA – Depois disso foi como uma ofuscação, entrei na loja, e depois, na rua, ao me ver com a
bolsa, me disse: o que você fez Priscila?
NATALIA – O mesmo digo eu: o que você fez Priscila?
PRISCILA – Como é que aceitou essa solução? O Teatro do Fantasma convertido em um museu
burguês, em um "monumento à liberdade de expressão" ou algo assim? Nestor convertido em
glória nacional, em um herói da democracia formal? Para livrar-nos da demolição, vamos
aceitar a consagração? Está tão derrotada assim? Se sente tão velha que vai se render assim,
como se nada estivesse acontecendo? Depois de tantos anos de luta, vai entregar a praça ao
inimigo? E ainda por cima, para que façam com ela um... mausoléu? Não te dá vergonha? O
que Nestor pensaria disso?
NATALIA (envergonhada) – Não... perdoa... eu... não sabia o que fazia...
PRISCILA – O que?
NATALIA – Como?
PRISCILA – O que disse?
NATALIA – Eu?
PRISCILA – Sim, você: não sabia o que fazia, do que?
NATALIA – De nada. Me confundi.
PRISCILA – Com que você se confundiu?
NATALIA – Com você. Mas agora não. Está tudo claro.
PRISCILA – O que é que está claro?
NATALIA – Tudo: que você se confundiu ao ver Roberto com o cabelo japonês e se enfiou numa loja
pra comprar essa bolsa incolor, inodora e estúpida. Não te dá vergonha?
PRISCILA – Não, Natalia... Que isso não é o principal...
NATALIA – Sabe? (vai para a lateral). Vou buscar uma bolsa vermelha...
PRISCILA (seguindo-a) – Natalia, por favor... Pára com isso de bolsas, que o caso é muito grave... O sistema
que nos recuperar... e converter-nos em tigres de papel...
(Saem as duas e black-out)
6
(Permanecem em cena as caixas, montanhas de papel e pastas da cena anterior, porém em maior quantidade.
Uma raio de sol cai obliquamente do alto sobre uma zona vazia do palco. Entra Priscila arrastando o
carrinho dos vasos e, quanto fala, o coloca embaixo do raio de sol)
PRISCILA - ... Não, Natalia, não... Isso é impossível. Será... não sei, outra coisa qualquer...
VOZ DE NATALIA – Que outra coisa, vamos ver?
PRISCILA – Sei lá! Outra coisa... Algum transtorno glandular, ou algo parecido...
VOZ DE NATALIA – Transtorno? Você viu os meus seios?
PRISCILA – Os hormônios, isso sim... Uma mudança hormonal, como as galinhas.
NATALIA (entra, vestida de bolchevique) – O que acontece com as galinhas, posso saber?

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PRISCILA (Que está arrumando as plantas) – Não sei... Algo que me explicaram na avícola... (Repara no traje
de Natalia) Que é isso que você está usando?
NATALIA (repara nas plantas) – O que você está fazendo com as plantas?
PRISCILA – De onde você tirou?
NATALIA – Por que trouxe para cá?
PRISCILA – O que significa disfarçar-se agora?
NATALIA – Desde quando você cuida das plantas?
PRISCILA – Desde que você não as leva para passear.
NATALIA – Pois fique sabendo que isso não é um disfarce...
PRISCILA – Eu as trago aqui para que tomem sol.
NATALIA – Estava no armazém.
PRISCILA – Cuidar delas, isso é o que faço.
NATALIA – É o meu figurino de Vera Yakubovski. (silêncio)
PRISCILA – Quer fazer o favor de tirá-lo? Você quer que Roberto ria de nós?
NATALIA – Quero que fique com dor de consciência.
PRISCILA – E por que ficaria?
NATALIA – Por ser arrivista e traidor... O que acontece com as galinhas?
PRISCILA – Não volte a falar disso, por favor? Ele só tentava nos ajudar... e salvar o Teatro.
NATALIA – Hormônios, você disse?... Será que as galinhas também se masturbam?
PRISCILA – O que?
NATALIA – Nada, nada... Quero que fique com dor na consciência.
PRISCILA – Você tem vontade... de masturbar-se?
NATALIA – Quero que, ao me ver assim, se lembre de quem era...
PRISCILA – Diga-me a verdade, você se masturbou?
NATALIA - ... E pense no que é agora...
PRISCILA – Me responde, Natalia...
NATALIA - ... e que caia seu enxerto japonês...
PRISCILA – Bem, não importa o que você faça com teu corpo. Mas, de uma coisa pode ter certeza: a
menopausa é irreversível. Como a História.
NATALIA – Isso é da conta dos meus ovários...
PRISCILA – E quanto a Roberto, não tem por que se mortificar. Ele só quer...
NATALIA – (pelo traje) – Você percebeu como fica bem em mim? Melhor que antes.
PRISCILA – Você disse no armazém? E como se atreveu a entrar?
NATALIA – Quer que eu te diga a verdade?
PRISCILA – Claro...
NATALIA – Foi como... como um chamado...
PRISCILA – O que quer dizer isso?
NATALIA – Estava lá em cima, me vestindo... quando ouvi uma voz... interior, claro... que me disse: “Camarada
Vera Yakubovski...” Você percebe? Vera Yakubovski!... Fazia anos que nem me lembrava desse
nomezinho. Deve ser como o outro, o que está ocorrendo com o meu corpo: que estou andando para
trás...
PRISCILA – Não me venha com isso outra vez!
NATALIA – Diga o que quiser, mas nem pense em me comparar com uma galinha!

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PRISCILA – Tá, tá... deixemos disso. Você ouviu uma voz, e daí?
NATALIA – De repente me veio uma imagem em que eu estava vestida assim, de Vera Yakuboski, e alguém,
não sei se Félix... ou Pepe.... também de bolchevique, me chamava “camarada”, e eu também a ele... E
havia mais gente da companhia, e todos nos chamávamos “camarada”, inclusive Roberto, creio.
Percebe? Camarada....
PRISCILA – Pois essa palavra, hoje, dizem que até fede...
NATALIA – Pois prá mim, não. Ao contrário... E então eu tive um ataque e fui ao armazém. Se você visse a
impressão que me deu... Estava tudo ali, coberto de pó, tantos anos, tantas peças... Tudo o que... Bem,
menos o que nós tivemos que ir vendendo... Mas do “Cerco” estava quase tudo: os figurinos, os
adereços, os cenários, as armas, o canhão... Se lembra do canhão? Quantos problemas...
PRISCILA – Prefiro nem lembrar.
NATALIA – Até a peruca de Lola, se lembra, que engraçado! (pausa) Então eu pensei, o que vai ser de tudo
isto? (tocando o figurino) E eu me vesti, não sei por que... (pausa) Melhor tirar. Tem luz nos camarins?
(sai por uma lateral)
PRISCILA – Acho que sim.
NATALIA – Roberto vem a que hora?
PRISCILA – Disse que ao meio-dia. (olha o relógio) Já é meio-dia e meio. (Terminou de arrumar as plantas.
Olha em volta. Perambula por entre montes e caixas, pegando e folheando algum papel. Pergunta a
Natalia, sem olhar para a lateral) Não vai ser fácil dizer a ele, você vai ver... Nem acredito que o pobre
entenda. Estava tão iludido... Se você visse como ele falava de Nestor... “Homens da sua estatura não
podem estar escondidos...” E que era justiça tirá-lo dali e... como falou?... “colocá-lo na estrada da
História”, ou algo parecido... (pausa) Sim, como metáfora não é a melhor... menos ainda para Nestor,
que não andava nem de bicicleta, mas já te digo que estava muito iludido com a idéia... (Pausa) Você
não vai entendê-lo, sobretudo depois que eu... Escuta, por que não ensaiamos?... Natália, você está
aí? (escuta) Por que não ensaiamos, como fazíamos antes, lembra? Eu faço Roberto e você nós
duas... ou ao contrário. Porque não vai ser nada fácil nessas alturas: depois que falou com o prefeito,
um par de ministros e não sei quem mais... E disse que todos estavam muito interessados. Que
amáveis, não? Todos querendo salvar o Teatro do Fantasma... Certo, também disse não sei o que de
mudar-lhe o nome, que aos fantasmas melhor enterrá-los, percebe? (pausa) Museu Teatral Nestor
Coposo, creio que queriam chamá-lo... Museu Teatral... E nós? Na sessão das múmias? Não sei como
fui tão cega para não ver a manobra: todos querendo salvar o Teatro e colocar Nestor no santuário... E
no fundo, sabe por que? Porque têm medo de nós. Sim, sim, medo. De você e de mim. Desde par de
velhas que defendem com unhas e dentes a última trincheira... (pausa) Olha, esta frase me ficou muito
bem, você não acha? Vou soltá-la a Roberto no momento oportuno... A última trincheira... (pausa) É
verdade, Natalia, por que não ensaiamos um pouco? Estás me ouvindo? (escuta) O que você estava
fazendo, pode-se saber? Roberto vai chegar logo... e já tinha que estar aqui... (Fica um momento
pensativa. Se volta para a lateral oposta a de Natalia e finge interpelar alguém) Olá, Roberto... Como
estás?... Entra, entra... Quanto tempo faz que você não aparece aqui, não? Acha que está muito
estragado? Bem, é que, já faz algum tempo, o pessoal da Prefeitura não nos dá permissão para
arrumar nada... Tampouco teríamos recursos para fazê-lo, claro... (Interrompe-se. Para si). Não, melhor
sem rodeios... (Interpela com outra atitude) Ola, Roberto... Temos que te dar uma má notícia: essa
ideiazinha você pode enfiar onde quiser... (Se interrompe. Para si) Bem, nem tanto assim... (Interpela
com outra atitude) Depois de considerar os prós e os contras da tu proposta, assim como a relação de

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forças em conflito e as condições objetivas do contexto sócio-político, derivadas da nova ordem
mundial... (Se interrompe. Para si) Fatal... E se vou pelo pessoal? (Interpela com outra atitude) Você já
me conhece Roberto. E sabe que nem sempre escolhi o mais conveniente para mim ... Porém, sou fiel
aos meus erros, ainda que deva pagar por eles com toda uma vida de... de... Bem, você me entende...
(Natalia entra, vestida agora com um figurino juvenil, grande e vaporoso, de cores claras, ao estilo de
princípios do século. Esconde algo sob os braços. Fica um momento escutando Priscila) E entende
também que, se uma vez, há tantos anos, fui capaz de superar aquele momento de ofuscação, agora,
na velhice... Bem, agora, na maturidade, devo ser fiel a mim mesma, aos meus princípios e a Nestor e
te dizer outra vez: não, Roberto, não posso...
NATALIA (interrompendo) – Olha, olha... Que outro momento de ofuscação?
PRISCILA (sobressaltada) – Ai, que susto! (repara no figurino) E agora, vai de que? Quer continuar brincando
de disfarce?
NATALIA (Mexe a saia) “Dona Rosita, a solteira”, Ato primeiro... Não me cai como uma luva?
PRISCILA – Faz o favor de se vestir normalmente! Está a ponto de chegar....
NATALIA – E o que foi que aconteceu, faz tanto tempo?
PRISCILA – Nada! Não aconteceu nada! Percebe? Eu sou uma mulher de personalidade. Uma mulher cabal,
com a cabeça no lugar, que sabe resistir aos cantos de sereia e não necessita inventar milagres pra
lutar até o final...
NATALIA – Eu invento milagres?
PRISCILA – E ainda por cima, pra achar que é alguém, se veste de... de... Dona Rosita Luxemburgo...
NATALIA – Eu acho que sou alguém?
PRISCILA – E se o barco se afunda, eu me afundarei com ele.
NATALIA – Mas a História não sei será... como você disse?... Ah, sim: irreversível.. Isto é: a História, não sei,
mas a menopausa... Veja (Lhe mostra um papel higiênico com sangue) Veja que beleza de regra...
(Antes que Priscila saia de seu assombro, soa uma campainha na lateral)
PRISCILA (reagindo) – É Roberto! Mude de roupa imediatamente! (sai)
NATALIA (saindo pela lateral oposta) – Luxemburgo não! A solteira! (black-out)
7
(No escuro escuta-se o trepidar de máquinas de derrubada e/ou construção. Por momentos se confundem com
ruídos bélicos. As caixas e montes de papel continuam em cena, com alguma mudança de posição. Há
também vários elementos de uma velha cenografia que evocam ambiente de guerra: sacos de areia,
cercas de arame farpado, armas, caixas de munição... Na débil claridade reinante a principio se poderia
pensar, com efeito, que a cena transcorre em zona de combate. A ilusão se dissipa assim que vemos
entrar Natália vestida com uma camisola de dormir e trazendo na mão uma lamparina acesa. Com ar
inequivocamente sonâmbulo, atravessa a cena de uma lateral a outra, se desviando dos obstáculos.
Poucos segundos depois de haver saído, volta a entrar, agora pelo fundo, e avança com a mesma
atitude até o proscênio. Percebe-se adverte então que tem os olhos fechados. Não obstante, ao chegar
na borda do palco, se detém, vacila um momento, gira sobre si mesma e se dirige para outro região do
fundo. Quando está a ponto de sair, se imobiliza. Depois estende um braço para o alto e fala com voz
estranhamente neutra.)
NATALIA – Cuidado, Nestor, cuidado... Saia daí, rápido... A varanda está quebrada e você não sabe... Há pouca
luz lá em cima, tenha cuidado... Um escorregão, com a tua artrite... ou um empurrão de alguém, vai
saber... De quem? Há pouca luz lá em cima, a varanda está quebrada... Desde quando?... Vai cair,

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cuidado, vai cair de cabeça, não se lembra? Você vai se machucar, Nestor, e não haverá ninguém para
te dar uma mão, para chamar um médico... Não vamos te encontrar até de manhã, não te lembras?... E
já não haverá remédio... Então, adeus estréia do “Cerco de Leningrado”, que é dentro de oito dias...
Adeus estréia, adeus Teatro do Fantasma, adeus a todos os nossos planos, nossos sonhos, nosso
tudo... Adeus fazer mais doce o leite das mães, sem-vergonha, cuidado, não continue, saia daí, não
prossiga, a varanda está quebrada, cuidado, um escorregão, ou um empurrão de alguém, de alguém
que não quer.... O que?... É dentro de oito dias a estréia, mas já não será, já não será se você morrer,
se quebrar a cabeça, se a varanda cede, sai daí, cuidado, Nestor... Um escorregão... tão escuro... ou
um empurrão de alguém que... Quem? Não queres o que?... (Nas últimas frases sua neutralidade
transformou-se em vaga agitação. Depois de uma breve pausa, grita) Cuidado, Nestor! (E desaparece
rapidamente pelo fundo. O trepidar das máquinas aumenta de intensidade. Depois de uma pausa, entra
Priscila por uma lateral, com roupa de passeio e levando o pássaro na gaiola. Cruza o palco com ar
levemente furtivo, olhando em volta. Quando vai sair pela lateral oposta, o pássaro começa a cantar.
Priscila o faz calar com um enérgico psiu. Sai).

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(Poucas mudanças com relação ao cenário anterior. Só a luz que agora é mais intensa. Continua o trepidar das
máquinas, alguns momentos mais próximo, com alguma breve interrupção. Entra Priscila por uma
lateral, vestida com inusual elegância. Nos braços leva um recipiente de plástico, parece bastante
pesado, já que o deixa no chão com evidente alívio. Alonga os braços e olha em volta: o cenário e a
sala. Por fim, resolvida, se dirige ao fundo, pega uma das caixas cheias de papéis e a esvazia sem
contemplações sobre o monte do centro. Ante a súbita desordem provocada, parece arrepender-se por
um momento, porém se refaz e prossegue sua tarefa com maior resolução: faz o mesmo com as outras
caixas, enquanto murmura frases ininteligíveis. E também se somam ao caos as pastas
ordenadamente dispostas no proscênio. Quando termina, levemente alterada, parece fraquejar à vista
de um cartaz que resgata do monte. Despreza uma vez mais suas dúvidas e corre até o recipiente de
plástico. O destapa e, quando vai derramar seu conteúdo sobre a pilha de papéis, é interrompida pela
voz decidida de Natalia, quiçá desde a platéia)
NATALIA – Quieta ou disparo! (Priscila detém sua ação e se volta a Natalia que está armada com um fuzil e
vestida como bolchevique)
PRISCILA (irônica) – Que você vai disparar? Isso é adereço...
NATALIA – Eu não estaria tão segura. Põe esse frasco no chão.
PRISCILA – Não é um frasco, é um garrafão.
NATALIA – Razões demais. Ao chão ou disparo.
PRISCILA – Não brinque com isso, que as armas as carrega o diabo...
NATALIA – Por isso te digo.
PRISCILA – Só faltava que acabássemos nas páginas policiais...
NATALIA – Melhor aí, do que em Ecos da Sociedade: “volta a moda queimar o bonzo...”
PRISCILA – Quem falou de queimar-se?
NATALIA (aproximando-se, sem empunhar a arma) – Ah, não? e o que ia fazer?
PRISCILA – Só o teatro.
NATALIA – Isso é o que você diz agora. Que no outro dia, ficou bem trágica...
PRISCILA – Trágica, eu? Quando?

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NATALIA – No outro dia, depois do Roberto ir embora. (parodiando-a) “Terminemos de uma vez... somos um
par de vestígios... Todos já nos renegaram...”
PRISCILA – Eu disse isso?
NATALIA – E mais.
PRISCILA – O que eu disse é que estávamos bancando as ridículas...
NATALIA – Isso também.
PRISCILA – E que mais valia um final digno que uma saída desmoralizada.
NATALIA – E quando você começou a gritar: “O fogo! O fogo purificador!”
PRISCILA – Eu disse isso?
NATALIA – Aos gritos.
PRISCILA – Foi pelo “licor”.
NATALIA – Que “licor”?
PRISCILA – O que Roberto nos trouxe.
NATALIA – Eu nem provei.
PRISCILA – E eu me referia somente ao Teatro.
NATALIA – Isso você diz agora. No outro dia...
PRISCILA (desafiante) – Está bem: no outro dia queria terminar com tudo... e conosco também. E então? Não
seria o melhor? Queimar o teatro com nós duas aqui dentro, e terminar de uma vez? ... Mas dando uma
lição ao mundo, e a essa quadrilha de renegados que...
NATALIA – Uma lição, de que?
PRISCILA – De que? Uma lição de que?
NATALIA – Sim, uma lição de que? De pirotecnia?
PRISCILA – Ok, vamos ver: você escutou o Roberto?
NATALIA – De A a Z.
PRISCILA – E entendeu o que ele disse?
NATALIA – Cabalmente.
PRISCILA – Me estranha, porque você não tirava os olhos do cabelo...
NATALIA – Mas entendi.
PRISCILA – Ah, sim? Você entendeu?
NATALIA (reparando na desordem dos papéis) Como você pôde fazer isso?
PRISCILA – E você pensa que vale a pena?
NATALIA (idem) – Tantos anos, tanto trabalho...
PRISCILA – Diga: vale a pena continuar suportando tudo isto?
NATALIA (idem) – Estava tudo tão arrumado!...
PRISCILA (sobre os papéis) – Bem, arrumado...
NATALIA – E claro que vale a pena continuar...
PRISCILA – Eu não diria tanto...
NATALIA – Agora mais do que nunca.
PRISCILA – E nunca iríamos encontrar...
NATALIA – Com uma única meta: resistir.
PRISCILA – Ah, sim, resistir? Com esses “tanques” trabalhando até de noite? Com os oportunistas caindo em
cima de nós, como corvos, dia sim, dia não? Com os mercenários repartindo o mundo aos pedaços
entre si? Pra não falar da baba dos arrependidos, respingando nos tapetes...

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NATALIA – Quais? Não nos tapetes do vestíbulo...
PRISCILA – E também tem o outro, o teu...
NATALIA – O meu?
PRISCILA – Sim, isso que está você passando. O que vai ser de você?
NATALIA – De mim?
PRISCILA – De você, sim... O que vai ser de você... quando for pequena?
NATALIA – Não te entendo...
PRISCILA – Com certeza nem parou pra pensar. É tão cabeça louca...
NATALIA – Não começa a me insultar, hein?
PRISCILA – Está ficando cada mais jovem, mais jovem... E eu ao contrário, e acabarei morrendo num asilo,
certamente... Mas, e você? Já parou pra pensar? Quem vai cuidar de você quando for pequena?
NATALIA – Agora que você disse...
PRISCILA – Vê como não pensa nas coisas?
NATALIA – Pois, não sei... mas poderia ir... pra um orfanato, por exemplo.
PRISCILA – Um orfanato! Tá louca?
NATALIA – Por que não? Não vejo tanta diferença entre um orfanato e um asilo...
PRISCILA – Não? Como entre o céu e a terra...
NATALIA – Além do mais, ainda falta muito tempo. Enquanto isso...
PRISCILA – Enquanto isso, o que?
NATALIA – Você imagina? Voltar a ser jovem?
PRISCILA – Sim: com espinhas na cara.
NATALIA – Que espinhas?
PRISCILA – Não se lembra? Você dizia que teve acne até os vinte e oito anos.
NATALIA – Até os vinte e oito?
PRISCILA – Você me disse.
NATALIA – Pois não me importa: com espinhas, mas jovem. Imagina!
PRISCILA – E voltar a ser alienada... e depois hippie... e depois católica... Que horror!
NATALIA – Bem, mas antes... comunista sem remorsos!
PRISCILA – Mas com espinhas.
NATALIA – Agora tem uns cremes milagrosos...(estrondo surdo)
PRISCILA – Percebe? Ninguém consegue parar esses daí.
NATALIA (resolvida) – Não? A arte vai pará-los.
PRISCILA – Que arte?
NATALIA – Que arte poderia ser? A nossa, a arte dramática.
PRISCILA – Natalia, antes do orfanato vão te levar ao sanatório...
NATALIA (começa a arrastar para a lateral a manta que contém o monte de papéis) – A arte dramática, Priscila.
O teatro. Vamos voltar a atuar. O Teatro do Fantasma vai ressuscitar... (com a manta) Me ajuda, por
favor... Sim, abriremos o teatro e voltaremos a atuar, Priscila. Você e eu. Sobretudo eu, claro, mas você
também terá algum papelzinho. Você não fazia tão mal, antes de casar-se. Buscaremos peças bem
revolucionárias, monólogos sobretudo, deve haver algum... E veremos se se atrevem a derrubar um
Teatro vivo, um Teatro que funciona. Por funcionará, você vai ver... Abriremos as portas de par em par,
para que entre o povo. Grátis, se for preciso. E se já não existe o povo, como disse o Roberto, pois que
entrem os... os esquecidos, que cada dia são mais e mais. E você verá como vai funcionar. E claro que

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tiraremos Nestor das sombras, mas não vamos colocá-lo em nenhuma estrada, e sim no vestíbulo.
Uma foto sua, bem grande... Ou um busto, que ficaria muito bem, você não acha?... Sem óculos,
claro... E eu...
(Priscila escutou, atônita, o discurso de Natalia e tentou vagamente interrompê-la. Ao desistir, e enquanto
Natalia sai sem deixar de falar, repara em um punhado de papéis que ficou no chão, fora da manta, e
se abaixa para recolhê-los, com atitude abatida)
VOZ DE NATALIA – Eu serei a primeira atriz, é claro... Ou quase a única, que remédio... Mas sem estrelismos,
é só o que faltava. O estrelismo é um desvio burguês, como dizia Nestor. Farei monólogos, mas de
papéis secundários. Inclusive de proletária, apesar de não estar mais na moda. (ao ver os papéis,
Priscila cai ao chão, desmaiada)
VOZ DE NATALIA – Buscaremos autores jovens, que certamente existem, e lhes explicaremos o que eram os
proletários, e contaremos a eles de quando havia exploração e luta de classes , imperialismo, fascismo
e tudo o mais... E pediremos que escrevam obras sobre isso. Monólogos, sobretudo. E algum
papelzinho pra você... E também lhes diremos que alguns personagens podem se chamar “camarada
isto” ou “camarada aquilo”... Que isso não é nada mal, se se faz de coração...
(Natalia entra com a bandeira vermelha. Ao não ver Priscila se detém)
NATALIA – Priscila... Onde você se meteu?... Me deixa aqui falando como... (A vê caída no chão e se assusta.
Corre até ela) Priscila! O que houve? (Deixa a bandeira e tenta levantá-la, muito angustiada) – Priscila,
por favor! O que você tem? Está sentindo mal? Não me diga que te deu alguma coisa! Não, por favor!
Agora não! Priscila, não me deixe sozinha, com todo essa barafunda! (Priscila, sem abrir os olhos,
estende o braço em cuja mão segura uns papéis) Ai, que susto que você me deu! Pensei que...
(Priscila meio se recupera e fica sentada no chão, apoiada em Natalia, sempre com o braço estendido)
Que aconteceu Você desmaiou? (Repara nos papéis) Que é isso aí?
PRISCILA (com voz rouca, quase inaudível) – “O Cerco...”
NATALIA – O que?
PRISCILA (um pouco mais claro) – “O Cerco de Leningrado”...
NATALIA (encolhida de tanto susto) – Não...
PRISCILA – Sim...
NATALIA – “O Cerco...”, não
PRISCILA – “... de Leningrado”, sim.
(Natalia estende a mão e o pega, quase com veneração. Priscila não solta. Ficam ambas segurando e olhando
em silêncio)
NATALIA (começa a ler em voz baixa) “Primeiro ato. A cena representa uma fortificação semidestruída, junto à
fábrica Kirov, na periferia de Leningrado. Ao fundo, à direita, um ninho de metralhadoras. À esquerda e
em parte do proscênio há uma trincheira... Sobre o fundo, à esquerda, se eleva o tubo de um canhão
de longo alcance...”
PRISCILA – Olha, o canhão...
NATALIA – Sim... (continua lendo) “Aqui e ali, sacos de areia e munições. Uma camada de neve suja cobre
quase todo o palco... Ao levantar o pano está amanhecendo. Fiodor Vasilievich, com jaquetão e
máscara, limpa seu fuzil em primeiro plano... Do ninho de metralhadoras sai Ivan Maximovich,
esfregando as mãos cobertas por luvas para combater o frio...”
PRISCILA (interrompe) Lembra dos pobres coitados, nos últimos ensaios, como suavam?
NATALIA – Me diga...

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PRISCILA – Quem eram esses dois?
NATALIA – Não tenho certeza... O de máscara acho que era Pepe... Tive que fazer a máscara sob medida, de
tão cabeçudo que era!
PRISCILA – Continua, continua...
NATALIA (lê) – “para combater o frio. Fiodor Vasilevich olha para ele e volta a...”
PRISCILA – Escuta, como você está conseguindo ler, assim, sem óculos?
NATALIA – É... (continua lendo) ...”E volta a sua ocupação. Ivan Maximovich caminha até o fundo, esquerda,
olha adiante e vai para junto de Fiodor. Olha para a platéia e fala sem dirigir-se a ninguém... Ivan:
Algum movimento por lá?... Fiodor não responde. Ivan: Não. Com certeza, não. Sabem que não
precisam se movimentar. Nem mesmo disparar um tiro...” (O ruído das máquinas volta a ficar evidente.
A luz vai caindo sobre as duas mulheres) Sabem que o frio e a fome acabarão conosco... Fiodor, sem
deixar sua ocupação: Se fosse só isso... Iván: o que você quer dizer?... Fiodor: se fosse só o frio e a
fome, o que acabará conosco... (black-out)
9
(No escuro, o barulho das máquinas aumenta. Quando volta a luz, cessa de súbito e, por contraste, tarda em
perceber-se a volta de Natalia, que segue lendo o manuscrito. É de noite e o palco está pouco
iluminado. Priscila e Natalia estão sentadas em sacos e caixas, uma perto da outra. Atrás delas, a
bandeira vermelha no mastro.)
NATALIA – “...Vão saindo todos lentamente pelo fundo sem olhar para trás. Fica em cena Dimitri Krotkov, que
cobre o cadáver de Andrei Kachurin com uma manta. Levanta-se com dificuldade, apoiando-se em sua
muleta, e olha em volta sem expressão. Entra Vera Yakubovski com sua maleta... Vera: Vamos,
camarada. A caminhonete está a ponto de sair... Dimitri não responde. Vera: O que está olhando? Aqui,
já nada é nosso. Lembra-se do que dizia Andrei? Os vencidos são estrangeiros em sua própria terra...
Ele não acreditava que esse momento chegaria, mas... o momento chegou. Sortudo ele, que não pôde
vê-lo... Dimitri: não pôde vê-lo, mas sonhou com ele... Vera: o que foi que ele sonhou?... Dimitri, depois
de uma pausa: o fim do nosso sonho... Dimitri e Vera se olham enquanto, ao longe, sobe aos poucos a
música de um hino nazista. Pano rápido”.
(Finda a leitura. Natalia e Priscila se olham em silêncio, tão compungidas quanto assombradas. Por fim, Priscila
reage e toma o manuscrito das mãos de Natalia. Folheia as últimas páginas e relê, murmurando, o
final. Natalia se levanta e, maquinalmente, sai por uma lateral)
PRISCILA – Não é possível... Eu tenho a cabeça no lugar... Não sou historiadora, mas tenho a cabeça no
lugar... E sei que Leningrado não caiu... Nem Moscou, nem a União Soviética... E que os nazistas não
ganharam a guerra, certo? (Repara que Natalia não está) Natalia! Não é verdade que os nazistas não
ganharam a guerra e que Leningrado não se rendeu?
NATALIA (entrando) – Juraria que não.
PRISCILA (volta a folhear o manuscrito) – Mas, então, como é possível que... Onde você foi?
NATALIA – Ao banheiro, não aguentava mais.
PRISCILA (entregando-lhe o manuscrito) – Agora que você disse, eu tampouco... (e sai pela mesma lateral) –
Mas, como é possível que na peça... ?
NATALIA – (folheando o manuscrito) E aqui também não figura o autor, percebeu? Continua o mistério... Mas,
de todos os modos, tão ignorante não poderia ser.... por mais anônimo que fosse... Será que
entendemos mal?... Não, não... está muito claro... A traição do comissário Sokolov... A cena do
banqueiro alemão... A do mercado negro... Está tudo muito claro... E a derrota final...

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PRISCILA (entrando) – Claro? Tem certeza? E a cena dos padres amaldiçoando o komsomol, você entendeu?
NATALIA – Bem, sim... Aí reconheço que a coisa se enrola um pouco...
PRISCILA – Um pouco, você diz...
NATALIA – Deve ser algo simbólico, mas...
PRISCILA – (Pegando o manuscrito e folheando-o) – Tudo, tudo é muito simbólico, diria eu... Demais... Por
exemplo, diz Andrei: (lê) “Não defendemos uma cidade sitiada, Dimitri, nem tampouco um país
ameaçado. Nem sequer um sistema. O que está em jogo é uma esperança: a esperança de todos os
condenados da terra...”
NATALIA – Que bonito, não?
PRISCILA – E Dimitri responde: “Sim, Andrei, sim... Mas, para salvar essa esperança, é preciso abrir um
caminho sobre o gelo do lado Ladoga. Uma camada gelada cuja espessura ninguém conhece esconde
abismos insondáveis e que, a qualquer momento, pode quebrar-se... sob o peso de uma tentação...”
(pausa) Entende?
NATALIA – Sim, entendo... (pausa) – Mas não sei o que.
PRISCILA – Esse é o problema.
NATALIA – Que problema?
PRISCILA – Que a peça não trata do cerco de Leningrado...
NATALIA – Ah, não?
PRISCILA – Nem da Segunda Guerra Mundial... É uma peça com mensagem.
NATALIA – Sim, isso fica bem evidente.
PRISCILA – Simbólica, mas de um modo estranho...
NATALIA – É mesmo? É como se...
PRISCILA – Como se...?
NATALIA – Como se... (Se olham em silêncio)
PRISCILA – Não, não é possível.
NATALIA – Claro que não.
PRISCILA – Não, o que?
NATALIA – O que estamos a ponto de pensar. Não e não.
PRISCILA – Não, sério?
NATALIA – De modo nenhum.
PRISCILA – Claro que não.
NATALIA – Não cabe na cabeça.
PRISCILA – É impossível.
NATALIA – Me recuso a pensar isso.
PRISCILA – Eu também.
NATALIA – Rechaçado por unanimidade.
PRISCILA – Quem podia supor, então...?
NATALIA – É, quem poderia imaginar...?
PRISCILA – Faz tantos anos...
NATALIA – Quando tudo era tão...
PRISCILA – Ninguém.
NATALIA – Ninguém poderia suspeitar.
PRISCILA – Todo aquele poderío...

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NATALIA – Que parecia eterno...
PRISCILA – E estávamos todos tão convencidos...
NATALIA – Meio mundo.
PRISCILA – Ou mais... Tão seguros...
NATALIA – Eram verdades como punhos.
PRISCILA – Como punhos, sim.
NATALIA – E nos sentíamos tão unidos...
PRISCILA – Todos éramos tão jovens...
NATALIA – Inclusive você.
PRISCILA – E estava tão perto... a luta final...
NATALIA – Ali na esquina.
PRISCILA (volta ao manuscrito) – Não, não é possível...
NATALIA – Até parecia que a Greve Geral, lembra?, era coisa de dias, de semanas...
PRISCILA (folheando) – Ninguém podia, então, nem imaginar....
NATALIA – Eu havia feito um vestido vermelho, lindo, bem decotado, para a ocasião...
PRISCILA (idem) – Quem pôde escrever isto?
NATALIA – As traças comeram todo o vestido...
PRISCILA – Natalia, me diz, quem você acha que...?
NATALIA (decidida) – Não, Priscila. Não e não.
PRISCILA – Verdade que não?
NATALIA – Nestor não era capaz de escrever... nem um cartão postal.
PRISCILA – Não tinha paciência.
NATALIA – Ator, diretor, empresário....sim. Mas autor...
PRISCILA – Não tinha malícia.
NATALIA – E para escrever esta peça, teria que ter sido, além do mais, adivinho.
PRISCILA – Adivinho? Nestor? Tá.
NATALIA – Ou derrotista, que é pior.
PRISCILA – E Nestor era muito crítico, mas não derrotista.
NATALIA – Ao contrário, sempre estava como... como que esperando o futuro.
PRISCILA – E outra coisa: que uma peça assim, então, era... como uma bomba.
NATALIA – Uma bomba? Por que?
PRISCILA – Não te dói as costas?
NATALIA – Que costas? Nem sinto mais...
PRISCILA – Uma bomba, Natalia. Você imagina, dizer aos nossos que os outros venceriam?
NATALIA – É verdade... e vice-versa.
PRISCILA – Como vice-versa?
NATALIA – Pois dizer aos outros que os nossos iriam perder.
PRISCILA – Claro, ficariam sem inferno...
NATALIA – Lhes arruinava o negócio.
PRISCILA (folheando a peça) – Um bomba, sim... Para uns e para outros...
NATALIA – Não podia ser. Fizeram o autor pagar com... (Emudece. Olha para Priscila, espantada. As duas
olham para cima e soltam um grito lancinante).

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PRISCILA E NATALIA – Não...!!! (Ficam de pé e gritam. No silêncio se abraçam bruscamente. O abraço parece
acalmá-las)
PRISCILA – O que está acontecendo com a gente? Nós já não sabíamos... desde sempre?
NATALIA – Mas não totalmente... Não sabíamos quem, nem por que. Não sabíamos de tudo.
PRISCILA – E agora, já sabemos?
(Começa a soar o fragor surdo das máquinas)
NATALIA – Olha, já começam esses...
PRISCILA – Fala: já sabemos?
NATALIA – Uns quebraram a varanda... os outros deram o empurrão...
PRISCILA – O que está dizendo?
NATALIA – Não vai demorar pra amanhecer...
PRISCILA – Escuta, Natalia? Nós sabemos? Puderam ser um dos nossos... ou os outros...
NATALIA – Os uns e outros, como bons amigos... Não vamos dormir?
PRISCILA – Nós não sabíamos... desde sempre?
NATALIA – Claro... (pega o manuscrito) E quando montarmos a peça, eles saberão também... E saberão o que
sabemos...
PRISCILA – Montar... “O Cerco de Leningrado”? Onde? E como?
(Natalia não responde. Está olhando para a platéia)
NATALIA – Porque virão assistir, tenho certeza. Não aguentam de curiosidade. Bem vestidos, reluzentes, todos
da mesma cor... e juntinhos, como bons amigos...
PRISCILA – Não comece a delirar outra vez, Natalia... Vão derrubar tudo isto...
NATALIA – Veremos se se atrevem, com o Teatro cheio.
PRISCILA – Digo agora, dentro de umas semanas... Com essas máquinas, não ouve?
NATALIA – Eu também digo agora, amanhã mesmo... Sairemos as duas para a rua e faremos uma
manifestação, imagina?
PRISCILA – Não muito, na verdade...
NATALIA – Com panos vermelhos, cravos e uma faixa que diga, por exemplo...
PRISCILA – Por exemplo: “Aposentados de todos os países, uni-vos...”
NATALIA – Não, mulher... Por exemplo: “Agora é a nossa vez”...
PRISCILA – De quem?
NATALIA – Dos que não temos do que nos arrepender, ou algo assim... E você vai ver quanta gente nos
seguirá. E depois, em seguida, começamos a montar “O Cerco...”
PRISCILA – E com quem vamos montar? Você e eu sozinhas? (Vai junto de Natalia e a abraça) Anda, vai
dormir, que é tardíssimo... (Se dirigem a uma lateral)
NATALIA – “E as duas seguiremos adiante. E passará este inverno, e também os demais. Vamos, puxa a
carroça, porque a neve está caindo sobre nós”.
PRISCILA – (acariciando a mão de Natalia) Veja: que fina está ficando sua pele.
NATALIA – É mesmo!? (Saem. Ruído das máquinas. Uma brisa inexplicável faz a bandeira vermelha se mexer.
Cai o pano)

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