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O COMPORTAMENTO E PSIQUISMO DO HOMEM CULTURAL COMO


CONSTITUIÇÃO HISTÓRICA

Aline Hikari Ynoue1


Amanda Caroline Alves2

Beatriz Moreira Bezerra Vieira 3


Jéssica Elise Echs Lucena4
Lorena Vechiatto5
KárilinyTeixeira Faria 6
Silvana Calvo Tuleski7
Tainane do Nascimento Andrade8

O texto que segue é trabalho dos estudos realizados pelo Grupo de Estudos em
Psicologia Histórico-Cultural do Laboratório de Psicologia Histórico-Cultural -
LAPSIHC, da Universidade Estadual de Maringá. O grupo, formado por alunos de
graduação e pós-gradução do curso de Psicologia, principalmente, e de outros cursos,
em seis anos de existência, busca centrar suas atividades em leituras sistemáticas e
discussões a partir de textos clássicos dessa vertente da psicologia. Objetiva-se com
essas atividades o aprofundamento dos pressupostos teóricos da teoria, bem como dos
fundamentos metodológicos de pesquisa adotados pelos autores. As discussões
realizadas em grupo buscam para além da teoria, investigar as possíveis implicações na
atividade profissional e na prática dos profissionais de educação dos fundamentos
estudados e analisados. Durante o ano de 2013, os textos estudados concentram-se no

1
Graduanda em Psicologia pela Universidade Estadual de Maringá e membra do LAPSIHC-UEM
2
Graduanda em Psicologia pela Universidade Estadual de Maringá; bolsista PIBIC/CNPq-FA-UEM e
membra do LAPSIHC-UEM
3
Graduanda em Psicologia pela Universidade Estadual de Maringá; bolsista PIBIC / Cnpq-FA-UEM e
membra do LAPSIHC-UEM
4
Graduação em Psicologia; bolsista PIBIC / Cnpq-FA-UEM e membra do LAPSIHC-UEM
5
Graduanda em Psicologia pela Universidade Estadual de Maringá e membra do LAPSIHC-UEM
6
Mestrandra em Psicologia pela Universidade Estadual de Maringá e membra do LAPSIHC-UEM
7
Doutora em Educação Escolar pela UNESP-Araraquara/SP; Prof. adjunta do DPI-UEM e Coordenadora
do LAPSIHC-UEM
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Graduanda em Psicologia pela Universidade Estadual de Maringá; bolsista PIBIC / CNPq-FA-UEM e
membra do LAPSIHC-UEM
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tema "história do comportamento"; neste eixo, a apresentação, introdução e os dois


capítulos iniciais do livro "Estudos sobre a história do comportamento: o macaco, o
primitivo e a criança", de Luria e Vygotsky (1996), tal como a leitura coletiva e integral
do texto "O método instrumental em psicologia" de Vygotsky (1999), serviram como
principal base para a elaboração deste texto e possíveis problematizações a partir desse
tema.

1. O conceito de homem primitivo para a Psicologia Histórico-Cultural

Enquanto uma teoria que busca aclarar o desenvolvimento da consciência a


partir do estudo da história do comportamento, a Psicologia Histórico-Cultural
contribuiu de forma decisiva para a psicologia moderna quando se propôs a traçar as
diferenças entre os intelectos do homem primitivo e do homem cultural.
Cabe aqui explicitar como os autores dessa escola entendiam o conceito de
primitividade. Luria e Vygotsky (1996), ao longo da obra Estudos sobre a história do
comportamento: o macaco, o primitivo e a criança, apresentam uma compreensão de
desenvolvimento do homem que refuta o pensamento vigente de que a consciência, as
funções intelectuais e o comportamento seriam estruturas estanques, isto é, imutáveis ao
longo da história. Diferentemente dessa posição hegemônica, buscaram esboçar um
estudo que explicitasse como o homem progride ao longo de sua história e ao longo da
história da espécie, delineando a relação dessas duas linhas de desenvolvimento: a
ontogênese e a filogênese, respectivamente.
Compreender o comportamento humano historicamente significa, antes de tudo,
não entendê-lo como simples continuação da evolução da natureza, tendo como
diferencial em relação às demais espécies naturais o aspecto quantitativo, isto é, mais
estruturas, mais órgãos, mais repertórios de comportamento, mais funções. Significa,
portanto, partir metodologicamente do estudo do mais complexo, o ser humano que se
produz na sociedade industrial para entender o menos complexo, os seres humanos que
viveram no passado nas sociedades ditas primitivas e aqueles que, na atualidade, vivem
em condições que se assemelham. Somente assim, para estes autores, é possível
“recompor” a trajetória histórica das transformações que ocorreram no psiquismo
humano e nas funções que o integram, não de um modo meramente quantitativo ou
mesmo descritivo, mas analítico, funcional e qualitativo, considerando-se as leis sócio-
históricas que regem o homem cultural. Na obra Luria e Vygotsky (1996), citada acima,
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Knox (1996) introduz no prefácio a ideia central a respeito do salto do homem atual
comparado ao homem primitivo:

[...] O estágio primitivo ou natural não é substituído por estágio


culturais posteriores; antes, estes sobrepõem-se como andaimes por
sobre aqueles, alterando reestruturando e adaptando esses processos
naturais. Assim, a psicologia de um homem cultural não é superior nem
inferior, mas diferente da de um homem primitivo, assim como a
psicologia de um adulto é diferente da de uma criança, especialmente
uma criança não escolarizada. (KNOX, 1996, p. 25).

Importante ressaltar a influência dos estudos antropológicos de Levy-Bruhl que


embasaram o desenvolvimento pelos autores da proposição de que o intelecto primitivo
não é mais ou menos desenvolvido do que as formas psicológicas superiores do homem
cultural, mas apenas obedecem leis próprias, denominadas pelo antropólogo como uma
ordenação pré-lógica de pensamento. Essa constatação foi possível graças aos inúmeros
estudos e experimentos realizados por Vyogtsky, Luria dentre outros, com grupos
étnicos, povos isolados em aldeias remotas, crianças e adultos analfabetos, ao longo da
década de 1930, na União Soviética (KNOX, 1996, p. 28-29).
Através das pesquisas, Luria e Vygotsky puderam compreender e demonstrar
como o pensamento primitivo se organiza de forma qualitativamente distinta da do
homem "civilizado", ou seja, aquele que vive nos centros urbanos contemporâneos.
Diferentemente do homem cultural, que pensa com base em estruturas lógicas, a
consciência do homem primitivo se ordena obedecendo a lei da participação, isto é, que
não se obriga a refutar contradições (LURIA; VYGOTSKY, 1996, p. 100). Como
veremos adiante, a reestruturação e reordenação das informações advindas da
experiência concreta dos homens em sistemas lógicos será possível graças ao
desenvolvimento e uso de instrumentos psicológicos: os signos culturais. A
preponderância dos instrumentos e signos culturais no desenvolvimento do
comportamento e das capacidades intelectuais superiores, construídas sobre a base das
capacidades inatas, é ponto chave do pensamento desenvolvido pelos autores da escola
Histórico-Cultural da psicologia e será salientado neste artigo. Buscar-se-á explicitar
como essa segunda linha do desenvolvimento do comportamento baseado em leis
constituídas social e historicamente, sobrepõe-se ao comportamento natural, não de
forma a suprimi-lo, mas transformando radicalmente a estrutura intelectual e do
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comportamento dos homens (KNOX, 1996, p. 28), a partir da criação e consolidação do


uso desses signos.
Vejamos que, tomado este eixo de análise como ponto fulcral para a
compreensão do desenvolvimento do comportamento humano como historicamente
constituído, temos a clareza que as formas de comportamento expressas pelo homem
atual não decorrem do curso natural do desenvolvimento biológico. Este último, o
desenvolvimento biológico em si mesmo não produziria a desigualdade de aquisições
comportamentais ou de domínios de instrumentos e signos, bem como não explicaria as
diferenças de desenvolvimento tecnológico, artísticos, entre outras, nas diferentes
sociedades e entre grupos em uma mesma sociedade. Para isso, é necessário explicar
como a humanidade produziu instrumentos técnicos e porque o fez e, em conjunto com
estes, como e porque produziu outro tipo de linguagem, a linguagem simbólica. A
unidade dialética de instrumento e signo que se faz presente como princípio explicativo
para entender o comportamento humano cultural e historicamente formado é o que
objetivamos evidenciar ao longo do artigo.
Tomando como base a lei da internalização exposta por Vygotsky (2007, p. 56),
a qual elucida como as funções psicológicas superiores aparecem duas vezes ao longo
do desenvolvimento: enquanto função interpsíquica inicialmente, nas atividades
coletivas e sociais e, num segundo momento, como propriedades internas do
pensamento, caracterizando-se como função intrapsíquica, a importância do estudo do
percurso filogenético para o entendimento do comportamento do homem na atualidade
resguarda no esclarecimento e compreensão das leis do desenvolvimento histórico do
comportamento humano, a partir do momento em que os homens não mais mantém uma
relação passiva com a natureza, e sim a modificam e se transformam ativamente por
meio do trabalho, podendo assim, recriar internamente as relações externas, a partir da
produção e internalização de instrumentos técnicos e psicológicos criados socialmente.
Posto isso, ao tomar as leis sócio-históricas que regem a história do
comportamento humano, que permitiram o redimensionamento das funções psíquicas,
para além das leis biológicas, os autores nos fornecem base teórica para refletirmos
sobre como a sociedade atual estrutura as relações sociais de produção, a
complexificação do mundo do trabalho e dos processos de alienação e formação da
consciência.
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2. História do comportamento: a criação de signos e o salto qualitativo do homem


primitivo ao homem cultural
Compreende-se a partir da Psicologia Histórico-Cultural que os homens,
enquanto únicos animais dotados de capacidade para produzir e transmitir
conhecimentos ao longo da história, só foram capazes de tornarem-se humanos por
meio da vida em sociedade, no interior da cultura produtora e produzida por eles. Nesse
sentido, o processo de hominização, exposto por Leontiev (2004, p. 281), é de caráter
único, sendo que ao longo dele os homens transpõem os limites das leis naturais e
biológicas que os embasam e as superam por meio de leis sócio-históricas. Isso só foi
possível por conta do trabalho, materializado na produção de instrumentos técnicos,
como as ferramentas de trabalho, e psicológicos, "a linguagem, as diferentes formas de
enumeração e cálculo”, como resume Vygotsky, “todo tipo de signos convencionais"
(1999, p. 94). A produção dessas duas ordens de instrumentos permitiu aos homens
desenvolverem habilidades manuais e intelectuais, valores, regras, etc. Em suma, os
homens são os únicos seres capazes de criar no sentido histórico e transmitir suas
criações a outros da espécie, para além das leis genéticas ou hereditárias. Para tal, criam
e fazem uso desses instrumentos técnicos, entendidos como ferramentas desenvolvidas
pelo homem que modificam a natureza externa de forma direta. Já os instrumentos
psicológicos orientam o comportamento do homem de maneira distinta: atuam como
meio de domínio do próprio comportamento, modificando, assim, a relação que o
homem tem com os instrumentos técnicos, operando mudanças na natureza interna ou
psiquismo, mas de maneira indireta. Indo de acordo ao entendimento de Vigotski (1999,
p. 93-94), o crescente domínio das funções psicológicas, que alcança patamares
superiores (mediado por instrumentos psicológicos) é intrínseco ao crescente domínio
que o homem tem sobre os instrumentos técnicos: ao mesmo tempo em que modifica a
natureza externa pelo instrumento técnico altera a sua natureza interna (seu psiquismo)
pelo conhecimento proporcionado na produção e uso do instrumento, bem como pela
ação coletiva de trabalho mediada pela linguagem simbólica.
Do exposto, torna-se claro que o homem como ser cultural não nasceu dotado
com capacidades embrionárias para andar, falar uma língua, escrever, utilizar um
instrumento como um computador ou mesmo criar uma obra de arte. Estas produções
humanas se desenvolveram ao longo da história a partir das necessidades de
manutenção da vida na filogênese e, para cada ser humano singular (ontogênese), se
coloca como uma mera possibilidade. A realização ou não da possibilidade dada pelo
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máximo desenvolvimento alcançado pelo gênero humano só se concretizará em cada


indivíduo singular a partir de seu nascimento na relação com outros homens. É por meio
de sua atividade social, pela utilização de instrumentos técnicos que atuam como
extensões de nosso corpo orgânico e pela utilização dos signos que ampliam nossas
funções psíquicas naturais, afetando e orientando o seu próprio comportamento.
Essa passagem resguarda a ideia de que o desenvolvimento da sociabilidade
humana coloca o homem em condições de existência particularmente complexas,
alterando tanto o curso de sua própria história como também da espécie (filogênese). O
homo sapiens constitui a etapa essencial, tem-se, aqui, o homem atual ou "acabado", nas
palavras de Leontiev (2005, p. 281), uma vez que se liberta das leis puramente
biológicas e passa a ser regido pelas leis sócio-históricas, principalmente.
Complementando esse pressuposto, Vygotsky no texto A transformação socialista do
homem, de 1930, aponta que no curso do desenvolvimento histórico do homem pouco
se alterou no que se refere ao tipo biológico; o fato mais notável não denota uma
paralisia da evolução biológica e sim um retrocesso no que diz respeito ao seu papel
nesse processo, dando protagonismo às novas e mais complexas leis que governam o
desenvolvimento social do homem (2004, p. 02).
Posto isso, a compreensão da natureza do homem enquanto ser social dotado de
traços intelectuais essencialmente humanos - a produção e transmissão de instrumentos
técnicos e psicológicos - não se faz completa sem a análise de seu desenvolvimento
histórico, isto é, desde sua pré-história, dos estágios "pré-lógicos", nas palavras de
Levy-Bruhl citado por Vygotsky (1996, p. 100), do seu intelecto e comportamento. Os
estudos sobre a conduta e os mecanismos intelectuais do homem primitivo realizados
por Vygotsky e Luria, principalmente, fornecem-nos rico material de estudo sobre o
assunto. Os autores se valeram de pesquisas e experimentos com grupos étnicos, povos
isolados em aldeias remotas, crianças e adultos analfabetos, buscando explicar a
aparente superioridade do homem cultural em comparação ao homem primitivo
valendo-se do método dialético. Deste modo, vão além da descrição dos aspectos
intelectuais característicos de cada grupo, revelando as transformações das funções
intelectuais ocorridas em conformidade com as necessidades reais de existência
vivenciadas, isto é, demonstrando como a experiência prática ou atividade vital humana
(trabalho) forneceu subsídios para o desenvolvimento de recursos artificiais de conduta
que os auxiliaram a ultrapassar as barreiras naturais de vida.
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Luria e Vygotsky, em sua obra Estudos sobre a história do comportamento...


(1996, p. 103), quando tratam do desenvolvimento biológico do homem primitivo
afirmam que seu processo de transformação em homem cultural não coincidem, sendo
cada um deles sujeitos a leis específicas de desenvolvimento. No que tange às funções
intelectuais, estas possuem toda uma especificidade quando tomadas em comparação às
funções psicológicas superiores do homem cultural. Vygotsky (1996, p. 317) ressalta
que assim como outros sistemas do nosso organismo, as funções intelectuais não são
simples, homogêneas ou elementares, ao contrário, fazem parte de um sistema “(...)
constituído por uma série de funções e elementos de estruturas complexas e de
complexas relações recíprocas”. Sendo assim, justifica-se, também, a complexidade de
medir-se o desenvolvimento intelectual.
De acordo com Vygotsky (1996, p. 316), o desenvolvimento cultural amplia
significativamente as potencialidades naturais do indivíduo, melhor dizendo, é por meio
da apropriação da cultura que o desenvolvimento das funções psicológicas ocorre.
Nesse sentido, temos que as habilidades naturais são potencializadas por meio do
desenvolvimento cultural, o que promove a diferenciação entre os indivíduos.
Com o desenvolvimento e o avanço da história da humanidade, o homem passou
a desenvolver instrumentos para uso intencional, os quais são “divididos” em dois tipos:
instrumentos técnicos e instrumentos psicológicos, estes últimos também denominados
de signos. Enquanto os instrumentos técnicos modificam a natureza de maneira direta,
os instrumentos psicológicos, os signos, o sistema numérico, a linguagem, etc.,
transformam o comportamento do homem, modificando, por consequência, a relação
que este tem com os instrumentos técnicos e assim transformando, de forma indireta, a
natureza. Nessa direção, Vygotsky (1999, p. 97-98) pontua que os instrumentos técnicos
fazem mediação entre a ação humana e a natureza, permitindo o uso das leis naturais
pelo homem a seu favor, isto é, a favor da humanidade como todo. Diferem dos
instrumentos psicológicos por estes serem mediações da ação humana sobre si mesma;
isto é, do homem agindo sobre outros homens e sobre si mesmo, transformando a
própria natureza. A partir da inserção de instrumentos psicológicos no comportamento,
ocorre a modificação de toda a estrutura psíquica e suas propriedades, dando origem ao
que Vygotsky (1999, p. 94) chamou de ato instrumental. Essa nova forma de adaptação,
que parte do uso de signos das mais variadas ordens, desde o simbolismo algébrico até
as obras de arte, configura-se como um produto da evolução histórica da humanidade.
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Sendo o ato instrumental compreendido enquanto domínio artificial dos


processos psíquicos naturais (regidos pelas leis do reflexo condicionado, próprias do
tecido neural), o próprio processo de desenvolvimento psíquico se altera. Ao invés de
ocorrer por si só, também este processo natural deverá submeter-se a uma forma
artificial de controle: a educação. Isso significa que o processo educativo, tanto na
ontogênese (desenvolvimento da criança ao adulto) quanto na filogênese (no
desenvolvimento da história da cultura humana), deve ser visto como reestruturação
artificial das funções naturais do comportamento, isto é, o desenvolvimento das
capacidades de se dominar os instrumentos psicológicos que tem ao seu alcance,
equipando-se e reequipando-se, isto é, transformando-se. (VYGOTSKY, 1999, p. 99).
Voltando ao desenvolvimento das funções psíquicas e como elas aparecem de
forma qualitativamente distinta no homem primitivo, tomemos como exemplo disso a
preponderância da memória enquanto função reguladora do intelecto e comportamento
desse estágio do comportamento (LURIA; VYGOTSKY, 1996, p. 107). Ela se
caracteriza por seu caráter topográfico, o que significa que trabalha a favor do
armazenamento do maior número de detalhes possível da experiência. Se compararmos
a mesma função no homem cultural, percebemos que a experiência deste é
decomponível, "reduzida”, em forma de conceitos abstratos, o que diminui a
necessidade de armazenar grande número de impressões concretas. Essa singularidade
qualitativa da memória do homem primitivo (mais próxima à memória natural ou inata)
relaciona-se com a natureza funcional dela. Por não terem escrita, por necessitarem se
localizar por meio de rastros, etc., tudo isso leva à necessidade de desenvolver a
acuidade dos órgãos da percepção e também a memória fotográfica ou literal de traços.
Outro aspecto salientado pelos autores aponta para a relação entre essa especificidade da
memória primitiva e o desenvolvimento ulterior da memória no homem cultural. Trata-
se do caráter eidético, presente também nos primeiros estágios do desenvolvimento da
memória na criança. Na memória eidética, a qual foi explicitada por Vygotsky, a pessoa
é capaz de "reproduzir visualmente de maneira literal um objeto ou figura previamente
concebidos imediatamente após vê-los [...]" (1996, p. 110). Nessa altura, existe a
unidade entre a percepção e a memória que, futuramente, dará lugar a duas funções
específicas, a percepção estável e a memória propriamente dita. O desenvolvimento
dessa função característica ao longo da história se dá quando as condições concretas
permitem ao homem que comece a utilizar a memória não como força natural, mas
como função dominada por ele, como uma função própria.
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Ao acumular experiência psicológica e conhecimentos sobre as leis que regem a


natureza e seu próprio comportamento, o homem opera transformações em sua própria
natureza, começa a incorporar essas leis, modificando qualitativamente o uso que faz da
memória (LURIA; VYGOTSKY, 1996, p. 114). Isso se deve à capacidade de utilizar
instrumentos que o ajudam a lembrar figuras mais complexas, isto é, a criação de signos
artificiais, de instrumentos auxiliares da memória. Desse modo, o uso de signos e
objetos como meio de rememoração consistem num dos primeiros estágios do
desenvolvimento da linguagem, calcada no desenvolvimento da memória natural em
mnemotécnica ou técnicas para se recordar. A passagem da memória mnemônica,
natural, para a memória mnemotécnica, isto é, proveniente do uso desses signos
auxiliares, consiste na principal mudança do desenvolvimento cultural da memória
humana e reestruturação das outras funções intelectuais, apontam os autores (1996, p.
116-117). Isso permite que o homem ascenda a um nível lógico das operações da
memória, isto é, o patamar do pensamento conceitual e não mais limitado a sua
experiência prática imediata. Essa nova configuração da memória humana é
caracterizada pelo fato de que os homens passam a se utilizar ativamente de signos para
lembrar algo. "Na forma elementar alguma coisa é lembrada; na forma superior os seres
humanos lembram alguma coisa", exemplifica Vygotsky (2007, p. 37).
Chegamos, assim, ao ponto crucial do desenvolvimento das funções psicológicas
superiores e de como isso ocorre nos estágios primitivos, a partir do estudo sobre a
história do comportamento. É justamente essa incorporação como recurso próprio do
uso dos instrumentos materiais e simbólicos ora desenvolvidos socialmente que
permitiu ao homem tornar-se capaz de utiliza-los na sua ação ante a natureza. Assim
sendo, as funções psicológicas, como a memória, atenção, percepção, dentre outras,
antes guiadas apenas pelos instintos naturais e biológicos passaram a ser mediatizadas
por instrumentos psicológicos, os quais permitiram o planejamento e a orientação da
ação. A capacidade de produzir e transmitir signos, inicialmente com função social
(interpsíquica) e posteriormente com a incorporação desses instrumentos (função
intrapsíquica), permitiu ao homem que seu desenvolvimento intelectual tomasse
direções completamente novas, rumo ao desenvolvimento cultural de si e da própria
humanidade.

Tudo o que a humanidade enculturada lembra e conhece hoje em dia,


toda a sua experiência acumulada em livros, vestígios, monumentos e
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manuscritos, toda essa imensa expansão da memória humana - condição


necessária para o desenvolvimento histórico e cultural do homem -
deve-se à memória externa baseada em signos. (LURIA; VYGOTSKY,
1996, p. 120).

Ainda sobre o papel determinante dos instrumentos psicológicos no


desenvolvimento do comportamento do homem, a produção de signos auxiliares da
memória e sua consequente transformação de função social para função interna
influenciou de maneira semelhante a relação entre as outras funções psicológicas e o
comportamento do homem primitivo. Por conta desse desenvolvimento, ao longo da
história, a linguagem tipicamente pictórica presente no homem primitivo dá lugar às
generalizações e ao pensamento abstrato, comuns ao desenvolvimento cultural do
homem. O homem cultural é mais desenvolvido e ao mesmo tempo menos desenvolvido
em outros aspectos comparado ao homem primitivo graças ao desaparecimento do
grande número de detalhes concretos, presente na linguagem primitiva. Em outras
palavras, os ganhos alcançados com a subordinação voluntária dos processos naturais
(percepção, memória, atenção, etc.) que podem ser utilizados intencionalmente,
produziu ao mesmo tempo a involução de processos naturais instintivos como acuidade
visual, olfativa, auditiva, memória fotográfica, etc. Conforme o ser humano passa a
organizar a produção coletiva da vida, determinadas capacidades se forjam e
desenvolvem e outras perdem força, na mesma proporção do surgimento e
desparecimento de formas de trabalho e instrumentos a elas ligadas. O mesmo se dá
quando se analisa a relação de dependência entre a linguagem e as situações concretas
que, por exemplo, se expressa na construção gramatical do homem primitivo; ele
descreve nos mínimos detalhes as representações na ordem de sua conexão com a
realidade. A natureza concreta da linguagem determina o caráter detalhista dos
significados das palavras (com muitas palavras e termos) e se vinculam à organização
das operações mentais, tal como o domínio de ferramentas estrutura o trabalho manual
do homem (LURIA; VYGOTSKY, 1996, p. 121). Esta forma de linguagem na qual a
palavra funciona como um referencial objetal, isto é, como o nome de uma família, por
não possuir a função generalizadora, conceitual, se desenvolve como necessidade posta
pela criação e modo de utilização de instrumentos técnicos, que quando se tornam mais
complexos põem a condição necessária para a palavra alcançar a nova função, de
categorização. Assim, a palavra passa de função nominativa, de se “batizar” um novo
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instrumento com um nome, para função categorial, quando a quantidade de


instrumentos passa a sobrecarregar a memória humana e, desta forma, cria-se a
necessidade de uma nova função para a palavra: de estrutura generalizadora, nascendo o
conceito.
Vê-se, portanto, mais uma vez a comprovação da função da linguagem enquanto
organizadora das operações práticas e mentais, tanto no homem primitivo quanto no
homem cultural. As mudanças funcionais qualitativas da linguagem acompanham as
mudanças qualitativas da atividade de trabalho humano. No mesmo grau que o domínio
e criação de ferramentas determinam e estruturam o trabalho do homem, a linguagem
simbólica organiza o pensamento e demais funções (LURIA; VYGOTSKY, 1996, p.
126).
Ao longo do desenvolvimento cultural da sociedade, o pensamento e a
linguagem do homem se modificam a partir das necessidades reais, uma vez que vai
sendo cada vez menos imperativo armazenar todos os detalhes e atributos concretos da
experiência e dos objetos. A funcionalidade das palavras torna-se mais estável, nelas se
cristalizam em conceitos e generalizações. O ponto crucial no que tange o
desenvolvimento da palavra foi atingido no momento em que o pensamento passa a ser
organizado por complexos, isto é, em que a palavra aparece como um signo associativo,
quando expressa conjuntos de objetos individuais. Esse é o traço mais essencial que
difere o pensamento primitivo do cultural e depende sempre das necessidades reais e da
aprendizagem.

O progresso principal do desenvolvimento do pensamento assume a


forma de uma passagem do primeiro modo de utilizar uma palavra
como nome próprio, para o segundo modo, em que uma palavra é signo
de um complexo e, finalmente, para o terceiro modo, em que a palavra é
instrumento ou recurso para desenvolver o conceito. (LURIA;
VYGOTSKY, 1996, p. 133).

Novamente, a criação de signos toma um sentido fundamental na vida do


homem primitivo, uma vez que inicia a transição para um modo absolutamente novo de
pensamento, quando se depara com uma tarefa que ultrapassa seus recursos naturais
disponíveis, passando a organizar operações internas (memorização, contagem, etc.) a
partir de instrumentos externos. Como já dito, o desenvolvimento de mnemotécnicas
concretas permite que o homem primitivo extrapole os limites da percepção imediata e
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natural. Nessa direção, salienta-se que a transformação qualitativa das funções


psicológicas no homem primitivo não só influencia as operações mentais, como
memória, pensamento e linguagem; mais que isso, traz toda uma revolução em seu
comportamento.
De maneira análoga ao domínio do homem sobre a natureza, possível graças ao
aperfeiçoamento da sua tecnologia, isto é, da criação de instrumentos que ultrapassam
os limites do desenvolvimento de seus órgãos naturais, a preponderância do uso dos
signos e métodos externos desenvolvidos em dadas condições sociais também
redimensionam as funções psíquicas naturais. No entanto, vale ressaltar que tais
mudanças são dependentes das necessidades técnicas e econômicas presentes no
contexto de vida dos diferentes grupos humanos (LURIA; VYGOTSKY, 1996, p. 143).
A vivência e as atividades concretas que determinado grupo social ao qual o indivíduo
pertence em dado momento histórico são fatores decisivos para o aperfeiçoamento dos
comportamentos e funções psicológicas chamadas tipicamente humanas (memória
mediada, pensamento abstrato, etc.). Ao longo desse desenvolvimento, comportamentos
exteriores diferenciam-se dos interiores, isto é, comportamentos que levam ao controle
da natureza se diferenciam daqueles destinados a obter controle sobre a própria conduta.
Enquanto no homem primitivo os domínios, subjetivo e objetivo, ainda apresentavam-se
mesclados, a ascendência do homem cultural sobre a natureza permite-o conceber e
diferenciar as leis naturais e as leis do próprio pensamento, explicam os autores:

[...] A diferenciação completa entre o objetivo e o subjetivo só se torna


possível com base num sistema desenvolvido de técnicas que ajudam o
homem, em sua ascendência sobre a natureza, a tornar-se conhecedor
dele como algo extrínseco, que possui suas próprias leis. Na esfera de
seu próprio comportamento, à medida que acumula determinada
experiência psicológica, o homem se torna consciente das leis que
regulam aquele comportamento. (LURIA; VYGOTSKY, 1996, p. 145).

Dominar as leis da natureza externa, como, por exemplo, o conhecimento sobre


as variações climáticas, propicia maior condição ao ser humano para coordenar o
plantio de alimentos, a construção de abrigos. Ao conhecer as leis naturais e pô-las a seu
favor, o ser humano passa a ser capaz de diferenciar-se da natureza e saber até que
ponto é capaz de pô-la sob seu controle, ao mesmo tempo, (re)conhecer-se como ser
humano, compreendendo o seu próprio comportamento e dos demais produz um
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processo análogo. Os experimentos realizados por Luria (1992, p. 66) com grupos de
sujeitos iletrados e de baixa escolarização em aldeias e assentamentos do Uzbequistão
complementam a tese de que as atividades sociais determinam o desenvolvimento das
funções psicológicas e também o comportamento. A partir disso, o autor conclui que
discrepâncias e variações nos níveis culturais operam mudanças na organização da
atividade cognitiva dos indivíduos, fato este que se relaciona às mudanças na
organização social do trabalho e de suas vidas. O autor cita vários exemplos de pessoas
iletradas que só viam a realidade de acordo com a sua vida prática imediata, de acordo
com sua experiência, sendo assim, dotadas de uma organização distinta de pensamento
em relação ao do homem cultural. Luria (1992, p.72) concluiu com esses experimentos
a especificidade desse tipo de pensamento primitivo, uma vez que apresenta-se como
gráfico funcional ou concreto, o que indica que esses homens pensam imitando sua
atividade concreta de trabalho e não teorizando a respeito dela de forma lógica e calcada
num sistema linguístico-conceitual, como pensa o homem cultural. Trata-se, então, do
que Vygotsky chamou de uma consciência relativa dependente ao modo de vida. Com
esta pesquisa os autores demonstraram que o domínio de uma habilidade cultural
complexa como a linguagem escrita revoluciona as funções psicológicas, elevando-as a
patamares superiores, propiciando àqueles que dela se apropriam a condição de
raciocinar para além da experiência imediata ou da experiência vivida, podendo
raciocinar e criar a partir da experiência de outras pessoas desconhecidas, registrada e
condensada dos materiais escritos.
De acordo com o autor, “novas experiências e novas ideias mudam o modo pelo
qual as pessoas usam a linguagem, de maneira que as palavras se tornem o principal
agente de abstração e generalização.” (LURIA, 1992, p. 78). Isso aponta que em
condições de vida e sociedade menos complexas, uma forma de pensamento mais
"funcional" pode ser suficiente para a reprodução da existência humana, fato que não se
reproduz numa sociedade altamente complexa como a industrial. Nesse contexto, essa
forma de pensamento impediria a compreensão e a possibilidade de domínio das
relações de produção existentes em sua complexidade.
Nesse sentido, ao passo que o homem atinge um nível superior de compreensão
das leis naturais e de controle sobre a natureza por meio do trabalho, sua vida social e
sua atividade concreta passam a exigir novos requisitos, mais necessários e elevados
para o controle de sua conduta. Nesse curso, o desenvolvimento da linguagem, do
cálculo, a escrita e outros recursos técnicos e conhecimentos da cultura permitem que o
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homem ascenda a um nível superior no que diz respeito ao seu comportamento, a uma
dimensão totalmente cultural de sua conduta (LURIA; VYGOTSKY, 1996, p. 142).
Assim, é necessário ressaltar que o desenvolvimento cultural se expressa por
meio de um desenvolvimento diferenciado que vai além do processo de maturação
biológica e da simples assimilação mecânica de hábitos externos, possuindo, assim suas
próprias leis e níveis. Além disso, tem-se que a idade cultural do homem não
corresponde a idade intelectual e nem à idade cronológica; desse modo, dois indivíduos
com a mesma idade cronológica e intelectual podem possuir idades culturais distintas,
assim como, um adulto e uma criança podem apresentar a mesma idade cultural
(VYGOTSKY, 1996, p. 220).
O exposto vai ao encontro do que é desenvolvido por Leontiev (2004, p. 95) em
sua obra O desenvolvimento do psiquismo em que trata do desenvolvimento histórico da
consciência. Como já dito, a tese compartilhada pelos autores da escola Histórico-
Cultural da Psicologia é a de que a consciência não é imutável, biologicamente
determinada, mas possui traços característicos em dadas condições históricas e
concretas. Nessa perspectiva, o desenvolvimento do psiquismo, logo, do
comportamento, ao longo da história, é dependente de um processo de transformações
qualitativas.
A partir disso, Leontiev (2004, p. 108) propõe que um traço característico de um
estágio primitivo da consciência, a qual se relaciona com as primeiras etapas do
desenvolvimento coletivo dos homens, é que nessa fase o “consciente é estritamente
limitado” à percepção. Isso quer dizer que os homens nesse estágio ainda têm pouca
compreensão de sua relação com a coletividade, de que vivem em sociedade. Segundo o
autor, esse estágio corresponde à unidade entre duas esferas da vida do homem
primitivo: trata-se da coincidência entre a esfera das “significações linguísticas”, isto é,
das relações socialmente mediatizadas que o homem mantém com a natureza, e a esfera
das relações instintivas, dos comportamentos biológicos que mantém com a natureza. O
salto qualitativo que permite ao homem romper com essa unidade, como posto
anteriormente, é justamente o aparecimento e o desenvolvimento do trabalho, bem
como sua divisão social dentro da vida coletiva, tornando possível o aparecimento de
uma nova consciência de acordo com as novas relações sócio-econômicas estabelecidas
(LEONTIEV, 2004, p. 122). Nesse sentido, segundo o autor, isolam-se duas atividades
do trabalho, a espiritual e a manual:
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A primeira transformação da consciência, engendrada pelo


desenvolvimento da divisão social do trabalho, consistiu, portanto, no
isolamento da atividade intelectual teórica. Isso é acompanhado de uma
transformação na estrutura funcional da consciência, no sentido em que
o homem toma consciência também dos encadeamentos interiores da
sua atividade, o que lhe permite atingir o seu pleno desenvolvimento.
[...] A segunda transformação da consciência é a mudança de estrutura
interna. Ela se releva de maneira evidente nas condições da sociedade
de classe desenvolvida. (LEONTIEV, 2004, p. 128).

O mais essencial exposto pelo autor acima e que está de acordo com o que foi
desenvolvido ao longo deste texto, é que não se pode considerar a consciência como
produto de um processo individual, descolado de seu desenvolvimento social. O
processo de desenvolvimento da consciência descrito, pelo contrário, só se faz a partir
da apropriação pelos homens das significações, conhecimentos e representações
elaboradas social e historicamente por outros homens. “A sua consciência individual só
pode existir nas condições de uma consciência coletiva [...]” (LEONTIEV, 2004, p.
139). Uma vez que os homens se deparam com condições concretas que lhes permitem
controlar não somente os fenômenos da natureza, a partir de suas atividades práticas,
mas também o próprio comportamento, passam a dominar as leis sócio-históricas, as
significações construídas socialmente, apropriando-se ao mesmo tempo, do sistema de
ideias e conhecimentos que nelas resguardam. Esse processo reflete e é influenciado
pelo comportamento do homem, pela sua conduta social; são essas relações sociais
objetivas que criam todas as particularidades inerentes ao comportamento e à
consciência do homem, desde seu caráter mais anterior e primitivo até sua ascendência à
qualidade de cultural. “Assim se caracteriza o psiquismo humano na sua verdadeira
essência social”, conclui Leontiev (2004, p. 147).
A natureza social do psiquismo humano, do desenvolvimento histórico do
comportamento do homem é explicada pela lei da internalização, desenvolvida por
Vygotsky (2007, p. 55). Esse processo aponta para a série de transformações que o uso
dos signos provoca na natureza do homem, um vez que constitui um meio de orientação
interna, ou seja, da atividade interna dirigida para o controle do próprio indivíduo.
Tendo como pressuposto que o processo de internalização refere-se a uma reconstrução
interna de operações externas, essa lei é de suma importância para a compreensão do
curso do desenvolvimento das funções psicológicas superiores, decorrente da utilização
dos signos. Além da mudança de curso, da inserção de um novo elemento produzido
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pelo próprio homem, intermediando as suas ações, o processo de internalização das


operações externas também possibilita a passagem de processos interpsíquicos para
processos intrapsíquicos. Isso se evidencia nos exemplos dados pelos autores referentes
à menemotécnica, como o uso de marcas externas para se recordar, ou pedras e gravetos
para contar, que depois passam a ser desnecessárias, pois os processos passam a ocorrer
apenas mentalmente. Isso significa que se ao longo do desenvolvimento filogenético
estas transformações produzidas historicamente levaram milhares de anos, ao longo do
desenvolvimento ontogenético, da criança que hoje nasce em um meio social no qual
este desenvolvimento já se tornou patrimônio cultural da humanidade, trilhará este
caminho rapidamente desde que socialmente bem conduzida. Assim, em cada indivíduo
em particular a lei da internalização se fará presente, pois as funções psicológicas
aparecem primeiramente a nível social (interpsicológico) para num segundo momento
configurarem uma função interior (intrapsicológica), daí a importância dos processos
formativos intra e extraescolares.

3. O desenvolvimento das funções psicológicas superiores e a coexistência de


homens primitivos e culturais na sociedade atual
A tese desenvolvida ao longo desse artigo de que o advento dessa nova lei geral
do desenvolvimento, isto é, a superação das leis puramente biológicas e naturais pela
incorporação das leis sócio-históricas, permitiu-nos atestar a ideia de que a
complexificação da consciência do homem vem acompanhada da complexificação de
sua realidade, através do seu trabalho. A partir disso, a compreensão desse processo que
possibilitou a ascensão do homem primitivo ao patamar cultural do psiquismo, através
do estudo da história do comportamento, aponta para uma reflexão sobre a sociedade de
classe atual, bem como as possibilidades de desenvolvimento das potencialidades
psíquicas dos homens desse tempo inerentes a tal organização social. Pois, "como um
indivíduo só existe [...] como um membro de algum grupo social em cujo contexto ele
segue a estrada do desenvolvimento histórico”, compreende Vygotsky (1930/2004, p.
02), "a composição de sua personalidade e a estrutura de seu comportamento reveste-se
de um caráter dependente da evolução social cujos aspectos principais são determinados
pelo grupo".
Transpondo esse pensamento para a sociedade atual organizada sobre uma
complexa base de produção, a estrutura do comportamento do homem, como vimos, não
é formada por relações somente diretas para com os objetos, mas mediadas por
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complexos produtos materiais e espirituais (VYGOTSKY, 1930/2004, p 02), e essa


formação depende de forma determinante da organização social vigente: a sociedade de
classes. As contradições postas pelo modo de produção vigente, portanto, têm efeitos
decisivos na estrutura psíquica dos homens desse tempo histórico, na sua formação e, ao
mesmo tempo (de)formação. Essas contradições podem explicar o desenvolvimento em
maior ou menor grau das potencialidades intelectuais dos homens, isto é, a coexistência
de diferentes graus de desenvolvimento das funções psíquicas, conforme os grupos e
classes sociais. Em última instância, a existência simultânea de pensamentos mais ou
menos primitivos e mais ou menos culturais em sua complexidade. Apoiando-se em
Marx, Vygotsky (1930/2004, p. 05) aponta "como o trabalho, ou a indústria de larga
escala, em si mesmos, não levam necessariamente à mutilação da natureza humana [...]
mas, pelo contrário, contêm dentro de si mesmos possibilidades infinitas para o
desenvolvimento da personalidade humana". O trabalho, como vimos, é elemento
fundante do ser social, é o princípio da própria humanização do homem, porém, na
sociedade de classes torna-se a mutilação da natureza social humana, produz o
desenvolvimento parcial e unilateral do psiquismo. Do mesmo modo a indústria que
produz bens em larga escala pode ser a liberação do homem da dura atividade física do
trabalho braçal, propiciando a ele o tempo livre necessário para o desenvolvimento de
novos interesses e habilidades artísticos, literários, científicos, uma vez que suas
necessidades básicas poderiam ser satisfeitas com os produtos produzidos para todos e
em grande quantidade. No entanto, no modo como se organiza a sociedade capitalista,
as condições concretas de humanização e de liberação existentes no trabalho e na
indústria não se realizam para todos, mas apenas para uma pequena minoria, devido à
divisão social do trabalho.
Não cabe ao momento analisar de modo mais detalhado como e em quais
medidas a atual organização capitalista da sociedade e do trabalho favorece ou prejudica
o desenvolvimento do pleno potencial humano no que tange ao domínio das funções
psicológicas superiores e ao domínio da conduta dos indivíduos. Permitimo-nos, no
entanto, problematizar que, se a internalização dos instrumentos técnicos e psicológicos
permite a superação por incorporação de estágios anteriores do desenvolvimento das
funções psíquicas, isto é, a passagem do comportamento regido por leis naturais para o
domínio dos comportamentos a partir de leis socialmente construídas. Se este processo,
ainda, tal como o desenvolvimento das forças produtivas dentro de determinada ordem
social corresponde a determinado nível de desenvolvimento humano. Podemos concluir
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que essa relação resguarda a possibilidade de construção de uma nova configuração das
relações sociais de produção que possibilite o desenvolvimento pleno das capacidades
intelectuais de todos os homens, a ascensão ao que há de mais desenvolvido pelo gênero
humano. Nas palavras de Vygotsky (1930/2004, p. 09), "uma mudança fundamental do
sistema global destas relações, das quais o homem é uma parte, também conduzirá
inevitavelmente a uma mudança de consciência, uma mudança completa no
comportamento do homem". Esta mudança citada pelo autor, não podemos esquecer, só
pode ser realizada pelos próprios homens social e coletivamente organizados.
Concluímos com a assertiva irrefutável e compartilhada por aqueles que tomam
como base para o seu trabalho como psicólogo, como educador, como estudante ou
pesquisador, os estudos da vertente histórico-cultural: de que a educação assume papel
central na transformação do homem, no que tange o desenvolvimento do domínio
artificial dos comportamentos naturais. Entendemos, pois, que o ser humano não nasce
humanizado, mas se humaniza nas e pelas relações sociais, pois o processo de sua
constituição é regido pela lei já descrita da internalização. Do exposto, fica evidente que
a luta por condições concretas que garantam a todos a possibilidade de apropriação dos
produtos (concretos e espirituais, artefatos e conhecimento) é luta pela superação da
reprodução de seres humanos históricos inconscientemente alienados, na direção da
formação de seres humanos historicamente conscientes de seu papel.

REFERÊNCIAS

KNOX, J. E. Prefácio. In: LURIA, A. R.; VYGOTSKY, L. S. Estudos sobre a história


do comportamento: o macaco, o primitivo e a criança. Porto Alegre: Artes Médicas,
1996, pp. 17-59.

LEONTIEV, A. N. O homem e a cultura. In: LEONTIEV, A. N. O Desenvolvimento


do psiquismo. 2ª ed. São Paulo: Centauro, 2004, pp. 277-302.

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LEONTIEV, A. N. O desenvolvimento do psiquismo. 2ª ed. São Paulo: Centauro, 2004,
pp. 95-152.

LURIA, A. R. Diferenças culturais de pensamento. In: LURIA, A. R. A construção


da mente. São Paulo: Icone, 1992, pp. 63-85.
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LURIA, A. R.; VYGOTSKY, L. S. Estudos sobre a história do comportamento: o


macaco, o primitivo e a criança. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996, pp. 93-149.

VYGOTSKY, L. S. El problema de la edad cultural. In: VYGOTSKY, L. S. Obras


Escogidas, tomo III. 1996, pp. 314-324.

VYGOTSKY, L. S. O método instrumental em psicologia. In: VYGOTSY, L. S.


Teoria e método em psicologia. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999, pp. 93-101.

VYGOTSKY, L. S. A transformação socialista do homem (1930). Tradução de:


Nilson Dória, 2004. Disponível em:
<http://marxists.org/portugues/vygotsky/1930/mes/transformacao.htm>. Acesso em: 26
out. 2013.

VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos


psicológicos superiores. 7ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

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