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Saúde Mental e
Infância: Reflexões Sobre
a Demanda Escolar de um
Capsi
Mental Health And Childhood: Reflexions On The
School Demand Of A Capsi
Universidade
Estadual de Maringá
Artigo
Resumo: Este artigo é resultado de um estudo exploratório desenvolvido entre o segundo semestre de 2008
e em 2009, cujo objetivo consistiu em analisar a demanda escolar encaminhada, acolhida e atendida pelo
Centro de Atenção Psicossocial Infanto-Juvenil – CAPSi – de um Município do Estado do Paraná. Como recurso
metodológico, adotamos a pesquisa de campo, que foi realizada em três fases subsequentes. A primeira consistiu
em um levantamento estatístico acerca de todos os prontuários dos pacientes acolhidos pelo CAPSi estudado
entre os meses de julho e dezembro de 2008. Na segunda, a partir dos prontuários examinados na primeira
fase, realizamos o estudo de seis casos de crianças que envolviam queixas escolares, e a terceira correspondeu
às entrevistas realizadas com cinco funcionários do dispositivo. Os resultados apontaram o atendimento de um
número expressivo de casos referentes a queixas escolares que, em geral, eram tratados via medicação. Tal
panorama encontra respaldo na dinâmica de trabalho do dispositivo, que revelou dificuldades em desenvolver
um trabalho intersetorial. As decisões pertinentes ao serviço desse CAPSi são, em geral, capitaneadas pelo médico
e destituídas de questionamentos por parte dos demais integrantes da equipe, evidenciando quão naturalizada
e quão distante essa prática está dos princípios preconizados pela Política Nacional de Saúde Mental.
Palavras-chave: Saúde mental. Serviços de saúde mental. Distúrbios da aprendizagem. Educação. Medicalização.
Centro de Atenção Psicossocial - CAPS.
Abstract: This paper is the result from an exploratory study developed between the second half of 2008 and
2009, whose goal consisted in analyzing the school demand referred, accepted and assisted by the Center for
Psychosocial Care of Children and Adolescents – CAPSi – in a town in Paraná. As a methodological resource, we
adopted a field research, conducted in three subsequent stages. The first stage consisted of a statistical assessment
of all medical records from the users assisted at the CAPSi between July and December 2008. Next, from the
medical records examined in the first stage, we studied six cases of children involving school complaints. The
third and final phase consisted of interviews with five workers at the center. The results pointed the attendance
of a significant number of cases involving school complaints that were generally treated via medication. Such
scenario is supported by the work dynamics, which revealed difficulties in developing an intersectoral work. The
decisions pertaining to the service of this CAPSi are usually headed by the doctor, without questionings from
the other team members, what demonstrates how naturalized and how far this practice is from the principles
advocated by the National Policy on Mental Health.
Keywords: Mental health. Mental health services. Learning disabilities. Education. Medicalization. Psychosocial
Care Center.
Resumen: Este artículo es el resultado de un estudio exploratorio desarrollado entre el segundo semestre de
2008 y en 2009, cuyo objetivo consistió en analizar la demanda escolar encaminada, acogida y atendida por el
Centro de Atención Psicosocial Infanto-Juvenil – CAPSi – de un Municipio del Estado de Paraná. Como recurso
metodológico, adoptamos la investigación de campo, que fue realizada en tres etapas subsiguientes. La primera
consistió en un relevamiento estadístico acerca de todas las historias clínicas de los pacientes recolectados por
el CAPSi estudiadas entre los meses de julio y diciembre de 2008. En la segunda, a partir de las historias clínicas
examinadas en la primera etapa, realizamos el estudio de seis casos de niños que involucraban quejas escolares,
y la tercera correspondió a las entrevistas realizadas con cinco empleados del dispositivo. Los resultados señalaron
la atención de un número expresivo de casos referentes a quejas escolares que, en general, eran tratados vía
medicación. Tal panorama encuentra respaldo en la dinámica de trabajo del dispositivo, que reveló dificultades
en desarrollar un trabajo intersectorial. Las decisiones pertinentes al servicio de ese CAPSi son, en general,
capitaneadas por el médico y destituidas de cuestionamientos por parte de los demás integrantes del equipo,
evidenciando lo naturalizada y lo distante que esa práctica está de los principios preconizados por la Política
Nacional de Salud Mental.
Palabras clave: Salud mental. Servicios de salud mental. Transtorno del aprendizaje. Educación. Medicalización.
Centro de Atención Psicosocial - CAPS.
1Nesse período, determinações dos sofrimentos ocorridos cujos idealizadores, entre o final do século
surgiram relatos na infância. O que reconhecemos como
sobre os primeiros
XIX e o início do século XX, empenharam-se
resultado desse tipo de prática é que um
ensaios de número cada vez maior de crianças em na realização de campanhas e de projetos
reabilitação que visavam a solucionar os seus problemas
idade cada vez mais precoce é medicado
de crianças e
de forma a sanar os sintomas das crianças, sociais, preparando o futuro homem e, em
adolescentes
sem considerar o contexto no qual se
acometidos por consequência, uma nova pátria por meio de
alguma deficiência. apresentam
No século XVI,
ações direcionadas à higiene física e mental
Ponce de Leon, da população, em especial do público infantil.
padre beneditino,
Em que pese à legitimidade desse debate
iniciou as primeiras em torno dos diagnósticos que envolvem as
tentativas de Na obra do higienista Moncorvo Filho (1927),
problemáticas infantis, não podemos negar
educação de intitulada Histórico da Protecção à Infância no
surdos-mudos a existência de transtornos mentais entre o
Brasil, encontramos importantes referências a
(Ajuriaguerra, 1980). público infanto-juvenil e a necessidade de
Mais tarde, em estabelecimentos e práticas com o intuito de
1797, na França,
projetos de assistência nessa área. Sobre
amparar a criança. Dentre eles, destacamos
sob os cuidados isso, Delgado et al. afirmam que, no Brasil,
do médico Jean as Rodas dos Expostos, cuja prática perdurou
“é histórica a omissão da saúde pública no
Itard (1774-1838), do século XVIII até meados do século XX,
realizou-se a direcionamento das políticas de saúde mental
o Instituto de Protecção e Assistência à
primeira experiência para a infância e a adolescência” (2007, p.
com o intuito Infância – IPAI, inaugurado na cidade do
de reabilitar um
66). Essa, porém, é uma omissão que não
Rio de Janeiro, em 1899, e a criação de alas
adolescente com se restringe ao Brasil, conforme nos revela o
retardo mental específicas para o tratamento do público
Relatório sobre a Saúde no Mundo, divulgado
(Alexander & infantil nos manicômios, como, por exemplo,
Selesnick, 1980). pela Organização Pan-Americana de Saúde
o Pavilhão-Escola Bourneville, criado em
e Organização Mundial de Saúde, em 2001,
2 Movimento 1903, no Hospital Nacional de Alienados
consolidado no
cujos dados apontam que mais de 90% dos
no Rio de Janeiro, e a Seção de Menores
Brasil a partir países não possuíam, até aquele momento,
de 1923, com a Anormais do Hospital Central de Juqueri, em
políticas de saúde mental que incluíssem
criação da Liga 1922, em São Paulo.
Brasileira de Higiene crianças e adolescentes.
Mental – LBHM –
suas intervenções Outras iniciativas idealizadas e concretizadas
visavam, sobretudo,
No decorrer da História, observamos que
nesse período enfocavam a prevenção da
à prevenção das as primeiras experiências voltadas para o
“doenças nervosas criança contra o acometimento de possíveis
cuidado à criança considerada anormal
e mentais” (Liga doenças mentais. A título de exemplo,
Brasileira de Higiene datam do século XVI 1. Contudo, foi no
Mental, 1930, p.71).
citamos o trabalho desenvolvido pela Clínica
século XX, em um contexto marcado pela
de Euphrenia3, inaugurada na cidade do
3Dirigida por crescente industrialização, pelas altas taxas
Rio de Janeiro, em 1932, e as Clínicas de
Mirandolino de mortalidade infantil e pela necessidade
Caldas, essa clínica Orientação Infantil4, instaladas em escolas
de mão de obra, que as ações em prol da
visava a “assegurar públicas das cidades do Rio de Janeiro e São
a boa formação infância foram intensificadas em vários países,
do psiquismo”
Paulo em 1934 e 1938, respectivamente.
inclusive no Brasil.
(Caldas, 1932,
p.31), por meio Enfim, dando um salto na História,
de intervenções Em nosso país, a assistência à criança
médicas e atualmente, a estratégia de cuidado a
pedagógicas caracterizou-se pelo cuidado prestado crianças e adolescentes portadores de
dirigidas às crianças. por instituições de caridade, filantrópicas transtornos mentais, preconizada pela OMS
4 No Rio de Janeiro,
e privadas, tais como abrigos ou asilos e adotada por alguns países, baseia-se no
eram dirigidas pelo para menores abandonados e colégios modelo comunitário, realizado por equipes
médico higienista
destinados ao amparo dessa população. multiprofissionais. O Brasil, seguindo essa
Arthur Ramos
(1903-1949); em Nesse processo, foi marcante para o País a mesma tendência, vivencia o processo de
São Paulo, pelo atuação do Movimento de Higiene Mental2, construção de uma rede comunitária de
sentirem capazes para desempenhar sua Esses relatos, assim como alguns estudos
nova função, por não terem se apropriado pesquisados sobre o trabalho interdisciplinar
de alguma técnica orientadora de suas
na saúde e o trabalho em rede na saúde
ações (1999, p. 308)
mental (Bezerra & Dimenstein, 2008; Scherer,
Pires, & Schwartz, 2009; Ronchi & Avelar,
Sem uma técnica norteadora, cada
2010), revelam as dificuldades encontradas
profissional transpõe para o âmbito público
no processo de consolidação de um trabalho
aquilo que a formação acadêmica e a cultura
coletivo e, portanto, na construção do novo
existente em torno da profissão estabelecem
modelo de atenção em saúde mental. A razão
como padrão hegemônico, ou seja, o
disso, provavelmente, está na dinâmica social
atendimento clínico individual. Tal prática
que valoriza o indivíduo, cujas implicações
gera, não raro, um trabalho fragmentado e
podem ser observadas nas diferentes esferas
uma demanda inadequada para o serviço,
sociais. Dessa forma, há que se questionar
descaracterizando a função para a qual se
a aplicabilidade de uma política que tem
destina o dispositivo. Esse posicionamento
como sustentáculo o trabalho coletivo em
é ratificado ao investigarmos o cotidiano
uma sociedade voltada para os interesses
do serviço, que revela a inexistência de
individuais. Acreditamos que a dificuldade em
um trabalho realizado em equipe e uma
consolidar práticas coletivas no serviço público
organização cujas características evidenciam
possa ser entendida por esse paradoxo. Afinal,
uma forma de atendimento ambulatorial.
como atender a essa proposta se vivemos
sob uma cultura individualista? Com esse
A entrada no serviço tem início com a
questionamento, não estamos defendendo a
triagem, realizada pela enfermeira ou pela
permanência dessa situação, mas apontando
assistente social. Em seguida, dependendo
que essas dificuldades, de fato, existem e
do caso, é agendada uma avaliação com um
devem ser conhecidas e enfrentadas por
dos profissionais: – Aí, ela tria, aí, a gente
aqueles que, por opção ou não, atuam na
tinha que estar discutindo, mas, aí assim, elas
área da saúde pública e na da saúde mental.
veem o que a criança precisa e marcam a
primeira consulta (psiquiatra). É comum que
No cotidiano do CAPSi, uma das consequências
a primeira consulta seja agendada para uma
decorrente das dificuldades em efetivar o
das especialidades médicas. Tal conduta é
trabalho de uma forma coletiva recai sobre a
explicada pela assistente social da seguinte
formulação do diagnóstico, que, em geral, é
forma:
definido a critério da médica: – Bom, eu não
Na verdade, por enquanto, ainda está tudo sei, assim, como se chega, porque, na verdade,
tumultuado... Então, os estudos de caso eu nunca diagnostiquei: ‘olha, é isso ou aquilo’;
são feitos esporadicamente, casos mais quem diagnostica mesmo são as médicas, elas
graves, a gente já faz triagem e já marca o
atendimento, casos graves, eu digo assim, que fazem (psicóloga). A assistente social,
tentativa de suicídio, pacientes em crise, por sua vez, aponta o diagnóstico como uma
daí a gente já chega a marcar atendimento tarefa da médica, por não se sentir capacitada
com a psiquiatra. Na dúvida, a gente tenta
para tal: – Deveria estar acontecendo mais o
deixar para estudo de caso. Na dificuldade
da equipe conseguir dar prosseguimento estudo de caso, mas o diagnóstico mesmo,
ao estudo de caso, muitas vezes, acaba que eu vejo que é feito, é a doutora que faz.
que a gente agenda para a neurologista Exclusivamente ela. Não vejo assim, psicólogo,
ou a psiquiatra avaliar para poder dar
ninguém chegar a um diagnóstico, eu não me
atendimento, mas, quanto a isso, a gente é
vejo capaz, sabe?
bem desorganizada ainda.
de ‘não saber’ faz parte do cotidiano Todos esses entraves relacionados à dinâmica
dos trabalhadores” (1999, p.303). Essa de trabalho do CAPSi estudado mostram
Para Scarcelli, na
tentativa de sanar os concepção também é defendida por Macedo como suas ações encontram-se isoladas não
conflitos decorrentes ao afirmar que, na área da saúde, “o desafio só dos demais setores que compõem a rede de
do trabalho
atual do trabalho multiprofissional é produzir atenção mas também dos munícipes, porque,
interdisciplinar,
a equipe pode um novo saber” (2007, p. 33), processo que, embora o funcionamento do dispositivo seja
desenvolver suas muitas vezes, gera conflitos. distante do que é apregoado pela Política
intervenções de
duas formas: ou
Nacional de Saúde Mental, não existe uma
abandonando Para Scarcelli, na tentativa de sanar os conflitos cobrança da população por mudanças.
“as próprias decorrentes do trabalho interdisciplinar, a
concepções,
abrindo mão da
equipe pode desenvolver suas intervenções O controle social
especificidade em de duas formas: ou abandonando “as próprias
função do grupo”, concepções, abrindo mão da especificidade Os encaminhamentos inadequados realizados
ou buscando “a pela escola e a aceitação dos familiares,
em função do grupo”, ou buscando “a
prevalência de
um determinado prevalência de um determinado ponto de à medida que buscam e recebem um
ponto de vista, o vista, o que culmina na incomunicabilidade atendimento médico no serviço, demonstram
que culmina na o desconhecimento popular no que diz
e impossibilidade de convivência para um
incomunicabilidade
e impossibilidade de projeto comum” (1999, p. 311). No segundo respeito ao dispositivo. Isso nos chama a
convivência para caso, a autora salienta que a prevalência atenção, particularmente, devido ao fato de
um projeto comum” o processo de reforma psiquiátrica, tanto
do saber médico ganha destaque, porque,
(1999, p. 311).
embora seja alvo de críticas por parte dos no Brasil quanto em outros países, ter sido
demais profissionais, “parece apresentar- impulsionado pelos movimentos sociais10.
se como dono de algumas certezas, que
muitas vezes chegam a ser estruturantes No Brasil, na VIII Conferência Nacional de
para a própria equipe” (Scarcelli, 1999, pp. Saúde realizada em Brasília, em 1986, foram
10 Destacamos o
Movimento Nacional 312-313). definidas e aprovadas propostas que já vinham
dos Familiares dos sendo discutidas pelo Movimento Sanitário11
Usuários e a Consulta
Nacional pela Saúde Com frequência, como observamos em nosso em décadas anteriores. Uma dessas propostas,
Mental, na Itália, estudo, as limitações no desenvolvimento referente ao exercício do direito à saúde, e que
(Goulart, 2008) e
do trabalho interdisciplinar traz implicações, vigora ainda hoje, é a garantia da “participação
o Movimento dos
Trabalhadores em como conta a assistente social: – E muitas popular no controle social dos serviços de
Saúde Mental, no Brasil vezes a gente acaba atendendo muitos casos saúde” (Brasil, 1986, p. 5). Entendemos que
(Amarante, 1995).
que não são casos CAPSi mesmo, que eu vejo o exercício desse controle só se torna possível
11 Movimento que que é uma falha assim do serviço. E são muitos se houver um conhecimento por parte dos
emergiu entre as
casos que não deveriam estar aqui. demais setores da sociedade e da população
décadas de 70 e
80, seu objetivo em geral acerca da função e dos objetivos
era “constituir-se Além das dificuldades em organizar o dos aparatos de saúde, conhecimento esse
enquanto um saber
contra-hegemônico trabalho internamente, os profissionais que percebemos, pelos dados coletados, não
e crítico ao modelo entrevistados constataram que a organização existir sequer entre os próprios profissionais e
dominante de atenção
da rede de cuidados, cuja responsabilidade setores da área, como enfatiza a coordenadora
à saúde e produzir
uma reforma nas também compete ao CAPSi, não é efetiva: – do CAPSi: – O próprio Saúde da Família, eles
políticas e práticas de Não tem assim uma rede, né?” (psiquiatra). têm uma visão distorcida de nós.
saúde que vigoravam
no Brasil de forma a – Nós temos que reestruturar e trabalhar
possibilitar a obtenção melhor junto com a base, com a atenção A incompreensão de grande parte da
efetiva da saúde por
básica... Acho que nós temos que melhorar população acerca da função do CAPSi dificulta
toda a população”
(Dimenstein, 1998, isso (enfermeira). a fiscalização e as cobranças a fim de assegurar
p. 59). a funcionalidade adequada do serviço. Sem
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