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A liturgia

através dos
séculos

Joan Llopis

Traduzido do espanhol
La Liturgia através de los siglos (= Emaús 6),
Centre de Pastoral Litúrgica, Barcelona 1993,
2

por Frei J. A. da Silva

Petrópolis, março de 1998


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INTRODUÇÃO

«ATÉ QUE ELE VENHA»

O leitor já terá adivinhado que o título desta introdução se inspira no conhecido


texto de são Paulo aos cristãos de Corinto, que cada ano ouvimos proclamar na missa
vespertina da Quinta-Feira Santa: «Irmãos, eu recebi do Senhor o que vos transmiti: O
Senhor Jesus, na noite em que foi entregue, tomou o pão, e, depois de dar graças, partiu-
o e disse: “Isto é meu corpo, que se dá por vós; fazei isto em memória de mim”. E, do
mesmo modo, depois de cear, tomou o cálice, dizendo: “Este cálice é o Novo
Testamento no meu sangue; todas as vezes que o beberdes, fazei-o em memória de
mim”. Pois todas as vezes que comerdes desse pão e beberdes desse cálice, anunciareis
a morte do Senhor, até que ele venha» (1Cor 11,23-26).

Este texto paulino nos serve admiravelmente para compreender o sentido e o


alcance que devemos dar à história da liturgia cristã através dos séculos. Não se trata de
aumentar nossa erudição nem de satisfazer a curiosidade intelectual: trata-se de
compreender e viver melhor nossas celebrações litúrgicas atuais, sabendo-nos herdeiros
de uma tradição que tem seu ponto de partida no próprio Cristo, e transmissores de um
legado que deve conservar-se íntegro ao longo dos séculos “até que ele venha”. A
olhada que a história nos faz dar ao passado não tem nada de “retrógrada”: é a única
maneira válida de assegurar a autenticidade do presente e a possibilidade do futuro.
Temos que levar em conta o fato de que “quem perde as origens perde a identidade” e
que, para dar um salto para frente, aos poucos tem que retroceder para tomar impulso.

A história da liturgia – polarizada muito especialmente na evolução da


celebração eucarística – nos ajuda também a distinguir cuidadosamente aqueles dois
elementos dos quais fala o número 21 da Constituição sobre a Liturgia do Concilio
Vaticano II: “Pois a liturgia consta de uma parte imutável, divinamente instituída, e de
partes suscetíveis de mudança. Estas, com o correr dos tempos, podem ou mesmo
devem variar, se nelas se introduzir algo que não corresponda bem à natureza íntima da
própria liturgia, ou se estas partes se tomarem menos aptas”. Uma análise atenta da
história dos ritos litúrgicos permite ver com facilidade tudo o que, ao longo dos séculos,
permaneceu praticamente inalterado (não tanto em sua expressão externa quanto em seu
sentido profundo): isso é o que deve ser conservado e transmitido invariável às gerações
seguintes. E permite ver também a grande quantidade de expressões que foram
mudando de acordo com as condições variáveis dos tempos e lugares: esta constatação
nos convence da necessidade de que a liturgia mude e se adapte continuamente às
características de cada época e de cada pais.

Este livrinho pretende oferecer uma visão panorâmica – forçosamente muito


resumida e sintética – das principais fases da evolução da liturgia cristã, desde suas
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origens apostólicas até a reforma levada a cabo pelo Concilio Vaticano II. A finalidade –
como já dissemos – não é meramente histórica, nem muito menos arqueológica, mas
catequética e pastoral: ajudar a compreender melhor por que os cristãos de hoje
celebramos a liturgia do modo como o fazemos e, assim, contribuir para nela participar
daquela maneira “consciente, ativa e frutuosa” recomendada pelo Vaticano II (SC 11).

I. O CULTO EM ESPÍRITO E VERDADE

No diálogo de Jesus com a samaritana, assim como nos explica o evangelista


João, existe uma frase que devemos ter sempre presente se quisermos compreender o
sentido profundo da liturgia cristã, isto é, o culto que nós cristãos damos a Deus. A
samaritana fez a Jesus uma pergunta tipicamente “ritualista”: “Nossos pais adoraram a
Deus neste monte e vós dizeis que é em Jerusalém onde se deve adorar”. Jesus, com a
sua habilidade de ir ao fundo das questões, anuncia um novo tipo de culto que superará
as prescrições meramente externas e rituais: “Mulher, acredite-me, vem a hora em que
nem neste monte nem em Jerusalém adorareis o Pai. (...) Mas vem a hora., e já chegou,
em que os verdadeiros adoradores hão de adorar o Pai em espírito e verdade e são estes
os adoradores que o Pai deseja. Deus é espírito, e quem o adora., deve adorá-lo em
espírito e verdade” (Jo 4,20-24).

Adorar a Deus em espírito e verdade quer dizer, na perspectiva de Jesus, colocar


o centro do culto não no cumprimento minucioso de uma série de normas externas mas
no oferecimento interno do amor e da obediência a Deus. Os homens e mulheres dão
culto a Deus na medida em que fazem de suas vidas uma oferenda., um “sacrifício” de
amor ao Pai cumprindo sua vontade, de acordo com aquela exortação da primeira carta
de são Pedro: “Como pedras vivas, também vós vos tornastes casa espiritual e
sacerdócio santo, para oferecerdes sacrifícios espirituais aceitos por Deus através de
Jesus Cristo” (1Pd 2,5).

Jesus mesmo fez consistir seu culto no cumprimento da vontade do Pai: “Eis por
que, ao entrar no mundo, Cristo diz: Não quiseste sacrifícios nem oblações, mas me
preparaste um corpo. Os holocaustos e sacrifícios pelo pecado não os recebeste. Então
eu disse: eis-me aqui, venho – no volume do livro está escrito – para fazer, ó Deus, a tua
vontade" (Hb 10,5-6). A vida toda de Jesus foi um ato de culto e adoração, porque todos
e cada um de seus momentos estiveram presididos pela obediência à vontade do Pai. E o
momento culminante do culto de Cristo foi sua morte na cruz, já que constituiu a
manifestação mais patente de seu desejo de levar até o final a missão que o Pai lha havia
confiado.

O fato de o culto cristão ser em espírito e verdade – isto é, que consiste


basicamente nas atitudes interiores de fé e obediência a Deus – não quer dizer que não
deva haver manifestações externas de tipo simbólico e ritual. Se não as houvesse, lhe
faltaria uma dimensão irrenunciável do modo de ser dos seres humanos. Por isso, o
próprio Cristo quis que o conteúdo espiritual de sua morte na cruz fosse reatualizado
através do rito exterior da ceia eucarística e os cristãos, desde os primeiros tempos,
foram conscientes do caráter ritual de seu culto, sem deixar de saber que a “liturgia” não
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podia se separar nunca da “vida”. Por isso, as reuniões dos primeiros cristãos
comportavam a “fração do pão” e as “orações” junto com a audição dos ensinamentos
dos apóstolos e da vida de união entre os Irmãos (cf At 2,42). Para participar da reunião
eucarística, era necessário ter sido incorporado à comunidade pelo rito do batismo,
prescrito por Jesus mesmo (cf Mt 28,19), como condição da vida nova (cf Jo 3,5), e
realizado pelos apóstolos a partir do dia de Pentecostes (cf At 2,41). Também desde o
início os apóstolos utilizaram o gesto da imposição das mãos para significar a
comunicação do Espírito aos batizados (cf At 8,17). A estes três ritos fundamentais –
ceia do Senhor, batismo, imposição das mãos – pouco a pouco, foram se acrescentando
outras cerimônias e práticas. Encontramo-nos no ponto de partida da história da liturgia
cristã.

Continuidade e ruptura com a liturgia


judaica

Os livros do Novo Testamento não contém nenhuma descrição completa de


como era a liturgia das primeiras comunidades cristãs, mas, através de uma série de
alusões e indicações, podemos formar-nos uma boa idéia de suas características
principais. Os apóstolos não criaram uma liturgia totalmente nova, mas procuraram
encarnar o novo “culto em espírito e verdade” nas formas litúrgicas do judaísmo, da
mesma maneira como, mais adiante, os ritos cristãos adotaram formas externas
provenientes do paganismo.

Quanto aos aspectos externos, existe uma íntima relação entre o culto apostólico
e os ritos do judaísmo, mas no que se refere ao significado profundo, há um
distanciamento e, inclusive, ruptura. É significativa, neste sentido, a relação que os
primeiros cristãos mantiveram com o Templo de Jerusalém, centro e expressão máxima
do culto israelita. De acordo com o testemunho do livro dos Atos dos Apóstolos, a Igreja
primitiva – seguindo o exemplo do próprio Jesus – continuou vinculada ao Templo, mas
esta vinculação unicamente afetava a oração e a pregação. Por outro lado, os cristãos se
abstiveram de participar da oferta dos sacrifícios rituais, porque tinham muito claro que
a morte e a ressurreição de Jesus Cristo havia abolido a vigência dos sacrifícios da Lei
antiga. Mas esta vinculação durou relativamente pouco, porque foi se elaborando uma
teologia que afirma que o verdadeiro Templo é Cristo e, consequentemente, a
comunidade cristã. E quando, a partir do martírio de Estevão, se originou a primeira
perseguição contra os cristãos de Jerusalém (cf At 7,54-8,3), a vinculação com o Templo
desapareceu e o autêntico culto cristão foi se formando nas reuniões celebradas nas
casas particulares.

Se quisermos fazer uma lista dos vestígios que a liturgia judaica deixou no culto
cristão, teríamos que incluir necessariamente estes: a estrutura da liturgia da Palavra,
com leituras da Bíblia, canto de salmos e explicação homilética; a forma da oração
eucarística que, em parte, provém da oração ritual das refeições e, em parte, do culto
sabático da sinagoga; as petições das orações dos fiéis, inspiradas no modelo das
“dezoito bendições”; o ritmo semanal da reunião litúrgica, com a passagem, porém, do
sábado para o domingo; alguns elementos da oração quotidiana; a fórmula do triságio
(“Santo, Santo, Santo”), que provém da oração matinal judaica; muitas aclamações do
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povo, que inclusive se conservaram na língua original (“Amém”, “Aleluia”,


“Hosanna”).

Uma amostra da influência judaica na liturgia dos primeiros cristãos se encontra


no texto de uma oração eucarística contida na Didachè, documento contemporâneo de
alguns escritos do Novo Testamento. A oração é cristã naquilo que diz respeito ao
conteúdo, mas claramente judaica quanto à forma: “Nós te bendizemos (agradecemos),
Pai Santo, por teu santo nome, que tu fizeste habitar em nossos corações, e pelo
conhecimento, pela fé e imortalidade que tu nos revelaste por Jesus, teu servo; a ti, a
glória pelos séculos. Amém. Tu, Senhor, Todo-poderoso, criaste todas as coisas para a
glória do teu nome e, para o gozo deste alimento e bebida, deste-os aos filhos dos
homens, a fim de que eles te bendigam; mas a nós deste uma comida e uma bebida
espirituais para a vida eterna por Jesus, teu servo. Por tudo te agradecemos, pois és
poderoso; a ti, a glória pelos séculos. Amém. Lembra-te, Senhor, de tua Igreja, para
livrá-la de todo o mal e aperfeiçoá-la no teu amor; reúne esta Igreja santificada dos
quatro ventos no teu reino que lhe preparaste, pois teu é o poder e a glória pelos séculos.
Amém. Venha tua graça e passe este mundo! Amém. Hosana à casa de Davi. Venha
aquele que é santo! Aquele que não é (santo) faça penitência: Maranatá! Amém” (X,1-
6).

As celebrações das primeiras


comunidades cristãs

Através dos dados contidos nos livros do Novo Testamento podemos fazer uma
idéia muito aproximada das celebrações litúrgicas das primeiras comunidades cristãs,
tanto da que se formou em Jerusalém como daquelas que, pouco a pouco, foram se
constituindo fora desta cidade. As comunidades formadas por cristãos procedentes do
judaísmo foram as que se mantiveram mais fiéis às formas do culto israelita, mas os
cristãos provenientes do paganismo também aceitaram muitos usos tipicamente
judaicos, por exemplo, a leitura dos livros bíblicos.

A leitura da Palavra foi, desde os primeiros tempos, um elemento essencial das


reuniões de oração dos cristãos. Tanto antes como depois da ruptura definitiva com a
sinagoga, os cristãos permaneceram fiéis à leitura dos livros da Lei e os Profetas e ao
canto dos Salmos. Mas, pouco a pouco, foram ganhando força os elementos novos
trazidos pelo cristianismo. Em primeiro lugar, adquire uma grande importância o
comentário ou instrução que faz o apóstolo ou encarregado da reunião: tem um matiz de
conversação (este é o sentido da palavra homilia), com perguntas e respostas. Em
segundo lugar, quando o apóstolo fundador de uma comunidade - sobretudo são Paulo -
escreve de longe alguma carta, esta é lida na reunião litúrgica e vai se equiparando
pouco a pouco à leitura dos livros santos, de maneira que o conjunto dos escritos que
hoje conhecemos com o nome de Novo Testamento são proclamados nas assembléias
cristãs com a mesma categoria de Palavra de Deus que tinha os do chamado Antigo
Testamento. No que diz respeito à oração, além das tradicionais judaicas, os cristãos
começaram a usar as suas próprias: o Pai-nosso, fórmulas elaboradas por são Paulo,
composições espontâneas da comunidade, como a que figura no livro dos Atos dos
Apóstolos (4,24-30).
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O elemento mais característico da liturgia da comunidade cristã primitiva é, sem


sombras de dúvida, a Ceia do Senhor, chamada também de “fração do pão”, e que mais
tarde adotou o nome de “eucaristia”, pela importância que nela tem a oração de ação de
graças, derivada diretamente da “bendição” judaica. De acordo com o fragmento da
carta de são Paulo aos Coríntios que citamos anteriormente (1Cor 11,23-26), os cristãos
eram conscientes de que repetindo o rito da última ceia de Jesus com seus discípulos,
obedeciam o mandado de perpetuar seu “memorial” e, deste modo, tornavam presentes
sua pessoa e sua obra. Os dados do Novo Testamento não nos permitem determinar com
precisão em que consistia o ritual da Ceia do Senhor. Nos primeiros tempos comportava
uma verdadeira ceia, com a bendição e a distribuição do pão e do vinho no final, assim
como se fazia nos rituais dos judeus, especialmente na Páscoa. Mais tarde se suprimiu a
ceia, e as duas bendições se juntaram e, finalmente, se fundiram numa só.

Intimamente vinculada com o rito eucarístico está a celebração do primeiro dia


da semana, chamado dia do Senhor (dies dominica, em latim e, aqui, “domingo”). Os
Evangelhos e os demais escritos do Novo Testamento destacam a importância deste dia:
a ressurreição de Cristo, suas aparições, a vinda do Espírito Santo têm lugar no primeiro
dia da semana, que o Apocalipse qualifica de “dia do Senhor” (Ap 1,10). O domingo se
converte no dia da reunião da comunidade, da Igreja, porque é o dia do Senhor, e a
comunidade é uma coisa só com ele. A presença do Senhor tem lugar através de sinais: a
assembléia dos irmãos, os dirigentes da comunidade, o pão e o vinho.

Na reunião eucarística dominical, centro da vida da comunidade cristã, se


reproduz a Ceia do Senhor, se re-atualiza sua presença e se antecipa sua última vinda. O
domingo é então um dia de grande alegria, mas ainda não havia se convertido em dia
descanso, e os cristãos provenientes do judaísmo continuam observando o repouso do
sábado. O domingo não é ainda festa com suspensão dos trabalhos, mas é a máxima (e a
única) festa dos cristãos. É a Páscoa semanal, quando ainda não tinha surgido a
celebração da Páscoa anual.

No tocante aos ritos sacramentais dos primeiros cristãos, temos que destacar a
importância do batismo, que ainda não conhece uma fórmula fixa: é uma simples
palavra de fé aceita e acompanhada do banho ritual. Também encontramos a imposição
das mãos, sinal da doação do Espírito para diversos serviços.

Em resumo: o culto “em espírito e verdade” inaugurado por Cristo tem nas
reuniões litúrgicas dos cristãos primitivos uma expressão cheia de vitalidade e
simplicidade. Todavia, os responsáveis pelo funcionamento da Igreja devem velar para
que não se introduzam nelas desvios e desordens. Daí surge a necessidade de uma
regulamentação da liturgia por parte dos dirigentes, para que tudo seja “para a
edificação da comunidade” (1Cor 14,12).

II. A LITURGIA CRISTÃ PRIMITIVA

Os escritos cristãos posteriores à época do Novo Testamento nos oferecem já


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uma série de indicações muito precisas e abundantes que nos permitem formar uma
idéia de como eram as celebrações litúrgicas das comunidades eclesiais durante os três
primeiros séculos.

Um dos elementos que chama a atenção é a importância que tem a comunidade


cristã local – a que hoje denominaríamos “igreja particular” –, que em cada lugar é
única. Cada cristão pertence a uma destas comunidades, em cuja vida e culto participa
de uma maneira plena. A fim de assegurar a coesão e a unidade interna, existem alguns
ministérios específicos que, mesmo que no primeiro momento não estejam delineados
de uma maneira uniforme e fixa para todas as comunidades, pouco a pouco vão se
concretizando e precisando, até chegar – já pelo ano 150 – a adquirir a estrutura”
essencial de um bispo como presidente único, assistido por um colégio de presbíteros e
pelos diáconos.

A unidade da comunidade local aparece de uma maneira especial na reunião


litúrgica de cada domingo, que é deliberadamente única. Os cristãos se reúnem para
celebrar a eucaristia, que apresenta já unidos os dois elementos do culto da Palavra e do
rito da Ceia do Senhor e, além disso, inclui o exercício da partilha de bens materiais,
com uma atenção especial pelos mais necessitados.

As descrições mais importantes da celebração eucarística daquela época se


encontram na Primeira apologia de são Justino e na Tradição apostólica de Hipólito de
Roma. A descrição de são Justino – um leigo da metade do século II – nos mostra todos
os elementos essenciais da missa, sem sobrar nem faltar nada e, através de Hipólito –
um presbítero tradicionalista de meados do século III – conhecemos o primeiro texto
escrito de oração eucarística, apresentado mais como modelo do que como fórmula fixa.

Os testemunhos mais antigos da


celebração eucarística

Vale a pena reproduzir na íntegra estes textos tão importantes para conhecer
como os cristãos dos primeiros séculos celebravam a eucaristia, dando-nos conta de que,
nos aspectos essenciais, é exatamente igual como nós a celebramos hoje, sobretudo
depois das reformas litúrgicas do Concílio Vaticano II. Uma mesma tradição vincula a
Igreja de hoje com as comunidades cristãs primitivas, numa fidelidade ininterrupta ao
mandato do Senhor: “Fazei isto em memória de mim”.

Diz Justino: “E no dia chamado do Sol, realiza-se uma reunião pum mesmo
lugar de todos os que habitam nas cidades ou nos campos. Lêem-se os comentários dos
Apóstolos ou os escritos dos profetas, enquanto o tempo o permitir. Em seguida, quando
o leitor tiver terminado a leitura, o que preside, tomando a palavra, admoesta e exorta a
imitar estas coisas sublimes. Depois nos levantamos todos juntos e recitamos orações; e
como já dissemos, ao terminarmos a oração, são trazidos pão, vinho e água e o que
preside, na medida de seu poder, eleva orações e igualmente ações de graças e o povo
aclama, dizendo o Amém. Então vem a distribuição e a recepção, por parte de cada qual,
dos alimentos eucaristizados, e o seu envio aos ausentes através dos diáconos. Os que
possuem bens e quiserem, cada qual segundo sua livre determinação, dão o que lhes
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parecer, sendo colocado à disposição do que preside o que foi recolhido. Ele por sua vez
socorre órfãos e viúvas, os que por enfermidades ou outro qualquer motivo se
encontram abandonados, os que se encontram em prisões, os forasteiros de passagem;
em uma palavra, ele se toma provedor de quantos padecem necessidade”.

É muito interessante a razão apontada por Justino para explicar por que os
cristãos se reúnem no “dia do Senhor”, isto é, o domingo: “Fazemos a reunião todos
juntos no dia do Sol, porque é o primeiro dia, em que Deus, transformando as trevas e a
matéria, fez o cosmos, e Jesus Cristo, nosso Salvador no mesmo dia ressuscitou de entre
os mortos”.

Hipólito nos descreve a cerimônia da ordenação de um bispo, que acontece num


domingo diante de toda a comunidade reunida. A primeira coisa que faz o novo bispo,
uma vez ordenado, é celebrar a eucaristia:

“Logo que se tenha ordenado bispo, ofereçam-lhe todos o ósculo da paz,


saudando-o por se ter tornado digno. Apresentem-lhe os diáconos a oblação e ele,
impondo a mão sobre ela, dando graças com todo o presbitério, diga: 'O Senhor esteja
convosco'. Respondam todos: E com teu espírito'. 'Corações ao alto!'. 'Já os oferecemos
ao Senhor'. Demos graças ao Senhor'. E digno e justo'.

“E prossiga, a seguir: 'Graças te damos, Deus, pelo teu Filho querido, Jesus
Cristo, que nos últimos tempos nos enviaste, Salvador e Redentor, mensageiro da tua
vontade, que é o teu . Verbo inseparável, por meio do qual fizeste todas as coisas e que,
porque foi do teu agrado, enviaste do Céu ao seio de uma Virgem_ que, aí encerrado,
tomou um corpo e revelou-se teu Filho, nascido do Espírito Santo e da Virgem. Que,
cumprindo a. tua vontade - e obtendo para ti um povo santo - ergueu as mãos enquanto
soma para salvar do sofrimento os que confiaram em ti. Que, enquanto era entregue à
voluntária Paixão para destruir a morte, fazer em pedaços as cadeias do demônio,
esmagar os poderes do mal, iluminar os justos, estabelecer a Lei e dar a conhecer a
Ressurreição, tomou o pão e deu graças a ti, dizendo: Tomai, comei, isto é o meu Corpo
que por vós será destruído; tomou, igualmente o cálice, dizendo: Este é o meu Sangue,
que por vós será derramado. Quando fizeres isto, fa-lo-eis em minha memória. Por isso,
nós que nos lembramos de sua morte e ressurreição, oferecemos-te o pão e o cálice,
dando-te graças porque nos consideraste dignos de estar diante de ti e de servir-te. E te
pedimos que envies o teu Espírito Santo à Oblação da santa Igreja: reunindo em um só
rebanho todos os fiéis que recebemos a Eucaristia na plenitude do Espírito Santo para o
fortalecimento da nossa fé na Verdade, concede que te louvemos e te glorifiquemos,
pelo teu Filho Jesus Cristo, pelo qual a ti a glória e a honra - ao Pai e ao Filho, com o
Espírito Santo na tua santa Igreja, agora e pelos séculos dos séculos. Amém”.

Mais adiante Hipólito adverte: “Dê graças o bispo, tal como mencionamos. De
forma nenhuma é necessário que, dando graças a Deus, profira as mesmas palavras que
mencionamos, como se o fizesse de memória: reze cada um segundo suas
possibilidades. Se alguém tiver capacidade para rezar uma oração mais longa ou mais
solene, ótimo. Se outro, porém, rezando, proferir uma oração mais simples, deixai-o,
contanto que reze o que é correto e dentro da ortodoxia”. O texto oferecido por Hipólito
é, pois, orientador, e se dá por suposto que o celebrante tem a faculdade de improvisar a
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oração permanecendo fiel a um esquema inalterável. E este esquema que serviu de guia
para as orações eucarísticas de todas as épocas e que inspirou também a oração
eucarística II do Missal surgido da reforma do Vaticano II.

Outros elementos da liturgia primitiva

No tocante aos sacramentos, destaca-se por sua importância a iniciação cristã,


constituída pela celebração unitária do batismo, confirmação e eucaristia. A partir do
século II, a iniciação era precedida pelo catecumenato, importantíssima realização
pastoral, através da qual o novo cristão é introduzido à fé, ao culto e à vida dos
discípulos de Cristo. O candidato é apresentado por um cristão plenamente integrado à
comunidade, e sustentado em sua preparação pelas orações e o exemplo de todos os
membros. Segundo Hipólito, o catecumenato pode chegar a durar três anos. Temos que
destacar que a iniciação sacramental acontece no momento solene da Vigília pascal, que
já começa a perfilar-se como o centro de um incipiente ano litúrgico.

A partir do século III, aparece a organização da penitência pública para os


pecadores que cometeram faltas muito graves e, arrependidos, querem voltar ao seio da
Igreja. Consiste na admoestação do bispo, no cumprimento das obras penitenciais
indicadas e, depois de um tempo que não tem sempre a mesma duração, a reconciliação
pela imposição das mãos do bispo e do presbitério. Só se pode fazer uma vez na vida. O
sacramento da ordem consiste também na imposição das mãos, acompanhada de uma
solene oração de ação de graças: o bispo recebe a imposição das mãos dos demais
bispos; os presbíteros, do bispo e dos demais presbíteros; e os diáconos, unicamente do
bispo. Naquela época, ainda não havia uma liturgia do matrimônio especificamente
cristã: os fiéis se casam como os demais, mas “em Cristo”.

Quanto à oração, os cristãos daquela época continuam fiéis à prática judaica,


segundo a qual existem dois momentos de oração: a manhã e a tarde. As reuniões para a
oração matutina e vespertina seguiam o esquema habitual de leituras, hinos, salmos e
orações, e se consideravam públicas e comunitárias. Existia o costume de orar de uma
maneira privada em outros momentos do dia e da noite. Os salmos extraídos da Bíblia
não foram adotados definitivamente até já bem para dentro do século m. Antes desta
época, se usavam muitas composições poéticas escritas por cristãos particulares.

Também é do século que nasce propriamente o que poderíamos chamar de arte


litúrgica. Até então, os cristãos se contentavam em afirmar que não tinham altares nem
templos nem imagens, e olhavam a arte com prevenção porque estava unida aos cultos
idolátricos dos pagãos. Mas no século m a Igreja se sente já capaz de utilizar os
elementos religioso-culturais da arte para a edificação dos fiéis, e começam a aparecer
pinturas, esculturas e mosaicos, parecidos estilisticamente com os produtos da arte
profana da época, mas com temática cristã. Surgem e se propagam os símbolos típicos
do cristianismo: peixe, âncora, cruz, etc. E se até então as reuniões litúrgicas eram feitas
simplesmente na casa de algum dos Irmãos, a partir do século m os cristãos edificam
casas de oração, como a que se conservou em Dura-Europos, na Síria, composta de um
batistério e de uma sala de reunião. Não existem ainda ornamentos especiais para
celebrar o culto, a não ser as vestes normais de festa.
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Digamos finalmente que a espiritualidade daqueles tempos se encontra


estreitamente vinculada ao culto litúrgico, junto com a disposição de sofrer o martírio.
Os dois polos da vida espiritual cristã daquela época – conhecida também com o nome
da era dos mártires – eram a piedade batismal e a piedade martirial, intimamente
entrelaçadas. O máximo ideal de perfeição era viver o batismo na vida diária, com uma
disposição entusiasta e constante diante do martírio, considerado como o supremo
testemunho de Cristo e a realização plena de seu mistério pascal. Alguns Pais da Igreja
dizem: o que misticamente” se realiza no batismo, realiza-se “pragmaticamente” no
martírio. O martírio foi então o grande estimulante da fé de toda a comunidade cristã. E
logo se começará a valorizar o chamado “martírio incruento”, que consiste na castidade
consagrada: os que a abraçavam, como um sinal de entrega a Deus, à Igreja e aos
pobres, não se separavam da comunidade nem de sua reunião litúrgica. Pelo contrário
ficavam ainda mais vinculados a ela.

III. AS PRIMEIRAS INCULTURAÇÕES

Diz o Novo Catecismo da Igreja Católica (n. 1200-1202): “Desde a primeira


comunidade de Jerusalém até à parusia, é o mesmo mistério pascal que é celebrado, em
todo lugar, pelas Igrejas de Deus fiéis à fé apostólica. O mistério celebrado na liturgia é
um só, mas as formas da sua celebração são diversas.

“A riqueza insondável do mistério de Cristo é tal que nenhuma expressão


litúrgica é capaz de esgotar sua expressão. A história do surgimento e do
desenvolvimento desses ritos atesta uma complementaridade surpreendente. Quando as
Igrejas viveram essas tradições litúrgicas em comunhão na fé e nos sacramentos da fé,
enriqueceram-se mutuamente e cresceram na fidelidade à tradição e à missão comum à
Igreja toda (cf. EN 63-64).

“As diversas tradições litúrgicas surgiram justamente em razão da missão da


Igreja. As Igrejas de uma mesma área geográfica e cultural acabaram celebrando o
mistério de Cristo através de expressões particulares tipificadas culturalmente: na
tradição do 'depósito da fé' (2Tm 1,14), no simbolismo litúrgico, na organização da
comunhão fraterna, na compreensão teológica dos mistérios e nos tipos de santidade.
Assim, Cristo, luz e salvação de todos os povos, é manifestado pela vida litúrgica de
uma Igreja, ao povo e à cultura aos quais ela é enviada e nos quais está enraizada. A
Igreja é católica: pode integrar na sua unidade, purificando-as, todas as verdadeiras
riquezas das culturas (cf. LG 23; UR 4)”.

Já vimos que as primeiras manifestações da liturgia cristã eram muito devedoras


das formas rituais do judaísmo. À medida que pessoas procedentes de outras culturas se
incorporaram à Igreja, o culto cristão adota expressões diversas seguindo o princípio da
“inculturação” como costumamos dizer hoje. Isto produz uma crescente diversificação
das formas externas da liturgia, levando em conta que, nos primeiros séculos, se
produziram as seguintes fases: primeiro (séculos I-II), há uma unidade litúrgica em
todas as comunidades, mas não entendida no sentido de uniformidade rígida; esta
unidade consiste unicamente em respeitar uns moldes comuns, recebidos da tradição, no
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interior de uma grande liberdade e espontaneidade. Depois (séculos III-IV), vai se


criando uma multiplicidade muito grande, em razão do aumento de cristãos e de
comunidades, e do isolamento de algumas Igrejas; cada comunidade vai fixando seus
costumes, seus ritos, suas orações. Finalmente (a partir do século V), se produz uma
unificação progressiva, mas não de tipo universal, mas regional, em razão da influência
e da autoridade das grandes Igrejas; é o momento da criação das diversas famílias ou
ritos litúrgicos, tanto no Oriente como no Ocidente.

Expressões diversas da mesma fé

As causas da diversificação das expressões externas do mesmo culto cristão são


várias. Às vezes a diferenciação se deve, simplesmente, ao fato de algumas
comunidades ficarem isoladas das demais, por culpa das convulsões e perseguições e,
ao faltar o contacto com o resto da Igreja “católica”, criam ritos peculiares. Mas o
motivo mais comum - e mais profundo ao mesmo tempo - é a consciência de que o que
importa é a fidelidade essencial à liturgia apostólica. a qual é perfeitamente compatível
com a liberdade e diversidade das expressões próprias de cada comunidade, segundo
suas características de lugar e tempo.

Em tudo isto, tiveram muita importância os fatores geográficos e culturais.


Naquela época, houve uma adaptação natural e lógica da fé e do culto dos cristãos às
características peculiares de cada povo, que favoreceu a difusão do cristianismo e sua
encarnação na alma popular.

A língua teve uma clara incidência na diversificação das distintas famílias


litúrgicas, mas não pode ser considerado o elemento decisivo, já que uma liturgia se
celebra em diversas línguas e diversas liturgias usam uma mesma língua. Influi mais
nisso o que poderíamos chamar de mentalidade de cada área geográfica e cultural, que
condiciona as diversas combinações dos elementos da celebração litúrgica cristã,
criando “estilos” próprios tanto nas cerimônias como nas orações.

Entre os elementos distintivos de cada rito litúrgico, tem lugar importante a


maneira de estruturar a grande oração eucarística ou “anáfora”, que algumas vezes está
feita de uma só peça, e outras vezes consta de diferentes peças variáveis. Também é
característica de cada rito a maneira como são organizados os ciclos de leituras ao longo
do ano litúrgico, tanto no que diz respeito à celebração da eucaristia como da oração
litúrgica das horas.

Existem igualmente fórmulas típicas de cada rito. Assim, por exemplo, a


fórmula de saudação do celebrante na África é “pax vobiscum” (a paz esteja convosco),
enquanto que em Roma é “Dominus vobiscum” (O Senhor esteja convosco) e na
Espanha, “Dominus sit semper vobiscum” (O Senhor esteja sempre convosco). E
seguramente o que tipifica mais as diferentes liturgias é o estilo literário com o qual são
redigidas as orações, as antífonas, os hinos: Oriente, devedor da cultura helenística e
com gosto pela expressão faustosa, origina uma liturgia mais poética, teológica, solene.
Ocidente, herdeiro da cultura romana, dá lugar a uma liturgia mais prática, simples,
austera. Espanha é um caso especial: sua liturgia autóctone é empolada, sentimental e
13

muito popular.

As grandes famílias litúrgicas

Por sua origem histórica, os ritos se dividem em grandes famílias, nascidas nos
mais antigos e importantes patriarcados: Antioquia, Alexandria, Roma. A expansão
missionária destes grandes centros eclesiásticos levou sua própria liturgia a outros
lugares, nos quais se diversificaria, conservando, não obstante, um tronco comum. Se
quisermos estabelecer uma classificação dos diferentes ritos litúrgicos, a mais
comumente aceita é a seguinte.

Em primeiro lugar está a grande divisão entre liturgias orientais e ocidentais. As


liturgias do Oriente se distribuem em dois grupos, relacionados, respectivamente, com
as sedes patriarcais de Antioquia e Alexandria. O grupo antioqueno, por sua vez, se
subdivide em siríaco ocidental (formado pelo siríaco de Antioquia, o maronita,
bizantino e o armeno) e no siríaco oriental (constituído pelo nestoriano, o caldeu e o
malabar). No que diz respeito ao grupo alexandrino, abarca o rito copta e o etiópico. As
liturgias do Ocidente são o romano, o ambrosiano (próprio de Milão), o hispano-
mozárabe (peculiar da Espanha), o galicano e o celta. Atualmente, na prática só se
conserva um rito ocidental, o romano. Dos demais permanecem unicamente vestígios,
ou estão limitados a lugares muito determinados. A introdução das línguas modernas na
liturgia romana (que até o Vaticano II se celebrava em latim) representa um elemento de
diversificação que, junto ao princípio da adaptação, promulgado pelo referido Concílio,
fará com que se formem paulatinamente diversos tipos litúrgicos, se bem que
substancialmente parentes e derivados do rito romano. Quanto aos orientais, o mais
expandido é o bizantino que, já desde tempo antigos, se celebra em diversas línguas,
embora seu idioma original seja grego. Temos que ter presente que os ritos orientais são
utilizados tanto pelos ortodoxos como pelos católicos.

As línguas litúrgicas

Embora a língua não seja o elemento mais decisivo para a diversificação dos
ritos litúrgicos, ela exerce, contudo, uma influência capital, sobretudo se levamos em
conta que, ainda que em princípio toda língua seja apta para expressar a Palavra de Deus
e a oração da comunidade, de fato, ao longo da história, algumas línguas determinadas
se converteram nas únicas usadas na liturgia. Entretanto, as coisas não se
desenvolveram da mesma maneira no Oriente e no Ocidente.

Quanto ao Oriente, temos que levar em conta que a parte do Império romano que
tinha estado sob a dominação helênica conservava o grego como língua veicular, mas
alguns povos possuíam uma língua fixa e escrita, uma literatura e uma civilização que
podia rivalizar com o helenismo. Por isso estas línguas se mantiveram sem dificuldade
na liturgia, sobretudo a semítica. As línguas que não tinham escritura nem literatura se
beneficiaram do multilingüismo destas regiões e puderam chegar à maturidade, graças à
liturgia cristã.

A Igreja praticou a liturgia em língua grega nas grandes cidades do Oriente, mas
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como a reunião tinha de ser comum para todos os batizados, também tiveram que
atender a necessidade dos cristãos que não falavam grego, primeiro mediante traduções
e depois com intervenções diretas orais durante a própria cerimônia e, finalmente, com
uma celebração francamente poliglota. A Igreja que ficou constituída mais além do
Eufrates utilizou exclusivamente o siríaco. Por outro lado, o rito bizantino acolheu todas
as línguas dos diversos países pelos quais ia se expandindo.

No Ocidente, a Igreja da África foi a primeira comunidade cristã importante de


língua latina. A Igreja de Roma usou o grego até o século III, e sua liturgia não se
latinizou definitivamente até a segunda metade do século IV. Os cristãos de língua grega
tornaram a ser numerosos nela no século VII, e isto motivou que a liturgia fosse
bilíngüe no que diz respeito às leituras e a certos ritos do catecumenato, e os cantos em
grego se misturavam com os cantos latinos. Até nossos dias se conservaram vestígios
deste bilingüismo no rito romano: “Kyrie eleison”, “Agios o Theos” da Sexta-feira
Santa, dupla leitura em grego e em latim das leituras bíblicas nas missas papais
anteriores à reforma do Concilio Vaticano II.

As língua faladas nas Gálias e na Espanha antes da conquista romana não


deixaram nenhum rasto na liturgia. Os bárbaros também se latinizaram rapidamente. O
latim foi durante séculos o único idioma culto no Ocidente – e, portanto, o único usado
na liturgia –, exceto na Irlanda, pais pouco influenciado pela civilização romana;
conservou-se e desenvolveu-se a língua indígena, sem que chegasse a alcançar um lugar
de importância na liturgia. A única vez que se colocou a questão de traduzir a liturgia
latina foi em vista da evangelização da Morávia pelos santos Cirilo e Metódio: as
objeções que se lhes fizeram tentavam justificar teologicamente a exclusividade do
latim, o qual realmente obedecia mais a uma situação de fato. A liturgia romana em
língua eslava se conservou até nossos dias, mas usando o eslavo antigo, praticamente
desconhecido pelos fiéis.

No Ocidente, podemos dizer que até o Concilio Vaticano II não se compreendeu, no


que se refere à diversidade das línguas litúrgicas, o que dizia o prefácio da antiga liturgia
romana, aludindo ao milagre de Pentecostes: “A variedade de língua não é um obstáculo
para a edificação da Igreja, mas, ao contrário, contribui para fortalecer sua unidade”.

IV. A IDADE DE OURO NO RITO ROMANO

A partir do século V as diversas liturgias cristãs se enriqueceram com grande


número de fórmulas e de ritos. As que desenvolveram mais são a bizantina, no Oriente,
e a romana, no Ocidente, e se destacam sobre as demais por sua vinculação às sedes
eclesiásticas das capitais do Império. Limitando-nos à descrição da liturgia que naquela
época floresceu na cidade de Roma, não deve nos estranhar que se produzisse o
fenômeno histórico conhecido com o nome de “idade de ouro do rito romano”, porque
naquele momento se deu a confluência de uma série de circunstâncias favoráveis, das
quais as mais importantes são as seguintes.

Em primeiro lugar, a Igreja goza de completa liberdade, uma vez convertido o


cristianismo em religião oficial; isto motiva que as comunidades cristãs cresçam e se
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espalhem por todas as partes, e que o culto cristão saia das catacumbas e das casas
particulares e se estabeleça nas “basílicas”, locais inspirados na arquitetura civil mas
adaptados às necessidades das reuniões multitudinárias da comunidade cristã. Em
segundo lugar, os bispos de Roma vão adquirindo cada vez mais prestígio e autoridade e
sua atividade como autores de orações e introdutores de ritos se caracteriza por um
sentido inovador e dinâmico, perfeitamente adaptado tanto às exigências da fé cristão
como ao gosto da cultura da época. Também temos que ter presente que naquele tempo
a participação do povo continua sendo espontânea e viva, com a qual - dado que ainda
há uma grande liberdade na seleção dos textos - se realiza um admirável equilíbrio entre
os aspectos comunitário e pessoal. Há também, especialmente a partir do século VI, um
magnífico desenvolvimento do canto litúrgico, que contribui a dar ao culto cristão um
tom de solenidade e de elevação artística que atrai e comove o povo.

Formação dos livros litúrgicos

Nesta época começam a se formar os livros litúrgicos. Até então cada presidente
da celebração litúrgica costumava improvisar livremente as fórmulas das orações -
seguindo, isso sim, um esquema fixo - e não tinha necessidade de lê-Ias em nenhum
livro. Cada vez se fez mais aguda a necessidade de recolher por escrito as fórmulas mais
felizes, seja para tomar a utilizá-las em outras ocasiões, seja para satisfazer as demandas
procedentes de outras comunidades. Pouco a pouco foram se selecionando algumas
destas recopilações ou coleções, por razão de sua qualidade literária e doutrina ou pelo
prestígio de seus autores. As compilações mencionadas deram lugar à criação dos livros
litúrgicos, que recebem nomes diversos segundo seu conteúdo e finalidade.

Em primeiro lugar, temos os denominados sacramentários, que não são - como


seu nome poderia induzir a pensar - o que hoje chamamos de rituais dos sacramentos,
mas constitui o livro do celebrante, uma vez que contém as orações presidenciais tanto
para a celebração eucarística como para a dos sacramentos. Os mais importantes do rito
romano são o chamado Veronense ou Leoniano, que contém recopilações de textos
escritos pelo papas Leão, Gelásio e Vigílio; o Gelasiano antigo, atribuído por erro ao
papa Gelásio, mas que na realidade é uma coleção de textos litúrgicos que se utilizavam
nas igrejas presbiterais de Roma; o Gregoriano, que tem como base a coleção pessoal do
papa são Gregório e que se nos conservou em diversos tipos, entre os quais se destacam
o do papa Adriano, o de Pádua, o revisto por Alcuino, etc.

Depois temos os lecionários, que contém os fragmentos bíblicos que se


proclamam na celebração da eucaristia, seguindo o curso dos domingos e das festas.
Primeiro se utilizava diretamente a Bíblia, mas depois se descobriu mais prático
distribuiu ordenadamente os fragmentos escolhidos para cada celebração. Na liturgia
hispanomozárabe o lecionário recebe o curioso nome de Liber commicus, que quer dizer
simplesmente livro dos “comma” ou fragmentos. Temos que falar também dos
antifonários, que contém os cantos e, finalmente, dos “ordines”, que são os livros das
rubricas, isto é, as normas e orientações para celebrar como é devido. Estes livros não se
usavam em Roma, uma vez que todos conheciam a ordem da celebração, mas foram
redigidos para serem enviados às demais igrejas, que queriam usar os livros romanos.
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Principais elementos do rito romano

A respeito da missa, temos uma descrição muito clara num destes ordines dos
quais acabamos de falar, o denominado ordo I, que descreve a missa papal do dia de
Páscoa. Um rasgo característico da missa romana desta idade de ouro é que ao esquema
tradicional da celebração eucarística - formado pela liturgia da Palavra e a liturgia
eucarística -, se acrescenta a ritualização de três movimentos da assembléia: sua
formação ou reunião, e os movimentos que precedem e seguem à grande oração
eucarística (ofertório e comunhão). Em cada um destes movimentos se organiza uma
procissão, acompanhada de um canto e acabada com uma oração. presidencial e o
Amém do povo. Outro fenômeno típico da missa romana é que a oração dos fiéis
desaparece praticamente - só se utiliza na cerimônia da Sexta-feira Santa - e permanece
um vestígio nas invocações do Kyrie no início da missa. A oração eucarística (o cânon)
permanece fixo e invariável, porém contando com uma grande variedade e riqueza de
prefácios. Também se ritualiza a proclamação do evangelho, que fica reservada ao
diácono. e vai precedida de uma procissão acompanhada de luzes, incenso e a
aclamação do Aleluia.

No final da época, por influência de papas de origem oriental, se acrescenta a


commixtio, o canto do Gloria e do Agnus Dei. Em todo este período, destaca-se por sua
importância a missa “estacional” em Roma, isto é, a que o papa celebra em diversas
igrejas e que, de certa maneira supre a antiga “assembléia única”, que agora já é
impossível, dado o elevado número de membros da comunidade. A participação do povo
continua sendo plena, mas já começam a advertir-se alguns sintomas de passividade,
especialmente no que se refere aos cantos, que cada vez se fazem mais difíceis e ficam
reservados a uma schola cantorum e também pelo que se refere à comunhão, ao
introduzir-se idéias procedentes do Oriente que, insistindo no caráter “terrível” do
Sacrifício eucarístico, afastam os fiéis da mesa do Senhor.

Quanto ao ano litúrgico, temos que destacar que o domingo se converte


oficialmente em dia de repouso, com o qual a celebração eucarística pode ter lugar com
mais amplitude e solenidade. Por seu turno, a quarta e sexta feiras se estabilizam como
dias estacionais de jejum e oração. Os diversos tempos litúrgicos adquirem um matiz
próprio e estável. O mesmo impulso de sincretismo religioso que fez com que o dia do
Sol se convertesse no domingo cristão, fez com que a festa do Natalis Solis Invicti (25
de dezembro) se convertesse no Natal de nosso Senhor Jesus Cristo. Como preparação
para o Natal, se constituem as quatro semanas de Advento. Por seu turno, a celebração
anual da Páscoa se estrutura no Tríduo Pascal (sacratissimum triduum crucifixi, sepulti,
suscitati), formado pela Sexta-feira Santa, o Sábado Santo e a Vigília Pascal. E se
organiza um tempo de preparação de quarenta dias (Quaresma) e um de prolongação de
cinqüenta dias (Tempo pascal) que culmina na festa de Pentecostes. Até o final desta
época aparecem festas especiais dedicadas a Maria, e se fazem também memórias de
mártires e outros santos, mas quase sempre com um caráter local.

No campo dos sacramentos, a iniciação cristã consegue a máxima solenidade. A


Quaresma é o tempo da última preparação dos catecúmenos para o batismo, que se
celebra com todo esplendor no marco da Vigília pascal. Também os penitentes praticam
17

a penitência imposta durante o tempo quaresmal e são reconciliados na Quinta-feira


Santa, na “missa de reconciliação dos penitentes”. Toda a Igreja assume os catecúmenos
e os penitentes, e participa ativamente no processo de conversão, penitência e
reconciliação. Vai nascendo a idéia de que todos somos pecadores, mas a penitência é
sempre pública, e ainda se desconhece a prática da penitência sacramental privada. As
ordenações se celebram de acordo com a antiga tradição, e o povo colabora de uma
maneira mais ou menos ativa na eleição dos candidatos. Além das denominadas ordens
maiores (episcopado, presbiterato, diaconato), há três ordens menores (leitor, acólito e
subdiácono), que não são conferidas pela imposição das mãos, mas por uma oração
acompanhada da entrega dos instrumentos próprios de cada um destes ministérios.

Uma liturgia cada vez mais cerimoniosa

A liturgia cristã mais primitiva se caracterizava por sua simplicidade, tanto no


que diz respeito aos ritos como ao estilo das orações. A idade de ouro da liturgia romana
começa a introduzir nas celebrações elementos que distanciam da sobriedade original.
Neste fenômeno, teve muita incidência o fato de que, a partir de Constantino, o
cristianismo foi cada vez mais protegido pelos imperadores. Na época anterior, o culto
pagão ao imperador era considerado pelos cristãos como idolatria, e por isso se negaram
de conceder-lhe o título de Kýrios (reservado unicamente a Deus e a Cristo), a fazer a
proskýnesis ou prostração e a queimar incenso diante de sua imagem. Renunciando o
imperador a suas prerrogativas divinas, muitos destes ritos se conservaram
simplesmente como cerimonial da corte e, por um curioso processo de mimetismo, se
transpuseram também à liturgia, como sinais de honra e reverência para com os
ministros sagrados.

Se o imperador concedeu aos dirigentes da Igreja honras e privilégios


equivalentes aos que correspondiam aos dignitários do Império e à sua própria
dignidade imperial, era natural que os bispos - especialmente o de Roma - tivessem
direito ao anel, a ser saudados com a genuflexão e com o beijo no pé, a usar o trono, a
levar manipulo e a ser acompanhados com luzes e incenso.

Todos estes ritos provenientes do cerimonial da corte imperial foram adotados


nas celebrações litúrgicas, com o que a liturgia romana - se bem que sempre mais
austera que a oriental - foi adquirindo um tom hierático e rígido que não sintonizava
com os gestos simplicíssimos da Igreja primitiva.

V. AS CRISES MEDIEVAIS

A Idade Média é um período de uma grande vitalidade em todas as ordens da


vida eclesial, mas também uma época de crises profundas. A Liturgia se viu muito
afetada pelas crises medievais, tanto nos séculos que constituem a chamada Idade
Média (VIIIXII como nos que formam a baixa Idade Média (XIII-XV).
18

A alta Idade Média

Uma série de causas configuram a situação crítica da liturgia no início da época


medieval, entre as quais estão as culturais, as políticas e especialmente as eclesiásticas.
As causas culturais estão relacionadas na história do Ocidente com a entrada de novos
povos, os bárbaros, com outra mentalidade e com línguas que não são a latina. A liturgia
romana é fraca para enfrentar o choque com este novo mundo. Mantém-se o latim, mas
o povo não entende mais, e assim a liturgia perde uma de suas dimensões mais
importantes: a capacidade de evangelização popular. Por outro lado, a mentalidade
religiosa dos povos bárbaros, caracterizada por um terror diante da divindade, um
grande individualismo e um forte sentimento de culpabilidade, motivará que todos estes
elementos vão impregnando toda a liturgia.

Entre as causas políticas, temos que assinalar o fracionamento do Império


romano no Ocidente, que dá lugar à formação das futuras nacionalidades européias e
produz um enfraquecimento notável do prestígio de Roma. A invasão dos árabes
contribui ainda
mais para o afastamento de grandes setores do Ocidente da influência romana, enquanto
que as lutas contínuas entre príncipes cristãos e contra os invasores muçulmanos não
favorecem o desenvolvimento da vida litúrgica.

Entre as causas especificamente eclesiásticas, temos que destacar a perda do


prestígio da instituição papal por culpa da indignidade de muitos dos ocupantes da sede
de Pedro, ao lado de uma decadência geral da vida cristã em todos os estamentos. Ao
mesmo tempo se produz uma mudança de mentalidade teológica no que se refere à
compreensão da essência e finalidade da Igreja. Como conseqüência das lutas
antiarianas, a reflexão teológica insiste na divindade de Cristo, mas, de certo modo,
Cristo fica deslocado da Igreja: esta não é mais o corpo de Cristo, que na liturgia dá
culto ao Pai por meio do mesmo Cristo, mas uma espécie de sociedade religiosa -
dirigida pela hierarquia - que adora a Cristo. _ conseqüência mais clara de tudo isso é
que a liturgia se clericaliza, os ritos se complicam e ficam estereotipados, o povo se
converte em sujeito passivo.

Outras conseqüências negativas para a liturgia é que perde o sentido da unidade


do mistério cristão e o sentido de assembléia ou comunidade: por culpa do
obscurecimento da presença de Cristo na comunidade litúrgica dos fiéis, se esquece a
integração de cada cristão no corpo de Cristo, e a missa, por exemplo, deixa de ser um
ato comunitário para converter-se numa devoção privada do sacerdote ou de cada um
dos fiéis assistentes. Também se perde o sentido pascal da celebração cristã: não domina
mais a ação salvadora de Deus mas o esforço humano de tipo devocional, e se dá mais
importância aos aspectos sentimentais da meditação da Paixão de Cristo do que à
dimensão mistérica da fé na ressurreição.

A evolução histórica da liturgia nesta época segue os passos seguintes:


plenamente decadente em Roma, a liturgia romana é adotada no Império franco-
germânico (séculos VIII-IX) por Pipino I e Carlos Magno. Flexível como é, recebe
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profundas influências galicanas nos ritos e nas orações (séculos IX-X). Esta nova
liturgia franco-romana se imporá outra vez a Roma (séculos X-XI) e daí em todo o
Ocidente. E é esta liturgia romana, modificada pela mentalidade franco-germânica, que
perdurará até a reforma do Concilio Vaticano n. .

Uma descrição rápida das principais características da liturgia desta época chama
a atenção sobre os aspectos seguintes: a missa se enche de “apologias”, isto é, de
confissões de indignidade por parte do sacerdote celebrante, recitadas antes de começar
a missa, ao ir ler o evangelho, no momento do ofertório e antes de comungar; abandona-
se o catecumenato, por culpa da generalização do batismo de crianças; a partir do século
VII nasce e se difunde a penitência privada, devido ao abandono da pública,
considerada demasiado rígida, e pela nova mentalidade dos povos bárbaros; o
matrimônio começa a cair sob o controle jurídico da Igreja; a liturgia pontifical,
sobretudo por ocasião das ordenações, se dramatiza e complica extraordinariamente; o
oficio divino, por influência monástica, abarca todas as horas canônicas, se enriquece e
complica, mas o que ganha em longitude e solenidade perde em popularidade, de modo
que cada vez mais se considera exclusivo dos monges e dos clérigos, até converter-se
numa obrigação individual para eles. Em aparência as celebrações litúrgicas são solenes
e ricas, mas na realidade são uma espécie de andaime sem base popular.

A baixa Idade Média

Em linhas gerais, os defeitos litúrgicos nascidos na alta Idade Média


(formalismo, confusão doutrina, rubricismo, clericalismo) continuam ao entrar na época
conhecida como baixa Idade Média e, de certo modo se convertem em mais perniciosas
até o ponto que, no final deste período, se chega a uma situação lamentável marcada
pelas superstições e os abusos. Esta situação é a que denunciarão os reformadores
protestantes e a que o Concílio de Trento tentará superar.

Quanto ao estado da missa, observamos que decai totalmente a participação do


povo, que é suprida pela simples contemplação e adoração da hóstia no momento da'
elevação. Todos os historiadores da liturgia se surpreendem da audácia que supôs nos
inícios do século XIII a introdução do rito espetacular da elevação da hóstia e, bastante
tempo depois, a do cálice. Era um rito que rompia o ritmo interno da oração eucarística
e fazia mudar o sentido profundo da celebração da missa, ao colocar o centro de atenção
não na ação de graças tributada ao Pai por meio de Cristo na unidade do Espírito Santo,
mas na adoração de Cristo presente sob as espécies eucarísticas. E tanto mais audaz era
a inovação quanto mais provinha, de fato, da vontade de satisfazer um desejo mais bem
supersticioso do povo. Seja como for, este rito se consolidou e, aos olhos do povo, se
converteu no momento realmente culminante da missa, o único verdadeiramente
sagrado e digno de ser vivido no silêncio e atenção mais respeitosos. O que antes era
assembléia, caridade, sacrifício e comunhão se reduz agora a adoração das espécies
eucarísticas. De modo similar, Corpus Christi se converte na festa mais importante do
ano litúrgico, superior na solenidade à própria festa da Páscoa, e se começa a
desenvolver a “piedade eucarística” num sentido muito distante do primitivo.

Outras características da celebração da missa é que se conservam com esplendor


20

exterior, mas sem a participação ativa do povo, as missas conventuais e paroquiais e,


por outro lado, a devoção acentua as missas privadas em sufrágio dos defuntos, em
honra dos santos e por diversas intenções particulares. A abundância e variedade das
apologias recitadas na missa é enorme e confusa. A dramatização de certos gestos toma-
se exagerada, até ao ponto que na verdade vão se separar da liturgia propriamente dita e
se converter no germe do teatro religioso medieval. Os abusos dos estipêndios (esmola
para a celebração de uma missa), na multiplicação de missas e nos aspectos
supersticiosos se tomam francamente intoleráveis. O culto litúrgico continua sendo
pomposo e solene, mas o povo se encontra em plena ignorância e no meio de um grave
abandono pastoral.

Quanto aos sacramentos, desaparece na prática o batismo de adultos e, com ele,


o catecumenato. Suprime-se a entrega do Pai-nosso, do Credo e dos Evangelhos. A
confirmação, que a partir do século IX havia começado a se separar do batismo, ao ficar
no Ocidente reservado para o bispo, cada vez se celebra mais como um sacramento
independente, e em sua realização fica mais destacada a unção do que a imposição das
mãos. A penitência privada se consolida e se vai convertendo na maneira mais habitual e
normal de celebração deste sacramento. Os ritos das ordenações, por influência da
mentalidade galicana, se dramatizam e complicam enormemente, com uma particular
insistência sobre os ornamentos, as unções e a entrega dos instrumentos próprios de
cada ministério. O matrimônio, em cuja regulamentação jurídica a Igreja se sente
autorizada a intervir, se celebra na porta da igreja, com uma investigação prévia e com
pedido expresso do consentimento o uso germânico introduz o anel com seu simbolismo
de aliança e de sujeição ao mesmo tempo, se bem que conservando uma grande
variedade de ritos locais.

No campo da oração litúrgica, se produz o fenômeno de que o oficio divino,


como celebração comunitária, entre em crise. Enche-se de acréscimos (oficios da
Virgem e de defuntos, preces litânicas, salmos penitenciais, etc.) e se converte numa
pesada carga para os clérigos que, progressivamente vão abandonando a recitação
comunitária. São Francisco de Assis introduz a norma de rezar o ofício inclusive fora do
coro, de uma forma plenamente individual e, para facilitar este costume, se publicam os
“breviários” que, por um lado, representem a união num só volume os diferentes livros
necessários para a recitação coletiva e, por outro, significam uma notável redução e
simplificação do oficio divino. Os breviários franciscanos se espalharão por todas as
partes e se converterão em modelo para todos os futuros livros de horas dos religiosos e
clérigos.

Com tudo isto, a vida espiritual do povo cristão caminha à margem e fora do
marco litúrgico. Há um aumento notável.. das devoções privadas, algumas das quais se
popularizam - como, por exemplo, o rosário e a via-crucis e servem para alimentar e
manter a piedade dos cristãos, tanto dos leigos como dos clérigos e religiosos. De certo
modo, inclusive a própria liturgia se converte em uma devoção, como pode se deduzir
da afeição pelas missas votivas, pelas missas em honra de santos determinados, pelas
séries de missas aplicadas por intenções particulares. Na época medieval há um
florescimento exuberante da mística, mas reduzida a minorias muito pequenas e, em
geral, distantes das formas litúrgicas da oração.
21

Uma avaliação de conjunto desta época nos permite observar que o povo está
sumido na ignorância, na superficialidade e na superstição. Todos estes elementos
originarão uma forte crise, que dará lugar à reação da Reforma protestante.

VI. A OBRA DE TRENTO

No século XVI a situação da Liturgia no Ocidente é lamentável. Pode comparar-


se a um cadáver ricamente adornado mas sem vida e com sintomas de decomposição.
Os ritos e as cerimônias são executados sem sentido pastoral e acompanhados de uma
série de abusos e superstições.

A anarquia é muito grande e o povo permanece afastado da liturgia, cumprindo


só com o mínimo de assistência que lhe são exigi das se não quiser incorrer em sanções
canônicas. Neste ambiente, é natural que surjam vozes de protesto, entre as quais
destacam as de Lutero e seus seguidores. Os reformadores acusam com muita razão a
decadência.ela liturgia, sua falta de espírito evangélico. Exigem o uso da língua do
povo, a participação efetiva da assembléia, a recitação do cânon em voz alta (recitação
que, desde séculos, por causas não suficientemente explicadas, se fazia em segredo), a
simplificação de muitos ritos, isto é, uma série de coisas que a Igreja católica acabará
concedendo, mas com quatro séculos de atraso, na reforma litúrgica do Concílio
Vaticano II.

Abusos Da celebração litúrgica

O estado de prostração da liturgia romana era reconhecido por todo aquele que
olhasse os fatos com objetividade. O próprio Concílio de Trento (1545-1563), que foi
convocado para sair ao encalço das inovações dos reformadores, estudou detidamente a
situação das celebrações litúrgicas, especialmente a missa, e elaborou uma lista ou
catálogo dos principais abusos que tinham sido introduzidos na nossa maneira de
celebrar. Resulta iluminador repassar alguns destes abusos e defeitos, já que, por um
lado, refletem a situação da época e, por outro, revelam até que contra-sensos pode
chegar a prática da liturgia quando se perde de vista sua verdadeira natureza.

Alguns dos abusos denunciados pelos padres do Concílio de Trento manifestam


uma perda do sentido autêntico de comunidade ou assembléia: “E um abuso que, nos
domingos e festas não se digam as missas próprias ordenadas pela Igreja, e em seu lugar
se dizem missas votivas ou de defuntos. Também é um abuso que se celebrem
simultaneamente duas ou mais missas, tão perto umas das. outras que mutuamente se
estorvem. Outro abuso é que, enquanto se canta a missa solene se celebram ao mesmo
tempo outras missas privadas. Há que considerar se não seria melhor celebrar menos
missas, já que a excessiva abundância faz que os sacerdotes e os sacramentos se
envileçam” .

Outra série de abusos refere-se a um conceito equivocado da eficácia das


palavras sacramentais: “E um abuso que alguns, quando dizem a missa, não mantêm a
22

gravidade, mas pronunciam as palavras sagradas de uma maneira totalmente histriônica


e, como se fizesse teatro, algumas vezes levantam a voz estentoreamente e outras vezes
murmurejam em voz baixa, e assim recitam a tropeções umas palavras que deveriam ser
ditas com o mesmo tom sério e comedido. Há outros que, quando chegam às palavras da
consagração achegam a boca à hóstia e ao cálice e, como se fizessem o alento sobre
elas, dizem pouco a pouco cada uma das palavras da consagração e fazem com a cabeça
o sinal da cruz, como se estes gestos conferissem mais força consecratória às palavras
do Senhor ou toda a virtude da consagração estivesse colocada neste tipo de gesto:
quando as palavras da consagração devem ser ditas de uma maneira simples sobre a
hóstia e sobre o cálice”.

Finalmente, os padres tridentinos assinalam vários abusos relacionados com o


sentido mágico dos ritos: “Não está bem que sobre a hóstia consagrada se façam mais
cruzes e sinais do que os que estão estabelecidos, como se faltasse algo à consagração.
Além disso, alguns executam as cruzes que devem ser feitas sobre a hóstia e o cálice de
tal maneira que, mais -que fazer o sinal da cruz, parece que gesticulam, provocando
assim a hilaridade aos assistentes. Outros, depois da consagração, tomam com ambas as
mãos a hóstia e, mantendo a cabeça inclinada, a erguem levando-a até a nuca, tocando
muitas vezes os cabelos, com o grave perigo de rompê-la”. O Concílio de Trento
também considerou abusivas algumas das práticas que se faziam por motivo da festa de
Corpus Christi: “E um abuso que nas procissões de Corpus Christi enfeitam as ruas com
ornamentos, que são antes pinturas lascivas, nada dignas de tão magno espetáculo, e
inclusive às vezes pelas ruas se fazem bailes, danças e representações teatrais totalmente
profanas”.

A obra litúrgica do Concílio de Trento

O Concilio de Trento, consciente da situação lamentável da liturgia, tentou


remediar mas, devido à mudança para o terreno dogmático de muitas das questões que
necessitavam somente de uma reforma disciplinar, as decisões conciliares não
produziram todos os bons efeitos desejados. No dia 17 de setembro de 1562 se aprovou
um decreto sobre o que era necessário observar e evitar na celebração da missa, que
suprimiu muitos dos abusos, mas o Concílio não quis ceder em toda uma série de
reivindicações dos reformadores luteranos e, assim, manteve o latim, mas
recomendando “munições” e explicações que deveriam ser feitas durante a celebração
(norma que, de fato, não chegou a ser colocada em prática), continuou prescrevendo a
recitação do cânon em segredo e, na prática, não favoreceu a participação direta dos
fiéis na celebração litúrgica. De certa maneira, os padres do Concilio de Trento queriam
e temiam, como se podem perceber na norma sobre a língua popular na missa: “Mesmo
que a missa contenha uma grande instrução para o povo fiel, não pareceu oportuno aos
Padres que se celebre ordinariamente na língua do povo. Por isso, deve-se manter em
todos os lugares o rito antigo de cada Igreja e aprovado pela santa Igreja Romana, mãe e
mestra de todas as Igrejas. Mas, para que as ovelhas de Cristo não passem fome e os
pequenos peçam pão e não haja quem lhes dê, o santo Concilio manda aos pastores e a
todos os que têm cura de almas, por eles mesmos ou por outros, expliquem alguma das
coisas que se lêem na missa e, além disso, declarem algum mistério deste santíssimo
sacrifício, especialmente nos domingos e dias festivos”.
23

Em todo caso, o Concilio se centrou sobretudo nos esclarecimentos de tipo


dogmático. Os reformadores,certos em tantos aspectos litúrgicos e pastorais, negavam o
caráter sacrifical da missa. O Concilio estudou e esclareceu teologicamente este ponto,
afirmando o caráter sacrifical da missa e a presença real de Cristo na eucaristia. A
lástima foi que, no tratamento teológico da eucaristia, por razões meramente
extrínsecas, a doutrina se apresentara em três capítulos diferentes: a presença real
(sessão XIII), a comunhão (sessão XXI) e o sacrifício (sessão XXII). Esta separação dos
diversos aspectos da eucaristia teve um efeito distorcedor na teologia sacramental
posterior ao Concilio de Trento e dificultou a busca de uma síntese harmônica da
doutrina eucarística, o que repercutiu também na prática, motivando que, durante muito
tempo, o povo visse como realidades separadas o altar, a mesa de comunhão e o
sacrário.

Resumindo, podemos dizer que a obra litúrgica do Concilio de Trento apresenta


um aspecto mais positivo, que são os esclarecimentos teológicos sobre os sacramentos
em geral e a eucaristia em especial; um aspecto claramente negativo, a saber, a não
aceitação de muitas das reivindicações pastorais dos reformadores e, finalmente, um
aspecto ambivalente, o de reservar ao Papa toda decisão em matéria litúrgica: isso
constituía uma solução de emergência diante da anarquia reinante, mas manterá a
liturgia romana durante quatro séculos completamente petrificada.

Os novos livros litúrgicos

A última sessão do Concílio de Trento deixa nas mãos do Papa a publicação dos
novos livros litúrgicos, que terão que ser únicos e obrigatórios para toda a Igreja latina,
excetuando as dioceses ou ordens religiosas que creditem uma tradição própria de mais
de dois séculos de antiguidade, como ocorria com os dominicanos, os cartuxos, os
premonstratenses e as dioceses de Braga ou de Lyon.
Pio V edita o Breviarium romanum (1568) e o Missale romanum (1570);
Clemente VIII, o Pontificale romanum (1596) e o Caeremoniale episcoporum (1600);
Paulo V, o Rituale romanum (1614), que não se apresente como obrigatório, mas
somente recomendado: as diversas Igrejas locais podem continuar mantendo seus
próprios Rituais. Na edição de todos estes livros litúrgicos, se vê a boa intenção de
voltar às fontes antigas e genuínas da liturgia, mas, devido à falta de meios técnicos
adequados, a única coisa que a reforma tridentina faz é purificar e restaurar o rito
romano de acordo mais ou menos com a forma que tinha nos tempos de Gregório VII.

A grande novidade do Concílio de Trento é a uniformidade que se impõe a toda a


Igreja latina, uniformidade acompanhada de uma fixação das fórmulas litúrgicas e dos
ritos, uma vez que, dai em diante, não se poderá introduzir nela nenhuma modificação.
Para vigiar a manutenção desta liturgia fixa e inalterável, o Papa Xisto V cria, no ano de
1588, a Sagrada Congregação dos Ritos, cuja missão não é a de continuar a reforma mas
velar pelo exato cumprimento de todas as normas estabeleci das. Isso dá pé ao início do
que se costuma chamar “a era das rubricas”.
24

VII. A ERA DAS RUBRICAS

A criação da Sagrada Congregação dos Ritos, pelo papa Xisto V no dia 22 de


janeiro de 1588, marca o início da era das rubricas, durante a qual, e ao longo de quatro
séculos, a 1iturgia romana, sobretudo no que respeita à missa, permanece totalmente
petrificada. A mencionada Congregação foi instituída para resolver as dúvidas que a
utilização dos novos livros litúrgicos pudesse apresentar. Não podia mudar nem textos
nem rubricas, senão unicamente dar interpretações autorizadas de seu sentido; também
podia conceder dispensas e privilégios e, no único aspecto em que tinha algum tipo de
criatividade era na redação dos formulários das novas festas.

Em resumo, sua missão não era de continuar a reforma levada a cabo pelo
Concílio de Trento, mas velar a fidelidade quanto à sua aplicação. A Congregação dos
Ritos elaborou muitos decretos (uma coleção autêntica publicada em Roma entre os
anos 1898 e 1900 recolhe mais de 4.000). Esta tarefa de casuística detalhada e
minuciosa criou na Igreja católica o que alguns chamaram “complexo rubricista”, isto é,
a obsessão por cumprir escrupulosamente todas e cada uma das prescrições rituais
contidas nos livros litúrgicos, precisamente com mais fidelidade à “letra” que ao
“espírito” da norma. De modo que as “rubricas” (palavra que provém da palavra latina
rubrum – vermelho –, já que nesta cor figuravam escritas nos livros litúrgicos, em
contraste com o negro dos textos das leituras e orações), que num primeiro momento
eram simplesmente indicações de “corno se costuma” realizar um rito determinado, se
converteram finalmente em normas autoritárias e rígidas sobre “como deve” levá-lo a
cabo obrigatoriamente, sob pena de não validade ou ilicitude do ato ritual.

Influência da mentalidade barroca

A denominada Contra-reforma católica vai muito ligada ao espírito cultural da


época barroca. Depois da crise provocada pela Reforma protestante, a Igreja católica se
sente segura e forte, e as expressões exteriores da fé – adotam um ar triunfalista, mas se
pode afirmar que o espírito do barroco – e o autêntico sentido da liturgia eram
incompatíveis, apesar de que as celebrações litúrgicas barrocas fossem brilhantes e
espetaculares.

O motivo de tal incompatibilidade tem raiz no fato de que, durante esta época, a
Igreja católica acentua os pontos negados ou discutidos pelos reformadores protestantes,
e isso produz um desequilíbrio na prática serena da vida e da celebração cristã. Cada vez
mais se acentua a preeminência da presença real de Cristo na eucaristia, com omissão
dos demais aspectos do sacramento. Contra o sacerdócio comum dos fiéis, se insiste na
eminente dignidade do sacerdócio dos ministros ordenados, com uma separação cada
vez mais profunda entre o que o sacerdote faz e diz no altar e o que o povo fiel pratica
durante a celebração. Contra a missa na língua do povo, se chega a proibir a tradução do
missal, como fez o papa Alexandre VII em 1662 e, mesmo que apareçam devocionários
com explicações sobre o significado dos ritos da missa (geralmente com sabor
alegorizante), a única coisa que fazem é favorecer a participação indireta na celebração,
limitada aos uns poucos seletos.
25

Uma característica do barroco é a tendência aos aspetos periféricos da liturgia.


Os altares laterais se multiplicam, como também as imagens dos santos e de Maria; a
comunhão se separa do ambiente da missa e se converte em urna devoção privada; a
homilia transforma-se em “sermão”, sai da celebração eucarística e de seus textos, e se
desenvolve no “púlpito”, convertendo em cátedra de oratória sacra; guarda-se a reserva
eucarística, não na sacristia ou na parede, mas em sacrários em cima do próprio altar,
costume que não se generalizou totalmente até o decreto da Congregação dos Ritos do
ano de 1863; os sacrários são cada vez mais monumentais e faustosos, com
“templinhos” e baldaquinos, degraus, etc.; também se desenvolve a música sacra: é a
época do auge da polifonia, mas não orientada à finalidade de serviço ao culto, mas
corno um concerto que tem valor em si mesmo, de maneira que a igreja se converte em
um salão, com palcos e galerias, coro alto, etc., em que a missa é “ouvida”; há uma
grande riqueza e suntuosidade nos elementos artísticos, sobretudo nos imponentes
retábulos barrocos, em relação aos quais o altar maior fica reduzido à categoria de um
simples suporte ou zoco; as múltiplas devoções eucarísticas (quarenta horas, procissões,
exposições do Santíssimo) superam a missa em esplendor e solenidade, que é – segundo
o catecismo de Kettler, de 1734 – “uma das cinco maneiras de adorar a Cristo na
eucaristia”; neste culto eucarístico se introduz um cerimonial, de tipo cortesão, similar
ao que na época constantiniana foi se infiltrando nas cerimônias cristãs, mas naquela
ocasião tendo como destinatários os bispos e sacerdotes; agora, porém, é a Divina
Majestade de Cristo presente na eucaristia que recebe as honras que as cortes mundanas
tributam aos príncipes.

Tentativas reformistas do Iluminismo

Paralelamente aos desvios barrocos, surgem, na mesma época, uma série de


fenômenos positivos em relação à vivência e à compreensão da liturgia autêntica que,
não obstante, não chegam a fazer o contra-peso. Assinalemos a chamada “escola
francesa de espiritualidade” do século XVII, impulsionada por Bérule, Condren e Olier,
e centrada no conhecimento, meditação e vivência da liturgia; o costume dos cantos
populares na missa, espalhado sobretudo na Alemanha e que permite uma participação
frutuosa, se bem que indireta, na liturgia; os primeiros estudos litúrgicos de tipo
científico, a cargo especialmente de Mabillon e Muratori, graças aos quais se fazem
investigações sérias sobre os Pais da Igreja, se descobrem e se editam os antigos livros
litúrgicos romanos.

Com o século XVIII, aparece o fenômeno cultural do Iluminismo (Aufklärung),


que tem também sua repercussão na vida litúrgica da Igreja. Este movimento se faz eco
do descontentamento geral pela situação da liturgia e fomenta algumas tentativas de
reforma ou de renovação, que obedecem ao desejo de uma participação comunitária
mais intensa, à exigência de maior simplicidade, evitando no culto os elementos
supérfluos, e à necessidade de compreender racionalmente o que se diz e se faz na
liturgia, a fim de que o povo fiel receba dela iluminação e edificação. Estas tentativas,
não obstante, não tiveram o êxito esperado e, além disso, estavam demasiado imbuídos
de espírito moralizante e pedagógico, sem consideração pelos aspectos “mistéricos” do
culto cristão: o Iluminismo não considerava a liturgia como a ação salvadora de Cristo,
26

na qual participa a comunidade, mas como uma função educadora para o povo, um meio
para o progresso moral do indivíduo. Mas é importante sublinhar que estas tentativas
“iluministas” partem de uma idéia fecunda, que mais tarde orientará na reforma litúrgica
do Concilio Vaticano II: trata-se do princípio fundamental da “pastoral litúrgica”, isto é,
que a liturgia é a fonte primordial da vida cristã.

É sintomático que, em pleno século do Iluminismo, no ano de 1786, teve lugar a


celebração do sínodo diocesano de Pistoia (Toscana) que, embora em seu momento
recebesse o rechaço da autoridade central da Igreja, insistiu numa série de pontos
susceptíveis de reforma que, substancialmente coincidem com os que levou em conta o
Concilio Vaticano II: um único altar em cada igreja, participação ativa dos fiéis,
abolição do estipêndio da missa, redução das procissões, música simples, séria e
adaptada ao sentido da palavras, ornamentação que não distraia o espírito, reforma do
Breviário e do Missal, publicação de um novo Ritual, redução do número excessivo de
festas, leitura ao longo de um ano de toda a Bíblia no Ofício divino, etc.

Reação restauracionista

Muitas das tendências do Iluminismo provocaram, na época do romantismo,


uma reação no âmbito católico. Contra o racionalismo iluminista, se quer reafirmar a
primazia da revelação, do dogma e da tradição, e também o respeito à estrutura
hierárquica da Igreja.

Uma figura eminente da reação romântica e restauracionista no campo da


liturgia é o abade beneditino Prosper Guéranger (1805-1875), o qual propugna um
retorno à pura tradição romana, tanto no que se refere aos textos, cerimônias e rubricas,
como, especialmente, à música sacra. A restauração do canto gregoriano, considerado
como máximo expoente musical da autêntica tradição romana e o modelo mais perfeito
de música sagrada, é uma das tarefas principais a que se dedicam os monges da abadia
francesa de Solesmes, sob a direção de Guéranger.

Mas este movimento, benemérito em tantos aspectos, não patrocina ainda com
suficiente convicção a participação do povo na celebração litúrgica. O culto cristão é
considerado como uma realidade intocável e misteriosa, obra perfeitíssima e inspirada
diretamente pelo Espírito Santo, que deve permanecer inalterável, à margem de toda
evolução histórica. O abade de Solesmes se mostra inimigo das chamadas “liturgias
neogalicanas”, que haviam se proliferado na França ao longo do século XIII, e luta por
uma volta incondicional aos livros autênticos da tradição romana pura, que comenta em
suas obras, especialmente na mais famosa, L'année liturgique.

A mentalidade de Guéranger pode ser condensada nas seguintes afirmações: a


liturgia é a oração do Espírito na Igreja, é a voz do Corpo de Cristo, da esposa que ora
no Espírito; na liturgia há uma presença privilegiada da graça; na liturgia se encontra a
expressão mais genuína da Igreja e de sua tradição; a chave para a compreensão da
liturgia é a leitura cristã do Antigo Testamento e do Novo Testamento fundamentada no
Antigo. Em resumo: na celebração da liturgia se faz vivo e presente todo o mistério da
Igreja.
27

Não resta dúvida que as idéias e a atividade de Prosper Guéranger constituem o


ponto de partida do que, a partir de princípios do século XX, se converterá no chamado
“movimento litúrgico”, que culminará, uma vez perpassada a metade do mesmo século,
na reforma litúrgica do Concilio Vaticano lI.

VIII. A REFORMA DO VATICANO II

A última etapa da história da liturgia é a época iniciada pela promulgação da


constituição Sacrosanctum Concilium sobre a sagrada liturgia, realizada no dia 4 de
dezembro de 1963 por Paulo VI junto com todos os bispos da Igreja católica, reunidos
no Concílio Vaticano II. Esta constituição deu luz verde a uma reforma profunda e
extensa da liturgia romana, que abriu um período radicalmente novo em comparação
com as etapas anteriores.

Mas a reforma litúrgica do Vaticano II não foi um fenômeno aparecido como por
arte de magia, mas um fruto colhido do movimento litúrgico, preparado pela obra de
dom Guéranger e surgido em princípios do século XX.

O movimento litúrgico

A irradiação dos monges de Solesmes chega à Alemanha com a fundação da


abadia de Beuron e, mais tarde, à Bélgica, com as abadias de Maredsous e Mont César.
A restauração do canto gregoriano encontra uma acolhida favorável no papa Pio X, que,
com o motu proprio “Tra le sollecitudini” (1903), dá normas sobre o canto que deve se
usar no culto e convida, ao mesmo tempo, aos fiéis a participar ativamente na
celebração da liturgia, que é “a fonte primeira e indispensável do verdadeiro espírito
cristão”. Esta participação é mais perfeita quando se faz através da comunhão
sacramental: por isso Pio X fixa as condições para a comunhão freqüente dos fiéis
(1905) e adianta a idade da recepção da primeira comunhão (1910).

As disposições do papa encontram acolhida em muitos pastores preocupados


com o fomento da vida litúrgica. Na Bélgica é dom Lambert Beauduin, monge de Mont
César, que lança uma verdadeira cruzada em favor da participação dos cristãos nas
celebrações e, para consegui-lo, publica um missal popular e organiza cursos e
conferências para sacerdotes. Outro monge, Gaspar Lefebvre, da 1ibadia de Saint-
André, de Bruges, edita também um Missal para os fiéis, que tem uma ampla difusão e é
traduzido em diversas línguas. Na França, o jesuíta Paul Doncoeur inicia os jovens na
participação litúrgica fomentando a prática da chamada “missa dialogada”, que
posteriormente terá muita importância nos movimentos apostólicos da juventude. Na
Alemanha, temos que destacar a obra de Romano Guardini e de dom Odo Casel monge
de Maria Laach, que tem uma influência importante no âmbito intelectual. Por outro
lado, na Áustria, com a atuação de Pius Parsch, o movimento litúrgico recebe uma
forma mais popular. Também tem eco popular o movimento litúrgico iniciado na
Catalunha - com bastante antecipação em relação ao resto da Espanha - com o I
28

Congresso Litúrgico de Montserrat (1915), que dá como frutos mais visíveis a edição do
Eucologi, de Lluís Carreras, as publicações do Foment de Pietat e a fundação da
Associação gregorianista, sob a direção do padre Gregori M. Sunol, monge de
Montserrat.

Depois da segunda guerra mundial, o movimento litúrgico adota uma finalidade


um pouco diferente: se até Então se tratava de por a liturgia existente ao alcance do
povo e promover o canto gregoriano, agora se vê mais claramente a necessidade de uma
reforma profunda dos ritos e de uma introdução, mesmo que parcial, da língua do povo
na celebração litúrgica. Um fato importante é a criação em Paris do Centro de Pastoral
Litúrgica, que, com a revista “La Maison-Dieu”, a edição de livros e fascículos e a
organização de sessões e congressos, chega a ter uma grande influência em toda a
Igreja. Seguindo este exemplo, em 1958 se criou o Centro de Pastoral Litúrgica de
Barcelona.

O papa Pio XII, sem ser pessoalmente um entusiasta da liturgia, aceita o papel
impulsionador da renovação litúrgica, com uma série de iniciativas que vão preparando
o caminho para uma reforma mais profunda. A encíclica Mediator Dei (1947), redigida
para sair ao encalço de certos exageros “panliturgistas”, serve de fato para sancionar os
resultados positivos do movimento litúrgico e abrir o caminho para um conceito e uma
vivência da liturgia superadores das perspectivas “estética” e “jurídica” em que alguns
corriam o perigo de encerrar-se. Em 1953 Pio XII simplifica as normas sobre o jejum
eucarístico, com a finalidade de facilitar a celebração vespertina da missa. Em 1951
restaura a Vigília Pascal, situando-a outra vez na noite do Sábado Santo e reformando-
lhe alguns ritos, com a grande inovação do uso litúrgico da língua do povo na renovação
das promessas batismais. E em 1955 completa a reforma da Semana Santa com uma
renovação profunda dos ritos e os horários da Quinta e Sexta-feira Santa. Também é
importante a autorização dos Rituais bilíngües e a simplificação das rubricas do
Breviário, que culmina, já no pontificado de João XXIII, com a publicação do Código
das rubricas (1960).

A Constituição Sacrosanctum Concilium

Não deixa de ser sintomático que o primeiro resultado do Concílio Vaticano II


(19621965) tenha sido a constituição sobre a liturgia. Mesmo sendo certo que o motivo
determinante desta prioridade foi que, depois da recusa inicial de abordar o esquema
dogmático, os altos dirigentes do Concílio se deram conta que o esquema litúrgico era o
melhor preparado, também é certo que, objetivamente falando, a reforma da liturgia era
muito adequada para cumprir as finalidades essenciais do Concílio, que, como diz a
constituição litúrgica, eram estas quatro: “fomentar sempre mais a vida cristã entre os
fiéis; acomodar melhor às necessidades de nossa época as instituições que são
suscetíveis de mudanças; favorecer tudo o que possa contribuir para a união dos que
crêem em Cristo; e promover tudo o que conduz ao chamamento de todos ao seio da
Igreja”.

Efetivamente, a revitalização da existência cristã se encontra sobretudo na


revitalização da liturgia “fonte e cume de toda a vida cristã”. Se em algum aspecto da
29

vida eclesial as estruturas necessitavam de uma reforma urgente, era precisamente no


campo litúrgico, repleto de resíduos esclerosados do passado, incompreensíveis ao povo
de hoje e causa de afastamento, por parte dos fiéis, das fontes genuínas da piedade. Um
rejuvenescimento de um aspecto tão vital para a Igreja não podia deixar de produzir
impacto aos olhos dos demais cristãs, muitos deles comprometidos também com uma
tarefa reformadora e animados a um retomo à vida litúrgica. Finalmente, o diálogo com
o mundo só é possível quando a Igreja se afirma tal como é autenticamente: o mundo
deve saber que a finalidade própria e específica da Igreja não é de tipo cultural,
humanitário ou social, mas estritamente litúrgico, de glorificação a Deus e de
santificação dos seres humanos.

O texto da constituição Sacrosanctum Concilium se compõe de uma introdução,


sete capítulos e um apêndice, com um total de 130 números ou artigos. Na introdução se
declara a intenção do Concilio ao tratar do fomento e da reforma da liturgia, insistindo
na vinculação desta reforma com os demais .aspectos da renovação da Igreja. O capítulo
primeiro é mais extenso e importante desde todos os pontos de vista. Leva o seguinte
título: “Os princípios gerais da reforma e do incremento da liturgia”. E interessante
observar que a intenção primeira do Concilio, se levamos em conta este título, é
reformar a liturgia, condição indispensável para passar depois a fomentar entre os fiéis o
amor à vida litúrgica. Constitui um reconhecimento claro do estado decadente a que
tinha chegado a liturgia, por culpa do qual era quase impossível exigir dos fiéis uma
autêntica conexão de sua vida de piedade com as celebrações litúrgicas,
esplendidamente isoladas do povo em uma perfeição hermética e inacessível.

Numa primeira parte, que ocupa os números 5-13, se trata dos aspectos
doutrinais da liturgia. De certo modo é o núcleo de toda a Constituição. Numa
linguagem eminentemente bíblica e patrística se recolhem os resultados das
investigações teológicas sobre a natureza da liturgia e se insiste em sua importância para
a vida da Igreja. A segunda parte (14-20) está dedicada à necessidade. de promover a
educação litúrgica e a participação ativa. A terceira parte, de uma importância capital,
expõe já os princípios que devem regulamentar a reforma. Estabelecido o princípio
fundamental, que é o da transparência dos sinais utilizados na liturgia (21), se dão as
normas gerais (22-25), as normas derivadas da índole da liturgia como ação hierárquica
e comunitária (26-32), as normas derivadas do caráter didático e pastoral da liturgia (33-
36) e, finalmente, as normas para adaptara liturgia à mentalidade e às tradições dos
povos (37-40). Acabadas as considerações sobre a reforma litúrgica, em duas breves
partes se fala do fomento da vida litúrgica nas dioceses e na paróquia (41-42) e do
fomento da ação pastoral litúrgica (43-46).

Os demais capítulos da constituição descrevem os aspectos essenciais da liturgia,


dando uma breve orientação doutrinal sobre os mesmos e os princípios que devem se
observar I!° trabalho reformador. O capítulo segundo fala do “sacrossanto mistério da
eucaristia”. E o núcleo de toda a liturgia, lugar que dá luz e calor às demais celebrações
litúrgicas. O titulo não fala do “sacramento” da eucaristia nem do “sacrifício” da missa,
mas, englobando numa só palavra carregada de ecos patrísticos suas diversas facetas, do
“mistério” da eucaristia. Ocupa os números 47-58. No capítulo terceiro se incluem os
demais sacramentos e sacramentais. Depois de umas considerações de tipo geral (59-
63), se trata do batismo (64-70), da confirmação (71), da penitência (72), da unção dos
30

enfermos (73-75), da ordem sagrada (76) e do matrimônio (77-78). Finalmente, nos


números 79-82 se dão normas para a revisão de alguns sacramentos mais importantes. O
capítulo quarto (83-101) contém a doutrina e os princípios de reforma do oficio divino.
O quinto (102-111) se dedica ao ano litúrgico, e os dois últimos capítulos falam da
música sagrada (112-121) e da arte e os objetos sagrados (122-130). O apêndice oferece
uma declaração do Concilio sobre a revisão do calendário.

As diretrizes mais importantes que a constituição Sacrosanctum Concilium dá


para a reforma da liturgia estão em relação com as deficiências mais notáveis existentes
na vida litúrgica dos cristãos: a desconexão com a Palavra de Deus e a perda do sentido
comunitário. Por culpa destes fatores a religiosidade de muitos católicos tinha perdido
contado com a fonte genuína, que é sempre a Palavra de Deus como expressão de sua
vontade e de seu desígnio de salvação, e se havia refugiado num individualismo
egocêntrico e de horizontes muito limitados. A Igreja deseja agora reformar a liturgia
nesta dupla direção: abrir com maior abundância os tesouros da Palavra de Deus e
destacar com mais intensidade e eficácia o aspecto comunitário das ações litúrgicas.

Itinerário da reforma litúrgica

Uma vez publicada a constituição Sacrosanctum Concilium, o trabalho


reformado da liturgia que se leva a cabo segue com fidelidade as diretrizes deste
importante documento conciliar. No dia 29 de janeiro de 1964 o papa Paulo VI cria uma
comissão encarregada de por em prática a, constituição conciliar, o Consilium ad
exsequendam Constitutionem de sacra Liturgia. E um organismo composto por
cinqüenta cardeais e bispos e mais de duzentos especialistas de todo o mundo católico:
seu presidente é o cardeal Giacono Lercado, arcebispo de Bolonha, e seu secretário o
Pe. Annibale Bugnini, verdadeiro artífice da reforma. O primeiro fenômeno que se
produz é a inigualável invasão da língua do povo em todo o âmbito das celebrações
litúrgicas, de tal modo que em 1971 é autorizado o uso integral dos idiomas próprios de
cada país tanto na celebração do oficio divino como da missa e de todos os sacramentos.
A introdução da língua do povo suscita o desejo de um número maior de orações, já que
as línguas vivas não suportam o fixismo de uma língua morta, como é o latim, e assim
se chega inclusive a enriquecer a missa com três novas orações eucarísticas, rompendo a
tradição multissecular da liturgia romana de usar um só texto (o Cânon).

Em menos de um ano, se publicam dois documentos destinados a variar


profundamente a celebração da missa: a instrução Inter oecumenici (26 de setembro de
1964), que introduz as primeiras inovações tanto na maneira de celebrar a eucaristia
como na disposição do lugar da celebração, e o ordo da concelebração e da comunhão
sob duas espécies (7 de março de 1965), verdadeiras revoluções na tradição litúrgica
ocidental. Em 1967 aparece uma instrução sobre a música sacra e outra sobre o mistério
da eucaristia. Depois, no espaço de cinco anos, vão aparecendo os diversos livros
litúrgicos reformados segundo as orientações do Concílio. Em 1968, depois das novas
orações eucarísticas, vêm as ordenações de diácono, presbítero e bispo. Em 1969,
aparecem o Ordo do matrimônio, o calendário, o Ordo Missae, o Ordo do batismo de
crianças, o Ordo das leituras da missa e o das exéquias. Em 1970 são promulgados o
Ordo da profissão religiosa, o Missal romano, os Ordines da consagração das virgens,
31

da bênção de um abade e de uma abadessa, da bênção dos óleos e da confecção do


crisma.

O novo livro da Liturgia das Horas (nome que toma agora o antigo Oficio
divino) aparece no dia 2 de fevereiro de 1971, e no mesmo ano sai o Ordo da
confirmação. Em 1972 se publicam os Ordines da iniciação cristã de adultos, do canto
da missa, da instituição de leitores e acólitos, da visita e unção dos enfermos. Em 1973
aparecem os ritos relativos ao culto da eucaristia fora da missa, e o Ordo da penitência.
O da consagração de uma igreja e um altar sai em 1971. Em 1984 se publica o ritual das
bênçãos e o cerimonial dos bispos. O único livro que ainda está em processo de revisão
é o Martirológio. Durante estes anos se publicam também uma série de documentos que
ajudam a encaminhar a atividade litúrgica: o diretório para as missas com crianças
(1973), a instrução sobre os ministros extraordinários da comunhão (1973), a instrução
sobre a missa com grupos reduzidos (1969), etc. Como todo este trabalho de reforma
significa às vezes mudanças importantes de tipo jurídico, o novo Código de Direito
Canônico, publicado em 1983, os ratifica e os incorpora, com o risco, não obstante, de
uma vez convertidos em leis, perderem seu espírito primigênio.

Temos que levar em conta o enorme trabalho que os episcopados de todo o


mundo fizeram na tradução e adaptação dos livros litúrgicos surgidos da reforma do
Concilio Vaticano II. Dificilmente encontraríamos outra época da história da liturgia
com tanta criatividade e com mudanças tão rápidas e profundas.

CONCLUSÃO:

A LITURGIA DO AMANHÃ

Chegados ao final do resgate histórico da evolução da liturgia, convém fazer um


esforço de visão de futuro, não com a pretensão de vaticinar como serão as celebrações
litúrgicas do século XXI, mas com a intenção de ver como devem ser Então nossas
celebrações para que o núcleo essencial que veiculam - o “memorial” do Senhor - seja
transmitido fielmente às gerações futuras. Dito com outras palavras da própria
constituição Sacrosanctum Concilium (n. 23): é necessário que nós cristãos de hoje
saibamos “conservar a sã tradição” e, ao mesmo tempo, “abrir um caminho ao legítimo
progresso”.

Tradição e progresso da liturgia

A evolução histórica dos ritos e dos textos litúrgicos foi dirigi da por duas
grandes linhas de força: a tendência conservadora e a tendência progressista. Por um
lado, a fidelidade à tradição obrigou a conservar intocáveis um certo número de ritos e
fórmulas; por outro, a necessidade de adaptação introduziu mudanças, às vezes muito
substanciais, nas celebrações litúrgicas. Tradição e progresso foram os dois polos de
uma tensão dinâmica, que sempre se resolveu de uma maneira equilibrada. Vejamos as
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características de cada uma das tendências.

a) Linha de conservação ou imutabilidade

Ao longo da evolução histórica encontramos ritos que foram, pelo menos no


núcleo essencial, idênticos a si mesmos. Temos que distinguir o rito em si e o sentido
outorgado ao rito. Assim há ritos que foram tidos sempre no mesmo sentido (o banho
batismal, comer o pão e beber o vinho da eucaristia), e há outros que foram utilizados
em sentidos diversos (a imposição das mãos, usada nos sacramentos de iniciação, da
reconciliação e da ordenação). De acordo com isto, há uma tríplice fidelidade:
fidelidade ao rito e ao sentido ao mesmo tempo; fidelidade ao sentido com
independência do rito; fidelidade ao rito sem levar em conta o sentido.

Encontramos fidelidade ao rito e ao sentido ao mesmo tempo naqueles


sacramentos dos quais consta com certeza a instituição por Cristo. Praticamente, se
reduzem ao batismo e à eucaristia. Temos que compreender a instituição por Cristo, não
no sentido de que Jesus tivesse inventado uns ritos determinados, mas no sentido de que
a um rito já preexistente, lhe foi acrescentada por Cristo uma significação nova e
original. Ora: a vinculação entre o rito concreto e a significação nova, nestes casos, foi
considerada tão decisiva pela Igreja, que não se atreveu introduzir neles mudanças
substanciais.

Há fidelidade ao sentido com independência do rito em muitas cerimônias que a


própria Igreja estabeleceu, de acordo com toda uma tradição que provém dos apóstolos
e que, portanto, está também vinculada à vontade de Cristo. exceto o batismo e a
eucaristia, observamos este fenômeno em todos os demais sacramentos. Assim se atribui
o mesmo sentido fundamental ao sacramento da confirmação, tanto faz se considera
como gesto essencial a unção ou a imposição das mãos; ou, no sacramento da ordem,
tanto faz se considera essencial a entrega dos instrumentos ou se crê tratar-se de um rito
acessório.

Finalmente, há fidelidade ao rito sem levar em conta o sentido numa série de


ritos menores que, introduzidos num momento determinado no conjunto do ritual da
Igreja com uma significação precisa e conhecida, perdeu mais tarde esta significação
sem que tenha desaparecido a prática. Exemplos: imposição do sal nos ritos do
catecumenato; o rito da commixtio na missa, etc. Temos que advertir que muitos destes
ritos secundários são os que foram suprimidos ou modificados pela reforma litúrgica do
Vaticano lI.

É importante observar que o aspecto decisivo em todos os casos é a verdadeira


conexão entre o gesto ritual e o sentido profundo deste gesto: esta é a realidade
verdadeiramente imutável na liturgia, de tal maneira que quando desaparece o nexo
entre rito e sentido, as ações litúrgicas caem no defeito do ritualismo mágico.

b) Linha do progresso ou mudança

Apesar das fidelidades essenciais, na evolução histórica dos ritos litúrgicos


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observamos também mudanças muito importantes. Assim, há casos em que se conserva


imutável um núcleo essencial mas se acrescentam ritos complementários que explicitam
– ou Então obscurecem – o sentido dos ritos primigênios: é o caso do batismo e da
eucaristia. Há outros casos em que as mudanças afetam o próprio núcleo essencial do
rito, além dos acréscimos complementários: é o caso de muitos sacramentos, como, por
exemplo, a penitência e as ordenações. Finalmente, há mudanças devidas ao fato de que
alguns gestos, de entrada puramente funcionais, foram adquirindo a categoria de
verdadeiros ritos, ao serem dotados de uma significação especial, geralmente de tipo
alegórico: assim, o “lavabo” da missa, os sinais da cruz durante a oração eucarística, etc.

As principais causas que influenciaram nas mudanças rituais foram estas: o


ambiente cultural em que se desenvolveu a liturgia; a peculiar tradição religiosa de cada
um dos povos que abraçaram o cristianismo; a mentalidade das diversas épocas: assim
uma mentalidade mais alegorizante ampliou e complicou os ritos e, por outro lado, outra
mais racionalista reduziu e simplificou; o acento diferente sobre um ou outro dos
aspectos doutrinais da fé, expressos na liturgia: assim, a introdução do rito da elevação
da hóstia, e mais tarde, todo o conjunto ritual elaborado ao redor da devoção eucarística,
se devem à importância concedida à doutrina da presença real de Cristo na eucaristia;
algumas vezes também influenciou a comodidade, para não dizer a preguiça: assim, a
supressão da comunhão com o cálice para os leigos.

Podemos dizer que o princípio condutor das mudanças foi a necessidade de


adaptação às comunidades concretas - uma preocupação pastoral, portanto - mesmo que
esta adaptação tenha contribuído para melhorar como para piorar o sentido dos textos e
dos ritos litúrgicos. Este princípio é o que, por exemplo, guiou a reforma litúrgica
impulsionada pelo Concílio Vaticano II: “Com esta reforma - diz o n. 21 da constituição
sobre a liturgia -, o texto e as cerimônias devem ordenar-se de tal modo, que de fato
exprimam mais claramente as coisas santas que eles significam e o povo cristão possa
compreendê-las facilmente, na medida do possível, e também participar plena e
ativamente da celebração comunitária”. Este é também o princípio que deve guiar a
evolução futura dos ritos e fórmulas.

Papel decisivo da assembléia litúrgica

O futuro da liturgia está, pois, em mãos da existência e da vitalidade das


comunidades cristãs concretas, que têm na assembléia litúrgica o lugar de sua expressão
mais típica e genuína. A importância da comunidade na celebração litúrgica foi sempre
muito grande nas diversas etapas da evolução histórica, mas foi uma significação
diversa segundo o contexto ambiental.

Assim, no contexto da sociedade pagã, as assembléias dos cristãos assumem um


aspecto de ruptura contra o ambiente e de intensa vinculação entre os membros da
Igreja. Para um pagão, que observa de fora o fato cristão, este se apresenta sobretudo
como um fenômeno de umas pessoas que celebram reuniões. As assembléias cristãs
chamam a atenção da antiguidade pagã, que não conhece um culto que comporte a
reunião da comunidade. A vida da Igreja que esta dispersa em um ambiente pagão, está
estreitamente ligada à celebração das reuniões. Isso se vê muito bem nas descrições que
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os Atos dos Apóstolos fazem da comunidade cristã primitiva e, sobretudo, na primeira


carta de são Paulo aos Coríntios, na qual o apóstolo tenta resolver os diversos problemas
da comunidade e suas reuniões: unidade, carismas, Ceia do Senhor. No meio de um
mundo pagão, é na assembléia dos Irmãos que o cristão encontra visivelmente a Igreja,
e só aí a encontra. E é na vida da assembléia litúrgica que inclusive os não-cristãos, que
vêem as coisas de fora, podem contemplar a vida da Igreja.

No contexto de cristandade, por outro lado, as coisas são de outra maneira.


Quando a Igreja, pouco a pouco, se faz co-extensiva com a sociedade, Então o rosto da
assembléia litúrgica começa a mudar profundamente. Se cada cidadão é também um
batizado, a assembléia dos batizados já não supõe uma distância em relação com a
sociedade. O significado da participação na assembléia litúrgica é ao mesmo tempo
religiosa e sociológica. Então, no interior da assembléia litúrgica se produz um
distanciamento cada vez maior entre os responsáveis pela execução dos ritos (os
clérigos) e a massa invertebrada dos assistentes passivos, situação que favorece o
clericalismo e subtrai da assembléia litúrgica sua condição de reflexo fiel da vida da
Igreja.

Finalmente, no contexto do mundo secularizado, a assembléia litúrgica tem a


oportunidade de recuperar seu verdadeiro sentido. Os membros da sociedade, sejam ou
não batizados, sejam ou não crentes, se encontram num plano de igualdade no contexto
da vida civil, profissional, política, econômica, etc. Os cristãos, ao contrário, se sentem
como tais precisamente na assembléia litúrgica. Daí a importância. crescente da
participação na celebração da liturgia como sinal eficaz de pertença à Igreja. No futuro
imediato, cada vez terão mais importância as comunidades reais e concretas de cristãos
para a presença da Igreja no mundo e, portanto, uma das características básicas de sua
vida litúrgica terá que ser a dimensão testemunhal e missionária.

A liturgia do amanhã será, mais do que nunca, o meio imprescindível para que as
comunidades cristãs “anunciem a morte do Senhor até que ele venha” (1 Cor 11,26).

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