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MINICURSO: AUTISMO

UMA COMPREENSÃO FENOMENOLÓGICA-EXISTENCIAL

FERNANDA COUTO
PSICÓLOGA CRP 02/20564

www.instagra.com/fernandac_psi www.instagram.com/mutuar_gt
SUMÁRIO

1. Artigo: O diagnóstico na abordagem fenomenológica-existencial ............................ 3


2. Artigo: Contribuições da Abordagem Gestáltica para a compreensão dos
fenômenos do transtorno do Espectro do Autismo......................................................... 12
3. Artigo: Transtorno do Espectro Autista: um mundo visto através do caleidoscópio75
4. Artigo: Autismo e o olhar centrado na pessoa ........................................................ 84
5. Artigo: O Psicoterapeuta invisível: reflexões sobre a prática Gestáltica com
ajustamentos autistas ................................................................................................... 145
ARAÚJO, Ariana Maria Leite - O diagnóstico na abordagem fenomenológica-existencial

ARTIGO

O diagnóstico na abordagem fenomenológica-existencial

Diagnostics on phenomenological-existential approach

Ariana Maria Leite Araújo

Revista IGT na Rede, V.7, Nº 13, 2010, Página 315 de 323.


Disponível em http://www.igt.psc.br/ojs/ ISSN 1807-2526
ARAÚJO, Ariana Maria Leite - O diagnóstico na abordagem fenomenológica-existencial

RESUMO
O presente artigo apresenta o diagnóstico na visão fenomenológica-existencial
partindo da exposição de pressupostos filosóficos tais como: fenomenologia,
existencialismo e filosofia dialógica de Martin Buber. Através de autores como
Yontef, Buber, Moreira, dentre outros, procurou-se demonstrar que se fazer um
diagnóstico não é enquadrar um sujeito dentro de uma categorização já
estabelecida, mas, ao contrário, o diagnóstico vai sendo construído a partir do
discurso do sujeito, da forma como ele se percebe e percebe o mundo.
Palavras-chave: Fenomenologia; Existencialismo; Filosofia dialógica;
Diagnóstico.

ABSTRACT
This article presents the diagnostics on the vision phenomenological-existential
exposure of philosophical assumptions such as: Phenomenology,
Existentialism, and philosophy dialógica Martin Buber. By authors such as
Yontef, Buber, Moreira, among others, have tried to demonstrate that making a
diagnostics is not tallied a subject within a categorization already established,
but instead, the diagnostics will being constructed from the speech of the
subject, as it realizes and sees the world.
Keywords: Phenomenology; Existentialism; Philosophy dialógica; Diagnostics.

Revista IGT na Rede, V.7, Nº 13, 2010, Página 316 de 323.


Disponível em http://www.igt.psc.br/ojs/ ISSN 1807-2526
ARAÚJO, Ariana Maria Leite - O diagnóstico na abordagem fenomenológica-existencial

INTRODUÇÃO
Alguns questionamentos ainda surgem quando se fala sobre o diagnóstico na
abordagem fenomenológica-existencial. Podemos trabalhar com o diagnóstico?
A resposta a esta pergunta é sim, porém, o trabalho é feito de uma forma
diferente. Não rotulamos o nosso cliente e a partir daí tratamos a patologia.
Mas ao contrário, reconhecemos o cliente com tal patologia e trataremos do
cliente, da forma como ele se percebe enquanto “doente”, de como ele lida com
a sua patologia.
Segundo Yontef (1998a), para a psicanálise clássica, o diagnóstico se tornava
o ponto focal da atenção do terapeuta e a principal fonte de suas
interpretações. O contato com o cliente parecia não ter muita importância. O
terapeuta era visto como a autoridade que detinha o poder e sendo assim, era
ele quem dizia qual o problema, as causas e o tratamento a ser seguido pelo
cliente. Assim, depois de categorizado em uma determinada patologia, tratava-
se da doença e não do cliente.
Yontef (1998b) afirma que “o diagnóstico fazia parte do sistema hierárquico
vertical, no qual o diálogo e a experiência imediata factual do paciente se
subordinavam à teoria, ao diagnóstico e à autoridade” (p. 273).
O movimento humanístico e existencial veio se contrapor a essa abordagem
enfatizando a importância da singularidade do indivíduo, o relacionamento do
terapeuta com o cliente, o aqui e agora, a criatividade, dentre outros. No
movimento humanístico-existencial, o cliente e o terapeuta trabalham em
conjunto, como iguais, pois o conhecimento emerge do contato dialógico.
Há uma relação de horizontalidade onde os dois, tanto o terapeuta quanto o
cliente têm importância ao longo do processo psicoterápico, embora o foco da
terapia esteja no cliente.
O objetivo do presente artigo é discutir como se dá o diagnóstico dentro da
visão fenomenológico-existencial partindo de uma breve apresentação de
alguns fundamentos filosóficos como a fenomenologia, existencialismo e
filosofia dialógica de Martin Buber até o ponto de interesse deste trabalho que é
a discussão do diagnóstico na visão fenomenológico-existencial.

FUNDAMENTOS FILOSÓFICOS
Iniciamos nossa fundamentação filosófica com a fenomenologia. A
fenomenologia é a ciência que procura abordar o fenômeno, aquilo que se
manifesta por si mesmo. Ela tem a intenção de abordá-lo, interrogá-lo,
procurando descrevê-lo e tentando captar sua essência. Ela estuda o
fenômeno tal qual ele se apresenta a consciência. O método fenomenológico
consiste numa descrição sistemática dos fenômenos até chegar a sua
essência, ao ponto final e irredutível da percepção.

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Ao falar sobre a fenomenologia, Husserl, seu fundador, descreve os


instrumentos metodológicos que contribuíram para o pensamento psicológico
que são: a redução fenomenológica e o princípio da intencionalidade.
A redução fenomenológica consiste em colocar entre parênteses a realidade tal
como a concebe o senso comum. Ela tem como objetivo chegar ao fenômeno.
A redução fenomenológica é um modo peculiar de prestar atenção, de ir ao
fenômeno. É uma abertura consciente e ativa de nós mesmos ao fenômeno
enquanto fenômeno. Neste aspecto, os discursos, as opiniões, os juízos ou
preconceitos referentes a um fenômeno se colocam de lado, para então poder
interrogá-lo.
Dentro desta visão, o psicólogo não tenta enquadrar o cliente em
categorizações, pois acredita-se que a vivência da pessoa é a sua própria
explicação.
O princípio da intencionalidade diz que a consciência é sempre consciência de
algo. O objeto não é em si, mas, objeto para uma consciência. Há uma
correlação entre objeto e consciência.
A fenomenologia foi de grande importância para a construção do pensamento
psicológico no que diz respeito à relação, à descrição do fenômeno, sendo este
fenômeno um sentimento, pensamento, fala ou outra coisa, mas fazendo parte
de uma totalidade que é o ser humano.
É através da relação terapeuta – cliente que este último se coloca como
fenômeno para ser observado e ao mesmo tempo se observar. Para que o
fenômeno se apresente é necessário se fazer uma redução fenomenológica
onde o terapeuta, no momento da sessão, deverá colocar entre parênteses
todos os seus “pré-conceitos” e ouvir o cliente da forma como ele se apresenta
sem rotulá-lo, sem colocá-lo dentro de um diagnóstico que já está pronto. É
sentir como o cliente, é ver como o cliente, é entrar em seu mundo para
perceber da mesma forma como ele percebe, mas sair sem se misturar as suas
sensações e percepções.
Reduzir ao fenômeno é fazer com que o cliente entre em contato com a sua
experiência, do como ele está se sentindo. É um processo de conscientização.
É a partir dessa descrição que se chega ao fenômeno.
Com relação ao princípio da intencionalidade, a consciência é que dá
significado às coisas. A forma como o cliente percebe uma determinada
situação não quer dizer que aquela seja a essência da situação, mas sim a
forma como ele está percebendo, como está dando significado. Sendo assim, o
cliente poderá dar novos significados às experiências que para ele são
negativas, chegando assim a um equilíbrio interno.
Por intermédio da intencionalidade, a experiência vincula o homem ao mundo.
É a ponte de comunicação entre eles. É a maneira pela qual cada um deles
tem presença um para o outro. É por conta da intencionalidade da consciência
que os significados de uma mesma experiência são diferentes para os diversos
sujeitos, ou seja, para as diversas consciências. Dois sujeitos podem passar
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por uma mesma experiência e esta ser traumática para um e para o outro ser
simples. O que vai dar este significado é a consciência.
Ao se utilizar do método fenomenológico, o psicólogo busca compreender o
homem, não esquecendo, no entanto, sua essência, tentando captar o sujeito
em seu original.
Faz-se necessário abordarmos aqui a filosofia existencial para que fique clara a
visão de homem. A forma como o cliente é percebido pelo terapeuta dentro de
uma abordagem humanista.
Para o existencialismo a existência precede a essência, ou seja, primeiro se
existe para só depois ser alguma coisa. O homem é que se constitui, é que se
faz a partir do que vive e da sua relação com o mundo. Ele nasce “nada” e vai
se acrescentando.
O existencialismo também fala sobre a liberdade. Para ele o homem é livre
para fazer suas escolhas. O homem está sempre escolhendo e até mesmo no
momento em que ele não escolhe nada, ele já está fazendo uma escolha.
É a partir destas escolhas que ele vai se constituindo, que vai escrevendo a
sua história. Sendo o homem livre para escolher, ele acaba se tornando
responsável pela sua existência.
Para os existencialistas o homem é responsável por tudo o que faz. Sendo
assim, não existe uma natureza determinada e imutável, mas pelo contrário, é
a partir da liberdade que ele tem para fazer escolhas que ele está sempre
mudando, se constituindo. O homem, portanto, cria o próprio mundo na razão
em que lhe dá significados.
O homem aqui é visto como um ser particular com vontade e liberdade
pessoais, consciente e responsável.
Heidegger afirma que “só o homem existe, enquanto modo característico de
estar no mundo, ao passo que as coisas simplesmente são”. Acredito que esta
sua afirmação diz respeito ao fato de que as coisas têm uma essência
imutável, por isso que elas são. Já o homem é mutável. Ele faz escolhas a
partir de seus sentimentos, entendimentos, ele reflete sobre si, por isso que ele
não só é, mas existe. E essa existência faz parte de um projeto.
Projeto é um conceito fundamental do existencialismo. O homem é um projeto
de si próprio porque ele está sempre se refazendo e é por conta desse
constante movimento de mudança, de se construir a cada dia que podemos
afirmar que o homem é uma existência. Ele é aquilo que ele projeta ser, aquilo
que ele decide ser.
Como terapeutas, não podemos dizer ao cliente o que é bom ou mau, pois o
valor das coisas varia de sujeito para sujeito. Isso tudo por conta da
individualidade. Essa individualidade é básica para o existencialismo.
O homem não é como uma semente que já vem determinada. De uma semente
de jasmim não poderá nascer uma roseira, somente um pé de jasmim. Já o
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homem pode se fazer bom ou mau, feliz ou triste... Ele é um ser individual,
único. Por mais que existam outros parecidos, jamais serão idênticos. Seus
pensamentos, suas emoções, suas vivências são únicas.
É tarefa do terapeuta levar o cliente a tomar consciência do seu projeto, do que
ele está fazendo e do como se está fazendo. Que ele encontre o seu potencial
transformador. É colocar o cliente a todo o instante diante de si mesmo, se
observando como sujeito responsável pelas suas escolhas.
Antes de chegarmos ao ponto central deste trabalho, que é o diagnóstico
dentro de uma visão fenomenológica-existencial, discutiremos um pouco a
respeito da relação tendo como embasamento teórico a filosofia dialógica de
Martin Buber.
Estabelecer o diagnóstico para a fenomenologia-existencial é identificar em que
ponto de sua existência o sujeito se encontra e que significados ele atribui a si
e ao mundo.
O homem é um ser em relação e é por conta dessa relação com outros seres
que ele existe, que ele se constitui. Para Buber (2001a) existem duas formas
do homem se relacionar, ou seja, duas atitudes frente ao mundo que são as
atitudes EU-TU e EU-ISSO. Buber (2001b) diz que “a atitude é um ato
essencial ou ontológico em virtude da palavra proferida. Cada atitude é
atualizada por uma das palavras-princípio, EU-TU ou EU-ISSO. A palavra-
princípio, uma vez proferida, fundamenta um modo de existir” (p. 32).
A palavra-princípio EU dessas duas atitudes são diferentes. A palavra-princípio
EU-TU fundamenta o mundo da relação. Na relação EU-TU a pessoa é um fim
em si mesma. No processo psicoterápico a relação EU-TU acontece quando o
terapeuta reconhece o seu cliente como ser único e compartilha junto com ele
da sua experiência. E o cliente se sente ouvido e compreendido pelo terapeuta.
Nesta atitude há um grande interesse na pessoa com quem estamos,
interagindo verdadeiramente como pessoa.
Não existe um EU independente de um TU. Estas duas palavras só existem na
relação. O EU só se torna EU em virtude do TU assim como também o TU só
se torna TU em virtude do EU. Buber (2001c) afirma que “nem meu TU é
idêntico ao EU do outro nem seu TU é idêntico ao meu EU” (p. 34).
Para Buber (2001d), a realidade humana é compreendida através do prisma do
“dialógico”. É através do diálogo que se pode estabelecer um vínculo entre a
experiência vivida e a reflexão, entre o pensamento e a ação. Na relação EU-
TU, o EU é determinado pela presença do outro que está em sua presença
como TU. Esta relação é essencialmente recíproca.
Buber (2001e) distingue quatro aspectos essenciais e indispensáveis a
qualquer relação EU-TU. São eles: reciprocidade, presença, imediatez e a
responsabilidade.
A responsabilidade indica a existência de uma dupla ação mútua entre os
parceiros da relação e é nessa reciprocidade que o EU e o TU se
presentificam. A presença é justamente o momento, o instante, a reciprocidade.
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Além disso, durante o encontro a relação é imediata, direta, sem nenhum


esquema conceitual ou ideias prévias. Por se tratar de uma ação recíproca,
esta relação é também responsabilidade. É no tornar-se presente e na
confirmação do outro em sua alteridade que reside a responsabilidade do
diálogo.
Já a relação EU-ISSO ocorre quando a outra pessoa é essencialmente um
“objeto” para nós. Ele é um meio para se atingir um fim e não é reconhecido
como outro em sua alteridade. EU-ISSO é proferido pelo EU como sujeito de
experiência e utilização de alguma coisa. O EU de EU-ISSO usa a palavra para
conhecer o mundo e este mundo é o objeto de uso de sua experiência.
Falando desta forma destes dois tipos de atitudes, podemos imaginar que
deveríamos viver apenas na atitude EU-TU, porém, a atitude EU-ISSO não é
negativa. Ela também é necessária na relação já que o EU-TU não pode ser
mantido pra sempre. O problema é quando o sujeito se cristaliza apenas nesta
relação.
Buber (2001f) afirma que “em si o EU-ISSO não é um mal; ele se torna fonte de
mal, na medida em que o homem deixa subjugar-se por esta atitude” (p. 37).
As duas atitudes, EU-TU e EU-ISSO são autênticas. É importante se ressaltar
também que nem sempre o TU significa uma pessoa. Pode ser a natureza,
Deus... E nem sempre o ISSO tem significado de coisa, objeto. O TU da
relação sempre se transforma no ISSO, menos na relação com Deus pois Ele é
um TU eterno e jamais poderá ser transformado num ISSO.
Para que surja o diálogo autêntico é necessário que tanto o cliente quanto o
terapeuta veja o outro como ele é. Assim, na relação terapêutica, o que conta
não é o método a ser aplicado, mas sim, o terapeuta de um lado e o cliente de
outro se apresentando face a face como unicidade. Devem-se deixar de lado
todos os conceitos, métodos e tipologias e tornar-se presente no encontro. Este
tornar-se presente é a própria confirmação mútua no momento dialógico.

O DIAGNÓSTICO NA VISÃO FENOMENOLOGICO-EXISTENCIAL:


Depois de percorrermos os principais conceitos filosóficos que serviram como
embasamento teórico para esta discussão chegamos ao ponto central deste
trabalho. Como se faz o diagnóstico dentro de uma visão fenomenológico-
existencial?
Segundo Yontef (1998c), o diagnóstico se faz totalmente contrário ao modelo
médico e psicanalítico clássico, que colocava as pessoas em categorias e as
reduzia a entidades doentes.
Nesta abordagem, o diagnóstico se faz a partir do sujeito, ou seja, ele não está
pronto esperando apenas que o sujeito seja encaixado nele, mas sim, ele vai
se constituindo a partir da história de vida deste.

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O cliente deve ser olhado de forma única, singular, sendo respeitada a sua
totalidade. Não se pode, portanto, ser avaliado já dentro de padrões
estabelecidos, pois ele é antes de tudo uma pessoa que sofre, que precisa ser
ouvida e compreendida a partir dos seus próprios sentimentos, emoções, do
que ela fala, do que vivencia.
Angerami (1984, apud TENÓRIO, 2003) afirma que “o existencialismo, em sua
exuberância, mostra que a existência é um contínuo vir a ser, um sempre ainda
não, com a possibilidade de um poder ser. Desse modo, é totalmente
inaceitável a rotulação do ser humano, aprisionando-o dentro de determinadas
categorias diagnósticas” (p. 41).
O cliente deve ser tratado como um todo, um inteiro para que sua integridade
emerja no encontro pessoa-a-pessoa, dando um relacionamento horizontal ao
invés de vertical, num trabalho em conjunto entre o paciente e o terapeuta,
onde a autoridade não esteja depositada no terapeuta e nem na teoria e sim na
experiência vivida que emergiria do diálogo entre terapeuta e cliente.
Sendo assim, segundo Moreira (1987) “o diagnóstico não trata, portanto, da
rotulação do indivíduo inserindo-o em uma determinada categoria de doença
mental, mas de tentar identificar em que ponto de sua existência a pessoa se
encontra e que significado ela atribui a si e ao mundo”. (p. 263).
Encontramos também em Tenório (2003):
“A pessoa, no processo diagnóstico, deve ser apreendida como
sendo um fenômeno único e, como tal, respeitada em sua
totalidade: não deve portanto ser avaliada segundo normas e
padrões de comportamentos preestabelecidos, numa total revelia
a sua própria existência. Seu nível de crescimento ou de
maturidade deve ser dimensionado por meio dos projetos de vida
por ela própria idealizados e de acordo com seu próprio mundo e
contexto existencial” (p. 41).
Na relação terapêutica os sintomas presentes no cliente não devem ser o foco
da psicoterapia. O terapeuta deve, numa atitude fenomenológico-existencial,
colocar entre parênteses todo seu conhecimento teórico acerca de uma tal
patologia e olhar para o cliente da forma em que ele se apresenta, pois é
através da intersubjetividade que será alcançada uma compreensão objetiva da
realidade do cliente.
Assim, podemos afirmar que o diagnóstico deve ser feito com reconhecimento
da estrutura do todo e como qualquer forma de significado ele é construído do
que emerge do contato entre terapeuta e cliente. Um processo de respeito
onde categorização e avaliação são partes indispensáveis do processo desde
que realizado de forma respeitosa bem-ponderada e com awareness completa.
Uma boa descrição diagnóstica não é apenas uma categorização, mas traz
informação facilitando a compreensão da estrutura psicológica do cliente,
fazendo com que o terapeuta não fique apenas no diagnóstico em si e na
melhor teoria para aplicá-lo.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BUBER, Martin. Eu e Tu. São Paulo: Centauro,2001.

MOREIRA, Virginia. O enfoque centrado na pessoa no tratamento de um


caso de esquizofrenia. In: III ENCONTRO LATINO DE ABORDAGEM
CENTRADA NA PESSOA, 1986, Sapucai Mirim. Anais... Brasilia: UNB, 1987,
p. 261-281.

TENÓRIO, Carlene Maria Dias. A psicopatologia e o diagnóstico numa


abordagem fenomenológico-existencial. Universitas ciências da saúde,
Brasília, v.1, n.1, p. 31-44, 2003.

YONTEF, G. Processo, diálogo e awareness. São Paulo: Summus,1998.

Endereço para Correspondência

Ariana Maria Leite Araújo

E-mail: arianaleitee@bol.com.br

Recebido em: 18/04/2010


Aprovado em: 03/11/2010

Revista IGT na Rede, V.7, Nº 13, 2010, Página 323 de 323.


Disponível em http://www.igt.psc.br/ojs/ ISSN 1807-2526
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

PATRÍCIA REBECA DA SILVA MORATO

CONTRIBUIÇÕES DA ABORDAGEM GESTÁLTICA PARA A


COMPREENSÃO DOS FENÔMENOS DO TRANSTORNO DO
ESPECTRO DO AUTISMO

VOLTA REDONDA
2016
PATRÍCIA REBECA DA SILVA MORATO

CONTRIBUIÇÕES DA ABORDAGEM GESTÁLTICA PARA A


COMPREENSÃO DOS FENÔMENOS DO TRANSTORNO DO
ESPECTRO DO AUTISMO

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado a


Universidade Federal Fluminense, como
requisito parcial à obtenção do título de
Bacharel em Psicologia.

Orientador: Prof.ª Priscila Pires Alves.

VOLTA REDONDA
2016
PATRÍCIA REBECA DA SILVA MORATO

CONTRIBUIÇÕES DA ABORDAGEM GESTÁLTICA PARA A


COMPREENSÃO DOS FENÔMENOS DO TRANSTORNO DO
ESPECTRO DO AUTISMO

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado a


Universidade Federal Fluminense, como
requisito parcial à obtenção do título de
Psicólogo.

Aprovado em Volta Redonda, ____ de __________ de 2016.

BANCA EXAMINADORA

_______________________________________________________________________

Prof.ª.: PRISCILA PIRES ALVES - Orientador


Universidade Federal Fluminense - UFF

_______________________________________________________________________

Prof.ª: VERA LÚCIA PRUDÊNCIA DOS SANTOS CAMINHA - Examinador


Universidade Federal Fluminense - UFF

_______________________________________________________________________

Prof.ª: FLÁVIA HELENA MIRANDA DE ARAÚJO FREIRE - Examinador


Universidade Federal Fluminense - UFF

VOLTA REDONDA
2016
AGRADECIMENTOS

À Deus em primeiro lugar pelo privilégio de ter cursado minha graduação nesta
Universidade. Gratidão por ter me dado forças para superar todos os momentos de dificuldade
e também por todas as bênçãos que me concedeu ao longo desta caminhada.

À todos os professores do Departamento de Psicologia que tanto lutaram para a


construção do curso e com toda sua dedicação me fez sonhar alto. Obrigada por me
enriquecerem e por todo compartilhamento de sabedoria.

Em especial, agradeço a professora Priscila Pires Alves, que foi mais que uma
orientadora. É quem trouxe inspiração, ânimo e encorajamento. Muito obrigada por sua
dedicação, apoio e carinho! Obrigada por ter feito parte deste momento tão importante em
minha vida!

Agradeço aos meus pais que desde o começo sempre me apoiaram, tiveram paciência
e me motivaram durante o curso. Obrigada por estarem tão presentes em minha vida.

Ao meu noivo que com muita paciência me acalmou em diversos momentos de


desespero com tantos afazeres da faculdade, que sempre acreditou em mim e dizia “vai dar
tudo certo, faz a sua parte”. Obrigada por ter me apoiado, compreendido e por me ajudar a
lutar pelos meus sonhos.

Aos meus amigos que me acompanharam desde a entrada na faculdade, que vibraram
junto comigo este momento de alegria e que também compreenderam meus momentos de
ausência por estar me dedicando aos meus estudos. Obrigada por estarem ao meu lado e por
orarem por mim.

Agradeço aos meus colegas de faculdade que juntos superamos dificuldades, trocamos
experiências e compartilhamos aprendizagem e conhecimento. O resultado disso foi ter sido
possível chegar até aqui!
“Todo autista tem potencialidades para
transcender dentro de sua especificidade, por
isso, ensine um autista de várias maneiras,
pois assim, ele conseguirá aprender. ”
Simone Helen Drumond Ischkanian
RESUMO

O presente estudo busca compreender as características do Transtorno do Espectro do


Autismo a partir de um resgate histórico, com a apresentação dos DSM-I, DSM-II, DSM-III,
DSM-IV e DMS-V, e também, as hipóteses levantadas acerca das causas do autismo. A partir
disto, busca-se apresentar como o manejo terapêutico com embasamento na abordagem
gestáltica pode auxiliar tanto as pessoas com autismo - que neste trabalho enfoca o
atendimento com crianças - e também como podem ser instrumento aos pais. Para isso, é
apresentado um dispositivo - projeto ADACA (Ambiente Digital de Aprendizagem para
Crianças Autistas) que desenvolve tecnologia assistiva e se apresentou como uma ferramenta
eficiente no auxílio às crianças autistas promovendo aprendizagem e independência das
mesmas. Nesse contexto, ressalta-se como a psicologia pode contribuir como um importante
agente no processo de interação no ambiente ADACA. Por meio deste estudo,
compreendemos como podemos voltar nosso olhar para o autismo sem discriminar e
inferiorizar, sempre buscando um olhar singular.

Palavras-chave: Autismo. Gestalt. Tecnologias Assistivas.


ABSTRACT

This study seeks to understand the Autism Spectrum Disorder characteristics from a
historical, with the presentation of DSM-I, DSM-II, DSM-III, DSM-IV and DMS-V and also
the hypotheses about the causes of autism. From this, we try to present as the therapeutic
management with basis in gestalt approach can help both people with autism - that this work
focuses more children - and how they can be an instrument to parents. For this, a device is
presented - ADACA project (Digital Learning Environment for Children with Autism) that
develops assistive technology and introduced itself as an effective tool in helping the autistic
children through learning and independence of these. In that context, it emphasizes how
psychology can contribute as an important agent in the interaction process in ADACA
environment. Through this study, we will understand how we can turn our attention to autism
without discrimination and degrade, always in search of a unique look.

Keywords: Autism. Gestalt. Assistive Technologies.


Lista de siglas

ABA - Análise do Comportamento Aplicada;

ABRA - Associação Brasileira de Autismo;

ADACA - Ambiente Digital de Aprendizagem Para Crianças Autistas;

AMA - Associação Amigos do Autista;

CDC - Centro de Controle e Prevenção de Doenças;

CID 10 - Classificação Internacional de Doenças;

DSM-I - Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, 1ª Edição;

DSM-II - Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, 2ª Edição;

DSM-III - Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, 3ª Edição;

DSM-IV - Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, 4ª Edição;

DSM-V - Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, 5ª Edição;

OMS - Organização Mundial de Saúde;

PECS - Sistema de Comunicação por Troca de Figuras;

TA - Tecnologia Assistiva

TEA - Transtorno do Espectro do Autismo;

TEACCH - Tratamento e Educação de Crianças Autistas e com Desvantagens na


Comunicação;

TIDs - Transtornos Invasivos do Desenvolvimento;


SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 10
Capítulo 1: CONHECENDO O AUTISMO: HISTÓRICO, DEFINIÇÃO, CAUSAS E
DIAGNÓSTICO .................................................................................................................... 12
1.1 Breve resgate histórico ................................................................................................. 12
1.2 Hipóteses sobre as causas do autismo .......................................................................... 13
1.3 Diagnosticando o autismo: a entrada no DSM ............................................................. 15
Capítulo 2: ENTRE PAIS E FILHOS AUTISTAS ............................................................ 20
Capítulo 3: LINGUAGEM: UMA NOVA FORMA DE SE COMUNICAR ................... 23
3.1 Ecolalia ......................................................................................................................... 24
Capítulo 4: O AUTISMO E A GESTALT-TERAPIA....................................................... 26
Capítulo 5: ADACA: UM MÉTODO FACILITADOR .................................................... 30
6. METODOLOGIA DA PESQUISA ................................................................................. 34
6.1 Estudo de caso .............................................................................................................. 35
6.1.1 Histórico .................................................................................................................... 35
6.1.2 Entrada no ADACA .................................................................................................. 37
6.2 Papel da psicologia ....................................................................................................... 39
CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................................ 41
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA..................................................................................... 43
ANEXO I ................................................................................................................................ 46
ANEXO II .............................................................................................................................. 55
ANEXO III ............................................................................................................................. 58
ANEXO IV ............................................................................................................................. 62
10

1 INTRODUÇÃO

Neste trabalho busca-se discutir o Autismo por meio de sua caracterização e o enfoque
terapêutico a partir da abordagem gestáltica. A palavra autismo vem do grego “autos” e
significa “si mesmo”. Tal distúrbio foi descoberto na década de 40 pelo psiquiatra americano
Leo Kanner e o pediatra austríaco Hasn Asperger, distúrbio este que afeta milhares de
crianças.

Este nome foi dado devido as caracterizações específicas do autista, sendo este traço
marcante o isolamento do mundo exterior, comprometendo assim consequentemente, uma
interação social. Hoje em dia, é usado o termo Transtorno do Espectro do Autismo (TEA.)

Há tempos atrás, o autismo era pouco falado em nossa sociedade, porém, em nossos
dias, as pesquisas indicam que uma em cada cem crianças é portadora do TEA, sendo mais
manifestado em meninos que em meninas. (Revista Autismo. Agosto/2010)

Por volta dos primeiros anos de vida já se pode notar alguns sinais que indicam o
transtorno. Os sinais mais típicos são o comprometimento da fala, estereotipias,
comportamento restritivo e repetitivo.

De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), o autismo é definido como:

Uma síndrome presente desde o nascimento, que se manifesta invariavelmente antes


dos 30 meses de idade. Caracteriza-se por respostas anormais a estímulos auditivos
ou visuais, e por problemas graves quanto à compreensão da linguagem falada. A
fala custa a aparecer e, quando isto acontece, nota-se ecolalia, uso inadequado dos
pronomes, estrutura gramatical imatura, inabilidade de usar termos abstratos. Há
também, em geral, uma incapacidade na utilização social, tanto da linguagem verbal
quanto corpórea. (CID,1984, p.81).

Ao ser dado o diagnóstico, toda a família também se envolve e se alaga num turbilhão
de emoções, de descrença, medo e tristeza. A incerteza e a insegurança surgem e muitos pais
não sabem o que fazer diante de tal diagnóstico. Apesar de não ter um manual do que fazer,
há muitos recursos que tem auxiliado muitas crianças autistas, favorecendo que estas sejam
mais independentes.
Ainda se discute muito a respeito da causa. Por isso, posteriormente serão trazidas
algumas hipóteses, como teorias psicogenéticas e biológicas, que nos ajudarão a entender
como o TEA era compreendido anteriormente, e como tem sido a compreensão desse
fenômeno nos dias de hoje.
11

Sendo um assunto que tem ganhado mais espaço na sociedade, é importante termos
um maior conhecimento acerca do transtorno e também compreendermos os meios
terapêuticos que podem ser usados como dispositivo tanto para a criança autista, como
também para a família, possibilitando uma efetiva receptividade ao autista em nosso mundo.

O número de diagnósticos do transtorno vem aumentando recentemente, o que indica


que os sinais do TEA têm sido reconhecidos mais facilmente. Por meio disso, podemos
compreender que este pode ser o fato de um transtorno que antes era aparentemente um
fenômeno raro, se tornar, mundialmente um fenômeno mais comum.

O presente estudo está estruturado em 5 capítulos, metodologia, apresentação do


estudo de caso e considerações finais. No capítulo 1, apresenta-se o histórico, causas,
definições e diagnóstico do TEA. No capítulo 2, discute-se a dinâmica familiar frente ao
diagnóstico do autismo. No capítulo 3 apresenta o manejo terapêutico como suporte à criança
portadora do TEA, sob orientação da abordagem gestáltica. No capítulo, 4 busca-se a
compreensão do fenômeno da linguagem que se apresenta em crianças com TEA, indicando
um recurso muito utilizado pelas mesmas – a ecolalia. No capítulo 5, apresenta-se o projeto
ADACA como tecnologia assistiva em auxílio às crianças autistas. Na metodologia apresenta-
se o modo como o estudo foi estruturado. Na sequência, o estudo de caso realizado no projeto
ADACA, seguido das considerações finais onde se aponta reflexões relevantes que o trabalho
proporcionou.
12

Capítulo 1: CONHECENDO O AUTISMO: HISTÓRICO, DEFINIÇÃO, CAUSAS E


DIAGNÓSTICO

1.1 Breve resgate histórico

A primeira vez que o termo autismo foi usado, se remete a uma monografia
intitulada “Dementiapraecoxoder Gruppe der Schizophrenien”, por Eugen Bleuler,
publicado em Viena, 1911.

Bleuler, em seus estudos, substitui a ideia de demência precoce por um grupo de


psicoses esquizofrênicas qua havia em comum uma série de mecanismos psicopatológicos.
Pensando na ideia de autismo, Bleuler nomeia assim a partir de uma etimologia grega, no qual
“autos” significa “eu” em oposição ao “outro”. Desta forma, caracteriza o autismo como a
retirada da vida mental do sujeito sobre si, o que consequentemente o afasta da realidade
externa e é marcado pelo impossibilidade de se comunicar com outras pessoas.

Em 1911, Bleuler escreve: " A lesão particular e completamente característica é a


respeito da relação da vida interior para o mundo exterior . A vida interior leva uma
predominância mórbida ( autismo ) ... O autismo é análogo ao que Freud chamou de auto-
erotismo . Mas para Freud , erotismo e libido tem um significado muito mais amplo do que
para as outras escolas. Autismo expressa o lado positivo do que Janet nomea negativamente
como perda de sentido da realidade . o senso de realidade não está totalmente ausente no
esquizofrênico . Somente faltam certas coisas que estão em contradição com o seu complexo."

Mais tarde, o psiquiatra polonês Eugène Minkowski, traz uma definição acerca do
autismo baseado na perspectiva trazida por Henri Bergson de Elã Vital, referenciando então
autismo como a perda de contato com a realidade elã vital. Por elã vital, podemos entender
como “um impulso original de criação de onde provém a vida e que, no desenrolar do
processo evolutivo, inventa formas de complexidade crescente até chegar, no animal, ao
instinto e, no homem, à intuição, que é o próprio instinto tomando consciência de si mesmo.”
(Silva 2006 e Rochamonte 2011)

Como o passar dos anos, em torno do final da Segunda Guerra Mundial, duas
contribuições marcam fortemente a época dos estudos sobre psicopatologia infantil: Leo
Kanner e Hans Asperger.
13

Leo Kanner, um psiquiatra austríaco, fez a primeira descrição da síndrome do


autismo, baseando-se em alguns casos de crianças que acompanhou e percebeu que as
mesmas compartilhavam de algumas características em comum, como a incapacidade de
manter relações com outras pessoas; distúrbio de linguagem, comprometendo assim a fala
desde pouca idade; bem como inquietação obsessiva pelo que é inflexível. Assim, determinou
por meio destas características que aquelas crianças carregavam consigo a síndrome do
autismo.

Já Hans Asperger, psiquiatra e pesquisador austríaco, tinha interesse em crianças


que considerava fisicamente anormais. Publicou o artigo “A psicopatia autista na infância” em
1943, com estudos que envolviam cerca de 400 crianças. Asperger entendia psicopatia infantil
como uma desordem da personalidade, ou seja, falta de empatia, conservação unilateral,
movimentos descoordenados, entre outros. Seus estudos levaram ao que é chamado hoje de
Síndrome de Asperger, uma forma de autismo mais branda.

1.2 Hipóteses sobre as causas do autismo

A discussão acerca das causas do autismo é muito ampla e gira em torno de várias
controvérsias. As explicações são inconsistentes e especialistas voltam-se praticamente a
descrições de sintomas, percepções, comportamentos, porém, não há ainda uma clareza e nem
mesmo um consenso sobre a causa do autismo de forma completa.

Vamos expor aqui dois blocos de teorias que se opõe: teorias psicogenéticas e teorias
biológicas. De acordo com a teoria psicogenética defendida por Klin - um estudioso psicólogo
americano - a criança se tornava autista devido a fatores familiares adversos que
desencadeavam o transtorno. Portanto, tratava-se de uma criança sadia, normal que sofreria as
consequências do meio em que vivia.

A partir desta teoria, várias pesquisas se iniciaram e surgem alguns eixos importantes
sendo eles o stress precoce, as patologias psiquiátricas parentais, o quociente de inteligência e
classe social dos pais e a inteiração entre pais e filhos. Por meio de diversas pesquisas,
Leboyer (obstetra francês) observa que a teoria da psicogenética não trazia explicações a
respeito da patologia do autismo e trazia a discordância que os pais fossem os causadores por
gerar o transtorno em seus filhos.
14

Sendo assim, em discordância à teoria psicogenética, Leboyer aposta na ideia da teoria


biológica trazendo a discursão de que diversas doenças neurológicas foram exibidas como
sintomas do autismo. Desta forma, problemas cromossômicos, metabólicos, doenças
adquiridas durante a gestação e até mesmo após o parto podem estar ligados ao autismo.

Segundo Laboyer:

[...] A lista de situações patológicas é muito extensa e inclui fatores pré, peri e
neonatais, infecções virais neonatais, doenças metabólicas, doenças neurológicas e
doenças hereditárias. Apesar da ausência aparente de ligação entre elas, um ponto
comum às reúne: todas as patologias são suscetíveis de induzir uma disfunção
cerebral que interfere no desenvolvimento do sistema nervoso central. (LEBOYER,
2005, p.60).

Pesquisas mais recentes (2008), por Tamanaha, Perissinoto e Chiari, apontam que a
causa do autismo pode estar ligada a alterações neuroanatômicas, mais especificamente
masculino. Isso se justifica pelo fato de que os autistas estariam expostos no período pré-natal
a taxas de testosterona alta e como consequência, o seu processo de socialização se dá de
forma sintética e metódica.

Independente da forma que o autismo é abordado, mesmo em meio a tantas


controvérsias e hipóteses, é importante que se tenha claro a forma de abordagem funcional
educativa às crianças autistas e os métodos que serão utilizados para intervir com a pessoa.

Segundo Baptista e Bosa:

[...] A conclusão que emerge dessa reflexão é que existe um comprometimento


precoce que afeta o desenvolvimento como um processo e, conseqüentemente, a
personalidade (por meio da interação entre o self e as experiências como o ambiente,
que possibilita o desenvolvimento das noções de si, do outro e do mundo ao seu
redor), seja a síndrome do autismo classificada como psicose ou como transtorno d
desenvolvimento. Na verdade, existe a falta de um modelo teórico suficientemente
abrangente para dar conta das diferenças entre duas formas de classificação. [...] O
que vale a pensa ressaltar é que seja qual for o sistema de classificação ou a
abordagem teórica adotada, a noção de que crianças com autismo apresentam
déficits no relacionamento interpessoal, na linguagem / comunicação, na capacidade
simbólica e, ainda, comportamento estereotipado (atentando-se para as diferenças
individuais), não tem sido desafiada. (2002, p.30)

Ainda que não se tenha um consenso acerca das causas do autismo, é fundamental que
se busque uma compreensão de sua manifestação enquanto um fenômeno que se revela em
pessoas que demandam interação e vínculo. Esses são grandes desafios no trabalho com o
autismo na contemporaneidade.
15

1.3 Diagnosticando o autismo: a entrada no DSM

O Autismo é um Transtorno Global do Desenvolvimento no qual acarreta


consequências no desenvolvimento da fala, na interação social e no comportamento da
criança. Essas crianças também são caracterizadas pelo não olhar às pessoas, por se isolarem,
pelos comportamentos repetitivos e estereótipos, além de dificilmente apresentarem
expressões faciais das emoções.

De acordo com Erikson (2006):

O autismo é um entre um grupo de graves Transtornos de Desenvolvimento Globais.


Ele se caracteriza pela perda de sociabilidade normal, comprometimento da
comunicação e uma estreita e limitada série de comportamentos repetitivos, muitas
vezes, obsessivos, como girar o corpo, balançar-se, bater as mãos e bater a cabeça.
Desenvolve-se nos primeiros dois anos e meio de vida e estendem-se em graus
variados por toda a vida.

Durante muito tempo, houve muita confusão sobre a natureza e etimologia do autismo.
Em 1952, quando foi publicada a primeira edição do DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico
de Transtornos Mentais,) manual este composto por nomenclaturas e critérios padrões para
diagnosticar determinado transtorno mental, os sintomas de autismo não eram considerados
como um diagnóstico separado, ou seja, eram classificados como um subgrupo da
esquizofrenia infantil.

A publicação do DSM-II, em 1968, trazia uma reflexão da predominância da


psicodinâmica psiquiátrica. Dessa forma, não se tinha uma especificidade dos sintomas em
determinadas desordens. Assim, os sintomas eram reflexos de conflitos e reações de má
adaptação frente aos problemas da vida, postos então a partir de uma distinção entre neurose e
psicose.

Para a publicação do DSM-III, este tem uma grande influência de Michael Rutter
(1978), trazendo uma importante influência para a compreensão desse transtorno mental.
Rutter compreende o autismo a partir de quatro critérios: 1) atraso e desvio sociais não só
como deficiência intelectual; 2) problemas de comunicação e novamente, não só em função
de deficiência intelectual associada; 3) comportamentos incomuns, tais como movimentos
estereotipados e maneirismos; e 4) início antes dos 30 meses de idade.

A partir de sua influência e os diversos trabalhos produzidos posteriormente, no DSM-


III, o autismo é classificado pela primeira vez na classe dos transtornos - Transtornos
16

Invasivos do Desenvolvimento (TIDs). Dessa forma, havia o entendimento que diversas áreas
do funcionamento do cérebro era afetado no autismo.

Em 1994, foi publicada a 4ª edição do DSM. A seguir, mostraremos alguns


importantes critérios que devem ser levados em consideração para o diagnóstico de autismo,
extraído do DSM-IV:

A. Somar um total de seis (ou mais) itens dos marcadores (1), (2), e (3), com pelo
menosdois do (1), e um do (2) e um do (3).
1. Marcante lesão na interação social, manifestada por pelo menos dois dos
seguintes itens:
a. Destacada diminuição no uso de comportamentos não-verbais múltiplos, tais
como contato ocular, expressão facial, postura corporal e gestos para lidar com a
interação social.
b. Dificuldade em desenvolver relações de companheirismo apropriadas para o nível
de comportamento.
c. Falta de procura espontânea em dividir satisfações, interesses ou realizações com
outras pessoas, por exemplo: dificuldades em mostrar, trazer ou apontar objetos de
interesse.
d. Ausência de reciprocidade social ou emocional.
2. Marcante lesão na comunicação, manifestada por pelo menos um dos seguintes
itens:
a. Atraso ou ausência total de desenvolvimento da linguagem oral, sem ocorrência
de tentativas de compensação através de modos alternativos de comunicação, tais
como gestos ou mímicas.
b. Em indivíduos com fala normal, destacada diminuição da habilidade de iniciar ou
manter uma conversa com outras pessoas.
c. Ausência de ações variadas, espontâneas e imaginárias ou ações de imitação
social apropriadas para o nível de desenvolvimento.
3. Padrões restritos, repetitivos e estereotipados de comportamento, interesses e
atividades, manifestados por pelo menos um dos seguintes itens:
a. Obsessão por um ou mais padrões estereotipados e restritos de interesse que seja
anormal tanto em intensidade quanto em foco.
b. Fidelidade aparentemente inflexível a rotinas ou rituais não funcionais
específicos.
c. Hábitos motores estereotipados e repetitivos, por exemplo: agitação ou torção das
mãos ou dedos, ou movimentos corporais complexos.
d. Obsessão por partes de objetos.
4. Atraso ou funcionamento anormal em pelo menos uma das seguintes áreas, com
início antes dos 3 anos de idade:
a. Linguagem social.
b. Linguagem usada na comunicação social.
c. Ação simbólica ou imaginária.

Mas, com o DMS -V (2013), foram propostas algumas modificações significativas


para que este diagnóstico fosse estabelecido. Antes, o transtorno autista englobava cinco
diferentes categorias (Transtorno Autista ou autismo clássico, Transtorno de Asperger
Transtorno Invasivo do Desenvolvimento – Sem Outra Especificação (PDD-NOS ), Síndrome
de Rett, Transtorno Desintegrativo da Infância.), cada uma com suas respectivas
diferenciações. Porém, com o DSM - V, esses transtornos passam a não serem diferenciados
17

do espectro do autismo. Assim, todos são incluídos no diagnóstico de Transtorno do Espectro


do Autismo, com exceção da síndrome de Rett.

A partir disso, surge então algumas mudanças para o diagnóstico, de acordo com o
DSM-V (2013):

1.Deficiências persistentes na comunicação e interação social:


a. Limitação na reciprocidade social e emocional.
b. Limitação nos comportamentos de comunicação não verbal interação social.
c. Limitação em iniciar, manter e entender relacionamentos, variando de
dificuldades com adaptação de comportamento para se ajustar as diversas situações
sociais.
2. Padrões restritos e repetitivos de comportamento, interesse s ou atividades,
manifestadas pelo menos por dois dos seguintes aspectos observados ou pela história
clínica:
a. Movimentos repetitivos e estereotipados no uso de objetos ou fala.
b. Insistência nas mesmas coisas, aderência inflexível às rotinas ou padrões
ritualísticos de comportamentos verbais e não verbais.
c. Interesses restritos que são anormais na intensidade e foco.
d. Hiper ou hiporreativo a estímulos sensoriais do ambiente.
3. Os sintomas devem estar presentes nas primeiras etapas do desenvolvimento. Eles
podem não estar totalmente manifestos até que a demanda social exceder suas
capacidades ou podem ficar mascarados por algumas estratégias de aprendizado ao
longo da vida.
4. Os sintomas causam prejuízo clinicamente significativo nas áreas social,
ocupacional l ou outras áreas importantes de funcionamento atual do paciente.
5. Esses distúrbios não são melhores explicados por deficiência cognitiva ou atraso
global do desenvolvimento.

Diagnosticar uma criança com autismo não é algo tão simples pela falta de exames
para identificá-lo. Para chegar ao diagnóstico, a criança deve passar por uma observação por
meio de uma equipe especializada, no qual a observação terá relevância no comportamento da
criança e também a forma que ela se desenvolve diante de suas relações sociais. É importante
destacar a necessidade da equipe estar preparada para fazer o diagnóstico diferencial.

Embora existam escalas construídas para avaliação do autismo, tais como


ChildhoodAutism Rating Scale - CARS (Escala de avaliação para autismo infantil),
desenvolvida por Schopler et al., 1980; Escala d´AvaluaciódelsTrestsAutistes, ATA (Escala de
avaliação de traços autistas), desenvolvida por Ballabriga et al., 1994;
AutismScreeningQuestionnaire –ASQ (Questionário de triagem para autismo), desenvolvido
por Rutter et al., 1999; ModifiedChecklist for Autism in Toddlers – M-CHAT (Escala para
rastreamento de autismo modificada) desenvolvida por Robins DL, Fein D, Barton ML,
Green JA, 2001, entre outras, o diagnóstico não é simples face a necessidade de se considerar
os aspectos que englobam o espectro.
18

Christian Gauderer (1997), dispõe de algumas mudanças e sinalizações manifestadas


em autistas desde o nascimento até a adolescência que pode nos auxiliar a identificar sinais de
autismo diante da dificuldade exposta anteriormente de diagnosticar o TEA, que serão
apresentadas de forma resumida a seguir:

Na fase de zero a seis meses, o bebê demora a responder sorrisos ou simplesmente não
o responde. Demonstra pouco ou quase nenhum interesse por objetos, como o chocalho,
porém, tem uma reação exagerada quando se trata de sons como o de uma buzina.

Na fase dos seis aos doze meses é marcado pela recusa em reter, mastigar ou engolir
alimentos sólidos. Como o bebê autista não é afetuoso, as etapas de engatinhar, sentar e dar os
primeiros passos se atrasam.

Na fase do segundo e terceiro anos são marcadas por manifestações de maneirismo,


estereotipias e comportamentos repetitivos. Segundo Gauderer (1997, p. 21) “A criança
escuta, por exemplo, o som que ela produz ao arrarar uma superfície ou range vigorosamente
os dentes. Vai observar, atentamente e de maneira muito próxima, objetos em movimentos”.

Nessa idade, a criança tem pouco interesse em brinquedos (função usual). Apresentam
um desenvolvimento pequeno no que diz respeito a imaginação. Se mostram indiferentes e
sem interesse em manter relações interpessoais.

Na fase do quarto e quinto ano, a maioria das sinalizações permanecem, porém, há


uma redução na intensidade, mas especificamente das relações acentuadas por estímulos
sensoriais e alterações do movimento.

Na fase dos seis anos à adolescência, as crianças autistas pré-escolares manifestam


alguma evolução por meio de mudanças na sintomatologia. Os sintomas podem diminuir e
pode aparecer uma melhora nas respostas a estímulos sensoriais. Segundo Lewis, “Na
adolescência, um pequeno número de indivíduos autistas faz progressos evolutivos
acentuados; outro subgrupo deteriora-se em termos comportamentais” (1995, p. 516).
Apresentamos o ANEXO I uma tabela comparativa que revela aspectos do desenvolvimento
infantil típico e atípico, revelando alguns importantes sinais de alerta que devemos atentar em
relação ao TEA.

De acordo com as pesquisas realizadas pelo governo dos Estados Unidos no ano de
2010, divulgados em março de 2014 pelo CDC, o número de casos de autismo subiu para 1
19

em cada 68 crianças com 8 anos de idade, sendo 1 em cada 42 meninos, e 1 em cada 189
meninas.

Esse número revela um aumento de quase 30% em relação aos dados obtidos no ano
de 2008, nos quais apontavam 1 caso de autismo a cada 88 crianças. Já em 2006, dados
apontam que para cada 110 crianças, 1 era diagnostica com autismo. No Brasil, embora não
haja estudos completos de prevalência, cerca de 2 milhões de pessoas são atingidas pelo
autismo.

Podemos perceber com base nos dados apresentados acima que, conforme se ampliou
os critérios de diagnóstico de autismo, aumentou-se consequentemente um maior número de
casos. Com os diversos estudos e trabalhos produzidos, aumentou-se a eficiência para
diagnosticar o autismo.

Há algumas razões para o aumento desta prevalência, tais como: o uso de um conceito
mais amplo, sendo o autismo compreendido como espectro de condições no qual ocorrem
modificações nos níveis de severidade e de manifestações, o que fez com que mais pessoas se
encaixassem nesse diagnóstico; maior conscientização entre os profissionais e educacionais,
como o pensamento voltado a ideia que se aceite o autismo e que o mesmo possa conviver
com outras condições; melhoras nos serviços de atendimento aos autistas, com
aprimoramento nos serviços de educação e terapêuticos, possibilitando uma melhor avaliação
clínica; e o aumento de estudos epidemiológicos, no qual tem sido possível identificar casos
que anteriormente não eram apontados em amostras clínicas.

Diante de tais considerações, evidencia-se a necessidade de se pensar em como o


autismo tem sido tratado em nossa sociedade, bem como os recursos desenvolvidos para o
manejo com a pessoa autista.
20

Capítulo 2: ENTRE PAIS E FILHOS AUTISTAS

Vivemos em uma sociedade no qual a família é definida como um sistema social, em


que há subsistemas, com definições de papéis que devem ser desempenhados por cada um que
a compõe.

Segundo Groisman e Lobo:

A família constitui uma das instituições mais sólidas da sociedade. É o lugar onde
nascem e se desenvolvem os serem humanos, conferindo a eles um suporte
emocional, econômico e geográfico que possibilite seu desenvolvimento e sua
inserção sociais. À medida que vão constituindo sua própria identidade, tingida pela
identidade familiar vão se desprendendo da família original para vir a estabelecer,
um dia, sua família nuclear. (2000, p. 88)

Por meio das relações familiares podemos dar significado aos diversos acontecimentos
da vida, e por meio dele são entregues a experiência individual. É por meio destas relações
familiares que se dá o desenvolvimento das experiências das realizações e também dos
fracassos humanos.

A chegada do primeiro filho faz um casal tonar-se família. Agora quem era esposa
torna-se mãe e quem era marido, pai. Toda expectativa é gerada em torno desce filho que está
chegando na família.

[...] Acompanhando este desenvolvimento desde a formação da nova família, vamos


compondo as peças de um quebra-cabeça que vai se construindo, desconstruindo e
reconstituindo no decorrer da história familiar. (GROISMAN e LOBO, 2000, p. 85)

Quando falamos de uma família que apresenta um membro autista, esta trata-se de
uma instituição social significativa, pois a síndrome revela uma interrupção no
posicionamento social tanto de relacionamentos internos, quanto nos vínculos externos. Esta
família é marcada por desequilíbrio emocional, insegurança e instabilidade.

Assim, se há um familiar diagnosticado como autista, as relações familiares são


afetadas. Começa-se a ter limitações permanentes. Os pais sofrem pela perda de uma criança
saudável que esperavam e muitos acabam vivendo sentimentos de desvalia quando se veem
escolhidos para passar por essa prova dolorida.

Em 1979, DeMyer publicou seu trabalho que retratava acerca do estresse gerado em
pais de autistas, nos quais os resultados apontaram que as mães são as que sofrem maior
21

tensão física e psicológica, enquanto que os pais, embora também se mostrassem afetados,
apresentava-se de modo indireto.

Um outro estudo apresentado por Milgram e Atzil, em 1988, apontam que as mães têm
a maior probabilidade de passarem por uma crise e estresse parental que os pais. Isso pode ser
explicado pelo fato dos cuidados que se deve ter com as crianças, que de acordo com a
expectativa social, acredita-se que as mães tomam esse cuidado para si.

Muitas famílias também passam pela dificuldade em aceitar o diagnóstico. Muitos se


negam e vão em busca de outros profissionais que possam lhe dizer outro diagnóstico, um
aceitável. Porém, frente aos recursos que temos hoje para melhor lidar com o transtorno, a dor
sentida pelos pais pode ser superada e possibilita-se assim que se possa seguir em frente.

Porém, se é oferecido a essas crianças um bom suporte familiar e atividades que as


estimulem a se desenvolverem e se aprimorarem, estas podem se tornar cada vez mais
independentes e inseridas na sociedade.

Este é o conceito estabelecido para o mundo àqueles que se encontram nesta situação.
É lamentável pensar que as pessoas veem isso como algo negativo e que desestrutura a
família, não buscando soluções que possam dar suporte e orientação.

Frente a essas premissas, a teoria que prevalece é a de rejeição, e os pais são colocados
como agentes causadores da deficiência. Muitos estudos refutam que a doença está ligada a
culpabilidade dos pais e os coloca como essenciais para o tratamento e desenvolvimento das
crianças.

Com esse novo olhar sobre a família, podemos apontar a proeminência de


contribuições positivas que a pessoa doente traz à família, dentre elas: laços familiares mais
fortes, aprendizado em tolerância e sensibilidade, conhecimento mais amplo sobre
deficiências, fé religiosa fortalecida, crescimento e domínio pessoal.

Toda a vivência familiar se modifica e o clima emocional se transforma. A família se


une frente a doença da criança e a partir daí se inicia o processo de adaptação. Mas as famílias
tendem a se organizar externamente, isto é, na sociedade, de tal modo que seus laços internos
enfraquecem e isso pode acarretar em fracasso pessoal e social.

Muitas famílias apresentam-se como incapazes de cuidar de uma criança autista. A


elas são delegadas pela sociedade papéis a se cumprirem, mas, se considerando os fatores
22

subjetivos singulares das dinâmicas situadas na relação com a criança autista, consistirá em
um resultado positivo para uma dinâmica familiar funcional.

É valido ressaltar que o atendimento psicológico especializado é extremamente


importante tanto para o autista, como também para a família, objetivando resgatar a
autoestima e confiança da família. Por meio disto, possibilita-se a criança autista a se
desenvolver e buscar sua independência e autonomia.

Não havendo um manual de como lidar com a criança autista, cabe aos pais estarem
atentos aos gestos, olhares e meios de comunicação que a criança estabelece a fim de
encontrarem uma melhor maneira de enfrentar o transtorno.

No Guia Prático de Autismo da AMA (Associação de Amigos do Autista), 2007, de


São Paulo, há algumas indicações importantes para que a família possa melhor lidar com esse
enfrentamento:

 Tire todas as suas dúvidas quanto ao diagnóstico do seu filho: não tenha medo
ou vergonha de perguntar;
 Permita-se sofrer: este é realmente um momento muito doloroso, com o tempo
você vai criar novos sonhos e outros objetivos vão surgir, mas no início é
importante viver a sua dor;
 Reaprenda a administrar o seu tempo: você precisará reorganizar a sua vida para
investir no seu filho. Procure centros de tratamento especializado;
 Saiba quais são os objetivos a curto prazo para o seu filho: é através disso que
você poderá avaliar se o tratamento está sendo eficaz.
 Evite: todos que lhe acenarem com curas milagrosas; todos que atribuírem a
culpa do autismo aos pais e todos os profissionais desinformados ou
desatualizados.

Podemos verificar que é frequente a tendência a desorganização da dinâmica familiar


com o diagnóstico, mas é de fundamental importância a compreensão que o desenvolvimento
de estratégias e manejo com a pessoa com TEA revela-se como um desafio que pode apontar
para saídas funcionais e satisfatórias para essa dinâmica familiar. Descobrir novos modos de
comunicação, novas possibilidades de interação, torna-se o grande desafio, para que não se
releve o modelo de déficit implícito nos conceitos da pessoa com deficiência.
23

Capítulo 3: LINGUAGEM: UMA NOVA FORMA DE SE COMUNICAR

Não atingimos nunca o homem separado da linguagem e não o vemos nunca


inventando-a. Não atingimos jamais o homem reduzido a si mesmo e procurando
conceber a existência do outro. É o homem falando que encontramos no mundo, um
homem falando com outro homem, e a linguagem ensina a própria definição de
homem (Benveniste, 1976, p.285).

Uma das coisas mais almejadas pelos pais ao longo do desenvolvimento de seu filho é
o aprender a falar. Porém, as crianças diagnosticadas como autistas apresentam dificuldades
de linguagem e consequentemente um atraso na capacidade de falar.

Adquirir a fala é muito mais que adquirir um conjunto de regras. O aprendizado da


fala refere-se a um domínio e desenvolvimento de regras formais por meio de recursos que
possibilitem o uso de simples elementos para estabelecer estruturas abstratas que resultarão
em diversas orações e que satisfazem a necessidade do falar do ser humano.

O atraso e o desenvolvimento anormal da linguagem e até mesmo sua ausência são


requisitos importantes para se diagnosticar o autismo. Em 1799, a Psiquiatria apontava que
havia uma dificuldade que as crianças encontravam fazendo uma reversão do pronome
pessoa, e assim, se referiam a si mesmas na terceira pessoa. Kanner, 1943, aborda este fato
num contexto mais abrangente, no qual chama de fala ecolálica. Assim, o que as crianças
reproduzem resultam de um eco de algo que lhes já foi dito.

Muitos pais insistem na questão da fala, como algo obrigatório a acontecer, porém,
nem todo autista quer falar e sim, se expressar de uma outra maneira. Eles podem assumir um
comportamento pré-linguístico, no qual guia outra pessoa para executar determinada função.
Podem se utilizar também de gestos, movimento corporal, sons vocais. Nenhum destes
comportamentos expressos por essas crianças devem ser descartados, pois é a maneira que
elas encontram para se comunicarem.

A dificuldade da linguagem expressa-se numa dificuldade em estabelecer relações


complexas e naturalmente numa afirmação das origens de formas simbólicas de
comportamento que são fornecedoras das bases para o desenvolvimento da linguagem.

Existem algumas diferentes formas de se observar os défices em autistas, tais como a


inabilidade de usar a informação semântica a fim de codificar o material verbal e também a
rememorar conjuntos de palavras; a intenção a utilizar táticas de classificação de palavras
24

sintáticas, em vez de estratégias de captação semântica na interpretação de um discurso


interligado; e a inaptidão de interpretar palavras em seu contexto semântico.

A linguagem do autista fica comprometida para atribuir significados linguístico a um


contexto extralinguístico. Desta forma, é caracterizado como ausentes de competência
pragmática.

Porém, podemos nos questionar a respeito desta discussão de a criança autista “ter que
falar”. O que seria mais importante: a criança autista falar ou investir no ensinamento de
outros tipos de comunicação? Existe outras formas de se trabalhar com a criança autista. Uma
delas é a Terapia da Fala, a fim de eliminar formas pré-simbólicas não convencionais, como o
grito, e substituí-las por instrumentos convencionais de comunicação, pré-simbólicas,
expandindo-se as intenções comunicativas às categorias pragmáticas não utilizadas.

Cada vez mais se tem estudado o desenvolvimento linguístico da criança autista. A


linguagem não é apenas a expressão do pensamento. A linguagem permite que as crianças
possam estabelecer relações, e assim, agregar-se num contexto social e cultural.

3.1 Ecolalia

Dentre as diversas características da linguagem no autismo, a ecolalia é um dos


sintomas mais comuns. Por isso, há certa relevância em buscarmos compreender qual o papel
e o quanto a ecolalia afeta e progride para o desenvolvimento da linguagem.

Embora haja controvérsias de que a ecolalia não tenha função comunicativa alguma,
há estudos que a apontam como uma importante ferramenta em se tratando de comunicação e
que pode até mesmo ser utilizado como terapia fonoaudiológica.

Mas afinal, o que é ecolalia? A ecolalia trata-se da repetição em eco da fala do outro.
Esta ecolalia pode ocorrer em três categorias: imediata, tardia ou mitigada. A ecolalia
imediata acontece em pouco tempo ou logo em seguida da fala modelo. Já a tardia, ocorre
após um tempo maior de sua fala modelo, e a mitigada acontece em casos em que podem
acontecer modificações da emissão ecoada, seja ela imediata ou tardia.

Quando a ecolalia é vista sob uma perspectiva de desordem e indiferente enquanto


fala, o procedimento clínico se baseia numa tentativa de inibição da fala ecolálica. Porém, há
estudos que apontam a ecolalia como meio de manter contato social.
25

A ecolalia pode ou não vir acompanhada de intenção comunicativa. Isso dependerá do


contexto em que a mesma ocorrerá. Num estudo sobre uso da ecolalia como recurso
interacional, por exemplo, uma criança de três anos em interações naturais com a mãe, notou-
se um resulto significativo. As ecolalias tardias foi um importante instrumento da criança a
fim de trazer a mãe ao seu mundo e também para obter respostas dela.

Com a aceitação da fala ecolálica da criança, esta se torna mais motivada e permite-se
assim a busca por falas mais criativas. Pode-se evidenciar que a ecolalia é sim, de fato, uma
etapa relevante na obtenção de linguagem de pessoas autistas.
26

Capítulo 4: O AUTISMO E A GESTALT-TERAPIA

Para compreendermos como a Gestalt pode contribuir como terapia efetiva no


Transtorno do Espectro do Autismo, é importante primeiramente entendermos o que vem a
ser a Gestalt, alguns de seus principais conceitos e o que seu trabalho propõe.

Segundo Perls:
Gestalt-Terapia, embora formalmente apresentada como um tipo de psicoterapia, é
baseada em princípios que são considerados como uma forma saudável de vida. Em
outras palavras, é primeiro uma filosofia de vida, uma forma de ser, e com base
nisto, há maneiras de aplicar este conhecimento de forma que outras pessoas possam
beneficiar-se dele. Gestalt-Terapia é a organização prática da filosofia da Gestalt.
Felizmente o gestalt-terapeuta é antes identificado por quem ele é como pessoa, do
que pelo que é ou faz. (Perls. Isto é Gestalt, p. 14).

A palavra “Gestalt” é de origem alemã e embora não haja uma tradução certa do que
vem a ser, seu significado se aproxima de “Forma total” ou “Boa forma”. Seus principais
precursores foram Kurt Koffka, Wolfgang Köhler e Max Wertheimer.

Esta teoria baseia-se em estudar o modo pelo o qual os seres humanos compreendem
as coisas, enfocando as leis mentais, ou seja, os princípios que determinam a maneira como
percebermos as coisas.

A partir deste princípio, a Gestalt parte da ideia de que as nossas percepções não se
dão por partes isoladas e sim, por um todo. Desta forma, funda-se na ideia de que o todo é
mais do que a soma de suas partes.

Na Gestalt-Terapia, por meio da abordagem fenomenológico-existencial, podemos


compreender uma psicoterapia vivencial que ressalta a consciência do aqui-e-agora, com o
foco a partir de como o fenômeno se apresenta a nós, ou seja, enfatiza-se no que está ali dado,
no presente, no visível. A Gestalt-Terapia propõe um re-descobrimento do que ali está, sem a
priori, proporcionando o lidar com o novo.

Na visão gestáltica, o homem é um ser em constante processo de desenvolvimento. O


trabalho da Gestalt está em torno de promover o processo de crescimento e também o
desenvolvimento do potencial do outro. Por meio de um processo de integração pode-se
ampliar esse potencial.
27

Outro ponto importante a ser considerado na teoria da Gestalt diz respeito ao contato.
Acredita-se que a todo instante estamos em contato com o meio e, para se pensar num
funcionamento humano que poderá se tornar saudável ou disfuncional, leva-se em conta então
este contato com o meio. O contato nos proporciona, além disso, meios para sermos criativos
na maneira de se ver o mundo e também no processo de fazer escolhas na vida.

Com esse desdobramento da Gestalt, podemos pensar num trabalho clínico que
envolva um buscar pela ampliação da consciência do indivíduo acerca de seu próprio
funcionamento. Somente o outro, e não o terapeuta, poderá ter certeza acerca do sentido de
seus próprios atos, mesmo que ainda não os tenha percebido. A isso chamamos de awareness,
a maneira como o indivíduo funciona, quais suas tentativas em busca de seu equilíbrio e suas
decisões e escolhas que lhe proporciona o atendimento de suas reais demandas.

Esta psicologia possibilita novas formas de se olhar para a vida, sem nada a ser
definitivo e onde sempre há possibilidades a serem descobertas. O homem é colocado como
ser potencial capaz de gerar transformação e de se constituir e reconstituir na sua relação com
o mundo.

Para discutirmos sobre o autismo, em Gestalt-terapia, não pode haver uma divisão
entre pessoa e autista. Essa separação deve ser eliminada. O ponto inicial para lidarmos com
este tipo de transtorno deve nos fazer ir para além do comportamento autístico e refletir a
respeito de quem a pessoa é, além de ser rotulada como “a autista. ”

Segundo Oliver Sacks (1995), “Autismo, embora possa ser visto como uma condição
médica, e patologizado como uma síndrome, também deve ser encarado como um modo de
ser completo, uma forma de identidade profundamente diferente. ”

Do ponto de vista da sociedade, seria mais fácil se o autista pudesse ser curado.
Amenizaria o sofrimento do mesmo e também da família. Mas por que não pensar na
possibilidade de que somos nós os incapazes de lidar com o diferente? Por que há esse
incessante desejo de querer eliminar o comportamento do autista? A sociedade projeta no ser
humano uma construção de vida baseada em valores, no qual refletirá em uma vida feliz e
também constrói o que se estabelece como saúde e doença.

Dentro da abordagem da Gestalt, compreendemos que o desenvolvimento do homem é


constante em toda sua vida. Esse desenvolvimento se dá por da relação que o homem
estabelece com o mundo a partir da possibilidade encontrada nos recursos disponíveis do
28

homem, e também pelas transformações do meio, a fim de que possa se ajustar da melhor
maneira de acordo com as situações. A esse desenvolvimento podemos chamar de inter-ação.

É por meio do processo de auto-regulação organísmica que ocorre essa inter-ação.


Desta forma, nosso organismo está sempre buscando o equilíbrio homeostático quando
alguma de nossas necessidades se manifestam. Podemos falar de necessidades não somente
àquelas que diz respeito ao fisiológico, mas também necessidades de âmbito psicológico e
social.

Por meio deste processo de auto-regulação organísmica, pode-se chegar ao melhor


equilíbrio entre organismo e o meio no qual podemos chamar de ajustamento criativo. Este
implica em o homem utilizar-se somente daquilo que lhe for favorável e dispensar o que não
lhe interessa.

Uma criança autista se utiliza deste ajustamento criativo em seu comportamento. É


uma forma que ela encontra para se expressar, suprindo assim sua necessidade e recuperando,
portanto, o equilíbrio antes perturbado.

É preciso respeitar, acolher e estimular os ajustamentos criativos. Desta maneira,


possibilita-se a criança de desenvolver a awareness. Ou seja, permiti-la que entre em contato
com seu corpo, com suas necessidades, o ambiente e o aqui e agora.

Cada criança autista é única e, portanto, não há um padrão estabelecido acerca do


ajustamento criativo. Cada história e contexto devem ser levados em consideração, cada um
de maneira singular.

Mas não somente o autista tem que desenvolver esse ajustamento criativo. É
importante que o terapeuta também trabalhe o seu próprio ajustamento criativo e desta forma
o amplie para melhor compreender o comportamento autístico. Diante de uma criança autista
é de extrema importância estar em constante contato com ela e poder perceber quais são as
dificuldades que as rodeiam.

Ao tratarmos de crianças autistas, por suas próprias limitações sensoriais e de


linguagem também, não se pode prever o que vai acontecer e se, o terapeuta não estiver em
contato, a relação Eu-Tu não é estabelecida.

O trabalho do psicólogo assim como o trabalho de outros profissionais


multidisciplinares envolvidos neste processo é fundamental para o desenvolvimento da
29

criança autista. É preciso estar sempre atento ao discurso trazido pela família e estar sempre
atualizado para que possa orientar a família de maneira coerente.

A aproximação do terapeuta à criança permite que o mesmo possa detectar meios


terapêuticos que vão beneficiar aquela criança, bem como abrir possibilidades para uma
compreensão do autismo como um fenômeno que possui características singulares em cada
pessoa que o revela e cujas demandas de interação, vínculo e construção de elos de ligação
tornam-se evidentes.
30

Capítulo 5: ADACA: UM MÉTODO FACILITADOR

O ADACA é um projeto destinado a trabalhar com crianças autistas e estende este


trabalho às famílias destas crianças. O projeto envolve professores do Instituto de Ciências
Exatas (ICEx) e do Instituto de Ciências Humanas e Sociais (ICHS) da Universidade Federal
Fluminense - UFF, Volta Redonda, Campus Aterrado.

Além disso, conta com o apoio de fonoaudiólogo e também de alunos que contribuem
para a ampliação do projeto, seja na parte do desenvolvimento de ferramentas digitais com
jogos direcionados ao aprendizado e comunicação, seja na parte de acompanhamento destas
crianças com possíveis intervenções em âmbito familiar.

O projeto ADACA foi elaborado por meio de vários métodos que auxiliam num bom
resultado no tratamento de crianças autistas. Tendo-se uma intervenção adequada é possível
favorecer que a criança se torne o mais independente possível. Os métodos usados no projeto
incluem: ABA,PECs, TEACCH, Son-rise e Floortime. Veremos cada um a seguir, ressaltando
que a intenção deste capítulo não é de ter um estudo aprofundado acerca de tais métodos, mais
compreender como cada método pensado pode auxiliar as crianças autistas, baseando na
proposta do ADACA.

O método ABA (Análise do Comportamento Aplicada) é uma linha adotada pela


psicologia a fim de melhor compreender o comportamento de pessoas com transtornos do
desenvolvimento. Por meio deste método, possibilita-se a observação, análise e associação
que se pode fazer entre o ambiente, o comportamento e a aprendizagem.

Desta forma, busca-se motivar os comportamentos, de maneira que dê prazer a criança


para que assim consiga algo que se deseja. Pelo método ABA, as crianças podem ser
ensinadas, de forma intencional, a apresentarem-se com determinados comportamento, de
acordo com o lugar em que estiverem.

Por meio do método ABA, possibilita-se trabalhar os déficits detectando as inaptidões


das crianças que prejudicam seu desenvolvimento bem como sua aprendizagem.

Busca-se também por meio deste método reduzir a presença de comportamentos


indesejados como estereotipias, birras e agressividade, comportamentos os quais impedem um
bom convívio social.
31

Desta forma, como resultado, as crianças podem estar favorecidas a comportamentos


que as levem a estarem melhores inseridas em convívio social, permitindo que possam estar
comunicativas e adaptadas, cada uma dentro de sua realidade.

A intervenção do método ABA se dá por meio da análise funcional. Isso significa que
o objetivo da análise funcional é suprimir comportamentos socialmente indesejáveis. Para
melhor compreender e auxiliar a criança, em seu comportamento, é fundamental identificar a
sua função. Assim, conhecendo o comportamento problema facilita encaminhar a criança a
um comportamento adequado.

Para que isso ocorra, é importante conhecer o tipo de comunicação que a criança faz,
ou seja, se há ou não linguagem funcional, se é verbal ou não, como estabelece ou não o
contato visual, entre outras.

Também é válido conhecer como é o ambiente agradável para esta criança, pensando
nos brinquedos que gosta, suas birras mais frequentes, sua reação frente a desconhecidos, a
fim de proporcionar um ambiente adequado e de não irritabilidade àquela criança.

O segundo método é o PECS (Sistema de Comunicação por Troca de Figuras). Este


foi desenvolvimento como um sistema de intervenção em relação a comunicação com
exclusividade às pessoas autistas e com doenças do desenvolvimento relacionadas.

Neste sistema, o PECS ensina a pessoa a dar uma figura de um item desejado a uma
pessoa de comunicação, aceitando a troca como um pedido. O sistema passa a ensinar a
discernimento de figuras e como juntá-las compondo sentenças. Em fases posteriores, as
pessoas são capazes de aprenderem a responder perguntas e a fazer comentários.

Este método de ensino se baseia no livro de Skinner “Comportamento Verbal”.


Baseia-se na ideia de que os operantes verbais funcionais serão metodicamente ensinados
usando dicas e estratégias de reforço que induzirão a uma comunicação independente. É
válido ressaltar que não são usadas as dicas verbais, o que possibilita a construção de um
início imediato e evitando a vinculação de dicas. Este método tem englobado a pessoas de
diferentes idades e com distintos graus de comunicação e dificuldades cognitivas.

O PECS é constituído por seis importantes fases: Como se comunicar; Distância e


Persistência; Discriminação de figuras; Estrutura de sentença; Respondendo a perguntas; e
Comentando.
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Um terceiro método utilizado diz respeito ao TEACCH (Tratamento e Educação de


Crianças Autistas e com Desvantagens na Comunicação). De acordo com Gary Mesibov
(2004), atual diretor do TEACCH, a “teoria essencial é que as pessoas com autismo são
diferentes. O autismo afeta sua forma de aprender o mundo - de falar, de comer, de se
comunicar, etc - mas não tem nada de errado ou degradante. Partindo dessa premissa, o
movimento então seria em direção ao respeito pelas diferenças que o autismo cria em cada
pessoa singular e na promoção do apoio e facilitação que eles precisam, justamente devido as
tais diferenças. ”

Tal método foi pensado a partir de três médicos que, na década de 60, em trabalho
realizado com crianças autistas, viram que havia uma necessidade de que se tivesse meios de
controle do ambiente de aprendizado e de forma que também as encorajassem para que
fossem independentes.

Nesta abordagem, o TEACCH volta-se para o design do ambiente físico, social e na


comunicação. Ou seja, a estrutura do ambiente é moldada de acordo com as dificuldades da
criança autista e que permite assim que seu desempenho seja treinado com a finalidade de
obter hábitos aceitáveis e apropriados. Um ambiente estruturado pode ser um facilitador para
que a criança autista tenha uma forte base para o aprendizado.

O quarto método, Son-Rise, busca a participação ativa de pessoas autistas,


independentemente da idade, em diversas interações e dinâmica, envolvendo pais, adultos e
crianças.

A partir disso, acredita-se que a participação de autistas em tais situações favorecem


que estejam mais abertas e receptivas e mais determinadas a aprenderem. Busca-se fazer uma
ponte entre o mundo convencional e o mundo do autista.

Trazendo para o centro a criança autista, nesta abordagem, é ressaltado um estilo


responsivo de interação, onde se leva em consideração o ritmo da criança e se juntando a ela.
Isso permite que a criança nos informe sobre seus interesses e necessidades, atendendo
sempre as necessidades da criança. Isso facilita que possamos interagir com a criança quando
ela quiser e puder.

Por fim, o método Floortime, foi criado a fim de se ter uma maior socialização,
melhorar a linguagem, diminuir comportamentos repetitivos e consequentemente, facilitar a
33

compreensão das crianças e permitir que se vejam como um ser intencional capaz de
estabelecer contatos sociais.

As principais metas do Floortime são: (1) Adentrar o mundo da criança através do


brincar, seguindo seu exemplo e estimulando sua iniciativa e (2) Trazer a criança para um
mundo compartilhado, fazendo com que isso seja prazeroso para ela. E, para isso, conta com
um processo terapêutico baseado em cinco etapas: (a) Avaliação/Observação, em que se busca
averiguar a forma com que a criança brinca e a fase do brincar em que ela se encontra, a fim
de desenvolver a melhor forma de abordá-la em seu mundo; (b) Abordagem – Círculos
abertos de Comunicação, em que, utilizando gestos ou palavra, estabelecem-se as primeiras
interações comunicativas com a criança, buscando iniciar um vínculo; (c) Seguir a iniciativa
da criança ao brincar, adentrando seu mundo para interagir com ela e dando significado à
brincadeira por ela escolhida, uma vez que a vontade dela é a porta de entrada para sua vida
emocional e intelectual; (d) Alargar e expandir a brincadeira gradativamente, estimulando
habilidades, das menos complexas para as mais complexas, e ajudando a criança a expressar
suas ideias, considerando-se que ao adentrar o mundo dela pode-se criar uma série de
oportunidades para ajudá-la a desenvolver-se e a avançar os níveis de relacionamento,
comunicação e pensamento; e (e) Fechar os ciclos de comunicação, valorizando a
comunicação recíproca (INTERDISCIPLINARY., 2010; GREENSPAN; WIEDER, 2006;
BREINBAUER, 2006).

A compreensão do ADACA como recurso de Tecnologia Assistiva (TA), revela sua


importância enquanto dispositivo tecnológico que visa favorecer a ampliação de uma
habilidade funcional deficitária. Por meio dos jogos e atividades lúdicas propostas às crianças
com autismo, no ADACA, possibilita-se o desenvolvimento independente e inclusivo das
mesmas, bem como a busca pela inteiração e comunicação entre o facilitador e a criança com
TEA. Apresentamos no ANEXO II algumas figuras que compõe o Ambiente Computacional
do ADACA.

Todos os métodos utilizados para a elaboração do ADACA não têm o intuito de curar
ou de fazer aquele sujeito falar - ansiedade esta muito grande por parte dos pais - mas tem o
propósito de reconhecer as diferenças e singularidades de cada um, sem que isto seja uma
ferramenta de impedimento, e sim, um meio que possa ser usado para a construção de algo
positivo.
34

6. METODOLOGIA DA PESQUISA

Este trabalho foi elaborado a partir de pesquisas bibliográficas, ou seja, por meio de
materiais já elaborados tais como publicações de artigos, livros, teses e dissertações com a
finalidade de se ter maior compreensão e conhecimento do tema abordado. Um fator positivo
a cerca deste método é a possibilidade dada ao investigar em se ter uma gama de fenômenos
bem amplos.

Segundo Minayo:

Toda investigação inicia com um problema, com uma questão, como uma dúvida ou
com uma pergunta, articuladas a conhecimentos anteriores, mas que também pode
demandar a criação de novos referenciais. Estes conhecimentos anteriores,
construídos por outros estudiosos e que lançasm luz sobre a questão da pesquisa, é
chamado teoria (...). A teoria é construída para explicar ou compreender um
fenômeno, um processo ou um conjunto de fenômenos e processos (...). Teorias,
portanto são explicações parciais da realidade. (1996, p.18)

Compreendemos pela citação acima, que a pesquisa qualitativa volta-se a responder


questões particulares, ressaltando que se trata de uma realidade que não pode ser quantificada,
portanto, volta-se para um estudo onde se prioriza os significados, o motivos, os valores, as
atitudes. Por meio de uma pesquisa do tipo qualitativa, pode-se estudar questões que envolve
seres humanos e suas diversas relações sociais em diferentes ambientes.

Na pesquisa qualitativa, o cientista é ao mesmo tempo o sujeito e o objeto de suas


pesquisas. O desenvolvimento da pesquisa é imprevisível. O conhecimento do
pesquisador é parcial e limitado. O objetivo da amostra é de produzir informações
aprofundadas e ilustrativas: seja ela pequena ou grande, o que importa é que ela seja
capaz de produzir novas informações (DESLAURIERS, 1991, p. 58).

Podemos perceber que a pesquisa qualitativa está em busca de compreender aspectos


da realidade e sobre as dinâmicas das relações sociais, nas quais não são passíveis de serem
quantificadas.

De acordo com Minayo:

Para Minayo (2001), a pesquisa qualitativa trabalha com o universo de significados,


motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais
profundo das relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos
à operacionalização de variáveis. Aplicada inicialmente em estudos de Antropologia
e Sociologia, como contraponto à pesquisa quantitativa dominante, tem alargado seu
campo de atuação a áreas como a Psicologia e a Educação. A pesquisa qualitativa é
criticada por seu empirismo, pela subjetividade e pelo envolvimento emocional do
pesquisador (2001, p. 14).

Por esta metodologia, podemos caracterizar como uma pesquisa que busca a
35

objetivação do fenômeno, classificação das diferentes ações que envolvem a pesquisa tais
como descrever, compreender, explicar, além de buscar resultados legítimos.

Busca-se, portanto, a partir das referências bibliográficas exploradas, conhecer e


analisar as possíveis contribuições teóricas da abordagem gestáltica acerca do Transtorno do
Espectro do Autismo, bem como um olhar singular direcionado a cada autista. Além disso,
através de um estudo de caso que revela os recursos que o dispositivo ADACA pode oferecer
no trabalho com a criança com TEA, buscamos ratificar o que apresentamos no
desenvolvimento bibliográfico.

6.1 Estudo de caso

O estudo de caso que se segue foi autorizado pelos responsáveis da criança com TEA
participante do projeto ADACA. Todos os nomes são fictícios para preservar a identidade dos
mesmos (em anexo, encontra-se o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e o Parecer
do Comitê de Ética da Plataforma Brasil).

Para a coleta de dados, foi realizada uma entrevista estruturada aos pais, com duração
média de 45 minutos. Na entrevista as perguntas voltavam-se para a chegada do filho autista,
impacto do diagnóstico, dinâmica familiar e manejos utilizados pela família como meios de
favorecer o desenvolvimento da criança.

6.1.1 Histórico

A história de Bruno pode ser a história vivenciada por muitos pais que tem um filho
autista. Mais uma família que aguardava ansiosamente pela chegada de um filho, até que no
decorrer dos anos, um diagnóstico modifica toda a estrutura familiar.

Otávio e Beatriz são os seus pais. Além de Bruno (5 anos), eles têm uma filha,
Manuela de 14 anos. Durante a entrevista preliminar com os pais, eles trazem o relato de uma
gestação inesperada, porém, bem tranquila.

Bruno nasce sadio e superando todas as expectativas desta família. Foi amamentado
até os dois anos e, pouco tempo depois, começou a manifestar os primeiros sinais de autismo.
Por meio de diversos vídeos gravados nos primeiros meses de Bruno, Beatriz conta como
36

tinha um bom desenvolvimento cognitivo, desenvolvimento normal da fala (para sua idade) e
contato visual (não modificou no decorrer dos anos).

Porém, ao aparecer os primeiros sinais, Bruno para de falar, não se reconhece mais
como Bruno, grita muito e começa a ter toques. Foi uma mudança radical na vida daquela
família. Segundo a mãe, “era como se algo tivesse vindo e roubado a alma dele”.

Ao notar essas mudanças em Bruno, sem os pais saberem do que poderia se tratar, o
levaram ao pediatra. Ao longo do atendimento, o médico os atentou para o autismo. A mãe,
não esperando receber um diagnóstico como este, se espanta.

Depois de passar por alguns exames e diferentes médicos, em seus três anos de idade,
o diagnóstico de autismo é confirmado e dado como de leve a moderado. A partir disso, os
pais foram investindo para que Bruno pudesse se recuperar. Segundo eles, não recuperou
totalmente a fala. Ele é verbal ecolálico, fala muito bem as frases funcionais e consegue
manter um diálogo.

Bruno estuda em uma escola regular. Conhece todas as letras e sabe contar até vinte.
Embora a escola seja muito boa, não tem suporte para receber crianças autistas e não também
mediadores. Os pais relatam que na escola Bruno é tratado como uma criança normal, porém,
por diversas vezes ele não é incluído nas atividades.

O diagnóstico do TEA foi para Bruno, mas a família também compartilha deste. Na
época do diagnóstico, a família já estava passando por momentos difíceis e a mãe entra num
forte quadro de depressão com duas tentativas de suicídio. Hoje, relata estar bem melhor
fazendo tratamento com psiquiatra e psicólogo. A mãe ainda faz um trabalho de aceitação
diante do transtorno do filho.

Os pais questionam que não tem vida social. Bruno pede por eles o tempo todo.
Qualquer alteração que se faça em sua rotina gera um desgaste emocional muito grande. Tem
sido uma luta, mas eles se doam o tempo inteiro para favorecer a Bruno que ele se
desenvolva.

Ao questioná-los sobre o que entende por autismo, o pai afirma ser um defeito de
comportamento. “É uma situação difícil, mas há condições de ajudá-lo”, diz Otávio. Afirma
também que ele e sua esposa precisam estar bem, pois quando não estão, Bruno acaba sendo
atingido.
37

Para a mãe, o autismo tem dois conceitos: um que está na sua mente e outro no
coração. Segundo ela, o autismo foi a pior coisa que aconteceu na sua vida. “É um limão que
eu tento fazer uma limonada”. Afirma que faz de tudo para que o mundo deles seja o mais
agradável possível para que Bruno venha para este mundo. Ela encerra dizendo: “A mente
entende uma coisa e às vezes o coração não aceita. ”

O ADACA é mais uma ferramenta que os pais utilizam para ajudar Bruno. Além do
ADACA, ele faz tratamento com fonoaudióloga, terapia ocupacional, equoterapia e também
aula de música na igreja. Todos os recursos que tem favorecido seu progresso, cada um com
sua função e todos contribuindo para o seu desenvolvimento.

6.1.2 Entrada no ADACA

A chegada de Bruno ao ADACA foi muito esperada e repleta de expectativas, tanto a


dos pais como a nossa que o receberíamos. Bruno teve uma ótima adaptação na sala lúdica.
Com alguns jogos e entretenimentos facilmente criou vínculos e manteve contínuas
inteirações. Comunicava-se não verbalmente, mas de forma clara, e parecia estar confortável
no ambiente. Atendia bem aos comandos e sempre trazia o convite do brincar.

Nos encontros posteriores, Bruno chega e logo se direciona à sala lúdica com
empolgação. Atento, observa tudo o que está na sala, sejam os jogos ou outros brinquedos.
Em seguida, se direciona ao que mais lhe chama atenção e começa a brincar.

A cada encontro, eram dispostos a Bruno, jogos que favoreciam o aprendizado em


português e matemática, como sequência numeral e alfabética, jogos de encaixes com formas
geométricas, entre outros.

Além disso, eram oferecidas propostas de jogos que tivessem a ver com ambientes da
casa, higiene pessoal, partes do corpo, voltando-se a proposta de trabalhar coisas do seu
cotidiano.

Em todos os jogos, Bruno sempre se saía muito bem e conseguia concluir todas as
tarefas, praticamente sem auxílio. A cada vez que concluía o jogo, ele era parabenizado e
estimulado com elogios positivos. Após algumas vezes fazendo isso, antes mesmo de ser
parabenizado, já direcionava o olhar esperando um elogio.
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Após algumas semanas na sala lúdica, Bruno foi levado à sala computacional, onde
teria acesso aos jogos desenvolvidos por alunos integrantes do projeto. Diversas são as opções
de jogos, os quais seguem uma lógica parecida dos jogos usados no ambiente lúdico.

Nesses jogos, é possível configurá-lo com opções de dicas com seta ou pisca-dica,
bem como estipular o tempo para que a dica seja ativada. Além disso, tem a opção de
comemoração de conclusão de jogo, podendo ser com ou sem palmas, com ou sem animação,
com letreiro de parabéns, fogos ou estrelas. Todas as vezes que Bruno conclui um jogo, ele
vibra com o parabéns animado.

Os jogos variam entre: associação visual, noção espacial, resolução visual, fechamento
visual, reconhecimento visual do alfabeto, reconhecimento visual dos números, ordem
numérica, leitura e quantidade e labirintos de diversos níveis.

A primeira vez que Bruno jogou, inicialmente teve dificuldades em manusear, porém,
ao ensiná-lo como proceder, teve sucesso nos demais jogos sem precisar de orientá-lo.

Os jogos também variam em nível de dificuldade. Primeiramente, utilizou-se jogos


mais fáceis, mas, Bruno os fez rapidamente. Hoje, tem um melhor domínio sobre os jogos
conseguido finalizar todos, até os de nível mais elevado.

Percebemos a importância do brincar e sua importância enquanto recurso terapêutico


que possibilita o desenvolvimento de diferentes habilidades e que são fundamentais tanto para
a criança como para o seu envolvimento com o social.

A proposta do brincar não pode ser de forma isolada, ou seja, é um momento de criar
vínculos, de aproximação e, portanto, trata-se de um brincar em conjunto. Este brincar em
conjunto permite o jogo colaborativo, simbólico e social.

Cada brincadeira e seu nível de dificuldade será dada de acordo com as limitações da
criança com TEA. As conquistas diante das brincadeiras acontecem de forma gradual. É
preciso também estar preparado para as dificuldades e frustações que as crianças enfrentarão a
fim de ajudá-las.

Após a entrada de Bruno no ADACA, seus pais percebem algumas diferenças


positivas. Relatam que Bruno sempre se interessou por computador, porém, apenas assistia
vídeos. Com sua entrada no ADACA, ele começou a querer jogar no computador e seus pais
começam então a reforçar o projeto com alguns jogos disponíveis na internet.
39

Além disso, os pais trazem que Bruno melhorou extremamente os toques e as


estereotipias. No caso específico do dele, os toques são muito marcantes. Os pais começam a
usar os jogos como ferramenta para que Bruno não permaneça muito tempo no toque. É uma
um instrumento que eles colocam para preencher essa lacuna nos momentos de toque.

Bruno também aprendeu a noção de esperar. Ele entende melhor quando é a sua vez e
quando é a vez do outro. Além disso, consegue compreender melhor a sua noção de espaço,
está muito mais observador e calmo.

Com os jogos, melhorou também sua noção de formas geométricas. Ele identifica
algumas figuras e as nomeia, como quadrado, losango, triângulo. Essa identificação está não
apenas nas figuras, mas também em desenhos como de sorvete, de bola.

Os pais também relatam que Bruno fica muito motivado porque os jogos do ADACA,
sejam eles virtuais ou não, sempre o incentiva com parabéns, com música e palmas quando
ele acerta. Isso o motiva muito e ele sente lisonjeado, algo que não é percebido muito em
autistas, mas ele consegue expressar esse sentimento específico de satisfação ao atingir a meta
do jogo.

6.2 Papel da psicologia

Vimos insumos que podem ser oferecidos por meio do projeto ADACA às crianças
autistas, visando o aprendido em matemática e em português. Mas o que afinal essas
disciplinas significam em nossa vida?

Tanto a matemática como o português são disciplinas que ajudam a desenvolver nossa
capacidade de representação. O raciocínio lógico, por exemplo, decorre da aprendizagem da
matemática. Para melhor compreendermos vamos pensar no número. O número 1 (um) não é
apenas um número. Ele é um número que se abstrai a partir da representação de um signo que
é criado a partir de uma convenção social.

Esse número possibilita que nós façamos a mediação entre uma ideia, ou seja, aquilo
que nós pensamos, e o mundo. Por meio desta mediação nos é possibilitado a comunicação e
nos permite compartilhar. O que falta a pessoa autista é exatamente essa ponte. Essa
dificuldade de comunicação e expressão se revela como uma característica que marca
efetivamente o transtorno.
40

A partir disso, podemos compreender melhor em que a psicologia pode contribuir


como um importante agente no ADACA. Entendemos que o autista não é deficiente na
capacidade de abstrair. O modo, ou os caminhos que ele faz para abstrair são diferentes
daqueles que nós fazemos.

Dentro do projeto, o acompanhamento das crianças e também com os pais tem o


intuito de contribuir com recursos a fim de captar o modo como aquela criança produz suas
abstrações, uma vez que compreendemos que a linguagem, sendo uma convenção social, não
necessariamente atende àquela criança, como não atende muitos de nós também.

Todo trabalho consiste em conjuntamente construir estratégias para se pensar a lógica


da capacidade de representação que a pessoa com autismo tem. Em nossa sociedade é comum
parametrizar o normal e o patológico a partir de um modelo de normalidade que é criado e
também convencionado. E por que não compreender então como opera o autista a partir de
outra lógica?

Em conjunto ao trabalho com as crianças, sendo relevante a continuidade deste


trabalho em casa, é válido ressaltar a importância desta família para seu filho autista. Desta
forma, o projeto se estende a família e num primeiro momento abre espaço para uma escuta
clínica. É um momento importante para que os pais apontem a demanda e traga suas
expectativas em relação ao projeto. Da mesma forma que se conduz em atendimento clínico, o
mesmo também é assegurado por todos os princípios éticos da nossa prática enquanto
psicólogos.

Além disso, este espaço para as famílias também proporcionará a elas que em grupo
possam trocar e falar da experiência de ser mãe e pai de autista, da experiência de observação
de seu filho a fim que possamos ter esse cuidado em se construir uma proposta de trabalho
que atenda a singularidade daquele sujeito. Desta maneira, favorecemos que cada criança
possa se desenvolver com a sua história, com a sua subjetividade e singularidade.
41

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho teve como objetivo apresentar o autismo, sua forma de se


estabelecer frente ao mundo e o envolvimento dos pais neste processo, e também as maneiras
que a Gestalt-terapia pode contribuir para o acompanhamento e uma melhor forma de se
conviver face ao autismo.

Por meio das reflexões trazidas, podemos compreender que o autista não deve ser
posto numa rotulação de “o doente”. Mas, podemos tratá-lo com uma forma diferenciada de
ser, e ao mesmo tempo, não tratá-lo com indiferença e sim pautar numa ideia de formas de
lidar com o diferente sem que gire em torno da exclusão e segregação.

Todo autista requer atenção especial e dedicação da família. Portanto, o desafio no


processo de acolhida e oferta de recursos e técnicas para o manejo da pessoa com TEA, não se
limita apenas à criança autista, mas é um trabalho continuado pela família a fim de promover
a saúde da criança.

Também é importante um trabalho de socialização para mobilizar quebrando os


preconceitos e a descriminação. Desta forma, sairemos do comodismo do autista viver no seu
mundo a parte e possibilitaremos que possamos fazer parte de um mesmo mundo, mas cada
um com a sua singularidade.

Podemos compreender também que o trabalho realizado pelo psicólogo visa uma
melhor qualidade de vida ao autista e dispõe de recursos que facilitam este processo. Todo
nosso trabalho, enquanto psicólogos, volta-se para viabilizar a expressão que cada
subjetividade pode revelar, inclusive a da pessoa com TEA. Compreendemos a comunicação
para além da expressão verbal, e valorizamos a interação como recurso que viabiliza a
comunicação e torna-se um potente recurso para se pensar outras formas de comunicação e
expressão.

É válido ressaltar que este estudo não tem o intuito de extenuar as diferentes
perspectivas e teorias sobre o autismo e sim, propor reflexões e contribuir para o
desenvolvimento de futuros trabalhos, mas apontar para algumas possibilidades no manejo e
valorizar o lugar da pessoa com TEA em sua relação com o mundo a partir de uma
perspectiva dialógica.
42

Nesse contexto, interação, dialogia e a assunção de que a pessoa com autismo está no
mundo com suas possibilidades e limitações é fundamental.

Com este trabalho, ratificamos nossa aposta nas infinitas possibilidades de


configuração do eu na sua relação com o mundo e nas potências criativas que emergem das
intervenções que tem como foco o relevo da interação entre pessoas, diferentes, mas que
carregam em si, cada qual singularmente possibilidades.
43

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46

ANEXO I
47

Tabela retirada da Cartilha “Diretrizes de Atenção à Reabilitação da Pessoa com


Transtornos do Espectro do Autismo (TEA)” – Ministério da Saúde, 2013.
48
49
50
51
52
53
54
55

ANEXO II
56

Figuras retiradas do livro “Autismo: Vivências e Caminhos. Cap. 10 – Ambiente Digital de


Aprendizagem para Crianças Autistas (ADACA), p. 127.
57

Figura 1. Tela Inicial do ADACA no Ambiente Computacional, Menu de Jogos

Figura 2. Jogo do ADACA Figura 3. Jogo do ADACA

Figura 4. Jogo do ADACA Figura 4. Jogo do ADACA


58

ANEXO III
59

Termo de Consentimento Livre e Esclarecido


60
61
62

ANEXO IV
63

Parecer do Comitê de Ética da Plataforma Brasil


PÓS GRADUAÇÃO LATO SENSU

GISELLA MOUTA FADDA

AUTISMOS E O OLHAR CENTRADO NA PESSOA

Belo Horizonte – MG
GISELLA MOUTA FADDA

AUTISMOS E O OLHAR CENTRADO NA PESSOA

Monografia apresentada à Universidade


da Fundação Mineira de Educação e
Cultura – FUMEC do Estado de Minas
Gerais como requisito parcial para a
obtenção do certificado de Especialização
em Psicologia Humanista, Existencial e
Fenomenológica.

Orientador:

Profa. Ana Maria Sarmento Seiler


Poelman

Belo Horizonte – MG
2013
Dedico a todas as pessoas que
convivem e se dedicam a compreender
esse mundo autista tão particular.
AGRADECIMENTOS

Agradeço principalmente aos encontros, reais e virtuais, proporcionados pela


rede de relações para a realização desse trabalho:
Ao encontro com meus pais, Mouta e Fadda, que fizeram dos pequenos
momentos, peças fundantes para o meu desenvolvimento.
Ao encontro com minha orientadora, professora, psicóloga e amiga Ana Maria
Sarmento Poelman com quem experienciei todas as condições facilitadoras:
congruência, aceitação e compreensão empática.
Ao encontro com todos os docentes da Pós-graduação, em especial ao
coordenador Walter Andrade Parreira, que com seus ensinamentos facilitaram a
minha formação (e não informação) em Psicologia Humanista-Existencial-
Fenomenológica.
Ao encontro com Virginia Mae Axline por meio do livro “Dibs, em Busca de si
mesmo” que despertou meu interesse pela Psicologia Infantil aos 13 anos.
Ao encontro com Carly Fleischmann, Temple Grandin e John Elder Robison
que com suas histórias de vida alargaram minha compreensão do que é viver com
autismo, cada um a seu modo.
Ao encontro com meus amigos, que mesmo longe ou próximo a mim,
ajudaram-me a compor e conhecer o mundo dos diversos AutismoS. Foi por meio
deles que pude entrar em contato com pais, profissionais, materiais publicados e
estudos ainda não-publicados sobre o assunto.
Encontros que ficam definitivamente e indelevelmente marcados em mim.
Um dia de chuva é tão belo como um
dia de sol.
Ambos existem; cada um como é.
Alberto Caeiro
(heterônimo de Fernando Pessoa)
RESUMO

O presente estudo visa compreender o papel das relações interpessoais como um


elemento essencial para o processo de mudança na vida das pessoas
diagnosticadas com autismo. O trabalho se fundamenta nos pressupostos teóricos
de Carl Ransom Rogers e sua Abordagem Centrada na Pessoa (ACP). A autora se
baseou em histórias de vida consultando filmes e livros autobiográficos de pessoas
diagnosticadas como autistas. Dentre os dados obtidos, escolheu destacar três
relatos por estarem distribuídos diferentemente ao longo do espectro autista:
autismo severo, autismo e síndrome de Asperger. Nos casos analisados, foram
identificados dois tipos de relações, aquelas voltadas exclusivamente às técnicas
psicoterápicas e que não surtiram os efeitos terapêuticos desejados e outras,
voltadas ao movimento do cliente e que foram consideradas por elas mesmas, como
preponderantes nas suas vidas. Nesses encontros vividos a dois, vê-se pelo lado do
terapeuta (ou outra pessoa do convívio) as atitudes facilitadoras: uma postura aberta
e a confiança no desabrochar das possibilidades do outro, sejam elas quais forem. E
pelo lado do cliente, a aceitação da presença do terapeuta e uma tomada de
decisão. A autora conclui que as pessoas – em especial aquelas consideradas
dentro do espectro autista – que são sustentadas por esse tipo de relação especial
conseguem elaborar melhor as experiências vividas e dessa forma identificar, se
posicionar frente às determinações que recebem e abrir possibilidades para que a
pessoa se torne tudo o que ela pode ser.
Palavras-chave: Autismo. Asperger. Espectro Autista. Encontro. Relação
Interpessoal. Abordagem Centrada na Pessoa. Atitudes Facilitadoras.
ABSTRACT

This study aims to understand the role of interpersonal relationships as an essential


element in the process of changing the lives of people diagnosed with autism. The
work is based on the conceptual framework of Carl Ransom Rogers and his Person-
Centred Approach (PCA). The author based her study on stories from
autobiographical books and movies about the life of people diagnosed as autistic.
Among the data obtained, she has chosen to highlight three reports as they are
distributed differently along the autistic spectrum: severe autism, autism and
Asperger syndrome. In the cases analyzed two kinds of relationships were identified,
those focused exclusively on psychotherapeutic techniques, which did not have the
desired therapeutic effects and others focused on the movement of the client and
which were considered by themselves as crucial in their lives. In these encounters
experienced by two, it can be seen (of the therapist or someone else closely related)
the facilitative attitudes: an open posture and confidence in the blossoming of the
other person’s possibilities, whatever they may be. The client, on the other hand,
accepts the presence of the therapist and makes a decision. The author concludes
that people – especially those considered within the autistic spectrum – who are
supported by this kind of special relationship can be best prepared in their
experiences and thereby identify, and position themselves in face of the
determinations that they receive and open up possibilities for the person to become
all they can be.
Keywords: Autism. Asperger. Autistic Spectrum. Encounter. Interpersonal
Relationship. Person-Centred Approach. Facilitative Attitudes.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Quadro 1 – Comparações entre a forma Objetiva e Existencial de se fazer


ciência................................................................................................................ 22
LISTA DE ABREVITAURAS E SIGLAS

ABA Applied Behavior Analysis (Análise do Comportamento Aplicado)

ACP Abordagem Centrada na Pessoa

APA Associação Psiquiátrica Americana

ASD Autism Spectrum Disorder (Desordem do Espectro Autista)

CID Classificação de Transtornos Mentais e de Comportamento

DSM Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais

TGD Transtornos Globais do Desenvolvimento


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.............................................................................. 10
E UMA NOVA CRIANÇA CHEGA À FAMÍLIA............................................... 10
1 AUTISMOS.................................................................................................... 12
1.1 AUTISMO INFANTIL...................................................................................... 12
1.2 SÍNDROME DE ASPERGER......................................................................... 15
1.3 O AUTISMO SEGUNDO O DSM-IV-TR E A CID-10..................................... 16
1.4 AUTISMOS....................................................................................................... 17
2 O OLHAR CENTRADO NA PESSOA........................................................... 19
2.1 O HOMEM, UMA VISÃO HUMANISTA......................................................... 19
2.2 UM JEITO DE SER AUTISTA........................................................................ 25
2.3 O ENCONTRO NA RELAÇÃO TERAPÊUTICA............................................ 36
2.4 A COMPREENSÃO EMPÁTICA NO ATENDIMENTO.................................. 40
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................................... 44
REFERÊNCIAS............................................................................ 50
APÊNDICE A – A HISTÓRIA POR TRÁS DO ESTUDO............. 54
10

INTRODUÇÃO

E UMA NOVA CRIANÇA CHEGA À FAMÍLIA

Imagine uma mesa com algumas cadeiras dispostas ao seu redor. Imaginou?
Provavelmente você imaginou que as cadeiras são todas iguais e uniformemente
distribuídas ao redor da mesa. Desista desta ideia.
Comecemos novamente.
Imagine uma mesa com algumas cadeiras dispostas ao seu redor. O mais
belo desta cena é que cada cadeira é de um jeito; uma delas é exuberante, com
linhas que variam entre o estilo barroco e o estilo minimalista; outra cadeira já é
maior e mais rústica, com linhas firmes e ao mesmo tempo biomorfista; há também
uma cadeira que se pressente que é aconchegante por si só, macia na medida
certa, nem mais nem menos; há também aquela cadeia orgânica, em que suas
linhas procuram uma integração com o meio ambiente através da forma, material e
função; e tem aquela cadeira que acabou de ser colocada na mesa.
Assim é uma família, cuja diversidade de cada membro é o que a faz mais
forte e bela, com suas especificidades, suas características, seus gostos e
experiências que tornam enfim, cada cadeira única. O problema começa a aparecer
quando se tenta homogeneizar essas cadeiras, corta um pedaço aqui, lixa outro ali,
remodela acolá, acrescenta um “tico” noutro lugar, para que todos os membros
fiquem iguais, porque afinal de contas é difícil mesmo lidar com o diferente, não
fomos acostumados com o diferente, muito menos com a diversidade de
aprendizado, de inteligência e de experiências.
Mas por ora, deixemos este assunto de diversidade de lado e coloquemos a
atenção naquela cadeira novinha que acabou de ser colocada na mesa. É a
metáfora de uma criança que acabou de chegar nesse mundo e ainda está se
acostumando com tudo a sua volta. Experiencia tudo, descobre sabores, texturas,
cheiros e aconchegos.
Entretanto, parece que essa criança não se envolve tanto com o mundo a sua
volta, deixou de explorá-lo preferindo o isolamento, fica horas sozinha ou olhando
um objeto que gira, chora muito, tem acessos de raiva com sons muito alto e quase
não dorme. É uma diversidade maior ainda do que aquela que os pais estavam
esperando.
11

“O que está acontecendo? O que meu filho tem?” Questionam-se os pais


desesperados por suporem que seu filho esteja fora da curva da normalidade de
outras crianças.
Levado para vários especialistas, tudo o que os pais queriam ouvir é: “seu
filho é normal” (GRINKER, 2010). Entretanto alguns meses depois, os especialistas
concluem um diagnóstico: Autismo Infantil.
“Autismo? Como assim?” Podem perguntar os pais atônitos.
E os especialistas explicam: “Sua filha tem um atraso no desenvolvimento e
no máximo atingirá o desenvolvimento de uma criança de 6 anos. O perfil dela é de
uma criança com autismo severo e com moderado retardo mental”. Ao ouvir essa
sentença, os pais podem sentir como se lhes houvesse dado “um chute no
estômago”. Foi assim com Arthur Fleischmann, pai de Carly, uma menina
canadense que com 2 (dois) anos de idade foi diagnosticada dessa maneira. (ABC
NEWS, 2011).
Os Transtornos Globais do Desenvolvimento (TGD) indicam um atraso ou
desvio no desenvolvimento referente às habilidades sociais, à linguagem e aos
comportamentos estereotipados. Os indivíduos acometidos por esse transtorno
possuem interesses restritos e repetitivos, resistência a mudanças na rotina,
fascinação por objetos, entre outras características. (SADOCK; SADOCK, 2007).
12

1 AUTISMOS

1.1 AUTISMO INFANTIL

O autismo foi descrito pela primeira vez em 1943, pelo psiquiatra austríaco
Leo Kanner (1894 – 1981) no artigo “Autistic Disturbances of Affective Contact”
(Distúrbios Autista do Contato Afetivo) em que relatou 11 (onze) casos de crianças
diferentes entre si, nascidas em lugares distintos, mas que apontavam para certa
coerência de comportamentos.
Kanner começa seu relato assim:
Desde 1938, têm chegado até nossa atenção, um número de
crianças cujas condições diferem de forma marcante e tão única de
qualquer relato até então registrado, que cada caso merece – e, eu
espero que eventualmente receba – uma consideração detalhada de
suas fascinantes peculiaridades1. (Kanner, 1943, [tradução nossa]).
No primeiro caso, Donald, um garoto de 5 (cinco) anos tinha uma rara
memória para rostos e nomes, porém não conversava e não fazia perguntas exceto
usando palavras simples. Os pais de Donald relataram que desde cedo ele se sentia
mais feliz quando sozinho, quase nunca chorava para ir com a sua mãe ou notava
quando seu pai chegava a casa, a presença dos parentes era-lhe indiferente. Aos 2
(dois) anos desenvolveu a mania de girar objetos; aos 4, balançava sua cabeça para
os lados; e, aos 5, quando foi examinado, foram identificadas os seguintes pontos:
limitação para as atividades espontâneas, movimentos estereotipados com seus
dedos, balançava sua cabeça de um lado para o outro, sussurrava ou cantarolava,
girava com prazer qualquer objeto e organizava-os, separando por cores. Quando
finalizava qualquer uma dessas atividades, Donald gritava e pulava até que sua
mãe introduzisse outra atividade que ele gostasse. Nas palavras do pai: “ele parece
quase fechado dentro da sua concha e vive dentro de si mesmo”. (KANNER, 1943,
[tradução nossa]).
Frederick, a criança citada no segundo caso, tinha 6 (seis) anos e a sua mãe
o descreveu como autossuficiente desde a tenra idade, poderia deixá-lo sozinho que
ele se entretinha com prazer. Seu comportamento diferenciava-se frente a pessoas

1
Since 1938, there have come to our attention a number of children whose condition differs
so markedly and uniquely from anything report so far, that each case merits – and, I hope,
will eventually receive – a detailed consideration of its fascinating peculiarities.
13

e objetos: objetos o absorviam facilmente, brincando com atenção enquanto que


parecia considerar as pessoas como intrusas, não sendo bem-vindas. Quando
respondia às perguntas que lhe eram feitas repetia as palavras em uma forma de
ecolalia. (KANNER, 1943).
A terceira criança chamava-se Richard e com 3 (três) anos não falava e não
respondia a questões apesar de obedecer a comandos simples como sentar-se e
levantar-se. Foi descrito como uma criança inteligente que gostava de brincar com
seus brinquedos e que parecia bem autossuficiente nas suas brincadeiras. Não
prestava atenção em conversações em torno dele e apesar de emitir sons “Ee! Ee!
Ee!”, não conseguia falar palavras reconhecíveis. Richard nunca apresentou um
sinal antecipatório ao estar prestes a ser carregado como acontece com as outras
crianças. (KANNER, 1943).
Paul, de 5 (cinco) anos, a quarta criança relatada, possuía uma fala
incoerente, não conseguia se adaptar as regras sociais, estava sempre ocupado
com alguma coisa parecendo estar extremamente satisfeito com isso a menos que
alguém o interrompesse, reagindo com raiva para qualquer interferência. Possuía
bom vocabulário com um único ponto de atenção: ele não conseguia usar o
pronome pessoal na primeira pessoa. (KANNER, 1943).
Barbara, a primeira menina citada no estudo, possuía 8 (oito) anos e também
não conseguia usar o pronome pessoal corretamente, usava o “eu” para se referir a
sua mãe ou pai e o “você”, para si própria. Possuía um vocabulário pobre aos 2
(dois) anos mas era muito boa tanto em soletrar palavras, como na leitura e na
escrita, apesar de não conseguir explicar o que acabara de ler, não conseguia
aprender matemática. Seus desenhos mostravam-se estereotipados e sem
imaginação. Barbara brincava com sua língua e mãos como se fosse um brinquedo.
(KANNER, 1943).
No sexto caso apresentado tem-se Virginia, uma menina de 11 (onze) anos
que não brincava com outras crianças, não se interessava pelas pessoas em geral e
não demonstrava afeição, mas parecia ter prazer em ter contato com objetos.
(KANNER, 1943).
Herbert, aos 3 (três) anos, foi o sétimo caso. Era um menino sempre quieto e
por um tempo acreditou-se que fosse surdo por não demonstrar nenhuma mudança
de expressão quando falavam com ele e também não fazia nenhuma tentativa de
falar ou formar palavras. Ficava aborrecido com qualquer modificação na sua rotina.
14

(KANNER, 1943).
Alfred, com 3 (três) anos e meio, integrou o estudo de Kanner como sendo o
oitavo caso, com a seguinte reclamação dos pais: ele tinha uma tendência a
desenvolver um especial interesse pelo mundo dos objetos, falhava no
desenvolvimento social, preferindo brincar só e falava pouco – apenas quando tinha
interesse em algo, confundindo os pronomes. (KANNER, 1943).
O nono caso, foi Charles, com 4 (quatro) anos e meio na época. Sua mãe
reclamava que seu maior incômodo com relação ao filho, era o fato de que “não
conseguia fazer contato com seu bebê” e o que mais a impressionava era seu
distanciamento e inacessibilidade. Relatou ainda que desde bebê era inativo, e que
ele poderia ficar deitado no berço por horas apenas olhando para o nada, quase
como se estivesse hipnotizado. Com um ano e meio começou a girar seus
brinquedos, tampas de garrafas e jarras; e quando ele estava interessado em uma
coisa, nada poderia desviar-lhe a atenção. (KANNER, 1943, [tradução nossa]).
John tinha 2 (dois) anos quando foi descrito no décimo caso. A preocupação
dos pais era primeiramente com a alimentação (nunca conseguiu se alimentar
apropriadamente) e depois com seu lento desenvolvimento. Jogava os objetos no
chão e não respondia a simples comandos com exceção quando seus pais, com
muita dificuldade, conseguiam chamar sua atenção para dar um tchau.
Posteriormente, seu vocabulário melhorou, porém com uma articulação defeituosa.
Aos 4 anos, era muito limitado nos contatos afetivos e esses eram reservados
apenas a poucas pessoas. (KANNER, 1943).
O último caso, foi Elaine de 7 (sete) anos, que entrou no estudo também por
seu atípico desenvolvimento: não entendia o jogo que outras crianças jogavam, não
se entretinha com histórias que eram lidas para ela, não conseguia fazer abstrações,
afastava-se e andava sozinha, tinha um carinho especial por todos os tipos de
animais e ocasionalmente, imitava-os caminhando ou fazendo estranhos barulhos.
(KANNER, 1943).
Os pais dessas crianças costumavam se referir a elas como
“autossuficientes”, “como uma concha”, “felizes quando estavam sós”, “agiam como
se as pessoas não existissem” e assim por diante, levando Leo Kanner a observar
um fio condutor que ligava essas onze crianças (oito meninos e três meninas) entre
si. (KANNER, 1943, [tradução nossa]).
Todas compartilhavam dificuldades em se relacionar socialmente – o que
15

Kanner chamou de “solidão autista extrema” –; possuíam dificuldades na linguagem


– repetiam frases, não chamavam a si próprias de “eu” –; algumas possuíam
excelente memória; muitas tinham fixação por objetos; gostavam de movimentos
giratórios e de repetições, – como a manutenção de rotinas –; outras ainda tinham
horror a sons altos; e apresentavam limitado repertório de atividades espontâneas.
(KANNER, 1943, [tradução nossa]).
Essas características observadas no estudo apontavam para uma nova
síndrome, que Kanner viria a chamar de “Autismo Infantil”; diferenciando-a assim, da
esquizofrenia infantil. (KANNER, 1943).
Todavia, o termo autismo já havia sido utilizado pelo psiquiatra Eugen Bleuler
(1857 – 1939) em 1911 para descrever os sintomas fundamentais da esquizofrenia
como os 4 A’s: Associações, Afeto, Autismo e Ambivalência. (SADOCK; SADOCK,
2007).
Autismo, que vem do grego “autos” e significa “eu mesmo” (GRINGER, 2010),
é a tentativa de explicar em apenas uma palavra esse fechamento em si mesmo,
essa aparente concha, ou melhor ainda, essa solidão autista extrema que era a
principal característica que Kanner queria demonstrar como parte da nova síndrome
e não apenas como um sintoma como fez Bleuler.
Apesar disso, muitas crianças autistas foram diagnosticadas com
esquizofrenia infantil como pode ser visto no filme biográfico da Dra. Temple
Grandin, na década de 1950. (TEMPLE GRANDIN, 2010).
Adicionalmente ao diagnóstico de autismo, vinha à culpa. Naquele tempo,
prevalecia a teoria de que as mães eram culpadas porque haviam feito seus filhos
se tornarem autistas devido alguma falta de afeto da parte delas. (GINKER, 2010;
TEMPLE GRANDIN, 2010).

1.2 SÍNDROME DE ASPERGER

Um fato interessante aconteceu na ciência médica naquela década de 1940.


Pois no ano seguinte a publicação de Kanner, atravessando o oceano, outro estudo,
publicado pelo pediatra austríaco Hans Asperger (1906 – 1980), descreveu quatro
crianças do sexo masculino com graves distúrbios na interação social e na fala, além
das incoordenações motoras. Asperger denominou esse conjunto de características
como “Psicopatia Autista na Infância”. Detalhe: Kanner e Asperger nunca
16

conheceram o trabalho um do outro e ambos observaram características


semelhantes em crianças incomuns, dando o mesmo nome à síndrome – Autismo.
(GRINKER, 2010, p. 67-68; KLIN, 2006; TAMANAHA; PERISSINOTO, 2008).
Outro ponto a ser destacado, segundo GRINKER (2010, p.68), Asperger
desde então, já acreditava que o autismo fazia parte de um espectro (ideia que só
seria considerada pela comunidade científica, muitas décadas depois), mas
infelizmente seu trabalho foi interrompido após um bombardeio que destruiu seu
laboratório na Áustria em plena Segunda Guerra Mundial. O trabalho de Asperger,
publicado originalmente em alemão como “Die 'Autistischen Psychopathen' im
Kindesalter”, ficou restrito aos países germânicos até o ano de 1981 (KLIN, 2006) e
sendo reconhecido pela Associação Americana de Psiquiatria (APA) apenas em
1994. (GRINKER, 2010).

1.3 O AUTISMO SEGUNDO O DSM-IV-TR E A CID-10

De acordo com a Classificação de Transtornos Mentais e de Comportamento


da Organização Mundial da Saúde (1993), 10ª revisão (CID-10), o autismo infantil foi
classificado como pertencente aos Transtornos Globais do Desenvolvimento,
caracterizado por alterações qualitativas da interação social e modalidades de
comunicação, e por um repertório de interesses e atividades restrito e estereotipado
que se manifestam antes dos três anos e cuja incidência é aproximadamente de 2-5
indivíduos para cada 10.000 com predominância de 4:1 no sexo masculino. Já a
síndrome de Asperger, como atualmente é conhecida a psicopatia autista na
infância, é considerada dentro do autismo infantil por se assemelhar a este nas
áreas de interação social e interesses.
Também no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais da
Associação Psiquiátrica Americana (2002), 4ª edição (DSM-IV-TR), tanto o autismo
infantil quanto a síndrome de Asperger são classificados dentro dos Transtornos
Globais do Desenvolvimento, caracterizando-os com graves distúrbios nas áreas de
interação social e repertório restrito de interesses e atividades.
O DSM-V, previsto para maio de 2013, pretende propor a classificação como
Desordem do Espectro Autista (Autism Spectrum Disorder – ASD) substituindo os
atuais TGD (APAa, 2012; APAb, 2012). Muitos artigos publicados pelo Portal de
Literatura Biomédica dos Estados Unidos (PubMed) já utilizam a sigla ASD.
17

1.4 AUTISMOS

Não existem duas pessoas diagnosticadas com autismo que sejam iguais.
Não existe UM tipo de autismo. Há vários autismos visto que não há dois cérebros
iguais no mundo. O autismo representa centenas de configurações da expressão,
forma e intensidade das manifestações para cada caso. Dessa maneira, a palavra
espectro é a mais utilizada atualmente para designar esses tipos distintos de
autismo. (EM BUSCA DE UM NOVO CAMINHO, 2012; PELPHREY; SHULTZ;
HUDAC et al., 2011; SACKS, 1995; TEDx Fortaleza, 2012).
Quando o autismo foi descrito na década de 1940, pensou-se inicialmente
que estivesse ligado a questões psicológicas como um problema de relacionamento
entre as mães e as crianças ditas autistas que as levava a não se relacionarem
depois com outras pessoas. (EM BUSCA DE UM NOVO CAMINHO, 2012;
GRINKER, 2010; TEMPLE GRANDIN, 2010).
Nos últimos anos, a hipótese mais aceita é que há uma base genética2, e
também componentes ambientais, que associados podem fazer algumas
modificações neuronais. No estudo de 2012, coordenado pelo biólogo molecular e
doutor em genética, Alysson Muotri – Modelando Autismo com Neurônios Humanos
(Stem Cells and Modeling of Autism Spectrum Disorders) na Universidade da
Califórnia (San Diego), conseguiu-se pela primeira vez simular neurônios autistas e
compará-los com neurônios normais, sendo identificadas então diferenças nos
tamanho e nas ramificações necessárias para as sinapses, ou comunicação
cerebral. (TEDx Fortaleza, 2012).
Também no estudo apresentado por Chaste e Leboyer (2012), o autismo é
relatado como uma combinação de fatores genéticos e ambientais, entretanto não
se consegue ainda identificar quais interações entre os genes e os fatores
ambientais afetam o desenvolvimento do cérebro das crianças.
Por isso, atualmente se considera que existam pessoas com diferentes tipos
de “projeto de cérebro” em que cada criança diagnosticada com autismo ou com a
síndrome de Asperger possui suas características próprias, apesar de sofrerem com
alterações precoces na interação social impactando em seu desenvolvimento global,
seja na comunicação, sejam nos padrões limitados ou estereotipados de

2
A base genética não significa necessariamente que seja hereditária.
18

comportamentos e interesses. Em suma, as crianças possuem grandes desafios que


enfrentarão pela vida inteira, independentemente do rótulo. (EM BUSCA DE UM
NOVO CAMINHO, 2012; KLIN, 2006).
Leo Kanner, na verdade, nunca se interessou pelos rótulos, “pois os achava
desumanizadores” e há o relato de que em uma ocasião no hospital que era o
responsável, um médico disse na frente da paciente (GRINKER, 2010, p. 51):
“Eu não consigo decidir se é demência precoce ou histeria.”
Ao qual Kanner respondeu “furioso”:
“O nome dela é Srta. Geral.”
19

2 O OLHAR CENTRADO NA PESSOA

O encontro com o outro só é possível


quando o aceitamos com toda diferença
que ele traz.
Maria Cândida Viana Pereira3

2.1 O HOMEM, UMA VISÃO HUMANISTA

Há muito se procura a verdade essencial e profunda a respeito do homem. O


uso da palavra verdade na filosofia significa o despojamento das opiniões pessoais,
opiniões subjetivas, parciais, dado que a filosofia assume uma procura racional,
pensa com a razão, não fazendo uso de intuições, opiniões subjetivas e crenças.
Nesse sentido, procura-se um conhecimento racional, que se possa provar por meio
de raciocínios a compreensão do homem.
No seu tempo, cada pensador, tentou responder questões acerca do homem,
mas sendo impossível abarcar toda a verdade sobre o mesmo, volvia seu olhar para
uma determinada verdade a respeito daquilo que estava percebendo, observando,
criando desta forma uma concepção de homem, ou seja, um conjunto de afirmações
sobre o modo como o via.
“Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante, do que ter aquela velha opinião
formada sobre tudo” (SEIXAS, 1977). O trecho da música de Raul Seixas revela
uma ideia sobre o ser humano, uma ideia que foge completamente do congelamento
de velhas opiniões formadas a respeito do que seria o homem.
O perigo das opiniões formadas sobre o homem é de se colocar rótulos
seguindo conceitos pré-definidos, é o de dar um veredito sobre a sua identidade,
sem possibilidades de se desgrudar do rótulo que lhe foi atribuído. “Lembro o dia em
que Isabel foi diagnosticada como autista como o dia em que ela se tornou autista”
(GRINKER, 2010, p. 35), assim relata o pai de Isabel. É quase como colocar uma
etiqueta no ser humano, etiqueta essa, que pode ser muitas vezes prejudicial no
processo terapêutico.
Assim, questões fundamentais emergem: o que é o homem? Qual a sua
essência? Qual a sua identidade enquanto ser humano? Ou ainda, quem é o

3
Dedicatória escrita por Maria Cândida no livro consultado “Uma menina estranha:
autobiografia de uma autista” de Temple Grandin.
20

homem? Será que o conhecemos mesmo quando é feita apenas uma descrição?
Questionamentos como esses fizeram despontar a questão do Humanismo.
De acordo com Holanda (1998, p.19), o humanismo é uma ideia, centrada no
humano, que surge como uma procura pelo sentido de ser do homem. É um esforço
contínuo pela compreensão de sua totalidade, pela sua integralidade.
Dessa forma, o movimento humanista acabou por entrar na psicologia, que
ainda estava centrada no modelo das ciências exatas e tentava estabelecer leis e
regras do psiquismo. A compreensão do homem era parcial, viam-se apenas alguns
aspectos, tentando-se tomar as partes pelo todo. (HOLANDA, 1998, p. 38).
Como cada teoria diz respeito a determinados fenômenos em um período de
tempo sobre os fatos que estão acontecendo, faz-se um paralelo entre as teorias e
os mapas para uma melhor compreensão. É como se cada teoria sobre a natureza
humana fosse um mapa a nos orientar de como circular no campo (nos fenômenos).
Cada mapa por sua vez, mostra um aspecto do campo, como acontece com o mapa
político que mostra as fronteiras; o mapa geológico que indica o solo de uma dada
região; o mapa hidrográfico menciona os rios, e assim por diante. Da mesma forma,
para cada teoria, há uma concepção de ser humano diferente, uma vez que se
trabalha sobre um pressuposto do que seja a natureza humana. Uma possui mais
ênfase na história da pessoa do que na biologia; outra possui mais ênfase no
passado, em oposição à outra que dá mais ênfase no presente e no futuro. Uma é
mais negativa, outra mais otimista.
A partir da necessidade de se estender essa visão limitada de homem, que o
restringia a alguns elementos, nasce a Psicologia Humanista com a intenção de
abordar o gênero humano dentro de sua inteira complexidade. (HOLANDA, 1998).
Compreendem-se então as características e orientações fundamentais da
Psicologia Humanista como: o “homem é mais do que a soma das partes”, o
“homem tem seu ser em um contexto humano”, o “homem é consciente” (seja qual
for o grau de consciência), “o homem tem a capacidade de escolha” e por fim, o
“homem é intencional” (busca situações de homeostáticas e de variedades).
(HOLANDA, 1998, p.41).
De tal forma que se pode classificar a abordagem humanista em Psicologia
como fenomenológica com direcionamentos existenciais cuja base é a experiência
consciente e concreta da pessoa, a totalidade e integridade do ser humano,
conferindo importância a sua liberdade e a sua autonomia. O homem não “é”, mas
21

“está”, pois se forma a cada momento de sua vivência, em uma visão dinâmica e
dialética. (HOLANDA, 1998, p.42).
A Psicologia Humanista não constituiu assim, uma teoria única de
personalidade, de psicoterapia e de psicopatologia. Seu comprometimento estava
voltado ao processo do ser humano e com o futuro desse homem, futuro definido
pelo próprio homem que o permite crescer e se desenvolver continuamente.
(HOLANDA, 1998, p. 46;47).
No final da década de 1950, um psicólogo americano chamado Abraham
Maslow (1908 – 1970), começou a se questionar sobre a Psicologia após o
nascimento da sua filha e suas crescentes insatisfações com o método experimental
(Behaviorismo); e com a teoria construída a partir de pessoas neuróticas (não
saudáveis) como a Psicanálise. (SCHULTZ; SCHULTZ, 2004).
Para Maslow (1968), o rigor do método deixava escapar o principal, em
detrimento da pessoa, não era necessário ver apenas a “metade doente”, uma vez
que não se poderia construir uma teoria da personalidade a partir de pessoas que
não atingiram o seu auge – ou tudo o que posso ser como pessoa. O essencial seria
conseguir observar as partes boas de cada um.
Assim, nesse contexto, nasceu em 1961, a Rede Eupsiquiana com a ênfase
no lado saudável do ser humano, e era formada por um grupo de pessoas –
Abraham Maslow, Rollo May, Gordon Allport, entre outros, cuja maioria era
dissidente de Sigmund Freud, devido à insatisfação com a teoria psicanalítica e
também, à afinidade com algumas ideias. Em seguida, decidiram criar uma revista e
batizaram-na de Revista de Psicologia Humanista e em 1963, fundaram a
Associação Americana de Psicologia Humanista. Sendo assim, Maslow transportou
essa filosofia humanista para uma nova forma de se fazer psicologia, chamada por
ele de Psicologia Humanista. (BOAINAIN JR., 1998).
Nesse grupo, havia também um psicólogo chamado Carl Rogers (1902 –
1987), que com sua experiência clínica, aplica a Psicologia Humanista à
Psicoterapia e Relações Humanas. (HIPÓLITO, 1999).
Em simpósio sobre o enfoque existencial em Psicologia, realizado em 1959,
por ocasião da convenção anual da Associação Americana de Psicologia, Rogers
fez intervenção comentando os trabalhos apresentados. Analisa duas fortes
correntes no pensamento americano de então, que representam dois modos
distintos de conhecer, de fazer ciência. (MAY, 1974).
22

Rogers (1974) discutiu sobre esses dois modos de fazer ciência no texto
“Duas Tendências Divergentes”: uma Objetiva e outra Existencial. De um lado um
método reducionista, descritivo, em que a objetividade e neutralidade do observador
são obrigatórias; do outro, um método fenomenológico, compreensivo, onde se inclui
também a subjetividade do observador. Para uma melhor comparação entre esses
dois métodos de ser fazer ciência, montou-se o Quadro 1.

Quadro 1 – Comparações entre a forma Objetiva e Existencial de se fazer ciência

Tendências Objetiva: FAZER/EXPLICAR Existencial: SER/COMPREENDER

Teoria Reducionista Teoria Fenomenológica

Termos Objetivos Termos Subjetivos

Definições operacionais e
Percepção das condições da pessoa
Procedimentos experimentais

Visão dos comportamentos Visão global, holística do ser,


observáveis centrada na experiência

O futuro é determinado pelo


Características Arquiteto do seu próprio futuro
passado (determinação)

A maneira de fazer é fazer A maneira de fazer é ser autêntico


(manipulador inteligente) (transparência na relação)

Ênfase na mudança do
Ênfase nos fenômenos humanos
comportamento

Conhecer a partir de fora Conhecer a partir de dentro

Relação Sujeito-Objeto Relação Sujeito-Sujeito

Afirmação do que se é, como


Modelagem do comportamento
pessoa única

Reflexos da Visão determinista Visão aberta às suas experiências


Psicoterapia na
Ciência Ênfase no conhecimento dos Ênfase na tendência organísmica à
processos de aprendizagem autorrealização

Dificuldade de lidar com situações Mais impulsos criativos para resolver


novas novas situações

O resultado da psicoterapia seguindo a tendência objetiva seria a aquisição


23

de comportamentos novos, saudáveis e socialmente mais aceitos que aqueles que


causaram o problema. Já para a tendência existencial, o resultado esperado a
aquisição de mais autonomia, aceitação do que se é, com a capacidade de escolha
de seu próprio caminho. (ROGERS, 1974).
Para Rogers, o melhor seria observar o grau de compreensão que a pessoa
dá à experiência, pois o que importa é que tipo de significado que cada um faz da
sua experiência vivida. A ciência que se fazia até então se ocupava apenas do
comportamento, distanciando-se da experiência; e a Fenomenologia, ou o método
fenomenológico em que se baseia a atuação da Psicologia Humanista, pretende
perceber de uma maneira diferente a experiência, testando a compreensão do
fenômeno ou verificando as percepções do psicoterapeuta com o outro –
encontrando a essência da psicoterapia – que é “o encontro de duas pessoas”.
(ROGERS, 1974, p.100).
Entretanto, como posso fazer ciência a partir dessa mudança na forma de
conhecer o ser humano, passando da explicação (teorias vigentes na época) para a
compreensão (mais humanista)? Uma maneira de responder a essa questão pode
ser vista na evolução do pensamento de Rogers.
A primeira fase – chamada de Psicoterapia Não-Diretiva4 – surgiu em
oposição às teorias que propunham que o terapeuta dirigisse o atendimento, cujo
núcleo era a não-direção, era caracterizada pelo uso da reflexão de sentimentos, de
um ouvir mais compreensivo, mais sensível, de uma postura permissiva do
terapeuta, com aceitação e que confiava no processo de mudança do cliente.
Entretanto, houve muitos equívocos acerca dos termos não-diretividade (que indica
a ideia de uso interpretações, conselhos, prescrições e sugestões) e não-direção
(que indica a ideia de significação) que gerou críticas ao pensamento inovador de
Rogers. (BOAINAIN JR., 1998; HOLANDA, 1998).
A segunda fase – Psicoterapia Centrada no Cliente5 – indicava uma evolução
geral do pensamento e da prática de Rogers privilegiando-se as condições
facilitadoras6 para a mudança na personalidade e a tendência atualizante como

4
Fase não-diretiva, compreendida entre os anos de 1940-1950. (MOREIRA, 2010).
5
Fase reflexiva, entre os anos de 1950-1957. (MOREIRA, 2010).
6
As condições facilitadoras: congruência, aceitação e compreensão empática serão
revisitadas posteriormente nesse trabalho.
24

alicerces para a atuação do terapeuta (BOAINAIN JR., 1998; HOLANDA, 1998).


Cury (1987, p. 15;16 citado por HOLANDA, 1998, p. 106) esclarece que o
termo “‘Centrar-se’ no cliente sugere não apenas um papel mais ativo por parte do
terapeuta; também significa que ele torna o cliente como foco de sua atenção”.
A terceira fase – Psicoterapia Experiencial7 – destaca tanto a experiência do
cliente quanto a do próprio terapeuta conectada à do cliente no processo
psicoterápico. A relação terapêutica vem com uma maior conotação de encontro,
presença e congruência. Há o olhar sobre o que o cliente está experienciando e há o
olhar sobre o que o terapeuta está experienciando em contato com o cliente. Nessa
fase, Carl Rogers influencia e é influenciado por Eugene Gendlin (1926 – ), um
jovem filósofo com bases referenciais fenomenológicas e existenciais, propondo o
termo experienciação8 para designar o “fluxo experiencial” vivido no momento
presente. (BOAINAIN JR., 1998; HOLANDA, 1998; MESSIAS, 2001).
A partir de 1970, Rogers propõe a Abordagem Centrada na Pessoa (ACP),
cujas bases filosóficas e práticas poderiam ser utilizadas em vários contextos em
que as inter-relações são o eixo principal desse conceito de homem compromissado
com o seu devir, marcado pelo desenvolvimento dinâmico e flexível e orientado para
a autorrealização. (BOAINAIN JR., 1998; HOLANDA, 1998).
Em suma, Rogers, segundo Parreira [199-], tem uma visão dinâmica e
fundamentalmente positiva e otimista sobre o ser humano: o homem é capaz de
compreender-se, de resolver seus problemas, de chegar ao equilíbrio emocional e à
maturidade psicológica. Essa capacidade é uma tendência natural para a
atualização das potencialidades do organismo.
Em entrevista concedida a revista Veja em 16 de fevereiro de 1977, o próprio
Rogers afirmou (OLIVEIRA, 1977):
O ser humano, como todos os organismos, tende a crescer e a se
atualizar. É claro que todos os fatores sociais, econômicos e
familiares podem interromper esse crescimento, mas a tendência
fundamental é em direção ao crescimento, ao seu próprio
preenchimento ou satisfação.
Dentro de nosso organismo há uma força vital, que motiva as realizações
dentro das possibilidades, é uma característica inata do nosso organismo, surge das

7
Fase experiencial, de 1957 a 1970. (MOREIRA, 2010).
8
Experienciação é a tradução mais utilizada no Brasil para o termo Experiencing de Gendlin
indicando a ideia de processo. (MESSIAS, 2001, p.59).
25

características biológicas do nosso organismo. O organismo vivo possui inerente


essa força vital que o faz desenvolver e no seu desenvolvimento surgem as
possibilidades. À medida que surgem essas possibilidades o homem procura meios
para realizá-las.
Assim, essa tendência existe e se deixar a criança atuar livremente, dando a
ela consideração positiva incondicional, a criança vai buscar aquilo que é importante
para ela.
Assim aconteceu com Carly.
Assim aconteceu com Temple.
Assim aconteceu com John.

2.2 UM JEITO DE SER AUTISTA

Muitos olhares já se deitaram – desde 1940 até agora – com relação ao


autismo, ou transtorno autístico, ou autismo da infância, ou autismo infantil e ou
autismo infantil precoce ou ainda mais recentemente a desordem do espectro
autista, sem esquecer a síndrome de Asperger. Nos últimos 10 (dez) anos foram
publicados 14.063 trabalhos no Portal de Literatura Biomédica dos Estados Unidos
(PubMed cujo site é http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed) e no Portal Nacional da
Biblioteca Virtual em Saúde (BVS - Psicologia Brasil cujo site é http://www.bvs-
psi.org.br/php/index.php) foram encontrados 10.958 referenciando o termo
“autismo”.
Todavia, sempre de um mesmo ângulo, o ponto de vista do observador
(teoricamente neutro), um jeito positivista de se pensar o sujeito (observador) e o
objeto (autista). Sempre um olhar externo, “a partir de fora”, reduzindo a pessoa com
autismo aos seus comportamentos estereotipados e observáveis.
Já o método fenomenológico proposto oferece outro olhar: se se quer saber a
verdade sobre alguém, deve-se interrogar esse alguém. Compreender as vivências
do outro a partir de seu ponto de vista implica um descolar-se para “dentro do outro”
e perceber como ele as vivencia.
É possível ter essa compreensão mesmo com o isolamento autístico? Com o
mutismo muitas vezes? Há muitas biografias de pessoas com autismo que podem
esclarecer sobre esse jeito de ser.
Comecemos por Carly Fleischmann.
26

Carly nasceu em Toronto – Canadá em uma manhã cinzenta de janeiro de


1995, às 7:38, e sua irmã gêmea, Taryn, nasceu 14 minutos depois. Elas têm um
irmão, Mathew, quatro anos e meio mais velho. (FLEISCHMANN, 2012).
Após poucas semanas de vida, Carly já possuía um olhar assustado e
excêntrico, combinando com seu comportamento peculiar. E antes mesmo do
primeiro aniversário das gêmeas, ficou óbvio para os pais, Arthur e Tammy, que
Carly e Taryn estavam indo para direções diferentes no desenvolvimento:
Enquanto a pele de Taryn tinha a suavidade de uma pele de bebê, a
de Carly era rachada e avermelhada. Os olhos de Taryn pareciam
sorrir quase desde seu nascimento, enquanto que Carly possuía,
muitas vezes, um fixo olhar sonolento. E enquanto Taryn
desenvolvia-se realizando todos os marcos infantis apropriados,
Carly definhava. A maior diferença entre as garotas, contudo, eram
suas personalidades. Taryn era feliz e pacífica; Carly chorava
incessantemente. (Fleischmann, 2012, p. 14, [tradução nossa]).
E apesar de, a princípio, o pediatra das meninas não ter ficado alarmado, os
pais ficaram e levaram-na a um psicoterapeuta do Hospital para Crianças Doentes
(Hospital for Sick Children). Este foi o primeiro, do que se tornaria uma “legião de
especialistas” – neurologista, otorrinolaringologista, geneticista, nutricionista,
terapeuta físico, terapeuta ocupacional, pediatra do desenvolvimento, fonoaudiólogo
e psicólogo – em que repetiriam a mesma história clínica de Carly, muitas e muitas
vezes. Carly tornou-se conhecida pela legião de especialistas como “o enigma do
Hospital para Crianças Doentes”, sendo diagnosticada primeiramente com um atraso
no desenvolvimento global. Depois vieram uma infinidade de exames de sangue,
biópsia da pele, estudos metabólicos, testes auditivos, entre outros, e tudo o que os
pais obtinham como resposta era uma lista do que “Carly não conseguia fazer”, ou
seja, um inventário de inabilidades. E mesmo quando Carly conseguia desenvolver
alguma habilidade, os especialistas lembravam aos pais, quão distante ela estava
dos irmãos. (FLEISCHMANN, 2012).
Finalmente aos dois anos, o pediatra do desenvolvimento, diagnosticou Carly
com “autismo severo, apraxia oral e com moderado a severo atraso no
desenvolvimento”. Arthur Fleischmann conta que ouvir o diagnóstico foi como se lhe
tivessem dado “um chute no estômago”. E com o tempo parou de perguntar “por
que?” e começou a perguntar “e agora?” “Nós tínhamos o diagnóstico, mas pouco
conhecimento sobre o que poderia ser feito para ajudar Carly a escapar do
27

redemoinho9”. (FLEISCHMANN, 2012, p.26 [tradução nossa]).


Fleischmann (2012, p.27) relata em seu livro autobiográfico que Carly não
falava, não andava ou mostrava qualquer interesse em brincar, e que os pais não
sabiam como educá-la ou cuidar da filha: “era como uma gota de mercúrio: visível,
densa e real, mas ao tentar agarrá-la, fugia do nosso alcance”.
Foram anos de terapeutas de todos os tipos, e quando os pais achavam que
uma abordagem não funcionava, procuravam outra. Sua rotina era composta de
escola especial pela manhã, tardes e finais de semana com terapeutas do método
ABA (Applied Behavior Analysis – Análise do Comportamento Aplicado10) e noites
dormindo pouquíssimo. A sua hiperatividade era uma constante deixando seus pais
não apenas cansados fisicamente, mas também com “tédio”, “frustrados” e “com
raiva”11. (FLEISCHMANN, 2012).
Enquanto terapeutas ABA e outros iam e vinham, duas pessoas foram
constantes e que fizeram a diferença. Uma delas foi a fonoaudióloga, Barb Nash-
Fenton:
Barb era parte mãe, parte professora e parte mágica. Uma mulher
pequena, com seus quarenta e poucos anos, que tinha uma atitude
tranquila e confiante. Seus relatórios semanais e recomendações
eram lidos como ordens. E como soldados perdidos, estávamos
felizes em passar o controle. Depois de anos vendo os médicos
oferecerem pouca ajuda prática, foi um alívio ter a calma direção de
Barb. Apenas sua presença já aliviou a tensão. Com o contato diário
em Northland (escola frequentada pelas manhãs por Carly), Barb viu
um lado de Carly que ninguém mais via. (Fleischmann, 2012, p.45
[tradução e grifo nosso]).
Barb percebeu que Carly conseguia se livrar de situações quando não queria
estar presente, ou seja, conseguia resolver seus problemas com inteligência. Depois
de anos de especialistas listando as dificuldades de Carly, Barb foi a primeira
pessoa a registrar os pontos fortes de Carly e procurar maneiras de explorá-los.
(FLEISCHMANN, 2012).
O outro terapeuta referenciado pelo pai no livro e descrito como uma
“intervenção divina” e até mesmo comparando-o a Mary Poppins (a fictícia babá do

9
We had diagnoses, but little insight into what could be done to help Carly escape the
whirlpool.
10
Carly começou com a terapia ABA aos 4 anos.
11
Nesse período, Tammy, sua mãe teve linfoma e precisou fazer quimioterapia, dificultando
ainda mais a vida da família Fleishmann.
28

filme de mesmo nome que ajudou uma família com suas crianças rebeldes e
incompreendidas), foi Howard, que chegou a família dia 6 de agosto de 2001 – Carly
tinha então seis anos. (FLEISCHMANN, 2012).
Howard teve acesso aos terapeutas ABA de Carly para treinamento,
entretanto sua intuição, iniciativa e tenacidade provou ser mais forte que qualquer
livro texto sobre educação que poderiam dar a ele. Howard tornou-se o eixo principal
na vida de Carly. (FLEISCHMANN, 2012).
Sobre os dois terapeutas, Fleischmann (2012, p. 57, [tradução e grifo nosso])
relata:
Embora ele [Howard] fosse respeitoso com o líder da equipe ABA e
outros terapeutas, em poucas semanas ficou claro que seu vínculo
era mais forte com Barb do que com qualquer outro especialista.
Onde ABA seguia as regras e protocolos, Barb e Howard seguiam
Carly. Eles pareciam perceber detalhes sobre ela que os outros
perdiam.
Barb e Howard tinham apenas uma direção. A direção dada por Carly.
Em outra parte do livro, Fleischmann (2012, p. 90, [tradução nossa])
complementa:
Barb e Howard nunca pareceram questionar se Carly era capaz –
apenas como tornar possível, o impossível. (...) Ao contrário de
alguns terapeutas ABA falarem com Carly artificialmente em tons
exuberantes e infantis, Barb conversava com ela como se fosse uma
igual – algo que Howard imitou imediatamente.
Barb tinha suspendido o julgamento interno do que um autista era ou não
capaz de fazer, simplesmente permitiu-se conhecer e ser conhecida por Carly. Nas
palavras do pai (FLEISCHMANN, 2012, 91;92), parecia que Barb “nunca tinha
duvidado da determinação e habilidade de Carly ao crescimento”. E paralelamente,
Carly sentiu em Howard alguém que “nunca iria desistir dela e ele exigia dela mais
que qualquer outro terapeuta”.
Ambos os terapeutas empregavam todos os meios de comunicar a Carly que
ela tinha a atenção total deles, física e psicológica, que ela os interessava como a
pessoa que já era. Eles valorizam Carly, permaneciam ao seu lado mesmo nas
piores crises, birras e até quando ela se sujava com suas fezes e eles ajudavam a
limpar. Isso lhe dava segurança. As necessidades de segurança são primordiais,
são básicas nas pessoas.
O antropólogo Renato Queiroz (EM BUSCA DE UM NOVO CAMINHO, 2012)
esclarece que “o ser humano precisa de outro ser humano, para ser um ser
29

humano”. Similarmente a essa ideia, a psicóloga Marian Kinget (ROGERS; KINGET,


1975, p. 39; 40) que trabalhou junto com Rogers, diz que são necessárias “certas
condições, um certo clima interpessoal” para que o desenvolvimento humano
saudável aconteça. Ambas as visões, antropológica e psicológica, elucidam acerca
do processo de humanização. O homem tem a necessidade de ter um encontro
profundo com o outro, que aquilo que é expressado, que é vivenciado, deve ser
considerado. É necessário “um outro”, sejam pais, sejam professores, sejam amigos
ou terapeutas que o acolha, que o compreenda, que o considere. O terapeuta deve
ter a habilidade de compreender isso, de compreender as falas cifradas e também
de compreender os silêncios.
Quando alguém vai na terapia precisa ser compreendida e ser considerada
(não necessariamente aprovada). É a necessidade de consideração que está
presente em cada ser humano. Mas como é essa questão de compreender?
Compreender o seu modo de ser, compreender esse significado, esse mundo que
ela vive.
Certa feita, a família Fleischmann passeava perto de um lago na companhia
de Howard quando de repente, Carly saiu correndo, arrancou suas roupas e pulou
no lago gelado. Os pais ficaram horrorizados enquanto Howard caminhava
calmamente até a beira. O pai gritou com Howard. E ele respondeu com
naturalidade: “Carly ama a água, ela tem nadado assim há algumas semanas”. E
antes que o pai perguntasse, Howard continuou: “ela odeia roupas de banho”. Arthur
sentiu como se lhe apresentasse uma estranha e se perguntou quantos pais
precisavam de um garoto de 23 anos que os ajudasse a compreender o mundo de
seus filhos. (FLEISCHMANN, 2012, p. 106, [tradução nossa])
Todavia, apesar dos avanços, as noites insones e os dias caóticos
continuavam, precisando de supervisão todo o tempo. Furacão é uma palavra
constantemente utilizada no livro para descrever o comportamento de Carly. A
verdade é que o universo autista é estranho para os nós e o nosso é esmagador
para aqueles diagnosticados com autismo. Segundo os especialistas, as famílias
que convivem diretamente com o autismo vivem em um mundo à parte, nem fazem
parte do mundo autístico de suas crianças e nem fazem parte inteiramente da
sociedade. (FLEISCHMANN, 2012).
Uma equipe de 10 a 12 pessoas que cuidavam de Carly se reunia de tempos
em tempos para reavaliar e ajustar adequadamente o programa. Esse processo foi
30

fundamental na abordagem ABA para ajudar Carly a se tornar mais sociável,


embora o caráter científico e clínico fosse desumano. Segundo o pai, às vezes, a
casa parecia mais um grande experimento que uma família com seus terapeutas,
pranchetas, gráficos e toda a parafernália envolvida. (FLEISCHMANN, 2012).
Com o início da adolescência, o mundo de Carly ficou ainda mais caótico.
Mas um fato inteiramente novo aconteceu. Quando ela tinha 10 anos, Carly estava
inquieta e excêntrica durante todo o dia; choramingava, corria ao redor da sala, não
queria completar suas tarefas. Quando então Barb perguntou: “O que você quer?
Sente-se e nos ajude a entender o que você precisa”. Para sua surpresa, Carly
começou a digitar lentamente com seu dedo indicador direito as seguintes letras: “H-
E-L-P T-E-E-T-H H-U-R-T” – que traduzido livremente é “socorro dentes doem”. Não
é necessário dizer que isso aconteceu apenas na frente de Barb e Howard, as
pessoas-critério12 de Carly. E que eles ficaram completamente atônitos. E que seus
pais não acreditaram, achando que talvez Barb e Howard tivessem exagerado ao
contar-lhes o ocorrido. Afinal, os médicos não lhes tinham dito durante toda a última
década que Carly tinha deficiência cognitiva? (FLEISCHMANN, 2012, p.112).
Maslow (1968, p.74) no seu livro Introdução à Psicologia do Ser escreveu que
“progredimos quando os prazeres do crescimento e a ansiedade da segurança são
maiores do que a ansiedade do crescimento e o prazer da segurança”; a relação
dinâmica entre crescimento e segurança indicou para qual lado Carly deveria
caminhar. Isto é, a criança segura caminha corajosamente para o desenvolvimento
de suas capacidades, a coragem vence o medo. Barb e Howard ajudaram Carly a
sentir-se segura o suficiente para poder se desenvolver.
Uma porta havia sido aberta para o seu mundo e Carly começou a se revelar,
não parando mais de escrever. Ela escreveu sobre sua inquietação e hiperatividade:
“Você não sabe o que é a sensação de ser eu, quando você não pode ficar parado
porque suas pernas estão pegando fogo, ou sente como se uma centena de
formigas estivesse rastejando em seus braços”. (ABC NEWS, 2011).
Sobre a dificuldade de olhar no rosto de outra pessoa: “eu tiro centenas de
fotos do rosto de uma pessoa ao olhar para ela. Por isso é difícil para nós, olhar para
alguém.” (ABC NEWS, 2011).
12
A pessoa-critério (que pode ser o pai, a mãe, ou outra pessoa influente na vida de uma
criança) é de suma importância na constituição do novo ser que precisa de uma
consideração positiva e aceitação para se desenvolver.
31

Sobre seu comportamento de bater a cabeça no chão: “se eu não bater a


cabeça parece que meu corpo vai explodir. É como quando você aperta uma lata de
coca-cola. Se eu pudesse parar, eu pararia, mas não é como um interruptor que
possa desligar.” (ABC NEWS, 2011).
Sobre seus sentimentos e desejos: “eu queria poder ir para a escola com
crianças normais, mas não quero que fiquem com medo se eu bater na mesa ou
gritar. Eu queria poder apagar esse fogo.” (ABC NEWS, 2011).
Sobre sua noção do eu: “eu sou autista, mas isso não é quem eu sou. Leve
um tempo para me conhecer antes de me julgar: sou bonita, engraçada e gosto de
me divertir.” (ABC NEWS, 2011).
Importante frisar que de acordo com Kinget (ROGERS; KINGET, 1975) não
apenas a tendência à atualização como a noção do “eu” são fundamentais para a
constituição da personalidade e determinação do comportamento, sendo que a
primeira refere-se ao “fator dinâmico” e a segunda, ao “fator regulador”.
Kinget esclarece mais sobre a noção de “eu” como:
Uma estrutura perceptual, isto é, um conjunto organizado e mutável
de percepções relativas ao próprio indivíduo. [...] Esta estrutura
perceptual faz parte, evidentemente – e parte central – da estrutura
perceptual total que engloba todas as experiências do indivíduo em
cada momento de sua existência. (ROGERS; KINGET, 1975, p. 44).
Atualmente sabemos da vida de Carly, o que pensa, o que faz, quais são
seus projetos acessando seu blog (http://carlysvoice.com/home/), seu facebook
como figura pública (http://www.facebook.com/home.php#!/carlysvoice?fref=ts) ou
sua conta no twitter (https://twitter.com/CarlysVoice) na internet e ainda recomenda a
todos: “não desistam, sua voz interna encontrará uma saída, a minha encontrou”.
(ABC NEWS, 2011).
E o que os pais, Arthur e Tammy, almejam agora?
O mesmo que todos os pais: que seus filhos sejam felizes, que tenham
sonhos e que possam alcançá-los a despeito de seus desafios. (ABC NEWS, 2011).
Foi Carly quem me fez ver o autismo de outra forma, sob outro ângulo, aquele
das pessoas que sofrem com esse transtorno. Eu me emocionei com suas palavras
mais do que com sua história de superação, porque eu pude vislumbrar a pessoa
que estava aprisionada ali, por tanto tempo e que queria ter uma voz.
Depois de Carly, conheci Temple.
Temple Grandin, PhD em Ciência Animal e professora na Universidade do
32

Estado do Colorado nos Estados Unidos. Assim como Carly, é famosa, escreve e dá
palestras sobre o autismo a partir de suas vivências. Diferente de Carly, não teve
uma “legião de especialistas” e nem terapeutas intensivos. Afinal seu diagnóstico
aconteceu poucos anos após o estudo de Kanner.
Temple nasceu em 29 de agosto de 1947 e alguns anos depois, foi
diagnosticada como autista. Com apenas seis meses de idade, sua mãe, que tinha
apenas 19 anos quando Temple nasceu, percebeu que ela não queria mais se
aninhar em seus braços, ficando rígida quando isso acontecia. Mas em poucos
meses, ao invés de ficar rígida, reagia tentando arranhá-la. Apesar de se sentir
ressentida, achava – por falta de experiência – que era normal uma vez que sua filha
era “atenta, inteligente e bem coordenada”. (GRANDIN, 1999, p.25).
Posteriormente outros comportamentos foram aparecendo, como a
fascinação por objetos que giravam, isolamento por horas a fio, comportamento
destrutivo, acessos de raiva, sensibilidade a sons e cheiros, falta da fala,
possivelmente surda e olhos esquivos. Levada a um neurologista e após um
eletroencefalograma e exame de audição normal, foi declarada sem nenhum
problema físico, sugerindo uma “terapia da fala” para o problema da comunicação.
(GRANDIN, 1999).
Uma das primeiras lembranças de Temple, com pouco mais de 3 (três) anos
de idade, relatada em seu livro autobiográfico “Uma Menina Estranha” (GRANDIN,
1999, p.23) esclarece o que para ela representava dor e desconforto e para as
outras pessoas poderia representar birra: Temple, sua irmã e a mãe estavam no
carro e sua mãe a obrigou a colocar um chapéu de veludo azul:
a sensação era de que meus dois ouvidos estavam sendo
esmagados e transformados num único ouvido gigante. O elástico do
chapéu apertava minha cabeça. Arranquei o chapéu da cabeça e
berrei. Berrar era o único meio que eu tinha de dizer à minha mãe
que não queria usar aquele chapéu. E eu não ia usá-lo na minha ida
à ‘escola de falar’.
Temple (GRANDIN, 1999) explica que até essa época, no seu modo de ver o
mundo, a comunicação era uma via de mão única, entendia tudo o que as pessoas
diziam, mas não conseguia responder, assim berrar e bater os braços tornou-se
suas formas de comunicação com o exterior. A criança percebe a realidade segundo
a sua experiência. A experiência da criança é a realidade para ela.
Aos 5 (cinco) anos, foi para uma pequena escola particular para crianças,
após a mãe ter explicado aos professores – e depois estes aos alunos – suas
33

dificuldades. Local esse que lhe deixava constantemente frustrada por não se sentir
compreendida pela professora. Seus comportamentos tinham uma lógica para si
própria, como por exemplo, o detalhe era mais importante que o todo; porém para os
outros, pareciam bizarros: “era como se uma porta de vidro me separasse do mundo
do amor e da compreensão humana”. (GRANDIN, 1999, p.38).
No processo de desenvolvimento da criança, acontece o que Rogers e Kinget
(1975) chamaram de necessidade de consideração positiva. A criança sente o afeto
e descobre que o afeto é uma fonte de satisfação para ela. Este aprendizado: “é
bom ter afeto e que isso me satisfaz” a leva a experienciar uma necessidade de
afeição. E a criança observa. Observa aqueles pequenos sinais expressos pelos
seus cuidadores e conduz seus próprios comportamentos futuros a partir dos
resultados obtidos. E isso acontece mesmo se a criança tiver autismo, como Carly já
nos mostrou.
Clareando melhor, imagine que a criança faça algo que a professora, no caso
se revele insatisfeita, desaprovando seu comportamento, ou melhor, sua
experiência; a criança entende esta desaprovação como uma desaprovação à sua
pessoa, e não apenas aquele comportamento em particular.
Assim, a aprovação de um cuidador que envolva uma promessa de afeto
conduz o comportamento da criança. Um exemplo disso pode ser visto quando
Temple relata que sua a mãe a ajudava com a leitura (sua matéria preferida), todos
os dias quando voltava da escola. Ela diz que além de tê-la ajudado a ler
corretamente, pronunciando bem as palavras com inflexão na voz, a fazia se sentir
adulta (e importante), uma vez que a mãe lhe servia chá13, coisa só permitida aos
adultos. Temple relembra que esse simples ato de sua mãe a ajudou a melhorar sua
autoestima, dado que nas típicas disciplinas escolares conhecia sempre o fracasso.
Porém, tudo o que precisasse usar a imaginação e criatividade, era insuperável.
(GRANDIN, 1999).
A partir da segunda série, Temple começou a sonhar com um aparelho
mágico que lhe pudesse apertar e com isso ter uma sensação prazerosa no corpo.
Com esse aparelho, ela controlaria a intensidade de pressão que poderia suportar.
“Nossos corpos pedem contatos humano, mas quando esse contato se estabelece,

13
A mãe não lhe servia chá puro, e sim uma mistura de água quente com limão e um
pouquinho de chá.
34

nós nos retraímos, porque nos provoca dor e confusão.” (GRANDIN, 1999, p. 38).
As mudanças também provocam confusões como quando a mãe de Temple
perguntou se ela queria ir a uma colônia de férias, ao que não obteve resposta. Uma
parte queria ir, outra hesitava, afinal iria se defrontar com “pessoas diferentes.
Lugares diferentes. Experiências diferentes. Mudanças nunca foram fáceis para
mim”. (GRANDIN, 1999, p. 50).
Mas a sua mãe sempre foi uma grande incentivadora, conseguia
compreendê-la, observava seus comportamentos excêntricos e repetitivos e
conseguia obter o melhor que a filha podia dar. Certa feita escreveu a um psiquiatra
infantil para ajudá-lo no processo de compreensão da filha: “Quando Temple se
encontra em um ambiente seguro, onde acima de tudo se sente amada e apreciada,
seu comportamento compulsivo se atenua. Sua voz perde aquela inflexão curiosa e
ela consegue se controlar”. (GRANDIN, 1999, p. 53)
Temple não tinha problemas em casa, nem na escola e nem na vizinhança.
Mas se estivesse cansada ou ainda na volta às aulas quando deveria se ajustar
novamente, os comportamentos estranhos apareciam mais. E completa: “quer ter
sempre por perto alguém em quem confie. Seus progressos estão muito ligados,
tenho certeza, à valorização e ao amor”. Para a mãe estava claro que sua filha
precisava se sentir segura, aceita e querida para poder desenvolver-se como
pessoa: “Em qualquer terapia com Temple [...] o ponto mais importante me parece
ser o amor.” (GRANDIN, 1999, p. 54).
Depois dessa carta ao psiquiatra, Temple passou a ser atendida uma vez por
semana, (entre dez 1958 e jun de 1959), pelo Dr. Stein, alemão e formado na teoria
freudiana, que aquela altura ainda acreditava que a “mãe geladeira” houvesse
causado algum dano na criança para torná-la autista. Sobre esses atendimentos,
Temple diz: “minha mãe me ensinara a ler; ela me defendia quando eu tinha
problemas na escola; seus instintos funcionavam melhor do que horas de terapia
dispendiosa.” (GRANDIN, 1999, p. 58).
E um alerta sobre o sigilo em qualquer atendimento, incluindo crianças e
adolescentes: “como eu sabia que aquele médico trocava ideias com minha mãe em
particular, havia certas coisas que eu não lhe contava”. Não se sentindo segura do
ambiente terapêutico, Temple escondia seus sentimentos e desejos como a sua
vontade de construir o aparelho que lhe desse conforto por contato. Ela acreditava
que com essa espécie de máquina pudesse aprender a suportar o afeto de outras
35

pessoas. (GRANDIN, 1999, p. 58).


Dois anos depois, a mãe escreve outra carta pedindo conselhos sobre a
próxima escola (Temple estava com 11 anos) e finaliza: “se conseguirmos ajudar
Temple a compreender a si própria, ela terá condições de tornar-se uma ótima
pessoa. Acho que o mesmo pode ser dito a respeito de qualquer criança, mas ela é
a nossa criança”. (GRANDIN, 1999, p. 62).
Temple foi expulsa da nova escola dois anos depois de entrar, e no seu modo
de ver, ela continuava repetindo o que acontecia também na escola primária:
“sempre que eu não entendia alguma coisa, ficava aborrecida, e sempre que ficava
aborrecida me comportava mal”. Comportar-se mal para a escola significava que
Temple batia em outras pessoas e nas palavras do diretor da escola “por causa de
seu temperamento violento, maldoso e incontrolável”. (GRANDIN, 1999, p. 64;68).
Em uma nova escola, menor, Temple já na adolescência e imersa no mundo
real que se tornara apavorante, relata basicamente da sua confusão, esforço por se
comunicar, e dos seus conflitos; bem como das pessoas que olharam para ela além
da sua incapacidade de ser como os outros. Essas pessoas marcantes foram Srta.
Downwey, a conselheira da escola, que foi a primeira pessoa (fora sua mãe) que lhe
pediu para contar sobre a sua versão na história de uma briga com um colega; em
seguida veio o professor de psicologia Brooks que a fez ter novamente vontade de
estudar ao lhe propor o projeto do Quarto Distorcido; depois outro professor Sr.
Carlock, que nas palavras de Temple, foi sua salvação:
O Sr. Carlock não dava atenção a rótulo nenhum, só aos talentos
que encontrava. Até mesmo o diretor da escola tinha dúvidas quanto
à minha capacidade de concluir o curso técnico. Mas o Sr. Carlock
acreditava nas possibilidades de cada aluno. Ele canalizou minhas
fixações para projetos construtivos. Não tentou me atrair para o
mundo dele, e sim entrar no meu. (GRANDIN, 1999, p. 89 [grifo
nosso]).
E completa sua percepção acerca desse professor: “ele dava a impressão de
perceber meu desejo de ser aceita como eu era. E eu confiava nele, sem restrições.
[...] era meu professor, meu amigo e meu confidente [...], o interesse dele por mim,
me motivava a melhorar”. E pela primeira vez, Temple estava decidida a se sair bem
na escola (GRANDIN, 1999, p. 89;91). Interessante notar, que é quase a mesma
descrição que Fleischmann fez da fonoaudióloga Barb.
Temple não apenas se formou, como foi uma das oradoras da turma e
também construiu sua “máquina do abraço”, aquele aparelho que visualizara em sua
36

mente desde a infância. No discurso, falou que estava atravessando uma porta e
que sabia que tinha chegado lá com a ajuda de todos, lembrando então da letra da
música “You will never walk alone” (Você nunca andará sozinho). E compreendeu o
que sua mãe vinha tentando lhe dizer há anos: “cada pessoa precisa encontrar a
sua porta e abri-la. Ninguém mais pode fazer isso por ela.” (GRANDIN, 1999, p. 85).
Uma porta. Uma voz. Encontrar uma saída para a vida. Elas encontraram.

2.3 O ENCONTRO NA RELAÇÃO TERAPÊUTICA

Muitos (ainda) podem se perguntar o motivo pelo qual se deve fazer


psicoterapia com pessoas diagnosticadas com autismo se a causa mais provável
está na genética. A Psicologia não estuda apenas o ser humano; na verdade, é mais
um compromisso com o devir humano. A psicoterapia, nesse sentido, é fundamental
para autonomia, responsabilidade, liberdade, e uma melhora na qualidade de vida. A
psicoterapia pode proporcionar condições favoráveis para que todas as pessoas –
com ou sem autismo – se tornem tudo o que elas podem ser – como provaram
Carly, Temple e tantos outros.
Rogers (1997, p. 30) dizia que “aquilo que é mais pessoal é o que há de mais
geral”, é o que faz nos sentir mais próximo dos outros. Entendemos a dor do outro,
porque participamos da mesma humanidade. Isso significa dizer que não é a teoria,
não é o método que importa; o que importa é como o psicoterapeuta se põe na
relação com o outro, como é feito o encontro entre o psicoterapeuta e o cliente.
Desde a década de 1960, que o grupo de psicólogos que formou a Rede
Eupsiquiana, a Revista de Psicologia Humanista e a Associação Americana de
Psicologia Humanista já se preocupavam “com todo o espectro do comportamento
humano” (ROGERS, 1974, p. 99, [grifo nosso]):
Passe algum tempo com dois autistas e você encontrará inúmeras
diferenças entre eles; permaneça tempo suficiente com um deles e
descobrirá uma personalidade única, alguém com preferências,
temperamento e senso de humor, próprios. (GRINKER, 2010, p. 76).
“Como poderei ajudar os outros?” Pergunta Rogers (1997, p.33) no início do
Capítulo 2 do livro Tornar-se Pessoa14. E ele mesmo responde: “Descobri uma

14
O título em inglês “On Becoming a Person”, com o verbo no gerúndio, dá o correto
sentindo de processo, de dinamismo no desenvolvimento humano; sentido esse, um pouco
perdido na tradução para o português.
37

maneira de trabalhar com as pessoas que parece fecunda em potencialidades


constitutivas”.
Rogers, por meio de sua prática clínica, observou que a mudança terapêutica
dependia da experiência em uma relação. Sua hipótese geral era: “Se posso
proporcionar um certo tipo de relação, a outra pessoa descobrirá dentro de si a
capacidade de utilizar esta relação para crescer, e mudança e desenvolvimento
pessoal ocorrerão.” (ROGERS, 1997, p.37)
O êxito da psicoterapia depende da qualidade da relação psicoterapeuta-
cliente. Na verdade, o que se exige do psicoterapeuta é a congruência, a aceitação
do outro e a compreensão empática para a mudança terapêutica, ou seja, as
atitudes facilitadoras do processo. (JUSTO, 2002; ROGERS, 1997).
Congruência é a capacidade de simbolizar corretamente o que se sente e de
agir de acordo com a sua experiência. Não adianta simular um conhecimento que
não se possui, ignorar uma irritabilidade com alguém, fingir uma segurança que não
existe. Com a simbolização do que se sente, sobrevém a conscientização dos
sentimentos experimentados e viabiliza-se ser quem se é nas relações, sem a
necessidade de subterfúgios, possibilitando a outra pessoa também ser quem é.
(ROGERS, 1997).
Rogers (1997, p. 78) esclarece:
O que eu sou e aquilo que sinto pode perfeitamente servir de base
para a terapia, se eu puder ser transparentemente o que sou e o que
sinto nas minhas relações com ele. Então talvez ele possa ser aquilo
que é, abertamente e sem receio.
Aceitação é um acolhimento sem impor condições, é o ato de aceitar outra
pessoa sem julgamentos, avaliações ou restrições. É acima de tudo uma atitude de
valorização do outro ser como é. (ROGERS, 1997).
Feldman (2004, p. 68) elucida ainda mais o conceito:
Aceitar o outro significa permitir-lhe ser quem é e considerá-lo um
indivíduo único e valioso por seu próprio mérito, ainda que ele encare
a vida e seus problemas de forma diferente da nossa. Eis o desafio:
aceitar a alteridade ou condição do que é outro, daquele que é
diferente de nós em seus sentimentos, atitudes, crenças, valores,
comportamentos.
Compreensão empática, um dos pontos fundamentais na Abordagem
Centrada na Pessoa, é a capacidade de compreender a outra pessoa nas suas
referências, apreender o sentido da experiência vivida através das palavras e do
corpo. A primeira disposição das pessoas ao ouvir algo pela primeira vez é emitir um
38

pensamento segundo seus valores: “isso está certo”, “que besteira”, “não tem
sentido”. Não há espaço para a compreensão do real significado daquilo que o outro
está dizendo. Compreender outra pessoa implica em penetrar empaticamente nas
suas referências. (ROGERS, 1997).
Vale ressaltar que foram essas características presentes nos terapeutas:
autenticidade, acolhimento, empatia; relatados pelos pais, que mais conseguiam
alcançar suas filhas, Carly e Temple. Ao que Rogers concorda quando escreveu
ainda em 1961 que as atitudes e os sentimentos do psicólogo são mais importantes
que qualquer referencial teórico. (ROGERS, 1997, p.51).
Agora acrescente essa visão ao trabalho do psicólogo. O que ele tem que
fazer?
No contato com autistas, abre-se o olhar a fim de perceber de uma maneira
diferente a experiência que eles estão experienciando. Todavia, normalmente se vê
apenas o comportamento e com isso, distanciamo-nos da experiência. Para Rogers
(1997), se uma relação autêntica pode ser construída pelo psicoterapeuta, o outro
poderá utilizar esta relação para crescer e obter um desenvolvimento pessoal.
Quanto mais uma pessoa é compreendida e aceita, mais se distancia de suas
defesas. Defesas essas que podem ser vistas nas atitudes destrutivas, agressivas e
no mutismo. E o mesmo acontece no autismo conforme mostra Cristo (2009):
“crianças autistas, quando aceitas em um clima de facilitação, buscam alternativas
de comunicação, sentem-se menos pressionadas, seu nível de tensão diminui e
junto com o outro, o psicoterapeuta, procura formas novas de linguagem”.
Uma experiência narrada por John Elder Robison em seu livro
autobiográfico “Olhe nos meus olhos: minha vida com Síndrome de Asperger”
(ROBISON, 2008, p. 25) demonstra bem o que ocorre com essas crianças quando
não há um clima apropriado:
Por ter observado meus pais conversando com outros adultos, achei
que poderia conversar com ela [uma criança do jardim de infância
que frequentava]. Mas eu tinha esquecido de uma coisa fundamental:
uma conversa bem sucedida depende do dar-e-receber. Tendo a
Síndrome de Asperger, deixei escapar isso. Totalmente.
Eu nunca interagi com Chuckie novamente.
E desisti de tentar me relacionar com as outras crianças. Quanto
mais me rejeitavam, mais me sentia machucado por dentro e mais
me afastava.
Em outro momento, John fala mais sobre seu isolamento e o significado que
39

isso tinha para ele:


Na maior parte do tempo, ficava com meus brinquedos, construindo
fortes e torres. Adorava construir coisas, especialmente máquinas.
Elas não eram maldosas comigo, ao contrário, era desafiador tentar
entendê-las. Nunca me magoavam, então me sentia seguro com elas
por perto. Assim como me sentia seguro com os animais.
(ROBISON, 2008, p. 25)
Busca-se então, a compreensão do jeito de ser da pessoa, a construção de
novos caminhos para a comunicação e desenvolvimento, utilizando as capacidades
que a pessoa possui. Entretanto, como confiar na capacidade delas de crescimento?
Como confiar que possuem uma tendência ao crescimento tendo nascidas assim?
Muitos psicoterapeutas preferem conduzir o processo ao invés de confiar no
processo da pessoa. “Aceitar o jeito de ser dessas crianças é um risco” como
esclarece Cristo (2009).
John Robison foi diagnosticado com síndrome de Asperger apenas aos 40
anos, por um terapeuta, que segundo ele é muito criterioso e sensível e que também
lhe deu um livro sobre o assunto para ajudá-lo a se conhecer melhor. Ao pegar o
livro John (ROBISON, 2008, p. 208) pergunta:
“Então, existe uma cura?”
E o terapeuta lhe explicou.
“Não é uma doença. Então você não precisa de cura. É apenas como você é.”
Como dito inicialmente, às vezes a família tem a pretensão de homogeneizar
as crianças ao invés de descobrir seus valores. É como aquele pai ou aquela mãe
que obrigam a criança a estudar piano, porque era um sonho deles aprender. Mas
não escutam que na verdade, a criança queria era aprender violino ou ir para uma
escolha de futebol. Nem os pais e a “legião de especialistas” de Carly, nem de
Temple, poderiam imaginar aonde elas chegariam mesmo com um inventário de
impossibilidades.
Quando a criança é respeitada, quando se confia em seu potencial, não há
necessidade dos pais ou qualquer outra pessoa “marcarem o caminho” para ela.
Roy Richard Grinker, pai de Isabel diagnosticada com autismo, fala sobre como vê
seu papel de pai: “meu trabalho é preparar a terra para o que quer que venha a
brotar, mesmo que às vezes nenhuma outra pessoa acredite que isso aconteça,
mesmo que o broto seja deformado.” (GRINKER, 2010, p. 46, [grifo nosso]).
O que esse pai percebeu, possui a mesma base conceitual que Rogers
(1997) teorizou sobre a tendência ao crescimento, a mola propulsora fundamental
40

que os seres humanos possuem, observando as batatas no seu porão. Rogers


notou que as batatas brotavam apesar de permanecerem por meses no porão frio,
úmido, com pouca luminosidade e quase nenhuma condição de sobrevivência. As
batatas brotavam mesmo frágeis, mesmo sem cor, mesmo que não pudessem se
tornar uma planta de verdade porque não estavam na terra recebendo toda a água e
sol necessários ao seu desenvolvimento. Brotavam mesmo tortas e deformadas em
direção a qualquer réstia de luz que pudesse haver no porão. Há batatas. Há
pessoas que fazem “o melhor que podem em direção à vida”, só que melhor ainda,
porque não se pode saber de antemão a que nível de desenvolvimento pessoal elas
chegarão.
Mediante o exposto, a postura de um psicólogo humanista já começa
diferente. É uma relação de pessoa para pessoa. Não existe um sujeito que sabe
tudo e o outro que não sabe nada. O que existe são duas pessoas que estão se
relacionando e que uma vai ajudar a outra a se atualizar no processo de
desenvolvimento. O importante é aprender a escutar integralmente as crianças,
observar em que direção estão indo como Barb e Howard fizeram com Carly e ter a
sensibilidade para perceber que “a frustração de uma criança autista é abrangente e
afeta todas as fases de sua aprendizagem” (GRANDIN, 1999, p. 43). Portanto, o
desafio é ainda maior no autismo.

2.4 A COMPREENSÃO EMPÁTICA NO ATENDIMENTO

A compreensão empática é uma das condições necessárias ao atendimento


de pessoas na possibilidade de mudanças terapêuticas, ou como dito por Rogers
(1977), “um alto grau de empatia talvez seja o fator mais relevante numa relação”.
Quando se atende pessoas no espectro autista, torna-se ainda mais
necessária, uma vez que o cliente tem dificuldades de significar sua experiência. A
“escuta” deve ser ainda mais sensível.
A compreensão empática, esse “como se fôssemos a outra pessoa, sem
jamais perder a condição de ‘como se’” foi publicada por Rogers primeiramente em
1959 e depois reformulada por Gendlin em 1962 usando o conceito de
experienciação citada anteriormente. Existe um fluxo de experienciação ocorrendo a
todo o momento no organismo humano e para o qual se pode voltar quantas vezes
forem necessárias para que se descubra o significado de sua experiência e assim
41

chegar a uma vivência mais plena. (ROGERS, 1977, p.72)


É um convite para entrar no processo e não descrevê-lo de fora, entra-se na
fluidez do processo. A proposta é ter uma compreensão processual, sendo a
experienciação esse processo que flui e o ato de prestar atenção nesse processo
que está fluindo, é focalização. Quando se simboliza o processo que está
acontecendo, dá-se o nome de felt sense15 e ocorre uma sensação corporal de
alívio. (ROGERS, 1977; HENDRICKS, [?])
Empatia, na visão mais atualizada, refere-se então a destacar o felt sense que
a pessoa está experienciando naquele momento em que focaliza, deixa de ser um
estado para ser um processo (ROGERS, 1977; HENDRICKS, [?]). Não significa
simplesmente a compreensão do que a pessoa está falando de fato, é uma entrada
naquilo que ela está “experienciando muito além das palavras ou do que é mostrado
como comportamento”. É o sentido, o significado que a pessoa dá aquela
experiência.
Vale ressaltar que em todas as autobiografias listadas nesse trabalho, há
relatos dos sentidos, das razões para os comportamentos ditos estereotipados dos
autistas e que quando alguém com mais sensibilidade conseguia compreendê-los
em todas as suas complexidades, a mudança acontecia, eles se sentiam
estimulados a irem além das suas possibilidades naquele momento.
Rogers (1977, p. 73) ainda esclarece sobre empatia, “estar com o outro dessa
maneira significa deixar de lado, neste momento, nossos próprios pontos de vista e
valores, para entrar no mundo do outro sem preconceitos”.
Dessa forma, o método fenomenológico está presente na compreensão
empática, e é o que possibilita que o psicoterapeuta possa vislumbrar o mundo
particular por meio dos olhos do outro.
Vejamos como poderia ser na prática.
No primeiro momento quando eu, como psicoterapeuta, atendo você, a minha
atitude, a minha disposição, deve indicar que eu tenha uma experiência empática,
que eu seja capaz de ser uma companheira de viagem para ir junto com você.
Assim, para tentar entrar na “sua casa”16 que é você mesmo, entro com

15
A autora optou por não traduzir o termo felt sense.
16
A autora deste trabalho se baseou na metáfora da “casa” citada por Antônio Santos em
“Empathy – Beyond Images of the Mind – A Deeper understanding of Empathy’s role in
Psycotherapy”.
42

respeito pela porta que me foi aberta, não vou entrando porta adentro, não vou
entrando pela porta do quintal, nem da cozinha, mesmo que eu sinta um cheiro de
brigadeiro recém-feito. Eu vou de acordo com o quê você me possibilita, com o que
me autoriza; e normalmente vamos primeiro para a sala de visita enquanto eu lhe
espero, como dono da sua casa, a me convidar para sentar e ficar a vontade.
Só depois, se você sentir confiança, vamos circular pelos cômodos, pelo
interior da casa, na medida em que me permitir, essa experiência empática tem que
ser muito respeitosa, pois eu vou entrar na casa do outro.
A experiência empática é a ressonância daquela experiência do cliente, eu
estou vivendo com ele de uma forma empática, mas eu sei que é dele, a dor é dele,
a alegria é dele, eu compreendo, vivencio, mas é dele.
Em um segundo momento, eu já começo a compreender essa experiência e
então a nomeio, mas nomeio ainda para mim (a compreensão empática) e
dependendo da minha sensibilidade também posso transformar essa compreensão
em uma formulação verbal e comunicar para você (a simbolização), esse é o terceiro
momento.
Outras vezes, fico apenas na experiência empática, ou com a compreensão
empática, não chegando a comunicar, não é necessário. Você sente que estou
compreendendo-o.
Em clientes que tem muita dificuldade em entrar em contato com a sua
própria experiência e em geral, tem uma evolução também mais difícil, pode-se
desenvolver uma maneira de fazer com que o cliente entre em contato com a sua
própria experiência, ao sentir o corpo, por exemplo. Nesse mundo vivido, o meu
corpo tem uma “bagagem” e está constantemente neste “fluxo de experiências”.
Mas hoje, não me deixaste entrar. Fiquei no jardim, a esperar, quando você
quiser.
Um dia de cada vez.
Um psicólogo deve ter a paciência de esperar o momento do encontro com
seu cliente, principalmente no “ensimesmamento” do autismo.
Um encontro nada empático foi narrado por John (ROBISON, 2008, p. 37): ao
presenciar uma conversar entre a sua mãe e uma amiga, em que essa contava
sobre o atropelamento do filho de outra pessoa, John esboçou um sorriso ao que
levou a amiga perguntar a sua mãe: “qual o problema desse rapaz?”
Fui encaminhado à terapia, e isso só me fez sentir pior. Eles focavam
43

apenas naquilo que consideravam ser pensamentos sociopatas e


nenhum deles conseguiu descobrir porque eu sorri, quando ouvi a
história do filho de Eleanor ter sido atropelado e morto por um trem.
Em seguida, John esclarece que sorriu porque pensou que felizmente, nem
seu pai, nem sua mãe, nem seu irmão ou alguma pessoa conhecida, haviam sidos
atropelados. O filho de Eleanor, para ele, era um completo desconhecido.
Entrar no mundo do outro, considerando o que aquela experiência significa
para a outra pessoa, compreendê-lo em suas singularidades exige que o psicólogo
seja “suficientemente seguro” para ser empático. Resumidamente, é “uma maneira
de ser complexa, exigente e intensa, ainda que sutil e suave”. (ROGERS, 1977, p.
74).
44

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O homem, esse “sendo humano” cheio de nuances e cores, cheio de ruídos e


músicas, cheio de tatibitate e oratória, cheio de sabores e dissabores, cheio de
determinismo e autonomia, é digno de ser apreciado.
Mas o que faz com que todo o conjunto de experiências vividas por esse
homem tenha como resultado a pessoa? O conceito de pessoa aqui abarca não
apenas a personalidade, mas sim, todo o espectro do que a pessoa é e do que pode
vir a ser nos campos físico, psíquico e social.
Na constituição dessa pessoa, está presente o determinismo intrínseco da
sua genética, do ambiente que a rodeia, e também pelo que consegue construir no
ambiente como a cultura; entretanto apenas esse “sendo humano” é capaz de
identificar e se posicionar frente à determinação que recebe.
Na sua constituição, a autonomia ainda se amalgama ao determinismo, a
pessoa também é formada pelas escolhas que faz – escolhendo no ambiente aquilo
que vai lhe determinar, ou ainda escolhendo tornar-se ela mesma. É essa tomada de
decisão sobre os acontecimentos que a forma.
Muito mais do que o determinismo genético e ambiental do autismo, foram as
escolhas feitas por Temple, ao perceber que “cada pessoa precisa encontrar a sua
porta e abri-la. Ninguém mais pode fazer isso por ela.” (GRANDIN, 1999, p. 85).
Por Carly ao decidir sair da sua concha, digitando lentamente com seu dedo
indicador direito as seguintes letras: “H-E-L-P T-E-E-T-H H-U-R-T” – “socorro dentes
doem”. Sua primeira comunicação com o mundo aos 10 anos. (FLEISCHMANN,
2012, p.112).
E por John ao escolher:
Na época em que saí da escola, era quase como se eu sempre
estivesse na frente da porta Número Um e da porta Número Dois. [...]
Por isso, optei pela Porta Um, e ao fazê-lo, me afastei do mundo das
máquinas e dos circuitos – um confortável e silencioso mundo de
cores, luzes suaves e mecânica perfeição – e me aproximei do
ansioso mundo das pessoas – brilhante e desordenado. Avaliando
essa escolha, trinta anos mais tarde, acho que as crianças que
escolheram a Porta Dois podem não conseguir conviver em
sociedade. (ROBISON, 2008, p.190).
Que os formaram como pessoas que são hoje, apesar de todas as
dificuldades, apesar de muitos não acreditarem que poderiam ser alguma coisa além
45

daquilo que apresentavam ao mundo na infância e adolescência.


Mas o que pode facilitar essa mudança neles?
Sabe-se que para se conseguir elaborar as experiências vividas é necessária
uma relação com outra pessoa que possibilite certa articulação. Uma relação em
que se perceba uma presença capaz de alterar a ambos os envolvidos. A relação
com o mundo humano também é formadora da pessoa.
Ao se ficar muito tempo sozinho, começa-se a confundir as sensações, as
emoções, as expectativas e as experiências; e dentro do espectro do autismo, o
pressuposto da necessidade humana de viver uma relação é mais válido ainda,
como pode ser exemplificado por John:
Os adultos eram capazes de lidar com as minhas limitações
conversacionais muito melhor do que as crianças. Eles
compreendiam minhas respostas desconectadas, e estavam mais
propensos a mostrar interesse por algo que eu dissesse, não importa
quão bizarro fosse. Se os adultos não tivessem esticado esse
interesse, eu poderia muito bem ter despencado mais longe, no
mundo do Autismo. Eu poderia muito bem ter deixado de me
comunicar. (ROBISON, 2008, p.190).
Diante do exposto, qual seria a forma mais adequada de se fazer Psicologia
da pessoa? Como fica a aplicação na Psicologia Humanista se não é para
descrever, interpretar, analisar e esmiuçar?
Interessante observar que algumas pessoas fazem uma lista de coisas que
gostariam de falar durante a terapia, elas repetem em pensamento muitas vezes
sobre um determinado ponto, mas quando se encontram diante do psicólogo, o
ponto em questão é elaborado de uma forma totalmente diferente.
Qual a diferença entre elaborar sozinho e elaborar com o psicólogo? A
diferença está na capacidade de elaboração da experiência de uma forma
inteiramente nova por meio do encontro, encontro de dois “sendos humanos”, o
psicólogo e o cliente, sem aquela propagada neutralidade da psicologia de tempos
atrás, mas sim a relação humana entre eles que surge desse encontro.
E nas três autobiografias, são relatadas relações que de alguma forma
propiciaram as condições facilitadoras para que a expressão da pessoa pudesse ser
mostrada. No contexto clínico com o psicólogo e o cliente, é o psicólogo que
estabelece primeiramente essas condições que possibilitam com que a pessoa
possa se expressar com aquilo que tem, é um campo relacional. Nesse contexto, a
teoria de Rogers é relacional.
46

O psicólogo pode proporcionar que o cliente entre em contato com


determinadas experiências que não seria possível sozinho, simbolizando-as e
fornecendo as condições favoráveis para que a pessoa se torne tudo o que ela
pode ser como Carly expressou sobre si mesma: “Eu sou Carly Fleischmann, uma
garota que precisa tentar ser o melhor que eu posso ser.” (FLEISCHMANN, 2012, p.
210, [tradução nossa]).
Nesse aspecto, uma das melhores posições a se tomar é aceitar o movimento
do cliente, acolhê-lo, inclusive na vontade de não estar ali e tentar compreender o
fenômeno como aparece, dando lugar ao método fenomenológico na clínica e não
mais o método reducionista ou positivista.
Se o psicólogo tenta compreender o cliente na sua essência e não a partir de
um esquema de verdades, de hipóteses sobre a teoria da personalidade, por
exemplo, então estará exercendo a fenomenologia como método, compreendendo
as vivências do cliente a partir do próprio cliente. Resumidamente seria “se quer
saber a verdade sobre alguém, deve-se interrogar esse alguém”:
Muitas descrições do Autismo e Asperger descrevem pessoas como
eu como “não querendo contato com outras pessoas” ou “optando
por brincar sozinho.” Eu não posso falar em nome de outras crianças,
mas gostaria de ser muito claro sobre meus sentimentos: Eu nunca
quis ficar sozinho. E todos aqueles psicólogos infantis que disseram
“John prefere brincar sozinho” estavam completamente errados. Eu
brincava sozinho porque não conseguia brincar com outras crianças.
Eu estava sozinho como resultado das minhas próprias limitações, e
estar sozinho foi uma das mais amargas decepções da minha vida,
quando criança. (ROBISON, 2008, p.191, [grifo do autor]).
Carly também diz que “não É o autismo”. Autismo é apenas uma parte da
verdade sobre ela e convida a todos a conhecerem a sua totalidade. Assim, como os
psicólogos que se reuniram para formar a nova corrente humanista, em que estavam
“preocupados com todo o espectro do comportamento humano” (ROGERS, 1974,
p.99), também os psicólogos de hoje devem estar preocupados com todo o espectro
autista e suas nuances, uma vez que cada pessoa vive o autismo a sua maneira, por
meio das suas decisões, dando sentido e forma à sua vida, caminhando para uma
autorrealização que lhe é própria.
Cada pessoa possui uma maneira única de vivenciá-la e que a distingue das
outras, devido a sua capacidade de conscientização de si mesma e do mundo a sua
volta. Este é um conceito central no Humanismo, de que o homem se define por si
mesmo, ele é capaz de se orientar por aquilo que vêm de dentro, de ter autonomia.
47

No senso comum, quando se fala em autonomia, pensa-se em não haver


necessidade do outro, não precisar do outro para nada. Entretanto, ao se falar em
autonomia aqui, propõe-se a possibilidade de estar com toda a sua presença na
relação com o outro, não apenas reagindo ao determinismo, mas sim, no
estabelecimento da relação e na espera da resposta da pessoa às suas
experiências.
John, nos mostra autonomia, quando decide dar uma resposta as pessoas
que diziam que ele não era bom, que falhou na escola, que era um fracassado, que
não podia fazer isso, que devia estar na cadeia, quando aos 17 anos decidiu não
mais dormir em caixas de papelão como “esperavam” de um fracassado e sobre isso
enfatiza: “eu não gostei e me determinei a nunca mais fazer isso novamente”.
(ROBISON, 2008, p. 241).
A pessoa possui a capacidade de escolher, de decidir a não ser simplesmente
manejada, tragada pelos acontecimentos, ou simplesmente condicionada pois se
orienta pelo que é mais próprio seu. Quanto maior for a capacidade de reflexão e
investigação de si e do mundo a sua volta, maior é a sua liberdade e sua autonomia.
Ao cuidar de si, cuidar continuamente da experiência, a pessoa vai
emergindo, vai se constituindo. Por isso que a liberdade e a autonomia são
construídas, são passíveis de incremento, indicando que o homem está em um
contínuo processo de desenvolvimento, de devir, de descobrir-se. Sendo então um
ser em evolução, não mais uma estrutura da pessoa humana, mas um estruturar-se,
um processo. Com humor, Temple corrobora, “as crianças, até mesmo as autistas,
não são estáticas”. (GRANDIN, 1999, p. 143).
Seguindo essa linha, John fala sobre si mesmo atualmente:
Ninguém que me observasse há trinta anos poderia prever que eu
adquirisse as habilidades sociais que tenho atualmente, ou mesmo
ser capaz de descrever as emoções, pensamentos e sentimentos
que descrevo neste livro. Nem eu mesmo poderia prever isso.
(ROBISON, 2008, p. 189;190).
Mas nada disso teria um significado sem a atribuição de um sentido nas
experiências vividas. A pessoa deve possuir um sentido, um sentido a partir daquilo
que lhe é próprio, da sua essência, do seu Eu. O sentido aparece quando se está
pavimentando o caminho para a autorrealização.
Carly Fleischmann é uma típica adolescente de 18 anos dos dias atuais com
muitos sonhos e projetos em vista, cursa uma escola secundária no Canadá, está
48

sempre conectada nas mídias socias da rede de comunicação mundial (World Wide
Web) e envolvida com amigos, paqueras e novos desafios. Seu mais novo projeto,
lançado em janeiro de 2013 chama-se The Six Degree Project
(http://www.thesixdegreeproject.com/) e pretende aumentar a conscientização das
pessoas que convivem com autismo baseado-se na premissa de que todos estão
conectados a apenas 6º de separação. Sua página na rede é
http://www.carlysvoice.com/.
Temple Gradin se graduou em 1970 na Franklin Pierce College no curso de
Bacharelado em Psicologia, depois em 1975, tornou-se mestre em Ciência Animal
na Arizona State University e em 1989, PhD, também em Ciência Animal, na
University of Illinois17. É uma das mais renomadas especialistas em instalações
pecuárias sendo considerada pioneira nos estudos do comportamento e manejo de
gado, atua como professora de Ciência Animal na Universidade Estadual do
Colorado, possui uma empresa própria de equipamento para pecuária e é
conferencista. Sua palestra registrada em 2010, é um alerta sobre a necessidade da
diversidade: “O mundo necessita de todos os tipos de mentes” (TED, 2010). A
página pessoal na rede é http://www.grandin.com/.
John Elder Robison é um homem de negócios, um executivo bem sucedido
e um contador de histórias. Na década de 1970, fez sucesso projetando guitarras de
efeitos especiais para a banda Kiss; na década de 1980 se tornou gerente de uma
empresa de eletrônicos e de brinquedos, mas encontrava-se infeliz, achando-se uma
fraude. Em seguida, foi atrás do que sempre quis fazer desde criança e montou seu
próprio negócio – J E Robison Service – que se tornou uma das melhores empresas
especializadas em reparação de automóveis. Ao escrever o livro “Olhe nos meus
olhos”, John pretendia demonstrar que por mais robótico que possa parecer o
comportamento de um Asperger, era capaz de sentir “emoções profundas”. Sua
página na rede é http://www.johnrobison.com/.
Ser ousado no pensar e no agir é uma das coisas mais belas no ser humano.
Assim como a coragem de se ter liberdade, de ser responsável, de ser guiado pela
autonomia, de ir em busca de um sentido, de se autorrealizar. O mais belo ainda é a
tentativa do homem de se construir, de se conhecer segundo a sua própria

17
B.A. (Psychology), Franklin Pierce College, 1970; M.S. (Animal Science), Arizona State
University, 1975 e Ph.D. (Animal Science), University of Illinois, 1989.
49

capacidade, de refletir e se interrogar sobre o que acontece consigo, em uma


constante revisão das suas experiências, o que vai ao encontro da tendência
atualizante mesmo que viva em fragmentos de percepção de mundo, de
consciência.
50

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Danes, Julia Ormond, David Strathairn, entre outros. USA: HBO, 2010. (103 min.)
Produzido pela HBO. Baseado no livro Uma menina estranha: autobiografia de uma
autista de Temple Grandin.
54

APÊNDICE A – A HISTÓRIA POR TRÁS DO ESTUDO

“Você tem que fazer o que sabe. O gato


mia, o rato come queijo e eu sou
palhaço. E você o que é?”
O Palhaço (2011)

– Você tem alguém na sua família com autismo? É a pergunta recorrente que
ouço todas as vezes que comento do meu interesse no assunto.
– Não. Respondo sorrindo, balançando a cabeça negativamente.
E tento vasculhar na memória como tudo começou, procurando um motivo.
Recordo poucas coisas dessa época, como acontece quando não percebo que
estou vivendo algo importante. Lembro que no final de 2011 assisti ao vídeo da
Carly no youtube e fiquei paralisada. Assisti mais uma vez. Depois outra. E mais
tantas outras vezes seguidas.
Estava simplesmente encantada com aquela menina que conseguia se
expressar, que conseguia colocar em palavras seus sentimentos, vontades, medos e
frustrações. Comoveu-me a escritora que estivera contida naquele corpo indomável.
Lembro que pensei surpresa: “Existe uma pessoa ali querendo se expressar”.
Sei que isso parece horrível especialmente vindo de uma estudante de
psicologia que se presta a estudar (e saber) sobre o ‘sendo humano’. Mas eu não
sabia nada além do autismo do que o senso comum dizia ser18.
De frente para o computador e completamente apaixonada pela sua história
de vida e de como ela havia transposto sua porta, disse:
– Prazer em conhecê-la Carly!
Se existe uma coisa que me engrandece é conhecer e conversar com
pessoas. Ouvir pontos de vista diferentes do meu, experiências variadas e ver jeitos
de ser de cada um, expande quem eu sou, alargando meus horizontes. A
diversidade me alimenta em vários aspectos da vida, é um “pensar fora da caixa”.
Acredito que a compreensão da diversidade nos torna pessoas mais flexíveis
gerando um mundo melhor para todos viverem.
E naqueles idos de 2011, uma pessoa encantadora se revelava, uma

18
Autismo é visto no último período do curso de Psicologia no currículo atual da
Universidade Fumec.
55

escritora que sabia me tocar e que eu queria conhecer cada vez mais.
Foi quando algo realmente interessante começou a ocorrer... pois ao
comentar com amigos próximos e também aqueles que estavam longe sobre meu
novo interesse, comecei a receber muitos materiais. Foi assim que conheci o método
Son Rise e a família Kaufman, foi assim que me enviaram as pesquisas mais
recentes na medicina e biologia, foi assim que me emprestaram o livro da Temple
Grandin sem data de entrega para devolvê-lo, foi assim que recebi vários recortes
de reportagens em jornais e revistas, foi assim que ganhei de presente da minha
turma de psicologia um kit com vários livros e CD’s sobre autismo no meu
aniversário... e de repente, tudo o que eu precisava começou a chegar aos
borbotões em minhas mãos.
Um novo mundo se descortinava à minha frente. Um mundo muito diferente
do que estava habituada, um mundo que não olhava diretamente como eu gostava
de olhar, um mundo que não queria ser tocado como eu gostava de tocar, um
mundo inquieto e estranho, um mundo que estaria fora do que é considerado
normal.
Após assistir o filme Meu Filho, Meu Mundo (Título original: Son-Rise: A
Miracle of Love) sobre a família Kaufman contando a história de Raun, um menino
diagnosticado com autismo severo e um QI abaixo de 40, fiquei inquieta, algo se
revolvia dentro de mim e perguntas martelavam na minha cabeça sem parar: O que
poderia levar algumas pessoas a saírem do quadro autístico considerado irreversível
até então? O que elas tinham de diferentes? Ou ainda que elas receberam a mais
que outros não receberam?
Com base na Psicoterapia Centrada na Pessoa ficou claro que ele, Raun,
teve uma aceitação incondicional por parte dos pais, que a forma como eles
cuidaram do filho, entrando no mundo dele, repetindo seus gestos, facilitaram o
menino sentir-se acolhido; e o respeito foi mostrado quando Raun, após uma
significativa melhora, retornou ao estado original dos comportamentos
estereotipados, e os pais conversando, decidiram que não havia problema, eles
começariam tudo novamente e seguiriam o seu ritmo.
Intuitivamente os pais aplicaram os conceitos da Abordagem Centrada da
Pessoa de Carl Rogers aliada com a Pré-Terapia de Eugene Gendlin, o que motivou
a conhecer mais sobre esses casos que de alguma forma obtiveram melhoras
significativas dando valor as suas vidas, como autonomia, responsabilidade e um
56

sentido de vida.
O caso de Raun me fez levantar algumas hipóteses. Seriam as condições
facilitadoras? Seria a relação proporcionada a essa criança que o fez sair do
autismo? Em minha busca, não achei nenhum estudo de caso que envolvesse o
autismo e a ACP. Foi quando tive a ideia de usar as autobiografias e comecei a
devorar tudo o que me caísse nas mãos. Nesse período conheci mais
profundamente: Carly, Temple, John, Raun, Isabel, Noah, entre outros. E com tanto
material disponível, a triagem para a monografia teve que começar.
Primeiro, dei prioridade aquelas autobiografias que eram realmente escritas
pelas pessoas diagnosticadas com autismo e não por seus familiares, para assim
poder entrar na minha categoria de “autonomia, responsabilidade e um sentido de
vida”. Em segundo, escolhi aquelas que mais me tocaram, preferindo quando
possível, publicações recentes: Carly em 2012, John em 2008 e Temple em 1999. E
por fim, essas histórias deveriam estar dispostas em pontos diferentes dentro do
espectro autista, o que daria uma visão mais abrangente e consistente para a
hipótese. E surpreendente, esse requisito 3 (três) coincidiu com as já escolhidas no
requisito 2 (dois): Carly, no extremo inferior com seu diagnóstico de “autismo severo
e moderado retardo mental”, Temple no meio, com “autismo” e John no extremo
superior, considerado como um tipo de autismo de alto funcionamento, com a
“síndrome de Asperger”.
E Carly, Temple e John me deram uma aula. Várias aulas. De fato, “deram-
me um baile” como se costuma dizer na minha terra quando alguém lhe mostra algo
que sabe fazer muito bem e você não. Eles me ensinaram a olhar realmente as
pessoas, qualquer uma; mostraram-me como ver fenomenologicamente,
perguntando antes de julgar e emitir opiniões; ajudaram-me em meus próprios
processos e dificuldades; indicaram-me o caminho de como chegar até eles e
consequentemente chegar a qualquer pessoa na psicoterapia. Eles fizeram uma
exposição do que é o amor e o casamento, assim como o desamor e o divórcio.
É impressionante como mesmo nos casos extremos, como acontece com o
autismo que é talvez a forma de fechamento mais grave, pude ver a unidade da
pessoa, desse núcleo que, de alguma forma, luta para se mostrar. Mais interessante
ainda é como nos casos em que ocorre uma sintonia com outra pessoa, há uma
elaboração real, vê-se um sinal de presença em que se deseja uma interação.
Tudo o que tinha lido nas bases teóricas estavam sendo confirmadas nas
57

vidas reais daquelas pessoas. Mais além, elas me ensinaram a viver com mais
aceitação, mais compreensão e mais respeito pela diversidade que tanto me atrai.
Uma das partes do livro da Carly (Capítulo 4: Sleeplessness) que mais me
angustiou foi narrado pelo seu pai. Ele conta como ele e a esposa se revezavam no
cuidado com os filhos e a casa. Ela cuidava deles durante o dia e da Carly, de modo
mais particular. E ele, à noite, após o trabalho. Ele chegava em casa, fazia os
afazeres domésticos, brincava com os filhos e ia dormir. Aproximadamente apenas
umas duas horas de sono depois, Carly acordava aos gritos, completamente sem
controle corporal, pulando de um cômodo para outro da casa, quebrando muitos
objetos, bagunçando tudo, com o pai atrás, tentando evitar que ela se machucasse
ao mesmo tempo em que tentava acalmá-la, para fazê-la voltar a dormir e ele ter
mais algumas horas de sono. Isso podia durar horas e quando, finalmente, ela
conseguia se acalmar já era hora do pai voltar ao trabalho. Imagine noites e noites
seguidas assim!
Ele narrou apenas uma noite e eu fiquei desesperada com a angústia dele
(nem tenho condições de imaginar a dela) e tive que parar de ler esse capítulo
várias vezes, respirar fundo, tomar um copo de água e voltar. Em muitos momentos,
tive a vontade de entrar naquelas páginas, voltar àquela situação e tentar ajudá-los
de alguma forma. Queria poder dizer-lhe: “vá dormir, eu fico com ela”. Como ele
aguentou tudo aquilo? Não sei dizer. Eu acredito que uma das piores atitudes que
podemos ter com outro ser humano seja: “eu desisto de você”. Algo que pode
parecer tão fácil de acontecer com todas as dificuldades financeiras, emocionais,
físicas que o autismo acarreta para aqueles que convivem com isso. “Mas como
alguém pode desistir de um filho?” pergunta o pai de Carly no vídeo do youtube.
A parte mais emocionante, que transcendeu qualquer experiência, que me
cativou inteiramente foi narrada por Temple quando encontrou A Porta, a porta que
ela escolheu transpor. Prefiro mostrar pequenos trechos transcritos literalmente
porque, para mim, é impossível descrevê-lo sem profaná-lo de alguma forma:
Havia uma pequena plataforma que se projetava do prédio, e subi
nela. E encontrei A Porta! Era uma pequena portinhola de madeira
que dava para o telhado. Entrei num pequeno observatório. Havia
três janelas panorâmicas que abriam para as montanhas. Aproximei-
me de uma delas e fiquei vendo a lua nascer por trás das
montanhas, subindo ao encontro das estrelas. Fui tomada por um
sentimento de alívio. Pela primeira vez em meses sentia-me segura
no presente e confiante no futuro. Uma sensação de amor e alegria
me invadiu. Eu tinha encontrado! A porta para o meu céu.
58

Pensamentos que tinham passado pela minha cabeça ao acaso


agora pareciam importantes. Eu tinha encontrado! Um símbolo
visual. Eu só precisava atravessar aquela porta. É claro, não havia
percebido àquela altura que eu pensava visualmente, e precisava de
símbolos concretos para conceitos abstratos.
[...]
Vezes sem conta, eu era atraída para o Observatório. Quando
chegava lá, sentia-me como se tivesse a ponto de descobrir alguma
coisa a respeito de mim mesma. E descobri.
[...]
Cada pessoa precisa encontrar a sua porta, e abri-la. Ninguém mais
pode fazer isso por ela. E a pequena porta de madeira que dava para
o telhado e o mundo lá fora simbolizavam meu futuro. Bastava
atravessá-la.
[...]
Depois abri a porta e saí ao ar livre, para o telhado, fechando-a atrás
de mim. Eu tinha passado para uma nova vida, e espiritualmente
nunca mais voltaria por aquela porta.
E nunca voltei. (GRANDIN, 1999, p. 84; 85).
Já John me falou de vocação e casamento no momento em que eu mais
precisava. A declaração de amor mais linda que já li está no capítulo “Vida de
Casado” do seu livro, em que ele fala do relacionamento que tem com a sua
(segunda) esposa que chamava de Unidade Dois, nada romântico é verdade, mas
os Aspergers preferem dar os nomes às pessoas e coisas de acordo com sua
funcionalidade. No caso, Unidade Dois, porque a esposa era a filha do meio e,
portanto, havia nascido entre as Unidades Um e Três. Seus sogros eram chamados
de Unidades Zero.
Ele conta basicamente de como é viver com amor, com respeito e
consideração, de como ela cuida dele e ele se diz mimado, da confiança irrestrita
que ela tem nele, do carinho dos dois, de como ele se sente seguro com ela e de
como esse relacionamento o transforma: “algumas pessoas dizem que eu nunca
sorrio e que não tenho expressões faciais, mas, de algum jeito, ela me faz sorrir e
consegue ler as minhas mínimas expressões faciais” (ROBISON, 2008, p. 228).
Ou ainda, “não entendo certas nuances que são componentes típicas da
conversa entre pessoas ‘normais’. Há momentos em que uma pessoa diz algo,
esperando que eu ria, e eu apenas fico quieto [...], ela aponta coisas, suavemente, e
tento aprender o que eu perdi.” (ROBISON, 2008, p. 229).
E quando a noite chega e eles vão dormir, conta de como se sente sereno e
relaxado dormindo “empilhado” com ela. Finaliza dizendo de seu jeito bem peculiar:
59

“eu gosto da vida de casado”. (ROBISON, 2008, p. 230).


Nem sei dizer quantas vezes li essas partes, ou quantas vezes chorei, ou
quantas vezes queria estar junto entrando nas páginas, nem quantas vezes queria
apenas dar a mão e dizer: “oi, estou aqui”.
Mas depois de ler os livros, de me emocionar bastante, dúvidas começaram a
me assaltar: estaria eu preparada para dar esse cuidado necessário? Seria eu capaz
de criar uma relação acolhedora em um mundo autístico? Eu saberia olhar com
amor e enxergar realmente uma pessoa ali no meio de tantos comportamentos
desordenados? Perceberia-os nas suas necessidades ou seria mais uma tentando
moldá-los dentro do que a sociedade espera?
E, poucos dias antes de encerrar essa monografia e minhas conclusões, tive
um sonho muito significativo, vívido e intenso como nunca tinha sonhado. Nesse
sonho, um homem com uma túnica branca me tocava no ombro e dizia:
– Agora você pode ver.
E passou a mão no ar descrevendo um semicírculo da esquerda para direita,
quase como se estivesse abrindo uma cortina. E vi uma multidão de pessoas
sofrendo, muitos como farrapos humanos, sujos, cinzas e molambentos. Notei
também que estava em uma ponte e que havia várias pessoas que como eu, eram
coloridas, vestidas com roupas leves, confortáveis, gostosas de ver e de tocar.
Olhei para o homem ao meu lado, que balançou a cabeça em sinal afirmativo,
ele estava lendo meus pensamentos, meus sentimentos por todas aquelas pessoas
fora da ponte. Foi quando ele se aproximou da beirada, perto dos molambentos,
abaixou-se em direção a um deles e ergueu uma mulher colocando-a perto de mim.
– Agora você pode cuidar.
Disse-me suavemente me entregando a mulher que estava completamente
curvada sobre si mesma, quase como se fosse uma bola a se proteger de tudo e de
todos. Ensimesmada. Fechada.
Eu me curvei sobre ela, formando uma segunda camada de proteção, ficando
ali por muito tempo. Senti que de mim, saía uma energia colorida que foi penetrando
nela devagar, fazendo-a erguer-se lentamente e eu acompanhava seu levantar
ainda a envolvê-la, ainda a protegê-la. Até que finalmente ela se pôs na posição
completamente ereta, colorida, vestida com uma roupa leve, confortável, gostosa de
ver e de tocar. Afastei-me dela apenas um pouco. Ela sorriu para mim. Eu sorri para
ela. Não trocamos uma palavra, não precisava.
60

E aí? Preciso dizer mais alguma coisa?


E para aqueles que ainda são incrédulos com a “cura” do autismo seja por
meio de medicamentos, seja por meio de terapias, informo que segundo um estudo
ainda não conclusivo publicado recentemente em janeiro de 2013 no “Journal of
Child Psychology ans Psychiatry” sugere que algumas crianças eventualmente,
conseguem superar o autismo não apresentando mais nenhum sintoma após alguns
anos (FEIN; BARTON; EIGSTI et al., 2013). Lembrando que em 2012, Muotri
publicou seu trabalho mostrando que conseguiu reverter em laboratório os neurônios
autistas em neurônios normais. (TEDx Fortaleza, 2012).
E agora novas perguntas martelam a minha cabeça em torno das várias
dimensões do homem: físico, psíquico e do espírito. O homem consegue mudar seu
físico mudando seu psíquico? Chegou a hora de comprovar empiricamente que a
psicoterapia – alterando o psíquico da pessoa – pode reverter a biologia corporal? E
quanto disso depende de uma escolha, de uma tomada de posição daquela pessoa?
Uma vez que a dimensão do espírito está relacionada com a resposta que a pessoa
dá na sua vida e que ninguém pode determinar, nem a dimensão física e nem a
psíquica.
“Se podes olhar, vê; se podes ver, repara”. (SARAMAGO, 1998).
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Gestáltica com ajustamentos autistas.

ARTIGO

O psicoterapeuta invisível: reflexões sobre a prática Gestáltica


com ajustamentos autistas

The invisible psychotherapist: reflections about a gestaltic practice with


autist adjustments

Marina Nogueira de Barros

Revista IGT na Rede, v. 11, nº 20, 2014, p.193 – 241. Disponível em http://www.igt.psc.br/ojs
ISSN: 1807-2526
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BARROS, Marina Nogueira de - O psicoterapeuta invisível: reflexões sobre a prática
Gestáltica com ajustamentos autistas.

RESUMO

Consiste esta pesquisa bibliográfica em uma tentativa de ampliar os


conhecimentos sobre a Gestalt-terapia, trazendo o histórico desta abordagem
da Psicologia e os conceitos básicos utilizados pela mesma, como awareness,
figura-fundo, aqui-agora, relação dialógica, teoria de campo de Kurt Lewin,
teoria organísmica de Kurt Goldstein e Psicologia da Gestalt. Para assimilação
de como se dá a prática clínica através destes conceitos foi necessário revisar
e acrescentar referencial teórico acerca da compreensão da teoria do self
(funções id, ego e personalidade) e os ajustamentos que dela decorrem
(neuróticos, aflitivos e psicóticos), sendo nesta pesquisa aprofundado o
conhecimento dos ajustamentos psicóticos ou de criação como um
comprometimento da função Id, que é entendida como o fundo de vividos do
sistema self, o qual é espontâneo e não há controle sobre o mesmo e que
podem fazer muitas experiências parecerem sem sentido num dado momento.
Estes ajustamentos são divididos em ajustamentos de preenchimento de fundo,
ajustamentos de articulação de fundo e ajustamentos de defesa contra a
demanda ou de isolamento (autismos). O presente estudo focaliza-se
buscando revisar e acrescentar conhecimentos sobre os ajustamentos de
defesa contra a demanda ou isolamentos (ajustamentos autistas); compartilhar
o conhecimento que foi pesquisado bibliograficamente; e também compartilhar
a vivência do psicólogo e as implicações que este tipo de prática causa a estes
profissionais, visto que ainda é uma área restrita em produções científicas
dentro da referida abordagem e que necessita de mais embasamento teórico-
vivencial, inclusive para melhorar a prática dos Gestalt-terapeutas que têm
afinidade ou vivenciam esta área.

Palavras-chave: Gestalt-terapia; Teoria do Self; Ajustamentos Psicóticos;


Autismo.

ABSTRACT

This review is an attempt to broaden the knowledge about Gestalt therapy,


bringing the history of this psychology approach and the basic concepts used by
it, as awareness, figure-ground, here and now, dialogical relationship, Kurt
Lewin field theory, Kurt Goldstein organismic theory and Gestalt Psychology. To
assimilate how is the clinical practice through these concepts was necessary to
review and add about the theoretical understanding of the self theory (id
functions, ego and personality) and adjustments resulting from it (neurotic,
distressing and psychotic), being depth in this search the knowledge of
psychotic or creation adjustments as a function impairment of the Id, which is
understood as the fund experienced of the system self, which is spontaneous
and there is no control over it and can make many experiments seem
meaningless in given time. These adjustments are divided into background fill
adjustments, background articulation and defense against demand or isolation
adjustments (autism). The present study focuses on seeking review and add

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Gestáltica com ajustamentos autistas.

knowledge about the adjustments of defense against the demand or isolation


(autistic adjustments); share the practice that was bibliographically investigated,
and also share the experience of the psychologist and the implications that this
type of practice for these professionals, knowing that this is a restricted area in
scientific production within the same approach and requires more theoretical-
experiential, including to improve the practice of Gestalt therapists who have
affinity or experience in this area.

Keywords: Gestalt Therapy; Self Theory; Psychotic adjustments; Autism

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1. INTRODUÇÃO

A Gestalt-terapia, fundada por Frederick e Laura Perls, entre outros, na década


de 1940, é uma abordagem fenomenológico-existencial da Psicologia que
ensina terapeutas e clientes o método fenomenológico de awareness que se
focaliza no processo (o que está acontecendo no aqui-agora) e tem como
objetivo tornar os clientes mais conscientes (aware) do que estão fazendo,
como estão fazendo, o que estão sentindo e assim, possibilitar a aceitação,
valorização e mudança (YONTEF, 1998).

A Gestalt-terapia desenvolve uma perspectiva unificadora do ser humano,


integrando ao mesmo tempo, as dimensões sensoriais, afetivas, intelectuais,
sociais e espirituais, favorecendo um contato autêntico com os outros e consigo
mesmo, um ajustamento criador do organismo ao meio, assim como uma
consciência dos mecanismos interiores que nos levam a condutas repetitivas
(GINGER & GINGER, 1995)

A Gestalt-terapia tem como bases filosóficas o Humanismo, Existencialismo e


Fenomenologia e é também fundamentada na Teoria de Campo (Kurt Lewin),
Teoria Organísmica (Kurt Goldstein) e a Psicologia da Gestalt. Trabalha-se,
tradicionalmente, com a noção das três clínicas gestálticas: Neurose, Psicose e
Aflição (MÜLLER-GRANZOTTO e MÜLLER-GRANZOTTO, 2012)

Ribeiro (1998) acrescenta que esta influência atingiu os primeiros criadores da


Gestalt-terapia que se formaram num clima permeado, primeiramente pelas
influências de Kurt Goldstein e indiretamente pela cultura européia continental
da época, pelos psicólogos da Gestalt.

O presente trabalho abordará o tema relacionado à formação do Gestalt


terapeuta e o atendimento clínico com pessoas que fazem Ajustamentos
Psicóticos. Especificar-se-ão os ajustamentos de defesa contra a demanda (ou
ajustamentos autistas), trazendo como problema de pesquisa os
questionamentos acerca da formação do Gestalt terapeuta para trabalhar com
estas demandas e as implicações desta prática em sua vida como um todo.

Esta pesquisa tem como objetivos: identificar como é a formação do psicólogo


clínico no Brasil de um modo geral; introduzir a noção de como se dá a prática
da Gestalt-terapia e suas bases teóricas; averiguar como o Gestalt-terapeuta
intervém nos ajustamentos psicóticos, mais especificamente os ajustamentos
de defesa contra a demanda - ajustamentos autistas; identificar as
consequências deste trabalho na vida do Gestalt terapeuta; e compreender a
importância do olhar especializado do Gestalt terapeuta com estas demandas.

A produção acerca do preparo pessoal e técnico do Gestalt terapeuta ainda é


um tema escasso, porém não menos importante visto que partimos do
pressuposto básico da implicação do psicoterapeuta no processo. Os
resultados desta pesquisa visam contribuir para a sociedade, ao meio
acadêmico, aos profissionais da área, principalmente à Gestalt terapia que

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ainda está em crescimento no que se refere à produção científica, o que


contribui diretamente às práticas clínicas realizadas por estes profissionais.

2. FUNDAMENTOS TEÓRICOS DA GESTALT-TERAPIA

Antes mesmo da profissão de Psicologia ser Regulamentada, fato que ocorreu


em 27 de agosto de 1962, a partir da Lei n° 4.119/62 e o parecer 403/62 que,
respectivamente regulamenta o exercício da profissão de psicólogo e que fixa o
currículo e a duração do curso, já havia profissionais atuando em vários
contextos, dentre eles, o hospital (HADDAD e COLS., 2006).

O curso de formação em Psicologia cresceu significativamente desde a década


em que a profissão foi regulamentada, totalizando até o ano de 2006 em 320
cursos, enquanto que no início da década de 90 existiam apenas 102. Em
2004, havia 272 cursos, sendo 51 oferecidos por instituições públicas e 221 por
instituições privadas. (HADDAD e COLS., 2006).

Segundo os autores acima citados, a partir de uma pesquisa realizada pelo


IBOPE com 2.000 psicólogos, o Conselho Federal de Psicologia (CFP)
elaborou um perfil deste profissional que indicou que 46% deste total concluiu o
curso entre os anos de 1997 e 2003 e que a maioria das pessoas entrevistadas
(92,8%) é do sexo feminino.

Ainda de acordo com o Perfil do Psicólogo, sobre as preferências por áreas e


especialidades da Psicologia, tanto em nível de atuação como na frequência a
cursos de pós-graduação, verificou-se que há o predomínio do
encaminhamento para a Psicologia Clinica e para a da Saúde, pois, mais de
60% das psicólogas esperam exercer sua profissão nessas duas
especialidades.

A Gestalt terapia, como abordagem da psicologia, foi fundada por Frederick


Perls, médico e judeu, com a ajuda de sua esposa Laura Perls, entre outros.
Tàrrega (2012) conta que o casal viu-se obrigado a fugir da Alemanha, com a
ascensão do nazismo em 1933, para a África do Sul. Lá, aconselhados por
Erich Fromm e Clara Thomson, resolveram mudar-se definitivamente para os
Estados Unidos.

Inicialmente a Gestalt-terapia não era idealizada como uma teoria própria.


Laura e Fritz eram psicanalistas, e sua obra “Ego, fome e agressão” era
apenas uma releitura dos escritos de Freud. Esta obra teve influência do
filósofo alemão Salomão Friedlander, do sul-africano Jan Smuts. Outras
influências sobre vida são Max Reinhard, diretor de teatro e do movimento
Bauhaus Outras influências sobre vida de Perls e que o ajudaram na
construção do saber da Gestalt- terapia foram: Max Reinhard, diretor de teatro
e do movimento Bauhaus. A análise psicanalítica realizada em Berlim,
Frankfurt e Viena com Karen Horney, Happel Clara e Wilhelm
Reich;supervisões com Helen Deutsch, Fenichel Otto e Federn Pauloe o
trabalho em Frankfurt com o neuropsiquiatra Kurt Goldstein.

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Em 1951, foi publicada a grande obra, Gestalt Therapy, uma reunião que
cercou um grupo de intelectuais, entre os quais estão Paul Goodman, Isadore
From, Paul Weisz, Shapiro Elliott e Eastman Sylvester (Perls, Goodmann e
Hefferline), ganhando grande impulso no início dos anos 60 por ser uma
corrente de pensamento e prática terapêutica afinada (em alguns dos seus
pressupostos) com os movimentos de contracultura, fenômeno histórico
efervescente nos EUA e na Europa nessa época.

De acordo com Prestrelo (2001), Perls percorreu o país realizando workshops,


divulgando seu trabalho:

“Seus trabalhos em grupo pareciam propiciar “curas”


milagrosas, dado a rapidez na resolução dos conflitos
apresentados por seus participantes. Não se levava em conta
sua vasta experiência profissional, seus 50 anos de prática
clínica, as quatro análises vividas e seus 76 anos – que
fundamentavam a incrível perspicácia clínica que se
concretizava no exercício de seu trabalho” ( p.5)

De acordo com Prestrelo (2001), no Brasil, a Gestalt terapia chega em 1972


através dos conhecimentos adquiridos de workshops em Londres por Thèrése
Tellegen. A partir disto, Jean Clark Juliano, Walter Ferreira da Rosa Ribeiro,
Paulo Barros, Abel Guedes e Lílian Frazão começaram a formar um grupo
onde surgiu a necessidade de aprofundar os conteúdos trabalhados nos
workshops. Isto resultou no movimento de contracultura, rejeitando algumas
formas rígidas e sistematizadas de trabalho europeias. Devido a este
movimento, a Gestalt-terapia viu-se sem grande fundamentação teórica e
então os estudos se intensificaram.

Este autor traz também que em 1978, Walter Ribeiro, junto com outros
profissionais, de diferentes lugares do Brasil, criou em Brasília o primeiro grupo
de formação em Gestalt-Terapia, auxiliado pela terapeuta residente na
Califórnia, Maureen Miller.

A partir de então foram criados centros de formação, de especialização que se


expandiu pelo Brasil e então se publicou a primeira obra brasileira “Gestalt e
Grupos: Uma perspectiva sistêmica” de Thèrése Tellegen, seguida em 1985
pelo livro de Jorge Ponciano Ribeiro: “Gestalt-Terapia: Refazendo um
caminho”.

Segundo Holanda & Karwowski (2004):

“Com o crescimento dessa abordagem no país, surgiu, em


1986, organizado pelo grupo do Rio e coordenado por
Teresinha Mello, o I Encontro de Gestalt-terapeutas do Rio de
Janeiro que, embora com um nome regional, contou com a
presença de gestalt-terapeutas de todo o País. Tendo
assumido essa magnitude, o segundo encontro foi, então,
organizado pelo grupo de São Paulo, intitulado por seus
organizadores II Encontro Nacional de Gestalt-terapia,

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realizado em Caxambu (1989). Conferiu-se, assim, um status


de encontro nacional ao primeiro encontro realizado no Rio de
Janeiro. Passou-se, então, a repetir o encontro a cada dois
anos: em Brasília (DF), em 1991; em Recife (PE), 1993; em
Vitória (ES), em 1995; em Florianópolis (SC), em 1997; em
Goiânia (GO), em 1999; em Fortaleza (CE), em 2001, e em
Gramado (RS), em 2003”(p. 62).

Segundo Holanda & Karwowski (2004), os poucos dados históricos sobre a


Gestalt-terapia influenciam também na ideia de que ainda é considerada uma
teoria frágil no meio acadêmico da Psicologia, porém esta ideia vem se
modificando e uma das maiores formas para que essa teoria se fortaleça seja
justamente intensificar a produção teórica acerca das práticas gestálticas em
diversos campos.

Ribeiro (1985) mostra-nos que a Gestalt-terapia é uma abordagem Humanista,


Existencial-Fenomenológica, ou seja, sua visão de homem é permeada por
estas três filosofias, o que influencia diretamente a prática clínica e a maneira
que o profissional vê o mundo.

O humanismo é uma proposta que coloca o homem como o centro, dotado de


possibilidades e de uma tendência ao crescimento, fazendo com o que o
mesmo seja autor principal desta atualização e mudança (GINGER & GINGER,
1995)

Os referidos autores correlacionam o humanismo com o fazer gestáltico


quando afirmam que esta corrente filosófica recoloca o homem no centro do
estudo da Psicologia e assim, o tira do lugar de objeto de estudo apenas (como
faziam a psicanálise e o comportamentalismo). O humanismo é uma forma de
devolver ao homem sua dignidade em todos os aspectos, como a valorização
de seu corpo e suas sensações, respeito pela sua unicidade, considerando-o
um ser com direito de se desenvolver e se realizar, atendendo suas
necessidades, elaborando seus valores individuais e sociais.

Outro ponto ressaltado pelos autores é que o humanismo tem uma visão
sistêmica, é contra qualquer categorização nosográfica, não trabalha com a
ideia de normal/patológico e causa/efeito. Logo, ao procurar enxergar o
indivíduo em seu desenvolvimento máximo, o humanismo se equipara com a
prática gestáltica, quando, por exemplo, Perls apud Ginger (1995, p.99) fala
que “A Gestalt-terapia é um método muito operante para ser reservado
unicamente aos doentes”. Ou seja, o humanismo e a Gestalt-terapia são visões
de mundo que consideram o homem como um sistema global inserido em
subsistemas com uma interdependência circular.

O existencialismo traz o homem como um ser dotado de liberdade e


unicamente responsável por suas escolhas. Através desta liberdade
responsável, a pessoa vai à busca da construção de sua história de forma mais
implicada, encontrando sua essência e vivendo de uma maneira mais autêntica
consigo e com o mundo. Como ressalta Cardella (2002, p.35):

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Gestáltica com ajustamentos autistas.

“o homem é o intérprete mais fiel de si mesmo, centro de sua


própria liberdade e libertação, detentor do poder sobre si
mesmo, ainda que momentaneamente, tenha perdido essa
aptidão para autogovernar-se.”.

Ginger & Ginger (1995) acrescentam que a Gestalt-terapia reteve alguns


conceitos do existencialismo como: a singularidade da experiência individual,
objetiva e subjetiva de cada existência humana; a auto compreensão para viver
e existir; a responsabilidade ativa e inexorável de cada indivíduo na construção
de seu “projeto existencial”. Ou seja, pode ser considerado existencial tudo
aquilo que diz respeito à forma como o indivíduo experiencia os fenômenos,
como ele os percebe, os assume e os direciona, sendo totalmente responsável
por suas atitudes. Cardella (2002) lembra que essa liberdade nas escolhas
pode ser vivida com angústia e inquietação, já que o indivíduo não pode
escolher tudo e está sempre renunciando a algo.

Sendo assim, a prática gestáltica pode ser considerada existencial, pois está
sempre buscando enfatizar o processo de escolhas e renúncias do indivíduo,
em que o mesmo vai tomando consciência de sua autoria e responsabilidade
em seus feitos (CARDELLA, 2002). É também existencial a relação terapêutica,
embasada no existencialismo “‘Dialógico Eu-Tu’ ou ‘Encontro existencial’1: esta
concepção ou atitude de relação articula-se a uma metodologia de trabalho que
forma, com ela, um todo coerente e indissociável” (YONTEF, 1986, p.6 apud
CARDELLA, 2002).

A fenomenologia é uma corrente de pensamento considerada um marco na


filosofia e que pode ser entendida como um método de investigação da história
do conhecimento que propõe a volta “às coisas mesmas”, a partir da descrição
e da interrogação do fenômeno, isto é, do que é dado imediatamente
(ROTHSCHILD & CALAZANS, 1992).

Holanda (1998) afirma que a fenomenologia é uma tentativa de clarificar a


realidade humana, um retorno a essas coisas mesmas descobrindo-as tais
como se apresentam a si e aos sentidos.

A fenomenologia baseia-se inicialmente no pensamento de Husserl que faz da


mesma um método em busca da verdade, porém concluiu que o ser humano
percebe a verdade ao seu modo, ou seja, ele “percebe o percebido”
(RODRIGUES, 2009). Holanda (1998, p.27) acrescenta que para Husserl a
fenomenologia é um modo de existir, de ser e estar no mundo, fazendo parte
do mesmo, tendo como primordial uma “contínua reflexão crítica, de re-pensar
o mundo e a realidade, pois afinal, o ser somente se completa no seu devir, no
seu crescer”.

A busca do fenômeno é dada através de uma postura chamada por Husserl de


“epoché” ou “redução fenomenológica”, que consiste na suspensão de juízo de
valores na busca dos significados, da essência da realidade e o que está por

1
Mais informações sobre o Existencialismo Dialógico de Martin Buber na p.17

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detrás das mesmas (HOLANDA, 1998). Nesta linha de pensamento, Husserl


transcende a separação desta unidade entre o “pensar” e o “pensado” em algo
único a cada pessoa, ou seja, teremos várias formas de perceber a realidade.

Husserl teve como seu discípulo sucessor Martin Heidegger, o qual afirmava
que o fenômeno é o que se mostra em si mesmo. Logo, para acessá-lo é
preciso “estar atento para o ente2 por si mesmo de diversas maneiras,
seguindo sua via e modo de acesso”. Para Heidegger não há algo por detrás
do fenômeno. O que acontece é que o próprio tende a velar-se e para desvelá-
lo é necessário que nos guiemos de acordo como as coisas se apresentam de
forma natural e espontânea (STOCKINGER, 2007).

Para Ribeiro (1985), a fenomenologia descreve aquilo que se passa, o que se


mostra: ela é a descrição das formas de como se conhece algo. É a busca de
entendimento baseada no que é óbvio ou revelado pela situação e não na
interpretação do observador. A exploração fenomenológica objetiva uma
descrição cada vez mais clara e detalhada do que é, e não enfatizar “o que
seria”, “o que poderia ser”, “o que pode ser” e “o que foi”.

Segundo Müller-Granzotto & Müller-Granzotto, 2007 apud D’Acri, Lima, Orgler, 2007:

“Fenomenologia é a disciplina, por meio da qual, pretendem


esclarecer em que sentido a noção de awareness lança as
bases para se compreender a totalidade (gestalt) formada por
nosso psiquismo e por nossas formas de inserção material no
mundo da vida. Tal totalidade, a sua vez, não é mais que o
correlato daquilo que Edmund Husserl, fundador da
fenomenologia, denominava de consciência transcendental. À
diferença de que, mais ao estilo de Goldstein, os fundadores
da Gestalt-terapia não consideravam tal consciência uma
instância reflexiva, ideal. Eles a descreviam como a própria
ocorrência empírica do campo organismo-meio, ocorrência
essa à qual denominavam de sistema self e da qual a
experiência psicoterapêutica é apenas uma variante (...)” (p.
110).

Para melhor compreensão do que foi referido acima, cabe aqui dois dos
conceitos-chave da Gestalt-terapia: awareness e aqui-agora.

O conceito de aqui-agora da Gestalt-terapia, que é utilizado como base, ou


seja, todo o processo terapêutico é focado no que o cliente está sentindo no
presente (sensações, sentimentos, pensamentos, intuições). Não são
descartadas informações passadas ou aspirações ao futuro, porém o foco é
como isto está ocorrendo naquele dado momento (RODRIGUES, 2009).

A awareness vem do termo em inglês aware e significa tomar consciência de


algo. Fukumitsu (2011) afirma que para a Gestalt-terapia, awareness é a

2
- tudo aquilo que falamos; tudo em que pensamos; tudo que entendemos; tudo em
relação ao que nos comportamos, mas também o que nós próprios somos e a maneira
como somos. É tudo aquilo que é; o que tem manifestação (STOCKINGER, 2007)

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capacidade de integração daquilo que eu faço e a maneira que eu interajo,


sendo assim, são possíveis algumas zonas de awareness: cognitiva, sensório-
motora, emocional e energética. A ampliação da awareness se dá quando o
indivíduo está com estas zonas integradas e consegue ter a percepção do que
está experienciando no momento. Cardella (2002) acrescenta que o fluxo de
awareness acontece quando o indivíduo é capaz de assimilar o que é nutritivo
e rejeitar o que é tóxico, o que resulta em crescimento segundo processos de
ajustamento criativo.

Perls, Hefferline e Goodman (1997) esclarecem que:

“A figura (gestalt) na awareness é uma percepção, imagem ou


insights claros e vívidos; no comportamento motor, é o
movimento elegante, vigoroso, que tem ritmo, que se completa
etc. Em ambos os casos, a necessidade e energia do
organismo e as possibilidades plausíveis do ambiente são
incorporadas e unificadas na figura.” (p.45)

A awareness é um processo fluido, que se modifica a todo instante,


proporcionando ao indivíduo um contato de boa qualidade e a capacidade de
“diferenciação eu-não-eu” (CARDELLA, 2002). “A Gestalt-terapia é
fenomenológica; seu objetivo é apenas awareness e sua metodologia é a
metodologia da awareness” (YONTEF, 1998, p.234 apud CARDELLA, 2002,
p.67)

Giordane (2010, p.2) diz que a Gestalt-terapia é fenomenológica por ser


centrada na descrição subjetiva do sentimento (awareness) do indivíduo. Perls
et al., (1997) ratifica que a terapia gestáltica consiste

“não tanto no ‘que’ está sendo experienciado, (...) mas a


maneira ‘como’ o que está sendo relembrado é relembrado, ou
(...) com que tom de voz, afeto, consideração para com a outra
pessoa etc.”.

O “como” precede o “porquê”, dando-se enfoque ao fenômeno que se


apresenta, ou seja, o que é escolhido como importante no aqui-agora é o que
será trabalhado naquele momento; sem consciência não há mundo e sem
mundo não há o nós. (GIORDANE, 2010; GINGER & GINGER, 1995).

Ginger & Ginger (1995) ratificam que a Gestalt-terapia se utiliza dos conceitos
da fenomenologia também quando afirmam que o essencial é como a vivência
imediata é percebida e sentida corporalmente (aqui-agora); que a nossa
percepção de mundo e o meio em que estamos inseridos é “dominada por
fatores subjetivos irracionais”, que se torna diferente a cada olhar sobre o que é
olhado, tornando a experiência de cada um única e singular, não podendo ser
teorizada antecipadamente.

O método de exploração na Gestalt-terapia é através do campo


fenomenológico. Perls et al.(1997) destaca que na psicoterapia

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“instigamos as situações inacabadas na situação atual, e, por


meio da experimentação atual com novas atitudes e novos
materiais da experiência do dia-a-dia concreto, visamos uma
integração melhor”.

Assim, o suporte do cliente se torna mais firme e a awareness fica mais


disponível, possibilitando que as escolhas sejam feitas com responsabilidade e
autenticidade. Fenomenologicamente, a mudança ocorre conhecendo e
aceitando-se quem se é e como se é. Ser o que “é” e não tentar ser o que “não
é”. O objetivo é aprender e usar este fluxo de awareness (GIORDANE, 2010).

Ribeiro (1985) aduz que:

“Em termos de psicoterapia, tais reflexões nos levam a uma


postura de paciência diante do fenômeno-cliente. Caso se
preste atenção ao cliente como um todo, ele se auto-revela, ou
melhor, ele, em si, é uma auto-revelação permanente. Eu tenho
de me postar diante dele e, a partir dele, descrevê-lo
compreensivamente para mim e para ele próprio. O fenômeno,
enquanto essência que se revela, é o ponto de encontro da
relação com. É aí que cliente e psicoterapeuta se fazem
inteligíveis um para o outro, é aí que se encontram como
totalidade”. (p.48)

Outra grande contribuição para a Gestalt-terapia é a visão holística de homem


em que o mesmo é considerado um ser “biopsicossocial”, sempre influenciado
e influenciador do meio. Ou seja, é sempre levado em consideração o ser como
um todo e o meio em que está inserido. Nesta linha de pensamento, a Gestalt-
terapia adota o pensamento dialógico de Martin Buber que acredita que na
situação terapêutica são importantes tanto o cliente, quanto o terapeuta,
acreditando que a relação estabelecida também faz parte do fenômeno que
ocorre no campo e é de serventia para o processo (FRAZÃO, 1997 –
apresentação à edição brasileira do Gestalt-terapia de PERLS, HEFFERLINE E
GOODMANN).

Moreira (2009) acrescenta:

“Ao contrário de buscar as causas ou os porquês, a abordagem


gestáltica pretende captar como ocorre um dado fenômeno,
tomando- o em sua totalidade e buscando detectar em função
de quê se estrutura o todo, daí o termo gestalt, que significa
configuração, estrutura, tema, relação estrutural ou todo
significativo” (p. 5).

Buber (1974) apud Cardella (2002) afirma que o homem é um ser


fundamentalmente relacional e que esta relação acontece no “diálogo”, porém
a civilização moderna fomenta um narcisismo e isolamento do homem,
justamente por cada vez mais desvalorizar esta relação. O diálogo se dá no
“entre” e assim são possíveis estabelecer dois tipos de relação: EU-ISSO e EU-
TU

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No princípio EU-ISSO o semelhante é considerado como um objeto (não


necessariamente pessoas, e também as coisas do mundo) ou meio para atingir
um fim, metas e objetivos. Estas relações são necessárias, e alternam-se com
as EU-ISSO, porém esta é uma relação direta, sem representações, sem
papeis pré-definidos, onde o outro não é valorizado naquilo que tem de único
(FUKUMITSU, 2011; CARDELLA, 2002). “[...] o homem não pode viver sem o
ISSO, mas aquele que vive somente com o ISSO não é homem” (BUBER,
1974, p.39 apud CARDELLA, 2002, p. 37).

Já no princípio EU-TU o EU se realiza na relação com o TU. Ambos colaboram


para a construção desta relação em que não tem papeis definidos, é valorizada
a alteridade, a singularidade do outro, o que favorece uma profundidade,
reciprocidade na relação e a responsabilidade (habilidade de saber responder)
(CARDELLA, 2002; FUKUMITSU, 2011). “O mundo como experiência diz
respeito à palavra princípio EU-ISSO. A palavra princípio EU-TU fundamenta o
mundo da relação” (BUBER, 1974, p.6 apud FUKUMITSU, 2011, p.65).

A relação entre o terapeuta e o cliente é o aspecto mais importante do


processo terapêutico. O diálogo existencial proposto por Buber é uma das
bases do fazer gestáltico e é uma manifestação da perspectiva existencial do
relacionamento. (YONTEF, 1998). A Gestalt-terapia valoriza esses princípios e
toma como objetivo o engajamento de cliente e terapeuta para que se possa
estabelecer um encontro EU-TU

Fukumitsu (2011) ressalta:

“Concebo, pelos escritos de Buber, não ser possível


compreender o TU sem o EU. Assim como o ISSO sem o EU.
Falar e viver o EU é proferir o TU ou o ISSO. Para se viver o
EU em relação, é preciso experimentar, estar aberto e saber
que não estou na relação somente para explicá-la, mas, sim,
para vivê-la no presente. Tudo o que é essencial pode ser
vivido no presente, pois ao enfatizar o momento presente,
entendendo que em qualquer encontro que eu esteja
vivenciando, existirá algo que é diferente da soma total da
minha experiência e da experiência da outra pessoa” ( p.65).

Outra teoria utilizada como fundamento para a visão holística da Gestalt-terapia


é a Teoria Organísmica de Kurt Goldstein, de quem Perls foi assistente
no Instituto de Soldados Portadores de Lesões Cerebrais. Naquela ocasião,
estudavam as consequências comportamentais destas lesões a partir da
Psicologia da Gestalt de Wertheimer, Köhler e Koffka (MOREIRA, 2009).

A Teoria Organísmica propõe uma visão de homem como um todo unificado e


integrado, sem a separação mente-corpo, onde a busca pela organização é
natural ao organismo, ou seja, a auto regulação. Qualquer elemento deve ser
visto como parte do todo e qualquer alteração em uma das partes estará
afetando diretamente o todo (MOREIRA, 2009).

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O homem tem as potencialidades que regulam seu próprio crescimento, porém


é influenciado pelo meio, de onde ele seleciona e retira influências para estas
potencialidades, assim como o meio também pode forçar a pessoa a se
adaptar a fatos estranhos à sua natureza (RIBEIRO, 1985).

Fukumitsu (2011) ratifica que nessa relação do organismo com o meio há


vinculações estabelecidas em que o organismo está em processo de
equalização (busca pelo equilíbrio) para se auto-realizar. A partir desta
premissa básica de busca pelo equilíbrio, o Gestalt-terapeuta procura auxiliar o
cliente na nitidez de suas figuras, suas necessidades, limites e possibilidades,
enxergando-o como um todo inteiro buscando a melhor forma de auto-
realização e a melhor maneira de equilibrar sua tensão e redistribuir suas
energias nesta relação com o meio. Neste sentido, Frazão (1992) apud
Fukumitsu (2011) afirma que:

“(...) as queixas que o cliente traz representam aquilo que ele


pode se dar conta no aqui-e-agora. Esta queixa é a figura; é
como a ponta de um “iceberg”. É preciso que eu observe
atentamente a fim de compreender a relação entre esta
figura/queixa e o fundo. É preciso que eu compreenda o
sentido da queixa na totalidade da existência do cliente” (p.52)

Ou seja, entendemos que o sintoma trazido pelo cliente é uma forma de


integração entre organismo-meio, é sua forma de se equilibrar e cabe ao
Gestalt-terapeuta compreender que tentar “retirar o sintoma precocemente sem
ter algo para colocá-lo no lugar é torná-lo ‘manco’, pois o sintoma também o
significa” (FUKUMITSU, 2011, p.53)

A Gestalt-terapia se utiliza também da Teoria de Campo que segundo Lewin


(1965) apud Yontef (1998) é

“O comportamento é uma função do campo, do qual ele é


parte, ele não depende nem do passado e nem do futuro, mas
do campo presente. Este campo presente tem uma
determinada dimensão tempo, inclui o passado psicológico, o
presente psicológico e o futuro psicológico, que constituem
uma das dimensões do espaço de vida existindo num
determinado momento.” (p.193)

Outra explicação é também a de Kofka (1975) apud Fukumitsu (2011):

“O campo e o comportamento de um corpo são correlativos.


Como o campo determina o comportamento dos corpos, esse
comportamento pode ser usado como indicador das
propriedades de campo” (p.50)

Na abordagem de campo da Gestalt-terapia tudo é visto como um vir a ser, ou


seja, nada é estático e tudo está propenso a mudar a cada instante, onde o
meio e os indivíduos são influenciadores e influenciados. O campo é a pessoa
no seu “espaço vital” - Rodrigues (2000) aduz que este conceito foi

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desenvolvido por Lewin (1965 e 1975); Fadiman e Frager (1979); e também


Ribeiro, (1985, p.94 em diante).

O conceito de campo enfatiza a relação que existe entre a pessoa e o meio,


logo o cliente é considerado um campo que abrange diversas necessidades e
valências. Psicoterapeutas são outra parte do campo também com suas
necessidades e valências. A relação terapêutica acontece quando os campos
interagem concomitantemente, sendo necessário saber as alterações que
ocorrem no mesmo (FUKUMITSU, 2011).

A referida autora ressalta, citando Ribeiro (1985), que compreender o cliente


como campo é percebê-lo em sua totalidade e entender que ele faz parte de
um espaço vital. Este espaço vital é dividido em meio geográfico e meio
comportamental: o meio geográfico é caracterizado como fundo para
fenômenos acontecerem, ou seja, o meio comportamental (p.97-107). O meio
comportamental é mais abrangente, onde demonstra seus comportamentos,
seus processos internos e externos que geram tensão e demandam satisfação.
“O cliente revela-se como corpo de energia, força, movimento e direção”.

Logo, o objetivo da psicoterapia gestáltica correlacionada com a teoria de


Campo é proporcionar ao cliente equilíbrio e reestruturação de seu espaço
vital, através da compreensão de suas necessidades e a satisfação das
mesmas, com permeabilidade e fluidez entre o meio geográfico e o psicológico
(FUKUMITSU, 2011).

Rodrigues (2007) apud D’acri et al (2007) adicionam que a Teoria de Campo é


de serventia também à prática clínica, onde se utilizam experimentos e/ou
trabalhos psicodramáticos, ajudando o cliente a traduzir questões afetivas,
inter-relacionais de uma forma mais precisa em que o mesmo consegue
expressar mais verdadeiramente aquilo que está sentindo e assim pode ser
mais bem ajudado pelo psicoterapeuta.

A Gestalt-terapia é influenciada também pela Psicologia da Gestalt, que apesar


de nomes semelhantes, se diferem em vários aspectos. Esta teoria traz o
conceito de que a natureza humana é organizada em partes ou todos, e que a
mesma só pode ser compreendida através das correlações de ambos. (PERLS,
1985). “O todo é uma realidade diferente da soma de suas partes”.3 Perls et al
(1997, p.52) acrescenta que

“tem de se respeitar a totalidade de fenômenos que surgem


como todos unitários, e que estes só podem ser analiticamente
divididos em pedaços ao preço da aniquilação daquilo que se
pretendia estudar”.

3
Frase enfatizada por Christian von Ehrenfels (1859-1932), que continuou os estudos
dos fundadores da escola de Psicologia da Gestalt, Kurt Koffka (1886-1941) e Wolfang
Köhler (1887-1967) (GINGER&GINGER,1995)

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Terapeuta e cliente devem estar sempre atentos ao todo que emergem em


dadas situações. Olhar apenas para uma das partes faz com que a
compreensão do fenômeno não seja completa.

A partir disto, a teoria da Gestalt tem o conceito de figura-fundo que trata da


questão de eleição de necessidades. Estamos a todo o momento elegendo
figuras a serem saciadas que tem por trás um fundo e de acordo com as
necessidades o fundo pode tornar-se figura e vice-versa. (RODRIGUES, 2009)

Na subjetividade da percepção a escolha pode ser consciente ou inconsciente


do que para aquela pessoa aparece como figura ou fundo. O processo de
formação de figura-fundo é dinâmico, o organismo seleciona e desenvolve
formas próprias de auto-conservação. Qualquer fenômeno observado nunca é
uma realidade objetiva em si. A figura depende do fundo sobre o qual aparece;
o fundo serve como uma estrutura ou moldura em que a figura está
enquadrada ou suspensa, e, por conseguinte, determina a figura (RIBEIRO,
1985). A partir disto Perls et al, 1997, afirma que:

“(...) como psicoterapeutas que se alimentam da Psicologia da


Gestalt, investigamos a teoria e o método da awareness
criativa, a formação figura-fundo como sendo o centro coerente
dos discernimentos eficazes, mas dispersos, a respeito do
‘inconsciente’ e da noção inadequada de ‘consciente’” ( p.53)

Ginger & Ginger (1995) acrescentam que:

“todo campo perceptivo se diferencia em um fundo e em uma


forma. A forma é fechada, estruturada. É ela que o contorno
parece pertencer. Não podemos distinguir a figura sem um
fundo: a Gestalt-terapia se interessa por ambos, mas,
sobretudo, por sua inter-relação.” (p.38)

Através deste conhecimento das formas, há a referida eleição de figuras


dominantes que naquele dado momento permite a satisfação de uma
necessidade e assim o fluxo não pára na alternância de figura e fundo.

Para a Gestalt-terapia um bom fluxo desses ciclos de figura-fundo são


considerados estados de “boa saúde”, ou seja, a psicoterapia incentiva que a
pessoa faça a formação de formas flexíveis, adaptadas ao meio em que estão
inseridas, fazendo ajustamentos criativos permanentes. Sendo assim, a
Gestalt-terapia é considerada uma “arte da formação de boas formas”
(GINGER & GINGER, 1995).

Os autores concluem que “qualquer fenômeno observado nunca é uma


realidade objetiva em si, mas uma inter-relação global entre o próprio
fenômeno e seu meio momentâneo – portanto, o observador”.

Outro conceito chave na Gestalt-terapia é o Contato e suas funções: contato é


o limite entre a pessoa e o meio em que está inserida. A Gestalt-terapia se
utiliza muito destes conceitos, pois como vê o ser humano em sua totalidade, o

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contato pode ser feito de diversas maneiras: juntamente com as funções de


contato (audição, tato, etc.) há possibilidades de superespecialização de
algumas funções e dificuldade em outras, sempre influenciadas e influenciando
o campo em que estão inseridas (RODRIGUES, 2009). “É através destas
funções que podemos estabelecer contato de boa qualidade, organizar boas
fugas, ou interromper e obstruir o contato” (CARDELLA, 2002).

Fukumitsu (2011) afirma que é através do contato que a pessoa pode separar-
se e unir-se, lidar com o que é saudável ou tóxico nas suas singulares
experiências. Cardella (2002) acrescenta que o indivíduo vive na fronteira de
contato superando obstáculos, defendendo-se dos perigos, assimilando, ou
não, o novo, e assim, através deste movimento de aproximação e retração, o
indivíduo satisfaz suas necessidades.

Perls, Hefferline e Goodman (1997) afirmam que:

“Contato é o trabalho que resulta em assimilação e crescimento


é a formação de uma figura de interesse contra um fundo ou
contexto do campo organismo/ambiente. A figura (gestalt) na
awareness é uma percepção, imagem ou insight claros e
vívidos; no comportamento motor, é o movimento elegante,
vigoroso, que tem ritmo, que se completa etc. em ambos os
casos, a necessidade e energia do organismo e as
possibilidades plausíveis do ambiente são incorporadas e
unificadas na figura” (p.45)

Ainda segundo os autores acima:

“a psicologia estuda a operação da fronteira de contato no


campo organismo/ambiente. [...] Quando dizemos “fronteira”
pensamos em uma “fronteira entre”; mas a fronteira-de-contato,
onde a experiência de lugar, não separa o organismo e seu
ambiente; em vez disso limita o organismo, o contém e protege
ao mesmo tempo em que contata o ambiente”. (p.43)

Cardella (2002) diz que o contato é considerado fundamental (além da


formação de gestalt e da awareness), pois é através deste que há o processo
de auto regulação organísmica e ajustamentos criativos, ou seja, é onde o
indivíduo se diferencia do semelhante, elege a figura emergente a ser
satisfeita, retrai-se na ameaça, depara-se com o desconhecido, encontra
suporte no conhecido, ou seja, está em constante alternância, crescendo ou se
auto preservando. Contato é “achar e fazer a solução vindoura” (PERLS et al,
1997).

O ajustamento criativo funcional, segundo Perls et al (1997) é a transição


sempre renovada entre a novidade e a rotina que resulta em assimilação e
crescimento. Logo a Gestalt-terapia estuda a interrupção, inibição ou outros
acidentes no decorrer do ajustamento criativo disfuncional, que mais adiante
chamaremos de ajustamentos neuróticos ou evitativos.

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Ciornai (1995) apud Cardella (2002) ressalta que nem sempre o ajustamento
criativo leva a processos saudáveis e de crescimento. O indivíduo se ajusta
criativamente da melhor maneira que consegue no dado momento, mesmo
quando este ajustamento tem forma de sintoma e traz sofrimento para o
mesmo. A psicoterapia é de grande serventia para estes momentos.

3. TEORIA DO SELF E GESTALT-TERAPIA

O self para a Gestalt-terapia é, segundo Perls et al (1997):

”O sistema de contatos em qualquer momento. Como tal o self


é flexivelmente variado, porque varia com as necessidades
orgânicas dominantes e os estímulos ambientais prementes
[...]; o self é a fronteira de contato em funcionamento; sua
atividade é formar figuras e fundos [...] É o artista da vida. É só
um pequeno fator na interação total organismo/ambiente, mas
desempenha o papel crucial de achar e fazer os significados
por meio dos quais crescemos.” (p.49)

Yontef (1998) acrescenta que “não existe ‘núcleo’ ou ‘self’ separado de um


campo organismo/meio e nenhum meio humano sem os processos que
usualmente caracterizamos como internos”.

Ou seja, não há como pensar no self como uma unidade fixa e sem considerar
o meio em que o indivíduo está inserido. O self é o todo que a pessoa
representa num dado momento, com alternância de figuras e fundos e
ajustamentos criativos que estão se transformando a todo instante.

Com isto, é possível compreender a noção de saúde/doença para a Gestalt-


terapia. Perls et al (1997) abordam sobre identificações e alienações do
sistema self. Quando a pessoa se identifica com o seu self em formação, não
impede seus excitamentos, não aliena aquilo que é organicamente seu e busca
o contato para a solução vindoura, pode-se considerá-la “psicologicamente
sadia”, conseguindo estar aware espontaneamente dos seus pensamentos,
percepções, sensações e ações.

Já a noção de self “não sadio” é quando o indivíduo se aliena de seus próprios


excitamentos, tem identificações falsas com o self, gerando confusão e
sofrimento. Perls et al (1997) chama este sistema de identificações e
alienações de “ego”.

A prática gestáltica se dá exatamente em ajudar a pessoa, treinando o ego com


as oscilações entre identificações e alienações, fazendo assim com que ela
sinta o controle do que está fazendo, percebendo, sentindo e agindo
espontaneamente.

Perls et al (1997) afirma que o self é espontâneo e caracteriza essa


espontaneidade como o sentimento de estar agindo no organismo/ambiente

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não apenas como artesão ou artefato do mesmo, mas se utilizando do mesmo


como meio de crescimento.

3.1 Funções do self

Müller-Granzotto & Müller-Granzotto (2007) afirmam que as funções do self (id,


ego e personalidade) são divididas didaticamente, porém são consideradas
como três pontos de vista diferentes acerca de determinada experiência sobre
o self em funcionamento, que não é ativo, nem passivo e não tem estruturas
fixas e estáveis. Fukumitsu (2011) afirma que para o self ser coeso é preciso
que estas três funções estejam em harmonia.

Ginger & Ginger (1995) destacam que a cada etapa do sistema self, o mesmo
funciona de acordo com as figuras que emergem do fundo:

Pré-contato: é uma fase de sensações onde a percepção é sentida no corpo


que torna-se figura de acordo com o dado na fronteira de contato.
Contato: funciona de acordo com a função ego, ou seja, é uma fase ativa em
que o organismo se depara com o meio. Diante do que se doa da função id
(excitamentos) é possível que o self escolha ou rejeite o que se apresenta para
a fronteira de contato.

Contato final: também chamado de contato pleno, onde organismo e meio


estão fundidos, a ação é unificada no aqui-agora e há coesão entre a
percepção, emoção e movimento.

Pós-contato ou retração: é a fase final em que há a assimilação e o


crescimento, onde o self funciona na função personalidade integrando a
experiência com a vivência, estando novamente disponível para outras figuras
e consequentemente para outras ações.

3.1.1 Função ego e Ajustamentos Neuróticos ou evitativos

A função ego – chamada também de função eu, ou função de ato4 - é ativa e


deliberada, sensorialmente alerta e motoricamente agressiva. Perls et al (1997)
explicam que esta função é ativa, pois existe a sensação de ato sobre a
experiência, pois o “self está identificado com o interesse ativo selecionado, e
dá a impressão, a partir desse centro, de ser um agente extrínseco ao campo”.

Perls et al (1997) afirmam que na verdade, por esta função ser a de


deslocamento no campo, a realidade não é necessariamente vivida com
espontaneidade, mas selecionada ou excluída de acordo com o que
deliberamos. Isso causa a sensação de usar e dominar, ao invés de descobrir e
inventar determinada experiência. Ginger & Ginger (1995) ressaltam que é da

4
MULLER-GRANZOTTO (2007)

Revista IGT na Rede, v. 11, nº 20, 2014, p.193 – 241. Disponível em http://www.igt.psc.br/ojs
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BARROS, Marina Nogueira de - O psicoterapeuta invisível: reflexões sobre a prática
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própria responsabilidade da pessoa limitar ou aumentar o contato, manipulando


o meio e tomando atitudes de acordo com as necessidades.

Müller-Granzotto & Müller-Granzotto (2007) acrescentam que cada deliberação


é a sinalização da existência de uma orientação que parte de um fundo de
excitamentos, mas que nem sempre se revela em sua totalidade e resta
sempre algo a descobrir, e a ação quer ser esta resposta.

A referida deliberação pode ser tanto um ato de satisfação dos excitamentos no


campo, mas também uma alienação como mecanismo de evitação destes
excitamentos em detrimento de um arranjo físico-fisiológico ou sociocultural.
Neste momento é que o self faz a ação e assim, atinge o contato final.

Os autores concluem que a função ego é a

“vivência do contato em seu sentido mais estrito. Afinal, se o


contato é a retomada de uma história segundo uma orientação
inédita, porquanto é o ego quem descobre e inventa a
diferença, é ele o agente mor do contato”.

Determinados atos de deliberação se repetem habitualmente para apaziguar


situações inacabadas e os contatos espontâneos são esquecidos. A isso
damos o nome de ajustamentos neuróticos ou evitativos. “A neurose é a perda
das funções de ego para a fisiologia secundária, sob a forma de hábitos
inacessíveis”. (PERLS et al, 1997).

Por esse comprometimento da função ego, o indivíduo faz ajustamentos


neuróticos, pois seus excitamentos trazem a mensagem, na forma de
ansiedade, de perigo, ameaça e não pertencimento ao meio. Assim, o ego tem
parte de sua energia voltada para a repressão destes excitamentos, causando
assim uma interação disfuncional com o meio. O indivíduo não é neurótico,
mas está fazendo ajustamentos neuróticos (Idem).

Müller-Granzotto & Müller-Granzotto (2007) destacam que para tentar


interromper este estado de ansiedade, a inibição reprimida assume as funções
do ego e assim formam-se os ajustamentos neuróticos: confluência, introjeção,
projeção, retroflexão e egotismo.

A confluência é uma forma de bloqueio do excitamento antes que o mesmo se


apresente na fronteira de contato, ou seja, a mesma fica dessensibilizada, pois
há um fundo ausente (interrupção do pós-contato) que não pode ser
correlacionado com o dado apresentado devido a tal bloqueio. Essa inibição
desenvolve uma atitude de paralisia muscular, recusa a tudo o que é novo e
prende-se a hábitos antigos. Sendo assim, o self está em um estado de vazio,
o que provoca uma alienação onde encontra possibilidades apenas no
semelhante, que lhe serve de modelo e que estas não são sentidas como suas.

A satisfação possível na confluência é a diminuição da ansiedade e uma


espontaneidade aleatória quando “flui com” os semelhantes, trazendo

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segurança. No ajustamento confluente o cliente pede ao terapeuta que seja


seu modelo, que lhe dê respostas àquilo que ele não consegue acessar em si
mesmo.

Na introjeção o dado na fronteira de contato é figura de um fundo de ansiedade


e excitamentos inibidos. Assim, ocorre uma obstrução no pré-contato e a
estratégia para evitar o contato com o excitamento seria substituí-lo por uma lei
simbólica estabelecida no meio social. Ou seja, o afeto é invertido e o meio
social oprime o excitamento na fronteira de contato que é resignado pelo
indivíduo. A satisfação possível na introjeção é o masoquismo. A demanda ao
terapeuta é de que o mesmo seja a lei.

A projeção é uma forma de evitação onde o indivíduo, ao se deparar com o


dado na fronteira de contato, se desimplica do que está acontecendo e projeta
no semelhante as responsabilidades do dado. “A inibição reprimida fantasia o
confronto com as situações ansiogênicas, mas na ‘pele’ do semelhante” (Perls,
Hefferline e Goodman, 1997) A satisfação possível na projeção é que no
confronto com o excitamento é preenchido com fantasias. Demanda para o
terapeuta que o mesmo seja o réu.

No ajustamento retroflexivo não há evitação da ansiedade, porém o conflito


entre o excitamento reprimido e a inibição represada é vivido intensamente e
assim há uma destruição do próprio self. A satisfação possível na retroflexão é
o sadismo ativo e demanda ao terapeuta cuidado.

O egotismo é uma tentativa de interromper o contato final substituindo-o por


uma nova possibilidade. Há uma hipertrofia do ego e uma desvalorização do
meio, porém esta é uma forma de evitar frustração, confusão e o medo de ser
abandonado. A satisfação possível no egotismo é de vaidade e demanda que o
terapeuta o admire, seja seu fã.

Perls, Hefferline e Goodman (1997) explica que a clínica gestáltica consiste


em:

“[...] mudar as condições e proporcionar outros fundos de


experiência até que o self descubra-e-invente a figura: ‘Eu
estou evitando deliberadamente este excitamento e exercendo
esta agressão’. Poderá então prosseguir de novo em direção a
um ajustamento criativo espontâneo” (p.236).

3.1.2 Função personalidade e Ajustamentos aflitivos

A função personalidade é caracterizada pelas representações que o indivíduo


faz das experiências de contato, ou seja, é uma réplica verbal do self pelo qual
tentamos explicar aquilo que somos através dos nossos comportamentos e
daquilo que vivemos (PERLS et al, 1997). Os excitamentos do ego são
projetados em um horizonte de futuro, que também é uma característica desta
função (MÜLLER-GRANZOTTO & MÜLLER-GRANZOTTO, 2007).

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É através da função personalidade que o self desenvolve os valores éticos, a


vida moral, e os diversos modos de conhecimento, como, por exemplo, o
filosófico, científico e religioso. O self pode replicar-se e reproduzir-se a todo
instante, e na função personalidade há a consciência imaginária disto. A função
personalidade é constantemente invadida pelo não contato dos hábitos e
ultrapassada pela criação das funções de ego (MÜLLER-GRANZOTTO &
MÜLLER-GRANZOTTO, 2007).

Perls, Hefferline e Goodman (1997) acrescentam que quando o indivíduo faz


formas neuróticas, a função personalidade é recheada de conceitos errôneos
sobre si mesmo, como introjetos, ideais de ego, máscaras etc. Logo, quando o
indivíduo está em terapia, o mesmo passa a ter uma série de atitudes
compreendidas e vivencia isto em suas relações interpessoais. Como a função
personalidade é transparente e totalmente conhecida, pois o sistema foi
conhecido e compreendido, o indivíduo vivencia isto: “em terapia, é a estrutura
de todas as descobertas do tipo ‘ah, saquei! ’”.

Müller-Granzotto & Müller-Granzotto (2012) ratificam que a função


personalidade é também a forma que o indivíduo encontra de se espelhar no
outro social, onde se sente amparado, reconhecido e, ao mesmo tempo,
incumbido de responsabilidade, logo há uma visão antropológica desta função
de self:

“Ademais, a acolhida da ética aos nossos excitamentos e o


espaço político para que possamos desempenhar nossos
desejos são sempre tributários da presença de alguns
representantes do outro social, como são os amigos, os
terapeutas, e, inclusive, os inimigos. O que nos permite
concluir, com base em PHG, que é apenas nos termos da
função personalidade que a experiência do contato adquire um
“sentido” ético-político e antropológico” (p.283)

Quando ocorre o comprometimento da função personalidade, o indivíduo faz


ajustamentos aflitivos. Perls et al (1997) não aprofundaram este conceito que
denominaram “misery”, mas iniciaram dizendo que o ajustamento aflitivo seria
uma falha no sistema espontâneo self, ocorrendo uma falha na experiência do
contato, e assim o mesmo pára de produzir a função personalidade.

O self não pára de funcionar, continua se ajustando criativamente, porém esta


forma ocorre nas situações em que se pode verificar um

“sofrimento ético-político, [que] tem relação com a


solidariedade, com os pedidos genuínos de inclusão, na forma
da qual efetivamente atribuímos e reconhecemos o poder do
semelhante para nos ajudar.” (MÜLLER-GRANZOTTO &
MÜLLER-GRANZOTTO, 2009).

O ajustamento aflitivo se dá quando o indivíduo não sabe e nem encontra


maneiras de lidar com o dado na fronteira de contato, logo é preciso a ajuda do
semelhante para tal, ou seja, é tão-somente a vivência da impossibilidade da

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identificação à determinada personalidade. Müller-Granzotto & Müller-


Granzotto (2012) citam algumas situações em que (frequentemente) isto pode
ocorrer: nos múltiplos conflitos sociais (econômicos, políticos, étnicos,
religiosos...), os acidentes, fatalidades, emergências, adoecimentos somáticos,
crises reativas, surto psicótico, as situações de exclusão social por conta das
violências de gênero e prisional, dos preconceitos e conflitos ideológicos e
subordinação ao totalitarismo do estado de exceção.

Aqui, estamos chamando os ajustamentos aflitivos de sofrimento ético-político


e antropológico, porém, é importante “não confundirmos o sofrimento ético-
político e antropológico propriamente dito com os fenômenos que o possam
desencadear, àquelas situações que podem partir desta experiência”, mas que
deixa o indivíduo no lugar de precisar da ajuda do semelhante, pois sozinho
não está dando conta (MÜLLER-GRANZOTTO & MÜLLER-GRANZOTTO,
2009).

A intervenção clínica nestes ajustamentos aflitivos é na direção de escutar e


tentar encontrar juntamente com o indivíduo qual a sua necessidade naquele
momento, mostrar e tentar ajudar o indivíduo a reconhecer no semelhante
alguém que pode lhe ajudar, acompanhar o processo de resgate da autonomia
para que possa fazer novos ajustamentos criadores (MÜLLER-GRANZOTTO &
MÜLLER-GRANZOTTO, 2009).

O fazer clínico neste momento não fica no lugar de assistência social, mas
como uma facilitação para que o indivíduo treine e amplie sua autonomia da
função de ego. Müller-Granzotto & Müller-Granzotto (2012) reafirmam que o
clínico é co-participante em uma nova forma de ajustamento criador da pessoa
que está em sofrimento, afinal, mais do que sofrer as consequências de uma
fatalidade ou da exclusão social, é genuinamente pedir ajuda ao semelhante.
“Ademais, a intervenção gestáltica nunca é normativa. Ela não visa “defender”
ou “criticar” uma ideologia especificamente. Trata-se de ajudar alguém a
compreender e fazer sua opção.” (MÜLLER-GRANZOTTO & MÜLLER-
GRANZOTTO, 2009).

3.1.3 Função Id e Ajustamentos Psicóticos ou de Criação

Perls (1981) afirma que:

“[...] O psicótico tem uma camada de morte muito grande, e


essa zona morta não consegue ser alimentada pela força vital.
Uma coisa que sabemos ao certo, é que a energia vital, [...]
energia biológica torna-se incontrolável no caso da psicose [...]
o psicótico nem mesmo tenta lidar com as frustrações; ele
simplesmente as nega, comportando-se como se elas não
existissem” (p.20)

Para falarmos dos ajustamentos psicóticos ou ajustamentos de criação, é


necessário entender primordialmente a função Id, já que segundo Perls,

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Hefferline e Goodman (1997) é nela que encontramos a gênese destes


ajustamentos.

A função Id é entendida como o fundo de vividos do sistema self em que ficam


retidos, excitamentos orgânicos, situações passadas, inacabadas. O ambiente
é percebido de maneira vaga, ou seja, é o meio de contato da atualidade
material na fronteira de contato com a inatualidade temporal, podendo ser vista
como uma retenção ou uma repetição. A retenção é considerada quando são
retidas experiências como forma de hábito, sem conteúdo mais aprimorado. Já
a repetição é este hábito reeditado funcionando como orientação tácita da vida
atual. “Id então surge como sendo passivo, disperso e irracional; seus
conteúdos são alucinatórios e o corpo se agiganta enormemente” (PERLS et al,
1997, p. 187).

O id é um todo espontâneo em sobre o qual não temos controle sobre e que


nos torna impossibilitados de nos desligarmos do mundo, visto que é nele que
ficam as experiências “invisíveis”, que hoje podem não fazer sentido, mas
estão ali cravadas e imantadas à fronteira de contato a qualquer instante. Para
Müller-Granzotto & Müller-Granzotto, (2007)

“A função id também inclui o fato de essas formas serem


capazes de imprimir, às nossas experiências cotidianas, uma
espécie de orientação intencional (awareness) que se
sobrepõe ao nosso controle judicativo, como se fosse um
excesso que nunca conseguimos deter ou controlar” (p.8).

Mediante estas informações acerca da função Id, entende-se que os


ajustamentos de criação se dão por uma “aniquilação de parte da concretude
da experiência” (PERLS et al, 1997), ou seja, um comprometimento em uma
das funções elementares da função id. É também uma fixação do self, onde a
função ego não encontra meios de lidar com o dado na fronteira de contato
devido ao comprometimento, paralisação desta função (MÜLLER-
GRANZOTTO & MÜLLER-GRANZOTTO, 2012).

Os autores explicam que esta “rigidez (fixação)” citada por Perls et al (1997) da
função id ocorre quando o indivíduo sente-se demandado de alguma forma
(quando nós, como clínicos, por exemplo, dirigimos questões a ele a serem
respondidas); quando muitos excitamentos se doam; ou quando nada se doa.
O cliente precisa fixar-se em algum dado de realidade para poder suportar a
angústia que esta doação/não-doação de excitamentos (“presença ambígua de
excitamentos” ou awareness sensorial) acarreta a ele. É possível perceber esta
rigidez diante dos comportamentos genericamente descritos pela psiquiatria
clássica.

Lavratti (2012) diz que Sérgio Buarque, em seu verbete no livro “Gestaltês”
afirma que a Gestalt-terapia se utiliza dos conceitos da psiquiatria clássica para
nomear os “sinais e sintomas” apresentados pelo cliente, porém estes “sinais e
sintomas” são vistos de forma autêntica e genuína, do campo da
intersubjetividade, mesmo que de forma ilógica e irracional. Acredita-se que

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cada “psicose” é vivida de forma singular pelo indivíduo - até mesmo os surtos
psicóticos não acontecem da mesma forma com a mesma pessoa - que está
imerso em um contexto que deve ser levado em consideração. Evitar ou
ignorar estas criações é o mesmo que anular uma relação terapêutica criativa.

Esse comprometimento da função Id se dá de duas maneiras: os excitamentos


ou não são assimilados e, nesse sentido, retidos como fundo de vividos; ou,
uma vez assimilados, não se integram entre si, de modo a também não se
constituírem como fundo para os novos dados na fronteira de contato. Ou seja,
as experiências podem não ser abandonadas, ou então, quando retidas, não
há uma forma espontânea de se doarem e agirem como orientação intencional
(ou afetiva) para as demandas na fronteira de contato. (MÜLLER-GRANZOTTO
& MÜLLER-GRANZOTTO, 2007).

As causas do comprometimento da função id ainda são muito estudadas,


porém existem hipóteses como aponta Lavratti (2012): origem genética,
consequências de uma má oxigenação do córtex cerebral no momento do
parto, algum vírus que possa ultrapassar a barreira hematoencefálica, o uso
abusivo de substâncias psicoativas, pela ausência ou presença ostensiva de
um cuidador ou pela falta de um limitador no campo como parâmetro de
criação de fronteira de inserção com o semelhante.

Mesmo com este comprometimento da função id, o self não pára de funcionar.
Ou seja, quando isto acontece, o sistema self cria algo diante do dado na
fronteira de contato correlacionado com aquilo que ele não pôde reter ou
espontaneamente responder à demanda. Essa criação vem para substituir os
excitamentos que diante da demanda, ou não havia retenção no fundo de
vividos, ou foi retido de maneira falha ou desarticulada. É neste momento que o
indivíduo delira, alucina ou se ausenta totalmente diante da demanda na
fronteira de contato. Müller-Granzotto & Müller-Granzotto (2012) ratificam que
“a psicose é uma resposta social às demandas por excitamento em ocasiões
em que eles não vêm ou vêm em excesso”.

Os ajustamentos de criação podem ser divididos de três formas: ajustamentos


de preenchimento de fundo, ajustamentos de articulação de fundo e
ajustamentos de defesa contra a demanda ou isolamento (autismos).

3.1.3.1 Ajustamentos de Preenchimento de fundo

Nestes ajustamentos os excitamentos não são retidos no fundo de vividos, logo


o sistema self precisa preencher este vazio de excitamentos, ocasionando os
sintomas melhor explicados abaixo.

Müller-Granzotto & Müller-Granzotto (2012) explicam que nestes ajustamentos


o indivíduo não tenta aniquilar o dado na fronteira de contato, porém ele
responde à demanda com uma criação, neste caso, as alucinações (auditivas,
visuais, cinestésicas e verbais) que não têm qualquer êxito social, pois são
extremamente bizarras. Estas alucinações são formas que os indivíduos

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encontram na realidade de substituir o excitamento que não se doou ou uma


forma de preencher o fundo com fragmentos de realidade, para ficar no lugar
dos excitamentos.

Lavratti (2012) acrescenta:

“O que não está retido aqui; o não disponível tem relação com
os hábitos de linguagem, com as formas retidas a partir das
vivências de contato instituídas pela linguagem,
especificamente pelas vivências culturais em que se busca
levar, para o campo simbólico, os excitamentos primitivos
originalmente vividos de maneira intuitiva. A maneira como
simbolizamos e nomeamos nossas vivências de
intercorporalidade primária. Parece não haver uma
possibilidade de estabelecer códigos consensuais de
linguagem acerca daquilo que é vivenciado com o semelhante”
(p.64)

As alucinações, do ponto de vista dos que a observam, são consideradas


bizarras, pois não fazem sentido e não tem conexão com a realidade, porém
esta percepção em nada ajuda o processo clínico, pois desmerece aquilo que o
indivíduo está vivenciando e nem sempre o mesmo quer abandonar estas
alucinações. Ou seja, as alucinações também cumprem uma função social,
pois é a forma que o indivíduo encontrou para responder às demandas, mesmo
com a ausência dos excitamentos e assim, simular aos demandantes que os
excitamentos existem.

Müller-Granzotto & Müller-Granzotto (2012) acrescentam que a intervenção


clínica com os ajustamentos de preenchimento é primeiramente não demandar
nada do cliente. Outro ponto importante é acolher os conteúdos alucinatórios e
usá-los a serviço do processo terapêutico, como uma espécie de “jogo”, uma
“atividade” onde se estabelece uma forma de socialização entre terapeuta e
cliente. É importante ressaltar que a alucinação trazida pelo cliente é um indício
da autonomia de sua função de ato, a qual deve ser protegida e ampliada, na
medida do possível, na condição de um “jogo” social viável.

A partir desta socialização é possível estabelecer-se o vínculo cliente-


terapeuta, e abre-se o espaço para escuta e identificações das demandas
direcionadas ao cliente. Assim, é de extrema importância tentar neutralizar
estas demandas sendo uma forma eficaz a consolidação da rede social com a
família para que a mesma possa ajudar na diminuição destas demandas e
aprenda a usar estratégias para lidar com a inclusão das alucinações de uma
forma mais lúdica.

Quando estas estratégias são utilizadas de forma eficaz, cria-se a possibilidade


de dar validade à função eu no cliente, ampliando a contratualidade social dos
ajustes por ela produzidos e deixando de ter um caráter meramente
alucinatório. (LAVRATTI, 2012).

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3.1.3.2 Ajustamentos de articulação de fundo

Müller-Granzotto & Müller-Granzotto (2012) afirmam que nestes ajustamentos


não há ausência de excitamentos diante das demandas. A hipótese é que os
excitamentos estão disponíveis, porém de forma excessiva e desarticulada, ou
seja, o fundo de vividos não se apresenta de forma articulada e integrada com
o dado na fronteira de contato. A abundância de excitamentos é tanta, que há
várias possibilidades de resposta ao demandante, não havendo a possibilidade
de reconhecer uma dominância, fazendo com que pareça que existem vários
fundos de vividos, ao invés de um só. A função de ato não consegue decidir-se
por um excitamento, nem tampouco ser passiva e deixar-se levar por um
destes. Assim, a função de ato não tem trégua de excitamentos disponíveis e
quer, mais uma vez, fixar-se na realidade:

“A realidade, nesse sentido, é utilizada como se ela mesma


fosse um objeto de desejo, ou essa totalidade indeterminada
que ultrapassa os objetos da realidade. Ou, ainda, a função de
ato articula os objetos da realidade entre si, como se essa
articulação fizesse as vezes da indeterminação que caracteriza
os objetos de desejo. Porém, como tal articulação não
consegue transcender a esfera dos objetos da realidade, não
há indeterminação de fato. Não há lugar para a dúvida, para a
curiosidade ou interesse do interlocutor. Tudo fica
estreitamente determinado pelo uso que a função de ato faz
dos objetos da realidade, como se o desejo não existisse”
(p.195)

Lavratti (2012) relata que nos ajustamentos de articulação o indivíduo acredita


que as fantasias são a realidade ou que a realidade é a sua fantasia. Sendo
assim, a função de ato estabelece duas estratégias de organização diferentes:
as alienações em contrapartida, as identificações.

a) Ocorre a alienação quando há o descolamento dos atos sociais ou


demandas (aos quais os excitamentos foram atribuidos) em favor de
alguém ou de alguma coisa concreta na realidade social

A função de ato pode fragmentar o dado de maneira delirante em múltiplas


partes como uma forma de poder atribuir a cada uma delas os múltiplos co-
dados que se apresentaram. Neste caso, apresenta-se o “delírio dissociativo”,
ou despersonificação;

Pode também buscar unificá-los, junto ao dado que se apresenta enquanto um


semelhante ameaçador, Neste sentido, deve ser excluído “delírio associativo”,
ou paranóia.

b) Ocorre a identificação quando a função de ato (eu) pode então


“identificar-se” com os atos sociais - demandas aos quais atribuiu os
excitamentos, sendo divididas em Identificação negativa: a função de ato
apresenta-se como um objeto morto, busca uma identificação a um ato

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que representa a morte e, por extensão, a impossibilidade de ser atingido


por um excitamento, por exemplo, a melancolia;

Identificação positiva: a função de ato (ego) intenciona, nos atos sociais, uma
sorte de ampliação ao infinito do sistema, o que lhe permite sustentar todos os
excitamentos, como por exemplo, os casos de mania.

Müller-Granzotto & Müller-Granzotto (2012) sugerem que a intervenção nos


ajustamentos onde há alienação e dissociação delirante seja de mostrar ao
cliente que ele tem um espaço favorável e possui diversas alternativas para
poder continuar caminhando e buscando novas formas de alienar seus
excitamentos, sabendo que ele pode substituir as alienações por outras mais
cabíveis a determinado momento. Assim, ele pode amenizar a angústia que
sente diante da excessiva doação de excitamentos à fronteira de contato e
tentar colocar limite para que esta doação seja, no mínimo, suportável.

Já na intervenção onde há alienação com delírio associativo ou


despersonificação cabe ao terapeuta mostrar ao cliente que o seu delírio é
importante para poder, mais adiante, o cliente conseguir conhecer o que lhe
ameaça e trabalhar com isto de uma forma mais unificada, facilitando para que
o terapeuta possa caracterizar para seu cliente o valor da representação social
deste delírio. Assim, o cliente começa a saber mais de si e pode encontrar
soluções para suas construções.

Na intervenção onde há identificação negativa o terapeuta intervém de maneira


que o cliente possa fazer o “luto” das experiências que ele julga ter fracassado,
dos atos que não se articularam para ele como um todo de sentido. O cliente
precisa despedir-se dessas experiências para assim, a função de ato tornar-se
disponível a novos dados e excitamentos, mesmo que desarticulados.

Já a intervenção onde há identificação positiva lida com limites: como o cliente


não é capaz naquele momento de se impor metas cabe ao terapeuta tentar
pontuar até onde vão os limites do próprio cliente em relação à terapia e aos
laços sociais, para que o cliente possa discriminar quais atos lhe dão maior ou
menor identidade social, ou seja, oferecer limites concretos às investidas
estabelecidas pela função de ato no cliente.

3.1.3.3. Ajustamentos de defesa contra a demanda ou isolamento


(autismos)

Estes ajustamentos são muito frequentes nas pessoas diagnosticadas com


autismo. O campo social em que a pessoa está inserida está diretamente
ligado ao fato da mesma precisar fazer estes tipos de ajustamentos. O que
talvez explique por que, em determinados momentos, o embotamento afetivo, a
agressividade inespecífica (sem motivação aparente), a forma pueril
(hebefrênica) de lidar com afetos e pensamentos, ou o comportamento autista,
sem qualquer tipo de interação social, tornem-se mais freqüentes do que em
outros momentos.

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Entende-se que a gênese dos autismos está no momento em que o indivíduo


se defende da demanda por excitamento, pois o fundo de vividos não se
apresenta diante de determinadas demandas, principalmente àquelas
correlacionadas com afeto propostas pelo meio social. Ou seja, a função de ato
(que produz ajustamentos de isolamento) não encontra na função id
excitamentos para responder ao demandante, e assim, tenta afastá-lo.

Müller-Granzotto & Müller-Granzotto (2012) afirmam:

“Nossa hipótese está apoiada na observação do


comportamento dos nossos consulentes, principalmente
daqueles diagnosticados como autistas. Eles parecem não ter
a sua disposição hábitos relativos às vivências primitivas de
interação com o meio. Tudo se passa como se os hábitos
motores – por meio dos quais retomamos, mais do que os atos
compartilhados na atualidade da situação, uma espécie de
cumplicidade em torno de algo indeterminado que aqueles atos
estariam - não se apresentasse entre nós. Ou ainda, é como se
os gestos desempenhados pelos sujeitos de atos na
concretude no agora não visassem uma dimensão atual. Nesse
sentindo, eles parecem não “esperar” algo inédito, tampouco
vibrar com a repetição” (p.154).

Os autores seguem explicando que as pessoas que fazem estes ajustamentos


lidam com os sentimentos de uma forma que parece algo aprendido para a
socialização ocorrer e não necessariamente algo que esteja realmente sendo
sentido. Ou seja, os sentimentos não vêm acompanhados de afeto, mas como
uma forma que aquela pessoa aprendeu que “deve ser” para determinadas
situações.

Outra característica comum, advinda do que foi explicado acima, é a


dificuldade em entender as metáforas, as “entrelinhas”, nas “segundas
intenções” no meio social do que é dirigido a estas pessoas. O indivíduo que
faz ajustamentos autistas geralmente não consegue operar com o nível
subjetivo, justamente por não haver a referida doação de excitamentos pelas
demandas de afeto.

Quando o sistema self identifica a inexistência de excitamentos, como os


exemplos citados acima, ainda assim ele continua a criar, porém neste caso, a
criação se dá como uma defesa para que a demanda por afeto se afaste o
mais depressa possível.

Alguns exemplos destas reações de defesa contra a demanda são os sintomas


descritos pela psiquiatria clássica tais como: a falta de resposta e interesse
pelas pessoas, contato visual exíguo, as expressões faciais empobrecidas,
diminuição de comportamentos não-verbais, dificuldade de iniciar ou manter
uma conversa, padrões restritos, repetitivos e estereotipados do
comportamento (agitação ou torção das mãos ou dedos, ou movimentos
corporais complexos), obsessão por partes de objetos, ausência de ações

Revista IGT na Rede, v. 11, nº 20, 2014, p.193 – 241. Disponível em http://www.igt.psc.br/ojs
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Gestáltica com ajustamentos autistas.

variadas, espontâneas e imaginárias ou ações de imitação social apropriadas


para o nível de desenvolvimento etc. (DSM-IV, 2002).

Apesar desta dificuldade de estabelecer relações sociais por meio de afetos, as


pessoas que se defendem da demanda, conseguem estabelecer estas
relações por meio de “inteligência social”, ou seja, eles conseguem desenvolver
a função personalidade e conseguem ter uma vida onde se responsabilizam
pelo que fazem, assumem determinados papéis sociais, pelos quais
desenvolvem sentimentos de orgulho, desprezo etc., como por exemplo, os
sujeitos diagnosticados com autismo de Asperger5. São sujeitos perfeitamente
bem integrados aos diversos contextos em que o objeto de troca é algum
conteúdo semântico determinado, como uma regra prudencial, uma regra
jurídica, um valor estético, moral, um pensamento ou qualquer forma de
representação social que não tenha conotação afetiva.

Os autores ressaltam a importância de saber distinguir a diferença entre


sentimentos e afetos: os sentimentos sempre caracterizam comportamentos
claramente definidos no âmbito de cada cultura, e é da ordem dos nossos
conteúdos (semânticos, naturais, morais etc.). Já os afetos referem-se àquilo
que, juntamente com os sentimentos, acusam a co-presença daquilo que não
está claro, do não sentido, dos sentimentos e pensamentos inexplicáveis, ou
seja, assumem um caráter inatual e que não tem correlação com o presente da
relação. Os afetos são o indício de um hábito se repetindo, uma forma que
ocorreu no passado e hoje está inacabada, sendo necessária a repetição da
mesma pelo sistema self.

Nos casos de Autismo de Kanner, há de fato o desenvolvimento da função


personalidade, pois neste caso, a função de ato se defende contra a demanda,
não apenas àquelas que estão correlacionadas com o afeto, como também não
desenvolve a “inteligência social” e por conseqüência as relações sociais. A
função de ato restringe toda e qualquer demanda na fronteira de contato, o que
torna a pessoa isolada quase que totalmente, na forma de um mutismo.

A intervenção nos ajustamentos de isolamento é primordialmente saber que


favorecer o processo de socialização não é o objetivo principal. Outra
intervenção é reconhecer os sintomas e as formas de defesa e a partir disto,
identificar as possibilidades de aprendizado que possibilitam o desenvolvimento
de personalidades.

Esta identificação de demandas vai desde o clínico se observar até ao meio


social em que seu cliente está inserido. Ou seja, é necessário identificar onde
estão as principais demandas de afeto para aquele cliente (rotina familiar, no
trabalho, na escola e na própria relação terapêutica) e tentar neutralizá-las ao
máximo, para que assim, ele não se isole. A intervenção se dá, com muita
sutileza, no sentido de orientar os familiares e pessoas próximas para que os
mesmos consigam também identificar as demandas que geram o isolamento.

5
Mais informações sobre os tipos e características do Autismo no capítulo 4.

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BARROS, Marina Nogueira de - O psicoterapeuta invisível: reflexões sobre a prática
Gestáltica com ajustamentos autistas.

Cabe ao terapeuta entender que a partir disto, a pessoa tem mais chances de
“responder” às demandas, porém não necessariamente de um fundo de vividos
(afeto), mas adquirir uma linguagem pedagogicamente aprendida e adaptada à
determinada situação, mas sem valor emocional. Os sujeitos autistas poderão
adquirir informações, aprender expedientes sociais e exprimir valores e
sentimentos.

Quando se fala em “linguagem pedagógica” é para ressaltar a importância de


que o trabalho clínico aconteça no mesmo nível do sócio educador, pedagogo
ou do acompanhante terapêutico. Estando neste lugar, o clínico coloca-se entre
os ajustamentos autistas e as demandas sociais, facilitando uma comunicação
objetiva, plena de objetos, que aconteça no nível das coisas e das palavras,
apoiando o cliente nas atividades em que poderão fazer este sujeito assumir
valores e papéis sociais, ou seja, o Gestalt-terapeuta facilitará para a
construção da função personalidade deste sujeito.

O clínico deve evitar ao máximo demandar algo ao cliente, sendo necessário


não demonstrar ter esperanças de rendimento, expectativas para o
crescimento do cliente, ou ao contrário disto, mostrar-se frustrado ou
decepcionado quando algo no processo terapêutico não vai como planejado, e
nem ao menos, comemorar quando há de fato algum avanço nos processos de
aprendizagem. Isto pode ser escutado pelo autista como demandas por
excitamentos, ou seja, causaria o afastamento e prejudicaria o processo de
inclusão pedagógica.

Até mesmo nos casos de autismo mais severo, como os de Kanner, observa-se
uma boa aceitação no processo de inclusão pedagógica. Com estas
intervenções, o terapeuta colabora para a ampliação da função de ato nos
ajustamentos autistas, sendo assim, o autista responde a partir de algo que foi
aprendido e produzido pedagogicamente na forma de linguagem, ao invés de
responder às demandas com excitamentos que não se apresentam do fundo
de vividos.

Diante disto, acredita-se que é de extrema importância, não apenas aos


psicoterapeutas, mas aos que lidam diretamente com as pessoas que fazem
ajustamentos de isolamento, que saibam diferenciar afetos de sentimentos,
pois na nossa visão, os ajustamentos de isolamento não devem ser negados,
mas salvaguardados, pois assim há a possibilidade do autista desenvolver sua
“inteligência social” e não precisar se afastar dos demandantes. Os
profissionais, sabendo desta diferença, e procurando não demandar afetos, os
processos educacionais e as relações sociais tendem a ter mais ampliação e
fluidez.

4. AUTISMO: PSIQUIATRIA CLÁSSICA

A palavra autismo é derivada do grego “autos”, que significa “voltar-se a si


mesmo”. O primeiro estudioso a utilizar este termo foi Eugen Bleuer (1911)

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Gestáltica com ajustamentos autistas.

quando quis descrever uma das características da esquizofrenia caracterizada


pelo isolamento social (SILVA, 2012, p.159).

A autora continua descrevendo a história do autismo, relatando que em 1943,


Leo Kanner descreveu, pela primeira vez, 11 casos do que
denominou distúrbios autísticos do contato afetivo. Nesses 11 primeiros casos,
Kanner percebeu que estas pessoas apresentavam dificuldade em se
relacionar socialmente desde o início da vida, tendo respostas incomuns ao
ambiente tais como: movimentos motores estereotipados, ecolalia (eco na
linguagem), resistências a mudanças, entre outros, além de apego à rotina e
preferência por objetos inanimados em detrimento das pessoas.

Durante os anos 50 e 60 várias teorias foram elaboradas sobre as possíveis


causas do autismo, e a mais comum era a relação do autismo com “mães frias”
ou “mães geladeiras“, também elaborada por Kanner, onde demonstrava que
estas mães apresentavam certa dificuldade em viver afetivamente com o filho:
mantinham um contato frio, mecanizado e obsessivo, apesar do alto grau de
desenvolvimento intelectual.

Entretanto, esta crença foi abandonada pela maioria dos países, inclusive pelo
próprio Kanner, e outra teoria veio à tona: o autismo seria um transtorno
cerebral, com início na infância, podendo atingir quaisquer pessoas de classes
e níveis sociais, étnico-raciais. As pesquisas neurocientíficas e genéticas
atestam que o autismo possui causa biológica.

Silva (2012) acrescenta:

“Em 1944, Hans Asperger publicou em sua tese de doutorado


informações que atualmente enquadram-se na síndrome de
Asperger e cunhou o termo “psicopatia autística” devido a
capacidade das crianças estudadas em discorrer sobre
determinado tema minuciosamente. Nesta tese, o autor
descreveu um transtorno da personalidade que incluía “falta de
empatia, baixa capacidade de fazer amizades, hiperfoco em
interesse especial e dificuldade de coordenação motora” ( p.
160).

Outra contribuição de grande importância foi da pesquisadora Lorna Wing, que


foi a primeira pessoa a descrever a tríade de sintomas:
sociabilidade/comunicação/linguagem e padrão alterado de comportamento.

Em 1978, Michael Rutter definiu o autismo baseado em quatro critérios:

1) atraso e desvio sociais não só como função de retardo mental;


2) problemas de comunicação, novamente, não só em função de retardo
mental associado;
3) comportamentos incomuns, tais como movimentos estereotipados e
maneirismos; e
4) início antes dos 30 meses de idade.

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A partir desta visão, os estudos caminharam nesta direção e pela primeira vez
o autismo entrou no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais
(DSM-III), em 1980b (KLIN, 2006, p.1)

Silva (2012) acrescenta que até 1980 o autismo ainda era considerado uma
categoria da esquizofrenia, ou psicose infantil. A partir deste ano, o autismo
passou a ser considerado um distúrbio do desenvolvimento, o que
proporcionou grandes avanços na ciência com denominações corretas e
critérios específicos.

No Brasil, o autismo conta com a Associação de Amigos do Autista (AMA),


fundada em agosto de 1983, por um grupo de pais que tinham filhos autistas e
buscavam acolher outros pais, informar e capacitar famílias e profissionais de
todo o país. Desde então a associação realiza encontros, investe em formação
profissional e é referência para muitos brasileiros com o transtorno e suas
famílias. Atualmente vários locais do país têm suas associações, que formam a
ABRA (Associação Brasileira de Autismo) e lutam juntos pelos direitos das
pessoas com autismo em todo o Brasil (SILVA, 2012).

O autismo é uma doença que acomete 1 a 5 casos a cada 10.000 pessoas,


sendo de 2 a 3 homens, para 1 mulher. O diagnóstico é realizado por volta dos
três anos de idade do indivíduo, embora estudos já comecem a identificar
traços para realização de um diagnóstico precoce por volta dos 18 meses de
vida (ASSUMPÇÃO & PIMENTEL, 2000).

De acordo com Nikolov, Jonker e Scahill (2006), este transtorno, também


chamado de “espectro do autismo” é parte de um grupo de condições definidas
como transtornos invasivos do desenvolvimento (TIDs). Este transtorno
apresenta diversos comprometimentos em várias áreas de funcionamento do
indivíduo e vem acompanhado, geralmente, de um retardo mental.

Os autores ressaltam que este transtorno é caracterizado pelo DSM-IV e o


CID-10, ambos manuais de psiquiatria. De acordo com os mesmos, há os
seguintes tipos de autismo: transtorno autista, transtorno de Rett, transtorno
desintegrativo da infância, transtorno de Asperger e TID – Sem Outra
Especificação (TID-SOE). No CID-10, eles recebem títulos similares, ainda que
não idênticos. O CID-10 inclui também outras duas categorias: Autismo Atípico
e Transtorno Hiperativo Associado com Retardo Mental e Movimentos
Estereotipados.

O transtorno autista é caracterizado, segundo o DSM-IV-TR (299.00) como um


comprometimento qualitativo da interação social, relativo ao contato visual,
expressão facial e gestos, assim como fracasso em desenvolver
relacionamentos apropriados. Outra característica é a ausência de
reciprocidade emocional, atraso ou ausência total na linguagem falada,
padrões restritos e repetitivos de comportamento.

O transtorno de Asperger (299.08) tem características similares com as acima


citadas e também é caracterizado por insistente preocupação com um ou mais

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padrões estereotipados e restritos de interesse anormal, em intensidade ou


foco. Não existe um atraso, em geral, na linguagem, nem atraso no
desenvolvimento cognitivo ou habilidades de auto cuidado próprios da idade.

O transtorno de Rett (299.80) é caracterizado por um desenvolvimento normal


pré-natal e perinatal, desenvolvimento psicomotor normal até os cinco meses
de vida. A partir disto, há uma desaceleração do crescimento cefálico, perda
das habilidades manuais voluntárias anteriormente adquiridas, perda do
envolvimento social, incoordenação da marcha dos movimentos do tronco,
linguagem expressiva ou receptiva severamente comprometidas com severo
retardo psicomotor.

O transtorno desintegrativo da infância (299.10) é caracterizado pelo


desenvolvimento aparentemente normal nos primeiros dois anos de vida
próprios da idade, porém a partir disto, começam as perdas das habilidades já
adquiridas como linguagem expressiva, habilidades sociais, controle
esfincteriano, jogos e habilidades motoras. Há o comprometimento qualitativo
da interação social e da comunicação (a criança não consegue responder ao
relacionamentos sociais, fracassa em manter ou iniciar uma conversa, usa a
linguagem de forma estereotipada e repetitiva e perde a habilidade de brincar
de jogos de faz-de-conta).

O Manual Diagnóstico e Estatístico dos Distúrbios Mentais (4ª edição) é uma


classificação categórica que divide os transtornos mentais em tipos, baseados
em grupos de critérios com características definidas. Utilizando-se a
nomenclatura padrão para definir os transtornos e fornecer instruções
codificadas precisas para diagnósticos, o DSM-IV facilita o diagnóstico, o
tratamento e as análises estatísticas dos transtornos mentais. Este manual é
uma listagem dos códigos do DSM-IV para todas as categorias de transtornos
mentais reconhecidas da Associação Americana da Psiquiatria (APA). O
autismo pode ser diagnosticado a partir de alguns critérios:

A. Um total de seis (ou mais) itens de (1), (2), e (3), com pelo menos dois de
(1), e um de cada de (2) e (3).

1. Marcante lesão na interação social, manifestada por pelo menos dois dos
seguintes itens:

a) destacada diminuição no uso de comportamentos não-verbais múltiplos, tais


como contato ocular, expressão facial, postura corporal e gestos para lidar com
a interação social. Silva (2012) acrescenta que as crianças não costumam
atender ao chamado das pessoas, sempre olhando com o canto dos olhos. Os
pais podem vir a pensar que a criança tem problemas auditivos.

b) dificuldade em desenvolver relações de companheirismo apropriadas para o


nível de comportamento. Os autistas são crianças mais isoladas, pois têm
dificuldade em participar de jogos de interação, ou brincadeiras de roda. São
crianças com hipersensibilidade a determinados sons, o que torna certos ruídos
ou barulhos como algo insuportável. Tapam os ouvidos, gritam e choram.

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Gestáltica com ajustamentos autistas.

Muitas vezes apresentam comportamento de muita “birra”, podendo ser


agressivos e violentos ou apresentando comportamento de autoagressão, se
mordendo e batendo-se (SILVA, 2012).

c) Falta de procura espontânea em dividir satisfações, interesses ou


realizações com outras pessoas, por exemplo: dificuldades em mostrar, trazer
ou apontar objetos de interesse. As crianças autistas, muitas vezes,
apresentam dificuldades em compartilhar momentos, ou por não se
interessarem ou por não apontarem esses compartilhamentos. Silva (2012)
ressalta que as mães mostram brinquedos e as crianças não olham, ou não
costumam trazer brinquedos para brincar.

d) ausência de reciprocidade social ou emocional. Silva (2012) explica que a


pessoa com autismo tem dificuldade em demonstrar suas emoções como é
esperado, muitas vezes até inadequado. O autista usa formas alternativas de
expressão e cabe a nós ajudá-los e a compreender esta forma de se
expressar. Às vezes, uma criança com autismo pode expressar sua gratidão
com uma pedrinha e manifestar seu amor com um pequeno toque nas mãos e
isto pode ser muito para ele.

2. Marcante lesão na comunicação, manifestada por pelo menos um dos


seguintes itens:

a) atraso ou ausência total de desenvolvimento da linguagem oral, sem


ocorrência de tentativas de compensação através de modos alternativos de
comunicação, tais como gestos ou mímicas. É comum usarem as pessoas
como instrumentos ou ferramentas para pegar ou abrir algo para elas.

b) em indivíduos com fala normal, destacada diminuição da habilidade de


iniciar ou manter uma conversa com outras pessoas.

c) ausência de ações variadas, espontâneas e imaginárias ou ações de


imitação social apropriadas para o nível de desenvolvimento.
Silva (2012) ressalta que à medida que a criança começa a falar, elas
apresentam ecolalia, ou seja, repetem várias vezes alguma palavra ou frase
que escutaram da mãe, na escola ou de um desenho animado.

3. Padrões restritos, repetitivos e estereotipados de comportamento, interesses


e atividades, manifestados por pelo menos um dos seguintes itens:

a) Obsessão por um ou mais padrões estereotipados e restritos de interesse


que seja anormal tanto em intensidade quanto em foco.

b) Fidelidade aparentemente inflexível a rotinas ou rituais não funcionais


específicos.

c) Hábitos motores estereotipados e repetitivos, por exemplo: agitação ou


torção das mãos ou dedos, ou movimentos corporais complexos.

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d) Obsessão por partes de objetos.

Silva (2012) destaca que este padrão é notado desde muito cedo. As crianças
podem apresentar movimentos repetitivos com as mãos, cabeça, tronco ou
girar objetos (rodinhas, peões, pratos) e ficar olhando fixamente. Um
comportamento comum entre os autistas é abanar as mãos e o antebraço na
altura dos ombros como se tivessem imitando um pássaro voando é, este
comportamento é denominado flapping.

B. Atraso ou funcionamento anormal em pelo menos uma das seguintes áreas,


com início antes dos três anos de idade:

1. Interação social.
2. Linguagem usada na comunicação social.
3. Ação simbólica ou imaginária.

Silva (2012) acrescenta que o diagnóstico deve ser realizado por um


profissional que tenha conhecimento no assunto e que entenda sobre
desenvolvimento infantil. É necessário estar atento a todos os detalhes da
história de vida daquele indivíduo, até antes mesmo de sua concepção.

Nesta avaliação o profissional tem que saber como a mãe descobriu que
estava grávida, se fez o pré-natal, como foram as condições da gravidez e as
do feto durante este período. A autora explica que as condições da formação
da criança no ventre da mãe dependem de vários fatores, tais como
fecundação, formação do zigoto, desenvolvimento do feto, características que
podem levar a consequências como desenvolvimento do autismo, más-
formações e problemas genéticos.

Outro ponto que a autora destaca é em relação às condições do parto, se


ocorreu tudo como esperado ou quais foram as intercorrências neste momento.
Além das informações de peso, estatura e o perímetro cefálico.

Após estas fases, o profissional passa a investigar como foi o primeiro ano de
vida da criança: amamentação (houve dificuldades de sucção?), sono (dormia
por muitas ou poucas horas?), apresentava hábitos alimentares restritos,
quando sentou, engatinhou, andou, falou as primeiras palavras. A partir do
segundo ano de vida, o profissional investiga as habilidades sociais (a criança
consegue compartilhar os momentos vividos, interage com outras pessoas ao
seu redor?) e motoras. Em seguida, entre os 3 e 4 anos de idade, observa-se
como foi o ingresso à escola, como a criança brinca e lida com os demais
colegas e com seu mundo. E assim, em cada fase do desenvolvimento, é
preciso ter uma riqueza de detalhes, pois cada um deles é muito importante
para que o profissional dê o diagnóstico preciso.

Outro ponto importante a ser investigado é como são as relações familiares do


paciente, o histórico clínico dos pais e problemas hereditários. A autora destaca
que o profissional deve ter conhecimento sobre a tríade de base alterada do
funcionamento mental autístico (disfunção na socialização + comunicação +

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comportamento) e estar atento caso haja sintomas em uma destas


características.

Recebido o diagnóstico, paciente, família e profissionais têm um leque de


possibilidades. O diagnóstico é encarado com dificuldade, pois os pais
recebem a notícia de algo que não tem cura, porém apresenta tratamento.
Silva (2012) destaca que os tratamentos para este distúrbio têm se mostrado
bastantes eficazes, pois novas portas se abrem em que profissionais de
diversas áreas trabalham em prol da melhora do paciente.

A Associação de Amigos do Autista (AMA) traz de uma forma bem clara os


principais tratamentos:

Intervenções psicoeducacionais, orientação familiar, desenvolvimento da


linguagem e/ou comunicação. O ideal é que uma equipe multidisciplinar avalie
e proponha um programa de intervenção. Dentre alguns profissionais que
podem ser necessários podemos citar: psiquiatra, psicólogo, fonoaudiólogo,
terapeuta ocupacional, fisioterapeuta e educador físico.

Silva (2012) ressalta que o acompanhamento psicoterápico é de grande


importância no que se refere à “reprogramação” do cérebro por meio de novos
estímulos, criando novos caminhos entre os neurônios. Isto ocorre através de
técnicas para modificação de comportamento, trazendo ao indivíduo novos
aprendizados, novas memorizações e novas adaptações. Por isso, é muito
importante que o diagnóstico seja precoce e que a criança comece a fazer o
tratamento o quanto antes, pois quanto mais nova, mais maleável é seu
cérebro e sua capacidade de modificação.

A autora acrescenta que as possibilidades de tratamento são inúmeras e


variam – para os que têm retardo mental grave - desde o aprendizado das
atividades diárias (tomar banho, alimentação, ir ao banheiro) até o treino de
sutilezas sociais, como entender ironias – para aqueles que apresentam
apenas alguns traços do espectro autista.

Em todas estas possibilidades o foco é tentar diminuir as limitações da pessoa


autista e resgatar o afeto e as emoções que foram impedidas de emergir.
Os métodos de intervenção mais conhecidos e mais utilizados para promover o
desenvolvido da pessoa com autismo e que possuem comprovação científica
de eficácia são:

TEACCH (Treatment and Education of Autistic and Related Communication


Handcapped Children) é um programa estruturado que combina diferentes
materiais visuais para organizar o ambiente físico através de rotinas e sistemas
de trabalho, de forma a tornar o ambiente mais compreensível, esse método
visa à independência e ao aprendizado.

PECS (Picture Exchange Communication System) é um método que se utiliza


figuras e adesivos para facilitar a comunicação e compreensão ao estabelecer
uma associação entre a atividade/símbolo.

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ABA (Applied Behavior Analysis), ou seja, analise comportamental aplicada que


se embasa na aplicação dos princípios fundamentais da teoria do aprendizado
baseado no condicionamento operante e reforçadores para incrementar
comportamentos socialmente significativos, reduzir comportamentos
indesejáveis e desenvolver habilidades.

Medicações: O uso do medicamento deve ser prescrito pelo médico, e é


indicado quando existe alguma comorbidade neurológica e/ou psiquiátrica e
quando os sintomas interferem no cotidiano. Porém, vale ressaltar que até o
momento não existe uma medicação específica para o tratamento de autismo.
É importante o médico informar sobre o que se espera da medicação, qual o
prazo esperado para que se percebam os efeitos, bem como os possíveis
efeitos colaterais.

Por ser um distúrbio crônico, é necessário que os profissionais estejam sempre


atentos ao uso de medicamentos, pois o tratamento acontecerá por longos
períodos e o paciente deve ser monitorado sempre. Além disto, Silva (2012)
aduz que o médico deve informar aos pais os motivos de sua prescrição, seus
benefícios e os efeitos colaterais. A autora informa que os medicamentos
Risperidona e Aripiprazol têm sido amplamente estudados e foram aprovados
pelo FDA (Food and Drug Administration, órgão responsável pelo controle de
alimentos e remédios nos EUA) para serem utilizados em crianças a partir de 5
anos de idade com sintomas causados pelo espectro autista.

Silva (2012) ressalta que o tratamento medicamentoso é muito importante, pois


atenua sintomas como comportamentos repetitivos, estereotipias, desatenção,
irritabilidade, hiperatividade, impulsividade, alterações do sono. Com a melhora
destes sintomas, os tratamentos acima citados com diversas especialidades
têm mais eficácia, pois deixam a pessoa mais focada e disposta ao
aprendizado.

Outro ponto indispensável é lembrar que o tratamento farmacológico só terá


sua eficácia se feito conjuntamente com o tratamento psicológico,
psicopedagógico, entre outros (ASSUMPÇÃO & PIMENTEL, 2000).

Silva (2012) resume o que foi dito acima, acrescentando que há 10


mandamentos para o bom desenvolvimento da pessoa autista:

1. Tratamento individualizado: a criança precisa ter um acompanhamento


criterioso e personalizado dentro de todas as especialidades de
atendimento, pois cada criança tem sua forma e tempo de aprender.

2. Currículo adaptado: é importante que as crianças sejam inseridas em


escolas regulares para que haja estímulo da socialização, porém estas
atividades devem ser adaptadas para que a criança esteja sempre o
mais confortável possível.

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Gestáltica com ajustamentos autistas.

3. Hiperinvestimento em comunicação: o investimento nesta área tem


que ser constante e traz qualidades positivas para a criança, ajudando
no seu desenvolvimento, pois a mesma aprenderá, no seu ritmo, a
entender a si mesma e ao próximo.

4. Ensino sistematizado e estruturado: os professores devem ser


orientados e de acordo com a dificuldade da criança, o ensino deve
ser estruturado e baseado em técnicas cientificamente comprovadas.

5. Engajamento: os especialistas orientam que a criança, além das horas


diárias na escola, deve passar por mais quatro horas diárias em
treinamentos e estimulação do desenvolvimento, tanto pelos pais,
quanto por profissionais de diversas áreas já citadas acima.

6. Práticas adequadas para o desenvolvimento: a família deve contar


com uma rede de profissionais capacitados que disponham de todos
os recursos relacionados à socialização, aquisição de linguagem,
comunicação e adequação de comportamentos para garantir o bom
desenvolvimento da criança.

7. Contato com crianças não autistas: é importante que a criança tenha


modelos típicos para aprender a imitar, pois isto propicia estimulações
diferenciadas daquelas obtidas em terapia.

8. Atividades físicas: são importantes para desenvolver a motricidade e


coordenação motora de maneira adequada, além de serem uma forma
de estimular a socialização

9. Envolvimento familiar: A família deve estar engajada no tratamento da


criança, visto que sem isso, tudo o que for feito não será realizado
com êxito. A família é parte fundamental antes de qualquer outro
tratamento.

10. Psicoeducação familiar: a família é responsável também por parte do


tratamento no que se refere à participação e na busca de
conhecimentos em como ajudar e potencializar o efeito do tratamento
realizado pelos outros profissionais. A família ajuda a multiplicar os
ganhos da criança em tratamento, o que acarretará melhor
desenvolvimento da mesma.

5. REFLEXÕES SOBRE A PRÁTICA EM GESTALT-TERAPIA

O interesse em desenvolver esta pesquisa surgiu diante das dificuldades


encontradas no trabalho com pessoas autistas em uma instituição que atende

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pessoas (crianças, adolescentes, adultos e idosos) com necessidades


especiais de vários tipos.

Dentre estas necessidades especiais, a que mais capturou foi o trabalho com o
autismo. Até então, nunca havia tido contato mais próximo com pessoas
autistas e o que mais causava impacto era o fato destas pessoas parecerem
viver em um mundo paralelo, de se posicionarem diante do mundo a sua volta
de uma forma tão peculiar e imprevisível. Porém surge o questionamento: que
pessoa é previsível ou, se vista de perto, não é, no mínimo, extremamente
peculiar e misteriosa? Quais dos comportamentos humanos são algo realmente
encaixado dentro dos ditos “padrões da normalidade”? A resposta mais fácil de
ser dada é: claro que todo ser humano é único e um eterno vir-a-ser, logo pode
esperar-se tudo dele.

Falando dessa maneira, julga-se simples, mas no trabalho com autismo


identifica-se que isso é muito mais profundo. É estar diante de uma pessoa e,
na maioria das vezes, não saber o que fazer, por onde começar, como
estabelecer um vínculo. E o sentimento que emergente e primeiro é: calma. Um
dia de cada vez, um atendimento a seu tempo, um minuto (que pode demorar
bastante para passar) pode ser precioso.

Percebe-se que no trabalho com autismo aquilo que se aprende na faculdade,


desde o primeiro dia, talvez, seja executado da forma mais intensa e genuína.
Ter calma, segurar a ansiedade por respostas, esperar o tempo do cliente,
acompanhá-lo sem falar nada, acolher, e vivenciar o encontro terapêutico das
mais diversas maneiras possíveis – essas sim não se encontram nos livros,
nem nas aulas, nem nas pesquisas: ela simplesmente vai acontecer.

Juntamente com isto, algo que chama bastante atenção era a falta de
pesquisas publicadas em Gestalt-terapia sobre o tema. Logo, trabalhar com
pessoas diagnosticadas com autismo a partir da visão da Gestalt-terapia
tornou-se uma dificuldade e um desafio ainda maior, pois não havia
embasamento teórico diverso e necessário para tal.

Mesmo com estas dificuldades, algo que hoje é possível identificar e que
funcionou como norte nos atendimentos foi o que Perls (1997) apud Ribeiro
(2010) em seu texto ‘Da dificuldade de “conversão” à mentalidade gestáltica’
ressalta quando explica que a Gestalt-terapia é “a abordagem original, não
deturpada e natural da vida”. Ou seja, por mais que não houvesse um vasto
aporte teórico ou manual de como se dá a prática gestáltica com autismos,
ainda assim era possível fazer Gestalt-terapia. Pois a mesma é natural a todos.

A partir disso, foi possível (re)conhecer e (re)experienciar que a pessoa não se


resume a um diagnóstico fechado e que está a todo momento fazendo
ajustamentos criativos que sejam possíveis em cada experiência e assim, está
em contínua busca por sua melhor forma no mundo. Como já referido acima,
Perls (1997) confirma quando ressalta que “A Gestalt-terapia é um método
muito operante para ser reservado unicamente aos doentes”. Ou seja, o
humanismo e a Gestalt-terapia são visões de mundo que consideram o homem

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como um sistema global inserido em subsistemas com uma interdependência


circular. Estas pessoas categorizadas pelos manuais de psiquiatria clássica se
encaixam nos sintomas que ali são especificados, porém cada uma a seu
tempo, forma e momento existencial.

As estereotipias e o diagnóstico antes dos três anos de idade são algumas das
características que as pessoas começam a apresentar e que fazem os
profissionais darem o famigerado diagnóstico de Autismo.

Sim, o diagnóstico ainda é algo muito difícil para a família. Apesar da


divulgação dos conhecimentos sobre este transtorno, identificam-se nas
famílias que recebem o diagnóstico, relatos como “meu mundo caiu”, “eu queria
morrer”, “meu filho não é normal”, “o que eu fiz de errado?”, “não sei como lidar
com meu filho”, “tenho fé que um dia ele vai ser curado”, “demorei muito tempo
para aceitar”, “hoje sou conformada”, “meu filho é minha vida”.

Na referida instituição, estes eram alguns dos relatos, dados principalmente


pelas mães, que eram 90% dos acompanhantes das crianças. Essas mães
eram peças fundamentais durante os atendimentos, pois pelo fato de lidarem
diariamente com seus filhos, conseguiam expressar de forma ímpar o que cada
gesto, olhar, choro, grito, significava. Com isto, era possível perceber que
entender e interagir com uma pessoa autista não é um “bicho de sete cabeças”,
mas sim um exercício de enxergar novas perspectivas de interação que são
totalmente diferentes das que se está acostumada. É preciso entregar-se à
relação, sentir o que vem dela e assim, atuar, seguir em frente.

Trabalhar com estas mães, era também de grande aprendizado pessoal, pois
era inevitável encontrar os atravessamentos de ser mãe de uma criança
totalmente diferente do que um dia foi idealizado, ver mães cansadas,
sobrecarregadas, muitas vezes sem muitas condições financeiras e que não
tinham ajuda de outras pessoas para criarem seus filhos. E assim, via-se de
tudo: mães impacientes, mães amorosas, mães permissivas, mães agressivas
– tudo misturado em uma mãe só.

Estes atravessamentos reverberavam no trabalho como um todo: ausência de


motivação para trabalhar, fracasso e frustração. Outras vezes aquele trabalho
se tornava fantástico, motivador e promissor. O fato de não ter tanta
experiência clínica, trabalhar com autistas faz o mundo se apresentar de outra
forma e percebe-se a sensação de que a partir daquele momento trabalhar
com qualquer pessoa torna-se mais viável, devido ao fortalecimento pessoal e
profissional que esta experiência gerou.

Olhando para trás, e revivendo muitos momentos escrevendo este trabalho,


percebe-se com mais clareza o quanto esta experiência foi rica. Compreende-
se que as falhas são inevitáveis e que com as pesquisas realizadas até o
momento presente, identifica-se o quanto é possível agir de formas mais
completas e diversas.

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Esta prática continua sendo muito desafiadora e enriquecedora, percebendo-se


as limitações de forma mais clara e a escolha deliberada por não trabalhar
mais com este público. Vê-se que o compartilhamento destes sentimentos e
vivências é algo que não foi encontrado na literatura e que dificultou o início da
prática com ajustamentos autistas. Conversar com colegas – não só da mesma
área, mas também pedagogos, terapeutas ocupacionais, fonoaudiólogos,
médicos, - tornou-se uma maneira muito rica de entender que as dificuldades
eram sentidas por outras profissionais e que o fato de ser iniciante e recém-
formada não significava falta de aptidão e que as barreiras existiam
independentes do tempo de experiência, mas sim diante de cada novo cliente
que chegava aos consultórios destes profissionais.

Tudo isto se torna fundo diante daquilo que emerge da relação e do campo
estabelecidos entre terapeuta e cliente.

Por ter esta visão de ser humano, é que falar-se-á de Autistas e sim de
pessoas que fazem ajustamentos autistas, pois a pessoa é dotada de limites e
possibilidades que vão muito além de um diagnóstico. Os ajustamentos são
apenas parte de um indivíduo.

Ratifica-se esta visão com o que Ginger & Ginger (1995) explicam, acima
citado: Para a Gestalt-terapia um bom fluxo dos ciclos de figura-fundo são
considerados estados de “boa saúde”, ou seja, a psicoterapia incentiva que a
pessoa faça a formação de formas flexíveis, adaptadas ao meio em que estão
inseridas, fazendo ajustamentos criativos permanentes. Sendo assim, a
Gestalt-terapia é considerada uma “arte da formação de boas formas”
(GINGER & GINGER, 1995).

A expectativa enquanto psicoterapeuta é estar diante de um cliente que fale de


suas demandas, que se reclame, chore, reaja de diversas maneiras, porém
lidar com pessoas que fazem estes ajustamentos foi, na maioria das vezes, um
sentimento de invisibilidade, pois estas pessoas reagem e estão no mundo de
outra forma. Isto divergia com as expectativas próprias, pois não havia o
retorno esperado do trabalho. Essa sensação de invisibilidade era comum até
mesmo porque uma das características mais fundamentais do autismo é reagir
contra a demanda, então sempre que era demandado algo, a sensação de ser
invisível se apresentava.

Quando o atendimento iniciava ou terminava, por exemplo, pedia-se para que


os clientes tirassem os sapatos para ficarem mais a vontade na sala. Esse ato
tão simples era encarado de diversas maneiras por cada um deles: uns
atendiam ao pedido, outros choravam, outros tiravam o sapato, mas só
andavam na ponta dos pés. Outros choravam e relutavam para ir embora da
sala e fugiam quando eu dizia que o tempo da sessão havia acabado. Estas
ainda são consideradas reações, mas para muitos nenhum comando ou
proposta de trabalho era atendida.

Nos casos de maior comprometimento, como por exemplo, de uma garota de


13 anos, diagnosticada com autismo clássico de Kanner, a qual entrava na

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sala, não falava, não se interessava por nada, balançava-se de um lado para o
outro e algumas vezes gemia. Naquele atendimento não havia interação
alguma de forma direta. O trabalho com ela era puramente sensorial, onde ela
poderia experimentar contato com o mundo através de seus sentidos, porém,
ainda assim as respostas eram poucas. Sem dúvida, este era um caso
cansativo, desafiador e frustrante.

Por mais frustrante que sejam estes relatos, não há algo que tenha gerado
mais aprendizado de que o tempo no atendimento gestáltico é sempre
composto pelo que o cliente consegue fazer no momento e o que o campo
pode influenciar também. A Gestalt-terapia adota o pensamento dialógico de
Martin Buber que ratifica o que foi relatado, pois este pensamento traz a teoria
de que na situação terapêutica são importantes tanto o cliente, quanto o
terapeuta, acreditando que a relação estabelecida também faz parte do
fenômeno que ocorre no campo e é de serventia para o processo.

Trabalhar com o fato de que os ajustamentos autistas são caracterizados por


uma dificuldade de retenção de dados no fundo de vividos antes era algo
inimaginável. Isso gerou uma demora maior para assimilar que isso seria
possível. Porém, com os estudos e a experiência percebeu-se teoria gestáltica
sobre os ajustamentos de defesa contra a demanda faz todo o sentido.

Müller-Granzotto e Müller-Granzotto (2012) ratificam que a gênese dos


autismos está no momento em que o indivíduo se defende da demanda por
excitamento, pois o fundo de vividos não se apresenta diante de determinadas
demandas, principalmente àquelas correlacionadas com afeto propostas pelo
meio social. Ou seja, a função de ato (que produz ajustamentos de isolamento)
não encontra na função id excitamentos para responder ao demandante, e
assim, tenta afastá-lo.

Demanda. Isso é algo que inevitavelmente um psicoterapeuta (talvez, ainda


mais, quando se é recém-formada) apresenta em grande quantidade.
Demanda para que o trabalho seja excelente, com efeito, e que traga respostas
ao mundo profissional e pessoal.

Esta é a primeira lição básica diante de uma pessoa que faz ajustamentos
autistas. Müller-Granzotto e Müller-Granzotto (2012) exemplificam: O clínico
não deve demandar de forma alguma,

Ela vai se defender de toda e qualquer demanda que venha em sua direção e
que não possa ser respondida. Gritos, autoagressões, agressões contra o
psicoterapeuta, fala descontrolada, ausência de fala e outras inúmeras reações
contra a demanda era o que mais provocava a vontade de desistir dos
atendimentos. Difícil mais uma vez entender que qualquer demanda, por mais
simples que fosse, teria que ser eliminada. Mas o que seria essa demanda?
Como um psicoterapeuta consegue não demandar?

Esse foi e continua sendo o maior exercício. O que fazer então diante de uma
pessoa “autista”? Estudar, pesquisar e principalmente fazer a psicoterapia

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pessoal, pois se atender uma pessoa que faça interrupções de contato através
de ajustamentos de evitação é um desafio, atender pessoas que não tem
dados retidos no fundo de vividos e reagem diante de suas demandas é mais
desafiador ainda.

O trabalho com estas pessoas é procurar estar, primeiramente, visível para as


demandas pessoais, para depois conseguir estar “não-demandante” e assim,
começar a estabelecer um vínculo nestes atendimentos. Tornar-se invisível ao
outro foi a maneira mais genuína encontrada de estar mais próxima e assim
tornar-se presente, um pouco a cada dia: ganhar um abraço, ter a resposta a
uma pergunta e poder experimentar as formas mais imagináveis de interação.
É estar atento e disposto a fazer os ajustamentos mais criativos possíveis.

Alguns casos marcantes a referida atuação mostram o quanto eram variáveis


as formas dos meus clientes se mostrarem no mundo e de responderem às
demandas, na medida do possível, do atendimento.

M., 6 anos se machucava muito, quando contrariado jogava todas as cadeiras


da sala no chão, fazia bastante barulho, gritava agudamente, era quase
ensurdecedor. Com o tempo, passou a gostar de carinho, se aproximava para
receber um cafuné. Apresentou várias formas de estereotipia: no início
colocava a mão na boca e no olho; batia com a cabeça no chão e depois
chorava de dor. Era acompanhado pela mãe e pelo pai: ficava muito mais
calmo quando o pai ia com ele. A mãe era muito impaciente: ficava agitado em
sua presença.

Neste caso, entende-se a estereotipia como uma defesa contra a demanda,


pois estar em uma sala com uma pessoa (psicoterapeuta) inicialmente
desconhecida que o chamava para entrar na sala (afastando-o do pai ou da
mãe), falava com ele e estava por perto quando ele tentava se auto agredir, era
algo que não estava retido em seu fundo de vividos (função id), ou seja, não
havia resposta. Logo, o que se apresentava na fronteira de contato era
justamente o ato de afastar a demanda. Com o passar do tempo, M. já não
sentia a necessidade de se defender contra essas demandas.

Outras demandas percebidas eram as da mãe. O fato de M. ser muito agitado


e não obedecer aos comandos dela deixava-a bastante irritada, em alguns
momentos gritava e o pegava no braço com força. Logo, M. apresentava mais
comportamentos repetitivos e estereotipias, inclusive nos atendimentos, ao
contrário de quando o pai o acompanhava. O garoto ficava visivelmente mais
calmo, pois o pai o deixava mais livre, correndo na quadra de esportes e por
toda a instituição; respeitava o seu tempo e o chamava pelo nome com
paciência. M. parecia não precisar se defender contra essas demandas.

Em ambos os casos, a intervenção adotada era a de tentar neutralizar ao


máximo estas demandas. Nos atendimentos era esperado o tempo do cliente
para que partisse dele qualquer demanda por atividade. Com isso, ele
conseguiu ficar mais a vontade e estabelecer um vínculo mais próximo. Em
algumas sessões se aproximava e colocava a mão na cabeça pedindo carinho,

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outras inventando uma brincadeira de entrar e sair de baixo da mesa, sempre


partindo dele o convite para a minha entrada no jogo.

Já a intervenção com os pais se deu na direção de escutá-los e tentar


conscientizá-los de que nem sempre os filhos atenderiam suas demandas e
que seus comportamentos e atitudes refletiriam diretamente na evolução e
crescimento do filho. Através disto, é possível identificar o que é demanda para
o cliente e tentar neutralizá-las juntamente com os pais.

L., 5 anos, gostava de carinho; se aproximava e virava de costas pra receber


carinho nas mãos; respondia quando pedia-se abraço; gostava de carros e
tudo que tinha rodas; ficava horas concentrado nos movimentos repetitivos dos
brinquedos. Andava na ponta dos pés sempre, mesmo sem ter nenhum
comprometimento físico. A mãe era muito afetuosa e interessada nos
atendimentos e progresso do filho.

Neste caso, identificava-se que L. não precisava se defender e afastar a


demanda quando era relacionada a contato físico. Uma hipótese seria
compatível com o que os autores Müller-Granzotto e Müller-Granzotto (2012)
expõe sobre as pessoas que fazem ajustamentos autistas em relação aos
sentimentos: muitas vezes o sentimento é mais utilizado como uma maneira de
se inserir socialmente do que uma forma sentida de fato, ou seja, como o
indivíduo aprendeu que “deve ser” em determinadas situações.

Foi possível perceber que uma defesa contra a demanda poderia ser quando L.
experimentava colocar os pés no chão totalmente. Quando isto era proposto, L.
mostrava-se inquieto e voltava a andar na ponta dos pés. Como ele não
apresentava dificuldades com o contato físico de outras formas, as
intervenções eram bastante sensoriais, onde era proposto a L. o contato com
diferentes texturas e sons diversos.

A., 7 anos, era calmo e chorava por 30 minutos seguidos no atendimento e só


se acalmava nos últimos minutos do atendimento. Ficou agressivo no meio:
batia nos colegas, me olhava e ria, me sentia manipulada. A mãe era muito
permissiva, não conseguia dar ordens e ela mesma admitia isso, falou que
todas as pessoas chamavam sua atenção, pois não tinha pulso firme com o
filho.

Um exemplo desta aproximação, foi quando, ao entrar na sala, A. pegava no


meu pé, indicando para eu tirar os sapatos. Ele tirava os dele, eu os meus e eu
esperava ele me convidar para o setting terapêutico. Os atendimentos
aconteciam em uma sala onde contava-se com uma rampa, bolas, brinquedos,
túnel de pano, espelho e tapete de borracha. Quando A. chegava muito agitado
e ficava correndo de um lado pro outro da sala, a atitude era de brincar
sozinha, mas sem demandar a presença dele. Quando era de seu interesse ele
se aproximava e assim se mostrava disponível para ter uma companhia na
brincadeira.

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Certo dia a intervenção foi de deixá-lo livre e não demandar nada. Ele correu
por toda a instituição, gerando insegurança, pois estava-se responsável por
sua integridade física e pelo que os outros iam pensar, porém ao mesmo tempo
entendia-se que aquilo era importante para a relação cliente-terapeuta. Depois
disso, ele vinha aos atendimentos mais disposto próximo fisicamente.

Os sentimentos e sensações durante estes atendimentos eram os mais


variados possíveis: cobrança pessoal e dos pais por uma melhora no quadro
de seus filhos. A responsabilidade era muito grande, pois muitos se auto
agrediam e durante o tempo do atendimento a responsabilidade por sua
integridade física é do psicoterapeuta, dentro do possível. Diante disto, cada
atendimento gerava várias formas de sentimentos e sensações. Quando havia
interação, por mínima que fosse, havia a sensação de satisfação e motivação.
Em alguns momentos o sentimento era de não querer nunca mais voltar para o
trabalho e que ele de nada servia. Outras vezes sentia-se que se houvesse
paciência, as coisas iriam acontecer ao seu tempo. Olhando para trás, hoje é
possível enxergar que era uma verdadeira “montanha russa” de emoções, pois
em alguns minutos havia felicidade com o trabalho, outras, frustração total.

Foi possível aprender que, principalmente através dos autores Müller-Granzotto


e Müller-Granzotto, o trabalho com autismo é muito no sentido pedagógico:
Quando se fala em “linguagem pedagógica” é para ressaltar que a importância
do trabalho clínico deve acontecer no mesmo nível do sócio educador,
pedagogo ou do acompanhante terapêutico. Estando neste lugar, o clínico
coloca-se entre os ajustamentos autistas e as demandas sociais, facilitando
uma comunicação objetiva, plena de objetos, que aconteça no nível das coisas
e das palavras, apoiando o cliente nas atividades em que poderão fazer este
sujeito assumir valores e papeis sociais, ou seja, o Gestalt-terapeuta facilitará
para a construção da função personalidade deste sujeito.

Diante desta forma de intervenção, muitas vezes havia o sentimento de ser


uma pedagoga, e não uma psicóloga. Este era um questionamento frequente,
pois não me havia a sensação de estar atuando naquilo que era esperado.

6. CONCLUSÃO

O trabalho com pessoas que fazem ajustamentos de defesa contra a demanda


já é por si só desafiador. Deparar-se com um mundo ainda mais diferente do
habitual, onde afetos são considerados ameaças ou simplesmente não
apresentam resposta e precisam ser afastados, torna o trabalho com este
público uma nova forma de enxergar o mundo.

No trabalho com autismos, um olhar de um apenas segundo do cliente para o


psicoterapeuta equivale a uma ótima evolução de um trabalho de meses; Um
convite para entrar na brincadeira que o cliente construiu equivale a um ganho
imenso, dando fim à sensação de ser invisível como muitas vezes é sentida
nos atendimentos.

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Ou seja, para trabalhar com estes ajustamentos o psicoterapeuta precisa estar


preparado teórico e pessoalmente, para conseguir identificar as demandas que
o cliente, psicoterapeuta, família e sociedade apresentam, tentando assim
neutralizá-las na medida do possível e tentar proporcionar aos indivíduos que
fazem ajustamentos de isolamento um mundo mais tranquilo de ser vivido e
menos demandante daquilo que não tem resposta.

Sendo a Gestalt-terapia uma abordagem relativamente nova e com um


passado focado em práticas e experimentos, a mesma foi por um tempo uma
abordagem com certas limitações bibliográficas, porém o cenário atual vem
colocando este passado em seu devido lugar.

Por isso, é de extrema importância identificar que muitas demandas como o


Autismo, o qual fica cada vez mais conhecido e presente no cotidiano dos
consultórios e da vida de um modo geral, necessita de mais produção
acadêmica no intuito de fortalecer a prática clínica, a comunidade acadêmica e
consequentemente a sociedade de um modo geral.

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Endereço para correspondência:


Marina Nogueira de Barros
E-mail: marinanbarros@gmail.com

Recebido em 17/04/2014
Aprovado em 03/09/2014

Revista IGT na Rede, v. 11, nº 20, 2014, p.193 – 241. Disponível em http://www.igt.psc.br/ojs
ISSN: 1807-2526
241
BARROS, Marina Nogueira de - O psicoterapeuta invisível: reflexões sobre a prática
Gestáltica com ajustamentos autistas.

NOTAS

Psicóloga formada pela UNAMA desde janeiro/11 e especialista em Psicologia


Clínica com ênfase em Gestalt Terapia pelo Centro de Capacitação em Gestalt
Terapia (CCGT) desde fevereiro/13. Além do trabalho no consultório, já atuou
como psicóloga clínica em uma instituição de pessoas com necessidades
especiais e realizou atendimento clínico domiciliar a idosos e pacientes
acamados. O consultório particular fica em Belém-Pa e atende crianças,
adolescentes e adultos.

Revista IGT na Rede, v. 11, nº 20, 2014, p.193 – 241. Disponível em http://www.igt.psc.br/ojs
ISSN: 1807-2526

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