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UNIVERSITÉ PARIS-SORBONNE
THÈSE
pour obtenir le grade de
DOCTEUR DE L’UNIVERSITÉ PARIS-SORBONNE
Discipline/ Spécialité : Musique et Musicologie
Présentée et soutenue par :
Sous la direction de :
Madame Michèle BARBE, professeure à l’Université Paris-Sorbonne
Monsieur Henrique SOARES MONTEIRO, professeur à l’Universidade de São
Paulo
Membres du jury :
Monsieur Jean-Yves BOSSEUR, directeur de recherche au C.N.R.S.
Madame Yara Borges CAZNOK, professeure à l’Universidade Paulista Júlio de
Mesquita Filho
Madame Laurence LE DIAGON JACQUIN, professeure à l’Université Rennes 2
Monsieur Mário RODRIGEZ VIDEIRA JÚNIOR, professeur à l’Universidade de
São Paulo
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
Escola de Comunicações e Artes
Departamento de Música
UNIVERSITÉ PARIS-SORBONNE
École Doctorale V « Concepts et Langages »
Musique/Musicologie
São Paulo
2012
ALEXANDRE SIQUEIRA DE FREITAS
São Paulo
2012
FOLHA DE APROVAÇÃO
Aprovada em:
Banca examinadora
Ao Prof. Dr. Eduardo Henrique Soares Monteiro e a Prof. Dr. Michèle Barbe, que com
competência me orientaram nesta pesquisa.
Aos amigos Miqueli Michetti, Paulo da Costa e Silva, Daniel Andrade, Tatiana
Sakurai, Marjolein Mordyck, David McDonald, Fernanda McDonald, Graziela
Andrade, Carolina Natal e Fabien Goddefroy pelas contribuições, conselhos, mas
sobretudo pela amizade.
Esta tese tem como principal objetivo sugerir diretrizes para se observar encontros
entre artes, matérias e técnicas artísticas distintas e caracterizar algumas das passagens
possíveis e interações entre o sonoro e o visual. Primeiramente, discorremos sobre as
diferenças entre as artes e as maneiras de organiza-las em sistemas classificatórios. Em
seguida, nos voltamos ao estudo da noção de semelhança das mesmas, à Estética Comparada
e apresentamos algumas elos e interseções entre os fenômenos musicais e visuais. As
semelhanças são expostas, mais à frente, através de traços específicos, aos quais chamamos de
“similitudes”, de acordo com o entendimento de Michel Foucault. A partir dessas últimas,
apresentadas pelos nomes de simpatia, emulação, analogia e convenientia, propomos
maneiras de se observar encontros entre o sonoro e o visual. Da simpatia provém a noção
ressonância, que se baseia na liberdade do receptor de estabelecer correspondências entre
pares de obras de arte distintas e fertilizar mutuamente seus entendimentos. Os reflexos se
endereçam às obras cujos artistas procuraram aplicar em sua própria arte elementos provindos
de uma outra arte e encontram suas bases nas similitudes de emulação e analogia. Finalmente,
as confluências. Neste terceiro grupo incluem-se obras que contém em sua própria estrutura
matérias sonoras e visuais. Na origem das confluências está a convenientia, similitude que
trata da coexistência entre elementos heterogêneos. Pablo Picasso, Igor Stravinsky, György
Ligeti, Mark Rothko, Henri Dutilleux, Paul Klee, Alban Berg e Serguei Eisenstein são os
artistas cujas obras ilustraram as ressonâncias, reflexos e confluências de nossa pesquisa.
Palavras-chave:
Estética Comparada, semelhança entre artes, música e pintura, classificação das artes.
RESONANCE, REFLECTIONS AND CONFLUENCES:
Three ways of conceiving the resemblances between the sonorous and visual in twentieth
century art works
ABSTRACT
Key-words:
Comparative Aesthetics, resemblance of arts, music and painting, classification of the arts.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................... 25
3. György Ligeti encontra Mark Rothko: Atmosphères e Black Painting n.1 ............. 194
a) As Obras ................................................................................................................................. 194
b) Arte Fractal ............................................................................................................................ 196
c) Afirmando Uma Nova Teatralidade ............................................................................... 201
d) “Protegendo” e “Violando” Sistemas ............................................................................ 206
e) Obras Multissensoriais ....................................................................................................... 210
INTRODUÇÃO
Esta tese tem como principal objetivo sugerir diretrizes para se observar encontros
entre artes, matérias e técnicas artísticas distintas e caracterizar algumas das passagens
possíveis e interações entre o sonoro e o visual. Em outras palavras, trata-se de sugerir
perspectivas ou ângulos a partir dos quais podemos analisar paralelamente obras de arte de
diferentes naturezas, como uma peça musical e uma pintura, ou certa obra que comporte em
seu núcleo diferentes matérias artísticas, como uma ópera ou um filme. Partimos do
pressuposto de que é possível, através do exercício de aproximação de obras e matérias,
fertilizar nossos entendimentos sobre as obras e renovar seus sentidos.
Como deve acontecer em grande parte das pesquisas, esta tese nasceu de uma
curiosidade momentânea que, aos poucos, foi ganhando cada vez mais espaço. Sua ideia
embrionária surgiu da percepção de uma atmosfera comum, sobretudo entre certas obras
musicais e pinturas. A partir daí, nos indagamos sobre a existência de equivalências
estruturais ou de algum tipo de correspondência que aproximasse artes distintas. Persistia em
nós a sensação de que semelhanças fugidias transitavam entre obras e, bastaria um olhar
agudo sobre o quadro e a música, e suas semelhanças reluziriam, bem nítidas. No entanto,
rapidamente percebemos que era preciso olhar mais de uma vez para que as semelhanças
entre os objetos emergissem. Seria necessário, por um lado, uma reflexão ampla dirigida às
questões que tangem o próprio estatuto dos objetos artísticos. Por outro lado, seria preciso que
interviessem a experiência estética no contato com as obras e a análise específica dessas
mesmas obras.
Quando nosso interesse por esse tema se refletiu na leitura de obras de referência,
verificamos que as teorias e as práticas que propõem cruzamentos entre atividades artísticas
exercem há tempos uma fascinação em muitos artistas, filósofos, críticos, etc. São numerosos
aqueles que, com seriedade, investigaram o parentesco das artes e não se contentaram com a
descrição de suas reflexões por meio de metáforas rasas ou caracterizações imprecisas.
Tão grande o interesse pelo tema foi se tornando que foi preciso solicitar auxílio de
outras disciplinas, além da Musicologia, para se construir elos sólidos entre objetos artísticos.
A Filosofia, a Estética, a Fenomenologia e as Artes Visuais foram as mais demandadas,
mesmo que, como veremos, todas elas parecem atuar no interior da chamada Estética
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Como veremos, esses olhares sobre os contatos de artes e matérias a partir de seus
proponentes, surgem do próprio estudo das similitudes e de certos atributos que as definem.
Cada umas das quatro contém em seu cerne algum elemento que estimulou e deu origem as
nossas ressonâncias, reflexos e confluências.
Cada grupo se constitui em um espécie de diretriz para o estudo comparado das artes e
das matérias e será ilustrado por obras ou pares de obras. Nos concentramos em criações do
século XX que nos pareceram emblemáticas no interior de cada um dos três grupos. A escolha
das obras se deu a partir da observação atenta de um grande número de possibilidades que
estão, a propósito, citadas no final dos capítulos da segunda parte da tese.
Entretanto, mais que criar sistemas classificatórios ou fixar termos, o que move esta
tese é o desejo de renovar olhares e nossa relação com os objetos artísticos, perturbando
fronteiras e liberando novos sentidos. Nos parece mais importante confrontar incessantemente
objetos, produzir conhecimentos e solicitar novas posturas perceptivas que classificar obras
em sistemas fechados.
Como a tese se situa em uma zona de interseção de disciplinas e teorias, foi preciso
estabelece-la a partir de uma sólida estrutura global, que a protegesse dos riscos da dispersão.
Não se deve perder de vista o fato de que, tanto as descrições de sistemas de classificação das
artes, de disciplinas e das similitudes na primeira parte da tese, quanto as análises de obras
precisas da segunda, são partes de um projeto maior e não objetivos em si mesmos. O
arbitrário e não arbitrário nas inúmeras escolhas no interior da tese sempre se conformaram ao
nosso objetivo principal, isto é, se estabelecem no interior das diretrizes propostas para a
observação dos encontros entre artes e matérias.
Aquilo que começou como intuição, tornou-se ideia, projeto e, agora, trabalho
acadêmico. Este percurso foi movido por uma curiosidade e um amor pelo tema que se
!
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mantiveram ativos da primeira à última linha. Esperamos que as reflexões e todo nosso
esforço incite novas intuições para, quem sabe, tornar-se ideia, projeto e, mais tarde, novas
pesquisas.
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PRIMEIRA PARTE
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Diferenças – Semelhanças – As Quatro Similitudes
AS DIFERENÇAS ENTRE AS ARTES 31
Capítulo 1
Capítulo 1
O título é claro e se abre a uma obviedade. Nada mais evidente que a existência de
diferenças entre as artes. Seja na criação, na execução ou na recepção, os indivíduos se
orientam e expressam preferências por uma ou outra arte. Mesmo aqueles que declaram
apreço por todas, revelarão maior competência em uma arte em especial. Uns são mais
tocados pela potência das cores, das formas visíveis, outros pelo som, musical ou encarnado
em linguagem verbal, outros ainda pela plasticidade dos gestos ou a compreensão de um texto
escrito. Nada mais evidente. As artes são diferentes.
Cada arte tem seus próprios meios, suas técnicas, suas matérias, enfim, uma
independência. Cada artista caminha, soberano, em seu domínio. Cada qual com seu
conteúdo, com sua forma. Exclusivas e singulares são as artes. Comparar incomparáveis pode
ser tarefa estéril e desnecessária.
Cor e som de maneira alguma podem ser comparados, embora ambos remetam a uma
fórmula superior, a partir da qual é possível deduzir cada um deles. Ambos são como dois
rios que nascem na mesma montanha, mas devido a circunstâncias diversas correm sobre
regiões opostas, de modo que em todo o percurso não há nenhum ponto em que possam
ser comparados. Ambos são efeitos gerais e elementares segundo a lei universal que tende
a separar e unir, oscilar, pesando ora de um lado, ora de outra lado da balança, mas
conforme aspectos, maneiras, elementos intermediários e sentidos completamente
distintos. (Goethe, 1993, p. 134).
Uma pintura tem autonomia, assim como uma peça musical ou um poema. As
correspondências devem existir, conforme os escritos de Goethe, somente na instância
primordial, em uma “mesma montanha” longínqua e inacessível. Embora uma arte possa
evocar, estimular ou inspirar outra, elas permanecem autônomas, cada qual em seu território.
Os problemas de cada arte são particulares e – segundo muitos – intransferíveis. Como
pensou Francis Bacon, por exemplo, em relação à música e a pintura e suas possíveis
influências mútuas.
Acho que existem aí dois modos de expressão que não tem nada a ver entre eles e que
cada artista, no seu território, se confronta com problemas muito diferentes. [...] acho que
32 !!!AS!DIFERENÇAS!ENTRE!AS!ARTES!!
Capítulo!1!
Mas assim que nos aproximamos da evidente diferença das artes e buscamos ampliar
nosso olhar, a fragilidade de alguns de seus pressupostos se revela e percebemos que a
questão suscita mais interrogações que certezas. Quando as obviedades não mais nos
satisfazem e estendemos as reflexões para além delas, diferenças e semelhanças se relativizam
e negam o pragmatismo do senso comum. Matéria e técnica podem ser facilmente citadas
quando se trata de distinguir as artes entre elas. No entanto, essas noções carregam em seu
interior toda uma nuance de sentidos e significações, seja no âmbito filosófico, seja nos
entendimentos correntes.
Apesar da incômoda e virtual singularidade primordial das artes, este capítulo afirma,
em vez de diferenças absolutas, múltiplas faces das diferenças. Voltamo-nos aos “rios
separados que nascem da mesma montanha”. Esses “rios”, porém, possuem contornos
diferentes, de acordo com os olhares que lançamos sobre eles. São ao mesmo tempo
singulares e plurais.
O problema da diferença das artes esbarra em uma questão que, desde Aristóteles,
instiga muitos estetas, filósofos e quem quer que reflita sobre ela. Trata-se da definição de
limites ou do estabelecimento de sistemas de classificações das práticas artísticas. Estes vão
variar enormemente, pois se baseiam em uma multiplicidade de critérios, tão ou mais
numerosos que as próprias artes. Muitos deles, declarada ou implicitamente, são valorativos e
estabelecem hierarquias, colocando tal ou tal arte em primeiro plano. Muitos têm sua origem
na divergência de entendimentos das noções de matéria e técnica na arte.
Quando observamos com algum distanciamento algumas classificações das artes,
parece claro que nenhuma delas é definitiva e absoluta. Cada uma se estabelece segundo a
arbitrariedade de um olhar. Isso não impede, no entanto, que cada modelo ou sistema carregue
suas verdades. E essas verdades, embora às vezes contraditórias e excludentes, se constituem
em elementos que fortalecem as marcas de cada arte e sustentam sua pluralidade essencial.
1
“Je pense qu’il y a là deux modes d’expression qui n’ont rien à voir entre eux et que chaque artiste dans son art
est confronté à des problèmes très différents. […] je pense que chacun travaille dans son domaine et que les
influences fondamentales proviennent du domaine dans lequel on s’exprime.”
AS DIFERENÇAS ENTRE AS ARTES 33
Capítulo 1
Filhas da mesma mãe, as musas que incarnam as artes podem admirar-se mutuamente,
caminhar lado a lado, até mesmo atuar em conjunto. Cada uma, porém, vive por si. Suas
ligações são profundas, de sangue, mas suas existências têm, no mínimo, certa independência,
caracterizada pela expressão individual de suas obras.
Nas manifestações mais elementares, as artes se distinguem em sua natureza pela
matéria e pela técnica. Nossa opção pela pluralidade das artes neste capítulo é abraçar, mesmo
que temporariamente, um ideal empírico que vai, por vezes, sacrificar a unidade primordial da
arte para afirmar a força e a autonomia das musas. Ou seja, a força e a autonomia das artes.
a) Do Singular ao Plural
2
“[...] vielle sourcière, mauvaise et géniale, pleine de savoir et de ressentiments, la Mémoire, qui conservait, par
devers elle, les souvenirs du Monde, étoiles et cristaux; ceux du corps et de vivants, rides et fossiles; et de
société, mensonges et archives. Elle avait neuf filles.”
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Capítulo!1!
3
A título de curiosidade, o Dicionário Ilustrado da Língua Portuguesa, de Caldas Aulete (Rio de Janeiro, Editora
Delta, 1948) traz a seguinte citação, atribuída a Castilho: “As musas quantas são? – diz que nove, eu sei lá!”. O
mesmo dicionário apresenta também a significação de musa como engenho poético, a faculdade de fazer versos.
Acrescenta ainda a expressão “correr a musa”, exemplificada com: “hoje não posso escrever, não me corre a
musa”.
4
Il y a les Muses, et non pas la Muse. Leur nombre a pu varier, ainsi que leurs attributs, toujours les muses ont
été plusieurs.
5
Do grego µουσική τέχνη - musiké téchne, a arte das musas.
AS DIFERENÇAS ENTRE AS ARTES 35
Capítulo 1
As Musas são nomeadas a partir de uma raiz que indica o ardor, a tensão viva que plana
na impaciência, no desejo ou na cólera, daquela que queima de desejo de conhecer e de
fazer. Em uma versão mais amena, diríamos: “os movimentos do espírito”. (Nancy, ibid.,
p. 11)6.
Se nós nos atemos à pluralidade das musas, é possível crer que a pluralidade das artes
é um característica inerente à própria natureza da arte. A multiplicidade se sobrepõe à unidade
e esta última se converte em um pressuposto, quase sempre vago, de uma origem comum ou
“mesma montanha”, como na metáfora de Goethe no princípio do capítulo. Existem muito
mais tratados e estudos que se voltam a especificidade de cada arte, ou seja, àquilo que as
diferencia, que estudos voltados a observar suas semelhanças ou aquilo que une as artes.
Mesmo entre os filósofos, muitas vezes dedicados à busca de uma essência única da arte,
existem aqueles que optam por creditar a essência da arte à especificidade de cada obra de
arte. Evitam, dessa forma, apresentar algum conceito positivo e geral. Adorno, por exemplo,
tanto em seu texto A Arte e as Artes (1997), quanto em sua Teoria Estética (1989), ilustra
muito bem a opção daqueles que priorizam a diferença sobre a semelhança, o plural sobre o
singular. Anne Boissière (1997, p. 54-55), comenta o fato de Adorno renunciar a todo
conceito a priori de arte e procurar ordenar sua estética pelas especificidades das obras.
Cada obra propõe dificuldades especiais e diversas seja para o artista, crítico ou
filósofo. As existências de obras musicais são diversas das pictóricas, assim como são
diversas suas execuções, interpretações e durações. Quando nos interessamos pelas
particularidades, não renunciamos a crença em uma unidade fundamental, mas esta será tão
somente um pano de fundo para este capítulo. Tratemos agora da pluralidade das artes, da
pluralidade das musas. Um plural que encontra sua força justamente nas diferenças. Na
diferença das musas, das artes.
Essas diferenças serão percebidas ou demarcadas por vários filósofos, estetas e artistas
de diversas maneiras. Elas variam em função dos critérios escolhidos e adquirem nuances
mais ou menos sutis, como veremos neste capítulo. Mas antes vamos refletir sobre questões
determinantes no que diz respeito à delimitação e à multiplicidade das artes. Não é possível
tratar das diferenças das artes sem uma consideração mínima sobre suas matérias e técnicas. É
evidente que a diferença das artes está ligada a esses dois fatores. Mas o que parece ser uma
obviedade, mais uma vez, só o é superficialmente. Desde que nos voltamos com mais atenção
para as noções de técnica e matéria nos deparamos com uma série de tensões que podem se
6
“Les Muses tiennent leur nom d’une racine qui indique l'ardeur, la tension vive qui s'élance dans l'impatience,
le désir ou la colère, celle qui brûle d'en venir à savoir et à faire. Dans une version apaisée, on dit : « les
mouvements de l'esprit».”
36 !!!AS!DIFERENÇAS!ENTRE!AS!ARTES!!
Capítulo!1!
abrir a mal-entendidos e confusões. Os dois polos que orientam esse capítulo, o singular e o
plural, se revelarão também nos entendimentos de matéria e de técnica. O filósofo italiano
Luigi Pareyson (2001) tratou em detalhe destas duas questões que fundamentam esse estudo
das diferenças das artes.
7
“Bref, la loi suprême de l’invention humaine est que l’on n’invente qu’en travaillant.”
8
Vamos entender a exteriorização da arte da maneira mais imediata que nos vem ao espírito, como a simples
manifestação da arte. Ao termo “exteriorização”, a tradutora para o português desta obra, Maria Helena Nery
Garcez, optou por empregar o neologismo extrinsecação. Acreditava ela que, desta maneira, seria mais fiel ao
termo italiano extrinsecazione. Nesta pesquisa, a utilização do termo exteriorização em vez do neologismo de
Garcez não parece interferir no nosso raciocínio. !
AS DIFERENÇAS ENTRE AS ARTES 37
Capítulo 1
A antiga distinção entre arte liberal e mecânica ou servil, que perdurou da Idade Média
aos fins da Renascença, trazia essa crença que valorizava a interioridade. Deixava, por isso,
entre as artes mecânicas, que eram menos nobres, aquelas cuja existência era fortemente
atrelada a um corpo físico, tais como a pintura ou a escultura. Os artistas renascentistas se
esforçaram para incluir essas duas artes entre as artes liberais e as legitimarem como cosa
mentale 9 . E, assim se delineava, gradativamente, a segunda maneira de entender a
exteriorização da arte concretizada na matéria artística. Esta última seria, não mais um
simples processo de afirmação daquilo que preexistia no interior dos artistas, mas a afirmação
do aspecto executivo da arte. O que interessa nessa visão é principalmente sua produção, seu
fazer. A arte se encarnaria e se realizaria efetivamente no gesto de construí-la. Esse
pensamento exalta o puro ofício do artista, como se a obra de arte se instaurasse em seu
próprio fazer. Correntes francesas de meados do século passado reivindicaram incisivamente
a soberania desse aspecto na materialização ou exteriorização da arte (ibid., p. 151)10. A obra
de arte, seja ela visual ou auditiva, consiste em sua realidade física e constitui-se propriamente
nela e não como apenas um prolongamento de uma realidade interior, acreditam os adeptos
dessa vertente.
Nesta antítese estaria em jogo a arte como “fantasia ou ofício, ou sonho ou artesanato,
ou pura interioridade ou simples exteriorização, ou figuração somente espiritual ou mero
produto técnico, ou imagem puramente interior ou apenas objeto físico” (ibid., p. 152).
Porém, em vez de criar oposições, a reflexão sobre a arte pode ter como complementares cada
uma dessas forças. Enquanto esses dois aspectos da arte, interior e exterior ou
“exteriorizante”, estiverem distintos ou separados, ou mesmo em oposição, existe o risco de
um dos dois ser priorizado, ou de um anular o outro. É o que ocorre, por exemplo, quando
julgamos, no senso comum, certa obra de arte como meramente técnica, ou, ao contrário,
sentimos em um artista algum tipo de desprezo pela execução técnica ou materialização e
consideramos a obra como puro intelectualismo. As obras de arte que parecem mais bem
9
A frase: “La pittura è cosa mentale” (A pintura é coisa mental), atribuída a Leonardo Da Vinci, é
frequentemente citada nos mais diversos escritos sobre arte. A noção de arte liberal será comentada com mais
detalhes na segunda parte desse capítulo. !
10
Nos anos quarenta do último século, Francis Bacon (1909-1992) declarava que suas obras não existiam antes
que ele pegasse no pincel e que seu pensamento se construía na medida em que traçava suas primeiras linhas e
cores. Esse comentário de Bacon foi feito no documentário dirigido por David Hinton de 1985, intitulado
Francis Bacon, e parece ilustrar muito bem uma maneira de entender o importante peso dado à exteriorização da
arte, como centro ou conteúdo da própria arte.
38 !!!AS!DIFERENÇAS!ENTRE!AS!ARTES!!
Capítulo!1!
sucedidas são justamente aqueles em que os significados físicos coincidem com os espirituais,
sem que nenhum deles se sobreponha.
Uma explicação da arte está ligada à possibilidade de mostrar como nela, figuração
interior e operação executiva, atividade espiritual e extrinsecação física, idealidade e
sensibilidade, longe de se contraporem ou de se sucederem, ou de se anularem uma na
outra, coincidem, pelo contrário, sem resíduo. (ibid., p. 152).
A apresentação dessa antítese e a conclusão do esteta italiano vão, por vias diferentes,
ao encontro do pensamento do filósofo da arte Étienne Gilson que, em seu sistema das “artes
do belo” que veremos mais abaixo, une a matéria, entendida em sua conotação mais simples,
à técnica, como maneira de exteriorização de uma arte (Gilson, 1964, p. 37). Logo, a matéria
e sua exteriorização estariam intimamente ligadas e se configuram em uma totalidade. A
matéria, para o autor francês, encontra o senso comum, quando ele distingue as matérias em
função da sua natureza, que faz dela pedra, madeira, cor, som musical, palavra escrita ou
pronunciada. O artista vai ter sempre que levar em conta as determinações naturais no uso
artístico que ele fará. Mas a matéria já possui sua própria vocação, com a qual o artista
dialogará. Em um bloco de mármore de certo tamanho, forma e cor, ocorrerão, não sem sua
resistência, as trocas entre as operações do artista e as atribuições da própria matéria. A
liberdade do artista consiste em escolher suas matérias. O exemplo do escultor ilustra
particularmente bem o contato do artista com sua matéria, mas relações análogas existem em
todas as artes, até mesmo aquelas em que a materialidade se divide entre o aspecto visual,
semântico e o sonoro, como é o caso das artes da palavra. A diversidade das técnicas nas artes
reside justamente na diversidade das matérias, apesar de existirem muito mais matérias que
artes11.
Na tentativa de objetivar a noção de matéria sem estendê-la indefinidamente, nem
tampouco fechá-la em alguma objetividade redutora, Pareyson (2001, p. 159-161) propõe seu
entendimento segundo três ângulos. O primeiro diz respeito à sua constituição física,
mensurável e inviolável em sua estrutura fundamental. A matéria se submete às leis
“determinantes e necessárias, tais quais as da ótica, da acústica, da estática da química, da
mineralogia, etc”. O segundo e o terceiro ângulo tratam da aplicação dessas matérias
concretas. Ora no uso comum: as cores e linhas como sinais ou signos, ou na utilização
corrente da língua destinada à expressão e à comunicação do pensamento; ora na destinação
artística de um material. É importante notar ainda que a matéria, vista sob o primeiro ângulo,
ou seja, em sua concretude, apesar de pressupor uma utilização que não é necessariamente
11
Nada impede, por isso, que novas artes possam surgir, comenta Gilson (1964, p. 25).!
AS DIFERENÇAS ENTRE AS ARTES 39
Capítulo 1
artística, ela não é virgem e informe, e sim plena de carga espiritual e portadora de uma
vocação de forma. Toda matéria teria um potencial ao mesmo tempo artístico e de uso
comum. Essa dupla vocação fica evidente quando, em atividades cotidianas, verifica-se aquilo
que Pareyson de “desejo de arte” (2001, p. 162). Um certo esmero e capricho em realizar
qualquer tipo de tarefa reflete esse desejo e comprova que uma matéria já vem:
quais o artista encontra e propõe soluções técnicas. Existem ainda os que acreditam que essa
questão é estéril e que, não se pode separar arte e técnica. E na obviedade da reflexão creem
ter resolvido esse problema da Estética. Mas, como disse Pareyson, “se as diferentes atitudes
se enrijecem e se contrapõem, a polêmica é nítida e a conciliação impossível“ (2001, p. 167).
A própria existência destas três posturas, tão presentes no senso comum, já revela que esse
encontro, entre técnica e arte, é complexo. Aliás, os citados posicionamentos muitas vezes se
constituem como instrumentos importantes de julgamento estético. Acrescenta-se ainda à
essas três atitudes, a corriqueira associação de técnica e estilo. Fala-se na técnica particular
deste ou daquele artista ou associam técnica a conformidade a uma determinada escola. Essas
maneiras de pensar, longe de se limitarem ao senso comum, estão presentes também, de
outras formas, em reflexões filosóficas e estéticas.
Ainda segundo Pareyson (2001, p. 167), dois são os posicionamentos principais face
ao problema da técnica. O primeiro grupo é composto pelos “românticos”, para os quais o
principal é a originalidade, a inspiração, a carga espiritual. A prática técnica não tem
relevância por si mesma, pois a história de uma linguagem artística se constrói a partir das
obras, e as condições técnicas, por si mesmas, são destituídas de importância artística. O
segundo grupo é constituído pelos “técnicos”, aqueles que defendem a disciplina e o amor ao
savoir-faire. Para eles, a técnica ocupa lugar de honra.
Cada arte tem a sua técnica, a sua “linguagem”, com uma dada gramática e uma dada
sintaxe, e o artista deve antes de tudo exercitar-se neste trabalho com uma rude disciplina
e um exaustivo tirocínio; [...] a arte não é tal se não é também ofício, e, por isso, cada
artista é, antes de tudo um artesão. [...] [Neste grupo] afirma-se que há um
desenvolvimento autônomo da técnica e da linguagem de uma determinada arte,
desenvolvimento que põe os artistas diante de determinados problemas técnicos que eles
tentam resolver, e assim nascem, para eles, possibilidades expressivas que primeiro não
existiam, de modo que adquire grande relevância artística o trabalho de exercitação, isto
é, as pesquisas técnicas, estilísticas, formais. (ibid., p. 166-167).
12
Pareyson ainda cita a distinção feita por Croce entre “técnica interna” e “técnica externa”, a primeira é
identificada como o próprio ato da criação e a segunda se refere ao “ato prático da ‘comunicação’, isto é, à
entrega da figura artística”. (ibid., p. 166).
AS DIFERENÇAS ENTRE AS ARTES 41
Capítulo 1
13
Segundo Souriau (1990, p. 1219), a “poiética” (poïétique) é o estudo filosófico e científico dos processos
criativos das obras. O termo poética será muitas vezes usado como sinônimo de poiética neste trabalho, tal como
fizeram alguns autores, por exemplo, Luigi Pareyson, John Cage, Stravinsky e Paul Valéry, embora tenha sido
42 !!!AS!DIFERENÇAS!ENTRE!AS!ARTES!!
Capítulo!1!
incessantemente, as artes de sua tranquilidade e, dessa forma, deixa de ser mero conjunto de
procedimentos, instrumentos e cálculos. A técnica propulsiona o sublime na direção de seu
fim. “O ‘fim da arte’ é sempre o começo de sua pluralidade.” (ibid., p. 66)14.
De uma maneira mais estética que filosófica, mais positiva que especulativa, Pareyson
situa na história o peso da técnica no interior da arte (2001, p. 21-24). Ele sintetiza uma das
definições tradicionais da arte, no fazer. “Arte como fazer”, que antecedeu à “arte como
conhecer” e à “arte como exprimir”. O fazer foi o mote central da arte da Antiguidade aos
princípios da Renascença. Não que nessa arte não houvesse conhecimento ou expressão, mas
o fazer predominava em sua dimensão utilitária, de uma aplicação artística mais prática e que
não fosse completamente gratuita. A “arte como conhecer” não negava sua dimensão de fazer,
mas enfocava no saber fazer, o savoir-faire, e dava maior dignidade para as artes antes
consideradas como servis ou mecânicas, entre as quais a pintura se incluía. Na “arte como
exprimir”, por outro lado, autônoma e bem desligada de sua obrigatoriedade prática, de sua
funcionalidade, a dimensão do fazer é renegada a um plano inferior, o que pode ser algo
prejudicial, pois desobrigando o artista de uma disciplina regular e o autorizando toda
liberdade, acaba limitando o modo de formá-los e somente aqueles com talentos excepcionais
conseguem se firmar. Pois em arte, mesmo que haja um valor de originalidade e de
sensibilidade impossível de se ensinar, há também uma parte de ofício, de artesanato, algo
possível de se aprender. Sem isso, não haveria razão de ser a existência de cursos, escolas e
formações de artistas. Bastariam as galerias, teatros, salas de exposição, etc. O fazer divide
com o conhecer e o expressar atributos no interior da própria definição social da arte.
Embora o objetivo desta parte da tese seja somente verificar o quanto a tensão entre
técnica e arte (sublime) pode interferir no entendimento da divisão das artes, há ainda uma
distinção muito interessante, apresentada por Mário de Andrade em seu Baile das Quatro
Artes (1964), que é aquela entre técnica e artesanato. Este último seria uma parte da técnica da
arte. Mas uma parte que não a resume.
O artesanato é a parte da técnica que se pode ensinar. [...]. Mas há uma parte da técnica de
arte que é, por assim dizer, a objetivação, a concretização de uma verdade interior do
artista. Esta parte da técnica obedece a segredos, caprichos e imperativos do ser subjetivo,
em tudo o que ele é, como individuo e como ser social. (Andrade, 1964, p. 11).
este último quem primeiro falou em poiética. Neste trabalho, o termo “poiética” será somente utilizado quando o
autor citado se ater a esse termo.
14
“La ‘fin de l'art’, c'est toujours le commencement de sa pluralité.”
AS DIFERENÇAS ENTRE AS ARTES 43
Capítulo 1
por exemplo, Mário o apresenta como artista que agrega em sua plástica o virtuosismo de
artesão e uma significação poética possante e intensa (Andrade, ibid., p. 124).
Existem muitas e variadas maneiras de entender o problema estético da coabitação
tensa entre sublime e técnico, ou arte e técnica, ou arte e artesanato, ou qualquer outra
combinação desses predicados. Vamos nos ater, porém, na constatação da tensão que existe
na questão e suas consequências no interior desta tese.
O singular da arte parece se ligar mais diretamente à dimensão do sublime, do ideal. E
este singular, como disse Nancy (1994, p. 18), deve ser, no mínimo, indiferente à pluralidade
das espécies de arte. O plural deve, assim, residir do outro lado, ou seja, na técnica. A arte,
singular, só se materializa através da sua dimensão técnica, que é, por sua vez, plural. Mas a
técnica da arte, seja em sua dimensão artesanal, acessível, que se pode ensinar, ou em sua
maneira mais absoluta e intocável, indissociável do sublime, não existirá senão através de
linhas, cores, sons, pedras, enfim de um suporte material.
Do fato das artes e suas matérias e técnicas não se deixarem ordenar de maneira
induvidosa e positiva originam-se as mais variadas diferenciações das artes e possibilidades
de classificação e hierarquização.
São muito numerosos os limites das artes sugeridos ou impostos pelos tantos
estudiosos que desejaram ordenar ou buscar maneiras de descrever a multiplicidade das artes.
Atemos-nos naqueles que, com clareza, buscaram uma proposta mais empírica e
classificatória. Embora reconheçamos a instabilidade das fronteiras entre as artes e recusemos
uma tomada de partido definitiva por um ou outro sistema, a observação de algumas
classificações vai nos ajudar a entender, de uma maneira ampla, as diferenças das artes. Ou
seja, as artes em seu aspecto plural.
Vamos percorrer sucintamente algumas importantes referências no que concerne o
pensamento sobre as diferenças ou os limites entre as artes. É preciso lembrar, no entanto, que
a concisão do texto que se segue, e suas inevitáveis lacunas, é um recurso necessário para
evitar o distanciamento do objetivo geral da tese, que é o de propor uma maneira particular de
se observar os encontros entre artes distintas. Uma visão panorâmica, mesmo que incompleta,
deve ser o bastante para entendermos que a diferença das artes não habita somente nas
próprias artes, mas também na subjetividade dos olhares de quem reflete sobre elas.
44 !!!AS!DIFERENÇAS!ENTRE!AS!ARTES!!
Capítulo!1!
15
Ditirambo: hino de louvor a Dionísio. Aulética: prática do aulos, instrumento de sopro da Grécia antiga, cuja
origem é atribuída ao sátiro Marsias. Citarística: prática da cítara. !
AS DIFERENÇAS ENTRE AS ARTES 45
Capítulo 1
seria um poema mudo. E esta antítese adquiriu bastante popularidade durante séculos e é por
vezes citada como primeiro esboço de uma teoria da imagem. Outro autor bastante
mencionado quando se trata do estudo da Estética que compara e aproxima as artes, é Horácio
(65 a.C - 8 a.C.). A famosa citação “Ut pictura poesis” (poesia é como a pintura) vem de sua
Ars Poetica. A frase foi tirada de seu contexto original e acabou quase se convertendo em
uma teoria da poesia e servindo de argumento para a homogeneidade das naturezas da poesia
e da pintura. De fato, a igualdade pretendida entre os poetas e os pintores, em Horácio, não se
situava no plano da natureza dos materiais, mas na liberdade dos artistas de criarem o que
bem quiserem16.
Outros autores antigos também fizeram referência às distinção das artes, são eles:
Plutarco (46-126 d.C.), que se concentrou sobretudo nos materiais com os quais as artes
trabalham, mais do que com a natureza e os objetivos das artes; o escritor grego Filóstratos de
Lemnos (170-250 d.C., aproximadamente), em sua obra Vida de Apollonius, menciona a
dualidade da imitação e da imaginação, a primeira trabalhando com o visível e a segunda com
o invisível; Dion Crisóstomus (nascido 40 a.C.) comparou, em Oração do Olimpo, o poeta
épico Homero e o escultor Fídias no tratamento do deus Zeus. No século I d.C., Longinus,
Caio Plínio Segundo e Quintiliano também fazem observações sobre alguns aspectos da teoria
das artes, mas suas contribuições para a teoria da crítica artística permanecem bem limitadas,
como notou o linguista e tradutor americano Edward Allen McCormick (Lessing, 1989, p. xiii
e xiv).
Nos séculos que se sucedem aos autores citados existe uma aparente lacuna no que diz
respeito à teoria e à classificação das artes. O que se tem, entretanto, é uma distinção, com
ares mais sociológicos do que propriamente estéticos, que tem origem nas classificações
gregas, como mostra o Vocabulário de Estética de Étienne Souriau (1990, p. 1001). Trata-se
da diferenciação entre artes liberais e artes mecânicas ou servis. As artes liberais eram sete e
se dividiam no Trivum, composto pela gramática, retórica e lógica, e o Quatrivium, que
compreendia aritmética, geometria, música e astronomia. As atividades essencialmente
intelectuais das artes liberais se opunham àquelas ditas mecânicas, originalmente destinadas
aos escravos e que eram trabalhos basicamente manuais e, por isso, depreciativos. A arte
musical, estando entre as artes liberais, gozava de maior prestígio. Por isso, grandes artistas
16
Simonides e Horácio são mencionados por Edward Allen McCormick (Lessing, 1989, p. xii) em sua
introdução para o Laocoone de Lessing. Quanto a Horácio, McCormick cita o seguinte trecho de Ars Poetica:
“pictoribus atque poetis
quidlibet audendi semper fuit aequa potestas.”
Traduzido para o inglês como: “poets and painters have always had an equal license to venture anything at all”.
(poetas e pintores sempre tiveram uma mesma licença para tudo ousarem).
46 !!!AS!DIFERENÇAS!ENTRE!AS!ARTES!!
Capítulo!1!
17
Da Vinci, em seu Tratado de Pintura, defendia a superioridade da pintura sobre a música, argumentando que
esta última estava sempre submissa à ação do tempo e que era obrigada a nascer e morrer, enquanto a obra de um
pintor preserva a imagem de uma beleza divina mais do que a própria natureza. (Bosseur, 1999, p. 25).!
18
O título da obra vem da escultura Laocoonte e seus filhos, obra de autoria desconhecida, esculpida na primeira
metade do século I a.C. e exposta atualmente no Museu do Vaticano. A escultura representa um episódio da
Guerra de Tróia relatada na Ilíada de Homero e na Eneida de Virgílio. Laocoonte, sacerdote de Apolo que havia
previsto o risco do cavalo de Tróia representava para cidade, é estrangulado por duas serpentes, junto ao seus
dois filhos. !
19
“[...] I do not promise that, under the name of poetry, I shall not devote some consideration also to those other
arts in which the method of presentation is progressive in time.” !
AS DIFERENÇAS ENTRE AS ARTES 47
Capítulo 1
segundo a qual as artes se diferem de acordo com os objetos e as maneiras como imitam,
ainda é válida na obra de Lessing, mesmo que não seja propriamente afirmada. Sua obra
apresenta as oposições entre pintura e poesia e as distingue sobretudo pela maneira como elas
se relacionam com o tempo, ou seja, na instantaneidade do visual e a sucessividade do verbal.
Entretanto, o autor não situa as duas artes, poesia e pintura, em locais distantes entre eles e
sim em domínios fronteiriços. O filósofo alemão sugere ao leitor ouvir o grito ou o suspiro da
escultura do Laocoonte, que luta para escapar da serpente que o envolve (ibid., p. 15). Apesar
de não colocar em questão a oposição entre sucessão e instantâneo, Lessing diz que o pintor
ou o poeta penetram os territórios um do outro quando, no caso do pintor, coloca na mesma
cena pontos separados no tempo e, no caso do poeta, quando se esforça para dar a ideia de
totalidade a partir da enumeração, parte por parte, de algo. No caso do pintor, o exemplo
citado por Lessing é uma cena de Francesco Mazzuoli (1503-1540) em que existe uma
agressão e uma reconciliação no mesmo espaço, e a representação do filho pródigo por
Ticiano (ibid., p. 91). Assim, a força da poesia ou da pintura deve suspender ou mover as
fronteiras entre esses domínios artísticos. O interesse e a admiração crescente pelo Laocoonte
no modernismo, nos estudos de estética, semiótica ou linguística, é atribuído ao fato de
Lessing ter estabelecido elos entre linguagem e meio de comunicação, sendo a linguagem
considerada como meio poético (McCormick in: Lessing, 1989, p. vii).
A herança do pensamento grego da arte como imitação resistiu, então, durante séculos
e imperou até o limiar do Romantismo. Junto à ela, vinha a dupla existência da arte em sua
unidade e em sua variedade, ou, nas palavras de Pareyson, reinou a “unidade da arte como
imitação e a diferença das artes como pluralidade dos modos de imitar” (2001, p. 174).
No final do século XVIII, surge uma importante obra da Estética, a Crítica do Juízo,
publicada em 1790, de Immanuel Kant (1724-1804). Segundo Nancy (1995, p. 21), a
diversidade das artes para Kant é um dado objetivo e que vai de si mesmo. Ele estabelece
distinções entre arte, natureza, ciência e artesanato remunerado. A partir daí a arte é dividida
entre mecânica e estética e esta última, por sua vez, se ramifica nas chamadas “arte bela” e
“arte agradável”. Em arte bela incluem-se as artes da palavra (por um lado a retórica e a
eloquência, por outro a poesia), as artes da forma (por um lado as artes plásticas, que para
Kant eram a escultura e a arquitetura, e por outro as pinturas, que incluem a pintura entendida
de maneira vasta, a arquitetura paisagista e o mobiliário decorativo e vestuário) e, por fim, a
arte do belo jogo das sensações (música e arte da cor). A chamada “arte agradável” seria
composta de atividades leves que levam a sociedade à descontração. Kant inclui nesse grupo o
que chama de “música de mesa” (Tafelmusik), a arte de compor uma mesa, o divertimento e a
48 !!!AS!DIFERENÇAS!ENTRE!AS!ARTES!!
Capítulo!1!
narrativa (Munro, 1954, p. 154). Mas esse sistema kantiano está longe de ter uma grande
aceitação. É simples reconhecer que no interior dele existem inúmeros elementos incômodos,
como a inclusão de certas artes e a exclusão de outras. Nancy (1994, p. 22) se questiona sobre
a falta de justificativa para sua tripartição e também quanto ao privilégio que ele concede à
linguagem escrita.
Entre o momento em que a Estética se afirmava como disciplina e o pensamento
romântico se consolidava no século XIX, filósofos como J. G. Fichte (1762-1814), F. W. J.
Schelling (1775-1854) et G. W. F. Hegel (1770-1831) constituíam os fundamentos do
chamado pensamento idealista, que fundamentou o romantismo do século XIX. Sob
influência de Kant, esses filósofos estabelecem como mote central de suas pesquisas, as
relações entre o Eu e o Absoluto. As práticas artísticas e os debates sobre arte refletem, ou até
mesmo, se constituem, questões centrais em suas filosofias. A partir de um artigo de Victoria
Llort Lloart (2010, p. 68-74) e da obra de Thomas Munro (1954, p. 155-160) apresentamos
uma síntese de dois sistemas de classificação das artes, o de Schelling e de Hegel.
Para constituir seu sistema de artes, Schelling propõe uma divisão entre artes
figurativas e discursivas. Dentro de cada uma delas se distinguiria três aspectos: um real
(objetivo, natural, físico, corporal, externo), um ideal (subjetivo, espiritual, imaterial, interno)
e uma síntese desses dois. É interessante observar no desenvolvimento deste sistema de artes
que no interior de cada arte existem atributos de uma outra. Por exemplo, na melodia de uma
música reside plasticidade, no desenho de uma pintura reside uma musicalidade. Esse sistema
refletia certamente o ideal de unidade na multiplicidade do espírito idealista que se firmou no
romantismo. Aliás, como observa Munro (ibid., p. 155), na série das artes “reais”, o Infinito
se encarna no Finito, no princípio da beleza, mas particularmente da beleza antiga, e na série
das artes “ideais” o Finito é ordenado no Infinito. Reproduzimos, traduzido do francês, o
sistema de Schelling, tal como o representou Llort Loart (Diagrama 1, 2010, p. 73):
AS DIFERENÇAS ENTRE AS ARTES 49
Capítulo 1
Munro (1954, p. 157) considera Hegel como o primeiro filósofo a explorar a história
da arte em sua totalidade e a revelar uma visão global e um encadeamento lógico das fases.
Entretanto, seu sistema das artes acaba sendo menos uma tentativa de classificação que uma
teoria de evolução e da hierarquia das artes. Em sua obra Estética, publicada em 1835, ele
constrói uma teoria completa da evolução das artes, entendendo-as como revelações da ideia
em formas sensíveis20. No interior de uma ampla teoria ele inclui uma classificação das artes.
O universo da beleza imaginada e da obra materializada percorre três estágios,
complementares e sucessivos ao mesmo tempo: o simbólico, o clássico e o romântico. A esses
três estágios correspondem três tipos de arte com o mesmo nome. E em cada uma das belas-
artes (para ele, arquitetura, escultura, pintura, música e poesia) coexistiriam os três estágios ou
tipos de arte. Hegel atribui às artes particulares a existência de uma arte considerada como a
manifestação da Ideia. Nancy, baseando-se e citando trechos da Estética de Hegel, a relação
que o filósofo estabelece entre a unidade e a multiplicidade das artes:
20
A Ideia, em Hegel, remete ao princípio inteligível da realidade. Um princípio que é uno e universal, desligado
do que é particular, objeto ou fenômeno (Hegel, 1996, p. 35).
50 !!!AS!DIFERENÇAS!ENTRE!AS!ARTES!!
Capítulo!1!
deixando cada um subsistir de uma maneira independente [...] pois é às artes particulares
que as formas de arte devem sua existência”. (Nancy, 1994, p. 23)21.
Somente na realidade “puramente” exterior das artes, no plural, que a unidade da arte
pode se manifestar. Ou seja, a exterioridade das artes, no plural, é fundamental à própria
essência da arte, no singular. “A pluralidade das artes é tão essencialmente irredutível quanto
a unidade da arte é absoluta.” (ibid., p. 24)22.
b) No Século XX
21
“[…] l'‘unité indivise’ de l'art et la ‘différenciation’ de ses ‘formes’ historiques exigent encore, […], ‘la réalité
purement extérieure’, qui doit être celle des ‘arts particuliers’. Sous cet aspect, ‘l'idéal se dissocie en ses
moments constitutifs, laissant chacun subsister d'une manière indépendante [...] car c'est aux arts particuliers que
les formes d'art doivent leur existence’.” !
22
“La pluralité des arts est aussi essentiellement irréductible que l’unité de l’art est absolue.” !
AS DIFERENÇAS ENTRE AS ARTES 51
Capítulo 1
atribuído às obras de arte, não encontram ressonâncias diretas nos esportes. Colocar literatura
entre as artes auditivas também causa estranheza, já que já que o texto literário se dirige
diretamente ao intelecto, independente de se revelar visualmente ou auditivamente.
Outra diferenciação das artes parece se situar bem próxima a uma das distinções
estabelecidas por Aristóteles e aproxima-se, mais sutilmente, das de Lessing. É a do esteta
alemão Max Dessoir, que classifica as artes em espaciais (ou do repouso) e temporais (ou do
movimento). As artes espaciais são caracterizadas por elementos concomitantes. É o caso da
escultura, da pintura e da arquitetura. As artes temporais são conduzidas por elementos
sucessivos (música, literatura e mímica). As outras artes, como o teatro, o cinema, a dança, a
ópera e o balé seriam o que Dessoir chama de artes de associações. Suassuna critica essa
última denominação pelo fato dessas artes, para ele, serem artes independentes e com vida
própria. Chamá-las de artes de síntese, como Nédoncelle o faz, deve ser mais apropriado
(ibid., p. 186).
O filósofo Alain fez face à questão da classificação das artes, que ele preferiu chamar
de sistema, ou seja, um conjunto de propostas, princípios e conclusões, para evitar que seu
texto fosse entendido como algo excessivamente hermético. Uma das suas primeiras
preocupações, entretanto, foi a de dizer que cada obra se afirma por si só e que cada obra cria
sua regra. Dessa forma, como observou Etienne Gilson (1964, p. 23), o autor curiosamente
nega o próprio princípio de um sistema e o próprio título de sua obra. Alain, em seu Systhème
des beaux arts (Sistema de Belas-Artes) (1926), enfatiza as diferenças das artes, mas
reconhece, em seu prefácio, que elos entre as artes se afirmam nos meandros dessas
diferenças. Além das particularidades de seu sistema das belas-artes que veremos mais
abaixo, o filósofo francês apresenta como fio condutor a figura da imaginação, entendida nos
moldes cartesianos, ou seja, ligada primordialmente ao plano dos sentidos e a seus órgãos,
antes de encontrar suas representações no pensamento racional. Por isso ele dedica a primeira
das onze partes que compõe a obra citada ao que ele chamou de “imagination créatrice”
(imaginação criadora). Do jogo entre as percepções – qualificadas como induvidosas – e a
imaginação, e entre as imagens e os objetos, nascem as obras de arte. Elas seriam como a
tradução de imagens combinadas por uma elaboração interior. A potência da imaginação se
define como impressão e emoção misturadas e assim se firma como um mecanismo do corpo
que altera a ação normal das coisas (ibid., p. 25). O estudo sistemático das diferentes artes
seria, para o filósofo francês, como a verificação de sua doutrina da imaginação. Algumas
vezes Alain exalta a beleza da atividade humana que age sobre a matéria e rompe sua
resistência. Apesar de ter elaborado um quadro das belas-artes, o autor revela que seu método
52 !!!AS!DIFERENÇAS!ENTRE!AS!ARTES!!
Capítulo!1!
consiste em expor e explicar cada arte. E isso sem pretender provar nada, nem criar regras.
Pois as regras são as obras que as trazem (ibid., p. 8). Antes de enumerar as artes, Alain
menciona certa classificação natural em dois grupos que se delineiam por eles próprios. São
as artes de sociedade e as solitárias, que não podem ser entendidas de maneira absoluta,
evidentemente23. O fundamento desta distinção está na relação entre o artista ou artesão e seu
objeto. No caso de um pintor, um escultor ou um escritor, a instauração do objeto artístico se
dá sem interferência direta de uma coletividade, mesmo que sua obra se dirija a ela. Estas
artes integram as artes solitárias, nas quais Alain ainda acrescenta a arte do mobiliário, do
ceramista e um certo gênero de arquitetura. No caso da música, mesmo que possa haver
improvisações solitárias, ela vai do indivíduo à assembleia presente e, por isso entraria no
quadro das artes de sociedade, juntamente com a poesia e a eloquência. A arquitetura pública
construiria o elo entre arte coletiva e solitária. Em seguida, Alain nos apresenta uma
classificação das artes em três grupos. O primeiro abrange as artes do gesto, nas quais a
ligação entre imaginação e ação é a mais direta. Incluem-se neste grupo: a dança, a mímica, a
acrobacia, a equitação, a esgrima, a polidez, os costumes, a arte do estilista, do joalheiro, do
cabelereiro, dos armamentos e a arte heráldica24. O segundo grupo é composto pelas artes
vocais ou de encantamento e incluem principalmente a poesia, a eloquência e a música. E o
terceiro grupo, as artes plásticas, que são definidas pelo auxílio que o gesto aporta à visão e
comporta a pintura, a escultura, a arquitetura e a escrita, que é a mais solitária das artes. Alain
alude a conhecida distinção entre artes do movimento e artes do repouso e apresenta a arte
teatral como aquela que reúne em si todas as artes em movimento. Alain deixa claro, na sua
recusa à imposição de regras ou provas, que as classificações são permeáveis e não devem ser
tomadas como definitivas ou verdadeiras.
Duas décadas depois de Alain, o esteta Étienne Souriau apresenta um sistema de belas-
artes como núcleo central de sua obra A Correspondência das artes (1947). Antes de chegar a
um quadro que distingue e nomeia as artes, Souriau apresenta algumas classificações
tradicionais e expõe o que ele julga como suas deficiências (ibid., p. 76-81). Cita, por
exemplo, aquela que distingue às artes do espaço das artes do tempo. Qualquer maior
reflexão, diz ele, revela a fragilidade da classificação, pois a música também é submissa a
23
“[…] sabendo-se que não existe, em tese, arte solitária.” (Alain, 1926, p. 42). “[...] étant bien entendu qu’il n’y
a pas d’art solitaire à parler absolument.” !
24
A inclusão de práticas esportivas, certas atividades profissionais, polidez e costumes na classificação das artes
podem causar estranhamento. Essa inclusão se dá pelo fato de Alain reunir as chamadas artes maiores e as artes
menores. Não se tratando de uma questão essencial desta pesquisa, o que é ou não é arte, ou a diferenciação entre
artes maiores e menores, evitaremos nos debruçar sobre esta questão e nos ateremos aquilo que possa trazer
contribuições diretas a esse histórico de modelos classificatórios. !
AS DIFERENÇAS ENTRE AS ARTES 53
Capítulo 1
Sobre seu esquema (ibid.., p. 98-105), Souriau comenta por exemplo o fato de ter
incluído o arabesco e o defende, dizendo que se trata de um importante princípio na história
da arte, tendo sido usado em ornamentações, pinturas, volutas, flâmulas. Quanto à dupla
arquitetura-escultura, diz que uma escultura pode ser do primeiro grau, desde que submetida à
uma estética autônoma dos sólidos e das formas no espaço à três dimensões. Na parte
dedicada às luminosidades, Souriau nota que as projeções luminosas, ainda que possam atuar
como artes autônomas, intervém mais frequentemente em síntese com outras artes, como o
teatro ou a arquitetura. É nesta mesma região que o autor situa o momento em que a presença
do movimento começa a intervir mais diretamente, quando a foto e a aquarela ocupam a
mesma região que o cinema. A partir daí, nas três regiões seguintes, nada mais é imóvel. No
grupo em que o qualia predominante são os sons articulados, para o que ele chamou de
prosódia pura não existe exatamente uma arte, pois ela seria tão somente a combinação de
sons articulados sem intenção de significação e serviria de material para a poesia. A prosódia
pura estaria em paralelo com a música dramática ou descritiva, pois estas últimas não existem
em uma instância absoluta.
Apesar de um aparente hermetismo em seu sistema, Souriau reconhece a inviabilidade
de uma classificação absoluta e que a questão mais difícil, na verdade, está em saber sobre
que plano podemos estabelecer alguma divisão (ibid.., p. 81).
O filósofo Étienne Gilson também apresenta as maneiras a partir das quais ele
distingue o que chamou de arts du beau (artes do belo) em seu Système des beaux-arts
(1926), já citado mais acima. Gilson se refere a um belo que não é, evidentemente, aquele que
se liga ao ideal platônico ou a um tipo de categoria ideal, e sim o belo como propriedade
inseparável de uma arte que não visa o imitar e sim o produzir, instaurar beleza. Para Gilson,
a atividade poiética, da qual provém todas as artes, é única em sua origem e em seus efeitos
gerais. É a mesma atividade poiética que se diversifica em efeitos particulares de acordo com
a diversidade das matérias sobre as quais ela se aplica. As diferentes artes se originam de um
conjunto de possibilidades que se definem tanto pelos órgãos do corpo humano, quanto pelas
propriedades físicas das matérias da arte. Assim como Alain, Gilson também critica a
diferenciação das artes baseada nas duas formas de sensibilidade: o espaço e o tempo. Esta
distinção viria de uma má compreensão de preceitos kantianos, pois o próprio Kant observou
que a forma do tempo incluiria aquela do espaço. Gilson afirma, então, a impossibilidade de
distinguir as belas-artes em arte do espaço e do tempo, se nos colocamos no lugar do sujeito
que apreende uma obra. Sendo a estética a ciência da experiência do belo e a filosofia da arte
AS DIFERENÇAS ENTRE AS ARTES 55
Capítulo 1
a disciplina que se ocupa da atividade humana de produzir belos objetos, será esta última que
pode se dar ao trabalho de distinguir e até mesmo de esboçar uma espécie de classificação das
artes.
Aquilo que existe de diversidade nas técnicas das artes se liga realmente às matérias sobre
as quais elas operam, mas talvez não nos exprimamos com propriedade quando falamos
de arte como um esforço para vencer a resistência imposta pela matéria. Esta resistência é
real, por isso criar é sempre um esforço, mas ao mesmo tempo em que o artista se impõe
para vencê-la, ele se apoia nela para superá-la. (Gilson, ibid., p. 36)25.
Logo, para Gilson, uma classificação das artes viável teria de levar em conta,
simultaneamente, as matérias em si e as técnicas utilizadas para trabalhá-las e somente a partir
daí seria possível pensar em distinguir as artes.
Gilson apresenta dois grupos vastos divididos de acordo com a natureza da matéria, se
ela é inorgânica ou orgânica. No primeiro ele inclui as artes de extensão e as artes do som. O
segundo se compõe das artes que, quase exclusivamente, tem como matéria o próprio homem,
distinguidas entre as artes do corpo humano e as artes da linguagem, falada e escrita (ibid.., p.
37-39). As artes da extensão são divididas em artes do volume, principalmente arquitetura e
escultura, e artes da superfície, o desenho, a pintura e suas associações ou derivações. Entre as
artes do som, ele distingue as músicas vocais e aquelas que ficam no limiar das artes
inorgânicas e orgânicas: as músicas instrumentais. As artes orgânicas, ou as artes do humano
(les arts de l’humain), dividem-se entre aquelas para as quais o corpo fornece a matéria, como
é o caso da dança; aquelas cuja matéria é a linguagem, que incluem as diversas formas de
poesia escrita ou falada; e, enfim, aquelas que têm como matéria a própria vida humana, seja
como imitação ou como recriação livre, como a mímica e o teatro. Essas últimas requerem a
maior parte das aparências que são dadas na experiência, como os gestos e as entonações. A
partir desses dados compusemos o seguinte modelo esquemático:
25
“Ce qu'il y a de diversité dans les techniques des arts tient donc vraiment à celle des matières sur lesquelles ils
opèrent, mais on ne s'exprime peut-être pas toujours avec propriété quand on parle de l'art comme d'un effort
pour vaincre la résistance que lui oppose la matière. Cette résistance est réelle, et c'est pourquoi créer est toujours
un effort, mais en même temps qu'il s'y oppose pour a vaincre, l'artiste s'appuie sur elle pour la surmonter.”!
56 !!!AS!DIFERENÇAS!ENTRE!AS!ARTES!!
Capítulo!1!
volume (escultura-arquitetura)
arte da extensão
superfície (desenho/pintura)
inorgânica
instrumental
arte do som
vocal
Arte
Gilson nos aponta o que poderia ser uma objeção em sua classificação, a ausência de
certas artes. O romance, por exemplo, não aparece na divisão e isso porque, apesar de se tratar
de uma grande arte e de poder existir grande beleza, ele não se consagra essencialmente ao
belo. Para que seja “arte do belo” é preciso que o fim da palavra seja sua própria beleza,
independentemente de sua verdade (ibid., p. 42-43).
Poucos anos depois de Étienne Gilson, Luigi Pareyson abordou a questão da
classificação das artes, em Problemas da Estética (2008, p. 175-176). Apesar de reconhecer
que, historicamente, o estudo da diversidade das artes está sempre vinculado à preocupação de
explicar sua unidade, o pensamento moderno traz consigo duas posturas fundamentais. De um
lado, os empiristas que creem veementemente na concretude de cada arte. Julgam estéril
maior reflexão sobre a compreensão da experiência estética, no seu sentido amplo. Para eles, a
diferença das artes é evidente e pressuposta. Do outro lado estão aqueles para os quais os
atributos mais genéricos da arte sobrepõem os aspectos mais diretos e empíricos. Esses
últimos acreditam que a aproximação da especificidade os afasta do núcleo central de onde se
origina a arte e onde a arte encontra sua pureza. Acabam, dessa forma, desprezando os
próprios dados da experiência. Essas posturas, como Pareyson tão bem observou, extremadas
como o são na modernidade, negam o princípio fundamental de que a unidade das artes se
realiza nas diferenças. “A unidade e a diferença das artes só se afirmam e se explicam juntas,
e ambas são problemas da estética, isto é, problemas estritamente filosóficos.” (ibid., p. 176).
Logo, é importante que a Estética, numa posição mais aberta e compreensiva, se dirija à
especificidade e à diferença das artes e isso sem o temor de que se ofusque sua unidade. Pois,
tanto a unidade quanto a pluralidade são pressupostos da arte.
AS DIFERENÇAS ENTRE AS ARTES 57
Capítulo 1
Pareyson coloca o problema da multiplicidade das artes como um dos assuntos mais
discutidos e complexos da estética, e observa que vários critérios foram adotados para
explicar a diferença das artes, como por exemplo (ibid., p. 175):
26
A palavra fisicidade, utilizada na tradução de Pareyson por Maria Helena Nery Garcez, é um neologismo que
deve significar a propriedade de algo ser expresso em sua forma física.
58 !!!AS!DIFERENÇAS!ENTRE!AS!ARTES!!
Capítulo!1!
peremptório. Definir e legitimar critérios para observar a diversidade das artes será certamente
tarefa difícil, porém mais fecunda que enumerar e classificar de maneira precisa as artes, algo
provavelmente impossível e estéril.
uma série de variáveis. Logo, mesmo que certo estudioso evite a todo custo uma confrontação
entre as artes, ele já parte de um pressuposto que exclui e inclui e que, de certa maneira, não
deixa de ter algo de hierárquico. Isso acontece, por exemplo, quando Gilson inclui a poesia
entre as artes do belo e exclui a prosa, mesmo que ele afirme que a prosa possa se tornar arte
do belo cada vez que o objetivo da palavra é sua própria beleza, independentemente de sua
verdade. Em seu sistema, no entanto, quem se inscreve é a poesia, como arte orgânica da
linguagem.
Entre os filósofos, muitos dos que se interessaram pelo problema da multiplicidade das
artes, se posicionaram em defesa de uma arte sobre outra.
Kant, como vimos mais acima, privilegiava a linguagem e fundou seu sistema das
artes nas maneiras através das quais os homens comunicam seus discursos (Nancy, 1994, p.
22). Não com a mesma justificativa, mas chegando ao mesmo fim, Schelling também enfatiza
a supremacia da linguagem, como força suprema.
Hegel, no interior de sua classificação das artes, apresentou para cada tipo de arte
(simbólica, clássica e romântica), aquelas que incarnavam mais apropriadamente a Ideia ou o
espírito cósmico que se revela nas formas sensíveis. A arquitetura era a mais apropriada ao
tipo simbólico, a escultura ao tipo clássico e a pintura, a música e a poesia ao tipo romântico
(Munro, 1954, p. 158). Suassuna (2008, p. 281) diz que para Hegel a arte suprema e superior é
a poesia, por nela se encontrarem o espírito das artes plásticas, o ritmo da música e ainda o
pensamento. A poesia é a arte que mais se aproxima do ideal hegeliano de arte: reveladora, no
sensível, da Ideia absoluta. Bem mais tarde, Heidegger, segundo Nancy (1994, p. 19), declara
que “toda arte é em sua essência poema”.
Nietzsche, ecoando ideias de Schopenhauer, situa a música como a mais potente das
artes, como uma linguagem universal ao extremo, mas na universalidade da mera forma, sem
conteúdo. Os sons expressariam diretamente a Vontade, sem descrever fenômenos
particulares nem sentimentos individuais (Suassuna, 2008, p. 282). Nietzsche, em sua famosa
distinção entre o apolínio e o dionisíaco do Nascimento da Tragédia no Espírito da Música
(1996), apresenta o primeiro como o impulso que constitui a nitidez dos limites e a vivacidade
da coloração dos objetos representados e o segundo como sua contrapartida e como uma força
que leva a indistinção do todo em sua totalidade originária. Apolo se liga mais diretamente à
arte visual, enquanto Dionísio ao som. Mas ambos são produtores de imagens. “[...] a música
incita a uma intuição alegórica da universalidade dionisíaca, a música, em seguida, faz
aparecer a imagem alegórica em sua mais alta significação.” (Nietzsche, 1996, p. 39) .
60 !!!AS!DIFERENÇAS!ENTRE!AS!ARTES!!
Capítulo!1!
Seria possível citar ainda muitos outros filósofos e também artistas que elegeram uma
arte como soberana. Várias vezes a história da estética conheceu tais posicionamentos. Em
certos casos, observou Pareyson (2001, p. 178), priorizou-se uma determinada arte como se
todas as outras se conduzissem a ela.
Mais uma vez, vemos que as fronteiras só se delimitam com clareza quando toma-se
partido por determinado critério que fundamentará tanto a classificação quanto alguma forma
de hierarquia. Estabelecer critérios pressupõem opções, que por sua vez implicam exclusões e
inclusões. A questão mais importante parece ser a própria escolha dos parâmetros e,
sobretudo, quais os fins de tal classificação. Os sistemas filosóficos e as preferências pessoais
acabam por interferir de modo decisivo na construção das marcas da diferença das artes, seja
hierarquizando seja tentando nivelá-las. Se tomamos como exemplo o modelo de Gilson,
música e pintura ocupam a mesma categoria de arte inorgânica, apesar de em um segundo
momento se diferenciarem. Por outro lado, na classificação de Souriau, música e pintura se
distinguem de imediato, por se originarem de qualidades sensíveis diferentes. Ou seja, a
marca da diferença variará sempre em função das fronteiras e distinções estabelecidas. Artes
se aproximam e se afastam segundo nossos olhares. A diferença das artes parece se definir na
diferença dos olhares.
Mas essa negação de fronteiras peremptórias e absolutas não pressupõe
necessariamente negar as diferenças. As artes se manifestam de maneiras diferentes e a partir
de matérias artísticas indubitavelmente diferentes. Uma realidade aberta e inexaurível como a
expressão estética, dificilmente pode habitar em uma construção filosófica fechada e
definitiva.
Impossível, portanto, estabelecer o número das artes, mas não menos impossível instituir
entre elas uma hierarquia ou uma ordem que implique uma recíproca e constante tomada
de posição, apesar de que este assunto tenha sido tentado por mais de mil vezes. Um
sistema das artes cada um o faz, concretamente, por sua própria conta, com base na
própria cultura, na própria sensibilidade, nas próprias preferências, nas próprias aberturas
espirituais: poucos têm uma sensibilidade igual para todas as artes; uma igual cultura nas
diversas artes é difícil de ser conseguida, e a espiritualidade pessoal de cada um tem
necessidades próprias e peculiares. (Pareyson, 2001, p. 179).
O significado de uma arte, além do mais, vai variar segundo as situações culturais de
um povo, segundo seus valores e o grau de desenvolvimento de uma arte em relação a outra.
Os sistemas de artes podem, por isso, adquirir uma maior importância histórica e cultural que
verdadeiramente estética e filosófica.
AS DIFERENÇAS ENTRE AS ARTES 61
Capítulo 1
a) Música
“Melodia, harmonia e ritmo”, diria a voz virtual do senso comum. Algum manual de
teoria musical liberou esta definição e ela adquiriu, para muitos, ares de verdade absoluta.
Não que não haja verdade alguma nesta definição, mas o senso comum, desta vez, no lugar de
ser a consequência de alguma sabedoria coletiva, se tornou apenas repetição mecânica de
algum velho manual.
Vamos nos ater primeiramente ao elementar. Música é a arte dos sons. Nada mais
verdadeiro, mesmo que bastante vago. Já em um tom mais poético poderíamos ir ao encontro
das classificações tradicionais e dizer que música é a arte do tempo. A partir daí uma
multiplicidade de significações emergiria, principalmente para a filosofia, que tem pelo tempo
tão grande estima. De Aristóteles à Deleuze, passando por Santo Agostinho, Nietzsche,
Bergson, Einstein e outros mais, a noção de tempo vai liberando novas e inspiradas faces. Um
histórico das relações entre o tempo musical e noções filosóficas poderia ter grande interesse
e, certamente, já foi tema de mais de uma tese. É evidente que com as transformações da
62 !!!AS!DIFERENÇAS!ENTRE!AS!ARTES!!
Capítulo!1!
música no correr da história ocidental, modificou-se também a relação que ela estabelece com
o tempo.
Mas a música, em sua generalidade, seria realmente a arte do tempo? A música
contemporânea não deixa dúvidas de que o espaço pode por vezes tomar o papel principal na
obra. Tantas e tantas pesquisas recentes falam do espaço musical, sobretudo nas músicas mais
atuais27. Para além da música contemporânea, até mesmo o posicionamento dos músicos de
uma orquestra sinfônica não deixa dúvidas de que as relações com o espaço são partes
integrantes de uma obra musical.
É fato que a música, de acordo com suas situações históricas, se relacionará de
maneira diferente com o tempo e que das diferentes músicas emergem, em vários casos, novas
maneiras se posicionar em relação a esse parâmetro. De qualquer modo, no entanto, a música
não deixa de ser uma arte ligada ao tempo de maneira mais nítida que um quadro, por
exemplo. Só o fato dela ser sempre submetida à autoridade de uma duração cronométrica já
seria um forte argumento para tratá-la como arte do tempo, por mais que ela induza outras
percepções temporais e nos dê a impressão de retrair ou estender esse mesmo tempo. A
sucessão, que aporta o nascimento e a morte constantes de cada som, a define como arte do
tempo ou arte do momento, como entende Gilson:
Não é somente uma arte do tempo, mas uma arte do momento, em que sua existência
como arte tem a mesma natureza que a dança, a poesia, o teatro, enfim, toda ação na qual
a unidade é a de uma duração de elementos que se precipitam no silêncio do nada na
medida em que passam, se a memória não a constituísse conferindo-a uma substância
menos provisória e uma maneira de espiritualidade. A música, sendo essencialmente
efêmera, é, como dissemos, a arte que vai morrer, mas é também a arte daquilo que quer
nascer, e sua aptidão vitoriosa de afirmar a existência que ela criou é inseparável de sua
resignação essencial à perecer. (Gilson, 1964, p. 147)28.
27
Um bom exemplo seria a obra de Francis Bayer, De Schoenberg à Cage, essai sur la notion d'espace sonore
dans la musique contemporaine, Paris: Klincksieck, 1987, 216 p.
28
“Ce n’est pas seulement un art du temps, mais un art du moment, dont l’existence comme art est de même
nature que celle de la danse, de la poésie, du théâtre, bref de toute action dont l'unité n'est que celle d'une durée
dont les éléments retomberaient au néant du silence à mesure qu'ils passent, si la mémoire ne la constituait en
leur conférant une subsistance au moins provisoire et une façon de spiritualité. La musique étant essentiellement
éphémère, elle est, comme on l'a dit, l'art de ce qui va mourir, mais elle est aussi l'art de ce qui veut naître et son
aptitude victorieuse à affirmer l'existence qu'elle crée est inséparable de sa résignation essentielle à périr.” !
AS DIFERENÇAS ENTRE AS ARTES 63
Capítulo 1
29
É evidente que, assim como na voz humana, não existem dois sons iguais em diferentes instrumentos. No
entanto, pelo menos no que diz respeito aos últimos três séculos no ocidente, a música é mais facilmente
uniformizável. Basta pensar no diapasão e no sistema temperado, que certamente não encontram equivalentes de
tanto peso na pintura ou escultura, por exemplo.
64 !!!AS!DIFERENÇAS!ENTRE!AS!ARTES!!
Capítulo!1!
Se sairmos do plano da natureza musical como arte do tempo e arte dos sons e
privilegiarmos a recepção, como fizeram alguns sistemas de classificação das artes,
trataremos da música como arte auditiva. E, mesmo sabendo que a visão dos gestos e da
aparência física de um pianista interfere em nossa percepção musical, não podemos deixar de
reconhecer que são aos ouvidos que a música é endereçada, não aos olhos.
Então, para afirmar a arte musical em suas diferenças ou em seus atributos mais
estáveis, nos apegamos aos entendimentos mais tangíveis da natureza da música, ou seja, seus
sons, sua relação de submissão ao tempo e ao sentido para o qual ela se dirige, a audição.
b) Pintura
Ecoando Étienne Gilson (ibid., p. 115), definiremos, de maneira direta, uma pintura
como uma superfície sólida coberta de formas coloridas. Gilson desenvolve sua definição e
sugere que a pintura deve ter uma forma que agrade aos olhos, que contenha beleza. De nossa
parte, nos absteremos de comentar o que seria “agradar os olhos” ou “beleza”. Vamos dizer
apenas que, para esta superfície sólida coberta de formas coloridas ser arte será preciso que
existam qualidades sensíveis reconhecíveis e que permita a certo grupo de considerá-las como
arte.
Vimos, na segunda seção deste capítulo, que as noções sobre os quais filósofos e
estetas estabeleceram suas classificações e, em certos casos, impuseram os limites das artes,
são critérios muitas vezes sujeitos a questionamentos fundamentais. Cada um, à sua maneira,
vai argumentar e legitimar os parâmetros que eles elegeram como principais. Eles variaram
segundo a relação com o tempo e com o espaço, os órgãos do sentido para os quais a arte se
dirige, segundo a carga semântica, a fisicidade, a diferença do prazer proporcionado, entre
outros critérios. Em todas as classificações um grau de veracidade e validade se imprime, pois
cada uma delas sustenta seu pressuposto de maneira mais ou menos convincente. Entretanto,
se aplicarmos no interior de um sistema princípios utilizados em um outro, poucas
classificações resistirão.
Considerar a pintura como arte espacial, como por exemplo acontece em uma de suas
classificações mais recorrentes, seria, em alguns sistemas, a negação ou negligência de sua
relação com o tempo. Isso pode causar uma série de incômodos. Reconhecemos, com
facilidade, a intervenção do tempo em todas as instâncias de uma pintura, da ideia primordial
à apreciação. Mas existem duas maneiras de se evitar esse incômodo. A primeira é a de
considerar a superfície sólida na qual a pintura se inscreve como espaço e parar por aí. A
AS DIFERENÇAS ENTRE AS ARTES 65
Capítulo 1
outra, que não se opõe completamente à primeira, é a de, aceitando o fato das determinações
do tempo serem parte integrante da pintura, reconhecer que a noção de espaço tem atributos
mais facilmente associáveis com uma solidez material que a noção de tempo. Considerar
pintura como arte do espaço não é necessariamente uma recusa à sua temporalidade. Medir
formas e cores no espaço parece mais tangível que medir as interferências do tempo na
instauração, na execução ou na recepção de uma pintura.
Outra maneira de compreender a pintura, ainda mais antiga que a de “arte espacial”, é
a de considerá-la como “arte do repouso”. Aristóteles a opôs às “artes rítmicas”, como vimos,
e seu pensamento ecoou por muito tempo. Podemos, evidentemente, colocar em questão essa
maneira de entender a pintura. E isso sem grandes dificuldades.
Se recorrermos às nossas primeiras lembranças da arte das formas e cores em uma
superfície, pensamos provavelmente na ilustração de manuais de História da Arte e seus
bisões no interior escuro de grutas. Esses bisões, embora são representados estáticos. Já nesta
época, na da chamada pintura rupestre ou parietal, existia um esforço para representar o
movimento. Muitas vezes o movimento, aliás, está entre os objetos centrais de uma pintura.
Sugerir sólidos em movimento, a partir de linhas e cores imóveis, foi e é o desejo de muitos
pintores. Mas por mais que esse desejo exista e que ressoe nos espíritos do pintor e do
receptor, aquela imagem está ali no espaço, na tela, estática, como a “arte do repouso”, na
antiga classificação aristotélica.
De qualquer maneira, a tarefa do pintor é a de produzir objetos materiais, visuais, no
espaço, mesmo que reconheçamos que tanto o tempo quanto o movimento sejam elementos
inerentes e inseparáveis da pintura. Arte do espaço sim, mas que não renuncia o movimento e,
por consequência, não exclui o tempo.
Bem mais imprecisa que essas definições tradicionais de pintura, parece ser aquela que
a distingue entre abstrata e figurativa, ou representativa e não-representativa, como apresentou
Souriau (1947, p. 100)30. A pintura comumente chamada de figurativa também é abstrata na
medida em que faz abstração, por exemplo, de uma das qualidades ou dimensões mais
importantes do espaço, que é a perspectiva. É preciso um exercício de abstração, tanto do
pintor quanto do receptor para entender aquela figuração espacial. “Como transformar uma
superfície plana em um homem, uma árvore, uma montanha, ou um deus, com algumas linhas
e cores segundo uma certa ordem? Todas as formas e linhas e cores não seriam já derivadas
de objetos e dos seres naturais?, resumem-se as indagações de Gilson, em suas considerações
30
Cf. página 54. !
66 !!!AS!DIFERENÇAS!ENTRE!AS!ARTES!!
Capítulo!1!
sobre matéria e forma (1964, 120). Em uma pintura dita abstrata, é muito comum estabelecer
relações, voluntária ou involuntariamente, com objetos “reais” que sempre estarão carregados
de alguma carga simbólica. Se mostramos, por exemplo, algumas telas modernistas ditas
figurativas, sem mencionar seu nome, muitos seriam incapazes de reconhecer nelas o objeto
representado. O contrário também pode ser válido.
Outro aspecto interessante de se mencionar, também sugerido por Gilson (ibid., p.
122), é o fato da forma, em uma pintura, tomar seu sentido mais direto, imediato. Ou pelo
menos dar esta impressão. Por mais que uma pintura seja um complexo conjunto de gradações
de cor e luz, de linhas e curvas nos mais diversos ângulos, a forma, na sua significação
corrente e no seu jogo entre a parte e o todo, parece estar ali, ao alcance dos olhos. Embora
nem sempre consigamos explicá-la ou reproduzi-la, a impressão de que se estamos face à
forma é bem viva. Não foi por acaso, afinal, que a pintura, junto com a arquitetura e a
escultura, foi incluída como arte da forma, na classificação kantiana. Mais uma vez o tempo
vai interferir na construção interna que faremos daquela expressa na pintura. E, agora
pensando especialmente do lado do receptor, de acordo com nossa capacidade de absorção e
da duração desse diálogo com a obra, a forma se revelará mais ou menos à nossa
sensibilidade.
A separação entre desenho e pintura, que vimos em algumas classificações, como a de
Alain, nos parece estranha. Conceber pinturas sem vestígios de desenho não é nada fácil,
apesar do contrário ser mais compreensível. Existe sim, aqueles artistas que privilegiam o
desenho e outros que fazem o que Gilson chamou de “pintura de cor”. Mas o desenho, mais
ou menos afirmado, deve sempre ecoar.
Para que a pintura garanta sua identidade enquanto definição ela deve se ater ao
entendimento mais amplo e agregador de matéria. Aquele que inclui, não apenas as tintas, a
tela ou qualquer superfície sólida em que se inscrevem as cores, mas também cada
instrumento utilizado, bem como as técnicas, os eventuais modelos, o tema, os aspectos
simbólicos, etc.
Toda caracterização de pintura, como de qualquer outra arte, pode ser colocada em
questão, criticada ou, pelo contrário, tomada como dogma e aceita como verdadeira. No
interior de cada um dos posicionamentos adotados por filósofos, estetas e artistas, existem
razões e verdades, e motivos para se duvidar dessas mesmas razões e verdades. Uma
definição artística que prima pela demarcação estável do que vem a ser pintura deve aderir a
um número mínimo de atributos que sejam, igualmente, estáveis. Ou pelo menos se
aparentem estáveis. É por isso que para conquistar alguma solidez conceitual, vamos nos ater
AS DIFERENÇAS ENTRE AS ARTES 67
Capítulo 1
às classificações que apresentamos como tradicionais, ou seja, pintura como arte visual e arte
do espaço. Pintura como superfície sólida colorida, que se manifesta no espaço. Para que
esses contornos tenham alguma aparência estável, em vez de nos apegarmos às classificações
em si, vamos nos contentar com certas atribuições dadas no interior das classificações, nas
especificidades propriamente ditas, sem inseri-las em grupos.
Como foi dito, as musas, como metáforas das artes, agem no plural e no plural
afirmam suas diferenças e seus atributos mais íntimos e intransferíveis. É possível contentar-
se com a pluralidade das artes como um dado da própria arte e, assim, estabelecer
classificações e sistemas. Afinal, eles só existem porque o plural é aceito e se sobrepõe às
características mais gerais da arte, no singular. Existem, porém, tantas classificações que, para
afirmar e reafirmar as diferenças das artes, seria preciso classificar as classificações, elas
mesmas divergentes no que se refere ao próprio entendimento da noção de arte. Tarefa de
enorme extensão e que, provavelmente, nos levaria somente a apreciar o que Nancy chamou
de “espectro de dispersão” das artes (1994, p. 12). É evidente que uma especificação absoluta
das artes é inviável. A questão é saber sobre qual plano e para que fins estabelecer qualquer
divisão. Quando nos dirigimos diretamente às particularidades das artes, temos duas opções,
ou fechamos os olhos para a questão ontológica da unidade das artes ou a afrontamos. Ela
pode tanto aparecer como um suave pano de fundo para uma pesquisa que aproxima artes
diferentes ou como um espectro que nos assombra, pois a aceitação de unidade primordial
pode interferir de maneira idêntica nas artes diferentes.
As particularidades de cada arte são tão verdadeiras quanto suas subsunções à alguma
totalidade de um fenômeno artístico em sua singularidade ontológica. Apesar de todas as
tentativas de se afirmar as diferenças das artes comportarem alguma verdade, o que importa,
nesta tese, não é tomar partido de um ou outro sistema. Isso parece ser um risco
desnecessário. Como diz Alain no prefácio de seu Sistema de Belas-Artes (1926, p. 8), nós
podemos provar e argumentar positivamente sobre tudo, o mais difícil é decidir o que
queremos provar. Importa, para nós, poder vislumbrar alguns contornos do que definiria e
afirmaria a autonomia e a força, ambas inegáveis, de uma arte particular.
A unidade estaria em uma fonte intocável de onde as forças, plurais, das musas
jorrariam. A arte, em sua realidade, é plural. E as musas afirmam sua força: de separação, de
isolamento, de intensificação e de metamorfose, como notou Nancy (1994, p. 43).
68 !!!AS!DIFERENÇAS!ENTRE!AS!ARTES!!
Capítulo!1!
Aceitar plenamente a diferença das artes é concordar com o poeta que diz:
[...]
Compreendi que as cousas são reais e todas diferentes umas das outras;
Compreendi isto com os olhos, nunca com o pensamento.
Compreender isto com o pensamento seria achá-las todas iguais.
[...]
(Fernando Pessoa, 2004, p. 112).
Ou mesmo:
[...]
Porque o único sentido oculto das cousas
É elas não terem sentido oculto nenhum,
É mais estranho do que todas as estranhezas
E do que os sonhos de todos os poetas
E os pensamentos de todos os filósofos,
Que as cousas sejam realmente o que parecem ser
E não haja nada que compreender.
Capítulo 2
Cada arte tem sua própria língua, ou seja, meios que só pertencem a ela mesma. Por isso,
cada arte é um todo fechado sobre si mesmo. Cada arte é uma vida singular. É seu próprio
império. Os meios das diversas artes são perfeitamente diferentes em suas aparências.
Som, cor, palavra!... Porém, no final das contas, na sua profundidade, esses meios são
absolutamente semelhantes; o objetivo final apaga as diferenças aparentes e revela a
própria identidade. (Kandinsky apud Denizeau, 2004, p. 9)1.
#
70# ##AS#SEMELHANÇAS#ENTRE#AS#ARTES#
Capítulo#2#
########################################################
2
Cf. p. 56.
#
AS#SEMELHANÇAS#ENTRE#AS#ARTES#
Capítulo#2#
71#
#
ontológica, no que a arte tem de uno. A Arte está acima de tudo. Julgam tarefa estéril o desejo
de alguns de entender a diferença das artes ou hierarquizá-las.
No entanto, quando nos voltamos ao capítulo anterior, nos deparamos com um certo
número de pensadores que, sem negar uma dimensão globalizante do fenômeno artístico, se
concentraram em refletir sobre a questão dos limites e diferenças entre as artes, com suas
matérias e técnicas. Adotam uma posição híbrida entre as duas atitudes acima citadas, atitudes
que ilustram de forma muito ampla a questão da diversidade e unicidade da arte, mas que não
se aplicam de fato aqueles que pensaram e sistematizaram a diferença das artes. Pois, como o
próprio Pareyson comentou, “o assunto de fundamentar a diversidade das artes quase nunca
esteve desvinculado de explicar sua unidade” (2001, p. 174).
A atitude “empirista” do “isso é isso”, “aquilo é aquilo” em geral não contenta a quem
dirige mais de um pensamento à questão das diferenças das artes. O simples fato de cada
pessoa enxergar e descrever diferentemente os limites entre as artes, segundo os critérios mais
variados, já demonstra que a questão é ampla. Por outro lado, se nos apegarmos a uma atitude
puramente filosófica, temos que aceitar o fato fundamental de que as palavras nunca tocarão o
centro das coisas e do que gostaríamos de dizer3.
Se os empiristas se atém ardentemente à experiência e recusam revelar a arte senão
pela prática, os filósofos, por outro lado, abraçam o ontológico e negam as evidências das
experiências mais diretas e concretas.
O trajeto “do plural ao singular” proposto neste texto tem a particularidade de não se
desfazer ou de deixar de crer nas diferenças das artes. O que propomos é, na verdade, um
reencontro com uma unidade ou algo singular presente em cada arte. Toda obra de arte se
instaura ao mesmo tempo como todo e como parte de uma totalidade.
########################################################
3
Por analogia, o filósofo, sob esse prisma, seria uma espécie de místico que busca um sentido velado, enquanto
o empirista seria, paradoxalmente, o poeta, aquele que se lança à arte, gratuitamente, como Alberto Caeiro,
heterônimo de Fernando Pessoa o fez:
#
72# ##AS#SEMELHANÇAS#ENTRE#AS#ARTES#
Capítulo#2#
coisa, que não é uma parte destacada, mas o toque de uma outra unidade – e esta última
não é mais de significação. Ela está em suspenso, e toca suas extremidades. (Nancy,
1994, p. 43)4.
Do plural se vai ao singular, porém um singular que não recusa seu contrário. Neste
oximoro, que tende a conciliar opostos, reside o núcleo de um pensamento que, por mais
tenso que seja, parece um bom acordo que se faz entre os empiristas e os filósofos.
O Um da unidade não é Um “uma vez por todas”, mas, pelo contrário, “todas as vezes por
um”, se assim podemos dizer. Cada uma das artes expõe à sua maneira a unidade da
“arte”, que não tem nem lugar nem consistência fora desse “cada um” – e ainda mais, a
unidade de uma só arte é somente ex-posta nesse sentido em suas obras uma por uma.
(ibid., p. 58)5.
Uma arte que é una e singular se converte em artes múltiplas e plurais. Como um tema
musical a partir do qual se proliferam variações. Assim, desde que o conceito moderno de arte
foi se estabelecendo, antecedido pela assimilação da pintura às chamadas artes liberais, a
partir da Renascença, e com a posterior afirmação da disciplina Estética no século XVIII,
fortaleceu-se e impôs-se uma tradição de distinção das artes que ainda vigora. Nos meandros
das artes distintas, entretanto, persiste um apelo pela arte una, ou por certa singularidade
primordial. Cada arte vai remeter a uma potência ontológica, pois a experiência estética
insiste em nos recordar da origem comum das artes. E essa dimensão ontológica, porém, não é
mais algo que se aproxima de um modelo platônico de Ideal. Tampouco algo completamente
vago e incompatível com a atenção dispensada às nuances e diferenças reais de cada variação.
########################################################
4
“Telle est la force des muses : elle est à la fois de séparation, d’isolement, d’intensification, de métamorphose.
De quelque chose qui faisait partie d'une unité de signification et de représentation, elle fait autre chose, qui n'est
pas une partie détachée, mais la touche d'une autre unité - et celle ci n'est plus de signification. Elle en est un
suspens, elle touche à ses extrémités.”
5
“ […] l'Un de l'unité n'est pas Un « une fois pour toutes », mais a lieu, au contraire « toutes les fois pour une »,
si l'on peut dire. Chacun des arts expose à sa façon l'unité d'« art» qui n'a ni lieu ni consistance hors de ce «
chacun» - et plus encore, l’unité d’un seul art n’est ex-posée en ce sens que dans ses œuvres une à une.”
#
AS#SEMELHANÇAS#ENTRE#AS#ARTES#
Capítulo#2#
73#
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As semelhanças entre as artes devem residir justamente nas marcas deixadas pelo tema
em cada uma de suas variações. Ou seja, nos sinais mais ou menos evidentes que nos fazem
reconhecer, ou intuir, a origem comum de cada uma das artes. A esses sinais daremos o nome
genérico de “substância”. Em um sentido bem amplo, substância seria ao mesmo tempo o
suporte ou substrato para a materialização da arte, e o contexto espiritual sobre a qual o artista
se move na instauração de sua obra, como suas crenças artísticas em relação com o “espírito
do tempo”, por exemplo.
Quando se fala em substância comum, em similaridade espiritual ou quando se remete
a uma instância originária nas artes, tende-se a considerar tudo isso como obscuro e vago.
Mas é preciso recordar que o fato de não podermos apreender intelectualmente com clareza
não quer dizer que as coisas sejam realmente obscuras e vagas. Aliás, como notou Dewey
(2010, p. 350), as sensações imediatas de que algo pertence a um todo são essenciais para que
as coisas façam sentido. “A sensação de um todo extenso e subjacente é o contexto de toda
experiência e a essência da sanidade. [...]. Sem um contexto indefinido e indeterminado, o
material de qualquer experiência é incoerente.” (Dewey, 2010, p. 350- 351). É interessante
observar que a presença do todo em uma obra de arte se constitui de maneira tão disseminada
que é subestimada. Pois qualquer experiência tem um contexto total que é indefinido e que
não pode ser descrito especificamente6. Talvez um importante atributo da arte, de modo geral,
seja justamente esse poder de avivar a sensação de totalidade de algo definido que se impõe
frente ao indefinido. Embora todas as experiências comuns estejam também cercadas por esse
fundo inexplicável, a arte deve acentuar a presença desse mesmo fundo. Os artistas seriam os
instauradores dessa realidade sensível potencializada, mas todas as pessoas que a reconhecem,
instauram de maneira particular essa mesma realidade e se tornam, de certa forma, artistas.
Desde que a realidade sensível é revelada e compartilhada, confronta-se com esse todo
fundamental, cuja experiência é potencializada pela atividade artística. Esse fundo
indiferenciado, não apreendido intelectualmente, mas intuído e experimentado, se constitui
em uma substância comum e primordial das artes.
No que diz respeito às matérias artísticas, entendidas em seu sentido mais direto e
fundamental, ou seja, sons, pedras, tintas, etc., deve haver um atributo comum que liga as
artes entre si. Trata-se de sua natureza predominantemente qualitativa. Isso não quer dizer que
não seja possível medir o tamanho de um objeto em um quadro qualquer, ou a intensidade de
########################################################
6
Esse “contexto indefinido” pode também ser associado ao que Michel Serres (2011, p. 12) chamou de “ruído de
fundo” (bruit de fond) do mundo, quando narrou a infância de Orfeu e sua busca por um lugar silencioso que,
como o personagem rapidamente descobriu, não existia.
#
74# ##AS#SEMELHANÇAS#ENTRE#AS#ARTES#
Capítulo#2#
uma cor, ou a duração e a altura de um certo acorde em uma sonata qualquer. O que acontece
em arte é que cada som, cada forma, cada cor só existe artisticamente em relação à totalidade
dos elementos da obra. Uma pequena tela pode evocar ou construir percepções de amplitude e
infinitude e, inversamente, podemos nos sentir comprimidos por uma tela de grandes
proporções. As coisas são estáticas como produtos físicos, mas móveis como objetos
estéticos. As propriedades das matérias das artes se encontram no fato de serem, todas elas,
reforçamos, qualitativas.
Endereçando-se ao mistério da natureza em analogia à obra de Beethoven, disse
Debussy:
Certas páginas do velho mestre [Beethoven] contém a expressão da mais profunda beleza
de uma paisagem. Isso acontece simplesmente porque ela não é uma imitação direta, mas
uma transposição sentimental daquilo que é invisível na natureza. Por acaso
descobriríamos o mistério de uma floresta medindo o tamanho de suas árvores? (apud
Bosseur, 1999, p. 170)7.
As matérias das artes têm em comum o fato de não poderem, de fato, ser medidas.
Desde que abandonam a condição de matéria ordinária do mundo para se tornar matéria
artística, uma caracterização quantitativa dos elementos de uma obra é sempre insuficiente
para penetrar efetivamente seu interior.
Dois elementos ou parâmetros muito frequentemente utilizados nas classificações das
artes para distingui-las, podem, curiosamente, ser usados também para aproxima-las: o espaço
e o tempo.
A música, de modo análogo a uma obra de arte plástica, é também objeto estético, objeto
de contemplação estética. A sua objetalidade mostra-se, claro está, menos de um modo
imediato do que indireto: não no instante em que ressoa, mas só quando o ouvinte, no fim
de uma frase ou de um membro, se vira para o que decorreu e o representa para si como
um todo consistente. A música toma ao mesmo tempo uma forma quase espacial; o que
foi ouvido consolida-se em algo que está diante de nós, numa objetividade por si
subsistente. (Dahlhaus, 1991, p. 23).
O que Dahlhaus fala sobre a música pode ser aplicado para qualquer outra arte que se
desenrola no tempo de maneira mais evidente. Essa “objetalidade” de uma arte temporal se
inscreve em um espaço, talvez no fundo indiferenciado, citado como substância comum das
artes. “A ocupação do espaço é uma condição geral da existência de tudo – até de fantasmas,
se eles existirem.” (Dewey, 2010, p. 388). E isso não exclui o fato de reconhecermos, ainda
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7
“Combien certaines pages du vieux maître [Beethoven] contiennent d’expression plus profonde de la beauté
d’un paysage, cela simplement parce que il n’y a plus d’imitation directe mais transposition sentimentale de ce
qui est « invisible » dans la nature. Rend-on le mystère d’une forêt en mesurant la hauteur de ses arbres ?”
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O tempo, como vazio, não existe; como entidade, o tempo não existe. [...]. Romances,
poemas, dramas, estátuas, prédios, personagens, movimentos sociais ou argumentos,
assim como quadros e sonatas, todos são marcados pela solidez ou pela magnitude, ou
pelo inverso. (Dewey, 2010, p. 374-375).
Por outro lado, deve-se dizer que a ideia de que uma obra visual possa se apresentar de
uma só vez, ou revelar sua estrutura subitamente é, certamente, uma impossibilidade. A
instantaneidade na entrega da arte à experiência é somente virtual. Nem o menor dos quadros
revela sua estrutura de uma só vez. Uma impressão total emana, mas é preciso tempo para que
os elementos definidores se apresentem. É preciso um processo de interação entre o objeto
artístico e o mundo. E em um processo, subentende-se uma temporalidade. Todas as artes são
submissas ao tempo para revelarem suas estruturas, que, sendo inesgotáveis, exigem uma
continuidade no ato de perceber. Uma fuga qualquer de Johann Sebastian Bach pode trazer
consigo uma experiência estética próxima à apreciação de uma bela escultura ou catedral,
para dar um exemplo concreto. Mas para que as estruturas se revelem é preciso mais de uma
escuta, mais de um olhar apressado. Toda estrutura será sempre um reservatório de
lembranças e um enorme registro de expectativas futuras (ibid., p. 362). Embora cada arte lide
de sua própria maneira com os parâmetros tempo e espaço, as artes têm em comum o fato de
trazer à tona uma maneira especial de gerir esses dois polos fundamentais.
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Uma ampla compreensão dos termos tempo e espaço também pode nos levar à noção
de movimento como denominador comum e, por consequência, o ritmo como regulador do
tempo e do espaço. Linhas, acentos e intervalos foram os elementos citados por Dewey como
atributos comuns das artes. A linha se apresenta como aquilo que relaciona e liga e é, ao
mesmo tempo, meio para se determinar o ritmo. Musicalmente falando, a corriqueira
expressão “linha melódica” revela nada mais que uma sequência de sons que se “ligam” e,
embora a ideia de linha ou desenho remeta a uma virtualidade, a experiência musical nos
mostra que, sem essa “linha”, a música, ao menos no seu entendimento corrente, dificilmente
existiria. É ela quem constrói a materialidade em todas as instâncias, seja ela real ou virtual.
No interior, ou no decorrer, dessas linhas, musicais ou pictóricas, para que relações internas se
estabeleçam, será preciso que existam diferenciações externas: pontos de referência, marcas
que nos situem no cerne de um certo desenho, acentos devem se fazer notar em meio às linhas
que constroem o ritmo. O terceiro elemento, os intervalos, não são entendidos no sentido
convencional de intervalos musicais como diferença entre as alturas, mas como o
espaçamento entre linhas. São tão necessários quanto os acentos no interior do ritmo. São eles
que permitem que a nossa atenção se mantenha ativa na apreensão de imagens e sons.
Entendidos dessa maneira, linha, acento e intervalo se afirmam como atributos comuns entre a
arte dos sons e das formas no espaço.
Tendo como pano de fundo e substância comum o contexto indeterminado no qual se
inscrevem as diferentes artes, vamos aos poucos percebendo que semelhanças fundamentais e
originárias produzem consequências das mais diretas e potentes. O fato de não ser possível
uma apreensão intelectual sólida desse contexto indeterminado ou de não podermos ver com
clareza os atributos quantitativos em uma obra, ou mesmo da maneira muito particular com a
qual as artes lidam com as dimensões temporais e espaciais das matérias, nada disso abole ou
invalida o parentesco existente entre as artes. Pelo contrário, esses fatores, entre outros, tão
somente confirmam a existência de elos profundos entre as diversas manifestações artísticas.
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que sugere a junção de planos sensoriais diferentes. Goethe, Rilke, Maupassant, Raul
Pompéia, Cruz e Souza, Balzac, Georges Sand, André Gide, Garcia Lorca, são alguns
exemplos de uma lista, certamente enorme, de escritores que se utilizaram de sinestesias8.
No entanto, o que parece um simples jogo de palavras pode ser também o reflexo de
uma profunda crença na conjunção dos órgãos da percepção ou mesmo algum real ou mesmo
patológico cruzamento dos sentidos. Em meados do século XIX, por exemplo, alguns poetas
europeus teceram certas associações dos sentidos de forma tão intensa e afirmada que fica
difícil imaginar que não havia nada a mais que simples figuras de linguagem. Os exemplos
mais citados são os poemas Les Voyelles (1883) de Arthur Rimbaud (1854-1891) e,
principalmente, Correspondances (1857) de Charles Baudelaire (1821-1867)9. No início do
século, outros escritores parecem ter elevado a carga sinestésica da linguagem escrita à
máxima potência, fusionando-a com amplas noções de tempo ou espaço, como fez Marcel
Proust (1871-1922). Suas famosas madeleines de Em Busca do Tempo Perdido (1908-1922)
dissipavam suas inquietudes e despertavam sentimentos em estado puro.
Ainda no terreno das palavras, porém na maneira de nomear artes não literárias, uma
sinestesia aparece – como recurso poético ou, talvez, como a expressão de algum tipo efetivo
de interseção dos sentidos – e se fixa em títulos dos mais evocativos. Entre os pintores,
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8
Sérgio Bittencourt Sampaio em seu artigo “Som e Cor: Realidade ou Fantasia”, publicado na Revista da
Academia Nacional de Música, vol. XII, 2001, p. 141-169, cita trechos de textos e poemas de cada um dos
escritores mencionados.
9
La Nature est un temple où de vivants piliers A Natureza é um templo vivo em que os pilares
Laissent parfois sortir de confuses paroles ; Deixam filtrar não raros insólitos enredos;
L’homme y passe à travers des forêts de symboles O homem o cruza em meio a um bosque de
Qui l'observent avec des regards familiers. segredos
Que ali o espreitam com seus olhos familiares.
Comme de longs échos qui de loin se confondent Como ecos longos que a distância se matizam
Dans une ténébreuse et profonde unité, Numa vertiginosa e lúgubre unidade,
Vaste comme la nuit et comme la clarté, Tão vasta quanta a noite e quanto a claridade,
Les parfums, les couleurs et les sons se répondent. Os perfumes, as cores e os sons se respondem.
II est des parfums frais comme des chairs d’enfants, Há aromas frescos como a carne dos infantes,
Doux comme les hautbois, verts comme les prairies, Doces como o oboé, verdes como a campina,
- Et d’autres, corrompus, riches et triomphants, E outros já dissolutos, ricos e triunfantes,
Ayant l'expansion des choses infinies, Com a fluidez daquilo que jamais termina,
Comme l’ambre, le musc, le benjoin et l’encens Como o almíscar, o incenso e as resinas do Oriente,
Qui chantent les transports de l’esprit et des sens. Que a glória exaltam dos sentidos e da mente.
* O poema reproduzido, com sua tradução foi retirado da versão bilíngue de As Flores do Mal feita por
Guilherme de Almeida (2006, p. 126-127).
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exemplos não faltam: Paul Klee (Fuga em Vermelho e No Estilo de Bach), Lévi-Dhurmer (as
telas das nove sinfonias de Beethoven e sua sonata Apassionata), František Kupka (Amorpha,
fugue en deux couleurs), Arcângelo Ianelli (Sinfonia em Verde) e Vassily Kandinsky
(improvisos e composições). Todos eles, e muitos e muitos outros, manifestaram também em
seus escritos e teorias a crença em algum tipo de parentesco das artes. Kandinsky (1866-
1944), em seu famoso Do Espiritual nas Artes (1911), afirmava a sinestesia para além da
mera figura retórica: “Os sons e as cores se correspondem porque a pintura não se recebe
exclusivamente pelos olhos, nem a música exclusivamente pelos ouvidos, mas ambas as artes
se dirigem aos cinco sentidos”. (2000, p. 258). Partindo da premissa de que toda arte tem a
mesma raiz, proveniente de uma correspondência profunda entre natureza e arte, Kandinsky
situa a diferença somente nos meios de expressão: música como os sons no tempo e pintura
como cores em uma superfície. Ele acreditava ainda que essas diferenças aparentemente
grandes eram abrandadas pelo fato de “leis enigmáticas”, porém precisas, guiarem o trabalho
de composição do artista (ibid., p. 256). Existe uma identidade originária das leis de
composição das diferentes artes e é aí, segundo o pintor, que se encontra a solução e a porta
aberta da arte sintética do futuro. Leis universais regem as diferentes artes. Quanto aos sons e
cores, ele especifica: amarelo com a propriedade de subir para regiões cada vez mais agudas,
como um trompete pontiagudo; o azul é oposto ao amarelo, desce e se assemelha aos sons da
flauta, do violoncelo e do contrabaixo; verde é como os sons médios do violino; e o vermelho
pode associar-se a fortes toques de tambor (ibid., p. 257).
Nos títulos de obras musicais, a associação principalmente visual é recorrente. A obra
Quadros de uma Exposição (1874) de Modest Mussorgsky (1839-1881) acabou se tornando
emblemática da capacidade da música, muitas vezes questionada, de representar imagens.
Quando nos deparamos com os títulos de obras de Claude Debussy, por exemplo, não temos
dúvidas de que eles se relacionam intimamente com os sons. A obra de Olivier Messiaen
(1908-1992) está repleta de associações que vão além do título da música e que foram
reveladas por ele como uma dinâmica de transposição de cores e sons calcadas em
experiências sinestésicas, agora não mais entendida como figura de linguagem e sim como
fenômeno psíquico.
Os limites entre as duas instâncias da sinestesia, figura de linguagem e fato psíquico,
são certamente bem sutis. A sinestesia sugere uma unidade dos sentidos e, por consequência,
a unidade das artes, muitas vezes associada a algum tipo de arroubo poético ou a um
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romantismo, entendido em seu mais amplo sentido10. A unidade dos sentidos e das artes, a
qual chamamos metaforicamente de “coro das musas”, evoca quase sempre algo de ideal e
inatingível. Não conhecemos corretamente as regras que regulam a interferências dos sentidos
um sobre os outros. Não sabemos ao certo de que maneira a arte pode “transportar seus
espíritos e seus sentidos”, como aparece nas Correspondências de Baudelaire (2006). A
evocação da sinestesia, por parte dos artistas e também do público, se funda nos variados
procedimentos e se baseia em uma infinidade de convicções, das mais cientificistas às mais
filosóficas ou mesmo esotéricas11. Kandinsky foi motivo de desdém para Adorno, por sua
fragilidade metodológica na aproximação dos sentidos em Do Espiritual na Arte (Lauxerois e
Szendy, 1997, p. 31). Até hoje, para muitos, falar em unidade de sentidos e, por consequência,
em unidade das artes, pode passar por ingênuo devaneio.
Para falar da unidade dos sentidos, antes da unidade das artes, é preciso que a ciência
intervenha com mais força que a filosofia ou a estética. Às vezes parece que arte e ciência
habitam em regiões de diferentes fusos horários ou, no melhor dos casos, que existe uma
sincronia secreta que liga essas duas instâncias. Arte e ciência celebram de maneiras bem
diversas e em momentos também diversos as interseções entre os sentidos ou entre as artes.
A sinestesia, na ciência, ocupa um lugar não muito confortável, pois a certeza de sua
existência fisiológica e psicológica é sempre perturbada pela dificuldade em precisar seus
limites. As diversas pesquisas comentadas por Oliver Sacks, por exemplo, mostram uma série
de discrepâncias, tanto no que diz respeito a própria definição de sinestesia, quanto sua
incidência. Estudos epidemiológicos mostram resultados que variam de um caso para cada
duas mil pessoas até uma sinestesia generalizada que atinge todo ser humano em diferentes
graus (Sacks, 2007, p. 169-171).
A ciência se interessou pelo fenômeno da sinestesia desde o século XVIII em vários,
porém pontuais, períodos históricos. Alguns momentos foi deixada de lado, talvez pelo fato
das mirabolantes imagens mentais e metáforas dos artistas a transformarem em “meras
elucubrações”. Somente em 1883 foi publicado um trabalho consistente sobre a questão da
sinestesia: Inquiries into Human Faculty de Francis Galton, resultado de duas décadas de
pesquisa, apresentou a sinestesia como fenômeno fisiológico e capacidade inata da mente.
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10
O termo romantismo é aqui entendido da maneira como é apresentado pelo curador Teixeira Coelho do Museu
de Arte de São Paulo na exposição Romantismo – A Arte do Entusiasmo, iniciada dia 5 de fevereiro de 2010 e
sem previsão de encerramento. O romantismo é visto de maneira vasta, atemporal e se liga sobretudo ao modo
como o artista se relaciona com seu trabalho e o mundo exterior, sua individualidade e a intensidade de sua
expressão.
11
A sinestesia reivindicada pelo compositor Alexander Scriabin (1872-1915) e seu desejo de totalidade, por
exemplo, se relacionam intimamente com a doutrina teosófica apresentada por Helena Blavatsky, amálgama de
religião, filosofia e ciência.
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Depois disso, apenas nos últimos trinta anos do século XX o interesse dos cientistas foi
reascendido, em grande parte devido as técnicas avançadas de imageamento cerebral, também
chamado de mapeamento cerebral (ibid., p. 177)12.
Oliver Sacks cita ainda estudos que dão provas da ativação simultânea de áreas no
cérebro de certos indivíduos e apresenta, em um dado momento, a sinestesia como fenômeno
fisiológico subordinado à integridade de certas áreas do córtex cerebral (ibid., p. 172)13. Mas
considerar sinestesia como algo anormal parece estranho para Sacks, pois ele “descobriu”
vários sinestetas quando começou a questionar pacientes que o procuravam por outras razões.
Ou seja, a sinestesia não era vivida de forma alguma como um problema, deficiência ou
anomalia. Os estudos mais recentes deste século sugerem que os sentidos dos recém-nascidos
são fundidos em uma grande confusão sinestésica e que somente com a maturação cervical
que as diferenciações vão se estabelecendo. Isso explica o fato da sinestesia ser mais
verificada nas crianças14.
Embora seja real e de existência indiscutível, a sinestesia não é, reafirmamos, algo
palpável e com margens bem definidas. Na medida em que a tecnologia dos imageamentos
cerebrais se desenvolve, novas abordagens da sinestesia vão sendo possíveis. A ciência, no
seu pretenso objetivismo, engenhosamente manipula as coisas, mas se mantém distante do
interior dessas mesmas coisas. Pelo menos é que o sugere Merleau-Ponty. “A ciência
manipula as coisas e renuncia habitá-las”, é a primeira frase de O Olho e o Espírito (2004, p.
13).
Antes de abordar a fenomenologia de Merleau-Ponty, Yara Caznok apresentou a
unidade dos sentidos ou o “fenômeno da multissensorialidade” a partir de três tendências da
psicologia (Casnok, 2008, 117-124). A primeira enxerga os objetos como carregados de
propriedades que se assemelham ou se diferenciam e solicitam, assim, a união ou a separação
dos sentidos. Essa crença seria baseada no conceito aristotélico de sensus communis que
inclui o repouso, o movimento, o número, o tamanho, a unidade e a forma como atributos
sensíveis comuns. O segundo ponto de vista desloca do objeto para o sujeito a possibilidade
de correspondência entre os sentidos. Cada sentido teria uma série de propriedades comuns
########################################################
12
O mapeamento cerebral tenta relacionar a estrutura do cérebro com a sua função ou descobrir que regiões
cerebrais se ligam à certas habilidades ou percepções.
13
Como os estudos de Gian Beeli, Michaela Esslen, Lutz Jäncke, John Harrison, Richard Cytonic, Julia Simmer,
Jamie Ward e Daphne Maurer.
14
Certas pesquisas, como a de V.S. Ramachandran e E.M. Hubbard, buscam uma distinção entre os sinestetas
verdadeiros e os pseudo-sinestetas, sendo os primeiros aqueles em que a relação entre os sentidos se dá de forma
regular e estável. Pesquisas como esta tem razão de ser pelo fato das sinestesias constantes e muito bem
determinadas serem algo raro e sempre atrelado à capacidade maior ou menor do sujeito em descrevê-la ou
expressá-la.
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15
O título provém de uma poesia de William Blake, o mesmo que mais tarde deu o nome ao conjunto de rock
The dors.
16
Dentre as obras que ouviu, alguns madrigais de Gesualdo foram as que mais o impressionaram. Como por
milagre, as vozes serviam de ponte para seu retorno à percepção normal do mundo (Huxley, 1954, p. 45).
17
Mas não há relato de sons que se convertem em cores ou vice-versa. Há sim, a descrição da reprodução de um
quadro de Cézanne, um autorretrato, em que o pintor sai da tela e volta seu olhar para o ambiente, descrito por
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Capítulo#2#
É verdade que soa algo místico e, embora a narração tenha um tom lúcido e linguagem
bem clara, o texto não deixa de ser uma descrição dos efeitos de uma droga alucinógena.
Apesar da divergência no que concerne os efeitos da mescalina, Merleau-Ponty e Huxley
convergem em pontos importantes, ao menos dois. Ambos se posicionam de maneira similar
contra um certo intelectualismo e seu objetivismo extremado. O escritor inglês, parafraseando
Blake, diz que aqueles que são puramente movidos pelo raciocínio sistemático são os anjos
insolentes e arrogantes (Huxley, 1954, p. 68). Diz ainda que a palavra enfeitiça nosso sentido
de realidade tão bem que somos capazes de tomar conceitos como dados e palavras como
coisas reais (ibid., p. 25). As Portas da Percepção está repleta de críticas diretas e indiretas ao
empirismo e sua suposta prepotência. De maneira análoga, o filósofo francês dedica
praticamente toda a primeira parte de O Olho e o Espírito à crítica ao intelectualismo. Críticas
similares também estão diluídas ou explícitas no decorrer de toda sua Fenomenologia da
Percepção. Huxley e Merleau-Ponty compartilham igualmente outras ideias, mesmo que por
motivações e vieses distintos. Ambos apresentam as coisas como portadoras de um brilho
próprio e uma significação profunda. Os dois autores convergem na crença em uma
comunhão e na conexão que existe entre o objeto e o sujeito, o sentinente e o sensível. Os
objetos não são somente vistos. Eles também nos observam e simpatizam conosco, como
sugere o título do livro do esteta Georges Didi-Huberman, O que vemos, o que nos olha18,
inspirado pela fenomenologia de Merleau-Ponty. Seja na fenomenologia, na psicologia
moderna ou na semiótica, ou mesmo no texto de Huxley, o que se verifica é a aderência do
sujeito ao objeto e vice-versa. Apesar da delicadeza do tema abordado e dessa aproximação
místico-científica que faz pensar em ideias teosóficos em moda nos princípios do século XX,
Aldous Huxley prenuncia até mesmo as mais recentes pesquisas feitas nesse novo milênio.
Ele fala no reencontro com a inocência perceptual da infância, quando o sensum não é
subordinado ao conceito (1954, p. 26), e assim conflui com a hipótese de que na mais tenra
infância a sinestesia é bem afirmada e nítida, na apresentação de Sacks, ou como Lévi-Strauss
comentou em seu Olhar, Escutar, Ler19 (1997, p. 101).
Cada vez mais nos convencemos de que a sinestesia não é necessariamente uma
anormalidade e muito menos se restringe à licenças poéticas próprias aos artistas. O fenômeno
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Huxley como uma natureza morta de Braque ou Gris. Há também o deslumbramento do pintor frente às dobras
da saia da Judith de Botticelli que, aliás, não eram muito diferentes das dobras de sua calça de flanela.
18
Didi-Hubermann, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34, 1998.
19
Lévi-Strauss fala particularmente da associação entre o som vocálico /a/ e a cor vermelha, recorrente nas
crianças.
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A música não está no espaço visível, mas ela o mina, o investi, o desloca, e logo os
ouvintes cerimoniosos – que assumem ares de juízes e trocam palavras e sorrisos sem
perceber que seu chão se abala – estarão como uma tripulação agitada que se expõe a uma
tempestade. Os dois espaços [do sujeito e do objeto] só se distinguem sobre o fundo de
um mundo comum, e só podem rivalizar porque ambos têm a mesma pretensão ao ser
total. (ibid., p. 271)21.
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20
“La perception synesthésique est la règle, et, si nous ne nous en apercevons pas, c'est parce que le savoir
scientifique déplace l'expérience et que nous avons désappris de voir, d'entendre et, en général, de sentir pour
déduire de notre organisation corporelle et du monde tel que le conçoit le physicien ce que nous devons voir,
entendre et sentir.”
21
“La musique n’est pas dans l’espace visible, mais elle le mine, elle l’investi, elle le déplace, et bientôt ces
auditeurs trop bien parés, qui prennent l’air de juges et échangent des mots et des sourires, sans s’apercevoir que
le sol s’ébranle sous eux, sont comme un équipage secoué à la surface d’une tempête. Les deux espaces ne se
distinguent que sur le fond d’un monde commun et ne peuvent entrer en rivalité que parce qu’ils ont tous deux la
même prétention à l’être total.”
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Capítulo#2#
das redes neurais. Todo trânsito, substituição ou confluência que pode haver entre os sentidos
se reflete na arte em todas as suas instâncias, sejam elas poéticas, estéticas ou críticas. Tudo
que parece arroubo poético, especulação filosófica ou devaneio de artista romântico pode ser
simplesmente a expressão do caráter intercambiável ou dessa comunhão entre os sentidos que
se reflete nas artes. Não se trata mais simplesmente de “vagas metáforas” e sim da expressão
de uma realidade ou uma vocação comum para a sinestesia. Baudelaire, quando fala nos
perfumes, nas cores e nos sons que se respondem em Correspondências, ele vai além do que
somente comunicar o Zeitgeist, o “espírito do tempo”, mas nos aponta para a natureza
sinestésica de toda percepção. Muito mais ilusório que pensar em uma unidade dos sentidos e
das artes, é pensar que cada sentido e cada arte são puros e permanecem isolados em seus
domínios.
O “coro das musas”, maneira metafórica de se falar na generalização da sinestesia,
afirma também o oximoro do singular e do plural das artes. A afirmação da sinestesia é a
afirmação do novo singular que, paradoxalmente, não nega as diferenças dos sentidos e das
artes, mas se apresenta como “simultaneidade integrada dos mundos sensíveis”, como sugeriu
Nancy (1994, p. 28). Quando ouvimos, por exemplo, o grito do Laoconte que tenta se livrar
da serpente que o envolve, aceitando a sugestão de Lessing (1989, p. 15), ou quando é ouvido
o som dos cascos do touro de Corridas de Francis Bacon, como narrou Nancy (ibid., p. 45),
em ambos os casos notamos que é possível trazer à tona visualmente percepções de outros
sentidos. “Cada obra é, a sua maneira, uma sinestesia e a abertura de um mundo.” (ibid., p.
58)22. Ainda no entendimento de Nancy, o singular-plural aparece como lei e como problema
na arte e nos sentidos (ibid., p. 30).
O “coro das musas” tem a sinestesia como regra. Uma sinestesia que compreende as
artes e os sentidos como multiplamente únicos e unicamente múltiplos. Que, pelos meandros
de figuras de linguagem e metáforas, afirmam entendimentos mais tarde confirmados pela
ciência, tanto fenomenológica quanto neurológica.
Mas a totalidade da percepção não nega a especificidade dos sentidos. Cada um deles
tem uma maneira peculiar de se integrar e de se entregar à percepção. Embora esse jogo se
reflita na vida de maneira geral, a arte parece potencializá-lo e explicitá-lo.
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22
“Chaque œuvre est à sa façon une synesthésie, et l’ouverture d’un monde.”
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Capítulo#2#
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23
“Du Bon et du moins bon usage des métaphores dans l’esthétique comparée” é o subtítulo do livro de Nattiez
citado.
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Capítulo#2#
Mesmo que as definições, por si só, não revelem as naturezas das coisas e existam
somente para designar, serão essenciais algumas considerações preliminares sobre a Estética
para, em seguida, situar a Estética Comparada, território sobre o qual se funda a maior parte
das reflexões da segunda parte da tese.
Estética
A Estética, como boa parte das disciplinas, é una e múltipla. Defini-la com alguma clareza
pode ser possível, mas com exatidão, dificilmente. Chamá-la de reflexão sobre a arte, pode ser
correto, porém muito impreciso. Contudo, quanto mais precisos formos, mais sujeitos a
contradição e a erros também estaremos, pois o sentido da Estética deve ser o conjunto dos
seus usos, e estes foram e são bem variados. O problema de considerá-la como simples
reflexão sobre as artes é que outras instâncias ou disciplinas distintas, tais como a Poética, a
Crítica e a Teoria das Artes, poderão intervir e gerar confusões conceituais e certos problemas
metodológicos. Por isso, na tentativa de apresentar a Estética Comparada, será importante
primeiro fazer um breve panorama da Estética, apresentar um tipologia e constituir, assim,
alguns importantes pressupostos para esta pesquisa.
Definir Estética como “reflexão sobre arte” nos remete à sua pré-história, ou seja, à
Antiguidade e à Idade Média, períodos nos quais a metafísica do belo, nos preceitos
platônicos, o aproxima do Verdadeiro e do Bom. Na Idade Média a beleza se associa a uma
realidade inteligível, que, por sua vez, se liga à metafísica e mesmo a uma noção de harmonia
moral (Talon-Hugon, 2010, p. 17). Mas a pura reflexão sobre a arte ou sobre o belo, por mais
interessante que seja, não é ser propriamente a Estética. Mesmo porque, como vimos, a noção
de arte se difere consideravelmente segundo épocas e contextos. Logo, a não distinção entre
arte e técnica na Antiguidade e na Idade Média já pode ser um impedimento para considerar
que os autores antigos praticavam Estética.
O fato é que cada reflexão sobre arte, assumidamente estética ou não, vai se instalar
em meio a certo ordenamento de ideias que transcendem as consciências individuais. É o que
se chama de episteme ou solo epistemológico.
A Estética, com esse nome e com o desejo de ser efetivamente disciplina, surge na
obra do filósofo alemão Alexander Gottlieb Baumgarten (1714-1762), como “ciência do belo”
em 1735 (Souriau, 1990, p. 725). Opondo a noêta, fatos da inteligência, da aistheta, fatos da
sensibilidade, Baumgarten colocou o sensível como figura central e assim permitiu a
emancipação da disciplina. Ela só pôde existir efetivamente, graças a uma transformação
epistemológica que se produziu entre os séculos XVI e XVII na maneira de conceber o
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mundo e como ele se entrega às nossas sensações24. A emancipação das artes visuais e sua
inclusão entre as artes liberais na Renascença contribuiram para o surgimento da ideia
moderna de arte, ou de belas-artes. Mas, além da questão do belo e do estatuto da arte em si,
havia ainda a importância crescente que se atribuía ao sensível no cerne das reflexões sobre
arte. No século XVIII nasce a figura do crítico, como comentador da arte, e pululam reflexões
críticas sobre pintura, poesia e música. A Crítica da Razão Pura, publicada em 1781 por
Kant, embora não se apresente explicitamente como um estudo de Estética, acaba produzindo
efeitos fundamentais na afirmação e no estatuto da disciplina. Percebemos ainda hoje as
ressonâncias do pensamento de Kant nas modernas definições de Estética, como aquela do
Vocabulário Técnico e Crítico da Filosofia de André Lalande (1999, p. 343), que apresenta a
disciplina como “estudo do julgamento do gosto”, ou no Systhème des Arts (1926) de Alain,
no qual o autor deixa claro sua fundamentação kantiana. O que os estetas modernos nomeiam
Estética kantiana consiste na análise transcendental do julgamento de gosto que exprime a
experiência estética da beleza entregue aos sentidos (Talon-Hugon, 2010, p. 57).
No século XIX, a reflexão e o discurso sobre a arte e as práticas artísticas eram
atividades bastante próximas. A Estética se constituía muitas vezes como prolongamento da
atividade artística e vice-versa. Filósofos como Schopenhauer e Nietzsche ou os idealistas
alemães como Schlegel e Schiller, refletiram sobre questões estéticas e Hegel, considerando a
disciplina como filosofia da arte, dava maior enfoque às significações e ao conteúdo das obras
de arte que a própria experiência nos sentidos.
No século XX, a Estética se vê frente a inúmeros desafios, muitos deles em função das
transformações no próprio entendimento da noção arte. Tudo parece inclassificável e a obra
de arte, como totalidade sensível e claramente delimitada, nem sempre está presente. No
início do século passado, a reflexão estética se prolonga no pensamento de filósofos como
Benjamin e Adorno. O primeiro anuncia a “perda da aura” da obra de arte “na era de sua
reprodutibilidade” e o segundo afirma a não existência de uma essência intrínseca à uma obra
de arte25 (ibid., p. 89-92).
No século XX, o Vocabulaire d’Esthétique (1990, p. 728-729) dirigido por Étienne
Souriau distinguiu cinco tipos de Estética, que resumimos da seguinte forma:
########################################################
24
Michel Foucault apresentou com clareza em As Palavras e as Coisas (1966) essa transformação essencial do
solo epistemológico.
25
Citamos o célebre texto de Walter Benjamin: A Obra de Arte na Era da Sua Reprodutibilidade Técnica,
publicado em 1936.
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Capítulo#2#
É interessante observar que se nomeou Estética Filosófica as reflexões sobre arte feitas
antes mesmo do efetivo nascimento da disciplina. Quanto às Estéticas Psicológicas e
Sociológicas, o vocabulário parece meio reticente em relação a elas pelo risco que correm de
se afastar de conteúdos propriamente estéticos. Por outro lado, no decorrer do texto, Souriau
não disfarça certa simpatia pelas duas últimas Estéticas: a Morfológica e a Comparada.
Em sua apresentação da disciplina a partir das semelhanças, afinidades e filiações das
mais variadas acepções de estética, Carole Talon-Hugon a definiu da seguinte maneira: “A
Estética é a reflexão sobre certo campo de objetos dominado pelos termos ‘belo’, ‘sensível’ e
‘arte’.” (2010, p. 4) 26 . Mesmo que ainda soe algo vago, o que essa definição tem de
interessante é que quando se observa historicamente a Estética sobre essa tríplice base vemos
que existe uma alternância entre esses polos. Ora é a própria noção de arte que é o centro, ora
o sensível, ora a noção do belo. Essas três instâncias estão sempre presentes, mas nunca em
proporções equilibradas. Em um olhar bem distanciado, vemos por exemplo que na
Antiguidade e na Idade Média o sensível aparecia somente em doses homeopáticas. Sua
importância aumenta a partir da Renascença e, séculos depois, atinge seu ápice na Estética
Psicológica, particularmente com a Fenomenologia. No século XX, a reflexão sobre o próprio
########################################################
26
“L’esthétique est réflexion sur un certain champ d’objets dominé par les termes de ‘beau’, de ‘sensible’ et
‘d’art’.”
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Capítulo#2#
89#
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conceito de arte e seus limites ganhou grande destaque. Ou seja, na história existe certamente
uma alternância entre essas três instâncias apresentadas por Talon-Hugon27.
O belo, o sensível e a arte habitam a Estética que, nesta pesquisa, será regida por
outras duas diretrizes, distintas e indissolúveis. A Estética deve ser concreta e especulativa ao
mesmo tempo. A experiência e especulação servem de pano de fundo para a prática da
disciplina pois, permanecer na especulação pura é permanecer na abstração e, por outro lado,
firmar-se na pura experiência é contentar-se com a simples descrição.
É preciso notar também que Estética e experiência estética são coisas distintas, mesmo
que complementares. Na experiência estética se situam duas instâncias interligadas: a crítica e
a poética. A crítica vem da exigência que toda obra tem de ser avaliada, mesmo se isso não se
apresentar em termos explícitos. A poética, por sua vez, é um determinado programa de arte
representado pela espiritualidade de uma época ou uma pessoa (ibid., p. 11-17)28. A Estética,
ainda nos termos de Pareyson (ibid., p. 11-17), tem unidade como reflexão filosófica e
compete a ela estabelecer o que é específico de uma determinada arte em um plano que
interesse todas as artes. Ela deve levar em conta a totalidade dos aspectos da experiência
artística e a suas repercussões no âmbito das outras artes. A Estética deve ser, então, única em
sua pluralidade. Entendida dessa forma, qual seria então o interesse em apresenta-la como
Estética Comparada se, em sua natureza, já habita todas as “estéticas” particulares?
Estética Comparada
Por um viés distinto do de Pareyson, Victoria Llort Llopart (2006), em sua tese de
doutorado, defende a instauração da Estética Comparada em meados do século XVIII. A
partir deste período, para explicar ou caracterizar uma arte, era indispensável recorrer a
########################################################
27
Como se não bastasse a amplitude das noções, digamos, acadêmicas da Estética, ainda existem os
entendimentos do senso comum que coexistem, nem sempre harmoniosamente. É o caso da confusão entre estilo
e estética. Isso acontece, por exemplo, quando se fala da “estética de um autor”. Ou quando se caracteriza algo
como estético, considerando-o sinônimo de belo. Desconsideraremos essas acepções.
28
Vale lembrar que poética aqui é entendida em seu sentido amplo, associada à chamada poiésis. Ela não se
ligará somente à poesia, evidentemente, e sim ao estudo da instauração das obras de arte em geral. No final da
década de 30, Paul Valéry já havia agregado em “poética” conotações de “poiética”, termo que ele próprio
instituiu.
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Capítulo#2#
termos de uma arte distinta. Mas a indagação persiste: se a Estética já nasceu comparada, por
que não chama-la tão somente Estética?
A resposta é simples: porque a chamando de Estética Comparada explicita-se o fato
dela se ocupar especificamente dos contatos entre artes distintas, confrontando obras e
processos artísticos de artes distintas.
A Estética Comparada não se contenta com a afirmação de um parentesco global das
artes e deseja penetrar o núcleo central de cada arte e buscar correspondências, colocando em
evidência o que as artes podem ter em comum, o que se pode transpor de uma arte para outra
ou as influências mútuas (Souriau, 1947, p. 10).
Entretanto, a construção de uma disciplina sólida, que se aproxime da problemática da
correspondência das artes com rigor e profundidade, implica a necessidade de um método que
permita revelar o que Souriau chamou de “semelhanças secretas”. Três premissas são
necessárias para a constituição das linhas de força metodológicas (Souriau, ibid., p. 20-23):
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Capítulo#2#
91#
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fundamentados em analogias buscadas com mais rigor e cuidado. Metáforas deste tipo foram
chamadas de “pestes” por Souriau (1947, p. 35). A Estética Comparada busca e ressalta as
semelhanças e dessemelhanças entre objetos, que se instauram como artísticos, e visa uma
maior riqueza de entendimento, fruição e contemplação dos mesmos. As figuras de
linguagem, nas quais destacamos a metáfora e a sinestesia, embora muitas vezes reveladoras,
representam frequentemente um ensaio simplista de Estética Comparada. É preciso que cada
arte guarde seu próprio idioma e que o léxico das traduções seja estabelecido com muito
cuidado.
Mas para uma construção sólida de pressupostos na reflexão de artes comparadas, será
importante entender em que consiste uma proposta comparatista, tanto em seus sentidos
gerais quanto na especificidade da sua aplicação no diálogo entre as artes.
b) Comparatismo
Comparar? Não é nada que o espírito humano faça tão naturalmente. (Detienne, 2002,
p. 68)29.
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Capítulo#2#
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31
“[…] vérité intime des convictions et des adhésions.”
32
Arte como fazer, conhecer e exprimir vem da definição de arte apresentada por Luigi Pareyson em seu livro
“Problemas da Estética” (2001). Recordamos ainda os esforços de Leonardo da Vinci, já mencionados no
primeiro capítulo (cf. p. 46), no sentido de buscar um reconhecimento de uma dimensão cientifica da pintura e
sua inserção entre as artes liberais e não entre as artes mecânicas, atribuindo assim caráter mais nobre à sua arte.
33
Jucquois (2000, p. 17) diz que o pensamento francês chama de “Ciências Humanas” todas as disciplinas
ensinadas nas faculdades de Filosofia e Letras, de Psicologia e Ciências da Educação e disciplinas especificas
das faculdades de Direito, de Ciências Sociais e Políticas, como a Economia, a Sociologia e a Antropologia. No
caso das Ciências Biológicas, é na Anatomia que o comparatismo mais se afirma efetivamente.
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Capítulo#2#
93#
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34
Na gestação da Literatura Comparada os paralelos entre textos eram traçados sempre com o fim de apreciar o
mérito de um entre eles. Para exaltar virtudes, sob o comando das mais variadas conveniências, era preciso que
um dos elementos desse jogo fosse menosprezado, sutil ou grosseiramente. Na cultura europeia desse período as
comparações preferidas eram entre a língua grega e a latina e a francesa e a inglesa. Sob os olhares indignados
dos humanistas, em uma era positivista e científica, reivindicava-se superioridade de uma língua sobre outra.
Mesmo que bem no princípio do século XIX já existisse uma disciplina intitulada “Estudo Comparado das
Literaturas Nacionais”, uma prática efetiva da literatura comparada ainda não se expunha. A mera comparação
de literaturas não legitima a disciplina. Foi preciso que predominasse um espírito cosmopolita e liberal, negando
todo e qualquer exclusivismo, para que nascesse uma literatura comparada isenta de querelas e espírito de
competição (Brunel, Pichois e Rosseau, 1983, p. 29).
35
“La tâche essentielle du comparatisme sera alors d'élaborer un interlangage, par lequel le comparatisme pourra
se définir comme une démarche de description, permettant d'envisager une multitude de ‘discours’ […].
L'élaboration d'un interlangage descriptif par le comparatiste permettra d'envisager une ethnographie ouverte,
étudiant les cultures comme polysystèmes en contact.
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36
“La comparaison est, en effet, une sorte de traduction d'un objet d'un domaine culturel et civilisationnel donné
dans un autre. […]. Le comparatisme, dans ce qu'il a de proprement humaniste, de même que dans sa dimension
éthique, inclut épistémologiquement un perpétuel dépassement de ce qui demeurera toujours de ‘nouvelles
frontières’.”
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atingida. De qualquer maneira, ressalta Coquio, a unidade que não é virtual e sim positiva é
ciência, no melhor dos casos, ou ideologia, no pior37.
Essa bricolage, no entanto, compreende uma série de riscos. A disciplina comparatista
não se situa em um terreno estável e tranquilo. O distanciamento das certezas empíricas
parece ser uma vocação natural da disciplina.
Esse impulso espontâneo e nossa genérica vocação para a comparação pode minar,
logo a princípio, a força do Comparatismo. E um olhar restrito e restritivo brota, não
raramente, de um lugar-comum: o fato de querermos sempre “comparar o comparável”, como
se os critérios para estabelecer o que é ou não comparável fossem sempre nítidos e certeiros.
São tão certos quanto o “bom senso”, que todos, absolutamente, acreditam ter. Apesar da
inerência do ato de comparar ao espírito humano, sabemos que os objetos comparáveis e os
ensinamentos que tiramos das comparações vão diferir sensivelmente de um indivíduo a outro
e, por isso, é impossível estabelecer definitivamente o que realmente pode ser comparado.
Quando nos aproximamos de estudos comparatistas, seja em História, Literatura ou
Arte, observamos certa prudência por parte dos pesquisadores em precisar os limites do
alcance de suas conclusões e em colocar em questão o quadro da própria pesquisa. Pois a
postura reflexiva daquele que está entre dois “mundos” será certamente desconfortável. O
Comparatismo encontra-se em um centro dinâmico de pensamento e isso não é nada cômodo.
A explicitação inicial da impotência frente à complexidade do objeto de pesquisa, tão comum
no discurso acadêmico, é ainda mais acentuada no exercício comparatista. E isso é
perfeitamente justificável não só pelo desconforto em se situar em uma zona de tensão, mas
pelo fato desta prática abrir facilmente precedentes para críticas. Lacunas e tomadas de
partido individuais serão muito frequentes e quase inevitáveis no quadro desta disciplina.
Bayard, reportando-se à História da Arte, nos apresenta três riscos (2007, p. 11) da
prática comparatista. O primeiro é o não se levar em consideração a especificidade de cada
entidade e chegar à conclusão de que mesmos elementos causadores produzem similares
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37
A pesquisadora observa ainda que a palavra “disciplina” comporta nela mesma um fator bricolage. Na
universidade, por princípio, as disciplinas guardam um espaço de liberdade. Um espaço necessário a toda
pesquisa que almeja realmente “descobrir” alguma coisa.
38
“Mais c’est alors établir des analogies furtives, entrevoir des ressemblances, relever quelques différences puis,
insensiblement, se laisser aller à un jugement de valeur […]. Aucune véritable activité comparative ne peut
naître de ce regard familier et borné.”
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39
[...] “aux soupçons chagrins des partisans du cloisonnement et des spécialistes des sujets restreint.”
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Capítulo#2#
97#
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Correspondence des arts (1947) quando nos alerta para os perigos das “vagas metáforas” no
exercício da Estética Comparada. Bartolli não nega, no entanto, o poder da metáfora:
“Quando ela é potentemente construída, ela chega ao ponto de saturar a mensagem de uma
intensa polifonia semântica. A metáfora é esclarecedora, ela ilumina o discurso pela sua
irradiação.” (2006, p. 12)40.
Sem negar a diferença das coisas, nem cair em afirmações globalizantes que podem
minar sua força, o Comparatismo se ampara no poder de ultrapassar, de transcender os
domínios e as disciplinas, abolindo ou rompendo limites entre ciências e ideologias, reflexões
teóricas e práticas cotidianas (Jucquois, Swiggers, 1991, p. 13).
Embora a disciplina comparatista não se deixe enquadrar com facilidade, alguns
autores refletiram sobre certos padrões ou tipologias no que concerne o exercício
comparatista. Jucquois (2000, p. 25), por exemplo, apresenta três tipos de comparação que
podem ser feitas no interior da disciplina.
A comparação, no primeiro tipo, se apresenta como exame das relações de semelhança
e diferença. Observa-se os traços comuns e diferenciais entre objetos, sem que isso implique
necessariamente em juízo de valor. A comparação ocorre sem a perda de identidade dos
objetos, ou seja, as diferenças e semelhanças reconhecidas não irão interferir no interior dos
objetos comparados.
Em seu segundo tipo, a comparação é definida como uma aproximação que visa à
assimilação. Aproxima-se para buscar traços comuns e construir elos que unam os objetos
comparados. Corre-se o risco de se fechar os olhos para toda diferença e a reduzi-la à
identidade. Nesse tipo de comparação, a força que se dá às amplas fórmulas de generalização,
ou mesmo à crença excessiva no poder das metáforas, ambas podem levar ao desprezo das
identidades em função de uma pretensa conjunção e de uma perspectiva tipológica. Partindo
deste entendimento, podemos acabar por considerar os fenômenos como sombras da realidade
que tomam formas distintas de acordo com a luz que a acordamos, mais que nunca equivale à
realidade ela mesma.
A terceira definição, finalmente, fala da aproximação de pessoas ou coisas de natureza
ou de espécie diferentes que não podem ser totalmente assimiladas. Toda assimilação pode se
tornar artificial nesta definição e por isso é preciso aceitar e até mesmo enfatizar a identidade
das coisas. Quanto maior a distância espacial, temporal ou das naturezas dos objetos
comparados mais risco e menos evidente se torna a comparação.
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40
Quand elle est puissamment construite, elle est à même de saturer le message d'une intense polyphonie
sémantique. La métaphore est éclairante, elle illumine le discours par son rayonnement.”
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41
Isso nos remete ao artigo de Marcel Detienne: “L’art de construire de comparables”, citado na bibliografia
desta tese.
42
Estrutura entendida de maneira ampla como um sistema de relações das partes com o todo.
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43
Por método entendemos “caminho para meta”, de acordo com sua etimologia grega (met = meta; odos =
caminho).
44
“Le comparatisme consiste plutôt en un regard global et totalisant, un regard personnalisé, même s'il est
collectif.”
45
[…] “le comparatiste établit des méthodes de transposition exemptes de hiérarchisation, nées de l'observation
méthodique de la rencontre des cultures.”
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Capítulo#2#
mas sim na ambição teórica de se produzir modelos dinâmicos que ultrapassem as fronteiras
entre as disciplinas.
Uma metodologia se esboça e se organiza a partir de três eixos: as obras comparadas
(os objetos), as técnicas ou estratégias de comparação (os meios) e os pontos ou zonas de
contato dos objetos observados (os encontros) (Jucquois, Swigers, 1991, p. 15). Nesses três
eixos, a procura por paralelismos históricos, homologias, homomorfias, similaridades se
confrontam com as diferenças, as vezes intransponíveis, das matérias, das técnicas e dos
sentidos. E nesse confronto permeado de tensão se encontrará o centro dinâmico da disciplina.
No interior da interdisciplinaridade, a prática comparatista flerta frequentemente com
o objetivo, quase utópico, de ultrapassar as categorias disciplinares tradicionais. Daí a
atualidade reivindicada no Comparatismo entre as artes. Sua boa realização tem a força de
sublinhar os pontos fracos dos cortes disciplinares tradicionais e indicar novos agenciamentos
desses limites. Ele se encaixa perfeitamente nas recentes tendências interdisciplinares, que,
muito mais que um modismo, parecem representar um reflexo desse histórico comparatista
apresentado brevemente por esta pesquisa.
Endereçando-se à aproximação de atividades artísticas distintas (música, pintura e
literatura), Gérard Dénizeau (2009, p. 30) aponta sete etapas metodológicas para se reduzir ao
máximo o risco de lacunas e incoerências na proposta interdisciplinar:
Na apresentação das sete etapas de Dénizeau, é possível visualizar três linhas de força.
Os dois primeiros itens resumem-se à história, ou seja, à inserção e ao paralelo das obras no
tempo e no espaço. Os itens três e quatro são de natureza histórico-estética, tratam da
especificidade das obras. E os últimos três itens parecem ter sido criados no intuito de se
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evitar especulações a propósito de falsos parentescos entre as obras, como uma maneira de
limitar o surgimento de semelhanças muito arbitrárias ou sem fundamentos. Para haver reais
correspondências, é preciso que existam reais contatos entre os artistas, segundo o
pesquisador. Para que haja semelhanças entre uma obra literária, uma musical e uma visual,
os respectivos autores devem ter revelado posicionamentos em relação às artes vizinhas, ainda
de acordo com o sistema acima. Denizeau, na busca positiva pela veracidade e rigor na
comparação das artes, acaba negando a dimensão puramente receptiva de uma obra de arte. O
reconhecimento de semelhanças por parte do receptor não é necessariamente vinculado à
poética ou a estética explicitada pelo criador da obra.
Em uma visão panorâmica, Jean-Jacques Nattiez apresentou quatro famílias
metodológicas no que concerne o estudo das interseções entre música e artes visuais (2010, p.
35-39).
A primeira tem como mote o chamado Zeitgeist, o “espírito do tempo”. Explica-se a
relação entre música e pintura através das forças históricas que perpassam determinadas
situações de tempo e espaço. O que une as artes são as forças de uma determinada
sensibilidade sincrônica. A arte está integrada em todo um quadro histórico e, quando
observamos uma obra, podemos buscar os princípios subjacentes que revelam a mentalidade
de uma nação, de uma classe, de uma filosofia, etc. Nattiez cita Panofsky como o mais
importante nome dessa corrente metodológica. Na Estética Comparada recente, outros autores
podem incluir-se nesse grupo, tais como François Sabatier, com seus dois grandes volumes
que tentam dar conta das correspondências entre música, pintura e literatura da Antiguidade à
Modernidade ou Gérard Denizeau, que descreve e apresenta obras dessas três artes tendo
como elo principal o espírito do tempo47. Essa abordagem pode se ligar ao que Souriau
chamou de Estética Sociológica e que corre o risco, recapitulamos, de se afastar do próprio
interior do objeto estético. As obras se constituiriam como símbolos ou sintomas culturais de
uma época e local.
A segunda família metodológica para Nattiez se situa no âmbito das próprias obras, e
não é necessariamente guiada pelo espírito do tempo. Essa metodologia se funda em uma
maneira mais tradicional de se entender a história e, a partir daí, revelar elos temáticos entre
obras. Nattiez cita os trabalhos do grupo de pesquisa Musique et Arts Plastiques (M.A.P.) da
Universidade Paris-Sorbonne, dirigido pela Profa. Dra. Michèle Barbe, como melhores
representantes desta proposta metodológica. Porém, uma observação mais atenta dos
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47
“Miroirs de la musique” de François Sabatier em dois volumes, Paris: Fayard, 1998; e “Le Dialoge des arts”
de Gérard Dénizeau, Paris: Larousse, 2008.
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Capítulo#2#
trabalhos publicados pelo grupo revelam uma enorme variedade de abordagens e nos parece
injusto reduzi-los à relações temáticas.
A terceira família metodológico deve ter sido embalada pela corrente estruturalista que
viveu um momento importante em meados do século XX. Essa família pode ser representada
por Étienne Souriau quando, em seu La Correspondance des arts (1947), buscou revelar
estruturas similares entre os distintos domínios artísticos. Recusa-se a intervenção do processo
criador para se estabelecer elos entre as artes.
A quarta família metodológica, finalmente, parece ser uma mistura das três anteriores,
porém, tanto os processos criadores quanto os perceptivos devem intervir nas operações de
passagem entre música e artes plásticas. Jean-Yves Bosseur parece abordar os elos entre as
artes de maneira a fundir as instâncias do Zeitgeist, temáticas e estruturais.
Estar consciente da existência de um feixe de possibilidades e caminhos para se
exercer o Comparatismo no interior desta pesquisa parece tão importante quanto entender a
necessidade do que Nattiez chama de “individualidade metodológica”. A singularidade das
obras e/ou dos encontros entre elas construirão a singularidade dos métodos para abordá-los.
A busca por semelhanças, secretas ou não, dependerá da aplicação de um método que respeite
a identidade das obras, mas que não negligencie novos entendimentos da própria noção de
semelhança.
Em uma visita ao Louvre, Paul Valéry é surpreendido por veemente reação de seu
amigo, o escritor simbolista Marcel Schwob, quando passavam em frente ao retrato de René
Descartes feito por Franz Hals em 1649. Schwob se dizia surpreso pela extrema semelhança
entre o pensador do século XVII e o retrato. Valéry, não se contendo, pergunta-lhe se, por
acaso, o amigo já havia visto Descartes. Sem embaraço, Schwob responde: “Assim# DEVIA#
ser#Descartes”#(Valéry, 1962, p. 327)48. O filósofo e poeta francês conclui que Hals tinha ido
além do “fazer” um Descartes. O problema da semelhança pura e simples não o atormentava.
A tela de Hals revelava Descartes, assim como Descartes revelava Hals.
Em De la Ressemblance et de l'art (1962), Valéry discorre sobre a questão dos retratos
e das semelhanças. Esta pequena anedota ilustra uma característica importante do termo em
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48
“Ainsi DEVAIT être Descartes.” (Maiúsculas de Valéry).
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Capítulo#2#
105#
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questão: mais do que valor de verdade, a semelhança é um valor atribuído. É nessa faculdade
que ela revela sua força, mas também toda sua fragilidade.
Sem refletir sobre os desdobramentos filosóficos que a anedota facilmente suscita, a
noção de semelhança apresentada no texto de Valéry converge com a acepção de
conformidade encontrada tanto em uma semântica lexicográfica, quanto na semântica
filosófica. “Conformidade, relação de fisionomia entre duas ou mais coisas ou pessoas que se
parecem mutuamente; afinidade de caracteres”, é a primeiro definição de semelhança no
Michaelis (1998). No Dictionnaire de Philosophie de Godin (2004) entre as definições de
ressemblance está: “Maior#ou#menor#grau#de#conformidade#entre#coisas#ou#entre#seres”#e!
“conformidade entre uma obra de arte e o original”49. A semelhança, como várias outras
noções, irá adquirir novas cores, de acordo com a área do conhecimento na qual é empregada.
Entretanto, estará sempre impregnada da crença em alguma conformidade. Quando uma coisa
se assemelha a outra, quer dizer que ambas ou uma delas carrega em si uma menção a outra,
seja ela objetiva ou não. O que nos faz supor que as coisas, para se assemelharem, devem
possuir algum sinal, alguma marca comum ou uma espécie de “assinatura” ou assinalação.
########################################################
49
“Degré plus ou moins grand de conformité entre des choses ou entre des êtres” ou “Conformité entre une
œuvre d’art et l’original.”
50
Em Gaia Ciência (1982, p. 186), Nietzsche comenta esse impulso humano do reconhecimento dos sinais e
situa a tendência de considerar o semelhante como idêntico na origem da lógica e seu principal fundamento.
Interessante notar que a atribuição de algo como idêntico ainda persiste, mesmo que raramente, em definições de
“semelhança” em certas lexicografias, como por exemplo no dicionário da língua francesa Petit Robert (1990).
51
A versão brasileira da obra As Palavras e as Coisas de Michel Foucault feita por Salma Tanus Muchail (São
Paulo: Martins Fontes, 1990) traz a palavra “signature” traduzida como “assinalação”. Sua versão portuguesa,
realizada por Isabel Dias Braga (Lisboa: Edições 70, 1988), a traduziu como “marca”. Nós optamos por
privilegiar a tradução direta em “assinatura”. Chamar de assinaturas essas marcas das semelhanças suscita um
certo estranhamento que, de imediato, desperta a atenção do leitor para, em seguida, remeter, como uma
metáfora, à ampliação de seu sentido. As traduções dos trechos dos textos de Foucault representam exceção entre
#
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Capítulo#2#
Deus deu um intercessor a cada planta, a fim de que sua virtude natural pudesse ser
reconhecida e descoberta. Esse mediador só pôde ser uma assinatura externa, quer dizer, uma
semelhança de forma e figura, verdadeiros indícios de bondade: sua essência e perfeição, e,
até mesmo, como já disse, esses sinais mágicos que nos falam através de suas assinaturas.
(Crollius, 1917, p. 98) 52.
Não existem semelhanças sem assinaturas. [...]. O saber das similitudes se funda sobre o
histórico dessas assinaturas e sua decifração. As semelhanças exigem uma assinatura, pois
nenhuma entre elas poderia ser marca se não fosse legivelmente marcada. (1966, p. 41-43)54.
#############################################################################################################################################################################
os demais trechos em língua estrangeira nesta tese, pois são um amálgama de nossa própria tradução e das outras
duas citadas, a de Muchail (1990) e a de Braga (1988).
52
“Dieu a donné un truchement à chaque plante, afin que sa vertu naturelle puisse estre connue et decouverte. Ce
truchement ne peut être que la signature externe, c'est-à-dire, ressemblance de forme et figure, vrais indices de la
bonté : essence et perfection d’icelle, voire, comme je l’ai déjà dit, ces signes magiques parlent avec nous par
leur signatures.”
53
Crollius foi discípulo da escola de Paracelso (1493-1541), importante médico, alquimista, físico e astrólogo
suíço.
54
“Il n’y a pas de ressemblance sans signature. […] Le savoir des similitudes se fonde sur le relevé de ces
signatures et sur leur déchiffrement. […]. Les ressemblances exigent une signature, car nulle d’entre elles ne
pourrait être remarquée si elle n’était lisiblement marquée.”
55
“[…] de demeurer dans la nuit.”
#
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Capítulo#2#
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século XVI sobrepôs hermenêutica e semiologia na forma da semelhança e que a busca pelo
sentido era, na verdade, verificar e perceber aquilo que se assemelhava (ibid., p. 44)56.
Os movimentos secretos do entendimento são, então, expressos pela voz; [...] as ervas
falam ao médico curioso através de sua assinatura, [...]. Logo, aquele que deseja ser um
médico perito (com a teoria de sua arte) deve ter o conhecimento da significação interior
das assinaturas, até porque tudo aquilo que está no interior das assinaturas, traz a face de
seu segredo, tanto às criaturas sensíveis quanto às insensíveis. (Crollius, 1917, p. 100)57.
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56
Foucault chama de hermenêutica o conjunto de conhecimentos e técnicas que nos permitem falar dos signos e
desvendar seus sentidos, e semiologia os conhecimentos e técnicas que permitem distinguir onde estão os signos,
o que os designa como signos e conhecer suas ligações e leis de seus encadeamentos (ibid., p. 44).
57
“Doncques les secrets mouvements de l’entendement sont manifestes par la voix; (…) les herbes parlent au
curieux medecin par leur signature, (…) Donc celuy qui desire estre expert medecin (avec la theorie de son art)
doit avoir la cognoissance de la signification intérieur des signatures, d’autant que tout ce qui est à l’interieure
des signatures, porte la figure de son secret tant aux créatures sensibles qu’aux insensibles.”
58
Como por exemplo a semelhança entre uma noz e um cérebro, que revelava que a primeira poderia ser útil na
cura de doenças da membrana cerebral, o pericrânio (Crollius, 1917, p102).
59
O Dicionário Aurélio traz uma interessante citação para ilustrar a noção de similitude: “Fundo silencioso,
contrastando com as chapadas e as elevações onde o dia fulgura e a vida rumoreja, não nos impõe [o vale] a sua
similitude com as almas recolhidas e pensativas, mas boas e fecundas?” (Amadeu Amaral, O Elogio à
Mediocridade, apud Aurélio, 1986, p. 80). Tece, dessa maneira, uma comparação entre uma paisagem e um
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entre os séculos XIII e XV existe uma variação no interior de “símile”: semeldue (séc. XIII);
semeldũe (séc.XIV) e simildõoe (séc.XV ). Sendo o verbo “semelhar” proveniente de
“similiare”, isso confirma a raiz comum dos dois termos.
Persiste ainda hoje a confusão entre semelhança e similitude, a ponto do pintor belga
René Magritte propor ele mesmo uma distinção, em uma carta endereçada a Michel Foucault
e relacionada a aplicação dos termos “ressemblance” e “similitude” no livro As Palavras e as
Coisas (1966):
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estado de espírito. Aproxima uma paisagem a um estado de espírito. A “similitude”, além dos significados mais
próximos à “semelhança”, traz ainda “uniformidade” e “simulacro”.
60
Les mots Ressemblance et Similitude vous permettent de suggérer avec force la présence – absolument
étrange – du monde et de nous-mêmes. Cependant, je crois que ces deux mots ne sont guère différenciés, les
dictionnaires ne sont guères édifiants quant à ceux qui les distingue. C’est me semble-t-il que, par exemple, les
petits pois entre eux ont des rapports de similitude, à la fois visibles (leur couleur, leur forme, leur dimension) et
invisibles (leur nature, leur saveur, leur pesanteur). Il en est de même du faux et de l’authentique, etc. Les
« choses » n’ont pas entre elles de ressemblances, elles ont ou n’ont pas des similitudes. Il n’appartient qu’à la
pensée d’être ressemblante. Elle ressemble en étant ce qu’elle voit, entend ou connaît, elle devient ce que le
monde lui offre.
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Logo, embora se reconheça que semelhanças absolutas não existam, o termo pode ser
utilizado quando observamos certa “disposição do espírito” que nos faz perceber as coisas
como semelhantes. Enquanto as similitudes teriam a dupla natureza, mencionada acima, de
ser ao mesmo tempo marca e figura articuladora das semelhanças.
O fato é que a importância dada às noções de semelhança, similitude ou assinatura
antigamente, sobretudo na Renascença, em nada tem a ver com o descrédito dessas mesmas
noções nos séculos seguintes. Mesmo que o homem tenha continuado a se ater,
conscientemente ou não, à lógica das semelhanças, elas foram deixando de ser “marcas da
sabedoria divina”, ordenadoras do saber, e perderam drasticamente seu prestígio.
Rigorosamente falando, dois objetos de pensamento quaisquer têm sempre alguma coisa em
comum: uma gota de óleo assemelha-se a uma folha de papel pelo fato de ambas serem
materiais, translúcidas, combustíveis, de origem vegetal, etc. (Lalande, ibid., p. 985).
Quanto mais se olha e se compara, mais semelhanças afloram e, com elas, uma certa
descrença. As semelhanças não brotam mais de Deus, e sim dos olhares do homem.
A semelhança perde sua importância central e se torna figura secundária
excessivamente relativa. Figura charlatã, uma impostora sempre pronta à resolver problemas
filosóficos, a semelhança não passa de uma simuladora, existe como efeito de indução
arbitrária, decretou o filósofo estadunidense Nelson Goodman em Problems and Projects
(1972, p. 437). Não é preciso muita reflexão para verificar que a semelhança está por toda
parte. Mas desde que se olhe com mais agudeza, elas vão se dissipando e as coisas vão
afirmando sua unicidade. Como um escultor que, na busca de materializar formas e
proporções de um modelo, se dá conta da volubilidade das similitudes. Quanto mais o artista
olha para o modelo e para sua escultura, mais ambos insistem em afirmar suas
individualidades e toda semelhança desaparece, como nos relatos do artista plástico Alberto
Giacometti (1901-1966) em Giacometti: La Ressemblance impossible (Soavi, Knapp, 1991, p.
10) .
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“Tu signaculum similitudinis, plenus sapientia, perfectus decore!" (Tu eras o sinal da semelhança, pleno de
sabedoria, perfeito em beleza!) (Javelet, 1967, p. 251).
62
“Pour les créatures, la ressemblance s’accompagne toujours par dissemblance.” Os teólogos medievais, a
partir de Santo Agostinho se expressaram dizendo que o homem, quando deixa o paraíso, está condenado ao erro
no mundo material em uma “região de dessemelhança” (regio dissimilitudinis) (Didi-Hubermann, 1995, p. 26).
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mesmo dos limites entre os órgãos dos sentidos. As semelhanças, tão falsamente palpáveis,
entram no reino das utopias, na regio similitudinis. Por um lado, ela é utópica e inatingível e,
por outro, ela é a regra a partir da qual as coisas e seres se ordenam, regra que, mesmo após
todo o tempo em que ela é colocada em questão, continua a vigorar com bastante força. Crer
na semelhança das coisas, tal como os dicionários ou a episteme medieval a apresenta – como
similitudes, traços de semelhança, que fazem com que coisas se atraiam naturalmente e que
nos permite ordená-las de acordo com a sua significação intrínseca – é nos instalarmos
confortavelmente em um mundo organizado e perfeito. É achar que o olhar não intervém no
ouvir, que os sentidos ou as artes não se comunicam. É perceber as coisas como fixas e
definitivas.
Embora a exploração de semelhanças e diferenças revele sempre alguma
arbitrariedade e esteja sujeita à relatividade dos olhares, toda identificação é regida por um
certo número de princípios e critérios. E estes fundamentaram toda ordenação possível.
[…] na verdade, mesmo para a mais ingênua experiência, não há nenhuma similitude,
nenhuma distinção que não resulte de uma operação precisa e da aplicação de um critério
previamente estabelecido. Um “sistema de elementos” – uma definição de segmentos sobre
os quais poderão aparecer as semelhanças e diferenças, os tipos de relação que poderão
afetar este segmento, o limite sob o qual haverá similitude – é indispensável para o
estabelecimento da mais simples ordem. (Foucault, 1966, p. 10)63.
O fato das semelhanças verdadeiras e fixas não mais existirem, não quer dizer que
extinguiram-se as semelhanças. Elas entram, não mais apoiadas no absoluto, mas na validade
das deduções e induções, das premissas e conclusões. Uma validade que não se liga
necessariamente à verdade. A validade deve ser assegurada pela conformidade com um
raciocínio e certas regras de inferência coerentes que, sendo bem estruturadas, não afirmam
verdades absolutas e sim, raciocínios verdadeiros64.
c) Novas Semelhanças
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submete, e uma experimentação, uma ação, como notou Georges Didi-Huberman (1995, p. 9).
No primeiro sentido somos impelidos a prová-la, não podemos decidi-la previamente e ela
vem, de certa maneira, nos surpreender e revelar um ponto de vista fenomenológico. O
segundo sentido exige atividade e decisão, vontade e gesto. Revela um ponto de vista formal
ou estrutural. A experiência deve ser sempre pensada sob esse duplo olhar, como algo
experimentado e algo por fazer.
As assinaturas, essas marcas que permitem com que as coisas se assemelhem, saíram
de sua zona de conforto, e a leitura das coisas se abre a uma percepção que deve ir além da
óbvia descrição dos contornos.
É algo vão buscar somente no aspecto das coisas, os sinais inteligíveis que permitem
distinguir diversos elementos uns dos outros. Aquilo que salta aos olhos humanos não
somente determina o conhecimento das relações entre os diversos objetos, mas também
certo estado de espírito decisivo e inexplicável. É assim que a visão de uma flor denuncia,
é verdade, a presença de uma certa parte de uma planta; mas é impossível contentar-se
com esse resultado superficial: com efeito, a visão desta flor provoca no espírito reações
muito mais consequentes pelo fato dela exprimir uma obscura decisão da natureza
vegetal. [...] é inútil negligenciar, como fazemos geralmente, essa inexprimível presença
real, e rejeitar como absurdo e pueril certas tentativas de interpretação simbólica.
(Bataille apud Didi-Huberman, 1995, p. 187)65.
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São Tomás de Aquino associavam a perda da semelhança divina como origem de todo
pecado. O “problema” da semelhança reside no fato de se aspirar à sua pureza, pois, na
impossibilidade de uma semelhança de igualdade, os homens se esforçam em imitar Deus e
buscar uma semelhança impossível. Por outro lado, a transgressão, associada ao anjo caído e a
semelhança de rivalidade, se ligava a perda da semelhança. Entendida desse modo, a
semelhança tem uma estrutura de mito, porque não é uma relação natural imanente, mas é
metafísica e sobrenatural por implicar na relação do homem com Deus. A criação de Adão
por Deus “ad imaginem et similitudinem suam” e a interdição fundamental ao fruto da árvore
do conhecimento do bem e do mal afirmam a semelhança como um grande tabu (ibid., p. 26).
A semelhança, em suas definições mais tradicionais, tem um caráter autoritário que deve vir,
acreditamos, da obrigatoriedade de um mimetismo, que supõe a cópia de um modelo.
A filosofia de Bataille supera ou despreza essa impotência frente a impossibilidade da
semelhança completa. Não há limites nítidos para o que pode ou não ser comparado.
Reportando-se a esta tese, quando um compositor se baseia ou tira alguns elementos de uma
obra visual ou de uma imagem qualquer e a transpõe em sua própria obra, ele pode estar
produzindo algum tipo de contato, ou um “choque de formas”. Forças de semelhança
percorrem caminhos interiores e o contato entre obras pode ser produzido pelo desejo de
aproximar as coisas, mesmo que seja somente através de um discurso sobre as obras68.
Bataille não reivindica semelhanças da regio similitudinis, que se ajustam
convenientemente em categorias herméticas, nem tampouco da regio dissimilitudinis, onde só
existe diferença. O importante seria exaltar o conflito das formas e o informe, sem esquivar-se
da inevitável tarefa de transgredir.
Transgredir as formas não quer dizer se desligar das formas, nem se manter alheio ao
local onde elas habitam. Reivindicar o informe não quer dizer reivindicar as não-formas,
mas se engajar em um trabalho das formas equivalente ao que seria um trabalho de parto
ou de agonia: uma abertura, uma ruptura, um processo dilacerante levando algo à morte e,
nessa própria negatividade, inventando algo absolutamente novo, atualizando algo,
mesmo no interior da crueldade do trabalho das formas e nas relações entre as formas –
uma crueldade das semelhanças. Dizer que as formas “trabalham” na sua própria
transgressão, é dizer que tal “trabalho” – discussão tanto quanto ordenamento, ruptura
tanto quanto entrançamento – faz com que as formas se voltem contra outras formas, se
devorem por outras formas. Formas contra formas e, constataremos rapidamente,
matérias contra formas, matérias tocando e, algumas vezes, devorando formas. (ibid., p.
21)69.
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68
Esse desejo pode ser aquele “desejo de arte” que mencionamos no capítulo anterior (cf. p. 39).
69
“Transgresser les formes ne veut donc pas dire se délier des formes, ni rester étranger à leur site. Revendiquer
l’informe ne veut pas dire revendiquer des non-formes, mais plutôt s’engager dans un travail de formes
équivalent à ce qui serait un travail d’accouchement ou d’agonie : une ouverture, une déchirure, un processus
déchirant mettent quelque chose à mort et, dans cette négativité même, inventant quelque chose d’absolument
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neuf, mettent quelque chose au jour, fût-il le jour d’une cruauté au travail dans les formes et dans les rapports
entre les formes - une cruauté de ressemblances. Dire que les formes « travaillent » à leur propre transgression,
c’est dire qu’un tel « travail » - débat autant qu’agencement, déchirure autant que tressage - fait se ruer des
formes contre d’autres formes, fait dévorer des formes par d’autres formes. Formes contre formes et, nous allons
vite le constater, matières contre formes, matières touchant et, quelques fois, mangeant des formes.”
70
Os textos de Bataille têm muito frequentemente um tom provocador, mesmo quando ele defende as mais
interessantes perspectivas. Sua maneira particular de tratar as imagens, apreendida por etnólogos que podem até
mesmo se dizer “batailliens”, não foi absorvida pelos historiadores da arte, que enfatizam principalmente sua
excentricidade, de acordo com Didi-Huberman (1995, p. 379).
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E o que estará em jogo em tal “trabalho”, em tal conflito fecundo, não é nada mais que
uma nova maneira de pensar as formas, processos contra resultados, relações lábeis
contra termos fixos, aberturas concretas contra fechamentos abstratos, insubordinações
materiais contra subordinações à ideia [...]. (Didi-Hubermann, ibid., p. 21-22)71.
As “semelhanças informes”, título da terceira parte deste capítulo, não são uma
negação da forma, mas uma outra maneira de pensá-la. É preciso aceitar a condição de uma
informidade ou disformidade de todos os objetos e na observação das semelhanças72.
Logo, as semelhanças desta pesquisa tendem à transgressão, à informidade e surgirão,
na segunda parte desta tese, do contato tenso entre obras de naturezas distintas. A semelhança
– seja ela informe, transgressora, espontânea, forçada ou secreta – perpassa a diferença pelos
mais diversos caminhos em um território onde tudo pode ser comparado, mas nada se iguala.
De qualquer maneira, como a mitologia cristã nos ensinou, a semelhança de igualdade reside
em uma instância que não é a nossa.
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71
“Et c’est qui aura fait l’enjeu d’un tel “travail”, dans tel conflit fécond, n’était rien d’autre qu’une nouvelle
façon de penser les formes, processus contre résultats, relations labiles contre termes fixes, ouvertures concrètes
contre clôtures abstraites, insubordinations matérielles contre subordinations à l’idée […].”
72
O “informe” não tem forma determinada, enquanto no “disforme” supõe-se que haja desproporção no interior
do objeto.
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Capítulo 3
As Quatro Similitudes
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1. Simpatia
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sympathie, escrito por Kenelm Digby e publicado em 16581. O discurso de Digby, cujo mote
foi resumido logo abaixo, é de fato um relato, dito verídico, no qual o autor é também
importante personagem.
O ilustre senhor Jacques Howell, secretário do duque de Buckingham, teve sua mão
gravemente ferida. “Vamos amputá-la!” – ordena o cirurgião do rei. Nervos, músculos,
tendões e ossos foram gravemente afetados por impiedosa lâmina quando Howel tentava
interromper um duelo entre dois amigos seus. Um gesto apaziguador seria injustamente
recompensado com a perda de um membro, se não fosse a intervenção do cavaleiro Kenelm
Digby. Ele recolhe uma pequena amostra de sangue da lesão em um tecido e a mergulha em
uma solução diluída em água, longe da presença física do ferido. Instantes depois, eis o
começo de um processo de cicatrização que, em poucos dias, leva a cura ao desacreditado
Jacques Howel. Ele foi salvo por simpatia: pelo “pó da simpatia” (poudre de sympathie)
(Digby, 1658, p. 3-10).
O pó da simpatia era defendido com ardor pelo cavaleiro Digby contra as acusações de
bruxaria ou charlatanismo. Tratava-se simplesmente de um produto que contribuía à
harmonização cósmica do mundo e seus elementos. Dessa maneira ele revelava “os efeitos
surpreendentes da simpatia”2. Uma simpatia que transforma, cura, harmoniza. Sem contato ou
feitiço.
Essa curiosa anedota ajuda a ilustrar uma noção que comporta ao mesmo tempo
grande potência, volatilidade e abstração. Ela será observada em uma breve topografia que
parte de sua etimologia mais fundamental para chegar à sua posição central na metafísica de
Henri Bergson, passando por um histórico de seus entendimentos enriquecidos pela
apresentação de Michel Foucault e outros filósofos que o precederam na reflexão sobre a
semelhança e suas forças.
a) Afinidades e Transformações
Embora sympathia seja um termo latino, sua origem é grega, συµπάθεια (sumpátheia),
e seu equivalente no latim é compassio (Dandrey, 2007). O Dictionaire Culturel de la langue
française (Rey, 2005) registra sua primeira definição em 1409 como “atração por algo” ou
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1
O título pode ser traduzido para o português como: Discurso feito a uma celebre assembleia: a propósito da
cura de ferimentos pelo pó da simpatia. A obra original foi consultada na seção de obras raras (La Reserve) da
biblioteca Sainte Geneviève de Paris.
2
A título de curiosidade, Les effects surprenants de la sympathie é o título de um romance de 1714 de Pierre de
Marivaux (1688-1863).
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Capítulo#3#
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3
“Attirance pour quelque chose” ou “acceptation de quelque chose”. “Affinité morale, ressemblance de
sentiments, convenance de goûts entre deux ou plusieurs personnes, accord, harmonie”
4
“unir, se mettre em accord”; “semblable”.
5
Curiosas aplicações do termo se verificam na Renascença. Além do pó da simpatia (poudre de sympathie),
citado no começo desse texto, existia ainda a tinta da simpatia (encre de sympathie), que era invisível, mas,
quando submetida a um agente químico, reaparecia.
6
“L’impression que nous avons de nous-mêmes est particulièrement vive, de sorte qu’elle transfère une partie de
cette vivacité aux objets auxquels nous sommes reliés.”
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Capítulo#3#
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durou até o século VI d.C.7. No entanto, a diferença é que, enquanto na moral estoica
proclamava-se a imperturbabilidade e aceitação de uma ordem cósmica na qual a simpatia
atuava como força de harmonização do mundo, no século XVIII, a simpatia impõe seu
aspecto passional, de algo que foge ao controle (Auroux, 1990, 2522). É como se no interior
de uma simpatia que enfatizava a harmonia de sistemas, uma subjetividade ou
intersubjetividade fosse gradualmente penetrando suas significações.
No século XIX, de acordo com o Vocabulário de Estética de Étienne Souriau (1990, p.
1331), a simpatia aparece como noção dinâmica que ilustra a maneira como percebemos as
relações de força entre os objetos. Simpatia é entendida como movimento para adaptação das
partes à suas funções e à destinação final de seu conjunto. No século XIX, houve ainda uma
distinção entre a simpatia, como simples inclinação empírica, e a “sympoésie”, como forma
mais autêntica de conjunção ou comunhão (Auroux, 1990, p. 2522).
Eu não vivo em mim mesmo, mas me torno uma parte daquilo que me rodeia. As
montanhas e os riachos e os céus não serão partes de minha alma, como eu sou uma parte
deles? (Byron, Childe Harold III apud Souriau, 1990, p. 641) 8.
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7
O estoicismo foi a corrente filosófica predominante na Antiguidade Clássica que perdurou por mais de cinco
séculos (300 a.C. – 200 d.C.). Grosso modo, esta filosofia exalta a prática de meditação conduzindo uma vida em
harmonia com a natureza e com a razão, para atingir a sabedoria e a felicidade, entendida dissociada das paixões
(Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura, 1964, p. 293).
8
“Je ne vis pas en moi-même, mais je deviens une partie de ce qui m’environne. Les montagnes et les flots et les
cieux ne sont-ils pas une partie de mon âme, comme moi je suis une partie d’eux ? “
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122# AS#QUATRO#SIMILITUDES#
Capítulo#3#
A empatia nos remete ainda a uma outra noção bem próxima, que é até mesmo
considerada como sua tradução direta, a Einfühlung. Tomada em seu sentido psicológico
geral, é uma projeção de nosso eu nos seres e nas coisas. É também uma objetivação de nossa
vida afetiva e identificação do sujeito e do objeto pelos sentimentos. Essa identificação é,
segundo os teóricos do Einfühlung, a própria essência do sentimento estético (Souriau, 1990,
p. 641). A tendência profunda de nossa vida afetiva é de se projetar nos objetos com os quais
simpatizamos e nessa projeção, identificamos os objetos em nós e nós nos objetos. Mas essa
atitude só é estética na medida em que é o sentimento de nosso eu que nos coloca no objeto
representado9.
A força de similitude denominada “simpatia” tem ambições enormes. Sua força é tão
grande que é capaz de assimilar os mais distantes e diferentes objetos, de todas as naturezas.
As forças de semelhança, as similitudes, eram figuras muito poderosas até o começo do
século XVII, como mostrou Foucault (1966). Organizavam os saberes e, embora se
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9
Max Scheler (2003, p. LXXXX) critica a teoria da “intuição” projetiva (Einfühlung) por suas pretensões, não
alcançadas, de unir os atos e atitudes com a simpatia.
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Capítulo#3#
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estabelecessem como sólidas verdades, poderiam ter grande liberdade, como é o caso da
simpatia. Ela é apresentada como uma similitude com tão grande potência que é capaz de
aproximar as coisas independentemente das distâncias à percorrer no tempo ou no espaço.
Foucault ilustra a simpatia com exemplos citados por Giambattista Della Porta em
Magie Naturelle (1587). O aroma triste e moribundo da rosas de um velório, a atração de uma
corrente de metal por um imã e o movimento do girassol estão entre as ilustrações de
simpatia, que conduz ainda os astros e suas relações com o comportamento das coisas e dos
seres. Fazendo com que as coisas se atraiam em um fluxo exterior e visível, a simpatia vai
além, demandando um movimento interior que aproxima o relevo das coisas (Foucault, 1966,
p. 38).
A simpatia, na apresentação de Foucault, estimula as coisas a se assemelharem,
mesmo as mais afastadas. Mas toda esta força não vem desacompanhada de riscos. Ela pode
atrair tanto as coisas entre elas, ao ponto de torná-las idênticas, pelo seu poder de assimilação.
Assim a simpatia pode anular a individualidade das coisas, tornando-as estranhas ao que elas
eram e as transportando a utópica regio similitudinis. A simpatia seria a única das quatro
similitudes apresentadas que vem acompanhada de uma noção complementar. Como vimos na
citação acima, é a antipatia que impede o mundo de se tornar um só ponto e garante a
identidade das coisas, preservando suas singularidades. Os exemplos da noção de antipatia
são de plantas e animais que se repulsam e se exterminam e que, através dos tempos,
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“Là nul chemin est déterminé à l’avance, nulle distance n’est supposée, nul enchaînement prescrit. La
sympathie joue à l’état libre dans les profondeurs du monde. […]. Elle est principe de mobilité […]. Bien plus,
en attirant les unes vers les autres par un mouvement extérieur et visible, elle suscite en secret un mouvement
intérieur […]. La sympathie transforme. Elle altère, mais dans la direction de l’identique, de sorte que si son
pouvoir n’était pas balancé, le monde se réduirait à un point, à une masse homogène, à la morne figure du
Même : toutes ses parties se tiendraient et communiqueraient entre elles sans rupture ni distance, […]. C’est
pourquoi la sympathie est compensée par sa figure jumelle : l’antipathie. Celle-ci maintient les choses en leur
isolement et empêche l’assimilation;”
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124# AS#QUATRO#SIMILITUDES#
Capítulo#3#
infinitamente, se detestarão e, “contra toda simpatia, manterão seu voraz apetite” (ibid., p.
39)11.
Através deste jogo da antipatia que dispersa, mas que ao mesmo tempo que os impele ao
combate, os torna mortíferos e os expõe, por sua vez, à morte, verifica-se que as coisas e
os animais e todas as figuras do mundo permanecem, ao fim e ao cabo, aquilo que são.
(ibid., p. 39)12.
A identidade das coisas, caracterizada como aquilo que preserva suas singularidades,
será assegurada pelos constantes fluxos de simpatia e antipatia, pelo movimento e pela
dispersão. E todas as outras forças de similitude, que ainda serão apresentadas, se inserem no
cerne da simpatia:
As dimensões da simpatia são tão amplas que podem até mesmo nos remeter a algo de
absoluto, como é o caso das reflexões sobre simpatia de Henri Bergson e sua inclusão como
importante noção metafísica no La Pensée et le mouvant (1946).
Existem duas maneiras profundamente diferentes de entender as coisas e nas quais
parecem convergir tanto as definições metafísicas, quanto as concepções do absoluto
(Bergson, 1946, p. 177). A primeira depende do ponto de vista onde nos localizamos e dos
símbolos através dos quais nos expressamos. É como se girássemos em torno de um objeto e
tentássemos descrevê-lo. Limita-se ao relativo. A segunda é indo ao interior do mesmo objeto
sem se apoiar em nenhum símbolo, nem depender de nenhum ponto de vista. Busca o
absoluto. O movimento de um objeto no espaço, por exemplo, será percebido e traduzido
diferentemente, de acordo com o ângulo a partir do qual o observamos. Isso ilustra a maneira
relativa de perceber o mundo. No absoluto, Bergson atribui ao objeto uma interioridade e
“estados de alma”. E assim, através da simpatia, ele se insere nesses estados, por um “esforço
de imaginação” (ibid., p. 178). O que ele experimentará não dependerá nem do ponto de vista
nem dos símbolos através dos quais poderia se traduzir. Ele estará no próprio objeto e
renunciará a todas as traduções para possuir o original e experimentar, assim, o absoluto.
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11
[...] “ contre toute sympathie maintiendront leur féroce appétit .”
12
“Par ce jeu de l’antipathie qui les disperse, mais tout autant les attire au combat, les rend meurtrières et les
expose à leur tour à la mort, il se trouve que les choses et les bêtes et toute les figures du monde demeurent ce
qu’elles sont.”
13
“Tout le volume du monde, tous les voisinages de la convenance, tous les échos de l’émulation, tous les
enchainements de l’analogie sont supportés, maintenus et doublés par cette espace de la sympathie et de
l’antipathie qui ne cesse de rapprocher les choses et de les tenir à distance.”
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AS#QUATRO#SIMILITUDES#
Capítulo#3#
125#
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O romancista poderá multiplicar os traços do caráter, fazer seu herói falar e agir o quanto
quiser: tudo isso não valerá o sentimento simples e invisível que experimentarei se
coincidir um instante com o próprio personagem. [...]. O personagem me será dado de
uma só vez na sua integralidade, e os mil incidentes que se passam com ele, ao invés de
acrescentar à ideia e a enriquecer, me parecem, ao contrário, se desligar dela, mas sem
esgotá-la ou empobrecer sua essência, apesar disso. (ibid., p. 179)14.
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14
“Le romancier pourra multiplier les traits de caractère, faire parler et agir son héro autant qu’il lui plaira : tout
cela ne vaudra pas le sentiment simple et invisible que j’éprouverais si je coïncidais un instant avec le
personnage lui-même. […]. Le personnage me sera donné tout d’un coup dans son intégralité, et mille incidents
qui le manifestent, au lieu de s’ajouter à l’idée et de l’enrichir, me sembleraient au contraire alors se détacher
d’elle, sans pourtant en épuiser ou en appauvrir l’essence.”
15
“Nous appelons ici intuition la sympathie par laquelle on se transporte à l’intérieur d’un objet pour coïncider
avec ce qu’il a d’unique et par conséquent d’inexprimable. Au contraire, l’analyse est l’opération qui ramène
l’objet à des éléments déjà connus, c'est-à-dire commun à cet objet et à d’autres.”
16
[...] “dans son désir éternellement inassouvi d’embrasser l’objet autour duquel elle est condamné à tourner.”
17
“S’il existe un moyen de posséder une réalité absolument au lieu de la connaitre relativement, de se placer en
elle au lieu d’adopter des points de vue sur elle, d’avoir l’intuition au lieu d’en faire l’analyse, enfin de la saisir
en dehors de toute expression, traduction, ou représentation symbolique, la métaphysique est cela même.”
# #
126# AS#QUATRO#SIMILITUDES#
Capítulo#3#
c) Liberdade e Movimento
Embora haja certa conformidade em torno das acepções gerais de simpatia, existe,
como dissemos, duas vertentes de significações principais em seu interior.
Na primeira, a similitude aparece principalmente como laço de união entre os
elementos do cosmos e “como princípio do grande organismo da Natureza” (Mora, 2001, p.
2690). Tem, dessa forma, seu aspecto passional reduzido. Não só a filosofia dos estoicos e
gregos antigos, mas também todos os neoplatônicos e várias correntes da filosofia moderna
adotaram esse entendimento. A harmonia, a conformidade, o equilíbrio e a unidade devem ser
o centro da simpatia, que pode, até mesmo, ser o princípio ou uma noção importante na
formulação de juízos morais. Não por acaso, o Dictionaire Culturelle de la langue française a
apresentou como “afinidade moral”. Alguns acreditaram, como notou Mora (ibid., p. 2690),
que era a simpatia o elo que ligava entre si todas as coisas e realidades e que os fenômenos
terrestres eram influenciados pelos fenômenos celestes. Nada nem ninguém poderia escapar
do olhar de Deus. O conceito cósmico precedia o conceito humano.
A segunda vertente nas acepções de simpatia deve provir dos chamados filósofos “do
sentimento moral”, como Francis Hutcheson (1694-1746), Adam Smith (1723-1790), e David
Hume. Apesar de crerem na simpatia como uma força que contribuía na construção de juízos
morais, eles enfatizaram também aspectos afetivos da noção. A simpatia trazia consigo a ideia
de participação afetiva, experiência de emoções análogas, contágio de afetos e emoções. Mas,
de qualquer maneira, a simpatia ainda era algo que incitava a uniformidade, o equilíbrio e a
fusão.
Nos meandros da simpatia como fusão harmônica, a emoção vai ganhando espaço
juntamente com a aceitação da subjetividade, a partir do Romantismo. Àquela simpatia
aparentemente estática, ou, no máximo, com movimentos lentos na direção do equilíbrio, se
sobrepõe uma outra mais dinâmica e passional. Dessa forma, afirma-se de fato a segunda
vertente da simpatia, que não rejeita a anterior e nem mesmo todas as acepções do senso
comum que o estudo etimológico nos revelou. Sem negar sua dimensão ontológica, como o
absoluto na metafísica apresentada por Bergson, a simpatia se apresenta como função afetiva
e não mais um estado definitivo ao qual se almeja. Ela se instaura também como
“comunicação interior de seres que não estão em relação por meio de movimentos exteriores
ou sensações” (Lalande, 1999, p. 1020) ou até mesmo como um instinto ou atração instintiva
(Bergson apud Lalande, ibid., p. 1020). À uma simpatia harmônica e lenta impõe-se uma
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AS#QUATRO#SIMILITUDES#
Capítulo#3#
127#
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simpatia baseada na e-moção, dinâmica e passional. Aproxima-se, assim, de sua versão latina,
compaixão (compassio).
Interessante notar que Michel Foucault, quando caracteriza essa similitude, a apresenta
como um modo de ver e organizar as semelhanças do mundo até os inícios do século XVII,
mas a descreve, baseado em autores do Renascimento, como Porta e Girolamo Cardano, de
maneira a enfatizar seus aspectos de liberdade e movimento. Ou seja, algo que poderia ser
hermético, ordenador e uma diretriz para que se estabeleçam limites, aparece caracterizado
principalmente pela liberdade e movimento. “Todo limite talvez seja somente um corte
arbitrário em um conjunto indefinidamente móvel.” (Foucault, 1966, p. 64)18. A simpatia não
escapa desse movimento do conjunto, pois ele provém de uma relação de forças no núcleo dos
objetos que se adéquam, se ligam por afinidade, por contágio, por compaixão, como
movimento em direção a um mesmo ponto. As simpatias, com toda potência, atuam sem
cessar “nas profundezas do mundo”, onde “nenhum caminho é determinado
antecipadamente”, como nos disse Foucault mais acima.
A liberdade da simpatia deve brotar da nossa incapacidade em desvendar e revelar
suas leis. Ela deve ser, assim como o contexto indeterminado ou o ruído de fundo do mundo
citados nos capítulos anteriores, tão real e potente quanto nossa incapacidade em descrevê-la.
A simpatia, irrequieta e nunca imóvel, reside no absoluto, nos cernes, na intuição que
move as coisas e os seres em direção a um ponto, em uma maneira de poder possuir uma
realidade. Tanto em um movimento recíproco espontâneo quanto em uma ação voluntária e
parcial, a simpatia vai sempre comportar uma ressonância comum entre elementos.
O “pó da simpatia”, com seu poder especulativo e factual, atua em qualquer distância,
seja do tempo ou do espaço. Aproxima, altera, harmoniza.
2. Emulação
Era uma vez um homem com uma aparência física assustadora. Seu aspecto incitava
repulsa por onde passava. Seus traços físicos repeliam os olhares alheios. Mesmos os mais
céticos não duvidavam se tratar de algum tipo de punição divina, tamanha era a feiura do
pobre homem. Para seus próximos era estranho pensar em castigo dos deuses, pois o que o
sujeito tinha de feio, tinha de bom. Sua grande bondade não o permitia conceber um filho que
pudesse lhe assemelhar. Por isso, a força desse temor fez com que ele reunisse imagens das
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18
“Toute limite n’est peut-être qu’une coupure arbitraire dans un ensemble indéfiniment mobile.”
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128# AS#QUATRO#SIMILITUDES#
Capítulo#3#
mais belas aparências. Uma vez feito isso, o pobre homem recomendou a sua esposa que as
observasse regularmente. Assim, estariam prontos para se unir e dessa união inspirada
nasceria a mais bela das criaturas.
É dessa maneira que o historiador e crítico do teatro grego Dionísio de Halicarnasso
(1992, p. 25) ilustra, ainda no primeiro século da era cristã, uma das similitudes estudadas
neste capítulo.
A noção de emulação (æmulatio), como veremos, aparece frequentemente ligada à
imitação, apesar de conter certas diferenças essenciais. Optamos por nos ater a alguns
filósofos e estetas que fazem menção direta à emulação em seus textos ou fundamentam
reflexões sobre o tão amplo conceito de imitação ou mimeses.
À primeira vista, a emulação parece fundamentar-se conceitualmente com mais vigor
que a simpatia. Mas essa consistência só é efetiva quando associada à estrutura de modelo e
imitação impondo, no cerne da emulação, uma relação de referência à algo anterior. Veremos,
entretanto, que nem sempre esse jogo se concretiza e, por vezes, confundem-se modelos e
“cópias”.
Alguns dos principais atributos da noção estudada nutrirão as aplicações mais práticas
da segunda parte da tese. Esses atributos virão de uma sucinta exposição lexicográfica, uma
apresentação também sucinta das noções de mimeses e imitação, até chegar a uma emulação
desligada de uma causalidade direta.
a) Choque de Significados
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Capítulo#3#
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significaria: “sentimento considerado como nobre, louvável, que incita a superar seus
concorrentes na aquisição de competências, de conhecimentos, nas diversas atividades
socialmente provadas”21.
A etimologia de “emulação” carrega uma interessante ambiguidade, que não pode ser
negada. Saltarelli (2009, p. 255), comentando a inserção da “emulação” na literatura, a revela:
O termo grego traduzido pelos latinos como æmulatio é zélosis, o qual está na origem da
palavra portuguesa zelo, mas também da espanhola celo, da francesa jalousie e da italiana
gelosia. Enquanto no português a palavra denota cuidado ou proteção, no espanhol, no
francês e no italiano ela significa ciúme, inveja. Essa polissemia gerada na evolução do
sentido da palavra define bem a relação do escritor com seu modelo: trata-se de uma
relação dúbia, de cuidado e ciúme, simultaneamente.
As três noções do título são vizinhas ou parentes. As duas primeiras são quase
sinônimas, pois a mimeses foi traduzida do grego para o latim como imitatio22. No cerne da
imitação brotam novas significados que irão construir o que entenderemos como emulação
neste trabalho. A emulação carrega consigo as duas outras noções e imprime nelas novas
nuances.
A conceptualização da mimeses é a mais antiga das três. Reside nas primeiras
reflexões da Grécia antiga sobre o que entendemos hoje por arte. Os desdobramentos dessas
reflexões se sentem ainda hoje no território teórico da arte. A mimeses em Platão foi
mencionada em inúmeros pontos de sua obra e foi aplicada nos mais diferentes contextos,
como na aplicação de preceitos da retórica, nas reflexões sobre instituições, coisas naturais e
nos seus pensamentos sobre todas as artes. O Timeu apresenta a mimeses como maneira de se
imitar os movimentos divinos no interior dos pensamentos e argumentos. No Crátilo, a
essência das coisas se afirmam como mimeses nos caracteres da escrita. E no Crítias todos os
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21
“sentiment, considéré comme noble, louable, qui pousse à surpasser ses concurrents dans l'acquisition de
compétences, de connaissances, dans diverses activités socialement approuvées.”
22
Na Poética de Aristóteles, por exemplo, o mesmo termo foi traduzido como imitação no livro publicado pela
Editora Nova Cultural e mimeses na tradução de Fernando Maciel Gazoni em sua dissertação de Mestrado
(2006).
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130# AS#QUATRO#SIMILITUDES#
Capítulo#3#
sinais do mundo e toda criação de imagens é mimeses de algo ideal. Enfim, para Platão a
mimeses será construída por imitações de modelos ideais das coisas e dos seus próprios
princípios (Chevrolet, 2008, p. 37). Platão apresenta uma hierarquia de mimeses que varia em
função do grau de aproximação com a Verdade (alétheia). A articulação de categorias é feita
a partir das noções fundamentais de mimeses e de acordo com seu grau de semelhança com a
Verdade. As artes se situam em um grau bastante baixo de uma hierarquia, por serem sempre
cópias imperfeitas e, muitas vezes, mentiras em que se mistura um pouco de verdade, como as
fábulas, por exemplo (Platão, 1947, p. 154, 376e).
Saltarelli (2009, p. 252) situa o pensamento platônico no que concerne a arte e o
relaciona com mimeses:
A mimeses dos artistas é entendida por Platão como algo meramente ilusório,
[...] cópia do real, o qual ela deforma por incapacidade e não por escolha, não permitindo
nunca a ascensão, em seus irrisórios rascunhos à plenitude luminosa dos originais. [...].
Privada da verdade, a arte acaba também sendo, para Platão, privada da Beleza.
(Chevrolet, 2008, p. 37-38).
O uso da mimeses deveria então ser limitado e destinado apenas à imitação dos
homens de bem, para se evitar que vícios e baixezas se reproduzam na realidade (Platão,
1947, 395c). Assim, a mimeses se volta para um modelo de belo e do bom, ou seja, ela deve
ser seletiva. Dessa forma ela pode se aproximar da noção de emulação como um modelo que
se deseja imitar.
A mimeses platônica teria esse fardo da incompetência, da incapacidade em imitar
dignamente. O modelo é o ideal, o bom, o verdadeiro, o inatingível. Somente com Aristóteles
a mimeses vai encontrar sentidos um pouco mais amenos e se afastará do peso moral e ideal
que portava.
Imitar é natural ao homem desde a infância – e nisso difere dos outros animais, em ser o
mais capaz de imitar e adquirir os primeiros conhecimentos por meio da imitação – e
todos têm prazer em imitar. (Aristóteles, 1996, p. 33).
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Capítulo#3#
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A imitação não seria mais uma cópia da natureza, afastada da verdade, e sim uma
representação, com estatuto de realidade independente (Saltarelli, 2009, p. 253). A natureza
não precisa necessariamente ser imitada tal como ela é. Os homens poderiam ser
representados melhores, piores ou semelhantes às suas realidades. O objeto principal da
mimeses, para poesia, é a práxis humana, as ações desempenhadas pelos homens.
Segundo Chevrolet (2008, p. 43), a mimeses torna-se, em Aristóteles, uma noção
polarizada, ambivalente, capaz de todos os compromissos, articulando relações com a verdade
e com a ficção. Aristóteles reabilita, dessa forma, a arte imitativa no domínio do
conhecimento (Souriau, 1990, p. 863).
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132# AS#QUATRO#SIMILITUDES#
Capítulo#3#
que elas não eram todas belas, certamente bem distantes da beleza de Helena, Zeuxis, na sua
sabedoria, concentrava seus esforços em reunir em uma só imagem o que em cada uma delas
merecia ser reproduzido (ibid., p. 32)24. A emulação se configurava como o desejo de extrair e
atingir certo modelo imaginário, enquanto a imitação seria o gesto concreto de reproduzir o
que cada uma das moças tinha de mais belo.
Na terceira parte do seu livro, Dionísio de Halicarnasso enumera aspectos a serem
imitados em diversos autores. Para uma imitação verdadeira e pessoal, é preciso que haja
modificação no interior daquilo que o modelo tem de melhor (ibid., p. 32). Halicarnasse
incentiva ainda que se tome como exemplo a habilidade de Homero em “pintar” os costumes
sociais, o vocabulário e as ideias de Pindare, o rigor da composição de Simonide ou a
propriedade em matéria de caráter e emoção encontrada em Ésquilo. O escritor grego
apresenta e coloca em valor aspectos dos autores de poemas, de tragédias e de comédias, além
das qualidades que ele encontra em historiadores, filósofos e eloquentes oradores.
Mais ou menos na mesma época em que Halicarnasso esboçava as distinções
essenciais entre imitação e emulação, isto é, meados do século I d.C., o professor de retórica e
escritor Marcus Fabianus Quintilianus, conhecido por Quintiliano, discorria sobre o tema da
imitação no décimo livro do quarto volume de Instituição Oratória.
Não é uma regra geral da vida querer fazer nós mesmos aquilo que aprovamos nos
outros? É assim que, para se habituar a escrever, as crianças repassam sobre as letras que
traçamos; é assim que os músicos se guiam pela voz doe seus professores, os pintores
sobre as obras de seus precursores, os camponeses sobre os procedimentos de cultivo que
já foram testados; vemos, enfim, todas as disciplinas, no início, se referirem a um
modelo. (Quintiliano, 1934, p. 57)25.
Mas logo nas primeiras páginas, Quintiliano ressalta o risco que corre uma imitação
que não seja regulada com precaução e judiciosamente.
Porém, antes de tudo, a imitação sozinha não é suficiente, quando ela será somente uma
marca de preguiça de espírito de se contentar com aquilo que os outros acharam. [...]. Da
mesma maneira que alguns pintores se aplicam unicamente em copiar quadros ajudados
por medidas e linhas, também seria vergonhoso contentar-se em igualar o modelo que
imitamos. (ibid., p. 57-58)26.
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24
Os pintores franceses François-André Vincent (1746-1816) e Victor Mottez (1809-1897) representaram em
suas obras a cena de Zeuxis frente às suas modelos.
25
“N’est-ce pas une règle générale de la vie de vouloir faire nous-mêmes ce qui nous approuvons chez les
autres ? C’est ainsi que, pour s’habituer à écrire, les enfants repassent sur des lettres qu’on leur a tracées ; c’est
ainsi que les musiciens se règlent sur la voix de leur professeurs, les peintres sur les ouvrages de leurs
devanciers, les paysans sur les procédés de cultures qui on fait leurs preuves ; bref, nous voyons toutes les
disciplines, pour le début, se référer à un modèle.”
26
“Or, avant tout, l’imitation toute seule ne suffit pas, quand ce ne serait que parce que c’est une marque de
paresse d’esprit, que de se contenter de ce que d’autres ont trouvé. (…) De même que certains peintres
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Capítulo#3#
133#
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Mas a imitação, não cessarei de repetir, não deve se limitar às palavras. Nossa
inteligência deve dirigir nossa atenção à arte com a qual os grandes oradores adaptaram
suas palavras às circunstâncias e às pessoas, sobre seus desígnios, sobre o plano, sobre a
maneira pela qual tudo contribui à vitória, mesmo aquilo que parece destinado a agradar:
maneira pela qual eles apresentam o exordium [exposição, primeira parte de um
discurso], método e variedade da narração, vigor na demonstração e na contestação,
ciências à tocar todo gênero de sentimentos, mesmo o talento através do qual eles atraem,
para serem úteis a seus clientes, os aplausos do auditório, aplausos honrosos quando são
espontâneos, não provocados. Se observarmos bem todos esses pontos, seremos
verdadeiramente capazes de imitar (ibid, p. 67)30.
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s’appliquent uniquement à copier des tableaux à l’aide de mesures et de lignes, il serait honteux également de se
contenter d’égaler le modèle que l’on imite.”
27
[...] “nécessairement l’on est toujours derrière quelqu’un que l’on suit.”
28
[...] “généralement, il est plus facile de faire plus que de faire de même.”
29
Quintiliano toma como exemplo: o rigor de Cesar, a aspereza de Célius, a precisão de Polliun e o gosto de
Calvus (ibid., p. 67).
30
“Mais l’imitation, je ne cesserai de le répéter, ne doit pas se borner aux mots. Notre intelligence doit porter
notre attention sur l’art avec lequel ces grands orateurs ont adapté leur parole aux circonstances et aux personnes,
sur leur dessein, sur le plan, sur la manière dont tout contribue à la victoire, même ce qui semble destiné à
plaire : façon dont ils présentent l’exorde, méthode et variété de la narration, vigueur dans la preuve et la
réfutation, sciences à toucher tout les genres de sentiments, talent même avec lequel ils attirent, pour être utile à
# #
134# AS#QUATRO#SIMILITUDES#
Capítulo#3#
c) Mutação e distância
A segunda forma da similitude é a aemulatio: uma espécie de conveniência, mas que fosse
liberada da lei do lugar, e atuasse, imóvel, na distância [...]. Através desta relação de emulação, as
coisas podem se imitar de uma extremidade a outra do universo sem encadeamento nem
proximidade: pela sua reduplicação em espelho, o mundo suprime a distância que lhe é própria;
31
assim triunfa sobre o lugar que é dado a cada coisa. (Foucault, 1966, p. 34) .
Aemulatio será um tipo de semelhança sem contato que produzirá um efeito de reflexo
e espelho. Existe, no entanto, uma recusa a causalidade, quando ele diz que nem sempre é
possível saber qual é a imagem original e qual é a imagem projetada. A emulação é uma
espécie de desdobramento fundamental do mundo, como a imagem de dois gêmeos que se
assemelham perfeitamente sem que seja possível dizer quem levou ao outro sua semelhança32
(ibid., p. 35). Sob um prisma mais filosófico ou mesmo metafísico, æmulatio, na apresentação
de Foucault pode ser entendida também como um combate de formas similares que foram
separadas de uma totalidade, seja pelo peso da matéria, seja pelas distâncias dos lugares. E,
nesse duelo, as figuras que se afrontam se apoderam uma da outra. O similar envolve o
similar, que por sua vez será envolvido por algo similar e assim infinitamente. Os anéis da
emulação, ao contrário dos elementos da convenientia, que veremos no final deste capítulo,
não formam uma cadeia, mas círculos concêntricos, refletidos e rivais (ibid., p. 36).
O termo “emulação” neste trabalho será entendido a partir de suas noções vizinhas: a
“mimeses” e a “imitação”. A mimeses nos remete a um sentido que, apesar de parecer
obsoleto por se reportar às noções platônicas de Ideal, ainda permanece vivo na nossa
persistente vocação em sacralizar o gesto artístico e no desejo de superação de modelos
artísticos reais ou imaginários. A mimeses aristotélica nos dá a liberdade de imitar sem o
compromisso de igualar, ou seja, a imitação pode ser também criação. A imitação, em nosso
trajeto em direção à emulação, vai afirmando sua inclinação à rivalidade. Seja negativa ou
positiva, a rivalidade sempre brotará de uma admiração, que pode vir sob a forma de cuidado,
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leurs clients, les applaudissements de l’auditoire, applaudissements honorés quand ils sont spontanés, non
provoqués. Si nous voyons bien tous ces points, nous seront vraiment capables d’imiter.”
31
“La seconde forme de similitude, c’est l’aemulatio une sorte de convenance, mais qui serait affranchie de la
loi du lieu, et jouerait, immobile, dans la distance. […]. Par ce rapport d’émulation, les choses peuvent s’imiter
d’un bout à l’autre de l’univers sans enchaînement ni proximité : par sa réduplication en miroir, le monde abolit
la distance qui lui est propre ; il triomphe par là du lieu qui est donné à chaque chose.”
32
Exemplo retirado por Foucault de uma obra de Parecelso chamada Liber Parmirum.
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zelo, ou brotar de algum tipo de inveja ou despeito. A imitação pura, além de impossível, não
deve ser desejada. O modelo não deve ser imitado, mas se converter em um “impulso ativo”
que “coloca em movimento” o espírito, como entendeu Dionísio de Halicarnasse. A emulação
é como um estímulo para a superação e pressupõe a extração daquilo que existe de melhor no
ou nos modelos seguidos.
3. Analogia
Quando exprimimos alegria, produz-se uma extensão de todos os traços do rosto a partir
dos olhos, enquanto para o sofrimento os traços se concentram em direção a eles. Quando
exprimimos amor, todos os traços do rosto se estendem paralelamente à linha de ligação
dos olhos e se alargam suavemente; se for ódio ou cólera que os animam, eles se franzem
todos em direção à linha central, de modo que as rugas horizontais da testa se chocam
perpendicularmente à linha dos olhos. Disso podemos deduzir com certeza a expressão
dos mesmos estados de alma nos anjos, supondo que essa expressão seja tão perfeita
neles quanto lhos permite sua forma perfeita. Assim, a esfera de um anjo se dilatará em
todos os pontos ao exprimir alegria, ao passo que se retrairá inversamente na expressão
da dor; para exprimir amor, ela se estenderá na forma de disco em direção a seu objeto,
enquanto no ódio se estenderá como uma lança que se afasta de seu objeto. A cabeça do
homem não é capaz dessas expressões porque ela representa apenas, por assim dizer, um
anjo aleijado e em parte esclerosado; por isso o homem busca exteriorizar melhor sua
expressão com o auxílio de todo o corpo; na alegria ele não se contém e salta em todas as
direções, a dor o faz curvar-se sobre si mesmo, no amor ele abre os braços para acolher o
objeto de seu desejo, no ódio brande o punho cerrado e se lança com ímpeto para golpear
o adversário. Com todos esses movimentos, o homem não está pronto para se tornar
um anjo. (Fechner, 1998, p. 32-33).
Embora não seja propriamente uma exaltação da semelhança, muito pelo contrário,
essa citação ilustra, de maneira peculiar, uma forma de pensamento analógico. As similitudes
germinam, ou não, da aproximação de dois seres, dois corpos. O filósofo e psicólogo alemão
Gustav Flechner (1801-1887), descreve detalhadamente traços que nos diferem das “criaturas
solares superiores”, chamadas por ele de anjos. No entanto, por mais que a diferença seja
central, a força da analogia só aproxima coisas que tenham traços similares, sejam quais
forem suas naturezas. O que une os anjos e os homens são os sentimentos em si. O que os
diferencia é o modo como exteriorizam, e aí se estabelecem as analogias.
De uma maneira menos alegórica que o exemplo anterior, mas não menos interessante,
estão as analogias no Renascimento, citadas por Foucault (1966), que deram origem a
Anatomia Comparada. Por exemplo, Pierre Belon em 1555, no sexto capítulo de L'Histoire de
la nature des oyseaux, avec leurs descriptions et naïfs portraicts retirez du naturel33, colocou
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33
O título do livro pode ser traduzido para o português como História da Natureza dos Pássaros, com Suas
Descrições e Ingênuos Retratos Retirados de seus Modelos Naturais.
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Capítulo#3#
Como as plantas se assemelham aos animais, nós podemos observar que as lianas
entrelaçam as árvores da vizinhança assim como as mãos [...]. Podemos comparar a
medula do caule de uma planta ao cérebro, que é a parte mais nobre de uma planta. É ela
que produz as sementes e os germes. (Wit, 1992, p. 351)34.
A analogia deve ser, entre as quatro similitudes apresentadas, aquela que mais se abre
ao espírito científico e, ao mesmo tempo, é a que mais se abre a verdadeiros equívocos. Com
um pouco de descuido, torna-se laxista, comportando procedimentos demasiadamente
permissivos. Isso acontece talvez por ser ela a similitude mais usada no senso comum como
sinônimo de semelhança. Mas a analogia, riscos à parte, tem importante valor cognitivo como
modo de conhecimento e reflexão.
Nos debruçaremos de imediato no aparente paradoxo da noção. A força de sua
univocidade, mas também de sua equivocidade, aparece expressa em definições pinçadas de
fontes de variadas origens e épocas. A reflexão sobre sua etimologia nos remete a acepções
matemáticas que, por sua vez, nos envia à Antiguidade Clássica. Após uma rápida passagem
por visões orientadas por uma tradição religiosa, apresentamos as analogias de experiência de
Kant, enfatizando a unidade da percepção a partir de sua ligação com o tempo e seus modos.
Michel Foucault amplifica as significações apresentadas e enfatiza algumas das características
que a distinguem da emulação e da convenientia, apresentada na parte seguinte.
a) Unívocos e Equívocos
Composto pela preposição ana e pelo substantivo logía, o termo não trata de uma
simples relação, mas de uma relação da relação ou uma igualdade mediada (Auroux, 1998, p.
80). Ana significa “no alto”, “em direção ao alto”, o que remete a ideia de passagem ou
superação (Secretan, 1984, p. 6). A analogia vai transpor, de certa forma, as barreiras entre os
diferentes domínios e pode aproximar formalmente coisas materialmente intransponíveis. O
Littré (1990) remete à ideia de uma adequação de valores entre os termos ou “proportio,
relação das partes entre elas, e com o todo” 35 . Sua primeira significação concerne uma
########################################################
34
“Comme les plantes ressemblent aux animaux, on peut observer que les lianes enlacent en quelque sorte les
arbres du voisinage ainsi que les mains […]. On peut comparer la moelle de la tige d’une plante au cerveau et
c’est donc la partie la plus noble d’une plante. C’est elle que produit les graines et les germes.”
35
“Proportio, rapport des parties entre elles, et avec leur tout”.
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identidade de relação de quatro termos ou mais, observados dois a dois e tende a designar
toda semelhança entre dois grupos de dois termos (Rey, 2005, p. 300). O principio de
analogia, segundo a Encyclopédie philosophique universelle (1998, p. 80) foi elaborado na
escola de Pitágoras e é teorizado como proporção aritmética, geométrica ou harmônica36.
Com o passar do tempo, a analogia vai se distanciando de seu embasamento
matemático e instaura-se em novas ordens. Ela passa a ser aplicada a todo raciocínio em que o
espírito humano deduz a partir de uma semelhança observada entre objetos diversos em
qualidade e quantidade, de ordens e naturezas que podem ser muito distintas. Jean François
Richard, a define da seguinte maneira:
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36
Proporção aritmética: quando o primeiro termo excede o segundo tanto quanto o segundo excede o terceiro (a
- b = b - c); proporção geométrica: quando o primeiro se relaciona ao segundo como o segundo ao terceiro (a/b =
c/d); proporção harmônica: quando o primeiro excede o segundo por uma parte dele mesmo e o segundo o
terceiro pela mesma parte (a - b = a/x, b - c = c/x).
37
“L’analogie consiste à utiliser des connaissances acquises sur des phénomènes ou des situations pour les
appliquer à d’autres phénomènes pour les comprendre […]. L’analogie permet d’aborder l’inconnu à partir de ce
que l’on connait : elle a donc a priori une valeur adaptative majeure.”
38
“En ce sens, l’analogie est un des modes de raisonnement les plus essentiels et le plus incertains.”
# #
138# AS#QUATRO#SIMILITUDES#
Capítulo#3#
A dificuldade engendrada pela imprecisão do raciocínio por analogia não impede que ele
se torne um lugar comum no discurso argumentativo da retórica. Os textos religiosos,
filosóficos, literários ou políticos recorrem ao princípio da analogia como a uma figura de
estilo, particularmente eficaz, por ela parecer se repousar sobre um raciocínio simples,
rigoroso e acessível ao senso comum (Rey, 2005, p. 303)39.
O fato da palavra comportar algo de unívoco – que fixa o termo em uma única
definição – e algo de equívoco – que o dilui diversas significações sem grandes relações entre
elas –, perturba profundamente a legitimidade dessa similitude.
[...] seria ela uma relação objetiva entre objetos [...] ou uma associação de imaginação
entre representações mentais, onde o espírito reagrupa o dado exterior em categorias de
maneira arbitrária, de acordo com critérios vagos e flutuantes de semelhança? (Rey, 2005,
p. 303)40.
Assim, a validade das analogias nem sempre é garantida por uma certeza empírica.
Apesar disso, entretanto, elas aparecem no quadro da apreensão do mundo pelo individuo e é
graças à sua abertura, com todos os riscos que comporta, que o pensamento encontra
liberdade para se movimentar. Quando são acompanhadas por pressupostos sólidos, as
analogias tendem a se tornar férteis e interessantes. De um ponto de vista estético, elas podem
enriquecer nossa contemplação, restituindo sua integralidade, mesmo que seu conhecimento
não seja indispensável para a apreciação do valor de certa obra (Souriau, 1990, p. 111).
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39
“La difficulté engendrée par l’imprécision du raisonnement par analogie n’a pas empêché qu’il devienne un
lieu commun du discours argumentatif, de la rhétorique. Les textes religieux, philosophiques, littéraires ou
politiques recourent au principe d’analogie comme à une figure de style particulièrement efficace, puisqu’elle
feint de reposer sur un raisonnement simple, rigoureux et accessible au sens commun.”
40
[…] “s’agit-il d’un rapport objectif entre objets [...] ou d’une association d’imagination entre des
représentations mentales, l’esprit regroupant le donné extérieur en catégories de manière arbitraire, selon de
critères flous et fluctuants de ressemblance ?”
41
“Au premier abord, le concept d’analogie semble n’être qu’un concept d’école passablement effacé et de peu
d’importance. Pourtant, comme principe dominant la sphère catégoriale de la réalité, sensible et suprasensible, il
contient l’expression conceptuelle du monde vécu, pleinement qualifié et valeureux, référé à la transcendance, de
l’homme médiéval ; il est l’expression conceptuelle de la forme définie, ancrée dans la relation primordiale de
l’âme à Dieu, de l’existence intérieure comme elle fut vécue au Moyen Age dans une rare plénitude.”
#
AS#QUATRO#SIMILITUDES#
Capítulo#3#
139#
#
# #
140# AS#QUATRO#SIMILITUDES#
Capítulo#3#
De acordo com Secretan (1984, p. 48) a tradição religiosa nos apresenta ainda a noção
de analogia entis. Desta última brotam duas formas de analogia: a horizontal, que tem como
principio formal a relação dos seres entre eles, e a analogia vertical, que se funda na relação
das criaturas com o criador. Nesses dois tipos de relação a analogia é a medida e o meio. A
analogia horizontal da proporção entre “o outro e o outro” é transpassada pela analogia
vertical da semelhança e dessemelhança entre criatura e criador.
Obviamente, considerando todas os entendimentos possíveis de analogia, a aplicação
desta noção vai se revelar de uma incômoda multiplicidade que só encontrará certa
estabilidade quando se liga ao vasto entendimento do senso comum, na observação de
semelhanças entre coisas ou fatos distintos. Mas essa significação ampla pode provavelmente
se chocar com algumas outras noções e, por isso, multiplicar os equívocos. Cabe, então,
apresentar algumas distinções:
- Analogia e Correspondência
- Analogia e Transposição
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ritmo especifico vai marcar a analogia medieval: o da afirmação (Deus é sábio) e o da negação (Deus não é sábio
no senso humano do termo) e essa dialética marcará o que Secretan (1984, p. 32) chama de analogia do Ser.
43
Secretan (1984, p. 13) nota ainda que, em alemão, o termo Entsprechung designa tanto analogia quanto
correspondência.
#
AS#QUATRO#SIMILITUDES#
Capítulo#3#
141#
#
um tom para outro, todos os casos devem mostrar certa identidade na diferença. Essa
diferença, porém, é puramente “circunstancial”, colore diferentemente uma mesma substância
(ibid., p. 16). A analogia, por sua vez, concerne elementos mais distantes uns dos outros. A
transposição se adequa mais confortavelmente com a similitude de emulação, apresentada
mais acima.
- Analogia e homologia
b) Analogias da Experiência
Quando nos voltamos às linhas gerais da história da analogia, vemos que, sobretudo na
Idade Média, havia um forte elo entre lógica e mística no interior da noção. Esse elo, no
entanto, vai se enfraquecendo até que se torna uma cisão radical. A analogia, que antes se
fundava em relações entre Deus e as criaturas, passa a se basear em uma razão que se toma
por unívoca. (Secretan, 1984, p. 53). Mas essa razão, longe de ser somente uma pura
afirmação da lógica, vai habitar a sensibilidade, a potência cognitiva e a experiência.
Neste quadro, Kant apresenta as chamadas “analogias da experiência”. Se na
Matemática a analogia se configura em fórmulas que estabelecem a igualdade de duas
relações de quantidade, em Filosofia as relações se dão em uma instância qualitativa. O quarto
# #
142# AS#QUATRO#SIMILITUDES#
Capítulo#3#
termo de uma regra de três, em Filosofia, não se configura como termo fixo constitutivo, e
sim como regulador e qualitativo. Uma analogia da experiência será uma maneira de se
compreender a unidade da experiência a partir da síntese das percepções, pois “a experiência
só é possível mediante uma representação da conexão necessária das percepções” (Kant,
1996, p. 166). Kant apresenta três tipos de analogia associadas às três formas possíveis de
inscrever algo no tempo44: permanência, sucessão e simultaneidade. Resumimos da seguinte
maneira:
Sendo toda apreensão sucessiva, é a partir da lei de causa e de efeito que se dão todas
as mudanças. Essa segunda categoria de analogia de Kant se liga à continuidade temporal.
Mas uma continuidade temporal que não se reduz a um simples princípio de ordem, pois a
percepção das coisas às vezes se antecipa e se dá quase simultaneamente (Marty, 1980, p. 95).
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44
Os modos de tempo indicam, segundo Marty (1980, p. 82), simplesmente as formas de o homem habitar o
tempo e mundo em uma existência que permanece, se sucede ou é simultânea à outra.
45
O tempo como algo permanente em Kant é uma retomada do « tempo absoluto » em Newton, segundo Marty
(1980, p. 85).
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AS#QUATRO#SIMILITUDES#
Capítulo#3#
143#
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“Duas coisas são simultâneas quando, pela percepção de uma somos conduzidos à
percepção da outra e, assim, reciprocamente.” (ibid., p. 97)46. É a existência do diverso em um
único ser.
a) tudo o que existe só existe na medida em que oferece uma dimensão de permanência;
b) todo evento supõe algo em um estado precedente;
c) o diverso pode estar simultaneamente em uma relação recíproca.
Marty (1980, p. 515) apresenta a analogia em Kant como identidade de relações entre
realidades que podem ser completamente dessemelhantes. A analogia do filósofo alemão é
renovada e tratada como procedimento de transformação. Quando ele fala em identidade é
para que seja possível falar em transformação, em transposição de uma ordem de realidade
para outra.
No caso desta pesquisa, as analogias de Kant nos mostra uma maneira comum ou
semelhante através da qual os fenômenos musicais e visuais se inscrevem na experiência, a
partir de sua relação com o tempo e seus três modos47.
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46
“Deux choses sont simultanées, lorsque, de la perception de l’une, on est conduit à la perception de l’autre, et
réciproquement.”
47
É evidente que uma compreensão mais ampla da analogia em Kant não se resume à relação com o tempo.
Outras noções, como as de substância, substrato, apercepção e percepção, atuam decisivamente nas analogias do
filósofo alemão. No entanto, entender a interferência de cada uma dessas noções e outras mais no quadro desta
pesquisa nos parece exaustivo e inviável.
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144# AS#QUATRO#SIMILITUDES#
Capítulo#3#
c) Sobrepondo Diferenças
Foucault cita exemplos retirados de diversas fontes para caracterizar a analogia, que
vão desde a aproximação entre a anatomia de um homem e de uma planta, até uma apoplexia
(hemorragia cerebral) e uma tempestade. O espaço das analogias, o mundo, é um espaço de
irradiação. O homem é englobado por esse mundo e, inversamente, ele transmite as
semelhanças que recebe dele (ibid., p. 38).
O conceito de analogia oscila entre a semelhança que ela significa e a dessemelhança
que ela transpõe, sem a rejeitar. A univocidade dos seus fundamentos é tão verdadeira e
visível quanto a sua abertura às certezas menos empíricas e, por consequência, próximas à
equivocidade.
Inicialmente ligada à proporção matemática, a analogia encontra, em um segundo
momento, sua aplicação estendida a saberes de todas as naturezas. É nesta dimensão que ela
se afirma como instrumento de “descoberta” do mundo centrado em suas semelhanças e
diferenças. O Uno, Deus, a razão e a experiência sensível se alternam, e muitas vezes se
sobrepõem, na constituição dos referenciais da analogia. A partir daí, ela se torna proporção,
atribuição, imitação ou experiência e são conduzidas por variados princípios, podendo ser
inscritos como permanência, sucessão ou simultaneidade. Graças a esses princípios e
referências, a analogia se torna algo que une aquilo que não se assemelha. “A analogia é uma
########################################################
48
“En cette analogie se superposent convenientia e æmulatio. Comme celle-ci, elle assure le merveilleux
affrontement des ressemblances à travers l’espace, mais elle parle, comme celle-là, d’ajustements, des liens et de
jointure. Son pouvoir est immense, car les similitudes qu’elle traite ne sont pas celles, visibles, massives, des
choses elles-mêmes; il suffit que ce soient les ressemblances les plus subtiles des rapports. Ainsi allégé, elle peut
tendre, à partir d’un même point, un nombre indéfini de parentés. […] Cette réversibilité, comme cette
polyvalence, donne à l’analogie un champ universel d’application. Par elle, toutes les figures du monde peuvent
se rapprocher. Il existe cependant, dans cet espace sillonné en toutes les directions, un point privilégié : il est
saturé d’analogies (chacune peut y trouver l’un des ces points d’appui) et, en passant par lui, les rapports
s’inversent sans s’altérer.”
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AS#QUATRO#SIMILITUDES#
Capítulo#3#
145#
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ponte sobre uma fronteira – que não se encontra abolida por isso; pois a proporção racional
não destrói as diferenças reais.” (Secretan, 1984, p. 8)49.
Entre as quatro similitudes apresentadas nenhuma se liga mais à diferença que a
analogia. O caráter de “pano de fundo” da diferença, embora apareça em cada uma das
similitudes, será mais pronunciado na analogia. Pois o traço de semelhança se encontra
predominantemente nas relações, mais que nos próprios termos.
4. Convenientia
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49
“L’analogie est un pont par dessus une frontière - qui ne s’en trouve pas abolie pour autant; car la proportion
rationnelle ne détruit pas les différences réelles.”
# #
146# AS#QUATRO#SIMILITUDES#
Capítulo#3#
a) Harmonia de Significações
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50
Entendemos por Estética Clássica o conjunto de reflexões na antiguidade clássica sobre o que entendemos
hoje como arte.
51
“Convenienter congruenterque que naturae vivere”, viver conforme a natureza e de acordo com ela (Cícero
apud Guenard, 2003, p. 12).
52
Na introdução seu livro Rousseau et le travail de la convenance (Rosseau e a Ação da Conveniência),
Guenard comenta as diversas acepções do termo que ele julga, por vezes, inconciliáveis. “A conveniência é
incontestavelmente um equivoco” (“La convenance est incontestablement équivoque”) (2004, p. 10). O conceito
de convenientia, de acordo com os domínios e épocas pelos quais ele transita, adquire diferentes formas e
sentidos.
53
“Tout est bien en sortant des mains de l’auteur des choses: tout dégénère dans les mains des hommes.”
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AS#QUATRO#SIMILITUDES#
Capítulo#3#
147#
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convenientia é a menos tensa no que concerne sua definição mais ampla. As noções de
conformidade e de convenção ou acordo (as duas últimas têm a mesma raiz etimológica) são
enfatizadas nos dicionários mais antigos ou em edições mais antigas, como o Dictionnaire de
la langue française du seizième siècle (1932), o Caldas Aulete (1948) e o Trésor de la langue
française (1978). Este último traz como primeira significação de convenance: “relação de
conformidade entre duas ou várias coisas; acordo de uma coisa com uma outra,
concordância”54. A convenance, acompanhada de sua versão inglesa agreement, foi incluída
por Marc Parmentier, a partir dos conceitos de John Locke, como fundamento para o
conhecimento: “Todo conhecimento consiste na percepção de uma relação de conveniência,
ou ao contrário, de desconveniência das ideias.” (2002) 55. Agreement em Locke tem a
particularidade de se aplicar tanto para as ideias entre elas quanto entre as ideias e as coisas.
De acordo com o Vocabulário de Estética de Etienne Souriau (1990, p. 489), existe
uma distinção entre o emprego do termo conveniência (convenance) no singular e no plural.
As conveniências, no plural, são os pequenos deveres impostos pela sociedade na adaptação a
funções e circunstâncias 56. O termo, nesta acepção, concerne à Estética na medida em que as
artes e os artistas fazem parte de um todo social onde estão em jogo certas normas. Desta
maneira, o termo pode também designar os pontos de contato entre uma obra e o país ou a
época onde ela se encontra. Tanto no singular quanto no plural, a conveniência pode ser
considerada como a boa relação entre uma obra, suas circunstâncias e a natureza de seu
público. “A conveniência [convenance] consiste então em ter em vista seu público.” (ibid., p.
489)57. Nessa acepção, a conveniência compreende a escolha de um vocabulário que possa ser
compreendido em seu meio.
Considerando a adaptação da obra a ela mesma, ou seja, seus elementos internos, o
termo ganha outro significado:
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54
““un rapport de conformité entre deux ou plusieurs choses, accord d’une chose avec une autre, concordance”.”
55
“Toute connaissance consiste en la perception d’un rapport de convenance, ou au contraire de disconvenance
des idées.”
56
O Novo Dicionário Aurélio (1986) traz a expressão “guardar as conveniências” significando: “não afastar-se
das convenções sociais”.
57
“La convenance consiste donc à avoir l’égard à son public.”
58
“La convenance est l’accord entre les éléments, qui conviennent entre eux, c'est-à-dire concurrent à l’effet
général et à l’organisation de l’ensemble. […]. La convenance est donc une qualité presque organique, qui fait
# #
148# AS#QUATRO#SIMILITUDES#
Capítulo#3#
Caminhava para o abismo e dizia a meus amigos: “Amamos nós alguma coisa que não
seja o belo? Que é o belo? Que é a belo, por conseguinte? Que é a beleza? Que é que nos
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que toutes les parties d’une œuvre se tiennent entre elles, et que l’auteur ou l’artiste ne va pas, pour faire un sort
particulière à l’une d’entre elles, perdre de vue le tout auquel elle doit s’intégrer.”
59
O decoro faz parte também dos aspectos estudados pela Retórica. O decoro sintetiza o fundamento moral de
uma concepção poético-retórica.
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Capítulo#3#
149#
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atrai e nos afeiçoa aos objetos que amamos? Se não houvesse nele certo ornato e
formosura não nos atrairiam”. Eu notara e via que nos mesmos corpos se devia distinguir
a beleza proveniente da união das suas partes – o todo – e a resultante da sua apta
acomodação a alguma coisa, como por exemplo a parte de um corpo ao seu todo, ou o
calçado ao pé, e outras semelhantes. (Agostinho, 1990, p. 88).
########################################################
60
“L’unità è misura della bellezza.”
61
O título pode ser traduzido para o português como: As Razões de Deus: O Argumento da Conveniência e
Estética Teológica segundo São Tomás de Aquino e Hans Urs von Balthasar.
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150# AS#QUATRO#SIMILITUDES#
Capítulo#3#
3. A título de causalidade: revela a convenientia acidental com tudo aquilo que não encontra
no próprio homem seu núcleo material, mas se adquire através da arte.
A noção de convenientia em São Tomás comporta diversas nuances, entre elas, uma
que a apresenta quase como um sinônimo de beleza. O belo e o conveniente (pulchrum et
conveniens) são colocados em relação quando ele afirma que aquilo que é percebido como
belo é percebido como conveniente e bom. E o belo, como não poderia deixar de ser, diz
respeito à beleza de Deus. Todos os seres são transpassados pela luz do belo desde que haja:
integralidade (integritas), proporções (proportio) ou harmonia (consonantia) e brilho
(claritas) (ibid. p. 209). Dessa forma, São Tomás estabelece uma “convenientia estética”
fundamental, na qual o belo, a partir de certos pressupostos, se firma como noção central. À
convenientia São Tomás acrescenta ainda o conceito de verdade. Ele é mais um pressuposto
que conduz ao belo e se configura como adæquatio. Com uma estrutura relacional e
participativa, a verdade se firma na adequação na relação entre Deus e as criaturas, para o
filósofo e teólogo (Marianelli, 2008, p. 30).
Tanto em São Tomás quanto em Santo Agostinho é interessante observar como a
noção de belo, embora calcada na teologia, penetra a convenientia, sempre associada à
semelhança (divina) e amparada pelas noções de adequação ou acordo, integralidade ou
unidade e proporção.
b) Encontro de Similitudes
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Capítulo#3#
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simples
correlacionada
argumentativa antecedente
subseqüente
complexa
Convenientia
analogia entis
fundamental analogia fidei
teologia e economia
temática
formal
correlativa final
exemplar
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62
Henri de Gand (1217-1293) foi filósofo escolástico, conhecido como Doctor Solemnis, sucedeu São Tomás de
Aquino na liderança da ordem de Santo Agostinho.
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152# AS#QUATRO#SIMILITUDES#
Capítulo#3#
porém semelhantes e com a mesma vocação (univocationes). Em seu núcleo poderia residir a
simpatia, como similitude que faz com que as coisas almejem um valor ou identidade comum.
A convenientia imitationes trata de relações de causa e efeito. As formas se coincidem porque
se espelham: uma é origem da outra. A similitude emulação deve se adequar muito
confortavelmente neste tipo de convenientia.
Esta pesquisa não se ocupará das ramificações internas, por vezes complexas, do
interior da noção estudada. É possível, entretanto, concluir que para haver convenientia é
preciso que as outras similitudes intervenham em diferentes medidas.
c) Movimento e Transformação
São “convenientes” as coisas que, aproximando-se umas das outras, se tornam contíguas;
tocam-se nas bordas, suas fímbrias misturam-se, a extremidade de uma designa o começo
da outra. Deste modo, o movimento comunica-se, tal como as influências, as paixões e as
propriedades. (Foucault, 1966, p. 33)63.
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63
“Sont ‘convenantes’ les choses qui, approchant l’une de l’autre, viennent à se jouxter; elles se touchent du
bord, leurs franges se mêlent, l’extrémité de l’une désigne le début de l’autre. Par là, le mouvement se
communique, les influences et les passions, les propriétés aussi.”
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Capítulo#3#
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#
mais que a demarcação de limites, nos revelam que outras similitudes atuam no interior da
convenientia, mas sempre submissas à ela. É importante notar também que, embora admita
uma conjunção harmoniosa de significações e traga em seu núcleo a noção de harmonia, a
convenientia parece quase sempre ser resultado de um movimento: um esforço de adequação,
que traz consigo algum tipo de tensão.
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154!!
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SEGUNDA PARTE
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PERCURSOS!DAS!SEMELHANÇAS!
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Ressonâncias – Reflexos – Confluências
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! 157!
SEGUNDA PARTE
Essas alegorias são graciosas e divertidas, e quem não gosta de brincar de semelhanças?
(Goethe, 1992, p. 53)
Na primeira parte desta tese percorremos diversas instâncias das diferenças e das
semelhanças entre as artes. Olhamos, através de algumas perspectivas, como as artes podem
estabelecer seus limites e, ao mesmo tempo, colocá-los em questão. Vimos também que as
fronteiras das artes variam no ritmo dos olhares daqueles que refletiram sobre elas. Todos os
diferentes sistemas que as classificam podem ser válidos, de acordo com o grau de adequação
às suas premissas, porém nunca são verdadeiros e absolutos. Mas qualquer que seja a fronteira
traçada entre as artes, com suas diferenças e semelhanças, a Estética Comparada legitima e se
ocupa da confrontação de obras e processos criativos e perceptivos provindos de obras de
artes distintas. Ainda na primeira parte da tese, nos voltamos à própria noção de semelhança.
A partir da construção de um breve histórico, no qual buscamos apresenta-la de uma nova
maneira, elegemos quatro forças articuladoras das semelhanças que chamamos de “as quatro
similitudes”.
O estudo dessas quatro similitudes – simpatia, emulação, analogia e convenientia – foi
a base de nosso pensamento entorno dos encontros das artes. Baseados nele propomos três
maneiras de se entender esses encontros que serão desenvolvidas em cada um dos capítulos da
segunda parte desta tese.
Capítulo 4
Da nossa primeira similitude, a simpatia, com todas as suas nuances, surgem nossas
ressonâncias, que não passam de encontros virtuais de obras de arte autônomas proposto pelo
observador. O autor propõe o estudo paralelo de duas obras, uma peça musical e uma pintura,
e gradativamente apresenta elos, que vão desde posicionamentos estéticos amplos dos artistas
até especificidades comuns às obras aproximadas.
!
158!!
Capítulo 5
!!!!!!!!SIMILITUDES! !
!
! ! ! ! simpatia' ' ' RESSONÂNCIAS' ' !!
!
!
! ! ! ! !
! ! ! ! emulação' '
' '
SEMELHANÇAS! ! ' ! ! ! REFLEXOS!
!
! ! ! ! analogia'
!
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!
! ! ! ! convenientia' ' ' CONFLUÊNCIAS!
! ! ! ! !
! ! ! ! !
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! 159!
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160!!
!
RESSONÂNCIAS!
Capítulo!4!
161!
!
Capítulo 4
Ressonâncias
Motivada por nosso objetivo central – propor condições de observação dos encontros
entre as artes – esta pesquisa apresenta a ressonância como a primeira das três noções que
serão aqui desenvolvidas.
Para que uma aproximação entre obras de diferentes artes seja considerada
ressonância, nos termos desta tese, é preciso primeiramente que um sujeito intua semelhanças
ou que tenha emoções análogas quando em contato com essas obras. Em seguida, é necessário
que essa mesma intuição ou emoção análoga se sustente e se legitime com algum tipo de
explicação ou demonstração. Isso se dará através de um discurso que, reconhecendo as
diferenças essenciais que existem entre as obras, sugira e afirme certas semelhanças, certas
interseções, sempre virtuais. Sem a elaboração de um raciocínio, as semelhanças percebidas
acabarão permanecendo como analogias superficiais ou, no melhor dos casos, boas sugestões
de ressonância.
Nosso “percurso das semelhanças” é precedido de um outro percurso: o da construção
de uma maneira de olhar e apresentar um contato entre artes distintas. Nossa opção será por
aproximar obras musicais e pinturas. A simpatia reafirma sua labilidade, mas também seu
grande poder de assimilar e unir. Com todos seus atributos, essa similitude se converte em
ressonância para afirmar-se diferentemente como instrumento de análise e de renovação de
perspectivas e entendimentos.
Dentre os três encontros entre obras e matérias artísticas distintas que serão
apresentados, são as ressonâncias as que mais solicitam a participação do receptor, pois é ele
quem, de certa forma, as produz. A semelhança é percebida, estudada e validada na figura das
ressonâncias. Sua legitimidade é garantida pela liberdade que a simpatia tem de percorrer as
maiores distâncias e se fundamentar na subjetividade dos olhares. Não existem limites nítidos
do que pode ou não ser comparado. Para que seja convincente, entretanto, é preciso que os
elos visualizados entre as obras não se percam em nebulosas conjecturas ou em abstrações
extremamente subjetivas.
!
162! RESSONÂNCIAS!
Capítulo!4!
Os dois encontros, que ilustram essas ressonâncias, são apresentadas de modo mais ou
menos distinto. No primeiro, entre a Sagração da Primavera e Les Demoiselles d’Avignon, o
contato foi gradual, parte de uma leitura mais ampla da trajetória de Stravinsky e Picasso,
passa pelos paralelos e semelhanças dessas trajetórias para, finalmente, evocar as
ressonâncias na especificidade das obras. Entre Atmosphères e Black Painting n.1, um
diálogo é desde o início proposto. Uma aproximação mais sistemática dos percursos artísticos
de Rothko e Ligeti não pareceu essencial para se visualizar as semelhanças apresentadas,
caracterizadas neste capítulo como ressonâncias.
Não serão exatamente os fatores históricos ou as coincidências biográficas as maiores
forças que nutrem essas ressonâncias. Embora as obras estudadas tenham concomitância
histórica, isso não impede que as semelhanças e as ressonâncias se manifestem sem sincronia.
Não é a história que as sustenta. Os elos mais interessantes devem surgir justamente das
ligações virtuais, das intuições e da subjetividade de olhares e métodos. A última seção deste
capítulo, intitulada “Outras Ressonâncias” apresenta, sem desenvolver, alguns exemplos
propostos por outros autores. !
1. Ressoar
Assim como cada uma das similitudes estudas no capítulo anterior, a simpatia se
constitui nesta tese como um amálgama de significações. E nesse amálgama afirmam-se
algumas direções conceituais, algumas tendências que ao longo da história foram se
estabelecendo no seu núcleo. Existe, por exemplo, a noção de “harmonia”, que alimentava a
simpatia dos estoicos, e a de “contágio” ou “transferência”. Esta última, que para os gregos da
Antiguidade se ligava à transmissão de doenças, se converteu e se afirmou mais tarde como
um atributo muito importante da simpatia: a transferência de afetos. Harmonia e transferência
preenchem o núcleo central dessa similitude que tem o poder de percorrer as maiores
distâncias e aproximar coisas e seres das mais variadas naturezas, como as simpatias da época
áurea das semelhanças, a Renascença.
A simpatia aproxima, harmoniza e suscita um movimento interior que faz com que as
coisas se assemelhem. Mas todo esse poder a transforma na mais lábil das similitudes desta
tese, pois a liberdade que ela tem de circular em todas as instâncias possíveis pode reduzir
consideravelmente sua legitimidade ou validade. Podemos explicar parcialmente o motivo
!
RESSONÂNCIAS!
Capítulo!4!
163!
!
pelo qual simpatizamos com alguém ou algo, mas restam sempre lacunas que oscilarão entre
as mais reduzidas e as mais abissais. Não sendo intelectualmente apreendida por completo,
tende-se a reduzir a simpatia a algo vago e obscuro.
Mas o fato desta similitude não conseguir dissimular seu lado inexplicável, vago e
obscuro não quer necessariamente dizer que ela seja ilegítima ou impostora. Transferência de
afetos ou atributos físicos e um princípio geral de harmonia são características intrínsecas que
podem ocorrer em qualquer território onde exista relação entre elementos. O inexplicável da
simpatia pode ser, talvez, a potencialização daquela dimensão absoluta apresentada por
Bergson no capítulo anterior, na qual a simpatia se configura em uma intuição que nos
transporta ao próprio interior dos objetos. Entretanto, mesmo sem poder explicar
satisfatoriamente as razões e princípios da simpatia, acreditamos que ela seja, no mínimo,
presente e atuante. E seu reconhecimento será sempre legítimo na medida em que pertence à
subjetividade do receptor.
A partir do momento em que a ideia de transferência penetra e se consolida no núcleo
da simpatia seu aspecto subjetivo é cada vez mais fortalecido. Sustentada por seus dois polos,
“harmonia” e “transferência”, a simpatia tem um caráter ora passivo, ora ativo. Ao mesmo
tempo em que seu reconhecimento, entre coisas e/ou seres, tem algo de espontâneo e
involuntário, observa-se que existe uma ação interna, um movimento interior das coisas em
direção a algum tipo de estabilidade ou harmonia.
A partir desses princípios fundamentais da simpatia extraídos no estudo feito no
capítulo anterior, começa a se delinear a noção de ressonância que conduz este capítulo.
A definição de ressonância dos dicionários pouca relação tem com a noção de
simpatia apresentada até agora. Em uma investigação etimológica veem-se registros de
palavras que se relacionam com o termo ressonância desde o século XIII (Rey, 2005). Cunha
(1982) nos envia à palavra som, que vem do latim sŏnus, e aponta para o primeiro registro de
ressoar, datado do século XIV, originária de rěssŏnāre. Uma referência propriamente à
ressonância (ressonantĭa) se encontra no século XVI: o prefixo re marca o movimento de
retorno e o sufixo sonare sugere que este retorno seja de um som. Mas a maioria dos
dicionários brasileiros e franceses, de diferentes épocas, notam como primeira significação de
ressonância, mais que o sentido de repetição ou retorno, a acepção de reforço, intensificação,
apontando para o aumento da duração ou da intensidade de um som. No sentido ligado à
Fonética ou à Linguística esta significação é mantida, porém se associa à capacidade da boca
e das fossas nasais de intensificar um som fundamental e seus harmônicos. A ideia de
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164! RESSONÂNCIAS!
Capítulo!4!
prolongamentos das vibrações sonoras evoca, evidentemente, o aspecto mecânico que, por sua
vez, alude às acepções físicas que o termo vai ganhando na história.
Aos sentidos de retorno e reforço, acrescenta-se aquele que mais elos pode estabelecer
com as simpatias: o de transferência. Em Física a ressonância se relaciona com a oscilação de
sistemas elásticos ou se apresenta como um processo de transferência de energia de um
sistema que oscila em frequência própria para outro que oscila na mesma frequência,
conforme o dicionário Houaiss (2009) menciona. Transferência e harmonização, dois sentidos
da similitude estudada fazem também parte da definição de ressonância nos dicionários.
Em Música, teorias procuram explicar os sistemas vibratórios de instrumentos
musicais, por exemplo, e tentam entender a maneira como as vibrações produzem tal ou tal
timbre a partir da caixa de ressonância de certo instrumento. As ressonâncias se definem na
maneira como um corpo transmite ondas sonoras. A física ainda fala em “estado” ou “fase de
ressonância”, que é um estado de tensão no qual um átomo pode produzir uma radiação1.
Afastando-se das ciências físicas, químicas e biológicas, mas sem recusar os traços
fundamentais apresentados por estas mesmas ciências, a Literatura e a Psicologia também se
apropriam e se servem da noção de ressonância. Na Literatura, ela aparece como um efeito
que repercute no espírito ou no coração (Rey, 2005). Esse atributo de efeito ou impressão é
utilizado em psicologia como “ressonância íntima”, como prolongamento dos acontecimentos
na consciência de cada um, segundo a Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura(1964, p. 182).
A apropriação do termo ressonância nesta tese se estabelece na interseção entre seus
significados gerais apresentados acima e nosso entendimento de simpatia.
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RESSONÂNCIAS!
Capítulo!4!
165!
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166! RESSONÂNCIAS!
Capítulo!4!
semelhança foram desejadas pelos autores das obras aproximadas, pois isso deve ser
característico de outras formas de aproximar as artes, que veremos adiante. Diferentemente
dos dois grupos que serão estudados nos capítulos seguintes, nos reflexos e confluências, as
ressonâncias colocam o receptor em uma posição central, pois é ele quem propõe
efetivamente o encontro das obras. A responsabilidade do encontro se concentra na figura do
sujeito que aproxima obras que não foram pensadas dessa forma por seus autores. Estes
últimos são excluídos do processo de reconhecimento e construção das ressonâncias. Só
existirão ressonâncias, nesta tese, quando partirem da observação de um receptor.
Essas ressonâncias tratam de “encontros virtuais”, onde não há contato efetivo. As
obras só se tocam realmente através do discurso sobre elas. Elas se constroem, como
dissemos, em dois passos que podem ser resumidos como: perceber e investigar.
Quando voltamos nosso olhar para a arte do século XX e pensamos em alguns nomes
que tenham marcado a história das artes visuais e da música ocidentais, dois nomes vêm,
invariavelmente, à tona: Igor Stravinsky (1882-1971) e Pablo Picasso (1881-1973). E quando
interrogamos indivíduos, não necessariamente músicos ou artistas plásticos, sobre um
possível paralelo entre esses artistas, normalmente não encontramos resistência nem surpresa.
Para um especialista também não existirá grande espanto. Existe, como veremos, um certo
número de alusões às aproximações desses dois nomes, seja devido à amizade e à admiração
mútua, seja pela relação de trabalho estabelecida na montagem do balé Pulccinella em 1920
ou em desenhos, caricaturas e ilustrações de partituras realizadas pelo pintor espanhol2.
Entretanto, no estudo que se segue, a relação de amizade entre os dois ou algum tipo
de parceria na criação não intervirão de nenhuma maneira, pois as obras aproximadas
pertencem a períodos anteriores ao encontro efetivo dos dois criadores3. Serão aproximadas as
seguintes obras: a música do balé Sagração da Primavera (1913) e a tela Les Demoiselles
d’Avignon (1907).
Em um primeiro momento, podemos intuir ou mesmo perceber que existem
semelhanças profundas entre essas importantes obras do início do século passado. Em
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2
Logo no primeiro contato com a correspondência trocada entre Stravinsky e Picasso sentimos um tom íntimo e
amistoso entre os dois. “Meu velho” (mon vieux), “seu porcão” (grand cochon), “Pica”, são algumas das
maneiras como o compositor se referia ao amigo. Emannuelle Bacquet (1994) reproduziu em sua monografia
algumas dessas cartas.
3
De qualquer forma, trata-se de uma pré-condição para que existam ressonâncias segundo os termos desta tese.
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RESSONÂNCIAS!
Capítulo!4!
167!
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seguida, lançamos um olhar panorâmico sobre questões estéticas gerais do artista e sobre as
especificidades da Sagração e das Demoiselles. A maneira com a qual esses artistas se
relacionavam com os conceitos de unidade, continuidade, coesão interna, assim como seus
posicionamentos frente às histórias da arte e da música, serão fundamentais para revelar
semelhanças mais diretas entre as obras estudadas.
Na infinidade de estudos, acadêmicos ou não, que abordam separadamente a obra
desses dois criadores, esta pesquisa se fundamenta sobretudo em Meyer Schapiro (2000) e no
catálogo da exposição Les Demoiselles d’Avignon, realizada no Museu Picasso de Paris e
organizada por Helène Seckel (1988), no domínio das artes visuais; e em Pierre Boulez (1982
e 1989) e André Boucourechliev (1982), na Musicologia.
A ideia de aproximar essas duas obras surgiu, por um lado, de uma sugestão de Pierre
Boulez (Paul Klee : le pays fertile, 1989, p. 24) sobre um paralelismo entre os dois autores e
algumas de suas obras e, por outro lado, de uma impressão ou emoção análoga encontrada
pelo autor desta tese quando em contato com essas obras específicas. A “revelação” das
ressonâncias nesta pesquisa não deve se alongar em considerações biográficas ou mesmo
reter-se em análises especificamente musicais ou estéticas que não sirvam diretamente ao
nosso objetivo central4. Coincidências temáticas ou biográficas, embora possam reforçar os
argumentos para as ressonâncias, não são necessariamente seus maiores fundamentos. Esta
pesquisa se concentra em apontar alguns aspectos gerais das obras e suas gêneses que possam
auxiliar no construção e na percepção das ressonâncias comuns que emanam das duas obras
apontadas de Stravinsky e Picasso. Vamos, então, nos interessar pelos traços que se situam na
interseção entre dimensões das criações e das percepções críticas. Veremos, de maneira geral,
como a criação e a recepção das artes visuais e da música podem ser fertilizadas por gestos e
atitudes artísticas similares e assim produzir ressonâncias.
O ritmo?
Claro.
A invenção melódica?
Talvez.
A forma?
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4
Descrever em detalhes a Sagração da Primavera e descobrir, por exemplo, se sua harmonia se calca em
politonalismo, em apogiaturas não resolvidas, acordes de passagem ou descrever a sua complexidade rítmica,
como fizeram Boulez ou Boucourechliev, ou ver se a estrutura formal das Demoiselles fundamenta-se na
retomada dos estudos de anatomia de Albrecht Dürer, na subversão das formas de Ingres ou na observação das
deformidades ocasionadas pela sífilis (Rubin, 1988, p. 420), todos esses aspectos são interessantíssimos e
poderiam facilmente se tornar tema principal de uma tese.
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168! RESSONÂNCIAS!
Capítulo!4!
Muito pouco.
As texturas instrumentais?
Certamente. (Boulez, 1982, p. 60)5.
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5
Le rythme?
Bien sûr.
L'invention mélodique?
Peut-être.
La forme?
A peine.
Les textures instrumentales?
Certes.
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“Stravinsky n'a fait de l'histoire ni sa conscience ni sa loi, mais sa propriété, et son instrument.”
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7
“[...] la technique, si importante soit-elle, ne décide pas le la grandeur d'une œuvre [...]. “
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8
Quando observamos esse conjunto de características citadas por Boucourechliev vemos que a primeira fase da
classificação usual da obra de Stravinsky acaba por tomar ares reducionistas. Vale lembrar que o compositor
nunca reivindicou algum tipo de militância nacionalista, como era o caso do chamado Grupo dos Cinco
(Borodine, Rimsky-Korsakov, Cui, Balakirev e Mussorgsky).
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RESSONÂNCIAS!
Capítulo!4!
171!
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Agon, Mavra, Rake’s Progress, Œdipus Rex e Canticum Sacrum são os exemplos mais
marcantes.
A quarta e última chave se liga à relação que o compositor nutria com as técnicas
composicionais de diversos momentos históricos. Ela abrange de uma forma bem peculiar
com o que chamamos de similitudes de emulação e analogia. Os modelos tomam tal força
referencial que eles acabam por modelar a própria linguagem, a subvertê-la e a subjugá-la. A
imitação de Stravinsky subverte os modelos e estes acabam por se impor com certa força
icônica. E esse princípio se mantém independentemente das características especificas dos
modelos apropriados por Stravinsky. É por isso que, desde a Sagração até as obras seriais,
persistem as identidades e as simetrias conceituais, mais que as oposições e rupturas. A quarta
chave de entendimento se resume, portanto, à maneira com a qual o compositor se relaciona
com obras de diversos períodos que servirão de modelo para suas próprias obras9.
Interessante verificar que, apesar de se falar em arquétipos e ossatura formal sólida,
suas obras raramente se configuraram em sistemas ou modelos composicionais. Sem criar
propriamente um sistema com regras abrangentes, nem renunciar às aplicações e adaptações
de sistemas por vezes anacrônicos, Stravinsky se impõe pela força individual das obras e,
como a apresentação dessas chaves revelou, pelo domínio técnico do material sonoro, pela
solidez formal, por sua vocação hierática, ritualística, arquetípica. Todas essas características
são claramente sentidas em uma das suas obras mais marcantes, a Sagração da Primavera ou
Le Sacre du Printemps.
b) Sagração da Primavera
A noite de 23 de maio de 1913 entrou para a história da música e para história das
artes. Estreava o balé Sagração da Primavera no recém inaugurado Théâtre des Champs
Elysées, em Paris. Após o sucesso de seus dois outros balés, Pássaro de Fogo (1910) e
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9
Mas essa crença na unidade ou em uma homogeneidade na obra de Stravinsky, bem aceita por Jarocinsky e
Boucourechliev, não é unânime. Pierre Boulez, por exemplo, considera que depois de Noces (1923), a linguagem
do compositor russo sofreu um esgotamento acelerado, que se manifestou em todos os âmbitos musicais. Sua
música teria se atrofiado enormemente. A grande contribuição de Stravinsky, para Boulez, liga-se, quase
exclusivamente ao tratamento rítmico, ao fato dele restabelecer um status, uma importância primordial à
dimensão rítmica, que, desde o fim do Renascimento, foi relegada a um segundo plano (2008, p. 135). Essa
discordância deve-se, provavelmente, ao peso que o compositor francês atribui à noção de evolução da
linguagem e à dificuldade de fazer emergir contribuições evolutivas no terreno da forma e do seu tratamento
harmônico. Em uma visão aparentemente mais distanciada, Boucourechliev diz que o grande legado de
Stravinsky não se situa em um plano harmônico, timbrístico ou rítmico, mas na maneira como ele tratava
ritmicamente as massas sonoras (1982, p. 104).
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172! RESSONÂNCIAS!
Capítulo!4!
Petruschka (1911), e com o apoio da companhia de Sergei Diaghilev10, Stravinsky, aos trinta
e um anos de idade, tinha sua obra apresentada em Paris, com uma grande orquestra sob a
direção de um maestro renomado, Pierre Monteux. Com a coreografia de Vaslav Nijinsky
(1889-1950), a estreia da Sagração provocou as mais intensas reações: gritos, vaias, objetos
arremessados sobre os dançarinos e a orquestra. O reconhecimento, entretanto, não tardou a
chegar. Menos de um ano depois, a obra foi reapresentada no mesmo contexto e a recepção
foi mais que calorosa, como diz o próprio compositor em Croniques de ma vie (1962, p. 62).
Aliás, mesmo na noite anterior à estreia em maio de 1913, a obra tinha sido muito bem
recebida pelo seleto grupo que assistia ao ensaio geral, entre eles, Debussy, Ravel e vários
jornalistas. Se as apresentações da Sagração, dissociadas da dança, não foram tão
perturbadoras assim, é provável que os ousados figurinos e a coreografia tenham contribuído
consideravelmente para o “fracasso” de sua estreia 11 . De qualquer maneira, com um
distanciamento de quase cem anos, percebemos que a repercussão dessa rápida e transitória
rejeição contribuiu também para a inserção peremptória da obra na história.
A Sagração foi composta entre 1910 e 1912 e, como Stravinsky revelou em Croniques
de ma vie, surgiu de seu fascínio, desde a infância, pela força com a qual a primavera se
impunha na Rússia e a magia que comportava tal evento (2000, p. 44). A ideia central foi
desenvolvida mais tarde, em 1910, em parceria com Diaghilev e o artista plástico Nicolas
Roerich (1874-1947). A obra tem como subtítulo Cenas da Rússia Pagã e é dividida em dois
quadros: Adoração da Terra e o Sacrifício, subdivididas em oito e seis seções,
respectivamente.
Um ponto que parece ser importante na gênese dessa obra é que Stravinsky insistiu
para que o argumento central não fosse pormenorizado. Deveria apenas possuir um caráter
estrutural. Tinha de ser uma ideia de base e não poderia se transformar em anedota ou uma
espécie de conto. Tudo deveria ser unificado por uma só ideia fundamental: o mistério do
poder criador da primavera (Boucourechliev, 1986, p. 77). A apresentação do primeiro e do
segundo quadro e o nome de cada peça da obra já seriam suficientes para sua criação
coreográfica. Ou seja, dava-se maior enfoque na própria ideia que na sua dimensão narrativa.
Isso mostra uma preocupação com um aspecto simbólico imediato e certa rejeição a uma pura
descrição. A obra, mesmo que submissa à linearidade temporal da música e da dança, deveria
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10
Diaghilev (1872-1929) foi um dos maiores animadores culturais do início do século europeu. Ficou conhecido
pela criação e direção do Ballets Russes que foi, não somente para dança, mas também para a música e para as
artes visuais, um veículo importantíssimo de expressão artística e da modernidade.
11
Mas mesmo a coreografia de Nijinsky não foi unanimemente reprovada. Na época da estreia, o crítico Jacques
Rivière, como mostra Dufour (2006, p. 146), reconheceu, tanto na obra musical quanto na coreografia, sinais da
modernidade e do rompimento de paradigmas artísticos.
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RESSONÂNCIAS!
Capítulo!4!
173!
!
ser percebida em sua globalidade, de imediato. Era preciso sentir, de uma só vez, a dimensão
ritual e de glorificação da primavera que obra comporta em sua essência.
Como notou Craft (1969, p. XLV), a trama, ou a ação coreográfica, esteve presente
durante o trabalho de composição da Sagração e seus detalhes serviram como estímulo. No
entanto, uma vez que ela cumpriu seu papel, é excluída do espírito do compositor.
Eu receio que a Sagração da Primavera – obra na qual não apelo ao espírito dos contos de
fada ou à dor e à felicidade humanas, mas esforço-me na direção de uma abstração um
pouco vasta – não desconserte aqueles que testemunharam-me, até agora, uma cara
simpatia. (Stravinsky apud Lesure, 1980, p. 14)13.
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12
“Although I had conceived the subject of the Sacre du printemps without any plot, some plan of action had to
be design for the sacrificial action. For this, it was necessary that I should see Roerich […]. We settled on the
visual embodiment of the Sacre and the definite sequence of its different episodes.”
13
“Je crains que le Sacre du Printemps, où je ne fais plus appel à l’esprit des contes de fée ni à la douleur et à
joie toute humaines, mais où je m’efforce vers une abstraction un peu plus vaste, ne déroute ceux qui m’ont
témoigné, jusqu’ici, une sympathie chère.”
14
“Away with anecdotes, away with action encumbered by pantomimes and more or less ingenious twists in the
plot; let us exalt solely the plasticity of movement for its own sake.”
15
O figurino criado por Roerich para as primeiras execuções da Sagração também se preocupou em refletir essa
unidade através da uniformidade dos trajes decorados com padrões abstratos construídos com círculos, triângulos
e outras imagens geométricas (Pasler, 1986, p. 68).
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174! RESSONÂNCIAS!
Capítulo!4!
Tanto Stravinsky quanto Roerich situavam o ritmo como elo principal entre homem e
natureza. “Música existe se há ritmo, assim como vida existe se há pulso.” (Stravinsky apud
Pasler, ibid., p. 69)18. O projeto de composição da Sagração deu a Stravinsky a oportunidade
de utilizar o ritmo como elemento musical primário. Para Pierre Boulez, é no ritmo que a
Sagração traz sua principal contribuição para a evolução da música ocidental (2008, p. 75-
136). A tensão harmônica vem da sobreposição de modos sobre uma mesma nota atrativa ou
do tratamento das apogiaturas. As notas de passagem no interior da construção rítmica
interviriam em nossa percepção harmônica, nos confundindo e escamoteando uma harmonia
não tão inovadora, já que a maior parte dos temas são diatônicos ou, até mesmo, construídos
sobre escalas defectivas de cinco notas (ibid, p. 77).
Com a Sagração da Primavera, Stravinsky dá ao ritmo um estatuto de elemento
capital, que conduz a própria estrutura harmônica da obra. O ritmo aparece como o retorno de
uma força primeira, como esqueleto formal e até mesmo antecipando a concepção harmônica,
como era feito na música de Phillippe de Vitry (1291-1361), Guillaume de Machaud (1300-
1377) ou Guillaume Dufay (1397-1434), por exemplo (ibid., p. 135). Seria a busca pelo
arcaísmo que teria permitido que Stravinsky fizesse as mais audaciosas experiências em
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
16
“Música selvagem, com todo conforto moderno.” (“Musique sauvage, avec tout le confort moderne”).
(Debussy apud Boucourechliev, 1982, p. 12).
17
“I wanted the whole of the composition to give feeling of the closeness between man and earth, the
community of their lives with the earth, and I sought to do this with lapidary rhythms. The whole thing must be
put on in dance from beginning to end. I give not one measure for pantomime.”
18
“Music exists if there is rhythm, as life exists if there is a pulse.”
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RESSONÂNCIAS!
Capítulo!4!
175!
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19
I Introdução Augúrios Rapto Rondas Cidades Cortejo do sábio Adoração Dança da Terra
D D K D P P D
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176! RESSONÂNCIAS!
Capítulo!4!
história musical como fenômeno isolado e sua estrutura rítmica, em suas consequências
internas, permanece ainda pouco explorada. A sua disposição harmônica alterna
verticalização e estaticidade enquanto a articulação formal se manifesta nas massas, nos
timbres e nos registros, como vemos claramente na Glorificação. A simplicidade dos
compostos sonoros assegura a força de impacto na percepção.
Por todas as razões ou atributos apresentados, e muitos outros que não devem ter sido
nem mesmo mencionados, o Sacre se firma como obra icônica do século XX. Obra que exibe
sua unidade em meio a uma infinidade de fontes, de uma falsa impressão de repetição e de um
discurso sólido apesar de heterogêneo.
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22
“[…] le Sacre marque, étrangement, un moment de suspension, semble s'inscrire à rebours de l’évolution
amorcée, faisant sur certains plans le bilan du passé, et sur d'autres jetant des lumières visionnaires.”
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RESSONÂNCIAS!
Capítulo!4!
177!
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Esse rapaz de 20 anos é capaz de pintar de todas as maneiras atuais. Não sabemos qual é
o seu estilo. Em todos é talentoso. Conseguirá ele encontrar um estilo? Tornar-se-á um
artista comprometido com algo que pertença somente a ele? (Félicien Fagus apud
Schapiro, 2002, p. 20).
O comentário acima foi feito em 1901 pelo poeta simbolista francês conhecido pelo
pseudônimo Félicien Fagus (1872-1933). Na virada dos séculos XIX e XX foi quando
começou a ser construída a obra de Picasso. Embora o comentário de Fagus seja quanto ao
início da carreira do pintor espanhol, ainda hoje, segundo Schapiro, coloca-se em questão sua
unidade estilística.
Quando chega em Paris, em 1900, alguns dos personagens mais marcantes do
Impressionismo ainda trabalhavam: Pierre-Auguste Renoir (1841-1919), Claude Monet
(1840-1926) e Camille Pissaro (1830-1903). E muitos outros movimentos artísticos
coexistiam nessa cidade: o Pontilhismo, cujo principal representante vivo, Paul Signac (1863-
1935), apresentava uma nova possibilidade de se relacionar com as cores, através da
sobreposição e não de misturas; o Simbolismo, com sua recusa à realidade aparente,
representado sobretudo por Gustave Moreau (1826-1898) e Odilon Redon (1840-1916); a Art
nouveau se misturava na vida cotidiana justamente no momento em que o artesanato se torna
indústria e que a arquitetura instaura novos critérios de base. Havia ainda o Fauvismo, cujo
representante mais marcante deve ter sido Henri Matisse (1869-1954) no início do século XX,
!
178! RESSONÂNCIAS!
Capítulo!4!
exaltando a cor pura e recusando o espaço, à luz e o naturalismo. O gosto pelo exotismo e o
interesse pelos povos ditos primitivos, como vemos em Paul Gauguin (1848-1903), também
estavam presentes, assim como a particular simplicidade da arte naïf, como a de Henri
Rousseau (1844-19010). Outros três nomes ainda devem ser citados como influências
contemporâneas aos primeiros anos de Picasso em Paris: Henri de Toulouse-Lautrec (1864-
1901), que se ligava ao mesmo tempo à crítica social e à aspiração a algum tipo de evasão
através da arte, Pierre Puvis de Chavanes (1824-1898), com seu “classicismo elegíaco e o
grande fôlego de suas vastas composições decorativas” (Argan, 2008, p. 422), e, enfim, Paul
Cézanne (1839-1906), que estabelece as bases de uma visão de tendências abstratas onde se
conciliam a atividade imediata do olho, que vê, e a atividade imediata do intelecto, que deduz
e organiza (Bacquet, 1994, p. 17).
Filho de professor de pintura e restaurador no museu de Málaga, Picasso tinha uma
certa cultura artística, mas quando chegou em Paris percebeu que estava à margem das
principais correntes contemporâneas. É na capital francesa do início do século XX que se
constroem as principais bases de seu trabalho artístico. Sua obra é dividida tradicionalmente
em alguns momentos ou períodos. Começando pelos trabalhos de juventude (de 1890 a 1901);
em seguida os períodos azul e rosa (1901 a 1906); o cubismo (de 1906 a 1915); seu “retorno à
ordem”, conhecido como o período neoclássico e a tendência surrealista (de 1916 a 1936); as
interseções entre guerra, arte e política (de 1937 a 1953); e, finalmente, uma retomada dos
motivos e composições que ele desenvolveu ao longo de sua vida, quase sempre marcada por
temas mais intimistas e sem muitas referências ao mundo exterior (de 1954 a 1973). Esta
classificação, embora bem aceita, comporta imperfeições no que se refere a delimitação de
seus limites. Apesar da clareza destas delimitações, apresentadas nos capítulos da obra de
Carsten-Warncke (2006), observa-se concomitância ou interpenetração entre os momentos
desta trajetória. O próprio artista, que pouco comentou sua própria obra, não consegue ver
nesses períodos resultados de constantes e conscientes pesquisas artísticas23. Essa fragilidade
nos limites entre os períodos artísticos e divergências no entendimento da trajetória de um
artista não é, certamente, privilégio de Picasso. Mas o pintor espanhol extrapolava. Em um
mesmo dia, Picasso poderia pintar na parte da manhã uma obra cubista e na parte da tarde
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
23
“Causa-me mal-estar a compreensão do termo busca nas minhas relações com a pintura moderna. Na minha
opinião, buscar não tem nenhum sentido em pintura. O essencial é encontrar.” Traduzido do francês: “Je
comprends malaisément l’importance du terme recherche dans mes relations avec la peinture moderne. Selon
moi, chercher n’a aucun sens en peinture. L’essentiel c’est de trouver. ” Ou: “Eu tento pintar aquilo que
encontrei e não aquilo que eu busco.” Traduzido do francês: “Je tente de peindre ce que j’ai trouvé et non ce que
je recherche.”. Estas citações foram extraídas do documentário Trèze journées dans la vie de Picasso de Pierre
Philippe (1999).
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RESSONÂNCIAS!
Capítulo!4!
179!
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uma tela no seu estilo neoclássico, caso único na história dos grandes pintores (Schapiro,
2002, p. 44). Sem falar das idas e vindas no interior do próprio trabalho. Características das
pinturas que precederam e prepararam o cubismo, por exemplo, com seus estudos do corpo e
da forma, foram retomados pontualmente em suas obras dos anos vinte (Deux femmes nues,
Femme nue assise les jambes croisées de 1906 e Femme nu assise s’essuyant le pied de 1921
e La Flûte de Pan de 1923, por exemplo). Havia ainda curiosas interseções estilísticas, que
podemos chamar de analogias diretas movidas pela emulação dos mais variados modelos.
Como por exemplo, a aplicação de técnicas pontilistas ou neoclássicas em reinterpretações de
obras de diversas épocas (Le Retour du baptême d’après Le Nain, La Siesta d’après Van
Gogh, etc.).
Se por um lado parece que a obra de Picasso pode ser lida de maneira sincrônica com
os acontecimentos de sua vida afetiva, financeira e em relação com a história, por outro lado,
as concomitâncias, os retornos e a diversidade criativa perturbam e muitas vezes tornam
artificiais as tentativas classificatórias ou tipológicas. “Porém, o que caracteriza Picasso é seu
progresso a partir de retornos ao passado e seu confronto, muito bem pensado e extremamente
diversificado, com a tradição.” (Carsten-Peter Warncke, Ingo F. Walther, 2006, p. 143)24.
Será que a tradição revisitada em função das exigências da contemporaneidade seria
suficiente para creditar unidade à sua obra?
Meyer Schapiro defende que, longe de ter uma trajetória artística desconexa por causa
de escolhas arbitrárias ou caprichosas, Picasso representa uma ruptura ou uma transformação
no próprio conceito de trabalho e produção artística. “Em toda a história não há exemplo de
outro pintor que tenha sido capaz de criar tal diversidade de obras e de lhes conferir o poder
uma arte bem-sucedida”. (Schapiro, 2002, p. 17). A obra não deve ser considerada incoerente
somente por termos dificuldade de perceber a continuidade dos diferentes estilos e de
entender que no interior da obra emerge gradualmente um objetivo geral.
Sem renunciar a classificação tradicional da obra de Picasso, Schapiro explica as
transformações da obra do artista a partir de uma análise que une, de maneira particular, os
aspectos biográficos e especificidades de certos trabalhos. A coerência de Picasso estaria na
sua gradativa afirmação pessoal e artística, quando, por exemplo, um personagem
introspectivo de olhar distante e rodeado de azul vai, pouco a pouco, encarando o receptor,
impondo sua personalidade, abrindo os braços, exibindo suas mãos.
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24
“Mais ce qui caractérise l'artiste Picasso, c'est qu'il progresse par des retours en arrière et par une confrontation
parfaitement réfléchie et extrêmement diversifiée avec la tradition.”
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181!
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Figura 1: Pablo Picasso. Les Demoiselles d’Avignon,1907. Óleo sobre tela, 243.9 x 233.7 cm –
Nova Iorque, THE MUSEUM of Modern Art, 201125.
No fim de 1906, as formas tornam-se mais duras, mais angulosas. Elas se afastam da
natureza. No lugar do rosa delicado, do amarelo claro e do verde pálido, vemos os tons
densos pesarem sobre as formas massivas. No princípio de 1907, Picasso começa um
grande e estranho quadro onde aparecem mulheres, tecidos e frutas. Os nus se erguem,
congelados como manequins com seus grandes olhos calmos. Os corpos rígidos têm um
padrão estritamente arredondado. No primeiro plano, estranhas ao estilo do resto, uma
figura agachada e algumas frutas. É o início do combate desesperado que vai se seguir: a
conquista do céu. (Kahnweiller apud Seckel, 1988, p. 658)26.
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25
As letras capitais remetem aos sites na internet que estão referenciados no final desta tese.
26
“Vers la fin de 1906, les formes deviennent plus dures, plus anguleuses. Elles s’éloignent de la nature. Au lieu
du rose délicat, du jaune clair et du vert pâle, on voit des tons plombés s’appesantir sur des formes massives. Au
début de 1907, Picasso commence un grand tableau étrange, où figurent des femmes, des tentures et des fruits.
Les nus se dressent, figés comme des mannequins aux grands yeux calmes. Les corps rigides ont un modelé
strictement rond. Au premier plan, étrangères au style du reste, une figure accroupie, et une coupe de fruits.
C’est le début du combat désespéré qui va suivre, à l’assaut du ciel. ”
!
182! RESSONÂNCIAS!
Capítulo!4!
A história da arte não conhece nenhum caso comparável em que uma única obra tenha
sido precedida de um tão penosa preparação. Esse simples fato exclui totalmente a
possibilidade de Picasso ter agido sem reflexão, ou mesmo inconscientemente, ou ainda
em um estado de embriaguez criativa. Como mostra a documentação detalhada que
possuímos atualmente, essa obra é, ao contrário, fruto de um procedimento lógico e
racional, que impressiona pela sua coerência e fecundidade. (Carsten-Peter, ibid., p.
146)28.
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27
“C’est comme si tu voulais nous faire manger de l’étoupe ou boire du pétrole.”
28
“L'histoire de l'art ne connaît aucun cas comparable où une œuvre unique ait été précédée d'une préparation
aussi pénible. Ce seul fait exclut totalement que Picasso ait agi ici de manière irréfléchie, voire inconsciente, ou
encore dans un état d'ivresse créative. Comme le montre la documentation détaillée dont nous disposons
aujourd'hui, cette œuvre est tout au contraire le fruit d'une démarche logique et rationnelle, impressionnante à la
fois par sa cohérence et par sa fécondité.”
!
RESSONÂNCIAS!
Capítulo!4!
183!
!
boudoir. Seu nome final e atual, dado por um amigo íntimo de Picasso, o poeta André Salmon
(1881-1969), não agradou muito ao pintor (Rubin, 1988, p. 376).
O que Helène Seckel chama de “mise-en-scène” do quadro, revela algumas
informações interessantes com relação à sua gênese. Picasso parte da ideia de ter cinco
mulheres nuas acolhendo entre elas dois homens: um marinheiro, vestido de azul e sentado, e
o outro, que chega à esquerda do quadro para se encontrar com o grupo, vestido com um
paletó marrom, seria um estudante de medicina, que segura algo com o braço direito. Estaria
segurando, de acordo com o amigo de Picasso, Alfred Barr, um crânio humano, e daria à
imagem alguma conotação moral (Seckel, 1988, p. 642). Mas outras hipóteses quanto à
inclusão do marinheiro e do estudante surgem ao longo da história, como de William Rubin,
por exemplo, que vê nos dois personagens representações do próprio pintor29. Não nos
estenderemos em especulações sobre esses dois personagens masculinos, já que o fato deles
terem sido descartados, e com eles uma dimensão narrativa explicitada, deve ser, para nós, o
fator mais importante. Algum tipo de abertura para se pensar em uma mensagem moral do
tipo vanitas também é eliminada com a saída dos dois homens30. De acordo com Steinberg
(1988, p. 324), a obra tem um princípio anti-narrativo, já que as figuras vizinhas não dividem
necessariamente um espaço comum, não reagem entre si, nem se comunicam, mas se
endereçam separadamente e diretamente ao espectador. Essa ausência de conexão psicológica
entre as personagens representadas deveria ser até mesmo algum tipo de intenção estilística
deliberada. A despeito da intenção de se desmontar a dimensão narrativa, ela acaba
solicitando, de qualquer forma, uma leitura evolutiva, da esquerda para direita. Existe, então,
uma tensão entre imobilidade e rigidez quase icônica de um lado, e essa leitura horizontal
evolutiva do outro31. Porém essa tensão deve ser resolvida pelo fato das personagens não se
relacionarem entre si e acabarem por interpelar o observador de maneira muito incisiva e
direta. De qualquer maneira, o abandono da “significação” das Demoiselles veio em proveito
de um abstração auto-referencial e fez com que a obra se tornasse, para alguns, como o mais
importante documento pictórico produzido no século XX e o paradigma de toda arte moderna,
como notou Steinberg (ibid., p. 320). Com a observação dos estudos foi possível concluir que
o pintor abandonou o projeto alegórico e, dessa maneira, parece que a forma se sobrepôs ao
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29
William Rubin justifica essa hipótese reunindo vários elementos biográficos e nos esboços e estudos para Les
Demoiselles. É possível verificar uma transformação na fisionomia dos homens nos estudos. Eles se convertem
gradativamente em mulheres (1988, p. 426).
30
Vanistas é uma categoria de natureza morta com grande carga simbólica, que sugere a volubilidade da
natureza humana.
31
A título de curiosidade, observamos que Les Demoiselles d’Avigon e essa leitura horizontal e icônica encontra
correspondências na tela Chorinho (1942) de Cândido Portinari (1903-1962).
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184! RESSONÂNCIAS!
Capítulo!4!
conteúdo. O espaço pictórico, entretanto, ainda parece o espaço de um espetáculo, por mais
que evitemos a leitura evolutiva citada acima ou busquemos conectar as mulheres da tela.
Figura 2: Pablo Picasso. Esboço para Les Demoiselles d’Avigon com os personagens masculinos,
citado por Hélène Seckel (1988. p. 25). Também acessível no site http://blistar.net/photos/photo14403.html
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RESSONÂNCIAS!
Capítulo!4!
185!
!
Sem dúvida, uma certa emulação endereçada a Matisse e Derain atuam como um
estímulo para Picasso, incitando-o a superar a arte desses pintores em uma obra-prima
que resumiria e ultrapassaria ao mesmo tempo sua própria obra anterior. (Rubin, 1988, p.
368)33.
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33
“À n’en pas douter, une certaine émulation à l’endroit de Matisse et Derain joua le rôle d’aiguillon pour
Picasso, en l’incitant à dépasser leur art dans un ‘chef-d’œuvre’ qui résumerait et surpasserait en même temps
son œuvre antérieur.”
34
Rubin reproduz algumas fotos de doenças cutâneas e sifilíticas do acervo do museu do hospital Saint-Louis de
Paris. Algumas das deformidades não parecem muito distantes da aparência da mulher agachada no lado direito
da tela estudada (1988, p. 421).
35
“[...] de la conscience sidérée d’un spectateur qui se voit vu.”
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186! RESSONÂNCIAS!
Capítulo!4!
obras do Museu de Etnografia do Trocadéro chegou a ser descrito pelo pintor como a
descoberta do próprio sentido da pintura (Rubin, 1988, p. 373). E essa descoberta das obras
antigas, ditas “primitivas”, foi determinante na gênese de Demoiselles. O arcaísmo acaba por
conferir à tela uma dimensão hierática como manifestação original de expressividade. As
obras do Trocadéro tinham o peso de uma função ritual e psicológica que suscitou em Picasso
grande interesse, a ponto dele mesmo considerar Les Demoiselles como uma tela de
exorcismo, uma espécie de talismã curativo associado a ritos de passagem (Rubin, ibid., p.
373). A pintura nessa grande tela funcionaria como um catalisador de uma crise emocional e
sentimental, uma maneira de exorcizar seus próprios demônios, conforme entendeu Rubin. A
variedade de estilos empregados somente exteriorizava os instrumentos que Picasso forjara
para escavar as camadas mais profundas de seu espírito.
Como toda grande obra, Les Demoiselles d’Avignon levanta uma série de questões e se
revela como um extenso campo de descobertas e de leituras. Tomando-se consciência ou não
da complexidade de sua gênese e do lugar que a obra se inscreve na história, o poder de
chocar, o imediatismo, a percepção da dimensão hierática, enfim, toda força expressiva da
tela parece estar latente na própria natureza de sua combinação de formas e cores.
e) Stravinsky e Picasso
Não seria nada surpreendente encontrar semelhanças na trajetória de dois artistas que
se tornaram amigos e dividiram durante anos a mesma cidade. Através do Zeitgeist
explicaríamos, por exemplo, o fato de ambos, na década de vinte, se voltarem para modelos
de expressão clássica e rejeitarem temporariamente à arte de vanguarda36. Mas nem o espírito
do tempo, nem a relação de amizade, seria o bastante para explicar ou elucidar algumas outras
semelhanças, igualmente profundas, que notamos ao confrontar Stravinsky e Picasso. Quando
nos aproximamos de obras de vários períodos dos dois artistas, mesmo em momentos
anteriores à vida em Paris, salta aos olhos o domínio técnico dos gestos pictóricos e
composicionais e a liberdade com a qual ambos se apropriavam dos sistemas técnicos de
diversos períodos. As ligações, na grande maioria das vezes, não são diretas, óbvias ou
mesmo reveladas nas cartas e depoimentos das pessoas que testemunharam a relação dos
artistas, como por exemplo, Sergei Diaghilev, o empresário dos Ballets Russes. Os elos mais
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36
Aquilo que foi chamado por Jean Cocteau de rappel à l’ordre, algo como “convocação da ordem”, se refletiu
em várias instâncias artísticas em resposta ao cenário do período pós-guerra. A Neue Sachlichkeit (nova
objetividade) na Alemanha, as obras literárias de T.S. Eliot e Paul Valéry e o neorrealismo do artista plástico
André Derain, também ilustram essa tendência.
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RESSONÂNCIAS!
Capítulo!4!
187!
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[...] o gesto do compositor recorre à reflexão sobre o estado presente de seu ser musical,
de sua consciência, e, através da transgressão e da dedução, ele força certas barreiras que,
até então, pareciam intransponíveis. [...]. Todo criador pode ser sensível a uma
experiência que não lhe concerne diretamente e, indo além da diferença de aspecto, ser
influenciado por um ou outro ponto de vista que ele encontre na sua própria linguagem.
(Boulez, 1989, p. 130-131)38.
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188! RESSONÂNCIAS!
Capítulo!4!
Quanto menos sistema existir, mais teremos livre arbítrio, mais a percepção deverá passar
pela reflexão, a vontade de apreender, a necessidade de re-escutar para estar pronto para
apreciar. A liberdade da ação de escrever induz inexoravelmente a uma escuta ativa,
capaz de analisar e de estabelecer relações. (Boulez, ibid., p. 333)41.
Tanto em Picasso quanto Stravinsky, embora obedeçam a certas normas gerais, não
parecem ter tido a preocupação em reforçar estruturas de sistemas. Na pintura, qualquer
pequena referência a complementaridade cromática, já é suficiente para ir ao encontro de um
sistema de cores bem estabelecido. Na música, se um ou outro elemento individual faz
menção ao sistema tonal, já é o bastante para que o ouvinte, instintivamente, se referencie.
São as ideias dos dois artistas que constroem seus próprios sistemas, sem acomodar-se ou
estabelecer claramente novos códigos42.
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40
“Le Déjeuner sur l’herbe” de Manet, “Les Demoiselles d’Algérie” de Delacroix e “Las meninas” de Velasquez
estão entre as obras que serviram de modelo para Picasso.
41
“Moins il y a de système, plus il y a de libre arbitre, plus la perception devra passer par la réflexion, la volonté
de saisir, la nécessité de réentendre pour être en mesure d'apprécier. La liberté dans l'action d'écrire entraîne
inéluctablement une écoute active, capable d'analyser et de mettre en rapport.”
42
“Mais o sistema é forte, até mesmo tirânico, mais existe espontaneidade na reação do ouvinte, até entrar no
domínio, desigualmente bem-vindo, do previsível.” (Boulez, 1989, p. 333). (“Plus le système est fort, voire
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RESSONÂNCIAS!
Capítulo!4!
189!
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Mesmo sendo possível estabelecer certas conexões diretas entre obras precisas dos
dois criadores estudados, as forças que aproximam suas estéticas parecem se situar em um
plano mais profundo: na maneira como eles buscaram respostas para os impasses da arte do
fim do século e em suas relações com a história das artes musicais e plásticas.
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tyrannique, plus il y a spontanéité dans la réaction de l'auditeur, jusqu'à entrer dans le domaine, inégalement
bienvenu, du prévisible”).
43
A título de curiosidade, foi nessa ocasião que Picasso conhece Olga, sua primeira esposa. Ela fazia parte do
corpo de dança de Diaghilev.
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190! RESSONÂNCIAS!
Capítulo!4!
tocavam, mesclando com os sons do “Sacre”; a Marselhesa, Frère Jacques e coisas assim.
Ao término da apresentação, com receio de sermos linchados, Stravinsky, Diaghilev,
Nijinsky e eu, ao som dos ruidosos gritos de protesto, escapamos por uma saída
subterrânea. (Medaglia, ibid., p. 49).
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44
“Aucune peinture moderne ne vous interpelle avec une immédiateté aussi brutale.”
45
“la puissance dissonante, barbare de l’œuvre, sa force magique et son intensité psychologique.”
46
Poderíamos pensar que essa tomada de posição estética provinha do “espírito do tempo”, mas logo, com um
pouco mais de reflexão, veríamos que, nas artes visuais, o chamado “primitivismo” evocava o passado de
maneira bem diferente, em um procedimento mais arqueológico e em uma alusão mais romantizada do exótico.
Na música, Boucourechliev fala de um lirismo e de um espírito de divertimento que predominavam na época da
Sagração (1982, p. 17).
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RESSONÂNCIAS!
Capítulo!4!
191!
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como mote a chegada triunfal da primavera na Rússia pagã, segundo sua autobiografia (2000,
p. 44).
Sua impetuosidade criadora imaginava rituais dantescos, nos quais tribos primitivas da
“Rússia pagã” se exorcizavam através da música e da excitação física, ou, como no caso
da “Sagração”, em que uma virgem era sacrificada, dançando até a morte, a fim de
homenagear os deuses que traziam de volta a tão esperada primavera. (Medaglia, 2003, p.
46).
Por outro lado, Picasso estabelecia analogias entre sua própria arte e os talismãs
protetores das antigas culturas. Sua obra seria uma maneira de dar forma aos espíritos e assim
exorcizá-los47. Dessa forma, Picasso, ao pintar Les Demoiselles, também praticava algo
próximo a um rito de passagem, já que o exorcismo também seria uma forma de sacrifício.
Ambos percorriam um duplo caminho na construção de seus rituais: a busca pelo primordial,
que se configura em algo interior e inato; e uma livre investigação do passado cronológico,
materializado pelo interesse de Picasso pelas esculturas negras e ibéricas e pela apropriação
de temas musicais da Rússia antiga por parte de Stravinsky.
Esse desejo de se apropriar do passado, movido por apreço e admiração, é o que
chamamos de emulação. Ambos os artistas tinham em comum, como vimos, a liberdade em
transitar e se apossar da história e, paradoxalmente, essa mesma liberdade e a heterogeneidade
dos modelos acabam por construir a unidade de suas artes. E o que verifica na globalidade da
produção, também se vê na individualidade das obras. No caso de Demoiselles e da Sagração
a questão da problemática da unidade parece ser potencializada. Certas obras que as
antecederam e as sucederam, encontram uma unidade, digamos, mais confortável. Petruschka
(1910-1911) e Noces (1923, porém iniciada em 1914) de Stravinsky, e o Autorretrato (1906)
ou Le Joueur de guitarre (1910) de Picasso são alguns exemplos de obras bem-sucedidas e
menos tensas do ponto de vista formal. A consideração que Steinberg fez sobre Demoiselles
deve também ser válida para a Sagração: “Existe, apesar de tudo, um espírito dominante que
anima o conjunto da obra, uma unidade de tema e de estrutura, e esta intimidação
insolentemente lançada na direção de quem a observa.” (Seckel, 1987, p. 343-344)48.
Interessante observar que esse “incômodo” da unidade intriga e, provavelmente,
estimula inúmeras teorias e hipóteses a cada nova inserção nessas duas obras. Em Picasso,
além das já tradicionais associações com a arte negra e ibérica, existem as referências aos
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47
A psicanálise chama de “ab-reação” um processo inconsciente que resolve problemas através da
exteriorização.
48
“Il y a bien, après tout, un esprit dominant qui anime l’ensemble de l’œuvre, une unité de thème et de
structure, et cette sommation insolemment lancée à celui qui regarde.”
!
192! RESSONÂNCIAS!
Capítulo!4!
doentes de sífilis e à arte egípcia no Louvre, por exemplo. Em Stravinsky, somente o primeiro
acorde de Augúrios Primaveris, logo após a introdução, suscitou numerosas divergências na
sua classificação49. Existe, em ambas, uma coerência estilística nada evidente de se penetrar e,
talvez por isso, seja tão difícil apreciar a significação artística das duas obras.
Um outro aspecto no que concerne à gênese das duas obras deve ser mencionado: a
opção de ambos os artistas por renunciar ou reduzir aspectos narrativos em suas criações.
Stravinsky, como mostramos, se esforçou na direção de uma abstração mais vasta, e tentou,
na medida do possível, se afastar de um enredo muito detalhado e descritivo. Queria se ater ao
fundamental, no sentido mais vasto da palavra, tanto musicalmente quanto plasticamente, na
execução do balé. Picasso renunciou à ideia original que comportava personagens masculinos
e trazia à tona conteúdos que poderiam ser considerados como anedóticos e moralistas. No
entanto, embora seja esse desejo de concisão se configure no imediatismo com o qual as obras
nos interpelam, na pintura e na música as dimensões temporais também se impõem com
bastante força. Em Demoiselles, o tempo cronológico se revela na linha evolutiva, da
esquerda para direita que conduz a transformação das mulheres e na evidente ruptura entre o
lado direito e o esquerdo da tela. Na Sagração é a variedade ou alternância rítmica e dos
diferentes arquétipos (“Khorovode”, danças e procissões) que contribuem ao “resgate” da
linearidade musical. Nas duas obras coexistem um tipo de temporalidade visual e sonora e
uma vontade de suprimi-la. Esses diálogos entre o instantâneo e o cronológico são
particularmente acentuados e geram um tipo de tensão no interior de cada obra,
independentemente do espectador conhecer a gênese da tela ou da música do balé. A
consequência mais importante dessa “renúncia” à narração, entretanto, pode não ser essa
tensão temporal. O grande passo que Picasso dá em direção à modernidade está no fato da
obra se auto-referenciar e impelir o espectador a participar daquela imagem. Stravinsky, por
sua vez, nega ou subverte o romantismo que ainda se fazia presente na época e, dessa forma,
também avança em direção ao moderno. O lirismo que podemos sentir na Sagração provém
das melodias, intencionalmente ancestrais, que são, muitas das vezes, informes ou
assimétricas.
Pelo fato das duas obras possuírem um núcleo que, ao mesmo tempo, enfatiza um
argumento imediato em detrimento de uma narratividade e impõe uma dimensão hierática,
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49
A mais tradicional classificação é a de um acorde de fábMaior com três apogiaturas inferiores (mib, sol, sib)
acrescido de um réb. Uma outra seria o inverso dessa: acorde tonal de mibM com três apogiaturas inferiores no
grave (fáb, láb, dób), e a apogiatura inferior da tônica, réb, constituindo a sétima acrescida do acorde de base.
Outro entendimento vê o acorde como politonal constituído de um fábM e de um mibM simultâneos
(Boucourechliev, 1982, p. 103-104).
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RESSONÂNCIAS!
Capítulo!4!
193!
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ambas acabam por ganhar uma aura de arquétipo. Mas, curiosamente, nem a tela nem a
música se configuram efetivamente como ou em um sistema claro. A música tem um lugar
isolado na história e nem mesmo seu autor perseverou no caminho que abriu. Quanto à
pintura, embora seja inegavelmente um marco da modernidade, ela não é nem mesmo aceita
como primeira obra cubista. O aspecto arquetípico que as duas obras comportam talvez venha
do virtuosismo formal, da solidez estrutural e pela paradoxal coesão de seus sistemas e ordens
internos.
As ressonâncias entre Les Demoiselles d’Avigon e a Sagração da Primavera podem
provir ainda de outro fator, o ritmo50. No caso da tela de Picasso, o aspecto rítmico inovador,
embora não se possa esboçar com a precisão da música de Stravinsky, é intuído e pode ser
descrito como uma maneira nova de se tratar a forma e sugerir novos caminhos na
representação de relações tridimensionais. Quanto à Sagração, por mais que existam análises
que enfatizem aspectos melódicos e harmônicos, há um certo consenso em creditar ao ritmo a
função central nessa música. Observa-se, nas duas obras, que é o ritmo, como organizador do
tempo ou do espaço, que parece conduzir o tratamento harmônico e melódico da música e as
cores na tela.
A dimensão litúrgica e a vocação arquetípica convocam o “sagrado” dessas obras. Mas
são acompanhadas de seus mais ferrenhos opositores. Forças “profanas” nos fazem ver caos
em meio à ordem e evocam novos estados mentais. Observar, em paralelo, as duas
composições, é admirar o confronto dessas duas forças, o percurso das semelhanças no
interior de cada obra e a ressonância que se produz entre elas e no nosso espírito.
Mais ainda, o imediatismo, a vocação hierática e ritual, o desvio da narratividade, o
ritmo “bárbaro e dissonante”, a liberdade na emulação de modelos, a relação com a história, a
maneira particular de buscar o “primitivo” e o originário, a unidade paradoxal e tensa, a
importância como evento na história da pintura e da música, tudo isso deve justificar inclusão
das Demoiselles d’Avignon e da Sagração da Primavera no interior das ressonâncias
reivindicadas neste capítulo.
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50
Se em uma tela o termo “forma” se ajusta mais confortavelmente que em música, o contrário acontece com o
“ritmo”. Vamos considerá-lo em pintura como a maneira através da qual se divide o espaço da tela, ou seja,
como elemento organizador do espaço físico, onde um conjunto de linhas, formas e cores se inserem.
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194! RESSONÂNCIAS!
Capítulo!4!
a) As Obras
Atmosphère (1961)
[…] é uma música que desperta a impressão de fluir continuamente, como se não
houvesse início nem fim. O que escutamos é um corte de algo que começou desde
sempre... Há muito poucas cesuras; a música realmente flui. Sua caracterização formal é a
de ser estática: somente uma impressão. No interior dessa estagnação, do estático,
acontecem progressivas transformações. Imaginaria a superfície da água, sobre a qual
uma imagem se reflete. Essa superfície se dobra pouco a pouco, e a imagem desaparece,
porém muito progressivamente. A água se torna novamente lisa e nós vemos uma outra
imagem. (Ligeti apud Embeoglou, 1992, p. 29) 51.
A paleta negra de Rothko pode ter exacerbado o sentido da dificuldade dos observadores
em apreender seus quadros. Ele deixou cada vez mais seus observadores, literalmente, no
escuro, lutando para ver os traços de seu pincel, sua tênue linguagem pictórica, e trazer à
tona sua escuridão, focalizar seus retângulos desfocados. Para alguns críticos, esta
opacidade esta associada com qualidades atmosféricas, e os retângulos são
frequentemente citados como nuvens vaporosas. As formas de Rothko nunca são tão
indefinidas, informes, ou insubstanciais como esta metáfora sugere, e, no entanto, eles
não se movem sem direção. Ao contrário, eles são inequivocamente, se não precisamente,
ajustados, centrados, alinhados, e hierarquicamente ordenados. Enquanto os retângulos de
Rothko são frequentemente vistos como névoas ou nuvens, os limites de suas pinturas são
normalmente descritos em termos arquitetônicos como janelas ou aros, por exemplo. Mas
os limites de suas pinturas, quando possível, evidenciam uma insubstancialidade – ora
através de sua grande estreiteza, sua relativa escuridão, ora através da fantasmagórica
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51
“[…] c’est une musique qui éveille l'impression de s'écouler continument, comme si elle n'avait ni début, ni
fin. Ce que nous entendons est une coupe de quelque chose qui est déjà commencé depuis toujours.... Il y a très
peu de césures; la musique continue donc vraiment à couler. Sa caractérisation formelle est d'être statique:
qu'une impression. A l'intérieur de cette stagnation, de cette statique, il y a de progressives transformations. Je
penserais ici à une surface d'eau, sur laquelle une image se reflète. Cette surface se ride au fur et à mesure, et
l'image disparaît, mais très progressivement. L'eau redevient lisse et nous voyons une autre image.”
!
RESSONÂNCIAS!
Capítulo!4!
195!
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fragilidade que foi conseguida através de uma pincelada à seco em uma fina camada de
cor sobre uma tonalidade branca ou luminosa. (Chave, 1989, p. 184)52.
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Figura 3: Mark Rothko. Black Painting n.1, 1964. Óleo sobre tela, 105 x 80 cm. –
Basileia, KUNSTMUSEUM Basel, 200953. Também acessível no site: http://www.tate.org.uk/whats-
on/exhibition/rothko/room-guide/room-6-black-form-paintings
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52
Rothko’s dark palette may have exacerbated the viewers’ sense of the difficulty apprehending his pictures. He
left viewers increasingly, literally, in the dark, struggling to read the traces of his brush, his faint painterly
language, and to bring his murky, blurry rectangles into focus. In some critics' eyes, this blurriness is associated
with atmospheric qualities, and the rectangles are often described as vaporous clouds. Rothko's forms are never
quite so undefined, amorphous, or insubustantial as this metaphor implies, however, and they do not drift
aimlessly. To the contrary, they are unmistakably if not precisely, squared off, centered, aligned, and
hierarchically ordered. Whereas Rothko's rectangles are often seen as mists or clouds, his paintings' borders are
often described in architectural terms as windows or doorframes, for example. But it is the paintings' borders, if
anything, that evince an insubstantiality – sometimes through their very narrowness, sometimes through their
relative darkness, and sometimes through a ghostly fragility of surface that was achieved by dry-brushing a thin
layer of color over another white or light tone.
53
Todas as reproduções de obras de arte são, evidentemente, cópias imperfeitas de um modelo. Essa premissa é
particularmente verdadeira na obra de Rothko, já que todos os efeitos da incidência luminosa previstas pelo
pintor são quase inteiramente aniquilados na imagem reproduzida. Anna Chave (1989, p. 12) comenta na
introdução de seu livro a incapacidade de se imprimir em papel a obra deste artista. Por isso, solicitamos um
esforço de abstração para aqueles que não tenham entrado em contato com Blacking Painting n.1.
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196! RESSONÂNCIAS!
Capítulo!4!
b) Arte Fractal
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54
“The machinations of ambiguity are among the very roots of poetry.”
55
O pensamento de Mandelbrot encontrava seu fundamento em um objeto matemático chamado “curva de
Koch”. Ela funciona da seguinte maneira: no meio de cada lado de um triângulo equilátero, acrescenta-se um
triângulo com o terço do tamanho original. Surgirá a forma de uma estrela de Davi, com um contorno mais
extenso que o triângulo inicial. Repete-se o processo, dessa vez desenhando dois pequenos triângulos em cada
lado das pontas da estrela. E então se repete indefinidamente o processo (Sales, 2010).
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RESSONÂNCIAS!
Capítulo!4!
197!
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geometria fractal, no caso de Atmosphères, já tinha sido sugerida pelo próprio compositor
húngaro em seu livro Neuf essai sur la musique (2001, p. 21) 56.
Sabemos que a ambiguidade é uma força que move boa parte das grandes obras de
arte. No caso das duas obras analisadas, não é o fato delas terem uma ambiguidade interna
que as aproxima e sim as similitudes existentes nos termos dessa ambiguidade. Frente à tela
de Rothko e à música de Ligeti somos surpreendidos por uma experiência em dois tempos.
Black Painting e Atmosphères se revelam imediatamente como algo estático: por um lado
uma massa sonora e, por outro lado, um tecido monocromático. Em seguida, após alguns
segundos, desde que fixamos nossa atenção, aquilo que parece estático vai se transformando e
se movimentando, como gazes que se expandem e se contraem.
Chamar essas manifestações sonoras e visuais de “gasosas”, por mais que possa
parecer algum tipo de licença poética, não é de maneira alguma gratuito ou puramente
especulativo. Os próprios artistas revelaram, em suas poéticas, estratégias que nos estimulam
a perceber as obras como gazes. Em Ligeti, isso fica evidente desde o título, propositalmente
colocado em língua francesa por ela comportar dois sentidos: uma conotação mais material,
digamos, meteorológica, como evocação de camadas atmosféricas flutuantes, vagas e sem
contorno; e uma conotação mais figurada, equivalente ao que em português chamamos de
“clima” e em inglês “mood”. Seu equivalente em língua alemã, “Atmosphäre”, se limita à
primeira conotação (Delaplace, 2007, p. 44). Segundo as regras inscritas nas primeiras
páginas da partitura, não se deve perceber as entradas dos instrumentos e a peça se inicia com
um cluster de 59 notas em pianissimo e em uma extensão de cinco oitavas. Não é difícil
pensar nessa massa sonora, densa e delicada ao mesmo tempo, como vapores, gazes ou
“nuvens de sons” 57 . Um grande cluster pode se representar como um enorme bloco
monolítico denso, pesado e, provavelmente, agressivo. Mas se esse mesmo grande bloco for
tocado com leveza, sem métrica visível e sem ataque inicial ele acaba enfatizando seu aspecto
“atmosférico”. Em determinado momento, do compasso 75 ao 78, ouvimos todo o naipe de
metais produzindo, em pppp senza surdina, sons de sopros sem notas precisas, o que, de
mateira diferente que o efeito inicial de bloco sonoro, também pode remeter a efeitos de gases
(ex. 2).
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56
Mandelbrot e Ligeti chegaram a se encontrar em um congresso de matemática em Bad Neuenahr em 1986. O
compositor situou o Kyrie de seu Requiem (1963-1965) como obras pré-fractal inconsciente.
57
Este último termo, aliás, foi muito usado pelo compositor grego Xenakis que o aplicou, no entanto, para
caracterizar um tipo de cluster pulverizado ou distribuído no tempo, como descreveu Francis Bayer (1987, p.
128)
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198! RESSONÂNCIAS!
Capítulo!4!
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RESSONÂNCIAS!
Capítulo!4!
199!
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para que a própria matéria da tela se tornasse cor. Sobre esse fundo ele aplicava mais uma
camada de tinta, com pigmentos em pó, têmpera de ovo e solvente.
Aplicando leves camadas de cor transparente, ele reduzia a matéria até o momento em
que as partículas dos pigmentos estivessem dissociadas da fina película e aderissem à
superfície. Dessa forma, a luz poderia penetrar a leve camada de tinta, atingir as
partículas de pigmento e retornar para inundar a superfície que irradiava cor. Variando
texturas, as gradações tonais e a profundidade das camadas, experimentando graus de
transparência com as misturas de óleo, têmpera de ovo e solvente, Rothko levava suas
cores ao limiar da desintegração para criar sua luz. (Ishaghpour, ibid., p. 10-11)58.
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200! RESSONÂNCIAS!
Capítulo!4!
aquilo que estava entre a expansão e a contração que anima suas superfícies (Arasse, 2006, p.
84).
Como diz Rothko, seus quadros se dilatam, abrem-se a todo espaço e em toda direção
[…] e, ao mesmo tempo, todo o espaço, de toda direção, se contrai e se fecha em si
mesmos. Este movimento contrário ele chama de “sopro” dos seus quadros. “Entre esses
dois polos, vocês encontrarão o que quero dizer”. (Ishaghpour, 2003, p. 20)59.
[…] eu sempre penso em vozes, em camadas, e construo meus espaços sonoros como
texturas, como fios de uma teia de aranha, sendo que a teia é a totalidade e o fio o
elemento de base. [...]. Se você me pergunta: “por que o cânone?”, eu lhe responderei:
“pela unidade horizontal/vertical. (Ligeti apud Michel, 1995, p. 172)60.
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59
“Comme le dit Rothko, ses tableaux se dilatent, s’ouvrent à tout l’espace et en toute direction [...] et en même
temps c’est tout l’espace, de toute direction, qui se contracte et s’enferme en eux. Ce mouvement contraire il
appelait, « le souffle » des ses tableaux. ‘Entre ces deux pôles, vous trouverez ce que je veux dire’.”
60
“[...] je pense toujours en voix, en couches, et je construis mes espaces sonores comme des textures, comme
les fils d'une toile d'araignée, la toile étant la totalité et le fil l'élément de base. […]. Si vous me demandez:
‘pourquoi le canon ?’, je vous répondrai : ‘pour l'unité horizontal/vertical’.”
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RESSONÂNCIAS!
Capítulo!4!
201!
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Algo que também pode vir a se constituir como ressonância nesta tese tem a ver com a
maneira radical com a qual os dois artistas lidavam com o tempo em suas obras ou, mais
especificamente, com as noções de narrativa e argumento. Por vias diferentes das duas obras
estudadas anteriormente (Sagração da Primavera e Les Demoiselles d’Avignon), Ligeti e
Rothko buscam conscientemente um imediatismo na comunicação de suas obras. Ambos
querem incluir, da maneira mais direta possível e de uma só vez, o espectador no núcleo da
música e da imagem, independente dos julgamentos de gosto ou estético.
A impressão de imediatismo na peça orquestral de Ligeti, por exemplo, reflete o
desejo do compositor de ver suas obras apreendidas, não como fruto de uma racionalização
temporal, mas como vivência corporal imediata (Casnok, 2007, p. 180). A significação deve
se impor antes de qualquer procedimento analítico de nossa compreensão.
Trata-se de redescobrir, da maneira mais intacta possível, esta realidade musical primária
e imediata, anterior a toda formatação do tipo discursivo, e de restituir todo seu poder
expressivo, geralmente neutralizado e aprisionado por regras de uma organização
artificial de origem cultural. (Bayer, 1987, 129-130)61.
O “poder de choque” de algumas obras de Ligeti, ainda segundo Bayer, pode ser
atribuído ao fato dos clusters serem portadores de uma significação imanente para o sensível e
se revelarem imediatamente na experiência perceptiva (ibid., p. 141).
No caso de Mark Rothko, a comunicação imediata e o desejo de obter um impacto
perceptivo, também estavam entre suas preocupações centrais.
“Um quadro não é uma pintura de uma experiência, ele é uma experiência”, disse Rothko
em 1959. [...]. Os quadros de Rothko foram calculados para terem um intenso impacto
perceptivo, para se endereçarem ou confrontarem-se com os observadores do modo mais
claro e imediato possível, engajando suas emoções e respondendo, pelo menos, às suas
necessidades não materiais. (Chave, 1989, p. 172)62.
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61
“Il s'agit donc de redécouvrir, aussi intacte que possible, cette réalité musicale première et immédiate,
antérieure à toute mise en forme de type discursif, et de lui restituer tout son pouvoir expressif, généralement
neutralisé et emprisonné par les règles d'une organisation artificielle d'origine culturelle.”
62
“’A painting is not a picture of an experience; it is an experience’, said Rothko in 1959. [...]. Rothko’s pictures
were calculated to have an intense perceptual impact, to address or confront viewers as clearly and immediately
as possible, engaging their emotions and responding, at the least, to their nonmaterial needs.”
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202! RESSONÂNCIAS!
Capítulo!4!
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63
Apesar dele ser frequentemente associado com algum tipo de religiosidade, ele não tinha uma firme visão
espiritual e não seguia dogmas ou doutrinas. (Chave, 1989, 192).
64
“[...] la peinture de Rothko est rhétorique au sens où elle réarticule, dans l’abstraction, la recherche rhétorique
(classique) de l’effet pathétique. [...] Chez lui, la théâtralité est indissociable d’une recherche rhétorique de
l’effet.”
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RESSONÂNCIAS!
Capítulo!4!
203!
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Em Ligeti, por outro lado, a dimensão trágica não estava sempre explicitamente
declarada, ao menos no caso de Atmosphères. No entanto, algum tipo de teatralidade se
inscreve em sua obra. Não foi por acaso que o diretor Stanley Kubrick escolheu Atmosphères
para introduzir o filme 2001: Uma Odisseia no Espaço, produzido em 1964, três anos depois
da estreia da obra orquestral. Durante os dois minutos e meio que dura o trecho da obra
musical vemos uma tela completamente negra.
Interessante observar também que essa “nova teatralidade” não estava necessariamente
em acordo com o Zeitgest, o “espírito do tempo”. Rothko e Ligeti guardam uma distância
estratégica frente aos movimentos e códigos de sua época. Embora tenha tido um contato
próximo com a vanguarda europeia, sobretudo em Darmstatt, e tenha manifestado simpatia
pelo movimento Fluxus, Ligeti se manteve aberto às músicas e influências artísticas que
vinham de toda parte do planeta65. Não apenas em Atmosphères, mas na totalidade da obra de
Ligeti, não existe nenhuma adesão à sistemas que parecessem fechados – como o serialismo
integral do fim dos anos cinquenta e começo dos sessenta – ou abertos – como a entrega ao
acaso, nos passos de John Cage. Além da não adesão a sistemas e ordens do tempo, havia
também em Ligeti uma recusa espontânea ao euro-centrismo. No caso de Rothko e dos
abstracionistas norte-americanos, havia de fato um anti-eurocentrismo que se configurava na
afirmação da autonomia de Nova Iorque como centro de vanguarda, sobrepondo-se à Paris.
No entanto, Rothko não se enquadrava nos movimentos vigentes e nem gostava de ser
incluído no grupo dos abstracionistas da chamada Escola de Nova Iorque, por considera-los
afastados da vida das pessoas que o cercam (Chaves, 1989, p. 194).
Essa “nova teatralidade” se configura igualmente na caracterização da impressão de
algo estático: de uma superfície negra aparentemente imóvel e de uma música que parece não
ter início nem fim, uma mobilidade discreta, mas imperiosa, vai se estabelecendo através de
diversas estratégias.
Atmosphères está repleta de transformações tímbricas e no tecido sonoro. Na dialética
do continuo e do descontínuo impõe-se uma vibração interna constante onde mobilidade e
estagnação oscilam perpetuamente.
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65
Em Darmstadt eram realizados festivais anuais onde se reuniam estudantes de música a partir de 1946 e que
veio a se tornar um importante polo de criação musical nos meados do século passado. Quanto ao movimento
artístico Fluxus, ele surgiu nos anos sessenta sob a tutela de John Cage e sob influências do dadaísmo e da
filosofia zen. O movimento se caracterizava, entre outras coisas, por uma recusa às instituições de arte e ao
próprio conceito de obra de arte.
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204! RESSONÂNCIAS!
Capítulo!4!
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66
“Ligeti s'installe dès le départ dans le monde du continu, et c'est au sein de cette continuité originelle que vont
apparaître peu à peu quantité de petits événements sonores infinitésimaux fort divers qui vont instaurer une
microdiscontinuité à l'intérieur même de la continuité d'ensemble de la trame symphonique.”
67
“The whole piece is a study in what Ligeti in 'Metamorphoses of Musical Form' calls the 'permeability' of
musical structures, how some textures will mix with a great many others, some stand always apart. It is not,
however, a work that invites detailed appreciation of how it is composed: its clusters resist the penetration of the
intelligence, and one is left with a feeling of awe, as before one of Rothko's large panels.”
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RESSONÂNCIAS!
Capítulo!4!
205!
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Os retângulos não retangulares de Rothko atuam, teatralmente, no papel das figuras com
relação ao fundo sobre o qual eles surgem; mas são também lugares, vibrantes de uma
presença ausente, virtual. (Arasse, p. 90)68.
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206! RESSONÂNCIAS!
Capítulo!4!
[...] a cada vez, nesses quadros que parecem feitos de nada, quer dizer, somente de cor, eu
descubro algo novo, descobrimos tudo que está por trás da cor, que lhe dá sentido, drama,
enfim, poesia. [...]. Tive a ocasião de te dizer até que ponto eu sinto – talvez com
presunção - que sua pintura é próxima do meu trabalho, que seria apenas como uma
experiência fantástica. (Antonioni apud Wick, ibid., p. 45)70.
Independente das distintas motivações que moviam os dois artistas, Rothko e Ligeti, e
do fato deles não terem tido algum tipo de relação durante suas vidas, existem ressonâncias
importantes nas maneiras com as quais esses artistas trouxeram à tona, em Atmosphères e
Black Painting n.1, uma “nova teatralidade”, seja na preocupação de incluir imediatamente o
espectador ou ouvinte, seja no modo em que suas “histórias” são contadas.
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69
“Vos tableaux sont comme mes films, ils parlent de rien... avec exactitude.”
70
“[...] chaque fois, dans ces tableaux qui paraissent faits de rien, c'est-à-dire seulement de couleur, je découvre
quelque chose de nouveau, on découvre tout ce qu'il y a derrière la couleur, qui lui donne du sens, du drame, bref
de la poésie. […]. J'ai eu l'occasion de vous dire à quel point je sens - peut-être avec présomption - que votre
peinture est proche de mon travail, ne serait-ce que comme expérience fantastique.”
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RESSONÂNCIAS!
Capítulo!4!
207!
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71
Clássica entendida em um sentido amplo, comportando uma solidez arquitetural e uma grande coerência na
distribuição das partes em um todo.
72
“[...] j'ai utilisé de nombreuses fois le canon, je l'ai nommé canon "sursaturé", car il a tellement de voix, il est
tellement dense, que l'on n'entend pas la polyphonie, mais un bloc sonore avec des mouvements intérieurs. J'ai
beaucoup utilisé cette technique, même dans des œuvres assez récentes.”
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208! RESSONÂNCIAS!
Capítulo!4!
A analogia de Delaplace da Vestal e do ladrão do fogo faz mais sentido quando, após a
experiência de ouvir Atmosphères, nos voltamos para a partitura. Ligeti potencializa a tensão
entre presente e passado na medida em que ao mesmo tempo é fiel a uma técnica antiga e, ao
leva-la às últimas consequências e sobrecarrega-la, acaba por traí-la de maneira fatal.
Assim como Ligeti, Mark Rothko também parece ser um artista que “protege e rouba
o fogo”. Rothko entretinha uma forte relação com uma arte visual de uma grande solidez
estrutural, aquela da Renascença.
Ao contrário de Ligeti, em que a obra estudada pode ser considerada como auge de sua
primeira fase, ou mesmo o estopim de sua carreira internacional, a pintura negra da qual nos
aproximamos ilustra o final da carreira e da vida de Rothko. Até chegar em seus retângulos
transparentes e flutuantes da sua chamada fase clássica, da qual Black Painting n.1 é herdeira
direta, o pintor teve uma trajetória artística de uma grande coerência. Anna Chave (1989)
apresenta algumas das forças maiores que orientaram a obra de Rothko na seguinte ordem:
um apreço pelo expressionismo e pelos temas seculares orientados por certa inclinação
política; segue-se um interesse pelo mito e pelo drama, que ele guardou por toda vida; uma
afeição pelo surrealismo; um impulso primitivista e um interesse crescente pelo conteúdo
emocional; e, finalmente, sua fase clássica, que começa nos anos 40 e que quase todos os
aspectos anteriores são preservados, acentuando-se, porém, a busca pela luminosidade e as
tensões entre figura e fundo, ausência e presença, mobilidade e estaticidade, sujeito e objeto,
microcosmo e macrocosmo.
Em textos que escreveu entre 1940 e 1941 e que se foram editados somente em 2004
com o título de Realidade do Artista, Rothko comenta sua relação com o passado. O artista
diz não pretender se desprender do passado e sim avaliá-lo da maneira mais consciente
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73
“C’est au prix de l’abandon de l’élément épique de l ‘histoire qu’il est possible d’envisager un rencontre
présent-passé digne à chaque fois renouvelée, qui soit toujours une expérience particulière, qui éclaire les points
saillants de l’histoire au lieu d’en présenter une image éternelle, lissée par la dictature des enchainements d’ordre
causal. L’inquiétude est aussi celle, légitime, de se laisser absorber par l’héritage, de se noyer dans le ban
culturel dont le compositeur doit à la fois tenir compte et faire abstraction.”
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RESSONÂNCIAS!
Capítulo!4!
209!
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possível e reorientá-lo em direções onde ele possa ser perpetuado com uma força crescente e
criar assim, o que o pintor chamou de “novos mundos plásticos” (2004, p. 77).
Nas pinturas a partir dos anos quarenta, em sua fase chamada de clássica, Rothko
recapitula e se apropria de obras figurativas do passado e as transforma através de analogias
estruturais que preserva certos traços de alguns códigos preexistentes. O pintor aplica em uma
arte não figurativa elementos de uma arte figurativa e estabelece assim uma série de relações
formais. Rothko vai construindo sua obra a partir de duas vias complementares: um sentido
intuitivo de distribuição de valores no espaço e um apego por proporções exatas, como notou
Oliver Wick (2008, p. 8). Por trás de telas supostamente não figurativas, emulações e
analogias de modelos de quinhentos anos no passado. É o caso da tela Number 18 de 1948 e
seu modelo Adoração dos Magos de 1526, pintado por Quentin Massys74.
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Figura 4: Mark Rothko. Number 18, 1948. Figura 5: Quentin Massys. Adoração dos
Óleo sobre tela,170,18 x 142,24 cm. - Magos,1526, Têmpera e óleo sobre madeira,
Collection of the Vassar College Art Gallery, 103 x 80 cm. – Nova Iorque,
Poughkeepsie (Chave, 1989, p. 195) THE METROPOLITAM Museum of Art, 2011
Imagens disponíveis em : http://www.vassar.edu/archives/2011/12/02 e http://www.wga.hu/index1.html
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74
Anna Chave cita ainda o Number 17 de 1947 e Madona e a criança de Giovanni Bellini e o Untitled de 1949
da coleção do Wadsworth Atheneum de Hartford, que tem como referência direta a Sagrada Família, painel de
um tríptico atribuído a Roger van der Weyden do Museu da Capela Real de Granada.
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210! RESSONÂNCIAS!
Capítulo!4!
poética. A Black Painting n.1 não nos remete diretamente a um modelo preciso de emulação,
no entanto, aquele que veio a ser uma das maiores recorrências da obra de Rothko, o
retângulo flutuante, permanece. Na coerência da trajetória artística desse artista, é certo que as
forças ou reflexões sobre o espaço a partir dos modelos antigos permanecem também na
Black Painting n.1.
É nessa maneira particular de manter vivas linguagens ou conteúdos artísticos do
passado, ainda que com efeito “desvirtuado”, que os dois artistas apresentam o que sentimos
como ressonâncias comuns em suas obras. Elas devem brotar do afinco com o qual eles se
apegam e protegem o passado. O músico e o pintor desenvolvem suas emulações, permeadas
de muita admiração e apreço, e violam algo de muito profundo nesses modelos. Preservam e
violam os objetos de suas emulações.
e) Obras Multissensoriais
Tanto Ligeti quanto Rothko tinham uma maneira especial de se relacionar com a
percepção de suas próprias obras e com as artes vizinhas.
Ligeti força o aparecimento de uma nova postura perceptiva. Como notou Caznok, o
compositor procura convocar as sensações globais do nosso corpo para moldar as texturas e
densidades das massas sonoras que cria (2007, p. 137). O compositor admitia o complexo
psíquico-emocional como um sistema híbrido e sinestésico e, por isso, procura evocar no
ouvinte uma sensação de organicidade e a consciência de uma multisensorialidade (Caznok,
ibid., p. 136).
Além de um pensamento mais amplo sobre a integração dos sentidos, o músico, em
seus escritos e entrevistas, nos expõe sua vasta cultura visual e seu interesse por diversos
artistas plásticos. Maurits Escher (1898-1972), por exemplo, com suas ilusões óticas, o
influenciou na composição de Continuum, de 1968, para cravo (Ligeti, 2001, p. 20). Seu
interesse pelas artes vai além de um sentido de complementaridade e chega realmente a
planos técnicos. “A pintura, em primeiro lugar, influenciou enormemente seu procedimento
criador. Ele se refere, entre outros, a Van Gogh, Magritte, Escher, Mondrian, Paul Klee,
Steinberg, Peter Blake, Roland Topor.” (Michel, 1995, p. 143)75.
Da parte de Rothko, havia também algum interesse pela arte dos sons e, de acordo seu
livro A Realidade do Artista (2001, p. 91), ele estava a par das experiências dos anos quarenta
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75!“La!peinture!en!premier!lieu!a!fortement!influencé!sa!démarche!créatrice.!Il!se!réfère!entre!autres!à!Van!
Gogh,!Magritte,!Escher,!Mondrian,!Paul!Klee,!Steinberg,!Peter!Blake,!Roland!Topor.”!
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RESSONÂNCIAS!
Capítulo!4!
211!
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em que a música deseja se apropriar de maneira mais efetiva do espaço através de amplas
harmonias verticais e da pintura que tentava produzir sensações de tempo através de
intervalos rítmicos. Segundo Youssef Isaghpour (2003, p. 15), Rothko tocava bandolim e
piano, chegando até mesmo a desejar se tornar músico profissional. Para o pintor, as duas
formas de expressão artística, música e pintura, eram ambas ligadas pela noção maior de
movimento.
[…] existe aí uma espécie de experiência sinestésica originária onde o sonoro se mistura
intimamente não somente ao visual [...], mas também e, talvez, sobretudo ao cinestésico,
que parece atuar em primeiro plano. Com efeito, quando falamos de espessura de um
bloco sonoro, trata-se de uma sensação essencialmente cinestésica, da qual a percepção
de um cluster nos fornece uma espécie de equivalente sonoro; da mesma maneira, o
espessamento e a retração progressivos dos clusters produzem, no auditor, uma manifesta
impressão de mobilidade cinestésica. A percepção dos clusters, de glissandi, de nuvens
de sons, assim como os movimentos que os ligam, é uma percepção que, além da sua
dimensão estritamente auditiva, solicita uma atenção e uma participação ativa de nosso
corpo; nós podemos falar, então, de uma fixação corporal dessas estruturas figurativas
elementares do tipo contínuo nas profundezas de nosso “sentir originário”. Isso talvez
explique que suas significações, de ordem essencialmente qualitativas, sejam captadas de
uma vez pela percepção, sem que nós tenhamos necessidade de recorrer a qualquer de
mediação, seja de qual tipo for. (Bayer, 1987, p. 130-131)76.
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76!“[…]! il! y! a! là! une! sorte! d'expérience! synesthésique! originale! où! le! sonore! se! mêle! intimement! non!
seulement!au!visuel![...],!mais!aussi!et!peut^être!surtout!au!kinesthésique!qui!semble!jouer!ici!un!rôle!de!
tout! premier! plan.! En! effet,! lorsque! nous! parlons! de! l'épaisseur! d'un! bloc! sonore,! il! s'agit! là! d'une!
sensation! essentiellement! kinesthésique! dont! la! perception! d'un! cluster! nous! fournit! une! sorte!
d'équivalent! sonore;! de! même,! l'épaississement! et! le! rétrécissement! progressifs! des! clusters! font! naître,!
chez! l'auditeur,! une! impression! manifeste! de! mobilité! kinesthésique.! La! perception! des! clusters,! des!
glissandi,!des!nuages!de!sons,!ainsi!que!des!mouvements!qui!leur!sont!liés,!est!donc!une!perception!qui,!
au^delà! de! sa! dimension! strictement! auditive,! sollicite! une! attention! et! une! participation! actives! de! tout!
notre!corps;!on!peut!donc!parler,!à!ce!sujet,!d'un!ancrage!corporel!de!ces!structures!figurales!élémentaires!
de!type!continu!dans!les!profondeurs!de!notre!«sentir!originaire».!C'est!peut^être!ce!qui!explique!que!leurs!
significations,! qui! sont! d'ordre! essentiellement! qualitatif,! soient! saisies! d'emblée! par! la! perception,! sans!
que!nous!ayons!besoin!de!recourir!à!une!quelconque!médiation,!de!quelque!type!que!ce!soit.”!
77!O!prefixo!latino!cine!se!associa!a!ideia!de!movimento!e!cinestesia1se!define!pelas!sensações!através!das!
quais!se!percebe!o!movimento.!!
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212! RESSONÂNCIAS!
Capítulo!4!
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78!A! abertura! de! Ligeti! em! relação! à! música! extraeuropeia,! em! especial! a! dos! percussionistas! africanos,!
também! contribuiu! para! sua! busca! de! uma! intensificação! do! prazer! motor! e! acústico! no! instrumento,!
assinala!Yara!Casnok!(2007,!p.!186).!!!!!
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RESSONÂNCIAS!
Capítulo!4!
213!
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Uma última ressonância entre os dois artistas e suas obras estudadas pode surgir ainda
de um paralelismo entre a cor e o timbre musical. Mais uma vez a noção de movimento
participa como termo comum dessa analogia. E o movimento, lembramos, está intimamente
ligado, na Black Painting e em Atmosphères, ao ir e vir, a expansão e a retração que habitam
indubitavelmente a poética das duas obras. Através da técnica chamada Bewegungsfarbe (cor
do movimento), mencionada mais acima, o músico liga intrinsicamente o ritmo ao timbre,
fundamentando-se em seus estudos de sobreposição de partes e experiências de ilusões
acústicas. Na pintura, Rothko fala em “respirabilidade” (brethingness) e Arasse atribui às
cores desse artista a função do movimento e da nova teatralidade de seus quadros (2006, p.
92)79. O timbre, assim como a cor, será, então, o responsável pelo avanço e o recuo dos
elementos em jogo.
Mesmo que partam de fundamentos muito diferentes, Rothko e Ligeti convergem em
uma causa final similar: aquela de nos convidar a perceber as obras além de seus lugares
perceptivos tradicionais. O sentido tátil deixa de ser algo periférico para se transformar em
origem e fim. Dessa forma, por vias distintas, os dois artistas se encontram em suas vocações
sinestésicas e na percepção de uma globalidade sensorial. Rothko e Ligeti eram conscientes
das diferenças das maneiras através das quais as artes da visão e da audição chegam até nós,
mas ambos visavam uma percepção global e sintética, em que os órgãos dos sentidos são
apenas vias para acedê-la.
Assim, as forças da simpatia, que se situam na origem da nossa percepção de
semelhanças, se convertem em ressonâncias, segundo os preceitos desta tese, através de uma
abordagem ampla e variada de duas obras provindas de contextos bem distintos.
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79
É interessante notar que a percepção do preto, seja como cor ou não-cor, permanece enigmática mesmo para a
ciência. Sabe-se como as células nervosas reagem ao verde, ao vermelho, aos círculos, triângulos, aos
movimentos de barras, mas não consegue-se observar como, exatamente, as células registram o preto. Ele deve
ser processado, na verdade, nas áreas reservadas às formas e movimentos (Rosenthal, 2007, p. 14). Além de
Mark Rothko, muitos outros artistas em Nova Iorque se interessaram pelo preto em meados do século XX, é o
caso de Frank Stella, Rauschenberg e Ad Reinhardt. Cada um deles tinha uma maneira bem particular de lidar
com o preto. Frank Stella impõe uma rítmica muito bem definida e apresenta formas muito nítidas.
Rauschenberg tende a trabalhar com texturas, mistura de cores e colagens de papeis, por exemplo. Ad Reinhardt
enfoca a alternância de gradações do preto. Outros artistas pintaram telas negras na mesma época, tais como
Barnett Newnam, Willem de Kooning e Franz Kline, mas não chegaram a criar séries, como Rothko, Stella,
Rauschenberg e Reinhadt.
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214! RESSONÂNCIAS!
Capítulo!4!
4. Outras Ressonâncias
As ressonâncias são herdeiras daquela que é a mais livre das similitudes estudadas, a
simpatia. Uma simpatia em dois tempos, que se instaura a partir de uma inclinação espontânea
e, em seguida, impele uma assimilação, que nunca se dá. O fluxo das antipatias, ou das
diferenças, bloqueia o fluxo das simpatias, ou das semelhanças, e impede que as coisas se
igualem.
A maior parte da literatura que aproxima música e artes visuais, ou se ocupa dos
artistas que se engajaram efetivamente em dialogar com o domínio vizinho, ou se preocupa
em estabelecer paralelismos históricos ou estéticos. Mas é bom lembrar que o “espírito do
tempo” nem sempre é capaz de justificar homologias e correspondências e pode somente
explicar parcialmente os contatos entre as artes. As ressonâncias, na forma que apresentamos
neste capítulo, pululam bem numerosas, tanto nos meandros da literatura especializada em
Estética e Estética Comparada, quanto no olhar e na reflexão de qualquer sujeito que
reconhece algum tipo de paralelismo entre uma pintura e uma obra musical e se volta ao
interior dessas obras.
Embora a Sagração da Primavera e Les Demoiselles d’Avignon, e Atmosphères e
BlackPainting n.1 sejam obras do mesmo período histórico, as ressonâncias não se limitam às
concomitâncias de tempo e espaço. Elas podem não ter nenhuma sincronia histórica, como
quando John Dewey, por exemplo, se deu conta ou percebeu semelhanças entre a pintura Os
Jogadores de Cartas de Cézanne, da última década do século XIX, e dos primeiros
compassos da Quinta Sinfonia de Beethoven de 1808.
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RESSONÂNCIAS!
Capítulo!4!
215!
!
L’Ordre du contre-ut pode ser aproximada, por exemplo, da Seconde pièce pour quatuor
à cordes de Stravinsky, que data de 1913-1914. O lado humorístico, maneirista desse
Klee é bem próximo, para mim, de obras de Stravinsky de um período um pouco anterior,
o período russo, que apresenta as mesmas características: Pribaoutki, Berceuses du chat,
etc. Os dois tipos de obras manifestam uma correspondência de inspiração e de
realização. (Boulez, 1989, p. 28)80.
Menos precisa que esta aproximação entre peças específicas, mas não menos
interessantes, estão os paralelos que Boulez aponta entre a obra de Anton Webern e Pietr
Mondrian. Os dois artistas, muito provavelmente, se ignoravam totalmente e haviam uma
reduzida cultura da arte vizinha. Tiveram, no entanto, uma evolução similar da representação
para a abstração, através de uma disciplina cada vez mais rigorosa e uma redução dos
elementos de invenção.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
80!“L’Ordre1du1contre8ut!peut!être!rapproché!de!la! Seconde1pièce1pour1quatuor1à1cordes1de!Stravinsky,!qui!
date!de!1913^1914.!Le!côté!humoristique,!maniériste!de!ce!Klee^là!est!très!proche,!pour!moi,!d’œuvres!de!
Stravinsky!d’une!période!un!peu!antérieur,!la!période!russe,!qui!présentent!des!mêmes!caractéristiques!:!
Pribaoutki,1Berceuses1du1chat,1etc.1! Les! deux! œuvres! manifestent! une! correspondance! d’inspiration! et! de!
réalisation.”!
!
216! RESSONÂNCIAS!
Capítulo!4!
Sem que eles nunca tenham se encontrado, sem que tenham se influenciado mutuamente
de maneira direta, suas obras encontram-se em “simpatia”. E, seguindo uma via idêntica,
eles se observam, no fim de suas existências, para mostrar mais fantasia, mais vida, e
tudo isso, permanecendo no interior de fronteiras voluntariamente limitadas. (Boulez,
ibid., p. 25)81.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
81!“Sans! qu’ils! se! soient! jamais! rencontrés,! sans! qu’ils! aient! été! influencés! de! manière! directe! l’un! par!
l’autre,!leurs!œuvres!se!sont!trouvées!en!«!sympathie!».!Et,!suivant!une!voie!identique,!ils!se!mirent!à!la!fin!
de! leur! existence,! à! montrer! plus! de! fantaisie,! plus! de! vie,! tout! en! restant! à! l’intérieur! de! frontières!
volontairement!limitées.”!
82!“En!découvrant!pour!la!première!fois!l’aquarelle!de!Klee,!en!la!regardant,!j‘y!ai!constaté!une!démarche!
similaire,!tendant!à!la!dépersonnalisation!du!créateur,!à!son!anonymat.”!!
!
RESSONÂNCIAS!
Capítulo!4!
217!
!
uma emoção estética formal, a mais “pura” possível, a partir de um princípio gerador claro e
simples.
Parrat aproxima a obra Four Organs (1970) de Reich com as justaposições evolutivas
dos quadros de Morellet compostos por pequenos traços83; a obra musical Phase Patterns
para quatro órgãos elétricos, também de 1970, é aproximada de fórmulas de superposição,
justaposição evolutiva e de interferências utilizadas por Morellet nas suas obras Interférence
de deux trames différentes 0° 1° e Tirets verticaux avec deux interférences, de 1974; Parrat
compara igualmente a peça Six Pianos de 1972, na qual a ideia de superposição também está
presente, aos trabalhos do artista plástico que se baseiam em tramas84, como Deux doubles
trames + 1° – 1°, de 1970.
Outras aproximações são propostas por Parrat e, mais uma vez, o anacronismo dos
objetos comprados não impedem que as ressonâncias sejam sentidas e legitimadas. O autor
coloca em contato a obra do artista francês Jean Dewasne (1921-1999) e a fuga da Sonata op.
106 de Beethoven. As ressonâncias sentidas pelo observador/auditor neste caso se fundam na
analogia entre certos traços de suas linguagens. Parrat percebe atributos musicais na dimensão
temporal das pinturas murais de Dewasne, como uma que se encontra no metrô de Hannover,
ou certos tratamentos temáticos que ele observa, por exemplo, em Chateau d’Argel. A
clareza, a leveza estrutural e a racionalidade complexa do jogo de forças que se equilibram e
se repulsam incitam Parrat a perceber e estabelecer ressonâncias entre artistas de períodos
bem distantes. O mesmo autor propõe e valida ainda convergências entre a arte de Pierre
Soulages (nascido em 1919) e as obras Hyperprismes (1923) e Intégrales (1925) de Edgard
Varèse e sugere ainda, sem desenvolver, possíveis paralelos entre Wozzeck de Alban Berg as
Pinturas Negras de Goya.
Tomando como elemento central um instrumento musical, a guitarra, representada
visualmente pelo artista plástico Juan Gris (1887-1927) e musicalmente pelo compositor
Manuel Ponce (1882-1948), Julien Siguré (2006), dirigido por Michèle Barbe, observa e
valida ressonâncias entre a obra e as atitudes estéticas desses dois artistas que provavelmente
nunca se encontraram. Após traçar algumas referências biográficas dos dois artistas, Siguré
pode discernir cinco grandes eixos que sustentam suas ressonâncias: a síntese das influências
populares e do estilo moderno; o contato com o mundo artístico parisiense; as emulações de
mestres do passado; a utilização de formas fixas; e a síntese desses fatores e de suas pesquisas
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
83!Por!exemplo!as!obras!de!1970!intituladas:!Tirets1dont1la1longueur1et1l’espacement1augmentent1à1chaque1
rangée1 de1 51 millimètres.1 Alignement1 sur1 la1 gauche! et! Tirets1 de1 20mm1 dont1 l’espacement1 augmentent1 à1
chaque1rangée1de121millimètres!
84!Trama!no!sentido!de!linhas!que!se!cruzam.!!
!
218! RESSONÂNCIAS!
Capítulo!4!
realizadas nas suas últimas obras. Para cada um dos eixos definidos, Siguré analisa uma obra
do compositor mexicano e uma obra do pintor espanhol visando ilustrar e legitimar as
semelhanças percebidas como ressonâncias sentidas e reveladas85.
Mas a maior concentração de trabalhos em que a noção de ressonância desta tese pode
se aplicar provem de pesquisas, que como a de Siguré, foram dirigidas por Michèle Barbe
durante os mais de vinte anos à frente do grupo de pesquisa Musique et Arts Plastiques
(MAP) do Observatoire Musical Français na universidade Paris-Sorbonne. Teses,
monografias e anais de seminários doutorais e pós-doutorais podem fartamente ilustrar nossas
ressonâncias e motivar novos desdobramentos desta pesquisa. Pode-se citar, como exemplos
entre muitos outros, os trabalhos de Cindy Fardella (Bonnard et Debussy, 2006), de Marina
Gatti (Delacroix et Berlioz, 1993), de Florence Collin (Debussy, Monet et Cézanne, 1996), de
Christel Farvacque-Pothier (Prokofiev et Matisse, 2000) e de Manuel Brosse (Goya et
Beethoven, 1996).
Limitamo-nos a apresentar alguns exemplos de encontros entre artes que preenchem a
dupla exigência das ressonâncias. A de constituir-se como emoção análoga que o receptor
reconhece entre música e artes visuais e, em um segundo momento, esse mesmo receptor,
agora como pesquisador, legitima suas impressões através de uma investigação de instâncias
poéticas e estéticas das obras aproximadas.
Os exemplos apresentados acima, longe de se configurarem em uma relação ou lista,
são simplesmente ilustrações dessa maneira de se conceber encontros entre as artes a qual
denominamos ressonâncias.
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85!Respectivamente:!La1Guitare!e!Estrellita!;!Guitare1et1papier1à1musique!e!Thème1varié1et1finale!;!La1Guitare1
et1incrustations!e!Sarabande!da!Suite1en1la!;!La1Fenêtre1ouverte!e!Variations1sur1Folia1de1España!;!La1Femme1
à1la1guitare!e!Variationes1sobre1un1tema1de1Antonio1de1Cabezón.!!
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REFLEXOS!
Capítulo!5!
219!
!
Capítulo!5!
!
!
É uma sensação tão agradável ocuparmo-nos com algo que só conhecemos pela metade,
que ninguém deveria censurar o diletante, quando este se dedica a uma arte que nunca
aprenderá, e nem o artista que, transpondo as fronteiras de sua arte, se deleita em passear
pelos campos vizinhos. (Goethe, 1992, p. 149).
!
!
Reflexos(
!
Extremamente ampla, a noção de reflexos neste trabalho não se restringe ao olhar
solitário de alguém que tece semelhanças entre artes sem nem mesmo levar em conta o desejo
do artista de se assemelhar, como vimos nas “ressonâncias”. Em comum com a noção
anterior, somente o fato de não haver contato entre obras aproximadas: elas se mantêm
autônomas e soberanas. Porém, para que exista algum reflexo, é necessário, evidentemente,
algo que se reflita. Impõe-se assim uma causalidade direta. É preciso que um artista deseje se
apropriar de algo de outra arte em sua própria arte. As maneiras de se produzir reflexos são,
com certeza, infinitas. Mas não será exatamente o caminho tomado por um artista para refletir
determinada obra ou estética que caracterizará nossos reflexos. Eles serão constituídos tão
somente por um grupo onde se reúnem obras que encontram suas raízes na arte vizinha. Obras
em que um artista encontrou apoio, estímulo ou inspiração na arte fronteiriça para construir
outra obra, independente, na sua própria linguagem.
O caminho a percorrer é similar ao do quarto capítulo. A noção de reflexos é
constituída a partir das similitudes de emulação e analogia apresentadas na primeira parte da
tese. Alguns dos significados dessas similitudes serão solicitados tanto no início deste
capítulo como também implícita e explicitamente no interior das análises musicais e visuais.
Dois artistas ilustrarão nossos reflexos: um músico, Henri Dutilleux (nascido em
1916), e um pintor, Paul Klee (1879-1940). Ambos se apoiaram em modelos artísticos de
outros contextos que, no entanto, não comprometem em nada a modernidade de suas obras. O
primeiro volta-se a Vincent van Gogh e o segundo à música de Johann Sebastian Bach.
Como também foi feito no capítulo anterior, a abordagem das obras e dos encontros
virtuais propostos se dará de maneira distinta para cada obra. Uma individualidade
metodológica é solicitada na medida em que tratamos de obras de contextos, e mesmo
naturezas, bastante distintas. Os reflexos se configuram como uma segunda maneira de
compreender o encontro das artes e apreciar o percurso de similitudes desejadas ou sugeridas
pelo compositor ou artista plástico.
!
220! REFLEXOS!
Capítulo!5!
1.!Refletir!
!
a)!Das!Emulações!e!Analogias!aos!Reflexos!
!
REFLEXOS!
Capítulo!5!
221!
!
!
222! REFLEXOS!
Capítulo!5!
!
REFLEXOS!
Capítulo!5!
223!
!
similitudes, sobretudo emulações e analogias, que se constituem como os reflexos nesta tese.
Assim como nas ressonâncias, os reflexos devem cumprir uma dupla exigência para poder ser
assinalados com tal. Por um lado, deve-se expor os paralelismos poéticos que unem as obras
e, por outro lado, esses mesmos paralelismos devem ser visíveis ou audíveis e deixar
consequências fundamentais na obra refletida.
Não, não há fantasmas nos quadros de Van Gogh, nada de drama, nem assunto e direi que
nem mesmo objeto, por que o tema mesmo qual é?
Senão algo como a sólida e mística obscuridade de uma indizível música antiga, como
um leitmotiv de um tema desesperado de seu próprio assunto.
É a natureza nua e pura, vista tal como se mostra, quando sabemos chegar bem perto dela.
(Artaud, 2003, p. 67).
!
a) Sobre o Músico
Tenho uma terrível necessidade de religião. Então, vou para fora, à noite, pintar as
estrelas. Sentir as estrelas e o infinito, no alto, claramente, enquanto a vida permanece
quase encantada. […]. Tudo e em toda parte, a cúpula do céu é de um azul admirável, o
sol tem um brilho pálido de enxofre e é doce e encantador como os azuis celestes e os
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
2
Cf. p. 77.
3
Os trechos citados por Dutilleux correspondem a três diferentes cartas. O primeiro vem da carta n. 543, o
segundo da carta n. 541, ambos de setembro de 1888. A última frase pertence a carta n. 520 de agosto do mesmo
ano.
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224! REFLEXOS!
Capítulo!5!
amarelos nos Vermeer de Delft. Infelizmente, ao lado do sol do Bom Deus, está, três
quartos do tempo, o Diabo Mistral. (Van Gogh apud Cadieu, p. 34)4.
!
REFLEXOS!
Capítulo!5!
225!
!
firmes. Sua obra não é numerosa, porém boa parte atingiu algum sucesso, que se ilustra com
as inúmeras gravações feitas pelas mais renomadas orquestras e solistas, além da boa
aceitação do público.
Dutilleux tem uma leveza, talvez rara, em falar da própria música, de suas preferências
musicais, de seu apreço pela natureza e de coisas simples que alguns grandes artistas evitam
comentar. Fã de Catty Berberian, que soube, com humor, fazer a ponte entre clássico e
popular, de Charles Trenet, de Aznavour, de Sarah Vaughan e seu sentido de fraseado, senso
rítmico e incrível timbre, e de muitos outros artistas, ditos, populares. Acredita no poder de
encantamento, ou mesmo de feitiço, que a voz humana carrega, no interior de qualquer que
seja o gênero musical (ibid., p. 211). Essa abertura de espírito pode ter vindo, ou se refletiu,
no fato de, durante a ocupação alemã da França, entre 1940 e 1944, ter trabalhado em boates,
brasseries, de ter dedicado quase vinte anos de sua vida ao serviço de radiodifusão francesa e
do seu contato com o cinema, trabalhando como compositor em parceria de diretores como
Jean Gremillon em l’Amour d’une femme, em 1953, e Jean Gehret, em Le Crime des justes de
1948.
Em seus depoimentos, Dutilleux não deixa de mencionar coisas aparentemente
simples, como seu apreço pela natureza. É fascinado pelas árvores e pelos pássaros. As
árvores poderiam até mesmo ser usadas como metáforas para seus processos de composição.
Certas obras ele começou pelo meio, por algum elemento forte, e, a partir daí, esse núcleo ia
se propagando para as partes precedentes e posteriores. Essa arborescência ficou evidente no
seu Concerto para Violino de 1985, composto sob encomenda para Isaac Stern e a Orquestra
Nacional da França dirigida por Lorin Maazel.
Eu preciso da natureza. Mais que tudo, eu amo as árvores. Olhar uma árvore, sua
estrutura, sua vida, me faz bem. Eu ainda não encontrei um título para meu Concerto
para violino recentemente estreado por Isaac Stern e a Orquestra Nacional da França sob
direção de Lorin Maazel, mas existe nessa música alguma coisa de árvore, de galhos, de
arborescências. É uma obra de um só sustento… (Dutilleux, Cadieu, 2007, p. 110)5.
Ao título desse concerto, acrescentou mais tarde: Arbre des Songes (Árvore dos
Sonhos).
Dutilleux tinha também um apreço especial pelos pássaros. Uma vez saiu para gravar
um som particular que havia ouvido em Cande-Saint-Martin, no centro-oeste francês, não
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5
“J'ai besoin de la nature. Plus que tout, j'aime les arbres. Regarder un arbre, sa structure, sa vie, me fait du bien.
Je n'ai pas trouvé de titre encore pour mon «Concerto pour violon» récemment créé par Isaac Stern et l'Orchestre
national sous la direction de Maazel, mais il y a dans cette musique quelque chose de l'arbre, des branches, des
arborescences. C'est une œuvre d'un seul tenant... ”
!
226! REFLEXOS!
Capítulo!5!
reencontrou o mesmo canto, mas acabou fascinado com outros sons de pássaros. Eles eram
“maravilhosamente desorganizados” (Dutilleux, 2003p. 176). O interesse de Dutilleux pelos
pássaros parecia passar por vias mais simples que, por exemplo, de outro compositor, Olivier
Messiaen (1908-1992), que era praticamente um ornitólogo. Dutilleux simplesmente gostava,
fruía seus cantos e aplicava de alguma forma essa experiência em suas obras.
Toda essa leveza, no entanto, não quer dizer superficialidade, nem tampouco falta de
cultura. Sem ter participado das vertentes mais populares, digamos, da música de concerto de
seu tempo, durante sua vida esteve sempre a par do que estava sendo feito, como dissemos, e
se revela grande apreciador de certas obras de Stockhausen (Gruppen, Carré, Momente e
Ironi), Luc Ferrari, François-Bernard Mâche, Michel Chion, Tristan Murail, Fraçois Bayle e
Philip Manoury, por exemplo.
Toda sua carreira foi pontuada de alguns dos mais importantes prêmios que um
compositor pode receber. Desde o Prix de Rome em 1938 até o prêmio Ernest von Siemens
em 2005, que nos seus 37 anos de existência só havia premiado dois músicos franceses antes
dele, Olivier Messiaen e Pierre Boulez. Em 2010, na ocasião de sua homenagem no Festival
de Auvers-sur-Oise, compositores como Phillipe Hersant, Bruno Mantovani, Guillaume
Connesson e Pascal Dusapin escreveram peças para piano dedicadas a ele.
Na serenidade que parece o caracterizar, o compositor francês se diz fortemente
atraído pela luz e mesmo por um sentido de sagrado, dissociado, entretanto, da religião. “A
prática de uma religião talvez não seja indispensável para possuir o senso do sagrado.”
(Dutilleux, 2003, p. 26)6. Os títulos de suas partituras muitas vezes fazem menção à luz, como
Vagues de Lumières (Ondas de Luz), quarta parte de Shadows of Time (Sombras do Tempo)
para orquestra e vozes infantis de 1995, e Flamboyant (Flamejante), quinta parte de
Métaboles para orquestra, de 1965.
Acho que tenho um pouco do senso do sagrado, mesmo que não tenha escrito obras de
caráter litúrgico... Entretanto, eu reconheço que minha maneira de crer tem alguma coisa
de bastante vago e, se eu evoco frequentemente a atração que a natureza exerce sobre
mim, podemos pensar em um tipo de panteísmo. No entanto, me parece que essa
aspiração ao sagrado se afirmou pouco a pouco com o passar dos anos. (Dutilleux, 2003p.
39-40)7.
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6
“La pratique d'une religion n'est peut-être pas indispensable pour avoir le sens du sacré.”
7
“Je crois avoir un peu le sens du sacré, même si je n'ai pas écrit d'œuvres de caractère liturgique... Cependant,
je reconnais que ma forme de croyance a quelque chose d'assez vague, et si j'évoque souvent la fascination
qu'exerce sur moi la nature, on pensera à une sorte de panthéisme. Cependant il me semble que cette aspiration
vers le sacré s'est affirmée peu à peu au fil des années.”
!
REFLEXOS!
Capítulo!5!
227!
!
Talvez pela descendência eslava de sua mãe, diz ter uma inclinação relativa à
melancolia e grande apreço pela escola polonesa de compositores como Witold Lutoslawski
(1913-1994) e Krzysztof Penderecki (nascido em 1933) (Cadieu, 2003, p. 28).
Não por acaso interessou-se tanto por Baudelaire, com seus speens, e compôs para
Mstislav Rostropovich, em 1970, um concerto para violoncelo inspirado pelo poema La
Chevelure. A obra levou o nome de Tout un monde lointain (Todo um Mundo Longínquo).
Na sua estreia, em uma apresentação ao ar livre em Aix-en-Provence, o compositor ficou
fascinado com a analogia que sentia entre o som do vento fazendo as folhas vibrarem
ligeiramente e a sonoridade geral que tinha buscado no concerto (Dutilleux, 2003, p. 133).
Admirador do filósofo Vladimir Jankélévitch, autor de La Musique et l'ineffable (A
Música e o Inefável) (1961), melancólico e com uma noção difusa de espiritualidade, como
mostrou a citação acima, também não é de se espantar que Dutilleux tenha feito de sua música
a expressão de um mistério. Ele parece insistir em um efeito de suspensão como maneira
apropriada de caracterizá-lo. O título Mystère de l’instant (Mistério do Instante) para címbalo,
orquestra de cordas e percussão de 1989 foi emprestado da obra de Jankélévich, Debussy et le
mystère de l’instant (1950).
A fascinação por Marcel Proust (1871-1922) deve também tê-lo inspirado a criação de
duas obras mais recentes, Shadows of Time e Le Temps l’horloge (O Tempo e o Relógio)
(2007) para voz e orquestra, acrescido de um interlúdio orquestral e da inserção de um poema
de Baudelaire, Enivrez-vous (Embriague-se), estreado por Renée Fleming em 2009 em Paris.
Seu avô materno, de origem polonesa, foi diretor de um conservatório em Roubaix,
próximo a Lille, no norte da França, aluno de Camille Saint-Saens e amigo íntimo de Gabriel
Fauré, de quem Henri Dutilleux aprecia enormemente a evolução da obra (Dutillieux, 2003, p.
22).
Na sua ascendência paterna, tem como bisavô Constant Dutilleux (1807-1865), pintor
de relativa importância, colecionador de obras, como as de Corot, e grande apreciador da obra
de Eugène Delacroix, de quem foi amigo próximo, a ponto de ter sido testemunha de seu
testamento 8 . As artes visuais faziam parte da história de sua família e o compositor
deslumbrava-se com os impressionistas em sua infância e adolescência. Era intrigado, mais
que fascinado, pelos cubistas e sempre adorou Kandinsky. Mas quem realmente o perturbou,
em um bom sentido, foi Vincent van Gogh.
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8
Cadieu sugere que Constant Dutilleux chegou a possui o retrato de Chopin por Delacroix, fato não confirmado
por Henri (Dutilleux, Cadieu, 1993, p. 37).
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228! REFLEXOS!
Capítulo!5!
Henri Dutilleux, embora não tenha se utilizado de algum tipo de notação não
convencional, como vários de seus contemporâneos, é fascinado pelo grafismo e pela
distribuição dos espaços na página branca da partitura. Diz que a modernidade de Beethoven
já podia ser percebida na disposição gráfica das páginas de suas últimas sonatas e quartetos,
sobretudo se pudermos consultar os manuscritos. A relação entre o aspecto plástico e o
domínio sonoro é, às vezes, surpreendente, dizia. Páginas de orquestra de Schoenberg então,
como, por exemplo, Farben das suas Cinco Peças op. 16, são praticamente telas abstratas.
“Frequentemente, no meu trabalho, se eu não estou satisfeito com uma página de orquestra,
do ponto de vista estritamente plástico, é que alguma coisa não vai bem.” (Dutilleux, 2003, p.
33)9. A ideia da simetria formal que ele apresenta em sua Primeira Sinfonia, em 1951, muito
o agrada. Aprecia que seus quatro movimentos sejam monotemáticos, que o primeiro e o
segundo se imbriquem tanto quanto o terceiro e o quarto, além do fato dela começar com um
grande crescendo e terminar com um grande diminuendo. Na estreia dessa mesma sinfonia,
Pierre Boulez, diz ele, o virou às costas (ibid., p. 73). Nesta época, os cursos de verão de
Darmstadt proclamavam ideias, talvez intransigentes, sobre a modernidade musical e Boulez
se apresentava como importante figura nesse cenário. Indagado por Glayman se ele havia
sofrido com o peso de um pensamento quase dogmático da década de 50, Dutilleux responde:
“Eu não posso dizer que tenha sentido isso. Simplesmente, em toda independência, eu tinha
vontade de empreender esse tipo de trabalho – escrever uma sinfonia – e eu fiquei contente
com isso.” (ibid., p. 73)10. A partir de Métaboles para orquestra, de 1965, as reações de
Boulez eram mais brandas e acompanhadas de um interesse pela obra de seu conterrâneo.
Chamar Henri Dutilleux de inovador soaria certamente artificial. Do ponto de vista
harmônico, ele não se desapegou de uma noção particular de “centro tonal”, da solicitação
frequente da memória, da noção de variação e, às vezes, de um molde quase clássico. O
sentido de suspensão parece conter elementos de uma tradição francesa, considerada
frequentemente como impressionista. Em sua música há voluntariamente uma espécie de
sensualidade de ordem harmônica, expressa no desejo de fundir timbre e ritmo, sem
necessariamente se ligar às curvas melódicas provindas de uma estética romântica. Lidou com
a noção de espaço de maneira quase sempre sutil, solicitando alguns posicionamentos
particulares dos músicos, como em sua Segunda Sinfonia, Le Double (1959), em que um
grupo reduzido de instrumentistas dialoga com uma grande orquestra. De qualquer forma,
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9
“Souvent, dans mon travail, si je ne suis pas satisfait d'une page d'orchestre, du strict point de vue plastique,
c'est que quelque chose ne va pas.”
10
“Je ne peux pas dire si j'ai vraiment senti cela. Plus simplement, en toute indépendance, j'avais envie
d'entreprendre ce genre de travail - écrire une symphonie - et j’en étais heureux.”
!
REFLEXOS!
Capítulo!5!
229!
!
como ele mesmo sabe, disposições espaciais particulares no palco já tinham sido
experimentadas há séculos. Considerar seu tratamento rítmico como revolucionário ou
inovador, no sentido de poder exibir tal ou tal contribuição, também seria algo forçado. Mas
essa maneira talvez convencional de se colocar esteticamente, que alguns poderiam
precipitadamente considerar como anacrônica, não invalida de nenhuma forma a potência e a
atualidade de sua obra, que tem uma enorme coesão e coerência interna.
Sem poder ser considerada ressonância segundo os preceitos deste trabalho, por não
haver uma investigação consistente sobre da pertinência do paralelismo, a obra de Dutilleux
pode, pelo menos, sugerir certos paralelismos ou simpatias com a arte de um Lucien Freud
(1922-2011), que encontra nas entrelinhas de uma arte figurativa sua expressão própria e
potente.
Todas essas sucintas informações em torno do compositor francês vêm, na verdade,
para nos aproximar de uma de suas obras mais importantes, Timbres, espace, mouvement ou
La Nuit étoilée composta em 1978 e acrescida de um interlúdio para violoncelos em 1991. A
obra foi encomendada por Rostropovich para National Symphony Orchestra, com sede em
Washington, e foi dedicada ao maestro Charles Münch.
A ideia de compor uma música motivada pela noite, ou que nos remetesse à ela, um
ano antes já havia sido concretizada em um das suas obras mais tocadas, o quarteto Ainsi la
nuit. As noções de suspensão, mistério, sagrado e até mesmo um certo sentido de luz,
comentados acima, podem facilmente se ajustar ao espírito da noite que encontramos em
Dutilleux, que não deixa de nos remeter a uma tradição de música noturna, que nos faz
imediatamente pensar em Chopin e Debussy, mas também em Liszt, Scriabin, Grieg ou
mesmo no primeiro movimento do Concerto para Violino de Shostakovich.
Embalado pelo sentido do mistério, certa melancolia, sentimentos noturnos, a estética
da suspensão, crença na unidade temática, não fica difícil imaginar que tal compositor tenha
se extasiado face à tela Noite Estrelada de Van Gogh e que ela tenha sido o estopim de uma
obra orquestral.
Essa pintura é visionária. [...] Vi essa tela, tentei dizer minha emoção. Tudo se passa no
céu e, na terra, nosso planeta, somente um cipreste e uma igreja. Que nostalgia!... Nós
experimentamos uma vertigem, uma potente atração, cósmica. (Dutilleux apud Cadieu,
2007, p. 16)11.
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11
“Cette peinture est visionnaire. […]. J'ai vu cette toile, j'ai essayé de dire mon émotion. Tout se passe dans le
ciel avec, pour la terre, notre planète, seulement un cyprès et une église. Quelle nostalgie!... On éprouve un
vertige, une attraction puissante, cosmique.”
!
230! REFLEXOS!
Capítulo!5!
Aos quadros que ilustram girassóis, seu quarto, um café em Arles e um autorretrato, se
junta a Noite Estrelada entre as mais famosas telas de Vincent van Gogh. Talvez
excessivamente famosa. Somos rodeados por tantas e tantas reproduções, muitas delas de má
qualidade, que, como disse Gombrich, uma pessoa pode facilmente cansar-se delas. “Sempre
que isso acontece, é uma grande revelação voltar às originais de Van Gogh e descobrir até que
ponto ele podia ser sutil e deliberado em seus efeitos mais fortes”. (Gombrich, 1993, p. 436).
Grosseiramente comparando, seria algo como ouvir uma boa orquestra tocar a Ode à Alegria
da Nona Sinfonia de Beethoven quando saturados por suas execuções em propagandas
comerciais ou mesmo em toque de telefones.
Van Gogh, segundo Meyer Schapiro, foi o primeiro pintor a investir nas cores puras
(1983, p. 23). Antes dele nenhum outro pintor ousou aplicar amarelo-cromo diretamente na
tela e em uma grande área, como ele o fez em Arles. Os impressionistas ressaltavam a força e
a pureza das cores, mas ao mesmo tempo a abrandavam por vários meios (ibid., p. 23).
Certamente a cor pura de Van Gogh está entre os elementos que fizeram com que Artaud
(2003), em seu apaixonado texto sobre o pintor, tenha considerado suas telas como “fogos
gregos”, “bombas atômicas”, “acordes de órgão”, “epifanias atmosféricas” ou “fogos de
artifício”.
A temática noturna, em Van Gogh, acompanhou boa parte de sua carreira.
“Frequentemente me parece que a noite é ainda mais ricamente colorida que o dia, colorida de
violetas, de azuis e os mais intensos verdes”, disse Van Gogh em carta à sua irmã Wilhelmina
(apud Coli, 2006, p. 100 e 102). Em suas pinturas de cunho social, que se concentram no
início de sua curta carreira, Van Gogh retratava a vida dura de classes marginalizadas e
simpatizava fortemente com as pinturas de Jean-François Millet (1814-1875). Ao mesmo
tempo, em 1883, segundo Stolwijk, o pintor holandês elogiava as águas-fortes de James
Whistler (1834-1903), pintor famoso pela precisão de suas cenas noturnas (2008, p. 19). A
representação da noite era também, na formação do pintor, como um desafio a transpor,
conseguir acrescentar algo a uma tradição de longa data dos temas noturnos que floresceu nos
séculos XVI e XVII nos países baixos meridionais. A primeira obra que tanto o próprio pintor
quanto seus críticos afirmam como sendo sua primeira obra-prima, Os Comedores de Batatas
(1885), é uma cena noturna e de interior12. Nela Van Gogh coloca em prática as teorias das
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
12
Todas as referências consultadas em torno de Van Gogh consideram esta tela como sua primeira grande obra.
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REFLEXOS!
Capítulo!5!
231!
!
cores de Delacroix e usa abundantemente tons obtidos por uma mistura de cores
complementares (vermelho e verde; violeta e amarelo; azul e laranja). O desafio era pintar a
luz na obscuridade, desafio que já tinha sido enfrentado por artistas como o próprio
Rembrandt por exemplo. Deste último, a tela que Van Gogh mais admirava era A Sagrada
Família à Noite (1640) (Stolwijk, 2008, p. 19).
Apesar dos temas religiosos ocuparem uma posição bastante secundária, alguma
religiosidade devia emergir de sua obra noturna. Uma religiosidade que o artista havia tentado
em vão exercer como evangelista em Borinage, na Bélgica, foi convertida em um sentimento
profundo pela natureza e pelo homem comum. O sentimento religioso se delineava na sua
experiência sensorial direta e na sua declarada aspiração ao infinito, afirmada pelo próprio
pintor quando ele comenta, por exemplo, como preencheu o fundo de um retrato:
Além da cabeça, em vez de pintar a parede banal de uma sala insignificante, pinto o
infinito, faço um fundo simples do azul mais rico e mais intenso que posso conceber; por
essa combinação simples da cabeça brilhante contra o fundo de azul intenso, obtenho um
efeito misterioso, como uma estrela nas profundezas do azul do céu. (Van Gogh apud
Schapiro, 1983, p. 21).
!
232! REFLEXOS!
Capítulo!5!
Figura 7: Vincent van Gogh. Noite Estrelada, 1889. Óleo sobre tela, 73,7 cm × 92,1 cm. -
Nova Iorque, THE MUSEUM of Modern Art, 2011.
http://www.moma.org/collection/object.php?object_id=79802
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13
O Museu de Arte de São Paulo possui uma tela pintada durante esse período intitulada Banco de Pedra do
Asilo de Saint Rémy.
!
REFLEXOS!
Capítulo!5!
233!
!
A obra corresponde a uma fase de Van Gogh em que, sem rejeitar os jogos de cores
complementares, afirma uma espécie de grafismo, onde contornos e preenchimentos se
confundem. Um ritmo potente, quase agressivo, aparece nesta tela. “Havia muito tempo que a
pintura linear pura me enlouquecia, até que encontrei Van Gogh que pintava, não linhas ou
formas, mas coisas da natureza inerte como se estivessem em plena convulsão.” (Artaud,
2003, p. 45). A convulsão da natureza é facilmente sentida em Noite Estrelada, como também
percebeu Coli: “[...] convulsos, em plásticas contorções, seus quadros não são desordenados,
pois, se tudo gira em turbilhoes, está agora mais presente do que nunca o contorno firme que
modela, sinuoso, que não apenas limita, mas constrói.” (2006, p. 107).
Van Gogh, como vimos, já havia enfrentado o desafio de pintar cenas noturnas há
certo tempo e, no ano que precedeu a Noite Estrelada, 1888, ele havia pintado outras duas
paisagens noturnas de exterior que se tornaram particularmente célebres, o Terraço do Café à
Noite e uma outra Noite Estrelada, que para se distinguir da sucessora foi chamada Nuit
étoilée sur le Rhône (Noite Estrelada sobre o Ródano). Ao contrário das outras cenas
noturnas que são iluminadas por luzes artificiais, esta deve sua luz somente às estrelas – onze
ao todo – e à lua, que pode ser percebida como uma espécie de lua-sol, tanto pela sua forma
quanto pela intensidade de seu brilho. Assim como a tela de mesmo nome de Jean-François
Millet, que Van Gogh certamente conhecia, a Noite Estrelada do pintor holandês também
deve sua luz somente a potência dos astros. Além disso, o que se imagina ser a representação
da noite de Saint-Rémy é na verdade uma paisagem imaginária, que não reproduz paisagens
existentes, como o terraço da praça do Fórum de Arles ou o rio Ródano (Schapiro, 1983, p.
103).
A força da noite de uma Saint-Rémy irreal não emana de um lirismo quase sóbrio,
como aquele de seus quadros noturnos anteriores de Arles, ou da compaixão pelas classes
marginalizadas de sua primeira obra-prima, Os Comedores de Batatas. Sua potência parece
provir de uma carga religiosa, entendida em seu sentido mais amplo, como um
deslumbramento frente ao mistério e ao sagrado. Esta estupefação se converte nos turbilhões
celestes, na intensidade dos brilhos dos astros, no ritmo frenético, no fluxo torrencial do todo
e, como notou Schapiro, nos ciprestes que se aparentam a chamas (1983, p. 102). De um
ponto de vista simbólico, tanto os ciprestes quanto as estrelas se ligam à noção de eternidade.
Schapiro sugere ainda um possível elemento apocalíptico nesta obra. Existiria nela uma
reminiscência inconsciente ao livro bíblico Revelações (capítulo 12, versículo 1) que fala de
uma mulher em trabalho de parto, coroada por estrelas, envolta pela lua e pelo sol, que vê seu
!
234! REFLEXOS!
Capítulo!5!
recém-nascido ser ameaçado por um dragão14. De qualquer maneira, não existem teologias ou
representações divinas explícitas claramente na tela. Aliás, as alusões diretas à religião na
obra de desse pintor não estão entre suas mais bem sucedidas obras. A religiosidade na Noite
Estrelada é exaltada pelo desejo de uma “união e libertação místicas” (Schapiro, 1983, p. 45).
Além dessa provável dimensão místico-religiosa, Noite Estrelada tem uma
espontaneidade de gesto, um impulso passional percebido na aparente convulsão de formas e
cores. Como observou Sjraar van Heugten (2008, p. 85), não existem traços de um desenho
anterior nesta tela, o que sugere o imediatismo de sua composição. Por outro lado, a
exacerbação de gestos ou a expressão apaixonada da tela vem acompanhada do que Schapiro
chama de “capacidade de desligamento” do artista. É ela que permite ao pintor articular
elementos e fugir de efeitos óbvios de contraste. Ao turbilhão celeste opõe-se um vilarejo
aparentemente sereno que culmina no preenchimento regular e calmo da torre da igreja. O
amarelo das luzes da cidade se harmoniza sutilmente com o brilho dos astros. O contraste
também é produzido pela espessura mais pastosa do céu em relação às tintas mais diluídas da
parte inferior da tela e, além disso, regiões de azul intenso se opõem aos amarelos mais vivos
do céu. Dessa forma, ele vai criando um equilíbrio das diversas luminosidades que reforçam o
sentido de claridade na escuridão. Entre a agitação celeste e a calmaria da vila duas regiões
fazem o elo. Na primeira, de baixo para cima, pincelas mais tranquilas e paralelas delineiam
os campos e montanhas. Na segunda, uma espécie de bruma parece refletir o luar da noite
estrelada. Essas duas regiões funcionam como uma de zona de repouso para a tela. Schapiro
tece uma analogia formal entre a igreja que corta o horizonte e o grande cipreste perfurando o
enorme espiral (1983, p. 103). Noite Estrelada carrega em si, extremadas, duas das forças
fundamentais nas criações em geral: uma espontaneidade imaginativa e um distanciamento
que permite a articulação inteligente, seja ela intuitiva ou não, da enorme carga emocional da
tela.
d) O Pintor e a Música
Antes de uma aproximação efetiva da música de Henri Dutilleux que se refere à Noite
Estrelada de Van Gogh, pode ser pertinente investigar que tipo de relação o pintor guardava
com a arte dos sons. É importante lembrar que nas cartas do pintor holandês, que tanto
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14
Na página 234 desta tese foi citada uma passagens das cartas de Van Gogh, usada na obra Correspondances de
Dutilleux, em que o pintor fala de sua necessidade de religião e da ameaça do diabo chamado de “Mistral”, como
os ventos frequentemente violentos que sopram para o noroeste e são muito comuns e caracterizam o clima
provençal na França.
!
REFLEXOS!
Capítulo!5!
235!
!
E num quadro eu gostaria de dizer algo consolador como uma música. Gostaria de pintar
homens e mulheres com aquele não sei o que de eterno, do qual outrora a auréola era o
símbolo, e que procuramos através da própria irradiação, da vibração de nossos coloridos.
(ibid., p. 257, carta 531).
Van Gogh intuía ainda uma proximidade entre pintura e a música de Wagner. “Mas eu
estou novamente como estava em Nuenen, quando fiz um esforço vão para aprender música,
já então eu percebia muito bem as relações que existiam entre nossas cores e a música de
Wagner.” (ibid., p. 266, carta 541). Comentando sua tela Berceuse de 1889, Van Gogh tece
também algumas analogias musicais: “Uma mulher vestida de verde com cabelos alaranjados
destaca-se contra um fundo verde com flores rosa. Agora estes disparates agudos de rosa cru,
laranja cru, verde cru são suavizados pelos bemóis dos vermelhos e dos verdes.” (ibid., p.
323, carta 574).
Essas analogias e aproximações entre as artes, além de ser um traço que o romantismo
herdou do idealismo alemão, sobre o qual falamos no primeiro capítulo, antecipava também,
de alguma maneira, paralelismos estruturais entre pintura e música da primeira metade do
século XX, sobretudo em seu início, quando a música foi muito frequentemente citada como
modelo de abstração por artistas, como Kandinsky, Delaunay ou Kupka. Mas essas analogias
não se limitavam a Van Gogh e também eram tecidas pelo seu amigo Paul Gauguin, quando,
por exemplo, o último comenta, e critica, a obra do primeiro: “Com todos os seus amarelos
sobre violetas, todo esse trabalho de cores complementares, ele só conseguia chegar a
harmonias suaves, incompletas e monótonas; faltava ali o som do clarim.” (apud Van Gogh,
ibid., p. 304).
Um interessante ponto levantado por Bosseur (1999, p. 153) quando ele comenta a
relação de Van Gogh com a música, liga-se a emulação de obras que ele encarava como
“interpretação musical”. O artista pintou, por exemplo, o Bom Samaritano ou Pietà, ambos a
partir de Delacroix (d’après Delacroix). Impunha àquelas obras bem sucedidas do
romantismo francês novas cores e um novo ritmo. Os modelos eram espécies de partituras
para sua interpretação.
!
236! REFLEXOS!
Capítulo!5!
Algumas outras analogias entre a obra do pintor e a música ou os sons musicais são
sugeridas também por Antonin Artaud:
Vejo, no momento em que escrevo essas linhas, o rosto vermelho sangrento do pintor vir a mim,
numa muralha de girassóis esventrados,
num formidável incêndio de restos carbonizados de jacinto opaco e de touceiras de lápis-lazúli.
Tudo isso, em meio a um bombardeio meteórico de átomos que se mostram um a um,
prova de que Van Gogh, sem dúvida, pintou suas telas como um pintor, e unicamente como um
pintor, mas que seria,
por isso mesmo,
um formidável músico. (2003, p. 71).
[...]
Assim, ninguém depois de Van Gogh soube mover o grande címbalo, o timbre sobre-humano,
perpetuamente sobre-humano, a cuja ordem retrograde vibram os objetos da vida real,
quando se possui ouvido suficiente para perceber o avanço da pororoca.
É assim que a luz da vela vibra, que a luz do castiçal aceso sobre a poltrona de prata verde vibra
como a respiração de um ser que ama ao lado de um corpo de um doente adormecido. (ibid., p. 74-
75).
e) Reflexos da Noite
!
REFLEXOS!
Capítulo!5!
237!
!
relação à ela, em ponto de partida para uma obra musical. É assim que em 1978, 91 anos após
a pintura de Van Gogh, Dutilleux cria Timbres, espace et mouvement ou Nuit étoilée. A obra
comportava inicialmente duas partes e, mais tarde, o compositor acrescenta a elas um
interlúdio, estreado em 1991, apresentado como um díptico em um clima extático, para
afirmar o equilíbrio e a densidade da partitura (Vanthala, ibid., p. 40). A impressão que a tela
de Van Gogh causava em Dutilleux era algo próximo a uma fascinação, talvez provinda de
uma simpatia do compositor pelo misticismo, em seu sentido amplo, e por seu gosto pelo
mistério.
Apesar da relação com a religiosidade ser algo extremamente pessoal e, visto de uma
maneira pragmática, os dois artistas não dividirem uma mesma religião, nem terem exercido
uma prática religiosa similar, tanto Dutilleux quanto Van Gogh foram movidos por impulsos
místicos em boa parte de suas obras e, certamente, em suas Noites Estreladas. Uma
religiosidade forte e presente é ao mesmo tempo um tanto vaga e imprecisa, sem rótulos.
A aspiração ao infinito exaltada por Van Gogh se reflete, como vimos na citação mais
acima, no desejo do compositor de traduzir em música esse mesmo infinito.
É preciso lembrar que, desde o início do era cristã e no período bizantino, o amarelo,
que alimentava o dourado dos mosaicos, “era a aparência ideal da luz como substância
divina” e o azul, “mais recessivo, sugere um distante espaço celestial ou uma interiorização
do espírito, restaurado a sua fonte celestial – o azul do céu tornado absoluto em cor, quase no
estado de escuridão” (Schapiro, 1983, p. 21). Esse simbolismo do amarelo como luz pura e do
azul associado ao infinito persevera na obra de Van Gogh. Em Noite Estrelada, o amarelo
ilumina tanto pelo jogo de contraste que estabelece com o azul, quanto por seu próprio brilho,
apesar de ser menos dourado que aquele que estamos acostumados a ver em seus famosos
girassóis. Ainda segundo Schapiro (ibid., p. 21), parte da energia da cor é convertida em
energia da linha. Mas assim mesmo predomina em Noite Estrelada o azul profundo do céu
provençal, embora por vezes alguns grossos contornos escuros ou brancos venham minar um
pouco de sua potência. O azul habita até mesmo o grande cipreste em forma de chama. Não
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16
“J'ai tenté d'en trouver musicalement l'aspect mystique évoquant l'infini de la nature et l'infini tout court. Il
s'est ainsi produit en moi une sorte d'osmose, un lent travail obscur, presque inconscient autour de ce monde
intérieur, à la fois mystérieux et violent, inquiet et exalté dont le spirituel n'est pas absent.”
!
238! REFLEXOS!
Capítulo!5!
O AMARELO, por exemplo, tem a propriedade especial de “subir” cada vez mais alto e
atingir alturas insuportáveis para os olhos e para o espírito – o som do trompete, tocado
cada vez mais alto, tornando-se cada vez mais “pontiagudo”, dói no ouvido e no espírito.
O AZUL com seu poder totalmente oposto, de “descer” nas profundezas infinitas,
desenvolve os sons da flauta (quando o azul é claro), do violoncelo (“descendo”), do
contrabaixo com seus sons magníficos e profundos, e nas profundezas do órgão “vemos”
profundidades azuis. [Maiúsculas no texto original]. (2000, p. 257).
A associação entre timbres musicais e cores parece ser o mais intuitivo paralelo que se
pode traçar entre música e artes visuais, embora possamos divergir quanto à precisão dessas
correspondências. Essa imprecisão, no entanto, não invalida a veracidade dos impulsos que
nos fazem perceber, no sentido mais pleno da palavra, elos entre objetos de distinta natureza
perceptiva. Associar, por exemplo, sons agudos e a cor amarela ou sons graves e a cor azul,
nos parece mais fácil que pensar na inversão desses mesmos termos.
Interessante lembrar também que Kandinsky era o fundador do grupo Der blaue Reiter
(O Cavaleiro Azul) e que justamente a cor azul foi escolhida para nomear um grupo com uma
orientação decididamente espiritualista. Devido a esses mesmos ideais místicos, que ecoavam
com frequência em suas teorias sobre arte e sinestesia, Kandinsky pode ser fortemente
criticado ou vítima de descrença, assim como o foram, em menor escala, Mondrian ou Klee.
No entanto, no que concerne a cor azul e sua associação com sons graves, até mesmo a
fenomenologia de Merleau-Ponty vai convergir de alguma maneira com o que diz o pintor
russo. O som grave, para o filósofo, torna a cor azul mais profunda e escura (Merleau-Ponty,
1945, p. 274).
Timbres, espace et mouvement foi composta para uma formação orquestral inabitual:
16 madeiras (4 flautas, 4 oboés, oboé d’amore, 4 clarinetes, 4 fagotes e contra-fagote), 11
metais (4 trompas, 3 trompetes, 3 trombones e tuba), 12 violoncelos, 10 contrabaixos,
percussão (um jogo de crotales17, 2 címbalos suspensos, 3 tantãs, 3 bongôs, 3 tom-tons, caixa-
clara, bumbo, marimba, glockenspiel, 4 tímpanos e 1 tímpano piccola), harpa e celesta. Sem
violinos e violas, as cordas graves ganham maior destaque, efeito que é ainda ressaltado pelo
interlúdio confiado somente aos violoncelos.
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17
Um conjunto de pequenos pratos cromados.
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REFLEXOS!
Capítulo!5!
239!
!
Não deve ter sido fortuita a escolha de Henri Dutilleux de convocar um contingente
importante de violoncelos e contrabaixos quando inspirado por uma obra predominantemente
azul.
Na primeira parte de Timbres, espace et mouvement existe um tratamento harmônico
que privilegia ligeiramente as texturas mais extremas, graves e agudas. Em certas passagens
fica muito explícito o contraste entre os violoncelos e os contrabaixos, e seus movimentos
melódicos descendentes, e as madeiras, que parecem almejar regiões cada vez mais agudas.
Na passagem citada abaixo (exemplo 1), por exemplo, as cordas, amparadas pelos trombones,
fagotes, clarinete baixo e harpa, descem e convocam sons graves, enquanto o restante das
madeiras permanece em regiões bastante agudas.
!
240! REFLEXOS!
Capítulo!5!
Ex. 5: Henri Dutilleux. Compassos 65 e 66, primeiro movimento de Timbres, espace et mouvement.
Outras vezes, contrastes de timbres são obtidos na sobreposição de notas muito graves
nos metais, principalmente tuba e trombone, e muitos altas das madeiras agudas. Essas
!
REFLEXOS!
Capítulo!5!
241!
!
1. Os contrastes dinâmicos bruscos, que também podem ser observados nos registros
graves do trecho acima citado, contribuem para o estabelecimento de analogias com os
efeitos contrastantes do quadro. O movimento solicitado pelos espirais e pela
geometrização da forma global da pintura favorece uma ágil percepção das gradações
de cor.
2. A escrita ligeiramente pontilista de diversos trechos da obra, como no primeiro tema
(exemplo musical 2), ou nos ataques rápidos de notas repetidas alternando diferentes
instrumentos nas madeiras e metais na segunda parte, que começam na número 7 e
terminam no número 8 da partitura (exemplo musical 318). Os ataques pontuais nos
sopros, prolongados ou repetidos, podem se associar aos pontos de luz dos astros de
Noite Estrelada.
3. O fato do interlúdio orquestral ser inteiramente dedicado aos violoncelos enfatiza esse
instrumento que, como vimos, pode ter sido associado a ideia de infinito e a
predominância da cor azul da tela.
4. A inclusão de certos instrumentos de percussão na obra também sublinham
características do quadro. Por exemplo, os címbalos suspensos que pontuam a música
tem efeito análogo à explosões de luz, o timbre metálico do glockenspiel e dos
crotales podem também, sem dificuldade, ser associados aos pontos de luz mais
intensa no interior da tela.
5. A sensação de uma certa unidade temática em Noites Estreladas de Dutilleux, ou
mesmo a recorrente percepção de centro tonais, pode igualmente colaborar na
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18
Reproduzimos apenas os dois primeiros compassos da seção.
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242! REFLEXOS!
Capítulo!5!
construção de analogias com um quadro que tem uma unidade cromática na cor azul
como mote central.
Ex. 6: Henri Dutilleux. Compassos 1-7, primeiro movimento de Timbres, espace et mouvement.
!
REFLEXOS!
Capítulo!5!
243!
!
Ex. 7: Henri Dutilleux. Compassos 34-35, segundo movimento de Timbres, espace et mouvement.
!
244! REFLEXOS!
Capítulo!5!
Diagrama 5: Henri Dutilleux. Esquema de organização da orquestra para Timbres, Espace et mouvement,
(reproduzido a partir da partitura, 1980, p. 5).
!
REFLEXOS!
Capítulo!5!
245!
!
Ex. 8: Henri Dutilleux. Compassos 76-82, p. 29, primeiro movimento de Timbres, espace et mouvement.
!
246! REFLEXOS!
Capítulo!5!
O espaço denso da obra pictórica pode também ter sido traduzido pelo compositor
através do contingente significativo de músicos e pela densidade dos registros, sobretudo a
potencia dos graves e dos agudos que, como vimos, devem estar ligados ao azul e ao amarelo,
respectivamente.
Quanto ao terceiro termo do título da obra musical, o movimento, Dutilleux
certamente o percebeu entre os principais elementos da tela do Van Gogh, talvez o
preponderante.
Em uma sutileza que parece dar continuidade à tradição francesa de Fauré ou Debussy,
Dutilleux ressalta o movimento de sua obra através da alternância entre trechos mais estáticos
e extremamente agitados. No entanto, a percepção imediata do movimento da obra plástica
passa bastante longe da gradual e, às vezes sutil, sensação de mobilidade da música. A análise
de Vanthala aponta uma série de procedimentos rítmicos e métricos, como rupturas bruscas,
trocas de compasso e rubatos. Esses efeitos estão ligados ao que chamou de “vertigem
pictórica” da tela de Van Gogh (1999, p. 148). Como não era intenção do compositor traduzir
“literalmente” a obra do pintor, e sim criar uma peça autônoma que não fosse descritiva, elos
precisos entre certas passagens musicais e certas regiões da tela podem soar uma tanto
artificiais. Em uma passagem, entretanto, é inevitável a associação entre os espirais do quadro
e os numerosos e crescentes trilos, que começam nas madeiras e terminam englobando a
quase totalidade dos instrumentos (exemplos 9 e 9.1).
!
REFLEXOS!
Capítulo!5!
247!
!
Ex. 9: Henri Dutilleux. Compasso 42, primeiro movimento de Timbres, espaces et Mouvement.
!
248! REFLEXOS!
Capítulo!5!
Ex. 9.1: Henri Dutilleux. Compassos 43-44, primeiro movimento de Timbres, espaces et mouvement.
!
REFLEXOS!
Capítulo!5!
249!
!
!
250! REFLEXOS!
Capítulo!5!
a) “Magia do Devir”
Um quadro de Paul Klee (1879-1940) nem sempre nos arrebata. Não somos impelidos
violentamente a sair de nossa zona de conforto. Está longe de ter o poder de choque de um
Van Gogh ou dos “improvisos” de Kandinsky. Tampouco aproxima-se da força imediata das
linhas de um Picasso, ou mesmo das cores fortes e aconchegantes de Matisse. As telas se
aparentam, sim, a um convite. Um sutil convite ao segundo olhar. Somos suavemente
conduzidos por uma afetuosa união de texturas, cores e formas. A potência é grande, porém
não sabemos quando ela se revela. É como se ouvíssemos o som da orquestra, mas não
pudéssemos reconhecer o primeiro golpe de arco dos violinos.
Uma tela de Klee é sempre uma tela acabada, no entanto, paradoxalmente, está em
perpétua construção. Regel chama isso de “magia do devir” no seu prefácio para Sobre Arte
Moderna e Outros Ensaios (Klee, 2001, p. 9). Para Klee, o mundo era um processo e, ao
mesmo tempo, um lugar de contemplação desse processo. A arte, assim como a natureza,
instaura a gênese das coisas. “A arte não reproduz o visível, mas torna visível”, é a primeira
frase de seu ensaio Confissão Criadora (ibid., p. 43).
Quando se fala em “tornar visível”, “magia do devir”, “obra em perpétua construção”,
pode-se pensar eventualmente em licença ou arroubo poético. Porém, com um mínimo de
esforço, seja no contato com a obra, seja na leitura dos textos do artista, essas caracterizações
se mostram mais efetivas que outras que o reduzem a um formalista, por exemplo.
Klee não se enquadra. Ao mesmo tempo em que sua obra carrega importantes traços do
“espírito do tempo”, ela parece comportar uma abertura, uma indefinição essencial que,
estranhamente, a define. É possível vislumbrar algo do cubismo por vezes, ou a delicadeza do
tratamento das cores de Cézanne, dos impressionistas, a liberdade de desenho como os de
Toulouse-Lautrec ou as experiências com pontos de Seurat, mas as apropriações de Klee são
sempre muito particulares, ou melhor, tem sempre uma própria poesia muito afirmada.
Quando se associa Klee à figura do importante teórico do formalismo, faz-se pensando
no fato do pintor ter integrado o corpo docente daquele que foi o principal centro de
arquitetura e design europeu, a Baulhaus. Paul Klee, enquanto lecionou nesta escola (1921-
1931), deixou em seus escritos e na transcrição de seus cursos, um importante legado para o
estudo de comunicação visual e design. Entretanto, no que diz respeito especificamente à
poética do pintor, excluindo – se é que isso é possível – sua atividade didática, o apreço pela
!
REFLEXOS!
Capítulo!5!
251!
!
forma não deve se firmar como centro de sua poética. Antes dela vem a preocupação com o
movimento e antes ainda, sua maneira de ver o mundo, de entendê-lo como gênese, ou como
um processo de criação sem começo nem fim. O formalismo pode se configurar no
entendimento das coisas como estruturas móveis, é verdade, mas a palavra parece comportar
o risco de obnubilar a poesia de sua obra. Afinal, Klee não quer somente relevar estruturas,
ele quer entender essências e tornar visível o transitório. Com seus conhecimentos de
matemática, álgebra ou física, Klee desvendava as formas do mundo, sempre partindo do que
há de mais elementar, e apresentava didaticamente seus resultados. No entanto, por outro
lado, sua fé na intuição e na imaginação eram tão presentes quanto o rigor das ciências exatas.
Ele achava que, mais do que planejar, ele devia deixar a pintura crescer, como a natureza.
Neste sentido, ele era um místico, e isso marca fundamentalmente sua obra. Gombrich afirma
que Klee, junto a Kandinsky e Mondriam, queria “rasgar o véu das aparências para chegar a
uma verdade mais elevada” (1993, p. 479). Melhor que caracterização de formalista parece
ser o entendimento de Giulio Argan, segundo o qual Klee é um artista da “formatividade”, em
que a obra é sempre algo que “vem a ser” (2008, p. 669) 1 . A “formatividade”, no
entendimento de Pareyson, enfatiza o processo, o diálogo do artista com a matéria-prima e o
poder que a própria obra tem de conduzi-lo (2008, p. 26). A forma e a estrutura, em Klee, só
podem ser entendidas quando se tem por pano de fundo a poesia do dinamismo e da
transformação.
b) A Música de Klee
Também como pano de fundo do pensamento estético do pintor aparece sua íntima e tão
comentada relação com a música. Quase toda sua vida foi permeada pela reflexão e a prática
musicais. Seus escritos, relatos, retratos e as próprias obras pictóricas ilustram fartamente a
importância da música em sua vida. Klee era filho de músicos, casou-se com uma pianista,
Lilly Stumpf, tocava violino a ponto de ter feito parte de orquestras profissionais2. O Zentrum
Paul Klee em Berna, na Suíça, revela melhor que qualquer livro elos do pintor com a arte dos
sons. Mas mesmo a simples leitura dos títulos de algumas obras já bastam para se pensar em
algum tipo de contato entre as artes: Der Orden von Hohen C (A Ordem do Contra-Dó),
Dymamisch-Polyphone Gruppe (Grupo Polifonicamente Dinâmico), Fuge in rot (Fuga em
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
1
Argan nos aponta ainda para o fato de Paul Klee ter sido o primeiro dos grandes artistas a penetrar na região
ilimitada do inconsciente (2008, p. 322-323).
2
Seu avô, grande organista, bem como seu pai, professor de música, ambos nasceram em Eisenach, cidade de
Johann Sebastian Bach.
! !
252! REFLEXOS!
Capítulo!5!
Vermelho), Rhythmisches (No Ritmo), entre muitos outros. Talvez baste simplesmente
encontrar-se livremente com sua obra para perceber a presença da música, como o fez Rainer
Maria Rilke em 1921:
Naquele tempo eu já tinha adivinhado que seu desenho muitas vezes era transcrição de
música. Ou melhor, naquele período, inclusive sem ele ter dito que sempre tocava
violino, infatigavelmente, tinha adivinhado essa transcrição da música. Para mim, esse é o
ponto mais desconcertante de sua existência de artista; pois, se a música de fato oferece
ao traço do lápis uma base de necessidades que valem tanto num campo quanto no outro,
em todo caso não consigo observar sem nenhum abalo esse tipo de conivência das artes,
dando as costas para a natureza: como se um dia devêssemos sofrer um assalto do inferno
e nos encontrássemos espantosamente indefesos. (Rainer Maria Rilke apud Klee, 2001, p.
104).
Um enfoque usual desse contato entre as artes na obra de Klee é aquele que enfatiza
paralelos existentes no plano estrutural de seus quadros. É nesse prisma que se encaixa a
maneira de pensar o encontro das artes de Étienne Souriau, por exemplo (Natiez, 2010, p. 39).
Foi a partir de reflexões sobre as relações entre estruturas e formas nas artes distintas que
Souriau fundamentou a disciplina Estética Comparada. Em um artigo publicado na revista Per
Musi (2010, p. 7-18), Rosana Costa Ramalho de Castro sintetiza alguns dos procedimentos
através dos quais Klee “traduz” elementos de natureza ou de grafia musical em vários de seus
quadros. Ela cita na música movimentos melódicos de terças ascendentes que Klee associa a
espirais, a representação de uma pauta musical, com suas linhas e barras, em correspondência
com uma malha de construção com módulos, a aplicação da métrica musical em suas telas
através do espaçamento de elementos na tela, uma utilização particular da noção de polifonia,
além de outros interessantes paralelos. Mas é no livro de Pierre Boulez, Paul Klee : Le Pays
Fertile (1989), que ficam particularmente claras as analogias musicais estabelecidas pelo
pintor no plano estrutural e as emulações existentes da grafia musical, que percorre um grande
número de seus quadros. Fica claro justamente porque o compositor francês consegue revelar
a sutileza dessas mesmas analogias e emulações. Bem além da construção de paralelismos
sistemáticos e didáticos, Boulez consegue fazer emergir questões que se ligam a
posicionamentos poéticos essenciais do pintor de Berna.
Jean-Jacques Nattiez (2010, p. 35-39), como vimos no segundo capítulo desta tese (cf.
p. 103-104), apresentou quatro grandes famílias metodológicas que abordam a aproximação
interartística. A primeira enfatiza o chamado Zeitgeist ou “espírito do tempo”, a segunda
engloba os autores que procuram correspondências temáticas, a terceira baseia-se nas
analogias estruturais, como a de Souriau, e a quarta e última, se fundamenta na
!
REFLEXOS!
Capítulo!5!
253!
!
individualidade metodológica e em uma síntese de todas as outras. Nattiez nos mostra como o
olhar de Pierre Boulez na obra de Klee pode se representar cada uma dessas famílias
metodológicas.
Existe nas telas desse pintor uma onipresença do fenômeno musical. Boulez percebe
isso quando tece, ou revela, analogias com a música em obras que não comportam, nem no
título, nem na grafia, nem nos seus escritos, relações explícitas com a arte dos sons. Ou
quando apresenta as principais de lições de Klee resumidas na importância de se saber reduzir
os elementos de qualquer linguagem a seu próprio princípio, qualquer que seja a
complexidade da linguagem e, em seguida, verificar como a dedução pode ser fértil no
processo de criação, ou seja, como a partir de uma simples ideia é possível tirar as mais
variadas consequências (Boulez, 1989, p. 10-11).
O pensamento do pintor, como vimos, centrava-se no processo, na “magia do devir”.
Ele queria, como percebeu Günter Regel (Klee, 2001, p. 36), desencadear reações plásticas
puras, mas “não necessariamente abstrair das possibilidades objetivas naturais da
comparação”, pois ele se interessava profundamente pelo significado e pelo valor simbólico
das coisas. É por isso que pode ser arriscado tecer elos entre o abstracionismo e Klee, pois a
busca do pintor pelas raízes da forma e a significação profunda das aparências não excluía por
completo certas imagens e signos ditos figurativos. Todo tipo de signo podia ser usado na sua
tentativa de tornar visível a criação e o processo. Sua obra fazia uma espécie de síntese entre
autonomia pictórica e representação.
A arte de Klee vê na música, como gênese e movimento, modelo de sua expressão
máxima. Apesar da marca do tempo ser mais nítida na música, é preciso deixar claro que a
arte plástica também se funda no tempo. Klee considera mera “divagação erudita” a distinção
tradicional entre artes do tempo e do espaço do Laoconte de Lessing, apresentada no primeiro
capítulo desta tese (cf., p. 47) (2001, p. 46). É preciso conscientizar-se da forte atuação da
dimensão tempo na pintura. Klee estava muito certo disso e essa consciência, longe de se
configurar somente como um posicionamento teórico distanciado, produziu consequências
determinantes na sua poética geral. É apenas a partir dessa vontade de movimento, dessa
aceitação consciente da intervenção do tempo, que as formas do pintor ganham vida. A forma
é dinâmica, deve crescer organicamente diante de nossos olhos e mostrar-se como riqueza de
conteúdo. Além disso, o entendimento de forma se estende para todas as instâncias possíveis,
como para o tratamento do fundo, a luminosidade e a extensão das cores. Ele reconhece e
! !
254! REFLEXOS!
Capítulo!5!
afirma a atuação temporal em cada elemento. Sua reflexão plástica tem o movimento como
figura central3.
Com relação à música, Klee desejava elaborar princípios de uma teoria harmônica,
capaz de desenvolvimento, de forma similar à teoria musical (Argan, 2008, p. 669). Assim
como um compositor, que toma as notas e a partir delas constrói sua música, o pintor deve
pegar as formas, entendidas em seu mais amplo sentido, e conceber uma pintura. Como na
música, onde as notas se auto-referenciam e o compositor não só cria como também assiste a
música crescer por si, assim também deve ocorrer na pintura: o artista pensa a forma e as
formas se pensam por si mesmas. A obra de arte deve ter uma existência autônoma: ser um
novo ser da natureza. O artista, movido pelo desejo de movimento e de uma temporalidade
musical, deve tornar visível a gênese e o trabalho das formas4.
Uma obra deve brotar, como disse Boulez (1989, p. 127-130), do combate entre a
disciplina e o caos. A primeira arma-se de um rigor imperioso, a segunda, do poder da livre
imaginação. A poesia de Klee transcende esse combate e se funda no dinamismo da
transformação. É preciso levar irracionalidade para um mundo que clama por estruturas
sólidas, assim entende o músico francês.
Procurando aderir à quarta família metodológica de Nattiez, aquela que está atenta ao
contexto, ao tema e a estrutura, vamos apontar e, eventualmente, construir alguns elos entre a
arte dos sons e a arte das formas na obra Im Bach’schen Stil (No Estilo de Bach) de 1919.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
3
“Dizem que Ingres ordenou o repouso; quero ri além desse pathos e ordenar o movimento.”(Klee, 2001, p. 10).
4
A ideia de que as formas artísticas eram como novos seres da natureza foi citada algumas vezes por Klee e fica
muito clara em várias de suas obras. Por exemplo, Park bei Luzern (Parque perto de Lucerna) e a Insula
Dulcamara, que será reproduzida na página 261 , ilustram, literalmente, a ideia de germinação e gênese que
percorre o pensamento plástico de Klee.
!
REFLEXOS!
Capítulo!5!
255!
!
!
Figura 8: Paul Klee. Im Bach’schen Stil, 1919. Aquarela e óleo sobre papel, 60 x 80 cm. – Coleção particular,
ZENTRUM Paul Klee, 2010. Também disponível em : http://www.allposters.com/-sp/Im-Bachschen-Stil-1919-
Posters_i325382_.htm
!
! O delicado tratamento das cores e o equilíbrio também delicado das linhas já seriam por
si só elementos suficientes para a apreciação da tela acima. Mas rejeitar o pensamento
musical de Klee, seja na força da afirmação temporal, seja na conquista de uma autonomia
das formas, seria rejeitar uma parte integrante de seu próprio posicionamento frente à arte.
Mais do que isso, a arte, incluindo a música, não era para o pintor algo dissociado da vida dita
normal. “A arte de dominar a vida é condição fundamental para qualquer expressão
posterior.” (Klee, 2001, p. 25).
Antes mesmo de maiores reflexões sobre a presença da música na obra analisada, um
primeiro fator deve ser considerado: seu título. É preciso lembrar que o pintor também era
poeta e que a escolha de seus títulos é cuidadosa e ajuda o observador a penetrar em suas
imagens. Com a sutileza que o caracteriza, as palavras do pintor somam-se ao sentido de suas
formas, no seu sentido mais amplo.
Klee usa a linguagem vocabular assim como a linguagem plástica para desencadear
efeitos psíquicos, liberando as imagens interiores, estabelecendo associações e sendo
capaz assim de configurar de maneira experimentável o conteúdo de sentido da forma,
num processo criador de recepção. (Regel apud Klee, ibid., p. 16).
! !
256! REFLEXOS!
Capítulo!5!
A escolha de Bach como mote de uma obra visual pode se justificar por vários fatores.
Seu repertório como violinista era constituído, em grande parte, pela obra de Bach, Haydn e
Mozart (Klee, 2001, p. 17). Johann Sebastian Bach tinha um lugar de honra, de acordo com
Günter Regel (apud Klee, ibid., p. 17). O porquê desse especial apreço pode ser explicado
pelo fato de na música de Bach encontrarmos certos dispositivos que são tanto óticos quanto
auditivos (Boulez, 1989, p. 98). Dessa forma, em Bach, o pintor encontrava algo que ele
queria expressar plasticamente. “A dualidade do mundo da arte e do mundo do homem é
orgânica, como em uma das Invenções de J.S. Bach.” (Klee, 2001, p. 116). O artista não
repudiava a música de seu tempo, mas encontrou na música do século XVII e XVIII a
expressão da modernidade que queria deixar na pintura5. Além disso, como também notou
Boulez, Paul Klee, embora tocasse razoavelmente bem, se situou no mundo da música como
amador e seu repertório devia ser mais abordável tecnicamente e em sintonia com sua
formação de base (ibid., p. 15).
Tendo hesitado entre tornar-se pintor, escritor ou músico profissional, sua decisão foi
tomada, de maneira relutante, entre seus 21 e 22 anos (ibid., p. 11). Dos desenhos livres, Klee
passa às aquarelas, e das aquarelas à pintura, mas em sua maturidade artística essas três
técnicas dialogam e se interpenetram sem cessar. Mas é somente quando adquire maior
domínio da cor, alguns anos mais tarde, que Klee abraça com mais segurança sua opção pela
carreira de pintor. Isso se dá em 1914, depois de sua viagem à Tunísia, acompanhado do
amigo e pintor August Macke (1887-1914). “A cor me possui. Não tenho que persegui-la. Ela
sempre me possuirá, estou certo. Esse é o sentido deste momento feliz: cor e eu somos um. Eu
sou um pintor.” (Klee apud Düchting, 1998, p. 26)6. Mas o interessante é que a opção pela
pintura não foi uma renúncia à música. A arte dos sons continuou onipresente como reflexão e
presente como prática durante toda a sua vida, ainda que na condição de atividade paralela.
Sua afirmação profissional como pintor se deu somente após esse “encontro” com a cor em
meados da primeira década do século XX e deveu-se, ao menos em parte, ao seu contato em
1911 com a obra e os escritos de Robert Delaunay (1885-1841) em Paris (Klee, 2001, p. 78).
As luzes e cores das telas de Delaunay conduziam ritmicamente as formas e solicitavam um
olhar particularmente ativo de suas telas. O movimento, que é a alma da música, também era
o fundamento da reflexão plástica. Era preciso estar atento ao movimento das cores. Por isso,
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
5
Pierre Boulez diz que Klee sempre esteve aberto e atento à música moderna e apreciava particularmente
Debussy, no Péleas et Mélisande, por exemplo, e Hindemith, no seu anti-romantismo. A modernidade do Pierrot
Lunaire de Schoenberg não o agradava, assim como toda estética romântica do século XIX (Boulez, 1989, p.
16).
6
“Colour possesses me. I don’t have to pursue it. It will possess me always, I know it. That is the meaning of
this happy hour: Colour and I are one. I am a painter.”
!
REFLEXOS!
Capítulo!5!
257!
!
Paul Klee trabalhou com rigor buscando um entendimento do funcionamento e do ritmo das
cores. A crença na pintura como arte temporal, como a música, e fundada no movimento o
acompanha desde antes dos 20 anos, quando um dos seus professores em Munique, Heinrich
Knirr dizia com propriedade que era preciso “executar” um quadro.
Se por um lado, suas reflexões se calcavam na mais pura racionalidade, por outro, elas
eram guiadas por uma grande intuição imaginativa, é aí que aparece o viés quase místico do
pensamento de Klee. Como disse Lilian Ried Miller Barros, o artista suíço-alemão queria
buscar uma significação profunda, além das aparências das imagens, pela investigação das
raízes da forma. Ele queria ir da imagem para o arquétipo, revelar as forças transcendentais da
natureza e reduzir a um ponto mínimo o conglomerado dos fenômenos quantitativos (Barros,
2006, p. 112-113).
O controverso livro de Goethe, A Doutrina das Cores (1993), era bem conhecido de
Klee e a força simbólica das cores, além de seu movimento implícito, fazia parte do
pensamento do pintor7. No caso de No Estilo de Bach, a tela emana como cor predominante o
verde, que na “rosa dos temperamentos” de Schiller e Goethe (1799) representa a figura do
poeta.
No entanto, o valor simbólico não é o aspecto principal no que diz respeito ao
tratamento das cores na obra estudada. A variedade de técnicas na aplicação da cor e suas
combinações contribuem com mais força para o interesse da tela. Afinal, coexistem técnicas
de impressão, pintura à óleo, além do uso de aquarelas. Linhas geométricas, linhas curvas,
triângulos, cores no interior de formas bem delimitadas, cores que se espalham livremente,
pontos que se assemelham a gotas de tintas, ou seja, um tratamento imensamente variado
dentro do espaço modesto de 17,3 x 28,5 cm.
A multiplicidade de tratamentos pictóricos e de cor pode estar ligada ao fato de Klee ter
grande afeição pela ideia de polifonia, entendida como “um fenômeno simultâneo de várias
dimensões que conduz o drama a seu ápice” (Klee, 2001, p. 54). Embora as telas que fazem
menção direta à polifonia em seus títulos sejam dos anos que sucederam No Estilo de Bach, a
variedade de tratamento das formas e cores e sua sobreposição podem ilustrar neste quadro a
pluridimensionalidade tão cara a Klee. A polifonia entra, então, por duas vias. Por um lado,
através do próprio tratamento da tela, na convivência das cores, como por exemplo nas
sobreposições e nuances de claridade obtidas com aplicações graduais de branco. Por outro
lado, aparece uma polifonia que se liga mais especificamente a atributos do grafismo musical.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
7
Will Grohmann (1985, p. 10) comenta o apreço de Klee por Goethe, sobretudo pela obra Afinidades Eletivas,
lida três vezes seguidas por Klee.
! !
258! REFLEXOS!
Capítulo!5!
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REFLEXOS!
Capítulo!5!
259!
!
d) Ritmo e Grafismo
Considerando a noção de ritmo em uma tela como distribuição dos limites espaciais, No
Estilo de Bach tem sua dimensão rítmica guiada sobretudo pelas linhas demarcadas pelo
preto. Seu ritmo é conduzido pela agilidade e firmeza dos traços, com suas extensões
próprias, pelos círculos, que parecem se transformar em símbolos que ralentam o movimento,
e pelos traços verticais que pontuam a tela, às vezes nos surpreendendo, às vezes paralisando
nosso olhar. Formas geométricas se distendem e se contraem. As linhas curvas preenchidas de
amarelo-alaranjado do lado esquerdo da tela suscitam a suspensão do gesto e do olhar. Os
degraus descendentes do mesmo lado podem muito bem evocar a escrita por blocos ou as
chamadas marchas harmônicas tão comuns em Johann Sebastian Bach. Klee conhecia
suficientemente bem a música para poder fazer esse tipo de aplicação de princípios teóricos
musicais. E as aplicações mais interessantes são justamente essas, que embora possam ter
suas origens em estruturas precisas do universo musical, encontram na dimensão plástica uma
expressão própria e se configuram como “novos seres”, como desejava o pintor.
Klee tinha consciência de que traduções “literais” de peças musicais em obras plásticas
puras não poderiam transmitir emoções análogas. Mesmo assim experimentou fazer uma
transposição gráfica de uma das sonatas pra violino de Bach, reproduzida por Boulez em seu
livro sobre Klee (1989, p. 56). A partir de uma minuciosa organização matemática e do
estabelecimento de parâmetros, o pintor apresentava linhas horizontais, verticais e diagonais
! !
260! REFLEXOS!
Capítulo!5!
!
REFLEXOS!
Capítulo!5!
261!
!
novos seres da natureza. É mais uma vez a metáfora da árvore, na qual o tronco, o artista,
extrai certos materiais através da raiz e a partir deles deduz novas formas que se constituirão,
na copa, a obra de arte. A música de Bach, que o pintor conhecia muito bem, servia para
nutrir reflexões profundas sobre a criação em arte.
O grafismo musical penetra e fertiliza a obra de Klee. Mas o que antes era um sinal
específico e preciso na música se torna uma forma com existência completamente autônoma:
um novo ser. É o caso, por exemplo, de uma obra de 1938 intitulada Insula Dulcamara, onde
notas, ligaduras, colchetes e fermatas adquirem e afirmam uma nova personalidade e sentido.
Ou quando notas e pautas viram árvores e caminhos e determinam o ritmo de uma paisagem,
como em Kamel in rhythmischer Baumlandschaft (Camelo em uma paisagem ritmada por
árvores), pintado em 1920.
A música, na obra de Klee, entra por vias distintas, que são mais ou menos óbvias,
declaradas ou veladas. No mínimo três caminhos podem ser citados. O primeiro concerne o
pensamento geral de um pintor que queria ver na sua obra a “metáfora da criação”
(Grohmann, 1985, p. 7). A música, que só existe em movimento, serve de guia e inspiração
! !
262! REFLEXOS!
Capítulo!5!
para o desejo de instaurar formas que crescem aos nossos olhos. Os símbolos musicais, mais
pelos sentidos subjacentes que pela especificidade no interior da teoria musical, também
inserem dinâmicas musicais no interior de certas telas. Klee estava bem consciente de que ao
inserir signos musicais no interior de suas telas, eles imediatamente encontravam novos
sentidos. O artista manipulava as raízes da escrita musical quando, por exemplo, apodera-se
das linhas da pauta musical para incitar a continuidade temporal no espaço de suas telas. A
apropriação e “deformação” dos símbolos musicais seria uma segunda maneira através da
qual a música podia penetrar em suas telas. Klee realiza, assim, uma espécie de emulação que
mimetiza e concorre com seus modelos imprimindo neles novos significados. Um terceiro
caminho possível é aquele que busca no interior da música estruturas organizacionais e tenta
aplicá-las nas formas plásticas visuais. Seria uma maneira próxima ao pensamento que tende
ao estruturalismo, como aquele de Étienne Souriau, citado mais de uma vez nesta tese, e que
se enquadraria na terceira família metodológica de Nattiez para a aproximação de artes
distintas. O melhor exemplo desse pensamento estruturalista está na mais famosa imagem
quando se trata de exemplificar as ligações de Klee com a música: Fuge in Rot (Fuga em
Vermelho) de 1921.
Figura 11: Paul Klee. Fuge in Rot, 1921. Aquarela e óleo sobre tela, 24,4 x 31,5 cm. –
Berna, ZENTRUM Paul Klee, 2010. Também disponível em :
https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Paul_Klee_Fuge_in_Rot.jpg
apresentação plástica. Certo rigor na composição das figuras geométricas com suas variantes
e reflexos se contrasta com a fantasia e a intuição do pintor em se apropriar dos fundamentos
de uma técnica musical tão sofisticada.
[…] uma figura principal e uma figura secundária se perseguindo entre elas em diversas
configurações, culminando em configurações bem apertadas. Como não temos interesse
em retornar à fuga original, a pintura deve ser vista segundo aquilo que eu chamaria de
sua própria execução de fuga; […] (Boulez, ibid, p. 93)8.
E sua “própria execução” plástica é bem diferente daquela aprendida nos conservatórios
ou universidades. Embora não seja mencionado nas referências diretas à obra, tendemos à
associá-la à música de Bach, compositor caro a Klee.
No Estilo de Bach, porém, é mais sutil. Parece comportar uma dose maior de poesia. O
rigor bachiano é diluído em meio a “acordes” de cores mais variadas. A poética da fuga
vermelha tem uma rudeza imediatamente sentida na sua geometria, que não é camuflada por
um fundo colorido, como é o caso de No estilo de Bach. Curioso verificar que a “rosa dos
temperamentos” de Schiller e Goethe apresenta o vermelho associado à figura do monarca, no
grupo dos melancólicos, juntamente com os estudiosos e os filósofos, enquanto o verde, como
foi dito, associa-se aos poetas, junto ao bon vivant e aos amantes, no grupo dos sanguíneos.
Por ter na forma visual um equivalente mais direto da ideia da escrita contrapontística
musical, Fuga em Vermelho acaba se constituindo como uma exceção entre as telas de Klee
que fazem menção à polifonia em seus títulos. Klee estava sempre buscando as dimensões
mais profundas, que uns chamam de mística, outros de cósmica ou inconsciente.
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8
“[...] une figure principale et une figure secondaire se poursuivant elles-mêmes en diverses configurations,
culminant en des configurations très serrées. Et comme nous n’avons pas d’intérêt à revenir à la fugue originale,
la peinture doit être regardée selon ce que j’appellerais sa propre exécution de la fugue ; ”
! !
264! REFLEXOS!
Capítulo!5!
e) Olhos e Fermatas
Entre as figuras claramente traçadas em No Estilo de Bach, duas entre elas podem ser
ligadas sem hesitação à escrita musical: a fermata e a pequena nota inscrita em uma tênue
linha na parte de cima da pintura, ligeiramente à direita. Outras analogias podem surgir,
evidentemente, como a barra vertical que demarca compassos, duas colcheias invertidas no
extremo direito da parte de cima da tela, as figuras circulares como semibreves, as linhas
compondo uma espécie de pauta musical ou a grande curva ascendente como uma ligadura.
Todas elas são, provavelmente, verdadeiras. Com maior clareza, porém, somente a fermata e a
nota solitária. Aliás, rigorosamente falando, somente a fermata é absolutamente clara.
Na globalidade da obra de Klee, a fermata merece uma atenção especial, porque aparece
nítida ou sugerida, em grande quantidade de desenhos, aquarelas e pinturas. Vê-se fermatas
desde a sua adolescência (Menino Jesus com Asas Amarelas, 1885) até suas obras finais,
como em Cenário de Palco de 1937, onde a fermata aparece na parte mais iluminada e clara
da tela e em outros pontos.
Folheando um grande catálogo ou percorrendo uma exposição do artista de Berna é fácil
perceber o quanto o semicírculo e o ponto que ilustram uma fermata é recorrente na
globalidade de suas obras. Não deve ser exagero pensá-la até mesmo como um dos ícones que
mais se repetem na obra de Klee. Composição Cósmica (1919), Vila Árabe (1922), Pastoral
(1927), Uma Folha do Livro das Cidades (1928), Necrópolis (1930), são mais alguns dentre
os muitos exemplos em que a fermata está lá, bem visível. Dos exemplos citados, apenas
Pastoral e Vila Árabe foram mencionados na bibliografia consultada que comenta a
aproximação de Klee com a música. Existem também alguns exemplos em que a fermata
pode ser facilmente deduzida, como na já citada Insula Dulcorama, no Jardim Oriental
(1937) ou no Parque perto de Lucerna (1938), onde a curva se separa do ponto.
O mínimo que se pode dizer é que Klee tinha grande afeição pela fermata. Em 1919, em
Desenhando com a Fermata, a afeição é afirmada, além de uma interessante e aparentemente
óbvia associação: a fermata e o olho. Essa associação vai pontuando suas obras de maneira
mais ou menos evidente (Gavinha, 1932; Lenda do Nilo, 1937; Du Starker, o – oh oh oh,
1919). Em Cativo (1940), uma de suas últimas telas, essa analogia é muito nítida.
!
REFLEXOS!
Capítulo!5!
265!
!
!
Figura 12: Paul Klee. Desenhando com a fermata, Figura 13: Paul Klee, Captive, 1940, óleo
1918. Bico de pena, 15.9 x 24.3 cm. – Berna, sobre serapilheira, 17,78 x 43,18 cm. -
ZENTRUM Paul Klee, 2010. Collection Mr. and Mrs. Frederick
Zimmerman, Nova Iorque, ARTCHIVE, 2011.
Disponíveis respectivamente em:
https://www.ufmg.br/online/arquivos/anexos/num21_cap_01.pdf.pdf
http://celinejulie.wordpress.com/2007/06/13/captive-1940-by-paul-klee/
! !
Na verdade, a forte relação entre o olho e a figura musical pode ser exibida desde antes de
Klee ter feito sua opção de se tornar pintor. Já é observada em um pequeno desenho feito no
seu caderno de geometria analítica, quando o pintor contava seus 19 anos de idade. Uma
fermata é inscrita na quarta nota da Quinta Sinfonia de Beethoven, bem abaixo do desenho de
um infeliz Beethoven, de quem só pode se ver com nitidez o olho e a boca, voltada para baixo
como uma fermata sem ponto. É Beethoven, na mão de Klee, que estabelece o elo entre o
olho e a fermata.
! !
266! REFLEXOS!
Capítulo!5!
Quanto à fascinação de Klee pelo olho-fermata, pode ser curioso observar os próprios
olhos do pintor, tanto nos autorretratos, como em seus retratos fotográficos. São eles as
figuras mais pronunciadas e marcantes na face do artista.
! !
Figura 15: Paul Klee. Auto-retrato, 1899. Figura 16: Paul Klee. Auto-retrato, 1909.
Lápis sobre papel, 13,7 x 11,4 cm. - Aquarela sobre papel, 16.3 x 13,4cm. -
coleção Feliz Klee, Berna, ZENTRUM Paul Klee, 2010.
ZENTRUM Paul Klee, 2010.
Não deve ter sido mera coincidência que uma de suas obras derradeiras e mais
conhecidas, pintada na fase final de sua doença, a esclerodermia, seja justamente uma que
associa olho e música, O Timpanista (1940). A intensidade do olhar dialoga com o
dinamismo quase agressivo das pinceladas. “Como Cronos, o percussionista define a rítmica
da passagem do tempo.” (Düchting, 2008, p. 88)9.
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9
“Like Chronos, the drummer defines the rhythmic passage of time.”
!
REFLEXOS!
Capítulo!5!
267!
!
Paul Klee vai bem além de óbvias analogias possíveis entre gestos musicais e pictóricos
e, olhando para as origens e para os processos internos das duas artes, o pintor deixa que a
música se reflita com intensidade no espaço de suas telas. Ele mostra que a tradução de uma
arte por outra é possível, desde que se acessem as dimensões profundas da lógica e da poética.
Para Klee é preciso acessar as raízes de uma mesma árvore, cuja copa representa a obra de
arte. Seja ela musical ou visual.
Como pensamento, manifestação de movimento, grafismo, transposição de estruturas, a
música se reflete com intensidade na obra de Paul Klee. Às vezes, de maneira tão
fundamental, que não nos é permitido saber precisamente o que nos faz pensar em música.
Como Rilke, simplesmente “adivinhamos” a musicalidade das telas.
Em No Estilo de Bach, obra que serviu de mote para esse texto, encontramos várias
frestas por onde a música entra. Na polifonia dupla, de figura e fundo, no grafismo musical,
na rítmica variada, na escrita por blocos, tão comum em Bach, por exemplo, são alguns dos
elos que a tela, fundamentada pela onipresença de toda uma filosofia, encontra com a arte dos
sons.
4.#Outros#Reflexos#
#
As maneiras através das quais é possível traduzir, refletir ou aplicar elementos de uma
arte em outra são tão numerosas quanto à quantidade de artistas plásticos e músicos que se
abriram à arte vizinha, seja estabelecendo analogias diretas com obras específicas, seja
nutrindo-se de noções fundamentais da outra arte ou de posicionamentos estéticos mais
amplos. A emulação aparece principalmente como um sentimento de admiração por um
“modelo” que se configura no desejo de comunicar, através de outras matérias e técnicas,
certos traços apreciados na arte vizinha. A mimeses, que habita o núcleo da emulação, só
pode ser entendida de maneira relativa no interior do jogo de formas entre naturezas tão
distintas. Artistas e compositores constroem, através da sua própria linguagem, as mais
variadas analogias e maneiras de aplicar estruturas, temas, poéticas e assim produzir uma
infinidade de reflexos entre as artes. O ouvinte/espectador, consciente das intenções dos
criadores, busca enxergar e apreciar esses reflexos, que podem, por sua vez, multiplicar-se de
maneira surpreendente.
Encontrar reflexos ou correspondências entre as artes parece algo mais coerente no
interior do século XX, como notou Boulez (1989, p. 23). Foi quando esse desejo de dialogar
com a outra arte se tornou menos idealizado, mais explícito e conduzido por lógicas
! !
268! REFLEXOS!
Capítulo!5!
aparentemente mais objetivas. No entanto, o século XIX pontualmente anunciava, mesmo que
por um viés distinto, o desejo por uma arte que fosse mais abrangente e que remetesse a um
singular totalizante. Esboçava-se o apreço por uma arte que nos fizesse pensar na origem
comum de todas as artes. Franz Liszt (1811-1886) deixava que fontes pictóricas penetrassem
e fertilizassem sua obra. É o caso, por exemplo, de duas peças para piano do álbum Segundo
Ano de Peregrinação (Itália): Il Sposalizio e Il Pensieroso, o primeiro baseado na tela de
Rafael que leva o mesmo nome e o segundo inspirado no túmulo de Laurent de Médicis feito
por Michelangelo10. Os artistas se preocupavam em trazer o “fundo comum” que havia entre
as diversas expressões artísticas. Eugène Delacroix (1798-1863), ainda na primeira metade do
século XIX, já pensava que as analogias entre as artes poderiam levar um novo impulso a sua
arte. Por outro lado, Hector Berlioz (1803-1869), com a Sinfonia Fantástica, cria uma música
que revela claramente o desejo de sugerir imagens ou, como notou Gérard Denizeau (2008, p.
160), o compositor inaugura em Sabbat, quinto movimento desta sinfonia, uma fusão inédita
de espaço-tempo. Em meados do século XIX coexistiam o pensamento positivista e a
imaginação romântica. O realismo objetivo da Escola de Barbizon, por exemplo, queria
exaltar a verdade da natureza, tocar a essência das coisas, mas ao mesmo tempo tinha um
compromisso com a objetividade científica. Ou seja, ao mesmo tempo focalizava a
especificidade do gesto artístico e flertava com a unidade da arte. Algo similar, ainda que por
vias distintas e menos pragmáticas, ocorre com o Impressionismo, onde o entendimento da
cor pela ciência é incorporado com certo rigor no interior de imagens fluidas e livres.
Opondo-se ao positivismo surge o Simbolismo que, por sua vez, parte do princípio de que o
mundo é um organismo homogêneo e que somente os sentidos podem ser capazes de desfazer
essa misteriosa unidade (ibid., p. 178). Os artistas simbolistas iriam, então, de uma firme
crença na unidade das artes para a especificidade dos sentidos contrariando, de alguma
maneira, o pensamento romântico que partia do específico em direção à unidade, e isso inclui
tanto os impressionistas quanto os membros da Escola de Barbizon.
O movimento simbolista evocou a música em alguns momentos, por exemplo, nas
telas Orfeu e Parsifal de Odilon Redon (1840-1916) e, principalmente, porém já no século
XX, em Lucien Lévy-Dhurmer (1865-1953), que “pintou” sinfonias e sonatas de Beethoven,
o que poderia caracterizar muito bem o que chamamos de reflexos neste trabalho.
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10
Temáticas comuns à pintura e a música também são observadas em Liszt, como seu Jeux d’eaux de la ville
d’este o Jardin de la villa d’Este de Jean-Baptiste Corot. Este caso, porém, não se adequa aos reflexos desta tese
e sim às ressonâncias, por não haver contato nem intenção em fazer algum tipo de tradução de obras.
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REFLEXOS!
Capítulo!5!
269!
!
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
11
“Fantin-Latour symbolista?”, in: Symbolisme et musique en France, Paris, Champion, 1995, p. 77.
! !
270! REFLEXOS!
Capítulo!5!
visam somente ilustrar este capítulo com “outros reflexos”, sem a pretensão de criar uma lista
ou dar uma visão panorâmica justa de um século de interseções das artes.
Em 1902, em Viena, é realizada uma obra que parece ser a mais marcante do início do
século no que diz respeito ao “reflexo” musical em uma obra visual. Gustav Klimt (1862-
1918) pinta a Frisa Beethoven, onde os mais diversos elementos da Nona Sinfonia percorrem
o extenso mural da Maison de la Sezession. Não só a música, mas também poesia e dança se
encontram nesta obra pictórica. O movimento artístico da Secessão visava a síntese na arte e
queria estabelecer um princípio de equivalência na renovação formal da linguagem artística
(ibid., p. 203). Esse princípio encontrado na Frisa de Klimt se junta, de alguma maneira, ao
ideal artístico da arte total do século anterior.
Aquilo que Delacroix já havia anunciado um século atrás, foi proclamado por Wassily
Kandinsky (1866-1944) em 1913 no célebre Do Espiritual na Arte. Leis universais regiam
todas as artes e o artista moderno seria movido pelo que o pintor russo chamou de
“necessidade interior” de estabelecer as sínteses das artes. Esses princípios ficam explícitos
tanto no livro de Kandinsky quanto nas diretrizes do grupo chamado Blaue Reiter, impressas
no seu Almanach em 1912. Como percebeu Jean-Yves Bosseur (2006, p. 16), no Almanach
não existe nenhuma alusão à divisão tradicional entre técnicas artísticas, existe, sim, uma
homogeneidade de pensamento, uma crença comum na vida interior do artista, na forma como
exteriorização da intuição criativa, entre outras “leis”. Além de citar um certo número de
obras em que Kandinsky incorporou livremente técnicas musicais, como em Fuga (1914),
chamada por ele de “improvisação controlada”, Bosseur sugere que a tela chamada
Impression III (Konzert) está ligada a um concerto que o pintor assistiu em 1911 com obras de
Schoenberg (1874-1951). Kandinsky exaltava a fusão das sensações e proclamava a
sinestesia. Acreditando no jogo de correspondências entre cores e sons, chegou a propor
transcrições visuais de motivos musicais, por exemplo, na Quinta Sinfonia de Beethoven
Kandinsky, 2006, p. 52).
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REFLEXOS!
Capítulo!5!
271!
!
!
Figura 18: Wassily Kandinsky. Impression III
(Konzert), 1911. Óleo sobre tela, 78,5 x 100,5
cm. – Munique, Städtische Galerie im
Lenbachhaus und Kunstbau, ABC Gallery,
2011. Também disponível em:
http://arthistory.about.com/od/from_exhibitions
/ig/kandinsky_retrospective/kandinsky_gugg_0
910_05.htm
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Eu acredito justamente que não podemos encontrar nossa harmonia de hoje por vias
“geométricas”, mas pelo contrário, pela via anti-geométrica, da mais absoluta anti-lógica.
E esta via é aquela das “dissonâncias na arte” – tanto em pintura quanto em música. E a
dissonância pictórica e musical de “hoje” não é nada mais que a consonância de
“amanhã”. (Kandinsky apud Duplaix, 2004, p. 118)12.
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12
“Je crois justement qu’on ne peut trouver notre harmonie d’aujourd’hui par des voies « géométriques », mais
au contraire, par l’antigéométrique, l’antilogique le plus absolu. Et cette voie est celle des « dissonances dans
l’art » - en peinture comme en musique. Et la dissonance picturale et musicale « d’aujourd’hui » n’est rien
d’autre que la consonance de « demain ».”
! !
272! REFLEXOS!
Capítulo!5!
música e que a noção de duração se impusesse no interior das cores ritmadas. Morgan Russell
(1886-1953) e Stanton Macdonald-Wright (1890-1973) estão entre os líderes do movimento e
trazem alguma semelhança com o ideal artístico de interpenetração tempo/espaço buscado por
na mesma época por Robert Delaunay (1885-1941) (Duplaix, 2004, p. 132-139).
Nas primeiras décadas do século XX, a música penetrou o universo pictórico das mais
diversas maneiras. Às vezes era modelo de abstração, outras vezes buscava-se princípios
comuns de construção, outras vezes ainda era o pensamento ou a percepção sinestésica que se
afirmava. Pintores do porte de Piet Mondrian (1872-1944), Henri Matisse (1869-1954) e
Frantisek Kupka (1871-1957), por exemplo, estabeleceram algum tipo de diálogo com a arte
dos sons. Mondrian pensava a arte em sua globalidade e achava que a música, assim como a
pintura, deviam suprimir completamente a natureza de seus núcleos. Era preciso excluir os
sons naturais, inventar novos instrumentos, abolir as curvas melódicas e as vibrações naturais
do som (Bosseur, 1998, p. 111). Matisse fala frequentemente em dissonância e consonância,
em acordes, harmonia e, por exemplo, na sua tela La leçon de piano de 1916 o pintor busca
equivalentes estruturais e cromáticos entre a escala musical e a gama de cores (Denizeau,
2008, p. 218). Kupka acreditava que toda sensação implicava no cruzamento das diferentes
modalidades sensitivas e que uma representação de linhas e cores não podia ser isolada de sua
representação acústica e olfativa (Bosseur, 2006, p. 51).
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REFLEXOS!
Capítulo!5!
273!
!
Eu tateio no escuro, mas creio que posso encontrar algo entre a visão e a audição e posso
criar uma figura em cores como Bach o fez em música. De qualquer maneira, não me
contentarei mais com uma cópia servil. (Kupka apud Duplaix, 2004, p. 117)13.
Na primeira metade do século passado havia ainda outros movimentos artísticos que
teciam ligações estreitas com a música. Era o caso do Musicalismo, fundado nos anos 30 por
Charles Blanc-Gatti, Henry Valensi, Gustave Bourgogne e Vito Stracquadaini. Cada artista
desenvolvia seu próprio sistema de correspondências musicais com a preocupação de fundo
de revelar ecos psíquicos no domínio visual (Bosseur, 2006, p. 44). Havia ainda o Vorticismo
inglês que buscava um “ritmo absoluto” e também o Mecanicismo de Fernand Léger, com um
viés similar.
Bem no meio do século XX, Gérard Denizeau (2008, p. 232) cita como obra marcante
do diálogo das artes, Autumn Rhythm (1950) de Jackson Pollock. A impressão do gesto, do
ritmo, a autonomia da forma e o combate à descontinuidade temporal e espacial devem estar
entre os elementos que constroem elos entre artes.
Após os anos 50 pululam nas artes visuais exemplos do que chamamos de reflexos,
sejam eles indiretos, isto é, inspirados por aspectos mais gerais da arte musical ou de certo
compositor em especial, ou diretos, quando o artista se baseia em uma obra musical bem
precisa. Jean-Yves Bosseur (2006) cita inúmeros artistas que, intencionalmente, dialogaram
com a música e produziram reflexos diretos em sua arte. Serge Charchoune (1888-1975)
buscou uma representação pictórica do Concerto no.4 de Beethoven e Sinfonia no.9 de
Schubert, August Von Briesen (1935-2003) quis pintar a Música Aquática de Handel e Punkte
de Stockhausen; Henri Nouveau (1901-1959) propôs uma representação gráfica da oitava
fuga do primeiro livro do cravo bem temperado de Bach. Jacques Pourcher (nascido em 1964)
compôs obras que se ligam à Lux Aeterna de Ligeti, Variações op. 27 de Webern, Jesús
Rafael Sotto (1923-2005), caracterizando agora o que chamamos de reflexos indiretos mais
acima, cria as Pinturas Seriais em analogia com o serialismo musical. Jaspers Johns, Jean
Legros, Jean Dewasne, Stuart Davis, Sol Le Wit, Augusto Giacometti, Mikhaïl Matiouchine,
Arnaldo e Bruno Ginanni-Corradini, Georgia O’Keeffe, Leopold Survage, Vlaimir Baranoff-
Rossiné, Francis Picabia, Sophie Taeuber-Arp, Josef Mathias Hauer, Josef Albers, Théo Van
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13
“Je tâtonne toujours dans le noir, mais je crois pouvoir trouver quelque chose entre la vue et l’ouïe et je peux
créer une figure en couleurs comme Bach l’a fait en musique. De toute manière, je ne me contenterai plus
longtemps de la servile copie.”
! !
274! REFLEXOS!
Capítulo!5!
Doesburg, todos, em algum momento, refletiram sobre o parentesco das artes e deixaram
algum registro disso em suas obras14.
No Brasil, o artista Arcangelo Ianelli, em sua fase geométrica, iniciada nos anos 70,
evocava a música em seus quadros. Em uma poética que remetia a Mark Rothko, Ianelli
parecia desejar envolver o observador e tornar-se íntimo dele, como a música pode fazer com
o ouvinte. Telas como Balé das Formas (1973) e Sinfonia em Verde (1987) tem a arte dos
sons como pano de fundo e podem caracterizar nossos reflexos indiretos.
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14
A maior parte desses artistas são citados em Musique et arts plastiques: Interactions au XXe Siècle e no
catálogo da exposição Sons et lumières realizada em 2004 no Centro Nacional de Arte Moderna Georges
Pompidou na França, ambos citados na bibliografia desse trabalho.
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REFLEXOS!
Capítulo!5!
275!
!
! !
276! REFLEXOS!
Capítulo!5!
Como último exemplo citamos o jovem compositor canadense Simon Martin (nascido
em 1981) e suas três obras: L’Heure mauve para três violões, Projections Libérantes para
quarteto de saxofones e Iceberg e soleil de minuit – quatuor en blanc para quarteto de cordas.
As obras são, respectivamente, homenagens aos artistas visuais Ozias Leduc (1964-1955),
Paul-Émile Bourduas (1905-1960) e Jean Paul Riopelle (1923-2002). Na primeira obra,
através de um continuum musical e de mudanças gradativas de timbre, o compositor buscou
traduzir o senso de unidade e o simbolismo espiritual da tela L’Heure Mauve (1921) de
Leduc. A obra sobre a qual Martin se baseou para compor Projections libérantes foi
Composition 69 (1960) de Bourduas. Martin buscou na nos sons “multifônicos” dos
saxofones um correspondente sonoro para o efeito de fragmentação e rachaduras na superfície
desta pintura de Bourduas. Quanto à terceira composição citada, Iceberg e soleil de minuit –
quatuor en blanc, Martin se baseou na tela Soleil de Minuit (1977). Assim como Ridopelle,
Martin diz ter buscado explorar ao máximo as possibilidades da matéria, sem nunca se tornar
se sistemático15.
A lista de reflexos, segundo nosso vasto entendimento, poderia se estender quase
indefinidamente. Apreciar qualquer reflexo entre as artes não é nada mais que contemplar
tentativas declaradas de se aplicar na própria arte elementos que se encontram em outro
território. Embora tenhamos nos concentrado nos contatos virtuais entre música e artes
visuais, os reflexos poderiam eventualmente se aplicar a qualquer arte. No jogo das
similitudes no interior dos reflexos, as emulações motivam algum tipo de imitação e as
analogias ajudam a transpor diferenças e buscam igualar o inigualável. Mas cada obra
permanece em seu próprio território, autônoma, sem nenhum contato físico com a obra
refletida. A semelhança das artes aparece, mais uma vez, nas entrelinhas das diferenças.
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15
Tivemos a oportunidade de encontrar Simon Martin em Montréal, no Canadá nos dias 25 e 31 de maio de
2012, durante e após o Congresso Internacional de estudantes em Musicologia Sysmus 12 que ocorreu entre os
dias 24 e 26 de maio na mesma cidade.
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CONFLUÊNCIAS!
Capítulo!6!
277!
!
Capítulo 6
Confluências
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278! CONFLUÊNCIAS!
Capítulo!6!
1.#Confluir#
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a) Da Convenientia à Confluência
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1
Todas essas considerações sobre convenientia constituem ao mesmo tempo um síntese e uma apropriação da
noção conforme ela foi apresentada entre as páginas 45 e 52 desta tese.
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CONFLUÊNCIAS!
Capítulo!6!
279!
!
perspectiva, Santo Tomás de Aquino, apresenta a convenientia quase como sinônimo de belo.
De um belo, entretanto, que precisa de ajustes e pressupõe relações de causalidade.
A convenientia, como toda similitude, comporta forças e articulações internas. Evoca
com intensidade, por exemplo, as outras similitudes, que auxiliam no estabelecimento de
laços entre os elementos diversos no interior do objeto, mas são logo anuladas pelo fato da
convenientia envolver um contato real e direto entre as partes atuantes.
Analogias sugerem correspondências formais e temáticas, as emulações emergem nas
relações causais e as simpatias incitam conexões das mais surpreendentes ou improváveis. E
este jogo ou percurso de similitudes nos revela toda uma dinâmica interna, plena de ajustes e
assimilações.
Nossa convenientia se definirá, então, como uma força que harmoniza, não sem
tensão, elementos de natureza distinta. Em um fina articulação interna, onde simpatia,
analogia e emulação se alternam em sua ações, a convenientia incita um movimento que
aproxima e faz com que coisas naturalmente distintas ocupem o mesmo espaço, e nisso ela se
difere das outras similitudes. É a única em que os objetos realmente se tocam.
Como ocorreu com as ressonâncias e os reflexos, nossas confluências surgem da
articulação entre os principais atributos apresentados da similitude que as guia, a
convenientia, e as significações reveladas em um pequeno estudo do próprio termo
confluência.
Confluência não comporta uma ampla gama de significações. Surgiu nos dicionários
de língua portuguesa no início do século XIX, precedidos pelas versões confluente e confluir
no século XVII, derivadas por sua vez do latim conflŭěre (Cunha, 1982, p. 362). Na verdade,
tudo parece ter derivado do verbo fluir, que também deu origem à efluente, influência,
fluência, influxo, etc. Ainda de acordo com Cunha, fluir, queria dizer correr, escorrer (como
os líquidos), proceder e derivar. Fluir é antecedido por fluído, significando “que corre como
líquido” e deriva-se do substantivo masculino latino flume, que significa “rio”. Um pouco
mais à frente aparece fluxo, que já está nos dicionários de português desde o século XIV e
significa “fluido que corre, que deixa correr”.
Entre as primeiras significações de confluência, ou de sua versão francesa confluence,
nos dicionários atualizados, tais como Houaiss, Aulete, Petit Robert e o Trésor de la langue
française, está a acepção de união de rios, ou a de um ponto de junção de dois rios. Os
substantivos flume e fluxus deixam sua marca e imprimem no cerne da palavra a noção de
movimento e de encontro. Um movimento de coisas distintas que vão em uma mesma
direção. Um encontro que se dá em um ponto, um lugar, onde dois ou mais rios se confundem
!
280! CONFLUÊNCIAS!
Capítulo!6!
“ou em que um se lança no outro” (Aulete, 1948). “Direção para um mesmo ponto,
convergência, afluência”, é a segunda significação do Houaiss (2009). Nenhuma das
primeiras significações surpreendem o senso comum. Embora pensemos mais frequentemente
em confluência no sentido figurado, como convergência ou coincidência de ideias ou
interesses, nos é fácil associar confluência, mesmo que intuitivamente, com essas primeiras
significações ligadas a fluxos de água. Aliás, a própria sonoridade da palavra fluir parece nos
remeter ao movimento das águas.
Em Medicina, o termo é utilizado de duas maneiras. A primeira, análoga à sua
aplicação nos rios, confluência é a junção de dois vasos sanguíneos ou linfáticos. A segunda
aplicação relaciona-se com patologias que se manifestam na pele. Existe confluência quando
pústulas (pequenos tumores) estão tão próximos que se tocam e se confundem. Em Botânica,
a palavra confluente é aplicada aos órgãos das plantas indica que partes divergentes estão
unidas ou enlaçadas (Houaiss, 2009). Em Matemática, a confluência se configura em uma
“operação que se obtém uma equação diferencial a partir de outra que tem dois pontos
singulares, fazendo um dos pontos tender para o outro” (ibid.).
A confluência será, evidentemente, ligada ao verbo confluir, que por sua vez está
sempre atrelado à ação de reunir-se, encontrar-se ou “couler ensemble” (fluir ou deslizar
junto) (Petit Robert, 1990).
Todas os entendimentos confluem harmoniosamente e as pequenas nuances que
surgem na reflexão sobre o termo, sobretudo aquelas provindas das disciplinas mais afastadas
do pensamento desta tese, trazem algumas cores interessantes para nossas confluências. São
elas que, quando somadas à riqueza de entendimentos de convenientia, produzem uma
confluência sólida e que poderá aplicada no âmbito das artes.
!
CONFLUÊNCIAS!
Capítulo!6!
281!
!
outros, ou na Medicina, quando não é possível saber onde começa ou termina uma pústula em
uma varíola confluente, tão próximas elas se encontram.
As confluências nas artes, embora se configurem no interior de uma obra única,
carregam em seu núcleo significações do verbete que o antecede nos dicionários: conflito.
Quando coexistem em uma mesma obra materiais artísticos distintos, entendidos nos seus
sentidos mais concretos, tais como sons, cores ou gestos, essa coexistência irá pressupor
alguma espécie de conflito. Elementos de tendências antagônicas devem ocupar o mesmo
espaço, se ajustar e, de alguma forma, se harmonizar, como o encontro de dois rios formando
um terceiro, onde o resultado não é algo único, mas algo ao mesmo tempo uno e múltiplo.
Na confluência das artes existe, como na convenientia apresentada por Michel
Foucault, uma comunicação de paixões e movimentos. Indissociáveis, as paixões se
constituem nas forças que induzem o movimento que faz com que diversos elementos se
aproximem e se toquem. No interior de um objeto artístico que é ao mesmo tempo singular e
plural, as diferentes similitudes atuam ativamente, mas são imediatamente subsumidas pela
convenientia, única similitude em que existe um contato físico entre os elementos, no nosso
caso, as diferentes artes. A simpatia, que também se caracteriza pela comunicação de paixões,
atua como um tipo de correspondência poética, de instauração do objeto artístico, surgindo de
uma afinidade entre objetos artes e artistas distintos. Ela fica nítida nas artes ditas
colaborativas, tais como cinema, ópera e balé. As analogias são intermediadoras que tratam
diretamente dos ajustes. Os conflitos no jogo das diferenças e semelhanças são regrados pelas
analogias internas que asseguram ao mesmo tempo a unicidade da obra, mas que não igualam
nem suprimem as diferenças. E as emulações, estas estão presentes nos inevitáveis jogos de
reflexos da dimensão de causas e efeitos que elas pressupõem.
E assim, sempre guiadas pela força de convenientia e permeada de similitudes e
diferenças, as confluências afirmam o dinamismo e a riqueza das relações entre as partes, de
diferentes naturezas artísticas, e o todo, no interior do objeto artístico.
2. Confluências na ópera
a) Gesamtkunstwerk
!
282! CONFLUÊNCIAS!
Capítulo!6!
pensamento idealista alemão. Em Dresde, Iena, Berlim e Heideberg, nomes como Novalis e
Schelling esboçavam o desejo de reunir as artes, de expressar uma reconciliação naquilo que
o filósofo Michel Onfray chamou de “epifania teatralizada da arte total” (2004, p. 19).
Além da filosofia romântica alimentar a crença em uma estética global, teses
científicas que apresentavam sons e cores como vibrações expressas como ondas também
levam artistas do século XIX a especular sobre uma possível escala de equivalência entre
matérias artísticas (Vergo, 2010, p. 8). Poesia e música lideram o “ranking” das artes. Hegel
vê a primeira como a grande reveladora da Ideia absoluta. Schopenhauer vê a música como
linguagem universal que expressa diretamente a Vontade, sem descrever fenômenos
particulares nem sentimentos individuais2. Na poesia havia, por exemplo, Charles Baudelaire,
que no seu famoso poema Correspondances (1857) sintetizava sua aspiração a um ideal
totalizador e, mais tarde, Arthur Rimbaud, que no seu conhecido poema Les Voyelles (1883)
tece elos entre sons e cores. O poema sinfônico, tão bem representado no século XIX,
“transcreve” musicalmente conteúdos literários, evocando algumas imagens visuais.
Entretanto, no século dos românticos o desejo de totalidade atinge seu ápice no projeto
de arte total de Richard Wagner. Não somente a obra artística em si, no palco encenada, mas
também seus escritos teóricos e os textos de seus críticos, tudo contribuiu para afirmação do
ideal artístico do compositor, fundado em um projeto utópico segundo o qual a ópera
ambicionaria uma fusão de música, drama, artes plásticas e literatura3. A obra de arte total
almejava uma síntese superior em que cada arte deveria absorver e ultrapassar umas às outras
(Scarpetta, 2004, p. 10). Apesar de ser consequência de um pensamento centenário, a
Gesamtkunstwerk transformou-se em uma espécie de marca registrada de Richard Wagner.
Foi ele quem, em seus textos teóricos, sobretudo na Obra de Arte do Futuro (1850), percebeu
o termo como uma maneira conveniente de expressar suas próprias aspirações. Por ter sido ele
também o autor dos libretos de suas óperas e muitas vezes exercer um controle total sobre a
produção delas, o termo Gesamtkunstwerk pareceu se adequar satisfatoriamente.
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2
A Vontade em Schopenhauer, entendida de maneira bem geral, é a raiz de toda conduta humana, é concebida
sem nenhuma meta ou finalidade e se configura em um querer irracional e inconsciente (Schopenhauer, s.d., p.
148). “A música de modo algum é semelhante às outras artes, ou seja, cópia de Ideias, mas cópia da vontade
mesma, cuja objetividade também são as Ideias. Justamente por isso o efeito da música é tão mais poderoso e
penetrante que o das outras artes, já que elas falam apenas de sombras, enquanto aquela fala da essência.”
(Schopenhauer apud Wagner, 2010, p. 25).
3
Nos meados do século XIX e ainda hoje, os escritos teóricos de Wagner despertam grande interesse,
especialmente em sua trilogia de ensaios (Arte e Revolução, Ópera e Drama e A Obra de Arte do Futuro). Peter
Vergo comenta o fato de nos volumosos textos de Wagner ser fácil tomar emprestado frases de efeito e
aforismos capazes de ilustrar todo tipo de argumento estético, musical, histórico ou político (2010, p. 18).
!
CONFLUÊNCIAS!
Capítulo!6!
283!
!
Mas, como disse Onfray, visamos o cosmos, mas realizamos o microcosmos (2004, p.
21). Na ópera de Wagner existe, de fato, uma comunicação profunda entre música e texto, que
não cabe aqui desenvolver. No entanto, no que diz respeito aos cenários, Wagner deixou, na
maioria dos casos, que outras pessoas se esforçassem para realizá-los da maneira que os
convinha (Vergo, 2010, p. 19). Apesar de ter demonstrado uma grande imaginação visual,
confirmada pelos detalhes cênicos solicitados em seus libretos, o compositor provavelmente
não tinha um grau de envolvimento profundo com o universo das artes visuais (ibid., p. 19).
As inovações musicais e dramáticas não eram necessariamente acompanhadas por uma
reforma equivalente na apresentação cênica. A inovação cenográfica se caracterizava muito
mais pelas ideias e teorias do que pela sua concretização nos palcos (Dudeque, 2009, p. 1). A
obra de arte total exibia assim sua utopia.
A unificação das formas artísticas, é preciso frisar, não era para o compositor alemão a
diluição das barreiras entre as artes ou um modo de ignorar suas diferenças. Essa unificação
na arte total se associava, antes de tudo, ao território do drama que, por sua vez, ligava-se à
vontade do artista de reproduzir à sua maneira o espírito da tragédia grega. Assim como
Schelling, um dos mais importantes filósofos do idealismo alemão, Wagner estava entre
aqueles que situavam a tragédia grega no ápice da realização humana. Não eram as afinidades
e semelhanças entre as artes que estavam em jogo. As diferentes formas de arte, com suas
fronteiras bem delimitadas, deveriam estar à serviço de um ideal artístico maior: o drama. De
acordo com Peter Vergo (2010, p. 108), Wagner estava completamente convencido de que o
profundo efeito que a tragédia grega produzia nos espectadores provinha parcialmente da
subserviência de cada forma artística, principalmente poesia e música, ao propósito dramático
global. Vergo aponta ainda para o fato das ideias de Wagner terem tomado vida própria e
produzido alguns “frutíferos mal-entendidos” (ibid., p. 109). A Gesamtkunstwerk adquiri
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4
“Artistic man can be wholly satisfied only by a unification of all forms of art in the service of the common
artistic endeavor. Any fragmentation of his artistic sensibilities limits his freedom, prevents him from becoming
fully what he is capable of being. The highest form of communal art is drama; it can exist in its full entirety only
if it embraces every variety of art… When eye and ear mutually reinforce the impressions each receives, only
then is artistic man present in all his fullness.”
!
284! CONFLUÊNCIAS!
Capítulo!6!
sentidos bem distintos daqueles que Wagner havia imaginado e proposto. A noção de
completude (Gesamt) e de unicidade do termo predomina sobre o objetivo wagneriano de
glorificação do drama. No início do século XX, a Gesamtkunstwerk era associada a toda uma
gama de atividades, tais como design de interiores, decoração, urbanismo e arquitetura5.
Talvez seja, inclusive, uma aplicação do termo que se ajusta com mais facilidade que em
ópera, já que nessas atividades o “total” liga-se primordialmente ao “funcional” e à noção de
uma completude mais abordável. Em ópera não existe uma lei totalitária regendo-a, o que
existe, no máximo, são alguns conceitos que servem de mote. “Ópera, arte loucamente
completa. Quando se diz ‘completa’, porém, não se diz ‘total’, e se existe um termo,
definitivamente, que se aplica mal ao gênero, o termo é com certeza este último.” (Moindrot,
1993, p. 6)6.
O termo “total” pode não se ajustar convenientemente a uma compreensão geral de
ópera, mas, no caso de Wagner, denominá-la como arte total não parece tão equivocado, pois,
além de suas intenções mencionadas acima, existe ainda uma profunda simbiose entre seus
escritos teóricos e sua obra, sobretudo a Tetralogia, O Anel do Nibelungo. O conjunto dessas
quatro grandes óperas pretende ilustrar a origem da música e da Gesamtkunstwerk, fundada
sobre um mito andrógino reunindo poesia e música, considerados respectivamente como
encarnação do princípio masculino e feminino (Nattiez, 2010, p. 160). Não é surpreendente
que exista uma conexão entre os textos teóricos e o conteúdo da Tetralogia, mas Nattiez nos
mostra que ela é mais íntima e profunda do que se pode imaginar. O autor divide os escritos
de Wagner em três “atos” que revelam uma espécie de história mítica da arte ocidental (ibid.,
p. 163-165). No primeiro reinam os gregos e homem total, aquele que é ator, dançarino e
cantor em uma época em que não se distinguia o espectador do executante. No segundo ato, o
cristianismo e o espírito mercantilista dão um golpe na unidade antiga, separam as artes uma
das outras. E, finalmente, no terceiro ato se apresentam as condições para o retorno da
unidade, o homem se reaproxima da natureza, se livra da servidão do dinheiro e celebra a
morte de Deus. A ideia essencial desse ato, representado pelo artigo Ópera e Drama (1851) é
o reencontro do poético e do musical, do princípio masculino e o feminino. A partir dessa
divisão, Nattiez observa alguns momentos da Tetralogia e os coloca em paralelo com essa
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
5
A famosa escola de arquitetura, design e artes plásticas Bauhaus, fundada em 1919 na cidade de Weimar, tinha
entre seus motes a conjunção das artes. Por outro viés, mais concreto e explícito, a escola se aproximava um
ideal artístico de completude. Um dos professores da Bauhaus, o artista húngaro László Moholy-Nagy, por
exemplo, criou o Teatro da Totalidade, onde ele perseguia a abolição das fronteiras entre luz, som e texto nas
artes cênicas.
6
Opéra, art follement complet. Or qui dit « complet » ne dit pas nécessairement « total », et s’il est un terme, en
définitif, qui s’applique mal au genre, c’est bien celui-là.
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CONFLUÊNCIAS!
Capítulo!6!
285!
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7
“Dans le drame musical, la musique est la servant du drame.”
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286! CONFLUÊNCIAS!
Capítulo!6!
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CONFLUÊNCIAS!
Capítulo!6!
287!
!
códigos estabelecidos entre representação e recepção. Talvez sejam tão indissociáveis quanto
o binômio dramaturgia (a expressão da narrativa teatral) e plasticidade cênica (movimentação
dos personagens no espaço, figurinos e cenários).
Embora um texto ou uma ideia dramática seja o impulso inicial para a existência da
ópera, é a música que parece governar a obra. Apesar do imediatismo plástico imposto pelos
cenários e figurinos, a música impõe um ritmo e uma temporalidade e solicita a acomodação
dos elementos envolvidos. Pelo seu impulso em direção a uma semântica, ela acaba por
envolver e ritmar sentidos literários e suas manifestações cênicas. O cantor, que também atua
e fala ao mesmo tempo, cristaliza uma convergência entre música, texto e teatro (Moindrot,
ibid., p. 31).
Ao mesmo tempo em que uma ópera congrega elementos heteróclitos, , o gênero
operístico aspira à unidade e isso o protege, mesmo que parcialmente, de uma saturação de
componentes. A eventual percepção de uma pobreza literária ou de certa monotonia
dramática, segundo Moindrot (ibid., p. 33), é consequência da economia do gênero, que tende
a multiplicar códigos simples para facilitar a aparição de códigos unitários.
Embora conduzida pela convenientia, nossas confluências comportam em seu cerne a
ação de outras articuladoras de semelhanças. Tanto a analogia quanto a emulação imprimem
marcas no interior da representação de uma ópera. Analogias e emulações se multiplicam e
tecem elos em todas as direções possíveis. A poética da obra propõe um trânsito de
similitudes a ser vivenciado pelo receptor. É ele quem renova os contatos propostos pelo
compositor, forja novas analogias e percebe elementos que se imitam e se traduzem. Estas
forças de similitude, entre outras, irão trabalhar em direção à conquista da unidade, tensa e
quase utópica, da ópera. Ainda de acordo com Moindrot (1993), existe um jogo de
compatibilidades, onde se inserem conformidades e não-conformidades, semelhanças e
diferenças, substituições imitativas ou referenciais, tudo isso buscando uma espécie de
convergência, sem negar algumas incompatibilidades. Analogias e emulações participam, no
meio de várias outras forças, dos acordos internos entre os diferentes textos visuais e sonoros
de uma ópera. A complexidade desses acordos está no grande número de elementos que eles
comportam. Como arte colaborativa que é, a ópera guarda consigo um potencial enorme de
multiplicação de acordos, que vem desde a junção entre libreto e música, até aqueles acordos
– os mais imprevisíveis – que se dão entre a representação e seu público.
Em meio a essa quase infinidade de códigos que parecem brotar em todas as instâncias
da obra e entre elas, existe um personagem que deve ser mencionado e que, sobretudo no
século XX e XXI, ganhou lugar de honra: o diretor cênico. A conquista da unidade e, por
!
288! CONFLUÊNCIAS!
Capítulo!6!
consequência, da confluência na ópera passa pela figura do diretor, que funciona como um
gestor ou mediador dos códigos operísticos. Cabe a ele promover a vitalidade do gênero,
manter atento os sentidos do espectador e criar estratégias internas que renovem o interesse
por obras do passado, cujos códigos foram gastos pelo tempo, e auxiliem o acesso do público
a obras mais atuais, em que a nitidez dos códigos ainda não se afirmou.
A empreitada da conquista da unidade é algo, obviamente, coletivo e cada um dos
personagens envolvidos (diretor, cantores, orquestra, figurinistas, técnicos, etc.) participam
dela em diferentes proporções. Se o teatro se articula em torno de referentes linguísticos,
dramáticos e cênicos, a ópera acrescenta mais um que, por vezes, parece “devorar” os outros:
a música. Mas apesar de seu papel motriz no cerne da ópera, o acordo entre as artes só deve se
materializar mesmo em uma representação, sempre subjugada a um projeto dramático. A
ópera brota do drama, como o teatro, mas se diferencia deste último pelo fato da música
acrescentar aos sentidos textuais, cênicos e dramáticos uma espécie de incompletude. A
música imprime na ópera uma abertura semântica que nunca é abolida, por mais conciso e
sólido que sejam os sentidos dramáticos da obra.
Uma ópera deve potencializar e enfatizar essa busca por uma coesão e unidade que
existe na grande parte das obras de arte. Uma unidade que, no entanto, nunca é definitiva nem
atingida plenamente.
A música, pela abertura que comporta, deve colocar em evidência uma “ausência” de
significação que existe na maior parte das artes. Essa “ausência” talvez seja tão somente o
reflexo de nossa incapacidade de dar um sentido claro, preciso e possível de se expressar
literalmente sobre toda e qualquer arte. Na ópera, como vimos, coexistem significações
relativamente objetivas de um drama, com outras menos nítidas de uma encenação, e outras,
ainda menos nítidas, da música. A particularidade da ópera reside na grande rede de códigos
produzidos pelos contatos entre os elementos constituintes de uma representação.
O problema da unidade pode ser colocado de modo diverso quando se pensa no
problema da coexistência. Observar as confluências será observar como diferentes matérias
artísticas se ajustam, coexistem, na construção de uma obra única. Toda e qualquer obra que
comporte essa coexistência pode ser objeto de pesquisa das confluências, no sentido desta
tese.
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CONFLUÊNCIAS!
Capítulo!6!
289!
!
Como boa parte dos grandes artistas, Alban Berg (1885-1935) possui uma obra com
uma forte unidade estilística, que é ao mesmo tempo permeada de paradoxos e tensões
internas. Um desses paradoxos pode residir no que disse Adorno a seu respeito (1989, p. 9):
que Berg justapunha a devoção sem limites à causa da música do futuro à uma vigorosa
fidelidade à tradição. Talvez por isso, entre os outros compositores da chamada Segunda
Escola de Viena (Schoenberg e Webern)10, Berg foi aquele cujas obras parecem ter obtido
maior receptividade junto ao público de concertos. Se com Schoenberg houve uma ruptura
radical com o passado, com Berg houve uma “revolução sutil”11. Uma revolução, no entanto,
mais pessoal, cujas consequências são menos palpáveis que as de seus colegas vienenses12.
A obra de Alban Berg reflete os ensinamentos de seu professor Arnold Schoenberg,
mas também sua estima pelos românticos tardios, principalmente Gustav Mahler (1860-1911).
Adorno aproxima este último a Berg, não como modelo ou citação direta, mas na capacidade
dos dois de reduzir a música a elementos simples e, sobretudo, na maneira com que ambos se
relacionavam com a música, de maneira geral (ibid., p. 13)13. Sobre Richard Strauss, Berg
dizia-se particularmente emocionado por Salomé, tanto que fez algumas citações em suas
canções orquestrais baseadas em poemas de Peter Altenberg (Ross, 2007, p. 80). De Richard
Wagner ele herda a crença da conjunção do drama e da música, e também o grande cuidado
com as transições harmônicas e melódicas em suas peças. Não é fortuito o subtítulo dado por
Adorno a seu livro dedicado a Berg: O mestre da transição ínfima (1989). O filósofo alemão,
também músico, foi aluno de composição e amigo de Alban Berg.
No prefácio da versão francesa do livro de Adorno, Jean-Louis Leleu comenta a
estreita relação que o filósofo, nas entrelinhas de seu texto, estabelecia entre aspectos pessoais
do compositor e sua obra. Adorno revelaria uma espécie de “fisionomia musical” de Alban
Berg. O primeiro capítulo, por exemplo, é intitulado Tom, que não é entendido no sentido de
tonalidade musical, mas como uma qualidade humana que o artista fixa em sua obra. A
generosidade e o tom caloroso da voz de Berg deixariam marcas no interior de sua música.
Por isso, embora sua música às vezes pareça amplificar traços do drama de Wagner, a obra do
primeiro não comporta o tom narcísico da obra do segundo (1989, p. 13). Adorno insiste ainda
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
10
A Primeira Escola de Viena seria aquela formada por Mozart, Haydn e Beethoven.
11
Parafraseando o título do livro de André Boucourechliev sobre Debussy chamado Debussy, la révolution
subtile, Paris: Fayard, 1998, 123p.
12
Na década de 50, os compositores que frequentavam os cursos de verão de Darmstadt expandiram a noção de
série e suas regras para outros parâmetros musicais além das alturas e isso resultou no que convencionou-se
chamar “serialismo integral”. Nesse contexto, a contribuição de Berg é certamente menos palpável que a de
Schoenberg ou Webern.
13
Alex Ross (2007, p. 80) diz que Berg admirava Mahler a ponto de ter sido capaz de invadir seu camarim após
um concerto e furtar sua batuta.
!
290! CONFLUÊNCIAS!
Capítulo!6!
!
CONFLUÊNCIAS!
Capítulo!6!
291!
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e!seu!desenvolvimento,!por!exemplo,!estão!distantes!da!obviedade.!Em!Wozzeck,!o!fato!
de! cada! cena! se! apoiar! em! uma! forma! musical! tradicional! não! perturba! a! fluência! de!
uma!ópera!em!que!não!há!nem!mesmo!interrupção!entre!seus!atos.!Não!era!intenção!do!
autor!que!o!público!percebesse!esse!modelo!esquemático!de!junção!de!música!e!drama!
(Harewood,!1991,!p.!594).!O!autor!apreciava!uma!organização,!digamos,!matemática!da!
forma!musical!conectada!ao!drama,!mas!ao!mesmo!tempo!negava!submeterWse!ao!rigor!
também!matemático!do!dodecafonismo!de!Schoenberg.!Regras!fundamentais!do!sistema!
schoenberguiano,! como! a! não! repetição! de! notas! até! que! todas! as! doze! tenham! sido!
ouvidas,! são! deixadas! de! lado! por! Berg.! Em! função! de! sua! necessidade! de! expressão!
dramática,!que!é!evidente!desde!a!Sonata!op.!1!até!a!sua!última!obra,!a!ópera!Lulu,!ele!
adapta! o! que! aprendeu! com! Schoenberg,! seu! professor! do! fim! da! adolescência! à! vida!
adulta15.!
! O! sentido! de! drama,! seja! na! sua! conotação! cinematográfica! corriqueira! ou! na!
simples!associação!com!a!noção!de!narração!expressiva,!parece!todo!o!tempo!presente!
em! Berg,! efetivamente! em! suas! óperas! e! canções! e! virtualmente,! ou! como! desejo,! na!
música! instrumental.! Sua! enorme! e! declarada! admiração! por! Salomé> de! Strauss! é,! no!
mínimo,!sintomática.!!
! No!que!concerne!nosso!entendimento!de!confluência!nesta!tese,!entre!as!obras!de!
Berg,! é! na! ópera,! como! arte! híbrida,! que! reside! o! principal! campo! de! estudo.! Sem! a!
pretensão! explícita! de! apontar! para! a! arte! do! futuro! ou! revelar! uma! nova!
Gesamtkunstwerk,! Berg! se! lança! em! uma! empreitada! no! mundo! da! ópera! que,! muito!
embora!não!tenha!uma!fundamentação!filosófica!ou!teórica!como!aquela!de!Wagner,!o!
eleva!a!categoria!de!grande!compositor!de!ópera!do!século!XX.!
!
d) Lulu: Metáfora da Ópera
>
A coexistência de um “hiper-romantismo”, nos termos de Ross (2009, p. 223),
vanguarda, empatia e desumanidade, algo de majestoso e brutal, dodecafonismo, lirismo,
além da integração simbiótica de sua vida pessoal e sua obra operística, todos esses atributos
nos acenam para o fato de Lulu de Alban Berg ser um boa ilustração das confluências desta
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
15
Na adolescência, além de aluno, Berg era uma espécie de secretário de Schoenberg, fazia cópias de partituras,
carregava papéis, etc. Na vida adulta, Schoenberg chegou a invejar o sucesso de seu ex-aluno, enquanto Berg,
sempre admirando o pai do dodecafonismo, incomodava-se com a reação positiva e da pretensa fácil absorção de
sua música pelo público (Ross, 2007, p. 79).
!
292! CONFLUÊNCIAS!
Capítulo!6!
tese. Mas ainda não é o bastante para caracterizá-la como obra emblemática neste capítulo,
como o foram nos capítulos precedentes a Sagração da Primavera, Les Demoiselles,
Atmosphères, Black Painting n.1, Noites Estreladas, Timbres, Espace et Mouvement e No
estilo de Bach.
Considerada por alguns como marco do fim do gênero operístico (Jameaux, 1980, e
Boucourechliev, 1993) ou como metáfora da ópera (Moindrot, 1993), Lulu de Alban Berg é,
na pior das hipóteses, uma obra em que texto, música e cena se relacionam de maneira
particularmente interessante.
Alban Berg morreu em 1935 antes de concluir Lulu, mas a integralidade dos primeiros
dois atos, assim como o libreto, as principais linhas melódicas e o começo da orquestração do
terceiro e último ato foram compostos entre 1929 e 193516. De maneira bem reducionista,
Lulu pode ser vista como a aventura trágica de uma anti-heroína, ou mesmo como uma
“caricatura grotesca da mulher fatal”, nas palavras de Alex Ross (2009, p. 223). Baseado nas
peças Erdgeist (Espírito da Terra, 1895) e Die Büchse der Pandora (Caixa de Pandora,
1904) do dramaturgo alemão Franz Wedekind (1864-1918), Alban Berg forjou seu libreto o
ajustando com liberdade às suas próprias ideias e aos esquemas estruturais rigorosos que um
estudo da obra pode mostrar. O trágico, que Ross (ibid., p. 223) atribui ao Zeitgeist das
vésperas da catástrofe hitlerista, se exibe do primeiro ao último instante e de todas as
maneiras possíveis. O grotesco, a morte dos principais personagens, incluindo o personagem
título, ascensão e declínio, ironia, desejo cego, indiferença, desumanidade, cada um desses
elementos percorre toda a obra.
Do ponto de vista formal, a obra é construída como um grande palíndromo. No centro
do segundo ato, ou seja, no meio da ópera, assistimos a um curto filme, inspirado talvez em
Bertold Brecht (1898-1956) (Palácio Real) ou no teatro de Erwin Piscator (1893-1966)17. O
filme deve mostrar o julgamento, a prisão e a fuga de Lulu após o assassinato de seu terceiro
marido, o Dr. Schön, o único por quem ela demonstra algum afeto. A música prevista para
acompanhar as imagens é composta de maneira espelhada. A partir do meio, todas as notas
principais são o retrógrado da primeira metade, ou, seja, é sua sequência contrária. Esse
procedimento de retrogradação, longe de ser uma descoberta, estava embutido nos
fundamentos da escrita dodecafônica. No entanto, Berg o aplica dissociado de algumas das
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
16
Lulu estreou incompleta em 1937 em Zurique e continuou a ser encenada desta forma até 1979, quando em
Paris foi apresentada uma versão completa da ópera após o terceiro ato ter sido finalizado pelo compositor
Friedrich Cerha (nascido em 1926), ex-aluno de Berg (Harewood, 1991, p. 594).
17
Piscator foi, junto com Brecht, uma figura de destaque no que concerne o teatro épico que trata de questões
sociais e políticas. Em suas peças algumas vezes ele incluía projeções cinematográficas
!
CONFLUÊNCIAS!
Capítulo!6!
293!
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294! CONFLUÊNCIAS!
Capítulo!6!
operístico, mas também pela sua capacidade em fazer confluir dimensões dramáticas,
musicais e cênicas.
Essas confluências de elementos de matérias diversas podem também ser bem
representadas por um objeto cênico, de acordo com Isabelle Moindrot (1993, p. 244). O
retrato de Lulu surge no início do primeiro ato, logo após um narrador esboçar no prólogo da
ópera as notas que constituirão mais tarde a série da protagonista. Na medida em que um
pintor desenha o retrato de Lulu, esboça-se a série da personagem principal que é, ao mesmo
tempo, chamada de Eva pelo artista. Existe então, logo no início, uma interessante
convergência entre elementos que pode funcionar como uma metáfora da criação da ópera
materializando-se através do gesto do pintor, do esboço da série e do nome Eva, a primeira
mulher. Lulu, a mulher de múltiplas facetas, é então estabilizada em um objeto cênico imóvel
que condensa forças dramáticas.
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CONFLUÊNCIAS!
Capítulo!6!
295!
!
nos aponta para a convergência ou conformidade entre o aspecto dramático no último ato de
uma vida entravada pela ameaça, pelo incômodo e pela chantagem, sua representação cênica
na figura do retrato embutido no muro e o aspecto musical de uma obra que retém o tempo da
melodia através de uma grande sobreposição de notas. O retrato se ausenta e entendemos
assim a morte de Lulu (ibid., p. 250).
O retrato deixa de ser em Lulu simples objeto cênico e se torna um personagem com
vida própria e agente multiplicador de códigos internos, interferindo em todas as ações. Ele
assegura uma abertura, talvez emblemática, do gênero operístico. Considerar Lulu como a
última das óperas é perceber o poder de uma obra sólida e coesa de destruir uma unidade
desejável (ibid., p. 257).
Lulu acaba por se afirmar como uma espécie de ponto de convergência de similitudes
e substituições, uma forma vazia que se deixa habitar por todas as artes, ainda no
entendimento de Moindrot (ibid., p. 253). Cada manifestação artística presente em Lulu tem
sua personagem principal como ponto de partida e de chegada, fazendo confluir, a partir de
um complexo jogo de similitudes, artes em arte. Mas a unidade da obra é ao mesmo tempo
alcançada e colocada em questão.
! !
3. Confluências no Cinema !
a) O Som da Imagem
O cinema, junto à ópera e à dança, deve estar entre as artes em que intervém matérias
de naturezas distintas em um todo coerente. Como arte de síntese ou colaborativa, o cinema
também pode emblematicamente ilustrar essa maneira de se entender o encontro das artes que
chamamos de confluências.
Ontologicamente, o cinema é uma arte visual, afirmou Michel Chion em L’audio-
vision (2005, p. 122). Mas apesar de um filme poder existir sem a participação direta dos
sons, o silêncio das imagens parece comportar algo de perturbador e excessivamente
imaterial.
É tudo estranhamente silencioso. Tudo se desenvolve sem que ouçamos o ranger das
rodas, o barulho dos passos ou qualquer palavra. Nenhum som, nem uma só nota da
sinfonia complexa que acompanha sempre o movimento da multidão. Sem barulho, a
folhagem cinzenta é agitada pelo vento e as silhuetas das pessoas condenadas a um
perpétuo silêncio. Seus movimentos são plenos de energia vital e tão rápidos que mal são
!
296! CONFLUÊNCIAS!
Capítulo!6!
percebidos, mas seus sorrisos nada tem de vibrante. Ver-se-ão seus músculos faciais se
contraírem, mas não se ouve seu riso. (Gorki apud Costa, 2007, p. 10).
O trecho acima faz parte de um depoimento de 1896, logo após a exibição de um filme
dos irmãos Lumière, apenas um ano depois do que se considera habitualmente o início do
cinema. O escritor russo Maximo Gorki (1868-1936) descreve seu estranhamento face à
projeção de imagens mudas. As fotografias podiam ser silenciosas e isso não incomodava a
ninguém, mas as imagens em movimento, por outro lado, pareciam clamar pelo som. O
estático pode ser mudo, o móvel não. O movimento parece atrair o som.
O desejo de “projetar” o som esteve presente desde o início da história do cinema,
conforme o professor e pesquisador Fernando Morais da Costa defende (2007, p. 14). Entre os
precursores do cinematógrafo dos irmãos Lumière estava o fonoscópio, criado por Georges
Demeny em 1891. O fonoscópio era um aparelho que visava reproduzir em imagens o
movimento labial de alguém. Em uma nítida tentativa de tornar visível o som, o invento
encadeava imagens da boca de Demeny pronunciando “Vive la france” e “Je vous aime”. A
leitura labial por parte dos espectadores supria, em alguma medida, a falta de som.
Quase dez anos antes do nascimento efetivo do cinema, Thomas Edison (1847-1931)
já havia iniciado uma busca pela reprodução simultânea de som e imagem (Costa, ibid., p.
11). Edison tentou em 1894, sem sucesso, inserir no mercado norte-americano o quinetofone,
um aparelho que executava música ao mesmo tempo em que projetava imagens. Na França,
Leon Gaumont (1864-1946) apresentava em 1902 seu cronofone, visando garantir a sincronia
entre sons e imagens (Costa, ibid., p. 14).
Enquanto o som ainda não pertencia ou emanava do universo das imagens puras, o
silêncio precisava ser preenchido. Desde as primeiras projeções, alguma música ocupava a
sala. O compositor e escritor alemão Hanns Eisler (1898-1962) chega a defender uma curiosa
tese segundo a qual a música no cinema mudo atuava como agente subliminar. A música
precisava entrar para afugentar uma espécie de efeito fantasmagórico produzido pela projeção
de imagens. As pessoas, inconscientemente, temem a luz que se converte em formas e a
música precisa, por isso, agir, exorcizando o medo dos espectadores (Eiler, 1947, p. 75). O
cinema, em seus primórdios, seria um “reino das sombras” que precisaria dos sons para
espantar os “fantasmas” e injetar vida nas imagens21.
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21
Máximo Gorki, em um outro trecho de seu depoimento de 1896, utiliza a expressão “reino das sombras” para
descrever suas impressões de uma projeção dos irmãos Lumière. Gorki fala ainda da sensação de que o cinema
não reproduzia a vida, mas era, antes, sombra da vida.
!
CONFLUÊNCIAS!
Capítulo!6!
297!
!
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298! CONFLUÊNCIAS!
Capítulo!6!
Logo no início da era do cinema sonoro, e mesmo antes, discutiu-se qual seria a
função da música no interior do filme e a redundância, na maioria das vezes, era considerada
como efeito de menor importância e valor. Os cineastas russos Vévolod Pudovkin (1893-
1953) e Serguei Eisenstein (1898-1958) defendiam uma aplicação da música que iria bem
além de um fim suplementar e pleonástico. O som participa da construção da unidade das
imagens pela sua associação mais fortemente temporal que a dimensão puramente visual.
Pode também influenciar na percepção do movimento ou mesmo contribuir para a construção
de uma percepção espacial ampla, como quando através dos sons ambientes conhecemos as
dimensões espaciais do local onde se passa a cena, por exemplo.
São tão numerosas as funções e possibilidades que tem o som de participar de um
filme que seria exaustivo e vão tentar descrevê-las no quadro de nossas confluências. O fato é
que, assim como a ópera, o cinema se situa em uma zona de convergência que é mais tensa
que harmoniosa. Sons e imagens têm dinâmicas próprias, obedecem a leis particulares e criam
diferentes ilusões quando em contato. Uma música não é a mesma quando submetida à uma
imagem. Uma imagem é percebida diferentemente quando existe música. E não se trata de
uma simples diferença de ambientação. Chion, em sua grande lista de exemplos, mostra que
realmente enxergamos diferente ao som de certa música ou efeitos sonoros e que ouvimos
diferentemente quando os olhos cuidam se percorrer espaços sempre novos22. O contrário
também verdadeiro. As percepções se influenciam mutuamente, se contaminam e projetam
suas propriedades uma na outra.
A coexistência de diferentes matérias artísticas no interior de uma obra única faz com
que se multipliquem tensões sígnicas e se promova diálogos internos interessantes. Uma
unidade entre as matérias pacífica e muito harmoniosa tem grandes chances de produzir
resultados pouco atraentes. Os sons, como vimos, têm dinâmicas internas muito diferentes das
imagens. Um movimento melódico é quase sempre mais fácil de se referenciar na percepção
que um movimento espacial. Se ouvimos uma determinada sequência de notas e vemos um
certo gesto de mesma duração feito por uma mão, será provavelmente mais fácil identificar a
recorrência sonora que a visual. Chion nos mostrou que o ouvido analisa, trabalha e sintetiza
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
22
O exemplo que abre L’audio-vision (2005) é bastante emblemático. Trata-se das primeiras cenas de Persona
(1966) de Ingmar Bergman. Quando se suprime o som, temos dificuldades de entender o que vemos e o impacto
expressivo é reduzido enormemente.
!
CONFLUÊNCIAS!
Capítulo!6!
299!
!
mais rapidamente que o olho (2005, p. 13). O olho é mais hábil espacialmente enquanto o
ouvido temporalmente. No entanto, o campo auditivo tem a capacidade de englobar a cada
momento a totalidade do espaço ambiental, enquanto a visão não consegue cobrir mais de
sessenta graus de uma só vez, sendo que apenas trinta de maneira atenta (Martin, 1990, p. 22).
Visão e audição se relacionam com tempo e com o espaço de maneira diversa e o cinema, e,
de acordo com a perspectiva observada, pode-se enfatizar e potencializar tanto os pontos de
divergência quanto os de convergência. Mas para isso, é preciso que haja uma infinidade de
acordos internos entre os diferentes elementos fílmicos ou, como sugere Eisenstein, uma
“sincronização de sentidos”23.
Ainda na segunda metade dos anos vinte, época em que os sons foram se tornando um
todo orgânico com as imagens projetadas, os cineastas Vévolod Pudovkin, Grigori
Aleksandrov (1903-1983) e Serguei Eisenstein pensaram profundamente as relações possíveis
entre som e imagem e levantaram um certo número de ideias e ideais para o novo cinema.
Boa parte das questões e dos problemas colocados pelos realizadores russos continuam a
fertilizar reflexões e a suscitar indagações sobre as interações das matérias artísticas24.
Na época dos primeiros filmes mudos, a música, feita ao vivo, buscava preencher o
espaço do cinema, “espantar os fantasmas” da projeção das “sombras de vida”, mas também
reforçar conteúdos dramáticos. O pianista ou o grupo orquestral utilizava-se com frequência
de fórmulas musicais estereotipadas ou improvisavam livremente, nem sempre estabelecendo
um acordo consciente com as imagens ali apresentadas. As partituras musicais escritas
especialmente para filmes apareceram no fim da primeira década do século XX. O crítico e
historiador do cinema Marcel Martin (1990, p. 119-120) cita como aquelas de maior interesse
e em caráter de exceção as trilhas compostas por Camille Saint-Saens (1835-1921) para
Assassinat du duc de Guise (1908), por Ildelbrando Pizzetti (19880-1968) para Cabiria
(1914), por Henri Rabaud (1873-1949) para Le miracle des loups (1924), por Éric Satie
(1866-1925) para Entr’acte (1924) e por Arthur Honegger (1892-1955) para La Roue (1923).
Embora compostas especialmente para certo filme e segundo um argumento preciso, devemos
lembrar que não se trata de música de filme no sentido exato da palavra e sim música para
acompanhamento de filmes, pois o princípio de correspondência rigorosa ainda não era
reconhecido esteticamente (Martin, ibid., p. 120).
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23
“Sincronização dos Sentidos” é o título do segundo capítulo do livro O sentido do Filme (2008) de Eisenstein.
24!Marcel!Martin! afirma no prefácio de seu livro A Linguagem Cinematográfica (1990) que o essencial do
cinema foi descoberto até a metade dos anos trinta do século passado. !
!
300! CONFLUÊNCIAS!
Capítulo!6!
[...] na realidade, quanto mais as artes se desenvolvem, tanto mais dependem uma das
outras para se definirem. Primeiro pediremos um empréstimo à pintura, e chamaremos de
forma. Mais tarde, pediremos um empréstimo à música, e chamaremos de ritmo.
(E.M.Foster apud Eisenstein, 2008, p. 51).
!
CONFLUÊNCIAS!
Capítulo!6!
301!
!
como a dos lábios e da fala ou dos efeitos sonoros e suas fontes visíveis, é importante que se
valorize a sincronização interna, oculta, nas quais os elementos plásticos e sonoros se fundem
totalmente, assim acreditava Eisenstein (ibid., p. 59).
O cinema sempre irá solicitar, com pesos diferentes, a sincronização dos sentidos nas
instâncias poéticas e, como consequência, nas instâncias receptivas. Mas para que fiquem
caracterizadas as confluências no cinema nesta tese é preciso que algumas forças articuladoras
de semelhanças intervenham de alguma maneira.
Posto que as diferenças são muito mais numerosas que as semelhanças, nossa atenção
se volta naturalmente para estas últimas, mais raras e mais sutis. No cerne das confluências
desta pesquisa se inclui toda obra em que coexistem matérias artísticas variadas.
Como vimos, é a convenientia a similitude motriz das confluências. E não será
diferente no interior de uma estrutura fílmica. A convenientia se liga à noção de “harmonia”,
mas também de “acordo” que implica em ajustes e em comunicação de movimentos internos e
externos. Entretanto, as outras três similitudes estudadas – simpatia, emulação e analogia –
também participam com pesos distintos no interior de um filme. Muito embora, em um
segundo momento, sejam subsumidas à convenientia.
A simpatia, assim como a convenientia, atua igualmente na comunicação de
movimentos, porém sem que haja contato real. Da forma como foi desenvolvida nas
ressonâncias no quarto capítulo, a simpatia só poderia atuar de maneira indireta nas
confluências por excluir a possibilidade de coexistência em um mesmo espaço. A simpatia
pode e irá atuar, por exemplo, quando um diretor intui em uma música autônoma ressonâncias
similares ou complementares àquelas do argumento de seu filme. Ou seja, a simpatia pode
atuar em um estágio prévio à inclusão de determinada música em determinada cena.
Virtualmente e em uma instância analítica, a simpatia também atua na medida em que, como
espectadores-ouvintes ativos, somos capazes de discernir e separar os elementos do filme e
nos emocionamos de maneira análoga com cada um desses elementos, em separado.
A emulação e a analogia, por outro lado, encontram nas confluências território fértil
para se multiplicarem quase infinitamente em todas as instâncias da obra. A emulação,
quando revestida por sua noção vizinha mimesis, revela no cinema sua face menos
interessante. Seria esta similitude a responsável pelas redundâncias tão comuns nos filmes e
criticadas desde o início do cinema sonoro. Mas a emulação, como vimos, vai além da
!
302! CONFLUÊNCIAS!
Capítulo!6!
simples cópia e se configura também como sentimento, como admiração e desejo de rivalizar
e superar. A emulação pode aparecer, por exemplo, quando no processo criativo o diretor ou o
designer de som deseja reforçar algum conteúdo dramático através de sons ou de uma música
que possa corresponder exatamente à imagem do filme25. Intervalos musicais descendentes e
recorrentes enquanto um personagem em prantos soluça pode ser um bom exemplo de
emulação musical nas confluências do cinema.
A analogia, como força articuladora de semelhanças, é uma grande responsável pela
sincronização das diferentes matérias artísticas dentro de uma só arte. Na instância criadora,
são as analogias as figuras responsáveis por construir as pontes entre as diferentes matérias
artísticas. Ela é, por um lado, portadora de um rigor herdado das aplicações matemáticas de
sua origem e, por outro lado, ela é capaz de se movimentar, criar laços e equilibrar relações
entre as coisas mais heterogêneas. São elas que asseguram os ajustes e os “contratos” tão
necessários dentro das confluências do cinema. As analogias, como as simpatias e emulações,
se multiplicam ad infinitum na subjetividade dos olhares dos espectadores-ouvintes.
As confluências no cinema, no entanto, não se resumem a uma mera sistematização
dos fluxos de simpatias, emulações e analogias conduzidos por uma grande convenientia. A
consciência de que existe um jogo de similitudes por trás das confluências, como vimos nos
capítulos quatro (Ressonâncias) e cinco (Reflexos), será mais importante que uma
categorização restrita de cada uma dessas similitudes, o que seria uma tarefa tão árdua quanto
vã.
d) O Encouraçado Potemkin
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
25
Designer de som ou sound designer, segundo uma terminologia empregada no cinema desde Apocalipse Now
de Francis Ford Coppola (1979), é o profissional do interior da cadeia produtiva do cinema que é responsável
por todos os elementos sonoros de um filme (diálogos, música e efeitos sonoros).
!
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Capítulo!6!
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Capítulo!6!
formas, graças às similaridades no nível semântico e sintático (Plaza, ibid., p. 137). Plaza diz
ainda que todas as transposições de signos do Encouraçado se baseia em uma estrutura
matemática: a Seção Áurea. Sob os preceitos de Luca Pacioli e Da Vinci, de quem Eisenstein
era grande admirador e conhecedor, a Seção Áurea é definida como um traçado:
Esse traçado, conhecido dos gregos (Pártenon), procura uma correspondência harmônica
entre as partes e o todo, base dos conhecimentos da analogia, da similaridade na
diferença, do semelhante no diverso e da variedade no mesmo. A Seção Áurea transmite
as noções matemáticas de razão, progressão, harmonia, evoca e denota diretamente as
noções e ideias de germinação, fecundidade e florescência, que representam um papel
primordial na representação simbólica humana. (Plaza, ibid., p. 138).
!
CONFLUÊNCIAS!
Capítulo!6!
305!
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4. Outras Confluências
Nada seria mais redutor que considerar somente o cinema e a ópera como terreno fértil
para o estudo das confluências. Embalada por diversas e distintas similitudes lideradas pela
convenientia – a força de articulação das semelhanças que pressupõe algum tipo de acordo ou
convenção interna das partes em um todo – as confluências abarcam toda arte que se impõe
explicitamente como amálgama sígnico. Juntam, em uma obra única, matérias artísticas
aparentemente tão distintas quanto som, cor e gesto. Além de várias manifestações mais
!
306! CONFLUÊNCIAS!
Capítulo!6!
atuais, como performances e instalações, as quais mencionaremos mais à frente, a família das
confluências inclui outros gêneros artísticos tradicionais, como o balé, o teatro ou o circo.
Graças especialmente às interações ou diálogos artísticos mais recentes, a tentativa de
uma taxonomia das confluências pode parecer muito artificial, como muitas vezes se verifica,
a propósito, quando nos voltamos aos limites entre performances, instalações, happenings,
multimídias ou intermídias, por exemplo. Por isso, vamos somente citar e comentar
brevemente alguns exemplos que podem sugerir o estudo das confluências, nos moldes desta
pesquisa, sem uma preocupação classificatória muito forte.
Em um plano filosófico, a investigação dos limites e interações entre as artes remonta
à Grécia antiga, no que concerne à cultura ocidental. No plano da prática artística, a
caracterização das confluências vai variar justamente em função do que define cada arte, ou
seja, do que tange o próprio estatuto de arte.
Associações daquilo que comumente consideramos matéria artística diversa, como os
sons, as cores, as formas e os gestos, já eram feitas nos tempos mais remotos. Sérgio
Bittencourt Sampaio (2001, p. 142) nos mostra, por exemplo, que na China antiga idealizou-
se sistematicamente correlações entre cores, sons, sabores, estações do ano e pontos cardeais.
Na etnomusicologia são fartos os exemplos de sociedades onde existe uma visão totalizante
de práticas artísticas que, no ocidente, são entendidas como campos distintos, como música e
dança. Isso sem falar nos também amplos entendimentos que associam confortavelmente arte,
ciência e algum tipo de espiritualidade, como foi o caso da música das esferas28.
Entretanto, quando nos reportamos à cultura ocidental a partir do nossa compreensão
moderna do que vem a ser arte, forjada no século XVIII com a afirmação da Estética, as
confluências poderiam se limitar ao que Nédoncelle chamou de “arte de síntese”, ou seja,
balé, teatro, ópera, cinema, e certas expressões artísticas mais recentes29.
Excetuando-se as artes de síntese, outros pontos de confluência podem surgir quando
nos voltamos à bibliografia que aborda o histórico do diálogo entre música e artes visuais
(Bosseur, Caznok, Sabatier, Denizeau, etc). Pensamos, por exemplo, nos instrumentos
concebidos com a finalidade de estabelecer elos entre sons e cores. Embora esse processo,
digamos, tradutório possa nos remeter aos reflexos do capítulo anterior, o resultado final não
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
28
Pitágoras foi o pensador que primeiro descreveu os harmônicos de uma nota musical, mostrando que eles
obedeciam a uma relação matemática simples. Concluiu, mais tarde, que essas relações matemáticas entre
números inteiros podiam se encontram por toda parte, inclusive no que concerne o movimento dos astros
celestes. A noção de harmonia musical é transposta como expressão da natureza. Som, forma e número são
unificados no conceito de harmonia. Cerca de dois mil anos depois, o astrônomo alemão Johannes Kepler (1572-
1630) transpôs proporcionalmente medidas de órbitas celestes para frequências e encontrou estreitas relações
com intervalos e escalas musicais.
29
Cf. p. 50.
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Capítulo!6!
307!
!
deixa de ser a expressão simultânea de cores e sons e, em sua dimensão receptiva, poderia,
assim, integrar essas confluências. O instrumento que produzia sons e luzes em
correspondência mais antigo e mais citado é o clavecin oculaire (teclado ocular) do padre
Luis-Bertrand Castel (1688-1757). Matemático, físico, jornalista e teórico francês, Castel
trabalhou durante trinta anos na concepção desse instrumento que, baseado em ideias
cartesianas e nas pesquisas de Newton expostas em Optiks (1704), estabelecia relações entre o
espectro das cores e os sons da série harmônica (Caznok, 2008, p. 35)30. O “projeto de
confluência” de Castel, figura excêntrica do meio intelectual francês, era considerado
controverso, mas foi, assim mesmo, levado à sério por personagens de peso, tais como o
compositor Georg Philipp Telemann (1681-1767) (Lévi-Strauss,1993, p. 99).
Caznok (ibid., p. 35) cita ainda outros inventos com propostas similares que viriam a
surgir somente bem mais tarde, na segunda metade do século XIX, graças, possivelmente, a
afirmação dos ideais românticos de sinestesia como ideal perceptivo e às possibilidades que
surgiam com o uso da tecnologia. O estadunidense Bainvridge Bishop (1837-1905) uniu um
instrumento de projeção de cores a um órgão para difundir sons e cores com sincronicidade. O
inglês A. Wallace Rimington (1854-1918) construiu um órgão silencioso que projetava cores
e que deveria ser acompanhado por uma orquestra ou piano. Outros exemplos de instrumentos
inventados com a pretensão de se estabelecer correspondências diretas e “fundir” sons e cores
surgem até o final do século dos românticos, mas é no século XX que se concentra o maior
número de experiências nesse sentido.
Um exemplo célebre do que se pode considerar como confluência deve vir do poema
sinfônico de Alexander Scriabin (1872-1915), Prometeu (1910). O compositor acrescenta
entre os instrumentos da orquestra, o luce, aparelho que deveria projetar cores em
correspondência e como complemento da parte propriamente musical. Por trás da obra de
Scriabin existe todo um pensamento místico-filosófico que caracterizava a doutrina teosófica
na qual o compositor se inscrevia. Cores, notas musicais e estados de espíritos eram
organizados segundo um rigoroso quadro de equivalências que o compositor inscreve na
própria partitura de Prometeu. O procedimento de Scriabin nesta obra é frequentemente
citado nos primórdios das artes intermídias que se propagariam algumas décadas à frente31.
Apesar da experiência de Scriabin ser a mais conhecida e citada, nas primeiras décadas
do século passado pululam outros exemplos bem interessantes de convenientia de matérias
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
30
Isaac Newton, diferentemente de Castel, baseava a correspondência entre sons e cores no modo dórico: ré
como vermelho, mi como laranja, fá amarelo, sol verde, lá azul, si índico e dó violeta (Caznok, 2008, p. 35).
31
Prometeu só foi executado em sua integralidade em 1915, após a morte do compositor.
!
308! CONFLUÊNCIAS!
Capítulo!6!
artísticas em obras únicas que vão ao encontro do que se pode ser considerado como
intermídia do século XX32. Em 1912, pouco depois da conceptualização do luce por Scriabin,
o médico Fournier d’Albe (1868-1933) nomeia genericamente optofone (optophone) todo
instrumento criado para traduzir efeitos óticos em acústicos. Dessa forma, abre caminho para
que na década seguinte László Moholy-Nagy proponha uma nova escrita sonora, baseada em
um disco com uma faixa ótica, e, mais tarde, o artista plástico Raoul Hausmann (1886-1971)
formule uma teoria “optofonética” que pretendia, através da utilização dos meios tecnológicos
mais avançados, chegar a uma nova arte total (Lista, 2003, p. 64). Na mesma década de 20, o
compositor húngaro Alexander László (1895-1970), embalado pelos estudos da teoria de
Newton das correspondências entre espectro sonoro e as cores, inventa algo semelhante a um
grande equalizador dos tempos atuais, porém tratava-se de um aparelho (Farblichtmusik) para
produzir a “música cromática” que resulta da união entre duas artes: a pintura e a música.
O princípio de base sobre o qual ela [a música cromática] se funda é que cada cor
corresponde a vários sons e que as relações entre cores não são congeladas e imóveis
definitivamente, mas definidas subjetivamente, caso por caso. (László apud Duplaix,
2004, p. 178)33.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
32
A paternidade do termo intermídia é atribuído a László Moholy-Nagy (1895-1946) e pressupõe uma relação
de som e imagem conduzida por uma lógica de reversibilidade e não simplesmente um som acompanhado de
uma imagem e vice-versa (Lista, 2004, p. 64).
33
Le principe de base sur lequel se fonde est que chaque couleur correspond à plusieurs sons et que les rapports
entre les couleurs ne sont pas figés et arrêtés une fois pour toutes, mais définis subjectivement, cas par cas.
!
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dirigido por René Chair (1898-1981), também poderia facilmente integrar a família das
confluências.
As interações ou correspondências no interior de obras que manipulam matérias
artísticas distintas vão se multiplicando de maneira a invalidar toda proposta taxonômica. De
qualquer modo, é preciso estar consciente de que nos meados do século XX, ao mesmo tempo
que se multiplicam e se diversificam as interferências entre as artes, o ideal romântico de arte
total vai ficando cada vez mais distante. Se por um lado algumas propostas artísticas vêm
colocar em questão as disciplinas artísticas e seus cortes arbitrários – pensamos no
movimento futurista e no grupo Fluxus –, por outro lado se propaga a liberdade de tecer elos
como bem se desejar, sem necessariamente realizar algum tipo de correspondência
sistemática. “Contudo, não é mais uma arte total sintética que é visada, mas uma coexistência
de fenômenos, eventualmente vividos como díspares, heterogêneos, sem que seja necessário
mostrar elos lógicos entre eles.” (Bosseur, 1998, p. 223)34. Luigi Nono trata dessa nova
maneira de se endereçar ao trânsito das artes quando situa o teatro musical como lugar de um
encontro ideal:
Um encontro [...] onde música, pintura, poesia e dinamismo cênico contribuem, nas suas
dimensões atuais, não para uma síntese das artes que, caracterizada por uma simples
soma, estabeleceria correspondências simples entre som, cor e movimento, mas para uma
nova liberdade da fantasia criativa [...]. Não mais existe, por consequência, dependência
no centro da colaboração [...], mas uma participação direta e simultânea. (Nono apud
Lacché, 2004, p. 91)35.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
34
Ce n’est toutefois plus un art total, synthétique qui est visé, mais plutôt une coexistence de phénomènes,
éventuellement vécus comme disparates, hétérogènes, sans qu’il soit nécessaire de montrer de liens logiques
entre eux.
35
Une rencontre […] où musique, peinture, poésie et dynamisme scénique contribuent, dans leurs dimensions
actuelles, non à une synthèse des arts qui, caractérisé par une simple somme, établirait des correspondances
simples entre sons, couleur et mouvement, mais à une nouvelle liberté de fantaisie créatrice […]. Il n’y a plus,
par conséquent, de dépendance au sein de la collaboration […], mais une participation directe et simultanée.
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37
Ready-made é o termo criado por Duchamp para designar objetos tirados da vida cotidiana e inseridos no
contexto de museus e exposições. O exemplo mais célebre de ready-made deve ser A Fonte (1917), constituída
por um urinol.
38
O happening se define basicamente como uma manifestação artística sempre única, que não é regida por uma
intenção nítida e se inscreve em um lugar que não seja reservado à arte (Bosseur, 1998, p. 248).
!
314! CONFLUÊNCIAS!
Capítulo!6!
efetiva, que concede a cada domínio concernido uma relativa autonomia”39, assim se refere
Bosseur ao espírito fluxus (1998, p. 247). E esse espírito, embora não tenha se caracterizado
em um grupo, já vinha se esboçando nos anos 50 e encontrou nas figuras de John Cage,
Robert Rauschenberg e Nam June Paik importantes colaboradores, entre outros nomes.
Como forma de confluência nesta mesma época, com base nos movimentos de
vanguarda da primeira metade do século XX, surge o que se convencionou chamar de
performance, atividade artística interdisciplinar que se situa na zona de convergência de
diversos modos de comunicação. Diferencia-se do happening por geralmente seguir algum
tipo de roteiro. Nas performances, o artista é a ferramenta da arte e a própria arte (ibid., p.
275).
É importante mencionar ainda uma outra manifestação muito bem afirmada no cenário
artístico: a instalação. Ela se afirma genericamente como uma combinação de elementos ou
mídias que visam modificar a experiência de um espaço ou de alguma circunstância. O apelo
à tecnologia é frequente e, por vezes, como notou Bosseur (ibid., p. 275), os meios técnicos se
confundem com as finalidades estéticas. Para que as instalações se caracterizem como
confluências neste trabalho será necessário, evidentemente, que haja coexistência de mídias,
logo, elimina-se do grupo as instalações “puramente” visuais40.
O artista plástico brasileiro Hélio Oiticica (1937-1980) tem uma obra extremamente
fértil de contatos entre disciplinas artísticas e com os principais ingredientes do que parece
percorrer a estética de seu tempo. A conexão entre a vida e a arte, as dimensões lúdicas,
imersivas, as interações, tudo é facilmente encontrado na obra de Oiticica. Temos uma ideia
de sua importância se pensarmos, por exemplo, em seus Parangolés que se pretendiam
pinturas vivas na década de 60 ou no seu famoso penetrável Tropicália (1968), instalado nos
jardins do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, obra sensorial que não somente deu o
nome, como também ajudou a consolidar a estética do movimento tropicalista da música
brasileira do final dos anos 60 e dos anos 70. Em 1973, concebeu o projeto CC6 Coke Head’s
soup, onde os participantes se sentam ou se deitam sem sapatos e apreciam a projeção de 26
slides acompanhados de uma rigorosa construção musical a partir de uma canção de Marianne
Faithfull (Sister Morphine), gravada em 1971 pelos Rolling Stones, em sincronia com sons de
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
39
Plutôt qu’une mise en parallèle d’éléments issus de plusieurs champs artistiques, il faudra parler d’une
interpénétration effective, qui accorde à chaque domaine concerné une relative autonomie.
40
Stanley Gibb sugere uma distinção entre multimídia, mixed-mídia e intermídia. A primeira respeita a
autonomia dos elementos confrontados, a segunda tende a igualar os elementos e a última persegue o ideal de
uma interdependência rigorosa (Bosseur, 1998, p. 275).
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315!
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41
www.monumenta.com
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! 317!
CONCLUSÃO
A pluralidade das artes é tão essencialmente irredutível quanto a unidade da arte é absoluta.
(Nancy,1994, p. 24)1
a) Diferenças
Apesar de, em tese, podermos nos dirigir ora às semelhanças ora às diferenças, as duas
são inseparáveis. As semelhanças só são perceptíveis em meio às diferenças e vice-versa.
Ambas existem sempre no plural, assim como foram apresentadas as musas, metáforas das
artes no primeiro capítulo desta tese. O uno ou o singular generalizado das artes parecem
residir em uma instância inacessível e utópica. Cada uma das musas afirma em sua arte
particularidades intransferíveis e únicas e asseguram suas diferenças através da pluralidade
das matérias e das técnicas, importantes instrumentos da distinção das artes. A dimensão
singular primordial entra no que podemos chamar de sublime. A arte surge nesta articulação
entre matéria, técnica e a dimensão sublime.
Na tentativa de se estabelecer limites claros entre as artes, diversos sistemas de
classificação surgiram ao longo da história. Cada um deles, como os apresentados no primeiro
capítulo desta tese, traz alguma contribuição para a compreensão dos limites entre as artes, e
são legítimos na medida em que seus pressupostos são bem definidos e claramente
apresentados. Mas é bom observar que a diferença pura, expressa pelas fronteiras entre as
artes, é tão impossível quanto uma autêntica semelhança e se estabelecem primordialmente
como relacionais e não essenciais.
Olhando com certo distanciamento para os sistemas das artes apresentados não é
difícil de constatar que, por trás da demarcação de limites, existe sempre algum tipo de força
que, de certa forma, abranda esse próprio limite. Aristóteles distingue as artes na figuração, na
mímica e na expressão, mas as une na premissa comum da mimeses. O “Ut pictura poesis” de
Horácio sugere, poeticamente, interseções entre pintura e poesia. Lessing nos convida a ouvir
o grito de dor da escultura do Laocoonte e assim estabelece um elo do visual e do sonoro,
mesmo que seja como sugestão poética (Lessing, 1989, p. 15). No idealismo alemão, de modo
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
1
“La pluralité des arts est aussi essentiellement irréductible que l’unité de l’art est absolue.”
!
318!!
b) Semelhanças
As semelhanças desta tese não são aquelas que se instalam na unidade ontológica da
arte, no seio de Mnemósine, mãe das musas. Nem tampouco no estabelecimento de elos que
se sustentam pela retórica ou discurso poético. São conflituosas e se instalam no terreno
desconfortável da Estética Comparada, impulsionada pelas práticas comparatistas. As
semelhanças desta tese fazem apologia a um certo “choque de formas”, nos termos de George
Bataille. Se afirmam justamente no interior das diferenças, sem nunca negá-las. Devem ser
vistas a partir de uma aproximação dupla e simultânea que, por um lado, aceita
pragmaticamente certos limites e diferenças e, por outro, reconhece elos profundos nas mais
diversas instâncias de uma obra de arte.
Existe um pano de fundo ou um “todo subjacente”, nas palavras de Dewey, que se
constitui substância comum das artes. Embora não seja completamente apreendido
intelectualmente, é intuído com intensidade. E sobre esse fundo comum, as matérias das artes
se encontram, ao menos no que concerne seu caráter predominantemente qualitativo,
imensurável como fenômeno.
No que diz respeito aos sentidos, acontece algo similar ao que se passa com as artes.
Eles têm suas individualidades e uma autonomia, mas se encontram na integralidade da
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
2
Cf. p. 40.
!
! 319!
!
320!!
vem perdendo seu lugar central nos novos solos epistemológicos. Reconhece-se que a
dessemelhança está no cerne da semelhança, tal como a teologia medieval já havia afirmado.
A semelhança se converte em conflito de formas, incômodo e perturbador.
A semelhança entra nesta pesquisa, não mais com pretensão de ser verdadeira ou
ordenadora, mas como instrumento de observação de encontros, virtuais ou reais, entre obras
artísticas. A partir dela, novas perspectivas de entendimento devem emergir. Mesmo não se
afirmando com verdadeiras, as semelhanças podem sim ser válidas, uma vez que haja
coerência nos raciocínios que sustentam seus termos e suas premissas. Semelhanças informes
ou mesmo transgressoras, como as de George Bataille apresentada no segundo capítulo,
podem surgir no contato tenso entre obras de arte distintas.
c) Similitudes
!
! 321!
d) Ressonâncias
Inspirada pela similitude simpatia, que atua à distância, nossas ressonâncias trazem
fortes marcas da subjetividade de um observador que discorre sobre os paralelos das artes.
Uma vez que se reconhece uma semelhança ou se tem uma emoção análoga frente a objetos
artísticos distintos, pode-se pensar em ressonância nos moldes desta pesquisa. Mas para que
essa ressonância se concretize é preciso explorar o interior das obras aproximadas e
investigar as origens dos elos percebidos.
Ilustramos em um primeiro momento nossas ressonâncias com obras bastante
emblemáticas no século XX: A Sagração da Primavera de Stravinsky e Les Demoiselles
d’Avignon de Picasso. Do estudo paralelo dessas obras e seus autores emergiram uma série de
similaridades que certamente superam as coincidência de ordem histórica. Coexistem no
cerne das obras um desejo dos autores de suprimir os aspectos anedóticos e a narratividade
linear tradicional, de buscar por dimensões primordiais da representação do homem, pela
imagem e pelo ritmo, assim como um aspecto hierático e ritualístico devem provir das duas
obras. Esses aspectos comuns, entre outros que foram citados no quarto capítulo, contribuem
decisivamente para a inclusão dessas obras em nossas ressonâncias.
O segundo exemplo foi menos evidente, mas não menos ilustrativo. Trata-se de uma
aproximação entre as obras Atmosphères de Ligeti e Black Painting n. 1 de Rothko. As
!
322!!
e) Reflexos
Reflexos foi o nome que demos para esse grupo em que as similitudes de emulação e
analogia atuaram intensamente. Quando um autor aplica em sua própria obra elementos
provindos de uma arte que não é sua, lá existirão os reflexos. As obras não se tocam
fisicamente, são autônomas e diversas, mas guardam uma espiritualidade comum, graças a
uma correspondência temática ou estrutural buscada por um autor em seu modelo.
Entre os muito numerosos exemplos possíveis dos reflexos nesta tese, escolhemos um
por parte de um músico e outro, de um pintor.
Henri Dutilleux compôs seu Timbres, espace et mouvement ou Nuit Étoilée inspirado
pela pintura Nuit Étoilée de Vincent Van Gogh, uma das mais icônicas e celebradas do século
XX. Dutilleux, por diversos caminhos e estratégias composicionais, buscou aplicar em sua
obra musical vários aspectos que o tocavam particularmente na obra de Van Gogh. O jogo de
contrastes timbrísticos se refletiram nos contrastes instrumentais, sobretudo pela
intensificação do contingente de cordas graves e da importância dada aos instrumentos de
percussão e os agudos dos sopros. A configuração espacial da orquestra busca equivalência
com o espaço pictórico e o movimento de espirais da tela de Van Gogh se vê refletida em uma
massa de trinados. Isso somente para citar alguns aspectos mais afirmados e evidentes, pois
concepções similares sobre arte, religião e certa maneira de ver o mundo também deixam
traços dos mais importantes.
!
! 323!
Do lado do pintor, que permite que uma arte vizinha se reflita em sua própria arte, está
Paul Klee. Tendo como mote a tela Im Bach’schen Styl (No Estilo de Bach), mostramos
inúmeras maneiras através das quais a música, no caso a música de Bach, pode deixar marcas
importantes no interior de uma obra puramente pictórica. Em No estilo de Bach, Klee propõe
uma leitura predominantemente horizontal de sua tela, buscando imprimir uma temporalidade
similar à escuta musical ou à leitura de uma partitura. Figuras de diversos aspectos, muitas
delas provindas da música, se imitam, se respondem, propõe simetrias, que podem ser
associadas a uma partitura de Bach em que coincidem efeitos acústicos e óticos, como foi
sugerido por Boulez.
Nos reflexos as emulações surgem como o desejo de imitar, ao seu modo, aquilo que
se admira na arte vizinha e as analogias se responsabilizam por criar as pontes e fazer os
ajustes necessários que permitam o estabelecimento dos elos. Mas a obra refletida permanece
original e sua apreciação, em princípio, independe do reconhecimento da obra que serviu de
modelo ou ponto de partida.
f) Confluências
Entre as três diretrizes metodológicas apresentadas, o grupo das confluências deve ser
aquele que comporta o maior número de obras. Pois não se trata mais de aproximar obras de
arte autônomas, e sim observar o interior de obras únicas em que matérias artísticas distintas,
sonoras e visuais, ocupam o mesmo espaço. Basta pensar no cinema, na ópera, no balé, no
teatro e em várias manifestações artísticas mais recentes, como instalações, arte multimídia ou
happening, para constatar a extensão grupo. Em nossa pesquisa privilegiamos o sonoro e o
visual e excluímos quase completamente a dimensão literária para evitar as muitas outras
implicações que isso acarretaria e que poderiam nos afastar de nossa proposta inicial.
O grupo das confluências é regido pela única similitude estudada que permite uma
fusão efetiva entre os elementos diversos: a convenientia.
Para ilustrar esse grupo tecemos considerações mais gerais sobre ópera e cinema e
apontamos para algumas especificidade nos casos de Lulu do compositor Alban Berg e O
Encouraçado Potemkin do diretor Serguei Eisenstein.
No caso da ópera, nos concentramos em questões relativas à unidade, passando pelo
viés da arte total wagneriana, e à coexistência de elementos sonoros e visuais. Em um
segundo momento nos endereçamos a Lulu, como obra emblemática na qual é possível
!
324!!
!
! 325!
artista propõe em sua poética qualquer tipo de tradução ou aplicação de elementos de uma
outra arte na sua própria prática artística, ainda assim não se pode prever a força com a qual
esse jogo de similitudes e diferenças pode atingir o receptor.
Por mais que nos esforcemos em observar a fundo a estrutura e o funcionamento de
um par de obras ou uma obra única em que coexistam matérias distintas e, em um segundo
momento, sublinhemos seus pontos de contato, as semelhanças dentro de um discurso se
mostram predominantemente relacionais. Mas seus atributos essenciais sempre perseveram
como pano de fundo. Por não poderem ser expressos com a precisão de uma teoria musical ou
na descrição de formas sobre uma superfície, não quer dizer que esses atributos generalizados
e impalpáveis não existam ou devam ser deixados de lado. É importante que se tenha
consciência daquilo que John Dewey chama de “contexto indefinido” sobre o qual todas as
coisas se inscrevem. A arte, como experiência, tem a capacidade de avivar a ambiguidade
entre o específico e o geral e, por que não dizer, entre o finito e o infinito. Por trás de todo
nosso estudo e de nossa diretriz metodológica, é inegável que optamos por privilegiar certas
similitudes em detrimento de outras e que certos contatos específicos entre as artes foram
mais enfatizados que outros. Embora existam atributos particulares que nos levam a fazer uma
série de opções no interior da pesquisa, existe certamente um contexto indefinido e
inexplicável determinando o arbitrário de nossas escolhas.
Esta tese foi se movendo na tensão entre uma superfície, mais visível e palpável, e
uma profundidade, que pode somente ser intuída. Os órgãos do sentido para os quais as artes
se dirigem primordialmente se incluem nesta superfície, como instrumentos de excitação
corporal. Mas a percepção ela mesma se situa na dimensão mais profunda da experiência.
Olhos e ouvidos são como “tentáculos” através dos quais tocamos certo objeto artístico, como
a fenomenologia nos mostra.
A escolha e o estudo das quatro similitudes – simpatia, emulação, analogia e
convenientia – acabaram por forjar uma maneira de nos posicionar frente a uma grande gama
de possibilidades de encontros entre artes e matérias artísticas. Mas ao mesmo tempo em que
criou um quadro se libertou dele, pois apesar de serem solicitadas pontualmente nas análises
das obras, nosso estudo das semelhanças não as configuram em um sistema fechado e com
pretensões de serem sempre verdadeiras. Não buscamos similitudes absolutas, mas que sejam
válidas de acordo com nossos critérios e fins propostos.
Quando olhamos à distância, sobretudo a segunda parte desta tese, percebemos que os
estudos das obras, inclusive aquelas que dividiam um mesmo capítulo, foram orientados
segundo uma metodologia individualizada propondo diferentes tipos de diálogo entre obras e
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matérias. Optamos por descrever os fenômenos musicais e visuais de maneira a evitar léxicos
específicos que, em uma proposta interdisciplinar, poderiam impedir um trânsito mais fluido
de ideias. Durante toda a pesquisa procuramos não nos esquecer das duas faculdades que,
segundo Michèle Barbe (2001, p. 121), são indispensáveis tanto para o receptor quanto para o
criador: a sensibilidade e a imaginação.
Embora a pesquisa tenha evoluído e ganhado vida própria, persiste em nós a
curiosidade e a fascinação primordiais. Foram elas que nos moveram na escrita de cada linha
desta tese. Por trás do estudo das diferenças, semelhanças, similitudes e a aplicação dessas
noções na aproximação de artes e matérias artísticas, permanece o desejo de prosseguir por
essas vias na tentativa de compreender um pouco mais sobre os encontros das artes.
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