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A REVOLUÇÃO FRANCESA consigna-se

desta maneira um lugar excepcional na história do


mundo contemporâneo. Revolução burguesa
clássica, ela constitui, para a abolição do regime
senhorial e da feudalidade, o ponto de partida da
sociedade capitalista e da democracia liberal na
história da França. Revolução camponesa e
popular, porque antifeudal sem compromisso,
tendeu por duas vezes a ultrapassar seus limites
burgueses: no ano II, tentativa que, apesar do
malogro necessário, conservou por
Á!6-e/v Job-oat
REVOLUÇÃO
+
valor profético de exemplo
A
FRANCESA
�.

consciência dos homens do nosso século. Esta


lembrança, só por si, é revolucionária: ela ainda
nos exalta.
N.Cham. 944.04
S659r 9. ed.
Autor: Soboul, Albert
Título: A Revolução
Francesa.

ISBN 978-85- 11111111111 1111 11111 11111 1/1 1 1111111111 1'11 1111
14063488 AC.121619
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ALBERT SOBOUL

-
AREVOLUÇAO
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J' A �{) ( 3 7 83(�
9ª EDIÇÃO
r L ( f)- \ I L
Tradução
ROLANDO ROQUE DA SILVA

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-
Copyright© by Presses Universitaires de France, PUF

Título original: La Révolution Française

Capa: Rodrigo Rodrigues


ÍNDICE

INTRODUÇÃO - Das causas da Revolução Francesa e de


seus caracteres.............................................. 7
2007 L Feudalismo e capitalismo, 8. - II. Estrutura e
Impresso no Brasil conjuntura, 11. 1 . Antagonismos sociais, 11. - 2.
Printed in Brazil Flutuações econômicas e demográficas, 21. - III.
Espontaneidade e organização revolucionárias, 28.
- 1. A esperança e o medo, 28. -2. A prática po­
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonce lítica, 32 .
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
CAPÍTULO I - Noventa e nove. Revolução ou Compro-
S659r Soboul, Albert, 1914-1982 misso? (1789-1792) ... . . . ............ ... ... ......... . . ... .
. .. 39
9" ed. A Revolução Francesa: edição comemorativa do bicentenário da I.A "abolição" da feudalidade, 41. -O liberalismo
Revolução francesa, 1789-1989/Albert Soboul; tradução de Rolando
burguês, 44. - III. O impossível compromisso, 48.
Roque Silva. - 9" ed. - Rio de Janeiro: DIFEL, 2007.
CAPÍTULO II - Noventa e três. República Burguesa ou
112p.
Democracia Popular? (1792-1795) . . ....... .... . . . . . . 57
. .

Tradução de: La révolution française l. O despotismo da liberdade, 58. -1. Girondinos


Inclui bibliografia
ISBN 978-85-7432-055-7
eMontanheses (1792-1793), 58.2. - Montanheses,
Jacobinos e Sans-Culottes (1793-1794), 60. - II.
1. França - História - Revolução, 1789-1799. I. Título. Grandeza e contradições da República do ano Il,

COO - 944.04
63. - 1. Tendências sociais e prática política do mo­
CDU - 94 (44) "1789/1799" vimento popular, 63. - 2. Governo revolucionário
03-1469 e ditadura jacobina, 66. - III. A impossível Repú­
blica igualitária, 71. - 1. Parada e declínio do mo­
vimento popular (primavera de 1794), 71. - 2 . A
Todos os direitos reservados pela: queda do Governo revolucionário e o fim do mo­
DIFEL - selo editorial da vimento popular (termidor, ano II-prairial, ano III),
EDITORA BERTRAND BRASIL LTDA. 74.
Rua Argentina, 171 - 10 andar - São Cristóvão CAPÍTULO III - Noventa e cinco. Liberalismo ou Dita­

20921-380 Rio de Janeiro - RJ


-
dura? (1795-1799)........................................... ,81
Tel.: (0:xx21) 2585-2070 Fax: (Oxx21) 2585-2087
L A herança termidoriana: propriedade e liberda-
de, 82. - II. A catástrofe monetária e a Conspira-

Não é permitida a reprodução total ou parcial desta obra, por quais­


quer meios, sem a prévia autorização por escrito da Editora.

Atendemos pelo Reembolso Postal.


'.

ção pela Igualdade (1795-1797),86.


- III. A prática

política: do liberalismodíretoria l ao autoritarismo

consular, 91.
CONCLUSÃO - A Revolução Francesa na
história do
mundo contemporâneo .. .. . . . ... . . .. . .. . ...... ;
. . . 99 . · .. · ·

I. O resultado da revolução, 99. - II. Revolu ção

Francesa e revoluções burguesas, 101


BIBLIOGRAFIA SUMÁRIA .. . ... . .. ... .. .. .. INTRODUÇÃO
.. .
.. . . 107
· · · · · · · · · · · .· . · ·

DAS CAUSAS DA REVOLUÇÃO FRANCESA


E D E SEUS CARACTERES

A Revolução assinala a elevação da sociedade burguesa e ca­


pitalista na história da França. Sua característica essencial é ter
realizado a unidade nacional do país por meio da destruição do
regime senhorial e das ordens feudais privilegiadas: porque, se­
gundo Tocqueville em L Ancien Régime et la Révolution (livro II,
cap. I), seu "objetivo particular era abolir em toda parte o resto
das instituições da Idade Média". O fato de ter chegado, finalmen­
te, ao estabelecimento de uma democracia liberal particulariza ain­
da a sua significação histórica. Deste duplo ponto de vista, e sob
o ângulo da história mundial, ela merece ser considerada o mo­
delo clássico da revolução burguesa.
A história da Revolução Francesa coloca assim duas séries de
problemas. Problemas de ordem geral: os concernentes à lei his­
tórica da transição do feudalismo ao capitalismo moderno. Pro­
blemas de ordem particular: os que se prendem à estrutura espe­
cífica da sociedade no fim do Antigo Regime e levam em consi­
deração os caracteres próprios da Revolução Francesa em relação
aos diversos tipos da "revolução burguesá'.
Impõe-se um reparo de vocabulário. Conhecemos as obser­
vações críticas suscitadas pelos termos feudalidade, feudalismo,
aqui empregados; Georges Lefebvre, a propósito de um debate
sobre "a transição do feudalismo ao capitalisrnd: adiantara que
eles não eram apropriados. Corno desde então designar o tipo de
organização econôrnica e social destruído pela Revolução e que
se caracterizava, não apenas pelas sobrevivências da vassalidade

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e do desmembramento do poder público, mas igualmente pela gem, da época em que a terra constituía a única forma de riqueza
persistência da apropriação direta por parte dos senhores do pro­ social e conferia, portanto, aos seus possuidores o poder sobre
duto do sobre-trabalho dos camponeses, como testemunhavam os que a cultivavam. A monarquia dos Capetos, ao preço de gran­
as corvéias, os direitos e as obrigações em gêneros e em dinheiro des esforços, havia despojado inteiramente os senhores de seus
aos quais estes últimos estavam sujeitos? Indubitavelmente, é dar direitos realengos: estes tinham conservado apenas seus privilé­
ao termo feudalidade uma significação mais ampla, englobando gios sociais e económicos. Os direitos senhoriais sempre subli­
os fundamentos materiais próprios do regime. É neste sentido que nhgvam a sujeição dos camponeses.
os contemporâneos o entendiam, menos taivez os juristas a par O renascimento do comércio e o desenvolvimento da produ­
das instituições ou os filósofos em particular sensíveis ao fracio­ ção artesanal tinham, não obstante, criado,' desde os séculos X
namento do poderio público, que os camponeses que lhe supor­ e XI, uma nova forma de riqueza, a riqueza mobiliária, e através
tavam o peso e os revolucionários que a derrubaram. É neste sen­ dela, dado nascimento a uma nova classe, a burguesia, cuja ad­
tido, ainda, que o entendia esse observador, clarividente entre to­ missão aos Estados gerais, desde o século XIV, lhe consagrara a
dos, Tocqueville, ao escrever em r: Ancien Régime etla Révolution importância. No quadro da sociedade feudal, ela dera prossegui­
(livro I, cap. V) que esta última tinha destruído inteiramente "tu_ mento ao seu impulso ao próprio ritmo do desenvolvimento do
do o que, na antiga sociedade, derivava das instituições aristocrá­ capitalismo, estimulado pelos grandes descobrimentos dos sécu­
ticas e feudais". Portanto, feudalidade não no sentido restrito do los XV e XVI e pela exploração dos mundos coloniais, bem como
direito, mas noção de história económica e social, definindo-se pelas operações financeiras de uma monarquia sempre carente
por determinado tipo de produção histórica fundado na proprie­ de dinheiro. No século XVIII, a burguesia estava à testa das fi­
dade da terra, anterior ao capital moderno e ao modo de produ­ nanças, do comércio, da indústria; fornecia à monarquia não só
ção capitalista. Inútil precisar que a feudalidade neste último sen­ os quadros administrativos como também os recursos necessários
tido apresenta diversos matizes segundo o estádio de sua evolu­ à marcha do Estado. A aristocracia, cujo papel não tinha cessado
ção, segundo também os países e as regiões. O papel histórico de diminuir, permanecia ainda na primeira escala da hierarquia
da Revolução Francesa foi o de assegurar, pela destruição da feu­ social: porém se esc1erosava em casta, no momento mesmo em
dalidade assim definida, a transição para a sociedade capitalis­ que a burguesia aumentava em número, em poder econômico,
ta.(l) taPlbém em cultura e em consciência. O progresso das Luzes 80-
.apava os fundamentos ideológicos da ordem estabelecida, ao mes­
I - Feudalismo e capitalismo mo tempo que se afirmava a consciência de classe da burguesia.
Sua boa consciência: classe em ascensão, acreditando no progres­
No fim do século XVIII, a estrutura social da França pérma­ so, tinha a convicção de representar o interesse geral e de assu­
necia de essência aristocrática: conservava o caráter de sua ori- mir o encargo da nação; classe progressiva, exercia uma triunfan­
te atração sobre as massas populares como sobre os setores dissi­
(1) Sobre a feudalidade, no sentido estrito, ci. M. BLOCH, La société féQdale,
t. I: La formation des liens de dépendance (Paris, 1939); R. BOUfRUCHE, IXe Con­ dentes da aristocracia. Contudo, a ambição burguesa, apoiada pela
gres International des Sciences Histonques; I: Rapports (Paris, 1950); R. BOUTRU­ realidade social e económica, se chocava com o espírito aristocrá­
CHE, Seigneurie et féodalité, I: Le premier âge des liens d'homme à homme (Pa­
tico das leis e das instituições.
ris, 1959). Sobre o problema da transição do feudalismo ao capitalismo, ci. The
Transition from Feudalism to Capitalism, A Symposium por P. M. SWEEZY, M. Estes caracteres não isolavam a França do resto da Europa.
DOBB, H. K. TAKAHASHI, R. HILlDN, C. HILL(Londres, 1954); R. H . HILlDN, "Yeut­ Em toda parte a ascensão da burguesia se operara em detrimento
ii une crise générale de la féodalité?" (Anna" les, Economies, Sodetés, Civilizations,
da aristocracia e nos próprios quadros da sociedade feudal. Mas,
1951, n? 1); G. PROCACO, G. LEFEBVRE, A. SOBOUL, ("Une disc,!ssion l1istorique:
. du féodalisme au capitalisme" (La Pensée"; 1956, n? 65); A. SoBOUL, La Révolu­ como os diversos países europeus tivessem participado de ma­
tion française et la féodalité. Notes sur le prélevement féodal" (Revue "histonque, neira bastante desigual no desenvolvimento da economia capita­
1968, n? 487, p. 33).
lista, tais caracteres afetavam-nos em graus variados, da Holanda

8 9
e da Inglaterra que, desde o século XVII, tinha completado a sua
Barnave ajunta-lhe o movimento dos espíritos: "À medida que as
revolução burguesa, às grandes monarquias da Europa do Cen­
artes, a indústria e o comércio enriquecem a classe laboriosa do
tro e do Leste, às burquesias pouco numerosas e desprovidas de
povo, empobrecendo os grandes proprietários de terra e reapro­
grande influência.
ximando as classes pela fortuna, os progressos da instrução as
Na França, na segunda metade do século XVIII, o avanço da
reaproximam pelos costumes e tornam a chamar, após um longo
economia capitalista, sobre cujos fundamentos se tinha edificado
esquecimento, as idéias primitivas da igualdade".
o poderio da burguesia, permanecia frenado pelos quadros feu­
Do mesmo modo que a igualdade com a aristocracia, era a liber­
dais da sociedade, pela organização tradicional e regulamentar da
dade que a burguesia reclamava: a liberdade política certamente, con­
propriedade, da produção e das trocas. "Era preciso romper es­
tudo mais ainda a liberdade econômica, a do empreendimento e do
tes grilhões - escrevem os autores do Manifesto -e romperam­
lucro. O capitalismo exigia a liberdade porque necessitava dela pa­
se:' É assim que se coloca o problema da passagem do feudalis­
ra assegurar o seu impulso, a liberdade sob todas as suas formas: li­
mo ao capitalismo. Ele não escapou aos mais clarividentes dos
berdade da pessoa, condição do assalariado -liberdade dos bens,
homens da época. Longe de ser inspirada por um idealismo abs­
condição de sua modalidade -liberdade do espírito, condição da
trato, como supunha Taine, a burguesia revolucionária tinha uma
pesquisa e das descobertas científicas e técnicas.
consciência esclarecida da realidade econômica que constituía a
Que as causas profundas da revolução devam ser pesquisadas
sua força e lhe determinava a vitória.
nas sobrevivências feudais e nas contradições da antiga sociedade,
Barnave foi o primeiro a formular, mais de meio século antes
obstáculo ao desenvolvimento dos novos meios de produção e de
de Marx, a teoria da revolução burguesa. Tendo vivido no Dau­
troca, as revoluções neerlandesa, desde o fim do século XVI, e
phiné, no meio dessa intensa atividade industrial que, a acreditar­
inglesa do século XVII já o tinham demonstrado. Tal aspecto, po­
se no que escrevia, em 1785, o inspetor das manufaturas Roland,
rém, não explica todos os caracteres da Revolução Francesa. As
fazia desta prOVÍncia, pela variedade e pela densidade de suas em­
razões de ela ter constituído o episódio mais explosivo, mesmo
presas, pela importância de sua produção, uma das primeiras do
por sua violência, das lutas de classe que levaram ao poder a bur­
reino, Barnave vem a conceber aí que a propriedade industrial pro­
guesia, devem ser procuradas nos traços específicos da sociedade
voca a ascensão política da classe que a possui. Em sua Introduc­
francesa do Antigo Regime.
tion à la Révolution française, escrita em 1792, publicada em 1843,
após haver colocado o princípio de que a proprieclade influi so­
bre as instituições, Barnave constata que as instituições criadas
II - Estrutura e conjuntura
pela aristocracia fundiária contrariam e retardam a ascensão da
. sociedade nova, "O reino da aristocracia dura enquanto a popu­
lação agrícola continuar a ignorar ou a negligenciar as artes, e en­ 1. Antagonismos sociais - A aristocracia (isto é, a nobreza
quanto a propriedade das terras continuar a ser a única riqueza" ... e o alto clero; a ordem do clero não apresentava nenhuma unidade
'1\ssim que as artes e o comércio conseguem penetrar no povo e social) possuía um duplo problema, social e político.
criam um novo meio de riqueza em auxílio da classe laboriosa, Socialmente, mais que sobre os matizes e as oposições nas
prepara-se uma revolução nas leis políticas; uma nova distribui­ fileiras da aristocracia, deve-se insistir sobre a sua unidade pro­
ção da riqueza prepara uma nova distribuição do poder. Da mes­ funda e seus traços específicos: mensuramo-los por comparação
ma maneira que a posse das terras elevou a aristocracia, a pro­ com a aristocracia inglesa que não conheceu nem o privilégio fiscal
priedade industrial eleva o poder do povo; ele adquire a sua li­ nem o prejulgado da perda dos foros de nobreza. É indubitável
berdade"... O povo: entendamos, na pena de Barnave, a burgue­ que a nobreza francesa não era homogênea, pois a evolução histó­
sia. Tendo afirmado assim nitidamente a correspondência neces­ rica tinha introduzido diferenciações no interior da ordem: nobre­
sária entre as instituições políticas e o movimento da economia, za de espada tradicional e nobreza togada, adquirida na origem

10 II
- nobreza de corte e nobreza provincial, ambas de sangue, mas o rei, "primeiro gentil-homem do reind: poderia resignar-se a aban­
opostas por seus gêneros de vida . Sem dúvida, ainda no século donar "sua fiel nobrezá'? A monarquia, assim como a aristocracia,
XVIII, o dinheiro impunha-se à nobreza, como à burguesia, e ten­ não tiveram outra saída senão a contra-revolução.
dia a dissociar s Uéis fileiras. O nobre, mesmo de espada, nada era Politicamente, a aristocracia, no século XVIII, insurgiu-se con­
sendo pobre. Havia que ser rico para adquirir a nobre za, rico ainda tra o absolutismo real e minou-o obstinadamente. Do mesmo mo­
para conservar Sua condição. Nas suas camadas superiores, a aris­ do que em virtude do pro gresso do pensamento burguês e do bri­
tocracia era ampu tada de uma minoria que o dinheiro, o espírito lho da filosofia das Lu zes a época foi marcada por uma contracor­
de empreendimento, os costumes e as idéias aproximavam da bur­ rente de ideologia aristocrática ilustrada por Boulainvilliers, Mon­
guesia . Entretanto a massa da nobreza fugia a es ta renovação, ape­ tesquieu, Le Paige . A feudalidade foi justificada pela conquista,
gada obstinadam�nte aos seus privilégios e à sua mentalidade tra­ pois que os nobres eram saídos dos conquistadores germânicos,
dicional. constituídos, pelo direito das armas, senhores dos galo-romanos
O exclusivisrno nobiliário não data do século XVII I, mas reduzidos à servidão. A aristocracia é anterior à monarquia, uma
reforçou-se consideravelmente no fim do Antigo Regime: o exérci­ vez que os reis, originalmente, eram eleitos. Abeberando-se neste
to (a medida mais famosa na matéria é a ordenação de 1781), a arsenal ideológico, solidamente acampado nas fortalezas do exclu­
Igreja (em 1789, tc)dos os bispos são nobres), a al ta administração sivismo aristocrático que constituíam as Cortes soberanas, os Esta­
(findo o reino da "vil burguesiá') fecharam-se aos plebeus. "De dos provinciais e as Assembléias do Clero, usando e abusando
um modo ou de Ou tro , escreve Sieyes em sua brochura Qu'est-ce dos direitos dos Parlamentos aos assentamentos e às'admoesta­
que Je tíers état?, todos os ramos do poder e xecu tivo caíra m tam­ ções, a aristocracia, tanto a de espada quanto a togada, conduziu,
bém na casta que fornece a Igreja, a Toga e a Espada. Uma espécie durante todo o curso do século XVIII, o assalto contra a autoridade
de espírito de confraternidade faz com que os nobres se dêem pre­ real . As Cortes e os Estados, rejeitando toda tentativa de reforma
ferência entre si, e para tudo, em detrimento do resto da nação. fiscal, atribuindo-se o simpático papel de defender o contribuinte,
A usurpação é c ompleta; eles reinam verdadeiramente". Entre a mantinham na realidade os privilégios ao abrigo de qualquer peri­
espada, a toga e a finança recém-enriquecida, a solidariedade dos go. Em 1771, Maupeou tinha rompido a oligarquia judiciária; Luís
interesses assegurava uma fusão rápida: a divers id ade das origens XVI, quando da sua ascensão, restabeleceu-a na plenitude de seus
apagava-se na afirmação do p rivilégio. O pequeno nobre de pro­ poderes; ela contribuiu para a queda de Turgot. A partir daí,
víncia permanecia mais ancorado ainda na sua condição: tratava­ generalizou-se o ataque em nome da liberdade, a da aristocracia,
se de sua própria existência . Renunciar aos direitos senhoriais ou com a Espada e a Toga fazendo causa comum contra o poder cen­
apenas pa gar o imposto teria precipitado sua ruína . O prejul gado tral, e Parlamentos e Estados provinciais reciprocamente susten­
da perda dos fon)s de nobreza confinava os filhos mais novos na tando-se.
miséria, pois o direito de primogenitura reservava o pa trimônio A oposição aristocrática culminou no que Albert Mathiez de­
aos herdeiros do nome. Em certas províncias, uma verdadeira "ple­ nominou de "a revolta nobiliáriá' e Georges Lefebvre de "a revolu­
be nobiliáriá', segundo a expressão de Albert Mathiez, permane­ ção aristocráticá' (1787-88): "Os patrícios - escreveu Chateaubriand
cia congelada na tradição, recusando-se a toda concessão. Na na­ - co meçaram a revolução; os plebeus a terminaram". Da reunião
ção, "onde col \,car a casta dos nobres?" - interroga Sieyes. De da Assembléia dos Notáveis, em 22 de fevereiro de 1787, à decisão
todos os Estados, o mais mal organizado seria aquele em que "toda do Parlamentto de Paris, em 23 de setembro de 1788 ( que os Esta­
uma classe de cidadãos pusesse sua glória em permanecer imóvel dos gerais, convocados para I? de maio pelo veredicto do Conse­
em meio ao movimento geral e soubesse consumir a melhor parte lho de 8 de agosto, se constituiriam, como em 1614, em três ordens
do produto, sem. haver em nada concorrido para dar-lhe nasci­ dispondo do mesmo número de representantes e votando separa­
mento. Tal classe é certamente es tranha à nação devido à sua pre­ damente ), as tentativas de reformas propostas por Calonne, de­
guiçá'. Quando a existência do privilégio entrou em discussão, pois do seu sucessor Loménie de Brienne, foram entravadas pela

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12

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resistência da Assembléia dos Notáveis, em seguida pela revolta punham em debate a estrutura aristocrática do Antigo Regime:
da Corte dos Pares e dos Parlamentos Provinciais. Tendo impos­ tratando-se do prefácio a uma revolução burguesa, pode-se conse­
to, finalmente, sua vontade ao poder real, a aristocracia triunfava. qüentemente falar de "pré-Revoluçãd'? Mais que sobre as tentati-·
"Revolução aristocráticá'? .. A expressão parece ambígua. Se vas de reforma, o acento desta "etapa intermediáriá' parece mes­
a nobreza (e seus registros de queixas o ilustraram logo após) ad­ mo que deve ser mantido sobre a resistência vitoriosa da aristocra­
mitia um regime constitucional e o voto do imposto pelos Estados cia. Porém, minando o poder real, esta não se dava conta de que
Gerais, se exigia a entrega da administração aos Estados Provin­ arruinava o defensor natural de seus privilégios. A revolta da aris­
ciais Eletivos (Estados Gerais e Estados Provinciais que ela domi­ tocracia abriu o caminho ao Terceiro Estado.
naria graças à manutenção de sua estrutura aristocrática), se se *
* *
mostrava ciosa de liberdade individual, estava longe de admitir
a igualdade fiscal, era unânime quanto à conservação dos direitos
senhoriais. Não pode subsistir nenhuma dúvida: a aristocracia en� o Terceiro Estado compreendia, confundidos em suas classes,
cetou a luta contra o absolutismo para restabelecer sua prepond�­ todos os plebeus, seja, segundo Sieyes, 96% da nação. Esta entida­
rância política e salvaguardar privilégios sociais ultrapassados - de legal dissimulava elementos sociais diversos cuja ação específi­
luta que ela prosseguiu logicamente até à contra-revolução. ca diversificava o curso da Revolução.
A problemática desta "etapa intermediáriá' foi recentemente Que a burguesia tenha dirigido a Revolução, é hoje verdade
retomada e o acento colocado não mais sobre o conteúdo social evidente. Deve-se constatar ainda que ela não constituía, na socie­
do episódio, mas sobre a vontade de reforma da monarquiae): dade do século XVIII, uma classe homogênea. Algumas de suas
reforma das imposições proposta por Calonne, representada por frações estavam integradas nas estruturas do Antigo Regime, par­
Brienne, mais ainda o vasto conjunto de reformas empreendidas ticipando em variados graus dos privilégios da classe dominante:
por Brienne, da administração central das finanças e do comércio quer pela fortuna fundiária e pelos direitos senhoriais, quer por
à reforma militar, das assembléias provinciais à reforma judiciária pertencer ao aparelho estatal, quer pela direção das formas tradi­
e ao estado civil dos não-católicos. Loménie de Brienne e seus co­ cionais das finanças e da economia. Elas suportaram em graus
laboradores tinham empreendido com coragem a renovação do diversos a Revolução.
regime condenado: estaria em suas mãos o poder de lhe mudar No que concerne à grande burguesia mercantil e industrial,
o conteúdo social? A maioria dos privilegiados não se dispunha seria necessário avaliar com exatidão seu papel na sociedade do
a fazer sacrifícios; mesmo limitadas e parciais, as reformas lesa­ Antigo Regime e na Revolução. O capitalismo permanecia, ainda,
vam seus interesses e ameaçavam sua prerrogativas. Se as justiças essencialmente comercial. Dominava um importante setor da pro­
senhoriais eram condenadas, não entrava em discussão tocar nos dução, nas cidades e nos campos onde o negociante-fabricante
direitos feudais. A reforma militar respeitava as prerrogativas da empregava tarefeiros que trabalhavam a domicílio. Se representa
nobreza de corte, sempre recusava aos plebeus o acesso aos graus historicamente uma fase de transição, o capitalismo comercial não
do oficialato. Para agradar a aristocracia, o poder dos intendentes levava essencialmente à revolução do antigo sistema de produção
era desmembrado em proveito das assembléias provinciais: mas e de troca no qual estava em parte integrado. Os setores da burgue­
a divisão em ordens era aí mantida, a presidência reservada aos sia ligados a ele bem depressa se afirmaram partidários de um
privilegiados. Se a nobreza e o clero perdiam uma parte de seu compromisso. Não seria possível deste ponto de vista sublinhar
privilégio fiscal, conservavam, contudo, sua preeminência social, certa continuidade lógica que vai dos Monarquianos (*) aos Feuil-
o clero sua autonomia administrativa tradicional. As reformas não

(*) De Monarchiens. Nome dado aos monarquistas liberais, ou constitucio­


nais. Fundaram o Clube dos Imparciais e, posteriormente, o dos Amigos da Con­
(2) JEAN ECRET, La Pré-Révolution française, 1787-1788 (Paris, 1962). tituição Monárquica. (N. do T.)

14 15
lants(*), depois aos G irondinos? Mounier, porta-voz dos Monar­ das trocas p reparava insensíveis transições do p ovo à burguesia.
q uié!n os, devia escrever mais tarde que seu desígnio e ra "seguir O companheiro trabalhava e vivia com o pequeno artesão, parti­
as lições da experiência, opor-se às inovações temerárias e não lhava da sua mentalidade e das suas condições materiais. Do a rte­
p ropor nas formas de gove rno então existente senão as modifica­ são ao empreiteiro, os matizes eram múltiplos e as passagens len­
ções necessárias à manutenção da liberdade". Quanto aos G iron­ tamente graduadas. No cimo da escala , mudanças quase imper­
d inos cujas ligações com a burguesia dos portos e com o grande ceptíveis provocavam uma brusca mutação: na p rimeira fila da classe
comércio colonial são assaz conhecidas, o exemplo de Isnard ilus­ média e j á nas fronteiras da verdadeira burguesia , a importância
tra sua posição social e política: deputado do Var à Convenção, da empresa, uma certa analogia com as p rofissões liberais, como
célebre por sua apóstrofe contra Paris, em 25 de maio de 1793 ("Den­ também p rivilégios particulares ou uma regulamentação especial,
tro em b reve procurar-se-ia nas margens do Sená'.. . ), Isnard e ra iso lavam livreiros, impressores, boticários, locadores de cavalos,
um ne gociante especializado em comércio atacadista de azeites a lguns grandes empreiteiros que, se o lhavam do alto mercadores
e de importação de cereais, p roprie tário de uma maimfatura de e companheiros, se i rritavam de ver os burgueses propriamen te
sabão e de uma fiação de seda. Exemplo significativo de uma ativi­ ditos fazerem o mesmo em relação a eles.
dade indus trial subordinada ao capital com�rcial e que não modi­ Sobre essas cate gorias sociais intermediárias pesavam as con­
ficava as tràdicionais re lações de p rodução: do ponto de vista so­ tradições de uma situação ambígua. A lteando-se das classes po­
cial, como do pon to de vista econômico, a indústria permanecia pulares por suas condições de existência e amiúde da miséria , os
subalterna. artesãos nem por isso deixavam de possuir a sua loj inha e o seu
A existên cia de um amplo seto r de pequena e média burguesia pequeno equipamento; mante r sob a sua disciplina companhei­
j á constituía um dos traços essenciais da sociedade francesa. A ros e aprendizes acentuava sua mentalidade burguesa. Mas seu
grande maioria da p rodu ção local continuava alimentada por arte­ apego ao sistema da pequena produção e da venda direta opunha­
sãos, produ tores independentes e vendedores diretos. Entretanto, os à burguesia mercantil e ao capital comercial: os artesãos sen­
reinava no artesanato uma extrema diversidade quanto à condi­ tam-se ameaçados pela conco rrência da manufatura , recusan­
ção jurídica e ao nível social, Destes que constituíam a média bur­ do acima de tudo trabalhar para o negociante-fabricante e ficar
guesia , àgentinha ou àgentalha que trabalhava com suas p róp rias reduzido assim à condição de assalariado. Daí, entre os artesãos
mãos, os matizes eram numerosos. Certos ofícios, como os Six e os loj is tas que formaram os quadros do movimento popular, a
Corps em Paris, eram conside rados e seus membros faziam parte existência de aspirações contraditórias. Investiam contra a p roprie­
dos notáveis. Citou-se amiúde a opinião da mulher do convencio­ dade concentrada em mãos dos grandes fabricantes, mas e les p ró­
nal Lebas, filha do "marceneiro" Duplay (comp reendamos: em­ p rios eram proprietários. Reclamavam a taxação dos víveres e das
preite iro de marcenaria ), o hospedeiro de Robespierre: seu pai, matérias-primas, mas exigiam conservar a liberdade de seu lucro.
cioso de dignidade burguesa nunca admitiu à sua mesa um de As reivindicações destas categorias artesanais e mercadoras subli­
seus "servidores'� isto é , um de seus operários. Mede-se assim maram-se em queixas exaltadas , em impulsos de revolta , par­
a distância que separou os Jacobinos dosSans-Culottes, a peque­
ticu larmente eficazes na obra de destruição da antiga sociedaae:
na ou média burguesia das classes populares p rop riamente ditas. nunca puderam p recisar-se um pro grama coerente.
Onde se fixavam umas e outras, é difícil de p recisar. Na sociedade Nas cate gorias populares propriamente ditas faltava o espíri­
de Antigo Regime , de p redolPínio aristocrático, as categorias so­ to de 'classe, Espalhados em numerosas pequenas oficinas, nem
ciais en globadas sob o termo geral de Terceiro Estado não estavam especializadas em conseqüência do desenvolvimento ainda res­
claramente contrastadas. A p rodução artesanal e o sistema loj ista trito da técnica, nem concentradas nas grandes empresas ou nos
grandes bairros industriais , o mais das vezes mal diferenciados
(*) Nome dado a os meninos da Sociedade d os Amigos da Revolução, instala­
do campesinato, os assalariados, não mais que os artesãos, eram
da no m osteiro d e Feuillant. (N. do T.) incapazes de conceber para sua miséria remédios eficazes: a de-

17
16
bilidade das corporações o atestava. O ódio à aristocracia, a opo­ dos - e o caso não era raro no Midi -, estavam sujeitos a umd
sição irredutível aos "grossos" e aos ricos foram os fermentos de obrigação especial denominada de feudo livre. Os direitos senho­
unidade das massas laboriosas. Quando as más colheitas e a cri­ riais encontravam seu princípio na soberania exercida na Idade
se econômica que delas resultava as puseram em movimento, elas Média pelos senhores. Da autoridade senhorial, subsistia uma par­
não se ordenaram como classe distinta, mas como associadas ao te da justiça, alta ou baixa, caráter essencial do senhorio - prer­
artesanato, atrás da burguesia: foi assim que se aplicaram à anti­ rogativas honoríficas, símbolo da superioridade social do senhor
ga sociedade os golpes mais eficazes. Mas esta vitória das massas -, monopólios, como o direito exclusivo de caça, e as banalida­
populares não poderia ser senão "uma vitória burguesá': a bur­ des. Dos direitos senhoriais, uns eram pessoais, corvéias e obri­
guesia só aceitou a aliança popular contra a aristocracia porque gações diversas, os outros reais: pesado sobre a terra, não sobre
as massas a ela se subordinaram. Em caso contrário, a burguesia as pessoas, eles traduziam a propriedade eminente do senhor
teria verossimilmente renunciado, como ocorreu no século XIX na (dizia-se ainda a directe), não tendo o camponês senão a proprie­
Alemanra e, em menor escala, na Itália ao apoio de aliados jul­ dade útil. Dos direitos reais, uns eram anuais (seja em dinheiro,
gados demasiado perigosos. censo ou rendas, seja em natura, champart ou terrage no Norte,
Os camponeses desempenharam um papel não menos im­ agrier no Midi), os outros eventuais (Jaudêmios sobre as transfe­
portante na Revolução Francesa: este foi um de seus traços mais rências). Tal era, esquematizado (Boncerf avalia em mais de tre­
originais. Em 1789, a grande maioria dos camponeses era desde zentas as diversas espécies de obrigações em sua brochura sobre
muito constituída de homens livres; a servidão apenas subsistia os lnconvénients des droits féodaux, 1776), o complexum feuda­
em algumas regiões, Nivernais e Franche-Comté especialmente. le segundo a expressão dos juristas: a feudalidade no vocabulá­
As relações feudais de produção continuavam a dominar os cam­ rio comum do tempo. O fato de as massas camponesas, unâni­
pos, conforme testemunham as obrigações senhoriais e as dízi­ mes em execrá-las, terem aplicado, através delas, um golpe mor­
mas eclesiásticas. A dízima, desviada o mais das vezes de seu ob­ tal na aristocracia, prova de sobejo que a feudalidade constituía
jetivo primitivo e que apresentava os inconvenientes de um im­ o traço essencial da sociedade de Antigo Regime. ''A feudalidade
posto in natura, parecia tanto mais insuportável pelo fato de a al­ permanecera a maior de todas as nossas instituições civis em dei­
ta dos preços haver aumentado o lucro: em tempo de penúria, xando de ser uma instituição política, escreveu Tocqueville. As­
ela era retirada à custa da nutrição do camponês. O que subsistia sim reduzida, excitava muito mais ódio ainda, e pode-se dizer com
dos direitos senhoriais era mais impopular ainda, se bem que, base na verdade que, em destruindo uma parte das instituições
certamente, do mesmo modo pesado. Certos historiadores ten­ da Idade Média, havia se tornado cem vezes mais odioso o que
dem a minimizar o peso da feudalidade no fim do Antigo Regi­ delas se deixavá'.
me. Tocqueville lhes respondeu antecipadamente em um capítu­ Face à exploração feudal, a comunidade rural permanecia uni­
lo de r: Ancien Régime et la Révolution: "Por que os direitos feu­ da: face ao senhor, face ao coletor da dízima, face ainda ao im­
dais se tornaram mais odiosos ao povo na França do que em qual­ posto real. Mas atrás deste antagonismo fundamental já se per­
quer outra parte": se o camponês não possuísse o solo, teria sido cebiam oposições que traziam em germe as lutas do século XIX,
menos sensível aos encargos que o sistema feudal fazia pesar so­ uma vez destruídas a feudalidade e a aristocracia. A desigualda­
bre a propriedade fundiária. de penetrara havia muito na comunidade rural, tendia a disso­
Sem dúvida, seria preciso distinguir de um estrito ponto de ciá�la.
vista jurídico o que era propriamente feudal e o que era senho­ Nas regiões de grande cultura, a aplicação do capital e de seus
rial. Os direitos feudais resultavam dos contratos de feudo. A hie­ métodos ao trabalho agrícola, em vista de urna cultura intensiva
rarquia dos feudos permanecia, conforme testemunham a cada e de uma produção para o mercado, tinha provocado evidentes
transf�rência o reconhecimento e o censo, e o pagamento de uma repercussões sobre a condição camponesa. O grupo social dos
taxa; lá onde os plebeus se apresentavam compradores de feu- grandes cultivadores desenvolveu-se amplamente no fim do An-

18 19
tigo Regime, concentrando não a propriedade mas a exploração: Concepção de um direito limitado da propriedade, ação rei­
os camponeses das planícies cerealíferas da Bacia parisiense se vindicadora contra a concentração das explorações ou das empre­
queixaram em seus registros de reclamações da "reuniãd' das sas: estes traços caracterizavam um ideal social popular na medi­
granjas e em vão se obstinaram, até o ano II, em reclamar a divisão da das condições econômicas do tempo. Camponeses e artesãos,
das mesmas. Dest'arte já se afirmava o antagonismo de um capi­ para disporem livremente de suas pessoas e de seu trabalho, de­
talismo agrícola e de um campesinato em via de proletarização. veriam antes de tudo deixar de estar enfeudados a outrem, liga­
Carentes de terra, despojados de seus direitos coletivos à medi­ dos à terra ou prisioneiros no quadro de uma corporação. Daí seu
da que se reforçavam a propriedade privada e a grande explora­ ódio contra a aristocracia e o Antigo Regime: as classes populares
ção, os pequenos camponeses engrossavam as fileiras de um pro­ foram o motor da revolução burguesa. Mas, produtores imedia­
letariado miserável e instável, pronto a levantar-se igualmente con­ tos ou com ambições para o futuro, camponeses e artesãos fun­
tra as fazendas, bem como contra os castelos. davam a propriedade sobre o trabalho pessoal e sonhavam com
Sem dúvida, não há que exagerar tais traços: às vésperas da uma sociedade de pequenos produtores, cada qual de posse de
Revolução, na maior parte do país permanecia o domínio da pe­ seu campo, de sua oficina, de sua loja; confusamente, entendiam
quena cultura tradicional. Mas, mesmo aqui, a desigualdade fora prevenir a constituição de um monopólio da riqueza, como de um
introduzida no seio da comunidade rural. A propriedade dos bens proletariado dependente. Estas aspirações profundas explicam as
comunais, as coações coletivas sobre a propriedade privada (in­ lutas sociais e políticas durante a Revolução, suas peripécias e sua
terdição de cercas, rotação obrigatória), os direitos de uso sobre progressão: de 1789 a 1793, assistiu-se a um aprofundamento da
os campos (pastagem livre, direitos de respigadura e de corte de luta da burguesia contra a aristocracia, assinalada pelo crescente
restolho), sobre os prados (direito de segundo corte) ou sobre os papel das camadas médias e das massas populares, não a uma
bosques tinham, havia muito, constituído sólidos fundamentos mudança de natureza das lutas sociais. Neste sentido, pode-se fa­
comunitários. Na segunda metade do século XVIll, sob o impul­ lar de uma "mudança de frenté' da burguesia após a queda de
so do individualismo agrário e com o apoio do poder real (éditos Robespierre: depois, como antes de 9 de termidor, o inimigo es­
de cercadura, triagem dos bens comunais), a estrutura comuni­ sencial permanece a aristocracia que não se desarma. Prova-o a
tária foi abalada: a aristocracia, sobretudo, aproveitou-se disso. Mas, lei de 9 de frimário, ano VI (29 de novembro de 1797), inspirada
no seio da comunidade, alguns lavradores proprietários, "galos por Sieyes, que reduzia os anteriormente nobres e enobrecidos
de aldeiá', dominavam jornaleiros e pequenos camponeses que à condição de estrangeiros. A Revolução Francesa é um ''blocd':
deles dependiam para suas atrelagens ou seu pão cotidiano; já, antifeudal e burguesa através de suas diversas peripécias.
mais ou men08, produziam para o mercado, monopolizavam a Este enraizamento da Revolução na realidade social francesa,
administração "ldeã e se adaptavam à renovação da agricultura. esta continuidade e esta unidade, Tocqueville não apenas subli­
Este campesinatn proprietário, tanto quanto a aristocracia que lhe nhou-as com sua costumeira lucidez, como assinalou a sua ne­
pesava sobre a terra por seus direitos senhoriais, era hostil à co­ cessidade. liA Revolução, menos que tudo, não foi um aconteci­
munidade rural que a onerava de direitos coletivos e lhe limitava mento fortuito. Colheu, é verdade, o mundo de improviso, e to­
a liberdade de exploração e de lucro: ele aspirava a libertar-se de davia ela não era senão o complemento do mais longo trabalho,
todas as'restrições. Contrariamente, o campesinato pobre, caren­ o término repentino e violénto de uma obra para a qual dez gera­
te de tena e obrigado, a fim de garantir seu pão, a ir em busca ções de homens tinham trabalhadd'.
de um salário miútio em terra alheia ou na indústria rural,
aganava-se aos direitos coletivos e aos modos tradicionais de pro­ 2. Flutuações econômicas e demográficas Entretanto, pa­
-

dução, cum tanto malS afinco quanto mais percebia que estes lhe ra além das estruturas sociais e dos antagonismos fundamentais
fugiam: a massa camponesa opunha a regulamentação da cultu­ que explicam as causas profundas da Revolução, convém preci­
ra à . liberdade da exploração. sar os diversos fatores explanativos de uma data. A Revolução era

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... .��.��-.::: :;::.::;;.::;,:,::,:;;;::;,:,:::

inelutável, no testemunho do próprio Tocqueville: mas por que,


Augustin Cochin em sua indagação sobre Les societés de pensée
segundo sua expressão, esta súbita explosão, este brusco "esfor­
et la Révolution en Bretagne (1925). Elas não se sublevaram sob
ço convulsivo e doloroso, sem transição, sem precaução, sem con­ o impulso de seus instintos sanguinários, como o quereria Taine,
siderações"(3)?
em Les origines de la France contemporaine (1875), obra de difa­
1789 nasceu numa crise econômica. Jaures,
A Revolução de mação e de ódio. A fome sublevou-as: verdade evidente, subli­
em seu vasto painel de sua Histoire socialiste (1901-1904), procu­ nhada com vigor por Michelet ("Vinde ver, suplico-vos, este po­
rara "nas condições econômicas, na forma da produção e da pro­ vo estirado no chão, pobre Jó. . . A penúria é um fato de ordem
priedade'� as raízes profundas da Revolução. Mas sua obra peca civil: tem-se fome por ordem do rei"), à qual os trabalhos de c.­
talvez. por excesso de simplificação: a Revolução desemola-se qua­ E. Labrousse deram um amplo fundamento científico. A fome
se inteiramente unânime; sua causa reside no poderio econômi­ populàr aparece como a conseqüência dos caracteres gerais de uma
co e intelectual da burguesia chegada à maturidade, seu resulta­ fase A de alta e de expansão (segundo a terminologia de F. Si­
do foi consagrar na lei o referido poderio. ''Agora, escreveu Jau­ miand), mas associados aos movimentos cíclicos e estacionais, ma­
res, a propriedade industrial e mobiliária, isto é, a propriedade tizados pela consideração do salário real, explicados enfim pelos
burguesa, está em plena força: a ascensão da democracia burguesa traços históricos da economia e da demografia da época.
é, pois, inevitável e a Revolução é uma necessidade histórica:'
No século XVIII, o movimento dos preços na França se carac­
Esta explanação não se dá conta nem da data da Revolução nem 1733 a 1817, fase A que sucedeu à
teriza por uma alta secular de
de seu caráter violento devido à resistência da aristocracia e à ir­
fase B de depressão que se prolongou da metade do século XVII
rupção das massas populares na cena política. Não teria sido a até cerca de 1730. O impulso de alta e de prosperidade, lento até
Revolução Francesa senão a revolução da prosperidade burguesa? por volta de 1758, violento de 1758 a 1770, estabilizou-se de 1778
O século XVIII foi bem um século de prosperidade; seu apo­ a 1787, provocando um mal-estar pré-revolucionário; um novo im­
geu econômico situa-se no fim dos anos 60 e no começo dos anos pulso desencadeou o ciclo revolucionário (1787-91). Designando
70: "O esplendor de Luís XV:' Depois de 1778, teve início "o de­ o índice 100 para o ciclo 1726-41, a média da alta de longa dura­
clínio de Luís XVI': período de contração, a seguir de regressão, ção é de 45% para o ciclo 1771-89; eleva-se a 65% para os anos
coroada em 1787 por uma crise cíclica geradora de miséria e de 1785-89. O aumento, muito desigual conforme os produtos, é mais
distúrbios. Jaures, sem dúvida, não negou a importância da fo­ importante para os gêneros alimentícios que para os produtos fa­
me no desencadeamento da Revolução, mas só lhe reconhecia um bricados, mais para os cereais que para a carne: traços caracterís­
papel episódico : a crise, pondo dolorosamente à prova as massas
ticos de uma economia ainda essencialmente agrícola. Os cereais
populares, mobilizou-as ao serviço da burguesia, mas foi apenas ocupavam um lugar imenso no orçamento popular, sua produ­
um acidente. O mal era mais profundo.(4)
ção aumentava pouco, enquanto a população crescia, e a concor­
As massas populares das cidades e dos campos não foram rência dos cereais estrangeiros não podia intervir. Para o período
postas em movimento, em 1789, pelas intrigas sediciosas da bur­ 1785-89, a alta dos preços é de 66% para o frumento, de 71% para
guesia: é a tese do complô emprestada pelo Abade Barruel em o centeio, de 67% para a carne; a lenha para a cozinha bate todos
suas Mémoires pour servir à l'histoire du jacobinisme, publica­ os recordes: 91%. O caso do vinho é particular: 14%; a baixa do
das em Hamburgo, em 1978, tese em certo sentido retomada por lucro vitícola foi tanto mais grave porque grande número de vi­
(3) Sobre o problema em geral, ver C. E. LABROUSSE, "Comment naissent les nhateiros não produzia cereais e comprava o pão. Superpóndo­
révolutions': Ades do Congres hÍstorique du CentenaÍre de la RévolutÍon de 1848 se as variações cíclicas (ciclos de 1726-41,
1742-57, 1758-89), ao mo­
(Paris, 1948).
vimento de longa duração, o maximum cíclico de 1789 levou a
(4) Sobre este aspecto essencial, ver a obra de C. - E. LABROUSSE, Esquisse du
mou vement des prixet des revenus en France au XVIIIe sÍede (Paris, 1933, 2 vols.)j alta do frumento a 127%, a do centeio a 136%. Quanto aos ce­
La crise de J'économie lrançalse a la hn ae UinClen KeglIIle et au début de la Re­ reais, as variações estacionais, enfim, insensíveis ou quase em pe­
volution (Paris, 1944).
ríodo de abundância, se ampliavam nos maus anos; do outono

22 23
fato de ter sucedido, por volta de 1740, a um período de estagna­
à entressafra os preços aumentavam então de 50 a 100%, e mais.
ção. As depressões demográficas profundas, que caracterizaram
Em 1789, o maximum da estação coincidia com a primeira quin­
zena de julho: provocou o aumento do frumento a 150%, o do
o século XVII e. provocaram um déficit perceptível no flanco da
pirâmide das idades, deram lugar a crises mais leves e mais rápi­
centeio a 165%. A jornada de 14 de julho coincidiu com o ponto
das. As grandes penúrias anteriores a 1715 tornaram-se, após 1740,
culminante da alta dos preços no século XVIII.
penúrias lavradas; as crises "mortais", crises "veniais". As classes
O custo da vida popular foi gravemente afetado pela alta dos
verdadeiramente vazias desapareceram, os ,efetivos se regulariza­
preços: com os cereais aumentando mais que todo o resto, foi o
povo o 'mais duramente atingido. À véspera de 1789, a parte do
ram. A natalidade conservou um nível elevado, 40%, com uma
certa tendência à redução dos nascimentos manifestando-se, en­
pão no orçamento popular tinha alcançado 58% por motivo da
tretanto, em particular nos meios da aristocracia. A mortalidade
alta geral; em 1789, atingiu 88%: restavam apenas 12% do rendi­
continuou a oscilar de um ano para outro, mas permanecia habi­
mento para as demais despesas. A alta dos preços poupava as
tualmente inferior à natalidade, baixando a 33%, em 1778. A es­
categorias sociais abastadas, sobrecarregava o povo.
perança de sobrevivência ao nasccimento elevava-se a cerca de 29
O movimento dos salários agravava ainda a incidência da al­
anos às vésperas da Revolução. O impulso demográfico aprovei­
ta dos preços sobre a sorte das massas populares. As séries locais
tou proporcionalmente mais às cidades que aos campos: o sécu­
constituídas por C-E. Labrousse levam a 17% a alta dos salários
entre o período base 1726-41 e o de 1771-89; porém, na metade lo XVI II foi um século de expansão urbana. Se se classificarem
na categoria "cidades" as aglomerações de mais de 2 mil habitan­
dos casos, ela não atingia 11%. Em relação aos anos de 1785-89,
tes, a população urbana elevava-se por volta de 16% do conjunto.
é de 22%; ultrapassa 26% em três generalidades. A alta dos salá­
Sendo a natalidade mais fraca nas cidades, e mais forte a mortali­
rios foi variável segundo as profissões: para a construção, 18%
(1771-89) e 24% (1785-89), mas apenas 12 e 16% para o jornaleiro dade, mais numerosos os celibatários, a imigração rural consti­

agrícola. A alta de longa duração dos salários é, portanto, muito tuía o principal fator do impulso urbano. No fim do Antigo Regi­
me, a população francesa contava aproximadamente 25 milhões
fraca em relação à dos preços. Ora, as variações cíclicas e estacio�
de habitantes. Do ponto de partida, 19 milhões no fim do século
nais dos salários aumentavam ainda à parte, visto se encontra­
rem em sentido inverso às dos preços. No século XVIII, com efei­ XV II, e levando em conta ri crescimento territorial, o aumento
to, a carestia provocava o desemprego, com a fraqueza da colhei­
era modesto: 6 milhões, apenas mais de um terço. Outros Esta­
dos se tinham beneficiado de um impulso mais importante: a In­
ta reduzindo as necessidades do campesinato. A crise agrícola ar­
rastava a crise industrial, a parte considerável do pão no orçamento glaterra, por exemplo. A França não deixava de ser o país mais po­

popular tinha então por conseqüência a diminuição das demais voado da Europa. Sobretudo, por modesto que tenha sido o cres­

aquisições. Comparando-se a alta do salário nominal à do custo cimento demográfico e diverso segundo as regiões, ele não dei­

de vida, constata-se, portanto, que o salário real diminuiu: de um xou de provocar importantes conseqüências sociais. Aumentando
a demanda de produtos agrícolas, contribuiu para a alta dos pre­
quarto, entre 1726-41 e 1785-89 - de mais da metade, se conside­
ços. O ímpeto urbano estimulava a indústria têxtil que via abrirem­
rado dos pontos cíclico e estacionaI dos preços. Com as condi­
ções de existência da época exigindo que a redução assentasse es­ se novos mercados e que, por sua vez, atraía a mão-de-obra dos

sencialmente sobre os gêneros de primeira necessidade, o perío­ campos. Sobre esta população acrescida, · e principalmente nas ci­
dades e entre as massas populares, as crises de gêneros alimentí­
do de alta do século XVIII provocou um aumento da miséria po­
pular. A fome mobilizou o povo. cios, nefastas ainda na primeira metade do século, já não tiveram
graves repercussões demográficas, mas conseqüências sociais e
econômiças. A crise dos víveres desata, nessa economia ainda ar­
O crescimento demográfico multiplicou as conseqüências da caica, um processo em que se encadeiam miséria, subconsumo,
alta dos preços. Ela se fez notar de maneira mais acentuada pelo contração do mercado da mão-de-obra, subemprego, mendicân-

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24
cia e vagabundagem. O impulso demográfico tende a romper o massas rurais e citadinas que, muito naturalmente, imputaram a
frágil equilibrio população-gêneros alimentícios, multiplicando as­ responsabilidade de seus males às classes dominantes e às autbri­
sim as tensões sociais: por aí, ela entra com uma parte não es­ dades governamentais. Dizimeiros e senhores que recolhiam o im­
sencial, mas de qualquer modo importante, entre as causas pró­ posto das searas, dispondo de grandes quantidades de cereais,
ximas da Revolução.(5) como os negociantes de trigo, os moleiros e os padeiros, eram acu­
sados de açambarcamento. As compras do governo davam crédi­
*
* * to à obstinada lenda do "pacto de misériá' lançada contra ·Luís
X V. Se os economistas reclamavam como único remédio a liber­
As irredutíveis contradições da sociedade do Antigo Regime dade do comércio dos cereais, proveitoso sobretudo aos proprie­
tinham posto havia muito a Revolução na ordem do dia. As flu­ tários e aos negociantes, o povo mantinha-se preso à regulamen­
tuações econômicas e demográficas, geradoras de tensão e que, tação tradicional, reforçada em caso de necessidade pela requisi­
nas condições do tempo, escapavam a toda ação governamental, ção e pela taxação. A crise econômica, se não criou, contribuiu
criaram uma situação revolucionária. Contra um regime cuja classe porém para agravar a crise da monarquia: as dificuldades finan­
dirigente era importante para defender, levantou-se a imensa maio­ ceiras deram ensejo à oposição política.
ria da nação, confusa ou conscientemente. Chega-se assim ao pon­ A crise financeira remontava à guerra da América, sustenta­
to de ruptura. Em 1788, a crise nacional passou de flor a fruto. da por Necker a golpes de empréstimos; Calonne recorreu ao mes­
Os campos já tinham sido tocados pela baixa das vendas do mo processo para consolidar a retaguarda. O Relatório apresen­
vinho cujos preços caíram de metade em conseqüência de colhei­ tado ao rei em março de 1788 estimava as despesas em 629 mi­
tas abundantes; se a situação melhorou depois de 1781, o lucro lhões de libras, as receitas em 503: ou seja, um déficit de 20%.
Os juros da dívida exigiam 318 milhões, isto é, mais da metade
vitícola permaneceu limitado devido às mangas vindimas. Como
a cultura da vinha era então amplamente difundida, o destino de das despesas. A crise econômica repercutia sobre o recebimento
numerosos camponeses foi disto afetado, de vez que o vinho cons­ dos impostos, aumentava os encargos por motivo das compras
tituía o único produto comerciável. Em 1785, o gado foi dizimado de cereais no estrangeiro; atingia o crédito público. Havendo di­
pela seca. O mercado rural, essencial à produção industrial, des­ minuído o poder aquisitivo das massas, o imposto, e sobretudo
de então se contraiu, havendo o tratado de comércio anglo-francês o imposto indireto, não podia render muito. Restava a igualdade
de 1786 contribuído com uma parte (que não deve ser exagerada) fiscal. Calonne arriscou-se a propor uma "subvenção territorial"
para as dificuldades da indústria. A colheita de 1788 foi desastro­ que pesaria sobre todos os proprietários fundiários sem exceção.
sa: a partir de agosto, a alta se afirmou e prosseguiu sem detença A Assembléia dos Notáveis, reunida em 22 de fevereiro de 1787,
até julho de 1789. A catástrofe agrícola fechou o mercado rural, composta de aristocratas por definição, criticou o projeto e exigiu
o desemprego multiplicou-se entre uma mão-de-obra já pletóri­ comunicação das contas do Tesouro. Luís XVI demitiu Calonne
ca, a taxa do salário baixou. A queda da produção industrial (e em 8 de abril.
portanto o desemprego urbano) pode ser avaliada em 50%, a da A crise política enxertou-se desde então na crise financeira:
taxa do salário de 15 a 20%, enquanto o C1,lsto da vida subia .na a revolta da aristocracia, malgrado a vontade reformadora de Lo­
proporção de 100 a 200%. A penúria e a carestia mobilizaram as ménie de Brienne, chamado ao ministério, malgrado a tentativa
de uma reforma judiciária, em 8 de maio de 1788, que desmem­
brou a força dos Parlamentos, reduziu a monarquia à impotên­
(5) Sobre os problemas demográficos da Revolução Francesa, ver essencial­
mente os trabalhos de M. REINHARD, "Etude de la population pendant la Révolu­ cia. Com o Tesouro vazio e nenhuma possibilidade de obter um
tion et I'Empire", no Bu11etin d'Histoire éronomique e t sociale de la Révolution empréstimo, que não seria subscrito em tão perturbadas circuns­
française, 1959-1960 (Gap, 196i); "Premier supplément'� ibid., 1962 (Paris, 1963);
tâncias, Brienne capitulou: em 5 de julho de 1788, decisão confir­
ContributioIlS à l'histoire démographique de la Révolution française (Paris, 1962,
1� série; 1965, 2� série; 1'170, 3� série, sob a direção de M. REINHARD). mada pelo veredicto do Conselho de 8 de agosto, ele prometeu

26 27
A esperança sublevou as massas, soldou por um momento
reunir os Estados Gerais cuja abertura foi fixada para I? de maio os heterogêneos elementos do Terceiro, sustenta longamente ain­
de 1 789. da a energia revolucionária dos mais puros. A reunião dos Esta­
A burguesia, elemento dirigente do Terceiro, a partir daí em­ dos Gerais foi acolhida como a "boa noticiá' anunciadora de tem­
punhou as rédeas. Seus fins eram revolucionários: destruir o pri­ pos novos. Abria-se um futuro melhor, respondendo à espera mi­
vilégio aristocrático, estabelecer a igualdade civil numa socieda­ lenária dos homens. Esta esperança alimentou o idealismo revo­
de sem ordem nem corpos. Não obstante, pretendia conservar-se lucionário, inflamou os voluntários, iluminou a morte trágica dos
dentro de um estrito legalismo. Mas foi em breve empurrada pa­ "mártires de prairial", como a dos heróis do processo de Vendô­
ra a frente, na ação revolucionária, pelas massas populares, ver� me. Da velha camponesa encontrada por Arthur Young escalan­
dadeira força motriz, mantidas em boa disposição por muito tem­ do a costa das Islettes em Argonne, em 12 de julho de 1 789, a Ro­
po ainda pela contribuição de suas próprias reivindicações e pela bespierre, a Babeuf ao pé do cadafalso, o fio da esperança não
crise econômica que persistiu até meados de 1790. se rompe. "Dizem que no presente alguma coisa vai ser feita por
grandes personagens, para nós, gente humilde", mas ela não sa­
III - Espontaneidade e organização bia quem nem como; "mas que Deus nos envie algo melhoI; pois
revolucionárias os direitos e os encargos nos esmagam". A mesma esperança quase
religiosa em Robespierre em sua "relação sobre os princípios de
moral política que devem guiar a Convençãó' (5 de fevereiro de
1. A esperança e o medo - A convocação dos Estados Gerais
1794) : "Queremos, em resumo, satisfazer os votos da natureza,
suscitou no povo uma emoção profunda: desde então, a esperança
cumprir os destinos da humanidade, manter as promessas da fi­
e o medo caminharam par a par, ao ritmo da Revolução, deixan­
losofia, absolver a providência do longo reino do crime e da tira­
do transparecer através dos acontecimentos políticos as motivações
nia . . . E que, selando nosso trabalho com o nosso sangue, possa­
sociais que constituem sua mola essencial. A mentalidade revo­
mos ao menos ver brilhar a aurora da felicidade universal:'
lucionária precisou-se, de início, naturalmente, nas consciências
O medo acompanha a esperança: consentiriam os privilegia­
individuais e nas fileiras da burguesia. A mentalidade <kI Tercei­
dos em deixar-se despojar? Na mentalidade camponesa, o senhor
ro estava longe, sem dúvida, de ser uniforme : camponeses, arte­
só poderia estar egoisticamente apegado à sua superioridade so­
sãos e burgueses sofriam diferentemente o Antigo Regime; a pe­
cial e à sua renda (era um todo) . O burguês pensava o mesmo
núria tendia a opor pobres e ricos, consumidores e produtores.
do privilégio. O comportamento da aristocracia fortificava esta
Mas as condições gerais da economia e da sociedade, como as
crença; sua oposição à duplicação do Terceiro, sua resistência ao
condições políticas, erguiam o conjunto do Terceiro contra a aris­
voto por cabeça, arraigaram-na definitivamente. A partir daí, rei­
tocracia e o poder real fiador do privilégio. Pelo jogo da propa­
nou a inquietação. "Os nobres montarão a cavaló'; apelarão às
ganda, sob a influência dos acontecimentos, mais ainda sob o peso
tropas reais; não hesitarão em buscar recursos no estrangeiro; re­
de representações desde há muito ancoradas na consciência co­
crutarão mendigos e vagabundos que a penúria e o desemprego
letiva e que se impunham ao indivíduo, cristalizou-se, a partir da
multiplicam ao longo dos caminhos: o medo dos "salteadores"
primavera de 1 789, uma mentalidade revolucionária que consti­
duplicava o inspirado pelos aristocratas. A crise econômica refor­
tuiu um poderoso fator de ação. (6)
çava a inquietação, de vez que o aristocrata era o mais das vezes
(6) Sobre estes aspectos, ver GEORGES LEFEBVRE, La grande peur de 1789 (Pa­ o coletor do imposto das searas ou o dizimeiro. A gente do povo,
ris, 1932: 2� ed. aumentada, s. d. [1956]; "Foules révolutionnaires", em Annales de todo incapaz de analisar a conjuntura econômica, atribuía a
historiques de la Révolution française (1934), retomado em Etudes sur la Révolu­
tion française (Paris, 1954; 2? ed., 1963). GEORGES LEFEBVRE forneceu um belo exem­ responsabilidade da penúria, qualificada com freqüência de "fac­
plo de análise de um fato de vontade punitiva em seu artigo: "Le meurtre du comte tíciá', à aristocracia e à sua vontade de prejudicar. A desconfian­
de Dampierre (22 juin 1791)", na Revue historique (1941), retomado em Etudes
ça ganha corpo, toma-se legítima: a Corte e os aristocratas, em
sur la Révolution française.

28 29
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princípios de julho de 1789, preparam um golpe de força para dis­ para sua própria segurança. Em 12 de julho de 1789, a notícia da
solver a Assembléia. A inquietação volta ao medo quando o "com­ readmissão de Necker suscitou um sobressalto de ira e de me­
plô aristocráticd' se precisa: ela durou tanto quanto a Revolução, didas de defesa. O povo saqueou as lojas dos armeiros; a bur­
nutrida pelos complôs verídicos, pelas intrigas dos emigrados, pela guesia assumiu o comando do movimento e se esforçou por re­
invasão estrangeira, pela contra-revolução permanente, apaziguan­ gularizá-la pela criação da milícia burguesa. fui para armar-se que
do-se por momentos, ampliando-se ao sinal ou à aproximação do o povo se dirigiu aos Inválidos, na manhã de 14 de julho, e em
perigo, depois da fuga para Varennes ou no verão de 1792, culmi­ seguida à Bastilha. Por mais que o rei capitulasse, aceitasse a 17,
nando nos massacres e no Terror. na prefeitura, a insígnia tricolor, o medo persistiu, com seu cor­
O medo é social, porém seu conteúdo se matiza segundo as tejo de distúrbios e violências. O Grande Medo, nos fins de julho
circunstâncias. Medo da aristocracia e do que ela socialmente sig­ de 1789, mobilizou os camponeses; acelerou e generalizou o ar­
nifica. Taine, que não pode ser suspeito de benevolência, armou mamento popular; forçou, nas menores aldeias, as milícias a
um quadro impressionante do medo e da ira que, à aproximação reunirem-se. Pela primeira vez, manifestava-se o ardor guerrei­
dos invasores, subleva os camponeses, no verão de 1792. "Eles ro da Revolução. O sentimento de solidariedade do Terceiro
sabem, por experiência própria, da sua condição recente e da sua reforçou-se nisto: " És do Terceiro Estado?'� era a senha em julho
condição presente. Basta-lhes lembrar para reverem na imagina­ de 1789. Esta mobilização geral prefigura os recrutamentos de vo­
ção a enormidade das taxas reais, eclesiásticas e senhoriais. . :' Mas luntários depois da fuga para Varennes e no decurso do verão de
o fato de o medo dos "salteadores" ter sido associado ao dos aris­ 1792. A reação defensiva suscitada pelo medo explica ainda a exi­
tocratas, em julho de 1789, sublinha uma outra orientação que se gência popular do recrutamento em massa em agosto de 1793.
foi afirmando até o golpe de Estado de brumário: o temor aperta A vontade punitiva fazia-se una com a reação defensiva: é pre­
os possuidores diante da ameaça das classes perigosas. Sem dú­ ciso pôr os inimigos do povo em condição de não poderem mais
vida, a crise econômica, multiplicando os miseráveis, generalizou prejudicar, porém também puni-los e desforrar-se deles. Daí, as
uma insegurança que, finalmente, foi levada à conta do complô perseguições e as prisões, a devastação ou os incêndios dos cas­
aristocrático. O sentido social deste medo dos "salteadores" não telos, os assassínios e os massacres, o Terror enfim. Em 22 de ju­
é menos claro. O camponês proprietário teme um atentado aos lho de 1789, Bertier de Sauvigny, intendente de Paris e da Ile-de­
seus bens, como o burguês de Paris o receia, quando, em 12 de France, e seu sogro Foulon de Doué, presos e conduzidos à pre­
julho, com a retirada das tropas reais para além do Sena, para feitura, foram arrebatados pela multidão e enforcados no poste
a Escola Militar e o Campo de Marte, Paris foi como que abando­ mais próximo. A burguesia revolucionária aprovou: "Este sangue,
nada a si mesma. A formação da milícia burguesa teve então por era ele então tão puro?'� perguntou Barnave na Assembléia Cons­
objetivo a defesa da capital, não apenas contra os excessos do po­ tituinte. Durante todo o curso da Revolução, a vontade punitiva
der real e de suas tropas disciplinares, masíambém contra os aten­ foi companheira do medo. O Conde de Dampierre foi massacra­
tados das categorias sociais julgadas perigosas. Monarquianos, do no dia seguinte a Varennes. Os massacres de setembro de 1792
Feuillants e Girondinos partilharam em graus diversos estes sen­ coroaram o medo suscitado pela invasão, foram contemporâneos
timentos: daí, sua vontade de deter a Revolução por meio de um dos recrutamentos de voluntários. Quando o perigo nacional de
compromisso. O temor da burguesia explica por um lado o 9 de novo se agravou, em agosto de 1793, ocorreram massacres nos
termidor; ele atinge o paroxismo na primavera de 1795, quando meios distritais parisienses: a Convenção preveniu-os pondo o Ter­
das jornadas de prairial; explica a impotência do Diretório que ror na ordem do dia. A vontade punitiva respondia a uma con­
luta em duas frentes; alimenta a campanha revisionista de 1799 : cepção confusa da justiça popular. A burguesia revolucionária, à
o golpe d e Estado de brumário tranqüiliza o s notáveis. qual a violência não repugnava, esforçava-se desde 1789 por ca­
A reação defensiva flui do medo. Se este, às vezes, degene­ nalizar a ira popular e por regularizar a repressão. Em 23 de ju­
rou em pânico, o mais freqüentemente levou o povo a armar-se lho, Barnave solicitou "uma justiça legal para os crimes contra o

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Estado)"; em 28, Du Port obtém da Assembléia a criação de um Co­ Seu decreto de 21 de maio-25 de junho de 1790 constitui a carta
mitê de Averiguações, verdadeiro protótipo do Comitê de Segu­ constitucional da capital, dividida em quarenta e oito seções, à
rança Geral, enquanto a Comuna de Paris, com base na proposta imagem da organização municipal geral. As seções, mais ou me­
de Brissot, instituía um outro que prefigurou os comitês de vigi­ nos numerosas conforme as cidades, formam teoricamente cir­
lância revolucionária. Em 1792, Danton fez criar o Tribunal Extraor­ cunscrições eleitorais. A Assembléia é o órgão supremo da seção:
dinário de 17 de agosto - aliás, em vão. Os massacres populares é o soberano em pé. Nas assembléias primárias, os cidadãos ati­
só findaram quando o governo revolucionário se reforçou e a Con­ vos (durante o período censitário) reuniam-se para votar; por so­
venção legalizou a repressão. O medo, com seu cortejo de violên­ licitação de cinqüenta dentre eles, podem reunir-se em assembléia
cias, não desapareceu senão quando o complô aristocrático e a geral para deliberar. As seções formavam ainda as subdivisões ad­
contra-revolução foram enfim liquidados. ministrativas das comunas urbanas: a este título, foram dotadas
de órgãos executivos, de comitês e de funcionários eleitos pelos
cidadãos ativos. À frente de cada seção, um comitê civil, interme­
2. A prática política - A espontaneidade revolucionária das diário entre a municipalidade, cujas resoluções cabia-lhe fazer exe­
massas citadinas e rurais sublevadas pela miséria e pelo "complô cutar, e a assembléia geral da qual emana: posição ambígua que,
aristocráticó' derrubou o Antigo Regime desde os fins de julho amiúde, o encafua numa prudente reserva. Enfim, em cada se­
de 1789, destruiu sua estrutura administrativa, suspendeu a co­ ção, um juiz de paz cercado de assessores e um comissário de
brança do imposto, municipalizou o país, desenfreou as autono­ polícia, igualmente eleitos. Esta organização aparece como uma
mias locais. Perfila-se o espectro de um poder popular e da de­ conta liquidada por acordo entre a tendência geral à autonomia
mocracia direta. Em Paris, enquanto a Assembléia dos Eleitores e as necessidades de uma administração municipal coerente. Des­
aos Estados Gerais se apoderava do poder municipal por inter­ de 1790, ela fornece seus quadros ao movimento revolucionário.
médio de seu Comitê permanente, os cidadãos deliberavam e atua­ Bem depressa, tendeu a transformar-se, inicialmente sob a influên­
vam nos sessenta distritos constituídos para as eleições. Logo pre­ cia das aspirações à democracia direta que caracterizavam mes­
tenderam controlar a municipalidade: a soberania não residia no mo os beneficiários do regime censitário, depois sob o impulso
povo? Enquanto desmoronavam as antigas estruturas em virtude das forças populares que exigiam sua parte no poder. Convém
de um movimento de balança inerente a toda revolução, surgiam, precisar ainda a importância dos elementos ativistas. Desde o prin­
simultaneamente, instituições e uma prática política cujo sentido cípio da Revolução, salvo em período de paroxismo ou por oca­
e cujo fim não poderiam escapar: a burguesia, desde julho de 1789, sião das grandes jornadas, a participação na vida política secio­
se esforçou por estabilizar a ação revolucionária, controlar e deri­ nária constituiu a ação de apenas uma minoria de militantes: 4
var em seu proveito o impulso espontâneo das massas. a 19%, segundo as seções, dos cidadãos ativos em Paris, no curso
Distritos, depois seções, constituíram, nas cidades, o quadro do período censitário. Mas, nos períodos de crise, esta minoria
institucional de base em que se desenrolou a vida política da pri­ arrastava um amplo setor das massas populares.
mavera de 1789 ao Diretório, adquirindo um conteúdo social no­ Para a mobilização das massas, os clubes constituem um ele­
vo com os progressos da Revolução ou as tentativas contra­ mento determinante, indubitavelmente mais eficaz que a organi­
revolucionárias. Tratando-se de Paris, o regulamento eleitoral de zação secionária que lhes fornece um quadro. Dos grandes clu­
13 de abril de 1789 dividira a capital em sessenta distritos. Termi­ bes parisienses às múltiplas sociedades populares dos bairros da
nadas as eleições, eles continuaram a reunir-se e a deliberar em capital e das cidades e aldeias dos departamentos, o protótipo con­
suas assembléias gerais permanentes. A Assembléia Constituin­ tinua a ser o Clube dos Jacobinos, saído (parece) do clube dos de­
te, tendo organizado as municipalidades do reino pelo decreto de putados bretões, e que, após as jornadas de outubro de 1789, se
14 de dezembro de 1789, não podia deixar subsistir em Paris uma instalou em Paris, nos conventos dos Jacobinos da rua Saint-Ho­
organização particular que favorecia as tendências autonomistas. noré, sob a denominação de Sociedade dos Amigos da Cons-
32 33

-�
tituição. Os Jacobinos, mais que pela doutrina, que evoluiu ao rit­
conhece-se a importância d a defecção dos Guardas franceses,
mo da Revolução para cristalizar-se em 1793-1794,
se caracteriza­
aquartelados em Paris - feito alcançado desde o fim de junho.
ram por um método e uma organização que, canalizando e orien­
tando a energia revolucionária das massas, multiplicaram sua efi­ O homem da tropa tem os reflexos do Terceiro, compartilha seus
ciência. Pela filiação e pela correspondência, a sociedade matriz receios e suas esperanças, sensível (uma parte da tropa aloja-se
com os habitantes) à miséria popular de que partilha. A decom­
dava o impulso aos clubes filiados, vasta rede de sociedades que
cobriam o país inteiro e agrupavam os patriotas mais conscien­ posição do exército real pela penetração da ideologia revolucio­
tes. Por este duplo procedimento, os Jacobinos encerram o corpo nária na tropa, pela imigração de parte considerável do corpo dos

político em suas malhas ou o conquistam, coordenando a ação oficiais, já suspeitos porque nobres, constituiu um fator essencial

do conjunto dos clubes que formam como que a estrutura de um dos progressos da Revolução. Mas não se pode esquecer a ação
partido. O clube central vota moções, lança petições, imprime pan­ espontânea dos soldados que revestiu múltiplas modalidades, da
fletos e cartazes; as sociedades filiadas repercutem bem depressa presença ativa nos clubes à denúncia, da rixa ao massacre. O pa­
as palavras de ordem. O clube vigia as administrações, convoca pel revolucionário da Guarda Nacional, força nova da Revolução,
aos tribunais os funcionários, denuncia os contra-revolucionários, é também sensível.

protege os patriotas. Segundo Camille Desmoulins em Révolu­ A Guarda Nacional foi essencialmente uma instituição civil
tions de France et de Brabant de 14
de fevereiro de o Oube 1791, que possuía uma organização militar. Nesses dias de julho de 1789,
dos Jacobinos "abarca em sua correspondência com as socieda­ a Assembléia Geral dos Eleitores parisienses hesitou acerca das
des filiadas todos os cantos e recantos dos 83 departamentos"; é, palavras: milícia trazia recordações desagradáveis; preferiu-se
simultaneamente, "o grande inquisidor que apavora os aristocra­ guarda, que precisava o adjetivo burguesa, velha expressão tra­
tas e o grande requisidor que corrige todos os abusos". O clube dicional; finalmente, a palavra nacional, proposta por La Fayette,

é a força viva do movimento revolucionário. em 16de julho, acabou por ser adotada. Mas tanto quanto o po­
der real e os mercenários do exército de linha, milícia burguesa,
A imprensa, sob suas múltiplas formas - jornais e panfle­
tos, brochuras e cartazes -, multiplicava a audição das tendên­ ou guarda nacional, respondia à ameaça das classes reputadas

cias em confronto, mas especialmente a dos patriotas, em parti­ perigosas, massa instável de trabalhadores sem domicílio certo e
cular pela leitura feita em público: quer à tarde nas sociedades de joões-ninguém. Ela agrupava todos quantos tinham casa pró­

populares e nas assembléias secionárias, quer nas ruas e nas pra­ pria, situação estável, bens a proteger. Força regular destinada à
defesa dos interesses dos possuidores, impunha a ordem burguesa
ças públicas (em 1793, o furioso VarIet desenvolvia sua propagan­
da do alto de uma tribuna rolante, mas bem antes dele um certo
às massas em efervescência. Organizada em 13 de julho, a milícia
Collignon se intitulava "o leitor público dos sans-culottes': quer parisiense começou seus serviços de patrulhamento logo à tarde,

ainda nos locais de obras, como, em Paris, as do Panteão. A im­ desarmando "os miseráveis" e conseguindo para "a cidade uma
noite tranqüila, que ela já não esperava, desde que um número
prensa popular - r: Ami du peuple, de Marat, desde setembro
de 1798, Le Pere Duchesne, de Hébert, a partir de outubro de 1790 considerável de particulares começou a andar armadd'. A Assem­
bléia constituinte tomou o porte de armas um privilégio burguês:
- exercia assim a influência de outro modo considerável e que
sua tiragem nâo permitia imaginar. A imprensa, como o clube, somente os cidadãos ativos, isto é, os que pagavam uma contri­
repercutia as palavras de ordem revolucionárias nos departamen­ buição direta igual ao valor de três jornadas de trabalho, únicos
de posse dos direitos políticos, participaram da Guarda Nacio­
tos e até mesmo nas fileiras do exército.
Desde a primavera de 1789, o exército desempenhou papéis nal. Robespierre ergueu-se em vão, em seu discurso de 27
de abril
diversos.O Primeiramente, na tropa, pela recusa à obediência: de 1791,
contra a exclusão dos cidadãos passivos. O decreto de
28 de setembro de 1791, que organizava a Guarda Nacional,
(7) Cf. M. REINHARD, "Observations sur le rôle révolutionnaire de l'armée dans atribuiu-lhe a tarefa "de restabelecer a ordem e manter a obediência
la Revolution française'; em Annales historiques de Ia Révolution française, 1962,
p. 169.
às leis" : tratava-se de garantir o reino da burguesia vitoriosa. In-

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dubitavelmente, a composição social da Guarda Nacional acabou, seções: tantas formas institucionais que só têm sentido por seu
enfim, por se tornar mais variada do que os textos legislativos o conteúdo social. A burguesia revolucionária não podia deixar em
deixavam crer. Não obstante, não foi senão em julho e agosto de estado bruto as forças imensas encerradas nas profundezas do po­
1792 que a instituição se cumulou de um sentido novo, quando vo. Virou-as, quanto pôde, no rumo de seus interesses, sob a fal­
suas fileiras foram invadidas pela massa dos cidadãos passivos. sa aparência desta unanimidade nacional de que Noventa e nove
A federação multiplicou a eficácia de uma guarda de início ainda permanece como símbolo factício.
estreitamente municipal: ela se torna naciona1. O jogo das fede­
rações resultou na constituição de uma nação em armas, confun­
dindo os campos e as cidades. A insígnia tricolor torna-se o em­
blema nacional, depois de ter sido o da Guarda Parisiense, em
seguida o das Guardas Nacionais do reino. A federação tem por
objetivo a fraternização: une todos os cidadãos pelos "laços in­
dissolúveis da fraternidade". Habitantes das cidades e dos cam­
pos confraternizam primeiramente nas federações locais,
prometendo-se assistência mútua. Em 29 de novembro de 1789,
os Guardas Nacionais do Dauphiné e do Vivarais se confedera­
ram em Valence, os bretões e os angevinos em Pontivy, em 1790:
confederação em Lyon em 30 de maio, em Estrasburgo e em Lille
em junho... O movimento ilustrava o sentido unitário dos patrio­
tas e manifestava a adesão da nação à ordem nova; constituía, nes­
te sentido, face à aristocracia e ao Antigo Regime, um procedi­
mento revolucionário de grande eficiência. A nova unidade na­
cional encontrou sua expressão solene em Paris, na Federação de
14 de julho de 1790, conforme o afirmou Merlin de Douai a pro­
pósito do caso dos príncipes alemães de posse da Alsácia. Mas
deve-se ainda acentuar, por trás do entusiasmo popular incon­
testável, a significação real do acontecimento. No momento em
que aumentava nas palavras a h�oria da nação-associação volun­
tária, afirmava-se nos fatos uma realidade social diferente. O pa­
pel eminente representado por La Fayette no curso da Federação
destacou seu sentido: ídolo da burguesia, o "herói dos dois mun­
dos'� Júlio César segundo Mirabeau, pretendia ligar a aristocra­
cia à Revolução; ele foi o homem do compromisso; a Guarda Na­
cional, que comandava, era a guarda burguesa, da qual os passi­
vos tinham sido excluídos. O povo se fazia presente, porém me­
nos ator que espectador. Se, no ato de federação, a guarda repre­
sentava a força armada nacional, era por oposição à tropa, que
era apenas a força armada real, e no sentido burguês da ordem
nova.
Guarda Nacional e federações, clubes e comitês, distritos ou
36 37
CAPíTULO I

OITENTA E NOVE
REVOLUÇÃO OU COMPROMISSO?
(1789-1792)

Os Estados Gerais abriram-se em 5 de maio de 1789. No dia


subseqüente, a nobreza e o clero reuniram-se nas salas que lhes
eram designadas, a fim de proceder a verificação dos poderes e
de se constituírem separadamente. O conflito das ordens come­
çava: o Terceiro reclamou a verificação em comum, o que impli­
cava o voto por pessoa e não por ordem. Sua habilidade tática,
a divisão do clero, deram-lhe a vitória. Em 17 de junho, o Terceiro
tomou o nome de Assembléia Nadonal: o que implicava a afir­
mação da unidade e da soberania nacionais, verdadeira revolu­
ção jurídica sancionada por 491 votos contra 89. Um representan­
te sobre seis aproximadamente se recusava, pois, a transpor a pas­
sagem: a dissociação da burguesia já se delineava. O juramento
do Jeu de Paume confirmou, em 20 de junho, a vontade reforma­
dora do Terceiro. Em contraposição, o programa governamental
apresentado à sessão real de 20 de junho ressaltou a parada do
conflito e sublinhou por antecipação o alcance da Revolução: o
rei aceitava tornar-se um monarca constitucional, propunha a abo­
lição do privilégio fiscal, mas pretendia conservar a ordem social
tradicional, agora expressamente lias dízimas, as rendas e os de­
veres feudais e senhoriais". A firmeza coletiva do Terceiro venceu-o
novamente; em 27 de junho, o rei ordenou à minoria do clero e

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à maioria da nobreza que se reunissem à Assembléia Nacional rais, incidentes locais deram nascimento a seis correntes de pâni­
que, em 9 de julho de 1789, se proclamou constituinte. co em cadeia: Bretanha, Alsácia e Lorena, Baixo Languedoc. . . pos­
A revolução pacífica burguesa abortou, portanto. Tinha ela al­ to de parte, o Grande Medo sacudiu o país de 20 de julho a 6
guma possibilidade de triunfo? Havia no seio do Terceiro Estado de agosto de 1789. O feudalismo foi definitivamente abalado.
uma minoria conservadora; manifestara-se em 17 de junho; com
a massa do clero levada à conciliação e com a fração liberal da no­
breza, ela constituía um partido da resistência inclinado ao com­ I - A "abolição" da feudalidade
promisso. Tal tendência reforçou-se a partir dos fins de junho, in­
quieta em razão da agitação popular. Mounier encarnou-a dentro
em breve. Mas todo compromisso tropeçava no feudalismo: a bur­ Os fundamentos da nova ordem assentaram-se, desde o dia
guesia revolucionária e as massas populares não podiam tolerar subseqüente ao da insurreição dos campos, sobre a força de cuja
sua manutenção, nem a aristocracia encarar uma supressão que importância a Assembléia constituinte não podia alimentar ne­
significava sua perda de poder. O apelo ao soldado para recon­ nhuma dúvida: sobrevinda em pleno período de colheita, ela pu­
duzir o Terceiro à obediência sublinhou, se houvesse necessida­ nha em discussão o levantamento antecipado do quinhão feudal
de disto, o caráter aristocrático do Antigo Regime. Mas significa­ e a própria existência dos direitos senhoriais e das dízimas.
va não contar com as massas populares. A burguesia, de início, lhe era hostil. O sistema feudal criava
A crise econômica já multiplicara as rebeliões. Desde 28 de obstáculo à transformação capitalista da agricultura e da econo­
abril de 1789, os estabelecimentos do salitreiro Henriot e de Ré­ mia em seu conjunto. Essa última exigia a liberdade do indivíduo
veillon, fabricante de papel para forrar parede, no subúrbio de e da mão-de-obra, portanto a abolição da servidão; a liberdade
Saint-Antoine, tinham sido saqueados. Distúrbios nos mercados, da produção, portanto a supressão das banalidades e dos mono­
pilhagens de comboios de cereais, ataques às alfândegas munici­ pólios senhoriais; a mobilidade da propriedade, portanto a desa­
pais: as "emoções" populares enervam a tropa e o corpo de cava­ parição do direito de primogenitura, da remissão feudal e do di­
laria mantido de sobreaviso; enfebrecem a atmosfera das cidades. reito de feudo livre; a unificação do mercado, portanto a destrui­
O "complô aristocráticd' consuma a mobilização das massas. Em ção dos pedágios. Se alguns grandes senhores liberais aceitavam
Paris, artesãos, lojistas e companheiros, guardas franceses em rup­ o resgate dos direitos, e mesmo a abolição, sem indenização, dos
tura com a disciplina da caserna logo se revelam tropas de cho­ mais opressivos, a massa dos pequenos senhores cujas rendas
que da burguesia revolucionária. A readmissão de Necker, conhe­ eram em grande parte constituídas destes últimos direitos,
cida na manhã do domingo de 12 de julho, desencadeou o pâni­ opunha-se obstinadamente a isso, não apenas por interesse, mas
co; contudo, mais ainda, uma rápida reação defensiva . À revolu­ também por espírito de casta: vivendo "nobremente'� recusavam­
ção parisiense de 14 de julho correspondeu na província, com mo­ se a levar uma existência plebéia na qual deveriam fazer valer o
dalidades múltiplas, a revolução municipal: as municipalidades capital do resgate, que os pona no mesmo pé de igualdade com
antigas desapareceram em algumas semanas, o país foi fechado os camponeses. Esta teimosa recusa conduzia, indubitavelmen­
numa rede de ardorosos comitês a vigiarem os suspeitos, prepa­ te, a burguesia, já às voltas com a Corte, a fazer concessões aos
rados para desmancharem os conluios aristocráticos. As passa­ camponeses, mas não ao ponto de apoiar todas as suas reivindi­
gens de tropas de volta às suas guarnições, a primeira emigra­ caçÕes: entre os deputados do Terceiro, a maior parte, composta
ção, os rumores de uma intervenção estrangeira, incitavam à vi­ de juristas, considerava os direitos senhoriais como uma proprie­
gilância, generalizando inteiramente o medo. O campesinato en­ dade individual legítima que não podia ser suprimida sem pôr
tra então em cena. Ele, sem dúvida, já se tinha erguido em diver­ em risco a própria ordem burguesa.
sas regiões. Bocage normando, Hainaut, Mâconnais, Franche­ O Terceiro hesitou: em 3 de agosto de 1789, instaurou-se o de­
Cómté, Alta Alsácia. No clima de insegurança e de miséria ge- bate sobre um projeto de resolução do Comitê das relações, em

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que se afirmava "que nenhuma razão pode legitimar as suspen­ retomada não sem resistência ou contradição no decreto de 5-11
sões do pagamento de imposto e de qualquer outra obrigaçãd'. de agosto de 1789. "A Assembléia Nacion;:tl destrói completamen­
O compromisso vem da nobreza liberal. No início da memorável te o regime feudal; decreta que os direitos e os deveres tanto feu­
sessão da noite de 4 de agosto, o Visconde de Noilles propõe que dais quanto censuários, os que mantêm a mão-morta real ou pes­
todos os direitos feudais sejam resgatados em dinheiro ou em gê­ soal e a servidão pessoal, são abolidos sem indenizaçãd': não per­
neros "ao preço de uma justa estimativá'. O Duque de Aiguillon manecia da servidão mais que raras sobrevivências. "Todos os ou­
precisa, depois dele, que "estes direitos são uma propriedade e tros direitos são declarados resgatáveis": serão, portanto, perce­
toda propriedade é sagradá'; não se podia pedir aos proprietá­ bidos até o reembolso. Singular restrição que conservava para a
rios de feudo, aos senhores das terras, "a renúncia pura e sim­ aristocracia o essencial de seus direitos: os campones.es eram li­
ples de seus direitos feudais", sem lhes conceder "uma justa in­ vres mas deviam pagar a libertação de sua terra. O decreto de 15
denizaçãd'. Uma vez salvaguardado o essencial dos seus interes­ de março de 1790, relatado por Merlin de Douai, retoma estes prin­
ses, os deputados podiam entregar-se ao entusiasmo. Todos os cípios, sistematizando-os: introduziu a distinção entre feudalida­
privilégios dos indivíduos e das ordens, das províncias e das ci­ de dominante e feudalidade contratante. Da primeira, ressaltava
dades foram abolidos; para encerrar esta grandiosa abjuração, às os direitos pr�sumidos usurpados em detrimento do poder pú­
duas da madrugada, Luís XVI foi proclamado o restaurador da blico ou por este conceito, ou ainda estabelecidos pela violência:
liberdade francesa. direitos honoríferos e direitos de justiça, direitos de mão-morta
Entretanto, a abolição da feudalidade pela Assembléia Cons­ e de servidão, corvéias pessoais, banalidades e pedágios, direitos
tituinte era mais aparente que real: os decretos de 5 -11 de agosto de caça, de colombier e de garenm!O); eles foram totalmente abo­
de 1 789, que deviam dar execução às decisões de princípio da noite lidos. Os direitos de feudalismo contratante, reputados a contra­
de 4, o decreto de 15 de março de 1790, demonstraram o quanto partida de uma concessão do cabedal, foram transformados em
a unanimidade dessa noite de entusiasmo calculado era equívo­ uma propriedade burguesa e, portanto, resgatáveis: censo, ren­
ca, quão aparentes eram os sacrifícios consentidos pela aristocra­ das fundiárias e direitos sobre as searas "de toda espécie e sob
cia, quão desiguais as vantagens daí advindas aos camponeses qualquer denominaçãd' (direitos anuais), laudêmios (direitos
e aos burgueses. A feudalidade foi destruída em sua forma insti­ eventuais). As dízimas deram motivo a um debate encarniçado;
tucional e j urídica, mas foi mantida na sua realidade econômica. foram finalmente abolidas sem resgate, exceção feita às dízimas
"Todas as distinções honoríficas, superioridade e poderio re­ enfeudadas a seculares, declaradas resgatáveis.
sultante do regime feudal estão abolidos'� bem como "o testemu­ Pelo decreto de 3 de maio de 1790 foi fixada a taxa de resgate:
nho, homenagem e qualquer outro serviço pessoal a que os vas­ vinte vezes a renda anual para os direitos em dinheiro, vinte e
salos, censitários e foreiros têm estado sujeitos até o presenté' (art. cinco para os direitos in natura, para os direitos eventuais à pro­
I? do decreto de 15 de março de 1790 ) . A distinção entre terra no­ porção de seu peso. O resgate era estritamente individual; o cam­
bre e terra plebéia desapareceu, e também o direito de primoge­ ponês devia ainda saldar os rendimentos em atraso desde trinta
nitura. Igualdade das terras, igualdade das pessoas vão a par. Mas anos. O resgate, por outro lado, beneficiava unicamente os pro­
se a igualdade fiscal (art. 9 do deéreto de 5-11 de agosto) aprovei­ prietários que o fizeram recair sobre os foreiros, meeiros e arren­
ta a todos, a igualdade civil pende em favor da burguesia: a abo­ datários. Quanto à dízima, ainda aqui os proprietários be­
lição da venalidade e da hereditariedade dos encargos (art. 7), a neficiavam-se sozinhos da sua supressão: o decreto de 1 1 de
admissão de todos a todos os empregos civis e militares (art. 11) março de 1791 fez recair o peso da dízima sobre o arrendatário
lhe abriam as portas da função pública e da magistratura, às quais ou o meeiro, "em razão da indenização devida ao proprietário para
o povo, falto de "talentos'� não podia ainda pretender.
(*) Colombier pombal. No caso, prerrogativa das terras senhoriais. Garen­
=

O feudalismo econômico subsistiu sob modalidades novas. ne área rural, habitada por coelhos em estado selvagem, cujos direitos de caça
=

Intervém aqui a distinção fundamental afirmada desde 4 de agosto, eram de exclusividade do proprietário. (N. do T.)

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compensar a contribuição da dízima substituída, da qual os ar­ regul amentação e pela taxação, garantia, em certa medida, suas
rendatários e os meeiros estavam precedentemente encarregados". condições de existência. O Jaísser-faíre, Jaísser-passer constituía,
O resgate dos direitos feudais constituiu a base económica do desde 1789, de forma ponderável, o fundamento das novas insti­
compromisso assumido com a aristocracia, desde 178 9, por uma tuições. A liberdade da propriedade derivou da abolição da feu­
parte de burguesia. Certamente, a abolição dos "efeitos gerais do dalidade. A liberdade de cultura consagrou o triunfo do indivi­
regime feudal" (título I do decreto de 15 de março de 1790), a su­ dualismo agrário, ainda que o Código rural de 27 de setembro de
pressão da organização feudal da propriedade fundiária, a refor­ 1791, tenha mantido, não sem contradição, o terreno de pastagem
ma administrativa e j udiciária, provocaram a destruição do po­ livre e o direito de percurso se baseados num título ou num cos­
der senhorial e assentavam os fundamentos do Estado nacional tume. A liberdade de produção foi generalizada pela supressão
unificado. Todavia, em conseqüência do resgate, a abolição da feu­ dos monopólios e das corporações: a lei de Allarde de 2 de mar­
dalidade realizava-se sob a forma de um compromisso eminente­ ço de 1791 suprimiu as corporações, jurandas e mestrados, mas
mente favorável à aristocracia. Como a carga recaía, no fim das também as manufaturas privilegiadas. A liberdade do comércio
contas, essencialmente sobre os arrendatários e os meeiros, nem interno foi acompanhada da unificação do mercado nacional pe­
todos os camponeses alforriados do regime senhorial se encon­ la abolição das duanas internas e dos pedágios, pelo recuo das
travam nas mesmas condições económicas e sociais: a diferencia­ barrcíras que incorporou as províncias de estrangeíro efetívo, en­
ção do campesinato, já avançada no Antigo Regime, acelerou-se, quanto a abolição dos privilégios das companhias comerciais li­
e a comunidade rural se sentiu ainda mais abalada. Para a massa berava o comércio externo. Enfim, liberdade do trabalho, indis­
dos pequenos camponeses, arrendatários e meeiros, a abolição soluvelmente ligada à liberdade de empreendimento : a lei Le Cha­
da feudalidade, verdadeira operação branca, foi, segundo a ex­ pelier de 14 de junho de 1791 interdita, contrariamente ao direito
pressão de Georges Lefebvre, "uma amarga decepçãd'. de associação e de reunião, a coalizão e a greve. O
indivíduo li­
Com vistas à total libertação da terra, a revolução camponesa vre o é também de criar e. de produzir, de procurar o lucro e de
prosseguiu sob múltiplas formas, até 1793, uma verdadeira guer­ o desfrutar à sua maneira. De fato, o liberalismo fundado na abs­
ra civil ainda à espera de seu historiador. Ela tornou impossível tração de um individualismo social igualitário beneficiava os mais
qualquer compromisso com a aristocracia feudal; deu impulso à fortes: a lei Le Chapelier constitui, até 1864, para o direito de gre­
revolução burguesa. ve, e até 18 84, para o direito sindical, uma das peças mestras do'
capitalismo da livre concorrência.
A liberdade compreende, naturalmente, ainda as liberdades
r,
públicas e políticas. Ela é um direito natural imprescritível, de acor­
II - O liberalismo burguês
do com o art. 2 da Declaração dos Direitos, somente limitada pe­
la liberdade de outrem (art. 4). Ela é, primeiramente, a da pes­
O compromisso económico e social sobre o feudalismo dá uma soa, liberdade individual garantida contra as acusações e as pri­
medida exata da obra da Assembléia Constituinte: se os princí­ sões arbitrárias (art. 7 ) e pela presunção de inocência (art. 9). Se­
pios foram solenemente proclamados, não foram menos infleti­ nhores de si mesmos, os homens podem falar e escrever, impri­
dos no sentido dos interesses dos possuidores. mir e publicar livremente, à condição de que a manifestação das
É à liberdade que a burguesia mais se atém. Exige, em pri­ opiniões não perturbe a ordem estabelecida pela lei e salvo para
meiro lugar, a liberdade económica, embota não se lhe faça a me­ responder pelo abuso desta liberdade (art.os 10 e 11) . A liberda­
nor menção na Declaração dos Direitos de 1789: sem dúvida, por­ de religiosa não deixou também de receber singulares restrições,
que a liberdade económica estava implícita aos olhos da burgue­ sendo os cultos dissidentes apenas tolerados. No plano político,
sia, mas também porque as massas populares permaneciam pro­ o liberalismo burguês encarnou-se na Consolidação dita de 1791 ,
fundamente apegadas ao antigo sistema de produção que, pela mas cujas principais disposições foram votadas desde o fim de

44 45
1789: com base na soberania nacional e na separação dos pode­ à
ram postos venda 400 milhões, representados poruma soma igual
res (art.os 3 e 6 da Declaração), ela organizou um sistema repre­ de assinados, bônus a 5% que constituíam um crédito sobre o Esta­
do e reembolsáveis em bens do clero. A operação malogrou. Em 27
se�tati�o caracterizado de fato pela predominância da Ass �m l a � ��
legIslatIva. A descentralização administrativa, a reforma JudIcIa­ de agosto de 1790,
o assinado torna-se papel-moeda. A depreciação
ria, a nova organização fiscal e até a reorganização da Igreja pela deste papel-moeda, a inflação, a carestia da vida, provocaram no­
Construção civil do clero respondiam
1970) à vamente a agitação social, golpeando duramente a riqueza adquiri­
(12
de julho de
mesma preocupação de liberalismo: no quadro de uma organiza­ da. Pela venda dos bens nacionais favorecida pelo assinado, a Revo­
ção coerente e racional, todos os administradores eram eleitos, lução encaminhou-se para uma nova repartição da riqueza fundiá­
e mesmo os bispos, por sufrágio censitário. ria que acentuou seu caráter social. Não mais que o resgate dos di­
Pela Declaração dos Direitos, a igualdade foi estreitamente as­ reitos feudais, a venda dos bens nacionais não foi concebida emfun­
à
sociada liberdade: fora avidamente . exigida pela burguesia em ção da massa do campesinato: ela reforçou a preponderância dos pro­
à
contraposição aristocracia, pelos camponeses face aos seus se­ prietários.
nhores. Tratava-se, porém, da igualdade civil, unicamente. A lei A Constituição civil do clero, votada em 12 de julho de 1790,
é a mesma para todos, to dos os cidadãos são iguais a seus olhos; que devia multiplicar as dificuldades da Revolução, inscreve-se
dignidades, postos e empregos são igualmente acessíveis a todos, no quadro do liberalismo burguês; derivava necessariamente da
sem distinção de nascimento (art. 6 da Declaração). As distinções reforma do Estado e da administração. O clero regular já tinha
sociais somente são fundadas na utilidade comum (art. nas 1), sido suprimido em 13
de fevereiro de 1790,
a Constituição civil

virtudes e nos talentos (art. 6. ); o imposto deve ser repartido igual­ reorganizou o clero secular. As circunscrições administrativas se
mente entre todos os cidadãos, em razão de suas faculdades (art. tornavam o quadro da nova organização eclesiástica: um bispo por

13). A igualdade civil recebeu no entanto uma singular deturpa­ departamento. Os bispos e os curas eram eleitos como os outros
ção pela manutenção da escravidão nas colônias : sua abolição te­ funcionários : estes pela assembléia eleitoral do distrito, aqueles

ria lesado os interesses dos grandes plantadores cujo grupo de pela do departamento. Os novos eleitos seriam substituídos por
pressão era particularmente influente na Assembléia. De igual­ seus superiores eclesiásticos, os bispos por seus metropolitanos
dade social não se podia cogitar : a propriedade é proclamada, no e não mais pelo papa. A Igreja da França tornava-se uma Igreja
art. 2 da Declaração, direito natural e imprescritível, sem preocu­ nacional. Seus laços com o papado afrouxavam, os breves ponti­
pação com a imensa massa dos que nada possuem. A igualdade ficais eram submetidos à censura governamental, as anatas su­
política, el a mesma, foi contraditada pela organização censitária primidas. O papa conservava a primazia espiritual sobre a Igreja
da França, mas lhe era retirada toda jurisdição. Ora, a Constituin­
do sufrágio: pela lei de 22
de dezembro de os direitos políti­
1789,
cos foram reservados a uma minoria de proprietários, divididos te entregou ao papa o cuidado de "batizar a Constituição civil'�

em três categorias hierarquizadas segundo a contribuição: cida­ ou melhor, de lhe conceder a consagração canônica. O papa j á
dãos ativos agrupados nas assembléias primárias; eleitores, que tinha condenado a Declaração dos Direitos do Homem como ím­
formavam as assembléias eleitorais departamentais; e, enfim, ele­ pia; suas queixas eram muitas; Avignon repudiava a soberania

gíveis à Assembléia Legislativa. Os cidadãos passivos estavam ex­ pontifícia e exigia sua anexaçãoà França. Pio VI delongou. Can­
cluídos do direito de s ufrágio, porque não atingiam o censo sada de esperar, a Constituinte, em 27 de novembro de 1790, exi­
prescrito. giu de todos os padres o juramento de fidelidade à Constituiç.ão

A nova ordem social devia ser singularmente reforçadapor duas do reino, portanto à Constituição civil que lhe estava incorpora­
reformas estreitamente ligadas, medidas extremas a que a burgue­ da. Apenas sete bispos prestaram juramento. Os curas dividiram­
se em dois grupos mais ou menos equivalentes, mas muito desi­
sia constituinte foi levada como que a contragosto pela necessidade
de resolver a crise financeira. Em de novembro de os bens do
1789, gualmente repartidos: juramentados ou constitucionais em maio­
2
"à ria no Sudeste; refratários ou não-juramentados, no Oeste. A con-
cleroforam postos dispOSição da naçãd'; em de dezembro, fo-
19
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...
. _ _ . _ �_ _____Ik
denação da Constituição civil pelo papa consagrou este estado de
va dos camponeses de acabar com todas as sobrevivências feu­
fato. Os breves de 11 de março e de 13 de abril de 1791 condena­
dais, derrotaram a política de compromisso e de conciliação: a es­
ram solenemente os princípios da Revolução e a Constituição ci­
tabilização foi impossível.
vil: o cisma estava consumado. Desde então, o país ficou corta­
O compromisso político que, à imagem da Revolução Inglesa
do em dois. A oposição refratária reforçou a agitação contra­
de 1688, instalou, acima das massas populares avassaladas, o do­
revolucionária, o conflito religioso duplicou o político. mínio da alta burguesia e da aristocracia, foi primeiramente pro­
curado, em setembro de 1789, pelos m onarquianos ou anglôma­
As contradições que marcaram sua obra explicam o realismo nos, partidários de uma câmara alta, fortaleza da aristocracia, e
dos Constituintes que pouco se embaraçavam com princípios de um veto real absoluto. Mounier acreditou possível obter, em
quando se tratava de defender seus interesses de classe. Os prin­ 1789, como em 1788 em Vizille, o assentimento das três ordens
cípios de Oitenta e nove não deixaram de repercutir, pois seu eco a uma revolução limitada. Esta revolução dos notáveis fracassou;
estava longe de extinguir-se. A Declaração adotada em 26 de agosto em 10 de outubro de 1789, Mounier deixou Versalhes; em 22 de
precisa o essencial dos direitos do homem e dos direitos da na­ maio de 1790, emigrou. Fosse incompreensão, fosse ambição, La
ção, com uma preocupação do universal que, singularmente, ul­ Fayette persistiu muito tempo: sua política tendia a conciliar, no
trapassa o caráter empírico das liberdades inglesas como tinham quadro de uma monarquia constitucional à inglesa, a aristocracia
sido proclamadas no século XVII. Quanto às Declarações ameri­ fundiária e a burguesia de negócios. Em 1790, La Fayette domina
canas da guerra da Independência, tinham invocado o universa­ a vida política, triunfa na Federação de 14 de julho. Todavia,
lismo do direito natural, mas não sem certas restrições que lhes desmascarou-se ao aprovar a repressão dirigida por seu primo
limitavam fortemente a importância. Os princípios sobre os quais Bouillé contra a guarnição revoltada de Nancy, em agosto de 1790:
a burguesia constituinte construiu sua obra queriam-se alicerça­ sua popularidade aniquilou-se. O Triunvirato em breve a substi­
dos na razão universal. A Declaração lhes forneceu uma expres­ tuiu. O conteúdo social e político do compromisso procurado foi
são ressonante. Doravante as "reclamações dos cidadãos, funda­ superiormente definido por Barnave, em seu veemente discurso
das em princípios simples e incontestáveis': só se poderiam vol­ de 15 de julho de 1791 : "Vamos terminar a Revolução, vamos
tar para a "manutenção da Constituição e da felicidade de todos": recomeçá-la? . . Um passo mais seria um ato funesto e culposo.
crença otimista na onipotência da razão, perfeitamente conforme Um passo mais na linha da liberdade seria a destruição da reale­
o espírito do século das Luzes, mas que pôde resistir à pressão za, na linha da igualdade a destruição da propriedade". De acor­
dos interesses de classe. do com La Fayette, os triúnviros, Barnave, Du Port, Lemeth, pre­
tendiam revisar a Constituição, aumentar o censo, reforçar os po­
deres do rei: esta política exigia não só o concurso dos aristocra­
tas como O assentimento de Luís XVI. A recusa da aristocracia
III - O impossível compromisso e do rei, o apelo ao estrangeiro, a guerra, enfim, arruinaram mais
uma vez esta política.
À base do compromisso econômico e social constituído pelo A aristocracia não a desejava, tornando assim finalmente ine­
resgate dos direitos senhoriais e no quadro do liberalismo censi­ vitável, para quebrar sua resistência, o apelo às massas popula­
tário que consagrava os direitos da propriedade e a preponderância res. Seu obstinado apego ao privilégio, seu exagerado exclusivis­
da riqueza, a burguesia constituinte encarniçou-se muito tempo mo, sua mentalidade feudal impermeável aos princípios burgue­
na procura de um compromisso político com a aristocracia. A re­ ses imobilizaram a maior parte da nobreza francesa numa recusa
sistência obstinada da massa da pequena nobreza que vivia gra­ total. Quanto à monarquia, sua atitude demonstrou, se houves­
ças a uma boa parte das obrigações, a vontade teimosa e agressi- se necessidade disto, que ela era o instrumento perfeito de su­
premacia de uma classe: o apelo ao soldado, pelo qual se decidiu

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a Corte desde os primeiros dias de julho de 1789, pareceu signifi­
Constituinte, cheia de ilusões, esperava desta lei uma rápida e
car o fim da Revolução. A aristocracia, em sua maioria, não acei­
equitativa desaparição do regime feudal. A lei suscitou nos con­
tou nem os decretos de 5-11 de agosto de 1789, nem a Declaraç�o
temporâneos o mais vivo interesse, ao mesmo tempo que levan­
dos Direitos: isto é, a destruição parcial da feudalidade. "Jamais
tava discussões e oposição, conforme testemunham não apenas
consentirei, declarou Luís XVI, em despojar meu clero e minha
os documentos do Comitê feudal da Constituinte e do Comitê de
nobrezá'. As Jornadas Populares de outubro impuseram-lhe a acei­
legislação da Convenção, mas ainda os arquivos dos Diretórios
tação .dos decretos. Em 1790, enquanto o rei utilizava La Fayette,
de departamento e de distrito, os do Registro e os atos dos notá­
embora o detestasse, a aristocracia obstinou-se em sua resistên­
rios. Malgrado a proclamação do princípio do resgate desde de 4
cia. Os conluios dos emigrados, as intrigas das cortes estrangei­
agosto de 1789, os devedores não puderam começar a encarar a
ras e os inícios da contra-revolução entretinham suas esperanças,
sua libertação senão a partir da publicação do decreto de de maio 3
ao passo que as revoltas agrárias suscitadas em grande número
de 1790 que organizava o resgate segundo os princípios assenta­
de regiões pela obrigação do resgate dos direitos feudais lhe en­
dos pela lei de 15
de março precedente: as primeiras ofertas re­
dureciam a recusa. A fuga do rei, em 21 de junho de 1791, os rea­
gulares dos devedores parece terem sido feitas em junho. Essas
juntamentos armados dos emigrados do Reno e, finalmente, a
lentidões exasperavam os mais propensos. A má redação dos de­
guerra, desejada e procurada desde 1791, demonstraram que a
cretos de 4 de agosto, que começavam pela solene afirmação de
aristocracia preferia, por interesse de classe, trair a nação a ceder.
que "a Assembléia Constituinte destrói completamente o regime
A política de conciliação entre a áristocracia e a alta burgue­
feudal': somou-se à confusão: os camponeses tomaram a fórmu­
sia seria quimérica, enquanto não tivessem sido irremediavelmente
la ao pé da letra, sem levar em consideração as exceções aduzidas
destruídos os derradeiros vestígios da feudalidade. Por todo o tem­
pelos próprios decretos, e consideraram nulas as leis de 1790.·
po que perdurou uma esperança de ver seus antigos direitos res­
Concebe-se a influência desse estado de espírito sobre a prática
taurados por um retorno à monarquia absoluta, a aristocracia se do resgate. Sobretudo porque, devido a uma singular omissão,
recusou a aceitar o triunfo da ordem burguesa. Quando ficou pa­
nenhuma medida financeira especial foi prevista, nenhuma ins­
tenteado que o feudalismo estava destruído para sempre (mas fo­
tituição de crédito que permitisse aos devedores conseguir o di­
ram necessários o Noventa e três e o Terror) e que qualquer tenta­
nheiro indispensável à sua libertação. Grande número de cam­
tiva de restauração social jamais seria possível (mas após quinze
poneses não possuía os adiantamentos necessários : o resgate
anos de ditadura napoleônica, o fracasso dos Ultras e as T rês Glo­
revelava-se impossível, a não ser para os ricos, e a liberdade pro­
riosas de 1830), a aristocracia aceitou enfim o compromisso polí­ metida, ilusória . Da decepçãoà ira, o passo foi rapidamente trans­
tico que, sob a Monarquia de Julho, a associava no poder com a
posto, tanto mais porque os senhores se encarniçaram em rece­
grande burguesia .
ber não apenas os direitos conservados, mas igualmente o atra­
Os camponeses, por sua vez, se recusaram, e com não me­
sado dos direitos suprimidos : a sobrevivência do feudalismo, de­
nos encarniçamento, ao compromisso do resgate. (1) A Assembléia
pois de sua abolição de princípio na noite de 4 de agosto, não res­
salta do domínio da imaginação mítica.
(1) O importante problema do resgate dos direitos feudais e de sua abolição Nestas condições, de 1789 a 1793, uma verdadeira guerra civil
definitiva foi abordado por Ph. SAGNAC, La IégisIation dviJe de Ia RévoIution fran­
çaise (1898); num esboço sempre válido, por A. AULARD, La Révolution française
levou campesinato e aristocracia a se chocarem, com maior ou me­
et le regime féodal (1919); por M . GARAUD, La Révolution et la propriété fonciere nor intensidade segundo as regiões. No departamento de Doubs,
(1959). Mas apenas monografias locais ou regionais permitiram levantar um ver­ onde não se assinala, todavia, senão um único incidente violento
dadeiro quadro de conjunto da sobrevivência parcial, das vicissitudes e a da desa­
parição final do regime feudal durante a Revolução: dispomos tão-somente de dois e as jacqueries que, do Grande Medo de 1789 à abolição definitiva dos direitos
trabalhos, A. FERRADOU, Le rachat des droits féodaux dans la Gironde (1790-1793), feudais (17 de julho de 1793), marcaram a história revolucionária do campesinato,
(1928): J. MILLOf, z: AbolitlOn des droits seigneuriaux dans le département du não dispomos senão de estudos locais fragmentários. Esta história está para ser
Doubs et la région comtoise (1941). Do mesmo modo, sobre os distúrbios agrários escrita.

50 51
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após 1789, as banalidades desapareceram a partir desse mesmo


ano; o atrasado das prestações abolidas sem indenização cessou deixou de agravar-se, como os temores e seus cortejos de violên­
de ser pago; no fim de 1789, a maior parte das comunidades re­ cias e de incêndios o ilustraram. Indo o Conde de Dampierre cum­
cusou os encargos julgados suprimidos e apoiou os camponeses primentar o rei no retorno de Varennes, foi massacrado pelos seus
perseguidos; a recusa da dízima foi corrente em 1790; em 1791, camponeses no momento em que a pesada berlinda se afastava
uma quantidade de julgamentos condenou os recalcitrantes; 1792 de Sainte-Menehould. Aos olhos das massas, o rei pareceu des­
viu generalizar-se uma surda efervescência. Em muitas outras re­ de então o inimigo mais temível: a fuga para Varennes havia "ras­
giões a revolta agrária prosseguiu de 1789 a 1793, apaziguando­ gado o véu".
se, em seguida reacendendo-se vigorosamente nos períodos de A guerra estrangeira constituiu, para a aristocracia, um últi­
adiantamento feudal ou de carestia dos cereais. Distúrbios gra­ mo recurso. "Em vez de uma guerra civil, será uma guerra es­
ves ou verdadeiras jacqueries terminam 1789 no Aisne, no Boca­ trangeira - escrevia Luís XVI, em 14 de dezembro de 1791, a seu
ge normando, em Anjou, Franche-Comté, Dauphiné Vivarais e agente Breteuil -, e as coisas serão bem melhores". E nesse mes­
Roussillon . Em j aneiro de 1790, jacqueries no Quercy e no Péri­ mo 14 de dezembro, Maria Antonieta a seu amigo Fersen, a pro­
gord, bem como na Alta Bretanha, de Ploermel a Redon; em maio pósito do pa:rtido que incitava à guerra, na nova Assembléia: "Os
no Bourbonnais; fora do tempo da colheita, recusa das dízimas imbecis! não vêem que nos estão favorecendd'. Na Assembléia Le­
e do imposto das searas em todo o Gâtinais. O Quercy e o Péri­ gislativa que se reuniu em 1? de outubro de 1791, a guerra foi de
gord sublevaram-se de novo no inverno de 1791-92; na primave­ fato desejada pela esquerda sob o impulso de homens novos aos
ra, o Gard, a Ardeche e a Lorere, o Tarn e o Canta1 foram atingi­ quais os contemporâneos denominaram Brissotins, do nome de
dos; a Ariege, no outono, enquanto uma grande insurreição para seu chefe, e aos quais, depois de Lamartine, passamos a chamar
a taxação afetava, da primavera ao outono, a Bauce e seus con­ de Girondinos.
fins. Os meeiros levantaram-se, em julho de 1793, no Gers; em Os Girondinos, representantes que eram da grande burgue­
julho e em agosto, o Seine-et-Marne foi ainda agitado por distúr­ sia mercantil, pretendem acabar com a contra-revolução, particu­
bios a propósito do imposto das searas. larmente para restabelecer o crédito do assinado necessário ao bom
Indubitavelmente, os direitos senhoriais e as dízimas não es­ andamento das empresas. À burguesia mercantil não repugna a
tavam, eles sós, sempre em causa; se, de um lado, a excelente co­ guerra desejada pela aristocracia a fim de operar, pela derrota,
lheita de 1790 distendeu a situação, de outro as perturbações <tos a contra-revolução interna: os fornecimentos aos exércitos, não
mercados e os entraves à circulação dos cereais multiplicaram-se constituíram eles, sempre, uma fonte de lucros consideráveis?
à aproximação da primavera de 1792: a obsessão da penúria exas­ Guerra contra a Inglaterra? Nada mais incerto. O alicerce do po­
perou a resistência contra o adiantamento feudal e a obrigação derio dessa burguesia mercantil reside na prosperidade dos por­
do resgate. A aristocracia, cada vez mais ameaçada, endurece sua tos: Marselha, Nantes, sobretudo Bordeaux, centros vitais do ca­
recusa, envenena os incidentes. Do mesmo modo que os movi­ pitalismo desse tempo, essencialmente comercial. Havendo, des­
mentos populares urbanos, o antagonismo das classes no campo de abril de 1792, desencadeado a guerra continental, os Girondi­
empurrava a Revolução para a frente. nos só a declararam à Inglaterra em fevereiro de 1793: a guerra
marítima comprometia o comércio das Ilhas e a prosperidade das
*
* * cidades litorâneas. A guerra continental correspondia melhor aos
cálculos políticos da burguesia girondina. Era, ao atacar o Antigo
A fuga do rei para Varennes, em 21 de junho de 1791, demons­ Regime europeu, levar ao paroxismo a luta contra a aristocracia,
trou claramente a inconsistência da política de compromisso. Por desmascará-la, forçá-la a dar-se por vencida. "Marquemos de an­
mais que a burguesia constituinte desencadeasse o Terror trico­ temão um lugar para os traidores e que este lugar seja o cadafal­
lor, reforçasse o caráter censitário da Constituição, a incisão não sd: bradava Guadet, em 14 de janeiro de 1792.
Mas a burguesia revelou-se incapaz de conduzir, unicamente
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53
com suas forças, essa guerra contra a aristocracia: por egoísmo ficam. O assassinato de Simoneau, prefeito de Etampes, em 3 de
de classe, ela recusou a ajuda do povo. Confirmaram-se assim as março de 1792, patenteou a oposição irredutível entre as reivindi­
previsões de Robespierre, em seus grandes discursos dirigidos aos cações populares e as concepções burguesas do comércio e da pro­
Jacobinos, de que se fazia necessário, antes de combater a aristo­ priedade. Enquanto, em maio, em Paris, Jacques Roux já reclama
cracia fora das fronteiras, destruí-la internamente. Já a Gironda, a pena de morte para os açambarcadores, em Lyon, em 9 de ju­
sob pretexto de que a guerra exigia a união, se firmava, desde 1792, nho de 1792, Lange, funcionário municipal, apresenta seus "meios
na garantia de La Fayette, tendo apoiado o Ministro dos Negó­ simples e fáceis de estabelecer a abundância e o preço justo do
cios Estrangeiros, o Conde de Narbonne: esboço antecipado des­ pãd'. Um espectro, desde então, persegue a burguesia: a "lei agrá­
se regime dos notáveis do qual Mme. de Stael, senhora de Nar­ riá': entendamos, a partilha das propriedades. Enquanto Pierre
bonne, foi justamente um dos teoristas e que conciliava os inte­ Dolivier, cura de Mauchamp, toma a defesa dos amotinados de
resses da aristocracia fundiária ligada aos da burguesia mercan­ Etampes, a Gironda faz decretar uma cerimônia fúnebre em hon­
til. Os reveses da primavera de 1792, através dos quais a Gironda ra de Simoneau e que sua faixa de prefeito seja pendurada nas
entreviu a necessária aliança com as massas populares para asse­ abóbadas do Panteão. Precisa-se desta maneira o plano de cliva­
gurar a vitória, revelaram suas hesitações, se não sua duplicida­ gem que logo irá separar Girondinos e Montanheses, e se pres­
de: ela consentia em apelar ao povo, como quando da jornada sentem as razões profundas disso que a história chamou pudica­
de 20 de junho de 1792, mas na medida em que ele se atinha aos mente "o desfalecimento nacional" da Gironda: representantes da
objetivos que ela lhe designara. burguesia, apegados ardorosamente à liberdade econômica, os Gi­
Todavia a crise nacional, conjugando-se com a crise econô­ rondinos tiveram medo da vaga popular que tinham levantado
mica, multiplicava o ímpeto das massas: impulso nacional e mo­ em favor de sua política de guerra; seu sentimento nacional j a­
vimento revolucionário são inseparáveis; um conflito de classes mais foi demasiadamente forte para neles silenciar a solidarieda­
subentende e exacerba o patriotismo. Os aristocratas opõem o rei de de classe.
à nação de que escarnecem; os do interior esperam o invasor; os ::-.Jo momento de transpor a passagem, receando pôr em ris­
emigrados combatem nas fileiras inimigas. Para os patriotas de co, se não a propriedade, ao menos a preponderância da rique­
Noventa e dois trata-se de salvaguardar e de promover a herança za, a Gironda apavorou-se com a insurreição popular que ela, de
de Oitenta e nove. Os cidadãos passivos, aconselhados pelos pró­ início, havia favorecido e que, em 10 de agosto de 1792, deitou
prios Girondinos, armam-se de piques, cobrem-se com o abaixo, com o trono e a Constituição de 1791, os estreitos quadros
casquete vermelho, multiplicam as sociedades fraternais. Vão eles da nação censitária. Fez-se o 10 de agosto, se não malgrado a Gi­
quebrar os quadros da nação censitária? . . ''A pátria - escreve Ro­ ronda, sem ela pelo menos: esta abstenção lhe foi fatal.
land a Luís XVI em sua célebre carta de 10 de junho de 1792 - Tanto quanto nacional, devido à presença dos Federados mar­
não é de nenhum modo uma palavra a que a imaginação, por selheses e bretões, a insurreição de 10 de agosto de 1792 foi so­
comprazer-se, aformoseou; é uma entidade à qual se fazem sa­ cial. Tombaram as barreiras que dividiam a nação. A partir de ju­
crifícios. . . ; que se criou com grandes esforços, que se ergue em lho, os cidadãos passivos entraram em massa nas assembléias de
meio às inquietudes e que se ama tanto pelo que custa quanto seção e nos batalhões da Guarda Nacional. Em 30 de julho, a As­
pelo que se espera delá'. A pátría, para os cidadãos passivos, só sembléia Legislativa consagrara um estado de fato ao decretar a
é concebida na efetiva igualdade dos direitos. admissão dos passivos na Guarda Nacional. "Durante o perigo
Ora, a crise nacional, sobreexcitando o sentimento revolucio­ da pátria, segundo a seção parisiense da Butte-des-Moulins, o so­
nário, acentua as oposições sociais no próprio seio do antigo Ter­ berano (entendamos: o povo no sentido de Rousseau) deve estar
ceiro Estado. Mais ainda que em 1789, a burguesia se inquieta. no seu posto: à frente de seus exércitos, à frente de seus negó­
Os ricos são taxados para armar os voluntários; com a inflação, cios, deve estar em toda parte". Pelo sufrágio universal e pelo ar­
prosseguindo em seus danos, os distúrbios do sustento se ampli- mamento dos cidadãos passivos, esta "segunda revoluçãd' inte-

54 S5
grou o povo na nação e marcou o advento da democracia. Depois
de vãs tentativas, os· partidários do compromisso eliminaram-se
a si mesmos. Dietriech tentou sublevar Estrasburgo, a seguir fu­
giu; La Fayette, abandonado por sua tropas, passou-se para os
austríacos, em 19 de agosto de 1792. Porém, mais ainda, a entra­
da em cena da sans-cuJotterie levantou uma fração da burguesia:
já as resistências se afirmavam contra a república democrática e
popular anunciada pela "segunda revoluçãd' de 10 de agosto.
"Uma classe particular de cidadãos - declara a seção parisiense CAPÍTULO II
do Teatro Francês, em 30 de julho de 1792 não tem a faculdade
-

de arrogar-se o direito exclusivo de salvar a pátriá'.

NOVENTA E TRÊS
REPÚBLICA BURGUESA OU DEMOCRACIA
POPULAR?
(1792-1795)

No conflito que, a partir de então, é o da França revolucioná­


ria e o da aristocracia européia, uma parte da burguesia se dá conta
de que não venceria sem o povo : os Montanheses aliaram-se aos
Sans-CuJottes. Mas esta intromissão popular no cenário político
pareceu uma suprema ameaça aos interesses da grande burgue­
sia que, pela boca de Brissot, denunciou "a hidra da anarquiá'.
"Vossas propriedades estão ameaçadas", proclamou Pétion, em
fins de abril de 1793, reconvocando os proprietários. ''A igualdade
não passa de um vão fantasma - replicou o furioso Jacques Roux,
em 25 de junho de 1793 , quando o enriquecido pelo monopó­
-

lio exerce o direito de vida e de morte sobre o seu semelhante".


Abre-se dest'arte, na primavera de 1793, o drama em que, peran­
te as exigências da revolução burguesa, soçobrou afinal a Repú­
blica Popular confusamente desejada pelos Sans-Culottes.
Assinala-se, assim, por antecipação o irredutível antagonismo en­
tre as aspirações de um grupo social e o estado objetivo das ne­
cessidades históricas.

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realidade política. Saint-Just, em primeiro lugar, colocara o pro­


I - O despotismo da liberdade
blema do julgamento de Luís XVI sob o ângulo nacional: "Que­
remos a República, a independência, a unidade. . . Luís XVI deve
1. Girondinos e Montanheses (1792-1793) - A rivalidade da ser julgado um inimigo estrangeiro" (13 de novembro de 1792).
Gironda e da Montanha, não obstante sua vinculação bmguesa A execução do rei, em 21 de janeiro de 1793, ao aplicar um golpe
comum, reveste, em conseqüência das opções políticas, um in­ decisivo no sentimento monárquico, acabou de liberar a idéia de
contestável caráter de classe. Porta-voz da burguesia de negócios, nação de sua forma de realeza. Impossibilitou qualquer compro­
a Gironda pretendia defender a propriedade e a liberdade eco­ misso entre os regicidas e os "apelantes", partidários do apelo ao
nômica contra as limitações reclamadas pelos Sans-Culottes: re­ povo, proposto por Vergniaud, para salvar Luís XVI. Obstinando­
gulamentação, taxação, requisição, curso forçado do assinado. Ple­ se em salvar o rei, os Girondinos pretendiam circunscrever o con­
nos do sentimento das hierarquias sociais, os Girondinos experi­ flito com a Europa. Assim, pendiam, conscientemente ou não, pa­
mentavam frente ao povo um recuo instintivo; reservavam o mo­ ra um compromisso com a aristocracia: atitude inconseqüente da
nopólio do gOverno para a sua classe. Estigmatizando os Jacobi­ parte de homens que, em novembro de 1792, tinham pregado a
nos e os Montanheses em um apelo a todos os republicanos da guerra propagandística. À nação, identificada com a República e
França, escrevia Brissot, em outubro de 1792: "Os desorganiza­ apoiada na reforçada solidariedade da burguesia montanhesa e
dores são os que desejam nivelar tudo, as propriedades, a rique­ do povo sans-culotte, a execução do rei não deixava outra saída
za, o preço dos gêneros, os diversos serviços devido à socieda­ que não a vitória.
de". Robespierre respondera antecipadamente no primeiro número As derrotas de março de 1793, a insurreição da Vendéia e o
de Lettres à ses commettants, em 30 de setembro de 1792, denun­ perigo daí resultante selaram o destino da Cironda. Ela recusou­
ciando os falsos patriotas "que desejam constituir a República ape­ se até o fim a qualquer concessão. Em 13 de março de 1793, Verg­
nas para si mesmos, que pretendem governar apenas no interes­ niaud ainda proclamava: "Para o homem social, a igualdade não
se dos ricos". Os Montanheses, sobretudo os Jacobinos, se esfor­ é senão a dos direitos"; era manter a primazia da propriedade e
çaram no sentido de dar à realidade nacional um conteúdo posi­ da riqueza. As jornadas de 31 de maio-2 de junho de 1793, atra­
tivo capaz de unir as massas populares. Saint-Just, em seu dis­ vés das quais as seções parisienses eliminaram os Girondinos da
curso sobre os víveres, em 29 de novembro de 1792, sublinhou Convenção, apresentam um duplo aspecto nacional e social. Jaurês
a necessidade lide tirar o povo de um estado de incerteza e de negou-lhes caráter de classe: os Girondinos ter-se-iam perdido
miséria que o corrompe"; "podeis, num instante, dar uma pátria "simplesmente [por seu] espírito de partido estreitado em espíri­
ao povo franc:::ês": detendo os danos da inflação, garantindo ao to de facção e de conciliábuld'. De acordo, se nos limitarmos a
povo sua subsistência, ligando "estreitamente sua felicidade e sua considerar o aspecto parlamentar dessas jornadas; mas o papel
liberdade". Robespierre foi mais claro ainda, em 2 de dezembro dos Sans-Culottes parisienses e a eliminação da alta burguesia as­
de 1792, em seu discurso sobre os distúrbios frumentícios de Eure­ sinalam seu conteúdo social. Sobressalto revolucionário, essas jor­
et-Loir: "O primeiro dos direitos é o de existir. A primeira lei so­ nadas constituem ainda um reflexo nacional, uma reação defen­
cial é, portanto, a que assegura a todos os membros da sociedade siva e punitiva contra uma manifestação nova do c<;>mpiô aristo­
os meios de existir; todas as demais lhe são subordinadas". As crático. O desenvolvimento do m ovimento secionário nos depar­
necessidades da guerra e seu sentido nacional aproximaram os tamentos tinha esclarecido antecipadamente este aspecto: em Bor­
Monté1nheses dos Sans-Culottes: a situação da República exigia deaux, em Marselha, e mais ainda em Lyon, a contra-revolução
medidas extraordinárias só concebidas com o apoio popular; tra­ aristocrática, sob a máscara da oposição girondina, retomavé). a
tava-se ainda de ganhá-lo para uma nova orientação social. ofensiva. O federalism o, extensão da guerra civil cuja iniciativa
O processo e a morte do rei tornaram inexpiável o conflito en­ fora tomada pelo movimento secionário desde maio de 1793, apre­
tre a Gironda e a Montanha, precisando os contornos da nova senta o mesmo duplo aspecto. Seu conteúdo social é ainda mais

58 59

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acentuado que sua tendência política. Explica-o em parte a per­
sistência dos particularismos regionais, contudo mais ainda a so­
lidariedade dos interesses de classe: a insurreição federalista agru­
pava os partidários do Antigo Regime, os Feuillants, sempre ape­ permanece o elemento dirigente da Revolução? Dito de outro mo­
gados ao sistema censitário, a burguesia inquieta pela proprieda­ do, como resolver o problema das relações das massas populares
de e a liberdade do lucro. Por apego aos princípios de Noventa e das classes possuidoras. Mas estava ao alcance dos homens de
e três e por preocupação com a independência nacional, os Gi­ governo superar as contradições inerentes a esta coalizão? O pe­
rondinos recusaram a aliança vendeana e o apelo ao estrangeiro: rigo nacional fê-las calarem-se um momento. Mas era de prever
mas, pela desconfiança em relação às massas populares, por sua que, afirmando-se a vitória, elas reapareceriam claramente.
repugnância em as integrar numa nação ampliada, não tinham O impulso popular mantém-se forte até o outono de 1793. Ar­
deixado de fazer o jogo da aristocracia e da coalizão. rancou à Convenção, à qual repugnava, e a seus reticentes Comi­
tês as grandes medidas revolucionárias: em 5 de setembro, o Ter­
2. MontanJieses, Jacobinos e Sans-CuJottes (1793-1794) - Ape­ ror é posto na ordem do dia, em 11, é adotado o maximum nacio­
nas eliminada a Gironda, a Convenção agora dirigida pelos Mon­ nal dos cereais; a lei dos suspeitos é votada em 17; finalmente,
tanheses, se viu entre dois fogos. Enquanto a contra-revolução re­ em 29 de setembro é instituído o maximum geral, isto é, a econo­
cebia novo impulso da revolução federalista, o movimento popu­ mia dirigida. Vitória popular mas também triunfo governamen­
lar, exasperado pela carestia e a penúria, aumentava sua pressão. tal: a legalidade foi salvaguardada, o terror legal prevalece sobre
Entretanto, a organização governamental se revelava incapaz de a ação direta. O Comitê de Salvação Pública resistiu, soube ceder
dominar a situação: Danton, no Comitê de Salvação Pública, ne­ em tempo e num terreno por ele escolhido: sua autoridade saiu
gociava em vez de combater. Enquanto a Montanha hesitava, já disto engrandecida. A oposição popular extremada foi liquidada
prisioneira de suas contradições, as massas populares empurra­ na pessoa dos Furiosos; o silêncio fúi imposto à oposição na Con­
das para a frente por suas necessidades e seus rancores impu­ venção quando do grande debate de 25 de setembro; a descristia­
nham as grandes medidas de salvação pública, a primeira das nização foi detida em 6 de dezembro pelo solene retorno à liber­
quais foi, em 23 de agosto de 1793, o levante em massa. Uin go­ dade dos cultos, enquanto se afirmava a vitória republicana em
verno revolucionário pareceu indispensável para disciplinar o Ím­ Wattignies sobre os austríacos (16 de outubro), em Mans sobre
peto popular e conservar a aliança com a burguesia, a única ca­ os vendeanos (13-14 de dezembro). Em 10 de outubro de 1793, com
paz de fornecer os quadros necessários. Apoiado nesta dupla ba­ base no relatório de Saint-Just a Convenção declarava o governo
se social - Sans-CuJottes e burguesia montanhesa e jacobina -, da França revolucionário áté a paz; em 14 de frimário, ano II (4
o governo revolucionário organizou-se peça a peça, de julho a de­ de dezembro de 1793), ela adotou o decreto constitutivo do Go­
zembro de 1793: os mais clarividentes de seus líderes pretendiam verno Revolucionário. A lógica dos acontecimentos leva a recons­
salvaguardar a qualquer preço a unidade revolucionária do anti­ tituir a centralização, a restabelecer a estabilidade administrativa,
go Terceiro Estado, ou seja, a unidade nacional. a reforçar a autoridade governamental, condições necessárias desta
Duas séries de problemas colocaram-se a partir de então, no vitória obstinadamente perseguida pelo Comitê de Salvação PÚ­
decorrer do ano II. Um problema político: como conciliar o com­ blica. Mas era o fim da liberdade de ação do movimento popular.
portamentopróprio aos Sans-Culottes com as exigências da dita­ Tudo subordinado às exigências da defesa nacional, o Comi­
dura revolucionária e as necessidades da defesa nacional? Dito tê de Salvação Pública não pretendia ceder nem às reivindicações
de outro modo, como resolver o problema das relações da demo­ das massas à custa da unidade revolucionária, nem às reclama­
cracia popular e do Governo Revolucionário. Um problema de or­ ções da burguesia moderada à custa da economia dirigida, ne­
dem social: como conciliar as aspirações e as reivindicações eco­ cessária à sustentação da guerra, ou à custa do Terror que lhe ga­
nômicas dos Sans-Culottes com as exigências da burguesia que rantia a obediência de todos. Porém entre essas exigências con-

60 61
II - Grandeza e contradiçõels
traditórias, onde encontrar exatamente um ponto de equilíbrio? da República do ano II
A liquidação dos Furiosos, o golpe de suspensão da descris­
tianização, os surdos ataques contra as organizações populares,
as sociedades secionárias em particular, marcaram, no outono de 1. Temlências sociais e prática política do movimento popu­
1793, a vontade do Comitê de Salvação Pública de se distanciar lar(1) - D� junho de 1793 ao inverno, o movimento dos Sans­
do movimento popular ao qual, até então, havia mais seguido que CuJottes parisienses permitiria a consolidação d.o Governo Revo­
propriamente dirigido. Mas, por isso mesmo, ele se colocava à dis­ lucionário e a estabilização da ditadura jacobirna de salvação pú­
crição da Conv�nção e favorecia a ofensiva de seus a dversários blica, ao mesmo tempo que impunha a uma Convenção reniten­
na Assembléia E� na opinião. Danton sustentara Robespierre con­ te medida� adequadas para melhorar a sorte das massas.
tra os descristianizadores, com segunda intenção: tratava-se de Se nos referimos à composição do pessoal lPolítico das seções
distender as en�rgias do Governo Revolucionário. A política "in­ parisienses no ano II, como ao papel do subúrbio de Saint-Antoine
dulgente" de Danton opunha-se em todos os pontos ao progra­ no movim�nto da Revolução, constatamos que a vanguarda revo­

ma popular sustentado por Hébert e seus amigos CordeHers(*): ter­ lucionária Mo era constituída por um proletariatdo industrial, mas
ror extremo, reforçado ao máximo, guerra sem medida. O ataque por uma coalizão de pequenos patrões e de companheiros que
governamental contra a descristianização, a atenuação do Terror trabalhavam e viviam junto deles. Daí, determinados traços do
nos departamentos desde janeiro de 1794: tantos indícios de que moviment<) popular, certo comportamento, como também certas
o Comitê de Salvação Pública, sem proscrever os extremistas, co­ contradições resultantes de uma situação ambí[gua. O mundo do

mo os indulgentes reclamavam, pretendia ao menos submetê-los trabalho é :marcado em seu conjunto pela menttalidade da peque­
mais e mais. Seu trabalho de sapa contra a democracia secionária na burgue �ia artesanal e, como ela, participa da mentalidade da
se inscreve nesta linha; deste modo, ele teria moderado o Terror, burguesia. Os trabalhadores não constituíam" nem pelo pensa­
conservando-o como meio de governo. A atitude governamental mento neIll pela ação, um elemento independente. Não estabele­
favoreceu a ofensiva dantonista contra o sistema terrorista. ciam uma telação direta entre o valor do traballho e a taxa do salá­
A luta das facções desencadeou-se no mesmo instante em que rio; o salá1:io era determinado com relação ao preço das subsis­
a crise dos víveres, no fim do inverno de 1793-94, se agravava brus­ tências: a tunção social do trabalho não era daramente concebi­
camente; em Paris, a situação piorou; pareceu provável uma ex­ da. Os Sans-CuJottes do ano II não centraram suas preocupações

plosão popular. A crise política, conjugando-se com o mal-estar sociais no � problemas da produção e do trabéalho; foram muito
social, fez explodirem as contradições do sistema: as conseqüên­ mais sensíveis aos seus interesses de conslUmidores. Se exi­
cias deveriam ser irremediáveis para o movimento popular, para giram a taxa dos víveres, a reivindicação da Itarifa permaneceu
o Governo Revolucionário e, finalmente, para a própria Revolução. excepcional. A taxação foi reclamada tanto malis obstinadamente
pelos militantes parisienses, que padeciam em. suas respectivas
seções a pressão, não apenas dos trabalhadores" mas ainda de uma
importantE� massa de indigentes atenazados pela fome: no come­
ço da primavera de 1794, socorria-se, aproxirruadamente, um in­
digente pata cada nove habitantes de Paris, mas um para cada três
do subúrbio de Saint-Antoine. E quantos porores orgulhosos! A
fome constitui o cimento de categorias tão dive�rsas quanto o arte-

(*) Cordeliers
"" Franciscanos, assim designados pelo uso do cordão em volta
da cintura. No case), membros do Clube dos Cordeliers, assim chamados por se
(1) Ver AI,BERf SoBOUL, Les sans-culottes parisiens en l/'an II. Mouvement po­
reunirem num convento dessa ordem religiosa. (N. do T.)
pulaire et governement révoIutionnaire, 2 juin 1793-9 themnidor an II (Paris, 1958).

62 63
são, o lojista, o companheiro, o jornaleiro-biscateiro coalizados por
I
Em nenhum outro momento da Revolução se encontra uma
um interesse c:omum contra os negociantes ricos, o empresário, formulação tão nítida do ideal social popular: ideal à medida
o açambarcadcJr nobre ou burguês. O termo sans-culotterie pode dos artesãos e dos lojístas que formavam os quadros da Sans­
parecer vago cpmparado com o vocabulário sociológico atual: com CuJotterie. Ideal ainda à medida da massa dos consumidores e
relação às con�dições sociais do tempo, corresponde a uma reali­ dos pequenos produtores urbanos, hostis ao mesmo tempo a to­
dade precisa. }l:ndubitavelmente, há outros móbeis que não pode­ dos os vendedores diretos ou indiretos de subsistências e a todos
mos excluir do comportamento popular: o ódio à nobreza, a crença os empresários cujas iniciativas capitalistas ameaçavam reduzi-los
no complô ariistocrático, a vontade de destruir o privilégio e de à categoria de trabalhadores assalariados dependentes. Ideal, en­
estabelecer a �fetiva igualdade dos direitos. Reduzem-se afinal à fim, que, no seu desejo de limitar as conseqüências da proprie­
exigência do p!ão cotidiano, à qual se liga confusamente, em mui­ dade privada, conservando-a, se opunha fundamentalmente ao
tos deles, a reiivindicação política. "Sob o reinado de Robespierre da burguesia que conduzia a Revolução.
segundo o rnarceneiro parisiense Richer, em i? de prairial, ano
As tendências políticas da Sans-CuJotterie não deixavam de
_

III (20 de maiO' de 1795) corria sangue e não faltava pãd'. O com­
-

ir ao encontro das concepções burguesas. A soberania reside no


portamento terrorista está ligado indissoluvelmente à reivindica­
povo: deste princípio deriva todo o comportamento político dos
ção social.
militantes populares, tratando-se, lá para eles, não de uma abs­
As aspira<fões sociais populares tomaram-se precisas através
tração, mas da realidade concreta do povo reunido em suas as­
das lutas reivindicadoras. Em 1793, reclamou-se o maximum dos
sembléias de seção e exercendo a totalidade de seus direitos; os
cereais a fim 4e se harmonizar o preço do pão com os salários,
mais conscientes tendiam para o governo direto. Em matéria le­
isto é, a fim de permitir viver o Sans-Culotte: o direito à existên­
gislativa, reivindicavam e praticavam na oportunidade /a sanção
cia foi invoca(io como um argumento de apoio. A reivindicação
das leis pelo povo. Desconfiando do sistema representativo, re­
social preced�u e suscitou a justificação teórica que, em troca, re­
clamavam o controle e a revogabilidade dos eleitos. Soberano le­
forçou a luta. Não se saberia procurar aqui um sistema coerente.
gislador, o povo é também soberano juiz: quando dos massacres
O igualitarisn10 constitui o traço essencial: as condições de exis­ de setembro de 1792, organizaram-se tribunais populares. A for­
tência devem ser as mesmas para todos. Ao direito total de pro­ ça das armas constituía, enfim, um atributo essencial da sobera­
priedade, gerador de desigualdade, os Sans-CuJottes opõem o
nia: o povo só pode estar armado; no ano III, o desarmamento
princípio da ijJualdade de usufrutos. Daí vêm naturalmente à crí­
dos militantes secionários simbolizou sua decadência política. O
tica do livre exercício do direito de propriedade. Contudo, este
povo em armas e retomando o exercício de seus direitos pela in­
direito, como tal, jamais esteve em discussão: mas, na qualidade
surreição: aplicação extrema do princípio da soberania popular.
� de pequenos produtores independentes, os Sans-Culottes o ba­
Manifestando pela insurreição a onipotência do soberano, o po­
seiam no trabalho pessoal. Eles se atêm aos ricos, aos opulentos.
vo delega novamente o exercício da soberania a seus mandatários
Em 2 de setembro de 1793, no paroxismo do ímpeto revolucioná­
reinvestidos de sua confiança: assim, em 2 de junho de 1793.
rio, a seção di)s Sans-Culottes mais acima do Jardim des Plantes,
A organização secionária dava a tais tendências uma singular
solicita à Convenção não apenas que fixe "os lucros da indústria
e os benefíciOS do comércid' pela taxação geral, mas também que eficiência. Servindo-se das instituições municipais criadas pela As­
imponha um maximum às fortunas e "que o mesmo indivíduo sembléia Constituinte, mas lhes insuflando um conteúdo novo,
não possa possuir senão um maximum". Qual seria ele? Corres­ utilizando os comitês Revolucionários impostos à Convenção, for­
jando enfim com as sociedades secionárias do outono de 1793 um

I
ponderia à pEquena propriedade artesanal e comercial: "Que nin­
guém possa ler mais que uma oficina, mais que uma lojá'. Estas instrumento especificamente popular, os militantes sans-culottes
medidas radi�ais "fariam desaparecer pouco a pouco a imensa de­ deram ao movimento de massas parisienses uma organização ao
sigualdade d:ls fortunas e crescer o número dos proprietários". mesmo tempo flexível e eficaz. Ela o provou, da primavera ao ou-

65
I� 64

,
tono de 1�, na luta contra os moderados, e facilitou bastante a decreto de 4 de frimário, ano II (4 de dezembro de 1793), baseado
instauração do Governo revolucionário. De julho de 179 a setem­ em princípios outros que não os da democracia popular.
2
bro ?e ?79� a permanência das seções (a assembléia geral reunia­ A teoria do governo revolucionário fora feita por Saint-Just
se dIanam€rrte às cinco horas) constituiu uma das bases desse sis­ em seu relatório de 10 de outubro de 1793, por Robespierre em
tem? político. Suprimida pelo decreto de 9 de setembro, que re­ seus relatórios sobre os princípios do governo revolucionário (25
dUZIU as se;sões a duas por semana, depois a cada dez dias, ela de dezembro de 1793) e sobre os princípios de moral política que
reapareceu por via indireta das sociedades secionárias. Assegu­ devem guiar a Convenção (5 de fevereiro de 1794). Traço signifi­
rando a pemanência e a continuidade, tenderam estas ltimas, cativo, em nenhum destes relatórios se fez menção do princípio
ú
durante o i\verno do ano II, a substituírem-se às assembléias ge­ de soberania popular: ela Cbncentrou-se na Convenção, "centro
r�is� r:duzi1do_as a um papel de assentamento. De todas as ins­ único da impulsão do governd'. Os Comitês governam sob seu
htUlçoes se:ionárias, os comitês revolucionários são os que me­ controle. Na verdade, apenas dois exerceram efetivamente o po­
lhor simbolzam o poder popular. Apareceram espontaneamente der: o Comitê de Salvação Pública, "no centro da execuçãd�
em determinadas seções parisienses depois de 10 de agosto de "reservando-se o pensamento do governo, propondo à Conven­
1792, e se generalizaram por ocasião da crise de março de 1793. ção nacional as principais medidas"; o Comitê de Segurança Ge­
�� �1 �e .março, a Convenção legalizou-os. Sua competência, de ral que tem "sob sua inspeção particular tudo o que se relaciona
InICIO lirnItacta, alargou-se rapidamente. A lei dos suspeitos de 17 às pessoas e à polícia geral". O governo revolucionário é um go­
de setembr� de 1793 consagrou os poderes que eles, de fato, se verno de guerra: "A revolução é a guerra da liberdade contra os
arr.ogaram : em cada comuna ou seção de comuna, prepararam seus inimigos". Seu objetivo é fundar a República: após a vitória,
a bst dos ;uspeitos e pronunciaram os mandatos de prisão. A tornar-se-á ao governo constitucional, "regime da liberdade vito­
� .
amphssIma definição dada pela Comuna de aris da suspeição riosa e pacíficá'. Pelo fato de fazer a guerra, "o governo revolucio­
P
lhes aU��fitou de muito os poderes: eximindo-se da tutela das nário necessita de uma atividade extraordinária", deve "agir co­
asse�ble as gerais, escapando pouco a pouco à da Comuna, os mo o raid': não se pode "submeter ao mesmo regime a paz e a
I
comIt�s ch€garam a controlar inteiramente a vida secionária. guerra, a saúde e a doençá'. O governo tem, portanto, em mãos
DISpOn(io da força armada e nomeando seus oficiais, exercen­ a força coativa/ ou seja, o Terror. ''A força, não está ela feita ape­
do e�a� próp.rias a administração, elegendo seus magistrados e seus nas para proteger o crime?" O governo revolucionário não deve
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-, comIte�, as seções parisienses constituíam dessa forma, dentro "aos inimigos do povo senão a morte". Mas o Terror está ao servi­
da capital, �rande n mero de organismos autônomos. Desprovi­
I, ú
?-as de ��a instituição central, supriram-na em tempo normal por
ço único da República: a virtude/ "princípio fundamental do go­
verno democrático ou popular" , constitui a garantia de que o go­
I
" mtel'medI� \:la correspondência e, em período de crise, por meio verno revolucionário não volta ao despotismo. A virtude/ "isto é,
, da frater�Z'ação: assim, duplicaram a municipalidade parisien­ segundo Robespierre, o amor da pátria e de suas leis", "o devota­
se. Orgamz�ção temível que ameaçava ultrapassar os comitês de mento magnânimo que confunde todos os interesses privados no
governo e que tendia a destruir, em benefício da Sans-Culotterie/ interesse geral".
o. eq �íbrio social sobre o qual se alicerçava o Governo Revolu­ O Terror constitui um meio de defesa nacional e revolucioná­

CIOnano. rio. Manifesta, face ao complô aristocrático sempre renascente (não
se pode compreender a lei do Grande Terror de 22 de prairial,
ano II, se se faz abstração das tentativas de assassinato de ColIot
d'Herbois e de Robespierre), a reação defensiva e a vontade pu­
2. Govelrno Revolucionário e ditadura jacobina - O Governo nitiva do Terceiro, mas doravante disciplinadas pela lei e contro­
Revolucionário, não obstante, se reforçara lentamente no decor­
ladas pelo governo. Os estudos estatísticos do historiador norte­
rer do verão, de 1793, depois se constituíra definitivamente pelo
americano Donald Greer confirmam este caráter. O Terror casti-

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gou especialmEnte aí donde a contra-revoluç'ão apelou às armas derivada do rousseaunismo, se define por um temperamento e
e à traição abeta: se 15% das condenações capitais foram pro­ uma técnica políticos. Religião ou mística, tem-se dito: mais sim­
nunciadas em I�l!is, 71% se assinalam nas duas principais regiões plesmente, os Jacobinos presumiam que a liberdade e a igualda­
de guerra civil 19% no Sudeste, 52% no Oeste). Os motivos das de constituem os caracteres de uma sociedade racionalmente con­
condenações c�ncordam com esta divisão regional: em 72% dos cebida. Fanatismo? . . Da firmeza de sua atitude e de seu dogma­
casos, trata-se l1.e rebelião. Alegar-se-á sem dúvida a composição tismo dão explicação a grandeza do perigo e a necessária discipli­

�I,'
social e que 85vo dos condenados pertencem ao Terceiro Estado, na contra um inimigo irreconciliável. Os Jacobinos tiveram o sen­
8,5% apenas à 10breza e 6,5 ao clero. "Mas em semelhante luta, ::
timento, jamais claramente explicitado, de que a democracia de­ II
faz notar GeoI);es Lefebvre, os trânsfugas suscitam menos defe­ ve ser dirigida, de que não se pode confiar na espontaneidade
rência que os adversários originais". Como a guerra civil de que
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revolucionária das massas. O povo bem que a quer, disse Robes­
ele � apenas Uln aspecto, o Terror eliminou da nação os elemen­ pierre, mas nem sempre a vê. Os Jacobinos julgaram necessário
tos Julgados soqalmente inassimiláveis, porque aristocratas ou por esclarecê-lo, na realidade conduzi-lo. Daí uma técnica cujo meca­
haverem ligadc a sua sorte à aristocracia. Num outro sentido, ele nismo foi desde há muito desmontado, e não sem preconceito de
contribuiu para desenvolver o sentimento da solidariedade nacio­ hostilidade. Os Jacobinos puseram no devido ponto a prática dos
nal: silenciou ])or um momento os egoísmos de classe e impôs comitês restritos, fixando a doutrina, precisando a linha política, !�
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a todos os saclifícios necessários à salvação pública. concretizando-a por meio de palavras de ordem. A eleição é cor­ �
A maquinaria revolucionária aperfeiçoou-se, mas no serviço rigida pela depuração e por seu corolário, a infiltração: uma vez
exclusivo do g<'verno. O Clube dos Jacobinos, sociedade-matriz, limitada a concorrência pelo escrutínio depurador que permite aos
constitui sua })eça mestra, reduzindo pouco a pouco o papel filiados julgar da aptidão dos candidatos que devem exercer seu I
autônomo deSempenhado pelas organizações populares. Re­ iOi'
mandato, é deixada aos · eleitores a liberdade de escolher. Os ci­
crutando-se n�s camadas da média burguesia, em geral com­ dadãos são encerrados na �de das organizações filiadas que re­ �
pradores de b€ns nacionais, os Jacobinos são os homens da Re­ cebem o impulso da sociedade-matriz, "centro único da opinião
I'DI!
sistência: face 9. todos os perigos conjugados, entendem conser­ públicá', como o Comitê de Salvação Pública o é da ação gover­
var as conquistas políticas e sociais de Oitenta e nove; tendo isto namental. Os Jacobinos, entretanto, não levaram tais princípios
em vista, aliar;"m-se ao povo sans-culotte. Partidários do libera­ às suas últimas conseqüências: criaram clubes, não formaram um
lismo econômico, aceitaram a regulamentação e a taxação como partido; sobretudo permaneceram subordinados a uma assem­
uma medida de guerra e como uma concessão às reivindicações bléia parlamentar que fora eleita como que por acaso. Babeuf trans­
populares. Seu recrutamento, em conseqüência do movimento da pôs o passo e foi provavelmente dele, através de Blanqui, que Lê­
Revolução e de sucessivas depurações, democratizou-se um tan­ nin aprendeu a lição.
to, porém maIttendo sempre a preeminência da média burgue­ A economia dirigida instaurada no outono de 1793, sob a pres­
sia. Em 1793-94, a República cobriu-se de uma rede de filiais, densa são das massas, correspondia, no espírito dos governantes, me­
e eficiente, cuj<) número, para o conjunto do país, é difícil de ava­ nos a uma concepção teórica da organização social que às exigên­
liar. No Sudeste, ameaçado um momento pela contra-revolução, cias da defesa nacional: tratava-se de alimentar, de equipar, de
parecer ter sid<) particularmente elevado: 139 sociedades popula­ armar os homens do levante em massa, de reabastecer as popu­
res para 154 cGmunas no Vaucluse, 258 para 355 na Drôme, 117 lações das cidades, no momento em que o comércio externo esta­
para 260 nos Baixos-Alpes. O papel dessas organizações foi pre­ va detido em virtude do bloqueio e a França semelhava uma pra­
ponderante na derrota do inimigo interno e no estabelecimento ça sitiada. A requisição pesou sobre todos os recursos materiais
das instituições revolucionárias. do país, limitando a liberdade de empreendimento. A taxação ge­
O Jacobinismo, que caracterizou a teoria e a prática do Go­ neralizada pelo decreto de 29 de setembro de 1793, complemento
v erno Revoluc�onário, do mesmo modo que, por uma ideologia necessário da requisição, impôs margens de ganho (5% para o ata-

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ii
I
-
cadista, 10% para o varejista), frenou o espírito de especulação, de intervir nos problemas agrários: surdos às reivindicações dos
restringiu a liberdade do lucro. A nacionalização afetou em graus Sans-CuJottes camponeses, jamais consideraram a reforma da par­
diversos a produção, sobretudo a dos armamentos e das fabrica­ ceria a meias nem a divisão das grandes propriedades agrícolas
ções de guerra, e o comércio externo, porém essencialmente em em pequenas explorações. A mesma audácia e a mesma timidez
função das necessidades militares, havendo-se recusado o Comi­ caracterizaram a tentativa de uma legislação social nova. O direi­
tê de Salvação Pública a nacionalizar o abastecimento civil. to à assistência foi sancionado pelo decreto de 22 de floreal, ano
Não obstante, esboçavam-se os traços de uma democracia so­ II (11 de maio de 1794), que abriu em cada departamento um li­
cial. Montanheses e Jacobinos não projetam integrar as massas vro da beneficência nacional, mas, apenas em favor dos "habi­
populares na nação burguesa senão através do acesso à proprie­ tantes dos campos": pensões de aposentadorias para os velhos
dade definido no sentido de Oitenta e nove. Já não é questão de e os enfermos, abonos para as mães e as viúvas carregadas de
subordinar o direito de propriedade ao direito à existência, nem filhos, assistência médica gratuita a domicílio - e outras tantas
de o definir como "uma instituição social garantida pela lei", co­
medidas que prefiguram uma segurança social.
mo o sugerira Robespierre em seu projeto de uma Declaração de "Saiba ,a Europa que vós não mais quereis nem um opressor
Direitos, em 24 de abril de 1793. Mas, em 17 de julho de 1793, a em território francês", declarara Saint-Just, em 13 de ventoso. . . ,"A
Montanha deu enfim satisfação aos camponeses pela abolição de­ felicidade é uma idéia nova na Europa:'
finitiva, sem indenização, de todos os direitos senhoriais. O de­
creto de 22 de outubro de 1793 impede os proprietários de exigi­
rem dos arrendatários e dos meeiros qualquer prestação de subs­
tituição (mas em que medida foi ele aplicado?). Enquanto se ope­ III - A impossível República igualitária
rava essa transferência de rendimentos, acelerava-se a traÍlsferencia
de propriedade: os bens dos emigrados, seqüestrados desde 9 de
fevereiro de 1792, postos à venda em 27 de julho seguinte, seriam 1. Parada e declínio do m ovimento popular (primavera de
oferecidos em pequenos lotes de 2 a 4 arpents (de acordo com 1794)- No fim do inverno do ano II, os traços da evolução que
o decreto de 3 de junho de 1793), pagáveis em dez anos (prazo se vinham delineando desde o estabelecimento do Governo Re­
� .
dilatado para 20 anos pelo decreto de 13 de setembro) . Em 10 de volucionário enrijeceram. Enquanto a regulamentação, a taxação
junho, um decreto autorizou a partilha dos bens comunais, des­ e a direção da economia, exigidas pelos Sans-Culottes, combati­
de o momento em que fosse solicitada por um terço da assem­ das pelos proprietários, asseguravam penosamente, à exceção do
bléia dos habitantes. O ponto culminante dessa política, que ten­ pão, o abastecimento da população parisiense, as necessidades
dia para a criação de uma nação de pequenos proprietários, foi da defesa nacional, como uma concepção burguesa do poder po­
constituído pelos decretos de 8 e de 13 de ventoso, ano II (26 de lítico, arrastavam mais e mais o Governo Revolucionário a garantir­
fevereiro e 3 de março de 1794), que despojava os suspeitos de se da obediência das organizações populares e a reduzir a demo­
seus bens (Aquele que se revela inimigo de seu país não pode cracia sans-culotte à medida jacobina. Afirma-se dest'arte, no iní­
ser nele proprietárid: de acordo com Saint-Just), a fim de transferi­ cio de ventoso, um duplo mal-estar social e polítito que afeta a
los aos patriotas indigentes. Não se tratava aí do "programa de sans-culotterie em sua existência material e em seu comporta­
uma revolução nová', como o desejaria Albert Mathiez, mas de mento revolucionário. Nessa retaguarda da crise, exaspera-se a
uma medida política e social que se inscrevia na linha da revolu­ oposição entre indulgentes e patriotas declarados. A conjunção
ção burguesa: o confisco não foi jamais senão um meio de luta da oposição avançada e do descontentamento popular constituía
contra a aristocracia, Q acesso à propriedade um fator de consoli­ para o governo uma grave ameaça: ele tentou, por meio dos de­
dação social. Adeptos, no seu íntimo, da liberdade econômica, os cretos de ventoso, conciliar a opinião sans-culotte. A manobra fra­
robespierristas, bem como os Montanheses, tinham repugnância cassou: os decretos de ventoso não provocaram esse choque psi-

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j\;

cológico capaz de resolver a crise política, reunindo a sans­ opinião: que todos os patriotas se concentrem nos Jacobinos; Col­
cuJotterie ao Governo Revolucionário. lot d'Herbois sublinhou mais uma vez a incompatibilidade da de­
O momento pareceu favorável aos patriotas declarados, ten­ mocracia sans-culotte com as necessidades do Governo Revolu­
do à frente os Cordeliers, para uma ação que os desembaraçaria cionário: as sociedades secionárias pretendiam "fazer de cada se­
dos moderados E! os imporia vitoriosos aos Comitês de governo ção uma pequena Repúblicá'. De germinal a prairial, 39 socieda­
e à Convenção. Porém, negligenciando os ensinamentos de to­ d_es foram dissolvidas sob a pressão jacobina e governamental:
das as jornadas revolucionárias, os dirigentes cordeliers não se na sua maioria (29 em 39), sociedades de fundação recente, com­
preocuparam em organizar seu movimento nem em garantir sua postas essencialmente de patriotas de 93, chamados de nova ni­
ligação com as massas mais sensíveis à escassez dos gêneros que nhada, por oposição aos patriotas de 89. Forçando-os a dissolver­
ao perigo do moderantismo. Em 24 de ventoso, ano II (4 de mar­ se, os Comitês governamentais quebravam a estrutura do movi­
ço de 1794), os Cordeliers proclamaram a necessidade de uma san­ mento popular.
ta insurreição: em seu espírito, verossirpilmente, uma simples ma­ De germinal a messidor, a centralização reforçou-se: pela su­
nifestação de massa. Não foram seguidos. Mas sua tentativa deu pressão dos seis ministros do Conselho Executivo Provisório e sua
ao Governo Revolucionário a oportunidade de sair do imobilis­ substituição, em 1? de abril de 1794, por doze Comissões Executi­
mo: desembaraçou-se da dupla oposição, liquidando os Corde­ vas subordinadas ao Comitê de Salvação Pública; pela convoca­
liers (24 de marçO' de 1794), voltando-se a seguir contra os Indul­ ção, ainda, dos representantes em missão, em 29 de abril, prefe­
gentes guilhotinados em 5 de abril. rind-o o Comitê utilizar seus próprios agentes. O Terror foi acele­
O drama de germinal foi decisivo. A revolução precipitou-se. rado pela lei de 22 de prairial, ano II (10 de junho de 1794): "Trata­
Ao verem condenados Le Pere Duchesne e os Cordeliers, que con­ se menos de punir os inimigos da Revolução que de os aniqui­
tavam com sua audiência e que exprimiam suas aspirações, os lar", declarou Couthon. As autoridades administrativas depura­
Sans-Culottes duvidaram do Governo Revolucionário. Danton foi, das obedeceram, a Convenção votou sem discussão. Mas o que
em vão, também executado. A repressão que se seguiu aos gran­ o governo ganhava em força coativa perdia em apoio confiante;
des processos de germinal, ano II, malgrado seu caráter limitado, sua base social encolhia-se perigosamente. Os documentos da pri­
desenvolveu entre os militantes um complexo de temor que para­ mavera de 1794 atestam a atonia das organizações populares. Se
II lisou a vida política secionária. Rompeu-se o contato direto e fra­ as assembléias de seção abordam ainda os problemas de política
fi!
ternal entre as autoridades revolucionárias e os Sans-Culottes das geral, já não mais o fazem para discutir, porém para sancionarem
1 seções. por meio de noções de felicitações e de atestados de lealdade: foi
Tendo-o destruído, o Governo Revolucionário empreende um assim para a proclamação do culto do Ser Supremo pelo decreto
grande esforço de regularização das instituições e de unificação de 18 de floreal, ano II (7 de maio de 1794). Se as tentativas de
das forças políticas. Se consentira, diante da presença do perigo, assassinato de Robespierre e de Collot d'Herbois reanimam em
na aliança com a sans-culotterie, não aceitara nunca seus fins so­ prairial a flama terrorista, as assembléias recaem, logo após, na
ciáis nem seus rnétodos políticos. O Exército Revolucionário foi monotonia de seu ramerrão cotidiano. A vitória de Fleurus (26
licenciado (27 de março dé 1794)2, os comissários nos açambar­ de junho de 1794) ou o aniversário da tomada da Bastilha (26 de
camentos suprimidos (1? de abril), a Comuna de Paris depura­ messidor) não conseguem reanimar o entusiasmo. Sob uma uni­
da. Mais grave ainda para o movimento popular, a retomada da dade artificial, a indiferença ou a hostilidade grangrenam as seções
ofensiva governamental contra as sociedades secionárias. Em seu estreitamente dominadas pelos comitês revolucionários burocra­
discurso de 15 de maio de 1794, Couthon reclamou a unidade de tizados. Saint-Just escreve: ''A Revolução congelou:'
Os Comitês Governamentais, domesticando o movimento po­
(2) Ver RICHARD COBB, Les armées revolutionnaires, instrument de la Terreur pular, tinham se libertado da obsessão de uma jornada: mas libe­
dans les départements,avril 1793-floreal an II (1963). ravam, ao mesmo tempo, a Convenção e se privavam de um meio

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de pressão. Afirmando-se a vit6ria, que razão podia haver para


suportar por mais tempo sua cautela? Entre a Convenção impa­ exemplo, para um carpinteiro: de 8 libras a 3 libras e 15 soldos),
ciente da opr�ssão e a Sans-Culotterie irredutivelmente hostil, o que acentuou o div6rcio entre o Governo Revolucionário e os mi­
Governo Revc)lucionário ' estava como que suspenso no vácuo. litantes secionários, entre a Comuna e as massas populares.
A prova de força de 9 de termidor, ano II (27 de julho de 1794),
demonstrou a eficácia da centralização governamental. Apenas dez
2. A queda do Governo Revolucionário e o fim do movimen­ comitês revolucionários de seção se pronunciaram pela Comuna
to popular (termido!; ano lI-prairial, ano III) - Nos primeiros .dias insurrecional e persistiram assaz longamente em sua atitude pa­
de termidor, ilgravou-se, na Convenção, a desagregação do gru­ ra se comprometerem definitivamente; 12 hesitaram; 18 ligaram­
po montanhês. Os representantes convocados de missão, os an­ se na hora à Convenção. Nas assembléias gerais, somente uma
tigos partidários de Danton não perdoavam o Comitê de Salva­ minoria de militantes seguiu as palavras de ordem insurrecionais.
ção Pública. �;eus esforços teriam sido vãos se os Comitês gover­ A prática revolucionária, na qual a Comuna assentava suas espe­
namentais tivessem permanecido unidos. Mas a divisão, já anti­ ranças, fora derrotada pelo aparelho ditatorial que se voltava, fi­
ga, entre os dois Comitês piorou. Os membros do Comitê de Se­ nalmente, contra aqueles mesmos que tanto haviam contribuído
gurança Geral, salvo Lebras e David, eram hostis ao Comitê de para forjá-lo: o grupo robespierrista apoiado nos Jacobinos. As
Salvação Pública, e particularmente a Robespierre, por razões ao autoridades secionárias, em vez de formarem, como nas jorna­
mesmo tempa pessoais e de prinápio. A delimitação dos pode­ das precedentes, os quadros da insurreição, constituíram na maio­
res entre os dais Comitês não tinha sido nunca devidamente pre­ ria dos casos os 6rgãos de transmissão das vontades governamen­
cisada : a polícia geral era o objeto de um conflito de atribuições tais.
desde a criaç&o, em floreal, de um Birô de polícia dependente do Vencido Ropespierte, o Governo Revolucionário não lhe so­
Comitê de S é\lvação Pública. A hostilidade do Comitê de Segu­ breviveu. Foi desmantelado a partir do verão de 1794, particular­
rança Geral teria sido facilmente neutralizada, se o de Salvação mente pelo decreto de 7 de frutidor, ano II (24 de agosto de 1794),
Pública não Se tivesse, ele pr6prio, dividido: intervêm aqui não que pôs fim à concentração governamental. O abandono do Ter­
apenas a polícia social e a aplicação dos decretos de ventoso, co­ ror seguiu a par, desaparecendo a força coativa com os demais
mo o sustenta Albert Marthiez, mas igualmente os conflitos de atri­ impulsos revolucionários; abriram-se as prisões. Desde brumá­
!* buições, os nmcores políticos e as oposições de temperamento, rio do ano III, o Clube dos Jacobinos foi dissolvido (13 de novem­
como o sugere GeOl-ges Lefebvre. Não obstante a tentativa de re­ bro de 1794). Logo a seguir teve livre curso o Terror branco. O aban­
conciliação dt)s dois Comitês, em sessões plenárias de 4 e 5 de dono da economia dirigida estava inscrito na linha termidoriana:
termidor (22 e 23 de julho de 1794), Robespierre resolveu levar o decre�o de 4 de nevoso, ano II (24 de dezembro de 1794), supri­
1 o conflito perante a Convenção; era transformá-la em juiz da ma­ miu o maximum geral e a economia dirigida. O assinado desmo­
nutenção do Governo Revolucionário, no próprio momento em ronou, a alta dos preços foi vertiginosa: em abril de 1795, o índice
que a vit6ria se afirmava e em que parecia eliminado o perigo de geral dos preços atingiu 758 em relação a 1790, o dos gêneros ali­
uma pressão popular. mentares isolado 819. Neste sentido, para os Sans-Culottes, o
Este riSCQ Robespierre tomou-o para si a descoberto. Nada 9 de termidor representou uma journée de dupes. Descontentes
foi empreendido para preparar a ação da Comuna e das seções, com o Governo Revolucionário, não perceberam a ameaça que sua
no caso de a Convenção recusar seguir o grupo robespierrista. queda faria pesar sobre eles. Dez meses mais tarde, extenuados
Mais ainda, �o instante em que a atmosfera política se adensava, pela carestia, pela escassez e pelos rigores de um inverno inco­
a Comuna de Paris, robespierrista, cega ao mal-estar social e sur­ mum, os Sans-Culottes parisienses reclamaram a volta da econo­
da às reivindicações populares, publicava o maximum dos salá­ mia dirigida e se levantaram pela derradeira vez. A jornada de
rios (5 de ternúdor) : baixa autoritária, por vezes considerável (por 12 de germinal, ano III (I? de abril de 1794), constituiu o prelúdio

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das de I? e 2 de prairial (20 e 21 de maio de 1795), mais dramáti­ ção de uma democracia liberal e representativa à que se atinha
cas ainda. Em 4 de prairial, à tarde, sem chefes, quase sem qua­ a burguesia montanhesa. Mais que oposição de circunstância, ha­
dros, minado pelél. fome, o subúrbio de Saint-Antoine, coluna da via nesse domínio contradição fundamental.
RevoluÇão desde Oitenta e nove, capitulava sem combatee)· No plano económico e social, a contradição não era menos
As pessoas honestas respiraram, a repressão desencadeou-se. intransponível. Adeptos da economia liberal, os homens do Go­
Jornadas decisivas, que viram erguer-se contra o movimento po­ verno Revolucionário - Robespierre, em primeiro lugar - só acei­
�ular, esgotado e desorganizado, dos republicanos aos partidá­ taram a economia dirigida porque não podiam evitar a taxação
nos do Antigo Regime, o bloco da burguesia apoiado no exército. e a requisição a fim de sustentarem uma guerra nacional: os Sans­
Quebrada enfim sua energia, a Revolução estava acabada. Culottes, ao imporem o maximum geral, pensavam mais que tu­
As jornadas de prairial, ano III, como o 9 de termidor, qmsti­ do em sua subsistência. Por mais democrática que se tenha tor­
tuem, em última análise, episódios trágicos do conflito das clas­ nado a Revolução, nem por isso deixou de ser menos burguesa,
s:s no seio do Tetceiro Estado. Para situá-las no lugar adequado, e o Governo Revolucionário taxou tanto os salários quanto os ví­
nao Podemos esquecer que a Revolução Francesa foi, ess�ncial­ veres para manter o equilíbrio entre os chefes de empresa e os
mente, uma luta do conjunto do Terceiro contra a aristocracia eu­ assalariados. Esta política exigia a aliança da Montanha com a
�op�ia. Nessa luta, a burguesia comandava. No essencial, ódio Sans-Culotterie. Ora, ela chocava a burguesia, mesmo a jacobi­
a anstocracia e VOntade de vencer, os Sans-Culottes concordavam na, de vez que suprimia a liberdade económica e restringia o lu­
com a burguesia tevolucionária: sempre estiverem em seu posto, cro. Salvo para as fabricações de guerra pagas pelo Estado e para
se bem que, em 13 de vendemiário (5 de outubro de 1975) e em os cereais requisitados ao camponês, o maximum foi eludido :
18 de frutidor (4 de setembro de 1797), sufocando seu legítimo tornava-se inevitável o conflito com os assalariados. Estes últimos,
r�ncor, os mais c(mscientes ajudaram ainda a burguesia termido­ padecendo a inflação e as insuficiências do abastecimento, eram
nana a esmagar q contra-revolução. A oposição, porém, manifes­ naturalmente levados a tirar partido da relativa raridade da mão­
tara-se rapidamente entre o movimento popular e a ditadura ja­ de-obra para forçarem o aumento de salários: do outono à pri­
cobina do ano II. Se ela foi agravada com as conseqüências da mavera do ano II, a Comuna, por negligência, contranamente à
g.uerra, nem por isso deixou de traduzir as irredutíveis tendên­ lei, deixou de taxar os salários. Após germinal, o governo corri­
CIas d e duas cab�gorias sociais diferentes. gil,l a situação das empresas cujo lucro tendia a decrescer, presas
No plano político, a guerra exigia um governo autoritário e que se achavam entre a taxa e o aumento ilegal dos salários -
os Sans-Culottes tiveram consciência disso, pois contribuíram para política cujo resultado foi o maximum dos salários parisienses de
su� criação. Mas a guerra e suas necessidades logo entraram em 5 de termidor. Isto fazendo, porém, o Governo Revolucionário vol­
contradição com a democracia invocada igualmente pelos Mon­ tava atrás no referente às vantagens adquiridas pelos assalaria­
::i tanheses e pelos Sans-Culottes, mas com sentidos diferentes. Os dos e parecia afastar-se de sua posição mediadora. A economia
�. Sa ns-Culottes tinham reclamado um governo forte que esmagas­ dirigida do ano II, repousando sobre uma base de classe, estava
• se a aristocracia: não se tinham advertido de que, em sua vonta­ apoiada em falso: depois de 9 de tennidor, o edifício desmoronou.
de de vencer, es�e governo os forçaria à obediência. Sobretudo Os antagonismos entre a ditadura jacobina e o movimento po­
a democracia, tal qual a praticavam, tendia espontaneamente pa­ pular não eram os únicos em causa: as contradições· próprias à
ra o governo dire.to. Controle dos eleitos, direito para o povo de Sans-Culotterie transportavam em germe a ruína do sistema do
revogar seus mandatos, voto em voz alta ou por aclamação: este ano II. Os Sans-Culottes não constituíam uma classe, nem seu
comportamento l'olítico opunha-se irremediavelmente à concep- movimento um partido de classe. Artesãos e lojistas, companhei­
ros e jornaleiros formaram, com uma minoria burguesa, uma coa­
f . (3) Ver KARE D. 'fONNESSON, La défaite des Sans-Culottes. Mouvement popu­
lizão que exibiu contra a aristocracia uma força irresistível. Mas,
lalre et réactÍon bourgeoÍse en l'an III (Oslo-Paris, 1959). no interior dessa coalizão, afirmou-se a oposição entre os que, sen-

77
76


!!11·. .
I' I
I, ! �

vidos pela ambição, consideravam a obtenção de um posto como


do artesãos e lojistas, viviam do lucro auferido da propriedade
uma legítima recompensa de sua atividade. A eficiência do Go­
privada dos meios de produção, e os que, companheiros e jorna­
verno Revolucionário era feita, de resto, a este preço. No outono
leiros, só dispunham do salário. As necessidades da Revolução
de 1793, as administrações foram depuradas e povoadas de bons
tinham soldado por um momento a unidade da Sans-Culotterie
e rejeitado para um segundo plano os conflitos de interesses que
Sans-Culottes. Apareceu então um novo conformismo ilustrado
pelo exemplo dos comissários revolucionários das seções parisien­
atiçàvam seus diversos elementos, mas não podiam suprimi-los.
ses, na origem o elemento mais popular e mais combativo do no­
De , lecrutamento heterogêneo, os Sans-Culottes não tinham ne­
vo pessoal político. Sua condição e o sucesso mesmo de sua tare­
nhuma consciência de classe. Se afirmavam em geral sua hostili­
fa exigiam que fossem assalariados: durante o ano II, esses mili­
dade ao capitalismmo, não o faziam pelos mesmos motivos. O
tantes secionários se transformaram em funcionários, tanto mais
artesão recusava ver-se conduzido ao salariado; o companheiro
execrava o açambarcador que lhe encarecia a vida. Assalariados, dóceis às ordens do governo porque podiam recear perder as van­
tagens adquiridas. O poder revolucionário achou-se reforçado.
os companheiros, entretanto, não possuíam nenhuma consciên­
Mas resultou daí um enfraquecimento do movimento popular e
cia social própria: sua mentalidade estava de preferência modela­
uma alteração de suas relações com o governo. A atividade polí­
da pelo artesanato, não tendo a concentração capitalista ainda des­
tica das organizações secionárias se encontrou freada, a demo­ r
pertado o sentido de solidariedade de classe. Tinham apenas uma
certa noção de sua unidade assinalada por suas ocupações ma­
cracia debilitada. O processo de burocratização acarretou gradual­ liII
nuais, por suas vestes e por seu gênero de vida. Também a falta mente a paralisia do espírito crítico e da combatividade política
das massas. Afirmou-se, finalmente, um amolecimento do con­
de instrução, que engendrava nas fileiras populares um sentimento
de inferioridade e, por vezes, de impotência: quando os homens
trole sobre o aparelho governamental, cujas tendências autoritá­
rias se reforçaram. Os robespierristas assistiram impotentes a es­
If
de talento da pequena burguesia vieram a faltar à Sans-Culotterie,
sa evolução.
esta se perdeu.
Termidor e seu epílogo de prairial, ano II; destruindo a espe­
A marcha da história, em sua dialética mesmo, explica ainda
o malogro da tentativa do ano II. Cinco anos de lutas revolucio­ rança popular de uma impossível democracia igualitária, permi­ :�t

tiram renovar com Oitenta e nove. Mas, nessa data, o Terror, atra­
nárias constantes consumiram os melhores e arrebataram, com
vés de seus terríveis golpes, completara a destruição da antiga so­
o tempo, ao movimento popular o seu vigor e a sua vivacidade,
�j enquanto a grande esperança sempre adiada desmobilizava pou­
ciedade e limpara o terreno para a instauração de novas relações

",
sociais: o reino burguês dos notáveis podia começar.
co a pouco as massas. "O povo enfada-se", notara Robespierre:
o povo aspirava usufruir o fruto de seus esforços. "Estamos às vés­
ti;
Il:

peras de deplorar todos os sacrifícios que fizemos pela Revolu­
çãd', declaravam na Convenção, em '27 de ventoso, ano III (17 de
março de 1795), os Sans-Culottes dos subúrbios de Saint-Antoine
1If�r i.
e de Saint-Marcel. De mês em mês, os recrutamentos de homens
tinham enfraquecido as seções parisienses, privando-as dos mais
jovens, também dos mais conscientes e dos mais entusiastas pa­
ra os quais a defesa da pátria nova constituía o primeiro dever
revolucionário. Concebem-se as irremediáveis conseqüências deste
envelhecimento sobre o ardor revolucionário das massas. I: !
Ao mesmo tempo, a Sans-Culotterie vira desfazerem-se seus
quadros, pelo próprio efeito do triunfo popular na primavera e

t no decurso do verão de 1793. Inúmeros militantes, sem serem mo-


I�r:
79
78

,
,
CAPÍTULO III

NOVENTTA E CINCO
LIBERALISMO OU DITADURA?
(1795-1799)

Em 1795, dos dois movimentos populares que, desde 1789,


revezando-se, tinham levado para a frente a revolução burguesa,
um está destruído, o outro tomara-se ponderado. As massas ur­
banas, malgrado os esforços dos conjurados do ano IV, estão do­
ravante em retirada: só se levantarão em 1830. As massas campo­
nesas estão irremediavelmente divididas: abolindo em definitivo
os direitos feudais pela lei de 17 de julho de 1793, a Convenção
montanhesa acomodou por muito tempo o campesinato proprie­
tário no partido da ordem. Extinto o ardor revolucionário, atingi­
da a aristocracia em suas forças vivas, abria-se a era da estabiliza­
ção burguesa.
Não obstante, a Convenção termidoriana legava ao regime que
instaurava e que passou à história sob o nome de Diretório, a guer­
ra, uma situação econômica catastrófica e um sistema político sa­
biame'nte equilibrado cujo espírito e cuja prática são aqui mais im­
portantes do que a letra. A burguesia, tendo conservado da ex­
periência do ano II uma recordação horrenda (sua liberdade res­
tringida, o lucro limitado, a gente humilde impondo a própria lei),
com sua consciência de classe endurecida e reforçada, organizou
zelosamente seu poder; restaurada a primazia dos notáveis, a na-

81
ção se definia novamente no quadro restrito de um sistema cen­ os tornou adequados a discutir com sagacidade e justeza as van­
sitário: Mas uma nova oposição revolucionária lançada outra vez tagens e os inconvenientes das leis que fixam a sorte de sua pá­
pelo desmoronamento do papel-moeda, a tenaz recusa da contra­ tria. Contrariamente, o homem sem propriedade necessita de um
revolução no interior, bem como no exterior, tornaram impossí­ constante esforço de virtude para se interessar na ordem qJle na­
vel o jogo normal da experiência: instaurou-se então uma prática da lhe conserva, e para se opor aos movimentos que lhe dão al­
política e adrrUnistrativa de exceção da qual o Consulado foi be­ gumas esperanças".
neficiário e que ele amplamente institucionalizou. A liberdade econômica está necessariamente ligada aos direi­
De Termidor ao Império, afirma-se uma continuidade que Bru­ tos da propriedade. "Se derdes a homens sem propriedade os di­
mário rompeu tão-somente na aparência. reitos políticos sem reserva, e se eles jamais se acharem nos ban­
cos dos legisladores, excitarão ou deixarão excitar as agitações sem
temer-lhes o efeito; estabelecerão ou deixarão estabelecerem-se as
I - A herança termidoriana: propriedade e
taxas funestas ao comércio e à agricultura, pois que não terão sen­
liberdade
tido, nem temido, nem previsto os seus deploráveis resultados,
e eles nos precipitarão enfim nessas convulsões violentas de que
Os princípios da preponderância social e política da burgue­ mal saímos . . . Um país governado pelos proprietários está na or­
sia foram expostos com clareza pelo convencional Boissy d�nglas, dem social; aquele que é governado pelos não-proprietários está
em seu discurso preliminar ao projeto de constituição, em 5
de no estado de naturezá'. Com a burguesia pretendendo reservar­
messidor, ano III (23
de junho de 1795).
Trata-se de "garantir en­ se, doravante, zelosamente, o exercício do direito de proprieda­
fim a propriedade do rico, a existência do pobre, o usufruto do de, isto era fechar toda esperança às classes populares. O acesso
homem industrioso e a segurança de todos". à propriedade fundiária, facilitado um momento pela legislação
A propriedade constitui o fundamento da ordem social. A montanhesa, foi recusado aos não-possuidores, particularmente
Convenção deve proteger-se "com coragem dos princípios ilusó­ ao pequeno campesinato, em nome das exigências da economia
rios de uma democracia absoluta e de uma igualdade sem limites liberal. Desde 22 de frutidor, ano II (8 de setembro de 1794), Lo­
que são incontestavelmente os escolhos mais temíveis para a ver­ zeau, deputado da Charente-Inférieure, sublinhara tais necessi­
dadeira liberdade. A igualdade civil de fato, eis tudo o que o ho­ dades, ao apresentar à Convenção seu relatório "sobre a impossi­
mem sensato pode exigir. A igualdade absoluta é uma quimera; bilidade material de transformar todos os franceses em proprie­
para que ela pudesse existir, seria preciso que existisse uma igual­ tários fundiários e sobre as lamentáveis conseqüências que esta
dade completa no espírito, na virtude, na força física, na educa­ transformação de resto acarretariá': mesmo admitindo a possibi­
ção, na fortuna de todos os homens". Vergniaud já mantivera o lidade de transformar todos os camponeses em agricultores in­
mesmo raciocínio, em 13 de março de 1793: '� igualdade para o dependentes, a República não teria motivo para felicitar-se, "pois
homem social não é senão a dos direitos. Não é mais a das fortu­ que nesta hipótese, sendo cada qual obrigado a cultivar seu cam­
nas que a dos tamanhos, a das forças, do espírito, da atividade, po ou sua vinha para viver, o comércio, as artes e a indústria se­
da indústria e do trabalhd'. Singular continuidade da Gironda aos riam em breve aniquilados".
termidorianos! Boissy d�nglas prossegue: "Devemos ser gover­ A existência de um proletariado dependente é a condição ne­
nados pelos melhores: os melhores são os mais instruídos, os mais cessária da economia capitalista e da sociedade burguesa. Qual­
interessados na manutenção das leis; ora, com quase poucas ex­ quer atentado ao privilégio da riqueza ameaça pôr em discussão
ceções, não achareis semelhantes homens senão entre os que, pos­ a ordem social: o espectro da lei agrária conservou toda a sua efi­

I
suindo uma Fropriedade, estão apegados ao país que a contém, ciência, o medo social explica amplamente a evolução do regime
às leis que a p:otegem, à tranqüilidade que a conserva, e que de­ para a ditadura militar. Pronunciando-se contra o estabelecimen­
vem a essa propriedade e à abastança que ela dá a educação que to do imposto progressivo, o obscuro Dauchy declarava aos Qui-

82 83

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nhentos, em 10 de frimário, ano IV (1? de dezembro de 1795): "Os em seguida aos Termidorianos, pretendiam estabilizar a Revolu­
Estados não prosperam senão ligando o mais possível os cidadãos ção, aparecia singularmente estreita.
à propriedade. . . () imposto progressivo é uma lei de exceção contra Do lado dãS massas populares, a recordação do ano II e o me­
os cidadãos abastados. . . Seu efeito seria inevitavelmente o reta­ do social permaneceram como poderoso motivo de reação, para
lhamento das propriedades ao extremo; este sistema só foi muito finalmente legitimar o 18 de brumário. Os mais conscientes, en­
seguido quando ela alienação dos bens nacionais. . . O imposto pro­ tre o povo, não aceitaram sem resistência o fato de serem lança­
gressivo é, para o dizer numa palavra, o verdadeiro germe de uma dos fora da nação e dessa república pela qual tinham combatido:
lei agrária, que é preciso sufocar no nascedouro. . . Somente ten­ a Conjuração dos Iguais demonstrou-o. Mas, enquanto o movi­
do pela [propriedade] um sentimento religioso é que será possí­ mento revolucionário se orientava, não sem apalpadelas, para ca­
vel atar fortemente todos os franceses à liberdade e à Repúblicá'. minhos novos, o medo burguês constituía, em mãos do governo,
A Declaração dos Direitos que precede a Constituição do ano uma poderosa alavanca contra os exdusivos, os terroristas, os anar­
III assinala um nítido recuo em relação à de 1789. Na discussão, quistas, os salteadores, os bebedores de sangue. Os notáveis, as
em 26 de termidor, Mailhe sublinhara o perigo que havia em pôr pessoas h onestas, temiam sobretudo o retomo ao sistema do ano
"nesta declaraçãe:> princípios contrários aos contidos na Consti­ II: o rico, detido por suspeito, a inversão dos valores sociais tradi­
tuiçãd': "Fizemos uma prova assaz cruel do abuso das palavras cionais, a democracia política abrindo o caminho ao nivelamento
para não empregar inúteis". O artigo 1? da Declaração de 1789 ("Os social.
homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos") foi Do lado das classes possuidoras, a aristocracia permanecia ex­
abandonado. "Se dizeis que todos os homens permanecem iguais cluída, mas do mesmo modo uma parte da burguesia. A lei de
em direitos, declarara Lanjuinais em 26 de termidor, provocais à 3 de brumário, ano IV (25 de outubro de 1795), interditava as fun­
revolta contra a Constituição aqueles a quem haveis recusado ou ções públicas aos parentes de emigrados; revogada pela maioria
interrompido os direitos de cidadão para a segurança de todos". realista do ano V, foi restabelecida em 18 de frutidor. Sieyes fez
Os Termidorianos, mais prudentes que os Constituintes, preci­ propor, pouco depois, o banimento dos nobres que tinham exer­
sam perfeitamente que só pode tratar-se de igualdade civil: "A cido funções ou desfrutado de dignidades sob o Antigo Regime
igualdade consiste no fato de a lei ser igual para todos" (art. 3?). e a redução dos outros à qualidade de estrangeiros: a lei de 9 de
Dos direitos socia.is reconhecidos pela Declaração de 1793 não mais frimário, ano VI (29 de novembro de 1797), se atém a tal medida;
se cogitou, men()s ainda do direito à insurreição. Contrariamen­ o fato de não ter sido nunca aplicada não desfaz a clareza da in­
te, o direito de propriedade, do qual a Declaração de 1789 não tenção. A exclusão ia mais longe ainda: a burguesia diretorial, de
dera nenhuma definição, {> í'lC!lli precisado como na Declaração condição mediana, desconfiava outro tanto da burguesia do An­
de 1793: "A propriedade é o direito de usufruir e de dispor de tigo Regime, de um nível social mais elevado e mais próximo do
seus bens, de SUas rendas, do fruto de seu trabalho e de sua in­ da aristocracia. Os monarquistas constitucionais eram rejeitados
dústriá' (art. 5?). Era a consagração da liberdade econômica em do mesmo modo que os absolutistas. Os Termidorianos, muda­
toda a sua amplitude. A Declaração dos deveres que os Termido­ dos em Diretoriais, pretendiam que a República fosse burguesa
rianos houveram por bem juntar à dos direitos, precisava ainda e conservadora, mas recusaram o apoio de uma parte da burgue­
em seu art. 8?: " É na manutenção das propriedades que repou­ sia legitimista, receando que ela os arrastasse ao caminho da res­

I
sam a cultura das terras, todas as produções, todo meio de traba­ tauração.
lho e toda a ordE!m social". O direito de sufrágio restringiu-se; as
condições de censo, entretanto, se ampliaram mais que em 1791:
todo francês com. 21 anos de idade, domiciliado desde um ano
e pagando uma contribuição qualquer, tomou-se cidadão ativo.
"1
Nestas condições, a base social sobre a qual os Diretoriais,

1
84
85
II - A catástrofe monetária e a Conspiração pela o assinado atravessara em cinco anos. A partir das primeiras emis­
Igualdade (1795-1797) sões, o mandato perdeu até 65 e 70%;
a depreciação atingiu 90%
em 1? de floreal (20 de abril de 1796). Os gêneros tiveram, desde
então, três preços, o que não era para diminuir as dificuldades
A estabilização da Revolução sobre a base estrita da proprie­ do comércio e do abastecimento. A dilapidação dos bens nacio­
dade, da burguesia censitária, dos notáveis republicanos apenas, nais, diminuindo a garantia, contribuiu ainda para a ruína do man­
revelou-se finalmente impossível. Dependia da solução que seria dato. A lei de 6 de floreal, ano IV (26 de abril de 1796), decidiu
dada aos problemas fundamentais herdados da época termido­ a retomada das vendas e lhes fixou o modo, sem leilões, de for­
riana: a guerra, internamente o problema econômico e financei­ ma que o mandato fosse aceito por seu valor nominal: houve uma
ro. Assinada a paz pelos Termidorianos, em 1795, em Bâle com corrida, um verdadeiro assalto, em proveito especialmente dos for­
a Prússia, em Haia com a Holanda, a guerra, não obstante, conti­ necedores do Estado, pagos em mandatos. Em prairial, o pão, em
nuou com a Áustria até o tratado de Campofórmio (18 de outu­ assinados, valia 150 francos a libra. Mesmo os mendigos recusa­
bro de 1797). A moeda estava arruinada, a economia dilapidada. vam o papel que se lhes estendia.
Uma crise fiscal duplicava a crise monetária, os impostos já não Desde aí, o ciclo acelerou-se. Em 29 de messidor (17 de julho
eram pagos, o Tesouro se esvaziara. Reubell convidava em vão de 1796), o curso forçado foi abolido; em 13 de termidor (31 de
"mesmo os indiferentes . . . a se ligarem à República e reunirem-se julho), decidiu-se que o pagamento dos bens nacionais fosse fei­
a esta grande massa de republicanos perante a qual toda facção to com os mandatos em curso: medida assaz tardia para impedir
vai desaparecer" . o esbanjamento dos domínios nacionalizados. No fim do ano IV
A inflação alcançava seu limite extremo, pouco depois da ins­ (meados de setembro de 1796), estava terminada a ficção do papel­
talação do Diretório(4 de brumário, ano IV) (26 de outubro de moeda. A moeda metálica reaparecia; mas o Estado, não receben­
1795). O assinado de 100 libras não valia mais que 15 soldos. A do senão papel, não se beneficiava. A lei de16 de pluvioso, ano
estampa nos assinados continuou a multiplicar uma moeda cujo V (4 de fevereiro de 1797), depreciou o mandato, fixando-o em
valor logo se tomou inferior ao preço do papel: em menos de qua­ 1% de seu valor nominal: consagração oficial de uma bancarrota
tro meses, seu volume duplicou, atingindo 39 bilhões em feverei­ já efetivada. Terminava assim a história do papel-moeda revolu­
ro de 1796. Um empréstimo forçado à taxa progressiva, verdadei­ cionário. A guerra já alimentava o regime: a exploração dos paí­
ro imposto sobre o capital, pagável em moeda metálica, em ce­ 5 de germinal,
ses ocupados explicava a volta do numerário. Em
reais ou em assinados a 1%
de seu valor nominal, foi em vão ins­ ano V (25 de março de 1797), 10 mi­
o Diretório tinha recebido
tituído: seu curso era três ou quatro vezes inferior. Em 30
de plu­ lhões em numerário do exército de Sambre-et-Meuse, mais de 51
vioso, ano IV (19 de fevereiro de 1796), foi necessário suspender do exército da Itália.
as emissões e abandonar o assinado. Como de ordinário, as conseqüências sociais foram catastró­
O retomo à moeda metálica pareceu impossível: dela não cir­ ficas para o conjunto das classes populares. O inverno do ano IV

i culavam senão cerca de 300 milhões em lugar de 2 bilhões e meio


no fim do Antigo Regime. A idéia de um banco nacional de emis­
foi terrível para os assalariados esmagados pela alta vertiginosa
dos preços. Os mercados permaneciam vazios: a colheita de 1795
28 de ventoso, ano IV (18 de março de
são foi afastada. A lei de não fora boa, os camponeses não aceitavam senão o numerário,
'{
1796), criou o mandato territorial, dos quais 2.400 milhões foram as requisições não eram mais exigidas. O Diretório teve de fazer
�. em breve emitidos. Garantidos nos bens nacionais ainda não ven­ compras no exterior e de regulamentar severamente o consumo.


didos, os mandatos territoriais substituíam os assinados, troca­ A ração de uma libra de pão diária caiu, em Paris, para 75 gra­
dos à razão de 30
por um, no momento mesmo em que eram acei­ mas; foi completada por arroz, que as donas-de-casa não podiam
tos para o pagamento do empréstimo forçado à razão de 100 por cozer por falta de lenha. Durante todo o inverno, os relatórios po­
um. O mandato territorial percorreu em seis meses a carreira que liciais relatam, com uma monotonia fatigante, a miséria e o des-
{

t
86 87

contentamento populares, sublinhados ainda pelo luxo e pelo im­ pica, estava erigido em sistema ideológico; pela Conjuração dos
pudor dos agiotas. A oposição ao Diretório achou-se reforçada: Iguais, entrava na história política.
no Clube do Panteão, os Jacobinos, reagrupados, discutiam o res­ O sistema babovista foi qualificado por Georges Lefebvre de
tabelecimento do maximum. Todavia, sob o impulso de Babeuf, "comunismo da repartiçãó'. Sem dúvida, o problema da reparti­
a oposição revolucionária tomava uma forma nova. ção das subsistências, que pesava tão fortemente sobre as massas
A pressão dos acontecimentos, a reflexão sobre seu tempo, populares da época, situa-se no centro do pensamento social de
a ação revolucionária na qual participara ardentemente, enrique­ Babeuf. Mas, como comissário no registro de propriedades e feu­
cera e vivificara em Babeuf o conhecimento livresco do comunis­ dista, secretário-escrivão de comunidade durante certo tempo, Ba­
mo milenário: o primeiro que, na Revolução Francesa, sobrepu­ beuf tinha uma experiência direta do campesinato picardo, de seus
jou a contradição em que se haviam chocado os homens políti­ problemas e de suas lutas: o espetáculo de comunidades aldeãs
cos devotados à causa populCU; entre a afirmação do direito à exis­ vivazes e combativas, com seus direitos coletivos e seus hábitos
tência e a manutenção da propriedade privada e da liberdade eco­ comunitários, levou-o certamente, desde antes da Revolução, pa­
nômica. Está fora de dúvida que a tentativa da Conjuração dos ra a igualdade de fato e para o comunismo. Se em seu Cadastre
Iguais não se inscreve exatamente na linha da revolução burgue­ perpétuel de 1789 ele pendia para a lei agrária, isto é, para o so­
sa. Mas, considerando a evolução histórica de um ponto mais ele­ cialismo dos partilhadores, segundo a expressão de 1848, num me­
vado, ela marca a mutação necessária entre <> movimento popu­ morial de 1785 sobre as grandes fazendas e numa carta de junho
lar de tipo antigo, tal como culmina no ano II, e o movimento re­ de 1786, preconizava a organização de "fazendas coletivas'� ver­
dadeiras "comunidades fraternais": "fragmentar o solo em par­
volucionário nascido das contradições da sociedade nova.
Como os Sans-Culottes, como os Jacobinos, Babeuf procla­ celas iguais entre todos os indivíduos é aniquilar a maior soma
ma que o fim da sociedade é a felicidade comum e que a Revolu­ dos recursos que ele daria ao trabalho combinadó'. Desde antes
ção deve assegurar a igualdade dos usufrutos. Mas, como a pro­ da Revolução, Babeuf colocava, assim, não apenas o problema da
priedade privada introduziria necessariamente a desigualdade e igualdade efetiva dos direitos e, portanto, da repartição, mas tam­
a lei agrária, isto é, como a partilha igual das propriedades não bém o da produção, pressentindo a necessidade de uma organi­
poderia "durar mais que um diá' ("a partir do dia subseqüente zação coletiva do trabalho da terra. Ter-lhe-á escapado o grande
ao de seu estabelecimento, a desigualdade se mostraria novamen­ feito da concentração capitalista e do impulso industrial? Sua pre­
té'), a única maneira de chegar à igualdade de fato é "estabelecer dileção pelas formas econômicas antigas, particularmente artesa­
a administração comum; suprimir a propriedade particular; ligar nais, a ausência em sua obra de qualquer referência a uma socie­
cada homem ao talento, à indústria que ele conhece; obrigá-lo a dade comunista fundada na abundância dos produtos de consu­
depositar o fruto in natura no armazém comum; e estabelecer uma mo explicam o fato de não se poder falar a seu respeito de pessi­
simples administração dos víveres, que, mantendo registro de to­ mismo econômico. Os traços específicos da economia da época,
dos os indivíduos e de todas as coisas, fará a repartição destas o frágil grau de concentração capitalista e a ausência de uma ver­
dadeira produção de massa justificam, o próprio temperamento
últimas na mais escrupulosa igualdadé'. Este programa exposto
no "Manifesto dos Plebeus" e publicado por Le Tribun du Peuple de Babeuf e sua experiência social explicam que ele foi levado a
de 9 de frimário, ano IV (30 de novembro de 1795), constituía, em encarar a penúria e a estagnação social de preferência ao progresso
relação às ideologias jacobina e sans-culotte, caracterizadas uma e à abundância. Fixa-se dest'arte o lugar do babovismo entre a uto­
e outra pelo apego à pequena propriedade fundada no trabalho pia comunista moralizadora do século XVIII e o socialismo indus­
pessoal, uma renovação, ou mais exatamente, uma brusca muta­ trial de um Saint-Simon.
ção: a comunidade dos bens e dos trabalhos foi a primeira forma A Conjuração dos Iguais constituiu, no decorrer do inverno
da ideologia revolucionária da sociedade nova nascida da própria de 1795-96, a primeira tentativa visando fazer entrar o comunis­
Revolução. Pelo babovismo, o comunismo até então fantasia utó- mo na realidade. Sua organização política marca uma ruptura com

l
89
88
iF""

o,s ntétodos até ali empregados pelo movimento popular. Apare­ III A prática política: do liberalismo
-

CIa, no centrO, o grupo dirigente apoiando-se num pequeno nú­ diretorial ao autoritarismo consular
�ero de militantes experientes; em seguida, a franja dos simpa­
tizantes patriotas e democratas no sentido do ano II, mantidos
f?ra do segredo e do qual, ao que parecia, não tinham partilhado
A depressão econômica persistiu após a catástrofe monetá­
ria, pesou fortemente sobre toda a história do Diretório. Contra
l'lgQrosamente o novel ideal revolucionário; por fim, as próprias
�assas populares, que seriam acionadas em favor da crise. Cons­
toda expectativa, a supressão do papel-moeda não revigorou a ati­
vidade econômica. Os mercados permaneceram desertos: se os
PlrqÇão coordenadora por excelência: mas o problema das neces­
sárias ligações com as massas parece ter sido resolvido de manei­
camponeses procuravam vender, se a oferta era agora abundan­

ra illcerta. Assim, para além da experiência da insurreição popu­


te, os compradores se esquivavam, o dinheiro se escondia. A si­
lar, fixava-se a noção de ditadura popular pressentida por Marat
tuação tinha se invertido desde o término da inflação, o consu­
sell't que ele a pudesse definir exatamente: após a tomada do po­
midor urbano era favorecido em detrimento do camponês que não
der obtinha mais seu lucro. Segundo os administradores do Sena, em
pela insurreição, seria pueril entregá-lo a uma assembléia eleita
s setembro de 1798, os habitantes de Paris viam realizar-se o voto
:&ll.ndo os princípios da democracia política, mesmo ao sufrá­
inutilmente por eles formulado sob o Antigo Regime: "o pão a
�o universal; é indispensável a ditadura de uma minoria revolu­
C IOnária, durante o tempo necessário à refundição da sociedade 8 soldos, o vinho a 8 soldos, a carne a 8 soldos". Em compensa­
e ao ecimento das novas instituições. Através de Buonar­
ção, os camponeses lamentavam-se, com os cereais a um preço
estabel vil; a penúria camponesa contribuía, como habitualmente, ao ma­
toti, esta idéia passou a Blanqui, e é verossimilmente ao blanquis­
rasmo dos negócios. A abundância das colheitas, a partir de 1796,
Illo que devemos ligar a doutrina e a prática leninistas da ditadu­
ra Q proletariado.
a raridade das espécies metálicas sucedendo à pletora do papel­
o moeda explicam sem dúvida esta depressão. A concentração ur­
!\. importância da Conjuração dos Iguais e do babovismo só
bana, modesta ainda, não era suficiente para entravar, pelo volu­
�oQe ser medida na escala do nosso século: na escala do Diretó­
me da procura, a depreciação dos gêneros agrícolas. Em tal con­
l'J.o l'\ão passOu de um simples episódio. Todavia, pela primeira
;�
' texto, os fatores políticos não desempenharam senão um papel
Vez, a idéia comunista tinha se tomado uma força política. Cor­
bastante diminuto. Mas as conseqüências políticas dessa depres­

J8:).8,
reSPondendo a um desejo de seu amigo, Buonarroti publicou em
são econômica de três ou quatro anos (ano V-ano VII e certamen­
em seu exílio em Bruxelas, a história da Conspiration pour
te ano VIII) foram funestas ao Diretório. A massa da população
??
g�té dite de Babeuf: este livro exerceu uma profunda influên­
cIa; graças a ele, o babovismo inscreveu-se como um elo no de­
dela guardava uma lembrança amarga. Os camponeses e os capi­
s talistas esperaram, de uma mudança política, a retomada dos ne­
en.Volvimento do pensamento comunista e da prática revolucio­
nária. (l) gócios, e os operários fabris o fim do desemprego. Quanto aos
funcionários, que apoio podiam dar a um regime que os pagava
irregularmente? O governo de Bonaparte devia beneficiar da mu­
dança da conjuntura.
Nas condições de instabilidade geral que, de 1795 a 1799, fo­
ram as do Diretório, o jogo da Constituição do ano III só poderia
ser perigoso.
A divisão dos poderes fora sabiamente calculada, o executivo
(1� (1) O ponto dos estudos babovistas é feito por: Babeuf(1760-1797). Buonarroti
d '61_1837). PourJe deUxieme centenaire de leur naissance, pub icação da Societé privado da iniciativa das leis e sem poder sobre a Tesouraria, a
l
ties t:tudes Robespierristes (Nancy, 1%1); O. MAzAuruc, Babeuf et la Conspíra� administração local novamente descentralizada, a instabilidade

l J>our J'Egalité (Paris, 1%2); Babeuf et les problemes du babouVÍsme (Paris,
); V. M. DAUNE, Gracchus Babeuf (1785-1794) (Moscou, 1%3, em russo). institucionalizada pela renovação anual da metade das munici-

90 91
.,.. -

palidades, da terça parte dos Conselhos, da quinta das adminis­ sua representação mutilada; ao todo, 177 deputados foram elimi­
trações departamentais e do Diretório executivo: isso, no momento nados sem que fossem �ubstituídos; dos poupados pelo executi­
em que a Revolução não estava estabilizada (subsistiam as leis de vo, alguns se demitiram, outros se calaram.
exceção contra os refratários e os emigrados), em que havia ameaça Pelas eleições do ano VI (1798), esta prática foi aperfeiçoada
de bancarrota e em que a guerra prosseguia. Entretanto, o pró­ e revestida de certos traços que persistiram muito além, no sécu­
prio texto da Constituição, do ano m, de uma parte, não deixava lo XIX. A entrada era importante: as exclusões tinham por fim
o Diretório tão desarmado quanto se disse, e sobretudo instaurou­ levado a 437 o número de cadeiras a prover, entre as quais as da
se de fato uma prática política por meio da qual se precisaram segunda metade dos perpétuos. Por precaução, os Conselhos, des­
pouco a pouco os traços essenciais do sistema consular: dos Ter­ de 12 de pluvioso, ano VI (31 de janeiro de 1798), se atribuíram
midorianos aos Diretoriais e aos Brumarianos, afirmou-se o regi­ a próxima verificação dos poderes: os 236 convencionais que saís­
me dos notáveis, de maneira que Brumário não constituía uma sem procederiam, com os 297 deputados restantes, à depuração
ruptura, como o desejaria a lenda consular, mas uma etapa deci­ dos novos eleitos. Cuidadosamente preparadas pelo governo, que
siva. multiplicou as pressões administrativas, as eleições foram assi­
O princípio liberal de eleição foi violado desde o começo, a naladas por numerosas cisões nas assembléias, permitindo ao Di­
cooptação hipocritamente utilizada: de leis de exceção em golpes retório validar o que lhe comprazesse: os Diretoriais apoiaram,
de Estado, ela falseou o jogo constitucional e, sob o Consulado, nos Conselhos, os eleitos das assembléias divididas e pediram seu
substituiu por fim a eleição. O decreto dos dois terços (5 de fruti­ reconhecimento. A maioria dos Quinhentos adotou a lista dos no­
dor, ano 111-22 de agosto de 1795) perpetuou os Termidorianos no vos eleitos a excluir, os Antigos se inclinaram. Finalmente, a lei
poder. "Em que mãos será reposto o depósito sagrado da Consti­ de 22 de floreal, ano VI (1? de maio de 1798), cassou as eleições
tuição?" As assembléias eleitorais deviam escolher os dois terços em oito departamentos, validou os eleitos das assembléias divi­
dos novos deputados (SOO em 700) entre os Convenàonais em exer­ didas em 19 departamentos, afastou 60 eleitos por serem juízes
cício; o decreto de 13 de frutidor (30 de agosto) precisou que, não ou administradores: ao todo, 106 deputados foram florealizados.
sendo atingida esta proporção, os Convt>ncionais reeleitos seriam Contrariamente, entraram nos Conselhos 191 candidatos gover­
completados por cooptação. Isto significa eliminar, em favor dos namentais: 85 comissários e funcionários nomeados pelo Diret6-
Termidorianos, os antigos Montanheses e a oposição monarquis­ rio, 106 juízes ou administradores teoricamente eleitos, muitos des­
ta constitucional a um s6 tempo. Por fim, os Conselhos direto­ tes designados pará as suas funções pelo governo. Quando o re­
riais foram povoados de 511 convencionais: os dois terços pres­ gime representativo não era negado pela exclusão ou pela coop­
i
critos estavam ultrapassados. tação, era viciado pela candidatura oficial dos agentes do poder:
Os "golpes de Estadd� que tanto fizeram pela lamentável re­ prática destinada a um longo futuro na história política da França.
putaçiio do Diretório, se inscrevem nessa linha política: para evi­ O 30 de prairial, ano VII (18 de junho de 1799), constitui me­
tar os acidentes da eleição, o executivo lhe corrige os resultados nos um golpe de Estado que uma jornada parlamentar: os Con­
pela anulação ou a exclusão e a cooptação. selhos desforraram-se constrangendo legalmente dois diretores a
Nas eleições de germinal, ano V (1797), para a renovação do demitir-se.
primeiro terço que saía dos Conselhos, dos quais a metade dos Brumário, em compensação, inscreve-se na linha de frutiàor
perpétuos, os Diretórios foram esmagados, salvo numa dezena e de floreal: na mesma tarde do golpe de Estado de Bonaparte,

I
de departamentos: apenas onze convenàonais se elegeram; o novo 18 de brumário, ano VIII (10 de novembro de 1799), a maioria dos
terço reforçava consideravelmente a direita monarquista. Por meio Antigos e a minoria dos Quinhentos excluíram da representação
do golpe de Estado de 18 de frutidor, ano V (4 de setembro de nacional, "pelos excessos e os atentados a que constantemente se
1797), o Diretório impôs aos Conselhos medidas de exceção: 49 entregaram'� 62 deputados, e cooptaram duas Comissões de 25
departamentos viram suas eleiçSes cassadas na totalidade; outros, membros cada uma, incumbidas de preparar "as mudanças a le-

92 93

.. -_ .._..__ . . _-"-_... _.. _ � . . -


...

var às disposições orgânicas cujos vícios e inconvenientes foram do em favor de uma administração central de cinco membros. Es­
percebidos pela experiênciá'. A hipócrita prática constitucional do tando a autoridade assim concentrada, as administrações hierar­
Diretório encontrava aqui seu final. quizaram-se, uma em relação às outras, as municipais subordi­
Já na primavera do ano V (1797) Benjamin Constant publicara nadas às departamentais e estas aos ministros. O Diretório tinha
um trabalho, Des réactions politiques/ no qual reclamava "a força o poder de anular sem apelação as decisões das administrações
e a estabilidade do governd'. Depois de 22 de floreal, Daunou, locais, de destruir seus membros, de substituí-los em caso de
não obstante o fato de ser um dos autores da Constituição do ano destruição total, sendo de regra empregada a cooptação para as
III, se erguera contra a freqüência de eleições, que, anualmente, substituições parciais. Sobretudo, o executivo era representado
repunha tudo em discussão. O princípio da soberania permane­ junto a cada administração departamental ou municipal por um
cia intangível: a burguesia termidoriana não podia renunciar a ela comissário nomeado e demissível. Os comissários do Diretório
sem renegar-se a si mesma e fazer o jogo dos partidários do di­ reclamaram a execução das leis, assistem às deliberações das as­
reito divino. Tratava-se, pois, de conciliá-la com as exigências de sembléias, vigiam os funcionários. Face às administrações reno­
um executivo estável e forte. Sieyes imaginou corrigir a eleição pela váveis anualmente por fração, eles garantem uma certa estabili­
cooptação : os corpos constituídos se recrutariam por cooptação dade. Mais ainda, o comissário departamental, entendendo-se di­
entre as notabilidades, cujas listas seriam preparadas pelo povo, retamente com o ministro do Interior, dirigindo as secretarias, dan­
!" soberano ao qual se restituía hipocritamente o sufrágio univer­ do ordens aos comissários municipais, prefigura o prefeito con­
� sal. Bonaparte só podia aprovar: a cooptação caracterizou a Cons­ sular. A Constituição do ano III concedia ainda ao Diretório prer­
tituinte consular do ano VIII (24 de dezembro de 1799). O Sena­ rogativas consideráveis: ele mantém o poder regulamentar, isto
do se completou por cooptação; ele nomeou na origem os mem­ é, o direito de tomar as resoluções; dirige a diplomacia e conclui
bros do Tribunato e do Corpo legislativo; estas escolhas, ulterior­ os tratados, mesmo secretos; dispõe da força armada e nomeia
mente, se fariam nas listas de notabilidades eleitas por sufrágio os generais-em-chefe; como responsável pela segurança interna
universal, em diversos graus. Na verdade, essas listas, prepara­ da República, pode decretar as ordens para comparecimento em
das no ano IX, não foram nunca utilizadas; foram suprimidas pela juízo e as ordens de prisão. Tais poderes podem parecer diminu­
Constituição do ano X (16 de agosto de 1802) e substituídas por tos diante da "força coativá' de que dispunha o regime do ano
colégios eleitorais. "Os princípios de nosso direito eleitoral - de­ II, e ainda estamos longe da centralização consular: mas não é
clarava Lucien Bonaparte, em 24 de março de 1803 - não mais mais a descentralização total da Constituição de 1791 .
repousam sobre idéias quiméricas, mas sobre a própria base da Na prática, a continuidade autoritária e centralizadora
associação civil, sobre a propriedade que inspira um sentimento afirmou-se, por arrancos sem dúvida, e em violação da Consti­
conservador da ordem públicá'. Bonaparte já tinha proclamado tuição, porém com nitidez. Após Frutidor, as jurisdições de exce­
com maior simplicidade: "Eu, sozinho, sou o representante do ção reapareceram sob a forma de comissões militares; a centrali­
povd'. zação foi reforçada pela anulação das eleições que, em numero­
O restabelecimento da centralização caminhava a par. Leva­ sos departamentos, permitiram a renovação do pessoal adminis­
do geralmente a crédito de Bonaparte, também esse fora prepa­ trativo ao gosto do poder central, que recebeu de acréscimo o di­
rado pela prática diretorial. A organização administrativa do ano reito de depurar os tribunais. O golpe de Estado de 22 de floreal,
III permanecia mais centralizada do que foi dito. As pequenas co­ ano VI (11 de maio de 1798), permitiu um novo reforçamento do
munas rurais foram agrupadas sob a direção de administrações executivo que, não satisfeito de ter povoado os Conselhos de fun­
municipais de cantão, enquanto as grandes cidades, Paris parti­ cionários de sua nomeação, se viu ainda outorgar o direito de pro­
cularmente, perdendo com sua comuna e com seu prefeito a au­ ver até o ano VIII as vacâncias das justiças de paz e dos tribunais
tonomia, eram divididas em várias municipalidades. O distrito criminais. Desfrutando, durante a vintena de meses que se seguiu
desapareceu. Ao nível do departamento, o Conselho foi suprimi- a 18 de frutidor (4 de setembro de 1797), de uma acrescida estabi-

95
94

;.... ••_•• _ • •_. _••••_._. m •_ _. _0 . __ ......


!�I i'
lidade e de maior autoridade, o Diretório, por meio das leis do tensão do poder regulamentar, nomeação dos administradores e !I;I
ano VII, lançou as bases de uma reorganização financeira bem­ dos juízes, recurso às medidas policiais: O regime consular não !
sucedida sob o Consulado, tendo sido as soluções sugeridas des­ il
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l,'
teve de inovar. As constituições diretoriais impostas às repúblicas­
de o início: criação de uma administração autônoma das contri­ irmãs, na Holanda, na Suíça ou em Roma, já tinham reforçado I
buições diretas pela lei de 22 de brumário, ano VI (12 de novem­ o executivo. A Constituição do ano VIII consagrou a subordina­
1:;' 1
bro de 1797), retorno às contribuições indiretas, subordinação da 'I ,I
ção definitiva do legislativo, pretendida em vão pelo Diretório.
Tesouraria ao executivo. Embora a "jornadá' de 30 de prairial, ano Concentrando o poder nas mãos do Primeiro Cônsul, vontade una I'
VII (18 de junho de 1799), pareça dar mão forte ao Corpo legisla­ e estávet ela permite a conclusão da reorganização administrati­ :11
i,]l1\'l
,I
tivo sobre o Diretório, embora permita a renovação do pessoal go­ va pelas grandes leis do ano VIII e a estabilização social que o
vernamental ao grau do poder legislativo, o poder executivo não Diretório se fixara como objetivo desde sua proclamação de 14 de

I ,i!1
foi nem subordinado nem enfraquecido. brumário, ano IV (5 de novembro de 1795):, "Repor a ordem so­

I"
* cial no lugar do caos inseparável das revoluções".
.{ * *

I
Do Diretório ao Consulado, não obstante as aparências afor­
moseadas pela lenda, a continuidade afirma-se. Com a continua­ d
Tudo, entretanto, permanecia suspenso. Após Campofórrriio, ção da guerra e a obstinação da contra-revolução, uma necessida­ w"

a Inglaterra ficava alinhada sozinha contra a França. A manuten­ de interna levava à concentração dos poderes, a fim de garantir
ção da paz continental, dificilmente restaurada, teria exigido uma a consolidação social da burguesia: substituindo a república dos "ii. ,
diplomacia prudente: o Diretório engajou-se numa política de ex­ notáveis, a ditadura consular devia aí prover. Mas se ela preten­
pansão continental que destruiu todas as oportunidades de esta­
bilização externa e que comprometeu o esforço interno de refor­
dia reforçar o executivo e restabelecer a unidade na ação governa­
mentat a burguesia brumariana não renunciava ao exercício das 1�1
"I:

ma. A segunda coalizão formou-se no fim de 1798, a guerra pros­


seguiu na primavera de 1799, enquanto a contra-revolução inter­
liberdades políticas a não ser que fosse em seu exclusivo benefí­
cio. O acontecimento lhe frustrou o cálculo. Il]
.;
::1 :
na tentava um novo assalto. Se a jornada de 30 de prairial, ano :i
i

I�:IJ
VII (18 de junho de 1799), e a campanha do verão de 1799 permi­
tissem um reerguimento, na primavera do ano VIU (1800) haveria
novamente eleições: triunfo realista ou triunfo jacobino, a estabi i
lidade governamental poderia ser posta uma vez ainda em dis­
cussão. O golpe de Estado de 18 de brumário cortou o problema. i

I
Segundo um cartaz afixado em Paris e notabilizado por Le Mo­
niteur de 24 de brumário (14 de novembro de 1799), "a França quer
algo grande e durável. A instabilidade perdeu-a, ela invoca a fixi­
dez . . . Ela quer a unidade na ação do poder que executará as leis". 11:j
A Constituição do ano VIII, confiando a plenitude do poder exe­
cutivo ao Primeiro Cônsut pôs fim ao equívoco diretorial de uma
ditadura disfarçada. Aparece, ainda deste ponto de vista, como
a finalização de uma evolução necessária. A autoridade incontes­ Ilf
I"
tável outorgada ao Diretório pela Constituição do ano III fora con­

II
solidada e alargada sob o peso das circunstâncias, seja pelo pró­
prio executivo, seja pelo legislativo, sempre a título provisório, po­
rém com tal freqüência que a prática acaba por tomar normal. Ex-

96 97 I
CONCLUSÃO

A REVOLUÇÃO FRANCESA NA
HISTÓRIA DO MUNDO CONTEMPORÂNEO

I - O resultado da Revolução

Após dez anos de peripécias revolucionárias, a realidade fran­


cesa surgia transformada de maneira fundamental.
A aristocracia do Antigo Regime fora destruída em seus pri­
vilégios e em sua preponderância, a feudalidade abolida. Fazen­
do tábua rasa de todas as sobrevivências feudais, libertando os
camponeses dos direitos senhoriais e dos dízimos eclesiásticos,
numa certa medida também das opressões comunitárias, destruin­
do os monopólios corporativos e unificando o mercado nacional,
a Revolução Francesa marcou urna etapa decisiva na transição do
feudalismo ao capitalismo. Sua ala em marcha foi menos a bur­
guesia mercantil (na medida em que permanecia unicamente co­
merciante e intermediária, ela se acomodava na antiga socieda­
de : de 1789 a 1793, tendeu em geral para o compromisso) que a
massa dos pequenos produtores diretos cujo sobretrabalho ou so­
breproduto era açambarcado pela aristocracia feudal, apoiando­
se no aparelho jurídico e nos meios de sujeição do Estado de An­
tigo Regime. A revolta dos pequenos produtores, camponeses e
artesãos desferiu os golpes mais eficazes na antiga sociedade.

99
Não que esta vi:ória sobre a feudalidade tenha significado o nou possível, do Diret6rio ao Império, a instauração de um Esta­
p arecim do moderno correspondendo aos interesses e às exigências da bur­
a ento simu�âneo de novas relações sociais. A passagem
ao capitalismo não constitui um processo simples pelo qual os guesia.
elementos capitalisbls se desenvolvem no seio da antiga socieda­ Deste duplo ponto de vista, a Revolução Francesa esteve lon­
de até o momento em que sejam suficientemente fortes para lhes ge de constituir um mito, como se pretendeu. (2) Indubitavelmen­
ro�pe� os quadros. Será preciso ainda muito tempo para que o te, a feudalidade no sentido medieval do termo não correspondia
capitalIsmo se afirnle definitivamente na França: durante o pe­ a mais nada, em 1789: mas, para os contemporâneos, campone­
ríodo revolUcionári<), seus progressos foram lentos, a dimensão ses ou burgueses, esse termo abstrato recobria uma realidade que
das empresas, em geral, permaneceu modesta, o capital comer­ eles conheciam demasiado bem (direitos feudais, autoridade se­
cial preponderante. Mas a ruína da propriedade fundiária feudal nhorial) e que foi afinal varrida. O fato de as assembléias revolu­
e do sistema corpor!l.tivo e regulamentar libertou os pequenos ou cionárias terem sido, aqui e ali, povoadas, para o essencial, de
OS médios produtores diretos; acelerou o processo de diferencia­ profissionais liberais e de funcionários públicos, não de chefes de
ção de classes na cOmunidade rural, bem como no artesanato ur­ empresas, de financistas ou de proprietários de manufaturas, nu­
bano, e a polarizaç�o social entre capital e trabalho assàlariado. ma palavra, de capitalistas, não serve de argumento contra a im­
Dest'arte, foi finalm�nte assegurada a autonomia do modo de pro­ portância da Revolução Francesa na instauração da ordem capi­
dução capitalista, h\nto no domínio da agricultura quanto no da talista: além de estes últimos terem sido representados por uma
indústria, e franqu�ado sem compromisso o caminho das rela­ minoria ativíssima, além da importância dos grupos de pressão
(deputados do comércio, clube Massiac defensor dos interesses
Ções �ur?uesas de produção e de circulação: transformação por
excelencla revoluciOnária . C) coloniais), o fato essencial é que o antigo sistema econômico e so­
Enquanto se operava a diferenciação da economia dos peque­ cial foi destruído e que a Revolução Francesa proclamou, sem ne­
nhuma restrição, a liberdade de empreendimento e de lucro, abrin­
no ou dos médios produtores e a dissociação do campesinato
S
do assim o caminho para o capitalismo. A história do século XIX
� do artesan ato, o equilíbrio interno da burguesia se modificava.
demonstra que isso não foi um mito.
A preponderância tradicional em suas fileiras da fortuna adquiri­
da se substituía a c1.os homens de negócios e dos chefes de em­
presas. A especula�;ão, o equipamento, o armamento e o abaste­

cirnen o dos exércitc)s, a exploração dos países conquistados lhes
forneCIam novas oPortunidades de multiplicar seu lucro; a liber­
II - Revolução Francesa e
dade eco nô mica abria o caminho à concentração das empresas.
Revoluções Burguesas
Ern bre�e, abandoI\.ando a especulação, esses homens de negó­
a
cios,. mma dos do prazer do risco e do espírito de iniciativa, in­ Etapa necessária da transição geral do feudalismo ao capita­
vestIram seus capi\ais na produção, contribuindo também eles, lismo, a Revolução Francesa não deixou de conservar, perante as
por sua p articipaç&o, ao progresso do capitalismo industrial. diversas revoluções similares, seus caracteres próprios que se atêm
Ao subverter a �
estruturas econômicas e sociais, a Revolução à estrutura específica da sociedade francesa no fim do Antigo Re­
ancesa ro pia a
Fr m q mesmo tempo a estrutura estática do Antigo gime.
Regime, �arrendo C)S vestígios das antigas autonomias, destruin­
do os pnVilégios lQcais e os particularismos provinciais. Ela tor-
(2) ALFRED COBBAN, The Myth of the French Revalutian (Londres, 1955). Do
(�) Sobre e stes proC,lemas, ver M. DOBB, Studies in the Development oi Ca­
mesmo autor, e do mesmo ponto de vista, The social interpretatian ai the French

pital1sm Lo n dres, 1946); H. K . TAKAHASHI, Shimin Kakumei no Kozõ ("Structu­ Revolution (Cambridge, 1964). Ver GEORGES LEFEBVRE, "Le mythe de la Révolution
re de l� re,:olution bou eoise") (Tóquio, 1951) (relatório por CH. HAGUENAUER, Re­ française': Annales historiques de la Révolutian française, 1956, p. 337.
IP,
vue hIstonque, n? 4 4,
3 abril-juriho de 1955, p. 345.

101
100
Esses caracteres têm sido negados. A Revolução Francesa não uma história política e constitucional, para esforçar-se por alcan­
seria "senão um aspecto de uma revolução ocidental, ou mais exa­ çar as realidades econômicas e sociais em sua especificidade na­
tamente atlântica, que começou nas colônias inglesas da Améri­ cional. A comparação que, desde logo, pode ser instaurada entre
ca depois de 1763, se prolongou pelas revoluções da Suíça, dos as condições e os aspectos da mutação nos Países Baixos, na In­
Países-Baixos, da Irlanda., antes de alcançar a França entre 1787 glaterra e nos Estados Unidos permite sublinhar em que a Revo­
e 1789. Da França, saltou aos Países Baixos, ganhou a Alemanha lução Francesa lhes modificou as perspectivas, e restituir a esta
renana, a Suíça, a Itália . . :'e) Certamente, não podemos subesti­ última seu caráter irredutível.
mar a importância do Oceano na renovação da economia e na ex­ Se a "respeitável" Revolução Inglesa de 1688 chegou a um
ploração dos países coloniais pelo Ocidente. Todavia, não é este compromisso social e político que associou no poder burguesia
o propósito de nossos autores, nem mostrar que a Revolução Fran­ e aristocracia fundiária (e, neste sentido, este episódio seria com­
cesa não passa de um episódio do movimento geral da história parável às jornadas francesas de julho de 1830), é que, anterior­
que, após a Revolução neerlandesa, inglesa e americana, levou mente, a primeira Revolução Inglesa do século XVII não apenas
a burguesia ao poder. A Revolução Francesa, aliás, não assinala substituíra uma monarquia absoluta em poderio por um governo
o termo geográfico dessa transformação, como os qualificativos representativo (não democrático) e pusera fim ao domínio exclu­
ambíguos de "atlânticd' ou de "ocidental" o dão a entender : no sivo de uma Igreja de Estado persecutora, mas desentulhara ain­
século XIX, em toda parte em que se instalou a economia capita­ da a estrada para o desenvolvimento do capitalismo: de acordo
lista, a ascens ão da burguesia anda paralela; a revolução burgue­ com um de seus historiadores mais recentes, "ela pôs o ponto fi­
sa foi de alcance universal. Por outro lado, ao situar no mesmo nal na Idade Médiá'. (4) Varreram-se os derradeiros vestígios da
plano a Revolução Francesa e "as revoluções da Suíça, dos Países feudalidade, aboliram-se as tenências feudais, assegurando à clas­
Baixos e da Irlanda . . '� minimizam-se estranhamente a profun­
. se dos proprietários fundiários a posse absoluta de seus bens; os
didade, as dimensões da primeira e a brusca mutação que ela cons­ confiscos e as vendas dos domínios da Igreja, da Coroa e dos le­
tituiu. Tal concepção, esvaziando a Revolução Francesa de todo gitimistas romperam as relações feudais tradicionais nos campos
conteúdo espeáfico, econômico, social e nacional, espicharia à toa e aceleraram a acumulação do capital; as corporações perderam
meio século de historiografia revolucionária, de Jean Jaures a Geor­ toda a importância econômica; os monopólios comerciais, fina­
ges Lefebvre. ceiros e industriais foram abolidos. "O Antigo Regime tinha de
Tocqueville, entretanto, abrira o caminho à reflexão, quando ser subvertido, escreve Ch. Hill, a fim de que a Inglaterra pudesse
perguntava : "Por que princípios análogos e teorias políticas se­ conhecer esse desenvolvimento econômico mais livre, necessá­
melhantes não levaram os Estados Unidos a uma mudança de go­ rio para levar ao máximo a riqueza nacional e obter para ela uma
verno e a França a uma total subversão da sociedade?" Colocar posição dirigente no mundo; a fim de que a política - compreen­
o problema nestes termos é ultrapassar o aspecto superficial de dida nisto a política externa - passe ao controle dos que tinham
importância. na naçãd'.
Todavia a Revolução Inglesa foi menos radical que a France­
(3) JACQUES GODECHOT, La Grande Nation . r; expansion revolutionnaire de la sa: para retornar à expressão de Jaures em sua Histoire sociaJiste,
France dans Ie monde, 1789-1799 (Paris, 1956, 2 vols.), t. I, p. 11. Imaginada por
R. R. PALMER, "The World Revolution of the West", PoliticaI Science Quarterly,
1954, a concepção de uma revolução "ocidental" ou "atlânticá' foi retomada por (4)CHRISlDPHER HILL, "La Revolution anglaise du XVme (Essai d'interpreta­
J. GODEcHOT e R. R. PALMER, "Le probleme de I' Atlantique du XVme au XXe sie­
tion), Revue historique, n�) 449, 1959, pp. 5-32. Ver essencialmente os trabalhos
' do mesmo autor, verdadeiro chefe de escola: com M . JAMES e E. RICKWORD, The
ele : X Congresso Internazionale di Scienze storiche. Relazioni (Florença, 1955),
English Revolution, 1640 (Londres, 1940, reed. parcial 1949); com E. DELL, The
t. V, pp. 175-239; R. R. PALMER, Th� Age of the Democratic RevoIution. A politi­
Good Old Cause (Londres, 1949); The Century ofRevoIution, 1603-1714 (Londres,
cal History of Europe and America, 1760-1800, t. I: The ChalJenge (Princeton,
1959); JACQUE5 GODECHOT, Les Révolutions (1770-1799) (Paris, p.u.F., 2� ed. _1965, 19617: enfim, Society and Puritanism in pre-revolutionary England (Londres, 1964).
coI. "Nouvelle Clid').

102 1 03
permaneceu "estritamente burguesa e conservadorá', ao contrá­
sias, apoiada nas massas populares: categorias sociais cujo ideal
rio da Francesa, "amplamente burguesa e democráticá'. Conquan­
era uma democracia de pequenos produtores autônomos, cam­
to tenha tido a Revolução Inglesa os seus Niveladores, não ga­
poneses e artesãos independentes, trabalhando e trocando livre­
rantiu aos camponeses nenhuma tomada da terra: mais ainda,
mente. A Revolução Francesa se fixou assim um lugar singular
o campesinato inglês desapareceu no século seguinte. A razão des­
na história moderna e contemporânea: a revolução camponesa e
te conservantismo deveria ser procurada na natureza rural do ca­
popular estava no âmago da revolução burguesa e a impelia para
pitalismo inglês, que fez da gentry uma classe aquinhoada, pois
que havia numerosos gentis-homens, antes de 1640, ativamente
dedicados à criação do carneiro, à indústria de tecidos ou à ex­
a frente.
Estes caracteres explicam a ressonância da Revolução France­ Ii
I'I
ploração mineira. Se, por outro lado, a Revolução Inglesa, com sa e seu valor de exemplo na evolução do mundo contemporâ­
os Niveladores, viu o aparecimento de teorias políticas fundadas neo. Indubitavelmente, foram os exércitos da República, em se­
nos direitos do hc>mem, que, através de Loke, foram transmiti­ guida os de Napoleão, que, mais do que a força das idéias, abate­
das aos revolucionários da América e da França, evitou, contudo, ram nos países por eles ocupados o Antigo Regime: abolindo a
proclamar a universalidade e a igualdade desses direitos, como servidão, libertando os camponeses dos foros senhoriais e dos dí­
o deveria fazer, e com aquele brilho, a Revolução Francesa. zimos eclesiásticos, pondo em circulação os bens de mão-morta,
Semelhantemente à sua antecessora, mas em grau menor, a a conquista francesa limpou a casa para o desenvolvimento do
Revolução Americana foi marcada pelo empirismo. Malgrado a capitalismo. Mais ainda, foi graças à própria expansão do capita­
invocação do direito natural e de solenes Declarações, nem a li­ lismo, conquistador por natureza, que os princípios novos e a or­
berdade nem a igualdade foram de todo reconhecidas: os negros dem burguesa se apoderaram do mundo, impondo em toda parte
permaneceram estravos, e se a igualdade de direitos foi admitida as mesmas transformações.
entre brancos, a hierarquia social baseada na riqueza não sofreu A diversidade das estruturas nacionais, a desigualdade do rit­
nenhum atentado. A "democraciá' na América foi por certo o go­ mo de desenvolvimento, provocaram naturalmente de um país
:(:
verno da nação, mas suas modalidades não deixavam de favore­ a outro inúmeras nuanças de que são provas de múltiplas moda­
cer os notáveis de) dinheiro. lidades na formação da sociedade moderna capitalista. Particu­
As Revoluções da Inglaterra e da América exerceram também
uma profunda influência e seu prestígio se mantém por muito tem­
larmente, quando a evolução para os métodos capitalistas de pro­
dução foi imposta, por assim dizer, do alto, o processo de pas­
:;1 1
po: seu compromisso político conservador podia tranqüilizar as sagem foi detido a meio caminho e o antigo modo de produção I'
classes possuidoras mais inquietas de liberdade que de igualdade. se achou, em parte, antes protegido que propriamente destruí­
Totalmente ou.tra foi a Revolução Francesa. Se se mostrou a do: via de compromisso de que a história do século XIX oferece
mais brilhante das revoluções burguesas, eclipsando pelo carMer brilhantes exemplos. O caráter irredutível da Revolução France­
dramático de suas lutas de classes as revoluções que a tinham pre­ sa, em comparação, mostra-se mais nítido.
cedido, ela o deveu sem dúvida à obstinação da aristocracia, an­ Os movimentos de unificação nacional conhecidos pela Eu­
corada em seus privilégios feudais, que recusava qualquer con­ ropa no século XIX devem ser, por mais de um título, considera­
cessão, e ao encarniçamento oposto das massas populares. A dos como revoluções burguesas. Seja qual for na realidade a im­
contra-revolução aristocrática obrigou a burguesia revolucionária portância do fator nacional no Risorgimento ou na Unidade ale­
a prosseguir, não rnenos obstinadamente, a destruição total da or­ mã, as forças nacionais não teriam podido conseguir a criação de
dem antiga. Mas esta somente chega a isto aliando-se com as mas­ uma sociedade moderna e de um Estado unitário se a evolução
sas rurais e urban'ls às quais era preciso contentar: a feudalidade econômica interna não tivesse tendido para o mesmo fim. Todas
foi destruída, a democracia instaurada. O instrumento político da as dificuldades encontradas na análise histórica, e que provoca­
mutação foi a ditadura j acobina da pequena e da média burgue- ram numerosas confusões, prendem-se ao fato de que estes mo-

104 1 05
,.-

vimentos constituem, diferentemente da Revolução Francesa, re­ mantido tal aliança até sua liquidação: na Itália, face à massa cam­
voluções de tipo misto, nacional e social ao mesmo tempo. ponesa, soldou-se o bloco da aristocracia fundiária e da burgue­
Em um de seu planos de trabalho, na prisão, Gramsci anota­ sia capitalista. A Unidade italiana conserva a subordinação da mas­
va este tema de reflexão: "A ausência de jacobinismo no Risorgi­ sa camponesa ao sistema oligárquico dos grandes proprietáriQs
mento".(S) Definindo o jacobinismo, em particular, pela aliança da e da alta burguesia, com base numa propriedade fundiária de ti­
burguesia revolucionária com as massas camponesas, Gramsci su­ po aristocrático. Para os liberais moderados, artesãos dessa Uni­
blinhava em vista disso que o Risorgimento, revolução burguesa, dade, e, antes dos mais, Cavour, cujo nome por si só simboliza
não constituíra uma revolução tão radical quanto, graças aos ja­ essa comunidade de interesses, não se podia admitir a via revo­
cobinos, a Revolução Francesa; era ainda colocar o problema do lucionária francesa: a sublevação das massas camponesas teria fei­
conteú do económico e social de uma e do outro. O Risorgimento, to perigar sua dominação política.
na medida em que "frustrou", na expressão de Gramsci, sua re­ As conseqüências disto foram importantes na formação do ca­
volução popular e, particularmente; camponesa, se afasta da re­ pitalismo italiano. Não se constituiu na Itália, diversamente do
volução burguesa de tipo clássico cujo modelo é representado pela
i Revolução Francesa. Essa recusa da burguesia italiana de aliar-se,
que ocorreu na França, uma ampla camada de proprietários li­
vres e independentes, a produzir para o mercado; contfu.uou a

Iq
na época da unificação, ao campesinato, aliança revolucionária por
excelência, o compromisso que, em conseqüência, o dividiu, na
realização da unidade nacional, entre aristocracia feudal e bur­
prevalecer a renda in natura e persistiu a dependência da produ­
ção em relação ao mercado e ao ganho comercial. Caracterizou­
se desta forma a via italiana de passagem ao capitalismo: via de
guesia capitalista, forçam-nos a procurar suas origens meio sécu­ transição que mantém a subordinação do capital industrial ao ca­
lo atrás, nas soluções então fornecidas ao problema agrário. Pelas pital comercial, via de compromisso que chega a um capitalismo
reformas que, no fim do século XVIII e no início do XIX, particu­ oligárquico de tendências monopolistas.
larmente sob a ocupação francesa, mas de maneira diversa segun­ Processo semelhante caracterizou, sob modalidades diferen­
do as regiões, precederam a Unidade italiana, o regime senhorial tes, a unificação alemã. Para tomar um exemplo fora da Europa,
foi abolido, mas nem por isso deixava de subsistir na sociedade a Revolução de Meiji constitui, também, para o Japão, o ponto
italiana moderna uma grande propriedade fundiária aristocráti­ de partida da formação da sociedade capitalista, situando-se por
ca. No momento em que, em conseqüência da Revolução, O cam­ aí na linha fundamental da Revolução Francesa. Começada em
pesinato francês se dissociava irremediavelmente, a massa cam­ 1867, ela conseguiu, após uma dezena de anos de distúrbios, a
ponesa italiana permanecia na condição do trabalhador agrícola dissolução do antigo regime feudal e senhorial e a modernização
preso à terra ou do meeiro tradicional: os antigos laços de depen­ do Estado.(6) As forças externas não teriam podido modernizar a
dência persistiram. Na França, a burguesia revolucionária tinha sociedade japonesa se a evolução econômica interna não tivesse
afinal sustentado a luta do campesinato contra a feudalidade e tendido para o mesmo resultado: noutros termos, o sistema de
produção capitalista já estava em gestação na economia feudal do
Japão. A especificidade da Revolução de Meiji tende em particu­
Oeuvres choisies (Paris, 1959); R. ZANCHERI, "La mancata rivoluzione agraria nel
Risorgimento e i problemi economici dell'unità': em Studi Gramsciani (Roma, 1958); lar para esta convergência de uma evolução interna e de pressões
ALBERT SOBOUL, "Risorgimento e rivoluzione borghese: schema di una direttiva di externas. Indubitavelmente, para analisar este processo histórico
ricerca", em Problemi deU Unità d'ltalia. Atti deI II Convegno di studi gramsciani
(Roma, 1962). A título comparativo, WlmLD KULA, "I.: origine de I'alliance entre
la bourgeoisie et les propriétaires fonders dans la premiere moitié du XIX e sie­
ele", em La Pologne au Xe Congres International des Sciehses Historiques à Rome (6) Seguimos aqui essencialmente as interpretações de H. K. TAKAHASlU, "La
(Warszawa, 1955); do mesmo autor: "Secteurs et régions arrierés dans I'économie place de la Révolution de Meiji dans l'histoire agraire du Japon'� Revue histori­
du capitalisme naissant", em Problemi dell' Unità d'Italia, trabalho citado mais que, outubro-dezembro de 1953, pp. 229-270. Ver também S. ToYAMA, Meiji Ishin
acima. ("Restauração de Meiji") (Tóquio, 1951).

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seria necessário a�rdar


em primeiro lugar a feudalidade de To­
kugawa e a crise e�trutural pesinato médio como na França, nemjunker como na Alemanha.
que esta conhecera desde o século
XVIII. Na véspera O campesinato japonês foi subordinado ao sistema oligárquico da
� Revolução, afirma-se mais e mais fortemen­
te a oposição entre �s campesi grande burguesia privilegiada e dos proprietários jinushi de tipo
nato, sobretudo a dos camponeses
médios, e dos peq\lenos sernifeudal: a nova sociedade capitalista salvaguardou o essen­
e médios fabricantes, contra o sistema
monopolista dos gra.,des negociantes e financistas aliados dos po­ cial das relações feudais de produção. Explica-se dest'arte as cir­

� �
deres senhoriais e ó s grandes proprietários
lu) não c tivadores que recebiam a renda in
camponeses Uinus­
cunstâncias da abertura do país sob a pressão da ajuda estrangei­
ra, o fato de a Revolução de Meiji ter chegado à formação de uma
natura. A "abert�­
rá' do paIs sob a PI1�, ssão dos Estados Unid monarquia absolutista e oligárquica: diferentemente da Revolu­
os e da Europa precI­
pitou a evolução, n;as sem que houvesse ção Francesa que destruiu o Estado absolutista e permitiu a insta­
. tempo de amadurece­
rem de maneIra aut\noma e suficiente as cond lação de uma sociedade democrática burguesa. Malgrado o de­
ições internas, eco­
, nômicas e sociais, \ecessárias
à revolução burguesa.
A aboliçã� do I1�e senhorial foi realiza
senvolvimento do capitalismo moderno, esses vestígios persisti­
ram até a reforma agrária de 1945 (iiochi kaikaku), que se outor­

I
da sob a forma de
um compromIsso:
eis direitos feudais, contrariamente ao caso da gou, precisamente, por tarefa, a "libertação dos camponeses ja­
Revolução Francesa foram suprimidos poneses oprimidos durante vários séculos sob os encargos feu­
, com indenização; a carga
recaiu final�er�.te s'bre os camponeses dais"; o que prova, tardiamente - escreve K. Takahashi -, que
� submetidos aos novos �_
1 postos fundIários en, dinheiro (chis lia Revolução de Meiji e suas reformas agrárias não tinham cum";
o). Os camponeses propne­
tários (hon-bya-kus10) foram libertados prido a tarefa histórica da revolução burguesa de suprimir as re­
dos laços feudais de de­
pendência; mas COIltinua am contr lações econômicas e sociais feudais".
r ibuintes desses novos impos­
tos, encargo quase i:lêntico ao *
dos antigos foros senhoriais pagos * *
in natura. Por outro lado, não tiveram nenhuma oportunidade pa­
.
ra a aquisição de terras, como os camponeses
da dos bens n��lOn%;. Os campos japoneses
franceses pela ven-
não conheceram ne�
A Revolução Francesa consigna-se desta maneira um lugar ex­
os lavradores de c\briolé" nem os campones cepcional na história do mundo contemporâneo. Revolução bur...
es abastados do tI­
po ku1ak. Quanto à massa dos camponeses, � guesa clássica, ela constitui, para a abolição do regIme senhorial
jornaleiros agrícolas
(rnizwtOlIU), bem cOmo a dos pequenos proprietários (kosaku) sua e da feudalidade, o ponto de partida da sociedade capitalista e
liberta�ão foi �� \peração branca: assim da democracia liberal na história da França. Revolução campone­
que o� grandes pr�­
prietários fundiário� (jinUShl) se tornaram,
graças a reforma agra­ sa e popular, porque antifeudal sem compromisso, tendeu por
ria/ proprietários de duas vezes a ultrapassar seus limites burgueses: no ano II, tenta­
fato de suas terras e contribuintes do impos­
to fundiário em dir1heiro, os lavradores médi (kosa tiva que, apesar do malogro necessário, conservou por muito tem­
os ku), longe
de serem libertados, continuaram a pagar aos po valor profético de exemplo, e quando da Conspiração pela
jinushi a renda anual
in natura . Conserv�am_se desta forma as relações tradicionais de Igualdade, episódio que se situa na origem fecunda do pensamen­
dependência e de E,.,ploração do sobretrabalho to e da ação revolucionários contemporâneos. Assim se explicam
dos kosaku, sob

a garantia do Estaá e de seus meios de
opressão. indubitavelmente esses vãos esforços no sentido de negar à Re­
Os :ampone��. volução Francesa, perigoso precedente, sua realidade histórica ou
� proprietários e exploradores '1ibertos" pela
Revoluçao de �elJ � sua especificidade social e nacional. Mas, assim, também se ex­
não podem, pois, ser comparados aos cam­
poneses propnetár plicam o sobressalto sentido pelo mundo e a ressonância da Re­
ios livres e independentes, emersos na Euro­
pa Ocidental da e�omposiçã
não houve no Japao
� o da propriedade fundiária feu<tal:
nem yeomanry como na Inglaterra, nem cam-
, volução Francesa na consciência dos homens do nosso século. Esta
lembrança, só por si, é revolucionária: ela ainda nos exalta.

108
I 1 09

t
(1924, reeditada em 1959) aos Etudes sur la Révolution française
(1954, reeditada em 1963). Brilhante esboço de E. LABROUSSE em
:'0 Século XVIII. Revolução intelectual, técnica e política
(1715-1815)'� com a colaboração de R. MOUSNIER e M. BOULOISEAU,
em tradução de VÍTOR RAMOS, no t. V (vols. 11 e 12) da História
Geral das Civilizações, sob a direção de M . CROUZEI (5ão Paulo,
Difel). Atualizada por A. 50BOUL, Précis d'histoire de la Révolu­
tion française (1962).
BmUOGRAFIA SUMÁRIA D e um ponto d e vista bibliográfico, P. CARON, Manuel prati­
que pour l'étude de la Révolution française (1912, edição atuali­
zada, 1947); L. VILLAT, La Révolution et l'Empire, 1789-1815. I: Les
Assemblées révolutionnaires, 1789-1799 (1936, t. VIII da coI. "0id');
J. GODECHOT, Les Révolutions (1770-1799) (2� edição, 1965, t. 36
De uma bibliografia superabundante, reteremos aqui apenas da coI. "Nouvelle Clid') .
�. os trabalhos gerais que se assinalaram na historiografia da Revo­ Balanço dos estudos d e historiografia revolucionária e pers­
I
'
f
lução Francesa ou que consti�em o ponto atual de nossos conhe­
cimentos.
pectiva de pesquisa em Voies nouvelIes pour l'histoire de la Re­
volution française sob a direção de A. 50BOUL (1978).
Do conjunto das histórias da Revolução Francesa aparecidas
no século XIX, emergé por suas qualidades literárias a de MICHE­
LEI' (1847-53). De grande importância para a compreensão profun­
da do período, mas não apresentando um relato conseqüente, A.
DE TocQUEVILLE, I:4nden Régime et la Révolution (1856, nova edi­
ção com uma introdução de G. LEFEVBRE, 1952). Les origines de
la France contemporaine (1876-93) de TAINE se caracterizam por
uma violenta parcialidade anti-revolucionária.
Os estudos de história revolucionária receberam um novo im­
pulso no fim do século XIX e no começo deste: A. AULARD, His­
toire politique de la Révolution française, (especialmente JEAN JAU­
RES, Histoire socialiste, t. I-IV 1901-04; nova edição por A. MA­
THIEZ, 1922-24; reimpressão em 1939); Ph. SAGNAC, La Révolution,
1789-92, e G. PARISET, La Révolution, 1792-1799 (Paris, 1920, t. I
e II da Histoire de la France contemporaine, sob a direção de E.
LAVISSE); A. MATHIEZ, La Révolution française (1922-27, 3 vols. '�.
Collin" ), continuada por G. LEFEBVRE, Les Thermidoriens (1937,
4� edição revista, 1960), e Le Directoire (1946, 3:" edição revista,
1958).
Essencialmente, G. LEFEBVRE, La Révolution française (1951,
t. XIII da coI. "Peuples et civilisations'� 6:" edição revista e atuali­
zada por A. SOBOUL, 1968), e o conjunto da obra do mesmo his",
toriador, dos Paysans du Nord pendant la Révolution française

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