Aterrizagens, aterrissagens e suspensões: dilemas em ato na tradução.
Estou chegando no Campus Dom Bosco, para um evento denominado “Tradução:
ossos do ofício”, um pouco perdida em relação a programação da FELIT nesse ano, não faço ideia de quem é a estrela da noite. Próxima ao auditório, reconheço um menino, da graduação em Letras-Inglês, com quem na mesma semana havia convivido em função de uma oficina oferecida por Ricardo Domeneck no Festival Artes Vertentes, em Tiradentes. Envolto em uma aura de tanto entusiasmo que quase trêmulo, ele segura um livro gigantesco em mãos e - como costuma acontecer quando frequentamos círculos pequenos de pessoas fascinadas por literatura - ele supõe que eu reconheça.1 O Arco-Íris da Gravidade, marcado página na terça parte. “Esse cara (Paulo Henriques Brito) é um monstro”, diz animado, traduziu Thomas Pynchon. Entrei no salão, em estado meditativo de quem espera uma palestra, caderno aberto, caneta em mãos, folha para pegar as horas, “check”. Preciso confessar que um pouco mais curiosa ou intrigada pelo fato de estar mais a par, acho elegante o gesto da tradução. Estavam, em meia-lua, quatro pessoas (brancas): nas extremidades contavam duas mulheres, professoras da UFSJ, Fernanda Henriques Dias e Deborah Walter de Moura Castro, e, entre elas: Paulo e Ricardo. O interessante da forma como a conversa seguiu é que estampou um gênero diferente daquele esperado numa palestra, mais parecia que havia uma mesa de bar com duas pessoas cujo trabalho passa, diferentemente, pelo ato da tradução e duas outras, cujo trabalho passa por tratar e conviver com traduções, que tiveram a incumbência (e especialmente Fernanda estava visivelmente feliz por isso) de serem escolhidas para fazer perguntas. Diante da primeira pergunta, Paulo contextualiza seu início na área de tradução. Tendo estado, jovem, na Califórnia para um curso de cinema, se viu com vontade de traduzir alguns poemas brasileiros às pessoas com quem convivia. Igualmente teve essa vontade em seu modo de retorno, vontade de traduzir (aqui, traduzir como trazer) para o Brasil os poetas, especialmente Wallace Stevens, e as poesias que encontrou na estada nos Estados Unidos. Nunca mais parou. Já Ricardo conta da tradução como necessidade, dependência da tradução para alcançar poemas pelo (e para o) mundo, enquanto o jovem do interior de São Paulo que fora. É notável esse esforço do poeta em iniciativas como a Revista Modo de Usar (feita em colaboração com Angélica Freitas, Marília Garcia e Fabiano Calixto) ou a Antologia Homoerótica que está produzindo (deixando o texto original e as traduções). Vê-se, nessa comparação de dois modos de começar a traduzir, dois usos do movimento ao estrangeiro (um, Paulo, de corpo; outro, Ricardo, de necessidade própria: intercambiar mundos pela via da palavra). Ricardo sublinha que defende o ato da tradução tal que esse permite poder ler e mostrar poemas que pensa serem saudáveis. Situaria então Paulo como profissional, ainda que apaixonado, e Ricardo como tradutor por estado de inquietude e generosidade, ainda que profissional. Ponhamos um terceiro (ou quinto) em cena: Jorge Luís Borges. Nascido na Argentina, o escritor que “estampa a capa” do cânone dos ilustres talvez possíveis “universais” dentre os latino americanos, também era tradutor auto-didata e, dizem, introduziu na Espanha a poesia alemã expressionista. Ele escreve, em 1939, logo após um acidente que envolveu sua cabeça, o conhecido texto Pierre Menard: autor do Quixote. O texto é um labirinto de muitas entradas e saídas o que, típico do autor, depende das chaves que conseguimos encontrar ao percorrê-lo para fazer seus sentidos. Vamos a uma menos óbvia: não consta, nas onze páginas nas quais está o conto (dentro do livro Ficções, 2001, editora Globo, tradução de Carlos Nejar), uma única palavra que remeta à 1) Argentina 2) América Latina. O conto, ainda que originalmente escrito em espanhol, localiza diversas localidades francesas quando percorre a produção visível de Pierre, traz à tona o iniciático livro espanhol Dom Quixote e sua escrita em sua época e na posterior, a de Menard, assina-se em Nimes. Talvez a marca mais latina do texto seja a sua dedicatória: A Silvina Ocampo. E ainda com isso Borges nos confunde, é o narrador quem dedica e assina? É Borges? Borges estava em Nimes? Dentre o bate-papo criado entre Ricardo e Paulo, surgiram os conceitos de estrangeirização e domesticação. Paulo, além de tradutor, é também poeta e professor da PUC- Rio. Como quem pensasse que já conhecíamos esses conceitos (e, ao menos eu, no segundo semestre do curso de Letras – Português, não conhecia), discorre sobre eles sem aprofundá-los, tomando-os como óbvios à plateia. Além disso, comporta-se, na meia-lua, como alguém mais experiente, mais tímido ou mais cansado de eventos do tipo. Sua mais experiência, ao contrário da arrogância, aparece na forma como, distinto de Domeneck que parece tomado por cada palavra que ouve e diz, corpóreo, preserva-se, mas está visivelmente contente de estar assim acercado do “novo”, do jovem que vive em Ricardo com entusiasmo e paixão. Se a pergunta levou a estrangeirização e domesticação e isso para Paulo, mais talhado nas formas acadêmicas, leva a referência a Venuti e a um dizer: faço questão de fazer estrangeirizações, minha função é transportar o leitor pro mundo das outras palavras, mostrando o estranho do texto. Para Ricardo a questão o leva mais a paradoxos do que a seguranças e é a partir de sua experiência como residente em Berlim e escritor em Berlim que ele responde a pergunta, e dizendo da importância daquele em vias de traduzir lembrar-se que as palavras “não vivem em estado de dicionário”, carregam cada qual seu tom e sua história. Exemplifica trazendo a dificuldade de traduzir terra (lugar natal, aconchego) das letras brasileiras às alemãs, tal que trazer uma importância significativa como lar à terra (usual em português brasileiro), em alemão, remonta um uso da palavra feito pelos nazistas. Ricardo expõe então que percebe que as traduções para além do “cá-lá” permitido por sua feição, precisam ser entendidas como algo que dista seja esse lá um país imperialista ou seja esse lá um país terceiro-mundista. Fala sobre a exotização em algumas traduções, trazendo o exemplo de dom casmurro, que, ao seu ver, não carrega nada para outros idiomas quando o nome não é traduzido, senão um espaço para a correspondência com dom quixote. Voltemos ao Quixote, de Menard, de Borges. Borges, nesse conto, tem uma escrita extremamente desaterrada – a não ser que estivesse em Nimes. Escreve, em espanhol, sobre um homem que remonta, apaixonadamente, a ardilosa tarefa de um outro (Pierre Menard, francês ou muito habituado a França) em escrever Quixote, mais exatamente, três capítulos. Não ser Cervantes, ser Pierre Menard e a partir das próprias experiências escrever o Quixote, não mais de Cervantes, mas de Menard. Possibilitar ao texto já afamado a possibilidade de, grudado a outro nome, voltar a ser apenas um texto agradável? Menard, o tradutor tão estrangeirizador que as palavras são exatamente as mesmas sendo a diferença apenas a de encontrar um texto autorado por um ou outro em uma distância espaço-temporal? É interessante notar que, afora para descrever alguns dos trabalhos visíveis supostamente escritos por P. M., a palavra tradução não aparece mais no texto, não se fala em tradução a partir do testemunho da obra subterrânea. Menard, o tradutor como exímio autor? Borges me faz pensar que nem toda tradução remete à terra natal de onde surge a língua, tal que me parece capaz de agir na linguagem como se não precisasse de terra em torno, como um “sem terra”, um estrangeiro local e um local estrangeiro, dado a (fantástica) capacidade abstrativa e conhecimento de mundo (“clássico”) arrecadado diante de uma grande biblioteca e tempos vividos em terras europeias, já enquanto interessado e conhecedor da literatura ocidental – o que talvez o tenha ajudado a alcançar terras longínquas desde esse aqui. Ele mesmo me parece, ainda que possa ser um truque, tal que parece bastante irônica a menção ao doctor universalis no texto a Menard. alguém que usou e abusou das faculdades de pensar e analisar, segundo o próprio personagem homenageado por outro, a respiração da inteligência. Se consideramos que os conceitos de domesticação e estrangeirização remetem a forma escolhida no ato da tradução para trazer o texto ao leitor ou levar o leitor ao texto, talvez o que encontramos seja que existe, em um texto, um resquício intraduzível, impossível. Ante a isso, alguns tradutores escolhem arredondar as dificuldades, amenizando para o leitor os desafios da língua. Outros, como Paulo Henriques Britto, escolhem, nem que para isso precise usar muitas notas de tradução (e não queimá-las, como Menard), deixar permanecer o que é estranho. Já a escolha de Ricardo Domeneck me parece ainda outra, ler microscopicamente, intensamente e traduzir não o que disse, mas o que fez com a linguagem. Com respeito, mas sem demasiada reverência. Tal que os três homens em centralidade são tradutores e poetas, presumo que a forma que escrevem, buscam escrever, se relaciona com a forma como traduzem e lêem. Domeneck, entre os três, me parece aquele que escolhe dizer brasil, ainda que na alemanha. Estudar os pássaros, as flores que fazem os territórios, permitir que a literatura carregue os sentidos da terra. Na palestra tivemos a chance de começar a aprender que, em tradução, entre aterrizagens, aterrissagens e suspensões, não há solução absoluta.