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JOÃO TRAJANO SENTO-SÉ

BRIZOLISMO

ESTETIZAÇÃO DA POLÍTICA E CARISMA

P R Ê M I O DE M E L H O R T E S E EM

C I Ê N C I A P O L Í T I C A - I U P E R J , 1 9 97

mço í Tíííipo EDITORA F 6 V


Copyright ©João Trajano Sento-Sé, 1999

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Espaço e Tempo

Capa
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Ficha catalográfica elaborada pela
Biblioteca Mario Henrique Sim onsen/FGV

Sento-Sé, João Trajano,


Brizolismo: estetização da política e carisma / João Trajano Sento-Sé. - Rio de Janeiro :
Editora FGV, 1999.

368p. ; 16x23 cm.


ISBN 85-225-0286-2

Co-edição: Espaço e Tempo.


Originariamente apresentada como tese do autor (doutorado) com título: Estetização da
política e liderança carismática: o caso do brizolismo no Rio de Janeiro.
Inclui bibliografia.
1. Brizola, Leonel, 1922 2. Eleições - Rio de Janeiro (RJ). 3. Rio de Janeiro - Política e
governo. I. Fundação Getulio Vargas. II. Título.
CDD - 320.98153

Todos os direitos reservados. A reprodução não-autorizada desta publicação, por qualquer meio, seja
total ou parcial, constitui violação da Lei nQ5.988.
Para Thereza, Isadora, dona Terezinha e Daidai (em memória)
Sumário
AGRADECIMENTOS 9
FORMA E CONTEÚDO DA POLÍTICA: JOÃO TRAJANO
SENTO-SÉ REDESCREVE A SAGA BRIZOLISTA 11
INTRODUÇÃO 17
I. DO BRIZOLISMO UTÓPICO AO BRIZOLISMO CIENTÍFICO 19
n . A REINVENÇÃO DO BRIZOLISMO 47
A anistia e os debates em tomo da volta de Brizola. A reinvenção de um mito 48
A personalidade e seu duplo 64
Brizola no Rio de Janeiro. A perda da legenda do PTB 89
O trabalhismo e o trabalhismo brizolista (parte 1) 98
O Brasil segundo o trabalhismo brizolista 102
III. O PROJETO CIVILIZADOR E A ESTÉTICA DO FEIO 111
Bildung e nacionalismos 112
Dilemas das invenções da nação brasileira 128
O sorriso do banguela 155
Educação e incorporação 166
Os documentos fundadores 172
O trabalhismo e o trabalhismo brizolista (parte 2) 183
Populismo e populismo brizolista 190
IV. CARISMA OU O REENCATAMENTO DO MUNDO 197
Liderança política, liderança de massas e carisma 198
Brizola contra as máquinas de voto. As eleições de 1982 217
A campanha de 90. Brizola volta ao governo 231
O fracasso do projeto nacional. A eleição de 1989 238
Transferência do carisma 250
O carisma afogado em números (parte 1) 262
O carisma afogado em números (parte 2) 284
A(s) melancólica(s) morte(s) do brizolismo ou a memória violada 293
V. NOTAS QUASE ETNOGRÁFICAS DO PAÍS DA BRIZOLÂNDIA 301
CONCLUSÃO 347
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 351
ANEXO I 357
ANEXO II 361
ANEXO III 365

7
Agradecimentos

O presente livro é uma versão m odificada de minha tese de doutoramento


apresentada ao Instituto Universitário de Pesquisa do Rio de Janeiro (Iuperj),
em dezembro de 1997. A realização da pesquisa original só foi possível graças
à colaboração de um a série de pessoas e instituições. O CNPq financiou a
pesquisa por quatro anos, através de um a bolsa de doutoramento. O Iuperj
acolheu-me em seu programa de pós-graduação, com o que pude desfrutar da
excelência de seu corpo docente e da eficiência de sua estrutura. Sou imensa­
mente grato a todos os meus professores, através dos quais pude tom ar conta­
to com o que há de melhor nas ciências sociais no Brasil. Agradeço, também,
às secretárias, às bibliotecárias e todos os demais funcionários que contribuem
para que o Iuperj funcione de tal modo que é motivo de orgulho para qualquer
cientista social declarar sua passagem pela instituição. Dentre todos, dou um
destaque especial a Tia Lina, cujo café contribuiu muito, ao longo dos anos,
para espantar o sono proveniente do cansaço acumulado pelo trabalho.
O incentivo e cumplicidade que tive da direção, da equipe de coordena­
ção, de meus colegas e alunos do CAp., instituição onde trabalho há 10 anos,
foram fundamentais. Não posso deixar de registrar o ambiente de estímulo à
atividade intelectual e à pesquisa que preside o funcionamento desta institui­
ção de ensino médio. O mesmo pode ser sobre o Departamento de Ciências
Sociais da Uerj, onde trabalho desde 1995. Sou grato a todos os meus colegas
e alunos. Dentre os primeiros, destaco a memória de Luis Rodolfo da Paixão
Vilhena, amigo desde os tempos de graduação. Sua morte prematura deixou a
dor da perda de um amigo e a suspensão dos planos feitos “pra depois da
tese” . Dentre os alunos, destaco a colaboração de Luis Antônio Adão, que,
sem qualquer contrapartida, se desdobrou fazendo contatos para entrevistas e
levantando material sobre o PDT.
Thereza Vicente Vianna participou diretam ente da pesquisa, desde sua
concepção, indicando bibliografia, discutindo cada passo do trabalho e esti-
mulando-me nos momentos de cansaço e desânimo. Américo Guichard Freire
e Clóvis de Figueiredo Neves Filho colocaram sua cultura histórica a serviço
de m inha pesquisa ao longo de todo o processo de sua feitura, sugerindo

9
fontes de dados, temas a serem abordados e material bibliográfico a ser consul­
tado. Thereza, Américo e Clóvis foram, sem dúvida, interlocutores preciosos,
ao longo dos seis anos em que estive envolvido neste projeto. Marylene Vianna
contribuiu, desinteressada e generosamente, no fatigante trabalho de transcri­
ção das entrevistas. Devo mencionar, também, o estímulo recebido pelas Sen-
to-Sé, com as quais me orgulho de estar ligado pelo sangue e pela afeição.
Agradeço também a todos aqueles que se dispuseram a colaborar com m inha
pesquisa, concedendo-me os depoimentos sem os quais este trabalho não seria
possível. Todos foram extremamente gentis e atenciosos. Seus nomes encon­
tram-se listados no final desta edição. Dentre eles, porém, não posso deixar de
destacar Trajano Ribeiro, Clóvis Brigagão, Teodoro B uarque de H olanda e
Rosa Cardoso, que se empenharam especialmente em conseguir documentos
do PDT e materiais preciosos para meu trabalho.
Aos membros da banca examinadora, que avaliaram o trabalho original,
professores César Guimarães, Renato Lessa, Gildo M arçal Brandão e M areio
Goldman, registro a gratidão pelas observações críticas. Fiz o possível para
incorporá-las ao texto final. As omissões devem-se às minhas próprias limita-
ções. Espero fazer m elhor em uma próxim a oportunidade. César Guimarães,
que já contribuíra bastante, ao longo da pesquisa, voltou a, generosam ente,
conversar longamente sobre imprecisões, ambigüidades e omissões, para a pre­
paração do material do livro. Sou-lhe imensamente agradecido por estas e m ui­
tas outras contribuições, ao longo de minha trajetória intelectual. Após o perío­
do “dramático” de feitura da tese, quando preparava os originais do presente
livro, pude desfrutar dos comentários de M arcelo Jasm im Sou-lhe, também,
enormemente grato.
Finalmente, gostaria de registrar a importância de Luiz Eduardo Soares,
orientador da tese que deu origem a este livro. O trabalho de discussão e elabo­
ração da pesquisa foi apenas um pequeno capítulo de uma relação através da
qual pude tom ar contato com um espírito aberto e generoso. Sua importância
em minha carreira acadêmica é enorme. De Luiz Eduardo tenho tentado assi­
milar o entusiasmo pelo trabalho intelectual, a retidão profissional e o respeito
pela diversidade.

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Forma e Conteúdo da Política:
João Trajano Sento-Sé redescreve
a saga brizolista
Luiz Eduardo Soares
(Professor do Iupeij e da Uerj, atualmente
sub-secretário de Segurança do estado do Rio de Janeiro)

O livro de João vai se tom ar leitura obrigatória na academia, não tenho


dúvida. Creio que também se tom ará leitura indispensável a todos que se inte­
ressam pelos destinos das sociedades contemporâneas e, portanto, pela história
do Brasil. Quando o Iuperj premiou a tese de doutorado de João como a melhor
de 1997, já havia, ali, naquele gesto institucional, o reconhecim ento desses
méritos. Afinal, os que conhecem de perto o Iupeij sabem que 1997 foi uma
safra absolutamente excepcional, na quantidade - 23 teses foram defendidas,
em ciência política - e na qualidade. A tese virou livro, sem alterações significa­
tivas, porque o trabalho já estava bastante maduro.
Não me cabe, em uma breve apresentação, introduzir os argumentos cen­
trais do livro. Os leitores encontrarão no autor um guia sereno, sofisticado,
seguro e, ao mesmo tempo, atraente, persuasivo e didático. Não será preciso,
aqui, antecipar-lhe os passos. M eu papel deve ser suplementar, aduzindo consi­
derações que ultrapassem o âmbito de abrangência da temática focalizada, no
livro, ajudando a contextualizá-lo e a demarcar a importância, e a originalidade,
de sua contribuição. Será necessário, então, olhar em volta e darmo-nos conta
da história em que estamos metidos. Não da história política, porque dessa
trata, e bem , o autor. M as da história intelectual recente brasileira. De que
enredo somos protagonistas?
Durante muitas décadas e até o início, pelo menos, dos anos 80, as ciências
sociais foram, para várias gerações, uma espécie de compromisso de vida, de
missão ético-política, cuja finalidade últim a não era o sucesso profissional, cul­
m inância de um a carreira, m as a transform ação do Brasil. E esse horizonte
típico-ideal marcou profundamente todas as dimensões das trajetórias e obras
dos intelectuais, por mais que nossos engenhosos colegas, leitores de Bourdieu

11
ou fiéis à teoria liberal do mercado, procurem dem onstrar que era apenas a
carreira que se escondia, solerte, e se realizava, sob as máscaras honradas dos
propósitos coletivos e sob os valores ideológicos dos projetos políticos. Como
em quase tudo na vida, diferentes pontos de vista são plausíveis, à imagem dos
exercícios gráficos de Escher, em que os labirintos das escadas ora recuam, ora
avançam , na direção do observador. Creio que este livro foi escrito de um
ponto de vista autoral, para cuja autoconstrução continuam relevantes os qua­
dros de referênca do passado: ao intelectual compete repensar seu país para
inventar soluções e ajudar a mudá-lo.
Brizóla, apesar de ainda ativo, na cena contem porânea, tam bém foi um
político do passado, de tempos heróicos e proféticos, quando o carisma carre­
gava as promessas messiânicas de salvação nacional e, eventualmente, de re­
denção universal.
A tendência que organiza a vida intelectual brasileira, nos últimos anos, tem
sido a nova ordem acadêmica, de inspiração norte-americana, cuja matriz é a
especialização, a institucionalização das disciplinas, a redefinição do universo
de referências em função das exigências da carreira e da lógica da profissio­
nalização. Em síntese, resultam desse processo muitas conquistas significati­
vas, m as também algumas perdas. Entre elas, destaca-se a perda do sentido
ético-político, antes chave para a própria identidade intelectual, como estilo de
vida e vocação. A profissão substitui a vocação, reificando os valores conferi­
dos a seus instrumentos imediatos e naturalizando os significados que derivam
de sua experiência limitada, autocentrada e reiterativa.
Quem ousaria, nesse fim de século, criticar a modernidade? Para superá-la
com insinuações pós-m odem as, vá lá... mas para valorizar o passado... não
faria sentido. Fechamos o século XX, celebrando o diagnóstico de M ax Weber:
os processos de racionalização, autonom ização das esferas, diferenciação e
especialização de fato se impuseram. E o fizeram a um preço por vezes inferior
ao que W eber antecipara, mergulhado nas sombras de seu ceticismo. Houve
efeitos de composição que terminaram por democratizar o processo que Weber
concebia tão perverso quanto inexorável. Por que a vida intelectual resistiria à
vaga modernizante? E por que não se beneficiaria dos efeitos paradoxais positi­
vos, como a democratização, entre outros? O que haveria de intrinsecamente
errado com a tendência que, finalmente, hoje, impera no Brasil?
Todo cuidado é pouco, em m atéria assim com plexa e rica em nuances.
Uma palavra a mais ou a menos e corre-se o risco de soar passadista, retrógra­
do, reacionário, nostálgico, idealista e até mesmo elitista. Bem -vinda a m oder­

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nização. Saudêm o-la, todos. Até mesmo porque inevitável, celebrem os seu
advento e nos preparemos para tom á-la o mais positiva possível, reduzindo-lhe
as im plicações negativas. Excelente. Ponham o-nos de acordo quanto a esse
ponto. Aceitemos a celebração, mas guardemos um a pitada acre de ceticismo,
para que não percamos nosso ânimo crítico. Pitada amarga de dúvida e hesita­
ção, autorizada pelo próprio reconhecimento weberiano de que m odernidade
traz consigo também implicações negativas. Retomemos, nesse ponto, a con­
clusão do parágrafo anterior: de que aspecto negativo falamos, afinal, já que
parece mesmo legítimo identificá-lo?
Falamos da reificação que fetichiza as disciplinas e sua estrutura organizacional;
da fetichizaçâo que concorre para a naturalização do engajamento dos cientistas
sociais na ordem que outrora fôra objeto da crítica de nossos melhores antecessores.
Recorrendo a conceitos ultrapassados, poder-se-ia sugerir a seguinte formulação:
apesar dos avanços que proporciona, nos planos da produção do conhecimento,
de sua difusão social e de sua aplicação generalizada, a tendência modemizadora,
que transforma a vida intelectual em uma profissão como outra qualquer, traz
consigo a imposição de uma ideologia, cuja assimilação corresponde ao sacrifício
da dimensão ético-política, entendida como compromisso com valores e projetos
superiores e independentes da profissão e de sua lógica, essencialmente radicadas
no mercado. Em outras palavras, por mais satisfatórios que sejam os resultados,
não nos esqueçamos que nossas disciplinas, suas condições organizacionais e
seus efeitos identitários, poderiam ser descritas como ideologias, se aceitásse­
mos, por um momento, vocabulários pretéritos, mas ainda, por vezes, úteis.
Assim como a defesa unilateral e sectária do intelectual do passado - seja o
chamado intelectual orgânico, seja o tradicional, nos term os gram scianos -
poderia degradar-se em m era peça de retórica conservadora ou nostálgica, o
elogio acrítico da tendência hoje em curso poderia também reduzir-se a simples
legitimação de um status quo empobrecedor e, às vezes, autoritário, excludente
e tirân ico , que contém , cada vez m ais, e paradoxalm ente, elem entos de
irracionalismo e de barbárie, sob a forma de idolatrias fetichistas diversas (como
a metodolatria neopositivista tão sedutora e fashionablè).
O livro de João incorpora, tacitam ente, sua voz, com dicção própria e
resoluta originalidade, ao debate contemporâneo sobre os destinos dos intelec­
tuais, no mesmo movimento em que se abre, com rara generosidade e grande­
za, para a singularidade do percurso de Brizóla e do brizolismo, cujos embara­
ços com a modernidade são análogos aos vividos pelos intelectuais críticos, em
seu próprio campo de autoconstituição identitária.

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A relação de proximidade e distância de João-autor com os procedimentos
e linguagens das ciências sociais profissionalizadas parece mimetizar, inconsci­
entemente, as circunvoluções de seu objeto. Ele conhece e domina os recursos
conceituais das disciplinas em que se apóia, mas recusa sacrificar sua posição
sujeito-autor para fazer falar a ciência: disciplina. Jamais veremos a teoria ou o
m étodo operando, como que se reproduzindo por autom atism o inercial. Há
sempre a mediação do autor. E isso, longe de traduzir narcisismo, expressa a
natureza eminentemente reflexiva da linguagem que João cria e em que é cria­
do, como personagem-narrador, isto é, ponto de vista. Em o fazendo, afirma
sua sincera humildade epistemológica, porque desnuda o caráter inexoravelmente
relativo e contextuai das interpretações e de suas motivações.
Brizóla, por sua vez, e seu campo de reverberação semântica, positiva e
negativa, o brizolism o, se acomodam com dificuldade à lógica do m ercado
político, em sua versão liberal fin-de-siècle. É verdade que Brizóla sempre foi
um homem de comunicação, por assim dizer, e não teve problemas em passar
do rádio para a TV. O líder gaúcho-fluminense sempre foi bom de palanque e
de televisão. Todavia, isso não basta para fazê-lo um homem de comunicação
ou de mídia, no sentido contemporâneo. No quadro do mercado político liberal,
a mídia é o espaço de adequação progressiva à gravitação imposta pelo centro e
exige uma enorme agilidade e competência específica, seja na resposta-incor-
poração das pautas conjunturais, seja na produção antecipada de pautas, que
invertam dinâmicas e focos, em beneficio dos que passam a dominar a agenda,
introduzindo tem as que lhes interessem, capazes de propiciar coalizões m o­
m entaneam ente convenientes. B rizóla tem sido, ao longo de sua trajetória,
infenso a pautas alheias e à automodelagem ditada pelas conveniências da opor­
tunidade. Em certo sentido, poder-se-ia dizer que B rizóla foi gradualm ente
alijado da competição política, na medida em que não cedeu à força de gravitação
determinada pelo centro. Gravitação inevitável, porque resultante das lógicas
do mercado eleitoral e da mídia.
O poder da mídia está, sobretudo, em sua capacidade de introduzir temas
na agenda pública e focalizá-los, contribuindo intensamente para o estabeleci­
mento da hierarquia que identifica prioridades. E isso é decisivo, já que o resul­
tado dos embates políticos depende da capacidade que cada ator demonstra de
somar forças e ampliar alianças, em cada momento, em face de cada disputa
específica. Tal capacidade, por sua vez, não é atributo intrínseco ao ator, mas
função do tema posto em disputa e dos posicionamentos respectivos, em rela­
ção ao tema em causa. Conseqüentemente, vence quem pauta, quem domina a

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confecção da agenda, quem seleciona os objetos da disputa, um a vez que essa
seleção implica a escolha de aliados potenciais e inimigos virtuais. A complexi­
dade desse jogo, que não se reduz à mídia, mas nela encontra sua arena estraté­
gica, tende a refletir o predomínio inexorável do centro ideológico, como eixo
fundamental de gravitação política, se denominarmos centro o instável e tenso
equilíbrio do mercado de opiniões. Em outras palavras, a virtude política con­
temporânea, isto é, a aptidão para o êxito, corresponde à capacidade de sintoni­
zar-se com a tendência predominante na sensibilidade pública, que privilegia
posições moderadamente conservadoras. O senso de oportunidade, outrora es­
tigmatizado no jargão político, emerge como qualidade exponencial. O político
m oderno é um em preendedor orientado para um a carreira individual que se
credencia ao sucesso na m edida em que m axim izar vantagens, sustentando
posições e atuando sobre o imaginário coletivo de forma a contemplar as ex­
pectativas dominantes, em cada contexto. O mercado como conteúdo e como
forma. O oportunismo sem nenhum caráter como expressão perform ática de
uma espécie de estética fetichista do êxito a qualquer preço. Ora, Brizóla pode
ser condenado por todos os pecados e todos os defeitos, mas tem a virtude de
não se conform ar a esse molde medíocre e despotencializador. Sua liderança
manifesta-se como educativa e formadora de uma visão de mundo, como tribu­
tária de uma tradição e provedora de uma narrativa própria, em cuja trama a
história brasileira ganha inteligibilidade. Pode ser condenado por anacrônico,
autoritário e messiânico; afinal, esse é o custo do atrito entre a construção de
uma persona inadequada ao modelo rígido da modernidade. Mas, para o bem e
para o mal, representa a resistência à lógica contemporânea do mercado políti­
co m idiático. Certam ente, é m ais fraco que a força de gravidade de nosso
adm irável m undo novo, mas tem o mérito de ostentar a m arca de um outro
mundo possível, cujas versões provavelmente não se esgotam em suas atuali­
zações pretéritas e em suas formulações primitivas e caricatas. Política como
Bildung, como Paidea, à qual se restitui a dignidade da Nation Building em
um tem po pós-nacional. Por que não? Com um a nova estética e um a outra
ética, diversa da ditadura do mercado; quem sabe?
Assim como a história, ainda em curso, do brizolismo, nos autoriza a imagi­
nar revisões profundas do Brasil e da lógica política do liberalismo tardio, sem a
ingenuidade de adesões nostálgicas ou do apoio a simplificações e reducionismos
de todo o tipo, que poderiam conduzir ao irracionalismo rasteiro e à paranóia
mais barroca, o texto de João nos proporciona a oportunidade de uma reavaliação
radical da forma de produção de conhecimento dominante na universidade brasi-

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leira, particularmente na pós-graduação. A leitura de seu livro demonstra a rique­
za de que são capazes os híbridos discursivos, quando as transgressões disciplina­
res de que resultam encontram fundamento nas necessidades ditadas pelos desa­
fios da análise e são praticadas com rigor. João combina recortes historiográficos,
etnografia, reflexões teóricas derivadas da filosofia política clássica e moderna,
discussões sobre teorias políticas contemporâneas, abordagens sociológicas e an­
tropológicas, e alguns insights provenientes da teoria literária. A erudição do
jovem pensador brasileiro, neste livro, não está a serviço da auto valorização
vazia, da autopromoção no mercado de talentos, mas da compreensão mais am­
pla, mais nuançada, mais generosa porém crítica, de um objeto tão evasivo e
complexo, multifacetado e multidimensional, quanto ainda vivo e ainda imprevi­
sível, em seu trajeto histórico.
Espero que os leitores tenham a mesma sensação gratificante de aprendiza­
do e surpresa, de desconforto iluminador, de provocação desconcertante e de
profunda em patia hum ana que eu tenho experim entado todas as vezes que
releio este belo texto. Talvez um dos segredos desses efeitos estéticos e cognitivos
esteja na mimesis interna, rigorosa mas despercebida, que o novelo dos argu­
mentos realiza, compartilhando idêntico desconforto com a modernidade tardia
e engatando sua forma narrativa à alma evanescente de seu objeto.

16
Introdução

Farto de, ao confessar o tema de minha pesquisa, ser inquirido por amigos,
colegas, parentes e vizinhos se pretendia escrever contra ou a favor do brizolismo,
redefini o objeto de análise que, como de praxe, declaro nessa introdução:
chamo de brizolism o os discursos acerca da figura de Brizola, o significado
atribuído à sua liderança ao longo dos últimos anos, a forma como foi percebi­
da por aqueles que são ou foram a favor dele e por aqueles que a ele se
opuseram. Objeto inglório, posto que, a despeito dos recorrentes sepultamen-
tos, Brizola permanece sendo uma referência importante e em plena atividade
na política carioca e brasileira.
Brizola iniciou-se na política ainda na década de 40, ocupando cargos eletivos
em vários níveis do poder público. Foi prefeito de Porto Alegre, governador do
Rio Grande do Sul e duas vezes governador do Rio de Janeiro. Foi, também,
duas vezes deputado estadual pelo Rio Grande do Sul e duas vezes deputado
federal (uma pelo Rio Grande do Sul, e outra, pelo antigo estado da Guanabara).
Teve a amarga experiência do exílio, que ciclicamente algum as gerações de
políticos brasileiros foram obrigados a enfrentar. Foi um político, portanto, que
atuou em “brasis” diferentes. Daí a dificuldade de se fazer um estudo partindo
de toda a sua trajetória. Fiz uma escolha talvez um pouco arriscada, ao definir o
recorte histórico privilegiado: tentei analisar o brizolismo a partir dos debates
imediatamente anteriores a seu retomo do exílio até 15 minutos antes de con­
cluir a presente introdução. Intuindo a existência de vários brizolismos possí­
veis, concentrei a pesquisa nos significados atribuídos à sua atuação no Rio de
Janeiro.
São muito comuns as percepções contraditórias acerca de Brizola e do que
ele tem representado em sua atuação na esfera pública. É muito raro, porém, que
tais percepções não sejam marcadas por emoções e convicções fortes. Pode-se
dizer que há, quase sempre, uma boa dose de paixão, quando se trata de abordar
o significado de Brizola na política brasileira. Isso vale tanto para os que são
brizolistas, quanto para os antibrizolistas. Tal passionalidade tende a mascarar o
fato de que nos debates em tomo do que representam Brizola e o brizolismo está
em jogo muito mais do que a disputa sobre uma personalidade polêmica e contro­

17
vertida. Estão em questão imagens do Brasil, representações da ordem, fantasias
do futuro. Aí está o que há de mais fascinante no brizolismo. O capítulo I é o
esforço de definir o brizolismo dessa maneira. Na expectativa de tê-lo definido a
contento e convincentemente, passo a destrinçar os fios que compõem essa rede
de significações, o brizolismo? No capítulo II, dedico-me ao processo de criação
da persona pública de Brizóla, tentando descrever as formas como ela é articula­
da à tradição trabalhista e à composição de um a narrativa sobre o Brasil, a cons­
trução de sua história passada (a invenção de um passado glorioso) e o diagnósti­
co de seu presente. O sucedâneo necessário do diagnóstico é a formulação, ainda
que não sistemática, de um projeto de futuro, tema abordado no capítulo III. No
que chamo de projeto civilizador brizolista, símbolos, imagens e valores são far­
tamente utilizados. Mote central: o nacionalismo. O capítulo IV é dedicado às
percepções da atuação política brizolista, aos princípios que a presidem e aos
significados a ela atribuídos. Como nos primeiros capítulos lido com fontes de
dados diversas, atores políticos identificados com correntes díspares e, por vezes,
contraditórias, optei por dedicar o capítulo V a um ator específico: o Movimento
Popular da Brizolândia. Na pesquisa, a Brizolândia assume o papel de fonte da
percepção popular do fenômeno do brizolismo.
Que não se criem falsas expectativas. Este é um trabalho a respeito dos
discursos sobre o brizolismo. Não se trata, portanto, nem da história de Brizóla,
nem da história do brizolismo. Não é, tampouco, um estudo sobre os governos de
Brizóla. Dado o caráter polêmico de sua imagem, optei por destacar o aspecto
que me pareceu mais interessante de sua trajetória recente: as significações a ela
atribuídas. Como já mencionei, estou convencido de que tais debates são extre­
mamente elucidativos dos confrontos mais gerais travados na esfera pública bra­
sileira, em geral, e carioca, em particular. Dilemas clássicos da política brasileira
são postos em cena: moderno/arcaico, ordem/desordem, tradição/ruptura, elites/
massas. Tais dilemas são associados, de modos diferentes, à persona de Brizóla,
que funciona quase como um pretexto para o enfrentamento. No debate político,
brizolismo e brizolista têm funcionado, preferencialmente, como adjetivos, evo­
cados positiva ou pejorativamente. Da forma que serão abordados, brizolista é o
nome do discurso de atores políticos que fazem da adesão a Brizóla o princípio
de identidade fundamental em sua inserção na esfera pública. Brizolismo é o
nome do campo de embate de significações divergentes acerca da política brizolista.
Ambos são, portanto, substantivos. O mesmo vale para antibrizolista. Peço des­
culpas antecipadas aos antibrizolistas por me ter deixado seduzir pelo objeto.
Desculpo-me, também, com os brizolistas, por ter sido tão resistente às seduções.

18
I

Do Brizolismo Utópico ao
Brizolismo Científico1

om entando o pensam ento político de Weber, Raym ond Aron cham a


C atenção para aquilo que lhe parece a mais notável de suas contribuições
2
para a tradição da teoria política moderna. Segundo ele, Weber teria sido o
primeiro a definir as diferentes formas de govemo sob bases diversas daquelas
firmadas desde Aristóteles. Como é sabido, o critério diferenciador das formas
justas de govemo, segundo Aristóteles, reside no número dos que governam.
Existiriam, dessa maneira, três formas de govemo: o govemo de muitos (a demo­
cracia), o govemo de poucos (a aristocracia) e, finalmente, o govemo de um só (a
monarquia). Segundo Aron, a perenidade do critério aristotélico é afiançada por
sua adoção ainda em Montesquieu, que, alterando a terminologia (República,
aristocracia e tirania), preserva o princípio numérico, adicionando aos dois pri­
meiros - República e aristocracia - um princípio ético fundamental (a virtude e a
honra, respectivamente). A perspectiva clássica confere à abordagem das formas
de govemo um enquadramento que privilegia a resposta à pergunta: quem gover­
na? A abordagem weberiana, por outro lado, pode ser sumarizada como o esfor­
ço de responder a uma pergunta de outra ordem: por que os que são governados
aceitam e consideram legítimo o govemo daqueles que detêm o poder de mando?
Ela representa, portanto, uma dupla inflexão. Primeiro, porque não se atém ao
critério numérico, optando por uma abordagem substantiva e não apenas formal
da configuração do poder político. A segunda, corolário da primeira, porque
destaca as m otivações que aqueles que são governados têm para obedecer,

1 O nom e deste capítulo me foi sugerido por Eduardo Costa, que me relatou com o, nas reuniões do partido, ele e
A ntonio Pedro planejavam , em tom de pilhéria, escrever, em conjunto, uma obra cujo título utilizo, respeitosamente,
para a b rir m inha investigação.
2 Ver Aron, 1987.

19
centrando nelas o foco de análise. O esforço em responder à pergunta sobre a
legitimidade do poder, tal como percebido por aqueles que obedecem, é, portan­
to, a base para a formulação weberiana dos três tipos puros de dominação que
constituem o corpo conceituai de sua teoria política.
Justiça seja feita, a teoria política weberiana é a elaboração mais bem acaba­
da de uma intuição que já tivera Gaetano Mosca. Através dos conceitos de fór­
mula política e vínculos morais, o teórico das classes dirigentes já percebera a
conexão entre as formas de governo e os valores vigentes na sociedade em que
são exercidas. Possivelmente absorto pelo que julgou sua percepção mais fecun­
da, a que postula a divisão das sociedades em classes dirigentes e dirigidas, como
lei geral da política, Mosca acabou por dar maior ênfase à investigação sobre as
formas de recrutamento e renovação das classes dirigentes, relegando a segundo
plano suas conexões com o mundo dos valores radicados na sociedade. Ainda
que nem sempre de modo sistematizado, Weber procurou ir mais longe na inves­
tigação dos processos sociais de legitimação do poder político, o que foi feito em
momentos diversos de sua carreira intelectual, integrando de modo substantivo a
tipologia forjada, a partir desse esforço, à sua teoria da ação social. O sucesso de
seu empreendimento é atestado pelo caráter paradigmático que os três tipos puros
de dominação - tradicional, racional-legal e carismática - passaram a ter. Mesmo
quando não utilizados explicitamente, os tipos puros de dominação exerceram (e
continuam exercendo) o papel de referentes tácitos, princípios orientadores de
uma série de análises políticas, ao longo de todo o século XX. As formas puras de
dominação legítima são constructos teóricos, cuja matéria-prima é a combinação
de uma extrema sensibilidade quanto aos dilemas do mundo moderno e uma não
menos notável erudição histórica. Os três tipos de dominação, estabelecidos por
Weber, definem, de modo criativo, formas, observáveis historicamente, de exer­
cício do poder e de administração pública, ao mesmo tempo que denotam alguns
dos impasses mais dramáticos do Ocidente na virada do século. O tipo racional-
legal dá conta do processo de burocratização dos negócios políticos, cuja lógica
ganha maior relevância à medida que a consolidação dos Estados nacionais, a
divisão do trabalho e o crescimento da economia de mercado ampliado se genera­
lizam para além das fronteiras européias. O problema da burocracia foi enfrenta­
do por praticamente todos os intérpretes da sociedade e da política contemporâ­
neos a Weber, sendo raros, contudo, aqueles que investigaram o tema de forma,
a um só tempo, tão obstinada e melancólica. Do mesmo modo, no conturbado

3 Este é um problem a abordado por Mosca já em suo primeira obra clássica, Teórica dei governi e governo parlam enttari,
de 1884.

20
contexto de transição para a modernidade, em que mudanças de todas as ordens
limpavam os últimos resquícios do Antigo Regime, e os Estados nacionais luta­
vam para consolidar-se definitivamente, a tradição era moeda analítica corrente,
sendo evocada, ora como nostalgia de uma ordem agonizante, ora como cimento,
solo comum, para a nova ordem que se delineava. Embora sejam recorrentes as
alusões de Weber às formas de poder tradicional radicadas no passado histórico,
ele bem sabia que o confronto entre o poder racional-legal e o tradicional (ou a
combinação de ambos) não se resumia a uma mera equação entre o antigo e o
moderno. Os tipos puros de dominação não são, portanto, conceitos históricos,
não funcionam para definir formas de governo datadas historicamente, que se
transmutam num processo evolutivo. São conceitos analíticos, através dos quais
abre-se uma linha de interpretação sobre as motivações que presidem as relações
de poder nas diversas sociedades. O mesmo ocorre em relação ao terceiro tipo
puro de dominação: o carismático. Aí, mais do que em qualquer outra passagem
de sua obra, Weber revela-se filho de seu tempo. No poder carismático, são
apontadas virtudes que evidenciam uma certa sim patia de Weber por ele. O
poder carismático é diferente dos demais, por ser uma espécie de forma de tran­
sição, que irrompe em momentos de crise para logo após extingüir-se completa­
mente, ou ver minimizada sua força inicial pela rotinização. No segundo caso,
alguns dos componentes das duas outras formas de poder, ou de uma delas,
imiscuem-se na dinâmica do carisma, conferindo uma estabilidade nas relações
de poder que ele próprio não é capaz de engendrar.
E justam ente por identificar no carisma um imenso potencial criativo que
Weber lhe dedica atenção especial. O carisma funciona como uma espécie de
contraponto às tendências conservadoras e estabilizadoras da tradição e da
racionalidade legal. E força de mudança. É, nesse sentido, extremamente positi­
vo, chegando a funcionar como um dique à hipertrofia do poder burocrático, nas
democracias de massa. A abordagem de Weber é extremamente singular, sobre­
tudo se cotejada com as principais teorias sobre o líder de massas formuladas a
partir da segunda metade do século XIX. No entanto, Weber preserva algumas
das impressões típicas de seu tempo. A mais proeminente delas é a que explica a
adesão das massas ao líder carismático por ser ela portadora de um suposto
primarismo, de um caráter passional e irracional norteando a sua intervenção no
espaço público. Dentre os aspectos do tipo de dominação carismática, este foi o
mais explorado por seus pósteros, que se preocuparam, especialmente, com os
riscos contidos na capacidade de manipulação das massas pelo líder. A discussão
sobre as potencialidades disruptivas e desestabilizadoras da liderança carismática

21
será feita no capítulo IV. Deter-me-ei, aqui, no problema específico da legitimação,
na identificação com o líder carismático por parte de amplos contigentes do corpo
social, tomando especificamente o caso do brizolismo.
Há um consenso (um dos poucos) quanto ao caráter fortemente carismático
contido no tipo de atuação política assumida por Brizóla, em toda a sua carreira.
Dado o contexto histórico em que ascende no cenário político brasileiro (década
de 50 e início dos 60), Brizóla foi identificado não somente como líder carismático,
mas, também, como liderança tipicamente populista. A combinação de carisma e
populismo, no contexto da América Latina, em geral, e do Brasil, em particular,
ensejou uma leitura que tende a ser extremamente negativa quanto às qualidades,
tanto do líder, quanto da adesão a ele. O primarismo, centenariamente advogado,
que sustentaria a adesão à liderança carismática, seria reiterado pelos vínculos
deste com um sistema político marcado pela fragilidade dos pactos políticos e
pela instabilidade institucional. Esse foi, em grande medida, o sentido atribuído ao
brizolismo. Uma forma de inserção na vida públfca marcada pela passionalidade,
irracionalidade, falta de consciência e desorganização política das massas urba­
nas. Brizóla seria um demagogo hábil em manipular as aspirações e volições das
massas, suas fantasias e frustrações, colocando a seu serviço uma rede de símbo­
los e imagens capazes de fazer com que elas (as massas) o identificassem como
expressão legítima de seus desejos e necessidades, uma espécie de Messias secu­
larizado. E difícil, porém, em uma análise sistemática e criteriosa, não colocar sob
suspeita os pressupostos implicados em tal veredicto. Não propriamente, ou não
apenas, quanto ao brizolismo, no sentido mencionado acima, mas à própria no­
ção de liderança carismática.
O vínculo quase m ecânico estabelecido entre liderança carism ática e
primarismo político parece ser um daqueles casos em que certas correlações
mantêm-se, através das décadas, por uma espécie de força de inércia. Adotando-
o acriticamente, parecemos esquecer que ele é fruto de um ambiente intelectual
em que se supunha ter-se encontrado um veredicto final para o problem a da
conduta humana, a qual seria presidida pela adoção de um certo tipo de racionalidade
(supunha-se, então, ter-se alcançado, também, um denominador comum sobre o
que significava agir racionalmente) e, finalmente, que boa parte dos seres huma­
nos era apenas parcial e precariamente contemplada com essa forma secularizada
de dom. As implicações epistemológicas, políticas e culturais de tais pressupos­
tos, tacitamente aceitos nos usos correntes do conceito de carisma, parecem não
ter muita relevância ou não ser objeto de discussão. É verdade que a noção de
carisma esgarçou-se sobremaneira ao longo do tempo. Hoje, ela tanto serve para

22
designar certos tipos de comportamento religioso, o que respeita, inclusive, suas
origens, quanto para designar o comportamento político, ou ainda, em versão
mais vulgarizante, explicar o sucesso de certas personalidades do show-biz, por
exemplo. Todas preservam o poder de designar um certo tipo de identificação
entre aquele dotado de carisma e os que com ele se identificam, trazendo, implici­
tamente, o reconhecimento de que tal operação se dá em larga escala. O poder de
significação do conceito é atestado pelo fato de que, independentemente dos
vários usos, ainda é possível um razoável consenso sobre o que pretendemos
designar ao utilizá-lo. Aí, também, está seu problema. Ao contrário de seu uso
comum, que denota simplesmente as qualidades pessoais que desencadeiam o
fascínio e a admiração do público-alvo em relação àquele que é dotado de carisma,
as abordagens teóricas, que têm a pretensão de conferir aos fenômenos e proces­
sos sociais um a m argem m aior de in telig ib ilid ad e, trazem , ao u tilizá-lo
heurísticamente, todos aqueles pressupostos que fundamentam sua própria for­
mulação original, como conceito sociológico e político. Seu uso passou a ter,
implicitamente, uma carga valorativa excessiva. A perenidade do sentido dado ao
conceito denuncia seu uso, arrisco dizer, inadequado.
Uma definição alternativa de carisma deve ser tentada caso se queira pre-
\ servar o conceito e seu rendimento analítico. Nela, muitos de seus componen­
tes originais podem e devem ser preservados. Talvez não se trate propriamente
de redefinir o carisma, mas de precisar m elhor as m otivações que levam à
adesão por parte de amplos grupos sociais àquele que o detêm. O tipo de
dominação carismática é definido pela adesão a um líder a quem são atribuídos
poderes extraordinários e inexistentes nos. homens comuns. Segundo Weber, o
líder é dotado de um forte poder de comunicação, o que permite o estabeleci­
mento de um canal de interação direta entre ele e as massas, mediante o qual
são desencadeadas emoções e paixões devastadoras (motivações preferenciais
da ação das massas), gerando estados próxim os ao êxtase. A questão a ser
colocada é: para além dos recursos oratórios, da retórica inflamada e dos rituais
públicos em que multidões se reúnem em praça pública, compartilhando uma
espécie, de sentimento coletivo de desindividualização, o que faz com que as
massas sejam tocadas pelo líder carismático? O recurso à irracionalidade e ao
primarismo das massas, bem como à sua “instabilidade crônica”, pode ser um
conveniente recurso explicativo, nos casos em que o poder carismático irrompe
para, logo depois, vitim ado pela precariedade das bases de adesão, perecer
inelutavelmente. Ele é, no entanto, inadequado para os casos em que o carisma
alcança perenidade, sem prejuízo de seu vigor inflam ado, vale dizer, sem

23
rotinização. Há casos da história política recente em que a reprodução do carisma
pode ser razoavelmente explicada pelo uso discricionário da força, da censura e
4
da manipulação dos canais de com unicação e interação no espaço público.
Esses seriam os métodos mais comuns de perpetuação da ascendência de figu­
ras carismáticas em regimes autoritários ou totalitários. Nesses casos, porém,
dar-se-ia algo próximo do que Walter Benjamin chamou de estetização da polí­
tica. Segundo ele, a valorização do ideológico, nos regimes fascistas, é operada
como pura encenação, teatralidade, simulação, farsa. Representa a ritualização
da ideologia, a veneração do chefe marcada pelo como se. Não se opera uma
força performativa que capture realmente os indivíduos. A adesão ao chefe, a
força performativa própria do discurso político, nos regimes totalitários, é ape­
nas simulação de discurso prático-ideológico.
O mesmo não pode ser dito quanto aos regimes competitivos. Nesse caso,
cabe reconhecer que o líder carismático extrai seu poder da capacidade privile­
giada de mobilizar símbolos, imagens, fantasias, representações sociais firme­
m ente enraizadas no grupo social no qual desponta, obtendo sucesso na
vinculação desse conjunto de fatores da vida social, podemos dizer, do imagi­
nário da sociedade, à sua figura e à forma como ela é coletivamente percebida.
Aceitando tal hipótese, pode-se dizer que existe um vínculo estreito entre o
surgimento de líderes carismáticos e a cultura da sociedade em que eles emer­
gem. Isso não é o mesmo que afirmar a tendência de certas sociedades a se
constituírem em campo propício à emergência de líderes carismáticos. Signifi­
ca, pura e sim plesmente, que é na capacidade de operar o referido vínculo
líder/imaginário social que reside o fundamento de sedução e fascínio do líder.
O extraordinário, em sua performance, está no fato de personificar, de modo
eloqüente o bastante para que seja aceito como legítimo por amplos setores
sociais, um conjunto de imagens e símbolos que são forças estruturantes da
sociedade, de seus sonhos e mitos. Sendo assim, a adesão ao líder carismático
é interpretada, pelos atores políticos, como resposta positiva à representação
que fazem de si próprios. A adesão é, portanto, dotada de sentido e forma um
todo coerente com as expectativas e visões de mundo socialmente construídas.
Temos, então, uma estetização da política de ordem diferente daquela descrita
por Benjamin. Imagens, símbolos, ritos, festas, edifícios e monumentos são

4 C reio que estes sejam os casos de líderes políticos com o Stalin, Mussolini, Hitler e Fidel, por exemplo. Há uma vasta
bibliografia que associa a fabricação do carisma em contextos de regimes autoritários ou totalitários. O mesmo não
ocorre, lam entavelm ente, no que toca às dem ocracias, ao prestígio de certos chefes políticos e sua im portância no
desempenho eleitoral de seus respectivos partidos.
5 Sobre o conceito de estetização da política, em Benjamin, ver, Zizek, 1992.

24
construções discursivas, linguagens que se articulam narrando e celebrando a
história que a sociedade constrói de si mesma, na qual ela própria é o protago­
nista e tem no líder seu centro de referência.
Cabe, portanto, destrinçar os fios simbólicos que se articulam nessa cons­
trução da realidade, que é expressa e redunda na adesão ao líder carismático.
Entendidos dessa forma, os processos de adesão ao carisma podem ser encara­
dos como princípio e efeito de produção de uma linguagem simbólica. Tomo a
noção de linguagem simbólica tal como definida por Berger e Luckman. Se­
gundo eles, a linguagem é capaz de integrar esferas de realidade tão distintas
entre si, como, por exemplo, daquela relativa ao mundo dos sonhos à mais
diretam ente fundada na vida cotidiana. A linguagem sim bólica realiza a
transcendência pela qual esferas distintas de realidade são superpostas e dota­
das de sentido. Ocorre, então, o grau máximo em que a significação lingüística
se desprende da facticidade imediata do mundo cotidiano. A linguagem simbó­
lica é capaz, então, de erigir “imensos edifícios de representação simbólica
que parecem elevar-se sobre a realidade da vida cotidiana como gigantescas
presenças de um outro mundo. ” Aos sistemas simbólicos mencionados pelos
autores como os mais importantes historicamente - a religião, a filosofia, a arte
e a ciência - , deve-se acrescentar mais um: a política. Isso porque, como eles
próprios reconhecem, a linguagem não somente é capaz de criar símbolos alta­
mente abstratos, como de fazer com que retom em à esfera da vida cotidiana,
constituindo-se em elem entos essenciais dela, e da apreensão subjetiva que
dela tem o senso comum. Ou seja, faz com que sejam entendidos como aspec­
tos da realidade objetivamente dada. A forma pela qual o mundo da política é
apreendido pelo ordinário dos homens está povoada de símbolos e sinais desse
tipo. De enclaves de realidade, onde esferas distintas se superpõem e orientam
as formas de percepção dos processos que se desenrolam no mundo objetivado.
O brizolismo, entendido como adesão à liderança de Brizola, é aqui tratado
como um caso típico, em que a correlação entre o imaginário social e o líder foi
operada por longo tempo. Provavelmente, tal correlação perdura, ainda hoje.
Quando os militantes da Brizolândia, com seu alegado primarismo político e
intolerância, repetem ciosamente que não cultuam a figura de Brizola, mas as
idéias com ele partilhadas e o que ele representa no cenário político brasileiro,
seus projetos e utopias, estão, a seu modo, revelando algo que não pode passar

6 Berger & Luckman, 1 9 7 8 :6 0 -1 .

7 lbid,P'6' ^fUC-PJO j
25
despercebido aos olhos do intérprete interessado. Não se trata, nesse caso, de
uma postura apenas defensiva contra as acusações de personalismo que suposta
e provavelmente teriam presidido o movimento. Trata-se da revelação, possivel­
mente involuntária, de um aspecto da adesão ao chefe carismático pouco explo­
rado nas análises políticas que se dedicaram ao tema. O brizolismo é um caso
típico de adesão ao líder carismático e há nele indícios mais do que eloqüentes do
personalismo que o sustenta. Ocorre, porém, que tal personalismo tem como
condição de possibilidade a constatação de que Brizóla, sua persona pública, é
expressiva de um conjunto de representações sociais fortemente enraizadas na
cultura brasileira (ou carioca?). Mais do que isso, ele foi, ao longo dos anos em
que tem atuado ativamente na esfera pública, referência fundamental para a cria­
ção e ressemantização de imagens sociais com amplo trânsito em diversas esferas
da sociedade. Respeitando, e, talvez, levando às últimas conseqüências a intuição
weberiana, segundo a qual é nas motivações para a obediência daqueles que são
comandados que devemos extrair a definição do tipo de poder político, a identifi­
cação líder carismático e liderados não pode ser encarada como a mera manipula­
ção engenhosa dos símbolos e imagens por parte daquele(s) que exerce(m) o
poder. Aceitar tal explicação equivaleria à capitulação frente às teorias que redu­
zem a inserção política acertada dos atores a um conjunto limitado de preceitos e
modalidades de motivação previamente definidos. Penso que, ao menos em cer­
tos casos, a adesão ao líder carismático é resultado de uma tensão geradora de
significações, que redundam na identificação, muito freqüentemente oscilante,
entre aqueles que operam a produção de significados. O papel do assessor do
chefe, do formulador político, do militante, do dirigente partidário ou do eleitor
interessado se equivalem. Esses personagens são tão importantes, no processo de
significação, quanto o próprio líder. Talvez os discursos daqueles que aderem
sejam, até mesm o, mais im portantes. D essa perspectiva, a adesão a que se
convencionou chamar de brizolismo pode ser entendida como a produção tácita
ou explícita de um mosaico de imagens, cujo contorno é revelador de uma auto-
imagem possível e plausível (por que não?) daqueles que fazem dela (a adesão) a
forma privilegiada de engajar-se nos debates pertinentes à esfera pública. Sendo
assim, o brizolismo, da perspectiva daquele que se autodefine como brizolista,
pode ser entendido como um texto, uma narrativa a ser interpretada. Nela são
veiculadas imagens do Brasil, de sua história, de suas potencialidades e fraque­
zas. Tratando-se especificamente de uma narrativa política, ela veicula, igual­
mente, uma concepção do que seja a política e das formas adequadas de atuação
nesse campo específico. Vale reiterar sempre, contudo, que esta é uma narrativa

26
composta por muitas vozes, é uma produção coletiva. Nela, não há lugar para a
passividade. Com isso, chegamos a uma primeira e parcial definição do brizolismo.
Quando tratamos de noções como universo simbólico, imaginário, represen­
tações sociais, entramos inelutavelmente na esfera da cultura e das assim chama­
das “ciências sociais”. Ora, a cultura não é uma estrutura estática, dada de uma
vez para sempre. Ela é dinâmica, simultaneamente campo de produção e produto
de tensões criativas (no sentido de Geertz) entre visões de mundo diferenciadas,
8
em alguns casos antagônicas. Se é verdade, ainda com Geertz, que os sistemas
simbólicos são programas que fornecem um gabarito para as organização dos
processos sociais e, por isso, restritivos do desenvolvim ento de todas as
potencialidades dos seres humanos (algo como o mundo objetivado de Berger e
Luckman), não é menos verdadeiro que tais restrições são inventadas pelos pró­
prios seres humanos, em processo regular de redefinição dos limites impostos à
sua própria capacidade inventiva. Elas são os fios da tão repetidamente referida
teia de significações, criadas pelos próprios indivíduos que, simultaneamente, os
limita em seu próprio fazer criativo. No caso do brizolismo, trata-se de distinguir
os fios de que é tecido e os nós resultantes de suas articulações.
Para ser entendido adequadamente, não basta que tratemos o brizolism o
como um texto cuja autoria deve ser atribuída a Brizóla e seus companheiros
de jornadas, próximos ou distantes. Vale dizer, a magnitude do brizolismo, tal
como entendo aqui, só pode ser interpretada adequadamente quando reconhe­
cemos o caráter tensionado e relacional de sua composição. Isso porque ele não
é apenas uma narrativa sobre o Brasil, sua política e sua história, mas é, tam ­
bém, um dos campos onde tal narrativa é com posta. O campo discursivo é
simultaneam ente o espaço de semantizações e produto das mesmas. Ele não
preexiste a elas, mas é, também, objeto de permanentes reconfigurações. Tal
9
processo é necessariamente relacional, tal como entendido por Bourdieu . Com
isso, fica estabelecido que a com posição do que tem sido denom inado por
brizolismo é impensável sem que se levem em conta os discursos de rejeição e
estigm atização daquilo que a figura de B rizóla representa. Tanto quanto as
significações positivas a ele vinculadas, os contundentes discursos negativos
são da maior importância. A disputa em torno de Brizóla, de seu progressismo
ou arcaísmo, de sua vocação democrática ou autoritária, de seu caráter popular
ou m anipulador, não dá conta, de modo algum, da com plexidade dos temas

8 Geertz, 1989.
9 Ver Bourdieu, 1 989.

27
relativos à política brasileira e carioca como um todo. Mas é um a das arenas de
disputas entre representações dessa realidade problemática, o Brasil contempo­
râneo. Tais representações são extremamente significativas e relevantes para os
processos políticos e sociais recentes. M obilizam imagens distintas da ordem
social, princípios de justiça muitas vezes antagônicos, formas de encarar a
natureza e os limites da ação política irredutíveis entre si.
Deve-se estar atento, contudo, que as narrativas que compõem o brizolismo,
tal como aqui definido, não são simples coleções de símbolos e imagens consti­
tuintes de um mundo das idéias. Elas orientam e conferem inteligibilidade a
ações práticas no espaço público. Sendo assim, o brizolismo deve ser entendido
tam bém como categoria da prática de atores que disputam a hegem onia no
campo político. Formas de intervenção na esfera pública são assumidas positi­
va ou negativamente a partir da maior proximidade ou distância que guardam
com a maneira de engajar-se identificada como tipicamente brizolista.
Se é assim, devemos reconhecer que o próprio sentido do brizolism o é
objeto de disputa. É no interior dessa disputa que ele se configura como campo
de representações sociais, ações práticas e projetos para o futuro. Chamo a
atenção, portanto, para um aspecto da política a que nem sem pre é dada a
devida atenção. Colada aos debates, inegavelmente cruciais, referentes à estru­
tura do Estado e aos processos institucionais do sistema político formal, há uma
dimensão do embate político que é da maior relevância: trata-se da dimensão
que, na falta de melhor termo, podemos chamar de cultural. Temos, por ela,
acesso a um a dinâm ica m arcada por dramas simbólicos, imagens de mundo
fortemente radicadas na sociedade, mitos, construções do passado e projeções
de futuro. A análise do brizolismo surpreende pela capacidade que revela de
abrir as portas para a interpretação de uma vasta coleção de representações
simbólicas, encenadas dramaticamente nos debates ocorridos na esfera pública
em tom o de seu significado. Deter-me apenas nas representações que confe­
rem legitimidade e positividade à figura de Brizola significaria reduzir sensivel­
mente o poder de mobilização e enfrentamento simbólico por ele propiciado, ao
longo das últimas duas décadas. Com o que foi dito acima, não quero dizer que
pela análise do brizolismo temos acesso à complexidade dos processos políticos
e sociais do Brasil recente. Sugiro, apenas, que, nesse debate, foi posta em
cena um a coleção nada negligenciável de tem as e imagens, cruciais para o
debate político brasileiro mais abrangente.
Assumindo tratarem-se de questões pertinentes à esfera da cultura e dis-
pondo-me a simplesmente interpretá-las, declaro, de modo explícito, a posição

28
epistem ológica assumida. Não há como desvendar a essência do brizolismo,
simplesmente porque é pouco provável que ela exista. A rigor, é pouquíssimo
provável que seja possível tratar o brizolism o no singular, m esm o que sua
definição fosse restrita às motivações que levam à adesão a ele. O brizolismo
reinventado, a partir de 1979, não é o mesmo a que se referiam os atores no
pré-64. Os atores não eram os mesmos, nem, tampouco, o contexto social mais
abrangente em que é produzido. Mesmo ao longo do período iniciado com sua
volta do exílio, seu significado sofre mudanças sensíveis. Isso não quer dizer
que não existam regularidades. Não só existem, como a sua identificação é
tarefa crucial. Ao sabor das mudanças de conjuntura, imagens são redefinidas,
outras são criadas, mas existem, também, aquelas que resistem às intempéries,
às idas e vindas dos debates públicos, com, por vezes, impressionante regulari­
dade. Também há aquelas cuja recorrência é travestida por novas roupagens e
inéditos sinais. Daí a análise que se segue estar restringida histórica e espacial­
mente. Pensar o brizolismo no período pós-79 no Rio de Janeiro corresponde a
circunscrever algumas de suas configurações e as formas com que elas são
rem etidas a questões m ais gerais da política brasileira e carioca no período
especificado, bem como à sua história pregressa. Não se trata, portanto, de
fazer a história do brizolismo, mas, antes, de reconhecer sua historicidade. Não
se pretende, sobretudo, hipertrofiar o rendimento da análise desse fenômeno
político, que marcou tão profundamente a vida política carioca recente, mas
estabelecer as conexões entre temas culturais e processos políticos nele envol­
vidos. Há um grau razoável de aleatoriedade nos recortes operados e nos temas
abordados. Apesar de todos os cuidados e esforços para circunscrevê-lo, o
brizolism o permanece, ao fim da análise, escorregadio, volátil, de definição
fugidia. Dada sua contem poraneidade, permanece como campo de possíveis
ressem antizações futuras.

O desenvolvimento da análise que se segue apóia-se, fundamentalmente,


em três fontes: consulta à imprensa, depoimento de atores políticos e consulta
de m aterial de propaganda e documentos partidários. A m ídia serviu como
im portante fonte de informação sobre os debates, travados desde 1978, que
envolveram direta ou indiretamente a figura de Brizóla. Ela funciona, assim,
como um campo bastante fértil para coleta de depoimentos, declarações e dis­
cussões que concorreram para as construções da persona pública de Brizóla.
No entanto, não se reduz a isso. Seria ingênuo supor que a mídia não passa de
um fórum de publicização dos acontecimentos e das posições assumidas pelos
atores sociais. Se ela, de fato, é campo privilegiado onde os diversos atores

29
públicos veiculam suas posições e travam confrontos com seus concorrentes,
não é menos verdadeiro que a mídia, no mundo moderno, é ela própria um ator
que produz significados, ocupando papel ativo e criativo nos debates ocorridos
na esfera pública. Mais ainda: ela é um dos poderosos criadores e definidores
da arena pública. Em seu trabalho de reinventar cotidianamente uma realidade,
que apresenta como externa e anterior a ela, a mídia é, no mundo contemporâ­
neo, um agente extremamente poderoso de produção de significações. Não é
necessário, sequer, levar em conta editoriais e páginas de opinião, para reco­
nhecer a centralidade da mídia como ator político. A abordagem imprimida ao
noticiário diário, a ênfase dada a certos eventos e personagens públicos, os
recortes operados naquilo que é veiculado como a descrição crua e natural dos
fatos são poderosos recursos de informação e, também, de formação de per­
cepções socialmente compartilhadas.
O trabalho mais exaustivo de pesquisa junto à mídia impressa concentrou-
se na consulta às edições do Jornal do Brasil, a partir de maio de 1978 até
março de 1980, dos anos de 1982, 1986, 1989 e 1990. O primeiro período foi
fundamental para a recuperação dos debates que envolveram a lei da anistia, a
reforma partidária e a fundação do PDT. São cerca de dois anos de processos
decisivos para a política brasileira, quando um modelo agonizava e projetos
políticos buscavam ocupar espaços na redefinição da hegemonia na política
nacional. A se acreditar no depoimento de atores que participaram diretamente
desse processo, no que pode ser extraído da imprensa à época e nas próprias
análises posteriores ao período, a figura de Brizola e o brizolismo, então em '
processo de reinvenção, ocupam um lugar privilegiado nos debates travados e
na formulação de arranjos políticos fracassados ou bem-sucedidos. Os demais
anos investigados coincidem com os períodos eleitorais, para o governo do
estado e para a presidência da República. Para o ano de 1994, as consultas
foram tópicas, já que, àquela altura, a pesquisa estava em curso, e pude deter-
me na leitura diária dos jornais como modesto membro da chamada opinião
pública atento também para o que poderia parecer interessante para a realiza­
ção deste trabalho. Foram consultadas, também, algumas edições dos semaná­
rios Veja e Isto E. O procedim ento adotado obedeceu a duas razões: seria
infactível realizar um trabalho tão exaustivo como o que foi feito, caso as
fontes de informação fossem ampliadas. A definição de uma amostra para a

10 A análise de Luiz Eduardo Soares sobre o lugar da mídia no processo de construção de percepções socialmente
com partilhadas sobre o fenôm eno da violência no Rio de Janeiro, em bora bastante sucinta, é esclarecedora da
perspectiva aqui adotada. Ver, sobre o assunto, Soares e ta lii, 1 996:1 6 6-7. Deve-se consultar, também, Rodrigues, 1 993.

30
escolha aleatória de edições a serem consultadas de mais de um órgão da mídia
im pressa poderia fazer do acaso um carrasco e obliterar o acesso a dados
cruciais. Recurso exemplar para pesquisas de opinião, o plano amostrai pare­
ceu-me dotado de altíssima margem de risco. Sendo um jornal de grande circu­
lação regional e nacional, o Jornal do Brasil teria, no Rio de Janeiro, apenas
um único concorrente à altura: o jornal O Globo. As rusgas célebres entre
Roberto Marinho, presidente das organizações Globo, e Brizóla me deram a
certeza de que tal fonte seria exemplar como ator político, mas discutível como
fonte de informação. Não havendo recursos disponíveis para a realização do
trabalho exaustivo nas duas frentes, fiz minha escolha trágica. A bdiquei da
presença de um ator importante, optanto por um outro não tão explicitamente
situado nos debates, em benefício da aquisição de informações que meu passa­
do pouco atuante politicamente e a memória não muito precisa exigiam.
A consulta aos documentos do PDT e ao vasto m aterial de propaganda,
produzido ao longo dos anos, foi decisiva para a identificação dos traços utiliza­
dos na construção da figura de Brizóla por parte de seus correligionários. O
material foi recolhido ao longo dos anos de pesquisa, graças à solicitude daque­
les que, também com seus depoimentos, contribuíram para a realização desse
trabalho. Lembro, porém, que a adesão a Brizóla não corresponde necessaria­
mente à opção político-partidária pelo PDT. Embora muito próximos e forte­
mente atrelados, no que se refere à política institucional, brizolismo e PDT não
podem ser reduzidos um ao outro. A dissociação analítica entre ambos não se
mostra, á luz de dados empíricos, extraídos especialm ente de depoim entos,
arbitrária. Não foi incomum encontrar dados eloqüentes sobre a adesão a Brizóla
dissociada da equivalente adesão ao PDT. Com isso, fica posto que a análise do
brizolismo não deve ser confundida com uma investigação sobre o PDT, sua
estrutura e sua atuação no sistema político-institucional brasileiro. Evidente­
mente, uma série de questões relativas ao PDT aparecem, ao longo de toda a
pesquisa, mas vale notar que um estudo mais cuidadoso sobre ele jam ais foi a
intenção principal da presente pesquisa.
Finalmente, os depoimentos de atores envolvidos diretamente na arena políti­
ca foram colhidos de duas formas. O início da pesquisa deu-se mediante a reali­
zação de um trabalho com forte inspiração etnográfica, na Brizolândia. Este tra­
balho foi iniciado em 1992, no período em que começavam as investigações que
redundariam na instauração da chamada CPI do PC, e que terminaram com o
pedido e aprovação do impeachment do então presidente, Fernando Collor de
Melo. Esta parte da pesquisa foi realizada de forma intermitente durante quatro

31
anos e forneceu boa parte dos dados contidos no capítulo V. Sendo um m ovi­
mento basicamente popular, cujo nome sugere uma ligação direta com o líder,
considerei a Brizolândia o espaço adequado para realizar observações sobre a
percepção da militância (da base do partido de Brizola e do próprio brizolismo,
para utilizar o jargão da política) a respeito do que representa tal posicionamento.
Dado seu espírito fortemente marcado pelo espontaneísmo, pareceu que o conví­
vio regular com os membros e simpatizantes do movimento, em seu dia-a-dia,
seria a maneira mais adequada de surpreender suas convicções, suas percepções
sobre a política brasileira e a forma de inserir-se nela, através da adesão à lideran­
ça de Brizola. Outra estratégia de coleta de informações foi a realização de entre­
vistas com formuladores, lideranças, dirigentes, quadros intermediários e militan­
tes partidários. Este trabalho foi realizado ao longo dos anos de 1995 e 1996 e,
através dele, foram gravadas cerca de 70 horas de depoimentos, (a lista dos
entrevistados encintra-se no anexo III). Funcionou como um a espécie de
contraponto às percepções “populares” do brizolismo, ainda que uma e outra
tenham revelado proximidades muitas vezes surpreendentes. Vale notar que a
segunda etapa da pesquisa foi iniciada no período imediatamente posterior aos
dois últimos e dramáticos anos do segundo governo Brizola, no Rio de Janeiro. É
posterior, também, ao fiasco eleitoral de 1994 e, portanto, à última declaração de
morte do brizolismo, até o presente momento. O contexto em que as entrevistas
foram realizadas teve, certamente, um enorme peso sobre a substância de cada
um a delas. Creio, porém, ser impossível avaliar, presentemente, o quanto tal
contexto concorre para o que foi declarado. Para a segunda parte da pesquisa, a
escolha dos entrevistados recaiu basicamente sobre figuras que estão, até hoje,
associadas a Brizola. Cabia entender as razões da adesão incondiconal, a despeito
dos altos e, por vezes, baixos ganhos políticos atrelados à proximidade com o
líder. No entanto, foram entrevistados, também, ex-aliados, que se afastaram
após rompimentos traumáticos ou graduais com o líder e seu partido. É importan­
te notar que muitos desses rompimentos ocorreram em circunstâncias em que a
figura pública de Brizola e a associação a ela implicavam perspectivas bastante
promissoras de aquisição de poder e influência política. A reunião e a análise de

11 Serio extremamente interessante a análise mais detida sobre as circunstâncias de realização da pesquisa. O brizolism o
é um fenôm eno político contem porâneo, ainda com boa margem de visibilidade, envolvendo um líd e r em plena
atividade pública. Boa parte dos protagonistas que estiveram contra ou a favor dele permanecem vivos e, também,
em plena atividade. Nessas circunstâncias, é compreensível que fossem encontradas certas resistências e cuidados
diante do gravador. Infelizmente, tal análise, que poderia ser de algum a serventia para debates m etodológicos, não
pôde se concretizar aqui. As próprias limitações do discurso escrito para a explorar e expor as hesitações, am big ü id a ­
des, ênfases e uma série de outras percepções do pesquisador, no setting em que os depoim entos foram registrados,
tornam extremamente difícil e arriscada esta em preitada. Talvez, este seja um trab alho para o futuro.

32
depoimentos como esses permitem que se faça um razoável m apeamento do
discurso brizolista, tal como definido anteriormente, e do projeto daí derivado.
Finalmente, foram colhidos alguns depoimentos de figuras que estiveram,
ao longo do período em questão, em lados opostos ao de Brizola. Também
aqui, as dificuldades encontradas obrigam a precisar as fontes. Inicialmente, a
idéia era a de concentrar-se na militância, que seria, dentro da divisão social do
trabalho interna do partido, onde se supunha encontrar, de modo mais pronun­
ciado, as manifestações de adesão e lealdade a Brizola. Esse trabalho, realizado
na Brizolândia, revelou-se insuficiente, ainda quando estava em curso. O plano
inicial da pesquisa foi redefinido e passei a colher depoimentos de lideranças e
formuladores do PDT. Nesse caso, a escolha foi literalmente aleatória. Aqueles
que se dispuseram e/ou puderam contribuir foram ouvidos. Foi dada preferên­
cia a figuras que estão ou estiveram próximas a Brizola durante os mais varia­
dos m om entos de sua trajetória. Antigos trabalhistas, fundadores do PDT e
auxiliares próximos foram procurados. Mais uma vez, contudo, a pesquisa foi
redefinida e constatou-se a importância do discurso anti-Brizola para o proces­
so de construção do brizolismo. Filiados a tendências e convicções políticas
diversas, seria impossível a coleta criteriosa e cuidadosa de depoimentos de
atores políticos que se posicionaram combativamente contra Brizola. Por isso,
foram ouvidos marginalmente apenas alguns de seus críticos. Muitas das mani­
festações contra Brizola e divergentes da narrativa do Brasil encampada por ele
e por seus seguidores foram extraídas de fontes secundárias, principalm ente
junto à imprensa. A ampliação da pesquisa, de modo que os críticos dos brizolistas
tivessem o mesmo peso e atenção dada aos brizolistas, revelou-se infactível, ao
menos para o momento presente.
Não houve preocupação em definir previamente os atores que são postos
em cena. Não realizei qualquer tipificação. Não há, aqui, o militar, o comunista,
o católico, o petista nem, sequer, o brizolista. Optei por deixar que apareces­
sem, quase anarquicamente. Muitas vezes contraditórios em suas intervenções.
Para que houvesse um centro, em torno do qual os demais atores pudessem
surgir, concedi-o aos brizolistas. Eles aparecem em suas diversas m anifesta­
ções, articulando suas convicções políticas às representações sobre os significa­
dos da atuação de Brizola na vida política brasileira e sua adesão a ele. Ao
reuni-los, temos um quadro razoavelm ente articulado, um discurso marcado
pela tensão e com muitas ambigüidades. Mas, também, dotado de sentido e de
plausibilidade. O mesmo vale para os discursos anti-Brizola que contribuem
para a construção do brizolismo. Certos atores políticos têm destaque pronun­

33
ciado, em um determinado momento, para literalmente desaparecerem no se­
guinte. O julgam ento final sobre a pertinência do encaminhamento escolhido
não tem outro juiz, senão o próprio leitor. Não há critérios, a priori, de objeti­
vidade para sustentá-lo. Não se buscarão as razões últim as que fizeram do
brizolismo um fenômeno crucial na política carioca. Trata-se, tão-somente, de
fornecer uma interpretação possível sobre um campo de disputa de significa­
ções distintas sobre o Brasil contemporâneo, sobre o lugar do Rio de Janeiro na
política nacional e sobre ele próprio, o brizolismo, e seu papel histórico nesse
contexto.
Se o brizolismo é entendido como campo discursivo, produto e produtor de
significações relativas à história brasileira, à ação política e a um projeto nacional,
é importante sublinhar como cada um desses aspectos da vida social se articulam
a ele. A idéia mais geral, perseguida ao longo das páginas que se seguem, é a de
que o brizolismo (dos brizolistas), tal como definido aqui, é um campo onde uma
leitura do Brasil é construída. Tal leitura, é bom que se repita, não é unívoca,
nem, tampouco, infensa à disputa. Se pauta na construção de uma história que
confere inteligibilidade ao quadro brasileiro contemporâneo. Sendo assim, é, tam­
bém, uma narrativa sobre a história brasileira, suas glórias e reveses. O quadro
contemporâneo, entendido à luz da história, realça os problemas e impasses mais
dramáticos que, segundo tal visão, devem ser enfrentados para que o país supere
suas limitações. Nesse caso, o brizolismo deve ser entendido, também, como
uma “teoria” prescritiva sobre o Brasil. Entenda-se por “teoria” um conjunto de
proposições razoavelmente articuladas entre si, que compõem um corpo dotado
de logicidade interna com pretensões a conferir inteligibilidade a processos soci­
ais, econômicos e políticos passados e presentes. Este é um sentido “frouxo” do
termo, posto que não se trata de um conjunto de proposições formalmente siste­
matizadas, nem, sequer, com intenções de estabelecer um descolamento crítico
com a prática. Ao contrário, quer-se exatamente como “teoria-prática”, trazendo
em si, ao menos retoricamente, uma margem bastante razoável de desconfiança e
ceticismo quanto a formulações excessivamente elaboradas. Em poucas palavras,
o brizolismo é uma categoria prática, relativa a uma forma de engajar-se politica­
mente na imediaticidade do mundo contemporâneo e na história que a engendra.
Lido pelo intérprete interessado, revela um projeto para o país. Apenas analitica­
mente pode ser tomado como teoria e como formulação de um projeto articula­
do. A forma de levar a cabo tal projeto é percebida, pelos atores, como funda­
mentalmente de ordem política. A centralidade concedida à política encerra uma
forma específica de entender a natureza do político e as formas preferenciais de

34
atuação nessa esfera, correlatas à leitura feita do Brasil, de sua história e o projeto
que se quer implementar.
Finalmente, o Rio de Janeiro, mais a capital do que propriamente o estado,
é dotado de um papel fundamental em toda a composição da lógica discursiva
brizolista. Muitas das imagens socialmente construídas do Rio de Janeiro, nos
últimos anos, tiveram no brizolismo, para o bem ou para o mal, um referencial
dos mais relevantes. Há uma imagem da antiga capital que é reinventada pelos
brizolistas, de modo a fazê-la o centro de difusão de seu projeto e de sua
atuação política. Entre os críticos dos brizolistas, muitas das implicações do
dilema civilização/modernidade x barbárie/atraso têm estado diretamente rela­
cionadas às escolhas envolvendo a figura de Brizola e o que ela representa.
Deve-se notar que não se trata do confronto entre uma imagem positiva e outra
negativa da cidade. Trata-se, em ambas as leituras, de narrativas diversas sobre
os caminhos adequados e os problemas a serem enfrentados pela cidade e, em
maior escala, pelo estado do Rio de Janeiro. Em cada um dos aspectos aponta­
dos do discurso brizolista são acionados imagens e símbolos fundamente radicados
na cultura política brasileira, em geral, e do Rio de Janeiro, em particular. No
confronto, os antagonistas mobilizam, também, componentes simbólicos con­
vergentes e/ou contraditórios àqueles que vão compor os discursos dos que
fazem da adesão a B rizola seu canal de inserção nos debates públicos e o
princípio de identidade política que os reúne. Daí os diversos discursos funcio­
narem como o m aterial bruto para a com posição do objeto privilegiado da
análise. Mas, cabe salientar, de novo, que, na composição do brizolismo aqui
12
retratado, a ênfase maior está nos discursos de adesão a Brizola.

A construção narrativa sobre a situação do Brasil contemporâneo é articulada


a uma espécie de teoria explicativa de sua história recente. Uma e outra são
indissociáveis. Poderíamos chamar tal formulação de uma teoria geral da história
brasileira de um ponto de vista brizolista. Ambas (a narrativa do Brasil atual e a
construção de sua história) estão articuladas à tradição trabalhista e à legitimação
da figura de Brizola, como seu herdeiro. Por ela, Brizola é alçado à condição de
um mito, um personagem exemplar que encarna o triunfo final do grande projeto
que perpassa toda a narrativa: o problema da emancipação nacional. E na confir-

12 Apenas para aju d a r o leitor, no eventualmente truncado percurso que começa a ser trilh ado, gostaria de distinguir,
para efeitos de exposição, duas palavras: brizolismo e brizolista. Brizolismo, aqui, significa as construções coletivas
que dotam de sentido a adesão a Brizola. Tais sentidos podem ser positivos ou negativos, daí, freqüentemente, mas
nem sempre, o term o brizolism o englobar os discursos de adesão a Brizola, os de crítica a ela e a tensão entre ambos.
Q uando me refiro ao discurso brizolista, onde fui buscara m aior parte do m aterial a ser interpretado, designo apenas
os discursos de adesão a Brizola, aos quais serão contrapostos, apenas para o bem da econom ia expositiva, os
discursos antibrizolistas.

35
mação de sua liderança, como continuadora legítima e insofismável da tradição
que, segundo os brizolistas, tirou o país da pré-história obscura, marcada pela
escravidão, e, posteriormente, pela exclusão política e social das massas, que sua
inserção no campo político é semantizada. Brizola aparece como imagem síntese
do guerreiro e do estadista. O guerreiro dotado de tenacidade suficiente para
enfrentar o inimigo externo, que se imiscui no país para perpetuar sua dependên­
cia e miséria. O estadista dotado do saber necessário para identificar e neutralizar
os elementos internos que se aliam ao inimigo externo. Os vínculos com a tradi­
ção são fundamentais para a construção dessa imagem, que confere sentido à
história brasileira e à pertinência da ascensão de Brizola. Tal construção só pode
ser adequadamente compreendida se posta em confronto com teorias diversas e
antagônicas, que concedem a Brizola uma posição igualmente central, ainda que
mediante a inversão de sinais. A inversão corresponde, geralmente, a narrativas
históricas alternativas. Engana-se quem considerar que é Brizola o personagem
principal dessa trama. Aqui, o lugar de destaque é da memória. É ela quem
redefine os “tempos de antes”, a idade de ouro que foi fundada com o trabalhismo
e que o movimento de 1964 tentou enterrar. É à memória que cabe remover os
escombros do atraso, e fazer que a história retome seu círculo virtuoso. Brizola
aparece, então, como o ungido capaz de desencadear o fluxo de memória junto-à
população brasileira, oferecendo sua mão para a retomada do fio da história. Esta
é, basicamente, a perspectiva brizolista. Ela confronta-se com outros apelos à
memória. Poderíamos chamá-los, genericamente, de apelos à memória crítica,
posto que reescrevem o mesmo passado evocado pelos brizolistas, assumindo
uma perspectiva crítica em relação a ele. Não se trata, em hipótese alguma, de
estabelecer qual das versões confrontadas (e são mais do que duas) está mais
próxima da verdade. Todas as que foram construídas valem como recriações do
passado, dotadas de razoável margem de plausibilidade e coerência interna. Inte­
ressa, sobretudo, que é nas reconstruções do passado, redundando em diagnósti­
cos do presente, que se dá a invenção do brizolismo, ou sua reinvenção, no
contexto do final dos anos 70. O líder só exerce fascínio na medida em que se
estabelece um elo de ligação entre ele e um passado igualmente fascinante. A
chave para a invenção do passado é o trabalhismo.
A construção da história do Brasil do ponto de vista brizolista equivale a um
diagnóstico. Sendo uma narrativa que se quer prática, é compreensível que re­
dunde em um conjunto de prescrições para a ação política. Esta, contudo, só
pode ser com preendida se associada ao conjunto de símbolos que conferem
visibilidade ao projeto. Do diagnóstico passa-se ao empreendimento. Ou, mais

36
precisamente, aos mecanismos simbólicos que conferem sentido ao empreendi­
mento. Não se trata de averiguar as realizações de Brizóla, quando governador do
Rio de Janeiro, as políticas por ele implementadas, mas as imagens mobilizadas e
construídas em tomo de sua atuação e seu raio de alcance. O mote mais contun­
dente desse projeto é o nacionalismo. Termo de significação tão ampla, faz-se
necessário definir o que vem a ser o nacionalismo brizolista. Com isso, são evita­
dos mal-entendidos. No nacionalismo brizolista, o tema de fundo é o da incorpo­
ração das massas à cidadania. Aparentemente não há nada muito singular nisso.
Os nacionalismos, em grande parte de suas variadas configurações, foram proje­
tos incorporadores, posto que firmaram os canais para a consolidação das comu­
nidades de grande escala, próprias do mundo moderno. Esse é um desafio que
parte das elites políticas brasileiras enfrentou desde muito tempo. Teorias e em­
preendimentos foram feitos nesse sentido. A questão, aqui, é pensar como foram
vinculados à figura e às intervenções públicas de Brizóla e seus pares. Trata-se de
verificar as especificidades (supondo que elas existam) da configuração do nacio­
nalismo, quando associado ao brizolismo. Dito de forma direta, perscrutar a exis­
tência, no discurso brizolista, de um projeto civilizador que lhe seja próprio. Um
projeto civilizador concebido a partir de um quadro do Brasil, construído pelo
recurso a uma série de símbolos e mitos fundamente enraizados em nossa tradi­
ção política e cultural. Imagens como o povo criança - de inspiração cristã - , do
Estado formulador e divulgador de virtudes públicas - inspirado no positivismo -
e de personagens-síntese do povo nacional são criativamente combinadas, de
modo a dar forma a um projeto de futuro. Há uma certa tendência a reduzir o
nacionalismo brizolista à tradição trabalhista. Cabe observar, porém, que um e
outro são vicários de representações mais antigas e recorrentes da cultura brasilei­
ra. O projeto incorporador brizolista é a invenção de um ethos nacional, uma
reinvenção do nacionalismo, cujos protagonistas principais são o Estado e a histó­
ria, e cujos componentes simbólicos não devem ser reduzidos ao patrimônio do
“trabalhismo clássico”. Em se tratando de nacionalismos, vozes distintas terão,
necessariamente, que ser contempladas.
Como realizar o telos vinculado a esse projeto civilizador? Da perspectiva
brizolista, esta é uma tarefa política. Para levar o projeto adiante, é necessário
que uma certa forma de atuação política, derivada de uma concepção do que
ela representa, seja assum ida incondicionalm ente. Percebe-se, então, que a
análise do brizolismo é uma janela para que se entreveja, ainda que parcialm en­
te, o confronto de concepções distintas da natureza do político e os debates em
torno das m odalidades de atuação pertinentes, no quadro político brasileiro

37
pós-abertura. O tema central é a capacidade de institucionalização de um mo­
delo formal de democracia, sólido e estável o suficiente para que o país se
resguarde de abalos sem elhantes aos que levaram o país a duas décadas de
autoritarismo. Trata-se de afastar ou incorporar os componentes personalistas
fortemente enraizados na tradição política brasileira. Ou, alternativamente, tra-
ta-se de denunciar a estreiteza de projetos políticos que priorizem a democracia
formal frente a problemas nacionais supostamente mais graves como a pobre­
za, a m iséria e o subdesenvolvim ento. O esforço em preendido por amplos
setores da elite política para a formação de uma convergência de significados e
valores (tal como definido por Charles Taylor) em tomo da construção de um
regime político representativo estável foi, provavelmente, a marca mais proe­
minente dos anos pós-abertura. A forma como a atuação de Brizóla é percebi­
da, nesse contexto, é reveladora dos impasses, limites e temores que cercaram
a instauração do regime democrático no Brasil durante o processo de abertura.
Quanto a isso, os debates ocorridos nos diversos pleitos realizados ao longo do
período estudado são extremamente elucidativos. Os debates eleitorais têm sig­
nificativo destaque na análise do brizolismo. No caso, eles aparecem como
momentos dramáticos, onde auto-imagens sociais são reordenadas e reveladas
publicam ente, confrontado-se umas com as outras. Destaca-se, assim, a di­
mensão de conflito da política, freqüentemente minimizada pela atenção dedicada
pelos intérpretes a seus aspectos de procedimento e rotinizados. No que toca ao
brizolismo, tal como defini, a atenção ao conflito é fundamental.
Como ensina Schattschneider, a política se define, basicamente, pelo conflito:

"N a d a a trai uma m ultid ão tão rapidam ente qu an to um conflito. N ada é tão
contagioso. Debates parlamentares, julgamentos, assembléias, campanhas po ­
líticas, greves, audiências judiciais possuem algum as das qualidades de exci­
tação próprias do conflito; todas produzem espetáculos dram áticos que são
quase sem pre irresistivelm ente fascinantes para o p o vo.''14

Estipulada a base mais geral da política, Schattschneider prossegue, defi­


nindo as duas partes que necessariamente compõem as cenas do conflito. Elas
são o pequeno contingente daqueles que participam diretamente dos embates e
os espectadores (audience), que sofrem uma irresistível atração pelo espetácu­
lo. E importante notar que os espectadores não são parte passiva do conflito.
Ao contrário, são decisivos para a definição de seu resultado final. A devida

13 Sobre a distinção, operada p o r Charles Taylor, entre consenso e convergência de valores, ver Charles Taylor,
"Interpretations and the sciences o f m an", em Rabinow & Sullivan, (eds.),1979.
14 Schattschneider, 1 9 7 5 :1 -2 (tradução do autor.)

38
compreensão dos conflitos políticos não pode prescindir da percepção das rela­
ções estabelecidas entre aqueles que se situam no centro do embate e a platéia.
Esta última jam ais é neutra. Daí que:

"... tod o conflito é de term ina do pela extensão com que o público é envolvido
por ele. Vale dizer, a conseqüência do conflito é de term ina da pelo alcance de
seu poder de contágio. O núm ero de pessoas envolvidas em q u alq ue r conflito
determ ina seus desdobram entos; toda alteração do núm ero de participantes,
todo aum ento ou redução do núm ero de participantes afeta o resultado fin a l."15

A questão fundamental para a definição do campo político, em contextos


competitivos, é a delimitação do espaço de conflito. A margem de incorpora­
ção, ou exclusão, de combatentes potenciais.
Embora a confiança de Schattschneider quanto ao interesse das massas (é
delas que se trata) nas disputas políticas seja, na melhor das hipóteses, sujeita a
averiguações, sua definição para a política é extremamente provocante. Segun­
do ela, boa parte dos esforços dos atores políticos resume-se em tom ar públi­
cas questões privadas ou assuntos privados em questões públicas, para, daí,
extraírem, da configuração definida, maiores chances de triunfo. Desse modo,
atores políticos confrontam-se em duas frentes: nos conflitos públicos propria­
mente ditos e nos conflitos pela definição do raio de alcance do campo em que
se embaterão, e, conseqüentemente, pela definição daqueles com os quais se
antagonizarão. Ampliação ou restrição do campo de conflitos, seleção de atores
e, por conseguinte, de temas que farão parte da agenda política, este é o pano
de fundo tensionado da atuação política.
A despeito do engenho da definição de Schattschneider, há dois pontos,
embutidos em sua análise, que devem ser redimensionados. Primeiro, na defi­
nição dos atores e tem as em torno dos quais se dão os conflitos quanto à
definição da esfera pública (entendida como o campo onde os conflitos se
tom am públicos e, por isso, sujeitos ao interesse do conjunto de espectadores),
Schattschneider se atém estritam ente a princípios relativos a interesses que
querem ou não organizar-se publicamente. O cenário montado é composto por
grupos candidatos a ocupar um lugar no centro do espetáculo, que forçam a
inclusão ou exclusão de seus próprios interesses e/ou dos interesses de outros.
Tal perspectiva, no contexto contemporâneo, tem sido amplamente questiona­
da. Ela reduz as motivações associativistas e os princípios identitários para a

15 Schattschneider, 1975: 3 (tradução do autor).

39
formação de grupos de pressão ao mero interesse utilitário. Como observa
Craig Calhoun:

"As políticas de identidade têm aparecido freqüentem ente como um a nova fo r­


ma de politização da vida cotidiana, um deslocam ento das form as mais tradici­
onais de política, pautadas pelos interesses. C om o apontam alguns analistas,
não é apenas o caso do particular que é progressivam ente politizado, mas sim
da política ser progressivamente estetizada. Isso faz com que a política se torne
perform ance dram ática mais do que confronto in stru m enta l.''16

A observação de Calhoun é duplamente relevante. Primeiro, porque amplia


os critérios em tomo dos quais grupos podem se organizar e forçar a redefinição
do espaço público. Segundo, porque introduz uma dinâm ica da política não
contem plada na análise de Schattschneider: a estetização e a dim ensão de
dramatização que há nela.
Importante notar que os componentes da política introduzidos na presente
discussão, com a ajuda de Calhoun, não invalidam as proposições fundamentais
de Schattschneider. Principalmente no que toca à dimensão estetizante da política
e a seu caráter dramático. Trata-se, apenas, de um reenquadramento. O segundo
problema a ser levantado, em Schattschneider, refere-se à definição da esfera
pública. Aí, mais uma vez, a contribuição de Calhoun é fundamental. Em sua
crítica à definição habermasiana de esfera pública, Calhoun chama a atenção para
o quanto o teórico frankfurtiano mantém-se refém da concepção liberal da políti­
ca, ao aceitar os supostos que definem a diversidade como princípios referidos à
vida privada que, projetados para a esfera pública, seriam redutíveis a uma per­
cepção comum, pautada pela racionalidade instrumental. Calhoun observa que:

"A fra g ilid a d e central (não apenas da teo ria de Haberm as mas da concepção
liberal que ele analisa e in corpo ra parcialm ente) advém das im plicações en ­
volvidas pela dependência da esfera pública à org an izaçã o privada , à vida
p ré -p o lítica , que faz com que os cidadãos se so b rep onh am às identidades e
negócios privados. Trabalha-se a í com a esperança de transcender-se a d ife ­
rença mais do que com a expectativa de criar-se esferas de reconhecim ento,
expressão e re la cio n a m e n to ."17

Para, mais adiante, afirmar:

16 C alhoun, 1 995 :231 (tradução do autor).


17 Ibid., p. 2 4 5 (tradução do autor).

40
"U m a das ilusões do discurso liberal é a cre d ita r que na sociedade d e m o crá ­
tica existe ou pode existir um único discurso a u to riza d o acerca das questões
públicas. (...) É com um , contudo, e não a b erra nte, os indivíduos se situarem
em diferentes arenas públicas e daí se d irig ire m a m últiplos centros de po de r
(mesmo que diferenciados institucionalm ente no in te rio r de um m esm o esta­
do, com b ina nd o m últip lo s estados ou agências políticas, ou reconhecendo
que agências p u tativam e nte não políticas, com o corporações de negócios,
são potenciais ¡ocus de po d e r e destinatários do discurso p o lític o )."18

Calhoun finaliza seu comentário propondo a substituição do termo esfera


pública (public spheré), utilizado por Habermas, pelo, mais adequado, segundo
ele, esfera dos públicos (.sphere o f publics). Estabelece, com isso, o postulado
segundo o qual a democracia é tão mais avançada quanto maiores forem as
franquias para a incorporação de percepções distintas do espaço público.
Em bora endereçados especialm ente para H aberm as, os com entários de
Calhoun servem também para Schattschneider. Afinal, trata-se de uma crítica
dirigida, também, à concepção liberal de democracia como um todo. No pre­
sente caso, trata-se de enfatizar o caráter público do próprio processo de cons­
trução de identidades, marcadas pela diversidade e não mais reduzidas ao prin­
cípio ontológico liberal, pautado pela lógica do interesse. Trata-se, finalmente,
da assunção de diversas percepções do espaço onde os conflitos, de interesses
e valores, são confrontados. Ampliar a noção de espaço público, im plodir a
pretensão de univocidade, implícita na lógica liberal clássica, fazem parte do
conflito que caracteriza a política. Repetindo: na percepção aqui assumida, o
conflito e a luta pelo direito de participar do conflito, ou de se ver livre do ônus
de participar dele, não se dão apenas no que se refere a interesses. São valores
e visões de mundo, projetos de ordem que lutam para am pliar ou reduzir o
campo político, para incorporar novos temas ou excluí-los do centro do con­
fro n to . In c o rp o ran d o as p ro p o siçõ e s de C alhoun à le itu ra tra ç a d a por
Schattschneider, remetemos, mais uma vez, o problema da política às discus­
sões culturais. Se é verdade que as questões políticas são objeto de debates
permanentes, nas sociedades modernas, não seria exagerado dizer que é nos
contextos eleitorais que tais discussões ganham maior visibilidade. Programas
de governo concorrentes, discursos, propostas e imagens associadas a cada
uma dessas peças da propaganda eleitoral podem ser entendidos como mapas
gerais de representações sociais, em disputa pela definição da composição da

18 Calhoun, 199 5 :2 4 5 (tradução do autor).

41
agenda pública, pela definição do que é ou não passível de incorporação ao
campo político e pela definição de formas adequadas e indesejáveis de atuação.
Se neles estão envolvidos aspectos culturais, é necessário reconhecer que reve­
lam estruturas sociais subjacentes à dinâmica política cotidiana. É verdade que
no contexto de democracia de massa tais estruturas são razoavelmente expos­
tas, são dadas publicamente. No contexto eleitoral, no entanto, elas são ordena­
das e confrontadas dramaticamente, posto que reclamam e necessitam da acei­
tação do público mais amplo que compõe o eleitorado. Sendo assim, à defini­
ção corrente na ciência política, segundo a qual o processo eleitoral deve ser
entendido como jogo estratégico em que atores têm como objetivo final a vitó­
ria, devemos acrescentar que ele é tam bém um espaço dramático, tal como
definido por Tumer.

"D ra m a s s o c ia is s u rg e m n a q u ilo q u e K u rt Le w in c h a m o u p e río d o s


desarm ônicos ("a h a rm o n ic" phases) do processo social, qu a n d o interesses e
atitudes de grupos e indivíduos se colocam em oposição aberta. Dram as soci­
ais pareceram para m im constituir-se unidades do processo social passíveis
de serem isoladas e m inuciosam ente descritas."19

Transposto para a análise do sistema político competitivo, o drama social


pode ser entendido como o processo pelo qual as estruturas políticas, sociais e
econômicas subjacentes à vida social são postas em questão segundo regras
tácita ou explicitamente estabelecidas, publicizadas e aceitas. Neste processo,
interesses e identidades são confrontados. Vez por outra, as próprias regras
norteadoras do conflito são objeto de disputa.

"N o dram a social, contudo, a despeito de escolhas de m eios e fins, e alianças


sociais serem feitas, a pressão se dá prin cip a lm e n te sobre lealdades e o b ri­
gações, ta n to q u an to sobre os interesses, e o curso dos eventos pode levar a
um desenlace trágico. (...) conflitos parecem p ô r determ inados aspectos fu n ­
dam entais da sociedade, norm alm ente m ascarados pelos costumes e hábitos
da interação d iá ria , em um a assustadora proem in ên cia. Os indivíduos têm
que se posicionar em term os de constragim entos e im perativos m orais fu n d a ­
m ente arra iga do s, freqü en te m en te contra suas próprias preferências pesso­
ais. Nesses m om entos, a escolha é sob rep uja da pelo de ver."20

O caráter dramático dos processos eleitorais se revela, especialmente, se forem


encarados como algo além de uma simples peça rotineira no sistema de seleção de

19 Victor Turner, 1994. p. 33 (tradução do autor).


20 Ibid, p. 35 (tradução do autor).

42
r dirigentes, em contextos de democracia de massas. Tomados como dramas, fa­
zem-se canais de publicização e problematização de redes de lealdade, normas de
conduta, preceitos morais. Sobretudo, revelam o caráter a um só tempo estruturante
e dinâmico dos conflitos sociais, desnaturalizando a ordem pública. Sendo assim,
podem ser encarados como campo privilegiado de observação dos símbolos, sig­
nos, sinais e discursos ordenadores da sociabilidade coletivamente criados.
Entender os processos eleitorais como dramas sociais requer alguns cuida­
dos. O drama social, para Tumer, é um um processo de “desarmonia” (aharmonic
ou disharmonic) social, que emerge em situações de conflito. Sendo um proces­
so de crise e confronto, pode ter efeitos devastadores. No mais das vezes, no
entanto, é o espaço no qual o caráter dinâmico da própria estrutura social, aspec­
to mais estável da ação e da interação social, se revela. No drama, imagens e
metáforas (para usar um dos conceitos centrais de Tumer) sociais, incorporadas
pelos indivíduos, ordenando, quase silenciosamente, sua conduta, são expostas
publicamente. Ao fim do processo, os princípios de lealdade são redefinidos, a
ordem rotineira é restabelecida e novas estruturas assumem a aparência de regras
e preceitos de ordenação estáticos. O processo eleitoral pode ser entendido como
dramas operados em momentos previamente estipulados e segundo determinadas
regras. Neles, a sociedade, em geral, sua estrutura e auto-imagens são tomadas,
ritualmente, repito, uma realidade problemática e sujeita à disputa.
Se os processos eleitorais são abordados como dramas, é forçoso reconhe­
cer que o interesse que despertam é diverso daqueles que costumamos ter nas
análises de comportamento eleitoral. As pesquisas de comportamento eleitoral,
devido aos métodos utilizados e objetivos que lhes são inerentes, tendem a
mapear motivações e escolhas pautadas por questões tópicas e conjunturais. O
comportamento do informante, travestido na personagem de eleitor, tende a ser
orientado pelos aspectos mais imediatos e próximos do processo político em
que está inserido. Análise extremamente importante, com recursos preditivos
de curto prazo cada vez mais sofisticados, as análises eleitorais têm pouco a
dizer sobre aspectos mais duradouros e estruturantes das percepções sociais da
política, dos atores e issues nela envolvidos. Para a análise do brizolismo, tal
como aqui proposta, as análises de comportamento eleitoral têm pouco a dizer.
O recurso à definição dos processos eleitorais como dramas torna-se, então,
crucial, posto que o brizolismo é, a um só tempo, irredutível a eles, mas, por

21 Esta é uma leitura bastante com um e, a meu ver, um tanto simplista dos processos eleitorais. Estou convencido de que
ela sequer faz jus àquele que prim eiro a form ulou: Joseph Schumpeter. Ver Schumpeter, 1 984.

43
outro lado, é impensável sem eleições. Muito do que se diz, se pensa, e, princi­
palmente, confere significados ao brizolismo é justam ente sua marcante traje­
tória eleitoral, caracterizada por vitórias e derrotas espetaculares. É assumindo
a política como espaço conflitivo, dramatizado em contextos eleitorais, que o
. . . 2 2
brizolismo pode ser entendido como campo produtor de significados.
Outro campo tradicional da ciência política deve ser redimensionado, ao ser
incorporado à análise do brizolismo, tal como proposta aqui. Refiro-me às ad­
ministrações de Brizóla, nas duas ocasiões em que foi governador do Rio de
Janeiro. É evidente que a análise da administração brizolista, no que se refere a
suas realizações nos diversos campos da gestão pública, implicaria uma pesqui­
sa específica. Careceria, inclusive, de definição de limites, recortes temáticos e
históricos, tal a magnitude da empreitada. Não é esse o caso presente. Cabe, no
que for abordado sobre o brizolismo e suas relações com a máquina administra­
tiva, reconhecer o que há nelas de produtoras de significados. O que há no
cham ado “estilo brizolista de adm inistrar” que reforça, redefine, articula
semantizações sobre o brizolismo. O mesmo vale para questões concernentes
ao partido e às diversas esferas do poder público. N esse sentido, importam
menos os aspectos propriamente adm inistrativos dos governos de Brizóla, a
história do PDT e seu desempenho parlamentar, do que os debates suscitados
em torno deles e os significados a eles atribuídos.
O grau de identificação da figura de Brizóla com representações sociais
fortemente significativas do carioca foi de tal ordem que ele, Brizóla, acabou
por ser uma das principais referências políticas do Rio de Janeiro, desde seu
retorno do exílio. A inda hoje, afastado do poder e após algum as derrotas
acachapantes, seu nome permanece sendo evocado, para o bem ou para o mal,
quando os debates políticos se aguçam e os processos eleitorais são desencade­
ados. Lidar com o brizolismo, portanto, corresponde, em larga medida, a avan­
çar alguns passos no caminho para uma interpretação da cultura política do Rio
de Janeiro. Interpretação sempre problem ática, pelos riscos reducionistas e
reificadores que traz embutida em si, mas fundamental para quem quer dar
conta dos processos de construção de um discurso político como o brizolista.
Salta aos olhos a imensa capacidade do discurso brizolista de estabelecer uma
forte identificação popular. Essa identificação nem sempre se traduz em votos.
Sequer significa regularidade nas avaliações positivas do brizolismo. Do ponto

22 Ê evidente que se podem, em contextos competitivos, observar outras situações de crise na política e, conseqüente­
mente, dramatizações. De qualquer m odo, no caso presente, os dramas são associados às disputas eleitorais, em uma
incorporação um tanto livre das proposições de Turner.

44
de vista de seus críticos, especialmente aqueles que se radicam em partidos e
organizações de esquerda e têm competido com os brizolistas pelo papel de
vocalizador legítimo dos valores e anseios populares, a identificação brizolismo/
forças populares dá-se, basicamente, pelos recursos mistificadores da prática
b rizo lista. E sta é um a p ersp ectiv a que in teressa apenas com o um a das
semantizações produzidas acerca do brizolismo. Formulado no confronto polí­
tico, o discurso antibrizolista reclam a para si uma superioridade cognitiva-
normativa que tende, se aceita acriticamente, a encobrir seu caráter retórico-
mítico, tão acentuado nele como no discurso que pretende denunciar.
É de se notar, também, que dois mitos políticos são especialmente importan­
tes, para a interpretação do brizolismo, e o atravessam ao longo de toda a sua
vigência: o mito da subversão da ordem e o mito de Vargas e seu legado. A
subversão foi um dos mitos políticos mais acionados ao longo do século XX. Não
é um mito propriamente brasileiro, posto que foi divulgado em escala planetária.
Uma vez acionado, ele desencadeia os temores e tensões associados ao caos, á
entropia e á destruição. A vertigem da destruição é certamente um componente
imaginário dos mais efetivos para a produção e reprodução da ordem social e a
aceitação das regras coletivas, por parte dos indivíduos. O rompimento dos apa­
rentemente tão sólidos laços de sociabilidade exercem fascínio e horror. Geral­
mente, mais o segundo do que o primeiro. São esses os componentes imaginários
articulados ao mito da subversão. Poucas lideranças tiveram sua imagem tão
repetidas vezes associada à subversão como Brizóla. Seu papel na agitação polí­
tica no período pré-64 é evocado reiteradamente nos seus primeiros anos pós-79.
A partir de meados da década de 80, a vertigem da desordem e do caos é articu­
lada à subversão social e ao banditismo. Não creio que tenha havido um momen­
to sequer em que o mito da subversão, semantizado positiva ou negativamente,
não tenha sido associado à persona pública de Brizóla. Digo positivamente por­
que, com freqüência, ele representou, associado a Brizóla, promessas de mudan­
ça na ordem política, social e econômica do país.
O segundo mito é o legado varguista. É curioso perceber como Vargas e seu
legado estão, principalmente a partir da metade dos anos 80, mais enraizados na
elite política brasileira do que no próprio imaginário popular. Destruir o legado
varguista, e o modelo de Estado por ele construído, tem sido a obsessão e, em
certa medida, o fracasso de boa parte das elites políticas. Não pelas virtudes
intrínsecas do modelo, sobre o qual há uma tendência cada vez mais forte ao
consenso quanto a seu caráter arcaico e ultrapassado, m as pela dinâm ica
institucional que gerou e realimenta, propiciando a reprodução de um padrão de

45
interação Estado/sociedade interpretado, hoje, como disfuncional do ponto de
vista da implementação do interesse público, mas extremamente útil para setores
políticos e econômicos encastelados nas diversas instâncias da máquina estatal.
Libertar-se desse legado tem sido tarefa hercúlea para as elites, pois, como já foi
mencionado, as dinâmicas administrativas geram certos significados e símbolos
com grande poder de difusão. Ele é um pouco como o demônio que as elites
políticas brasileiras tentam exorcizar de si próprias, sem muito sucesso até aqui.
Brizóla, ao reclamar repetidamente o legado varguista, chamando atenção para
os diversos aspectos positivos de suas gestões, ao caráter dinamizador e incorporador
de suas administrações, denunciando interesses envolvidos no propalado “sepul-
tamento da Era Vargas”, parece funcionar como uma espécie de sinal permanente
da persistência do varguismo na política brasileira. Lembrança incômoda.
Creio estarem definidas, em linhas gerais, as bases do que será tratado,
aqui, como o brizolismo. Um tal esforço justifica-se pelo parti p ris segundo
o qual aderir ao brizolism o, ou rejeitá-lo tenazm ente, tem significado, nos
últimos anos, um princípio im portante no processo de definição de identida­
des de atores engajados na esfera pública. Longe de tratar-se de um resíduo
de tempos de outrora, manifestação do prim arism o político das massas, ser
brizolista correspondeu, em larga m edida, ao que G eertz enuncia sobre as
construções de ideologias e imagens do mundo:

"E através da construção de ideologias, de im agens esquem áticas da ordem


social, que o hom em faz de si m esmo, para o bem ou para o m al, um an im al
p o lític o ."23

A investigação do brizolismo, da forma aqui definida, propicia o acesso a “ide­


ologias e imagens esquemáticas” da sociedade brasileira confrontadas nas duas
últimas décadas. Este é um acesso modesto, parcial e circunscrito. Implica a renún­
cia à pretensão de dar conta das dinâmicas políticas e sociais do Brasil recente em
toda a sua complexidade. Abre, no entanto, uma perspectiva de análise sobre posi­
ções assumidas pelos atores políticos no período definido. Finalmente, cabe ter em
vista que tais construções não são dotadas de autonomia para se autogerarem. Elas
estão radicadas em um contexto histórico específico, o que é crucial para que se
tenham tomado objeto de interesse. Abordar o brizolismo é, em larga escala, seguir
a história de sua criação (no caso presente, reinvenção) e as diversas redefinições
que o envolveram ao longo dos últimos anos. Guardando atenção, tanto para as
continuidades e recorrências, quanto para as inflexões ocorridas.

23 Geertz, 1989:1 90 (tradução do autor).


II

A Reinvenção do Brizolismo

este capítulo, pretendo discutir os elementos de base da composição do

N discurso que chamo de brizolista. Para tanto, é fundamental a análise


do processo de construção da imagem pública de Brizola no contexto de seu
retorno do exílio. Este se dá em várias etapas de um período histórico extre­
m am ente curto mas igualmente intenso de debates sobre os rumos do proces­
so de redem ocratização no Brasil. Inicia-se quando a lei da anistia com eça a
ser discutida e posições contrárias ou favoráveis ao retorno de B rizola e seu
significado na política nacional são assumidas pública e enfaticam ente. Nesse
contexto, é importante ressaltar, as vozes de um lado e do outro são igual­
m ente importantes para a configuração do perfil do líder. Procurarei evidenci­
ar que, àquela altura, o seu retom o é cercado por uma série de debates que se
situam no bojo das discussões m ais amplas sobre a redefinição do quadro
partidário e a realocação de lideranças para o enfrentam ento político segundo
os novos padrões que então se esboçavam. O debate torna-se mais intenso ao
longo do período de disputa pela legenda do PTB e o correspondente legado
trabalhista, com a ex-deputada Ivete Vargas, que teve como desenlace a per­
da da legenda histórica e o esforço de construção do PDT. N esse quadro,
vale ressaltar a rede de alianças que passam a ser tecidas no B rasil e no
exterior, relacionadas com projetos políticos que se formulavam com vistas à
redem ocratização do país. As posturas tomadas em relação a Brizola, especi­
ficamente, contrárias ou favoráveis, primeiro a seu retom o, depois à conces­
são da sigla petebista, terão uma enorme influência em sua atuação política
futura. Igualm ente im portante serão as articulações iniciais com políticos exi­
lados ou no Brasil. A conjuntura política leva B rizola a adotar um a postura
extrem am ente m oderada, para evitar maiores sobressaltos num contexto de
extrem a incerteza e instabilidade. Farão também com que se apresente como
um líder amadurecido, modernizado, com experiência e trânsito internacional

47
suficientes para posicionar-se como um estadista capacitado para assum ir
papel de comando na política brasileira. Por outro lado, sua biografia pretérita
aparece, junto a determ inados grupos, como importante trunfo para afirm a­
ção de sua liderança como a mais indicada na formação de um partido de
massas com pretensões de operar mudanças profundas, diriam mesmo revo­
lucionárias, na estrutura social brasileira.
B rizola retorna à atividade política como o herdeiro legítimo da tradição
trabalhista, continuador e realizador futuro da obra iniciada por Vargas. As lem ­
branças evocam o incendiário dos primeiros anos da década de 60, com seu
estilo combativo e inflamado. Notícias recentes o relacionam aos grandes esta­
distas europeus. M ovim entando-se entre essas imagens, B rizola desembarca
no Brasil e reinicia sua carreira pública, circulando entre a tradição (o trabalhismo)
e a modernidade (a social-dem ocracia de inspiração européia). Entre a figura do
estadista e do revolucionário, Brizola e aqueles que a ele se juntam ou o repudi­
am começam, sem o controle absoluto de seus passos, a com por os prim eiros
traços do que viria a ser conhecido como o brizolismo. A base deste reside na
formulação de um discurso sobre o Brasil, sua história recente e suas perspec­
tivas futuras.

A anistia e os debates em torno da volta de Brizola.


A reinvenção de um mito

O ano é 1979. A conjuntura política, um curioso composto de expectativa,


esperança, ceticismo e excitação. Exatos cinco anos antes, assumia a presidência
da República o general Ernesto Geisel, quarto militar a ocupar o cargo desde o
movimento que derrubou o governo civil de João Goulart. Sua principal tarefa
política, anunciada já no discurso de posse, seria a promoção de uma política
lenta e cuidadosa de liberalização do regime, que de modo seguro reconduziria o
país à ordem democrática e às mãos dos civis sem, contudo, pôr em risco a obra
empreendida pelo movimento de 64. Em seu último ano de governo, 1978, to­
mou uma série de medidas nesse sentido. Em outubro, o AI-5 e todos os demais
atos institucionais decretados ao longo do regime de exceção foram extintos. Em
dezembro, exatos 10 anos depois do início do período mais duro da ditadura,
foram suspensos quase todos os atos de cassação e banimento, o que significava
a restituição dos direitos políticos de boa parte daqueles que foram atingidos pelas
leis promulgadas nos anos de repressão. Finalmente, após uma disputa renhida e

1 Vale lem brar que não está incluído o governo form ado pela junta m ilitar, quando da doença de Costa e Silva.

48
surda nos bastidores do poder, foi garantida a escolha de um próximo presidente
comprometido com a continuidade da política de distensão.
A par dos indiscutíveis motivos para otimismo, o período entre a posse de
Geisel e a passagem do poder para seu sucessor estava marcado por uma série de
eventos que justificavam reservas quanto ao futuro. Ao longo de seu governo,
Geisel lançara mão seguidas vezes dos recursos discricionários que lhe eram
garantidos pelos atos de exceção. A legislação eleitoral foi modificada seguidas
vezes para garantir a maioria do partido do governo no Congresso Nacional. As
eleições municipais, realizadas em 1976, foram regidas por lei criada pelo então
ministro da Justiça, Armando Falcão, segundo a qual era permitida no horário
eleitoral gratuito somente a exibição das fotos dos candidatos e a apresentação em
o ff de seus respectivos currículos, o que representava um explícito cerceamento
da campanha oposicionista e uma resposta a seu ótimo desempenho eleitoral dois
2
anos antes." Em 1977, sob o pretexto de aprovar uma reforma judiciária a que a
oposição resistia, Geisel lança mão dos poderes garantidos pelo AI-5 e fecha o
Congresso por 14 dias, decretando o chamado “Pacote de Abril”. Entre as medidas
contidas no decreto legislativo, era mantido o critério indireto para as eleições exe­
cutivas estaduais no pleito previsto para 1978, o que, segundo o cálculo de Geisel e
seus estrategistas, impediria uma vitória expressiva do MDB nos grandes centros.
É verdade que ao longo do governo Geisel a censura à imprensa foi gradativamente
abrandada e alguns canais de interlocução Estado/sociedade civil foram abertos
(especialmente com a CNBB, a ABI e a OAB). No entanto, houve, no mesmo
período, uma série de cassações de mandatos e de direitos políticos de parlamenta-
4
res da oposição. A despeito da revogação do AI-5, uma série de mecanismos
institucionais criados ao longo do regime fundado em 64 mantinha uma grande
margem de poder nas mãos do executivo. Na mesma emenda constitucional que
abolia os atos institucionais e restabelecia o habeas-corpus, constavam dois artigos
que davam amplos poderes ao Executivo, constituindo-se o que a oposição e a
OAB chamaram de uma versão disfarçada do AI-5. Desse modo, ao mesmo

2 Sobre as eleições de 1974 e o desempenho do M DB, ver la m o u n ie r (org.), 1 980.


3 Para uma análise das constantes mudanças na legislação eleitoral, no governo Geisel, dos cálculos que as m otiva­
vam e resultados obtidos, ver David Fleischer "M anipulações casuísticas do sistema eleitoral durante o regime militar,
ou com o usualmente o feitiço voltava contra o feiticeiro" Soares & D'A raujo, (orgs.), 1994.
4 Q uatro dias após tom ar posse, Geisel manda prender e cassa o mandato de Francisco Pinto, deputado do MDB, pelas
críticas ao general Augusto Pinochet, presidente do Chile e líder do m ovimento que derrubara Salvador Allende. Em
1975, é cassado o m andato do senador Wilson Campos (MDB), acusado de corrupção. Em 1976, foram cassados os
deputados M arcelo G ato, Nelson Fabiano Sobrinho (ambos acusados de pertencer ao PCB), N adir Rosseti, Am auri
M üller e Lysâneas M aciel. Em 77 foi a vez de G lênio Peres, M arco Antônio da Silva Klassman, por protestarem contra
a violação dos direitos humanos, Marcos Tito, por ter lido em plenário o editorial da Voz O perária, e Alencar Furtado,
por denunciar crimes de repressão durante o programa do horário gratuito [Jornal do Brasil, 1 3 /9 /9 6 ).

49
tempo que o govemo avançava em alguns campos no projeto de distensão do
regime, não titubeava em lançar mão de toda a sorte de recursos arbitrários para
manter sob seu controle os rumos do processo político, deixando dúvidas sobre
os limites de suas convicções e disposição em levar à frente a liberalização e a
reconstitucionalização.
No início de 1979, govemo e oposição travavam um verdadeiro jogo de xa­
drez na arena política. Ambos dispunham de trunfos nada negligenciáveis e cor­
riam riscos calculados frente aos recursos do antagonista. O governo que chega­
va ao fim deixava de legado a seu sucessor, além do compromisso de continua­
ção do processo de distensão, uma série de recursos de poder arbitrário que ele
próprio fora pródigo em utilizar sempre que lhe parecera conveniente. Poder este
que deixava a oposição, radicada no Congresso Nacional e nos legislativos de
alguns estados, com uma capacidade de atuação extremamente limitada e sempre
à mercê de novas intervenções. Além disso, o novo presidente a ser empossado
fora chefe do temido SNI, o que tornava ao menos suspeito seu reiterado com­
promisso com a democracia. A oposição, por seu lado, aproveitava como podia
os espaços obtidos ao longo do governo Geisel. Os resultados das eleições de 74
e 76 foram-lhe extremamente favoráveis e levaram o governo a tomar um a série
de medidas que visavam conter seu crescimento futuro, notadamente nos cen­
tros mais urbanizados do país. Em 78, a despeito de todos os casuísmos das
mudanças na legislação, o MDB melhorou ainda mais seu desempenho nas elei­
ções estaduais, revelando inequivocamente a baixa legitimidade do regime e a
fragilidade de seu braço partidário. O partido da oposição conquista vitórias ex­
pressivas, em especial nas grandes cidades e capitais dos principais estados da
Federação. Embora não contasse com maioria no Congresso, o MDB conquista
cadeiras suficientes para tirar da Arena os dois terços necessários para a aprova­
ção de projetos de lei e consolida junto à opinião pública a imagem de partido
oposicionista ao regime e defensor da restauração da democracia, deixando de
ser, cada vez mais, uma simples peça decorativa, oposição consentida pelo go­
verno, útil para que este pudesse dissimular seu caráter autoritário. O crescimen­
to do MDB em proporções indesejadas para os condutores do processo político
deveria receber um tratamento adequado da parte dos militares.
O fim da censura à imprensa abrira um precioso canal de protesto e contesta­
ção ao regime. A repressão aos movimentos sociais arrefecera sensivelmente e,
como conseqüência, uma série de instituições da sociedade civil, muitas delas

5 Skidmore, 1989 b:396.

50
com um passado marcadamente conservador, denunciavam os excessos dos ór­
gãos de segurança. Entre estas, vale destacar a ação da CNBB e da OAB. Entre
os grupos de corte tradicionalmente contestatório, observava-se um rápido e sig­
nificativo crescimento da atuação das CEBs e o surgimento de um novo movi­
mento sindical, especialmente na região do ABC paulista. A CNBB, órgão que
ocupa o topo da hierarquia eclesiástica no Brasil, tivera uma postura marcadamente
favorável ao movimento de 64. Desde o início da década de 70, porém, com o
recrudescimento da ação dos órgãos repressivos, que atingiram inclusive mem­
bros da Igreja, ela passa a atuar de modo cada vez mais ostensivo, denunciando a
ocorrência de violações dos direitos humanos nos quartéis e prisões em todo o
país. À medida que passaram a tomar-se públicos os casos de torturas e assassi­
natos em dependências militares, a atuação da CNBB tomou-se mais ostensiva, o
que foi possível em grande medida graças à abertura da imprensa. Nesta campa­
nha de denúncia, a CNBB teve como parceira a OAB, cujas direções e congres­
sos ao longo da década de 70 também posicionaram-se firmemente contrários às
práticas policiais de que se tinha conhecimento. Além disso, novos movimentos
de mobilização da sociedade civil, surgidos na esteira do crescimento econômico
e da estratégia do regime de fortalecer os estados, introduziam na dinâmica polí­
tica brasileira uma forma inédita de associativismo que demandava a ampliação
das liberdades política e civil. Se a atuação desses grupos e a relativa liberdade
de se expressarem trazia um grande alento para os partidários da redemocratização,
a atuação daqueles que eram objeto de reiteradas denúncias dava um tom dramá­
tico ao contexto. Ainda encastelados em postos-chave do govemo e do aparato
policial, os representantes da chamada linha dura davam sinais inequívocos de
que não gostavam da idéia de abertura do regime, aproveitando todos os espaços
e recursos disponíveis para deixar claras suas intenções de promover um recru-
descimento do modelo de força que vigorara especialmente durante o govemo
Médici. Ao longo de todo o govemo Geisel, os linhas-duras deram uma série de
demonstrações de sua força e de suas convicções. Era impossível precisar com
exatidão até onde a energia de Geisel pudera neutralizar suas ações e tampouco
até onde Figueiredo prosseguiria nesta mesma tarefa.
No contexto em que o presidente e seus colaboradores mais próximos dis-
punham -se a prom over a abertura - desde que m antivessem o controle do
processo e o conduzissem de modo a que não ocorressem mudanças profundas

6 Sobre a correlação entre a política do governo de am pliar o poder dos estados, o surgimento de um novo associativismo
urbano e as pressões para a democratização do regime, ver: Sallum Jr., 1996.

51
na estrutura de poder a oposição, fortalecida por seu desempenho eleitoral,
empunhava como sua principal bandeira a redemocratização do regime político
e os movimentos sociais ganhavam novo impulso defendendo o respeito aos
direitos humanos, um tema específico aparecia como prioritário na agenda polí­
tica: a anistia aos presos políticos e exilados.
A despeito de remontar a um passado recente, este quadro já é parte da
história. Mais que isso, compõe um dos seus capítulos mais importantes. Vistos
retrospectivamente, os primeiros dias de 1979 nos revelam traços importantes
que vão definir o perfil de atuação de Brizóla nos anos posteriores, bem como o
espaço político em que poderá atuar. Sigo aqui as indicações de A ngelo
Panebianco, segundo o qual a investigação das origens de um partido ou m ovi­
mento político é fundamental para entendermos sua configuração e percurso. É
verdade que tal abordagem traz em si problemas que não podem ser ignorados. O
primeiro deles, já mencionado na introdução deste trabalho, diz respeito às difi­
culdades de tratar o brizolismo como um movimento no sentido estrito da pala­
vra. Ainda que não seja articulado organicamente como tal, creio que o brizolismo
veicula uma série de elementos - uma leitura específica da história do Brasil, um
projeto político e uma concepção do que seja a própria natureza da atuação polí­
tica - que são cruciais para a sua existência e o singularizam em relação a outras
forças políticas organizadas ao longo do mesmo período aqui estudado, o que
pretendo deixar claro ao fim deste trabalho. Ainda que não se possa confundir o
brizolismo com o partido fundado por Brizóla, e do qual foi a principal e indisputável
liderança ao longo dos anos 80 e 90, também espero deixar evidenciado, tarefa
provavelmente mais simples, que um e outro - brizolismo e PDT - têm sido
indissociáveis, ao menos no Rio de Janeiro. Dito de outro modo, embora a adesão
à figura de Brizóla não corresponda, necessariamente, a uma identificação parti­
dária com o PDT, a história desse partido no plano nacional e, especialmente, no
Rio de Janeiro, é indissociável da trajetória de seu principal líder. Finalmente, um
terceiro problema se apresenta. O brizolismo é um fenômeno bem mais antigo
que o recorte aqui proposto poderia sugerir. Ele remonta ao final da década de 50,
ganhando força nos primeiros anos da década de 60, anos antes, portanto, do
golpe de 64. Ocorre, porém, que ao longo dos 15 anos entre o golpe e as
vésperas da anistia, Brizóla não só esteve banido do país e impedido de atuar
diretamente nos rumos da política nacional, como também seu nome foi supri­
mido da imprensa censurada e do acesso daqueles que não lhe eram muito

7 Ver Panebianco, 1988.

52
próximos. Temos, portanto, um lapso de tempo nada negligenciável, ao fim do
qual o reaparecim ento em cena de um ator político equivale efetivam ente à
origem de sua atividade. Além disso, tanto as mudanças ocorridas no Brasil ao
longo desse período como a forma e as circunstâncias em que se davam os
passos para o que redundaria na redemocratização do país compunham uma
ambiência relativamente estranha e pouco segura para aqueles que retomavam
do exílio. Daí ser não apenas pertinente mas mesmo necessário reconhecer no
retorno do exílio a origem de sua atuação política. O que de m odo algum
significa ignorar seu passado. Ao contrário, seu retorno equivale também a uma
reinterpretação e ressemantização do mesmo.
Considero, desse modo, fundamental a atenção para os debates suscitados
pela elaboração da lei de anistia, especialmente no que concerne ao retomo de
Brizola. Repito, literalmente, afirmação contida no início do parágrafo anterior:
vistos retrospectivamente, os primeiros dias de 1979 revelam-nos traços impor­
tantes que vão configurar o perfil de atuação de Brizola nos anos posteriores,
bem como o espaço político em que poderá atuar. Para um e outro, contribuem
tanto as forças à direita do regime, os linhas-duras, quanto aquelas que estavam
na oposição ao regime. Contribuem também os discursos e pronunciamentos das
forças políticas e sociais que emergiam naquele momento. Já em 1978, antes,
portanto, da promulgação da lei de anistia, o govemo autorizara a emissão de
passaportes de entrada no país pelas embaixadas brasileiras nos países que havi­
am acolhido refugiados e exilados políticos. Remonta, portanto, a 1978, o proces­
so, também lento e gradual, de retomo ao Brasil de lideranças, ex-dirigentes e
militantes que se encontravam no exterior. Havia, porém, a essa altura, uma lista
negra, elaborada pelo govemo, proibindo o retomo de oito exilados, os bêtes
noires do regime: Luís Carlos Prestes, Francisco Julião, Miguel Arraes, Paulo
Freire, Paulo Schilling, Márcio Moreira Alves, Gregório Bezerra e Leonel Brizola.
A alegação era a de que estes homens haviam cometido crimes contra a seguran­
ça nacional e que seu retomo poderia levar o Brasil de volta à situação de caos e
subversão que redundara no movimento de 64. A publicação reiterada e ostensi­
va dessa lista expressava o modo como estes homens eram encarados pelo regi­
me, ou por parte de seus integrantes. Os representantes da linha dura, como já foi
mencionado, estavam longe, a essa altura, de ter sido neutralizados. Preservavam
sua parcela de força, embora estivessem em processo de crescente decomposi­
ção. Agarravam-se, ainda, ao apelo do combate à subversão e ao fantasma do
comunismo, a despeito da visível queda do poder persuasivo dessa retórica. A
lista negra, assim chamada à época, indicava aqueles que encarnavam de modo

53
explícito “o perigo que o movimento de 64 quisera afastar, do qual não estávamos
totalmente libertos”. Da parte daqueles no poder que efetivamente controlavam o
governo, patrocinando e controlando o processo de distensão, a imagem que os
linhas-duras detinham dessas lideranças não podia ser negligengiada. Importava
pouco que seus argumentos fossem um mero recurso retórico ou, o que é mais
provável, correspondessem a avaliações sinceras da parte daqueles que extraíram
seu mórbido poder da convicção de que vivíamos uma guerra interna. Tanto num
caso como em outro, o retomo dos oito componentes da lista poderia significar,
ao menos naquele momento, transtornos no interior das Forças Armadas e nas
relações, já complicadas, entre os titulares do regime e aqueles que controlavam
os órgãos de segurança, transtornos cujos desdobramentos estavam longe de ser
previstos.
A composição da lista é curiosa e merece comentário. Paulo Schilling fora
secretário do governo Brizola no Rio Grande do Sul, atuando com destaque no
episódio de encampação das empresas ITT e Bond and Share. Fora isso, estava
longe de ser uma liderança política de grande expressão em nível nacional.
M árcio M oreira Alves fora o deputado cujo discurso na Câm ara serviu de
estopim da crise que culminou com a promulgação do AI-5, em dezembro de
1968, reconhecido como o segundo golpe e consolidação da ala radical dos
militares no poder. Seu discurso está longe de representar um manifesto políti­
co de “subversão à ordem ” e justificaria sua fam a se estivesse no hall do
anedotário político. Também ele estava longe de ser uma liderança suficiente­
mente expressiva, que justificasse o lugar reservado de “ameaça subversiva”.
Paulo Freire, educador que se celebrizara pela criação de um revolucionário
método de educação de adultos com inegável conteúdo político, era sem dúvida
alguma uma grande referência nacional e internacional. Intelectual incensado,
também não era o que se pode chamar de liderança popular, ainda que fosse
um inovador em sua área de atuação e defendesse idéias intoleráveis para os
linhas-duras. Prestes era o grande ícone do quase sempre proscrito PCB. Em ­
bora àquela altura sua liderança no partido já estivesse desgastada, do ponto de
vista simbólico sua figura ainda exercia uma grande ascendência e fascínio.
Francisco Julião e Gregório Bezerra eram as duas grandes lideranças das Ligas
Camponesas. Ambos representavam o que houvera de mais ativo e articulado
na história do movimento no campo no Brasil. Embora não se possa dizer que
fossem lideranças nacionais, a atuação de ambos teve de fato uma dimensão
mobilizadora forte o suficiente para que se compreenda a demonização de suas
figuras da parte dos órgãos de segurança. Nunca é demais lembrar que a exten-

54
são dos direitos políticos e sociais para os trabalhadores da área rural e a refor­
ma agrária eram dos itens mais importantes e polêmicos do período de agitação
do pré-golpe, e a liderança de Gregório e Julião nesse movimento estava muito
v iv a na m em ória dos agentes da rep ressão . A rraes fora g o v ern ad o r de
Pernambuco, estado em que as Ligas Camponesas tiveram uma atuação inten­
sa e onde alguns dos experim entos mais ousadas do program a de educação
popular concebido por Paulo Freire foram implementados. Era um político que,
além de filiado ao Partido Socialista Brasileiro, possuía um grande carisma, a
ponto de ser considerado uma força popular imbatível em seu estado. Final­
mente, Leonel Brizola era desde o movimento de 64, e ainda em 1979, consi­
derado quase unanimemente o inimigo número um do regime. Tido como in­
cendiário e subversivo, Brizola ficou durante um longo tempo como o grande
responsável pela radicalização que acabou por levar ao golpe militar. Esta ima­
gem, forjada ainda às vésperas do novo regime, perdurava em 1979 e a ela
aludia-se com freqüência. Sua biografia política pré-64 é bem conhecida. Do
ponto de vista partidário, Brizola dividia com seu cunhado, João Goulart, a
liderança máxima do partido que mais crescera ao longo do regime fundado em
45, o PTB. Do ponto de vista popular, é possível dizer que constituía a princi­
pal referência do legado varguista. Sua postura frente à tentativa de im pedi­
mento da posse de João Goulart em 61 criou em tomo dele uma aura que foi
reforçada pela tentativa de reação ao golpe em 64. E, entre um evento e outro,
fatos como seu desempenho eleitoral nas eleições legislativas de 62, no Rio de
Janeiro, a criação do Grupo dos Onze, a retórica nacionalista inflamada, bem
como a defesa das reform as de base, compunham um perfil paradigm ático
sobre as tensões do início dos anos 60. Fosse para demonizá-lo ou para idolatrá-
lo, parece fora de dúvida a pertinência da inclusão de Brizola numa lista de inimi­
gos preferenciais do regime militar.
A alusão à figura de Brizola nos termos acima referidos é cmcial para com­
preendermos as imagens e símbolos mobilizados no início do ano de 1979. Cmcial,
entre outras razões, pelo contexto de crise de legitimidade em que então se en­
contrava o regime militar. Em um momento em que os movimentos sociais con­
testavam de modo cada vez mais aberto o regime, o modelo econômico entrava
em colapso e a imprensa aproveitava as brechas da crescente flexibilização da
censura para tornar públicos os excessos da repressão, a imagem de Brizola

8 Hó um vasto m aterial sobre a atuação de Brizola nesse período, e mesmo o m aterial de propaganda do PDT é
bastante elucidativo. Destaco, porém , Bandeira, 1979. A despeito da indisfarçada sim patia do autor pelo seu objeto,
este é o m elhor livro sobre a trajetória política de Brizola escrito até o presente m omento.

55
poderia ser lida, e efetivamente o era, de duas formas. Entre os que se manifesta­
vam contrários a seu retorno, enfatizava-se a responsabilidade de Brizóla no
processo de acirramento da luta política que teria levado as Forças Armadas a
romper com a ordem democrática e, a partir de então, cometer todos os atos que
cometera, na intenção de restabelecer a ordem nacional. E nesse sentido que
repetidamente membros do Estado-Maior das Forças Armadas pronunciavam-se
publicamente contrários ao seu retomo, acompanhando suas manifestações com
ameaças pouco veladas de recrudescimento da ação repressiva, caso Brizóla
9
fosse anistiado. Curiosamente, tais manifestações não se restringiam às fileiras
militares. Em 22 de fevereiro de 1979, é publicada no Jornal do Brasil uma
declaração de Eurico Rezende, então governador do Espírito Santo, consideran­
do que a volta de Brizóla “irá perturbar a vida nacional”. Em 7 de março, o
deputado da Arena Edson Guimarães afirma ao mesmo jornal que “Pelo mal que
ele fez ao Brasil, (Brizóla) deveria ficar onde está”. Dessa perspectiva, Brizóla
aparecia como o maior responsável pela instabilidade política que levara a um
regime que mesmo seus beneficiários já não podiam defender como legítimo. Por
outro lado, esta mesma posição em que Brizóla era posto alimentava o glamour
em tomo de sua imagem. Ser perseguido e odiado por um regime cuja fragilidade
do ponto de vista popular era tão grande quanto seu caráter arbitrário e violento
fazia de Brizóla um mártir em vida, um representante legítimo do “lado bom” de
uma guerra que ainda não terminara. Desse modo, o destaque que lhe era dado
por seus “inimigos” paradoxalmente reforçava sua aura de liderança e represen­
tante autêntico dos anseios populares e verdadeiramente democráticos para um
público extremamente vasto (em especial para parte daqueles que compõem o
que, genericamente, chamamos de opinião pública), contribuindo para despertar
na população que vivera os anos pré-golpe a lembrança do líder aguerrido nas
lutas pelas reformas de base, e suscitando, nos mais jovens, a curiosidade por
aquela figura tão polêmica, da qual tinham notícias contraditórias mas sempre
veementes. Um outro fato importante contribuía para a formação dessa aura em
tomo da sua figura. Desde fins de 1978, quando começavam a retomar os pri­
meiros exilados, Brizóla movimentara-se, através de seu advogado Wilson Mirza,
para retornar ao país. Para tanto, iniciou um a verdadeira batalha jurídica no
sentido de obter habeas-corpus de uma sentença que o condenara à revelia a 11
anos de prisão por sua suposta participação na guerrilha de Caparaó. Além desta,

9 Veremos, no capítulo III, que mesmo às vésperas das eleições de 1982, quando a candidatura de Brizola jó parecia
im batível, estas ameaças perduravam.

56
pesavam sobre ele outras condenações por participação em operações de guerri­
lha em vários pontos do país. A imprensa deu ampla cobertura à batalha judicial,
que culminou com a rejeição do pedido pelo Supremo Tribunal Militar. O esforço
de Brizola em obter o direito de retomar ao país acentuava o conteúdo dramático
de sua trajetória pública, conferindo-lhe um estatuto de mártir do regime de
exceção.'0 Desse modo, as imagens de incendiário, manipulador das massas,
autêntico intérprete dos anseios populares e mártir do regime de força misturam-
se formando um perfil difuso mas com enorme poder de fascínio. Essa mesma
imagem era capaz, por outro lado, de despertar sentimentos não menos exacerba­
dos de ódio e ressentimento.
Os fantasmas envolvendo Brizola são retomados nesse período e por muito
tempo serão mobilizados no confronto político. Como contrapartida, remonta
também daí um trabalho intenso de seus aliados na promoção e divulgação de
sua biografia. Desde então, a cada disputa eleitoral, mas não apenas nessas
ocasiões, pequenas edições, quase artesanais, relatando a trajetória de Leonel
Brizola, serão repetidamente publicadas e divulgadas. A importância dedicada à
trajetória pessoal do líder na construção de sua persona pública é de tal modo
im portante que justifica uma breve interrupção no relato histórico para uma
análise mais detida. Em o Declínio do homem público, Richard Sennett analisa
o processo pelo qual a intrusão da personalidade e a valorização do eu no
espaço público a partir do século XIX tem como decorrência a derrocada deste
último. Os processos de formação de identidades coletivas são diretamente
afetados por uma dinâmica em que os gestos e ações em público devem ser
reveladores de uma personalidade notável e genuína. A divisão do trabalho,
própria do mundo moderno, se estende até às dinâmicas societárias do espaço
público. Nelas, os papéis são definidos segundo as propriedades e recursos de
personalidades singularizadas, que se afirmam pela capacidade de expor-se à
apreciação pública. Constrangido, o homem comum esquiva-se de revelar pu­
blicamente a pequenez de sua própria personalidade. Para isso existem os artis­
tas, especialistas nas técnicas de aparição pública. Os homens comuns passam
a ocupar a posição passiva, inédita até então, de meros espectadores. As conse­
qüências da hipertrofia da personalidade no campo político são desastrosas:

10 Vale lem brar que ainda nos prim eiros dias de setembro de 79, poucas horas antes de seu retorno ao Brasil e com a lei
de anistia já em pleno vigor, o 4o CJM de Juiz de Fora expede um m andato de prisão contra Brizola.

57
"N o ú ltim o século, o im pacto da pe rson alid ad e na id e n tid a d e pública dos
poucos que estavam ativos causou um a notável transform ação. Políticos pas­
saram a ser críveis, caso suscitassem a m esm a cre d ib ilid a d e em suas pe rso­
nalidades que os atores suscitavam no palco. O con teúd o da crença po lítica
retrocede en q u a n to se faça em público: as pessoas estavam m ais interessa­
das no con teúd o da vida do político. (...) A g o ra , um século depois de le, a
personalidade política é de finid a por m ultidões em term os específicos - os da
pureza de seus im pulsos e a q u ilo em que o po lítico acredita se to rn a cada
vez m enos im p o rta n te para se de cidir se se crê ou não n e le ."”

0 interesse pela personalidade do político, por seus sentimentos e inten­


ções, como sucedâneo da valorização da personalidade, gera o que Sennett
chama de cultura da incivilidade, da qual a ñgura do herói carismático seculari­
zado é um dos pilares. Como tratarei especificamente da questão da liderança
carismática no capítulo IV, restrinjo-me aqui à apresentação da idéia de incivili­
dade formulada por Sennett articulando-a ao caso específico da valorização da
biografia de Brizóla.
A incivilidade, segundo Sennett, corresponde à hipervalorização da p er­
so n alid ade, que faz com que a busca por in teresses com uns no espaço
público seja substituída pela procura de um a identidade comum. Egos que
procuram se identificar m ediante a com unidade de sentim entos e m otiva­
ções. Daí a form ação de identidades coletivas, m egaegos que dão propor­
ções de m assa a aspectos m inúsculos da personalidade trivial de indivíduos
comuns. A m obilização em torno do caso Dreyfus na França da virada do
século é paradigm ática da formação de identidades coletivas. Essa tendên­
cia condena e suprim e o princípio de interação característico da civilidade,
os jogos de interesse de indivíduos estranhos m obilizados na esfera pública
e cujo resultado m ais significativo é o encontro m ediante o qual tiram pro­
veito uns dos outros. Suprime a possibilidade de os atores posicionarem -se
no espaço social como individualidades irredutíveis entre si, portadores de
volições, paixões e interesses cuja negociação é o próprio fundam ento dos
encontros fortuitos e da celebração de consensos e acordos casuais. A di­
m ensão lúdica de tal dinâm ica, m ediante a qual “ os estranhos devem se
encontrar”, é suprim ida por um a sociabilidade em que a todo o m om ento os

11 Sennett, 1989: 244.

58
sujeitos são convocados a agir de modo a revelar o m ais profundo e genuí­
no de seus sentim entos. A sociedade intim ista prom ove a incivilidade e
desencoraja o senso de jogo nos indivíduos. Como se articulam esta cultura
da incivilidade com a figura do líder político e ambas com o caso específico
aqui estudado? A inda segundo Sennett, o m undo público incivilizado encara
a frieza e distanciam ento das relações im pessoais com o a principal fonte
dos m ales contem porâneos:

"A crença hoje p re d o m in a n te é que a ap roxim a ção entre as pessoas é um


bem m oral. A aspiração hoje pre d o m in a n te é de se desenvolver a pe rso n a li­
dade in divid ua l através de experiências de a p roxim a ção e de ca lo r h u m an o
para com os o u tro s "12

Tal percepção estendida para o político redunda em que

"(...) a história da vida pública traz à baila a m itolo gia construída em to m o da


im pessoalidade e n qu an to um mal social. (...) A im pessoalidade parece d e fi­
n ir um pa no ram a de perda hum ana, um a total ausência de relacionam entos
hum anos. Mas essa própria equação da im pessoalidade com a p ró pria vacu i­
dade cria a perda. Em resposta ao m edo da vacuidade, as pessoas concebem
o p o lític o com o um d o m ín io em que a p e rs o n a lid a d e será d e c la ra d a
vigorosam ente. Assim eles se to rn a rã o os espectadores passivos de um a p e r­
sonagem política que lhes ofereça suas intenções, seus sentim entos, mais do
que seus atos, para a consum ação d e le s ."'3

A insistência em acompanhar alguns dos passos de Sennett pode sugerir


que, um a vez apresentado o diagnóstico, o passo seguinte seja apenas sua
aplicação automática ao caso do brizolismo como uma espécie de confirmação
e reiteração empírica do arranjo teórico descrito. Não é este, porém, o caso.
Está fora de dúvida que a valorização da biografia como um dos gêneros mais
populares atualmente corrobora as teses de Sennett. Detalhes da vida íntima,
passagens pitorescas, todos os elem entos parecem incidir para coroar um a
destinação que tanto pode ser o sucesso, o fulgor, a conturbação ou a derroca­
da trágica do biografado. Jogam uma luz sobre a personalidade entendida como
entidade insulada, linear e transparente. Única portadora de autoridade moral e
legitimidade simbólica. Tudo está posto e nada poderia ser diferente do que
acabou sendo. No caso do político, a intimidade de seu cotidiano familiar, dos

12 Sennet, 198 9:31 7.


13 Ibid., p. 319.

59
sentimentos que nutre pelas pessoas mais próximas, o modo como passa seus
finais de semana e celebra os dias festivos se sobrepõem, no dizer de Sennett,
aos seus feitos, à ideologia que professa e aos projetos que encampa. Transpos­
ta para a política, a valorização da personalidade significa a sobreposição do
privado sobre o público. A fábula m andevilliana já não faz mais sentido: é
secundário que vícios privados gerem virtudes públicas, posto que apenas as
virtudes privadas importam e são fiadoras da totalidade da experiência social. A
virtude pública não é questão, uma vez que o espaço público é preenchido pelo
ambiente, laços e sentimentos da vida privada. O curioso no caso de Brizola é
que o que se dá é exatam ente o inverso. Todos os reclam es, program as
televisivos, publicações e peças de propaganda têm um contorno em que a
figura privada, sua biografia é subsumida e articulada em função do homem
público, de sua trajetória e seus feitos públicos.
A estrutura narrativa é invariavelmente a mesma. Ela começa pela primeira
infância, quando o menino Itagiba fica órfão de pai. A morte do pai é uma
espécie de batism o de fogo do futuro líder. Não são a morte em si e suas
conseqüências funestas que têm importância, mas suas circunstâncias. Uma
das últimas guerras tão comuns no sul ao longo do século XIX e início deste
século. Trata-se do conflito entre chimangos - partidários do então presidente
do estado, Borges de Medeiros - e os federalistas maragatos. Seu pai era um
maragato e por esta condição é levado de casa e morto por tropas inimigas. Seu
destino é o mesmo de outros tantos gaúchos; faz parte do processo de forma­
ção do povo da fronteira com o qual o menino é curtido ainda bem criança. O
uso do lenço vermelho dos maragatos por parte dos pedetistas será um símbolo
14
de vinculação, ainda que ambíguo, a esta tradição liberal da fronteira. Esta
passagem da vida familiar é um elo de ligação de Brizola com a história política,
sua porta de entrada. Que seja marcada pela morte em luta, enfatiza a radicalidade
desse vínculo. A segunda etapa da vida de Brizola nada mais é que um a ponte
para a passagem seguinte. A situação financeira familiar, comprometida pela
m orte do pai, não m erece m aiores atenções, salvo pela ênfase m aterna na
im portância da educação escolar e por ser causa da partida de B rizola de
Carazinho. Este, sim, é um momento crucial em sua trajetória. Morando com
um pastor luterano e sua esposa, B rizola é descrito como um m enino que

14 A am biguidade deve-se ao fato de a ascendência política de Brizola ser, geralm ente, remetida às tradições positivistas
da política gaúcha. Suas origens estão em Bento Gonçalves e passam, sucessivamente, por Júlio de Castilhos e
Borges de Medeiros até chegar a Vargos. O s maragatos, nas questões gaúchas, estariam filiados à oposição a esta
tradição e têm em Silveira M artins, inim igo político de Júlio de Castilhos, sua referência histórica mais conhecida.

60
concilia os estudos com o trabalho duro na estação de trens. Aí ele é o menino
pobre que almeja superar as condições adversas através do trabalho e da for­
mação escolar. Nesse momento, converte-se ao luteranismo. O credo religioso,
porém, é apresentado de modo a converter-se em virtude pública. Ao longo dos
anos, jam ais este traço biográfico foi explorado. Não encontrei qualquer regis­
tro nesse sentido. Visitas de Brizola à Igreja, movimento de estreitamento de
vínculos com seus dirigentes não são registrados em quaisquer circunstâncias.
A marca de seus princípios, porém, é inegável. A austeridade no vestir-se, a
simplicidade de suas preferências culinárias e de lazer, o estilo regrado e pouco
afeito a rituais ostentatórios são citados por seus colaboradores como traços
cultivados teimosamente por Brizola, o que provoca neles.um a mistura de ad­
miração e aborrecimento. Mesmo no exílio europeu, quando aproximou-se de
dirigentes da social-democracia, ou quando aporta no Rio de Janeiro para fazer
desta cidade sua base de atuação política, a sobriedade e discrição são suas
marcas. Não há o menor sinal de cosmopolitismo ou sofisticação em sua im a­
gem, o que, de acordo com os mesmos colaboradores, seria necessário em
certas ocasiões. Desde os “tempos de Carazinho” até seus dias de maior prestí­
gio, os banquetes não ganham o lugar dos tradicionais e populares arroz-de-
carreteiro e churrasco gaúcho. À sobriedade une-se a extrema valorização do
trabalho e da educação escolar. A estes elementos e à autodisciplina rígida
restringe-se o luteranismo em Brizola, enquanto figura pública. São eles a força
motriz para o próximo passo, quando o futuro líder parte para a capital, acres­
centando à díade trabalho/estudo a atuação política.
O ingresso na vida político-partidária revela um outro traço de sua atuação
política que será amplamente explorado: a coerência. Ainda estudante, Brizola
vincula-se à juventude trabalhista e passa a militar no PTB. O comprometimento
com a causa trabalhista, motivado e referendado por sua própria trajetória, e com
o nacionalismo que marcará a política brasileira ao longo de toda a década de 50,
período em que Brizola efetivamente ascenderá no interior do PTB, é enfatizado
como a marca de toda a sua trajetória de homem público. Será também a bandei­
ra que aparece empunhando nas passagens mais marcantes de sua atuação como
líder regional que aos poucos ganha dimensão nacional. Dados biográficos mais
íntimos são postos em segundo plano. O casamento com Neuza Goulart é um
bom exemplo. É surpreendente o contraste entre a exposição pública de d. Neuza,
bastante pequena, e a importância atribuída a ela por aqueles que militaram poli­
ticamente com Brizola. A sua vida familiar nunca é destacada como expressão de
valores privados, nem tampouco é apresentada como portadora da exemplaridade

61
de seu caráter. O que confere densidade à persona pública de Brizóla, tal como
veiculada em suas biografias, são os seus feitos como ator político, suas escolhas
e projetos. Não existem traços de personalidade ou tensões psicológicas. Há, ao
contrário, uma sucessão de iniciativas que se encadeiam em direção ao grande
desenlace, que evidentemente estaria por vir. Há um componente épico em sua
trajetória, tal como construída nas biografias sobre ele produzidas. Sua figura
pessoal revela um caráter excepcional apenas pela obstinação e austeridade. Estas
são condições de possibilidade para a ascensão via trabalho e estudo, entendidos
como bens públicos e, portanto, acessíveis - ou assim deveriam ser, diria ele - a
todos os brasileiros. Sua trajetória privada é exemplar apenas na medida em que
põe em destaque os bens públicos dos quais os brasileiros em geral não podem
ser privados. As iniciativas na área de educação são, provavelmente, o melhor
exemplo dessa correlação. A centralidade de sua carreira escolar como forma de
superação das dificuldades por que passou confere credibilidade a seu compro­
metimento com a rede pública de ensino, apresentada como marca de todas as
suas gestões, em Porto Alegre, no estado do Rio Grande do Sul e, posteriormen­
te, também no Rio de Janeiro. O mesmo vale para a valorização do trabalho
como instrumento de ascensão social. Como poderia um líder sofismar sobre
assuntos que tocam fundo sua própria vida e sua carreira? À medida que sua
biografia avança e Brizóla adentra definitivamente o cenário político nacional,
mais vivas são as cores com que seus feitos são descritos. Sua performance na
prefeitura de Porto Alegre, embora pouco explorada, marca a ascensão e conso­
lidação de uma nova liderança trabalhista regional. Desse período é evocada a
ênfase de suas administrações na área educacional. O governo do Rio Grande do
Sul projeta definitivamente a figura do líder nacionalista e, principalmente, atra­
vés dos episódios de encampação da ITT e da Bond and Share, do líder popular
disposto a levar às últimas conseqüências seus compromissos políticos. O perío­
do de governo gaúcho é pontuado por dramas, nos quais Brizóla aparece como o
guerreiro disposto à auto-imolação, enfrentando adversários “ocultos”, em certas
ocasiões, semi-ocultos em outras. São descritos de modo a realçar sua carga
dramática. Brizóla aparece como o líder intrépido a desafiar poderosos adversári­
os políticos, econômicos e ideológicos. As empresas encampadas representam o
imperialismo predatório dos EUA, contrário ao desenvolvimento nacional e à
prosperidade popular. O mesmo se dá nas descrições sobre sua atuação quando

15 Além de citadas em várias biografias, a expressão "m aro ta" e de espanto de Brizola ao deparar-se, quando no exílio,
com a im ponência e suntuosidade da sede das empresas que enfrentara, é m encionada em vários depoim entos de
correligionários seus com orgulho e prazer indisfarçáveis.

62
da campanha da legalidade. Este episodio é a última evocação acabada da mais
pura tradição da fronteira. Mais urna vez a figura do herói gaúcho irrompeu o
cenário nacional de armas na mão. Aliás, a fase final da biografía de Brizóla, no
período que vai até 64, explora não somente o líder político, nacionalista e admi­
nistrador exemplar, comprometido com as causas populares, mas também, e
crescentemente, a imagem do guerreiro. A nacionalização das empresas america­
nas é o primeiro passo. O seguinte, a grande mobilização popular empreendida na
campanha da legalidade. O líder se toma mais aguerrido quando vem para o Rio
de Janeiro com um apoio popular inigualável expresso nas eleições de 1962.
Eleito como deputado mais votado na história política brasileira, em termos pro­
porcionais, Brizóla aparece organizando uma frente parlamentar para a implanta­
ção das reformas de base. Considerando a atuação parlamentar insuficiente (este
é um dado a ser retomado por minha análise posteriormente), cria a Frente Naci­
onalista e o Gmpo dos Onze. O personagem é apresentado como um guerreiro
tenaz, anárquico e romântico. A mobilização das massas e a ação de conscientização
e organização direta são suas tarefas. A posição de Jango, enroscado com as
dificuldades de quem ocupa o poder, permite aos biógrafos destacarem, sem
dificuldade, a atuação de Brizóla em defesa das reformas de base. Não que a
imagem de Jango seja maculada por dúvidas quanto a seus compromissos com as
causas nacionalistas e populares. Nas biografias de Brizóla, a figura de Jango é
preservada, mas, como é compreensível, mantida numa discreta posição secun­
dária. À medida que a narrativa vai se tornando mais dramática, a atuação de
Brizóla ganha contornos maiores. Toda a sua trajetória pública-pessoal, anterior­
mente analisada, converge para esta última etapa. Reformas na lei ou na marra.
Palavra de ordem que vai se alastrando nos últimos dias do regime de 45, tem
nele um vocalizador privilegiado. O desenlace funesto para toda a agitação não
minimiza o conteúdo heróico de sua atuação. Ao contrário, disposto a resistir
mais uma vez pelas anuas, como fizera em 61, Brizóla aparece como o líder para
quem a própria morte não passa de uma circunstância. Posteriormente, já no
exílio, as relações de Brizóla com os primeiros focos de resistência armada ao
regime militar, em Caparaó e Uberlândia, são sugeridas, sob um conveniente véu
de imprecisão e mistério quanto ao grau de envolvimento.
E evidente que outras versões para a trajetória de Brizóla, especialmente no
que diz respeito à sua participação no processo de radicalização da crise que
redundou no golpe militar, também foram formuladas e mantêm até hoje uma
aceitação bastante razoável. Um a delas, já m encionada, era form alizada e
publicizada por pessoas ligadas de alguma forma ao regime então fundado e que

63
buscavam demonizá-lo. Centrando nele a responsabilidade maior pelos aconteci­
mentos de 64, mantinham-no como personagem central de toda a trama. Outras,
porém, igualmente desfavoráveis, lhe causariam maiores dificuldades, pois viriam
da esquerda do espectro político. Voltarei a elas mais adiante. O que importa
observar por ora é o processo pelo qual sua biografia é construída. Ela não é
composta exclusivamente por sua história pessoal. Esta é apenas sua dimensão
humana. Mas mesmo nela, seus feitos, sua inserção na vida pública sobrepõem-
se completamente a questões mais íntimas e propriamente pessoais. No contexto
dos debates que corriam nos idos de 1979, apenas seus feitos interessavam. Eles
eram realçados, como o seriam repetidas vezes nos anos subseqüentes. Volte­
mos, então, a esse ponto da história, tendo em vista que ainda há outra dimensão
do processo de construção da biografia de Brizola a ser explorada.

A personalidade e seu duplo

A biografia de Brizola, tal como anteriormente retratada, foi amplamente


explorada, ao longo de todo o período aqui estudado. Já o era em 79 e, naquele
contexto, seu poder de atração era enorme. E pouco provável que os artífices do
projeto de distensão não o percebessem e não vislumbrassem nela elementos que
fossem úteis para seu próprio projeto. Certamente, as principais lideranças da
oposição também o percebiam e preocupavam-se com isto. As eleições no regi­
me bipartidário haviam se tomado, desde 1974, crescentemente plebiscitárias, e
as manifestações do eleitorado via sufrágio eram cada vez mais desfavoráveis à
Arena, partido de apoio ao regime. Superada a etapa de repatriamento dos exila­
dos e de restituição ampla dos direitos políticos através da lei da anistia, promul­
gada em agosto de 1979, já no govemo Figueiredo, o próximo passo no sentido
da liberalização do regime deveria ser a reforma partidária. Para além, ou aquém,
da incompatibilidade do sistema bipartidário, imposto de cima para baixo, com a
democracia, tal empreendimento obedecia a imperativos estratégicos sobre os
quais há uma vasta bibliografia: a estratégia, de inspiração militar, de dividir a
oposição para melhor enfrentá-la. O sucesso de tal projeto parecia certo, entre
outras razões pela evidente heterogeneidade intema do MDB. Os principais líde­
res do MDB percebiam as intenções do govemo mas percebiam igualmente os
impasses do próprio princípio identitário do partido. Formado pelos quadros polí­
ticos sobreviventes às sucessivas ondas de cassações e banimentos, promovidos
desde os primeiros momentos do regime, o MDB abrigava representantes das
mais diversas, e por vezes contraditórias, tendências ideológicas e políticas. A
rigor, pouco mais havia que os identificasse entre si além do inimigo comum, o

64
regime autoritário. De mera oposição consentida, manietada por toda a sorte de
recursos que os diversos governos militares lançaram mão ao longo dos anos, o
MDB foi pouco a pouco consolidando-se como uma frente política extremamen­
te hábil para explorar os parquíssimos espaços de m anobra de que dispunha,
ganhando, lentamente, uma expressão eleitoral cada vez maior e terminando por
dispor de um quadro de lideranças regionais, e nacionais, muito bem articuladas e
dispostas a não perder os espaços arduamente conquistados. Sua bandeira princi­
pal ao longo de toda a sua existência fora e continuava sendo o retomo à ordem
democrática. Era claro, porém, que o sucesso de sua luta deveria tomar-se tam­
bém o princípio de sua mina. O retomo de antigas lideranças com incontestável
patrimônio político obrigaria a uma reordenação de forças para a sua acomoda­
ção no seio do partido que empunhara a bandeira democrática. A criação de
novos partidos apontava para uma quase certa sangria de seus quadros e disper­
são do eleitorado, que passaria a ter, a partir de então, outras formas de dizer não
ao regime e lançar outras bandeiras além da emedebista, ou ainda, empunhar a
mesma bandeira por outros canais partidários. Às vésperas da promulgação da lei
de anistia e da reforma partidária, os principais líderes oposicionistas movimenta-
vam-se frente a estas questões decisivas para os desdobramentos políticos futu­
ros. Também aí, a figura de Brizola ganhava um relevo nada negligenciável.
O fim do bipartidarismo era um projeto do govemo Geisel já anunciado fazia
algum tempo. Desde 1977, pesquisas sondavam a viabilidade e aceitação de
novos partidos junto à opinião pública. Nelas, o retomo da sigla do PTB e o apelo
do nacionalismo apareciam com destaque. Era natural, portanto, que antigas
lideranças petebistas em atividade no Brasil passassem a se articular para a recri­
ação do partido, que ficara na memória como a principal organização de massa
do período pré-golpe. Desse modo, 1979 foi também o ano de um a disputa
acirrada entre dois grupos pela legenda do PTB. Buscava-se, com a conquista da
antiga legenda, a posse de um capital simbólico que se mostrava dos mais promis­
sores. Criado por Vargas com base no braço sindical da estrutura do Estado
Novo, o PTB ficou na história política recente como o partido que, ao longo da
curta experiência democrática de 45 a 64, teve maior capacidade de penetração e

16 Pesquisas de o pin ião realizadas, em 1975 e 1978, pelo Instituto G allup, apontavam que, dentre as doutrinas e
ideários políticos apresentados aos entrevistados (trabalhismo, dem ocracia cristã, liberalism o, socialism o, nacio na­
lism o e conservadorism o), o trabalhism o foi objeto preferencial de escolha. Teve 31% de preferências na prim eira
pesquisa e 39% na segunda. Em ambos os casos, o segundo lugar ficou com a dem ocracia cristã (19% e 14%,
respectivamente). Os dados obtidos nas duas pesquisas indicavam que a preferência pelo trabalhism o aumentava
nas camadas sociais mais baixas. Ver Novicki, 1992.

65
17
mobilização popular. Compondo com o PSD, o PTB esteve sempre participan­
do do poder político nesse período, ainda que em posição minoritária. Foi dele o
controle do Ministério do Trabalho e das instituições de previdência social ao
longo de quase todo o regime fundado em 45, o que lhe conferiu um enorme
capital político para penetrar nas classes trabalhadoras urbanas, no que foi bene­
ficiado, também, pela proscrição do PCB em 1947. O PTB foi o partido que
mais cresceu em termos de desempenho eleitoral, chegando a ocupar a presidên­
cia da Rpública, em 1961, ainda que pelas vias tortuosas que são por todos
conhecidas. Seu momento de maior crescimento, no início dos anos 60, coincidiu
com o período em que se intensificaram os movimentos de mobilização pelas
reformas de base, das quais fez-se, com freqüência, ainda que um tanto ambigua­
mente, um dos principais vocalizadores. O processo de crescimento do PTB é
atestado na tabela abaixo:

D esem penho eleitoral dos partidos para a Câm ara dos Deputados (1945/1962)
PARTIDOS ANO
1945 1950 1954 1958 1962
PSD 151 112 113 117 119
UDN 77 81 74 71 94
PTB 22 51 60 62 111
PCB 14 *** *** *** ***
PR 7 11 19 17 7
PSP 2 24 31 26 22
PPS 4 * * * *
UDN/PR 6
* * * ★
PL 1 5 8 3 5
PDC 2 1 * 7 19
PTN *
5 6 7 10
PRT * 1 1 2 3
POT * - * * *
PRP *
2 3 3 3
PRB * - * ■k *
PSB *
1 3 9 5
PST ★ *
1 2 7
MTR * * * * 4
S/P ** ** ** **
5
Total 286 304 326 326 409
Fonte: Dados estatísticos - Tribunal Superior Eleitoral, Eleições Federal, Estadual e M unicipal - Depto. de Imprensa
N a cional, 1 964 , v. 1, p. 20. * N ão lançou candidatos. ** Não houve candidatos sem partido. *** Sua licença foi cassada
em 1947. - Não conquistou cadeiras.

17 Adoto aqui a versão mais com um sobre as origens do PTB. Segundo ela, às vésperas do fim do Estado N ovo, Vargas
começa a organizar a estrutura que lhe daria sustentação política em um regime com petitivo. Vargas cria o PSD,
form ado basicamente pelos interventores e pela parcela da elite oligárquica que estivera a seu lado no poder. Com
o intuito de estabelecer um canal de penetração popular, Vargas cria também o PTB, com posto p o r quadros da
estrutura sindical ligada ao M inistério do Trabalho e aos institutos previdenciários, além de lideranças dos m ovim en­
tos queremista e "panela vazia". Embora esta seja a versão mais corrente, ela está longe de ter unanim idade. Há
estudiosos que defendem a tese de que o surgimento do partido deu-se à revelia de Vargas, que, apenas ao perceber
que além de inevitável ele lhe poderia ser extremamente útil, apóia sua estruturação. Ver Bodea, 1979.

66
Depois de manter um desempenho estável, entre as legislaturas de 1950 e
1958, o PTB praticam ente dobra sua bancada, tornando-se o segundo maior
partido da Câmara e reduzindo a quase zero a diferença para o PSD, maior
partido ao longo de todo o período. Além disso, a partir da década de 50,
dirigentes, militantes e simpatizantes do então proscrito Partido Comunista pas­
saram a utilizar a legenda petebista para lançar-se a cargos eletivos, o que
reforçava a imagem esquerdista do partido. O PTB era, enfim, o partido que
representava a dimensão popular e trabalhista do legado de Vargas. No contex­
to de exaustão do regime militar, era de grande importância também o fato de
ter sido o PTB, entre os partidos legais da época, aquele que fora o mais
duramente penalizado pelos atos de exceção do sistema instaurado em 64 - a
começar pelo próprio presidente deposto, que era, à época, seu principal líder,
juntam ente com Brizola. Num total de 385 pessoas cassadas no ano de 1964,
115 eram lideranças e quadros de partidos legais. Desses, nada menos que 60
pertenciam ao PTB. Até 1967, logo após, portanto, a extinção legal dos parti-
19
dos do regime de 45, foram cassados 82 políticos petebistas. Com isso, assu­
mir a sigla do PTB representava retomar o projeto mais duramente combatido
pelo regime militar, sua maior vítima."
Ocorre, porém, que o antigo PTB estava longe de ser um partido homogêneo
do ponto de vista regional. O controle nacional do PTB esteve sempre nas mãos do
partido do Rio Grande do Sul e do Rio de Janeiro, depois estado da Guanabara. Era
nesses dois estados, também, que o partido tinha maior ascendência sobre o movi­
mento sindical e era mais agressivo na defesa dos direitos sociais e das reformas de
base. Em contrapartida, o PTB de São Paulo, liderado por Ivete Vargas, era frágil
eleitoralmente, com baixa capacidade de penetração popular e marcado por práticas
reiteradamente denunciadas pela própria direção nacional do partido como fisiológi­
cas. A relativa fragilidade da seção paulista do PTB é em parte explicada pela
concorrência de outros partidos de corte trabalhista em São Paulo, além da emer­
gência de lideranças com forte apelo popular não alinhadas ao partido, como Ademar
de Barros e, depois, Jânio Quadros. Além dessa especificidade paulista, há um
outro dado da maior importância para a compreensão da história petebista. Segun-

18 C onform e assinalo G ild o M arça l Brandão, a partir de meados da década de 50 o PCB lança candidatos aos
legislativos federal, estaduais e municipais por várias legendas e coligações. Dentre elas destacam-se o PTB, o PST,
o PRT e, principalm ente, o PTB. Para uma história do PCB e sua postura frente à cham ada política form ol e ao
processo eleitoral, ver Brandão, 1 997.
19 Santos, M onteiro & Cailaux, 1990.
20 Vale notar que me refiro apenas aos projetos e partidos legais à época do golpe, estando excluídos tanto o PCB,
quanto as organizações surgidas de suas dissidências.

67
do Maria Victoria Benevides, havia, da parte da liderança nacional composta basi­
camente por políticos do Sul e do Rio de Janeiro, uma preocupação em não perder
o controle da direção do partido para a ala paulista, o que, em grande medida,
explicaría as conturbadas relações com as lideranças de São Paulo:

"Em bora o PTB ten ha sido, no período 4 6 -6 4 , o partido de m a io r crescim ento


n a cion al, o PTB paulista sofreu crises e baixas, quase ao po nto do d e sap are­
cim ento no estado (em 1 954 elege oito deputados fed erais e em 19 58 , a p e ­
nas cinco). A explicação conhecida para esse fe n ô m e n o consiste em a p o n ta r
um a certa 'consp iraçã o' das cúpulas dos grandes pa rtido s da alian ça d o m i­
nante (PTB e PSD) contra o possível crescimento do PTB paulista. Um PTB forte
em São Paulo am eaçaria ta n to a suprem acia gaúcha q u a n to a 'concilia ção
conservadora' dos m in e iro s..."21

É difícil avaliar com precisão o peso explicativo de cada um a das razões


aventadas pela autora para entender o caso do PTB de São Paulo. Além das
duas razões mencionadas - a concorrência de outras lideranças não vinculadas
ao partido, que levavam a uma fragmentação de lealdades, e a disputa interna
entre as seções regionais pela hegemonia nacional - , todas as demais (indefinição
programática, ambigüidades na relação com os comunistas e divisões no m ovi­
m ento sindical) diziam respeito ao partido como um todo, com exceção da
disputa interna pela liderança do partido, travada entre Hugo Borghi e Ivete
Vargas. Desse modo, tudo leva a crer que houvesse de fato uma disputa interna
no partido no plano nacional e uma preocupação da parte de seus dirigentes em
preservar o equilíbrio das alianças, com a manutenção do PTB paulista numa
esfera limitada de atuação.
Seria no mínimo ingênuo supor que a tensão no interior do PTB se desse
entre trabalhistas puros, representados pelas lideranças gaúchas e cariocas, e
falsos trabalhistas fisiológicos e oportunistas, encastelados no PTB de São Paulo.
Seja como for, importa registrar que a antiga cisão volta a aparecer às vésperas da
reimplantação do multipartidarismo no Brasil e seus efeitos são extremamente
importantes, nesse novo contexto. Segundo José Gomes Talarico, jam ais os tra­
balhistas que permaneceram no Brasil deixaram de manter-se em contato:
"A verdade é que o traba lh ism o não deixou de funcionar, ain d a que não fo r ­
m alizad o e na clandestinidade. (...) Em 73, um g ru p o de São Paulo levou ao
Jango um a sugestão de se cria r a UTB, para pro m ove r a restauração do PTB.

21 Benevides, 1989.

68
N ão seria com o nom e PTB, seria um p a rtid o tra b a lh ista . A proposta acabou
não se concretizando porque o Brizóla não estava de a c o rd o ."22

O projeto de reestruturar o partido, assim que o regim e se flexibilizasse


e a legislação o perm itisse, fazia com que antigas lideranças e quadros do
partido prom ovessem , regularm ente, encontros clandestinos, no B rasil, e
visitassem , com freqüência, as duas principais lideranças do partido no exí­
lio - João G oulart e Leonel Brizóla. A esta altura, João G oulart perm anecia
com o a principal referência e liderança do trabalhism o. Com a m orte de
Jango, em 1976, os antigos trabalhistas passam solenem ente o bastão da
liderança para Leonel Brizóla. É Talarico, de novo, que recorda:

"Logo após o sep u lta m e n to de Jango, na m esm a no ite , nós, os tra b a lh ista s
que a li estavam para p a rtic ip a r da so le n id a d e , fizem os um a re u n iã o . Fize­
mos essa re u n iã o para d iscutir sobre a quem iría m o s e n tre g a r o ba stão do
tra b a lh is m o . V ários deputados e d irig e n te s p a rticip a ra m . Então, eu propus
que fosse e n tre g u e o bastão ao Brizóla. Saím os em com issão e fo m o s a
N e uza , para que ela transm itisse a Brizóla a d e le g a çã o de ele a ssu m ir a
chefia do tra b a lh is m o no B rasil"23

Esta mudança tem um significado importante para os desdobramentos futuros


do movimento de restruturação do PTB. Os perfis políticos do líder morto e de seu
herdeiro eram significativamente diversos. João Goulart fora, como presidente na­
cional do partido, a partir de meados da década de 50, o grande responsável pelo
crescimento do PTB, revelando-se um hábil articulador. Sob seu comando, a má­
quina partidária, estabelecida no Ministério do Trabalho e nos institutos ligados à
previdência, operou uma política agressiva de recrutamento político-partidário e de
crescimento constante de seu desempenho eleitoral. De estilo conciliador, Jango
também ampliou o raio de alianças partidárias do PTB, principalmente à esquerda
do espectro político. Segundo antigos trabalhistas, a ascensão de Jango à liderança
do PTB significou uma guinada importante do trabalhismo concebido por Vargas. É
com ele que o conteúdo nacionalista do trabalhismo varguista toma-se nacional-
popular. Nesse quadro, e ainda seguindo a linhagem iniciada por Vargas a que Jango
dera continuidade, Brizóla expressaria a radicalização de um processo, ou assim
pensavam os trabalhistas. A já mencionada atuação política de Brizóla conferia-lhe
uma potencial aura de líder revolucionário, que nenhum de seus antecessores tive­

22 Depoim ento de José Gomes Talarico ao autor, em 2 8 /8 /9 6 .


23 Idem.

69
ram e sequer desejaram ter, o que facilitaria a consolidação de uma imagem esquer­
dista para o novo trabalhismo. Apesar de a aproximação com grupos à esquerda do
PTB ter-se iniciado ainda antes do golpe, quando, portanto, Jango era a principal
referência do trabalhismo, não resta dúvida de que a atuação de Brizola era a
grande fiadora, aos olhos de uma parte das lideranças de esquerda, do acerto de tal
24
política de aproximação. A atuação passada de Brizola dava-lhe, portanto, uma
razoável margem de aceitação entre figuras que atuavam politicamente em movi­
mentos populares e de esquerda fora das fileiras do PTB. Com ele empunhando o
bastão do trabalhismo, acenava-se uma nova inflexão: o trabalhismo como cami­
nho para o socialismo. Sua rearticulação passava a girar em vários eixos, não se
restringindo mais apenas aos antigos quadros do PTB, mas estendendo-se a outros
grupos, incluindo aqueles que, após o golpe, optaram pela luta armada. A partir de
1976, com os sinais de que o processo de descompressão ganhava fôlego, intensifi­
cam-se as articulações para a reorganização de um partido trabalhista que teria em
Brizola sua principal liderança.
Para entendermos melhor a natureza das articulações em torno de Brizola,
vale remontar ao período de seu exílio e às atividades por ele empreendidas.
Após a tentativa frustrada de convencer Jango a resistir ao golpe através das
armas, Brizola repete o trajeto bastante familiar a políticos gaúchos derrotados
em lutas políticas, refugiando-se no Uruguai. Esta passagem deu lugar a inúme-
25
ras versões, entre elas a de que Brizola fugira vestido de mulher. Independen­
temente da indumentária, o fato é que, àquela altura, Brizola era o homem mais
procurado do país, ou assim parecia. Radicado no Uruguai, Brizola mantém
vínculo com a resistência armada, sendo, ainda que a distância, uma referência
para os organizadores dos focos guerrilheiros em Caparaó e U berlândia. A
desarticulação desses focos de resistência armada, em 67, convence definitiva­
mente Brizola da implausibilidade de sucesso dessa estratégia. Ainda assim, ele
é o único líder de expressão a não aderir à Frente Ampla, organizada por Lacerda
com o apoio de Juscelino e adesão de Jango. Tudo indica, porém, que Brizola

24 Esta afirm ação é extremamente problem ática, posto que a rejeição a Brizola e a seu suposto estilo golpista era muito
grande, e, provavelmente, até dom inante em grupos de esquerda com o, por exemplo, o PCB. Abordarei mais adiante
esta rejeição, já m encionada no final da seção anterior. De qualquer modo, é curioso perceber que, depois da
abertura, parte de lideranças expressivas dos movimentos de esquerda, do período do pré-golpe, e que com punham
a "lista negra" do regim e, com o Prestes, Francisco Julião e G regário Bezerra, se alinhará ao partido de Brizola. O utro
dado que não pode ser negligenciado diz respeito às reservas que muitos dos colaboradores mais próxim os de Jango
nutriam p o r Brizola e seu estilo de atuação. Tais reservas persistiram, ao longo de todo o período do governo militar,
e acabaram tendo im pacto na form ação do novo partido trabalhista, especialmente depois da perda da legenda do
PTB para Ivete Vargas.
25 E patente o objetivo de im por o ridículo não só a Brizola mas ao próprio m ovim ento que tinha nele uma figura de
proa.

70
não abandona a atividade política. Segundo Trajano Ribeiro, então um jovem
ex-militante comunista e certamente uma das pessoas no Brasil mais próximas
de Brizola, nesse período, o ex-governador acompanha de perto os rumos da
vida política gaúcha, chegando mesmo a ter alguma influência na definição de
candidatos do MDB:
"O Brizola apoiou explicitam ente a cam panha do Brossard ao senado, em 74,
se não me engano. N o período de fecham ento político, ele estava te n ta n d o a
luta arm a da . Depois, viu que não havia condições de sucesso p o r essa via e
parou. Q ua n d o o regim e começou a a b rir efetivam ente, ele com eçou a in flu ir
no MDB ga úch o."26

Em 1977, pouco depois da morte de Jango, o governo uruguaio comunica a


Brizola que não dispõe de meios para garantir-lhe segurança, acrescentando ao
comunicado um pedido para que se retirasse do país em cinco dias. Este segun­
do banimento é também objeto de versões que lhe conferem ares pitorescos e
heróicos. Uma delas é a de que esta era uma estratégia dos linhas-duras brasi­
leiros para forçar seu retorno ao Brasil e sua conseqüente eliminação, o que
constituiria um fato político dos mais perturbadores. Outra versão reza que,
antecipando-se às possíveis intenções dos linhas-duras de eliminá-lo, o governo
brasileiro envida esforços para mandá-lo para o mais longe possível do Brasil e
assim preservar-se de um fato político cujas conseqüências certamente seriam
desastrosas para a política de liberalização já em curso. A escolha da nova
residência não é menos marcada pe)as versões que realçam as qualidades e a
importância atribuídas a Brizola, ainda que alijado legalmente da atividade polí­
tica. Segundo uma delas, a escolha pelos EUA foi um golpe calculado no senti­
do de, simultaneamente, pôr em prova a política de direitos humanos prom ovi­
da por Carter e quebrar um pouco a sua imagem de antiamericanista radical,
que poderia dificultar sua volta ao Brasil, quando as condições lhe permitis-
27 . . .
sem. Uma outra versão, mais prosaica e, por isso mesmo, pitoresca, conta
que Brizola passava de carro pelo centro de M ontevidéu quando viu-se próxi­
mo da embaixada americana. Naquele momento, ele teria pensado: por que não
os Estados Unidos? Entrou e pediu asilo ao embaixador, que logo após fazer
contato com Washington, constrangido e sem outra alternativa, deu-lhe visto
tem porário para residir no país. Na prim eira versão, opera o hom em sagaz,

26 Depoim ento de Trajano Ribeiro ao autor, em 2 5 /8 /9 6 .


27 Sobre a política de defesa dos direitos humanos do governo C arter e as suas repercussões no Brasil, ver Skidmore,
1989b.

71
capaz de reverter a seu favor as situações mais adversas. Na segunda, aparece
o personagem intuitivo e de rápido poder de decisão.
Segundo depoimentos de diversas pessoas que estiveram próximas a Brizola,
este é o início de um período que marca sua atividade política e seus projetos
futuros. A partir de sua ida para os Estados Unidos, Brizola começa a manter
contatos com brasileiros exilados em várias partes do mundo. Faz viagens fre­
qüentes à Europa, estabelecendo em Portugal uma espécie de fro n t para encon­
tros com figuras proeminentes da política brasileira e também com líderes euro­
peus. Viaja para Paris, Estocolmo e Alemanha. Promove encontros em Lisboa
entre políticos brasileiros exilados no México, na Argélia e aqueles que optaram
pelo continente europeu. Passa também a manter contatos freqüentes com os
principais líderes da social-democracia européia. Como resultado desses conta­
tos, Brizola acaba por ser convidado a tomar acento, como representante do
Brasil, na Internacional Socialista, inicialmente como observador e depois como
membro efetivo daquela instituição. A ocupação deste lugar tem um grande
significado. A partir daí, além de conquistar o reconhecimento de uma respeitá­
vel instituição internacional que reunia estadistas como O loff Palme, François
Mitterrand, Mário Soares, Felipe González e Willy Brandt, Brizola reforçava
sua posição de democrata vocacionado para questões sociais, sem comprometi­
mentos, por outro lado, com o marxismo ou com teses revolucionárias. Clóvis
Brigagão, um dos principais mediadores dos contatos de Brizola com a Interna­
cional Socialista, comenta:

"Ele (B rizola) soube a p ro v e ita r m u ito bem um espaço va zio q u e existia e


q ue já tin h a sido a p re s e n ta d o p a ra vários o u tro s. Ele sou be a p ro v e ita r a
p o s s ib ilid a d e su rg id a a p a rtir da tra n s fo rm a ç ã o pela q u a l a In te rn a c io n a l
estava passando e a v o n ta d e de a b rir um lu g a r para o Brasil. Isso ta m b é m
era im p o rta n te para a In te rn a cio n a l. Ter um país de peso da A m é rica Lati­
na era crucial p a ra eles. Já tin h a o Peres, da V en ezu ela , e um a lid e ra n ça
do U ru g u a i. M as não tin h a o Brasil. Então, o B rizola e n te n d e u isso. A im ­
p o rtâ n cia de te r um assento na In te rn a cio n a l. Já que não era um a o rg a n i­
zação co m u n ista , ela era revision ista, não havia m otivos para te m e r q u a l­
q u e r tip o de p ro b le m a com o g o ve rn o b ra s ile iro . E, p a ra a In te rn a c io n a l,
era in te re ssa n te te r um país com o o Brasil e um líd e r com a vo ca çã o que
to d o s eles, M á rio Soares, W illy B randt, Felipe G onzález, tin h a m ." 28

28 Depoim ento de Clóvis Brigagão ao autor, em 2 5 /9 /9 6 .

72
Data, portanto, de 1977 a intensificação dos trabalhos voltados para a
composição de um grupo capaz de formar um novo partido trabalhista assim
que fosse possível, iniciando-se também a definição daqueles que estariam,
nesse momento, em tomo de Brizola. No Brasil, o movimento também existia,
ainda que diluído e dividindo a atenção dos protagonistas com as questões mais
emergenciais da política doméstica.
Ao que tudo indica, cada um dos vários núcleos que se articulavam para a
criação do novo partido sabia da existência dos demais. A julgar pelos depoi­
mentos colhidos, no entanto, é pouco provável que tivessem uma atuação inte­
grada. Alguns deles tinham pouco mais em comum além do desejo de criar um
partido com base no trabalhismo e manter-se em contato com Brizola. A pró­
pria idéia de que esse novo partido assumisse a antiga sigla do PTB não era
partilhada por todos. Há, ao menos, duas versões para a resistência à adoção da
antiga sigla. A prim eira delas se refere aos riscos que um a atuação decidida
nesse sentido implicaria para os rumos do processo de descompressão. Dada a
situação de imprevisibilidade sobre a real disposição dos reformadores do regi­
me e sua real força frente aos radicais de linha dura, calculavam alguns, era
mais prudente a criação de um partido com bases trabalhistas, adotando, po­
rém, um a outra sigla que não a do PTB. A antiga sigla poderia reacender
antigos ressentimentos e temores, principalmente entre as forças mais à direita
da política brasileira. Uma segunda versão refere-se pura e simplesmente ao
cálculo individualista de antigos trabalhistas. Segundo ela, ex-trabalhistas situa­
dos em postos-chave do MDB temiam arriscar-se em uma em preitada, cujo
sucesso não era com pletam ente seguro. O fato é que o PTB estava m uito
arraigado nas origens do MDB. Embora boa parte das lideranças nacionais do
MDB não tivessem suas origens no partido trabalhista, o peso de antigos m em­
bros do PTB era bastante significativo desde o momento de sua criação. Quan­
do é fundado em 1966, 52% de parlam entares do MDB eram ex-petebistas.
Em conjunto com egressos de outros partidos menores de cunho reform ista e
trabalhista, este contingente alcançava o percentual de 64% do novo partido.
29
Por outro lado, apenas 29% eram egressos do PSD. Havia, portanto, um
certo vínculo fundador entre os trabalhistas e o partido no qual foram obrigados
a conviver com representantes de outras tendências políticas, mas de cuja cria­
ção haviam participado ativamente. Daí, Trajano Ribeiro, um dos mais empe­

29 Sobre a form ação e a trajetória do M DB, ver: M aria D'Alva G il Kinzo. "O legado oposicionista do MDB, o partido do
M ovim ento Democrático Brasileiro" (Soares & D'A raujo (orgs.), 1994).

73
nhados na reconstrução do PTB, e com estreitas ligações com Brizola, afirmar
que, a rigor, pouca gente queria realmente fundar o PTB.
Pelo menos até o início de 1979, a alternativa de criação imediata de um
novo partido não era questão fechada. De qualquer modo, é nesse momento que
o movimento dos grupos que então se auto-intitulavam trabalhistas começa a
ganhar densidade e as discussões por eles promovidas vão definindo a escolha
pela criação de um novo partido. É nesse momento também que uma primeira
fissura entre duas vertentes se define de modo claro. Já em janeiro de 1979, um
grupo sediado no Rio Grande do Sul, que se autodenomina núcleo do PTB,
liderado por Mateus Schmidt, começa a discutir a forma como se integrariam ao
cada vez mais próximo regime multipartidário, debatendo, entre outras hipóteses,
a possibilidade de ingresso no MDB. Em razoável consonância com este núcleo
gaúcho, um grupo de políticos recém-retomados do exílio, apoiado por alguns
intelectuais e políticos que permaneceram no Brasil, cassados ou não, reúne-se
no Rio de Janeiro para começar a definir as linhas ideológicas de um novo parti­
do, citadas por Carlos Castello Branco em sua coluna no Jornal do Brasil como
30
de “inspiração obreirista e trabalhista, reunindo também líderes sindicais”. Este
novo partido assumiria a velha sigla do PTB. Finalmente, Ivete Vargas pronuncia-
se, freqüentemente, sobre seus projetos políticos futuros, iniciando todas as suas
declarações com a frase: nós, do PTB. Cogitada, inicialmente, como aliada possí­
vel de Brizola, quando este retomasse do exílio, Ivete é gradativamente isolada
por colaboradores do ex-govemador gaúcho e acaba tomando-se de aliada em
potencial a adversária na disputa pela posse do legado trabalhista.
Quando fica clara a definição de dois grupos com poucas chances de conci­
liação na empreitada de reestruturar o novo partido de base trabalhista, inicia-se
uma luta pela posse da legenda do PTB que duraria mais de um ano. Ignorando
invectivas e ameaças daqueles que vinham sistematicamente à imprensa pro­
nunciar-se contra o retomo de Brizola, ambos os grupos acenavam para o ex-
governador do Rio G rande do Sul, na expectativa de obter seu apoio. A
centralidade da posição ocupada por Brizola nesse momento é reforçada por
mais um dado. Preocupados com a sangria de quadros que a fundação do PTB
poderia provocar em suas próprias fileiras, as principais lideranças do MDB
também passam a cortejar Brizola, para que estimulasse a manutenção da fren­
te oposicionista, orientando políticos ligados a ele que se mantivessem no ou se
filiassem ao partido. Esta era a reação oposicionista à explícita estratégia do

30 Jornal do Brasil, coluna do Castello, 2 7 /1 /7 9 .

74
governo de criar as condições necessárias para o racha e conseqüente enfra­
quecimento da frente de oposição em que se constituíra o MDB. A tarefa dos
líderes oposicionistas, porém, era das mais árduas. O partido abrigava em seu
interior forças muito diferentes entre si. Era difícil imaginar que estas forças,
que conviviam no mesmo partido devido à camisa-de-força do bipartidarismo,
o fizessem por vontade própria e opção política. Além disso, muitos dos políti­
cos que retomavam do exílio eram lideranças fortíssimas de um passado não
muito longínquo e dificilmente aceitariam, mesmo que apenas em um primeiro
momento, ocupar posições secundárias e dividir com as lideranças surgidas ou
consolidadas ao longo do regime militar a hegemonia do MDB. Este era, entre
outros, o caso de Brizola. Tínhamos, portanto, um verdadeiro jogo de xadrez,
no qual os diversos contendores buscavam calcular cada um de seus m ovimen­
tos em função daqueles operados pelos demais jogadores (a própria definição
de quem, nesse jogo, era adversário ou aliado fazia parte do cálculo). Vejamos
rapidamente como Brizola se posicionou nesse contexto.
A ênfase na centralidade da figura de Brizola, nesse momento, está longe de
ser um recorte aleatório ou artificial para justificar minha análise. Como já foi
dito, em princípios de 1979, muitos políticos de destaque já haviam retomado do
exterior, beneficiados pela anistia parcial promovida por Geisel no final de 1978, e
atuavam intensamente na definição dos novos mmos políticos do país. Alguns
poucos, também muito importantes, aguardavam o momento propício para retomar
ao país. Este era o caso de Brizola. No entanto, ao menos no que conceme à
/ imprensa do Rio de Janeiro, seu nome ganha dimensões inigualáveis. Há momen­
tos em que as menções a Brizola e à sua importância na redefinição do quadro
partidário brasileiro são tão freqüentes quanto às lideranças que atuavam no Bra­
sil, incluindo aquelas situadas no âmbito parlamentar. A postura assumida por
Brizola é bastante peculiar e ambígua. Diante de um quadro em que surgiam de
vários lados manifestações contrárias a seu retorno, ele assume uma posição
extremamente cautelosa, buscando sublinhar sua disposição à conciliação e à
colaboração para com o processo de abertura. Veementemente rejeitado pelos
sobreviventes da linha dura e pelos setores civis mais conservadores, por um
lado, e, por outro, cortejado por aqueles que se articulavam para fundar o PTB e
por algumas lideranças do MDB, sua postura visava, a princípio, remover todos
os impedimentos para seu retomo e, ao mesmo tempo, garantir que tal se desse
em condições que lhe fossem favoráveis. Depois de considerar seriamente um
acordo com Ivete, Brizola passa a se esquivar de modo discreto de seus acenos,
até deixar claro que não comporia com seu grupo. Num primeiro momento, o

75
alinhamento com Ivete Vargas parecia facilitar o retomo de Brizóla do exílio, uma
vez que a ex-líder do PTB paulista tinha uma relação bastante estreita com Golbery
do Couto e Silva. Ocorre, porém, que aceitá-la como fiadora da tarefa de recons­
trução do PTB significaria simultaneamente conceder-lhe um enorme poder no
interior do novo partido. Segundo Wilson Fadul, “Brizóla sabia que dificilmente
teria espaço de atuação num partido controlado por Ivete”'
O passado de Ivete também parecia concorrer para seu isolamento, relativa­
mente a outros grupos interessados na reconstrução do partido. Parte dos então
chamados trabalhistas históricos viam nela a personificação do pior que houvera
no antigo PTB: exatamente o PTB paulista, considerada a seção mais fisiológica
e retrógrada do partido. Reviviam, assim, antigas contendas e disputas internas,
no que eram enfaticamente apoiados pelos grupos compostos por figuras, cujo
passado não estava no trabalhismo, mas à sua esquerda. Ao explicitar seu afasta­
mento de Ivete, Brizóla estimula o trabalho de rearticulação do PTB patrocinado
por figuras como Almino Afonso, Valdir Pires, José Colagrossi, Darcy Ribeiro,
Bocayuva Cunha, Wilson Fadul, Cibilis Viana, Trajano Ribeiro, Eduardo Chuay,
Doutel de Andrade, entre outros, ao mesmo tempo que trabalha para atrair novos
nomes para sua causa. Simultaneamente, porém, anuncia publicamente seu apoio
à consolidação da frente oposicionista, estimulando os trabalhistas a filiarem-se
ao MDB. Esta postura de Brizóla provoca reações por todos os lados. E curioso
observar que é justamente entre aqueles que não tinham raízes no trabalhismo
que tais reações são mais inflamadas. Para estes, a fundação do partido era uma
questão cmcial e mesmo estrategicamente decisiva. Abdicar da criação imediata
do PTB poderia representar a perda da legenda para o grupo de Ivete. Esta,
devido a seu passado à frente do PTB paulista e às suas relações com Golbery do
Couto e Silva, mentor intelectual do governo Geisel, era encarada como uma
força conservadora, divisionista e a serviço do governo militar. A proposta de
incorporação ao MDB parecia, portanto, para um grupo muito próximo a Brizóla,
uma estratégia inconcebível naquele momento. É importante ressaltar, também,
que um dos recursos que este mesmo gmpo dispunha para reclamar para si a
legitimidade da herança da legenda era exatamente o apoio recebido de Brizóla
para a recriação imediata do partido. Imaginavam a criação de um partido de
massas, que se diferenciasse programáticamente do MDB. Para isso, parecia-
lhes fundamental o apelo trabalhista (tido como o movimento de massas mais
bem-sucedido no Brasil), a liderança de Brizóla (considerado a liderança de mas-

31 Depoim ento de Wilson Fadul ao autor, em agosto de 1996.

76
sas mais forte dentre as que sobreviveram à ditadura) e a sigla petebista. " No dia
4 de fevereiro, por exemplo, Nadir Rosseti, deputado federal do MDB do Rio
Grande do Sul, afirma que o único núcleo trabalhista reconhecido por Brizola é
aquele organizado em tomo de Almino Afonso e Fernando Henrique Cardoso,
deixando clara a importância do seu aval para o ressurgimento do trabalhismo.
Havia, portanto, nesse momento, vários desafios a serem vencidos. Conseguir o
direito de retomar ao país era apenas um deles e o mais imediato. Vencer a luta
pela herança trabalhista era tão importante quanto o primeiro, mas provavelmen­
te mais decisivo, pois dizia respeito ao sucesso de um projeto político de médio/
longo prazo, que então se esboçava. Os esforços feitos por articuladores como
Doutel de Andrade, José Gomes Talarico e José Colagrossi de aproximar os dois
grupos fracassam sucessivamente.
Do lado do MDB, porém, as coisas não eram muito mais fáceis. A esta
altura, alguns articulistas viam em Brizola uma figura-chave para a manutenção
da unidade do MDB. Ainda em fevereiro de 1979, o então secretário-geral do
MDB, Thales Ramalho, vai ao encontro de Brizola, no exterior, com a missão
de obter seu apoio ao partido. Tal posição, porém, não era das mais tranqüilas.
Se reconheciam em Brizola uma liderança capaz de trazer para junto de si
quadros expressivos da oposição, enfraquecendo a posição emedebista, as prin­
cipais lideranças do partido tampouco viam com bons olhos as conseqüências
de seu ingresso no partido. Políticos de perfil moderado como Ulisses Guima­
rães e Tancredo Neves, que detinham a liderança do M DB, tem iam que o
ingresso de Brizola pudesse implicar um rearranjo de forças de conseqüências
imprevisíveis no interior do partido. Além disso, havia nos dois centros políti­
cos em que Brizola atuara com destaque no período pré-64, Rio de Janeiro e
Rio Grande do Sul, lideranças fortemente consolidadas. No Sul, Pedro Simon,
cujo início de carreira fora justam ente no interior do PTB, dificilmente “digeri­
ria” uma divisão de poder que em muito pouco tempo se revelaria extremamen­
te desvantajosa para si. Nos tempos áureos de Brizola, ainda na liderança do
partido no Rio Grande do Sul, Simon era um político local pouco conhecido.
Ao longo do regim e militar, porém, ele alçara uma posição de destaque no
MDB, consolidando-se como uma de suas principais lideranças. No Rio de
Janeiro, a questão era m ais complicada. O MDB do Rio era controlado por
Chagas Freitas, considerado o que havia de mais conservador no partido. Cha­

32 É difícil caracterizar aqueles que assumiram tal posição com o uma tendência política e ideo lógica. Dentre os
entrevistados, esta postura foi assumida especialmente por figuras que se encontravam no exílio e, portanto, não
haviam estabelecido uma relação direta com a experiência emedebista.

77
gas Freitas era dono de uma máquina política poderosa, que se especializara ao
longo dos anos em compor com o governo federal e obter expressivo desempe­
nho eleitoral mediante práticas clientelistas, e parecia impossível, àquele m o­
mento, sua convivência com Brizola, numa mesma agremiação. Do mesmo
modo, parecia improvável que o próprio Brizola se dispusesse a aceitar uma
posição secundária em seu retomo. Perfeitamente antenado com o que se pas­
sava no Brasil e em contato regular com outros políticos exilados, Brizola tinha
bem a noção do poder de barganha que dispunha. A aceitar os próprios depoi­
mentos daqueles que estiveram próximo a ele ao longo desses anos, seria im­
possível supor que Brizola aceitasse uma situação em que não estivesse em
posição de comando. Condição que dificilmente se cumpriria caso se filiasse ao
MDB. A julgar pelo depoimento de Teotônio dos Santos, as lideranças modera­
das do MDB tinham razões de sobra para se preocuparem:

"N a q u e le m om e nto, o PTB de Brizola te ria sido o h e rde iro do MDB. Era isso
que nós pensávam os. Com a esquerda do MDB, se fa ria um p a rtid o de es­
querda com conteúdo social crescente. A p a rtir da í, nós com eçaríam os a
radicalização do grande m ovim ento dem ocrático brasileiro. Mas, in fe lizm e n ­
te, a d ire ita fo i m u ito in te lig e n te . C o nse guiu c o m a n d a r o processo de
liberalização e acabou divid in d o a esquerda, m an te nd o o con tro le nas mãos
das lideranças conservadoras."3,1

Desde 1976, pouco antes de Brizola partir do Uruguai, quando lhes pareceu
que de fato o processo de liberalização seria implementado pelo govemo Geisel,
políticos exilados em várias partes do mundo passaram a articular-se e preparar-
se politicamente para o momento do retomo. Com o apoio de órgãos e associa­
ções de esquerda de vários matizes, radicadas principalmente na Europa, os exila­
dos brasileiros passaram a tecer uma rede no sentido de criar no Brasil um partido
de massas, que congregasse os diversos setores da esquerda em torno de uma
liderança forte, com apelo popular. Embora não fosse o único nome disponível,
Brizola parecia ocupar posição privilegiada entre os nomes possíveis:

"D o nosso ponto de vista, interessava um partidã o desde que sob o com ando
de Brizola. A í sim, poderia haver um a esquerda e um a d ireita d e ntro do p a r­
tido . N ão haveria problem as em te r um a direita porque nós julgávam os que
a fig u ra de Brizola penderia o p a rtido para a e sq ue rda."35

33 Sobre a atuação do chaguismo no Rio de Janeiro, ver Diniz, 1982.


34 Depoim ento de Teotônio dos Santos ao autor, em 1 3 /8 /9 6 .
35 Depoim ento de Teotônio dos Santos ao autor, em 13 /8 /9 6 .

78
É dessa convicção acerca da vocação esquerdista de Brizola que se origina­
va a boa receptividade que ele teve entre parte significativa dos grupos de
exilados, quando deu início a suas próprias iniciativas a partir de 1977. Brizola
já tivera contatos anteriores com alguns deles, como era o caso do chamado
grupo do M éxico, composto por vários ex-militantes de organizações de es-
37
querda, muitos dos quais envolvidos diretamente em ações armadas. Outros
exilados, principalmente aqueles que participaram dos movimentos estudantis
no período imediatamente anterior à promulgação do AI-5 e que optaram pela
guerrilha urbana, eram-lhe completamente desconhecidos. Desde então, vários
encontros foram promovidos com o objetivo de discutir a conjuntura da Am éri­
ca Latina, em geral, e do Brasil, em particular. Com a entrada ativa de Brizola
nesse circuito, a tradição trabalhista e a sua adequação aos novos tempos pas­
sam a dar o tom desses encontros. Vários deles são promovidos a partir de 77.
Entre esses, um tomou-se célebre, pelas dimensões e pelo significado simbólico
que passaria a ter nos anos seguintes: o encontro dos Trabalhistas do Brasil
com os Trabalhistas no Exílio, também conhecido como o encontro de Lisboa.
Realizado nos dias 15, 16 e 17 de junho de 1979, o Congresso Trabalhista de
Lisboa foi na verdade a celebração ritual que marcava a criação de um novo
partido trabalhista no Brasil, tendo em Brizola sua liderança máxima. Embria­
gados pelo ambiente do que Huntington chamou de terceira onda dem ocráti­
ca, cerca de 150 pessoas, entre exilados, militantes sindicais, políticos de es­
querda das mais variadas tendências, reuniram-se na sede do Partido Socialista
português para debater o futuro dos movimentos sociais e políticos no Brasil.
39
Lá estiveram , segundo relatório de José Gomes Talarico, nove deputados
federais, cinco deputados estaduais - sendo quatro do Rio Grande do Sul e um
do Rio de Janeiro - , exilados brasileiros radicados nos EUA, México, Alem a­

36 Vale notar, contudo, que os vários grupos identificavam a vocação esquerdista de Brizola de maneiras diferentes. Esse
ponto será explorado no próxim o capítulo, quando serão analisados os diferentes projetos que se reuniram e c o lid i­
ram no interior do brizolismo.
37 Faziam parte desse grupo, entre outros, Neiva M oreira, Vânia Bambirra, Teotônio dos Santos, Francisco Julião e
Herbert de Souza. Havia, em outras partes do m undo, quadros políticos im portantes que com partilhavam do mesmo
projeto desse grupo. Basicamente, defendiam a retomada da bandeira nacional-popular, defendendo o que cham a­
vam a im plem entação de uma dem ocracia substantiva, de caráter social, no Brasil, encarando o novo trabalhism o
com o cam inho para a construção de um sistema socialista. M uitos dos que se alinhavam com essa tese estavam
envolvidos nas primeiras tentativas de resistência armada ao regim e militar, lo g o após o golpe. Esse ponto será
retom ado no capítulo III.
38 Huntington, 1 994. O estudo, já um clássico, desse autor am ericano, que esteve várias vezes no Brasil prestando uma
espécie de assessoria ao governo brasileiro sobre os rumos da redem ocratização, identifica três ciclos históricos de
dem ocratização.
39 José Gomes Talarico, notas e registros sobre a Reunião de Lisboa para o Prim eiro Congresso Trabalhista-Socialista
(mimeog.) G entilm ente cedido pelo autor.

79
nha, França, Holanda, Argélia, Suécia, Inglaterra e Portugal. Estiveram tam ­
bém políticos de várias partes do Brasil, ex-trabalhistas ou não, e alguns líderes
sindicais. Além desses, foram enviados representantes da Frente Sandinista,
então às vésperas de tom ar o poder na N icarágua, do PRI do M éxico, do
venezuelano Ação Dem ocrática, da Frelim o de M oçam bique, do M PLA de
Angola, do PSOE da Espanha, do Secretariado da Internacional Socialista de
Londres e do Partido Socialista da Itália. Vários membros do Partido Socialista
português também estiveram presentes, cabendo ao então prim eiro-ministro,
40
Mário Soares, a abertura dos trabalhos. Eduardo Costa lembra o ambiente do
encontro:

"Foi um evento m uito em ocionante. Eu, particularm ente, encontrei m uita gente
da esquerda, com quem eu tinha m ilitado. Tinha a turm a do gatilho, da VAR-
Palmares, o Julião, uma série de pessoas m uito interessantes. Foi realm ente
fantástico, porque havia um espírito de congregar, de u n ir forças. Estavam lá
pessoas exiladas em todos os cantos do m undo e um grupo de pessoas que
estava penando no Brasil. Havia uma força m uito intensa. Além disso, Portugal
tam bém estava passando po r uma série de transformações, vivendo um m o­
m ento m uito interessante. Eu lem bro que, no meio da reunião, chegou a notícia
que as forças do Daniel O rtega, na N icarágua, estavam avançando. Foi uma
festa. Havia realm ente um clima m uito bom, uma emoção m uito gra n d e ."41

Foram três dias de debates intensos e discursos sobre a formulação de um


projeto trabalhista para o Brasil. Comissões de estudos foram organizadas para a
produção de documentos nesse sentido e, ao fim, um novo encontro ficou de ser
confirmado para a criação de um novo partido político, mais precisamente para o
dia 19 de abril de 1980, no Rio de Janeiro. Dentre os documentos produzidos,
42
um tomou-se referência entre os partidários de Brizola: a Carta de Lisboa.
O encontro de Lisboa teve uma grande repercussão no Brasil. Acusações de
que Brizola estava sendo financiado pela Internacional Socialista surgiram na
imprensa de várias partes do país. Além disso, provocou grande m al-estar a
notícia de que ele teria dado declarações ofensivas ao governo brasileiro e aos
militares. Mais uma vez, Brizola ocupava o centro do debate político nacional e,
mais um a vez, de modo extremamente polêmico. A despeito do fato de que

40 Entre as ausências, uma delas merece m enção: M iguel Arraes, com quem Brizola sempre teve dificuldades não
contornadas de relacionam ento, a despeito dos encontros que tiveram durante o exílio.
41 Depoim ento de Eduardo Costa ao autor, em 3 /8 /9 6 .
42 Uma análise do conteúdo e do significado sim bólico deste docum ento encontra-se no capítulo III.

80
muitos daqueles que lá estiveram acabaram por não se alinhar no movimento
para a fundação do novo PTB, o encontro de Lisboa tornou-se um marco do
significado político que o retomo de Brizóla à vida pública brasileira representa­
va. Personagem que surgira e se firmara no cenário político à custa de desempe­
nhos eleitorais extraordinários (como o obtido no Rio de Janeiro em 1962), Brizóla
podia, simultaneamente, ser reverenciado por ter sido aquele que pegara em
armas em 61, quando da campanha da legalidade, e em 66, quando da guerrilha
de Caparaó. Fora também o principal articulador da Frente Parlamentar Naciona­
lista e, quando considerou que esta deveria ter uma dimensão mais popular e não
limitar-se à esfera parlamentar, criou a Frente Popular Nacionalista. Depois do
golpe, já no Uruguai, esteve em contato com o Movimento Nacional Revolucio­
nário (MNR), primeiro foco de tentativas de resistência armada ao movimento
43
militar. Seu estilo jacobino teve um grande apelo, em especial no Rio de Janeiro,
cuja história e tradição estão marcadas por reiteradas manifestações dessa nature­
za. Os dados biográficos de Brizóla lhe conferiam uma imagem curiosa e rara,
principalmente quando combinados com suas novas incursões nas doutrinas de­
mocráticas européias e norte-americana. Era ao mesmo tempo um líder de mas­
sas eloqüente o bastante para ganhar eleições e, dentro de nossas mais genuínas
tradições de fronteira, dotado de uma espécie de vitalidade guerreira para pegar
em armas, quando necessário fosse. Agora, postava-se também ao lado dos mais
importantes estadistas europeus, qualificando-se para assumir também a persona
de estadista. Sua opção por migrar para os EUA quando extraditado pelo govemo
uruguaio, em 1977, aproveitando-se espertamente, no dizer de Raphael Peres
44
Borges, da política de direitos humanos de Cárter, dava-lhe uma coloração mais
civilizada para aqueles que consideravam excessiva sua pregação pré-golpe. A
isso, unia-se seu trânsito bastante estreito com a então em alta social-democracia
européia, de cujos líderes tornara-se bastante próximo nos últimos tempos de
exílio. Por último, o fato de ser o principal líder nacional do PTB ainda vivo
dava-lhe as prerrogativas de representante máximo do ideário nacionalista que
predominara no campo da esquerda, no início dos anos 60. Dez anos depois,
ainda mantinha seu prestígio.
Dentro deste quadro, a disputa pela sigla do PTB tornava-se tão ou mais
im portante do que a própria postura que, um a vez fundado, o novo partido
adotaria. Ambos os grupos postulantes, agora claramente definidos, movimenta­
vam-se calculadamente para garantir para si a marca trabalhista. Ciente das re-

43 Ver, Gorender, 1987.


44 Depoim ento de Raphael Peres Borges ao autor, em julho de 1996.

81
sistências a seu retomo, Brizola ocupava-se em imprimir uma marca conciliadora
a seu discurso. Enfatizava a acolhida que tivera nos EUA, o aprendizado que
acumulara nos anos de exílio e, principalmente, a revisão de algumas de suas
posições, graças ao contato com a social-democracia. Enquanto finalizava os
preparativos para seu retomo, Brizola anunciava a disposição de ir ao presidente
Figueiredo, assim que chegasse ao Brasil, com a intenção de reafirmar seu com­
promisso de colaborar com a restauração do sistema democrático. Sublinhava a
distância de suas posições em relação ao marxismo e, principalmente, buscava
cuidadosamente sobrepor, à imagem de líder incendiário das massas, a marca de
estadista, curtido o suficiente para assumir posições moderadas e conciliatórias
no quadro político nacional. Em bora estrategicam ente inteligente, dadas as
indefinições que então eram vividas acerca da continuidade da política de distensão,
esta postura trazia o risco de afastar companheiros potenciais. O professor socia­
lista Bayard Boiteaux, por exemplo, desembarca do exílio criticando duramente o
discurso de Brizola, caracterizando-o como excessivamente moderado. Moven-
do-se, pois, num espaço onde necessitava, simultaneamente, manter acesa a lem­
brança de seus feitos passados e afirmar uma mudança substantiva em sua atua­
ção futura, Brizola conclui sua vida de exilado e retoma ao Brasil, em setembro.
O ano de 1979 foi de excitação e festas renovadas. O desembarque dos
exilados mais conhecidos eram verdadeiras celebrações cívicas, com multidões
que lotavam os aeroportos para saudar figuras em que os anos no exterior acaba­
ram por imprimir uma aura quase mística de heroísmo. Foi assim com Miguel
Arraes, Luís Carlos Prestes, Gregório Bezerra e alguns mais. A maior parte deles
fazia do Aeroporto Internacional do Galeão, no Rio de Janeiro, a porta de entrada
do retomo ao país. Retomo este que era, simultaneamente, retomo à vida política
nacional. A cena se repetia ritualisticamente. Centenas de pessoas comprimiam-
se no saguão de desembarque do aeroporto com faixas de boas-vindas, bandeiras
de organizações políticas extintas ou clandestinas, cantando palavras de ordem e,
eventualmente, o Hino Nacional. O ex-exilado aparecia, era saudado entusiastica­
mente, carregado pela multidão, vez por outra proferia um discurso mais ou
menos improvisado e, independentemente do teor, provocava uma reação entusi­
asmada dos celebrantes. Eram realmente dias especiais ou, ao menos, assim
parecia para aqueles que para lá se dirigiam. A política reencontrava, aos poucos,
sua dimensão de festa e celebração.
Com exceção dos exilados de São Paulo, o Rio de Janeiro era a primeira
escala do percurso de retorno. Este seria o caminho natural a ser cumprido
também por Brizola. Há, no seu percurso, porém, um planejamento cuidadoso,

82
cuja carga simbólica não pode deixar de ser observada. O roteiro do retom o de
Brizola não respeita apenas o imperativo de voltar a pisar em solo brasileiro por
sua “entrada principal”. É, simultaneamente, a recuperação de uma experiên­
cia, de um percurso histórico, vivido por ele, individualmente, mas também da
política nacional. M esmo enfrentando limitações de ordem operacional, que
tom avam o trajeto mais trabalhoso e estafante, Brizola fez questão de retom ar
pelo sul. A idéia inicial era desembarcar em São Borja, terra natal de Getulio
Vargas e João Goulart. Dada a estrutura da cidade, que não dispunha de um
aeroporto internacional, os planos são revistos e fica estabelecido que Brizola
desem barcaria em Uruguaiana, dirigindo-se de carro, im ediatam ente, para a
cidade de seus ancestrais políticos. Ao fim, Brizola desem barca em Foz do
Iguaçu, no dia 6 de setembro, dirigindo-se de lá, no dia seguinte, não apenas
para a cidade de São Borja, mas diretamente para o local onde estão os túmulos
de Vargas e Goulart. É ao pé do túmulo de Vargas que Brizola faz seu primeiro
pronunciamento público em solo nacional, onde profere seu primeiro discur-
45 _
so. Há nesse gesto uma poderosa carga simbólica. Ao discursar ali, Brizola
reitera seu lugar na sucessão do fundador do trabalhismo, criador da legislação
trabalhista, líder popular ou, nas palavras do próprio Brizola, “homem cuja
vida pública fo i o centro de tudo o que ocorreu de mais importante com o
46 '
nosso povo e o Brasil neste século X X ”. E comum na literatura política as
referências sobre a transmissão do carisma. Este parece ser o caso, por curioso
que pareça, de um a transm igração do carisma. Vargas passara a G oulart o
comando do PTB e o legado trabalhista, ainda em vida. Brizola vai ao túmulo
de Vargas colher este mesmo legado. Resgatar sua contemporaneidade, confir­
m ar sua fidelidade à causa por ele representada no passado e garantir-lhe a
realização futura. Assumindo para si a missão de dar-lhe prosseguimento. Vai
ali colher a unção de seu “destino político” e, como seria veementemente repe­
tido desde então, retomar o fio da história violentamente interrompida.
A combinação de retomada de um processo histórico com a história pessoal -
ele mesmo saíra da cena política pela fronteira do Sul - enfatiza o martírio que
reúne os líderes mortos, o líder cassado e a própria história abortada violenta e
arbitrariamente. Ao encamar a tarefa de dar prosseguimento a suas obras como
destinação, Brizola reveste-se de uma espécie de duplo, um segundo corpo. Ele é
ele mesmo e a história entendida como entidade mística, dotada de um telos. A
imersão definitiva numa linhagem que reclama não só a representação legítima

45 A íntegra do discurso de Brizola, tal como transcrito na edição de 8 /9 /1 979 do Jornal do Brasil, encontra-se no anexo I.
46 Jornal do Brasil, 8 /9 /1 9 7 9 .

83
das aspirações do povo brasileiro, mas também, e principalmente, a encarnação
de seu destino, vocacionado para a auto-realização e emancipação social, política
e econômica, significa a confirmação do duplo de Brizola. Palavras dele:

"Q u e m qu iser que se engane. Pois não existirá força algum a na te rra capaz
de im p e d ir que o povo brasileiro realize seu destino com o nação livre e in d e ­
pendente. Pode d ific u ltá -lo por a lgum tem po , mas ressurgirá, lo go a seguir,
mais fo rte ainda a sua vontade e sua de term ina ção , sua vocação de lib e rd a ­
de e justiça social. São direitos fun dam e ntais do povo bra sile iro, destas m u l­
tidões imensas que cobrem a grandeza de nossa pátria, direitos inalienáveis,
que a esta a ltu ra da evolução hu m an a ningu ém lhes pode negar."

Desde então, Brizola não é apenas um dirigente, uma liderança combativa do


trabalhismo. Ele é sua própria encarnação. É revestido dos mesmos poderes que
imortalizaram seus antecessores - talvez fosse mais conveniente dizer, seus an­
cestrais míticos. Brizola, enfim, já não é apenas um indivíduo. A posse do “bas­
tão”, a celebração ao pé do túmulo de Vargas e Jango, revestem-no do duplo
imortal, o legado trabalhista. O leitor atento evidentemente já percebeu a esta
altura o quão próximo situo Brizola dos reis ingleses descritos no clássico de
47
Kantorowicz. Tal aproximação não é arbitrária. Como herdeiro do legado traba­
lhista, Brizola-indivíduo passa a ser detentor de uma capacidade que transcende
sua própria finitude física, posto que o trabalhismo não morre, perdura além do
perecimento individual de seus líderes, que, por sua vez, perpetuam -se nele,
enquanto referência de virtude ética e política. A convicção de tal capacidade é
expressa no reconhecimento da percepção privilegiada de Brizola, em sua capaci­
dade de olhar mais adiante do que a maior parte dos mais sagazes e experientes
líderes políticos, bem como no seu destemor e, principalmente, em sua capacida­
de de comunicar-se diretamente com o povo. Não como um simples demagogo
mas, principalmente, como um pedagogo.
Alcançar tal posição na hierarquia trabalhista, o que significa, simultanea­
mente, na história passada e futura da política brasileira, não se resume, porém,
apenas a um privilégio. Se, por um lado, é mediante a confirmação (o uso do
termo ritual aqui não é casual) que o líder finalmente é revestido de todos os

47 Refiro-me ao estudo clássico de Ernest Kantorowicz sobre os rituais de cura dos reis ingleses. O poder de cura, atribuído
aos reis, era fundado na teoria segundo a qual, ao assum ira coroa, o rei incorporava um duplo transcendente e imortal,
que lhe era transmitido por seu antecessor e seria passado a seu sucessor, quando de sua morte. Daí a idéia de dois
corpos: o rei teria um corpo m aterial e perecível, relativo à sua existência propriam ente humana, e um corpo eterno, de
natureza divina, que era transmitido a cada um que fosse investido dos poderes reais. Kantorowicz, 1 981. Sobre os rituais
semelhantes instituídos na França, de cura das escrófulas, ver o também clássico Bloch, 1993.

84
param entos sim bólicos e m ateriais devidos ao líder que é sim ultaneam ente
encarnação do destino histórico de um povo, não deve ser esquecido que a figura
a ocupar este lugar deve trazer em si a marca que a distingue. O posto não é
transmitido hereditariamente. Também não é ocupado mediante o sufrágio. E
necessário que o postulante traga em sua história as evidências de que é ele o
ungido. Pela confirmação, biografia pessoal e destinação transcendente fundem-
se então numa mesma personalidade. Personalidade esta despsicologizada, posto
que pública e histórica. A marca que o distingue é abertura ao sacrifício, marca
diferenciadora de todas as trajetórias que compõem esta tradição. A presença de
um conteúdo sacrificial na história da cultura política brasileira já foi explorada
por Luiz Eduardo Soares:

"N a história da fo rm a çã o recente da cultura po lítica b ra sile ira, o sacrifício,


m esm o com o v irtu a lid a d e (...), esteve presente e cu m p riu papéis e stra té g i­
cos, opera ndo as m ediações reavivadoras do espaço público e le gitim a dora s
da po lítica , qu ando outras m ediações rotineiras e n tra ra m em colapso. O re ­
curso reite rado à linguagem sacrificial introduziu os elem entos heróico e tr á ­
gico, a n im a n d o sua reprodução e revita liza ndo os valores e os sím bolos que
lhe dão sentido e c re d ib ilid a d e ."48

A observação de Luiz Eduardo Soares é pautada pela análise de três casos


onde o sacrifício surge como movimento de solução de impasses na regulação
dos limites entre o público e o privado, engendrando, ou reatualizando, o conteú­
do público da ação política. Embora tenha como objetivo central a análise crítica
dos impasses vividos pela esquerda brasileira, a proposição é pertinente para o
caso presente. Nele, o sacrifício aparece em dois sentidos. Banido, perseguido e
anatematizado pelo regime militar, Brizóla é apresentado como um mártir em
vida, para o qual a morte não passou de uma contingência não concretizada. A
radicalidade de sua posição aparece, porém, quando ela é uma vez mais aceita no
horizonte de possibilidades do líder, quando investido em sua função. Assumir o
legado trabalhista aparece então como a aceitação do destino de seus antecessores,
caso o círculo vicioso não seja quebrado. Representa também a renúncia à perso­
nalidade privada ou, mais precisamente, sua doação à história como espaço da
reiteração da virtude pública. Ao contrário do caso da esquerda brasileira analisa­
da por Luiz Eduardo - embora não sejam nomeados, é basicamente sobre os

48 Luiz Eduardo Soares. "A política sacrificial: quadro sim bólico-valorativo em que se inscreve a crise das esquerdas, no
Brasil", em Soares, 1 9 9 3 :1 6 8 . Ver, também, na mesma edição, o ensaio "O s dois corpos do presidente".

85
partidos comunistas que a análise trata o trabalhismo forja uma tradição onde o
sacrifício e a expiação ocupam um lugar central, residindo provavelmente aí uma
das razões para sua força simbólica ao longo de tantas décadas, sendo aí também
que se funda um dos princípios norteadores de sua visão a respeito da política,
sobre a qual tratarei no capítulo IV.
Outro dado, digno de nota, quanto ao retorno de Brizola, é a data de sua
chegada. Ele pisa em solo brasileiro no dia 7 de setembro de 1979. E curioso
que esse detalhe não seja mencionado nas biografias de Brizola. Tampouco é
mencionado nos depoimentos de seus companheiros. Contudo, é difícil não
supor que, ao menos naquele momento, a escolha de tal data fosse isenta de
alguma intencionalidade no plano simbólico. É plausível supor que ao desem ­
barcar no Brasil exatam ente no dia da principal festa cívica do país o líder
popular, “herdeiro do maior movimento de massas havido no B rasil”, buscas­
se contrapor àqueles que o alijaram da vida política em nom e da defesa de
valores como o patriotismo e fidelidade ao interesse nacional, o seu próprio
patriotism o e seu próprio compromisso com os interesses da nação. A pre­
sença, no discurso de Brizola e em seu ideário, de elem entos coincidentes
com os daqueles que o definiram durante tantos anos como a ameaça mais
grave à estabilidade e tranqüilidade nacionais, é de uma curiosa recorrência.
Especialmente no que se refere aos militares. A valorização das datas e feste­
jos cívicos, o reconhecimento de sua importância simbólica, o patriotism o e o
nacionalism o exacerbado, marcas tanto da formação m ilitar quanto do discur­
so brizolista, colocam ambos num a proxim idade que faz parecer espantosa a
animosidade que marcou as suas relações. A valorização da independência do
Brasil, e sua celebração ritual, sem som bra de dúvidas aparecem como as
referências mais pronunciadas. O Hino Nacional, entoado tão freqüentem ente
em cerim ônias envolvendo questões políticas em arroubos ufanistas, cede
seu lugar, ao longo dos anos, ao Hino da Independência. Em especial à estro­
fe que im perativam ente proclam a as alternativas de ficar a pátria livre ou
sacrificar-se à sua liberdade, pela qual Brizola expressa repetida e publica­
mente sua preferência.
Já nos primeiros dias no Brasil, e ainda no Sul, a postura a ser adotada por
Brizola tomou-se objeto de disputa entre aqueles que lhe estavam mais próximos.
Havia aqueles que defendiam uma programação exaustiva de viagens e comícios
por todo o Rio Grande. Em contrapartida, um grupo mais moderado e preocupa-

49 Trata-se, com o é sabido, da últim a estrofe do Hino da Independência: "O u ficar a Pátria livre ou m orrer pelo Brasil".

86
do em não despertar demasiadas atenções do governo com manifestações públi­
cas muito acaloradas defende uma postura e programação mais discretas, com
ênfase na organização de encontros reservados com lideranças políticas, o que
parecia indispensável para o prosseguimento das articulações que buscavam ga­
rantir a legenda do PTB. Para este grupo, um outro dado era importante. Ao
contrário do que se esperava, a chegada de Brizola, embora tenha despertado
grande interesse, esteve longe de arrebatar multidões pelos lugares por onde pas­
sava. Apesar do entusiasmo, sua presença não chegava a criar as situações de
comoção que as previsões mais exaltadas supunham. O risco de um esgotamento
precoce, provocado pela aparição repetida em atos públicos e comícios comemo­
rativos de seu retomo, era uma variável a ser levada em conta, e acabou por fazer
prevalecer uma postura menos ruidosa do que pareciam desejar os grupos mais
exaltados. O carisma era um bem finito, que deveria ser usado com parcimônia.
Passado quase um mês de estada no interior de seu estado de origem, mais
precisamente no dia Io de outubro, Brizola finalmente desembarca no Rio de
Janeiro, cumprindo ao inverso o percurso de partida. A festa de recepção se
repete e, nesse caso, fatos singulares ocorridos em seu desembarque e compara­
ções com a recepção a outros exilados são fartamente explorados pela imprensa
da época. Segundo o Jornal do Brasil, cerca de 1.500 pessoas concentraram-se
no Galeão para recepcionar Brizola. Lá encontravam-se caravanas de Nova Iguaçu,
São João de Meriti, Campos, Macaé, Jacarepaguá, Araruama, Penha e Campo
Grande. Ainda segundo o jornal carioca, em comparação à festa de chegada de
Miguel Arraes - outra grande liderança esperada ansiosamente e com quem Brizola
tivera relações marcadas por boa dose de rivalidade - , havia naquele dia uma
concentração maior da gente de classe média para baixo.' A julgar pelo que é
descrito na imprensa, a chegada de Brizola ao Rio de Janeiro foi também a mais
conturbada e confusa. Depois de desembarcar, Brizola é retirado do aeroporto
rapidamente por seus companheiros, numa operação que além de deixar frustra­
dos os que lá estavam para recebê-lo é marcada por alguns incidentes. Entre eles,
um poderia ter conseqüências desastrosas. Garatéias foram espalhadas na via de
saída de automóveis do aeroporto, causando um início de pânico e alguns aciden­
tes sem maior gravidade. O veículo onde se encontrava Brizola teve um de seus
pneus furado, desgovernou-se e invadiu um canteiro, ficando avariado e sem
condições de prosseguir, o que o obrigou a trocar de carro. Este incidente deu um
tom mais dramático que o comum à sua chegada. Brizola é levado a um hotel da

50 Jo rn al do Brasil, 1/1 0 /7 9 .

87
Zona Sul do Rio, onde, segundo seus correligionários, faria um discurso à popu­
lação. Este, no entanto, não chegou a se realizar. Ao invés, Brizola faz um rápido
pronunciamento à imprensa, frustrando, mais uma vez, aqueles que esperavam
voltar a tomar contato direto com o líder que 15 anos antes inflamava as multi­
dões nos comícios pelas reformas de base.
A chegada de Brizola ao Rio de Janeiro merece alguns comentários. Havia
uma clara expectativa de tomar, naqueles momentos de retomo, cada aparição
sua um fato político de repercussão nacional. Nesse sentido, o retomo à cidade,
onde sua figura política se firmara em nível nacional e sua trajetória pública fora
abruptam ente interrom pida, tinha um a im portância decisiva. No entanto, os
desencontros e confusões que cercavam cada uma dessas celebrações eram gri­
tantes: se, por um lado, conferiam uma certa aura à sua presença, cujo roteiro
nunca era seguramente previsível, revelavam também a fragilidade, senão ausên­
cia completa, da organização de seu staff. O gmpo que então se encontrava em
tomo de Brizola parecia estar longe de se caracterizar pela homogeneidade e
entrosamento intemo. Ficava nítida, também, a ausência de um comando que
coordenasse a sua agenda, como se estivessem todos à espera do momento em
que ele próprio, Brizola, estivesse em condições de assumir este papel. Curiosa­
mente, a precariedade organizacional e o improviso marcariam, ao longo do tem­
po, a atuação deste grupo, mesmo depois, quando já organizado partidariamente.
O teor dos pronunciamentos de Brizola também merece uma observação.
Ele já desembarca no Brasil rejeitando a possibilidade de ingressar no MDB, ao
contrário, por exemplo, de Arraes. Defende, porém, a formação de uma frente
de partidos oposicionistas, independentes entre si. Dispara críticas a políticas
do govemo federal, como ao programa de cooperação na área de energia nucle­
ar entre Brasil e Alemanha, e à ênfase da atuação da Petrobrás na área de
refino em prejuízo da atuação no campo de exploração do petróleo. Critica
também o elitismo político, tanto da direita quanto da esquerda, afirmando a
necessidade de que nos “sintamos encharcados de povo”. ~ Desembarca no Rio
de Janeiro criticando duramente o chaguismo, mas não poupa críticas igual­
mente duras aos movimentos de rearticulação do trabalhismo que, no seu en­
tender, careciam de “molho sindical”. Firma sua posição à esquerda do espec­
tro político, mas sublinha a incompatibilidade do ideário trabalhista com o m ar­

51 A título de curiosidade, talvez seja bom lem brar o m al-estar causado pelo acordo entre os governos brasileiro e
am ericano. Talvez por esta reprovação pública à conduta do governo brasileiro, Brizola estivesse, também, buscando
enfatizar a revisão do antiam ericanism o que professara nas décadas de 50 e 60, com um gesto de solidariedade e
g ratidão ao governo que lhe acolhera anos antes.
52 Jornal do Brasil, 2 3 /9 /7 9 .
xismo, o que, segundo ele, não inviabilizaria o ingresso de certos grupos de
esquerda no novo PTB. Mostrando boa assimilação da agenda social-democra-
ta européia, alude repetidamente à questão das minorias, reiterando com pro­
missos na defesa dos direitos da mulher, dos negros e das populações indíge­
nas. Apresenta-se como um político sintonizado com as grandes questões naci­
onais e preocupado em discuti-las, sem descuidar-se, porém, de problem as
regionais. Não parece difícil perceber uma postura preocupada em assum ir
posições sem ao mesmo tempo parecer excessivamente agressivo. Um tom que
busca encontrar o equilíbrio entre a moderação e a ênfase em bandeiras que
empunhara nos anos anteriores ao exílio. Tal esforço, que com freqüência se
traduzia numa postura ambígua, poderia justificar-se pelo momento delicado
em que então se encontrava a política brasileira. Além disso, no entanto, havia
a tarefa de consolidar uma rede de alianças que viabilizasse a fundação de um
PTB forte, competitivo e capaz de, em um curto espaço de tempo, disputar as
eleições que se avizinhavam. Neste sentido, a força do futuro PTB, que àquela
altura era quase unanimemente considerado o partido que surgiria sob a lide­
rança de Brizola, era uma incógnita. O real alcance do novo velho partido
trabalhista, bem como os recursos de que dispunha seu líder natural de atrair
para seu lado quadros significativos da política nacional, era objeto da curiosi­
dade interessada dos principais articulistas e observadores políticos.

Brizola no Rio de Janeiro. A perda da legenda do PTB


Do Rio de Janeiro, Brizola passa a trabalhar na consolidação do grupo para
fundação do seu novo partido. A agenda incluía figuras que iam de Amaral Peixo­
to (ex-líder pessedista ligado a Vargas), com quem se encontra ainda em 79, até
intelectuais ligados ao partido comunista - afinal os marxistas não eram tão mal
vindos assim - , passando por setores moderados de várias tendências e lideran­
ças do chamado novo sindicalismo, como Lula. A via de aproximação com Ivete
Vargas estava definitivamente cortada, e uma nova batalha jurídica era travada
em tomo da posse da legenda trabalhista. Esta era também uma luta contra o
tempo. Se Brizola contava com a “memória política nacional”, que reconhecia
nele o herdeiro do último PTB, aquele caracterizado pelo empenho na luta pelas
reformas de base, da aproximação com outros grupos de esquerda e do naciona­
lismo, Ivete tinha a seu favor o trânsito fácil no governo federal e a amizade
pessoal com Golbery, articulador e principal mentor de toda a agenda da distensão.
Era necessário, portanto, cercar-se de quadros expressivos, com força política e
visibilidade pública suficientes para garantir-lhe a sigla. Esta tarefa, porém, não
era das mais fáceis. Embora o fim do bipartidarismo representasse a remoção
necessária e desejada de mais um mecanismo engendrado pelo regime autoritá­
rio, estava evidente que, naquele contexto, esta era uma medida que deveria
trazer benefícios importantes para o governo. Com ela, a oposição deveria divi-
dir-se, garantindo ao partido que dera sustentação civil ao regime a chance de
obter desempenhos expressivos nas eleições futuras. Desse modo, ficava difícil
atrair para o novo partido setores já estabelecidos no MDB, que desejavam a
reafirmação do partido como força oposicionista. Desta tese compartilhavam
grupos à esquerda, como aqueles ligados ao PCB, que defendiam abertamente a
tese da manutenção da frente oposicionista, mesmo ao custo do convívio, no
interior do partido, com forças conservadoras. Além disso, as relações do PCB
com o PTB em geral e com Brizóla, em particular, jamais foram das mais fáceis.
Durante as décadas de 40 e 50, o PTB e o trabalhismo funcionavam como
uma espécie de dique erguido com o intuito de dificultar a penetração do comu­
nismo junto aos movimentos sociais e aos sindicatos. Comunistas e trabalhistas
disputavam a hegemonia nos movimentos dos trabalhadores urbanos. Como já
mencionei, a hostilidade inicial converteu-se, no final da década de 50 e prim ei­
ros anos da seguinte, num a progressiva aproxim ação, já com o PTB sob o
comando de Jango. Como é sabido, as relações do PCB com o trabalhismo e
com o brizolism o são extremamente tensionadas. Segundo atestam Werneck
Vianna e Gildo Marçal Brandão, o PCB assumiu, desde 47, quando é proscrito,
um a posição refratária à política formal e aos mecanismos de representação
parlamentar. Ainda sob o impacto da frustração causada pela cassação de seu
registro e a conseqüente queda na ilegalidade, o PCB preconiza, no manifesto
de agosto de 50, uma posição revolucionária, denunciando o caráter burguês e
imperialista do regime de 45 e defendendo a formação de uma frente de liberta­
ção nacional. Segundo Werneck, a declaração de agosto de 50 e a ANL, em 35,
são os “elos perdidos” do PCB. São os dois momentos em que, abrindo mão de
atuar politicam ente e optando pela via revolucionária, o partido se lança no
gueto e no isolamento. Em ambas as ocasiões, ainda segundo o autor, o partido
abdica de seu caráter de classe, cerrando fileiras na luta pela questão nacional e
no combate ao imperialismo. Para Werneck, é ao incorporar a dicotomia políti­
ca da época (o nacionalism o e o nacional-popular versus im perialism o e

53 As análises que se seguem foram extraídas de Luiz Werneck Vianna, "Q uestão nacional e dem ocracia: o ocidente
incom pleto do PCB, em, Vianna, 198 9; Brandão, 1997, esp. capítulo 5. Um dos pontos mais explorados por
Brandão, em sua análise da história do PCB, é a postura recorrentemente absenteísta assumida pelo partido.

90
conservadorismo), em prejuízo da questão da democracia formal, que o PCB,
nesse momento, não dá conta de seu papel histórico. Em sentido diverso, mas
não propriamente contraditório, Marçal Brandão enfoca a postura predominan­
temente absenteísta assumida pelo partido em praticamente todos os pleitos do
regime de 45. “Com isso”, afirma, “o partido, que mesmo quando defendia a
via pacífica de construção do socialismo encarava o processo eleitoral muito
mais como instrumento de propaganda e acumulação de forças do que propria­
mente como canal legítimo de participação política, inviabilizou a consolidação
de alianças, a organização de classe e a veiculação de suas demandas pelos
canais então disponíveis”. Na história do PCB, a declaração de março de 58 é
um marco. A partir de então, e sob o impacto da reação popular ao agosto de
54, quando fazia cerrada oposição a Vargas, o partido assume a participação
política pelos canais representativos e empunha a bandeira da democracia for­
mal (não sem uma boa dose de ambigüidade, segundo Werneck). É a partir daí
que se estreitam mais os laços com o PTB. É também nesse momento que os
comunistas se incorporam à Frente Ampla Nacionalista. Desde então, contudo,
as relações dos comunistas com Brizóla são problemáticas.
Há uma notável divergência entre as posições crescentemente agressivas de
Brizóla e a assunção da democracia por parte da direção do PCB. Tal divergên­
cia se acentua no processo de radicalização que redunda no Golpe. E verdade
que Prestes esteve próximo das posições de Brizóla, apoiando e reforçando seu
54
discurso inflamado em defesa das reformas a qualquer preço. E importante
observar, contudo, que, embora Prestes guardasse em torno de si a aura de
líder popular, sua posição no interior do partido já não era a dominante, ou, ao
menos, não era dominante na direção do partido. A assunção da questão demo­
crática por parte do PCB enseja, por outro lado, o início dos dissensos internos
que redundariam no surgimento dos diversos grupos que fizeram opção, na
segunda metade da década de 60, pela solução armada. Nos balanços realiza­
dos no período posterior ao golpe, os equívocos do partido são analisados por
suas lideranças, m antendo-se, entretanto, a veia nacionalista. Tratava-se de
diagnosticar as razões do fracasso do processo de emancipação nacional que
parecia estar em curso. Nessas avaliações, a questão nacional ainda não será
rejeitada. Ao longo da década de 70, no entanto, o partido abdica da centralidade

54 Segundo Anita Leocádia revelou-m e, em depoim ento concedido em outubro de 1996, seu pai considerava Brizola,
desde 1 962 , a principal liderança popular de então, chegando a orientar a m ilitância a trab alhar para a candidatura
do ex-governador gaúcho. Em seu trabalho, ¡á citado, G ild o M arçal Brandão faz notar que, segundo vários testem u­
nhos, Prestes estava pessoalmente com prom etido, em 64, com a tentativa continuísta de Jango.

91
da questão nacional e firma posição quanto à importância de que fosse consoli­
dada uma frente democrática que funcionasse como um dique para o processo
de fascistização que, segundo avaliação do partido, estava em curso no país.
Tratava-se, então, de reforçar a atuação pelos mecanismos legais disponíveis e
m inar o regime militar. É, provavelmente, a partir daí que a anim osidade já
existente entre o PCB e o brizolismo se acirra, o que fica patenteado no de­
poimento de Salomão Malina a Dulce Pandolfí:

"N o pe río d o p ré -6 4 , m uitas das concepções que havíam os sup era do vêm à
tona e passam a pre do m ina r na nossa ação cotidiana. A lguns docum entos da
época m ostram um ataque às vacilações de Jango a um nível em que o golpe
era desferido nele, e não no inim igo. Nesse sentido, nós contribuím os para o
sucesso de um go lpe de dire ita . Esse foi o desvio mais perigoso. Essas po si­
ções, e o ap o io às posições golpistas de Jango, eram posições reboquistas,
que correspondiam às pressões esquerdistas que sofríam os, feitas a p a rtir de
Brizola e de setores do sindicalism o e do PTB (...)"55

A identificação de Brizola com o ambiente golpista que acirrou os ânimos e


acabou por precipitar o golpe militar tomava, portanto, virtualmente impraticável
um alinhamento dos comunistas com o novo PTB, criando mesmo uma forte
rejeição a qualquer proposta de aproximação. Brizola, àquela altura, era visto
pelos comunistas como uma ameaça aos avanços em direção à democracia, fun­
cionando como um espectro do retrocesso que de modo algum estava debelado.
Com as lideranças do chamado novo sindicalismo as coisas não eram muito
mais fáceis. O “novo” desse movimento referia-se exatamente ao rompimento
com o tipo de sindicalismo que vigorara no Brasil até então. Leia-se, o modelo
concebido por Vargas e reforçado por João Goulart de dentro do PTB. Identifi­
cado como peleguista e cerceador da autonom ia dos trabalhadores em suas
ações organizadas nos planos econômico e político, o trabalhismo e seu líder
eram encarados muito mais como competidores que deveriam ser liquidados do
que como aliados potenciais. A associação a Brizola ia, portanto, de encontro
ao próprio princípio identitário do movimento sindical que emergira em meados
dos anos 70 e que se preparava, naquele momento, para a criação de um novo
partido. Desde 1978, Lula manifesta-se publicamente favorável à criação de
um partido de trabalhadores completamente desvinculado dos antigos partidos
de esquerda, cujas práticas considerava fisiológicas, atrasadas e lesivas aos

55 Depoim ento de Salom ão M alina em Pandolfí, 199 5:20 2.


56 Sobre a fundação do PT, ver Keck, s.d.

92
interesses da classe trabalhadora. Em janeiro de 1979, o plenário do IX Con­
gresso de Dirigentes Sindicais dos Trabalhadores das Indústrias Metalúrgicas,
M ecânicas e de M aterial Elétrico do Estado de São Paulo aprova a tese de
57
criação do Partido dos Trabalhadores nos moldes indicados por Lula. A tese
de criação deste partido desvinculado completamente do PTB é enfaticamente
defendida por setores de base da Igreja Católica, com quem os m ovimentos
sindicais estreitaram contatos ao longo da segunda m etade da década de 70.
Assumindo tal posição, Lula, principal referência desse movimento, recusa os­
tensivamente as várias tentativas de aproximação feitas por Brizóla.
Também a Igreja Católica, instituição que se fortalecera politicamente na
defesa dos direitos humanos, surgia como um aliado importante em relação ao
qual Brizóla não parecia conseguir bom trânsito. As CEBs, seus grupos mais
atuantes com uma razoável capacidade de organização e mobilização junto às
classes mais baixas e com um discurso voltado para reformas de profundidade
na estrutura social e econômica, mostravam-se refratárias a um a aproximação
com o trabalhismo. Revelavam-se reticentes quanto ao modelo de organização
do antigo partido trabalhista e inclinavam-se pela organização de um partido
fundado no trabalho junto às bases, em parceria e consonância com os grupos
ligados ao novo movimento sindical. Ficava patente, portanto, que a imagem de
Brizóla para setores políticos comprometidos com a questão social e alinhados
a teses e projetos de esquerda nem sempre era positiva. Reunidas, as impres­
sões das lideranças comunistas (com exceção de Prestes, que rom pe com o
partido logo após a chegada do exílio), das novas lideranças sindicais e da Igreja
progressista sobre Brizóla, e o significado de sua história política, guardam uma
curiosa relação com aquelas emitidas pelos setores conservadores. Assim como
os militares da linha dura, os comunistas tendiam a considerar a movimentação
encampada por Brizóla, no pré-64, um dos fatores decisivos para a precipita­
ção do golpe. Assim como os militares que lideraram o golpe e alguns dos
setores civis que o apoiaram, as lideranças do novo sindicalismo viam nele o
espectro do legado varguista que deveria ser sepultado. E evidente que tal
avaliação limita-se apenas à construção da persona política de Brizóla. Escusa­
do dizer que tal coincidência está longe de significar qualquer espécie de proxi­
midade entre as motivações e projetos políticos de um grupo (o PCB, o novo
sindicalismo e a Igreja progressista) e o outro (militares golpistas, linhas-duras e

57 Uma excelente análise dos debates em torno da form ação de novos partidos até m aio de 79, encontra-se em M aria
D'Alva G il Kinzo, "N ovos partidos: o início do debate", em Lam ounier (org.), 1980.

93
setores civis conservadores). Vale notar que a publicizaçâo reiterada das pers­
pectivas sobre Brizola assumidas pelas novas, ou antigas, forças democráticas
do período da transição reforçavam, e reforçaram, ao longo de todo o período
posterior, o caráter polêmico da figura do ex-governador gaúcho, sugerindo
todos os tipos de reservas a seu projeto.
Em novem bro de 1979, o governo publica lei que extingue os partidos
existentes e reintroduz o sistema pluripartidário. Segundo a lei, os novos parti­
dos deveriam ter filiados pelo menos 10% dos representantes na Câmara dos
Deputados e do Senado; ou o apoio expresso em votos de 5% do eleitorado que
houvesse participado na última eleição geral (1978) para a Câmara dos Deputa­
dos, distribuídos por pelo menos nove estados e com um mínimo de 3% em
58
cada um deles. A luta pela sigla do PTB tem, a partir de então, seus m om en­
tos mais dramáticos, com algumas cenas pitorescas. Ela começara no início do
ano, quando a cisão entre o grupo de Brizola e de Ivete se transform ou em
hostilidade aberta. Em março, Ivete entra com pedido de registro provisório do
partido, sem cumprir, porém, todas as exigências definidas por lei. Em abril, é a
vez de o grupo de Brizola ter a mesma iniciativa, deixando também de cumprir
todas as exigências legais. Desencadeia-se a partir de então uma série de movi­
m entos de ambos os grupos no sentido de desestabilizar o outro e angariar
adesões para seu projeto. Em fevereiro de 80, um grupo de parlam entares
ligados a Brizola faz prontidão de 61 horas à porta do STE, para ser o primeiro
a fazer o pedido de registro do PTB. A nova lei fora promulgada no dia 20 de
dezembro de 79, mas desde então o STE estivera em recesso. As 13 horas do
dia 2 de fevereiro, assim que o Supremo abre suas portas, três deputados dão
entrada no pedido formal do registro do partido, apresentando todos os docu­
mentos necessários e a lista dos componentes da Comissão Nacional Provisória
do partido, inscrevendo Leonel Brizola como o primeiro nome da mesma. Meia
hora depois, representantes do grupo de Ivete fazem o mesmo pedido, instau­
rando-se, desse modo, uma luta judicial que se estenderia por quatro meses,
ocupando ao longo desse período espaço privilegiado nos jornais. O deputado
Getúlio Dias, do grupo de Brizola, requer à presidência da Câmara uma sala
para a direção parlam entar do partido. No novo quadro partidário, o PTB
contava, na esfera parlam entar, com 23 deputados e um senador, m as em
verdade eram dois partidos com um só nome.

58 Ver, David Fleischer, "M anipulações casuísticas do sistema eleitoral durante o período militar, ou com o usualmente
o feitiço se voltava contra o feiticeiro", em Soares & D'A raujo (orgs.), 1994.

94
A indefinição quanto a quem caberia a nova legenda aumentou as dificulda­
des de arregimentação de lideranças e colaboradores. Muitos aliados potenciais
do grupo de Brizóla optaram por m igrar para o recém -criado PP ou mesmo
permanecer no MDB, agora com o P que a nova legislação obrigava que cons­
tasse de todas as novas siglas. Na disputa judicial, Ivete alegava que já fizera o
pedido de registro provisório em duas ocasiões (março e setem bro de 79).
Como a legislação então vigente havia sido extinta, contra-argumentava Brizóla,
os dois pedidos não podiam ter qualquer validade e, desse modo, seu grupo
havia chegado primeiro, merecendo por isso a conquista da sigla. Em seu favor,
pesava ainda a legitimidade. Era a ele que estavam ligados os mais expressivos
rem anescentes do antigo partido. Era ele a principal liderança de expressão
nacional que sobrevivera aos anos de exceção. Os problemas de Brizóla, po­
rém, não se limitavam à briga jurídica. A conciliação das diversas tendências
que estavam ao seu redor também não era nada fácil. Ainda no exílio, Brizóla
encontrara resistências, em especial do chamado Grupo do México, em relação
à incorporação de elementos da social-democracia no programa do novo parti­
do. A despeito do ambiente festivo descrito por Eduardo Costa, citado anterior­
mente, havia, já no encontro de Lisboa, disputas sobre o perfil ideológico do
novo partido a ser fundado. É Clóvis Brigagão quem relata:

"O encontro de Lisboa dem arca uma visão. Inco rp ora -se a idéia do socialis­
mo dem ocrático que o Brizóla conseguiu ainda tra n sfo rm a r em traba lh ism o.
O tra b a lh ism o com o versão e cam inho bra sile iro para o socialism o. Há uma
briga enorm e, a p a rtir daí. Há aqueles que querem que o Brizóla seja uma
espécie de Fidel Castro brasileiro. O pessoal do Brasil fica m u ito inseguro
com isso. Nós, que estávamos na Europa, queríam os um ou tro tip o de experi­
ência, que o Brasil não tinh a. Nós queríam os in corpo rar o velho PTB às novas
dinâm icas que tínham os testem unhado na E uropa."59

Um início de crise ocorreu quando Pedro Celso Uchoa Cavalcante redigiu,


a pedido de Brizóla, um documento definindo o “trabalhism o dem ocrático”
como princípio norteador do novo partido. No Rio de Janeiro, antigos trabalhis­
tas como Paiva Muniz, Aarão Steinbruch e Bocayuva Cunha resistiam à idéia
do “novo trabalhismo”, concebida por Lysâneas Maciel, a quem ficara a res­
ponsabilidade de articular o partido no estado. Após os primeiros e entusias­
m ados m om entos de reunião de várias correntes de esquerda em torno do

59 Depoim ento de Clóvis Brigagão ao autor, em 2 5 /9 /9 6 .


60 Infelizmente, Lysâneas M aciel não concordou em prestar seu depoim ento para a pesquisa.

95
projeto político liderado por Brizola, as intempéries e dificuldades próprias da
política real davam o tom do trabalho de reorganização do PTB. Tudo indica
que aqueles que não tinham suas raízes no trabalhismo e se incorporavam ao
projeto em função da possibilidade de organizar um partido de massas moderno
em tomo de Brizola compartilhavam em algum grau uma visão crítica do antigo
estilo petebista. Um certo cuidado em não incorrer no peleguismo e nas práticas
centradas na figura de um chefe revelava que mesmo para os adeptos do novo
trabalhismo algumas das avaliações de seus críticos tinham fundamento. M es­
mo entre os trabalhistas, a capacidade de articulação de Brizola não era propri­
amente simples. Antigas rivalidades entre o janguismo e o brizolismo não esta­
vam completamente cicatrizadas. As figuras mais notórias do PTB tinham sido
próximas a Jango e, embora reconhecessem em Brizola o sucessor natural do
líder morto, nutriam reservas quanto a seu estilo tão distinto de seu antecessor.
No dia 13 de maio, reúnem-se no auditório do Hotel Ambassador, no centro
do Rio de Janeiro, cerca de 150 partidários de Brizola. Uma linha telefônica do
hotel é reservada para que fosse comunicada de Brasília a decisão do Tribunal,
assim que ela ocorresse. Um grupo formado por Brizola, Doutel de Andrade e
Neiva Moreira redige uma nota para ser lida no caso de um parecer desfavorável.
Comunicado sobre a decisão do tribunal, Brizola e seus colaboradores encami­
nham-se para o auditório onde são recebidos freneticamente pelos correligionári­
os. Doutel lê a nota que denuncia a perseguição e sabotagem de que Brizola e os
“autênticos trabalhistas” voltavam a ser, mais uma vez, vítimas. Lida a nota,
Brizola reitera, emocionado, as denúncias nela contida. Rasga dramaticamente a
sigla que escrevera numa folha de papel. “Eles destruíram o PTB mas não irão
nos calar”, afirma aos prantos. Em seguida, um grupo dirige-se ao busto de
Vargas, na praça Floriano Peixoto, onde faz um minuto de silêncio em honra à
sigla que, ao ser entregue a quem não a merecia, estava definitivamente destruída.
Mais uma vez o legado de Vargas havia sido atingido, sua memória violada. Mais
uma vez Brizola era vítima “da sabotagem de seus inimigos e dos inimigos do
povo”. As principais lideranças políticas do Brasil declaram incredulidade com a
decisão da Justiça, reconhecendo em Brizola o direito legítimo de ficar com a
legenda. No dia seguinte, Carlos Castello Branco, em sua coluna diária, prevê a
reaproximação dos dois grupos. O analista político considerava que Ivete acaba­
ria percebendo que sem as bases trabalhistas, que estavam com Brizola, seu
próprio partido, independentemente da posse da sigla, não teria qualquer chance
de sobrevivência. Entretanto, o tempo se encarregaria de mostrar que o jornalista
estava equivocado em vários sentidos.

96
Na percepção brizolista, a perda da legenda foi o primeiro golpe sofrido por
Brizola, no período pós-exílio. Trajano Ribeiro, um dos colaboradores mais
empenhados na formação do novo PTB, analisa, retrospectivamente:

"O PTB era um a sigla avassaladora nas m ãos de Brizola. Avassaladora p o r­


q ue tin h a a capacidade de a g lu tin a r as pessoas em to rn o dele. Era m u ito
m ais d ifícil para uma pessoa que tin h a sido do PTB a vida toda dizer que não
era mais do pa rtido . Com o PDT as coisas m udavam . O PTB vinha com as
pessoas e com toda a carga histórica que possuía. Tinha um po d e r de fo g o
terríve l. Sem ele, as pessoas tom avam outro rum o, até pela incerteza sobre o
que aconteceria. Brizola com o PTB era um a coisa. Brizola com o u tro pa rtid o
era ou tra coisa. Brizola com o PTB era ele e o p a rtid o , que tin h a seu peso
específico. A go ra, Brizola com o u tro p a rtid o torna va tu d o dife ren te . Ele era
mais im p o rta n te do que o p a rtid o ."61

De fato, se as hesitações sobre a conveniência de formar um novo partido já


eram perceptíveis entre vários antigos e importantes trabalhistas, com a perda da
legenda, muitos tomaram outros rumos. Alguns permaneceram no PMDB, ou­
tros filiaram-se ao PTB de Ivete. Com a resolução da Justiça, tanto o poder da
sigla, deixada em mãos “indignas”, como a capacidade de aglutinação de Brizola
ficaram fortemente comprometidos. Para muitos que estiveram envolvidos no
projeto de recriação do PTB tais perdas tiveram efeitos a curto, médio e longo
prazos. O quadro a seguir dá bem a dimensão do baque que representou, tanto
para a sigla petebista, sob o controle de Ivete Vargas, quanto para Brizola, a cisão
dos trabalhistas. Em março de 1980, o PTB tinha 23 deputados e um senador.
Com a cisão, após o veredicto da Justiça, o PDT fica com 10 deputados (caindo,
depois, para nove) e sem qualquer senador, até que a fusão entre PP e PMDB
levasse Saturnino Braga, já em 1982, para o partido de Brizola. Após a cisão, o
PTB ficaria com metade dos deputados do PDT (cinco), ficando também sem
assento no Senado, subindo, em agosto de 1982, para 14 deputados e dois sena­
dores. Vale notar que todos os novos parlamentares que se agregam ao PDT
migram do antigo MDB, enquanto o novo PTB de Ivete atrai um número reduzi­
do, mas equilibrado, de ambos os antigos partidos. Apenas no último período
assinalado é que o número de egressos do antigo MDB é superior ao da Arena,
no partido de Ivete (ver tabela).
Na avaliação de um antigo trabalhista, José Gomes Talarico, que esteve
durante vários anos ao lado de Brizola, a perda da sigla, muito além de ter um

61 Depoim ento de Trajano Ribeiro ao autor, em 2 5 /8 /9 6 .

97
significado simbólico, correspondeu de fato a um golpe fatal no trabalhismo.
Segundo ele, a partir daí opera-se uma transformação: o trabalhismo torna-se
brizolismo.
M igração de parlamentares do s antigos partidos após a reforma partidária

Afiliações Câmara dos Deputados Senado Federal


partidárias Arena MDB Total Arena MDB Total
Março, 1980
PDS 201 24 225 36 1 37
PMDB 3 91 94 1 16 17
PP 25 43 68 4 3 7
PTB 1 22 23 0 1 1
PT 0 5 5 0 1 1
Indecisos 1 4 5 1 3 4
Março, 1981
PDS 191 21 212 34 2 36
PMDB 5 108 113 1 19 20
PP 26 40 66 7 3 10
PDT 0 10 10 0 0 0
PTB 3 2 5 0 0 0
PT 0 6 6 0 0 0
Indecisos 6 2 8 0 1 1
Dez., 1981
PDS 192 22 214 35 2 37
PMDB 10 111 121 1 19 20
PP 26 41 67 6 4 10
PDT 0 9 9 0 0 0
PTB 3 1 4 0 0 0
PT 0 5 5 0 0 0
Agosto, 1982
PDS 196 28 224 35 1 36
PMDB 32 136 168 7 20 27
PTB 3 11 14 0 2 2
PDT 0 9 9 0 1 1
PT 0 5 5 0 1 1
Total 231 189 420 42 25 67
Fonte: David Fleischer, op. cif., em Soares & D 'a rau jo (orgs.), 1994.

O trabalhismo e o trabalhismo brizolista (parte 1)

Descrevendo o intenso trabalho de organização do novo partido trabalhista,


José Colagrossi relembra:

"Foi então que partim os para essa aventura de form ação de um novo partido,
con fia n d o na liderança de Brizola. Eu saí pelo in te rio r do estado do Rio de
Janeiro, de cidade em cidade, atrás da m em ória. Eu saí atrás da m em ó ria
popular. Foi quando eu percebi que era esse o cam inho. Tinha que chegar em
um lu g a r e buscar a m e m ó ria ."62

62 Depoim ento de José Colagrossi ao autor, em 6 /1 /9 6 .

98
A julgar pelo depoimento de outros participantes do esforço de recriação do
trabalhismo, esta era efetivamente a tarefa que lhes cabia. Buscar a memória
política, social e histórica do trabalhismo. Cabe, aquí, entender como a m em ó­
ria coletiva é invocada, posto que é considerada o grande trunfo para a realiza­
ção da tarefa de criar um partido político de ámbito nacional, dentro das rigoro­
sas exigencias impostas pela legislação. Mais do que isso, era um empreendi­
mento fundador (ou refundador) de um projeto político nacional. A recupera­
ção da memoria coletiva, seja a de um povo, uma nação, ou simplesmente de
um núcleo familiar, não deve ser confundida com a descrição fiel de um pro­
cesso ou de eventos passados tal como se deram. Ela não é a historia, no
sentido que é dado ao tenno como campo de produção sistemática do conheci­
mento do passado, ainda que a distância entre ambas seja freqüentemente m e­
nor do que supomos. A memoria, ao ser perpetuada, vale-se de diversas fontes.
É transmitida oralmente ou através de documentos, historias, relatos. Reunidas
e transmitidas todas as informações e descrições, ainda não temos o retrato dos
tempos de outrora. Essa é uma pretensão que sequer o historiador profissional
pode ter. A m em oria é basicamente a evocação de um passado, próxim o ou
longínquo, mediante o qual imagens do grupo a que se refere são reforçadas,
reenquadradas e redefinidas. Ao lançar mão do passado coletivo, a memoria
afirma valores socialm ente compartilhados, reinterpretando-os e conferindo-
lhes atualidade. Dito nos termos postos por Halbwach, todo processo de recu­
peração da m em oria por um grupo é, sim ultaneam ente, a invenção de seu
passado. Aspectos do seu passado são recortados e rearticulados num todo
dotado de sentido. Este, contudo, refere-se não somente á historia passada do
grupo, mas a seu tempo presente. É a atualidade dos valores e das regras,
projetadas na história coletiva, que a memória celebra.
Em se tratando do trabalhismo, a memória que Colagrossi e muitos outros
trabalhistas foram buscar, a tarefa de recuperá-la, no contexto do pós-abertura,
deve ser entendida como o laborioso trabalho de invenção de uma tradição (no
presente caso, seria mais apropriado dizer: reinvenção da tradição trabalhista). A
noção é de autoria de Hobsbawn que, com ela, quer dizer:

"Por 'tra d içã o in ve n ta d a ' entende-se um con jun to de práticas, n o rm a lm e n te


reguladas po r regras tácita ou abertam ente aceitas; tais práticas, de natureza
ritua l ou sim bólica, visam inculcar certos valores e norm as de com portam ento
através da repetição, o que im plica, autom aticam ente, um a con tinu ida de em

63 H albwach, 1 992.

99
relação ao passado. Aliás, sem pre que possível, ten ta -se estabelecer um a
co n tinu ida de com um passado histórico a p ro p ria d o "64

À afirmação de Hobsbawn talvez fosse adequado acrescentar: sempre que


possível, estabelecer uma continuidade com uma versão plausível de um passa­
do histórico apropriado. Posto que, embora nem todas as versões sobre um
determinado período histórico, ou mesmo de um simples evento, sejam possí­
veis e/ou plausíveis, é necessário reconhecer que não há um só caso em que
uma única versão possa se impor absoluta como solução interpretativa. Isto
vale para a própria história entendida como disciplina científica, tal como defi­
nida por Le Goff, ao diferenciá-la das histórias e tradições transm itidas nos
meios leigos e populares.
A memória que os trabalhistas buscavam, e sobre a qual Brizóla e brizolistas
tão repetidamente explanaram ao longo dos anos 80 é entendida, nesse trabalho,
como um discurso de reinvenção do trabalhismo. Atualizada, significou a recupe­
ração do fio da história, abortada pelos eventos traum áticos do pós-64. O
trabalhismo jamais foi formalizado como uma doutrina política ou mesmo como
ideologia articulada. Ao contrário, a ausência de uma formulação mais sistemati­
zada foi extremamente útil e mesmo um recurso político fimdamental para aque­
les que atuaram politicamente como seus representantes ao longo do período 45-
64. Foi assim com Getulio. Foi assim com Jango e mesmo com Brizóla, em seus
• 66
primeiros momentos de visibilidade nacional. Segundo Maria Celina D ’Araujo,
a ambigüidade e volatilidade do trabalhismo funcionaram como poderosos instru­
mentos de atuação política para Vargas, mediante os quais ele pôde, simultanea­
mente, vincular sua imagem à defesa dos interesses dos trabalhadores e cortejar a
burguesia e setores conservadores da política, para obter deles seu apoio. Sob a
direção de Vargas, o trabalhismo competiu pela liderança das classes trabalhado­
ras com os comunistas, postulando, de maneira genérica, a coincidência de inte­
resses entre capital e trabalho no processo de desenvolvimento da sociedade
brasileira. Sendo assim, era uma ideologia não conflitiva e indissociável do nacio­
nalismo, ambos funcionando como duas faces de uma mesma moeda ideológica.
Dada sua vinculação à figura de Vargas e ao processo de ampliação dos direitos
sociais por ele empreendido, ainda no Estado Novo, o trabalhismo também foi
entendido como um conjunto de motivações e convicções que definiram o pro-

64 Eric Hobsbown. "Introdução: a invenção das tradições", em Hobsbawn & Ranger, 1984:9.
65 Para a definição de m emória e seu lugar na historiografia, ver Le G off, 1984.
66 D 'A ra uio, 1982.

100
cesso de incorporação dos trabalhadores urbanos à cidadania. Com João Goulart,
o trabalhismo vincula-se mais fortemente ao nacionalismo, em voga em boa parte
do chamado Terceiro Mundo, na década de 50. O conteúdo popular do trabalhismo
é mais enfatizado, a ação junto aos sindicatos mais intensa, sua relação com
outros grupos da esquerda é estreitada. A carência de sistematização sobre o que
efetivamente seria o trabalhismo, contudo, permanece. Perm anece tam bém a
enorme ambigüidade de projeto e intenções, o que fica evidente no período em
que João Goulart ocupa a presidência da República. Neste mesmo período, uma
nova encarnação do trabalhismo, mais radical, emergia, chegando mesmo a tra­
zer algumas dificuldades para Jango. Ela tinha em Brizola seu grande porta-voz e
nas reformas de base a bandeira que, na época, era capaz de sensibilizar até
mesmo os grupos mais moderados da esquerda. O trabalhismo emergente, capi­
taneado por Brizola, não era menos ambíguo e carente de sistematização do que
fora até então. Ao contrário, era e pretendia ser pura ação, iniciativa na direção de
reformas profundas, tanto no âmbito estrutural quanto institucional. Talvez sua
principal marca diferenciadora fosse a desconfiança e a intranqüilidade que cau­
savam em setores da burguesia industrial, em parte da classe média e nas oligar­
quias agrárias. Seduzia, com sua retórica mobilizadora, camadas da esquerda,
mas inviabilizava virtualmente alianças que, mesmo frágeis, sustentaram parte do
crescimento político do partido mais fortemente identificado com o trabalhismo,
o PTB. Chegava, inclusive, a causar mal-estar no interior do próprio partido.
Embora o conhecido rompimento de Brizola com Jango tenha se efetivado quan­
do o segundo rejeitou a proposta de seu cunhado de resistir ao golpe pelas armas,
a relação entre ambos começara a se deteriorar muito antes, e os grupos ligados a
um e outro competiam, no início dos anos 60, pela hegemonia no interior do
partido. A visibilidade do trabalhismo e do PTB era sensivelmente superior a
todas as demais tendências políticas organizadas nos estertores da democracia de
45. Mas, nesse momento, as ambigüidades que lhes eram inerentes tornam-se
dramáticas. A principal liderança do PTB ocupava a presidência da República.
Sua principal liderança emergente ocupava a linha de frente do processo de
radicalização política e social, trabalhando, com freqüência, com o a m ais
perturbadora das forças de pressão sobre o governo.
Buscar a memória coletiva significou reconstruir a história que redundou no
golpe de 64 e no regime que, em 1979, estava em processo de decomposição.
Significou, também, reinventar a história recente do Brasil. Enquadrar o passa­
do de maneira que o presente se tornasse inteligível. Significou, portanto, não
apenas reinventar o trabalhismo, mas, e fundamentalmente, reinventar a histó-

101
ria do Brasil. O trabalhismo, ressemantizado como brizolismo, articula m em ó­
ria e esquecimento, engendrando formas de ler o quadro brasileiro contemporâ­
neo, entender a natureza da atuação política e formular estratégias e projetos de
intervenção no espaço público.

O Brasil segundo o trabalhismo brizolista


A memória trabalhista é acionada bem antes do retomo de Brizóla do exílio,
embora não possa ser dele desvinculada. Desde que a situação política permitiu,
antigos trabalhistas passaram a investir em publicações que visavam “transmitir
aos mais jovens o ideário trabalhista” e contar-lhes a história do Brasil, sem o que
o trabalhismo não faria o menor sentido. Para tanto, foram organizados cursos,
principalmente no Rio Grande do Sul, e publicadas edições, os chamados cader­
nos trabalhistas. Creio ser impossível avaliar hoje o real alcance desses empreen­
dimentos. Ainda que levando em conta seu possivelm ente limitado poder de
penetração, esta empreitada é extremamente significativa, tendo em vista seu
objetivo claramente pedagógico e propagandístico. Ela é a origem do Instituto
Alberto Pasqualini, centro de documentação do PDT.
A história do Brasil veiculada por estes esforços é elucidativa e fundamental
para todos os demais aspectos do brizolismo. O marco original está, como não
podia deixar de ser, na revolução de 30. Nela, se funda a história do Brasil. E o
marco, em tomo do qual se desenrola a versão do Brasil cujo eixo está nas idéias
de destinação e de atraso. Pode-se entendê-la como o esforço de formulação e
resposta da seguinte pergunta: por que o Brasil, um país com vocação para potên­
cia, pródigo em riquezas naturais, não cumpriu ainda seu destino? Até onde a
realização desse mesmo destino foi conseguida e que forças impediram sua con­
tinuidade? A resposta a estas questões, que são simultaneamente o fio condutor
da história recente do Brasil, é de teor fundamentalmente político. As forças que
mantêm o país e sua população em agonia estão nele próprio e em seu exterior.
Em primeiro lugar, a oligarquia rural, identificada como a força mais retrógrada
da política republicana. Principal adversária da Revolução de 30, a oligarquia
rural aparece em todos os momentos como força politicamente poderosa, capaz
de organizar-se como ator político forte o bastante para manter-se no poder,
mesmo sob os governos de Vargas. Sendo seus interesses particulares contrários
a um projeto político e econômico de emancipação nacional, ela é, no plano
interno, a principal inimiga do cumprimento do destino do Brasil potência. À
oligarquia rural está aliado o segundo e maior dos inimigos: o imperialismo. Se­
gundo esta mesma versão, a prosperidade interna brasileira esteve sempre, ao

102
longo da história, obstruída por uma grande potência externa. Inicialmente, Por­
tugal. Depois Inglaterra e, finalmente, os Estados Unidos. Ao longo de toda a
primeira fase de sua carreira política (aquela que vai até o golpe de 64), a retórica
de Brizola caracterizava-se por um nacionalismo onde a tônica dominante era
dada justamente pelo antiamericanismo e o antiimperialismo. Embora tenha sido
revisto em seu retorno do exílio, o antiamericanismo permaneceu muito vivo
entre velhos m ilitantes. A renúncia de B rizola ao antiam ericanism o não
correspondeu ao abandono da lógica que identifica no inimigo externo a maior
força de obstrução do desenvolvimento brasileiro. Ao contrário, ela é confirmada
mediante o deslocamento do foco de combate dos EUA para as multinacionais e
para o capital financeiro. São as multinacionais e o capital financeiro, a lógica
supostamente predatória de ambos, os novos inimigos externos a serem combati­
dos. Investindo no país para obter lucros que, por sua vez, não são reinvestidos
mas enviados para os chamados países de origem, aqueles onde a empresa teve
origem e mantém sua sede principal, as multinacionais são encaradas como os
grandes predadores da riqueza nacional. A atuação das multinacionais e do capital
financeiro internacional remetem ao principal problema econômico do Brasil, as
chamadas perdas internacionais. São as perdas internacionais, entendidas como
um dado estrutural da economia, que causam o desemprego e o crescimento da
miséria. As perdas internacionais, enraizadas desde muitos séculos, são a chave
do entendimento para a crise inflacionária, que concentrou as atenções dos eco­
nomistas brasileiros, a partir da segunda metade da década de 70.
Foi, portanto, a aliança do setor interno mais atrasado, a oligarquia agrária,
com o inimigo externo, a grande derrotada no movimento de 30. Derrotada
sim, mas não afastada completamente do poder. Por razões diversas, o Brasil
manteve-se desde então ainda sob a zona de influência americana. A oligarquia
rural ainda manteve sua parcela de poder. O período que vai de 30 a 64, porém,
é a história da depreciação constante da influência dessa aliança através da
ascensão de dois novos atores políticos: a burguesia urbana e a classe trabalha­
dora. O papel da burguesia urbana e industrial merece enorme cuidado, posto
que a ela caberiam dois lugares diferentes na história. Em geral, ela aparece
como uma força de modernização, fundamental para a prosperidade econômi­
ca e para o enfraquecimento político da aliança nefasta, anteriormente m encio­
nada. Seu apetite de poder político e desejo de prosperidade econômica teriam
um papel instrumental importante no processo de cumprimento da destinação
nacional. Em uma primeira versão, este setor não teria maiores identificações
com a causa popular, mas, de qualquer modo, ser-lhe-ia útil pelas suas motiva-

103
ções. Contribuiria para a desestabilização das forças retrógradas internas, para
depois ser igualm ente suplantada. Em uma segunda versão, este novo ator
político e econômico deveria ser cindido em dois. Aqueles comprometidos com
os interesses nacionais - e, portanto, progressistas - , e aqueles alinhados aos
interesses do capital internacional. Apenas os primeiros seriam protagonistas da
parceria que levaria o Brasil rumo à autonomia e à prosperidade.
O outro ator político são as classes trabalhadoras. Sua história confunde-se
com a trajetória de Vargas no poder. A instituição do voto secreto, a extensão
do direito do voto à mulher, a criação do Ministério do Trabalho, a implantação
da Justiça do Trabalho, a criação da Previdência Social, a fixação da jornada de
trabalho em oito horas diárias, a regulamentação do trabalho noturno da mulher
e do menor, a sindicalização do trabalhador, a estabilidade no emprego e o
salário mínimo obrigatório são iniciativas que elevam o trabalhador ao estatuto
de cidadão com direitos políticos e sociais. Todos eles promovidos sob os go­
vernos de Vargas de 30 a 45 e 51 a 54. Neste período, a crescente inserção dos
trabalhadores na vida política e econômica do Brasil é simultânea ao impulso
m odernizados através de iniciativas como a criação da Cia. Siderúrgica de
Volta Redonda, a Mineradora Vale do Rio Doce, a elaboração da proposta de
criação da Eletrobrás e a instituição do m onopólio do petróleo através da
Petrobras. O chamado período Vargas é, portanto, o momento de impulso da
classe trabalhadora aliada à burguesia urbana, através de uma política de indus­
trialização que resultaria, a médio prazo, na emancipação do Brasil. Vargas é o
agente fundador de um processo que tem continuidade no curto período de
presidência de Goulart, sob a qual são propostas as “Reformas de Base”, en­
volvendo as reformas agrária, urbana, do ensino, a reforma tributária, financei­
ra, eleitoral e administrativa. Data de então o encaminhamento de uma legisla­
ção disciplinadora da remessa de lucros e o estabelecimento de uma política
externa independente, pela qual o Brasil não se submeteria à linha definida por
Washington. É nesse momento que o conteúdo mais genuinamente popular do
trabalhismo ganharia impulso e as próprias forças populares, por ele alavancadas,
ganhavam a organização necessária para emancipar-se, atuando como protago­
nistas de sua própria história.
O período de 30 a 64 é a história de uma aliança bem -sucedida da bur­
guesia urbana (ou de sua parte nacionalista e progressista) com os trabalhado­
res. E, nesse aspecto, a leitura para os eventos de 64 diferem, significativa­
mente, em pelo menos um aspecto decisivo, de todas as demais, seja a consa­
grada pela historiografia e pela ciência política acadêmicas, seja pelas avalia­

104
ções produzidas no interior dos partidos de esquerda. Enquanto a crise que
leva ao golpe é freqüentem ente explicada em função da fragilidade do sistema
político como um todo, da parca confiança nos mecanismos políticos da de­
m ocracia representativa, do caráter incipiente do sistem a partidário ou da
aliança de setores populares com setores da burguesia, a versão trabalhista-
brizolista identifica, ao contrário, a força alcançada pelos m ovimentos popu­
lares como a principal causa do movimento militar. Diante da im inência de
um desdobram ento afortunado para a em ancipação nacional, m ediante m u­
danças estruturais profundas que se tornariam irreversíveis, o inimigo externo
toma a frente do processo político e, utilizando-se de seus aliados internos,
m obiliza todo o seu poderio para abortar a história e o cumprimento do desti­
no nacional. O peso atribuído à influência americana no movimento de 64 faz
dela o principal ator do que então ocorre. São, portanto, as causas externas
que definem a história política brasileira, a partir de 64, pela revitalização dos
setores conservadores brasileiros, encarnados ainda na oligarquia agrária, em
aliança com a burguesia intem acionalista, graças à influência m aciça do go­
verno americano. Longe de denunciar a fragilidade das alianças e articula­
ções de caráter nacional-popular, o golpe é a resposta dos setores im perialis­
tas e conservadores às suas virtudes.
Ainda seguindo a história do Brasil reiventada pelo brizolism o, o processo
iniciado com a anistia é explicado por três fatores básicos: o colapso do m o­
delo im plem entado a partir do golpe, o recrudescim ento e a reorganização
dos m ovimentos sociais e a mudança da postura do governo americano frente

67 Cabe um m aior esclarecim ento sobre as diferentes leituras e o princípio que as especifica, na passagem do texto.
Entendo por leituras acadêmicas as interpretações operadas no ambiente de institutos de pesquisa que, seguindo
procedim entos de organização e análise dos dados disponíveis, buscaram com preender as questões envolvidas no
período 4 5 -6 4 que acabariam por precipitar o golpe militar. Para o segundo caso, as versões produzidas no interior
de partidos de esquerda, refiro-m e aos balanços feitos por atores políticos direta ou indiretam ente envolvidos nos
acontecim entos, ou, alternativam ente, direta ou indiretam ente interessados em fo rja r publicam ente uma identidade
político-partidária mediante a tomada de posição sobre o que se deu. Boa parte das análises feitas no interior dos
partidos de esquerda, especialmente o PCB, explicam o golpe pelo fracasso da aliança nacional-desenvolvimentista
(ou nacional-dem ocrática). O fracasso, contudo, é explicado de três formas. Para os setores mais m oderados, ele se
deu pelo acirram ento e radicalização dos debates, prom ovidos por setores irresponsáveis (entre eles, o próprio
Brizóla). O s setores mais radicais da esquerda consideram que o que faltou foi justamente a radicalização do
processo. A terceira explicação aponta no próprio pacto nacionalista com a burguesia o erro m ortal das esquerdas.
As três interpretações coincidem em atrib uir aos erros de cálculo e de avaliação das correlações de força, por parte dos
atores, as razões para o golpe. Em todas elas, os fatores internos tendem a ser mais relevantes do que os externos. No
caso das cham adas leituras acadêmicas, houve uma crescente ênfase, ao longo da década de 70, nos aspectos
institucionais do arranjo político. Há uma vasta e excelente bibliografia disponível que se orienta nessa direção. E
interessante perceber que as análises acadêmicas são tão im portantes que parecem operar um fenôm eno próxim o ao
da reversibilidade, abordada por Giddens. As análises operadas a partir da observação de um contexto político-
social específico retornam a este mesmo contexto, interferindo, decisivamente, na com posição da agenda política do
início dos anos 80, quando a construção de uma institucionalidade política sólida e funcional alcançou um quase
consenso junto à elite política brasileira. Entre as análises institucionais sobre a crise de 64, ver Santos, 1 9 8 6 ; Souza,
1983. Sobre a reversibilidade, em G iddens, ver G iddens, 1991.
68 E curioso notar que, em bora na direção oposta, também alguns dos protagonistas do golpe expliquem -no enfatizando
as causas externas. No caso, a am eaça do comunismo.

105
aos regim es de força da A m érica Latina. Esta m udança é entendida como
um a reorientação da política externa americana, em preendida pelo governo
Carter, mas também pela desfuncionalidade da manutenção dos ditos regimes
para os interesses do capital internacional. Nesse contexto, surgem as duas
novas forças que passam a atuar no cenário político: as forças então ditas
democráticas e o capital internacional, aliado a um a parte da elite nacional.
Entendendo assim o novo quadro político brasileiro, parte da história pré-64 é
recuperada, forjando o im perativo auto-im posto por trabalhistas-brizolistas
de recuperar o fio da história. Há uma espécie de suspensão do tempo que
deve ser aplacada, ainda que em um contexto com pletam ente novo. H avia
um processo de emancipação nacional e popular que teria sido interrompido.
Cabia, agora, retomá-lo. O discurso brizolista enfatizará cada vez m ais sua
opção pela dem ocracia, entendida basicam ente como dem ocracia social. E
v erd ad e que a questão da d em o cracia p o lític a , m ed ian te o re fo rço da
institucionalidade e da valorização do sistem a com petitivo, aparece sempre
no discurso brizolista pós-anistia. Nem poderia ser diferente, posto que a
dem ocracia política, entendida como um valor em si mesmo, é introduzida na
agenda com uma im portância inédita na história republicana. Ela se faz pre­
sente através da alusão reiterada ao trabalhismo como caminho para a cons­
trução do socialismo democrático, professada por Brizola e por aqueles que
em torno dele fizeram as vezes de formuladores do novo partido trabalhista.
No entanto, esta perspectiva deve ser relativizada à luz da própria ênfase na
questão social, em flagrante descompasso frente às formulações propriam en­
te políticas e institucionais, e, principalm ente, pelos princípios que norteiam a
elaboração do diagnóstico da situação brasileira ao longo dos anos 80 e início
dos 90. Reduzindo as questões cruciais a variações de um antagonism o de
base entre setores conservadores ligados ao capital externo e as forças popu­
lares, progressistas e nacionalistas, temos, aparentemente, um jogo de apenas
dois competidores. Digo aparentem ente porque, qualquer que seja a avalia­
ção que tenhamos de Brizola e de seus seguidores, não se pode tirar o mérito
de terem sido eles os prim eiros a incorporar a questão da pluralidade dos
conflitos sociais ao debate partidário e à discussão sobre a dem ocracia que,
ao fim do regim e militar, se buscava construir. Foi o brizolism o que prim eiro
incorporou a questão das minorias como issue fundamental no debate políti­
co brasileiro, trazendo os problem as das populações indígenas, do gênero e
da etnia para o interior de um partido político. E comum considerar-se que o
discurso nacionalista é necessariamente totalizador e, por essa razão, suprime

106
a pluralidade dos conflitos políticos. Em certo sentido, o brizolism o, por seu
nacionalism o, foi, desde 79, objeto de críticas dessa natureza. Como se ele
nada m ais fosse que um a retom ada da antiga dicotom ia (n acio n alism o /
entreguism o) que pautara o debate político nos anos 50 e 60. Em bora tal
parentesco seja não só pertinente mas fundam ental para a interpretação do
brizolism o, ele é apenas parcial. Ao menos em seus prim eiros anos pós-79, o
brizolism o foi um dos veículos mais francamente em penhados na ampliação
da esfera pública. O máximo que se pode conceder a seus críticos é que, ao
longo dos anos, estas questões tenham sido menos enfatizadas e, aparente­
mente, subsumidas ao antagonismo dicotômico mais geral, anteriorm ente ci­
tado. D essa perspectiva, o quadro composto por atores coletivos, pragm ati­
camente interessados na m aximização de seus interesses e/ou disputando prin­
cípios diferenciados de identidade social, teria sido surpreendido pela subsunção
de interesses e identidades a um interesse e a uma identidade maiores e mais
abragentes, representados pela nação brasileira, entendida como um todo a
ser integrado. A lógica positivista, de tão fortes tradições no Rio Grande do
Sul e no Rio de Janeiro, ter-se-ia sobreposto às lógicas utilitária e libertária.
Considero tal leitura do brizolism o problem ática. Se ela pretende dar conta do
brizolism o ao longo de todo o período pós-79, ela é, no mínim o, facciosa.
70
Discutirei esse ponto mais detidamente no próximo capítulo. Ao longo do
tem po, o discurso brizolista tenderá cada vez m ais para a dicotom ia entre
forças populares e elites, entendidas as prim eiras como todas as forças que se
identificam sim ultaneam ente com a questão social e a emancipação nacional.
Ocorre que o nacionalismo brizolista teve uma forte conotação incorporadora,
voltada para os excluídos dos m ais variados m atizes, o que o torna m uito
mais complexo do que um mero revival do nacionalism o do pré-golpe.
O apelo nacionalista encampado pelo brizolismo encontrará um razoável
espaço de penetração, ao longo de quase toda a década de 80. Conforme sali­
enta Brasílio Sallum Jr., durante o período de liberalização do regime autoritá­
rio e de reconstrução democrática, dois projetos distintos disputaram a hegemonia
na política brasileira. A primeira, nacional-desenvolvimentista, postulava uma

69 Essa dicotom ia era m uito mais complexa do que costumam fazer crer os críticos do nacionalism o dos anos 5 0 e 60.
70 Embora pretenda desenvolver o ponto mais detidam ente no próxim o capítulo, gostaria de antecipar que sigo a leitura
do nacionalism o feita por Craig C alhoun (1 994), que rejeita a associação clássica - de corte liberal, diria ele - entre
nacionalism o e supressão da pluralidade política. Com o procurarei evidenciar, o brizolism o é um excelente cam po
de exercício interpelativo das leituras mais comuns do nacionalism o (tal com o form uladas por boa parte da esquerda
brasileira, nas últimas duas décadas), e, para essa tarefa, as proposições de Calhoun são extremamente profícuas.
71 Sallum Jr, 1996.

107
política orientada para o desenvolvimento autônomo da econom ia nacional,
com a participação do Estado em atividades de base, incrementando e coorde­
nando o processo de modernização. A segunda, liberal, defendia a redução da
participação do Estado a tarefas redistributivas e de prestação de serviços soci­
ais, deixando aos atores sociais as atividades econômicas, reguladas pelas leis
de mercado. A prim eira perspectiva começa a enfraquecer-se, lentam ente, a
partir da segunda metade da década de 80, estando virtualmente derrotada nos
primeiros anos da década seguinte. O brizolismo pode ser alinhado à primeira
p ersp ectiv a, enfatizando, nela, o caráter po p u lar do n acio n al-d esen v o l-
vimentismo. Singulariza-se pela centralidade que confere às dicotomias povo-
nação/elites retrógradas-capital internacional e elites/excluídos, que funcionam
como princípios orientadores de sua leitura para as mais diversas conjunturas
por que o país passou, desde 1979. A lógica que sustenta tal perspectiva reside
na construção da história recente do Brasil. A tarefa que impõe é a retomada do
fio da história, para o cumprimento virtuoso de nossa destinação. Sem a pre­
tensão de avaliar os reais limites e acertos de tal perspectiva, cabe assinalar, à
guisa de conclusão, que, na leitura formulada pelos brizolistas, residem simulta­
neamente algumas das razões para a difusão do brizolismo e também para as
resistências a ele. Um dos objetivos que têm dado o tom da política brasileira
recente é o desejo de sepultamento do legado varguista. Ele já estava presente
no golpe de 64. Aparece, depois, com toda força no discurso dos fundadores do
PT. Viceja nos debates da Assembléia Constituinte em 87/88. É reforçado no
discurso de Fernando Henrique Cardoso, ao despedir-se do Senado para ser
72
empossado presidente da República, em 1995. Modernização significou, na
política recente, em largo sentido, rom per com o legado varguista. Daí ser
razoável considerar que, a despeito de eventuais exageros, com tinturas
persecutórias, os brizolistas tiveram alguma razão em se ver freqüentemente
isolados por outras correntes à esquerda e ao centro do espectro político. O
PMDB se apresenta, no momento de sua fundação, como o partido da resistên­
cia ao regime, reclamando para si o papel de representante legítimo da cotinuidade
do processo de redemocratização. O PT, como o partido da ruptura, do novo,
sem vínculos com a história política anterior a 64. Ao contrário, quer ser, exata­
mente, a sua negação. Em sua breve existência, o PP tentava representar a

72 Para uma análise dos debates iniciais da Assembléia Constituinte e o discurso.de ruptura com o legado varguista, ver
Bolívar la m o u n ie r e Am aury de Souza, "A feitura da nova C onstituição: um reexame da cultura política brasileira",
em la m o u n ie r (org.), 1990. Para uma análise crítica e extremamente acurada do alcance do discurso do presidente
Fernando Henrique Cardoso e sua pretensão de representar de fato a fundação de uma nova ordem política,
sepultando a Era Vargas, ver Vianna, 1995.

108
ordem e a m oderação, fundam entadas na presença de quadros que tiveram
papel de destaque nos arranjos que viabilizaram o retomo à democracia. Identi­
ficado com a Arena, o PDS oscilava entre a preservação dos ideais de 64 e a
iniciativa de instauração de uma nova ordem. O PDT surge, em 1980, como o
único partido político que reclama um vínculo com o passado. E o partido da
nostalgia, do fio da história que se tecia virtuosamente e foi rompido pelo arbí­
trio da força, do assassínio e da conspiração. Incorpora tal imagem beneficiado
pelo fracasso do PTB de Ivete nessa mesma iniciativa e pela presença do líder
carismático, herdeiro do legado e portador da destinação de cum prir o telos
nacional. Sem a sigla histórica, no entanto, e com a tarefa de dar um passo além
do ponto de estrangulamento do processo iniciado por Getulio, o trabalhismo,
como na perspicaz observação do antigo militante trabalhista, toma-se brizolismo.
Vejamos, agora, como esta força política, o brizolismo, modela seu discurso,
mediante a formulação de um projeto civilizador e de regeneração nacional.

109

III

O Projeto Civilizador
e a Estética do Feio

leitura da historia brasileira como um processo de emancipação nacional,


A abortado pela ação de forças im perialistas externas, aliadas à parcela
retrógrada e antipopular da elite nativa, explicita o peso de urna perspectiva
específica do entendimento da política, da economia e da vida social, que re­
monta às décadas de 50 e 60. Entretanto, reduzi-la à tradição trabalhista seria
um triplo engano. Primeiro, porque ela era muito mais ampla, abarcando seto­
res políticos, culturais e intelectuais não associados ao trabalhismo, mesmo no
período mais insistentemente evocado. Segundo, porque a perspectiva assumi­
da pode e deve ser remontada a um período mais longínquo da tradição intelec­
tual e política brasileira, ainda que para tanto sejam necessárias as devidas
mediações e qualificações. Terceiro, e mais importante, porque implicaria uma
aceitação demasiado simplista da continuidade entre o brizolismo pós-79 e o
antigo trabalhismo. Embora reclamada tanto por brizolistas, em sua luta para
obter legitimidade pública e espaço específico no espectro político, quanto por
seus críticos, denunciando o caráter retrógrado e arcaico dessa opção, a tese de
continuidade com o trabalhismo é insuficiente para uma interpretação do fenô­
meno do brizolismo. Ela só procede se enquadrada no novo contexto e diante
das novas questões que essa opção política implicou. Vale dizer, é fundamental
buscar as demais fontes de elaboração retórica e prática que nortearam as
respostas aos problem as e desafios impostos pela nova realidade brasileira.
Uma delas é, inegavelmente, a tradição trabalhista redefinida. As outras duas
são o nacionalism o e a social-democracia. Se a prim eira confere ao projeto
formulado um lastro histórico, os dois outros fornecem os instrumentos neces­
sários para a formulação do projeto de futuro, os caminhos concebidos para a
realização do telos implícito na própria reconstrução do passado, que lhes serve

111
como fundamento.' Não sendo um projeto clara e formalmente estabelecido, é
necessário reconstruí-lo, juntando cacos, iniciativas, documentos e declarações
dos envolvidos. O resultado sugere que, em linhas gerais, o projeto pode ser
identificado como um program a de criação de uma nação forte, autónoma,
constituida por um povo sadio, educado e esclarecido, representada e assistida
por um Estado Nacional poderoso e capaz de fazer frente aos desafíos impos­
tos por concorrentes e adversários. Trata-se, portanto, do mapeamento do pro­
cesso de elaboração de urna Bildung brizolista o tema do presente capítulo.

Bildung e nacionalism os

O conceito de Bildung se refere a um corpo de conhecimentos extrem a­


mente vasto. Em perspectiva teórica, funciona como uma espécie de ponto de
convergência para o qual se voltam vários campos do saber, como a historia, a
teoria da literatura, a antropologia, a sociologia etc. Remete, predominantemen­
te, a conteúdos e processos de produção de conhecimento não especializados,
ao corpo de símbolos e significações que constituem o patrimonio comum dos
membros de uma m esma sociedade. O acesso a esse patrim onio é condição
indispensável à devida inserção e adequação dos indivíduos. Pela Bildung, é
conferida universalidade ao individuo privado. Diz respeito, portanto, às for­
mas de apreensão e significação do mundo próprias de uma dada civilização,
sociedade ou grupo social e, simultaneamente, aos processos em que tais for­
mas são produzidas e transmitidas ao longo do tempo. Nela estão contidas as
imagens comuns que determinada sociedade constrói do mundo e de si mesma,
imagens que são também uma idealização e, em certo sentido, projeções de seu
futuro. E basicamente pedagógica, formadora, aciona ideais de universalidade,
generalidade, integralidade e, para tanto, veicula uma imagem de homem e de
2
civilização idealizada. Dadas todas essas características, a diversidade dos
campos que abarca e as muitas áreas do saber pelas quais podemos abordá-la,
optei, ao identificar no brizolismo a existência de um projeto civilizador, de uma
B ildung, p or enquadrá-lo tom ando o nacio n alism o com o seu p rin cíp io

1 Pode parecer estranha a dissociação entre trabalhism o e nacionalism o. É verdade que o trabalhism o teve no n a c io ­
nalismo sua marca mais pronunciada. O corre, contudo, que o nacionalism o teve outras configurações no Brasil,
tanto antes do surgimento do trabalhism o, com o ao longo de seu período de m aior divulgação. N o brizolism o, as
tradições trabalhista e nacionalista permanecem intrinsecamente articuladas, mas, analiticam ente, podem e devem
ser dissociadas, em benefício da clareza expositiva.
2 Para uma boa análise da questão da Bildung, suas origens alemãs, sua pré-história, que rem onta à Antigüidade
Clássica, as diversas configurações, antes de adq uirir o sentido m oderno, ver Assmann, 1 994.

11 2
fundador.3Dele fazem parte a evocação da m em oria, pela qual a historia do
Brasil é reinventada, tal como abordado no capítulo anterior. Nele estão abor­
dagens singulares de elementos tradicionalmente vinculados aos discursos naci­
onalistas em geral. Finalmente, nele estão contidos traços de nacionalism os
pretéritos, que constituíram parte da tradição intelectual e política brasileira. O
nacionalismo brizolista é abordado, aqui, como uma prática, um enquadramento
e um a linguagem política, que se formulam dinamicamente, incorporando e
redefinindo elementos da tradição, no que resulta um programa de formação de
uma nova esfera pública.
Ingrata a missão do analista que se dispõe a interpretar um projeto políti­
co por sua filiação aos m ovimentos nacionalistas. Ideologia política mais di­
fundida, apropriada e, provavelmente, explosiva do século XX, o nacionalis­
mo é m arcado, desde suas origens, que especialistas rem ontam ao final do
século XVIII, por dois traços fundamentais correlacionados: a am bigüidade e
a carência de formulações cuidadosas e perenes. Sobre a prim eira, deve-se
lem brar que, quando associados a outras tendências políticas marcadas pelas
mais diversas contingências históricas e/ou geopolíticas, o nacionalism o tanto
foi acionado por m ovimentos de extrema direita, como o nacional-socialism o,
na Alemanha, e o fascismo italiano, como por m ovimentos de emancipação
nacional, com ou sem contornos m arxistas, passando por configurações de
corte burguês e de caráter mais estritam ente popular. É nesse sentido que
Girardet especifica quatro versões genéricas, identificáveis historicam ente, de
movimentos nacionalistas:

"Assim , ao lo n g o da história dos dois últim os séculos, sucedendo-se no te m ­


po, mas tam bé m concom inantes, é possível distinguir, segundo suas d o m i­
nantes ideológicas - pelo menos sem dem asiada preocupação com nuances
in te rm ediária s - qu atro tipos distintos de nacionalism o: um nacionalism o de
inspiração lib e ra l e dem ocrática, um nacionalism o a u to ritá rio , p lebiscitário
ou inspiração conservadora, um nacion alism o de referência m arxista e um
nacionalism o, enfim , de tip o fascista.''5

Os nacionalismos, portanto, foram esposados por uma série de outras dou­


trinas políticas que a ele se remeteram, seja para a conquista de apoio popular,

3 Ê im portante ressaltar que a articulação aqui proposta entre nacionalism o e Bildung não supõe qualquer caráter
totalizante, tal com o foi entendida em parte da literatura brasileira dedicada ao tema. O que se pretende realçar,
aqui, é justamente a potencialidade disseminadora de um potencial civilizador m arcado p o r um conteúdo d in â ­
m ico e passível de redefinições sucessivas ainda que orientado para a consolidação de um ethos nacional.
4 Para uma definição do nacionalism o como prática política, ver Brubaker, 1996.
5 G irardet, 1 9 9 6 :1 9 (tradução do autor).
seja para m arcar posição contra seus adversários, ou, ainda, para ambos os
fins. Pode ser encarado como ideário autoritário, embora tenha sido repetidas
vezes acionado como instrumento libertador. Pode ser analisado como recurso
de mascaramento e supressão de diversidades, mas marcou, com conseqüênci­
as freqüentemente extremadas, diferenças e alteridades.
A despeito da variedade de configurações, os nacionalism os foram , em
geral, negativamente associados à democracia. Sobretudo as abordagens libe­
rais, foram extrem am ente duras com o nacionalism o. Enfatizando o caráter
totalizador do princípio identitário nacionalista, que estipula a definição de
identidades de larga escala, a tradição liberal tendeu a estabelecer uma cone­
xão direta e quase natural entre nacionalism o e autoritarism o ou conserva­
dorismo. Isso se deve, para Craig Calhoun, à “ilusão liberal”, que concebe a
dem ocracia como um regim e no qual apenas um padrão discursivo está auto­
rizado para a abordagem dos negócios públicos. Segundo Calhoun, a ação
política, em um contexto democrático, corresponde à criação de espaços pú­
blicos onde identidades possam formar-se e expressar-se diferenciadam ente
como atores politicam ente organizados. Onde possam confrontar e disputar
livremente não somente interesses, mas, e principalm ente, os valores e im a­
gens constitutivos de suas próprias identidades. O erro da tradição liberal,
segundo Calhoun, consiste em relegar as diferenças entre os atores à esfera
privada, considerando-os iguais em sua atuação pública. Ora, a questão da
democracia, se colocada apropriadamente, está exatam ente na capacidade de
incorporação da diversidade à esfera pública. Ou, indo além, em suscitar a
am pliação de possibilidades para a criação de um a pluralidade de esferas
públicas. Assumindo a democracia dessa forma, o nacionalism o pode passar
a ser encarado como arena organizacional do(s) discurso(s) público(s), uma
vez que redefine os antigos laços tradicionais de pertencim ento, respondendo
à atom ização dos homens (e mulheres) proporcionada pelo impacto das alte­
rações econômicas, sociais e culturais ocorridas no mundo m oderno, m edian­
te a criação de uma esfera pública abrangente e potencialm ente incorporadora.
A relevância de tal invenção é atestada pelo sucesso do nacionalism o como
princípio identitário do mundo moderno e como base para os sistem as dem o­
cráticos contem porâneos.
Uma rápida passagem de olhos pela história dos dois últimos séculos, m en­
cionada por Girardet, confirma a espantosa eficácia do apelo nacionalista. Como
observa Norbert Elias, “Numa fo rm a latente ou manifesta, o nacionalism o
constitui uma das mais poderosas, talvez a mais poderosa das crenças sociais

114
dos séculos X IX e X X ”.6 Sua eficácia surpreende mais quando com parada à
relativa desatenção dedicada ao tem a pelos mais im portantes e perspicazes
intérpretes da vida política e social. Autores como Weber, Marx e Durkheim,
tidos legitimamente como pais fundadores do pensamento social moderno, ja ­
mais problematizaram os nacionalismos, ainda que fossem contemporâneos do
período inicial de sua maior difusão. A pouca atenção é especialmente curiosa
em casos como o de Weber, que foi um notório nacionalista. Tudo indica, como
observam Paul James e M ontserrat Guilbeart, que o nacionalismo foi tomado
por eles como algo dado e indisputável da realidade social, sendo como que
convencidos de sua pertinência sociológica e política. Mais surpreendente ainda
é o fato de, a despeito de sua difusão e eficácia política, os nacionalismos não
terem gerado em seu seio formuladores de peso. Este é um dos três “parado­
xos” dos nacionalismos mencionados por Anderson:

"O poder 'p o lític o ' dos nacionalism os vs. sua pobreza, e até m esmo incoerên­
cia, filo sófica. Em outras palavras, diversam ente de outros "ism os", o n a cio ­
nalism o ¡am ais produziu grandes pensadores próprios: nem Hobbes, nem
Tocquevilles, nem Marxs, nem W ebers. C e rta m en te , esse 'v a z io ' desperta,
em intelectuais cosm opolitas e p o lig lotas, um certo a r de su p e rio rid a d e .''8

A possível exceção de Herder não parece ser suficiente para falsificar a


observação de Anderson.
As duas características acima citadas - a eficácia sim bólica do princípio
9
nacionalista e a sua “pobreza teórica” - parecem confirmar a procedência do
que foi posto no início da seção. A análise de um projeto político que tem como
um de seus pilares o nacionalismo é tarefa espinhosa, que exige prudência em
cada um de seus passos. Mais ainda quando combinada com outros “ismos”,
tais como os mencionados por Girardet, em citação anterior. Por fim, à pretensa
universalidade formal do conceito contrapõe-se a particularidade de suas m ani­
festações concretas. As dificuldades impostas à abordagem de um projeto m ar­
cado pelo nacionalismo não devem, porém, ser superestimadas. Elas podem ser

6 Elias, 1 9 9 7 :1 4 2 .
7 James, 1 9 9 6 ; G uibernau, 1997.
8 O s dois outros paradoxos dos nacionalism os, m encionados p o r Anderson são: "A m odernidade objetiva das
nações aos olhos do historiador vs. sua antigüidade objetiva aos olhos dos nacionalistas;. A universalidade form al
da nacionalidade com o conceito sócio-cultural... vs. a particularidade irremediável de suas manifestações concre­
tas..." (Anderson, 198 9:13 ).
9 E im portante notar que Anderson tem seus olhos voltados apenas para o horizonte europeu. N o caso brasileiro, o
postulado sobre pobreza teórica é simplesmente inaceitável. C om o espero deixar evidenciado no próxim o capítulo,
boa parte do que há de m elhor na tradição intelectual brasileira ou tematizou a questão nacional ou assumiu o
nacionalism o com o referência teórica e bandeira política.

115
minim izadas mediante uma redefinição do que sejam nação e nacionalismo.
Em seu reenquadramento do nacionalismo, Brubaker chama a atenção para o
equívoco em que se constitui o entendimento da nação como entidade substan­
tiva e do nacionalismo como categoria de análise. Para Brubaker, a nação deve
ser entendida como um a categoria prática e o nacionalism o como form a de
estruturar o pensamento, a percepção e a experiência. O nacionalismo organiza
o discurso e a ação política:

"O nacion alism o pode e deve ser e n te n d id o sem que o te rm o nação sirva
p a ra in vocar entidades substantivas. Em lu g a r de e n te n d e r as nações com o
g rupos reais, deveríam os nos ate r ao sentim ento de n a cion alida de, pensar o
te rm o nação com o categoria prática, fo rm a in stitu cion aliza da e evento co n ­
tin g e n te . Nação é uma categoria da prática, não (em prim eira instância) uma
cate goria de análise. Para entender o nacionalism o, precisam os entend er os
usos práticos da categoria nação, as form as pelas quais ela vem a e stru tu ra r
a percepção, con form ar o pensam ento e a experiência, o rg a n iza r o discurso e
a ação p o lític a ."10

Assumindo as proposições de Brubaker, reconhecemos o caráter plural e


multifacetado do nacionalismo e da nação. A carência de formulações filosóficas,
apontada por Anderson, passa a ser um falso problem a e a tarefa que se nos
apresenta passa a ser a de apreender os traços que alimentaram as significações
da categoria e sua recepção subjetiva, bem como sua configuração em um deter­
minado contexto que nos interesse especialmente. Vale dizer, é importante a com­
preensão do nacionalismo tomado em seu sentido geral e o modo como ele é
semantizado no Brasil. Mas, ainda aqui, cabe uma nova qualificação, posto que,
mesmo tomando o caso brasileiro em particular, é inexata a referência ao nacio­
nalismo de modo que não seja no plural. Dito de outra maneira, meu objetivo é
perceber a forma como se tece um discurso prescritivo específico, formulado
como projeto de intervenção na esfera pública, marcado pelo nacionalismo.
O recurso às análises historiográficas sobre o surgimento dos nacionalismos
é fundamental para que se tenha, com precisão, a magnitude das alterações
operadas por eles na constituição de um novo e abrangente espaço público.
Afortunadamente, ao contrário do “vazio filosófico de formulações nacionalis­
tas”, apontado por Anderson, e da pouca atenção dedicada ao tema pelos pais
fundadores da teoria social, existe, produzida de algumas décadas para cá, uma

10 Brubaker, 1996 : 7.

11 6
razoável bibliografia de excelente qualidade sobre o fenômeno, cuja relevância
foi e tem sido tão reiteradam ente confirmada. Intérpretes das mais diversas
filiações teóricas têm se dedicado com argúcia e sofisticação metodológica e
documental ao fenômeno dos nacionalismos. Dedicam-se a localizar suas ori­
gens históricas - a partir do pressuposto de que é um fenômeno radicado histo­
ricamente e desencadeado por fatores de ordem social, econômica e política -
m as, sobretudo e sim ultaneam ente, procuram traçar-lhes os contornos m ais
fundamentais. Um pouco esquematicamente, costumam-se definir duas verten­
tes originais para a definição do nacionalismo.
Girardet (1996, p. 15) enfatiza os sentidos e conteúdos das manifestações
nacionalistas, ou, mais propriamente, do recurso ao apelo nacionalista em suas
primeiras aparições - a francesa e a alemã. A diferenciação entre ambas conduz
ao reconhecimento da existência de um nacionalismo com um perfil conservador,
preso à necessidade de afirmação de antigas tradições e a uma concepção orgâni­
ca de sociedade - que caracterizaria o nacionalismo originariamente alemão —, e
um nacionalismo de corte mais libertário, calcado na idéia de autodeterminação
popular e de celebração sempre renovada da vontade coletiva, característico do
nacionalismo germinado na França. No primeiro caso, o romantismo alemão, no
segundo, o jacobinismo do terceiro estado francês. Embora com filiações distin­
tas, temos já alguns pontos em comum. Ambos se remetem ao povo. Assim,
enquanto na Alemanha a ênfase nas tradições, na língua e nos costumes popula­
res, como depositários dos valores genuinamente germânicos, leva à valorização
do volk, na França, é a participação do povo, no terceiro estado, identificado com
os excluídos do Antigo Regime, nos processos de decisão política, que confere
legitimidade ao Estado nacional. Uma e outra estão radicadas nos dramas ence­
nados nas regiões em que emergem. Nos dois casos, o povo, enquanto constru­
ção de uma entidade pública e vocalizadora de valores, ocupa lugar central. No
afloramento da idéia de fundação de uma grande Alemanha, que se sobrepusesse
aos interesses locais da aristocracia dividida; e na revolução francesa, e seu proje­
to de romper com antigas e despóticas regalias da aristocracia e do clero. Contu­
do, é um erro diferenciá-los pela suposta natureza eminentemente culturalista do

11 Ê verdade, com o ensina Elias, que a noção de cultura funcionou, para grande parte da classe m édia alem ã, desde
o século XVIII até o século XX, com o uma espécie de refúgio da política, da qual estava excluída. Dom inada pela
aristocracia e m arcada pelo cultivo de etiquetas e mesuras, a política causava repulsa ao segmento social que
encarava a cultura com o a esfera de desenvolvimento e evolução espiritual. Sem a intenção de contradizer Elias,
desejo enfatizar que, ainda que não fosse apresentada dessa form a, tal postura correspondia, ela mesma, a uma
posição política, mesmo que expressa pela passividade frente a um m odelo a que se negava legitim idadè. Os seus
desdobramentos foram , em diversas ocasiões, de m agnitude nada desprezíveis. Ver Elias, 1997.

11 7
primeiro, em contrapartida ao caráter político do segundo. Ambos têm um
sentido regenerador, pedagógico, e, sendo assim, simultaneamente político e cul­
tural. Apontam para a criação de uma nova ordem. Passado o momento original,
as diferenças se diluem, ao menos parcialmente, posto que se referem a um
processo de alargamento do discurso público como arena adequada para a forma-
12
ção de identidade. As diferenças históricas aparecem mais como instrumentos
analíticos com uma margem apenas razoável de valor heurístico. Formulados nos
estertores do século XVIII, serão difundidos, redefinidos e apropriados em várias
partes da Europa, no século seguinte, acrescidos de novos elementos e de dimen­
sões e ênfases diversas, por vezes contraditórias, guardando sempre algum pa­
rentesco com as duas formulações originais, sem confundir-se exclusivamente
com qualquer uma delas.
Os discursos nacionalistas remetem sempre a tradições pretensamante anti­
gas. São voltados sempre, embora não exclusivamente, para o passado. Orde­
nam, em um corpo articulado de valores, de crenças, de costumes antigos e
comuns ao grupo que se quer definir como nacional, o princípio legitimador do
pertencim ento a ele. Daí extraem o fundamento da antigüidade da nação. A
ênfase nesse retorno ao passado pode ser dada à língua, ao pertencim ento a
uma determinada linhagem étnica, a feitos gloriosos de algum herói ou da co­
m unidade como um todo, ou, ainda, à com binação de m ais de um desses
aspectos. Eles representam o ideal de unidade, noção básica para a formulação
do conceito de nação e seu agenciamento político-ideológico. A nação denota
um novo padrão definidor de comunidade. Sendo tipicamente de grande escala,
uma comunidade de massa, os laços de pertencimento que unem seus m em ­
bros são estabelecidos através de um alto grau de abstração. Diferenciam-se
das antigas comunidades, cujos laços são dados por padrões interativos do tipo
face a face. Daí ser fundamental, no processo de construção identitária de
tipo nacional, o recurso a sím bolos que estabelecem sentim entos comuns e
imagens de si compartilhadas pelos membros da nação. Elias chama a atenção
para a relevância da linguagem simbólica:

"... os vínculos em ocionais de indivíduos com a coletividade por eles fo rm a d a


cristalizam -se e organizam -se em to rn o de sím bolos com uns, que não reque-

12 Diluem-se os diferenças originais, o que não equivale a dizer que os nacionalism os se tornem todos iguais. Ao
contrário, novas com binações e a incorporação de elementos subjetivos e objetivos inéditos não cessam de aparecer.
13 Anderson sublinha tal diferenciação, enfatizando que, ao contrário das com unidades nacionais, as antigas com uni­
dades baseadas nas relações face a face dispensavam , na dinâm ica de form ação de laços de pertencim ento,
qualquer grau de abstração. Paul James defende que, mesmo no segundo caso, e em qualquer outro que seja, o
processo de produção de pertencim ento im plica grous, ainda que variados, de abstração.

118
rem quaisquer explicações fatuais, que podem e devem ser considerados com o
valores absolutos, inquestionáveis, e form am pontos focais de um sistema de
crenças comuns. Discuti-los - pô r em dúvida a crença com um na pró pria cole­
tivid a d e soberana de cada um com o alto, senão o mais alto v a lo r possível -
significa o p ta r po r um a conduta desviante (A bw eichung), com eter uma v io la ­
ção (Treuebruch); pode levar um in d ivíd u o a to rn a r-se um m a rg in a l vo lta d o
ao ostracism o, senão coisa p io r ." 15

E lias e x p licita o caráter em ocional dos v ín cu lo s estab e lecid o s pelo


pertencimento a uma comunidade nacional e reitera a eficácia subjetiva de tal
vinculação, sublinhando, simultaneamente, a importância dos recursos simbóli­
cos para a criação de uma identidade coletiva de grandes dimensões. E impor­
tante observar que o nacionalismo implica a ampliação dos mecanismos simbó­
licos de inclusão. A crença generalizada a que se referem os nacionalismos, e
sua equivalente violação, diz respeito à dinâmica de construção de um espaço
identitário de proporções inéditas. Um a vez postos em um campo comum,
identidades são publicizadas para a disputa e definição dos requisitos básicos
para a conformação de um espaço público.
Sendo um princípio formador de identidade, o discurso nacionalista se
funda igualmente na definição do outro, daquele que não pertence à com unida­
de nacional. Desse modo, é simultaneamente includente e excludente. A defini­
ção do outro pode se traduzir numa postura reativa que redunde em xenofobia,
racismo ou chauvinismo, o que em muito contribuiu para um certo mal-estar da
parte de espíritos humanistas e cosmopolitas frente às potencialidades disruptivas
dos nacionalismos. Tende a vincular a idéia de comunidade nacional a imagens
de poder, força e autonomia, e também à associação da afirmação da nação à
formação de um Estado Nacional. A construção de um Estado forte tem sido,
ao longo das décadas, uma das principais bandeiras dos nacionalismos, seja nas
chamadas nações sem Estado - grupos nacionais que se encontram sob a juris­
dição de um Estado controlado por um outro grupo nacional, mais numeroso e/
ou poderoso, dentro dos mesmos limites geográficos seja em nações que
coincidem com o Estado Nacional, mas situam-se, no plano internacional, em

14 Elias, 1 9 9 7 ; 139.
15 Do prim eiro caso, abundam exemplos históricos que chegam até os nossos dias, com os movimentos de criação de
Estados independentes na antiga União Soviética, na Irlanda, na Espanha (que tem entre os bascos o m ovim ento mais
ruidoso, mas não o único)., no Canadá (o m ovimento pela autonom ia de Quebec), entre outros. Do segundo caso, o
mais eloqüente e ruinoso é o da Alemanha, no final do século XIX e primeira metade do século atual, que teve as
conseqüências conhecidas. Uma discussão mais detida sobre os vários tipos de nacionalismos, segundo suas relações
com o projeto de construção de um Estado N acional, pode ser encontrada em Gellner, G uibernau e Anderson.

119
situação de desvantagem econômica e política.'6 A idéia de uma nação podero­
sa articu la-se, tam bém , com a prosperidade econôm ica e cultural com o
contrapartida de seu poder político.
São cruciais, então, para a formulação dos discursos nacionalistas, as noções
de unidade (lingüística, étnica, religiosa), de antigüidade (o que faz com que o
discurso da nação seja simultaneamente o relato de uma história), e de poder
(político, pela construção de um Estado Nacional, econômico e cultural). Curio­
samente, os intérpretes dão pouca ênfase a um quarto elemento que é tão funda­
mental quanto os demais: o caráter teleológico dos nacionalismos. Tão importan­
te quanto a filiação a um passado comum, é o pertencimento a um destino co­
mum. Existe sempre colado a eles um telos. Os nacionalismos são a proposição
de um projeto, de uma destinação conferida por Deus ou pela história. As nações
são como o anjo da história descrito por Benjamín, com a diferença que, voltado
para trás, ele não contempla ruínas, e, mesmo não vendo o futuro, assegura saber
o que o espera: a consagração de sua superioridade e da suntuosidade de seu
próprio passado. As nações celebradas nos discursos nacionalistas estão seguras
disso pela fé. Os nacionalismos são a elaboração mais bem acabada da religião
secular, formulada primeiramente por Rousseau e repetidas vezes retomada como
o advento de um novo princípio de virtude pública.
Espantosa a eficácia do princípio nacional. Todo indivíduo se define en­
quanto tal como pertencente a uma certa nacionalidade, do mesmo modo como
se define pelo gênero, pela etnia e pela religião que professa (ou sua recusa a
qualquer uma delas). Ainda uma vez, cabe o socorro preciso de Elias:

"U m m em bro de uma diferenciada nação-Estado industrial do século XX, que


faz afirm ações em que usa uma form a adjetivada do nom e de seu país como
um atrib uto pessoal seu - 'Eu sou francês', 'Eu sou am ericano', 'Eu sou russo' -
, expressa, na m aior parte dos casos, m uito mais do que 'Eu nasci em tal país'
ou 'Eu ten ho passaporte de tal país'. Para a m aioria das indivíduos criados
num a sociedade-Estado desse tipo , tal afirm ação com porta uma referência à
sua nação e, ao m esm o tem po, a características e valores pessoais. E uma
declaração sobre si próprio, percebido como um 'e u ' em face de outros a quem
se refere em comunicações faladas e escritas como um 'tu ', 'e le ' ou 'e la ', e
sobre si pró prio com o com ponente de uma das coletividades a que se refere
em pensam ento e sentim ento com o 'nós' em face de outros que são para ele
'vocês' ou 'e le s '."16

16 Elias, 1 9 9 7 :1 4 4 .

120
O eu moderno é simultaneamente um nós, que remete a uma coletividade
de indivíduos que sequer se viram uma única vez e jam ais se verão. Participar
do nós representa, muitas vezes, um valor mais relevante do que aqueles refe­
rentes exclusivam ente à individualidade, de modo que em seu nom e são
freqüentem ente requisitados, e atendidos, sacrifícios extremados, que im pli­
cam, virtualm ente, a própria extinção física do indivíduo. A relação entre o
indivíduo e a nação alcança um tal grau de consistência subjetiva, que faz com
que ela seja experimentada como um dado natural, essencialmente constitutivo
de qualquer ser humano. A naturalização do sentimento de pertencer a uma
nação e a eficácia da idéia de antigüidade surpreendem, quando confrontadas
com o fato de sua vigência ser relativamente recente. Difícilmente um homem,
ou uma mulher, até a primeira metade do século XVIII, se identificaria como
p ertencente a um a nação nos term os propostos a partir do fim do m esm o
século e de suas variações posteriores. Sua emergência está geralmente vincu­
lada às mudanças ocorridas na sociedade européia, aos impactos da industriali­
zação e à ascensão política e cultural das classes médias. Mas, é importante que
se diga ainda uma vez, esse nós não é estático. Ele é resultante de uma dinâm i­
ca só concebível em um contexto ampliado de reunião de subjetividades que
compõem um espaço necessariamente aberto a redefinições e incorporações.
Não há essencialidade nesse “nós”. Ele é uma construção coletiva em perm a­
nente estado de redefinição.
A despeito da atual convergência para o diagnóstico sobre o caráter histórico
dos nacionalismos e das nações, existe uma divergência sobre as bases desse
processo. Tal divergência é formulada por Paul James, nos termos de princípios
17
primordialistas e culturalistas. De acordo com os primeiros as nações estariam
radicadas em bases concretas, que remontariam a laços efetivamente existentes
no passado. Seriam uma redefinição e ampliação de antigas formas de pertencimento
comum. Boa parte dos autores de filiação marxista estaria nesse primeiro caso e,
entre eles, James destaca um autor em especial: Tom Nairn, e sua obra, The
break up o f Great Britain. A segunda perspectiva adotaria uma posição mais
radical sobre a novidade do fenômeno dos nacionalismos e das nações, assumin­
do, de fonnas e com ênfases variadas, a idéia de que as nações são invenções dos
nacionalismos. A passagem recorrentemente citada de Gellner pode ser entendida
como uma espécie de síntese dessa segunda perspectiva:

17 Ver James, 1 996 , esp. o cap. 5.

121
"É o nacionalism o que dá origem às nações, e não o con trá rio. Reconhecida­
m ente, o nacionalism o utiliza a pro lifera ção de culturas ou a riqueza cultural
preexistente, herdadas historicam ente, em bora o faça seletivam ente e m uito
freq ü e n te m e n te as transfo rm e de fo rm a radical. (...) No en tanto, este aspec­
to, cultu ralm e nte criativo, im aginativo, positivam ente inventivo, do a rd o r n a ­
cionalista não deveria p e rm itir que ningu ém concluísse erra d a m e n te que o
na cion alism o é um a invenção id eológ ica, con ting ente e a rtific ia l, que não
teria acontecido se aqueles pensadores in tro m etido s e ag itados, sem mais
nada que fazer, não o tivessem concebido e fatídicam en te in jetad o no sangue
das com unidades de q u a lq u e r m odo p o litica m ente viáveis. Os rem endos e
retalhos cultu rais utilizados pelo nacion alism o são m uitas vezes invenções
históricas a rb itrá ria s. Q u a lq u e r o u tro rem endo ou re ta lh o a n tig o te ria ta m ­
bém servido. No e n tanto, aqui não pode deduzir-se, de m odo algum , que o
p rin cíp io do nacionalism o é, em si, contingente e acidental, ao co n trá rio dos
avatares a que recorre para e n c a rn a r."'8

Para Gellner, o fato de ser inventado pelos movimentos nacionalistas não


faz com que o nacionalismo possa ser negado como princípio identitário funda­
mental no mundo moderno. Sendo assim, não se justifica a crítica feita por
Anderson, segundo a qual Gellner teria definido as nações como mistificações
ideológicas. Por outro lado, Gellner está longe dos chamados primordialistas,
por atestar que, ao fim e ao cabo, os elementos que constituem os nacionalis­
mos são reelaborados, torcidos e mesmo transfigurados ou, em uma palavra,
inventados por seus vocalizadores.
O que há de mais provocador e estim ulante na perspectiva que tem em
G ellner um dos representantes de maior peso é exatam ente a percepção do
caráter inventado, embora não de modo aleatório, das nações. A observação de
que as nações, ao contrário do que os discursos nacionalistas professam, não se
radicam em um tronco comum, dado biológica ou lingüísticamente, mas são
artefato s, criações hum anas, operadas graças a circunstâncias h istó ricas
observáveis e claramente definíveis. Os nacionalismos são, em determinados
aspectos, respostas elaboradas pelo engenho humano a desafios impostos pela
própria dinâmica histórica (ver Calhoun, 1995:241). Têm mais a ver, portanto,
com a dinâmica social e as respostas socialmente construídas para determina­
das interpelações históricas do que propriamente com raízes substantivas de
caráter étnico ou lingüístico. Curiosamente, temos na formulação de um inte­
lectual nacionalista do século XIX, o francês Em est Renán, a prim eira intuição

18 Gellner, 1993:89.

122
nesse sentido. Ela se encontra na clássica passagem da conferência “Q u’est-ce
qu’une nation”, onde Renan assevera que uma nação é feita de lembranças mas
19
também de esquecimentos. A afirmação desse nacionalista conservador, ocu­
pado com a consolidação da nação francesa com o entidade p o derosa e
civilizadora, denuncia o caráter seletivo que deve presidir a elaboração da auto-
imagem de uma nação.
Embora os intérpretes filiados à tradição marxista tendam, na m aior parte
das vezes, a reconhecer heranças comuns como dados que justificam a delim i­
tação das com unidades nacionais, encam pando, portanto, um a perspectiva
essencialista da leitura do nacionalismo, é de um deles, Benedict Anderson,
uma das formulações que mais avançam na linha contrária. Sua tese fundamen­
tal é explicitada na definição de nação como uma comunidade culturalmente
imaginada. Daí decorre que a ênfase na dimensão cultural do pertencimento se
sobrepõe à sua dimensão política. Não que a política não seja a esfera na qual a
comunidade se identifique como tal. Ao contrário, o processo cultural cria e
inventa a comunidade nacional, não só como unidade política mas, principal­
mente, unidade política limitada e soberana. Na verdade, o caráter imaginado
da comunidade nacional difere de outras formas de pertencim ento mais pela
forma com que se dá, e pelos critérios definidores da identidade engendrada, do
que propriamente por ser resultado da invenção e do artifício humanos. Anderson
remete o tipo de comunidade engendrada pelo sentimento nacional a dois siste­
mas culturais amplos que o precederam no tempo: a comunidade religiosa e o
reino dinástico. Mediante a crença no poder de revelação da linguagem sagra­
da, no caso das relig iõ es, e na apreensão do m undo com o um sistem a
hierarquizado e ordenado verticalmente, no caso da lógica dinástica, foi possí­
vel a organização por longo tempo de comunidades amplas, que abarcavam,
pelo sentimento comum, diversos grupos de indivíduos que não se conheciam e
sequer podiam comunicar-se. A crise desses dois sistemas culturais e a m udan­
ça operada na concepção de tem poralidade, com o surgim ento da idéia de
simultaneidade temporal, o “enquanto isso”, que aparece nas narrativas literári­
as, prepara, segundo Anderson, o terreno para o surgim ento do sentim ento
nacional, processo sintetizado pelo autor da forma que se segue:

19 A passagem em que Renan m enciona o esquecimento é a seguinte: "A essência de uma nação reside no fato de que
todos os indivíduos têm coisas em com um e, tam bém , que todos esqueceram muitas coisas. Nenhum cidad ão
francês sabe se é um borgonhês, um alan o ou visigodo, assim com o to d o cidad ão francês já esqueceu o massacre
da noite de São Bartolom eu ou os massacres ocorridos no M id i do século XIII. Não há dez fam ílias na França que
possam provar sua origem francesa, e qua lquer suposta prova seria essencialm ente falha devido às incontáveis
alianças desconhecidas que tornam q ua lquer sistema, gen ea ló g ico sujeito a ser ro m p id o ." Bhabha,1 9 94 :1 1
(tradução do autor).

123
"...a possibilidade m esm a de se im a g in a r a nação só surgiu h isto ricam e nte
quan do , e onde, três conceitos culturais básicos, todos extrem a m en te a n ti­
gos, deixaram de te r d o m ín io axiom ático sobre o pensam ento h u m an o dos
hom ens. O p rim eiro deles era a idéia de que uma de term ina da língua escrita
oferecia acesso p rivileg iad o à verdade on toló gica , precisam ente p o r ser p a r­
cela inseparável daquela verdade. Foi essa idéia que p e rm itiu que surgissem
as grandes congregações transn con tinen tais da cristandade, do islam ism o e
as dem ais. O segundo era a crença de que a sociedade era org a n iza d a de
m a n eira na tu ra l em to rn o de e sob centros elevados - m onarcas que eram
pessoas distintas dos outros seres hum anos e que govern avam p o r algum a
fo rm a de disposição cosm ológica (divina). As lealdades hum anas eram ne ­
cessariam ente hierárquicas e centrípetas, porque o go vern ante , com o a es­
crita sagrada, era um po nto central de acesso à existência e a ela inerente.
Em te rce iro lugar, a concepção de te m p o ra lid a d e , em que a cosm ologia e a
história não se distin g u ia m , sendo essencialm ente idênticas as origens do
m un do e dos hom ens. Essas idéias, associadas, enraizavam firm e m e n te as
vidas hum anas na p ró pria natureza das coisas, con ferin do d e term ina do sen­
tid o às fa ta lid a d e s diária s da existência (sobretudo à m orte, à privação e à
escravidão) e p ro piciand o vários m odos de lib e rta r-se d e la s."20

A decadência das certezas acima descritas combinada com outros três fato­
res, o desenvolvimento do capitalismo, as inovações tecnológicas dos processos
de impressão e a diversidade lingüística das várias regiões européias, suscitam o
surgimento da nova comunidade imaginada. A decadência do latim é seguida de
uma valorização das diferentes línguas vulgares, que, em alguns casos, ascendem
à condição de línguas administrativas oficiais. O surgimento da imprensa permite
o estabelecimento de uma rede de intercâmbio amplo que, pouco a pouco, mos-
tra-se capaz de encurtar as distâncias, que restringiam o alcance das redes de
comunicação. E o mercado editorial, ao investir na edição de livros em línguas
não vulgares mas acessíveis aos falantes de línguas próximas, constrói uma nova
língua erudita, abaixo do latim mas acima dos dialetos regionais, criando as condi­
ções suficientes para a invenção da comunidade nacional.
Anderson não condiciona o surgimento do nacionalism o e das nações à
combinação dos processos por ele mencionados. A “influência recíproca entre
fa ta lid a d e (a diversidade lingüística), tecnologia e capitalism o” concorreu
para o surgim ento dos nacionalism os e das nações, do mesmo m odo que a
ausência de um deles, ou mesmo dos três, não inviabilizaria necessariamente o

20 Anderson, 19 8 9 :4 5 .

124
seu surgimento. A rigor, sua análise é extremamente elucidativa para o caso
europeu, o nascedouro das nações e dos nacionalismos, mas não vale para o
resto do mundo, onde a idéia de nação migrou com igual poder de “contamina­
ção”. Seu insight funciona como um ponto de partida excepcionalmente profí­
cuo, mas ganha maior rendimento se combinado com aspectos pouco enfatizados,
quando não omitidos, em sua análise. No caso, cabe o socorro de elementos
explorados em outras análises, anteriores à sua e nem sempre coincidentes com
ela. Sublinho aqui quatro elementos importantes especialmente para a análise
do que pretendo estabelecer como projeto civilizador, ou Bildung, brizolista: a
difusão da cultura erudita através da universalização do ensino, a vontade, a
sofisticação e burocratização do estado e o crescimento das camadas médias.
Dois deles são elementos fundamentais dos nacionalismos, na versão de Gellner.
São a cultura erudita, entendida como acervo de conhecimento comum a ser
difundido na comunidade nacional através da institucionalização e universalização
do ensino público, e a vontade, entendida como ação deliberada de um grupo
de elite a sistematizar e divulgar, através dos meios disponíveis, valores e idéi­
as, veiculados como original e genuinamente populares e diferenciadores de
uma comunidade nacional. Estão pressupostos, nesses dois princípios, a impor­
tância do Estado, seja como agente difusor do sentimento nacional, seja como
meta a ser alcançada pelo empreendimento de difusão dos sentimentos nacio­
nais (no caso de nacionalismos de nações sem Estado). A centralidade do Esta­
do, não necessariam ente como instituição divulgadora de um sentim ento de
nação, mas como referente de criação de valores, não contradiz a ênfase na
dimensão cultural dos nacionalismos e das nações, a meu ver correta, postulada
por Anderson. Ao contrário, reforça a dimensão cultural da política, mesmo em
sua dimensão estritamente institucional e legal.
Do mesmo modo, os princípios formulados por Gellner põem à luz um outro
aspecto fundamental dos nacionalismos e do processo de invenção das nações: o
papel central de uma elite de novo tipo, que emerge a partir do século XIX, com
21
valores e idéias muito próprias - as classes médias. A ascensão das classes
médias pode ser encarada como o contraponto da decadência da cultura dinásti­
ca, mencionada por Anderson como um dos fatores que prepara o solo para o
surgimento de uma cultura nacional. Ela aparece veiculando um novo padrão de
solidariedade, de tipo horizontal, que permite o estabelecimento de laços, inde-

21 Este é, tam bém , um aspecto fundam ental para Elias.

125
pendentemente do estrato e da posição social dos atores. Em texto de 1961-1962,
Norbert Elias já chamava a atenção para a profundidade da mudança:

"Pode ser visto com m uita clareza de que m odo os sentim entos de identid ad e
m ud ara m em Estados europeus quando, gra du al ou ab ru p ta m e n te , as elites
dirige ntes oriundas das classes m édias sub stitu íram as tra d icio n a is classes
altas aristocráticas. Em suma, sua identificação com seus próprios co m p a trio ­
tas to rn o u -se mais fo rte e com os hom ens da m esm a classe e cate goria, em
outros países, mais fraca. Essa mudança no padrão de 'sentim e nto-d e-nó s-e-
eles', de identificação e exclusão, fo i uma das principais condições do desen­
vo lvim e n to de sentim entos, valores e crenças na cion alista s."22

Elias enfatiza, principalm ente, a m udança de valores e das form as de


pertencimento estabelecidos a partir de uma mudança na estrutura social, que
tem como uma de suas características a redefinição dos arranjos societais e da
ascensão de um a nova elite, a qual, por sua vez, tem na cultura e na posse de
um certo patrimônio simbólico seus principais trunfos. Estamos a apenas um
passo da observação tipicamente irônica e iconoclasta de Gellner sobre os en­
ganos e auto-enganos dos nacionalismos:

"O engano e au to-en ga no fundam entais praticados pelo nacionalism o são os


seguintes: o nacionalism o constitui essencialmente a im posição geral de uma
cultu ra e ru dita a um a sociedade onde, a n te rio rm e n te , as culturas populares
tin h a m ocupado as vidas da m a ioria e nalguns casos da to ta lid a d e da p o p u ­
lação. Isto im p lica a difusão g e ne raliza da de um id io m a m ed iatiza do pela
escola e supervisionado academ icam ente, codificado segundo as exigências
de uma com unicação burocrática e tecnológica relativam ente precisa. E o es­
ta b e le cim e n to de um a sociedade im pessoal e a n ô n im a , com in divíd uo s
atom izados, reciprocam ente substituíveis, unidos acim a de tud o por um a cu l­
tu ra com um deste tip o , que vem to m a r o lu g a r de um a a n te rio r estrutura
com plexa de grupos locais, m an tida por culturas populares reproduzidas lo ­
cal e idiossincraticam ente. E isto que acontece re a lm e n te ".23

É importante que o tom excessivamente exclamativo da passagem citada não


nos leve a superdimensionar o caráter artificial do nacionalismo, de m odo a
confundi-lo com meras mistificações de uma classe. E de maior proveito atentar
para o fato de que, para consolidar-se enquanto um sistema integrado de valores,
crenças e convicções, capazes de despertar vínculos emocionais em grande esca-

22 Elias, 1 9 9 7 :1 3 7 .
23 Gellner, 199 3 :9 0 -9 1 .

126
la, os nacionalismos implicam necessariamente uma sistematização, que tende a
ser operada por uma elite intelectual, configurando-se como urna cultura mais
24
erudita do que propriamente popular. O que Gellner não se preocupa em inquirir
é sobre a natureza dessa elite. Se entendida como a formuladora privilegiada de
uma imagem hegemônica de uma dada comunidade ou, simplesmente, como um
conjunto de atores que disputam um espaço que se define na própria dinâmica do
conflito. Como Anderson observa, o fato de uma nação ser inventada de uma
certa maneira e não de outra está relacionado com a aceitação da imagem a ela
vinculada e com a correspondência entre a imagem construída e aquela social­
mente compartilhada. Quando uma comunidade idolatra seus mitos e ídolos é ela
própria o objeto último de sua adoração.
Mencionei anteriormente as duas perspectivas com que Paul James ordena
as análises mais recentes sobre o fenômeno do nacionalismo. O leitor atento já
pôde perceber que me detive apenas em uma delas. Aquela que assume a nação
como resultado da invenção humana. Tal perspectiva é criticada por James
como sendo ela própria resultado do que ele chama de “surto culturalista”, que
enfatiza os elementos voluntaristas e criativos da ordem social, entendendo-a,
nesse sentido, como fruto de um contexto epistemológico específico. Com isso,
James não pretende, e sequer poderia, minimizar o impacto de tal perspectiva e
os caminhos de análise alternativos por ela abertos. Apenas procura chamar a
atenção para seus limites e conexões com a alternativa com que aparentemente
procura romper. Assumo explicitamente uma escolha. Estou convencido de que
uma análise essencialista do nacionalismo dificilmente dá conta de sua com ple­
xidade e contem poraneidade. Além disso, a assunção de um a abordagem
essencialista dificilmente iria longe na análise dos nacionalismos brasileiros e
daquilo que há em comum entre várias de suas configurações, incluindo aí o
que chamo de nacionalismo brizolista. Desde que aparece como objeto de pre­
ocupação política ou análise intelectual no Brasil, o tem a do nacionalism o é
remetido, inclusive por autores não necessariamente nacionalistas, à necessida­
de de invenção de uma nação onde ela não existe enquanto realidade sociológi­
ca indisputável. Os nacionalismos europeus advogaram, com ênfases variadas,
a antigüidade da língua, a pureza secular da raça ou a superioridade ancestral da

24 Se entendido com o um desafio a ser equacionado por um discurso que pretenda ser sim ultaneam ente analítico e
com prom etido com algum a espécie de causa popular, esta característica do nacionalism o pode acabar levando a
uma avaliação negativa do fenôm eno, com o é o caso de algumas leituras de corte marxista, que tendem a anatem atizar
o nacionalism o com o mero recurso de fetichizaçõo da realidade social. Respostas a este desafio, com o a proposta por
G ram sci, podem , a despeito de sua m aior sensibilidade para os processos sociais, a cab ar por resultar em soluções
pouco convincentes.

127
cultura do povo, como os grandes motes das análises políticas, culturais, sociais
e econômicas. No Brasil, quando a questão nacional ocupou lugar central, foi a
necessidade de inventar-se uma nação, criar o que não havia para que ela se
instituísse, o mote predominante.
No Brasil, os termos nação e nacionalismo foram sujeitos a diversas apro­
priações e significações. O Brasil do romantismo, dos liberais do Império, dos
republicanos da Prim eira República, dos críticos da Prim eira República, dos
ufanistas, dos chamados ideólogos do Estado Novo, dos comunistas, integralistas,
dos nacional-desenvolvim entistas da década de 50 e do nacional-popular do
inicio da década de 60 nunca é o mesmo. São imagens diferentes do Brasil,
construidas laboriosamente por intelectuais, artistas e políticos. Para cada naci­
onalismo, um Brasil diferente. Há, contudo, traços comuns entre eles, ou al­
guns deles, que perduram ao longo da história política e intelectual do país. O
nacionalismo brizolista se alimenta dessa tradição. É preciso recolher alguns
dos componentes simbólicos que historicamente delinearam os nacionalismos
no Brasil e foram atualizados pelo brizolismo, para que se evidenciem as suas
raízes históricas. A associação do brizolism o com o nacionalism o desenvol-
vimentista e sua versão popular, que vigoraram no Brasil nos anos 50 e 60, é
verdadeira, mas não é tudo. Estou convencido de que reduzi-lo a essas configu­
rações do nacionalism o brasileiro equivale a uma sim plificação do discurso
brizolista e de suas raízes simbólicas. Entendendo a nação como categoria da
prática política e o nacionalismo como forma de enquadramento da realidade
social e orientação da ação política, creio que, no caso do brizolismo, ambos
são tributários de uma tradição que remete às origens do republicanismo brasi­
leiro. Daí o esforço de redefinição do nacionalismo brizolista, levando em con­
sideração seus aspectos mais fundamentais e seus tributos à tradição republica­
na brasileira.

Dilemas das invenções da nação brasileira

Alguns dos principais elementos que compuseram, de modo variado e com


ênfases diversas, os reclames adotados pelos movimentos e ideários nacionalis­
tas foram, a raça, a língua, a história, o Estado, a literatura, grandes feitos de
heróis ou da comunidade e o projeto de um futuro radioso. Referir-se a cada
um deles no passado não passa de recurso estilístico, com o intuito de fixá-los
como eventos históricos, posto que até hoje os nacionalismos proliferam em
vários cantos do mundo, utilizando-se basicamente do mesmo arsenal simbóli­
co. No Brasil, ou mais precisamente entre sua elite, sempre atenta ao que se

128
passava no velho continente, estes mesmos reclames foram postos como desa­
fios a serem enfrentados na tarefa de, também por aqui, realizar-se o projeto
nacional, tal como se deu na Europa. Dos componentes simbólicos acima m en­
cionados, destaco, no nacionalism o brizolista, a abordagem do problem a
da história do Brasil, do povo, da formação do Estado nacional, da construção
de im agens de heróis fundadores e do futuro radioso. D entre os discursos
nacionalistas encam pados no Brasil, o brizolism o é um dos poucos que se
concentra no esforço de forjar uma história. Esse foi um dos componentes de
base dos nacionalismos europeus, e só será incorporado no Brasil na década de
50, através da construção da história econômica e social brasileira, formulada
27
no interior do Iseb. A história da nação brasileira, então formulada, era dividi­
da em três fases (teoria das três fases) - colonial, semicolonial e, por fim, a fase
autônom a - e sustentava-se nos conceitos de autonom ia e heteronom ia. O
conceito de autonom ia, inspirado na dialética senhor-escravo, de origem
hegeliana, significava, na linguagem isebiana, o telos para o qual o processo
histórico brasileiro se encam inhava. O período colonial é aquele em que o
Brasil esteve atrelado a Portugal. O período semicolonial se caracterizaria por
uma economia de baixo nível de industrialização, fazendo com que o Brasil
ocupasse, na divisão internacional do trabalho, a posição de exportador de
m atérias-prim as e im portador de bens de capital e industriais. Socialmente,
seria caracterizado por forte concentração populacional no campo. No plano
político, caracterizaria a concentração do aparelho estatal nas mãos dos gran­
des proprietários agroexportadores, sustentados por uma máquina burocrática
estatal parasitária e ineficiente, alinhada a representantes de uma classe média
desprovidos de talentos. Do ponto de vista cultural, as elites intelectuais absor­

25 A tais componentes, explorados pelos autores m encionados na seção anterior, deve-se acrescentar outros, fundam en­
tais nos nacionalism os do cham ado Terceiro M undo, em geral, e nos nacionalism os brasileiros, em particular.
Referem-se às dimensões econôm ica, social e política dos nacionalism os terceiro-m undistas. Embora reconheça a
centralidade desses aspectos do nacionalism o tanto para o Brasil quanto para o nacionalism o brizolista, eles serão
tratados apenas m arginalm ente, mantendo-se a ênfase nos aspectos culturais dos nacionalism os brasileiros e do
nacio nalism o brizolista.
26 E verdade que boa parte dos clássicos da literatura sociológica e historiográfica brasileira dedicou-se a reconstituir
a história do Brasil com o intuito de tem atizar sua form ação nacional. São os casos de autores com o Caio Prado Jr.,
Sérgio Buarque de Holanda, G ilberto Freyre, entre outros. Refiro-me, nessa passagem, às construções que, além de
conferir inteligib ilidade aos processos de form ação da nação brasileira, estiveram preocupados em estabelecer
marcos fundadores para a definição de uma história afirm ativa da singularidade e potencialidade do Brasil como
uma nação poderosa. O u seja, há uma diferença entre as reconstruções que tematizam a nação e aquelas que
assumem o nacionalism o como um princípio fundam ental e norm ativo de suas descrições.
27 Excluo, aqui, os esforços feitos, no início do século, por parte de uma literatura ufanista de pouquíssim o fôlego, que
não resistiu ao tempo.
28 O conceito de sem icolonialism o é utilizado por Roland Corbisier, mas seu significado era am plam ente aceito por
seus com panheiros do Iseb. Equivale à noção de subdesenvolvimento, em Jaguaribe, e sociedade alienada, em
Alvaro Vieira Pinto. Ver Corbisier, 19 5 8 ; Pinto, 19 5 9 ; Jaguaribe, 1958 . Sobre o Iseb, ver Pécaut, 1 9 9 0 ; Toledo, 1 978 .

129
veriam acriticamente as tendências externas, sempre preocupadas em estar em
dia com as últimas novidades da Europa ou dos Estados Unidos. Um conceito
sintetiza o estágio semicolonial: heteronomia. Uma sociedade é heterônom a
quando não é ela própria o centro decisório para a definição dos rumos de seu
próprio caminho, quando os fatores que a constituem e a transform am são
exógenos a ela. Rom per com o sem icolonialism o equivale a pôr um fim à
heteronomia, livrar-se da dependência externa, conquistar a consciência de si e
forjar recursos para superá-la. Para os isebianos, a mudança em um dos aspec­
tos acima relacionados corresponderia a um a transform ação de todos os de­
mais, numa percepção totalizante da dinâmica social; na segunda m etade da
década de 50, o Brasil se encontrava em um estágio não autônom o, mas já
iniciara seu processo de emancipação. O marco de tal guinada: a Revolução de
30 e a ascensão de Vargas ao poder.
É gritante o parentesco da história do Brasil de uma perspectiva brizolista,
apresentada no capítulo anterior, com a formulação de Corbisier, na década de
50, no interior do Iseb. A mesma lógica prevalece: o padrão das relações do
Brasil com as potências externas e seu grau de autonomia em relação a elas. O
mesmo marco fundador: a Revolução de 30. Mais do que em qualquer outro de
seus aspectos, é na construção da história do Brasil e na formulação de suas
contradições de base que o nacionalismo brizolista se revela mais fortemente
tributário da vaga nacionalista dos anos 50 e 60. Quando, no início dos anos 60, o
nacional-desenvolvimentismo incorpora as questões do nacional-popular, temos
a nítida impressão de que estão ali todos os componentes do discurso brizolista.
Somos tentados a reduzi-los, mecanicamente, um ao outro e negligenciar uma
série de outras filiações mais longínquas e igualmente fundamentais.
É com preensível que os nacionalism os tenham evitado incluir, em suas
formulações, uma história do Brasil. Na qualidade de ex-colônia, com uma
existência muito recente, o recurso ao passado não pareceu factível e sequer foi
objeto de atenção dos primeiros formuladores que tiveram a questão nacional
em sua agenda, ainda no Império. A própria geração de 70 do século passado
estava fundamentalmente voltada para o futuro. As prim eiras e, a princípio,
tímidas proposições voltadas para a abordagem do problema nacional lançam
as bases para os três aspectos que mais serão explorados ao longo de pratica­
mente todas as décadas vindouras: a questão do Estado, da organização/inven­
ção da sociedade e o problema da raça.
Há, no final do Império, razoável consenso sobre o im perativo de uma
reforma do Estado no Brasil. Esta é uma avaliação compartilhada por liberais,

130
federalistas, republicanos e mesmo por monarquistas. Ela surge com mais força
a partir da década de 70 e cresce ao longo dos últimos anos que antecedem a
Proclamação da República. Para além do reconhecimento de que o rearranjo
do aparato institucional propriamente dito era fundamental, com mudanças nas
atribuições dos diversos poderes, alterações e moralização da legislação eleito­
ral e aprimoramento do sistema representativo, há um problema de fundo, que
remete o perfil do Estado ao grau de maturidade e desenvolvimento da socieda­
de. Esse é talvez o aspecto mais dramático, do ponto de vista da afirmação de
uma nação brasileira. É recorrente, entre a elite política, a avaliação extrema­
mente negativa do estágio de desenvolvimento social no Brasil: um corpo doen­
te, dotado de parco espírito associativo e pouca iniciativa pública. Tal avaliação
justificava a presença de um Estado forte, advogada pelos conservadores, que
julgavam crucial a ação ostensiva do Estado até que a sociedade alcançasse a
maioridade necessária para governar-se a si própria, com a diminuição da inge­
rência estatal. Liberais e federalistas compartilhavam o diagnóstico negativo da
sociedade feito pelos conservadores, mas, ao contrário destes, viam na excessi­
va ingerência estatal a principal razão para a gravidade do quadro social brasi­
leiro e seu baixo associativismo. A apatia, a ausência de espírito associativo, o
pouco apreço ao trabalho e à coisa pública também serão traços recorrentes
nos diagnósticos das elites brasileiras que se empenharam e levaram a sério o
projeto de formação de uma nação, ao longo das últimas décadas do século
XIX, e das gerações vindouras. Os programas nacionalistas, no Brasil, se impu­
seram a tarefa de inventar uma nação, onde não existia ainda uma sociedade.
No contexto da década de 80 do século XIX, dois eram os inim igos a ser
combatidos: a monarquia e a escravidão. A primeira fazia do Brasil uma espécie
de aberração, em um continente eminentemente republicano, prisioneiro de um
passado heterônomo e colonial. O segundo manchava nossa economia e nossa
sociedade com a mácula da desigualdade e da desqualificação do trabalho,
obstruindo a integração e incorporação dos indivíduos - decisivas para o pro­
cesso de construção nacional - , e a modernização econômica.
É compreensível, então, que a Abolição da Escravatura e, um ano após, a
Proclam ação da República, se dessem envoltas em grande expectativa sobre
seu impacto. As mudanças, porém, não ocorreram nas proporções esperadas.
A Abolição não veio acompanhada das iniciativas de integração social e econô-

29 É elucidativo desse sentimento o livro célebre de Joaquim Nabuco sobre o abolicionism o. Ali, as razões pragm áticas
para a A b olição ocupam luga r de destaque em detrim ento das questões éticas ou humanistas acerca da escravidão.
Ver, Nabuco, 1 978.

131
mica do negro, reclamadas pelos abolicionistas mais atentos para as dimensões
do problema que a escravidão representava. Quanto à República, se foi pródi­
ga, em seus primeiros momentos, na tarefa de erguer os prim eiros símbolos
nacionais dotados de perenidade, cedo revelou-se insuficiente para operar as
mudanças com que sonhavam seus principais entusiastas. Os primeiros anos da
República podem ser tomados como a primeira lição efetiva recebida por parte
das elites brasileiras: não se transforma um contexto social e cultural com uma
“penada” que altere a institucionalidade política. Lição regularmente repetida
entre nós. Desse modo, o debate em tomo da questão nacional adentra o século
XX situado em um novo regim e político, mas em penhado em enfrentar os
mesmos desafios anteriores, com impasses adicionais a equacionar. A nação já
tem seu herói, Tiradentes. Carece, no entanto, de uma tradição literária (ainda
na década de 1890, Machado de Assis vaticina: não temos, de fato, uma litera­
tura nacional), de um passado glorioso, de uma língua que a singularize, de uma
economia próspera, de um Estado estável e poderoso, de uma sociedade iguali­
tária e ativa, de uma raça nobre. As carências para a consolidação da nação
brasileira foram enfrentadas de formas diversas ao longo de toda a Primeira
República. Podemos, em linhas gerais e aceitando os riscos de uma certa dose
32
de generalização, arrolar três atitudes " em relação à questão nacional, ao longo
do período que vai da última década do século XIX aos anos 20 do presente
século. A primeira, de importância quase nula para meus propósitos, pode ser
chamada de atitude tomada pelos litterati da corte. Caracterizou-se, basica­
mente, pela adesão acrítica aos modismos europeus, em especial franceses, e
por uma recusa ostensiva em abordar questões relacionadas à sociedade brasi­
leira. Os representantes dessa tendência não tinham, em seu horizonte temático,
a questão nacional ou, quando a abordavam, lim itavam -se a preconizar sua
condenação irremediável à decadência e à morte. Uma expressão síntese dessa
perspectiva é a declaração de Medeiros de Albuquerque, em entrevista a João
do Rio, afirmando que, na realidade, sequer sentia-se brasileiro, estando seu
espírito muito mais afinado com o modo parisiense de ser e viver.
A segunda atitude vai no sentido inverso. Temos aí uma série de esforços
de valorização dos traços locais para forjar um ethos nacional. O tom laudatório

30 Sobre a criação de sím bolos nacionais nos primeiros momentos do regime republicano, ver C arvalho, 1990.
31 Dentre as pesquisas sobre a questão do nacionalism o, na Primeira República, destaco O liveira, 1 9 9 0 ; Skidmore,
1989c.
32 A utilização do term o atitude deve-se à ênfase que quero dar ao fato de que a adoção de cada uma das posições tem
claras im plicações políticas e intelectuais.
33 Ver Skidmore., 198 9 c , cap. 3.

132
da verdadeira profusão de livros e artigos sobre o Brasil, suas riquezas naturais,
as virtudes de seu povo e de sua história, valeu aos intelectuais dessa corrente e
às suas obras o título genérico de ufanismo. Havia, nessa atitude, a intenção
deliberada de forjar uma imagem positiva do país, que superasse o pessimismo
e desconsolo que o quadro social, econômico e político suscitava para um
contingente expressivo das elites (e era uma quase unanimidade no exterior). A
versão ufanista do Brasil pode ser dividida em duas grandes correntes. Uma
delas, que teve no Conde Afonso Celso, e seu Por que me ufano do meu país,
uma das figuras mais expressivas, exaltava o Brasil pela prodigalidade de seus
recursos naturais e pela generosidade de sua gente. Lançava as bases do mito
da democracia racial. Via na existência do mestiço uma prova cabal da interação
entre as raças. Uma outra vertente fazia esforços para a construção de uma
história do Brasil que valorizasse seu percurso. Os republicanos, como Raul
Pompéia e Gonzaga Duque, priorizavam os movimentos que antecederam e,
dessa perspectiva, anteciparam a Proclam ação da R epública, insistindo na
centralidade da fundação do novo regime para a conclusão da tarefa de criação
de uma nação poderosa. Outros, como Afrânio Peixoto, buscavam valorizar a
experiência monárquica, contrastando o liberalismo do período imperial com o
34
caudilhismo das repúblicas da América hispânica.
O ufanismo não foi, no entanto, a única forma de abordagem da questão
nacional ao longo da Primeira República. De uma forma diametralmente opos­
ta, a questão foi enfrentada por uma série de intelectuais que a literatura espe­
cializada reúne, também de modo genérico, sob a marca do cientificismo, ter­
ceira atitude aqui explorada. Eram intelectuais fortemente influenciados pelas
correntes de pensamento então em voga na Europa, mas que, ao contrário dos
litterati da corte, que assumiam atitudes européias voltando as costas para a
realidade nacional, defendiam a utilização dos “avanços” da ciência para co­
nhecer e atuar sobre os problemas brasileiros. Desse grupo, fazem parte auto­
res e obras de vida mais perene em nossa tradição intelectual, como Sílvio
Romero, Euclides da Cunha, Manoel Bonfim, Alberto Torres, entre outros. Em
consonância com o instrum ental teórico adotado, os cientificistas tendiam a
aceitar os postulados das teorias racistas que advogavam a superioridade da

34 É curioso notar que, a despeito da gritante idealização da realidade e da história brasileira, sua total ausência de
sintonia com o quadro social e econôm ico, e a precária qualidade literária, m etodológica e analítica de praticam en­
te todas as produções que veiculam uma im agem ufanista do Brasil (o pró p rio term o tornou-se em referência
pejorativa), a eficácia dos símbolos e imagens trazidos a público alcançaram uma sobrevida nada negligenciável em
nossa cultura. De certa form a, tais im agens sobreviveram às obras em que foram form alizadas (quase todas caíram
em total esquecimento), aderindo fortemente ao im aginário popular, sendo, ao long o do tem po, repetidam ente
retomadas e reelaboradas. Para uma análise crítica sobre o mito da dem ocracia racial no Brasil, ver M atta, 1989.

133
raça branca. Quando não o faziam, tendiam a aceitar as teses acerca dos efeitos
nefastos da miscigenação. Para essa tradição, o mestiço era um híbrido cor­
rompido de raças supostamente puras. Também buscavam definir os parâmetros
de uma identidade genuinamente nacional, mas reconheciam, diante do quadro
social brasileiro, a necessidade de imersão na realidade e de valorização daquilo
que poderia significar o ponto de partida para um projeto civilizatório. Ao con­
trário dos ufanistas, miravam o cenário diante de si com os olhos voltados para
o futuro, buscando forjar os elem entos que pudessem balizar um plano de
regeneração nacional. É desse espírito que surgem as teses sobre o processo de
embranquecimento da raça, imaginado como resultado a médio prazo da práti­
ca de miscigenação e como solução para o surgimento de uma raça poderosa no
35
país. Daí a valorização do sertanejo como o melhor dotado para desenvolver-
se no ambiente geográfico e climático do país apontado como berço para o
surgimento de um homem novo (Euclides da Cunha em Os sertões). Na m es­
ma direção, surge a defesa do caráter em inentem ente agrário do Brasil e o
retorno ao campo como recurso para a prom oção da prosperidade nacional
(Alberto Torres em O problema nacional brasileiro e A organização nacio­
nal). As campanhas de erradicação de doenças endêmicas nas cidades e as
verdadeiras marchas para o interior estavam, certamente, na esteira dessa pers­
pectiva, francamente marcada pela vontade de civilizar o Brasil. Do mesmo
modo, a convicção de que apenas com o recurso da ilustração, levada ao povo
através da difusão do ensino, seria possível a criação de uma nação forte.
Sem querer minimizar as enormes diferenças entre ufanistas e cientificistas
- a rigor, ambos são conceitos excessivamente generalizantes e m ascaram uma
série de matizes e problemas de categorização relativos a vários dos autores - ,
os debates em tomo da questão nacional começam a se desenvolver no Brasil
sob o signo da convicção de que tudo está para ser feito. O otimismo transbor­
dante e rasgado com a situação brasileira dos ufanistas m ascara mal o senti­
mento dominante, entre os atores que tomam parte e se posicionam nos deba­
tes sobre o nacionalismo, de que no Brasil há uma nação ainda a ser inventada.
Pior: é necessário inventar uma sociedade. Desse modo, o otimismo se alarga
apenas à medida que as potencialidades para que tal se dê são apresentadas de
forma exaltada e apaixonada. É necessário que o Brasil valorize suas virtudes,
descubra as armas de que dispõe para a realização de sua vocação, dizem os
ufanistas, cada qual a seu modo. Põem-se a escrever livros didáticos para ser

35 Ver Skidmore., 1989c.

134
adotados nas escolas e a infundir entre os filhos das elites, que têm acesso ao
ensino formal, o sentimento de patriotismo e amor ao país. Mas se o Brasil é
tão bem dotado, sendo tão laborioso e cordato seu povo, tão exuberante sua
natureza, o que faz com que esteja em estágio tão pouco avançado de civiliza­
ção? A resposta ufanista para os males do Brasil encontrava-se, geralmente,
fora de suas fronteiras, estava nos inimigos externos da nação. É por isso que,
geralmente, os ufanistas eram anglófobos ou lusófobos, quando não os dois
simultaneamente. Boa parte da atenção e das querelas entre os representantes
dessa corrente girava em tom o das razões do atraso brasileiro, atreladas ao
processo colonizador e ao padrão espoliativo da relação da metrópole com suas
colônias, que no caso brasileiro ter-se-ia reproduzido no período m onárquico.36
Ou, no caso dos anglófobos, do caráter transplantado de nossas instituições
políticas republicanas. A “m ania” da elite intelectual em im itar as tradições
estrangeiras era eventualmente apontada como freio para o desenvolvimento
pleno das potencialidades nacionais. O mal estava fora de nossas fronteiras e
configurava-se como o inimigo externo a ser enfrentado.
Em sua severidade sisuda, os cientificistas encontravam no próprio país, e
em suas mazelas, as razões principais para o caráter irrealizado da nação brasilei­
ra. A ênfase podia ser dada à presença de raças inferiores, à miscigenação, à
indolência e ignorância do povo, à ausência de espírito prático e sentido público
de sua elite, à ineficiência do Estado, às disposições climáticas e geográficas, à
vastidão do território, aliada a seu relativo despovoamento, ao insulamento das
populações ou, o que era mais comum, à combinação de vários desses fatores. O
que mais os diferenciava, no entanto, é que, incorporando os sistemas científicos
desenvolvidos na Europa, e mesmo assimilando todas as suas imprecisões e pre­
conceitos, dispunham-se a adaptá-los às condições brasileiras, com o intuito de
tomá-los instrumentos de intervenção sobre a realidade freqüentemente apontada
como desalentadora. Não idealizavam o índio, o negro ou o português coloniza­
dor, reconheciam no homem brasileiro fraquezas e carências das mais diversas
ordens, mas ainda assim eram obrigados a ver nele, e efetivamente o faziam, a
prefiguração de um novo povo, vocacionado para triunfar em sua singularidade.
Por paradoxal que pareça, ambos, cientificistas e ufanistas, acabavam traindo um
mesmo diagnóstico da sociedade brasileira e de seu estágio civilizacional: o Brasil
era uma nação do e para o futuro. Os cientificistas identificavam os fatores exter­
nos como co-responsáveis pela condição nacional. Embora não seja o único,

36 Vale notar que esta é, também, uma das teses centrais de M anuel Bonfim, listado aqui entre os representantes de uma
perspectiva cientificista e não ufanista.

135
Manoel Bonfim é dos mais enfáticos nesse ponto. Condena tanto o parasitismo
ibérico para os males da América Latina, quanto a espoliação britânica, apoiada
nas elites dirigentes nativas, como os responsáveis pela miséria moral e econômi­
ca que dificultava a afirmação nacional:

"U m a nação é um organism o com pleto, bastando-se a si mesmo. Só os povos


que chegam à em ancipação econôm ica e industrial podem dizer que possu­
em in dep en dê ncia política. N ã o é o nosso caso - nação e te rn a m e n te ig n o ­
rante e colo n ia l, ete rn am e nte d o m ina da e explorada pela avidez eu rop éia .
E conom icam ente, não há diferença entre o Brasil de 1 800 e o de hoje. Era
um a colônia vassala; é, hoje, uma colônia in dependente. Há oite n ta anos
que a nação se em ancipou - que tem fe ito o Estado para le vá-la a esta in d e ­
pendência econôm ica? N a da ; pelo co n trá rio , atua com o um elem en to co n ­
servador, orientado com o tem sido, geralm ente, por essas classes refratárias,
rotin eira s. A lém disto, suas inspirações, q u an to à po lítica econôm ica, ele as
tira nas op iniõe s dos fina nce iros britânicos, os quais, certam ente, não têm
nenhum interesse em ver o Brasil (principalm ente o Brasil) ou q u a lq u e r outra
nação colonial, encam inhar-se para a em ancipação e co n ô m ica ."37

A extensão do trecho citado é amplamente justificável. Embora aparente­


mente diga respeito a questões econômicas, ele remete a diversas posições pró­
prias do nacionalismo mais combativo, observável na Primeira República. Não
nutre ilusões quanto às boas intenções britânicas em relação ao Brasil, assim
como reconhece, no passado colonial e na postura predatória dos portugueses,
uma das fontes dos males brasileiros. A citação não explicita, mas Bonfim tam­
bém não olha com melhores olhos as investidas norte-americanas e a doutrina
Monroe, objeto de encanto para muitos de seus contemporâneos. Por outro lado,
revela a decepção com o Estado republicano, não isentando as elites locais de
suas responsabilidades sobre o quadro desalentador com que se depara. E um
crítico feroz do regime. Ao comparar a nação a um “organismo completo”, explicita
os princípios epistemológicos que sustentam a perspectiva cientificista do nacio­
nalismo de então, com amplas ressonâncias futuras. E, a partir dessa mesma
perspectiva, constata as condições deploráveis do povo, impedido de ser nação, e
o caráter renovador único que a educação deve assumir:

"E espantoso, é m onstruoso, que um país novo, onde toda a educação in te ­


lectual está p o r fazer, onde a massa p o p u la ré ig nora ntíssim a , onde não há
instrução in dustria l nem técnica, onde o p ró p rio m eio e todos os seus recur-

37 Bonfim, 1995: 175.

136
sos naturais não estão estudados - é m onstruoso que, num tal país, para um
orçam ento de 300 mil contos, reservem-se 73 mil contos para a força pública,
e apenas 3.2 0 0 contos para tudo, tud o que interessa à vida intelectual - ensi­
no, bibliotecas, museus, escolas especiais, observatórios, e tc .!"38

Excetuando-se os lusófílos, boa parte deles vinculados à Igreja, e monarquis­


tas, os demais intelectuais da geração de Manoel Bonfim, contemporâneos da
mudança de regime político, viram na Proclamação da República o primeiro
passo para a realização das grandes reformas de que o país necessitava. A influ­
ência positivista teve peso significativo nesta convicção. Muito cedo, porém, o
novo regime mostrou-se insuficiente para fins tão elevados e o desencanto se
imiscuiu lentamente. Esta não era a República sonhada, lamentavam-se os repu­
blicanos de primeira hora, ao assistir aos antigos líderes do regime monárquico
assumirem o controle político, logo após o término do governo de Floriano, e se
dar conta do arranjo estabelecido a partir do regime federativo. O pacto perverso
entre o poder central e as elites locais mantinha e aprofundava antigas barreiras
para a constituição de uma nação poderosa. A ação do Estado revelava-se volátil
e fortemente comprometida com interesses privados locais. Quando, na primeira
metade da década de 10, Alberto Torres dispara severas críticas ao regime liberal
39
em dois livros, objeto de pouca atenção à época e erigidos como marco funda­
dor pela geração seguinte, ele faz pouco mais do que expor de forma sistemática
e elegante as impressões acumuladas, desde os primeiros anos, por boa parte
daqueles que outrora apoiaram com entusiasmo o advento republicano. Princi­
palmente daqueles que se dispunham a efetivamente engajar-se na construção de
uma nação poderosa. É verdade que não se pode dizer o mesmo a respeito das
prescrições, derivadas de sua avaliação extremamente pessimista, desolada até,
do quadro político, social e econômico brasileiro: a crítica ao modelo liberal diri-
ge-se especialmente à sua configuração assumida no Brasil e aos efeitos quase
nulos, quando não perversos, aqui colhidos.
Estou convencido de que a obra de Alberto Torres (e seu lugar na história
das idéias políticas no Brasil) permanece à espera de um tratamento cuidadoso,
o qual, por razões óbvias, não será dado aqui. De qualquer modo, vale ressaltar
que ele aparece com dupla significação histórica. Por um lado, revela-se um
dos mais ilustres e brilhantes herdeiros da onda cientificista do último quarto do
século XIX. Incorpora os preceitos positivistas e cientificistas sem, contudo,

38 Bonfim, 1 995: 196.


39 Trata-se dos livros A organização nacional e Problema nacional brasileiro.

137
esforçar-se por adaptá-los às nossas circunstâncias (o que o leva, inclusive, a
proposições contrárias a seus mestres, como ao aventar que o futuro e a voca­
ção de desenvolvimento do Brasil estariam no campo, advogando, assim, um
verdadeiro antiindustrialismo). Por outro lado, foi talvez a principal referência
de uma geração de intelectuais que teria papel ativo, intelectual e politicamente,
no correr das décadas de 20 e 30. Quando, a partir da década de 20 e, princi­
palmente, em 30, a invenção da nação é assumida quase unanimemente pela
elite intelectual como a tarefa que a história lhe impôs, é em Alberto Torres e
em seu diagnóstico (mais, repito, do que propriamente em suas prescrições)
40
que parte significativa dessa elite buscaria inspiração.
Nas raízes das abordagens nacionalistas no B rasil há com ponentes que
serão redefinidos pelo nacionalismo brizolista. A ênfase no problema da incor­
poração é flagrante. A ela estão subsumidos a questão da etnia e da m iscigena­
ção, do papel do Estado como propulsor de uma tarefa civilizadora em larga
escala, de crítica a parcelas das elites intelectuais e políticas infensas à “realida­
de nacional”, da denúncia ao caráter espoliador das grandes potências, do reco­
nhecimento, por fim, da necessidade de fazer de uma m assa de analfabetos,
ocioâos e carentes de espírito público e iniciativa um povo, um a sociedade
capaz de fundar uma nação. O nacionalismo brasileiro, em seus primórdios, é
formalizado como o desafio de invenção de uma nação onde existe apenas uma
elite fascinada pela civilização européia sobreposta a uma massa de excluídos: o
nacionalismo brizolista guarda muito desse espírito. Entretanto, ele inova ao
encampar as chamadas tradições populares e conferir positividade, quase des­
conhecida dos primeiros discursos nacionalistas, ao mestiço.
É em seu parentesco com os nacionalismos dos anos 20 e 30 que provavel­
mente se inspiraram muitas das associações do brizolismo com o autoritarismo e
o antiliberalismo. A assunção do legado varguista faculta uma associação quase
mecânica entre o projeto brizolista e o regime Vargas, em seus vários momentos.
Como já foi dito, a Revolução de 30 é, no discurso brizolista, um marco funda­
dor. Aí estão lançadas as bases da história do Brasil. E contêm, evidentemente, a
movimentação política e intelectual anterior à Revolução de 30 que, da perspecti­
va brizolista, confere plausibilidade e magnitude à ruptura então operada. O mar­
co de tal movimentação pode ser situado na década de 20, mais precisamente, no

40 A ressalva em suas prescrições vale, fundam entalm ente, para a m encionada vocação agrária brasileira. A necessida­
de de uma ação pedagógica incisiva na sociedade brasileira, o papel central do Estado em tal em preitada e o projeto
de um associativismo de base com unitária serão fartamente explorados e transform ados em bandeiras de ação
política de parcela significativa dessa geração.

138
ano de 22. Embora já sejam conhecidos e repisados, não custa enumerar ainda
um a vez os eventos desse ano: a Sem ana de Arte M oderna, que inaugura
ritualisticamente o modernismo, o primeiro levante tenentista, a fundação do
Partido Comunista, a Coluna Prestes e a criação do Centro Dom Vital são marcos
expressivos da atmosfera de mudança que toma conta da parte urbana e letrada
da sociedade brasileira. Que os acontecimentos de 30 sejam a culminância desse
processo, que reclama por modificações profundas na estrutura política e econô­
mica, ou representem um rearranjo para que as coisas mudassem, burkianamente
falando, para permanecerem iguais, é questão que deixo para os debates dos
41
historiadores e especialistas no assunto. Registro apenas como indicador que, da
perspectiva brizolista, os anos 20 são os estertores da pré-história da nação brasi­
leira, cuja fundação, como mencionado anteriormente, confunde-se com a ascen­
são de Vargas ao poder. Quanto ao nacionalismo, a geração de 20/30 apresenta
continuidades e rupturas significativas, em relação ao período anterior. Como já
ocorrera em casos como o de Euclides da Cunha, impunha-se a necessidade de
descobrir o Brasil. Conhecer sua vida, suas instituições costumeiras e seu modus
vivendi. Sem as expansões emocionais e grandiloqüentes típicas dos ufanistas e
ao contrário deles, passava-se a crer que já havia uma sociedade. Havia, já,
práticas, valores populares que deviam ser conhecidos, deviam mesmo ser valori­
zados. Havia uma sociedade que carecia de expressão cultural e política. Ou seja,
era necessário dar forma a um corpo social disperso e fragmentado. Do ponto de
vista político, onde existia um Estado difuso, submisso aos poderes locais e
privatizados, era necessário organizar um Estado forte e atuante. Organizar a
sociedade através da intervenção do Estado. Cabia aos intelectuais, aos homens
mais proeminentes da cultura, esta tarefa verdadeiramente apolínea: dar forma às
forças sociais da nação. E cumpririam a tarefa mediante o recurso ao Estado. Daí
a ênfase tão reiteradamente apontada pelos analistas posteriores, e muitas vezes
sob a forma de censura, no caráter elitista dessa geração e no rótulo não menos
anatematizador de estatistas.
O perfil político assumido pelo regime republicano, logo após o fim do gover­
no florianista e aperfeiçoado no quadriénio de Campos Sales, suscitou um cres-
42
cente descontentamento quanto ao modelo liberal. O poder central manteve

Para um sum ário mais esclarecedor do quadro das principais interpretações sobre o significado da Revolução de 3 0 ;
ver Vianna, 1 978.
42 Sobre o governo Campos Sales, destaco o trabalho de Renato Lessa* A invenção republicana (s. d.), onde o autor
demonstra com o a política dos governadores, longe de significar a retirada do poder central do com ando da política,
foi, na verdade, um pacto que reforçou o poder central, ao mesmo tem po que conferiu uma espécie de sobrevida às
elites regionais, mediante o reforço das barreiras excludentes para o demos com o um todo.

139
enorme ascendência política e administrativa à custa de um pacto com as antigas
oligarquias rurais, que mantinham seu prestígio e poder local, numa versão per­
versa de federalism o. R esultava daí a perpetuação de um a quase absoluta
inexistência de espaço para a incorporação política de novos atores. Perpetuava-
se também, na sociedade, a carência de associativismo e de espírito público,
reforçada pelo caráter rarefeito da ação do Estado central. O acordo celebrado
entre o público e o privado, com a conseqüente diluição de suas fronteiras, pendia
favoravelmente para a prevalência dos imperativos do segundo sobre o primei-
43 '
ro. É compreensível que os críticos do regime encarassem a mudança radical do
Estado e a redefinição de suas atribuições como elemento crucial para a reforma
que, a partir do final dos anos 20, era largamente desejada por parcela das elites
intelectuais. Acrescente-se a isso o enorme prestígio que o positivismo alcançou
no Brasil, em especial sua doutrina da ditadura republicana, encontrando, entre
os principais publicistas, professores, intelectuais e outros profissionais liberais,
um fecundo canal de divulgação e reprodução, ao longo de décadas. O Brasil é,
provavelmente, o caso de maior penetração e permanência dos ideais positivistas
44
em toda a América, no campo político. Mesmo os liberais cientificistas, inspira­
dos no spencerismo, parente próximo e liberal do comtismo, estavam aptos a
postular a instauração de um Estado forte como instrumento de preparação das
condições necessárias para o advento de uma sociedade liberal. Sendo assim, é
compreensível, e talvez até mesmo defensável que, dado o quadro político, eco­
nômico, social e espiritual do Brasil, o fortalecimento da ação do Estado como
elemento civilizador se apresentasse como única alternativa para a criação e con­
solidação nacional. Retrospectivamente, podemos supor que, caso Toqueville
tivesse visitado essa América, a tradição sociológica certamente teria um clássico
completamente diferente daquele que nos legou, relatando sua viagem aos Esta­
dos Unidos. É errôneo avaliarmos a tradição intelectual surgida na década de 20
sob o signo genérico e impreciso do autoritarismo. Era elitista e estatista, certa­
mente, mas estava voltada para a descoberta de uma sociedade onde inexistia o
associativismo anglo-saxão. É possível perceber elementos conservadores, em
algumas tendências, projetos e autores, mas o programa de organização da nação
apontava para mudanças significativas, no quadro brasileiro da época. Em especi-

43 Permanece com o referência clássica dos padrões estabelecidos nesse pacto o livro de Victor Nunes Leal, Coronelism o,
enxada e vo to, (1986).
44 Refiro-me, aqui, ao positivismo littreísta. A versão assumida pelo apostolado, após um m omento de grande divulgação,
através da iniciativa de Teixeira Mendes e Miguel Lemos, caiu no ostracismo, logo após a Proclamação da República,
vendo sua influência m inguar até desaparecer quase completamente, nos anos im ediatamente posteriores à República.
Sobre a penetração do positivismo e do cientificismo no Brasil e na Argentina, ver: Lovisolo, 1995. Além do Brasil, o
Chile e o México foram os dois países em que o positivismo alcançou m aior aceitação na América Ibérica.

140
al, apontava criticamente a natureza do padrão social brasileiro. A estreiteza do
espaço público e a debilidade do Estado concorriam para a hipertrofia da esfera
privada, em gritante prejuízo para as ampias camadas subalternas no campo e ñas
cidades. Desse modo, algumas das vertentes do nacionalismo desse período,
embora não todas, carregavam em si um forte componente incorporador, reco-
45
nhecendo no Estado o ator responsável pelo empreendimento civilizador . O
nacionalismo que viceja no Brasil, na década de 20, e se desenvolve ao longo das
duas décadas posteriores, é fortemente tributário do positivismo. E uma espécie
de recuperação do ideário derrotado, intelectual e politicamente, pelo liberalismo
do inicio da República. Esta é urna marca que o brizolismo conserva, e em
hipótese alguma tem no nacional-desenvolvimentismo ou no nacionalismo popu­
lar das décadas de 50 e 60 a sua fonte privilegiada.
Embora a presente descrição não pretenda dar conta da história dos nacio­
nalismos no Brasil, nem tampouco fazer uma sociologia dos intelectuais, cabem
aqui algumas observações sociológicas sobre o período, cujos debates e formu­
lações são decisivos para a análise do brizolismo. E nele que começa a existir
uma indústria editorial competitiva frente às publicações estrangeiras. Inaugu­
ra-se, então, um verdadeiro mercado editorial, a partir do qual os intelectuais
46 '
podem veicular e divulgar mais amplamente suas idéias. E aqui também que
uma elite intelectual se consolida como ator político razoavelmente definido e
atuante como agente coletivo. Frente ao quadro anteriormente traçado das aná­
lises mais recentes sobre os nacionalismos europeus, encontramos, a partir da
década de 20, paralelos evidentes com os processos ocorridos na Europa, cerca
de um século antes, tais como traçados por Gellner, Elias e Anderson. Passan­
do ao largo dos debates sobre o alcance das mudanças ocorridas a partir de 30,
é necessário reconhecer que o governo Vargas significa um ponto de inflexão
nos padrões de interação entre esta nova elite que se constitui enquanto ator
coletivo e o Estado. Significa também uma inflexão quanto ao peso do naciona­
lismo nas estratégias políticas de governo. O regime varguista é o marco para a
adoção de um nacionalismo de Estado no Brasil. Ele trará para sua órbita de
atuação a nata da intelligentsia brasileira, o que será lido, posteriorm ente,
como um a das inúm eras estratégias de cooptação que m arcaram seu estilo
político. Uma elite de classe média engajada e disposta a intervir nas questões

45 Penso, sobretudo, em O liveira Vianna, para quem o acesso à justiça e a inexistência de espaço público eram dois dos
responsáveis pelo quadro desolador que a República oferecia. Ver, Vianna, 1 974 . Ver, também v ia n n a ,1 987.
46 Ver M iceli, 1979.

141
públicas. Há aí a realização de um programa de modernização do Estado sobre
bases nacionais. Ainda que aceitemos a avaliação de que este novo modelo
estatal se funda mediante um rearranjo do pacto das elites, que o novo regime
mantém altíssimas taxas de exclusão e, aliado a isso, que este mesmo governo
contou com a colaboração e participação de grande parte dos setores econômi­
cos dominantes no pré-30, é uma temeridade identificá-lo como a realização
ótima do modelo imaginado pela elite intelectual que incorporou e estabelecer
uma relação de equivalência entre seus projetos de sociedade e o regime políti­
co fundado em 30 redefinido em 34 e, finalmente, mais uma vez redirecionado
em 37. A associação estabelecida por boa parte da literatura especializada entre
a elite intelectual nacionalista e o regime varguista (especialmente em sua confi­
guração a partir de 37) está na base de posições apriorísticas que reduzem, um
tan to m ecan icam en te, o an tilib e ralism o de boa p arte d essa geração ao
47
autoritarismo do Estado Novo. Houve, está fora de dúvida, um acordo que
interessava a ambas as partes. Da parte desses intelectuais, empenhados em
conhecer e agir sobre a realidade nacional, com o intuito de criar uma nação
que existia apenas potencialmente, convencidos que estavam que esta tarefa
lhes pertencia e só seria realizável através de uma ação efetiva de dentro do
Estado, o acesso a postos de planejamento e de direção era fundamental. Do
mesmo modo que o era para a consolidação de sua própria identidade social
como elite intelectual que se diferenciava das elites agrárias, identificadas com
o atraso. Do mesmo modo, interessava aos novos grupos que, eventualmente,
tenham se alçado ao poder, em parceria com aqueles que nele se mantiveram, o
recrutamento de quadros capazes de empreender a reforma e a modernização
do Estado. Contar com a nata da intelectualidade nativa entre seus quadros
técnicos e administrativos representava, também, um inegável capital simbóli­
co, e o regime varguista, especialmente a partir do Estado Novo, foi pródigo e
eficiente nesse aspecto. O arranjo político estabelecido obedeceu aos cálculos e
escolhas dos atores que deram sustentação ao novo regime. O papel dos inte­
lectuais nesse momento, embora nada negligenciável, não deve nos induzir a
ver a nova rede institucional como a realização de suas idéias.
Insisto nesse ponto para evidenciar uma distância, nem sempre reconheci­
da com a ênfase necessária, entre o projeto político vocalizado pelos mais
diversos nacionalistas atuantes nas décadas de 20, 30 e início dos 40, e as

47 Vale lem brar que o liberalism o, desde princípios da década de 20, encontrava-se em crise em boa parte do mundo
ocidental. M uito possivelmente, a única exceção, neste período, era o m undo anglo-saxão e afins (leia-se, a G rã-
Bretanha e as ex-colônias inglesas).

142
diversas conformações do Estado brasileiro, nos primeiros 15 anos de governo
varguista. No próprio interior dessa elite havia diferenças nada negligenciáveis
entre o credo fascistizante e antiburgués de Plínio Salgado, o catolicismo con­
servador de Alceu Amoroso Lima, o autoritarismo irredutível e doutrinário de
Francisco Campos, e o centralismo corporativista de Oliveira Vianna, para fi­
carmos apenas com quatro dos mais notáveis representantes dessa elite nacio­
nalista. Dentre eles, destaco as formulações de Oliveira Vianna e seu diagnósti­
co so b re a questão nacio n al. N e la sobressaem a ên fase no c a ráter não
associativista e apático da sociedade, sobre a qual deveria ser empreendido um
a g re s s iv o tra b a lh o de ed u c açã o . C om o c ria r um a n aç ão com o povo
analfabeto? Como ter uma nação forte, quando o Estado e as elites políticas,
em suas veleidades liberais, deixaram as massas entregues à própria sorte? O
próprio antiliberalismo de Oliveira Vianna deve-se muito mais a sua aplicação
no Brasil do que a uma petição de princípios gerais. Sua defesa do m odelo
corporativo de representação é a expressão mais acabada da recuperação do
positivismo político, fortemente enraizado em nossa tradição, mas não traduzi­
do nas instituições políticas pré-30. Posteriormente, se dá o inverso. Os espíri­
tos positivistas agirão com dificuldades em uma institucionalidade híbrida, pos­
to que resultante da combinação entre positivismo e liberalismo.
O nacionalismo programático dos intelectuais das décadas de 20 e 30 tom a­
se prática política através de algumas iniciativas igualmente relevantes para a
arqueologia do brizolismo. Um dos seus aspectos é o programa mais ambicioso,
até então, de universalização do ensino básico. Incorporar significava, entre ou­
tras tarefas, franquear às camadas subalternas o conhecimento formal. O caráter
quase missionário da elite intelectual, a quem é atribuída a tarefa de conhecer a
sociedade brasileira, organizá-la politicamente e dar forma a sua cultura é outro
aspecto crucial. Para tanto, era necessário rejeitar a adoção acrítica dos modelos
importados, proclamando a urgência em se conhecer a realidade nacional. Cada
uma dessas convicções era já perceptível na geração anterior, ainda que de modo
mais difuso e menos enfático. Diferentem ente de seus antecessores, para os
intelectuais da década de 20 até o início dos anos 40, o Brasil já tinha uma
sociedade: urgia transformá-la em uma nação através da ampliação das franquias
sociais. Para sua ventura ou infortúnio, contaram com uma margem de concor­
dância muito maior do que seus antecessores, com mais recursos para divulgação
de suas idéias, entre os quais a máquina estatal, e forjaram uma identidade coleti-

49 Nunca é demais lem brar que C apanem a, Anísio Teixeira e Fernando de Azevedo fazem parte dessa geração.

143
va que não existia anteriormente. Mantiveram-se tributários dos ensinamentos do
positivismo, do cientificismo e, em certos casos, das doutrinas católicas. Mas
tentaram, de forma mais sistemática, adequá-los ao contexto em que estavam
inseridos, obcecados que estavam em descobrir o Brasil e a sua realidade. Foram
um pouco menos, apenas um pouco, vulneráveis às doutrinas racistas, mas esti­
veram a par da crítica devastadora à doutrina clássica da democracia, empreendi­
da pelos elitistas europeus. Tiveram mesmo sua própria atualização ufanista no
movimento verde-amarelista, uma das duas tendências que surgiram da cisão do
49
grupo modernista e que mais tarde redundaria na AIB. A se crer apenas na letra,
não renegavam todos a democracia, mas, de fato, permaneceram , com mais
ênfase do que a geração anterior, refratários aos apelos liberais (pelas razões já
mencionadas).
Um outro dado interessante desse período é a proliferação dos mitos de
identidade nacional. A interação da casa grande com a senzala, dos sobrados
com os m ocambos, analisada por Gilberto Freyre, é apropriada por muitos,
durante muito tempo, como a declaração da dem ocracia racial brasileira. A
vocação antropofágica é reclamada por Oswald de Andrade como nossa voca­
ção maior. Novas imagens do homem brasileiro são figuradas no homem cordi­
al, rebatizado por Sérgio Buarque de Hollanda, e no M acunaíma de Mario de
Andrade. Embora seja ingênuo supor que há apenas positividade nesses novos
heróis (o que há, ao meu ver, é uma arguta ambigüidade), tais heróis pouco têm
a ver com o homem triste de Paulo Prado ou com o Jeca Tatu, tal como foi
originariamente pintado por Monteiro Lobato. Seria uma temeridade atribuir a
marca de nacionalistas a espíritos cosmopolitas como Sérgio Buarque ou Oswald
de Andrade (o mesmo não diria dos demais autores citados), mas é inegável,
pela própria natureza e substância de suas obras, que o nacional era, para
ambos, um dado indisputável das sociedades modernas.
Encontrarem os tam bém no brizolism o, mais adiante, a invenção de um
herói nacional, a construção de um tipo brasileiro: o banguela. Das tradições
nacionalistas anteriores às décadas de 50 e 60, ele extrai a visão holista e positivista
da sociedade. Extrai, também, a tarefa de tornar o povo (categoria mais aciona­
da pelo brizolismo e largamente utilizada nas décadas de 50 e 60, mas quase
estranha aos nacionalistas anteriores) um a nação, m ediante m ecanism os
incorporadores. Nessa tarefa, o papel do Estado é crucial. Cabe a ele difundir o
ensino formal pelo país e dar forma à nação. Cabe a ele a criação de um espaço

49 Sobre o Ação Integralista Brasileira, vale a consulta a Trindade, 1979, e Araújo, 1988.

144
público, onde os setores subalternos tenham lugar. Este últim o é um ponto
central na retórica nacionalista brizolista que tem pouco espaço no nacional-
desenvolvimentismo dos anos 50. Reaparecerá com força, é verdade, no inicio
dos anos 60, mas remonta aos nacionalismos dos anos 20, 30 e 40. O vínculo,
comumente estabelecido, entre o brizolismo pós-79 e o nacionalismo dos anos
pré-64, embora procedente, acaba minimizando o fato de que o próprio nacio­
nalismo dos anos 50 e 60 é tributário de um a tradição política e intelectual
anterior. Obscurece, sobretudo, as complicadas relações entre os nacionalismos
e a tradição liberal, tal como encampada no Brasil republicano. Boa parte da
tradição nacionalista brasileira se engendra na crítica ao modelo liberal da Pri­
meira República, que se traduziu em um arranjo institucional excludente e na
hipertrofia da esfera privada sobre um espaço público estreito e inoperante. Se
nacionalismo e liberalismo muito dificilmente andaram juntos, aínda que não
sejam necessariamente excludentes, no caso brasileiro as instituições políticas
correspondentes ao modelo liberal de representação foram, na melhor das hipó­
teses, negligenciadas pelos discursos e práticas políticas de corte nacionalista.
Os nacionalismos formulados a partir da década de 20 foram quase unani­
m emente refratários á democracia liberal e às suas instituições. Nos últimos
anos do Estado Novo, encontramos um intenso, porém pouco duradouro, entu­
siasmo pela democracia liberal. A partir de 43, quando o Brasil entra na guerra
ao lado dos Aliados, começa um movimento pela democratização do país. O
movimento ganha grandes proporções, acabando por levar ao processo de der­
rabada de Vargas e à convocação de uma Assembléia Constituinte, logo após o
término da guerra, veiculado internacionalmente como a vitória da democracia
sobre o autoritarismo. Temos, então, um breve interregno, em que a democra­
cia política é alçada ao fundamental nos debates políticos. Já no inicio da déca­
da de 50, porém, a questão da democracia formal deixa de ser problem a cen­
tral, desaparecendo virtualmente dos debates intelectuais e políticos ou apare­
cendo subsumida à questão do nacionalismo. O período coincide com o retomo
de Vargas ao poder, pela prim eira vez através do voto, e com um a série de
manifestações de cunho nacionalista, como a campanha “o petróleo é nosso”,
que adquirem forte apelo popular. Ao longo de todo o seu segundo governo,
Vargas tenderá a enfatizar cada vez mais seu compromisso com o desenvolvi­
mento e a emancipação nacional, com o que estará, simultaneamente, tentando
dar o tom dos debates e das ações políticas e, por outro lado, a m ostrar-se
“antenado” com uma tendência que se tornava predom inante na atm osfera
local. Nesse sentido, sua Carta-Testamento pode significar um marco da guina-

145
da radical que o tom dos debates toma, favoravelmente, à ênfase nacionalista
(discutirei, a seguir, alguns elementos da Carta-Testamento e o significado sim­
bólico que lhe é atribuido no nacionalismo e na Bildung brizolista). Se ñas
décadas anteriores o nacionalism o foi sem antizado de diversas form as, ñas
décadas de 50 e 60 não foi diferente.
De form a geral, os nacionalism os, ñas décadas de 20 e 30, estiveram
mais fortemente associados aos m ovimentos de extrem a-direita que em ergi­
ram de form a devastadora na Europa. Como procurei sugerir, considero ao
menos problem ático que tal associação seja adequada para os nacionalism os
formulados no Brasil, durante o mesmo período. Se tivemos versões autoritá­
rias, conservadoras e m esm o fascistas, com a AIB, não se pode negar que
houve proposições democratizantes na direção de um rearranjo do Estado de
modo a am pliar a arena pública. Nos anos pós-guerra, a vaga nacionalista
aparece com mais força nos chamados países do Terceiro Mundo, associada
aos m ovim entos de libertação nacional. A década de 50 é um período de
profundas m udanças nas relações de poder entre as potências ocidentais e
suas colônias na África, Ásia e Oriente Médio. Essas m udanças, acrescidas
das teorias de descolonização, como a formulada por Balandier, ecoam por
todo o Terceiro M undo. E nesse período que cresce o nacionalism o árabe,
com a experiência de Mossadegh no Irã, a Revolução Nasserista no Egito e a
G uerra da Argélia. No B rasil, o nacionalism o será encam pado por setores
diversos. Entre eles, destacam-se os intelectuais do Iseb, instituição que reu­
niu, a partir da segunda metade da década de 50 até o golpe de 64, um grupo
de intelectuais extremamente ativos e que, no período de sua existência, abor­
dou-o de diversas formas. Na prim eira m etade da década de 50, o principal
eixo dos debates políticos envolveu o confronto entre duas forças: de um lado
os setores contrários ao imperialismo e defensores do projeto de em ancipa­
ção nacional, pela conquista da autonomia frente às potências econômicas (os
Estados Unidos, em especial), e, do outro lado, os projetos de desenvolvi­
mento associado ao capital internacional. Tratava-se, então, na perspectiva
nacionalista, de rom per os laços de dominação que subordinavam o desenvol­
vim ento nacional aos interesses estrangeiros e a um a burguesia nativa que
lhes era dócil. Para realizar o projeto de emancipação nacional, postulava-se
uma aliança entre a burguesia industrial progressista e as forças populares
para enfrentar o inimigo externo, a burguesia conservadora e, o m aior dos
inimigos nativos, as oligarquias agrárias atrasadas. Não se trata, aqui, de re­
duzir tais formulações àquelas observadas, já no início do século, pela teoria

1 46
do parasitism o de M anuel Bonfim, por exemplo. Cabe, contudo, lem brar que
essa lógica dual tem filiações antigas, aínda que não necessariam ente explíci­
tas.
Da tensão entre nacionalistas e “entreguistas”, é elucidativo o confronto
que se deu no interior do próprio Iseb, instituição em que as teses nacionalistas
foram mais cuidadosamente sistematizadas. Ela surge a partir da publicação do
livro O nacionalismo na atualidade brasileira, de Helio Jaguaribe, onde o
autor defende a entrada de investimentos estrangeiros como recurso legítimo
de desenvolvimento nacional. Guerreiro Ramos, um dos principais intelectuais
da instituição, reage, acusando seu colega de entreguista, e gera um confronto
que levará ao desligamento de Jaguaribe do Iseb (posteriormente, também Guer­
reiro Ramos se desvincularia do Instituto). Vale notar que a crise interna do
Iseb coincide com o inicio da debacle da política nacional-desenvolvimentista,
im plem entada por Juscelino em seus prim eiros anos de governo, e de sua
credibilidade como ideologia mais adequada para a almejada emancipação naci­
onal. O nacionalismo desenvolvimentista, até então, equivalia ao passo funda­
mental a ser dado pelo Brasil na construção de sua autonomia. Veiculava um
projeto de emancipação econômica e política do Brasil frente às potências es­
trangeiras. A questão popular só aparece com destaque a partir do final da
década de 50. Desde então, cresce significativam ente o apelo ao povo e a
ênfase na necessidade de conscientização das massas. O nacionalismo desen­
volvimentista dá lugar ao nacionalismo popular.
Comparando-os com a geração de 20 e 30, Daniel Pécaut salienta que, para
os nacionalistas da década de 50, estava fora de questão que já havia uma nação
com interesses, organização e valores estabelecidos. Mais ainda, para eles, estava
fora de dúvidas que havia uma identidade absoluta entre a nação e o povo. Nesse
sentido, ao contrário de seus antecessores, havia uma prevalência na equação
sociedade-Estado da primeira sobre o segundo. Cabia aos nacionalistas, portanto,
ir até as massas e conscientizá-las, o que equivalia a remover as amarras que lhes
obstavam o desenvolvimento pleno de suas capacidades, do seu ser. Tal postura
fica patente na afirmação de Alvaro Vieira Pinto, segundo o qual:

"A id eolog ia do desenvolvim ento nacional só revela plena eficácia q u an do o


seu sustentáculo social reside na consciência das cam adas populares (...) o
processo de desenvolvim ento é fun ção da consciência das m assas."50

50 Pinto, 1959: 35.

147
O apelo às massas passa a ser uma característica do Iseb e de boa parte dos
demais discursos nacionalistas do final da década de 50. Não haveria emancipa­
ção nacional sem o resgate e a emancipação do povo. E importante notar que,
nesse período, o Estado aparece mais como propulsor do desenvolvimento eco­
nômico e agenciador da autonomía política do que propriamente como pedagogo,
como fora concebido décadas antes. A identidade entre povo e nação, típica do
nacionalismo desse período, é a base para o reconhecimento da existência de
uma sociedade civil organizada, a qual caberia a tarefa da organização de interes­
ses e identidades, e que atuaria descolada do aparato do Estado.
Esse é um dado importante, posto que o brizolismo é uma combinação de
componentes dessa percepção do processo social, económico e político do final
da década de 50 com o projeto civilizador das gerações anteriores. Tal como o
nacional-desenvolvimentismo, que teve no Iseb o principal centro de formulação
e debates, o brizolismo advoga um papel importante para o Estado ñas iniciativas
de desenvolvimento econômico. Ainda como seus ancestrais da década de 50, e
premido pelas mudanças ocorridas no país, que geraram uma sociedade civil
razoavelmente articulada, o brizolismo do pós-79 concede à sociedade, do ponto
de vista discursivo, um papel decisivo no processo de organização e definição de
suas identidades e de seus interesses. No entanto, ao contrário do que se passou
nos anos 50 e 60, o brizolismo reservou ao Estado a tarefa de conscientizar e
incorporar, pela via da educação formal, as massas populares. Nesse ponto, ape­
nas a remissão aos nacionalismo dos anos 20, 30 e 40 esclarece devidamente o
projeto civilizador brizolista.
A opção pelo povo, radicalizada na última fase do nacionalismo pré-golpe,
é um marco. É o período conturbado do governo Goulart, das m obilizações
pelas reformas de base e da convicção a respeito da proximidade da revolução
nacional. Nesse momento, o nacionalismo parece tornar-se unanimidade, fun­
cionando como bandeira libertadora e unificadora de todas as “forças progres­
sistas”. É o período da campanha pelas reformas de base, de empreendimentos
conjuntos de nacionalistas de vários matizes, com participação importante de
setores do PCB, do movimento estudantil e de centros culturais que reuniam
in telectu ais, com o o CPC. Não que anteriorm ente o nacionalism o fosse
encampado exclusivamente pelo Iseb. Ao contrário, observam os sua adoção
por amplos setores da intelectualidade e dos movimentos políticos, mas o Iseb
funcionara, até então, como uma espécie de grupo institucionalizado de siste­
matização e propaganda nacionalista. Nos primeiros anos da década de 60 já
não é mais assim. Afinal, havia no ar a convicção de que o povo estava próxi­

148
mo do poder. Se no período anterior o povo era valorizado, havia, por outro
lado, um evidente distanciamento entre ele e seus promotores. Iniciativas como
as do CPC buscaram diminuir esse fosso. A cultura popular começava a ser
valorizada em suas próprias manifestações. Os experimentos de Paulo Freire
no campo da educação popular, as Ligas Camponesas de Francisco Julião e
Gregorio Bezerra, as iniciativas de setores progressistas da Igreja correspondiam
a uma vitalização dos movimentos sociais inédita no Brasil. A essa altura, difi­
cilmente as avaliações desoladas dos nacionalistas da primeira metade do sécu­
lo sobre a sociedade brasileira estariam infensas à relativização. O início dos
anos 60 correspondeu às primeiras articulações, no âmbito da sociedade, que
sustentavam uma conexão plausível entre povo e nação. É verdade que, imersos
na ação política, houve uma tendência, por parte dos atores, em superestimar
os avanços. O entusiasmo fez-se diagnóstico, e, daí, os “erros de avaliação” . A
negligência para com as potencialidades dos mecanismos institucionais da de­
mocracia formal contribuíram, certamente, para o que sobreveio.
Os eventos de 64 corresponderam a uma ducha de água fria no entusiasmo
dos arautos do advento da emancipação nacional. Logo após o golpe, o Iseb foi
fechado e a sede da UNE ocupada pelo Exército. Algumas das teses que pareci­
am inquestionáveis começaram a ser revistas. Mas o nacionalismo continuou a
ser uma referência importante. Principalm ente porque havia a im pressão de
que o regime instalado pelo golpe não se manteria. Apenas quando advém o
AI5, em 1968, e, mais adiante, no início da década de 70, o amargo balanço
dos “erros” e das ilusões perdidas daquela geração atingem o coração do m ode­
lo nacionalista pautado pela aliança entre a burguesia nacional e as camadas
populares. Não foram consensuais as autocríticas. Os nacionalismos dos anos
50 e 60 foram variados, encampados por diversos atores a partir de princípios e
perspectivas diferentes. Também o foram as autocríticas. N a década de 70, o
nacionalism o foi empunhado pelos m ilitares no poder, em sua versão mais
conservadora e excludente. De pouco interesse, por ora, no que toca ao brizolismo.
Já foi mencionada a diferença entre os nacionalistas das décadas de 50 e
60, e seus antecessores, quanto à identificação da nação com o povo. Para os
primeiros, o povo é valorizado como depositário do processo de autonomização
nacional. Tal postura, no entanto, está longe de ser infensa a ambigüidades. A
ênfase no povo, nas massas, o que na terminologia da época pode ser conside­
rado equivalente à sociedade civil, não implicava a minimização do papel do
Estado. Ele continuava como ator fundamental no processo. Do mesmo modo,
não dim inuía a centralidade do papel dos intelectuais, da intelligentsia, no

149
processo emancipador. Creio, portanto, que as rupturas com as gerações ante­
riores existem mas devem ser matizadas. E verdade que os nacionalistas da
década de 50 já não recorrem tão explicitam ente aos modelos cientificistas,
evolucionistas e positivistas que anim aram as gerações anteriores. No Iseb,
buscam inspiração na sociologia do conhecimento de Mannheim, no historicismo
de Ortega y Gasset, na filosofia existencialista de Jaspers, Husserl e Heidegger.
O marxismo-leninismo do PCB fundamenta a estratégia aliancista de libertação
nacional, pela aliança com a burguesia progressista contra o imperialismo. A
soberania nacional estava organicamente atrelada à emancipação popular e esta
não se daria mediante a instauração de um Estado forte, autoritário, mas, antes,
de um Estado popular e soberano. No entanto, as coincidências também saltam
aos olhos. Afinal, a tarefa dos intelectuais frente ao povo configurava uma
relação claramente assimétrica entre ambos. Falam do povo como uma entida­
de distante e carente de consciência, situado na paradoxal situação de ser o
depositário legítimo da realidade nacional sem sabê-lo e sem ter os recursos
necessários para expressá-la adequadamente. Caberia aos intelectuais, que se
auto-identificam como a vanguarda do processo de emancipação nacional, a
tarefa de ensinar ao povo aquilo que ele é. Eles não vão inventar um a nação,
como queriam os chamados autoritários, mas vão torná-lo uma nação. Além
disso, a abordagem das manifestações culturais próprias das camadas populares
oscila entre a completa omissão, ao longo de praticamente toda a década de 50,
e um a abordagem distante, quase mística, quanto a suas potencialidades. Ex­
cluindo alguns parcos momentos de maior atividade sindical do PCB, e, pela
máquina do Estado, do sindicalismo trabalhista, somente a partir da década de
60 o encontro entre os defensores do nacionalismo e seu objeto privilegiado de
desejo celebram alguns encontros. Apenas em algumas iniciativas, geralmente
de caráter artístico, como o CPC, a convicção de que o povo é o depositário
dos valores genuinamente nacionais se traduz na incorporação de suas formas
de expressão cultural e estética. M esmo assim, tais encontros fortuitos não
tinham a magnitude que seus promotores supunham.
Outro aspecto fundamental a ser ressaltado é a visão de sociedade veicula­
da pelos novos nacionalistas. Também aí, a proximidade com seus antecessores
é flagrante. Mantém-se um projeto de sociedade holista, harmônica e liberta de
conflitos internos. No entanto, as críticas comumente feitas a tal postura devem
ser encaradas com reservas. A sociedade integrada, sem conflito de classes e
infensa ao conflito competitivo de mercado, próprio do liberalismo (o liberalis­
mo, por sinal, permanece demonizado, como doutrina e postura predatória e

150
lesiva ao desenvolvimento nacional) é um telos. Há uma série de batalhas a
serem vencidas até chegar-se a esta sociedade. Se o inimigo maior é externo, os
seus aliados internos, encarnados pela oligarquia rural e pela burguesia retrógra­
da, devem ser combatidos. A sociedade brasileira é, portanto, dividida em dois
segmentos. Um deles é moderno, dinâmico, nacionalista, voltado para o desen­
volvimento e a emancipação nacional. O outro é retrógrado, parasitário, m ovi­
do por interesses egoístas e associados ao imperialismo internacional (depois de
um dado momento, identificado exclusivamente com os EUA). Empresários,
produtores rurais, trabalhadores, comerciantes fazem parte de ambos os seg­
mentos. Não é a inserção sócio-econômica que distingue a parte boa da parte
ruim, mas sim a posição voltada para a conquista da autonom ia ou para a
perpetuação da heteronomia. Os intelectuais também estão cindidos. Os autos
de acusação da produção intelectual “excessivamente acadêmica, tributária de
modelos importados e indiferente à ação concreta”, permanecem como um dos
m otes dos nacionalistas brasileiros. Frente a eles, é contraposta a vocação
ativista, engajada nas lutas populares, a necessidade de produção de uma ciên­
cia nacional (é o caso da sociologia em Guerreiro Ramos, por exemplo) que dê
conta dos desafios im postos à nação. Os im passes e as potencialidades da
democracia formal estão excluídos do universo de preocupações dessa geração.
Depois da breve febre democrática do imediato pós-guerra, a mesma desconfi­
ança em relação à democracia que assaltara os espíritos de 30 reaparece. Tam­
bém nesse caso, porém, creio ser precipitado utilizar a negligência em relação
ao tema como sinal de um suposto autoritarismo. As questões institucionais
referentes ao sistem a representativo sim plesmente não pareciam prioritárias
para praticamente todos os setores da intelectualidade e da elite política brasilei­
ra, nos anos 50 e 60. Fossem ou não nacionalistas, estas não se configuraram
como questão. Antes de revelar-se um mero traço do autoritarismo nacionalis­
ta, em geral, e isebiano, em particular, como querem seus críticos posteriores,
tal negligência remete a uma tradição política, cultural e intelectual mais ampla
e perene em nossa história.
As teses nacionalistas foram fartamente difundidas, para o que contribuiu o
espírito aguerrido de seus defensores. Não chegaram, porém, a ser unanimidade.
A década de 50 foi marcada por um acirrado debate entre os isebianos, radicados
no Rio de Janeiro, e alguns intelectuais paulistas, que se manifestaram através da
Revista Brasiliense. Enquanto os cariocas criticavam os intelectuais paulistas por
seu academicismo e suas veleidades tidas por positivistas, os intelectuais paulistas
viam com desdém o espírito militante e, por conseqüência, pouco rigoroso das

151
teses cariocas. O confronto, que teve entre os paulistas intelectuais da envergadu­
ra de Florestan Fernandes e Caio Prado Júnior, desdobrou-se posteriormente. Já
no período imediatamente posterior ao golpe de 64 as teses nacionalistas e as
posturas políticas delas derivadas são objeto de reavaliações, inicialmente tími­
das. Elas ganham maior contundência após o AI-5 e são radicalizadas no final da
década de 70 e no início dos anos 80. A princípio, não são críticas dirigidas
propriamente ao nacionalismo. Ele permanece como referencial importante para
a produção intelectual do intervalo 64/68, só caindo em descrédito no último
período assinalado, nos primeiros anos da abertura, quando ficou associado às
doutrinas de segurança nacional e às políticas do milagre econômico do regime
militar. Cabe agora recolocar o brizolismo no centro da discussão.
E m bora já tenha sido m encionado, não custa repetir que não pretendi
reconstituir em poucas páginas a história do nacionalism o no B rasil. O re­
corte estabelecido priorizou e negligenciou voluntariam ente algum as teses e
aspectos dos nacionalism os brasileiros. A intenção foi esquadrinhar as filiações
culturais, políticas e ideológicas de um dos aspectos m ais fundam entais do
debate em torno do brizolism o no período pós-79. Estou convencido de que
alguns dos aspectos m obilizados no debate em torno do brizolism o rem on­
tam às bases da form ação republicana brasileira. Tanto B rizóla e seus segui­
dores, quanto seus críticos reencenam dissensos e projetos de sociedade,
diagnósticos das carências e debilidades brasileiras, a partir de perspectivas
fundadas em solos, cuja sedim entação principia no m esm o m om ento em
que é iniciada a organização institucional republicana. O traço positivista no
modo como o nacionalism o brizolista enquadra a realidade nacional é ape­
nas um dos sinais m ais visíveis dessa radicação. A própria filiação sua a
um a linhagem de lideranças políticas gaúchas, iniciada por Júlio de Castilhos,
continuada por B orges de M edeiros e exponenciada, no âm bito nacional,
por Vargas é eloqüente quanto a esse ponto. Não apenas B rizó la e seus
seguidores, mas os embates políticos que envolveram o brizolism o têm raízes
culturais, políticas e intelectuais profundas no Brasil. A identificação pura e
sim ples do brizolism o com o ideário das décadas de 50 e 60, pertinente,
inclusive, pelas explícitas ligações entre a figura pública de B rizóla com a
agitação da vida brasileira daquele período, traz em si o risco da perda das
filiações sim bólicas antigas a que está vinculado. A própria m ovim entação
dos anos pré-golpe são tributárias a uma tradição anterior, com a qual bus­
cava rom per em alguns aspectos, e eventualm ente o fazia, m as com a qual
m anteve tam bém inequívoca proxim idade.

152
Se, p or um lado, aquilo que, n esta pesquisa, está sendo cham ado de
b rizo lism o é expressivo do período histó rico fundado pelo p rocesso de
redemocratização do país, por outro, as posições defendidas e mesmo as for­
mas de formulá-las são tributárias de uma espécie de caldo de cultura política
fortemente enraizada na historia política e intelectual brasileira. Isso é atestado
pelas reiteradas alusões ao passado, repetidamente evocado como instrumento
legitimador ou desqualificador de posições tomadas. O mesmo vale para a von­
tade expressa por protagonistas do debate político em representar a continuida­
de ou a ruptura com a tradição. A República anterior ao golpe, e não somente
aquela fundada em 45, é continuamente reinventada pelos atores políticos do
período pós-79 como uma experiência plena de significados, exemplos e lições
que m arcam os campos de atuação e identificação dos atores na esfera pública.
Finalmente, cabe salientar, lembrando ainda uma vez Brubaker e sua definição
de nação como prática política, que seria um equívoco restringir os debates em
tomo do nacionalismo a simples peças de história das idéias. Nação e naciona­
lismo têm sido, no Brasil, experiências e formas de enquadrar a realidade brasi­
leira, mesmo quando sinais negativos são imputados ao nacionalismo. A disputa
em tomo da prioridade da questão nacional corresponde a disputas por identi­
dades a serem incorporadas ao espaço público.
A mesma impressão de incompletude e de carência que marcou o naciona­
lismo, no Brasil, é observada no projeto político e social personificado pela
liderança de Brizóla. Desde que retorna do exilio, ele e seus colaboradores
buscaram o equilíbrio perfeito entre o vínculo com o passado de lutas e a
sensibilidade para as novas demandas, que a experiência traumática dos anos
autoritários e as mudanças ocorridas no país impunham. A democracia formal
deixara de ser vista com desconfiança e passara a ser um bem em si. O próprio
PCB, que até meados da década de 50 rejeitara a democracia formal, denunci­
ando seu caráter m istificador e defendendo a organização das m assas para a
ação revolucionária, reforça, ao longo da década de 70, as teses da Declaração
de Março de 58, assumindo a prioridade da ação política e a luta pela democra­
cia. A sociedade civil surgiu como ator privilegiado da ação política, sendo sua
vitalização e organização dados cruciais para a reordenação da vida pública.
Seria arriscado dizer até que ponto o almejado equilíbrio foi alcançado. Cabe

51 C om o já foi citado no capítulo anterior, a Declaração de M arço de 5 8 é um divisor de águas na história do PCB. Por
ela, o partido assume a luta política, dentro dos mecanismos legais de organização e representação, com o forma
legítim a e mais apropriada de atuação. Ver Brandão 1 997 . Segundo Werneck Vianna, a adoção da dem ocracia não
foi infensa a am bigüidades, conhecendo, mesmo, pela resolução do Com itê Central de 1975, um breve retrocesso.

153
observar como foi formulado o esforço nesse sentido. Por seu passado e sua
forma de atuação política, as relações de Brizóla com os mecanismos formais
da democracia sempre foram complicadas. Esse foi um dado da memória evo­
cado por seus adversários. No que toca ao seu projeto civilizador, a via de
acesso à modernidade foi a social-democracia, então em alta na Europa, ou o
projeto nacional-dem ocrático, tal como form ulado pelo cham ado grupo do
México. Conciliar a social-democracia com o trabalhismo e o nacionalismo não
pareceu tarefa das mais complicadas. Afinal, o sistema do welfare implicava a
atuação intensa do Estado como corretor de iniqüidades muito pronunciadas, o
que supunha prosperidade econômica e uma certa m inimização dos conflitos
entre classes. Não implicava negação do sistema produtivo de tipo capitalista
mas não abria mão do uso de recursos legais para humanizá-lo. Reconhecia os
conflitos internos das sociedades modernas, mas não os reduzia ao critério de
classe social, pondo em questão o problem a da discrim inação das minorias
sexuais, étnicas e religiosas.
A costura de alguns traços da social-democracia com o nacionalismo e de
ambos com o antigo trabalhismo foi a forma como o novo PTB, depois trans­
formado em PDT, inseriu-se no espectro político pós-abertura. A meta seria a
construção de uma sociedade socialista (tal como entendida, de forma genérica,
pela social-democracia). O trabalhismo seria o caminho e a afirmação nacional
sua condição de possibilidade. Tal projeto guarda com seus antecessores naciona­
listas a visão holista de sociedade, o reconhecimento da aliança dos interesses
externos com a parte retrógrada da sociedade nativa como a causa da penúria e
do subdesenvolvim ento. Nesse projeto, o Estado ocupa papel central, como
promotor do bem estar, como incorporador das massas de excluídos. O povo é
o depositário legítim o da identidade nacional. Não propriam ente pelas suas
tradições e valores culturais, como nos nacionalismos europeus, mas por suas
potencialidades, tal como pensavam os isebianos e antecessores. E necessário
m oldá-lo, conscientizá-lo, enfim, é necessário criar e prom over um a nação
onde, devido a pressões elitistas e externas, só há massa disforme, desassistida
e impotente. Há uma nação que deve emergir do abandono e das margens do
mundo formal, e o brizolismo é pródigo em mobilizar os símbolos necessários
para em preender essa tarefa. Cria a imagem síntese do homem brasileiro, o
homem da massa a ser transformada em nação. Ele é sujo, miserável, mestiço e
banguela. Define os documentos fundadores da nação: a Carta-Testamento de
Vargas, a obra de Alberto Pasqualini e a Carta de Lisboa. Erige os monumentos
integradores: as construções dos Cieps e o Sambódromo. M arca sua inserção

154
na modernidade pela via social-democrata, assumindo a rosa trabalhista como
sím bolo do partido e o azul, cor tradicional dos m ovim entos da juventude
socialista européia, em sua bandeira. Explicita sua filiação ao passado guerreiro
com os lenços vermelhos maragatos. Erige seus mártires, os heróis do passado:
Vargas e Jango. Ao contrário dos nacionalismos anteriores, tem um passado
glorioso a ser evocado. Usa, de forma inédita nos nacionalismos brasileiros, a
memória e a história. Seu marco inicial é 30. Antes estivéramos na pré-história,
numa espécie de esfera do caos que antecede a origem dos tempos nas teogonias
antigas. Também nelas há as potências elementares, os heróis do Sul, como
Júlio de Castilhos. A Revolução de 30 e a posterior invenção trabalhista m ar­
cam o início da história, os fundamentos da tradição. Já foi mencionada, no
capítulo anterior, a ênfase na memória como dado central no discurso brizolista.
Foi exposto também o modo como o discurso brizolista articula a memória com
a tarefa de conhecer a história recente brasileira, chave para a compreensão de
seu estágio atual. Com ela, institui uma leitura do Brasil.
Esses são elementos importantes que não poderiam ser negligenciados, mas
não esgotam o sentido do apelo à memória e à história, operado pelo discurso
brizolista. O lugar da memória e da história é dotado de maior complexidade,
posto que ambos são o fundam ento da B ildung brizolista, de seu projeto
civilizador, entendido como estratégia de intervenção sobre a realidade em que
está inserido. A história da nação confunde-se com a tradição trabalhista (daí a
Carta-Testamento de Vargas e a obra de Pasqualini funcionarem como docu­
mentos fundadores). Tradição de um passado irrealizado, mas que, de qualquer
modo, merece ser evocado, pois seu fracasso deveu-se à conspiração de forças
estranhas poderosíssimas. Fonte de nostalgia, sentimento inarredável de qual­
quer programa de construção de uma Bildung.
Deixemos um pouco de lado os debates e vejamos como os símbolos são
semantizados, como confluem num discurso nacional e popular, forjando as
imagens da nação a ser inventada e os modos de fazê-la emergir.

O sorriso do banguela
Em publicação de campanha dedicada à biografia de Brizóla, José Arthur
Poemer faz a seguinte observação: “Os comícios de Brizóla são o lugar de maior
concentração de desdentados por metro quadrado no Brasil”. A afirmação entu­
siasmada é reveladora de um projeto político, de uma ideologia e do princípio
estético que a orientam. A ideologia é o nacionalismo. O projeto político, a elabo­

155
ração de estratégias voltadas preferencialmente para os excluídos de todos os
matizes. A opção pelos pobres e excluídos em geral. A estética, centrada na figura
expressiva e perturbadora do riso ou grito sem dentes, a boca escancarada do
banguela, que representa o homem destituído da potência cívica da cidadania e
dos bens que ela implica. Tratar o brizolismo como construção de um projeto
político para o Brasil e criação de uma agenda de debates em tomo de alternativas
de atuação significa, em grande parte, entender a metáfora do banguela, símbolo
e síntese da massa de excluídos da sociedade brasileira e do próprio brizolismo.
A primeira vista, a opção pelos banguelas presta-se muito bem ao reconhe­
cim ento de traços apontados como extrem am ente negativos e perigosos da
atuação brizolista. O eixo central dessa leitura é o conceito de lúmpen-proletari-
ado, tal como descrito por Marx, em O 18 Brumário de Luís Bonaparte. Os
acontecimentos desencadeados em 48, com a queda da monarquia, e que leva­
rão ao golpe de estado perpetrado por Luís Napoleão, em 51, são a crônica de
um a alian ça bem -sucedida das m assas conservadoras, d eso rg an izad as e
embrutecidas com um líder medíocre, um

"(...) aventureiro surgido de fora, glorificado po r uma soldadesca em briagada,


com prada com ag uardente e salsichas e que deve ser constantem ente reche­
ada de salsichas."52

O ensinamento deixado por Marx, em sua análise sobre a instauração do


império na França, revela os percalços originados na aliança da burguesia com
os setores conservadores contra o proletariado organizado, na debilidade da
própria burguesia para assumir o poder político correspondente a seu papel
histórico e a sua força econômica. Daí a emergência de uma liderança despóti­
ca, antidemocrática, que extrai seu prestígio da aliança com a escória e do uso
indevido da mística em tomo do nome de seu tio. Revela, sobretudo, os riscos
da ascensão ao poder desse personagem primitivo, incapaz de fazer-se repre­
sentar, cujo triunfo leva a França ao despotismo, à desonra e à humilhação.
O espectro do lúmpen-proletariado pairou sobre o brizolismo de tal modo
que mesmo seus adeptos se dedicaram a abordá-lo. Esmeraram-se em apresen­
tar razões para que se dissociassem os excluídos e miseráveis, de que o brizolismo
seria o mais empenhado defensor, da imagem de chusma ignóbil e desarticulada
assumida pelo lúmpen-proletariado, a partir da descrição de Marx. Da mesma
forma, os críticos do brizolismo se fartaram em desfiar as evidências da associ­

52 Marx, 1974: 402.

156
ação. O banguela, lido de maneira rápida, presta-se bem para estes críticos. Se
sofisticados, eles podem remeter o apelo ao banguela a tradições consagradas e
arcaicas de certas práticas políticas no Brasil, beneficiárias da ausência de den­
tes na população pobre. E comum e fartamente divulgado que os altos índices
de banguelas na população brasileira funcionam como importante instrumento
eleitoral, servindo como mecanismo reprodutor de práticas clientelistas e de
compra de votos. Muito usada no interior do país, a negociação consiste em
trocar dentaduras por votos. Ela é reveladora do padrão atrasado das relações
entre parte da elite política e seu eleitorado, do baixo grau de politização e
organização desse último, do alto índice de banguelas no país e, finalmente, da
grande valorização dos dentes na sociedade. Ter ou não dentes é revelador de
um status social, do maior ou menor grau de miserabilidade e exclusão a que
homens e mulheres estão reduzidos. O apelo aos banguelas corresponderia à
pretensão de eleger essa massa supostamente primitiva, do ponto de vista polí­
tico, como a base preferencial de sustentação.
Estou convencido que esta é uma interpretação rasteira do apelo aos ban­
guelas, tal como celebrado pelo propagandista brizolista. Serve como arma para
o embate político. Mas é precária do ponto de vista da interpretação. Entendo o
banguela como a metáfora do projeto civilizador brizolista. O poder da metáfo­
ra, como sugere Geertz,

"...o rig in a -s e precisam ente da in fluên cia recíproca entre os significados dis­
cordantes que ela força, sim bolicam ente, num arcabouço conceptual u n itá rio
e do grau em que essa coerção consegue sucesso em sup era r a resistência
psíquica que a tensão sem ântica gera in evitave lm en te em q u a lq u e r um que
esteja em posição de percebê-lo. Q uando bem -sucedida, um a m etáfora trans­
fo rm a um a falsa id entifica ção (por exem plo, da po lítica sindical do Partido
Republicano e a dos bocheviques) num a a n alo gia ad eq ua da; qu a n d o ela fa ­
lha, to rn a -se um a e x tra v a g â n c ia ."53

No caso em questão, o banguela dá forma e tom a concreta a idéia genérica


do excluído. É expressivo da condição a que ele foi reduzido pelas elites e pelo
imperialismo. Mais ainda, é expressivo do caráter predatório da ação do imperi­
alismo no Brasil. Miserável, destituído dos direitos sociais, econômicos, políti­
cos e civis, o banguela é a metáfora do homem brasileiro, uma espécie de tipo
ideal dotado de poderosa força semântica, caracterizado pela privação dos m ei­
os de desfrutar sua “brasilidade” . Mas a força semântica do banguela não se

53 Geert, 198 9 :1 8 1 -2 .

157
resume à remissão aos pobres e postos à margem da m oderna sociedade de
consumo. Ela é mais abrangente, daí a minha alusão repetida aos excluídos.
Entre eles estão todos aqueles cujos interesses e, principalmente, as identidades
não estão incorporados ao espaço público. Sendo um projeto fundamentalmen­
te incorporador, a Bildung brizolista, que tem no banguela sua metáfora, inter­
pela as barreiras impostas aos negros, às mulheres, às populações indígenas de
se incorporarem afirmativamente no debate público pautado e controlado por
um ethos burguês, branco, masculino e colonizado. E nesse sentido que o ban­
guela pode ser entendido em toda sua magnitude.
O significado do dente é esclarecedor para o sentido do banguela na
sim bologia brizolista. Para Freud, os dentes simbolizam o poder, a potência
devoradora do animal sexual que é o homem. A destituição dos dentes, a priva­
ção deles, corresponde à impotência, à destituição da força, à subm issão, à
fealdade. O banguela dá forma, portanto, ao homem e à m ulher brasileiros
subjugados, espoliados. Há, no entanto, um detalhe que perturba esse primeiro
sentido: a alusão ao banguela é crua, direta, quase sem molduras retóricas, que
poderiam cercar a metáfora de uma aura de compaixão. A boca do banguela é
brandida como se fora um a arma. O espaço em que ela aparece tam bém é
sugestivo: não está nos rincões distantes do interior, nas periferias fétidas ou
nas favelas. Ela é figurada num comício, num ato público, escancarada num
riso maroto ou num berro guerreiro. M ostra-se obscena, enorme, sem-vergo-
nha. É agressiva ou jocosa. Impotente sim, mas disposta a expor sua hum ilha­
ção sem rodeios, cobrando a conta dos responsáveis por sua condição deplorá­
vel, forçando as barreiras que a empurram para as margens do cenário público,
mediante as construções idealizadas do povo que é belo, bem nutrido e feliz.
Não há correlação possível entre esta boca sem dentes e aquela disform e e
opressiva figurada no grito de M unch, por exemplo. O herói brasileiro do
brizolismo, a metáfora que sintetiza o homem nacional, é o banguela impotente
que, sem cerimônia, se expõe em praça pública, a incomodar os responsáveis
por sua condição com o espetáculo perturbador de sua própria impotência.
Revela-se, assim, uma ambivalência da metáfora do banguela que a leitura
literal ou politizada tende a negligenciar. O próprio tom em que a imagem do
perfil ou do eleitorado brizolista é construída na peça de propaganda, a um só
tempo bem-humorado e reverente, revela isto. Perdida essa ambivalência, fica
vedado um canal privilegiado de interpretação da Bildung brizolista e de seus
mecanismos estetizantes. Seu poder semântico pode ser adequadamente inter­
pretado mediante a combinação do grotesco rabelaisiano (tal como entendido

158
por Bakhtin), do sublime burkiano e da adoção do discurso popular pelo cristi­
anismo (tal como exposto por Auerbach em sua análise sobre Francisco de
Assis).
A obra de Rabelais é urna das mais bem-sucedidas transposições das práti­
cas e do espirito da cultura popular do fim da Idade Média e do Renascimento
para o discurso literario. Nela, a valorização do riso, das imagens corporais e da
sátira, próprias da cultura popular de então, têm no grotesco o canal privilegia­
do de expressão. Indo de encontro à interpretação dom inante do grotesco,
Bakhtin acentua que, além do hiperbolism o, do exagero, da profusão e do
excesso, da ridicularização de certos fenômenos sociais, o grotesco é marcado
decisivamente pela ambivalência. Não se trata, portanto, no grotesco, da mera
ridicularização dos fenómenos negativos, do seu exagero, trata-se, também, da
afirmação de uma espécie de cosmovisão popular que se desenrola à parte da
cultura dominante e oficial. Nela, a linguagem do corpo desempenha um papel
essencial. E nesse sentido que, em se tratando de bocas e imagens populares, o
grotesco rabelaisiano aparece como recorrência necessária:

"(...) para o grotesco, a boca é a parte m arcante do rosto. A boca d o m ina . O


rosto grotesco se resum e a fin al em urna boca escancarada, e to d o o resto só
serve p a ra e m o ld u ra r essa boca, esse a b ism o c o rp o ra l e sca nca rado e
devorador."54

A valorização do baixo corporal, no grotesco, leva à equivalente valorização


do ventre, dos órgãos genitais e do ânus como as partes mais importantes da
topografía corporal. Com eles, a boca guarda uma estreita relação, chegando a
subsumi-los e ordená-los em tomo de si. Longe de representar uma simples sátira
aos costumes reservados e pudendos da cultura oficial, tal valorização expressa
uma visão de mundo típica das classes populares reunidas nas feiras, nos carna­
vais e demais encontros públicos celebrados nas praças. Imagens de vida/morte,
nascimento/perecimento, dentro/fora, são associadas predominantemente às par­
tes do corpo, dentre as quais a boca ocupa um lugar especial:

"A im agem da bocarra escancarada associa-se organicam ente às da deglutição


e da absorção, por um lado, e às do ventre, das entranhas, do parto por outro.
As im agens de banquete, assim com o as da m orte, da destruição e dos in fe r­
nos, g ra vitam em to rn o d e la ." 55

54 Bakhtin, 1993: 277.


55 IB!D., p. 296.

159
Por que razão a boca desempenha, na cultura popular, papel tão decisivo?
A ela estão associados simbolicamente a ambivalência que m arca a concepção
popular de mundo. Nesta, são importantes tanto os orifícios, daí o destaque
também dado ao ânus e aos órgãos genitais, quanto as excrescências. Eles são o
lugar por onde se ultrapassam as barreiras entre os corpos e entre o corpo e o
mundo. Bakhtin chama atenção para o grande número de filósofos contempo­
râneos de Rabelais que se empenharam em formular teorias que estipulavam a
correspondência entre a ordem cósmica e a constituição do corpo. Tal corres­
pondência é um dado da cultura popular fartamente explorado por Rabelais, o
que, segundo Bakhtin, sugere uma certa afinidade entre as formas populares de
enquadram ento do mundo e a cultura filosófica. A exposição do corpo, tal
como feita no grotesco rabelaisiano, é de especial interesse quando confrontada
com as m udanças que se operam na cultura ocidental que inauguram a
modernidade:

"N a im agem do corpo individual visto pelos tempos modernos, a vida sexual, o
comer, o beber, as necessidades naturais m udaram com pletam ente de sentido:
em igrara m para o piano da vida corrente privada, da psicologia in divid ua l,
onde tom ara m um sentido estreito, específico, sem relação algum a com a vida
da sociedade ou o tod o cósmico. N a sua nova acepção, eles não podem mais
servir para exp rim ir uma concepção do m undo como faziam a n te s ."56

Pela exposição pública da boca banguela no brizolismo, pode-se observar


um a certa recuperação da abordagem grotesca do corpo. A centralidade da
boca, o exagero registrado de forma divertida, pela constatação de que não há
outro lugar em que se concentrem tantos desdentados, introduzem, na política,
o grotesco e sua ambivalência semântica. Introduzem o popular no mundo das
elites dirigentes. É lamentável que haja desdentados, mas é positivo que eles
acorram à praça pública, quase festivamente, prestando sua adesão a Brizola
com o espetáculo perturbador que remete a imagens de nascim ento e morte,
deglutição e excreção.
Espetáculo perturbador. Tocamos no cerne da estética brizolista. Isso por­
que o princípio estético brizolista não é fundado no belo, como nos discursos
ufanistas que enaltecem as belezas naturais e a graça de homens e mulheres
57
brasileiros. Seu fundamento é o sublime burkiano. O sublime, em Burke, é a
fonte das mais fortes emoções que o espírito humano é capaz de experimentar.

56 Bokhtin, 1 9 9 3 :2 8 6 .
57 Ver Burke, 1990.

160
Tais emoções não se referem ao prazer ou ao encantam ento, mas, antes, ao
horror, à dor e à ameaça de destruição e morte.

"Q u a lq u e r coisa que se ajuste às idéias de d o r e pe rigo , vale dizer, o que


q u e r que seja terríve l ou que possa ser convertido em objetos terríveis, ou
opere de m aneira análoga ao terror, é um a origem do sublim e; ou seja, p ro ­
duz a em oção m ais fo rte que um espírito pode sentir. D igo a em oção mais
fo rte p o rqu e estou seguro de que as idéias de d o r são m uito m ais poderosas
do que aquelas relativas ao prazer." 58

As imagens associadas ao sublime são aterrorizantes, põem os indivíduos


diante da fatalidade da dor e do aniquilamento que evidenciam a precariedade
da ordenação do mundo. Estão além da compreensão e da inteligibilidade exa­
tamente porque desencadeiam os sentimentos que remetem à negação de qual­
quer inteligibilidade possível. Daí o temor que suscitam. Este é um sentimento
fundam entalm ente hum ano, talvez o m aior de todos. C ertam ente, segundo
Burke, o mais intenso.
Há um dado curioso no sublime que precisa ser destacado. Segundo Burke, a
sociabilidade humana é articulada por três paixões fundamentais: a simpatia, a
ambição e a imitação. Aqui, a simpatia interessa especialmente. A simpatia é a
propriedade pela qual o homem é assaltado por certos sentimentos diante do
espetáculo do que ocorre com seus semelhantes. Ela é uma espécie de substitui­
ção, pela qual um homem (ou uma mulher) pode colocar-se no lugar do outro(a).
Os sentimentos de dor vividos por outros homens (e mulheres) exercem um
especial fascínio. Segundo Burke, e essa é uma idéia fundamental em sua teoria
sobre o belo e o sublime, o espetáculo da dor alheia exerce uma poderosa atração,
causando, na maior parte das vezes, uma sensação de deleite (delightful) por
parte do espectador. Inversamente, sendo a simpatia a capacidade de “por-se no
lugar de”, o espetáculo da dor pode levar o espectador a compartilhar dela, trans­
formando a simples observação em uma experiência da dor que já não é apenas
59
do outro . Por isso a simpatia pode ser, ela própria, a origem do sublime. Nesse
segundo caso, temos no sublime um forte componente solidarista e associativista:

"O deleite que sentim os com tais coisas im pede-nos de evita r cenas de m isé­
ria ; e a d o r que sentim os leva-nos a a b ra n d a r a nós m esmos, a u xilia n d o

58 Burke, 1990:36.
59 O conceito rousseauista de com paixão, bastante próxim o à simpatia de Burke, é explorado por Luiz Eduardo Soares
em "O luga r do sofrim ento hum ano no pensamento político m oderno", em Soares, 1993.

161
aqueles que sofrem ; e tod o esse antecedente por q u a lq u e r razão, p o r um
instinto que age sobre nós para seus pró prio s propósitos, sem nossa a q u ie s­
cência." 60

A experiência do sublime, portanto, exatamente pelo que tem de perturbadora,


é dotada de positividade ontológica e social. Está na base de um a forma de
socialização, podendo funcionar como força produtora de identidade. Reunidas
em praça pública, inflamadas por aquele que sabe ler suas fantasias e frustrações,
as bocas sem dentes causam terror: o maior deles é a ameaça de destruição da
ordem vigente e da primazia das elites. Se metamorfoseiam em força de dissolu­
ção e aniquilamento. Expostas em seu completo abandono, podem também sus­
citar a solidariedade daquelas camadas sempre dispostas a abraçar as “boas cau­
sas”, a solidarizar-se com os oprimidos e compartilhar de sua dor. Dessa perspec­
tiva, o reclame citado que serve como mote para esta seção é um apelo que se
dirige não somente à massa de excluídos mas, também, àqueles que, pela simpa­
tia (à causa, digamos assim), se identifiquem solidariamente com estes.
Ainda um traço do sublime burkiano deve ser mencionado. Pelas alusões reite­
radas, existe uma associação tácita entre a boca banguela e a cor de seu dono. Esta
última não está posta explicitamente, mas o conteúdo dos discursos e das peças de
propaganda brizolistas suscita que tal associação se dê de forma quase natural. A
boca banguela é negra ou mestiça. Aí está a linguagem das cores, no sublime
burkiano. Segundo Burke, as cores do sublime são o preto e as misturadas; o
marrom, o cinza, o púrpura. São essas as que remetem às mais fortes emoções
humanas. As emoções que remetem à dor, à morte e à destruição.
Não creio que pareça forçada, ao leitor, a associação entre o grotesco
rabelaisiano, de origem popular, o sublime, definido por um aristocrata britâni­
co, e a simbologia brizolista. Nos três estão presentes enquadramentos do mun­
do e da sociedade marcados pelo excesso, pelas imagens que remetem à criação
e à morte, pelo que há de perturbador na existência humana. No entanto, a
apreensão do significado civilizador que a simbologia brizolista traz em si, na
figura do banguela, só fica completa quando entra em cena sua dimensão cristã.
Esta é a porta por onde se incorpora à presente análise a experiência de lingua­
gem em Francisco de Assis, tal como analisada por Auerbach.
Tenho reiterado que o discurso brizolista se estruturou voltado para os
excluídos em geral. Dessa perspectiva, os miseráveis e deserdados são apenas

60 Burke, 199 0:43 .

162
um dos objetos privilegiados. Neste apelo, é surpreendida a filiação marcadamente
cristã do discurso brizolista. Fazer política numa perspectiva brizolista é, funda­
mentalmente, assumir com radicalidade a opção pelos pobres e desvalidos. É
essencial perceber que nos rituais e nas festas em que o brizolismo é celebrado
estejam presentes os mais humildes, os mais pequeninos dos homens. Mais do
que isso, que eles tenham lugar no centro dos eventos. Daí a forma coloquial da
conversa que freqüentemente Brizóla alterna com o tom m ais inflamado em
seus discursos. Brizóla é pródigo em entremear seus discursos com imagens
telúricas, analogias, exemplos, aciona imagens populares e conta casos de sua
terra. Utiliza-se do discurso dos simples, e faz de suas falas verdadeiras expla­
nações didáticas. Como ele próprio e seus companheiros não cansam de repetir,
ele é um homem que veio de longe, curtido pela vida, e extrai da experiência de
muitas viagens a muitos lugares diferentes, “empírico que é”, a sabedoria que
compartilha no auditório do partido, no palanque ou via satélite, acumulada ao
longo dos muitos anos de luta. De suas viagens, traz histórias de lugares longín­
quos para um público que nem de longe imagina o que significa estar conectado
na internet. Assemelha-se a um dos ancestrais históricos do narrador, descrito
por Benjam ín: o m arinheiro que viaja pelo mundo, coletando histórias que
extrai da experiência dos muitos lugares visitados.
Faz parte do brizolismo uma incisiva e veementem ente repetida aversão
aos intelectuais. Este não é um dado sociológico: vários intelectuais estiveram
ou estão, ainda hoje, entre os seus colaboradores ou adeptos entusiasmados.
No entanto, a rejeição à figura típico-ideal do intelectual como um personagem
sofisticado, membro das elites, bem nascido e detentor de um patrimônio es­
casso, numa sociedade habitada preponderantemente por gente carente de le­
tras e de dentes, funciona não tanto como negação do homem de idéias em si,
mas como reiteração da escolha pelos humildes, pelos fracos e espoliados. Este
é um dado da econom ia discursiva do brizolism o. Trata-se de negar a fala
supostamente empolada e incompreensível para os mais humildes. Na sua cons­
trução discursiva, os esquemas explicativos sofisticados e as palavras de ordem
são substituídos pelas narrativas e pelas imagens extraídas da cultura popular.
Esta é a opção cristã, que tem provavelmente em Francisco de Assis, analisado
por Auerbach, seu maior ícone. Falar aos humildes, assimilando sua própria

61 Esse é o estilo característico dos pastores protestantes. Vale lem brar que o padrasto de Brizóla era pastor e que ele
próprio, Brizóla, quase seguiu seus passos.
62 Retomarei este ponto no capítulo V.
63 Sobre a opção cristã pelos pobres e, em especial, remetida a São Francisco de Assis, ver Auerbach, 1 976.

163
linguagem, para daí cumprir a tarefa de conduzi-los pelas sendas que os prom o­
verão à dignidade humana, é o enquadramento mais pronunciado desta concep­
ção política. Juntar-se a Brizóla é unir-se a esse rebanho. Fazer dessa escolha
um a espécie de apostolado, de dedicação a uma tarefa superior. Acentua-se,
nessa tarefa, a imagem tipicamente cristã do povo-rebanho. A quem se deve
64
dedicar com devoção e cuidado. Pronuncia-se, simultaneamente, o conteúdo
marcadamente positivista que sustenta o discurso brizolista. Nesse aspecto es­
pecífico, cristianismo e positivismo caminham lado a lado.
A opção pelos pobres, reiterada seguidamente como marca do brizolismo,
estende-se ao partido. Quando comparado ao PT, o PDT é apresentado por seus
próprios membros como “um partido mais sujinho, esfarrapado, feioso” (apenas
como alusão, vale notar que o feio também é, para Burke, componente do subli­
me). O PT seria um partido da moda, da juventude de classe média. O PDT seria
o partido da gente espoliada, negra e mestiça, dos subúrbios e da periferia miserá­
vel da cidade, daí sua baixa penetração nos meios universitários, por exemplo. O
antigo PCB, “com seus intelectuais sofisticados, suas teses im portadas e
dogmáticas”, também estaria distante do público a que o brizolismo se dirige e se
dedica. Ele estaria radicado nos buracos onde não há esgotos, onde as casas não
têm rebocos e não há água encanada, escolas, hospitais. Há uma estética da
miséria pela qual ela, a miséria, é convertida em virtude. Da perspectiva brizolista,
a alusão ao lúmpen-proletariado, a que seus adversários acima mencionados fa­
zem alusão, nada mais é do que a expressão de seu elitismo.
Mistificação populista, manipulação das massas. Os autos de acusação contra
a opção brizolista encontram qualificativos de todos os lados do espectro políti­
co. Para o bem ou para o mal, ela acabou aderindo à sua imagem. Esse é o
ponto que interessa fundam entalm ente à m inha análise. E tam bém para tal
aderência as vozes de seus críticos e concorrentes contribuíram. Para estes, o
brizolismo representa o lúmpen-proletariado, tira seus dividendos das massas
desorganizadas e ignorantes, sempre ávidas por um Messias que lhes prometa a
redenção. M anipulador de massas, desordeiro e agitador, sempre pronto a in­
cendiar com falsas idéias os espíritos ordinariamente pacatos e disciplinados
dos homens do povo. Do ponto de vista das imagens simbólicas mobilizadas
pelo discurso brizolista, é necessário dizer, esta é uma leitura insuficiente. Para
o embate político, tem obtido alguma eficácia. O espetáculo da abertura dos
portões do Palácio Guanabara ao povo, no dia da posse do governador Brizóla,

64 Sobre o Estado e a política de uma perspectiva cristã, ver Veyne, "Foulcault revoluciona a história", em Veyne, 1992.

164
em 1983, converte-se, da perspectiva brizolista, em um assalto das massas ao
reservado espaço do centro decisório do estado do Rio de Janeiro, prom essa de
um a incursão futura no plano nacional. O povo é o poder. O espetáculo
aterrorizante de jovens negros a correr de um lado para o outro no verão de
1993, nas praias da Zona Sul da cidade, inspira a réplica: “Veja o que é o
brizolism o, sua política de direitos humanos é um conluio com o crime e a
desordem, cujo fim é o apoio financeiro do tráfico de drogas e da contravenção
nas campanhas eleitorais. Veja o espetáculo degradante a que a cidade foi leva­
da pelo brizolismo. Veja a horda de delinqüentes que se apossaram da cidade”.
Esta é a réplica dos críticos do brizolismo. Presentemente, tudo leva a crer que
a última versão mantém-se hegemônica.
O que há de fantasias e projeções nessas diversas e contraditórias percep­
ções é, justamente, o que mais importa. A visão de um a massa débil, belicosa e
pronta para tomar de assalto a ordem vigente foi acionada por todos os prota­
gonistas do debate político no qual o brizolismo esteve presente. E a essa massa
que o discurso brizolista se dirige. Ela é o objeto de sua mensagem mas também
seu enunciante, é a nação abortada que se deve levantar, tomar consciência de
sua potência. Deve ser civilizada, ao ser promovida a protagonista do debate
político.
Deformare, conformare e reformare. Esta é a tríade da Bildung cristã.65
No projeto brizolista, a primeira equivale à deformação do homem pela espoli­
ação imperialista e das elites (a boca banguela). A segunda significa alinhar o
homem destituído à imagem de seus heróis, símbolos da virtude nacional (a
boca banguela, que ri e que berra). A terceira se refere à regeneração do ho­
mem pelo trabalho, pela educação, pela consciência política e pela luta (a boca
das crianças que não mais serão banguelas). Enfatizar o abandono que caracte­
riza a condição do homem miserável é fundamental para que este se abra para a
ação civilizatória, para que supere sua condição. Esta parece ser a mensagem
subjacente à definição do homem brasileiro, na versão brizolista: a promoção
da boca banguela a imagem do herói nacional. O corpo grotesco, no discurso
brizolista, ascende ao topo da construção imaginária do processo político, m e­
diante a inversão que eleva os mais baixos, os excluídos, ao lugar mais elevado
do projeto civilizador. O contraponto da miséria aí exposta é a magnificência
das construções e o raio de alcance contido no Programa Especial de Educa­
ção, que ficou conhecido como o programa dos Cieps.

65 Assmonn, 1 994.

165
Educação e incorporação
A correlação entre o estabelecimento de um novo padrão de pertencim ento
no contexto de sociedades de massas, típico do advento dos Estados nacio­
nais, e a universalização do ensino básico é um dos traços mais freqüentem ente
destacados pelos teóricos do nacionalismo. É difícil im aginar outra alternativa
para a construção da comunidade em escala nacional. Sem as condições pro­
piciadas pela extensão do sistema de ensino, concebido como recurso integrador
e definidor de uma coleção de valores e de um patrim ônio de conhecimentos
que constituem um ethos, é inconcebível a experiência de nação. Para aquele
a quem está vedado o acesso à educação formal torna-se m ais difícil, virtual­
mente impossível, sua participação na comunidade nacional. E na educação
formal que se estabelecem os laços de identificação m útua em contextos soci­
ais, onde boa parte dos membros jam ais experim entará o contato face a face.
Desse m odo, a questão da educação ocupou sem pre um lugar central nos
discursos nacionalistas. No Brasil alcançou proporções dramáticas em todas
as suas configurações. Repito: não houve, em qualquer discurso nacionalista
brasileiro, com a exceção do ufanismo, um volk ou um narod a ser evocado.
Os esforços em erigir um passado glorioso foram, no mais das vezes, tímidos,
e sequer se arriscaram a apresentar uma lista muito extensa de grandes passa­
gens a serem recuperadas em sua história. Quando mais contundentes, como
no caso do nacionalism o isebiano e no presente caso brasileiro em análise, o
passado equivalia a uma espécie de anteontem, recente e muito vivo ainda. E
o povo... bem, o povo nem sequer o era no final do XIX e prim eiras décadas
deste. Nas décadas de 20, 30 e 40, era m assa amorfa, atrofiada, a ser educada.
Existia na década de 50, mas não tinha consciência de seu próprio lugar. Era
nação já, mas ainda carente de autonomia, quando o brizolism o surge no Sul
e migra para o Rio de Janeiro, no início dos anos 60. Era necessário educá-lo.
Sempre foi. Mesmo quando povo, restou tornar-se nação e, para tanto, este­
ve à espera da implementação de um program a pedagógico exaustivo, con­
tundente e inclusivo.
Não cabe aqui a discussão sobre o acerto de tal avaliação. Está fora de
dúvida que o acesso às capacitações básicas das modernas sociedades letradas
é ainda artigo de luxo para parcela bastante expressiva da população brasileira.
Este é um dado sociológico que mesmo as autoridades públicas não ousariam
desmentir. Mas o que importa aqui, mais uma vez, é a marca, o signo distintivo
de um projeto que se reconstrói no presente trabalho como caracterizado pela
expectativa de formação de um povo que seja sim ultaneam ente um a nação.

166
Trata-se de, juntando os cacos, articulando discursos, projetos e práticas, veri­
ficar os elementos constitutivos de uma Bildung, que está fundada na idéia de
inventar a nação brasileira, como é o caso, ao que me parece, do projeto
brizolista. Utilizo o verbo inventar apenas para sublinhar, ainda uma vez, que se
trata da construção coletiva de um projeto político que orienta uma prática e
confere inteligibilidade a um quadro social específico. N a visão dos próprios
atores, trata-se de conhecer a realidade e intervir nela. Aí, como não poderia
deixar de ser, a ênfase na educação escolar é crucial e ganhou o lugar de carro-
chefe da retórica brizolista, das administrações de Brizola e de sua destinação
individual.
Um informante brizolista lembra que o problema da educação ganhou des­
taque nas fileiras brizolistas no início da campanha de 82. À quela altura, a
candidata do PTB, Sandra Cavalcanti, ocupava o primeiro lugar nas pesquisas
com um discurso voltado predominantemente para as donas de casa e, conse­
qüentemente, fazia da crise do sistema de ensino público um dos pontos de sua
agenda. A carência de vagas nas escolas públicas e a penúria de seu corpo
docente eram duas das prioridades listadas pelo eleitorado, em todas as pesqui­
sas de opinião à época. Diante disso, lembra o informante, decidiu-se que o
problema da educação seria assumido pelo candidato do PDT como prioridade
de sua futura administração. Ainda que tenha sido, de fato, peça de campanha
naquele m om ento, a questão da educação se tornou item indissociável do
brizolismo. Não só pelas iniciativas polêmicas dos governos de Brizola, como
p e la s c o n tro v é rsia s su rg id a s em to rn o d elas. A lém d isso , in ic ia tiv a s
implementadas nas administrações de Brizola, quando prefeito de Porto Alegre
e governador do Rio Grande do Sul, conferiram crédito, ao menos a princípio,
à associação entre o projeto político de Brizola e a realização de investimentos
pesados na área de educação básica para os setores populares.
O Programa Especial de Educação (PEE) foi concebido, ainda em 1983,
pelo então vice-governador Darcy Ribeiro, em colaboração com uma série de
educadores de vasta experiência na área de educação escolar, como M aria Yeda
Linhares, Lia Faria e Laurinda Barbosa. Era um pacote de vários projetos
integrados entre si, que tinha como ponto de partida o reconhecimento de que o
acesso à escola é um requisito decisivo para a inserção na sociedade moderna,
tanto do ponto de vista econômico quanto social, político e civil. Vale ressaltar,
porém, o caráter incisivam ente político e combativo que a apresentação do
projeto recebe, logo quando começa a ser esboçado. Era encarado como inicia­
tiva fundam ental para a reversão de um quadro abrangente de exclusão e

167
marginalização dos setores mais carentes da sociedade brasileira. Buscou ade­
quar o espaço escolar às condições de vida das crianças, jovens e adolescentes
das camadas baixas. O núcleo do programa era composto pelos Centros Inte­
grados de Educação Pública (os Cieps), os Ginásios Públicos (GPs), e as Casas
Comunitárias (CCs). Após as primeiras experiências, e respectivas avaliações,
foram integrados ao projeto mais geral os Centros Integrados de Apoio à Crian­
ça (os Ciacs, nascidos de uma revisão do programa dos Cieps e formulados sob
encomenda, para serem adotados pelo governo de Minas Gerais - o que aca­
bou não ocorrendo). Cada um desses programas atendia a um certo segmento
etário e a alunos com um perfil específico no universo das populações carentes
do estado do Rio de Janeiro. Além dos projetos acima mencionados e conectados
a eles, foram concebidos, e implementados, os programas de Capacitação de
Magistério e o de Televisão Educativa. Este último é descrito como o canal do
programa com a modernidade. Por ele, os recursos audiovisuais e o ensino a
longa distância são incorporados ao projeto pedagógico, o que faz com que o
discurso brizolista reclame para si o pioneirismo nesse tipo de associação, esco­
la-televisão. Em sua implementação, passaram a ser transmitidos diariamente,
pela Rede Manchete de Televisão, para todo o estado, programas educativos
voltados para as camadas populares. Ainda segundo a descrição das realizações
brizolistas no campo educacional, foram celebrados convênios entre o governo
do estado e a Uerj com o objetivo de produção de material didático e elabora­
ção de instrumentos de capacitação e avaliação do corpo docente.
Os programas eram norteados por idéias relativamente simples, mas com
capacidade de sugerir que, a partir deles, operar-se-ia verdadeira revolução
social pela base. Adequar a dinâmica escolar às condições ordinariamente pre­
cárias do alunato que buscava atingir. Form ar profissionais capazes de lidar
com esse público específico. Criar um ambiente propício para que os alunos
pudessem desenvolver suas potencialidades, o que não poderiam fazer no am­
biente de suas residências. Oferecer-lhes a estrutura necessária para tanto, com
a construção de bibliotecas, aquisição de acervos didáticos os mais variados,
salas de estudo e profissionais que orientassem permanentemente suas ativida­
des escolares. A idéia era fazer com que os alunos permanecessem na escola ao
longo de todo o dia, que tivessem naquele espaço o suprimento de suas neces­

66 Para m aior facilidade expositiva, gostaria de deixar claro que as informações sobre o(s) projeto(s) foi(ram ) extraída(s)
de m aterial produzido pelo governo do estado do Rio de Janeiro, pelo PDT e pelo senador Darcy Ribeiro, através de
depoim ento a mim concedido e da publicação de uma revista de sua responsabilidade. Sendo assim, o que na minha
exposição aparecer referente à realização do projeto deve ser entendido com o a descrição, feita pelos seus responsá­
veis, da realização e im plem entação do(s) mesmo(s). Darcy Ribeiro, carta n° 15, 1995. Ver, também, Ribeiro, 1986.

168
sidades básicas, como cinco refeições diárias, lugar para tom ar banho, atendi­
mento médico e dentário (a próxima, não seria uma geração de banguelas). A
escola seria um espaço de socialização total, suprimindo as conseqüências ne­
fastas que as condições precárias das famílias marginalizadas trazem sobre seus
filhos. O Programa Especial de Educação tinha, portanto, como objetivo, a
formação total de seus alunos, indo além dos conteúdos convencionais da for­
mação escolar e visando a formação de indivíduos em todos os seus aspectos,
incutindo-lhes hábitos e conceitos de saúde, higiene, associativismo etc. Apre-
sentava-se como um projeto dedicado à formação de um povo futuro, com um
caráter definido e apto para a inserção no mundo letrado em sentido amplo.
Há personagens inéditos no programa. É o caso do chamado aluno residen­
te. Tratava-se do garoto que perdera os laços com a fam ília e não possuía
moradia estável ou morava na rua. Para esses, é criado um espaço para que
pudessem não só permanecer na escola mas dormir nela, morar ali. Para cuidar
dessas crianças, é criada também a figura da família social, casal que residiria
na escola e que teria responsabilidade sobre os alunos residentes, substituindo a
família sangüínea. As famílias sociais seriam formadas por casais, cujos pais -
o pai, a mãe ou ambos - fossem funcionários públicos com ou sem filhos, e se
apresentassem voluntariamente para a função. Residiriam nas escolas e poderi­
am ser removidos da função se assim o quisessem ou se se revelassem incapa­
zes para tal (há uma clara inspiração platônica, nesse projeto).
Escola em tempo integral, alunos residentes, famílias sociais, criação de
uma ambiência que nega a precariedade que as condições sociais de suas fam í­
lias impõem aos jovens e crianças. Objeto de acirrada polêm ica em torno da
magnitude dos investimentos e de seu uso político, é inegável que o PEE acaba
por ser a iniciativa mais eloqüente do projeto deBildung implicado no brizolismo.
Trata-se de um programa que visa instrum entalizar o Estado para que possa
intervir diretam ente na form ação do caráter e das aptidões da juventude e
infância sob sua esfera de poder. O Estado toma para si integralmente a respon­
sabilidade de formar os cidadãos, de franquear-lhes as noções fundamentais
para a socialização em bases solidamente estipuladas. Dentre os inspiradores
do projeto, Aniso Teixeira é de longe o mais citado. A Escola Nova é a referên­
cia fundamental, mas o PEE pretendeu ser um passo à frente.
As características acima citadas são, repito, eloqüentes o bastante para in­
dicar aspectos cruciais da Bildung brizolista, mas não são tudo. Há ainda mais.
Para satisfazer a todas as expectativas previstas, eram necessárias instalações
adequadas. Afinal, para a realização do programa especial era necessário contar

169
/

com um espaço pensado e construído para esse fim. Para tal tarefa é convoca­
do o arquiteto Oscar Niemeyer. Figura lendária ainda em vida, pelo sucesso
reconhecido internacionalmente, por projetos como a construção de Brasília e
por suas reiteradam ente publicadas sim patias pelo com unism o, coube a ele
mais esta tarefa de impacto. Os prédios que abrigariam os projetos educacio­
nais capitaneados por Dârcy Ribeiro deveriam ser funcionais, apropriados para
a realização simultânea de várias atividades e para cumprir as diversas funções
previstas no programa, mas deveriam ser também suntuosos. Não propriamen­
te luxuosos, mas expressivos da magnitude do projeto que deveriam abrigar.
Previsto para serem construídos em locais de maior carência e, por isso, mais
humildes, os prédios deveriam, com sua majestosa imponência, funcionar como
a celebração da nova era que fermentaria em seu interior. Deveriam estar em
locais visíveis, para que o governo mostrasse serviço e faturasse politicamente,
brandiriam seus críticos. Que seja assim, concedo, mas também, e aqui é o que
mais interessa, para simbolizarem uma nova nação a ser firmada.
A disposição interior dos prédios dos Cieps atesta o raio de alcance do
projeto. São, na verdade, três construções distintas: o prédio principal, o giná­
sio polivalente e a biblioteca. No primeiro, situam-se salas de aula, o refeitório,
a cozinha e o centro médico-odontológico, todos no andar térreo. No segundo
andar, ficam outras salas de aula, um auditório, salas para estudos dirigidos e
instalações para a administração. No terraço do prédio principal, ficam uma
área de lazer e dois reservatórios de água. As quadras polivalentes, no segundo
prédio, são equipadas de arquibancadas e vestiários. Adequadas para exercícios
físicos, que fazem parte da educação dos jovens e crianças. No terceiro prédio,
a biblioteca é dimensionada para atender aos alunos e demais mem bros das
comunidades. Em sua parte superior, localizam-se os dormitórios para os alu­
nos residentes. Trata-se, portanto, de um complexo planejado para atender à
comunidade como um todo, sendo o acesso a ele liberado mesmo nos finais de
semana, para atividades de lazer e festas.
O lugar da arquitetura na fundação das nações tem sido reiteradamente subli­
nhado por vários de seus mais argutos intérpretes. A arquitetura tem funcionado
como discurso capaz de envolver, em torno da identidade comum, ideais de
grandeza, prosperidade e orgulho, graças a seus inesgotáveis recursos cênicos e
simbólicos. Suas criações dão a sensação de durabilidade, de fixidez, conferem
credibilidade às promessas de permanência no futuro. Subvertem a finitude da

67 Lembro aqui, mais uma vez, os textos já citados de Hobsbawn & Ranger (1984), Assmann (1 994) e Calhoun (1 995).

170
existência individual pela expectativa da perpetuação através da civilização a que
os indivíduos se sentem ligados umbilicalmente. Para tanto, devem ser vistas,
admiradas, devem atrair os indivíduos e servir como palco de celebrações que
enalteçam os indivíduos pelo pertencimento à comunidade. Obras são feitas e
divulgadas com estridência para que seus empreendedores consolidem seu prestí­
gio, ganhem eleições. Não foi diferente, creio eu, com a construção dos Cieps,
popularmente conhecidos como “brizolões”. O curioso nessa empreitada, porém,
é que funcionaram como celebração de um projeto pedagógico, de um programa
civilizador. Encrustados em áreas miseráveis, contrapõem ao presente desolador
a prosperidade futura. Sua suntuosidade, no entanto, dá-se mais pelas dimensões
do que propriamente pelo luxo aparente. Ao contrário, suas linhas são simples,
sugerindo sobriedade e uma espécie de contenção e regramento luteranos.
As descrições das iniciativas operadas nos primeiros anos do primeiro go­
verno Brizola no Rio de Janeiro, associadas à arquitetura e à educação, subli­
nham o encontro promovido entre a cultura popular e o programa de acesso à
cultura de elite. O encontro se dá em obras como as do Sam bódrom o e da
Passarela do Samba. Disposto a consolidar um espaço para a realização dos
desfiles das escolas de samba, ponto alto do carnaval carioca, e utilizando
argumentos de ordem prática - como os altos custos envolvidos anualmente na
montagem e desmonte das arquibancadas, e os transtornos causados na área de
desfile - Brizola e sua equipe decidiram-se pela construção de um espaço defi­
nitivo para a realização da festa. Mais uma vez Darcy fica responsável pela
iniciativa, mas para aceitá-la impõe uma condição: que nela funcionasse tam ­
bém uma escola, de modo que, ao longo do ano, fosse aproveitada como mais
68
uma frente do programa educacional que concebera. Uma vez aceito o encar­
go, Darcy convoca Niemeyer para realizar mais essa parceria. Surgem, então, a
Praça da Apoteose, lugar de encerramento e dispersão dos desfiles das escolas
de samba, mas também local de realização de shows de música e festas popula­
res, e a P assarela do Sam ba, por onde passam a d esfilar anualm ente as
agrem iações carnavalescas m ais conhecidas do Rio de Janeiro, o popular
“Sambódromo”. Sob as arquibancadas do Sambódromo foram construídas sa­
las de aula para o atendimento de 16 mil crianças (segundo dados oficiais) e
uma biblioteca. Na Praça da Apoteose, a que o grande arco, os azulejos de
Athos Bulcão e o painel de Mariane Peretti conferem a m onumentalidade que
não existe nas construções dos Cieps, passou a funcionar o M useu do Samba.

68 Depoim ento de Darcy Ribeiro ao autor, em agosto de 1 996.

171
Concebida para funcionar como símbolo da cidade, a Praça da Apoteose com­
pôs com o Sambódromo uma curiosa combinação da escola com a festa, da
cultura erudita, representada pela escola, com a cultura popular, representada
pelo carnaval. Síntese arquitetônica da Bildung brizolista, situada no centro da
cidade como celebração de uma nação vindoura.
Educação formal, cultura popular e incorporação se encontram na Bildung
brizolista e conhecem sua expressão material nas construções dos governos de
Brizóla. E importante destacar que, nesse aspecto do processo de estetização
brizolista, o atendimento dentário está contemplado como condição de possibi­
lidade para que esta não seja de novo uma nação de banguelas. Ao Estado cabe
a tarefa de construir uma ambiéncia pública, propícia à educação de um povo
que tem na p re carie d ad e de sua e x istê n c ia p riv ad a um dos fa to res de
marginalização. O projeto educacional brizolista guarda urna transparente inspi­
ração rousseauista: o Rousseau pedagogo, do Emilio. Este, por sua vez, é inspi­
rado no Platão da República. Por este projeto a virtude pública, publicamente
difundida, se converterá em virtudes igualmente públicas e privadas.

Os documentos fundadores

Toda nação projetada ou consolidada em sua auto-imagem tem sua própria


literatura fundadora. Ela deve ser genérica o suficiente para funcionar como
expressão ideal da totalidade dos indivíduos que deve atingir. Deve ser forma­
dora, ou seja, agir sobre o caráter do seu povo, ao mesmo tempo que o retrata.
Deve ser grandiosa, pois revela e/ou promete a grandiosidade da nação. E a
inventora de uma linguagem, e, portanto, caracteriza-se por ser portadora de
uma forma singular de enquadramento do mundo. Pode existir sob diversas
formas. A novela de Cervantes, a tradução da Bíblia de Lutero, o romance de
gesta, ou a prosa poética goethiana. Pode ser uma única obra magnífica, in­
comparável, monumental. Pode ser um corpus de contos populares, transm iti­
dos geração após geração, em tomo da fogueira ou banhada em goles voluptuo­
sos de vinho, rum ou cachaça. Independentem ente de sua configuração, os
textos fundadores são de vital importância para a Bildung de todos os naciona­
lismos. O nacionalismo brizolista não é exceção. A formação de seu projeto
pedagógico encontra-se escorada em três documentos exemplares - é esse o
termo - que o norteiam e lhe conferem um corpo ético, político e doutrinário.
Remontam às origens afirmativamente, evocam a memória que deve ser cele­
brada. São três os textos, e todos eles têm a ver com a história do trabalhismo.
Não creio que pudesse ser diferente, posto que a história da nação brasileira

172
(que não é a mesma coisa que a historia do Brasil) se confunde, na perspectiva
brizolista, com a historia do trabalhismo, entendido como a ascensão de Vargas
ao poder nacional. Os textos são a Carta-Testam ento de Vargas, a obra de
Alberto Pasqualini e a Carta de Lisboa.
A Carta-Testamento remonta às origens, testemunhando a virtude, a abne­
gação e os percalços a serem enfrentados até a fundação nacional, que dada
sua grandiosidade não se fará sem o martirio e o sangue, ou desterro, de seus
heróis. O segundo, a Carta de Lisboa, corresponde à retomada e atualização do
projeto original, traumáticamente interrompido. A obra de Pasqualini funciona
como um meio de ligação entre o primeiro e o segundo documentos. Revoluci­
onário de 30, membro do PTB desde os momentos imediatamente posteriores
a sua fundação, um de seus poucos e mais brilhantes formuladores, Pasqualini,
tem seus escritos recuperados como formulações que aproximam e adequam o
ideário trabalhista às teses da social-democracia européia. Não estou certo de
que tenham sido ou sejam lidos por todos os quadros, dirigentes e militantes
ligados a Brizóla. A obra de Pasqualini, é uma coleção de textos de propaganda,
discursos parlam entares e esforços de sistematização da doutrina trabalhista.
Mas é continuamente evocada por todos, dos mais humildes aos mais sofistica­
dos. Forma o corpus programático, ético e político do trabalhismo e da Bildung
brizolista.
Peço licença ao leitor para dedicar algumas poucas linhas à Carta-Testamen­
to de Vargas, sei quantas vezes isso foi feito. Contudo, é impossível furtar-se à
centralidade que tal peça ocupa na Bildung brizolista. Ela já foi aludida no capítu­
lo anterior, no trecho dedicado ao discurso emocionado de Brizóla ao pé do
túmulo de Vargas, quando de seu retomo do exílio. O que a toma um documento
fundador? Embora curta, a Carta-Testamento pode ser dividida, para fins analíti­
cos, em três partes. Na primeira delas, primeiro e metade do segundo parágrafos,
Vargas faz lembrar que, uma vez mais, em alusão provável à sua deposição em
45, as forças e interesses contra o povo voltam-se contra ele. Note-se aí a relação
de contigüidade estabelecida entre sua figura pública e o povo. Os inimigos
aludidos são, na verdade, inimigos do povo: mas o objeto que é diretamente
alvejado com “insultos” e “calúnias” é ele e sua honra. Nas primeiras linhas (o
primeiro parágrafo é composto por uma frase de duas linhas), o povo e seus
inimigos são entidades genéricas. O referencial é o próprio Vargas, sua voz, que
os inimigos “precisam sufocar”. O período em que é um pouco melhor especifí-

69 Todas as passagens da Carfa-Testamento foram extraídas de Silva, 1 9 7 8 :3 4 7 -8 .

173
cado a quem o líder defende preferencialmente - “os humildes” — e aquele em
que são apontados quais são seus inimigos (dele e, portanto, do povo e dos
humildes) - os grupos econômicos e financeiros internacionais - são ligados pela
reiteração de seu destino: “Sigo o destino que me é imposto”. Encerra-se, assim,
a primeira parte do texto, onde o desenlace fatal já é anunciado, assim como é
articulado o seu destino àqueles de quem se fez defensor.
A segunda parte é um breve e dramático relato de seus feitos. A Revolução
de 30, a deposição e o retomo ao poder pelo sufrágio. As iniciativas favoráveis ao
desenvolvimento do país, a campanha da Petrobras, da Eletrobrás, as iniciativas
trabalhistas e contra os ganhos abusivos das empresas estrangeiras são listadas
como as batalhas por ele travadas. Batalhas marcadas pela “campanha subterrâ­
nea” orquestrada pelos inimigos do povo, agora personificados também nos gru­
pos nacionais aliados ao capital estrangeiro. O desenlace é tecido nos dois últimos
parágrafos, dramáticos, emocionais. E a terceira e última parte da carta. Já não
havendo mais o que opor frente aos inimigos, o líder oferece seu último e mais
precioso bem, a própria vida. É também o último ato capaz de fazer dele o alvo a
ser atingido pelas ofensas dirigidas ao povo, aos humildes. Os recursos foram
esgotados lentamente, com resignação estóica; “ Tenho lutado mês a mês, dia a
dia, hora a hora, resistindo a uma pressão constante, incessante, tudo supor­
tando em silêncio, tudo esquecendo, renunciando a mim mesmo, para defender
o povo que agora se queda desamparado. Nada mais posso vos dar a não ser o
meu sangue. Se as aves de rapina querem o sangue de alguém, querem continu­
ar sugando o povo brasileiro, eu ofereço em holocausto a minha vida. " A partir
de então, o povo, que queda desamparado, passa a ser o alvo direto de seus
inimigos. Mas o sangue do líder funcionará como “chama imortal na vossa
consciência. ” Declara o seu perdão àqueles que o combateram e o difamaram, e
a serenidade com que cumpre seu último desígnio, celebrando-o como vitória sua
e daqueles a quem dedicara a própria vida.
O suicídio é um ato de resistência, não de abdicação. Nele a destinação do
líder é cumprida até as últimas conseqüências. Suas virtudes são reiteradas e a
imortalidade é conquistada. A força do caráter e a disposição para o sacrifício
atestam a legitim idade de sua obra. Dá-se uma curiosa situação em que, ao
fazer a escolha trágica, Vargas singulariza-se enquanto indivíduo privilegiado.
Os desígnios da fortuna inexorável, voltados contra ele e o povo brasileiro, são
revertidos pela grandiosidade da virtude do líder singular. Para tanto, por outro
lado, é necessário que seu destino singular seja indissociável daquele da nação,
do povo como um todo, o que é atestado pelo impacto popular causado por seu

174
ato final e pela reação contra aqueles mais diretamente identificados como os
mentores da onda de escándalos que tomou o pais, atingindo seu governo.
Algumas informações sobre as circunstâncias em que a Carta-Testamento
foi produzida são úteis para a compreensão de sua dimensão pedagógica. As
vésperas do 24 de agosto, o presidente encomendou a M aciel Filho um discurso
a ser feito em um a inauguração em M inas Gerais. Diante da crise, Getulio
pretendia fazer um pronunciamento duro e incisivo. O discurso foi entregue e
diante do desenrolar dos acontecimentos, e seus possíveis desenlaces, hum i­
lhantes para ele, o presidente, tendo como escolhas a renúncia, o licenciamento
ou a resistência, opta pela morte solitária. Faz pequenas alterações no docu­
mento que Maciel Filho lhe entregara, e transforma aquilo que seria um discur­
so de inauguração em um dos documentos mais famosos da história republica­
na brasileira. O tom dramático da carta reforça a radicalidade da escolha de
Getulio. Recusa a proposta de Oswaldo Aranha para reunir 50 companheiros
fiéis que resistissem armados, em um gesto heróico e solidário, até a morte. A
ignom ínia do licenciamento não lhe passa pela cabeça. Repete em diversas
ocasiões que só sairia morto do Palácio do Catete. Por outro lado, é apenas o
seu sangue que deve ser vertido. Toma para si o destino fatal. E de sua honra e
de sua obra que se trata. Será seu também o destino imorredouro. A amargura
pessoal é convertida em peça de combate político, onde a virtude pública de
Vargas se reveste em agouro da emancipação nacional e libertação de seu povo,
daqueles de quem fora, segundo ele, escravo voluntariamente. Como a própria
natureza do texto sugere, na Carta-Testamento está o legado de Vargas. A seus
legatários, a promessa de fortuna futura...ou a glória imorredoura. Este é, ao
menos, o sentido que lhe dá a leitura brizolista. Dedicação à nação, à sua gente
humilde, tenacidade no combate aos inimigos, suficientemente identificados e
qualificados, honra e abnegação. Tais são as virtudes que fazem com que o
líder, não mais o ditador ou o mistificador, sequer o presidente da República,
entre para história, conferindo, pelo ato final, um caráter exemplar a toda a sua
existência. O herói cívico toma-se espelho de sua causa.
A bibliografia especializada atesta: é pelo suicídio e pela posterior publicização
da Carta-Testamento que Vargas ascende, definitivamente, ao lugar de figura
m aior no im aginário popular. No período que antecede o trágico desfecho,
Vargas é um líder abatido, isolado, açoitado pela oposição, que vai da UDN ao

70 Esta versão da feitura da Carta-Testamento foi apresentada por Hélio Sussekind, em artigo publicado no Jornal do
Brasil, em agosto de 1994. Uma outra, e mais dram ática, pode ser encontrada em Silva, 1 978.

175
PCB. Criticado por todos os lados, ele estava prestes a deixar a história hum i­
lhado e anatematizado. Como a própria Carta-Testamento afirma, a morte é a
porta de reingresso virtuoso na história. Para se tornar o líder popular definiti­
vo, é necessário o martírio radical da morte. O suicídio é a forma de afirmação
de seu duplo imortal, analisado no capítulo anterior. Por ele, a trajetória de
Vargas ganha os contornos da exemplaridade que está registrada no documento
final. A dimensão mística, quase sagrada, que sua figura alcança é atestada,
com uma dose de pitoresco, pelo depoimento de um jovem militante pedetista,
sobre uma visita à residência de um companheiro de partido, cujo pai foi um
dedicado trabalhista:

"U m co m p an heiro de pa rtido , m ilita n te num a cam p an ha d e te rm in a d a , me


cham ou para fazer um a panfletagem lá na favela dele, na Zona Oeste. Aí, eu
entrei na casa e vi um a coisa estranha. De longe, parecia um preto velho
tom a n d o chim arrão. Eu nunca tinh a visto isso. Era um a estatueta de um a pes­
soa sentada to m a n d o chim arrão. A í, qu ando eu me ap roxim e i, eu vi que era
o G etulio, só que tinh a um m onte de balangandãs em cima dele, típico de um
orixá. Tinha uma m oeda perto, umas contas. O avô do cara tinh a sido sindica­
lista na área po rtu á ria ou fe rro viá ria , não lem bro bem . Só sei que havia um a
tra d içã o tra b a lh ista na fa m ília . Ele se colocava com o socialista. O pai dele
tin h a sido do velho PTB. E o G e tu lio estava lá, de o rix á ." 7'

O depoimento sobre a incursão do militante pedetista à residência de uma


família trabalhista da classe popular é eloqüente. A aura getulista resulta num
curioso ecumenismo, pelo qual o duplo do líder o alça à condição de entidade
mística. O depoimento é exemplar da tradição política brasileira e seus heróis,
tal como analisado por Luiz Eduardo Soares em texto citado e comentado no
72
capítulo anterior. A alusão repetida à Carta-Testamento alimenta essa aura e
funciona como ponte entre o passado trabalhista e o presente brizolista.
O segundo documento fundador é a Carta de Lisboa. Já foi descrito o
encontro emocionado entre os trabalhistas no Brasil e exilados, em junho de
1979. O documento ali forjado é o registro da assunção do legado deixado por
Vargas e sua retomada: uma celebração em que seu legatário, Brizóla, é oficial­
mente investido em suas atribuições. Já arrisquei alguns traços da dimensão
que tal tarefa representava no contexto. Não é necessário retom á-los. Cabe
agora encontrar algumas pistas que tornem cognoscível a adoção do documen­

71 Depoim ento de Aurélio Fernandes ao autor, em agosto de 1996.


72 Soares, L. E., 1994.

176
to como referência formadora. Dadas as circunstâncias em que foi elaborado, o
texto é absolutamente diverso da Carta-Testamento. E um manifesto que visa
atrair adesões para a formação de um novo partido. Estipula até mesmo a data
para a convenção que fundaria o novo PTB. No entanto, passado esse m om en­
to, continuou sendo um documento importante para o partido, seus membros e,
principalmente, para os brizolistas de primeira e demais horas. É um programa
genérico de propostas políticas, sociais e econômicas, dirigido a um país em
processo de redemocratização. Declaração de princípios e intenções, apresen­
tado na primeira pessoa do plural. Não é o líder que enuncia as teses e bandei­
ras, são os Trabalhistas (com maiúscula). A tarefa urgente e mais geral é enun­
ciada logo na prim eira frase: “...a libertação de nosso p o v o ”. O caminho
sugerido é a sua organização, já em curso nos sindicatos, associações, comuni­
dades, movimentos e organizações diversos. Aponta a necessidade de estimular
as organizações populares com o apoio de partidos estruturados, que tornem
suas aspirações realizáveis através do poder do Estado. O Congresso é apre­
sentado como o campo legítimo de medição de forças, palco para a consecução
das reformas de acordo com a lei. A alternativa de fazê-las “na marra” parece
sepultada de seus horizontes de expectativas. Como sinal dos novos tempos, o
partido político e a necessidade de sua organização ganham um destaque inédi-
73
to em matéria de documentos nacionalistas brasileiros.
Há razões para isso. O encontro de Lisboa é a primeira iniciativa de grande
escala para a fundação de um partido, motivado pela conjuntura política brasi­
leira, que caminha para o fim do bipartidarismo. Os repetidos balanços feitos
após os golpes de 64 e 68, que concluem sobre a inorganicidade do triângulo
sociedade, partido e Estado, uma característica do regime de 45 exposta na
crise que pôs fim à ordem democrática, contribuem para a ênfase na necessida­
de da criação de um partido sintonizado com as organizações da sociedade.
Não creio que se possa entender de outro modo a passagem que diz: “A falta
de respaldo p o p ular organizado po d e levar a situações dramáticas, como
74
aquela que conduziu o presidente Getulio Vargas a dar um tiro no peito ”. O
projeto defendido é inspirado na criação de uma sociedade socialista, fraterna e
solidária. A tríade evocada repetidas vezes constitui o pilar da democracia polí­
tica -"P a rtid o s e povo organizado constituem, p o r conseguinte, as duas con-

73 Cabe mencionar, de novo, a exceção dos comunistas que assumiram, desde 1958, a alternativa parlam entar como
estratégia privilegiada da ação política. Posição que se reforça em diversos documentos ao longo de toda a década de 70.
74 Esta e as demais passagens da Carta de Lisboa foram extraídas de uma publicação sem i-artesanal do PDT, na qual
constam ainda o m anifesto de fundação do partido, seu estatuto e seu program a.

177
dições fundam entais para a construção de uma sociedade dem ocrática ” —
que ocupa lugar de destaque inédito, também na história do trabalhismo.
Deve-se atentar para as mudanças ocorridas no debate político no Brasil ao
longo do regime militar. Como foi sublinhado na explanação sobre os naciona­
lismos no Brasil, a democracia política foi m oeda de pouco valor ao longo de
boa parte da sua história republicana (e mesmo antes dela). A negligência não
se restringe às posturas nacionalistas, ao contrário, foi quase consensual nos
debates políticos travados em terras brasileiras. A partir de meados da década
de 70, as coisas mudam: a política formal, a valorização das instituições e a
produção das condições necessárias para seu bom funcionamento passam a ser
prioridade na agenda pública. Cria-se uma espécie de consenso, posto que dele
compartilham setores moderados da cúpula militar - que concebiam um mode­
lo de tipo liberal com participação limitada e, portanto, não propriamente de­
mocrático; setores conservadores da elite política civil - para quem a abrangência
do regime variava; e os setores mais progressistas - como os moderados e a
esquerda do MDB e o PCB que pressionavam pela institucionalização de um
regime democrático abrangente e incorporador. Participam também da constru­
ção desse consenso os setores tradicionais da sociedade civil - como aqueles
ligados à Igreja, à ABI e à OAB - e uma série de organizações surgidas nos
centros urbanos, ao longo da segunda metade da década de 70, que configura­
vam o surgimento de uma nova sociedade civil organizada. Os Trabalhistas
(manterei a m aiúscula em respeito a suas pretensões) procuram deixar claro
que se encontram afinados com os novos tempos. Mas não abrem mão de
enfatizar a democracia social, cuja bandeira empunharam, com parcerias, nos
anos pré-golpe. Defendem em especial a reforma agrária, denunciando a secu­
lar concentração de terras no Brasil, origem de tantos problemas no campo e
também nos grandes centros urbanos, pela migração desordenada. Retomam o
tem a da regulamentação do capital internacional e a apropriação, por grupos
estrangeiros, da riqueza nacional. Denunciam o modelo econômico, responsá­
vel pela precariedade de atendimento às necessidades do povo em educação,
saúde, m oradia, vestuário e alim entação, ao mesmo tempo que postulam a
adoção do voto proporcional, para garantir "a mais ampla representação das
diversas fo rças p o lític a s”.
Democracia formal e democracia social combinadas formam os dois instru­
m entos com os quais os Trabalhistas, em parceria com o povo organizado,
reconduzirão o país a seu caminho. Eles, os Trabalhistas, têm lastro para reali­
zar essa tarefa. A alusão ao passado é inevitável. Evocam sua experiência histó-

178
rica como fiadora da importância da organização dos partidos que estejam em
consonância com os movimentos e associações populares. Impõem a si própri­
os, como desafio, a retomada do papel renovador que desempenhavam antes
de 64 e pelo qual acabaram sendo alijados do poder junto com João Goulart.
Preocupam-se em afastar qualquer dúvida sobre o modo como atuarão, rejei­
tando, preventivamente, o risco de uma das mais graves acusações endereçadas
ao antigo trabalhismo; “não pretendemos manipular os sindicatos ou as orga­
nizações populares das mais diversas o rig en s”. M ostram -se, ao contrário,
tenazes, irredutíveis em suas bandeiras, pelas quais foram banidos e alheados
da vida pública brasileira. A abertura do documento deixa claro de uma vez por
todas o quanto sofrem, vítimas da perseguição e impedidos de celebrar o novo
encontro em terras brasileiras.
A quem se dirigem intenções e valores dos Trabalhistas? Quais são seus
inimigos? A resposta à segunda questão é mais simples. Foram combatidos e
continuarão combatendo inimigos muito próximos daqueles denunciados por
Vargas: “A velha classe dominante brasileira e os agentes internos do imperi­
alismo, que não nos podendo vencer pelo voto, nos excluíram pelo g o lp e”; os
latifundiários que temiam a reforma agrária e o governo americano que queria
evitar a aplicação da Lei de Remessa de Lucros. Enfim, o acordo de forças
internacionais com seus aliados internos, contrários à emancipação nacional
que implicaria o fim de seus privilégios. Dirigem-se, sobretudo, aos marginali­
zados. É evidente que se repetem as alusões ao povo, aos pobres, humildes e
espoliados. Mas a inclusão da figura do marginal é interessante. Por meio dela,
o raio de alcance da tarefa a ser empreendida é ampliado. São marginalizados
os negros, os índios, as crianças e as mulheres. Mostrando estar alinhada com
os debates e as bandeiras veiculadas pela social-democracia européia, a Carta
de Lisboa representa a inclusão do tema das minorias no debate político-parti-
dário brasileiro. As tensões constitutivas da vida social deixam de dizer respeito
apenas às díades elites/povo, dominantes/dominados, ou, num a versão nunca
assumida pelo trabalhismo, capital/trabalho. Elas são matizadas, dizem respeito
a questões sociais, mas tam bém a questões etárias, étnicas, de gênero. Ao
repetir o caráter plurarista de sua proposta, os Trabalhistas dão mais esse tom
modem izador em sua plataforma, e concluem o documento reiterando seu tri­
buto e lealdade ao legado de Vargas e à Carta-Testamento.
Há passagens na Carta de Lisboa surpreendentes pela crueza em que são
expostos alguns princípios fundamentais do discurso do novo trabalhismo. O
caráter conflitivo da sociedade atual deve ser suprimido quando alcançada a

179
ordenação almejada. A valorização da fraternidade e do solidarismo já suge­
rem, ainda que sutilmente, essa tendência. Ela, porém, é explicitada com todas
as suas implicações numa passagem que se segue à descrição do modelo preda­
tório do capitalismo no Brasil: “Neste particular, e dentro de um horizonte que
não ê absolutam ente cristão, mas marcado p o r um capitalism o impiedoso,
impõem-se a nossa defesa constante dos pobres contra os ricos, ao lado dos
oprimidos contra os poderosos A opção cristã pelos pobres e humildes se faz
presente outra vez. Nem marxismo, nem liberalismo. O homem (e a mulher,
agora form alm ente incluída no discurso) com que trabalha os ideólogos do
novo trabalhismo não é o ser maximizador e individualista que de seus vícios
privados engendra virtudes públicas. A sociedade holista de inspiração nitida­
mente cristã (e também positivista, o que não constitui qualquer contradição)
pretende um outro tipo de homem: “Porque damos importância central ao
nosso po vo como sujeito e criador do seu próprio futuro, sublinham os o
caráter coletivo, comunitário e não individualista da visão Trabalhista
Trabalhismo como caminho brasileiro para o socialismo. Um socialismo
não marxista, democrático, solidarista e comunitário. Antes de verificar como
se configura tal versão do socialismo, cuja inspiração é um curioso compósito
de cristianismo, positivismo e social-democracia, cabe investigar como se faz,
do ponto de vista doutrinário, a passagem do velho para o novo trabalhismo.
Que ensinam entos e valores transm ite. A tarefa coube à obra de A lberto
Pasqualini, terceiro documento fundador da Bildung brizolista a ser aqui exa­
minado. Como já mencionei, é pouquíssimo provável que a obra de Pasqualini
seja tão lida quanto citada nos meios brizolistas. Tampouco aqui será examina­
da a obra propriamente dita. Interessa-me o caráter simbólico de sua referência
e o que ela representa no campo formador de um ethos brizolista.
Também gaúcho, Alberto Pasqualini notabilizou-se no antigo PTB, mais por
suas qualidades de formulador e parlamentar, do que por ser um político do
Executivo, como foram os outros líderes gaúchos da linhagem a que pertence
Brizola. Participou da Revolução de 30 junto com Getulio, mas sua trajetória foi
marcada por dissensos e uma certa competição com o presidente, especialmente
após 37. A disputa entre lideranças locais e nacionais do PTB gaúcho, reconstituída
75
por Bodea, aponta a tensão existente entre Vargas, líder nacional, e Pasqualini,
líder local. O fato de jamais ter sido eleito chefe de Executivo - perdeu as eleições
ao governo do Rio Grande do Sul para o pessedista Válter Jobim, em 1947 e, em

75 Ver Bodea, 1979.

180
1954, para o também candidato do PSD, Ildo Meneghetti - faz com que sua
figura funcione como uma espécie de contraponto às lideranças trabalhistas “clás­
sicas”. Sem perder de vista o lado prático da atuação política, ocupou-se em
conferir um programa articulado, uma doutrina ao trabalhismo. Na qualidade de
senador da República, eleito em 1950, não teve sobre si o manto do caudilho,
mas, pelo contrário, do orador e parlamentar afeito aos procedimentos legislativos.
Além de esmerar-se em teorizar o trabalhismo, foi pioneiro na organização de um
departamento de estudos do partido .
A definição do trabalhismo, segundo Pasqualini, encontra-se numa série de
textos e discursos por ele proferidos. Em Trabalhismo e solidarismo, discurso
originalmente feito na cidade de Caxias do Sul, em dezembro de 1946, é possível
encontrar os princípios fundamentais de sua doutrina. Pasqualini utiliza a idéia de
capitalismo solidarista como princípio orientador do trabalhismo. Para ele, ambos
seriam mesmo sinônimos. O capitalismo solidarista seria o meio do caminho
entre o capitalismo individualista e o socialismo. O capitalismo é definido pela
propriedade e/ou exploração privada dos meios de produção. Esta é a caracterís­
tica mais geral do capitalismo, e contra ela Pasqualini não tem nada a opor. Faz-se
individualista quando se associa ao princípio psicológico do egoísmo:

"O s m étodos do in divid ua lism o , com o ¡á tive ocasião de observar, são os da


luta, luta pela dom inação, luta pelo sujeitam ento do in d ivíd u o a o u tro in d iv í­
duo, luta pelo ganho sem lim ites, sem considerações, sem escrú pu los."77

Ele assume, portanto, uma posição firm em ente contrária ao capitalism o


regido pelos princípios do liberalismo clássico, rejeitando-o como desumano,
predador e iníquo. Posiciona-se também contrário à adoção do sistema socialis­
ta, tal como implementado na Rússia. Considera que no capitalism o há três
atores principais - o capitalista, o trabalhador e o Estado. Mas no socialismo
encontram-se apenas dois: o trabalhador e o Estado. Mediante a coletivização
dos meios de produção, o que se conseguiu na Rússia foi tom ar o Estado o
patrão de todos, o que põe em risco a liberdade:

"N o reg im e capitalista, quem regula as relações jurídicas entre patrões e


em pregados, quem fixa as norm as de tra b a lh o , quem resolve as questões
que surgem entre as duas partes, é o Estado. N o regim e com unista, o á rb itro

76 O s dados biográficos e relativos à carreira política de Alberto Pasqualini foram extraídos de Renato Lemos e César
Benjam im , "A lberto Pasqualini", em D icionário hisfórico-biográfico (Rio de Janeiro, Forense U niversitária/Finep,
1984).
77 Pasqualini/'Trabalhism o e socialism o", em pasqualini, s.d, v . l, p. 75-6.

181
dessas questões é o pró p rio pa trão, isto é, a a u to rid a d e , dond e o p e rig o de
p e rde r o tra b a lh a d o r a sua lib e rd a d e ."78

Pasqualini rejeita assim tanto o capitalismo quanto o socialismo em sentido


extremo. Contra este último, argumenta ainda que seria infactível no Brasil,
dado seu estágio de desenvolvimento econômico e social. Como alternativa,
propõe o capitalismo solidarista, onde a propriedade privada é m antida e incen­
tivada, onde a liberdade dos indivíduos é valorizada, mas uma e outra ordena­
das pelo princípio da solidariedade e da ajuda m útua dos diversos atores e
classes sociais.
No capitalism o solidarista, o Estado tem papel fundamental. Cabe a ele
arbitrar dissensos, corrigir iniquidades acentuadas e prom over o equilíbrio e o
bem -estar sociais, mediante a taxação das atividades produtivas e o financia­
mento de cooperativas e de pequenos empreendedores. Será responsabilidade
do Estado, enfim, zelar pelos interesses das classes trabalhadoras, a justiça e a
solidariedade social. Por outro lado, deve garantir e proteger o capital privado
sempre que este tiver entre suas expectativas a expansão da economia e o bem-
79
estar coletivo. Os investimentos estrangeiros são bem-vindos sempre que con­
correrem para o desenvolvimento econômico e social, mas devem ser regula­
mentados. O nacionalismo da chamada “linha Pasqualini” se acentua mais no
que toca à exploração das riquezas naturais - elas devem ser de responsabilida­
de do Poder Público e devem ser realizadas em benefício da coletividade nacio­
nal - e n o item em que afirma a luta contra o imperialismo.
A in flu ên c ia m ais acentuada na dou trin a p ro p o sta p o r P asq u alin i é
indubitavelmente o pensamento cristão, fundado na idéia de solidarismo e na
concepção holista de sociedade. Cita com freqüência os papas Leão XIII e Pio
XI. Insiste na valorização do trabalho como fonte de produção de riqueza e
encerra as diretrizes conclamando à tarefa trabalhista de preservar o regime
80 r
democrático, os direitos fundamentais do homem e os princípios cristãos. E
notável, também, a influência do trabalhismo inglês, especialmente no que toca
à defesa de iniciativas de caráter assistencial e à promoção do bem-estar das
classes trabalhadoras pelo Estado. A defesa dos direitos humanos, da ética nos
debates políticos e o pacifismo fazem de Pasqualini um formulador capaz de
sobreviver a seu próprio tempo. Sua morte, em 1960, aos 58 anos, em conse­

78 Pasqualini/Trabalhism o e solidarism o", em Pasqualini, s.d., v . l, p. 75-76.


79 Pasqualini, "Diretrizes fundamentais do trabalhism o brasileiro", Pasqualini, s. d., p. 75-6.
80 Ibid., p. 79.

182
qüência de um derrame que lhe afastara da política quatro anos antes, pôs um
fim precoce à sua carreira parlamentar, reconhecidamente brilhante, mas, para­
doxalmente, contribuiu para cercá-lo de uma aura capaz de tom á-lo referência
necessária no trabalhismo doutrinário e eticamente orientado. Afastado da vida
pública em 1956, Pasqualini não pôde testemunhar o triste desenlace do regime
do qual participara de forma ativa.
A combinação do solidarismo cristão, do distributivismo trabalhista inglês e
da valorização da dem ocracia e das liberdades individuais fez da obra de
Pasqualini a referência ideal, na tarefa de compatibilização do antigo discurso
com a social-democracia européia e o socialismo democrático, bandeiras pelas
quais o trabalhismo reiventado afirmou seu caráter modernizado e progressista.
Sua obra funcionou como elo de comunicação entre a nostalgia do passado
glorioso e os desafios a serem enfrentados para a invenção do futuro socialista
no Brasil.

O trabalhismo e o trabalhismo brizolista (parte 2)


E no m ínim o discutível o enquadram ento da versão pó s-ab ertu ra do
trabalhismo, encarnada na liderança de Brizóla, como socialista ou social-de-
mocrata. A luz de sua formação e convicções políticas tal associação não pro­
cede. Assim não foi, porém, para muitos que a ele aderiram, que se alinharam
ao PDT, especialmente nos seus primeiros anos de existência, e identificaram
Brizóla como o líder capaz de conduzir o país para a construção de uma socie­
dade socialista e democrática. A interpretação do trabalhismo como caminho
brasileiro para o socialismo é dotada de uma evidente ambigüidade. Nas peças
de propaganda e docum entos do partido, em geral, não se estabelece uma
diferenciação muito clara entre socialismo, socialismo democrático e social-
democracia. As formas de atuação, o grau de legitimidade conferida à política
formal, as atribuições do Estado são temas que suscitam um dissenso de fundo
entre atores políticos que, muitas vezes, só têm em comum o reconhecimento
da legitim idade da liderança de Brizóla. O contato com os atores, contudo,
perm ite que se trace um quadro geral das quatro principais tendências que
fecharam com Brizóla em seus primeiros movimentos para a formação de um
novo partido trabalhista.
A prim eira delas, que teve no chamado grupo do M éxico um ponto de
referência, defendia a posição nacional-democrática. Formado predom inante­
mente por alguns ex-militantes de grupos armados do período imediatamente
posterior ao golpe de 64 e outras figuras de destaque como Edmundo Muniz e

183
Bayard Boiteux. Esse grupo guardava reservas quanto à ênfase na democracia
política, considerando que sem reformas sociais radicais, ela não passaria de
um sistema formal, carente de qualquer substância. Advogava a adoção de uma
postura fortemente nacionalista, com tonalidade popular, e o aprofundamento
da luta antiimperialista. A radicalização da democracia almejada por esse gru­
po, planejavam seus membros e simpatizantes, levaria o país para um modelo
socialista próxim o ao cubano. D essa perspectiva, B rizóla deveria exercer o
papel de catalisador das esquerdas democráticas, funcionando como uma espé­
cie de Fidel Castro brasileiro. Consideravam os issues encampados pela social-
democracia européia expressão de um reformismo inócuo. O socialismo demo­
crático para esse grupo representava reformas econômicas profundas, distribui­
ção de renda e aprofundam ento na luta de em ancipação nacional contra o
imperialismo.
Em confronto aberto com esse grupo, estava o chamado Grupo de Lisboa.
Era composto em grande parte pela geração que fez a luta armada, a partir de 68,
e exilados na Europa, que travaram contato com o eurocomunismo e a social-
democracia européia. Defendiam a construção e consolidação de um sistema
liberal democrático no Brasil, valorizando o pluralismo e incorporando os temas
da nova esquerda européia. É desse grupo boa parte das iniciativas de aproxi­
mar Brizóla da Internacional Socialista. Estavam entre os que se identificavam
com esse ideário aqueles que m ais se em penharam em dar um a coloração
modernizante ao discurso de Brizóla, trazendo as discussões sobre as minorias e
a importância da democracia política como fornia legítima e eficaz de desenvolvi­
mento econômico e social. O trabalhismo brizolista, segundo essa versão, deveria
estar bem próximo das experiências social-democratas européias.
O terceiro grupo reunia os trabalhistas históricos. Defendiam a revitalização
do trabalhismo e gostavam da abordagem que o identificava como o caminho
brasileiro para o socialismo (embora não fossem necessariam ente socialistas
em qualquer das duas versões mencionadas anteriormente). Entre muitos tra­
balhistas, havia uma certa reserva em relação a Brizóla. Os mais notáveis ti­
nham sido ligados a Jango e nutriam notória antipatia pelo estilo inflamado de
Brizóla. Divididos quanto à conveniência de recriar o PTB ou m anter-se no
PMDB, muitos abandonam o projeto trabalhista com a perda da sigla. Alguns
se aliariam a Brizóla mais tarde, incorporando-se ao PDT. Embora reverentes

81 Faziam parte desse grupo, entre outros, Clóvis Brigagão e Pedro Celso Uchoa Cavalcante.

184
em relação a Brizola, fica patenteado em vários dos que entrevistei uma certa
nostalgia do estilo conciliador e sereno de Jango.
O quarto grupo se incorporou ao brizolismo já após a fundação do PDT.
Eram os chamados prestistas, que ingressam no partido de Brizola após o rompi­
mento de Prestes com o PCB. Defendiam as teses do nacionalismo-democrático
e da luta antiimperialista de maneira próxima a do Grupo do México. Há muitos
deles no PDT até hoje, e são, em sua maior parte, militantes ou quadros interme­
diários. Consideram que Brizola partilha dos ideais comunistas e o encaram,
como o próprio Prestes fazia, a maior liderança popular surgida no Brasil.
A exposição feita anteriormente é genérica e carece de maior precisão. O
próprio estilo de Brizola e a relação com ele estabelecida no interior do partido
criaram dificuldades para que tais tendências se cristalizassem como grupos
articulados no interior do PDT. A reunião de atores políticos com convicções e
projetos tão distintos entre si e sua diluição em torno do tercius, encarnado na
liderança de Brizola, merecem uma pesquisa à parte. A consulta às edições do
ano de 1984 do jornal Espaço Democrático, órgão de imprensa do partido, é
uma excelente fonte para a pesquisa sobre as redefinições do trabalhismo pelas
diversas correntes que se integraram ao PDT. Havia no jornal uma seção cha­
mada “Que socialismo é esse?”, onde lideranças, intelectuais e quadros inter­
mediários do partido davam seu depoimento e sua própria definição do socialis­
mo que defendiam. O período consultado é muito rico. O partido estava no
curso de seu segundo ano de governo no Rio de Janeiro, o país vivia o debate
em tomo da sucessão do presidente Figueiredo e correntes internas articulavam
o projeto, depois abortado, de criar um novo partido, a partir da experiência
pedetista: seria o PDST, Partido Democrático Socialista Trabalhista. As ten­
sões internas giravam em torno da ênfase a ser dada ao antigo trabalhismo, ao
socialismo, ao estatismo, à organização da sociedade e à legitimidade do pro­
cesso político da democracia formal.
Enquanto Brizola esteve no exílio, o chamado Grupo de Lisboa agiu intensa­
mente para que o novo trabalhismo assumisse uma roupagem moderna, incorpo­
rando novos issues à agenda política e aproximando-se da Internacional Socialis­
ta. De volta ao Brasil, contudo, esse grupo, que contava com o reforço de alguns
quadros que migraram do PMDB junto com o senador Saturnino Braga e tam ­
bém postulavam a adoção da democracia formal como forma legítima de avanço
político, perde gradativamente seu poder de influência. Muitos não chegam, se­
quer, a participar da fundação do PDT, buscando outros rumos de atuação parti­

185
dária. O apelo do nacional-popular, da chamada democracia substantiva e social,
aproxim ava as três outras tendências, de resto, mais afinadas com a própria
formação trabalhista de Brizola. Já no fim da década de 80, o apelo social-
democrata, em crise na Europa, é muito mais uma peça retórica do trabalhismo
brizolista do que um princípio orientador de sua atuação.
Com o passar do tempo, será possível a realização de uma interpretação mais
precisa das tensões internas e ambigüidades do trabalhismo brizolista. Por ora,
cabe a análise dos símbolos e imagens que foram utilizados para firmar sua marca
como caminho brasileiro para o socialismo. Perdida a sigla trabalhista e fundado o
PDT, a cor preta, que compunha com o branco e o vermelho a bandeira do
antigo PTB, é substituída pelo azul, a cor adotada pelas juventudes socialistas no
início do século. A rosa vermelha, símbolo dos partidos trabalhistas e social-
democratas, é adotada pelo novo partido, empunhada por uma mão cerrada. O
próprio contato de Brizola com as principais lideranças da social-democracia
européia é fartamente explorado como indicador da nova etapa do trabalhismo.
Finalmente, a marca do “socialismo moreno”, entendido como a versão brasileira
82
para o socialismo, fez muito alarde e teve grande peso nas eleições de 82. Mas,
mesmo no interior de suas fileiras, a combinação não é fácil.
O destaque dado ao trabalhismo como caminho brasileiro rumo à construção
do socialismo varia de acordo com as filiações políticas dos depoentes. Os cha­
mados trabalhistas históricos dão maior destaque ao passado petebista e às inicia­
tivas de Jango. Para eles, o trabalhismo foi de fato uma experiência radical que
devia ser retomada. Aqueles cujo passado político não estava organicamente
ligado ao PTB ou mesmo se iniciaram na vida pública após 64 tendem a qualificá-
lo de forma menos laudatória, variando de acordo com suas próprias convicções
a importância conferida ao trabalhismo e ao antigo PTB. Um denominador co­
mum pode ser formalizado pelo reconhecimento de que foi pelo trabalhismo que
se deu o início do processo de incorporação política e econômica das massas
trabalhadoras urbanas no Brasil. Mesmo reconhecidos seus limites e distorções,
foi esse o processo histórico brasileiro e é a ele que se deve atentar para a defini­
ção dos passos futuros. A despeito do peleguismo, do populismo e do paternalismo,
o PTB é reconhecido por militantes e lideranças que vão formar o PDT como a
experiência mais bem-sucedida de aproximação das classes políticas com as mas­
sas. Estava nele o passado de criação, ainda que precária, do partido de massas
que se almejava revitalizar. E vista, contudo, como uma experiência datada his-

82 Sobre o socialismo m oreno e sua eficácia no com portam ento eleitoral em 82, ver Soares & Silva, 1985.

186
toricamente e como tal deveria ser superada. O que, como se pode supor, não era
compartilhado por muitos trabalhistas históricos.
Seguindo a orientação de reconstituir os valores contidos na Bildung
brizolista, observam os os com ponentes sim bólicos que vão configurar esse
projeto. A questão a ser colocada é: como seria o socialismo que funcionou
como orientação ideológica e pedagógica do brizolism o? Antes de tudo, ele
deveria ser moreno. Ou seja, a adoção de modelos e experim entos de outros
países é descartada. É necessária a adoção da cor local, e ela é m estiça. A
alusão à cor deve ser encarada como algo mais do que mero trocadilho ocasio­
nal. Afinal, é por ela, objeto de vergonha e hum ilhação no passado, que a
singularidade da nação brasileira em sua rota para a dem ocracia socialista é
realçada. Sejamos democráticos, socialistas e morenos. A “im pureza” da raça
garante a pureza do experim ento. Como já indicava a C arta de Lisboa, o
program a trabalhista-socialista defende os direitos das m inorias segregadas,
principalm ente étnicas. É assim que o cacique M ario Juruna é convidado a
ingressar no partido e lhe é oferecida a legenda para eleger-se deputado fede­
ral. O líder histórico do movimento negro, Abdias do Nascim ento, tam bém é
eleito. Um a foto sua está fixada no auditório da sede do partido, junto às de
Vargas, Jango e B rizola como reconhecim ento sim bólico da relevância do
significado de sua causa. O secretário de Habitação e Trabalho é um negro
(Caó), o com andante da Polícia M ilitar é um negro (coronel Cerqueira). So­
bre os dois últim os, vale lem brar que foram responsáveis por áreas em que as
propostas do governo Brizola eram das mais ousadas e têm forte apelo popu­
lar. O apelo simbólico do discurso brizolista junto à população negra no Brasil
é tão forte que o artigo da Constituição de 88 que crim inalizou as práticas de
racismo ficou sob a responsabilidade de um deputado do PDT, Caó. O m es­
mo pode ser dito para a questão da mulher. Em seu program a de construção
de casas populares, no primeiro governo, as mulheres são reconhecidas como
as verdadeiras cabeças de suas famílias e é a elas que são dados os títulos de
p o sse das casas co n stru íd as pelo governo do estado. É, p o rtan to , pelo
trabalhism o brizolista que a questão das m inorias passa a ocupar parte crucial
nas discussões sobre direitos humanos.
No projeto brizolista, o socialismo é atrelado à questão democrática e ao
fortalecimento das instituições representativas, embora nem sempre com a mesma
ênfase, posto haver setores próximos a Brizola que permanecem refratários ao
reconhecim ento da im portância da democracia formal. A ação do Estado na
tarefa de humanizar as relações capitalistas, no interior da sociedade brasileira,

1 87
é outro ponto no qual os dissensos são evidentes. Há uma preocupação flagran­
te em diferenciar o “socialismo moreno” do modelo soviético e demais países
do Leste europeu. Rejeita-se o Estado gigantesco, altam ente burocratizado,
controlado por um partido único, embora a questão de quais seriam suas di­
mensões ideais permaneça em aberto. Por outro lado, são privilegiadas estraté­
gias como gestão co-participativa das empresas e fábricas, criação de conselhos
de funcionários, cooperativas de trabalho e outras formas de democratização
do processo produtivo. As associações locais e grupos comunitários também
são encarados como instrumentos importantes na dinâmica participativa.
Finalmente, como a própria adjetivação referente à cor sugere, o socialismo
é simultaneamente nacionalista. Denota a alternativa plausível de o país superar
a penúria econômica e social. Indica os caminhos emancipatórios do povo e sua
vitória sobre a apatia e a miséria. Apresenta-se como o projeto que promoverá
a nação ao fazer com que ela própria tome as rédeas de seu destino.
Laços de solidariedade e pertencimento diversificados, organização da socie­
dade entendida como interlocutora dos poderes do Estado, construção do socia­
lismo pela via democrática, mobilização e participação popular nos processos
decisórios, pluralismo, defesa dos direitos humanos. Não se pode dizer que a
agenda dos companheiros de Brizóla estivesse defasada em relação aos temas
mais palpitantes do novo quadro político institucional brasileiro. Daí uma das
razões para a repercussão que a vitória de Brizóla, em 82, alcançou. Com o
passar dos anos, as cisões internas foram muitas e vários daqueles que defendiam
mais entusiasticamente esses ideais se afastaram. Nem sempre foram substituí­
dos por outros tão entusiasmados. No entanto, deixaram sua contribuição para o
corpo ideológico e pedagógico do que seria o novo trabalhism o; de como o
brizolismo foi semantizado, ao menos por algum tempo, entre aqueles que se
empenharam em retomar a tradição trabalhista. De outros pontos do espectro
político, a defesa de tais teses combinada com o nacionalismo parecia confirmar a
vocação populista e mistificadora de Brizóla e seus pares.
A combinação de um ideário marcadamente nacionalista com o socialismo
democrático foi apontada, no embate político, como uma incongruência retórica
seguidas vezes denunciada pelos críticos do brizolismo. A associação nacionalis­
mo/democracia, sobretudo, foi alvo de contundentes críticas, que apontavam a
incompatibilidade entre os dois termos. Para isso, muito devem ter contribuído os
desdobramentos das lutas políticas de libertação nacional, encampadas, ao longo
das décadas de 40, 50 e 60, por vários movimentos, muitos dos quais de inspira­

188
ção marxista. No Brasil, em especial, o apelo nacionalista associado à democracia
e ao socialismo foi interpretado como uma recaída na lógica populista que, ainda
segundo tal interpretação, resultou no enfraquecimento dos movimentos popula­
res e de cunho “verdadeiramente” socialista. Se aceitannos acriticamente essa
versão, acreditando que os nacionalismos veiculados desde a década de 50 não
passaram de uma espécie de fetichização, que se perpetuou de modo residual no
brizolismo pós-79, a vinculação do nacionalismo com o socialismo operada pelos
discursos de adesão a Brizóla impõe um desafio teórico adicional. Em uma de
suas vertentes marxistas, o nacionalismo da década de 50 estava colado a uma
versão “etapista” do processo de desenvolvimento capitalista, segundo a qual era
imperativa a ainda não realizada revolução nacional burguesa para, posteriormen­
te, ser desencadeada a verdadeira revolução socialista. Tal perspectiva, encampada
pela direção do Partido Comunista até o documento de 58, e por movimentos de
esquerda que surgem das cisões internas do PCB, deram o tom dos debates pré-
64. Após algumas “recaídas” nacionalistas, o Partido Comunista Brasileiro rom­
pe definitivamente, na década de 70, com o nacionalismo, firmando sua opção
pela democracia formal. Apenas Prestes, liderança já em declínio no interior do
partido, desde o final dos anos 50, mantém a verve nacionalista. Provavelmente
está aí a razão para praticamente todos os brizolistas que se autodefinem como
comunistas declararem seu apreço e filiação ao chamado prestismo. Uma outra
versão nacionalista do período pré-golpe defendia pura e simplesmente a associa­
ção dos setores “avançados” da elite com os trabalhadores em um convívio
pacífico e harmonioso. Tanto uma perspectiva quanto a outra ganharam, ainda
no final da década de 60, o nada honroso, e um tanto im preciso, rótulo de
populistas. Essas críticas, formuladas no interior da esquerda (com destaque para
setores do PCB), voltaram-se especialmente contra as experiências e projetos
84
pré-64, em especial aqueles identificados com o Iseb, em suas diversas fases.
Identificando o brizolismo com tais tendências e o nacionalismo como forma de
mascaramento das tensões e conflitos de interesses irredutíveis, nas sociedades
capitalistas, os críticos do nacionalismo, com uma inegável capacidade e disposi­
ção para participar dos debates políticos, contribuíram para delinear o perfil do

83 C om o é sabido, o rom pim ento de Prestes com o partido é form alizado sim bolicam ente através do docum ento que
ficou conhecido com o Carta aos Comunistas. Embora jamais tenha se filia d o form alm ente ao PDT, Prestes aproxi­
m ou-se de Brizóla e coordenou um grupo de políticos ligados a ele que atuaram partidariam ente no PDT, sendo
coordenados p o r Acácio C aldeira. Vale notar que ao me referir àqueles que se autodefinem com o comunistas tenho
em mente uma série de militantes de base e quadros interm ediários de idades variadas e que não necessariamente
tiveram atuação partidária no PCB.
84 Segundo Daniel Pécaut, a história do Iseb pode ser dividida em três períodos: o do nacionalism o-desenvolvim entista,
o do nacio nal-popula r e o do nacionalism o marxista. Ver Pécaut, 1990.

189
projeto brizolista, oferecendo uma leitura da qual nem sempre os próprios brizolistas
discordaram.

Populism o e populism o brizolista

Uma palavra e vários sentidos. Outrora conceito sociológico com razoável


poder heurístico, o populismo foi termo tão utilizado nas análises do processo
histórico vivido na Am érica Latina, nos anos 40, 50 e 60, tão acionado nos
confrontos políticos do período posterior, que acabou sendo esvaziado de boa
parte de sua capacidade de explicar processos históricos. O populismo a que se
referem os contendores e adversários do brizolismo alude às origens políticas
de Brizóla e ao período de sua ascensão no cenário político nacional. Quanto à
primeira, diz respeito à filiação, reclamada pelo próprio Brizóla, a uma linhagem
política iniciada com Júlio de Castilhos, prosseguida por Borges de Medeiros e
Getulio Vargas. São as lideranças do Sul, da terra das guerras e dos líderes milita­
res, os caudilhos. O caudilhismo não é uma tradição propriamente democrática.
Não há quem não o reconheça, É uma tradição guerreira e heróica. Formada pelo
positivismo e curtida pelos conflitos constantes e alternados com o poder central
e o inimigo externo. O caudilho é personagem central da política ibero-americana,
e as conexões desse personagem com as mazelas do período populista, seu cará­
ter antidemocrático, são repetidas vezes acionadas como crítica à liderança de
Brizóla. A filiação de Brizóla a essa tradição, porém, é reclamada positivamente
pelos brizolistas e simbolizada pela adoção do lenço vermelho dos maragatos,
utilizado por lideranças e militantes em todos os rituais partidários.
D entre as que conheço, a m elhor definição do populism o no B rasil foi
elaborada por Francisco Weffort, em livro que alcançou o raro privilégio de
tom ar-se quase imediatamente um clássico da literatura sociológica brasileira.

85 Dentre as diversas críticas ao nacionalism o, destaco a de M arilena Chauí, 1989.


86 Dentre os adversários do brizolism o que lançaram m ão do argum ento, encontram -se os setores da esquerda do MDB,
ligados ou não ao PCB, que se mantêm no partido após a reforma partidária que redunda na criação do PMDB.
Preocupados em construir um sistema político m oderno, dem ocrático, sólido e funcional, viram no brizolism o o
fantasma do passado que desejavam exorcisar do cenário p o lític o brasileiro. Também setores m oderados, mas
igualm ente em penhados na consolidação do regime dem ocrático, tenderam a fazer leitura semelhante. Boa parte
das lideranças dos novos movim entos da sociedade civil e intelectuais ligados aos principais centros de pesquisa de
São Paulo, muitos dos quais viriam a participar da fundação do PT, viram no brizolism o a encarnação do passado
com o qual pretendiam romper. Entre os críticos situados nos setores mais conservadores do espectro político, o
populism o brizolista continuou significando pura e simplesmente sinônim o de subversão e agitação irresponsável.
Parte da esquerda radical que não se enquadrava em nenhum dos casos acim a e tam bém d irig iu críticas ao
brizolism o, considerou-o um projeto político m istificador que, ao defender a aliança entre parcela das classes
dominantes e os trabalhadores, fazia tábula rasa dos "reais" interesses da classe trabalhadora. Estes se abrigaram no
PT ou em partidos menores mais radicais.
87 Trata-se do livro de Francisco W effort, O populism o na política brasileira (1 986). Mas, justiça seja feita, o estudo de
M ichael C onniff sobre as origens do populism o no Brasil é, igualm ente, um livro fundam ental sobre o tema. Ver
Conniff, s. d.

190
Para ele, o populismo no Brasil caracterizou-se pela aliança perversa de parte
da burguesia nacional, setores das classes médias e as m assas trabalhadoras
urbanas, sob a bênção e gerência do Estado, altamente centralizador. Tal alian­
ça teria funcionado como uma espécie de amortecedor dos conflitos de classe,
através da cooptação dos setores mais organizados do trabalho e de suas lide­
ranças, em prejuízo de amplos setores das classes trabalhadoras com m enor
capacidade de pressão e organização e, mais grave, em detrimento das iniciati­
vas mais ousadas de organização autônoma e orgânica dessas mesmas massas.
A aliança foi funcional enquanto as demandas não extrapolaram a capacidade
de aliciamento e de concessão de privilégios por parte do Estado e dos grupos
de elite nele encastelados. Percebe-se aí que a própria imagem da sociedade,
constituída de m odo cooperativo e solidário, é apresentada com o recurso
mistificador e estratégia de dominação das camadas baixas. Toda uma tradição
política, brevemente reconstituída na terceira seção desse capítulo, está posta
em questão.
À funcionalidade de tal arranjo é indispensável a presença de um grande
líder. Uma vez que o Estado, seu fiador, é fortemente centralizado, e as institui­
ções clássicas mediadoras dos conflitos em contextos democráticos - os parti­
dos, o Congresso, os sindicatos etc. - são excessivamente frágeis, a interlocução
entre o Estado e as m assas é feita de form a direta, pelo líder carism ático,
dotado de poder de empatia e comunicação. A presença do líder é, portanto,
essencial para a reprodução da legitimidade da aliança e para a recusa ao reco­
nhecimento da centralidade que as instituições representativas devem ter, em
um contexto de democracia de massas. Estes são os ingredientes do caldo de
cultura perverso que se erigiu em boa parte da América ibérica, em geral, e no
Brasil, em particular, segundo Weffort. Seu mentor em terras brasileiras: Vargas.
Jango o aperfeiçoou e Brizóla representaria sua radicalização. Ocorre que tal
arranjo não comporta radicalizações. Ele engendra um equilíbrio precário entre
forças antagônicas, cujos conflitos só podem ser mascarados ao custo de uma
série de movimentos prudentes e contidos por parte de todos os seus partici­
pantes. A capacidade do Estado em absorver e arbitrar demandas é limitada e
inversam ente proporcional ao crescimento das mesmas. Quando se esgotam
seus recursos, ocorre a crise do arranjo e seu conseqüente colapso. E nesse
momento que todos os celebrantes do pacto frustrado despem suas máscaras e
revelam suas mais intestinas filiações de classe. Revelam também a força relati­
va que possuíam no interior do pacto. Iminente o rompimento, elegem seus
parceiros preferenciais e escolhem o lado em que ficar. Foi o que se deu em 64.

191
O populism o não se refere exclusivam ente às lideranças acima citadas.
W effort m enciona nom inalm ente as figuras de Jânio Quadros e A dem ar de
Barros, como exemplares do populismo brasileiro, entendido como uma ordem
política dotada de características próprias suficientes para que possamos defini-
lo como um sistema. Ele pode ser encarado como um arranjo pelo qual há
incorporação das massas ao processo político, mas ela se dá por cima, pelo
patrocinio do Estado. As instâncias representativas são negligenciadas. Daí a
crítica dura ao modelo, no contexto do pós-79, quando, como já foi menciona­
do, o país conhece um crescimento inédito dos m ovimentos organizados no
âmbito da sociedade civil. O populismo, na análise de Weffort, é um fenómeno
nitidamente urbano e voltado para as massas urbanas. As diferenças de classe
são diluídas pela adesão a um líder ou a uma corrente (Vargas e o varguismo,
por exemplo), quando não ao projeto nacional como um todo. É um fenômeno
de massas mas, no Brasil, dá-se de modo a que a pequena burguesia e setores
m édios assumam “indevidam ente” o papel de representantes da massa. Seu
terreno propício está num contexto em que nenhuma das classes sociais encon­
tra-se em condições de assumir por si só o controle político do Estado, daí a
celebração do pacto. A crítica de Weffort é claramente dirigida aos projetos
políticos baseados na convicção de que, pela associação das massas trabalha­
doras com a burguesia então chamada de progressista, alcançar-se-ia a emanci­
pação nacional e popular. O nacionalism o é duram ente criticado com o a
“teorização do populismo”, formulada do interior do Estado autoritário e pe-
queno-burguês. Acabou por reforçar e conferir legitimidade a um pacto perver­
so e danoso tanto para a consolidação do sistema democrático formal, quanto
para a organização autônoma das classes trabalhadoras.
Escritos entre 1963, quando o “sistema” populista ainda estava em plena
vigência, e 1970, quando já era coisa do passado, os artigos reunidos em O
populismo na política brasileira atestam a intensidade das polêmicas do início
dos anos 60, evidenciando que o apelo nacionalista anteriormente descrito, em­
bora dominante, não era unanimidade, encontrando resistências, especialmente
nos meios intelectuais paulistas. Opera com um instrumental analítico de corte
explicitamente marxista, priorizando a clave classista para analisar o processo
político brasileiro. E uma leitura plausível, coerente e lúcida. Uma leitura possível
enfim, de um processo historicamente datado. Porém, talvez por suas qualida­
des, acabou funcionando como corpo teórico para estudos de objetos distintos e,
principalmente, para a análise de processos radicados em outros contextos histó­
ricos. O que me parece mais grave é que o populismo deixou de ser conceito

192
designador de um sistema político, em um momento específico, e tomou-se arma
de combate político. Operou-se uma espécie de exorcização dos demônios do
autoritarismo, onde parte da produção intelectual brasileira, em especial aquela
voltada para o nacionalismo, passou a ser anatematizada por operar com instru­
mentos analíticos diversos daqueles que pareciam a seus críticos - radicados em
outro momento histórico e contando com o privilégio de refletir retrospectiva­
mente - os mais adequados. Entendido como sistema político, o populismo, tal
como definido por Weffort, diz respeito a uma dinâmica institucional, tendo pou­
co a ver com idéias e perspectivas que podiam, eventualmente, mas não sempre,
parecer afinadas com essa m esma dinâmica. No plano político, serviu como
adjetivação de práticas e projetos políticos que, além de incorrerem nos mesmos
“erros” de não contemplar determinadas categorias e modelos adequados em
detrimento de outros, estariam reproduzindo formas de atuação ultrapassadas e
vencidas historicamente. Daí a adjetivação de populista para projetos que, defini­
tivamente, não poderiam ser definidos como tal, simplesmente por não contarem
com os elementos e as circunstâncias em que o populismo, tal como analisado
por Weffort, fora forjado. É, no meu entender, o caso do brizolismo pós-79.
Algumas das críticas ao brizolismo se voltaram para essa direção. Ora, a
reconstituição de parte da história do nacionalismo no Brasil buscou exatamen­
te explicitar que o brizolismo é tributário de uma tradição fortemente enraizada
em nossa cultura política. Cultura política que, a rigor, remonta ainda aos tem ­
pos do Império. Mesmo aceitando, com Conniff, o surgimento do populismo
no Brasil na década de 20, e reconhecendo a sua proximidade a algumas das
configurações do nacionalismo brasileiro, reduzir um ao outro contribui pouco
para a elucidação de ambos. A declaração de antigüidade das raízes filosóficas
e políticas de um determinado ideário não equivale à assunção de seu arcaísmo.
Ao contrário, visa apenas verificar rearranjos simbólicos e novas respostas para
inquirições historicamente impostas.
Curiosamente, o populismo, brandido como arma anatematizadora, foi ale­
gremente aceito pelos brizolistas em geral, ainda que romantizado. Não propria­
mente no sentido que lhe deram seus críticos, inspirados, entre outros, nas for­
mulações de Weffort. Mais próximo, possivelmente, dos narodniks russos. Vi­
mos que o brizolismo correspondeu, em larga medida, à opção política pelos
pobres, típica do cristianismo. Entre as diversas virtudes de Brizóla, apontadas
por seus seguidores, a capacidade de compreender a gente do povo, perceber

88 Sobre o populism o russo, ver Berlin, 1988.

193
seus sentimentos, respeitar suas aspirações estão entre as mais exaltadas. Seguir
Brizola é empenhar-se na missão regeneradora do povo, ouvi-lo, aprender com
ele. Educá-lo, respeitando, ao mesmo tempo, suas vicissitudes e suas próprias
manifestações culturais. Há, no discurso brizolista, um tom radical e uma acentu­
ada fé na bondade natural do povo, em sua sabedoria ingênua e pura. Do mesmo
modo, o discurso brizolista apresenta, como projeto geral, o combate à iniqüidade
e a promoção da justiça social e, no pós-79, dedica especial rejeição ao capital
financeiro, identificado como predatório e improdutivo. Esses são alguns dos
componentes e bandeiras que permitem reunir sob o signo do populismo uma
série de grupos autônomos, desarticulados entre si, que surgiram na Rússia, nas
décadas de 60 e 70 do século XIX. É certo que os narodniks se voltavam para os
camponeses, negavam a industrialização e o capitalismo, entendidos como forças
de desumanização, mas tais diferenças não devem ser superestimadas. Trata-se
da diferença entre um movimento ocorrido na Rússia do século XIX, uma socie­
dade predominantemente agrária e em processo ainda incipiente de industrializa­
ção e urbanização, frente a um discurso formulado em contexto marcado pelo
casamento perverso de altas taxas de exclusão com modernização. Os populistas
russos se voltaram para os camponeses de modo semelhante ao que os brizolistas
voltaram-se para os favelados e marginalizados de todos os matizes. Eram ho­
mens das baixas classes médias, sem muita perspectiva e lugar na sociedade
aristocrática russa. Eram eles próprios, em certa medida, figuras marginalizadas
dos cargos da burocracia estatal e sem bens econômicos. Seria esse o caso do
brizolismo? Aparentemente, não. Afinal, a despeito de suas origens humildes,
Brizola ocupou cargos altíssimos do poder político. O próprio partido, a cuja
liderança galgou, era composto de gente de posses, a começar por seu próprio
antecessor simbólico, Jango, filho de abastada família de donos de terra no Rio
Grande do Sul. Em várias ocasiões, Brizola esteve no poder, ocupando ou não
cargos executivos. No entanto, também aqui o recurso ao simbólico e à constru­
ção da persona pública opera uma torção semântica.
A despeito dos cargos ocupados, das alianças firmadas, muitas delas nada
honrosas e compatíveis com o ideário professado, a imagem de Brizola é a de
uma liderança solitária, com dificuldades de lidar com a elite política nacional.
Este é um dado importante da construção da imagem de Brizola operada por
muitos de seus adeptos. Brizola é descrito como um político repetidas vezes
deixado só. Isolado, em razão de suas origens e seus ideais, por boa parte da elite
política. Ora, é evidente que a alusão reiterada a esse padrão de relacionamento
entre Brizola e as demais lideranças políticas pode ter vários significados e objeti­

194
vos. Muitas vezes, justificou as alianças pouco honrosas. Isolado, Brizóla ter-se-
ia visto obrigado a compor com aqueles que se dispusessem a tal. Pode também
reforçar sua singularidade e devoção na luta povo/elites, sublinhando o lado por
ele escolhido e a radicalidade de sua opção. Contribui para conferir um toque de
martírio em sua trajetória, indissociável das grandes figuras do trabalhismo que
sucedeu. Há tudo isso na definição de Brizóla e do brizolismo como força política
incompreendida e vítima da perseguição dos poderosos grupos que secularmente
retiram seus privilégios da espoliação do povo desamparado e desprotegido. Mas
não se trata apenas disso. Inicialmente, vale notar que essa é uma impressão
compartilhada mesmo por adversários seus, que atribuem a seu temperamento
autoritário e centralizador a fonte das dificuldades de entendimento. Mas o que é
realmente notável, o que faz dessa característica um dado relevante para a pre­
sente análise, é que o pretenso isolamento é assumido, positivamente, por parte
significativa dos adeptos de Brizóla e é por eles estetizado. Aderir ao brizolismo
equivale à aceitação de uma certa estética. Ser brizolista significa ser um pouco
mais sujinho do que a juventude universitária da Zona Sul, menos sofisticado do
que os intelectuais do PCB, ser mais escurinho do que as elites em geral. Parafra­
seando Buñuel, é ser desprovido do discreto charme da burguesia cabocla. É ser
meio cafona, desarrumado. Significa estar, premeditadamente, fora dos padrões
estéticos supostamente burgueses. O equivalente brizolista da estética da fome
glauberiana seria, de certo modo, a adoção de uma estética do feio, esta fonte
perturbadora do sublime, grotescamente exagerada, e convertida em tomada de
posição política revestida de positividade. Que fique claro que com isso não
afirmo que estiveram ou estão ligados a Brizóla apenas pessoas cafonas e sem
sofisticação intelectual. Espero que tenha ficado claro que não é este o ponto. A
questão é que a auto-imagem geral, composta pelos próprios brizolistas, que, em
muitos casos, não preenchem qualquer uma das referidas qualidades, pautou-se
por tais princípios.
A estética brizolista dá forma paupável a um projeto político que retira boa
parte de sua vitalidade das resistências impostas por seus adversários, mesmo
quando situados à esquerda do espectro político. E tais resistências não têm
sido poucas. Talvez a mais acirrada seja aquela que diz respeito à concepção de
política, entendida de modo geral, e de política brasileira, especificamente. Os
debates em cujo centro o brizolism o tem estado são surpreendentem ente
elucidativos do confronto de percepções sobre a política, no Brasil contempo­
râneo. Daí ser este o tema dedicado ao capítulo que se segue.

195
IV

Carisma ou o Reencantamento
do Mundo

companhar as formas como a atuação política brizolista foi percebida é


A tarefa fundamental, posto que o brizolismo deve ser identificado simulta­
neamente como um campo discursivo e uma prática política. As semantizações
produzidas giram em tomo da tensão entre a imagem do estadista e a do líder de
massas. Para m elhor entender as diversas formas de associação da figura de
Brizola e de sua atuação na arena pública, com padrões cognoscíveis de relacio­
namento líder/liderados/instituições políticas, defino, com a ajuda de algumas
referências clássicas da teoria política, três modelos de abordagem para a referida
tríade. Aos três modelos, acrescento algumas observações da abordagem weberiana
sobre os três tipos puros de dominação. O campo de análise são os debates nos
pleitos em que Brizola esteve diretamente envolvido, de algumas iniciativas de
suas administrações e de seu relacionamento com o PDT e com a Assembléia
Legislativa. Os debates eleitorais serão abordados como dramas, tais como defi­
nidos por Tumer, em que percepções distintas de ordem pública e projetos políti­
cos são confrontados. As iniciativas das administrações brizolistas e sua relação
com o partido e a assembléia serão entendidas como formas de produção de
significações. Também neste caso sigo a sugestão de Tumer, segundo a qual as
lógicas administrativas e institucionais são, elas próprias, produtoras de sentido. É
importante alertar que os três modelos teóricos formulados não são aplicados
diretamente à empiria, funcionando muito mais como referências orientadoras do
recorte e da interpretação. A hipótese básica é a de que a centralidade da figura de
Brizola e de suas qualidades é tão intensa que, se de um lado há momentos em
que a lógica burocrática impõe uma espécie de rotinização do carisma, tal como
estipulado por Weber, por outro, o brizolismo opera, no Rio de Janeiro, uma
espécie de encantamento do funcionamento burocrático em sua lógica rotinizada.

197
Liderança política, liderança de massas e carisma
Chegar ao poder federal com apoio popular maciço, m ediante o voto, e
empreender uma revolução pacífica que conduzisse o país à im plantação do
chamado socialismo democrático, através da ação pedagógica, a manipulação
de sím bolos e a invenção de uma nação poderosa. Esta foi a tarefa a que a
figura de Brizola foi associada por seus pares. Tarefa entendida sob prismas
diferentes, é verdade. Como já foi mencionado, o socialismo democrático fun­
cionou, em grande medida, como um jargão brizolista, pelo qual tendências
com diferenças profundas entre si sugeriam ter um projeto comum. Os chama­
dos trabalhistas históricos assumiram o socialismo democrático como um suce­
dâneo nacional do velho trabalhismo. Social-democratas se orientavam pelos
modelos europeus, em especial o alemão. Antigos socialistas e comunistas viam
a opção democrática como a alternativa possível, consolando-se com a suposta
inevitabilidade da vitória de Brizola em um pleito direto para a presidência da
República. Quando, a partir de 1994, esta não passava de uma ilusão perdida,
estes últimos lamentaram amargamente os limites impostos pelo regime político
brasileiro à ascensão de um líder popular no Brasil. Estas e outras correntes
mantiveram em comum a convicção de que para a realização de seu(s) projeto(s)
era fundamental a presença de um grande líder. M antiveram , igualm ente, a
convicção de que, para o papel, não havia ninguém que se igualasse a Brizola.
Destino demiúrgico de um líder marcado pelo espírito guerreiro e pelo vigor
no enfrentamento das causas da miséria e do desamparo da gente pobre: inven­
tar uma nação. Seus críticos replicaram: resíduo de práticas conservadoras da
esquerda, demagogo e caudilho, numa alusão a suas raízes de fronteira e à
tradição autoritária das repúblicas platinas, à esquerda e à direita. A combina­
ção de um projeto dem ocrático com a predom inância de um a liderança tão
forte e personalizada, como é o caso de Brizola, foi tema de um debate intenso
e rico, ao longo dos anos aqui estudados. De um lado, os com panheiros de
Brizola, advogando a compatibilidade, quando não a inevitabilidade, de tal com­
binação. Do outro, aqueles que, sem necessariam ente demonizá-lo - ou, ao
menos, não a ele especificamente - , vêem, nesse tipo de liderança, uma am ea­
ça à saúde do modelo de democracia que se pretende construir para o país, com
instituições estáveis e reconhecidas em sua legitimidade soberana. Brizola foi
encarado por amplos setores das Forças Armadas e da elite política civil con­
servadora como agitador e subversivo, manipulador das massas ordeiras e tra­
balhadoras. Uma parte daqueles que permaneceram no Brasil, incluindo diri­
gentes do PCB, considerava-o um arrivista perigoso e pouco afeito à política

198
formal. No interior dos grupos que buscavam consolidar um partido constituído
pelos membros da classe trabalhadora, representou a personificação da lideran­
ça burguesa travestida de defensor dos pobres. Por razões diversas, setores da
esquerda e da direita, democratas e conservadores, trataram-no como um ini­
migo a ser combatido.
Da parte dos que aceitam e mesmo reclamam pela liderança de Brizóla, a
afirmação de Neiva Moreira é exemplar: “É inevitável que um partido que tem
Brizóla fu n cio ne segundo sua direção De fato, foram poucas as lideranças
que, no Brasil pós-abertura, exerceram um poder tão grande, quase absoluto,
no interior de seu partido. Poder extraído da habilidade política, de manobras,
mas também e fundamentalmente do enorme fascínio que exerce sobre seus
companheiros. Tal sentimento é flagrante, mesmo nos depoimentos daqueles
que, ao longo dos anos, acabaram por rom per com ele. Inversam ente, é do
reconhecimento dessa tendência personalizadora do poder político que muitas
das críticas a Brizóla e a seu partido são formuladas. A incompatibilidade da
liderança personalizada com um sistem a dem ocrático sólido, contando com
partidos fortes, é reiteradamente denunciada. A sua ascensão representaria um
retomo nefasto aos tempos do varguismo e do caudilhismo, tidos como respon­
sáveis pela fragilidade crônica das instituições representativas. O que se confi­
gura, portanto, é um embate entre tendências e convicções, além do cálculo,
egoísta muitas vezes, de atores políticos radicados em uma certa conjuntura e
buscando situar-se nela com poder de fogo superior a seus contendores. Esse
em bate, que cobre todo o período estudado e, a rigor, com eça bem antes,
remete-nos a discussões de ordem teórica, fundamentais para a ciência política,
sobre as relações entre a figura do líder e as instituições políticas, de modo
geral, e, no contexto das democracias modernas, entre o líder de massas, as
próprias massas e as instituições representativas. O caso brasileiro tem contor­
nos dramáticos, com sua história recente de golpes, desferidos e/ou abortados,
todos girando direta ou indiretamente em tomo de um líder carismático (Vargas)
e do modelo político por ele criado.
Não são poucas as formulações teóricas que concedem centralidade à figu­
ra do líder na política. Três modelos contribuem para a interpretação dos deba­
tes envolvendo Brizóla, ao confrontarem esta centralidade com a lei, as institui­
ções políticas e o corpo de governados. Neles, o líder é apresentado como
indivíduo singular, dotado de aptidões de que carecem a média dos homens,

1 Depoim ento de Neiva M ore ira ao autor, em 2 /1 2 /9 6 .

199
extraindo daí seu poder de mando. No prim eiro m odelo, a singularidade do
líder deriva do saber prático: de sua capacidade de conduzir os negócios públi­
cos com habilidade e insuflar nos comandados a confiança em suas resoluções.
Esta configuração do líder aparece, aqui, através das formulações de Tucídides
(descrevendo Péricles), Séneca e Maquiavel. No segundo caso, o líder extrai a
legitimidade de seu poder de comando do fato de ser aquele que se dedica à
contemplação da verdade última das coisas. O autor paradigmático é, como não
poderia deixar de ser, Platão. Finalmente, no terceiro modelo, o líder é aquele
que possui a capacidade de seduzir e conduzir as grandes e turbulentas massas
urbanas, que surgem na esteira do processo de industrialização e urbanização.
Aí se destacam os chamados psicólogos das multidões, Tarde e Le Bon, e, mais
modernamente, Oakeshott. A definição dos modelos e a escolha dos autores
têm uma margem razoável de aleatoriedade. Certamente, outros poderiam ser
trazidos à cena. Contudo, é razoável supor que a abordagem feita por cada um
deles seja suficientemente elucidativa para a análise posterior dos debates en­
volvendo a liderança de Brizóla, seus aspectos positivos e negativos, segundo
os atores políticos.
E curioso observar que a figura do líder aparece como problem a teórico
simultaneamente às primeiras formulações mais sistematizadas sobre a política.
Ele é personagem central já no mundo da Antigüidade Clássica. Em sua história
sobre a guerra do Peloponeso, Tucídides, o primeiro historiador-político, se­
gundo Jaegger, aborda minuciosamente as qualidades e características dos líde­
res atenienses ao longo do período da guerra, imputando-lhes a responsabilida­
de pelos rumos do conflito, em suas diferentes etapas. Na guerra, a atuação do
líder é decisiva. Nesse contexto, ganha destaque a figura de Péricles. A convic­
ção de que a mera permanência de um único homem na condução de Atenas
seria o bastante para m udar os rumos dos acontecim entos atravessa toda a
descrição de Tucídides. Para ele, Péricles era o homem que poderia ter levado
Atenas à vitória. Suas virtudes cardeais - a capacidade de conduzir o povo,
evitar que se imiscua excessivamente nos processos decisórios, e de levar adi­
ante a condução dos negócios de Estado - caracterizam o arquétipo do homem
político cuja presença pode concorrer para a prosperidade do Estado. O bom
funcionamento do sistema democrático dependia dessa aparentemente parado­
xal condição: a existência de um líder capaz de gerir os negócios do Estado e,
simultaneamente, conduzir a massa. Escusado dizer que a massa, nesse contex­
to, nada tem com o sentido moderno do termo. Refere-se a um contingente
limitado de cidadãos com direito de participar do processo decisório, do qual

200
está excluída uma num erosa coleção de personagens que habitam a cidade-
Estado, como as mulheres, os metecos, as crianças e os escravos. A ressalva,
porém, apenas qualifica melhor o argumento, posto que o conjunto de cida­
dãos, como supõe Finley, estava longe de ser inexpressivo e exigia, em seu
trato, pulso e habilidade da parte do estadista. Temos, assim, já nos primeiros
momentos em que a política é exercida e, simultaneamente, formalizada como
objeto de inquirição, a figura do líder, concorrendo para a configuração de um
modo singular de exercício do poder e de procedimento decisório, diferencian­
do-se, ao mesmo tempo, dos modelos autocráticos e autoritários. Na formula­
ção de Tucídides, exaltando as qualidades de Péricles, há três aspectos que
interessam especialmente: a centralidade do líder na guerra - de sua condução
depende o fracasso ou o sucesso do empreendimento seu poder privilegiado
de m anter o equilíbrio perfeito entre a participação popular nos processos
decisórios, funcionando, ao mesmo tempo, como um dique para conter eventu­
ais excessos e expansões demasiadas do “vulgo”; e sua im portância para a
saúde do sistema democrático. As três qualidades, acima referidas, dizem res­
peito a um saber prático, à capacidade de estadista do líder.
E ainda no crepúsculo do mundo antigo, com Sêneca, que um elemento a
m ais é incorporado ao perfil da liderança: a capacidade de teatralizar suas
virtudes. Em seu Tratado sobre a clemência, dirigido a Nero, Sêneca não só
põe em relevo a qualidade de perdoar e poupar a vida dos seus inimigos e dos
inimigos do Estado - exclusiva do soberano e extraída de seu caráter superior
- como enfatiza a im portância de que esta qualidade seja exercida regular e
p u b licam en te, para que todos os governados possam testem unhá-la. Em
Sêneca, as virtudes do líder devem ser um espetáculo para os governados,
um mecanismo pelo qual a inferioridade destes é com pensada pela m agnani­
midade, senso de justiça e superioridade moral daquele que detém o com an­
do. Não deixa de ser uma ironia histórica que Sêneca tenha sistem atizado sua
percepção da política sob a form a de conselhos endereçados a Nero. Esta
nova virtude do líder será retom ada, posteriorm ente, com o um dos tem as
centrais em M aquiavel. Com o escritor florentino, o tem a da liderança retorna
ao centro da reflexão política, após ficar relativamente esquecido do pensa­
mento político m edieval, para o qual o acordo com as leis divinas era a condi­
ção p rin c ip a l p a ra o bom governo e p a ra a p ro m o çã o da ju s tiç a . No
Renascim ento, onde o jusnaturalism o enfatiza não a singularidade m as, ao
contrário, exatamente o que há de comum entre os homens, o líder singular
não ocupa centralidade nas discussões políticas dom inantes. M aquiavel é,

201
nesse contexto, a voz dissonante. Sua mais conhecida obra, O príncipe, é a
descrição ordenada do conjunto de qualidades necessárias ao soberano para
adquirir, am pliar e m anter o poder político. É um dado pacífico que este deve
ser exercido por indivíduos especiais, que se destacam do comum pela am bi­
ção à glória e ao poder, bem como pela posse de um a energia superior, neces­
sária para adquiri-los. A própria história, em M aquiavel, parece um palco
onde desfilam homens notáveis, dedicados à realização de grandes feitos. Do
mesmo modo, o vínculo do soberano com as m assas ocupa lugar central. São
célebres as passagens em que ele chama a atenção do leitor para a relevância
da dimensão dram ática da política, da importância da teatralização do poder.
É provavelm ente nesse aspecto de sua obra, escrita quando o Ocidente ainda
estava muito longe do desenvolvimento dos meios de com unicação de massas
- e o próprio conceito de massas referia-se a um elemento empírico bastante
diverso daquele com que lida o homem contemporâneo - que sua obra parece
mais atual. O líder é aquele que domina as técnicas de condução dos homens
não apenas do ponto de vista m aterial m as, principalm ente, sim bólico. É
aquele capaz de se apresentar como detentor das qualidades que o vulgo julga
fundamentais, ainda que não as possua.
É um erro, porém, julgar que a abordagem de Maquiavel sobre a questão
do líder singular se restrinja ao que está posto em O príncipe. A rigor, é apenas
na leitura conjunta de sua obra mais famosa e da não menos importante Co­
mentários sobre a primeira década de Tito Lívio que se tem um quadro com­
pleto das suas formulações sobre a figura do líder. E em seu livro sobre Tito
Lívio que o M aquiavel cáustico e m ordaz - ou, talvez m ais precisam ente,
realista - dá lugar a um pensador atento para o problema da justiça e da virtude
pública. Não que haja qualquer contradição ou solução de continuidade entre
ambas as obras. Ao contrário, há entre elas coerência e, juntas, compõem um
todo harmônico e expressivo de um pensador, a um só tempo, erudito, sensível
e adepto dos ideais republicanos. As virtudes do líder, expostas e analisadas em
O príncipe, encontram-se também em Comentários sobre a primeira década
de Tito Lívio, mas, nesta última, ganham um maior relevo e são acrescidas de
qualidades apenas superficialmente mencionadas em seu estudo oferecido aos
Médicis. Entre elas, cabe destacar o papel fundador atribuído ao líder e sua
centralidade para o devir da ordem política então instituída. Em O príncipe,
Maquiavel está próximo de Séneca e de seus conselhos a Nero, em Tito Lívio,
a aproxim ação se dá com o Platão tardio, do livro sobre as leis, quando a
importância da legislação, como fonte geradora e asseguradora da justiça e da

2 02
liberdade, ganha destaque sem, contudo, minimizar a importância da figura que
a concebe e a engendra: aquele que, em ambas as obras, aparece com a tintura
do herói fundador.
Tocamos aqui em um nervo central das abordagens da política e do lugar
em que se situa a reflexão sobre o líder. Trata-se de enfatizar a questão da lei e
a relação desta com o soberano. Dois traços inerentes à lei, quando formalizada
em recurso regulador de natureza jurídica, são sua pretensão à universalidade e
à perenidade. A lei, uma vez estabelecida, deve agir indistintamente sobre todos
aqueles que fazem parte do corpo político por ela instituído - salvo as exceções
previstas nela mesmas - e sofrer modificações apenas quando as circunstâncias
assim o exigem. Em Maquiavel, contudo, há um flagrante ceticismo quanto à
primazia da lei. A rigor, tal ceticismo dirige-se mais diretamente aos homens em
geral, a suas tendências "...a agir com perversidade sempre que haja oca-
2 '
sião”. E necessário, nesse caso, a mão forte e justa do líder para executar uma
espécie de trabalho de permanente reatualização da lei, executando-a com ju s­
teza e rigor sempre que necessário e velando para que ela seja seguida rigorosa­
mente. Sendo assim, a abordagem do problema do líder, em suas relações com
as instituições políticas e com os governados, em Maquiavel, incorpora tanto as
questões contempladas por Tucídides quanto por Séneca, dois autores conheci­
dos do estadista florentino. Por curioso que pareça (à luz da imagem vulgar
construída sobre sua concepção política), traz em si uma percepção próxima à
platônica acerca dos limites da lei. Ao contrário de Platão, contudo, e do m es­
mo modo que em Tucídides e Séneca, o saber que é património do líder é de
ordem estritamente prática.
É justam ente em Platão que se pode observar o segundo modelo de inter­
pretação para o problema do líder, em suas relações com as instituições e os
governados. As qualidades do líder, tal como pintadas por Tucídides, não fo­
ram as únicas que nos foram legadas pela Grécia Antiga. Ao líder capaz de
conduzir as massas em assembléias e induzi-las a fazer escolhas se contrapõe o
líder esclarecido, que prescinde do contato com as massas e tem, no domínio
de um saber superior à doxa, a fonte de legitimidade de seu poder. Encontra-se
em Platão sua imagem mais bem formulada. O rei-filósofo descrito em A Repú­
blica e em O político é um personagem dotado de qualidades que o fazem
superior aos demais cidadãos em conhecimento, discernim ento e devoção à
causa pública, sendo tais qualidades fiadoras do acerto das orientações por ele

2 M aquiavel, 198 2: 55.

203
imprimidas na gestão da cidade. Na sua obra, a figura do líder político está no
centro do debate. Este aparece em obras como o Górgias ou, mais cuidadamente,
nos primeiros livros de A República, e refere-se à noção de justiça, entendida
como o principio fundante do Estado. Em A República, a questão é colocada
da seguinte maneira: será o justo (ou direito) aquilo que é mais útil para o mais
forte, tal como definido por Trasímaco? Se for assim, será justo aquilo que for
estipulado como tal por aquele(s) que estiver(em) em condições de fazê-lo, seja
pela força ou por qualquer outro meio. A aceitação dessa tese significaria o
falseamento de todo o conjunto da filosofia platônica e, em certo sentido, a
rendição da filosofia ao primado da doxa, ou da força. Sua rejeição, no entanto,
implica um grande esforço de problematização de evidências empíricas. A pri­
meira delas refere-se à inegável diversidade de legislações e princípios de direi­
to observáveis nas mais diversas cidades. A irredutibilidade das constituições
entre si e a indecidibilidade sobre qual a mais próxima da perfeição desafiam o
filósofo que postula um princípio universal de justiça. A segunda remete a uma
espécie de escolha trágica, diante da qual se veria o legislador: aparentar ser
justo, e, dessa forma, cumular-se de todas as vantagens e honrarias que são
reservadas àqueles que se portam dessa forma, ou ser verdadeiramente justo,
ainda que sob o risco de viver em penúria e, eventualm ente, vitim ado pela
m iséria e perseguição? A carga dramática desse impasse, trazido ao debate
pelos irmãos Gláucon e Adimanto, encontra-se radicada em toda a filosofia
platônica, além de tocar o cerne de sua própria trajetória pessoal, desde a
condenação de Sócrates até suas próprias atribulações, exílios e projetos políti­
cos abortados.
A resposta platônica para o problem a rem ete ao cuidadoso program a
pedagógico de form ação dos prom otores e defensores da cidade ideal. A
form ação dos cidadãos está vinculada a um a rígida hierarquização, presidi­
da pela idéia segundo a qual os indivíduos são dotados de qualidades e
aptidões diferentes. No posto m ais alto da hierarquia, encontra-se o rei-
filósofo, a quem cabe governar a cidade. O bem governar é um em preendi­
m ento pautado por um a ciência específica, a ciência do bom governo, cujo
objeto é a idéia de justiça. O dom ínio desta ciência é m enos um patrim ônio
obtido pelo sábio do que um a form a de inserção no m undo voltada para o
conhecim ento e para a virtude. E, portanto, um saber teórico mas tam bém ,
e principalm ente, prático. As m assas, por outro lado, jam ais poderiam ad­
quirir ou m esm o alm ejar este tipo de conhecim ento. Sequer seria útil para a
cidade que isso ocorresse, posto que há outras atividades cruciais para o

204
bom funcionam ento dela. Daí Platão colocar na boca do estrangeiro, em O
P olítico, a afirm ação de que:

"...a massa, q u a lq u e r que seja, ¡am ais se a p ro p ria rá p e rfe ita m e n te de um a


tal ciência de sorte a se to rn a r capaz de a d m in is tra r com in te lig ê n cia um a
cidade e que, ao con trá rio, é a um pequeno nú m ero , a algum as unidades, a
um só, que é necessário pe dir esta única constituição v e rd a d e ira ."3

Há, porém, nesse momento, uma certa tensão entre a singularidade recla­
mada para o rei-füósofo e o princípio democrático, que é constitutivo de uma
certa corrente do mundo grego, tensão esta que tem no ostracismo seu correlato
institucional. Segundo esta regra, o destaque excessivo de um homem público
em relação a seus pares traía o princípio fundamental da isegoria, o que colo­
cava todo o sistema político pautado na igualdade sob risco de colapso. Desse
modo, ficava previsto que, quando isso ocorresse, o líder poderia ser deportado
por um período de tempo a ser estipulado pelos magistrados, resguardando-se
seus bens e garantindo-se seu retorno quando o prazo expirasse. O ostracismo
foi utilizado com freqüência desconhecida no mundo grego, mas sabe-se que
dele foi vítima aquele que pode ser considerado seu primeiro grande estadista e
4
líder: o próprio Péricles, incensado por Tucídides. A alusão à imagem por
tanto tempo cultivada de Platão como um antidemocrata poderia ser uma res­
posta fácil para o problema. Ela, no entanto, é insuficiente. Se Platão foi um
crítico severo do sistema da democracia ateniense, não é menos verdade que
suas críticas se dirigiram preferencialm ente aos aspectos degradados de um
sistem a em profunda crise, o que levava ao poder homens despreparados e
inescrupulosos e a ações indefensáveis como a condenação de Sócrates. Em
Platão, a hierarquização na divisão de tarefas, nas atribuições e na descrição de
aptidões e qualidades corresponde a níveis diferenciados de devotamento ao
saber e à conduta regrada exigida na R epública ideal. Deslocado da esfera
especulativa para a esfera prática, o pensamento platônico opera segundo um
telos normativo (a idéia de justiça) visando a consecução da harmonia e justa
proporção ou, usando termo mais próximo a nós, o bem comum. Associar a
armadura social formulada para a cidade ideal a uma perspectiva autoritária (ou
totalitária), nos termos entendidos séculos após, é um anacronism o que em
nada contribui para o entendimento de um universo espiritual tão distante. O
m esm o valeria para seu oposto, ou seja, ver em Platão o prefigurador das

3 Platão, 1972: 254.


4 Sobre a instituição do ostracismo, ver Finley, 1 988.

2 05
democracias contemporâneas. Apenas com atenção ao contexto de seu próprio
tempo e dos embates filosóficos e políticos, enfrentados por Platão, assim como
às relações estreitas entre suas reflexões práticas e teóricas, é que podemos
extrair algum aprendizado do que ele nos legou.
O caráter transitório e necessariamente imperfeito de toda a criação hu­
m ana é um dos corolários da construção filosófica de Platão. Este é o caso
das constituições. Sendo assim, seria um contra-senso erigir como norte da
ação na esfera pública um conjunto de leis que, para Platão, seriam sempre
precárias e insuficientes. Corresponderia a atribuir perenidade a preceitos e
regras necessariamente m arcados por uma margem indesejável de erro e im ­
perfeição. Dada a devoção do filósofo à busca da verdade últim a das coisas, à
sua perm anente busca da ju stiça e da perfeição, caberia a ele estipular as
regras que deveriam presidir a vida na cidade, prom ovendo a harm onia e o
senso de proporção nas relações entre os cidadãos da polis. O entendim ento
da doutrina platônica como uma postura antidem ocrática é parte de um a pers­
pectiva anacrônica, que não guarda atenção à especificidade histórica e espi­
ritual do mundo grego e projeta no século IV a. C. um a definição m oderna da
democracia. Ao contrário, parece bastante claro que, à falibilidade das regras
fossilizadas na lei escrita (e temos no M enon o testem unho do quanto ele
desconfiava da própria palavra escrita), Platão opõe o dinamismo da relação
do filósofo com a verdade, entendida como objeto de inquirição perm anente­
mente renovada e, por isso mesmo, mais compatível com a organização de
uma cidade fundada no desejo pela justiça.
A despeito da grande diferença entre as definições de Tucídides e Platão
acerca do líder político, o destaque que ambos dão a este personagem atesta
sua im portância no mundo antigo. Têm em comum o reconhecim ento de que
são as qualidades inerentes ao líder que lhe conferem destaque e poder, além
de fazerem dele uma figura imprescindível para a prosperidade na vida políti­
ca. A proxim idade, contudo, term ina aí. O saber do líder platônico é de natu­
reza diversa daquele enaltecido por Tucídides, na figura de Péricles. O líder,
o rei-filósofo, é aquele que devota sua existência à contemplação da verdade
absoluta e eterna, destacando-se, por isso, do comum dos homens, dem asia­
do apegados à transitoriedade do mundo do devir. É por serem próprias do
m undo do devir que as leis são precárias e insuficientes para ordenar a R epú­
blica platônica. Novamente em O político, podemos atestar o grande ceticis­
mo de Platão para com a lei escrita e o primado que o rei-filósofo deve ter
sobre ela:

2 06
"... a lei ¡am ais seria capaz de estabelecer, ao m esm o te m p o , o m e lh o r e o
m ais ¡usto para todos, de m odo a o rd e n a r as prescrições m ais convenientes.
A diversidade que há entre os hom ens e as ações, p o r assim dizer, a in s ta b i­
lid ad e das coisas hum anas, não ad m ite em n e nh um a arte, e em assunto a l­
gu m , um absoluto que valha para todos os casos e para todos os te m p o s ."5

A ênfase na capacidade privilegiada do soberano é diretamente proporcio­


nal à desconfiança para com a eficácia e a justeza das leis, obra dos homens e,
portanto, necessariamente imperfeitas.
Os dois modelos apresentados até aqui conferem uma notável prevalência
do líder singular sobre as leis. Comparada à fixidez e à precariedade destas, as
virtudes e o conhecimento do líder funcionam como fiadores da fundação e
preservação da ordem, pautada na justiça e no bem público. Antes que se
apresente o terceiro modelo, a partir do qual o quadro até aqui apresentado
sofrerá sensível inflexão, cabe notar que a relação entre a lei e o líder singular é
lentamente invertida, com o segundo cedendo o lugar central para a primeira.
Modernamente, o primado da lei corresponderia a uma diminuição da impor­
tância do papel do líder e de suas qualidades. Isso porque à figura do líder estão
geralmente associadas as idéias de fundação ou mudança, enquanto que o im­
pério da lei radica-se na rotina e estabilidade de um conjunto de preceitos e
prescrições. A obra de Hobbes é, nesse sentido, ilustrativa. Não há no Leviatan
hobbesiano nada que se aproxime da retidão privilegiada e das demais virtudes
que o diferenciariam dos homens comuns. Ao contrário, cabe a ele traduzir, na
letra da lei, as aspirações daqueles que, mediante o pacto, tornaram possível
sua existência. Para tanto, ele deve ver, sentir, desejar e temer como a média
dos homens em geral. Deve ser um indivíduo mediano, para regular a coexis­
tência dos homens segundo suas inclinações mais fundamentais. O soberano
7
em Hobbes é um homem medíocre.
Com as formulações clássicas da democracia, o singular dá lugar ao geral.
A justiça não mais emana da capacidade individual privilegiada, mas do acordo
do corpo de cidadãos (se pensarmos em Rousseau) ou da obediência ao impe­
rativo da razão, que é constitutiva do humano (se tivermos Kant em mente). O

5 Platão, 1972: 250 -1.


6 A exceção seria sua obra póstuma, As Leis, em que Platão se voltaria para um esforço de form ulação de um corpo de
leis que pudessem ordenar, o mais próxim o possível do ideal, uma cidade real. Já existe um razoável consenso entre
os com entadores que esta obra traduziria a concepção política de Platão em sua velhice. O corre que esta m udança
não parece contradizer preceitos e convicções postulados em suas obras de m aturidade, apenas significa um esforço
de ade quação ao m undo em pírico.
7 Para uma análise da construção do sujeito universal, com o base da ordem política, em Hobbes, ver Soares, 1995.
seu retomo dá-se apenas quatro séculos após ser cuidadosamente analisado e
entronizado por M aquiavel, em um contexto radicalm ente diferente e numa
roupagem que lhe é bem desfavorável. No século XIX, a figura do líder político
retorna à cena, colado ao advento das m assas e sua incorporação à esfera
pública como um ator político. É verdade que há referências às m assas em
quase toda a literatura política ocidental, inclusive sobre a sua ignorância e
inaptidão para o trato das questões públicas. No entanto, é apenas no século
XIX que menções e alusões circunstanciais tomam-se objeto de reflexão siste­
mática e relevante para a análise das coisas relativas ao homem e à sociedade.
Até então, o termo homem-massa fora utilizado para designar o vulgo ignoran­
te, sem instrução e plasmado num a existência incom patível com as obras e
atividades mais nobres do espírito humano. Seu modo de ser era mais abjurado
que tem ido, era m ais objeto de desprezo do que propriam ente de atenção
interrogativa. No século XIX, porém, tudo muda. É possível dizer que foi no
século XIX que este personagem foi inventado. Um dado sociológico importan­
te concorre para tal mudança. O intenso movimento migratório do campo para
a cidade, em grande parte ocasionado pelas mudanças econômicas, levou à
concentração da população nos principais centros urbanos da Europa. Os acon­
tecimentos imediatamente posteriores à Revolução na França também se tom a­
ram objeto de temor por grande parte das elites políticas. Este temor cresceu à
medida que a enorme concentração de trabalhadores no espaço relativamente
restrito dos bairros operários e nas fábricas, suscitada pela industrialização,
revelou-se extremamente propícia para o surgimento de organizações e grupos
clandestinos ou semiclandestinós, com objetivos pouco favoráveis à manuten­
ção da ordem social e política vigente. A irrupção das multidões, a sua entrada
em cena provocando distúrbios e destruição, deixou de ser uma possibilidade
remota e pontual, a ocorrer em algum rincão afastado do campo, para habitar a
fantasia e o temor das elites. Mais grave ainda, a alternativa que se afigurava
mais razoável para conter dentro de limites toleráveis a ação política desse
novo personagem não parecia, para grande parte da elite política e intelectual
européia, mais alentadora. A incorporação das massas à competição política,
através da redução gradual das barreiras de acesso ao sufrágio, colocava, aos
olhos de muitos, todo o aparato político institucional sob o risco do colapso.
Este é um marco decisivo, ponto de partida para a grande inflexão que as
formulações novecentistas representam para o pensamento político modemo.
Desde que Hobbes lançou as bases ontológicas do homem maximizador,
toda a reflexão política, ou ao menos a parte que vingou e conformou a tradição

208
política moderna, assumiu a racionalidade utilitária como princípio norteador
da ação política. N ascia, portanto, o Eu calculista. Todas as form ulações
normativas ou empíricas, desde então, tomam a racionalidade, entendida nes­
ses termos, como força que presidia a ação humana e o indivíduo como unida­
de fundante da ordem política e da sociabilidade. O que está fora das paixões,
transmutadas em interesse, é percebido como bárbaro e inculto. O lançamento
das bases da teoria política liberal coincide, em ampla medida, com o rebaixa­
mento do líder singular a uma posição secundária na arquitetura política. M es­
mo em autores como Locke, que, pelo mecanismo da prerrogativa, ainda con­
cede poderes extraordinários ao chefe de governo, o primado da lei e, portanto,
do geral se impõe à singularidade do líder.
As observações anteriores são importantes para a definição do terceiro m o­
delo interpretativo acerca das relações entre o líder, as instituições legais e os
governados. Ele é impensável sem a pretensão de universalidade do princípio
ontológico liberal e o primado da lei geral sobre a singularidade do líder. Isso
porque é um dado estritamente moderno a configuração do líder não como um
dique para a manifestação das massas, como em Tucídides ou Platão, mas, ao
contrário, como seu condutor para o centro da arena pública. No terceiro m o­
delo, a ação do líder está associada à desordem e ao primarismo das massas e
aos riscos que elas representam para a ordem política.
O homem-massa é o antiindivíduo, ou, nas palavras de Oakeshott, o indiví-
duo-manqué. A imagem do homem inadaptado aos novos tem pos, estiolado
pela perda dos antigos vínculos de lealdades e parentesco, que conformavam
seu restrito mundo tradicional e agrário, sem lugar e, o que é mais importante,
ressentido com tal situação, fornece-nos a m atéria-prim a para o perfil do
antiindivíduo, que ameaça a civilização transmutado em homem-massa. Toma­
do de um ressentimento destrutivo, o indivíduo-manqué só é capaz de obede­
cer a seus instintos mais primitivos e lançar-se com um furor de morte contra o
mundo para o qual não passa de um dejeto e onde não está apto a viver.

"As an tiga s certezas de crença, ocu pa ção e status estavam sendo disso lvi­
das, não apenas para aqueles que tin h a m confiança em sua cap acid ad e de
cria r um novo lu g a r p a ra si p ró prio s em um a associação de in d ivíd u o s, mas
ta m b é m para aqueles que não tin h a m ta l con fian ça. A c o n tra p a rtid a do

8 A referência a O akeshott é aqui extremamente relevante em vários sentidos. Em ensaio escrito em 1960, sua ab o rd a ­
gem a respeito do homem-massa expressa uma perspectiva sobre o fenôm eno que, em bora estivesse m uito de acordo
com os convicções e os postulados dos séculos XVIII e XIX, goza ainda de grande aceitação, com o, de resto, ocorre
com a própria ontologia utilitária.

2 09
e m p re e n d e d o r a g ríc o la ou in d u s tria l do sécu lo XVI era o tra b a lh a d o r
d e se n ra iza d o ; a co n tra p a rtid a do lib e rtin o era o cren te desapossado. O
c a lo r fa m ilia r das pressões da com una fo i dissipado p a ra todos ig u a lm e n te
- um a e m a ncip açã o que e m p o lg o u alguns, d e p rim iu outros. O a n o n im a to
fa m ilia r da vid a com unal fo i sub stitu ído po r um a id e n tid a d e pessoal que fo i
opressiva para aqueles que não po d ia m tra n s fo rm á -la em in d iv id u a lid a d e .
O que alguns vêem com o fe licid a d e , para outros se apresentava com o m a l-
estar. As m esm as condições das circunstâncias hum anas fo ra m e n tend ida s
com o progresso e decadência. Em sum a, as circunstâncias da Europa m o ­
d e rn a , m esm o a in d a no século XVI, p ro d u zira m , não um ún ico tip o , mas
dois tipo s o b liq u a m e n te opostos: não apenas o do in d iv íd u o , mas ta m b é m
o do in d ivíd u o -fra ca ssa d o (¡n d iv id u a l-m a n q u é ). E este in d iv íd u o -fra c a s s a -
do não era um a re líq u ia de um te m p o passado; ele era um tip o 'm o d e rn o ',
pro d u to da m esm a dissolução de laços com unais que havia g e ra d o o in d iv í­
d u o e u ro p e u m o d e rn o "9

A passagem acima m encionada atesta a perenidade daqueles que apare­


cem, aqui, como formuladores originais do terceiro modelo. Trata-se dos cha­
mados psicólogos das multidões, que, a despeito de adotarem posições políticas
conservadoras, assum em , ao definir a “patologia” das m assas, o princípio
ontológico liberal. Contudo, ao contrário da perspectiva histórico-sociológica,
assumida por Oakeshott, os psicólogos das multidões definem o fenômeno das
massas como de ordem predominantemente psíquica.
Está fora de dúvida que os principais intérpretes do fenômeno das m ulti­
dões, refiro-me principalmente a Gabriel Tarde e Gustave Le Bon, com parti­
lhavam os temores e preconceitos de seus contemporâneos. Viam nas massas
uma ameaça à civilização e uma incapacidade brutal para qualquer ação orde­
nada, condição necessária para a atuação política:

"Pode-se fisio ló g ica m e n te d e fin ir esse fe n ô m e n o , dizendo que o in d ivíd u o


isolado possui a ap tidã o de d o m in a r os seus reflexos, ao passo que a tu rb a é
desprovida dessa faculdade.
"As impulsões diversas às quais as m ultidões obedecem , poderão ser, co n fo r­
m e as excitações, generosas ou cruéis, heróicas ou pusilânim es, mas serão
sem pre de tal m od o im periosas que o p ró p rio interesse da conservação se
dissipará d ia n te de las." 10

9 O akeshot, 1 9 9 1 :3 7 1 .
10 Le Bon, 1 954:1 6.

210
O grande deslocam ento operado pela chamada psicología das multidões
está no reconhecim ento de que o hom em -m assa é a m aterialização de um
estado psíquico a que qualquer homem, independentemente de seu nível cultu­
ral ou posição social, está sujeito. O tipo de comportamento das massas só é
possível porque existem, no interior dos homens, paixões e apetites que o lustro
da civilização os ensina a controlar. No entanto, na circunstância em que surge
a possibilidade de desindividualização e uma vez que não seja exigido dos indi­
víduos, tomados isoladamente, qualquer espécie de satisfação sobre seus atos,
essas mesmas paixões irrompem nas condutas mais violentas e aterradoras.

"(...) um a reu niã o de sábios ou de artistas não em ite sobre assuntos gerais
ju lga m ento s sensivelm ente dessem elhantes dos que podem ser fo rm u la d o s
num a assem bléia de p e d re iro s."11
"Em m ultid ão , repito, os homens se igualam sem pre, e, em questões gerais, o
su frá g io de q u are nta acadêm icos não é su p erio r ao de q u are nta ca rre g a d o ­
res de á g u a ."12

O deslocam ento da discussão terá uma grande repercussão no pensam en­


to político, tanto alimentando as doutrinas totalitárias do início do século XX,
quanto a posterior reform ulação do m odelo dem ocrático, operado no pós-
13
guerra.
O impacto dessas fonnulações não se restringe à pintura desse novo perso­
nagem político que adentra definitivamente o cenário público e as especulações
14
acadêmicas. Projeta-se também na perspectiva a ser adotada frente ao outro
personagem que ressurge em sua esteira: o líder político, agora travestido de
líder de massas. Não são pequenos o fascínio e o horror causados nos espíritos
ilustrados pelo líder de massas e pela sua capacidade de exercer seu domínio
sobre estas. Estranho, este personagem . Ele faz parte da m assa, sem nela
desindividualizar-se. Pelo contrário, emerge de seu interior como radicalização
do poder individualizado que se exponencia até o paroxismo. Sua vontade e
seus caprichos são os componentes da ordem que estipula. Estabelece com as
m assas uma relação de com unicação direta, de ordem empática, emocional,
veiculada mediante símbolos de forte apelo e quase irresistível poder hipnótico.

11 Ibid., p. 142.
12 Ibid., p. 157.
13 A referência óbvia aqui é Schumpeter e sua nova teoria dem ocrática. A despeito dos reparos feitos a Le Bon, que de
minha parte considero de pequena relevância, se não totalm ente desprovidos de razão, fica patente a influência do
teórico francês na construção do perfil de conduta política do homem médio. Ver Schumpeter, 1984.
14 E possível conjecturar que os não poucos traços conservadores das obras dos estudiosos aqui citados contribuam ,
grandem ente, para a relativa omissão de que são vítimas, o que, se fo r assim, é lamentável.

211
Ele é capaz de conduzir as multidões pelas sendas mais estranhas e inespera­
das, dado que as multidões são, no retrato composto por Tarde, tão verdadeira­
mente imbecis, irracionais e incapazes, que mesmo as idéias que as ordenam,
os princípios a que se apegam, não são de autoria sua. As multidões são incapa­
zes de guiar a si próprias e são igualmente incapazes de criar o que quer que
seja. Elas agem como sonâmbulos, como indivíduos submetidos à hipnose, por
meio da sugestão, pura e sim plesm ente. Na m aior parte das vezes, elas só
ganham corpo e se constituem enquanto multidões quando se põem em torno
de um centro, invariavelmente encarnado na figura de um líder. Idéias abstratas
não bastam para a formação das multidões, se não houver aquele que as repre­
sente e as tomem, pela sua imagem, visíveis. As multidões são, quase sempre,
conduzidas pelo líder. Ele pode estar oculto ou em evidência. Pode ser o cria­
dor das idéias que veicula ou seu mero propagador. Pode ter maior ou menor
controle sobre seus liderados. M as certam ente é figura fundam ental para a
formação das multidões e para a determinação de sua conduta.
As massas seguem o líder com fervor religioso. E a convicção em sua superi­
oridade frente ao comum dos homens que sustenta este fervor. Para Freud,
também interessado em nosso personagem, esta reverência apaixonada seria um
mecanismo compensatório que leva o homem-massa a projetar suas frustrações
e sensação de impotência sobre aquele a quem é atribuído um poder superior. Para
Le Bon, o líder de massas detém o domínio da arte de impressionar a imaginação
das multidões e, desse modo, govemá-las. Em cada uma dessas perspectivas, a
despeito de nuances que para a atual discussão são relativamente negligenciáveis,
há três traços em comum. Primeiro: há na relação líder/liderado uma inquestionável
assimetria. O líder de massas é identificado com o demagogo do mundo antigo,
que manipula as massas através de mistificações, para a satisfação de seus própri­
os interesses particulares. Segundo: há nessa relação um elemento religioso que
opera como fio de ligação entre o líder e os liderados. Terceiro: na figura do líder
de massas, lido a posteriori, encontra-se a prefiguração do tirano dos sistemas
totalitários da primeira metade do século XX. O líder singular, tomado líder de
massas, é entendido como uma ameaça à ordem política. Geralmente, sua atua­
ção vai de encontro às leis de civilidade instituídas, constituindo-se um risco de
degeneração do corpo social e de caos.
Estabelecidos os três modelos gerais de interpretação do padrão de interação
entre o líder, as instituições e os governados, é hora de reintroduzir Weber, para

15 Ver Freud, 1 974 , v. 21.

212
que o quadro se complete. Das três características da atuação do líder, listados
no final do parágrafo anterior, a segunda é especialmente importante para Weber.
Ela é explorada à exaustão, com o que se abrem possibilidades surpreendentes
para a reflexão do problema. O líder carismático, tipo ideal formulado a partir
da experiencia de autoridade religiosa transposta para o contexto da democracia
representativa, e por isso vestido em roupagem secularizada, será, a um só
tempo, elemento neutralizador da rotinização, típica do aparato burocrático, e
correia de transmissão entre o arcabouço institucional da democracia parlam en­
tar e as massas. Ocupando esse duplo papel, o líder de m assas passa a ser
personagem fundamental para a manutenção e dinamização do moderno siste­
ma político democrático. Isso não significa que Weber exclua a possibilidade de
que o líder possa ser, também, fator de risco.
Weber reconhece que o tipo de dominação característica das sociedades de
massa é a racional-legal. A rigor, sua predominância está diretamente relaciona­
da com toda a configuração espiritual que caracteriza o Ocidente moderno, a
qual, segundo ele, tem a ver com o processo histórico que marcou a sociedade
européia e com o lugar que a racionalização vai ocupar no desenvolvimento da
consciência e da visão de mundo que então se opera. E a este processo que
W eber cham ará de desencantam ento do m undo. Seguindo com entários de
Schluchter:

"...a realização histórica p a rticu la r do racionalism o ociden tal m o d e rn o fo i o


desencantam ento do m undo, que levou à mais aguda atualização do conflito
de valores da historia cultu ral. Este raciona lism o estabeleceu e rad icalizou
firm e m e n te um a consciência que ¡á fo ra antecipada a n te rio rm e n te na visão
de m un do helénica e que tem a co m pa nha do os seres hum anos de fo rm a
la te nte desde que com eçaram a con stru ir sím bolos. H oje, os 'm u ito antigos
deuses, desencantados e transform ados em forças im pessoais', surg iram n o ­
vam ente, após o reconhecim ento de que o va lo r do conflito tem sido obscure­
cido 'p o r um m ilê n io m arcado pela presum ida ou pre te nsa m en te exclusiva
orienta ção voltada para o grande páthos da ética cristã. Para W eber, o
surgim ento do racionalism o ocidental m oderno parece indicar um a alteração
básica da consciência, daí um desenvolvim ento da consciência, a qual ocorre
p a ra le la m e n te ao desenvolvim ento da visão de m u n d o ."16

No âmbito da política, o processo descrito corresponde ao crescimento do


poder e da sofisticação do aparato burocrático, condição fundamental para a

16 Schluchter, 1981: 22.

213
institucionalização do Estado moderno. Este não se caracteriza por contraste
com modelos políticos irracionais ou não-racionais. A diferença, nos casos das
dominações racional-legal e tradicional, repousa, basicamente, no tipo de prin­
cípio legitimador do poder que prevalece e seus respectivos arranjos institucionais.
No caso do terceiro, e talvez mais ambiguamente definido, o tipo de dominação
carismática, as coisas mudam.
Em sua formulação propriamente teórico-conceitual, a dominação de tipo
carismática, ao contrário das duas outras, é caracteristicamente um modelo de
exceção. Ela emerge dos interstícios e fissuras de arranjos políticos rotinizados,
portanto já estabelecidos, em momentos de crise e decadência.

"A do m inação carism ática se opõe igualm ente, pelo que tem de e xtra o rd in á ­
ria e fo ra do com um , tan to à dom inação racional, especialm ente à b u ro c rá ti­
ca, com o à tra d ic io n a l, sobretudo à pa triarcal e p a trim o n ia l ou estam ental.
Am bas são form as de dom inação cotidianas, rotineiras - a carism ática (genu­
ína) é exatam ente o contrário. A dom inação burocrática é especialm ente raci­
o n a l, no sentido de sua vinculação a regras discursivam ente analisáveis; a
carism ática é sobretudo irra cio n a l, p o r ser re fra tá ria a q u a lq u e r r e g r a ." 17

Enquanto tipo de exceção, a dominação de tipo carismática não tem longa


duração. Outra característica sua é a instabilidade. Sua permanência no tempo
tenderia a levar à reinstauração de um dos outros dois modelos de dominação
ou, o que acabaria por dar no mesmo, à rotinização do carisma, que implicaria
a perda de grande parte de seu poder revolucionário.
No entanto, em seus textos políticos, mais especificamente em Parlamen­
tarismo e governo numa Alemanha reconstruída, o líder carismático aparece
como o elemento importante para a manutenção da lógica burocrática em de­
terminados limites. O líder carismático pode, como de fato Weber acreditava,
aparecer graças a um processo de comunicação de caráter emotivo, assim como
o reconhecimento das qualidades do líder pelos liderados é “ ...psicologicamen­
te, uma entrega plenamente pessoal e cheia de fé, surgida do entusiasmo ou
da indigência e da esperança". Nesse sentido, Weber parece estar em inteira
consonância com seus antecessores ou contemporâneos que miravam com ce­
ticismo e temor o espectro do líder de massas. No entanto, havia, na visão de
Weber, uma potencialidade, nesse personagem, que singulariza sua descrição.
Weber percebia o risco da emergência de uma irracionalidade muito mais de­

17 Weber, 1984:195.
18 Weber, 1984: 94.

214
vastadora que qualquer chefe m ilitar ou condotiere na hipertrofia da lógica
racional-legal e no aparato burocrático. A valorização dos procedimentos e do
cumprimento rotinizado de tarefas poderia levar a civilização ocidental à aridez
mórbida e repetitiva de uma repartição pública. Totalmente autonomizada do
público e sem canais de comunicação com ele, democracia alguma seria possí­
vel. O prim ado absoluto e sem contrapartida da lógica burocrática levaria o
Ocidente a um quadro semelhante ao pesadelo descrito por Kafka, em O pro­
cesso. Embora não tenha desenvolvido exaustivamente a idéia, Weber percebia
os riscos da consolidação de uma reificação da razão e de suas funestas conse­
qüências. O processo de racionalização que fora característico do Ocidente
poderia, se levado às últimas conseqüências, ser sua própria ruína. Weber pare­
ce perceber que a potência criadora, e nesse caso estava também acompanhado
19 a
por Tarde, encontra-se no indivíduo singular. E dele que dependem as grandes
invenções e mudanças significativas do mundo. No campo da política, Weber
considerava que o indivíduo singular era exatamente o César, o líder carismático,
capaz de funcionar como um contrapeso à rotina da lógica burocrática, manten­
do a participação das massas na vida política e promovendo, quando as cir­
cunstâncias assim o exigissem, grandes mudanças, entre elas, se necessário,
fundar nações. Aqui, mais do que em qualquer outro ponto de sua vida e de sua
obra, Weber afasta-se de seus contemporâneos. Para ele, o líder carismático,
aquele que a crença das massas torna um ser dotado de poder e de capacidade
sobre-humana, é um dos personagens da política moderna vocacionado para a
realização de grandes feitos.
O líder carismático, em Weber, tanto pode ser o demagogo como pode ser o
fundador de impérios e nações. Ele pode levar as massas à ruína, mas é, igual­
mente, o canal por onde as massas se sentem contempladas pelo arranjo político
parlamentar. A realização efetiva da nação alemã, o cumprimento de seu destino
histórico, evidentemente, estavam no universo de preocupações de Weber ao
realizar tais formulações. O elemento fundador aí implicado, seu caráter demiúrgico,
bem como a natureza das forças que alçam o líder para sua posição frente às
massas, trazem de volta ao mundo do mercado, das ações orientadas racional-

19 C om o é sabido, a base da sociabilidade humana está, segundo Tarde, em sua tendência à im itação. É pela im itação
que as regras sociais são assimiladas e reproduzidas no tempo. Tal postulado im põe uma pergunta: se o homem é
fundam entalm ente um ser que im ita, com o explicar as mudanças? Tarde responde à questão afirm ando que as
m udanças sociais são resultado da ação de indivíduos singulares que lançam m ão de novas formas de c om porta­
mento. Se bem-sucedidos, suas inovações são incorporadas e institucionalizadas na vida social, o que lhes confere
glórias e reconhecim ento. Se fracassam, são condenados ao esquecimento. Para Tarde, além de singulares, os
inovadores são raros e surgem em espaços, arrisca, de 1 00 em 1 00 anos. Ver Tarde, s. d.

215
mente para fins determinados e governadas em grande parte pelo aparato buro­
crático do Estado, uma dimensão mágica, quase religiosa, e onde a crença em
princípios abstratos orienta a forma de enquadrar os acontecimentos, o modo de
ler as coisas do mundo de agora e os projetos futuros. O desencantamento do
mundo é, na terminologia weberiana, o primado da ação racional baseada no
cálculo teleológico relativo a fins, cujo correspondente na tipologia política é a
dominação burocrática. Carisma é a capacidade de provocar nos liderados uma
adesão irrestrita, de caráter irracional e condicionada apenas pela crença nos
poderes superiores do líder. Para Weber, tal tipo de dominação pode exercer um
papel positivo e contribuir para a saúde de um sistema político, ainda que tenha
riscos potenciais de desagregação e desordem.
Os com ponentes dos três modelos aqui construídos, com binados com a
leitura weberiana da liderança de tipo carismática, fornecem um mapa razoa­
velm ente eficaz para a interpretação dos embates em torno da liderança de
Brizola. O modelo três é acionado, de formas diversas e com sentidos variados,
pelos discursos contrários à liderança de Brizola. O primeiro modelo é acionado
pelos brizolistas, quando buscam sublinhar a vocação de estadista de Brizola. O
segundo modelo adequa-se mal aos debates, mas é importante para m arcar o
quanto a adesão a Brizola é marcada pela convicção de que existe uma essência
no processo histórico e político brasileiro. Essência esta que é, segundo os
brizolistas, recorrentemente captada pelo líder. Sendo assim, a alusão a Platão
funciona quase como um a metáfora. Weber m ereceu um tratam ento a parte
pela centralidade de sua obra política para toda a análise aqui desenvolvida.
Além disso, suas proposições sobre o carisma são esclarecedoras sobre as to­
madas de posição tanto de brizolistas quanto de antibrizolistas. A rigor, a alusão
a Weber se justificaria por sua própria relevância, na tradição recente do pensa­
mento político. No caso dos discursos em tomo da figura de Brizola, ela faz-se
mais importante, entre outras razões, por ter sido ele, Weber, o responsável
pela introdução do conceito de carisma na reflexão do mundo secularizado da
política. Potência disruptiva, o carisma encontraria nos sistemas em crise o
terreno propício para sua emergência, sucumbindo logo depois. Para os críticos
das lideranças carismáticas, entre as quais estaria Brizola, o carisma é ele m es­
mo gerador de crises do sistema institucional e não apenas seu beneficiário.
Para os que aclamaram e ainda aclamam este tipo de líder, o carisma seria a

20 Sobre o carisma e o líder singular, em Weber, ver: G oldm an, 1 991 . Do mesmo autor, verPolifics, death and the devil...
(1992).

216
alternativa de uma ação política pautada pela secularização com encantamento,
perenidade sem rotinização, tradição e ruptura. Desta perspectiva, o carisma é
mais do que uma estratégia política num contexto de massas, é o fundamento
mesmo da intervenção afirmativa na esfera pública. O poder do líder carismático
não está somente na capacidade de arrebatar as massas, própria de um cam ­
peão de votos, mas também na sabedoria do estadista, que conduz a gestão
pública iluminado pelo poder privilegiado de ler os homens e descobrir neles
suas agruras e vontades. Tal convicção pode ser observada nas posturas assu­
midas no curso dos debates mais intensos, ao longo dos anos 80 e início dos 90.
A combinação da figura do líder de massas com a do estadista, encarnados
num a m esma persona pública, tem, no seu caráter inusitado, exatam ente a
fonte de maior interesse, para além do acertado ou plausível de tal combinação.
Postos os recursos interpretativos oferecidos pelos modelos forjados e por
Weber, trata-se de destrinçar e reordenar os componentes mobilizados no pro­
cesso de construção do brizolismo. Tais recursos são fundamentais, posto que
se trata de identificar os valores, as imagens e projetos de mundo confrontados
na esfera pública. Significações engendradas, recriadas ou reforçadas nos em­
bates eleitorais e nas dinâmicas institucionais em que Brizóla e seus companhei­
ros estiveram envolvidos. Começamos, agora, um longo percurso de conflitos e
semantizações dramaticamente experimentados pelos atores neles engajados.

Brizóla contra as máquinas de voto. As eleições de 1982

As eleições de 82 representam um m arco para a política brasileira, em


geral, e para o brizolismo, em particular. A movimentação eleitoral começou
ainda em 81, quando o governo federal, lançando mão mais uma vez de seus
recursos extraordinários para beneficiar o PDS, baixou o chamado “pacote de
novembro” . De acordo com a nova legislação, ficava proibida a coligação elei­
toral entre os partidos, era estabelecido o voto vinculado (as eleições de 82
eram para governadores, deputados estaduais, deputados federais, senadores,
vereadores e, em algumas cidades, prefeitos. O eleitor ficava obrigado a votar
para todos os cargos em candidatos do mesmo partido, sob pena de ter seu voto
anulado) e os partidos concorrentes eram obrigados a lançar candidatos a todos
os cargos. Os partidos recém-criados eram postos em um a posição extrem a­
mente delicada. Fora o PMDB e o PDS, nenhum outro partido dispunha de
uma máquina partidária estruturada, de modo a fazer frente às exigências legais
que regiriam o processo eleitoral. A resposta oposicionista foi rápida. Em feve­
reiro de 82, o PP, partido formado por dissidentes do MDB e da Arena, incor­

217
f

pora-se ao PMDB, fortalecendo o principal partido de oposição e neutralizan­


do, parcialmente, a estratégia govemista. Os demais partidos, no entanto, fica­
ram sob o risco de extinção. Se não antes da disputa eleitoral, no momento
seguinte, caso não alcançassem o coeficiente mínimo exigido para a obtenção
do registro definitivo. Era o caso de PTB, PT e, também, do PDT.
A fusão PP/PMDB, no Rio de Janeiro, trouxe de volta para o interior do
maior partido de oposição, o PMDB, aquele que fora sua principal liderança
local, o então governador do estado, Chagas Freitas. Com ele, voltava para o
partido seu herdeiro político e candidato inconteste à sua sucessão, o jovem
deputado federal Miro Teixeira, que nas eleições de 1978 obtivera o maior de­
sempenho da história eleitoral do estado por números absolutos, em eleições
legislativas. A liderança de Chagas Freitas, porém, estava longe de ser unanimida­
de. Ao contrário. Ele controlara o partido com mão de ferro, utilizando toda sorte
de recursos para manter à margem aqueles que a ele não se alinhavam. Seu estilo
de atuação era marcado pelo clientelismo e por uma pouco disfarçada docilidade
para com o governo federal, o que lhe valeu seguidas ameaças de intervenção na
21
sua seção fluminense, por parte da direção nacional do MDB. A esquerda do
partido no estado vivera, ao longo da década de 70, um período extremamente
difícil, afastada, na maior parte das vezes, dos centros decisórios internos e com
pouco acesso aos recursos partidários, controlados por Chagas e seu grupo. En­
quanto vigia o sistema bipartidário, porém, restava pouco a ser feito. Não havia
alternativa a não ser o convívio forçado, uma vez que a força eleitoral da máqui­
na chaguista rendia benefícios de que o partido, no âmbito nacional, não podia
prescindir. Em 81, o quadro modifícara-se. A princípio, a fusão PP/PMDB pare­
cia antecipar uma sangria de quadros da esquerda do antigo MDB. No entanto,
isso não se deu. Ao contrário, a lógica de fazer frente à manobra do governo
militar, neutralizando sua estratégia, prevaleceu e a fusão com o PP foi defendida
22
como legítimo instrumento de consolidação do principal partido de oposição.”
Uma das únicas baixas foi a de Roberto Saturnino Braga e do grupo de quadros e
militantes a ele ligados. Senador extremamente respeitado^ Saturnino despontava
como uma das grandes lideranças, com raízes socialistas, do Rio de Janeiro. Era,
por isso, candidato potencial do PMDB para o governo do estado. A fusão,
contudo, inviabiliza sua candidatura, em favor de Miro. Após reiterados convites

21 Sobre o "chaguism o" no Rio de Janeiro, ver Diniz, 1982.


22 As muitas baixas sofridas pelo PMDB, quando da fusão, ocorreram nos setores mais m oderados econservadores do
partido. Nelson C arneiro e Hugo Ramos m igram para o PTB e Am aral Peixoto muda-se, com seu grupo, para o PDS.
Ver, Souza, Lima Júnior & Figueiredo, 1985.

218
e intensas negociações, o senador acaba por ingressar no PDT, cujos dirigentes
mobilizavam-se intensamente no recrutamento de lideranças expressivas para o
fortalecimento do partido. Saturnino teria uma atuação destacada ao longo da
23
campanha, acabando por reeleger-se senador.
A disputa para o cargo de governador do estado iniciava-se envolta em
grande expectativa. Além de ser o primeiro pleito para o cargo executivo esta­
dual, em 17 anos, o que lhe conferia um enorme peso no contexto da “abertu­
ra”, estariam frente a frente lideranças políticas fortíssimas e suas respectivas
máquinas eleitorais. Era também o retomo oficial de figuras há muito alijadas
da vida política institucional. Uma das primeiras pesquisas de opinião realizadas
pelo Ibope e publicadas na edição do Jornal do Brasil, de 14 de março de 82,
apresentava o seguinte quadro:

CANDIDATOS INTENÇÕES DE VOTO


Sandra Cavalcante (PTB) 51,7%
Miro Teixeira (PMDB) 23%
Leonel Brizola (PDT) 5,4%
Emílio Ibrahim (PDS) 3,2%
Lysâneas Maciel (PT) 2,2%
Nenhum 8,4%

Ainda na mesma pesquisa, em relação aos partidos, os números eram os

PARTIDOS INTENÇÕES DE VOTO


PTB 32,7%
PMDB 23,9%
PT 18%
PDS 8,4%
PDT 3,6%

Os dados dessa primeira sondagem são extremamente interessantes. Salta


aos olhos, por exemplo, a enorme vantagem que a candidata Sandra Cavalcante
tinha sobre seus adversários. Esta vantagem é tão mais impressionante quando
observamos que ela não era extensiva ao PTB. No ranking dos partidos, o PTB
mantinha-se em primeiro lugar, com a pequena diferença de 8,8 pontos percentuais.
Tentar uma explicação para a diferença entre a vantagem da cabeça de chapa do
partido para o segundo colocado e a diferença entre o próprio partido e seu
seguidor mais próximo é um exercício interessante, apesar da distância no tempo.

23 O próprio senador Nelson Carneiro, antes de m igrar para o PTB, foi reiteradamente assediado pelo grupo de Brizóla,
para integrar-se ao PDT.

219
Os dados sugerem que a força da candidatura de Sandra estava nela própria e em
sua imagem, mais do que na recentemente tão disputada sigla. Podemos entender
tal fenômeno de duas maneiras: 1) o poder da sigla do PTB fora superestimado e
não era tão fundamental para atrair votos como supunham aqueles que por ela
haviam brigado; 2) a figura de Sandra não era vinculada à sigla. Sendo assim,
apenas uma parte dos votos potenciais no PTB ia de fato para o partido, enquan­
to que os demais votos se dispersavam por outros (PDT, PMDB e, quem sabe,
PT). No caso do PT e seu candidato, a relação se invertia. O cabeça de chapa,
Lysâneas Maciel, que entrara para o partido depois de indispor-se com antigos
trabalhistas e romper com o PDT, aparecia com minguados 2,2% de preferênci­
as. Enquanto isso, o PT aparecia como o terceiro partido na preferência do
eleitorado, com 18%, o que levava a direção do partido a projeções muito otimis­
tas, que acabariam, como veremos adiante, não se concretizando. No caso que
mais nos interessa aqui, tanto Brizola, com 5,5%, quanto o PDT, com 3,6%,
apresentavam um desempenho desalentador. Ainda assim, vale observar que, a
despeito do baixo percentual de preferência, Brizola mantinha-se em terceiro
lugar, atrás apenas de Sandra Cavalcante e Miro Teixeira, enquanto seu partido
aparecia em último, no ranking partidário. De resto, apenas Miro Teixeira e seu
partido mantinham um desempenho coincidente.
Vale ressaltar que esta primeira sondagem foi realizada quando a campanha
mal se iniciava. Vários partidos ainda não haviam sequer realizado suas con­
venções e oficializado os nomes de seus candidatos (o próprio nome de Brizola
apenas seria aclamado no dia seguinte à publicação da pesquisa). O caso do
PDS é o mais elucidativo. A despeito de ter Emilio Ibrahim como seu provável
candidato, o partido de apoio ao governo federal acabaria lançando a candida­
tura de Wellington M oreira Franco. Ainda assim, os resultados dessa pesquisa
são extremamente importantes, em especial para a avaliação do fenômeno do
24
brizolismo. A posição nitidamente secundária que Brizola ocupava no início
do processo dá contornos espetaculares para sua vitória final, principalm ente
para os próprios brizolistas. No entanto, não nos antecipemos. Entre esta pes­
quisa e o 19 de novembro ocorreu uma das mais vibrantes e disputadas campa­
nhas que o país conheceu.

24 Um dado m uito interessante dessa mesma pesquisa, realizada no Rio de Janeiro, refere-se ao fato de que, inquiridos
sobre suas preferências para uma futura disputa à presidência da República, 10%‘ dos entrevistados declaram sua
preferência por Brizola, o que o colocava em prim eiro lugar, seguido de Paulo M aluf e A ureliano Chaves, então vice-
presidente da República.
25 Não creio exagerada a avaliação de que, em nossa história política recente, apenas a eleição para presidência da
República, em 198 9, superou em m obilização e entusiasmo o pleito de 82.

2 20
Para o PDT e Brizola, a eleição se mostrava um empreendimento desafia­
dor. Poucos, mesmo no interior do partido, acreditavam em seu sucesso. Sandra
Cavalcante, que além de deter uma legenda em cuja eficácia muitos apostavam,
veiculava um discurso eficiente, voltado principalmente para as donas de casa,
concentrando-se em temas como a alta do custo de vida e a necessidade de
maior investimento em educação. Ainda assim, viu sua ampla vantagem inicial
minguar gradativamente, nos primeiros quatro meses de campanha efetiva. Miro
Teixeira contava com a poderosa m áquina política de seu padrinho, com a
força da sigla do PMDB e com a defesa irredutível de setores da esquerda, em
nome da unidade oposicionista. M oreira Franco, que acabou sendo escolhido
candidato pela convenção do PDS, contava com um padrinho político quase
tão poderoso, no interior do estado, quanto Chagas o era, na capital. Ele entrara
na política pelas mãos de Amaral Peixoto, antigo e poderoso líder pessedista do
antigo estado do Rio de Janeiro. Além disso, disputava as eleições pelo partido
do governo federal, Tudo indicava que o tom do pleito seria dado pelo con-
27
fronto entre duas poderosas máquinas políticas. Tal quadro parecia se confir­
m ar na pesquisa de opinião feita pelo Ibope e publicada na edição do Jornal do
Brasil de 20 de agosto:

CANDIDATOS INTENÇÕES DE VOTOS


Miro Teixeira (PMDB) * 29,5%
Sandra Cavalcante (P T B )» 25,1%
Moreira Franco (P D S ), 23%
Leonel Brizola (PDT) 10%
Lysâneas Maciel (PT) 2,3%

Nesses resultados, valem os registros da acentuada queda de Sandra Caval­


cante, que apresentava menos da metade percentual das intenções de voto que
possuía em março, e o aparente acerto na escolha, por parte do PDS, da candi­
datura de M oreira Franco, que se situava em terceiro lugar, com pequena dife­

26 É razoável supor que a vitória de M iro Teixeira não chegasse a representar m otivo de grandes preocupações para o
governo federal. Sob o com ando de Chagas Freitas, o desempenho do antigo MDB se caracterizava pela seguinte
lógica: deputados e vereadores eleitos pela sigla oposicionista eram geralm ente políticos ligados a ele, Chagas,
enquanto a esquerda do partido elegia seus candidatos aos cargos federais. Dessa form a, Chagas controlava a
política local. A reprodução dessa divisão interna de nichos de poder, no interior do novo partido, poderia causar
problem as para o projeto dos m ilitares, para quem a form ação de uma bancada afinada com seu projeto era
fundam ental. O corre, contudo, que, com o demonstra Brasílio Sallum Jr., também fez parte do projeto concebido por
G olbery reforçar os poderes locais. Sendo assim, uma vitória do chaguismo, sempre m uito identificado com o regime,
estaria longe de corresponder a qualquer dificuldade para a im plem entação da distensão tal com o desejada por
Brasília.
27 A título de lem brança, era a prim eira vez que se dava, eleitoralm ente, o confronto pelo Executivo estadual entre
lideranças dos antigos estados do Rio de Janeiro e da G uanabara, reunidos, desde a fusão, m ediante a qual fora
criado o novo estado do Rio de Janeiro. C om o foi observado anteriorm ente, uma terceira força de peso, que eram os
antigos trabalhistas do estado do Rio de Janeiro, estava dispersa no PTB, PMDB e, ém pequena escala, no PDT.

221
rença em relação aos dois primeiros. Ainda que ostentasse o dobro das inten­
ções de voto alcançadas em março, Brizola permanecia como um mero azarão,
em quarto lugar e muito distante dos três primeiros. Chamava igualmente aten­
ção a estabilidade de Miro e Lysâneas. Ambos ostentavam números sem elhan­
tes aos de março, o que no caso do candidato do PMDB era extrem am ente
preocupante.
Embora o pleito de 82 fosse regido ainda pela Lei Falcão, que cerceava
fortemente a propaganda eleitoral, os freqüentes debates organizados pelas emis­
soras de rádio e televisão garantiam a publicidade e intensidade do debate entre
os candidatos ao governo. A esta altura, a disputa tendia cada vez m ais a
polarizar-se entre M oreira Franco e Miro Teixeira. E nesse período, porém,
que alguns acontecimentos começam a levar o processo para direções inespera­
das. O primeiro deles dá-se com a direção da campanha, tida por muitos até
então como imbatível, de Miro Teixeira. De modo surpreendente, Miro Teixeira,
francamente identificado com o chaguismo, estreita relações com os setores
28
mais à esquerda do partido, afastando-se mais e mais de seu grupo original. A
cam panha de M iro passa a ser toda ela coordenada pelos cham ados Luas-
Pretas, o que provoca uma crise no interior do partido e o subseqüente abando­
no de Chagas e de seu grupo, que passa a apoiar de form a cada vez m ais
o sten siv a a ca n d id a tu ra de M o reira F ranco. O utro fato im p o rtan te é a
radicalização do discurso oposicionista de Leonel Brizola. Abandonando o tom
prudente e conciliador que adotara desde seu retorno do exílio, Brizola declara
à imprensa, no dia da homologação de sua candidatura, a 6 de agosto:

"Sou can did ato para desm ascarar o falso oposicionism o desses can did atos;
candidatos que são o diabo, o dem ônio e o satanás, para que o inferno ganhe
sem pre. Falta-lhes le gitim id ad e, exatam ente o que me sobra. Faço um apelo
a vocês para que não se deixem e m b rom a r por estas artim anhas e votem com
consciência."29

Chamam a atenção, nessa breve mas eloqüente declaração, a ênfase no que


seria o grande mote de sua campanha - o fato de ele, Brizola, ser a única e
legítima candidatura de oposição - , a utilização de imagens simples e de fácil
assimilação para a população - o diabo, demônio e satanás eram, exatamente,

28 A esfratégio de M iro estava, provavelmente, relacionada com a baixíssima pop ularidade do governador. Problemas
com o segurança pública, ensino básico, a situação da rede hospitalar e denúncias de fraudes m inavam qualquer
candidatura ligada a Chagas, naquele m omento. Percebendo isso, M iro Teixeira buscou dissociar sua im agem da
figura de Chagas Freitas.
29 Transcrito do Jornal do Brasil; 7/& I& 2.

222
seus três adversários, que, àquela altura, estavam à sua frente - e, finalmente, o
apelo à consciência do eleitor. Não se tratava de votar em Brizola, mas de votar
com a consciência.
A partir do mês de setembro, com um discurso cada vez mais agressivo e
consolidando-se como o candidato oposicionista, tanto ao governo federal, quanto
ao governo estadual, revelando-se um comunicador e debatedor extremamente
hábil e sagaz, Brizola passa a ser o centro das atenções do processo e passa à
liderança nas pesquisas. A adesão de Prestes e Francisco Julião conferem m ai­
or densidade simbólica à imagem da candidatura do protesto e da oposição.
Em pesquisa publicada a 15 de outubro, no Jornal do Brasil, as intenções de
voto, desagregadas por região, apresentavam o seguinte panorama:

CANDIDATOS INTENÇÕES D EVO TO POR REGIÕES DO ESTADO


S e te m b ro O u tu b ro

c a p ita l p erife ria in te rio r c a p ita l p e rife ria in te rio r


Brizola 31,3% 23,3% 6,2% 44,8% 37,8% 14,0%
Moreira 16,5% 26,8% 30,5% 13,4% 26,4% 30,8%
Miro 18,7% 17,5% 33,5% 13,5% 13,8% 31,4%
Sandra 19,5% 19,9% 18,4% 14,5% 11,4% 13,4%
Lysâneas 5,4% 2,9% 1,6% 4,8% 3,8% 2,4%

Salta aos olhos o excelente desempenho de Brizola na capital, onde detinha


quase metade das intenções de voto. Embora um pouco inferior, seu desempe­
nho na periferia (Baixada Fluminense) também o deixava com boa margem de
frente sobre seus adversários. Apenas no interior, Brizola dispunha de um volume
percentual baixo, situando-se em grande desvantagem em relação a seus dois
competidores mais próximos, Moreira e Miro. Este baixo desempenho, diga-se
de passagem, seria confirmado pelos resultados finais. Pelo critério de faixa de
renda, a pesquisa revela dados interessantes.

CANDIDATOS INTENÇÕES DE VOTO POR FA IX A DE RENDA


A/B C D

Leonel Brizola (PDT) 34,5% 39,8% 32,0%


Moreira Franco (PDS) 22,6% 19,5% 21,1%
Miro Teixeira (PMDB) 13,4% 17,5% 22,7%
Sandra Cavalcante (PTB) 16,4% 12,6% 11,7%
Lysâneas Maciel (PT) 5,6% 4,1% 2,4%
Nulo 1,4% 0,2% 0,8%
Branco 1,1% 0,8% 0,1%
Não sabe 4,0% 5,0% 8,2%
Não opinou 1,1% 0,6% 1,0%

30 Francisco Julião adere à candidatura de Brizola já propondo seu nome à presidência da República.

223
Brizóla liderava nas três faixas definidas pela pesquisa. Além disso, vale
notar que a diferença entre ele e o segundo colocado na classe mais alta, A/B,
chega a ser um pouco maior do que a diferença observada na classe D. Este
dado antecipa o que os resultados finais da eleição confirmariam. Mesmo se
apresentando como um candidato de perfil predominantemente popular, o dis­
curso de Brizóla obteve, naquela campanha, excelente penetração junto às clas­
ses média e média alta. A reiteração do caráter francamente oposicionista de
sua candidatura, a alusão ao legado varguista, a ênfase em questões com gran­
de apelo em amplos setores da população, como educação e segurança, eram
questões que tocavam fundo a parcela da elite formadora de opinião, um seg­
mento social solidário às causas populares e simpático a propostas redistributivas.
Além disso, a falta de recursos para a campanha era compensada por um a dose
de criatividade inversamente proporcional. Slogans como “Brizóla na cabeça”
e marcas como o socialismo moreno tinham o poder de atingir, com seu explíci­
to maneirismo popular, faixas diversas da população, em especial na cidade do
Rio de Janeiro.· Contribuía também para um certo frisson em torno da candida­
tura de Brizóla o perfil dos candidatos proporcionais apresentados pelo PDT.
Também aí uma boa dose de criatividade surpreendia positivamente o eleitora­
do. O PDT lança como candidatos personalidades que nada tinham a ver com a
política profissional. Era gente como o líder indígena Mário Juruna e o cantor
popular Aguinaldo Timóteo. A estratégia era fecunda por diversos fatores.
M inimizava parcialmente a carência de quadros competitivos eleitoralmente,
numa disputa em que os partidos eram obrigados a preencher vagas para cargos
eletivos em todos os âmbitos do poder público. Enfatizava a bandeira de que a
política deveria ser uma atividade popular, acessível a todos que dela quisessem
fazer parte e não apenas a políticos profissionais. A apresentação de pessoas
com forte apelo popular e que constituíram sua trajetória pública fora da políti­
ca institucional sublinhava o compromisso do partido com esta nova visão da
atividade política. Finalmente, estas eram personalidades que representavam o
povo, em geral, mas também os grupos m inoritários, de cuja defesa o PDT,
desde a sua fundação, pretendia ser o principal vocalizador. Eram lançados,
então, candidatos negros, mulheres, artistas e, com um glam our especial, a
mais conhecida liderança dos povos indígenas brasileiros àquela época.
Esse é um dos aspectos da campanha de 1982 curiosamente pouco explo­
rado pelos analistas. A atuação das militâncias ruidosas e combativas dos diver­
sos partidos, a atmosfera de excitação que cercou a campanha e até mesmo as
pancadarias das quais os protagonistas se recordam tão saudosos deram um

224
tom festivo a todo o processo. Em 82, a política carioca, pode-se dizer, recupe­
rou, por um breve momento que seja, a dimensão festiva que caracteriza du­
rante séculos a política. Foi uma celebração de adesões, identificações, expec­
tativas e m obilização política. A despeito do reconhecim ento de que foram
diversos os protagonistas dessa festa (a juventude universitária do PT, a militância
das esquerdas alinhadas ao PMDB), o desempenho pedetista m erece um lugar
de destaque. A candidatura de Brizola, devido a sua fortíssima capacidade de
comunicação, a seu estilo mordaz de debater, às palavras de ordem e jargões
criados em torno dele, aos candidatos legislativos que apresentou, promoveu
uma verdadeira camavalização da disputa. O carnaval brasileiro, como fez ver
Roberto da Matta, se caracteriza como uma festa de inversão da ordem profa­
na, no contexto de uma sociedade fortemente autoritária e hierarquizada. Nele,
as regras de comportamento que regulam o mundo do trabalho são suspensas,
aqueles que ocupam os lugares mais baixos na hierarquia social ascendem ao
centro dos eventos, os mais humildes assumem o luxo e a suntuosidade, o bobo
torna-se rei. Na celebração política que marcou o processo eleitoral de 82, o
brizolismo assumiu a tarefa de carnavalizar a campanha. O perfil verdadeira­
mente heterodoxo dos candidatos era apenas um dos aspectos, embora, prova­
velmente, o mais explícito de todos, da camavalização então operada. Tinham
lugar na legenda pedetista, e destaque na campanha, o líder indígena, líderes do
m ovimento negro, o cantor popular, enfim, aqueles que encarnavam figuras
“desqualificadas” pela ordem comum, conservadora e autoritária da sociedade
brasileira. Compunham um gritante contraste em relação à figura do político
32
profissional, roubando-lhe a cena. Se em 82 a política recupera, por um breve
momento, sua dimensão de festa, cada vez mais distante da m oderna lógica
rotinizada e especializada das democracias de massa, o brizolism o contribui
com sua camavalização, inversão de papéis e ampliação das imagens, então
celebradas.
As reações de setores conservadores à arrancada inesperada e vertiginosa
de Brizola acabaram por conferir-lhe maior carga dramática. Com freqüência
cada vez maior são enviados sinais de Brasília sobre o mal-estar que acarretaria
uma possível vitória de Brizola, no Rio de Janeiro. Cada vez mais enfáticas, as
advertências transformam-se em verdadeiras ameaças. Os m inistros da M ari­

31 Ver M atta, 1981.


32 Em seu depoim ento, Trajano Ribeiro relato que, nas viagens pelo interior, o cacique M ário Juruna, eleito deputado
federal, freqüentemente atraía mais o interesse pop ular do que o próprio Brizola. Vale lembrar, também, o inusitado
do prim eiro discurso de posse do deputado A guinaldo Tim óteo, todo ele dedicado a sua mãe.
nha, M aximiliano da Fonseca, e da Aeronáutica, Délio Jardim de M atos, cha­
mam a atenção do eleitorado do Rio de Janeiro para os riscos que a eleição de
Brizola representava para o processo de “abertura”. Pronunciamentos como
este tom am -se mais freqüentes e agressivos à medida que a liderança de Brizola
se estabiliza. O bom senso do eleitor do Rio de Janeiro era evocado como
garantia para que a vitória de Brizola não se confirmasse e a ameaça de que,
uma vez vitorioso, Brizola não tomaria posse, tom a-se freqüente nos meios de
comunicação. Em bora tais ameaças estivessem longe de ser negligenciáveis,
em um contexto em que o processo de “abertura” seguia ainda um caminho
incerto e instável (ainda no ano anterior, o setor radical do regime havia realiza­
do uma série de atentados, que provocaram, inclusive, vítimas fatais), a reação
a Brizola nesses termos não deixava de ir ao encontro da própria imagem que o
candidato pedetista estabelecia de si mesmo. Em conversa informal, um eleitor
de Brizola àquela época recorda-se: “Votar em Brizola naquelas eleições era
uma espécie de vingança contra aquele regime”.
Ainda assim, havia uma alternativa eleitoral para evitar o triunfo brizolista. A
resposta do presidente Figueiredo às ameaças de intervenção eram sempre no
sentido de que o processo democrático seria respeitado. O compromisso do pre­
sidente com a democracia rendia-lhe dividendos, assim como a seu partido e
candidatos. Numa estratégia bem articulada, o presidente aparecia como promo­
tor e fiador do largo e importante passo rumo à redemocratização que as eleições
representavam naquele momento. Mesmo no Rio de Janeiro, tal estratégia tinha
sua eficácia. Abandonado por seu padrinho, de quem se distanciara em favor dos
34
Luas-Pretas, Miro Teixeira via sua outrora imbatível candidatura naufragar. Em
contrapartida, a candidatura de Wellington Moreira Franco se consolidava como
a grande alternativa para conter o crescimento do brizolismo. Voltavam-se para o
candidato do PDS todos os recursos, não só do governo federal, como também
do governo estadual. Confirmando sua fama de alinhado ao regime militar, Cha­
gas Freitas passa a apoiar o candidato do partido adversário, ostensivamente.
Contra as máquinas federal e estadual, Brizola contava com sua impressio­
nante perform ance pessoal e um grupo de m ilitantes extrem am ente coeso e
com bativo. A esta altura, surge um m ovim ento que se tornaria fam oso: a
Brizolândia. Na estação Central do Brasil, em bairros do subúrbio e nas principais

33 Jornal do Brasil, 2 6 /1 0 /8 2 .
34 Os cham ados Luas-Pretas form avam o grupo que m uito cedo assumiu a direção da cam panha de M iro Teixeira. Eram
intelectuais ligados à esquerda do partido, com passagem no PCB, com qual o candidato peemedebista foi estreitan­
do ligações ao longo do processo. O grupo era com posto por Raolino de O liveira, João Carlos Serra, Eurico Lima e
Figueiredo, Luís Alberto Bahia e Paes Leme.

2 26
praças do centro da cidade ocorrem conflitos entre militantes que apóiam Brizola
e cabos eleitorais de candidatos de outros partidos. Os confrontos físicos eram o
correspondente de rua dos embates entre candidatos, marcados por agrêssões
verbais e acusações recíprocas. A adesão popular à candidatura de Brizola ficou
patente em uma manifestação pública em especial. Trabalhando intensamente
como cabo eleitoral dos candidatos de seu partido, Figueiredo comparece, a 7 de
novembro, a um concerto de celebração da abertura política, na Quinta da Boa
Vista. O enorme parque, freqüentado nos finais de semana por famílias de classes
populares, encontrava-se repleto. A tentativa de tomar o evento um programa de
campanha do candidato do PDS, porém, fracassou. Por três vezes, o presidente
Figueiredo tentou discursar e foi impedido pelo público que se manifestava aos
gritos de Brizola. Às vésperas do pleito, era absolutamente improvável uma der­
rota de Brizola. Ficava claro também que a vitória era dele mais do que do
partido. Ficava evidente que era à sua liderança que havia adesão. Pesquisas que
simulavam resultados sem a obrigatoriedade do voto vinculado patenteavam tal
tendência. O voto vinculado puxava o desempenho individual de Brizola para
baixo. Por outro lado, o PDT, que obtinha 24,5% das intenções sem a vinculação
de voto, pulava para 35%, quando associado ao voto em Brizola.
Terminada a campanha, um outro fator viria a dar um último toque épico
àquela eleição. O desencontro entre os resultados veiculados pela imprensa - as
projeções das pesquisas e os dados oficiais - levou o PDT a desmascarar uma
tentativa de manipulação dos resultados em favor de Moreira Franco. Acompa­
nhado de observadores estrangeiros ligados à Internacional Socialista e outros
orgãos internacionais, Brizola e seus assessores conseguiam tirar dividendos de
mais uma tentativa de golpear sua candidatura e viam, finalmente, confirmada a
vitória que, meses atrás, era absolutamente implausível. Ao fim do pleito, Brizola
alcança um a vitória apertada, obtendo 34,19% dos votos, contra 30,60%, de
M oreira Franco, e 21,45%, de Miro Teixeira. A simples consulta aos dados
revela uma evidência: Brizola vence as eleições com os votos da capital (RM 1),
onde conquista 42,24% contra os 27,35% de Moreira. Obtém uma vitória aperta­
da na AP 2, que compreende os bairros de maior poder aquisitivo da cidade
(Flam engo, Botafogo, Copacabana, Tijuca, Laranjeiras, Leblon, Ipanem a e
Grajaú), com 34% dos votos, enquanto Moreira obtém 30,85%. Mas seu desem­
penho cresce à medida que caminhamos para os bairros mais pobres, com 46,23%
contra 23,23% na AP 3 (Rocha Miranda, Cascadura, Olaria, Madureira, Méier,

35 Estes e os demais dados referentes aos resultados encontram -se no anexo II.

2 27
Realengo, Engenho Novo, Bonsucesso, Irajá e Deodoro) e, principalmente, na
esmagadora vitória obtida na Zona Oeste, onde alcança eloqüentes 56,18% dos
votos, nos bairros de Bangu e Santa Cruz, contra apenas 19,19%, de Moreira
Franco. Este desempenho é expressivo por duas razões históricas: primeiro, por­
que a Zona Oeste sempre foi uma área extremamente relevante, do ponto de
vista eleitoral, na história política da cidade e, em segundo lugar, por ter sido um
tradicional reduto trabalhista. Dado que não pretendo aqui fazer uma análise
sobre comportamento eleitoral, deixo registrado não mais do que a mera referên­
cia de militantes, que reiteraram, seguidas vezes, o peso da tradição trabalhista,
em uma área que, desde o início da década de 70, era considerada reduto chaguista
e identificada como região dominada por sua máquina política. Em favor de tal
versão, pesa o fato de o PDT, àquela altura, ser um partido sem a m ínim a
estrutura operacional, valendo-se de alguns dirigentes e militantes que definem a
si próprios como com ponentes de um verdadeiro exército de B rancaleone,
engajados numa campanha que, a princípio, era tida como fadada ao fracasso.
Uma leitura alternativa poderia levantar a hipótese de que, justamente as lideran­
ças que deram sustentação à máquina eleitoral, naquela área, ao antigo MDB,
tenham migrado para o PDT, levando, assim, sua capacidade de arrebanhar vo­
tos. Embora tal leitura tenha que necessariamente enfrentar o problema da enor­
me margem de incerteza que o apoio a Brizola implicava naquele momento (esta
leitura deve ter como certa a presença dos cálculos operados segundo uma lógica
maximizadora de resultados imediatos, o que a candidatura de Brizola estava
longe de oferecer), fica registrada como interpretação alternativa para futuras
investigações de especialistas. Embora não tão acachapante quanto o desempe­
nho na Zona Oeste, é expressivo o desempenho de Brizola na Baixada Fluminense
(RM 2). Ali, Brizola obtém 42,57% dos votos, enquanto Moreira Franco alcança
30,12%. Região com altos indicadores de pobreza e violência, a Baixada se tom a­
ria, desde então, um reduto eleitoral dos mais importantes para Brizola.
Quando saímos da capital e da Baixada, o quadro muda completamente.
No antigo estado do Rio de Janeiro, a derrota de Brizola é acachapante. Em
Niterói, a ex-capital e reduto do líder pessedista Amaral Peixoto, M oreira Fran­
co obtém 53,78% dos votos, enquanto Brizola alcança modestos 20,74%. À
medida que vamos para o interior, o desempenho de Brizola piora ainda mais.
Em áreas como o Norte Fluminense, a Região Serrana, Baixadas Litorâneas e o
Centro-Sul Fluminense, Brizola chega em quarto lugar, ficando atrás de Miro,
M oreira e Sandra Cavalcante. Enfim, Brizola vence a eleição na capital, ra­
chando os setores médios com Moreira Franco e obtendo grande aceitação das

228
classes mais baixas das áreas urbanas do estado. Toma a cidade de assalto com
seu “exército de Brancaleone”, com as armas do oposicionismo, da reforma
social, da retomada do fio da história. A máquina peemedebista, poucos meses
antes tida como imbatível, funcionou bem, no interior, travando disputa equili­
brada com a também poderosa máquina amaralista, a serviço do PDS. A vitó­
ria, porém, coube ao candidato, cujo partido tinha uma sede que não passava
de um sobrado velho e mal equipado, no centro do Rio.
No cômputo geral, o PDT saía das eleições como o terceiro maior partido
nacional. Elegia, ao todo, 26 deputados federais, sendo que 19 do Rio de Janei­
ro, cuja bancada totalizava 49 cadeiras, e sete do Rio G rande do Sul, que
detinha 33 cadeiras, no total. Ou seja, o PDT construíra sua bancada federal
nos dois estados em que a figura de Brizola tinha maior penetração e passado
político, o que ensejou a formulação de uma nova palavra de ordem: quem
conhece Brizola, vota em Brizola. Na Assembléia Legislativa do Rio de Janei­
ro, o partido conquistara 24 das 70 cadeiras, confirmando-se como o maior
partido. Na Câmara dos Vereadores da capital do estado, conquistava 12 das 33
cadeiras.
A campanha e as eleições de 82 ficaram, com preensivelm ente, marcadas
na m em ória de seus contem porâneos. Entre os que, àquela altura, estavam
próxim os de Brizola e militavam no PDT, ela é um marco. Chama a atenção
a grande coincidência das impressões deixadas nas diversas pessoas que pres­
taram seu depoimento sobre aquela campanha. A marca heróica do trabalho
de m ilitância daqueles que se engajaram desde o início da campanha é recor­
rente:

"N o início, pouca gente acreditava que o Brizola pudesse ganhar. Mas, ainda
assim, a gente fo i à luta. Subimos tu d o qu anto foi m orro dessa cidade. Fomos
pra Baixada, pegam os tre m , fom os pra o interior. A ge nte não tin h a recurso
nenhum . Era só a confiança nele que m ovia a gente. A í, isso foi crescendo, e
deu no que deu. N o início, nós parecíam os um exército de Brancaleone, mas
acabam os conseguindo a ju d a r o Brizola a chegar ao Palácio."37

Igualmente recorrente é o reconhecimento de que, de fato, foi Brizola quem


venceu. Essa impressão é compartilhada tanto pelos militantes mais humildes,
como pelos principais dirigentes locais do partido. Tanto entre pessoas que
ainda hoje m ilitam no PDT e se autodefinem como brizolistas, como entre

36 Dados retirados do STE.


37 Depoim ento de um m ilitante do partido.

2 29
aqueles que, ao longo da vida política, acabaram por brigar e romper com o
líder. A capacidade privilegiada de arrebatar multidões, o poder quase mágico
de fazer-se ouvir e ter crédito junto ao eleitorado se confirmavam e superavam
todas as expectativas. Brizóla confirmava ser de fato o líder capaz de conduzir
um partido de massas ao poder. Naquele momento, ele era maior que o próprio
partido. Esse ainda estava para ser inventado, mas seu sucesso, diante do resul­
tado eleitoral, parecia irreversível. Brizóla derrotara duas máquinas poderosíssi­
mas, levara o eleitorado do Rio de Janeiro a ignorar as am eaças do poder
autoritário, arrebatara as massas e comprovara a sua capacidade de “fazer as
massas ouvirem a verdade e votarem com consciência” . Pareciam confirmar-se
as expectativas daqueles que imaginaram a formação de um partido de massas
sob a liderança de Brizóla com o objetivo de chegar ao poder nacional. Na
avaliação desses brizolistas e/ou ex-brizolistas, o desempenho de Brizóla supe­
rou as expectativas e confirmou sua magia. Pareceu-lhes confirmadas as intui-
ções de que Brizóla sabia fazer-se ouvir e revelar a verdade às massas. Sabia
fazer-se ouvir porque possuía o tom didático que só quem conhece os homens
do povo detém, afirmam os mais exaltados. Fazia aflorar no eleitorado a sua
consciência.
A partir de então, Brizóla voltava ao centro do poder. Era o único governa­
dor eleito fora do circuito PMDB/PDS. Quebrara, no Rio de Janeiro, a supre­
macia do antigo MDB, redefinindo, assim, o arranjo político estadual (ao me­
nos essa era a expectativa de uma parte dos pedetistas). Segundo a perspectiva
dos brizolistas, sua vitória era encarada, naquele momento, como a vitória do
moderno, representado pelo socialismo moreno, alinhado à Internacional Soci­
alista e à “revolução” social-dem ocrata, contra o atraso, representado pelo
chaguismo, pelo PDS e pelos comunistas do PCB ligados ao PMDB. Repre­
sentava, também, o triunfo da memória, pela retomada do fio da história, do
legado varguista e pelo revival do trabalhism o. Tradição e m odernidade se
fundiam em uma mesma perspectiva prom issora de mudanças, pensavam os
novos e antigos trabalhistas, e atendia pelo nome do líder que seis anos antes
recebera, solenemente, o bastão trabalhista. Da parte dos setores conservado­
res, o espectro do caos e da convulsão parecia crescer e m erecer atenções
redobradas. Setores da esquerda, do PMDB e do PT, reconheciam na capaci­
dade de comunicação de Brizóla e em sua eficiência em se fazer identificar
como força popular de oposição os principais responsáveis pelo resultado elei­
toral. Também atentos ao desenrolar dos acontecimentos, apostavam que tal
discurso teria fôlego curto. Analistas políticos, prudentes, relativizavam o im­

230
pacto da mudança operada no sufrágio brizolista. Tambem atentos, aguarda-
. 38
vam o que estava por-vir.
Da perspectiva de Brizola e de seus companheiros, contudo, esse era ape­
nas o primeiro passo de um longo e auspicioso caminho que tinham a percorrer
até Brasília. Antes de abordarmos as inúmeras e relevantes questões que sur­
gem a partir de então, passemos à descrição e análise da segunda disputa esta­
dual de que Brizola toma parte como cabeça de chapa. Um salto tão grande
justifica-se por revelar-nos alguns dos pontos que marcam as mudanças opera­
das no discurso, nas estratégias e nas práticas brizolistas ao longo do tempo.
Posto que não tenho a intenção de oferecer uma exposição diacrônica e pura­
mente descritiva do fenômeno, creio que tal enquadramento não será prejudici­
al à análise como um todo.

A campanha de 90. Brizola volta ao governo

Entre a vitória de 82 e a campanha de 90 passaram-se oito dos mais intensos


anos da vida pública brasileira. No âmbito político, ocorreram duas eleições mu­
nicipais, uma estadual e duas presidenciais, sendo que uma ainda através de
colégio eleitoral e outra direta. Em 86 havia sido eleita uma Assembléia Constitu­
inte, que dois anos após promulgaria uma nova Constituição Nacional. Houve
intensa mobilização popular por eleições diretas para presidente da República,
que acabou por fracassar, um rearranjo partidário de grande extensão, a morte do
presidente eleito indiretamente, em 84, e a posse de seu vice. Na esfera econômi­
ca, a recessão aprofundou-se e três planos econômicos malograram na tentativa
de sanear a economia - um quarto, estabelecido no próprio ano de 90, quando da
posse de Fernando Collor de Melo, caminhava rapidamente para o mesmo desti­
no. Mais importante ainda para a presente análise, Brizola cumpriu seu mandato,
conquistado em 82, e participou ativamente de todos os debates que cercaram
cada um desses acontecimentos, adotando invariavelmente posições polêmicas.
Sua morte política fora anunciada em ao menos duas ocasiões, sendo desmentida
logo depois (em 86, quando seu candidato ao governo, Darcy Ribeiro, é derrota­
do pelo candidato do PMDB, Moreira Franco, e em 89, quando perde para Luiz

38 Destaco, entre as análises da vitória de Brizola, em 1 982 , o já m encionado artigo de Am aury de Souza, O lavo Brasil
de Lima Jr. e Marcus Figueiredo (1985). Os analistas destacam que, tomados os votos dos partidos de oposição em
conjunto, não seria possível a firm ar com certeza a quebra do padrão oposicionista do voto no Rio de Janeiro,
deixando para observações futuras, principalm ente no que tocasse a adm inistração brizolista, avaliações mais
conclusivas. Em artigo de 1984, G láucio Ary Dillon Soares e Nelson do Valle e Silva, cham am atenção para a
im portância do voto dos m ulatos ao candidato do PDT, em contraste com a baixa inclin ação dos negros, que
tenderam a se identificar menos com Brizola. Ver Soares, 1985.

231
Inácio da Silva o direito de disputar o segundo turno das eleições presidenciais).
Voltarei, posteriormente, a essas passagens e, por ora, farei menção a elas apenas
no que se referir mais diretamente ao processo eleitoral, em que Brizola voltava a
postular o cargo de governador do estado.
A se acreditar em diversos depoimentos de pedetistas, sua candidatura ao
governo do estado não era unanimidade no partido. Não que sua posição inter­
na estivesse desgastada. Ao contrário, o malogro de sua candidatura à presidên­
cia da República, em 1989, era tido por muitos, no partido, como nada além de
um acidente de percurso que os obrigava a adiar a realização do projeto costu­
rado em 1979. Para tanto, julgavam alguns, seria mais interessante que Brizola
se lançasse candidato ao senado. Com isso, ele poderia puxar votos para o
partido e, uma vez eleito, ampliar sua base de sustentação, no âmbito nacional
- necessidade que se revelara à luz de seu desempenho nas eleições presidenci­
ais de 1989. Ainda segundo depoimentos, Brizola fincou pé e, sob pretexto de
dar continuidade a suas obras, em especial ao programa de educação integrada,
decidiu lançar-se como postulante a um segundo mandato no governo do esta­
do. A palavra fmal no PDT era invariavelmente sua e seu estilo parecia incom­
patível com a rotina do Legislativo. A despeito da derrota em 89, seu desempe­
nho no estado do Rio deixava poucas dúvidas sobre o sucesso de mais esta
empreitada. O desenlace do segundo turno da eleição presidencial foi extrema­
mente favorável a Brizola, posto que, ao longo de toda a campanha, ele procu­
rou evidenciar que a candidatura de Lula era incentivada por setores conserva­
dores, as quais apostavam que o candidato do PT seria mais facilmente batido,
numa disputa direta com Collor, do que ele, Brizola. Esta era mais uma das
profecias que, junto com as críticas duras ao governo Samey, ao Plano Cruza­
do e às maquinações conservadoras do Legislativo nacional, pareciam confir­
mar a clarividência que seus correligionários mais entusiasmados não se cansa­
ram de exaltar. Além disso, ao declarar apoio à candidatura de Lula, no segundo
turno, Brizola conseguira um volume inacreditável de transferência de votos
tanto no Rio Grande do Sul, como, e principalmente, no Rio de Janeiro. Volta­
rei, adiante, a cada um desses pontos.
Com uma pura e simples consulta ao resultado final do pleito, somos tenta­
dos a encarar a vitória de Brizola como mais expressiva do que a anterior, con­
quistada em 82. Brizola alcançou 47,2% do total de votos, ou 60,88% dos votos
válidos, conquistando mais um mandato, ainda no primeiro turno (desde as elei­
ções presidenciais de 89, a disputa por cargos executivos, em todos os níveis
passou a se dar em dois turnos, sendo exigido do postulante, para ser declarado

2 32
vencedor, no primeiro turno, a metade dos votos válidos mais um). Sua vitória
contribui para a eleição de 20 deputados federais e 21 estaduais, do PDT, no Rio
de Janeiro. No âmbito nacional, o PDT elegeu 47 deputados federais. De fato,
em termos numéricos, a vitória de Brizola foi incontestável. Ainda assim, ao
consultarmos os registros da imprensa da época e atentarmos para a memória
daqueles que estiveram envolvidos naquela disputa, esta vitória esteve longe de
alcançar o brilho e despertar o entusiasmo da anterior. Quais as razões para que
uma vitória tão esmagadora não tivesse despertado tanto entusiasmo?
Ensaiemos uma resposta. O próprio processo eleitoral de 90 foi extremamen­
te frio. Não é gratuita a manchete do Jornal do Brasil, no dia do pleito: “Brasilei-
39
ros vão às Urnas sem Paixão”. Sobre o pleito no Rio de Janeiro, a mesma
40
edição estampava: “Campanha no Rio não Empolgou o Eleitor”. E ilustrava a
ausência de emoção da campanha com a regularidade dos números de intenção
de voto, desde o início da disputa. Ao longo de toda a campanha, Brizola manti­
vera uma média de 50% de intenções de voto, Jorge Bittar (PT) oscilou entre 9%
e 12%, Nelson Carneiro (PMDB) entre 7% e 9%, enquanto Ronaldo César
Coelho (PSDB) jamais conseguira passar dos 5%. O desinteresse pelas eleições
proporcionais era mais assustador. A duas semanas da eleição, pesquisa do Ibope
projetava um percentual entre 35% e 45% de votos nulos para a Câmara Federal,
indicando que este número ainda seria maior para a Assembléia Legislativa. A
agenda política teve muito a ver com este clima momo que tomou todo o pais.
Menos de um ano antes, o país testemunhara a primeira eleição direta para presi­
dente realizada desde 1960. Melhor dizendo, protagonizara uma eleição presi­
dencial disputadíssima e em cujo resultado depositara profundas esperanças para
a solução de problemas gravíssimos, entre eles os altíssimos índices de inflação.
O espaço curtíssim o entre um a eleição e outra já seria suficiente para o
arrefecimento dos ânimos. Além disso, o novo presidente eleito tomara posse
cercado de enorme expectativa, a 15 de março, ou seja, at menos de sete meses
das eleições estaduais. E natural, portanto, que os próprios formadores de opi­
nião, especialmente a mídia, estivessem inteiramente voltados para os primeiros
passos do primeiro govemo eleito diretamente, em um período de 30 anos. O
estilo do presidente Fernando Collor e as medidas tomadas nos primeiros dias de
govemo contribuíram para que as atenções sobre ele se multiplicassem. No dia
seguinte à posse, foi anunciado um plano econômico, o quarto citado anterior­

39 Jornal do Brasil, 3 /1 0 /9 0 .
40 Idem.

233
mente, que, dada sua extensão e dureza, deixou o país perplexo. Entre outras
medidas, o governo bloqueava todos os investimentos particulares, a partir de um
piso baixíssimo, desde aqueles aplicados em overnight e outras fontes para onde
se voltavam os grandes investidores e especuladores, até as cadernetas de pou­
pança. Também faziam parte do pacote o fím de diversas empresas estatais e
fundações, a demissão de dezenas de milhares de funcionários públicos, suprimia
aumentos salariais no setor público e congelava preços. O plano afetava amplos
setores da sociedade, desde o empresariado até a baixa classe média, e desponta­
va como a primeira medida de uma reforma radical do Estado brasileiro. Aquilo
que, inicialmente, parecera a diversos setores, inclusive da esquerda, um passo
efetivo para que se operassem mudanças profundas na sociedade brasileira, atin­
gia duramente a classe média e, muito rapidamente, começou a parecer inócuo,
comparado aos sacrifícios que impunha.
O atordoamento frente ao “estilo Collor de governar” não era maior porque,
àquela altura, o peso dos 35 milhões de votos obtidos e o franco apoio de boa
parte da mídia ainda contavam'a seu favor. De qualquer modo, a desconfiança e
o ceticismo quanto à classe política, que já se haviam manifestado anteriormente,
nas eleições municipais de 88, e que o próprio Collor explorara ao longo de sua
campanha, voltavam a manifestar-se intensamente. Ao longo de toda a campa­
nha, Brizóla m anteve um discurso voltado para duas direções. Por um lado,
m anteve a postura que adotara ao longo dos anos, dando ênfase a questões
nacionais, atacando especialmente o governo Collor e sua política econômica.
Por outro lado, afirmava a disposição de dar continuidade a seu governo, com­
prometendo-se a “não cometer os erros do primeiro mandato”. Embora os erros
aludidos jamais fossem por ele mencionados, Brizóla usava, como arma contra
as críticas recebidas, a modéstia do homem que aceitava reconhecer seus erros
diante do povo sugerindo que ele próprio, o povo, o julgasse e lhe desse uma
segunda chance. Mais uma vez, a vocação nacional da política carioca (e não
fluminense) e sua tradição popular e oposicionista eram evocadas no discurso de
Brizóla com inegável eficiência. Quando do anúncio do plano econômico da
equipe de Collor, Brizóla foi um dos primeiros políticos a manifestar-se contrari­
amente, comparando-o ao Plano Cruzado de recente e triste lembrança. Aquela
altura, várias lideranças de esquerda, que poucos meses antes haviam se batido
frontalmente contra a candidatura de Collor e o que ela representava, pronuncia-

41 O ex-prefeito do Rio de Janeiro pelo PDT, Saturnino Braga, defendeu publicam ente o plano. O próprio assessor
econôm ico do equipe de cam panha de Lula, Aloisio M ercadante, elogiou o iniciativa, voltando atrás, posteriorm en­
te, devido à reação do PT a suas declarações.

2 34
vam-se favoravelmente às medidas adotadas. Setores empresariais e lideranças
mais próximas ao centro, ao contrário, mostravam-se preocupadas, cautelosas e
freqüentemente aludiam aos riscos recessivos que as medidas traziam em seu
bojo. Esta reação parecia aumentar a impressão de setores da esquerda, em
especial alguns economistas como Aloísio Mercadante, Saturnino Braga e, no
próprio PDT, César Maia, de que uma vez no poder, Collor de fato poderia
imprimir um perfil de mudança em sua administração. Adotando uma postura
francamente política e ignorando qualquer argumento de natureza técnica, Brizóla
atacou duramente o plano Collor e chamou especialmente a atenção para o fato
de o plano econômico ter sido adotado sem qualquer consulta ou negociação com
os atores econômicos e políticos. Este ponto que, àquela altura, passava, aparen­
temente, despercebido por boa parte da esquerda - ou ao menos não lhe parecia
relevante - , foi explorado por Brizóla. Ele retomava, assim, um dos motes mais
freqüentes de seu discurso: a necessidade de consultar a sociedade antes da ado­
ção de qualquer política pública. Foi assim que justificou a ausência de uma
plataforma política e de um plano de governo fechado, durante as campanhas de
82 e 89. Embora infactível no contexto de uma democracia de massas e pouco
desejável, pelo tom plebiscitário, Brizóla manteve sempre o mesmo discurso, o
que reiterava, aos olhos da sua militância, sua sensibilidade para ler os homens do
povo, de intuir seus desejos e necessidades, capacidade não compartilhada pelo
ex-governador de Alagoas. Aproveitando-se aparentemente dos poucos meses
que restavam para a renovação do Congresso, que deixava os parlam entares
numa situação pouco cômoda para fazer frente á um governo eleito com milhões
de votos, Collor governava de forma imperial, editando farta e seguidamente
medidas provisórias. A postura agressiva de Brizóla levou a candidata a deputada
federal pelo PCdoB, Jandira Feghali, a afirmar, justificando a aliança de seu
partido com o PDT, que em cada estado a oposição ao governo Collor tinha uma
cara e, no Rio de Janeiro, esta era a cara de Brizóla.
No plano estadual, dois pontos chamavam especial atenção. O prim eiro
deles, o fato do então governador Moreira Franco ser considerado, em pesquisa
realizada pelo Ibope, o governador mais impopular de todo o país. Ao longo de
sua administração, o governador, já então no PMDB, foi várias vezes posto sob
suspeita de corrupção e viu o problem a da criminalidade, que a rigor mostrava
um aumento preocupante já no último governo de Chagas Freitas, ser alçado à
condição de prioridade pela população, acima até mesmo da inflação. Brizóla,
mais uma vez, aparecia como alternativa a um governo do PMDB considerado
im popular e sob suspeita de corrupção. Uma vez mais, também, enfrentava

235
ataques pesados. Estes, agora, não eram apenas de caráter ideológico, como os
de 82. Pesava sobre ele uma série de acusações de corrupção e malversação de
dinheiro público em sua administração. Uma série de reportagens publicadas no
jornal O Globo dava conta de que, em seu governo, havia ocorrido um rombo
da ordem de 2 bilhões de dólares, no Banerj, o que levava o banco do estado a
uma próxima e possível insolvência. Frente aos trunfos que possuía, as acusa­
ções contra sua adm inistração, que com eçaram ainda durante seu governo,
pareciam pouco persuasivas. Para enfrentá-las, Brizóla passou a publicar regu­
larmente, no Jornal do Brasil e no jornal O Dia, uma coluna paga em que
respondia a ataques e apresentava suas propostas gerais para um segundo man­
dato. Nestas colunas, que pelo tom sempre polêmico e combativo passaram a
ser chamadas de tijolaços, Brizóla retomava de forma agressiva um dos seus
temas preferidos, encampados desde a campanha eleitoral de 89: a crítica ao
poder político da mídia, em geral, e do grupo Roberto Marinho, em particular.
Durante boa parte da campanha, os tijolaços foram um a peça im portante de
contato entre o líder pedetista e a opinião pública.
Ao fim das eleições, Brizóla tinha confirmada sua grande popularidade no
Rio de Janeiro, com uma esmagadora vitória, ainda no prim eiro turno, com
. 4 2
60,88% dos votos contra 39,12, somados seus três adversários. Repetia em
AP 2 (zonas eleitorais dos bairros da Zona Sul mais Tijuca e Grajaú) o desem­
penho de oito anos antes, dividindo com o candidato petista a preferência do
eleitorado da classe média e média alta, e melhorava sensivelmente em áreas
que, àquela altura, eram verdadeiros redutos brizolistas: a Baixada Fluminense
43
e a Zona Oeste (72,57% e 74,71%, respectivamente). A diferença mais signi­
ficativa em relação às eleições anteriores é o excelente desempenho no interior.
Brizóla obtém mais que 50% dos votos em todas as regiões do estado, o que
parece sugerir o sucesso, ao menos do ponto de vista eleitoral, da campanha de
cooptação de lideranças locais, desencadeada no final dos anos 80. Por outro
lado, um dado que, se não tirava o brilho da vitória, revelava um pouco da
alteração do comportamento do eleitor, em relação a 82, é o índice de votos em
branco e nulos: 7,01%, em 82, contra 20,19% em 1990, o que revelava uma
queda significativa do entusiasmo do eleitor frente às opções que lhe foram
apresentadas (o índice de alienação, em 82, foi da ordem de 20,02%, contra
30,14%, em 90).

42 Ver anexo II.


43 Vale frisar que, mesmo em 86, quando seu candidato à sucessão é derrotado, o desempenho do partido nessas áreas
é excelente, com o veremos mais adiante.

2 36
Um dado a mais sobre esta eleição parecia auspicioso para o partido. Foram
conquistadas, na Câmara dos Deputados e Assembléia Legislativa, respectiva­
mente, 20 e 21 cadeiras, além daquelas conquistadas pelos partidos da coligação.
Estes números retomavam ao patamar de 82 e superavam o desempenho de 86,
quando houve sensível queda nas duas casas. O dado significativo desse desem­
penho é que, em 90, não havia a obrigatoriedade de vinculação do voto, como
houvera em 82, o que diminuía um pouco o peso de Brizola na decisão pelo voto
proporcional. Também para o Senado, a cadeira ficou com Darcy Ribeiro, candi­
dato derrotado ao governo, em 86, com 37,38% dos votos. Outro dado interes­
sante é que Brizola saía, naquele momento, meses após a derrota de 89, extrema­
mente fortalecido como liderança da esquerda. Contribuíam para isso sua postura
ao longo do segundo turno da campanha de 89, a impressão de que muito do que
ele antecipara acabara por acontecer, as críticas sistemáticas ao governo Collor -
com poucos meses de vigência, seu plano econômico já não aparentava ser tão
favorável às classes mais baixas - e o sensível retraimento do PT, como alterna­
tiva partidária à esquerda. Desde o ano anterior, o partido incorporara novos
quadros, entre eles antigos críticos do brizolismo, e, ao contrário do que ocorrera
a partir de 82, muitos deles vinham de^ grupos ou partidos de esquerda. Do ponto
de vista de membros do partido e brizolistas, a vitória, em 90, devia-se, sobretu­
do, à coragem de Brizola de nadar contra a corrente, mesmo nos momentos em
que tal postura lhe custasse votos e perdas eleitorais. Fora assim, afirmam, quan­
do do Plano Cruzado, da candidatura de Lula, do Plano Collor e em muitas
outras ocasiões cuja menção farei mais adiante. Desse modo, embora menos
espetacular que a campanha de 82, a vitória de 90, segundo a militância pedetista,
devia-se mais do que nunca à sua clarividência e coragem de esclarecer e denun­
ciar, ao povo, os verdadeiros desígnios de seus inimigos. A despeito mesmo do
evidente crescimento do partido, era de Brizola esta nova vitória, de sua clarivi­
dência, coerência e coragem. As derrotas correspondiam a uma espécie de auto-
imolação, preço que Brizola se dispusera a pagar para não trair sua destinação:
levar ao povo a verdade, ainda que ao preço de seus projetos eleitorais. Mesmo a
tradição trabalhista que, ao menos simbolicamente, representara tanto para os
brizolistas, ficava, nesse momento, minimizada. Brizola era mais uma vez cele­
brado vitorioso no Rio de Janeiro e seu nome, de novo, lançado para a presidên­
cia da República. A vitória, no Rio de Janeiro, era anunciada como o primeiro e
importante passo para a retomada da marcha a Brasília. Uma coincidência entre
as vitórias de 82 e 90 foi a grande penetração que a candidatura de Brizola, seu
perfil combativo e oposicionista, teve junto às classes médias. Esse setor social,

2 37
pequeno numericamente e carente de recursos econômicos, pôs a serviço das
candidaturas de Brizola seu principal capital: a capacidade de produzir e divulgar
símbolos. A imagem combativa de Brizola tendeu a ter um grande apelo junto a
esse setor do Rio de Janeiro, que ao sufragar o líder trabalhista deu sinais da
recorrência de sua vocação jacobina. Só em 1994, quando a classe média passou
a associar Brizola a uma nova configuração da desordem social, o que ameaçava
os limites de sua própria tolerância, é que esta m esma classe m édia rom peu
radicalmente com o líder. Este, contudo, é um problema a ser abordado mais
adiante. Por ora, cabe reforçar a razoável margem de identificação das classes
médias com o brizolismo, concorrendo para aquele que foi o último grande triun­
fo de Brizola, ao menos até o momento em que esta pesquisa foi realizada. Este
triunfo superava as derrotas anteriores e tomava impensáveis os fracassos futu­
ros. Vejamos, agora, como se deram as primeiras e como se desenharam, num
espaço de tempo muito curto, os segundos.

O fracasso do projeto nacional. A eleição de 1 9 8 9 44

Como já foi várias vezes repetido, o projeto de Brizola, bem como de seu
grupo, desde as primeiras articulações ainda no exílio, tinha como meta chegar ao
poder nacional para, a partir daí, promover \ima política de mudanças radicais em
direção a uma versão brasileira da social-democracia, ou socialismo segundo
45
alguns. O projeto não só não era disfarçado como funcionava como poderosa
peça de propaganda. Ele foi um dos motivos que levaram Brizola a radicar-se no
Rio de Janeiro. A vitória de 82 insuflou uma enorme esperança entre seus parti­
dários de que talvez a tarefa impusesse menos tempo e capacidade de articulação
do que podiam supor as previsões mais otimistas. Lamentando a estratégia adota­
da pelo partido, na campanha de 89, Teotônio dos Santos recorda:

"N ó s tín h a m o s a idéia de que o Brizola ia se p ro p o r a re o rg a n iza r a esquer­


da. Mas havia um a ala, que era só brizolista, que achava que o Brizola g a ­
nhava as eleições de q u a lq u e r ¡eito. E o Brizola se deixou levar p o r essa
idéia, de fo rm a que ele não investiu na unidade da esquerda o que nós espe­
rávam os que ele investisse."46

44 É im portante registrar, logo no início dessa seção, a im portância do relato jornalístico de Ricardo Osm an G. Aguiar,
Leonel Brizola. Uma trajetória política (1991). Este livro é um relato da cobertura, feita pelo autor, da cam panha de
Brizola, em 1 989 , com o correspondente do jornal O Estado de S. Paulo.
45 Na verdade, no que toca a Brizola, este era um projeto bem mais antigo e, com o se sabe, remonta ao período anterior
ao golpe de 64.
46 Depoim ento de Teotônio dos Santos ao autor, em 1 3 /8 /9 6 .

238
Como já foi mencionado, era comum quadros conhecidos da política nacio­
nal lançarem a candidatura de Brizola à presidência da República, sempre que
manifestavam sua adesão ao líder trabalhista. A grande mobilização de massas,
quando da campanha das diretas, foi mais um alento quanto à possível brevidade
da realização do projeto. Dentro de uma leitura conspiratória da política, muito
comum no brizolism o, o aborto da emenda não passou de um a m anobra de
grupos, muitos dos quais engajados publicamente na campanha, para impedir
uma vitória consagradora de Brizola, tida como certa pelos brizolistas e pedetistas.
A despeito da lógica da conspiração, o nome de Brizola era sem dúvida fortíssimo
àquela época, e analistas políticos reconheciam nele a principal liderança de mas-
.4 7
sas no Brasil. A rejeição da emenda do deputado Dante de Oliveira, que previa
a realização de eleições diretas para presidente da República, é vista, assim, como
mais um golpe a Brizola desferido por forças ocultas, que se ergueram contra ele
ao longo de sua vida política. A concretização do projeto ficava adiada para 88
(depois para 89, quando da aprovação do aumento do mandato do presidente
Samey). De 89, contudo, não passaria. Com a convocação das eleições, chega­
va, finalmente, a hora da realização do sonho já tantas vezes adiado.
Brizola iniciava o ano decisivo para seps planos políticos na liderança de
intenções de votos, chegando aos 19%. A esta altura, o PDT ainda estava longe
de se ter consolidado como um partido forte nacionalmente. A figura de Brizola,
ao contrário, resistira bem aos dez anos que se passaram entre o retomo do exílio
e o momento tão esperado por ele e seus correligionários. A derrota eleitoral, em
86, quando não conseguiu fazer seu sucessor para o governo do estado do Rio de
Janeiro, converteu-se, logo nos dias seguintes, numa espécie de vitória moral.

47 Concluindo sua análise sobre a dinâmica do processo de liberalização e dem ocratização do regim e, em que demonstra
com o o processo brasileiro se deu de m odo cuidadoso e sem rupturas dramáticas devido à articulação entre as forças
moderadas da oposição e a parcela liberal do PDS, que apoiava o regime, Adam Pzerworski se refere a Brizola com o a
força política com m aior capacidade de m obilização e identificação popular. Esta, no entanto, não era uma variável
m uito bem vista, entre os setores que celebram o pacto para a redem ocratização. Ao contrário, a absorção das
demandas populares, no contexto do processo de redemocratização, foi encarada, com freqüência, com o um elemento
potencialmente disruptivo e perigoso, o que levou a parcela da elite política, especialmente aqueles que atuavam no
âm bito do Congresso N acional, a virar as costas para as demandas populares. Tal postura foi apontada, com uma boa
dose de m ordacidade, nas análises de Renato Lessa. Do mesmo modo, Brasílio Sallum registra, em sua análise sobre o
processo de redemocratização brasileira, com o a elite empresarial esquivou-se de participar da campanha pelas diretas,
em 1984, exatamente pelas reservas que tinha quanto a um cenário propício à ascensão de Brizola ao poder federal.
Ainda com Sallum, o espectro da ascensão do brizolismo ao poder federal teve um peso significativo quando, na
Constituinte, optou-se pela manutenção do m andato de cinco anos para o governo Sarney. Aí, pesou significativamente
a posição dos militares, para os quais era ainda cedo o franqueamento à participação no processo de escolha do futuro
presidente da República pelas massas. Também nesse caso, o espectro de Brizola pairava com o uma ameaça indesejável
para vários setores com poder de decisão. Desse m odo, ainda que o discurso brizolista possa ser encarado como
fortemente marcado pela lógica da conspiração, fica patenteado que, da percepção dos atores políticos com influência
decisória, a associação entre brizolismo, participação popular e instabilidade era bastante significativa. Ver Przeworski,
"C o m o e onde se bloqueiam as transições para a dem ocracia", em Moisés & Albuquerque, 19 8 9 ; Renato Lessa,
"Reflexões sobre a gênese de uma democracia banal", em Diniz, Boschi & Lessa, 1989; Lessa. "Fados de um republicídio",
em C am argo & Diniz (orgs.), 1989; Sallum Jr.,1 996.

239
Afinal, o PMDB, partido do candidato vitorioso ao governo do estado, Wellington
Moreira Franco, vencera em 22 dos 23 estados, graças ao entusiasmo provocado
pelo Plano Cruzado, lançado no início daquele mesmo ano. Dias depois das
eleições, no entanto, um novo plano, francamente recessivo e que sepultava
todos os aparentes ganhos proporcionados pelo primeiro Plano Cruzado era anun­
ciado. Brizola, que combatera o Plano Cruzado desde sua edição, vira suas de­
núncias se concretizarem, ainda que por meios transversos, já que as críticas
eram limitadas a argumentos gerais e/ou políticos. Do mesmo modo, ele, que
lutara intensamente contra a prorrogação do mandato de José Samey e chegara
mesmo a liderar um movimento pela sua renúncia e convocação de eleições
presidenciais diretas, assistia à queda dos índices de popularidade do presidente
para números baixíssimos. Brizola começava o ano de 89 liderando as intenções
de voto e mais confiante do que nunca de que colheria uma vitória indiscutível
nas eleições marcadas para outubro. Um outro dado era freqüentemente lembra­
do por Brizola como uma espécie de sinal do que lhe reservava aquela campanha.
Àquela altura, Brizola tinha 67 anos, a mesma idade com que Getulio vargas
disputou e venceu as eleições de 50. Mais do que uma simples coincidência, este
era um presságio que reiterava sua convicção de que chegara o momento de
retomada do “fío da história”. Afinal, da perspectiva brizolista, fora contra o
próprio Vargas que as forças conservadoras brasileiras, aliadas a interesses inter­
nacionais, se articularam por duas vezes contra o processos de desenvolvimento
e emancipação do povo brasileiro. Fora contra o legado varguista e seu desdobra­
mento popular, que estas mesmas forças aliadas desferiram o golpe de 64. O
momento de retratação histórica chegara e Brizola pedia a Deus, repetidamente,
que estivesse à altura da tarefa que a história lhe impusera e da qual não se
furtaria. A marca representada pela coincidência etária confirmava sua condição
de ungido.
Em nenhum outro momento a figura de Vargas foi tão evocada por Brizola
e brizolistas como nessa campanha. Em nenhum outro momento, o discurso de
Brizola aproximou-se tanto do conjunto temático que dominara a política brasi­
leira, nos anos 60. No início da campanha, provavelm ente dando a vitória
com o certa, B rizola preocupava-se em costurar acordos com setores do
empresariado para garantir a governabilidade quando eleito. Em março, Brizola
detinha 17% das intenções de voto, contra 15% de Lula e apenas 7% do gover­
nador de Alagoas, Fernando Collor de Melo, que desde o ano anterior ganhara
espaço na mídia por adotar uma ambígua, mas fartamente difundida campanha
de m oralização no serviço público que lhe valeu o apelido de “caçador de

2 40
m arajás”. A esta altura, mesmo a possibilidade de encontrar o presidente das
empresas Globo, Roberto Marinho, era cogitada, como um movimento neces­
sário daquele que, uma vez eleito, teria que governar com o maior apoio possí­
vel. Antes da campanha efetivamente esquentar, Brizóla ocupava-se com três
preocupações básicas. A primeira delas era redesenhar a estrutura interna do
partido, que continuava menor que ele próprio, conferindo-lhe maior densidade
e amplitude. Para tanto, buscava mecanismos que garantissem m aior participa­
ção de representantes de grupos de minoria (mulheres, negros, jovens e tam ­
bém sindicalistas) ocupando cargos administrativos e de direção do partido. Em
São Paulo, destacava o ex-deputado Airton Soares - um dos únicos parlam en­
tares com mandato a participar da fundação do PT, partido com o qual rompera
anos depois, ingressando no PDT - para assumir a liderança do partido, no
lugar de Ademar de Barros Filho, com o intuito de obter maior penetração no
maior colégio eleitoral do país. A segunda consistia em ampliar ao máximo o
raio de alianças. Convencido de que sua eleição era quase certa, Brizóla busca­
va afastar, definitivamente, os fantasmas de incendiário e radical, que permane­
ciam colados à sua imagem. Anunciava publicamente sua intenção de conver­
sar com empresários e demais setores da elite, além de buscar apoio junto a
partidos de perfil conservador, como o PFL. A imagem de Vargas, tudo indica,
exercia uma enorme influência em Brizóla e naqueles que viam em sua postura
o estadista capaz de sentar à m esa de negociação mesmo com aqueles que
deveria combater. Sintetizando sua postura, Brizóla chega a declarar:

"N ã o te n h o m edo de alian ça, de apoios que venham da esquerda ou da d i­


reita, porque estou convicto dos meus princípios e ideais. Se o pró p rio d e m ô ­
nio qu iser m a rch a r com o PDT direi pode m archar, desde que este ato não
venha a re p re s e n ta ra abdicação de nossos p rin cíp io s."48

Finalmente, uma última preocupação incomodava terrivelmente: a candidatu­


ra de Lula. Eleito deputado federal, em 1986, com o maior número de votos para
o cargo, Lula ocupava o segundo lugar nas pesquisas de intenções de votos, logo
atrás de Brizóla. Seu partido, o PT, obtivera vitórias importantes nas eleições
m unicipais do ano anterior, sendo uma delas em Porto Alegre, antigo reduto
trabalhista. Era uma liderança em franca ascensão, vinculado a um partido igual­
mente em crescimento. Além disso, dentro da lógica que parece dominar a leitura
dos processos políticos tipicamente brizolistas, havia, em Brizóla, a convicção de

48 Depoim ento de Leonel Brizóla, em Aguiar, 1991: 20.

241
que o segundo tumo seria disputado por um representante das forças populares
contra um representante das elites. A despeito da flexibilidade para com as alian­
ças, Brizola situava-se como postulante ao lugar reservado ao representante das
forças populares e, nesse sentido, via em Lula seu principal adversário e obstácu­
lo para chegar ao segundo tumo. Estava convencido de que, quando a campanha
esquentasse, o candidato da elite despontaria.
Ele desponta em abril, e de uma forma que surpreende até mesmo o expe­
riente e perspicaz líder trabalhista. No espaço de menos de um mês, o governa­
dor de Alagoas, Fernando Collor de Melo, pula de 7% para 20%, contra 19%
49
de Brizola. A campanha de Collor se orientava por três motes centrais. Pri­
meiro: ele aparecia como representante do novo, da renovação da política bra­
sileira. Aproveitando-se do descontentamento generalizado de parte da popula­
ção com as antigas lideranças políticas que participaram do desgastado governo
Sarney, Collor se autoproclamava a alternativa às velhas práticas. Para a aceita­
ção dessa mensagem, concorriam sua própria juventude e o fato de estar dispu­
tando as eleições por um a legenda recém-criada exatamente para acolher sua
candidatura, um partido que sequer existia. Atacando duramente o presidente
Samey e os antigos partidos e lideranças, Collor se posicionava como um au­
têntico adversário, não só do governo, mas dos termos em que se praticava a
política no Brasil. O segundo norte da campanha, que reforçava e conferia
credibilidade ao primeiro, referia-se à campanha que encampara com estarda­
lhaço, à frente do governo de Alagoas, contra os chamados marajás do serviço
público. Esta campanha, carregada de um tom fortemente m oralizador e de
resultados práticos inócuos, propiciou-lhe grande espaço na imprensa do país
inteiro e valeu-lhe o útil apelido de caçador de marajás. Finalmente, Collor
apresentava-se como defensor intrépido dos miseráveis e descamisados. D iri­
gia-se, assim, para os setores mais pobres da população, utilizando um discurso
com forte tom emocional.
Os três elem entos acim a citados, com binados com um a estratégia de
marketing competentemente traçada, tomaram a candidatura de Collor o maior
fenômeno eleitoral daquele ano. Em maio, já disparara nas pesquisas, chegando
a 32% das intenções de voto. Comparada aos desempenhos modestos de seus
candidatos e à pouco atrativa alternativa entre B rizola e Lula, a ascensão
meteórica do candidato do PRN (o próprio nome do partido, Partido da R e­
construção Nacional, era sugestivo da imagem que Collor veiculava) desperta a

49 Ibid., 28.

2 42
atenção dos setores mais conservadores. Estes passam a apoiá-lo, prim eiro
discreta e, depois, explicitamente, abandonando as candidaturas saídas de seus
próprios partidos, sem, contudo, subir em palanques ou aparecer muito, para
que não fosse desmentida uma das principais bandeiras de Collor. Tudo indica
que o apoio a Collor foi dado com boa margem de desconfiança e incômodo.
Collor, a rigor, era uma esfinge que os profissionais do poder tinham dificulda­
des em decifrar. A partir de agosto, porém, para uma parcela do espectro polí­
tico que não admitia alinhar-se a Brizola ou a Lula, Collor era a única opção
viável de chegar e/ou permanecer no poder. A candidatura de Guilherme A fif
Domingos não decolara, como chegara a ameaçar. O recém -criado PSDB de
Mário Covas era, naqueles tempos, apenas um pouco mais palatável do que o
PDT e o PT. As candidaturas do PFL (Aureliano Chaves) e do PMDB (Ulysses
Guimarães) estavam por demais associadas ao governo Samey para terem qual­
quer veleidade de vitória.
Enquanto a candidatura de Collor disparava, Lula e Brizola lutavam por
uma vaga no segundo turno. Brizola via-se às voltas com problemas inerentes a
seu próprio estilo. A desorganização e o improviso, que se tomaram uma das
marcas do PDT, faziam-se, de novo, presentes. Enquanto a campanha de Collor
era dirigida por um sofisticado e bem planejado esquema de marketing, susten­
tado por contribuições cada vez mais generosas, e a de Lula por uma equipe
disciplinada, respaldada por uma militância cada vez maior, Brizola mantinha o
estilo centralizador, guardando para si as decisões quase sempre tomadas na
última hora. Este é o caso, por exemplo, da escolha do nome do candidato a
vice de sua chapa. Após uma longa demora, que suscitou o surgimento e aborto
de um a série de candidatos a candidatos e o m al-estar e os conflitos entre
postulantes daí resultantes, Brizola decide-se por Fernando Lyra, ex-deputado
pelo PMDB e um dos principais articuladores da candidatura conciliatória de
Tancredo Neves, em 1984. Apostando na habilidade política de Lyra, que in­
gressara recentemente no partido, Brizola pretendia ter alguém capaz de ampli­
ar seu leque de alianças. Cálculo que, posteriormente, revelou-se equivocado,
já que, mesmo em Pernam buco, seu estado de origem , a presença de Lyra
pouco acrescentou eleitoralmente. Também em relação à agenda, as decisões
ficam ao sabor do estilo Brizola de atuar. Tornam-se freqüentes os desencontros,
os atrasos em comícios e os apertos passados por colaboradores, freqüentemente
atarantados e sem rumo. O ótimo relato jornalístico de Ricardo Osman pode
ser lido como uma crônica das desventuras de uma empreitada marcada pela
aleatoriedade e improviso. A imagem do exército de Brancaleone, anteriormen-

243
te citada por urna militante, ganha aqui tinturas dramáticas para seus participan­
tes. Um pouco heroica também, pela quase inacreditável (ou seria resignada?)
confiança no líder e pela paciente dedicação a ele. A centralização da campa­
nha e dos seus rumos nas mãos de Brizóla e o improviso ficam patenteados
também na plataforma apresentada. É comum em nossas campanhas eleitorais
que os candidatos se apresentem sem um program a de governo delineado e
claramente definido. O fato de discussões dessa ordem não sensibilizarem mui­
to o eleitorado médio é apenas uma das razões para essa recorrência. O que há
de singular no brizolismo é a justificativa ideológica para isso. Apresentar um
projeto am arrado corresponderia a antecipar-se às dem andas da população,
arrogar-se o papel ilegítimo de definir prioridades que dizem respeito à socieda­
de como um todo e, principalmente, a seus segmentos mais desassistidos. Ca­
beria, portanto, uma vez vencida a disputa, voltar-se para o chamado processo
social, suas carências mais graves e expectativas. A tradução em pírica dos
princípios norteadores da campanha é-nos, ainda um a vez, fornecida pelo rela­
to jornalístico de Ricardo Osman. A extensão do trecho citado justifica-se pela
qualidade narrativa:

"S obrevoávam os o sul do M a ra n h ã o q u an do resolvi desconsiderar um a n o r­


m a baixada por Brizóla d u ran te os vôos, a de não conceder entrevistas. O
can d id a to gostava de v ia ja r sossegado e aproveitava o te m p o para dedica r-
se à le itura de jornais e re le m b ra r acontecim entos. Reservava-se o d ire ito de
só conceder declarações form ais qu an do julgava conveniente. Estávamos a
doze m il pés de a ltitu de, próxim o à cidade de Im peratriz, q u an do su b ita m e n ­
te pe rguntei a Brizóla qual seria o destino que da ria à polêm ica ferrovia N o r-
te-S ui, caso fosse e le ito .(...)
'"A m a n h ã , no governo, vam os con cluir esta fe rro v ia ', an un ciou Brizóla sem
titube ar, e n qu an to desviava os olhos da paisagem que surgia pela janela do
avião. (...) Seguiram -se segundos de silêncio até que o can did ato despertas­
se d e fin itiva m e n te para o tem a. De im proviso, com convicção, Brizóla deu
início à prim e ira entrevista sobre este assunto. 'Vam os con clu í-la e co m p le ­
m e n ta r a obra com a criação de duzentos centros urbanos ao longo da fe rro ­
v ia ', decidira. Ao meu lado, viajavam o assessor de im prensa Fernando Brito
e o fotóg rafo Carlos Contursi. No avião, tam bém estavam o segurança Heleno
e o ex-co m an dan te Silvio Lima. A decisão era um a novidade para todos.
"(...) A notícia repercutiria com o um a bom ba, e dela nem m esm o a executiva
nacional do PDT tinh a con he cim en to ."50

50 Aguiar, 1991: 107-8.

244
Outra adversidade enfrentada por Brizóla foi a dicotomização que acabou
por dar o tom da campanha. Havia, de sua parte, e mesmo entre seus colabora­
dores, a convicção de que a disputa dar-se-ia entre um candidato popular e um
das elites. Esta expectativa, porém, era duplamente traída. Ele e seus dois adver­
sários diretos marcavam posição dirigindo-se ao mesmo público. A despeito de
suas origens sociais, da sofisticação e riqueza da campanha, Collor emplacara
com êxito a imagem de defensor dos descamisados e adversário das elites no
poder. A filiação popular da candidatura de Lula era óbvia demais para ser desa­
creditada. Brizóla tentou, sem êxito, relacionar ambas as candidaturas a artima­
nhas conservadoras. Chamava Collor de “filhote da ditadura”, em alusão ao fato
de ter sido prefeito biônico de Maceió, durante o regime militar. Acusava-o tam­
bém de ser uma invenção da Rede Globo, em alusão ao poder manipulatório que
a mídia, monopolizada pelas empresas Globo, detinha, com a aquiescência e o
proveito das elites econômicas e políticas. Sobre Lula, dizia que era o represen­
tante da esquerda de que a direita gostava. Uma espécie de inocente útil, que seria
utilizado para tirar a ele - Brizóla - do segundo turno e para depois vencê-lo,
facilmente, com seu candidato. Brizóla, no entanto, não foi feliz nessas tentati­
vas. Ao contrário, o tom da campanha acabou concentrando-se na polarização
entre o antigo e o novo. Como já foi mencionado, Collor apresentava-se como o
candidato contra tudo o que já houvera na política brasileira. Até o fato de não ter
um partido propriamente dito contribuía para a imagem que construíra. Lula
representava os novos movimentos sociais organizados sob a sigla do PT. Ele era
o líder principal do novo movimento dos trabalhadores, surgido no final da déca­
da de 70. Já Brizóla, com sua evocação ao legado de Vargas, era facilmente
identificado com uma tradição política. De caráter popular, é verdade, mas, de
qualquer modo, representativa de um passado que, àquele momento, era negado.
Os ataques sistemáticos de Lula à sua candidatura e à herança varguista fecha­
vam a porta para qualquer composição, tão sistematicamente tentada por Brizóla.
As leis trabalhistas eram associadas pelo candidato petista à Carta dei Lavoro, em
alusão explícita ao suposto conteúdo fascista e totalitário da política varguista.
Curiosamente, as respostas de Brizóla, dirigidas diretamente a Lula, resumiam-se
à falta de experiência do ex-líder metalúrgico. Se o PT era chamado de “UDN de
tamancos”, seu candidato era mencionado repetidas vezes como um companhei­
ro potencial de um governo brizolista.
A partir de junho, a candidatura de Brizóla passa a viver os momentos dra­
máticos que agouravam seu destino. Depois de passar meses oscilando entre o
máximo de 19% e o mínimo de 14% das intenções de voto, seu desempenho cai

2 45
para 11%, contra inacreditáveis 43% de Collor. Brizola abandona definitivamente
o tom conciliatório, do início do ano, e retom a a verve inflam ada e radical,
condenando as pesquisas de opinião e a mídia, como instrumentos de manipula­
ção, e denunciando os interesses econômicos por trás das candidaturas de seus
concorrentes mais próximos. Não conseguiu, porém, ao longo dos meses decisi­
vos de campanha, ultrapassar a média com que iniciara o ano. As vésperas da
votação, as pesquisas davam ampla vantagem para Collor, em primeiro lugar, e
empate técnico entre Brizola e Lula. O candidato pedetista cumpriu roteiro de
campanha caótico na reta final. Participou de melancólico e esvaziado comício
em São Paulo, sequer visitou a Bahia. Não deu espaço para as realizações de
administrações pedetistas espalhadas por prefeituras do país e, não menos grave,
fracassou no esforço de dissociar-se do estigma de antigo e ultrapassado.
Ao fim do prim eiro turno, por pouco mais de 400 mil votos, o projeto
costurado há cerca de dez anos era frustrado. B rizola alcançou um total de
11.168.228 votos (16,51% dos votos válidos) contra 11.622.673 obtidos por
Lula. Ficava, pois, em terceiro lugar e via escapar-lhe das mãos o direito de
enfrentar Collor, no segundo turno. Se não estivessem tão desconcertados àquela
altura, seus aliados poderiam, mais uma vez, evocar a privilegiada capacidade
do líder em antecipar os rumos políticos. Desde que retom ara do exílio, Brizola
não mediu esforços para aproximar-se de Lula. Via no metalúrgico um futuro
líder popular de expressão nacional. Insistira, ao longo de toda a campanha, em
uma aliança com o PT, reiteradamente recusada por este. As pesadas acusa­
ções dos p e tista s, que asso ciav am o legado tra b a lh is ta e v a rg u ista ao
conservadorism o e ao modelo político fascista, replicava com alusões leves
sobre a parca experiência de Lula e ao excesso de purismo do partido. Brizola
intuíra em Lula e no PT uma força significativa, que poderia tornar-se um
obstáculo para o sucesso de seus planos. Via, agora, sua intuição realizar-se.
Como consolo, Brizola confirmava seu favoritismo no Rio de Janeiro, receben­
do, do estado, os votos que foram negados ao candidato do PDT à sua suces­
são, em 86. Conquistou 52,09% dos votos, contra 16,07% de Collor e 12,22%
de Lula. Confirmava sua popularidade na capital, alcançando 49,96%, enquan­
to Collor obtinha 15,76% e Lula 12,15%. Além do excelente desempenho no
Rio de Janeiro, o líder trabalhista confirmava o antigo lema - quem conhece
Brizola vota em Brizola - , obtendo também uma esmagadora vitória no Rio
Grande do Sul, com 62,66% dos votos. Conseguiu o primeiro lugar também em
Santa Catarina, com 26,22% dos votos. Nos outros estados, porém, Brizola
fica atrás dos dois concorrentes diretos, com exceção do Ceará, onde obteve

2 46
19,42% dos votos, ficando à frente de Lula (12,36% ), m as m uito atrás de
Collor (33,09%). Em todo o resto do país, o desempenho de Brizola foi aquém
das suas expectativas. Em São Paulo, obtém inexpressivos 1,51%, ficando em
sétimo lugar.
Embora seja impossível detectar as razões para um fracasso eleitoral, pode-
se especular sobre alguns dos fatores que contribuíram para o ocorrido em 89.
A disputa acabou polarizada entre esquerda e direita, mas de modo subterrâ­
neo. Esta não foi uma configuração do debate que tenha ficado claram ente
pública. Enquanto a direita migrou discreta e gradativamente para a candidatura
de Collor, a esquerda passou todo o processo partida entre Lula e Brizola. Tal
perspectiva, porém, não dá conta de toda a dinâmica do processo. Houve tam ­
bém uma nítida exploração do confronto entre o novo, habilmente explorado
por Fernando Collor, mas também identificado com Lula, e o antigo, encarnado
por candidatos como Ulisses Guimarães, Aureliano Chaves e, com a grande
colaboração das críticas petistas, também Brizola. A descrença na classe políti­
ca, difundida a partir do fracasso do Plano Cruzado e acirrada nos últim os
meses do governo Samey, assolado pela hiperinflação, pelo colapso das alian­
ças políticas e pela queda acentuada da popularidade do então presidente, deu o
tom dos debates ao longo de toda a cam panha. Prova disso era o fato de
Fernando Collor, candidato mais votado no primeiro turno, concorrer por um
partido que praticamente não existia. A inexistência de um partido sólido era
compensada por um pesado volume de investimentos que sua campanha rece­
bia, provavelmente, de setores assustados com o espectro da vitória de um dos
competidores da esquerda diante da inviabilidade da vitória de um dos candida­
tos de centro (como Ulisses, Aureliano e, quem sabe, Mário Covas). Finalmen­
te, a própria condução da campanha por parte de Brizola e de seu sta ff deve ter
contribuído para o resultado final. A centralização decisória, as rusgas entre
seus aliados pela proximidade com o chefe e a conseqüente desorganização da
agenda não haviam impedido a vitória épica de 82. Para uma eleição nacional,
foram mortais. Brizola enfrentou adversários reais e imaginários, impérios da
comunicação e moinhos de vento. Mas teve em si próprio e no estilo pedetista
de atuar, um inimigo cujo peso foi subestim ado. Perdia a oportunidade de
realizar o seu sonho e o de seus companheiros. Ouvi, reservadamente, de mais
de um quadro do partido, uma outra razão para a derrota de Brizola, no mini-

51 A candidatura de M ario Covas não se definia, propriam ente, com o de esquerda. O outro candidato da esquerda,
Roberto Freyre, do PCB, teve um desempenho inexpressivo, a despeito de sua elogiada perform ance nos debates.

247
mo, curiosa. Segundo essa versão, a referida derrota só pode ser compreensí­
vel a partir de uma frase sua para colaboradores mais próximos: havia, dizia ele,
alguma força que o puxava, que lhe dizia não vá em frente. Um desses colabo­
radores me confidenciou, após pedir que eu desligasse o gravador: “Brizóla não
quis vencer as eleições, algo o fez desistir” . Também aqui o extraordinário
opera.
Brizóla perdia as eleições, mas conservava um lugar na cena seguinte. Afi­
nal, detinha um patrimônio expressivo no terceiro maior colégio eleitoral do
país e no Rio Grande do Sul. Sua morte política, mais uma vez anunciada,
revelar-se-ia como sendo nada além de uma vertigem de analistas precipitados.
Procurado por Lula, logo após a confirmação dos resultados, Brizóla valorizou
sua adesão, retribuiu acusações sofridas dos petistas, fazendo denúncias contra
o candidato a vice da chapa de Lula, o senador gaúcho Bisol, antigo adversário
dos trabalhistas no Rio Grande do Sul. Acabou, por fim, subindo no palanque
de Lula e pedindo votos para ele.
Breve recordação da campanha de 1989, chegou ao fim o último comício
da campanha. O cenário fora a Candelária, palco de tantas outras m anifesta­
ções de massa na história da cidade. A militância dos partidos que apoiavam a
candidatura petista acorreu em peso, entusiasmada com o crescimento de Lula
nas últimas sondagens. O clima de euforia justificava-se também pela presença,
no palanque, dos pesos pesados da esquerda nacional. Brizóla também estava
lá. Estava também a aguerrida militância pedetista, com suas bandeiras tricolores
e lenços maragatos. Em explícita solidariedade à campanha, os funcionários do
metrô prorrogaram o horário de funcionamento dos trens para facilitar o escoa­
mento da militância. Nos trens cheios só se viam as pessoas entusiasmadas com
a manifestação, certas da vitória. Surpreendentemente, havia tantos lenços ver­
melhos quanto bandeiras petistas, talvez um pouco menos. O nome de Brizóla
era tão evocado quanto o de Lula. Ao descer numa das estações, um militante
pedetista dirige-se, dedo em riste, para um grupo de petistas: nós só votamos
em vocês porque o Brizóla mandou, essa vitória será dele. O militante partiu,
sendo aplaudido entusiasticamente. Sua frase foi repetida diversas outras ve­
zes, ao longo do trajeto.
O bservação involuntária (não cogitava realizar um a pesquisa sobre o
brizolism o quando presenciei a cena acima descrita), a passagem acima m ere­
ce um comentário. A declaração dos militantes pedetistas, que, indiscutivel­
m ente, contribuíram m uito para o tom do comício final, é eloqüente. Votar
em Lula, no segundo turno, para parte da m ilitância pedetista, não represen­

248
tava a assunção de uma postura estratégica. Não traduzia fidelidade ao enca­
minham ento do partido com que se sentiam, ao menos em tese, identificados.
Não significava, sequer, razão para maiores entusiasmos. Era, simplesmente,
a forma de declarar, mais uma vez, a fidelidade ao líder batido. Revificá-lo.
Já que B rizola m andou, votam os em seu candidato, e isso é tudo. Diziam ,
com o estardalhaço, a devoção e a convicção costum eiras, os m ilitantes
pedetistas. E eram milhares. A m ilitância se dispôs a reparar o líder, procla­
mando sua força.
Ao fim, Brizola confirmava seu prestígio, proporcionando a transferência
em m assa de seus votos para a candidatura de Lula. No estado do Rio de
Janeiro, Lula obteve 72,92% de votos (conquistara apenas 12,22% no primeiro
turno) contra os modestos 27,08% de Fernando Collor. Brizola investira a seu
modo na candidatura de Lula. Provocara polêmicas, é verdade, algumas crises
junto à coordenação da campanha do ex-líder sindical, mas confirm ara seu
prestígio. As circunstâncias da derrota autorizavam seus correligionários a afir­
mar, mais uma vez, sua capacidade de antecipação e de ver aquilo que ninguém
mais pode. Na reta final, quando a vitória parecia próxima, inevitável até, Lula
fora traído pela inexperiência e deixou-se dominar, no debate final contra Collor.
Com Brizola, alegavam, isso jam ais teria acontecido. Lula era o adversário que
a direita queria, repetiam a advertência tantas vezes feita pelo líder. Ele, Brizola,
não fora vencido pela direita, mas pela ingenuidade da esquerda, que se dividira
e polarizara a disputa do primeiro turno. Uma aliança em tom o de seu nome
traria resultados mais afortunados para o povo. Brizola acertara também, alega­
vam, em suas denúncias reiteradas contra a influência das empresas Globo no
processo eleitoral. O tristemente famoso compacto do debate, apresentado na
véspera da eleição, em todos os noticiários da Rede Globo de Televisão, jogara
um a pá de cal nas pretensões de Lula. O program a exacerbava o péssim o
rendimento de Lula. Mostrava-o acuado, perdido contra o opositor. Mais uma
vez confirmava uma denúncia de Brizola. Ele, que passara toda a campanha
denunciando a manipulação dos meios de comunicação, em geral, e das empre­
sas Globo, em particular. Estas denúncias eram-lhe francamente desfavoráveis,
posto que provocavam um inimigo poderosíssimo. Brizola, porém, não temia
prejuízos particulares. Seu compromisso era com a verdade, com o esclareci­
mento da população. Não fora compreendido mais uma vez e oferecia o sacri­
fício de seu projeto, que era também o de todos os setores excluídos, em favor
de sua firmeza ética e responsabilidade pública. A m ilitância pedetista rendia-
lhe, assim, seu tributo.

249
Transferência do carism a

Exatam ente por ser um poder m arcadam ente dirigido à figura do líder,
um dos traços mais salientes da liderança de tipo carismática, segundo Weber,
é sua intransferibilidade. M uito dificilm ente o líder carism ático transfere a
lealdade de seus liderados a um sucessor ou herdeiro. Vimos, já, que essa
espécie de lei sociológica da liderança política carism ática pode ser falsificada,
parcialm ente, no conjunto da tradição trabalhista, que tem em Vargas sua
prim eira grande referência, sucessivamente transferida para Jango e, posteri­
ormente, Brizóla. Vimos que a falsificação é apenas parcial, porque, no caso,
um a série de fatores, como o apelo à tradição e os elem entos trágicos a ela
vinculados, simbolicamente, tem eficácia tão grande ou até m aior que a mera
capacidade pessoal dos líderes, servindo, inclusive, para reforçar suas res­
pectivas imagens. No caso do brizolismo, aparentem ente a lei sociológica da
transferência do carisma mantém sua validade e, nesse aspecto, as eleições de
86 seriam um excelente caso para análise. Digo, aparentem ente, por duas
razões, um a teórica e outra empírica. Do ponto de vista teórico, seria uma
traição ao próprio esforço de form ulação conceituai operado por W eber a
aplicação autom ática de sua tipologia para o m undo empírico. Não era sua
pretensão, sequer parecia-lhe possível, a identificação, no m undo empírico,
de qualquer um dos tipos de dominação, em estado puro. A simples identifi­
cação do brizolism o como ilustração concreta do tipo carism ático ou como
um a com binação deste com o tipo tradicional representaria um a violação
m etodológica e uma redução trivializadora da com plexidade do fenômeno em
questão. Cabe, ao contrário, perceber como os elem entos de um e outro, e
ainda do terceiro tipo de liderança, se combinam, tecendo um a rede de signi­
ficações que engendram uma imagem do mundo político, uma forma de ela­
borar a atuação de determ inados atores no interior deste mesmo mundo, e,
finalmente, uma interpretação (ou interpretações) possível de um e outro. Do
ponto de vista empírico, o acompanhamento dos debates, ao longo da cam pa­
nha de 86, e a postura dos diversos atores nela envolvidos, tam pouco perm i­
tem um a abordagem que se reduza à m era ap licação dos in stru m en to s
conceituais weberianos. Darcy Ribeiro não era e nunca pretendeu ser herdei­
ro do legado, que pertencia, e deveria perm anecer pertencendo, a Brizóla.
Não é ele, Darcy, mas o próprio Brizóla, que é situado no centro dos debates
mais acirrados. Finalmente, esta passagem da história política do Rio de Ja­
neiro tem relevância no contexto do presente estudo pela produção renovada

250
de sím bolos, imagens, valores e fantasias que suscita, como que aderindo,
desde então, à persona pública de Brizola.
A eleição para o governo do estado do Rio de Janeiro era uma excelente
oportunidade para Brizola livrar-se de uma sina não pouco comum na política
brasileira, em geral, e na carioca, em particular: a dificuldade dos chefes de
governo em fazerem seu sucessor. Por duas vezes, quando fora prefeito de
Porto Alegre e governador do Rio Grande do Sul, Brizola viu seus candidatos a
sucedê-lo serem derrotados por adversários. 1986 era mais do que uma oportu­
nidade para mudar esta incômoda rotina. Manter o poder no estado do Rio de
Janeiro era fundamental para a competição pela presidência da República, que,
cedo ou tarde, viria. E verdade que o prefeito da capital, eleito no ano anterior,
Saturnino Braga, era do partido de Brizola, mas, a rigor, sua vitória não chega­
va a caracterizar-se como um fenômeno típico de transferência de prestígio. Se
os últimos meses de gestão do prefeito nomeado, Marcelo Alencar, foram m ar­
cados por muitas obras, principalmente na Zona Oeste, o que contribuiu imen­
samente para a consolidação do PDT e do brizolismo naquela região, não se
pode esquecer que Saturnino já era uma liderança com luz própria, tendo sido
eleito senador por duas vezes. Além de tudo, Brizola pouco participou de sua
campanha. Sendo assim, aquela era de fato a oportunidade de Brizola pôr seu
prestígio à prova e, principalmente, não ceder o terreno conquistado, no cami­
nho de seu real objetivo, que era a presidência da República. Os problemas a
serem enfrentados naquela campanha não eram menores do que aqueles de
quatro anos antes, apenas eram de natureza diferenciada. O prim eiro deles,
embora nem de longe o mais grave, dizia respeito ao nome. Havia, no PDT,
alguns candidatos a candidato. Entre eles, dois se destacavam: César Maia, ex-
secretário de Fazenda do governo e assessor econômico, era um deles. O outro
era José Colagrossi, antigo trabalhista, um dos principais articuladores da for­
mação do partido, quando Brizola ainda se encontrava no exílio e ex-secretário
de transportes do governo estadual. Curiosamente, porém, a escolha de Brizola,
e, conseqüentemente, do partido, recaiu sobre o nome de quem não dem ons­
trava o menor interesse, nem mesmo vocação, para disputar o cargo: o vice-
govem ador Darcy Ribeiro. Ex-chefe de gabinete do presidente João Goulart,
criador da Universidade de Brasília, antropólogo com vários livros publicados,
em especial sobre tribos indígenas do Alto Xingu, Darcy aparece como perso­
nagem singular, na história do brizolismo. Antigos, novos, ex-trabalhistas e po­
líticos que nunca o foram são unânimes em afirmar que ele e Brizola tinham
uma relação nada cordial, chegando mesmo a ser hostis um com o outro nos

251
idos da década de 60. O que não é de se estranhar, posto que, a se acreditar em
vários depoimentos, o grupo trabalhista mais próximo de Jango não tolerava
B rizola e seu estilo agressivo. R eencontraram -se em Lisboa, no correr das
articulações em tomo da recriação do PTB. O relato do reencontro de ambos é
expressivo de duas personalidades fortes e cientes das idiossincrasias alheias. É
Alfredo Sirkis, divertido, quem recorda:

"Eu fu i testem unha do célebre reencontro do Brizola com o Darcy Ribeiro. Foi
um a das coisas m ais divertidas que eu já presenciei. N a época do Jango eles
não se davam e tin h a m passado os anos de exílio afastados um do ou tro . Por
isso, havia um a certa expectativa no ar. Fomos eu, N e uzin ha e, sentado no
banco de trás, o Brizola. Aí, o Darcy chegou, sentou no banco de trás e eu,
d irig in d o o carro, fiq u e i escutando o d iá lo g o que fo i mais ou m enos assim.
Darcy: te n h o que lhe dizer um a coisa. Eu estive nos Estados U nidos, nas u n i­
versidades, ¡unto com as pessoas mais im p ortante s do m eio acadêm ico, da
política norte-am ericana e o seu nom e goza do mais alto conceito. Brizola, eu
te n h o que lhe dizer um a coisa: Jango m orre u, G etulio m orre u, A lle n d e m o r­
reu, Perón m orreu. A Am érica Latina só tem você. O Brizola devolveu: Darcy,
você é o m a io r intelectual brasileiro, nós tem os que nos unir. Bom, prossegue
Sirkis, fo i a m a io r rasgação de seda. N a q u e le m o m e n to nasceu o am or, que
dura até hoje entre dois dos mais antigos adversários d e n tro do PTB."52

A partir de então, Brizola e Darcy passam a compor um a dupla curiosa,


aliada em uma série de iniciativas conjuntas. Eleito vice-govemador, em 1982,
coube a Darcy a responsabilidade por uma série de iniciativas, como a constru­
ção da Passarela do Samba e, principalmente, a elaboração do Programa Inte­
grado de Educação, carro-chefe da administração de Brizola. De rivais que
atuavam no m esm o cam po, B rizola e D arcy passaram a p arceiro s quase
inseparáveis, que se completavam. Brizola, o homem prático, empírico, como
ele próprio se definia, avesso aos maneirismos dos “intelectuais de punhos de
renda”, e o intelectual em preendedor, ou fazedor, como preferia Darcy. De
modo que, se fosse possível falar de um intelectual orgânico do brizolism o,
Darcy estaria em primeiro lugar, com sua retórica nacionalista inflamada, ainda
que pouco convincente, do ponto de vista teórico. Em tantas coisas diferentes,
os dois o eram também em aptidões e ambições. Enquanto a tarefa legislativa
parecia insuportável para um líder como Brizola, Darcy sempre se mostrara
pouco afeito às tarefas reservadas a um chefe do Executivo. A despeito disso,

52 D epoim ento de Alfredo Sirkis ao autor, em 7 /1 1 /9 6 .

252
ou, talvez, exatam ente por essa razão, Brizola fecha com o nome de Darcy
para a sucessão. A escolha de Brizola levou ao rompimento com Colagrossi,
que abandonou o partido, filiando-se ao PMDB. Seria a primeira de uma série
de rupturas e dissensões ocorridas no PDT, ao longo de sua história, devido aos
métodos de escolha dos candidatos às eleições majoritárias.
Problema maior para Brizola era enfrentar as inúmeras denúncias que so­
frera ao longo de seus quase quatro anos de governo, e que, certam ente, se
intensificariam à medida que as eleições se aproximassem. As denúncias eram
de várias ordens. Do ponto de vista político-ideológico, Brizola era acusado de
compor com boa parte da chamada corrente fisiológica, não só da Assembléia
Legislativa, mas também com lideranças locais pouco identificadas com o ideário
socialista, que vocalizara entre 79 e 82. Os próprios líderes e m ilitantes do
partido reconhecem, hoje, que, uma vez no poder, Brizola e o PDT, na ânsia de
ampliarem suas bases no estado, foram nada seletivos na incorporação de no­
vos quadros, permitindo um inchamento de “pouca qualidade e apuro ideológi­
co”. Esta política provocou dissensos no interior do partido, principalmente de
quadros secundários, do ponto de vista eleitoral, mas qualificados do ponto de
vista técnico e ideológico. Tudo indicava que a marca do fisiologismo, que seus
adversários esgrimiriam contra o PDT, tinha fundamentos. O PDT empreende­
ra uma agressiva política de cooptação, principalmente no interior. Em balanço
publicado em 16 de maio de 86, o Jornal do Brasil dá conta de que o PDT
contava com 25, de um total de 65 prefeitos em todo estado, ficando atrás
apenas do PMDB, que reunia 32 prefeitos. A mera incorporação dos irmãos
Nader, por exemplo, egressos do PDS e que tantos problemas causariam para a
imagem de Brizola, anos depois, significou o ingresso de 11 prefeitos do Sul
Flum inense para o PDT. Tida por seus defensores como estratégia política
necessária para o fortalecimento do PDT, no estado, a incorporação de lideran­
ças conservadoras, sem perfil ideológico definido e especialistas em vencer
eleições usando recursos clientelistas fazia com que os fantasmas do velho
trabalhismo e seus “vícios de origem” reaparecessem para os mais reticentes
sobre o “estilo” político de Brizola, sendo explorados, principalmente, por seus
adversários à esquerda do espectro político. Esta, entre outras estratégias, le­
vou um ex-quadro do partido, representante da nova geração de socialistas que
se alinharam com Brizola, a partir de 1979, a reconhecer, com uma ponta de
decepção, em entrevista concedida em 1995, que, se Brizola podia, efetiva­
mente, ser encarado como um socialista, do ponto de vista ideológico, suas
práticas, quando no poder e mesmo fora dele, continuavam trabalhistas (numa

253
clara alusão aos “males trabalhistas”, que afastaram tantos de Brizola, nos anos
iniciais e depois).
Havia também denúncias contra vários órgãos de sua administração. De­
núncias de superfaturam ento no program a de encam pação de em presas de
ônibus, quando Brandão Monteiro era secretário de transportes. Denúncias de
superfaturamento do valor de áreas adquiridas pelo program a “Cada Família
um L ote”, coordenado pelo secretário de trabalho e habitação, Caó. Havia
tam bém denúncias de rom bos no Banerj. De todas, porém , as mais graves
eram as que relacionavam o governo do estado à contravenção e ao crime
organizado. O grau de promiscuidade entre políticos e agentes do crime organi­
zado é difícil de ser mensurado, em qualquer parte do mundo. Em qualquer
parte, esta é uma tarefa mais adequada a autoridades policiais e judiciais do que
a um pesquisador, ao menos quando os supostos envolvidos estão em plena
atividade. Sendo assim, não me cabe, aqui, adotar uma posição frente ao pro­
blema de supostas relações de grupos ligados a Brizola com a contravenção e o
crime organizado. Não disponho de dados para desmenti-lo ou confirmá-lo, de
modo categórico. Ainda que os tivesse, seriam de importância secundária, pos­
to que esta é uma pesquisa que se preocupa fundamentalmente com discursos e
sua análise. O que importa é enfatizar que é no correr da campanha de 86 que
um dos mitos mais acionados, ao tratar-se do brizolismo, é forjado: sua proxi­
midade com o crime organizado. Refiro-me a tal relação como um mito para
ressaltar sua importância no plano simbólico, posto que o que houver de mais
relevante nessa pesquisa assim o é exatamente por sua dimensão mítica, o que
não deve sugerir qualquer conexão com a “verdade últim a das coisas”.
Brizola, enfim, enfrentaria uma eleição em que era situação. Situação em
nível estadual, é verdade, posto que no âmbito nacional perm anecia na oposi­
ção. Estava, no entanto, exatam ente aí m ais um de seus problem as. O presi­
dente José Sarney gozava de uma enorme popularidade, desde a decretação
do Plano Cruzado, que congelara preços e am pliara a capacidade de consumo
da classe m édia baixa e da classe baixa, de m aneira inédita. Brizola fora um
crítico duro do plano e assim se manteria ao longo de 86, obrigando-se a ir de
encontro a boa parte da opinião pública, que aprovava tanto o plano como o
governo Sarney. No bojo das articulações prelim inares, B rizola foi procurado
po r M oreira Franco para obter seu apoio e consagrar assim um a aliança
PM DB/PDT, com M oreira saindo como cabeça de chapa. B rizola, porém ,
não abria mão de indicar o candidato que o sucederia, assim como fechou
posição de que este deveria ser do próprio PDT, convidando M oreira a in-

254
gressar em seu partido. O acordo não ocorreu e M oreira acabou saindo como
candidato do PM DB, após acirrada disputa, na convenção do partido, com o
senador Nelson Carneiro. Apoiado pelo grande prestígio de que então desfru­
tava seu partido, pelo sucesso do Plano Cruzado, e embalado por um a aliança
que reunia 12 partidos, M oreira Franco tornou-se, mais uma vez, o aliado do
governo central escolhido para derrotar o brizolism o no Rio de Janeiro.
O tom imposto ao longo de toda a campanha centrou-se exatam ente na
figura de Brizóla. Darcy Ribeiro apresentou-se, explicitamente, como o candi­
dato de Brizóla, aquele que daria prosseguim ento a seu governo. Em certas
ocasiões, chegava a afirmar: eu sou Brizóla. É curioso notar que, ao contrário
da campanha de 82, o nome de Vargas e a tradição trabalhista não são m encio­
nados pelo candidato pedetista. As figuras de referência, naquele momento, são
o governador e aquilo que ele representava. Opera-se, pois, um deslocamento
que buscava consagrar definitivamente o brizolismo como uma tradição que se
revestia de uma escolha política. O que ela representava? A julgar pelo discurso
encampado tanto por Brizóla quanto por Darcy, a campanha foi centrada numa
dupla dicotomia. A do Rio de Janeiro contra o poder central e a dos pobres
contra os ricos. Pelo ataque sistemático ao governo Sarney e repetidas denúnci­
as de que o governo federal não repassava verbas que eram de direito do
estado, como no caso do pagamento de royalties relativos à exploração de
petróleo, Brizóla tentava minar a popularidade do presidente e com isso enfra­
quecer a candidatura do PMDB, que vinha embalada pela aprovação popular
do Plano Cruzado. Desde o início do ano, Brizóla foi infatigável nessa batalha.
Através da segunda dicotomia, a dupla Brizola/Darcy buscava enfatizar seus
compromissos com a parcela mais pobre da população, sublinhando os feitos
do governo estadual e tentando identificar M oreira Franco com as forças con­
servadoras e elitistas da sociedade. É nesse espírito que Darcy declara:

"...M o re ira é o presidente do clube dos contem plados, ge nte rica, brancosa,
b o n itin h a , educada, interessada em m a n te r o Brasil ta l com o ele é, social­
m en te injusto. A can d id a tu ra no bojo da re a rticula ção da d ire ita perversa,
que q u e r g o vern ar para os ricos e c o n tin u a r m a rg in a liza n d o a g ra nd e m a io ­
ria do p o v o ."53

A medida que a campanha avançou e ficou evidenciada a ineficácia dos


ataques a Sarney, a segunda dicotomia, ricos/pobres, foi ganhando maior desta­

53 Depoim ento prestado ao Jo rn al do Brasil, publicado em 1 0 /8 /8 6 .

255
que nos discursos de Darcy e do próprio Brizola. Esta estratégia tinha uma enor­
me margem de risco. O governo Brizola era acusado de promover uma verdadei­
ra favelização do Rio de Janeiro, sua política de respeito aos direitos humanos era
freqüentemente identificada como permissiva para com os bandidos. Por essas
razões, uma parcela da classe média, pouco numerosa mas fundamental na dinâ­
mica de formação de opinião, dava sinais de desagrado e desconfiança quanto às
práticas do governador e sua equipe. O projeto dos Cieps era citado elogiosamente
por candidatos de outros estados, mas o sentimento de crescente insegurança da
parcela mais remediada da população fluminense era um fantasma para as pre­
tensões dos brizolistas. Moreira Franco adotava uma postura bem diversa. Seja
por deferência à figura de Brizola seja por cálculos políticos futuros, Moreira
jamais atacou Brizola, diretamente, ao longo de toda a campanha. Fazia críticas
duras ao governo sem nunca citar diretamente o nome do governador. Ponderado
e veiculando um discurso baseado na necessidade de prom over um governo
eficiente, política e tecnicamente, apresentava-se como liderança de uma coliga­
ção que reunia nada menos que 12 partidos. Era, enfim, um candidato que gover­
naria para todos sem distinção de classes. Com esse discurso, M oreira liderou
todas as pesquisas de intenções de voto, desde antes mesmo de ter seu nome
confirmado pelo PMDB como candidato do partido.
Até a parcela da imprensa que não se expressara contrariamente aos projetos
de Brizola, quatro anos antes, era agora, explicitamente, contrária à permanência
do brizolismo à frente do estado. Os atritos com as empresas Globo, briga antiga,
continuavam intensos, com o jornal O Globo publicando, seguidamente, reporta­
gens com denúncias contra seu governo. Desta vez, porém, as denúncias que
partiam de Brizola não se restringiam às empresas de Roberto Marinho. Vejamos
o editorial publicado no Jornal do Brasil, em 11 de novembro, a quatro dias,
portanto, da votação, quando a candidatura de Darcy crescia rápida e perigosa­
mente, aproximando-se de Moreira. A extensão do trecho selecionado justifica-se
pelo teor das observações:

"O s candidatos Darcy Ribeiro e M oreira Franco chegam ao fin a l da cam panha
com o os únicos credenciados com expectativas de vo to suficientes para um a
v itó ria nas urnas. Um é can did ato situacionista, que te n ta co n tin u a r um g o ­
verno num estado intrinsecam ente oposicionista, pois sem pre o e leitora do do
Rio conduziu ao po d e r a oposição (com o aconteceu ao a tu a l g o ve rn a d o r); o
o u tro é a expressão do oposicionism o que se sente h isto ricam e nte a m e a ça ­
do, pois o governo do PDT se em p en hou especificam ente em de stru ir suas
bases de sobrevivência no Estado do Rio, sem oferecer progresso político (pelo
con trá rio, praticou o clientelism o típico do paternalism o).

2 56
"A sucessão estadual será o ju lg a m e n to p o lítico inevitável do g o ve rn o que
chega ao fim . N ã o apenas adm inistrativa e politicam ente, no en tanto, se fa rá
o ju lg a m e n to do go vern o Brizóla, e do indica do a c o n tin u á -lo : a po pu laçã o
com o um to d o tem um a clara noção m oral do que vai d e cid ir com o seu vo to
político. Será tam bé m - p o rta n to - um ju lg a m e n to ético.
"O Rio, com o p re d o m ín io dos sentim entos característicos de classe m édia,
g u ard a no in te rio r do estado e na capital um a inesgotável reserva m oral con­
tra certa indiferença que patrocinou na vida política' e ad m inistra tiva estadual
as relações perigosas e inaceitáveis entre o m a rg in a lism o e a a u to rid a d e ,
entre as organizações do jogo do bicho e os agentes policiais in cum bidos de
com b ater a contravenção. Esse com p rom e tim e nto político é responsável pelo
clim a de indig na ção m ora l que vai decidir a escolha fin a l p o r parte do e le ito ­
rado.
"A lém do ju lga m ento m oral e do julga m ento ad m inistra tivo do governo esta­
d u a l, não haverá com o im p e d ir que a sociedade seja juiz ta m b é m de um
conceito p o lítico an acrô nico , pois fu n d a d o sobre o p a te rn a lism o social - e n ­
te n d id o com o fo rm a restrita de a te nde r apenas a um a parcela da sociedade,
e não à sociedade p o r in te iro , que é a orig e m dos recursos trib u tá rio s e dos
votos que le g itim a m os governantes e os credenciam a re a liza r p ro je to s ."54

Ao fim, o editorial reconhece M oreira como o único candidato que apre­


sentou uma proposta de governo articulada e de acordo com as expectativas do
eleitorado fluminense. Neste editorial, estão expressos os elementos que opera­
riam o que, a partir de então, podemos chamar de demonização do brizolismo.
As “ligações perigosas” com o crime organizado são citadas como prática indis­
cutível do brizolism o. Do mesm o m odo, a opção pelos pobres estam pa o
clientelism o e paternalism o, que passam a tornar-se sinônimos do estilo de
governo de Brizóla. Sua atuação na política no Rio de Janeiro é apresentada
como, além de desastrosa do ponto de vista político e adm inistrativo, uma
agressão aos princípios éticos e morais que norteiam a conduta e pautam as
expectativas do eleitorado fluminense. Não dele como um todo. Note-se que
são mencionadas a população da capital e do interior. A Baixada Fluminense,
reduto eleitoral brizolista, não é mencionada. O editorial explicita, ainda, o
caráter plebiscitário do pleito, enfatizando que o comportamento do eleitor fun­
cionaria como uma resposta ao governo que então terminava. Este era, de fato,
um marco daquela eleição e para isso o próprio Brizóla e seu candidato haviam
colaborado. A convicção de que o governo Brizóla havia implementado uma

54 Editorial d o Jo rn a l d o Brasil, 1 1/1 1/86.

257
política favorável às classes baixas fazia com que os pedetistas aceitassem e
enfatizassem os debates em torno da gestão que terminava, convencidos, tal­
vez, de que o apelo àqueles que não faziam parte das elites “brancosas e
educadas” seria bem-sucedido. Há, no editorial, uma clara alusão à vocação
oposicionista do Rio de Janeiro e uma referência explícita ao fato de que o
candidato de Brizóla era, naquele momento, a continuidade. A leitura do edito­
rial é interessante porque permite tomá-lo como um marco, um tanto aleatório,
é claro, do deslocamento das razões de demonização de Brizóla. Se, em 82,
eram acenados os fantasm as da subversão e do golpism o, agora, o grande
símbolo do “perigo brizolista” residia na marginalidade, no apelo às invasões,
na desordem, enfim, que as posições e propostas brizolistas traziam embutidas,
gerando uma atmosfera de insegurança e instabilidade em todo o estado. Para
isso contribuía o fato de Darcy Ribeiro ter comparecido a um almoço de apoio
à sua candidatura, prom ovido em uma churrascaria, pela cúpula do jogo do
bicho. A despeito de repetidos desmentidos, a imprensa veiculou com freqüên­
cia o apoio dos principais líderes da contravenção à candidatura de Darcy R i­
beiro. Curiosamente, a exceção Castor de Andrade, que defendia abertamente
a candidatura de Moreira, não parecia, embora também fartamente divulgada,
provocar tanto estupor. Do mesmo modo, a postura de Moreira, que declarava
publicamente não estar disposto a perseguir os banqueiros do jogo do bicho,
jam ais lhe proporcionou uma marca semelhante à que foi impressa em Brizóla
e, conseqüentemente, no brizolismo. É curioso o sucesso dessa investida, prin­
cipalmente pelo fato de os indícios sobre supostas ligações do jogo do bicho
com a política institucional serem antigos e razoavelmente difundidos no Rio de
Janeiro. É difícil precisar as causas que levaram o brizolismo a ficar tão marca­
do por esta relação. Provavelmente, o apelo do discurso dirigido especialmente
para as classes subalternas e para a valorização de suas práticas culturais contri­
buiu para isso. Antes subversivo, golpista e antidemocrático, o brizolismo era
tratado, agora, como o braço político da marginalidade e da contravenção.
Há, enfim, um último dado referente ao editorial anteriormente citado que
merece menção. No mesmo dia, é publicada a cobertura de uma grande mani­
festação brizolista/pedetista ocorrida na véspera. Concebida, inicialmente, como
um a passeata em protesto contra o Plano Cruzado, e por isso cham ada de
manifestação da panela vazia (numa alusão a um movimento de apoio a Vargas,
que teve o mesmo nom e), ela acaba tornando-se apenas mais uma peça da
campanha de Darcy. Sua natureza e o resultado são expressos na manchete de
prim eira página, da edição de 11/11/86, do Jornal do Brasil·. “B rizóla atrai

2 58
multidão para a festa de Darcy”. A cobertura da manifestação, que consta da
mesma edição do editorial anteriormente citado, compõe, com este, um curioso
contraste:

"Foi um a consagração popuiar. Só na m em orável cam p an ha das d ire ta s-já


viu -se ta n ta adesão espontânea, ta n to entusiasm o p o pu lar... N ã o se pode
nem com p ara r a consagração po pu lar que Brizola recebeu com a passeata de
M oreira Franco pela mesma Rio Branco, em defesa do Plano C ruzado, no mês
passado. N ão fo i só m aior. A de M o re ira fo i um a passeata de cabos e le ito ­
rais, que m archavam sem nenhum entusiasm o diante da frieza das calçadas.
A do PDT tin h a povo - essa foi a g ra nd e d ife re n ça ."55

O contraponto do editorial com a cobertura jornalística de um dos princi­


pais eventos da campanha do PDT é interessante. O segundo sugere a grande
adesão popular à figura de Brizola. De cima de um trio elétrico em forma de
Ciep (ainda uma vez, embora em escala menor do que há quatro anos antes, a
festa política era camavalizada pela campanha pedetista), ele desfilou durante
três horas pela avenida Rio Branco, sendo saudado pelos m anifestantes aos
gritos de “D iretas já, B rizola vai ganhar” . Parece revelar que a ênfase na
dicotomização operada por Darcy e pelo próprio Brizola surtia algum efeito. Às
vésperas do dia da votação, Darcy crescia nas pesquisas e parecia am eaçar
seriamente a vitória do PMDB, no Rio de Janeiro. Explicitava-se, também, que
aquela eleição era uma etapa para um projeto mais ambicioso e de conhecimen­
to público: a eleição de Brizola para a presidência da República.
A expectativa de realização do pleito para a escolha do presidente da Repú­
blica pelo voto popular m arcava fortemente a atuação dos principais atores
políticos. Brizola não era diferente. A rigor, todo o seu primeiro mandato no
Rio de Janeiro foi marcado por um enorme esforço de acumulação de capitais
simbólicos e políticos para a eleição presidencial que viria, cedo ou tarde. Já
nos debates em torno do tempo de mandato do presidente João Figueiredo,
quando defende a prorrogação em um ano e a posterior convocação de eleições
diretas, o que estava posto era a realização, o mais rápido possível, de seu
projeto. Os depoimentos de vários colaboradores de Brizola que ocuparam a

55 Jornal do Brasil, 11/11 /8 6 .


56 A posição assumida por Brizola suscitou pesadas críticas. Ele foi, inclusive, acusado de oportunism o, por defender a
tese em benefício de seu próprio projeto. Além disso, expressou posição contrária à m aioria dos membros de seu
próprio partido, o que o obrigou a esclarecer que aquela era uma posição pessoal. Por outro lado, é razoável supor,
à luz das análises posteriores, que a estratégia que acabou vingando era presidida pela preocupação em adia r a
incorporação pop ular no processo decisório, e afastar os riscos da ascensão do então governador do Rio de Janeiro
à presidência da República.

2 59
máquina do Estado neste primeiro governo atestam que a obsessão em juntar
forças para o em bate nacional foi de tal ordem que acabou prejudicando a
administração pública. Um desses colaboradores declara em entrevista conce­
dida para esta pesquisa:

"N ã o havia um a prática de o rg a n iza r o Estado, de o rg a n iz a r o serviço p ú b li­


co. Havia, sim, um a prática de g a n h a r po d e r para sustentar a can did atura de
Brizóla à presidência da República. O Brizóla ficava, às vezes, dois meses
sem ve r um se cre tá rio ."57

No contexto de 86, portanto, as disputas estaduais eram da maior im por­


tância para os diversos atores políticos. Além disso, estavam sendo eleitos os
membros da Constituinte que definiria o novo modelo institucional brasileiro, o
que também era da maior relevância para os projetos políticos em disputa.
Infelizmente para ele e seu partido, a vitória coube ao adversário. Moreira
Franco ganhou com um a vantagem mais expressiva do que a de Brizóla quatro
anos antes, alcançando 49,35% dos votos, contra 35,88%, de Darcy Ribeiro. O
desempenho do candidato do PDT, na capital, é sensivelmente inferior ao obti­
do em 82 (38,40 contra 44,10%). Note-se, porém, que na Baixada Fluminense
e na Zona Oeste, os índices são ligeiram ente superiores, o que m ostra uma
estabilidade, ao longo dos quatro anos, do voto pedetista nessas regiões. (Na
Zona Oeste, o partido obtém 57,92%, em 86, contra os 56,18% obtidos, em
82, por Brizóla. Na Baixada Fluminense, Darcy Ribeiro alcança 45,83% dos
votos contra os 42,57% obtidos em 82.) Se foi assim, onde a dupla D arcy/
Brizóla perdeu? Não é possível fazer muito mais do que algumas inferências
exploratórias. Prim eiram ente, vale registrar que a votação do “candidato de
Brizóla” repete o péssimo desempenho de seu líder quatro anos antes, no inte­
rior do estado. Não exatam ente da m esm a forma, posto que os percentuais
alcançados são até superiores em todas as áreas (17,66% no Noroeste Fluminense,
31,11% no Norte Fluminense, 16,59% na Região Serrana, 20,40% nas Baixa­
das Litorâneas, 22,35% no Médio Paraíba e 18,96% no Centro-Sul Fluminense,
em 86. 4,14%, 8,08%, 9,02%, 7,12%, 14,71%, 7,96% respectivamente para o
ano de 1982). Ocorre que o desempenho de M oreira Franco, que havia, em
1982, conquistado o segundo lugar, em quase todas estas regiões, é significati­
vamente maior do que o de seu adversário (pela ordem anteriormente descrita,
M oreira ganha 76,65%, 58,52%, 68,05%, 71,30%, 59,13, 69,67%). Vale lem-

57 Este foi um depoim ento concedido por um colab ora dor próxim o, durante muitos anos, a Brizola. Por razões óbvias,
optei por o m itir a fonte.

260
brar que, com exceção do Centro-Sul Fluminense, todas essas regiões haviam
dado seu voto preferencialmente ao candidato do PMDB, Miro Teixeira. Este
era exatamente o partido pelo qual Moreira disputava as eleições. Em 82, os
votos foram divididos entre Moreira e Miro; desta vez, eles se concentraram no
candidato do PMDB, que alcançou uma margem muito maior de votos do que
o segundo colocado nessas regiões. Não foi só pelo expressivo desempenho no
interior que M oreira Franco venceu. Na capital, o candidato do PMDB obteve
45,23% dos votos contra os 38,40% de Darcy. Em AP 3, que reúne bairros de
menor poder aquisitivo, M oreira vence apertado - 43,71% contra 39,30%. É
nos bairros da Zona Sul (além da Tijuca e do Grajaú), em AP 2, que sua vitória
é mais expressiva: 57,15% contra 25,21%. Brizola e Darcy perdem indiscuti­
velmente os votos do eleitorado de classe média, sobre a qual os fantasmas da
desordem e da conivência com o crime organizado, certamente, surtiram efeito.
A luz dos índices anteriormente apresentados, pode-se perceber que a es­
tratégia adotada pelos dois principais candidatos de polarizar a disputa - o
candidato dos ricos contra o candidato dos pobres, o da oposição estadual
contra o da situação e, finalmente, o da situação federal contra o da oposição
federal - traduziu-se no comportamento do eleitor. A soma dos votos dos dois
prim eiros colocados alcançou em todas as áreas do estado mais do que 80%
dos votos. Na disputa polarizada, porém, o brizolismo saiu derrotado. A m ar­
cha para o interior, efetuada ao preço da perda de uma certa pureza ideológica,
tão decisiva nos primeiros anos de construção do PDT, também não surtira os
efeitos desejados. Os mais afoitos viram na derrota de 86 um sinal do sepulta-
mento de Brizola. Supunham que o golpe sofrido significava sua morte política.
Não foi necessário muito tempo para que constatassem o equívoco.
Diante dos resultados, do mesmo modo que couberam a Brizola os princi­
pais méritos da vitória em 82, foram atribuídos a ele os principais erros. Dis­
pondo, em 86, de uma máquina política muito mais equipada, mais um a vez
fracassara em fazer seu sucessor. As críticas ao Plano Cruzado eram tidas
como o principal erro da campanha, assim como a dicotomização ricos/pobres
que, na avaliação de alguns aliados, espantara parte da classe média. Tanto um
erro quanto o outro foram convertidos posteriorm ente, por seus seguidores
mais fiéis, em sinais da clarividência do líder e de sua disposição a sacrificar-se
até mesmo eleitoralm ente para dizer a verdade à população. Dias depois do
resultado, um “redirecionam ento” quebrou indefectivelm ente todo o encanto
do Plano Cruzado e Brizola pode reclamar de novo sua posição de liderança
autêntica dos setores marginalizados da população. Por outro lado, ele jam ais

261
se livraria completamente do estigma de paternalista, clientelista e permissivo
com a marginalidade.

O carisma afogado em números (parte 1)

A despeito do fracasso do projeto de Brizóla e de seu grupo em chegar à


presidência por via eleitoral e, a partir dai, promover o que os brizolistas cha­
mavam de revolução democrática no Brasil, é certo que o ex-governador do
Rio de Janeiro e do Rio Grande do Sul entrará para a história política não só
como um dos mais controvertidos líderes populares de expressão nacional, mas
também como um de seus maiores campeões de voto. Nesse sentido, a percep­
ção de seus parceiros de projeto político parece ter-se confirmado. Como foi
mencionado, esta era uma das faces com que Brizóla se apresentava quando
voltou do exílio para retomar o lugar que o golpe lhe havia, temporariamente,
confiscado. Quase duas décadas depois, é possível tam bém avaliar em que
medida sua outra face, a do estadista, correspondia à sua capacidade e maneira
de lidar com o poder político e a relevância que esta capacidade tinha ou não
junto a seus aliados. Se é verdade que o projeto como um todo não se concre­
tizou, não é menos verdadeiro que o cumprimento de dois mandatos de gover­
no de um dos estados mais desenvolvidos e complexos da Federação (refiro-
me, obviamente, ao período pós-79) e a participação ativa nas inúmeras discus­
sões relevantes da política nacional, no mesmo período, já oferecem , hoje,
m aterial suficiente para um esforço de interpretação e avaliação, ainda que
sujeito a retificações futuras. Entre as alternativas para a realização dessa tare­
fa, a análise do padrão dominante de relacionamento do líder com seus pares
no interior de seu partido e com as instâncias de poder com as quais teve que
lidar pode ser um caminho extremamente elucidativo.
Ao que tudo indica, a sua capacidade de falar às m assas e conquistá-las
jam ais foi objeto de dúvida, tanto para Brizóla, quanto para seus pares. Muito
menos o era para seus adversários. Esta era, aliás, sua virtude e seu risco,
dependendo do lugar ocupado pelo crítico. Boa parte de seus feitos de outrora
reforçava esta imagem. A figura de estadista, porém , não chega a ser uma
virtude sua indisputável. E possível encontrar posições diferentes, tanto entre
brizolistas, quanto entre antibrizolistas. Em geral, as lem branças sobre suas
administrações, na prefeitura de Porto Alegre e no governo do estado do Rio
Grande do Sul, são evocadas exclusivamente por seus correligionários como
exemplos de gestões bem-sucedidas sob todos os pontos de vista. Segundo tais
versões, elas são exemplos de empreendimentos comprom etidos com a ação

2 62
social, m odemizadoras na economia e democráticas na política. Mas acima de
tudo, foram gestões inteligentemente conduzidas do ponto de vista da divulga­
ção e propaganda do projeto que estava em curso. E em torno desses quatro
pontos que os discursos emitidos sobre o Brizóla estadista serão abordados nas
próxim as seções deste capítulo, uma vez que revelam noções diversas sobre
cada um dos temas e ordens de prioridades, segundo convicções e posiciona­
mentos políticos distintos.
Um a vez eleito e empossado no governo do Rio de Janeiro em 1983, o
desafio se apresentava. Brizóla seria um estadista modernizado, capaz de enfren­
tar uma ordem social e política bem mais complexa do que a que conhecera no
período anterior a 64? Ao longo de todo seu primeiro mandato, buscou insistente­
mente abrir um canal de contato profícuo com o governo federal. Acenou segui­
damente para o então presidente Figueiredo, buscando uma aproximação que lhe
perm itisse governar o estado do Rio de Janeiro sem o ônus que o m odelo
institucional brasileiro, altamente centralizado, implicava para os governos de
oposição ao regime central. A julgar pelo depoimento de colaboradores seus e
mesmo de adversários políticos, os esforços foram vãos. Durante a campanha
para governador em 1990, um dos argumentos do então candidato do PMDB,
senador Nelson Carneiro, para demover o eleitor da opção por Brizóla era exata­
mente o fantasma de o Rio de Janeiro ver-se mais uma vez com um governo de
oposição ao poder central e as trágicas conseqüências disso para o estado, como
já ocorrera no período 83/87. A tentativa de aproximação, além de inócua do
ponto de vista prático, rendeu a seus adversários munição suficiente para a acusa­
ção de oportunismo e falso oposicionismo. Parecia inaceitável que aquele que se
elegera com um discurso extremamente agressivo e oposicionista se pusesse tão
veemente e facilmente disposto a uma aproximação com o poder que ao longo da
campanha condenara como ilegítimo. Do mesmo modo, a já mencionada defesa
da prorrogação do mandato de Figueiredo causou reação entre os adversários à
esquerda, que apontavam o oportunismo de sua conduta.
Em seu segundo mandato, agora sob o governo Collor, o sucesso nos esfor­
ços de aproximação foi, paradoxalmente, sua ruína. Buscando aparentemente
reordenar seu espectro de alianças, Fernando C ollor passou a dar repetidos
sinais de abertura para um a atuação conjunta com o governador do Rio de
Janeiro. Autorizou a liberação de verbas para a construção da Linha Vermelha e
anunciou a adoção, para todo o Brasil, do modelo dos Cieps, carro-chefe da
primeira administração de Brizóla, através do programa de construção dos Ciacs.
Recebeu mais de uma vez o governador em Brasília, prefigurando o que pode-

263
ria ser, futuramente, uma estreita relação de colaboração. É, no entanto, exata­
mente nesse período de “nam oro” entre ambos, que estoura o escândalo que
levaria à campanha pelo impeachment e à posterior renúncia do presidente da
República. A postura de B rizóla nesse período foi extrem am ente polêmica.
Sentindo-se comprometido com Collor e alegando que, por trás da campanha,
havia um esquem a golpista, da parte de figuras da elite que possivelm ente
estavam insatisfeitas com a perda de influência junto ao governo, Brizóla recu-
sou-se, a despeito de todas as evidências de veracidade das denúncias, a incor-
porar-se à campanha pelo impeachment, manifestando-se contrário à continua­
ção das investigações. Esta postura colocou Brizóla, mais uma vez, no centro
do debate político nacional e o tom ou alvo de severas críticas, especialmente
de setores da esquerda que o acusaram de conivência com um esquema de
corrupção e tráfico de influência. O rumo dos acontecim entos levaram -no a
matizar um pouco seu discurso, condicionando sua adesão à abertura de novas
CPIs sobre outras questões, relativas a episódios em que tam bém houvera
suspeitas de corrupção, entre elas as negociações que resultaram na venda da
Vasp pelo govemo de São Paulo, durante a gestão de Orestes Quércia. A posi­
ção de Brizóla deixou a bancada pedetista em situação extremamente delicada.
Impossibilitada, pela postura adotada por seu líder máximo de engrossar o coro
pela apuração das denúncias, ela se via isolada das demais forças de esquerda e
de oposição ao governo, sendo acusada de legitimar práticas eticamente conde­
náveis na condução dos negócios públicos. A posição de Brizóla era ainda pior.
Eleito para o govemo do Rio de Janeiro dois anos antes como personificação
do sentim ento oposicionista ao governo Collor no Rio de Janeiro, ele agora
arcava com o ônus de dar sustentação a um governo sobre o qual recaíam
evidências indiscutíveis de corrupção e tráfico de influência.
Lem branças da campanha pelo im peachm ent de Fernando Collor: D ois
dias antes de um domingo de pouco sol e praias relativamente vazias no Rio
de Janeiro, o presidente Collor fo ra às emissoras de TV proferir pateticam en­
te um apelo para que seus eleitores fossem às ruas vestidos com as cores da
bandeira brasileira em sinal de apoio à sua autoridade. Os partidos de opo­
sição im ediatam ente convocaram a população das p rin cip a is capitais do
país, em resposta à conclamação do presidente, p ara que fo s se às ruas de
preto, em sinal de luto pela morte da ética na política brasileira. No Rio de
Janeiro, a concentração fo i marcada para a praia do Leme, de onde os mani­
festantes caminhariam em passeata por toda a orla marítima. Ainda na con­
centração, líderes de partidos oposicionistas proferiam palavras de ordem

2 64
contra o governo Collor e conclamavam a multidão para que, ao passar em
frente à residência do governador, manifestasse veementemente seu repúdio à
postura p o r ele assumida e exigisse uma imediata adesão à causa. A idéia de
ped ir satisfações ao governador causava visível excitação entre os manifes­
tantes. Curiosamente, ao chegar diante do lugar esperado, em frente à resi­
dência de Brizóla, na avenida Atlântica, as palavras de ordem agressivas e o
esperado tom condenatorio das lideranças que ocupavam o carro de som
fo ra m substituídas p o r respeitosos apelos ao governador. A multidão mani­
festou-se timidamente, antes de continuar sua caminhada.
Após intensas negociações e apelos de diversas lideranças de seu partido,
Brizóla, sem ter mais o que fazer, aceitou, finalmente, aderir à campanha do
impeachment. A forma como esta se dá é digna de nota. A 25 de agosto, o PDT
organiza uma grande manifestação no Rio de Janeiro. Ela inicia-se com uma
concentração na Candelária, seguida de passeata pela av. Rio Branco até a praça
Floriano Peixoto, onde foi concluída com os discursos de praxe, em palanque
armado em frente ao Teatro Municipal. Esta manifestação foi concebida como
um evento político popular de impacto, para marcar simbolicamente a tomada de
posição do partido diante da crise que se instalara. É importante notar, porém,
que o partido, ou pelo menos sua bancada federal, já dera demonstrações de sua
posição e participava discretamente da articulação com outros partidos para a
aprovação do encaminhamento de abertura do processo contra o presidente Collor.
Tratava-se, porém, de conseguir a adesão de Brizóla e tomá-la pública. Ele iria à
praça, no único evento partidário de toda a campanha, “dar uma satisfação ao
povo” e explicar-lhe, didaticamente, o porquê de sua posição.
As passagens envolvendo Brizóla e dois dos presidentes da República com
quem conviveu, enquanto ocupava o Executivo estadual, são esclarecedoras de
um modo de fazer política cuja peculiaridade talvez não seja evidente à prim ei­
ra vista. O mesmo vale para as políticas de aliança firmadas com os demais
partidos, no âmbito estadual. Os esforços de aproximação por si só remetem a
muito pouco além dos previsíveis deveres de um governador no contexto do
complicado e ambíguo sistema federativo brasileiro. Há, entre as razões para as
tentativas de aproximação, cálculos voltados para a realização de projetos polí­
ticos pessoais ou partidários, o que também não pode ser considerado singular
nem tampouco condenável, posto que é a forma predominante de atuação dos
atores e líderes políticos em geral. Há, no entanto, nas avaliações e lições
tiradas dessas passagens por colaboradores e críticos de Brizóla, traços impor­
tantes do brizolismo.

2 65
Quanto às políticas de alianças locais e recrutam ento de quadros para o
partido, o depoim ento do deputado Fernando G abeira é expressivo de uma
percepção que se pode chamar de crítica ao brizolismo:

"B rizola p ro curo u cria r bases na cidade. Procurou se in sta la r na cidade, em


todos os bairros possíveis. S obretudo os mais pobres. Nesse sen tido , a tra iu
m u ita ge nte que estava te n ta n d o cria r um a prática p o lítica a p a rtir de seu
horizonte de b a irro, de m orro etc. Mas atraiu, tam bé m , m uita gente cuja p rá ­
tica h a b itu a l é a d e rir ao governo. Ele sem pre teve um a p o lítica de alianças
m uito flexível. A m a io ria das pessoas que q u e ria m e n tra r no PDT eram a ce i­
tas com o elas e ra m ."58

A crítica de Gabeira reflete uma percepção do brizolismo que se foi conso­


lidando, ao longo dos anos, como uma forma de atuação política conservadora,
marcada por velhas práticas de composição e troca de favores.
Entre brizolistas e ex-brizolistas as percepções são variadas. Os depoimen­
tos revelam que, em muito pouco tempo, os atores que promoviam a social-
democracia e defendiam a modernização do discurso trabalhista se afastaram.
Entre estes, há uma tendência a considerar a postura adotada por Brizola uma
espécie de pragmatismo mal realizado e excessivamente promíscuo. Mal reali­
zado porque os ganhos obtidos através das alianças celebradas raramente com­
pensaram o ônus político e simbólico que acarretaram. Mesmo entre colabora­
dores que permanecem próximos a Brizola, há, hoje, o reconhecimento de que
as estratégias de aliança foram, freqüentem ente, equivocadas. Há, entre os
brizolistas, contudo, aqueles que encaram o problema com mais tranqüilidade.
Carmem Cenira, antiga colaboradora, declara:

"A questão daqueles que se a p ro xim a ra m de nós, os cham ados fisiológicos,


deve ser encarada com naturalida de. É no rm al, q u an do se instala o governo,
que todos venham em busca do po de r para tira r pro veito pessoal. Com isso,
o partido incha, tod o m undo q u er se filiar. Nós tem os um a posição de não ser
m uito criteriosos qu an to a filiações.)...) Q ue m quiser entra. (...) M as, aí, entra
a coisa do líder. Porque o líd e r segura. Ele tem um a proposta e nós optam os
p o r essa proposta. Temos objetivos a alcançar com isso."59

O depoimento de Carmem Cenira é ilustrativo de uma postura amplamente


difundida entre os brizolistas: a confiança de que o líder neutraliza os efeitos

58 Depoim ento de Fernando G abeira ao autor, em 4 /1 0 /9 6 .


59 Depoim ento de Carm em Cenira ao autor, em 1 3 /1 1 /9 6 .

266
nefastos de alianças e incorporações pouco honrosas do ponto de vista ideoló­
gico e político. É como se ele, o líder, fosse dotado de um poder extraordinário
de imunizar o corpo político dos efeitos devastadores do fisiologismo. Dentre
os muitos brizolistas que, de formas diversas e com vários m atizes, abraçam
esta perspectiva, anteriormente mencionada, Brizóla é, de fato, um verdadeiro
estadista. É tolerante o bastante para aproximar-se de atores que não professam
seus princípios ideológicos e éticos, sem, contudo, deixar-se contaminar. Do
mesmo modo, é capaz de conduzir as massas para o que é melhor para elas,
fazendo com que sua participação na vida política não se dê de form a nem
inócua, nem prejudicial a elas mesmas. Detém o saber prático da política. Além
disso, sua capacidade privilegiada de se comunicar com as massas garante-lhe a
possibilidade de arbitrar, diretamente, eventuais conflitos.
Do ponto de vista de muitos brizolistas, o processo decisório brasileiro se
dá no âmbito das redes estabelecidas entre os chefes de governo local e federal.
Esta reverência ao chefe, à figura que detém o poder de mando, tende a ser
encarada como própria da dinâmica política, revelando, assim, um a forte con­
vicção na legitimidade de um sistema hierarquizado, em que a ocupação de um
posto sustentada por um volume expressivo de votos reveste seu titular de uma
autoridade infensa a qualquer espécie de mediação. Esta é uma leitura que pode
dizer respeito à política em geral ou tratar-se apenas do caso brasileiro, especi­
ficamente. Vale dizer, decorreria de nossa tradição política e de nosso modelo
institucional. Há, nas justificativas brizolistas para as estratégias de aliança
adotadas por Brizóla, uma espécie de fatalismo, segundo o qual os dirigentes ou
lidam com tal lógica ou são engolidos por ela ou, ainda, a encaram como resul­
tante de uma tradição política, que apenas o tempo e atores políticos atuando
dentro da própria lógica vigente se encarregarão de modificar. Dentre as três
perspectivas, apenas a última poderia ser encarada como sensível à relevância
das demais instâncias decisórias da institucionalidade política de corte demo-
crático-liberal. As demais, ainda que sustentadas na tese de que o chefe execu­
tivo é o m aior dentre os detentores do voto popular, revelam-se, por convicção
ou fatalism o, caudatárias de um a im agem da atividade política fortem ente
hierarquizada. Há, contudo, entre os brizolistas, posições críticas a suas estra­
tégias de alianças. Estas são assumidas por quadros mais “qualificados” do
partido, por dirigentes que ocuparam cargos adm inistrativos ou legislativos,
durante os governos de Brizóla. Da parte destes, a explicação recai em três
direções. A primeira delas se refere às características da personalidade de Brizóla.
Segundo ela, Brizóla tem uma enorme dificuldade de partilhar o poder de man-

2 67
do. Assim, aceita qualquer tipo de acordo que não implique diminuição de seu
poder decisório, do mesmo modo que rejeita qualquer composição que o leve a
isso. A segunda explicação se inclina em apontar o pouco caso de Brizola para
com as instituições m ediadoras da dem ocracia, como o próprio partido, os
legislativos e associações civis. Com isso, seria sempre levado a um isolamento
em relação aos grupos mais organizados, ficando refém daqueles que dele se
aproximaram apenas para desfrutar da situação privilegiada de proximidade ao
poder. A terceira explicação, a mais recorrente entre as posturas críticas, é uma
combinação das duas anteriores. Mas que tais diferenças não sejam superesti­
madas. Há, no brizolismo em geral, uma forte tendência a valorizar a centralidade
do líder nas organizações políticas.
As qualidades excepcionais do líder são confirmadas, aos olhos brizolistas,
pela sua capacidade de conhecer a essência da política brasileira. E muito di­
fundida entre brizolistas, em especial entre a militância, a convicção de que a
política brasileira possui uma essência: a conspiração das elites. Brizola é, nessa
concepção, o sábio capaz de revelar e denunciar sua presença insidiosa nos
acontecimentos mais importantes da vida política brasileira. Na discussão sobre
a prorrogação do mandato presidencial de Figueiredo, Brizola teria antecipado
os desdobramentos de acordos estabelecidos no Congresso Nacional, que con­
duziam o processo sucessório de forma negociada. O objetivo dessas forças
seria manter o calendário eleitoral, utilizando-o como justificativa para a reali­
zação de mais um pleito via Colégio Eleitoral; evitariam assim que a participa­
ção direta do eleitorado imprimisse uma aceleração indesejável no processo de
abertura política. Dentro dessa lógica, a presidência da República poderia voltar
às mãos civis sem, contudo, implicar uma mudança radical no arranjo político.
Da perspectiva de Brizola, a m obilização em tom o das diretas para 84 não
passava, no que toca a lideranças do PMDB, de jogo de cena, para ao mesmo
tempo, aplacar as aspirações da sociedade civil e viabilizar uma saída negociada
entre as forças liberais conservadoras e as democráticas de perfil mais m odera­
do. Ele denunciava esta espécie de golpe de bastidores contra a mobilização
popular. A alternativa de prorrogação do mandato de Figueiredo, seguida de
eleições diretas, seria uma fórmula de neutralizar as articulações da dissidência
do PDS e de setores do PMDB, no que se tom ou a Frente Liberal, que acabou
por eleger indiretamente, a despeito da vontade popular, expressa em uma dos
maiores mobilizações da história política recente, o então governador de Minas
Gerais, Tancredo Neves. Essa articulação, que marcou profundamente o pro­
cesso de redemocratização brasileiro como uma transição tipicamente conser­

268
vadora, teria sido percebida por Brizóla, que identificava também seus princi­
pais alvos: a liberdade popular de voltar a escolher seu representante máximo e,
eventualmente, ele próprio. Suas chances em uma eleição direta em 86 eram
bem grandes e disso teriam consciência e temor os setores políticos conserva­
dores. Daí a m anutenção do calendário eleitoral, a recusa à prorrogação do
mandato de Figueiredo e o aborto anunciado da campanha pelas diretas.
Do m esm o m odo, a cam panha pelo im peachm ent de C ollor traduzia,
segundo Brizóla, um a reação de parte do grupo que lhe dera sustentação e
que, naquele momento, via-se gradativamente isolado pelo presidente de tem ­
peram ento forte e estilo imperial. A questão ética não passava de um pretexto
dessas forças alijadas do centro do poder e, portanto, eram as razões políti­
cas, nesse caso específico, que deveriam prevalecer. O rearranjo de alianças
poderia representar uma guinada do governo para um perfil mais popular, o
que a própria aproximação do presidente com o governador do Rio de Janeiro
parecia prometer. Mais um a vez, a despeito de ter adotado ou não a postura
mais adequada, B rizóla teria acertado e visto o que ninguém mais, ao menos
entre as forças ditas populares, havia visto à época. Mesmo os deputados e
dirigentes do PDT haviam se equivocado, contribuindo para o sucesso de
um a cam panha orquestrada basicam ente pelas forças conservadoras, que se
voltavam contra sua própria criatura, exatamente por esta ter acenado com a
possibilidade de um realinham ento de alianças mais favorável às “forças po­
pulares” .
Se o comportamento de Brizóla é lido como reiterador de suas qualidades
de estadista por seus correligionários e como oportunista por adversários, o que
dizer do padrão de relacionamento com o Legislativo? Emergindo da experiên­
cia traumática dos anos autoritários, havia entre a classe política uma tendência
predominante, embora não consensual, de reduzir os poderes do Executivo, em
favor do fortalecimento do Legislativo. Do mesmo modo, havia uma inclinação
semelhante em minimizar o poder da Federação, em favor dos estados e m uni­
cípios. Estas foram tendências que esbarraram em um a tradição fortem ente
centralizadora da política brasileira, o que acabou resultando em um modelo
institucional extremamente ambíguo. Ainda assim, a iniciativa política fica em
grande m argem dependente de um a ação coordenada entre E xecutivo e
Legislativo, tanto no âmbito nacional quanto local. No caso de Brizóla, o modo
de lidar com as condicionantes institucionais à sua gestão como governador do
Rio de Janeiro, nos dois mandatos, foi objeto de repetidos debates e polêmicas.
E recorrente a alusão de ex-deputados, mesmo de seu partido, à dificuldade de

2 69
B rizóla em lidar com o Poder Legislativo. Segundo depoim ento de um ex-
deputado brizolista, Eduardo Chuay:

"O Brizóla não tem apreço pela C âm ara, ele não faz um p la n e ja m e n to c o ­
m um com ela e com a bancada do pa rtido . Ele não presta a m e n o r atenção
em quem vai se eleger, nem liga para quem se elege. E p o r isso que ele fica
isolado. Ele não constrói um a base, não faz pla n e ja m e n to a lg u m ."60

Essa postura é igualmente reveladora de uma percepção do poder, segundo


a qual é legítimo que seu exercício esteja concentrado nas mãos do Executivo.
Para Trajano Ribeiro, uma das marcas do PDT, ao longo do tempo, foi a pouca
atenção concedida às eleições proporcionais:

"Esta é um a deficiência do pa rtido . Por isso ele nunca conseguiu e le g e r a


m a ioria da bancada. Elege o governador, mas não consegue e lege r os d e p u ­
tados. Isso é um a distorção do com p ortam e nto eleitoral do partido. O partido
não valoriza a eleição dos p a rla m e n ta re s."6'

Embora a crítica de Trajano Ribeiro possa ser extensiva a quase todos os


partidos brasileiros, e os próprios sistemas eleitoral e partidário contribuam para
isso (a rigor, desde 82, jam ais um partido conseguiu a m aioria absoluta em
qualquer casa legislativa), o depoimento expressa a percepção de alguém que,
do interior do PDT, pode abordar criticamente a lógica que predom inou em
suas estratégias, conferindo à conquista do Executivo, especialmente quando o
postulante era o próprio Brizóla, a máxima prioridade.
Conjugada com um arranjo institucional que reservava poderes significati­
vos ao Legislativo - especialmente de veto - , a falta de apetência para lidar
com os m eandros e as correlações de força na Assem bléia Legislativa teve
conseqüências catastróficas para Brizóla e sua imagem. Conseqüências estas
que, entre outras, acabaram por imprimir uma marca de forte permissividade e
excessiva tolerância com desmandos e tráficos de influência, especialmente em
sua segunda gestão. Já no primeiro governo, as alianças firmadas com parla­
mentares ligados à antiga liderança de Chagas Freitas valeram farta munição
para seus adversários políticos. Em seu segundo mandato, a ascensão do depu­
tado José Nader à presidência da Assembléia foi catastrófica. A versão mais
favorável a Brizóla dá conta de que lhe fora impossível deter a ascensão de
Nader ao posto máximo do Legislativo estadual, uma vez que o deputado arti­

60 Depoim ento de Eduardo Chuay ao autor, em 8 /1 1 /9 6 .


61 Depoim ento de Trajano Ribeiro ao autor, em 1 /9 /9 6 .

270
culara, habilmente, um amplo acordo em tom o de seu nome. Brigar com ele
significava a condenação à ingovernabilidade. Brizola rendera-se à força de
Nader devido ao abandono que lhe fora imposto pelas próprias forças de es­
querda, com as quais reiteradamente tentara compor sem, contudo, obter su­
cesso. A perspectiva oposta denuncia a total rendição do govem o B rizola à
“máfía instaurada na Assembléia”, e daí provêm então as repetidas alusões ao
esquema armado pelo PDT, desde que chegara pela prim eira vez ao govemo
estadual, com o crime organizado e a contravenção. De um lado são evocados
a lógica da realpolitik e o abandono de Brizola pelas tendências que, por suas
posições ideológicas, deveriam ter apoiado seu govemo e não o fizeram (aqui, a
alusão ao PT é reiterada). H á também a percepção de que tais alianças não
representariam maiores problemas, posto que o comando era preservado:

"D a perspectiva nacional-dem ocrática, essas alianças não são problem áticas
porque você não está dando o com ando. A gora, para os setores social-dem o-
cratas, essas alianças eram pe rturbadoras para eles, elas eram in co m p re e n ­
síveis."62

Pelo lado da crítica ao brizolism o, tais alianças atestam o estilo antigo,


clientelista e promíscuo que teria caracterizado a atuação do líder como herdei­
ro dos piores vícios do trabalhism o e do populism o. Com entando a versão
“oficial” do PDT para as razões das alianças, que acusa os demais partidos de
esquerda de terem isolado Brizola, o deputado estadual petista Carlos M ine
afirma:

"Isso é um a m en tira histórica. Na prim e ira eleição da A ssem bléia, nós (a


bancada petista) fizem os um a chapa onde Carlos C o rreia do PDT era ca n d i­
da to a presidente e o José Valente, que era depu ta do do PT, sairia com o vice.
Nós lançam os a chapa e perdem os. N a segunda, o N á d e rfe z um a chapa e
nós lançam os ou tra , com o Leoncio Vasconcelos, do PDT, e o p ró p rio José
Valente. Perdemos outra vez. O problem a é que a m a io r parte da bancada do
PDT era fisiológica e no voto secreto votava com o Náder. É claro que o N á de r
tin h a força entre os deputados. Mas o pro b le m a é que a p ró p ria relação do
Brizola com a Assem bléia fortale ce esse tip o de chantagem . O PDT fo i d e rro ­
ta d o p o r sua pró p ria bancada, p o r m etade d e la ." 63

62 Depoim ento de Teotônio dos Santos ao autor, em 1 3 /8 /9 6 .


63 Depoim ento de Carlos M ine ao autor, em 21/1 1 /9 6 . Vale lem brar que M ine foi um dos ex-participantes da luta
arm ada que esteve próxim o a Brizola na Europa, identificado com a corrente mais afinada com a social-dem ocracia.
Seu depoim ento é m uito próxim o do testemunho de ex-deputados do próprio PDT, que criticaram o pouco caso de
Brizola com o Legislativo.

2 71
O tema do abandono é recorrente, em se tratando de Brizola. Descrevendo o
encontro dele com intelectuais comunistas, em 1979, Leandro Konder recorda:

"Q u a n d o m e convocaram para esse encontro com Brizola, na casa do Ènio da


S ilveira, eu fu i m u ito otim ista , achando que íam os che ga r a algun s pontos
com uns. Do p a rtid ã o , estávam os eu, o C arlos N elson C o u tin h o e o M o a c ir
Félix, que era um sim patizante do pa rtido . Havia outros m em bros do pa rtid o
de quem não le m bro agora. N o m ais, havia um a diversid ade m u ito g ra n d e
de pessoas. O Brizola chegou com o Darcy e o M oniz Bandeira. Então, o Brizola
fa lo u m uito. Se disse m uito m agoado com o fa to de não te r recebido ap oio de
n in g u é m , d u ra n te o exílio. Ele disse que, du ra n te o pe río d o em que esteve
em desgraça política, nenhum a das organizações de esquerda, em especial o
p a rtidã o, o ajudo u. N ingu ém estendeu a m ão para ele. Aí, alguém fa lo u que
aq u ilo era um a injustiça. A fin a l, essa pessoa disse, se você estava no p o rão ,
o p a rtid o estava em baixo dele. Nós perdem os várias pessoas. V ários m e m ­
bros do C om itê C entral fo ra m assassinados e você está se colocan do com o
quem precisava de ajuda. Mas nós precisávam os mais de ajuda do que você.
E você não nos deu aju d a algum a . A p a rtir da í, com eçou um a discussão sem
qu a lq u e r fu tu ro ".64

A posição assumida, tal como relatada por Konder, ilustra um traço de sua
persona pública fartamente explorado no discurso brizolista. A alusão repetida ã
solidão de Brizola em relação a outras figuras de expressão do cenário político,
reforça o caráter heróico de sua atuação. Reforça, também, o caráter popular de
sua origem social, e parece justificar o suposto temor que as elites políticas, quase
todas vindas dos extratos superiores da sociedade, guardam do seu poder de
liderança. E como se Brizola tivesse, como verdadeiros aliados, apenas as classes
populares, abandonadas pelas elites políticas, deixadas à própria sorte pelo poder
público. Seria junto a elas que ele consolidaria sua própria imagem, sabotado, só,
e ainda assim afirmativo sobre sua destinação. Como observa Clovis Brigagão,
“Brizola achava que ia mudar o Brasil com os grotões, com aqueles que estão
nos grotões da miséria e do desamparo
Curiosamente, a dificuldade em lidar com as elites políticas, reconhecida
por seus próprios colaboradores como elemento comprometedor de sua ativi­
dade, não chega a macular, aos olhos destes, a imagem deestadista.Para boa
parte dos brizolistas, mesmo aqueles que dele se afastaram ao longo do tempo,
trata-se de um líder popular sem pares, dada sua irredutibilidade quanto a seus

64 Depoim ento de Leandro Konder ao autor, em dezembro de 1 996.


65 Depoim ento de Clóvis Brigagão ao autor, em 2 5 /9 /9 6 .

272
compromissos sociais e históricos. Por isso, tendem a considerar compreensí­
vel sua dificuldade em lidar com negociações tidas, freqüentemente, como in­
trigas e conspirações de bastidores. Ao menos da perspectiva da militância, a
pouca atenção dispensada à bancada do partido, e às suas conseqüentes dificul­
dades, é amplam ente justificada pela sua baixa qualidade, se com parada ao
líder. O depoimento de um militante ilustra bem este ponto.

"E verd ad e que o Brizola nunca deu m uita atenção à bancada do pa rtido .
M as, convenham os, é verdade, tam bém , que nossa bancada nunca fo i g ra n ­
de coisa. Entre ela e Brizola, não dá nem para pensar duas vezes, antes de
escolher."60

Os representantes eleitos do partido, em todos os níveis, sofreram bastante


com o padrão brizolista de lidar com o legislativo (a passagem sobre a campa­
nha do impeachment de Collor, já mencionada, é ilustrativa). Na maior parte
das vezes, o fizeram calados. Tal postura é extensiva ao Brizola administrador.
Também revelou-se difícil, para os membros de seu secretariado, conciliar o
estilo de governar de Brizola com os imperativos da rotina burocrática. Foram
freqüentes, nos depoimentos de ex-secretários e colaboradores, as alusões aos
transtornos causados pela forma centralizadora de tomada de decisão, a pouca
atenção para o cumprimento de horários e cronogramas estabelecidos e a m e­
diação de confrontos entre sindicatos profissionais de diversas áreas e os seus
respectivos responsáveis, na administração pública. Nos seus dois governos,
Brizola enfrentou greves de professores, de profissionais da área de saúde e de
transportes, entre outras. A margem de autonomia de seus secretários, no en­
tanto, era extrem am ente limitada, e os passos mais im portantes dados pelo
governo eram sempre de iniciativa do governador, o que deixava seus secretá­
rios em situação delicada. Ainda aí, o entendimento das atribuições do chefe e
do papel do líder político revelam-se de forma clara. Cabia ao governador o
ônus ou a virtude de posicionar-se diante dos desafios impostos pelo exercício
do poder. A descrição de uma greve dos marítim os, feita pelo secretário de
transportes à época, José Colagrossi, é elucidativa:

"H ouve um a greve na C onerj. Eu estava ne go cian do , mas era o Brizola que
tin h a que resolver. Passaram duas semanas e ele não resolvia nada. A situ a ­
ção pio ro u . Um d ia, ia haver um a assem bléia no cais do p o rto com vários
sindicatos, e eles tin h a m m e convidado para ir lá. Eu não p o d ia d e ixar de ir.

66 Depoim ento de um m ilitante ao autor.

273
Eu fu i ao Palácio despachar com o g o ve rn a d o r e, q u a n d o chegou p e rto da
h o ra, eu fa le i: governador, eu te n h o que ir a g o ra , e exp liq ue i a situa ção a
ele. Então, o Brizola fa lo u : eu vou com você. Eu não a cre dite i. M as ele d is­
pensou os seguranças, disse que ia para casa e entrou no m eu carro. Q u a n d o
eu parei o carro, lá estava cheio de operários. Q u a n d o vira m o Brizola, fo i
um a vaia só. Entramos no au ditó rio lotado. Q u a n d o o o ra d o r anunciou a che­
gada dele, va ia ra m mais ainda. Deram a palavra ao governador. M ais vaia.
Então, ele esperou a vaia p a ra r e, q u a n d o o a u d itó rio ficou em silêncio, co­
m eçou: mas é a m im que vocês dão essa vaia? Em m im , no Brizola, que
sentei ao lado de vocês. M a rq ue i a m in ha vida, fu i e xilad o, para a te n d e r a
vocês. Q u a n d o fo i que um g o vern ado r botou o pé aqui dentro? Silêncio m o r­
tal. Verdade chocante. Brizola, en tão, con tinu ou: Vocês m e recebem na casa
de vocês dessa m aneira? Eu estou sozinho. Eu vim porque estou preocu pad o
com a situação de vocês. Eu vim com a lgum segurança? Eu vim sozinho, de
m ãos abertas. Para concluir, con tinu a C olagrossi, nós saím os de lá c a rre g a ­
dos nos braços dos trabalhadores. A p la u d id o s."67

0 depoimento de Colagrossi é expressivo em vários aspectos. De seu ponto


de vista, o que ocorreu, ali, foi a confirmação das qualidades extraordinárias do
líder. Sua capacidade de reverter uma situação que lhe era desfavorável comu-
nicando-se com a massa. Em seu depoimento, o ex-secretário sublinha o m ag­
netismo de Brizola. No entanto, ele próprio reconhece a contrapartida: fazer
parte do governo foi difícil, exatamente por sua atuação basear-se nesse tipo de
procedimento. Grande político, Brizola revelou-se, para vários brizolistas que
participaram de seu governo, um péssimo administrador, pouco afeito à rotina
administrativa.
No próprio exercício do poder, com a tarefa de dirim ir questões entre o
Estado e movimentos organizados, era a sua capacidade de comunicar-se com
a massa, de interagir diretam ente com ela, o que prevalecia. A inda aqui, é
curioso que esta fosse uma postura que, a despeito das dificuldades criadas,
justificava-se, na concepção de boa parte de brizolistas, pelos recursos privile­
giados e singulares do líder. Uma forma particular e extraordinária de fazer
política, em que a intuição privilegiada parecia mais eficaz do que os procedi­
mentos institucionalizados; existia a convicção de que, ao fim e ao cabo, já que
se tratava de Brizola, tudo daria certo ao final. Da perspectiva brizolista, por­
tanto, há um certo encantamento que é inoculado, pelo líder, na máquina buro­

67 Depoim ento de José Colagrossi ao autor, em 6 /1 /9 7 .

2 74
crática. Sobre esse aspecto, é elucidativo o depoim ento de Eduardo Costa,
secretário de saúde no primeiro governo:

"O fascínio que eu tin h a p o r Brizola era ta m a n h o que até para decisões estri­
ta m e n te técnicas da m in ha área, das quais Brizola não e n tend ia na da , eu
procurava o g o ve rn a d o r para pe dir sua op inião. A ascendência que ele exer­
cia sobre nós era, rea lm en te , um a coisa fa n tá stica ."68

Em detrimento à tradição trabalhista que se consolidou, em grande parte,


com base em uma política de atração e cooptação de lideranças sindicais, Brizola
deu pouca atenção a estes movimentos. O descaso em atrair grupos organiza­
dos para a órbita de influência do partido foi um dos pontos mais criticados por
seus antigos colaboradores:

"B rizola tin h a um a relação d ireta com a m assa, pela sua característica de
pregador, de um a sedução m uito grande. Falava o que a massa gostava de
ouvir. Ele se dirigia ao lúm pen, aos não organizados, aos não corporativizados.
Tanto que ele criticava o PT, acu san do -o de cria r sindicatos que eram correia
de transm issão do partido. Ele não queria isso. Várias pessoas diziam que era
preciso org a n iza r nossos sindicatos, um a central sindical. Ele sem pre descar­
tava. Da m esm a m a n e ira , qu a n d o volto u do exílio, eu estive com ele em
reuniões com gente de d in h e iro , que lhe oferecia os m eios para que tivesse
um órg ã o de com unicação, um a estação de televisão, um ¡ornai. Ele nunca
quis. O negócio dele era ele m esm o, sua im agem . Sua m íd ia era ele. Essa
ação não tin h a in te rm ediário s. O p ró p rio p a rtid o não tin h a essa fu n çã o . O
negócio era e le ."69

A declaração acima é importante em vários aspectos. Para muitos, a ausên­


cia dos mencionados canais de intermediação foram fatais para Brizola e seu
partido. Há, no entanto, aqueles que consideram positiva a postura assumida
por Brizola. Afinal, ela atestaria a sua disposição de não se imiscuir nas dinâm i­
cas associativas no âmbito da sociedade civil.
Para os antibrizolistas de diversos matizes ligados à esquerda, a compreen­
são é outra. A posição de Brizola expressaria a sua enorme dificuldade em lidar
com os movimentos organizados da sociedade civil. Expressaria, também, sua
identificação maior com as massas desorganizadas, sem poder de pressão. Es­
sas foram as críticas preferenciais que vieram de setores do PT e de outros
grupos engajados nos novos movimentos da sociedade civil. Carlos Mine ob-

68 Depoim ento de Eduardo Costa ao autor, em 3 /8 /9 6 .


69 Depoim ento de Clóvis Brigagão ao autor, em 2 5 /9 /9 6 .

275
serva: “O P D T abomina negociar com os m ovim entos organizados e com
lideranças próprias, autônomas. E isso o que existe de mais característico do
brizolismo ”. Mesmo reconhecendo os avanços do governo Brizola em algu­
mas áreas, Luiz W emeck Vianna, intelectual ligado ao antigo PCB, observa:

"H o u ve um e fe ito d e m o cra tiza d o r in que stion ável sem que, no e n ta n to , isso
fosse a co m p a n h a d o pelo reforço das instituições e das organizações p o líti­
cas. O que era a b ord ado era o dire ito das coletividades pobres, não o d ire ito
dos in d ivíd u o s."71

Esta é uma avaliação corroborada no interior do próprio brizolismo, ainda


que não represente necessariamente um problema:

"B rizola não conhece sindicatos, grupos de esquerda, intelectuais. Ele circula
m e lh o r nos setores m enos organizados e num a pequena burguesia n a cio n a ­
lista e ja c o b in a ."72

De qualquer modo, esta posição obriga à relativização sobre a proximidade


das práticas brizolistas com o antigo trabalhismo. Como é sabido, o antigo PTB
cresceu exatamente na atuação nos sindicatos. Segundo um a série de depoi­
mentos, Brizola encarou tal estratégia com muitas reservas. Recusou-se a fazer
o que ele chamava de transformação dos sindicatos em correia de transmissão
do partido, prática que considerava típica do PT. Sendo assim, rom peu com
uma das estratégias de crescimento do PTB, adotada, principalmente, a partir
da ascensão de Jango à direção do partido. Não é de se admirar que a crítica a
essa postura de Brizola, no interior do PDT, tenha partido, preferencialmente,
de antigos trabalhistas.
Mesmo os movimentos surgidos na formação do PDT - Juventude Socia­
lista do PDT, M ovimento Negro, Movimento das M ulheres ou Movimento dos
Engenheiros - não foram incentivados por Brizola. Ao contrário, qualquer ten­
dência à consolidação de grupos dentro do partido foi neutralizada como ofen­
siva ao próprio Brizola. Como vários quadros e m ilitantes reconheceram, ele
jam ais tolerou a existência de facções no PDT. Como estas são quase um dado
inevitável e até mesmo saudável na dinâmica interna da vida partidária, fica
evidente que o m ediador e neutralizador do crescim ento dessas tendências,
bem como o promotor do consenso interno, ao longo do tempo, foi o próprio

70 Depoim ento de Carlos M ine ao autor, em 21/1 1 /9 6 .


71 Depoim ento de Luiz W erneck Vianna ao autor, em 2 0 /5 /9 6 .
72 D epoim ento de Teotônio dos Santos ao autor, em 13 /8 /9 6 .

276
Brizola e seu prestígio indisputável. O fato dos debates internos girarem quase
que inevitavelmente em torno dele e de seus passos, acabou por inibir o fortale­
cimento de grupos dentro do partido ou a ele ligados organicamente.
O mesmo pode ser dito em relação aos confrontos de lideranças emergen­
tes no interior do partido. Como já foi mencionado anteriormente, toda a articu­
lação de antigos trabalhistas, socialistas e social-democratas com o objetivo de
fundar um novo PTB, tinha, como um dos objetivos fundamentais, construir
um partido de massas sob a liderança de Brizola. O peso da tradição trabalhista,
supunham, era forte o bastante para, encarnada na figura do grande líder sobre­
vivente aos anos de chumbo, levar o novo partido ao poder. A perda da legenda
atenuou grandemente o apelo da tradição, se não tanto do ponto de vista simbó­
lico, certamente pela opção de antigas lideranças de não aderir imediatamente
ao novo partido. Com isso, a figura de Brizola tom ou-se ainda maior e mais
decisiva para o sucesso do projeto. A capacidade de Brizola, sua dim ensão
quase mágica, do ponto de vista brizolista, é testemunhada pela declaração de
um quadro do partido, lamentando a desorganização do PDT:

"...se o Brizola tivesse dado essa palavra de ordem , não precisava dizer mais
na da , essa palavra de ordem : organizem -se. O rg a n ize m -se nos dire tó rio s,
nas escolas, nas bases, nas ruas, nas fábricas, nos cam pos, em tu d o o que é
lugar. O rgan ize m -se . A massa teria se org an izad o. M as ele não fez isso."73

A despeito do tom de queixa pelo que o líder não fez, o depoimento de Isac
é expressivo de uma percepção muito difundida entre, as hostes brizolistas. De
sua palavra, faz-se a organização. Mesmo excluído o tom exacerbado do depoi­
mento, ele retrata a confiança que houve, e talvez ainda haja, na capacidade de
Brizola, sua imagem e sua história pública, em ser a alavanca para a formação
de um partido de massas. Temos, portanto, um caso, usando a terminologia de
Panebianco, de partido carismático. Em sua análise sobre os partidos políticos,
Panebianco ressalta a importância, freqüentemente negligenciada, das origens
do partido para sua configuração futura:

"As características organizacionais de um pa rtid o dependem em larga m e d i­


da de sua história, da fo rm a com o tal organização se o rigin ou e se consolidou
mais do que de q u a lq u e r o u tro fator. As características o rig in a is de um p a rti­
do são de fa to capazes de exercer influência em sua estrutura organizacional
p o r m uitas décadas." 74

73 D epoim ento de Isac ao autor, em setembro de 1 994.


74 Panebianco, 1988: 50.

277
Para Panebianco, é evidente que, em todo partido, há um com ponente
carismático, no sentido de que existem alguns que detêm, em graus variados, as
qualidades necessárias de liderança e ascendência sobre o eleitorado, condições
necessárias para o êxito na competição política, em contextos de democracias
de sufrágio amplo:

"E seguro que há sem pre com ponentes carism áticos na relação líd e r-lid e ra -
dos na fase inicial de fo rm a çã o de um pa rtido : a criação de um p a rtid o sem ­
pre envolve aspectos do estado o rig in a l, da efervescência coletiva, situações
típicas em que o carism a em erge. Nosso interesse, a q u i, é com os partidos
form ad os po r um líd er que im põe a si p ró prio com o o fun dad or, o fo rm u la d o r
e o in té rp re te incontestável de um con jun to de sím bolos políticos (os o b je ti­
vos ideológicos origin ais do partido) que se to rn a m indissociáveis de sua p ró ­
pria pessoa.''75

No caso específico do PDT, esta marca original aparece de maneira inelu­


tável, ainda que apresentando características singulares, que devem ser vistas
como reveladoras de algo além da mera dinâmica interna e configuração de um
partido tipicamente carismático. Há três aspectos que merecem ser analisados:
o grau de institucionalização e organização alcançado pelo partido, os recursos
utilizados para sua ampliação (e aqui, mais uma vez, o caso do Rio de Janeiro é
elucidativo) e a relação entre o chefe e os demais dirigentes, quadros e m ilitan­
tes do partido, bem como com suas diversas instâncias decisorias internas.
Uma das marcas dos eventos envolvendo Brizóla, desde sua chegada do
exílio, foi, como testemunham os próprios registros da imprensa, à época, e
confirm am seus colaboradores, o alto grau de desorganização e im proviso.
Assim foi também ao longo de toda a campanha vitoriosa de 82. Contudo, o
que naquele contexto era justificável e compreensível, pelas próprias dificulda­
des que a legislação impunha para a oficialização de novos partidos, acabou
convertendo-se em um traço encarado como virtude ou, pelo m enos, uma
singularidade, um modo de ser do próprio partido. Brizóla assume, em 83, sem
possuir sequer um esboço de program a de governo, fato que reconhecia sem
qualquer constrangimento. Ainda na campanha presidencial de 89, Brizóla vol­
tava a reconhecê-lo, alegando que, uma vez no poder, estaria permanentemente
atento para as demandas e aspirações populares. Apresentar-se com um a pro­
grama articulado parecia-lhe antidemocrático e mesmo incompatível com a sua
forma, e a de seu partido, de entender o processo social e político. A vitória em

75 Ibid., p. 52.

278
82 p arecia, antes de tudo, re ite ra r que a n ec essid ad e de org an ização e
burocratização do partido era dispensável e mesmo contrária àquele movimen­
to que, tudo indicava, estava destinado a se alçar ao poder nacional, em tempo
muito breve. A negligência para com a incorporação e formação de quadros
técnicos capacitados, dentro dos padrões burocráticos de eficiência e capacida­
de gerencial, foi estendida do interior do partido para a máquina do governo,
quando no poder. Ao longo de conversas informais, depoimentos e encontros
de trabalho do partido era comum a alusão não constrangida a esse traço, tanto
no que diz respeito à estrutura partidária, quanto à organização dos dois gover­
nos do PDT, no Rio de Janeiro. Do ponto de vista da administração pública,
acabou-se por criar, não só entre adversários de Brizola, como entre seus pró­
prios colaboradores mais próximos, uma imagem batizada como estilo brizolista
de governar, cujos traços mais significativos e conseqüências foram m enciona­
dos anteriormente. Na dinâmica interna do PDT, dois desdobramentos podem
ser observados. Primeiro: no âmbito nacional, o processo decisório tendeu a ser
fortemente centralizado nas mãos de seus colaboradores mais próximos, fican­
do sempre para ele, Brizola, a palavra final. Segundo: o centralismo, no âmbito
nacional, não impediu uma significativa liberdade da parte dos líderes locais
para decidir sobre questões regionais. De modo que, embora o PDT tenha sido
sempre identificado como o partido de Brizola, algumas das seções mais fortes,
excluídos Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, onde sua influência foi quase
absoluta, muito dificilmente possam ser identificadas, por suas práticas quando
no poder, como brizolistas. Um outro aspecto a ser ressaltado diz respeito à
política de recrutamento de novos quadros, que foi extremamente permissiva,
tendo o partido, ao longo do tempo, incorporado figuras que, além de nada
terem a ver com os ideais originalmente encampados por Brizola e seus compa­
nheiros, em muitos casos eram notórios políticos fisiológicos, cujas carreiras se
constituíram à sombra do poder. Nesses casos, dois argumentos são, até hoje,
fartamente utilizados por quadros brizolistas. O primeiro diz respeito à necessi­
dade de ampliar o raio de ação e influência do partido. O segundo, à já aponta­
da im unidade ética que em anava do líder. Um a frase m uito freqüentem ente
usada por Brizola e repetida por seus companheiros: “Não importa quem sobe à
boléia, o importante é quem dirige o caminhão”. Da parte de seus críticos
mais ferrenhos, o que se deu foi a perpetuação do “caciquismo” e da política de

76 Este é um dito popular, provavelmente de procedência gaúcha, que, segundo muitos militantes brizolistas, Brizola
repete constantemente. Vale notar o uso de expressões populares, de fácil compreensão, para a "teorização" e
explicação das estratégias políticas assumidas.

279
partilha de zonas de mando. Dentro dessa lógica, Brizóla reservaria para si o
comando geral do partido e deixaria para aqueles que a ele se alinhassem o
mando em seus respectivos feudos em troca de apoio. A tarefa de criar m eca­
nism os de form ação e treinam ento de m ilitantes, na base, teria sido, ainda
segundo esse raciocínio, deixada de lado, o que trairia os princípios fundamen­
tais para a formação de um partido organicamente estruturado que, ao menos
retoricamente, inspirava a formação do PDT, em seus momentos iniciais.
As conseqüências para o partido não poderiam ter sido piores, a médio prazo.
A despeito da idoneidade pessoal de Brizóla, reconhecida mesmo por seus mais
renhidos adversários, tanto suas gestões como a própria imagem do partido fica­
ram seriamente comprometidas ao serem associadas a figuras sobre as quais
pairavam suspeitas de corrupção e práticas clientelistas. Para a organização inter­
na do partido, a combinação de uma estrutura inorgânica com a política permissi­
va de incorporação de quadros acabou por prejudicar seriamente o seu cresci­
mento, fazendo com que, ao longo dos anos, Brizóla permanecesse maior que
ele. Deve-se ressaltar que esta é uma avaliação dos próprios membros do PDT,
os quais, como já foi mencionado, encontravam-se, quando da realização desta
pesquisa, em um momento de dolorosa discussão autocrítica. Vale ressaltar, po­
rém, que o reconhecimento dos prejuízos causados não implica, em absoluto, a
perda de convicção no mencionado caráter imunológico da presença de Brizóla,
na direção do partido, frente à presença de elementos eticamente pouco confiáveis.
Lembrança do período de pesquisa: Estamos em um encontro de campa­
nha. Reunidos em um apartam ento de classe m édia da Zona Sul, alguns
intelectuais ligados ao partido, ex-secretários de governos anteriores, estu­
dantes universitários e militantes. As prim eiras intervenções começam, inva­
riavelmente, com um balanço dos erros cometidos pelo partido, no passado.
Um jovem militante pede a palavra e fa z sua própria crítica. Nela, responsa­
biliza também o governador p or alguns erros. Antes, porém, pede desculpas a
todos os presentes p o r incluí-lo entre os responsáveis pela difícil situação p o r
que passa o partido.
Finalmente, cabem algumas observações acerca da relação de Brizóla com
alguns dos principais quadros dentro do partido. Tão fam osas quanto suas
vitórias eleitorais e tomadas de posição frente a questões polêmicas, são seus
conflitos e rompimentos com aliados e colaboradores. Esta também foi uma
marca de seu estilo e, se por um lado, levou a baixas nada negligenciáveis em
suas fileiras, por outro, permitiu-lhe manter-se à frente de seu partido como
principal liderança. Na verdade, esta parece ser um a característica das associa-

280
ções marcadas pelo carisma, o que vale para a tradição trabalhista como um
todo. São conhecidas as rusgas entre Borges de M edeiros e Vargas, Vargas e
77
Pasqualini, Fernando Ferrari e Jango, Jango e Brizola. A tradição trabalhista
parece confirmar as teses elitistas sobre a rotação de lideranças. Todos os seus
líderes, cedo ou tarde, tiveram que enfrentar o desafio de deparar-se com um
candidato desejoso de confiscar-lhe o cetro e tomar-lhe o lugar. Ainda que nem
sempre os aliados tenham desejado, exatamente, tomar de Brizola a direção do
partido, os conflitos e rompimentos traumáticos tom aram -se parte da história
do brizolismo.
E curioso notar que os três prefeitos pedetistas da capital do Rio de Janeiro,
que estiveram no poder enquanto Brizola era governador do estado (Jamil Hadad,
Saturnino Braga e Marcelo Alencar), saíram do cargo rompidos com seu líder.
Desses, apenas um, Marcelo Alencar, exatamente o único que se notabilizou na
política pelas mãos de Brizola, rompeu por ver seu próprio projeto político
entrar em rota de colisão com as determinações do líder. Saturnino Braga m i­
grou para o PDT na qualidade de senador, como um dos m ais respeitados
quadros da esquerda do antigo MDB. Jamil Hadad, prefeito nom eado pelo
próprio Brizola, em 83, era, igualmente, um conhecido e respeitado quadro do
antigo PSB. Em ambos os casos, a julgar por depoimentos seus e de outros
quadros do partido, o conflito se deu muito mais por questões administrativas e
pela dificuldade de lideranças igualmente fortes e respeitadas em lidar com as
“excessivas intromissões” do líder, do que propriamente por disputa de espaço
no interior do partido. Ao que tudo indica, este não foi o caso de M arcelo
Alencar. Havia uma aspiração do prefeito do Rio de Janeiro, no quadriénio 89/
92: ampliar seu espaço de poder e influência decisória no PDT. Ao longo de sua
administração, Marcelo Alencar reuniu em torno de si um número significativo
de lideranças locais e militantes da capital, o que parece indicar que o rom pi­
mento definitivo já fazia parte de seu horizonte de expectativas. Sua migração
para o PSDB representou um golpe duríssimo no poder de fogo do PDT.
Outra deserção importante, traumática e marcada por trocas de acusações
mútuas, foi a de César Maia. Auxiliar de Brizola, nas eleições de 82, César
M aia se notabilizou por coordenar o grupo que acabou percebendo indícios de
m anipulação dos resultados eleitorais, no que ficou conhecido como o caso
Proconsult. Alçado à secretaria da Fazenda no primeiro govemo, seu convívio
jam ais foi dos mais fáceis, especialmente por sua visão de administrador, difi­

77 Ver Bodea, 1979.

2 81
cilmente compatibilizável com o estilo anárquico de administração de Brizóla.
Deputado constituinte eleito em 86 e reeleito em 90, seu convívio com Brizóla
tom ou-se cada vez mais difícil, sobretudo por sua postura independente, m ani­
festa quando aceitou encontrar-se com Collor, em plena campanha eleitoral em
89, e, posteriormente, quando apoiou publicamente as medidas adotadas pelo
presidente eleito, em flagrante descompasso com o discurso crítico e oposicio­
nista adotado por Brizóla. A tensão entre ambos acabou por culminar na saída
de César M aia do PDT e em sua posterior filiação ao PMDB, pelo qual dispu-
78
tou e venceu as eleições para a prefeitura do Rio de Janeiro em 1992. Estas
duas defecções, a de César M aia e a de Marcelo Alencar, levaram à curiosa
situação de, em 1995, quando a morte do brizolismo era anunciada pelos obser­
vadores políticos, devido a seu desempenho nas eleições presidenciais ocorri­
das no ano anterior, o estado do Rio de Janeiro e sua capital estarem sob o
governo de duas lideranças que haviam alcançado visibilidade pública pelas
mãos de Brizóla, ambos exercendo seus mandatos em outros partidos e usando
como uma de suas principais bandeiras o antibrizolismo.
Salvo algumas raras exceções, o tratamento concedido às dissidências é dos
mais duros possíveis. Especialmente, nos casos em que os dissidentes seguem
com sucesso sua carreira política. A dissidência é encarada como traição. Curi­
osamente, discordar do chefe, em um encontro do partido, dar-lhe um “passa-
fora” respeitoso ou dirigir-lhe alguma advertência crítica, são gestos m enciona­
dos, principalmente por militantes, como um grande feito. É freqüente, repito,
principalmente entre militantes, a menção de ocorrências desta natureza. Elas
são tidas como exemplos de uma margem razoável e extremamente louvável de
independência, além de qualificar a natureza da adesão e do respeito ao líder.
Revela que, embora reconheça estar diante de um homem superior, inatacável,
o militante ali está por opção pessoal e por seus próprios méritos políticos e
ideológicos. A adesão é independente, posto que vem de alguém que é crítico e
corajoso o bastante para dirigir-se ao líder no tom que considerar oportuno. A
qualidade da adesão incide, logicamente, na qualidade daquele que dela é obje­
to. Sigo-o porque lhe reconheço as qualidades que o fazem digno de minha
opção, parece dizer o militante. O rompimento, por outro lado, é indigno, pois
revela não o caráter despótico do líder - afinal, o simples fato de escutar o

78 Houve, no interior do PDT, uma certa tensão entre César M aia e M angabeira Unger, acerca do projeto econôm ico do
partido a ser im plem entado, caso Brizola chegasse à presidência da República. Em contraste com a posição de
M angabeira Unger, mais afinada com a retórica estadista assumida p o r Brizola, César M aia tendeu a advo gar teses
com o a dim inuição da interferência do Estado na econom ia e a redução da m áquina adm inistrativa, o que entrava
em rota de colisão com as teses defendidas por Brizola.

282
militante é revelador do quão democrático ele é mas a baixeza daquele que
rompe. Aquele que rompe não estava à altura de seu líder e, por isso mesmo,
não se pode m anter junto a ele. É im portante reforçar, no entanto, que não
reside na disponibilidade para ouvir seus liderados a virtude que faz de Brizóla
o líder incensado. Por paradoxal que pareça, é muito mais o seu silêncio, sua
economia de palavras quanto àquilo que pensa e pretende realizar, combinado
com o tom exclamativo quando se manifesta, que acaba por lhe conferir uma
espécie de aura de sabedoria prática e intuição privilegiada. O homem que não
lê livros, porque tem o poder de ler os hom ens, dá a im pressão, em seus
colaboradores, de ter a capacidade de ler seus próprios desejos e mesmo de
antecipá-los, antes que eles próprios o tenham feito de modo consciente. Daí o
aparentemente paradoxal silêncio que cerca a relação entre o líder e seus cola­
boradores. Muitos entrevistados reconheceram que metade das rusgas e confli­
tos, no interior do partido, sequer chegam aos ouvidos de sua principal lideran­
ça, como se os próprios envolvidos reconhecessem tratar-se de questões m eno­
res, incompatíveis com a envergadura de Brizóla.
As defecções ocorridas no PDT, a partir dos conflitos entre lideranças lo­
cais e emergentes, por um lado, e o líder, por outro, acabaram aprofundando
uma crise que acompanhou o partido durante quase toda sua existência. Conce­
bido como um partido de massas, que deveria alavancar a trajetória de Brizóla
até o Palácio do Planalto, o PDT, atualmente, é um partido relativamente pe­
queno, com poder de fogo maior no interior do que nas capitais, sem uma linha
de atuação definida. É provável que, olhando retrospectivamente, um erro de
avaliação tenha sido decisivo. Após a vitória espetacular em 82, parecia que
Brizóla dispensava o apoio de um partido organizado para alcançar seu objeti­
vo. A partir daí, o cálculo inverteu-se. A expectativa passou a ser chegar ao
poder e de lá organizar, finalmente, o partido de massas, que garantiria a reali­
zação da tão propagandeada revolução pelo voto, que todos, antigos e novos
trabalhistas, almejavam ou diziam almejar. A lógica trabalhista pré-64 prevale­
cia sobre os ditames social-democratas europeus. Como vários brizolistas reco­
nheceram, em depoimentos, Brizóla permaneceu maior do que o partido e este,
à medida que a imagem de seu líder perdeu prestígio local e nacionalmente,
tornou-se cada vez menor. Os anos 90 começaram com a trajetória do líder
trabalhista se movendo no sentido inverso à da década anterior. Abandonado
eleitoralmente pelas massas urbanas, incapaz de reconquistar a confiança das
classes médias e identificado com um passado sem conexão possível com o
futuro.

283
O carisma afogado em números (parte 2)

A dificuldade em lidar com a institucionalidade política acabou por ter des­


dobramentos nos empreendimentos brizolistas na área social. O tom da campa­
nha para o governo do estado, em 90, foi dado pela proposta de continuar os
empreendimentos iniciados no período 83/86. Não cabe, aqui, a discussão so­
bre o alcance das suas realizações nos dois governos. Sobre as administrações
de Brizola, importam o que delas foi elaborado por colaboradores e adversári­
os. Sendo assim, é legítimo destacar três pontos que apareciam como priorida­
des, na cam panha de 82, e que são tratados, na prim eira adm inistração de
Brizola, de forma a causar grande polêmica. Trata-se das áreas de educação, de
segurança e de habitação. Os três pontos apareciam com destaque, em todas as
pesquisas de opinião sobre os problemas do Rio de Janeiro, ainda no final da
década de 70. Os três tinham o duplo poder de sensibilizar fortemente as clas­
ses médias e dizer respeito às carências mais dramáticas das classes populares.
Sobre a educação, já foram feitas observações no capítulo anterior. O Pro­
jeto E special de Educação foi o grande carro-chefe das adm inistrações de
Brizola, sobretudo em seu primeiro mandato. Os prédios dos Cieps, espalhados
pelo estado em locais de grande visibilidade, foram os símbolos arquitetônicos
do projeto brizolista. Não há um brizolista sequer que não se refira ao projeto
como o maior empreendimento educacional realizado no Brasil, desde as inici­
ativas de Anísio Teixeira, no primeiro período do governo Vargas. Houve, no
79
entanto, muitas criticas ao programa. Para muitos dos profissionais da educa­
ção, convocados para participar da “elaboração dem ocrática” do projeto, no
chamado Encontro de Mendes (1983), ele foi elaborado de forma autoritária,
sem respeitar os rumos e a dinâmica dos debates. O modo como foi concebido
e elaborado, longe de representar um avanço no processo de definição de estra­
tégias educacionais, mediante o amadurecimento de discussões, foi, na opinião
de muitos de seus críticos, a adoção de uma proposta elaborada por um grupo
restrito de profissionais da área comandados pelo vice-governador, Darcy Ri­
beiro. A maior das críticas, porém, recai sobre o açodamento na construção
dos Cieps e nos gastos envolvidos. O esforço do governo em construir 500
Cieps (essa era a propaganda do primeiro governo Brizola) em um espaço de
tempo muito curto pareceu confirmar as suspeitas de adversários sobre a arti­
culação entre o programa e os planos eleitorais futuros do governador do esta­

79 Um levantam ento prelim inar sobre os debates em torno do projeto pode ser encontrado em Lopes, 1 997.

284
do. Assim sendo, o imperativo político, construir Cieps para que eles servissem
de espetáculo do governo e do projeto brizolista, prevalecia sobre o planeja­
mento cuidadoso que deveria envolver formação de profissionais, levantamen­
to de áreas estratégicas para a construção das escolas, análise das escolas já
existentes que se prestassem ao desenvolvimento do programa etc.
Outra razão de críticas ao desenvolvimento do program a diz respeito ao
enorm e volum e de verbas a ele destinado. P ara além das den ú n cias de
superfaturam ento e manipulação dos resultados das licitações, um a série de
problem as foram apontados. M uitos deles vindos dos próprios m em bros do
governo. O Fundo de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj),
órgão criado para fom entar pesquisas no campo científico e iniciativas conexas,
teve, segundo atestaram m em bros da m áquina adm inistrativa, praticam ente
toda a sua verba transferida para a im plementação do program a educacional.
Depoim entos dos próprios brizolistas confirmam que boa parte dos recursos
m ateriais foram concentrados no chamado projeto dos Cieps, ficando à m ín­
gua várias outras áreas da adm inistração pública. Finalm ente, a citada con­
centração de recursos não representava uma equivalente m elhoria do quadro
social do Rio de Janeiro em suas diversas áreas. Além da infactibilidade de
um projeto educacional de tam anha envergadura se consolidar em tempo tão
curto, a despeito da enorme injeção de recursos realizada, a própria subsunção
dos problem as sociais à resolução do problem a da educação básica foi objeto
de críticas reiteradas, da parte, até mesmo, de profissionais ligados à educa-
80
çao.
D a parte dos brizolistas, o depoim ento de Darcy Ribeiro é eloqüente o
bastante:

"O Brizola fez de m im o m a io r ed uca do r bra sile iro. Perm itiu que eu fizesse,
¡unto com ele, 50 7 Cieps, fez a Universidade do N o rte Flum inense, para pre­
pa rarm o s vin te e q u a tro m il professores. N unca houve um m o vim e n to igual
no Brasil. E isso não se deve a m in ha capacidade de educador. D eve-se a
Brizola, que a p oio u entusiasticam ente essa e m p reitad a. Nós tín h a m o s, m o ­
ra n d o nos Cieps, cinco m il e seiscentos m eninos de rua, que estavam estu­
da ndo, estavam m ora nd o nos Cieps. Eram 5 .6 0 0 m eninos de rua salvos, que
eram os m elhores alunos dos C ieps."81

80 Já em 1 936 , em Raízes do Brasil, Sérgio Buarque de H olanda critica a tendência de vários setores da elite intelectual
e política brasileira de considerar a universalização do ensino básico a forma de resolver os problem as do Brasil.
H olanda, 1989.
81 Depoim ento de Darcy Ribeiro ao autor, em 1 4 /8 /9 6 .

2 85
A segunda área privilegiada, no primeiro mandato de Brizola, foi a de habi­
tação. Também aí, as inovações brizolistas causaram entusiasmo e críticas fe­
rozes. Entregue à responsabilidade do líder negro, ex-militante do Partido Co­
munista, Carlos Alberto Caó, a secretaria de habitação e trabalho lançou um
ambicioso projeto de assentamento urbano e rural, em vários pontos do estado,
inclusive na capital e no Grande Rio. O programa, chamado Cada Fam ília um
Lote, buscava minim izar o problema de moradia dos setores mais pobres da
população, oferecendo lotes de terra e apoio logístico para a construção de
casas populares. É o próprio Caó quem explica os pontos básicos do programa:

"N o início de 83, qu ando assumimos o governo, o problem a habitacional e de


desenvolvim ento urbano era, sem dúvida, um elem ento crítico, que estava cla­
ram ente colocado, tan to nos questionam entos que as cam adas médias faziam
ao regim e em declínio, quanto nos que o povão tam bé m fazia. Do po nto de
vista das cam adas m édias, a política do BNH, que era o órg ã o fo rm u la d o r e
executor da política ha bita cion al, já tin h a se esgotado. Já não ate ndia às de­
m andas das classes médias po r financiam entos em condições que ela pudesse
pagar. Do lado do povão, o que ocorria era a violência aberta, escancarada,
com remoções e com conjuntos habitacionais de qualidade extrem am ente pre­
cária. Havia, àquela época, alguns dogmas: 1 - a habitação tinha que ser fin a n ­
ciada a preço de m ercado; 2 - o governo não podia subsidiar o preço fin a l da
habitação p o pu lar; 3 - a urbanização das favelas é inviável. Nossa política foi
construída exatam ente em resposta a esses três preconceitos. N ão à rem oção,
urbanização, não a preços de m ercado. A prestação teria que ser com patível
com a capacidade de pa ga r dessa população que está na faixa de um a cinco
salários m ínim os. Sim aos subsídios. Assegurar a m ora dia às fam ílias que es­
tã o na faixa de pobreza e pobreza ab soluta."82

Os planos do governo eram, de fato, extrem am ente arrojados. Fazendo


uma análise crítica, Caó reconhece que eram inexeqüíveis para um prazo de
quatro anos. Previam a distribuição, ao longo do mandato, de um m ilhão de
títulos de posse. Um dos pontos mais divulgados do program a previa que a
cessão de posse seria dada às m ulheres, reconhecidas como as cabeças das
famílias nas camadas mais humildes da população. Difundida como mais uma
iniciativa popular do governo Brizola, como uma verdadeira revolução urbana,
o programa também suscitou debates acalorados. Denúncias de supervalorização
de áreas arrendadas pelo estado e apropriação ilegal de terrenos particulares

82 Depoim ento de Carlos Alberto Caó ao autor, em 2 3 /7 /9 6 .

286
foram fartamente divulgadas. O mais dramático de todos, contudo, foi a denún­
cia de que o governo estaria estimulando e mesmo organizando invasões de
áreas de particulares. De fato, foi um período onde muitas invasões ocorreram.
Respeitando, porém, a filosofia segundo a qual a ação policial junto às classes
populares deveria observar os mesmos critérios de civilidade utilizados para as
classes privilegiadas, a ação repressiva do estado pareceu muitas vezes branda
demais com os invasores e ineficiente na proteção à propriedade. Daí para que
surgissem denúncias de conivência do governo foi apenas um passo. A associa­
ção do brizolismo com o caos, a baderna e a transgressão da ordem era estam ­
pada regularmente nos meios de comunicação de massas e criava uma atm osfe­
ra de desconfiança junto à opinião pública. As denúncias de que o governo
Brizola estaria promovendo uma verdadeira favelização do Rio de Janeiro ga­
nharam força cada vez maior. Tais associações ganhariam contornos mais dra-
1 1 83
maticos, ao longo dos anos.
Terceiro e mais polêmico ponto das administrações brizolistas: a segurança
pública. Esta foi, certamente, a área mais discutida de suas duas gestões. Ainda
durante a campanha de 82, a questão da segurança era apontada, por pesquisas
de opinião, como problema número um para grande parte da população da cidade
do Rio de Janeiro. O governador Chagas Freitas enfrentava grandes problemas
com denúncias de abuso de autoridade das polícias civil e militar, principalmente
contra a população pobre, e corrupção nos meios policiais. É desse período a
tristemente célebre foto publicada nos principais jornais, em que suspeitos deti­
dos numa blitz na favela de Cachoeirinha aparecem amarrados um ao outro com
cordas presas a seus pescoços. Ainda em campanha, Brizola afirmava que não
permitiria mais este tipo de atuação e que obrigaria as forças de segurança pública
a tratarem a população pobre com o mesmo respeito devido às classes mais
abastadas. A esta altura, Brizola contribuía para o deslocamento no debate sobre
direitos humanos no Brasil. Até a anistia, este era um tema que se referia aos
presos políticos e cassados pelo regime militar. Esta abordagem, porém, fora
superada, ao menos aparentemente, com a lei de anistia, promulgada em 1979,
da qual ele próprio se beneficiara. Sua postura frente à política de segurança,
contudo, revelava que a questão não estava resolvida. Tratava-se, agora, de esta­
belecer critérios de atuação do Estado e de seus órgãos de segurança, que tives­
sem como princípio o entendimento de que todos os indivíduos, independente­

83 O u tro ponto do program a de reform a urbana a ser levado a cabo, na cidade do Rio de Janeiro, previa a urbanização
das favelas e a instalação de teleféricos que transportassem os m oradores aos pontos mais altos dos m orros cariocas.
O projeto, que acabou não vingando, foi objeto de críticas e chacotas.

287
mente de cor e classe social, deveriam ser igualmente tratados como cidadãos.
Uma vez empossado, Brizola mostrou que aquilo era mais do que mera peça de
campanha e propôs um rearranjo no comando das forças policiais. Decretou,
também, que ficavam proibidas as blitz discricionárias nos morros da cidade e
que as populações marginalizadas deveriam receber da polícia o mesmo trata­
mento dedicado às classes mais abastadas:

"O Brizola foi o prim e iro a considerar que o barraco é um lar e, p o rta n to , um
asilo in violá vel. Só se en tra num barraco com os pressupostos com os quais
se entra num a p a rta m e n to da V ieira S ou to."84

As idéias brizolistas causaram uma enorme insatisfação em vários setores


das corporações policiais, que se sentiram atingidas e cerceadas na utilização
das práticas que lhe eram familiares, herdadas do período de exceção política.
A tacar o problem a da violência, na visão de Brizola, im plicava m udar a cultu­
ra profissional vigente nas corporações policiais. Propunha, em contrapartida,
atacar os fatores que, no seu modo de ver, geravam a violência - ou seja,
investir sobre a questão social com ênfase na educação - e estender a cidada­
nia a todos os segmentos da população. Para além do debate político envol­
vendo o tem a da segurança, a avaliação de B rizola parecia correta e tinha
am pla aceitação junto a um a parcela significativa da opinião pública. Sua
estratégia, porém, revelou-se, no mínimo, ineficiente, por três fatores. A cul­
tura cultivada no interior das forças policiais revelar-se-ia extrem am ente ar­
raigada e difícil de ser removida; a atuação sobre a questão social estava além
das possibilidades do governador do estado, principalm ente no contexto de
um a grave crise econôm ica, e apenas a m édio e longo prazos poderia, se
atacada, surtir algum efeito sensível; finalmente, à retirada da presença des­
pótica e violenta das forças policiais não se seguiu uma política efetiva, que
levasse o Estado e suas instituições àquelas populações. O últim o ponto m e­
rece comentários adicionais.
E sensível, a partir da observação dos depoimentos de brizolistas, de decla­
rações aos meios de comunicação e da postura adotada por Brizola, ao longo
dos anos, a adoção de uma forma de atuação espontaneísta na política. Sendo
assim, à inquirição sobre o papel do partido de incorporar, apoiar e agenciar a
institucionalização de movimentos e associações, o brizolismo contrapôs a con­
vicção de que a própria sociedade e sua dinâmica ou, como o próprio Brizola

84 Depoim ento de N ilo Batista ao autor, em 2 3 /8 /9 6 .

2 88
diria, o “processo social”, levaria a população a organizar-se e encontrar fór­
mulas de satisfação de suas próprias demandas. Ora, há aí um problem a de
difícil solução. Uma vez organizadas, as populações dificilmente foram reco­
nhecidas como atores legítimos, devido à referida dificuldade de Brizola, quan­
do no governo, em lidar com grupos institucionalizados. A desconfiança de
que, uma vez organizadas, as demandas eram necessariam ente capturadas e
instrumentalizadas por grupos e partidos políticos com interesses discutíveis
fazia que a relação do governo do estado com as instâncias sociais organizadas
andasse em círculos. No que toca à questão da segurança, esta postura teve
efeitos desastrosos. Luiz Werneck Vianna, crítico do brizolismo e do que este
representou para o Rio de Janeiro, sintetiza:

"Em relação ao crim e, o governo Brizola tiro u os aparatos policiais das fa v e ­


las p o rqu e eles eram pervertidos. De q u a lq u e r m odo, pervertidos ou não,
qu a n d o eles saíram de lá o crim e o rg an izad o to m o u c o n ta ."85

Esta avaliação, hoje, dificilm ente não seria corroborada por m uitos dos
auxiliares de Brizola. Mas há, também, quem a conteste. Secretário de Justiça
nos dois governos de Brizola, Nilo Batista relaciona as iniciativas brizolistas
nesse campo:

"A questão crim inal foi uma form a de desmerecer todas as iniciativas de Brizola.
N o e n ta n to , nós im p lem e ntam os um a série de realizações: criam os Centros
C o m u n itá rio s de Defesa da C idad an ia em 15 favelas. Fizemos um a d e le g a ­
cia para lid a r com o crim e de discrim ina ção racial. C riam os as Delegacias
Especiais de A te n d im e n to à M ulher, criam os a Casa da Testem unha, que g a ­
ra n tia segurança às pessoas que estivessem à disposição da Justiça com o
testem unhas de acusação de crim inosos. Im plodim os o presídio da Ilha G ra n ­
de, que era o sím bolo carioca dessa concepção penal típica do sécuio XIX e o
C oronel C erqueira (Carlos M ag no N azareth C erqueira) criou o po licia m e n to
com unitário. O problem a é que essas iniciativas tinh am que te r continuidade.
O que não fo i fe ito pelos sucessores de B rizo la."86

É preciso observar, no entanto, que apenas a partir da m etade de seu se­


gundo governo, a segurança pública passou a ser percebida como uma área
prestes a sair do controle das autoridades. Parece indiscutível que o problema
da violência no Rio de Janeiro, a despeito de sua inegável gravidade, serviu a

85 Depoim ento de Luiz Werneck Vianna ao autor, em 2 0 /5 /9 6 .


86 Depoim ento de N ilo Batista ao autor, em 2 3 /8 /9 6 .

2 89
seus adversários políticos como excelente peça de combate. Entre o primeiro
e o segundo governos, houve um interregno onde o governador M oreira Fran­
co, alinhado ao poder federal, nada conseguiu de substantivo quanto à questão.
Além disso, durante os dois governos Brizóla, uma série de m edidas foram
tentadas, com graus relativos de sucesso. Foram de colaboradores seus os pri­
meiros esforços de criação dos tribunais de pequenas causas, que tinham a
dupla utilidade de desafogar o aparato judiciário de um volum e enorme de
litígios equacionáveis aos mediante acordos entre as partes e, simultaneamente,
tom ar a Justiça mais ágil e próxima dos cidadãos. Foram criadas as Delegacias
Especiais de Atendimento à M ulher (Deams) e dados os primeiros passos para
a montagem de um sistema de policiamento preventivo, no qual a Polícia M ili­
tar atuaria em colaboração com as com unidades - o chamado Policiam ento
Comunitário, experiência bem-sucedida em algumas cidades americanas que,
mais recentemente, passou a ser adotado em algumas cidades brasileiras. Este
modelo de policiam ento teve no coronel Carlos Magno N azareth Cerqueira,
comandante da Polícia M ilitar nos dois governos de Brizóla, um de seus m aio­
res entusiastas e defensores no Rio de Janeiro. Tais iniciativas, no entanto,
foram insuficientes - seja pelo fato de exigirem desdobramentos e continuida­
de, seja por serem intrinsecamente insuficientes - para evitar que ocorresse, no
Rio de Janeiro, um processo sem elhante ao que se passa em m uitas outras
metrópoles contemporâneas. Ao longo dos dois governos de Brizóla mas, prin­
cipalmente, no segundo, a cidade do Rio de Janeiro conviveu com índices altos
de criminalidade violenta e, o que foi mais grave, com o crescimento do senti­
mento de medo e insegurança por parcelas cada vez maiores da população.
Devido ao acirramento do debate, marcado pela insatisfação da corporação
policial, pelo temor da classe média e pelo sentimento de desamparo das classes
baixas, que continuaram a ser vítimas da violência policial e dos grupos ligados ao
tráfico de drogas - que cresceram ao longo de toda a década de 80 - , o discurso
de defesa dos direitos humanos, encampado por Brizóla, desde 82, foi se desgas­
tando e sendo cada vez mais vinculado, ceticamente, à inoperância e falta de
energia do Estado em lidar com os criminosos. Brizóla se desincompatibilizou
para a disputa pela presidência da República em 1994 (meses antes, portanto, de
encerrar seu mandato), cercado de insatisfações por todos os lados, vendo sua

87 Sobre os indicadores de crim inalidade violenta no Rio de Janeiro, nesse período, e os debates em torno da questão,
ver Soares et a lii, 1996. Violência e política no Rio de Janeiro reúne uma série de estudos sobre o problem a da
crim inalidade, tendo, com o foco principal, questões relativas aos indicadores de crim inalidade violenta e o debote
sobre o tema, no Rio de Janeiro.

2 90
imagem associada à desordem e ao crime organizado. Esta associação surge já na
segunda metade de seu primeiro mandato e passa a ser explorada politicamente
na campanha de 86. A imagem de carbonário e agitador político, imposta por
seus adversários, nos anos 60 e nos primeiros anos após seu retomo do exílio, é
substituída pelo arrivista, defensor do banditismo e dos traficantes de drogas.
Embora muitos fatores alheios à sua atuação tenham contribuído para isso, como
o aumento da rentabilidade do tráfico de drogas, devido ao crescimento do volu­
me de cocaína injetada no mercado (o que levou a uma maior disputa pelo seu
controle e ao fortalecimento dos grupos a ele ligados), é plausível postular que
uma espécie de açodamento na realização de suas metas e as dificuldades de ater-
se ao planejamento contribuíram para que esta associação com a desordem tives­
se fácil aceitação junto à sociedade como um todo. Se Brizola contou com
figuras sérias e comprometidas com o projeto inicial entre seus colaboradores, foi
também obrigado a optar por recursos e homens nem sempre alinhados com o
sucesso de uma mudança substantiva na política de segurança do estado. O que,
de certo modo, corresponde ao que ocorreu com sua relação com o Legislativo
estadual.
Como observa Luiz Eduardo Soares, a percepção social acerca do cresci­
mento da violência, em um determinado contexto social, não corresponde, neces­
sariamente, ao equivalente aumento dos indicadores empíricos. Há uma razoável
autonomia das representações sociais em relação ao que a organização e a descri­
ção dos dados empíricos revelam. Isso não quer dizer que as percepções sociais
da realidade estejam fundadas em avaliações falsas, pois, sendo a violência simul­
taneamente objetiva e subjetiva, crer nela implica vivê-la. Portanto, não há pro­
priamente percepção falsa da violência, sendo, repito, as percepções, parte do
real, uma dimensão da própria violência. Apenas revela que os componentes que
estruturam as representações coletivas são variados, originam-se de fontes diver­
sas. A inclinação a atribuir à mídia o papel fundamental desses processos deve ser
encarada com reservas. A despeito do peso que os meios de comunicação de
massa possuem nas dinâmicas de construção de imagens e auto-imagens sociais,
não há nenhuma pesquisa empírica que garanta, indiscutivelmente, a existência
de uma relação necessária entre o destaque dado por eles à criminalidade e altera-
89
ções da percepção social sobre o problema. Ainda assim, é razoável postular

88 Ainda aqui, vale frisar que me refiro à aceitação que tal leitura acabou encontrando e não necessariamente seu
rendim ento explicativo.
89 Uma série de pesquisas em píricas, realizadas ao longo da década de 80 e início da de 90 , foi consultada. Nenhuma
nelas logrou estabelecer uma correlação entre aum ento do destaque concedido pela m ídia à crim inalidade e a
equivalente percepção social do fenôm eno.

291
que o papel da mídia é importante nesse sentido. Combinado com outros fatores
como disputas políticas e associações reiteradas ao longo do tempo, os meios de
comunicação acabaram desempenhando um papel importante para que os pri­
meiros anos da década de 90 fossem o contexto de uma mudança radical da
imagem do Rio de Janeiro. A cidade maravilhosa tomou-se a cidade do crime e

do medo. Tal mudança de imagem aderiu à figura de Brizola.
Coincidentemente, 1994, ano eleitoral, foi o ápice do processo de associação
de Brizola com o banditismo. Em 1993, três eventos traumatizaram a cidade. As
tristemente famosas chacinas da Candelária e de Vigário Geral e os chamados
arrastões, transmitidos via satélite para todo o mundo. As chacinas, cometidas
por grupos que tinham entre seus membros policiais civis e militares, davam a
entender que o govemo não tinha controle sobre seus órgãos de segurança. Os
arrastões proporcionavam o espetáculo de permissividade e violência causadas
pela suposta inoperância do govemo. No ano seguinte, a sensação de insegurança
espraiou-se pela sociedade carioca e, já sob o govemo de Nilo Batista, começa
intensa campanha pela intervenção do govemo federal no estado. Pressionado
pela opinião pública e pelos partidos oposicionistas, isolado por boa parte de seus
correligionários, o vice-govemador, que assumira o govemo devido à desincom-
patibilização de Brizola, que disputava as eleições presidenciais, aceita a solução
“conciliatória” e dá o sinal verde para que o Exército assumisse a segurança
pública na cidade. Foi desencadeada a chamada Operação Rio, pela qual o Exér­
cito assumia a segurança com incursões regulares nas favelas cariocas. Estava
sacramentado aquilo que alguns analistas interpretaram como um dos maiores
golpes eleitorais da história republicana brasileira. A impressão de que a interven­
ção do Exército redundara em um declínio do sentimento de insegurança e dos
91
próprios índices de criminalidade feriu gravemente a imagem pública de Brizola.
As vésperas das eleições de 94, a associação da imagem do brizolismo ao caos, à
desordem e ao banditismo triunfara. A extensão dos direitos humanos para as
populações pobres e faveladas, tão entusiasticamente acolhida pela opinião públi­
ca em 82, converteu-se, graças a uma agressiva campanha de setores políticos
conservadores, em defesa dos direitos do banditismo. Defendendo a política de
segurança nos dois govemos de Brizola, Nilo Batista afirma:

90 Para uma descrição jornalística do período, ver Ventura, 1 997. Uma série de estudos sobre o problem a da crim inalidade
e do violência no Rio de Janeiro, que com bina a apresentação e descrição dos dados em píricos sem descuidar da
centralidode da questão das representações sim bólicas produzidas na sociedade, à época, podem ser consultados em
Soares et a lii, 1996.
91 Vale acrescentar que, mais uma vez, a percepção social não correspondeu ao com portam ento dos indicadores, que
chegaram a indicar um aum ento expressivo, durante o período de realização da O peração Rio, pelo Exército, do
núm ero de hom icídios dolosos. Soares et a lii, 1 996.

292
"As elites querem d e ixar com o única atrib u içã o do Estado o papel de cu id a r
da sua segurança. A segurança fe ita por um a polícia que seja sua g u ard a
pretoriana. Com o diz o coronel Cerqueira (Carlos M agno Nazareth Cerqueira),
as elites pediam para a gente m a ta r e nós respondíam os que não era esse o
nosso papel. Essa fo i a polícia brasileira desde sem pre, m as nós qu ería m os
m u d a r isso."92

O sucesso da associação brizolismo/banditismo acabou contribuindo para o


retrocesso na percepção social dos métodos adequados de atuação policial e
ensejando a aceitação resignada, por uma parcela da opinião pública, de estra­
tégias truculentas e discricionárias dos órgãos de segurança, adotadas pelo go­
verno seguinte.

A(s) melancólica(s) morte(s) do brizolismo


ou a memória violada

D iversas vezes a m orte do brizolism o foi anunciada. Assim foi em 86,


quando seu candidato ao governo do estado do Rio de Janeiro perdeu as elei­
ções. De novo em 89, quando ficou conhecido o resultado do primeiro turno da
eleição presidencial. Já fora assim, quando do golpe em 64. Como que m agica­
m ente, B rizola retornou, após cada uma dessas ocasiões, retom ando o tom
com bativo e polêm ico que sempre foi sua marca. R ecentem ente, sua morte
voltou a ser proclamada, não uma, mas três vezes consecutivas. Em duas delas,
após candidatos seus serem derrotados, em eleições executivas para a prefeitu­
ra do Rio de Janeiro (em 92 e 96) e para o governo do estado (em 94). Neste
último caso, o próprio Brizola foi vítima de uma humilhante derrota eleitoral
para o cargo de presidente da República, ficando atrás do exótico Enéas Car­
neiro. A profecia de 90 se cumpria às avessas.
Pesou, para o dito fim do brizolismo, uma série de fatos: a superexposição no
decorrer de período tão longo e conturbado da vida política nacional, a péssima
imagem que lhe ficou impressa nos dois últimos anos de seu segundo mandato,
no Rio de Janeiro - para a qual contribuíram alianças e arranjos políticos mal
costurados - , e defecções no interior de seu próprio partido. Em 1992, um racha
interno em tomo do lançamento da candidatura da radialista Cidinha Campos
para a prefeitura da capital do estado levou uma parte da militância a transferir
seus votos para a candidatura do ex-companheiro César Maia, candidato do
PMDB. O próprio prefeito Marcelo Alencar, que vira seu indicado à sucessão,

92 Depoim ento de N ilo Batista ao autor, em 2 3 /8 /9 6 .

293
Luís Paulo Correia da Rocha, perder a vaga para a candidata de Brizola, orientou
sua militância, discreta e depois ostensivamente, a apoiar César Maia. Ao longo
de seu mandato, Marcelo Alencar organizara um eficaz esquema de mobilização
em tom o de si, especialmente na Zona Oeste. A candidatura de Cidinha e o
conseqüente rompimento de Marcelo revelaram-se fatais para o PDT. Dividido,
o partido sequer foi para o segundo turno, deixando de vencer as eleições até
mesmo em áreas em que era tido como imbatível, como a Zona Oeste. Em
1994, um duro e duplo golpe. Na eleição para o govemo do estado, o candidato
pedetista, Anthony Garotinho, chegou ao segundo turno. Ocorre, no entanto, que
sua candidatura não se configurava como brizolista. Ao contrário, o candidato
tratou de evitar ao máximo a associação de seu nome ao de Brizola. Ex-prefeito
de Campos, onde realizou uma administração bem-sucedida, do ponto de vista
do apelo popular, sua performance significou uma guinada, no desempenho elei­
toral do PDT. Garotinho obteve índices expressivos no interior, enquanto, na
capital do estado, perdeu para Marcelo, no primeiro e no segundo turnos. Mante­
ve a hegemonia na Baixada, embora com uma diferença menor do que as obtidas
em eleições anteriores e viu confirmar-se a perda das bases na Zona Oeste, onde
Marcelo era confirmado como a grande referência eleitoral. Pior do que a perda
do govemo do estado foi o desempenho de Brizola na eleição presidencial. Dei­
xando o govemo do estado em meio a uma crise crônica e cercado de acusações
de todos os tipos Brizola aventurou-se na disputa sem o menor vigor. Sua campa­
nha foi modesta e em nada lembrava o líder de pleitos anteriores. É um mistério
os motivos que o levaram a tal exposição. O resultado, aclamado por muitos
comentaristas com indisfarçável satisfação, surpreendeu as previsões dos brizolistas
mais pessimistas. Brizola ficou em quarto lugar, tanto no estado do Rio de Janeiro
quanto na capital, sendo batido até mesmo pelo folclórico candidato do Prona,
Enéas Carneiro. A morte do brizolismo era mais uma vez anunciada.
Chama a atenção a reiterada alusão ao fim do brizolismo. Ela aparece, de
novo, nas eleições para a prefeitura da cidade do Rio de Janeiro, em 1996. E
ilustrativa a edição da revista Veja, de 25 de setembro de 1996. Na reta fmal de
uma disputa em que três dos quatro principais candidatos eram identificados a
seus padrinhos (Luiz Paulo Conde, Sérgio Cabral e Miro Teixeira eram associa­
dos à disputa pela hegemonia no estado entre César Maia, Marcelo Alencar e
Brizola), a capa da referida revista apresenta os dois líderes das pesquisas
àquele momento, Luiz Paulo Conde e Sérgio Cabral, escalando o Cristo Reden­

93 Ver, no anexo II, a tabela com os resultados do prim eiro turno da eleição para a prefeitura de 1992.

294
tor. Na posição de líder das intenções de voto, Conde aparece no ponto mais
alto do monumento com Cabral um pouco abaixo. Em um ponto mais baixo
que os dois, aparece não a figura do candidato do PDT, M iro Teixeira, mas
exatamente a de Brizola, figurado como o grande derrotado àquele momento.
O anúncio repetido da crise de popularidade de B rizola tem sido, portanto,
renovado, independentemente de sua recuperação junto à opinião pública e ao
eleitorado, numa tomada de posição que, simultaneamente, reitera o fim de sua
carreira política e o mantém, ainda que com a suposta intenção de desmoralizá-
lo, como referência presente nos embates políticos e eleitorais.
Como explicar a derrocada do brizolismo e o interesse que ela parece desper­
tar? Os debates e avaliações apresentadas nas duas seções anteriores dão já algu­
mas pistas acerca dos balanços feitos por correligionários e adversários para a
queda do brizolismo enquanto força eleitoral. Não creio que seja necessário retomar
a elas. Há, contudo, dois fatores que ainda não foram mencionados e que são
fundamentais para muitos brizolistas: a negligência com a divulgação de sua ima­
gem e de suas iniciativas, por um lado, e o isolamento em relação a setores empre­
sariais. Ao longo da pesquisa, foram ouvidos diversos quadros que ocuparam car­
gos executivos e administrativos nos dois governos de Brizola. Todos são unânimes
em considerar que a segunda administração foi muito mais rica em iniciativas e
realizações do que a primeira. Consideram, por isso, espantosos os índices de
rejeição com que Brizola deixa o govemo, ao final de seu segundo mandato. Teodoro
Buarque de Holanda é um dos vários que expressou tal admiração:

"Se com parados os dois governos, é im pressionante com o, no segundo, nós


fizem os um a série de coisas a mais. Fizemos coisas ótim as mas, sim plesm ente
não tivemos qu alq ue r estratégia de divulgação. Então, ficou aquela impressão
de apatia, de inépcia, que não corresponde ao que realm ente aconteceu."94

Há uma percepção bastante ampla entre os brizolistas de que o grande


pecado da segunda adm inistração foi na área de divulgação. Segundo eles,
Brizola não adotou uma postura agressiva que contrabalançasse a campanha de
desmoralização orquestrada por parcela expressiva dos meios de comunicação,
com destaque, é evidente, para as Organizações Globo. Tal postura, explicada
como típica do temperamento do líder, foi decisiva.
A segunda razão, menos citada do que a anterior, é bem expressa pelo
depoimento de Trajano Ribeiro:

94 D epoim ento de Teodoro Buarque de H olanda ao autor, em 1 7 /7 /9 6 .

295
"O Brizóla com eteu, a q ui no Rio de Jan eiro , um e rro estraté gico que Ihe fo i
m ortal: qu a n d o fo i g o ve rn a d o r do Rio G rande do Sul, ele im p le m e n to u um a
p o lític a a rro ja d a de in centivo à in d ú stria local. Ele tin h a c la ra m e n te a p e r­
cepção da im p o rta n cia do e m p re sa ria d o e da in d ú stria p a ra o d e se n vo lvi­
m e n to do esta do. Tanto q u e até h o je ele é m u ito b e n q u is to e n tre o
e m p re sa ria d o gaúcho. A qu i (no Rio de Janeiro), ele não teve a m esm a pos­
tu ra . N ã o criou canais de a p ro xim a çã o com esse seg m en to . Se fixo u m u ito
na coisa do povão e se esqueceu do resto. N o Rio de Jan eiro , as in iciativa s
e o discurso do Brizóla fo ra m exclusivam ente voltadas para as cam adas p o ­
pulares. Isso a cirro u um a certa de scon fiança que as elites já n u tria m p o r
e le ."95

Em bora não tenha exatam ente esse objetivo, o depoim ento de Trajano
Ribeiro sugere ter havido um certo descuido das administrações brizolistas na
área econômica. Talvez por estar excessivamente voltada para as questões na­
cionais, a performance brizolista teria acabado por descuidar dos investimentos
locais. Parece sugerir, também, um certo açodamento em marcar posição como
um líder de perfil predominantemente popular. Finalmente, contradiz, ao m e­
nos parcialmente, as reiteradas associações do brizolismo ao populismo. Ora, é
exatamente a negligência em costurar uma aliança entre os setores populares,
representados por B rizóla e seus adeptos, e as elites nacionais “m odernas”,
representadas pelos setores empresariais, que é apontada como um dos “erros
estratégicos” do brizolismo pós-79. O que é lamentado por um dos mais atuan­
tes colaboradores de Brizóla, ao longo de todo o período estudado, é a ausência
de um dos componentes de base do populismo, tal como definido por Weffort.
M ais um a vez, então, im põe-se o imperativo de relativizar a associação do
brizolism o ao populismo, tão difundida ao longo dos anos. Finalmente, os
brizolistas tendem a considerar que a perda da sigla do PTB teve efeitos devas­
tadores a médio e longo prazos. Como observa Chuay: “A continuidade histó­
rica se dá p o r símbolos, nomes, pessoas. O povo precisa dos símbolos para se

95 Depoim ento de Trajano Ribeiro ao autor, em 1 /9 /9 6 .


96 Um outro dado também aparece, m encionado p o r aqueles que privam da intim idade do líder. Durante boa parte de
seu segundo governo, Brizola viveu o dram a do agravam ento do estado de saúde de sua esposa, dona Neuza. Ao
longo desse período, foram seguidas as viagens que Brizola fez aos Estados Unidos para acom panhar seu tratam ento.
Enfrentou m anobras de adversários que, freqüentemente, am eaçavam não lhe conceder licença para acom panhar a
esposa, cuja doença estava em estágio term inal. A dedicação e d o r com o sofrim ento de sua com panheira de
décadas absorveu Brizola de tal m odo que lhe era impossível fazer frente às acusações e intrigas dos adversários.
Reaparece aqui o líder descrito no segundo capítulo, que forja sua imagem pública sem perm itir ou lançar m ão de
suas qualidades e dramas privados. Brizola jamais fez com que sua angústia pessoal ganhasse dimensões políticas,
nem buscou tirar dela qualquer benefício nos debates enfrentados. A discrição quanto ao dram a vivido é de tal ordem
que apenas as pessoas mais íntim as de Brizola a m encionam. Seria com o uma heresia justificar sua atuação pública
com dados de sua vida privada. Também aqui, o líder é preservado ou, mais que isso, m agnificado.

2 96
sentir parte de um coletivo. A decisão da ju stiç a significou a perda de um
símbolo que era muito importante para n ó s”.
Em balanços realizados em tempos difíceis (especialmente para eles), anti­
gos e novos trabalhistas reconhecem que a perda da legenda contribuiu para as
dificuldades brizolistas. Sem a sigla, Brizola era maior do que o partido, quando
da fundação do PDT. Paradoxalmente, as vitórias e a visibilidade obtidas nos
anos iniciais reforçaram a aura em tomo de si, o que tom ava o PDT refém de
sua capacidade. Fundam ente m arcado pelo carisma, em seus m om entos de
origem, o PDT não teria obtido o mesmo sucesso de reorganização dos movi­
mentos de massa que teria obtido o PTB. Faltou ao brizolismo o símbolo que
cria o vínculo imaginário entre os indivíduos. Brizolista, o novo trabalhismo
perdeu um pouco de sua capacidade de aglutinação, tom ando-se mais vulnerá­
vel aos ataques dos adversários. Da parte dos antibrizolistas, o brizolismo entra
em crise, pura e simplesmente, por ter-se esgotado politicamente. Era já uma
form a de percepção e de atuação política arcaica, que teve um a sobrevida
graças à capacidade de Brizola de comunicar-se com as massas. O arcaísmo
estaria patenteado pelas políticas de aliança, por sua relação com os poderes
públicos e com seu próprio partido.
E m b o ra lev an tem p o n to s im p o rtan tes, as e x p lica çõ es b riz o lis ta s e
antibrizolistas pecam por concentrar-se excessivam ente na própria figura de
Brizola como variável explicativa fundamental. Não levam em conta, por exem­
plo, as mudanças internacionais, ocorridas ao longo da década de 70 e início
dos anos 80. Tampouco dão a atenção devida às mudanças ocorridas no Brasil.
A crise econômica ocorrida em meados da década de 70 e, depois, nos prim ei­
ros anos da de 80, levaram a um redim ensionam ento m undial do papel do
Estado na economia. A social-democracia e o Wellfare State foram pouco a
pouco perdendo espaço. Em meados da década de 80, a Internacional Socialis­
ta já carecia da aura e do prestígio que tivera antes. No Brasil, os prim eiros
anos de liberalização e redemocratização do regime foram marcados pelo con­
fronto de dois projetos antagônicos: o modelo nacional desenvolvimentista, que
postulava uma política econômica de desenvolvim ento auto-sustentável, e o
modelo liberal, que advogava a redução drástica da atuação do Estado na eco­
nomia e o enxugamento de sua máquina administrativa. No final dos anos 80, o
segundo modelo triunfara sobre o primeiro, com o qual se alinhava o discurso
brizolista, inegavelmente. Depois de mais uma década convivendo com taxas

97 Depoim ento de Eduardo Chuay ao autor, em 8 /1 1 /9 6 .

297
altíssimas de inflação e de vários planos econômicos fracassados, as bases do
modelo nacional-desenvolvimentista estavam feridas de morte. Esta é a situa­
ção atual, não há garantias de que seja definitiva.
E entre as versões para a decadência do brizolismo, a que menos enfatiza a
centralidade da figura de Brizola é aquela que relaciona a queda do PDT com a
ascensão do PT. O PT sempre foi uma pedra no caminho de Brizola. Desde que
chegou do exílio, Brizola tentou aproximar-se de Lula. Tal aproximação só se deu
quando do segundo turno das eleições presidenciais, ainda assim, de forma com­
plicada. Fez parte do acordo informal, celebrado para que Brizola apoiasse Lula,
no segundo turno, que, nas eleições do ano seguinte, para o governo do estado, o
PT apoiaria Brizola ou qualquer outro candidato pedetista. O acordo foi quebra­
do pela recusa do PT carioca a cumpri-lo. Nos anos seguintes, Brizola e a direção
nacional do partido, controlada principalmente por dirigentes paulistas, se aproxi­
maram. No Rio, contudo, os petistas permaneceram extremamente refratários à
aproximação com Brizola. Da parte dos petistas, e de alguns outros setores da
esquerda, o PT representaria um partido moderno, organicamente articulado e
internamente democrático, produzindo constantemente em seu interior novas li­
deranças. O PDT, por outro lado, seria um partido pautado pelo caciquismo;
Brizola seria uma espécie de cacique maior, que concentraria em suas mãos, e em
pessoas de sua inteira confiança, o poder de decisão interna. Essa perspectiva é
atestada por uma passagem relatada por Carlos Mine, dirigente petista que, quan­
do no exílio, chegou a estar próximo de Brizola:

"U m a vez, o Brizola foi a m inha casa, depois de a co m pa nha r um a reu niã o do
PSOE. Ele chegou e disse: Pessoal, que m aravilha, o Felipe G onzales fez um a
proposta e, na hora da votação, ele foi derrotado. Isso é que é dem ocracia.
Para o Brizola, prossegue Mine, o líder de um p a rtido perder um a votação era
um a coisa inim aginável. Então, ele (Brizola) com entou: Eu não sou assim. Eu
pego o telefone e digo: em Caxias m anda tu. Em Livramento m anda tu, e assim
po r diante. Eu não sou assim, mas eu quero ser assim, com o o Felipe Gonzales.
Eu quero me im p regn ar de dem ocracia. Bom, relata Mine, a í nós chegam os no
Brasil, passaram dois meses, passaram três meses, quando chegou no qu arto
ele pegou o telefone e disse: fu la n o , em tal lu gar m anda tu. Ele desistiu, disse
que a q uilo era Europa e no Brasil as coisas não podiam fu n cio n a r daquele
jeito. Ele ten to u durante três meses, mas, no quarto, desistiu."98

98 Depoim ento de Carlos M ine ao autor, em 21/1 1 /9 6 .

2 98
O PT, do Rio, esteve para o brizolismo, assim como o PCB estivera nos
anos pré-golpe para a facção brizolista do trabalhismo. Foi o concorrente mais
temido na parcela eleitoral de corte popular. A resposta brizolista às críticas do
PT são contundentes. O PT é acusado de ser um partido pequeno-burgués,
elitista e moralista. Versão modernizada da UDN e do moralismo das classes
médias pseudo-intelectualizadas. Como definía Darcy Ribeiro, o PT, da pers­
pectiva brizolista (especialmente para os militantes de base do brizolismo), é a
UDN de tamancos. Vejo a explicação para a queda do brizolism o atrelada à
ascensão do PT com muitas reservas. Embora seus candidatos tenham obtido
resultados melhores do que os candidatos pedetistas, nas últimas eleições cario­
cas, não houve, até o presente momento, qualquer resultado expressivo, que
denotasse o crescimento da densidade do PT na cidade do Rio de Janeiro, em
especial junto às camadas mais baixas. Tal correlação, portanto, é muito mais
im pressionista do que pautada em dados substantivos. No Rio de Janeiro, o
brizolismo caiu muito, mas o PT cresceu modestamente.
Finalmente, cabe responder a uma segunda pergunta: por que a morte do
b rizo lism o causa tanto in teresse? O m ote m ais acionado pelo discurso
antibrizolista, que permite uma boa margem de generalização, concentra-se na
necessidade de varrer, definitivamente, os resíduos de arcaísmo político repre­
sentados pelo brizolismo. Dessa perspectiva, suas práticas seriam típicas de um
país que já não existe mais, são ressonâncias de uma experiência que não deu
certo e que deve ser sepultada. Para os brizolistas, Brizóla e o que ele represen­
ta é um estorvo para as elites. É motivo de temor e preocupação, daí o enorme
investimento em desmoralizá-lo:

"O PDT é m u ito e m b lem á tico de um a coisa que as elites brasileiras od eia m .
D e ntro da cultura política da elite bra sile ira, o Brizóla representa os desden­
tados, os esfarrapados. As elites ficam pensando: com o Brizóla, essa gente
vai descer e, então, vai ser o cao s."99

Dessa perspectiva, Brizóla e o brizolismo foram vítimas de um dos mais


bem organizados, agressivos e bem-sucedidos conluios das elites antipopulares
para sabotarem a ascensão de um governo popular no Brasil. É possível que
ambos, brizolistas e antibrizolistas, tenham razão em suas posições. Não as
considero propriam ente excludentes. De qualquer modo, creio que há uma
estreita relação entre o interesse no sepultamento de Brizóla e a tendência ao

99 Depoim ento de Vera M alaguti ao autor, em 2 3 /8 /9 6 .

2 99
consenso sobre o desmonte do legado varguista. Brizóla pode ser visto como a
liderança que, ao permanecer atuante na esfera pública reclamando a herança
de Vargas, funciona como uma perturbadora e inconveniente ponte com um
passado que se pretende superar. Ai está o capital simbólico que o alimentou ao
longo dos últimos anos. Aí está, provavelmente, uma das mais fortes razões
para os altos índices de rejeição de que é objeto. Talvez pela conjuntura em
que a pesquisa foi realizada e pelo fracasso de Brizóla em chegar à presidência
da República, é razoável supor que a imagem de estadista associada a ele não
obteve unanim idade sequer entre seus correligionários. Entre os antigos traba­
lhistas, tal avaliação é traída especialmente quando sua liderança é comparada
àquelas exercidas por Vargas e Jango.
Analistas e políticos mais prudentes não apostam no fim do brizolismo. Ao
contrário, são capazes de imaginar dois ou três cenários que tornariam possível,
ainda uma vez, seu retorno ao centro da vida política, no Rio de Janeiro e no
Brasil. Se entendido como um campo de confronto de fantasias e tem ores,
símbolos e mitos, projetos futuros e leituras do passado, como um modo, en­
fim, de tematizar a política brasileira, a prudência parece ser justificada. A luz
das últimas eleições realizadas, o apelo à competência administrativa e ao pla­
nejamento gerencial, combinados com o imperativo de integração econômica,
no âmbito da economia mundial, sobrepujaram, finalmente (será?), a intuição
privilegiada, o espontaneísmo e o nacionalismo. Não creio procedente, porém,
e espero ter deixado evidenciado, supor a redução do brizolismo a mero fenô­
meno eleitoral. De qualquer modo, ele já faz parte da crônica política carioca,
com seu apelo às massas e seu nacionalismo irredutível. Vejamos, então, como
cada um dos pontos explorados ao longo desse trabalho foram tematizados na
praça pública. Mais precisamente, no Movimento Popular da Brizolândia. Dada
a singularidade desse movimento, considerei pertinente dedicar-lhe um capítu­
lo. Alguns pontos já apresentados parecerão repetir-se, mas creio que caracte­
rísticas próprias da dinâmica desse grupo justifiquem a menção renovada. Se­
não, vejamos.

300
V

Notas quase Etnográficas do


País da Brizolândia

praça Floriano Peixoto, popularmente conhecida como Cinelândia, parece


A possuir uma irresistível força de atração para acolher grandes eventos his­
tóricos e pequenos dramas cotidianos. Ali ocorreram as principais manifestações
de massa na cidade. Foi nas suas imediações que os revolucionários de 30 apea­
ram seus cavalos. Para lá se dirigiu a passeata dos 100 mil, no protesto contra o
regime militar, em 1968. Ali perto, também, foi assassinado o estudante Edson
Luís, no restaurante Calabouço, quando começava o período mais duro do regi­
me fundado em 64. A magnitude dos eventos corresponde à suntuosidade das
construções que emolduram a praça, margeada pela Biblioteca Nacional, pelo
Teatro Municipal e, no extremo oposto, pelo Passeio Público. Mas nada disso
seria suficiente para conferir a esse espaço a centralidade que a praça costuma
ocupar na história e na vida pública de uma cidade, mesmo quando esta é uma
metrópole. Nela encontram-se antigas salas de projeção, algumas decadentes e
especializadas em filmes eróticos, conhecidas como um dos principais pontos
de “pegação” do centro da cidade. Há tam bém teatros, botequins, além de
atrativos m enores de um com ércio variado. Também ali está um dos mais
tradicionais bares da boêmia carioca, o Amarelinho. Durante o dia, executivos,
mensageiros, trabalhadores de todo o tipo, homens e mulheres passam por ali
apressados, trombando com mendigos, ambulantes, punguistas e pombos, mui­
tos pombos. Artistas de rua oferecem atrações diversas, democraticamente aco­
lhidas por passantes menos ocupados. À noite, menos frenética, uma popula­
ção ainda m ais diversificada, idades variadas, m istura-se a putas e michês.
Voyeurs passeiam pacientes, enquanto fruem as prom essas de algumas horas
de prazer e descontração. A Cinelândia não é a única praça pública do centro
do Rio de Janeiro, mas, decerto, é a mais glamourosa de todas elas. A diversi-

301
dade da metrópole converge para lá mais do que para qualquer outro ponto da
cidade.
Foi para lá que eu me dirigi no dia 30 de junho de 1992, por volta das 15:00
horas. Na cabeça, a foto do motorista Egberto estampada na capa da Revista Isto
Ê em todas as bancas do país. Pensava na ironia que representava o abalo e a
confusão nacionais causados pelo depoimento de um humilde motorista nordesti­
no, afetando seriamente a imagem de um presidente da República cuja performance
fora marcada, até então, pela arrogância e autoconfiança adquiridas pelos 35
milhões de votos conquistados há menos de três anos. Estava começando minha
pesquisa e interessava-me, sobretudo, a posição assumida por Brizóla naquele
momento. Na verdade, interessava-me não propriamente a postura de Brizóla,
mas as impressões que causava junto a seus correligionários. Em dissonância
com a posição adotada por todas as correntes de oposição, predominantemente
composta por parlamentares e lideranças da esquerda e do centro do espectro
político, Brizóla posicionara-se, desde as primeiras denúncias, contrariamente ao
prosseguimento das investigações e denunciara supostas motivações golpistas
que estariam por trás de todo o movimento contra o presidente Collor. Nesses
dias em que as declarações do motorista trouxeram informações adicionais para o
público, deixando mais evidentes as suspeitas de tráfico de influência e corrupção
na cúpula do governo, com envolvimento direto do próprio presidente, o que o
deixava mais próximo do abismo do impeachment, Brizóla retirara-se para sua
fazenda, guardando um silêncio surpreendente. Logo ele, que se ocupara em
estar no centro dos debates mais polêmicos da história política recente, que se
bateu duramente contra o próprio presidente nas eleições de 89, que apoiou com
ênfase seu adversário no segundo turno, que se elegera, em 1990, governador do
Rio de Janeiro, encarnando a oposição ao governo federal no Rio de Janeiro.
Todas as suas manifestações públicas, desde o início da crise, foram contrárias às
investigações. Agora, quando as evidências parecem indisputáveis, retira-se do
centro dos debates e se cala.
Eu cruzei a rua Alcindo Guanabara, em direção à Cinelândia, motivado
pela convicção de que este era o momento propício para começar meu trabalho
de pesquisa empírica. Aquele que nesse contexto fechasse posição com Brizóla
estaria plenamente apto para ser caracterizado como brizolista incondicional,
sendo, portanto, fonte privilegiada para meu trabalho. A pequena intimidade
com a “turm a” brizolista, meus conhecimentos parcos sobre fontes potenciais,
acabaram empurrando-me para o que parecia a melhor solução: a Brizolândia.
Em meu percurso, passo por dois ou três grupos de senhores que conversam

3 02
gesticulando muito. Intuo que fazem parte do universo que estou prestes a
conhecer. Venço, por timidez, a tentação de deter-me em qualquer um deles e
sigo adiante. Desemboco, finalmente, na praça. Há pombos, muitos pombos.
Não gosto deles, dão coceira no meu nariz. É um dia quente. Cam inhando
lentamente, localizo uma barraquinha rústica, de madeira, postada à esquerda
da escadaria do prédio da Câmara dos Vereadores. Vou até ela. Em seu fundo,
dois posters coloridos de Brizóla. No canto, a xerox ampliada de uma foto de
Brizóla, provavelmente do início dos anos 60. Abaixo dela, outra xerox, tam ­
bém ampliada, de uma matéria jornalística sobre Lotti. Não há dúvidas, che­
guei ao campo. O contraste do aspecto precário da barraquinha com a suntuosi-
dade do prédio legislativo é óbvio. M enciono porque me chamou a atenção
imediatamente. No interior da primeira, estão uma senhora de idade bem avan­
çada e um homem negro. Ambos têm aparência bem humilde. Encostados à
barraquinha, dois homens. Um deles já bem idoso, o outro aparenta 40 anos ou
um pouco mais. Constrangido, sem saber muito bem o que dizer, apresento-me
como jornalista de um jornal alternativo, interessado em escrever um artigo
sobre a visão popular a respeito dos rumos tomados pela CPI do PC (assim era
chamada à época) e da posição assumida por Brizóla. Fecham-se as caras. O
homem negro, funcionário da barraquinha e a quem cham arei de Valdeck ,
responde acabrunhado que não pode declarar nada sem a autorização do parti­
do. Percebo, de passagem, que faltam-lhe os incisivos, os caninos e os laterais.
Impasse. As caras permanecem fechadas. A senhora, de dentro da barraquinha,
não me concede sequer o seu olhar mal-humorado. Insisto. O homem de cerca
de 40 anos, que chamarei de José, concede-me uma indicação: olha, é só você
circular por aí que você vai ouvir um monte de gente esclarecida falar o que
pensa. Interpretei como um convite para que me retirasse. Em poucos dias,
porém, percebi que me enganara. José apenas me iniciava na dinâmica anárqui­
ca e informal daquele reduto.
Não creio que estivesse equivocado em minha escolha. A Brizolândia ou o
M ovim ento Popular da Brizolândia, como preferem seus entusiastas, reuniu
traços e características suficientes para transformar a praça em um dos mais
pitorescos acontecimentos da crônica política carioca dos anos 80 e início dos
90. A começar pelo nome. Até onde tenho notícias, é o primeiro movimento

1 Com exceção de Pernambuco e do professor Silvio, que aceitaram gentilm ente gravar depoimentos para minha
pesquisa, os demais informantes aparecerão, neste relato, com pseudônimos. A recusa em prestar atenção nas
motivações de m inha estada ali deixa-me constrangido em revelar a identidade daqueles que, sim uladam ente ou
não, conversavam com o se o estivessem fazendo com um "com panheiro" em potencial.

303
com alguma duração que leva o nome do líder a que se filia sem tê-lo como
m entor ou dirigente regular. De estilo estridente e combativo, suscitou senti­
mentos de temor, rancor e curiosidade por parte da população interessada em
política. Ocupou as páginas dos jornais dedicadas à política, da m esma forma
que poderia ocupar as páginas policiais, devido ao grande número de conflitos
protagonizados por seus membros, especialmente em períodos eleitorais. Atraiu
olhares desconfiados, interessados ou depreciativos da parte dos dirigentes do
próprio partido liderado por Brizola e a que se filiaram. Em seu período áureo,
chegou mesmo a rebatizar, m etonimicam ente, com seu nome, a praça onde
nasceu e firm ou raízes por m ais de um a década. A despeito das fantasias,
geralmente negativas, criadas em tom o dela, e mesmo que acabe por cair no
esquecimento dentro de alguns anos, a Brizolândia foi um movimento popular
cuja atuação na vida pública da cidade deverá ficar na m em ória ao menos
daqueles que foram seus contemporâneos.
Segundo depoimento de um de seus fundadores e presidente por seis anos,
Pernambuco, a Brizolândia surgiu em 2 de abril de 1982, quando começava a
esquentar a briga pelo sucessão de Chagas Freitas ao governo do Estado. A
população do Rio de Janeiro preparava-se para, depois de 16 anos, eleger seu
governador pelo voto direto. As pesquisas davam a Sandra Cavalcante, candidata
do PTB, e Miro Teixeira, do PMDB, o favoritismo na disputa. Leonel Brizola,
recém chegado do exílio com a aura de principal opositor ao golpe de Estado que
levara os militares ao poder, aparecia, conta a lenda, com 2% das intenções de
2
voto. Após anos de m udez forçada, a população discutia preferências e a
Cinelândia voltava a ser um dos fóruns privilegiados para os debates políticos e
suas inevitáveis dramatizações. Espaço público, nela são realizadas manifesta­
ções de apoio a um ou outro candidato, comícios e grandes concentrações. Terra
de ninguém, ela é palco de conflitos entre cabos eleitorais e simpatizantes de
candidatos rivais. A praça é disputada palmo a palmo, pelo discurso inflamado e
pelo tapa, por muitos gmpos. Foi então que Pernambuco, segundo seu próprio
relato, tomou a decisão de ir à praça. Farto da estrutura excessivamente burocrá­
tica e distante das massas que, segundo sua avaliação, caracteriza o funciona­
mento dos diretórios e seções do partido, Pernambuco passa a ir todos os dias à
Cinelândia. Faz discursos inflamados nas escadarias da Câmara dos Vereadores,
conta a história recente do país, fala da Campanha da Legalidade, do golpe de 64,

2 N õo consegui apurar, em meus levantamentos na imprensa da época, a publicação de qua lquer sondagem ou
pesquisa de intenções de voto realizada em abril que apontasse apenas 2% de intenções de votos a Brizola. C om o a
alusão a esse núm ero é recorrente entre os pedetistas, especialmente entre os m ilitantes, registro-o neste trecho.

3 04
da trajetória política de Brizola. Seus discursos inflamados atraem curiosos.3 En­
tre um discurso e outro, Pernambuco aproxima-se de seu público, faz o trabalho
de corpo a corpo, debate, pondera, persuade. É ele próprio que recorda:

"U m dia eu disse: gente, vamos fe ch a r o d ire tó rio e vam os pra rua. Eu fui
sozinho. Eu com ecei assim, lá na escadaria: gente hoje é 2 de ab ril e eu tô
aqui hoje porque não comecei ontem e não com ecei ontem porque dia 1 ° de
abril é o dia da m entira e o que eu vou dizer aqui é tud o verdade. Eu comecei
assim, ali nas escadarias. A í eu falava, fazia um retrospecto da vida do Brizola.
Pra m ostrar pros jovens de até 35 anos. M a rte la n d o a q u ilo , o porquê do g o l­
pe. Eu pegava o que saía no jo rn a l e lia. Depois eu dizia: sabe o po rqu ê
disso? Foi p o r causa disso, isso e isso. Foi p o r isso que eles d e ram o golpe.
Fazia esse tra b a lh o de conscientização. Nós queríam os, nós po rqu e não era
só o Brizola, queríam os faze r um novo país. Eu com eçava às 9 horas e ia até
o m e io -d ia . Depois com eçava de novo às 2 horas e ia até às 10 horas. Eu
com eçava o tra b a lh o de conscientização. Era eu sozinho. D aqui a pouco veio
o João Carlos. Depois vieram outros com panheiros que eram ouvintes e que
assim ilara m , que tin h a m a m esm a id eolog ia mas não gostavam de pa rtid o ,
de to m a r posição pa rtid á ria , vieram o João Carlos, o professor Silvio... Então
já tin h a um g ru p in h o ali, e a q uilo fo i generalizando. Foi qu an do eu senti que
tin h a gente com os mesmos objetivos. A inda não tinha a Brizolândia. Existia o
que eu cham ava o g rito na praça. Eu dizia: eu vim aqui d a r o g rito de lib e rta ­
ção desse pa ís..."4

O trabalho, a princípio solitário, ganha adesões. Cresce o número de compa­


nheiros que se revezam com Pernambuco nos discursos e dividem com ele o
trabalho miúdo de conversar, debater, esclarecer, conscientizar. A campanha es­
tadual ganha força e, com ela, a candidatura de Brizola. A disputa por espaços na
praça pública, na estação Central do Brasil e em outros pontos movimentados da
cidade se agudiza, toma-se mais intensa e dismptiva. Surpreendentes os efeitos
das ações humanas. A rigidez da legislação que regula a campanha, cerceando
fortemente os candidatos, contribui para que os debates ganhem as mas, ocupem
espaços alternativos ao horário eleitoral das estações de rádio e televisão. E, nas
mas, as palavras acabam sendo parcas, insuficientes. Dão-se conflitos corporais
entre militantes que apóiam as candidaturas de Miro Teixeira e Brizola, Sandra

3 O le ito r fam iliarizado com a dinâm ica das praças centrais do Rio de Janeiro sabem m uito bem com o é grande a
capacidade de qualquer um que se disponha a expor-se publicam ente de atrair a atenção dos passantes e form ar
pequenas m ultidões em torno de si, seja cantando, recitando, exibindo dotes futebolísticos, vendendo coisas ou
fazendo discursos.
4 Depoim ento de Ernani "Pernam buco" Correa ao autor, em setembro de 1995 .

305
Cavalcante e Brizola. A candidatura de Brizola cresce e sua miltância passa a ser
mais estridente. A Brizolândia surge sob o signo do conflito e das disputas que
então ocorrem. Ganha em dimensões e em visibilidade. Começa a aparecer na
crônica política carioca como um grupo violento e afeito a confusões. Esse estig­
ma não parece incomodar muito seu fundador. Ao contrário, parece mesmo ir ao
encontro de suas expectativas. O depoimento sobre a iniciativa de ir à praça é
bastante elucidativo sobre sua maneira de encarar a política, a qual não está isenta
de um forte componente conflitivo.
Ir à praça equivale, fundamentalmente, a romper com as práticas viciadas e
burocratizadas das instâncias organizacionais e decisórias do partido. E dispor-se
a enfrentar a aleatoriedade e a diversidade do espaço da rua, aceitando todas as
suas implicações. Representa uma percepção francamente espontaneísta e ativista
da atuação política. Atuar politicamente significa ir ao povo, contar-lhe a verdade,
conscientizá-lo. Não tenninam aí, porém, as razões que levam o militante devota­
do à praça. Sobretudo num contexto eleitoral, é importante o recrutamento de
novos militantes, a reunião de um número maior de companheiros. Em seu traba­
lho na praça, Pernambuco procurava reunir um grupo dotado de qualidades espe­
cíficas. Deveria ser heterogêneo, de modo a reunir pessoas de classes, credos e
raças distintas, com diferentes níveis de escolaridade. Em comum, seus membros
deveriam ter as convicções políticas - a escolha da causa popular - e a disposição
de enfrentar o que fosse em sua defesa, mesmo o confronto físico, literalmente.
Com tais atributos, coesão e solidez internas, esse grupo formaria uma espécie de
vanguarda do movimento popular, capaz de formar a ponta de lança do movi­
mento político que tinha como referência principal a figura de Brizola. Cumprir
tal missão implicava necessariamente enfrentar os adversários onde eles estives­
sem, especialmente na rua.
"Eu qu e ria faze r um m ovim ento de van gu arda . N ã o n e g o cia r as suas po si­
ções, não a b rir dem ais, não deixar en tra r qu a lq u e r um , não aceitar benesses
nem do Brizola. A B rizolândia bateu de fre n te com o Brizola q u a n d o ele fez
acordo com o chaguism o. Na Brizolândia, nós tínham os um gru po lite ra lm e n ­
te heterogêneo. Em tud o, ou seja, cultura, social... Você tin h a lá, vam os dizer,
desde o com panheiro sem i-analfabeto, assistente de pedreiro, até o a d vo g a ­
do, o contador, até o ad m in istra d o r de empresas. Era um gru po d ifícil de a d ­
m inistrar, você tin h a m uitas classes sociais e intelectuais. Ficou esse tra b a lh o
de conscientização ideológica partidária. Nem m uito de partido. Eu nunca fui
m u ito de pa rtido , de freqü en ta r... eu era a ru a ."5

5 Depoim ento de Ernani "Pernam buco" Correa ao autor, em setembro de 1995.

3 06
O depoimento de Pernambuco recupera uma dimensão quase heróica dos
momentos decisivos da reinvenção do brizolismo. Seguindo seu relato, creio ser
possível dividir a curta história desse movimento em dois períodos. O primeiro
deles, que poderia ser chamado romântico, compreende o período de sua cria­
ção, sua vigência informal, durante a campanha de 82, sua oficialização como um
dos 16 movimentos então existentes no interior do PDT, indo até 1988, quando
Pernambuco passa a direção para seu primeiro sucessor, Ferreirinha. É a época
em que a atuação do grupo é mais estridente. Há um grande esforço de estruturação
do movimento, que inclui intenso trabalho de recrutamento de quadros, cuja
aceitação subordina-se a rigorosos critérios ideológicos, políticos e, por curioso
que pareça, comportamentais. Ainda segundo Pernambuco, foram aceitos como
membros oficiais do Movimento Popular da Brizolândia 420 candidatos entre
muitos outros rejeitados. Ao serem aceitos no movimento, os candidatos recebi­
am uma carteirinha e eram obrigados a filiar-se ao PDT. Com Ferreirinha, po­
rém, relata Pernambuco, começa um trabalho maciço e indiscriminado de incor­
poração de novos membros, o que leva ao inchamento e diluição ideológica que
marcam o início da decadência, o segundo período de existência da Brizolândia.
Minha estada na praça inicia-se em 1992, muito tempo depois, portanto, do fim
de sua época áurea. Aquela altura, Hugo Peixoto, um senhor inquieto mas pouco
comunicativo, presidia o movimento. Não disponho de material de observação
para atestar a precisão da cronologia estabelecida pelo relato de Pernambuco. A
relação estabelecida entre o período de sua direção e o auge do m ovimento
sugere reservas óbvias. Registro-o como relato de segunda mão, mas devo obser­
var que Pernam buco era figura fartam ente m encionada e respeitada pelos
freqüentadores mais antigos da Brizolândia enquanto lá estive, e freqüentava a
praça com regularidade, mesmo mantendo-se afastado da direção do movimento.
Foi lá que mantive os primeiros contatos com ele, antes de registrar cerca de duas
horas e m eia de depoimento, concedido particularmente. A acusação por ele
proferida refere-se mais a uma suposta perda da pureza ideológica e política do
movimento do que propriamente por seus métodos de atuação ou mesmo ao
espaço alcançado na imprensa. Mesmo quando Ferreirinha já m igrara para o
PSDB, junto com Marcelo Alencar, e levara para o ninho tucano o estilo que
consagrara a Brizolândia, a mídia não deixou de fazer alusão ao já então tratado
como o antigo grupo que nascera na Cinelândia sob o signo e com o nome de seu
líder maior. Como se verá mais adiante, ainda em 1996 o nome da Brizolândia
será evocado como símbolo de um estilo de atuação política que vicejou na
cidade do Rio de Janeiro nos primeiros anos da década de 80.

307
Pernambuco confessa-se um brizolista de muitas décadas. M ilitava no anti­
go PSB antes do golpe de 64, jam ais se considerou um trabalhista, detestava o
PTB e o fisiologismo que, a seu ver, marcava sua prática. Guarda “severas”
restrições a Vargas, embora reconheça nele e em sua obra algumas virtudes.
Contudo, desde essa época já era fã incondiconal de Brizola, para quem fez
campanha em 62. Aponta na estrutura dos partidos, sua burocracia e rotina, um
mal que leva seus dirigentes a esquecer a única razão de ser da política: o
contato com as massas. É esse o mal que faz com que veja com reservas várias
lideranças políticas e seu próprio partido como um todo. Decidiu ir à praça para
trabalhar, a seu modo, pelo líder que identifica como veiculador de suas própri­
as idéias, sem deixar-se contam inar pelos im perativos que a necessidade
organizacional do partido impõem. Faz questão, contudo, de esclarecer que sua
adesão não é personalista:

"A B rizolândia não defend ia e não defende a fig u ra física de Brizola. Nós
d e fendíam os e defendem os suas idéias. Porque ele, m esm o com tod os os
seus senões, eu ainda acho ele diferente do que está aí. Ele é um hom em que
luta pelo país, pelas riquezas do país. Luta pelo povão, em b ora o povão não
tenha reconhecido."6

Sem cerimônia, confessa-se avesso aos intelectuais em geral e aos cientistas


políticos em particular, a despeito da proximidade de sua própria percepção da
política com as idéias que celebrizaram alguns dos profissionais desse ofício. O
relato de sua trajetória sugeriu-me a hipótese de que talvez, na memória carioca,
a presença de Brizola, ressemantizada, tenha sido mais efetiva do que a própria
memória trabalhista. Ao menos na Brizolândia, foi muito comum a combinação
de referências elogiosas a Brizola e críticas duras ou tácitas ao trabalhismo.
Estava encostado à barraquinha, acompanhando, de longe e cansado, os
debates de um grupo de três ou quatro freqüentadores. De repente, Pedrinho
resolve entrar na discussão: o negócio é o seguinte, o M arcelo (Alencar) tá
vacilando, mas o Brizola não tá com essa bola toda não. O governo que ele tá
fazendo é dos piores. Eu sou brizolista mas não sou fanático... eu vejo as
coisas, porra! A gente apóia, mas se vê que o negócio não tá legal a gente tem
que falar. Comigo é assim. Eu não sou massa não, porra! Eu sou politizado.
Enquanto falava, Pedrinho levantara-se da cadeira onde estava sentado. Cada
vez mais exaltado. A princípio, todos pararam para ouvi-lo, mas em pouco

6 Depoim ento de "Pernam buco" Correa ao autor, em setembro de 1995.

308
tempo passaram a retrucar. Entre eles, Valdeck era o mais veemente. Tentou
dialogar com Pedrinho que, como funcionário da barraquinha, goza de muito
prestígio. Como não tivesse êxito, Valdeck passou a berrar com o companheiro,
com a clara intenção de calar-lhe a boca. Num dado momento, já com pleta­
mente descontrolado pelas críticas do companheiro “ao nosso líder”, Valdeck
grita o mais que pode: ô rapaz, cala a boca que o cara aí - aponta para mim - é
jornalista. Amanhã sai em O Globo que a Brizolândia tá falando mal do Brizóla
e isso não pode acontecer. Rindo, pergunto a Valdeck se ele pensa que sou
jornalista de O Globo. Valdeck: não sei né. Tudo é possível. O inimigo vive
infiltrado no meio da gente só pra depois ter motivo para falar mal do Brizóla
nos jornais e na televisão. Pergunto se isso acontece com freqüência, e ele, já
mais calmo e um pouco constrangido, responde: acontece. Acontece a toda
hora. A gente não fica nem sabendo quem é. O inimigo tá aí por toda parte. É
que nem o demônio, ele tem muitas caras.
A ênfase no conflito configura uma percepção da política marcada essencial­
mente pela guerra. Temos, assim, uma definição de política muito próxima da-
7
quela defendida por Cari Schmitt. A política é guerra, e sua prática implica a
formação de alianças e a definição dos adversários. A lógica da política é pautada
pela dicotomia amigo/inimigo. A Brizolândia é criada como se levasse tal postula­
do ao pé da letra. Empenha-se em varrer seus adversários da Cinelândia, promo­
ve pancadarias célebres. Um ex-militante do MR 8, grupo também muito conhe­
cido pelos conflitos que protagonizou e que se alinhava a Miro Teixeira (PMDB)
em 1982, recorda: a Brizolândia a gente respeitava, com eles a porrada era boni­
ta. Trata-se de estabelecer alianças, definir o inimigo e agir para destruí-lo. Se o
amigo tem um nome, emprestando-o ao próprio movimento, o inimigo também é
personalizado. No passado, foi Lacerda, presentemente, Roberto Marinho. A
política é o palco de grandes confrontos, onde figuras de expressão e qualidades
inegáveis se batem pelo poder. Depois de Brizóla, os nomes mais pronunciados
na praça são os de seus principais adversários do passado e do presente. Lacerda
é reconhecido como um político sagaz e competente. Possuía virtudes inestimá­
veis. Lamentavelmente, porém, fizera a sua escolha e esta o inclinara para as
elites. Foi uma liderança da direita, das forças contrárias às aspirações e necessi­
dades do povo. Já Roberto Marinho, não tem as mesmas qualidades, mas com­
pensa suas carências com um poder assustador. E capaz de imiscuir-se nas filei­
ras de seus adversários para enfraquecê-los e aniquilá-los. E um inimigo perigoso,

7 Schmitt, 1976.

3 09
pelo império que controla e pelas alianças que firmou. A grandiosidade do inimigo
está em relação direta com a do amigo. Apenas Brizóla tem a coragem, a sagaci­
dade e a vontade de enfrentar inimigos tão qualificados, de expor-se aos seus
golpes alinhado com os deserdados e excluídos. Estar na praça falando por seu
líder (aqui não é o líder que fala por seus liderados) equivale a compartilhar com
ele um pouco da grandeza de sua escolha. Também significa expor-se aos golpes
contra ele desferidos. O inimigo é perigoso, imiscui-se por toda a parte, tem
várias caras, é sorrateiro e cumpre desígnios funestos. Cabe estar atento para
evitar surpresas.
Não costumo ser muito afeito às conversas travadas em filas. As filas dos
bancos me irritam particularmente. Naquele dia, no entanto, estava bem dis­
posto. Abandonara momentaneamente a praça, que estava especialmente ani­
mada, para pagar uma conta de gás na agência 13 de Maio do Banco do Brasil.
Como de costume, a fila era imensa. Tinha pressa em voltar à praça e continuar
meu trabalho. Dispus-me, contudo, a aceitar os com entários de parceiros de
suplício e travar conversa. Atrás de mim, um rapaz muito baixo estabelece a
inevitável correlação entre a demora do atendimento e a conjuntura política, a
inflação e a crise do serviço público. Traindo meus hábitos, dou-lhe atenção.
Golpe de sorte, ao longo da conversa revela-me ser muito interessado em polí­
tica. Seu pai é um trabalhista “desde antigamente”. Ele próprio, porém, afirma,
não seguiu os passos paternos. E brizolista. Surpreso, interesso-me ainda mais
pelo informante inesperado. A essa altura da pesquisa, qualquer um que sem
mais rodeios se autodefina como brizolista é informante em potencial. Diz-se
que o brizolismo está em crise. Tudo indica que está mesmo. Animado com a
conversa, revelo que ao vencer a fila interminável irei para a Brizolândia, local
que freqüento regularmente para conversar sobre política. Não fui muito feliz.
M eu interlocutar assume ter críticas severas à Brizolândia. Eles são muito irra­
cionais, radicais e apaixonados, assegura ele. M eu interlocutor é fanho e tenho
dificuldades de entender o que diz em suas frases rápidas, acompanhadas de
movimentos não menos rápidos dos olhos, que raramente fixam-se num ponto.
Não quero constrangimentos e dou-lhe parcela de razão, aludindo à obsessão
que têm em ver Roberto M arinho por trás de tudo o que ocorre de ruim na
política brasileira e em todos os percalços sofridos por Brizóla. Não fui feliz
novam ente. N esse ponto, m eu interlocutor ressalva, os com panheiros da
Brizolândia têm razão. Seu pai é um trabalhista antigo e tem fontes fidedignas
que asseguram que Roberto Marinho, o verdadeiro, vive há muitos anos nos
EUA. Aquele que aparece na televisão e nos jornais é um sósia, um agente do

310
FBI, que ocupou o lugar do original para monitorar melhor os rumos políticos e
econômicos brasileiros. Meu espanto não é simulado. M eu interlocutor percebe
e sugere-me um teste empírico infalível: quando ele aparecer na televisão dan­
do entrevista, preste atenção ao jeito esquisito com que ele fala. Ele é muito
bem treinado, mas tem um pequeno problem a de fala que só quem sabe a
verdade percebe. Preste atenção na fala dele. Você vai ver como é estranha.
Chegou a minha vez de ser atendido. Ainda estou sob o impacto de revelação
tão estarrecedora. Meu interlocutor, fanho, despede-se: preste atenção como a
fala dele é esquisita, nós ainda vamos desmascarar esse homem.
Como em Cari Schm itt, a política form al não passa de encenação, de
estetização da política real. Se para Pernambuco, em observação que arrancaria a
concordância entusiástica de Robert Michels, a burocratização dos partidos afas­
ta seus dirigentes das massas, autonomizando-os em relação a elas, a lógica parla­
mentar não se revela menos árida. Mistificação burguesa, canal de negociação de
interesses escusos e patrimoniais, o parlamento é encarado como um mal com o
que somos obrigados a conviver. A hostilidade nem sempre sutil existente entre a
Brizolândia e o partido a que está ligada aparece em alusões de parte a parte. Na
Brizolândia, o partido e seus dirigentes são vistos, no mínimo, com desconfiança.
Alegam haver no partido muita gente “de olho” no movimento, por ser o único a
ostentar o nome do “chefe”. Da parte de quadros e dirigentes, a dinâmica anár­
quica do movimento não causa impressões mais favoráveis. Bayard Boiteux, um
dos antigos líderes pedetistas mais simpáticos à Brizolândia, recorda-se de uma
eleição para a direção do movimento a qual foi convidado a presidir:

"(...) ia haver eleição na B rizolândia. P erguntaram se eu po dia p re sid ir (a


eleição). Eu disse: claro. Eu tava to d o dia lá (na sede do pa rtido ). Eu p e rg u n ­
tei: a que horas vam os começar. Vamos com eçar às qu atro. A í, qu a n d o ia
com eçar, eu p e rgu ntei: cadê a lista? Eles disseram : não tem lista, vo ta tod o
m undo. Com o? V otar to d o m undo? N ã o vota, não faço essa eleição. Então
um a senhora te le fo n o u para o Brizola. Depois o Brizola te le fo n o u de volta:
professor, o que houve? O senhor não quis pre sidir a eleição? Eu disse: não
quis porque não tinh a lista de presença. Chegava lá e quem quisesse votava.
Pegava o sujeito na rua e votava. Eles tom ava m atitud es, em g e ral, m u ito
boas. Eram figuras hum anas boas. Eu achava positivo, mas era um m ovim en­
to p o p u la r sem ideologia. Havia m uita briga entre eles. N ão era nada id e o ló ­
gico não. Cada qual queria ser m elhor que o outro. O m e lh o r presidente foi o
Pernam buco. O pessoal respeitava m uito e le ." 8

8 Depoim ento de Bayard Boiteux ao autor, em m aio de 1995.

311
Há, no entanto, avaliações mais duras, como daqueles que transferem para
a Brizolândia um adjetivo muito utilizado contra os brizolistas como um todo.
Desta perspectiva, a Brizolândia representaria o lúmpen do partido, sua militância
é considerada inorgânica e desorganizada. Longe de ajudar, ela teria acabado
por dar sua contribuição para denegrir a imagem de Brizóla e a adesão a ele. As
avaliações mais generosas encaram o movimento como mais um traço pitores­
co da política que só uma liderança genuinamente popular como Brizóla pode
suscitar. Seja como for, a inorganicidade citada por seus críticos é contraditada
pelos membros da Brizolândia como singularidade de seu perfil e objetivos.
Possuem ideologia mas é parte dela não submeter-se a constrangimentos for­
mais que neutralizariam sua maneira de encarar a política. Vêem em Brizóla um
líder que compartilha dessa mesma percepção e concede aos imperativos for­
mais por pura devoção à causa popular. Não se consideram lúmpen, posto que
conscientes e organizados suficientemente para fazer valer, mesmo no interior
do partido, seu modo de atuar.
Razoavelmente familiarizado com a dinâmica cotidiana da Brizolândia, sei
que trata-se apenas de um debate acalorado. Os dois interlocutores insultam-se
até, mas o insulto é uma forma de aceitação do grupo, denota que o indivíduo
está incorporado, suas posições exasperam, devem ser levadas em conta, ainda
que para que se as modifique. Estou entre os dois. Cada um dos interlocutores
fala ao outro dirigindo-se a mim. Como querendo convercer-me de suas razões
e do equívoco do adversário. Enquanto falam, ou berram, cospem na minha
cara. Isso me incomoda, mas devo manter-me firme, atento. A discussão gira
em tom o das eleições para a prefeitura do Rio de Janeiro. Ambos são negros,
aposentados e com aparência bem hum ilde. Olho ora para um, ora para o
outro. Não quero ser indelicado. Desvio-me como posso da saliva com que os
dois me atingem seguidamente, a despeito de meus esforços. Ambos não gos­
tam de Cidinha Campos. Cabral, 57 anos, votará nela porque é a candidata do
PDT. Se pudesse, suspira, votaria em César Maia. Souza, 64, embora também
não goste de Cidinha e também pretenda votar nela, aconselha seu companhei­
ro, aos gritos: nós temos que votar na pessoa certa. E a pessoa, seu caráter e
sua capacidade que importam. Esse negócio de partido não tem nada a ver. O
partido não é a pessoa. Não vendo muita coerência entre a declaração de voto
de Souza e o conselho dado ao companheiro, peço explicações sobre sua posi­
ção. E o bastante para uma nova confusão se instalar em nossa pequena roda.
Apenas uma coisa parece não gerar discordância entre meus dois interlocutores:
ambos se declaram brizolistas, acima de tudo. Pergunto o que acham de seu

312
líder. É Cabral quem responde, Brízola é o único político capaz de tirar esse
país da miséria. Ele é o único político verdadeiro que nós temos nesse país.
M eu sonho é ver o Brizola presidente da República. É deixarem o Brizola
resolver os problemas que a gente enfrenta. Tem gente que diz que ele é um
ditador. Eu também acho, mas e daí? O que importa ele ser um ditador se ele é
um homem iluminado? Você considera o Brizola um ditador? pergunto. Cabral,
com ar grave e a boca deserta de dentes, considero! Um homem como ele... ele
é um ditador que se preocupa com o bem do povo. E sabe o que o povo
precisa. Souza se cala. Talvez comovido com as palavras do companheiro.
Ser brizolista não equivale necessariamente a ser pedetista. O partido não
importa muito. A rigor, não importa nada. O que vale são as pessoas e, entre
elas, a maior de todas. Não são poucos os freqüentadores assíduos da Brizolândia
que sequer são filiados ao partido. Mais do que isso, não o são “por razões
ideológicas”, recusam a instituição partidária como canal legítimo de organiza­
ção e participação. Votam em Brizola, votam em candidatos do PDT, mas não
abrem mão de “sua independência”. Silvio, conhecido na praça como “o pro­
fessor”, justifica seu afastamento da Brizolândia, depois de militância intensa
na campanha de 82, exatamente pela obrigatoriedade estabelecida, quando da
formalização do movimento, de seus associados filiarem-se ao PDT. Conside­
rou tal exigência uma afronta à sua liberdade e afastou-se da praça, ainda que
se tenha mantido um fervoroso brizolista.

"Eu não q u eria saber do PDT, de nada disso. N o fu n d o , no fu n d o , era um a


vaidad e que eu sentia em saber que não havia ¡eito do Brizola p e rde r aqui no
Rio. N ã o vou p e rte n c e r a p a rtid o n e n h u m . C o m o v ic e -p re s id e n te da
B rizolândia, eu me com p rom e ti a não pe rte nce r ao pa rtido . A í fo i f a t a l. " 9

A dificuldade em adequar-se aos procedimentos e rituais próprios de uma


organização estruturada fica patente nas reuniões “oficiais” do movimento. Quan­
do iniciei minha pesquisa, o Movimento Popular da Brizolândia tinha suas reu­
niões sem anais todas as quintas-feiras, a partir das oito horas da noite, no
auditório da sede do partido, à rua Sete de Setembro. Tais reuniões eram inva­
riavelm ente esvaziadas, com pouquíssim os freqüentadores. O esvaziam ento
contrastava com o número de habitués que faziam das imediações da barraca
um espaço movimentado, sempre com um número de pessoas bastante razoá­
vel e que crescia com o cair da tarde. A maior parte desses freqüentadores,

9 Depoim ento do professor Silvio ao autor, em junho de 1 992.

3 13
mesmo os mais eloqüentes e respeitados, jam ais participava das reuniões na
sede do partido. Talvez esta seja uma das razões para o esvaziamento do m ovi­
mento, mencionado por Pernambuco. Uma espécie de contradição interna en­
tre o espírito espontaneísta e anárquico que animou sua criação, e atraiu, por
razões diversas, muitos simpatizantes, e a necessidade de, um a vez ampliado,
assum ir procedim entos negados em sua origem. Assumir tais procedim entos
implicaria a negação dos princípios que presidiram a iniciativa original. Manter
os princípios originais, ainda que tacitamente, teria acabado por tornar o m ovi­
mento incapaz de atuar mais efetivamente na esfera política, mesmo no univer­
so reduzido do partido a que pertencia, o que, a m édio prazo, acabou por
precipitar seu esvaziamento. Visto sob esse prisma, a história da ascensão e
queda do M ovimento Popular da Brizolândia e o caráter tensionado de suas
relações com o partido a que pertencia é ilustrativa dos impasses enfrentados
pelos movimentos de massa, em especial da tradição socialista. A política como
guerra lhe valeu certo destaque na imprensa e prestígio junto a parte da militância.
A recusa aos procedimentos formais do partido e da lógica representativa leva­
ram ao isolamento e à cristalização institucional.
A complexidade de tal questão fica patenteada na história eleitoral. A des­
peito da recusa à estetização da política, utilizando o termo no sentido conferi­
do por Cari Schmitt, três presidentes do m ovimento lançaram seus nomes a
cargos legislativos. Pernambuco e Ferreirinha à Assembléia Legislativa, e Hugo
Peixoto à Câmara dos Vereadores. Não conseguiram eleger-se. O fracasso elei­
toral dos três é significativo. Nenhum deles teve apoio da máquina partidária.
No caso de Hugo Peixoto, cuja campanha coincidiu com uma das minhas esta­
das na praça, o partido chegou mesmo a solicitar da B rizolândia o uso do
auditório no horário reservado às reuniões anteriormente mencionadas. Curio­
samente, tanto o candidato quanto seus colaboradores mais próxim os, todos
sempre dispostos à polêmica, encararam a decisão do partido com muita natu­
ralidade. Essa reação surpreende porque, mesmo levando-se em conta a preca­
riedade daquele espaço para funcionar como uma espécie de comitê de campa­
nha, ele era o único de que dispunham, além da barraquinha da praça. Tudo
ocorreu como se não houvesse uma relação direta entre a candidatura de Hugo
e o desempenho eleitoral do próprio partido. Além disso, o fracasso eleitoral
sugere os limites do movimento, no que tange a seu raio de alcance. Concebido
como um movimento de massas, estridente o bastante para ser tomado como
tal, a Brizolândia parece jam ais ter conseguido ir além daquele contingente
errático de interessados na política, que se revezavam , ao longo do dia, na

314
praça. Também aí, ficam patenteadas as dificuldades do movimento em articu­
lar-se para levar adiante seus objetivos, tidos por muitos, em seu próprio parti­
do, como absolutamente inconseqüentes. Também aí ficam patenteadas as difi­
culdades de diálogo entre partido e Brizolândia.
Curiosamente, os freqüentadores da Brizolândia são cabos eleitorais muito
cobiçados no partido. A tenacidade e o entusiasmo com que se atiram às tarefas
proselitistas e propagandísticas atraem a cobiça dos quadros partidários em
períodos eleitorais. Em épocas de campanha, o ambiente na praça muda sensi­
velmente. N a entressafra eleitoral, os freqüentadores são preferencialmente se­
nhores de certa idade, muitos deles aposentados, principalm ente do serviço
público. Eles caminham vagarosamente, no ritmo daqueles que o tempo ensi­
nou a não ter dem asiada pressa, de um lado para o outro, de um círculo a
outro. Alguns chegam mesmo a arrastar, sutilmente, os pés. O vigor de seus
discursos, as vezes verdadeiros monólogos coletivos, contrasta com os ombros
arcados. Ficam como que rejuvenescidos. Poderiam jogar dominó, mas prefe­
rem atuar politicamente, proferindo discursos exaltados. Assim atuando, fazem
parte da história. Enquanto falam, cospem. Muito. Penso que a despeito do
entusiasmo e vigor retórico, esses senhores têm pouco a ver com os militantes
ensandecidos e beligerantes, merecedores do respeito até mesmo dos não m e­
nos exaltados partidários do MR-8. Lembro, porém, que estou na praça apenas
a partir de 1992, quando, segundo a descrição de Pernambuco, o movimento já
estava em rota descendente. Nos períodos de campanha, as coisas mudam.
M ilitantes muito mais jovens passam a freqüentar a praça assiduamente com
camisas e material de propaganda de seus candidatos. Qualquer candidato do
PDT tem acento na barraquinha. Esta é uma norm a que não se discute. Os
dissensos internos do partido migram para a praça. Cabos eleitorais de candida­
tos rivais se hostilizam. A tensão é maior, mesmo entre os brizolistas habitues.
A rigor, só se dissipa quando aparece o outro - os militantes e cabos eleitorais
dos demais partidos. Quando isso acontece, os brizolistas da B rizolândia se
unem, dirigem insultos a seus inimigos, ameaçam-nos com os paus de suas
faixas e bandeiras, ligam o equipamento de som ordinário e improvisam discur­
sos inflamados, tomam posição de combate ante o inimigo que invariavelmente
se afasta, prudente, para longe da faixa nobre da Cinelândia. Afastado o inimi­
go, confirmada a hegemonia e a posse de seu território, os debates prosseguem.
Em minha estada na praça, anoto, apressadamente, pedaços de diálogos,
depoimentos que me ficaram na memória. Tento reproduzir cada um tal como
os ouvi - as vezes em que saquei o gravador, antes de aposentá-lo definitiva-

3 15
mente para minhas incursões na praça, causaram explícita contrariedade e mal-
estar entre meus informantes. É impossível garantir que, na sofreguidão de
registrar no diário os diálogos e depoimentos, não tenha estilizado alguns, in­
ventado outros. Quantos não o fazem ali? Aqueles freqüentadores, assíduos ou
não, dedicam boa parte de seu engenho a construir cotidianam ente versões
sempre aperfeiçoadas de passagens da história política brasileira e análises so­
bre problemas atuais e casos do dia. Dedicam boa parte de suas vidas a essa
tarefa. Talvez inócua, para quem é de fora. Fundam ental para eles. Para a
manutenção de um espaço que lhes pertence e onde constroem laboriosamente
sua identidade. Anoto o discurso de Cabral sobre o estilo de Brizóla. Ocorre-
me, não sem um certo constrangim ento, que talvez a dem ocracia não tenha
para muitos setores, formados por pessoas até interessadas em política, a im­
portância que tem para outros. E que estas mesmas pessoas não se sintam de
modo algum compelidas a simular tal descaso. Ouvi muitos discursos do tipo “o
povo não quer democracia, isso é demagogia burguesa. O povo quer trabalho,
escola, hospitais, e salário”. Não são poucos, na Brizolândia, os que pensam
assim. Quase todos concordam com Cabral, o Brasil precisa mesmo é de um
ditador que olhe pelo povo.
Uma outra interpretação, mais generosa, sobre as posturas assumidas frente
à democracia formal, pode ser tentada. Sendo em sua maioria pessoas de estratos
econômicos mais baixos, os freqüentadores da Brizolândia tendem a encarar a
democracia “verdadeira” como um sistema em que o acesso aos bens fundamen­
tais à inclusão social seja universalizado. Insistem, sobretudo, na necessidade de
melhoria dos serviços de saúde e educação. Vivem os efeitos da exclusão muito
proximamente. E comum um companheiro chegar à praça justificando a ausência
na véspera por ter perdido o dia inteiro tentando ser atendido no hospital. Pen­
sam, assim, numa democracia em que as condições de vida em tomo deles sejam
diferentes. Democracia social, poderíamos dizer, é sua prioridade. Dado que a
consolidação da institucionalidade política democrática não se traduz necessaria­
mente em avanços efetivos na promoção de um sistema social mais equânime, no
que toca aos bens fundamentais, consideram-na um avanço muito tímido, peque­
no burguês, para lhes proporcionar maiores entusiasmos. As relações entre de­
mocracia formal e democracia social são abordadas com freqüência e a seu modo
na praça. Também o foram na tradição do pensamento político. De uma certa
perspectiva, a ênfase maior na segunda em contraposição à primeira, no período
de formação das democracias modernas, acabou por suscitar sistemas políticos
instáveis e vulneráveis a abalos e retrocessos. Esta é a perspectiva assumida, por

316
exemplo, por Hannah Arendt, em seu estudo sobre a Revolução.'0 Comparando
as experiências francesa e americana, a autora sublinha a ênfase na organização
da institucionalidade política empreendida pelos “pais fundadores” americanos
como fator fundamental para o sucesso e a consolidação de seu sistema político.
Os revolucionários franceses, por outro lado, ao darem prioridade à democracia
social, especialmente a partir de 92, relegando ao segundo plano o problema da
organização da participação, acabaram por enfrentar uma série de convulsões,
avanços e retrocessos, que se estenderam até o século XX. Num contexto de
valorização da democracia formal como sistema político onde são maiores os
canais de participação e organização de interesses por parte dos mais variados
setores sociais, os riscos de uma hipertrofia da questão social, virtualmente se
sobrepondo à questão política, tendem a gerar reservas por parte de amplos
segmentos políticos democráticos. No caso brasileiro, este é um ponto da maior
importância. Como já foi registrado anteriormente, as forças políticas do período
de 45/64 tenderam em grande parte a negligenciar os aspectos formais da demo­
cracia política. Por parte dos chamados setores progressistas, a questão social
tinha notória prevalência sobre os arranjos institucionais. Após o golpe e ao longo
da década de 70, a fragilidade e o pouco apreço aos mecanismos institucionais
são alçados a fatores explicativos fundamentais para o colapso do regime, o
cuidado para com eles passa a ser tema central dos formuladores da reconstrução
da democracia. Algumas abordagens tenderam a encarar a questão social como
problema subordinado ao da democracia formal, não dissimulando um certo re­
ceio de que a inversão das prioridades condenasse o sistema político à reprodu­
ção de antigos erros. Levada aos extremos, tal preocupação acabou por gerar
uma certa desconfiança quanto às posições assumidas a partir da prevalência da
questão social, encarando-as como potencialmente disruptivas e ameaçadoras à
nonnalidade democrática. Devemos notar que estas não têm a ver apenas com
idéias gerais e/ou normativas sobre a ordenação política. Elas têm conseqüências
práticas, posto que se traduzem em posições políticas encampadas pelos atores
no processo de redemocratização no Brasil. Definiram o espectro de alianças
firmadas e os rumos da vida política brasileira recente.
A correlação entre a ênfase na democracia social e a negligência para com a
democracia formal, porém, não é necessária. Mesmo a tradição liberal mais re­
cente encara a questão social, a criação de mecanismos inclusivos no que toca ao
acesso a bens sociais, como de fundamental importância para a consolidação de

10 Arendt, 1988 .

317
valores e mecanismos institucionais democráticos. Penso aqui em autores como
John Rawls e Samuel Huntington, que em linhas de análise bastante distintas
coincidem em reconhecer a centralidade da justiça social para a saúde dos siste­
mas políticos democráticos. No Brasil, Francisco Weffort, um dos mais duros
críticos do arranjo político do regime de 45, responsável por uma das primeiras
formulações críticas do chamado pacto populista como um sistema político per­
verso, ineficaz e excludente, publica em 1992 um livro com o sugestivo título:
Que democracia? Nele, o intelectual paulista aponta os riscos que o modelo
sócio-econômico brasileiro, fortemente excludente, representa para a prosperida­
de da democracia política que então começava a ser desenhada. Sendo assim, e
levando-se em consideração o perfil dos freqüentadores da Brizolândia, predomi­
nantemente pessoas dos estratos sociais mais baixos, é compreensível que a de­
mocracia, quando não visceralmente articulada a ações efetivas sobre a questão
social, não represente algo muito além de um mero jogo árido de procedimentos e
palavrórios inócuos. Avaliação que, por outro lado, não se distancia muito daque­
la formulada por Cari Schmitt sobre o regime parlamentar.
De fato, penso que os brizolistas da Brizolândia operam ali, na praça, sua
própria estetização da política. Falam incansavelmente, discutem e entendem
estar, assim, fazendo política. É como se fossem capazes de realizar a política
pelo confronto literal, e a negação da política, pela importância que dão aos
debates. Estes últimos são permeados por um sistema de regras que só com o
tempo somos capazes de perceber. Minha ignorância sobre os códigos de condu­
ta daquele reduto foi a principal causadora da impressão inicial de rejeição à
minha presença ali. Ao aproximar-me pela primeira vez da barraca, cometi dois
erros: apresentei-me dizendo nome e profissão (uma profissão fictícia, que men-

11 Samuel H untington chama atenção para o fato de que em contextos de regimes autoritários, quando o desempenho
econôm ico propicia m elhorias nas condições de vida, há uma tendência, especialm ente entre setores m édios, à
am pliação das expectativas em torno da liberalização do regime e à am pliação das liberdades. Contextos de crise
aprofundado tendem , por outro lado, a ser terreno propício paro o advento de regimes de exceção com fortes
com ponentes salvacionistos. H untington, 1994. De um ponto de vista teórico-filosófico, John Rawls, inspirado em
Kant, postula a form ulação de um princípio de com patibilização da liberdade com a igualdade, atrovés da noção de
"véu da ignorância". Segundo Rawls, a definição de um princípio universalizável de justiça poderio ser tentada através
do exercício segundo o qual todos os atores sociais, ignorando o lugar efetivo que ocupam na sociedade, entrariam
em acordo sobre os bens fundam entais que deveriam ser universalizados. Desse m odo, e sem saber sua própria
situação, os atores chegariam a um consenso m ínim o, sintetizado pela idéia de eqüidade de oportunidades, pelo qual
cada um teria a oportunidade e a liberdade de desenvolver suas aptidões e preferências segundo suas escolhas e
possibilidades individuais. Com isso, Rawls pretende preservar a liberdade individual sem, contudo, deixar de lado a
igualdade com o princípio fundado r da justiça. Ver Rawls, 1981. A relação de autores que reconhecem as conexões
entre prosperidade econôm ica, baixos níveis de desigualdade social e solidez dem ocrática é enorm e. Os autores
m encionados foram escolhidos aleatoriam ente. Esse é um debate antigo e não tenho a pretensão de entrar nele. A
associação livre que estabeleço serve apenas para m arcar a pertinência dos debates encam inhados pelos brizolistas à
m aneiro da praça.
12 A m enção a W effort é puramente exem plificotiva. A rigor, muitos analistas, mesmo entre os que assumem posições de
reserva quonto à ênfase na questão social, reconhecem a centralidade da questão social para consolidação da
dem ocracia política.

3 18
cionei supondo ser mais facilmente assimilável do que a minha real). Tal formalismo
ergue uma espécie de barreira interativa. Quem ali está interessado no nome de
alguém? A menção ao nome parece sugerir que aquele que o enuncia pretende
ser alguém digno de se notabilizar, o que é inadmissível naquele espaço. Quanto à
profissão, a despeito do mal entendido ocorrido quando Valdeck suspeitou que eu
pudesse ser um agente de Roberto Marinho, não há nela, em si, qualquer proble­
ma especial (o leitor deve recordar-se que me apresentei, inicialmente, como
jornalista). Mas enunciada de forma abrupta e não precedida de qualquer mani­
festação de curiosidade (o que dificilmente ocorreria), também causa má impres­
são. Dias depois da primeira visita, quando já me identificava como um pesquisa­
dor especializado na área de ciências sociais, as reações não eram diferentes.
Indiferença ou, no máximo, irritação, para com quem insiste em informações
supérfluas e secundárias. E estranhamente comum companheiros encontrarem-
se literalmente todos os dias, conversarem com animação e sequer saberem os
nomes um do outro. Rigorosamente falando, o método adequado de aproxima­
ção ao grupo restringe-se a simplesmente parar em uma das rodas e acompanhar
a conversa. Testemunhei com freqüência debates acalorados, e, posteriormente,
ao interpelar um dos debatedores sobre a identidade do outro, obtive como res­
posta um cândido e negligente: “não sei, nunca o vi aqui antes”. Dados pessoais
absolutamente triviais como nome, idade ou profissão simplesmente não fazem
parte da pauta de socialização daquele grupo. Ferir essa espécie de etiqueta, de
semi-anonimato interativo causa, no mínimo, um explícito estranhamento. Tal
característica impõe sérios problemas para a realização de uma pesquisa criteriosa
sobre o perfil sociológico da Brizolândia, o qual abordarei mais adiante, mas, por
outro lado, sugere algumas pistas sobre os componentes simbólicos que funda­
mentam uma espécie de ética do grupo.
Ali, na praça, estão cidadãos conscientes ou em vias de conscientização,
como concedem os mais modestos. Não são indivíduos privados mas atores
públicos. Em item im pressões, relem bram fatos passados, analisam critica­
m ente a história e o contexto político brasileiros. Vão à praça celebrar o
princípio identitário que fundamenta suas posições políticas. Ao debater, rei­
teram, quase que ritualm ente, sua identidade. Ao longo do dia, as caras m u­
dam, mas os discursos permanecem semelhantes. Existe ali uma espécie de
campo discursivo global, único, um jogo de linguagem com um , ainda que
com posições assimétricas. As individualidades perdem im portância frente ao
discurso que se repete e tem prevalência como se fosse parte da atm osfera
local. B rizóla é o nome do sujeito virtual (ausente) desse discurso comum. É

319
o que co n fere a todos a n o ção de p erte n cim en to . N ão estão ali, seus
enunciadores concretos, como profissionais, membros de algum a classe, de
algum gênero ou etnia. São brizolistas e constroem coletivam ente a personali­
dade pública de Brizola e do brizolista. Muitos são os significados, tácitos ou
explícitos, que compõem uma e outra, mas tais significados são finitos. A l­
guns outros seriam inadmissíveis.
Converso com Pernambuco. José, como de costume, está ao meu lado. O
ex-presidente da Brizolândia traça um longo histórico do movimento. É noite de
sexta-feira. A praça está cheia e penso que por um breve período estarei ausente
dali. Pernambuco fala, entusiasmado, para dois ouvintes atentos. Num determi­
nado momento, José toma a palavra, mãos fincadas nos bolsos da calça, ele
(Pernambuco) tem razão. Esse lugar é muito importante para as pessoas. Ele é
muito importante para esclarecer as pessoas... para ajudar as pessoas a verem a
realidade... a verdade das coisas. Eu tomo por mim. Em 82, eu sempre passava
aqui... conversava com os companheiros. Eu era Sandra Cavalcante naquela
época. Eu achava Brizola um safado, um cara perigoso... um comunista. Eu
achava o Brizola um comunista agitador. Por quê? Porque eu tava iludido por
todas as mentiras que a direita e os meios de comunicação criam para enganar o
povo. São mentiras muito bem tramadas... criam uma complicação danada e a
gente acaba sendo enganado. Eu chegava aqui... eu não brigava... mas era Sandra.
Eu chegava em casa, brigava com minha irmã, que já era brizolista. Dizia que os
brizolistas eram fanáticos... que o Brizola isso, o Brizola aquilo. Mas eu tava
sempre aqui. E, aos poucos, eu comecei a perceber as coisas. Os companheiros
foram me ajudando... me ensinando e me mostrando as coisas como elas são.
Me mostrando a verdade das coisas. Aí, você vai percebendo que a verdade é tão
simples... que toda aquela complicação que a imprensa inventa só serve pra te
confundir, para enganar o povo. A verdade é simples, fácil de ver... só não vê
quem está cego. Os companheiros daqui te ajudam a você abrir os olhos... mos­
tram a verdade para você. E depois que você vê, fica tudo diferente.
Ir à praça e conscientizar o povo. Essa era uma das tarefas, o leitor se
recorda, que Pernambuco impunha a si mesmo quando decidiu-se a ir para a
praça. Segundo seu modo de ver, pertencer ao Movimento Popular da Brizolândia
representava algo que apenas alguns poderiam conseguir. Mesmo assim, medi­
ante um rigoroso exame de suas convicções ideológicas e princípios éticos.
Apenas com o trabalho lento e criterioso de conscientização e conversão o
movimento se expandiria. Afinal, no começo não era apenas ele que estava lá?
Participar da Brizolândia exigia uma ética espartana de devoção à causa popu­

3 20
lar. Pernambuco menciona com freqüência o caso de um antigo companheiro,
dos tempos románticos, que foi afastado do movimento por gostar em demasia
de “beber umas e outras”. Ser brizolista implica adotar uma postura marcada
pela retidão do com portamento e contenção dos hábitos. Além, é claro, de
firmeza ideológica. Adotando um comportamento exemplar e dedicado á causa
pública, os membros associados ao movimento formal estariam aptos a fazer
daquele espaço um local de conversão pelo esclarecimento.
A ênfase no problem a da ética é constante nos debates travados na
Brizolândia. Talvez seja um dos pontos centrais das posições assumidas. Ali, a
questão da modernização do país, tal como veiculada pelas elites políticas, não
passa de m istificação. Para seus freqüentadores, o Brasil necessita de uma
renovação moral. A rigor, é a moral o principal problema a ser enfrentado. Ir à
praça para conscientizar o povo é a grande tarefa a ser cumprida, pois está na
parca conscientização popular o maior de todos os impeditivos para a m oderni­
zação do Brasil. A situação brasileira é dramática pela carência de virtude públi­
ca. A carência é comum tanto entre as elites políticas e econômicas quanto
junto às massas. As elites, contudo, ainda conseguem beneficiar-se da situação,
obtendo ganhos que são interditos a amplos segmentos da população mais po­
bre. Tal diagnóstico dá acesso a uma das chaves fundamentais para a compre­
ensão da estrutura simbólica que preside o universo da Brizolândia: a dicotomia
povo/massa. A massa é ignóbil, facilmente manipulável por deixar-se guiar não
pelos profetas ou m anipuladores, mas por desejos m esquinhos e imediatos.
Ignorante, segue, sem reflexão detida, os imperativos das paixões, seduzida por
promessas falsas de líderes inescrupulosos e sem virtude. Deixa-se seduzir pela
esperança de ganhos fáceis e imediatos. Não é afeita à luta.
Ser povo significa o oposto. Significa deter-se na reflexão sobre “a realida­
de das coisas”, dedicar-se à tarefa de melhorar a própria vida sem excluir os
benefícios devidos a seus concidadãos. É possuir espírito público e dedicar-se a
ele. A dicotomia massa/povo, portanto, não se refere a aspectos sociológicos,
posto que ser um ou outro independe de qualquer form a de inserção social.
Tampouco diz respeito a questões econômicas, já que tanto o empresário quan­
to o mais humilde trabalhador pode estar em uma categoria ou em outra. Tal
dicotomia não é formada por categorias psicológicas, tendo em vista que não
está diretamente relacionada a questões de fundo psíquico. Ela funciona como

13 Devo registrar que todas as vezes que me sentei no Am arelinho, para tom a r um gelado e m erecido chopp, estive
sempre sozinho, e pude, ali, fazer as anotações em meu diá rio sem ser im portunado.

321
uma espécie de principio regulador do compromisso e inserção ética dos indiví­
duos na vida pública. Ser povo significa pertencer a uma comunidade de indiví­
duos esclarecidos e interessados nas questões referentes ao espaço público.
Significa fazer da política não apenas objeto de interesse pessoal, mas também
o canal de pequenas realizações práticas que apontem para a superação dos
problemas estruturais da realidade brasileira. Assumir incondicionalmente a op­
ção pelos excluídos contra o imperialismo. Isso equivale a estar disposto, entre
outras coisas, a ir à praça falar e fazer política. Equivale, também, a expor-se
ao confronto direto com a massa que, ignorante, engrossa as fileiras inimigas.
Equivale, finalmente, a ser capaz, aproveitando o depoimento do ex-militante
do MR-8, de expor-se a uma porrada bonita.
Ser m assa corresponde a ser não-povo. Daí a veem ência com que os
freqüentadores da Brizolândia afirmam ser povo. São parte de uma seleta elite
consciente, que adquiriu e cultiva a virtude pública. Esforçam-se por disseminá-
la, mas reconhecem as limitações de seu poder. Apenas através de um intenso
esforço de democratização da educação escolar tal objetivo será plenam ente
alcançado, repetem sempre. Talvez esteja aí a razão do prestígio que o projeto
dos Cieps detém ali. Impossível saber se o destaque dado à educação escolar
precede à intensa propaganda em torno do programa implementado por Darcy
Ribeiro, já no primeiro governo Brizóla no Rio de Janeiro. Não creio que esse
tipo de especulação faça diferença.
Eu e José conversávamos despreocupadam ente quando meu interlocutor
apontou para um grupo que se formara a poucos metros de onde estávamos,
conversa com aquele senhor ali. Ele sabe tudo de política. Aproximamo-nos os
dois. O senhor fala eloqüentemente. E um funcionário público aposentado.
Tem cerca de sessenta e muitos anos, impossível perguntar sua idade sem ser
extremamente indelicado. O assunto é a briga entre Brizóla e Marcelo Alencar
em tom o da candidatura de Cidinha Campos à prefeitura do Rio de Janeiro.
Segundo meu informante, Marcelo está fazendo uma boa administração mas
não está se preocupando com a unidade do partido. Cidinha, embora incompe­
tente do ponto de vista administrativo, é a candidata da unidade e deve receber
o apoio de todos. Já familiarizado com a dinâmica da praça, introm eto-m e,
intempestivamente na conversa, mas Cidinha é a candidata do Brizóla e não do
partido. Visivelmente satisfeito com a interpelação, como se fosse um desafio
argumentativo facilmente contomável, o senhor responde que é Brizóla quem
sabe o que é m elhor para o partido. Cidinha é boa de voto e isso é o que
importa. Uma vez eleita, será o caso de cercá-la de gente competente, capaz de

322
administrar a cidade por ela. Além disso, Cidinha é honesta. Desonesto não fica
no PDT, afirma ele, porque Brizola não deixa. Veja o Aguinaldo Timóteo, o
César Maia, o Saturnino. Começaram a fazer safadeza... acabaram expulsos do
partido. E, com o ar de quem está bem informado... o Marcelo que abra o olho.
Ele fez uma boa administração, mas eu não sei não... já andei ouvindo umas
histórias envolvendo ele... Tento saber detalhes, mas meu interlocutor não vai
além de especulações gerais sobre possíveis negócios suspeitos envolvendo o
prefeito do Rio. Penso que, em meio á crise interna por que passa o PDT, já foi
iniciado o processo de “fritura” do prefeito. O quase monólogo do senhor se
estende por mais de um quarto de hora até surgir a oportunidade de desviar o
assunto para o tema de meu interesse. Pergunto ao senhor se ele acredita que
Collor esteja envolvido nas falcatruas do PC. D iante do reconhecim ento da
plausibilidade da ligação, chego finalmente ao ponto, como o senhor vê o apoio
de Brizola ao presidente? Ora, é ele quem fala, quem quer a cabeça do presi­
dente são os seus ex-amigos e os eternos inimigos de Brizola! Mas o Antônio
Carlos M agalhães e o Hélio Garcia mantêm o apoio ao presidente e sempre
foram alvos de Brizola, retruco. Sem dar-se por vencido, o senhor afirma que
quem está por trás da CPI é a Fundação Globo e o imperialismo americano.
Lem bra-m e que Collor foi eleito pelo povo e agora só nos resta “aturá-lo”.
Quando ainda era tempo, prossegue, Brizola avisou. A esquerda ficou dando
apoio ao “boçal” do Lula, agora não pode reclamar. Brizola está defendendo a
vontade do povo, sua escolha. Na opinião desse senhor extremamente respeita­
do na Brizolândia, a CPI é uma reedição de outros m ovimentos golpistas da
história brasileira. Discorre longamente sobre cada um deles, conferindo a to­
dos um mesmo significado. Ações e reações de grupos ligados à elite e ao
capital americano buscando chegar ao poder pela força. Fala dos eventos em
45, do movimento que levou Getulio ao suicídio, da crise que precedeu a posse
de Juscelino, da renúncia de Jânio, do movimento contrário à posse de João
Goulart e, finalmente, ao golpe de 64. O golpe de 37 é a única exceção para seu
modelo interpretativo. N essa ocasião, o movimento que im plantou o Estado
Novo visava dar prosseguimento a uma política favorável ao povo. Nesse caso,
o golpe era justificável. A situação criada pela CPI se enquadra no modelo
interpretativo geral. É uma tentativa de golpe contra a qual Brizola mais uma
vez se ergue, como fizera em 64 e na campanha da legalidade. O senhor tem
um raciocínio rápido. Fala bem. Escapa, com classe, das m inhas perguntas
francamente provocativas. Familiarizado com a dinâmica interativa local, não
temo mais o insulto. Pergunta, surpreendentemente, minha idade e, diante da

323
resposta, dispara, com uma complacência paternal, você é m uito novo, tem
muito ainda o que ver e aprender sobre política. Indica-me um livro. Não se
recorda do nome do autor e o título tem algo a ver com veias da Am érica
Latina. Não sabe ao certo. Garante que encontrarei o livro em um sebo da rua
Sete de Setembro e que é leitura obrigatória para quem quer saber algo de
política.
O diálogo é longo. Em seu curso, outros companheiros juntam -se ao grupo
inicial. Chamo de diálogo por convenção. Trata-se de um monólogo, raramente
interrompido por minhas perguntas, sempre provocativas, e por murmúrios de
aprovação às palavras do ilustrado senhor. Ele é um intelectual da praça. São
poucos os que, na Brizolândia, conseguem ser ouvidos sem interrupções fre­
qüentes. O quase m onólogo segue até o m om ento em que, por um m otivo
qualquer, todos passamos a falar ao mesmo tempo. Dois outros senhores, que
também compunham a roda, voltam a discutir sobre as eleições para a prefeitu­
ra, olhando para mim enquanto falam. Tonto com a confusão, percebo que já
sou um interlocutor como outro qualquer. Passo a ouvi-los com atenção, dei­
xando de lado o senhor que me dera uma aula de história política brasileira do
ponto de vista da praça.
Ouvi ali com freqüência comentários desdenhosos sobre minha profissão.
Os intelectuais insulados na Academia têm acesso apenas à história do Brasil
oficial. Aquela urdida pelas elites para enganar o povo, para mantê-lo na condi­
ção de massa. Outra é a situação dos freqüentadores da praça. Lá são realiza­
das cotidianamente verdadeiras aulas sobre o Brasil recente. Nela, eventos se
articulam, conferindo inteligibilidade à nossa condição atual. A queda de Vargas
em 45, a crise de 54, as tentativas de im pedir a posse de JK, a criação do
sistem a parlam entar em 61 e o golpe de 64 são eventos cuja com preensão
articula uns aos outros. São todos dotados de um mesmo significado: tentativas
bem sucedidas ou fracassadas de conter o desenvolvimento nacional e a eman­
cipação popular. A história é cíclica. M arcada por avanços da causa popular e
de golpes que visam contê-la. O caso da CPI de PC Farias também é enquadra­
do nessa mesma perspectiva. Depois de quase 30 anos, foi dado ao povo brasi­
leiro o direito de escolher pelo voto o seu presidente. Fernando Collor, alçado
ao cargo máximo da República com o apoio de setores francamente conserva­
dores, começou a dar sinais de interesse pela causa popular. Dado irrefutável
para a com provação da mudança: a aproxim ação com Brizóla. A partir do
momento que Collor recebe Brizóla em Brasília, dispõe-se a adotar em todo o
país o modelo de educação implementado no Rio de Janeiro através do progra-

3 24
ma dos Ciacs e libera verbas para a conclusão das obras da Linha Vermelha,
seus desígnios ficam claros para seus antigos aliados: Collor mudou de lado e
está disposto, em parceria com o governador do Rio de Janeiro, a imprimir um
caráter popular a seu governo. Diagnosticada a mudança, a elite urde um complô
para derrubar o presidente eleito. Medidas populares tópicas seriam toleráveis
pela elite, dariam legitimidade ao governo, mas a aproximação a Brizola é into­
lerável. Sugere que a mudança pode ir longe demais. É, portanto, necessário
agir, desmoralizar o presidente, derrubá-lo. Não propriamente por ele, mas por
Brizola. E Brizola o alvo da conspiração, uma vez que é ele o representante
legitimo e incondicional das causas populares. Vista por esse prisma, a CPI do
PC nada mais é do que a reatualização de uma marca da história política brasi­
leira. Por isso, deve ser combatida. A questão da veracidade das acusações é
secundária, posto que está em curso uma mudança de posição do presidente.
Que sejam perdoados, ou mesmo esquecidos, seus pecados passados. O maior
deles foi, sem dúvida alguma, a escolha de seus aliados, a definição de seus
amigos. Ao declará-los seus inimigos agora, o presidente como que se purifica,
se redime e merece crédito de confiança. Afinal, é evidente sua aproximação a
Brizola e tal movimento não representa pouca coisa. As denúncias repetidas,
emitidas pelos antigos aliados do presidente, fazem parte de uma estratégia de
neutralizar sua escolha e liquidá-lo politicamente. É preciso defendê-lo, para
evitar que uma vez mais a conspiração da elite (poderíam os dizer, da elite -
massa) triunfe sobre os interesses populares.
A CPI que aponta para o impeachment de Collor tem como alvo principal
o governador do Rio de Janeiro. Mas não apenas. É a própria população do
Rio de Janeiro e o que ela representa que está sendo atingida. Afinal, o Rio de
Janeiro é encarado como o centro contestatório da política nacional. Aqui
estão os setores populares mais avançados e politizados. É fundamental para
as elites m anter o Estado, em geral, e sua capital, em particular, em uma
situ ação de ostracism o . In v e stir no R io sig n ific a d ar-lhe in stru m en to s
revitalizadores, que acabarão por levá-lo a ser, ainda uma vez, a vanguarda
do m ovimento popular brasileiro. M uitas foram as iniciativas para neutralizar
a vocação carioca. A m aior delas foi a transferência da capital federal. Dentro
do m odelo cíclico da história, a transferência da capital para B rasília teve
com o objetivo central livrar os políticos das pressões incôm odas do povo
organizado. Foi mais uma iniciativa de neutralização dos avanços dos setores
populares. Não é outra a natureza da CPI. Investir no Rio de Janeiro, dar
destaque à sua principal liderança, conferir visibilidade nacional aos empreen-

325
diraentos vanguardistas aqui realizados constitui-se num a ameaça intolerável
aos detentores do poder.
Percebe-se, então, que a história é cíclica e seu motor é a conspiração. Um
dos mitos políticos apontados por Girardet como mais recorrentes na política
14
moderna, a conspiração é, para os brizolistas da Brizolândia, a verdade que só
pode ser vislum brada por aqueles que analisam os eventos políticos com o
olhar atento e curtido pela experiência. Nessa capacidade, Brizola é inigualável.
Ele é uma espécie de Édipo. Decifrador de esfinges, dos enigmas apresentados
regularmente pela mídia e pelas versões oficiais da história brasileira, teve sua
sagacidade reiteradam ente posta a prova. Não errou jam ais, não seria agora
que estaria enganado. A visão conspiratória reforça a imagem negativa dos
políticos em geral. Na dúvida, todos são ladrões até que se prove o contrário.
Insisto com José sobre sua opinião quanto ao posicionamento de Brizola
frente à CPI. Pergunto, também, se acredita no envolvimento de Collor com os
crimes de PC Farias e se é favorável ao pedido de impeachment do presidente.
Após perguntar maiores detalhes sobre minha identidade profissional, caso raro
ali, José dispara, a CPI não passa de uma conspiração para derrubar Brizola.
Peço que me explique melhor seu ponto. Quem está por trás dessa CPI? São os
mesmo que ajudaram Collor a se eleger. Eles estão contrariados, estão com medo
da aproximação do presidente a Brizola. Não há nada que m eta tanto medo
nesses caras como o Brizola. Agora, por conta disso, eles estão querendo desa­
creditar o presidente. Mas no fundo, é a Brizola que querem atingir. José fala da
importância representada pela aproximação entre Brizola e Collor para o povo do
Rio de Janeiro. Diante de uma pergunta minha a respeito das acusações feitas
pelo governador do Rio de Janeiro ao presidente, ainda no período da campanha
eleitoral de 89, José retruca inabalável, Brizola continua inimigo de Collor, mas,
pelo bem do povo do Rio, teve que se aproximar do presidente. Graças a essa
aproximação os Ciacs vão ser construídos e muito dinheiro federal vai vir pra cá.
José não se sente à vontade quando requisitado a expressar suas opiniões. Penso,
a princípio, que me vê com desconfiança. Em visitas posteriores percebo que me
enganara. Na verdade, José foi sempre dos mais solícitos em cumprimentar-me e
entabular conversas. Sua fala, porém, permaneceu idêntica. Certa vez, alegou
humildemente que vai à Brizolândia para aprender com os mais experientes e
esclarecidos. Veste, invariavelmente, um brim surrado e, sobre a camiseta de
malha, tem um casaco não menos velho. Está sempre com uma bolsa a tiracolo.

14 G irardet, 1987.

326
Fala rápido mas sem muita eloqüência. Suas frases são proferidas em golfadas,
entremeadas por períodos de silêncio. As mãos estão sempre pregadas nos bolsos
da calça. Vendedor de brindes (chaveiros, adesivos, agendas), ele viaja muito e
não conhece lugar mais politizado que a Brizolândia. O Collor passou a olhar
mais pelo povo do Rio e as elites não estão gostando disso, ele diz. Mas quem
você acha que está por trás disso, armando tudo isso, pergunto. Ah... o Roberto
Marinho... a burguesia em geral. Pergunto de novo, independentemente do fato
de essas denúncias serem orquestradas, você acha que há alguma verdade nelas?
José pensa quase longamente. Afunda ainda mais as mãos nos bolsos da calça.
Olha fixo para lugar nenhum. Finalmente, pode até ser, né? Político é tudo ladrão
mesmo. Pensa um pouco antes de prosseguir. Mas daí a derrubar o homem... ele
foi eleito, né? Não que a gente goste dele. Mas agora, tem que aguentar até o fim
Silêncio. Enquanto era tempo, a gente falou. O Brizola cansou de avisar. Agora é
tarde. Pergunto, se todo político é ladrão e o Brizola é político, podemos conside­
rar que Brizola é ladrão. José, ah... contra ele ninguém conseguiu provar nada. E
olha que tentaram... era tudo o que a burguesia queria, era arrumar alguma coisa
contra o Brizola. E, triunfante: não tem, né?
Penso no caráter tensionado que marca a combinação da ética com a polí­
tica no imaginário brasileiro. O famoso lema ademarista, “rouba mas faz”, diz
muito da cultura política nacional. Pode ser entendido como expressão de uma
lógica pragmática impregnada de forte componente predatório, que aceita con­
cessões no plano ético se atrelados a ganhos utilitários. Nessa direção, as dis­
cussões sobre a ética na política estariam condenadas a circunscrever-se a limi­
tes estreitos, impostos pela percepção compartilhada que detenninados ganhos
justificam procedimentos eticamente condenáveis. Leitura alternativa: pode ser
a expressão de uma percepção da política e do ator político marcada pela fata­
lidade, segunda a qual a dinâmica própria da primeira, no caso brasileiro ou
universalmente falando, implicaria a contaminação necessária do segundo. Longe
de entrar em rota de colisão com a anteriormente m encionada ênfase na ética
observada na Brizolândia, tal avaliação da política, ao menos no segundo caso,
reforça a sua centralidade. Da perspectiva da Brizolândia, é necessário refor­
mar a política real, inocular-lhe a substância ética que a tornará uma atividade
digna, como é o caso da política na praça.
A lógica conspiratória, que permeia as construções da história do Brasil e a
leitura dos eventos presentes, não se restringe, porém, às estratégias adotadas
pelas elites para perpetuar um modelo de dominação. Um olho bem treinado é
capaz de observar em certos fatos os sinais de mudança que hão de vir. Afinal,

3 27
também ao lado das forças populares há lideranças fazendo seu trabalho miúdo
e silencioso com vistas a uma verdadeira revolução. Vistos pela ótica aparente­
m ente neutra da im prensa burguesa, muitos dos problem as e das crises que
ocorrem no seio da sociedade não passam de questões pontuais, que merecem
intervenções tópicas. Sua real m agnitude, porém, é outra. Aponta para uma
estrutura social minada em suas bases e prestes a entrar em convulsão.
Encostado na barraquinha, olho os transeuntes que passam apressados.
Alguns olham em minha direção. Intuo distinguir um sorriso discreto e debo­
chado. Deve ser im pressão. Outros param, perguntando pela plataform a da
campanha de Cidinha Campos. Pegam um jornal do partido e partem tão apres­
sados quanto chegaram. Valdeck me chama. Está muito mais acessível desde o
primeiro encontro. Tenho a impressão de que ele tem menos dentes agora do
que quando o conheci. Aponta para um senhor que acabara de chegar: se você
quer ouvir alguém politizado, conversa com aquele ali. Ele sabe tudo de políti­
ca. Ser politizado, na Brizolândia, é ser mais do que povo, mais do que não-
massa. É possuir uma bagagem de conhecimento capaz de esclarecer os com­
panheiros, auxiliá-los na árdua tarefa de interpretar a conjuntura com o saber
da história. O politizado é uma espécie de intelectual orgânico da praça. Aproxi­
mo-me do senhor a quem chamarei, de acordo com o teor de suas posições,
pelo codinome Coronel. Aparenta ter muito mais que 60 anos. Traja um casaco
azul, do qual, observaria posteriormente, jam ais se separa. Seus cabelos são
fartos e brancos. Pergunto, sua opinião sobre a crise política desencadeada pela
CPI. Ele me fixa os olhos como se estivesse prestes a comer meu fígado. O
quê? Essa corrupção toda? Rapaz, nós estamos na escuridão da Idade Média.
Desde a República Velha nós vivemos na lama da burguesia, na lama do poder
burguês. Isso sempre aconteceu. Pergunto: o senhor não acha que a CPI pode
ser um marco para a mudança moral da vida pública? Ô rapaz, é ele de novo
quem fala, larga de ser bobo! Fico feliz por ser insultado, estou incorporado.
Eles são todos iguais, continua Coronel. São a canalha da burguesia que afunda
o país na lama negra. Só a revolução armada vai mudar isso que tá aí. Infeliz­
mente, no Brasil a revolução não acontece mais nesse século. Agora, só no
século XXI. Estamos muito longe do que Fidel fez em Cuba. Enquanto Coronel
fala, algum as pessoas se aproxim am . O funcionário da barraquinha ouve

15 O leitor deve estar atento para a centralidade do insulto na dinâm ica de socialização, na Brizolândia. O insulto
ocorre em m eio a debates políticos acalorados, quando posições sobre os acontecim entos passados e presentes
entram em rota de colisão. O insulto jamais é pessoal e denoto, ao mesmo tempo, o respeito pelo interlocutor e a
im portância de persuadi-lo.

328
extasiado. Pergunto, provoeativam ente, se ele considera Brizola um político
burguês e torpe como os demais. Coronel responde, se não estivesse velho,
Brizola pegaria em armas para fazer a revolução. Aliás, foi isso que ele tentou
fazer em 64. Não teve sucesso porque, como todos sabem, o povo brasileiro
não estava preparado. O povo brasileiro está nas mãos da burguesia nazi. O
problem a brasileiro é justam ente esse. Há nazis infiltrados em todos os lugares.
Enquanto fala, Coronel se exalta mais e mais. Tem gestos largos, os olhos
brilham . Um tique nervoso se pronuncia de modo cada vez m ais evidente.
Pedrinho, funcionário do partido, fica entusiasmado com o discurso de Coronel
sobre a atuação dos nazis no Brasil. A burguesia, a Igreja, os militares, todos
são nazis. Revela a existência de pogroms no país, pronunciando a palavra cada
vez de um modo diferente. No auge do entusiasmo, Pedrinho pega um papel e
passa a anotar as coisas vociferadas pelo velho senhor. Quer registrar as infor­
mações, que lhe parecem extremamente úteis para discussões futuras com os
com panheiros do partido. Percebo que Pedrinho anota, com caligrafia tosca,
palavras esparsas proferidas por Coronel. Exaltado, Coronel fala da podridão
da burguesia brasileira, a Linha Vermelha foi construída pela burguesia para a
eventualidade de ter que fugir da população armada quando for desencadeada a
revolução. Eles já têm tudo armado. Avião à disposição, dinheiro na Suíça.
Mas foi Brizola quem construiu a Linha Vermelha, interrompo. Ele construiu a
Linha Vermelha, retruca Coronel, para desviar dinheiro para construir escolas
para o povo. Eu, de novo, mas ele está apoiando o C ollor na questão do
impeachment. Coronel, vociferante e rubro, deixa de ser bobo rapaz! Brizola
não apóia ninguém. Ele tá é velho e não pode mais fazer a revolução. Coronel
segue falando sobre a luta armada e seus estágios. Atrasado, o Brasil estaria,
ainda, no primeiro estágio: a guerra entre traficantes de drogas. Segundo ele,
esse é o primeiro estágio, no qual a população está começando a se armar e se
preparar para a guerra. Os estágios seguintes serão o niilismo, a guerrilha urba­
na e rural, para, finalmente, chegarmos à revolução. Fala sobre Fidel, da guer­
rilha em Cuba e da Guerra do Vietnã. Conta-me, a seu modo, a história republi­
cana do Brasil que, segundo sua versão, começa em 30. Repete, como tantos
outros, que sou muito jovem e ainda tenho muito a aprender. Confirm a que
conhece a história de perto, presenciou, ali mesmo e nos arredores, passagens
decisivas da história brasileira. Não precisa dos livros, embora reconheça que,
se bem escolhidos, têm sua importância. Percebo, contrafeito, que, enquanto
fala, Coronel também cospe em minha cara. Tento, como posso, escapar da
saliva de meu exaltado interlocutor, mas sou açoitado especialmente quando ele

329
aproxima seu rosto do meu, como se quisesse invadir meu cérebro. Há muita
gente em volta. Todos atentos. Em um dado momento, abrupto, Coronel inter­
rompe seu discurso e, solene, com a majestade de um mestre que acabara de
partilhar um pouco de sua sabedoria, pede licença e afasta-se, curvado, arras­
tando vagarosamente os pés, em direção à Alcindo Guanabara. Pouco depois,
vejo-o agitando as mãos, eloqüente, em uma roda nas imediações do Am areli­
nho.
O ano de 1992 foi especialmente ruim para o governo Brizola. A partir dele e
até o final de seu mandato, concluído pelo vice governador, secretário de justiça e
chefe da polícia civil Nilo Batista (Brizola se desincompatibilizou para candidatar-
se à presidência da República em 1994), a imagem do Rio de Janeiro sofreu
grande desgaste pelo crescimento, veiculado pelos órgãos de comunicação como
assustador, dos índices de criminalidade. Foram anos de intensos conflitos entre
quadrilhas que disputavam o controle do tráfico de drogas nos morros da cidade,
anos em que jovens protagonizaram os conflitos batizados pelo nome de arras­
tões nas praias da Zona Sul e anos de crescimento de crimes de extorsão median­
te seqüestro. Ao longo do período, o tema era objeto de intensos debates na
Brizolândia. Mesmo em períodos em que a agenda de dabates estava cheia, o
problema da violência mantinha seu lugar, como em toda a cidade. Regra geral,
duas interpretações eram dominantes, sem necessariamente contradizerem-se. A
primeira delas se alinhava com a percepção dominante no partido e sustentava-se
na tese de que o problema enfrentado no Rio de Janeiro era dramático, mas não
se diferenciava de outras grandes cidades brasileiras, vitimadas, todas, pelo mes­
mo problema. O destaque dado ao Rio de Janeiro tinha inquestionáveis razões
políticas: desmoralizar Brizola e reforçar a negatividade de sua imagem, associa­
da ao crime organizado desde a campanha de 1986. A segunda percepção ia mais
além. Era necessário perceber o estado de convulsão social de que o aumento da
criminalidade era a expressão. A guerra entre quadrilhas era entendida como a
primeira etapa de um conflito generalizado que se avizinhava. Era a escola neces­
sária para o povo acostumar-se ao estado de guerra que teria que enfrentar para
obter sua libertação. Embora fantasiosa, tal percepção era compartilhada por
muitos militantes e freqüentadores da Brizolândia. Também para a avaliação
correta desses eventos, apenas aparentemente negativos, cabe o olhar aguçado
pelos anos de experiência e observação que apenas aqueles que testemunharam a
história possuem.
Encosto-me, cansado, na barraquinha. Acabei de receber uma longa e com­
plicadíssima aula de história do Brasil. Já gosto quando meus mestres anciãos

3 30
fazem pouco da minha idade. A alguns metros, meu professor está a tagarelar
para uma nova e atenta platéia. Aposentei o gravador e uso m eu caderno para
anotações, sob o pretexto de registrar os ensinam entos que vou recebendo.
Além de necessária, essa tarefa faz com que eu angarie a sim patia e a boa
vontade de m eus informantes. Atesta que dou im portância ao que dizem. A
senhora que me recebeu completamente muda no interior da barraquinha, quando
de m inha prim eira visita, dirige-se, brejeira, ao senhor que me dera a última
aula com uma caneta e um pedaço de papel nas mãos, perguntando-lhe o nome
de um livro a que fizera alusão na véspera. Em bora não esteja longe, sou
incapaz de ouvir a indicação. O comportamento da senhora, francamente hostil
às minhas visitas, inibe-me de perguntar-lhe o nome do livro. Tampouco per­
gunto ao senhor. Estou cansado e preciso continuar as anotações a fim de
precaver-me das armadilhas da memória. Temo dirigir-me a ele e ser alvo de
m ais um a aula. Quando acabo de anotar e guardo o caderno na m ochila, o
senhor já não está na praça.
É necessário reconhecer que aquele espaço funciona como um fórum extre­
mamente animado de conversações e debates. É quase uma escola, na acepção
idealizada por Pernambuco, ainda que sem os resultados propriamente espera­
dos. O entusiasmo dos debates, os laços que se estabelecem e o interesse provo­
cado em freqüentadores que regularmente passam alguns momentos ali, seja ao
longo do dia, seja ao fim do horário comercial, quase me emocionam. Lembro-
me por exemplo de um rapaz que, pelo porte físico, indumentária e corte de
cabelo deveria trabalhar fazendo a segurança de algum daqueles estabelecimen­
tos comerciais da área. Sempre que aparecia na praça ficava a ouvir algum dos
senhores mais eloqüentes (havia um que era de sua especial predileção) com um
olhar que oscilava entre a gravidade reflexiva e o espanto. Sempre sério, era a
expressão do aluno compenetrado, interessado em não perder uma única palavra
emitida pelo professor. Enquanto ouvia, balançava a cabeça, dando mostras que
acompanhava a linha de raciocínio exposta e concordava com ela.
A despeito da dinâmica anárquica que presidia o cotidiano da praça, era
perceptível também um a certa hierarquia tácita. No topo, havia aqueles mais
eloqüentes, geralmente senhores há muito passados dos 60 anos. Eram os inte­
lectuais da praça e gozavam de um respeito enorme. Quando com eçavam a
falar, raramente eram interrompidos e quando tal coisa acontecia eram pergun­
tas e pedidos de esclarecimentos que se fazia. Indicavam livros, com as refe­
rências invariavelm ente incompletas. A legitim idade de seu saber estava no
testemunho e na experiência. Eles estiveram presentes em passagens decisivas

331
da vida política brasileira. No outro extremo, aqueles m ais retraídos, como
José, que, humildes, estavam lá para aprender e muito raramente aventuravam-
se nos debates mais acalorados. Estes eram protagonizados pela grande parte
dos freqüentadores que, podemos dizer, ñcavam em uma posição interm ediá­
ria. Em períodos de campanha, os militantes e cabos eleitorais, que só nessas
épocas tinham presença mais assídua, situavam-se nesse grupo. Os funcionári­
os do partido que freqüentavam sempre a barraca costumavam ter uma postura
discreta. Intervinham marginalmente nos debates e só o faziam com mais vee­
mência quando os rumos destes lhes desagradavam. Tratando-se da Cinelândia,
a barraquinha sempre contava com as visitas erráticas de dois ou três, vamos
dizer, moradores da praça. De tal modo que este pode ser considerado um tipo
razoavelmente constante da paisagem brizolândia. Digo tipo porque suas caras
mudavam com o passar do tempo, contrastando com a permanência do perso­
nagem. Um deles, que freqüentou por um bom tempo a barraquinha, contava
com especial sim patia dos demais. Era eloqüente e animado. Jovem ainda,
dotado de uma notável beleza negra castigada pelo seu estilo de vida, era fervo­
roso defensor de Brizóla. E possível que na acanhada barraquinha do PT,
localizada no outro extremo da escadaria do prédio da Câmara, próxima à rua
13 de Maio, defendesse Lula, mas nunca foi flagrado em tamanho delito. Seu
perfume, mistura de suor acumulado e cachaça, não causava qualquer repulsa e
suas p erfo rm a n c es retó ricas arrancavam risos div ertid o s. E nquanto era
freqüentador dos mais assíduos, prestava o serviço, por ele mesmo criado, de
levar todos os dias um ou dois jornais para a barraquinha, como forma de
contribuir para o ambiente de politização. Ninguém sabia como tais iguarias
eram conseguidas, tampouco se interessavam em saber. Apenas comentavam,
rindo, a devoção com que se desincumbia da tarefa.
A ênfase no conhecimento histórico pela via do testemunho é um dos tra­
ços mais contundentes da dinâmica da Brizolândia. Caso chegassem ao poder,
teríamos, inegavelmente, a implantação de uma gerontocracia. Tamanha im ­
portância atribuída à experiência como fonte legitim adora do conhecim ento
histórico faz-me recordar do narrador de Benjamín. A experiência vivida e
passada de pessoa a pessoa, cultivada pelos narradores anônimos, é, segundo
Benjam ín, a m atéria-prim a da narração. Quão m ais próxim a das narrativas
orais, melhor a narrativa escrita. Há dois grupos de pessoas que são especial­
mente relevantes para a narração: aqueles cuja vida é passada em viagens a

16 " O narrador. Considerações sobre a obra de N ikolai Leskov" em Benjamin, 1987.

3 32
lugares longínquos, mediante as quais travam contato com mundos diversos, e
aqueles que levaram toda a sua vida em um mesmo lugar, trabalhando honesta­
mente e conhecendo a fundo a história de sua terra e seu povo. Comparando a
narrativa ao romance, gênero literário que marca a decadência da centralidade
da experiência no mundo Ocidental, Benjamín afirma:

"O que distingue o rom ance de todas as outras form as de prosa - contos de
fa d a , lendas e m esm o novelas - é que ele nem procede da tra d içã o oral nem
a alim enta. Ele se distingue especialm ente da narrativa. O n a rra d o r retira da
experiência o que ele conta: sua pró p ria experiência ou a relatad a pelos o u ­
tros. E in co rp o ra as coisas narradas à experiência de seus o u v in te s ."17

O romance é o equivalente literário da decadência da experiência que pro­


jeta o mundo moderno em uma nova barbárie. Com a decadência da narrati­
va, a sabedoria, entendida como o “lado épico da verdade”, entra em processo
de extinção. A arte de narrar, cuja origem encontra-se nas camadas populares e
na dinâmica cultural pautada fundamentalmente pela oralidade, é especialmente
cultivada, em seu estado bruto, na Brizolândia. É ela que confere aos mais
velhos um lugar de destaque, pois é neles que se encontra, ali, na praça, a
sabedoria. Narram cotidianam ente a história recente do Brasil, tendo como
princípio legitimador da veracidade de sua narrativas o fato de terem dela parti­
cipado, de estarem nas praças há m uitos e m uitos anos. Eu estava lá, não
cansam de dizer. Nesse aspecto, compõem com Brizóla um a interessante par­
ceria. Segundo Benjamín, os dois tipos que personificam as fontes fundamen­
tais da narrativa são o marinheiro - que correu o mundo e conhece histórias de
lugares longínquos - e o agricultor - que conhece como ninguém a história de
seu povo e de sua terra, pois dela nunca saiu. Seguindo a analogia sugerida, é
possível dizer que os sábios da praça estariam no segundo caso, enquanto
Brizóla, o líder a quem reverenciam cotidianam ente, está no prim eiro. Eles
estiveram sempre na praça, na sua terra, e incorporam as histórias de seu líder,
.19
que “veio de longe”
Como já mencionei, é impossível traçar um perfil sociológico de seus m em­
bros. Embora Pernambuco tenha, em seu depoimento, afirmado que, ao filiar-se

17 Ibid, p. 201 .
18 Ver "Experiência e pobreza" em Benjamin, 1986.
19 A ana logia não é forçada. A frase, tantas vezes enunciada por Brizola, encontra-se literalm ente na tradução brasileira
do texto citado. Se é verdade que ao usar a frase Brizola lhe confere, sobretudo, um sentido tem poral, na Brizolândia,
o fato de Brizola ter viajado m uito, ter passado anos no exílio, lhe confere uma respeitabilidade m uito grande.
Benjamin, 198 6: 198.

333
ao movimento, seu membros preenchiam uma ficha, jam ais tive acesso a elas.
Jamais, sequer, pude estar seguro que ainda existam em algum lugar. Não estão
em poder de Pernambuco. Também não se sabe delas na sede do partido. Já em
1996, fiz contato com o então vice-presidente do movimento, o conhecido Chicão,
que me garantiu que elas jamais existiram. O mesmo desconhecimento foi ex­
presso pelo atual presidente. De qualquer modo, a investigação nas supostas
fichas dos afiliados não daria o perfil preciso dos freqüentadores da Brizolândia,
daqueles que faziam seu cotidiano em períodos ordinários. Poucos deles eram
filiados formalmente ao movimento. Mapear, à base de conversas, a ocupação,
escolaridade e faixa etária foi um trabalho que tentei realizar com muita prudên­
cia, enfrentando as limitações impostas pelas regras de conduta ali vigentes e já
mencionadas. Ainda reconhecendo a precariedade e os riscos de generalização,
menciono, apenas como ilustração, que havia um bom número de aposentados, o
que me parece evidente, dado o grande número de senhores que freqüentavam o
local. Boa parte deles do serviço público, mas não somente. A heterogeneidade
almejada por Pernambuco, quando da fundação do movimento, não correspondia
à freqüência regular no período que lá estive. Impressionisticamente, arrisco dizer
que todos são das classes baixas, o que também vale para a escolaridade. Entre os
mais jovens, há autônomos, pequenos funcionários de escritório e servidores
públicos. O cotidiano da Brizolândia pouco tem a ver com a imagem dominante
que lhes foi fixada pela mídia. É difícil imaginar aqueles senhores protagonizando
as desordens e as pancadarias tão decantadas. Creio até que quisessem e que já o
tenham feito em outros tempos. Há duas razões plausíveis para a não-coincidên-
cia entre a imagem que ficou e a observação cotidiana. Pode ser que minhas
impressões sejam extraídas de um momento em que o movimento já perdera sua
força inicial. Daí a mudança do perfil e da forma predominante de comportamen­
to. A explicação alternativa refere-se ao fato de o caráter beligerante da Brizolândia
ser dotado de uma espécie de sazonalidade. Em épocas de eleição, é verdade, o
ambiente muda, assim como a freqüência. A média de idade cai sensivelmente. A
“garotada” é tão barulhenta quanto os anciãos e mais afeita ao confronto físico.
Há muito já não sou um jornalista interessado em fazer reportagem sobre
a percepção popular da CPI do PC. Encontrei tempo e paciência para expli­
car que sou um cientista social levantando m aterial para escrever um a tese de
doutoram ento. Sem pre que posso, esclareço não se tratar propriam ente de
um livro. Apenas uma tese. Por sorte minha, não dão m uita atenção às m i­
nhas explicações. Os intelectuais não são bem -vistos na Brizolândia. M esmo
Pernam buco, um hom em cuja solicitude não posso deixar de registrar, ao

3 34

ÉlAha.
apresentar-m e a seus amigos esclarece que sou diferente: “Está interessado
em escrever a verdade de como as coisas aconteceram ” . Sou-lhe grato por
tam anho elogio, tantas vezes repetido. Encontro em seu livro, Um grito na
praça, três alusões devastadoras aos cientistas políticos, “alinhados às m ani­
pulações burguesas”. Sem problemas. Não ouvi avaliações muito diferentes
de figuras com o D arcy R ibeiro, em depoim ento a m im concedido. Como
freqüentador contum az, sou interessado em conversar sobre política, sou
politizado e, portanto, companheiro. A emergência, agora, é fazer deslanchar
a candidatura de Hugo Peixoto à Câmara. A candidatura de C ésar M aia, pelo
PM D B, o conflito interno envolvendo M arcelo A lencar e a ascensão de
B enedita da Silva, combinados ao desgaste de Brizóla, devido à campanha
sobre a violência no Rio, “orquestrada pelos meios de com unicação”, colo­
cam o partido e seus candidatos em situação delicada. É necessário cerrar
fileiras. Pondero que não sou dali, apenas estou. Não faz diferença. É preciso
a colaboração de todos. D epois de ponderar e relutar, vou à sala da rua
Uruguaiana, alugada para os últimos dias de campanha. N inguém sabe como
a sala foi conseguida. Hugo, sem pre sem tem po para conversar, confessa
apressadam ente que gastou todas as suas economias com um mês de aluguel.
Está preocupado, mas confiante. Retiro meu quinhão de panfletos. Não pos­
so fazer boca de urna, mas vou distribuir entre os amigos. Arquivo um exem ­
plar de cada peça de propaganda e distribuo o restante entre os amigos, sob
olhares, às vezes, espantados.
Enquanto estive na praça, pude acompanhar duas campanhas. A municipal
de 1992 e as quase gerais de 1994. Nas duas ocasiões, a barraquinha foi des­
montada quando a data do pleito se aproximou e todo o material que nela havia
desapareceu. Da segunda vez, meu exemplar do livro escrito por Pernambuco
foi levado junto, não sei para onde. Confessei meu estranhamento para vários
brizolistas. Eles revelaram que este é um procedimento usual. Garantem que
também foi assim em 89. Possivelmente, a negligência com que os próprios
pedetistas se referem à Brizolândia não corresponda à percepção das autorida­
des estaduais e municipais. Talvez pelo propalado estilo beligerante associado à
Brizolândia, intuo que, por medida preventiva, as autoridades preferissem reti­
rar a barraquinha quando as eleições ficavam próximas. Sem ela, a freqüência
cai vertiginosamente, os encontros são fortuitos e casuais, como que atestando
a importância da barraquinha como marco simbólico definidor de territorialidade.
Com ela, aquele espaço privilegiado está claram ente dem arcado, tem dono.
Sem ela, a Brizolândia se dilui, fica indiferenciada do fluxo frenético da praça.

335
A campanha vai mal, a imagem do governador pior. As críticas a seu governo
e de seu sucessor, Nilo Batista, só aumentam. É 1994 e ninguém entende direito
porque Brizola insistiu em candidatar-se à presidência da República. Parte da
militância migrou para o PSDB com Marcelo Alencar e ao desgaste da imagem
soma-se uma indisfarçável inapetência de Brizola para fazer campanha. Pouco
viaja. Quase não aparece em público. O comício dessa noite, precedido de passe­
ata iniciada na Candelária, liderada por Anthony Garotinho, ex-prefeito de Cam­
pos e candidato do partido ao governo do estado, não traz um bom agouro. A
praça está apenas aparentemente tomada. A militância, em sua maioria vinda do
interior do Estado, está espalhada. É fácil passear pela praça e chegar às proximi­
dades do palanque. A rigor, este é mais um comício de Garotinho do que propri­
amente de Brizola. Sinal dos tempos? A chegada de Brizola estava prevista para
as oito horas, já passam das dez e ninguém sabe sobre seu paradeiro. Enquanto
não chegar, o comício não começa. Depois de passear bastante, finco posição nas
imediações de onde ficava a barraquinha. Perto, estão cinco ou seis companhei­
ros e companheiras da Brizolândia. Entre eles está uma senhora que eu vira em
algumas outras situações semelhantes. Ela é professora primária aposentada e
brizolista de longa data. Cruza nervosamente as mãos, preocupada. Repete, agi­
tada e inquieta, sem sair do lugar, que está muito preocupada com Brizola, ele tá
passando por um momento tão difícil. Quanta coisa ruim esse homem está en­
frentando, meu Deus. Ele tá sofrendo tanto. Como é que essa gente faz isso com
um homem como ele meu Deus? Pede informações, pergunta, insistente, se ele
já chegou. Trago comigo um pequeno bloco para anotações. Ele está quase va­
zio, mas anoto o que posso. Repentinamente, um alvoroço, típico da chegada de
alguém importante. Ele chegou. Alarme falso. Quem passa, em uma cadeira de
rodas, conseqüência das seqüelas de um atentado sofrido na via Dutra, é seu
filho, João Vicente. A senhora está transtornada. Dirige-se a João Vicente como a
um neto muito querido, meu filho, como você está? Tenha força meu filho, tenha
força. João Vicente passa pelo corredor humano em direção ao palanque, ace­
nando discretamente com a cabeça. Tenho a impressão de divisar falta de ânimo
na expressão do deputado que investigava denúncias de corrupção, provável
motivo do atentado sofrido. A senhora está visivelmente perturbada e repete
muitas vezes. Quanto sofrimento esse homem tem enfrentado, ele não pode estar
bem de saúde.
A despeito do nome do movimento, é comum os brizolistas da Brizolândia
afirmarem que sua adesão a Brizola não é incondicional. Quando consideram
necessário, criticam o líder, o que prova o grau de politização e independência

3 36
que possuem. Não são adeptos de Brizóla, mas partilham seus ideais e suas
utopias. Elas são maiores que Brizóla e sobreviverão à sua aposentadoria ou à
sua morte. Minha estada intermitente na Brizolândia ao longo de quatro anos
pareceu-me extremamente elucidativa sobre vários aspectos. O mais evidente
refere-se ao contato com um movimento que se singularizou durante as déca­
das de 80 e início da de 90 como expressão típico-ideal do brizolismo no Rio de
Janeiro. Pude ter uma percepção um pouco distinta daquela que se difundiu.
Sua imagem, veiculada pela mídia e entre militantes de outros partidos, tendeu
a ser negativamente associada ao lumpensinato, expressão das massas desorga­
nizadas, irracionais e belicosas, afeitas à idolatria da personalidade do líder.
Curiosamente, tal percepção foi compartilhada por diversos setores do próprio
PDT. Independentem ente disso, ou por isso mesmo, a Brizolândia ficou em
evidência como um marco de uma época da política carioca. Quando dos con­
flitos ocorridos na convenção do PSDB, em 1996, que decidiu a escolha do
candidato do partido à eleição para a prefeitura do Rio de Janeiro, seu nome
ainda um a vez foi evocado. O deputado Ronaldo César Coelho, fundador do
partido, lançou sua candidatura na convenção, sendo apoiado por figuras tradi­
cionais do PSDB carioca. Em oposição a esta, Marcelo Alencar, governador do
Estado, lançou o nome de Sérgio Cabral Filho. A convenção que definiu a
escolha pelo candidato patrocinado pelo ex-pedetista foi marcada por intensos
conflitos e pela hostilidade aberta da militância a Ronaldo César, que chegou a
ser agredido fisicamente. Aludindo às origens pedetistas de Marcelo e à militância
que com ele migrou para o PSDB, a analista política do Jornal do Brasil, Dora
Kramer, com enta o ocorrido em sua coluna, na edição de 17 de junho, em
artigo entitulado “A Brizolândia revisitada”. A abertura do artigo é exemplar do
tom da abordagem:

"N ã o começa bem a cam panha de Sérgio Cabral Filho. Rapaz sim pático, boa-
praça, causa a m e lh o r das impressões. Entusiasm ado, gosta de p o lítica , tem
senso de op o rtu n id a d e . Só que Sérgio C abral Filho não envereda p o r um
ca m inho bom . A in d a pode m udar, é bem verdade. Deve fa z ê -lo o q u a n to
antes. Aliás, antes que grude nele o estigm a da B rizolândia, da in to le râ n cia ,
da agressividade, do a u to rita rism o , do incentivo à b a d e rn a ."20

Nota-se, já na abertura, o contraste entre as qualidades pessoais e políticas


de Sérgio Cabral (antigo quadro tucano) e aquelas da militância ligada a Maree-

20 Essa e as demais referências ao artigo de Dora Kram er foram extraídas da edição do Jornal do Brasil de 1 7 /6 /9 6 .

3 37
lo Alencar e oriunda, supostamente, do PDT e da Brizolândia, em especial.
Para além da posição pessoal, a articulista expressa uma percepção amplamen­
te difundida sobre a Brizolândia, acentuada cada vez mais ao longo de seus
anos de existência. A caracterização da Brizolândia é uma síntese esplêndida da
sua imagem pública. E curioso notar, contudo, que não para aí:

"O que se viu ali foi a reedição do p io r que o Rio ¡á pro du ziu em m a té ria de
m ilitâ n cia política. A quela nascida e criada no ap a re lh ism o da rua Sete de
Setembro. (...) Um senador, p o r exem plo, ouviria Ronaldo com portadam ente.
Mas a m ilitâ ncia não tem necessariam ente com prom isso com a etiq ue ta . (...)
Talvez a razão resida no fa to de que a li havia brizolistas desprovidos de sua
liderança mas donos do m esm o ím peto raivoso com que sem pre pro te ge ram
o chefe. Um fa to inquestionável: ao m esm o te m p o em qu e o presidente da
República e um dos fun dad ore s do pa rtido , sen ad or A rth u r da T ávola, eram
vaiados a cada citação de Ronaldo, nas duas vezes em que apareceu no dis­
curso o nom e de Leonel Brizola, fez-se um silêncio respeitoso. N a da con tra o
respeito, desde que socializado."

Da anatematização da Brizolândia, a análise migra para o diagnóstico da


atuação de Brizola e seu partido. O “aparelhismo da rua Sete de Setembro” é a
incubadora do pior que o Rio produziu em matéria de militância. Ali teria sido
germinada uma prática de defesa do chefe - termo explicitamente pejorativo -
intolerável e que, sugere, só com sua presença poderia, se assim o “chefe”
quisesse, ser controlada. 0 aparelhismo se contrapõe à pretensão, tida tacita­
mente como legítima pela autora, do PSDB em constituir-se como a vanguarda
política nacional. O brizolismo da Brizolândia de Dora Kramer não é o brizolismo
sem Brizola. É a atuação política inspirada em Brizola, identificada com ele,
mesmo que radicada em outro partido, o que fica patenteado na conclusão do
artigo:

"O que cabe a nós, eleitores cariocas, é saber se haverá um a cam p an ha lim ­
pa, altiva, que tra ta rá dos problem as que aflig e m todos os que nela m ora m ,
e que não são poucos, ou se assistiremos à volta do p re d o m ín io de um a elite
política equivocada, an tiga e sem com prom isso com o fu tu ro ."

Trata-se, portanto, de varrer da cidade aquele que foi, na visão de Dora,


um de seus maiores males políticos: a elite retrógrada que gerou aquilo que,
aparentemente, é o objeto privilegiado do artigo. Digo aparentemente porque é
patente a alusão ao brizolismo como um todo, do qual a Brizolândia não seria
mais do que a expressão paroxística.

3 38
Posições políticas devem ser disputadas, ao menos em contextos democráti­
cos. A mídia tem, nesse caso, um importante papel de fórum de debates. Não
cabe discutir aqui em que medida a articulista se atém simplesmente a uma crítica
procedente a acontecimentos que causam horror aos espíritos democráticos, ou a
pertinência da ampliação dessas mesmas críticas a um fenômeno político bem
mais complexo e relevante da política carioca. O que cabe acentuar é que o citado
artigo expressa uma construção do brizolismo bastante difundida e que, ao longo
dos anos, obteve uma margem cada vez maior de aceitação. O mesmo vale para
a articulação entre este fenômeno, o brizolismo, e uma de suas manifestações
mais curiosas, a Brizolândia e a visão dela construída. Nesse sentido, o artigo é
exemplar. Não do que de fato é o brizolismo mas de uma de suas imagens mais
difundidas. É pouco provável que os brizolistas da Brizolândia se sentissem atin­
gidos por tais avaliações. O próprio Pernambuco, que mantém-se no PDT e,
portanto, está livre da suspeita de ter tomado parte do ocorrido na convenção
tucana, confessa, entre divertido e orgulhoso, que ele e seus companheiros eram
freqüentadores assíduos da delegacia localizada à rua Santa Luzia:

"D ia sim dia não a gente tava na delegacia. O delegado dizia: eu não a g ü e n ­
to mais. Um dia ele fa lo u : ou vocês fazem um acordo ou não vai m ais haver
reu niã o política ali. Eu respondi: doutor, acabou a dita du ra. A g o ra nós tam os
num a d e m o cra cia ."21

Portanto, é provável que a imagem da Brizolândia traçada pela m ídia esteja


em conformidade com as expectativas de suas lideranças, apenas trocando os
sinais. Entre as histórias preferidas dos antigos membros do movimento inclu­
em-se o dia em que, segundo eles, o doutor Ulisses Guimarães deixou a praça
sem um dos sapatos e a recepção dada a Samey quando presidente, em um de
seus momentos de popularidade mais baixa. Mas cabe salientar que a Brizolândia
não se alimentou apenas desse tipo de procedimento. O seu cotidiano, ao m e­
nos a partir de 1992, revela uma dinâmica muito diferente do mero primarismo,
intolerância e autoritarismo.
Finalmente, um último ponto dos eventos da convenção do PSDB e das
análises veiculadas pela mídia, das quais o artigo de Dora Kramer é a mais con­
tundente, refere-se à não-coincidência entre o brizolismo e a opção partidária.
Isso vale tanto para a abordagem jornalística quanto para o comportamento da
militância. O brizolismo é identificado por Dora Kramer como um tipo de com-

21 D epoim ento de "Pernam buco" ao autor, em setembro de 1 995.

3 39
portamento gerado e reforçado por uma elite política cujos métodos e valores
devem ser varridos da política carioca. De mera adesão a um líder, Brizóla,
transubstancia-se em comportamento intolerante e autoritário. Não é apenas a
Brizolândia, repito, que está em questão. É o brizolismo, mesmo radicado em um
partido opositor àquele de Brizóla. Da parte do comportamento da militância, tal
como veiculado pela mídia, o fato de estar no partido contrário ao do “chefe” não
significa, ao menos aparentemente, um decréscimo da reverência a Brizóla, ex­
presso no silêncio respeitoso que Dora lamenta não ter sido socializado. Aceitan­
do a descrição como relato de algo próximo ao que se deu na convenção, concluo
que a adesão ao líder, ou, como querem os brizolistas da Brizolândia, aos valores
que encarna, não corresponde necessariamente a uma escolha partidária em um
quadro eleitoral. O que o ocorrido na convenção do PSDB revela e Dora Kramer
não pode perceber é que a margem de independência da militância diante do líder
está publicizada, sem que tal posição corresponda ao desrespeito ou à abdicação
de sua reverência. Com isso, vejo reforçada uma das proposições básicas desse
trabalho, segundo a qual não se pode reduzir o brizolismo a mero fenômeno
eleitoral. Tal proposição ganha maior consistência quando se constata que na
convenção do partido a que pertence o próprio presidente da República, dois
anos após uma nova constatação da morte do brizolismo, é ele ainda que ocupa o
lugar central. O espectro do brizolismo e da Brizolândia, com todos os seus
percalços e a despeito de todos seus reveses, ainda aparece como um dos centros
do debate eleitoral que então ganhava fôlego.
A julgar pelo que observei, o brizolismo, m ais do que o trabalhism o, o
socialismo ou qualquer coisa que o valha, está fortemente impregnado na cultu­
ra política carioca. É por ele que se pode compreender, ainda que parcialmente,
a ascendência e o fascínio exercidos por tanto tempo pela figura de Brizóla na
população da cidade. Aspectos do que poderíamos chamar de cultura política
carioca parecem pronunciar-se sensivelmente neste campo de observação da
percepção popular do brizolismo. A noção de cultura política é objeto de pro­
fundas reservas entre analistas políticos. Boa parte dos esforços em avançar
nessa área, realizados especialmente na década de 60, nos Estados Unidos, são
hoje tidos como empreendimentos com limitado rendimento analítico."" Parti­
cularmente, acredito que tal se dê por algumas razões relativas à metodologia
geralmente utilizada nas análises políticas e ao princípio ontológico que as fün-

22 Uma boa análise crítica desses experimentos pode ser encontrada em Charles Taylor, “ Interpretation and
science of man” , em Rabinow & Sullivan (eds.), 1979.

3 40
damenta. É inegável que os recursos de análise de dados agregados são os mais
utilizados em análises políticas e, provavelmente, os que mais têm contribuído
para a inteligibilidade de uma série de questões desse campo específico do
conhecimento. As possibilidades de realização de inferências e generalizações
oferecidos por tais procedimentos fazem deles aliados preciosos para a com­
preensão de temas como comportamento eleitoral, análise de políticas públicas
e mensuração de tendências de opinião. Porém, o rendimento alcançado por
esses mesmos recursos na análise de questões que envolvem imagens de mun­
do, valores, símbolos, arquétipos, fantasias fundamente radicadas em determi­
nados contextos sociais, inclusive historicamente, não é satisfatório. À capaci­
dade de generalização de que são dotados, contrapõe-se o ônus a ser pago
pelos limites impostos à observação de nuances e modulações discursivas, que
só o contato mais estreito com os indivíduos permite captar. Diria até: o contato
direto e tensionado com os indivíduos que são a fonte dos dados. Dessa pers­
pectiva, mesmo o mal-estar sentido pelo pesquisador em determinadas situa­
ções do campo faz parte do processo de percepção que procura. Caso tomasse
o brizolismo como fenômeno eleitoral, as análises de tipo generalizantes seriam
suficientes para uma descrição satisfatória. No entanto, os desempenhos eleito­
rais - e não só as vitórias, que fique claro - são apenas um aspecto, fundamen­
tal, não restam dúvidas, mas apenas um aspecto do brizolismo. Inclino-me a
considerar a estada na Brizolândia extremamente relevante, exatamente por ter
contribuído para a ampliação da noção de brizolismo e por permitir o estabele­
cimento de uma conexão, exploratória é claro, entre ele e a cultura política
carioca, sem a pretensão das generalizações excessivas. Tomei contato, na pra­
ça, com um brizolismo específico. Explicitamente aparentado com outros, mas
irred u tív el em sua com plexidade a qualquer um deles. O brizo lism o da
Brizolândia, objeto de sarcasmo, admiração divertida ou repulsa, reencena ima­
gens do Rio operadas por parte de seus habitantes.
O princípio ontológico, assumido canonicamente nas teorias sobre o com­
portam ento político não é menos nocivo para a análise aqui proposta. Ele é
legatário, ainda, da tradição do utilitarismo clássico, a partir do qual é construída
um a arena onde a conduta dos atores é presidida predom inantem ente pelo
cálculo racional e instrumental da causalidade teleológica. Nesse universo, po­
voado de atores racionais e egoístas, cada ator age calculando todos os seus
movimentos, tendo como referência a consecução de seus fins e a antecipação
dos movimentos dos demais atores em cena. Em um quadro como esse, noções
como imaginário social, universo simbólico e representação coletiva não têm

341
muito lugar. Embora a unidade de base de tal abordagem, seu princípio funda­
mental, seja o indivíduo, entendido como agente maximizador, sua propriedade
ontológica é ampliada para outras categorias sociais mais abrangentes, como o
grupo ou a coletividade, aos quais são imputados um s e lf igualmente utilitário e
calculista. Atores coletivos passam a ser definidos analiticam ente, portanto,
como indivíduos, possuindo as mesmas propriedades destes. Digo outras cate­
gorias sociais porque considero o próprio indivíduo, tal como definido pelo
utilitarismo, mais uma categoria sociológica e culturalmente radicada em um
contexto histórico-social específico, do que propriamente um conceito dotado
do poder de universalização, tal como parece supor boa parte de seus entusias­
tas. Seu rendimento heurístico é restrito a certos aspectos do comportamento
político, não oferecendo solo firme o bastante para a abordagem da política
naquilo que ela tem de cultural e socialmente construído.
Seguindo esta perspectiva, até mesmo as análises de com portamento de
grandes grupos que se mostram sensíveis às filigranas do imaginário e reconhe­
cem o caráter socialmente construído de objetivos e expectativas coletivas for­
m uladas na arena p ú b lica sofrem os efeitos dev astad o res das ten taçõ es
generalizantes, impostas pelos recortes empíricos assumidos. O conceito cultu­
ra, geralmente plural, multifacetado e que denota uma dimensão a um só tempo
dinâmica e estruturante da realidade social, acaba sendo sub-abordado, posto
que reduzido à unidimensionalidade de base exigida pela assunção da ontologia
utilitária. É tratado como um dado estático e generalizante. As pretensões
generalizadoras, mais comuns nas análises políticas, deve-se contrapor a pru­
dência e o cuidado no aprofundamento de alguns aspectos da vida política, em
uma dada comunidade. É nesse sentido, e apenas nele, que indico alguns traços
que inspiram conexões possíveis entre a cultura política carioca e o brizolismo,
tal como observado na Brizolândia.
A trajetória de Brizóla no Rio de Janeiro não pode deixar de causar admira­
ção, gostemos ou não dele. Campeão de votos em 1962, com um desempenho
jam ais igualado, Brizóla retom a do exílio e ocupa lugar de destaque na política
carioca. Ainda após seu último sepultamento, até o presente instante, sua figura
está longe de ser negligenciável. Sua ascendência no Rio de Janeiro é mais
espantosa quando comparada à sua dificuldade em penetrar em outros grandes
centros urbanos do país, como São Paulo e Belo H orizonte, por exemplo.
Depois de esquivar-se de diversas sugestões para levar a Brizolândia a outros
centros, Pernambuco aceitou, “por devoção à causa”, levar o empreendimento
para São Paulo, quando a campanha presidencial de 89 ainda começava. A

3 42
tentativa resultou em um estrondoso fracasso. Ressentido, Pernambuco acusa
a ausência de apoio do partido à empreitada. Leitura alternativa: Brizola não
consegue ter em São Paulo o apelo que possui no Rio. Quais seriam as razões?
Ao longo da pesquisa, e não só na Brizolândia, interessei-m e em coletar as
impressões de meus informantes sobre o tema. A versão de que Brizola herdou
tal dificuldade de Vargas, que supostamente também não teria bom trânsito em
terras bandeirantes, é questionada por José Gomes Talarico, lembrando, entre
outras coisas, que São Paulo foi o berço do queremismo. A tentativa de estabe­
lecer que uma liderança “populista” como Brizola não tem apelo em São Paulo
é rapidamente invalidada pela lembrança de políticos como Ademar de Barros e
Jânio Quadros. Mais plausível seria a fraca memória do trabalhismo em São
Paulo, hipótese que poderia ser apoiada pela fragilidade do antigo PTB, tanto
no estado quanto em sua capital. Ocorre, porém, que a figura de Brizola, em­
bora tributária do trabalhismo, não se resume a ele. Sem pretender responder
de forma definitiva à questão, arrisco algumas tentativas que permitam elucidar
o caso.
Inicialmente, é importante frisar o destaque dado por Brizola à vocação polí­
tica do Rio de Janeiro. Desde seu retomo do exílio, ele e seus auxiliares mais
próximos referem-se ao Rio de Janeiro como o tambor do país, sua vanguarda
política e cultural. Partindo de alguém que “veio de longe”, a alusão reiterada da
vocação do Rio de Janeiro provavelmente teve enorme repercussão junto à po­
pulação de uma cidade que, depois de muitas décadas como capital federal e
centro decisório nacional, viu seu prestígio e influência decaírem lenta mas pro­
gressivamente. A alusão reiterada da importância da cidade, castigada sucessiva­
mente pela transferência da capital para Brasília e pela fusão com o antigo estado
do Rio de Janeiro, foi um recurso, premeditado ou não, para a consolidação de
uma identidade fortíssima entre o líder e a cidade. Vale repetir que tanto a transfe­
rência da capital quanto a fusão eram encaradas na Brizolândia como golpes para
neutralizar a vanguarda da organização popular, radicada no Rio de Janeiro. A
ascensão de Brizola representaria uma espécie de retratação nacional para o Rio
de Janeiro.
Brizola representa, também, uma espécie de Messias guerreiro. O homem
que optou pelos pobres e luta pela inclusão social. Nesse sentido, seu arquétipo
não é somente Vargas, mas uma liderança que chegou a lhe fazer concorrência
na cidade: Pedro Ernesto. Médico com intensa atuação, em especial na Zona
Oeste, Pedro Ernesto pode ser encarado como uma espécie de fundador de um
padrão de atuação política no Rio de Janeiro que deitará raízes profundas na

343
cidade. Em seu estudo sobre as origens do populismo no Brasil, Michael Conniff
ressalta a importância de Pedro Ernesto e a originalidade de sua atuação, desta­
cando o padrão incorporador por ele implementado de forma inédita na cida-
23 . . . . . .
de. A lógica predominante era a ampliação do acesso a direitos sociais, princi­
palmente no campo da saúde, contrapondo-se às limitações impostas pelo regi­
me político como um todo às franquias políticas e, sobretudo, civis. A interpre­
tação de Conniff é francamente simpática à atuação de Pedro Ernesto e deixa
entrever o quanto sua atuação política deixou marcas profundas na população.
Brizóla foi encarado, na Brizolândia, como o líder preocupado com as carênci­
as do povo, suas necessidades básicas a cujo acesso estariam atrelados todos os
demais avanços políticos e ideológicos das camadas populares. Nesse aspecto,
a centralidade do acesso à educação formal como quesito fundamental para o
amadurecimento do povo, tão aludida na Brizolândia, é elucidativa. Concen­
trando esforços na área de educação, Brizóla estaria investindo na emancipa­
ção popular e em sua promoção à cidadania. A retidão moral e a sagacidade
política são atributos fundamentais para esta versão secularizada do Messias.
Sendo humano, Brizóla erra, compõe com lideranças tradicionais e conserva­
doras, mas, pessoalm ente, é reconhecido como alguém inatacável. Não visa
benefícios pessoais. Paga um preço alto aliando-se àqueles de cuja aproxim a­
ção poderá tirar algum proveito a ser revertido, posteriormente, à causa popu­
lar. Em certas ocasiões, raras, escolhe mal seus assessores e colaboradores,
comete erros, em números bem menores do que acertos, mas jam ais deixa de
ter em vista os interesses do povo. Expõe-se aos golpes dos seus inimigos, não
teme sequer o escárnio público, escorado pela impossibilidade de que sejam
provadas quaisquer acusações contra sua idoneidade ideológica, política e pes­
soal. Sofre e arranca os suspiros preocupados, quase maternais (ou paternais)
de seus adeptos, sem desviar-se de seus desígnios. Visto dessa forma por seus
adeptos, Brizóla encarna a figura do Messias, do guerreiro e do mártir. Aparece
como uma espécie de síntese dos três. Poderia ser dito: é a encarnação do santo
da religião civil. Essa imagem, repetidas vezes formulada na Brizolândia, pode
ser observada de modos variados em outros setores do partido.
As imagens associadas a Brizóla podem ser específicas do imaginário social
carioca, não sendo observáveis em outros centros do país. Caso seja assim,
estariam estabelecidos alguns critérios interpretativos para o contraste entre o
apelo de Brizóla no Rio com seu baixo trânsito em outras regiões. Caso contrário,

23 Ver Conniff, s.d.

344
restaria a suposição de que a associação de algumas representações e imagens à
persona de Brizóla operou-se de modo ótimo, no Rio de Janeiro. Em outras
regiões, talvez tenha havido uma espécie de ruído que a impossibilitou. Não seria
propriamente o caso de haver diferenças substantivas entre a cultura política
carioca ou mineira, por exemplo. Apenas aquilo que Brizóla representou (ou
representa) no Rio não foi capaz de representar em outros lugares. Não gosto
dessa hipótese. Inclino-me a considerar que há especificidades na tradição políti­
ca carioca e em sua cultura que as diferenciam de outros grandes centros brasilei­
ros, também distintos entre si. A existência por um período de mais de dez anos
de um movimento como a Brizolândia parece atestar tais especificidades. Quan­
do lançou sua candidatura à prefeitura do Rio de Janeiro em 1992, César Maia,
deputado que havia obtido desempenho expressivo em eleições legislativas anteri­
ores, tentou lançar um movimento semelhante à Brizolândia na praça Tiradentes,
ainda no início da campanha. Não foi feliz: a idéia não vingou. Outras vingaram,
posteriormente. Mobilizando, talvez, outros componentes do imaginário popular,
diversos daqueles ritualizados cotidianamente na Brizolândia. O fracasso de tal
tentativa é eloqüente da singularidade representada pela experiência da Brizolândia,
a despeito de avaliações, positivas ou negativas, de suas motivações e dos valores
que incorporou. A despeito, sobretudo, de sua forma de atuar politicamente e do
conteúdo das análises de seus participantes. E possível que uma espécie de tradi­
ção jaco b in a , m uito acentuada no Rio de Janeiro em décadas passadas,
potencializada, de certo modo, por lideranças políticas desde o império até os
conhecidos Grupos dos Onze do início da década de 60, tenha encontrado na
Brizolândia um modesto, mas barulhento, canal de expressão. Por ela, a negligên­
cia para com os canais formais de participação e a falta de paciência para com os
procedimentos burocratizados deram, ainda uma vez, o sinal de sua existência na
antiga capital federal. O mesmo vale para a forma de atuação afeita ao levante e
ao conflito, que aparece repetidas vezes na história política da cidade. A trajetória
de Brizóla parece ter sido uma excelente fiadora para alçá-lo ao lugar de referên­
cia para essa espécie de sentimento que anima a vida política do Rio e que em
absoluto foi criado no “aparelhismo da Sete de Setembro”.
Ainda assim, não deixa de ser intrigante que a figura austera e exclamativa
de Brizóla, com sua verve nacionalista, tão colada às tradições gaúchas, tenha
alcançado tanto sucesso no Rio de Janeiro. Também aqui, uma última sugestão
interpretativa pode ser feita. A adoção do Rio de Janeiro sem abrir mão dos
ditos populares do povo do Sul, do sotaque sempre carregado e da imagem do
caudilho, típico da fronteira, pode ter mobilizado um outro traço profundamen-

345
te pronunciado da auto-imagem carioca: o cosmopolitismo. Não há nada mais
estrangeiro ao carioca do que a fronteira do Sul, suas guerras e códigos de
honra. Nada mais adequado ao seu cosmopolitismo do que a adoção e valoriza­
ção dessas qualidades. Mediante um curioso contraste com o(s) tipo(s) ideal(is)
do carioca, Brizóla aparece como o outro a quem a cidade acolhe e oferece sua
decantada hospitalidade. Há uma espécie de jogo de contrastes, em que ele é
simultaneamente o s e lf e o outro. Jacobino, irredentista e carbonário, assim se
reconhecem aqueles que, na Brizolândia, reiteram cotidianamente a sua condi­
ção de cariocas e, por isso, vanguardistas. Ao mesmo tempo, gaúcho, caudilho,
hom em de fronteira. Talvez, ao longo de toda a pesquisa realizada, dentre
tantos depoimentos, a frase síntese desse sentimento seja a pronunciada pelo
professor Silvio, recordando a campanha de 1982: “Eu tinha aquele orgulho
cultural e intelectual de saber que este cara (Brizóla) não perdia no Rio de
Janeiro. Aqui, ele não perdia. "
D esde que foi derrubada pela últim a vez, algum as sem anas antes das
eleições de 1994, a barraquinha não foi erguida de novo. Pernambuco, Chicão
e outros antigos militantes ainda se referem à Brizolândia usando o verbo no
presente. Alguns ainda cogitam revitalizá-la. Reconhecem, contudo, que difi­
cilm ente terão em Brizóla um líder capaz de conduzi-los ao poder. Não que
ele tenha sido sepultado politicamente. Para eles, B rizóla ainda continua vivo.
Apenas constatam que as elites com quem se batem jam ais perm itiriam que
isso ocorresse. Elas foram bem-sucedidas, constatam, na tarefa de desacreditá-
lo publicam ente. M as não há problem a, asseguram , o que im porta são os
valores por ele encarnados, e estes estão preservados, à espera daquele que
os em punhará com a m esm a coragem e tenacidade com que o fez Brizóla. A
Brizolândia, asseguram, retornará. Com outro nome que seja, para desespero
daqueles que gostariam de ver o que ela representa varrido da política cario­
ca. Retornarão à praça com ela, arrastando os pés, os narradores, cuspindo
enquanto relatam as experiências vividas, à espera daquele que transform e
suas histórias num texto literário, cuja conclusão coincida com o advento de
um regim e popular para seu país

3 46
Conclusão

Passados 20 anos de seu retorno do exílio, Brizola permanece ocupando


espaços nos debates políticos. Ao que parece, ainda há muitos interessados em
seus movimentos, prontos para saudar mais uma morte sua, ou celebrar mais
um recomeço. A Brizola estiveram vinculadas, sempre de forma intensa, im a­
gens de morte e regeneração, de ordem e caos, de modernização e atraso, de
tradição e ruptura. M uitas vezes associados sim ultaneam ente pelos mesmos
atores., Tem-se empenhado teimosamente em manter vivo o legado varguista, a
despeito das críticas devastadoras que atrai por assumir tal posição. Tudo leva
a crer que seu projeto de ascensão ao posto máximo da política brasileira, a
exemplo do que fizeram seus antecessores trabalhistas, Vargas e Jango, dificil­
mente se cumprirá. Batido eleitoralmente, em 1994, mantém, no entanto, um
glamour poucas vezes igualado na política brasileira contemporânea. No Rio
de Janeiro, parte da população atribui a ele todos os m ales do estado e da
cidade. A violência, a criminalidade, a favelização, a decadência, enfim, do
estado e de sua capital. Para outra parcela, a ele estão associadas as esperanças
perdidas do passado mais recente.
Se não chegou à presidência da República, Brizola reeditou, ao menos, o
martírio trabalhista, pelas perseguições que sofreu e pelos temores que desper­
tou em parcelas das elites política e econômica. Entrou para a história antes de
sair da vida, o que não chega a ser muito bom em se tratando de um político.
Contudo, ainda é cedo para que a entrada na história seja o equivalente a não
mais atuar de forma efetiva sobre os seus rumos políticos. N a últim a eleição
para o governo do estado do Rio de Janeiro, em 1998, os três candidatos mais
fortes desde o início da campanha, Anthony Garotinho, César Maia e Marcelo
Alencar (que cederia sua vaga para Luiz Paulo Correia da Rocha), guardavam
todos em sua trajetória política algum vínculo com o brizolismo. Ainda nesta
campanha, o legado brizolista, para o bem e para o mal, polarizou as candidatu­
ras e os debates. Dado eloqüente que reitera a relevância de estudos m ais
detidos e cuidadosos sobre esse fenômeno. Afinal, como procurei evidenciar, a
pura e simples alusão ao carisma ou à suposta permanência residual de antigas
práticas políticas no Brasil são insuficientes.

347
A eficiência do carisma para a disputa eleitoral foi freqüentem ente tida
como um problem a a ser enfrentado pelos sistem as dem ocráticos altamente
inclusivos. Não existe na literatura especializada quem não o reconheça. A
avaliação sobre a potencialidade disruptiva desse tipo de liderança, bem como
seu caráter positivo ou negativo, tem a ver com diagnósticos em píricos e
normativos sobre padrões desejáveis de ordenamento da vida política. A m ar­
gem de autonomia e poder de iniciativa da liderança carismática, bem como seu
virtual poder disruptivo, é condicionada, ainda segundo a literatura especializa­
da, ao grau de institucionalidade do sistema político e à sua legitimidade junto
ao demos. A sobrevivência da liderança de Brizóla foi entendida freqüentemente
como um sintoma da frágil legitimidade das instituições junto ao eleitorado. Sua
permanência como uma ameaça a elas. Ou, mudando o enfoque, sua ascensão
representaria a criação de um outro modelo político, não-excludente, participativo
e verdadeiramente democrático que redundaria na constituição de uma espécie
de fundação de uma nova nação. O desenrolar da história recente não ofereceu
dados p ara a confirm ação de q u alq u er um a destas teses. O esfo rço de
descolamento dos veredictos mais usuais formulados no olho do furacão dos
embates políticos leva à constatação de que a investigação criteriosa sobre o
recente, e ainda persistente, caso do brizolismo no Rio de Janeiro reabre ao
menos dois focos de estudos cruciais para a teoria política: a questão do nacio­
nalismo no Brasil e o lugar do líder carismático nas democracias de massa.
Como procurei evidenciar, a figura pública de Brizóla alimentou e foi alimen­
tada pelo apelo à emancipação nacional, encarnando um projeto, uma estética e
um modo de ver e fazer a política. Tomar tal esforço como uma mera reatualização
de tradições passadas equivale a deixar-se seduzir pelo que há de mais fácil e
superficial nesta retórica que se pretende interpretar. A alternativa seria reconhe­
cer o caráter plural dos mecanismos simbólicos que se encaixam, colidem e
esgarçam na articulação desse discurso e a diversidade de vozes nele atuantes.
Feito isso, a própria tradição evocada aparece de formas diferenciadas, o que
resulta no imperativo de um retomo, ainda uma vez, a tradições tidas um tanto
apressadamente como sepultadas e conceitualmente superadas. Com o cuidado
de não tomá-las como instrumentos ideologizantes e/ou armas de combate políti­
co, os interessados pelos processos políticos devem reconhecer que as várias
tradições nacionalistas no Brasil permanecem a espera de maiores e mais cuida­
dosas indagações.
O mesmo vale para o problema do líder carismático. A suposição de que
este é um personagem necessariam ente nocivo à norm alidade dem ocrática,

348
sintoma da fragilidade das instituições, parece, cada vez mais, não passar de
um postulado contrafactual. Ainda nos casos em que tal relação possa ser
verificada empiricamente, caberiam indagações de ordens diversas - culturais,
históricas e simbólicas - para esclarecer seu surgimento e, em certos casos,
perenidade. Talvez seja necessária a redefinição do conceito de carisma, alguns
reparos em sua formulação original, sua atualização para o contexto de uma
sociedade em que os meios de comunicação se transformam rapidamente obri­
gando a redefinições de categorias ainda mais fundam entais como tempo e
espaço, alterando radicalmente não apenas as formas de definição das pautas
dos debates políticos mas os critérios de construção de seus atores. Seja como
for, este personagem, o líder carismático, mantém-se presente como uma ques­
tão aberta, desafiando a argúcia de seus intérpretes, promovendo perturbações
institucionais em alguns casos, mas, em outros, provendo, como fiador de sua
legitimidade, margens seguras de estabilidade e saúde institucional.
O brizolismo aponta, ainda que de forma ambivalente, algumas pistas para
que ambas as questões - nacionalismo e carisma - sejam retomadas, sobretudo
no contexto brasileiro. Seria interessante que se continuasse a explorá-las.

349
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3 56
Anexo I

Discurso de Brizóla ao pé do túmulo de


Getulio Vargas em 7/9/79

Nunca imaginei durante esses quinze anos de exilio, que nos encontraríamos
nestas circunstâncias. Num sete de setembro, com o povo de São Borja, ao pé do
túmulo de Getulio Vargas, tendo aqui ao lado, bem junto de nós, repousando para
sempre, nosso companheiro João Goulart, morto prematuramente na amargura
do exílio. E quantos companheiros e amigos, vindos de toda a parte e de todos os
lugares os mais longínquos de nossa pátria. Há em tudo o que vivemos e senti­
mos, neste momento, um intenso simbolismo que nos dá força e nos inspira
confiança. Neste pedaço de chão se encontram depositados os restos mortais de
Vargas, este homem cuja vida pública foi o centro de tudo o que ocorreu de mais
importante com o nosso povo e o Brasil neste século XX.
Perm itam -m e que vos afirme que para este encontro venho, desde meu
longo exílio, com o coração cheio de saudades, mas limpo de ódios. Não me
considero um ressentido, nem trago quaisquer pretensões. O que me cumpre,
tão rapidamente possível, é assimilar as novas realidades para ser útil à nossa
causa.
Aqui viem os para reverenciar a m em ória de Vargas, deste hom em cuja
atuação pública representa o que de mais importante ocorreu na vida brasileira
neste século XX. Aqui nos encontramos para alguns instantes de reflexão, nes­
tes dias em que começa este alvorecer de liberdade. Nossos pensamentos per­
correm distâncias, o tempo, as tragédias que vivemos, mas também as nossas
esperanças, a nossa fé em relação ao futuro.
Ao contrário de algumas opiniões apressadas ou dirigidas, Vargas e sua
obra, seu pensamento conclusivo, não são apenas elementos da História, ques­
tões superadas ou, sim plesm ente, um passado que nada tem a ver com os
nossos dias, muito menos com o futuro.
Gostaria de dizer a uma parte das novas gerações que Vargas, sua obra e a
Carta-Testamento, que nos deixou juntam ente com o sacrifício de sua vida,
estão na memória de nosso povo.

3 57
Quando me refiro a um a parte das novas gerações, quero dizer que os
jovens da m assa popular sabem, até mesmo por transm issão oral, quem foi
Getulio Vargas, por que sacrificou a sua vida, a favor de quem.
Vargas, segundo seus críticos, teria sido um hom em indefinido, ou que
m udava constantem ente de posições. Não. Vargas, em toda sua longa vida
pública, caracterizou-se pela extraordinária capacidade de assimilação dos no­
vos tempos. Daí ter atuado com várias gerações, sucessivamente. A geração de
30, que era a sua própria, a que lhe foi solidária até 45 e, finalmente, a de 50.
Neste ano de 1950 foi reconduzido ao governo pelo voto popular contra as
chamadas elites intelectuais e as máquinas partidárias, apenas contando com
um grupo de jovens e as classes trabalhadoras.
O seu nacionalismo e sua adesão à causa dos trabalhadores eram dinâmi­
cos, avançavam sempre, superando gerações de colaboradores que perm aneci­
am sem evoluir.
O pensamento conclusivo de Vargas está nos pronunciamentos e atitudes
dos últimos meses de sua vida e na Carta-Testamento. Esta foi uma denúncia e
ao mesmo tempo uma antevisão destes quinze anos de autoritarismo e explora­
ção das classes populares. E o que deu a esse docum ento um a im portância
histórica foi o im pacto da morte do presidente Vargas e seu sacrifício. Sua
mensagem chegou ao fundo das consciências. Foi entendida até pelos que não
sabiam ler e escrever. Popularizou-se uma denúncia que até aquela data era
aflorada apenas por algumas áreas políticas e intelectuais. O conluio de grupos
nacionais minoritários, elitistas e orgulhosos com poderosos grupos internacio­
nais, para impor ao Brasil um modelo econômico que só com a ditadura poderia
ser realizado. E foi o que precisamente aconteceu.
Esta noite, enfim, de arbitrariedades, exploração e tirania que tornou o país
vulnerável e dependente e impôs imensos sacrifícios ao nosso povo.
A carta de Vargas nos afirma que devemos nos basear em nós mesmos para
construir nosso futuro; que o nosso desenvolvimento só ocorrerá realmente se
o povo brasileiro o fizer com suas próprias mãos. Nosso povo foi prevenido
pela Carta-Testamento que este regime se implantaria para submetê-lo e explorá-
lo. Por isso posicionou-se desde o início e sempre contra ele. Já em 66, depois
em 70, quando impôs ao regime sua primeira derrota, se somarmos os votos
brancos e nulos com os da oposição. Depois em 74 e 78, em todas as oportuni­
dades possíveis, ainda que em competições eleitorais viciadas pelo autoritarismo.
Esta imensidão social que formam em conjunto os trabalhadores e as camadas
de todo o país foi somando parcelas cada dia maiores da classe média, que a

358
esta altura já se sentia, enganada, formando progressivamente uma consciência
que se foi refletindo cada dia com mais veemência, na imprensa e, outras vozes
da oposição.
Em m inha opinião, quem levou o regim e a p erd er a cada dia m ais
credibilidade, à exaustão, foi o desprezo de nosso povo que lhe retirou todo o
conteúdo ético e moral em sucessivas reprovações. Ao nosso povo devemos
este clima de abertura. A Carta-Testamento orientou-o, pois o manteve sempre
prevenido contra o regime.
O povo brasileiro tem consciência de seus direitos fundamentais. Sua voca­
ção democrática é indesmentível. Tem senso histórico e sabe o que quer. Em
sua simplicidade, sabe e sente em sua própria carne muito bem se o país vai
mal ou não e onde estão os reais interesses do país ou quais as soluções práticas
e concretas para seus problemas e dificuldades.
Inspirando e orientando governantes sinceros que não transacionam com
seus interesses, depositários legais de sua confiança, nosso povo sabe mais e
melhor que qualquer grupo elitista, de iluminados, que cultivem a pretensão de
tutelá-lo e im por-lhe suas receitas, outorgando-se um a representação para a
qual não foi credenciado.
Quem quiser que se engane. Pois não existirá força alguma na terra capaz
de impedir que o povo brasileiro realize seu destino como nação livre e inde­
pendente. Pode dificultá-lo por algum tempo, mas ressurgirão, logo a seguir,
mais forte ainda a sua vontade e sua determinação, sua vocação de liberdade e
justiça social. São direitos fundamentais do povo brasileiro, destas multidões
imensas que cobrem a grandeza de nossa pátria, direitos inalienáveis, que a esta
altura da evolução humana ninguém lhes pode negar.
(transcrito tal como publicado na edição de 8/9/79 do Jornal do Brasil)

359
Anexo II
TABELA 1: governador do estado - 19821

PDT PDS PMDB PTB PT


% % % % %

RIO DE JANEIRO 34,19 30,60 21,45 10,71 3,05


Região M etropolitana 41,09 28,84 15,53 11,16 3,37
RM 1 42,24 27,35 14,38 12,07 3,96
Rio de Janeiro 44,10 25,06 14,59 12,23 4,03
AP 1 41,70 26,43 13,78 14,25 3,84
AP 2 34,89 30,85 15,26 13,53 5,48
AP 3 46,23 23,23 14,22 12,78 3,54
AP 4 49,61 21,64 15,23 10,09 3,43
AP 5 56,18 19,19 14,73 6,85 3,05
RM 2 42,57 30,12 16,14 8,85 2,32
RM 3 19,80 41,05 26,82 11,12 1,21
Noroeste Flum inense 4,15 45,11 47,72 2,86 0,16
Norte Flum inense 8,08 33,49 48,89 8,17 1,38
Região Serrana 9,02 34,81 40,19 13,73 2,25
Baixadas Litorâneas 7,12 41,69 43,20 7,23 0,76
Médio Paraíba 14,71 34,91 40,06 6,83 3,49
Centro-Sul Flum inense 7,96 40,39 35,28 15,40 0,97

AP 1 Centro, Estócio, Rio C om prido, S. Cristóvão.


AP 2 Flam engo, Botafogo, Copacabana, Laranjeiras, Leblon, Tijuca, Ipanem a, G rajaú.
AP 3 Rocha, Cascadura, O la ria , M adureira, Méier, Realengo, E. N ovo, Bonsucesso, Irajá , D e odoro, Ilha do
Governador.
AP 4 Barra.
AP 5 Bangu, Sta. Cruz.
RM 2 Duque de Caxias, N ilópolis, Nova Iguaçu, SãoG onçalo, São João do M eriti.
RM 3Angra dos Reis, Itaboraí, Itaguaí, M agé, M angaratiba, M aricá, Paracambi, Parati.

1 Esta e as tabelas seguintes foram extraídas de: Figueiredo, Schmitt, Reis & G uanabara, 1996.

361
TABELA 2: governador do estado - 1990
PDT PT PMDB PSDB
% % % %
RIO DE JANEIRO 60,88 17,98 13,53 7,61
Região M etropolitana 60,97 19,60 12,22 7,21
RM 1 55,06 23,62 13,00 8,33
Rio de Janeiro 55,13 23,77 12,75 8,34
AP 1 51,12 26,31 14,26 8,31
AP 2 35,50 31,80 18,49 14,20
AP 3 58,44 23,16 11,76 6,64
AP 4 55,68 23,20 12,32 8,79
AP 5 74,71 13,70 7,11 4,48
RM 2 72,57 12,35 10,26 4,82
RM 3 68,60 10,96 13,55 6,89
Noroeste Flum inense 64,83 5,48 22,10 7,59
Norte Flum inense 71,45 7,09 17,33 4,12
Região Serrana 53,67 13,37 21,58 11,38
Baixadas Litorâneas 59,60 11,52 21,72 7,16
Médio Paraíba 57,05 15,69 14,60 12,67
Centro-Sul Flum inense 57,46 12,09 19,32 11,13

AP1 Centro, Estácio, Rio C om prido, S. Cristóvão.


AP2 Flam engo, Botafogo, Copacabana, Laranjeiras, Leblon, Tijuca, Ipanem a, G rajaú.
AP3 Rocha, C ascadura, O la ria , M a d u re ira , Méier, Realengo, E. N ovo, Bonsucesso, Irajó , D e o d o ro , Ilha do
G overnador.
AP 4 Barra.
AP 5 Bangu, Sta. Cruz.
RM 2 Duque de Caxias, Nilópolis, Nova Iguaçu, SãoG onçalo, São João do M eriti.
RM 3 Angra dos Reis, Itaboraí, Itaguaí, M agé, M angaratiba, M aricá, Paracambi, Parati.

TABELA 3: presidente da República 1° turno (três candidatos mais votados) - 1989

PDT PRN PT
% % %

RIO DE JANEIRO 52,09 16,07 12,22


Região M etropolitana 55,01 14,35 11,51
RM 1 49,63 15,64 12,27
RM 2 66,04 11,11 10,18
RM 3 57,59 16,70 10,04
Noroeste Flum inense 41,08 28,84 5,85
Norte Flum inense 57,82 17,44 8,85
Região Serrana 35,53 25,76 12,51
Baixadas Litorâneas 44,65 25,30 11,22
Médio Paraíba 34,11 17,32 27,03
Centro-Sul Flum inense 38,37 26,30 13,85

362
TABELA 4: presidente da República 2o turno -1 9 8 9

PT PRN
% %
RIO DE JANEIRO 72,92 27,08
Região M etropolitana 75,53 24,47
RM 1 72,98 27,02
RM 2 81,71 18,29
RM 3 72,06 27,94
Noroeste Flum inense 48,60 51,40
Norte Flum inense 70,00 30,00
Região Serrana 57,59 42,41
Baixadas Litorâneas 62,01 37,99
Médio Paraíba 71,39 28,61
Centro-Sul Flum inense 61,34 38,66

RM 1 N iterói, Rio de Janeiro.


RM 2 Duque de Caxias, N ilópolis, Nova Iguaçu, São G onçalo, São João de M eriti.
RM 3 Angra dos Reis, Itaboraí, Itaguaí, M agé, M angaratiba, M aricá, Paracambi, Parati.

TABELA 5: go vernador do estado -1 9 8 6

PMDB PDT PT PDS PSB PASART PND


% % % % % % %

RIO DE JANEIRO 49,35 35,88 8,57 1,77 0,64 3,58 0,21


Região M etropolitana 45,08 39,68 8,46 1,78 0,66 4,14 0,22
RM 1 45,99 37,65 9,67 1,66 0,78 34,04 0,21
Rio de Janeiro 45,23 38,40 9,50 1,69 0,76 4,22 0,21
AP 1 48,41 34,91 10,63 1,77 0,78 3,34 0,17
AP 2 57,15 25,21 13,92 1,10 1,12 1,37 0,13
AP 3 43,71 39,30 8,45 2,04 0,67 5,58 0,25
AP 4 44,93 39,29 8,96 1,77 0,76 4,07 0,21
AP 5 29,24 57,02 5,25 1,52 0,44 5,37 0,25
Niterói 54,76 29,06 11,60 1,33 1,02 2,03 0,18
RM 2 40,71 45,83 6,13 2,04 0,42 4,62 0,25
RM 3 56,89 31,85 6,05 1,82 0,37 2,83 0,20
N oroeste Flum inense 76,65 17,66 3,10 1,87 0,32 0,30 0,10
Norte Flum inense 58,52 31,11 5,65 2,39 0,71 1,46 0,17
Região Serrana 68,05 16,59 10,42 1,74 0,72 2,32 0,16
Baixadas Litorâneas 71,30 20,40 5,46 1,26 0,42 1,03 0,13
Médio Paraíba 59,13 22,35 14,73 1,50 0,58 1,52 0,20
C entro-Sul Flum inense 69,67 18,96 7,78 1,64 0,48 1,31 0,15
AP l Centro, Estácio, Rio C om prido, S. Cristóvão.
AP 2 Flam engo, Botafogo, Tijuca, Leblon, C opacabana, Laranjeiras, Ipanem a, G rajaú.
AP 3 Rocha, Cascadura, O laria, M adureira, Méier, Realengo, E. Novo, Bonsucesso, Irajá, Deodoro, Ilha do Governador.
AP 4 Barra.
AP 5 Bangu, Sta. Cruz.
RM2 Duque de Caxias, N ilópolis, Nova Iguaçu, São G onçalo, São João do M eriti.
RM3 Angra dos Reis, Itaboraí, Itaguaí, M agé, M angaratiba, M aricá, Paracambi, Parati

363
TABELA 6: prefeito da capital - 1 9 9 2 (1o turno)

PT PMDB PDT PRN PDS PTB PFL PSDB PST PRP PFS
% % % % % % % % % % %
Rio de Janeiro 32,94 21,79 18,43 10,36 4,72 4,31 3,02 1,85 1,38 0,76 0,44
AP 1 34,97 22,97 17,26 7,66 5,23 4,01 3,19 2,29 1,40 0,64 0,39
AP 2 30,37 37,31 13,06 4,14 4,98 2,36 2,70 2,64 1,69 0,51 0,25
AP 3 34,33 16,63 18,57 12,68 5,11 5,62 3,02 1,61 1,29 0,64 0,51 ■
AP 4 31,79 22,15 18,33 12,21 4,51 3,84 2,86 1,63 1,26 0,96 0,46
AP 5 32,87 12,63 26,31 12,92 3,23 4,05 3,54 1,32 1,23 1,36 0,53

AP 1 Centro, Estócio, Rio Com prido, S. Cristóvão.


AP 2 Flamengo, Botafogo, Copacabana, Laranjeiras, Leblon, Tijuca, Ipanema, Grajaú.
AP 3 Rocha, Cascadura, O laria, M adureira, Méier,Realengo, E, Novo, Bonsucesso, Irajá, D eodoro, Ilha do Governador.
AP 4 Barra.
AP 5 Bangu, Sta. Cruz.
Anexo III

Lista dos entrevistados

Abdias do Nascimento Jair


Alfredo Sirkis Jamil Haddad
Almir Paulo José Colagrossi
Anita Leocádia José Gomes Talarico
Aurélio Fernandes Leandro Konder
Bayard Boiteux Lígia Doutel de Andrade
Bolívar Meireles Luiz Alfredo Salomão
Carlos Alberto Caó Luiz Wemeck Vianna
Carlos Mine Neiva Moreira
Carmem Cenira Nilo Batista
Cibilis Viana Pernam buco
Clóvis Brigagão Professor Silvio
Coronel Nazareth Cerqueira Raphael Peres Borges
Darcy Ribeiro Ricardo Rotenberg
Edmundo Muniz Rosa Cardoso
Eduardo Chuay Saturnino Braga
Eduardo Costa Teotônio dos Santos
Fernando Gabeira Theodoro Buarque de Holanda
Fernando Peregrino Trajano Ribeiro
Fernando William Vera Malaguti
Hemílcio Froes Vivaldo Barbosa
Isac Wilson Fadul

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