Documenti di Didattica
Documenti di Professioni
Documenti di Cultura
comédia histórica de
Atilio Bari
SINOPSE
2
3
OS PERSONAGENS
1) BENÍCIO
2) JACARÉ
3) OLIVEIRA
4) DELZUÍTA
5) PROFESSOR
3
4
Moço, paulista, vive com a mãe numa casa de fundos. Ninguém sabe o seu
nome - todos o chamam de Professor. Leciona História do Brasil numa escola
pública do bairro. É do tipo 'certinho', que vê sempre uma boa intenção em
tudo. Estudioso, bem informado, tímido, organizado. Fala um português todo
correto, e se irrita com o linguajar vulgar dos demais.
6) TININHA
Bem jovem, bonita. Vive fazendo testes para comerciais de TV. Quer ser atriz e
modelo. Frequenta oficinas culturais e já participou de grupos de teatro amador.
Enquanto batalha sua 'grande chance', faz trabalhos temporários como
demonstradora em supermercados, pesquisas de rua, etc.
4
5
Ô-ô, Ô-ô,
A Unidos do Baixadão
Ô-ô, Ô-ô,
Canta a liberdade da nação!
Ô-ô, ô-ô,
E o negro então se libertou!
Ô-ô, ô-ô,
E o negro então se libertou!
TININHA - Só é, viu...
DELZUÍTA -Sabe que até hoje eu fico arrepiada! Cada vez que eu lembro
aquele povo todo cantando o nosso samba... Gente! Fico com os
5
6
JACARÉ - Quer saber? Eu acho que foi uma tremenda injustiça, tá legal? O
nosso samba era o melhor, o tema tava bem desenvolvido, a
harmonia, tudo!
OLIVEIRA- Tem! Tem que estudar, sim senhor, pra não sair falando besteira!
Nós já discutimos isso, Jacaré!
JACARÉ - Ah, sei lá, viu, Oliveira... O povão não percebeu nada, a
Comissão Julgadora é que botou areia...
OLIVEIRA- Claro! Tinha que botar areia mesmo! Gonçalves Dias, o poeta da
abolição! Gonçalves Dias nunca escreveu uma linha sobre a
abolição!
O combate
Aos fracos abate,
Aos fortes, aos bravos,
6
7
Só faz exaltar".
Canção do Tamoio...
JACARÉ - É! Então faz o samba, quero ver como é que fica! Isto aquí é
uma escola, mas de samba, tá legal? O que interessa aquí é o
povão!
OLIVEIRA -Porisso mesmo, Jacaré! Tem que fazer as coisas direito! E tem
mais: "Viva a Lei do Ventre Livre, em liberdade agora o negro
vive". O que acabou de vez com a escravidão, o que a Princesa
Isabel assinou, foi a Lei Áurea! Eu quase morrí de vergonha...
JACARÉ - Ah, bom, mas aí sabe o que é? É a rima! O "ventre livre" rima
com "o negro vive"...
OLIVEIRA -Ora, o Mané da Cuíca que arranjasse outra rima! Sabe o que é o
carnaval, Jacaré? É uma manifestação da cultura popular!
Cultura popular, Jacaré. Ou você acha que só porque a gente é
pobre tem que ser ignorante também? Só porque é preto tem que
passar a vida batendo tambor? Índio só tem que tocar apito?
Baiano só tem que rachar côco? Ô, Jacaré, vê se evolui, cara...
7
8
TININHA - Ô seu Benício: o senhor falou com o Mané da Cuíca pra ele vir
aquí hoje?
BENÍCIO - Não, não, num vem não, ele disse que num vem não...
BENÍCIO - Perguntei, sim! Eu perguntei pro Mané da Cuíca: "por que você
num vem"?
BENÍCIO - Ele falou assim: "porque não". Eu acho que ele tava meio
vexado...
PROFES - Olha, gente, isso não pode. A culpa não é só dele. Se bem que eu
avisei que o samba estava errado...
OLIVEIRA -Bom, não interessa, tá? Depois a gente fala com ele. Agora é
bola pra frente. O enredo do ano que vem vai ser Antonio
Conselheiro, e a gente combinou de pesquisar, estudar, ler sobre
o assunto. O professor até deu uns livros aí. Todo mundo leu?
(SILÊNCIO) Todo mundo leu?
(NINGUÉM RESPONDE)
8
9
JACARÉ - Olha, essa semana pra mim foi broca, viu? O movimento tá
fraco, a gente tem que sair atrás da clientela, senão... Com esse
negócio de bingo, sorteio pela televisão, o jogo do bicho num tá
mais com aquela bola toda, não...
TININHA - Tem a ver que o book é caro, né! Então pra fazer o book eu tive
que fazer um bico. Eu peguei um bico de demonstradora de
bicicleta ergométrica, no supermercado, pra levantar uma grana.
JACARÉ - Pernuda!
OLIVEIRA -É, tá vendo, Professor? Todo mundo tem uma desculpa. E o seu
Benício, num vai falar nada? Leu o livro, seu Benício?
9
10
OLIVEIRA - Ué, mas outro dia eu ví o senhor escrevendo umas coisas, aí!
BENÍCIO - Ah, escrever eu escrevo, sim. Ler é que eu num sei. Mas o meu
nome eu escrevo, direitinho direitinho...
DELZUÍTA -Não, sabe o que é? É que amante da Xica da Silva eu sei que
não foi, porque ele não apareceu na novela, né? Só se foi amante
da outra aí, a... Dona Beja,... a Imperatriz Leopoldina, sei lá...
DELZUÍTA -O quê?
BENÍCIO - Lava a boca, menina, quando falar no Santinho. Nunca que num
houve naqueles sertão perdido de Deus um homem que nem que o
Santinho Antonio Conselheiro!
TININHA - Espera aí! Gente! Eu tive uma idéia! A gente pode fazer o
seguinte: O Professor fez aí uma pesquisa disso tudo, não fez?
Você, Oliveira, eu sei que andou lendo umas coisas, também.
E tem o seu Benício aí, que sabe de ouvir falar um monte de
histórias sobre o tal do Conselheiro e esses Canudos, não tem?
JACARÉ - Ô Tininha, fala logo. O que é que você está querendo fazer?
JACARÉ - Lembro, sim. Eu até comecei a fazer, também, mas depois parei.
É que tinha um cara meio delicado, sabe como é, começou a dar
em cima de mim. Caí fora, meu...
DELZUÍTA -Ah, eu topo! Uma vez eu fiz uma peça lá na igreja, era sobre
drogas, aids, essas coisas... Foi super legal!
JACARÉ - Prostituta...
DELZUÍTA -O quê?
JACARÉ - Você tem jeito para a coisa... quer dizer, trabalhou bem... Um dia
eu ainda vou te ver na capa da Amiga...
11
12
PROFES - Eu acho que devíamos começar com o sertanejo... pra gente poder
entender um pouco daquele povo que habitava a região onde
surgiu o povoado de Canudos...
PROFES - "O andar sem firmeza, meio gingante, meio sinuoso, nunca traça
uma trajetória reta e firme. Parece sempre abatido, com um
aspecto de humildade deprimente. E quando pára, vai logo se
encostando... (BENÍCIO SE ENCOSTA NUMA MESA OU
NUMA PAREDE. TININHA SE APROXIMA DELE E O
OBSERVA)... ou caindo de cócoras, ficando um longo tempo
nessa posição... É o homem permanentemente fatigado. Reflete
uma preguiça invencível, na fala, no gesto, no andar, numa
tendência constante à imobilidade e à quietude..."
Ê-cou mansão...
Ê-cou... ê cão...
Ê-cou mansão...
Ê-cou... ê cão...
OLIVEIRA - Não, ele não era. Mas pelo que eu lí, o pai dele era. E tinha uns
problemas de família, lá. A família dele, os Maciel vivia em
guerra com os Araújo.
1
3
14
TININHA - Ôba! Conflitos de família, com tiro e tudo! Vamos fazer! Vamos
fazer! Jacaré: você e a Delzuita fazem a família dos Araújo, e eu
e o Oliveira fazemos os Maciel! Todo mundo de arma na mão!
JACARÉ - Serve pistola? Ah, ah, ah, ah... Onde é que tem arma aquí, gente?
TININHA - Pega cabo de vassoura, sei lá. Não sabe brincar, não, Jacaré?
TININHA - Ai, Oliveira! Claro que você fala alguma coisa! O tal do Araujo aí
chega e te faz uma baita acusação! O que é que você faz?
TININHA - Não, não é assim, Oliveira. Fala alguma coisa. Se coloca no lugar
do personagem! Reclama, se defende, ameaça, sei lá. Cria um
clima, pô! Emoção! Drama! Tensão!
1
4
15
JACARÉ - Pera lá, pera lá! "Perfeitamente, senhor?" "Às suas ordens,
senhor"? Pô, professor! Você é um jagunço! Tá parecendo
camareira de hotel de luxo! "Sim, senhor, perfeitamente, senhor,
às suas ordens, senhor"...
PROFES - Está bem, está bem, é que sabe, eu... é o meu jeito...
1
5
16
PROFES/JAGUNÇO - Vamo!
PROFES/JAGUNÇO - É!
PROFES/JAGUNÇO - É!
PROFES/JAGUNÇO - É!
PROFES/JAGUNÇO - Pá!
1
6
17
TININHA/MACIEL - Pá!
BENÍCIO - Óia aquí, gente. Achei tudo muito bão. Até me deu uns arrepio.
E a raiva que eu fiquei dos Araujo, sô. Quase que eu alevanto e
dou uns traquitana neles. Mas aí eu ví que era o Jacaré e a
Delzuíta... coisa engraçada... era eles mas num era eles...
BENÍCIO - Óia, pelo que eu sempre que ouví falar, era tanta emboscada e
tanta escaramuça que mais morria gente do que nascia. Mas o
pai do Antonio Conselheiro nunca que participou dessas briga de
familia, não...
PROFES - É verdade...
1
7
18
JACARÉ - Iogurte? Ela pensa que está num Shopping! A madame não vai
querer também um potinho de champignon? Ou então marron-
glacê, chantilly...?
1
8
19
JACARÉ - O quê?
PROFES - É... Ficou meio... artificial, não sei... Mas não tem problema...
Vamos em frente. Quem faz o professor do Conselheiro?
TININHA - Escuta aquí, Professor: não teve mulher na vida desse Antonio
Conselheiro, não? Já tô achando esse cara meio esquisito...
DELZUÍTA -Ah, eu faço ela. Com licença, que agora eu sou a mulher do
Antonio Vicente Mendes Maciel, o Conselheiro.
2
1
22
OLIVEIRA - 27 anos? Espera lá: há dois minutos atrás ele era moleque,
agora já está com 27 anos? A gente pulou um pedação, não
pulou? O que é que ele fez nesses anos todos?
JACARÉ - O que é que você queria que ele fizesse, tomando conta de uma
venda em Quixeramobim? Até parece que o cara vivia em
Miami, em Nova Iorque...
PROFES - É, parece que ele não fez nada de mais, mesmo... ficou lá,
cuidando do negócio do pai...
DELZUÍTA -Ai, deixa esse papo pra lá. O que interessa é que ele casou com
a Brasilina. (ENLAÇA O BRAÇO COM BENÍCIO, EM POSE
DE CASAMENTO)
BENÍCIO - Que isso, menina? O teu marido é aquele alí... (APONTA PARA
O JACARÉ)
DELZUÍTA -Não tem nada a ver, seu Benício! O Jacaré não fez? Então... e o
Jacaré não é santo! É teatro, seu Benício! Ah, faz, vai...
2
2
23
TODOS INSISTEM COM BENÍCIO: Vamos lá, seu Benício! Faz aí, vai! Ô,
seu Benício!
DELZUÍTA -Então, vamos. Diz aí, Professor. Quando ele tinha 27 anos,
casou com a Brasilina aquí. E aí? O que aconteceu?
DELZUÍTA -Brasilina...
2
3
24
PROFES - Nossa, gente! Não sei o que me deu... sabe o que é... eu... eu...
passo o dia todo aguentando aqueles monstrinhos, aquelas pestes
delinquentes, aqueles terroristas baderneiros... aqueles... aqueles...
Não sei o que me aconteceu!...
2
4
25
DELZUITA-Eu, hein!
DELZUÍTA-Chega! Pára, né, Oliveira... Que coisa! Parece que ficou louco!
Todo mundo tem problema, ué... Pensa que é fácil ficar aturando
as freguesas, também? Ai, ficou muito curto! Ai, ficou apertado!
Ai, num sei o quê! Ai, num sei o que lá! A gente passa a noite
costurando, remendando... (IMITANDO AS FREGUESAS) Não tá
pronto, ainda? Ai, não ficou como eu queria! Nossa, que caro!...
JACARÉ - É... pra mim também não é fácil, não... Comigo a coisa é mais na
lábia, sabe como é? Papear os caras pra fazer um joguinho aquí,
uma fézinha alí... Parece fácil! Mas eu ando quilometros por dia,
cara. Quilometros! E tenho que ficar ouvindo as histórias, sabe
como é? O sonho que o cara teve, o número da placa do carro
que atropelou um cachorro, essas baboseiras todas! Tem hora
que eu fico... aí vem os caras na televisão... disque num-sei-o-
quê e ganha um carrão, disque o cacete e ganhe não sei o que
lá... e eu camelando atrás da velharada pra jogar no bicho! É,
porque agora é só velho que joga no bicho, né?...
2
5
26
DELZUITA- Xiiiii!... Parece que o único que não tem grilos aquí é o seu
Benício...
BENÍCIO - Menina, quem passou o que eu passei... Ocê num sabe o que é
ocê estar encocorado na porta do mocambo e ver, um dia, um
bando de ave tresvoando no céu... é o prenúncio da tragédia...
É quando vai chegando dezembro... dia 12... dia 12 de dezembro
a gente arruma seis pedrinha de sal no relento, de noite... uma do
ladinho da outra... (ABAIXA-SE E FAZ O GESTO DE DISPOR
AS PEDRINHAS - OS OUTROS O SEGUEM) Cada pedrinha é
um dos mes que vem em seguida: janeiro, fevereiro... No dia
seguinte, 13 de dezembro, dia de Santa Luzia, ocê corre lá pra vê
as pedrinha: se elas desmancharam é porque vai tê chuva. Se tão
inteira, é porque vem sêca. Aí ocê óia... e elas tão inteira...
"Bom Jesus,
Olhai por nós,
Jesus Cristo
2
6
27
Bom Jesus,
Abençoai-nos,
Jesus Cristo
Escutai a nossa voz..."
PROFES - Não deu certo... nada deu certo... Nessa época, lá por 1850, a
seca foi terrível. Oliveira, fala da pesquisa que você fez...
PROFES - O sertão esvaziou. Não tinha mais gente para o Conselheiro dar
aulas. Ele ainda tentou trabalhar em outras coisas: auxiliar num
cartório, ajudante no comércio... até conseguiu juntar algum
patrimoniozinho, mas as dívidas ele não conseguia pagar. Um
dia, apareceram lá um oficial de justiça e um soldado.
2
8
29
PROFES - Prostituta...
BENÍCIO - Óia, o que eu sempre que ouví é que o sucedido foi diferente.
Diz que a tar de Brasilina, a muié dele, não se enquadrava com a
mãe do Santinho Conselheiro...
PROFES - Mas parece que é verdade, seu Benício. O pais dele não eram
casados quando ele nasceu. Só se casaram quando a mãe, a
Maria Joaquina, estava morrendo.
BENÍCIO - Discurpe, mas discreio. O que se diz é que a mãe e a muié vivia
em turra. A mãe dizia que a muié num prestava e tinha rabicho
com outros homem. Nesse então se deu uma tragédia.
TININHA / MÃE - Filho! Tua muié num presta! Quer uma prova? Faz o
seguinte: ocê sai de casa hoje, diz que só vai vortá amanhã. Mas
vorta de noitinha. Cê vai ver que tem outro homem na cama.
JACARÉ - Bem feito pra ela. Se vestiu de homem pra ferrar com a nora!
3
0
31
BENÍCIO - É o que se diz. O povo todo conta esse causo... E diz que foi aí
que a muié se engraçou com um sordado que veio investigar o
acontecido...
PROFES - O povo conta, seu Benício. Mas nos livros diz que a mãe do
Conselheiro morreu quando ele tinha só seis anos... Bom, mas de
qualquer forma, o Conselheiro, que tinha ficado sózinho e sem
nada, sumiu no mundo.
PROFES - Artesã...
PROFES - Não vai dar, Tininha, sabe por quê? É que não se sabe quase
nada dela, ou nada mesmo. Só se sabe que ficaram juntos
muito pouco tempo.
OLIVEIRA -Dizem até que ele teve filhos, mas não se sabe nem os nomes,
nem que fim levaram...
JACARÉ - O quê?
PROFES - É... 'O Rabudo'... acho que é no sentido de diabo, sei lá...
OLIVEIRA -"Um certo Antonio dos Mares tem andado pelos sertões,
procedente do Ceará, trajando camisolão azul, com cabelos
longos que se misturam à barba descuidada que desce até a
cintura, e pés descalços. Está organizando com alguns adeptos,
que o chamam de Santo Antonio Aparecido, a restauração da
igreja da Rainha dos Anjos, em Itapicuru de Cima, e a
construção de um cemitério. De pouco falar, sabe-se apenas
que já vagou pelo Ceará, Bahia e Sergipe, tendo passado por
Alagoinhas, Inhambupe, Bom Conselho, Cumbe, Mucambo,
Maçacará, Pombal, Monte Santo, Tucano e outras vilas."
BENÍCIO - Sei de ver por mim mesmo, que fui lá conferir: em tudo lugar
que passava, o Santinho deixava obra: um cemitério de muro
caído que ele reconstruía, uma igreja consertada, uma capelinha
erguida. Quase tudo tá lá, ainda... Se num fosse ele, acho que
num tinha mais nada, porque o governo já naquele tempo sempre
só diz que num tem dinheiro pra essas coisa...
3
2
33
JACARÉ/FIEL - Tá chorando!
DELZUITA-Ah, Jacaré, fala a verdade: não te deu uma coisa assim... sei lá,
um nó na garganta...?
JACARÉ - É, pra dizer a verdade, até que deu sim... Seu Benício é mesmo
um ator e tanto!
PROFES - É mesmo...
OLIVEIRA - Dizem que uma vez ele estava construindo uma igreja, e tinha
uns dez cabras daqueles bem fortões tentando erguer um
madeirame pesado.
OLIVEIRA - A toda hora chegava mais gente pra ajudar, mas não
conseguiam. O troço nem se mexia... Aí o Conselheiro chegou
e viu aquele esforço todo. Então ele subiu naquelas tábuas
(COLOCA A CABEÇA EM CIMA DA TÁBUA) e aí ordenou a
dois homens que levantassem agora. E pra surpresa de todos, o
que um bando de homens não tinha conseguido, aqueles dois
conseguiram: (TININHA E DELZUÍTA PEGAM NAS PONTAS
DA TÁBUA) levantaram o madeirame com o Conselheiro em
cima, sem o menor esforço. (ERGUEM A TÁBUA, COM A
CABEÇA DO OLIVEIRA EM CIMA)
OLIVEIRA- Bom, mas foi milagre, né... dizem que ele fez outros, mas eu não
sei...
TININHA - Olha, eu não sei não. Esse negócio de milagre é meio... sei lá...
3
5
36
PROFES - Acho que o seu Benício quer dizer que nessa coisa de milagre,
quem acredita, acredita, e quem não acredita não acredita...
BENÍCIO - Justamente, Professor. Treis coisa num serve pra discussão: fé,
futebor e inleição.
BENÍCIO - Que nunca num ficou com um tostão no bolso! Passava logo pra
um ajudante. Comprava material pra alguma obra, comida pros
mais necessitados. Dizem que nunca uma moeda dormiu uma
noite no bolso do Conselheiro. E é verdade...
3
6
37
DELZUÍTA - De quê?
OLIVEIRA- Foi por causa dessas confusões todas que ele foi pra Canudos...
PROFES - É possível que sim... Ele já tinha passado por lá algumas vezes,
quando peregrinava pelo sertão. Era uma fazenda abandonada.
Tinha lá uns poucos casebres de pau-a-pique, e uma igreja
pequena e caindo aos pedaços.
OLIVEIRA -E aí, já viu, né? O lugar, que era quase um vilarejo fantasma,
começou a crescer sem parar. Diz que teve época que se faziam
dez, quinze casas por dia, tudo em mutirão. Vinha gente de todo
lado...
BENÍCIO - O quase nada que tinha lá já era muito pra quem num tinha nada.
Pra quem tá com fome, minhoca é filé minhão. Lá, o que cada um
prantava, prantava pra todos. O que cada um criava, criava pra
todos. Era assim mesmo... Todo mundo era igual, nenhum era
mais que o outro. E quando sobrava alguma coisa, o povo ia pras
cidades vizinhas, pra vender ou pra trocar por outros bem... A
vida alí era trabaiá e rezá...
PROFES - Pois é... Belo Monte cresceu tanto que num certo momento
chegou a ser a segunda cidade da Bahia, em população.
(FOLHEIA O CADERNO) Em 1889, quando foi proclamada a
República, Belo Monte tinha 25 mil habitantes! Salvador, que era
a capital, tinha 70 mil! Um dia, num final de tarde, na hora em
que todos os fiéis se reuniam para as orações, o Conselheiro
falou...
DELZUÍTA- Ih, o que é que tem? Eu já não fiz delegado, soldado, sei lá o
que mais? Deixa comigo...
4
1
42
4
2
43
JACARÉ / FISCAL 2 - Vai dizer que num sabe, é? Tem que pagar a taxa de
licença se quer vender mercadoria na feira. São cem mil réis.
TININHA / TIA BENTA - Cem mil réis? Mas se juntar todas as esteiras que
eu tenho pra vender num dá nem oitenta mil réis! Quer saber?
Vá cobrar do Conselheiro! Se ele não paga, eu também não!
PROFES - E teve mesmo. Mas nem vale a pena falar muito sobre isso.
Polícia nenhuma conseguia pegar o Conselheiro, a maioria
era de meia dúzia de homens, que ou nem conseguiam chegar até
Canudos ou então davam meia volta quando viam a quantidade
de gente que estava do lado do Conselheiro...
4
5
46
4
7
48
OLIVEIRA / SOLDADO - Saímos no dia 12, pra num sair a 13, que é dia de
azar. Mantimento e água era pouca. Foi duzentos quilometro de
martírio, foi não?
OLIVEIRA / SOLDADO - Mas num era não... quando chegaram perto é que
vimos: era um bando de mais de mil! Tinha uns que tinha rosário
na mão, tinha uns outros com bandeira do Divino. Tinha até um
carregando um cruzeiro que num tinha tamanho.
OLIVEIRA / SOLDADO - No final foi isso: eles foram embora. Num sei se
fugiram ou só foram embora. Nós ganhamo a batalha. Cento e
cinquenta jagunço morto, disse o Comandante, mas num sei...
num ví tudo isso, não... Sei que de nós foi pelo menos dez, e
uns vinte ferido... foi pouco, até, foi não?
JACARÉ / SOLDADO - Foi pouco...Só sei que demoramos uma semana pra
chegá em Uauá, mas fizemos o caminho de volta em três dias.
Sêbo nas botinas, num foi?
OLIVEIRA/SOLDADO- Ô se foi!
que a batalha correu fama pelos sertão. Nunca que uma tropa do
exército tinha sido derrotada. Daí pra frente num parou mais de
chegar gente em Canudos! Cada dia chegava mais e mais e mais!
JACARÉ - Ué! Pode-se saber onde é que as Irmãs Galvão vão cantar?
JACARÉ - Mas vem cá: era polícia feminina que tinha lá naquelas bandas?
BENÍCIO - Quem? Eu? Ah, não... eu num sei nada desses negócio de
tevêgrama...
o voluntário!
SOBEM NA MESA.
5
3
54
BENÍCIO - Ah, ah, ah... essa foi das boa! Quer dizer que o majorengo partiu
5
4
55
cheio de bofes e voltou com os bofe pela boca! Sabe o que é que
o João Abade fazia? Reunia seus sertanejo e esperava a tropa do
exército num corredor de caatinga, e aí caía em cima e destroçava
o que dava pra destroçar. Aí, de repente sumia. Depois aparecia
de novo. Depois sumia. Depois aparecia... e ia assim. Diz que
deixava a sordadaiada louca! Ah, ah, ah, ah...
PROFES - Essa derrota das tropas federais pegou mal... No Rio de Janeiro
e no resto do país todo, já se começava a falar de Canudos, que
lá se lutava contra a República, e coisa e tal. O governador da
Bahia ficou desmoralizado, e o caso foi parar na Presidencia da
República. O presidente era Prudente de Morais, mas ele estava
de licença médica, e então o vice-presidente, Manuel Vitorino,
é quem mandou organizar uma nova expedição contra Canudos.
É aí que entra em cena um nome terrível: o do coronel Moreira
César!
PROFES - Era, sim, Delzuita. O homem era terrível. Só pra ter uma idéia:
no trajeto entre o Rio de Janeiro e a Bahia, ele desconfiou do
comandante do navio e mandou amarrar o homem naquela
prancha que fica na amurada do navio, sabe? Só soltou quando
chegou na Bahia. Em Salvador, mandou que as pessoas que
estavam no porto carregassem as suas bagagens e as de todos os
soldados que estavam com ele. Quem reclamava levava
pranchadas.
JACARÉ - E ainda por cima o cara era um degolador. Ele tinha estado
numa revolução lá no Sul, e neguinho quando caía nas mãos
dêle, êle ó... (PASSA A MÃO NO PESCOÇO)
TININHA - Ô lôco!
5
5
56
JACARÉ - O cara era mau, meu. Quando eu serví o Exército eu ví uns livros
lá sobre ele...
JACARÉ - Ué! Serví, sim, qual é? Tá certo que a minha metralhadora era
a máquina de escrever, né? Eu era o único do batalhão que sabia
datilografia. Dei a maior sorte, só ficava lá, no ar-condicionado...
PROFES - Não, não é... epilepsia é uma doença dos nervos. O sujeito tem
convulsões, distúrbios de consciência. Tem ataques súbitos.
TININHA / CABO ROQUE - Êta, que lá vem estrebucho... Pelo jeito vai uns
quatro dias...
5
7
58
JACARÉ / MOREIRA CÉSAR - Ah, ah, ah, ah, ah... Fogo! Fogo! Vamos
almoçar em Canudos! Fogo! Fogo!
5
8
59
OLIVEIRA - "A rua do Ouvidor terá a sua denominação mudada para Rua
Cabo Roque, em homenagem ao herói que morreu protegendo
o cadáver do Coronel Moreira César."
PROFES - Fugiu e desapareceu. Todo mundo achava que ele tinha morrido
protegendo o Coronel Moreira César. Aí deram o nome de Cabo
Roque a um monte de ruas e praças, no Brasil inteiro. Fizeram
estátua pra ele e tudo o mais. Um dia ele apareceu, vivinho da
silva, e confessou que tinha fugido do combate.
PROFES - É... a rua Cabo Roque, no Rio de Janeiro, voltou a se chamar rua
do Ouvidor... até hoje...
TODOS - Nossa!
BENÍCIO - Inté o Ministro da Guerra teve que entrar no rolo! Como era o
nome dele, mesmo?
6
1
62
OLIVEIRA/SOLDADO - É... mas deixa essa generalada bobiá que aí, ó...
BENÍCIO - Agora, o que eu sei memo, que o povo até hoje nunca num se
esquece, é que essa sordadaiada bandida por onde passava
arregaçava tudo... saqueava as loja, arrombava as casa, fazia
fogueira com as porta e as janela... bulia com a mulherada...
DELZUITA - Monstros!
PROFES - Tinha de tudo lá: juntaram quase cinco mil homens: bandidos,
roceiros, negros que tinham sido escravos... Era uma bagunça.
Não havia como controlar uma tropa como essa. A confusão era
tanta que eles chegaram no vilarejo de Queimadas e ficaram por
alí tres meses, antes de irem mesmo para Canudos.
Da barranca da janela
Explode, alto e certeiro,
Um tiro em cada olhadela,
Em cada riso um morteiro.
A matar-me te dispunhas
Dizem bem claros sinais:
Trazes dez lanças nas unhas,
Nos dentes trinta punhais..."
6
4
65
6
6
67
BENÍCIO - Morreu delicado, como um passarinho... acho que nem morrer ele
morreu... só... se ausentou... Como quem vai até alí e já volta...
Foi enterrado numa cova rasa, cavada de apressado no meio das
batalha...
OLIVEIRA/GENERAL - De quê?...
OLIVEIRA/GENERAL RÍ.
BENÍCIO - Beatinho foi, e voltou, depois de uma hora... Vieram com ele
umas trezentas pessoas, prá se entregá. Mas era só muié e criança,
e uns véio que nem num conseguia andar... Ardiloso, o Beatinho.
Ao mesmo tempo que se livrava daquela carga inútil, dava uma
úrtima chance pra aquela gente... Foi uma boa tentativa, mas num
deu certo...
6
8
69
BENÍCIO - Ninguém sabe quem eles eram, só se sabe que eram um velho, um
caboclo, um negro e uma criança. Quase cinco mil sordado urrava
de ódio na frente deles...
BENÍCIO OBSERVA.
6
9
70
DELZUÍTA- E as casas?
PROFES - Não, aquela Canudos não existe mais. O que existe é uma Nova
Canudos, alí perto, um vilarejo miserável...
BENÍCIO - Por mais de trinta anos ninguém se arriscava a passar por alí.
Dizem que a terra gemia e as árvore se retrocia de sofrimento.
Bem depois, a Canudos velha foi inundada... Fizeram lá o açude
de Cocorobó.
7
1
72
Ô, ô, Canudos,
Antes uma terra abandonada
Transformou-se em Belo Monte
E o que era nada virou tudo!
Antonio Conselheiro
Deixou as marcas das suas mãos
Em muita igreja e cemitério
Daquele sertão inteiro
É O FINAL...
7
3