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Agrovila ou Casa no Lote: A Questão da Mo-

radia nos Assentamentos da Reforma Agrá-


ria no Cariri Paraibano1
Márcio Caniello
Doutor em Sociologia.
Professor Adjunto da Universidade Federal de
Campina Grande.
Líder do Grupo de Pesquisa Desenvolvimento
Sustentável do Semi-Árido (GPDSA).

Ghislaine Duqué Resumo


Doutora em Sociologia.
Mostra resultado da pesquisa realizada no ano de
Aposentada da Universidade Federal de Campina
2004 por professores e estudantes da Universidade Cam-
Grande.
ponesa no território do Cariri paraibano. Verifica que,
Líder do Grupo de Pesquisa em Agricultura Familiar embora o discurso dos assentados apontasse inequivo-
(GPAF). camente para a preferência da construção das casas nos
lotes em virtude de questões culturais, sociais, econômi-
cas e produtivas, havia uma forte predominância da im-
plantação de agrovilas nos assentamentos. Segundo os
próprios assentados, a decisão favorável à construção
das agrovilas teria sido induzida pelos técnicos do Insti-
tuto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA)
a partir do argumento de que somente essa opção garan-
tiria o acesso das famílias à água encanada, energia elé-
trica, assistência médica e educação. O artigo demons-
trae que o argumento dos técnicos é falacioso, sendo
imposto aos assentados por meio de uma série de expe-
dientes espúrios, como a imputação de regime de urgên-
cia à decisão. Conclui que a construção das casas nos
lotes destinados às famílias daria uma maior sustentabi-
lidade aos assentamentos uma vez que é mais condizen-
te com o ethos camponês e com a dinâmica econômica
1
da agricultura familiar, sustentáculos básicos do empre-
Este artigo foi elaborado com base no Relatório Final da Pesquisa-Ação
“O Mundo Social dos Assentamentos da Reforma Agrária no Cariri endimento rural no semi-árido brasileiro.
Paraibano”, desenvolvida no ano de 2004, pelos autores e alunos do II
Curso de Extensão em Desenvolvimento Local Sustentável, promovido
pelo Projeto Universidade Camponesa (UniCampo) – uma parceria
entre Universidade Federal de Campina Grande, Centre de Coopération
Palavras-chave:
Internationale en Recherche Agronomique pour le Développement
(CIRAD), Projeto Dom Hélder Câmara, Prefeitura Municipal de Sumé e
Escola Agrotécnica de Sumé. Para maiores detalhes sobre o Projeto Assentamentos da Reforma Agrária; Cariri Paraiba-
Unicampo, conferir Caniello e Tonneau (2006). no; Desenvolvimento Sustentável do Semi-Árido.

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1 – O TERRITÓRIO DO CARIRI PARAIBANO estepe arbustiva, deixando aparecer, durante a estiagem,
O Cariri é uma microrregião do Estado da Paraíba, um solo geralmente desnudo – sem recobrimento herbá-
localizada na franja ocidental do planalto da Borborema. ceo – e, portanto, não passível de incorporar matéria or-
Composta por 29 municípios, ocupando uma área de gânica. Não são raros os trechos pedregosos, juncados
11.233 km² e, segundo o censo de 2000, possui uma de seixos, onde a erosão em lençol é acentuada.
população de 173.323 habitantes, apresentando uma
densidade demográfica de 15,65 habitantes por km². Lo- 2 – O POVO DO CARIRI PARAIBANO
calizada em plena “diagonal seca” (COHEN; DUQUÉ, Região de ocupação humana imemorial, apresenta
2001, p. 47-48), onde se observam os menores índices inúmeros sítios arqueológicos2 com lajedos pintados com
de precipitação pluviométrica do semi-árido brasileiro, inscrições da “Tradição Agreste” (subtradição Cariris Ve-
com médias anuais históricas inferiores a 400mm, seu lhos), de início provável há 5.000 anos antes do presen-
clima regional (Bsh) caracteriza-se por elevadas tempe- te, e furnas com cemitérios indígenas apresentando mui-
raturas (médias anuais em torno de 26ºC), fracas ampli- tos esqueletos, alguns envolvidos com esteiras de caroá.
tudes térmicas anuais e chuvas escassas, muito concen- O material lítico também é abundante, predominando
tradas no tempo e irregulares. machados de mão de pedra polida.

A vegetação é constituída pela caatinga, a mais xe- Quando da chegada dos europeus à América Tropi-
rófila, apresentando-se geralmente com fisionomia de cal, o território era dominado pelos índios Cariris, povos

Mapa 1 – Estado da Paraíba, com a Microrregião do Cariri Destacada


Fonte: Rodriguez (1999)

2
Os dados arqueológicos sobre o Cariri paraibano baseiam-se nos
trabalhos de Almeida (1978); Cabral (1997); Martin (1999) e Rietveld
(1999).

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caçadores-coletores falantes de uma língua do tronco as, mas escravos ou prepostos” – ensejou a possibili-
Macro-Jê, cuja origem provavelmente remonta, segundo dade de sobrevivência dos habitantes ancestrais: “mui-
Urban (1998, p. 90), a 5 ou 6 mil anos antes do presente. tos foram escravizados, refugiaram-se outros em aldei-
Até meados do século XVII, a região permaneceu prati- as dirigidas por missionários, acostaram-se outros à
camente intocada pelos colonizadores, mas, em 1665 sombra de homens poderosos, cujas lutas esposaram
uma sesmaria com “30 léguas de terras, que começam a e cujos ódios serviram”.
correr pelo rio da Paraíba acima, onde acaba a data do
Governador André Vidal de Negreiros, e 12 léguas de 4 – FORMAÇÃO DO CAMPESINATO NO
largo para o sul e 10 para o norte” foi concedida à família
CARIRI PARAIBANO
Oliveira Ledo. (JOFFILY, 1977, p. 346). Entre 1668 e 1691,
Não há estatísticas confiáveis sobre o destino das
Domingos Jorge Velho e seus terços de campanha corre-
populações ancestrais arrostadas pela frente de expan-
ram os sertões das capitanias de Pernambuco, Paraíba e
são pecuária, mas sabe-se que, além daqueles que re-
Rio Grande do Norte após terem desbaratado o Quilom-
sistiram fixando-se em recantos pouco acessíveis ou des-
bo de Palmares, empenhando-se na chamada “guerra
favoráveis à criação de gado – como, por exemplo, os
dos bárbaros”, “a cruenta campanha contra os tapuais
Atikum da Serra do Umã, os Pancararu e os Xucuru dos
brabos” (JOFFILY, 1977, p. 347) que viria a prefigurar uma
sertões do Pajeú – muitos índios incorporar-se-iam ao
das duas rotas da frente de expansão pecuária que, se-
processo produtivo, seja como vaqueiros, seja como pe-
gundo Capistrano de Abreu (1988, p. 166), devassaram
quenos cultivadores de alimentos. Estes, juntamente com
os sertões nordestinos.
posseiros e foreiros que “estabeleciam-se com o curral e
as reses no que chamavam de sítio’” (ANDRADE, 1986,
3 – RENTE DE EXPANSÃO PECUÁRIA p. 148) e, também, escravos quilombolas que se refugia-
De fato, no último quartel do século XVII, os Oliveira ram na região, viriam a constituir as raízes do campesina-
Ledo – assim como os potentados da Casa da Torre – to4 no Cariri paraibano em plena “civilização do couro”.
iniciariam o processo de ocupação dos “sertões de fora”3 De fato, segundo Moreira e Targino (1997, p. 72), o siste-
movimentando numerosas boiadas a partir da margem ma de pagamento do vaqueiro “não só permitiu o acesso
esquerda do São Francisco e chegando a corrente povo- à exploração, mas também à propriedade da terra aos
adora, segundo Holanda (1993, p. 221), até o sul do Ce- homens pobres livres”, uma vez que “depois de quatro ou
ará e do Maranhão em 1690. O processo foi de tal manei- cinco anos de serviço, começava o vaqueiro a ser pago;
ra cruento que D. Filipe III chegou a dirigir uma carta régia de quatro crias, cabia-lhe uma; podia-se assim fundar
ao Capitão-mor da Paraíba em 16 de setembro de 1699, fazenda por sua conta”. (ABREU, 1988, p. 170).
solicitando-lhe advertir o fundador de Campina Grande
por “estranhar mui severamente o que obrou Theodosio
5 – O CICLO DO ALGODÃO
de Oliveira Ledo em matar a sangue frio muitos dos índi-
Tal como os “grupos de agricultores pobres autôno-
os que tomou em sua guerra”.
mos”, numerosos no Nordeste oriental, também os rústi-
Sem embargo, segundo Abreu (1988, p. 168), mal- cos sertanejos mantiveram-se “imersos e ocultos nos sub-
grado a violência empregada na colonização sertaneja, terrâneos mais recônditos da história colonial” (PALÁCI-
o tipo de exploração econômica – “a criação de gado OS, 2004, p. 26), mas, a partir do final do século XVIII,
não precisava de tantos braços como a lavoura, nem com a emergência da cultura do algodão (Gossypium
reclamava o mesmo esforço, nem provocava a mesma hirsutum var. marie galante), viriam a ocupar uma posi-
repugnância” –, a configuração do espaço – “abunda- ção fundamental na economia revigorada pelo “ouro bran-
vam terras devolutas para onde os índios podiam emi- co”. De fato, a cotonicultura requer grandes contingentes
grar” – e as características da povoação – “os primeiros de mão-de-obra e, ao contrário de outras culturas de ex-
ocupadores do sertão não eram os donos das sesmari- portação, não é incompatível com a economia campone-
sa, pois o algodão pode ser cultivado em associação com
3
“Se a Bahia ocupava os sertões de dentro, escoavam-se para
Pernambuco os sertões de fora, começando de Borborema e alcançando
4
o Ceará, onde confluíam as correntes baiana e pernambucana”. Em trabalho anterior (CANIELLO, 1991) procuramos justificar
(ABREU, 1988, p. 172). teoricamente a definição do pequeno criador de gado como “camponês”.

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as culturas de subsistência e seu restolho serve como 6 – A REFORMA AGRÁRIA NO CARIRI
alimento para o gado no período mais seco do ano. PARAIBANO
É neste contexto que os trabalhadores rurais do Cariri
Segundo Moreira e Targino (1997, p. 77), em virtude
paraibano começam a se organizar. Em fins de 1974 é
disso o algodão “foi explorado tanto pelo grande proprie-
fundado o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de São
tário como pelo pequeno e por aqueles produtores que
Sebastião do Umbuzeiro, sob a liderança de Luiz Silva e,
detinham a posse legal da terra como foreiros e parcei-
durante os anos 1980, a Comissão Pastoral da Terra (CPT)
ros” e, desta maneira, “a combinação gado-algodão-poli-
tem atuação sistemática na região. Ao passo em que,
cultura, [estabeleceu-se] como o trinômio marco da orga-
lutando contra todas as adversidades políticas, os traba-
nização do espaço agrário sertanejo paraibano até a se-
lhadores, apoiados pela CPT, avançavam na luta pelos
gunda metade do século XX”.
direitos trabalhistas, as lideranças consolidavam o sindi-
cato, processo que culminaria com sua filiação à Central
Uma decorrência importante do ciclo do algodão foi
Única dos Trabalhadores (CUT) em 1985.
a consolidação do campesinato na região, pois “do mes-
mo modo que no litoral, a pequena produção no sertão
Durante a década de 1990, em virtude da consolida-
desenvolveu-se inicialmente no interior do latifúndio e
ção do Sindicato dos Trabalhadores Rurais (STR) de São
dele dependente, sua expansão acha-se ali relacionada
Sebastião do Umbuzeiro, do avanço dos movimentos soci-
à expansão dos sistemas de parceria e arrendamento”.
ais do campo em nível nacional e da crise da grande propri-
(MOREIRA; TARGINO, 1997, p. 78). Entretanto, com a
edade rural no Cariri paraibano com o fim dos financiamen-
crise da cotonicultura durante a segunda metade do sé-
tos da Sudene, os trabalhadores rurais da região aprofunda-
culo XX, também entrariam em crise os sistemas de par-
ram a luta pela reforma agrária. Em dezembro de 1993 ocor-
ceria tradicionais – o que redundaria na “expulsão” dos
reu a desapropriação da Fazenda Santa Catarina, no muni-
moradores – e se verificaria um acentuado empobreci-
cípio de Monteiro, que viria a se tornar, por intermédio de um
mento dos pequenos cultivadores.
processo de regularização fundiária, o primeiro Assentamen-
De fato, em conseqüência dessas circunstâncias e, to da Reforma Agrária do Cariri paraibano. Em outubro de
1997, como resultado direto da mobilização promovida pelo
evidentemente, das secas freqüentes, a região entrou num
STR de São Sebastião do Umbuzeiro, a Fazenda Estrela
longo período de depressão econômica caracterizado,
por um lado, pela restauração do latifúndio agropecuário D’Alva, localizada naquele município, também é desapro-
priada. No mesmo ano, marcando a entrada do Movimento
extensivo e, por outro, por um êxodo rural pronunciado,
Sem Terra na região, ocorre a luta bem-sucedida pela desa-
uma vez que:
propriação da Fazenda Floresta, no município de Camalaú
A crescente pecuarização promove sistematicamente a e, em 1999, com a desapropriação da Fazenda Feijão, no
expulsão disfarçada dos moradores, na medida em que a município de Sumé, o MST consolida sua ação no Cariri
cultura do algodão – sua principal razão de ser na fazenda
tradicional – e a agricultura de subsistência têm que ceder
paraibano. Atualmente, há 13 Projetos de Assentamento no
espaço às plantas forrageiras. (DUQUÉ, 1985, p. 172). Cariri paraibano, conforme Tabela 1.

Durante as décadas de 1970 e 1980, enquanto min- Segundo pudemos verificar na pesquisa que ora
guava o cultivo do algodão, o empreendimento patronal relatamos5, a criação dos assentamentos da reforma agrá-
mantinha-se economicamente viável em função, funda-
5
mentalmente, dos “financiamentos a fundo perdido” da A pesquisa foi coordenada pelos autores e realizada por uma equipe
composta por oito alunos do Projeto UniCampo (ver nota 1) monitorados
Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Su- por alunos extensionistas dos cursos de graduação e pós-graduação
dene) – como, por exemplo, a introdução da algaroba em Ciências Sociais da Universidade Federal de Campina Grande
(UFCG). Em linhas gerais, a pesquisa tinha um objetivo pedagógico,
(Prosopis sp) para produção de forragem, um dos mais pois se destinava a sensibilizar os estudantes do Projeto (lideranças
desastrosos projetos produtivos desenvolvidos no semi- camponesas do Cariri paraibano) para a importância da pesquisa social
como instrumento para o equacionamento dos principais “problemas”
árido brasileiro – enquanto os camponeses pobres que dos assentamentos da Reforma Agrária na região. Desenvolvida entre
insistiam em permanecer na região sobreviviam à min- julho e outubro de 2004, teve como metodologia: a construção coletiva
do projeto e a visita in loco aos assentamentos selecionados (Boa
gua sob o domínio inconteste dos “coronéis” e sob a le- Vista I, Mandacaru, Serrote Agudo e Novo Mundo), onde foi desenvolvida
gislação draconiana do regime de exceção. a “observação participante” com aplicação de entrevistas semi-

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Mapa 2 – Localização dos Assentamentos
Fonte: INCRA

Tabela 1 – Assentamento do Cariri paraibano


Nome Município Área (ha.) Famílias
Santa Catarina Monteiro 3.600,0000 320
Renascer Prata 900,0000 45
Estrela D’Alva S. Sebastião do Umbuzeiro 5.270,7752 77
Novo Mundo Camalaú 2.081,5000 87
Mandacaru Sumé 4.392,0000 160
Beira Rio Camalaú 482,6400 35
Dos 10 S. Sebastião do Umbuzeiro 2.154,0431 120
Boa Vista I Coxixola 1.730,0000 40
Pinheiros Coxixola 1.444,0000 30
Asa Branca Coxixola 1.905,0000 50
Serra do Monte Cabaceiras 5.830,6000 170
Eldorado dos Carajás Camalaú 521,0000 20
Serrote Agudo Sumé 2.356,7200 86
Total 32.668,2783 1.240
Fonte: INCRA

estruturadas (uma entrevista coletiva em cada Assentamento, por


meio de reunião pré-agendada com a associação do assentamento e
várias entrevistas individuais realizadas com os assentados). As
entrevistas foram gravadas em áudio e vídeo, tendo sido transcritas
pelos monitores e tabuladas pelo grupo em várias reuniões preparatórias
para o “Fórum da Universidade Camponesa”, realizado em dezembro
de 2004, durante o qual os resultados foram restituídos aos outros
estudantes e à própria sociedade local. Todo o trabalho está registrado
no vídeo “Assentamentos do Cariri Paraibano” (RODRIGUES;
CANIELLO, 2005). Disponível em: <www.ufcg.edu.br/~unicampo>.

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ria no Cariri paraibano tem proporcionado efeitos muito condições ambientais do semi-árido, seja para as aspira-
importantes, destacando-se, sob nosso ponto de vista, a ções e habilidades dos assentados.
conquista da terra pelos camponeses que viviam na con-
dição de moradores ou assalariados nas fazendas e o De fato, como pudemos observar na pesquisa, tam-
retorno à terra daqueles que foram expropriados pela bém no Cariri paraibano, uma série de fatores tem dificulta-
“modernização”do campo. Esse processo é sentido e ver- do a consolidação do estabelecimento familiar tanto como
balizado por nossos informantes como algo extremamen- “espaço de vida” quanto como unidade produtiva nos as-
te positivo, na medida em que aponta para a reconquista sentamentos da reforma agrária, o que poderá vir a trazer
da autonomia perdida, componente básico do ethos cam- entraves importantes à reforma agrária na região.
ponês:
Este artigo visa analisar um dos dilemas identifica-
Como cheguei no assentamento? Pensando numa liber- dos na pesquisa e que, sob o nosso ponto de vista, ilustra
dade. Porque quando eu vim para o acampamento, eu o caráter autoritário das medidas “sugeridas” aos assen-
vim com a esperança da moradia. E hoje eu tenho a
morada, e hoje eu tenho a minha liberdade. Aí a vida tados, tendo como conseqüência sérias ameaças à sus-
melhorou. Quem é um diarista alugado é o maior cativo tentabilidade dos assentamentos da reforma agrária na
da vida. Quando amanhece o dia, é obrigado. Até a noite região: a decisão sobre a forma de moradia.
chegar, muitas vezes na noite quando acorda, (está)
pensando no que vai tomar conta amanhã [...] E hoje,
eu não penso em nada disso. Eu vivo feliz porque não 7 – O PROBLEMA DA MORADIA NOS
tenho nada de ninguém pra mim tomar conta amanhã.
(J.E., Assentamento Novo Mundo). ASSENTAMENTOS
Segundo um recente estudo sobre a reforma agrária
Esta constatação não parece se restringir à região no Brasil, “os assentamentos se constituem em espaços
estudada, pois a questão dos efeitos da reforma agrária já diferenciados de relação com o Estado e é essa relação
foi objeto de várias pesquisas realizadas em outros con- diferenciada que faz existir o assentamento e, por conse-
textos (TEÓFILO, 2001; LEITE et al., 2004; MEDEIROS; qüência, os assentados, como segmento social diferencia-
LEITE, 1999, 2004; IENO NETO; BAMAT, 1998), os quais do de outros camponeses”. (LEITE et. al., 2004, p. 111).
ressaltam, precisamente, os impactos positivos do acesso Neste sentido, uma série de exigências e normas coloca-
à terra para os assentados. De fato, um estudo realizado das pelo Estado passam a pautar as decisões dos campo-
em seis regiões do país, recentemente publicado, propõe neses sobre questões elementares, como a escolha da
um balanço bastante favorável dos resultados consegui- forma de moradia. Embora a legislação procure preservar
dos. Conforme concluem os pesquisadores: a autonomia dos assentados no curso de suas decisões6,
exigindo que estas sejam deliberadas em assembléia da
Os dados obtidos parecem em seu todo indicar que a
associação, a inserção dos camponeses numa forma iné-
presença dos assentamentos no contexto local e regio-
nal provocou modificações importantes e resultou, em dita de organização social, a falta de conhecimento da le-
geral, na melhoria das condições de vida das famílias ali gislação, a organização coletiva deficiente e o despreparo
instaladas, em que pese a precariedade de alguns servi- “burocrático” dos assentados, deixam espaço para que os
ços públicos, os conflitos no período inicial de conquista
das áreas e atrasos na liberação de recursos. (MEDEI- “mediadores” – movimentos sociais, movimentos sindicais,
ROS; LEITE, 2004, p. 30-47). setores da igreja, organizações não-governamentais
(ONGs), agentes governamentais etc. – possam induzir a
Entretanto, como avaliam Ieno Neto e Bamat (1998), sua decisão sobre estas questões7.
“do ponto de vista dos trabalhadores rurais já assenta-
dos, a conquista da terra é apenas o início da luta pela Este estado de coisas é favorecido pelo “regime de
reforma agrária”. Com efeito, uma vez na terra, os assen- urgência” imputado à maioria das decisões requeridas
tados ainda têm numerosos desafios para enfrentar: a
demora no parcelamento, na atribuição dos lotes e na 6
“O Incra na implantação dos assentamentos de reforma agrária deverá
liberação dos créditos e a ausência de uma verdadeira garantir a efetiva participação dos assentamentos nas atividades de
planejamento e execução das ações relativas ao desenvolvimento
participação dos assentados na elaboração do Plano de territorial”. (BRASIL, 2004, p. 2).
Desenvolvimento do Assentamento, resultando na impo- 7
Em outro trabalho demonstramos como a participação dos assentados
sição de “pacotes” tecnológicos impróprios, seja para as é “subtraída” na elaboração dos Planos de Desenvolvimento do
Assentamento (PDAs). (DUQUE; CANIELLO, 2005).

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aos assentados: em geral, o “mediador” chega ao assen- [...] Culpa de quem? Da gente! A gente não leu e a
gente assinou... Chegou vexado e a gente, como sem-
tamento com uma “oferta” normalmente vinculada ao aces- pre, cometeu o mesmo erro.
so a recursos governamentais para as mais diversas fi-
nalidades e pressiona a diretoria da associação a convo- Outro processo que perverte a deliberação livre da
car os associados e promover uma reunião imediatamen- comunidade é a estratégia de “queimar etapas”: valendo-
te, pois, caso contrário, eles podem perder a “oportunida- se da falta de informação dos assentados, o “mediador”
de”. Ato contínuo, a reunião é convocada, o “mediador”, apresenta demandas cuja decisão abalizada depende-
acobertado pela legitimidade de quem detém a exclusivi- ria de decisões ou procedimentos precedentes9. É o caso
dade das informações, expõe a situação sob seu exclusi- da escolha entre a moradia no lote e a implantação de
vo ponto de vista e a comunidade é “convencida” e todos agrovilas no assentamento: sem o parcelamento, não há
“assinam a ata”8. Uma aluna da UniCampo, secretária de como decidir sobre o tipo de moradia, pois apenas uma
uma associação de assentados relatou um exemplo des- das alternativas é viável – a construção das agrovilas.
se procedimento:
Analisando o livro de atas de um dos assentamen-
O Incra vai para dentro do assentamento quando tem tos estudados, pudemos verificar como este processo se
um crédito para liberar, informação nenhuma dá, chega
lá [e diz] ‘Vamos assinar’ e nós assinamos. Agora a desenvolve. Dez meses após a constituição da associa-
gente está passando por um problema lá porque a gente ção dos assentados, a assembléia geral ordinária, escla-
assinou um aditivo, que era para complementação das recida de necessidade do imediato parcelamento, enca-
casas [...] Simplesmente estava lá a empresa onde era
para comprar, onde tudo era pra comprar, e a gente
minha um requerimento ao Instituto Nacional de Coloni-
simplesmente meteu o lápis [...] E não leu e não olhou zação e Reforma Agrária (Incra).

Foto 1 – Agrovila Lagoinha


Fonte: Renato Barreto
9
Já analisamos este tipo de estratégia no caso da liberação de
financiamentos para a aquisição de animais tanto pelo Pronaf quanto
pelo extinto Procera. Demonstramos que os tomadores de crédito são
instados a comprar os animais antes da liberação de recursos para
construção de cercas, perfuração de poços, para o plantio do suporte
forrageiro etc., o que redunda na impossibilidade de manutenção dos
animas e, por conseqüência, na insustentabilidade do empreendimento
8
Durante um debate na Universidade Camponesa, um dos alunos definiu e no endividamento e inadimplência do tomador. (CANIELLO, 2004, p.
esse tipo de documento como “ata de encomenda”. 111-112).

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Que trata da demarcação da terra, já que sem esta os das as assembléias realizadas, até que em agosto uma
problemas se avolumam e a associação fica sem condi-
ções de resolvê-los, então por esta razão requer que o
assembléia extraordinária foi convocada. O teor da ata
Incra com urgência demarque as terras da fazenda e as não deixa dúvidas quanto ao desfecho do debate:
distribua aos posseiros para que cada um possa traba-
lhar e plantar sua roça com mais segurança, sabendo o Em informes foi repassado pelo presidente da associa-
local certo onde vão ficar e não esquecendo a preserva- ção que o recurso do crédito habitação já se encontra
ção do meio ambiente. (REUNIÃO REALIZADA NO disponível, só precisa os assentados entrarem em um
MÊS DE JANEIRO DE 2003). acordo e optar pelo que querem. O presidente explicou
aos sócios que as agrovilas seria bem melhor, porque
Dois meses depois, o assunto volta à pauta numa se for construir as casas em parcelamento, a demora
vai ser maior, pois primeiro precisa lotear e podendo
assembléia em que são arrolados como “dificuldades”, ficar sem energia elétrica e água encanada e a popula-
“a falta das casas e a falta do pré-parcelamento”. Tudo ção sem posto médico, escola e outros. Houve uma
indica que o problema não foi solucionado, pois, na as- insatisfação por parte dos sócios, já que desejam suas
casas na parcela, mas assim mesmo foi feito duas
sembléia ordinária subseqüente, houve um debate so-
listas com os nomes da cada um e a sua opção. Onde
bre “a repartição de lotes irregulares”, o que revela que 65 (sessenta e cinco) pessoas deram o nome a favor de
os assentados, na falta do encaminhamento de seu plei- agrovilas e 10 (dez) para as casas na parcela. Assim, o
to, começaram a delimitar as parcelas livremente e ali se sr. Presidente ficou de marcar uma reunião com o sr.
Arnaldo do Incra para agilizar a construção o mais
estabelecerem, o que, evidentemente, é um fator de con- rápido possível, já que todos estão precisando das ca-
flito. Diz a ata a que tivemos acesso: sas por causa das péssimas condições de moradia,
debaixo de árvores, barracos, quartos das casas exis-
A sócia Maria10 falou que estava insatisfeita com a tentes no assentamento e armazéns. (ASSEMBLÉIA
repartição de lotes irregulares pelo Sr. José, já que a REALIZADA EM AGOSTO DE 2003).
mesma foi prejudicada. O sócio João perguntou aos
presentes se eram a favor desta divisão de lotes sem Esta ata é bastante reveladora, demonstrando, em
autorização do Incra e todos responderam que não. E
primeiro lugar, as péssimas condições de vida num as-
se todos são de acordo partir só as terras de alto11,
deixando todos nos seus roçados sem serem prejudica- sentamento recém-instalado: a terra é desapropriada, a
dos. Todos concordaram. (ASSEMBLÉIA REALIZA- posse é imitida e os assentados ficam ao “deus-dará” até
DA NO MÊS DE ABRIL DE 2003). que as decisões burocráticas sobre questões cruciais e
realmente urgentes, como o parcelamento, os créditos
O assunto conturbava de tal forma a convivência no
alimentação, fomento e moradia venham a ser tomadas.
assentamento, que uma comissão foi à superintendência
Evidentemente, uma das primeiras medidas a serem to-
regional do Incra em João Pessoa com uma proposta
madas deveria ser a discussão do Plano de Desenvolvi-
bastante amadurecida. A reunião foi assim relatada em
mento do Assentamento, instrumento fundamental para
assembléia extraordinária:
o planejamento global e, particularmente, para a demar-
Falamos com o engenheiro do Incra sobre as propostas cação das parcelas.
dos assentados, como o parcelamento o mais rápido
possível, deixando como áreas coletivas as várzeas, ter- Em segundo lugar, fica evidente a “falta de opção”
ras que ficam próximas às margens dos rios e a campinei-
diante de uma decisão tão imprescindível: a maioria dos
ra, área de criação dos animais conhecida como ‘algave’
[...] estas propostas foram bem aceitas pelo engenheiro e assentados preferia ver suas casas construídas nos lo-
o diretor do Incra e principalmente pelos assentados, já tes, mas a demora no parcelamento aliada à precarieda-
que precisam criar e não vão perder seus pedacinhos de de das condições de moradia, os levou a decidirem pela
roçado. E os que ainda não têm roçado irão procurar um
local adequado já que nas campineiras não podem colo- implantação das agrovilas. É o caso de outro assenta-
car. O engenheiro garantiu que viria o mais rápido possí- mento pesquisado:
vel para fazer o parcelamento. (ASSEMBLÉIA REALI-
ZADA NO MÊS DE MAIO DE 2003). Eu acho o seguinte, primeiro o Incra devia fazer a de-
marcação das terras, entendeu? Cada marcação enten-
Nos meses posteriores, o assunto da falta de parce- deu, parcela de cada família, devia ser uma casa den-
tro, pra que a pessoa ficasse à vontade ali.
lamento e moradia voltou à pauta das discussões de to-
10
Todos os nomes são fictícios.
Finalmente, mas não menos importante, é o argu-
11
As chamadas “terras de baixio” são as melhores para o plantio no semi- mento falacioso da infra-estrutura: a grande maioria dos
árido, ao passo que as “terras de tabuleiro” são as mais adversas. assentados entrevistados, tanto individual quanto coleti-

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Foto 2 – Agrovila
Fonte: Márcio Caniello

vamente, nos disse que um dos fatores determinantes não puderam fazer as ligações – é importante ressaltar
para a decisão a favor da implantação das agrovilas era que todas as casas dessa agrovila permaneciam deso-
o acesso à energia elétrica e água encanada, bem como cupadas em função da falta de infra-estrutura básica.
aos serviços essenciais, como postos de saúde e esco-
las. Três entrevistados foram bem claros a respeito disso: Quanto a postos de saúde, não havia nenhum cons-
truído; no que se refere a escolas, apenas um assenta-
Eu tô achando que tinha sido melhor na parcela do que na mento dispunha de um pequeno grupo escolar, já exis-
agrovila, mas já tinha a questão da energia, da água [...]
tente antes da desapropriação. Também não havia ne-
No caso atual que é a casa em forma de conjunto, de vilas, nhum equipamento de lazer nos quatro assentamentos
assim facilita o saneamento de água, energia elétrica faci- pesquisados.
lita mais, e no caso de parcelamento, as casas dentro das
parcelas, o gasto seria maior, mas com certeza não tinha O que torna a indução pela implantação de agrovilas
esse, essa discussão toda, o pessoal morando.
mais dramática é que, tal como relatado na ata citada e nos
Eu gostei de agrovila, nuns pontos eu gostei, porque depoimentos arrolados, nenhum dos assentados entrevis-
fica melhor para se conseguir as coisas, né? Água, tados individualmente afirmou preferir as casas construí-
energia, você se comunica com alguém, com escola,
com posto médico. Por outro lado fica difícil porque vai
das no sistema de agrovila: cinco afirmaram que preferiam
ter que morar todo mundo perto um do outro, aí para sua casa construída na parcela e três apresentaram posi-
criar fica mais difícil [...] ção dúbia. Como já fica explícito nos depoimentos acima,
um dos principais problemas apontados em relação à mo-
Ora, das doze agrovilas visitadas em 2004, apenas radia na agrovila é a questão do relacionamento:
duas tinham água encanada – aliás, estrutura herdada
das antigas fazendas que foram desapropriadas – e três Eu tô achando que tinha sido melhor na parcela do
dispunham de energia elétrica, duas delas também com que na agrovila, mas já tinha a questão da energia,
da água [...]
a estrutura já instalada antes da desapropriação das ter-
ras e outra fora beneficiária do Programa “Luz para To- Você achava melhor por quê?
dos”, do governo federal. Num dos assentamentos, inclu-
sive, a adutora da Companhia Estadual de Águas e Es- Porque tinha mais condição, livrava de conversinha, o
que desgraça mais uma pessoa dentro da agrovila é a
gotos passa a 20 metros da agrovila, mas os assentados

Revista Econômica do Nordeste, Fortaleza, v. 37, nº 4, out-dez. 2006 637


picuinha, muita conversinha, às vezes tem uma pessoa Você tem uma barraquinha?
boa, às vezes tem outra mais ignorante [...]
É, debaixo de um pé de pau. Vou fazer um quartinho
O que a Sra. acha disso, desse jeito, das casas na agora, porque no tempo do inverno é ruim de trabalhar.
agrovila? Mora-se longe, tem que voltar [...]

Eu achei bom, né? Sendo a minha vivência mesmo, que eu Aí você vai dormir lá à noite?
convivo com todo mundo. Pra mim, tá bom demais aí. Se
fosse mais longinha uma da outra era melhor, né? Mas não É, se precisar e se tiver chovendo, lá mesmo fica, né? [...]
quiseram fazer, né? Quiseram fazer tudo pertinho.
Agrovila não foi muito apoiada pelo grupo, ela veio, tudo
Por que a Sra. acha melhor se fosse um pouco mais longe? bem, aqui está e nela nós estamos, mas as dificuldades
ficaram muito grandes pra quem tem o seu trabalho
Porque a gente colocava meio distante uma da outra. Nem mais distante de casa. Se tivesse havido uma concor-
a gente aperreia muito os vizinhos, nem os vizinhos aperrei- dância que essa moradia tivesse se expandido individu-
am a gente. al em cada lugar de cada um, eu acho que tinha sido
melhor de que agrovila [...]
Mas não são apenas os dilemas do relacionamento
interpessoal num espaço restrito, ou “apertado”, como Portanto, parece evidente que o modelo da moradia
dizem alguns informantes, que trazem transtornos à vida em agrovilas traz grandes inconvenientes para os campo-
social nos assentamentos organizados em agrovilas. Além neses do Cariri paraibano, seja em função de transtornos
da “picuinha”, da “fofoca”, do “aperreio” e da “conversi- para a sociabilidade, seja em função de questões produti-
nha” provocados pela falta de privacidade, a própria or- vas, seja em função mesmo de questões culturais. Obvia-
ganização produtiva é afetada, seja em função dessa pró- mente, esses “conjuntos habitacionais”, como um dos nos-
pria causa, seja em razão da distância da “morada” em sos informantes classificou a agrovila, são altamente in-
relação ao “trabalho”: compatíveis com um modo de vida baseado na autonomia
e cuja rusticidade, evidentemente privativa no cotidiano,
Não dá certo porque o pessoal sempre cria alguma se vê ameaçada pelo contato “obrigatório” com um vizinho
coisa, entendeu, e pronto, o bicho ali tá solto, aí vai
cuja casa está a menos de 5 metros de distância. Como
entra na casa de fulano a comeu o milho de fulano, aí
vem àquela confusão, aí se torna aquela rixa um vizinho disse uma das alunas da UniCampo quando debatíamos
com outro. Acho que é por isso que o pessoal tá assim essa questão, “Quando eu estou no sítio trabalhando, pos-
meio [...] Até pra reunião não vem. so andar esfarrapada, não tem problema, mas na agrovila
- Se você acha que esse modelo de lote seria melhor,
tenho que botar uma roupinha melhor”. Um depoimento
porque a maioria votou pra ser agrovila? sintetiza muito bem este estado de coisas:

Não, eu acho que não foi votado isto aí, foi uma decisão É, a agrovila, ela foi aprovada por a maioria porque você
mesmo do Incra né, fazer estas casas assim, né?. sabe que tem muitas pessoas que dá uma resposta até
sem pensar, e quando as respostas são dadas por mai-
No momento da implantação, gostou do modelo de im- oria, aí mantém a força de quem está querendo levar pra
plantar a agrovila? o lugar mais certo, né? Você sabe, a maioria em todo
lugar domina, ou certo ou errado, a maioria domina, por
Gostei, só que eu pretendia de outro jeito, era lá no lote. isso que hoje está a agrovila e hoje está também, o
sacrifício do povo, se deslocar da morada. Fica a mora-
Queria assentar a casa lá no lote? da muitas vezes até fechada, porque o trabalho é dis-
tante e lá no trabalho também hoje sem condição de
É, porque é longe pra se trabalhar, é mais separado pra preparar uma minimoradia pra pôr os animais pequenos,
criar os bichos, uma galinha, né? É mais fácil [...] os objetos. Quem trabalha sempre tem objeto no cam-
po, foi o que eu achei difícil na agrovila, por isso teve
Então, vocês queriam no lote, né? saneamento de energia, saneamento de água, teve muita
coisa a favor, mais se tivesse conseguido tudo isso pelo
É, porque é o local de trabalhar mesmo. menos não fosse água, energia ou mesmo sem energia,
se ela fosse expandida pelo setor de cada um eu achava
É longe daqui? que tinha sido mais vantagem.

É bem longe, eu saio às 4 horas da madrugada e só Um conjunto semelhante de razões contrárias à “op-
venho à noite, quando findar tudo. ção” pelas agrovilas foi levantado por Leite et al. (2004, p.

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107) no estudo que já citamos. Segundo os autores, dos desenvolvimento do sistema produtivo característico do
92 assentamentos pesquisados em seis regiões brasilei- campesinato da região. Ora, como demonstramos na re-
ras, apenas 26% eram organizados em agrovilas12, “ge- constituição histórica esboçada acima, a reforma agrária
ralmente coexistindo com formas de nucleação da popu- tem facultado aos camponeses anteriormente expulsos
lação anteriores ao assentamento”. (LEITE et al., 2004, p. do Cariri uma alternativa de retorno “produtivo” à terra. A
81). De acordo com os pesquisadores: maneira sustentável de mantê-los nelas é restaurando o
seu “sítio”, pois havemos de concordar com Ellen Woort-
Nos pareceu que algumas tentativas de imposição, por
man de que o “sítio camponês” é um “sistema de espaços
parte do Incra, de uma forma de organização espacial
contrária à vontade dos assentados resultam desastro- diversificados, complementares e articulados entre si”,
sas, como em casos na Zona Canavieira em que foi cuja organização informa “uma lógica, uma estratégia e
imposto o uso do crédito habitação para construção de um saber – ou um ‘know how’ – que possibilitam a repro-
casas nas agrovilas, que acabaram ficando praticamen-
te abandonadas, com assentados vivendo em casas dução da produção camponesa nesse contexto regio-
mais precárias nos lotes. nal”. (WOORTMAN, 1983, p. 164).

Assim, pensamos que a construção das casas nas


8 – CONSIDERAÇÕES FINAIS
parcelas dos assentados é a melhor maneira de possibi-
Durante a discussão do relatório da pesquisa com
litar uma vida digna aos camponeses do semi-árido nor-
os alunos da Universidade Camponesa – muitos dos quais
destino, na medida em que este sistema coaduna-se mais
assentados da reforma agrária e outros tantos conhece-
efetivamente com o seu modo de vida e o seu sistema
dores da realidade nos assentamentos – uma das con-
produtivo. Com efeito, o sítio “restaurado” no assentamento
clusões a que chegamos foi que a decisão pela constru-
parece ser a quimera mais acalentada pelos campone-
ção de agrovilas nos assentamentos é menos uma “deci-
ses do Cariri, cuja visão de futuro e perspectiva de pre-
são” da coletividade do que uma “imposição” dos técni-
sente apontam para o que temos definido, na Universida-
cos do Incra. Não se aprofundou muito o debate sobre as
de Camponesa, como o “projeto camponês”:
causas deste procedimento, mas foram ventiladas idéias
importantes para rebater os argumentos dos técnicos, Há muitos anos que eu ouvia esse negócio de reforma
como o uso da energia solar e de poços com dessaliniza- agrária. E é isso que eu esperava: um dia vai sair esse
dores nas parcelas como maneira a coalescer o modo de negócio da reforma agrária. Deixei de fazer uma casa
perto de Serra Branca pra correr pra o sítio. Porque eu
vida tradicional ao conforto da modernidade. Também foi achei que dentro da cidade não tinha fundamento pra
aventada a necessidade de fornecer informações sobre mim, porque tudo que eu queria era comprado e eu não
os procedimentos burocráticos e técnicos para a organi- tinha condição de viver dentro da cidade. Um litro de
leite, comprado. Um ovo, comprado. E eu pensava em
zação de um assentamento, bem como sobre os direitos partir pra o sítio e realmente chegar ao ponto que eu
e deveres dos assentados para que eles possam discutir quero, tudo isso eu sei que algum dia eu vou conseguir,
em igualdade de condição com os “mediadores” sobre o devagar, mas eu consigo. E devagarinho eu estou con-
seguindo o que eu quero. Depois que eu tiver com minha
seu próprio destino13.
casinha organizada, dois hectares de palma situada,
uma vaquinha, carroça, duas dúzias de cabras, uma
Sem embargo, a principal conclusão a que chega- dúzia de ovelhas, pronto. Dá pro cabra ir se virando, dá
mos foi que o sistema de moradia em agrovilas é contra- pro cabra ir ralando devagarinho.
ditório ao ethos camponês, na medida em que estabele-
ce um modelo urbano de relações sociais e dificulta o Abstract
12
ThIt shows the result of a research developed in 2004
No caso do Cariri ocorre o contrário, pois a quase totalidade dos
Assentamentos é organizada pelo modelo das agrovilas. Entretanto, by teachers and students of the Camponesa University in
tivemos oportunidade de visitar o Assentamento Estrela D’Alva, no the area of Cariri Paraibano. It verifies that, however the
município de São Sebastião do Umbuzeiro, o único na região constituído
por “casas nos lotes”. Ali, apesar de existirem muitos problemas de settled people’s speech pointed unequivocally to the buil-
infra-estrutura, notadamente a falta de água encanada e energia elétrica, ding of houses on the area due to cultural, social, econo-
os assentados se mostraram bastante satisfeitos por conseguirem
fazer valer sua opinião frente à pressão do Incra, ressaltando que se mical and productive reasons, there was a strong tenden-
alegravam por terem condição de “controlar” o seu lote autonomamente. cy to build agrovillages in the settlements. According to
13
Este é, aliás, um dos propósitos da Universidade Camponesa.

Revista Econômica do Nordeste, Fortaleza, v. 37, nº 4, out-dez. 2006 639


these people, they favored the building of agrovillages paraibano. In: WANDERLEY, M. N. (Org.). Globalização
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ped water, electric power, medical care and education. ______. De sertanejo a retirante: os dilemas da
We try to prove in this article, the fact that INCRA´s techni- identidade camponesa em a bagaceira. In:
cians’ argument is considered fallacious because it was MODERNIDADE E POBREZA: AS CIÊNCIAS SOCIAIS
imposed to the settled people by using some spurious NOS ANOS 90: ENCONTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
expedients such as the adoption of the urgency regimen DO NORDESTE, 5.,1991, Anais... Recife: Fundação
for the decision. The article concludes that building hou- Joaquim Nabuco, 1991.
ses in the family’s area would offer more sustainability to
the settlements because it suits the peasant ethos and the CANIELLO, M.; TONNEAU, J. A pedagogia da
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Recebido para publicação em 06.06.2006

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