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E n c ic l o p é d ia d a s C iê n c ia s F il o s ó f ic a s

e m C o m p ê n d io
(1830)

O PKNSAMKNTO OCIDKNTAL
Enciclopédia das Ciências Filosóficas
em Compêndio
Volume I: A Ciência da Lógica
Volume II: Filosofia da Natureza
Volume III: Filosofia do Espírito
G. W. F. Hegel

E nciclopédia das C iências F ilosóficas


em C om pêndio
( 1830)

VOLUME I
A C IÊ N C IA D A L Ó G IC A

Texto completo, com os


A dknoos O rais , traduzido
por Paulo Meneses
com a colaboração do
Pe. José Machado

Edições Loyola
Título original:
Enzyklopãdie der philosophischen Wissenschaften im Grundrisse (1830)
Erster Teil: Die Wissenschaft der Logik tnit den miindlichen Zusãtzen.
Anexo: “L ’Encyclopédie des Sciences Philosophiques de Hegel” in F. Hegel, Encychpédie
des Sciences Philosophiques, I, La Science de la Logique, T exte Integral presenté, traduit et
annoté par Bernard Bourgeois, 20mc éd., Paris, Lihrairie Philosophique J. Vrin, 1979.

D a d o s I n t e r n a c i o n a i s d e G a ta lo g a ç a o n a P u b l i c a ç a o ( G I P )
( C â m a r a B rasileira do L ivro, SP, Brasil)
H egel, G eorg W ilhelm Friedrich, 1770-1831.
E nciclopédia das ciências filosóficas em com pêndio : 1830
/ G .W .F. F legel ; texto com pleto, com os adendos orais, tradu­
zido por Paulo M eneses, com a colaboração de José M achado.
— São Paulo : Loyola, 1995. — (O pensam ento ocidental)
C onteúdo: v. 1. A ciência da lógica.
ISB N 85-15-01068-2 (obra com pleta) —
ISB N 85-15-01069-0 (v. 1)
1. Filosofia — Dicionários, enciclopédias
I. T ítulo. II. Série.
94-4417 C D D -103
ín d ic e s p ara c a tá lo g o s is te m á tic o :
1. Filosofia : E nciclopédia 103

Edições Loyola
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ISBN: 85-15-01068-2 (obra)
85-15-01069-0 (A Ciência da Lógica)
© ED IÇÕ ES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 1995.
ÍNDICE

NOTA DO TRADUTOR.............................................................................. 9
PREFÁCIO À PRIMEIRA EDIÇÃO (1817) .......................................... 13
PREFÁCIO À SEGUNDA EDIÇÃO (1827) .......................................... 16
PREFÁCIO À TERCEIRA EDIÇÃO (1830).......................................... 33
INTRODUÇÃO (§§ 1-18)............................................................................ 39

P a r te 1
A C IÊ N C IA D A L Ó G IC A
(§§ 19-244)
CONCEITO PRELIMINAR (§§ 19-83) ...................................................... 63
A. P r im e ir a po siç ã o d o p e n s a m e n t o a r e s p e it o d a
OBJETIVIDADE METAFÍSICA (§§ 26-36) ............................................. 89
B. S e g u n d a p o s iç ã o d o p e n s a m e n to a r e s p e ito d a
OBJETIVIDADE (§§ 37-60) .................................................................... 102
I — Empirismo (§ 3 7).....................................................................102
II — Filosofia Crítica (§ 4 0 )..............................................................107
C . T erceira posição do pensamento quanto à o bjetividade ....139
O Saber Imediato (§§ 6 1 -7 8 )........................................................................ 139
C onceito mais preciso e divisão da lógica (§§ 7 9 -8 3 )..................157

PRIMEIRA PARTE DA LÓGICA: A DOUTRINA DO SER (§§ 8 4 -1 1 1 )........171


A . Q ualidade (§ 8 6 ).............................................................................................. 175
a) Ser (§ 8 6 ).......................................................................................................... 175
b) Ser-aí (§ 8 9 ) ....................................................................................................185
c) Ser-para-si (§ 9 6 ) ..........................................................................................193
B . Q uantidade (§ 9 9 )...........................................................................................199
a) A quantidade pura (§ 99) ..........................................................................199
b) O quanto (§ 101) ..........................................................................................203
c) O grau (§ 103) .............................................................................................. 205
C . A M edida (§ 1 0 7 )...........................................................................................214

SEGUNDA PARTE DA LÓGICA: A DOUTRINA DA ESSÊNCIA


(§§ 112-159)..........................................................221
A . A ESSÊNCIA COMO FUNDAMENTO DA EXISTÊNCIA (§ 1 1 5 )..............227
a) As puras determinações-da-reflexão (§ 1 1 5 )....................................227
1 — Identidade (§ 1 1 5 ).............................................................................227
2 — A diferença (§ 116) ...........................................................................229
3 — O fundamento (§ 1 2 1 )......................................................................237
b) A existência (§ 1 2 3 )................................................................................... 242
c) A coisa (§ 1 2 5 ).............................................................................................244
B . A APARIÇÃO [O FENÔMENO] (§ 131).........................................................250
a) O mundo do fenômeno (§ 132) .............................................................252
b) Conteúdo e forma (§ 1 3 3 )........................................................................252
c) A relação (§ 1 3 5 )..........................................................................................255
C . A EFETIVIDADE (§ 1 4 2 )....................................................................................266
a) Relação de substancialidade (§ 1 5 0 )....................................................279
b) Relação-de-causalidade (§ 1 5 3 )..............................................................282
c) A ação recíproca (§ 1 5 5 )...........................................................................285

TERCEIRA PARTE DA LÓGICA: A DOUTRINA DO CONCEITO


(§§ 160-244).......................................................291
A . O CONCEITO SUBJETIVO (§ 163)...................................................................296
a) O conceito com o tal (§ 1 6 3 )..................................................................296
b) O juízo (§ 1 6 6 )............................................................................................. 301
1. Juízo qualitativo (§ 1 7 2 ).....................................................................307
2. O juízo da reflexão (§ 1 7 4 )...............................................................309
3. O juízo da necessidade (§ 1 7 7 ).......................................................312
4. O juízo do conceito (§ 1 78)...............................................................313
c) O silogism o (§ 1 8 1 ).................................................................................... 315
1. Silogismo qualitativo (§ 1 8 3 )............................................................318
2. Silogismo-da-reflexão (§ 1 9 0 )...........................................................323
3. Silogismo da necessidade (§ 191) ..................................................325
B. O o b je to (§ 1 9 4 )............................................................................................... 332
a) O mecanismo (§ 1 9 5 )................................................................................334
b) O quimismo (§ 2 0 0 ) ...................................................................................338
c) Teleologia (§ 2 0 4 ).........................................................................................340
C. A IDÉIA ( § 2 1 3 ) ........................................................... 348
a) A vida (§ 2 1 6 )............................................................................................... 353
b) O conhecimento (§ 2 2 3 ).........................................................................357
1. O conhecimento (§ 2 2 6 )...................................................................... 358
2. O querer (§ 2 3 3 )...................................................................................364
c) A idéia absoluta (§ 2 3 6 )........................................................................ 366

A ENCICLOPÉDIA DAS CIÊNCIAS FILOSÓFICAS DE HEGEL ....373


NOTA DO TRADUTOR
Esta tradução da Lógica, Ia parte da Enciclopédia hegeliana, abran­
ge, além do texto escrito por Hegel, os Adendos (ou Adições) orais.
Estamos preparando a Filosofia do Espírito (3a parte), enquanto o Pe.
José Machado traduz a Filosofia da Natureza (2a parte). No subtítulo
da Enciclopédia, Hegel esclarece que é um compêndio para ser usado
em seus cursos. Seu caráter esquemático requeria explanações de viva
voz para ser entendido. Os Adendos são anotações dos alunos, que
contêm o essencial dessas explicações orais. Às vezes demasiado lon­
gos ou mesmo digressivos, são no entanto indispensáveis para a com­
preensão desta filosofia difícil, que em forma esquemática se torna
inacessível. Ora, a finalidade desta tradução é fazer acessível esta obra
fundamental de Hegel a estudantes de filosofia no Brasil.
Hegel usa o vocabulário comum de seu idioma, e o sentido técni­
co que atribui às palavras, ele mesmo define expressamente, enquanto
não ressalta do contexto ou da terminologia filosófica de sua época. Ti­
vemos, como tradutor, de fazer certas opções, na difícil tarefa de achar
equivalentes vernáculos que fossem fiéis ao pensamento de Hegel.
Como na nossa tradução da Fenomenologia do Espírito (Vozes, 1992),
usamos suprassumir para auJJieben, e extrusar para entãussern. As críticas
fáceis a essas pequenas inovações não nos convenceram. O prefixo
“supra” não nos pareceu despropósito, já que toda a gente diz
9
supracitado, supra-sensível etc. Suprassumir é melhor que “sobressu-
mir”, não só porque “sobre” tem a ressonância de “em cima”, e supra
a de “acima”, mas porque a ambigüidade sumir/suprassumir fica muito
bem para este “desaparecer conservante” que é o auflieben. Quanto a
extnisão, acharam a palavra forçada, quando é a própria extrusão que
para Hegel é forçada, pela força (Encicl., § 401, Ad.; Fenom., § 658) e
mesmo sacrifício {Fenom., § 807) que exige. O caráter “fantasioso” (sic)
que encontraram nesse termo “extrusão” é pouco, comparado com o
poder mágico que converte o negativo em ser” (Fenom., § 703). Per­
sistimos no uso de “essente” para o “das Seiende”, pois achamos que
tem um matiz de “no elemento do ser”, menos visível em “o que é”.
Queríamos chamar a atenção para iibertdgig (efêmero), que aparece
duas vezes no 3° Prefácio. Na única vez que apareceu na Fenome-
nologia (§ 730, A Obra-de-arte espiritual), os dois tradutores franceses,
o italiano, o espanhol, e mesmo Gauvin no seu Wortindex, confundiram
com übertãtig. Só a tradução inglesa (de A. Miller) reteve o iibertàgig.
Usamos maiúscula por necessidade de clareza; para distinguir Coisa
(Sache) de coisa (Ding); o Estado (político) e o estado (das coisas); o
adjetivo substantivado (por ex., o verdadeiro Imediato: Encicl., § 36); e
para o Eu, o Si, o Algo, o Outro. Não encontramos meio de distinguir
Necessidade (.Notwendigkeit) e necessidade (Bediirfnis), às vezes lado a
lado (§ 9), a não ser imprimindo entre colchetes o termo alemão. Enfim,
não podemos evitar o recurso a umas tantas traduções insólitas, que
listamos a seguir. Ubergreijfen — pervadir; bewusstwerden — conscientizar-
-se; mannifaltigkeit — multiformidade; Allheit — todidade; masslose —
o-que-não-tem-medida; Ansserernandersein: o ser-fora-um-do-outro (es­
pacial); Nacheinandersein — o ser-depois-um-do-outro (temporal).
ZusammenschUessen — concluir-junto, que remete sempre ao silogismo
dialético, em que um termo se encerra junto com outro na conclusão.
Queremos ainda indicar ao leitor as edições que utilizamos como
referência para engendrar esta obra:
Fontes primárias:
1. G. W. F. Hegel — Enzyklopãdie der philosophischen Wissens-
chaften im Grundrisse (1830), Hrsg. v. W.
Bonsiepen, H. C. Lucas, U. Rameil,
Gesammelte Werke, Bd. 20, Hamburgo,
Meiner, 1992.
10
2. G. W. F. Hegel —- Enzyklopadie der philosophischen Wissens-
chaften im Grundrisse (1830), Hrsg. v. F.
Nicolin, O. Põggeler (Philosophische Bi-
bliothek, 33) Hamburgo, Meiner, 1959.
3. G. W. F. Hegel — Enzyklopadie der philosophischen Wissens-
chaften im Grundrisse (1830), red. Eva
Moldenhauer/K. M. Michel, Theorie
Werkausgabe, Bde, 8, 9, 10, Frankfurt a.
M., Suhrkamp Verlag, 1970.
Fowtts secundárias:
1. G. W. F. Hegel —- Encyclopédie des Sciences Philosophiques I
— La Science de la Logique, tr. Bernard
Bourgeois, Paris, J. Vrin, 1970.
2. Gl W. F. Hegel — Encyclopédie des sciences philosophiques en
abregé, (1830) tr. de Maurice de Gandillac,
sur le texte établi par F. Nicolin et O.
Põggeler, Paris, Gallimard, 1970.
òcremos à colaboração do Pe. Machado, que não só
vezes o corrigiu para que fosse fiel ao
éc Hegel c correto no idioma. Agradecemos ao Pe.
k ^bc yoporoonou valiosa consultoria no decorrer de
• mmmm n h d k c à Universidade Católica de Pernambuco,
de pesquisa esta tradução completa da
e jo CNPq. que concedeu uma bolsa como
ao aono m b k o L

11
e n c ç f í o p S b t í
Itt

p&ífofop&ífôen S fe n fd a ftm
I m 0 r u t t f t r i f f e.

3um $<$rau$ fílrttr !OerIefun^n

114

D. ® m g SHNí&efm (Jrit&Hcfr J&egeí,


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F o lh a d e rosto da ed iç ã o d e 1817 q u e
H e g e l p u b lico u e m vida

12
PREFÁCIO
À PRIMEIRA EDIÇAO
( 1817 )

A necessidade de pôr nas mãos de meus ouvintes um fio con­


dutor para meus cursos de filosofia é o que antes de tudo me leva
a publicar esta vista geral do conjunto abrangido pela filosofia, mais
cedo do que eu tinha intenção.
A natureza de um compêndio não só exclui um desenvolvi­
mento exaustivo das idéias segundo o seu conteúdo, mas também
restringe especialmente o desenvolvimento de sua dedução siste­
mática — que deve conter o que se entendia outrora como sendo
a prova e é indispensável a uma filosofia científica. O título deve­
ria, por um lado, sinalizar o âmbito de um todo, e por outro lado,
a intenção de reservar o singular para a exposição oral.
Entretanto, no caso de um compêndio, entra mais simplesmen­
te em consideração uma finalidade externa da organização e da dis­
posição, quando é um conteúdo já pressuposto e bem conhecido
que deve ser exposto com a brevidade desejada. A exposição pre­
sente não está nesse caso; mas estabelece uma nova elaboração da
filosofia conforme um método — que, como espero, ainda será
reconhecido como o único verdadeiro [e] idêntico ao conteúdo.
13
Por isso, se as circunstâncias tivessem permitido, eu poderia ter
julgado mais vantajoso, com referência ao público, fazer editar antes
um trabalho mais desenvolvido sobre as outras partes da filosofia,
— tal como [o que] publiquei sobre a primeira parte do todo, a
Lógica. Aliás, embora na presente exposição deva ser resumido o
lado em que o conteúdo é mais próximo da representação e da fami­
liaridade empírica, acredito ter destacado bem — no que concerne
às transições que só podem ser uma mediação a efetuar-se por
meio do conceito — que o metódico do proceso se diferencia bastante
tanto da ordem apenas externa que procuram as outras ciências,
quanto de uma maneira [de proceder] que se tornou habitual nos
objetos filosóficos. [Refiro-me ao formalismo] que pressupõe um es­
quema e, assim fazendo, põe as matérias em paralelo de um modo
igualmente externo e ainda mais arbitrário que o faz o primeiro
modo [de proceder, o empirismo]; e, pelo mais singular mal-enten­
dido, pretende ter dado satisfação à necessidade do conceito, com
a contingência e o arbitrário das conexões.
Vimos a mesma arbitrariedade apoderar-se também do conteú­
do da filosofia, e lançar-se na aventura do pensamento, e impor-se
durante um tempo aos esforços bem-intencionados e honestos; mas
também ser tida, aliás, por um desvario que atingiu as raias da
demência. Ora, o que o conteúdo [desse pensamento] deu a conhe­
cer [foram] justamente, e muitas vezes, banalidades bem-sabidas,
em lugar do [saber] majestoso e alucinado; e a forma nada mais [era
que] um maneirismo estudado, metodicamente exercido e fácil de
adquirir, consistindo em conexões barrocas e em arrevesamento
forçado — assim como, em geral, sob o semblante de seriedade, o
“embuste” para consigo mesmo e para com o público.
Ao contrário, vimos, de outro lado, a banalidade imprimir na
carência-de-pensamento a marca de um cepticismo — para si mesmo
arguto — ou do criticismo de modesta razão; vimos aumentar no
mesmo grau, com o vazio nas idéias, sua presunção e vaidade.
Essas duas orientações do espírito, durante um longo período,
parodiaram a seriedade alemã, cansaram sua mais profunda neces­
sidade filosófica, e tiveram por conseqüência uma indiferença, e
mesmo um tal desprezo para com a ciência filosófica, que agora
também uma [atitude] que se chama modéstia acredita poder dis­
14
cutir e resolver o que há de mais profundo na filosofia, e permitir-
-se negár-lhe o conhecimento racional, que se compreendia outrora
sob a [denominação de] prova.
O primeiro dos fenômenos mencionados pode, em parte, ser
visto como entusiasmo juvenil da nova época, que se abriu no
domínio da ciência como no domínio político. Se esse entusiasmo
saudou com alvoroço a aurora do espírito rejuvenescido, e, sem
trabalho mais profundo, veio logo ao gozo da idéia e embriagou-se
por um tempo com as esperanças e perspectivas que ela oferecia,
reconcilia-se mais facilmente com as suas extravagâncias, por ter
um núcleo sólido em seu fundamento, e porque o vapor superficial
que em seu redor difundiu deve dissipar-se por si mesmo.
Mas o outro fenômeno é mais contrariante, porque revela fadi­
ga e falta de energias, e se esforça por encobri-las com uma presun­
ção dominante nos espíritos filosóficos de todos os séculos — má
conhecedora deles, e de si própria, muito principalmente.
Contudo, é tanto mais motivo de alegria, perceber e mencionar
ainda como o interesse filosófico e o amor sério do conhecimento
mais elevado se conservou sereno e sem vaidade ante essas duas
[atitudes]. Se esse interesse às vezes se lançou mais para a forma
de um saber imediato e do sentimento, ele atesta, ao contrário, o
impulso interior — de maior alcance — de uma inteligência racio­
nal, a qual, somente, dá ao homem sua dignidade; sobretudo por­
que esse ponto de vista não lhe advém apenas como resultado do
saber filosófico; (e) por isso, o que parece desprezar é reconhecido
por ele ao menos como condição.
A esse interesse pelo conhecer da verdade dedico este ensaio
[destinado] a fornecer uma introdução ou contributo para lhe dar
satisfação. Possa tal objetivo lhe conseguir uma acolhida favorável.

H eidelberg, m aio de 1817

15
PREFÁCIO
À SEGUNDA EDIÇAO
( 1827 )

Nesta nova edição, o leitor benévolo vai encontrar muitas par­


tes reelaboradas e desenvolvidas em determinações mais precisas.
Quanto a isso, esforcei-me por atenuar e reduzir o [aspecto] formal
da exposição, e também, mediante notas exotéricas mais extensas,
fazer os conceitos abstratos aproximarem-se do entendimento ordi­
nário e de suas representações concretas.
Mas a brevidade concisa que um Compêndio faz necessária —
em matérias aliás abstrusas — permite manter nesta segunda edi­
ção a mesma destinação que tinha a primeira: a de servir como
livro-de-texto, o qual deve receber pela exposição oral seu indis­
pensável esclarecimento. O título de uma Enciclopédia poderia sem
dúvida deixar inicialmente o campo livre a um menor rigor do
método científico, e a uma estruturação externa; mas a natureza da
Coisa traz consigo que a conexão lógica deva permanecer a base
fundamental.
Haveria simplesmente ocasiões e incentivos demais, parecen­
do exigir que me explique sobre a posição exterior de meu filosofar
a respeito de esforços — dotados ou desprovidos de espírito — da
16
cultura atual. Isso só se pode fazer de uma maneira exotérica, como
em um prefácio, pois esses esforços, embora apresentem igualmen­
te uma relação para com a filosofia, não penetram cientificamente
— portanto não penetram, em geral — na filosofia, mas desenvol-
vem seus discursos de fora e para fora dela. E desagradável, e
mesmo arriscado, situar-se em tal terreno, alheio à ciência; porque
tal explicar e discutir não fornece aquela compreensão que somen­
te pode importar ao conhecimento verdadeiro. Mas pode ser útil
ou necessário falar de algumas manifestações.
De modo geral, é no conhecimento científico da verdade que
trabalhei e trabalho em meus esforços filosóficos. E o caminho
mais difícil, mas o único que pode ter interesse e valor para o
espírito, uma vez que ele enveredou pelo caminho do pensamento,
e nesse caminho não caiu no [que é] vão, mas conservou para si a
vontade e o brio da verdade; logo descobre que só o método é
capaz de domar o pensamento, de conduzi-lo à Coisa, e mantê-lo
aí. LJm tal [método, no seu] posseguir, mostra não ser outra coisa
que a restauração daquele conteúdo absoluto; o pensamento esfor­
çava-se inicialmente por ir além dele, e [ali] se situava, mas [é]
uma restauração no elemento mais peculiar, [no elemento] mais
livre do espírito.
Não faz muito, havia um estado de coisas mais espontâneo, e,
na aparência, mais feliz, em que a filosofia estava de mãos dadas
com as ciências e com a cultura; e um moderado iluminismo-de-
-entendimento convivia pacificamente com as necessidades da in­
teligência e da religião, ao mesmo tempo. Também um direito-
-natural conciliava-se com o Estado e a política, e a física empírica
tinha o nome de filosofia natural. Mas a paz era bastante superfi­
cial; de fato, em particular, aquela inteligência estava em contradi­
ção interna com a religião; como esse direito-natural com o Estado.
Seguiu-se depois a separação, a contradição se desenvolveu; mas,
na filosofia, o espírito festejou a reconciliação de si consigo mesmo,
de modo que essa ciência só está em contradição com aquela con­
tradição mesma, e com a maquiagem [que a disfarça],
E próprio de maus preconceitos [acreditar] que a filosofia se
encontre em oposição a um conhecimento experimental sensível,
à efetividade racional do direito, e a uma espontânea religião e
17
piedade. Essas figuras são reconhecidas, e mesmo justificadas, pela
filosofia; o sentido pensante aprofunda-se antes em seu conteúdo,
aprende e se fortalece nelas, assim como nas grandes intuições da
natureza, da história e da arte. Com efeito, esse sólido conteúdo,
enquanto é pensado, é a própria idéia especulativa.
A colisão com a filosofia só se apresenta na medida em que
essa base se separa de seu caráter próprio, e seu conteúdo é apreen­
dido em categorias e delas se torna dependente; sem [contudo]
levá-las até ao conceito, e consumá-las até à idéia.
O resultado negativo importante em que se encontra o entendi­
mento da cultura científica universal [a saber] — que no caminho do
conceito finito nenhuma mediação com a verdade seria possível —
costuma pois ter a conseqüência oposta à que imediatamente aí
reside. E que aquela convicção muito mais aboliu o interesse pelo
exame das categorias, e'a atenção e a prudência em seu emprego, em
vez de ter efetuado o afastamento das relações finitas [para fora] do
conhecimento; seu emprego se tomou, como num estado de desespe­
ro, tanto mais descarado, carente-de-consciência e acrítico.
Do mal-entendido — de que a insuficiência das categorias finitas
em relação à verdade traria consigo a impossibilidade do conheci­
mento objetivo — concluiu-se a autorização de falar e decidir com
base no sentimento e na opinião subjetiva. [Nesse modo de ver]
em lugar de prova, apresentam-se asseverações e narrativas a res­
peito do que se encontra como fatos na consciência — consciência
que se tem por tanto mais pura, quanto é mais acrítica.
A uma categoria tão seca, como a imediatez — e sem examiná-
-la melhor —, devem ser ajustadas as mais elevadas necessidades
do espírito; e por ela devem ser decididas. Pode-se achar, especial­
mente onde se trata de objetos religiosos, que nesse caso o filosofar
é expressamente posto de lado; como se, com isso, todo o mal fosse
banido, e se conseguisse a garantia contra o erro e o engano. De­
pois, o exame da verdade é estabelecido a partir de pressuposições
feitas de um lugar qualquer, e por meio de um raciocínio, isto é,
[empreende-se esse exame] com o emprego de determinações-de-
-pensamento habituais — de essência e fenômeno, de fundamento
e conseqüência, de causa e efeito etc. — e no [modo de] silogizar
habitual, segundo essas e outras relações da finitude.
18
“Do maligno se livraram; o mal ficou”*; e o mal é nove vezes pior
que antes, porque nele se confia sem nenhuma suspeita nem crítica,
e como se esse mal, que se mantém afastado — a filosofia —, fosse
outra coisa que o exame da verdade; mas com a consciência sobre
a natureza e o valor das relações-de-pensamento que unem e de­
terminam todo o conteúdo.
E o pior destino que a própria filosofia tem então a sofrer
nessas mãos, quando empreendem ocupar-se com ela; e por um
lado a apreendem, e por outro a julgam. E o fato da vitalidade
física ou espiritual, e em particular também da vitalidade religiosa,
que é desfigurado por essa reflexão incapaz de compreendê-lo.
Esse apreender tem contudo, por si, o sentido de elevar pela pri­
meira vez o fato a algo sabido; e a dificuldade reside nessa passa­
gem da Coisa ao conhecimento, a qual se efetua por meio da
reflexão. Essa dificuldade não está mais presente no caso da pró­
pria ciência. Com efeito, o fato da filosofia é o conhecimento já
elaborado, e por isso o apreender seria apenas uma reflexão, no
sentido de um pensar superveniente', só o julgar exigiria uma refle­
xão no sentido habitual. Porém aquele entendimento acrítico se
mostra também infiel na apreensão nua da idéia expressa
determinadamente; tem tão pouca malícia ou dúvida nas pressu­
posições fixas que contém, que é mesmo incapaz de repetir o fato
nu da idéia filosófica. Esse entendimento reúne em si, de uma
maneira que espanta, duas coisas: na idéia, ele fica chocado pela
completa divergência, e mesmo pela contradição expressa, quanto
a seu uso das categorias; e ao mesmo tempo não lhe vem nenhuma
suspeita de que exista — e seja utilizada — uma outra maneira de
pensar que a sua; e de que por isso deveria comportar-se aqui de
outro modo, que não pensando como faz em outros campos. Dessa
maneira, acontece que a idéia da filosofia especulativa é logo fixa­
da e mantida em uma definição abstrata, na opinião de que essa
definição deve aparecer necessariamente para si mesma clara e
acabada, e que só nas representações, que pressupõe, tem seu
regulador e [sua] pedra-de-toque; pelo menos na ignorância de
que o sentido, como também a prova necessária da definição, re-
* Ver Goethe, Fausto, Ia parte (Mefistófeles).

19
side somente em seu desenvolvimento; e no desenvolvimento,
que a definição procede dele como resultado.
Ora, enquanto, a rigor, a idéia em geral é a unidade concreta,
espiritual, mas o entendim ento consiste em apreender as deter-
minações-de-conceito somente em sua abstração — e por isso em
sua unilateralidade e fínitude —, essa unidade se muda na iden­
tidade abstrata, carente-de-espírito, em que por isso a diferença
não está presente, mas tudo é um , [e] entre outros também o bem
e o mal são a mesma coisa. Daí já se tornou um nome aceito para
a filosofia especulativa o nome de sistema-de-identidade, filosofia-
-da-identidade.
Se alguém enuncia sua profissão de fé: “Creio em Deus Pai
todo-poderoso, criador do céu”, seria surpreendente se algum outro
concluísse, já dessa primeira parte do símbolo, que quem professa
sua fé no Deus criador do céu admite portanto que a terra não é
criada, e a matéria é eterna. O fato é correto: quem recitou o
símbolo da fé acredita no Deus criador do céu, e contudo o fato
como foi apreendido pelo outro é completamente falso; é tanto
assim que se pode considerar esse exemplo como incrível e como
trivial.
E no entanto, no caso do apreender da idéia filosófica, há essa
violenta partição pelo meio; de tal modo que, para que não possa
haver mal-entendido, de como seja constituída a identidade — que
segundo se garante é o princípio da filosofia especulativa —, vem
em seguida a instrução expressa e a respectiva refutação; por exem­
plo, que o sujeito é diferente do objeto, e também que o finito é
diferente do infinito etc. Como se a unidade espiritual concreta
fosse em si carente-de-determinação, e não contivesse em si a dife­
rença; como se qualquer homem não soubesse que difere o sujeito
do objeto, o finito do infinito; ou como se devesse lembrar à filo­
sofia, absorvida em sua sabedoria-de-escola, que há fora da escola
a sabedoria para a qual essa diferença é algo bem conhecido.
Enquanto a filosofia em relação à diversidade que não lhe deve
ser bem conhecida é assim desacreditada mais precisamente por­
que, com isto, nela é excluída também a diferença do bem e do
mal, costuma-se de boa mente usar de eqüidade e magnanimidade
ao conceder-se que “os filósofos em suas exposições nem sempre
20
desenvolvem as conclusões perniciosas que estejam ligadas com
sua proposição” (portanto, também não as desenvolvem, talvez
porque essas conclusões não são as suas)*.
* São palavras do Sr. Tholuck no Florilégio da mística orienta! (edição alemã de Ber
1925, p. 13). Tam bém o próprio Tholuck, [homem] de fundos sentimentos, se deixa induzir
no mesmo ponto a seguir a larga estrada costumeira do compreender da filosofia. Diz ele:
o entendim ento só pode raciocinar das duas maneiras seguintes: ou existe um fundamento
originário que tudo condiciona, mas nele está o fundamento último de mim mesmo, e é
apenas ilusão meu ser e meu livre agir; ou então eu sou efetivamente uma essência diferente
do fundamento originário, cujo agir não é condicionado nem produzido pelo fundamento
originário. [Mas] assim o fundam ento absoluto não é uma essência absoluta, que tudo
condiciona; não haveria pois um Deus infinito, mas uma multidão de deuses etc. Todos os
filósofos que pensam de modo mais profundo e penetrante devem professar a primeira
proposição (eu não saberia por que justamente a primeira unilateralidade deva ser mais
profunda e aguda que a segunda). As conseqüências que no entanto, como foi acima men­
cionado, os filósofos nem sempre desenvolvem seriam que “também o padrão ético do
homem não é nenhum padrão absolutamente verdadeiro, mas [falando] propriamente (grifado
pelo autor mesmo) bem e mal seriam iguais, e só na aparência seriam diversos”.
Sem pre seria bem melhor não falar, de modo algum, de filosofia enquanto com toda
a profundeza do sentim ento ainda se estiver de tal maneira embaraçado na unilateralidade
do entendim ento, que somente se sabe do “ ou-ou” de um fundamento originário — em
que o ser individual e sua liberdade não passam de uma ilusão — e da autonomia absoluta
dos indivíduos; e que na experiência nada se levou do “nem-nem ” dessas duas uni-
lateralidades dos perigoso dilema (como o chama o Sr. Tholuck).
Sem dúvida, [Tholuck] fala (p. 14) dos tais espíritos — e esses seriam os filósofos
propriam ente ditos — que admitem a segunda proposição (que aliás é justam ente a mesma
que antes chamou primeira proposição) e suprimem a oposição entre ser incondicionado e
ser condicionado mediante o ser originário indiferente, no qual todos os opostos correlativos
se interpenetram . Mas então o Sr. Tholuck, ao falar assim, não notou que o ser originário
indiferente, no qual a oposição deve interpenetrar-se, é exatam ente o mesmo que esse ser
incondicionado cuja unilateralidade deve ser abolida; e que ele exprime assim de um só
fôlego o abolir desse [ser] unilateral em um ser que é exatam ente esse [ser] unilateral;
portanto [enuncia], em vez de abolir, o preservar da unilateralidade? Se alguém quer dizer
o que os espíritos fazem, precisa ser capaz de com preender o fato com espírito; senão, em
sua mão, o fato se tornou falso.
Noto aliás, com [certa] redundância, que o dito aqui e na continuação, sobre a repre­
sentação do Sr. Tholuck a respeito da filosofia, não pode nem deve ser enunciado sobre
ele por assim dizer individualmente; lê-se a mesma coisa numa centena de livros; entre
outros, especialmente nos prefácios dos teólogos. Citei a exposição do Sr. Tholuck, em
parte porque casualmente me está mais perto, e em parte porque o profundo sentimento,
que parece colocar seus escritos no lado totalm ente oposto ao da,teologia-do-entendimen-
to, é o mais próximo da profundidade [espiritual]. Com efeito, sua determinação funda­
mental, a reconciliação — que não é o ser originário incondicionado, nem um abstrato
sem elhante —, é o próprio conteúdo que a idéia especulativa é, e que ela exprime pen-

21
A filosofia deve desprezar essa piedade que lhe querem conce­
der, pois dela não necessita para sua justificação moral; assim como
não pode faltar à filosofia a inteligência das conseqüências efetivas
de seus princípios, nem tampouco pode deixar de tirar deles con­
clusões expressas.
Quero esclarecer brevemente aquela suposta conclusão segun­
do a qual a diferença entre o bem e o mal deve ser reduzida a uma
simples aparência; mais para dar um exemplo da vacuidade de tal
apreender da filosofia que para justificar a filosofia. Queremos com
esse mesmo propósito examinar somente o espinozismo — a filo­
sofia em que Deus é determinado apenas como substância e não
como sujeito e espírito. Essa diferença concerne à determinação da
unidade. E só isso que importa. Contudo, embora essa determinação
seja um fato, os que costumam chamar a filosofia “sistema da iden­
tidade” nada sabem dessa determinação; e podem mesmo expri­
mir-se dizendo que segundo a filosofia tudo é uma só e a mesma
coisa, e inclusive o bem e o mal são iguais. Ora, tudo isso constitui
as piores maneiras da unidade, de que não se pode falar em filo­
sofia especulativa; só mesmo um pensamento ainda bárbaro pode
usá-las, quando se trata de idéias.
Agora, no que toca à alegação de que naquela filosofia em si ou
propriamente não vigora a diferença entre o bem e o mal, há que per­
guntar: que significa, então, esse “propriamente”? Se significa a natu-
sando. Ora, a última coisa que esse espírito profundo deveria fazer seria não reconhecer na
idéia esse conteúdo, ou ignorar esse conteúdo na idéia.
Mas acontece com o Sr. Tholuck, no mesmo lugar, como em geral em outras partes de
seus escritos, deixar-se também levar pelo caminho e pelos discursos correntes do panteísmo,
de que falei mais extensamente em uma das últimas notas da Enciclopédia (Nota ao § 537).
Aqui, chamo apenas a atenção para a peculiar inabilidade e distorção em que cai o Sr.
Tholuck. Quando põe de um lado de seu dilema pretensamente filosófico o fundamento
originário, e designa a seguir esse lado como panteístico (pp. 33, 38), ele caracteriza o outro
como o dos socinianos, pelagianos e filósofos populares; de modo que desse lado “não
haveria um Deus infinito, mas um grande número de deuses, isto é, o número de todas essas
essências que são distintas desse suposto fundamento originário, e têm um próprio ser e agir
ao lado desse assim-chamado fundamento originário”. De fato, não há, desse lado, simples­
m ente um grande número de deuses, mas todas as coisas são deuses — [já que] todo o finito
conta aqui como tendo um ser próprio. Assim, desse lado (é que) o Sr. Tholuck de fato tem
expressamente seu omnideísmo, seu panteísmo; e não do primeiro lado, para cujo Deus ele
constitui expressamente o fundamento originário único; onde portanto há somente monoteísmo.

22
reza de Deus, não se exigirá, decerto, que o mal seja para ela transfe­
rido. Aquela unidade substancial é o próprio bem; o mal é apenas
cisão; assim, naquela unidade, nada há menos que uma unidade do
bem do mal; antes, o mal [é que] está excluído. Por isso em Deus,
como tal, não se encontra tampouco a diferença entre bem e mal; pois
essa diferença só existe no [que ó] cindido, em um [ser] tal, que nele
está o próprio mal. Além disso, no espinozismo também se apresenta
a diferença: o homem, diferente de Deus. 0 sistema pode, desse lado, não
satisfazer teoricamente; pois o homem e o finito em geral, mesmo em
seguida rebaixados ao [nível do] “modo”, se encontram na consideração
[de Espinoza] somente ao lado da substância. Ora, é aqui, no homem,
onde a diferença existe, que ela existe tão essencialmente quanto a
diferença entre o bem e o mal, e é aqui somente que ela é propria­
mente, porque só aqui tem sua determinação própria. Se no caso do
espinozismo só se tem a substância ante os olhos, nela não existe,
sem dúvida, nenhuma diferença entre o bem e o mal; mas porque
o mal — como o finito e o mundo em geral (ver § 50 Nota) —,
desse ponto de vista, não existe absolutamente. Tendo porém ante os
olhos o ponto de vista em que no sistema de Espinoza também
aparecem o homem e a relação do homem à substância, e onde so­
mente pode ter seu lugar o mal em sua diferença com o bem, é preciso
que se tenham examinado as partes da ética que tratam dele, dos
afetos, da servidão humana e da liberdade humana, para poder pro­
nunciar-se sobre as conseqüências morais do sistema. Não há dúvi­
da, [quem assim fizer] há de convencer-se da pureza excelsa dessa
moral, cujo princípio é o mais aprimorado amor de Deus; como tam­
bém de que essa pureza da moral é conseqüência do sistema. Lessing
dizia em seu tempo: as pessoas tratavam Espinoza como um cão
morto. Não se pode dizer que nos tempos mais recentes se trate
melhor com o espinozismo e também, em geral, com a filosofia espe­
culativa; quando se vê os que fazem recensões e apreciações nem
sequer se darem a pena de captar corretamente os fatos, e de indicá-
-los e relatá-los corretamente. O que aliás seria o mínimo de eqüidade:
e a filosofia em todo caso poderia exigir esse mínimo.
A história da filosofia é a história da descoberta dos pensamentos
sobre o absoluto, que é seu objeto. Assim, por exemplo, pode-se
dizer: Sócrates descobriu a determinação do fim, que foi desenvol­
23
vida e conhecida de maneira determinada por Platão e especial­
mente por Aristóteles. A história da filosofia de Brucker [Johann
Jacob Brucker — História critica philosophiae, 5 vols., Leipzig, 1742
a 1744, 2- ed., 1766. Apêndice 1767] é tão acrítica, não só segundo
o lado exterior do histórico, mas segundo a indicação dos pensa­
mentos que se encontram citados, dos mais antigos filósofos, vinte,
trinta e mais proposições dos antigos filósofos gregos como sendo
seus filosofemas; e dessas proposições nem uma só lhes pertence.
São conclusões, que Brucker tira segundo a má metafísica de seu
tempo, e atribui àqueles filósofos como suas afirmações. Há dois
tipos de conclusões: umas conclusões são apenas desenvolvimentos
de um princípio, descendo mais longe nos detalhes; outras são uma
regressão a princípios mais profundos. O histórico consiste precisa­
mente nisto: em indicar a que indivíduos pertence um certo apro­
fundamento ulterior do pensamento e o seu descobrimento. No
entanto, o proceder de Brucker não é despropositado simplesmen­
te porque aqueles filósofos não tiraram eles mesmos as conseqüên­
cias que deveriam residir em seus princípios e não os enunciaram
expressamente, mas antes porque com tal deduzir silogístico se
lhes imputa um [modo de] admitir e utilizar essas relações-de-
-pensamento sobre a finitude, o qual é diretamente contrário ao
sentido dos filósofos, que eram de espírito especulativo; e [um
modo que], antes, só vicia e falsifica a idéia filosófica.
Se, no caso de filósofos antigos, dos quais somente umas poucas
proposições nos foram relatadas, tal falsificação tem a desculpa do
deduzir silogístico pretensamente correto, [mas] quando se trata de
uma filosofia que, por uma parte, compreendeu sua idéia nos pensa­
mentos determinados, e por outra investigou e determinou expressa­
mente o valor das categorias, tal desculpa desaparece se, apesar disso,
apreender a idéia mutilada; se da exposição for extraído só um momento,
e (como a identidade) for dado como sendo a totalidade; e se nele
se introduzirem, de modo totalmente ingênuo, as categorias em
sua unilateralidade e inverdade, segundo a maneira que está mais
ao alcance, como são empregadas na consciência do dia-a-dia.
O conhecimento cultivado das relações-de-pensamento é a pri­
meira condição para apreender corretamente um fato filosófico. Mas a
rudeza do pensamento é expressamente não só justificada, mas erigida
24
em lei pelo princípio do saber imediato. O conhecimento dos pensa­
mentos, e com isto a formação culta do pensar subjetivo, é tão pouco
saber imediato quanto qualquer ciência ou arte e habilidade.
A religião é a espécie e modalidade da consciência, segundo a qual
a verdade é para todos os homens, [e] para os homens de toda a
cultura. Porém o conhecimento científico da verdade é uma espécie
particular da consciência deles, cujo trabalho não é empreendido por
todos, mas, antes, só por uns poucos. O conteiído é o mesmo-, mas, como
diz Homero de certas coisas que têm dois nomes — um na linguagem
dos deuses, outro na linguagem dos homens efêmeros -—, há para
esse conteúdo duas linguagens. Uma é a linguagem do sentimento,
da representação, e do pensar do entendimento, [desse pensar]
que se aninha em categorias finitas e abstrações unilaterais; a outra
[é a linguagem] do conceito concreto.
Caso se queira, a partir da religião, também discutir e julgar a
filosofia, exige-se mais do que ter apenas o hábito da linguagem da
consciência efêmera. O fundamento do conhecimento científico é
o conteúdo interior, a idéia imanente e sua intensa vitalidade no
espírito; assim como, em não menor grau, a religião é uma alma
trabalhada de lado a lado, um espírito que despertou para o conheci­
mento, um conteúdo elaborado. Nos tempos atuais, a religião res­
tringiu sempre mais a extensão elaborada do seu conteúdo, e se
retirou ao [ser] intensivo da piedade ou do sentimento, e muitas
vezes, decerto, [à intensidade] de um sentimento que manifesta
um conteúdo muito pobre e despido.
Enquanto a religião ainda tem um credo, uma doutrina, uma
dogmática, tem com o que a filosofia o possa ocupar-se; e em que
a filosofia, como tal, possa reunir-se com a religião. No entanto,
isso não se deve tomar de novo segundo o mau entendimento
separador, no qual a religiosidade moderna está aprisionada. Se­
gundo esse entendimento, ela se representa as duas de modo que
se excluem uma e outra, ou [como] sendo de tal modo separáveis,
em geral, que depois só a partir do exterior se unem.
Melhor, o que está incluído também no que foi exposto até agora
é que a religião pode existir sem a filosofia, mas a filosofia não o pode
sem a religião; antes a inclui dentro de si. A religião verdadeira, a
religião do espírito, deve ter um tal credo, um conteúdo; o espírito é
25
essencialmente consciência: portanto, consciência do conteúdo que se
faz objetivo. Como sentimento, é o próprio conteúdo não-objetivo
(apenas qualificado, [qualiert] para usar uma expressão de J. Bõhme),
e só o grau ínfimo da consciência; decerto, na forma da alma, comum
[a nós] com os animais. E só o pensar que faz a alma — de que
também o animal é dotado — espírito; e a filosofia é somente uma
consciência sobre esse conteúdo, sobre o espírito e sua verdade, tam­
bém na figura e maneira [de ser] dessa sua essencialidade que o dife­
rencia do animal e o torna capaz da religião.
A religiosidade coartada, que se reduz a um ponto — ao cora­
ção —, tem de fazer da contrição e da mortificapão deste coração o
momento essencial de seu renascimento. Mas devia ao mesmo tempo
recordar que está lidando com o coração de um espírito: o espírito está
entregue ao poder do coração, e só consegue ser esse poder na medida
em que ele mesmo está renascido. Esse renascimento do espírito, que
o faz sair da ignorância natural e também do erro natural, acontece por
meio do ensino e da fé que o acompanha, pelo testemunho do espí­
rito: fé da verdade objetiva, do conteúdo. Essa regeneração do espírito,
entre outras coisas, é também imediatamente uma regeneração do
coração [que sai] da vaidade do entendimento unilateral, que alardeia
saber coisas como: o finito é diferente do infinito, a filosofia tem de ser
ou politeísmo ou — nos espíritos mais agudos — panteísmo etc. A
regeneração [livra] dessas vistas lamentáveis, pelas quais a piedosa
humildade se eleva altaneira [tanto] contra a filosofia como contra o
conhecimento teológico. Se persiste a religiosidade nessa intensidade
sem expansão — e por isso carente de espírito —, na certa só conhece
a oposição dessa sua forma restrita e restritiva [em relação] à expansão
espiritual, tanto da doutrina religiosa enquanto tal, como da doutrina
filosófica*.
* Para voltar ainda uma vez ao Sr. Tholuck, que pode ser visto como o representante
entusiasta da corrente pietista, a falta de uma doutrina é bem marcada em seu escrito A
doutrina do pecado (21 edição, Hamburgo, 1825) que acaba de me chegar sob os olhos.
Tinha-me chamado a atenção o seu modo de tratar a doutrina trinitária em seu escrito A
doutrina especulativa da trindade do Oriente tardio [Berlim 1826]; reconheço que lhe sou
sinceramente grato por suas informações históricas cuidadosamente pesquisadas. O autor
chama a doutrina trinitária uma doutriona escolàstica; ora, esta doutrina é muito anterior ao
[período] que se chama escolástico. Considera-a apenas segundo o lado exterior de uma
origem supostamente só histórica [a partir] de uma especulação sobre passagens bíblicas e

26
No entanto, não só o espírito pensante não se limita à satisfação
[que encontra] na religiosidade mais pura e espontânea; mas esse ponto
de vista é, nele mesmo, um resultado que deriva da reflexão e do
raciocínio. E com ajuda de [um] entendimento superficial que conse­
gue essa conspicua libertação de toda a doutrina, ou quase isso; e
usando em sua sanha contra a filosofia o pensar pelo qual está conta­
minado é que se mantém à força no píncaro estreiro, carente-de-con-
teúdo, de uma sentimentalidade abstrata. Não posso deixar de citar
alguns trechos da “Parênese” do Sr. Franz von Baader sobre uma tal
figura da piedade, extraídos do 5- caderno dos Fermenta Cognitionis
[1823], Prefácio, pp. IX ss. “Enquanto, diz, à religião e a suas doutrinas
sob a influência da filosofia platônica e aristotélica (p. 41). Mas no escrito sobre o pecado ele
trata, podia-se dizer, sobranceiramente esse dogma, declarando-o somente capaz de ser uma
annação em que se deixariam ordenar as doutrinas (quais?) da fé (p. 220); e, mesmo, que é
preciso também aplicar a esse dogma a expressão segundo a qual ele aparecerá aos que estão
na margem [talvez sobre a areia do espírito?] como uma Fada Morgana [ou miragens]. Mas
a doutrina da Trindade “não é jamais um fundamento (assim fala o Sr. Tholuck do ‘tripé’
no mesmo lugar, p. 221) — [um fuodamento] sobre o qual a fé pode serfundamentada"'. Essa
doutrina como a mais santa não foi desde sempre — ou pelo menos há quanto tempo? —
o conteúdo principal da própria fé, como Credo, e esse Credo, o fundamento da fé subjetiva?
Como, sem esse dogma, a doutrina da reconciliação — que o Sr. Tholuck no escrito citado
procura com tanta energia trazer ao sentimento — pode ter um sentido mais que moral, ou
se preferem [mais que] pagão; como pode ter um sentido cristão? Nesse sentido, nada se
encontra também de outros dogmas mais especiais. O Sr. Tholuck, p. ex., só leva seu leitor
à paixão e morte de Cristo, mas não à sua ressurreição e ascensão à direita do Pai, nem à
efusão do Espírito Santo. Uma determinação capital na doutrina da reconciliação é o castigo
do pecado. Este, para o Sr. Tholuck (pp. 119ss.), é a consciência-de-si que pesa, e a infide­
lidade que com isso está unida, na qual estão todos os que vivem fora de Deus, única fonte
da felicidade como da santidade. De modo que o pecado, a consciência de culpa e a infe­
licidade não podem ser pensados um sem o outro (aqui pois ocorre também ao pensamento
de que maneira — p. 120 — as determinações são mostradas como decorrentes da natureza
de Deus). Essa determinação do castigo do pecado é o que se denominou o castigo natural
do pecado, e que, como a indiferença para com a doutrina da Trindade, era o resultado e
a doutrina da Razão e do Iluminismo, aliás tão denegrido pelo Sr. Tholuck.
Há algum tempo foi rejeitado na Câmara Alta do parlamento inglês um decreto [Bi]
sobre a seita dos unitaristas. Nessa ocasião, um jornal inglês publicou uma nota sobre o grande
número de unitaristas na Europa e na América e a isso acrescentou depois: “No continente
europeu o protestantismo e o unitarismo atualmente se apresentam na maioria dos casos
como sinônimos”. Devem os teólogos decidir se a dogmática do Sr. Tholuck ainda se distin­
gue da teoria comum do Iluminismo em mais de um ponto, ou dois pontos no máximo; e
se, examinada mais de perto, não se diferencia mesmo, nesses pontos [de tal teoria].

27
não for atribuída de novo, por parte da ciência, uma estima fundada
sobre uma pesquisa livre, e por conseguinte sobre uma verdadeira
convicção...; enquanto vós mesmos, [homens] piedosos e ímpios, com
todos os vossos mandamentos e proibições, com todos vossos discursos
e ações... não remediardes o mal, e enquanto também essa religião,
que não é respeitada, não for amada; porque de fato só se pode amar
resoluta e sinceramente, o que se vê sinceramente respeitado, e se
conhece sem vacilar como respeitável, assim como se pode também
servir a religião só com um tal ‘amor generotis'... Em outros termos:
quereis que a prática da religião prospere de novo, então cuidai para
que cheguemos de novo a uma teoria racional da religião, e não aban­
doneis completamente o campo aos vossos adversários (aos ateus) com
essa afirmação irracional e blasfema', de que, numa tal teoria da religião
como Coisa impossível, absolutamente não há que pensar; que a reli­
gião é simplesmente Coisa do coração, onde a gente pode, e mesmo
deve, com razão privar-se da cabeça. "*
A respeito da pobreza do conteúdo, pode-se notar ainda que só é
possível tratar dela como de um fenômeno [surgindo] no .estado exte­
rior da religião em um tempo particular. Poder-se-ia lamentar uma tal
época, quando há tal necessidade de suscitar somente a simples fé em
Deus — o que era tão urgente para o nobre Jacobi — e, além disso,
só despertar um concentrado cristianismo da emoção. Não se pode ao
mesmo tempo desconhecer os princípios mais elevados que se mani­
festam mesmo aqui (ver Introdução à Lógica, § 64, Nota). Mas diante
da ciência se estende o rico conteúdo que séculos e milênios de ati­
vidade cognitiva produziram, e diante dela [se estende] não como algo
histórico, que só outros possuíram, e que para nós seria um passado:
apenas uma tarefa para o saber da memória e a sagacidade da crítica
dos relatos, e não para o conhecimento do espírito e o interesse da
verdade. O mais excelso, o mais profundo e o mais íntimo foi trazido
à luz do dia nas religiões, nas filosofias e nas obras de arte, sob uma
figura mais pura ou mais impura, mais clara ou mais turva; muitas
* 0 Sr. Tholuck cita muitas vezes passagens do tratado de Anselmo Cur Deus homo e
elogia (p. 127) “a profunda modéstia desse grande pensador”; por que também não con­
sidera e não cita a passagem (citada no § 77 da Enciclopédia, p. 341) do mesmo tratado
“Negligen iae mihi videtur si... non studemus quod credimus, intelligere”? Se, na verdade,
o Credo é encolhido apenas a alguns poucos artigos, resta pouca matéria a conhecer e pode
resultar pouca coisa do conhecimento.

28
vezes, horripilante. Pode-se estimar como um mérito particular que o
Sr. Franz von Baader continue não apenas a trazer tais formas à lembran­
ça, mas, com um profundo espírito especulativo, [a trazer] expressamen­
te seu conteúdo às honras da ciência, ao expor e a corroborar, a partir
delas, a idéia filosófica. Para isso, a profundeza de Jacob Bõhme for­
nece especialmente ocasião e formas. A esse poderoso espírito foi
dado, com razão, o nome de “philosophus teutonicus”. Por um lado,
ele ampliou o conteúdo da religião por si mesmo, até a idéia universal,
nele concebeu os mais altos problemas da razão, e buscou ali apreen­
der o espírito e a natureza em suas esferas e formações determinadas,
ao tomar por base que o espírito do homem e todas as coisas são
criados à imagem de Deus; na verdade, de nenhum outro [deus] senão
do Deus uno etrino\ e que são somente essa vida [que consiste em] ser,
a partir da perda de seu modelo originário, reintegrados a ele. Por
outro lado, de modo inverso, Bõhme aplicou forçadamente as formas
das coisas naturais (enxofre, salitre etc.; o azedo, o amargo etc.) às
formas espirituais e às formas-de-pensamento. A gnose do Sr. Von
Baader, que se prende a formações como essas, é uma maneira pecu­
liar de suscitar e de promover o interesse filosófico; opõe-se vigorosa­
mente tanto à quietação na nudez carente-de-conteúdo do Iluminismo
como à piedade que quer permanecer apenas intensiva. O Sr. Von
Baader prova, quanto a isso, em todos os seus escritos, que está longe
de tomar essa gnose como o modo exclusivo do conhecimento. Tal
gnose tem por si seus inconvenientes; sua metafísica não se sublima
até à consideração das categorias mesmas, e ao desenvolvimento me­
tódico do conteúdo; padece da inadequação do conceito a tais formas
e figurações bárbaras ou espirituosas, assim como em geral padece de
ter o conteúdo absoluto como pressuposição; e a partir dessa [pressupo­
sição] explica, raciocina, refuta*.
* Tenho a satisfação de constatar que o Sr. Baader, tanto pelo conteúdo da maioria de
seus escritores recentes como nas citações declaradas de muitas proposições minhas, está de
acordo com elas. Quanto ao que contesta, na maior parte ou na totalidade não me seria difícil
entender-me com ele, ou seja, mostrar que de fato não se afasta de seus pontos de vista.
Quero tocar apenas numa crítica que se encontra nas Notas sobre alguns filosofemos anti-
-religiosos de nosso tempo (1824, p. 5. Cf. pp. 56ss.). Trata-se neste lugar de um filosofema que,
originado da Escola da filosofia-da-natureza, estabeleceria um falso conceito da matéria, ao
afirmar que “a essência deste mundo — efêmera e ocultando em si a corrupção — nasceu
e nasce de Deus imediata e eternamente, [e que], na medida em que constitui a eterna saída
(extrusão) de Deus, condicionaria eternamente seu retorno [a si] (como espírito)”.

29
Figurações mais puras e mais turvas da verdade nós as temos,
pode-se dizer, bastante e em excesso — nas religiões e mitologias, nas
filosofias gnósticas e mistéricas dos tempos antigos e modernos. Há
quem possa encontrar sua alegria em fazer a descoberta da Idéia nessas
figurações, e obter a satisfação de que a verdade filosófica não seja algo
apenas solitário, mas que sua eficácia esteja presente nessas figurações
— ao menos como fermento. Mas, quando a arrogância da imaturidade
— como foi o caso com um imitador do Sr. Von Baader — consegue
requentar tais produtos da fermentação, eleva para si facilmente, em
sua preguiça e incapacidade para o pensar científico, tal gnose ao modo
exclusivo do conhecer. Com efeito, é menos penoso entregar-se a tais
invencionices e juntar-lhes filosofemas assertóricos do que empreender
o desenvolvimento do conceito e subjugar seu pensar, como sua alma
emotiva, à necessidade lógica dele [conceito]. A arrogância não está
longe de se atribuir como descoberta o que aprendeu dos outros; e
acredita nisso tanto mais facilmente quanto os combate ou rebaixa, ou,
melhor: está irritada contra os outros porque deles extraiu suas luzes.
Como nas manifestações da época que tomamos em consideração
nesse Prefácio, faz-se conhecer, embora desfigurada, a ânsia do pensar,
assim também para o pensamento mesmo, cultivado até às alturas do
espírito, e para o seu tempo, é uma necessidade em si e para si — e
No que toca à primeira parte dessa representação, sobre o nascer (isso, em geral, é uma
categoria que não emprego, enquanto é uma expressão imaginada, não uma categoria) da
matéria [a partir] de Deus, não vejo outra coisa senão que essa proposição está contida na
determinação de que Deus é o criador do mundo. Mas quanto à outra parte, de que a
eterna saída condicionaria o retorno de Deus como espírito, o Sr. Baader põe nesse lugar o
condicionar— categoria que por uma parte é, em si e para si, inadequada aqui, e tampouco
empregada por mim para essa relação; lembro o que notei acima sobre a permutação
acrítica das determinações-do-pensamento. Mas discutir o imediato ou mediato nascer da
matéria só levaria a determinações completamente formais. O que o próprio Sr. Von Baader
declara (p.’54ss.) sobre o conceito da matéria, não o vejo como afastando-se de minhas
determinações a respeito dela; assim como não entendo que ajuda pode haver, para a tarefa
absoluta de apreender como conceito a criação do mundo, no que declara o Sr. Von Baader
na p. 58, que a matéria “não seria o produto imediato da unidade, mas o de seus princípios
(plenipotenciários, Elohim) que ela chamou para esse efeito. Se o sentido (pois conforme
a estrutura gramatical não é totalmente claro) é o de que a matéria é produto dos princípios;
ou este outro, de que a matéria chamou para si tais Elohim e se fez por eles produzir, esses
Elohim, ou então todo esse círculo em conjunto deve ser colocado numa relação a Deus
que não é esclarecida pela introdução de Elohim.

30
portanto só é digno de nossa ciência — que seja revelado, para o
pensar mesmo, o que antes foi revelado como mistério. Embora
fique, nas figurações mais puras, e ainda mais nas mais obscuras de
sua revelação, alguma coisa de muito secreto para o pensamento
formal, o pensar, no direito absoluto de sua liberdade, afirma sua
obstinação em não reconciliar consigo o conteúdo sólido enquanto
ele não souber dar-se ao mesmo tempo a figura mais digna de si
mesmo: a do conceito, da necessidade que une tudo, [tanto] conteú­
do como pensamento; e justamente assim tudo liberta.
Se o antigo deve renovar-se — isto é, uma figuração antiga,
pois o conteúdo mesmo é eternamente jovem — a figuração da
idéia, por exemplo como Platão e muito mais profundamente Aris­
tóteles lhe deram, é infinitamente mais digna de recordação; tam­
bém porque seu desvelamento, por meio da apropriação em nossa
cultura pensante, é imediatamente não só um entender dela, mas
também um progredir da própria ciência. Mas entender tais formas
da idéia não reside igualmente na superfície, como apreender fantas-
magorias gnósticas e cabalísticas, e aperfeiçoar aquelas [formas] ainda
se faz menos de si mesmo que descobrir e mostrar nessas [fantas-
magorias] as ressonâncias da idéia. O verdadeiro é “index sui etfalsi”,
como acertadamente se disse; mas a partir do falso não se conhece o
verdadeiro. Assim também o conceito é o entender de si mesmo e da
figura carente-de-conceito; enquanto essa, a partir de sua verdade
interior, não entende o conceito. A ciência entende o sentimento e a
fé, mas só pode ser julgada a partir do conceito, enquanto sobre o
conceito repousa; e, como é o autodesenvolvimento do conceito, um
juízo que a aprecia a partir do conceito não é tanto um julgamento
sobre ela, como um avançar junto com ela. Um julgar semelhante
devo também desejar para este ensaio, como o único que posso levar
em conta e em consideração.
Berlim, 25 de maio de 1827

31
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32
PREFÁCIO
À TERCEIRA EDIÇÃO
( 1830 )

Nesta 3a edição muitos aperfeiçoamentos foram introduzidos


aqui e ali; teve-se em vista, especialmente, favorecer a clareza e a
determinidade da exposição. Contudo, em vista da finalidade de
compêndio que tem o tratado, o estilo devia permanecer conciso,
formal e abstrato; o texto conserva seu caráter peculiar, [que é] só
receber os esclarecimentos necessários por meio da exposição oral.
Desde a 2a edição apareceram muitas críticas ao meu filosofar, as
quais na sua maioria mostraram pouca vocação para essa tarefa. Tais
réplicas levianas a obras que foram meditadas durante muitos anos, e
elaboradas com toda a seriedade do objeto e da exigência científica,
não proporcionam nenhuma alegria, tendo em vista as más paixões da
presunção, do orgulho, da inveja, do desprezo etc. que nelas repon-
tam, e muito menos [contêm] algo instrutivo. Diz Cicero {Tusculanae
Disputationes, Questão I, II): “Est philosophia paucis contenta judicibus,
multitudinem consulto ipsa fugiens, eique ipsi et invisa et suspecta\ ut,
si quis universam velit vituperare, secundo id populo facere possit”.
[Contenta-se a filosofia com poucos juizes, evita de propósito a mul­
33
tidão, para a qual é malvista e suspeita; de modo que, se alguém quiser
vituperar toda a filosofia, possa fazê-lo com o consenso do povo]. E
tanto mais popular descarregar contra a filosofia quanto isso ocorre
com menos inteligência e profundeza. A paixão hostil mesquinha pode
ser captada no eco que lhe retorna dos outros; e a ignorância se lhe
associa com igual evidência. Outros objetos caem sob os sentidos ou
se postam ante a representação nas intuições-de-conjunto. Sente-se a
necessidade de um grau, embora diminuto, de saber sobre eles, para
discutir a seu respeito; ainda mais, remetem facilmente ao sadio bom
senso porque se situam em [algo] presente, bem conhecido e firme.
Mas a falta disso tudo é lançada sem pejo contra a filosofia, ou melhor,
contra qualquer imagem fantástica e oca que a ignorância sobre a
filosofia inventa e mete na cabeça a seu respeito. Nada tem diante de
si pelo qual possa orientar-se; e move-se de um lado para outro total­
mente no indeterminado, no vazio: e, portanto, no sem-sentido.
Tenho alhures empreendido a tarefa desagradável e infrutífera
de esclarecer em sua nudez descoberta algumas dessas manifesta­
ções, tecidas de paixões e ignorância. Pareceria recentemente que
do terreno da teologia e mesmo da religiosidade devesse ser estimu­
lada uma pesquisa mais rigorosa sobre Deus, as coisas divinas e a
razão, cientificamente em um domínio mais amplo. Mas já o come­
ço do movimento não deixou medrar tal esperança; porque o en­
sejo provinha de personalidades; e nem a pretensão da piedade acu-
sadora, nem a pretensão atacada da razão livre se elevou até à
Coisa, e menos ainda até à consciência de que para discutir a Coisa
era preciso pisar o solo da filosofia. Essa agressão de [elemento]
pessoal, por motivo das exterioridades muito especiais da religião,
mostrou-se com enorme arrogância ao querer decidir, por sua pró­
pria plenipotência, sobre o cristianismo de indivíduos, e de lhes
imprimir com isso o selo da condenação terrena e eterna. Dante se
atreveu, na força da inspiração da divina poesia, a manejar as cha­
ves de Pedro e sentenciar à condenação infernal, nomeadamente,
muitos dos seus contemporâneos — na verdade, já mortos —,
mesmo Papas e Imperadores. Foi feito a uma filosofia recente o
vitupério infamante de que nela o indivíduo humano se poria como
Deus. Mas, ante tal censura [derivada] de uma falsa conseqüência,
há uma arrogância efetiva [que é] totalmente outra, de se compor­
34
tar como juiz do mundo, julgar em última instância o cristianismo
dos indivíduos, e pronunciar assim sobre eles a mais íntima repro­
vação. O “Schibboleth” [a senha] desse poder supremo é o nome do
Senhor Cristo e a garantia de que o Senhor habita no coração desses
juizes. Cristo diz (Mt 7,20): “E por seus frutos que os conhece-
reis”; mas a enorme insolência da reprovação e da condenação não
é um bom fruto. Cristo continua: “Nem todos que me dizem Se­
nhor, Senhor entrarão no reino dos céus(...). Muitos me dirão nesse
dia: Senhor, SenhorX Não profetizamos em teu nome? Não expulsa­
mos o demônio em teu nome? Não fizemos muitas ações em teu nome?
Então eu lhes responderei: Nunca vos conheci; afastai-vos de mim, vós
que praticais o mal\
Os que garantem estar na posse exclusiva do cristianismo, e
exigem dos outros essa crença neles, não foram tão longe a [ponto
de] expulsar o demônio; antes, muitos deles, como os que crêem
na vidente de Prevorst, se gabam de estar em boa harmonia com
uma súcia de espectros e de lhes ter veneração, em lugar de expul­
sar e banir essas mentiras de uma superstição servil e anticristã.
Mostram-se tão pouco capazes de proferir sabedoria e completamen­
te incapazes de cometer façanhas do conhecimento e da ciência —
o que seria seu destino e seu dever; erudição não é ainda ciência.
Ao ocupar-se minuciosamente com a massa de exterioridades indife­
rentes da fé, permanecem, ao contrário, em vista do valor e do
conteúdo da própria fé, tanto mais áridos ante o nome do Senhor
Cristo, e desprezam de propósito e com ignomínia o desenvolvi­
mento da doutrina que é o fundamento de fé da Igreja cristã.
[Assim procedem] porque a expansão espiritual plenamente pen­
sante e científica estorvaria e mesmo impediria e eliminaria a arro­
gância do alardear subjetivo da segurança — carente de espírito,
estéril no bem, e só rico em maus frutos — de se encontrarem na
posse do cristianismo, e de tê-lo exclusivamente como próprio.
Na Escritura, essa expansão espiritual se distingue, com a mais
determinada consciência, da pura fé; de modo que a fé só se torna
verdade mediante aquela [expansão]. “Aquele que crê em mim”,
diz Cristo (Jo 7,38), “de seu corpo jorrarão rios de água viva. ” O que
é então logo explicado e determinado no versículo 39, que não é
a fé como tal na personalidade temporal, sensível, presente do
35
Cristo que isso efetua; a fé não é ainda a verdade como tal. Na
continuação (v. 39) a fé é determinada [no sentido em] que Cristo
disse isso do Espírito que deveriam receber os que nele acreditavam;
pois o Espírito Santo não estava ainda ali, porque Jesus ainda não
fora glorificado. A figura ainda não glorificada de Cristo é a persona­
lidade então presente de forma sensível no tempo — ou mais tarde
assim representada — o que é o mesmo conteúdo; personalidade
que é o objeto imediato da fé. Nessa presença, o próprio Cristo
revelou de viva voz a seus discípulos sua natureza eterna e sua
missão de reconciliação de Deus consigo mesmo e dos homens
com ele, a ordem da salvação e a doutrina ética; e a fé, que os
discípulos têm nele, abrange em si tudo isso. Apesar disso, essa fé,
a que nada faltava da mais firme certeza, é explicada como sendo
apenas o começo e a base condicionante; como algo ainda incom­
pleto. Os que acreditavam assim não têm ainda o Espírito, devem
primeiro recebê-lo\ a ele, [que é] a própria verdade; a ele, que vem
só depois dessa fé, que conduz a toda a verdade. Mas aqueles
permanecem numa talcerteza, [ou seja,] na condição: a certeza,
porém, é, ela mesma, subjetiva, só produz o fruto subjetivo, formal­
mente o fruto da segurança, e em seguida o do orgulho, do vilipên-
dio e da condenação. Contrariamente às Escrituras, só se mantêm
firmes na certeza contra o Espírito, que é a expansão do conheci­
mento, e que, só, é a verdade.
Esse despojamento em conteúdo científico — e espiritual em
geral — partilha-o essa piedade com aquilo de que faz imediatamente
objeto de sua acusação e condenação. O Iluminismo do entendimento,
por seu pensar formal, abstrato, carente-de-conteúdo, esvaziou a reli­
gião de todo o conteúdo, assim como aquela piedade [o fez] por sua
redução da fé ao “Schiboleth” [à senha] do “Senhor! Senhor!” Nisso
as duas não têm vantagem uma sobre a outra; e, ao coincidirem no
[fato de] se oporem, não há matéria em que se toquem e possam obter
um terreno comum, e a possibilidade de chegar à pesquisa — e, de­
pois, ao conhecimento e à verdade. A teologia do Iluminismo, de seu
lado, manteve-se firme em seu formalismo, a saber, em invocar a
iiberdade-dz-comúònci-à [moral], a liberdade-de-pensar, a liberdade de
ensinar, e [em invocar] mesmo a razão e a ciência. Tal liberdade é,
certamente, a categoria do direito infinito do espírito, e a outra condição
36
particular da verdade, que se acrescenta à primeira, à fé. Mas que
determinações e leis racionais contém a consciência verídica e livre, que
conteúdo o livre crer e pensar tem e ensina — é um ponto material que
[esses autores] se abstiveram de tocar, e ficaram nesse formalismo do
negativo e na liberdade de preencher a liberdade segundo seu bel-
-prazer e opinião, de modo que o conteúdo mesmo fosse indiferente.
Também não podiam eles chegar a um conteúdo, porque a comuni­
dade cristã deve estar unida pelo vínculo de um conceito doutrinário,
de uma profissão de fé, e deve ainda ser sempre assim; ao invés, as
generalidades e abstrações da racionalista “água-do-entendimento”,
insípida e sem vida, não permitem o específico de um conteúdo e
conceito doutrinário cristãos, [que sejam] em si determinados, desen­
volvidos. Em compensação, os outros, prevalecendo-se do nome: “Se­
nhor, Senhor!” desprezam franca e sinceramente a plena realização da
fé no espírito, no conteúdo e na verdade.
Na verdade, muita poeira assim se levantou: poeira do orgulho,
do ódio, da personalidade, como também das generalidades; mas é
[poeira] afetada de esterilidade: não podia conter á Coisa nem con­
duzir a conteúdo e a conhecimento. A filosofia poderia estar satis­
feita por ter sido deixada fora do jogo; ela se encontra fora do
terreno daquelas pretensões, tanto das personalidades como das
generalidades abstratas; e, [se fosse] atraída para esse terreno, só
poderia contar com o que desagrada e não tem proveito.
A filosofia tornou-se uma necessidade contingente e subjetiva,
quando o interesse supremo e incondicionado da natureza humana
deixou de ser o conteúdo rico e profundo, e quando a religiosidade
— conjuntamente a religiosidade devota e a refletida — chegou a
ter sua suprema satisfação [no que é] sem conteúdo. Nos dois tipos
de religiosidade, aqueles interesses incondicionados foram regula­
dos — sem dúvida, não por outro [meio] que pelo raciocínio — de
modo a não precisar mais da filosofia para satisfazer tais interesses.
Certamente a filosofia é tida, e com razão, como um estorvo para esse
contentamento recém-criado, e para tal satisfação reduzida a esse es­
treito [limite]. Por isso a filosofia é deixada à livre necessidade do
sujeito; nele não ocorre nenhuma forma de coerção [para filosofar];
antes essa necessidade, onde se apresenta, tem de ser firme contra
suspeitas e dissuasões; [pois] só existe como uma necessidade in­
37
terior, que é mais forte que o sujeito; por ela o espírito é impelido
sem descanso, “para que vença” e proporcional à ânsia da razão o
gozo digno [dela]. Assim, sem qualquer instigação, nem mesmo
[por parte] da autoridade religiosa, a ocupação com essa ciência,
tida como algo supérfluo ou um luxo perigoso — ou ao menos
suspeito —, mantêm-se tanto mais livremente no interesse único
pela Coisa e pela verdade. Se a teoria, como diz Aristóteles, é o que
há de mais bem-aventurado, e, dentro do bom, é o melhor; os que par­
ticipam desse gozo sabem que têm [na contemplação] a satisfação
da necessidade da sua natureza espiritual. Podem-se abster de dirigir
a outros exigências nesse sentido; podem deixá-los em suas neces­
sidades e nas satisfações que lhes encontram. Acima foi considera­
do o açodamento [de pessoas] sem vocação, em ocupar-se da filo­
sofia. Assim como ele se faz ouvir tanto mais alto quanto é menos
apropriado a tomar parte na pesquisa filosófica, assim também a
participação mais profunda está, consigo mesma, mais sozinha; e
para fora mais silenciosa. A vaidade e a superficialidade depressa
estão prontas, e se apressam em intervir logo na discussão; mas a
seriedade [aplicada] a uma Coisa, em si grandiosa, e que só se sa­
tisfaz mediante um longo e árduo trabalho de um desenvolvimento
acabado, nela imerge demoradamente, em calma ocupação.
O fato de que vai esgotar-se em breve a 2a edição desse fio
condutor enciclopédico — que não torna fácil o estudo da filosofia,
conforme sua destinação acima apresentada — deu-me a satisfação
de ver que, fora do barulho da superficialidade e da vaidade, havia
lugar para uma participação mais calma, e mais gratificante, que
agora desejo também para esta nova edição.
Berlim, 19 de setembro de 1830

38
INTRODUÇÃO

§ i
A filosofia não tem a vantagem, de que gozam as outras ciên­
cias, de poder pressupor seus objetos como imediatamente dados
pela representação; e também como já admitido o método do conhe­
cer — para começar e para ir adiante. Em primeiro lugar, a filosofia
tem, de fato, seus objetos em comum com a religião. As duas têm
a verdade por seu objeto, decerto no sentido mais alto: no sentido
de que Deus é a verdade, e só ele é a verdade. Além disso, ambas
tratam do âmbito do finito, da natureza e do espírito humano-, de sua
relação recíproca, e de sua relação com Deus, enquanto sua verda­
de. Por isso a filosofia bem pode, e mesmo deve, pressupor uma
familiaridade com seus objetos, como aliás um interesse por eles; já
pelo motivo de que a consciência faz para si no tempo representa­
ções dos objetos, antes de (fazer) conceitos deles, o espírito pensan­
te só por meio do representar e voltando-se para ele [é que] avança
até o conhecer e o conceber pensantes.
Mas no considerar pensante logo se constata que isso inclui em
si a exigência de mostrar a necessidade do seu conteúdo, de provar
39
tanto o ser já como as determinações do seu objeto. A familiaridade
acima aludida, com os objetos, aparece assim como insuficiente; e
como inadmissível fazer ou legitimar pressuposições e asseverações.
Mas a dificuldade de instituir um começo apresenta-se ao mesmo
tempo, porque um começo, como algo imediato, faz sua pressupo­
sição; ou melhor, ele mesmo é uma pressuposição.
§ 2
Inicialmente, a filosofia pode determinar-se, em geral, como consi­
deração pensante dos objetos. Se é correto (e será bem correto) que o
homem se distingue dos animais pelo pensar, tudo o que é humano é
humano porque — e só porque — se efetua por meio do pensar.
Porém, enquanto a filosofia é um modo peculiar de pensar, uma maneira
pela qual o pensar se torna conhecer e conhecer conceituante, seu
pensar terá também uma diversidade em relação ao pensar ativo em
tudo o que é humano, e mesmo que efetua a humanidade do humano;
tanto como é idêntico a esse pensar: em si só existe um pensar. Essa
diferença está ligada [ao fato de] que o conteúdo humano da consciên­
cia, fundado graças ao pensar, não aparece primeiro na fortna de pensa­
mento, mas como sentimento, intuição, representação — formas a se­
rem diferenciadas do pensar enquanto forma.
É um velho preconceito, uma proposição que se tornou banal,
que o homem se distingue dos animais pelo pensar. Pode pare­
cer banal; mas deveria também parecer estranho que fosse pre­
ciso recordar tal crença antiga. No entanto, isso pode ser tido por
necessário para o preconceito da época atual que separa, um do
outro, sentimento e pensar a ponto que devam ser opostos, e
mesmo tão hostis que o sentimento — em especial o religioso
— seria manchado, pervertido, ou talvez até aniquilado comple­
tamente pelo pensar; e a religião e a religiosidade não teriam
essencialmente no pensar sua raiz e seu lugar.
Com tal separação, se esquece que só o homem é capaz de
religião, mas o animal não tem religião alguma; como tam­
pouco lhe compete direito e moralidade.
Quando essa separação entre a religião e o pensar é afirmada,
costuma-se evocar o pensar que pode ser designado como reflexão-.
o pensar que reflete, que tem por seu conteúdo e traz à consciência
40
pensamentos como tais. É a negligência em conhecer e levar em
conta a diferença estabelecida determinadamente pela filosofia
a respeito do pensar, que suscita as mais grosseiras representa­
ções e censuras contra a filosofia. Porque só ao homem pertence
a religião, o direito e a eticidade, e isso, na verdade, só porque
é essência pensante — o pensar não tem estado inativo no que
respeita a religião, direito, eticidade, seja isso sentimento, cren­
ça ou representação; e a atividade e as produções do pensar
estão aí presentes e contidas. Só que é diferente ter tais sentimen­
tos e representações determinados e penetrüdos pelo pensar, e ter
pensamentos sobre eles. Os pensamentos sobre esses modos da cons­
ciência, produzidos pela meditação, são aquilo sob o qual estão
compreendidos a reflexão, o raciocínio e coisas semelhantes; e,
depois, também a filosofia.
Ocorreu neste ponto um mal-entendido que muitas vezes ainda
impera: que tal refletir foi afirmado como condição e mesmo
como o único caminho para atingir realmente a representação e
a certeza do eterno e verdadeiro. Desse modo, por exemplo,
foram apresentadas as provas metafísicas da existência de Deus
(que agora são, antes, antiquadas) de modo que — ou como se
— somente por meio de seu conhecimento e convicção a seu
respeito pudessem ser essencialmente produzidas a fé e a con­
vicção da existência de Deus. Semelhante afirmação concorda­
ria com esta: de que nada podemos comer antes de ter adqui­
rido para nós o conhecimento das determinações químicas, bo­
tânicas ou zoológicas dos alimentos; e deveríamos adiar a diges­
tão até ter concluído o estudo da anatomia e da fisiologia. Se
assim fosse, essas ciências ganhariam certamente muito em
utilidade no seu campo, como a filosofia no dela, e mesmo sua
utilidade se elevaria à indispensabilidade absoluta e universal.
Aliás, de fato, em lugar de ser indispensáveis, essas ciências não
existiriam absolutamente.
§ 3
O conteúdo que preenche nossa consciência, seja de que espé­
cie for, constitui a detenninidade dos sentimentos, intuições, ima­
gens, fins, deveres etc., e dos pensamentos e conceitos. Sentimen­
41
to, intuição, imagem etc. são nessa medida as formas de tal conteú­
do, que permanece um só e o mesmo: quer seja ele sentido, intuído,
representado, querido; quer seja somente sentido, intuído etc., com
mistura de pensamento; quer seja pensado totalmente sem mistura.
Em qualquer uma dessas formas ou na mistura de várias, o conteú­
do é objeto da consciência. Mas, nessa objetividade, as determinidades
dessasformas sejuntam ao conteúdo, de modo que, segundo cada uma
dessas formas, um objeto particular parece surgir, e — o que em si
é o mesmo — pode parecer um conteúdo diverso.
Enquanto as determinidades do sentimento, da intuição, do
desejo, da vontade etc., na medida em que delas se sabe, são
chamadas em geral representações, pode-se dizer de modo geral
que a filosofia põe, no lugar das representações, pensamentos,
categorias e, mais precisamente, conceitos. As representações,
em geral, podem ser vistas como metáforas dos pensamentos
e conceitos. Mas, pelo fato de se terem representações, não
se conhece ainda sua significação para o pensar, não se co­
nhece ainda seus pensamentos e conceitos. Inversamente,
são também duas coisas diversas, ter pensamentos e concei­
tos, e saber quais são as representações, intuições e senti­
mentos que lhes correspondem.
Um lado do que se chama a ininteligibilidade da filosofia refere-
-se a isso. A dificuldade reside, por uma parte, em uma incapaci­
dade que é, em si, somente uma falta de costume de pensar
abstratamente; isto é, de manter com firmeza puros pensamen­
tos e de mover-se neles. Em nossa consciência ordinária estão
os pensamentos revestidos e unidos com uma matéria comum
sensível e espiritual; e ao meditar, refletir e raciocinar, mistura­
mos sentimentos, intuições e representações com pensamen­
tos. (Em qualquer proposição de conteúdo inteiramente sen­
sível, como “essa folha é verde”, já estão inseridas categorias:
ser, singularidade.') Mas outra coisa é fazer dos pensamentos
mesmos, sem mistura, o objeto.
O outro lado da ininteligibilidade é a impaciência em querer ter
diante de si, no modo da representação, o que está na consciên­
cia como pensamento e conceito. Encontra-se a expressão de
que não se sabe o que se deve pensar a propósito de um con­
42
ceito que foi aprendido; ora, em um conceito nada há mais a
pensar que o próprio conceito. Mas o sentido dessa expressão é
a saudade de uma representação bem-conhecida, corrente; para a
consciência, é como se, com o modo da representação, lhe fosse
retirado o solo em que tem, aliás, seu ponto fixo e domicílio.
Quando se encontra deslocada para a região pura dos conceitos,
não sabe onde está no mundo. Por conseguinte, o que se acha de
mais inteligível, são os escritores, pregadores, oradores etc. que
ditam, a seus leitores ou ouvintes, coisas que estes já sabem de
cor, que lhes são familiares, e que se entendem por si mesmas.
§ 4
Quanto à nossa consciência comum, a filosofia teria primeiro,
antes, de estabelecer a necessidade de sua maneira peculiar de conhecer,
e, mesmo, despertá-la. Mas quanto aos objetos da religião —- quan­
to à verdade em geral — a filosofia teria de provar sua capacidade de
conhecê-los a partir de si mesma. Quanto a uma diversidade que
vem à luz pelas representações religiosas, a filosofia teria de justifi­
car suas determinações discordantes.
§ 5
Com vistas a um entendimento preliminar da diferença apresen­
tada e da intelecção que lhe está unida, de quê o verdadeiro conteúdo
de nossa consciência se conserva na sua transposição para a forma de
pensamento e conceito — de fato só é posto em sua luz própria —,
pode-se recordar um outro velho preconceito, a saber, de que se requer
uma reflexão para experimentar o que há de verdadeiro nos objetos e
acontecimentos, como também nos sentimentos, intuições, opiniões,
representações etc. Em todo o caso, a reflexão faz pelo menos mudar
os sentimentos, as representações etc., em pensamentos.
Na medida em que o pensar é só o que a filosofia reivindica
para forma peculiar de sua tarefa, ainda que todo homem por
natureza possa pensar — em virtude dessa abstração, que
deixa de lado a diferença indicada no § 3 —, ocorre o contrá­
rio do que foi antes indicado como queixa sobre a ininteligi-
bilidade da filosofia. Essa ciência sofre, com freqüência, de
desprezo, de modo que também os que não se deram ao
43
trabalho de estudá-la declaram a [sua] presunção de entender
naturalmente a situação da filosofia; e, como são capazes, em
uma cultura ordinária — em especial do sentimento religioso
— de entrar e sair, também [são capazes] de filosofar e de
julgar sobre a filosofia. Há acordo em que se precisa ter estu­
dado as outras ciências para conhecê-las; e que só graças a tal
conhecimento se está autorizado a dar um juízo sobre elas.
Concorda-se que para fabricar um sapato deve-se ter apreen­
dido e exercitado, embora cada um tenha em seu pé o pa­
drão de medida para isso; e possua mãos, e nelas a aptidão
natural à tarefa requerida. Somente para o filosofar mesmo,
não se deve exigir o estudo, o aprendizado de coisas seme­
lhantes nem o [respectivo] esforço. Essa opinião comodista
recebeu nos tempos atuais sua ratificação por meio da dou­
trina do saber imediato, do saber pela intuição.
§ 6
Do outro lado, é igualmente importante que a filosofia esteja
bem consciente de que seu conteúdo não é outro que o conteúdo
originariamente produzido — e produzindo-se — no âmbito do es­
pírito vivo, e constituído em mundo, [mundo] exterior e interior da
consciência; [e entenda] que o conteúdo da filosofia é a efetividade.
Chamamos experiência a consciência mais próxima desse conteúdo.
Uma consideração sensata do mundo já distingue o que, no vasto
reino do ser-aí exterior e interior, é só fenômeno, [é] transitório e
insignificante — e o que em si verdadeiramente merece o nome de
efetividade. Enquanto a filosofia só difere segundo a forma de outro
conscientizar-se desse único e idêntico conteúdo, é necessária sua
concordância com a efetividade e a experiência; e mesmo essa con­
cordância pode considerar-se como uma pedra de toque, ao menos
exterior, da verdade de uma filosofia; assim como é para se conside­
rar como o fim último e supremo da ciência o suscitar, pelo conhe­
cimento dessa concordância, a reconciliação da razão consciente-
-de-si com a razão essente com a efetividade.
No Prefácio de minha Filosofia do Direito encontram-se estas
proposições (ed. original, p. XIX):
“0 que é racional é efetivo e o que é efetivo é racional"'.
44
Essas proposições simples parecem chocantes a muitos; ex­
perimentaram hostilidade, inclusive por parte de pessoas que
não querem que se ponha em dúvida que possuam a filoso­
fia, e também, certamente, a religião. E desnecessário aduzir
a religião a esse propósito, porque seus ensinamentos sobre
o governo divino do mundo exprimem essas proposições de
modo excessivamente determinado.
Mas, no que concerne ao sentido filosófico, há que pressupor
muita cultura para saber não só que Deus é efetivo, que é o
mais efetivo, que só ele é verdadeiramente efetivo; mas tam­
bém, no aspecto do formal, que em geral o ser-aí é por uma
parte fenômeno e só por outra parte é efetividade. Na vida
corrente, chama-se eventualmente “uma efetivação” qual­
quer capricho; o erro, o mal, e o que pertence a esse lado das
coisas — assim como qualquer existência, por mais mesqui­
nha e transitória [que seja].
Mas também, já pára uma sensibilidade ordinária, uma existên­
cia contingente não merecerá o nome enfático de algo efetivo.
O contingente é uma existência que não tem um valor maior
que o de algo possível, que, assim como é, pode também não ser.
Mas, se falei de efetividade, seria a pensar, de si mesmo, em
que sentido eu emprego esta expressão; pois numa Lógica mais
desenvolvida [Ciência da Lógica, Teoria da Essência, seção III:
a Efetividade) tratei também de efetividade e logo a distingui,
precisamente, não só do contingente, que sem dúvida tem tam­
bém existência, mas, com mais rigor, do ser-aí, da existência, e
de outras determinações. Já à efetividade do racional se opõe tanto
a representação segundo a qual as idéias e os ideais não seriam
nada mais que quimeras, e a filosofia, um sistema de tais fan­
tasmas, como também, inversamente, a representação de que as
idéias e os ideais seriam algo demasiado excelente para ter efeti­
vidade, ou do mesmo modo algo demasiado impotente para
lograr consegui-la.
Mas a separação entre a efetividade e a idéia é particular­
mente grata ao entendimento que toma os sonhos de suas
abstrações por algo verdadeiro, e é vaidoso do dever-ser que
ele gosta de prescrever, também e sobretudo no campo po-
45
lítico, como se o mundo tivesse esperado por ele para experi­
mentar como deve ser, mas não é. Se fosse como deve ser, onde
ficaria a precocidade do seu dever-ser? Quando se volta com o
dever-ser contra os objetos, estruturas e conjunturas etc., tri­
viais, exteriores e passageiros — que talvez possam ter uma
importância relativamente grande para certa época, para círculos
particulares —, pode bem ser que tenha razão, e encontre em
tal caso muitas coisas não correspondentes às determinações
universais corretas; quem não seria bastante prudente para ver,
no que o rodeia, muitas coisas que de fato não são como deviam
ser? Mas essa prudência está errada ao figurar-se que, com tais
objetos e seu dever-ser, ela se encontra no interior do interesse
da ciência filosófica. Esta só tem a ver com a idéia, que não é
tão impotente para apenas dever-ser, e não ser efetivamente; e
por isso [a filosofia tem a ver] com uma efetividade em que
esses objetos, estruturas, conjunturas etc. são somente o lado
externo superficial.
§ 7
Enquanto o refletir em geral contém o princípio (também no
sentido de começo) da filosofia, e depois que ele floresceu de novo
em sua autonomia [Selbstandigkeit] nos tempos modernos (depois
do tempo da reforma luterana) assim — enquanto igualmente desde
o começo ele não se comportou simplesmente de modo abstrato,
como nos começos do filosofar dos gregos, mas ao mesmo tempo se
lançou sobre a matéria, que parecia incomensurável, do mundo dos
fenômenos —, o nome de filosofia foi dado a todo o saber que se
ocupou do conhecimento da medida fixa e do universal, no mar das
singularidades empíricas, e do necessário, das leis, na desordem
aparente da multidão infinita do contingente; e com isso, ao mes­
mo tempo, tomou seu conteúdo do próprio intuir e perceber do
exterior e do interior, da natureza presente como do espírito [tam­
bém] presente, e do coração do homem.
O princípio da experiência contém a determinação infinitamen­
te importante de que, para admitir e ter por verdadeiro um
conteúdo, o homem mesmo deve estar ali; mais precisamen­
te, [a determinação] de encontrar tal conteúdo em unidade
46
com a certeza de si mesmo, e associado a ela. O homem deve
estar ali, ele mesmo, seja apenas com seus sentidos exteriores,
ou então com seu espírito mais profundo, sua essencial cons-
ciência-de-si. Este princípio é o mesmo que chamamos fé,
saber imediato, a revelação no exterior e sobretudo no inte­
rior próprio [do homem]. Essas ciências, que foram denomi­
nadas filosofia, nós as chamamos ciências empíricas, pelo pon­
to de partida que adotam.
Mas o essencial a que visam como fim, e produzem, são leis,
proposições universais — uma teoria: os pensamentos sobre o
dado. Assim a física de Newton se denominou filosofia natural,
enquanto por exemplo Hugo Grotius, por meio da confronta­
ção das atitudes históricas dos povos, uns em relação aos
outros, e com o apoio de um raciocínio ordinário, estabeleceu
princípios gerais, numa teoria que pode chamar-se filosofia
do direito público externo.
O nome de filosofia tem ainda entre os ingleses geralmente
essa determinação: Newton continua tendo a fama de seu maior
filósofo. Até nas tabelas de preços dos fabricantes de instru­
mentos, chamam-se os instrumentos, que não estão sob uma
rubrica particular de aparelhos magnéticos, elétricos — os
termômetros, os barômetros etc. —, de instrumentos filosóficos.
Decerto, não deveria chamar-se instrumento da filosofia uma
composição de madeira, de ferro etc., mas só o pensar*.
Assim, em particular, a ciência, que se deve aos tempos mais
recentes, da economia política é também denominada filoso­
fia; o que nós costumamos chamar economia política racional
ou eventualmente economia política da inteligência**.
* Também o jornal publicado por Thomson tem o título de Anais da Filosofia ou
Magazine da Química, Minera/ogia, Mecânica, História Natural, Agricultura e Arte. Pode-se a
partir daqui representar-se por si mesmo como são constituídas as matérias que aqui se
chamam filosóficas. Entre os anúncios de novos livros editados, encontrei recentemente em
um jornal inglês o seguinte: The Art ofpreserving the Hair on philosophicalprincipies. Impres­
são acurada. Preço: 7sh. Por “princípios filosóficos da preservação dos cabelos” represen­
tem-se, ao que parece, princípios químicos, fisiológicos etc.
** Na boca dos estadistas ingleses, a respeito dos princípios gerais da economia política,
encontra-se com freqüência a expressão princípios filosóficos, mesmo em discursos públicos.
Brougham, na sessão parlamentar de 1825 (2 de fevereiro), por ocasião da saudação a ser
respondida pelo Discurso do Trono, assim se exprimiu: “Os princípios do livre intercâmbio,
dignos de um estadista e filosóficos — pois sem dúvida alguma são filosóficos — , por cuja

47
§ 8
Por satisfatório que seja, de início, esse conhecimento no seu cam­
po, [o da experiência], revela-se ainda, primeiramente, um outro círculo
de objetos que nele não estão abrangidos: liberdade, espírito, Deus. Não
podem ser encontrados nesse terreno, não porque não pertençam à
experiência — de fato não são experimentados sensivelmente, mas o
que está na consciência, em geral, é experimentado; isto, aliás, é uma
proposição tautológica —, mas porque esses objetos se apresentam de
imediato, segundo seu conteúdo, como infinitos.
É uma proposição antiga, que se costuma atribuir falsamente a
Aristóteles, como se por ela devesse exprimir-se o ponto de vista
de sua filosofia: “nihil est in intellectu quod non fuerit in sensu”
— nada há no pensamento que antes não tenha estado no sen­
tido, na experiência. Pode ser considerado apenas como mal-
-entendido que a filosofia especulativa não queira concordar
com essa proposição. Mas inversamente ela também afirmará:
“nihil est in sensu quod non fuerit in intellectu” — nesse sen­
tido totalmente geral de que o “noüs”, e em determinação mais
profunda, o espírito, é a causa do mundo; e no sentido mais
preciso (§ 2) de que um sentimento jurídico, ético-religioso é
um sentimento e, portanto, uma experiência de tal conteúdo
que tem sua raiz e sua sede só no pensamento.
§ 9
De outra parte, a razão subjetiva exige sua ulterior satisfação
segundo a forma ; essa forma é a necessidade em geral (ver § 1). Na
maneira, acima aludida, de [fazer] ciência, por um lado o universal
adoção Sua Majestade felicitou hoje o Parlamento”. Contudo, não só esse membro da
oposição, mas por ocasião do banquete anual que tinha (no mesmo mês) a Sociedade dos
Armadores sob a presidência do primeiro-ministro Earl Liverpool, tendo aos lados o secre­
tário de Estado Canning e o Tesoureiro geral pagador do exército, Sir Charles Long, o
secretário de Estado Canning declarou em resposta ao brinde levantado à sua saúde:
“Começou recentemente um período em que os ministros tiveram o poder de aplicar à
administração deste país as máximas justas de uma profunda filosofia”.
Embora a filosofia inglesa possa ser diferente da filosofia alemã, se em outros lugares
o nome de filosofia só é empregado como alcunha e sarcasmo, ou como algo de odioso, é
sempre gratificante vê-lo ainda honrado na boca dos ministros-de-Estado ingleses.

48
que nele está contido — o gênero etc. —, enquanto por si indetermi­
nado, não está, por si, ligado ao particular, mas ambos são um para
o outro exteriores e contingentes; como também as particularidades
unidas são, para si, reciprocamente, exteriores e contingentes. Por
um lado os começos são, em todas as partes, imediatezes, achados,
pressuposições. Nos dois [casos] não se dá satisfação à forma da ne­
cessidade [Notwendigkeit]. O refletir, na medida em que visa a
proporcionar satisfação a essa necessidade [Bedürfnis] é o pensa­
mento propriamente filosófico, o pensamento especulativo. Por isso,
como reflexão, que, em sua natureza comum com aquela primeira
reflexão, ao mesmo tempo é diferente dela, tem, fora das formas co­
muns, também formas peculiares cuja forma universal é o conceito.
A relação da ciência especulativa com as outras ciências só existe
enquanto a ciência especulativa não deixa, como de lado, o con­
teúdo empírico das outras, mas o reconhece e utiliza; e igualmen­
te reconhece o universal dessas ciências — as leis, os gêneros,
etc. — e o utiliza para seu próprio conteúdo; mas também, além
disso, nessas categorias introduz e faz valer outras. A diferença
refere-se, nessa medida, somente a essa mudança das categorias.
A Lógica especulativa contém a Lógica e a Metafísica de outrora;
conserva as mesmas formas-de-pensamento, leis e objetos, mas ao
mesmo tempo aperfeiçoando e transformando com outras categorias.
Deve-se distinguir do conceito, no sentido especulativo, o que
habitualmente é chamado conceito. E no último sentido, uni­
lateral, que se pôs e repetiu milhares e milhares de vezes, e
se erigiu em preconceito, que o infinito não pode ser
compreendido por meio de conceitos.
§ 10
Esse pensar [que é o] da maneira filosófica de conhecer preci­
sa, ele mesmo, tanto de ser apreendido segundo sua necessidade
como também de ser justificado por sua capacidade de conhecer os
objetos absolutos. Mas uma tal intelecção é, ela mesma, um conhe­
cer filosófico, que portanto só incide no interior da filosofia. Uma
explicação prévia deveria, por isso, ser uma explicação não-filosófica, e
não poderia ser mais que um tecido de pressuposições, asseverações
e raciocínios, isto é, de afirmações contigentes, contra as quais se pode­
riam sustentar com o mesmo direito afirmações opostas.
49
Um ponto de vista principal da filosofia critica é que, antes de
empreender conhecer a Deus, a essência das coisas, etc., é mis­
ter investigar primeiro a faculdade do conhecimento, a ver se é
capaz de dar conta do empreendimento. Seria preciso primeiro
aprender a conhecer o instrumento, antes de empceender o
trabalho que será executado por meio dele; se o instrumento
for insuficiente, toda a fadiga será, aliás, inútil.
Esse pensamento pareceu tão plausível que suscitou a maior
admiração e aprovação, e fez o conhecimento voltar-se de seu
interesse pelos objetos e de sua ocupação com eles, ao formal.
Contudo, caso não se queira enganar-se com palavras, fácil é ver
que se pode eventualmente examinar e apreciar outros instru­
mentos de outro modo que empreendendo o trabalho próprio a
que são destinados. Mas o exame do conhecimento não pode
ser feito de outra maneira a não ser conhecendo\ no caso deste
assim-chamado instrumento, examinar significa o mesmo que
conhecê-lo. Ora, querer conhecer antes que se conheça é tão
absurdo quanto o sábio projeto daquele escolástico, de aprender
a nadar antes de arriscar-se na água.
Reinhold #, que reconheceu a confusão que reina em tal [ma­
neira de] começar, propôs como remédio começar proviso­
riamente com um filosofar hipotético e problemático, e nele
prosseguir — não se sabe como —- até que mais longe, porven­
tura, suceda que por esse caminho se alcance o Verdadeiro
originário. Considerado mais de perto, esse caminho vem a
dar no que é habitual; a saber, na análise de uma base empírica
ou de uma suposição provisória usada em uma definição.
Não há que desconhecer que uma consciência correta reside
no [fato de] explicar o processo habitual das pressuposições
e dos preliminares como sendo um procedimento hipotético
e problemático. Contudo, essa intelecção correta não altera a
qualidade de tal procedimento, mas exprime logo o que há
de insuficiente nele.
* K. L. Reinhold, Beitrage zur leichtern Übersichtdes Zustandes der PAilosop/ie beim Anfange
des 19, Jahrlmndeites, I. Hamburgo, 1810. [Contribuições para a vista-de-conjunto mais fácil
sobre o estado da Filosofia no início do século XIX.)

50
§ 11
Pode-se determinar com mais exatidão a necessidade [Bediirfnis]
da filosofia assim: o espírito tem por objetos: enquanto [espírito]
que sente e intui, o sensível; enquanto fantasia, imagens; enquan­
to vontade, fins etc. E porém na oposição, ou pelo menos na diferen­
ça, dessas formas — de seu ser-aí e de seu objeto — que o espírito
dá satisfação à sua interioridade suprema, ao pensar, e ganha o
pensar por seu objeto. Desse modo, o espírito vem a si mesmo, no
mais profundo sentido da palavra, porque seu princípio — sua
ipseidade sem mescla — é o pensar. Mas nesse seu empreendi­
mento acontece que o pensar se enreda em contradições; isto é,
perde-se na rígida não-identidade dos pensamentos: por isso não
atinge a si mesmo, [mas] antes fica preso em seu contrário. A ne­
cessidade [Bediirfnis] superior vai contra esse resultado do pensar
[que é] apenas do entendimento, e está baseada em que o pensar
não se abandona: fica fiel a si mesmo nessa sua perda consciente
de seu ser-junto-a-si [Beisichseins], “para que ele vença”, [e] leve a
termo no pensar mesmo a resolução de suas próprias contradições.
Constitui um lado capital da lógica a intelecção de que a
natureza do pensar mesmo é a dialética, de que o pensar
enquanto entendimento deve necessariamente cair no nega­
tivo de si mesmo — na contradição. O pensar, desesperando
de poder [a partir] de si mesmo efetuar também a resolução da
contradição em que ele mesmo está posto, retorna às soluções
e aos calmantes que foram dados ao espírito em outras de
suas modalidades e formas. O pensar contudo não precisaria,
por ocasião desse retorno, de cair na misologia, de que Platão
já teve diante de si a experiência; e de proceder polemica­
mente contra si mesmo, como ocorre na afirmação do supos­
to saber imediato como [sendo] a forma exclusiva da consciên­
cia da verdade.
§ 12
O nascimento da filosofia, que procede da necessidade mencio­
nada, tem a experiência, a consciência imediata e raciocinante, por
ponto de partida. Excitado por ela, como por um estímulo, o pensar
procede essencialmente de modo a elevar-se acima da consciência
51
natural, sensível e raciocinante ao [puro e] sem mistura elemento
de si mesmo, e outorga-se, assim, inicialmente uma relação negativa
de afastar-se, para com esse começo. Desse modo encontra em si,
na idéia da essência universal desses fenômenos, antes de tudo, sua
satisfação; essa idéia (o absoluto, Deus) pode ser mais ou menos
abstrata. Inversamente, as ciências da experiência trazem consigo
o estímulo para vencer a forma — em que a riqueza do seu conteú­
do é oferecida como algo somente imediato, como um achado, uma
multiplicidade disposta lado a lado, e, portanto, em geral como algo
contingente — e para elevar esse conteúdo à necessidade. Esse es­
tímulo arranca o pensar dessa universalidade, e dessa satisfação
obtida em-si [apenas], e o impele ao desenvolvimento a partir de si.
Desenvolvimento que, de uma parte, é somente um acolher do
conteúdo e de suas determinações que se apresentam; e de outra
parte confere a esse conteúdo, ao mesmo tempo, a figura de pro-
duzir-se livremente — no sentido do pensar originário — somente
conforme a necessidade [Notwendigkeit] da Coisa mesma.
Da relação da imediatez e da mediação na consciência falaremos
adiante, expressamente e com mais desenvolvimento. Por
enquanto, vamos apenas fazer notar a esse respeito que, se
os dois momentos aparecem também como diferentes, nenhum
dos dois pode faltar , e estão em união inseparável. Assim, o
saber [a respeito] de Deus, como de todo o supra-sensível em
geral, implica essencialmente uma elevação acima da sensa­
ção ou intuição [sensível]; implica, por isso, um comporta­
mento negativo para com esse primeiro [termo]: — mas, assim,
[implica] a mediação. Com efeito, mediação é um começar, e
um ser-que-se-foi para um segundo [ser], de modo que esse
segundo só é na medida em que se chegou até ele desde um
Outro em oposição a ele. Assim, porém, o saber [a respeito]
de Deus não é menos autônomo em contraste com esse lado
empírico mencionado, e, mesmo, ele se dá sua autonomia
essencialmente por meio dessa negação e elevação. Se a
mediação for tomada por condicionamento, e ressaltada uni-
lateralmente, pode-se dizer — mas com isso não se disse
muito — que a filosofia deve à experiência (ao a posteriori)
sua origem primeira. De fato, o pensar é essencialmente a
52
negação de algo imediatamente dado — tanto como aos alimen­
tos se deve o comer, pois sem eles não se poderia comer; sem
dúvida, o comer, nessa relação, é representado como ingrato,
pois é o consumir daquilo a que deve agradecer a [existência]
de si mesmo. Nesse sentido, o pensar não é menos ingrato.
Mas a imediatez própria, refletida sobre si e, portanto, dentro
de si mesma mediatizada, do pensar (o a priori) é a universa­
lidade, seu ser-junto-a si em geral: nela, o pensar está satisfei­
to dentro de si, e na mesma medida lhe é conatural a indi­
ferença para com a particularização, e portanto para com seu
desenvolvimento.
Assim [também] a religião, quer seja mais desenvolvida, quer
mais inculta, quer aprimorada em consciência científica ou
mantida na espontaneidade da fé e do coração, possui a mesma
natureza intensiva da consolação e da beatitude [devotas]. Quan­
do o pensar permanece fixo na universalidade das idéias — como
é necessariamente o caso nas primeiras filosofias (por exemplo,
no ser da Escola Eleática, no vir-a-ser de Heráclito etc.) — com
justiça se lhe denuncia o formalismo. Mesmo em uma filoso­
fia desenvolvida, pode suceder que só se apreendem as pro­
posições ou determinações abstratas — por exemplo: “no
absoluto tudo é um só”, “a identidade do subjetivo e do
objetivo” —, e que no nível particular somente se repitam as
mesmas [proposições]. Em relação à primeira universalidade
abstrata do pensar, há um sentido verdadeiro e profundo [em
dizer] que o desenvolvimento da filosofia se deve à experiência.
As ciências empíricas, de um lado, não ficam no perceber das
singularidades do fenômeno; mas, pensando, elas elaboram o
material para a filosofia, enquanto descobrem as determina­
ções universais, os gêneros e as leis: preparam assim aquele
primeiro conteúdo do particular para que possa ser acolhido
pela filosofia. Incluem com isso, de outra parte, para o pensar
a premência de progredir, ele mesmo, até a essas determina­
ções concretas. O acolher desse conteúdo — no qual, graças
ao pensar, são suprassumidos a imediatez ainda aderente e o
ser-dado — é ao mesmo tempo um desenvolvimento do pensar
a partir de si mesmo. Enquanto a filosofia deve, assim, seu
53
desenvolvimento às ciências empíricas, dá-lhes ao conteúdo a
mais essencial figura da liberdade (do a priori) do pensar e a
verificação da necessidade [Notwendigkeit] em lugar da constata­
ção do achado, e do fato-de-experiência; de maneira que o fato
se torna a apresentação e a reprodução da atividade originária e
perfeitamente autônoma [que é a] do pensar.
§ 13
E na figura peculiar de uma história exterior que o nascimento
e o desenvolvimento da filosofia são representados como história
dessa ciência. Essa figura dá, aos graus de desenvolvimento da idéia,
a forma de sucessão contingente e, digamos, de uma simples diver­
sidade dos princípios e de seus desenvolvimentos nas respectivas
filosofias. Mas o artesão desse trabalho de milênios é o espírito vivo
e uno, cuja natureza pensante é trazer à sua consciência o que ele é\
e, quando isso se tornou assim seu objeto, [sua natureza pensante
é] ser, ao mesmo tempo, elevado acima dele, e ser em um grau
superior. A história da filosofia mostra nas filosofias diversamente
emergentes que, de um lado, somente aparece uma filosofia em
diversos graus de desenvolvimento, e de outro lado que os princí­
pios particulares — cada um dos quais está na base de um sistema
— são apenas ramos de um só e do mesmo todo. A filosofia última
no tempo é o resultado de todas as filosofias precedentes, e deve
por isso conter os princípios de todas. Por este motivo, se ela é
filosofia de outra maneira, é a mais desenvolvida, a mais rica e a
mais concreta.
Ante a aparência de filosofias tão numerosas, tão diversas, é
preciso distinguir o universal e o particular segundo sua deter­
minação própria. O universal, tomado formalmente e posto
ao lado do particular, torna-se ele mesmo também algo par­
ticular. Tal posição, no caso de objetos da vida corrente, seria
chocante por inadequada e inábil; como, por exemplo, se
quem pedisse frutas recusasse cerejas, peras, uvas etc., por
serem cerejas, peras e uvas, mas não frutas. Ora, a propósito
da filosofia, há quem se permita justificar o desprezo [que
tem] dela pelo motivo que há tão diversas filosofias, e cada
qual é apenas uma filosofia, não a filosofia — como se as
54
cerejas também não fossem frutas. Sucede também que se
coloque uma filosofia cujo princípio é o universal ao lado de
outra cujo princípio é algo particular, e mesmo ao lado de
doutrinas que garantem não haver absolutamente fdosofía
alguma, no sentido que as duas posições seriam apenas visões
diferentes da filosofia; algo como se luz e escuridão fossem
chamadas apenas duas diversas espécies de luz.
§ 14
O mesmo desenvolvimento do pensar, que é exposto na histó­
ria da filosofia, expõe-se na própria filosofia, mas liberto da exte-
riondade histórica — puramente no elemento do pensar. O pensamen­
to livre e verdadeiro é em si concreto, e assim é idéia, e em sua
universalidade total é a idéia ou o absoluto. A ciência [que trata]
dele é essencialmente sistema, porque o verdadeiro, enquanto con­
creto, só é enquanto desdobrando-se em si mesmo, e recolhendo-se
e mantendo-se junto na unidade — isto é, como totalidade; e só
pela diferenciação e determinação de suas diferenças pode existir
a necessidade delas e a liberdade do todo.
Um filosofar sem sistema não pode ser algo científico; além de
que tal filosofar exprime para si, antes, uma mentalidade
subjetiva: é contingente segundo o seu conteúdo. Um con­
teúdo só tem sua justificação como momento do todo; mas,
fora dele, tem uma hipótese não fundada e uma certeza sub­
jetiva. Muitos escritos filosóficos se limitam a exprimir desse
modo somente maneiras de ver e opiniões. Por sistema enten-
de-se erroneamente uma filosofia que tem um princípio limi­
tado, distinto dos outros; ao contrário, é princípio da verda­
deira filosofia conter em si todos os outros princípios parti­
culares.
§ 15
Cada uma das partes da filosofia é um Todo filosófico, um círculo
que se fecha sobre si mesmo; mas a idéia filosófica está ali em uma
particular determinidade ou elemento. O círculo singular, por ser em
si totalidade, rompe também a barreira de seu elemento e funda uma
esfera ulterior. Por conseguinte, o todo se apresenta como um círculo
55
de círculos, cada um dos quais é um momento necessário, de modo
que o sistema de seus elementos próprios constitui a idéia completa,
que igualmente aparece em cada elemento singular.
§ 16
Enquanto Enciclopédia, a ciência não é exposta no desenvolvimen­
to minucioso de sua particularização, mas tem de limitar-se aos ele­
mentos iniciais e aos conceitos fundamentais das ciências particulares.
É indeterminado quantas são as partes especiais de que se
precisa para constituir uma ciência particular, já que a parte
não deve ser apenas um momento singularizado, mas ela
mesma, para ser algo de verdadeiro, deve ser uma totalidade.
O todo da filosofia constitui, pois, verdadeiramente uma ciên­
cia; mas ela pode ser vista também como um todo de muitas
ciências particulares. A Enciclopédia filosófica distingue-se
de uma outra enciclopédia —- a enciclopédia ordinária —
porque esta deve ser, digamos, um agregado das ciências, que
são acolhidas de modo contingente e empírico, e entre as
quais há algumas que de ciências têm apenas o nome, em­
bora elas mesmas sejam uma simples coleção de conheci­
mentos. A unidade em que, num tal agregado, as ciências se
juntam — já que são acolhidas de maneira exterior — é uma
unidade igualmente exterior: uma ordem. Essa ordem deve
necessariamente, pelo mesmo motivo e também porque os
materiais são de natureza contingente, permanecer um en­
saio, e apresentar sempre lados inadequados.
Com efeito, a enciclopédia filosófica: lfl — além de excluir sim­
ples agregados de conhecimentos, como por exemplo parece ser
a filosofia à primeira vista, 2- — exclui também, em todo o caso,
agregados de conhecimento que têm por seu fundamento o
simples arbítrio, como por exemplo a heráldica. Ciências do
último tipo são inteiramente positivas. 3- — Outras ciências tam­
bém se denominam positivas, que no entanto têm um funda­
mento e começo racional. Esta parte constitutiva pertence à
filosofia, mas o lado positivo permanece próprio das ciências. O
positivo das ciências é de uma espécie diversa.
1) Seu começo, em si racional, passa ao contigente porque tem
de fazer descer o universal à singularidade e efetividade em-
56
píricas. Nesse campo da mutabilidade e da contingência, não
se pode fazer valer o conceito, mas só razões. A ciência jurí­
dica, p. ex., ou o sistema dos impostos diretos e indiretos
exigem'decisões últimas bem precisas, que se situam fora do
ser-determinado-em-si-e-para-si do conceito, e por isso permitem
um espaço para a determinação, que segundo uma razão pode
ser apreendida de um modo, e segundo outra razão de outro
modo; sem ser susceptível de nada [que seja] último com
garantia. Igualmente, a idéia da natureza em sua singularização
perde-se em contingências, e a história natural, a geografia, a
medicina etc. caem nas determinações da existência, nas es­
pécies e diferenças que são determinadas por um acidente
fortuito exterior e pelo jogo [do acaso], e não por meio da
razão. A história também se encaixa aqui, na medida em que
a idéia é sua essência, mas sua manifestação está na contin­
gência e no campo do arbitrário.
2) Tais ciências são também positivas, enquanto não reconhe­
cem suas determinações como finitas nem mostram a passa­
gem dessas determinações e de toda a sua esfera para outra
superior, mas as admitem como pura e simplesmente válidas. A
essa fínitude da forma — como a primeira era a finitude da
matéria — se liga:
3) a (finitude) do fundamento-do-conhecimento, que é, por uma
parte, o raciocínio; por outra parte, sentimento, fé, autorida­
de alheia — de modo geral, a autoridade da intuição o u '
exterior. Também entra neste caso a filosofia, que quer fun-
dar-se sobre a antropologia, os fatos da consciência, a intui­
ção interior ou a experiência exterior.
4) Pode ainda ser que simplesmente a forma da exposição cientí­
fica seja empírica, mas que a intuição cheia-de-sentido ordene o
que são apenas fenômenos, conforme a seqüência interior do
conceito. Pertence a tal empiria que pela oposição e múltipla
variedade dos fenômenos agrupados se suprassumem as circuns­
tâncias exteriores, contingentes das condições, e então, por meio
disso, o universal surge diante da mente.
Uma física experimental, uma história etc., dotadas de sen­
tido, exporão dessa maneira a ciência racional da natureza, e
os acontecimentos e atos do homem, em uma imagem exte­
rior que reflita o conceito.
57
§ 17
Quanto ao começo que a filosofia tem de instaurar, parece igual­
mente que a filosofia em geral começa com uma pressuposição
subjetiva, como as outras ciências. A saber: tem de fazer de um
objeto particular o objeto do pensar. Como nas outras [ciências]
esse objeto é o espaço, o número etc. aqui [na filosofia] é o pensar
[mesmo]. Porém o ato livre do pensar é isto: colocar-se no ponto de
vista em que é para si mesmo, e por isso se engendra e se dá sen objeto
mesmo. No mais, esse ponto de vista, que assim aparece como
imediato, deve, no interior da ciência, fazer-se resultado; e na verda­
de o resultado último da ciência, no qual ela alcança de novo seu
começo e retorna sobre si mesma. Dessa maneira a filosofia se
mostra como círculo que retorna sobre si, que não tem começo —
no sentido das outras ciências —, de modo que o começo é só uma
relação para com o sujeito, enquanto esse quer decidir-se a filoso­
far, mas não para com a ciência enquanto tal. Ou, o que é o mesmo,
o conceito da ciência e por isso o primeiro conceito — e, por ser
o primeiro, contém a separação [a saber], que o pensar é o objeto
para um sujeito filosofante (de certo modo exterior) — [esse con­
ceito] deve ser apreendido pela própria ciência. E mesmo esse seu
único fim, agir e meta: alcançar o conceito de seu conceito, e assim
a seu retorno [sobre si] e à sua satisfação.
§ 18
Como não se pode dar uma representação prévia, geral, de uma
filosofia pois somente o todo da ciência é a exposição da idéia,
assim também sua divisão só pode ser concebida a partir dessa
exposição; a divisão é como a idéia, da qual tem de tirar uma
antecipação. A idéia porém se comprova como o pensar pura e
simplesmente idêntico a si mesmo, e esse como atividade de se
opor a si mesmo para ser para si; e ser nesse Outro, somente junto
a si mesmo. Assim a ciência se divide em três partes:
I — A lógica, a ciência da idéia em si e para si;
II — A Filosofia da Natureza, como a ciência da idéia em seu ser-outro\
III — A Filosofia do Espírito, enquanto idéia que em seu ser-outro
retorna a si mesma.
58
Notou-se acima (§ 15) que as diferenças das ciências filosó­
ficas são apenas determinações da idéia mesma, e é somente
a idéia que se expõe nesses elementos diversos.
Na natureza, não é um Outro que a idéia que é conhecido,
mas a idéia está ali na forma da extrusão\ assim como no
espírito a mesma idéia está como para si essente, e vindo-a-ser
em si epara si. Uma tal determinação em que a idéia aparece,
é ao mesmo tempo, um momento que flui. Por isso a ciência
singular, é tanto conhecer seu conteúdo como objeto essente, como
também conhecer nele imediatamente sua passagem para um
círculo superior. Por conseguinte, a representação da divisão tem
algo de incorreto, (que é) colocar as partes ou ciências particu­
lares umas ao lado das outras, como se fossem apenas imóveis e
substanciais em sua diferenciação, como espécies.

59
PARTE I

A CIÊNCIA DA LÓGICA
CONCEITO PRELIMINAR
§ 19
A lógica é a ciência da idéia pura, ou seja, da idéia no elemento
abstrato de pensar.
Vale para essa determinação, como para as outras contidas
nesse conceito preliminar, o mesmo que vale para os concei­
tos apresentados previamente sobre a filosofia em geral: [a
saber,] que são determinações extraídas da visão geral do
todo e de acordo com ela.
Pode-se bem dizer que a Lógica é a ciência do pensar, de
suas determinações e leis. Mas o pensar como tal constitui so­
mente a detenninidade universal ou o elemento no qual está a
idéia enquanto lógica. A idéia é o pensar, não como pensar
formal mas como a totalidade, em desenvolvimento, de suas
determinações e leis próprias, que a idéia dá a si mesma: [e]
não que já tem e encontra em si mesma.
A Lógica é a ciência mais difícil, na medida em que não trata
com intuições, nem mesmo como a geometria com represen­
tações sensíveis abstratas, mas com puras abstrações, e exige
uma força e perícia para retirar-se ao pensamento puro, para
mantê-lo com firmeza e para mover-se dentro dele. De outro
lado, poderia ser vista a Lógica como a mais fácil pois o con­
teúdo não é senão o próprio pensar, e suas determinações
correntes; e estas são as mais simples, e ao mesmo tempo são
o elementar. São também o que há de mais conhecido-, ser, nada
65
etc.; determinidade, grandeza etc.; ser-em-si, ser-para-si, uno,
múltiplo etc. Contudo, essa notoriedade dificulta, antes, o
estudo da Lógica. Por um lado, considera-se facilmente que
não vale a pena ocupar-se com tal coisa bem-conhecida; por
outro lado, trata-se assim de fazê-la bem-conhecida de uma
maneira completamente diversa, e mesmo oposta, à que já se
conhece. A utilidade da Lógica concerne à relação ao sujeito,
na medida em que ele adquire uma certa formação para outros
fins. A formação desse sujeito, por meio da Lógica, consiste
em que ele se exercita no pensar; porque essa ciência é o
pensar do pensar; e em que o sujeito recebe em sua cabeça
os pensamentos, e [os recebe] também como pensamentos.
Mas, enquanto o lógico é a forma absoluta da verdade e,
ainda mais que isso, é também a pura verdade mesma, é de
todo diverso que simplesmente algo de útil. Mas, como o
mais excelente, o mais livre e o mais autônomo é também o
mais útil, o lógico pode também ser compreendido assim.
Sua utilidade então tem de ser encarada diversamente do
que simplesmente o exercício formal do pensamento.
Adendo /: A primeira questão é esta: qual é o objeto de nossa ciência?
A resposta mais simples, e mais fácil de entender, para essa pergunta, é
que a verdade é esse objeto. Verdade é uma excelsa palavra, e a Coisa
ainda mais excelsa. Se o espírito e a alma do homem são ainda sadios, seu
coração deve logo bater mais forte. Mas logo se apresenta o porém', se é
que podemos conhecer a verdade. Parece que existe uma inadequação
entre nós, homens limitados, e a verdade essente em si; e surge a questão
sobre a ponte entre o finito e o infinito. Deus é a verdade; como devemos
conhecê-lo? As virtudes da humildade e da modéstia parecem estar em
contradição com tal projeto — mas então se questiona também se a ver­
dade pode ser conhecida, para encontrar uma justificação de que se con­
tinue a viver na vulgaridade de seus fins finitos. Tal humildade não é
grande coisa neste ponto. Uma linguagem como esta: “Como eu, pobre
verme da terra, seria capaz de conhecer a verdade?” está ultrapassada. Em
seu lugar veio a presunção e a fantasia e se imaginou estar imediatamente
na verdade — persuade-se à juventude que ela, como é, já possui o
verdadeiro (na religião e na ética). Em especial, também se disse a esse
respeito que em seu conjunto os adultos, lignificados e ossificados, estão
submersos na inverdade. A aurora brilharia para os jovens, enquanto o

66
mundo dos mais velhos estaria no pântano e no lodaçal do dia. As ciências
particulares, nesse caso, são caracterizadas como algo que deve ser adqui­
rido, certamente, mas como simples meio para fins vitais exteriores. Aqui
não é modéstia que impede o conhecimento e o estudo da verdade, mas
a convicção de que já se possui a verdade em si e para si. Sem dúvida,
os mais velhos põem agora sua esperança na juventude, pois ela deve
levar adiante o mundo e a ciência. Mas essa esperança só é posta na
juventude na medida em que não permanece como está, mas empreende
o trabalho amargo do espírito.
Há ainda uma outra figura da modéstia em relação à verdade. E a
esnobação ante a verdade, como vemos em Pilatos frente a frente com
Cristo. Pilatos perguntou: “que é a verdade?” no sentido de quem tinha
ajustado contas com tudo, para quem nada tinha mais significação — no
sentido em que Salomão dizia: “tudo é vaidade”. Aqui resta apenas a
vaidade subjetiva.
Além disso a pusilanimidade opõe-se ao conhecimento da verdade.
Para o espírito preguiçoso fica fácil dizer: “não se suponha que o filosofar
deva ser tomado a sério”. Pode-se mesmo dar atenção à lógica, embora
essa nos deva deixar como somos. Acredita-se que, se o pensar exceder
o círculo habitual das representações, vai dar em maus endereços. Com
efeito, quem se confia a um mar, onde se é açoitado de um lado para o
outro pelas ondas do pensamento, no fim vai dar de novo no banco de
areia dessa temporalidade que se deixou por nada; e por duas vezes nada.
O que decorre de tal opinião [bem] se vê no mundo. Podem-se adquirir
variadas perícias e conhecimentos, tornar-se um funcionário rotineiro, e
aliás cultivar-se para seus fins particulares. Mas é uma outra coisa cultivar
também seu espírito para o que há de mais excelso, e esforçar-se por
atingi-lo. Pode-se esperar que em nosso tempo um desejo por algo melhor
tenha surgido na juventude, e que ela não queira contentar-se simples­
mente com a palha do conhecimento exterior.
Adendo 2\ Que o pensar seja o objeto da lógica, sobre este ponto se
concorda universalmente. Mas do pensar pode-se ter uma opinião muito
mesquinha e também uma opinião muito alta. Assim, diz-se de um lado:
“isto é somente um pensamento”, e se supõe com isso que o pensamento
é apenas subjetivo, arbitrário e contingente, mas não é a Coisa mesma, o
verdadeiro e efetivo. De outro lado, pode-se ter uma alta opinião do
pensamento, e apreendê-lo de modo que só ele possa alcançar o altíssimo,
a natureza de Deus; e que com os sentidos nada se pode conhecer de
Deus. Diz-se que Deus é espírito e quer ser adorado no espírito e na
verdade. Concordamos aliás que o que é sentido e sensível não é o espi­

67
ritual; mas que seu mais íntimo é pensamento, e que só o espírito pode
conhecer o espírito. O espírito pode, sem dúvida, comportar-se como
[alma] que sente (por exemplo, na religião); uma coisa porém é o senti­
mento enquanto tal, a modalidade do sentimento, e uma outra coisa o seu
conteúdo. O sentimento como tal é em geral a forma do sensível, que
temos em comum com os animais. Essa forma, depois, pode muito bem
apoderar-se do conteúdo concreto, mas esse conteúdo não pertence a essa
forma; a forma do sentimento é a forma inferior do conteúdo espiritual.
Esse conteúdo — o próprio Deus — é somente em sua verdade no pensar
e como pensar. Nesse sentido, o pensamento não é apenas pensamento,
mas antes é a maneira mais alta e, considerado com rigor, a única maneira
em que pode ser apreendido o eterno e o essente em si e para si.
Como sobre o pensamento, também sobre a ciência do pensamento
pode-se ter uma opinião alta e uma opinião baixa. Julga-se que pensar,
cada um o pode sem lógica, como pode digerir sem estudo da fisiologia.
Se também se estudou lógica, então se pensa depois como antes, talvez
mais metodicamente, mas com pouca mudança. Se a lógica não tivesse
outra função que a de familiarizar com a atividade do pensar puramente
formal, então não produziria mesmo nada que já não se tivesse feito
também igualmente bem, de outro modo. Também a lógica anterior [à
nossa] de fato só teve essa posição. Aliás, o conhecimento do pensar como
atividade puramente subjetiva também faz honra ao homem e lhe inte­
ressa; pelo fato de saber o que é e o que faz, o homem se diferencia do
animal.
Mas, de outro lado, a Lógica enquanto ciência do pensar tem um ponto
de vista elevado na medida em que só o pensamento pode experimentar o
que há de mais alto, o verdadeiro. Se pois a ciência da lógica considera o
pensar em sua atividade e em sua produção (e o pensar não é atividade sem
conteúdo, porque produz pensamento e produz o pensamento), o conteúdo
em geral é o mundo supra-sensível, e ocupar-se com o pensamento é demo­
rar-se naquele mundo. A matemática trata das abstrações do número e do
espaço, mas que são ainda algo de sensível, embora sejam o sensível
abstrato e carente-de-ser-aí. O pensamento diz adeus também a esse últi­
mo sônsível, e está livre junto a si mesmo; renuncia à sensibilidade exter­
na e interna, afasta todos os interesses e inclinações particulares. Na medida
em que a Lógica tem essa base, devemos fazer dela uma idéia mais digna
do que se costuma habitualmente.
Adendo 3: A necessidade [Bedürfnis] de compreender a Lógica, em
um sentido mais profundo que o de ciência do pensar puramente formal,
é ocasionada pelo interesse da religião, do direito, do Estado, e da vida

68
ética. Outrora, nada se viu de mal em pensar; pensava-se e pronto. Pensa­
va-se sobre Deus, a natureza e o Estado, e tinha-se a convicção de que
só por meio do pensamento se chega a conhecer o que é a verdade, e não
pelos sentidos ou por algum representar e opinar contingente. Mas, en­
quanto se continuava a pensar assim, aconteceu que na vida as relações
superiores foram comprometidas por isso. Por meio do pensar, ao positivo
foi-lhe retirado o poder. Constituições políticas caíram em holocausto ao
pensamento; a religião foi atacada pelo pensamento, as sólidas represen­
tações religiosas, que valiam pura e simplesmente como revelações, foram
sepultadas; e a antiga fé foi destruída em muitas almas. Assim, por exem­
plo, os filósofos gregos se opuseram às velhas religiões e aniquilaram suas
representações. Por isso, filósofos foram banidos e mortos por motivo de
subversão da religião e do Estado, que ambos estavam essencialmente
conexos. Desse modo, o pensar se fez valer na efetividade e exerceu a
mais colossal eficácia. Por isso se despertou a atenção para o poder do
pensar, começando-se a examinar mais de perto suas reclamações, e se
pretendeu ter achado que ele tinha pretensões em excesso, e não podia
efetuar o que empreendia. Em vez de conhecer a essência de Deus, da
natureza e do espírito — e, de modo geral, em vez de conhecer a verdade
— o pensamento destruiu a religião e o Estado. Exigiu-se por esse motivo
uma justificação do pensar a respeito de seus resultados, e o exame sobre
a natureza do pensar e sua legitimação é o que, nos tempos modernos,
constituiu em grande parte o interesse da filosofia.
§ 20
Tomemos o pensar em sua representação que fica mais próxima;
então ele aparece: 1) primeiro em sua significação habitual subjetiva,
como uma das atividades ou faculdades espirituais, ao lado de outras
— da sensibilidade, da intuição, da fantasia etc.; do desejar, do querer
etc. Seu produto, a determinidade ou a forma do pensamento, é o
universal, o abstrato em geral. O pensar, enquanto atividade, por con­
seguinte é o universal ativo, e de fato o universal que se atua; enquan­
to o ato — o produzido — é justamente o universal. O pensar, repre­
sentado como sujeito, é o [sujeito] pensante, e a expressão simples do
sujeito existente como [ser] pensante é Eu.
As determinações expostas aqui e nos parágrafos seguintes
não se devem tomar como afirmação, ou como minhas opi­
niões sobre o pensar. Todavia, porque nessa maneira (de fa­
lar) preliminar nenhuma dedução ou prova pode ter lugar,
69
devem elas valer como fatos, de modo que na consciência de
qualquer [pessoa] — se tiver pensamentos e os considerar —
encontra-se empiricamente que estão aí presentes o caráter
da universalidade e assim também as determinações poste­
riores. Para observação dos fatos de sua consciência e de suas
representações, requer-se certamente que esteja presente e
disponível uma cultura da atenção e da abstração.
Já nessa exposição preliminar ocorre falar da diferença entre
sensível, representação e pensamento; diferença decisiva para o
compreender da natureza e dos modos do conhecimento. Tam­
bém servirá ao esclarecimento fazer notar já aqui essa diferença.
Para o sensível, é antes de tudo sua origem externa — os sentidos
ou os órgãos dos sentidos — que é tomada por explicação. Só
que a denominação do instrumento não dá nenhuma determi­
nação para o que é captado por ele. A diferença entre o sensível
e o pensamento deve-se colocar em que a determinação do
sensível é a singularidade, e, enquanto o singular (de modo in­
teiramente abstrato: o átomo) está também na conexão, o sen­
sível é um [ser] fora-de-um-outro, cujas formas abstratas mais
precisas são: o [ser]-#0-/W<9-de-um-outro e o [ser}-ao-lado e de-
/ww-de-um-outro. O representar tem tal matéria sensível por con­
teúdo; mas posta na determinação do meu, [a saber], de que tal
conteúdo está em mim; e [na determinação] da tmiversalidade,
da relação-a-si, da simplicidade.
Além do sensível, a representação tem no entanto por con­
teúdo também [uma] matéria originária do pensar conscien-
te-de-si, como as representações do jurídico, do ético, do
religioso e também do pensar mesmo; e não é nada fácil
situar onde está a diferença entre tais representações e os pen­
samentos sobre tal conteúdo. Aqui o conteúdo é pensamento,
tanto mais que também está presente a forma da universali­
dade, já que convém [que esteja] por ser um conteúdo em
mim, e de modo geral por ser ele representação. Mas, em
geral, a peculiaridade da representação deve ser posta, tam­
bém sob esse aspecto, em que tal conteúdo permanece igual­
mente isolado em sua singularidade. Direito, determinações
juncúcàs b m ü s m m sfc m m , s m dvwvk, na scasWcl
70
“fora-um-do-outro” do espaço. Segundo o tempo, decerto eles
se manifestam como se estivessem “um-depois-do-outro”;
porém seu conteúdo mesmo não se representa afetado pelo
tempo, fluindo nele e mutável. Mas tais determinações em
si espirituais estão igualmente isoladas no amplo terreno da
universalidade interior, abstrata, do representar em geral.
Nesse isolamento elas são simples: direito, dever, Deus. Ora,
a representação, ou fica nisto: [em dizer] que direito é direi­
to, Deus é Deus; ou então, mais cultivada, indica determina­
ções — por exemplo, que Deus é criador do mundo, onisci­
ente, onipotente etc. Aqui estão em lista muitas determina­
ções simples isoladas, que apesar de sua ligação, que lhes foi
assignada em seu sujeito, permanecem fora uma da outra. A
representação aqui coincide com o entendimento, que só se
diferencia dela por relações de universal e particular, de cau­
sa e efeito etc., e por isso relações de necessidade entre as
determinações isoladas, da representação; enquanto essa as
deixa em seu espaço indeterminado, uma ao lado da outra,
ligadas pelo simples também. A diferença entre representação
e pensamento tem especial importância porque em geral se
pode dizer que a filosofia não faz outra coisa que transformar
representações em pensamentos; mas depois disso, é verda­
de, transforma os simples pensamentos em conceitos.
Aliás, se foram indicadas para o sensível as determinações da
singularidade e do [ser] fora-um-do-outro, pode-se ainda acres­
centar que essas determinações mesmas são, por sua vez,
pensamentos e universais. Na Lógica se mostrará que o pen­
samento e o universal é justamente isto: é ele mesmo e seu
Outro, apodera-se desse Outro e nada lhe escapa.
Enquanto a linguagem é a obra do pensamento, também nela
nada se pode dizer que não seja universal. O que eu apenas
viso é meu [meine/mein], pertence-me enquanto a este indi­
víduo particular; mas, se a linguagem só expressa o universal,
eu não posso dizer o que apenas viso. E o indizível — senti­
mento, sensação — não é 0 mais excelente, o mais verdadei­
ro; e sim o mais insignificante, o mais inverídico. Se eu digo:
o “singular”, “este singular”, “aqui”, “agora”, tudo isso são
71
universalidades; tudo e cada um é algo singular, um este: e
também, se for sensível, é um aqui, um agora. Igualmente,
se digo: “Eu”, eu viso a mim como este que exclui todos os
outros; mas o que eu digo “Eu”, cada um justamente o é: um
Eu que exclui de si todos os outros.
Kant serviu-se da expressão inadequada — de que Eu acom­
panho todas as minhas representações, e também sensações,
desejos, ações etc. O Eu é o universal em si e para si, e a
comunidade é também uma forma de universalidade, mas
uma forma exterior. Todos os outros homens têm de comum
comigo serem um Eu, assim como é comum a todas as mi­
nhas sensações, representações etc. serem as minhas. Mas Eu,
abstratamente enquanto tal, é a pura relação consigo mesmo,
na qual se abstrai do representar, do sentir, de todo o estado
como de toda a particularidade da natureza, do talento, da
experiência etc. Eu é, nessa medida, a existência da univer­
salidade totalmente abstrata, o abstratamente livre. Portanto
o Eu é o pensar como sujeito, e, enquanto Eu estou ao mesmo
tempo em todas as minhas sensações, representações, esta­
dos etc. o pensamento está em toda a parte presente e atra­
vessa como categoria todas essas determinações.
Adendo-. Quando falamos do pensar, esse aparece inicialmente como
uma atividade subjetiva, como uma faculdade, entre as diversas que te­
mos, como por exemplo a memória, a representação, a faculdade de que­
rer, e outras semelhantes. Fosse o pensamento simplesmente uma ativi­
dade subjetiva e, como tal, objeto da lógica, então esta teria, como outras
ciências, seu objeto determinado. Poderia aparecer então como arbítrio,
fazer-se do pensar o objeto de uma ciência particular; e não [se fazer o
mesmo] também da vontade, da imaginação etc. Que ao pensamento
coubesse essa honra, isso poderia bem ter seu motivo em que se lhe
confere uma certa autoridade, e que é considerado como o verdadeiro do
homem, como aquilo em que consiste sua diferença com o animal. Apren­
der a conhecer o pensar, também simplesmente como uma atividade
subjetiva, não é sem interesse. Suas determinações mais precisas seriam
então as regras e as leis cujo saber se adquire por meio da experiência. O
pensar, considerado nessa relação, segundo suas leis, é aliás o que cons­
tituía ordinariamente o conteúdo da Lógica. Aristóteles é o fundador dessa
Ciência. Teve a força de assignar ao pensar o que lhe compete enquanto

72
tal. Nosso pensar é muito concreto, mas no multiforme conteúdo deve-se
distinguir o que pertence ao pensar ou à forma abstrata da atividade. Um
laço espiritual discreto, a atividade do pensar, junta todo esse conteúdo;
e Aristóteles salientou e determinou esse laço, essa forma como tal.
Até hoje, essa Lógica de Aristóteles é o lógico que foi somente des­
dobrado de modo mais amplo, principalmente pelos escolásticos da Idade
Média, embora não tenham aumentado, mas só desenvolvido mais o con­
teúdo. O agir dos tempos modernos em relação à Lógica só consiste princi­
palmente, por um lado, um rejeitar muitas determinações lógicas elabo­
radas por Aristóteles e os escolásticos, e, por outro lado, em enxertar
numeroso material psicológico. Nessa ciência, o interesse é aprender a
conhecer em seu proceder o pensamento finito, e a ciência é correta
quando corresponde a seu objeto pressuposto. A ocupação com essa lógica
formal tem, sem dúvida alguma, sua utilidade; por ela, como se diz, “a
cabeça se arruma”; aprende-se a concentrar-se, aprende-se a abstrair, en­
quanto na consciência ordinária se lida com representações sensíveis que
se entrecruzam e se embaraçam. Contudo, na abstração se dá a concentra­
ção do espírito em um [só] ponto, e por aí se ganha o hábito de ocupar-se
com a interioridade. Pode-se utilizar a familiaridade com as formas do
pensar finito como meio de formação para as ciências empíricas, que
procedem segundo essas formas; e nesse sentido se caracterizou a lógica
como lógica instrumental. Ora, pode-se sem dúvida agir mais “liberal­
mente”, e dizer que a lógica não deve ser estudada pela utilidade, mas
por ela mesma, pois o excelente não se deve procurar pela simples utili­
dade. Na verdade, isso de um lado é totalmente exato; mas de um outro
lado o excelente é também o mais útil, pois é o substancial que se man­
tém firme por si mesmo, e por esse motivo é o suporte para os fins
particulares, que ele promove e leva a termo. Não há que considerar os
fins particulares como o [que é] primeiro, mas o excelente os promove.
Assim, por exemplo, a religião tem em si mesma valor absoluto; ao mes­
mo tempo os outros fins são por ela apoiados e cumpridos. Cristo diz:
“Buscai antes o Reino de Deus, e o resto vos será dado por acréscimo”.
Os fins particulares só podem ser alcançados na medida em que o essente
em si-e-para-si é alcançado.
§ 21
Enquanto o pensar é tomado como ativo em relação a objetos
— a reflexão sobre algo — o universal, enquanto é um produto dessa
atividade, contém o valor da Coisa: o essencial o interior; o verdadeiro.
73
Foi lembrada (no § 5) a antiga crença de que o verdadeiro nos
objetos, nas estruturas, nos princípios constitutivos, nos aconteci­
mentos — o interior, o essencial, a Coisa que importa — não se
encontra imediatamente na consciência, não é já o que se oferece à
primeira vista e à primeira idéia; mas deve-se refletir antes para
aceder à verdadeira estrutura constitutiva do objeto, e isso se con­
segue por meio da reflexão.
Adendo-. Já à criança se propõe a reflexão. Por exemplo, propõe-se à
criança que ligue adjetivos com substantivos. Aqui ela tem de prestar
atenção e distinguir: ela tem de lembrar-se de uma regra, e aplicar con­
forme um caso particular. A regra não é outra coisa que um universal, e
a criança deve ajustar o particular a esse universal. Além disso temos na
vida fins. Assim, refletimos por onde podemos atingi-los. Aqui, o fim é o
universal, o [elemento] diretor; e temos meios e instrumentos cuja ativi­
dade determinamos segundo o fim.
De modo semelhante, a reflexão se exerce nas relações morais. Refletir
significa aqui lembrar-se do direito, do dever, [que são] o universal segun­
do o qual — como regra que se mantém firme — nós temos de ajustar
nossa conduta particular nos casos que se apresentam. Em nosso poder
particular, a determinação universal deve ser reconhecível e [estar] con­
tida. Também encontramos o mesmo em nosso proceder em relação aos
fenômenos naturais. Por exemplo, notamos o relâmpago e o trovão. Esse
fenômeno nos é bem-conhecido, e o percebemos com freqüência. Mas o
homem não se contenta com o simples conhecimento habitual, com o
fenômeno sensível apenas, mas quer ver [o que está] por trás para saber
o que é ele: quer conhecê-lo. Por isso se reflete, quer-se saber a causa,
como algo diferente do fenômeno enquanto tal; [quer-se saber] o interior
em sua diferença do puramente exterior. Desse modo, duplica-se o fenô­
meno; parte-se o fenômeno em dois — em interior e exterior, força e
exteriorização, causa e efeito. O interior, a força, é aqui de novo o universal,
o pensamento: não esse e aquele relâmpago, essa e aquela planta, mas o
que permanece o mesmo em todos eles. O sensível é um singular e
evanescente o que nele permanece, aprendemos a conhecer por meio da
reflexão. Mostra-nos a natureza uma infinita multidão de figuras e fenô­
menos singulares. Precisamos de levar a unidade a essa multiplicidade
vária: por isso nós comparamos e buscamos conhecer o universal de cada
coisa. Os indivíduos nascem e perecem; o gênero é neles o permanente,
o recorrente em tudo, e só à reflexão se faz presente. Disso fazem parte
também as leis, como por exemplo as leis do movimento dos corpos

74
celestes. Vemos os astros hoje aqiji e amanhã ali; essa desordem é para o
espírito algo inconveniente, em que não confia, pois tem fé em uma ordem,
em uma determinação simples, constante e universal. Nessa fé, voltou sua
reflexão para os fenômenos e conheceu suas leis, fixou de uma maneira
universal o movimento dos corpos celestes, de forma que a partir dessa lei
toda a mudança de lugar se deixa determinar e conhecer. O mesmo ocorre
com as potências que regem o agir humano em sua variedade infinita. Tam­
bém aqui o homem tem a fé em um universal que impera.
De todos esses exemplos é mister concluir como a reflexão está sem­
pre à busca do firme, do permanente, do determinado-dentro-de-si, e do
que rege o particular. Esse universal não se pode captar com os sentidos,
e vale como o essencial e o verdadeiro. Assim, por exemplo, os deveres
e direitos são o essencial das ações, cuja verdade consiste em serem con­
formes àquelas determinações universais.
Ao determinar desse modo o universal, encontramos que ele forma o
contrário de um Outro, e que esse Outro é o simplesmente imediato,
exterior, e singular em face do mediatizado, interior e universal. Esse
universal não existe externamente enquanto universal: o gênero como tal
não se deixa perceber: as leis do movimento dos corpos celestes não estão
escritas no céu. O universal, pois, não se ouve nem se vê; mas é somente
para o espírito. A religião nos conduz a um universal que nele abarca todo
o resto; a um absoluto, pelo qual tudo o mais é produzido; e esse absoluto
não é para os sentidos, mas só para o espírito e o pensamento.
§ 22
M ediante a reflexão, algo se alterou na m aneira como o conteú­
do é inicialm ente sensação, intuição, representação. Por conseguin­
te, é som ente por intermédio de uma alteração que a verdadeira
natureza do objeto chega à consciência.
Adendo: O que surge na reflexão é um produto de nosso pensar. Assim
Sólon tirou de sua cabeça as leis que deu aos atenienses. Outra coisa,
porém, é que vemos o universal, as leis, também como o contrário de algo
simplesmente subjetivo, e que aí reconhecemos o essencial, o verdadeiro
e o objetivo das coisas. Para experimentar o que seja o verdadeiro nas
coisas, não basta a simples atenção, mas é preciso para isso nossa atividade
subjetiva que transforma o [que está] presente de modo imediato. Isso
parece à primeira vista totalmente deslocado, e estar contrariando o fim
de que se trata no conhecimento. No entanto, pode-se dizer que foi esta
a convicção de todos os tempos, de que só por meio da reelaboração do

75
imediato efetuada pela reflexão o substancial é alcançado. Ao contrário,
foi especialmente nos tempos modernos que foi suscitada a dúvida — e
sustentada a diferença — entre o que seriam os produtos de nosso pensar
e o que seriam as coisas nelas mesmas. Foi dito que o Em-si das coisas
era totalmente diverso do que fazíamos [idéia] delas. O ponto de vista,
que afirma esse ser-separado, foi sobretudo por meio da filosofia crítica
que se fez valer, contra a convicção de todo o mundo anterior, para o qual
valia a concordância da coisa e do pensamento como algo fora de discus­
são [ausgemacht]. Em torno dessa oposição gira o interesse da filosofia
moderna. Mas a crença natural do homem é que essa oposição não é uma
oposição verdadeira. Na vida ordinária, sem particular reflexão, pondera­
mos que o verdadeiro se mostra por esse meio; pensamos sem mais, acre­
ditando firmemente na concordância do pensamento com a Coisa, e essa
fé é da maior importância. A doença do nosso tempo — a qual chegou ao
desespero — é [pensar] que nosso conhecimento é apenas um conheci­
mento subjetivo, e que esse subjetivo é a última palavra [das Letze]. Ora,
a verdade é o objetivo, e a verdade deve ser a regra para a convicção de
todos, de forma que a convicção do Singular é má na medida em que não
corresponde a essa regra. Segundo o novo ponto de vista, a convicção
como tal, a simples forma do “ser-convencido”, já é boa — seja qual for
o conteúdo, pois não há critério algum para sua verdade.
Ao dizermos, antes, ser a velha crença dos homens que é a destinação
do espírito saber a verdade, aí está implicado além disso que os objetos
— a natureza exterior e a interior —, o objeto em geral, o que ele é em
si, é tal como enquanto algo pensando; que assim o pensar é a verdade
do objetivo. A tarefa da filosofia consiste somente em trazer expressa­
mente à consciência o que, a respeito do pensamento, foi desde sempre
válido para os homens. A filosofia, pois, nada estabelece de novo; o que
nós apresentamos aqui por meio de nossa reflexão é já prejulgamento
imediato de cada um.
§ 23
Enquanto na reflexão tanto vem à luz a verdadeira natureza
como esse pensar é minha atividade, assim também essa natureza
é igualmente o produto do meu espírito, e sem dúvida como sujeito
pensante; produto de mim segundo minha universalidade simples,
enquanto Eu absolutamente essente junto a si — ou seja, de minha
liberdade.
Pode-se ouvir com freqüência a expressão “pensar por sT
[Selbstdenke] como se com isso se dissesse algo de impor-
76
tante. De fato, pelo outro ninguém pode pensar, como tam­
pouco pode comer e beber; portanto aquela expressão é um
pleonasmo. No pensar reside imediatamente a liberdade, por
ser a atividade do universal, [e] nisso um “relacionar-se-con-
sigo” abstrato, um “ser-junto-a-si” sem determinação segundo
a subjetividade; o qual, segundo o conteúdo, está ao mesmo
tempo somente na coisa e nas suas determinações. Por con­
seguinte, caso se trate de humildade ou modéstia, e de orgu­
lho em relação ao filosofar; se a humildade ou modéstia con­
siste em nada de particular atribuir, em [matéria de] proprie­
dade e atividade, à sua subjetividade, então o filosofar será
absolvido ao menos de orgulho, já que o pensar, segundo o
conteúdo, só é verdadeiro na medida em que está absorto na
Coisa, e segundo a forma não é um ser ou agir particular do
sujeito, mas precisamente consiste em que a consciência se
comporte como Eu abstrato, como liberta de toda a particulari­
dade, de propriedades e estados outros etc.; e só efetue o uni­
versal no qual ela é idêntica com todos os indivíduos. Se Aris­
tóteles exorta a manter-se digno de um tal comportamento [Me­
tafísica, I, 2], a dignidade, que a consciência se confere, consiste
justamente em fazer dissipar-se a opinião e suposição particular,
e em deixar que a Coisa domine em si mesma.
§ 24
Segundo essas determinações, os pensamentos podem ser cha­
mados objetivos. Entre eles há que contar-se também as formas que
primeiro são estudadas na Lógica ordinária e costumam ser toma­
das unicamente por formas do pensar consciente. A lógica coincide
pois com a metafísica, a ciência das coisas apreendidas no pensamen­
to, que passavam por exprimir as essencialidades das coisas.
A relação de formas tais como o conceito, o juízo, o silogismo,
com outras formas como causalidade etc. só se pode demonstrar
no interior da Lógica mesma. Mas previamente é preciso aten­
tar bem que, enquanto o pensamento procura fazer das coisas
um conceito, esse conceito (e por isso também suas formas mais
imediatas, o juízo e o silogismo) não pode consistir em determi­
nações e relações que sejam estranhas e exteriores às coisas. A
77
reflexão — foi dito acima — leva ao universal das coisas; esse
porém é, ele mesmo, um dos momentos-do-conceito. Que haja
entendimento e razão no mundo, isso diz o mesmo que contém
a expressão “pensamento objetivo”. Mas essa expressão é incô­
moda, justamente porque “pensamento” é usado com demasiada
freqüência só como [significando] o que pertence ao espírito, à
consciência; e também o “objetivo” é usado, antes de tudo, [a
propósito] do não-espiritual.
Adendo 1: Quando se diz que o pensar, enquanto pensamento obje­
tivo, é o interior do mundo, pode parecer assim que se deva com isso
atribuir consciência às coisas naturais. Sentimos uma repugnância contra
apreender a atividade interior das coisas como pensar, pois dizemos que
o homem se distingue do [ser] natural pelo pensar. Deveríamos por conse­
guinte falar da natureza como do sistema do pensamento inconsciente,
como de uma inteligência que seria — como Schelling diz — uma inteli­
gência petrificada. Em vez de utilizar a expressão pensamento, é pois melhor,
para evitar mal-entendido, dizer “determinação de pensamento".
O lógico, em conseqüência do [exposto] até agora, deve ser pesquisado
como um sistema de determinações-de-pensamento em geral, em que
desaparece a oposição entre subjetivo e objetivo (em seu sentido habitual).
Essa significação do pensar e de suas determinações está expressa com
mais precisão quando os antigos dizem que o noüs rege o mundo; ou
quando nós dizemos que há razão no mundo, e com isso entendemos que
a razão é a alma do mundo, nele habita, é seu [ser] imanente, sua mais
própria e mais íntima natureza, seu universo. Um exemplo mais próximo
é que, ao falarmos de determinado animal, dizemos que é um animal. O
animal como tal não se pode mostrar, mas sempre apenas um animal de­
terminado. O animal não existe, mas é a natureza universal dos animais
singulares, e cada animal existente é algo determinado muito concreta-
mente, algo particularizado. Contudo, ser animal — o gênero enquanto o
universal — pertence ao animal determinado e constitui sua essencialidade
determinada. Se tirássemos ao cão seu “ser-animal” não se poderia dizer
o que ele é. As coisas em geral têm uma natureza permanente interior, e
um ser-aí exterior. Vivem e morrem, nascem e perecem: sua essencialida­
de, sua universalidade, é o gênero; e esse não deve ser apreendido sim­
plesmente como algo [que lhes é] comum.
O pensar constitui assim a substância das coisas exteriores, é tam­
bém a universal substância do espiritual. Em todo o constituir humano
há pensar; o pensar é o universal em todas as representações, lembran­

78
ças, e em geral em toda a atividade espiritual, em todo o querer, desejar
etc. Tudo isso são somente especificações ulteriores do pensar. Enquan­
to assim apreendemos o pensar, ele aparece sob outra relação do que
quando simplesmente dizemos que temos uma faculdade-de-pensar, no
meio e ao lado de outras faculdades, como sejam intuir, representar,
querer, e semelhantes. Se considerarmos o pensar como o verdadeira­
mente universal de todo [ser] natural e também de todo espiritual, então
o pensar estende-se sobre todos eles, e é fundamento de todos. Podemos
ligar, antes de tudo, a essa compreensão do pensar, em sua significação
objetiva (como noüs), o que o pensar é no sentido subjetivo. Dizemos,
em primeiro lugar, que o homem é pensante; mas ao mesmo tempo
dizemos que ele é intuicionante, querente etc. O homem é pensante e
é [um] universal; porém só é pensante enquanto o universal é para ele.
O animal também é em si [um] universal, mas o universal não é, enquan­
to tal, para ele, mas [para ele] é o singular, somente e sempre. O animal
vê algo singular; por exemplo, seu alimento, um homem etc. No entanto,
tudo isso para ele é apenas algo singular. Igualmente a impressão sensí­
vel sempre só lida com o singular (esta dor, este sabor gostoso etc.). A
natureza não traz por si o “noüs" à consciência; só o homem se duplica
de modo a ser o universal para o universal. Isso é o caso, antes de tudo,
quando o homem se sabe como Eu. Quando digo Eu, então eu me viso
como esta pessoa singular inteiramente determinada. Entretanto, de fato,
assim nada de particular enuncio sobre mim. Eu, cada um dos outros
também o é, e, quando me designo como Eu, na verdade eu viso a mim
— este singular — e contudo exprimo, ao mesmo tempo, algo perfeita­
mente universal. [O] Eu é o puro ser-para-si, em que toda a particulari­
dade está negada e suprassumida; esse [ser] último, simples e puro para
a consciência. Podemos dizer que “o Eu e o pensar são o mesmos; ou,
mais precisamente, que “o Eu é o pensar enquanto [ser] pensante”. O
que tenho em minha consciência, isso é para mim. [O] Eu é esse vazio,
o receptáculo para tudo e para cada um, para o qual tudo é, e que em
si conserva tudo. Cada homem é um mundo inteiro de representações,
que estão sepultadas na noite do Eu. Assim, pois, [o] Eu é o universal,
no qual abstrai de todo o particular, mas no qual, ao mesmo tempo, tudo
está envolvido. Por conseguinte, não é a universalidade simplesmente
abstrata, mas a universalidade que em si tudo contém. Tomamos primei­
ro o Eu de uma maneira totalmente trivial; e é só pela reflexão filosófica
que ele é feito objeto de estudo. No Eu, temos presente o pensamento
completamente puro. O animal não pode falar “Eu”, mas só o homem,
porque ele é o pensar. Ora, no Eu há um múltiplo conteúdo, interior e
exterior; e conforme está constituído esse conteúdo, nos comportamos:

79
intuindo sensivelmente, representando, recordando etc. Mas em tudo
está o Eu, ou em tudo está o pensar. Pensando, o homem sempre está,
mesmo quando apenas intui; se considera uma coisa qualquer, considera-a
sempre como algo universal; se fixa um singular, ele o faz realçar; se
assim afasta sua atenção doutra coisa, toma-a como algo abstrato e uni­
versal, ainda que só formalmente universal.
Ocorrem em nossas representações os dois casos seguintes; o conteúdo
é pensado, mas a forma não o é; ou, inversamente, a forma pertence ao
pensamento, mas não o conteúdo. Por exemplo, se digo: ira, rosa, espe­
rança, tudo isso me é bem conhecido na sensação, porém eu exprimo esse
conteúdo de modo universal, na forma do pensamento. Nele deixei de
lado muitas particularidades, e somente dei o conteúdo como universal;
mas o conteúdo permanece sensível. Se, inversamente, eu represento
Deus, o conteúdo, decerto, é algo puramente pensado, mas a forma é
ainda sensível, como a encontro imediatamente em mim. Nas represen­
tações, portanto, o conteúdo não é puramente sensível como nas intuições
[dos sentidos], senão que o conteúdo ou é sensível, embora a forma per­
tença ao pensar, ou vice-versa. No primeiro caso, a matéria é dada, e a
forma pertence ao pensar. No outro caso, o pensar é a fonte do conteúdo;
mas pela forma o conteúdo torna-se um dado que por isso chega exteri­
ormente ao espírito.
Adendo 2\ Na lógica tratamos do pensamento puro ou puras determi-
nações-de-pensamento. No pensamento — no sentido habitual — nós
nos representamos sempre algo que não é simplesmente pensamento
puro, porque se visa por meio dele a um pensado cujo conteúdo é algo
empírico. Na lógica, os pensamentos são apreendidos de modo que não
tenham nenhum outro conteúdo a não ser o conteúdo pertencente ao
pensar mesmo, e produzido por ele. Os pensamentos são assim pensa­
mentos puros. Desse modo o espírito está puramente junto de si, e por
isso, livre; pois a liberdade é justamente isto: estar junto de si mesmo no
seu Outro; depender de si, ser o determinante de si mesmo. Em todos os
impulsos, eu parto de um Outro, de uma coisa que para mim é algo
exterior. Aqui então falamos de dependência. Liberdade só existe ali
onde para mim não há nenhum Outro que não seja eu mesmo. O homem
natural, que só é determinado por seus impulsos, não está junto de si: por
mais caprichoso que seja, o conteúdo do seu querer e de seu opinar não é
conteúdo próprio seu, e sua liberdade é uma liberdade apenas formal. Ao
pensar, eu renuncio à minha particularidade subjetiva, aprofundo-me na
Coisa, deixo o pensar atuando por si mesmo; e eu penso mal, quando
acrescento algo meu.

80
Se considerarmos a Lógica, em conseqüência do que foi dito até
agora, como o sistema das puras determinações-de-pensamento, então
aparecerão, ao contrário, as outras ciências filosóficas — a filosofia da
natureza e a filosofia do espírito — por assim dizer como uma lógica
aplicada, pois a lógica é sua alma vivificante. O interesse das demais
ciências é então somente conhecer as formas lógicas nas figuras da natu­
reza e do espírito; figuras que são apenas uma peculiar maneira-de-expri-
mir-se das formas do puro pensar. Se tomarmos, por exemplo, o silogismo
(não na significação que tem na lógica antiga formal, mas na sua verdade),
o silogismo é a determinação em que o particular é o meio-termo que
concatena [conclui] os extremos do universal e do singular. Essa forma do
concatenar [silogístico] é uma forma universal das coisas todas. Todas as
coisas são particulares, que se concatenam enquanto um universal com
um singular. Mas a impotência da natureza traz consigo que [a natureza]
não apresente as formas lógicas de modo puro. Uma tal apresentação
impotente do silogismo é por exemplo o ímã, que no meio-termo, em seu
ponto de indiferença, concatena seus pólos, que assim são imediatamente
um só em sua diferenciação. Na física aprende-se também a conhecer o
universal, a essência, e a diferença é somente que a filosofia da natureza nos
traz à consciência as verdadeiras formas do conceito nas coisas naturais.
A Lógica é assim o espírito omnivivificante de todas as ciências; as
determinações-de-pensamento da Lógica são puros espíritos; são elas o
que há de mais íntimo, mas são ao mesmo tempo o que trazemos sempre
na boca e por isso parecem ser algo inteiramente bem-conhecido. Mas tal
bem-conhecido é habitualmente o que há de menos bem-conhecido. Assim,
por exemplo, o ser é pura determinação-de-pensamento; não nos ocorre
fazer do “é” objeto de nossa reflexão. Acredita-se habitualmente que o
absoluto deve ser situado muito além; mas ele é justamente o [que está]
de todo presente, que nós enquanto ser-pensante, mesmo sem consciên­
cia expressa disso, sempre levamos conosco e utilizamos. Tais determina­
ções-de-pensamento estão depositadas sobretudo na linguagem; e assim
o ensino da gramática, que é dado às crianças, tem a utilidade de que a
gente as torna inconscientemente atentas às diferenças do pensar.
Diz-se em geral que a Lógica tem a ver somente com formas, e que
deve retirar de outra parte seu conteiído. As noções lógicas, entretanto, não são
nenhum “somente” em relação a qualquer outro conteúdo; mas qualquer
outro conteúdo é apenas um “somente” em relação às noções lógicas. São elas
o fundamento, essente em si e para si, de tudo. Já é um nível superior de
cultura a que pertence dirigir seu interesse a tais determinações puras. O
[fato de] examinar em-si-e-para-si essas determinações tem, além disso, o
sentido de que as derivamos do pensar mesmo, e vemos [a partir] delas

81
mesmas se são determinações verdadeiras. Não as recebemos do exterior,
nem as definimos ou mostramos seu valor e sua validade comparando-as com
o [modo] como aparecem na consciência. [Pois] então partiríamos da obser­
vação e da experiência, e diríamos, por exemplo: Força [é termo que] costu­
mamos usar nisso e para isso. Tal definição denominamos exata, se está em
consonância com o que, de seu objeto, se encontra em nossa consciência
ordinária. Entretanto, desse modo, um conceito não é determinado em si e
para si, mas segundo uma pressuposição; a qual pressuposição é então o
critério, o padrão-de-medida, da exatidão. Não precisamos, contudo, usar tal
padrão-de-medida, mas deixar atuar por sua conta as determinações vivas
dentro de si mesmas. A questão da verdade das determinações-de-pensa-
mento deve apresentar-se raramente à consciência comum, já que parecem
receber a verdade só em sua aplicação a objetos dados; e, conforme isso, não
teria sentido indagar sobre sua verdade fora dessa aplicação. Mas essa ques­
tão é justamente o que importa. Quanto a isso, sem dúvida, deve-se saber
o que se deve entender por “verdade”. Chamamos comumente “verdade”
a concordância de um objeto com nossa representação. Temos nesse caso,
como pressuposição, um objeto ao qual deve ser conforme nossa representa­
ção sobre ele. No sentido filosófico, ao contrário, verdade significa — [ser
for] expressa em geral abstratamente — concordância de um conteúdo consi­
go mesmo. Assim, isto é uma significação da verdade totalmente diversa
da mencionada anteriormente. Aliás, a significação mais profunda (filosó­
fica) da verdade encontra-se parcialmente já no uso comum da lingua­
gem. Fala-se, por exemplo, de um verdadeiro amigo; e se entende, com
isso, um amigo cuja maneira-de-agir é conforme ao conceito da amizade;
igualmente se fala de uma verdadeira obra-de-arte. Não-verdadeiro, então,
quer dizer o mesmo que mau, inadequado em si mesmo. Nesse sentido,
um mau Estado é um Estado não-verdadeiro, e o mau e o não-verdadeiro,
em geral, consistem na contradição que tem lugar entre a determinação
ou o conceito, e a existência de um objeto. Podemos fazer uma represen­
tação correta de um tal objeto mau, porém o conteúdo dessa representa­
ção é algo em si não-verdadeiro. Noções corretas como essas, que ao
mesmo tempo são não-verdades, podemos ter muitas na cabeça. Somente
Deus é a concordância verdadeira do conceito e da realidade; mas todas
as coisas finitas têm em si uma inverdade, têm um conceito e uma exis­
tência, que porém é inadequada ao seu conceito. Por esse motivo devem
perecer, e desse modo se torna manifesta a inadequação de seu conceito
e de sua existência. O animal, enquanto singular, tem seu conceito em
seu gênero, e o gênero se liberta da singularidade através da morte.
A consideração da verdade, no sentido aqui explicado — o da concor­
dância consigo mesmo —, constitui o interesse próprio do lógico. Na

82
consciência comum, a questão da verdade das determinações-de-pensa-
mento não se apresenta de modo algum. A tarefa da Lógica pode também
exprimir-se assim: as determinações-de-pensamento nela são considera­
das enquanto são capazes de apreender o verdadeiro. A questão, assim,
incide sobre quais são as formas do infinito, e quais as formas do finito.
Na consciência comum, não se vê mal nenhum nas determinações-de-
-pensamento finitas, e se deixa sem mais que elas vigorem. Mas toda a
ilusão vem de se pensar e agir segundo as determinações finitas.
Adendo 3: O verdadeiro, pode-se conhecê-lo de diversas maneiras, e
as maneiras do conhecer têm de considerar-se como formas. Assim, pode-
-se certamente conhecer o verdadeiro pela experiência, mas essa experiên­
cia é apenas uma forma. Na experiência, o que importa é a mente com
que se aborda a efetividade. Uma grande mente faz grandes experiências,
e enxerga no jogo multicor do fenômeno o que é importante. A idéia é
presente e efetiva, não é algo além e atrás [do real]. Um grande espírito,
como por exemplo o de Goethe, que olha para a natureza ou para a his­
tória faz grandes experiências, enxerga o racional e o exprime. O resto
vem a seguir: pode-se conhecer o verdadeiro também na reflexão, e deter­
miná-lo por relações-de-pensamento. Entretanto, o verdadeiro em si e
para si não está ainda presente, em sua forma própria, nessas duas manei­
ras [de conhecer], A maneira mais perfeita de conhecer está na pura forma
do pensar. O homem aqui se comporta de uma maneira totalmente livre.
Que a forma do pensar é a forma absoluta e que a verdade nela aparece
tal como é em si e para si, é essa a afirmação da filosofia em geral. A prova
disso tem, antes de tudo, o sentido de que é mostrado que as formas do
conhecer, acima citadas, são formas finitas. O alto ceticismo antigo reali­
zou isso ao mostrar, em todas essas formas, que elas contêm em si uma
contradição. Aplicando-se esse ceticismo também às formas da razão, ele
primeiro as substitui por algo de finito, para assim apreendê-las. Em
conjunto, as formas do pensamento finito serão apresentadas no curso do
desenvolvimento lógico, e, sem dúvida, tais como entram em cena, se­
gundo a necessidade [Notwendigkeit]. Aqui (na Introdução) só tinham de
ser acolhidas inicialmente de uma maneira não científica, como algo dado.
No [corpo do] próprio tratado lógico, mostra-se não só o lado negativo
dessas formas, mas também seu lado positivo.
Comparando-se umas com as outras essas diversas formas de conhe­
cer, pode ser que a primeira, a forma do saber imediato, apareça facilmen­
te como a mais adequada, a mais bela e a mais alta. Recai nessa forma
tudo o que se chama, na consideração morgl, inocência; e depois senti­
mento religioso, confiança ingênua, amor, fidelidade e fé natural. As duas

83
outras formas, primeiro o conhecer que reflete, e depois também o conhe­
cer filosófico, saem dessa unidade natural imediata. Tendo isso de co­
mum, uma com a outra, a maneira de conhecer que quer apreender o
verdadeiro por meio do pensar pode aparecer facilmente como um orgu­
lho do homem que quer conhecer o verdadeiro por sua própria força.
Como ponto de vista da separação universal, esse ponto de vista pode
certamente ser visto como a origem de todo o mal e de todo o maligno,
como o pecado original; e, de acordo com isso, parece que se deva renun­
ciar ao pensar e ao conhecer, para chegar ao retorno [à unidade] e à
reconciliação. No que toca ao abandonar da unidade natural, essa porten­
tosa cisão do espiritual dentro de si mesmo tem sido desde sempre um
objeto da consciência dos povos. Na natureza não ocorre tal cisão interior,
e as coisas-da-natureza não fazem nada de mal. Uma antiga representação
sobre a origem e as seqüelas dessa cisão nos é dada no mito mosaico da
queda de Adão. O conteúdo desse mito forma a base de uma doutrina
essencial da fé, a doutrina da pecabilidade natural do homem e a neces­
sidade [Notwendigkeit] de um socorro para obviar isso. Parece como ade­
quado considerar o mito da queda logo no início da lógica, pois ela diz
respeito ao conhecer, e também nesse mito se trata do conhecer, de sua
origem e significação. A filosofia não pode ter medo da religião; nem pode
assumir a posição de que devesse estar contente, se a religião apenas a
tolerasse. Mas igualmente, de outro lado, deve rejeitar a maneira de ver
segundo a qual semelhantes mitos e representações religiosas são algo
sem importância; pois eles têm entre os povos uma dignidade milenar.
Se considerarmos agora mais de perto o mito do pecado original, veremos,
como foi notado antes, que nele se exprime a relação geral do conhecimento
para com a vida do espírito. Em sua imediatez, a vida do espírito aparece
primeiro como inocência e ingênua confiança. Ora, na essência do espírito re­
side [a exigência de] que esse estado imediato seja suprassumido, pois a vida
do espírito se diferencia da vida natural e, mais precisamente, da vida animal
porque não permanece em seu ser-em-si, mas é para si. Depois, esse ponto-
-de-vista da cisão tem de ser igualmente suprassumido, e o espírito deve, por
si mesmo, retornar à união. Essa união é então uma união espiritual, e o
princípio desse retorno reside no pensamento mesmo. E ele que faz a ferida,
e também cura. Ora, em nosso mito diz-se que Adão e Eva, os primeiros se­
res humanos, o homem em geral, se encontravam em um jardim, onde se
achava uma árvore da vida e uma árvore do conhecimento do bem e do mal.
Sobre Deus, diz-se que tinha proibido aos homens comer os frutos da última
árvore, da árvore da vida, não se fala mais, de início. Assim se exprime que
o homem não deve chegar ao conhecer, mas ficar no estado da inocência e
da união. Também em outros povos, de consciência mais profunda, encon­
tramos a representação de que o primeiro estado do homem foi um estado

84
de inocência e de união. Nisso está implicado o [ponto de vista] correto, de
que não se pode, decerto, dar-se por satisfeito na cisão em que encontramos
tudo o que é humano; [mas,] ao contrário, é incorreto que essa unidade
natural imediata seja o correto. O espírito não é simplesmente um imediato,
mas contém essencialmente em si o momento da mediação. A inocência
infantil é, sem dúvida, algo atraente e emocionante; mas só enquanto recorda
o que deve ser produzido por meio do espírito. Aquela união, que na criança
vemos como uma união natural, deve ser o resultado do trabalho e da cultura
do espírito. Cristo diz: “Se não vos tornardes como crianças” etc.; mas com
isso não está dito que devamos permanecer crianças. Em nosso mito mosaico
encontramos, além disso, que a ocasião de sair da unidade chegou ao homem
por meio de uma instigação exterior (pela serpente). De fato, porém, o entrar
na posição, o despertar da consciência, reside no próprio homem, e é uma
história que se repete em cada homem. A serpente coloca a divindade nisto:
em saber o que é bom e mau; e, de fato, desse conhecimento é que o
homem se tornou participante ao romper com a unidade de seu ser imediato,
e ao comer os frutos proibidos. A primeira reflexão da consciência, ao des­
pertar, foi que os homens notaram que estavam nus. E um traço muito
ingênuo e profundo. E que no pudor está situada a separação do homem de
seu ser natural e sensível. Os animais, que não chegam a essa separação, são
por isso sem pudor. No sentimento humano do pudor deve-se então procu­
rar também a origem espiritual e ética do vestuário; ao contrário, a necessi­
dade [Bedürfnis] puramente física é algo secundário.
Depois vem a assim chamada maldição que Deus lançou sobre o
homem. O que aí se salienta refere-se principalmente à oposição do ho­
mem para com a natureza. O homem deve trabalhar com o suor de seu
rosto, e a mulher deve dar à luz na dor. O que aí concerne mais precisa­
mente ao trabalho, o próprio trabalho é tanto'o resultado da cisão como
sua superação. O animal encontra imediatamente o que precisa para sa­
tisfação de suas necessidades; o homem, ao contrário, se relaciona com os
meios de satisfação de suas necessidades como algo produzido e formado
por ele. Mesmo nessa exterioridade, o homem se refere assim a si mesmo.
Com a expulsão do paraíso, o mito ainda não está concluído. Adiante diz
ainda: Deus falou: “Veja só: Adão se tornou como um de nós, pois sabe o que
é bom e [o que é] mau”. O conhecer é aqui designado como o divino; e não,
como antes, como o que não deve ser. Nisso está também a refutação desses
falatórios de que a filosofia só pertence à finitude dõ espírito: a filosofia é
conhecer, e só pelo conhecer é que se realizou a vocação original do homem:
ser uma imagem de Deus. Quando depois se diz que Deus expulsou o
homem do jardim do Éden para que não comesse também da árvore da vida,
com isso está expresso que o homem, segundo seu ser natural, é certamente
finito e mortal; mas no conhecer é infinito.

85
É doutrina da Igreja, bem-conhecida, que o homem é mau por
natureza, e esse ser-mau por natureza é designado como pecado
original. Mas nisso há que renunciar à representação exterior de
que o pecado original só teria seu fundamento em um agir contin­
gente dos primeiros homens. De fato, reside no conceito do espí­
rito que o homem é mau por natureza, e não se tem de representar
que pudesse ser também de outra maneira. Na medida em que o
homem é, como ser-da-natureza, e se comporta como tal, é este um
comportamento que não deve ser. O espírito deve ser livre, e ser
por si mesmo o que é. A natureza, para o homem, é apenas o ponto
de partida, que ele deve transformar. À doutrina profunda da Igreja
sobre o pecado original contrapõe-se a doutrina do Iluminismo mo­
derno, de que o homem é bom por natureza e, assim, deve ficar fiel
à natureza. O sair, do homem, de seu ser natural é a diferenciação
do homem, como um [ser] consciente-de-si, de um mundo exte­
rior. Mas também não é neste ponto de vista da separação, perten­
cente ao conceito do espírito, que o homem deve ficar. Nesse pon­
to de vista da separação recai toda a finitude do pensar e do querer.
Aqui o homem constitui para si fins a partir de si mesmo, e tira de si
a matéria de seu operar. Impelindo esses fins ao auge, ele se sabe e
se quer somente a si, em sua particularidade, com exclusão do univer­
sal; assim, o homem é mau, e esse mal é sua subjetividade. Temos
aqui, à primeira vista, um mal duplicado; mas os dois são de fato o
mesmo. O homem, na medida em que é espírito, não é um ser-da-
-natureza; na medida em que se comporta como um tal ser, e persegue
os fins do desejo, é que o quer. Assim o mal natural dos homens não
é como o ser natural dos animais. A naturalidade tem pois, mais pre­
cisamente, esta determinação de que o homem natural é um singular
como tal, porque a natureza reside em geral nos laços da singularização.
Por conseguinte, enquanto o homem quer sua naturalidade, também
quer a singularidade. Diante desse agir que pertence à singularidade
natural, [e que procede] de impulsos e inclinações, certamente se
apresenta também a lei, ou a determinação universal. Essa lei pode ser
uma potência exterior, ou ter a forma de uma autoridade divina. O
homem está na escravidão da lei enquanto permanece em sua atitude
natural. Ora, entre suas inclinações e sentimentos, o homem tem, sem
dúvida, também inclinações sociais de benevolência, que vão além da
singularidade egoísta: a compaixão, o amor etc. Contudo, enquanto
essas inclinações são imediatas, seu conteúdo, em si universal, tem de
fato a forma da subjetividade: egoísmo e contingência estão aqui sem­
pre em jogo.
§ 25
A expressão pensamentos objetivos designa a verdade que deve
ser o objeto absoluto da filosofia, não simplesmente sua meta. Mas
a expressão indica geralmente logo uma oposição, e em verdade
uma oposição em torno de cuja determinação e validade gira o
interesse do ponto de vista filosófico atual e a questão sobre a
verdade e seu conhecimento. Se as determinações-de-pensamento
estão afetadas de uma oposição fixa, isto é, se são apenas de natu­
reza finita , então são inadequadas à verdade, que é absolutamente
em si e para si; assim não pode entrar a verdade no pensar. O
pensar que só produz determinações finitas e nelas se move cha-
ma-se entendimento [Verstand] no sentido estrito do termo. Mais
precisamente, a finitude das determinações-de-pensamento deve-se
compreender de dois modos: um, em que são só subjetivas e têm a
oposição permanente no objetivo; outro, em que, por seu conteúdo
limitado em geral, persistem na oposição, tanto umas para com as
outras como também, mais ainda, para com o absoluto.
Agora devem examinar-se, como introdução mais próxima [ao
tema], as posições conferidas ao pensar a respeito da objetividade, para
esclarecer e pôr em evidência a significação e o ponto de vista que
aqui foram atribuídos à lógica.
Na minha Fenomenologia do Espírito -— que, por isso, quando
se publicou foi designada como a primeira parte do Sistema
da Ciência — tomou-se o caminho de começar pela primeira
[e] mais simples manifestação do espírito, pela consciência
imediata, e de desenvolver sua dialética até ao ponto de vista
da ciência filosófica, cuja necessidade [Notw.] é mostrada
através dessa progressão. Mas para isso não se podia ter ficado
no formal da simples consciência: pois o ponto de vista do
saber filosófico é em si ao mesmo tempo o mais rico de con­
teúdo e o mais concreto; por conseguinte, ao desprender-se
como resultado, ele pressupunha também as figuras concre-
87
tas da consciência, como, por exemplo, as figuras da moral,
da ética, da arte, da religião. O desenvolvimento do conteiído,
dos objetos [que são] partes próprias da ciência filosófica,
incide pois ao mesmo tempo nesse desenvolvimento da cons­
ciência — que inicialmente parecia restrito apenas ao formal.
Esse desenvolvimento deve, por assim dizer, avançar por
detrás da consciência, na medida em que o conteúdo se rela­
ciona à consciência como Ern-si. A exposição torna-se, por
isso, mais complicada, e o que pertence às partes concretas
já recai parcialmente nessa introdução [à Ciência].
A consideração a efetuar aqui tem ainda mais o inconvenien­
te de que só pode proceder de modo histórico e raciocinante;
mas deve principalmente contribuir para a compreensão de
que as questões encontradas na representação sobre a natu­
reza do conhecer sobre fé e assim por diante, e que são tidas
por inteiramente concretas, de fato se reduzem a simples de-
terminações-de-pensamento, que aliás só na lógica recebem
sua verdadeira solução definitiva.
P r im e ir a p o siç ã o d o p e n sa m e n t o
A RESPEITO DA OBJETIVIDADE METAFÍSICA

§ 26
A primeira posição é o procedimento ingênuo, que, sem [ter]
ainda a consciência da oposição do pensar em si e contra si mesmo,
contém a crença de que mediante a reflexão é conhecida a verdade,
[a saber] que se apresenta ante a consciência o que os objetos
verdadeiramente são. Nessa crença, o pensar vai direto aos objetos,
reproduz de si mesmo o conteúdo das sensações e intuições, fazen­
do-o conteúdo do pensamento, e nele se satisfaz como na verdade.
Toda a filosofia em seus começos, todas as ciências e mesmo o agir
cotidiano da consciência vivem nessa crença.
§ 27
Esse pensar, devido à carência-de-consciência sobre seu objeto,
tanto pode, por seu conteúdo, ser um autêntico filosofar especulativo,
como também demorar-se nas determinações-fínitas-de-pensamento,
89
isto é, na oposição ainda não resolvida. Aqui, na Introdução, só pode
haver o interesse em considerar essa posição do pensar segundo seu
limite, e portanto em examinar primeiro o fdosofar [citado por] último.
Era ele, em seu desenvolvimento mais determinado e mais próximo
de nós, a antiga metafísica, tal como era constituída em nosso meio
antes da filosofia kantiana. Essa metafísica, no entanto, só é algo antigo
em relação à história da filosofia; por si mesma, está em geral sempre
presente, [é] a simples visão-do-entendimento sobre os objetos-da-razão.
Portanto, o exame mais preciso dessa maneira [de pensar] e de seu
conteúdo-principal tem ao mesmo tempo esse interesse presente mais
perto [de nós].
§ 28
Essa ciência [a antiga metafísica] considerava as determina­
ções-de-pensamento como as determinações-fundamentais das coisas.
Por essa pressuposição de que o que é, pelo fato de ser pensado, é
conhecido em si, ela se colocava mais alto que o filosofar crítico
posterior. Mas Ia) essas determinações eram tomadas em sua abstra­
ção como válidas por si mesmas e capazes de ser predicados do verda­
deiro. Aquela metafísica pressupunha, em geral, que o conhecimento
do absoluto se poderia obter desta maneira: por lhe serem atribuídos
predicados; e não examinava nem as determinações-de-entendimento
segundo seu conteúdo e valor próprios, nem tampouco essa forma, a
de determinar o absoluto pela atribuição de predicados.
Tais predicados são, por exemplo, ser-aí, como na proposição
“Deus tem ser-aí ”; finitude e infinitude, como na questão se o
mundo é finito ou infinito; simples, composto, como na propo­
sição: “a alma é simples”; além disso, “a coisa é um uno, um
todo” etc. Não se examinava se tais predicados eram em si e
para si algo de verdadeiro, nem se a forma do juízo podia ser
forma da verdade.
Adendo'. A pressuposição da antiga metafísica era a crença ingênua,
em geral, de que o pensar captava o Em-si das coisas, de que as coisas só
são o que são verdadeiramente, enquanto pensadas. A alma do homem e
a natureza são o Proteu que se transforma constantemente; e é uma re­
flexão muito óbvia, que as coisas não são em si como se apresentam
90
imediatamente. O ponto de vista, aqui mencionado, da antiga metafísica
é o contrário do que a filosofia crítica tinha por resultado. Pode-se bem
dizer que segundo esse resultado o homem seria simplesmente mandado
às cascas e ao bagaço.
Ora, no que toca mais precisamente ao procedimento daquela antiga
metafísica, deve-se notar a esse respeito que ela não ultrapassa o pensar
meramente do entendimento. Ela acolhia de modo imediato as determina-
ções-de-pensamento abstratas, e lhes dava o valor de serem predicados do
verdadeiro. Quando se trata do pensar, deve-se distinguir o pensar finito
meramente do entendimento, do pensar infinito, racional. As determinações-
-do-pensamento, tais como se acham de modo imediato e singularizado,
são determinações finitas. Ora, o verdadeiro é o infinito em si, que não se
deixa exprimir nem trazer à consciência através do finito. A expressão
“pensamento infinito” pode parecer chocante, quando se está aferrado à
representação da época moderna, segundo a qual o pensar seria sempre
limitado. Ora de fato, segundo sua essência, o pensar é em si infinito.
Finito significa — expresso formalmente — aquilo que tem um fim; o
que é, mas que deixa de ser onde está em conexão com seu Outro, e por
conseguinte e limitado por ele. Assim, o finito consiste em uma relação
ao seu Outro, que é sua negação e se apresenta como seu limite. Mas o
pensar está junto de si mesmo, consigo mesmo se relaciona, e tem a si
mesmo por objeto. Enquanto tenho um pensamento por objeto, eu estou
junto a mim mesmo. O Eu, o pensar, é infinito, pelo motivo de que se
refere no pensar a um objeto que é ele mesmo. Objeto em geral é um
Outro, um negativo em relação a mim. Se o pensar pensa a si mesmo,
então tem um objeto que ao mesmo tempo não é um objeto; isto é, [tem]
um objeto suprassumido, ideal. O pensar como tal, em sua pureza, não
tem pois, em si, nenhum limite. O pensamento só é finito na medida em
que permanece em determinações finitas, que valem para ele como algo
de último. Ao contrário, o pensar infinito ou especulativo, igualmente
determina; mas ao determinar, ao limitar, suprassume de volta essa defi­
ciência. A infinitude não se deve, como na representação habitual, apreen­
der como um abstrato Além e sempre-mais-Além; mas segundo a maneira
simples como a que foi indicada anteriormente.
O pensar da antiga metafísica era [um] pensar finito, pois ela se movia
em determinações-de-pensamento cujo limite valia para ela como algo
fixo, que por sua vez não era negado. Assim, por exemplo, se indagava:
Deus tem ser-aP. e o ser-aí era nessa questão considerado como algo pu­
ramente positivo, como algo de último e de excelente. No entanto, vamos
ver mais adiante que ''ser-aí ’ não é, de modo algum, algo simplesmente
positivo, mas uma determinação, que é demasiado baixa para a idéia, e

91
não é digna de Deus. Perguntava-se, além disso, sobre a finitude ou in-
finitude do mundo. Aqui a infinitude é fixamente oposta à finitude, e
contudo é fácil de ver que, se ambas são opostas uma à outra, a infinitude
— que deve aliás ser o todo — só aparece como um lado e é limitada pelo
finito. Ora, uma infinitude limitada é, ela mesma, um finito. No mesmo
sentido, questionava-se se a alma era simples ou composta. Assim, a sim­
plicidade valia também como uma determinação última, capaz de apreen­
der o verdadeiro. Mas “simples” é uma determinação tão pobre, abstrata,
e unilateral como ser-aí; uma determinação, como veremos adiante, que
sendo ela mesma não-verdadeira é incapaz de apreender o verdadeiro. Se
a alma for considerada somente como simples, ela será, por tal abstração,
determinada como unilateral e finita.
A antiga metafísica tinha, pois, interesse em conhecer se predicados, do
tipo acima mencionado, deviam atribuir-se a seu objeto. Porém estes pre­
dicados são limitadas determinações-de-pensamento, que só exprimem um
limite, mas não o verdadeiro. A propósito, pode-se ainda notar que o proce­
dimento consistia em que se atribuíam predicados ao objeto a conhecer;
assim, por exemplo, a Deus. Mas isso é uma reflexão exterior sobre o objeto,
porque as determinações (os predicados) estão prontas em minha represen­
tação, e são atribuídas apenas exteriormente ao objeto. Ao contrário, o verda­
deiro conhecimento de um objeto deve ser do tipo que se determina de si
mesmo e não recebe de fora seus predicados. Ora, caso se proceda na ma­
neira do predicar, então o espírito tem aí o sentimento da inesgotabilidade por
meio desses predicados. Por conseguinte os orientais, de modo totalmente
correto, chamam Deus o [ser] de muitos-nomes, o [ser] de nomes-infinitos.
A alma não se contenta com nenhuma daquelas determinações finitas,
e o conhecimento dos orientais consiste assim em um buscar incansável
de tais predicados. Ora, nas coisas finitas certamente ocorre que se deve
determiná-las por meio de predicados finitos; e aqui o entendimento, com
sua atividade, está no lugar certo. O entendimento, ele mesmo finito,
também só conhece a natureza do finito. Se por exemplo chamo uma ação
“um roubo” ela está assim determinada segundo seu conteúdo essencial;
e ao juiz basta conhecer isto. Igualmente, as coisas finitas se comportam
como causa e efeito, como força e exteriorização; e, ao serem apreendidas
conforme essas determinações, são conhecidas segundo sua finitude. Mas
os objetos-da-razão não podem ser determinados mediante tais predicados
finitos; e o empenho em fazer isso era o defeito da antiga metafísica.
§ 29
Semelhantes predicados são assim um conteúdo limitado e já se
mostram como inadequados à plenitude da representação (de Deus,
92
da natureza, do espírito etc.), e não a esgotando de modo algum.
Depois, por serem predicados de um sujeito, estão ligados entre si,
mas são diversos por seu conteúdo, de modo que são, uns em relação
aos outros, recebidos de fora.
Os orientais procuravam obviar a primeira deficiência, por
exemplo, pela determinação de Deus mediante os muitos
nomes que lhe atribuíam; mas, ao mesmo tempo, os nomes
deveriam ser infinitamente muitos.
§ 30
2a) Os objetos' da antiga metafísica eram, decerto, totalidades
que pertencem em si e para si à razão, ao pensar do universal em
si concreto, alma, mundo, Deus. Mas a metafísica os recebia da repre­
sentação, punha-os 'no fundamento como sujeitos dados já prontos,
pela aplicação [que lhes fazia] das determinações-de-entendimen-
to; e somente nessa representação tinha o critério [para julgar] se os
predicados eram ou não adequados e satisfatórios.
§ 31
As representações da alma, do mundo, de Deus parecem ini­
cialmente fornecer ao pensar um apoio fixo. Mas, além de estar
misturado com elas o caráter de subjetividade particular, e poderem
assim ter uma significação muito diversa, são antes elas que têm de
receber a determinação fixa, graças somente ao pensamento. Toda
proposição exprime isso, pois somente pelo predicado (isto é, em
filosofia, pela determinação-de-pensamento) é que se indica o que
é o sujeito — quer dizer, a representação inicial.
Na proposição: “Deus é eterno” etc., começa-se com a repre­
sentação “Deus”; mas o que ele é não se sabe ainda; só o predicado
enuncia o que ele é. Por esse motivo no [nível] lógico, em que
o conteúdo é determinado única e exclusivamente na forma do
pensamento, não é apenas supérfluo fazer, dessas determina­
ções, predicados de proposições cujo sujeito seria Deus ou o
absoluto, [termo] mais vago; mas isso teria também a desvanta­
gem de evocar outro critério que a natureza do pensamento
mesmo. Aliás a forma da proposição, ou mais precisamente a do
93
juízo, é imprópria para exprimir o concreto — e o verdadeiro é
concreto — e o especulativo: o juízo é, por sua forma, unilateral;
e nessa medida é falso.
Adendo-. Essa metafísica não era um pensar livre e objetivo, pois não
deixava o objeto determinar-se livremente a partir de si mesmo, mas o
pressupunha como já pronto. No que toca ao livre pensar, a filosofia grega
pensava livremente, mas a escolástica não, já que recebia seu conteúdo
igualmente como um conteúdo dado — e, na verdade, dado pela Igreja.
Nós, modernos, somos iniciados por toda a nossa cultura em representa­
ções que são sumamente de difícil ultrapassar; porque essas representa­
ções têm o mais profundo conteúdo. Entre os antigos filósofos, devemo-
-nos representar homens que ficam inteiramente na intuição sensível e
não têm nenhuma pressuposição mais que o céu em cima e a terra em
volta, pois as representações mitológicas eram postas de lado. O pensa­
mento nesse ambiente de coisas [sachlichen Ümgebung] é livre e retirado
em si mesmo; livre de toda a matéria, puramente junto de si. Esse puro
ser-junto-de-si pertence ao livre pensar, ao desembarcar no [elemento]
livre: onde nada há abaixo de nós, nem acima de nós; e ali estamos na
solidão, conosco somente.
§ 32
3a) Essa metafísica tornou-se dogmatismo porque devia admitir,
conforme a natureza das determinações finitas, que, de duas afir­
mações opostas tais como eram as proposições acima, uma devia ser
verdadeira, mas a outra falsa.
Adendo-, O dogmatismo teve seu contrário primeiramente no cepticismo.
Os cépticos da Antiguidade chamavam em geral dogmatismo toda e qual­
quer filosofia, enquanto ela estabelecia teses determinadas. Nesse senti­
do amplo, também a filosofia propriamente especulativa conta como dog­
mática para o cepticismo. Mas o dogmático, no sentido estrito, consiste
em que as determinações unilaterais de entendimento são retidas com
exclusão das determinações opostas. Em geral, é o estrito ou [uma coisa]
ou [outra], e em conformidade com isso diz-se, por exemplo: o mundo ou
é finito ou infinito, mas somente um dos dois. O verdadeiro, o especulativo,
ao contrário, é justamente o que não tem em si nenhuma determinação
unilateral desse tipo, e nisso não se esgota; mas enquanto totalidade con­
tém nele reunidas aquelas determinações que para o dogmatismo valem
em sua separação como algo firme e verdadeiro.

94
Na filosofia, dá-se freqüentemente o caso de que a unilateralidade ve
pôr-se ao lado da totalidade com a alegação de ser algo particular e firme e
relação a ela. Mas, de fato, o unilateral não é algo firme e subsistente por
senão que está contido no todo, como suprassumido. O dogmatismo (
metafísica-de-entendimento consiste em fixar em seu isolamento as dete
minações unilaterais de pensamento, quando, ao contrário, o idealismo c
filosofia especulativa possui o princípio da totalidade, e se mostra con
dominando a unilateralidade das determinações abstratas do entendimeno
Assim, o idealismo dirá: a alma nem é só finita nem é só infinita, mas
essencialmente tanto uma [coisa] quanto também a outra, e, por isso, nem
uma nem é outra. Quer dizer: tais determinações não são válidas em se
isolamento, e só valem como suprassumidas. Também em nossa consciênci
ordinária já se encontra o idealismo. Em conseqüência dizemos das coisa
sensíveis que são mutáveis, isto é, que lhes advém o ser como o não-sei
Somos mais obstinados a respeito das determinações-do-entendimento. Es
sas, enquanto determinações-de-pensamento, passam por algo de mais fixo
mesmo por algo absolutamente fixo. Nós as consideramos como separada:
por um abismo infinito, de modo que as determinações se contrapõem um;
às outras, e não podem nunca tocar-se. A luta da razão consiste em sobrepu­
jar o que o entendimento fixou.
§ 33
A primeira parte dessa metafísica, em sua figura ordenada, cons­
titui a ontologia, a doutrina das determinações abstratas da essência. A
elas, em sua variedade múltipla e validade finita, faz falta um prin­
cípio: devem por isso ser enumeradas de modo empírico e contingen­
te, e seu conteúdo mais preciso só pode ser fundado sobre a represen­
tação, sobre a asseveração de que por uma palavra é justamente isto
que se entende; ou também, eventualmente, sobre a etimologia.
Aqui só pode ser questão — de acordo com o uso do idioma — da
exatidão da análise, e da completude empírica; não da verdade e ne­
cessidade [Notw.] de tais determinações em si e para si.
A pergunta se o ser, o ser-aí ou a finitude, a simplicidade, a
composição etc. são conceitos verdadeiros em si e para si deve
necessariamente ser chocante quando se acredita que é pos­
sível tratar simplesmente da verdade de uma proposição, e
somente indagar se um conceito pode ou não ser atribuído
(como se dizia) com verdade a um sujeito\ a não-verdade
dependeria da contradição que se encontrasse entre o sujeito
95
da representação e o conceito a lhe ser [atribuído como]
predicado. Só que o conceito, enquanto [algo] concreto — e
mesmo toda determinidade em geral —, essencialmente é
nele mesmo uma unidade de determinações diferentes. Se
portanto a verdade não fosse mais que a ausência de contra­
dição, seria preciso, para cada conceito, considerar primeiro
se para si mesmo não contém ele tal contradição interna.
§ 34
A segunda parte era a psicologia racional ou pneumatologia, que
diz respeito à natureza metafísica da alma, a saber, do espírito
enquanto uma coisa.
A imortalidade era buscada numa esfera em que composição, tempo,
mudança qualitativa, aumentar ou diminuir quantitativo têm seu lugar.
Adendo-. Chamava-se racional a psicologia, em oposição à maneira empírica
de considerar as exteriorizações da alma. A psicologia racional tratava a alma
segundo sua natureza metafísica, como é determinada pelo pensar abstrato.
Queria conhecer a natureza interior da alma, tal como é em si, tal como é
para o pensamento. Atualmente, na filosofia, fala-se pouco da alma mas se
fala sobretudo do espírito. O espírito se diferencia da alma — que é, por
assim dizer, o termo mediador entre a corporalidade e o espírito, ou o vínculo
entre os dois. O espírito, enquanto alma, está imerso na corporalidade, e a
alma é o princípio vital do corpo.
A velha metafísica considerava a alma como coisa. Porém “coisa” é
uma expressão muito ambígua. Por “coisa” entendemos, antes de tudo,
um existente de modo imediato, algo que nos representamos sensivelmen­
te; e nesse sentido se falava da alma. Em conseqüência, indagava-se onde
a alma tinha sua sede. Mas, como tendo uma sede, a alma está no espaço
e é representada de maneira sensível. Igualmente, quando em seguida se
indaga se a alma e simples ou composta, isso pertence à concepção da
alma como uma coisa. Essa questão interessava sobretudo a propósito da
imortalidade da alma, enquanto tal imortalidade se considerava como con­
dicionada pela simplicidade da alma. Ora, a simplicidade abstrata é, de
fato, uma determinação que corresponde tão pouco à essência da alma
quanto a determinação de ser composta.
No que toca à relação da psicologia racional com a empírica, a primei­
ra s e s itu a Lern n í v e l ] m a is a lt o q u e a s e g u n d a , p o r a s s u m ir c o m o t a r e fa
conhecer o espírito por meio do pensar, e também demonstrar o pensado;

96
enquanto a psicologia empírica parte da percepção, e apenas enumera e
descreve o que essa lhe põe nas mãos. Mas, quando se quer pensar no
espírito, não se deve ser, de modo algum, tão escrupuloso ante suas par­
ticularidades. O espírito é atividade, no sentido em que os escolásticos
diziam de Deus que ele era absoluta atuosidade [Actus purus]. Ora, en­
quanto o espírito é ativo, está implicado que ele se exterioriza. Por esse
motivo não se pode considerar o espírito como um “Ens” carente-de-pro-
cesso, tal como ocorria na metafísica antiga, que separava de sua exterio-
ridade a interioridade, carente-de-processo, do espírito. O espírito deve
considerar-se essencialmente em sua efetividade concreta, em sua ener­
gia; e, na verdade, de modo que as exteriorizações delas sejam conhecidas
como determinadas pela interioridade do espírito.
§ 35
A terceira parte, a cosmologia, tratava do mimdo\ de sua contin­
gência, necessidade, eternidade; de seu ser limitado no espaço e no
tempo, das leis formais em suas variações; além disso, da liberdade
do homem e da origem do mal.
Como oposições absolutas, contam aqui sobretudo [as se­
guintes]; contingência e necessidade; necessidade interna e
externa; causas eficientes e finais, ou causalidade em geral e
fim; essência ou substância, e fenômeno; forma e matéria;
liberdade e necessidade; felicidade e sofrimento; bem e mal.
Adendo-. A cosmologia tinha por objeto não só a natureza, mas também
o espírito em suas implicações exteriores, em seu fenômeno; portanto, em
geral o ser-aí, o teor [Inbegriff] do finito. No entanto, considerava esse
objeto concreto não como um Todo concreto, mas só segundo determina­
ções abstratas. Assim, discutiam-se aqui as questões, por exemplo, se rei­
nava no mundo o acaso ou a necessidade, se o mundo era eterno ou
criado. Em seguida, um interesse principal dessa disciplina formava-o o
estabelecimento das assim chamadas “leis cosmológicas universais” como,
por exemplo, esta: que não há “salto” na natureza. “Salto” quer dizer aqui
o mesmo que diferença qualitativa e mudança qualitativa, que aparecem
como não-mediatizadas, enquanto o que é gradual (quantitativo) se apre­
senta, ao contrário, como algo mediatizado.
Em relação ao espírito, tal como se manifesta no mundo, o que se
debatia na cosmologia eram principalmente as questões sobre a liberdade
do homem e a origem do mal. Com toda certeza, essas são questões do
mais alto interesse. Para respondê-las, contudo, de maneira satisfatória, é

97
preciso antes de tudo que não se fixem as determinações abstratas do
entendimento, como o que há de último, no sentido de que cada uma das
duas determinações de uma oposição teria por si mesma uma consciência,
e em seu isolamento haveria de considerar-se como algo substancial c
verdadeiro. Era esse, no entanto, o ponto de vista da metafísica antiga,
não só em geral, mas também nas discussões cosmológicas que por esse
motivo não podiam corresponder a seu fim, de conhecer os fenômenos do
mundo. Assim, por exemplo, trazia-se à consideração a diferença entre
liberdade e necessidade, e aplicavam-se essas determinações à natureza e
ao espírito, de maneira tal que se considerava a natureza em seus efeitos
como submetida à necessidade [Notw.], mas o espírito como livre. Ora.
essa diferença é certamente essencial e fundada no mais íntimo do pró­
prio espírito. Contudo, liberdade e necessidade, enquanto se contrapõem
abstratamente uma à outra, pertencem somente à finitude e só valem no
terreno desta. Uma liberdade que não teria em si necessidade alguma:
uma simples necessidade sem liberdade são determinações abstratas e.
por isso, não-verdadeiras. A liberdade é essencialmente concreta, deter­
minada em si de maneira eterna, e, portanto, ao mesmo tempo necessária.
Quando se fala de necessidade, costuma-se entender sob esse termo, antes
de tudo, só determinação [vinda] de fora; como por exemplo, na mecânica
finita, um corpo só se move quando é impelido por outro corpo; e certa­
mente na direção que lhe foi transmitida por esse choque. No entanto,
isso é uma necessidade simplesmente exterior; não a necessidade verda­
deiramente interior, pois essa é a liberdade. Ocorre o mesmo com a opo­
sição do bem e do mal\ essa oposição do mundo moderno que se aprofundou
em si mesmo. Se consideramos o mal como algo fixo para si — e que não
é o bem — sob certa condição isso é inteiramente correto, e a oposição
[de bem e mal] a ser reconhecida; e a sobredita condição é que [a] apa­
rência e [a] relatividade [da oposição] não podem ser tomadas como se
mal e bem fossem no absoluto um só, [ou,] segundo se disse recentemen­
te com acerto, como se algo só se tornasse mau por meio de nossa visão
[a seu respeito], Mas o errado é que se veja o mal como algo positivo fixo,
enquanto ele é o negativo, que não tem nenhuma subsistência para si,
mas somente quer ser para si mesmo; e de fato em si é apenas a aparência
absoluta da negatividade.
§ 36
A quarta parte — a teologia natural ou racional — considerava
o conceito de Deus ou sua possibilidade as provas do seu ser-aí e
suas propriedades.
98
a) Nessa consideração de Deus, [própria] do entendimento,
importa sobretudo [ver] que predicados convêm ou não àquilo
que nós nos representamos por Deus. A oposição de realidade
e negação apresenta-se aqui como absoluta; portanto fica para
o conceito, tal como a razão o toma, no fim a abstração vazia da
essência indeterminada, da pura realidade ou positividade —
o produto morto do Iluminismo moderno.
b) O provar, [próprio] da consciência finita, mostra em geral
a posição absurda, de que deve ser indicado um funda­
mento objetivo de Deus que, por conseguinte, se apresen­
ta como algo mediatizado por um outro. Esse provar, que
tem por regra a identidade-de-entendimento, é estorvado
pela dificuldade de fazer a passagem do finito para o infi­
nito. Assim, ou não podia libertar Deus da finitude — que
permanece positivamente — do mundo aí-essente, de modo
que Deus tinha de ser determinado como a substância
imediata do mundo (panteísmo); ou então Deus ficava como
um objeto defronte do sujeito, e desse modo, portanto,
como algo finito (dualismo).
c) As propriedades [atributos], embora devam ser determina­
das e diversas, naufragam propriamente no conceito abs­
trato da realidade pura, da essência indeterminada. Mas na
medida em que, na representação, o mundo finito ainda
permanece um verdadeiro ser, e Deus contraposto a ele,
introduz-se também a representação de relações diversas
de Deus para com o mundo. Essas relações, [sendo] deter­
minadas como propriedades, por um lado enquanto rela­
ções para com situações finitas, devem ser elas mesmas de
espécie finita (por exemplo, justo, bondoso, poderoso, sá­
bio etc.) mas, por outro, devem ser ao mesmo tempo infi­
nitas. Desse ponto de vista, essa contradição só permite a
solução nebulosa [de se sublimar essas propriedades] por
uma elevação quantitativa, ao “sensum eminentiorem”.
Mas com isso, a propriedade é de fato reduzida a nada; só
lhe foi deixado simplesmente um nome.
Adendo: Nessa parte da antiga metafísica, tratava-se de estabelecer até
onde a razão por si mesma podia levar no conhecimento de Deus. Conhe­

99
cer a Deus pela razão é certamente a suprema tarefa da ciência. A religião
contém, antes de tudo, representações de Deus. Essas representações,
tais como estão reunidas na profíssão-de-fé, foram-nos comunicadas des­
de a juventude como ensinamentos da religião, e, na medida em que o
indivíduo crê nesses ensinamentos e são para ele a verdade, tem o que
precisa enquanto cristão. Ora, a teologia é a ciência dessa fé. Se a teologia
der simplesmente uma exterior enumeração e compilação dos ensinamen­
tos da religião, não é ainda uma ciência. Também, pela maneira simples­
mente histórica — hoje em dia tão estimada — de tratar seu objeto (como,
por exemplo, relatando o que disse certo Padre-da-Igreja), a teologia não
recebe ainda o caráter da cientificidade. Isso só ocorre quando se avança
até ao pensar conceituante, que é a tarefa da filosofia. Ao mesmo tempo,
a verdadeira teologia é assim, essencialmente, filosofia da religião, e isso
o era também na Idade Média.
No que toca mais de perto à teologia racional da velha metafísica, ela
não era uma ciência-de-razão, mas uma ciência de entendimento sobre Deus,
e seu pensar só se movia em abstratas determinações-de-pensamento.
Quando aqui se tratava do conceito de Deus, era a representação de Deus
que formava o critério para o conhecimento. Mas o pensar tem de mover-
-se livremente em si mesmo; contudo, quanto a isso, deve-se notar igual­
mente que o resultado do livre pensar concorda com o conteúdo da reli­
gião cristã, pois ela é a revelação da razão. Porém não se chegava a tal
concordância naquela teologia racional. Enquanto ela se dirigia a determi­
nar a representação de Deus pelo pensamento, o que resultava como
conceito de Deus era só o abstrato [das Abstraktum] da positividade ou
da realidade em geral, com exclusão da negação; e, como conseqüência,
Deus era definido como a essência mais-real-de-todas. Ora, fácil é enten­
der que essa essência mais-real-de-todas, pelo fato de estar excluída dela
a negação, é justamente o contrário do que deve ser, e do que o entendi­
mento acredita ter nela. Em vez de ser o mais rico e o absolutamente
pleno, é antes, devido à sua compreensão abstrata, o que há de mais
pobre e o absolutamente vazio. A alma exige, com direito, um conteúdo
concreto; mas só há tal conteúdo quando contém em si a determinidade,"
isto é, a negação. Se o conceito de Deus for apreendido simplesmente
como o da essência abstrata ou como a mais-real de todas, Deus torna-se
desse modo para nós um simples Além, e não se pode mais falar de seu
conhecimento; pois, onde não há determinidade, também não é possível
conhecimento. A pura luz é pura escuridão.
O segundo interesse dessa teologia racional concernia às provas do
ser-aí de Deus. A coisa mais importante nisso é que a prova, como é
tomada pelo entendimento, é dependência de uma determinação com

100
respeito a outra. No procedimento dessa prova, tem-se um pressupôs
algo firme, do qual se segue outra coisa. Mostra-se pois assim a dependên<
de uma determinação para com uma pressuposição.
Ora, se o ser-aí de Deus deve ser provado dessa maneira, isso tem
sentido de que o ser de Deus deve depender de outras determinações, i
modo que essas assim constituem o fundamento do ser de Deus. Aqui
vê logo que deve resultar algo de distorcido, pois Deus deve justamen
ser absolutamente o fundamento de tudo, e assim não ser dependente c
Outro. Ora, com referência a isso, foi dito nos tempos modernos que
ser-aí de Deus não há que ser provado, mas deve ser conhecido imedi,
tamente. Entretanto, a razão entende por “prova” algo totalmente divers
do que [faz] o entendimento, e também o bom senso. O “provar” da razs
tem, decerto, por seu ponto de partida um Outro que Deus; só que em st
progressão não deixa esse Outro como um imediato e essente, rrias, ao mostr;
-lo como algo mediatizado e posto, resulta daí, ao mesmo tempo, que Dei
deve ser considerado como o que contém suprassumida nele a mediação: —
o verdadeiro Imediato, o originário, e o que sobre si mesmo repousa.
Quando se diz: “Considerai a natureza, ela vos conduzirá a Deu;
encontrareis um absoluto fim último”, não se pensa, ao dizer isso, qu
Deus seja algo mediatizado, mas somente que nós tomamos o caminh
para Deus a partir de um Outro, de modo que Deus, enquanto é a con
seqüência, ao mesmo tempo é o fundamento absoluto desse primeiro; <
que assim a posição se inverte: o que aparece como conseqüência mostra-si
como fundamento, e o que se apresentava primeiro como fundamento c
rebaixado a conseqüência. Esse é igualmente o caminho do provar racional
Se lançamos ainda um olhar, depois da discussão feita até aqui, par£
o procedimento da velha metafísica em geral, ressalta para nós como ek
consistia em que aquela metafísica apreendia os objetos-da-razão em
determinações-do-entendimento abstratas e finitas; fazendo assim, da
identidade abstrata, seu princípio. No entanto, essa infinidade-de-enten-
dimento, essa pura essência, ela mesma é apenas algo finito, porque a
particularidade está excluída dela, a limita e a nega. Em vez de chegar à
identidade concreta, essa metafísica persistia na identidade abstrata: mas
o que tinha de bom era a consciência de que só o pensamento é a
essencialidade do essente. Deram a matéria, para essa metafísica, os filó­
sofos da Antiguidade e especialmente escolásticos. Na filosofia especula­
tiva, o entendimento é sem dúvida um momento; mas um momento em
que não se permanece. Platão não é um metafísico dessa espécie, e menos
ainda Aristóteles, embora habitualmente se acredite no contrário.

101
B
S e g u n d a p o siç ã o d o p e n sa m e n t o
A RESPEITO DA OBJETIVIDADE

I — Empirismo
§ 37
O que levou primeiro ao empirismo foi a necessidade [Bediirfnis],
por um lado, de um conteúdo concreto ante as teorias abstratas do
entendimento, que por si mesmo não pode progredir de suas uni-
versalidades à particularização e determinação; por outro lado, [foi
a necessidade] de um firme ponto de apoio ante a possibilidade de
poder tudo provar no terreno das determinações finitas e segundo
seu método.
O empirismo, em lugar de procurar o verdadeiro no pensamen­
to mesmo, vai buscá-lo na experiência, no [que está] presente exte­
rior e interiormente.
Adendo: O empirismo deve sua origem à necessidade — indicada no
parágrafo acima — de um conteúdo concreto e de um firme ponto-de-apoio,
necessidade que a abstrata metafísica do entendimento não era capaz de

102
satisfazer. Quanto ao que nesse ponto concerne ao ser concreto do conteúdo,
em geral o que importa é que os objetos da consciência sejam conhecidos
como são determinados em si mesmos, e como unidade de determinações
diversas. Ora, como aliás vimos, não é isso de modo algum o caso na meta-
física-de-entendimento, segundo o princípio do entendimento. O pensar
[que é] simplesmente do entendimento é limitado à forma do abstratamente
universal, e não é capaz de progredir até a particularização desse universal.
Desse modo, por exemplo, a velha metafísica estava dirigida a descobrir pelo
pensamento o que era a essência ou a determinação fundamental da alma,
e dizia-se então que a alma era simples.
Essa simplicidade atribuída à alma tem aqui a significação da simpli­
cidade abstrata, com a exclusão da diferença, que como complexidade se
considerava ser a determinação fundamental do corpo, e depois, mais
amplamente, da matéria em geral. Ora, a simplicidade abstrata é uma
determinação muito pobre, pela qual não se pode de modo algum apreen­
der a riqueza da alma e, mais amplamente, do espírito. Enquanto o pensar
abstratamente metafísico se mostrava como insuficiente, viu-se que era
forçoso recorrer à psicologia empírica. Do mesmo modo se procedeu com
a física racional. Aqui, por exemplo, quando se dizia que o espaço era
finito, que a natureza não fazia saltos etc., isso era totalmente insatisfató­
rio diante da plenitude e da vida da natureza.
§ 38
O empirismo, de uma parte, tem com a metafísica essa fonte em
comum, enquanto ela, para legitimação de suas definições — dos
pressupostos, como do conteúdo mais determinado —, tem por garan­
tia igualmente as representações, isto é, o conteúdo que deriva primei­
ro da experiência. De outra parte, a percepção singular é diferente da
experiência, e o empirismo eleva o conteúdo pertencente à percepção,
ao sentimento e à intuição, à forma de representações, proposições e leis,
etc., universais. Contudo, isso ocorre só no sentido de que as determi­
nações universais (por exemplo, a força) não devam ter para si nenhu­
ma outra significação e validez além da tirada da percepção, e nenhu­
ma outra conexão que se possa comprovar no fenômeno deva obter
justificação. O conhecer empírico tem o firme ponto-de-apoio, segun­
do o lado subjetivo, no fato de que a consciência possui na percepção
sua própria e imediata presença e certeza.
Há no empirismo este grande princípio: o que é verdadeiro
deve estar na efetividade e existir para a percepção. Esse
103
princípio é oposto ao dever-ser, com o qual a reflexão se incha
de vaidade e atua com desprezo contra a efetividade e pre­
sença, invocando um Além que só deveria ter sua sede e seu
ser-aí no entendim ento subjetivo. Como o empirismo, tam ­
bém a filosofia só reconhece (§ 7) o que /; não sabe uma tal
coisa, que som ente deve ser, e que por isso não é-aí. Do lado
subjetivo, deve-se igualm ente reconhecer o im portante prin­
cípio da liberdade, que reside no empirismo; a saber, que o
hom em tem de ver ele mesmo o que deve adm itir em seu
saber[-se] a si mesmo, ali presente. Mas a realização conseqüente
do empirismo — na medida em que segundo o conteúdo se
limita ao finito — nega o supra-sensível em geral, ou pelo menos
seu conhecimento e sua determinidade, e só deixa ao pensar a
abstração, e a universalidade e a identidade formais.
A ilusão-básica no empirismo científico é sem pre esta: utili­
zar as categorias metafísicas de matéria, força, e tam bém uno,
múltiplo, universalidade, infinito etc., e além disso avançar
por silogismos na linha de tais categorias, ali pressupondo e
aplicando as formas do silogismo; e não saber que em tudo,
ele mesmo, assim inclui e pratica metafísica; e usa essas ca­
tegorias, e suas ligações, de uma maneira com pletam ente
acrítica e inconsciente.
Adendo'. Vem do empirismo o apelo: “Deixai o andar errante em abs­
trações vazias; olhai em vossas mãos, captai o aqui do homem e da natu­
reza, gozai do presente” — e não há que negar: aí está contido um mo­
mento legítimo. O aqui, o presente, o aquém deviam ser trocados com o
vazio Além, com as teias de aranha e as figuras-de-bruma do entendimen­
to abstrato. Assim então se adquire também o ponto-de-apoio firme que
faltava na velha metafísica, isto é, a determinação finita. O entendimento
só recolhe determinações finitas, que em si são sem apoio e vacilantes: e
o edifício construído sobre elas desmorona sobre si mesmo. Encontrar
uma determinação infinita era em geral a tendência da razão; mas ainda
não estava no tempo de encontrá-la no pensar. Assim, pois, essa tendência
apreendia o presente, o aqui, o isto; o que tem em si a forma infinita,
embora não na existência verdadeira dessa forma.
O exterior é em si o verdadeiro, pois o verdadeiro é efetivo e deve
existir. A determinidade infinita, portanto, que a razão procura está no
mundo; se bem que em figura sensivelmente singular, não em sua verda­

104
de. Ora, a percepção é, mais precisamente, a forma em que se devia con­
ceber; e esse é o defeito do empirismo. A percepção, como tal, é sempre
algo singular e transitório; contudo o conhecer não permanece aí, mas
busca, no universal percebido, o universal e o permanente; essa é a pro­
gressão da simples percepção para a experiência. Para fazer experiências,
o empirismo se serve principalmente da forma da análise. Na percepção,
tem-se algo variadamente concreto, cujas determinações devem ser sepa­
radas umas das outras; como uma cebola cujas cascas se tiram. Essa de­
composição tem assim o sentido de que se desprendem e decompõem as
determinações que “cresceram-juntamente” [con-cretas]; e de que nada
se acrescenta a não ser a atividade subjetiva do decompor. A análise
contudo é a progressão da imediatez da percepção até o pensamento,
enquanto as determinações que, em si, o objeto analisado contém reuni­
das recebem por serem separadas a forma da universalidade. O empirismo
ao analisar os objetos encontra-se em erro, se acredita que os deixa como
são; pois de fato ele transforma o concreto em um abstrato. Por isso ocor­
re, ao mesmo tempo, que se mata o que é vivo, porque vivo é só o
concreto, o uno. No entanto, deve haver essa separação para conceber; e
o espírito mesmo é em si a separação. Mas isso é apenas um dos lados, e
a coisa mais importante consiste na reunião do [que foi] separado. En­
quanto a análise fica no ponto de vista da separação, vale a seu respeito
aquela palavra do poeta:
“Isso a química chama ‘Encheiresin naturae’
que zomba dela mesma e que não sabe como;
Em suas mãos possui as partes. Mas, que penal
está faltando só o vínculo do espírito. ”
[Fausto de Goethe; palavras de Mefistófeles
ao estudante calouro.]
A análise parte do concreto, e nesse material tem muita vantagem
sobre o pensamento abstrato da velha metafísica. Estabelece as diferen­
ças, o que é de grande importância; mas essas diferenças são elas mesmas,
por sua vez, somente determinações abstratas, quer dizer, pensamentos.
Enquanto esses pensamentos contam como o que os objetos são em si,
temos de novo a pressuposição da velha metafísica, a saber, que no pensar
reside o verdadeiro das coisas.
Se agora comparamos ainda o ponto de vista do empirismo com o da
velha metafísica, no que concerne ao conteúdo, esta, como antes vimos, ti­
nha por seu conteúdo aqueles objetos universais da razão — Deus, a alma
e o mundo em geral. Esse conteúdo era recebido da representação, e a

105
tarefa da filosofia era reconduzi-los à forma de pensamentos. De maneira se­
melhante, as coisas se passavam coma filosofia escolástica. Para ela os dog­
mas da Igreja cristã formavam o conteúdo pressuposto, e tratava-se de fazer
deles, por meio do pensar, uma mais rigorosa determinação e sistematização.
O conteúdo pressuposto do empirismo é de natureza totalmente di­
versa: é o sensível da natureza, e o conteúdo do espírito finito. Aqui se
tem diante de si material finito, enquanto na velha metafísica [se tinha]
o material infinito. Depois, esse material infinito se finitizou, mediante a
forma finita do entendimento. No empirismo, temos a mesma finitude da
forma, e, além disso, também o conteúdo é ainda finito. O método, aliás,
nessas duas maneiras de filosofar é o mesmo, enquanto nas duas se partiu
de pressuposições como de algo fixo. Para o empirismo, o exterior é em
geral o verdadeiro, e, se depois se admite também um supra-sensível, não
poderia haver um conhecimento dele, mas se deveria ficar meramente no
que pertence à percepção. Porém esse princípio, na sua realização, deu o
que mais tarde se designou como matenálismo. Para esse materialismo, a
matéria, enquanto tal, conta como o verdadeiramente objetivo. Mas a
matéria é já ela mesma um abstrato, que como tal não pode ser percebido.
Por esse motivo pode-se dizer que não há matéria, porque, tal como existe,
ela é sempre algo determinado, concreto. Contudo, o abstrato da matéria
deve ser o fundamento para todo o sensível — o sensível em geral, a
absoluta singularização em si, e portanto o essente-fora-de um-do-outro.
Ora, enquanto esse sensível é — e permanece — um dado para o
empirismo, temos uma doutrina da não-liberdade, porque a liberdade
consiste justamente em que eu não tenha diante de mim nada absoluta­
mente outro, mas dependa de um conteúdo que sou eu mesmo. Aliás,
desse ponto de vista, razão e desrazão são apenas subjetivas, isto é, temos
de aceitar o dado como ele é, e não temos direito de indagar se é — e em
que medida é — em si racional.
§ 39
Sobre esse princípio [do empirismo] foi feita inicialmente a
reflexão justa, de que naquilo que se chama experiência — e se
deve distinguir de simples percepção de fatos singulares — encon­
tram-se dois elementos. Um é a matéria para si mesma singularizada,
infinitamente diversa\ o outro é a forma, as determinações da univer­
salidade e da necessidade. A empiria mostra, decerto, percepções
semelhantes numerosas, talvez inúmeras; mas a universalidade é
ainda algo completamente diverso do grande número. A empiria
fornece bastantes percepções de mudanças que-se-sucedem [no tem­
106
po] e de objetos que-se-sitiiam-ao-lado-uns-dos-outros [no espaço];
mas não uma conexão necessária. Ora, como a percepção deve cons­
tituir o fundamento do que conta por verdade, aparece a universali­
dade e a necessidade como algo injustificado, como uma contingên­
cia subjetiva, um simples hábito cujo conteúdo pode ser constituí­
do de um modo ou de outro.
Uma importante conseqüência disso é que, na maneira empírica
[de filosofar], as determinações e leis jurídicas e éticas, como
também o conteúdo da religião, aparecem como algo contingen­
te, e cuja objetividade e verdade interna se abandona.
De resto, há que distinguir muito bem o cepticismo de Hume
— donde principalmente procede a reflexão acima — do cepti­
cismo grego. O cepticismo de Hume tem por base a verdade do
empírico, do sentimento, da intuição, e daí impugna os princí­
pios e as leis gerais, pelo motivo de não terem justificação por
meio da percepção sensível. O cepticismo antigo estava tão
distante de fazer do sentimento da intuição, o princípio da ver­
dade, que antes se voltava contra todo o sensível.
(Sobre o cepticismo moderno em sua comparação com o an­
tigo, ver o Jornal crítico da filosofia, de Schelling e Hegel,
1802, I vol., p. 2.)

II — Filosofia Crítica

§ 40
A filosofia crítica tem em comum com o empirismo admitir a
experiência como o único terreno dos conhecimentos; que aliás ela
não reconhece por verdades mas somente por conhecimentos de
fenômenos.
Parte-se, primeiro, da distinção dos elementos que se encon­
tram na análise da experiência, da matéria sensível e suas relações
universais. Ligando a isso a reflexão exposta no parágrafo preceden­
te — de que, na percepção por si, só está contido o singular e só
o que acontece — insiste-se ao mesmo tempo no fato de que a univer­
salidade e a necessidade já se encontram, como determinações igual­
107
mente essenciais, no que se chama experiência. Ora, já que esse
elemento não deriva do empírico enquanto tal, pertence à espon­
taneidade do pensar; ou seja, é “a priori”. As determinações-de-
-pensamento ou conceitos-de-entendimento constituem a objetivida/k
dos conhecimentos-de-experiência. Contêm em geral relações, e poi
seu meio se formam, pois, os juízos sintéticos a priori (quer dizer,
originárias relações de opostos).
Este fato não é posto em contestação no cepticismo de Hume:
que no conhecimento se encontram as determinações da universa­
lidade e da necessidade. Na filosofia kantiana, isso também não é
outra coisa que um fato pressuposto: pode-se dizer, conforme a
linguagem habitual das ciências, que o Kantismo apenas encontrou
uma outra explicação para aquele fato.
§ 41
A filosofia crítica submete então a exame, antes de tudo, o
valor dos conceitos-do-entendimento utilizados na metafísica, e, aliás,
também nas outras ciências e na representação ordinária. No en­
tanto, não se dirige essa crítica ao conteiido e à relação determinada,
dessas determinações-de-pensamento entre si, mas considera-se se­
gundo a oposição de subjetividade e objetividade em geral. Essa opo­
sição, como é aqui tomada, refere-se (ver parágrafo anterior) à dife­
rença dos elementos no interior da experiência. A objetividade signi­
fica aqui o elemento de universalidade e necessidade, quer dizer, o
elemento das próprias determinações-de-pensamento — o assim
chamado a priori. Mas a filosofia crítica alarga a oposição de modo
que na subjetividade entra o conjunto da experiência — isto é, jus­
tamente aqueles dois elementos — e que nada subsiste perante
ela, a não ser a coisa-em-si.
As'formas mais precisas do a p riori — quer dizer, do pensar, e, sem
dúvida, do pensar enquanto atividade subjetiva, a despeito de sua
objetividade — se produzem da maneira seguinte: [como] uma siste-
matização que aliás só repousa sobre bases psicológico-históricas.
Adendo I: Não há dúvida de que foi um passo muito importante pelo
fato de se submeterem a exame as determinações da velha metafísica. O
pensar ingênuo caminhava sem maldade nessas determinações, que se faziam
diretamente e de si mesmas. Não se pensava, nesse caso, em que medida
108
essas determinações poderiam ter para si valor e validade. Anteriormente, já
foi notado que o livre pensar é algo que não tem pressuposição alguma. O
pensar da velha metafísica não era um livre pensar, porque admitia suas
determinações sem mais, como algo preexistente, como um “a priori” que
a reflexão não tinha, ela mesma, examinado. A filosofia crítica, ao contrário,
assumiu por tarefa examinar em que medida, de modo geral, as formas do
pensar são capazes de proporcionar o conhecimento da verdade. Mais pre­
cisamente, seria preciso examinar a faculdade-de-conhecimento antes do
[ato de] conhecer. Ora, nisso há de correto que as próprias formas do pensar
devem ser tomadas com objeto do conhecimento; só que logo se insinua,
também, o equívoco que consiste em querer conhecer já antes do conheci­
mento, ou em não querer entrar n‘água antes de ter aprendido a nadar.
Decerto, as formas do pensar não devem ser utilizadas sem exame: mas esse
próprio exame é já um conhecimento. E preciso, assim, que estejam reuni­
das no conhecimento a atividade das formas-de-pensamento e sua crítica. As
formas-de-pensamento devem ser consideradas em si e para si; são o objeto
e a atividade do objeto mesmo; examinam-se a si mesmas, e devem deter­
minar nelas mesmas seu limite e mostrar sua falha. É isso, pois, aquela
atividade do pensar; que logo, como dialética, será levada a um estudo par­
ticular; sobre ela, aqui apenas se tem a notar, por enquanto, que não se
aplica, como de fora, às determinações-de-pensamento; mas, antes, deve ser
considerada como imanente a essas mesmas determinações.
Assim, o que primeiro aparece na filosofia de Kant é que o pensar
mesmo deve examinar-se, [para ver] em que medida é capaz de conhecer.
Ora, atualmente se chegou além da filosofia kantiana, e cada um quer
estar mais longe. Estar mais longe, porém, se dá de dois modos: há um
mais-longe para a frente e um mais-longe para trás. Muitos de nossos
esforços filosóficos, olhados à luz, não são outra coisa que o procedimento
da velha metafísica, um pensar-passado acrítico, tal como foi dado preci­
samente a cada um.
Adendo 2\ O exame kantiano das determinações-de-pensamento pa­
dece essencialmente do defeito de que elas não são consideradas em si
e para si, mas só sob este enfoque: se são subjetivas ou objetivas. Por
objetivo se entende, no uso-lingüístico da vida ordinária, o que está pre­
sente fora de nós, e que nos chega de fora pela percepção. Então Kant
punha em contestação que às determinações-de-pensamento (como por
exemplo causa e efeito) lhes coubesse uma objetividade no sentido aqui
mencionado, isto é, que fossem dadas na percepção; e, ao contrário, consi-
derava-as como pertencentes a nosso pensar mesmo, ou à espontaneidade
do pensar — e, nesse sentido, como subjetivas. Ora, Kant chama o pensa­

109
do, e mais precisamente o universal e o necessário, “objetivo”, e [denominai
“subjetivo” o que é apenas [por nós] sentido. O uso lingüístico, a que anos
aludimos, aparece nisso como posto de cabeça para baixo; e por esse motivo
se acusou Kant de confusão-de-linguagem; mas com grande injustiça. Dc
fato, as coisas se passam da maneira que segue. A consciência ordinária,
parece o que lhe está diante, o que é perceptível pelos sentidos (por exem­
plo, este animal, esta estrela etc.), como algo para si consistente, subsistente:
e, ao contrário, os pensamentos contam para ela como o não-subsistente-em-
-si, como o dependente de um outro. Ora, de fato o perceptível pelos sen­
tidos é propriamente o não-subsistente-em-si, e o secundário; e, ao contrária,
os pensamentos são o verdadeiramente subsistente-em-si e o primitivo. Nesse
sentido, Kant chamou “o objetivo''' o [que é] conforme-ao-pensamento (o
universal e necessário); e sem dúvida com pleno direito. Por outro lado, o
perceptível pelos sentidos é sem dúvida o subjetivo enquanto não tem seu
ponto-de-apoio em si mesmo; e tanto ele em si mesmo; e tanto ele é fugaz
e efêmero, quanto o caráter da duração e da consistência interna compete ao
pensamento. A determinação, aqui mencionada e posta em vigor por Kant.
da diferença entre o objetivo e o subjetivo, encontramo-la pois, ainda hoje
em dia, no uso lingüístico das consciências melhor cultivadas. Assim por
exemplo exige-se, da apreciação de uma obra-de-arte, que deve ser objetiva
e não subjetiva, e com isso se entende que não deve derivar de casual e
particular sensação e humor do momento, mas deve captar nos seus olhos os
aspectos universais e fundados na essência da arte. No mesmo sentido pode-
-se, em uma atividade científica, distinguir entre um interesse objetivo e um
interesse subjetivo.
Mas além disso a objetividade kantiana, por sua vez, é também apenas
subjetiva, enquanto os pensamentos segundo Kant — embora sejam deter­
minações universais e necessárias — são contudo somente nossos pensamen­
tos, e diferentes do que a coisa é em si, por um abismo intransponível. Ao
contrário, a verdadeira objetividade do pensar é a objetividade em que os
pensamentos não são nossos pensamentos simplesmente, mas ao mesmo
tempo são o Em-si das coisas e do objetivo em geral. Objetivo e subjetivo são
expressões cômodas que se utilizam com facilidade, e em cujo emprego,
contudo, surge muito facilmente confusão. De acordo com a discussão que
precede, a objetividade tem uma tríplice significação. Primeiro, a significação
da presença exterior, em diferença com o apenas subjetivo, visado, sonhado
etc. Segundo, a significação estabelecida por Kant, do universal e necessário
em diferença do casual, particular e subjetivo, pertencente só a nossa sensa­
ção. Terceiro, a significação, antes indicada por último, do Em-si pensado, do
Em-si que está-aí — em diferença daquilo que é somente pensado por nós
e, portanto, algo diferente ainda da Coisa mesma, ou em si.
110
§ 42

a) A faculdade teórica, o conhecimento como tal


Essa filosofia declara como fundamento determinado dos con-
ceitos-de-entendimento a identidade originária do Eu no pensar
(nnidade transcendental da consciência-de-si). As representações
dadas por meio do sentimento e da intuição são, segundo seu con­
teúdo, algo multiforme', assim como, segundo sua forma, por meio do
fora-um-do-outro da sensibilidade [essas representações] estão em
suas duas formas — espaço e tempo — que, como formas (como o
universal) do intuir são formas “a priori”. Esse multiforme do sen­
tir e do intuir, enquanto o Eu a si o refere, e em si o reúne, como
em uma só consciência (apercepção pura), é, desse modo, levado à
identidade, a uma união originária. Os modos determinados desse
referir-se são os conceito.s puros do entendimento, as categorias.
Como é bem conhecido, a filosofia kantiana portou-se muito à
vontade no descobrimento das categorias. O Eu, a unidade da
consciência-de-si, é totalmente abstrato e completamente inde­
terminado; como, pois, chegar às determinações do Eu, das ca­
tegorias? Felizmente na lógica habitual já se encontram,
empiricamente dadas, as diversas espécies de juízos. Ora, julgar é
pensar um objeto determinado. As diversas maneiras de julgar,
já bem enumeradas, fornecem portanto as diversas determinações
do pensar. Resta à filosofia de Fichte o profundo mérito de ter
lembrado que as determinações-de-pensamento têm de ser mostra­
das em sua necessidade, que elas são essencialmente a deduzir.
Essa filosofia deveria ter tido, sobre o método de tratar a lógica,
pelo menos o efeito de que as determinações-de-pensamento
em geral, 011 os materiais lógicos usuais — as espécies dos concei­
tos, dos juízos, dos silogismos —, não fossem mais tiradas da
observação, e apreendidas assim de modo simplesmente
empírico, mas deduzidas do pensar mesmo. Se o pensar deve
ser capaz de provar seja o que for, se a lógica deve exigir que
provas sejam dadas, e se quer ensinar o provar, ela deve mesmo
ser capaz, antes de tudo, de demonstrar seu conteúdo peculiar:
de discernir sua necessidade.
111
Adendo /: Assim, é afirmação de Kant que as determinações-de-pen-
samento têm sua fonte no Eu, e que por conseguinte o Eu dá as de­
terminações da universalidade e da necessidade. Se considerarmos o que
temos inicialmente diante de nós [veremos] que é algo multiforme em
geral; as categorias são então “simplicidades”, às quais esse multiforme
se refere. O sensível, ao contrário, é o [ser] fora-um-do-outro, o essente-
-fora-de-si; eis sua determinação-básica peculiar. Assim, por exemplo, o
“agora” só tem [seu] ser em relação com um antes e um depois. Igual­
mente, só há o vermelho enquanto o amarelo e o azul se lhe opõem. Mas
esse Outro está fora do sensível, e este só é enquanto não é o outro; e
somente enquanto o Outro é. Com o pensar ou o Eu, as coisas se passam
de modo diretamente inverso do que [sucede] com sensível, essente
fora-um-do-outro e fora de si. O Eu é o originariamente idêntico, uno
consigo mesmo, e absolutamente Essente junto-de-si. Se eu digo: “Eu”,
eis a relação abstrata para consigo mesmo, e o que nesta unidade está
posto é por ela contaminado e mudado nela. O Eu, assim, é de certo
modo o crisol e o fogo pelo qual a multiformidade indiferente é consu­
mida e reduzida à unidade. E isso que Kant chama “apercepção pura”,
para diferenciar da apercepção ordinária que em si acolhe o diverso como
tal, enquanto a apercepção pura deve ser considerada como a atividade
do “fazer-meu”.
Com isso, sem dúvida, está agora expressa corretamente a natureza
de toda a consciência. Em geral, a aspiração dos homens tende a conhecer
o mundo, a apropriar-se dele, e a subjugá-lo. Para tal fim, a realidade do
mundo deve, por assim dizer, ser esmagada, isto é, idealizada. Mas, ao
mesmo tempo, há que notar que não é a atividade subjetiva da consciên-
cia-de-si que introduz a unidade absoluta na multiformidade. Melhor,
essa identidade é o absoluto, o verdadeiro mesmo. E, por assim dizer,
bondade do absoluto deixar as singularidades irem ao seu gozo-de-si; e é
o próprio Absoluto que as reconduz à unidade absoluta.
Adendo 2\ Expressões tais, como unidade transcendental da consciência-
-de-si, parecem muito difíceis [de compreender] como se algo de enorme
se escondesse atrás da montanha; mas a Coisa é mais simples. O que Kant
entende por transcendental ressalta de sua diferença com transcendente. A
saber: o transcendente é, em geral, o que ultrapassa a determinidade do
entendimento, e nesse sentido encontra-se antes de tudo na matemática.
Assim, por exemplo, diz-se na geometria que se deve representar a cir­
cunferência do círculo como composta de um número infinito de linhas
retas infinitamente pequenas. Aqui, pois, as determinações que contam
para o entendimento como absolutamente diversas (o reto e o curvo) são

112
postas expressamente como idênticas. Ora, é um tal transcendente tam­
bém a consciência-de-si, idêntica consigo mesma e em si mesma infinita;
diversamente da consciência comum, determinada por [uma] matéria finita.
Kant designou contudo essa unidade da consciência-de-si somente como
transcendental, e entendeu com isso que ela era apenas subjetiva, e que
não pertencia também aos objetos mesmos, tais como são em si.
Adendo 3: Deve parecer muito bizarro à consciência natural que as
categorias tenham de ser consideradas somente como pertencendo a nós
(como subjetivas). Sem dúvida, há nisso algo distorcido. Entretanto, é
correto que as categorias não estão contidas na sensação imediata. Conside­
remos, por exemplo, um pedaço de açúcar: ele é duro, branco, doce etc.
Dizemos então que todas essas propriedades estão reunidas em um só
objeto, e essa unidade não está na sensação. O mesmo sucede se conside­
rarmos dois eventos como estando entre eles na relação de causa e efeito.
O que aqui se percebeu foram os dois eventos singulares, que se sucedem
no tempo. Porém, que um seja a causa e o outro, o efeito (o nexo causai
entre os dois), isso não é percebido, mas só está presente para nosso
pensar. Ora, ainda que as categorias (como por exemplo unidade, causa e
efeito etc.) já pertençam ao pensar enquanto tal, contudo daí não se se­
gue, de modo algum, que elas por isso sejam simplesmente algo nosso, e
não também determinações do objeto mesmo. Ora, esse deve ser o caso,
segundo a compreensão de Kant; e sua filosofia é idealismo subjetivo, na
medida em que o Eu (o sujeito cognoscente) forneceria não somente a
forma, mas também a matéria do conhecimento; a forma enquanto [sujei­
to] que pensa, c a matéria enquanto [sujeito] que sente.
Segundo o conteúdo desse idealismo subjetivo, de fato não há que
ocupar-se com isso. Talvez se pudesse inicialmente opinar que a realidade
foi retirada aos objetos, pelo fato de ser transferida sua unidade ao sujeito.
No entanto, simplesmente porque o ser lhes compete, nem os objetos nem
nós ganharíamos algo. O que importa é o conteúdo: se esse conteúdo é um
conteúdo verdadeiro. O fato de que as coisas simplesmente são, isso não lhes
serve para nada. O tempo acomete o essente, que logo se torna também não-
-essente. Seria possível dizer igualmente que o homem, segundo o idealismo
subjetivo, pode fazer uma idéia elevada de si mesmo. Porém, quando seu
mundo é a massa das intuições sensíveis, ele não tem motivo para ser
orgulhoso de tal mundo. Essa diferença entre subjetividade e objetivida­
de não tem em geral nenhuma importância, mas o que importa é o con­
teúdo; e esse é tanto subjetivo como também objetivo. Objetivo no sen­
tido da simples existência, um crime também é; mas é uma existência em
si nula, que então, também como tal, chega ao ser-aí no castigo.
§ 43
De um lado, é por meio das categorias que a percepção simples
é elevada à objetividade, à experiência. Mas, de outro lado, esses
conceitos como unidades somente da consciência objetiva são con­
dicionados pela matéria dada, são para si vazios e têm sua aplicação
e emprego unicamente na experiência. A outra parte constitutiva
da experiência — as determinações do sentimento e da intuição —
também são algo subjetivo apenas.
Adendo• E infundado afirmar das categorias que “são por si vazias” já que
elas têm em todo caso seu conteúdo, pelo fato de serem determinadas. Mas
na verdade o conteúdo das categorias não é, evidentemente, um conteúdo
perceptível -pelos sentidos, nem um conteúdo espácio-temporal. Porém não
há que considerar isso como um defeito, mas antes como uma vantagem das
categorias. Isso é algo que já na consciência ordinária também encontra seu
reconhecimento, e sem dúvida na maneira que se diz, por exemplo, de um
livro ou de um discurso, que são tanto mais ricos de conteúdo quanto neles
se podem encontrar mais pensamentos, resultados gerais etc.; e vice-versa
um livro, talvez mais especialmente um romance, ainda não se valoriza como
rico de conteúdo por estar ali amontoada uma grande quantidade de acon­
tecimentos singulares, situações e coisas semelhantes. Portanto, é desse modo
reconhecido expressamente pela consciência ordinária que ao conteúdo per­
tence mais que a matéria sensível; ora, esse “mais” são os pensamentos e
aqui, antes de tudo, as categorias. A propósito, pode-se ainda notar que a
afirmação de que “as categorias são por si vazias” tem com certeza um
sentido exato, enquanto não se deve ficar nelas e na sua totalidade (na idéia
lógica), mas avançar até aos domínios reais da natureza e do espírito. No
entanto, essa progressão não pode ser entendida como se por seu meio viesse
de fora, para a idéia lógica, um conteúdo a ela estranho; mas há de entender-
se que é a atividade própria da idéia lógica determinar-se ulteriormente e
desdobrar-se em direção da natureza e do espírito.
§ 44
As categorias são pois incapazes de ser determinações do abso­
luto, enquanto o absoluto não é dado em uma percepção; e o en­
tendimento — ou o conhecimento por meio das categoíias — é por
isso incapaz de conhecer as coisas em si.
A “coisa-em-si” (e por coisa compreende-se também o espíri­
to, inclusive Deus) exprime o objeto na medida em que se
114
abstrai de tudo o que ele é para a consciência, de todas as
determinações do sentimento, como de todos os pensamen­
tos determinados [a respeito] do objeto. E fácil ver o que
resta: o completamente abstrato, o totalmente vazio , ainda de­
terminado somente como [algo] além\ o negativo da represen­
tação, do sentimento, do pensamento determinado etc. Mas
é igualmente simples a reflexão de que esse caput mortuum,
por sua vez, é apenas o produto do pensar, justamente do
pensar que avançou até a pura abstração; do Eu vazio, que
faz, dessa pura identidade de si mesmo, objeto para si. A de­
terminação negativa que essa identidade abstrata recebe,
enquanto objeto, está igualmente enumerada entre as catego­
rias kantianas, e é algo totalmente bem-conhecido, assim como
essá identidade vazia. Depois disso, só se deve admirar de
ter lido, repetido tantas vezes, que não se sabe o que é a
coisa-em-sr, e nada é mais fácil que saber isso.
§ 45
E então a razão a faculdade do incondicionado que discerne o
[caráter] condicionado desses conhecimentos-da-experiência. O que
se chama aqui objeto da razão — o incondicionado ou o infinito —
não é outro que o igual-a-si-mesmo, ou é a identidade originária
(mencionada no § 42) do Eu no pensar. Razão significa esse Eu
abstrato ou o pensar, que faz da identidade pura seu objeto ou fim
(ver a nota do parágrafo precedente). A essa identidade absolutamen­
te sem-determinação, são inadequados os conhecimentos da experiên­
cia, pois são em geral de um conteúdo determinado. Enquanto esse
incondicionado é tomado pelo absoluto e verdadeiro da razão (pela
Idéia), os conhecimentos da experiência são então declarados como
o não-verdadeiro, como fenômenos.
Adendo-. A diferença entre entendimento e razão foi posta em evi­
dência, com precisão, primeiro por Kant; e estabelecida de forma que o
entendimento tem por objeto o finito e o condicionado, enquanto a razão,
o infinito e o incondicionado. Embora se deva reconhecer já como um
resultado muito importante da filosofia kantiana que tenha posto em vigên­
cia a finitude do conhecimento-do-entendimento que repousa simples­
mente na experiência, e designado seu conteúdo como fenômeno, não se

115
pode ficar nesse resultado negativo, e reduzir o incondicionado da razão
simplesmente à identidade abstrata consigo, excludente da diferença.
Quando a razão, dessa maneira, é considerada simplesmente como o [ato
de] ultrapassar o finito e condicionado do entendimento, de fato é rebai­
xada assim a algo finito e condicionado: porque o verdadeiramente infi­
nito não é um simples além do finito, mas o contém em si mesmo como
suprassumido. O mesmo vale também para a Idéia, que Kant na verdade
pôs novamente em honra ao diferenciá-la de determinações abstratas do-
entendimento, ou inclusive de representações simplesmente sensíveis
(coisas como essas, já na vida ordinária também se costumam chamar
idéias). Kant reivindicou a idéia para a razão; porém, no que respeita à
razão, ficou igualmente no negativo, e no simples dever-ser. Também [o
que disse] quanto à apreensão dos objetos de nossa consciência imediata
—- que formam o conteúdo do conhecimento da experiência — como
simples fenômeno, isso em todo o caso deve ser considerado com um
resultado muito importante da filosofia kantiana. Para a consciência comum
(isto é, da sensibilidade e entendimento) os objetos, sobre os quais sabe,
valem em sua singularização como autônomos e repousando sobre si; e,
enquanto se mostram como referidos um ao outro, e condicionados um
pelo outro, essa sua dependência recíproca é considerada como algo exte­
rior aos objetos e não pertencente à sua essência. Ao contrário, deve-se
afirmar decerto que os objetos, dos quais sabemos imediatamente, são
simples fenômenos, quer dizer: o fundamento de seu ser, não o têm em
si mesmos, mas em um Outro. Mas além disso o que importa é como esse
Outro é determinado. Conforme a filosofia kantiana, as coisas, sobre as
quais sabemos, são somente fenômenos para nós; e seu Em-si para nós
permanece um além que nos é inacessível.
Esse idealismo subjetivo, segundo o qual o que forma o conteúdo de
nossa consciência é algo somente nosso, somente posto por nós, com razão
escandalizou a consciência ingênua. A verdadeira situação de fato é esta:
que as coisas, sobre as quais sabemos imediatamente, são simples fenô­
menos, não apenas para nós, mas em si, e que a determinação própria das
coisas, [que são] por isso finitas, é ter o fundamento de seu ser não em
si mesmas, mas na idéia divina universal. Essa apreensão das coisas pode
também ser designada como idealismo; todavia — diferentemente desse
idealismo subjetivo da filosofia crítica — como idealismo absoluto. Embora
indo além da consciência comum realista, mas no seguimento da Coisa,
[o idealismo absoluto] deve ser considerado tão pouco simplesmente como
uma propriedade da filosofia, que forma, antes, o fundamento de toda a
consciência religiosa, que considera o conjunto [o teor] de tudo o que é-
aí, o mundo existente em geral, como criado e governado por Deus.

116
§ 46
Surge porém a necessidade [Bedtirfnis] de conhecer essa iden­
tidade, ou a coisa-em-si vazia. Conhecer não quer dizer outra coisa
que saber um objeto segundo seu conteúdo determinado. Mas con­
teúdo determinado contém nele conexão multiforme, e funda cone­
xão com muitos outros objetos. Para essa determinação daquele
infinito ou coisa-em-si, a razão nada teria a não ser as categorias;
quando quer empregá-las para isso, torna-se “sobrevoante” (trans­
cendente).
Aqui entra em cena o segundo lado da Crítica da razão [pura];
e esse lado é mais importante que o primeiro. E que o pri­
meiro é o enfoque acima apresentado, de que as categorias
têm sua fonte na unidade da consciência-de-si; que, por isso,
o conhecimento por meio delas na verdade nada contém de
objetivo, e a objetividade que lhes é atribuída (§§ 40-41) é
ela mesma somente algo de subjetivo. Se apenas nisso se
repara, a crítica kantiana é simplesmente um idealismo subje­
tivo (superficial) que não se introduz no conteúdo, só tem
diante de si as formas abstratas da subjetividade e da obje­
tividade, e em verdade se atém unilateralmente à primeira,
à subjetividade, enquanto determinação última absolutamente
afirmativa. Mas no exame da assim chamada aplicação, que a
razão faça das categorias para o conhecimento de seus obje­
tos, vem a falar-se do conteúdo das categorias, ao menos
segundo algumas determinações; ou, ao menos, haveria aí
uma ocasião para que se pudesse falar dele. Há um interesse
especial em ver como Kant julga essa aplicação das categorias
ao incondicionado, isto é, à metafísica. Esse procedimento deve
ser aqui brevemente exposto e criticado.
§ 47
1 )0 primeiro incondicionado que se toma em consideração é a alma
(ver acima, § 34). Em minha consciência encontro-me sempre: a) como
o sujeito determinante', b) como um singidar ou abstratamente simples; c)
como o [que é] um só e o mesmo em todo o múltiplo diverso de que
eu sou consciente: como identiar, d) como algo que me diferencio en­
quanto ser presente de todas as coisas fora de mim.
117
O procedimento da velha metafísica é agora indicado com pre­
cisão: coloca, no lugar dessas determinações empíricas, determina-
ções-de-pensamento — as categorias correspondentes —, donde nas­
cem estas quatro proposições: a) a alma é substância; b) é substân­
cia simples', c) é numericamente idêntica nos diversos tempos de seu
ser-aí; d) está em relação com o espacial.
Nessa passagem [do procedimento acima] se fez notar a falha,
de que são confundidas uma com a outra determinações de dois
tipos ( paralogismo), a saber, determinações empíricas com catego­
rias; e que é algo incorreto deduzir por silogismo estas daquelas e.
de modo geral, pôr as categorias em lugar das determinações
empíricas.
Vê-se que esta crítica não exprime outra coisa senão a advertência
de Hume citada acima (§ 39): de que as determinações-de-pensamen-
to em geral — universalidade e necessidade — não se encontram na
percepção; de que o empírico é diferente, tanto segundo o conteúdo
como segundo a forma, da determinação-de-pensamento.
Se o empírico devesse constituir a certidão [da verdade] do
pensamento, sem dúvida seria requerido, para o pensamen­
to, que ele pudesse ser exatamente apontado nas percep­
ções. Que não se possa afirmar a substancialidade e a simpli­
cidade da alma; sua identidade consigo e sua independência
que se conserva em sua comunhão com o mundo material —
isso, na crítica kantiana da psicologia metafísica, repousa so­
mente em que as determinações, que a consciência nos faz
experimentar sobre a alma, não são exatamente as mesmas
que o pensar produz a respeito dela. Mas, pela exposição
anterior, Kant também faz consistir o conhecer em geral, e
mesmo a experiência, em que as percepções são pensadas, isto
é, que as determinações que inicialmente pertencem ao per­
ceber sejam transformadas em determinações-de-pensamen­
to. Sempre se pode considerar como um bom resultado da
crítica kantiana que o filosofar sobre o espírito fosse libertado
da alma -coisa, das categorias e portanto das questões sobre a
simplicidade ou composição, sobre a materialidade etc. da alma.
Mas o verdadeiro ponto de vista sobre a inadmissibilidade de
tais formas não há de ser, mesmo para o entendimento hu­
118
mano ordinário, que elas são pensamentos; senão, antes, que
tais pensamentos, em si e por si, não contêm a verdade.
Quando pensamento e fenômeno não correspondem plena­
mente um ao outro, tem-se primeiro a escolha de ver ou um
oú outro como o [elemento] falho. No idealismo kantiano, no
que concerne ao racional, o defeito é lançado em conta dos
pensamentos, de modo que eles são insuficientes, por serem
inadequados ao percebido e a uma consciência que se res­
tringe ao âmbito do perceber; os pensamentos não são en­
contrados em tal consciência. O conteúdo do pensamento
para si mesmo aqui não vem à discussão.
4dendo'. Paralogismos são em geral silogismos defeituosos, cujo defei­
to consiste mais precisamente em que se empregam nas duas premissas
uma só e a mesma palavra em sentidos diversos. Segundo Kant, o pro­
cedimento da velha metafísica, na psicologia racional, deve repousar sobre
tais paralogismos, enquanto aqui determinações puramente empíricas da
alma são consideradas como lhe pertencendo em si e para si. Aliás, é de
todo exato que semelhantes predicados como unidade, imutabilidade etc.
não podem ser atribuídos à alma; porém não pelo motivo que Kant para
isso apresenta — porque a razão ultrapassaria assim o limite que lhe foi
assignado —, mas porque tais determinações abstratas do entendimento
são péssimas para a alma, e ela é algo totalmente diverso do que é
somente simples, imutável etc. Assim, por exemplo, a alma é certamente
identidade simples consigo, mas ao mesmo tempo é ela própria, como
ativa, a que se diferencia em si mesma, ao passo que aquilo que é somente
(isto é, abstratamente) simples é justamente enquanto tal, ao mesmo
tempo, algo morto. Que Kant, por meio de sua polêmica contra a velha
metafísica, tenha afastado da alma e do espírito aqueles predicados, deve-
se considerar como um grande resultado; mas o “porquê” lhe escapou
totalmente.
§ 48
Na tentativa da razão para conhecer o incondicionado do segun­
do objeto (§ 35), do mundo, ela cai em antinomias, isto é, na afirma­
ção de duas proposições opostas a respeito do mesmo objeto, e, na
verdade, de sorte que cada uma dessas proposições deva ser afir­
mada com igual necessidade. Daí resulta que o conteúdo do mun­
do. cujas determinações caem em tal contradição, não poderia ser
119
I

em si, mas ser apenas fenômeno. A solução é que a contradição não


incide no objeto, em si e por si mesmo, mas só na razão cognoscente.
Neste ponto chega-se a declarar que é o conteúdo mesmo, quer
dizer, são as categorias para si que trazem a contradição. Esse
pensamento — de que a contradição, que é posta pelas deter­
minações de entendimento no racional, é essencial e necessária —
deve ser considerado como um dos mais importantes e mais
profundos progressos da filosofia dos tempos modernos. [Mas]
tão profundo é esse ponto de vista quanto é trivial sua solução:
ela consiste apenas em uma ternura para com as coisas do mundo.
Não é a essência do mundo que teria nela a mácula da contra­
dição; senão que essa mácula só pertenceria à razão pensante, à
essência do espírito.. Não se terá, decerto, nada contra isso, de que
o mundo fenomenal mostre contradições ao espírito que o obser­
va; mundo fenomenal é o mundo tal como é para o espírito sub­
jetivo, para a sensibilidade e o entendimento. Mas, se agora a essên­
cia do mundo for comparada com a essência do espírito, pode-
se admirar a ingenuidade com que foi posta e repetida a afirma­
ção, cheia de humildade, de que não é a essência do mundo
mas a essência pensante, a razão, que é em si contraditória.
Nada adianta utilizar o rodeio de que a razão só cai em contra­
dição por meio da aplicação das categorias. Com efeito, afirma-se
ao mesmo tempo, quanto a isso, que essa aplicação é necessária,
e que a razão não tem, para o conhecer, outras determinações
que as categorias. Conhecer, de fato, é pensar determinante e
determinado', a razão é apenas pensar indeterminado e vazio; assim,
nada pensa. Mas, se no final a razão é reduzida àquela identidade
vazia (ver o parágrafo seguinte), também a razão é no final
libertada felizmente da contradição, graças ao fácil sacrifício de
todo o conteúdo e teor.
Pode-se notar, além disso, que a falta de um exame mais
profundo da antinomia ainda levou inicialmente Kant a só
citar quatro antinomias. A estas chega ao pressupor, como nos
assim-chamados paralogismos, a tábua das categorias, em que
aplicou o procedimento, que depois se tornou tão estimado,
e que consiste em colocar simplesmente o objeto sob um
esquema aliás já pronto, em vez de derivá-lo ao conceito. Outras
120
deficiências ainda no desenvolvimento das antinomias, mos-
trei-as na ocasião em minha Ciência da Lógica. O ponto prin­
cipal a destacar é que não é só nos quatro objetos particulares
tomados da Cosmologia que a antinomia se encontra; mas
antes em todos os objetos de todos os gêneros, em todas as
representações, conceitos e idéias. Saber disso, e conhecer os
objetos segundo essa propriedade, faz parte do essencial da
consideração filosófica. Essa propriedade constitui o que se
determina mais adiante como o momento dialético do lógico.
Adendo-. Do ponto de vista da velha metafísica, admitia-se que, quan­
do o conhecer caía em contradições, era isso apenas um deslize acidental,
e que repousava em uma falha subjetiva no silogizar e raciocinar. Ao
contrário, segundo Kant, está na natureza do pensamento mesmo, cair em
contradições (antinomias) quando quer conhecer o infinito. Como já se
mencionou na nota do parágrafo anterior, embora a indicação das antinomias
deva considerar-se um progresso muito importante do conhecimento filo­
sófico, pois assim se descartou o dogmatismo rígido da metafísica-do-
-entendimento, e se chamou a atenção para o movimento dialético do
pensar, é preciso ao mesmo tempo notar, sobre esse ponto, que Kant
também aqui ficou no resultado simplesmente negativo da incognoscibi-
lidade do Em-si das coisas, e não penetrou até o conhecimento da verda­
deira e positiva significação das antinomias. Ora, a significação positiva e
verdadeira das antinomias consiste, em geral, em que todo o efeito contém
em si determinações opostas, e por isso o conhecer ou, mais precisamente,
o conceituar de um objeto só significam justamente o mesmo que tornar-
-se consciente dele como de uma unidade concreta de determinações
opostas. Ora, como se mostrou acima, ao passo que a velha metafísica, no
exame dos objetos cujo conhecimento metafísico importa, aplicava-se a
eles de modo que determinações abstratas do entendimento eram empre­
gadas com exclusão das determinações a elas opostas, Kant, ao contrário,
procurou demonstrar como às afirmações, que se produzem de tal manei­
ra, podem-se sempre contrapor outras afirmações de conteúdo oposto;
com igual justificação e necessidade igual. Kant limitou-se à cosmologia
da velha metafísica no apresentar dessas antinomias: e em sua polêmica
contra ela, com fundamentação no esquema das categorias, pôs em evi­
dência quatro antinomias. A primeira concerne à questão de saber se o
mundo deve ser pensado — ou não — segundo o espaço e o tempo. Na
segunda antinomia trata-se do dilema: se a matéria deve ser considerada
como divisível ao infinito, ou como composta de átomos. A terceira antinomia

121
refere-se à oposição da liberdade e da necessidade, a saber, enquanto é
levantada a questão: se tudo no mundo deve ser visto como condicionado
pelo nexo casual, ou se no mundo se devem admitir seres livres, quer dizer,
absolutos pontos-de-partida da ação. Enfim, como quarta antinomia vem
então o dilema: se o mundo em geral tem uma causa ou não. Ora, o
procedimento que Kant observa em sua discussão sobre essas antinomias
é, antes de tudo, o seguinte: opõe uma à outra, como tese e antítese, as
determinações opostas que estão aí contidas, e procura demonstrar a ambas,
isto é, apresentá-las como conseqüências necessárias da reflexão sobre
elas; e nisso se defende expressamente de ter buscado artifícios ilusórios
para provar, como numa argumentação de advogado. Ora, de fato, as provas
que Kant aduz para suas teses e antíteses devem ser consideradas como
meras provas ilusórias, porque o que deve ser aprovado já está sempre con­
tido nas pressuposições de que se partiu; e é só por um procedimento
apagógico prolixo que se produz a aparência de uma mediação.
No entanto, o estabelecimento dessas antinomias permanece sempre
um resultado da filosofia crítica importantíssimo e digno de aprovação, na
medida em que foi por ele (embora primeiro de modo subjetivo e ime­
diato) que se exprimiu a unidade de fato dessas determinações, que são
mantidas pelo entendimento em sua separação. Assim por exemplo, na
primeira das antinomias cosmológicas acima citadas, está contido que o
espaço e o tempo devem considerar-se não só como contínuos, mas tam­
bém como discretos, quando na velha metafísica se ficou na mera conti­
nuidade e, por conseguinte, o mundo foi considerado como ilimitado
segundo o espaço e o tempo. E totalmente exato que se pode ir além de
todo espaço determinado e mesmo além de todo o tempo determinado; mas
não é menos exato que espaço e tempo só são efetivos graças a sua
determinidade (quer dizer, como aqui e agora), e que essa determinidade
repousa em seu conceito. O mesmo vale também para as demais antinomias
antes mencionadas: assim, por exemplo, para a antinomia da liberdade e da
necessidade; considerando mais de perto, a questão é o que o entendimento
entende por liberdade e necessidade: de fato são apenas momentos ideais
da verdadeira necessidade, e nenhuma verdade compete a esses termos
em sua separação.
§ 49
3Ü) O terceiro objeto-da-razão é Deus (§ 36) que deve ser conhe­
cido; isto é, determinado de modo pensante [denkend]. Ora, para o
entendimento toda a determinação frente à identidade simples é só
um limite, uma negação como tal; assim toda a realidade só deve ser
122
tomada como sem-limites, isto é, indeterminado; e Deus, enquanto
teor [Inbegriff] de todas as realidades e enquanto a essência mais
real de todas, torna-se o Abstrato simples; e, para a determinação, só
resta também a determinidade pura e simplesmente abstrata — o
ser. Identidade abstrata, que aqui também se chama o conceito, e o
ser são os dois momentos cuja unificação é o que é buscado pela
razão: ela é o ideal da razão.
§ 50
Essa unificação admite duas vias ou formas; a saber: pode co­
meçar pelo ser e passar daí ao abstrato do pensar, ou, inversamente,
a passagem pode efetuar-se do abstrato ao ser.
Quanto ao primeiro modo de começar — com o ser — o ser se
apresenta como o imediato, como um ser determinado de maneira
infinitamente variada, um mundo em plenitude. Pode-se determi­
nar com mais rigor esse mundo como uma coleção de contingências
infinitamente múltiplas, em geral (na prova cosmológica) ou como
uma coleção de fins e relações conformes-ao-fim, em número infinito
(na prova físico-teológica). Pensar esse ser [perfeitamente] pleno signi­
fica tirar-lhe a forma de singularidade e contingências, e apreendê-
-lo como um ser universal, necessário em si e para si, que se deter­
mina e age conforme fins universais, [como um] ser que é diferen­
te daquele ser primeiro [considerado]: é apreendê-lo como Deus.
O sentido-principal da crítica a esse procedimento é de ser um silogizar,
uma passagem. E que, enquanto as percepções e o mundo [que é o]
agregado delas não mostram neles, enquanto tais, a universalidade —
em direção da qual o pensar purifica aquele conteúdo —, por isso essa
universalidade não é justificada por aquela representação empírica do
mundo. Ao [procedimento de] elevar-se do pensamento desde a re­
presentação empírica do mundo até Deus, opõe-se desse modo o ponto
de vista de Hume (como nos Paralogismos, ver § 47); o ponto de vista
que declara inadmissível pensar as percepções, isto é, fazer sair delas
o universal e o necessário.
Por ser o homem pensante, tanto o bom-senso quanto a fi­
losofia não vão desistir de elevar-se a Deus, partindo e saindo
da intuição empírica do mundo. Esse elevar-se não tem por
sua base outra coisa que a contemplação do mundo — [con-
123
templação] pensante, não simplesmente sensível, animal. Para
o pensar, e só para o pensar, a essência, a substância, é a potên­
cia universal e a determinação finalística do mundo. As chama­
das provas da existência de Deus são, em si, a enfocar so­
mente como as descrições e as análises do itinerário do espírito
que é um [espírito] pensante e pensa o sensível. O elevar-se do
pensar sobre o sensível, seu ultrapassar para além do finito
em direção ao infinito, o salto, que com a ruptura das séries
do sensível se faça para o supra-sensível, tudo isso é o pensar
mesmo; esse ultrapassar é somente pensar. Se tal passagem não
deve ser feita, isso quer dizer que não se deve pensar. De
fato, os animais não fazem tal passagem; eles ficam na sensa­
ção e intuição sensível; por esse motivo não têm religião
alguma. Tanto de modo geral quanto de modo particular, há
duas observações a fazer sobre a crítica desse elevar do pensar.
Primeiro, quando essa elevação se faz sob a forma de silogismo
(as chamadas provas do ser-aí de Deus), então o ponto-de-
-partida é certamente a visão do mundo determinada de al­
guma maneira como um agregado de contingências ou de
fins e relações finalísticas. No pensar, enquanto faz silogismos,
esse ponto-de-partida pode parecer que permanece e pode ser
deixado como fundamento firme, e totalmente tão empírico como
inicialmente é essa matéria. A relação do ponto de partida
com o ponto final para o qual se marcha é representada assim
como algo apenas afirmativo, enquanto é um silogizar [indo]
de um, que seria e permaneceria, para outro que igualmente
seria também. Só que é grande erro querer conhecer a natu­
reza do pensar somente nessa forma-do-entendimento. Pen­
sar o mundo empírico significa antes, essencialmente,
transmudar sua forma empírica e convertê-la em um univer-.
sal; o pensar exerce, ao mesmo tempo, uma atividade nega­
tiva sobre fundamento: a matéria percebida, quando deter­
minada pela universalidade, não permanece em sua primeira
figura empírica. Com a remoção e negação da casca, o conteúdo
interior do percebido é posto em evidência (ver §§ 13 e 23).
As provas metafísicas da existência de Deus são, por isso,
interpretações e descrições defeituosas da elevação do espí-
124
rito [indo] do mundo a Deus, porque o momento da negação,
contido nessa elevação, não o exprimem, ou melhor, não o
evidenciam; pois no fato de ser o mundo contingente está
implicado que o mundo é somente algo caduco, fenomênico,
e nulo em si e para si. O sentido da elevação do espírito é que
o ser, sem dúvida, compete ao mundo, mas que é só aparên­
cia, não o verdadeiro ser, não absoluta verdade; que esta está
antes, além dessa aparência, somente em Deus: só Deus é o
verdadeiro ser. Sendo, essa elevação, passagem e mediação, é
ao mesmo tempo suprassumir da passagem e da mediação
porque o mundo — pelo qual Deus poderia parecer media-
tizado — é antes declarado como sendo o nulo. Somente a
nulidade do ser do mundo é o laço da elevação; de modo que
desvanece o que é [posto] como o mediatizante, e assim,
nessa mediação mesma, a mediação é suprassumida. E prin­
cipalmente a essa relação, apreendida só como afirmativa —
como relação entre dois essentes —, que Jacobi se prende,
quando combate o [modo de] provar do entendimento. Faz-lhe
a censura merecida, de que por seu meio se buscam as con­
dições (o mundo) para o incondicionado; que o infinito (Deus)
dessa maneira se representa como fundado e dependente. Po­
rém aquela elevação, como está no espírito, corrige ela mes­
ma essa aparência; melhor, todo o seu conteúdo é a correção
dessa aparência. Mas essa verdadeira natureza do pensar
essencial, [que é] suprassumir na mediação a mediação mes­
ma, Jacobi não a reconheceu, e por conseguinte tomou, erra­
damente, a censura correta — que faz ao entendimento que
somente reflete — por uma censura atingindo o pensar em
geral, e por isso também o pensar racional.
Para elucidação desse desconhecer do momento negativo pode-
-se, como exemplo, citar a censura feita ao espinozismo, de
que seria panteísmo e ateísmo. A substância absoluta de
Espinoza, sem dúvida, não é ainda o espírito absoluto, e exi­
ge-se com razão que Deus seja determinado como espírito
absoluto. Mas quando se representa a determinação de
Espinoza como se ele confundisse Deus com a natureza, com
o mundo finito, e fizesse, do mundo, Deus, então se pressu­
125
põe que o mundo finito tenha verdadeira efetividade, uma
realidade afirmativa. Com essa pressuposição — com uma
unidade de Deus e do mundo — na verdade Deus é pura e
simplesmente fínitizado e rebaixado à simples multiformidade
finita e exterior da existência. Prescindindo de que Espinoza
não define Deus como sendo a unidade de Deus e do mun­
do, mas a unidade do pensar e da extensão (do mundo mate­
rial), nessa unidade já está implicado — mesmo se for tam­
bém tomada daquele primeiro modo, totalmente inepto —
que no sistema de Espinoza o mundo é antes determinado
só como um fenômeno, ao qual não cabe realidade efetiva,
de modo que esse sistema é muito mais para ser visto como
acosmismo. Uma filosofia que afirma que Deus — e só Deus
— é deveria, pelo menos, não ser dada por ateísmo. Entre­
tanto, atribui-se uma religião ainda aos povos que adoram o
macaco, a vaca, as estátuas de pedra, de bronze, como Deus.
Mas, na mentalidade da representação, ainda contraria mais
o homem renunciar à sua própria pressuposição de que esse
seu agregado de finitude, que se denomina mundo, tenha
realidade efetiva. “Que não haja mundo” — como talvez
essa mentalidade se exprimiria —; admitir uma coisa dessas,
julga-se com facilidade por totalmente impossível; ou pelo
menos como muito menos possível do que possa vir à cabeça
de alguém que “não haja Deus”. Acredita-se — e isso não
honra precisamente quem assim pensa — com muito mais
facilidade que um sistema negue a Deus do que ele negue
o mundo; acha-se muito mais concebível que Deus seja ne­
gado do que seja negado o mundo.
A segunda observação diz respeito à critica do conteúdo, que
aquela elevação pensante atinge primeiro. Esse conteúdo, se
consiste somente nas determinações da substância do mundo,
de sua essência necessária, de uma causa que organiza e dirige
conforme uma finalidade, não é certamente adequado ao que
se entende — ou se deve entender — por Deus. Prescindin­
do porém de pressupor uma representação de Deus e de
julgar um resultado segundo tal pressuposição, essas deter­
minações já têm grande valor e são momentos necessários na
126
idéia de Deus. Fara levar por esse caminho ante o pensamento
o conteúdo em sua verdadeira determinação — a idéia verda­
deira de Deus —, sem dúvida o ponto de partida não se deve
tomar de [um] conteúdo inferior. As coisas simplesmente con­
tingentes do mundo são uma determinação muito abstrata. As
formações orgânicas e suas determinações-finalísticas perten­
cem à esfera superior, à vida. Mas além de que a considera­
ção da natureza viva, e também da relação que refere a um
fim as coisas existentes, pode ser deturpada pela insignificân­
cia dos fins, e mesmo pela alegação pueril de fins e de rela­
ções entre eles, a própria natureza simplesmente viva não é
ainda, de fato, aquilo a partir do qual a verdadeira determina­
ção da idéia de Deus pode ser captada; Deus é mais que
vivente: Deus é espírito. Só a natureza espiritual é o mais
digno e mais verdadeiro ponto de partida para o pensar do
absoluto, na medida em que o pensar [toma para si] um
ponto de partida e quer tomar o mais próximo.
§ 51
A outra via da unificação, pela qual o ideal deve efetuar-se,
parte do abstrato do pensar para a determinação, à qual somente
resta o ser [é a] prova ontológica do ser-aí de Deus. A oposição que
aqui se encontra é a do pensar e do ser, enquanto na primeira via
o ser é comum aos dois lados e a oposição só concerne a diferença
entre o singularizado e o universal. O que o entendimento opõe a
essa outra via é, em si, o mesmo que foi acima mencionado, a
saber, que como no empírico não se encontra o universal, assim
também, inversamente, no universal não está contido o determinado
-— e o determinado, aqui, é o ser. Ou seja: o ser não poderia ser
deduzido — e tirado pela análise — do conceito.
A crítica kantiana da prova ontológica, sem dúvida alguma,
encontrou também uma tão incondicionada acolhida e acei­
tação porque Kant, para elucidação da diferença que havia
entre pensar e ser, usou o exemplo dos cem táleres, que se­
gundo o conceito seriam igualmente cem, quer fossem táleres
somente possíveis ou efetivos; mas isso, para minha situação
financeira, faria uma diferença essencial. Nada pode ser tão
127
evidente quanto isso: o que para mim penso ou represento
não / ainda, só por isso, efetivo; o pensamento de que o repre­
sentar 011 também o conceito não são suficientes para o ser.
Prescindindo de que, sem cometer injustiça, se poderia cha­
mar uma barbaridade dar o nome de conceito a algo como
cem táleres, os que repetem incessantemente, contra a idéia
filosófica, que pensar e ser são diferentes deveriam enfim pre­
sumir que isso igualmente não é desconhecido dos filósofos:
de fato, que conhecimento pode haver mais trivial? Mas então
devia-se pensar que, quando se fala de Deus, esse é um objeto
de outra espécie que cem táleres, e que qualquer particular
conceito, representação, ou como se quiser chamar. De fato,
todo o finito é isto e isto somente-, [a saber] que seu ser-aí é
diferente de seu conceito. Mas Deus deve ser expressamente o
que só pode ser pensado como existente, [o ser] em que o con­
ceito inclui em si o ser. E essa unidade do conceito e do ser
que constitui o conceito de Deus.
E claro que isso é ainda uma determinação formal de Deus que,
por esse motivo, de fato só contém a natureza do conceito mes­
mo. Mas que ele, em seu sentido completamente abstrato, já
inclui em si o ser, é fácil de ver. Pois o conceito, como for aliás
determinado, é pelo menos a relação consigo mesmo resultante
da suprassunção da mediação, por conseguinte a própria relação
imediata consigo mesmo; ora, o ser não é outra coisa que isso.
Pode-se bem dizer que seria estranho se isto, [que é] o mais
íntimo do espírito — o conceito —, ou ainda se o Eu, ou a con­
creta totalidade que é Deus, não fossem mesmo bastante ricos
para neles conterem uma tão pobre determinação como é o ser;
que é, sim, a mais pobre de todas, a mais abstrata que há. Para
o pensamento, nada pode haver mais insignificante, segundo^ o
conteúdo, que o ser. Só mesmo pode ser ainda menor, talvez, o
que se representa de início a respeito do ser: a saber, uma exis­
tência exterior, sensível, como a do papel que tenho aqui diante
de mim. Aliás, nem se vai querer falar de uma existência sen­
sível, de uma coisa limitada e transitória. Ademais, a observação
trivial da Crítica, de que o pensamento e o ser seriam diferen­
tes, pode no máximo perturbar o homem quanto ao itinerário de
128
seu espírito, desde o pensamento de Deus até a certeza de que
ele é, mas não pode interrompê-lo. Essa passagem, a absoluta
inseparabilidade do pensamento de Deus e do ser, é também o
que foi restabelecido em seu direito na visão do saber Imediato
011 da fé, de que adiante se fala.

§ 52
Dessa maneira, a determinidade permanece exterior ao pensar
[considerado] em seu píncaro mais alto; ele permanece pura e sim­
plesmente um pensar abstrato que aqui se chama sempre razão.
Essa razão — é esse o resultado — nada fornece a não ser a unidade
formal para simplificação e sistematização das experiências; é um
tâtion, não um órganon da verdade; não pode fornecer uma doutrina
do infinito, mas só uma crítica do conhecimento. Essa crítica, em
última análise, consiste na garantia de que em si o pensar é apenas
2 unidade indeterminada e a atividade dessa unidade indeterminada.

Adendo-. Kant, na verdade, apreendeu a razão como a faculdade do in­


condicionado. Entretanto, se ela é reduzida simplesmente à identidade
abstrata, então está aí ao mesmo tempo implicado o abdicar de sua incon-
dicionalidade, e então a razão, de fato, não é outra coisa que entendimen­
to vazio. Incondicionada é a razão somente por não ser determinada de
fora por um conteúdo a ela estranho; senão, antes, determina-se a si mesma
c por isso em seu conteúdo está junto a si mesma. Ora, segundo Kant, a
atividade da razão só consiste expressamente em sistematizar, pela aplica­
ção das categorias, a matéria fornecida por meio da percepção; quer dizer,
cm trazer essa matéria a uma ordem exterior, e com isso seu princípio é
meramente a ausência-de-contradição.
§ 53
b) A razão prática é apreendida como a vontade, que se deter­
mina a si mesma, e isso de modo universal', isto é, como vontade
pensante. Deve dar leis imperativas, objetivas, à liberdade; quer
dizer, leis que declarem o que deve acontecer. O direito de admitir
o pensar, aqui, como uma atividade que determina objetivamente (quer
dizer, de fato como uma razão) assenta em que a liberdade prática
pode ser comprovada pela experiência, isto é, no fenômeno da cons-
cíência-de-si. Contra essa experiência dentro da consciência, recor­
re tudo o que o determinismo redargúi, partindo também da expe­
129
riência; em particular a indução céptica (e também de Hume) da
diversidade infinita do que tem valor de direito e dever entre os ho­
mens, isto é, das leis — que deveriam ser objetivas — da liberdade.
§ 54
[Aliás], para aquilo que o pensamento prático transforma em
sua lei — para o critério do seu determinar-se em si mesmo —,
mais uma vez nada há a não ser a mesma identidade abstrata do
entendimento, [a saber] que não haja contradição no determinar.
Assim a razão prática não ultrapassa o formalismo, que deve ser o
último [estágio] da razão teórica.
No entanto, essa razão prática não põe a determinação universal,
o bem somente em si mesma, mas só é mais propriamente prática na
exigência de que o bem tenha ser-aí no mundo, objetividade exterior;
isto é, que o pensamento não seja meramente subjetivo, mas objetivo
em geral. Mais tarde se fala desse postulado da razão prática.
Adendo-. Kant reivindicou expressamente para a razão prática o que
recusou à razão teórica: a livre autodeterminação. E principalmente esse
lado da filosofia kantiana que lhe conquistou um grande favor, e certa­
mente com pleno direito. Para apreciar o merecimento que toca a Kant a
esse respeito, deve-se antes de tudo ter presente aquela figura da filosofia
prática, e mais precisamente da filosofia moral, que Kant encontrou como
[filosofia] reinante. Era, de modo geral, o sistema do eudemonismo que, à
questão do destino do homem, dava a resposta que o homem devia pôr-se
como fim sua felicidade. Ora, ao entender-se por felicidade a satisfação do
homem em suas particulares inclinações, vontades, necessidades etc., fa-
zia-se assim do contingente e do particular o princípio de vontade e de
sua ativação. A esse eudemonismo — que em si carecia de todo apoio
firme, e abria a porta a todo o arbítrio e capricho — Kant opôs a razão
prática; e desse modo exprimiu a exigência de uma determinação da
vontade, universal e igualmente obrigatória para todos.
Como se notou nos parágrafos precedentes, a razão teórica para Kant
era simplesmente a faculdade negativa do infinito, e, sem conteúdo posi­
tivo próprio, devia limitar-se a discernir o que há de finito no conhecimento-
experimental. Entretanto, Kant reconheceu expressamente, ao contrário,
a infinidade positiva da razão prática, e, certamente, de modo a atribuir
à vontade o poder de determinar-se a si mesma de maneira universal, isto
é, pensando. Ora, esse poder, sem dúvida, a vontade possui de fato, e é de
grande importância saber que o homem só é livre na medida em que
possui tal poder, e dele se serve em sua ação; só que com esse reconhe­

130
cimento ainda não foi respondida a questão sobre o conteúdo da vontade
ou da razão prática. Se então se diz que o homem deve fazer do bem o
conteúdo de sua vontade, logo se redargúi [rekurriert] a questão do con­
teúdo, isto é, da determinidade desse conteúdo, e com o simples princí­
pio da concordância da vontade consigo mesma, e também com a exigên­
cia de cumprir o dever pelo dever, não se sai do lugar.
§ 55
A faculdade-de-jidgar reflexiva é atribuído o princípio de um
entendimento intuitivo, ou seja, em que o particular — que para o
universal (a identidade abstrata) é contingente e não pode ser deri­
vado dele — é determinado mediante esse mesmo universal. E o
que se experimenta nas produções da arte e da natureza orgânica.
A Crítica da faculdade dejulgar tem de notável que Kant expri­
miu nela a representação, e mesmo o pensamento, da idéia. A
representação de um entendimento intuitivo, de uma finalidade
interna etc. é o universal pensado ao mesmo tempo como concreto
em si mesmo. Por isso, a filosofia kantiana só se mostra especu­
lativa nessas representações. Muitos — nomeadamente Schiller
— descobriram na idéia do belo artístico, da unidade concreta do
pensamento e da representação sensível, a saída [para escapar]
das abstrações do entendimento separador. Outros a descobriram
na intuição e na consciência da vida [lebendigkeit, vitalidade]
geralmente falando, quer natural quer intelectual.
A produção artística, como a individualidade viva, é de certo
limitada em seu conteúdo; porém a idéia — [que é] abran­
gente também segundo o conteúdo —, Kant a coloca dentro
da harmonia postulada da natureza ou necessidade, com a
finalidade da liberdade, no fim-último do mundo, pensado como
realizado. Mas, para essa idéia suprema, a preguiça do pensa­
mento, como isso se poderia chamar, tem no dever-ser uma saída
demasiado fácil, a que se atém — contra a realização efetiva do
fim último — na separação do conceito e da realidade.
Mas, quanto a essa idéia suprema, a preguiça do pensamento
— como se pode chamar isso — tem no dever-ser uma saída
demasiado fácil, ao sustentar a separação [Geschiedensein =
o Ser separado] do conceito e da realidade frente à realização
efetiva do fim último. Ao contrário, a presença [na existência]
dos organismos vivos e do belo artístico já mostra a efetividade
do ideal também para o sentido e a intuição. Por isso [é que]
as reflexões kantianas sobre esses objetos seriam particular­
mente apropriadas para introduzir a consciência no apreen­
der e no pensar da idéia concreta.
§ 56
Aqui se estabelece o pensamento de uma relação do universal
do entendimento para com o particular da intuição; [relação] diver­
sa da que está no fundamento da doutrina da razão teórica e prá­
tica. Mas a isso não está unido o entender de que essa relação é a
verdadeira, e mesmo que é a própria verdade.
Antes, essa unidade é acolhida só como vem à existência nos
fenômenos finitos, e como se mostra na experiência. Tal experiên­
cia, antes de tudo, por um lado oferece-a no sujeito o gênio — o
poder de produzir idéias estéticas, ou seja, representações de livre
imaginação que servem a uma idéia, e dão a pensar, sem que tal
conteúdo se exprima em um conceito, ou se deixe nele exprimir.
Por outro lado, [oferece-a no sujeito] o juízo-do-gosto, o sentimento
da concordância das intuições ou representações em sua liberdade,
com o entendimento em sua legalidade.
§ 57
Além disso, o princípio da faculdade-do-juízo reflexiva no que
toca aos produtos vivos da natureza é determinado como o fim, o
conceito ativo, o universal em si mesmo determinado e determinan­
te. Ao mesmo tempo, rejeita-se a representação da finalidade exter­
na ou finita, na qual o fim é apenas uma forma exterior para o meio
e o material em que se realiza. Ao passo que no [ser] vivo o fim é
uma determinação e uma atividade imanentes na matéria, e todos
os membros são, um para o outro, tanto meio quanto fim.
§ 58
Em tal idéia, embora esteja suprassumida também a relação-
-de-entendimento de fim e meio, de subjetividade e objetividade,
o fim é de novo explicado como uma causa, que existiria e seria
ativa somente como representação — isto é, como algo subjetivo. Com
isso, portanto, a determinação-do-fím se explica como princípio de
apreciação pertencente apenas a nosso entendimento.
132
Uma vez que se põe como resultado da filosofia crítica que
a razão só pode conhecer fenômenos, então, ao menos para a
natureza viva, só restaria a escolha entre duas maneiras-de-
-pensar igualmente subjetivas; e, segundo a própria exposição
de Kant, uma obrigação de não conhecer os produtos-da-
-natureza meramente segundo as categorias de qualidade,
causa e efeito, composição, partes constitutivas etc. Pois o
princípio da finalidade interna retido e desenvolvido em apli­
cação científica teria levado a uma maneira-de-considerar
aqueles mesmos [produtos] totalmente diversa, e superior.
§ 59
De acordo com esse princípio, a Idéia, em sua total ilimitação,
consistiria em que a universalidade determinada da razão — o fim-
-liltimo absoluto, o bem — se realizasse efetivamente no mundo, e
isso graças a um terceiro, a potência que põe esse próprio fim-
-último e o realiza: Deus. E em Deus, que é a verdade absoluta,
aquelas oposições de universalidade e singularidade, de subjetivi­
dade e objetividade, são dissolvidas e declaradas como não-autôno-
mas e não-verdadeiras.
§ 60
Mas o bem — em que se põe o fim-último do mundo — é de
antemão determinado somente como nosso bem, como a lei moral
de nossa razão prática; de modo que a unidade não vai além da
concordância do estado-do-mundo e dos acontecimentos-do-mun-
do com nossa moralidade*.
Além de que, mesmo com essa limitação, o fim-último, o bem,
é um abstrato sem determinação, como também o que deve ser
[um] dever. Mais precisamente, contra essa harmonia, de novo se
* Nas próprias palavras de Kant ( Crítica da faculdade dejulgar, Ia ed., p. 427, § 88), “fim-
-último é simplesmente um conceito de nossa razão prática e não pode concluir-se de
nenhum dados da experiência para julgamento teórico da natureza, nem ser referido ao conheci­
mento dessa. Nenhum uso desse conceito é possível, senão simplesmente para a razão prá­
tica segundo as leis morais. O fim último da criação é essa constituição do mundo que está
em consonância com a única coisa que nós podemos declarar determinada segundo as leis,
i saber, o fim-último de nossa pura razão prática, e, em verdade, enquanto deve ser prática”.

133
desperta e afirma a oposição que no conteúdo da harmonia é posta
como não-verdadeira\ de modo que a harmonia se determina como
algo apenas subjetivo, como algo que somente deve ser, isto é, que
ao mesmo tempo não tem realidade; como algo em que se acredita,
a que só corresponde certeza subjetiva, e não verdade, ou seja, não
aquela objetividade que corresponde à idéia.
Se essa contradição parece encoberta, por ser a realização da
idéia posta no tempo, em um futuro em que a idéia também seria,
então uma condição sensível, tal como o tempo, é antes o contrário
de uma solução da contradição; e a representação-de-entendimento
que lhe corresponde — o progresso ao infinito — imediatamente
nada é senão a contradição posta perenemente.
Uma observação geral pode ainda ser feita a propósito do
resultado que da filosofia crítica deriva para a natureza do
conhecer, e que foi erigido em um dos preconceitos — isto é,
dos pressupostos gerais — da época.
Em todo o sistema dualista, mas particularmente no kantismo,
seu defeito básico se dá a conhecer por meio da inconseqüência,
que é unir o que um instante atrás tinha sido declarado como
autônomo; portanto, como não-unwel. Como há um instante o
unido foi declarado ser o verdadeiro, de repente se declara ser
antes verdadeiro que os dois momentos — em cuja união, como
em sua verdade, lhes foi negado o subsistir -para-si — só assim,
como momentos separados, têm verdade e efetividade. Falta,
em semelhante filosofar, a consciência simples de que, com
esse mesmo vai-e-vem, cada uma dessas determinações singu­
lares é declarada insatisfatória e a deficiência consiste na sim­
ples incapacidade de compartilhar os dois pensamentos — e,
segundo a forma, só há dois em presença. E por isso a maior
inconseqüência: de uma parte, conceder que o entendimento
só conhece fenômenos; e, de outra parte, afirmar esse conhe­
cer como algo absoluto, quando se diz que o conhecer não
pode ir além, que esse é o limite absoluto, natural do saber
humano. As coisas naturais são limitadas, e são coisas natu­
rais somente na medida em que nada sabem de seu limite
universal; na medida em que sua determinidade é somente
um limite para nós, não para elas. Uma coisa só é conhecida,
134
ou mesmo sentida, como limite, deficiência, quando ao mesmo
tempo se está além dela.
As coisas vivas têm o privilégio da dor, em comparação com
as não-vivas; mesmo para elas, uma determinidade singular
torna-se a sensação de algo negativo; por terem em si, enquanto
vivas, a universalidade da vida [Lebendigkeit], que ultrapassa
o singular, conservam-se ainda no negativo de si mesmas, e
sentem essa contradição como existindo dentro delas. Essa
contradição só existe nelas enquanto estas duas coisas estão
no sujeito uno\ a universalidade de seu sentimento vital, e a
singularidade, negativa em relação àquele sentimento. Limite,
deficiência do conhecer, também só se determina como limi­
te, deficiência, mediante a comparação com a idéia presente do
universal, de algo total e perfeito. Por conseguinte, é apenas
falta-de-consciência não compreender que justamente a de­
signação de uma coisa como algo finito ou limitado contém a
prova da efetiva presença do infinito, do ilimitado; que o saber
do limite só pode ser na medida em que o ilimitado está do
lado de cá, na consciência.
Uma observação a mais pode-se acrescentar a propósito desse
resultado do conhecer: a filosofia kantiana nenhum influxo
pode ter na prática das ciências. Ela deixa as categorias e o
método do conhecer ordinário totalmente incontestes. Se, em escri­
tos científicos de então, às vezes se toma partida com propo­
sições da filosofia kantiana, no decorrer do tratado se revela
que aquelas proposições eram só um adorno supérfluo, e que
o mesmo conteúdo empírico se teria apresentado se fossem
omitidas essas poucas páginas iniciais*.
No que toca a uma mais estrita comparação da filosofia kan­
tiana com o empirismo metafisicante, na verdade o empirismo
ingênuo se atém à percepção sensível, mas admite também
* Até mesmo no Manual de Métrica de Hermann a Introdução é constituída de pará­
grafos da filosofia kantiana; inclusive se conclui, no parágrafo 8, que a lei do ritmo deve
ser uma lei 1) objetiva; 2) formal; 3) determinada a priori. Mas compare-se, com essas
exigências e os princípios que se seguem de causalidade e de ação recíproca, o estudo da
métrica dos versos, sobre que esse princípios formais não exercem a mínima influência.
[Ver Gottfried Hermann, Handbuch der Metrik, Leipzig, 1799.]

135
uma efetividade espiritual, um mundo supra-sensível, seja como
for constituído seu conteúdo, quer derive do pensamento, da
fantasia etc. Segundo &forma, esse conteúdo tem a confirmação
na autoridade espiritual; assim como o outro conteúdo — o do
saber empírico — na autoridade da percepção externa. Mas o
empirismo que reflete e faz da conseqüência [consigo mesmo] seu
princípio, combate tal dualismo do conteúdo último supremo, e
nega a independência do princípio pensante, e de um m undo
espiritual que nele se desenvolva. O materialismo, o naturalismo,
é o sistema conseqüente do empirismo.
A filosofia kantiana opõe pura e sim plesm ente, a esse em ­
pirismo, o princípio do pensar e da liberdade, e se junta ao
primeiro empirismo sem sair, por m enos que seja, do princí­
pio geral desse. Um dos lados do seu dualismo continua sendo
o m undo da percepção, e do entendim ento que sobre ele
•reflete. Esse mundo, na verdade, é dado como um m undo de
fenômenos. C ontudo é isso um mero título, uma determ inação
apenas formal, porque a fonte, o conteúdo e o modo de con­
siderar perm anecem com pletam ente os mesmos. O outro lado,
ao contrário, é a autonomia do pensar que se com preende (a
si mesmo), o princípio da liberdade, que a filosofia kantiana
tem em com um com a metafísica ordinária de antes; mas que
esvazia de todo o conteúdo e não lhe pode conseguir de novo
nenhum conteúdo. Esse pensar — aqui denominado razão — ,
enquanto destituído de toda a determ inação, está despojado
de toda a autoridade. O efeito principal que teve a filosofia
kantiana foi ter despertado a consciência dessa absoluta inte­
rioridade; que embora — por causa de sua abstração, sem
dúvida — não pudesse, em direção a nada, desenvolver-se a
partir de si mesma, nem produzir nenhum a determ inação,
nem conhecim entos nem leis morais, recusa-se absolutam en­
te a deixar agir e ter valor nela qualquer coisa que tenha o
caráter de uma exterioridade. O princípio da independência da
razão, de sua absoluta autonom ia em si mesma, deve ser
considerado de agora em diante como princípio universal da
filosofia, e tam bém como um dos preconceitos da época.

136
Adendo 1: Deve-se à filosofia crítica o grande mérito negativo de ter feito
vigorar a convicção de que as determinações-do-entendimento pertencem à
finitude, e que o conhecimento, que se move no interior delas, não alcança
a verdade. Porém a unilateralidade dessa filosofia consiste em que a finitude
dessas determinações-do-entendimento está posta no fato de pertencerem
simplesmente a nosso pensar subjetivo, para o qual a coisa-em-si deve ficar
um Além absoluto. Contudo, a finitude das determinações-de-entendimento
não reside, de fato, em sua subjetividade, mas elas mesmas são em si finitas,
e sua finitude deve ser mostrada nelas mesmas. Segundo Kant, ao contrário,
o que pensamos é falso, porque nós o pensamos.
Deve-se considerar como mais uma falha dessa filosofia que ela dê
apenas uma descrição histórica do pensar e uma simples enumeração dos
momentos da consciência. Ora, na verdade essa enumeração é, no que
mais importa, correta, sem dúvida; porém nela nada se diz sobre a neces­
sidade do que é assim empiricamente apreendido. Como resultado das
reflexões feitas sobre os diversos níveis da consciência, declara-se então
que o conteúdo daquilo que conhecemos é somente fenômeno. Com esse
resultado se tem de concordar na medida em que o pensar finito certa­
mente só lida com fenômenos. Só que com esse nível do fenômeno ainda
não se esgotou a questão; mas há uma terra superior, que, entretanto, para
a filosofia kantiana permanece um Além inacessível.
Adendo 2\ Na filosofia kantiana, antes de tudo, só se estabelece de
uma maneira formal que o pensar se determina [a partir] de si mesmo,
mas o “como” e o “até que ponto” dessa autodeterminação não foi ainda
demonstrado por Kant.
Fichte, ao contrário, foi quem reconheceu essa falha e, ao declarar a
exigência de uma dedução das categorias, fez ao mesmo tempo a tentativa
de fornecer efetivamente uma tal dedução. A filosofia de Fichte faz do
Eu o ponto de partida do desenvolvimento filosófico, e as categorias devem
produzir-se como o resultado da atividade do Eu. Ora, o Eu não aparece
aqui verdadeiramente como livre e espontânea atividade, pois é conside­
rado como estimulado primeiro por um choque de fora. Contra esse cho­
que, o Eu deve reagir em seguida, e só através dessa reação deve aceder
à consciência sobre si mesmo. A natureza do choque permanece nisso um
“fora” desconhecido, e o Eu é sempre algo condicionado, que tem um
Outro defronte de si. Por conseguinte, Fichte também fica parado no
resultado da filosofia kantiana, de que só pode conhecer o finito; ao passo
que o infinito ultrapassa o pensar. O que se chama em Kant “a coisa-em-
-si” é em Fichte o choque de fora, esse abstrato de um Outro que o Eu,
que não tem outra determinação a não ser a do negativo ou do não-Eu em

137
geral. O Eu é tratado aí como estando em relação com o não-Eu; por meio
do qual, somente, sua atividade de autodeterminação é estimulada, e isso
de modo que o Eu é somente a contínua atividade de se liberar do
choque; sem chegar, contudo, à liberação efetiva, porque com o cessar do cho­
que o Eu mesmo — cujo ser é apenas sua atividade — cessaria de ser.
Aliás, o conteúdo, que a atividade do Eu produz, não é outra coisa que
o conteúdo habitual da experiência, somente com esse acréscimo: de que
esse conteúdo é simplesmente fenômeno.

138
T e r c e ir a p o siç ã o d o p e n sa m e n t o
QUANTO À OBJETIVIDADE

O Saber Imediato
§ 61
Na filosofia crítica, o pensamento é compreendido de modo que
seria subjetivo, e que sua determinação, última e insuperável, seria a
universalidade abstrata, a identidade formal. O pensar é assim oposto à
verdade, enquanto universalidade concreta em si mesma. Nessa deter­
minação suprema do pensar, que seria a razão, as categorias não vêm
em consideração. O ponto de vista oposto é apreender o pensamento
como atividade somente do particular, e declará-lo, dessa maneira,
igualmente incapaz de compreender a verdade.
§62
O pensar, como atividade do particular, tem somente as catego­
rias como seu produto e conteúdo. Essas, tais como o entendimen­
to as fixa, são determinações limitadas, formas do [que é] condicio-
139
nado, dependente, mediatizado. Para o pensar, que a elas se limita, o
infinito, o verdadeiro não é; não se pode operar nenhuma passagem
para ele (contra as provas do ser-aí de Deus). Essas determinações-
-de-pensamento são também chamadas “conceitos”; e conceber um
objeto aí não significa senão apreendê-lo na forma de algo condicio­
nado e mediatizado, [e] por isso — enquanto é o verdadeiro, o
infinito, o incondicionado — transformá-lo em um condicionado e
mediatizado, e dessa maneira, em vez de apreender, pensando o
verdadeiro, antes convertê-lo em não-verdadeiro.
"/Essa é a [alegação] polêmica única e simples que apresenta
o ponto de vista que afirma o saber somente imediato de
Deus e do verdadeiro.
Anteriormente, descartavam-se de Deus as representações,
chamadas antropomórficas, de toda a espécie, como finitas e
portanto indignas do infinito; e Deus se tornou, já por isso,
uma essência muito vazia. Mas as determinações-de-pensa-
mento ainda não eram, em geral, compreendidas dentro do
antropopático; antes, o pensar contava como o que eliminava,
das representações do absoluto, a finitude — segundo o pre­
conceito de todos os tempos, acima observado [§ 5], de que
só pela reflexão se alcança a verdade. Por último, foram as
determinações-de-pensamento em geral também declaradas
como antropopatismo, e o pensamento como a atividade [que
se exerce] só para finitizar. No 7o Apêndice das Cartas sobre
Espinoza, Jacobi expôs essa argumentação polêmica da maneira
mais rigorosa, que aliás tinha haurido da filosofia de Espinoza
e utilizado para combater o conhecimento em geral. Nessa
[argumentação] polêmica, o conhecer é compreendido somen­
te como o conhecer do finito, como o progredir pensante
através das séries [indo] de condicionado a condicionado, em -
que tudo o que é condição é, por sua vez ele mesmo, apenas
um condicionado — através de co?idições condicionadas. Expli­
car e conceber significa, de acordo com isso, mostrar algo
como mediatizado por um Outro; por isso todo o conteúdo é
somente um conteúdo particular, dependente e finito. O infini­
to, o verdadeiro, Deus, fica fora do mecanismo de tal cone­
xão, ao qual estaria limitado o conhecer.
140
É importante que, enquanto a filosofia kantiana situou a fini-
tude das categorias principalmente só na determinação formal
de sua subjetividade, agora nessa polêmica as categorias vêm
à discussão segundo sua determinidade; e a categoria, como tal,
é reconhecida como finita.
Jacobi teve especialmente ante os olhos os brilhantes êxitos das
ciências, que se referem à natureza (das “sciences exactes”),
no conhecimento das forças e leis naturais. Sem dúvida o
infinito não se deixa encontrar imanente nesse terreno do
finito; assim, pois, Lalande disse que procurou pelo céu in­
teiro mas não encontrou Deus (ver Nota ao § 60). Como
resultado último nesse terreno, mostrou-se o universal como
o agregado indeterminado do finito exterior, a matéria; e Jacobi,
com razão, não divisava outra saída no caminho do simples
proceder [de mediações] em mediações.
§ 63
Ao mesmo tempo se afirma que a verdade épara o espírito, de
modo que é só pela razão que o homem subsiste, e que a razão é
o saber de Deus. Mas porque o saber mediatizado deve ser limitado,
somente a conteúdo finito a razão é assim saber imediato, fé.
Saber, crer, pensar, intuir são categorias que se apresentam
desse ponto de vista, as quais, por serem pressupostas como
bem conhecidas, com demasiada freqüência só são empregadas
arbitrariamente conforme meras representações e distinções
psicológicas; o que unicamente importa -— sua natureza e seu
conceito — não é examinado. Encontra-se assim o saber muito
corretamente oposto ao crer; enquanto, ao mesmo tempo, o crer
é determinado como saber imediato, e portanto reconhecido
também como um saber. Achar-se-á igualmente como um fato
empírico que esteja na consciência o que o homem crê, [e] que,
assim, ao menos disso se saiba; [e] também esteja na consciência
como algo certo, o que se crê, e que assim se sabe.
Além disso é sobretudo o pensar que desse modo se opõe ao
saber imediato e à fé, e particularmente ao intuir. Quando o
intuir é determinado como intelectual\ isso não pode significar
senão o intuir pensante; se não se quer entender diversamen-
141
te por intelectual aqui, onde Deus é o objeto, também algo
como representações fantásticas e imagens. Ocorre na lingua­
gem desse filosofar que se fale do crer também a respeito de
coisas ordinárias da presença sensível. Jacobi diz: cremos ter
um corpo, cremos na existência das coisas sensíveis. Porém,
quando se trata da fé no verdadeiro e eterno — e de que
Deus se revelaria no saber imediato, na intuição —, essas não
são coisas sensíveis, mas um conteúdo em si universal que só são
objetos para o espírito pensante. Também ao entender-se a sin­
gularidade como Eu, como a personalidade— enquanto não é um
Eu empírico, uma personalidade particular —, principalmente
quando a personalidade de Deus está diante da consciência,
trata-se da personalidade pura, isto é, universal em si. Uma tal
personalidade é pensamento e só compete ao pensar.
Aliás, o puro intuir é apenas exatamente o mesmo que o puro
pensar. Intuir, crer exprimem inicialmente as representações
determinadas que ligamos a essas palavras na consciência
ordinária; são assim diferentes do pensar, decerto, e essa dife­
rença é inteligível, mais ou menos, a todos. Mas, agora, fé e
intuição devem também ser tomadas em sentido mais alto;
devem ser tomadas como fé em Deus, como intuir intelec­
tual de Deus; isto é, deve-se justamente abstrair do que cons­
titui a diferença entre intuir, crer e pensar. Não se pode dizer
como crer e intuir, transportados para essa região mais elevada,
ainda sejam diversos do pensar. Pensa-se com tais diferenças,
tornadas vagas, ter dito e afirmado algo importantíssimo, e con­
testar determinações que são as mesmas que as afirmadas.
A expressão fé, contudo, traz consigo uma vantagem particu­
lar: a de lembrar a fé da religião cristã, que parece incluí-la ou
mesmo, facilmente, ser a mesma coisa; de modo que esse
filosofar “crente” tem o ar de essencialmente devoto e cristã­
mente piedoso; e, na base dessa devoção, se dá a liberdade
de fazer, com tanto mais pretensão e autoridade, as asserções
que bem quiser. E preciso, porém, não se deixar iludir pela
aparência, sobre o que pode insinuar-se através da mera seme­
lhança das palavras; e atentar bem na diferença. A fé cristã
inclui em si uma autoridade da Igreja; mas a fé desse ponto
142
de vista filosófico é antes somente, a autoridade da própria
revelação subjetiva. Mais ainda, aquela fé cristã é um con­
teúdo objetivo, rico em si mesmo; um sistema da doutrina e
do conhecimento; o conteúdo dessa fé [filosófica], ao contrá­
rio, é tão indeterminado em si que bem poderia, sem dúvida,
admitir também o conteúdo cristão, mas talvez possa igual­
mente abranger em si também a fé de que o Dalai-Lama, o
touro, o macaco etc. são Deus; e que, para si, se limita a
Deus em geral, ao Ser supremo. A própria fé — naquele sen­
tido que deve ser filosófico — não é outra coisa senão o seco
Abstrato do saber imediato, uma determinação completamen­
te formal, que não há que confundir com a plenitude espi­
ritual da fé cristã: nem pelo lado do coração crente e do
Espírito Santo que o habita, nem pelo lado da doutrina rica
de conteúdo; e nem há que tomar-se por essa plenitude.
O que se denomina aqui crer e saber imediato é, aliás, exata­
mente o mesmo que alhures foi chamado inspiração, revelação
do coração, um conteúdo implantado no homem pela natureza,
e além disso também especialmente bom senso, “common
sense”, sentido comum. Todas essas formas do mesmo modo
tomam por seu princípio a imediatez com que um conteúdo
se encontra em sua consciência, e está nela como um fato.
§ 64
O que sabe esse saber imediato é que o infinito, o eterno,
Deus — que está em nossa representação — também é\ que na
consciência está, imediatamente e inseparavelmente unida, com
;sa representação, a certeza de seu ser.
O que menos pode vir de algum modo, à mente da filosofia,
é querer contradizer essas proposições do saber imediato; po­
deria, antes, felicitar-se de que essas velhas proposições suas,
que até mesmo exprimem seu conteúdo universal completo,
se tenham tornado em certa medida também preconceitos
gerais da época, [embora] de uma maneira decerto não-filo-
sófica. Melhor, pode-se apenas admirar de que alguém pu­
desse supor que fossem opostas à filosofia estas proposições:
“o que é tido por verdadeiro é imanente ao espírito” (§ 63)
143
e “a verdade é para o espírito” (ibidem). De um ponto de
vista formal, é particularmente interessante a proposição de
que “com o pensamento de Deus está ligado imediata e
inseparavelmente seu ser ”, e com a subjetividade que o pen­
samento tem primeiro [está ligada] a objetividade. Com certe­
za, a filosofia do saber imediato vai tão longe em sua abstra­
ção, que não só com o pensamento de Deus está ligada
inseparavelmente sua existência; mas também, na intuição, a
representação de meu corpo e das coisas exteriores [está liga­
da] com sua [respectiva] existência.
Se a filosofia se esforça por provar tal unidade, isto é, por
mostrar que reside, na natureza do pensamento e da subje­
tividade mesma, [o fato de] ser inseparável do ser ou da obje­
tividade — seja qual for o valor de tal prova —, a filosofia
deve em todo o caso estar completamente satisfeita de que
seja afirmado e mostrado que suas proposições são também
fatos da consciência e por isso estão de acordo com a experiência.
A diferença entre o afirmar do saber imediato e a filosofia
reduz-se somente a que o saber imediato assume uma posi­
ção excludente, ou uma posição em que se opõe ao filosofar.
Mas também é no modo da imediatez que já foi expressa por
seu fundador essa proposição em torno da qual, como se
pode dizer, gira todo o interesse da filosofia moderna: “Cogi­
to, ergo sum”. E preciso nada saber sobre a natureza do
silogismo senão que se encontra um “ergo” no silogismo,
para ver naquela proposição um silogismo. Onde estaria o
medius terminus? E um tal [meio-termo] pertence bem mais
essencialmente ao silogismo que a palavra “ergo”. Caso se
queira, para justificar a denominação, chamar essa conexão,
posta por Descartes, um silogismo imediato, essa forma su­
pérflua não significa outra coisa que uma conexão — não
mediatizada por nada — de determinações diferentes. Mas
então a ligação do ser com nossas representações, que a pro­
posição do saber imediato exprime, não é nem mais nem
menos um silogismo.
Da dissertação do Sr. Hotho sobre a filosofia cartesiana, publi­
cada no ano de 1826, tiro as citações em que o próprio Des-
144
cartes se explica expressamente, [dizendo] que a proposição
“Cogito, ergo sum” não é um silogismo. As passagens são:
Respons. ad secundas object. — De Methodo, IV, Epistolae
I, 118. Da primeira passagem, cito as expressões mais preci­
sas. Descartes diz inicialmente: [a primeira noção que não se
conclui de nenhum silogismo] “prima notio quae ex nullo
sillogismo concluditur” é que somos seres pensantes, e pros­
segue: [nem quando diz alguém eu penso, logo sou ou exis­
to, deduz do pensamento, por silogismo, a existência\ “Neque
cum quis dicit; ergo cogito, ergo sum sive existo, existentiam
ex cogitatione per syllogismum deducit”. Porque Descartes sabe
o que é próprio de um silogismo, ele acrescenta que, se na­
quela proporção tivesse de haver uma dedução por silogismo,
lhe corresponderia a maior [tudo o que pensa, é 011 existe]
“illud omne, quod cogitat, est sive existit”. Mas essa última
proposição antes seria uma proposição, previamente a dedu­
zir daquela primeira.
As expressões de Descartes sobre a proposição da inseparabili-
dade de mim como pensante e do ser, [a saber] que a intuição
simples da consciência está contida e dada nessa conexão, que
essa conexão é algo absolutamente primeiro, o princípio, o [que
há de] mais certo e [de] mais evidente, de modo que não se
possa representar um cepticismo tão enorme a ponto de não
admitir isso, tais expressões são tão eloqüentes e determinadas
que as proposições modernas de Jacobi e de outros sobre essa
conexão imediata só podem contar por repetições supérfluas.
§ 65
Esse ponto de vista não se satisfaz com ter mostrado [a respei­
to] do saber mediatizado que tomado isoladamente é insuficiente
para [alcançar] a verdade; mas sua peculiaridade consiste em que
[segundo ele] o saber imediato, só tomado isoladamente com exclusão
da mediação, tem por conteúdo a verdade.
Nessas exclusões mesmas, o ponto de vista mencionado revela-se
logo como uma recaída no entendimento metafísico, em seu “ ou
[issoj/íw [aquilo]” e assim, pelo fato mesmo, na relação da media­
ção exterior, que repousa no fixar-se no finito, isto é, em determi­
145
nações unilaterais que aquela maneira de ver supõe falsamente ter
ultrapassado. Deixemos entretanto esse ponto sem desenvolvimen­
to: o saber exclusivamente imediato é afirmado somente como um
fato , que aqui na introdução só deve ser tomado segundo essa re­
flexão exterior. Em si, o que importa é o lógico da oposição entre
a imediatez e a mediação. Mas aquele ponto de vista recusa-se a
considerar a natureza da coisa — quer dizer, o conceito — pois
uma tal consideração conduz à mediação e mesmo ao conhecimen­
to. A verdadeira consideração, a do lógico, tem de encontrar seu
lugar no interior da própria ciência.
Toda a segunda parte da Lógica, a doutrina da essência, é
[um] tratado sobre a unidade essencial — que a si mesma se
põe — da imediatez e da mediação.
§ 66
Ficamos então nisto: que o saber imediato deve ser tomado como
um fato. Assim a reflexão é conduzida para o terreno da experiência,
para um fenômeno psicológico. A esse respeito, pode-se aduzir que
corresponde às experiências mais comuns [o fato seguinte:] que ver­
dades — que se sabe muito bem serem o resultado de considerações
mais complexas, sumamente mediatizadas — apresentam-se imediata­
mente à consciência daquele a quem tal conhecimento se tornou fami­
liar. O matemático, como qualquer perito em uma ciência, tem pre­
sentes, de forma imediata, soluções a que conduziu uma análise muito
complicada. Todo homem culto tem imediatamente presentes em seu
saber uma quantidade de pontos de vista e de princípios gerais que só
resultaram de uma reflexão reiterada e de uma longa experiência de
vida. A facilidade que conseguimos em um gênero qualquer de saber
— e também de arte, de competência técnica — consiste justamente
em ter, quando o caso se apresenta, imediatamente na própria consciên­
cia, e também em atividade voltada para o exterior, e em seus mem­
bros, tais conhecimentos e modos de atividade. Em todos esses casos,
não só a imediatez do saber não exclui sua mediação, mas são de tal
modo unidas que o saber imediato é até mesmo produto e resultado
do saber mediatizado.
Uma observação igualmente trivial é a conexão da existência
imediata com a sua mediação. Os gérmens, ós pais, são uma
146
existência imediata, inicial, em relação aos filhos etc., que são
gerados. Mas os gérmens, os pais, por mais que sejam, como
existentes em geral, imediatos, são igualmente gerados; e os fi­
lhos etc., apesar da mediação de sua existência, são agora ime­
diatos, pois eles são. Que eu seja em Berlim, essa minha presen­
ça imediata é mediatizada pela viagem feita para aqui etc.
§ 67
Mas no que toca ao saber imediato de Deus, do direito, da ética —
e aqui incidem também as demais determinações do instinto, das
idéias implantadas, inatas, do senso comum, da razão natural etc.,
seja qual for a forma dada a essa espontaneidade — a experiência
universal é que, para ser levado à consciência todo esse conteúdo
[de determinações e idéias], exige-se essencialmente uma educação,
um desenvolvimento. [O mesmo se requer] também para a reminis-
cêiicia platônica. (O batismo cristão, embora seja um sacramento,
contém ele mesmo a obrigação ulterior de uma educação cristã.) Isso
quer dizer que a religião, a vida ética, tanto como um crer, um saber
imediato, [também] são absolutamente condicionadas pela mediação
que se chama desenvolvimento, educação, cultura.
Na afirmação de idéias inatas e na refutação contra ela, dominou
uma oposição de determinações exclusivas semelhante à que se
considera aqui. Ou seja, a oposição entre a conexão essencial
imediata — por assim dizer — de certas determinações univer­
sais com a alma, e de uma outra conexão que ocorreria de modo
exterior, e seria mediatizada por objetos e representações dados.
Contra a afirmação de idéias inatas, fazia-se a objeção empírica
de que se todos os homens têm essas idéias — por exemplo, a
proposição da contradição em sua consciência — deveriam sabê-
-lo; já que essa proposição com outras semelhantes se contava
entre as idéias inatas. Pode-se atribuir a essa refutação um mal-
-entendido, na medida em que as determinações aludidas, en­
quanto inatas, não devem por isso estar também já na forma de
idéias, de representações do [que é] conhecido. Mas, [dirigida]
contra o saber imediato, essa objeção é de todo procedente,
porque ele afirma expressamente suas determinações tais como
estariam na consciência. Se o ponto de vista do saber imediato,
147
de certo modo, admite que especialmente para a fé religiosa um
desenvolvimento e uma educação cristã ou religiosa sejam ne­
cessários, então seria uma arbitrariedade querer ignorá-la quan­
do se fala da fé; ou é carência de pensamento não saber que,
com a necessidade concedida de uma educação, está justamen­
te expressa a essencialidade da mediação.
Adendo: Quando se diz na filosofia platônica que nós nos recordamos
das idéias, isso tem o sentido de que as idéias em si estão no homem e
não lhe chegam de fora como algo estranho ao homem (como afirmavam
os sofistas). Por essa apreensão do conhecer como reminiscenda não está,
no entanto, excluído o desenvolvimento do que em si está no homem, e
esse desenvolvimento não é outra coisa que mediação. O mesmo se passa
com as idéias inatas que se encontram em Descartes e nos filósofos esco­
ceses, que são igualmente a considerar antes de tudo somente como em
si no homem, segundo o modo da [pre]disposição.
§ 68
Nas experiências citadas recorre-se ao que se mostra ligado com o
saber imediato. Se essa ligação for, antes de mais nada, tomada somen­
te como uma conexão empírica exterior, ela se manifestará para a pró­
pria consideração empírica como sendo essencial e inseparável por ser
constante. Mas além disso, se de acordo com a experiência esse saber
imediato for tomado por si mesmo, na medida em que é saber de
Deus e do divino, tal consciência será descrita como um elevar-se sobre
o sensível, o finito, como também sobre os imediatos desejos e as
inclinações do coração natural; um elevar-se que ultrapassa a fé em
Deus e no divino, e nele mesmo acaba. Assim é que essa fé é um
saber e um ter-por-verdadeiro imediatos, mas não obstante tem esse
caminho da mediação por sua pressuposição e condição.
Já se notou que as provas — assim chamadas — do ser-aí de
Deus, que partem do ser finito, exprimem essa elevação, e não
são invenções de uma reflexão artificiosa mas mediações pró­
prias, necessárias, do espírito; embora não tenham, na forma
habitual daquelas provas, sua completa e justa expressão.
§ 69
A passagem indicada (no § 64), da idéia subjetiva para o ser, é
o que para o ponto de vista do saber imediato constitui o interesse
148
maior e é afirmado essencialmente como uma conexão originária e
carente-de-mediação. Tomado sem levar em conta, absolutamente,
ligações que pareçam empíricas, esse ponto central justamente
mostra nele mesmo a mediação, e isto em sua determinação tal
como é verdadeiramente; não como uma mediação com algo exte­
rior e por meio dele, mas como se resolvendo em si mesma.
§ 70
A afirmação desse ponto de vista é, com efeito, que não são o
verdadeiro nem a idéia como um pensamento meramente subjetivo,
nem simplesmente um ser para si. O ser só para si, um ser que não
é da idéia, é o ser sensível, finito, do mundo. Com isso afirma-se
imediatamente que a idéia só é o verdadeiro por mediação do ser; e,
inversamente, que o ser só o é por mediação da idéia. A proposição do
saber imediato não quer, com razão, a imediatez vazia, indeterminada:
o ser abstrato ou pura unidade para si; mas sim a unidade da idéia com
o ser. Porém é carência-de-pensamento não ver que a unidade das
determinações diferentes não é simplesmente unidade puramente ime­
diata, isto é, totalmente indeterminada e vazia; mas que está justa­
mente posto nela, que uma das determinações só tem verdade me-
diatizada pela outra; ou, caso se prefira, que cada uma só é mediatizada
com a verdade por meio da outra. Que a determinação da mediação
esteja contida nessa imediatez mesma, é por isso mostrado como [um]
fato, contra o qual o entendimento, conforme o princípio próprio do
saber imediato, nada pode ter a objetar. E só o entendimento abstrato,
ordinário, que toma as determinações de imediatez e de mediação,
cada uma por si, como absolutas; e acredita ter nelas algo fixo para a
distinção. Assim produz para si a dificuldade insuperável de reuni-las
— uma dificuldade que, como se mostrou, tanto não existe no fato
como desvanece no conceito especulativo.
§ 71
A unilateralidade desse ponto de vista traz consigo determina­
ções e conseqüências cujos traços principais ainda há que ressaltar
depois da discussão feita sobre o fundamento.
1-) Em primeiro lugar, porque não se pôs como critério da verdade
a natureza do conteúdo, mas o fato da consciência; então, o saber subjetivo
e a garantia de que eu, na minha consciência, encontro um certo con-
149
teúdo são a base do que é dado como verdadeiro. O que eu encontro
em minha consciência é erigido, pois, em algo que se acha na consciên­
cia de todos\ e dado como sendo a natureza mesma da consciência.
Antigamente, entre as provas, assim-chamadas, do ser-aí de Deus,
citava-se o consensus gentium, ao qual Cícero também recorria. O
consensus gentium é uma autoridade importante, e a passagem [da
constatação] de que um conteúdo se acha na consciência de
todos à [conclusão de] que reside na própria natureza da cons­
ciência e lhe é necessário está facilmente ao alcance. Nessa
categoria do consenso universal, estava incluída a consciência
essencial, a qual não escapa a mente humana mais inculta, de
que a consciência do Singular é ao mesmo tempo algo particu­
lar, contingente etc. Se não se examina a própria natureza dessa
consciência, isto é, se não se isola o que tem de particular,
contingente — quando é unicamente por essa operação penosa
de reflexão que o universal, em si e para si, da consciência pode
ser descoberto —, então o consenso de todos sobre um conteúdo
pode somente fundar um preconceito respeitável, de que per­
tenceria à natureza mesma da consciência. Para a necessidade,
que o pensamento tem, de saber como necessário o que se mostra
como universal, o consensus gentium não é, decerto, suficiente.
Aliás, também dentro da posição que admite ser essa universa­
lidade do fato uma prova satisfatória, já se renunciou a essa fé
como uma prova, por causa da experiência de que há indivíduos
e povos em que não se encontra a fé em Deus#.
* Para encontrar na experiência o ateísmo e a fé em Deus mais difundidos ou menos,
o que importa é [definir] se é bastante a determinação de um Deus em gera/; ou se é exigido,
um conhecimento mais determinado de Deus. Pelo menos quanto aos ídolos dos chineses.1
dos hindus etc. os fetiches africanos e também os deuses gregos, não se admite no mundo
cristão que tais ídolos sejam Deus; quem crê neles não crê, portanto, em Deus. Se, ao
contrário, se considera que em uma tal fé nos ídolos reside contudo em si a fé em Deus em
geral, assim como o gênero [está] no indivíduo particular, o culto dos ídolos vale também
como uma fé; não só em um ídolo, mas em Deus. Inversamente, os atenienses tinham
como ateus os poetas e os filósofos que consideravam Zeus etc. apenas como nuvens, e
afirmavam somente um Deus em geral. Não importa o que em si esteja contido em um
objeto, mas o que desse objeto é externado para a consciência. Toda a intuição sensível do
homem, [inclusive] a mais comum, caso se aceite a confusão dessas determinações, seria
religião; pois decerto em si, em toda intuição desse tipo, em tudo o que é espiritual, está
contido o princípio que, desenvolvido e purificado, se eleva à religião. Uma coisa porém
é ser capaz de religião — e aquele Em-si exprime a capacidade e a possibilidade — e outra

150
Nada há mais rápido e mais cômodo que ter de fazer a mera
asseveração de que eu encontro em minha consciência um
conteúdo com a certeza de sua verdade, e que, portanto, essa
certeza não pertence a mim enquanto sujeito particular, mas
à natureza do espírito mesmo.
§ 72
2a) Em segundo lugar, [da tese] que o saber imediato deve ser o
critério da verdade, segue-se que toda a superstição, todo culto dos
ídolos se declara como verdade, e que o conteúdo da vontade mais
avesso ao direito e à ética é justificado. Para o hindu não é em virtude
de um saber que se diz mediatizado, nem de raciocínios e silogismos,
que a vaca, o macaco ou o Brâmane, o Lama, contam como Deus; mas
o hindu crê neles. Contudo os desejos e as inclinações naturais colocam
espontaneamente seus interesses na consciência; os fins imorais en-
contram-se na consciência de modo totalmente imediato; o caráter —
bom ou mau — exprimiria o ser determinado da vontade, que seria
conhecido nos interesses e fins, e decerto da maneira mais imediata.
§ 73
3a) Enfim, o saber imediato sobre Deus deve estender-se so­
mente a [intuir] que Deus é; não o que Deus é — pois esse último
seria um conhecimento e levaria a um saber mediatizado. Assim
Deus, como objeto da religião, é expressamente limitado ao Deus
em geral, ao supra-sensível indeterminado; e a religião, em seu con­
teúdo, é reduzida a seu mínimo.
Se fosse efetivamente necessário fazer só tanto quanto sufi­
ciente para que seja ainda preservada a fé de que há um Deus
coisa é ter religião. Assim, em época mais recente viajantes (por exemplo, os capitães Ross
c Parry) encontraram tribos (esquimós) a que negaram toda religião; mesmo esse algo de
religião que se poderia ainda encontrar nos feiticeiros africanos (os goetas de Heródoto). Sob
um aspecto totalmente diverso, um inglês que passou em Roma os primeiros meses do
último jubileu [1825] diz, em sua descrição de viagem, sobre os romanos de hoje em dia,
que o povo comum é beato, mas os que sabem ler e escrever são, em conjunto, ateus. Aliás,
i censura de ateísmo nos tempos recentes tornou-se mais rara, e principalmente porque o
conteúdo da religião e a exigência a seu respeito se reduziriam ao mínimo (ver § 73).

151
ou mesmo para que tal fé se estabeleça, só se teria de admi­
rar a pobreza da época que faz tomar como um ganho o [que há
de] mais indigente no saber religioso, e chegou a ponto de
retornar, em sua igreja, ao altar — que há muito tempo se en­
contrava em Atenas — que era consagrado ao Deus desconhecido!
§ 74
Ainda há que indicar brevemente a natureza geral da forma da ime­
diatez. E que essa forma mesma, por ser unilateral, faz seu próprio
conteúdo unilateral, e por isso finito. Dá ao universal a unilateralidade
de uma abstração, de modo que Deus se torna a essência sem-determi-
nação; mas Deus só pode chamar-se espírito na medida em que é co­
nhecido como mediando-se em si mesmo consigo. Somente assim ele é
concreto, vivente e espírito; o saber sobre Deus com espírito contém em
si, justamente por isso, uma mediação. Ao particular, a forma da ime­
diatez dá-lhe a determinação de ser, de referir-^ a si mesmo. Mas o
particular é justamente isto: referir-se a Outro fora dele; por meio dessa
forma, o finito é posto como absoluto. Já que a forma, como absoluta­
mente abstrata, é indiferente quanto a qualquer conteúdo e, exatamente
por isso, susceptível de qualquer conteúdo, tanto pode sancionar um
conteúdo idólatra e imoral, como o oposto. Só esse discernimento
sobre o conteúdo, de que ele não é autônomo, mas mediatizado por meio
de um Outro, [é que] o rebaixa à sua finitude e inverdade. Tal discerni­
mento, porque o conteúdo leva consigo a mediação, é um saber que
contém a mediação. Mas, como [sendo] o verdadeiro, só pode ser
reconhecido um conteúdo, na medida em que não é mediatizado com
um Outro, não é finito, e portanto se mediatiza consigo mesmo, e
desse modo é, em um só, mediação e relação imediata consigo mesmo.
Aquele entendimento, que acredita ter-se libertado do saber finito, da
identidade-de-entendimento da metafísica e do Iluminismo, torna a fazer,
ele mesmo, imediatamente dessa imediatez — isto é, da abstrata rela-
ção-a-si [mesmo], da identidade abstrata — o princípio e o critério da
verdade. Pensamento abstrato ( a forma da metafísica reflexiva) e intuir
abstrato (a forma do saber imediato) são uma só e a mesma coisa.
Adendo-. Quando a forma da imediatez é mantida como opqsta à for­
ma da mediação, então é por isso [mesmo] unilateral, e essa unilaterali-

152
éaáe sc ODCKC3C2 i txx> o conteúdo, que é reduzido somente a essa forma.
Aãbootxcz £. e~ relação abstrata a si [mesma] e por conseguinte, ao
■ rimo tempo, identidade abstrata, universalidade abstrata. Quando, então,
• que é em si e para si universal é tomado apenas na forma de imediatez,
de é somente o abstratamente universal; e Deus recebe, desse ponto de
réca. i significação da essência absolutamente sem-determinação. Se de
Deus se fala ainda como espírito, isso é apenas uma palavra vazia, pois o
espírito enquanto consciência-de-si é, em todo caso, a diferenciação sua de
■mesmo e de um Outro, e assim já [é] mediação.
§ 75
A apreciação dessa terceira posição que foi atribuída ao pensar em
relação à verdade só pode ser efetuada de uma maneira que esse
ponto de vista imediatamente indique e admita em si mesmo. Assim
foi mostrado como falso defato que haja um saber imediato, um saber
sem mediação, seja com Outros, seja nele mesmo, consigo. Igualmen­
te se declarou, como inverdade de fato, que o pensar só proceda por
determinações mediatizadas através de outra coisa — finitas e condicio­
nadas — e que assim essa mediação mesma não se suprassuma tam­
bém na mediação. Mas a própria lógica e filosofia inteira são o exemplo
Ao fato de um tal conhecer que não prossegue [seu curso] nem em
uma imediatez unilateral, nem em uma mediação unilateral.
§ 76
Se for considerado o princípio do saber imediato em relação ao
ponto de partida — a metafísica [que foi] acima denominada ingê­
nua — resulta da comparação que aquele saber retornou a esse
começo, que essa metafísica teve nos tempos modernos com filo­
sofia cartesiana. Em ambas [as filosofias] se afirma:
lü) A inseparabilidade simples do pensar e do ser do pensante.
Cogito, ergo sim eqüivale, de todo, a dizer: que me foi revelado na
consciência imediatamente o ser, a realidade, a existência do Eu
*Descartes declara ao mesmo tempo, expressamente — Principia
Philosophiae, I, 9 —, que por pensar ele entende a consciência em
geral, como tal); e que essa inseparabilidade [do pensar e do ser-
-pensante] é o conhecimento absolutamente primeiro, (não media-
[izado, comprovado) e o mais certo [que há].
2-) Igualmente se afirma a inseparabilidade da representação
de Deus e de sua existência, de modo que a existência está contida
153
na própria representação de Deus, e que tal representação não é
sem a determinação da existência, e que portanto essa existência
é necessária e eterna*.
3a) No que toca à consciência igualmente imediata da existên­
cia das coisas externas, ela mesma não significa outra coisa que a
consciência sensível. Que nós tenhamos tal consciência, é o menor
dos conhecimentos. Só interessa saber que esse saber imediato do
ser das coisas exteriores é ilusão e erro, e que no sensível, como tal,
não há verdade alguma; que o ser dessas coisas exteriores é antes
um ser contingente, efêmero: uma aparência; que as coisas exteriores
consistem essencialmente nisto: em ter somente uma existência
separável de seu conceito, [de sua] essência.
§ 77
Contudo, são diferentes os dois pontos de vista:
1 — A filosofia cartesiana, a partir desses pressupostos não
demonstrados e tomados como indemonstráveis, passa a um
conhecimemto ulterior desenvolvido, e desse modo deu origem às
* Descartes, Principia Philosophiae, I, 15: “Magis hoc (Ens summe perfectum existere)
credet, si attendat nullius alterius rei ideam apud se inveniri, in qua eodem modo necessariam
existentiam contineri animadvertat; intelliget, illam ideam exhibere veram et immutabilem
naturam, quaeque non potest non existere, cum necessaria existentia in ea contineatur. [Con-
vencer-se-á melhor disso (de que existe um ser sumamente perfeito), se atentar que em
nenhuma outra de suas idéias está contida do mesmo modo esta existência necessária; pois
verá que esta idéia só representa uma natureza verdadeira e imutável porque o necessário
ser-aí está contido nela.] [Trad. (alemã) de A. Buchenau],
Uma expressão que está a seguir, e que soa como uma mediação ou prova, não pre­
judica esse primeiro fundamento. Em Espinoza é exatamente o mesmo; a essência e Deus,
isto é, a representação abstrata, inclui em si a existência. A primeira definição de Espinoza
é a de “causa sttF, a saber, é uma coisa “cuius essentia involvit existentiam”, ou “id, cuius
natura non potest concipi nisi existens”. ( Ethica, I Def. 1) [causa de si mesmo — aquilo cuia
essência implica a existência — cuja natureza não pode conceber-se senão existindo], A
inseparabilidade do conceito [a respeito] do ser é a determinação fundamental e a pressu­
posição. Mas qual é o conceito a que compete essa inseparabilidade do ser? Não é o das
coisas finitas, pois essas são justamente os [seres] cuja existência é contingente e criada. Que,
em Espinoza, a 11a proposição — de que Deus necessariamente exista, seja seguida de
uma prova — e também a 20a — de que a existência de Deus e sua essência são uma só
e a mesma coisa, é um formalismo supérfluo da prova. Deus é a substância (e na verdade
a única substância). Mas a substância é “causa sui”; logo Deus existe necessariamente —
isso não significa senão que Deus é aquilo cujo conceito e ser são inseparáveis.

154
ciências dos tempos modernos. O ponto de vista moderno, ao con­
trário, chegou ao resultado, por si [mesmo] importante, de que o
conhecimento que procede por mediações finitas só conhece o finito,
e não contém verdade alguma; e exige da consciência sobre Deus
que se atenha àquela crença, na verdade totalmente abstrata*.
2 — Nisso o ponto de vista moderno, por um lado, nada muda no
método — introduzido por Descartes — do conhecimento científico
habitual, e continua a tratar exatamente da mesma maneira as ciências
do empírico e do finito, originadas desse método. Mas por outro lado
esse ponto de vista rejeita tal método, e, pelo fato de não conhecer
outros, [rejeita] todos os métodos para o saber do que é infinito segun­
do o seu conteúdo. Portanto, abandona-se ao arbítrio selvagem das
imaginações e das asserções, a uma enfatuação de moralidade e a um
orgulho de sentimento, ou a um opinar e raciocinar desmedido que se
declara do modo mais enérgico contra a filosofia e os filosofemas. E
que a filosofia não permite um simples asseverar, nem o imaginar,
nem o caprichoso vai-e-vem pensante do raciocínio.
§ 78
A oposição de uma imediatez autônoma do conteúdo ou do
saber, e, inversamente, de uma mediação igualmente autônoma,
que seria incompatível com aquela, há que pôr de lado; antes de
tudo, por ser uma simples pressuposição, e asseveração arbitrária.
Igualmente, todos os outros pressupostos e preconceitos devem ser
rejeitados, quando se entra na ciência, quer sejam tomados da re­
presentação, ou do pensar; pois somente na ciência é que são exa­
minadas semelhantes determinações, e que deve ser conhecido o
que há nelas e em suas oposições.
O cepticismo, enquanto é uma ciência negativa aplicada por meio
de todas as formas do conhecer, poderia apresentar-se como uma
introdução, em que seria mostrada a nulidade de tais pressuposi­
* Anselmo diz, ao contrário: “Negligentia mihi videtur, si postquam confirmati sumus in
Fide. non studemus quod credimus, intelligere” (Tractatus “Cur Deus Homo” I, 1) [Parece-me
negligência se, depois de confirmados na fé, não nos esforçamos por entender o que
rremos.] Anselmo tem pois no conteúdo concreto da doutrina cristã um difícil problema
para o conhecimento, totalmente diverso do que existe para a fé moderna.

155
ções. Porém seria não somente um caminho desagradável, mas
também supérfluo, por motivo de que o próprio dialético é um
momento essencial da ciência afirmativa, como logo se fará notar.
Aliás, o cepticismo teria de encontrar as formas finitas só empirica-
mente, e não cientificamente; e de acolhê-las como dadas. A exigên­
cia, de um tal cepticismo consumado, é a mesma de que a ciência
deve ser precedida pela dúvida a respeito de tudo, quer dizer, pela
total ausência de pressuposição a respeito de tudo. Exigência que é
justamente satisfeita pela resolução de querer pensar puramente poi
meio da liberdade que abstrai de tudo e apreende sua pura abstra­
ção — a simplicidade do pensar.

156
CONCEITO MAIS PRECISO
E DIVISÃO DA LÓGICA
§ 79
A lógica tem, segundo a forma, três lados: a) o lado abstrato ou
do entendimento; b) o dialético ou negativamente-racional; c) o especu­
lativo ou positivamente racional.
Esses três lados não constituem três partes da Lógica, mas são
momentos de todo [e qualquer] lógico-real, isto é, de todo conceito ou
de todo verdadeiro em geral. Eles podem ser postos conjuntamen­
te sob o primeiro momento — o do entendimento — e por isso ser
mantidos separados uns dos outros; mas, desse modo, não são consi­
derados em sua verdade. A indicação que aqui é feita sobre as
determinações do lógico -— assim como a [sua] divisão— está aqui
somente [numa forma] antecipada e histórica.
§ 80
a) O pensar enquanto entendimento fica na determinidade fixa e
na diferenciação dela em relação a outra determinidade; um tal
Abstrato limitado vale para o pensar enquanto entendimento como
[se fosse] para si subsistente e essente.
Adendo'. Quando se trata do pensar em geral, ou mais precisamente do
conceituar, costuma-se com freqüência, nesse caso, ter diante dos olhos sim­
plesmente a atividade do entendimento. Ora, é evidente que o pensar é,
antes de tudo, pensar do entendimento; só que o pensar não fica nisso, e o
conceito não é simples determinação-de-entendimento. A atividade do en-
159
tendimento em geral consiste em conferir a seu conteúdo a forma da universa­
lidade; e, na verdade, o universal posto por meio do entendimento é algo abs­
tratamente universal, que como tal é sustentado em contraposição ao parti­
cular, mas, por isso também, de novo determinado ao mesmo tempo como
particular, ele mesmo. Enquanto o entendimento se refere a seus objetos,
separando e abstraindo, ele é o contrário da intuição e sensação imediata,
que como tal só lida exclusivamente com o concreto e nele permanece.
A essa oposição entre o entendimento e a sensação referem-se essas
denúncias, tantas vezes repetidas, que se costumam dirigir contra o pen­
sar em geral, e que vêm a dar nisto: de que o pensar seria rígido e uni­
lateral, e levaria, em sua conseqüência, a resultados funestos e demolidores.
A tais denúncias, na medida em que são justificadas segundo seu conteú­
do, pode-se, antes de mais nada, replicar que por meio delas não é atin­
gido o pensar em geral — e, mais precisamente, o pensar racional —, mas
só o pensar do entendimento. No entanto, além disso há que reconhecer,
antes de todas as coisas, também ao pensar puramente do entendimento,
seu direito e mérito — que de modo geral consiste em que, tanto no
domínio prático quanto no teórico, sem entendimento não se chega a
nenhuma fixidez e determinidade. Nesse caso, no que concerne primeiro
ao conhecer, ele começa por apreender os objetos presentes em suas
diferenças determinadas; e assim, por exemplo, no estudo da natureza,
matéria, forças, gêneros etc. são diferenciados e fixados para si mesmos
nesse seu isolamento. O pensar procede, nesse caso, como entendimento,
e o princípio desse último é a identidade, a relação simples para consigo
mesmo. Depois, é também por essa identidade que no conhecimento é
condicionada antes de tudo a progressão de uma determinação para a
outra. Assim, notadamente na matemática, a grandeza é a determinação
segundo a qual se avança [no raciocínio] com abandono de todas as outras.
Na geometria comparam-se, por isso, as figuras entre si, destacando assim
o idêntico nelas. Também em outros campos do conhecer, por exemplo
na jurisprudência, avança-se na identidade. Enquanto aqui se conclui de
uma determinação para a outra, esse silogismo não é outra coisa que uma
progressão segundo o princípio de identidade. Como no [campo] teórico,
tampouco no prático não há que faltar o entendimento. Para agir é preciso
essencialmente caráter, e um homem de caráter é um homem de entendi­
mento, que como tal tem, ante os olhos, fins determinados e os persegue
com firmeza. Como diz Goethe, quem quer algo de grande deve poder
limitar-se. Quem ao contrário quer tudo, de fato nada quer; e isso não leva
a nada. Há uma multidão de coisas interessantes no mundo: poesia espa­
nhola, química, política, músicas; tudo isso é muito interessante, e não se
pode levar a mal quem se interessa por isso. Mas para realizar alguma

160
coisa, como um indivíduo em uma situação determinada, deve ater-se a
algo determinado e não dispersar sua força por muitos lados. Igualmente
é importante, em qualquer profissão, que seja desempenhada com en­
tendimento. Assim, por exemplo, o juiz deve ater-se à lei, dar sua sen­
tença de acordo com ela, e não se deixar desviar por uma coisa ou por
outra; não admitir desculpa alguma, [julgar] sem olhar para a direita ou
para a esquerda.
Além disso, o entendimento é, em geral, um momento essencial da
cultura. Um homem cultivado não se satisfaz com o nebuloso e o inde­
terminado, mas apreende os objetos em sua determinidade fixa; enquan­
to, ao contrário, o homem não cultivado oscila para lá e para cá, sem
segurança, e com freqüência custa muito esforço entender-se com uma
pessoa dessas sobre o assunto de que se fala, e levá-la a manter fixamente
ante os olhos o ponto determinado de que se trata.
Ora, como além disso, em conseqüência de discussão anterior, o ló­
gico em geral não há que apreender simplesmente no sentido de uma
atividade subjetiva, mas antes como o absolutamente universal e, por isso,
ao mesmo tempo objetivo, isso encontra também sua aplicação no enten­
dimento, essa primeira forma do lógico. O entendimento, portanto, há de
considerar-se como correspondente àquilo que se chama a bondade de
Deus, enquanto por isso se entende que as coisas finitas são, que elas têm
uma subsistência. Assim se reconhece, por exemplo, na natureza a bonda­
de de Deus, em que as diversas classes e gêneros, tanto de animais como
de plantas, são providos de tudo que precisam para conservar-se e pros­
perar. O mesmo se dá com o homem, com os indivíduos e com povos
inteiros, que igualmente, por uma parte, encontram ali o que é preciso
para sua subsistência e desenvolvimento, como algo imediatamente dado
(como por exemplo clima, constituição natural e produtos da região); e,
por outra parte, possuem-no como disposição, talento etc. Compreendido
desse modo, o entendimento mostra-se então, de uma maneira geral, em
todos o domínios do mundo objetivo, e pertence essencialmente à perfei­
ção de um objeto que tenha em si, [reconhecido] por seu direito, o prin­
cípio do entendimento. Assim, por exemplo, o Estado é imperfeito, se
nele não se chegou ainda a uma determinada diferenciação dos esta­
mentos e das profissões; e as funções políticas e de autoridade, diferentes
segundo o conceito, não estão ainda, do mesmo modo, desenvolvidas em
órgãos particulares; assim como, por exemplo, sucede com o organismo
animal desenvolvido, com as diversas funções da sensibilidade, do movi­
mento, da nutrição.
Da discussão anterior pode-se então concluir que também em tais
domínios e esferas da prática — que segundo a representação corrente

161
parecem estar situados o mais longe [possível] do entendimento — não
lhes pode faltar contudo o entendimento; e, na medida em que tal ocorre,
isso pode considerar-se uma deficiência. O que vale nocadamence para a
arte, a religião, e a filosofia. Assim na arte, por exemplo, o entendimento
se mostra em que as diversas formas do belo, segundo o seu conceito, são
mantidas e expostas em sua diferença. Também vale o mesmo das obras-
-de-arte singulares. Por conseguinte exige-se, para a beleza e perfeição de
uma poesia dramática, que os caracteres dos diversos personagens se de­
senvolvam em sua pureza e determinidade, e igualmente que os diversos
fins e interesses de que se trata exponham-se clara e distintamente. No
que toca, muito de perto, ao domínio religioso — abstraindo aliás da
diversidade de conteúdo e da [sua] apreensão —, a superioridade da mi­
tologia grega sobre a nórdica consiste essencialmente em que na primeira
as figuras divinas singulares são desenvolvidas em determinidade plástica,
enquanto na última fluem umas através das outras na névoa de turva
indeterminidade. Enfim, que a filosofia também não pode dispensar o
entendimento, conforme a discussão precedente, quase não precisa de
menção particular. Para o filosofar requer-se antes de tudo que cada pen­
samento seja apreendido em sua precisão completa, e que não se fique no
vago e no indeterminado.
Antes disso, costuma-se também dizer que o entendimento não deve ir
longe demais, e nisso está de correto que o âmbito do entendimento não é
decerto algo de último, mas antes é finito; e, mais precisamente, é de uma
espécie que ao ser levado a seu extremo se converte em seu contrário. E a
maneira [de agir própria] da juventude: lançar-se em abstrações de um lado
e de outro, quando, ao contrário, o homem de experiência na vida não se
deixa levar pelo abstrato ou-ou, mas se atém ao concreto.
§ 81
b) O momento dialético é o próprio suprassumir-se de tais de­
terminações finitas e seu ultrapassar para suas opostas.
Ia) O dialético, tomado para si pelo entendimento separada­
mente, constitui o cepticismo — sobretudo quando é mostrado
em conceitos científicos: o cepticismo contém a simples ne­
gação como resultado do dialético.
2-) A dialética é habitualmente considerada como uma arte
exterior, que por capricho suscita confusão nos conceitos deter­
minados, e uma simples aparência de contradições entre eles; de
162
modo que não seriam uma nulidade essas determinações e sim
essa aparência; e ao contrário seria verdadeiro o que pertence
ao entendimento. Muitas vezes, a dialética também não pas­
sa de um sistema subjetivo de balanço, de um raciocínio que
vai para lá e para cá, onde falta o conteúdo, e a nudez é re­
coberta por essa argúcia que produz tal raciocínio. Em sua
determinidade peculiar, a dialética é antes a natureza própria
e verdadeira das determinações-do-entendimento — das
coisas e do finito em geral. A reflexão é, antes de tudo, o
ultrapassar sobre a determinidade isolada, e um relacionar
dessa última pelo qual ela é posta em relação — embora
sendo mantida em seu valor isolado. A dialética, ao contrário,
é esse ultrapassar imanente, em que a unilateralidade, a limi­
tação das determinações do entendimento é exposta como
ela é, isto é, como sua negação. Todo o finito é isto; suprassu-
mir-se a si mesmo. O dialético constitui pois a alma motriz
do progredir científico; e é o único princípio pelo qual en­
tram no conteúdo da ciência a conexão e a necessidade imanen-
tes, assim como, no dialético em geral, reside a verdadeira
elevação — não exterior — sobre o finito.
Adendo: É da mais alta importância apreender e conhecer devidamente
o dialético. O dialético, em geral, é o princípio de todo o movimento, de toda
a vida, e de toda a atividade na efetividade. Igualmente, o dialético é tam­
bém a alma de todo o conhecer verdadeiramente científico. Em nossa cons­
ciência, o [fato de] não se ater às determinações abstratas do entendimento
aparece como simples retidão, conforme o adágio: “viver e deixar viver”, de
modo que um vale e também o outro. Mas o que está mais próximo [da
verdade] é que o finito não é limitado simplesmente de fora, mas se supras-
sume por sua própria natureza, e por si mesmo passa ao seu contrário. Diz-se,
assim, por exemplo: o homem é mortal, e considera-se então o morrer como
algo que tem sua razão-de-ser apenas nas circunstâncias exteriores; e, confor­
me esse modo de considerar, são duas propriedades particulares do homem:
ser vivo e também ser mortal.
Mas a verdadeira compreensão é esta: que a vida como tal traz em si
o gérmen da morte, e que em geral o finito se contradiz em si mesmo, e
por isso se suprassume. Ora, além disso, a dialética não pode confundir-
-se com a simples sofistica, cuja essência consiste em fazer valer por si, em
seu isolamento, determinações unilaterais e abstratas — segundo o que
163
implica cada vez o interesse do indivíduo e de sua situação particular. É
assim, por exemplo, em relação ao agir um momento essencial, que eu
exista e tenha os meios para a existência. Mas se então eu faço ressaltar
por si mesmo esse lado, esse princípio de minha felicidade, e deduzo daí
a conseqüência que eu posso roubar ou trair minha pátria, isso é uma
sofistaria. Igualmente, em meu agir, minha liberdade subjetiva, no senti­
do em que eu estou no que faço, com meu discernimento e minha con­
vicção, é um princípio essencial. Mas, se raciocino a partir desse princípio
unicamente, isso é também uma sofistaria, e todos os princípios da vida
ética são arruinados.
A dialética é essencialmente diversa de um tal agir, pois ela tende jus­
tamente a considerar as coisas em si e para si; e aí se descobre então a
finitude das determinações unilaterais do entendimento. Aliás a dialética não
é nada de novo na filosofia. Entre os antigos, Platão é designado como o
inventor da dialética, e isso com justiça, enquanto na filosofia platônica a
dialética pela primeira vez se apresenta em uma forma científica livre e, por
isso, ao mesmo tempo objetiva. Em Sócrates, o [procedimento] dialético em
consonância com o caráter geral do seu filosofar tem ainda uma figura pre­
dominantemente subjetiva, a saber, a da ironia. Sócrates dirigia sua dialética
primeiro contra a consciência ordinária, em geral, e, em seguida, particular­
mente contra os sofistas. Em suas conversações costumava então tomar a
aparência de querer instruir-se mais exatamente sobre a Coisa de que se
falava. A propósito, punha todo o tipo de questões e conduzia assim aqueles
com que se entretinha ao oposto do que inicialmente lhes tinha aparecido
como o justo. Quando, por exemplo, os sofistas se chamavam mestres,
Sócrates, por uma série de questões, levava o sofista Protágoras a ter de
conceder que todo o aprender era rememoração. Platão mostra em segui­
da em seus Diálogos rigorosamente científicos, pelo tratamento dialético
em geral, a finitude de todas as determinações fixas do entendimento.
Assim, por exemplo, em Parmênides, ele deduz do uno o múltiplo, e mostra
apesar disso como o múltiplo é apenas isto: determinar-se como o uno.
Com tal maneira grandiosa Platão tratou a dialética. Nos tempos moder­
nos, foi Kant sobretudo que trouxe de novo a dialética à memória, e a
instaurou de novo em sua dignidade, e isso por meio do desenvolvimento
— já discutido (§ 48) — das assim-chamadas antinomias da razão; em que
não se trata, de modo algum, de um simples vaivém entre razões, nem de
um agir meramente subjetivo, mas antes [se trata] de mostrar como toda
a determinação abstrata de entendimento — tomada somente como ela se
dá a si mesma — se converte imediatamente em sua oposta.
Por mais que o entendimento costume opor resistência à dialética, ela
não pode, de modo algum, ser considerada como presente simplesmente

164
para a consciência filosófica; mas antes, aquilo de que se trata aqui, já se
encontra também em qualquer outra consciência, e na experiência universal.
Tudo o que nos rodeia pode ser considerado como um exemplo do
dialético. Sabemos que todo o finito, em lugar de ser algo firme e último,
é antes variável e passageiro; e não é por outra coisa senão pela dialética
do finito que ele, enquanto é em si o Outro de si mesmo, é levado
também para além do que ele é imediatamente, e converte-se em seu
oposto. Se foi dito antes (§ 80) que o entendimento podia ser considerado
como o que está contido na representação da bondade de Deus, assim há
que notar agora [a respeito] da dialética, tomada no mesmo sentido (ob­
jetivo), que seu princípio corresponde à representação da potência de Deus.
Dizemos que todas as coisas (isto é, todo o finito enquanto tal) vão a
juízo, e temos nisso a intuição da dialética como da potência universal
irresistível diante da qual nada pode resistir — por seguro e firme que se
possa julgar. Com essa determinação sem dúvida não está ainda esgotada
a profundeza da essência divina — o conceito de Deus —; mas ela forma,
na certa, um momento essencial em toda a consciência religiosa.
Além do mais, a dialética se faz vigente em todas as esferas e forma­
ções do mundo natural e do mundo espiritual. Assim, por exemplo, no
movimento dos corpos celestes. Um planeta está agora nesta posição,
porém é em si [por natureza] estar também em outra posição; e, moven­
do-se, leva à existência esse seu ser-Outro. Do mesmo modo, os elemen­
tos físicos se mostram como dialéticos, e o processo meteorológico é a
aparição de sua dialética. E o mesmo princípio que forma a base de todos
os outros processos naturais; e pelo qual, ao mesmo tempo, a natureza é
impelida para além de si mesma. No que toca à presença da dialética no
mundo do espírito, e mais precisamente no âmbito do jurídico e do ético,
basta recordar aqui como, em virtude da experiência universal, o extremo
de um estado ou de um agir costuma converter-se em seu contrário;
[uma] dialética que com freqüência encontra seu reconhecimento nos
adágios. Diz-se, assim, por exemplo: summum jus, summa injuria-, pelo que
se exprime que o direito abstrato, levado a seu extremo, se converte em
agravo. Igualmente é bem conhecido como, no [campo] político, os extre­
mos da anarquia e do despotismo costumam suscitar-se mutuamente, um
ao outro. A consciência da dialética no âmbito da ética, em sua figura
individual, encontramos nestes adágios bem conhecidos por todos: “O
orgulho precede a queda”; “Lâmina afiada demais fica cega”, etc. Também
a sensibilidade — tanto corporal como espiritual — tem sua dialética.
Pois, bem conhecido como os extremos de dor e de alegria passam um
para o outro; o coração cheio de alegria se alivia em lágrimas, e a tristeza
mais íntima costuma, em certas circunstâncias, revelar-se por um sorriso.

165
Adendo 2\ O cepticismo não pode ser considerado simplesmente como
uma doutrina-da-dúvida; ele está, antes, absolutamente certo de sua Coisa,
isto é, da nulidade de todo o finito. Quem somente duvida está ainda na
esperança de que sua dúvida poderá ser resolvida, e que uma ou outra das
determinações entre as quais oscila se mostrará como algo firme
e verdadeiro. Ao contrário, o cepticismo propriamente dito é o desespero
rematado de tudo o que há de firme no entendimento, e o sentimento daí
resultante é o da imperturbabilidade e do repousar em si mesmo. Este é
o alto e antigo cepticismo, tal como encontramos representado notada-
mente em Sexto Empírico e tal como recebeu seu desenvolvimento na
época romana posterior, como complemento dos sistemas dogmáticos dos
estóicos e epicuristas. Com esse alto cepticismo antigo, não pode ser
confundido o cepticismo moderno anteriormente mencionado (§ 39) —
por um lado, anterior à filosofia crítica; por outro lado, procedente dela —
que consiste simplesmente em negar a verdade e a certeza do supra-
sensível; e, inversamente, em designar o sensível, e o que é dado na
impressão imediata, como aquilo a que nos devemos ater.
Aliás, se o cepticismo ainda é hoje em dia considerado um inimigo
irresistível de todo o saber positivo em geral, e portanto também da filo­
sofia, na medida em que nela se trata de conhecimento positivo, há que
notar, ao contrário, que de fato só tem a temer o cepticismo o pensar
finito e abstrato do entendimento, o mesmo que não lhe pode resistir;
enquanto a filosofia contém nela o céptico como um momento, a saber,
como o dialético. Mas a filosofia não fica então no resultado puramente
negativo da dialética, como é o caso com o cepticismo. Este distorce seu
resultado, enquanto o sustenta como uma negação simples — quer dizer,
abstrata. Enquanto a dialética tem por resultado o negativo — que é,
justamente enquanto resultado, ao mesmo tempo o positivo, porque con­
tém, como suprassumido em si, aquilo de que resulta, e não é sem ele.
Isto porém é a determinação fundamental da terceira forma do lógico, ou
seja, do especulativo ou positivamente-racional.
§ 82
c) O especulativo ou positivamente racional apreende a unidade
das determinações em sua oposição: o afirmativo que está contido
em sua resolução e em sua passagem [a outra coisa].
Ia) A dialética tem um resultado positivo por ter um conteúdo
determinado, ou por seu resultado na verdade não ser o nada vazio,
abstrato, mas a negação de certas determinações que são contidas no
resultado, precisamente porque este não é um nada imediato, mas
um resultado.
166
2-) Esse racional, portanto, embora seja algo pensado — tam­
bém abstrato —, é ao mesmo tempo algo concreto, porque não é
unidade simples, formal, mas unidade de determinações diferentes. Por
isso a filosofia em geral nada tem a ver, absolutamente, com sim­
ples abstrações ou pensamentos formais, mas somente com pensa­
mentos concretos.
32) Na Lógica especulativa, a simples Lógica de entendimento está
contida e pode ser construída a partir dela; para isso não é preciso
senão deixar de lado o dialético e racional; torna-se assim o que é a
Lógica ordinária, uma história de variadas determinações de pensamen­
to reunidas, que em sua finitude valem por algo infinito.
Adendo: Segundo seu conteúdo, o racional tampouco é simplesmente
uma propriedade da filosofia, que se deve antes dizer que ele está pre­
sente para todos os homens, em qualquer nível da cultura e do desenvol­
vimento espiritual em que possam encontrar-se. Nesse sentido, com justa
razão, o homem foi designado desde sempre como um ser racional. A
maneira empiricamente universal de saber sobre o racional é, em primeiro
lugar, a maneira do preconceito e da pressuposição, e em conseqüência de
discussão anterior (§ 45) o caráter do racional é, em geral, ser um
incondicionado, e por isso algo que contém em si mesmo sua
determinidade. Nesse sentido, o homem, antes de todas as coisas, sabe o
racional; na medida em que sabe de Deus, e sabe a Deus como determi­
nado absolutamente por si mesmo. Igualmente, além disso, o saber que
um cidadão tem de sua pátria e de suas leis é um saber do racional, na
medida em que essas valem para ele como um incondicionado, e ao mesmo
tempo como um universal, ao qual deve submeter-se com sua vontade
individual. No mesmo sentido, o saber e querer da criança já é racional,
enquanto sabe a vontade de seus pais, e quer essa vontade.
Além disso, o especulativo em geral, não é outra coisa que o racional
(e, na verdade, que o positivamente-racional) enquanto esse é pensado.
Na vida ordinária, o termo especulação costuma ser usado em um sentido
muito vago e, ao mesmo tempo, inferior. Assim, por exemplo, quando se
fala de especulações matrimoniais ou comerciais, não se entende por isso
outra coisa que não seja, de uma parte, que se deve ir além do imedia­
tamente dado; e, de outra parte, que o que forma o conteúdo de tais
especulações é, em primeiro lugar, somente algo subjetivo; contudo não
deve ficar assim, mas ser realizado ou transposto em objetividade.
Quanto a esse uso corrente da língua, a respeito das especulações, apli­
ca-se o mesmo que foi antes notado a propósito da idéia; a isso se liga ainda

167
uma observação ulterior: muitas vezes pessoas qué se contam já como as
mais cultivadas falam também da especulação, expressamente no sentido de
algo puramente subjetivo. Desse modo, ouve-se dizer que uma certa com­
preensão da situação e das relações naturais ou espirituais poderia ser muito
bela e justa tomada de modo simplesmente especulativo; mas que a expe­
riência não está de acordo com ela, e que na efetividade não se pode admitir
uma coisa como essa. Ao contrário, há que dizer que o especulativo, segundo
sua verdadeira significação, não é — nem de modo provisório, nem também
definitivo — algo puramente subjetivo; mas é, antes, expressamente o que
contém em si mesmo, como suprassumidas, aquelas oposições em que o
entendimento fica [imobilizado] — por conseguinte, também a oposição de
subjetivo e objetivo, e justamente por isso se mostra como concreto e como
totalidade. Por esse motivo, um conteúdo especulativo não pode também ser
expresso em uma proposição unilateral. Se dizemos, por exemplo, que o
absoluto é a unidade do subjetivo e do objetivo, é sem dúvida correto;
contudo é unilateral, na medida em que somente a unidade está expressa
aqui, e o acento está posto nela; quando, de fato, o subjetivo e o objetivo não
são somente idênticos, mas também diferentes.
A respeito da significação do especulativo, há que mencionar aqui
que se tem de entender, por isso, o mesmo que antes se costumava
designar como místico — sobretudo em relação à consciência religiosa e a
seu conteúdo. Hoje em dia, quando se fala de místico, esse em regra geral
conta como sinônimo de misterioso e inconcebível, e esse misterioso e
inconcebível é então, segundo aliás a diversidade da cultura e da mentali­
dade, considerado por um como autêntico e verdadeiro, por outro como
superstição e ilusão. Deve-se notar a propósito, antes de tudo, que o
místico sem dúvida é algo misterioso; contudo, só para o entendimento,
e de fato simplesmente porque a identidade abstrata é o princípio do
entendimento, enquanto o místico (como sinônimo do especulativo) é a
unidade concreta dessas determinações que para o entendimento só va­
lem como verdadeiro em sua separação e oposição. Se então os que reco­
nhecem o místico como verdadeiro não vão, igualmente, além [da noção]
de que é algo absolutamente misterioso, por sua parte, está assim decla­
rado somente que o pensar tem para eles a significação do [ato] abstrato
[de] pôr-o-idêntico; e que, por esse motivo, para alcançar a verdade, deve-
-se renunciar ao pensar, ou, como também se costuma dizer, deve-se
tomar como prisioneira a razão. Ora, como vimos, o pensar abstrato do
entendimento é tão pouco algo de firme e de último, que antes se mostra
como o constante suprassumir de si mesmo e como reverter em seu opos­
to; quanto ao contrário, o racional como tal, consiste justamente em conter
em si mesmo os opostos como momentos ideais. Todo o racional, por isso.

168
pode ao mesmo tempo ser designado como místico; mas com isso somen­
te se diz que vai além do entendimento, e de modo algum que o racional
seja a considerar em geral como inacessível e inconcebível para o pensar.
§ 83
A Lógica divide-se em três partes;
I — A Doutrina do Ser
II — A Doutrina da Essência
III — A Doutrina do Conceito e da Idéia
Quer dizer, na Teoria do pensamento:
I — Em sua imediatez — no conceito em si
II — Em sua reflexão e mediação, no ser-para-si, e na aparência
do conceito
III — Em seu ser-retornado sobre si mesmo e ser-junto-a-si desen­
volvido — no conceito em si e para si
Adendo: A divisão aqui indicada da Lógica, como toda a discussão ante­
rior sobre o pensar, há que considerar-se como uma simples antecipação. Sua
justificação, ou prova, somente pode resultar do exame, levado a termo, do
pensamento mesmo; porque provar significa em filosofia o mesmo que mostrar
como o objeto se faz — por si mesmo e de si mesmo — o que ele é. A
relação em que os três graus principais, aqui mencionados, dopensamento
ou da idéia lógica estão entre eles, há de compreender-se em geral assim: só
o conceito é o verdadeiro, e, mais precisamente, é a verdade do ser e da
essência; estes dois, fixados em seu isolamento para si mesmos, são por isso
a considerar como não-verdadeiros: o ser, porque só ele enfim é o imediato;
e a essência, porque só ela, enfim, é o mediatizado. Poder-se-ia levantar quan­
to a isso a questão: por que, sendo assim, se começa pelo não-verdadeiro,
e não logo pelo verdadeiro? A isso serve por resposta que a verdade,
justamente como tal, tem de verificar-se-, verificação que aqui, no interior
do lógico, consiste em que o conceito se mostre como o que é mediatizado
por si mesmo e consigo mesmo, e por isso, ao mesmo tempo, como o
verdadeiramente imediato. Na figura concreta e real, a relação, aqui
mencionada, dos três graus da idéia lógica se mostra de modo que Deus,
que é a verdade, só é conhecido nessa sua verdade — isto é, como espírito
absoluto — na medida em que nós reconhecemos ao mesmo tempo como
não-verdadeiros, em sua diferença para com Deus, o mundo por ele cria­
do, a natureza e o espírito finito.

169
r ‘Trimeira ‘Tarte
da Lógica

A DOUTRINA DO SER
§ 84
O. ser é o conceito somente gn si; as determinações-dojsejLSlLo
determinações essent.es-. em sua diferença são outras — uma em
relação às outras —, e sua ulterior determinação (a forma do dialé­
tico) é um passar para outra coisa. F, ss^ derermi n a^ã o-propressi va_é,
a um tempo, um pôr-para-fora e portanto um desdobrar-se^do con­
ceito em si essente; e, ao mesmo tempo, o adentrar-se em si do ser.
ura aprofundar-se do ser em si mesmo. A explicação do conceito na
esfera do ser tanto se torna a totalidade do ser, quanto é por isso
suprassumida a imediatez do ser ou a forma do ser como tal.
§ 85
O próprio ser, como também as determinações que seguem —
não só as do ser, mas as determinações lógicas em geral — podem
ser consideradas como definições do absoluto, como as definições
metafísicas de Deus: porém mais precisamente, só a primeira deter­
minação simples, de uma esfera, e depois a terceira, enquanto é o
retorno da diferença à relação simples consigo mesmo. Com efeito,
definir Deus metafisicamente significa exprimir sua natureza em
pensamentos enquanto tais: ora, a Lógica abrange todos os pensa­
mentos, como são ainda na forma de pensamentos. As segundas
determinações, enquanto são uma esfera em sua diferença, são, ao
contrário, as definições do finito. Mas, se fosse utilizada a forma da
definição, implicaria que paira diante [do espírito] um substrato da
173
representação; porque também o absoluto, enquanto deve exprimir
Deus no sentido e na forma do pensamento, fica apenas — na
relação a seu predicado, na expressão determinada e efetiva em
pensamentos — um pensamento “visado”, um substrato indeter­
minado para si mesmo. Porque o pensamento — a Coisa — que
aqui somente importa, só está contido no predicado, assim a forma
de uma proposição, como aquele sujeito, é algo completamente
supérfluo (cf. § 31 e, abaixo, o capítulo sobre o juízo [§§ 166ss.]).
Adendo: Cada esfera da idéia lógica se mostra como uma totalidade de
determinações, e como uma apresentação do absoluto. Assim também o
ser, que contém em si os três níveis da qualidade, da quantidade e da
medida. A qualidade é. antes de tudo, a determinidade idêntica com o ser,
de modo que uma coisa deixa de ser o que é, quando perde sua qualida­
de. A quantidade, ao contrário, é a determinidade exterior ao ser, para ele
indiferente. Assim, por exemplo, uma casa permanece o que é, seja maior
ou menor; e o vermelho continua vermelho quer seja mais brilhante ou
mais fosco. O terceiro nível do ser, a medida, é a unidade dos dois primei­
ros, a quantidade qualitativa. Todas as coisas têm sua medida, isto é, são
determinadas quantitativamente, e o fato de ser dessa ou daquela gran­
deza lhes é indiferente; mas, ao mesmo tempo, também essa indiferença
tem seu limite, e, por sua trans-gressão através de um mais ou um menos
suplementar, as coisas deixam de ser o que eram. Da medida se produz
a passagem para a segunda esfera principal da idéia, para a essência.
As três formas do ser aqui mencionadas são, precisamente por serem as
primeiras, ao mesmo tempo as mais pobres; quer dizer, as mais abstratas. A
consciência imediata, sensível, enquanto se comporta ao mesmo tempo como
pensante, é limitada sobretudo às determinações abstratas da qualidade e da
quantidade. Essa consciência sensível costuma ser considerada como a mais
concreta, ao mesmo tempo, a mais rica; porém, isso ela só é segundo a
matéria [que possui]; em relação a seu conteúdo de pensamento, a consciên­
cia sensível é de fato a mais pobre e a mais abstrata.

174
A_
Q u a l id a d e

a) Ser

§ 86
Q ser puro constitui o começo, porque é tanto. aiiro pensamento
qtiantax-é_Q-Lme d ia to indeterminado, simples; ora, o primeiro come-
co não pode ser algo mediatizado e, além do mais, determinado.
Todas as dúvidas e observações que poderiam ser feitas contra
o começar a ciência pelo ser vazio e abstrato eliminam-se
mediante a simples consciência do que traz consigo a natu­
reza do começo. “Ser” pode ser determinado como Eu=Eu,
como a absoluta indiferença ou identidade etc. Na necessidade
de começar por algo absolutamente certo, isto é, a certeza de
si mesmo, ou por uma definição ou uma intuição do Verda­
deiro absoluto, poderiam essas formas e outras semelhantes
ser vistas como se devessem ser as primeiras. Mas, enquanto
no interior de cada uma dessa formas já existe mediação, elas
não são verdadeiramente as primeiras: a mediação consiste
175
em um ter-saído de um primeiro para um segundo, e [em
um] resultar [a partir] de diferentes. Se [o] Eu=Eu ou tam­
bém a intuição intelectual for tomada verdadeiramente como
só o primeiro, nessa imediatez pura não é outra coisa que [o]
ser; assim como, inversamente, o puro ser, enquanto não é
mais esse ser abstrato, mas o que em si contém a abstração,
é puro pensar ou intuir.
Se [o] ser for enunciado como predicado do absoluto, isso
dará a primeira definição deste: O absoluto é o ser. Essa defi­
nição é (no pensamento) a absolutamente inicial, a mais
abstrata e a mais pobre. E a definição dos eleatas, mas é
também' o [dito] bem conhecido, de que Deus é a suma
[Inbegriff] de todas as realidades. E que se deve abstrair da
limitação que existe em cada realidade, de modo que Deus
seja somente o real de toda a realidade, o mais-real-de-todos.
Enquanto realidade já contém uma reflexão, isso é expresso
de modo imediato na expressão em que Jacobi diz do Deus
de Espinoza que ele é o princípio do ser em todo o ser-aí.
Adendo /: Quando se começa a pensar, não temos outra coisa que o
pensamento em sua carência-de-determinação, pois para a determinação
já se requer um e um Outro. O carente-de-determinação, como temos aqui,
é o imediato, e não a mediatizada carência-de-determinação; não a supras-
sunção de toda a determinidade, mas a imediatez da carência-de-determi­
nação, a carência-de-determinação prévia a toda a determinidade, o caren-
te-de-determinação enquanto o que é o primeiro-de-todos. Ora, [é] isso
[que] chamamos o ser. O ser .não pode ser sentido, nem intuído, e nem
representado; mas é o pensamento puro e, como tal, constitui o começo.
A essência também é algo carente-de-determinação, mas o carente-de-deter-
minacão^gnauanto iá passou pela mediação, já contém em si.a detemiL-
nacão como suprassumida.
Adendo 2\ Os diversos graus da idéia lógica encontramos na história da
filosofia, na figura de sistemas filosóficos que fizeram aparição um após o
outro. Cada um deles tem por sua base uma definição particular do absoluto.
Ora, assim como o desenvolvimento da idéia lógica se mostra como um
progresso do abstrato para o concreto, assim também na história da filosofia
os sistemas mais antigos são os mais abstratos e, por isso, os mais pobres. Mas
a relação dos sistemas filosóficos do início para com os que vieram mais tarde

176
é em geral a mesma que a relação dos graus anteriores da idéia lógica para
com os posteriores; e, na verdade, de modo que os posteriores contenham
em si os anteriores como suprassumidos. E este o verdadeiro significado da
refutação — que ocorre na história da filosofia, e é tantas vezes mal enten­
dida — de um sistema filosófico por outro, e, mais precisamente, do sistema
anterior pelo posterior. Quando se fala da refutação de uma filosofia, isso
costuma ser tomado, antes de tudo, em um sentido abstratamente negativo,
de sorte que a filosofia refutada em geral nada mais vale, é posta de lado e
liquidada. Se assim fosse, deveria o estudo da história da filosofia ser consi­
derado uma tarefa absolutamente triste,.pois esse estudo ensina que _todos
os sistemas filosóficos surgidos no decurso do tempo encontraram sua refu-
tacão. Ora, bem: ainda que se possa conceder que todas as filosofias foram
refutadas, deve-se ao mesmo tempo afirmar também que nenhuma filosofia
foi refutada; e ainda também que não pode ser refutada. A respeito do
último ponto, há duas coisas [a notar]. Primeiro: qualquer filosofia que merece
esse nome tem a idéia em geral por conteúdo. Segundo: qualquer sistema
filosófico tem de ser considerado como a exposição de um momento parti­
cular, ou de um grau particular no processo-de-desenvolvimento da idéia. O
refutar de uma filosofia tem, portanto, apenas o sentido de que seu limite é
superado e seu princípio determinado é rebaixado a um momento ideal.
Assim, a história da filosofia, segundo seu conteúdo essencial, não lida com
o eterno e absolutamente presente; e em seu resultado não se deve comparar
a uma galeria de erros do espírito humano, mas antes a um Panteão de
figuras divinas. Ora, essas figuras divinas são os diversos graus da idéia, tais
como surgem no desenvolvimento dialético, uns depois dos outros. Quando,
pois se deixa Lhistona da filosofia dejnonstrar com rigor em aue medida o
desenyolvimento — que nel,a ocorre — do seu conteúdo, de um lado, con-
COfda~e0 «3-o_des£«volvimento da pura idéia lógica e, de outro lado, dele se
desvia, antes de tudjo há apenas que mencionar aqui que o começo da lógica.
é o mesmo que o começo de uma história propriamente dita da filosofia.
-Esse comeco. nós o encontramos na filosofia eleática, e mais precisamente
najílosofia de Parmênides, que compreende o absoluto como o ser, quando
diz: “O ser somente é; e o nada não é”. É isto o que se deve considerar como
o verdadeiro começo da filosofia, pelo motivo que a filosofia, de modo geral,
é [o] conhecer pensante; ora, foi aqui, pela primeira vez, que o puro pensar
foi capturado e se tornou objetivo para si mesmo.
Na verdade, desde o início, os homens pensaram, porque só pelo pensar
se diferenciam dos animais; mas foi preciso [que decorressem] milênios antes
de se chegar a apreender o pensar em sua pureza, e ao mesmo tempo como
algo absolutamente objetivo. Os eleatas são afamados como pensadores au­
dazes; mas com freqüência junta-se, a essa admiração abstrata, a observação

177
de que esses filósofos foram longe demais, reconhecendo por verdadeiro
simplesmente o ser, e recusando a verdade a todo o resto que forma também
o objeto de nossa consciência. Ora, na verdade é totalmente correto que não
se pode parar no simples ser; mas é [uma posição] carente-de-pensamento
considerar o restante conteúdo de nossa consciência como algo encontradiço
ao lado e fora do ser; ou como alguma coisa que somente há também. Axl
contrário, a verdadeira relação é esta: ser, como tal, não é algo fixo e último,
mas, antes, converte-se como dialético em seu oposto, que tomado de modo
igualmente imediato é o nada. Resta então, assim, que o ser é o primeiro
pensamento puro, e seja o que for por onde aliás o começo se faça (pelo
Eu=Eu, pela indiferença absoluta, ou pelo próprio Deus) essa outra-coisa
antes de tudo é só algo representado, e não pensado; e que ela, segundo seu
conteúdo-de—pensamento, é só justamente o ser.

§ 87
Ora, esse puro ser é pura abstração, e portanto o absolutamente-
-negativo que, tomado de modo igualmente imediato, é o nada.
1 — Daí se segue a segunda definição do absoluto: a sabcr^quc
ele é o nada. De fato essa definição está contida quando se diz
que a coisa-em-si é o indeterminado, de modo absoluto, caren-
te-de-forma e, por isso, de-conteúdo. Ou ainda, que Deus é
somente o sersupremo, e nada mais além disso; pois enquanto tal
ele é expresso como exatamente a mesma negatividade: o nada
que os budistas fazem o princípio de tudo, com seu fim último
derradeiro e meta de tudo, é a mesma abstração.
2 — Quando a oposição, nessa imediatez, é expressa como sere
nada, parece demasiado chocante que ela seja nula, para não se
tentar fixar o ser ou preservá-lo contra a passagem [ao nada]. A
reflexão deve, em vista disso, empenhar-se em procurar uma fir­
me determinação para o ser, pela qual ele seria diferente do nada.
Por exemplo: toma-se o ser como o que persiste em toda a mu­
dança, a matéria infinitamente determinável etc.; ou, ainda sem
reflexão, como uma existência singular qualquer, o sensível ou
espiritual mais próximo [que houver]. Porém todas as determi­
nações ulteriores e mais concretas como essas não deixam mais
o ser como serpuro\ como é imediatamente, aqui no começo. Só
nessa pura indeterminidade — e por causa dela — ele é nada:
algo indizwel; sua diferença do nada é uma simples suposição
(Meinung).
178
O que só importa é, justamente, a consciência sobre esses
começos, a saber, que não são outra coisa que essas abstrações
vazias, e que cada um dos dois [ser e nada] é tão vazio quan­
to o outro. O impulso para encontrar no ser, ou nos dois, uma
significação firme é essa necessidade mesma que leva-adiante
o ser e o nada, e lhes dá uma significação verdadeira, isto é,
concreta. Esse ir-adiante é o desenvolvimento lógico, e o curso
[de pensamentos] que se expõe logo a seguir. A reflexão, que
encontra para eles determinações mais profundas, é o pensar
lógico, por meio do qual tais determinações se produzem, não
de modo contingente, mas de modo necessário. Cada significa­
ção subseqüente, que recebem, deve portanto ser vista como
uma determinação mais precisa e uma definição mais verdadeira
do absoluto. Então, tal significação não é mais uma abstração
vazia, como ser e nada, mas antes um concreto, em que os
dois, ser e nada, são momentos.
A forma mais alta do nada para si seria a liberdade; mas ela é
a negatividade enquanto se aprofunda em si mesma até a
mais alta intensidade, e é, ela mesma, afirmação; e na verdade
afirmação absoluta.
Adendo: Ser e nada devem ser diferentes só inicialmente, Jsto é, sua
diferença só está primeiramente em si, mas ainda não está t>osta. Quando
falamos em geral de uma diferença, temos com isso dois [termos], a cada
um dos quais compete uma determinação que não se encontra no outro.
Ora, o ser é justamente apenas o que, de modo absoluto, carece-de-deter-
minação; e a mesma carência-de-determinação é também o nada. A dife­
rença entre esses dois é, pois, somente uma diferença “visada”, a diferen­
ça totalmente abstrata, que ao mesmo tempo não é diferença alguma. Em
qualquer outro diferenciar, temos sempre também algo comum, que com­
preende sob si os diferentes. Se falamos, por exemplo, de dois gêneros
diferentes, então o gênero é o comum aos dois. Igualmente dizemos que
há essências naturais e espirituais. Aqui, a essência é algo que compete
aos dois. Ao contrário, com o ser e o nada, a diferença está na sua carência-
-de-fundo, e justamente por isso não é diferença alguma, pois as duas
determinações são a mesma carência-de-fundo. £e,,$ej}uisesse dizer, tal-
yez, q.u.c.ser e nada. são ambos, assim mesmo, pensamento — e portanto
O-pensamento é o que há de comum aos dois—, nes.sfi.caso não se dana
contajde que o ser não é um pensamento particular, determinado, mas^

179
antes o pensamento ainda totalmente indeterminado;.c que, justamente
por essa razãcxjião pode ser diferenciado do nada.
O ser_então__e_representado. também como a riqueza absoluta; e o
nada, inversamente, como a pobreza absoluta.-. Mas se consideramos o
mundo todo, e dele dizemos que ele é tudo, e nada mais, então deixamos
de lado tudo o que é determinado, e [o que] temos, em vez da plenitude
absoluta, [é] somente o vazio absoluto. O mesmo encontra sua aplicação
também na definição de Deus como o simples ser — definição a que se
opõe, com igual direito, a definição dos budistas de que Deus é o nada;
e, como sua conseqüência, também se afirma que o homem se torna Deus
ao aniquilar-se a si mesmo.
§ 88
Q nada, e nquanto esse nada imediato, igual a si m esmo, é
tam bém , inversam ente, o mesmo que o ser. A verdade do ser, assim
como do nada, é portanto a unidade dos dois: essa unidade é o vir-
-a-ser.
1 — A proposição: “o ser e o nada são o m esm o” aparece
para a representação, ou para o entendim ento, como uma pro­
posição tão paradoxal, que talvez [a representação] não a
julgue seriam ente pensada [gemeint]. De fato [essa proposi­
ção] está tam bém entre o mais duro que o pensar exige de
si mesmo, pois ser e nada são o contrário em toda a sua
imediatez, isto é, sem que em um deles já tenha sido posta
uma determ inidade, que contivesse sua relação para com o
outro. Mas eles contêm essa determinação, como está mostra­
do no parágrafo precedente — a determ inação que é exata­
m ente a m esm a nos dois. A dedução de sua unidade é, nessa
medida, totalm ente analítica; como em geral a progressão
inteira da filosofia, enquanto progressão metódica — isto é,
necessária — , não é outra coisa que sim plesm ente o colocar
[explícito] daquilo que já está contido em um conceito. Po­
rém, tão correto como a unidade do ser e do nada, é também
[o fato] que são pura e simplesmente diferentes; que um não é o
que é o outro. Mas porque a diferença aqui ainda não se
determ inou — pois justam ente ser e nada são ainda o ime­
diato — a diferença tal como está neles é o indizível, o sim­
plesm ente “visado”.

180
2 — Não se requer grande dispêndio de espirituosidade para
ridicularizar a proposição de que ser e nada são o mesmo; ou,
melhor, para aduzir absurdos com a falsa asserção de que são
conseqüência e aplicações daquela proposição. Por exemplo:
[diz-se que,] segundo essa proposição, é o mesmo que minha
casa, meu patrimônio, o ar para respirar, esta cidade, o sol, o di­
reito, o espírito, Deus, sejam ou não sejam. Em tais exemplos,
por uma parte, são introduzidos sub-repticiamente fins parti­
culares, a utilidade de alguma coisa para mim, e pergunta-se se
me é indiferente que a coisa útil seja ou não seja. De fato, a
filosofia é exatamente essa doutrina que ensina a libertar o
homem de uma multidão infinita de fins e desígnios finitos*,
e a torná-lo indiferente quanto a eles, de modo que decerto
lhe seja o mesmo que tais Coisas sejam 011 não sejam. Mas de
modo geral, já que se fala de um conteúdo, com ele se põe uma
conexão com outras exigências, fins etc., que são pressupostos
como válidos. E de tais pressuposições que se faz então depender
se o ser ou não-ser de um conteúdo determinado g o mesmo ou não.
Uma diferença cJieia-de-conteiído é substituída sub-repticiamente
à vazia diferença do ser e do nada.
Mas, por um lado, são metas em si essenciais, absolutas exis­
tências e idéias que são postas simplesmente sob a determi­
nação do ser ou do não-ser. Tais objetos concretos são ainda
algo totalmente outro do que os apenas essentes ou também
não-essentes. Abstrações pobres, como ser e nada — e elas são
as mais pobres que há, por serem justamente só as determi­
nações do começo —, são totalmente inadequadas à natureza
daqueles objetos: o verdadeiro conteúdo está muito além
dessas abstrações mesmas e de sua oposição.
Quando, em geral, algo concreto é substituído sub-repticia-
mente ao ser e ao nada, ocorre à ausência-de-pensamento o
que lhe é habitual: receber, ante a representação, algo total­
mente diverso, e falar dele como aquilo de que se trata; e
trata-se aqui simplesmente do ser e do nada abstratos.
3 — Pode-se facilmente dizer que não se concebe a unidade
do ser e do nada. Contudo, seu conceito está exposto nos
parágrafos precedentes, e nada mais é que o exposto: conce­
181
ber sua unidade não significa outra coisa que compreender isso.
Mas entende-se por conceber ainda algo a mais que o conceito
propriamente dito: exige-se uma consciência mais diversificada,
mais rica, uma representação; de modo que um tal conceito seja
mostrado como um caso concreto, com o qual o pensar, em sua
práxis habitual, estivesse familiarizado. Na medida em que o
“não-poder-conceber” só exprime a falta de hábito de reter pen­
samentos abstratos sem qualquer mescla sensível, e de apreen­
der proposições especulativas, nada há mais a dizer senão que
o gênero do saber filosófico é, sem dúvida alguma, diferente
do gênero do saber a que se está habituado na vida ordinária,
como também do que predomina nas outras ciências.
Mas, se o “não-conceber” significa apenas que não se pode
representar a unidade do ser e do nada, então, de fato, isso tam­
pouco é o caso, que antes cada um possui representações infi­
nitamente numerosas dessa unidade. E [dizer] que não se tem
tal representação só pode querer dizer isto: que não se reconhe­
ce o conceito proposto em qualquer uma daquelas representa­
ções, nem elas são conhecidas como um exemplo dele.
O exemplo disso, que está mais próximo, é o vir-a-ser. Cada
qual tem uma representação do vir-a-ser e se admitirá que é
uma [só] representação; além disso, que — se se analisa — aí
está contida a determinação do ser, mas também a do seu
absolutamente outro, do nada\ e, depois, que essas duas de­
terminações estão inseparadas, nessa única representação; de
modo que o vir-a-ser é, assim, a unidade do ser e do nada.
Um exemplo igualmente próximo-éu) começo. A Coisa,
ainda, em sen começo: mas este não. é simplesmente seu
nadq^s .nas nele já está também o ser da Coisa. O começo é,_
file mesmo, também vir-a-ser, e já exprime, contudo, a refe­
rência ao ulterior progredir.^
Para acomodar-se à marcha mais habitual das ciências, poder-
-se-ia começar a Lógica pela representação do começo pura­
mente pensado; portanto, do começo enquanto começo, ini­
ciar e analisar essa representação; assim, talvez se admitiria
melhor, como resultado da análise, que ser e nada se mos­
tram como inseparados em um [único termo].
182
4 — Mas há que notar ainda que a expressão “ser e nada são o
mesmo”, ou: “a unidade do ser e d o nada”, e_igualmente todas as
outras unidades semelhantes, a de suieito e objeto-etc... são com
razão chocantes, porque o distorcido e o incorreto residem em
que,sc faz ressaltar a unidade; e a diversidade, aí está, sem dúvi­
da (pois é, por exemplo, ser e nada, cuja unidade é posta).
Porém essa diversidade não é ao mesmo tempo expressa e reco­
nhecida, e que portanto dela só se abstrai indevidamente. A
diversidade parece não ser tomada em consideração.
De fato, uma determinação especulativa não se exprime
corretamente na forma de uma tal proposição: a unidade deve
ser apreendida na diversidade ao mesmo tempo dada e òosta.
O vir-a-ser é a verdadeira expressão do resultado de ser e de
nada, enquanto sua unidade; não é apenas a unidade do ser
e do nada, mas é o desassossego em si — a unidade que não
é simplesmente, enquanto relação-a-si, carente-de-movimen-
to; mas que, mediante a diversidade do ser e do nada, a qual
nela há, é dentro de si contra si mesma. O ser-aí, ao contrário,
é essa unidade, ou é o vir-a-ser nessa forma da unidade; por
isso o ser-aí é unilateral e finito. A oposição é como se tivesse
desvanecido; está contida na unidade somente em si, mas não
está posta na unidade.
5 — A proposição de que o ser é o passar para o nada, e o
nada é o passar para o ser — à proposição do vir-a-ser —,
contrapõe-se a proposição: “Do nada, nada vem-a-ser”; “algo
vem-a-ser sempre de algo” — [que é] a proposição da eterni­
dade da matéria, do panteísmo. Os antigos fizeram a reflexão
simples de que a proposição “de algo vem-a-ser algo” supri­
me de fato o vir-a-ser; já que aquilo donde se vem-a-ser e
aquilo que vem-a-ser são um só e o mesmo: é somente a
proposição da identidade abstrata do entendimento que está
presente. Mas deve chocar como extraordinário ver ainda em
nossa época as proposições: “do nada, nada vem-a-ser” ou
“algo só vem-a-ser de algo” expostas de modo totalmente
ingênuo, sem qualquer consciência de que são a base do Pan­
teísmo, como também sem conhecimento de que os antigos
esgotaram o exame dessas proposições.
183
Adendo: O vir-a-ser é o primeiro pensamento concreto e, portanto, o
primeiro conceito; enquanto, ao contrário, ser e nada são abstrações vazias.
Se falamos do conceito do ser, então ele só pode consistir em ser vir-a-ser;
pois, enquanto o ser é o nada vazio, como este, ao contrário, é o ser vazio.
No ser temos pois o nada, e, neste, o ser; mas este ser que no nada perma­
nece junto a si é o vir-a-ser. Na unidade do vir-a-ser, a diferença não pode
ser abandonada, porque sem ela se retornaria de novo ao ser abstrato. O vir-
a-ser é apenas o ser-posto daquilo que é o ser segundo sua verdade.
Ouve-se muitas vezes afirmar que o pensar é oposto ao ser. Ante tal
afirmação, haveria contudo a indagar o que se entende pelo ser. Se tomamos
o ser tal como a reflexão o determina, então dele só podemos declarar que
é o absolutamente idêntico e afirmativo. Se agora considerarmos o pensar,
não nos poderá escapar que é pelo menos igualmente o absolutamente idên­
tico consigo. Assim, a mesma determinação cabe aos dois, ao ser e ao pensar.
Ora, essa identidade do ser e do pensar não há que tomar-se concretamente;
e nem dizer que a pedra, enquanto pedra essente, é o mesmo que o homem
pensante. Um concreto é ainda algo totalmente outro que a determinação
abstrata enquanto tal. Mas no caso do ser não se trata de nenhum concreto,
pois o ser só é justamente o totalmente abstrato. De acordo com isso, tam­
bém a questão sobre o ser de Deus, que é em si mesmo o infinitamente
concreto, é de pouco interesse.
O vir-a-ser, enquanto primeira determinação-de-pensamento concreta, é
ao mesmo tempo a primeira.verdadeira. Na história da filosofia, é o sistema
de Heráclito que corresponde a esse grau da idéia lógica. Quando Heráclito
diz: “Tudo corre” (rcavxa pêl) o vir-a-ser é expresso aí como a determinação
fundamental de tudo o que é; enquanto, ao contrário, os eleatas — como
antes se notou — apreendiam o ser, o ser imóvel, carente-de-processo, como
o único verdadeiro. Em relação com o princípio dos eleatas, diz-se em segui­
da em Demócrito: “O ser não é mais que o não ser” (ovôev paXXov to ov
xòl) (XT) óvtòç eaO /pelo que se encontra então expressa justamente a
negatividade do ser abstrato; e sua identidade, posta no vir-a-ser, com o nada,
também carente-de-consistência em sua abstração*.
Temos aqui, ao mesmo tempo, um exemplo da verdadeira refutação
de um sistema filosófico por um outro; refutação que consiste justamente
em que o princípio da filosofia refutada é mostrado em sua dialética, e
rebaixado a momento ideal de uma forma concreta superior da idéia.
Acrescente-se porém que o vir-a-ser, em si e para si, é também ainda
uma determinação extremamente pobre, e tem de aprofundar-se e preen­
cher-se ainda mais em si mesmo. Um tal aprofundamento do vir-a-ser em
* Ver Diels-Kranz, Die Fragmente der Vorsokratiker, Demokrit, B 156.

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r w~T~r ~ -"-.-s. «-v^mplo, na mda. A vida é 11m vir-a-ser. mas seu
c n a c e iro não se Em uma forma mais. alta,, encontramos ainda
n issn
o vir-a-ser no espirito. Esse é também um vir-a-ser. mas um vir-a-ser mais
fggnso; niai^ic_o,que o vir-a-ser simplesmente lógico. Os momentos, de
que o espírito é unidade, não são os meros abstratos do ser e do nada, mas
o sistema da idéia lógica e da natureza.

b) Ser-aí

§ 89
O ser no vir-a-ser, enquanto um com o nada, e assim o nada,
enquanto um com o ser, são apenas evanescentes: o vir-a-ser, por
sua contradição dentro de si mesmo, colapsa na unidade em que os
dois são suprassumidos; seu resultado é, pois, o ser-aí.
Uma vez por todas, é preciso lembrar nesse primeiro exem­
plo o que foi aduzido no § 82 e na nota correspondente: o
que pode unicamente fundar uma progressão e um desenvol­
vimento no saber é sustentar os resultados em sua verdade.
Quando em qualquer objeto ou conceito for mostrada a con­
tradição — e, por toda a parte, não há absolutamente nada em
que não possa e não deva ser mostrada a contradição, isto é,
determinações opostas: o abstrair do entendimento é o fixar-
se à força em uma só determinidade, é um esforço de obscu-
recer e de afastar a consciência da outra determinidade —,
quando pois tal contradição é reconhecida, costuma-se fazer
a conclusão: “Logo, este objeto é nada". [Faz-se] como Zenão,
que primeiro mostrou, [a respeito] do movimento, que ele se
contradizia, e que portanto o movimento não era; ou como os
antigos que reconheceram o nascer e o perecer — as duas
espécies do vir-a-ser — como determinações não-verdadeiras,
com a expressão de que o Uno, isto é, o absoluto, não nascia
nem perecia. Essa dialética fica assim simplesmente no lado
negativo do resultado, e abstrai do que ao mesmo tempo está
efetivamente presente: um resultado determinado, aqui um
puro nada, mas um nada que em si inclui o ser, e igualmente
um ser que nele inclui o nada. Assim: 1-) o ser-aí é a unidade
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do ser e do nada, na qual a imediatez dessas determinações
— e portanto em sua relação —, sua contradição está desva­
necida; uma unidade em que o ser e o nada são apenas
momentos. 2-) Já que o resultado é a contradição, ele é na
forma da unidade simples consigo mesmo; ou seja, ele mesmo
é como um ser, mas um ser com a negação ou a determinidade;
ele é o vir-a-ser, posto na forma de um dos momentos, [na
forma] do ser.
Adendo: Também em nossa representação está contido isto: quando há
um vir-a-ser, nesse caso surge algo; e assim o vir-a-ser tem um resultado.
Aqui porém nasce a questão de saber como o vir-a-ser chega a isto: a não
permanecer simples vir-a-ser, mas a ter um resultado. A resposta a essa
questão decorre do que anteriormente se nos mostrou como vir-a-ser. E que
o vir-a-ser contém em si o ser e o nada, e na verdade de tal modo que os dois
se convertem pura e simplesmente um no outro, e se suprassumem um ao
outro mutuamente. Por isso o vir-a-ser se mostra como o [que é] absoluta­
mente carente-de-repouso, mas que não pode manter-se nessa abstrata carên-
cia-de-repouso; porque enquanto o ser e o nada desvanecem no vir-a-ser —
e é somente este o seu conceito — então ele mesmo é um evanescente: por
assim dizer, um fogo que em si mesmo se extingue, ao consumir seu mate­
rial. Porém o resultado desse processo não é o nada vazio, mas o ser idêntico
à negação, o qual chamamos ser-aí, que se mostra primeiro com essa signi­
ficação, de ter vindo-a-ser [geworden],
§ 90
O ser-aí é o ser com uma determinidade, que é como determi­
nidade imediata ou essente, é a qualidade. O ser-aí, enquanto refle­
tido sobre si nessa sua determinidade, é [o] essente-em-si, [o] Algo.
As categorias que se desenvolvem no ser-aí, há que indicá-las ago­
ra, apenas sumariamente.
Adendo: A qualidade é de modo geral a determinidade imediata, idên­
tica ao ser, em diferença com a qualidade — a ser tratada logo mais; a
qual, decerto, também é uma determinidade do ser, mas uma determini­
dade não mais idêntica imediatamente com ele, e sim indiferente para
com o ser, e que lhe é exterior. Algo é o que é, por sua qualidade; e, ao
perder sua qualidade, deixa de ser o que é. Além disso, a qualidade
essencialmente é só uma categoria do finito, que por esse motivo também
186
só tem seu lugar próprio na natureza, e não no mundo do espírito. Assim,
por exemplo, na natureza, as assim-chamadas matérias simples, o oxigênio,
o azoto etc., são a considerar como qualidades existentes. Ao contrário, na
esfera do espírito, a qualidade se apresenta somente de uma maneira
subordinada, e não como se mediante ela se exaurisse qualquer figura
determinada do espírito. Se considerarmos, por exemplo, o espírito subje­
tivo, que forma o objeto da psicologia, poderemos dizer, decerto, que a
significação do que se chama o caráter é a da qualidade; isso porém não
pode ser entendido como se o caráter fosse igualmente uma determinidade
penetrando a akna, e imediatamente idêntica com ela, como é o caso na
natureza com as matérias simples antes mencionadas. Ao contrário, a
qualidade mais determinadamente se mostra como tal também no espí­
rito, na medida em que ele se encontra em um estado não-livre, [como o]
de doença. E notadamente o caso com o estado da paixão, e da paixão que
atinge as raias da loucura. De um louco, cuja consciência está totalmente
penetrada de inveja, medo etc., pode-se dizer com razão que sua cons­
ciência está determinada enquanto qualidade.
§ 91
A qualidade, enquanto determinidade essente, em contraposição à
negação — nela contida mas diferente dela —, é realidade. A negação —
não mais o nada abstrato, mas enquanto um ser-aí e Algo — é apenas
uma forma nesse; ela é enquanto ser-outro. A qualidade, enquanto esse
ser-outro é sua determinação própria, mas, de início, diferente dela, é
[o] ser-para-Outro: uma [certa] extensão do ser-aí, do Algo. O ser da
qualidade enquanto tal, em contraposição a essa relação a Outro, é o
ser-em-si.
Adendo: A base de toda a determinidade é a negação (“omnis determi­
natio est negatio”, como diz Espinoza). O opinar, carente-de-pensamento,
considera as coisas determinadas como somente positivas, e as sustenta sob
a forma do ser. Como simples ser, contudo, nada a fazer: pois esse, como
vimos antes, é o absolutamente vazio, e ao mesmo tempo o carente-de-
-consistência. De resto, na confusão aqui mencionada — do ser-aí enquanto
ser determinado, com o ser abstrato — há de correto [o fato de] que no ser-aí,
com certeza, o momento da negação só está contido, por assim dizer, como
embrulhado; o qual momento da negação só então no ser-para-si se produz
livremente, e conquista seu direito. Além do que, se considerarmos agora o
ser-aí como determinidade essente, teremos nele o que se entende por
realidade. Fala-se assim, por exemplo, da realidade de um plano ou de uma
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intenção, e entende-se por isso que semelhante coisa não é mais somente algo
interior, subjetivo, mas extravasou no ser-aí. No mesmo sentido, pode-se tam­
bém chamar o corpo a realidade da alma; e este direito, a realidade da liberda­
de; ou, de uma maneira totalmente geral, o mundo [pode chamar-se] a reali­
dade do conceito divino. Mas além disso também se costuma falar da realidade
ainda em um outro sentido, e entender assim que Algo se comporta de acordo
com sua determinação essencial, ou com seu conceito. Assim, por exemplo,
quando se diz: “E uma ocupação real”, ou: “E um homem real”, aí não se
trata do ser-aí exterior, imediato, mas antes do acordo de um essente-aí com
seu conceito. Mas, assim compreendida, a realidade também não mais difere
da idealidade, que nós proximamente conheceremos como ser-para-si.
§ 92
O ser fixado pela determinidade como diferente, o ser-em-si,
seria apenas a abstração vazia do ser. No ser-aí, a determinidade é
uma só coisa com o ser; [determinidade] que posta ao mesmo tem­
po como negação é limite, confim. Por isso o ser-outro não é um
Indiferente, exterior a ele, mas seu próprio momento. Algo, por sua
qualidade, em primeiro lugar é finito; e em segundo lugar é mutável,
de modo que finitude e mutabilidade pertencem a seu ser.
Adendo: No ser-aí, a negação é ainda imediatamente idêntica com o
ser; e essa negação é o que chamamos limite. Somente em seu limite e por
seu limite, Algo é o que é. Não se pode, assim, considerar o limite como
simplesmente exterior ao ser-aí; mas, antes, o limite atravessa o ser-aí
inteiro. A apreensão do limite, como de uma determinação puramente
exterior do ser-aí, tem seu fundamento na confusão do limite qualitativo
com o quantitativo. Trata-se aqui, antes de tudo, do limite qualitativo. Se
consideramos, por exemplo, um terreno de três acres, isso é seu limite
quantitativo. Ora, esse terreno é além disso um prado, e não um bosque
ou lagoa; e isso é seu limite qualitativo. O homem, na medida em que
quer ser efetivo, deve “ser-aí” e, para isso, deve limitar-se. Quem tem
muita repugnância ao finito não chega absolutamente a nenhuma efetivi­
dade, mas permanece no abstrato e se apaga em si mesmo.
Se considerarmos agora, mais de perto, o que temos no limite, veremos
como contém em si uma contradição, e se mostra assim com dialético. E que
o limite, de um lado, constitui a realidade do ser-aí; e de outro lado é sua
negação. Ora, além disso, o limite, enquanto é a negação do Algo, não é um
nada abstrato em geral, mas um nada essente, ou seja, aquilo que chamamos
um Outro. Junto com [o] Algo, logo nos ocorre o Outro, e sabemos que não

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há somente Algo, mas que também há ainda Outro. Ora, o Outro não é um
[ser] tal que nós só encontramos de tal forma que o Algo também poderia
ser pensado sem ele; mas Algo é em si o Outro de si mesmo, e o limite do
Algo se lhe torna objetivo no Outro. Se agora indagamos sobre a diferença
entre o Algo e o Outro, mostra-se que os dois são o mesmo; identidade que
no latim está também expressa pela designação dos dois como aliud-aliud. O
Outro, perante o Algo, é ele mesmo um Algo, e dizemos por conseguinte:
algo Outro [aliquid aliud, alguma outra coisa]. Igualmente, de outro lado, o
primeiro Algo, diante do Outro determinado igualmente como Algo, ele
mesmo é um Outro. Quando dizemos: algo Outro, representamo-nos primei­
ro que Algo, tomado por si mesmo, é somente Algo; e a determinação de ser
um Outro lhe pertence somente por uma consideração puramente exterior.
Acreditamos, por exemplo, que a lua, que é algo outro que o sol, poderia
muito bem ser, se o sol não fosse. Mas, de fato, a lua (enquanto Algo) tem,
nela mesma, seu Outro, e isso constitui sua finitude. Platão diz: “Deus fez
o mundo [a partir] da natureza do Uno e do Outro (xot) exepov); reuniu os
dois, e formou deles um terceiro que é da natureza do Uno e do Outro”
[Timeu, 35 a-b]. Com isso está expressa, de maneira geral, a natureza do
finito, que enquanto Algo não defronta indiferentemente o Outro, mas é em
si o Outro de si mesmo, e por isso se altera. Na alteração, mostra-se a con­
tradição interior, de que o ser-aí é afetado desde a origem, e que o impele
para além de si mesmo. Para a representação, o ser-aí aparece inicialmente
como simplesmente positivo, e ao mesmo tempo como persistindo em re­
pouso no interior de seu limite; nós sabemos decerto também que todo o
finito (e o ser-aí é um finito) está submetido à alteração. Mas essa
“alterabilidade” do ser-aí aparece à representação como uma simples possi­
bilidade, cuja realização não está fundada nela mesma. De fato, porém, alte­
rar-se reside no conceito do ser-aí, e a alteração é só a manifestação do que
o ser-aí é em si. O vivente morre, e na verdade simplesmente pelo motivo
de que, como tal, carrega dentro de si mesmo o gérmen da morte.
§ 93
Algo se torna um Outro, mas o Outro é, ele mesmo, um Algo;
portanto torna-se igualmente um Outro, e assim por diante, até ao
infinito.
§ 94
Essa infinitude é a má ou negativa infinitude, enquanto nada é
senão a negação do finito, o qual entretanto nasce também de
oovo; por isso igualmente não está suprassumido; ou seja, essa
189
infinitude exprime apenas o dever-ser do suprassumir do finito. O
progresso até o infinito fica no enunciar da contradição que o finito
contém — de que é tanto Algo como é seu Outro; e é o prosseguir,
que se pereniza, da alternância dessas determinações que se cau­
sam uma à outra.
Adendo: Se fazemos incidir, fora um do outro, esses dois momentos do
ser-aí, Algo e Outro, temos o seguinte: Algo se torna um Outro, e esse Outro
é, ele mesmo, um Algo que como tal em seguida se altera igualmente, e
assim por diante, até o infinito. A reflexão acredita ter aqui chegado a alguma
coisa muito excelsa, e mesmo ao que há de supremo. Ora, esse progresso até
o infinito não é o verdadeiro infinito, que antes consiste em estar, nesse
Outro, junto de si mesmo, ou seja — exprimindo como processo —, em
chegar a si mesmo, no seu Outro. E de grande importância apreender ade­
quadamente o conceito da infinitude verdadeira, e não ficar simplesmente
na má infinitude do progresso até o infinito. Quando se trata da infinitude
do espaço e do tempo, é antes de tudo no progresso até o infinito que
habitualmente nos detemos. Diz-se, por exemplo, “este tempo”, “agora” e
se ultrapassa depois incessantemente esse limite, para a frente e para trás. O
mesmo sucede com o espaço, sobre cuja infinitude são proferidas tantas
declamações vazias por astrônomos edificantes. Costuma-se também afirmar
que o pensamento deva sucumbir, se se abandona à consideração dessa
infinitude. Ora, é sem dúvida muito acertado que afinal deixemos de avançar
em tal consideração mais longe e sempre mais longe, não por causa da
sublimidade, mas pelo tédio dessa tarefa. É tedioso o alongar-se na conside­
ração desse processo infinito, porque no caso, indo em frente, apenas repete
a mesma coisa continuamente. Um limite é posto, [e] é ultrapassado: depois
outra vez um limite, e assim por diante, até o infinito. Assim, aqui não temos
outra coisa que uma alternância superficial, que sempre permanece no finito.
Quando se acredita livrar-se do finito através do caminhar para essa infinitude,
essa libertação é de fato a libertação da fuga. Mas quem foge ainda não está
livre, pois no fugir está ainda condicionado por aquilo de que foge. Diz-se,
além disso, que o infinito não se pode atingir; o que é totalmente correto,
mas só pelo motivo de que nele se põe a determinação de ser algo abstra­
tamente negativo.
A filosofia não vagueia em torno de um tal vazio, e de um simples Além.
Aquilo de que a filosofia trata é sempre algo concreto e absolutamente pre­
sente. Põe-se também a tarefa da filosofia em responder à questão de como
o infinito se decide a sair de si mesmo. A essa questão, que repousa na
pressuposição de uma oposição fixa de finito e infinito, só há que responder
que essa oposição é algo não-verdadeiro, e que de fato o infinito saiu eter­
190
namente de si mesmo, e também eternamente não saiu de si mesmo. Aliás,
quando dizemos que o infinito é o não-finito, de fato com isso já exprimimos
o verdadeiro, porque o não-finito — já que o finito é, ele mesmo, o primeiro
negativo — é o negativo da negação, a negação idêntica a si mesma; e, por
conseguinte, também a verdadeira afirmação.
A infinitude da reflexão, de que se fala aqui, é só uma tentativa de
atingir a verdadeira infinitude, um meio-termo infeliz. E esse, em geral,
o ponto de vista da filosofia que nos últimos tempos se fez vigente na
Alemanha. O finito deve aqui ser somente suprassumido, e o infinito deve
ser não simplesmente um negativo, mas também um positivo. Nesse dever-
-ser reside sempre a impotência, [que consiste) em que algo é reconhe­
cido como justificado, e contudo não pode fazer-se valer. A filosofia de
Kant e a de Fichte no que diz respeito à ética, ficaram nesse ponto de
vista do dever-ser. A incessante aproximação da lei da razão é o extremo
a que se chega por esse caminho. Depois, sobre esse postulado, fundou-se
também a imortalidade da alma.

§ 95
c) De fato, o que está presente é que Algo se torna Outro; e que
o Outro, em geral, se torna Outro. Algo, na relação com um outro, já
é ele mesmo um Outro para com esse Outro; por conseguinte, como
aquilo, para o que passa, é exatamente o mesmo que aquilo que passa,
os dois não têm outra determinação a não ser uma só e a mesma
determinação: a de um Outro; e assim Algo, em seu passar para
Outro, só vem a juntar-se consigo mesmo; e essa relação para consigo
mesmo, no passar e no Outro, é a verdadeira infinitude. Ou, considerado
negativamente: o que é alterado é o Outro; ele se torna o Outro do
Outro. Desse modo, o ser é restaurado, mas como negação da negação;
e é o ser-para-si.
O dualismo, que faz a relação do finito e do infinito [ser] insu­
perável, não faz a simples reflexão de que, desse modo, logo o
infinito é apenas um dos dois; e que por isso se torna apenas um
particular, para o qual o finito é o outro particular. Um tal infi­
nito, que é só um particular, está ao lado do finito; tem neste
último, justamente por isso, seu limite, [sua] fronteira; não é o
que deve ser, não é o infinito, mas é apenas finito.
Em tal relação, em que o finito está do lado de cá e o infinito,
do lado de lá; o primeiro, aquém; o segundo, além, atribui-se ao
191
finito igual dignidade de consistência e de autonomia que ao infi­
nito. Faz-se do ser do finito um ser absoluto: [pois] em tal dua­
lismo ele se mantém firme para si mesmo. Tocado, por assim
dizer, pelo infinito, ele seria aniquilado; mas não deve poder ser
tocado pelo infinito; deve encontrar-se entre os dois um abismo,
uma falha intransponível; deve o infinito persistir absolutamente
do lado de lá, e o finito do lado de cá. Quando a afirmação do
firme persistir do finito perante o infinito acredita estar aci­
ma e além de toda a metafísica, está pura e simplesmente no
terreno da mais ordinária metafísica do entendimento. Dá-se
aqui o mesmo que o progresso infinito exprime: em primeiro
lugar, admite-se que o finito não é em si e para si, que não lhe
pertence uma efetividade autônoma, nem um ser absoluto-,
que é apenas algo transitório. Em segundo lugar, logo se es­
quece isso, e se representa o finito só frente a frente com o
infinito, absolutamente separado dele, e subtraído ao aniqui­
lamento, como autônomo, [e] para si persistente. Quando o
pensar acredita elevar-se dessa maneira ao infinito, [o que]
lhe sucede é o contrário: chegar a um infinito que é um finito
apenas; e o finito, que fora por ele abandonado, antes conser-
vá-lo sempre, e fazer dele um absoluto.
Depois da consideração feita sobre a nulidade da oposição de
entendimento entre finito e infinito (pode-se conferir com pro­
veito a esse propósito o Filebo de Platão), é bem possível que
neste ponto venha à mente a expressão de que assim o infinito
e o finito são um só; que o verdadeiro — a verdadeira infinitude
— se determina e enuncia como unidade do infinito e do finito.
Tal expressão contém, na verdade, algo de correto; mas é igual­
mente distorcida e falsa — como se notou anteriormente sobre
a unidade do ser e do nada. Além disso, leva a uma justa censura
[por causa] da finitização da infinitude, de um Infinito finito.
Com efeito, nessa expressão o infinito parece deixado tal como
está; não é expresso expressamente como suprassimido. Ou então,
ao refletir-se que o finito, posto como um só com o infinito, não
poderia certamente permanecer o que era fora dessa unidade, e
pelo menos algo sofreria em sua determinação (como a potassa
combinada com o ácido perde [algo] de suas propriedades), —
192
[vê-se que] é precisamente isso que ocorreria com o infinito;
que, enquanto é o negativo, seria de seu lado igualmente em­
botado no Outro. De fato, tal sucede também com o infinito,
abstrato e unilateral, do entendimento. Porém o verdadeiro in­
finito não se comporta simplesmente como o ácido unilateral,
mas se conserva. A negação da negação não é uma neutralização:
o infinito é o afirmativo, e só o finito é o [que é] suprassumido.
No ser-para-si é introduzida a determinação da idealidade. O
ser-aí, inicialmente apreendido apenas segundo seu ser ou
sua afirmação, tem uma realidade (§ 91); assim a finitude, de
início, também está na determinação da realidade. Mas a
verdade do finito é, antes, sua idealidade.
Do mesmo modo, também o infinito-do-entendimento, que
posto ao lado do finito é ele mesmo, apenas, um dos dois
finitos, é um [infinito] não-verdadeiro, um infinito ideal. Essa
idealidade do finito é a proposição-capital da filosofia, e toda
a verdadeira filosofia é por isso um idealismo. Importa somen­
te não tomar por infinito o que, em sua determinação mes­
ma, logo se torna algo particular e finito. Por esse motivo se
chamou a atenção aqui para essa diferença mais acuradamente:
depende dela o conceito-fundamental da filosofia, o verda­
deiro Infinito. Essa diferença se esgota mediante reflexões
totalmente simples — talvez por isso despercebidas, mas
irrefutáveis — que estão contidas neste parágrafo.

c) Ser-para-si
§ 96
O ser-para-si, enquanto relação para consigo mesmo, é imediatez;
e, enquanto relação do negativo para consigo mesmo, é [o] essente-
-para-si, o uno: o que é em si mesmo carente-de-diferença, e por­
tanto o que-exclui de si o Outro.
Adendo: O ser-para-si é a qualidade consumada, e como tal contém o
ser e o ser-aí como seus momentos ideais. Enquanto ser, o ser-para-si é
simples relação consigo mesmo, e enquanto ser-aí é determinado. Contu-
Ho. essa determinação não é mais a determinidade finita do algo em sua

193
diferença do Outro, mas a determinidade infinita, que contém em si a
diferença como suprassumida.
O exemplo mais próximo do ser-para-si, temos no Eu. Nós nos sabemos
enquanto essente-aí, primeiro como diferente de outro essente-aí, e relacio­
nado com ele. Mas, além disso, também sabemos essa extensão do ser-aí
como de certa maneira estreitando-se para [tornar-se] a forma simples do ser-
para-si. Quando dizemos; Eu, é isso a expressão da infinita — e ao mesmo
tempo negativa — relação consigo mesmo. Pode-se dizer que o homem se
diferencia do animal, e assim da natureza em geral, porque se sabe como Eu;
e com isso se enuncia ao mesmo tempo que as coisas da natureza não
chegam ao livre ser-para-si, mas, enquanto limitadas ao ser-aí, são sempre
ser-para-Outro. Mais ainda: o ser-para-si em geral deve ser compreendido
como idealidade, quando ao contrário o ser-aí foi anteriormente designado
como realidade. Realidade e idealidade são consideradas muitas vezes como
uma dupla de determinações que se contrapõem uma à outra com igual
autonomia, e por esse motivo se diz que fora da realidade também há uma
idealidade. Ora, a idealidade não é algo que haja fora e ao lado da realidade,
mas o conceito da idealidade consiste expressamente em ser a verdade da
realidade, isto é, que a realidade, posta como é em si, mostra-se ela mesma
como idealidade. Não se pode acreditar ter dado à idealidade as necessárias
honras quando somente se concede que com a realidade ainda nem tudo
está dito, mas que se tem de reconhecer fora dela ainda uma idealidade.
Uma tal idealidade ao lado, ou, mesmo, também acima da realidade, de fato
seria apenas um nome vazio. Mas a idealidade só tem um conteúdo enquan­
to ela é idealidade de algo: esse Algo porém não é simplesmente um inde­
terminado este ou aquele, mas é o ser-aí determinado enquanto realidade,
que mantido firmemente para si não tem verdade alguma. Não foi sem razão
que se compreendeu a diferença da natureza e do espírito de modo que se
pudesse reduzir a natureza à realidade, e o espírito à idealidade, como à sua
determinação fundamental. Ora, a natureza não é justamente alguma coisa
de firme e de acabado para si mesma, que portanto poderia subsistir sem o
espírito; mas só no espírito ela chega à sua meta e à sua verdade. Igualmente
o espírito, por sua parte, não é simplesmente um Além abstrato da natureza;
mas só é verdadeiro e verificado como espírito na medida em que nele
contém a natureza como suprassumida. Importa recordar aqui a dupla signi­
ficação de nosso termo alemão aufheben. Por aufheben entendemos primeiro
a mesma coisa que “hinwegrãumen” [ab-rogar], “negieren” [negar], e por
conseguinte dizemos, por exemplo, que uma lei, um dispositivo são
“aufgehoben” [ab-rogados]. Mas além disso significa também o mesmo que
aufbewahren [conservar], e nesse sentido dizemos que uma coisa está “wohl
aufgehoben” [bem conservada]. Essa ambigüidade no uso da língua, segun­

194
do a qual a mesma palavra tem uma significação negativa e uma significação
positiva, não se pode considerar como contingente, nem se pode absolutamen­
te fazer à linguagem a censura de dar azo à confusão; mas tem-se de reconhecer
aí o espírito especulativo de nossa língua, que vai além do simples ou-ou do
entendimento.
§ 97
B) A relação do negativo para consigo mesmo é relação negati­
va, portanto diferenciação do Uno consigo mesmo, a repulsão do
Uno; isto é, o pôr de muitos Uno. Segundo a imediatez do essente-
-para-si, esses Muitos são essentes, e a repulsão dos unos essentes
torna-se sua repulsão de uns em relação aos outros, enquanto [seres]
presentes; ou [um] excluir recíproco.
Adendo: Quando se fala do Uno, costumam logo nos vir à mente os
Muitos. Aqui surge a pergunta: donde vêm os Muitos? Nenhuma resposta se
encontra para essa pergunta, na representação, pois esta considera os Muitos
como imediatamente presentes, e o Uno [então] conta justamente apenas
como um entre os Muitos. Segundo o conceito, ao contrário, o Uno forma o
pressuposto dos Muitos, e está incluído no pensamento do Uno, pôr-se a si
mesmo como o Muitos. E que o uno, essente para si, como tal, não é um
carente-de-relação como o ser, mas é relação, tanto como o ser-aí; só que não
se refere como Algo a Outro, mas enquanto unidade do Algo e do Outro; é
relação consigo mesmo; e esta relação é negativa, sem dúvida. O Uno mostra-
-se nisso como o absolutamente incompatível consigo mesmo, como o que
se repele de si mesmo; e aquilo, como se põe, é o Muitos.
Podemos designar esse lado do processo pelo termo figurado de repulsão.
Fala-se de repulsão antes de tudo no estudo da matéria, e entende-se pelo
termo precisamente que a matéria, enquanto é um Muitos, comporta-se em
cada um desses muitos Unos como exclusiva em relação a todos os demais.
Aliás não se pode entender o processo de repulsão como se o Uno fosse o
repelente e o Muitos o repelido. É antes o Uno, como acima foi notado, que
é justamente isto: excluir-se de si mesmo e pôr-se como o Muitos; mas cada
um dos muitos é ele mesmo Uno, e por isso, ao comportar-se como tal, essa
repulsão de todos os lados se converte assim em seu contrário: a atração.
§ 98
Contudo, os Muitos são, [cada] um, o que é o outro; cada um é
Uno ou, também, Uno dos Muitos: portanto são uma só e a mesma
195
coisa. Ou seja: considerada nela mesma, a repulsão é como compor­
tar-se negativo dos muitos Unos entre si — é também essencial­
mente sua relação de uns com os outros; e porque são Unos aque­
les com os quais o Uno se relaciona em seu repelir, neles se rela­
ciona [o Uno] consigo mesmo. Portanto, a repulsão é também es­
sencialmente atração-, e o Uno exclusivo, ou o ser-para-si, se
suprassume. A determinidade qualitativa, que no Uno atingiu seu
ser-determinado-em-si-e-para-si, passou assim à determinidade
enquanto suprassumida, isto é, passou ao ser enquanto quantidade.
A filosofia atomística é esse ponto de vista em que o absoluto se
determina [a si mesmo] como ser-para-si, como Uno, e como
muitos Unos. Como sua força-fundamental, admitiu-se também
a repulsão, que se revela no conceito do Uno; porém não é
atração, mas o acaso, isto é, o carente-de-pensamento, que deve
reuni-los. Fixando-se o Uno como Uno, seu encontrar-se junto
com outros deve ser visto como algo totalmente exterior.
O vazio, admitido como o outro princípio [que vem juntar-se] ao
átomo, é a repulsão mesma, representada como o nada essente
entre os átomos. A atomística recente — e a física conserva ainda
sempre esse princípio — renunciou aos átomos, na medida em
que se atém a pequenas partículas, às moléculas; com isso apro­
ximou-se do representar sensível, mas abandonou a determina­
ção pensante. Além do que, colocando-se uma força-atrativa ao
lado da força-repulsiva, a oposição na verdade se faz completa-, e
suscitou-se muita auto-estima com a descoberta dessa suposta
força-da-natureza. Mas a correlação das forças, que constitui o
que tem de concreto e de verdadeiro, teria de ser arrancada da
confusão sombria em que foi deixada ainda mesmo nos “Fun­
damentos Metafísicos da Ciência da Natureza de Kant”. A visão
atomística, nos tempos modernos, tornou-se ainda mais impor­
tante no [campo] político que no [campo] físico. Segundo essa
visão, a vontade dos Singulares, como tal, é o princípio do Esta­
do; o que atrai é a particularidade das necessidades, inclinações;
e o universal, o próprio Estado, é a relação externa do contrata
Adendo 1: A filosofia atomística forma um grau essencial no desenvol­
vimento histórico da idéia, e o princípio dessa filosofia é, em geral, o ser-

196
para-si na figura do Muitos. Como ainda hoje em dia a atomística está em
grande estima entre esses cientistas-da-natureza que não querem saber da
metafísica, convém lembrar aqui, a respeito, que não se escapa da meta­
física — e, mais precisamente, da redução da natureza a pensamentos —
lançando-se nos braços da atomística; pois, de fato, o átomo é ele mesmo
um pensamento, e assim a compreensão da matéria como constituída de
átomos é uma compreensão metafísica. Newton, sem dúvida, advertiu
expressamente a física que tinha de preservar-se da metafísica; no entan­
to pode-se notar, para honra sua, que não se comportava de modo algum
conforme essa advertência. De fato, só os animais são meros e puros
físicos, pois eles não pensam; ao passo que o homem, como ser pensante,
é um metafísico nato. Neste ponto, só importa mesmo é se a metafísica
que se emprega é da espécie correta, e notadamente se, em lugar da idéia
lógica concreta, não são as determinações-de-pensamento unilaterais, fi­
xadas pelo entendimento, [que constituem aquilo] a que se atém, e for­
mam a base de nosso agir tanto teórico como prático. E essa a censura que
atinge a filosofia atomística. Os atomistas antigos (como ainda ocorre com
freqüência hoje em dia) consideravam tudo como um Muitos, e diziam
que devia ser o acaso que reunia os átomos que giravam suspensos no
razio. Ora, a relação dos Muitos entre eles não é, de modo algum, uma
relação puramente casual; mas (como se mostrou antes) essa relação está
fundada neles mesmos. É a Kant que cabe o mérito de ter completado a
ipreensão da matéria, ao considerá-la como a unidade de repulsão e atra­
ção. Nessa tese, há de correto que a atração certamente tem de ser reco­
nhecida como o outro momento, contido no conceito do ser-para-si; e
issim a atração pertence tão essencialmente à matéria quanto a repulsão.
Mas essa construção — a que chamam dinâmica — da matéria padece do
defeito de que a repulsão e a atração, sem mais, são postuladas como
dadas, e não são deduzidas; por essa dedução seriam também demonstra­
dos o “como” e o “porquê” de sua unidade simplesmente afirmada. Aliás,
Kant recomendou expressamente que não se considerasse a matéria como
dada por si mesma, e dotada depois (como por acaso) das duas forças aqui
mencionadas; e sim como consistindo, pura e simplesmente, na unidade
delas. Durante um tempo, os físicos alemães admitiram essa “dinâmica
pura”. No entanto, mais recentemente, a maioria desses físicos achou de
■ovo mais cômodo voltar ao ponto de vista do atomismo, e contra a adver­
tência de seu colega, o finado Kãstner*, considerar a matéria como consti­
tuída de corpúsculos infinitamente pequenos, denominados átomos; áto­
mos aue em seguida estariam em relação uns com os outros, pelo jogo das
* [Abraham Gottelf Kãstner — 1979 a 1800 — matemático e filósofo.]

197
forças atrativa e repulsiva a eles aderentes — ou ainda de outras forças
quaisquer. E isso também uma metafísica; e na certa há bastante motivo
para guardar-se dela, por causa de sua ausência-de-pensamento.
Adendo 2: A passagem, indicada no parágrafo precedente, da quantidade
para a qualidade não se encontra em nossa consciência ordinária. Para ela, a
qualidade e a quantidade contam como um par de determinações que
subsistem autônomas lado a lado; e isso significa, por conseguinte, que as
coisas são determinadas não só qualitativamente, mas também quantitati­
vamente. Donde provêm essas determinações, e como se relacionam mu­
tuamente, sobre isso aqui não se indaga. Ora, a quantidade não é outra
coisa que a qualidade suprassumida; e é pela dialética da qualidade, aqui exa­
minada, que essa suprassunção se efetua. Tínhamos aqui inicialmente o
ser, e, como sua verdade, produziu-se o vir-a-ser; este formava a passagem
para o ser-aí, e como verdade do ser-aí reconhecemos a alteração. Mas a
alteração mostrou-se em seu resultado como o ser-para-si retirado da rela­
ção ao Outro e da passagem para esse Outro; ser-para-si que se mostrou,
afinal, nos dois lados de seu processo — a repulsão e a atração —, como
o suprassumir de si mesmo, e, assim, [como o suprassumir] da qualidade
em geral, na totalidade de seus momentos. Ora, essa qualidade suprassu­
mida nem é um nada abstrato, nem o ser igualmente abstrato, e carente-
-de-determinação; mas somente o ser indiferente à determinidade, e é
essa figura do ser que se encontra também em nossa representação ordinária
como quantidade. Por conseguinte, consideramos as coisas primeiro sob o
ponto de vista de sua qualidade, e isso vale para nós como a determinidade
idêntica ao ser da coisa. Se depois passamos à consideração da quantida­
de, essa logo nos fornece a representação da determinidade indiferente
exterior, de modo que uma coisa ainda assim permanece o que é, embora
sua quantidade varie, e a coisa se torne maior ou menor.

198
B
Q u a n t id a d e

a) A quantidade pura

§ 99
A quantidade é o puro ser, em que a determinidade é posta,
não mais como [constituindo] um só com o ser mesmo, mas como
suprassumida ou indiferente.
1) Grandeza não é uma expressão que convenha à quantida­
de, na medida em que designa principalmente a quantidade
determinada.
2) A matemática costuma definir a grandeza como o que pode
ser aumentado ou diminuído", por defeituosa que seja essa defini­
ção — já que por sua vez contém o próprio definido —, está
contudo implicado nela que a determinação-de-grandeza é uma
determinação posta como variável e indiferente, de modo que,
apesar de uma variação, de uma extensão ou intensidade acres­
cidas, a Coisa, por exemplo uma casa, um vermelho, não deixa
de ser casa, vermelho.
199
3) O absoluto é quantidade pura — esse ponto de vista co­
incide em geral com o que dá ao absoluto a determinação
de matéria; em que a forma, decerto, estaria presente, mas
seria uma determinação indiferente. A quantidade também
constitui a determinação-fundamental do absoluto, quando é
compreendido de modo que nele — [que é] o absolutamen-
te-indiferente — toda a diferença seria apenas quantitativa.
Aliás, podem-se tomar como exemplos da quantidade o puro
espaço, o tempo etc., na medida em que o real deve ser
entendido como o recheio indiferente do espaço e do tempo.
Adendo: A definição habitual da grandeza na matemática — como sendo
o que pode ser aumentado ou diminuído — à primeira vista parece mais
esclarecedora e mais plausível que a determinação-de-conceito contida no
parágrafo precedente. Contudo, olhada mais de perto, ela contém, sob a
forma da pressuposição e da representação, o mesmo que se produziu como
conceito da quantidade, só pela via do desenvolvimento lógico. E que, quando
se diz da quantidade que seu conceito consiste em poder ser aumentada ou
diminuída, com isso se enuncia justamente que a grandeza (ou, mais exata­
mente, a quantidade) — diversamente da qualidade — é uma determinação
tal que a Coisa determinada se comporta como indiferente para com a varia­
ção dela. No que se refere a defeito, acima denunciado, da definição habitual
da quantidade, ele consiste, mais precisamente, em que aumentar e dimi­
nuir só significam justamente determinar de outra maneira a grandeza. As­
sim, porém, a quantidade antes de tudo seria apenas algo variável em geral.
Ora, também a qualidade é variável, e a diferença anteriormente menciona­
da entre a quantidade e a qualidade é então expressa por meio do aumentar
ou diminuir, e nisso está implicado que, seja qual for o lado conforme o qual
varie a determinação da grandeza, contudo a coisa permanece o que é.
Convém ainda notar aqui que na filosofia em geral não se lida simples­
mente com definições exatas, e, muito menos ainda, simplesmente com
definições plausíveis, isto é, definições cuja exatidão é imediatamente
evidente para a consciência representativa. Mas, antes, [a filosofia lida]
com definições comprovadas, isto é, definições cujo conteúdo não é sim­
plesmente recebido como um “achado”, mas conhecido como um conteú­
do fundado no pensamento livre e por isso, ao mesmo tempo, em si
mesmo. Isso encontra sua aplicação no caso presente, deste modo: por
exata e imediatamente evidente que possa ser a definição da quantidade,
que é habitual na matemática, contudo não se teria com ela satisfeito
ainda a exigência de saber até que ponto esse pensamento particular é

200
fundado no pensamento universal, e por isso é necessário. Também está
ligada com isso a consideração ulterior de que, enquanto a quantidade, sem
ser mediatizada pelo pensar, é recebida imediatamente da representação,
acontece muito facilmente que se sobreestime a quantidade no que respeita
ao âmbito de sua validade, e que seja mesmo elevada à categoria absoluta.
De fato, é esse o caso, quando somente aquelas ciências cujos objetos po­
dem ser submetidos ao cálculo matemático são reconhecidas como ciên­
cias exatas. De novo aqui se mostra aquela má metafísica antes mencio­
nada (§ 98, Adendo), que põe em lugar da idéia concreta as determinações-
de-entendimento unilaterais e abstratas. Nosso conhecimento estaria de
fato em má situação se, quanto a tais objetos como liberdade, direito,
eticidade, e Deus mesmo — porque não podem ser medidos e calculados
ou expressos em uma fórmula matemática —, tivéssemos de nos conten­
tar em geral simplesmente com uma representação indeterminada; e se
então, no que toca a seu ser mais preciso ou particular, fosse deixado ao
bel-prazer de cada indivíduo particular fazer o que quisesse.
Que conseqüências práticas funestas resultam de tal compreensão, é
imediatamente evidente. Aliás, considerando com mais rigor o ponto de
vista exclusivamente matemático aqui mencionado, em que a quantidade
— esse grau determinado da idéia lógica — é identificada com a idéia
lógica mesma, não é outro ponto de vista que o do materialismo; tal como
encontra sua plena confirmação na história da consciência científica, no-
tadamente na França desde meados do século passado. O [ser] abstrato da
matéria é precisamente aquilo em que a forma está presente, sem dúvida;
contudo somente como uma determinação indiferente e exterior.
Aliás seria entender muito distorcidamente a discussão aqui, como se
por meio dela fosse ofendida a dignidade da matemática, ou se, pela desig­
nação da determinação quantitativa como determinação puramente exterior
e indiferente, se devesse dar uma boa consciência à preguiça e à superficia­
lidade; e se devesse afirmar que se podem deixar as determinações quanti­
tativas em paz, ou que fosse preciso não ser assim tão rigoroso com elas. Em
todo caso, a quantidade é um grau da idéia, que como tal deve também fazer
valer seu direito; primeiro, enquanto categoria lógica, e depois também no
mundo objetivo: tanto no mundo da natureza como no do espírito. Mas
também aqui se manifesta logo a diferença: que a determinação-de-grandeza
não tem a mesma importância entre os objetos do mundo natural e entre os
objetos do mundo espiritual. É que na natureza, enquanto é a idéia na forma
do ser-outro, e ao mesmo tempo do [ser] fora-de-si, a quantidade tem jus­
tamente por isso uma importância maior que no mundo do espírito — esse
mundo da livre interioridade. Sem dúvida, nós consideramos esse mundo
espiritual também sob o ponto de vista da quantidade, mas logo se evidencia

201
que, se consideramos Deus como uno-e-trino, o número três tem aí uma
significação muito inferior à que [possui] quando consideramos, por exem­
plo, as três dimensões do espaço, ou, mais ainda, os três lados de um triân­
gulo, cuja determinação fundamental só é precisamente ser uma superfície
limitada por três linhas. Além disso, encontra-se também no interior da
natureza a diferença mencionada, de uma importância maior ou menor da
determinação quantitativa, de modo que certamente, na natureza inorgânica,
a quantidade, por assim dizer, desempenha um papel mais importante que
na natureza orgânica. Se distinguimos ainda, no interior da natureza inorgânica,
o domínio mecânico do domínio físico e químico — no sentido estrito —, a
mesma diferença mostra-se aqui mais uma vez; e a mecânica, como é reco­
nhecido, é a disciplina científica em que menos se pode passar sem a ajuda
da matemática, e mesmo onde quase não se pode dar nenhum passo sem ela;
e que, também por essa razão, costuma ser considerada, junto com a própria
matemática, como a ciência exata por excelência. A propósito, convém re­
lembrar a nota feita acima sobre a coincidência do ponto de vista do mate-
rialismo e do ponto de vista exclusivamente matemático.
Aliás, segundo tudo que aqui se desenvolveu, deve-se justamente para
uma consciência exata e sólida, caracterizar como um dos preconceitos que
mais estorvam, procurar, como se costuma, toda a diferença e toda a deter­
minidade do objetivo apenas no quantitativo. Decerto o espírito, por exem­
plo, é mais que a natureza; o animal é mais que a planta; mas se sabe ainda
muito pouco desses objetos e de suas diferenças quando se fica simplesmen­
te em um tal “mais” ou “menos” e não se avança até a compreendê-los em
sua determinidade própria, que aqui é antes de tudo qualitativa.
§ 100
A quantidade, primeiro em sua relação imediata consigo, ou na
determinação da igualdade consigo mesma, posta pela atração, é a
grandeza contínua; na outra determinação nela contida — na deter­
minação do uno — é a grandeza discreta. Mas a primeira quanti­
dade é igualmente discreta, pois é só a continuidade do Muitos; e
essa outra quantidade é igualmente contínua; sua continuidade é o
Uno, enquanto o mesmo dos muitos Unos: a unidade.
1) A grandeza contínua e a grandeza discreta não devem pois
ser consideradas como espécies, como se a determinação de
uma não conviesse à outra; mas elas se diferenciam somente
porque o mesmo todo é uma vez posto sob uma de suas
determinações, e a outra vez, sob a outra.
202
2) A antinomia do espaço, do tempo ou da matéria, tendo em
vista sua divisibilidade até o infinito, ou então seu consistir de
[partículas] indivisíveis, não é outra coisa que a afirmação da quan­
tidade — uma vez como contínua, outra vez, como discreta. Se
postos o espaço, o tempo etc., apenas com a determinação da
quantidade contínua, são divisíveis até ao infinito; mas, com a
determinação da grandeza discreta, são neles mesmos divididos, e
compostos de Unos indivisíveis; é um tão unilateral como o outro.
Adendo: A quantidade, enquanto resultado mais próximo do ser-para-
-s i, contém em si os dois lados do seu processo — a repulsão e a atração
— como momentos ideais, e por isso é tanto contínua quanto discreta.
Cada um dos dois momentos também contém em si o outro, e portanto
não há nem grandeza simplesmente contínua, nem simplesmente discre­
ta. Se apesar disso se fala dos dois como de duas espécies particulares de
grandeza, contrapostas uma à outra, isso é simplesmente o resultado de
nossa reflexão que-abstrai, que, na consideração de grandezas determina­
das, ora prescinde de um, ora do outro dos momentos contidos no concei­
to da quantidade em uma unidade inseparável. Diz-se, por exemplo, que
o espaço que esta sala ocupa é uma grandeza contínua, e que estes cem
homens que nela estão reunidos formam uma grandeza discreta. Ora, o
espaço é contínuo e discreto ao mesmo tempo, e por conseguinte falamos
de pontos do espaço e também dividimos o espaço, por exemplo, em uma
certa largura, em tantos e tantos pés, polegadas etc.; o que só pode suce­
der na pressuposição de que o espaço em si é também discreto.
Igualmente, do outro lado, também a grandeza discreta composta de
cem homens é ao mesmo tempo contínua, e o que lhes é comum — o
gênero “homem” que atravessa todos os singulares e os une entre eles —
é aquilo em que está fundada a continuidade dessa grandeza.

b) O quanto
§ 101
A quantidade, posta essencialmente com a determinidade ex­
clusiva que está contida nela, é quanto: quantidade limitada.
Adendo: O quanto é o ser-aí da quantidade; enquanto a quantidade
pura corresponde ao ser, e o grau (a ser considerado logo mais) correspon­
de ao ser-para-si. No que toca à maior precisão no processo [que vai] da

203
quantidade pura para o quanto, esse processo se funda nisto: enquanto
na quantidade pura a diferença, como diferença da continuidade e discri­
ção, [discontinuidade], ainda só está presente em si, ao contrário no quan­
to a diferença está posta; e isso de modo que a quantidade em geral
aparece agora como diferente ou limitada. Mas com isso o quanto se
quebra ao mesmo tempo em uma multidão indeterminada de quantos, ou
de grandezas determinadas. Cada uma dessas grandezas determinadas,
enquanto diferente das outras, forma uma unidade; assim como, de outro
lado, essa unidade considerada por si só, é um Muitos. Mas assim o quan­
to é determinado como número.
§ 102
O quanto tem seu desenvolvimento e completa determinidade
no número que contém em si, como seu elemento, o Uno: segundo
o momento da discrição [discontinuidade], o valor numérico [Anzahl];
segundo o momento da continuidade, a unidade — enquanto mo­
mentos qualitativos do Uno.
Em aritmética, as operações costumam ser apresentadas como
maneiras contingentes de tratar os números. Se nelas deve
haver uma necessidade, e portanto um entendimento, isso
deve estar em um princípio, o qual só pode residir nas deter­
minações contidas no conceito do próprio número. Esse prin­
cípio deve aqui ser exposto brevemente.
As determinações do conceito de número são o valor númerico
e a unidade\ e o próprio número é a unidade dos dois. Mas a
unidade, aplicada a números empíricos, é somente sua igual­
dade.; assim, o princípio das operações deve necessariamente
consistir em pôr os números na relação [entre] unidade e
valor numérico, e produzir a igualdade dessas determinações.
Enquanto os Unos ou os números mesmos são indiferentes,
uns em relação aos outros, a unidade, para a qual são trans­
feridos, aparece geralmente como um reunir exterior. Calcu­
lar é pois, em geral, contar; e a diferença das operações para
calcular reside só na constituição qualitativa dos números
que são contados juntamente; e, para a constituição, o prin­
cípio é a determinação da unidade e do valor numérico.
[1-] Numerar é o primeiro: fazer o número em geral, um reunir
de muitos Unos, quantos se quer. Uma operação porém é o
204
“contar-juntamente” de termos que já são números, [e] não
mais o simples Uno.
Os números são imediatamente e em primeiro lugar, de modo to­
talmente indeterminado, números em geral, portanto desiguais,
em geral. A operação de juntá-los ou contá-los é o somar.
[2-] A determinação imediatamente seguinte é que os núme­
ros são iguais em geral, por isso constituem uma unidade [só],
e é dado um valor numérico dessas unidades. Contar tais
números é o multiplicar — em que é indiferente [o modo]
como estão repartidas as determinações do valor numérico e
da unidade entre os dois números — os fatores [da multipli­
cação] — [ou seja,] qual deles é tomado por valor numérico,
e qual, ao contrário, é tomado por unidade.
[3-] A terceira determinidade é finalmente a igualdade do valor
numérico e da unidade. O contar-juntos números assim determi­
nados é [a operação chamada] o elevar à potência, e, antes de
tudo, ao quadrado. O potenciar ulterior é a continuação formal
— que vem a dar de novo no valor numérico indeterminado —
da multiplicação do número por si mesmo. Já que nessa terceira
determinação se alcança a completa igualdade da única diferen­
ça presente — a do valor numérico e da unidade —, não pode
haver mais que essas três operações. Ao contar conjuntamente,
corresponde o decompor dos números segundo a mesma
determinidade. Há pois, ao lado das três operações indicadas,
que por isso podem chamar-se positivas, também três negativas
[diminuir, dividir, extrair raiz].
Adendo: Como o número em geral é o quanto, em sua completa
determinidade, nós o empregamos não só para a determinação das gran­
dezas que se chamam discretas, mas também para as que se chamam
contínuas. Por esse motivo, pode-se recorrer ao número na geometria,
ande se trata de indicar figurações determinadas do espaço e suas relações.

c) O grau
§ 103
O limite é idêntico ao todo do próprio quanto. Enquanto em si
z determinidade múltipla, é a grandeza extensiva; mas, enquanto
“m si é determinidade simples, é a grandeza intensiva, ou o grau.
205
A diferença entre as grandezas contínua e discreta, e as grandezas
extensiva e intensiva, consiste em que as primeiras visam à
quantidade em geral, enquanto as últimas visam ao limite ou deter­
minidade enquanto tal. Igualmente, a grandeza extensiva e a in­
tensiva também não são duas espécies, das quais cada uma conte­
ria uma determinidade que a outra não teria. O que é grandeza
extensiva é igualmente como grandeza intensiva; e vice-versa.
Adendo: Segundo o conceito, a grandeza intensiva ou o grau é diferen­
te da grandeza extensiva, ou do quanto, motivo pelo qual se deve caracteri­
zar como inadmissível quando não se reconhece essa diferença — como
muitas vezes acontece — e se identificam sem mais as duas formas da
grandeza. E notadamente o que ocorre na física, quando ali, por exemplo,
se explica a diferença dos pesos específicos dizendo que um corpo, cujo
peso específico é o duplo do de um outro, contém no interior do mesmo
espaço duas vezes mais partículas de matéria (átomos) que o outro. O
mesmo se dá com o calor e com a luz, quando [se diz que] os diversos
graus da temperatura ou da luminosidade devem ser explicados por um
mais ou um menos de partículas de calor ou de luz (ou moléculas). Na
verdade, os físicos, que se servem de tais explicações, quando se lhes
mostra sua inadmissibilidade, costumam desculpar-se [dizendo] que não
se deve com isso, de modo algum, decidir sobre o Em-si de tais fenôme­
nos (reconhecidamente incognoscível); e se lança mão das expressões
mencionadas só por causa da maior comodidade. Primeiro, no que aí se
refere à maior comodidade, essa deve referir-se à utilização mais fácil do
cálculo. Contudo, não se pode entender por que as grandezas intensivas,
que no número com certeza têm igualmente sua expressão determinada,
não seriam tão cômodas de calcular quanto as grandezas extensivas. Mais
cômodo seria ainda, sem dúvida, renunciar totalmente tanto ao calcular como
também ao próprio pensar. Além disso, há ainda a notar contra a desculpa
acima mencionada que, ao admitir explicações desse gênero, em todo o caso
a gente ultrapassa o domínio da percepção e da experiência, e se abandona
ao domínio da metafísica e da especulação (em outras ocasiões declarada
ociosa, e mesmo nefasta). Certamente na experiência vai-se encontrar que,
se de duas bolsas preenchidas de táleres uma é duas vezes mais pesada que
a outra, isso ocorre pelo motivo de que uma das bolsas contém duzentos
táleres, e a outra apenas cem. Essas peças de prata podem-se ver e, em geral,
perceber com os sentidos; ao contrário, átomos, moléculas etc. residem fora
do domínio da percepção sensível, e é Coisa do pensar decidir sobre sua
admissibilidade e significação. Ora, (como se mencionou antes no § 98, Adendo)

206
é o entendimento abstrato que fixa o momento do Muitos, contido no
conceito do ser-para-si, sob a figura dos átomos, e o sustentar como algo
de último. Depois, é também o mesmo entendimento abstrato que no
caso presente, em contradição tanto com a intuição ingênua como com o
verdadeiro pensar concreto, considera a grandeza extensiva como a única
forma da quantidade; e por isso, onde se encontram grandezas intensivas,
não as reconhece em sua determinidade peculiar, mas, apoiado em uma
hipótese, que em si é inconsistente, esforça-se por reduzi-la, à força, a
grandezas extensivas. Entre as denúncias que se fazem à nova filosofia,
também se ouve particularmente, com freqüência, que reduziria tudo à
identidade; e então lhe foi dado também o apodo de “filosofia da iden­
tidade”. Ora, da discussão aqui instaurada, tem-se de concluir ser justa­
mente a filosofia que insiste na diferenciação do que é diverso, tanto
segundo o conceito como segundo a experiência; enquanto são os empiristas
de profissão que erigem a identidade abstrata em princípio supremo do
conhecimento: e portanto sua filosofia teria de ser designada, com justiça,
“filosofia da identidade”. Aliás é de todo exato que tampouco há grande­
zas puramente contínuas e puramente discretas, como não há também
grandezas puramente intensivas e puramente extensivas; e que, assim, as
duas determinações da quantidade não estão uma em face da outra como
espécies autônomas. Toda e qualquer grandeza intensiva é extensiva
também, e também sucede o mesmo inversamente. Por exemplo: certo
grau de temperatura é uma grandeza intensiva, a que como tal correspon­
de também uma sensação totalmente simples; se depois vamos ao termô­
metro, encontramos como correspondente a esse grau de temperamento
certa dilatação da coluna de mercúrio, e essa grandeza extensiva varia ao
mesmo tempo com a temperatura, enquanto [esta é] a grandeza intensiva.
O mesmo sucede também no domínio do espírito; um caráter mais inten­
sivo atinge mais longe com sua eficácia que um caráter intensivo em
menor grau.
§ 104
No grau está posto o conceito do quanto: é a grandeza enquanto
indiferente para si e simples, mas de modo que tem a determ ini­
dade, pela qual ela é quanto, absolutam ente fora dela em outras
grandezas. Nessa contradição — de que o limite indiferente, essente-
-para-si, é a absoluta exterioridade — está posto o progresso quanti­
tativo infinito-, um a imediatez que se converte im ediatam ente em
seu contrário, no ser-mediatizado (o ultrapassar sobre o quanto, que
acaba de ser posto), e vice-versa.

207
O número é pensamento, mas o pensamento enquanto um ser
completamente exterior a si. O número não pertence à intuição,
porque é pensamento, mas é o pensamento que tem por sua
determinação a exterioridade da intuição. Por conseguinte, o
quanto não somente pode ser aumentado ou diminuído até o
infinito: ele mesmo é, por seu conceito, esse mandar-para-fora
por sobre si mesmo. O progresso quantitativo infinito é igual­
mente a repetição, carente-de-pensamento, de uma só e mesma
contradição, que é [a do] o quanto em geral e, posto em sua
determinidade, é o grau. Sobre o supérfluo [que é] exprimir
essa contradição na forma do progresso infinito, com razão diz
Zenão, [citado] em Aristóteles: “E o mesmo, dizer algo uma vez
e dizê-lo sempre” [Diels-Kranz, Zenon B, 1],
Adendo 1: Se, de acordo com a definição comum da grandeza em
matemática, acima citada (§ 99), a grandeza é designada como o que pode
ser aumentado ou diminuído, e se nada há que objetar à intuição que lhe
serve de base, ainda fica, no entanto, a questão preliminar: como chega­
mos a admitir esse tal aumentável ou diminuível. Se para [dar] resposta a
essa questão se quisesse simplesmente apelar para a experiência, isso não
seria bastante, porque [mesmo] abstraindo de que teríamos simplesmente a
representação, e não o pensamento da grandeza, esta se revelaria meramente
como uma possibilidade (de ser aumentada ou diminuída) e nos faria falta
a inteligência da necessidade desse comportar-se assim. Ao contrário, a quan­
tidade, no caminho de nosso desenvolvimento lógico, não se produziu so­
mente como um degrau do pensar que a si mesmo determina, mas também
se revelou que no conceito da quantidade reside “mandar-se para-fora” por
sobre si, pura e simplesmente; e que assim não lidamos aqui meramente
com uma possibilidade, mas com algo necessário.
Adendo 2: Quando trata da infinitude em geral, é sobretudo no pro­
gresso quantitativo infinito que o entendimento reflexivo costuma deter-
-se. Ora, dessa forma do progresso infinito vale, antes de tudo, o mesmo
que antes se notou sobre o progresso qualitativo infinito: a saber, que não
é a expressão da infinitude verdadeira, mas somente daquela má infinitude
que não vai além do simples dever-ser, e assim, de fato, permanece no
finito. No que concerne mais precisamente à forma quantitativa desse
progresso infinito*, que Espinoza com razão considera como uma infinitude
* A Edição SUHRKAMP tem endUchen (finito), o que é um engano manifesto. Corri­
gimos com Bourgeois para infinito (N. do T.).

208
simplesmente imaginada (infinitum imaginationis), também poetas se
utilizaram não raramente dessa representação (nomeadamente Haller e
Klopstock) para dar uma idéia não apenas da infinitude da natureza, mas
também do próprio Deus. Encontramos, por exemplo, em Haller uma
célebre descrição da infinitude de Deus, em que se diz:
“Eu amontôo números enormes
e milhões de montanhas. Ponho tempos
sobre tempos; e mundos sobre mundos.
E quando, dessa altura, novamente
— tomado de pavor e de vertigem —
dirijo para Ti o meu olhar
todo o poder do número, ainda
elevado à milésima potência,
não forma uma só parte de Ti mesmo
Aqui temos, antes de tudo, esse mandar-para-fora da quantida­
de, e mais precisamente do número, para além de si mesmo, que
Kant caracteriza como arrepiante. Contudo, arrepiante mesmo ti­
nha de ser apenas a monotonia enfadonha de constantemente um
limite ser posto e de novo suprassumido, e assim não se sair do
lugar. Ora, o poeta citado acrescenta devidamente, àquela descri­
ção da má infinitude, como conclusão:
“Se os retiro, estás todo à minha frente”.
Nisto se exprime justamente que o verdadeiro infinito não pode
ser considerado como um simples Além do finito, e que, para che­
gar à consciência desse infinito, temos renunciar àquele “progressus
in infinitum”.
Adendo 3: Pitágoras, sabe-se muito bem, filosofou sobre o número, e
apreendeu a determinação fundamental das coisas como número. A primeira
vista, deve essa apreensão parecer à consciência ordinária como um para­
doxo total, e certamente insensato; e por isso surge a questão do que se
pode julgar a seu respeito. Para responder a essa questão, há que lembrar
primeiro que a tarefa da filosofia, em geral, consiste em reduzir as coisas
a pensamentos, e na verdade a pensamentos determinados. Ora, o núme­
* Albrecht von Haller, “Unvollkommenes Gedicht über die Ewigkeit”, em Versuch
schweizerischer Gedkhte, Berlim, 1732.

209
ro é, sem dúvida, um pensamento, e certamente um pensamento que se
situa o mais perto do sensível; ou, exprimindo mais determinadamente, [é]
o pensamento do próprio sensível, na medida em que entendemos por sen­
sível em geral o “fora-um-do-outro” e o Muitos. Assim reconhecemos, na
tentativa de apreender o universo como número, o primeiro passo para a
metafísica. Pitágoras situa-se na história da filosofia, como é bem sabido,
entre os filósofos iônicos e os eleatas. Ora, enquanto os iônicos ainda ficavam
na posição de considerar a essência das coisas como algo material (com uma
UÀT)), os eleatas ao contrário, e mais precisamente Parmênides, avançaram
até o puro pensamento, na forma do ser; assim é a filosofia de Pitágoras, cujo
princípio forma, por assim dizer, a ponte entre o sensível e o supra-sensível.
Também daí decorre o que se deve julgar da opinião dos que acreditam que
Pitágoras foi evidentemente longe demais ao entender a essência das coisas
como simples números; e observam que se podem certamente contar as
coisas — nada haveria a objetar contra isso — mas que as coisas são ainda
mais que simples números. No que concerne ao mais, atribuído às coisas,
sem dúvida há que concordar, de boa vontade, que as coisas são mais que
simples números; o que somente importa é o que se entende por este mais.
A consciência sensível ordinária, conforme seu ponto de vista, não terá he­
sitação em responder à questão aqui suscitada, remetendo à capacidade de-
-percepção sensível, e assim fazer notar que as coisas não são apenas contáveis
mas ainda, além disso, também visíveis, farejáveis etc. A denúncia feita à
filosofia pitagórica com isso se reduziria — exprimindo segundo nossa ma­
neira moderna — a que ela é demasiado idealista. Ora, de fato, ocorre jus­
tamente o contrário; como se pode concluir do que antes se notou, sobre a
posição histórica da filosofia de Pitágoras. Com efeito, caso se deva conceder
serem as coisas mais que meros números, tem-se de entender isso no sentido
de ainda não bastar o simples pensamento do número para exprimir, por esse
meio, a essência determinada ou o conceito das coisas. Em vez de afirmar
que Pitágoras foi demasiado longe com sua filosofia dos números, dever-se-
-ia dizer, ao contrário, que não foi bastante longe; e na verdade foram já os
eleatas que deram o passo seguinte em direção ao puro pensamento.
Mas além disso há também, se não coisas, certamente estados de coi­
sas e, em geral, fenômenos da natureza, cuja determinidade repousa es­
sencialmente em determinados números e relações numéricas. Para citar,
é isso o que ocorre com a diferença dos sons e de seus acordes harmônicos,
e, como é notório, conta-se que foi primeiro por meio da percepção desse
fenômeno que Pitágoras foi levado a entender a essência das coisas como
número. Ora, ainda que seja de interesse científico decisivo que os fenô­
menos que têm em sua base números determinados sejam também redu­
zidos a eles, não é permitido, de modo algum, considerar a determinidade

210
do pensamento em geral como determinidade simplesmente numérica.
Certamente é possível que de início se seja levado a ligar as determinações
mais universais do pensamento aos primeiros números, e por conseguinte
■dizer que um é o simples e o imediato; dois, a diferença e a mediação; três,
a unidade desses dois. Essas associações são, no entanto, totalmente ex­
teriores, e nos números designados, como tais, não está implicado serem
a expressão justamente desses pensamentos determinados. Aliás, quanto
mais se avança nessa maneira [de pensar], mais o puro arbítrio se mostra
na associação de números determinados com pensamentos determinados.
Pode-se assim considerar 4 como a unidade de 1 e de 3, e dos pensamen­
tos a eles associados. Mas 4 é ainda também a duplicação do 2, e igual­
mente o 9 não é simplesmente o quadrado de 3, mas também a soma de
8 e 1, de 7 e 2 etc. Se, ainda hoje em dia, certas sociedades secretas
atribuem grande importância a números e figuras de toda a espécie, isso
deve considerar-se, de um lado, como um jogo inofensivo; e de outro lado
como um sinal de acanhamento no pensar. Também se diz, decerto, que
por trás de coisas dessas se oculta um sentido profundo, e que dali se
pode muito pensar. Contudo, na filosofia, não importa que se possa pensar
algo, mas que se pense efetivamente; e o verdadeiro elemento do pensa­
mento não se há de procurar em símbolos arbitrariamente escolhidos, mas
somente no pensar mesmo.
§ 105
Esse ser-exterior a si mesmo do quanto em sua determinidade essente-
-em-si, constitui sua qualidade; nesse ser, o quanto é justamente ele
próprio e relacionado consigo. E a exterioridade, isto é, o quantitativo,
e o ser-para-si — o qualitativo — aí reunidos. O quanto, posto assim
nele mesmo, é a relação quantitativa: determinidade que igualmente é
um quanto imediato — o expoente — como é mediação, a saber, a
relação de um quanto qualquer com um outro: os dois lados da relação,
que ao mesmo tempo não valem segundo seu valor imediato, mas cujo
valor só está nessa relação.
Adendo: O progresso infinito quantitativo aparece primeiro como um
permanente mandar-para-fora do número para além de si mesmo. Conside­
rada mais de perto, a quantidade mostra-se, no entanto, como retornando
a si mesma nesse progresso, pois o que ali está contido segundo o pensa­
mento é, em geral, o ser-determinado do número pelo número, e isso dá
a relação quantitativa. Se dizemos, por exemplo, 2/4, temos aí duas grande­
zas, que não valem em sua imediatez enquanto tais, mas nelas trata-se

211
somente de seu mútuo relacionamento de uma para com a outra. Mas
esse relacionamento (o expoente* da relação) é também uma grandeza
que se diferencia das duas grandezas [que estão] em relação recíproca, [de
modo] que com sua variação a relação mesma varia; quando ao contrário,
com a variação de seus dois lados, a relação se comporta como indiferente,
e fica a mesma enquanto não variar o expoente*. Por conseguinte pode­
mos também, em lugar de 2/4, colocar 3/6 sem que a proporção se altere,
porque o expoente* 2 permanece o mesmo nos dois casos.
§ 106
Os lados da relação são ainda quantos imediatos, e as determina­
ções qualitativa e quantitativa são ainda exteriores uma à outra. Mas,
segundo sua verdade — de que o quantitativo mesmo é relação para
consigo em sua exterioridade, ou seja, que o ser-para-si e a indiferença
da determinidade estão reunidos —, o quantitativo é a medida.
Adendo: Mediante o movimento dialético até aqui examinado, a quan­
tidade revelou-se como retorno à qualidade através dos seus momentos.
Primeiro tínhamos, como conceito da quantidade, a qualidade suprassu­
mida, isto é, a determinidade apenas exterior, não idêntica ao ser mas
indiferente a seu respeito. Como acima notamos, é esse conceito o que
está também na base da definição comum de grandeza na matemática:
“aquilo que pode ser aumentado ou diminuído”. Ora, de acordo com essa
definição pode parecer antes de tudo que a grandeza é somente o variável
em geral (porque aumentar, como também diminuir, significa somente
determinar diversamente a grandeza). Mas nisso não seria ela diferente
do ser-aí, igualmente variável segundo seu conceito (o ser-aí é o segundo
degrau da qualidade). Deve assim ser completado o conteúdo dessa defi­
nição, de modo que tenhamos na quantidade algo variável que, apesar de
sua variação, permaneça o mesmo. O conceito da quantidade mostra-se,
por isso, como contendo em si uma contradição; e é essa contradição que
constitui a dialética da quantidade. Ora, o resultado dessa dialética não é
o simples retorno à qualidade — como se esta fosse o verdadeiro e, ao
contrário, a quantidade** o não-verdadeiro; mas é a unidade e a verdade
* [Expoente, no sentido de núm ero que exprim e e expõe a razão ou o quocieute de dois
números, aparece aqui três vezes neste Adendo. E hoje universalmente antiquado, e em
desuso, tal sentido do termo, ligado agora às potências. (Nota do Pe. José Machado).]
** O texto dos compiladores tem Qualitdt, o que parece obviamente um engano.
Corrigimos para quantidade. (N. do T.)

212
desses dois, a quantidade qualitativa, ou a medida. A propósito, pode-se
ainda notar que, quando na consideração do mundo objetivo nos ocupa­
mos com determinações quantitativas, de fato é já a medida que temos
diante dos olhos como a meta dessa tarefa. Isso também se dá a entender
cm nossa linguagem, porque designamos, como um medir, o verificar de
determinações e relações quantitativas. Mede-se, assim, o comprimento de
diversas cordas que são postas em vibração, sob ponto de vista da diferença
qualitativa — correspondente a essa diferença de comprimento — dos sons
produzidos pela vibração. Igualmente, na química, verifica-se a quantida­
de das matérias combinadas umas com as outras, para conhecer as medi­
das que condicionam tais combinações, quer dizer, as quantidades em
que se baseiam determinadas qualidades. Também na estatística, os nú­
meros, com que se ocupa, só têm um interesse por causa dos resultados
qualitativos que condicionam. Simples verificações numéricas, como tais,
sem o ponto de vista da orientação que aqui se indica, contam, com razão,
como uma curiosidade vazia que não pode satisfazer nem um interesse
teórico, nem um interesse prático.

213
c
A M e d id a

§ 107
A medida é o quanto qualitativo, antes de tudo como imediato;
um quanto ao qual está unido um ser-aí ou uma qualidade.
Adendo: A medida, enquanto é a unidade da qualidade e da quantidade,
é por isso, ao mesmo tempo, o ser completo. Quando falamos do ser, ele
primeiro nos aparece como o totalmente abstrato e carente-de-determinação.
Ora, o ser é essencialmente isto: determinar-se a si mesmo; e sua completa
determinidade, atinge-a na medida. Pode-se considerar a medida como uma
definição do absoluto, e por esse motivo foi dito que Deus é a medida de
todas as coisas. Pois é também essa intuição que forma a nota fundamental
de muitos salmos do velho judaísmo, em que a glorificação de Deus vem a
dar em que foi Ele que impôs a tudo seu limite, ao mar e à terra firme, aos
rios e às montanhas, e igualmente às diversas espécies de plantas e de
animais. Na consciência religiosa dos gregos, encontramos a divindade da
medida em relação mais estreita com o ético, representada como Nêmesis.
Nessa representação está contido que, em geral, tudo o que é humano —
riqueza, honra, poder, e também alegria, dor etc. — tem sua medida deter­
minada, cuja transgressão leva à perdição e à ruína. Além disso, no que agora

214
diz respeito à presença da medida no mundo objetivo, encontramos primeiro
na natureza existências cujo conteúdo essencial é formado pela medida. E
notadamente o caso com o sistema solar, que podemos em geral considerar
como o reino das medidas livres. Se avançamos mais longe na consideração
da natureza inorgânica, ao mesmo tempo a medida passa, por assim dizer, ao
segundo plano enquanto aqui as determinações qualitativas e quantitativas
se mostram indiferentes umas para com as outras. Assim, por exemplo, a
qualidade de um rochedo ou de um rio não está ligada a uma grandeza
determinada. Contudo, olhando mais de perto, encontramos que também
objetos, como os [acima] mencionados, não são pura e simplesmente caren-
tes-de-medida, pois a água em um rio e as partes constitutivas singulares de
um rochedo mostram-se na análise química como qualidades, que são con­
dicionadas por proporções quantitativas das matérias nelas contidas. Mas,
incidindo de maneira mais indiscutível na intuição imediata, a medida res­
salta de novo na natureza orgânica. Os diversos gêneros de plantas e de
animais possuem, não só no todo mas também em suas partes singulares,
uma certa medida. Quanto a isso, há ainda a notar a circunstância que as
formações orgânicas menos perfeitas, que se situam mais perto da natureza
inorgânica, em parte se diferenciam das formações superiores pela maior
indeterminidade de sua medida. Encontramos assim, por exemplo, nos [mo­
luscos] petrificados que se chamam amonites, [alguns] que só no microscó­
pio podem ser reconhecidos, e outros [que chegam] até o tamanho de uma
roda de carruagem. A mesma indeterminidade da medida se mostra também
em muitas plantas, que se situam em um grau inferior do desenvolvimento
orgânico, como é o caso, por exemplo, nos fetos.
§ 108
Enquanto na medida a qualidade e a quantidade estão só em
uma unidade imediata, sua diferença nelas ressalta de um modo
igualmente imediato. Por isso, o quanto específico é, por uma parte,
simples quanto; e o ser-aí é suscetível de um aumento e [de uma]
diminuição, sem que a medida, que nisso é uma regra, seja
suprassumida por esse fato; mas por outra parte a alteração do
quanto é também uma alteração da qualidade.
Adendo: A identidade da quantidade e da qualidade, que está presen­
te na medida, é somente em si; mas ainda não está posta. Aí está implicado
que essas duas determinações, cuja unidade é a medida, se fazem valer
cada uma por si de forma que, de um lado, as determinações quantitativas
do ser-aí podem ser modificadas sem que se afete sua qualidade; mas, de

215
outro lado, esse aumentar e diminuir indiferente tem seu limite, por meio
de cuja transgressão a qualidade é alterada. Assim, por exemplo, o grau de
temperatura da água é, de início, indiferente a seu estado líquido; mas,
com a continuação do aumentar ou diminuir da temperatura da água em
estado líquido, apresenta-se um ponto em que esse estado de coesão se
altera qualitativamente, e a água se transforma de um lado em vapor, e de
outro em gelo. Quando uma variação quantitativa ocorre, isso aparece
inicialmente como algo de todo inocente; mas há algo diverso por trás
dela, e essa variação — na aparência inocente — do quantitativo é por
assim dizer um ardil, graças ao qual se atinge o qualitativo. A antinomia
da medida, que aí reside, os gregos já a tinham apresentado à intuição sob
diversas roupagens. Assim, por exemplo, na questão: “se um grão de trigo
faz uma pilha de trigo”; ou nesta outra: “se arrancar uma crina à cauda do
cavalo, faz uma cauda sem crina”? Se, a respeito da natureza da quanti­
dade, enquanto determinidade indiferente e exterior do ser, primeiro se
tende a responder negativamente a essas questões, logo se deverá conce­
der que esse indiferente aumentar e diminuir tem também seu limite, e
que finalmente se atinge um ponto em que, pelo acrescentar contínuo de
um só grão de trigo cada vez, surge uma pilha de trigo; e em que, pelo
arrancar constante de uma só crina cada vez, surge uma cauda sem crina.
Tal como nesses exemplos, ocorreu naquele conto de um camponês, que
aumentou o fardo de seu jumento que marchava animadamente, acres­
centando meia-onça cada vez, uma depois da outra, até que finalmente,
sob o fardo que se tornou insuportável, ele desabou. Seria agir muito
erroneamente querer interpretar tais exemplos como palavreado ocioso de
escola, já que de fato se trata aqui de pensamentos, com os quais é de
grande importância estar familiarizado, também de um ponto de vista
prático e — mais precisamente — ético.
Assim, em relação às despesas que fazemos, inicialmente encontra lugar
uma certa margem de tolerância, no interior da qual um mais e menos não
tem importância. Porém, se por um lado ou pelo outro é ultrapassada a
medida determinada em cada caso pela situação da fortuna individual, a
natureza quantitativa da medida (do mesmo modo como a temperatura di­
versa da água no exemplo supracitado) se faz valer, e o que ainda se devia
considerar há pouco como boa administração torna-se avareza ou desperdício.
O mesmo também encontra sua aplicação na política, certamente de
modo que a constituição de um Estado deve ser vista tanto como inde­
pendente quanto, também, como dependente da grandeza de seu territó­
rio, do número de seus habitantes, e de outras determinações quantitati­
vas semelhantes. Se, por exemplo, consideramos um Estado com um
território de mil milhas quadradas, e uma população de quatro milhões de

216
habitantes, deve-se de início conceder sem hesitar que umas poucas milhas
quadradas de território, ou alguns milhares de habitantes a mais ou a
menos, não podem ter nenhuma influência essencial na constituição de
tal Estado. Mas, inversamente, não se deve tampouco desconhecer que,
no constante aumento ou diminuição de um Estado, aparece finalmente
um ponto em que, abstraindo de qualquer outra circunstância, já por
causa dessa modificação quantitativa, também o qualitativo da constitui­
ção não pode mais permanecer inalterado. A constituição de um pequeno
cantão suíço não convém a um grande império; e era igualmente impró­
pria a constituição da república romana em sua transposição às pequenas
cidades do Império alemão.
§ 109
O “que-não-tem-medida” é, antes de tudo, esse ultrapassar de
uma medida, por cima de sua determinidade qualitativa, mediante
sua natureza quantitativa. Mas, como a outra relação quantitativa
— o “que-não-tem-medida” da primeira relação — é também qua­
litativa, “o-que-não-tem-medida” é igualmente uma medida; e essas
duas passagens, da qualidade para o quanto e do quanto para a
qualidade, podem por sua vez ser representadas como progresso ao
infinito — como o suprassumir-se no “que-não-tem-medida”, e o
restaurar-se nele da medida.
Adendo: A quantidade, como vimos, não é só suscetível de variação, isto
é, de aumento e diminuição, mas como tal é em geral o ultrapassar sobre si
mesma. Essa sua natureza, a quantidade também a confirma na medida. Ora,
quando a quantidade presente na medida ultrapassa certo limite, também a
qualidade que lhe corresponde é suprassumida. Contudo, não se nega nisso
a qualidade em geral, mas apenas esta qualidade determinada, cujo lugar é
logo tomado de novo por uma outra qualidade. Pode-se ter uma intuição
desse processo da medida — que alternadamente se mostra como simples
variação de quantidade e também, em seguida, como um transformar-se da
quantidade em qualidade — na imagem de uma linha nodal. Semelhantes
linhas nodais, encontramos primeiro na natureza sob formas variadas. Já se
consideraram, há pouco, estados de coesão da água, qualitativamente diver­
sos, condicionados por aumento ou diminuição [da temperatura]. De modo
parecido sucede com os diversos graus de oxidação dos metais. Também a
diferença dos sons pode considerar-se como um exemplo da transformação,
ocorrente no processo da medida, do que é, de início, puramente quantita­
tivo em alteração aualitativa.

217
§ 110
De fato, o que aqui sucede é que é suprassumida a imediatez que
ainda pertence à medida como tal. Qualidade e quantidade estão nela
inicialmente, como imediatas; e a medida é apenas sua identidade rela­
tiva. Mas a medida mostra-se suprassumir-se no “que-não-tem-medi-
da”; no entanto, neste, que é sua negação — mas que é, ele mesmo,
unidade da quantidade e da qualidade —, a medida [mostra-se] igual­
mente que está conforme apenas consigo mesma.
§ 111
O infinito — a afirmação enquanto negação da negação —, em
vez dos lados, mais abstratos, do ser e do nada, do Algo e do um
Outro etc., tinha, pois, a qualidade e a quantidade como seus lados.
São eles: a) primeiro a qualidade que passa para quantidade (§ 98)
e a quantidade que passa para a qualidade (§ 105), e assim as duas
[ficam] mostradas como negações, b) Mas em sua unidade (na medi­
da) são primeiro diferentes, e uma é somente por mediação da outra,
c) Depois que a imediatez dessa unidade se mostrou como se
suprassumindo, essa unidade agora é posta como o que ela é em si,
como simples relação-para-consigo, que contém em si, como
suprassumidos, o ser em geral e suas formas. O ser, ou a imediatez que
pela negação de si mesma é mediação consigo e relação para consigo
mesma, é portanto igualmente mediação que se suprassume em dire­
ção da relação para consigo, em direção da imediatez — é a essência.
Adendo: O processo da medida não é simplesmente a má infinitude do
progresso infinito na figura de uma perene transformação de qualidade em
quantidade, e de quantidade em qualidade; mas é ao mesmo tempo, a verda­
deira infinitude do seguir-junto consigo mesmo em seu Outro. Ora, a quali­
dade é, em si, quantidade; e, inversamente, também a quantidade é, em si,
qualidade. Quando as duas, no processo da medida, passam uma para a
outra, então cada uma das duas determinações torna-se apenas o que já é em
si, e agora obtemos o ser negado em suas determinações — o ser suprassumido,
em geral — que é a essência. Na medida, já estava em si a essência, e seu
processo só consiste em pôr-se [tal] como é em si.
A consciência ordinária apreende as coisas como essentes, e as con­
sidera segundo qualidade, quantidade e medida. Porém essas determina­
ções imediatas não se mostram como firmes, mas como em trânsito; e a
218
essência é o resultado de sua dialética. Na essência, o transitar não tem
mais lugar, mas somente [a] relação. A forma da relação no ser é apenas
reflexão nossa; na essência, ao contrário, a relação é sua própria determi­
nação. Quando (na esfera do ser) o Algo se torna Outro, com isso o Algo
desvanece. Não é assim na essência; aqui não temos nenhum outro de
verdade, mas só uma diversidade, [uma] relação do uno ao seu Outro. O
“passar-para” da essência, portanto, ao mesmo tempo não é um “passar-
-para”: pois, no passar do diverso para o diverso, o diverso não desvanece
no diverso, mas os diversos permanecem em sua relação. Se, por exemplo,
dizemos: ser e nada, então o ser é para si, e igualmente é o nada para si.
Com o positivo e o negativo, as coisas se passam de modo totalmente
diverso. Eles têm, na verdade, a determinação do ser e do nada. Mas o
positivo não tem para si nenhum sentido, e sim é pura e simplesmente
relativo ao negativo. O mesmo ocorre com o negativo. Na esfera do ser,
a relatividade é só em si; ao contrário, na essência a relatividade é posta.
E esta, pois, em geral, a diferença das formas do ser e da essência. No ser,
tudo é imediato; ao contrário, na essência, tudo é relativo.

219
Segunda ‘Tarte
da Lógica

A DOUTRINA DA ESSÊNCIA
§ 112
A essência é o conceito enquanto conceito posto. As determina­
ções são, na essência, somente relativas; não são ainda como pura
e simplesmente refletidas em si mesmas: por isso o conceito não é
ainda como [um] Para-si. A essência, como ser que pela negatividade
de si mesmo se mediatiza consigo, só é relação a si mesmo enquan­
to esta é relação a Outro; o qual, porém, não é imediatamente
como essente, mas como algo posto e mediatizado. O ser não desva­
neceu; mas em primeiro lugar a essência, como relação simples a
si mesma, é ser; porém, em segundo lugar, o ser, conforme sua
determinação unilateral — de que seja mediato —, é rebaixado a
algo puramente negativo, a uma aparência. A essência, portanto, é
o ser enquanto aparecer em si mesmo.
O absoluto é a essência. Essa definição é a mesma que a defini­
ção de que o absoluto é o ser, enquanto o ser é igualmente a
relação simples a si mesmo; mas é ao mesmo tempo mais ele­
vada, porque a essência é o ser que foi para dentro de si, isto é,
sua relação simples a si é essa relação posta como a negação do
negativo, como mediação de si em si consigo mesmo.
Quando se determina o absoluto como essência, a negatividade
é com freqüência tomada somente no sentido de uma abstra­
ção de todos os predicados determinados. Esse agir negativo
— o abstrair — incide então fora da essência, e a essência
mesma, desse modo, é apenas como um resultado, sem essa
111
sua premissa — o caput mortuum da abstração. Mas porque £
negatividade não é exterior ao ser, e sim sua própria dialética,
então é sua verdade: a essência, enquanto é o ser que foi para-
-dentro-de-si, ou essente dentro-de-si. Aquela reflexão, seu aparecei
dentro de si mesmo, constitui sua diferença em relação ao sei
imediato, e é a determinação própria da essência.
Adendo: Quando falamos da essência, distinguimos dela o ser enquanto
imediato que consideramos, com vista à essência, como uma mera aparência.
Ora, essa aparência não é nada absolutamente; não é um nada, mas o ser en­
quanto suprassumido. O ponto de vista da essência é, em geral o ponto de
vista da reflexão. O termo “reflexão” é empregado inicialmente [a propósito]
da luz, quando em sua propagação em linha reta encontra uma superfície
espelhante e é por ela relançada para trás. Temos pois aqui um duplo [elemen­
to]: primeiro, um imediato, um essente; e, segundo, o mesmo enquanto me­
diatizado ou posto. Ora, é esse exatamente o caso quando refletimos ou (como
também se costuma dizer) repensamos \naclidenken\ sobre um objeto, enquanto
aqui não é mesmo o objeto que conta em sua imediatez, mas queremos co-
nhecê-lo enquanto mediatizado. Costuma-se também compreender a tarefa
ou a meta da filosofia de modo que é a essência das coisas que deve ser co­
nhecida; e, com isso, só se entende justamente que as coisas não se devem
deixar em sua imediatez, e sim demonstrar como mediatizadas ou fundadas por
um Outro. O ser imediato das coisas é aqui, de certo modo, como se fosse
uma casca ou como uma cortina, atrás da qual a essência está escondida.
Além do mais, quando se diz: “Todas as coisas têm uma essência”, com isso
se declara que elas não são verdadeiramente aquilo como imediatamente se
mostram. Também não está tudo resolvido com o simples circular de uma
qualidade para outra, do qualitativo para o quantitativo, e vice-versa; mas há
nas coisas algo permanente, e este é, antes de tudo, a essência. Agora, quanto
a outro significado e emprego da categoria da essência, primeiro pode-se
lembrar que em alemão, no caso do verbo auxiliar “sein” [ser] para designa­
ção do passado, empregamos o termo Wesen [essência], enquanto nos referi­
mos ao ser pretérito como gewesen [sido]. Essa irregularidade do uso lingüístico
funda-se em uma intuição correta da relação do ser para com a essência,
enquanto decerto podemos considerar a essência como o ser que-passou.
Ainda a esse propósito, só resta a notar que aquilo que passou nem por isso
é negado abstratamente, mas apenas suprassumido; e por isso, ao mesmo
tempo, conservado. Dizemos, por exemplo: César esteve na Gália; com isso só
se nega a imediatez do que foi dito aqui sobre César, mas não sua estada na
Gália, em geral. Com efeito, é isso justamente que forma o conteúdo do
enunciado, cujo conteúdo, aliás, aqui se representa como suprassumido.
223
Quando na vida ordinária se fala de essência, essa, muitas vezes, só
tem a significação de um concentrado ou de uma suma, e assim se fala de
“Zeitungswesen” [a imprensa], de “Postwesen” [o correio], de “Stenuer-
wesen” [o fisco] etc. Com isso, entende-se apenas que essas coisas não
devem ser tomadas isoladamente em sua imediatez, mas como um com­
plexo, e talvez, além disso, em suas diversas relações também. Nesse uso
do idioma, está assim contido aproximadamente o que para nós se mostrou
como a essência. Fala-se também de essência finita, e chama-se o homem,
uma essência finita. Entretanto, quando se fala de essência, está-se pro­
priamente para além da finitude, e essa designação do homem é, nessa
medida, incorreta. Quando se diz, além disso: “Há uma essência supre­
ma”, e com isso se deve designar Deus, duas coisas são a notar a propó­
sito. A saber: em primeiro lugar, a expressão “há” é uma expressão que
indica o finito, e dizemos, por exemplo, “há tantos e tantos planetas”, ou
“há plantas de tal natureza, e há plantas de tal [outra] natureza”. O que
“há”, desse modo, é portanto algo, fora e ao lado do qual há também
ainda algo outro. Deus, porém, como o simplesmente infinito, não é um
tal que absolutamente exista, e fora e ao lado do qual também existam
outras essências. Ao que fora de Deus ainda há, não lhe cabe, em sua
separação de Deus, nenhuma essencialidade; mas antes há de considerar-
-se, no seu isolamento, como algo em si mesmo carente-de-consistência
e de essência; como uma simples aparência. Ora, em segundo lugar, está
aqui implicado que se deve declarar insuficiente falar de Deus simples­
mente como “a mais alta essência”. A categoria de quantidade de que se
faz aplicação aqui só encontra de fato seu lugar no âmbito do finito.
Dizemos, por exemplo: “E esta a mais alta montanha da terra”; e temos,
nesse caso, a representação que fora dessa montanha mais alta há também
ainda outras montanhas que igualmente são altas. O mesmo ocorre quan­
do dizemos de alguém que é o homem mais rico ou o mais douto do seu
país. Deus porém não é simplesmente uma essência, nem tampouco sim­
plesmente a mais alta-, mas, antes, Deus é a essência. A propósito, há que
lembrar também que, embora essa apreensão de Deus forme um grau
importante e necessário no desenvolvimento da consciência religiosa, a
profundeza da representação cristã de Deus não se esgota de modo al­
gum, por meio dela. Se consideramos Deus só enquanto a essência pura
e simples, e nisso ficamos, então só o conhecemos como a onipotência
irresistível, ou, dito de outro modo, como o Senhor. Ora, o temor do Se­
nhor é decerto o começo — mas só mesmo o começo — da sabedoria.
Primeiro, foi na religião judaica, e depois na maometana, que Deus foi
apreendido como o Senhor, e essencialmente só como o Senhor. O defeito
dessas religiões consiste, em geral, em que nelas o finito não alcança o
224
[reconhecimento de] seu direito; [enquanto] a característica das religiões
pagãs, e por isso ao mesmo tempo politeístas, é que esse finito se sustenta
por si mesmo (quer como um ser-da-natureza, quer como um finito do
espírito). Além do mais, muitas vezes ocorreu afirmar-se que Deus, como
a essência suprema, não pudesse ser conhecido. Em geral, é esse o ponto
de vista do Iluminismo moderno e, mais exatamente, do entendimento
abstrato que se contenta com dizer: “II y a un être suprême” [há um ser
supremo] e não vai mais longe. Quando se falou assim, e Deus é consi­
derado só como a mais alta essência do além, [é que] se tem diante de si
o mundo em sua imediatez, e se esquece que a essência é justamente a
suprassunção de todo o imediato. Deus, enquanto a essência abstrata que
está no além, fora da qual incidem, portanto, a diferença e a determinidade,
é de fato um mero nome, um simples caput mortuum do entendimento
abstrativo. O verdadeiro conhecimento de Deus começa com saber que as
coisas, em seu ser imediato, não têm verdade alguma.
Não somente em relação a Deus, mas também nas outras relações,
acontece muitas vezes empregar-se a categoria da essência de modo abs­
trato, e então, na consideração das coisas, fixar sua essência como algo
indiferente para o conteúdo determinado de sua manifestação, e consis­
tente para si. Costuma-se especialmente dizer, assim, que nos homens o
que importa é apenas sua essência, e não seu agir e seu proceder. Sem
dúvida, há nisso algo correto, [a saber]: o que o homem faz, deve consi­
derar-se não em sua imediatez, mas somente enquanto mediatizado por
seu interior, e enquanto manifestação de seu interior. Somente, não se
deve aqui desconhecer que a essência, e também o interior, só se verifi­
cam por se produzirem em sua manifestação; a passo que no fundo da­
quela apelação feita pelos homens, do conteúdo de seu agir à essência
[que seria] diferente, costuma só haver a intenção de fazer valer sua mera
subjetividade, e de furtar-se ao que é válido em si e para si.
§ 1 13
Na essência, a relação para consigo é a forma da Identidade, da
ref'exão-sobre-sr, que entrou aqui no lugar da imediatez do ser. As
duas são as mesmas abstrações da relação para consigo.
A carência-de-pensamento [própria] da sensibilidade, [que
consiste] em tomar tudo o que é limitado e finito como um
essente, passa para a obstinação do entendimento [que insiste]
em apreendê-lo como algo idêntico consigo, que não se contradiz
em si mesmo.
225
§ 114
Essa identidade, enquanto proveniente do ser, parece, primei­
ro, afetada unicamente pelas determinações do ser, e referida a ele
como a algo exterior. Se o ser é tomado assim, separado da essência,
chama-se então o inessencial. Mas a essência é [um] ser-dentro-de-si,
é essencial, [e] só enquanto tem o seu negativo nela mesma, tem
nela mesma a relação a Outro, a mediação.
Tem portanto, dentro de si, o inessencial como sua própria
aparência. Mas como o diferenciar está contido no aparecer ou [no]
mediatizar, e contudo o diferenciado, na [sua] diferença para com
a identidade de onde provém, e na qual não é, ou reside como
aparência, ele mesmo conserva a forma da identidade; assim, o
inessencial está no modo da imediatez, que se refere a si mesma,
ou [no modo] do ser. A esfera da essência torna-se, por isso, uma
combinação ainda imperfeita da imediatez e da mediação. Nela tudo
está posto de modo a referir-se a si e, ao mesmo tempo, a ser
ultrapassado — como um ser da reflexão, um ser em que um Outro
aparece e que aparece em um Outro. Por conseguinte, é a esfera
também da contradição posta; contradição que na esfera do ser é
somente em si.
No desenvolvimento da essência, porque o conceito, [que é]
um só, é em tudo o substancial, apresentam-se as mesmas
determinações que no desenvolvimento do ser [encontramos];
porém em uma forma refletida. Assim, em vez do ser e do
nada, aparecem [agora] as formas do positivo e do negativo; o
primeiro, correspondendo antes de tudo ao ser carente-de-opo-
sição, enquanto identidade-, e o segundo, desenvolvido (apare­
cendo dentro de si) como a diferença. Além disso, [aparece] o vir-
-a-ser enquanto ele mesmo é fundamento do ser-aí' o qual, en­
quanto refletido sobre o fundamento, é existência etc. Esta par­
te, (a mais difícil) da Lógica, contém principalmente as cate­
gorias da metafísica e das ciências em geral — enquanto
[são] produções do entendimento reflexivo, que admite as
diferenças como autôtiomas, e ao mesmo tempo põe também
sua relatividade; mas que só liga as duas por um também:
uma ao lado, ou depois, da outra; e não reúne esses pensa­
mentos, não os unifica no conceito.
226
A
A ESSÊNCIA COMO FUNDAMENTO DA EXISTÊNCIA

a) As puras determinações-da-reflexão
1 — Identidade

§ 115
A essência aparece nela mesma, ou seja, é reflexão pura; assim
é apenas relação para consigo — não enquanto imediata, mas en­
quanto [relação] refletida: identidade consigo.
Identidadeformal ou identidade de entendimento é essa identida­
de enquanto se permanece fixo nela, e se abstrai da diferen­
ça. Ou melhor: a abstração é o pôr dessa identidade formal,
a transformação de algo, que é em si concreto, nessa forma
da simplicidade — ou porque se põe de lado uma parte do
multiforme que está presente no concreto (mediante o que
se chama “analisar”) e se destaca somente um desses multi­
formes, ou porque, com a exclusão de sua diversidade, as deter-
minidades multiformes se concentram em uma só.
227
A identidade unida com o absoluto, como sujeito de uma
proposição, soa assim “O absoluto é o idêntico consigo m es­
m o”. Por verdadeira que seja esta proposição, [ainda] assim
é duvidoso se ela é “visada” em sua verdade; por isso, é incom­
pleta, pelo menos em sua expressão, já que está por decidir se
é identidade abstrata do entendimento, isto é, em oposição às
outras determinações da essência; ou se é a identidade enquan­
to concreta em si, que é “visada”. Assim essa identidade, tal
como vai mostrar-se, é primeiro o fundamento, e depois, em
mais alta verdade, o conceito. Tam bém o próprio termo abso­
luto muitas vezes não tem significação mais ampla que a de
abstrato; assim, espaço absoluto, tem po absoluto não signifi­
cam mais que o espaço abstrato e o tem po abstrato.
As determinações da essência, tomadas como determinações es­
senciais, tornam-se predicados de um sujeito pressuposto; o qual,
por serem elas essenciais, é tudo. As proposições que por isso
surgem foram enunciadas como as leis universais do pensar. Assim
a proposição da identidade soa “Tudo é idêntico consigo”; A=A;
e, negativamente: A não pode, ao mesmo tempo, ser A e não-
A. Essa proposição, em lugar de ser uma verdadeira lei-do-pen-
sar, não é outra coisa que a lei do entendimento abstrato. A forma
da proposição já a contradiz, ela mesma, porque uma proposição
também promete uma diferença entre sujeito e predicado; en­
quanto esta não fornece o que sua forma exige. Mas, sobretudo,
essa lei é suprassumida pelas chamadas leis-de-pensamento sub­
seqüentes, que erigem em leis o contrário dessa lei.
Caso se afirme que essa proposição não pode ser provada, mas
que cada consciência procede de acordo com ela, e segundo a
experiência lhe dá sua adesão logo que a apreende, então a essa
pretensa experiência da Escola deve-se opor a experiência uni­
versal de que nenhuma consciência pensa nem tem represen­
tações etc., nem fala, segundo essa lei; e que nenhum a existên­
cia, seja de que espécie for, existe segundo ela. O falar confor­
me essa suposta lei da verdade (um planeta é — um planeta; o
m agnetismo é — o magnetismo; o espírito é — um espírito)
passa, com razão, por uma tolice: essa, sim, é uma experiência
universal. A Escola na qual, somente, têm validade tais leis —

>28
junto com sua lógica que as expõe seriamente — há muito que
perdeu o crédito perante o bom senso e perante a razão.
Adendo: A identidade é, antes de tudo, novamente o mesmo que antes
tínhamos como ser; mas enquanto veio-a-ser mediante a suprassunção da
determinidade imediata: é, portanto, o ser como idealidade. E da maior
importância entender-se bem sobre a verdadeira significação da identidade.
Para isso, é preciso, antes de tudo, que não seja apreendida simplesmente
como identidade abstrata, isto é, como identidade com exclusão da diferença.
É este o ponto em que toda má filosofia se distingue da que unicamente me­
rece o nome de filosofia. A identidade em sua verdade, enquanto idealidade
do imediatamente essente, é uma alta determinação, tanto para nossa cons­
ciência religiosa como também para qualquer pensamento e consciência em
geral. Pode-se dizer que o verdadeiro saber sobre Deus começa por sabê-lo
como identidade — como absoluta identidade; no que está implicado, ao
mesmo tempo, que todo poder e toda a magnificência do mundo colapsam
diante de Deus e só podem subsistir como o aparecer do seu poder e de sua
magnificência. O mesmo se passa também com a identidade, enquanto cons­
ciência de si mesmo, pela qual o homem se distingue da natureza em geral,
e mais precisamente do animal; este último não chega a apreender-se como
Eu; isto é, como pura unidade de si em si mesmo. Aliás, no que concerne
à significação da identidade em relação com o pensar, convém aqui, antes de
mais nada, não confundir a identidade verdadeira — que contém em si o ser
e suas determinações como suprassumidas — com a identidade abstrata, me­
ramente formal. Todas essas censuras — de unilateralidade, de rigidez, de ca­
rência de conteúdo etc., que muitas vezes se fazem ao pensar, sobretudo do
ponto de vista da sensação e da intuição imediata — têm seu fundamento
na pressuposição distorcida de que a atividade do pensar seria apenas o
abstrato pôr-o-idêntico; e é a própria lógica formal que confirma essa pressu­
posição, mediante o estabelecimento da pretensa lei suprema do pensamento,
explicada no parágrafo antecedente. Se o pensar nada mais fosse que aquela
identidade abstrata, deveria ser declarado a ocupação mais supérflua e mais
enfadonha. Decerto o conceito e, em seguida, a idéia são idênticos consigo
mesmos; mas só enquanto contêm em si mesmos, ao mesmo tempo, a diferença.

2 — A diferença
§ 116
A essência é somente pura identidade e aparência em si mes­
ma, enquanto é a negatividade que se refere a si mesma, e por isso
229
[o] repelir-se de si mesma; contém assim essencialmente a deter­
minação da diferença.
O ser-outro aqui não é mais o qualitativo, a determinidade, o limi­
te; mas enquanto [está] na essência, que a si se refere, é ao mesmo
tempo a negação como relação, diferença, ser-posto, ser-mediatizado.
Adendo: Quando se pergunta: “Como a identidade chega à diferença?”
nesta pergunta está a pressuposição de que a identidade enquanto sim­
ples, isto é, enquanto identidade abstrata, seria algo para si, e também
que a diferença seria algo outro, igualmente para si. Por essa pressuposi­
ção, contudo, torna-se impossível a resposta à questão levantada; porque,
se a identidade é considerada como diferente da diferença, tem-se de fato
com isso simplesmente a diferença, e por conseguinte não é possível
demonstrar o processo que leva à diferença; porque aquilo, donde se deve
partir, não está de modo algum presente, para quem pergunta o “como”
do processo. Por isso, esta pergunta, vista mais de perto, mostra-se de
todo carente-de-pensamento. Devia-se pôr antes outra questão a quem a
levanta: o que ele entende por identidade? Assim resultaria que, com isso,
não entende justamente nada, e que a identidade é para ele puramente
um nome vazio. Aliás, como vimos, a identidade é certamente algo nega­
tivo; contudo, não é o nada vazio e abstrato em geral, mas é a negação do
ser e de suas determinações. Porém, como tal, a identidade é ao mesmo
tempo relação; e na verdade relação negativa para consigo mesma, ou
diferença dela consigo mesma.
§ 117
A diferença é: 1) Diferença imediata — a diversidade -— em que os
diferentes são cada um para si o que ele é, indiferente quanto a sua
relação para com o Outro; relação que portanto lhe é exterior. Por
motivo da indiferença dos diferentes para com sua diferença, essa recai
fora deles, em um terceiro [termo]: no que compara. Essa diferença
exterior é, como identidade dos [termos] relacionados, a igualdade-, e,
como não-identidade deles, é a desigualdade.
O entendimento faz essas determinações mesmas recaírem
fora uma da outra; de modo que, embora a comparação tenha
um só e o mesmo substrato para a igualdade e a desigualda­
de, deve haver nela esses diferentes lados e aspectos; entre­
tanto, a igualdade para si é apenas o primeiro — a identidade
— e a desigualdade para si é a diferença.
230
A diversidade foi igualmente convertida em uma proposição,
a saber: “que tudo é diverso”, ou “que não há duas coisas
que sejam perfeitamente iguais uma à outra”. Aqui, dá-se a
tudo o predicado oposto à identidade que lhe fora atribuída na
primeira proposição; e assim lhe é dada uma lei que contradiz
a primeira. Contudo, na medida em que a diversidade só
pertenceria à comparação exterior, algo para si mesmo só deve
ser idêntico consigo, e desse modo a segunda proposição não
contradiz a primeira. Mas então a diversidade também não
pertence ao Algo ou ao Tudo; não constitui uma determinação
essencial desse sujeito; essa segunda proposição, desta manei­
ra, não pode ser absolutamente enunciada. Mas, se conforme
a proposição o Algo mesmo é diverso, ele o é por sua própria
determinidade. Contudo, assim não é mais visada a diversi­
dade como tal, mas a diferença determinada. Esse é também
o sentido da proposição de Leibniz [“Nunca há na natureza
dois seres perfeitamente iguais, em que não seja possível
encontrar uma diferença interna” (Monadologia, § 9).].
Adendo: Quando o entendimento se aplica à consideração da identi­
dade, de fato já está para além dela; o que tem diante de si é a diferença
ná figura da simples diversidade. E que, se dizemos conforme a suposta
lei-do-pensar da identidade: “o mar é o mar, o ar é o ar, a lua é a lua” etc.,
esses objetos para nós contam como mutuamente indiferentes, e assim
não é a identidade mas a diferença, que temos diante de nós. Porém não
ficamos nisso -— em considerar as coisas simplesmente como diversas —
mas as comparamos entre elas, e desse modo obtemos as determinações da
igualdade e da desigualdade. A tarefa das ciências finitas consiste, em sua
maior parte, na aplicação dessas determinações; e, quando se fala do tra­
tamento científico, costuma-se hoje entender com isso, de preferência, o
[método] que tem em vista comparar uns com os outros os objetos trazi­
dos a exame. Não há que desconhecer que, por esse caminho, se conse­
guiram muitos resultados importantíssimos; e a esse respeito há que re­
cordar principalmente os trabalhos consideráveis da época atual no domí­
nio da anatomia comparada e no estudo comparativo das línguas. Entre­
tanto, a propósito, não há somente a notar que se foi longe demais, quan­
do se acreditou que esse procedimento comparativo podia com igual êxito
ser aplicado a todos os domínios do conhecer. Mas, além disso, há que
acentuar particularmente que, por meio do simples comparar, a exigência

231
científica não pode ainda ser satisfeita; e que os resultados, do tipo acima
mencionado, têm de considerar-se como trabalhos preparatórios (decerto
indispensáveis) para o conhecer verdadeiramente conceituante.
Aliás, na medida em que no comparar se trata de reduzir à identidade
as diferenças dadas, deve-se considerar a matemática como a ciência na qual
esse fim é alcançado mais perfeitamente, e, na verdade, por motivo de que
a diferença quantitativa é apenas a diferença completamente exterior. Assim,
por exemplo, um triângulo e um quadrado, que são qualitativamente diver­
sos, enquanto se abstrai dessa diferença qualitativa, são igualados um ao
outro segundo sua grandeza. Que a matemática não seja a invejar por essa
prerrogativa, nem da parte das ciências empíricas, nem da parte da filosofia,
já se tratou anteriormente (§ 99, Adendo); e isso ressalta aliás do que antes se
notou quanto à mera identidade-de-entendimento.
Conta-se que um dia Leibniz tinha enunciado junto à Corte a propo­
sição da diversidade, e os Cavalheiros e as Damas de honra, que passea­
vam ao redor do jardim, se esforçavam por encontrar duas folhas que não
se pudessem distinguir uma da outra, para refutar, por sua apresentação,
a lei-do-pensar do filósofo. Eis aí uma maneira cômoda, sem dúvida, e
ainda apreciada nos dias de hoje, de ocupar-se com a metafísica. Contudo,
há que notar, a propósito da proposição de Leibniz, que a diferença jus­
tamente não tem de ser apreendida simplesmente como diversidade exte­
rior e indiferente, mas como diferença em si; e que por isso compete às
coisas, nelas mesmas, serem diferentes.
§ 118
A igualdade é uma identidade somente de [termos] tais que
não são os mesmos, não são idênticos entre si; e a desigualdade é a
relação dos desiguais. Assim, as duas não incidem indiferentemente
em diversos lados ou aspectos, uma fora da outra, mas uma é um
aparecer na outra. A diversidade é, pois, diferença da reflexão ou
diferença em si mesma, diferença determinada.
Adendo: Enquanto os [termos] simplesmente diversos se mostram como
indiferentes entre si, ao contrário a igualdade e a desigualdade são um par
de determinações que se referem pura e simplesmente uma à outra; e não
se pode pensar uma delas sem a outra. Essa progressão da mera diversi­
dade à oposição se encontra já também na consciência ordinária, na medi­
da em que admitimos que a comparação só tem um sentido na pressupo­
sição de uma diferença dada; e, inversamente, também a diferenciação só
[tem sentido] na pressuposição de uma igualdade dada. Por conseguinte,

232
quando se põe como tarefa indicar uma diferença, não se atribui grande
perspicácia a quem só diferencia, um do outro, objetos cuja diferença é
imediatamente visível (como por exemplo uma caneta de um camelo).
De outro lado, dir-se-á igualmente que não foi longe na comparação quem
só sabe comparar coisas que estão próximas umas das outras, uma faia
com um carvalho, um templo com uma igreja. Exigimos, portanto, na
diferença a identidade, e na identidade a diferença. Não obstante, com
muita freqüência sucede no domínio das ciências empíricas que uma dessas
duas determinações faça esquecer a outra, e que o interesse científico
uma vez seja colocado só na redução das diferenças dadas à identidade,
e outra vez, de novo unilateralmente, na descoberta de novas diferenças.
É esse especialmente o caso na ciência da natureza. Aqui, assume-se
primeiro por tarefa descobrir novas, e sempre mais novas, matérias, forças,
novos gêneros, espécies etc., ou, segundo outra expressão, mostrar como
compostos, corpos que até então passavam por simples. Os físicos e quí­
micos modernos riem facilmente dos antigos que se davam por satisfeitos
com quatro elementos, que nem sequer eram simples. Mas também, de
outro lado, se fixa de novo o olhar na simples identidade, e por conse­
guinte considera-se, por exemplo, não só a eletricidade e o quimismo
como essencialmente o mesmo, senão também até o processo orgânico da
digestão e assimilação como um mero processo químico. Como foi notado
acima (§ 103, Adendo), se a filosofia mais recente se designou mais de uma
vez ironicamente como filosofia-da-identidade, é justamente a fdosofía, c
de fato antes de tudo a lógica especulativa, que mostra a nulidade da
simples identidade-de-entendimento, a qual abstrai da diferença; e con­
tudo também exige que não se deixe ficar na mera diversidade, mas que
se reconheça a unidade interior de tudo que existe.
§ U9
2) A diferença é em si a diferença essencial, o positivo e o negati­
vo, assim que o positivo de tal modo é a relação idêntica para consigo,
que não é o negativo; e este de tal modo é o diferente para si, que
não é o positivo. Sendo cada um para si, enquanto não é o Outro,
aparece cada um no Outro, e só é na medida que o Outro é. A
diferença da essência é por isso a oposição, segundo a qual o diferente
não tem frente a si o Outro em geral, mas o seu Outro, isto é, cada
um tem sua própria determinação só na sua relação ao Outro; só é
refletido sobre si enquanto é refletido no Outro, e o Outro, do
mesmo modo: cada um é assim seu Outro do Outro.
233
A diferença em si, dá a proposição: “Tudo é um essencialmente
diferente”, ou, como também foi expressa: “De dois predicados
opostos só um convém ao Algo”, e “não há um terceiro”. Essa pro­
posição da oposição contradiz, da maneira mais expressa, a propo­
sição da identidade, enquanto Algo deve ser, segundo uma, so­
mente a relação comigo, mas, segundo a outra, deve ser um oposto,
a relação para com seu outro. E a carência-de-pensamento, peculiar

da abstração: pôr lado a lado, como leis, essas duas proposições


contraditórias, sem sequer compará-las. A proposição do terceiro
excluído é a proposição do entendimento determinado, que quer
afastar de si a contradição e, ao fazer isso, a comete. A deve ser
ou +A ou -A; assim já está enunciado o terceiro, o A que nem é
+ nem -, e que, igualmente, é posto tanto como +A quanto como
-A. Se +W significa seis milhas na direção ao oeste, e -W signi­
fica seis milhas na direção ao leste, e se suprimirem o + e o -,
então permanecem as seis milhas, de caminho ou de espaço, o
que eram; sem oposição ou com ela. Mesmo os simples “mais”
ou “menos” do número ou da direção abstrata têm, se se quer,
o zero por seu terceiro. Aliás não deve ser posto em contestação
que a vazia oposição-de-entendimento, de + e -, não tenha tam­
bém seu lugar entre tais abstrações como número, direção etc.
Na doutrina dos conceitos contraditórios, um dos conceitos
significa, por exemplo, azul (em tal doutrina, algo como a
representação sensível de uma cor se chama também concei­
to), o outro significa não-azul, de modo que este Outro não
é algo afirmativo, como seria, digamos, o amarelo; mas so­
mente deve afirmar-se como sendo o abstratamente-negati-
vo. Que o negativo seja também, nele mesmo, positivo, ver
o parágrafo seguinte; o que já está implicado também na
determinação de que o oposto a um Outro é o seu Outro.
Esse vazio da oposição de conceitos que se dizem contradi­
tórios tinha já sua plena exposição na, por assim dizer, gran­
diosa expressão de uma lei universal pela qual, de todos os
predicados assim opostos, um pertence a cada coisa, e o outro,
não; de sorte que o espírito seria branco ou não-branco,
amarelo ou não-amarelo etc., até o infinito.
Quando se esquece que identidade e oposição são opostas
elas mesmas, a proposição da oposição é também tomada
234
pela proposição da identidade, na forma da proposição da
contradição; e um conceito ao qual, das duas características
que se contradizem uma à outra, nenhuma delas convém
(ver acima), ou convêm as duas, é declarado logicamente
falso; como, por exemplo, um círculo quadrado. Embora tan­
to um círculo poligonal como um arco-de-círculo retilíneo sejam
contrários a essa proposição, os geômetros não têm nenhum
escrúpulo em considerar e tratar o círculo como um polígono de
lados retilíneos. Ora, uma coisa como um círculo (sua simples
determinidade) ainda não é um conceito. No conceito do círculo,
centro e periferia são igualmente essenciais, as duas caracterís­
ticas lhe competem; e contudo periferia e centro se opõem e
contradizem mutuamente.
A representação da polaridade, tão valorizada na física, contém
em si a determinação mais justa da oposição; mas, se a física, no
que respeita aos pensamentos, se atém à lógica ordinária, ficaria
facilmente assustada se para si desenvolvesse a polaridade, e
chegasse aos pensamentos que aí estão implicados.
Adendo 1: O positivo é, de novo, a identidade, mas na sua verdade
mais alta, enquanto relação idêntica a si mesma; e, ao mesmo tempo, de
modo que não é o negativo. O negativo para si não é outra coisa que a
diferença mesma. O idêntico como tal é, antes de tudo, o carente-de-
-determinação; o positivo, ao contrário, é o idêntico consigo mesmo, mas
enquanto determinado frente a um Outro; e o negativo é a diferença,
como tal, na determinação de não ser identidade. E isso a diferença da
diferença nela mesma. No positivo e negativo acredita-se ter uma dife­
rença absoluta. Contudo, os dois são em si o mesmo, e por isso se poderia
chamar também o positivo, negativo, e vice-versa igualmente: o negativo,
positivo. Também desse modo, bens e dívidas não são duas espécies de
bens particulares subsistentes para si. O mesmo que em um [indivíduo]
como devedor é um negativo é, no outro como credor, um positivo. O
mesmo se dá com um caminho para o leste, que é ao mesmo tempo um
caminho para o oeste. Positivo e negativo são portanto essencialmente
condicionados um pelo outro, e só [existem] em sua relação recíproca. O
pólo norte no ímã não pode ser sem o pólo sul, e o pólo sul não sem o
pólo norte. Dividindo-se um ímã, não se tem em um pedaço o pólo norte
e no outro o pólo sul. Também na eletricidade: a eletricidade positiva e
a negativa não são dois fluidos diversos, subsistentes para si. Na oposição,

235
o diferente em geral não tem frente a si somente um Outro, mas o seu
Outro. A consciência ordinária considera os diferentes como indiferentes
um para com o outro. Diz-se assim: Eu sou um homem, e ao meu redor
existe ar, água, animais e o Outro, em geral. Tudo recai fora um do outro.
Ao contrário, o fim da filosofia é banir a indiferença e reconhecer a ne­
cessidade [Notwendigkeit] das coisas, de sorte que o Outro apareça como
defrontando o seu Outro. Assim, por exemplo, a natureza inorgânica não é
a considerar simplesmente como algo outro que o orgânico, mas como o seu
Outro necessário. As duas estão numa relação essencial recíproca, e uma das
duas é somente enquanto exclui de si o Outro e justamente desse modo se
relaciona com ele. Igualmente, a natureza não é tampouco sem o espírito, e
este não é sem a natureza. Em geral, é um passo importante [que se dá]
quando no pensar se deixou dizer: “Ora, ainda é possível outra coisa”. Ao
falar assim, ainda se está preso ao contingente, quando ao contrário, como foi
antes notado, o verdadeiro pensar é um pensar da necessidade. Quando na
ciência natural recente se chegou a reconhecer que a oposição, percebida
inicialmente no magnetismo como polaridade, atravessa a natureza toda,
que é uma lei universal da natureza, isto deve ser considerado, sem dú­
vida, como um progresso essencial da ciência. Somente importa antes de
tudo que não se faça sem mais, ao lado da oposição, valer de novo tam­
bém a simples diversidade. No entanto, considera-se assim, por exemplo,
uma vez —- com razão — as cores como se contrapondo em oposição
polar, umas às outras (como as chamadas cores complementares); mas
logo, outra vez, são também consideradas como a diferença indiferente e
puramente quantitativa — do vermelho, do amarelo, do azul etc.
Adendo 2: Em vez de falar da proposição do terceiro excluído (que é
a proposição do entendimento abstrato), ter-se-ia antes de dizer: “Tudo
é oposto”. Não há de fato em lugar algum nem no céu, nem na terra, nem
no mundo espiritual, nem no natural, um tão abstrato ou-ou tal como o
entendimento afirma. Tudo, seja o que for, é um concreto; por conse­
guinte, é em si mesmo algo diferente e oposto. A finitude das coisas
consiste então em que ser-aí imediato não corresponde ao que são em si.
Assim, por exemplo, na natureza inorgânica, o ácido é em si, ao mesmo
tempo, a base; quer dizer, seu ser é pura e simplesmente isto: ser referido
ao seu Outro. Mas, por isso, o ácido também não é o que persiste em
repouso na oposição, mas tende a pôr-se tal como é em si. Em geral, o que
move o mundo é a contradição; e é ridículo dizer que a contradição não
se deixa pensar. O que há de correto nessa afirmação é somente que não
é possível dar-se por satisfeito na contradição, e que ela se suprassume
por si mesma. Mas a contradição suprassumida não é a identidade abstra­

236
ta, pois essa, em si mesma, é apenas um dos lados da contradição. O
resultado mais próximo da oposição posta como contradição é o fundamen­
to,, que em si contém tanto a identidade quanto também a diferença,
como suprassumidas e rebaixadas a meros momentos ideais.
§ 120
O positivo é esse diverso, que deve ser para si e, ao mesmo
tempo, não-indiferente à sua relação para com o seu Outro. O nega­
tivo deve ser também autônomo — a relação negativa para consigo,
serpara si — mas ao mesmo tempo, enquanto pura e simplesmente
negativo, deve ter essa sua relação para consigo — o seu positivo
— somente no Outro. Os dois são essa contradição posta; os dois
são o mesmo, em si. Os dois são também para si, enquanto cada um
é o suprassumir do Outro e de si mesmo. Assim, os dois vão a
fundo. Ou seja: a diferença essencial é imediatamente — enquanto
diferença em si e para si — apenas diferença de si consigo mesma:
contém portanto o idêntico; assim, à totalidade da diferença essente
em si e para si, pertence, pois, tanto a própria diferença quanto a
identidade. Enquanto diferença que se refere a si mesma, já foi ex­
pressa igualmente como aquilo que é idêntico a si mesmo; e o
oposto é, em geral, o que dentro de si contém o Uno e o seu Outro,
a si mesmo e o seu oposto. O ser-dentro-de-si da essência, assim
determinado, é o fundamento.
3 — 0 fundamento
§ 121
O fundamento é a unidade da identidade e da diferença; a ver­
dade daquilo como se produziu a diferença e a identidade: a refle-
xão-sobre-si, tanto como a reflexão-sobre-o-outro; e vice-versa. E a
°ssência posta como totalidade.
A proposição do fundamento enuncia: “Tudo tem seu funda­
mento suficiente”, isto é, a essencialidade verdadeira de Algo
não é a determinação de Algo como idêntico consigo; nem
como diverso, nem como simplesmente positivo ou como
simplesmente negativo; mas é [o fato de] que tem o seu ser
em um Outro, o qual — enquanto é o idêntico-a-si do pri­
23 7
meiro — é sua essência. E esta não é reflexão abstrata sobre
si, mas sobre Outro. O fundamento é a essência em si essente,
que é essencialmente fundamento, e é fundamento somente
enquanto é fundamento de Algo, de um Outro.
Adendo: Quando se diz do fundamento que é a unidade da identidade
e da diferença, não se deve entender sob essa unidade a identidade abs­
trata; aliás teríamos apenas uma outra denominação, [e] ao contrário, se­
gundo o pensamento, entender somente a própria identidade-do-entendi-
mento reconhecida como não-verdadeira. Por esse motivo, para evitar um
mal-entendido, pode-se dizer também que o fundamento não é só a uni­
dade, mas é também, igualmente, a diferença da identidade e da diferença.
O fundamento, que primeiro resultou para nós como a suprassunção da
contradição, aparece assim como uma nova contradição. Mas, como tal,
não é o que persiste em repouso, senão antes um repelir-se de si mesmo.
O fundamento é apenas fundamento enquanto funda; mas o que derivou
do fundamento é ele próprio; e aí reside o formalismo do fundamento. O
fundado e o fundamento são um só e o mesmo conteúdo, e a diferença
entre os dois é a simples diferença-de-forma da relação simples consigo
mesmo, e da mediação ou do ser-posto. Quando indagamos sobre os fun­
damentos das coisas, é este, em geral, o ponto de vista da reflexão já antes
mencionado (§ 112. Adendo). Queremos ver a coisa, por assim dizer, em
dobro; uma vez em sua imediatez, e outra vez em seu fundamento, em
que não é mais imediata. E esse também o sentido simples da lei do
pensar — assim chamada — da razão [ou do fundamento] suficiente, pela
qual justamente se exprime que as coisas essencialmente têm de consi­
derar-se como mediatizadas. A lógica formal, aliás, dá um mau exemplo
às outras ciências, na colocação dessa lei-do-pensar; ao estabelecer que
elas não devem atribuir imediatamente validade ao seu conteúdo, quando
ela mesma estabelece essa lei-do-pensar sem deduzi-la e sem mostrar sua
mediação. Com o mesmo direito com que o lógico afirma que nossa facul-
dade-de-pensar é de tal modo constituída que deveríamos a propósito de
tudo indagar um fundamento, também o médico, ao lhe ser perguntado
por que um homem que cai n’água se afoga, poderia responder que o
homem é assim organizado que não pode viver debaixo d’água; e igual­
mente um jurista, quando lhe perguntam por que um criminoso é punido,
responder que a sociedade civil é constituída de tal modo que os crimes
não podem ficar impunes. Mas, mesmo abstraindo-se da exigência — a
ser feita à lógica — de [encontrar] uma fundamentação para a Iei-de-
-pensar do fundamento, ela tem pelo menos de responder a esta questão:

238
que se entende por fundamento? A explicação usual, de que o fundamento
c o que tem uma conseqüência, à primeira vista parece mais clara e mais
compreensível que a determinação-de-conceito acima indicada. Entretanto,
se for perguntado o que é a conseqüência, e se receber como resposta que
conseqüência é o que tem um fundamento, revelar-se-á que a clareza dessa
definição consiste em que nela se pressupõe o que em nós se produziu como
o resultado de um movimento anterior de pensamento. Ora, a tarefa da
lógica consiste justamente apenas em mostrar os pensamentos simplesmente
representados, e como tais não-conceituados e não-demonstrados, como de­
graus do pensar que a si mesmo se determina; e desse modo aqueles pen­
samentos são, ao mesmo tempo, conceituados e demonstrados.
Na vida ordinária, e igualmente nas ciências finitas, muitas vezes as
pessoas se servem dessa forma de reflexão, no intuito de cobrir, por seu
emprego, o que se passa exatamente com os objetos trazidos a exame. Ainda
que nada se tenha a objetar contra essa maneira de examinar — enquanto
aqui só se trata, por assim dizer, dos “bens de primeira necessidade” do
conhecimento -—, deve-se contudo notar, ao mesmo tempo, que esse [mé­
todo] não pode assegurar uma satisfação definitiva, nem do ponto de vista
teórico, nem do ponto de vista prático. Na verdade, o motivo disso é que o
fundamento não tem ainda nenhum conteúdo determinado, em si e para si,
e por isso, ao considerar as coisas como fundadas, nós [só] obtemos a
simples diferença-de-forma da imediatez e da mediação. Por exemplo:
vê-se um fenômeno elétrico, e indaga-se seu fundamento; se obtemos
como resposta, para isso, que a eletricidade é o fundamento desse fenô­
meno, é este o mesmo conteúdo que tínhamos diante de nós, imediata­
mente; apenas transposto para a forma de um interior.
Ora, o fundamento, além disso, não é apenas o que é simplesmente
idêntico consigo, mas também é diferente, e por esse motivo dá ensejo a
se indicar, para um só e o mesmo conteúdo, diversos fundamentos. E essa
diversidade de fundamentos segundo o conceito da diferença, avança em
seguida até a oposição sob a forma de fundamentos [razões] pro e contra
o mesmo conteúdo. Considerando por exemplo uma ação, mais precisa­
mente, digamos, um roubo, temos um conteúdo em que se podem distin­
guir muitos lados. Pelo roubo foi lesada uma propriedade; mas o ladrão
que estava passando necessidade teve também o meio para satisfação de
suas carências, e, aliás, pode ser que aquele que foi roubado não fizesse
um bom uso de sua propriedade. Decerto, é exato que a violação-da-
-propriedade, que aqui ocorreu, seja o ponto de vista decisivo ante o qual
os outros devem recuar; mas essa decisão não está implicada na lei-de-
-pensar do fundamento. Sem dúvida, na apreensão costumeira dessa lei-
-de-pensar, não se trata do fundamento em geral, mas do fundamento [ou

239
razão] suficiente, e pode-se acreditar, por esse motivo, que na ação citada
como exemplo os outros pontos de vista — fora da violação da proprieda­
de — que foram ainda sublinhados na ação tomada como exemplo sejam
também fundamentos [razões], mas que não são suficientes. Contudo
pode-se notar a respeito que, ao falar de um fundamento suficiente, esse
predicado ou é ocioso, ou é de tal natureza que por meio dele se vai além
da categoria de fundamento enquanto tal. Ocioso e tautológico é o
predicado, se por ele só se deve, em geral, exprimir a capacidade de
fundar — pois o fundamento só é fundamento enquanto possui essa ca­
pacidade. Se um soldado foge da batalha para salvar a vida, age assim, na
verdade, contra o dever; mas não se pode afirmar que a razão [o funda­
mento], que o determinou a agir desse modo, não era suficiente, pois aliás
teria permanecido no seu posto. Mas além disso pode-se dizer também
que, assim como, por um lado, todos os fundamentos são suficientes,
assim também, por outro lado, nenhum fundamento como tal é suficiente;
e isso porque — como acima já se notou — o fundamento não tem ainda um
conteúdo determinado em si e para si, e por isso não é auto-ativo e produ­
tivo. Dentro em pouco se produzirá diante de nós o conceito — como um
tal conteúdo determinado em si e para si e por isso auto-ativo —; e é do
conceito que se trata em Leibniz, quando fala do fundamento suficiente,
e insiste que se considerem as coisas sob esse ponto de vista. Leibniz
nisso tem em vista sobretudo a maneira puramente mecanicista — tão
apreciada por muitos hoje em dia — de apreender as coisas; que ele, com
razão, declara insuficiente. Assim, por exemplo, é uma apreensão pura­
mente mecanicista, quando o processo da circulação do sangue é simples­
mente reduzido à contração do coração; e são igualmente mecanicistas
aquelas teorias do direito penal que consideram como fim do castigo a
neutralização, a intimidação ou outras semelhantes razões exteriores. De
fato faz-se grande injustiça a Leibniz quando se acredita que ele se con­
tentava com uma coisa tão pobre como essa lei-do-pensar formal, do fun­
damento. A maneira de considerar [as coisas], que para ele era válida, era
diretamente o oposto daquele formalismo que, onde se trata de um co­
nhecer conceituante, se contenta com meros fundamentos. Leibniz opõe,
a esse respeito, causas eficientes e causas finais, umas às outras, e faz a
exigência de que não se fique nas primeiras, mas que se penetre até às
últimas. Segundo essa diferença, por exemplo, luz, calor, umidade seriam,
na verdade, a considerar como causas eficientes, mas não como causa final
do crescimento das plantas; essa causa final justamente não é outra coisa
que o conceito da planta mesma.
Pode-se ainda notar, neste ponto, que o permanecer em simples
fundamentos, notadamente no domínio do direito e da ética, é em geral

240
o ponto de vista e o princípio dos sofistas. Quando se fala de sofistica,
costuma-se com freqüência entender com isso simplesmente uma certa
maneira-de-considerar, pela qual se trata de perverter o justo e o verda­
deiro e, em geral, apresentar as coisas sob uma luz falsa. Entretanto, essa
tendência não reside imediatamente na sofistica, cujo ponto de vista inicial­
mente não é outro que o do raciocínio. Os sofistas apareceram entre os
gregos em um tempo em que esses, no domínio religioso e no moral, não
se satisfaziam mais com a simples autoridade e com a tradição, e sentiam
a necessidade de se tornarem conscientes do que devia ser válido para
eles, como de um conteúdo mediatizado pelo pensar. Os sofistas foram ao
encontro dessa exigência, ao darem para isso a diretiva de pesquisar os
diversos pontos de vista sob os quais as coisas se deixam considerar —
esses diversos pontos de vista não sendo, de início, exatamente outra
coisa que fundamentos [razões]. Ora, como antes se notou, fundamento
ainda não tem nenhum conteúdo determinado em si e para si, e se podem
encontrar fundamentos [razões] para o não-ético e para o antijurídico, não
menos que para o ético e o jurídico; cabe ao sujeito a decisão sobre os
fundamentos que devem ser válidos, e aquilo por que decide depende de
sua mentalidade e intenções individuais. Assim está solapado o solo obje­
tivo do que é válido em si e para si, reconhecido por todos; e é esse o lado
negativo da sofistica que merecidamente lhe trouxe a má reputação antes
mencionada. E bem sabido que Sócrates combateu os sofistas em toda a
parte, embora não lhes contrapondo somente, sem mais, a autoridade e a
tradição; mas, antes, mostrando dialeticamente a inconsistência dos fun­
damentos simples, e fazendo valer, ao contrário [dos sofistas], o justo e o
bem em geral, o universal, ou o conceito da vontade. Se hoje em dia, não
só nas discussões sobre as coisas mundanas mas também nos sermões,
procede-se, de preferência, somente raciocinando — e assim, por exem­
plo, se apresentam todos os fundamentos possíveis da gratidão para com
Deus —, Sócrates e também Platão não teriam nenhuma dúvida de de­
clarar como sofistaria tal procedimento. Com efeito, como foi dito, nela o
que importa antes de mais nada não é o conteúdo, que pode em todo o
caso ser o verdadeiro, mas a forma dos fundamentos, pela qual tudo pode
ser defendido, mas, também, tudo pode ser atacado. Em nossa época
raciocinadora e rica de reflexão, não deve ainda ter ido muito longe quem
não sabe apresentar um bom fundamento para tudo, mesmo para o pior
e o mais absurdo. Tudo o que no mundo se arruinou, foi por boas razões
que se arruinou. Quando se apela a fundamentos, primeiro se está incli­
nado a ceder diante deles; mas, quando em seguida se faz a experiência
de como as coisas se passam, fica-se de ouvido surdo para eles, e não se
deixa que continuem a prevalecer.

241
§ 122
A essência é, antes de tudo, em si, aparecer e mediação; como
totalidade da mediação, sua unidade consigo é agora posta como o
suprassumir-se da diferença e, portanto, da mediação. Assim é o
restabelecimento da imediatez ou do ser; mas do ser enquanto
mediatizado pelo suprassumir da mediação — a existência.
O fundamento não tem ainda nenhum conteiido determinado
em si e para si, nem é fim , portanto não é ativo nem produtivo',
mas uma existência somente provém do fundamento. Por isso, o
fundamento determinado é algo formal; uma determinidade qual­
quer — enquanto é posta como referida a si mesma, como afir­
mação — na relação à existência imediata que se liga com ela.
E justamente por esse motivo que é fundamento, [e] também
um bom fundamento, pois bom significa aqui, de modo total­
mente abstrato, nada mais também que algo afirmativo; e é boa
toda a determinidade que se pode exprimir de algum modo
como algo admitido [por] afirmativo. Um fundamento, portanto,
pode ser encontrado e apresentado para tudo; e um bom funda­
mento (por exemplo, bom motivo para agir) pode produzir, ou
também não, algo; ter uma conseqüência, ou também não. Motivo
que produz algo, o fundamento torna-se, por exemplo, pelo
acolhimento em uma vontade a qual, somente, faz com que o
fundamento seja ativo, e que seja uma causa.

b) A existência
§ 123
A existência é a unidade imediata da reflexão-sobre-si e da
reflexão-sobre-Outro. E portanto a multidão de existentes enquan­
to refletidos-sobre-si, que ao mesmo tempo aparecem-em-Outro,
são relativos e formam um mundo de dependência mútua e de uma
infinita conexão de fundamentos e de [seres] fundados. Os funda­
mentos são, eles mesmos, existências; e os existentes, segundo
muitos lados, são tanto fundamentos quanto [seres] fundados.
Adendo: O termo existência (derivado de existir) indica um ser-que-pro-
veio, e a existência é o ser que proveio do fundamento, restabelecido por
meio da suprassunção da mediação. A essência, enquanto ser suprassumido,

242
revelou-se para nós, primeiro como aparecer dentro de si; e as determinações
desse aparecer são a identidade, a diferença e o fundamento. O fundamento
é a unidade da identidade e da diferença, e, como tal, ao mesmo tempo [um]
diferenciar-se de si consigo mesmo. Ora, o que é diferenciado do fundamen­
to, tampouco é a simples diferença, que ele mesmo é a identidade abstrata.
O fundamento é o suprassumir de si; e aquilo para o qual se suprassume —
o resultado de sua negação — é a existência. Esta, enquanto é o que provém
do fundamento, contém-no dentro de si; e o fundamento não fica para trás
— por detrás da existência —, mas exatamente é só esse suprassumir de si,
e esse transpor-se para a existência. Eis o que também se encontra na cons­
ciência ordinária; enquanto consideramos o fundamento de alguma coisa,
esse fundamento não é um Interior abstrato, mas antes ele mesmo é por sua
vez um existente. Assim consideramos, por exemplo, como fundamento [ra­
zão] de um incêndio o raio que pôs um edifício em chamas, e igualmente,
como fundamento da constituição de um povo, seus costumes e condições
de vida. Em geral é esta a figura sob a qual o mundo existente se apresenta
inicialmente à reflexão: como uma multidão indeterminada de existentes
que, enquanto ao mesmo tempo refletidos sobre si e sobre o Outro, se
relacionam mutuamente um com o outro como fundamento e como funda­
do. Nesse jogo multicor do mundo como conjunto do existente, de início não
se mostra em parte alguma um ponto-de-apoio fixo; tudo aparece aqui so­
mente como algo relativo, condicionado por Outro e também condicionando
Outro. O entendimento reflexivo assume por tarefa averiguar e observar
essas relações [que vão] para todos os lados; mas a questão sobre uma meta
final permanece ali sem resposta, e por isso a necessidade [Bedürfnis] da
razão conceituante progride, com o desenvolvimento ulterior da idéia lógica,
para além desse ponto de vista da simples relatividade.
§ 124
A reflexão-sobre-Outro do existente é, no entanto, inseparável
da reflexão-sobre-si. O fundamento é sua unidade, da qual proce­
deu a existência. Portanto, o existente contém, nele mesmo, a
relatividade e sua multiforme conexão com outros existentes, e
está refletido sobre si mesmo enquanto fundamento. Desse modo, o
existente é Coisa.
A coisa-em-si — que se tornou tão famosa na filosofia kantiana
— mostra-se aqui na sua origem, a saber, como a abstrata
reflexão-sobre-si; na qual se sustenta, contra a reflexão-so-
bre-Outro e contra suas determinações diferenciadas em geral,
como no fundamento vazio delas.
243
Adendo: Quando se afirma que a coisa em si é incognoscível, há que
admiti-lo: conquanto se deva entender por conhecer o apreender de um
objeto em sua determinidade concreta; mas a coisa-em-si não é senão a
coisa totalmente abstrata e indeterminada em geral. Aliás, com igual di­
reito com que se fala de coisa em si, poder-se-ia também falar de qualidade-
-em-si, de quantidade-em-si, e, além disso, igualmente de todas as demais
categorias; e dessa maneira havia de entender-se essas categorias em sua
imediatez abstrata, isto é, abstraindo de seu desenvolvimento e determini­
dade interior. Há que considerar-se nessa medida, como uma arbitrarieda­
de do entendimento, se justamente só se fixa a coisa em seu Em-si. Ora
bem; costuma-se além disso aplicar também o Em-si ao conteúdo tanto
do mundo natural como do espiritual; e, por conseguinte, falar da eletri­
cidade ou da planta em-si, por exemplo, e igualmente do homem ou do
Estado em si; e entender pelo Em-si desses objetos o seu [ser] verdadeiro
e autêntico. Aqui, não sucede diferentemente com a coisa-em-si em geral,
e, mais precisamente, [sucede] que, quando se fica no simples Em-si dos
objetos, eles não são apreendidos em sua verdade, mas na forma unilate­
ral da simples abstração. Assim, por exemplo, o homem-em-si é a criança,
cuja tarefa consiste em não persistir nesse Em-si abstrato e não-desenvol-
vido, mas em tornar-se também para si o que inicialmente é apenas em
si; a saber, um ser livre e racional. Igualmente o Estado-em-si é o Estado
ainda não-desenvolvido, patriarcal, em que as diversas funções políticas,
que residem no conceito do Estado, ainda não chegaram à sua constitui­
ção [que é] conforme ao conceito. Pode-se considerar, no mesmo sentido,
o gérmen como planta-em-si. Desses exemplos, pode-se concluir que se
está em grande erro ao pensar que o Em—si das coisas, ou a coisa-em-si,
em geral, é algo inacessível para nosso conhecimento. Todas as coisas
são primeiro em si, mas não ficam nisso; e, assim como o gérmen, que é
a planta em si, consiste apenas em se desenvolver, também a coisa em
geral avança sobre seu simples Em-si, enquanto é a abstrata reflexão-
-sobre-si, para mostrar-se também como reflexão-sobre-Outro, e assim
tem propriedades.

c) A coisa
§ 125
A coisa é a totalidade enquanto é o desenvolvimento — posto no
Uno — das determinações do fundamento e da existência. Segundo
um de seus momentos, o da reflexão-sobre-Outro, a coisa tem nela
diferenças segundo as quais é uma coisa determinada e concreta.
244
1) Essas determinações diferem uma das outras; têm sua refle-
xão-sobre-si na coisa, não nelas mesmas. São propriedades da coisa,
e sua relação para com ela é o ter.
O ter vem, como relação, em lugar do ser. Algo tem nele, sem
dúvida, também qualidades; mas essa transferência do haver
para o essente é inexata: pois a determinidade, enquanto
qualidade, é imediatamente uma só coisa com o Algo; e Algo
deixa de ser quando perde sua qualidade. Mas a coisa é a
reflexão-sobre-si, enquanto é a identidade também diferente
da diferença, de suas determinações. O ter é utilizado em
numerosas línguas para designação do passado; e com razão,
enquanto o passado é o ser siiprassumido, e o espírito é a
reflexão-sobre-si desse passado: é só no espírito que ele ain­
da tem consistência; mas o espírito também diferencia de si
esse ser nele suprassumido.
Adendo: Na coisa reaparecem todas as determinações-da-reflexão
enquanto existentes. Desse modo, a coisa — e antes de tudo como coisa-
-em-si — é o idêntico consigo mesmo. Mas a identidade, como já vimos,
não é sem a diferença; e as propriedades, que a coisa tem, são a diferença
existente, na forma da diversidade. Enquanto anteriormente os [termos]
diversos se mostravam como indiferentes entre si, e sua relação recíproca
era posta somente por meio da comparação exterior a eles, agora temos na
coisa um nexo que reúne entre elas as propriedades diversas. Aliás, não há
que confundir a propriedade com a qualidade. Decerto, diz-se também que
Algo tem qualidades. Essa expressão contudo é inadequada, enquanto “ter”
indica uma autonomia que não compete ainda ao Algo imediatamente idên­
tico com sua qualidade. Algo só é o que é, por sua qualidade; ao contrário,
a coisa sem dúvida igualmente só existe enquanto tem propriedades; contu­
do, não está ligada a esta ou aquela propriedade determinada, e portanto
também pode perdê-la sem que por esse motivo deixe de ser o que é.
§ 126
2) Mas a reflexão-sobre-Outro é também no fundamento, ime­
diatamente nela mesma, a reflexão-sobre-si; por isso as proprie­
dades são igualmente idênticas consigo, autônomas e liberadas de
seu ser-vinculado à coisa. Entretanto, porque as propriedades são
as determinidades da coisa, diferentes umas das outras enquanto
245
refletidas sobre si, [por isso] elas mesmas não são coisas, enquanto
as coisas são concretas; mas sim existências refletidas sobre si,
enquanto determinidades abstratas, matérias.
As matérias — por exemplo, a matéria magnética, a elétrica
— também não são denominadas coisas. São as qualidades
propriamente ditas, que fazem um só com seu ser: a determi­
nidade que alcançou a imediatez; mas uma imediatez que é
existência*.
Adendo: A emancipação das propriedades, que a coisa tem, para serem
matérias ou material em que ela consiste, é na verdade fundada no conceito da
coisa, e por isso se encontra também na experiência. Mas é igualmente
contrário ao pensamento e à experiência concluir que, por certas proprieda­
des de uma coisa, como por exemplo a cor, o odor etc., se deixarem apresen­
tar como particular matéria-corante, matéria-odorante etc., com isso está tudo
resolvido; e, para descobrir o que se passa propriamente com as coisas, nada
mais há a fazer senão decompô-las nas matérias de que são compostas. Esse
decompor em matérias subsistentes só encontra seu lugar próprio na natu­
reza inorgânica, e a química encontra-se em seu direito quando, por exem­
plo, decompõe em suas matérias o sal de cozinha ou o gesso, e diz-se então
que o sal é composto de ácido clorídrico e sódio, e o gesso de ácido sulfúrico
e cal. Igualmente a geognósia, com razão, considera o granito como composto
de quartzo, feldspato e mica. Essas matérias, em que a coisa consiste, nova­
mente são em parte, elas mesmas, coisas; que, como tais, podem ser mais
uma vez decompostas: por exemplo, o ácido sulfúrico que é formado de
enxofre e oxigênio. Ora, enquanto matérias semelhantes podem ser de fato
apresentadas como subsistentes por si mesmas, com freqüência também
sucede que outras propriedades das coisas sejam consideradas como matérias
particulares às quais, no entanto, não compete essa autonomia. Desse modo
se fala, por exemplo, de matéria calórica, de matéria elétrica e de matéria
magnética; essas matérias porém devem ser consideradas como simples fic-
ções do entendimento. E essa, em geral, matéria da reflexão do entendimen­
to abstrato: apreender arbitrariamente categorias singulares que só têm sua
validade como graus determinados do desenvolvimento da idéia; e depois
servir-se delas, como se diz, para fins de explicação, embora em contradição
com a intuição e a experiência espontâneas; de modo que todos os objetos
trazidos à consideração sejam reduzidos a essas categorias. Assim, aplica-se
* Optamos pela leitura: “eins mit ihren Sein, die zur Unmittelbarkeit gelangte
Bestimmtheit, aber einer Unmittelbarkeit, welche Existenz ist” (N. do T.).

246
também a domínios tais onde não tem mais nenhuma validade, a constitui­
ção das coisas em matérias independentes multiformes. Já no interior da
natureza, na vida orgânica, essa categoria se revela como insuficiente. Diz-
-se, certamente, que este animal consiste em ossos, músculos, nervos etc.;
mas imediatamente se evidencia que aqui a situação é bem outra que a
composição de um pedaço de granito, pelas matérias antes mencionadas.
Essas matérias se comportam de modo totalmente indiferente quanto à sua
união, e podem também subsistir perfeitamente sem ela; quando, ao contrá­
rio, as diversas partes e membros do corpo orgânico só têm sua subsistência
em sua união, e separados uns dos outros deixam de existir como tais.
§ 127
A matéria é assim a reflexão-sobre-Outro, abstrata ou indetermi­
nada; ou a reflexão-sobre-si, ao mesmo tempo como determinada; é
portanto a coisidade essente-aí, a consistência das coisas. A coisa dessa
maneira tem nas matérias sua reflexão-sobre-si (é o contrário do § 125);
não consiste nela mesma, mas nas matérias, e é apenas sua conexão
superficial: uma união exterior das matérias.
§ 128
3) A matéria, como unidade imediata da existência consigo mes­
ma, é também indiferente quanto à determinidade; as múltiplas
matérias diversas convergem, pois, em uma [só] matéria', a existência
na determinação reflexiva da identidade, ante a qual essas determi-
nidades diferentes, e sua relação exterior, que têm umas com as
outras na coisa, são a forma: a determinação-reflexiva da diferença;
mas enquanto existente e enquanto totalidade.
Essa matéria, única e carente-de-determinações, é também o
mesmo que a coisa-em-si; só que esta [coisa-em-si] é a ma­
téria enquanto totalmente abstrata em si mesma; e aquela é
a matéria enquanto essente em si também para Outro —
antes de tudo para a forma.
Adendo: As diversas matérias, de que se compõe a coisa, são em si,
[cada] uma o mesmo que a outra. Obtemos assim a matéria única em
geral, à qual se opõe a diferença como exterior a ela, isto é, como simples
forma. A apreensão das coisas como tendo, em conjunto, uma só e a
mesma matéria por base, e diversas simplesmente de modo exterior se­

247
gundo sua forma, é muito corrente na consciência reflexiva. A matéria,
nesse caso, conta como totalmente indeterminada em si, embora capaz de
toda a determinação; e, ao mesmo tempo, absolutamente permanente e
ficando igual a si mesma em toda a mudança e em toda a alteração. Essa
indiferença da matéria, quanto a formas determinadas, encontra-se sem dúvida
nas coisas finitas. Assim, por exemplo, é indiferente a um bloco de mármore
se lhe foi dada a forma dessa ou daquela estátua, ou também a forma de uma
coluna. A propósito, não há que ignorar que uma matéria, tal como um bloco
de mármore, só relativamente (em relação ao escultor) é indiferente quanto
a forma; contudo não é carente-de-forma, em geral. Por conseguinte, o mi-
neralogista considera assim o bloco de mármore, só relativamente carente-
-de-forma, como uma determinada formação rochosa, em sua diferença com
outras formações também determinadas, como por exemplo arenito, pórfiro
etc. E portanto o entendimento abstrativo, somente, que fixa a matéria em
seu isolamento, e como carente-de-forma em si; quando, de fato, o pensa­
mento da matéria inclui absolutamente em si o princípio da forma e por isso
na experiência, em parte alguma se encontra uma matéria carente-de-forma,
como existente. A apreensão da matéria como dada originariamente, e como
em si carente-de-forma, é de resto muito antiga, e já a encontramos entre os
gregos; primeiro na figura mítica do Caos, que é representado como a base
informe do mundo existente. Na conseqüência dessa representação, está
implicado que Deus não deve considerar-se como o criador do mundo, mas
como simples escultor do mundo, como demiurgo. Ao contrário, a intuição
mais profunda é que Deus criou o mundo do nada, pelo que se exprime, em
geral, de um lado que à matéria como tal não compete nenhuma autonomia;
e, de outro lado, que a forma não advém de fora à matéria, mas como
totalidade traz em si mesma o princípio da matéria — forma livre e infinita
que em breve se produzirá para nós como o conceito.
§ 129
A coisa se decompõe, assim, em matéria e forma, cada uma das
quais é a totalidade da coisidade, e autônoma para si. Mas a matéria,
que deve ser a existência positiva indeterminada, contém, enquan­
to existência, tanto a reflexão-sobre-Outro como o ser-dentro-de—
si; como unidade dessas determinações, ela mesma é a totalidade
da forma. No entanto, a forma já contém, como totalidade das deter­
minações, a reflexão-sobre-si; ou seja, como forma referindo-se a si
mesma, ela tem o que deve constituir a determinação da matéria. As
duas são, em si, o mesmo. Essa sua unidade, posta, é em geral a
relação da matéria e da forma, que são também diferentes.
248
§ 130
A coisa, enquanto essa totalidade, é a contradição de ser, segun­
do sua unidade negativa, a forma , na qual a matéria é determinada
e rebaixada a propriedades; (§ 125), e, ao mesmo tempo, de consistir
em matérias, que na reflexão-sobre-si da coisa são, ao mesmo tem­
po, tanto autônomas como negadas. A coisa, assim, consiste em ser
a existência essencial enquanto uma existência que se suprassume
em si mesma: é aparição [fenômeno].
Na física apresenta-se como a porosidade o que na coisa é
tanto negação posta como autonomia das matérias. Cada uma
das numerosas matérias — matéria-colorante, matéria-odoran-
te, e outras matérias, entre as quais, segundo alguns, matéria-
-sonora, além de matéria térmica, matéria elétrica etc. — é
também negada, e nessa sua negação, em seus poros, há mui­
tas outras matérias autônomas, que são igualmente porosas,
e por sua vez deixam em si existirem as outras. Os poros não
são algo empírico, mas fícções do entendimento, que dessa
maneira representa o momento da negação das matérias au­
tônomas, e encobre o desenvolvimento ulterior das contradi­
ções por essa confusão nebulosa, em que todas [as matérias]
são autônomas e todas igualmente negadas, umas nas outras.
Quando de igual maneira se hipostasiam no espírito as facul­
dades ou atividades, sua unidade viva se torna igualmente a
confusão do influir de uma sobre a outra.
Como os poros (os de que aqui se fala não são os poros do
ser orgânico — da madeira, da pele etc. — mas os das assim
chamadas matérias, como os poros que há na matéria colorante,
na matéria térmica etc., ou nos metais, nos cristais e similares),
como estes poros não têm sua verificação na observação, assim
como também a matéria mesma; e além disso uma forma
separada dela, e antes de tudo a coisa e o seu consistir em
matérias, ou [o fato de] que ela mesma consiste e tem só
propriedades — [tudo isso] é produto do entendimento re­
flexivo, que, ao observar e ao pretender expor o que obser­
vou, antes produz uma metafísica, que é, de todos os lados,
contradição que entretanto lhe permanece escondida.
249
B
A APARIÇÃO [O FENÔMENO]

§ 131
A essência deve aparecer. Seu aparecer é nela o suprassumir de si
mesma em direção da imediatez que como reflexão-sobre-si é tanto
consistência (matéria) quanto é forma, reflexão-sobre-Outro, consistên­
cia que se suprassume. O aparecer é a determinação, mediante a qual
a essência não é ser, mas essência; e o aparecer desenvolvido é o
fenômeno. A essência portanto não está atrás ou além do fenômeno\
mas, porque é essência que existe, a existência é fenômeno.
Adendo: A existência, posta em sua contradição, é o fenômeno. Este não
se deve confundir com a simples aparência. A aparência é a verdade mais
próxima do ser, ou da imediatez. O imediato não é o que acreditamos ter
nele, não é algo autônomo e repousando sobre si, mas é só uma aparência,
que como tal é condensada na simplicidade da essência em si essente. Esta
é, antes de tudo, a totalidade da aparência dentro de si; entretanto, não fica
nessa interioridade, mas enquanto fundamento produz-se para fora na exis­
tência, a qual, enquanto não tem seu fundamento em si mesma mas em um
Outro, é justamente apenas fenômeno. Quando falamos de fenômeno, uni­
mos a ele a representação de uma variedade indeterminada de coisas exis-
750
tentes, cujo ser é pura e simplesmente mediação, e que por isso não repou­
sam sobre si mesmas, mas só têm sua validade como momentos. Ora, tam­
bém está ao mesmo tempo implicado nisso que a essência não fica atrás ou
além do fenômeno, mas é antes, por assim dizer, a bondade infinita [que
consiste] em deixar em liberdade sua aparência na imediatez, e lhe conceder
a alegria do ser-aí. Assim, o fenômeno posto não se sustém nos próprios pés,
e não tem seu ser em si mesmo, mas em um Outro. Deus, enquanto [é] a
essência, assim como é a bondade de criar um mundo — ao conceder exis­
tência aos momentos de seu aparecer em si —, mostra-se ao mesmo tempo
como a potência [que impera] sobre esse mundo, e como a justiça [que
consiste] em manifestar como simples fenômeno o conteúdo desse mundo
existente, na medida em que este quer existir para si mesmo.
Em geral, o fenômeno é um grau muito importante da idéia lógica, e
pode-se dizer que a filosofia se diferencia da consciência ordinária por tratar
como simples fenômeno o que para aquela consciência vale como algo essente
e autônomo. Quanto a isso, porém, importa que a significação do fenômeno
seja entendida como convém. É que, quando se diz de alguma coisa que é
só fenômeno, isso pode prestar-se a mal-entendido, como se, em comparação
com esse [fenômeno] que somente aparece, o essente ou o imediato fosse o su­
perior. De fato, sucede exatamente o inverso, a saber, que o fenômeno é algo
superior ao simples ser. O fenômeno é em geral a verdade do ser, e uma de­
terminação mais rica que a do ser, enquanto contém em si reunidos os mo­
mentos da reflexão-sobre-si e a reflexão-sobre-outro; quando, ao contrário, o
ser ou a imediatez ainda é o carente-de-determinação unilateralmente, e
o que (na aparência) repousa somente sobre si mesmo. Mas além disso
aquele somente do fenômeno indica, sem dúvida, uma falha; e essa consis­
te em que o fenômeno é ainda algo cindido em si, que não tem em si
mesmo seu apoio. O que é superior ao simples fenômeno é a efetividade,
da qual se vai tratar mais tarde, como do terceiro grau da essência.
Na história da filosofia moderna, é a Kant que cabe o mérito de ter
primeiro feito valer de novo a diferença, antes mencionada, entre a cons­
ciência ordinária e a consciência filosófica. Contudo, Kant ficou ainda na
metade do caminho, enquanto entendeu o fenômeno apenas no sentido
subjetivo, e fixou fora dele a essência abstrata como a coisa-em-si, inaces­
sível ao nosso conhecimento. Ser somente fenômeno, é esta a natureza
própria do mundo imediatamente objetivo, ele mesmo; e, enquanto o
conhecemos como tal, assim conhecemos ao mesmo tempo a essência,
que não está atrás nem além do fenômeno, mas se manifesta como essên­
cia justamente porque rebaixa esse mundo objetivo a simples fenômeno.
Aliás não há que vituperar a consciência ingênua quando em sua aspi­
ração pela totalidade hesita em contentar-se com a afirmação do idealismo
subjetivo, de que nós lidamos pura e simplesmente com fenômenos. Só que
ocorre facilmente com essa consciência ingênua, quando se aplica a salvar a
251
objetividade do conhecimento, retomar à imediatez abstrata, e sustentá-la,
sem mais, como o verdadeiro e o efetivo. No opúsculo intitulado “Exposição
clara como o sol para o grande público sobre a essência própria da filosofia
mais recente: uma tentativa de forçar os leitores a entender” [Berlim, 1801],
Fichte tratou de um modo popular, na forma de um diálogo entre o autor e o
leitor, a oposição entre o idealismo subjetivo e a consciência imediata; e se
esforçou por demonstrar a correção do ponto de vista subjetivamente idealis­
ta. Nesse diálogo, o leitor se queixa ao autor da pena que tem por não con­
seguir situar-se naquele ponto de vista, e se mostra desolado de que as coisas
que o cercam não devam ser coisas efetivas, mas simplesmente fenômenos.
Decerto, não há que levar a mal essa tristeza do leitor, na medida em que
se lhe exige considerar-se como relegado em um círculo intransponível de
representações meramente subjetivas. Aliás deve-se dizer — prescindindo
da apreensão puramente subjetiva do fenômeno — que temos todos o motivos
de estar satisfeitos, de que, entre as coisas que nos cercam, só tenhamos a
lidar com fenômenos, e não com existências fixas e autônomas; porque nesse
caso logo morreríamos de fome, tanto espiritualmente como corporalmente.
a) O mundo do fenômeno
§ 132
O fenomenal existe de modo que sua consistência é imediatamente
suprassumida e é só um momento da forma mesma: a forma capta em
si a consistência ou a matéria como uma de suas determinações. O
fenomenal tem assim seu fundamento nessa forma, enquanto ela é sua
essência, sua reflexão-sobre-si diante de sua imediatez; mas, por isso,
só como uma outra determinidade da forma. Esse seu fundamento
é igualmente algo fenomenal, e o fenômeno prossegue assim para
uma mediação infinita da consistência por meio da forma e, portan­
to, também por meio da não-consistência. Essa mediação infinita é,
ao mesmo tempo, uma unidade da relação para consigo, e a exis­
tência é desenvolvida até [formar] uma totalidade e um mundo do
fenômeno, da finitude refletida.
b) conteúdo e forma
§ 133
O [ser] fora-um-do-outro do mundo do fenômeno é totalidade,
e está contido inteiramente em sua relação-para-consigo-mesmo.
Assim, a relação do fenômeno para consigo está completamente
252
determinada; tem nela mesma a fonna\ e, porque está nesta identida­
de, como consistência essencial. A forma é, assim, conteúdo, e, segundo
sua determinidade desenvolvida, é a lei do fenômeno. E na form a,
enquanto não refletida-sobre-si, que recai o negativo do fenômeno, o
não-autônomo e o mutável -— é a form a exterior, indiferente.
Quando há oposição entre a forma e o conteúdo, é essencial
sustentar que o conteúdo não é carente-de-forma, mas que
tanto tem a form a nele mesmo, como a forma lhe é algo exterior.
Dá-se a duplicação da forma, que uma vez, como refletida-
sobre-si, é o conteúdo; e outra vez, como não-refletida sobre
si, é a existência exterior, indiferente ao conteúdo. Em si está
aqui presente a relação absoluta do conteúdo e da forma, a
saber, o mudar deles um no outro, de modo que o conteiido
não é senão o m udar da form a em conteúdo, e a forma não é
senão o m udar do conteúdo em forma. Esse mudar é uma das
determinações mais importantes. Mas, posto , ele só o é na
relação absoluta.
Adendo: Forma e conteúdo são um par de determinações que o enten­
dimento reflexivo utiliza com freqüência, e decerto principalmente de
maneira que o conteúdo é considerado como o essencial e o autônomo, e
a forma como o inessencial e não-autônomo. Em sentido contrário vale
notar que, de fato, os dois são igualmente essenciais, e que, enquanto há
tampouco um conteúdo carente-de-forma quanto uma matéria carente -
-de-forma, os dois (conteúdo e matéria) se distinguem um do outro justa­
mente porque a matéria, embora em si não seja sem forma, mostra-se no
ser-aí como indiferente para com ela, quando ao contrário o conteúdo
como tal só é o que é porque contém dentro de si a forma desenvolvida.
Mas, além disso, encontramos a forma também como uma existência indife­
rente ao conteúdo e exterior a ele; e isso ocorre porque o fenômeno em
geral está ainda afetado de exterioridade. Ao considerar um livro, por
exemplo, é indiferente, sem dúvida, para o seu conteúdo se está manus­
crito ou impresso, encadernado em papel ou em couro. Mas com isso não
se diz, de modo nenhum, que, prescindindo dessa forma exterior e indife­
rente, o conteúdo do próprio livro seja um conteúdo carente-de-forma.
Certamente, há bastantes livros que em relação a seu conteúdo se devem
designar, sem cometer injustiça, como carentes-de-forma. No entanto,
nessa relação ao conteúdo, a carência-de-forma é sinônimo de deformida­
de, pela qual não há que entender a ausência da forma em geral, mas só
253
a não-ocorrência da forma correta. Essa forma correta é tampouco indife­
rente ao conteúdo que, antes, é o conteúdo mesmo. Uma obra-de-arte, a
que falte a forma correta, não é, justamente por isso, uma obra-de-arte
correta, isto é, uma verdadeira obra-de-arte. Para um artista, enquanto tal,
é uma má desculpa quando se diz que o conteúdo de sua obra é sem
dúvida bom (e, até mesmo, de todo excelente), mas que lhe falta a forma
correta. As verdadeiras obras-de-arte só são precisamente aquelas cujo
conteúdo e cuja forma se mostram como inteiramente idênticos. Pode-se
dizer da Ilíada que seu conteúdo é a guerra de Tróia ou, mais precisamen­
te, a cólera de Aquiles. Com isso dissemos tudo; e contudo só dissemos
demasiado pouco, pois o que faz a Ilíada ser Ilíada é a forma poética, na
qual esse conteúdo está desenvolvido. Igualmente o conteúdo de Romeu
e Julieta é a perda de dois amantes, perpetrada pela discórdia de suas
famílias. Só isso, ainda não é a imortal tragédia de Shakespeare.
Além disso, no que concerne à relação de conteúdo e forma no do­
mínio científico, importa lembrar a propósito a diferença entre a filosofia
e as outras ciências. A finitude das ciências consiste, em geral, em que
aqui o pensamento, como atividade puramente formal, recebe de fora seu
conteúdo como um conteúdo dado; e que o conteúdo não é conhecido
como determinado a partir do interior, por meio do pensamento que está
em sua base; e que, por isso, forma e conteúdo não se interpenetram de
todo. Ao contrário, na filosofia essa separação é descartada; motivo pelo
qual a filosofia deve ser caracterizada como conhecimento infinito. Com
muita freqüência, o pensar filosófico também é considerado como pura
atividade formal, e sobretudo a respeito da lógica, que confessadamente
só tem a ver com pensamentos como tais, sua carência de conteúdo conta
como uma Coisa certa e notória. Se por conteúdo se entende apenas o
palpável, em geral, o perceptível pelos sentidos, então certamente deve-
-se conceder de bom grado, quanto à filosofia em geral como à lógica em
particular, que ela não tem conteúdo algum, isto é, não tem um tal conteú­
do perceptível pelos sentidos. Ora bem, no que respeita ao que se enten­
de por conteúdo, já a consciência ordinária e o uso comum do idioma, de
modo algum ficam simplesmente na perceptibilidade sensível, nem de
modo geral, no simples ser-aí.
Quando se fala de um livro carente-de-conteúdo, entende-se com
isso, conhecidamente, não simplesmente um livro com folhas brancas,
mas um livro cujo conteúdo nada vale; e, num exame mais preciso, ressal­
tará em última análise que, para uma consciência cultivada, o que de
início se caracterizou como conteúdo não tem nenhuma outra significação
que a da mediocridade do pensamento. Mas, sendo assim, também se
concorda, ao mesmo tempo, que os pensamentos não podem ser conside­

254
rados como formas indiferentes ao conteúdo, e em si vazias; e que, como
na arte, também nos outros domínios a verdade e a solidez do conteúdo
repousam essencialmente em que ele se mostre como idêntico à forma.
§ 134
A existência imediata porém é a determinidade da consistência
mesma como [também] da forma; por conseguinte, é tão exterior à
determinidade do conteúdo quanto essa exterioridade, que ele tem
através do momento de sua consistência, lhe é essencial. Posto
assim, o fenômeno é a relação, [que consiste em] que uma só e a
mesma coisa — o conteúdo — é como a forma desenvolvida; como
a exterioridade e oposição de existências autônomas; e como sua
relação idêntica: só nessa relação os diferentes são o que são.

c) A relação
§ 135
1) A relação imediata é a do todo e das partes: o conteúdo é o
todo, e consiste nas partes (na forma) — no contrário de si mesmo.
As partes são diversas umas das outras e são o [que é] autônomo.
Mas só são partes em sua relação idêntica de umas com as outras,
ou enquanto, tomadas em conjunto, constituem o todo. Mas o “em
conjunto” é o contrário e a negação da parte.
Adendo: A relação essencial é a maneira determinada, totalmente uni­
versal, do aparecer. Tudo o que existe está em relação, e essa relação é
o verdadeiro de cada existência. Por isso o existente é, não abstratamente
para si, mas só para um Outro; mas nesse Outro é a referência a si mesmo;
e a relação é a unidade da referência a si e da referência a Outro.
A relação do todo e das partes é não-verdadeira na medida em que seu
conceito e sua realidade não correspondem um ao outro. O conceito do
todo é o de conter partes. Mas, se o todo é posto como o que é segundo
o seu conceito, ele se divide, e assim deixa de ser um todo. Ora, de fato„
há coisas que correspondem a essa relação, mas essas são também, justa­
mente por isso, somente existências inferiores e não-verdadeiras. A propó­
sito convém lembrar, em geral, quando se trata em uma discussão filo­
sófica de não-verdadeiro, não se pode entender como se semelhante coisa
não existisse. Um mau Estado ou um corpo doente podem decerto existir;
255
mas esses objetos são não-verdadeiros, pois seu conceito e sua realidade não
se correspondem mutuamente. A relação do todo e das partes, como relação
imediata, é em geral uma relação que parece muito evidente ao entendimen­
to reflexivo, e com a qual por esse motivo ele também freqüentemente se
contenta, mesmo onde de fato se trata de relações mais profundas. Assim,
por exemplo, os membros e os órgãos de um corpo vivo não devem ser
considerados simplesmente com suas partes, já que eles só são o que são, em
sua unidade, e não se comportam de modo algum como indiferentes para com
essa unidade. Esses membros e órgãos só se tornam simples partes nas mãos
de um anatomista que, no entanto, não lida mais com corpos vivos, mas com
cadáveres. Com isso não foi dito que tal decomposição em geral não deveria
ocorrer, mas sim que a relação exterior e mecânica do todo e das partes não
basta para conhecer a vida orgânica em sua verdade. É o caso, em um grau
bem mais alto ainda, com a aplicação dessa relação ao espírito e figuras do
mundo espiritual. Mesmo se na psicologia não se fala expressamente de
partes da alma ou do espírito, contudo reside na base do procedimento dessa
disciplina, o qual está simplesmente na medida do entendimento, a repre­
sentação dessa relação finita; na medida em que as diversas formas da ativi­
dade espiritual são simplesmente enumeradas e descritas sucessivamente
em seu isolamento, como pretensas forças e faculdades particulares.
§ 136
2) O “um e o mesmo” dessa relação, a referência a si nel
presente, é por isso imediatamente referência negativa a si, e que
na verdade, como a mediação em que o “um e o mesmo” é indi­
ferente para com a diferença; e em que a referência negativa a si que
repele a si mesma como reflexão-sobre-si, para a diferença, e se
põe existindo como reflexão-sobre-Outro; e, inversamente, essa re-
flexão-sobre-Outro reconduz à referência a si, e à indiferença: é a
força e sua exteriorização.
A relação do todo e das partes é a relação e a conversão imediatas
— portanto, carentes-de-pensamento — a identidade-consigo na
diversidade. Passa-se do todo às partes e das partes ao todo, e em
um [dos termos] se esquece a oposição ao outro, enquanto cada um
para si — uma vez o todo, outra vez as partes — é tomado como
existência autônoma. Ou seja, enquanto as partes devem consistir
no todo, e o todo deve consistir de partes, uma vez é um [termo],
outra vez é o outro o consistente, e, igualmente, cada vez o seu outro
é o inessencial. A relação mecânica, em sua forma superficial, consiste
256
de modo geral em serem as partes como autônomas, em relação
entre elas e em relação ao todo.
0 progresso até o infinito, que diz respeito à divisibilidade da
matéria, pode também utilizar essa relação, e é então a alternância,
carente-de-pensamento, entre seus dois lados. Uma coisa se toma
uma vez como um todo; em seguida, passa-se à determinação das
partes; então essa determinação é esquecida, e o que era parte
considera-se como um todo; depois, apresenta-se de novo a deter­
minação da parte, e assim por diante, até o infinito. Mas essa
infinitude, tomada como o negativo, que ela é, é a referência nega­
tiva da relação a si mesma, a força —- o todo idêntico consigo en­
quanto ser-dentro-de-si, e enquanto suprassumido esse ser-dentro-
-de-si e se exteriorizando — e, inversamente, a exteriorização que
desvanece e retorna para a força.
Apesar dessa infinitude, a força é também finita: pois o conteú­
do, o “um e o mesmo” da força e da exteriorização é essa identi­
dade somente em si; os dois lados da relação não são ainda eles
mesmos, cada um para si, sua identidade concreta; não são ainda a
totalidade. São portanto diversos, um para o outro, e a relação é
uma relação finita. Por esse motivo, a força precisa da solicitação de
fora, atua cegamente, e por causa dessa deficiência da forma o
conteúdo é também limitado e contingente. Não é ainda verdadei­
ramente idêntico à forma; ainda não é como conceito e fim, que é
o determinado em si e para si. Essa diferença é essencial, no mais
alto grau, mas não é fácil de compreender; só pode determinar-se
com mais rigor no conceito mesmo de fim. Não levar em conta tal
diferença induz à confusão de apreender a Deus como força —-
uma confusão de que padece principalmente o deus de Herder.
Costuma-se dizer que a própria natureza da força é desconhecida,
e que só é conhecida sua exteriorização. Por um lado, a completa
determinação-do-conteúdo da força é exatamente o mesmo que a ex­
teriorização'. a explicação de um fenômeno por sua força é, por isso,
uma tautologia vazia. O que deve ser desconhecido de fato é, as­
sim, nada mais que a forma vazia da reflexão-sobre-si, pela qual
somente a força é diferente da exteriorização — uma forma que é,
igualmente, algo bem-conhecido. Essa forma nada acrescenta, no
mínimo que seja, ao conteúdo e à lei, que só devem ser conhecidos
257
a partir do fenômeno. Garante-se, de todos os lados, que nada se
deve afirmar sobre a força; assim não se vê por que a forma da força
foi introduzida nas ciências. Por outra parte, porém, a natureza da
força é certamente algo desconhecido, pois lhe falta ainda a neces­
sidade [Notwendigkeit] tanto da conexão de seu conteúdo, como
desse mesmo conteúdo, enquanto é para si limitado; e assim tem
sua determinidade por meio de um Outro fora dele.
Adendo 1: A relação da força e de sua exteriorização, deve-se considerar
como infinita — se se refere à relação imediata do todo e das partes. Com efei­
to, na primeira relação se põe a identidade dos dois lados, que nessa última re­
lação só estava presente em si. O todo, embora em si consista em partes, dei­
xa no entanto de ser um todo quando é dividido; pelo contrário, a força só se
verifica como força ao exteriorizar-se, e em sua exteriorização retorna a si mes­
ma; porque a exteriorização é ela mesma, por sua vez, força. Ora, essa relação é
também, por sua vez, finita; e sua finitude consiste em geral, nesse ser-media-
tizado, assim como inversamente a relação do todo e das partes se demonstrou
finita por causa de sua imediatez. A finitude da relação mediatizada da força
e de sua exteriorização mostra-se, antes de tudo, em que cada força é condicio­
nada, e precisa para sua consistência de um Outro que não ela. Assim, por
exemplo, a força magnética; sabe-se muito bem que tem seu suporte prin­
cipalmente no ferro, cujas outras propriedades (cor, peso específico, relação
a ácido etc.) são independentes dessa relação ao magnetismo. O mesmo se
dá com todas as démais forças, que se mostram sem exceção como condicio­
nadas e mediatizadas por outra coisa que elas mesmas. Além disso, a finitude
da força se mostra em que ela, para exteriorizar-se, precisa da solicitação.
Aquilo pelo qual a força é solicitada é, por sua vez, ele mesmo exteriorização
de uma força, que para exteriorizar-se deve igualmente ser solicitada. Obte­
mos desse modo, ou de novo, uma progressão até o infinito, ou a reciproci­
dade entre o solicitar e o ser-solicitado, em que contudo ainda falta sempre
um começo absoluto do movimento. A força ainda não é como o fim, que se
determina em si mesmo; o conteúdo é um conteúdo determinadamente
dado, e, enquanto a força se exterioriza, é, como se costuma dizer, cega em
sua eficiência; e por essa expressão há que entender justamente a diferença
entre a abstrata exteriorização da força e a atividade conforme a um fim.
Adendo 2: Embora a afirmação, tantas vezes repetida, de que só se
pode conhecer a exteriorização das forças, mas não as forças mesmas, deva
rejeitar-se como infundada por motivo de que a força justamente consiste
em exteriorizar-se, e por isso conhecemos, na totalidade da exteriorização
apreendida como lei, ao mesmo tempo a própria força, contudo não se
pode desconhecer que nessa afirmação da incognoscibilidade do Em-si da
força está contido um pressentimento correto da finitude dessa relação. As

258
exteriorizações singulares de uma força se apresentam inicialmente a nós em
uma variedade indeterminada, e em sua singularização, como contingentes.
Em seguida, reduzimos essa variedade a sua unidade interior, que designamos
como força, e, a respeito do ser contingente na aparência — ao conhecermos
a lei que nele impera —, nos tornamos cônscios como de um [ser] necessário.
Ora, as diversas forças por sua vez constituem elas mesmas algo variado, e apa­
recem em sua simples justaposição como contingentes. Por conseguinte, fala-
-se na física experimental das forças da gravidade, do magnetismo, da eletrici­
dade etc., e também na psicologia empírica das forças da memória, da imagi­
nação, do querer, e de todo o tipo de forças da alma. Aqui reaparece a neces­
sidade [Bedürfnis] de tomar consciência, igualmente, dessas forças diversas
como de um todo unificado, e essa necessidade não poderia obter sua satis­
fação pelo fato de se reduzirem as diversas forças a algo como a uma força
originária que lhes fosse comum. Teríamos em uma tal “protoforça”, de fato,
apenas uma abstração vazia, tão carente-de-conteúdo quanto a abstrata coisa-
-em-si. A isso se acrescenta que a relação entre a força e sua exteriorização
é essencialmente a relação mediatizada, e que contradiz por isso o conceito
da força quando é apreendido como originário e repousando em si mesmo.
Sendo esta a situação no que respeita à natureza da força, nós aprovamos
quando se diz que o mundo existente é uma exteriorização das forças
divinas, só que hesitamos em considerar o próprio Deus como simples
força, porque a força é ainda uma determinação inferior e finita. Nesse
sentido também a Igreja, quando por ocasião do assim chamado despertar
das ciências se tratou de reconduzir os fenômenos singulares da natureza
a forças que estão em sua origem, declarou atéia essa tarefa. O motivo é
que, se são as forças da gravitação, da vegetação etc. que provocam o
movimento dos corpos celestes, o crescimento das plantas etc., nada mais
resta a fazer para o governo divino do mundo, e Deus é rebaixado a um
espectador ocioso, ante tal jogo de forças. Na verdade, os pesquisadores
da natureza, e especialmente Newton, ao utilizar a forma reflexiva da
força para explicação dos fenômenos naturais, primeiro declararam ex­
pressamente que com isso nenhum prejuízo ocorreria à glória de Deus
como criador e governador do mundo. Entretanto, está implicado na con­
seqüência desse explicar a partir de forças que o entendimento raciocinante
avança na direção de fixar as forças singulares cada uma para si mesma,
e sustentá-la nessa finitude como algo de último; [de modo que,] perante
esse mundo finitizado de forças e matérias autônomas, só resta, para a
determinação de Deus, a infinitude abstrata de um ser supremo situado
no além e incognoscível. É esse o ponto de vista do materialismo e do
moderno Iluminismo, cujo saber sobre Deus, pela renúncia a [saber] o que
é seu ser, reduz-se a um simples que seu ser é. Ora, ainda que se deva dar
259
razão à igreja e à consciência religiosa, na polêmica aqui mencionada,
enquanto não bastam certamente as formas finitas do entendimento para
conhecer em sua verdade nem a natureza nem as formações do mundo
espiritual, contudo também de outro lado não se devé desconhecer o
direito formal, antes de tudo das ciências empíricas; direito que consiste,
de modo geral, em reivindicar para o conhecimento pensante o mundo
dado na determinidade de seu conteúdo; e não ficar simplesmente na
crença abstrata da criação e do governo do mundo por Deus. Se nossa
consciência religiosa, apoiada pela autoridade da Igreja, nos ensina que foi
Deus quem criou o mundo por sua vontade onipotente, e que é ele que
dirige os astros em suas órbitas e concede a toda a criatura sua consistên­
cia e prosperidade, contudo ainda resta a responder o “porquê”; e é em
geral a resposta dessa pergunta que forma a tarefa comum da ciência,
tanto empírica como filosófica. Quando a consciência religiosa, não reco­
nhecendo essa tarefa e o direito nela contido, apela para a inescrutabili-
dade dos desígnios divinos, vem assim tomar lugar no ponto de vista,
antes mencionado, do simples Iluminismo de entendimento. Tal apelo só
pode ser considerado como uma asseveração arbitrária, que está em con­
tradição com o mandamento expresso da religião cristã, de conhecer a
Deus em espírito e em verdade; é de uma humildade que não é de modo
algum cristã, mas orgulhosamente fanática.
§ 137
A força — enquanto é o todo que em si mesmo é a relação
negativa a si — consiste em repelir-se de si e em exteriorizar-se.
Mas já que essa reflexão-sobre-Outro, a diferença das partes, é
igualmente reflexão-sobre-si, a exteriorização é a mediação pela
qual a força, que retorna a si mesma, é enquanto força. Sua exte­
riorização é, ela mesma, o suprassumir da diversidade dos dois la­
dos, que está presente nessa relação, e o pôr da identidade que em
si constitui o conteúdo. Sua verdade é, por isso, a relação cujos dois
lados só são diferentes como interior e exterior.
§ 138
3) O interior é o fundamento, tal como ele é, enquanto pura
forma de um lado do fenômeno e da relação — a forma vazia da
reflexão-sobre-si. A ela se contrapõe a existência, como o exterior,
igualmente enquanto é a forma do outro lado da relação, com a
determinação vazia da reflexão-sobre-Outro. Sua identidade é a
260
identidade preenchida, o conteúdo: a unidade, posta no movimento
da força, da reflexão-sobre-si e da reflexão-sobre-Outro; os dois são
a mesma totalidade una, e essa unidade faz deles o conteúdo.
§ 139
1-) O exterior é, portanto, em primeiro lugar, o mesmo conteúdo
que o interior. O que é interior está também presente exteriormente,
e vice-versa; o fenômeno nada mostra que não esteja na essência;
e nada está na essência que não seja manifestado.
§ 140
2-) Interior e exterior são porém, enquanto determinações-de-for-
ma, também opostos entre si; e, na verdade, absolutamente [opostos]
como as abstrações da identidade consigo, e da pura multiformidade
ou realidade. Mas são essencialmente idênticos, como momentos de
uma forma; assim, o que é posto primeiro somente em uma das abstra­
ções, é posto imediatamente também só na outra. Portanto, o que é somente
um interior é, por isso, também somente um exterior; e o que é somente um
exterior é também primeiro só um interior.
E um erro habitual da reflexão tomar a essência como algo
simplesmente interior. Se tomada simplesmente assim, então
essa consideração é também uma consideração puramente
exterior, e essa essência é a abstração exterior vazia. Diz um
poeta [Goethe]:
“No interior da natureza
nenhum espírito criado penetra.
E demasiado feliz , se sabe apenas
seu invólucro exterior.”*
Seria melhor dizer que, quando, para ele, a essência da natu­
reza se determina como o interior, ele só conhece o invólucro
* Ver tam bém a ‘Exclamação Indignada’ de Goethe: (Contribuição à Ciência Natural, 1,3)
Ouço há sessenta anos repetir e
praguejo contra isso, mas secre­
tam ente: “A natureza não tem
caroço nem casca ela é tudo de
uma só vez” ... etc.

261
exterior. Porque o conceito no ser em geral ou também no
perceber apenas sensível é primeiro só o interior, é algo ex­
terior a eles: um ser, como também um pensar, subjetivo,
carente de verdade. Na natureza, como no espírito, enquanto
o conceito, o fim, a lei são apenas disposições interiores, puras
possibilidades, [então] são apenas uma natureza inorgânica
exterior, uma ciência de um terceiro, uma potência estranha
etc. O homem, tal como é exteriormente, isto é, em seus atos
(não, decerto, em sua exterioridade puramente corporal), [assim
também] é interiormente. E se é virtuoso, moral etc. só interior­
mente, ou seja, só nas intenções, sentimentos etc. — e se seu
exterior não é idêntico a isso — então um é tão oco e vazio
quanto o outro.
Adendo: A relação do interior e do exterior, enquanto unidade das
duas relações precedentes, é ao mesmo tempo a suprassunção da mera
relatividade e do fenômeno em geral. Ora, quando o entendimento sus­
tenta, não obstante, o interior e o exterior em sua separação, aí está um
par de formas vazias; uma é tão nada quanto a outra. E de grande impor­
tância, tanto na consideração da natureza como na consideração do mundo
espiritual, apreender corretamente o que ocorre mesmo na relação do in­
terior e do exterior, e preservar-se do erro [que pretende] que só o interior
é o essencial que verdadeiramente importa; e, ao contrário, o exterior é o
inessencial e o indiferente. Encontramos esse erro antes de tudo quando,
como sucede com freqüência, se reduz a diferença entre a natureza e o
espírito à diferença do exterior e do interior. Nesse caso, no que diz
respeito à apreensão da natureza, esta é sem dúvida alguma não só o
exterior para o espírito, mas também o exterior em si, em geral. Esse em
geral, contudo, não se deve tomar no sentido da exterioridade abstrata —
pois não há absolutamente tal exterioridade —, mas antes no sentido de
que a idéia, que forma o conteúdo comum da natureza e do espírito, está
presente na natureza só como exterior, mas justamente por isso ao mesmo
tempo também só como interior. Ora, por mais aversão que tenha o en­
tendimento abstrato, com seu “ou [isto] ou [aquilo]”, a esse modo de
apreender a natureza, no entanto ele se encontra em nossa consciência
em geral, e muito especialmente em nossa consciência religiosa. De acor­
do com esta, a natureza é uma revelação de Deus, não menos que o
mundo espiritual; e os dois se diferenciam um do outro em que, enquanto
a natureza não consegue tornar-se consciente de sua essência divina, essa
é a tarefa expressa do espírito (que por isso é, antes de tudo, finito). Os

262
que consideram a essência da natureza como algo meramente interior, e
por esse motivo inacessível para nós, adotam nisso o ponto de vista dos
antigos, que julgavam Deus ciumento; contra o que já Platão e Aristóteles
tinham declarado. O que Deus é, ele o comunica, ele o revela; e, na
verdade, antes de tudo pela natureza e na natureza. Além disso, o defeito
ou a imperfeição de um objeto consiste em geral em ser somente
algo interior, e por isso, ao mesmo tempo, somente algo exterior; ou, o
que é o mesmo, em ser só algo exterior e, por isso, só algo interior. Assim,
por exemplo, a criança, enquanto homem em geral, na verdade é um ser
racional; só que a razão da criança como tal é inicialmente só como um
interior, isto é, como disposição, vocação etc.; e esse somente interior tem
ao mesmo tempo para a criança — como a vontade de seus pais, o conhe­
cimento de seus mestres, em geral, enquanto é o mundo racional que a
rodeia — a forma de um exterior apenas. A educação e a formação da
criança consistem então em que o que de início é só em si, e por isso é
para os outros (os adultos), venha a ser também para si. A razão, que na
criança está só presente como possibilidade interior, é efetivada mediante
a educação; e também, inversamente, [a respeito] da ética, da religião, e
da ciência, inicialmente consideradas como autoridade exterior, [a crian­
ça] torna-se consciente como de seu ser próprio e interior.
Em relação a isso, o mesmo que se passa com a criança também se
passa com o homem adulto; enquanto este, em oposição ao seu destino,
^permanece embaraçado na naturalidade de seu saber e querer. Assim, por
exemplo, para o criminoso a pena à qual é submetido tem na verdade a
forma de uma coação exterior; mas de fato ela é somente a manifestação
de sua própria vontade criminosa.
Da discussão anterior, pode-se também concluir o que se deve pensar
quando alguém, ante suas obras mesquinhas, e mesmo seus atos conde­
náveis, apela para a [bem] diversa interioridade de suas intenções e dispo­
sições, que se pretendem excelentes. Ainda assim, pode ser que em um
caso singular, pelo desfavor de circunstâncias exteriores, as boas intenções
sejam frustradas; que planos, conformes ao fim, sejam atrofiados na sua
execução; mas no geral vale também aqui a unidade do interior e do ex­
terior, de forma que se deve dizer: “o que o homem faz, isto ele é". À
vaidade mentirosa que se aquece na consciência de uma excelência inte­
rior, há que opor aquela sentença do Evangelho: “Por seus frutos os
conhecereis”. Esta grande palavra, que vale antes de tudo de um ponto
de vista religioso e ético, também vale, além disso, a respeito das obras
científicas e artísticas. A propósito, no que toca às últimas, pode talvez um
mestre perspicaz, ao notar em um jovem disposições indiscutíveis, mani­
festar a opinião de que há nele um Rafael ou um Mozart, e a continuação
263
vai ensinar em que medida tal opinião era fundada. Mas, quando um
pintor desastrado, e um mau poeta, se consolam porque seu interior está
cheio de elevadas idéias, é esse um mau consolo; e se fazem a exigência
de que não devem julgá-los segundo suas obras, mas por suas intenções,
tal pretensão é rejeitada, com razão, como vazia e infundada. Inversamente
ocorre também com freqüência que, na apreciação de outros que realizam
algo de autêntico e competente, alguém se sirva da diferença falsa entre
o interior e o exterior, para afirmar que isso é somente o exterior, mas que
interiormente se tratava para eles de algo totalmente diverso: da satisfa­
ção de sua vaidade e de outras paixões condenáveis. E este o modo de ver
da inveja, que, incapaz de realizar ela mesma algo de grande, tenta rebai­
xar até ela, e diminuir o que é grande. Em sentido contrário, há que
lembrar a bela palavra de Goethe, que “contra os grandes méritos dos
outros não há outro recurso que o amor”. Além do mais, se ante as obras
louváveis dos outros se fala de hipocrisia para depreciá-las, deve-se notar
contra isso que o homem pode de certo dissimular no pormenor, e ocultar
muita coisa; mas não o seu interior em geral, que no decursus vitae infa­
livelmente se faz conhecer; de modo que se pode dizer também a esse
respeito que o homem não é outra coisa que a série de seus atos. É
particularmente a maneira — dita pragmática — de escrever a história,
que por essa separação, oposta à verdade, entre o interior e o exterior, tor­
nou-se culpada em relação aos caracteres históricos, e perturbou e distor­
ceu'sua compreensão. Em vez de contentar-se com narrar simplesmente
os grandes feitos que foram praticados pelos heróis da história universal,
e reconhecer seu interior como correspondente ao conteúdo desses feitos,
julgou-se ter direito e dever de rastrear, por detrás do que aparece à luz
do dia, supostos motivos secretos. Acredita-se então que a pesquisa his­
tórica é tanto mais profunda quanto mais consegue despojar de seu nimbo
o que era até agora celebrado e glorificado; e em razão de sua origem, e
de sua significação própria, rebaixá-lo até o nível da mediocridade ordiná­
ria. Em vista dessa pesquisa histórica pragmática, muitas vezes também
se recomendou o estudo da psicologia, porque por meio dela se consegue
informação sobre o que sejam os verdadeiros motivos pelos quais os ho­
mens em geral são determinados a agir. Contudo a psicologia, à qual se
remete aqui, não é outra coisa que aquela mesquinha sabença humana,
que em lugar do universal e do essencial toma principalmente, por objeto
de sua consideração, apenas o particular e contingente dos impulsos,
paixões etc. singulares. Aliás, enquanto, nesse método psicológico-prag-
mático em relação aos motivos que estão na base dos grandes feitos,
restaria ao historiador antes de tudo a escolha entre os interesses substan­
ciais da pátria, do direito, da verdade religiosa etc., por um lado; e os

264
interesses subjetivos e formais da vaidade, ânsia pelo poder e pela riqueza
etc., do outro lado; são esses últimos que são considerados como o que
verdadeiramente move, porque de outro modo o pressuposto da oposição
entre o interior (os sentimentos do agente) e o exterior (o conteúdo da
ação) não obteria a confirmação. Ora, como segundo a verdade o interior
e o exterior têm o mesmo conteúdo, é preciso então ser também afirmado
expressamente, contra essa inteligência de mestre-escola, que, se para os
heróis históricos só fosse questão de interesses subjetivos e formais, não
teriam realizado o que realizaram; e há que reconhecer, tendo em vista a
unidade do interior e do exterior, que os grandes homens quiseram o que
fizeram, e fizeram o que quiseram.
§ 141
As abstrações vazias — pelas quais deve estar ainda na relação
o conteúdo que é um só e o mesmo — se suprassumem no ultrapas­
sar imediato, uma na outra; o conteúdo não é, ele mesmo, outra
coisa que a sua identidade (§ 138): elas são a aparência da essência,
posta como aparência. Pela exteriorização da força, o interior é posto
na existência; esse pôr é o mediar através de abstrações vazias; des­
vanece em si mesmo em direção à imediatez, em que o interior e o
exterior são em si e para si idênticos, e sua diferença é determinada
somente como ser-posto. Essa identidade é a efetividade.

265
£
A EFETIVIDADE

§ 142
A efetividade é a unidade, que veio-a-ser imediatamente, da
essência e da existência, ou do interior e do exterior. A exteriori­
zação do efetivo é o efetivo mesmo, de modo que nela fica igual­
mente um essencial, que só é essencial enquanto está em uma
existência exterior imediata.
Anteriormente se apresentaram, como formas do imediato,
ser e existência. O ser é, em geral, a imediatez não-refletida, e
o ultrapassar para Outro. A existência é a unidade imediata do
ser e da reflexão, portanto fenômeno; vem do fundamento e
vai para o fundamento. O efetivo é o ser-posto daquela uni­
dade, a relação que-veio-a ser idêntica consigo mesma: está,
portanto, subtraído ao ultrapassar, e sua exterioridade é sua
energia; nela está [o efetivo] refletido sobre si; seu ser-aí é a
manifestação de si mesmo, não de um Outro.
Adendo: A efetividade e o pensamento, mais precisamente a idéia,
costuma-se de modo trivial opor uma ao outro. Pode-se, por isso, ouvir

266
dizer muitas vezes que contra a exatidão e a verdade de um certo pensa­
mento nada há a objetar; mas que uma coisa dessas não se encontra na
efetividade, ou não pode realizar-se na efetividade. Os que assim falam
provam contudo, com isso, que não entenderam bem nem a natureza do
pensamento, nem a da efetividade. E que, por um lado, em tais discursos
o pensamento é tomado como sinônimo de representação subjetiva, pla­
no, intenção, ou coisa parecida; e de outro lado a efetividade, como sinô­
nimo de existência exterior, sensível. Na vida ordinária, em que não se
tomam com tanto rigor as categorias e sua designação, pode ocorrer assim;
e pode também ser o caso em que por exemplo o plano, ou a assim
chamada idéia, de um certo sistema-de-imposto seja em si completamen­
te bom e adequado ao fim, mas que tal coisa não se encontra em uma
efetividade — também assim-chamada — e não possa ser executada nas
situações dadas. Quando porém o entendimento abstrato se apodera des­
sas determinações, e intensifica sua diferença até considerá-las como um
objeto fixo e firme — de tal forma que se devesse, nesse mundo efetivo,
arrancar-se as idéias da cabeça —, semelhante [atitude] deve ser rejeitada
com a máxima decisão em nome da ciência e da sã razão. E que por um
lado as idéias não são, absolutamente, apenas cravadas em nossas cabeças,
e a idéia em geral não é algo tão impotente, cuja realização segundo só
o nosso bel-prazer tivesse de ser efetuada ou não efetuada; ao contrário,
a idéia é antes algo ao mesmo tempo absolutamente eficiente e também
efetivo. Por outro lado, a efetividade não é tão má e irracional quanto o
imaginam [homens] práticos, carentes-de-pensamento ou rompidos com o
pensamento e decaídos. A efetividade, diretamente do simples fenôme­
no, antes de tudo como unidade do interior e do exterior, tampouco se
contrapõe como um Outro à razão, que antes é o completamente racional;
e o que não é racional não pode — justamente por essa razão — ser
considerado como efetivo. A isso corresponde, de resto, o uso cultivado da
língua: haverá hesitação em reconhecer um poeta ou um estadista que
nada sabem efetuar de sólido e racional, como um poeta efetivo ou um
efetivo estadista. Na apreensão comum — aqui discutida — da efetividade,
e na confusão dela com o que é palpável e imediatamente perceptível, há
que buscar o fundamento desse preconceito tão difundido a propósito da
relação da filosofia aristotélica com a filosofia platônica. Segundo esse
preconceito, a diferença entre Platão e Aristóteles consistiria em que,
enquanto o primeiro reconheceria a idéia, e somente a idéia, como o
verdadeiro, o segundo pelo contrário, com a rejeição da idéia, se conserva­
ria no efetivo e por esse motivo devia ser considerado como o fundador
e corifeu do empirismo. Quanto a isso, convém notar que a efetividade
certamente forma o princípio da filosofia aristotélica; contudo, não é a
267
efetividade comum, do imediatamente dado, e sim a idéia enquanto
efetividade. A polêmica de Aristóteles contra Platão consiste precisamen­
te em que a idéia platônica é caracterizada como simples dynamis, e contra
isso se faz valer que a idéia, que é reconhecida pelos dois igualmente
como o só Verdadeiro, tem de ser considerada essencialmente como enér-
geia, isto é, como o interior que está absolutamente fora; e por isso como
a unidade do interior e do exterior, ou seja, como a efetividade no sentido
enfático da palavra, em que se fala aqui.
§ 14 3
A efetividade, enquanto é este concreto, contém aquelas deter­
minidades [antes mencionadas] e sua diferença. Por esse motivo é
também o seu desenvolvimento, de modo que são determinadas na
objetividade, ao mesmo tempo, como aparência, como [termos]
apenas postos (§ 141).
1) Enquanto identidade em geral, ela é, antes de tudo, a possibi­
lidade-, a reflexão-sobre-si, enquanto se contrapõe à unidade concre­
ta do efetivo, é posta como a essencialidade inessencial e abstrata. A
possibilidade é o essencial para a efetividade, mas de tal modo que
seja ao mesmo tempo possibilidade apenas.
A determinação da possibilidade é, com certeza, aquela que
Kant podia considerar — junto com a efetividade e a neces­
sidade — como modalidades “enquanto essas determinidades
não aumentaram, no mínimo que seja, o conceito como ob­
jeto, mas exprimem somente a relação à faculdade-de-co-
nhecer” [Crítica da Razão Pura, B 266]. De fato, a possibi­
lidade é a abstração vazia da reflexão-sobre-si — o que antes
se chamava o interior; só que agora é determinado como o
interior suprassumido, somente posto-, sem dúvida, assim tam­
bém é posto como uma simples modalidade, como abstração
insuficiente; [e,] tomado de modo mais concreto, como perten­
cente só ao pensar subjetivo. Efetividade e necessidade, ao
contrário, não são na verdade nada menos que uma simples
espécie e maneira-de-ser para um Outro; antes são justamente
o contrário: são postas como o concreto que não é apenas
posto, mas é consumado em si mesmo.
Uma vez que a possibilidade é, antes de tudo — ante o
concreto como algo efetivo —, a simples forma da identidade-
!68
-consigo, a regra para essa [forma] é somente que algo não se
contradiga em si mesmo; e assim tudo épossível, pois a qual­
quer conteúdo pode ser dada essa forma da identidade por
meio da abstração. Mas igualmente tudo é impossível, pois em
qualquer conteúdo, por ser um concreto, a determinidade
pode ser compreendida como oposição determinada, e por­
tanto como contradição.
Não há, pois, nenhum discurso mais vazio que o discurso de
tal possibilidade e impossibilidade. Em particular, na filoso­
fia não pode tratar-se de mostrar que algo seja possível ou que
também algo diverso seja possível, ou que alguma coisa, como
se diz, seja pensável. O historiador é também advertido ime­
diatamente para não usar essa categoria, já declarada como
não-verdadeira para si; mas a sutileza do entendimento vazio
se compraz muitíssimo na invenção oca de possibilidades, e
de possibilidades deveras numerosas.
Adendo: Para a representação, a possibilidade aparece inicialmente co­
mo a determinação mais rica e mais abrangente; e a efetividade, ao con­
trário, como a mais pobre e a mais restrita. Por conseguinte se diz “tudo
é possível; mas nem tudo que é possível é, por isso, também efetivo”. De
fato — quer dizer, de acordo com o pensamento — a efetividade é, con­
tudo, o que há de mais abrangente; porque como pensamento concreto,
em si contém a possibilidade como um momento abstrato. Isso se encontra
também em nossa consciência ordinária, quando, ao se falar do possível
em sua diferença do efetivo, nós o designamos como somente possível. Em
geral, costuma-se dizer da possibilidade que consiste apenas na “pensa-
bilidade”. Mas, aqui, o que se entende por pensar é apenas o apreender
de um conteúdo na forma da identidade abstrata. Ora, como todo con­
teúdo pode produzir-se nessa forma, e para isso basta apenas que seja
separado das relações em que está, assim o maior absurdo e o maior
contra-senso pode ser considerado como possível. E possível que hoje de
tarde a lua caia sobre a terra, pois a lua é um corpo separado da terra e por
isso pode cair tão bem quanto uma pedra que foi lançada para o ar. E
possível que o Sultão se torne Papa; pois é um ser humano e pode, enquanto
tal, converter-se ao cristianismo, tornar-se um sacerdote católico etc. Nesse
modo de falar sobre possibilidades, utiliza-se sobretudo a lei-de-pensamento
da razão-de-ser, tal como se tratou antes; e isso significa, portanto, que é
possível aquilo para o qual se pode apresentar uma razão-de-ser. Quanto
mais inculta é uma pessoa, quanto menos conhece as relações determina­
269
das dos objetos a que dirige sua consideração, tanto mais costuma ser incli­
nada a divagar por todo o tipo de possibilidades vazias, como por exemplo
no domínio da política sucede com os chamados “politiqueiros”. Também
acontece, não raramente na vida prática, que a má vontade e a preguiça se
dissimulem sob as categorias da possibilidade, para escapar assim a certas
obrigações. Vale a respeito o mesmo que antes se notou sobre a utilização da
lei-de-pensamento da razão-de-ser. Os homens razoáveis e práticos não se
deixam impressionar pelo possível — justamente porque é apenas possível
— mas se atêm ao efetivo, pelo qual aliás não se deve entender decerto
simplesmente o que “está-aí” de modo imediato. Na vida ordinária, aliás,
não faltam provérbios por meio dos quais se exprime o justo desprezo da
possibilidade abstrata. Diz-se, por exemplo: “Vale mais um pardal na mão do
que dez sobre o telhado”. Além disso, pode-se também, com o mesmo
direito com que se considerou tudo como possível, considerar tudo como
impossível; e decerto, enquanto qualquer conteúdo, que como tal é sempre
algo concreto, contém em si determinações não só diversas, mas também
opostas. Assim, por exemplo, nada é mais impossível que isto que eu sou:
pois [o] Eu é ao mesmo tempo relação simples a si e, pura e simplesmente,
relação a Outro. O mesmo ocorre com qualquer outro conteúdo do mundo
da natureza e do mundo do espírito. Pode-se dizer que a matéria é impos­
sível, pois é a unidade da repulsão e da atração. Vale o mesmo quanto ao
amor, ao direito, à liberdade, e ao próprio Deus, enquanto é o verdadeiro
Deus, isto é, o Deus uno e trino; cujo conceito é também rejeitado pelo
abstrato Iluminismo-do-entendimento, segundo o seu princípio, como contra­
dizendo pretensamente o pensar. E em geral o entendimento vazio que
vagueia nessas formas vazias; e, quanto a elas, a história da filosofia consiste
em mostrar sua nulidade e carência-do-conteúdo. Se isto é possível ou im­
possível, depende do conteúdo, quer dizer, da totalidade dos momentos da
efetividade, que se mostra em seu desdobramento como a necessidade.
§ 144
2) Porém o efetivo, em sua diferença da possibilidade, enquanto
esta é a reflexão-sobre-si, ele mesmo é só o concreto exterior, o Ime­
diato inessenáal. Ou seja: imediatamente, enquanto é primeiro (§ 142)
como a unidade simples, ela mesma imediata, do interior e do exterior,
o efetivo é como exterior inessenáal; e assim é, ao mesmo tempo (§
140), o que é somente interior, a abstração da reflexão sobre si; por
conseguinte, ele mesmo é determinado como algo apenas possível.
Nesse valor de uma simples possibilidade, o efetivo é algo contingente-,
e, inversamente, a possibilidade é a simples contingência mesma.
270
§ 145
Possibilidade e contingência são os momentos da efetividade:
interior e exterior postos como simples formas que constituem a
exterioridade do efetivo. Têm elas sua reflexão-sobre-si no efetivo
determinado em si mesmo, no conteúdo — enquanto é sua razão-
-determinante essencial. A finitude do contingente e do possível
consiste pois, mais precisamente, no ser-diferente da determina-
ção-da-forma em relação ao contéudo; e portanto, se alguma coisa
é contingente e possível, isso depende do conteúdo.
Adendo: A possibilidade, enquanto é só o interior da efetividade, jus­
tamente por isso é a efetividade somente exterior, ou a contingência. O
contingente, em geral, é algo que tem em si mesmo a razão de seu ser,
mas em outro. Esta é a figura em que a efetividade se oferece inicialmen­
te à consciência, e que muitas vezes se confunde com a efetividade mesma.
Entretanto, o contingente só é o efetivo na forma unilateral da reflexão-
-sobre-Outro, ou efetivo com a significação de algo simplesmente possí­
vel. Por esse motivo, consideramos o contingente como algo que pode ser
ou também não ser, que pode ser assim ou de outro modo, e cujo ser ou
não-ser, seu ser-assim ou ser-diversamente, não está fundado nele mesmo
mas em Outro. Então, por um lado, superar esse contingente é a tarefa do
conhecimento, assim como, por outro lado, no domínio da prática também
se trata de não permanecer na contingência do querer ou do [livre-] arbí­
trio. Todavia aconteceu, com freqüência, sobretudo no tempo moderno,
que se exaltasse a contingência de modo exagerado, atribuindo-lhe um
valor que de fato não lhe compete, tanto a respeito da natureza como do
mundo espiritual. A propósito, primeiro no que toca à natureza, não é raro
que se costume admirá-la principalmente por causa da riqueza e da com­
plexidade de suas formações. Mas essa riqueza como tal, abstraindo do
desdobramento da idéia aí presente, não apresenta nenhum interesse
racional mais elevado, e só nos proporciona, na grande complexidade das
formações inorgânicas e orgânicas, a intuição do contingência perdendo-
-se dentro do indeterminado. Em todo caso, o jogo multicor — condicio­
nado por circunstâncias exteriores — das variedades singulares das plan­
tas e dos animais; a configuração e o agrupamento das nuvens, mudando-
-se de modo variado etc. não podem ser mais valorizados que os palpites
também contingentes do espírito que se move em seu [livre-]arbítrio. A
admiração votada a tal fenômeno é uma atitude muito abstrata, da qual se
deve passar à intelecção mais meticulosa da harmonia e do sistema-de-leis
271
da natureza. Em seguida, é de particular importância a apreciação correta
da contingência com respeito à vontade. Quando se trata da liberdade da
vontade, muitas vezes se entende por isso simplesmente o [livre-]arbítrio,
isto é, a vontade na forma da contingência. Ora, o [livre-]arbítrio, certa­
mente, enquanto a capacidade de determinar-se a isso ou àquilo, é um
momento essencial da vontade, livre segundo o seu conceito; no entanto
não é de modo algum a liberdade mesma, mas, antes de tudo, apenas a
liberdade formal. A vontade verdadeiramente livre, que em si contém o
[livre-]arbítrio como suprassumido, é consciente de seu conteúdo como
de um conteúdo firme em si e para si; e o sabe, ao mesmo tempo, pura
e simplesmente como o seu. Ao contrário, a vontade que fica no degrau
do [livre-]arbítrio, mesmo quando se decide pelo que é verdadeiro e justo
conforme o conteúdo, mesmo então está sempre afetada pela presunção
de que, se lhe aprouvesse, teria podido decidir-se também por outra coisa.
Considerado mais de perto, aliás, mostra-se o [livre-]arbítrio como uma
contradição, enquanto aqui ainda se contrapõem mutuamente a forma e
o conteúdo. O conteúdo do [livre-]arbítrio é um conteúdo dado, e não é
sabido como fundado na vontade mesma, mas em circunstâncias externas.
Por esse motivo a liberdade, no que respeita a tal conteúdo, consiste
apenas na forma do escolher. Essa liberdade formal deve considerar-se
também como uma liberdade simplesmente suposta, enquanto em última
análise se vai encontrar que também é preciso atribuir-se, que a vontade
se decida precisamente por isso e não por aquilo, à mesma exterioridade
das circunstâncias em que se funda o conteúdo encontrado pela vontade.
Ora, se bem que a contingência, em virtude do que foi discutido até
agora, seja apenas um momento unilateral da efetividade, e por conse­
guinte não possa confundir-se com ela mesma, contudo lhe compete seu
direito também no mundo objetivo, como a uma forma da idéia em geral.
Isso vale antes de tudo para a natureza, em cuja superfície, por assim
dizer, a contingência tem seu livre curso, que também como tal tem de
reconhecer-se, sem a pretensão (às vezes atribuída erroneamente à filosofia)
de querer encontrar nisso um poder-ser somente assim, e não de outro
modo. Também o contingente se faz valer no mundo espiritual, como já
se notou antes a propósito da vontade, que contém em si o contingente na
forma do [livre-]arbítrio, embora seja somente como [um] momento
suprassumido. A respeito do espírito e de sua atividade, é preciso ter cuidado
para não se deixar seduzir pelo zelo bem-intencionado de um conhecimento
racional, de querer mostrar como necessários — ou, como se costuma dizer,
construir a priori — os fenômenos aos quais pertence o caráter da contingên­
cia. Assim, por exemplo, na linguagem, embora seja de certo modo o corpo
do pensar, o acaso também desempenha seu papel decisivamente; e o mes-
272
mo sucede com as formações do direito, da arte etc. É totalmente exato que
a tarefa da ciência, e mais precisamente da filosofia em geral, consiste em
conhecer a necessidade oculta sob a aparência da contingência; mas isso não
se pode entender como se o contingente pertencesse simplesmente a nossa
representação subjetiva, e por causa disso tivesse de ser afastado absoluta­
mente para alcançar a verdade. Esforços científicos, que se desenvolvem
unilateralmente nessa direção, não escapam à censura justificada de serem
uma brincadeira vazia, ou um pedantismo afetado.
§ 146
Essa exterioridade da efetividade implica, mais precisamente,
que a contingência, enquanto efetividade imediata, só é essencial­
mente o idêntico consigo mesmo como [um] ser-posto, o qual po­
rém é igualmente suprassumido: é uma exterioridade essente-aí.
Essa é, desse modo, algo pressuposto, cujo ser-aí é, ao mesmo
tempo, uma possibilidade e tem a determinação de ser suprassumido
-— a possibilidade de ser um Outro: a condição.
Adendo: O contingente, enquanto é a efetividade imediata, é ao mesmo
tempo a possibilidade de um Outro; entretanto, não mais simplesmente
aquela possibilidade abstrata, que tínhamos de início, mas a possibilidade
como essente; a qual, assim, é condição. Ao falarmos da condição de uma Coisa,
há aí dois [elementos], a saber: de uma parte, um ser-aí, uma existência, em
geral algo imediato; de outra parte, a determinação desse imediato: de ser
suprassumido e de servir à efetivação de um Outro. Ora, a efetividade ime­
diata, em geral, enquanto tal não é o que deve ser, e sim uma efetividade
quebrada em si mesma, finita; e sua determinação é ser consumida. Mas o
outro lado da efetividade é sua essencialidade. Essa é antes de mais nada o
interior que, como simples possibilidade, também é destinado a ser
suprassumido. Como possibilidade suprassumida, é o surgir de uma nova
efetividade, que tinha por pressuposto a primeira efetividade imediata. Essa
é a permuta que o conceito de condição contém em si. Ao considerar as
condições de uma Coisa, elas nos parecem algo de todo inocente. Mas, de
fato, tal efetividade imediata contém em si o gérmen de algo totalmente
outro. Esse outro é antes de tudo um possível, apenas; cuja forma porém
depois se suprassume e se traduz em efetividade. Essa nova efetividade, que
assim surge, é o próprio interior da efetividade imediata, que ela consome.
Desse modo, vem-a-ser uma totalmente outra figura das coisas; e também
nada de outro vem-a-ser: pois a primeira efetividade é somente posta segun­
do sua essência. As condições, que se sacrificam, que perecem e são consu­
273
midas, somente vão reunir-se consigo mesmas em outra efetividade. Então,
o processo da efetividade é em geral mediação, não temos ainda o que se
entende por necessidade. Ora, é em geral desse tipo o processo da efetividade.
Não é apenas um essente imediato, mas, como o ser essencial, é a suprassunção
de sua própria imediatez e assim se mediatiza consigo mesmo.
§ 147
3) Essa exterioridade assim desenvolvida é um círculo das deter­
minações da possibilidade e da efetividade imediata, sua mediação uma
pela outra [é] a possibilidade real, em geral. Sendo esse círculo, ela é
além disso a totalidade; assim é o conteúdo, a Coisa determinada em si
e para si, e igualmente — segundo a diferença das determinações
nessa unidade — é a concreta totalidade da forma para si, o imediato
transpor-se do interior para o exterior, e do exterior para o interior.
Esse automover-se da forma é a atividade, ativação da Coisa, como do
real fundamento, que se suprassume em efetividade, e ativação da
efetividade contingente, das condições; a saber, sua reflexão-sobre-si
e seu suprassumir-se em outra efetividade — na efetividade da Coisa.
Quando estão presentes todas as condições, a Coisa deve tornar-se efe­
tiva; e a Coisa é ela mesma uma das condições; porque, enquanto
interior, ela mesma é apenas um pressuposto. A efetividade desenvol­
vida, enquanto permuta — que recai na unidade — do interior e do
exterior, a permuta de seus movimentos opostos, que são reunidos em
um só movimento, é a necessidade.
A necessidade foi definida corretamente, sem dúvida, como
unidade da possibilidade e da efetividade. Mas, só assim, essa
determinação é superficial; e portanto ininteligível. O conceito
da necessidade [Notwendigkeit] é muito difícil, e na verdade
por ser ela o conceito mesmo, mas cujos momentos são ainda
como efetividades, porém que ao mesmo tempo devem ser
apreendidos só como formas, como rompidas em si mesmas e
como em transição. Deve-se, por isso, apresentar nos dois pará­
grafos seguintes a exposição ainda mais pormenorizada dos
momentos que constituem a necessidade [Nwk].
Adendo: Quando de algo se diz que é necessário, perguntamos primei­
ro o “porquê”. O necessário, pois, deve mostrar-se como algo posto, como
algo mediatizado. Mas, se ficamos na simples mediação, não temos ainda
274
o que se entende por necessidade. O simples Mediatizado é o que é, não
por si mesmo mas por um outro, e por isso ele mesmo é apenas contin­
gente. Ao contrário, exigimos do necessário que seja por si mesmo o que
é; e assim, mediatizado decerto, que tenha ao mesmo tempo a mediação
como suprassumida. Por conseguinte dizemos do necessário: “ele é e
desse modo ele mesmo vale para nós como uma relação simples consigo
mesmo, na qual se elimina o ser-condicionado por Outro.
Costuma-se dizer da necessidade que é cega\ e decerto com razão,
enquanto em seu processo o fim como tal ainda não está presente para si.
O processo da necessidade começa com a existência de circunstâncias
dispersas, que parece nada terem umas com as outras, nem terem em si
nenhuma conexão. Essas circunstâncias são uma efetividade imediata,
que em si mesma desmorona; e dessa negação surge uma nova efetividade.
Temos aqui um conteúdo, que segundo a forma é duplicado em si mes­
mo: uma vez, como conteúdo da Coisa de que se trata; outra vez, como
conteúdo das circunstâncias dispersas que aparecem como algo positivo,
e antes de tudo se fazem valer assim. Esse conteúdo, como algo nulo em
si, é por conseguinte invertido, e torna-se assim o conteúdo da Coisa. As
circunstâncias imediatas perecem como condições; mas são ao mesmo
tempo conservadas como conteúdo da Coisa. Diz-se então que de tais
circunstâncias e condições surgiu algo totalmente outro, e por isso se
chama cega à necessidade, que é esse processo. Se consideramos, ao
contrário, a atividade que é conforme a um fim, temos aqui no fim um
conteúdo que já é sabido anteriormente, e por isso essa atividade não é
cega, mas vidente. Quando dizemos que o mundo é governado pela Pro­
vidência, aí está implícito que o fim em geral é o atuante, enquanto é o
predeterminado em si e para si; assim o produzido corresponde ao que foi
antes sabido e querido. Aliás, não há que considerar, de modo algum,
como mutuamente exclusivas, a compreensão do mundo como determi­
nado pela necessidade, e a crença em uma Providência divina. O que à
Providência divina, segundo o pensamento, serve de fundamento surgirá
para nós em breve como o conceito. O conceito é a verdade da necessida­
de, e a contém em si como suprassumida; assim como, vice-versa, a ne­
cessidade em si é o conceito. Cega, a necessidade só o é enquanto não é
conceituada; e por isso nada mais absurdo que a denúncia de fatalismo
cego que se faz à filosofia da história, porque ela considera sua tarefa
como o conhecimento da necessidade do que sucedeu. A filosofia da
história recebe, com isso, a significação de uma teodicéia; e os que acredi­
tam honrar a Providência divina ao excluir dela a necessidade rebaixam-na
de fato, por essa abstração, a um arbítrio cego e carente de razão. A
consciência religiosa ingênua fala dos eternos e invioláveis decretos de
275
Deus, e nisso está implícito o reconhecimento expresso da necessidade como
pertencendo à essência divina. O homem, em sua diferença para com Deus.
com seu particular supor e querer, procede conforme seu capricho e arbítrio,
e assim lhe acontece, por ocasião de sua ação, que resulta algo totalmente
outro do que tinha suposto e querido; enquanto Deus sabe o que quer; nãc
é determinado na sua vontade eterna, por um acaso interior ou exterior; e c
que ele quer, também leva a cabo de maneira irresistível.
Em geral, o ponto de vista da necessidade é da maior importância, nc
que toca à nossa mentalidade e ao nosso comportamento. Quando conside­
ramos necessário o que acontece, à primeira vista parece uma relação com­
pletamente destituída de liberdade. E bem conhecido que os antigos apre­
endiam a necessidade como destino, enquanto o ponto de vista moderno, ac
contrário, é o da consolação. Esta consiste em geral em que, quando renun­
ciamos a nossos fins, a nossos interesses, nós o fazemos em vista de obter poi
isso uma compensação. Ao contrário, o destino é sem consolação. Conside­
rando agora mais de perto a mentalidade dos antigos em relação ao destino,
ela não nos proporciona contudo, de modo algum, a intuição da não-liberda-
de, mas antes a intuição da liberdade. Isso está implicado em que a não-
-liberdade está fundada no sustentar-se na oposição, de forma que conside­
ramos o que /e o que acontece, como estando em contradição com o que
deve ser e acontecer. Na mentalidade dos antigos, pelo contrário, encontra-
-se isto: porque tal [coisa] é, assim ela é; e, como é, deve ser. Aqui não se dí
nenhuma oposição; e, por isso, também nenhuma não-liberdade, nenhum
sofrimento, e nenhuma dor. Esse comportamento para com o destino é na
verdade, como antes se notou, certamente sem-consolação; mas tal menta­
lidade também não precisa de consolação, e na verdade pelo motivo de que
aqui a subjetividade ainda não atingiu sua significação infinita. Esse ponte
de vista é o que deve ser apreendido como o decisivo, ante nossos olhos, na
comparação da mentalidade antiga com nossa mentalidade moderna, cristã.
Caso se entenda por subjetividade simplesmente a subjetividade finita ime­
diata, com o conteúdo contingente e arbitrário de suas inclinações e interes­
ses particulares — em geral, o que se chama pessoa, diferenciando-a da
Coisa no sentido enfático da palavra (nesse sentido se costuma dizer, e com
razão, que é a Coisa que importa, e não a pessoa) —, não se pode deixar de
admirar a tranqüila submissão dos antigos ao destino, e de reconhecer essa
mentalidade como mais elevada e mais digna que a moderna que persegue
obstinadamente seus fins subjetivos; e, quando se vê obrigada a renunciar a
sua obtenção, só se consola com a perspectiva de receber por isso uma
compensação sob outra forma. Ora, além disso a subjetividade também não
é simplesmente a subjetividade má e finita, enquanto oposta à Coisa; mas,
276
segundo sua verdade, é imanente à Coisa; e, portanto, subjetividade infinita,
é a verdade da Coisa mesma. Compreendido assim, o ponto de vista da
consolação recebe uma significação totalmente outra e mais elevada; e é
nesse sentido que a religião cristã deve ser considerada como a religião da
consolação, e, na verdade, da consolação absoluta. O cristianismo contém,
reconhecidamente, a doutrina de que Deus quer que se preste socorro a
todos os homens, e com isso está expresso que a subjetividade tem um valor
infinito. Mais precisamente, o que há de consolador na religião cristã reside
em que, aqui sendo Deus mesmo conhecido como a subjetividade absoluta,
mas contendo em si a subjetividade o momento da particularidade e, por isso
nossa particularidade também não é reconhecida simplesmente como algo a
ser negado abstratamente, mas ao mesmo tempo como algo a ser conservado.
Os deuses dos antigos eram, com certeza, considerados também como pes­
soais; contudo, a personalidade de um Zeus, de um Apoio etc. não é uma
personalidade efetiva, mas apenas representada; ou, exprimindo diversamente,
esses deuses são simplesmente personificações, que como tais não se sabem,
elas mesmas, mas somente são sabidas. Essa deficiência e essa impotência dos
deuses antigos, nós encontramos também presente na consciência religiosa
dos antigos, enquanto consideram não só os homens mas também os pró­
prios deuses como submetidos ao destino (ao “ 7t£7tp(ú|X£VOv” ou à
“eíjjxxpfiévri”) — destino que se deve representar como a necessidade não-
desvelada, e portanto como o absolutamente impessoal, carente-de-si e cego.
Ao contrário, o Deus cristão é o Deus que não só é conhecido, mas que se
conhece absolutamente; é uma personalidade não simplesmente representa­
da, mas antes a personalidade absolutamente efetiva. Aliás, embora quanto
a um desenvolvimento ulterior dos pontos aqui tocados tenha de se remeter
à filosofia da religião, pode-se ainda notar aqui quanto é importante que o
homem compreenda o que atinge, no sentido do velho adágio que diz:
“Cada um é ferreiro de sua própria sorte”. Isso implica que o homem, em
geral, só recebe seu gozo de si mesmo. O ponto de vista oposto é aquele em
que atribuímos a culpa do que nos molesta a outros homens, ao desfavor das
circunstâncias e a coisas semelhantes. Este é de novo o ponto de vista da
não-liberdade, e ao mesmo tempo a fonte do desassossego. Quando, ao
invés, o homem reconhece que o que lhe sucede é apenas uma evolução de
si mesmo, e que só carrega sua própria culpa, então se comporta como um
homem livre, e em tudo o que lhe acontece tem a fé de que nada de injusto
lhe sobrevêm. O homem que vive em discórdia consigo mesmo e com sua
sorte comete justamente a falsa opinião de que sofre injustiça da parte de
outros; muito erro e muito equívoco. Ora, sem dúvida, há também muito
de contingente no que nos acontece. Entretanto, esse contingente está
fundado na naturalidade do homem. Quando porém o homem tem a
277
consciência de sua liberdade, a desgraça que lhe acontece não destrói a
harmonia de sua alma, a paz do seu coração. E pois a visão da necessidade
que determina a satisfação e a insatisfação dos homens, e com isso seu
próprio destino.
§ 148
[Distingamos] entre os três momentos: a condição, a coisa e a
atividade.
a) A condição é 1) o pressuposto. Enquanto algo somente posto,
é somente como relativa à coisa; mas enquanto algo /w?[ssuposto]
é enquanto para si — circunstância externa, contingente que existe
sem referência à Coisa. Nessa contingência porém, ao mesmo tem­
po em referência à coisa — que é a totalidade — esse pressuposto
é um círculo completo de condições. 2) As condições são passivas, são
utilizadas para a Coisa como material, e entram assim no conteúido
da Coisa; são também conforme a esse conteúdo, cuja determinação
completa já contêm em si.
b) A Coisa é igualmente 1) um pressuposto. Como posto é apenas
um interior e possível, e como />r<?[ssuposto] é um conteúdo para si,
autônomo. 2) A coisa obtém pela utilização das condições sua exis­
tência exterior, o realizar de suas determinações-de-conteúdo, que
com reciprocidade correspondem às condições, de modo que a partir
delas se mostra como Coisa e delas provém.
c) A atividade: 1) é igualmente para si (um homem, um caráter)
existente de maneira autônoma; e ao mesmo tempo só tem sua pos­
sibilidade nas condições e na Coisa; 2) é o movimento de trasladar as
condições para a Coisa e vice-versa, como no lado da existência; ou,
melhor, movimento somente de colocar a Coisa para fora das condi­
ções em que ela está presente em si, e por meio da suprassunção da
existência, que as condições têm, dar existência à Coisa.
Na medida em que esses três momentos têm, uns para com os
outros, a figura de existência autônoma, esse processo é como a ne­
cessidade exterior. Essa necessidade tem um conteúdo limitado à
sua Coisa. Pois a Coisa é esse todo, na sua determinidade simples',
mas, porque ele na sua forma é exterior a si, por isso é também
exterior a si nele mesmo e em seu conteúdo; e essa exterioridade
é na Coisa, limite de seu conteúdo.
278
§ 149
A necessidade portanto é, em si, a essência una, idêntica consigo
mesma, mas repleta de conteúdo; que aparece em si mesma de modo
que suas diferenças têm a forma de [termos] efetivos autônomos; e esse
idêntico é, ao mesmo tempo, como forma absoluta, a atividade de
suprassumir o ser-imediato* no ser-mediatizado, e a mediação na
imediatez. O que é necessário, é por meio de um Outro, que se divide
em um fundamento mediatizante (a Coisa e a atividade) e em uma
efetividade imediata — algo contingente que é, ao mesmo tempo,
condição. O necessário, enquanto é mediante um Outro, não é em si
e para si, mas é algo simplesmente posto. Mas essa mediação é tam­
bém imediatamente o suprassumir de si mesma; o fundamento e a
condição contingente são transpostos em imediatez, pela qual aquele
ser-posto é suprassumido para [ser] efetividade, e a Coisa veio a reunir-
se consigo mesma. Nesse retorno para si, o necessário é pura e simples­
mente como efetividade incondicionada. O necessário é assim: mediati­
zado por um círculo de circunstâncias; é assim porque são assim as cir­
cunstâncias; e no uno é assim: não-mediatizadó\ é assim porque é.

a) Relação de substancialidade
§ 150
O necessário é em si relação absoluta; isto é, o processo desen­
volvido (nos parágrafos precedentes) em que a relação se suprassume
igualmente para [ser] a identidade absoluta.
Em sua forma imediata, é a relação da substancialidade e da
acidentalidade. A identidade absoluta consigo dessa relação é a subs­
tância como tal; que é, enquanto necessidade, a negatividade dessa
forma da interioridade; assim se põe como efetividade, mas é tam­
bém a negatividade desse exterior, segundo a qual o efetivo, enquanto
imediato, é só um acidental, que por essa sua simples possibilidade
passa para uma outra efetividade; um passar que é a identidade
substancial como atividade-da-forma (§§ 148, 149).
* Os editores alemães propõem acrescentar “a imediatez” mas achamos que o “ser-
-imediato” parece melhor no contexto (N. do T.).

279
§ 151
A substância é, por isso, a totalidade dos acidentes, nos quais
ela se revela como sua negatividade absoluta, isto é, como poder
absoluto e ao mesmo tempo como a riqueza de todo o conteúdo. Esse
conteúdo porém nada é senão essa manifestação mesma, enquanto a
determinidade refletida sobre si mesma para [ser] o conteúdo é, ela
mesma, apenas um momento da forma, o qual no poder da substân­
cia passa [para um outro momento]*. A substancialidade é a abso­
luta atividade-da-forma, e o poder da necessidade, e todo o conteú­
do é apenas momento, que só a esse processo pertence: o absoluto
transformar-se da forma e do conteúdo, um no outro.
Adendo: Na história da filosofia, encontramos a substância como o princí­
pio da filosofia de Espinoza. Quanto à significação e ao valor dessa filo­
sofia, que foi igualmente elogiada e difamada, ocorreu desde o surgimemto
de Espinoza um grande mal-entendido, e muito se discutiu a propósito,
numa e n’outra direção. É principalmente a denúncia de ateísmo, e além
disso a de panteísmo, que se costuma levantar contra o sistema de
Espinoza; decerto porque Deus foi apreendido por ele como [sendo] a
substância, e somente como a substância. O que se deve pensar dessas
denúncias, resulta antes de tudo do lugar que a substância ocupa no
sistema da idéia lógica. A substância é um degrau essencial no processo-
-de-desenvolvimento da idéia, mas não é essa mesma: não é a idéia abso­
luta, e sim a idéia na forma limitada da necessidade. Na verdade, Deus
é a necessidade, com certeza, ou, como também se diz, a Coisa absoluta;
mas também é, ao mesmo tempo, a pessoa absoluta, e esse é o ponto a que
Espinoza não chegou, e a respeito do qual deve-se admitir que a filosofia
de Espinoza ficou para trás do verdadeiro conceito de Deus, que forma
o conteúdo da consciência religiosa-cristã. Espinoza era segundo sua ori­
gem um judeu, e foi em geral a intuição oriental, segundo a qual todo o
finito aparece simplesmente como algo que passa, como algo que desva­
nece, que encontrou na filosofia de Espinoza uma expressão conforme ao
seu pensamento. Essa intuição oriental da unidade substancial forma,
decerto o fundamento de todo o verdadeiro desenvolvimento ulterior;
mas não se pode ficar aí. O que ainda lhe falta é o princípio ocidental da
individualidade, que faz sua primeira aparição em figura filosófica con-
temporaneamente ao espinozismo, na monadologia de Leibniz. Se daí
* “Para um outro momento” é complementação proposta por Lasson.

280
voltamos a considerar a denúncia de ateísmo feita à filosofia de Espinoza,
ela deve rejeitar-se como infundada, enquanto segundo essa filosofia Deus
não só não é negado, mas antes é reconhecido como o essente unicamente
verdadeiro. Tampouco se pode afirmar que Espinoza, decerto, fala de
Deus como o unicamente verdadeiro, mas que esse Deus espinozista não
é o verdadeiro Deus, e por conseguinte é o mesmo que Deus nenhum.
Com igual direito se deveria inculpar de ateísmo todos os demais filóso­
fos, que ficaram em um grau inferior da idéia, e igualmente não só os
judeus e os maometanos, porque conhecem Deus simplesmente como o
Senhor, mas ainda todos os numerosos cristãos que consideram Deus sim­
plesmente como ser incognoscível, supremo e situado no além. A denún­
cia de ateísmo feita à filosofia de Espinoza, numa consideração mais es­
trita, reduz-se a que o princípio da diferença ou da finitude nela não
obtém seu direito; e assim, como segundo essa filosofia não há propria­
mente mundo absolutamente nenhum, no sentido de um essente positi­
vo, tal sistema não se devia designar como ateísmo, mas antes, inversa­
mente, como acosmismo. Daí resulta também o que se deve pensar sobre
a denúncia de panteísmo. Entendendo por panteísmo, como sucede com
freqüência, uma doutrina que considera como Deus as coisas finitas e o
complexo destas, não se pode deixar de declarar o espinozismo inocente
dessa denúncia, pois segundo ele não compete nenhuma verdade, abso­
lutamente, às coisas finitas ou ao mundo em geral; todavia essa filosofia
é sem dúvida panteísta, justamente por causa de seu acosmismo. A defi­
ciência assim reconhecida no que toca ao conteúdo, manifesta-se também,
ao mesmo tempo, em relação à forma; e isso, antes de tudo, enquanto
Espinoza põe a substância no ápice de seu sistema, e a define como a
unidade do pensamento e da extensão, sem demonstrar como chega a
essa diferença, nem a sua redução à unidade substancial. O tratamento
ulterior do conteúdo segue o assim-chamado método matemático, e por
isso se põem primeiro definições e axiomas, aos quais se alinham teoremas
cujas demonstrações consistem simplesmente em sua redução, conforme
ao entendimento, àquelas pressuposições não demonstradas. Ora, ainda
que a filosofia de Espinoza seja habitualmente elogiada — mesmo pelos
que rejeitam absolutamente seu conteúdo e seus resultados — pela rigorosa
conseqüência de seu método, esse reconhecimento incondicional da forma
é de fato tão infundado quanto a rejeição incondicional do conteúdo. A
deficiência do conteúdo espinozista consiste precisamente em que a forma
não é sabida como a imanente a ele, e por esse motivo lhe advém somente
como uma forma subjetiva, exterior. A substância tal como é compreendida,
sem mediação dialética anterior, imediatamente por Espinoza é, enquanto a
potência universal negativa, algo somente como esse abismo sombrio, infor­
281
me, que engole para dentro de si todo o conteúdo determinado, como sendo
originariamente nulo, e que nada de si produz, que tenha em si uma con­
sistência positiva.
§ 152
Segundo o momento em que a substância como potência abso­
luta é a potência que se refere a si apenas como possibilidade inte­
rior, e que portanto se determina como acidentalidade, e em que
dela é distinta a exterioridade assim posta, substância é propria­
mente relação, como é substância na primeira forma da necessidade:
é relação-de-causalidade.

b) Relação-de-causalidade
§ 153
A substância é causa enquanto reflete sobre si, perante seu
passar para a acidentalidade; e assim é a Coisa originária; mas tam­
bém suprassume a reflexão-sobre-si, ou sua simples possibilidade,
põe-se como o negativo de si mesma e produz um efeito, uma
efetividade, que desse modo é apenas uma efetividade posta, mas
que é ao mesmo tempo necessária, pelo processo do efetuar.
A causa como Coisa originária tem a determinação de auto­
nomia absoluta e de uma consistência que se mantém ante
o efeito; porém na necessidade, cuja identidade essa origina-
riedade mesma constitui, a causa somente passou para o efei­
to. Não há conteúdo algum — enquanto se pode falar de
novo de um conteúdo determinado -— no efeito, que não
esteja na causa. Aquela identidade é o próprio conteúdo
absoluto; mas é, ao mesmo tempo, também a determinação-
-da-forma; a originariedade da causa é suprassumida no efei­
to, no qual ela faz de si mesma um Ser-posto. Mas assim a
causa não desvaneceu, de modo que o efetivo fosse somente
o efeito. Pois esse Ser-posto é também suprassumido imedia­
tamente; melhor, é reflexão da causa sobre si mesma, sua
originariedade: só no efeito a causa é efetiva e é causa. Por­
tanto, a causa é em si causa sui.
282
Jacobi, fixando-se na representação unilateral da mediação,
(nas Cartas sobre Espinoza, 2- ed., p. 416) tomou simplesmen­
te por um formalismo a causa sui (o effectus sui é o mesmo) —
essa verdade absoluta da causa. Declarou também que Deus
não pode ser determinado como fundamento, mas essencial­
mente como causa; e que por isso, com uma reflexão mais
profunda sobre a natureza da causa, se depreende que
Espinoza não alcançou o que tinha em vista. Também na
causa finita, e em sua representação, está presente essa iden­
tidade quanto ao conteúdo; a chuva, a causa, e a umidade, o
efeito, são uma só e a mesma água existente. Quanto à for­
ma, no efeito (a umidade), desvanece a causa (a chuva); mas
assim também a determinação do efeito, que nada é sem a
causa e permanece apenas a umidade indiferente.
A causa, no sentido ordinário da relação causai, é finita, enquan­
to seu conteúdo é finito (como na substância finita) e enquanto
causa e efeito se representam como duas existências autônomas
diversas; o que somente são, porém, quando nelas se abstrai da
sua relação de causalidade. Porque na finitude se permanece na
diferença das determinações-de-fora em sua relação, a causa é
alternadamente também determinada como algo posto ou como
efeito-, esse tem, por sua vez, uma outra causa; desse modo aqui
também surge o progresso até o infinito, dos efeitos às causas.
Também surge o progresso descendente, enquanto o efeito, se­
gundo sua identidade com a causa, é ele próprio determinado
como causa; e, ao mesmo tempo, como uma outra causa, que de
novo tem outros efeitos, e assim por diante, até o infinito.
Adendo: Tanto o entendimento costuma resistir à substancialidade,
quanto lhe é familiar a causalidade, isto é, a relação de causa e efeito.
Quando se trata de apreender um conteúdo como necessário, é sobretudo
à relação-de-causalidade que a reflexão-do-entendimento se empenha em
reconduzir tal conteúdo. Sem dúvida, essa relação pertence decerto à
necessidade, mas é só um lado no processo da necessidade, que consiste
igualmente em suprassumir a mediação contida na causalidade, e mostrar-se
como simples relação a si mesma. Ao se permanecer na causalidade como
tal, não se tem a causalidade em sua verdade, mas simplesmente como
causalidade finita; e a finitude dessa relação consiste em que causa e
283
efeito são mantidos em sua diferença. Ora, esses dois termos não são
apenas diferentes, mas também são igualmente idênticos; e isso se encon­
tra também em nossa consciência ordinária, de modo que dizemos que a
causa só é causa enquanto tem um efeito, e dizemos do efeito que só é
efeito enquanto tem uma causa. Por isso causa e efeito são ambos um só
e o mesmo conteúdo, e sua diferença é, antes de tudo, somente a do pôr
e do ser-posto; diferença-de-forma que aliás se suprassume de novo, de
forma que a causa não é só a causa de um Outro, mas também a causa de
si mesma. A finitude das coisas consiste portanto em que, enquanto segundo
seu conceito causa e efeito são idênticos, essas duas formas se apresentam
separadas; de maneira que, se a causa na verdade é também efeito, e o efeito
com certeza é também causa, contudo não é sob a mesma relação que o
efeito é causa, nem sob a mesma relação que a causa é efeito. Isso dá
novamente o progresso infinito, na figura de uma série sem fim de causas,
que se mostra ao mesmo tempo como uma série sem-fim de efeitos.
§ 154
E diferente da causa o efeito, que é, como tal, [um] Ser-posto. Mas
o Ser-posto é igualmente reflexão-sobre-si e imediatez; e o efetuar da
causa, seu pôr, é ao mesmo tempo [um] pressupor; enquanto se fica
retido na diversidade do efeito com relação à causa. Assim está presen­
te uma outra substância sobre a qual acontece o efeito. Substância que,
enquanto imediata, não é a negatividade que a si se refere e que é
ativa ; mas é passiva. Porém, como substância, é também ativa,
suprassume a imediatez pressuposta e o efeito nela posto; reage, quer
dizer, suprassume a atividade da primeira substância, que porém é
igualmente esse suprassumir de sua imediatez, ou do efeito nela pos­
to; e assim suprassume a atividade da outra e reage. A causalidade
passou, com isso, para a relação da ação-recíproca.
Na ação-recíproca, embora a causalidade não esteja posta ainda
em sua verdadeira determinação, a progressão até o infinito das
causas e efeitos, enquanto progressão, está suprassumida de um
modo verdadeiro, enquanto o avançar em linha reta das causas
para os efeitos e dos efeitos para as causas está recuruado e
dobrado sobre si. Essa curvatura da progressão infinita, em uma
relação fechada em si mesma, é como em toda a parte a reflexão
simples, que nessa repetição carente-de-pensamento é uma só
e a mesma coisa; a saber, é uma causa e uma outra, e sua relação
284
recíproca. O desenvolvimento dessa relação — o agir recíproco
— é contudo em si mesmo, a alternância do diferenciar; mas não
das causas e sim dos momentos, em cada um deles para si, nova­
mente segundo a identidade, de modo que a causa é causa no
efeito, e (vice-versa); segundo essa inseparabilidade, também o
outro momento é posto.

c) A ação recíproca
§ 155
As determinações, fixadas como diferentes na ação recíproca, são:
lfi) em si, o mesmo; um lado é causa, originário, ativo, passivo
etc., como o outro. Igualmente, o pressupor de um outro, e o atuar
sobre ele, a originariedade imediata e o ser-posto mediante a alter­
nância, são uma só e a mesma coisa. A causa, admitida como primei­
ra, é, por sua imediatez, passiva, ser-posto e efeito. A diferença das
causas mencionadas como duas é portanto vazia; e em si só está
presente uma causa, que em seu efeito se suprassume como subs­
tância, e somente nesse atuar se torna causa autônoma.
§ 156
2") Mas essa unidade é também para si, enquanto toda essa
alternância é o pôr próprio da causa, e somente esse seu pôr é o ser.
A nulidade das diferenças não é só em si, ou reflexão nossa (ver
parágrafo precedente) — mas a ação recíproca é justamente isto:
suprassumir também de novo cada uma das determinações postas,
e convertê-la na determinação oposta; portanto, pôr aquela nulida­
de dos momentos, que é em si. Na originariedade é posto um
efeito, isto é, a originariedade é suprassumida; a ação de uma causa
torna-se reação etc.
Adendo: A ação-recíproca é a relação-de-causalidade posta em seu desen­
volvimento completo, e é também a essa relação que a reflexão costuma
recorrer quando não se lhe mostra, como satisfatória, a consideração das
coisas sob o ponto de vista da causalidade, por motivo da progressão infinita
anteriormente mencionada. Assim, por exemplo, quando se trata de estudos
históricos, discute-se primeiro a questão de “se o caráter e os costumes de
285
um povo são a causa de sua constituição e de suas leis, ou se, ao contrário,
são seus efeitos”. Depois se avança até compreender a ambos — caráter e
costumes de um lado, constituição e leis de outro — sob o ponto de vista da
ação-recíproca, de sorte que a causa, na mesma relação em que é causa, é ao
mesmo tempo efeito; e o efeito, na mesma relação em que é efeito, é ao
mesmo tempo causa. O mesmo acontece também no estudo da natureza, e
nomeadamente dos organismos vivos, cujos órgãos e funções singulares se
mostram igualmente como estando em relação de ação-recíproca, uns para
com os outros. Com certeza, a ação recíproca é a verdade mais próxima da
relação de causa e efeito, e está, por assim dizer, no limiar do conceito. No
entanto, justamente por isso, não há que contentar-se com o emprego dessa
relação, quando se trata do conhecimento conceituante. Quando se fica na
consideração de dado conteúdo simplesmente sob o ponto de vista da ação-
-recíproca isso é de fato um comportamento inteiramente carente-de-concei-
to; então se lida simplesmente com um fato ressequido, e mais uma vez fica
por satisfazer a exigência da mediação, de que se trata, antes de tudo, no
emprego da relação de causalidade. Considerado mais de perto, o que há de
insatisfatório nesse emprego da relação de ação-recíproca consiste em que
essa relação, em lugar de poder ter validade como um equivalente do con­
ceito, antes quer ela mesma ser conceituada primeiro, e isso se dá porque os
dois lados da relação não são deixados como algo imediatamente dado; mas
(como foi mostrado nos dois parágrafos precedentes) são reconhecidos como
momentos de um terceiro [termo] mais elevado, que é justamente o concei­
to. Se, por exemplo, consideramos os costumes do povo espartano como o
efeito de sua constituição, ou, inversamente, a constituição como o efeito de
seus costumes, por justa que possa ser essa consideração, esse modo de
compreender não nos proporciona nenhuma satisfação última, porque de
fato não se conceitua nem a constituição nem os costumes desse povo; o que
só acontece quando os dois lados, e também os demais lados particulares,
que manifestam a vida e a história do povo espartano, são conhecidos como
fundados nesse conceito.
§ 157
3-) Essa pura alternância consigo mesmo é, assim, a necessidade
desvelada ou posta. O vínculo da necessidade, como tal, é a identi­
dade enquanto identidade ainda interior e escondida, por ser a
identidade de termos que contam como efetivos, cuja autonomia
porém deve ser precisamente a necessidade. O curso da substância
através da causalidade e da ação recíproca é portanto apenas o pôr
que “a autonomia é a relação negativa infinita para consigo” — rela­
ção negativa em geral, na qual o diferenciar e o mediar se tornam
286
uma originariedade de [termos] efetivos autônomos uns relativamen­
te aos outros; infinita relação para consigo mesmo, enquanto sua au­
tonomia é precisamente só como sua identidade.
§ 158
Essa verdade da necessidade é, por conseguinte, a liberdade; e a
verdade da substância é o conceito — a autonomia que é o repelir-se
de si mesmo para [termos] autônomos diferentes, enquanto esse
repelir é idêntico consigo, e esse movimento alternado, que perma­
nece junto a si mesmo, o é somente consigo.
Adendo: Costuma-se chamar dura a necessidade; certamente com razão,
enquanto se fica nela como tal, isto é, em sua figura imediata. Temos aqui
uma situação, ou, em geral, um conteúdo que tem sua consistência para si,
e na necessidade está contido, antes de tudo, que a esse conteúdo sobrevêm
alguma outra coisa pela qual ele perece. Eis o duro e o triste da necessidade
imediata ou abstrata. A identidade dos dois [termos], que na necessidade
aparecem como ligados um ao outro, e assim perdem sua autonomia, é
apenas uma identidade interior, e ainda não presente para os que estão
submetidos à necessidade. Também a liberdade, desse ponto de vista, é só
a liberdade abstrata, que só é salva pela renúncia ao que se é e se tem
imediatamente. Aliás, como até agora vimos, o processo da necessidade é de
natureza que por ele é superada a necessidade rígida presente de início, e
seu interior é revelado; pelo que se mostra então que os [termos] vinculados
um ao outro não são, na realidade, mutuamente alheios, mas apenas momen­
tos de um só todo; cada um deles, em sua relação para com o outro, está junto
de si mesmo e consigo mesmo se reúne. Eis a transfiguração da necessidade
em liberdade; liberdade essa que não é simplesmente a liberdade da nega­
ção abstrata, mas antes a concreta e positiva liberdade. Donde se pode tam­
bém concluir como é absurdo considerar a liberdade e a necessidade como
exclusivas uma da outra, reciprocamente. Sem dúvida, a necessidade en­
quanto tal ainda não é a liberdade; mas a liberdade tem por sua pressupo­
sição a necessidade, e a contém como suprassumida dentro de si. O homem
ético é consciente do conteúdo do seu agir como de algo necessário que é
válido em si e para si, e com isso sofre tão pouco prejuízo em sua liberdade,
que essa se torna antes, por essa consciência, a liberdade efetiva e rica em
conteúdo; diferentemente do [livre-]arbítrio, enquanto é a liberdade ainda
carente-de-conteúdo e somente possível. Um criminoso, que é punido, pode
considerar a pena que o atinge como uma coerção de sua liberdade; de fato,
porém, a pena não é uma violência estranha a que está submetido, mas
somente a manifestação de seu próprio agir; e, ao reconhecer isso, comporta-

287
-se assim como homem livre. Em geral, essa é a mais alta autonomia do ho­
mem: saber-se como determinado pura e simplesmente pela idéia absoluta;
essa consciência e atitude que Espinoza designa como amor intellectualis Dei.
§ 159
O conceito é, assim, a verdade do ser e da essência, enquanto o
aparecer da reflexão sobre si mesma é ao mesmo tempo a imediatez
autônoma; e esse ser, de efetividade diversa, é imediatamente apenas
um aparecer dentro de si mesmo.
Enquanto o conceito se demonstrou como a verdade do ser e da
essência, que a ele retomaram os dois, como ao seu fundamento,
o conceito inversamente se desenvolveu a partir do ser como de seu
fundamento. Aquele lado do processo pode ser considerado como
um aprofundar do ser em sim mesmo, cujo interior foi desvelado
por esse processo; e este lado, como surgimento do mais perfeito
a partir do mais imperfeito. Enquanto tal desenvolvimento foi
considerado somente conforme o último lado, disso se fez uma
acusação à filosofia. O conteúdo mais determinado, que têm
aqui os pensamentos superficiais do menos perfeito e do mais
perfeito, é a diferença que o ser, enquanto unidade imediata
consigo mesmo, tem do conceito enquanto livre mediação consigo.
Tendo-se o ser mostrado como um momento do conceito, este se
demonstrou por isso como a verdade do ser; enquanto essa sua
reflexão-sobre-si, e enquanto suprassumir da mediação, é o pres­
supor do imediato — um pressupor que é idêntico ao retomo-
-sobre-si: identidade que constitui a liberdade e o conceito. Se
pois o momento se chama: “o imperfeito”, então o conceito, “o
perfeito”, consiste sem dúvida em desenvolver-se a partir do
imperfeito, por ser essencialmente esse suprassumir de sua pres­
suposição. Mas, ao mesmo tempo, é ele só que, ao pôr-se, cria
a pressuposição, tal como se ressaltou na causalidade em geral,
e mais precisamente na ação-recíproca.
O conceito é determinado em relação ao ser e à essência de
modo que é a essência que retornou ao ser enquanto imediatez
simples; essência cujo aparecer tem, por isso, efetividade; e
cuja efetividade é ao mesmo tempo livre aparecer dentro de si
mesma. De tal maneira, o conceito tem o ser dentro de si
mesmo como sua relação simples para consigo mesmo, ou
como a imediatez de sua unidade: Ser é uma determinação
288
tão pobre que é o mínimo que se pode mostrar no conceito.
A passagem da necessidade à liberdade, ou do efetivo ao con­
ceito, é a mais dura, porque a efetividade autônoma deve ser
pensada como tendo sua substancialidade somente no passar
[para outra], e na identidade com a efetividade autônoma que
lhe é outra. Assim também o conceito é o mais duro, porque ele
mesmo é exatamente essa identidade; mas a substância efetiva
como tal — a causa —, que em seu ser para si nada quer deixar
penetrar nela, já está submetida à necessidade ou ao destino de
passar para o ser-posto: e essa sujeição é, antes, o mais duro. O
pensar da necessidade, ao contrário, é antes a dissolução dessa
dureza; pois é o reunir-se de si consigo mesmo no Outro; a liber­
tação, que não é a fuga [própria] da abstração, mas consiste em
ter — no outro efetivo com o qual o efetivo está unido pela
força da necessidade — a si mesmo não como outro, mas [como]
seu próprio ser e pôr. Enquanto existente para si, essa libertação
se chama Eu; enquanto desenvolvida na sua totalidade, espírito
livre-, enquanto sentimento, amor; enquanto gozo, felicidade.
A grande intuição da substância espinozista é apenas em si a
libertação do ser-para-si finito; mas o conceito mesmo é, ele
mesmo, para si a potência da necessidade e a liberdade efetiva.
Adendo: Se o conceito — como aqui é o caso — for designado como a
verdade do ser e da essência, dever-se-á estar preparado para a questão: por
que não se começou por ele? Para sua resposta convém [lembrar] que onde
se trata de conhecimento pensante não se pode começar com a verdade, pelo
motivo de que a verdade, já que forma o começo, repousa em simples
asseveração; mas a verdade pensada como tal, tem de provar-se para o pen­
samento. Se o conceito fosse posto no começo da Lógica e, como é totalmen­
te correto segundo o conteúdo, definido como a unidade do ser e da essên­
cia, então surgiria a questão do que se entende por ser e por essência, e como
os dois termos vêm a condensar-se na unidade do conceito. Assim, porém,
só se teria começado pelo conceito segundo o nome, e não segundo a Coisa.
O começo propriamente dito seria feito com o ser, tal como aqui ocorreu;
apenas com a diferença de que as determinações do ser, e igualmente as da
essência, teriam de ser tomadas diretamente da representação; ao contrário,
nós tivemos conhecimento do ser e da essência considerados em seu próprio
desenvolvimento dialético, e enquanto suprassumindo-se a si mesmos para
[serem] a unidade do conceito.

289
terceira ‘Tarte
da Lógica
JJ

A DOUTRINA DO CONCEITO
§ 160
O conceito é o [que é] livre, enquanto potência substancial essente
para si, e é totalidade, enquanto cada um dos momentos é o todo que
ele [mesmo] é, e é posto com ele como unidade inseparável; assim, na
sua identidade consigo, o conceito é o determinado em si e para si.
Adendo: O ponto de vista do conceito é, de modo geral, o do idealismo
absoluto, e a filosofia é um conhecimento conceituante, enquanto nela tudo
o que conta para outra consciência como um essente, e autônomo em sua
imediatez, é simplesmente sabido como um momento ideal. Na lógica-de-
-entendimento, costuma-se considerar o conceito como uma mera forma do
pensar, e, mais precisamente, como uma representação geral. E a essa maneira
inferior de apreender o conceito que se refere a afirmação tantas vezes repe­
tida, por parte da sensibilidade e do coração, de que os conceitos enquanto
tais são algo morto, vazio e abstrato. De fato porém sucede exatamente o
inverso, e o conceito é antes o princípio de toda a vida, e assim, ao mesmo
tempo, o [que é] pura e simplesmente concreto. Que assim é, foi o que
surgiu como resultado de todo o movimento lógico até agora, e por isso não
precisa ser provado aqui. No que respeita nesse ponto especialmente à
oposição de forma e conteúdo, que se toma por válida em relação ao conceito
— suposto como algo apenas formal —, essa oposição para nós já ficou para
trás, junto com todas as outras oposições sustentadas pela reflexão enquanto
dialética, isto é, ultrapassada por si mesma; e é precisamente o conceito que
contém em si como suprassumidas todas as determinações anteriores do
pensar. Com certeza, o conceito tem de ser considerado como forma; mas
como forma infinita, criadora, que em si encerra, e ao mesmo tempo deixa
292
sair de si, a plenitude de todo o conteúdo. Igualmente, pode-se contudo
denominar também abstrato o conceito, se se entende por concreto apenas
o sensivelmente concreto, o que é imediatamente perceptível, em geral. O
conceito como tal não se deixa agarrar com as mãos; em geral, quando se
trata de conceito, o ouvir e o ver devem desaparecer para nós. Não obstante,
o conceito é, como antes se notou, ao mesmo tempo o simplesmente con­
creto, e isto enquanto [o conceito] contém em si numa unidade ideal toda
a riqueza dessas duas esferas. Quando, como antes se notou, os diversos
graus da idéia lógica podem ser considerados como uma série de definições
do absoluto — a definição do absoluto que aqui se nos apresenta é esta: o
absoluto é o conceito. Nesse caso, deve-se decerto apreender o conceito em
um outro e mais alto sentido, do que tem lugar na lógica-de-entendimento,
segundo a qual o conceito é considerado simplesmente como uma forma, em
si carente^de-conteúdo, de nosso pensamento subjetivo. Nesse caso se po­
deria ainda levantar preliminarmente a questão: por que, se na lógica espe­
culativa o conceito tem uma significação totalmente outra da que se costuma
aliás unir a essa expressão, esse totalmente Outro aqui se chama igualmente
conceito, e com isso se dá ocasião para mal-entendido e confusão.
A tal questão se teria de responder que, por maior que pudesse ser
a distância entre o conceito da lógica formal e o conceito especulativo,
contudo resulta, numa consideração mais precisa, que a significação mais
profunda do conceito não é de modo algum tão estranha ao uso ordinário
do idioma como parece, à primeira vista, ser o caso. Fala-se da dedução
de um conteúdo — como, por exemplo, das determinações do direito
referentes à propriedade —, e mesmo, inversamente, da redução de tal
conteúdo ao conceito. Mas assim se reconhece que o conceito não é
simplesmente uma forma, em si carente-de-conteúdo, pois, de uma parte,
de tal forma nada se poderia deduzir; e, de outra parte, pela redução de
um conteúdo dado à vazia forma do conceito, seria esse conteúdo apenas
despojado de sua determinidade, mas não seria conhecido.
§ 161
O progredir do conceito não é mais [o] ultrapassar nem [o]
aparecer em Outro, mas é desenvolvimento, enquanto o diferenciado
é imediatamente posto ao mesmo tempo como o idêntico, um com
o outro e com o todo; [e] a determinidade como um livre ser do
conceito completo.
Adendo: Passar para Outro é o processo dialético na esfera do ser; e
aparecer em Outro é [esse processo] na esfera da essência. Ao contrário, o
293
movimento do conceito é desenvolvimento, pelo qual só é posto o que em si já
está presente. Na natureza, é a vida orgânica que corresponde ao grau do
conceito. Assim se desenvolve, por exemplo, a planta a partir do gérmen. O
gérmen já contém em si a planta inteira, mas de maneira ideal, e portanto
não se pode assim apreender seu desenvolvimento como se as diversas partes
da planta, a raiz, o caule, as folhas etc., já estivessem presentes no gérmen
realiter [realmente], mas apenas em tamanho minúsculo. E essa a chamada
hipótese-do-encaixamento, cujo defeito consiste, pois, em considerar-se como
já existindo o que só está presente de maneira ideal. Ao contrário, o [que há
de] correto nessa hipótese é que o conceito permanece junto a si mesmo em
seu processo, pelo qual nada é posto de novo segundo o conteúdo, mas
apenas se põe em evidência uma mudança de forma. Essa natureza do con­
ceito, [que é] mostrar-se em seu processo como desenvolvimento de si mes­
mo, é também a que se tem em vista quando se fala de idéias inatas ao
homem, ou — como fez Platão — se considera todo o aprender simplesmen­
te como recordação. O que, aliás, não se pode entender igualmente como se
o que constitui o conteúdo da consciência cultivada pelo ensino já estivesse
presente antes em seu desdobramento determinado na mesma consciência.
O movimento do conceito, de certo modo, pode-se considerar como
se fosse um jogo apenas; o Outro, que por ele é posto, de fato não é um
Outro. Na doutrina da religião cristã, isso assim se exprime: que Deus não
só criou um mundo, que se lhe contrapõe como um Outro, mas também
desde a eternidade gerou um Filho, no qual está, como Espírito, junto de
si mesmo.
§ 162
A Doutrina do Conceito divide-se na Doutrina 1-) do conceito
subjetivo ou formai, 2-) do conceito como determinado à imediatez
ou [doutrina] da objetividade; 3a) da idéia — do sujeito-objeto — da
unidade do conceito e da objetividade, da verdade absoluta.
A lógica ordinária abrange em si somente as matérias que
aqui se encontram como uma parte da terceira parte do todo;
e, além disso, as assim chamadas leis do pensar, encontradas
acima; e na lógica aplicada algumas coisas sobre o conheci­
mento, a que se juntam ainda material psicológico, metafísico
e empírico diverso, já que aquelas formas do pensar enfim
por si mesmas não eram mais suficientes; assim, porém, essa
ciência perdeu a orientação fixa. [Aliás] aquelas formas, que
pelo menos pertencem ao domínio próprio da lógica, são
294
tomadas somente como determinações do pensar consciente,
e na verdade enquanto somente pensar do entendimento, e
não da razão.
As anteriores determinações lógicas — as determinações do
ser e da essência — decerto não são simples determinações-
-de-pensamento; em seu ultrapassar — no [seu] momento
dialético — e em seu retorno a si e em sua totalidade, mos­
tram-se como conceitos. Mas são apenas conceitos determina­
dos (ver §§ 84 e 112), conceitos em si ou — o que é o mesmo
— conceitos para nós, enquanto o Outro, para o qual cada
determinação passa, ou no qual aparece e por isso é como
[algo] relativo, não é determinado como algo particular, nem
seu terceiro [termo] como algo singular ou sujeito-, não é posta
a identidade da determinação em sua oposta, nem [é posta]
sua liberdade, porque não é universalidade. O que se entende
habitualmente por conceitos são detenninações-do-entendimento,
e mesmo somente representações universais; por isso, em ge­
ral, representações finitas (ver § 62).
A Lógica do conceito é habitualmente entendida como ciên­
cia apenas formal, de modo que o que lhe importa é a forma
como tal do conceito, do juízo e do silogismo, mas de modo
algum, absolutamente, se algo é verdadeiro; isso dependeria
única e exclusivamente do conteúdo. Se as formas lógicas do
conceito fossem, efetivamente, receptáculos mortos, inativos
e indiferentes, de representações ou de pensamentos, seria
seu conhecimento uma história muito supérflua e inútil para
a verdade. Mas na verdade essas formas são ao contrário,
como formas do conceito, o espírito vivente do efetivo-, e, do
efetivo, só é verdadeiro o que é verdadeiro em virtude dessas
formas, por meio delas e nelas. Mas a verdade dessas formas,
para si mesma, até hoje nunca foi considerada e investigada,
como tampouco sua conexão necessária.

295
A
O CONCEITO SUBJETIVO

a) O conceito como tal


§ 163
O conceito como tal contém os momentos da universalidade,
enquanto livre igualdade consigo mesma em sua determinidade;
da particularidade, da determinidade em que permanece o univer­
sal inalteradamente igual a si mesmo; e da singularidade, enquanto
reflexão-sobre-si das determinidades da universalidade e da parti­
cularidade; a qual unidade negativa consigo é o determinado em si e
para si, e ao mesmo tempo o idêntico consigo ou o universal.
O singular é o mesmo que o efetivo; só que o singular pro­
veio do conceito, por isso é posto como universal, como a
unidade negativa consigo. O efetivo, por ser somente em si ou
imediatamente a unidade da essência e da existência, pode efe­
tuar; mas a unidade do conceito é pura e simplesmente o
efetuante, e, na verdade, também não mais como a causa, com
a aparência de efetuar um Outro, mas sendo o efetuante de
si mesmo. Contudo, a singularidade não é para ser tomada no
296
sentido de uma singularidade imediata apenas, segundo a qual
falamos de coisas e de homens singulares; essa determinidade
da singularidade só ocorre no juízo. Cada momento do con­
ceito é, ele mesmo, o conceito todo (§ 160); mas a singula­
ridade, o sujeito, é o conceito posto como totalidade.
Adendo 1: Ao se falar do conceito, habitualmente é só a universalidade
abstrata que se tem em vista, e costuma-se também definir corretamente
o conceito como uma representação universal. Por esse motivo se fala do
conceito da cor, da planta, do animal etc., e esses conceitos deveriam
nascer porque, na eliminação do particular pelo qual as diversas cores,
plantas e bestas, etc., se diferenciam uma das outras, se fixaria o que lhes
é comum. Essa é a maneira como o entendimento apreende o conceito,
e o sentimento tem razão quando declara tais conceitos como ocos e
vazios, como simples fantasmas e sombras. Ora, o universal do conceito
não é simplesmente algo comum, ante o qual o particular tem sua consis­
tência para si; mas é antes o que se particulariza (o que se especifica) a
si mesmo, e em seu Outro permanece em uma imperturbada clareza junto
de si mesmo. É da maior importância, tanto para o conhecimento como
para nosso proceder prático, que não seja confundido o [que é] simples­
mente comum, com o verdadeiramente geral, com o universal. Todas as
censuras que costumam ser feitas do ponto de vista do sentimento, contra
o pensar em geral e mais precisamente contra o pensar filosófico, assim
como a afirmação tantas vezes repetida do perigo do pensamento preten-
samente levado longe demais, têm seu fundamento naquela confusão. O
universal, em sua significação verdadeira e abrangente, é aliás um pensa­
mento do qual se deve dizer que custou milênios antes de penetrar na
consciência dos homens, e só alcançou seu pleno reconhecimento por
meio do cristianismo. Os gregos, aliás tão altamente cultivados, não sou­
beram, na sua verdadeira universalidade, nem a Deus nem tampouco ao
homem. Os deuses dos gregos eram apenas as forças particulares do es­
pírito, e o Deus universal, o Deus das nações, era para os atenienses ainda
o Deus escondido. Igualmente existia para os gregos um abismo absoluto
entre eles e os bárbaros, e o homem enquanto tal não era ainda reconhe­
cido em seu valor infinito e em seu direito infinito. Suscitou-se decerto
a questão de onde estaria o motivo de que a escravidão houvesse desapa­
recido na Europa moderna; e ora uma, ora outra circunstância particular
foi aventada para explicação desse fenômeno. O verdadeiro motivo por
que não há mais escravos na Europa cristã não se deve procurar em outra
coisa senão no princípio do próprio cristianismo. A religião cristã é a re­
ligião da liberdade absoluta, e para o cristão o homem vale enquanto tal,

297
em sua infinitude e universalidade. O que falta ao escravo é o reconhe­
cimento de sua personalidade; ora, o princípio da personalidade é a uni­
versalidade. O senhor considera o escravo não como pessoa, mas como
Coisa carente-de-si, e o escravo não conta como [um] Eu, mas o senhor
é o seu Eu.
A diferença acima mencionada entre o simplesmente comum e o
verdadeiramente universal encontra-se expressa de uma maneira pertinente
no bem-conhecido Contrato social de Rousseau. Ali se diz que as leis de
um Estado deveriam emanar da vontade universal (da volonté générale)
mas não precisariam absolutamente, por isso, ser a vontade de todos (volonté
de tons). Rousseau teria, a respeito da teoria do Estado, elaborado algo de
mais profundo se tivesse sempre conservado ante os olhos essa diferença.
A vontade universal é o conceito da vontade, e as leis são as determinações
particulares da vontade fundada nesse conceito.
Adendo 2: A propósito da discussão — usual na lógica do entendimen­
to — sobre o nascimento e a formação dos conceitos, vale ainda notar que
de modo algum nós formamos os conceitos, e que em geral o conceito não
se pode mesmo considerar como algo nascido. Certamente, o conceito não é
simplesmente o ser ou o imediato, mas lhe pertence também a mediação;
essa reside nele mesmo, e o conceito é o mediatizado através de si mesmo
consigo mesmo. E absurdo admitir que haveria primeiro os objetos que
formam o conteúdo de nossas representações, e posteriormente viria nossa
atividade subjetiva, que por meio da operação do abstrair, antes mencio­
nada, e do reunir do que é comum aos objetos, formaria os seus conceitos.
O conceito é, antes, o verdadeiramente primeiro, e as coisas são o que são
pela atividade do conceito a elas imanente, e que nelas se revela. Em
nossa consciência religiosa isso ocorre de modo que dizemos que Deus
criou o mundo do nada, ou, exprimindo diversamente, que o mundo e as
coisas finitas procederam da plenitude do pensamento divino e dos desíg­
nios divinos. Assim se reconhece que o pensamento, e mais precisamente
o conceito, é a forma infinita ou atividade criadora e livre, que não precisa
de uma matéria dada, fora dela, para realizar-se.
§ 164
O conceito é o absolutamente concreto, porque a unidade negativa
consigo enquanto ser-determinado-em-si-e-para-si, que é a singulari­
dade, ela mesma constitui sua relação consigo, a universalidade. Os
momentos do conceito não podem, nessa medida, ser separados; as
determinações-da-reflexão devem ser apreendidas e valer, cada uma
298
para si, separada da determinação oposta; mas, enquanto sua identidade
é posta no conceito, cada um é de seus momentos só pode ser apre­
endido a partir dos outros e com os outros.
Universalidade, particularidade e singularidade, tomadas abstra­
tamente, são o mesmo que identidade, diferença e fundamento.
Mas o universal é o idêntico consigo expressamente na significação
de que nele se contém ao mesmo tempo o particular e o singu­
lar. Além disso, o particular é o diferenciado ou a determinidade,
mas na significação de que é universal em si e como singular.
Igualmente, o singular tem a significação de ser sujeito, de ser
a base que contém em si o gênero e a espécie, e que é ela
própria substancial. E esta a inseparabilidade posta dos momen­
tos em sua diferença (§ 160) — a clareza do conceito, em que
cada diferença não produz interrupção, perturbação alguma, mas
é igualmente translúcida.
Nada se ouve com mais freqüência do que dizer que o con­
ceito é algo abstrato. De uma parte, isso é correto, enquanto
o elemento do conceito é o pensar em geral e não o sensível
empiricamente concreto; e, de outra parte, enquanto não é
ainda a idéia. Nessa medida, o conceito subjetivo é ainda
formal; contudo, de modo algum, como se jamais devesse ter
ou receber um outro conteúdo que a si mesmo.
O conceito, enquanto é a forma absoluta mesma, é toda a deter­
minidade’, mas tal como ela é em sua verdade. Embora seja
também abstrato, o conceito é o concreto; certamente o pura e
simplesmente concreto, o sujeito como tal. O absolutamente-
-concreto é o espírito (ver Nota § 159), o conceito, enquanto
existe como conceito, diferenciando-se de sua objetividade, mas
que, apesar do diferenciar permanece a sua objetividade. Qual­
quer outro concreto, por rico que seja, não é tão intimamente
idêntico consigo, e portanto não é nele mesmo tão concreto;
muito menos ainda o que se entende comumente por concreto,
uma multiformidade exteriormente congregada.
O que também se chamam conceitos, e decerto conceitos
determinados, por exemplo homem, casa, animal etc., são
determinações simples e representações abstratas: abstrações,
que do conceito só retêm o momento da universalidade, e
299
deixam de lado a particularidade e a singularidade; que des­
se modo não se desenvolveram nelas mesmas, e assim abs­
traem justamente do conceito.
§ 1 65
O momento da singularidade põe somente os momentos do concei­
to como diferenças, porque é a reflexão negativa do conceito sobre si;
por conseguinte, antes de tudo, o seu livre diferenciar como a primeira
negação, em que a determinidade do conceito é posta, mas como parti­
cularidade. Quer dizer: os termos diferenciados, em primeiro lugar só
têm a determinidade dos momentos do conceito, uns em relação aos
outros; e, em segundo lugar, também é posta sua identidade, a saber,
que um é o outro; essa particularidade posta do conceito é o juízo.
As espécies, que se costumam [utilizar], de conceitos claros,
distintos e adequados não pertencem ao conceito, e sim à psico­
logia, na medida em que por conceitos claros e distintos se
visam representações; por conceito claro, uma representação abs­
trata, determinada de modo simples; mas, por conceito distinto,
uma representação em que se ressalta ainda uma nota, isso é,
uma determinidade qualquer como sinal para o conhecimento
subjetivo. Não há nada que sirva tanto como nota da exterioridade
e da decadência da lógica que essa apreciada categoria de nota.
O “adequado” alude mais ao conceito, e mesmo à idéia; porém
nada exprime ainda, a não ser o formal da concordância de um
conceito, ou mesmo de uma representação, com seu objeto —
com uma coisa exterior.
Na base dos assim chamados conceitos subordinados e coordena­
dos, está subjacente a diferença, carente-de-conceito, do univer­
sal e do particular, e seu relacionamento em uma reflexão exte­
rior. Mas, além disso, uma enumeração das espécies de concei­
tos — contrários e contraditórios, afirmativos, negativos etc. — não
passa de um respigar, ao acaso, de determinidades do pensa­
mento, que para si pertencem à esfera do ser ou da essência,
onde já foram estudadas, e que nada têm a ver com a própria
determinidade-do-conceito, como tal.
Só as verdadeiras diferenças do conceito — o universal, o
particular e o singular — constituem espécies de conceitos,
300
e ainda somente na medida em que são mantidas fora umas
das outras por uma reflexão exterior. A diferenciação e o
determinar, imanentes do conceito, estão presentes no juízo ,
porque o julgar é o determinar do conceito.

b) O juízo
§ 166
O juízo é o conceito em sua particularidade, enquanto relação
diferenciadora dos seus momentos, que são postos como essentes-
-para-si, e ao mesmo tempo como idênticos [cada um] consigo, não
um com outro.
No juízo, pensa-se ordinariamente primeiro na autonomia dos
extremos — do sujeito e do predicado; que o sujeito é uma coisa
ou uma determinação para si, assim como o predicado é uma deter­
minação universal [que está] fora do sujeito, por exemplo na minha
cabeça; depois essa determinação é reunida por mim com a primei­
ra, e assim se faz o juízo. Contudo, como a cópula “é” afirma o
predicado do sujeito, esse subsumir exterior, subjetivo, é por sua
vez suprassumido; e o juízo é tomado como uma determinação do
objeto mesmo. A significação etimológica do juízo em nosso idioma é
mais profunda, e exprime a unidade do conceito como o [que é]
primeiro, e sua diferenciação como a divisão originária', o que o
juízo é na verdade. [Urteil = «rspriingliche 7<?/lung.]
O juízo abstrato é a proposição: “o singular é o universal”. São estas
as determinações que o sujeito e o predicado têm primeiro, um em
relação ao outro, enquanto os momentos do conceito são tomados em
sua imediata determinidade ou em sua primeira abstração. (A propo­
sição: “o particular é o universal”, e “o singular é o particular” perten­
cem a uma ulterior determinação do juízo.) Há que olhar como uma
falta de observação, digna de espanto, que nas Lógicas não se encon­
tre indicado o fato de que em cada juízo está expressa uma proposição
como esta: “o singular £ o universal”, ou, de maneira mais determinada,
“o sujeito é o predicado” (por exemplo, Deus é o espírito absoluto).
Com certeza, as determinações de singularidade e universalidade, de
sujeito e predicado, são também diferentes, mas, justamente por isso,
não permanece menos o fato universal de que cada juízo os enuncia
como idênticos.
301
A cópula “é” vem da natureza do conceito, de ser idêntico
consigo em sua extrusão. O singular e o universal, enquanto são
momentos seus, são determinidades que não se podem isolar. As
determinidades-da-reflexão, anteriormente mencionadas, têm en­
tre suas relações também a referência mútua, mas sua conexão é
somente o ter, não o ser, a identidade posta como tal, ou a universa­
lidade. Por esse motivo, o juízo somente é a verdadeira particulari­
dade do conceito, pois é a determinidade ou a diferenciação desse
último; a qual porém permanece universalidade.
Adendo: O juízo é considerado habitualmente como uma ligação de
conceitos, e, decerto, de conceitos de espécies diversas. O que há de
correto nessa compreensão é que o conceito forma, sem dúvida, a pres­
suposição do juízo, e se apresenta, no juízo, na forma da diferença; ao
contrário, é falso falar de conceitos de espécies diversas, porque o concei­
to como tal, embora concreto, é essencialmente um, e os momentos nele
contidos não podem ser considerados como espécies diversas; e é igual­
mente falso falar de uma ligação dos lados do juízo, pois quando se fala
de uma ligação os [termos] ligados são pensados como existentes para si,
também sem a ligação. Essa compreensão exterior mostra-se, de modo
mais determinado, quando se diz do juízo que ele se realiza quando um
predicado é atribuído a um sujeito. O sujeito, nesse caso, conta como
tendo fora uma consistência para si, e o predicado como encontrando-se
em nossa cabeça. No entanto, a cópula “é” já contradiz essa representa­
ção. Quando dizemos “esta rosa é vermelha” ou “este quadro é belo”,
com isso se exprime que não somos nós que somente acrescentamos à
rosa, exteriormente, ser vermelha, ou, ao quadro, ser belo; mas que isso
são determinações próprias desses objetos.
Outro defeito, na maneira ordinária como a lógica formal apreende o
juízo, consiste em que segundo ela o juízo em geral aparece simplesmen­
te como algo contingente; e não se demonstra a progressão do conceito
para o juízo. Ora, o conceito como tal não é, conforme o entendimento
acredita, persistente em si mesmo sem processo; mas antes, enquanto
forma infinita, é absolutamente ativo — por assim dizer o punctum saliens
de toda a vitalidade — e, por conseguinte, diferenciando-se de si mesmo.
Essa divisão do conceito, posta por sua própria atividade, na diferença de
seus momentos, é o juízo, cuja significação, por isso, deve ser compreen­
dida como a particularização do conceito. Esse já é de fato, em si, o parti­
cular; porém, no conceito como tal o particular ainda não está posto, mas
está ainda em unidade transparente com o universal. Assim, por exemplo,
302
como se notou anteriormente (§ 160, Adendo), o gérmen de uma planta já
contém, na verdade, o particular da raiz, dos ramos, das filhas etc.; mas
esse particular só está presente em si e só é posto quando o gérmen se
abre; o que se há de considerar como o julgamento da planta. Esse exem­
plo pode também servir para fazer perceptível como nem o conceito, nem
o juízo se encontram simplesmente em nossa cabeça, e não são simples­
mente formados por nós. O conceito é o imanente às coisas mesmas; por
ele, as coisas são o que são; e conceituar um objeto significa, por isso, ser
consciente de seu conceito. Se passamos depois ao julgamento do objeto,
isso não é nosso agir subjetivo pelo qual esse ou aquele predicado é
atribuído ao objeto, mas consideramos o objeto na determinidade posta
mediante o seu conceito.
§ 167
O juízo é tomado comumerite em sentido subjetivo', como uma
operação ou forma que se encontraria apenas no pensar consciente-de-
-si. Mas essa diferença não está ainda presente na lógica; o juízo
deve tomar-se de modo totalmente universal: todas as coisas são um
juízo — isto é, são singulares que são em si uma universalidade ou
natureza interior; ou são um universal que ésingularizado. A univer­
salidade e a singularidade se diferenciam nas coisas, mas são ao
mesmo tempo idênticas.
A esse sentido, que devia ser puramente subjetivo, do juízo,
como se fosse eu que atribuísse um predicado a um sujeito,
contradiz a expressão do julgamento que é, antes, objetiva:
“a rosa é vermelha”; “ouro é metal” etc.; não sou eu que lhes
atribuo algo. Os juízos são diferentes das proposições; essas
contêm uma determinação dos sujeitos, que não está em re­
lação de universalidade para com eles — um estado, uma
ação singular e coisas semelhantes.
“César nasceu em Roma em tal e tal ano; fez guerra na Gália
durante dez anos, atravessou o Rubicão” etc. são proposi­
ções, não juízos. Além disso é algo totalmente vazio dizer
que proposições tais como: “Dormi bem hoje à noite”, ou
também: “Apresentar armas!”, podem ser postas na forma de
um juízo. Uma proposição como “um carro está passando aí
em frente” só seria um juízo, e decerto um juízo subjetivo,
se pudesse ser duvidoso se o que se move ali em frente é um
303
carro, ou se o que se move é o objeto, e não antes o ponto
do qual o observamos; onde o interesse assim se dirige a
encontrar a determinação para [uma] representação ainda não
determinada como convém.
§ 168
O ponto de vista do juízo é a finitude. Afinitude das coisas consiste,
desse ponto de vista, em que as coisas são um juízo; em que seu ser-
-aí e sua natureza universal (seu corpo e sua alma) estão reunidos, com
certeza, senão as coisas seriam nada; em que, contudo, esses seus
momentos tanto são já diferentes como são separáveis em geral.
§ 169
No juízo abstrato: “o singular é o universal”, o sujeito, enquan­
to é o que consigo se relaciona negativamente, é o imediatamente
concreto; ao contrário, o predicado e o abstrato, o indeterminado, o
universal. Mas, já que estão ligados por “é”, deve também o predica­
do conter, em sua universalidade, a determinidade do sujeito; e
desse modo ela é particularidade, a qual é a identidade posta do
sujeito e do predicado; enquanto, pois, ela é algo indiferente a essa
diferença de forma, é o conteúdo.
Só no predicado o sujeito tem sua determinidade expressa e
conteúdo; por esse motivo, é para si uma simples represen­
tação ou um nome vazio. Nos juízos: “Deus é o mais real [dos
seres]” etc., ou “O absoluto é idêntico consigo mesmo” etc.,
Deus, o absoluto são um mero nome; o que o sujeito /, diz-se
no predicado somente. Não interessa a esse juízo o que além
disso possa ser como algo concreto (ver § 31).
Adendo: Diz-se: “O sujeito é aquilo de que se enuncia alguma coisa; o
predicado é o enunciado”. Eis algo muito trivial, por onde nada se vem a
saber, com mais exatidão sobre a diferença dos dois. Segundo esse pensa­
mento, o sujeito é antes de tudo o singular; e o predicado, o universal. No
desenvolvimento ulterior do juízo, sucede que o sujeito não permanece sim­
plesmente o imediatamente singular, nem o predicado simplesmente o abs­
tratamente universal: sujeito e predicado recebem também logo a determi­
nação — o primeiro, do particular e do universal; o segundo, do particular e
304
do singular. Essa troca na significação dos dois lados do juízo é o que ocorre
sob as duas denominações de sujeito e de predicado.
§ 170
No que concerne à mais precisa determinidade do sujeito e do
predicado, o sujeito enquanto é a relação negativa para consigo mesmo
(§§ 163, 166, Nota) é o [ser] firme que repousa como fundamento, em
que o predicado tem sua subsistência, e é idealmente (ele inere ao
sujeito); e, sendo o sujeito em geral e imediatamente concreto, o conteú­
do determinado do predicado é só uma das muitas determinidades do
sujeito, o qual é mais rico e mais amplo que o predicado.
Inversamente, o predicado, enquanto é o universal, é para si
subsistente e indiferente a que o sujeito seja ou não; vai além do
sujeito, subsume-o em si, e de seu lado é mais amplo que o sujeito.
O conteúdo determinado do predicado (parágrafo anterior) constitui,
só, a identidade do dois.
§ 171
Sujeito, predicado e o conteúdo determinado, ou a identidade, são
postos no juízo inicialmente em sua relação mesma enquanto diversos,
incidindo fora uns dos outros. Mas em si, isto é, segundo o conceito, são
idênticos, enquanto a totalidade concreta do sujeito consiste em não ser
uma multiformidade indeterminada qualquer, mas somente singulari­
dade — o particular e o universal em uma identidade —, e é essa
unidade, precisamente, o predicado (§ 170). Na cópula, aliás, a identi­
dade do sujeito e do predicado é posta, com certeza; mas, primeiro,
somente como “é” abstrato. Conforme essa identidade, o sujeito há que
pôr-se também na determinação do predicado, e com isso o predicado
recebe também a determinação do sujeito, e a cópula se enche [de
conteúdo]. Eis a determinação-progressiva do juízo, pela cópula repleta-
-de-conteúdo, para [tornar-se] silogismo. Antes de tudo, no juízo, sua
determinação progressiva é o determinar da universalidade sensível,
inicialmente abstrata, para [tornar-se] a totalidade, gênero e espécie, e a
universalidade-do-conteúdo, desenvolvida.
Só o conhecimento da determinação progressiva do juízo dá
tanto uma conexão como um sentido ao que se costuma apre­
sentar como espécies do juízo. Além de que a enumeração
305
habitual se afigura como totalmente contingente, na indica­
ção das diferenças ela é algo de superficial, e mesmo de
confuso e selvagem: como se diferenciam os juízos positivos,
categóricos e assertóricos, [isso,] por uma parte, em geral apa­
nha-se do ar; por outra parte, fica indeterminado. Os diferen­
tes juízos são a considerar como resultando necessariamente
uns dos outros, e como um determinar progressivo do conceito,
pois o juízo mesmo não é senão o conceito determinado.
Em relação às duas esferas precedentes, do ser e da essência,
os conceitos determinados são, enquanto juízos, reproduções
dessas esferas, mas postas na relação simples do conceito.
Adendo: As diversas espécies do juízo não se devem apreender simples­
mente como uma multiformidade empírica, mas como uma totalidade determi­
nada por meio do pensar: cabe a Kant o grande mérito de ter sido o primeiro
que fez valer essa exigência. Ora, ainda que a divisão dos juízos estabelecida
por Kant, segundo o esquema de sua tábua de categorias — em juízos da
qualidade, da quantidade, da relação e da modalidade —, não possa ser
reconhecida por satisfatória, por uma parte devido à aplicação puramente
formal do esquema dessas categorias, por outra parte também por motivo de
seu conteúdo, essa divisão tem, no entanto, por base a intuição verdadeira
de que é pelas formas universais da própria idéia lógica que são determina­
das as diversas espécies do juízo. Por conseguinte, obtemos antes de tudo
três formas principais do juízo, que correspondem aos graus do ser, da essên­
cia e do conceito. A segunda dessas espécies capitais é conforme o caráter
da essência, enquanto ela é o grau da diferença, novamente desdobrada
ainda em si mesma. O fundamento interior dessa sistemática do juízo deve
ser buscado no [fato de] que, por ser o conceito a unidade ideal do ser e da
essência, seu desdobramento que se efetua no juízo tem também de repro­
duzir antes de tudo esses dois graus em [uma] transformação conforme ao
conceito; enquanto ele mesmo — o conceito — se mostra como determinan­
do o juízo verdadeiro.
As diversas espécies de juízos não se devem considerar como situadas
umas ao lado das outras com igual valor, mas antes como formando uma série
de graus; e sua diferença repousa na significação lógica do predicado. Isso
também já se encontra na consciência ordinária, na medida em que se atribui
sem hesitação apenas uma medíocre faculdade de julgar a quem costuma
enunciar somente juízos tais como, por exemplo, “esta parede é verde”,
“esta lareira está quente”; e, ao contrário, só se dirá que sabe julgar verda­
deiramente aquele em cujo juízo se trata de determinar se uma certa obra
306
de arte é bela, se uma ação é boa etc. Nos juízos do tipo mencionado pri­
meiro, o conteúdo representa apenas uma qualidade abstrata, cuja percepção
imediata basta para decidir se ela está presente; quando, ao contrário, se diz
de uma obra de arte que é bela, ou de uma ação que é boa, os sujeitos
citados são comparados com o que devem ser, isto é, com seu conceito.
1. Juízo qualitativo
§ 172
O juízo imediato é o juízo do ser-aí, é o sujeito posto em uma
universalidade, enquanto [ela é] seu predicado, que é uma quali­
dade imediata (portanto, sensível).
1) Juízo positivo'. O singular é um particular. Mas o singular
não é um particular; mais precisamente, tal
qualidade singular não corresponde à na­
tureza concreta do sujeito.
2) Juízo negativo-. E um dos preconceitos mais essenciais da
lógica que juízos qualitativos tais como “a
rosa é vermelha” ou “não é vermelha” po­
dem conter a verdade. Eles podem ser exa­
tos, isto é, no círculo restrito da percepção,
da representação e do pensar finitos; o que
depende do conteúdo, o qual é também
um conteúdo finito e não-verdadeiro para si.
Mas a verdade repousa somente na forma,
quer dizer, no conceito posto e na realidade
a ele correspondente; mas tal verdade não
está presente no juízo qualitativo.
Adendo: Exatidão e verdade são muitas vezes consideradas como sinô­
nimos na vida corrente; e por isso fala-se com freqüência da verdade de
um conteúdo, quando se trata apenas da simples exatidão. Essa, em geral,
diz respeito somente à concordância formal de nossa representação com
seu conteúdo, de qualquer modo, aliás, como possa estar constituído. Ao
contrário, a verdade consiste na concordância do objeto consigo mesmo,
isto é, com seu conceito. Embora possa ser exato que alguém esteja doen­
te, ou que alguém tenha roubado, tal conteúdo, não é verdadeiro, pois um
corpo doente não está de acordo com o conceito da vida, e igualmente o
roubo é uma ação que não corresponde ao conceito do agir humano.
307
Desses exemplos se tem de concluir que um juízo imediato, no qual
se enuncia de um [ser] imediatamente singular uma qualidade abstrata,
por exato que possa ser, não pode conter verdade alguma, já que nele
sujeito e predicado não estão um para com o outro na relação da realidade
e conceito.
Aliás, a inverdade do juízo imediato consiste em que sua forma e seu
conteúdo não correspondem um ao outro. Quando dizemos: “Esta rosa é
vermelha”, está implicado na cópula “é” que sujeito e predicado concor­
dam um com o outro. Ora, a rosa, como um concreto, não é simplesmente
vermelha, mas também exala perfume, tem uma forma determinada e
muitas determinações diversas, que não estão contidas no predicado “ver­
melha”. De outra parte, esse predicado, enquanto algo abstratamente
universal, não pertence simplesmente a esse sujeito. Há ainda outras flo­
res e, em geral, outros objetos que são vermelhos igualmente. Sujeito e
predicado no juízo imediato se tocam assim mutuamente, por assim dizer,
em um só ponto, mas não se recobrem um ao outro. Diversamente ocorre
com o juízo do conceito. Quando dizemos: “Esta ação é boa”, eis um juízo
do conceito. Nota-se logo que aqui entre sujeito e predicado não se en­
contra essa ligação frouxa e exterior como no juízo imediato. Enquanto
nesse juízo o predicado consiste em uma qualidade abstrata qualquer —
que pode pertencer, ou não, ao sujeito —, no juízo do conceito, ao con­
trário, o predicado é, por assim dizer, a alma do sujeito pela qual é deter­
minado de ponta a ponta, como o corpo dessa alma.
§ 173
Nessa negação, enquanto primeira negação, ainda persiste a relação
negativa do sujeito e do predicado, o qual é, por isso, como [um]
relativamente universal, cuja determinidade é somente negada. [O juí­
zo] “a rosa não é vermelha” contém que ela, aliás, tem cor — antes
de tudo uma outra cor —, o que, porém, seria de novo somente um
juízo positivo. Mas o singular também não é um universal.
3) Assim o juízo se decompõe:
aa) em si mesmo na vazia relação idêntica', o singular —
juízo idêntico;
bb) em si mesmo, enquanto é a completa incompatibilidade
presente do sujeito e do predicado: o que se chama juízo infinito.
São exemplos de juízo infinito: “O espírito não é um elefante”,
“um leão não é uma mesa” etc. Proposições que são exatas, mas
absurdas, precisamente como as proposições idênticas: “O leão
308
é um leão”, “o espírito é espírito”. Essas proposições são, sem
dúvida, a verdade do juízo imediato, assim chamado qualitativo;
só que em geral não são juízos e só podem encontrar-se em um
pensar subjetivo, que pode sustentar também uma abstração
não-verdadeira. Proposições que, consideradas objetivamente,
exprimem a natureza do essente ou das coisas sensíveis; é que elas
são um decompor em uma identidade vazia e em uma relação
repleta, mas que é o ser-outro qualitativo dos [termos] relaciona­
dos'. sua completa incompatibilidade.
Adendo: O juízo negativamente-infmito, no qual absolutamente nenhuma
relação ocorre mais entre o sujeito e o predicado, é ordinariamente citado na
lógica formal, como uma curiosidade sem sentido. De fato, porém, esse juízo
infinito não se deve simplesmente considerar como uma forma contingente
do pensar subjetivo, mas ele se produz como o resultado dialético próximo
dos juízos imediatos precedentes (do juízo positivo e do simplesmente nega­
tivo), cuja finitude e inverdade nele se manifestam expressamente. Como
um exemplo objetivo do juízo negativamente infinito, pode-se considerar o
crime. Quem comete um crime, digamos, mais precisamente um roubo, não
nega simplesmente como no litígio civil o direito particular de um Outro
sobre tal coisa determinada, mas [nega] o seu direito em geral, e por esse
motivo também não é simplesmente obrigado a restituir a coisa que roubou,
mas é ainda além disso punido porque violou o direito como tal, isto é, o
direito em geral. O litígio civil, ao contrário, é um exemplo do juízo simples­
mente negativo, pois nele se nega simplesmente este direito particular, e
assim se reconhece o direito em geral. O mesmo sucede também com o juízo
negativo “esta flor não é vermelha”, no qual se nega na flor simplesmente
esta cor determinada, mas não a cor em geral, pois a flor pode ainda ser azul,
amarela etc. Igualmente, a morte é também um juízo negativamente infini­
to; diferentemente da doença, que é um juízo simplesmente negativo. Na
doença é simplesmente tal ou tal função vital que é entravada ou negada;
enquanto na morte, como se costuma dizer, alma e corpo se separam; isto é,
sujeito e predicado incidem completamente fora um do outro.
2. 0 juízo da reflexão
§ 174
O singular, enquanto singular (refletido sobre si) posto no juízo,
tem um predicado perante o qual o sujeito —- enquanto referindo-
-se a si mesmo — permanece ao mesmo tempo um Outro. Na
309
existência, o sujeito não é mais imediatamente qualitativo, mas [está]
na relação e conexão com um Outro, com um mundo exterior. Assim
a universalidade adquiriu a significação dessa relatividade (por exem­
plo: útil, perigoso; peso, acidez; impulso etc).
Adendo: O juízo da reflexão diferencia-se em geral do juízo qualitativo,
porque seu predicado não é mais uma qualidade abstrata, imediata, mas de
uma espécie [tal] que o sujeito por meio dele se mostra como referido a outra
coisa. Se dizemos, por exemplo, “esta rosa é vermelha”, então consideramos
o sujeito em sua singularidade imediata, sem relação a outra coisa. Ao con­
trário, se proferimos o juízo: “esta planta é curativa”, consideramos o sujeito
— a planta — como estando por seu predicado — a virtude curativa — em
relação com outra coisa (com a doença a ser curada por ela). O mesmo se dá
com os juízos: “Este corpo é elástico”, “este instrumento é útil”, “essa pena
atua intimidando” etc. Os predicados de tais juízos são em geral determi-
nações-reflexivas, pelas quais certamente se ultrapassa a singularidade ime­
diata do sujeito; mas também o conceito do sujeito ainda não é indicado. O
raciocínio ordinário costuma proceder sobretudo nesse modo de juízo. Quan­
to mais concreto é o objeto de que se trata, tanto mais pontos de vista
oferece à reflexão; contudo, por esses pontos de vista, sua natureza própria
-— isto é, seu conceito — não se exaure.
§ 175
Ia) O sujeito, o singular enquanto singular (no juízo singular
[singuláren], é um universal.
2-) Nessa relação, ele é elevado acima de sua singularidade.
Essa ampliação é uma ampliação exterior — a reflexão subjetiva —
em primeiro lugar a particularidade indeterminada (no juízo parti­
cular que é imediatamente tanto negativo como positivo; o singular
está dividido em si: em parte se refere a si mesmo, em parte se
refere a outro).
3-) Alguns são o universal: a particularidade assim é ampliada até
a universalidade; ou ainda, determinada pela individualidade do sujei­
to, é a todidade (comunidade, a universalidade ordinária da reflexão).
Adendo: O sujeito, enquanto no juízo singular é determinado como
universal, vai além de si mesmo enquanto esse [ser] simplesmente singu­
lar. Quando dizemos: “Esta planta é curativa”, aí está implicado que não
é simplesmente esta planta que é curativa, mas muitas ou algumas; o que
310
dá então o juízo particular (“algumas plantas são curativas”, “alguns ho­
mens são inventivos” etc.). Mediante a particularidade, o imediatamente
singular perde sua autonomia e entra em conexão com outro. O homem,
enquanto este homem, não é mais simplesmente este homem singular,
mas está ao lado de outros homens, e é assim um na multidão. Mas,
precisamente por isso, pertence também ao seu universal, e é assim ele­
vado. O juízo particular é tanto positivo como negativo. Se somente alguns
corpos são elásticos, então os restantes são não-elásticos.
Aqui se situa, por sua vez, o passo adiante para a terceira forma de juízo-
-da-reflexão, isto é, para o juízo da totalidade. “Todos os homens são mor­
tais”, “todos os metais são condutores elétricos”. A todidade é aquela forma
da universalidade sobre a qual a reflexão costuma incidir, antes de mais
nada. Aqui os singulares formam a base, e nosso agir subjetivo é aquilo pelo
qual eles são reunidos e determinados como “todos”. O universal aqui só
aparece como um vínculo exterior, que abarca os singulares consistentes para
si mesmos e indiferentes para com ele. De fato, porém, o universal é a base
e o solo, a raiz e a substância do singular. Se consideramos, por exemplo,
Gaio, Tito, Semprônio e os demais habitantes de uma cidade ou de um país,
o fato de que, em conjunto, são homens não é simplesmente algo comum
a eles, mas é o seu universal seu gênero, e todos esses singulares absoluta­
mente não seriam sem esse seu gênero. Ao contrário, as coisas se passam
diversamente com aquela universalidade superficial — universalidade só de
nome — que de fato é simplesmente o que compete a todos os singulares
e lhes é comum. Observou-se que todos os homens, diferentemente dos
animais, têm isso de comum entre eles, de serem dotados de um lobo auricular.
No entanto, é evidente que, se por acaso um ou outro não deva ter lobo
auricular, nem por isso o restante de seu ser, seu caráter, suas capacidades
etc., seria tocado; pelo contrário, não teria sentido admitir que Gaio poderia
talvez não ser homem, mas mesmo assim ser corajoso, instruído etc. O que
o homem singular é no particular, ele o é enquanto, antes de todas as coisas,
é um homem como tal, e é no universal; e esse universal não é apenas algo
fora e ao lado de outras qualidades abstratas, ou de simples determinações
reflexivas, mas, antes, o que penetra e em si encerra todo o particular.
§ 176
Porque o sujeito é determinado igualmente como [um] universal,
é posta como indiferente sua identidade com o predicado, assim como,
por isso mesmo, a própria determinação do sujeito. Essa unidade do
conteúdo, como universalidade idêntica à reflexão-sobre-si negativa do
sujeito, faz a relação do juízo ser uma relação necessária.
311
Adendo: O passo adiante — do juízo-de-reflexão para o juízo-da-ne-
cessidade — já se encontra em nossa consciência ordinária, quando dize­
mos: “O que pertence a todos, pertence ao gênero e é por isso necessário”.
Se dizemos: todas as plantas, todos os homens etc., é o mesmo se dissés­
semos: a planta, o homem etc.

3. O juízo da necessidade
§ 177
O juízo da necessidade, enquanto é a identidade do conteúdo
em sua diferença,
Ia) por um lado contém no predicado a substância ou a natureza
do sujeito, o universal concreto — o gênero —; por outro
lado, enquanto esse universal contém a determinidade como
negativa, a determinidade essencial exclusiva — a espécie
— [é o] juízo categórico;
2") segundo sua substancialidade, os dois lados conservam a
figura de efetividades autônomas, cuja identidade é apenas
uma identidade interior; assim a efetividade de um é, ao
mesmo tempo, não a sua efetividade, mas o ser do Outro; —
[é o] juízo hipotético;
3a) nessa extrusão do conceito, a identidade interior é ao mes­
mo tempo posta\ assim o universal é o gênero, que em sua
singularidade exclusiva é idêntico consigo mesmo; o juízo
que tem como seus dois lados esse universal — uma vez
como tal, outra vez como o círculo de sua particularização,
que se exclui a si mesma; cujo gênero é “ ou [um] ou [ou­
tro]”, como é “tanto [um] quanto [outro]” — é o juízo dis-
juntivo. A universalidade primeiro como gênero, e agora
também como o círculo de suas espécies, é assim determi­
nada e posta como totalidade.
Adendo: O juízo categórico (“o ouro é metal”, “a rosa é uma planta”)
é o juízo imediato da necessidade, e corresponde à relação-de-substancia-
lidade na esfera da essência. Todas as coisas são um juízo categórico, isto
é, têm sua natureza substancial que forma sua base firme e imutável. Só
quando consideramos as coisas sob o ponto de vista de seu gênero, e
como determinadas por este com necessidade, [é que] o juízo começa a

312
ser om verdadeiro juízo. Pode-se caracterizar como uma falha na cultura
lápu quando juízos como estes: “O ouro é caro”, “o ouro é metal” são
oooaderados como estando no mesmo nível. Que o ouro seja caro, isso diz
icspcito a uma relação exterior do ouro a nossas inclinações e necessidades,
ao custo de sua extração etc.; e ouro permanece o que é, ainda quando essa
iciação exterior se altera ou desaparece. Ao contrário, a metalidade constitui
a natureza substancial do ouro, sem a qual não pode ter consistência ele
mesmo, com tudo o que há nele ou que pode ser enunciado a seu respeito.
O mesmo ocorre quando dizemos “Gaio é um homem”; com isso exprimi­
mos que tudo o que ele aliás possa ser só tem valor e significação enquanto
corresponde a essa sua natureza substancial de ser um homem.
De resto, porém, o juízo categórico é também defeituoso, enquanto nele
o momento da particularidade ainda não acede a seu direito. Assim, por
exemplo, o ouro é metal, certamente; mas prata, cobre, ferro são igualmente
metais, e a metalidade enquanto tal se comporta como indiferente quanto ao
particular de suas espécies. Aqui reside a passagem do juízo categórico ao
hipotético, que pode exprimir-se pela fórmula: “Se A é, B é”. Temos aqui a
mesma passagem, que antes ia da relação da substancialidade à relação da
causalidade. No juízo hipotético, a determinidade do conteúdo aparece como
mediatizada, como dependente de outra coisa, e isso é justamente a relação
de causa e efeito. Ora, a significação do juízo hipotético é em geral que por
meio dele o universal é posto em sua particularização, e assim obtemos como
terceira forma o juízo da necessidade, o juízo disjuntivo. A é ou B ou C ou
D: a obra-de-arte poética ou lírica, ou épica ou dramática; a cor é ou amarela,
ou azul ou vermelha etc. Os dois lados do juízo disjuntivo são idênticos; o
gênero é a totalidade de suas espécies, e a totalidade da espécie é o gênero
Essa unidade do universal e do articular é o conceito, e é este que forma de
agora em diante o conteúdo do juízo.
4. O juízo do conceito

§ 178
0 juízo do conceito tem por conteúdo o conceito, a totalidade em
uma forma simples, o universal em sua determinidade completa. O
5ujeito é:
1 — antes de tudo um singular, que tem por predicado a reflexão
do ser-aí particular sobre seu universal -— a concordân­
cia ou não-concordância dessas duas determinações: bom,
verdadeiro, justo etc.: — [é o juízo assertórico]. Na vida
313
comum, o que se chama julgar também é apenas um tal
juízo: se um objeto, um ato etc. é bom ou mau, verda­
deiro, belo etc. Não se atribui faculdade-de-julgar a um
homem que sabe fazer os juízos positivos ou negativos
[como]: “Esta rosa é vermelha”, “este quadro é verme­
lho, verde, poeirento” etc.
O juízo assertórico, que se considera como descabido
quando na sociedade se arroga pretensão de validade,
foi feito justamente na filosofia mediante o princípio do
saber imediato e da crença, a forma única e essencial da
doutrina. Pode-se ler em obras, que se dizem filosóficas
e afirmam esse princípio, centenas e centenas de asserções
a respeito da razão, do saber, do pensar etc., as quais,
uma vez que a autoridade exterior já não vale grande
coisa, procuram obter para si credibilidade por meio das
repetições infinitas de uma só e da mesma coisa.
§ 179
O juízo assertórico não contém, em seu sujeito inicialmente
imediato, a relação entre o particular e o universal, que se exprime
no predicado.
Esse juízo, portanto, é somente uma particularidade subjetiva,
e a ele se contrapõe a asserção oposta com igual direito —- ou
melhor, falta-de-direito — é, portanto,
2") somente um juízo problemático.
3-) Mas, [sendo] posta no sujeito a particularidade objetiva —- sua
particularidade enquanto é a constituição de seu ser-aí — então
agora o sujeito exprime a relação da particularidade a sua cons­
tituição, isto é, a seu gênero; assim (parágrafo anterior) o
que faz o conteúdo do predicado {esta — a singularidade
imediata; casa — o gênero; constituída assim ou assim — par­
ticularidade; é boa ou má) — juízo apodítico. Todas as coisas
são um gênero (sua determinação e fim) em uma efetividade
singular e de uma constituição particular; e sua finitude
consiste em que o seu particular pode ser conforme — ou
não — ao universal.
314
§ 180
Desse modo, sujeito e predicado são, cada um, o juízo completo.
A constituição imediata do sujeito mostra-se primeiro como o funda­
mento mediatizante entre a singularidade do efetivo, e sua universalida­
de enquanto é o fundamento do juízo. De fato, o que é posto é a
unidade do sujeito e do predicado enquanto [ela é] o conceito mesmo:
o conceito é o preenchimento do “é” vazio da cópula; e, enquanto
seus momentos se diferenciam como sujeito e predicado, é posto como
a unidade de ambos, como relação que os mediatiza: [é o] silogismo.

c) O silogismo
§ 181
O silogismo é a unidade do conceito e do juízo: é o conceito
enquanto a identidade simples, à qual retornaram as diferenças-de-
-forma do juízo; é o juízo enquanto ao mesmo tempo é posto na
realidade, a saber, na diferença de suas determinações. O silogismo
é o racional e todo o racional.
Sem dúvida, costuma-se expor ordinariamente o silogismo
como a forma do racional; aliás, como uma forma subjetiva,
sem que seja mostrada uma conexão natural qualquer entre
essa forma e um outro conteúdo racional — por exemplo, um
princípio racional, uma ação, uma idéia etc. racionais. Em
geral, fala-se muito e com freqüência da razão, e apela-se
para ela, sem a indicação do que é sua determinidade, do que
a razão é; e aí, no em que menos se pensa, é no silogizar. De
fato, o silogizarformal é o racional de uma maneira tão caren-
te-de-razão, que não tem nada a ver com um conteúdo racio­
nal. Como porém um tal [conteúdo] só pode ser racional por
meio da determinidade pela qual o pensar é a razão, ele só
pode sê-lo mediante a forma, que é o silogismo. Este porém
não é outra coisa que o conceito posto (de início formalmente),
real, como este parágrafo exprime.
Por causa disso, o silogismo é o fundamento essencial de todo o
verdadeiro\ e a definição do absoluto é, de agora em diante, que
ele é o silogismo, ou, exprimindo essa determinação como pro­
315
posição: “Tudo é um silogismo". Tudo é conceito, e seu ser-aí é a
diferença dos momentos do conceito, de modo que a natureza
universal de tudo, mediante a particularidade, se confere realida­
de exterior, e assim, enquanto reflexão-sobre-si negativa, se faz
algo singular. Ou, inversamente, o efetivo é um singular, que
pela particularidade se eleva à universalidade, e se faz idêntico a
si mesmo. O efetivo é uno, mas é igualmente o dissociar-se dos
momentos do conceito, e o silogismo é o percurso completo da
mediação de seus momentos, pelos quais se põe como uno.
Adendo: Como o conceito e o juízo, costuma-se também considerar o
silogismo como uma forma de nosso pensar subjetivo, e por isso se diz que
o silogismo é a fundamentação do juízo. Ora, é bem verdade que o juízo
remete ao silogismo, porém não é simplesmente por agir subjetivo nosso que
essa progressão se efetua; mas é o juízo mesmo que se põe como silogismo,
e nele retorna à unidade do conceito. Mais precisamente, é o juízo apodítico
que forma a passagem para o silogismo. No juízo apodítico, temos um sin­
gular que por sua constituição se refere a seu universal, isto é, a seu conceito.
O particular aparece aqui como o meio-termo entre o singular e o universal,
e esta é a forma-básica do silogismo, cujo desenvolvimento ulterior, apreendido
formalmente, consiste em que o singular e o universal ocupem esse lugar,
pelo qual se forma então a passagem da subjetividade para a objetividade.
§ 182
O silogismo imediato consiste em que as determinações-do-con-
ceito se contrapõem mutuamente enquanto abstratas, somente em
relação exterior; de modo que o dois extremos são a singularidade e
a universalidade enquanto o conceito, como meio-termo que os con­
clui juntos a ambos, é igualmente apenas a particularidade abstrata.
Assim, os extremos são postos subsistindo por si; indiferentes tanto
um para com o outro, como para com seu meio-termo. Esse silogismo
é, assim, o racional enquanto carente-de-conceito — silogismo for­
mal de entendimento. O sujeito é concluído-junto com uma outra
determinidade; ou seja, o universal subsume, por essa mediação,
um sujeito que lhe é exterior. O silogismo-de-razão, ao contrário,
consiste em que o sujeito, através da mediação, se conclua-junto
consigo. Assim somente é sujeito, ou seja o sujeito somente é nele
mesmo o silogismo-de-razão.
316
Na consideração que vem a seguir, o silogismo-de-entendimen-
to está expresso segundo a sua significação habitual e corrente,
no seu modo subjetivo que lhe compete, no sentido em que nós
fazemos tais silogismos. De fato, ele é somente um silogizar,
subjetivo, mas também isso possui a significação objetiva de que
ele expressa somente a finitude das coisas, mas da maneira de­
terminada que a forma atingiu aqui. Nas coisas finitas, a subje­
tividade como coisidade é separável de suas propriedades, de
sua particularidade; igualmente separável de sua universalidade,
seja enquanto essa é a simples qualidade da coisa e sua conexão
com outras coisas, seja enquanto é seu gênero e conceito.
Adendo: Em conformidade com a apreensão, acima mencionada, do si­
logismo como [sendo] a forma do racional, definiu-se também a razão
mesma com a faculdade de silogizar; e o entendimento, ao contrário,
como a faculdade de formar conceitos. Abstraindo da representação su­
perficial — que aqui serve de base — do espírito como de um simples
complexo de forças ou faculdades subsistentes lado a lado, deve-se notar
quanto a essa associação do entendimento com o conceito, e da razão
com o silogismo, que nem o conceito há de considerar-se simplesmente
como determinação-do-entendimento, nem o silogismo também, sem
mais, como racional. É que, por um lado, o que na lógica formal costuma
ser tratado na doutrina do silogismo, de fato não é outra coisa que o
simples silogismo-de-entendimento; ao qual não compete de modo al­
gum a honra de valer como forma do racional, ou mesmo como o
racional, pura e simplesmente. Por outro lado, o conceito como tal é tão
pouco [uma] simples forma-de-entendimento, que, antes, é somente o
entendimento abstrativo pelo qual é rebaixado a isso. Costuma-se, por
esse motivo, também distinguir entre simples conceitos de entendimen­
to e conceitos de razão; o que, aliás, não se deve entender assim, como
se houvesse duas espécies de conceitos, mas antes que é operação nossa,
ou ficar simplesmente na forma negativa e abstrata do conceito, ou então
apreender o conceito segundo sua verdadeira natureza, como ao mesmo
tempo positivo e concreto. Assim, por exemplo, é o simples conceito-de-
-entendimento da liberdade, quando é vista como o oposto abstrato da
necessidade; ao passo que o conceito verdadeiro e racional da liberdade
contém em si a necessidade como suprassumida. Igualmente, a definição
de Deus — proposta pelo assim chamado deísmo — é o simples concei-
to-de-entendimento sobre Deus; quando, ao contrário, a religião cristã,
que sabe a Deus como uno-e-trino, contém o conceito racional de Deus.
317
1. Silogismo qualitativo
§ 183
O primeiro silogismo é o silogismo do ser-aí ou silogismo quali­
tativo, como se apresentou no parágrafo precedente:
1°: S-P-U, em que um sujeito como singular é, por meio de uma
qualidade [particular], concluído-junto com uma determinidade universal.
Não vem aqui em consideração que o sujeito (o terminus
minor) tenha ainda outras determinações além da singulari­
dade, e que também o outro extremo (o predicado da conclu­
são, o terminus maior) seja determinado mais amplamente do
que como somente um universal. Apenas [se consideram] as
formas mediante as quais esses termos constituem o silogismo.
Adendo: O silogismo do ser-aí é simples silogismo-de-entendimento,
e certamente enquanto aqui a singularidade, a particularidade e a univer­
salidade se contrapõem de modo totalmente abstrato, uma a outra.
Assim, esse silogismo é o extremo sair-fora-de-si do conceito. Temos
aqui como sujeito algo imediatamente singular: nesse sujeito é ressaltado um
lado particular qualquer — uma propriedade — e por meio dela o singular
se mostra como um universal. Assim quando dizemos, por exemplo: “Esta
rosa é vermelha; ora, vermelho é uma cor; logo a rosa é algo colorido”. Essa
figura do silogismo é a que se costuma, principalmente, tratar na lógica
ordinária. Outrora o silogismo se considerava como a regra absoluta do co­
nhecimento, e uma afirmação científica só contava por justificada se era
demonstrada como mediatizada por um silogismo. Hoje em dia, é quase
somente nos compêndios de Lógica que se encontram as diversas formas de
silogismo, e seu saber passa como sendo um oco saber-de-escola, de que não
se pode depois fazer qualquer uso, nem na vida prática nem na ciência.
A propósito vale notar, antes de mais nada, que, embora seja supér­
fluo e pedante apresentar-se em qualquer ocasião com toda a minuciosidade
do silogizar formal, mesmo assim as diversas formas de silogismo se fazem
valer continuamente em nosso conhecimento. Se por exemplo, no tempo
de inverno, alguém de manhã ao despertar ouve os carros ranger na rua,
e por isso é levado à consideração de que deve ter gelado bem forte, faz
com isso uma operação silogística; e essa operação, nós a efetuamos dia­
riamente sob as mais variadas complicações. Conscientizar-se explicita­
mente desse seu agir cotidiano, como de um homem que pensa, poderia
assim pelo menos não ser de menor interesse que o interesse sem dúvida
reconhecido em adquirir conhecimento não só das funções de nossa vida
orgânica, (como por exemplo das funções da digestão, da formação do
sangue, da respiração), mas também dos acontecimentos e das formações
318
da natureza que nos rodeia. Quanto a isso, deve-se admitir sem hesitação
que, assim como não é preciso um estudo prévio da anatomia ou da
fisiologia para convenientemente digerir, respirar etc., tampouco se pre­
cisa ter antes estudado a Lógica para tirar conclusões corretas. Foi Aris­
tóteles quem primeiro observou e descreveu, em sua significação subje­
tiva, as diversas formas e as assim chamadas figuras do silogismo; e, na
verdade, com tal segurança e precisão, que no essencial nada mais lhe foi
acrescentado. Embora esse trabalho faça grande honra a Aristóteles, não
foi das formas do silogismo-de-entendimento, nem ainda, de modo geral,
do pensamento finito, que ele se serviu em suas pesquisas propriamente
filosóficas (ver nota ao § 189). [De fato, § 187.]
§ 184
Esse silogismo [qualitativo] é
a) de todo contingente segundo suas determinações, enquanto o
meio-termo, como particularidade abstrata, é apenas uma determinidade
qualquer do sujeito, que como imediato — portanto empiricamente
concreto — tem muitas determinidades; pode pois ser concluído-jun-
to, com outras universalidades igualmente diversas; assim como uma
particularidade singular pode, por sua vez, ter em si diversas determini­
dades, assim o sujeito pode ser referido a diferentes Universais através
do mesmo medius terminus.
O silogizar formal passou de moda — mais do que se, por acaso,
se tivesse descoberto sua incorreção, ou se tivesse querido jus­
tificar de tal maneira seu desuso. Este parágrafo e o seguinte
indicam a nulidade de tal silogizar para [atingir] a verdade.
Segundo o lado indicado no parágrafo, por tais silogismos pode-
-se — como se diz — provar o que há de mais diverso. E preciso
somente tomar o medius terminus do qual pode ser feita a passa­
gem para a determinação desejada. Mas com um outro medius
terminus pode-se provar algo diverso, e até mesmo o oposto.
Quanto mais um objeto é concreto, tanto mais lados tem, que
lhe pertencem e podem servir de medius terminus. Qual dentre
esses lados seja mais essencial que o outro, isso depende, por
sua vez, de um tal silogizar que se atém a uma determinidade
singular e pode para ela encontrar também facilmente um lado
e um ponto de vista, segundo o qual ela se faz valer como impor­
tante e necessária.
319
Adendo: Por menos que se costume pensar no silogismo-de-entendi-
mento nas transações cotidianas da vida, ele desempenha contudo ali o seu
papel constantemente. Assim, por exemplo, no processo civil a tarefa dos
advogados é fazer valer os títulos de direito favoráveis às suas partes. Mas um
tal título de direito não é outra coisa que um medius terminus. O mesmo
sucede também nas relações diplomáticas, quando por exemplo diversas
potências reivindicam um só e o mesmo território. No caso, podem ser
aduzidos como medius terminus o direito da herança, a situação geográfica do
país, a origem étnica e o idioma de seus habitantes, ou qualquer outro motivo.
§ 185
b) Esse silogismo é também contingente pela forma da relação
que nele há. Segundo o conceito do silogismo, o verdadeiro é a relação
de [termos] diferentes, através de um meio-termo que é sua unidade.
Porém relações dos extremos com o meio-termo (as assim chamadas
premissas, a maior e a menor) são antes relações imediatas.
Essa contradição do silogismo exprime-se, novamente, por
um progresso infinito, enquanto exigência de que as premis­
sas sejam igualmente demonstradas, cada uma mediante um
silogismo; ora, como esse silogismo tem duas premissas igual­
mente imediatas, essa exigência se repete, e na verdade se
duplica sempre, até ao infinito.
§ 186
O que aqui (por causa da importância empírica) foi notado
como defeito do silogismo, ao qual nessa forma se atribui exatidão
absoluta, deve suprassumir-se a si mesmo na determinação-pro-
gressiva do silogismo. Aqui, no interior da esfera do conceito, como
no juízo, a determinidade oposta não está presente simplesmente
em si, mas está posta; e, assim também, para a determinação-pro-
gressiva do silogismo é preciso somente acolher o que cada vez é
posto por meio dele.
Pelo silogismo imediato S-P-U, o singular é mediatizado com o
universal, e nessa conclusão é posto como universal. O singular, en­
quanto sujeito — desse modo, ele mesmo enquanto universal —,
é assim a unidade dos dois extremos e é o mediatizante: o que dá
a segundafigura do silogismo, U-S-P. Essa figura exprime a verdade
da primeira, [a saber] de que a mediação ocorreu na singularidade;
por isso é algo contingente.
320
§ 187
A segunda figura conclui-junto o universal (que da conclusão
precedente resultava determinado pela singularidade, e por isso
assume agora o lugar do sujeito imediato) com o particular. O uni­
versal é assim posto como particular mediante essa conclusão; por­
tanto como o mediatizante dos extremos, cujos lugares os outros
agora assumem: é a terceira figura do silogismo: P-U-S.
As assim chamadas figuras do silogismo (Aristóteles, com razão,
conhecia apenas três delas: a quarta é um acréscimo supérfluo,
e mesmo de péssimo gosto, dos modernos) são no tratamento
habitual postas lado a lado, sem que no mínimo se pense em
mostrar sua necessidade e, menos ainda, seu valor. Portanto, não
é de admirar se mais tarde as figuras foram tratadas como um
formalismo vazio. No entanto, têm um sentido muito profundo,
que repousa na necessidade de que cada momento, enquanto
determinação-do-conceito, se torne ele mesmo o todo e o funda­
mento mediatizante. Aliás, que determinações podem ter essas
proposições, se podem ser universais ou negativas, para con­
duzir em cada figura a uma conclusão correta -— essa é uma
investigação mecânica, que com razão caiu no esquecimento
por seu mecanismo carente-de-conceito, e sua carência in­
trínseca de significação. Para [justificar] a importância de tal
investigação, e do silogismo-de-entendimento em geral, não
se pode, no menos que seja, apelar para Aristóteles, que cer­
tamente descreveu essa e inúmeras outras formas do espírito
e da natureza, e investigou e expôs sua determinidade. Em
seus conceitos metafísicos, como também nos conceitos do na­
tural e do espiritual, Aristóteles esteve tão longe de querer
constituir a. forma do silogismo de entendimento em base e
em critério, que se poderia dizer que, caso estivesse subme­
tido às leis do entendimento, nem mesmo um só desses
conceitos poderia ter-se originado ou mantido. Nas numero­
sas descrições e explicações que Aristóteles, seguindo sua
maneira própria, fornece essencialmente, o predominante nele
é sempre o conceito especulativo; nessa esfera ele não deixa
penetrar aquele silogizar do entendimento, que ele expôs
primeiro de um modo tão determinado.
321
Adendo: O sentido objetivo das figuras do silogismo é, em geral, que
todo o racional se mostra como um tríplice silogismo; e isso de tal modo que
cada um de seus termos tanto ocupa a posição de um extremo como também
a do meio-termo mediatizante. E, em especial, o caso com os três termos da
ciência filosófica, isto é, a idéia lógica, a natureza e o espírito. Aqui é primeiro
a natureza o termo mediador, que conclui juntamente (os outros). A nature­
za, essa totalidade imediata, se desdobra nos dois extremos da idéia lógica e
do espírito. Mas o espírito só é espírito ao ser mediatizado pela natureza. Em
segundo lugar, é igualmente o espírito que nós conhecemos como o indivi­
dual, o ativo, [que é] o meio-termo; e a natureza e a idéia lógica são os ex­
tremos. E o espírito que na natureza conhece a idéia lógica, e assim a eleva
à sua essência. Igualmente, em terceiro lugar, a própria idéia lógica é o meio-
-termo; é ela a substância absoluta do espírito, como da natureza: o universal
que-tudo-penetra. São esses os termos do silogismo absoluto.
§ 188
Sendo que cada momento veio a ocupar o lugar do meio-termo
e dos extremos, a diferença determinada dos momentos, uns em
relação aos outros, se suprassumiic, e o silogismo inicialmente, nessa
forma da indiferenciação de seus momentos, tem por sua relação
[própria] a identidade exterior do-entendimento, a igualdade — [é]
o silogismo quantitativo ou matemático. Se duas coisas são iguais a
uma terceira, elas são iguais entre si.
Adendo: O silogismo quantitativo aqui mencionado apresenta-se noto­
riamente na matemática, como um axioma do qual se diz o que é costume
dizer dos demais axiomas, que seu conteúdo não pode ser provado; mas
também que não precisa dessa prova, por ser imediatamente evidente.
De fato, porém, esses axiomas matemáticos não são outra coisa que pro­
posições lógicas, as quais, enquanto nelas estão expressos pensamentos
particulares e determinados, são a deduzir do pensar universal que a si
mesmo se determina; o qual deve ser considerado justamente como sua
prova. Este é o caso aqui com o silogismo quantitativo, posto como axio­
ma na matemática, que se mostra como o resultado próximo do silogismo
qualitativo ou imediato.
Aliás, o silogismo quantitativo é o silogismo totalmente privado de for­
ma, já que nele está suprassumida a diferença dos termos, determinada
mediante o conceito. Que proposições devem aqui ser premissas, isso de­
pende de circunstâncias exteriores; e por isso, na utilização desse silogismo,
se converte em pressuposições o que já está aliás estabelecido e provado.
322
§ 189
Efetuou-se, pois, na forma [o seguinte]:
1-) cada momento recebeu a determinação e o lugar do meio-termo
— portanto, do todo em geral — e assim perdeu em si a uni-
lateralidade de sua abstração (§§ 182 e 184);
2~) a mediação (§ 185) foi consumada, igualmente só em si, a
saber, apenas como um círculo de mediações que mutua­
mente se pressupõem. Na primeira figura, S-P-U, as duas
premissas S-P e P-U estão ainda não-mediatizadas; S-P é
mediatizada na terceira figura; P-U, na segunda. Mas cada
uma dessas duas figuras pressupõe também suas duas ou­
tras figuras para a mediatização de suas premissas.
Por isso, a unidade mediatizante do conceito não deve mais
ser posta como uma particularidade abstrata apenas, mas
como a unidade desenvolvida da singularidade e da univer­
salidade, e na verdade, antes de tudo, como nnidade refletida
dessas determinações: a singularidade, determinada ao mes­
mo tempo como universalidade. Tal meio-termo dá o silo-
gismo-da-reflexão.
2. Silogismo-da-reflexão
§ 190
Ia) Assim, antes de tudo, o meio-termo — não só como determi­
nidade abstrata, particular do sujeito, mas como sendo, ao
mesmo tempo, todos os sujeitos concretos singulares, aos quais
somente convém, entre outras determinidades, também
aquela determinidade — dá o silogismo da todidade.
Mas a maior, que tem por sujeito a determinidade particu­
lar — o medius terminus, enquanto soma total —, tem por
pressuposição a conclusão (quando era a conclusão que
deveria ter a maior por pressuposição).
2-) Por isso, a maior repousa sobre a indução, cujo meio-termo são
os singulares como tais, a, b, c, d etc., em sua integralidade. Mas
enquanto a singularidade empírica imediata é diferente da
universalidade, e por esse motivo não pode proporcionar ne­
nhuma integralidade, a indução repousa sobre a analogia.
323
3fl) Na analogia, o meio-termo é um singular, mas [tomado] no
sentido de sua universalidade essencial, de seu gênero ou
determinidade essencial.
O primeiro silogismo remete, para sua mediação, ao segundo, e o
segundo ao terceiro; mas este exige igualmente uma universalidade
determinada nela mesma — ou a singularidade como gênero — de­
pois que as formas da relação exterior entre a singularidade e a univer­
salidade foram percorridas nas figuras do silogismo da reflexão.
Por meio do silogismo da todidade, corrige-se a deficiência
(mostrada no § 184) da forma fundamental do silogismo de
entendimento; mas só de maneira que surge nova deficiência,
a saber, de que a própria maior pressupõe, como uma proposi­
ção — por isso imediata —, o que deveria ser uma conclusão.
“Todos os homens são mortais, logo Caius é mortal.” “Todos os
metais são condutores elétricos, logo também, por exemplo, o
cobre.” Para poder enunciar essas maiores, que exprimem os
Singulares imediatos como “todos”, e devem ser essencialmente
proposições empíricas, é preciso que já antes se tenham consta­
tado como corretas, para si, as proposições sobre o Caius singu­
lar, sobre o cobre singular. Com razão a ninguém passa desper­
cebido não simplesmente o pedantismo, mas o formalismo que
nada diz, de tais proposições como: “Todos os homens são
mortais; ora, Caius é... etc.”
Adendo: O silogismo da todidade remete ao silogismo da indução, no
qual os singulares formam o meio-termo que conclui-juntos [os outros
termos]. Se dizemos: “Todos os metais são condutores elétricos”, eis aí
uma proposição empírica que resulta da verificação empreendida com
todos os metais singulares. Obtemos assim o silogismo da indução, que
tem a figura seguinte:
P-S-lf
S
S

“Ouro é metal, prata é metal, também cobre, chumbo etc.” Essa é a


maior. Acrescenta-se depois a menor: “Todos esses corpos são condutores
elétricos”, e daí resulta a conclusão de que todos os metais são condutores elé­
tricos. Aqui, pois, a singularidade é, como todidade, o que estabelece a

324
conexão. Ora, esse silogismo remete de novo, igualmente, a um outro silogis­
mo. Tem por seu meio-termo os singulares completos, o que supõe que a
observação e a experiência sejam cabalmente realizadas em um certo domínio.
Mas, por serem singularidades aquilo de que se trata neste caso, isto dá no­
vamente a progressão até o infinito (S, S, S, ...). Numa indução nunca se
podem esgotar as singularidades. Ao dizer-se: “Todos os metais, todas as plan­
tas” etc., isso significa “todos os metais, todas as plantas que se conheceram
até hoje”. Toda a indução é incompleta, portanto. Fez-se bem esta e aquela
observação, muitas observações foram feitas, mas em todo o caso não foram
observados todos os indivíduos. E essa deficiência da indução que conduz à
analogia. No silogismo da analogia, do fato de que certa propriedade compete
a coisas de certo gênero, conclui-se que a mesma propriedade compete tam­
bém a outras coisas do mesmo gênero. Assim, por exemplo, é um silogismo de
analogia quando dizemos: “Até hoje em todos os planetas se encontrou essa
lei do movimento; logo um novo planeta descoberto mover-se-á, verossimil-
mente, segundo essa mesma lei”. Com razão, a analogia está em grande con­
sideração nas ciências empíricas, e se chegou a resultados muito importantes
seguindo esse caminho. É o instinto-da-razão que faz pressentir que essa ou
aquela determinação, descoberta empiricamente, está fundada na natureza
íntima ou no gênero de um objeto, sobre os quais, além disso, se apóia. Aliás,
a analogia pode ser mais superficial ou mais profunda. Quando se diz, por
exemplo: “O homem Caius é um sábio; Tito também é um homem, logo
será também um sábio”; sem dúvida, é isto uma péssima analogia, e na
verdade porque o ser-sábio de um homem não está, de modo algum, funda­
do nesse seu gênero, sem mais. Semelhantes analogias superficiais encontram-
-se, apesar disso, com muita freqüência. Por exemplo: costuma-se dizer: “A
Terra é um corpo celeste e tem habitantes; a Lua é também um corpo
celeste; logo a Lua será também habitada”. Essa analogia não é em nada
melhor que a citada antes. Que a Terra tenha habitantes, isso não repousa
simplesmente no fato de ser um corpo celeste, mas depende ainda de outras
condições, especialmente de ser rodeada por uma atmosfera, e da presença
— unida a isso — da água etc.: e essas condições são as que faltam à Lua,
quanto nós a conhecemos. O que modernamente se chamou filosofia da
natureza consiste, em grande parte, em um jogo vão com analogias exteriores
vazias, que no entanto devem valer como resultados profundos. A conside­
ração filosófica da natureza caiu, por isso, em um descrédito merecido.
3. Silogismo da necessidade
§ 191
Esse silogismo, tomado segundo as determinações puramente
abstratas, tem por meio-termo o universal; como silogismo-da-refle-
325
xão tem [por meio-termo] a singularidade — este conforme a segun­
da figura, aquele conforme a terceira (§ 187): o universal posto
como essencialmente determinado em si. Antes de tudo, l fl) o
particular, na significação do gênero determinado ou da espécie deter­
minada, é a determinação mediatizante — no silogismo categórico.
Z~) O singular é [a determinação mediatizante] na significação do
ser imediato, de modo que seja tanto m ediatizante quanto
mediatizado — no silogismo hipotético. 3fl) O universal mediatizante
é posto também como a totalidade de suas particularizações, e como
um Particular singular, uma singularidade exclusiva, no silogismo
disjuntivo; de modo que um só e o mesmo universal está nessas
determinações como apenas em formas da diferença.
§ 192
O silogismo foi tomado segundo as diferenças que em si con­
tém; e o resultado geral do curso delas é que aí se produz o su-
prassumir-se [Sichaufheben] dessas diferenças, e o do ser-fora-de
si do conceito. E, em verdade, 1) cada momento mesmo se mos­
trou como a totalidade dos momentos — portanto como o silogismo
completo — e em si são assim idênticos. 2) A negação de suas dife­
renças e mediação delas constitui o ser-para-si, de modo que é um
só e o mesmo universal que está nessas formas, e por isso é tam­
bém posto como sua identidade. Nessa idealidade dos momentos,
o silogizar recebe a determinação de conter essencialmente a nega­
ção das determinidades — ele que é o percurso através delas — e
com isso de ser uma mediação por meio do suprassumir da media­
ção, e um concluir-junto do sujeito, não com Outro mas com Outro
suprassumido — consigo mesmo.
Adendo: Na lógica ordinária, costuma-se concluir com o estudo da
doutrina do silogismo a primeira parte da — assim chamada — doutrina
elementar. A esta segue-se então como segunda parte a assim chamada
metodologia em que deve mostrar-se como, pela aplicação aos objetos
dados das formas do pensamento estudadas na doutrina elementar, pode
ser estabelecido um conjunto de conhecimento científico. Donde provêm
esses objetos, qual a natureza, em geral, do pensamento da objetividade
— sobre isso nenhuma indicação é dada na lógica do entendimento. Aqui
o pensar conta como uma atividade simplesmente subjetiva e formal; e o
326
objetivo, em oposição ao pensar, conta como algo firme e dado por si
mesmo. Mas esse dualismo não é o [que é] verdadeiro; é um procedimen­
to carente-de-pensamento, acolher assim sem mais as determinações da
subjetividade e da objetividade, e não indagar sobre sua proveniência. As
duas, tanto a subjetividade como a objetividade, são igualmente pensa­
mentos — e na verdade pensamentos determinados — que têm de de­
monstrar-se como fundados no pensamento universal que se determina a
si mesmo. E o que sucedeu aqui, primeiro no que diz respeito à subje­
tividade. Aqui nós conhecemos a subjetividade ou o conceito subjetivo —
que em si contém o conceito como tal, o juízo e o silogismo — como o
resultado dialético dos dois primeiros graus principais da idéia lógica, a
saber, do ser e da essência. Quando se diz do conceito que é subjetivo e
só subjetivo, isso é totalmente correto enquanto é ele, com certeza, a
subjetividade mesma. Tão subjetivos quanto o conceito como tal, são
também além disso o juízo e o silogismo — determinações que logo a
seguir das assim chamadas leis-do-pensàr (da identidade, da diferença e
do fundamento) formam na Lógica ordinária o conteúdo do que se chama
Doutrina-elementar. Ora, além disso essa subjetividade, com suas deter­
minações aqui citadas — o conceito, o juízo, o silogismo —, não pode ser
considerada como um esqueleto vazio, que deve receber só de fora seu
enchimento, mediante objetos por si mesmos dados, mas a subjetividade
mesma é que, enquanto dialética, rompe seu limite, e através do silogismo
se abre para a objetividade.
§ 193
Essa realização do conceito — em que o universal é essa tota­
lidade una, retornada a si mesma, cujas diferenças são igualmente
essa totalidade, e que pelo suprassumir da mediação se determinou
como unidade imediata — é o objeto.
Por estranha que possa parecer, à primeira vista, essa passa­
gem ao objeto do sujeito, do conceito em geral, e mais pre­
cisamente do silogismo — particularmente quando só se tem
em vista o silogismo de entendimento e o silogizar como um
agir da consciência —, ao mesmo tempo não se pode tratar
de fazer essa passagem plausível para a representação. Quan­
to a isso, convém lembrar apenas se nossa representação
habitual, do que se chama objeto, corresponde mais ou menos
ao que constitui aqui a determinação do objeto. Ora, por
objeto não se costuma em geral entender simplesmente um
327
Essente abstrato ou uma coisa existente, ou um efetivo; mas
um [ser] autônomo, concreto, completo em si; autonomia essa
que é a totalidade do conceito. Que o objeto seja também o-que-
-está-defronte [Gegenstand], e algo exterior a um Outro, isso será
determinado depois, enquanto ele se põe na oposição ao subjeti­
vo. Aqui, antes de tudo — enquanto é aquilo para o qual passou
o conceito [ao sair] de sua mediação — é só o objeto imediato,
espontâneo; do mesmo modo como o conceito só é determinado
como subjetivo na oposição subseqüente.
Além disso, o objeto é o Todo uno ainda além disso indetermi­
nado em si; o mundo objetivo em geral, Deus, o objeto absolu­
to. O objeto, porém, igualmente possui nele a diferença, de-
compõe-se em multiformidade indeterminada (enquanto mundo
objetivo) e cada um desses Singularizados é também um objeto,
um ser-aí autônomo, em si mesmo concreto, completo.
Como a objetividade foi comparada com ser, existência e efe­
tividade, assim também pode-se comparar a passagem à exis­
tência e à efetividade (pois o ser é o primeiro Imediato total­
mente abstrato), com a passagem à objetividade. O fundamento,
donde a existência provém, a relação-úo-xc.í\e.xÃ(), que suprassume
a si mesma na efetividade, não são outra coisa que o conceito
posto ainda imperfeitamente — ou seja, são apenas seus lados
abstratos — cujo fundamento é só a unidade de-essência; a re­
lação é só o relacionamento dos lados reais que devem ser refle­
tidos somente sobre si. O conceito é a unidade dos dois, e o objeto
é uma unidade, não apenas unidade de-essência, mas unidade
universal em si mesma, contendo em si não apenas diferenças
reais, mas contendo-as enquanto totalidades.
Ressalta, aliás, que em todas essas passagens se trata de algo
mais do que simplesmente mostrar apenas em geral a insepa­
rabilidade do conceito — ou do pensar — em relação ao ser.
Muitas vezes se notou que o ser nada mais é que a relação
simples para consigo mesmo, e que essa determinação pobre
está aliás contida no conceito ou no pensar. O sentido dessas
passagens não é acolher determinações como elas estão con­
tidas somente (como sucede também no argumento ontológico
do ser-aí de Deus, pela proposição de que o ser é uma das
328
realidades); mas [sim é] tomar o conceito tal como deve ser,
antes de tudo, determinado para si mesmo como conceito —
com o qual nada tem a ver essa longínqua abstração do ser, ou
também da objetividade; e [é também] ver somente em sua
determinidade, enquanto determinidade-do-tf9««?//(9, se ela pas­
sa — e que ela passa — para uma forma que é diferente da
determinidade tal como pertence ao conceito, e nele aparece.
Se o produto dessa passagem — o objeto — é posto em
relação com o conceito, que ali desvaneceu segundo sua for­
ma própria, pode-se exprimir corretamente o resultado [dizen­
do] que em si são diversos. Enquanto tanto um como o outro
são assim corretos, por isso é justamente tão incorreto um
quanto o outro; tal expressão é incapaz de expor a verdadeira
situação. Aquele Em-si é um abstrato, e ainda mais unilateral
que o conceito mesmo, cuja unilateralidade em geral se su-
prassume quando o conceito se suprassume no objeto, na
unilateralidade oposta. Assim deve também aquele Em-si de­
terminar-se por meio da sua negação para [tornar-se] o ser-
para-si. Como em toda a parte, a identidade especulativa não
é aquela identidade trivial, em que o conceito e o objeto
seriam em si, idênticos: uma observação que com bastante
freqüência foi repetida, mas que não poderia ser repetida
bastante, se a intenção devesse ser pôr um termo aos mal-
-entendidos insossos e malévolos a respeito dessa identida­
de; o que no entanto não se pode razoavelmente esperar.
De resto, se a unidade do conceito e do objeto for tomada de
modo totalmente geral, sem recordar a forma unilateral do
seu ser-para-si, é ela — como é bem sabido — que se pres­
supõe na prova ontológica do ser-aí de Deus, e na verdade
como o [que há de] mais perfeito. Em Anselmo, em quem se
encontra pela primeira vez o pensamento sumamente notá­
vel dessa prova, trata-se, antes de tudo, simplesmente [de
saber] se um conteúdo está unicamente em nosso pensar. Suas
palavras são, em resumo, estas:
Certe id, quo maius cogitari nequit, non potest esse in intellectu
solo. Si enim vel in solo intellectu est, potest cogitari esse et in
re: quod maius est. Si ergo id, quo maius cogitari non potest, est
in solo intellectu: id ipsum, quod maius cogitari non potest, est,
quo maius cogitari potest. Sed certe hoc esse non potest.
329
[Certamente um ser tal, que não se possa pensar algo maior,
não pode estar só na inteligência. Pois, se está só na inteli­
gência, pode-se pensar que está também na realidade, o que é
maior. Se pois o ser tal, que não se pode pensar algo maior,
está só na inteligência, então esse mesmo ser tal, que não se
pode pensar algo maior que ele, é tal que se pode pensar
algo maior. Mas isso certamente não pode ser.]
[Santo Anselmo, PROSLOGION, 2]
As coisas finitas, conforme as determinações em que aqui nos
encontramos, são tais que sua objetividade não está em concor­
dância com o pensamento delas, isto é, com sua determinação
universal, seu gênero e seu fim. Descartes, Espinoza e outros
exprimiram essa unidade mais objetivamente; mas o princípio
da certeza imediata ou da fé toma antes essa unidade de acordo
com o modo mais subjetivo de Anselmo, isto é, de que está
ligada inseparavelmente com a representação de Deus a deter­
minação do seu ser em nossa consciência. Se o princípio dessa fé
apreende também as representações das coisas exteriores finitas
na inseparabilidade da consciência delas mesmas e do seu ser,
porque na intuição estão ligadas com a determinação de sua
existência, isto é bem correto. Mas seria a máxima carência-de-
pensamento se se devesse acreditar que a existência está ligada
em nossa consciência com a representação das coisas finitas, do
mesmo modo que com a representação de Deus. Seria esquecer
que as coisas finitas são mutáveis e efêmeras, isto é, que a
existência só lhes está unida transitoriamente, que essa união
não é eterna, mas separável. Por isso Anselmo, desprezando tal
conexão que ocorre nas coisas finitas, com razão só declarou
como perfeito o que não existe somente de um modo subjetivo,
mas, ao mesmo tempo, de modo objetivo.
Toda a esnobação contra a assim-chamada prova ontológica
e contra a determinação anselmiana do [que é] perfeito, de
nada serve; pois ela retorna, tanto no senso comum espontâ­
neo como em toda a filosofia — mesmo contra o saber e o
querer —-, como [sucede] no princípio da fé imediata.
Mas a deficiência na argumentação de Anselmo — que aliás
partilharam com ela Descartes, Espinoza, assim como o prin­
330
cípio do saber imediato — é que essa unidade, enunciada
como o que há de mais perfeito ou ainda subjetivamente
como o verdadeiro saber, é pressuposta, quer dizer, admitida
apenas com em si. A essa identidade — por isso abstrata —
é logo contraposta a diversidade das duas determinações, como
também desde muito tempo aconteceu contra Anselmo; isto
é, de fato, se contrapõe ao infinito a representação e a exis­
tência do finito, pois, como antes se notou, o finito é uma
objetividade tal que ao mesmo tempo não é adequada ao
fim, à sua essência e ao seu conceito, e dele difere; ou seja,
é uma representação tal — um subjetivo tal — que não
implica a existência.
B
O OBJETO

§ 194
O objeto é [um] ser imediato, pela indiferença quanto à dife­
rença, enquanto esta nele se suprassumiu; é em si mesmo a tota­
lidade, e, ao mesmo tempo —, porque essa identidade é só a iden­
tidade essente-em-si dos momentos —, é também indiferente quanto
à sua unidade imediata: é um decompor-se em [termos] diferentes,
cada um dos quais é, ele mesmo, a totalidade. O objeto é pois a
contradição absoluta da autonomia completa do multiforme, e da
não-autonomia, também completa, dos diferentes.
A definição “0 absoluto é o objeto” está contida, do modo mais
determinado, na mônada leibniziana. Esta deve ser um obje­
to, mas em si representante; e na verdade [deve ser] a tota­
lidade da representação do mundo: em sua unidade simples,
toda a diferença é somente uma diferença ideal, sem autono­
mia. Nada vem de fora para a mônada; ela é em si mesma o
conceito total, só diferenciada por seu desenvolvimento maior
ou menor. Igualmente, essa totalidade simples se decompõe
na pluralidade absoluta das diferenças, de modo que elas são
>32
mônadas. Na mônada das mônadas, e na harmonia prees-
tabelecida de seus desenvolvimentos interiores, essas subs­
tâncias são novamente reduzidas à não-autonomia e à idea­
lidade. A filosofia de Leibniz é assim a contradição comple­
tamente desenvolvida.
Adendo: Quando se apreende o absoluto (Deus) como objeto, e aí se
fica, tem-se em geral o ponto de vista da superstição e do temor servil;
como, nos tempos modernos, Fichte sobretudo pôs em evidência, e com
razão. Certamente, Deus é o objeto, e na verdade o objeto pura e simples­
mente, perante o qual nosso opinar particular (subjetivo) e nosso querer
não têm nenhuma verdade, e nenhuma validez. Mas precisamente, enquan­
to é o objeto absoluto, Deus não se contrapõe à subjetividade como uma
potência hostil e tenebrosa, mas a contém, antes, em si mesmo como
momento essencial. Isso está expresso na doutrina religiosa do cristianismo,
onde se diz que Deus quer que todos os homens sejam socorridos, e quer
que todos se tornem bem-aventurados. Que os homens sejam socorridos,
que se tornem bem-aventurados, isso acontece ao obterem a consciência
de sua unidade com Deus, e ao deixar Deus de ser para eles simples
objeto, e, por isso, justamente objeto de medo e de terror, como era
especialmente o caso para a consciência religiosa dos romanos. Quando, além
disso, na religião cristã Deus é conhecido como amor, e na verdade, enquan­
to em seu Filho, que é um com ele, se revelou aos homens como este
homem singular, e assim os redimiu, nisso está assim expresso igualmente
que está em si superada a oposição entre subjetividade e objetividade, e
que nossa obra [Sache] é fazer-nos partícipes dessa redenção, renuncian­
do a nossa subjetividade imediata (despojando o velho Adão) e tornando-
-nos conscientes de Deus como de nosso Si verdadeiro e substancial.
Ora, assim como a religião e o culto religioso consistem na superação da
oposição entre subjetividade e objetividade, também igualmente a ciência,
e mais principalmente a filosofia, não tem outra tarefa a não ser a de superar
essa oposição por meio do pensar. No conhecimento, trata-se em geral de
retirar ao mundo objetivo, que se nos contrapõe, sua estranheza; e, como se
costuma dizer, de encontrar-nos nele: o que significa o mesmo que recondu­
zir o objetivo ao conceito, que é nosso Si mais íntimo.
Da discussão precedente pode-se concluir como é absurdo considerar
subjetividade e objetividade como uma oposição fixa e abstrata. As duas
são pura e simplesmente dialéticas. O conceito que é antes de tudo sub­
jetivo vem a objetivar-se somente em virtude de sua atividade própria,
sem precisar para isso de um material ou matéria de fora; e igualmente o
objeto não é algo de rígido e carente-de-processo, mas seu processo é

333
mostrar-se como [sendo] ao mesmo tempo o subjetivo: o que forma a pro­
gressão para a idéia. Quem não tem intimidade com as determinações da
subjetividade e da objetividade, e quer sustentá-las em sua abstração, acon-
tece-lhe que essas determinações abstratas lhe escorram pelos dedos antes
que se dê conta; e que diga exatamente o contrário do que queria dizer.
Adendo 2: A objetividade contém as três formas do mecanismo, do
quimismo e da relaçõo-de-finalidade. O objeto mecanicamente determinado é
o objeto indiferente, imediato. Contém, decerto, a diferença, mas os di­
versos se comportam como indiferentes uns aos outros, e sua união lhes
é somente exterior. No quimismo, ao contrário, o objeto se mostra como
essencialmente [não-in]diferente*, de modo que os objetos só são o que
são por meio de sua relação de uns com os outros, e que a [não-in]dife-
rença# constitui sua qualidade. A terceira forma de objetividade, a 1'elação-
-teleológica, é a unidade do mecanismo e do quimismo. O fim é de novo,
como objeto mecânico, totalidade encerrada em si mesma, enriquecida
porém pelo princípio da [não-in]diferença*, aparecido no quimismo, e
assim se refere ao objeto que se lhe contrapõe. E a realização do fim que
forma a passagem à idéia.

a) O mecanismo
§ 195
O objeto Ia) em sua imediatez é o conceito somente em si. Tem
primeiramente fora dele, como subjetivo, o conceito; e toda a deter­
minidade é como uma determinidade exteriormente posta. En­
quanto unidade de [termos] diferentes o objeto é, pois, um compos­
to, um agregado; e a eficácia sobre outra coisa permanece uma
relação exterior — [é o] mecanismo formal. Os objetos permanecem,
nessa relação e não-autonomia, igualmente autônomos, opondo
resistência, exteriores uns aos outros.
Assim como a pressão e o choque são relações mecânicas,
assim também sabemos de modo mecânico, de cor, na me­
dida em que as palavras não têm sentido para nós, e ficam
exteriores ao sentido, à representação, ao pensar; são tam­
* Differenz, different. Seu sentido, no vocabulário de Hegel, é positivo (ou é a negação
da negação que é a indiferença). Ver Bourgeois, op. cit., pp. 260-261 nota (N. do T.).

334
bém exteriores a si mesmas, uma sucessão carente de senti­
do. O agir, a piedade etc. também são mecânicos, enquanto o
que o homem faz é determinado pelas leis do cerimonial, por
um diretor de consciência etc., e seu próprio espírito e que­
rer não está em suas ações, que por isso são nele mesmo
exteriores.
Adendo: O mecanismo, enquanto a primeira forma da objetividade, é
também aquela categoria que inicialmente se oferece à reflexão quando se
considera o mundo objetivo; categoria em que esse mundo com muita fre­
qüência permanece. Esse é porém um modo-de-considerar superficial e pobre-
-de-pensamentos, que não pode bastar nem no que diz respeito à natureza,
nem muito menos no que concerne ao mundo do espírito. Na natureza são
somente as relações totalmente abstratas da matéria, ainda não aberta em si
mesma, que estão sujeitas ao mecanismo. Ao contrário, já os fenômenos e os
eventos do domínio chamado — no sentido estrito da palavra — físico (como
por exemplo os fenômenos da luz, do calor, do magnetismo, da eletricidade
etc.) não podem mais ser explicados simplesmente de uma maneira mecâ­
nica (isto é, por meio da pressão, do choque, do deslocamento das partes, e
coisas semelhantes). Muito mais insuficiente ainda é a aplicação e a transpo­
sição dessa categoria ao domínio da natureza orgânica, na medida em que se
trata de conceber o específico dela: assim, especialmente, a nutrição e o
crescimento das plantas, ou mesmo a sensação animal. Em todo caso, há que
considerar como um defeito muito essencial, e mesmo como o defeito prin­
cipal do estudo contemporâneo da natureza, que, até onde se trata de cate­
gorias totalmente diversas e mais elevadas que a do simples mecanismo,
contudo sustente esse último tão obstinadamente, em contradição com o
que se oferece a uma intuição espontânea; e assim fecha para si o caminho
para um conhecimento adequado da natureza. Por isso, no que toca às for­
mações do mundo do espírito, muitas vezes se fez valer abusivamente em
seu exame a visão mecanicista. Este é o caso, por exemplo, quando se diz
que o homem consiste de corpo e alma. Esses dois [termos] valem aqui como
tendo sua consistência por si mesmos, e como ligados um ao outro apenas
exteriormente. Sucede igualmente que a alma também seja vista como um
simples complexo de potências e de faculdades, subsistindo autonomamente
umas ao lado das outras. Ora bem: por mais decididamente que se deva rejeitar
por um lado a maneira mecânica de considerar, onde se apresenta com a
pretensão de tomar o lugar do conhecimento conceituante em geral, e de fazer
valer o mecanismo como a categoria absoluta, no entanto há que reivindicar,
de outro lado, para o mecanismo expressamente o direito e a significação de
uma categoria lógica universal, e, por isso, não há que limitar-se simplesmen­
335
te àquele domínio da natureza do qual a denominação dessa categoria foi
retirada. Assim, nada há a objetar quando também fora do domínio da me­
cânica propriamente dita, como especialmente na física e na físiologia, o
enfoque é dirigido para ações mecânicas (por exemplo as do peso, as da ala­
vanca e semelhantes). Só que aí não se deve ignorar que, no interior desses
domínios, as leis do mecanismo não são mais o decisivo, mas se apresentam,
por assim dizer, na posição de servas. A isso logo se liga uma outra observa­
ção: que, onde na natureza as funções superiores, especialmente as funções
orgânicas, sofrem de um modo ou outro em sua atuação normal uma pertur­
bação ou uma parada, logo o mecanismo, aliás subordinado, põe-se em evi­
dência como dominante. Assim, por exemplo, quem sofre de fraqueza do
estômago, depois de ter comido certos alimentos em pouca quantidade,
sente pressão no estômago; enquanto outros, cujos órgãos digestivos são sa­
dios, ficam isentos dessa sensação, embora tenham comido a mesma coisa.
O mesmo ocorre com o sentimento geral de peso nos membros, no caso de
disposição doentia do corpo.
Também no domínio do mundo do espírito, o mecanismo tem seu
lugar; contudo, só um lugar também subordinado. Fala-se, com razão, de
memória mecânica, e de todo o tipo de operações mecânicas, como por
exemplo ler, escrever, tocar música etc. Quanto à memória mais particu­
larmente, a maneira mecânica de proceder pertence mesmo à sua essên­
cia: uma circunstância que, para grande dano da educação dos jovens, é,
não raramente, negligenciada pela pedagogia moderna em seu zelo mal
compreendido pela liberdade da inteligência. Entretanto, revelar-se-ia um
mau psicólogo quem para aprofundar a natureza da memória recorresse à
mecânica, e quisesse, sem mais, aplicar suas leis à alma. O [que há de]
mecânico na memória consiste justamente nisto: que certos sinais, sons
etc. são nela apreendidos em sua união apenas exterior, e depois repro­
duzidos nessa união, sem precisar nesse caso dirigir expressamente a aten­
ção ao seu significado e à sua ligação interior. Para conhecer a natureza da
memória mecânica, não se requer nenhum estudo a mais da mecânica, e
desse estudo não resulta nenhum progresso para a psicologia como tal.
§ 196
A não-autonomia, segundo a qual o objeto sofre violência, o objeto
só a possui (ver parágrafo anterior) enquanto é autônomo, e enquanto
conceito posto em si, uma das determinações não se suprassume na
outra, mas o objeto se conclui-juntamente consigo mesmo pela nega­
ção de si, [que é] sua não-autonomia; e só assim é autônomo. O objeto,
[estando] assim ao mesmo tempo em diferença para com a exterioridade
336
e negando-a em sua autonomia, que é unidade negativa consigo, centra­
lidade, subjetividade — na qual o objeto mesmo está dirigido para o
exterior e relacionado com ele. O objeto é também central em si
mesmo, e nisso é também só referido a outro centro, tem também sua
centralidade em outro; [é o] 2) mecanismo [não-in\diferente (queda,
desejo, sociabilidade, e similares).
§ 197
O desenvolvimento dessa relação forma o silogismo, que con­
siste em que a negatividade imanente, enquanto unidade central de
um objeto (centro abstrato), se relacione com objetos não-autôno-
mos, como com o outro extremo, através de um meio-termo que
reúne em si a centralidade e a não-autonomia dos objetos: centro
relativo; [é o] 3) mecanismo absoluto.
§ 198
0 silogismo indicado (S-P-U) é uma triplicidade de silogismos.
A má singularidade dos objetos não-autônomos — em que é nativo
o mecanismo formal — é igualmente, como não-autonomia, a uni­
versalidade exterior. Esses objetos são pois o meio-termo, também
entre o centro absoluto e o relativo (a forma do silogismo U-S-P);
porque é [só] através dessa não-autonomia que aqueles dois cen­
tros são separados e [são] os extremos, como também são referidos
um ao outro. Igualmente, a centralidade absoluta, enquanto elemen­
to substancialmente universal (o peso que permanece idêntico)
que enquanto negatividade pura encerra em si também a singula­
ridade, é o [termo] mediatizante entre o centro relativo e os objetos
não-autônomos, a forma do silogismo P-U-S; e na verdade também
essencialmente, segundo a singularidade imanente enquanto sepa-
rante; como segundo a universalidade, enquanto coesão idêntica e
ser-em-si não perturbado.
Como o sistema solar, assim, por exemplo, no domínio prático
o Estado é um sistema de três silogismos.
1 — O Singular (a pessoa) conclui-se juntamente, por meio de
sua particularidade (as necessidades físicas e espirituais, o
que, mais desenvolvido para-si, dá a sociedade civil), com o
universal (a sociedade [política], o direito, a lei, o governo).
337
2 — A vontade, atividade dos indivíduos, é o mediatizante,
que dá satisfação, implementação e efetivação, às neces­
sidades do indivíduo.
3 — Mas o universal (Estado, Governo, direito) é o meio-termo
substancial no qual os indivíduos e sua satisfação têm e
mantêm sua realidade, mediação e subsistência implemen­
tadas. Cada uma das determinações, enquanto a mediação a
conclui-juntamente com o outro extremo, precisamente aí
se conclui-junto consigo mesma; produz-se a si mesma, e
essa produção é conservação-de-si. E só por meio da natu­
reza dessa “concluir-juntamente”, por meio desse tríade de
silogismos com os mesmos termini, que um todo é verdadei­
ramente entendido em sua organização.
§ 199
A imediatez da existência, que os objetos têm no mecanismo
absoluto, é negada em si, no fato de que sua autonomia é mediatizada
por suas relações recíprocas: portanto, por sua autonomia. Assim o
objeto deve ser posto como [não-in]diferente, em sua existência,
para com seu Outro.

b) O quimismo
§ 200
O objeto [não-in\diferente tem uma determinidade imanente que cons­
titui sua natureza, e na qual tem existência. Mas, enquanto totalidade
posta do conceito, o objeto é a contradição dessa sua totalidade e da
determinidade de sua existência; é pois a tendência a suprassumir tal
contradição, e a tornar seu ser-aí igual ao conceito.
Adendo: O quimismo é uma categoria da objetividade que em regra geral
não é ressaltada em particular, mas reunida com o mecanismo em uma
categoria; e nessa reunião, sob a denominação comum de relação mecânica,
costuma ser oposta à relação de finalidade. O motivo disso deve procurar-se
em que o mecanismo e o quimismo tem sem dúvida em comum, um com o
outro, serem somente em si o conceito existindo, enquanto o fim deve ser
considerado como o conceito existindo para si. Além disso, o mecanismo e

338
o quimismo são também diferentes um do outro, de um modo muito deter­
minado, e isso de sorte que o objeto, na forma do mecanismo, é antes de
tudo relação para consigo, indiferente; e, ao contrário, o objeto químico se
mostra como pura e simplesmente referido a outra coisa. Ora, na verdade
também no mecanismo, ao desenvolver-se, já se apresentam relações para
com outra coisa. Mas a relação dos objetos mecânicos, uns com os outros, é
somente uma relação exterior, de maneira que os objetos referidos uns aos
outros conservam a aparência da autonomia. Assim, por exemplo, na nature­
za, os diversos corpos celestes que formam nosso sistema solar estão uns com
os outros na relação do movimento, e se mostram referidos uns aos outros por
meio do movimento. O movimento, enquanto unidade do espaço e do tem­
po, é no entanto apenas a relação totalmente exterior e abstrata, e por con­
seguinte parece desse modo que os corpos celestes, referidos assim exterior­
mente uns aos outros, são e permanecem o que são, mesmo sem essa sua
relação recíproca. Ocorre diversamente, ao contrário, com o quimismo. Os
objetos quimicamente [não-in]diferentes são o que são expressamente só
por meio da sua [não-in]diferença; e são desse modo o impulso absoluto a se
integrarem, uns nos outros e pelos outros.
§ 201
• O processo químico tem portanto por produto o [composto]
neutro de seus extremos em tensão; [composto] que eles são em si;
o conceito, o universal-concreto, pela [não-in]diferença dos objetos
— pela particularização —- se conclui junto com a singularidade,
com o produto; e nela [se conclui] só consigo mesmo. Igualmente,
nesses processos estão também contidos os outros silogismos; a
singularidade, como atividade, é também mediatizante, assim como
o universal concreto, a essência dos extremos em tensão, que no
produto chega ao ser-aí.
§ 202
O quimismo, enquanto é a relação-reflexiva da objetividade
com a natureza [não-in]diferente dos objetos, tem ainda ao mesmo
tempo por pressuposição a autonomia imediata deles.
O processo é o ir-e-vir de uma forma para outra; que ao mesmo
tempo ficam ainda exteriores uma à outra. No produto neutro, as
propriedades determinadas que os extremos tinham, um para com
o outro, são suprassumidas. E bem conforme ao conceito [esse
339
produto neutro], mas o princípio animador [begeistende] da dife­
renciação não existe nele enquanto recaído na imediatez: por isso
o neutro é um neutro separável. Mas o princípio que julga — que
divide o neutro em extremos [não-in]diferentes e dá, ao objeto
indiferente em geral, sua [não-in]diferença e animação [Begeistung]
em relação a um outro — e o processo enquanto separação tensiva
incidem fora do primeiro processo mencionado.
Adendo: O processo químico é ainda um processo finito, condiciona­
do. O conceito como tal é apenas o interior desse processo, e aqui não
chega ainda, em seu ser-para-si, à existência. No produto neutro o proces­
so se extingue, e o [fator] estimulante incide fora dele.
§ 203
A exterioridade desses dois processos, a redução dos [não-in]di-
ferentes a neutros, e a diferenciação do indiferente ou neutro, que
os faz aparecer como autônomos, um em relação ao outro, mostra
porém sua finitude no passar para produtos nos quais são supras-
sumidos. Inversamente, processo expõe a imediatez pressuposta
dos objetos [não-in]diferentes como [sendo] uma imediatez nula.
Por meio dessa negação da exterioridade, em que o conceito com
objeto estava submerso, ele é livre e posto para si perante aquela
exterioridade e imediatez — enquanto fim.
Adendo: A passagem do quimismo à relação teleológica está contida
em que as duas formas do processo químico se suprassumem mutuamen­
te. O que com isso se efetua é a liberação do conceito que só está pre­
sente em si no mecanismo e no quimismo, e o conceito, por isso existente
para si, é o fim.

c) Teleologia
§ 204
O fim é o conceito que entrou em livre existência, o conceito
essente-para-sí', mediante a negação da objetividade imediata. E de­
terminado como subjetivo, enquanto essa negação é primeiro abstra­
ta , e por isso, inicialmente, a objetividade também somente se
340
contrapõe. Mas essa determinidade da subjetividade é unilateral,
ante a totalidade do conceito; e isso, para o conceito mesmo, enquan­
to toda a determinidade nele se pôs como suprassumida. Assim,
também para ele, o objeto pressuposto é somente uma realidade
ideal, que em si é nula. Enquanto o conceito é essa contradição de
sua identidade consigo, perante a negação e oposição nele posta, o
próprio conceito é o suprassumir, a atividade de negar a oposição, de
um modo que a põe idêntica consigo. Eis o realizar do fim , no qual, ao
fazer-se o Outro de sua subjetividade e ao objetivar-se, suprassumiu a
diferença dos dois, concluiu-^ só consigo, e se conservou.
O conceito de fim, por um lado, chamou-se supérfluo, e por
outro chamou-se acertadamente conceito-de-razão, e foi contra­
posto ao abstratamente-universal do entendimento, enquan­
to esse universal só se relaciona, subsumindo-o, com o parti­
cular que nele mesmo não tem.
Além disso, a diferença do fim, enquanto causa final, da causa
simplesmente eficiente — isto é, do que se chama habitualmente
causa — é da mais alta importância. A causa pertence à necessi­
dade ainda não posta a descoberto, à necessidade cega; por isso
aparece como passando para o seu Outro, e aí perdendo sua
originariedade no ser posto; somente em si ou para nós é que é
causa; só no efeito é causa e para-si volta. O fim, ao contrário,
é posto como devendo conter nele mesmo a determinidade, ou o
que alhures aparece ainda como ser-outro — o efeito —; de
modo que em sua atuação não passa [para outra coisa] mas se
cotiserva, isto é, só efetua a si mesmo; e é no ponto final o que
era no começo, na originariedade. Só por meio dessa autocon-
servação é o verdadeiramente originário.
O fim exige uma apreensão especulativa, enquanto é o con­
ceito, que contém, ele mesmo, na própria unidade e idealidade
de suas determinações, o juízo ou a negação, a oposição do
subjetivo e objetivo; e que é igualmente seu suprassumir.
No fim, não se pode logo — ou não se pode simplesmente
— pensar na forma em que ele está na consciência, como
uma determinação dada na representação. Com o conceito
de finalidade interna, Kant ressuscitou a idéia em geral, e em
particular a idéia da vida. A determinação de Aristóteles da
341
vida, contém já a finalidade interna, e está por isso infinita­
mente acima do conceito da teleologia moderna, que somen­
te tinha em vista a finalidade finita, a finalidade externa.
Necessidade [Bedürfnis], impulso são os exemplos que se
situam mais próximos do fim. São a contradição sentida, que
encontra lugar no interior do próprio sujeito vivente, e entram
na atividade de negar essa negação, que é a subjetividade
ainda simplesmente tal. A satisfação estabelece a paz entre o
sujeito e o objeto; enquanto o objetivo — que fica do outro lado
na contradição ainda presente (na necessidade) — é igualmente
suprassumido, por meio da união com o subjetivo.
Os que falam tanto da fixidez e da insuperabilidade do finito,
quer objetivo, quer subjetivo, têm o exemplo do contrário
em qualquer impulso. O impulso é, por assim dizer, a certeza
de que o subjetivo é somente unilateral, e não tem verdade
alguma; tampouco como o objetivo. O impulso, além do mais,
é a realização dessa sua certeza, efetua o suprassumir dessa
oposição: do subjetivo, que apenas seria e permaneceria um
subjetivo, como do objetivo que, igualmente, apenas seria e
permaneceria um objetivo — e da finitude que é a deles.
Na atividade do fim, pode-se ainda chamar a atenção para o
fato de que no silogismo, que ela é, [e consiste em] concluir
o fim consigo mesmo, através do meio [que é o] da realiza­
ção, se apresenta essencialmente a negação dos termini —
negação, acima mencionada, da subjetividade imediata que
se apresenta no fim enquanto tal, como da objetividade ime­
diata (do meio e dos objetos pressupostos). Esta é a mesma
negação que, na elevação do espírito a Deus, é exercida contra
as coisas contingentes do mundo, como contra a própria sub­
jetividade; é o momento que — como foi mencionado na
Introdução e no § 192 — é descurado e abandonado na forma
de silogismos-de-entendimento que se dá a essa elevação
nas assim chamadas provas do ser-aí de Deus.
§ 205
A relação teleológica, enquanto imediata, é antes de tudo a
finalidade exterior; e o conceito se contrapõe ao objeto como a um
342
objeto pressuposto. O fim é, portanto, finito-, de uma parte, segundo
o conteúdo; de outra parte, porque tem uma condição exterior em
um objeto a ser encontrado enquanto material de sua realização:
sua autodeterminação é, nessa medida, puramente formal. Mais
precisamente: está implicado na imediatez que a particularidade
(enquanto detenninação-de-fonna\ a subjetividade do fim) aparece como
refletida sobre si; que o conteiído apareça como diferente da totalidade
da forma, da subjetividade em si — do conceito. Essa diversidade
constitui a finitude do fim no interior de si mesmo. O conteúdo, por
conseguinte, é também algo tão limitado, contingente e dado, quanto
o objeto é um particular e um achado.
Adendo: Quando se fala de fim, eostuma-se ter em vista somente a
finalidade externa. Nessa consideração, as coisas não contam como tra­
zendo em si mesmas sua determinação, mas simplesmente como meios, de
que se usa e abusa para a realização de um fim situado fora delas. De
modo geral, é esse o ponto de vista da utilidade, que antes tinha um papel
importante também nas ciências, mas que em seguida caiu num descré­
dito merecido, e foi reconhecido como insuficiente para uma inteligência
verdadeira da natureza das coisas. Com certeza, deve-se fazer justiça às
coisas finitas enquanto tais, de modo que se considerem como algo não-
-último, e como remetendo para além de si.
Essa negatividade das coisas finitas é porém sua dialética própria, e
para conhecê-la há que abandonar-se primeiro a seu conteúdo positivo.
Aliás, enquanto se trata na consideração teleológica do interesse, bem-
-intencionado, de mostrar a sabedoria de Deus que se manifesta especial­
mente na natureza, deve-se notar a propósito que com esse buscar de fins,
ao quais as coisas servem de meio, não se vai além do finito, e se cai
facilmente em reflexão indigente. Assim, por exemplo, quando a videira
só se considera do ponto de vista da utilidade notória que oferece ao
homem, e o sobreiro em função das rolhas que são talhadas de sua cortiça,
para tampar com elas as garrafas de vinho. Outrora foram escritos livros
inteiros nesse sentido, e é fácil avaliar que de tal maneira não se pode
promover o verdadeiro interesse nem da religião nem da ciência. A fina­
lidade externa situa-se imediatamente antes da idéia, mas o que está
situado no limiar é muitas vezes justamente o mais insuficiente.
§ 206
A relação teleológica é o silogismo em que o fim subjetivo se
conclui junto com a objetividade, que lhe é exterior, através de um
343
meio-termo que é a unidade dos dois, enquanto atividade conforme-
-ao-fim\ e que, enquanto objetividade posta imediatamente sob o
fim, é o meio.
Adendo: O desenvolvimento do fim em [direção da] idéia efetua-se
através de três degraus: do fim subjetivo; 2% do fim em via de reali-
zar-se; 3-, do fim realizado.
Antes de tudo, temos o fim subjetivo, o qual, enquanto é o conceito
para si essente, ele mesmo é a totalidade dos momentos—do-conceito. O
primeiro desses momentos é o da universalidade idêntica consigo; por
assim dizer, a água neutra primeira onde tudo está contido, mas nada
está ainda separado. O segundo é a particularidade desse universal, pela
qual ele recebe um conteúdo determinado. Enquanto esse conteúdo
determinado é posto mediante a ativação do universal, assim retorna este
através dele, a si mesmo, e se conclui junto consigo mesmo. Por conse­
guinte, dizemos também, quando nos propomos um fim, que nós fecha­
mos [etwas beschliessen] alguma coisa, e nos consideramos pois, de certo
modo, como abertos inicialmente e como acessíveis a essa ou àquela
determinação. Mas também se diz igualmente que se fechou [sich zu
etwas entschlossen] por alguma coisa, e com isso se exprime que o sujei­
to avança de sua interioridade essente para si, e se insere em uma ob­
jetividade que se lhe contrapõe. Isso dá o processo do fim simplesmente
subjetivo à atividade conforme-ao-fim, voltada para fora.

§ 207
1“ — O fim subjetivo é o silogismo, em que o conceito univer­
sal, mediante a particularidade, se conclui junto com a
singularidade, de modo que esta, enquanto autodetermi­
nação,/#/^; isto é, tanto particulariza esse universal ain­
da indeterminado, e faz dele um conteúdo determinado,
como também põe a oposição da subjetividade e da ob­
jetividade. E ela é, ao mesmo tempo, o retorno a si,
enquanto determina como algo diferente, a subjetivida­
de do conceito pressuposta à objetividade, em compara­
ção com a totalidade que se conclui junto consigo mes­
ma, e assim se volta para fora.
§ 208
2- — Essa atividade voltada para fora — enquanto é a singu-
laridade-idêntica, no fim subjetivo com a particularida­
de, na qual, além do conteúdo, também está incluída a
objetividade exterior— refere-se, antes de tudo, imediata­
mente ao objeto, e dele se apodera como de um meio. O
conceito é essa potência imediata, por ser a negatividade
idêntica consigo, na qual o ser do objeto absolutamente
só é determinado como um [ser] ideal. O meio-termo total
é então essa potência interior do conceito enquanto ati­
vidade, com a qual o objeto está reunido imediatamente,
enquanto meio, e sob o qual se mantém.
Na finalidade finita, o meio-termo é o-que-se-rompeu nesses dois
momentos exteriores um ao outro: a atividade, e o objeto que
serve de meio. A relação do fim, enquanto potência, a esse objeto
e a sujeição a si desse objeto são imediatas-, são a primeira premis­
sa do silogismo, na medida em que o objeto é posto como nulo
em si no conceito, enquanto este é a idealidade que é para si.
Essa relação ou primeira premissa torna-se, ela mesma, o meio-
-termo que ao mesmo tempo é em si mesmo o silogismo; en­
quanto o fim, mediante essa relação, mediante sua atividade
em que permanece contido e dominante, se conclui junto
com a objetividade.
Adendo: A execução do fim é a maneira mediatizada de realizar o fim:
mas também é igualmente indispensável sua realização imediata. O fim
alcança o objeto imediatamente, por ser a potência [que se exerce] sobre o
objeto, por estar nele contida a particularidade e, nesta, também a objetivi­
dade. O ser vivo tem um corpo; dele a alma se apoderou, e nele se objetivou
imediatamente. A alma humana tem, pois, muito a fazer para se dar sua
corporeidade como um meio. O homem, por assim dizer, deve primeiro
tomar posse do seu corpo, para que seja o instrumento de sua alma.
§ 209
3a —-A atividade conforme-ao-fim, com o seu meio, está ainda
dirigida para-fora, porque o fim também não é idêntico ao objeto;
por isso deve primeiro ser também mediatizado com ele. Nessa
segunda premissa o meio está, enquanto objeto, em relação imediata
345
com o outro extremo do silogismo: com a objetividade enquanto
pressuposta, com o material. Essa relação é a esfera do mecanismo
e do quimismo, agora a serviço do fim, que é sua verdade e o seu
livre conceito. E a astúcia da razão que o fim subjetivo — enquanto
é a potência desses processos, em que o objetivo se desgasta e se
suprassume [em seus processos] um no outro — a si mesmo se con­
serve fora desses processos, e seja o que neles se conserva.
Adendo: A razão é tanto astuta como poderosa. A astúcia consiste, de
modo geral, na atividade mediatizante que, deixando os objetos segundo sua
natureza atuar uns sobre os outros, e desgastar-se uns nos outros, contudo,
sem se imiscuir nesse processo, [a razão] leva somente o seu fim à realização.
Nesse sentido, pode-se dizer que a Providência divina se comporta como a
astúcia absoluta em relação ao mundo e a seus processos. Deus deixa-fazer
os homens, com suas paixões e interesses particulares, e o que resulta por
isso é a realização das suas intenções, que são outra coisa do que primeiro
tratavam de fazer aqueles de que Deus se serve no caso.
§ 210
O fim realizado é, assim, a unidade posta do subjetivo e do
objetivo. Essa unidade porém é essencialmente determinada de tal
modo, que o subjetivo e o objetivo são neutralizados e suprassumi-
dos só segundo sua unilateralidade; mas o objetivo é submetido e
conformado ao fim, enquanto livre conceito, e por isso à potência
[que impera] sobre ele. O fim se conserva perante o objetivo e nele;
porque, além de ser o subjetivo unilateral, o particular, é também
o universal concreto, a identidade essente em si, dos dois. Esse
universal, enquanto refletido sobre si simplesmente, é o conteiído,
que através de todos os três termini do silogismo, e de seu movimen­
to, permanece o mesmo.
§ 211
Na finalidade finita, porém, o fim realizado é também algo que
rompeu dentro de si mesmo, tanto como o eram o meio-termo e o
fim inicial. Por conseguinte, o que se efetuou foi somente uma
forma aplicada exteriormente a material já encontrado por aí; a qual,
por causa do conteúdo limitado do fim, é também uma determina­
ção contigente. O fim alcançado é, por isso, somente um objeto,
346
que é também, por sua vez, meio ou material para outros fins; e
assim por diante, até o infinito.
§ 212
O que porém acontece em si no realizar do fim é que a subjetividade
unilateral, e a aparência da autonomia objetiva presente em relação a
ela, são suprassumidas. Na apreensão do meio, o conceito se põe como
a essência, em si essente, do objeto; nos processos mecânico e químico,
a autonomia do objeto já se evaporou em si, e no seu curso sob a
dominação do fim se suprassume a aparência daquela autonomia, o
negativo ante o conceito. Mas [no fato de] que o fim realizado seja
determinado somente como meio e material, aí já esse objeto é logo
posto como um objeto que em si é nulo, somente ideal. Com isso
desvaneceu também a oposição de conteiido e forma. Enquanto o fim,
por meio da suprassunção das determinações-de-forma, se conclui jun­
to consigo mesmo, a forma é posta como idêntica consigo, [e] por isso
como conteúdo; de modo que o conceito, enquanto é a atividade-da-
-forma, só tem a si por conteiído. Assim, por esse processo, é posto em
geral o que era conceito do fim: a unidade em si essente, do subjetivo e
do objetivo, agora como para si essente — a idéia.
Adendo: A finitude do fim consiste em que em sua realização o ma­
terial, empregado para isso como meio, só exteriormente esteja subsumido
sob ele, e feito conforme a ele. Ora, de fato, o objeto é em si, o conceito;
enquanto este ali se realiza como fim, isso é somente a manifestação do
seu próprio interior. A objetividade, desse modo, é como se fosse um
invólucro, sob o qual o conceito está oculto; no finito não podemos expe­
rimentar ou ver que o fim foi verdadeiramente alcançado. A plena reali­
zação do fim infinito é somente suprassumir a ilusão de que o fim não foi
ainda realizado. O bem, o absolutamente bom, realiza-se eternamente no
mundo, e o resultado é que já se realizou em si e para si, e não precisa
esperar por nós. E nessa ilusão que vivemos, e, ao mesmo tempo, somen­
te ela é o [fator] atuante, em que repousa o interesse no mundo. A idéia
em seu processo cria para si mesma aquela ilusão, contrapõe a si um
Outro, e seu agir consiste em suprassumir essa ilusão. Somente a partir
desse erro a verdade surge, e aí reside a reconciliação com o erro e com
a finitude. O ser-outro — ou o erro — enquanto suprassumido é ele
mesmo um momento necessário da verdade, a qual só é enquanto faz de
si o seu próprio resultado.
347
c
A IDÉIA

§ 213
A idéia é o verdadeiro em si e para si, a unidade absoluta do
conceito e da objetividade. Seu conteúdo ideal não é outro que o
conceito em suas determinações, seu conteúdo real é somente a
exposição do conceito, que ele se dá na forma de um ser-aí exte­
rior; e estando essa figura excluída na idealidade do conceito, na
sua potência, assim se conserva na idéia.
A definição do absoluto, de que é a idéia, agora é ela mesma
absoluta. Todas as definições anteriores voltam a essa. A idéia
é a verdade, pois a verdade é que a objetividade corresponda ao
conceito, não que as coisas exteriores correspondam a minhas
representações; essas são somente representações corretas, que
Eu, este [aqui], tenho. Na idéia, não se trata de um “este”, nem
de representações nem de coisas exteriores. Mas também todo
Efetivo, na medida em que é algo verdadeiro, é idéia, e só tem
sua verdade por meio da idéia e em virtude dela. O ser singular
é um lado qualquer da idéia; para este [singular], portanto, é
mister ainda outras efetividades, que aparecem igualmente au­
348
tônomas particularmente; só nelas em conjunto, e na sua rela­
ção, o conceito se realiza. O singular, para si, não corresponde ao
seu conceito; essa limitação de seu ser-aí constitui sua finitude e
sua ruína. A idéia mesma, não há que tomá-la como uma idéia
de alguma coisa qualquer, tampouco o conceito simplesmente como
conceito determinado. O absoluto é a idéia universal e una, que
enquanto julgante se particulariza no sistema das idéias determi­
nadas, que, no entanto, só consistem em retornar à idéia una: à
sua verdade. E por esse juízo que a idéia é, antes de tudo, somen­
te a substância una, universal; mas sua efetividade verdadeira,
desenvolvida, é ser como sujeito e, assim, como espírito.
Com freqüência, a idéia é tomada por algo lógico, puramente
formal, na medida em que não tem uma existência como seu
ponto de partida e de apoio. Semelhante maneira de ver deve
ser deixada para aqueles enfoques, para os quais a coisa
existente e todas as demais determinações, que ainda não
penetraram até a idéia, ainda contam como realidades — as­
sim chamadas — e como verdadeiras efetividades. Igualmente
falsa é a representação como se a idéia fosse somente o abs­
trato. Certamente, ela o é, enquanto como todo o não-verda-
deiro nela se consome; mas a idéia é nela mesma essencial­
mente concreta, por ser o conceito livre que se determina a si
mesmo, e assim se determina para [tornar-se] realidade.
Só seria a idéia o formalmente-abstrato, se o conceito, que é seu
princípio, fosse tomado como a unidade abstrata e não, tal como
ele é, como o retorno negativo de si a si mesmo, e como a subjetividade.
Adendo: Por verdade entende-se, antes de tudo, que eu sei como alguma
coisa é. No entanto, isso é a verdade só em relação à consciência; ou a
verdade formal, a simples exatidão. Ao contrário, no seu sentido mais profun­
do, consiste em ser a objetividade idêntica ao conceito. Trata-se desse senti­
do mais profundo quando, por exemplo, se fala de um verdadeiro Estado, ou
de uma verdadeira obra de arte. São verdadeiros esses objetos quando são o
que devem ser, isto é, quando sua realidade corresponde ao seu conceito.
Assim compreendido, o não-verdadeiro é o mesmo que aliás também se
chama o mau. Um homem mau é um não-verdadeiro homem, isto é, um
homem que não se comporta conforme seu conceito ou sua determinação.
Contudo, totalmente sem identidade do conceito e da realidade, nada pode
ter consistência. O que é totalmente mau, ou contrário ao conceito, é, jus­

349
tamente por isso, algo que em si mesmo se desagrega. É somente pelo
conceito que as coisas no mundo têm sua consistência; quer dizer, na lingua­
gem da representação religiosa, as coisas são o que são somente pelo pensa­
mento divino — e por isso criador — que lhes é imanente.
Quando se fala de idéia, com isso se deve representar algo distante
e além. A idéia é antes o absolutamente presente, e também se encontra
igualmente em cada consciência, por perturbada e distorcida que seja.
Nós nos representamos o mundo como um grande todo, que foi criado
por Deus, e na verdade, de modo que Deus se deu a conhecer nele.
Também consideramos o mundo como governado pela divina providên­
cia, e nisso está implicado que o fora-um-do-outro [dos seres] do mundo
é eternamente reconduzido à unidade da qual saiu, e conservado de acor­
do com ela. Na filosofia, desde sempre não se tratou de outra coisa que
do conhecimento pensante da idéia, e tudo o que merece o nome de
filosofia teve sempre em seu fundamento a consciência de uma absoluta
unidade do que, para o entendimento, só conta em sua separação. Que a
idéia seja verdade, a prova para isso não foi exigida somente agora: até
hoje, toda a realização e desenvolvimento do pensar contém essa prova.
A idéia é o resultado desse processo; o que porém não se deve entender
como se fosse algo apenas mediatizado, isto é, mediatizado por outra coisa
que por ela mesma. A idéia é, antes, seu próprio resultado, e, como tal,
é tanto o imediato como o mediatizado. Os graus até aqui considerados,
do ser e da essência, e igualmente do conceito e da objetividade, na sua
diferença não são algo fixo e que repousa em si, mas se demonstraram
como dialéticos; e sua verdade é somente a de serem momentos da Idéia.
§ 214
A idéia pode ser compreendida:
— como a razão (essa é a significação filosófica própria para
razão)\
— como o sujeito-objeto, além disso;
— como a unidade do ideal e do real\ do finito e do infinito-, da
alma e do corpo;
— como a possibilidade que tem, nela mesma, sua efetividade-,
— como aquilo cuja natureza só pode ser concebida como existente
etc.; porque na idéia estão contidas todas as relações do enten­
dimento, mas em seu infinito retorno e identidade em si
mesmos.
O entendimento tem trabalho fácil em mostrar, como contra­
ditório em si, tudo o que se disse da idéia. Isso lhe pode ser
350
igualmente devolvido, ou, antes, já foi operado na idéia —
um trabalho que é o trabalho da razão e, na verdade, não tão
fácil como o do entendimento.
Se o entendimento mostra que a idéia se contradiz a si mesma,
porque, por exemplo, o subjetivo é só subjetivo, e o objetivo é,
antes, oposto a ele; que o ser é algo totalmente outro que o
conceito, e por conseguinte não se pode fazer sair dele; também
que o finito é só finito, e exatamente o contrário do infinito;
portanto não lhe é idêntico, e assim por diante, através de todas
as determinações; a Lógica mostra antes o contrário, a saber,
que o subjetivo que deve ser só subjetivo, o finito que deve ser
só finito, o infinito que deve ser só infinito, e assim por diante,
não têm verdade alguma; contradizem-se e passam para o seu
contrário. Com isso, esse passar e a unidade em que os extremos
estão enquanto suprassumidos — como um aparecer ou mo­
mentos — revelam-se como sua verdade.
O entendimento, que se aplica à idéia, é um duplo mal-
-entendido: primeiro, os extremos da idéia — chame-se como
se quiser — enquanto estão em sua unidade; ele os toma
ainda no sentido e na determinação [que têm] enquanto não
estão em sua unidade concreta, mas são ainda abstrações fora
dela. O entendimento desconhece, não menos, a relação, mes­
mo quando já foi posta expressamente: assim não vê a natu­
reza da cópula no juízo, que enuncia do singular, do sujeito,
que o singular igualmente não é [um] singular mas [um]
universal. De outra parte, o entendimento sustenta sua refle­
xão — de que a idéia, idêntica consigo, contém o negativo
dela mesma, a contradição — como sendo uma reflexão ex­
terior, que não incide na idéia mesma. De fato, porém, isso
não é uma sabedoria própria do entendimento, mas a idéia é
ela mesma a dialética, que eternamente separa e diferencia
o idêntico consigo do diferente; o subjetivo do objetivo; o
finito, do infinito; a alma, do corpo; e só nessa medida é a
eterna criação, eterna vitalidade e eterno espírito. Enquanto
assim ela mesma é o ultrapassar, ou antes o trasladar-se para
o entendimento abstrato, é também eternamente razão: é a
dialética que faz entender de novo a esse [ser] de entendi-
351
mento, a esse [ser] diverso, sua natureza finita, e a falsa apa­
rência da autonomia de suas produções, e o reconduz à uni­
dade. Enquanto esse duplo movimento não é temporal nem
separado e diferenciado, seja de que modo for — aliás a
razão seria, por sua vez, apenas entendimento abstrato —, é
a intuição eterna dela mesma no Outro: o conceito, que se
realizou a si mesmo em sua objetividade; o objeto que é fina­
lidade interna, subjetividade essencial.
As diversas maneiras de apreender a idéia — como unidade do
ideal e do real, do finito e do infinito, da identidade e da diferença,
e assim por diante — são mais ou menos formais, enquanto
designam um grau qualquer do conceito determinado. Só o concei­
to mesmo é livre, e o verdadeiro Universal', na idéia, por conse­
guinte, sua determinidade é também somente o conceito mesmo
— uma objetividade em que ele se continua enquanto é o
universal, e na qual somente tem sua determinidade total. A
idéia é o juízo infinito cujos lados são, cada um, a totalidade
autônoma, e justamente porque cada um nela se implementa,
passa também para o outro lado. Nenhum dos outros conceitos
determinados é essa totalidade consumada, em seus dois lados,
fora do conceito mesmo e da objetividade.
§ 215
A idéia é essencialmente processo, por sua identidade ser a iden­
tidade absoluta e livre do conceito, somente enquanto é a nega­
tividade absoluta, e portanto dialética. A idéia é o percurso em que
o conceito, enquanto é a universalidade que é singularidade, se
determina em objetividade e em oposição à objetividade; e essa
exterioridade, que tem o conceito por sua substância, se reconduz,
por sua dialética imanente, à subjetividade.
Por ser a idéia: a) Processo, a expressão [proposta] para o
absoluto: “A unidade do finito e do infinito, do pensar e do
ser” etc., como foi lembrado muitas vezes, é falsa; pois a
unidade exprime identidade abstrata, que persiste imóvel. Por
ser a idéia: b) Subjetividade, essa expressão é igualmente fal­
sa, pois aquela unidade exprime o Em-si, o substancial da
verdadeira unidade. O infinito aparece assim como apenas
352
neutralizado com o finito, assim como o subjetivo com o ob­
jetivo, o pensar com o ser. Mas na unidade negativa da idéia
o infinito pervade o finito; o pensar, o ser, a subjetividade, a
objetividade. A unidade da idéia é subjetividade, pensar,
infinitude, e por isso há que distinguir-se da idéia enquanto
substância; como essa subjetividade, [esse] pensar, [essa]
infinitude que pervadem devem distinguir-se da subjetivida­
de unilateral, do pensar unilateral, da infinitude unilateral, a
que se rebaixa julgando, determinando.
Adendo: A idéia, como processo, percorre três graus em seu desenvolvi­
mento. A primeira forma da idéia é a vida, isto é, a idéia na forma da
imediatez. A segunda forma é a da mediação ou da diferença, e isso é a idéia
enquanto conhecimento, que aparece na dupla figura de idéia teórica e de idéia
prática. O processo do conhecimento tem por seu resultado a restauração da
unidade enriquecida pela diferença; e isso dá a terceira forma de idéia, por
isso absoluta — último grau do processo lógico que se demonstra ao mesmo
tempo como o verdadeiramente primeiro, é o essente só por si mesmo.

a) A vida
§ 216
A idéiaJnuediata é a vida. O conceito, como alma, é realjzado
em um corpo, de cuja e xt er iorid ad e__essa alma é a universalidade
imediata referindo-se a si. E igualmente sua particularização, de
modo que o corpo não exprime nele outras diferenças, a não ser as
determinações do conceito; enfim, é a singularidade, como nega­
tividade infinita, a dialética de sua objetividade de [termos] essentes
fora um do outro, que é reconduzida, da aparência da consistência
autônoma, à subjetividade; de modo que todos os membros são uns
para os outros, [tanto] meios momentâneos como fins momentâ­
neos, e a vida, assim como é particularização inicial, resulta como a
unidade negativa essente para si, e, na corporeidade enquanto dia­
lética, só se conclui junto consigo mesma.
Assim a vida é essencialmente [um ser] vivo , e, segundo sua
imediatez, é este ser-vivo singular A finitude tem nessa esfera a
determinação de que corpo e alma são separáveis, em virtude da
imediatez da idéia; isso constitui a mortalidade do ser-vivo. Mas só
353
na medida em que ele é morto, esses dois lados da idéia são fragmen-
tos-constitutivos diversos.
Adendo: Qs-meaabitQS_ singularesjla.cotpo são o que são por sua
s ló

unidade, e em relação com ela. Assim, por exemplo, uma mão que é
seeciqnada do corpo só é uma mão no nome, mas não segundo a Cois^
como Aristóteles iá notara. Do ponto de vista do entendimento, costuma-
-se considerar a vida como um mistério, e de modo geral como inconcebível.
Mas nisso o entendimento somente confessa sua finitude e nulidade. De
fato, a vida é tão pouco inconcebível que nela deparamos, antes, com o
conceito mesmo; e mais precisamente com a idéia imediata, existindo
como conceito. Com isso também já está expressa a deficiência da vida.
Essa deficiência consiste em que, aqui, conceito e realidade não corres­
pondem ainda verdadeiramente um ao outro. O conceito da vida é a alma.
e esse conceito tem o corpo por sua realidade. A Alma, por assim dizer,
está difundida em sua corporeidade, de modo que é somente sensível, mas
não ainda [um] livre ser-para-si. O processo da vida consiste em superar
a imediatez, à qual a vida_ainda_£5tá.prosa.. e.,.esse processa que por sua
vez é ele mesmo um processo, tríplice, tem por seu resultado a idéia na
forma do juízo; quer dizer, a idéia enquanto conhecimento.
§ 217
O ser-vivo é o silogismo cujos momentos mesmos são em si
sistemas e silogismos (§§ 198, 201, 207); mas que são silogismos
ativos, processos, e na unidade subjetiva do ser-vivo são somente
um processo. O ser-vivo é assim o processo do seu concluir junto
consigo mesmo, que se desenvolve através de três processos.
§ 218
1-) O primeiro é o processo do ser-vivo no interior de si, pro­
cesso em que se divide nele mesmo, e se faz de sua corpo­
reidade seu objeto, sua natureza inorgânica. Esta, enquanto
é o relativamente exterior, nela mesma entra na diferença
e contradição de seus momentos, que se abandonam um ao
outro, se assimilam um ao outro, e se conservam produzin-
do-se a si mesmos. Mas essa atividade dos membros é
somente a atividade una do sujeito, ao qual retornam suas
354
produções, de modo que nelas somente o sujeito é produ­
zido; que dizer: ele se reproduz, somente.
Adendo: O processo do ser-vivo no interior de si mesmo tem na na­
tureza a forma tríplice da sensibilidade, da irritabilidade e da reprodução.
Enquanto sensibilidade, o ser-vivo é imediatamente relação simples para'
consigo: a alma que está presente em seu corpo, em toda a parte; para ela,
o estar-fora-uma-do-outro [das partes] do corpo não tem nenhuma verda­
de. Enquanto irritabilidade, o ser-vivo aparece dividido em si mesmo, e,
enquanto reprodução, está constantemente restaurando-se a partir da di­
ferença interior de seus membros e órgãos.
O ser-vivo existe somente como esse processo que se renova continua­
mente no interior de si mesmo.
§ 2 19
2a) Mas o juízo do conceito progride enquanto livre até deixar
fora de si o objetivo, como uma totalidade autônoma; e a
relação negativa do ser-vivo consigo produz, enquanto singu­
laridade imediata, a pressuposição de uma natureza inorgânica
que se lhe contrapõe. Por ser esse seu negativo, igualmen­
te, momento-do-conceito do ser-vivo, está nele — que é ao
mesmo tempo universal concreto — como uma deficiência.
A dialética pela qual o objeto, como nulo em si, se supras-
sume é a atividade do ser-vivo certo de si mesmo, que,
nesse processo contra uma natureza inorgânica, com isso a si
mesmo se conserva, se desenvolve e se objetiva.
Adendo: O ser-vivo se contrapõe a uma natureza inorgânica, à qual se
refere como potência dela, e que ele se assimila. O resultado desse pro­
cesso não é, como no processo químico, um produto neutro, no qual foi
suprassumida a autonomia dos dois lados que se contrapunham um ao
outro; mas o ser-vivo se mostra como invadindo o seu Outro, que não
pode resistir à sua potência.
A^nirgza jnnrgânira qii<-. é subjugada pelo ser-vivo. suporta isso pelo
motiva de ser em si o mesmo aue a vida é para si. No Outro, assim, o ser vivo
só vai junto consigo mesmo. Quand.o- a alma escapa do corpo, as potências^
elementares da objetividade, entram, cm jogC)L_ Essas potências estão, por
assim dizer^permanentemente armandoiLbpte para dar início ao seu proces-
so no corpo orgânico; e a yida-é o combate constante contra isso.
355
§ 220

3a) Enquanto o indivíduo vivo, que em seu primeiro processo


se comporta em si mesmo como sujeito e conceito, pelo
seu segundo processo assimila a si sua objetividade exte­
rior, assim põe em si mesmo a determinidade real; e então é,
em si, gênero, universalidade substancial. A particularização
dessa última é a relação do sujeito a um outro sujeito do
mesmo gênero que ele; e o juízo é a relação do gênero a
esses indivíduos determinados assim, um em relação ao
outro — [é] a diferença dos sexos.
§ 221
O processo do gênero o conduz ao ser-para-si. Seu produto —
por ser a vida ainda a idéia imediata — se decompõe nos dois
lados, [de modo] que, segundo um, o indivíduo vivo em geral, que
era de início pressuposto como imediato, agora resulta como algo
mediatizado e engendrado; mas, segundo o outro lado, a singularidade
viva, que por causa de sua imediatez primeira se refere negativamente
à universalidade, soçobra nessa, enquanto [sua] potência.
Adendo: O ser-vivo morre porque é a contradição de ser o universal em
si, o gênero, e de existir, contudo, imediatamente só como singular. Na
morte, o gênero se mostra como a potência [que impera] sobre o singular
imediato. Para o animal, o processo do gênero é o ponto mais alto de sua vi­
talidade. Mas ele não chega a ser para si em seu gênero, porém sucumbe ao
poder deste. O ser imediatamente vivo se mediatiza consigo mesmo no pro­
cesso do gênero, e se eleva assim sobre sua imediatez, mas só para tornar a
sucumbir nela sempre de novo. A vida por isso se dispersa, antes de tudo,
somente na má infinitude da progressão até ao infinito. Contudo, o que se­
gundo o conceito se efetua mediante o processo da vida, é a suprassunção e
a ultrapassagem da imediatez, à qual ainda está presa a idéia enquanto vida.
§ 222
No entanto, a idéia da vida se libertou assim não só de qualquer
(particular) “este aí” imediato, mas em geral dessa imediatez pri­
meira; com isso vem para si mesma, para a sua verdade-, entra assim
na existência como gênero livre para si mesmo. A morte da vitalidade
singular somente imediata é o emergir do espírito.
356
b) O conhecimento
§ 223
A idéia existe livre para si mesma, enquanto tem a universali­
dade por elemento de sua existência, ou [seja, enquanto] a objetivi­
dade mesma é como o conceito que para si a idéia tem por objeto.
Sua subjetividade, determinada como universalidade, é puro dife­
renciar no interior dela; é um intuir que se mantém nessa universa­
lidade idêntica. Mas, como diferenciar determinado, é o juízo ulte­
rior, [que consiste em] repelir-se de si mesma como totalidade, e
na verdade, antes de tudo, em pressupor-se como universo exterior.
São dois juízos, que em si são idênticos, mas que ainda não são
postos como idênticos.
§ 224
A relação dessas duas idéias — que em si ou como vida são
idênticas — é assim a relação relativa, o que constitui nessa esfera
a determinação da finitude. E a relação-de-reflexão, enquanto a dife­
renciação da idéia nela mesma é somente o primeiro juízo; o pres­
supor não é ainda um por; para a idéia subjetiva, portanto, a idéia
objetiva é o mundo imediato aí encontrado; ou a idéia como vida
está no fenômeno da existência singular. Ao mesmo tempo e conjun­
tamente, enquanto esse juízo é o puro diferenciar dentro dela mesma
(ver parágrafo precedente), é, ela mesma, para si e para o outro dela\
assim é a certeza da identidade, em si essente, desse mundo objetivo
com ele. A razão vem ao [encontro do] mundo com a fé absoluta
de poder pôr a identidade e de elevar sua certeza à verdade, e com
a tendência de pôr também como nula a oposição que, para ela, é
em si nula.
§ 225
Esse processo é, em geral, o conhecimento. Em si, está nele su­
prassumida em uma atividade, a oposição; a unilateralidade da subje­
tividade com a unilateralidade da objetividade. Mas esse suprassumir
acontece, antes de tudo, em si: o processo, enquanto tal, é por isso
afetado pela finitude dessa esfera, e se decompõe no movimento duplo,
posto como diverso, do impulso [1] de suprassumir a unilateralidade
357
da subjetividade da idéia, por meio da aceitação do mundo essente, em
si mesmo: (ou seja) no representar e no pensar subjetivos; e de preen­
cher a certeza abstrata de si mesmo com essa objetividade que en­
quanto conteúdo vale como verdadeira; [2] e, inversamente, [impulso]
de suprassumir a unilateralidade do mundo objetivo, que assim só conta
aqui, ao contrário, como uma aparência, uma coleção de contingências
e de figuras em si nulas; e de determiná-lo mediante o interior do
subjetivo, que aqui conta como o objetivo verdadeiramente essente, e
em configurar o objetivo à imagem desse interior. Aquele [primeiro]
é o impulso do saber para a verdade — o conhecimento como tal, a
atividade teórica da idéia. Este [último] é o impulso do bem para sua
plena realização — o querer, atividade prática da idéia.
1. O conhecimento
§ 226
A finitude geral do conhecimento, que reside em um juízo, na
pressuposição da oposição (§ 224) — pressuposição ante a qual o
próprio agir do conhecimento constitui a contradição embutida —,
determina-se com mais rigor na sua própria idéia, [de modo] que
os momentos dessa idéia recebem a forma da diversidade recípro­
ca; e por estarem, decerto, completos, vêm a estar, um em relação
ao outro, na relação da reflexão: não na relação do conceito. A
assimilação da matéria, como de um dado, aparece portanto como o
acolhimento deste nas determinações do conceito, que ao mesmo tem­
po lhe ficam exteriores; e que também se apresentam em sua diversi­
dade recíproca. E a razão agindo como entendimento. A verdade, à
qual chega esse conhecimento, é por isso igualmente apenas a verda­
de finita : a verdade infinita do conceito é fixada como um fim essente
só em si, um além para o conhecimento. Mas o conhecimento se
mantém, em seu agir exterior, sob a direção do conceito, cujas deter­
minações constituem o fio interior do processo.
Adendo: A finitude do conhecimento reside na pressuposição de um
mundo que se achou-aí, e o sujeito cognoscente aparece como uma tábula
rasa. Atribuiu-se a Aristóteles essa representação, embora ninguém esteja
mais distante dessa apreensão exterior do conhecimento que justamente
Aristóteles. Esse conhecimento não se sabe ainda como a atividade do
358
conceito, a qual é somente em si, mas não para si. Seu comportamento
aparece, para ele mesmo, uma atitude passiva, mas de fato é ativa.
§ 227
O conhecimento finito, ao supor o diferenciado como um essente
achado-aí que se lhe contrapõe — os fatos multiformes da natureza
exterior ou da consciência —, 1) primeiro tem por forma de sua ativi­
dade a identidade formal ou abstração da universalidade. Por isso, essa
atividade consiste em dissolver o concreto dado, em singularizar suas
diferenças e dar-lhe a forma de uma imiversalidade abstrata; ou, então,
em deixar o concreto como fundamento e, pela abstração das particula­
ridades que parecem inessenciais, pôr em evidência um universal
concreto, o gênero ou a força e a lei: [é o] método analítico.
Adendo: Costuma-se falar de método analítico e de método sintético como
se fosse simplesmente Coisa de nosso bel-prazer seguir um ou outro. No
entanto, não é este o caso, de modo algum. Mas é da forma dos próprios
objetos a conhecer que depende qual dos métodos citados, que resultam do
conceito do conhecimento finito, deve ser aplicado. O conhecimento é, pri­
meiro, analítico: o objeto tem para ele a figura da singularização, e a atividade
do conhecimento analítico visa reconduzir o singular que se lhe depara a um
universal. O pensar tem aqui somente a significação da abstração ou da
identidade formal. E este o ponto de vista em que se colocam Locke e todos
os empiristas. Muitos dizem que o conhecimento, em geral, nada mais pode
fazer do que decompor os objetos concretos dados, em seus elementos abs­
tratos, e em seguida examiná-los em seu isolamento. No entanto, aparece
logo que é um distorcer das coisas, e que o conhecimento, que quer tomar
as coisas como elas são, entra aqui em contradição consigo mesmo. Assim,
por exemplo, o químico leva um pedaço de carne à sua retorta, martiriza-o
de muitos modos, e então diz que é composto de oxigênio, carbono, hidro­
gênio etc. Mas essas matérias abstratas não são mais carne. O mesmo sucede
quando o psicólogo empírico decompõe uma ação segundo os diversos lados
que ela oferece ao exame, e depois os fixa em sua separação. O objeto
tratado analiticamente é aí considerado, por assim dizer, como uma cebola,
a que se retira uma casca depois da outra.
§ 228
Z~) Essa universalidade é também uma universalidade determi­
nada-. a atividade aqui avança nos momentos do conceito, que o
359
conhecimento finito não está em sua infinitude: é o conceito-de-enten-
dimento, determinado. O acolhimento do objeto nas formas desse
conceito é o método sintético.
Adendo: O movimento do método sintético é o inverso [do movimen­
to] do método analítico. Enquanto este partindo do singular avança para
o universal, naquele ao contrário o universal (como definição') forma o
ponto de partida, por meio da particularização (na divisão) avança em
direção ao singular (o teorema). O método sintético mostra-se, assim, como
o desenvolvimento dos momentos do conceito no objeto.
§ 229
aa) O objeto, trazido pelo conhecimento primeiro na forma do
conceito determinado em geral — de modo que assim são postos
seu gênero e sua determinidade geral —, é a definição. O material e
a fundamentação desta são proporcionados pelo método analítico
(§ 227). A determinidade porém deve ser apenas uma marca, quer
dizer, [um meio] em vista do conhecimento exterior ao objeto —
[conhecimento] somente subjetivo.
Adendo: A definição contém, ela mesma, os três momentos do conceito:
o universal, como o gênero próximo (genus proximum); o particular, como
a determinidade do gênero (qualitas specifica), e o singular, como o próprio
objeto definido. Quanto à definição, surge antes de tudo a questão de
saber donde provém ela; e a essa questão se tende a responder que as
definições nascem por via analítica. Mas assim também se dá logo ensejo
à polêmica sobre a exatidão da definição proposta; pois depende, no caso,
de que percepções se partiu, e que pontos de vista se têm ante os olhos.
Quanto mais rico é o objeto a definir, isto é, quanto mais lados oferece à
consideração, tanto mais diversas são habitualmente também as defini­
ções propostas. Assim há, por exemplo, toda uma multidão de definições
da vida, do Estado etc. Ao contrário, a geometria está à vontade ao fazer
definições, já que seu objeto, o espaço, é um objeto tão abstrato. Além
disso, de modo geral, tendo em vista o conteúdo do objeto definido,
nenhuma necessidade está presente. Pode-se assim admitir que há um
espaço, plantas, animais etc.; e não é tarefa da geometria, da botânica etc.
mostrar a necessidade dos objetos citados. Para a filosofia, já pelo fato
dessa circunstância, convém tão pouco o método sintético quanto o mé­
todo analítico; porque a filosofia deve justificar-se, antes de todas as coisas,
quanto à necessidade de seus objetos. Contudo, procurou-se também na
360
filosofia de muitas maneiras servir-se do método sintético. Assim Espinozí
particularmente começa por definições e diz, por exemplo: “A substância é
causa sui”. Em suas definições está exposto o que há de mais especulativo
mas na forma de asseverações. O mesmo vale também quanto a Schelling,
§ 230
bb) A indicação do segundo m om ento-do-conceito, da
determinidade do universal enquanto particularização, é a divisão.
segundo uma consideração exterior qualquer.
Adendo: Exige-se da definição que seja completa, e para isso se requei
um princípio ou um fundamento-da-divisão, que é constituído de modo
que a divisão, fundada sobre ele, abranja todo o âmbito do domínio de­
signado em geral pela definição. Mais precisamente, quando se trata de
divisão, importa que seu princípio seja tomado da natureza do objeto a ser
dividido; e que a divisão, por conseguinte, seja feita naturalmente e não
artificialmente, isto é, arbitrariamente. Assim por exemplo, na zoologia,
na divisão dos mamíferos, utilizam-se principalmente os dentes e as pre­
sas como fundamento da divisão; o que faz sentido enquanto os próprios
mamíferos se diferenciam uns dos outros por essa parte de seu corpo, e
se pode reduzir a isso o tipo geral de suas diversas classes. De modo geral,
há que considerar a verdadeira divisão como determinada pelo conceito.
Nessa medida, é antes de tudo tripartida; mas, enquanto a particularidade
se apresenta como algo duplicado, a divisão prossegue, por isso, até a
quadripartição. Na esfera do espírito, predomina a [divisão] tricotômica; e
é mérito de Kant ter chamado a atenção para essa circunstância.
§ 231
cc) Na singularidade concreta, de tal maneira que a determinidade
simples na definição é apreendida como uma relação, o objeto é
uma relação sintética de determinações diferentes', é um teorema. Sua
identidade, por serem determinações diversas, é uma identidade
mediatizada. O fornecer do material que constitui os membros-inter-
médios é a construção; e a mediação mesma, donde resulta a neces­
sidade daquela relação para o conhecimento, é a prova.
Segundo as indicações habituais sobre a diferença do método
sintético e do método analítico, aparece como de todo arbi­
trário qual deles se queira aplicar. Se o concreto é pressuposto,
[esse concreto] que segundo o método sintético é exposto
361
como resultado, as determinações abstratas — que constituíam
as pressuposições e o material para a prova — se deixam extrair
para a análise como conseqüências.
As definições algébricas das linhas curvas são teoremas, no pro­
cedimento da geometria: assim, por exemplo, o teorema de
Pitágoras, tomado como definição do triângulo retângulo,
produziria, pela análise, os teoremas demonstrados antes na
geometria para estabelecê-lo.
A arbitrariedade da escolha repousa em que tanto um método
como o outro partem de algo pressuposto exteriormente. Segundo
a natureza do conceito, o analisar é o primeiro, enquanto tem de
elevar previamente a matéria empírico-concreta dada, [até] à
forma de abstrações universais, que só depois podem ser pro­
postas como definições no método sintético.
Que esses métodos, tão essenciais, e de êxitos tão brilhantes em
seu campo peculiar, sejam inutilizáveis para o conhecimento
filosófico, é evidente por si mesmo; pois têm pressuposições, e
o conhecimento neles se comporta como entendimento e como
[um] progredir na identidade formal. Em Espinoza, que utilizou
principalmente o método geométrico, e isso para conceitos espe­
culativos, o formalismo do método é chocante. A filosofia de
Wolf, que o desenvolveu até o mais amplo pedantismo, é tam­
bém, segundo seu conteúdo, metafísica-de-entendimento.
No lugar do abuso que com o formalismo desse método se
praticou na filosofia e nas ciências, entrou em cena, nos tem­
pos modernos, o abuso com a chamada construção. Por meio
de Kant entrou em curso a representação de que a matemá­
tica construía seus conceitos; isso não diz outra coisa senão que
ela não tem a ver com conceitos, mas com abstratas determi­
nações de intuições sensíveis. Chamou-se, assim, uma constru­
ção de conceitos, à indicação de determinações sensíveis, extraí­
das da percepção, com exclusão do conceito, e ao formalismo
subseqüente, que consiste em classificar objetos científicos e
filosóficos segundo um pressuposto esquema de tabela; de
resto arbitrariamente e a seu bel-prazer.
Decerto, aí reside no fundo uma obscura representação da
idéia da unidade do conceito e da objetividade, como também
362
[uma representação] de que a idéia é concreta. Mas aquele
jogo do assim chamado construir está muito longe de apre­
sentar essa unidade que é somente o conceito enquanto tal; e
tampouco o sensivelmente-concreto da intuição é um con­
creto da razão e da idéia.
Aliás, porque a geometria tem a ver com a intuição sensível,
porém abstrata, do espaço, pode sem obstáculos fixar nele as
determinações simples de entendimento; motivo pelo qual
só ela tem, em sua perfeição, o método sintético do conheci­
mento finito. Contudo, no seu curso -— o que é muito digno
de nota — choca-se finalmente com incomensurabilidades e
irracionatidades, onde, se quiser ir adiante no determinar, é
impelida para além do princípio do entendimento. Aqui tam­
bém, como aliás é freqüente, apresenta-se uma inversão na
terminologia: o que se chama racional é o que pertence ao
entendimento, mas se chama irracional o que é, antes, um indí­
cio e vestígio da racionalidade. Outras ciências quando che­
gam ao limite de seu prosseguir de-entendimento — o que
lhes sucede necessariamente e com freqüência, pois não se
encontram no [elemento] simples do espaço e do tempo —
encontram facilmente uma saída. Rompem a conseqüência
daquele prosseguir e tomam de fora o que necessitam —
muitas vezes o contrário do que precedeu — da representa­
ção, da opinião, da percepção ou donde for.
A carência-de-consciência desse conhecimento finito, quanto
à natureza de seu método e da relação dele para com o conteú­
do, não lhe deixa reconhecer nem que é guiado em sua marcha
para diante por meio de definições, de divisões etc., pela
necessidade das determinações do conceito\ nem onde encontra
seu limite ou quando o ultrapassa; e que se encontra em um
campo onde já não valem mais as determinações-de-entendi-
mento, que no entanto ele utiliza ali, de maneira tosca.
§ 232
A necessidade que o conhecimento finito faz ressaltar na prova
é antes de tudo uma necessidade exterior, destinada apenas à in­
teligência subjetiva. Mas, na necessidade como tal, ele mesmo
363
abandonou sua pressuposição e o ponto de partida, o ser-encontrado-
-ali e o ser-dado do seu conteúdo. A necessidade como tal é, em si,
o conceito que a si se refere. A idéia subjetiva assim chegou, em
si, ao [ser] determinado em si e para si, ao não-dado\ e, por conse­
guinte, a este [ser] enquanto é o imanente ao sujeito, e passa para a
idéia do querer.
Adendo: A necessidade, a que o conhecimento chega por meio da
prova, é o contrário do que forma para ele o ponto-de-partida. Em seu
ponto-de-partida, o conhecimento tinha um conteúdo dado e contingen­
te; mas agora, na conclusão do seu movimento, sabe o conteúdo como um
conteúdo necessário, e essa necessidade é mediatizada pela atividade
subjetiva. Igualmente, a subjetividade era, de início, totalmente abstrata
— uma simples tábula rasa —, enquanto se mostra agora como determi­
nada. Mas neste ponto se situa a passagem da idéia do conhecer para a
idéia do querer. Essa passagem consiste mais precisamente em que o
universal tem de ser apreendido em sua verdade como subjetividade,
como conceito que está movendo-se, agindo e pondo determinações.
2. O querer
§ 233
A idéia subjetiva — enquanto é o determinado em si e para si,
e o conteúdo simples, igual a si mesmo — é o Bem. Seu impulso para
realizar-se está em relação inversa para com a idéia do verdadeiro,
e antes tende a determinar o mundo achado-aí, de acordo com o
seu [próprio] fim. Esse querer tem de um lado a certeza da milidade
do objeto pressuposto, e de outro lado, enquanto finito, pressupõe
ao mesmo tempo o fim do bem como idéia apenas subjetiva e a
autonomia do objeto.
§ 234
A finitude dessa atividade é pois a contradição de que, nas de­
terminações, nelas mesmas contraditórias, do mundo objetivo, o
fim do bem tanto é realizado como também não é; que é posto tanto
como um fim inessencial quanto como um fim essencial; como um
fim efetivo e, ao mesmo tempo, como apenas possível. Essa contra­
dição se representa como o progresso infinito da efetivação do bem,
364
que aí é fixado somente como um dever-ser. Mas o desvanecer
dessa contradição é formal, porque a atividade suprassume a sub­
jetividade do fim, e com ela a objetividade — a oposição pela qual
as duas são finitas, e não somente a unilateralidade desta subjetivi­
dade, mas a subjetividade em geral; uma outra subjetividade seme­
lhante, isto é, um novo engendrar da oposição, não é diferença da
que deveria ser uma anterior. Esse retorno a si é, ao mesmo tempo,
a interiorização [Erinnerung] em si do conteúdo, que é o bem e a
identidade essente em si, dos dois lados: é a interiorização na pres­
suposição do proceder teórico (§ 224) de que o objeto é o substan­
cial e o verdadeiro nele mesmo.
Adendo: Enquanto a inteligência só trata de tomar o mundo como ele
é, a vontade, ao contrário, tende a fazer primeiro o mundo como deve ser.
O imediato, o achado-aí, conta para a vontade não como um ser firme,
mas só como uma aparência, como algo nulo em si. Apresentam-se aqui
as contradições em que se anda às voltas no ponto de vista da moralidade.
E este em geral, nos aspectos práticos, o ponto de vista da filosofia de
Kant, e também da filosofia de Fichte. O bem deve ser realizado; deve-
-se trabalhar para produzi-lo, e a vontade é apenas o bem em vias de ati-
var-se. Mas, se o mundo fosse como deve ser, com isso a atividade da
vontade seria descartada. A vontade, pois, exige ela mesma que seu fim
também não seja realizado. Assim está expressa exatamente a finitude da
vontade. Porém não se pode ficar nessa finitude, e é pelo processo da von­
tade mesma que ela é suprassumida, e [também] a contradição nela con­
tida. A reconciliação consiste em que a vontade retorne, em seu resultado,
à pressuposição do conhecimento; portanto, à unidade da idéia teórica e
da idéia prática. A vontade sabe o fim como o que é seu, e a inteligência
apreende o mundo como [sendo] o conceito efetivo. Essa é a verdadeira
posição do conhecimento racional. O nulo e o evanescente constitui ape­
nas a superfície, não a verdadeira essência do mundo: essência que é o
conceito essente em si e para si, e o mundo assim é, ele mesmo, idéia. A
aspiração insatisfeita desvanece quando reconhecemos que o fim último
do mundo tanto é realizado, como se realiza eternamente. Em geral, esta
é a posição do homem [adulto] enquanto a juventude acredita que o
mundo jaz, pura e simplesmente, no mal; e que é preciso fazer dele algo
totalmente diverso. A consciência religiosa, ao contrário, considera o mundo
como governado pela Providência divina, e por isso corresponde ao que
deve ser. Essa concordância do ser e do dever-ser, contudo, não é uma
concordância rígida e carente-de-processo; porque o bem, o fim-último do
365
mundo, é somente enquanto continuamente se produz; e entre o mundo
espiritual e o mundo natural subsiste ainda a diferença, de que, enquanto
o natural retorna constantemente sobre si mesmo, no espiritual, contudo,
ocorre também uma marcha para a frente.
§ 235
A verdade do bem é posta, assim, como a unidade da idéia
teórica e da idéia prática, [de modo] que o bem é alcançado em si
e para si — o mundo objetivo é, assim, em si e para si a idéia, tal
como ao mesmo tempo ela eternamente se põe como fim , e mediante
atividade produz sua efetividade.
Essa vida, que retornou a si mesma, a partir da diferença e da
finitude do conhecimento, e pela atividade do conceito tornou-se
idêntica com ele, é a idéia especulativa ou absoluta.

c) A idéia absoluta
§ 236
A idéia, como unidade da idéia subjetiva e da objetiva, é o
conceito da idéia, para o qual a idéia como tal é o objeto; para o
qual o objeto é ela: um objeto em que vieram reunir-se todas as
determinações. Essa unidade é, pois, a verdade toda e absoluta, a
idéia que se pensa a si mesma, e decerto aqui, enquanto idéia pen­
sante, enquanto idéia lógica.
Adendo: A idéia absoluta é, antes de mais nada, a unidade da idéia teó­
rica e da idéia prática; e assim, ao mesmo tempo, a unidade da idéia da vida e
da idéia do conhecimento. Tínhamos no conhecimento a idéia na figura da di­
ferença e o processo do conhecimento resultou para nós como a superação
dessa diferença e como o restabelecimento daquela unidade que como tal e em
sua imediatez é inicialmente a idéia da vida. A deficiência da vida consiste em
ser apenas a idéia em si essente; ao contrário, o conhecimento é também, uni-
lateralmente, a idéia essente apenas para si. A unidade e a verdade dessas duas
idéias é a idéia essente em si e para si, e por isso absoluta. Até agora nós [é que]
tivemos por nosso objeto a idéia no desenvolvimento passando através de seus
diversos graus; mas de agora em diante a idéia é idéia objetiva para si mesma.
E a nóesis noéseos que Aristóteles já designou como a forma suprema da idéia.
366
§ 237
Porque a idéia absoluta não tem nela nenhum passar, nenhum
pressupor e, de modo geral, nenhuma determinidade que não seja
fluida e translúcida, a idéia absoluta é para si a forma pura do
conceito, que intui seu conteúdo como a si mesma. E, para si, conteú­
do, enquanto é o seu diferenciar ideal entre si e si mesma, e um
dos [termos] diferenciados é a identidade consigo, mas na qual a
totalidade da forma está contida como o sistema das determina-
ções-do-conteúdo. O conteúdo é o sistema do lógico. Como forma ,
nada resta aqui à idéia senão o método desse conteúdo: o saber
determinado do valor de seus momentos.
Adendo: Quando se fala de idéia absoluta, pode-se supor que aqui so­
mente vai vir o que é correto, que aqui tudo vai se apresentar. Pode-se,
certamente, declamar, sem conteúdo algum, sobre a idéia absoluta, ampla
e longamente; o conteúdo verdadeiro porém não é outra coisa que o
sistema total, cujo desenvolvimento temos considerado até agora. Tam­
bém se pode dizer, quanto a isso, que a idéia absoluta é o universal, mas
o universal não simplesmente como forma abstrata, à qual o conteúdo
particular se contrapõe como um Outro; e sim como a forma absoluta à
qual retornaram todas as determinações, a plenitude total do conteúdo
posto em virtude dela. A idéia absoluta, nesse aspecto, pode-se comparar
ao ancião que pronuncia as mesmas asserções religiosas que a criança, mas
que têm para ele a significação de toda a sua vida. Mesmo se a criança
compreende o conteúdo religioso, esse conta para ela, no entanto, como
algo fora do qual ainda se situam a vida inteira e o mundo inteiro. O mes­
mo sucede também com a vida humana em geral, e os acontecimentos
que constituem seu conteúdo. Todo o trabalho é dirigido somente para a
meta, e, quando é atingida, a gente se admira de não encontrar ali outra
coisa senão exatamente o que queria. O interesse reside no movimento
[em seu] todo. Quando o homem prossegue sua vida, o final pode então
lhe parecer com muito limitado mas é todo o decursus vitae que ali se
encontra recolhido. Assim, pois, o conteúdo da idéia absoluta é também
o desdobramento total de tudo o que tivemos até agora. O [que há de]
último é o discernimento de que o desdobramento total constitui o conteú­
do e o interesse. No mais, esta é a visão filosófica de que tudo que, to­
mado para si, parece como algo limitado recebe seu valor por pertencer
ao todo e ser um momento da idéia. Assim é que tivemos o conteúdo; e
o que ainda temos é o saber que o conteúdo é o desenvolvimento vivo da
367
idéia; e essa retrospecção simples está contida na forma. Cada um dos
graus até aqui considerados é uma imagem do absoluto; mas, de início, só
de maneira limitada, e assim propele para o todo, cujo desdobramento é
o que designamos como método.
§ 238
São estes os momentos do método especulativo:
Ia) O começo, que é o ser ou o imediato-, é para si, pela simples
razão de que é o começo. Mas do ponto de vista da idéia especu­
lativa é o autodetenninar-se dessa idéia, a qual como negatividade
absoluta, ou movimento do conceito, jidga e se põe o negativo de
si mesmo. O ser que aparece como afirmação abstrata para o come­
ço enquanto tal, é assim muito mais a negação, o ser-posto, o ser
mediatizado em geral e o ser /w?ssuposto. Mas enquanto é a nega­
ção do conceito, que em seu ser-outro é absolutamente idêntico
consigo e é a certeza de si mesmo, é o conceito ainda não posto
como conceito, ou seja, o conceito em si. Por isso, enquanto é esse
ser, o conceito ainda não determinado — isto é determinado so­
mente em si ou imediatamente — é igualmente o universal.
O começo é, no sentido do ser imediato, tomado da intuição
ou da percepção — o começo do método analítico de conhe­
cimento finito. No sentido da universalidade, é o começo do
seu próprio método sintético. Mas, já que o lógico é imedia­
tamente tanto [um] universal como [um] essente; tanto pres­
suposto para si pelo conceito, como é imediatamente o con­
ceito mesmo, seu começo é assim um começo tanto sintético
quanto analítico.
Adendo: O método filosófico é tanto analítico como também sintético;
mas não no sentido de um simples “estar junto-um-do-outro”, ou de uma
simples alternância desses dois métodos do conhecimento finito, e sim,
antes, de modo que os contém em si como suprassumidos, e por esse
motivo procede em cada um de seus movimentos como analítico e sinté­
tico ao mesmo tempo. O pensar filosófico procede analiticamente, enquanto
somente acolhe seu objeto, a idéia, deixa-a fazer e, por assim dizer, é
apenas espectador de seu movimento e desenvolvimento. O filosofar é,
nessa medida, totalmente passivo. Igualmente, porém, o pensar filosófico
é sintético e se mostra como a atividade do conceito mesmo. Mas para
368
tanto é preciso o esforço tenso, para afastar de si os próprios palpites, e
as opiniões particulares que querem sempre sobressair.
§ 239
2-) A progressão é o juízo posto da idéia. O universal imediato,
enquanto é o conceito em si, é a dialética [que consiste] em rebaixar
nele mesmo sua imediatez e universalidade a um momento. É assim
o negativo do começo, ou o primeiro, posto em sua determinidade: é
para um, é a relação dos diferentes — é o momento da reflexão.
Essa progressão é tanto analítica — enquanto pela dialética
imanente só é posto o que está no conceito imediato —
quanto sintética, porque neste conceito ainda não estava posta
essa diferença.
Adendo: Na progressão da idéia o começo se mostra como o que é em
si, a saber, como o posto e o mediatizado — e não como o essente e o
imediato. Só para a consciência imediata mesma, a natureza é o inicial e
o imediato, e o espírito é o mediatizado pela natureza. De fato, porém, a
natureza é o [que é] posto pelo espírito, e o espírito mesmo é o que faz
da natureza sua pressuposição.
§ 2 40
A forma abstrata da progressão é no ser um Outro e o passar para
um Outro; na essência é um aparecer no oposto-, no conceito, é a diferen­
ciação entre o singular e a universalidade, que se continua como tal no
que é diferenciado dela, e que é enquanto identidade com ele.
§ 241
Na segunda esfera, o conceito inicialmente essente em si che­
gou ao aparecer e assim em si já é a idéia. O desenvolvimento dessa
esfera torna-se um retorno à primeira, como o [desenvolvimento]
da primeira é uma passagem para a segunda; só em virtude desse
movimento duplicado, a diferença recebe seu direito, enquanto
cada um dos dois diferenciados se consuma, considerado nele
mesmo, em [se tornando] totalidade; e aí se ativa em unidade junto
com o outro. Só o auto-suprassumir-se da unilateralidade dos dois
[termos] neles mesmos faz com que a unidade não se torne unilateral.
369
§ 242
A segunda esfera desenvolve a relação dos diferenciados, [con­
duzindo-a] ao que era antes de tudo: à contradição nela mesma —
ao progresso infinito — que se: 3Ü) resolve no fim , de modo que o
diferente é posto como o que é no conceito. E o negativo do pri­
meiro, e, como a identidade com ele, é a negatividade de si mes­
mo; assim a unidade, em que os dois primeiros estão como idéias
e momentos, como suprassumidos — isto é, ao mesmo tempo,
como conservados. O conceito, que desse modo, a partir do seu ser­
em-si por meio de sua diferença e de seu suprassumir, se conclui-
junto consigo mesmo, é o conceito realizado, isto é, o conceito que
contém o ser-posto de suas determinações em seu ser-para-si\ é a
idéia, para a qual, ao mesmo tempo, enquanto é o absolutamente
primeiro (no método), esse fim é somente o desvanecer da aparência,
como se o começo fosse um imediato e ela um resultado; é o
conhecimento de que a idéia é a totalidade una.
§ 243
O método é, dessa maneira, não uma forma exterior, mas a
alma e o conceito do conteúdo, do qual só difere enquanto os momen­
tos do conceito vêm também neles mesmos, em sua determinidade, a
aparecer como a totalidade do conceito. Enquanto essa determi­
nidade, ou o conteúdo, se reconduz com a forma à idéia, esta se
expõe como totalidade sistemática, que é somente urna idéia, cujos
momentos particulares tanto são em si a mesma idéia, como produ­
zem pela dialética do conceito o ser-para-si simples da idéia. A
ciência conclui desse modo, apreendendo o conceito dela mesma
como conceito da idéia pura, para a qual é a idéia.
§ 244
A idéia que é para si, considerada segundo essa sua unidade
consigo é intuir; e a idéia que-intui é a natureza. Mas, como intuir,
a idéia é posta por reflexão exterior, em determinação unilateral da
imediatez ou negação. Ora, a liberdade absoluta da idéia é que ela
não simplesmente passa para a vida, nem como conhecimento finito
deixa aparecer a vida em si; mas, na absoluta verdade de si mesma,
370
decide-se a deixar sair livremente de si o momento de sua parti<
laridade, ou do primeiro determinar-se e ser-outro — a idéia imea
ta como seu reflexo, como natureza.
Adendo: Retornamos agora ao conceito da idéia, com o qual tínhan
começado. Ao mesmo tempo, esse retorno ao começo é um progres
Aquilo por onde começamos era o ser, o ser abstrato, e agora temos a ia
enquanto ser; mas a idéia essente é a natureza.

371
A ENCICLOPÉDIA DAS CIÊNCIAS
FILOSÓFICAS DE HEGEL

p o r B ernard Bourgeois
Esta Apresentação de B. Bourgeois, aqui reproduzida em apêndice, foi feita para a sua
tradução francesa das três edições da Enciclopédia. Encontra-se no começo do Ia volume,
pp. 7 a 62, da obra G. W. F. Hegel, Encydopédie des Sciences Philosophiques, I, “La science
de la Logique. Texte integral presenté, traduit et annoté par Bernard Bourgeois. Seconde
Édition, Paris, © Librairie Philosophique J. Vrin, 1979.

374
Ia
[E nciclopédia k S istema ]
“Um grande homem condena os humanos a explicá-lo.” 1 Essa
frase de Hegel se aplica a ele mesmo mais que a ninguém. No entan­
to, a grandeza singular de seu pensamento levou muitos intérpretes a
se condenarem na tentativa de explicar a Hegel, porque não souberam
ou não quiseram considerar e analisar justamente o que torna a filoso­
fia hegeliana excepcional: sua sistematicidade real. Sistematicidade real
e não apenas aparente. Outros discursos filosóficos também se apre­
sentaram como sistemas; porém esta apresentação não passa de pre­
tensão, na medida em que o pensamento do ser, que propõem, bem
longe de ser esta unidade consigo mesmo, constitutiva de todo o sis­
tema, comporta em si a diferença não superada — sob forma de jus­
taposição, de mistura ou de predomínio unilateral — do desenvolvi­
mento do ser pensado e do movimento do pensamento desse ser.
O sistema hegeliano é, ao contrário, verdadeiramente um siste­
ma e o sistema; porque nele a ordem das razões de conhecer e a
ordem das razões de ser — o processo lógico e o processo ontológico
— são idênticos e, no seu curso, verificam a afirmação de Hegel de
que pensamento e ser fazem um só. Afirmação teórica fundamental
1. Aforismo do período de Berlim, citado por K. Rosenkranz (Hegel's Leben, Berlim,
1844, pp. 555).

375
do hegelianismo — verificada na prática teórica do filósofo, que se
esforçou sempre por esquecer sua própria subjetividade, que como
tal é um obstáculo ao pensamento, imergindo no conteúdo da “Coisa
Mesma”, para oferecer-lhe assim o elemento transparente do pen­
samento onde pode desenvolver-se em seu verdadeiro sentido.
Muita gente não seguiu tal caminho, ao tentar explicar esse
filósofo cuja teoria e prática recordavam sem cessar esse princípio
absoluto de toda a compreensão. Muitos “ultrapassaram” Hegel,
mas sem passar por ele. No caso de Hegel, é mais fácil superá-lo
afirmando compreender Hegel melhor que o próprio, do que pas­
sar pelo tremendo trabalho de procurar compreender o que ele
efetivamente disse.
Sem dúvida é muito banal insistir em que é um trabalho absolu­
tamente necessário apreender o sentido do que é dito por um filósofo,
enquanto isso é dito por ele. Contudo, o próprio Hegel, em seu Curso
sobre a História da Filosofia, insiste em que o historiador da Filosofia
— que é ao mesmo tempo um filósofo, isto é, alguém em que toma
a sério o discurso filosófico — está sujeito ao imperativo de apreendê-
-lo e analisá-lo tal como ele se oferece, de cingir-se às próprias palavras dos
autores estudados. Para Hegel, o espírito de uma filosofia não é o que
estaria por trás ou por baixo de sua letra, mas sim o princípio (a tota­
lidade principiai), que permite estruturar o conteúdo manifesto de um
pensamento ficando 110 seu próprio nível; ou seja, o sentido manifesto
total, como diferença unificada, deste pensamento. O problema de
saber se há um (outro) sentido desse sentido é problema que não
vamos abordar aqui. Mas, de qualquer maneira, nenhum intérprete de
uma filosofia pode se dispensar dessa tarefa — particularmente impe­
riosa em se tratando de uma filosofia tão difícil — de articular o sen­
tido verdadeiramente imanente, a estrutura manifesta de seu conteú­
do. É ridículo pretender que captar o sentido de um pensamento seja,
antes de tudo, procurar aquém do que diz uma significação mais ou
menos latente, remetendo a intenções mais ou menos confessadas,
que seria a decifrar por meio da letra do que propõe (que em seu
sentido quase não preocupa).
Assim, foi buscado sob o discurso hegeliano o “segredo de
Hegel”: o verdadeiro sentido de sua filosofia, esquecendo um en­
sino fundamental do próprio Hegel. O sentido — 0 que unifica
376
determinações particulares, e é seu universal — deve ser efetiva­
mente o universal delas. Por outra: não pode ser um universal que
esteja no interior das determinações particulares, de tal forma que
não se exteriorize como tal nelas (isto é, como um interior exterior
à sua exteriorização); porque então não seria o interior dessa exte­
riorização, o universal dessas particularidades, e sim o contrário do
que se pretende que seja: um exterior, por sua oposição unilateral
ao exterior; um particular, por sua diferença abstrata — que o
particulariza — com as particularidades. Tal sentido seria uma
particularidade exterior do que se pretendia que fosse o universal
interior. E um tema hegeliano bem conhecido: “O que é apenas in­
terior não passa de exterior”; a verdade do sentido como puro interior
do objeto mesmo, que se quer compreender, será no caso uma subje­
tividade exterior a este, ávida de liberar seu próprio arbitrário ante um
conteúdo tão maciço que chega a machucar e a desencorajar.
Esse estilo particularista da “démarche” do intérprete transpare­
ce naturalmente no conteúdo de sua explicação. A impotência de
viver e de pensar “sub specie totalitatis” se afirma no caráter abstrato
do sentido que se quer impor à obra; como uma unidade que a impa­
ciência impede de encontrar no nível próprio de sua rica diferença.
Explicar Hegel veio a ser, muitas vezes, reduzir o hegelianismo à
obra de um pensador essencialmente preocupado com projetos ou
problemas particulares exclusivos. Viram em Hegel ora um espírito
puramente religioso, ora um homem atormentado por questões
sociais ou políticas etc. Deram a uma determinação formalmente
particularizada pela “démarche” seguida, um conteúdo particular
que tomaram como fundamento do discurso hegeliano total. A ex­
trema plenitude do discurso hegeliano dava ensejo a todas as tenta­
tivas desse gênero. Não tiveram dificuldade em encontrar nela os
momentos abstratos pelos quais podiam justificar seus “partis pris”
unilaterais. Mas ela também os refutava. Quiseram consagrar pelo
prestígio do filósofo, que nunca deixou de condenar as abstrações,
o subjetivismo que absolutiza o Eu abstrato (no caso, o Eu dos
intérpretes incapazes de se abandonar à Coisa Mesma), princípio
de todas as abstrações. Pediram ao pensador cuja “démarche” é a
recusa de toda a unilateralidade, que justificasse toda espécie de
377
interpretação unilateral. Deram ao leitor a impressão de que Hegel
era ou um espírito religioso, ou então um espírito político etc.; quan­
do todo o seu esforço foi superar o ou... ou então, característico de
um pensamento incapaz de apreender a unidade concreta, a unida­
de de determinações diferentes, a totalidade ou o sistema. Em
suma, quiseram explicar o filósofo da Razão — a qual para Hegel
é a identificação das diferenças ao mesmo tempo suprimidas e
conservadas, ou seja, integradas como momentos orgânicos da
unidade assim concreta — submetendo-a ao entendimento que sepa­
ra, diferencia, distingue. Por meio das escolhas exclusivas desse
entendimento, pretenderam fazer suas próprias distinções.
Na certa, foi por isso que a obra onde o racionalismo hegeliano
se revela mais claramente, como a apresentação do sistema do saber
— Enciclopédia das Ciências Filosóficas — foi muitas vezes negligen­
ciada em proveito de obras em que se pensava encontrar um Hegel
mais humano, isto é, mais perto do entendimento comum e de seu
princípio da diferença absolutizada. Insistiram sobre tudo o que
parecia indicar em Hegel uma ruptura, um desequilíbrio, uma in­
quietação: a separação do devir e do resultado da filosofia hegeliana.
Preferiram o devir não pacificado na calma unidade do resultado,
ao resultado que supera toda a diferença. Louvaram nos trabalhos
da juventude a vitalidade que teria abandonado mais tarde o gran­
de sistemático — separando o ponto de vista da consciência imersa
nos dramas e nas renúncias da experiência, e o do saber absoluto
que desenvolve seu conteúdo na imobilidade de uma total sereni­
dade. Opuseram a Fenomenologia do Espírito à Ciência da Lógica e
à Enciclopédia. Sublinharam os temas hegelianos da separação do
universal e do particular: os temas do destino e do trágico, por
exemplo. Resumindo: buscaram e acentuaram no hegelianismo tudo
o que podia satisfazer um subjetivismo que era condenado por
todos os textos de Hegel — e ainda mais manifestamente pela En­
ciclopédia, de que a Lógica mesma só é um momento. Esqueciam
que no hegelianismo, mesmo nas suas formulações iniciais, o ver­
dadeiro é sempre pressentido, e depois exposto, como Totalidade:
como a unidade de todas as diferenças (seja diferenças do devir e
do resultado, da subjetividade e da substancialidade, da particula­
ridade e da universalidade, do trágico e do cômico etc). Na certa,
378
não queremos de forma alguma sugerir que a Enciclopédia das Ciên­
cias Filosóficas é mais hegeliana que os trabalhos da juventude, a
Fenomenologia do Espírito, ou os textos que tratam de esferas par­
ticulares da cultura (política, arte, religião)...
E igualmente anti-hegeliano privilegiar como mais hegeliana a
Enciclopédia das Ciências Filosóficas em relação à Fenomenologia do Espí­
rito, como vice-versa. Cada obra de Hegel ocupa seu lugar no Todo de
sua filosofia, situando a determinação — de que ela é o desenvolvimento
— no Todo do saber: isto é, exprime sua própria necessidade e sua
própria insuficiência. As obras que tratam uma particularidade da vida
do espírito são tão importantes — mas não mais — quanto a obra que
expõe o saber em sua universalidade, como enciclopédico; pois o par­
ticular e o universal só têm sentido um pelo outro, na identidade de
sua mediação recíproca. A absolutização de uma determinação (mes­
mo que fosse a do universal, diferente do particular, e assim particula-
rizado também) a partir da qual todo o hegelianismo se compreenderia
é a negação da determinação do absoluto, da autodeterminação do
absoluto, a qual mantém a identidade consigo mesmo na diferenciação
de si, o universal na particularização. A filosofia de Hegel afirma que
é a auto-apresentação desse absoluto. Ora, como só o mesmo conhece
o mesmo, esta filosofia só pode ser captada por um leitor que a reefetua
nele, como um Todo se autodeterminando. O sistema só pode ser
apreendido por uma leitura não unilateral, mas sistemática também.
Portanto, a Enciclopédia das Ciências Filosóficas não pode ser me­
nosprezada, nem posta como sendo por si só a verdade do hegelianismo.
Se o particular só tem sentido como particularização do universal, e o
devir só tem sentido como antecipação de si do resultado, inversamen­
te o universal só tem sua verdade (de universal) na e pela particulari­
zação que o arranca à abstração de um universal oposto a um particular
(e por isso mesmo particularizado “malgré lui”, quer dizer, contradi­
tório em si mesmo). O resultado só é verdadeiro enquanto nele con­
versa a vitalidade de seu devir. Como sublinha G. Lasson2, isso esque­
ciam numerosos discípulos de Hegel, que viam na Enciclopédia o Li-
vro, contendo como tal a verdade filosófica absoluta, a ser preservada
na sua literalidade mesma. O caráter abstrato de tal exclusivismo, que
2. G. Lasson, Introdução à 2a edição da Enciclopédia (Leipzig, 1905, p. LIY)

379
privilegia a obra universal de Hegel, reside no apego a seu conteúdo
universal enquanto é tomado na sua particularidade própria, quer dizer,
nas diferenças segundo as quais Hegel a articula. A negação de si do
espírito, separado de sua letra, aparece no apego à letra do espírito. Tal
formalismo que exprime a mesma incapacidade de superar as diferen­
ças do entendimento e de se elevar ao pensamento racional ou espe­
culativo — o pensamento do universal concreto — repousa igualmen­
te numa profunda incompreensão do sistema hegeliano. No fundo, os
idólatras da Enciclopédia têm em comum com seus detratores o equi­
vocar-se gravemente sobre a significação desta obra: uns e outros a
veneram ou criticam como se fosse um sistema insuperável ou enrije­
cido, isto é, morto. Ora, a vitalidade não está ausente desta obra.
De um ponto de vista exterior, pode-se notar que é a única
obra a que Hegel retornou duas vezes, dando-lhe três edições, mo-
dificando-a cada vez, num exercício de autocrítica. Insiste expres­
samente em que a estrutura da obra, com sua estrita divisão em
partes e parágrafos, não deveria levar o leitor a tomar estas partes
como exteriores umas às outras, como subsistindo por si em sua
diferença, quais as determinações em repouso ou mortas: mas sim
como momentos orgânicos do Todo que nelas se expõe. As partes
da Enciclopédia são pontos de passagem da infinita transição, da
infinita mediação, que é o pensamento em sua vitalidade criadora.
“E por isso que a representação da divisão tem de incorreto o colocar
as partes ou as ciências particulares umas ao lado das outras, como
se fossem apenas partes imóveis e, em sua diferenciação, substan­
ciais; tais como espécies. ”3
A objetivação necessária do pensamento nas divisões do Livro,
no elemento da exterioridade recíproca, da diferença, não deve ser
absolutizada por uma representação que esquece, pela unilaterali­
dade característica do entendimento donde procede, que o pensa­
mento é, em sua verdade, a unidade da unificação e da diferencia­
ção. Deve ser retomada, no movimento do conceito ou da Razão: um
movimento interior a si, que é ao mesmo tempo o repouso em si.
Sua vitalidade é por si mesma garantida, pois essa garantia é a da
vida, e não a fixidez do ser morto.
3. Encklopédin, Ia edição, § 11.

380
O devir da mediação só é negando-se na imediatez do resultado.
Por sua vez, o resultado só tem sentido retomado na unidade viva
desta mediação. O espírito da letra constitui o sentido de uma filoso­
fia; no entanto, precisa ler esta letra com espírito, como o recorda sem
cessar a letra mesma da filosofia hegeliana, insistindo na imanência do
universal no particular, da mediação no imediato. Se há uma obra de
Hegel que entre todas manifeste uma tal imanência e por conseguinte
rejeite o dogmatismo do “Livro”, é bem a Enciclopédia.
Aliás o título completo dessa obra é “Enciclopédia das Ciências
Filosóficas em Resumo”4. Mas é da natureza de uma enciclopédia ser
um resumo, como o próprio Hegel declara: “Contudo, enquanto
enciclopédia, a ciência não pode ser exposta no desenvolvimento
detalhado de sua particularização, mas deve limitar-se aos elemen­
tos iniciais e aos conceitos fundamentais das ciências particula­
res”'. Esta brevidade (Hegel a quis sempre conservar na sua obra,
mesmo quando ao reeditar procurou aumentar-lhe a clareza e pre­
cisão) não deixa o movimento da reflexão parar ou demorar nas
determinações em que se articula o ser. Exceto em suas Notas
“exotéricas”6, em que Hegel insiste, numa perspectiva geralmente
histórica ou polêmica, sobre determinado aspecto do desenvolvi­
mento, não há pausas na Enciclopédia. A mediação põe as determi­
nações para logo fazer aparecer nelas as contradições que acarretam
diante de outras determinações. A Enciclopédia hegeliana é assim,
no interior dela, a obra mais inquieta, mais viva de Hegel — sob
a aparência de um sistema rígido e morto no extremo esquematismo
da articulação, na extrema divisão e dissecação do conteúdo. (O
que parece haver de mais morto na filosofia de Hegel é na reali­
dade o que há de mais vivo.) O conteúdo do resultado (que é a
Enciclopédia no devir do hegelianismo) é o devir intemporal, pon­
tuado mas não interrompido, dos pensamentos que constituem o
ciclo do saber. O ato de pensamento hegeliano é a unidade do
devir e do resultado, do movimento e do repouso, da mediação e
do imediato, da relação ao outro e da relação a si, da diferença e da
identidade; e não parece haver ilustração mais evidente disso que
4. Enzyk/opàdie Der P/ii/osophischen Wissenschaften im Grundisse.
5. Enciclopédia, Ia ed., § 9; 2a e 3a edições, § 16.
6. Enciclopédia. Prefácio da 2a edição, p. III.

381
na Enciclopédia. Não que ela seja mais hegeliana que as outras
obras de Hegel; mas o é mais manifestamente. Por isso a desvalori­
zação desta obra, pela qual às vezes se tentou salvar Hegel do
hegelianismo (isto é, o método do sistema, como a alma do corpo),
é de fato o primeiro momento da rejeição de seu pensamento. A
Enciclopédia é a expressão acabada desse pensamento; e o conjunto
desse pensamento quis ter seu acabamento como enciclopédia. A
expressão enciclopédica do pensamento de Hegel é assim o para-
-si adequado em que se realizou este em-si originariamente atuan­
te que era seu projeto enciclopédico original.
Coroamento da reflexão hegeliana, a Enciclopédia pôde ser
apresentada por isso mesmo como o coroamento do idealismo ale­
mão que se cumpriu em Hegel, realizando enfim o sistema da
razão idêntica ao ser — cujo gérmen tinha sido posto negativamen­
te pela crítica kantiana da razão. Em sua obra De Kant a HegeP, R.
Kroner consagra o último capítulo à Enciclopédia hegeliana, onde
diz: “A Enciclopédia é a exposição mais rica e mais acabada que
encontrou o idealismo alemão; é a formulação desse sistema para
o qual apontam todas as linhas de seu desenvolvimento”. Schelling
tinha caracterizado o sistema em 1802 como “a tarefa que está para
ser resolvida só no futuro”; profetizara que, “se uma vez fosse
exposto e conhecido em sua totalidade, a harmonia absoluta do
universo e a divindade de todos os seres seriam fundados para a
eternidade nos pensamentos dos homens”8.
A Enciclopédia de Hegel quer ser a habitação onde o espírito
possa residir. Até a Enciclopédia, o idealismo alemão ficara sempre
na consciência de seus criadores, em devir; como tarefa e objetivo
para o futuro. Essa consciência atua imediatamente sobre a dispo­
sição do espírito interior, sobre os princípios e o método. Inversa­
mente, o acabamento pelo qual Hegel arremata o idealismo alemão
não é simplesmente algo exterior e formal, mas concerne igual­
mente ao conteúdo. “A verdade do bem é que o bem é atingido
em e por-si — que o mundo objetivo é em-e-para-si a Idéia, tal
como ela se põe ao mesmo tempo eternamente enquanto fim, e
7. R. Kroner, Von Kant Bis Hegel, Tübingen (2a ed., 1961).
8. Schelling, Sàmmítche Werke, IV Stuttgart-Augsburg, 1858, p. 404.

382
por sua atividade produz sua afetividade.”9 Embora o pensamento
hegeliano seja em si enciclopédico, esta enciclopédia que o arre­
mata é por sua vez propriamente hegeliana; fundamentalmente
diversa das outras enciclopédias, por realizar o projeto em que se
exprime a genialidade de Hegel, a sua proposta de instaurar uma
unidade preenchida de todas as diferenças. Projeto que exclui tanto o
formalismo — exclusivismo da unidade sem diferença, o qual para
ter à mão um conteúdo a informar recorre logo ao empirismo;
exclusivismo, na aparência oposto, da diferença sem unidade. Este,
a seu turno, quando se exprime num discurso, se articula igual­
mente segundo um formalismo de relações achadas por aí, isto é,
exteriormente recebidas e exteriores umas às outras.
A enciclopédia hegeliana, longe de ser i ma Suma de conhecimen­
tos muito pobre em pensamento, é um Todo do pensamento que
demonstra suas próprias riquezas. Não podemos analisar em detalhe,
neste apêndice, a realização progressiva do projeto hegeliano da enci­
clopédia, que é identicamente o projeto enciclopédico do hegelia­
nismo. Não fazemos a história do desenvolvimento do hegelianismo,
ou a história da gênese da Enciclopédia das Ciências Filosóficas. Vamos
apenas recordar seus momentos importantes.
2 -

[F orm ação do P knsam knto H k g k l ia n o ]

Hegel é um homem que quis ser feliz, isto é, livre; e que


acreditou sê-lo na existência filosófica. Descobriu nesta o cumpri­
mento de seu desejo originário de liberdade; liberdade que tem na
felicidade sua prova subjetiva. Esta liberdade, cuja realização abso­
luta o saber hegeliano pretende ser, não é a liberdade formal ou
abstrata do quanto-a-si, liberdade da separação com o ser; a qual,
por fixar assim um Outro, absolutiza o que a delimita, determina
e nega; mas é a liberdade concreta ou real do “ser-junto-a si” (chez-
-soi: bei-sich-Sein), da reunião do Si e do ser, pela qual o sujeito,
longe de fugir do objeto assim confirmado, se reencontra no seu
Outro, que, tornando-se seu Outro, perde a alteridade limitante
9. Enciclopédia, 3a ed., § 235.

383
destruidora da liberdade. A liberdade é pois a existência total, que
integra nela todas as diferenças. Hegel pensou primeiro em encon­
trar essa existência total onde o homem se realizava integralmente,
na cidade grega. Ali estavam superadas as oposições (tão vivas no
dilaceramento e na feiúra da época moderna) entre o cidadão e o
Estado, a política e a religião etc. Mas o progresso da reflexão levou
Hegel a conceber que esse projeto de liberdade ou de felicidade,
da reunião do particular e do universal, não podia realizar—se ade­
quadamente a não ser no elemento em que o universal e o parti­
cular se dão como mediatizados inteiramente um pelo outro: no
elemento do pensamento ou do conceito, cuja prática refletida e
verdadeira é a filosofia. Só o conceito pode apreender todas as
diferenças — inclusive as diferenças de seu Outro — na identidade
delas, por ser o universal que de maneira imanente se desdobra nas
particularidades; as quais, negação do universal por ele mesmo, são
com isso afirmação do universal nelas. Portanto, as particularidades
são negadas pelo universal enquanto nelas se reúne consigo mes­
mo, e deste modo é concreto ou sistemático. A realização na filo­
sofia — e pela filosofia — do projeto de liberdade ou de totalidade
devia, assim, constituir essa filosofia numa totalidade de pensa­
mento, num sistema, numa enciclopédia.
Nos seus primeiros anos de seminário em Tiibingen (1788 a
1793), Hegel esperava a restauração da cidade grega por meio da
revolução política total. Saudou com entusiasmo a Revolução Fran­
cesa. Depois Hegel chegou à conclusão de que tal projeto é irrea-
lizável, a não ser que ao mesmo tempo, ou melhor previamente,
uma reforma interior restitua ao homem alienado o sentido da liber­
dade. Seu período de Berna (1793 a 1796) foi marcado por um
esforço de transformação — de dentro —- da religião cristã, na qual
o homem moderno percebe a dimensão fundamental de sua exis­
tência, e que é uma religião da separação (transcendência de Deus,
autoridade da Igreja), numa religião da liberdade. Kant (da Crítica
da Razão Prática e da Religião nos limites da simples razão forneceu
a Hegel o instrumento que permitiu fundar e exprimir essa trans­
formação da religião da servidão numa religião da autonomia. Po­
rém, depois de ter constatado a falência da Revolução, Hegel des­
384
cobriu as insuficiências do kantismo — filosofia em que a liberda­
de, por se opor à natureza, como a razão à empiria, o racional ao
positivo, o universal ao particular, é o contrário dela mesma: não-
-liberdade; como a razão é o contrário de si mesma, e o universal
o contrário de si mesmo. Essa dupla decepção, que marca aliás o
fracasso de um idealismo abstrato — seja político, seja moral-reli-
gioso —, de um racionalismo formal cuja expressão acabada é o
kantismo (Hegel identifica então filosofia e filosofia kantiana), vai
estimular, numa atmosfera de crise, o esforço renovado de Hegel
por descobrir alhures o meio de fazer surgir na modernidade a vida
livre, bela e feliz que a Antiguidade tinha conhecido. Da crise de
Frankfurt (1797-1800) vai nascer a filosofia hegeliana propriamente
dita que, inicialmente crítica da filosofia, tomou em Jena (1801 a
1807) consciência de si mesma como técnica absoluta de libertação
e vida perfeitamente livre.
Hegel em seus anos de Ginásio e de Seminário sentia indife­
rença para com as generalidades filosóficas — manifestação da
unidade sem conteúdo, separada das diferenças da vida. Em Berna,
via na filosofia prática de Kant um meio exterior de transformar a
religião positiva numa religião livre-racional. Em Frankfurt, por
causa da impotência do kantismo (que para ele então era “a filo­
sofia”) foi levado à originalidade filosófica; começou a dedicar-se à
filosofia como a um empreendimento pessoal. Essa filosofia pro­
priamente hegeliana se apresenta, de entrada, como o projeto de um
sistema-, a consciência-de-si original da filosofia de Hegel é a afirma­
ção da filosofia como sistema.
Na verdade, a filosofia pós-kantiana (que Hegel estuda então
com Fichte e os primeiros escritos de Schelling) se apresentava
como Ciência, ou — como Fichte justificava em suas obras —
como Sistema. Porém a identificação da filosofia e do sistema
correspondia no jovem Hegel ao anelo de unidade concreta que de
início tinha dado sentido à sua existência. Lançando um olhar re­
trospectivo sobre os anos de Frankfurt, Hegel escrevia a Schelling
(2 de novembro de 1800): “Em minha formação científica — que
começou pelas necessidades mais elementares do homem —, eu
devia necessariamente ser impelido à ciência, e o ideal de minha
juventude devia necessariamente tornar-se uma forma da reflexão,
385
transformar-se em um sistema”111. De fato, em Frankfurt alimen­
tando sua reflexão filosófica com a contribuição técnica de Kant
(Crítica da Razão Pura), de Fichte e de seu precoce condiscípulo
de seminário, Schelling, Hegel elabora e articula conceitos (por
exemplo, unidade, multiplicidade, ligação, oposição, contradição
etc.) pelos quais tenta exprimir -— a favor dos filósofos ou contra
eles — seu ideal de juventude: o ideal da totalidade.
Mas a totalidade, expressa na linguagem da reflexão, é o siste­
ma. Não admira pois que o período de Frankfurt termine pela
redação de um ensaio (terminado a 14 de setembro de 1800) cha­
mado System-fragment, de que só restam algumas folhas salteadas. A
reflexão filosófica de Hegel começa nelas a articular-se e tem como
afirmação principal que a filosofia é incapaz de realizar o ideal que
queria exprimir reflexiva e sistematicamente. Isso aliás era de esperar,
depois da decepção provocada em Hegel pela filosofia reflexiva de
estilo kantiano, com a qual identificava então toda a filosofia. A pri­
meira filosofia propriamente técnica de Hegel é a sistematização refle­
xiva da impossibilidade de sistematizar, de reunir num Todo a vida
livre, infinita (que constitui o conteúdo do ideal hegeliano), e a forma
reflexiva de uma filosofia sistemática. Proclama a incapacidade da fi­
losofia em produzir na unidade dos conceitos (pseudo-unidade da
reflexão), unidade tão desejada que para Hegel então já estava dada, na
vida. Achava que a reflexão (recuo que põe à distância do ser e per­
mite o retorno a ele, doravante posto) era um processo de objetivação,
separação, oposição; de tal modo que refletir o ideal da juventude, isto
é, a unidade das diferenças, é destruí-lo.
Pretende o filósofo negar a unilateralidade de cada conceito, ou a
diferença das unidades que são os conceitos, dando como conteúdo a
novos conceitos (conceitos monstruosos para a reflexão) a unidade de
conceitos diferentes. Tais são os “conceitos” de vida, de amor, de
destino, que em Frankfurt exprimem reflexivamente os limites da
reflexão, onde, embora continuando a ser ela própria, se nega para
dizer a infinidade, termo da aspiração hegeliana. Hegel escreve que “a
vida não pode ser considerada simplesmente como reunião, relação,
mas deve ao mesmo tempo ser tomada como oposição” ".
10. Hegel, Correspondência (trad. Carrère) C. I, Paris. Gallimard, 1962, p. 60.
11. H. Nohl, Hegels Theologische Jugendschriften, Tübingen, 1907, p. 348.

386
Porém essa mesma sistematização de conceitos diferentes na
unidade de um “conceito” contraditório, de uma determinação que
contradiz a essência mesma do conceito (que Hegel ainda assimila
à unidade analítica, à identidade abstrata do entendimento,) não
pode dizer, por exemplo, a vida , e escapar às armadilhas da refle­
xão. Com efeito, essa (Ztóünegação da reflexão é ainda afirmação
destas, com suas impotências (sic) próprias. Um texto de Hegel
mostra justamente que sendo a reflexão, posição, determinação; e
a posição ou determinação sendo oposição ou negação, a posição da
unidade é por isso mesmo sua negação. Vejamos: “Se digo: ‘A vida
é a ligação da oposição e da relação’, essa ligação pode, por sua vez,
ser isolada; o que daria lugar à objeção de ser oposta à não-ligação.
Então, seria melhor dizer: ‘A vida é a ligação da ligação e da não-
-ligação’. Quer dizer: toda a expressão é um produto da reflexão, e
assim é possível demonstrar que toda a expressão, enquanto algo
de posto, pelo simples fato de ser algo posto, algo outro não é posto,
é excluído. No entanto, precisa dar um basta a esse ser ‘impelido-
-sempre-mais-além-sem repouso’. Para tanto, vale ter presente que
a ligação da síntese e da antítese (de que acima falamos) não é algo
posto, algo que revele do entendimento, algo refletido. Ao contrá­
rio, seu único caráter para a reflexão é este: ser um Ser fora da
reflexão” 12. Para Hegel, esse ser-fora-da-reflexão é um ser fora do
pensamento, já que em Frankfurt identificava Pensamento e en­
tendimento (reflexivo) e fazia do conceito uma simples determina­
ção deste último. O entendimento fixa e enrijece as determinações
de pensamento; assim não pode apreender verdadeiramente, em
seus conceitos finitos, a infinidade da vida e de suas manifestações.
A forma conceituai contradiz o conteúdo vivo a tal ponto que não
pode ser a origem de seu sentido. Para falar com propriedade, o
sentido só pode ser vivido. Somente a vida capta a vida, e a capta
em particular onde a ligação da ligação e da não-ligação alcança sua
perfeição: na experiência do amor, e do amor religioso.
Contudo, a reflexão, enquanto filosófica, reflete sobre ela
mesma; a negação — conforme um tema que Hegel vai logo con­
ceituar com mais rigor — toma-se como objeto a si mesma; desse
12. Ibid.

387
modo leva a filosofia a pôr em questão sua própria finitude e a se
desautorizar em proveito da religião e da experiência da qual a
religião fala, e que leva à consumação: a saber, a experiência da
imanência, no ser finito, da infinitude que toda a vida comporta.
“E somente enquanto o próprio finito é vida, que nele carrega a
possibilidade de se elevar à vida infinita. A filosofia deve cessar
com a religião, precisamente porque é um pensamento.”13 O System-
-fragment de Frankfurt é assim a elaboração reflexiva, já bastante
técnica, da autocrítica da reflexão filosófica, afirmando que só a
religião, o Outro da filosofia, poderia levá-la a termo, em sua
infinitude, em sua totalidade.
Ou melhor: só ela poderia acabar, se não tivesse justamente, na
reflexão filosófica do entendimento, seu Outro. Numa página do
Systemfragment, Hegel indica a unilateralidade da religião numa
existência trabalhada pela reflexão: “O sentimento divino, o infini­
to sentido pelo finito, só é completado quando a reflexão se lhe
vem acrescentar, demorar-se em cima dele. Porém sua relação ao
sentimento é apenas um conhecimento desse como algo subjetivo:
só uma consciência do sentimento, uma reflexão separada sobre
um sentimento separado” 14. A infinitude da vida religiosa deste
modo é apenas visada pelo homem em que a reflexão desenvolveu
sua finitude; o homem que na reflexão fixa-se a si mesmo como
um ser separado, dividido, finito, e cuja existência é assim dilace­
rada. Hegel declara aí que a elevação real do finito ao infinito só
se pode encontrar nos “povos cuja vida é tão pouco dilacerada e
desunida quanto possível, ou seja, nos povos felizes” 15. Noutras
palavras: povos vivendo ainda na imediatez da bela totalidade éti-
co-político-religiosa, como a realizava a cidade antiga.
No entanto, o homem moderno não é mais o homem antigo.
Justamente em Frankfurt Hegel apreendeu a diferença irredutível
que impede toda a repetição do passado no presente. O interesse
pelo presente captado em sua originalidade (negativa em sua po-
sitividade, mas também positiva em sua negatividade, como Hegel
13. Ibid., p. 348.
14. Ibid., p. 349.
15. Ibid., p. 350.

388
enxerga cada vez mais) está manifesto nos estudos dedicados a
problemas econômicos. Nesta época, redigiu um comentário segui­
do (hoje perdido) da obra do economista inglês Stewart. Interessa­
do nos problemas políticos de seu tempo, publicou em 1798 uma
tradução da Relação Jurídica do País de Vaud à Cidade de Berna, de
J. J. Cart. Hegel se deu conta de que o homem moderno, conscien­
te de sua particularidade e subjetividade, não pode recriar a atitude
político-religiosa do homem antigo imerso na universalidade subs­
tancial compacta da cidade divinizada.
O sentido da particularidade subjetiva, que surgiu sobre a ruína da
bela totalidade ética na época do Império Romano (distendido entre
o universal abstrato do Estado e a particularidade igualmente abstrata
do indivíduo apegado à sua propriedade e à sua personalidade pensan­
te), foi consagrado pela religião cristã. Jesus parecia trazer a reconcilia­
ção absoluta do particular e do universal: a vida livre e feliz. Mas a
depuração do cristianismo positivo existente, para um retorno à liber­
dade do amor evangélico, é empresa tão vã quanto a tentativa anterior
de depurar a positividade cristã no sentido da autonomia kantiana. A
análise do cristianismo original nos textos de Hegel reunidos por Nohl
(sob o título: O Espírito do Cristianismo e seu destino) revela que o
universalismo abstrato do amor cristão destrói toda a possibilidade de
aceder à vida infinita, suscitando como seu Outro, como destino, o uni­
versal concreto, salvando as diferenças: isso Jesus e a comunidade
cristã encontraram realizado, embora de forma muito imperfeita, no
Estado de seu tempo.
Antes de deixar Frankfurt, Hegel tinha percebido que a vida in­
finita, a existência total (antecipação não filosófica do sistema), não
pode ser trazida pela simples revolução exterior do idealismo terrorista
que faz violência à história; nem pela simples reforma interior da volta
irrealista às origens, que transforma a história num destino hostil.
Terminou por questionar a perspectiva idealista que até então o fizera
considerar a realização da vida total como uma questão de querer. A
crise de Frankfurt recobre a passagem da adolescência, que opõe o
dever-ser (o “Sollen”) ao que é, à aceitação adulta do que é.
Abandonou pois seu ideal de juventude como ideal ao compreen­
der idéia e realidade apenas como momentos organicamente ligados
389
(unidos mas também em tensão) de algo que, por essa contradição
interna, é fundamentalmente inquieto em si mesmo: vida, processo,
história. O desenvolvimento imanente da história, animado pela rica con­
tradição de toda a Vida enquanto “ligação da ligação e da não-ligação”
é que vai realizar a existência livre à qual Hegel aspirava desde
sempre. O conteúdo presente da necessidade histórica (revelado
pelas antecipações de si ideais que ela dá por si mesma) é o da
libertação do homem. Rejeita todo o idealismo político, religioso
ou filosófico (que provém da reflexão separadora que toma cons­
ciência de si mesma nessa última figura); Hegel agora se abandona
confiante ao movimento da história e toma como nova palavra de
ordem, ao partir de Frankfurt, a “reunião com o tempo” 16.
Em Jena, Hegel entendeu a reunião com o tempo — isto é,
com o tempo da reunião que se esboça como uma reunião com a
razão: a história, enquanto vida, unidade da diferença e da unida­
de, é precisamente o “ser-aí” da razão. Distinguiu então a razão do
simples entendimento; pois a exigência de identidade que o en­
tendimento quer satisfazer, só pode realizar-se plenamente se a
identidade, em vez de ter fora dela a diferença e ser diferente desta,
(o que faz da diferença a verdade da identidade, usurpando seus
direitos), acolhe em si mesma, como um momento, a diferença; e
se torna a unidade de si e da diferença, a ‘ligação da ligação e da
não-ligação”. Assim a razão é a vida do pensamento.
Hegel deixa pois de reduzir pensamento ao pensamento tal como
é ordinariamente praticado, inclusive na filosofia kantiana-fichtiana
em que a proposta de edificar o sistema da razão contradiz-se a si
mesma, por confiar-lhe a execução ao entendimento — fechado na
separação do universal e do particular, do Eu e do Não-Eu, da iden­
tidade e da diferença. A reflexão conduzida a seu termo na especula­
ção, supera as abstrações do entendimento, e realiza, como razão, a
exigência da totalidade. Melhor ainda: o pensamento racional, no con­
ceito, é a realização perfeita dessa exigência de liberdade ou felicida­
de. E insuficiente a reconciliação religiosa — afetada sempre da sepa­
ração, da diferença que aparece entre Deus e o homem, no interior do
homem, e no próprio Deus. E também insuficiente a reconciliação
16. Ibid., p. 351.

390
puramente histórica — consentimento cego ao que existe, onde não
está satisfeita a identidade do espírito consigo mesmo.
Em Jena, Hegel descobriu que somente a filosofia (que a partir de
agora não reduz mais à filosofia da reflexão — cujo anelo de unidade
verdadeira realiza e supera, como um momento, negando sua preten­
são de ser a filosofia) pode trazer a felicidade e a liberdade. Por ela,
o Si universal se reencontra em todas as particularidades, apreendidas
como simples particularizações do universal; e a consciência se torna
consciência total — saber absoluto — desenvolvendo-se como o siste­
ma da razão. O espírito finito encontra seu “junto a si” (bei sich), e se
torna infinito, livre e feliz, dando-se à filosofia especulativa. O sentido
do hegelianismo é a partir de então fixado, e aparece em sua verdade.
O ideal da juventude, pensamento de uma vida total, Hegel sabe
agora que se realizou como vida do pensamento sistemático.
Um escrito publicado no começo do período de Jena, e de sua car­
reira professoral, A diferença entre os sistemas filosóficos de Fichte e de
Schelling'17, mostra bem a proposta filosófica que todas as obras seguintes
vão realizar. Texto fundamental, cujas primeiras páginas, espantosamen­
te densas, justificam o caráter essencialmente sistemático, no fundo en­
ciclopédico, da filosofia. Seja-nos permitido demorar um tanto nesse
texto importante. Para Hegel, a filosofia é a apresentação do absoluto
como auto-apresentação de si mesmo na filosofia; e, enquanto tal, fi­
losofia não é outra coisa que a plena consciência de si deste absoluto,
que se manifesta primeiro na necessidade da filosofia. Esta necessidade
é o absoluto como manifestação incompleta de si, como manifestação
que não é ainda manifestação de si. O Uno, enquanto vivo, é manifes­
tação, objetivação, oposição, diferenciação de si. Ele é, e se manifesta
a si mesmo, primeiro como diferente em si e de si mesmo: negação de
si mesmo. O momento da negação, da diferenciação, do desenvolvi­
mento, da formação de si, é precisamente a cultura', diferenciação de
si (o idêntico se diferenciando, e se negando). Mas esta negação de si
é igualmente negação desta negação de si, ou seja, identidade presente
em sua diferenciação como outro que essa diferenciação, que é como
17. Hegel , Differenz des Fichte’schen und Schelling’schen System der Phi/osophie, Jena,
1801. (Ed. Lasson, Erste Druckschriften, Leipzig, F. Meiner, 1928; edição separada,
1962).

391
ausente, como necessidade de identidade; isto é, finalmente, como
necessidade da filosofia, que é a empresa mais radical da identificação.
Assim, Hegel escreve: “A cisão é a fonte da necessidade da fdoso-
fia ... Na cultura, o que é manifestação do absoluto, se isolou do ab­
soluto e se fixou em alguma coisa subsistente por si mesma” l8. Mas a
partir da cultura (enquanto essa não é necessariamente filosófica) o
processo de identificação se opera no seio da diferença; a atividade da
separação, a “força da limitação, o entendimento” l9, enquanto negação
de si do Uno (enquanto o Uno se nega e portanto se afirma em sua
negação), é o movimento de reunir, no elemento da diferença, os
termos nos quais o Uno se diferenciou. Por isso Hegel diz: “A mani­
festação não pode renegar sua origem e deve necessariamente tender
a constituir a multiplicidade variada como um Todo”20. Esse relacionar
de elementos diferenciados vem de que o entendimento é o enten­
dimento do absoluto; nele, o Uno como exigência de si (quer dizer, a
Razão) se afirma negativamente. E uma tarefa infindável, e sua
indefínidade remete à contradição interna que é a unificação no meio
da diferenciação: a razão como entendimento.
O entendimento diferencia, põe no ser uma determinação; mas
essa posição de uma determinação é posição de uma negação, isto
é, negação da posição que é ela; oposição de uma outra determina­
ção, esse liame necessário das posições, exprimindo-se pelo relacio­
namento dos termos postos graças à categoria de condicionamento,
pela qual o entendimento satisfaz, a seu modo, a razão que nele
opera: “Cada ser, porque é posto, é um ser oposto, condicionado e
condicionante. O entendimento completa suas limitações pela po­
sição das limitações opostas, como condições; essas têm necessida­
de do mesmo complemento, e sua tarefa se expande ao infinito. A
reflexão parece nisso depender somente do entendimento\ porém
esse encaminhamento para a totalidade da necessidade é a partici­
pação e a atividade eficiente secreta da razão”21.
Nessa empresa de unificação, o entendimento nega-se a si
mesmo, a cada passo, como entendimento, e por assim dizer “faz
18. Hegel, Differenz..., p. 12.
19. Ibid.
20. Ibid.
21. Ibid., p. 17.

392
pouco de si mesmo”22, confessando sua impotência obstinada. O
entendimento da razão é o poder da determinação; mas, como enten­
dimento da razão, ele quer unir as determinações enquanto tais, e
portanto põe o liame diferencial que essas determinações têm umas
com as outras enquanto tais determinações; e, mais fundamental­
mente, o liame diferencial que têm com o indeterminado, em re­
lação ao qual são determinações-. “Porque cada ser que o entendi­
mento produz é um determinado, e o determinado tem um inde­
terminado além e aquém dele; e a multiplicidade variada do ser
encontra-se entre duas noites, sem ponto de apoio; repousa sobre
o nada, porque o indeterminado nada é para o entendimento e
termina no nada”21. O entendimento afirma então implicitamente,
apesar dele, que o Uno indeterminado é a verdade do múltiplo
determinado. A cultura — em sua imediatez — é assim diferente
de sua afirmação privilegiada da diferença: é em si contraditória.
Essa contradição é posta quando a cultura, mediatizando-se
consigo mesma, torna-se cultura filosófica; e, dando-se um objeto
que lhe é comum com a religião, apresenta explicitamente o Uno
como fundamento do Múltiplo. Faz do infinito, posto como tal, a
potência à qual está submetido o finito explorado pelo entendi­
mento em sua indefinidade. A razão parece sair de sua presença
escondida na esfera do relativo e se pôr como tal — como verdade
do entendimento — pondo o absoluto como verdade do relativo, o
infinito como verdade do finito. Porém essa operação pela qual se
encontra objetivado, como infinito, o agir negador da negação e do
finito, a razão do entendimento (que a reconhece como sua verda­
de) é somente a razão do entendimento. Que, na aparência, se faz
uma razão; mas na realidade faz do entendimento a razão. Portanto
esvazia, pelo que faz, o seu discurso proclamando o infinito como
verdade do finito. A razão (posta) do entendimento é o entendi­
mento (ainda aí) da razão, a razão que procede como entendimento,
para negar a absolutidade do entendimento. Ainda privilegia o en­
tendimento, distinguindo o Uno do Múltiplo, separando o infinito
do finito, fixando em sua diferença o idêntico e o diferente: “O
22. Ibid., p. 13.
23. Ibid., p. 18.

393
entendimento imita a razão na posição absoluta, dando-se, por essa
forma mesma, aparência de razão; embora os termos postos sejam
termos em si opostos, e portanto finitos. Fá-lo com tanto mais
verossimilhança quando transforma e fixa o agir negador racional
em um produto. O infinito, na medida em que é oposto, é um tal
ser racional posto pelo entendimento: exprime por si mesmo, enquan­
to ser racional, apenas a negação do finito. Enquanto o entendimento
o fixa, opõe-no absolutamente ao finito: e a reflexão que se tinha
elevado à razão, ao suprimir o finito, degradou-se de novo em enten­
dimento, fixando o agir da razão em uma oposição. E ainda por cima
ela pretende ser racional também nessa recaída”24.
Essa oposição do Uno e do Múltiplo, do infinito e do finito, era apre­
sentada outrora na “cultura” como oposição entre “espírito e matéria,
alma e corpo, fé e entendimento, liberdade e necessidade”2". Tornou-se
agora oposição entre “razão e sensibilidade, inteligência e natureza; e,
no conceito geral, entre subjetividade absoluta e objetividade absoluta”26.
Hegel visa aqui a todas as filosofias que se desenvolveram no contexto
cultural da “Ilustração”; as filosofias opostas de Kant e Fichte, Jacobi
e Schleiermacher, por exemplo, que concordam na comum aceitação
da diferença e da oposição absolutizadas. Afirmam o Uno como verda­
de do Múltiplo, o idêntico como verdade da diferença, a razão como
verdade do entendimento. Porém numa linguagem que, diferencian­
do o idêntico do diferente, faz da diferença a verdade da identidade,
e do entendimento a verdade da razão. Nesse clima das filosofias da
reflexão, a necessidade da filosofia torna-se premente. É quando Hegel
intervém na cena filosófica, apresentando a exigência de reconciliar o
infinito e o finito numa filosofia que, realizando enfim seu voto pro­
fundo de unidade verdadeira, será a filosofia verdadeira; ou a filosofia.
“Quando a potência da reunião desaparece da vida dos ho­
mens, e os opostos perderam sua relação viva e interação, adquirin­
do uma subsistência-por-si, nasce a necessidade da filosofia.”25 Essa
necessidade é agora determinada de forma mais precisa, como ne­
cessidade da filosofia propriamente especulativa, que compreende
24. Ibid., p. 13.
25. Ibid., p. 14.
26. Ibid., p. 77.

394
enfim que a identidade, a totalidade, a verdadeira absolutidade, só
pode ser a identidade incluindo em si toda a diferença, até mesmo
a do ser pensado e a do pensamento do ser. Hegel formula nesse
primeiro escrito filosófico, extremamente técnico, a intuição espe­
culativa do absoluto como a “identidade da identidade e da não-
identidade”26. E preciso ver na diferença (do idêntico e do diferen­
te, da idéia e do real) uma diferença não originária de per si, mas
antes o resultado da diferenciação da identidade originária. A tarefa
imperiosa da filosofia no presente é “suprimir a oposição da subje­
tividade e da objetividade tornadas fixas, e conceber o ser-devindo
do mundo intelectual e do mundo real como um devir; e seu ser
enquanto produtos: melhor, como um produzir.
Na atividade infinita do devir e do produzir a razão reuniu o
que estava separado, e rebaixou a cisão absoluta à cisão relativa que
é condicionada pela identidade originária”27.
Indo ao cabo de sua exigência de unidade, sem renunciar a si
mesma, a razão deve necessariamente predominar sobre o entendi­
mento, e a identidade da identidade e da não-identidade sobre a não-
-identidade da identidade e da não-identidade. Porém precisa enten­
der que a identidade da identidade e da diferença não é a simples
identidade (abstrata, morta) das diferenças, quer dizer, sua negação
absoluta pela redução ao seu Outro. A diferença é conservada como
um momento subordinado, mas essencial, da identidade viva concreta,
cujo acabamento — o repouso — é a plenitude da tensão, da inquietude
de seus momentos contraditórios (a identidade e a diferença). A Razão
suprime a fixação absoluta (abstrata) tanto da identidade como da
diferença. Rejeita a fixação absoluta dos opostos: “Suprimir os opostos
que se tornaram fixos é o único interesse da razão. Interesse que não
significa tomar partido contra a oposição e a limitação em geral, pois
a cisão necessária é um fator da vida que eternamente se forma pela
oposição. A totalidade não é possível na vitalidade suprema senão pela
restauração a partir da divisão suprema. Mas a razão se põe contra a
fixação absoluta da cisão pelo entendimento, e ainda mais quando os
termos absolutamente opostos surgiram por sua vez da razão”28. A
27. Ibid., p. 14.
28. Ibid., p. 13.

395
filosofia, que se tornou plenamente racional, apreende assim o “ser no
não-ser, como devir; a cisão no absoluto, como manifestação deste; o
finito no infinito, como vida”29.
A identidade verdadeira a que visa a filosofia — e toda a verda­
deira filosofia é “filosofia da identidade” — só será tal se não for
identidade pura. A razão não é a negação abstrata do entendimento,
mas sua integração. A filosofia especulativa não é a afirmação vazia do
(pseudo)Uno ou do (pseudo)Todo; ao contrário, é sua afirmação dife­
renciada, refletida. Contra todo saber imediato (que por sua recusa da
mediação exprime a atitude exclusiva, separadora, característica do
entendimento ao qual renega; mas renegando assim a si mesmo), precisa
manter os direitos da mediação, da reflexão. O instrumento da filosofia
é na certa “a reflexão enquanto razão”30. Ora, “o agir produtor — e os
produtos da reflexão — não passam de limitações. Temos aí uma
contradição: o absoluto deve ser refletido, posto; mas desse modo não
é posto, é suprimido — porque, enquanto foi posto, foi também limi­
tado. A mediação dessa contradição é a reflexão filosófica”31.
A dificuldade está em diferenciar o Uno como Uno, em dizer media-
tamente o imediato; mas, ao contrário do que pensava em Frankfurt,
Hegel afirma agora que a dificuldade é superada. Em Frankfurt, Hegel
opunha reflexão e vida; porque então, por uma reflexão sobre a refle­
xão (embora proclamando a negatividade da reflexão, como oposta à
vida, ao infinito), fixava e punha essa reflexão como a reflexão, esque­
cendo-a em seu próprio ser negativo. Ou seja, não aplicava a ela mesma,
enquanto reflexão sobre a reflexão, o que dizia da reflexão. Assim, por
não refletir sobre si, não compreendia que ela negava e ultrapassava o
conteúdo de seu discurso, a oposição constitutiva da reflexão, e por
isso mesmo constitutiva da oposição da reflexão e do infinito.
Agora, Hegel, ao levar a cabo sua reflexão — refletindo-a sobre
si mesma, tornando-se assim infinita, absoluta —, percebe que a
reflexão é, em sua verdade, a negação da negação (isto é, a iden­
tidade que tem em si a diferenciação); e que a reflexão, portanto,
é (e sabe que é) a razão infinita, absoluta, ou o infinito, o absoluto
mesmo como razão. A reflexão finita é a reflexão sobre o infinito, a
29. Ibid., p. 16.
30. Ibid., p. 17.
31. Ibid.,

396
reflexão infinita é a reflexão do infinito. O instrumento da filosofia
é a reflexão enquanto razão, quer dizer, enquanto reflexão que, em
cada momento seu, se nega; não no mau infinito do entendimento,
remetendo diretamente e abstratamente a outros momentos; mas
apreendendo cada momento como uma diferenciação do Uno, como
uma particularização do universal, como uma autodeterminação do
absoluto que concede a suas determinações uma subsistência limi­
tada, porém real e verdadeira: “A reflexão isolada como posição de
opostos seria uma supressão do absoluto: ela é o poder do ser e da
limitação. Mas a reflexão tem, como razão, relação ao absoluto, e
não é razão senão por essa relação. A reflexão se aniquila, nessa
medida, a si mesma, e a todo o ser e a tudo que é limitado, en­
quanto relaciona tudo com o absoluto. Porém, ao mesmo tempo,
precisamente por sua relação ao absoluto, o limitado tem uma sub­
sistência” ’2.
Assim, a reflexão especulativa, ou o conceito filosófico, cujo
sentido Hegel define então com nitidez, é a mediação da mediação
(reflexão) e do imediato (absoluto) na medida em que cada deter­
minação se dá como uma autodeterminação do absoluto: como de­
terminação do absoluto, é a negação do absoluto: absoluto negado.
Mas como autodeterminação do absoluto, o absoluto se negando, é a
afirmação do absoluto pelo absoluto nela; portanto, negação dessa
negação que é enquanto determinação. Contudo, essa negação da
negação (ou determinação) é por sua vez determinada por seu objeto:
portanto, uma outra determinação: a autodeterminação do absoluto
(negação da negação de si mesmo) é assim sempre sua autodetermina­
ção (uma nova negação de si mesmo).
A imanência do universal no particular é por conseguinte, ao
mesmo tempo, a relação necessária das particularidades entre elas.
A reflexão filosófica é, pois, a auto-apresentação do absoluto como
totalidade orgânica, desdobrando suas determinações segundo uma
necessidade imanente. A filosofia é, em sua verdade, um sistema.
“O absoluto, porque na ‘démarche’ filosófica, é produzido para a
consciência pela reflexão, torna-se desse modo uma totalidade
objetiva, um Todo do saber, uma organização de conhecimentos.
32. Ibid.

397
Nessa organização, cada parte é ao mesmo tempo o Todo, por
subsistir como relação ao absoluto. Como parte, que tem fora dela as
outras partes, é algo limitado, e só é pelos outros: isolada enquanto
limitação, é defeituosa, não tem sentido e valor a não ser por sua
conexão com o Todo. Por isso não pode ser questão de conceitos
singulares, por eles mesmos; de conhecimentos singulares, como se
fosse um saber”33; já que “a filosofia, enquanto totalidade produzida
pela reflexão, torna-se um sistema: um Todo orgânico de conceitos
cuja lei suprema não é o entendimento mas a razão”34.
São temas do começo do período de Jena, que encontram eco
e formulação mais precisa (sobretudo pelo emprego mais determi­
nado de certos conceitos a começar pelo de conceito) no Prefácio
que Hegel escreveu no fim desse período (1807) para uma obra
intitulada O Sistema da Ciência, de que só publicou a primeira parte:
Fenomenologia do Espírito35 (que era então apresentada como a 1-
Parte do Sistema da Ciência). Prefácio que ficou conhecido, impro­
priamente, como Prefácio da Fenomenologia, e constitui uma des­
lumbrante exposição do hegelianismo, do programa que Hegel então
ia empreender. Aí desenvolve a idéia de que a necessidade exte­
rior, histórica, que rege o devir da cultura, leva a ultrapassar a
reflexão formal, abstrata, da Ilustração, que é afirmação de um
sujeito sem substância; como também a de seu Outro, a intuição
im ediata pela qual a subjetividade se esquece diante da
substancialidade (como se manifesta sob formas diversas em Jacobi,
Schleiermacher, nos românticos, Schelling etc.) que é de fato seu
Outro. Ou seja: é ainda a afirmação do pensamento separador, do
entendimento que privilegia quer a diferença diferente da identida­
de, quer a identidade diferente da diferença. Chegou a época em
que a cultura vai fundar-se sobre a identidade da identidade e da
diferença, quer dizer, sobre a razão ou o conceito. O tempo vai se
dar por conteúdo o próprio conceito: vai ser o aparecer do conceito
em sua verdade, porque a verdade do conhecimento — sua neces­
sidade interior — é ser conhecimento racional: conhecimento que
33. Ibid., p. 21.
34. Ibid., p. 25.
35. Hegel, Die Phdnomenologie des Geistes (Bamberg e Wutzburg, 1807); trad. bras. —
Fenomenologia do Espírito (Vozes, 1992).

398
apresenta o processo imanente pelo qual o absoluto se diferencia,
e em cada uma de suas diferenças se retornam em sua identidade.
Em suma: conhecimento total ou sistemático.
O tempo do hegelianismo é o “ser-aí” do conceito como conceito-.
“A verdadeira figura pela qual a verdade existe só pode ser o sistema
científico dessa verdade. Contribuir a aproximar a filosofia da forma da
ciência — para que ela possa abandonar seu nome de amor do saber e
tornar-se saber efetivo — tal é a minha proposta”36. O hegelianismo
será efetivamente a realização desse sistema de razão, e da razão como
sistema — que Kant tivera em vista, mas preocupado com a tarefa,
que julgava prévia, da crítica da razão (preocupação que atesta desco­
nhecimento da natureza especulativa da razão) não tinha realizado.
Fichte e Schelling, depois, tentaram construir esse sistema, mas debal-
de. Tratavam a razão por meio do entendimento; isto é, afirmavam
ainda o formalismo do entendimento, impondo ao conteúdo um de­
senvolvimento que não era o dele próprio.
Neste Prefácio ao Sistema da Ciência, expõe Hegel que a Razão
— cuja consciência-de-si é a filosofia especulativa — é o processo
imanente pelo qual o ser, de início abstrato (pois o absoluto já se
pressupõe em sua determinação mais abstrata, em sua diferença
mais indiferente, o ser), se articula em sua riqueza concreta graças
ao automovimento do conceito que ele é. A reflexão do filósofo é
apenas o reflexo, no elemento transparente do conceito subjetivo,
da reflexão objetiva do absoluto, que só é tal por essa reflexão
subjetivo-objetiva, ou seja, absoluta, que se remata e entra em
posse de si no saber absoluto (hegeliano) e como esse saber. Saber
que é um sistema, e o sistema; porque o absoluto, cuja auto-apre-
sentação ele é, justamente como o sistema de suas determinações;
sendo entre todas a mais concreta sua posição no e como sistema do
saber absoluto hegeliano.
A proposta da Fenomenologia do Espírito é levar a consciência
não-filosófica a tal concepção. Precisa estar decidida a ir até o fim
de suas próprias exigências e a superar todas as contradições que
surjam. Consciência que por seu anseio de uma identidade verda­
deira já em si filosófica e pode fazer seu o conteúdo do discurso
36. Prefácio da Fenomenologia do Espírito — trad. bras., I, p. 23 (§ 5).

399
fenomenológico: Introdução filosófica (portanto, não-introdutiva) à
filosofia; iniciação sistemática ao sistema; e também, como Hegel a
designa, a primeira parte do Sistema da Ciência.
A Fenomenologia do Espírito, exposição também científico-sistemá-
tica da gênese consciencial da forma do saber absoluto como sistema
do absoluto, representaria a primeira parte do Sistema da Ciência. A
segunda parte do Sistema devia desdobrar-se no elemento do pensamen­
to, desembaraçado das cisões da consciência; seria o processo mesmo
do ser como saber enciclopédico. Hegel anunciava que a segunda parte
se articularia em Lógica, Filosofia da Natureza, e Filosofia do Espírito —
conforme a estrutura da futura enciclopédia37. Porém, esse Sistema da
Ciência não veio então à luz da publicidade. E no entanto Hegel, desde
o início de seu ensino em Jena, trabalhava na realização de tal sistema,
ao fixar o sentido de sua empresa filosófica nos artigos do Jornal Crítico
da Filosofia. Elaborava o Todo e as partes, como nos mostram os anún­
cios dos Cursos. Assim, para o semestre de inverno 1801-1802, anunciava
um Curso sobre Lógica e Metafísica; no ano seguinte, acrescentava
que o conteúdo do curso seria o de um livro prestes a aparecer (secun­
dum librum nundinis instantibus proditurum).’’8 Para o verão de 1803.
projetava expor o Todo da filosofia, remetendo de novo a um resumo a
ser editado por Cotta em Tübingen. No semestre de inverno 1803-1804,
retomava o projeto com o título: “Sistema da Filosofia Especulativa”,
e indicava como suas partes: A) Logicen et metaphysicen sive Idealis-
mum transcendentalem; B) Philosophiam naturae; C) Mentis; e no in­
verno seguinte expunha o sistema completo da filosofia, “ex dictatis”.
Apresentava “totam philosophiae scientiam, id est, philosophiam specu­
lativam (logicen et metaphysicen) naturae et mentis”39. Em 1805, o
tema foi o Direito Natural, a seguir História da Filosofia, e Filosofia do
Real (Realphilosophie), isto é, filosofia da natureza e do espírito. A
“Filosofia Especulativa” para Hegel abrangia então Fenomenologia e
Lógica, igualmente anunciadas para o inverno de 1806. O conteúdo
parcial desses cursos de Jena foi conservado em manuscritos publica­
37. Hegel anunciou a publicação da Fenomenologia do Espírito no dia 28 de outubro de
1807 (cf. Hoffmeister, pp. XXXVII e XXXVIII de sua Introdução à edição da Phanomenologie
des Geistes, Hamburgo, F. Meiner, 1952).
38. Citado por K. Rosenkranz, op. cit., p. 161.
39. Ibid.

400
dos sob os títulos seguintes: 0 1- Sistema de Hegel ou Lógica; Metafísica
e Filosofia da Natureza de Jena, 0 sistema da Vida Etica e A Filosofia do
Real I (Lições de 1803 e 1804) e II (Lições de 1805/1806)40. O difícil
trabalho de apreensão de um conteúdo imenso — de uma parte — e,
de outra, a dialetização ou racionalização deste conteúdo não permiti­
ram a Hegel publicar em Jena o Sistema da Ciência que era o termo de
todos os seus esforços. Nem em Niiremberg, onde foi de 1808 a 1816
Diretor do Ginásio e professor de Filosofia. Aí Hegel trabalhou mais
particularmente numa redação detalhada da primeira parte desse
sistema — de que a Fenomenologia do Espírito representava a Intro­
dução —: a Ciência da Lógica”. Os dois livros da Lógica Objetiva
apareceram em 1812 {Teoria do Ser) e 1813 {Teoria da Essência) e o livro
da Lógica Subjetiva {Teoria do Conceito) em 1816. O projeto do Sistema
da Ciência — projeto fundamental do filósofo — estava em perfeita
conformidade com os cursos que o professor devia então ministrar.
Em seu livro sobre Hegel, K. Rosenkranz cita as diretrizes do
ensino bávaro, para cujo estabelecimento tinha colaborado o amigo
e protetor de Hegel, Niethammer. Prescrevia para a classe superior
a exposição da enciclopédia filosófica: “Na classe superior, enfim,
os objetos do pensamento especulativo, que foram antes trabalha­
dos em sua singularidade, são reunidos numa enciclopédia filosó­
fica”41. Conservamos desse período uma primeira enciclopédia fi­
losófica redigida para seus cursos por Hegel. Rosenkranz publicou,
na primeira edição completa das obras de Hegel, com outros textos
de Niiremberg, com o título de Propedêutica filosófica42. Foi no ano
escolar 1810/1811 que Hegel expôs pela primeira vez essa enciclo­
pédia filosófica. Apoiando-se sobre os trabalhos de Niiremberg pôde
apresentá-la no semestre do inverno 1816/1817 aos estudantes da
Universidade de Heidelberg, para onde foi chamado. O resultado
de toda essa atividade pedagógica está na obra publicada enfim no
decorrer do verão de 1817. A primeira edição da Enciclopédia das
Ciências Filosóficas em Resumo43 realizava o projeto constitutivo da
“démarche” filosófica hegeliana.
40. Hegels Erste System, ed. Ehrenberg e Link, 1915.
41. L. Rosenkranz, op. cit., p. 255.
42. Hegel, Plúlosophísdte Proptideutik, editada por K. Rosenkranz, 1940.
43. Publicada por A. Oswald, Heidelberg, 1817.

401
A primeira edição da Enciclopédia (e também as duas seguintes) se
apresenta como um manual para o uso dos cursos**: Hegel o menciona
imediatamente depois do título mesmo da obra e o repete em suas
cartas. O- caráter de manual, de resumo, só pode ser positivo quando
— como é o caso da Lógica, primeira parte da obra — já foi publicada
uma obra detalhada sobre o mesmo assunto. Hegel sublinha, lamen­
tando, o caráter prematuro da publicação da Enciclopédia no que se
refere às duas outras partes: Filosofia da Natureza e Filosofia do Espi­
rito, ainda não-desenvolvidas numa obra correspondente. Necessida­
des do ensino levaram-no a passar por cima desse aspecto negativo:
“Precisava pôr nas mãos de meus ouvintes um fio condutor para meus
cursos de filosofia. Foi o que me levou antes de mais nada a fazer
publicar essa vista de conjunto sobre toda a extensão que a filosofia
abrange, e antes do que eu tinha a intenção de fazer”45.
Os leitores de Hegel que, não sendo ouvintes, não têm as expli­
cações orais em que o filósofo desenvolvia os temas da Enciclopédia
queixam-se da excessiva brevidade da Filosofia da Natureza, e sobre­
tudo da Filosofia do Espirito. Princípios da Filosofia do Direito, livro
publicado em 1821, só fornece um comentário parcial correspondente
à segunda parte da Filosofia do Espírito, referente ao espírito objetivo
ou ao direito, liberdade objetivada num mundo. Nomeado professor
em Berlim (1818), Hegel consagrou o seu primeiro curso a uma exposi­
ção da enciclopédia filosófica, mas nos anos seguintes preferiu tratar
em detalhe as diversas esferas da filosofia. Reconhecendo já em 1822
que “a Enciclopédia tinha grande necessidade de ser refeita”46, quando
a primeira edição se esgotou decidiu remanejar sua obra. A nova edi­
ção contém tantas modificações que se pode considerar uma obra
nova47. Em carta a Daubb, Hegel diz que procurou “tornar o texto
mais preciso, e mais claro, na medida do possível”48. A edição entra em
44. Entre o título e o nome do Autor, figura a menção: Zum Gebrauch Seiner
Vorlesungen (“para uso de seus cursos”). Diz numa carta: “Publico uma Enciclopédia das
Ciências Filosóficas para meus cursos” (Hegel, Correspondência, trad. Carrère, II, Paris,
Gallimard, 1963, p. 140).
45. Prefácio da Ia Edição da Enciclopédia (início).
46. Cana a Duboc, 30 julho 1822, trad. Carrère, II, pg. 165.
47. A segunda edição foi publicada por A. Oswald, Heidelberg, 1827.
48. Catía a Daub, 15 agosto 1826, trad. Carrère, III, p. 113.

402
m as detalhes; tem uma centena de parágrafos e o dobro de volume
da primeira. Assim Hegel reconhece que não teve muito êxito na
■entativa de manter na obra o caráter de vista de conjunto, em que
nenhum elemento estivesse desenvolvido de per si — portanto exces­
sivamente. Reconhece que ao refazer a Introdução caiu nesta tenta­
ção*. No entanto, a segunda edição da Enciclopédia conserva o caráter
fie livro de curso, que era aliás o da primeira. Enquanto refazia seu
testo. Hegel expunha a enciclopédia filosófica pela segunda e última
vez em Berlim, no semestre de inverno 1826/1827. Em conseqüência
de atrasos, a obra só veio à luz no verão de 1827. O sucesso, à altura do
renome de Hegel, então na culminância de sua carreira, foi tão gran­
de-"" que dois anos depois se mostrou necessária uma nova edição, que
apareceu em 1830M. Comporta modificações numerosas em relação à
anterior — Hegel mesmo diz em seu Prólogo que procurou aumentar
sobretudo a clareza e a precisão da obra —, porém não se comparam
cm importância às modificações que diferenciam as duas primeiras
edições'’2. Um ano depois de aparecer a terceira edição da Enciclopédia,
Hegel morria, aos sessenta e um anos; segundo diziam seus discípulos
e sua própria filosofia, tinha terminado a tarefa de acabamento do
saber que o Espírito do mundo tinha confiado a seu gênio.


C O N T K Ú D O K O bJK TIVO DA E n CICI.OPÉDIA

A Enciclopédia hegeliana termina por uma citação da Metafísica de


•Ansróteles, e essa referência última ao primeiro enciclopedista subli-
■fca o parentesco de intenção entre os dois filósofos. R. Haym, em sua
■*« Hegel e seu te m p o escreveu que tal edifício da ciência não tinha
desde Aristóteles. Porém a Enciclopédia de Hegel é uma en-
ddopédia original. A originalidade está em que não procede do enten­

m. ibid.
5®. O teólogo Rust escreve a Hegel (8 de setembro de 1828) que a “Alemanha pode
e n r orgulhosa pela segunda edição dessa obra gigantesca” (ibid., p. 207).
5L A terceira edição foi publicada por Oswald — Winter, Heidelberg, 1830.
5lLAy edição acrescenta 3 parágrafos (575 a 577) sobre o saber absoluto que aprofunda
n s f a c r de si segundo os três silogismos que vão ser analisados aqui.
R. Haym, Hegel und seine Zeit, Berlim, R. Gaertner, 1857.

403
dimento — que impõe sua unidade formal a materiais empiricamente
colecionados — mas sim da razão especulativa, dessa atividade pen­
sante que unifica as diferenças só na medida em que diferencia a
unidade, e que desdobra assim sua vitalidade na extrema tensão carac­
terística da “démarche” dialética.
A Enciclopédia das Ciências Filosóficas apresenta a um tempo a dife­
renciação extrema e a unificação extrema: é simultaneamente de uma
extrema extensão e de uma extrema intensidade. Para Hegel, a força
da identidade se media pela amplitude da diferença; e a verdadeira
identidade retorna a si mesma a partir de sua diferenciação acabada. O
discurso filosófico, plenitude do absoluto enquanto ele é tal identidade,
é pois ao mesmo tempo unitário e universal. Haym, que justapõe essas
duas determinações em lugar de sublinhar-lhes a identidade, escreve
também que em Hegel a tendência “universal-mundana” da filosofia
era tão original quanto sua tendência “sistemático-orgânica”: “A partir
do centro de especulação, a ciência deveria ser organizada: o universo
todo deveria ser espiritualmente conquistado e dominado”54. No entan­
to, essa riqueza de conteúdo da ciência não é, de modo algum, na
Enciclopédia hegeliana, o resultado de uma construção subjetiva hábil a
partir de temas filosóficos postos abstratamente: Hegel não quis apre­
sentar “coisas-de-pensamento”, e sim o pensamento das coisas mesmas.
Esse cuidado de objetividade se manifesta muito cedo. Já em seus
anos de ginásio em Stuttgart, sua indiferença pelas generalidades for­
mais da filosofia só era igualada pela vivacidade de sua atenção a
respeito dos conteúdos concretos da arte, da ciência e da história.
Hegel sempre quis ser um pensador informado, com um saber verda­
deiramente “enciclopédico” (no sentido corrente, não hegeliano, do
termo). Rosenkranz, em seu livro sobre a vida de Hegel55, indica o
vasto campo dos estudos científicos de Hegel em Jena; entregava-se
a experiências de física (por exemplo, sobre a teoria goethiana das
cores); estudava obras especializadas muito diversas: sobre as trajetó­
rias dos planetas, sobre o galvanismo, a sífilis, a turfa etc.
A propósito, vale chamar a atenção, como fez Hoffmeister em
Goethe e o Idealismo A lem ã o sobre o contraste em relação a Schelling,
54. Ibid., p. 377.
55. K. Rosenkranz, op. cit.. pp. 198-199.
56. J. Hoffmeister, Goethe und der deutsche Idealismus, Leipzig, F. Meiner, 1932.

404
cada vez menos preocupado com a Natura naturata e seduzido por es­
peculações imaginosas sobre a Natura naturans. Hegel demonstra um
cuidado constante de informação empírica, interessando-se em particular
pelas diferenças qualitativas que rompem os esquemas redutores for-
mais-quantitativos do entendimento que se obstina em si mesmo.
“Goethe notava já em 1801 que Hegel possuía conhecimentos elemen­
tares de matemática e de física muito mais vastos que os de Schelling.
Só raramente, como no artigo sobre os quatro metais, Schelling se
ocupava das particularizações da Natureza, que para ele era o absolu­
tamente quantitativo, até mesmo as potências tinham natureza quan­
titativa. Hegel transforma o absolutamente quantitativo em qualitativo,
pondo nele as diferenças, isto é, traçando limites e colocando ‘marcos’
(como dizia Goethe). Recebia essas delimitações ricas em conteúdo e
metódicas, das ciências da natureza que procedem essencialmente por
análise... Recolheu todo o saber de seu tempo. Já por esse trabalho,
a filosofia da natureza de Hegel merece uma alta consideração, tam­
bém por parte do cientista que hoje explora a natureza.”'17 Pode-se
bem dizer que nada no saber de sua época ficou estranho a Hegel.
Porém, ao mergulhar no conteúdo tão diverso das ciências empí­
ricas, Hegel não renegava de modo algum seu projeto filosófico de
unidade cabal; muito ao contrário. Essas ciências não retinham sua
atenção embora fossem empíricas; mas porque eram empíricas. Criti-
cava-as por não serem suficientemente empíricas, nem bastante fiéis
à intuição sobre a qual pretendiam fundar-se. Para Hegel, a intuição,
em toda a sua riqueza primeira, apresenta a mesma unidade de dife­
renças que a razão. A intuição antecipa a especulação racional; seu
conteúdo exprime que a razão aparece necessariamente na experiên­
cia; que o pensamento é. Porém, a razão é a unidade que supera
realmente as diferenças enquanto tais — que foram fixadas e conge­
ladas pela análise do entendimento —, enquanto a intuição em sua
pureza é anterior ào ato despedaçador do entendimento. Por isso — se
i razão é a negação concreta do entendimento, a vitória sobre ele — a
intuição é sua negação abstrata, que como tal os mantém em combate.
Em artigo publicado no Jornal crítico da Filosofia (1802/1803), “Sobre
is maneiras científicas de tratar o Direito Natural”, Hegel já opunha
57. Ibid. pp. 63-64.

405
“uma intuição que se mantém de maneira pura e feliz afastada da
sujeira por conceitos fixos” à intuição pervertida pelo entendimento58.
O entendimento do empirismo que se pretende científico, e por­
tanto, em seu agir separador, quer unificar a riqueza da intuição, pro­
cede privilegiando (separando) uma determinação que se esforça de­
pois por impor a todas as outras, tentando derivá-las dela como “con­
seqüência”; isto é, seguindo a identidade formal redutora da diversidade
do conteúdo. Por esse motivo, Hegel chega mesmo a fazer o elogio da
inconseqüência, por preservar a diversidade que a razão poderá ulte-
riormente compreender: “Pela inconseqüência a acolhida das de-
terminidades no conceito pode ser retificada, e a violência feita à in­
tuição pode ser suprimida. A inconseqüência aniquila imediatamente
a absoluteidade concedida antes a uma determinidade” '’9. A intuição
não pode dispensar os “conceitos” para se exprimir; mas vai manifes­
tar sua força fazendo violência ao entendimento e a seu princípio da
conseqüência”: para o conceito, será tão desordenada quanto contradi­
tória, “mas justamente por isso deixa adivinhar o espírito racional”a’
que desenvolve a unidade das diferenças.
Assim, é um justo instinto da razão que mobiliza a empiria contra a
unilateralidade da “teoria” ou, mesmo, de uma suposta “filosofia”. A
empiria se obstina, felizmente, contra os andaimes artificiais da filosofia,
e “prefere sua inconseqüência empírica fundada sobre uma intuição do
Todo — por mais confusa que seja — à conseqüência de uma tal “dé-
marche” filosófica. Abreviando: a empiria acusa a filosofia — que dela
retira o conteúdo — de a empobrecer e mutilar, “porque a empiria ofe­
rece à determinidade numa ligação ou entrosamento com outras deter-
minidades. O que, em sua essência, é um Todo, vivo e orgânico, através
desse despedaçamento e elevação de abstrações e de singularidade sem
essência à absoluteidade, é levado à morte”60. Desse modo a empiria de­
nuncia nas teorias do entendimento a negação da totalidade — da uni­
dade da unidade e da multiplicidade — da razão, do pensamento. Não
é que não pensem; é que não pensam bastante. Para Hegel, um pouco
de pensamento afasta da experiência, muito pensamento a ela conduz.
58. Hegel, 0ber die Wisseiisc/wftkiclien Be/wndlungs Arteti des Nnturrechts, Ed. Lasson.
p. 330.
59. Ibid., p. 343.
60. Ibid.

406
Portanto, o que a empiria defende, no fundo, são as exigências da
razão, e Hegel toma seu partido contra as pretensões do entendimento.
Mas esse elogio do empirismo integral (bom e verdadeiro), em
oposição ao empirismo (mau e falso) do entendimento unilateral, não
quer dizer para Hegel que se deva voltar à intuição. Com efeito, não
é possível retomar a ela, já que o caráter originário dessa intuição não
é, de modo algum, o de figura subsistente-por-si do espírito: é o de um
momento fundamental do espírito, o da apropriação por este de seu
fundo, ou seja, do conteúdo da alma consciente. Mas, enquanto a
intuição comporta em si a dimensão integrada da consciência, é essen­
cialmente ligada ao que constitui a consciência, a saber: ao processo
ob-jetivação, de diferenciação — cuja verdade é o entendimento. A
intuição nunca é pura de entendimento; a empiria é sempre perver­
tida, de entrada. “Quando a empiria parece entrar em luta com a
teoria, ressalta ordinariamente que tanto uma quanto a outra são já
uma intuição viciada, e suprimida previamente pela reflexão; e uma
razão invertida. O que se dá como empiria é somente o que há de mais
fraco na abstração; o que com uma auto-atividade menor nem sequer
se desprendeu, diferenciando e fixando suas limitações; mas ficou
preso em limitações que, tornadas fixas e presentes como bom senso,
parecem imediatamente recebidas da experiência.”60 Quem convida a
um retorno à intuição, contra o entendimento, só pode naufragar na
confusão das diferenças apagadas abstratamente; sua presença deixa
então de ser controlada pelo espírito; torna-se impossível reencontrar
a riqueza das diferenças integradas — em-si — na unidade concreta.
Deve-se rejeitar tal negação do entendimento, como um retorno im­
possível à barbárie. Falando, num aforismo de Jena, do bárbaro que
receia o entendimento e fica na intuição, escreve Hegel: “A razão sem
o entendimento não é nada; contudo, o entendimento é algo, sem a
razão. Não se pode dar de presente o entendimento”61.
Certamente, o conteúdo da intuição é o mesmo da razão: a Totali­
dade. Mas essa totalidade é intuicionada como totalidade, de forma
imperfeita: a indistinção, identidade diferente da diferença — portan­
to, uma forma que contradiz seu conteúdo. Ora, como a forma é in-
-formação do conteúdo por si mesmo, torna-o contraditório com seu
61. K. Rosenkranz, op. cit., p. 546.

407
em-si, a totalidade ou a razão. A intuição é uma realização irracional da
razão. No hegelianismo, a identidade sobreleva a diferença pois a ra­
zão é identidade da identidade e da diferença; a intuição é menos
profundamente e manifestamente irracional que o entendimento, que
privilegia a diferença; mas ainda não é a razão em sua verdade.
O intuicionismo, sob todas as suas formas, acrescenta, ao cará­
ter irracional da tentativa — condenada ao fracasso — de se restrin­
gir unicamente à intuição e à sua irracionalidade, o irracionalismo
da atitude que pretende, em nome da razão, excluir o entendimen­
to, absolutizando por essa exclusão o agir separador constitutivo do
entendimento. A exigência racional da totalidade só se pode reali­
zar quando o entendimento não é recusado (e portanto conservado)
mas ultrapassado; negando-se em si mesmo como forma absoluta
do verdadeiro, e pondo-se como simples momento da razão: identi­
dade, diferenciada em si mesma, da identidade e da diferença.
Na negação concreta e efetiva do entendimento, este exerce sobre
si a assunção total de si mesmo; enquanto é em si algo mais que sim­
ples entendimento: momento de um agir que em sua verdade é razão.
A razão “acaba” o entendimento, não apenas porque o suprime
em sua pretensa absolutidade, mas também porque lhe desenvolve
todas as possibilidades. E o acabamento da diferença indo ao cabo
dela mesma, ou seja, aplicando-se enfim a ela mesma, negando a
negação que é, que a faz pôr-se como diferente de si; ou seja, como
identidade diferenciada ou totalidade concreta.
A negação imediata, que define o entendimento, está ainda afe­
tada pela positividade do Outro que nega. Só será cabalmente negação,
quando não negar a um Outro, mas a si mesma. A negação só é ela
mesma quando é negação da negação, ou negação de si, vale dizer:
negatividade infinita, que nenhum Outro vem limitar, fazendo-se ne­
gar por ela. Ultrapassar o entendimento não é recuar perante o nega­
tivo: é demorar-se nele, com tanto mais resolução que o entendimento
encontra seu acabamento em sua própria negação, vale dizer: em sua
posição como razão ou conceito. Diante das diferenças congeladas do
entendimento científico, trata-se de atualizar até o fim esse poder
negador que ele só exerce incompleta e abstratamente; levando as
diferenças a se diferenciar de sua própria diferença, a se reunir a partir
de dentro com o seu “fora”; tornando-as fluidas, fazendo-as confessar
408
que são apenas o produto, não-subsistente-por-si, da autodiferenciação
da identidade; a qual, por elas repleta, nelas se encontra e assim se
torna a unidade infinita da razão.
J. Hoffmeister definiu deste modo o tratamento dado por Hegel
às contribuições das ciências empíricas: “Esforçava-se por levar o
entendimento do físico, que persistia na multiplicidade finita do
cognoscível, à razão; isto é, à unidade infinita; arrancando os con­
ceitos das ciências naturais à esfera da dispersão, dando-lhes uma
subsistência na unidade da razão”62. As ciências empíricas forne­
cem, à especulação filosófica, materiais já pensados; mas que, por
serem insuficientemente pensados, são por isso mesmo um estí­
mulo a levar a cabo esse esforço de pensamento.
Pensar é diferenciar a identidade, identificando as diferenças. Mas
o entendimento não pode, por natureza, efetuar esse ato concreto (isto
é, que reúne determinações opostas) da identificação da diferenciação
e da identificação, a não ser diferenciando abstratamente os dois mo­
mentos que o constituem, justapondo um ao outro. Desse modo, destrói
o pensamento, pensando: pensa de maneira não-pensante. Como a dife­
renciação não é diferenciação da própria identidade (diferenciação
interna) opera-se de forma exterior, ou, por outra, é diferenciação pura­
mente objetiva, pela qual as diferenças ficam absolutamente exteriores
umas às outras, e são recebidas exteriormente pelo sujeito: uma diferen­
ciação empírica. Inversamente, como a identificação não é a identificação
da própria diferença (identificação interna), mas imposta de fora, a exte­
rioridade da identidade em relação à diferença objetiva faz com que seja
identidade puramente subjetiva: a identidade abstrata do formalismo.
No empírio-formalismo do entendimento, formalismo e empiris­
mo se chamam um ao outro; com tanto mais força, como complemen-
tares, quanto os momentos abstratos, cujo desdobramento represen­
tam, são em si concretamente idênticos. Só há identidade do diferente
e diferença do idêntico. Porém tal conjunção de formalismo e empirismo
(que é a não-indiferença de processos que se dão como essencialmen­
te diversos, a necessidade oculta de um liame manifestamente contin­
gente) exprime a contradição interior à exterioridade do entendimen­
to: é a confissão disfarçada que faz de sua própria falsidade. O enten­
62. J. Hoffmeister, op. cit., p. 64.

409
dimento não pode captar um conteúdo como unidade diferenciada,
como sistema, como totalidade. E por isso que Hegel, na Introdução
da Enciclopédia, denuncia nos pretensos sistemas do entendimento,
simples “agregados”63; e distingue a enciclopédia filosófica — isto é,
científica e sistemática — das enciclopédias ordinárias, que, proceden­
do do entendimento separador, superpõem e impõem a materiais re­
cebidos empiricamente, ligações puramente formais, uma “ordem”63.
A enciclopédia filosófica não é uma “ordem”: é uma vida, porque o
pensamento, a captação racional do ser, é sua auto-apresentação (como
identificação de sua diferenciação e de sua identificação, como “liga­
ção da ligação e da não-ligação”).
Nessa vida do saber enciclopédico, “a força do espírito é tão
grande quanto sua exteriorização; sua profundeza tão profunda
quanto sua audácia em se espraiar e perder em seu desdobramen­
to”64. Isso sucede porque o saber total só é idêntico por ser dife­
rente; e diferente por ser idêntico. Na Enciclopédia hegeliana, o
saber que esgota as diferenças — extensivo no mais alto grau — é
precisamente e simultaneamente intensivo no sumo grau, absolu­
tamente Uno. Inversamente: a universalidade é unidade dos par­
ticulares; e unidade é universalidade dos diferentes. Essa enciclo­
pédia gera assim os conteúdos do entendimento racionalmente,
pondo suas diferenças como resultado do movimento imanente da
autodiferenciação da identidade, que, precisamente, só é identida­
de como identificação de si no seio da diferenciação de si.
A imanência da identidade nas diferenças constitui ao mesmo
tempo o liame intrínseco das diferenças, isto é, sua necessidade, e a
liberdade da identidade concreta, da totalidade, que em cada uma
das determinações é verdadeiramente “junto-de-si” (bei sich) por
não serem outra coisa que sua particularização interior6\ A liberda­
de do Todo é simultaneamente e por isso mesmo a necessidade
das partes: tal, a característica essencial do conceito, autoparticulari-
zação do universal, princípio que anima o desenvolvimento enci­
clopédico: “A filosofia é uma enciclopédia, filosófica na medida em
que a separação e a conexão das suas partes são expostas segundo
63. Hegel, Enciclopédia, 3a ed., § 16.
64. Hegel, Fenomenologia do Espirito, trad. bras., § 10.
65. Hegel, Enciclopédia, 3a ed., § 14.

410
a necessidade do conceito”66. O automovimento do conceito, sobe­
ranamente livre em sua necessidade e necessário em sua liberdade,
deve ser respeitado por quem quer merecer o nome de sábio ou
filósofo. A realização da enciclopédia ou do sistema transforma em
verdade a certeza da onipotência da razão e de sua total manifes­
tação de si, que deve animar o filósofo; como lhe recordam, ante
pretensões e abdicações diversas, os três Prefácios da Enciclopédia
das Ciências Filosóficas.
Esses Prefácios desenvolvem o tema do automovimento do
conceito que reconcilia pensamento e ser; isto é, apresenta a verda­
de absoluta. Em oposição a diversas correntes da época que, apa­
rentemente opostas, concordavam numa comum negação subje-
tivista do automovimento do conceito. O Prefácio da primeira edi­
ção acentua que a Enciclopédia apresenta o verdadeiro método do
conhecimento filosófico, idêntico ao próprio conteúdo conhecido
enquanto processo imanente, e assim ao mesmo tempo necessário
(por sua identidade a si em seus momentos) e livre (por sua iden­
tidade a si em seus momentos). Denuncia duas correntes culturais
que, “tendo arremedado a seriedade do alemão” e por conseguinte
“cansado sua necessidade filosófica mais profunda”, acarretaram
indiferença e até desprezo para com a filosofia.
A Ia corrente — o “subjetivismo genial do sentimento e da
imaginação” — opõe o delírio de seu próprio movimento ao auto-
movimento do conceito. Joga-se romanticamente nas “aventuras
do pensamento”, esquecido que o desfrutar da Idéia recém-pres-
sentida não pode dispensar o trabalho de sua elaboração racional.
A 2a é o criticismo e o cepticismo: opõe à vitalidade da pretensão
subjetiva o “acabrunhamento” da renúncia — igualmente subjetivista
— à apreensão da verdade objetiva. Prefere, ao auto movimento do
conceito, o repouso em si mesmo, em que o sujeito se afirma em seu
vazio e ainda se felicita de ser bastante esperto para reconhecer sua
impotência em pensar o conteúdo substancial. No Prefácio ao projeta­
do Sistema da Ciência, Hegel já denuncia o criticismo, ponto de chega­
da do entendimento crítico da “Ilustração”, e também a “genialidade”
romântica do saber imediato. Agora ataca com mais vigor a “falta de
66. Hegel, Enciclopédia, 3a ed., § 6.

411
força” da abdicação criticista-céptica, do que a “volúpia juvenil da
nova época”67: o subjetivismo da precipitação entusiástica lhe merece
mais indulgência que o subjetivismo fixado em si mesmo pela renún­
cia à razão (e que se pretende fundado em razão).
No último parágrafo do Prefácio, Hegel chega a reabilitar Jacobi
sem o nomear, quando o tinha criticado severamente antes em seus
artigos do Jornal Crítico da Filosofia e na Fenomenologia do Espírito,
como um representante típico desse subjetivismo da imediatez68. Agora
reconhece em Jacobi um “amor sério ao conhecimento mais elevado”,
que, embora se tivesse expressado na forma do saber imediato, con­
tudo nele foi acompanhado pelo discernimento de que essa doutrina
do saber imediato resultava de mediações filosóficas; e com isso reco­
nhecia a necessidade da mediação ou do conceito na tarefa filosófica.
Para o espírito poder apreender o absoluto, a primeira condição é
confiar que isso é possível. Assim está condenada, antes de mais nada,
a renúncia criticista. A confiança deve animar o trabalho reflexivo de
paciente tomada de posse desse absoluto. Na verdade, a identificação
de toda a reflexão com a reflexão negativa do criticismo acarretou o
repúdio da reflexão em proveito do sentimento e da opinião; quando
na realidade a reflexão consumada, infinita, especulativa, não destrói
o conteúdo substancial positivo. Ao contrário: vai restituí-lo em sua
verdade mesma, expondo-o à transparência do conceito.
É por isso que a filosofia especulativa — a filosofia em sua verda­
de — não pode opor-se abstratamente à religião, quando essa também
se realiza em sua verdade, que é apreender o conteúdo absoluto. A
filosofia sabe que não pode deixar de concordar com essa forma abso­
luta de experiência que é a revelação do mistério divino, porque sabe
(e demonstra) que a razão aparece necessariamente.
Essa reconciliação entre a religião e a filosofia não é a simples
coexistência que elas puderam ter, antes, numa “Ilustração” modera­
da, em que cada uma delas renunciava por sua parte à sua razão de
ser — a captação do conteúdo absoluto — para reduzir-se a um
puro formalismo. Aliás essa coexistência foi rompida pela protestação
67. Hegel, Encidopédia, Prefácio à Iaedição.
68. Hegel tinha apresentado um juízo crítico, mas bastante positivo, de Jacobi em
artigo publicado em 1817 nos Heidelberger Jahrbüdier der Literdtur (n- 1-2), consagrados a
Jacobi.

412
do pietismo, que se recusava a reduzir a religião (encarada como
simples assunto de coração) à mera religião natural ou “racional”
(assunto do entendimento). Foi também denunciada por Hamann69,
que buscava um conteúdo mais concreto da religião para além das
abstrações do entendimento “esclarecido”. No entanto, a crítica do
entendimento não é a da razão especulativa: a rejeição das media­
ções intelectuais em nome do saber imediato é, enquanto rejeição
também imediata e não-crítica, do conteúdo dessas mediações, a
conservação, doravante incontrolada, desse conteúdo. Por isso, a crítica
da filosofia especulativa, que pretendem fazer os defensores da reli­
gião da imediatez, é de fato uma simples tentativa de crítica da razão
pelo entendimento, isto é: um desconhecimento de uma pelo outro.
Um teólogo protestante, líder da corrente pietista, Tholuk (professor
de teologia em Berlim) tentou em vão criticar a identidade concreta
afirmada pela filosofia especulativa, reduzindo-a à única identidade
que conhecia: a identidade abstrata, familiar ao entendimento rejeita­
do e conservado. Isso lhe permitia denunciar na filosofia uma ignorân­
cia das diferenças (como a do Bem e do Mal).
Tal incapacidade de pensar o concreto, o racional, que a teologia
apresentava outrora como mistério (o racional é de fato misterioso para
o entendimento), levou a religião a se dissolver na pontualidade vazia
da exaltação sentimental e a desprezar toda a doutrina. Porém, sublinha
Hegel, o coração humano é o coração de um espírito, e o sentimento
é apenas uma forma — a forma mais baixa, a que aproxima o homem
do animal — na qual pode apresentar-se um conteúdo espiritual, que
como conteúdo ou sentido só pode ter origem no pensamento.
A diferença entre a filosofia e a religião não é de modo algum a
diferença entre entendimento e sentimento, e sim a de um pensa­
mento conceituai — que tira suas determinações do movimento ima­
nente de autodiferenciação, e a de um pensamento representativo, que
recebe suas determinações da exterioridade de uma revelação. Esta
constitui o conteúdo de um “credo”, e Hegel elogia F. von Baader70
69. Hegel fez recensão dos escritos de Hamann nos Jahrbücher fiir Wissenschaftliche
Kritik, n“ 77-80, 1828.
70. F. von Baader (1765 1841), ligando-se a Schelling e a Jacobi, desenvolvia uma
gnose que apresentava sob forma não-conceitual o pensamento especulativo subjacente ao
mistério cristão (a Idéia ou o Conceito).

413
por denunciar a falta de um conteúdo objetivo, que destruía a religião
de sua época; assim reabilitando a filosofia especulativa e a teologia,
que apresentam ambas, sob formas diferentes, o mesmo conteúdo
absoluto. Sob as formas não-conceituais, em que a Idéia especulativa
se exprimiu na história, Baader se esforça por reencontrar aquela, res-
tituindo desse modo aos espíritos religiosos o senso do pensamento:
“A gnose de M. von Baader... é uma maneira peculiar de promover
o interesse filosófico. Opõe-se, com vigor, tanto à quietação na nudez
vazia de conteúdo — das pretensas Luzes — quanto à piedade que
quer ficar apenas intensiva”7'.
Mas a gnose não é o conhecimento verdadeiro: sua metafísica,
não sendo o desenvolvimento interno do conteúdo, o automovi­
mento mesmo do conceito, consiste num raciocínio a partir de pres­
supostos externamente recebidos da revelação; procura ligar afir­
mações filosófico-teológicas não demonstradas a formações imagi­
nárias. E ainda uma apresentação da razão pelo entendimento, isto
é, negação do conteúdo pela forma.
Na verdade, é muito menos fácil “empreender o desenvolvimento
do conceito e submeter seu pensamento, como sua alma sensível, à
necessidade lógica conceituai”71. No entanto aí está, como Hegel repete
no fim do 2- Prefácio, a necessidade e a tarefa da época: conceber o
absoluto (o racional ou o mistério), ou seja, elaborar a filosofia absoluta
que se sabe determinação última do automovimento da idéia, na qual
tem seu acabamento, ao apreender-se de modo adequado.
O Prólogo da 3a edição da Enciclopédia retoma a crítica da pretensão
subjetivista de uma fé vazia de conteúdo e do formalismo oco da teo­
logia da Ilustração; convida ao trabalho especulativo os espíritos anima­
dos pela coragem da verdade72. Já em 1818, na alocução em que abria
seu Curso em Berlim sobre a enciclopédia filosófica, Hegel afirmava
que este trabalho estava ao alcance do homem: o absoluto não podia
resistir à resolução do saber filosófico, que é justamente o saber que
71. Hegel, Enciclopédia, Prefácio à 21edição.
72. Hegel critica em muitos lugares uma religião do coração ou do entendimento, da
imediatez ou da mediação vazias igualmente; e opõe, a essa dupla forma de unilateralidade
religiosa, a religião concreta do espírito (que é imediatez enquanto mediação consigo) pela
qual a alma acolhe nela o conteúdo especulativo ou racional. Cf. p. ex., o Prefácio de Hegel
à Filosofia da Religião de Hinrichs (em Berliner Schriften, pp. 57-82).

414
o absoluto toma de si mesmo no homem, para ser precisamente como
absoluto. A Enciclopédia hegeliana é a realização dessa tarefa confiada
ao espírito (alemão) de época: apresenta-se como o discurso pelo qual,
no elemento universal do saber filosófico, o absoluto manifesta sua
vida racional e realiza assim sua absolutez. O debate entre filosofia e
religião, que constitui o essencial dos Prefácios da Enciclopédia, dá oca­
sião a Hegel para justificar sua empresa, sublinhando que se a religião
é em verdade um pensamento, se o mistério é o racional ou o
especulativo, o pensamento em sua verdade só existe na filosofia es­
peculativa — apresentação especulativa do especulativo, expressão
conceituai do conceito —, discurso que suprime toda a contradição,
oposição e alteridade, e realiza assim, em sua identidade concreta, o
projeto sistemático ou enciclopédico.
Na Introdução à Enciclopédia, Hegel insiste sobre a diferença da
representação religiosa do absoluto, que se move na exterioridade
da representação (Vor-stellung) — exterioridade interna do con­
teúdo da revelação e exterioridade externa de sua recepção pelo
crente — em contraste com a apresentação que se dá a filosofia
especulativa, que desdobra em toda a liberdade o processo interno
de autodeterminação transparente a si mesmo que é o conceito. O
automovimento que é o conceito — o universal se particularizando
e se reencontrando enquanto singularidade livre, em sua particula­
rização — nada tem de processo formal: é a alma mesma do con­
teúdo. De fato, o saber empírico, embora pretenda ser crítico, é
que apreende o conteúdo de maneira puramente formal.
O saber filosófico absoluto é precisamente o saber da relação, da
mediação constitutiva de todo o objeto, fazendo do objeto um mo­
mento da mediação consigo, que é o absoluto. Ao afirmar que o método
da filosofia especulativa é a própria universalidade do processo ima­
nente do conteúdo, a Introdução da Enciclopédia está conforme a seu
outro enunciado: o discurso do método, que ela é, não passa de uma
antecipação aparente do que, em verdade, só faz resumir. Introdução
à ciência não pode ser exposição só exterior, puramente “histórica” de
um conteúdo; pois este, em seu movimento de autodeterminação,
termina por se refletir no sentido universal dessa autodetermina­
ção. Com isso resulta que a consciência-de-si desse sentido univer­
sal — de sua alma, de seu método imanente — venha a ser o
conteúdo de uma determinação dele mesmo.
415
No decurso de seu movimento, o conceito se põe numa determi­
nação cujo sentido é ser a tomada de consciência pelo conteúdo da
significação de seu próprio processo. Assim, a forma original segundo
a qual o conteúdo é desenvolvido é a antecipação prática (não arbitrá­
ria, porque de fato resume o resultado ao qual chegou o filósofo especu­
lativo, já percorrido todo o desenvolvimento) da determinação última
em que o conteúdo reflete teoricamente sua forma, sua mediação,
pondo-se assim em sua verdade de absoluto, de imediato concreto. A
Introdução da Enciclopédia é portanto, e sabe que é, uma definição do
objeto e do método, do conteúdo e da forma da filosofia; que antecipa,
resumindo, o resultado do processo pelo qual o conteúdo, o imediato,
se põe enfim em sua identidade com o método, a mediação; identida­
de que é em sua verdade mesma como absoluto.
A relação do filósofo com seu objeto, que constitui o começo da
filosofia, é, desse modo, antecipação de sua própria justificação
como conteúdo da determinação final deste mesmo objeto. Este se
revela como identidade concreta do sujeito e do objeto, do que
sabe e do que é sabido. “O ponto de vista que aparece assim como
ponto de vista imediato, deve necessariamente no interior da ciência
se fazer resultado; é na verdade o resultado último da ciência, onde
atinge de novo seu começo e retorna a si mesma. Desta maneira a
filosofia se mostra como um círculo retornando sobre si mesmo:
não tem começo algum — no sentido das outras ciências —; seu
começo se refere apenas ao sujeito, enquanto se decide a filosofar;
e não diz respeito à ciência mesma.”75 Posto que a determinação do
começo é assim fundada como o fim da determinação — da auto­
determinação do absoluto —, a filosofia não tem propriamente co­
meço objetivo; seu discurso é somente a vida da intuição de si do
absoluto, que nela se torna saber absoluto.
O sentido inicial enquanto tal, é a sua cisão em ser pensado (o
começo posto, que é objeto da filosofia) e em pensamento do ser (o
sujeito da filosofia, por quem o que é posto é um começo, isto é, está
grávido do fim). O sentido final é a posição como conteúdo objeti­
vo dessa identidade diferenciada, viva, da relação sujeito-objeto
constitutivo da Idéia em sua verdade; a posição do ser como pen-
73. Hegel, Enciclopédia, 3a ed., § 17.

416
sarnento e como pensamento de si enquanto pensamento que é; a
posição do absoluto como saber absoluto. “O conceito da ciência,
e por conseguinte o primeiro conceito (por ser o primeiro, contém
a separação consistindo em que o pensamento seja objeto para um
sujeito filosofante, de certo modo exterior), deve necessariamente
ser apreendido pela própria ciência. Na verdade, o fim único, a
operação e sua noção, é chegar ao conceito de seu conceito, e assim
ao retorno a si mesma e à sua satisfação.” 74
Portanto, o processo enciclopédico não parte de um princípio que
fosse por sua determinação mesma (unilateral ou exclusiva) princípio;
para em seguida, conforme uma “démarche” que é característica do
entendimento, edificar abstratamente um (pseudo)sistema, oposto a
outros (pseudo)sistemas, Consiste, sim, na elevação imanente da tota­
lidade (princípio universal que contém concretamente todos os princí­
pios) a qual é de início em si, até a totalidade que é para si tal como
é em si, que é em-e-para-si. O filósofo que põe essa totalidade em si,
isto é, que a determina (particularizando-a, por exemplo como o ser puro
do começo da Enciclopédia), pode fazer dessa determinação a determi­
nação da totalidade e desenvolvê-la como totalidade para si. Isso por­
que já é para si mesmo o pensamento total, o pensamento no sentido
forte do termo, o conceito dessa determinação, uma vez que já percor­
reu todo o processo do saber e assim possui — ou é — o saber dessa
totalidade que é para si: o absoluto em sua verdade de saber absoluto.
Nesse processo de reentrada em si, o conceito que pensa o ser
se põe enquanto ser pensado como conceito; processo circular, ciclo
da en-r/c/o-pédia hegeliana. Leva à realização verdadeira e concreta
aquela esfera em que o primeiro filósofo, Parmênides, via a perfei­
ção mesma. No entanto, sua compreensão é particularmente difícil,
e muitos erros se cometem ao explicar esse processo. Compreender
a Enciclopédia — reefetuar seu sentido — é justamente reefetuar a
compreensão ou a conceptualização mesma, pois o que a Enciclo­
pédia apresenta é a vida do próprio conceito. Ora, se o conceito é
a alma do pensamento, o pensamento do conceito exige um esfor­
ço em que o pensamento — que naturalmente se identifica com o
entendimento — crê ir ao abismo, mas vai ao seu fundamento.
74. Hegel, Enrídopédia, Ia ed., § 11.

417
Nesse esforço tem de negar-se a si mesmo em sua pretensão de ser
o pensamento. A compreensão da Enciclopédia é a compreensão da
compreensão, e a compreensão verdadeira ou o conceito é o movi­
mento do universal concreto: é inútil e contraditório, numa apre­
sentação da Enciclopédia, resumir-lhe a articulação. Seria expor o
conceito ou a compreensão — o universal concreto — num esque­
ma universal (abstrato) pressupondo a possibilidade de separar o
universal de sua particularização efetiva: é negar o conceito ou a
compreensão, e tornar tudo rigorosamente incompreensível. Não
vamos demorar na realização de um projeto contraditório desses,
mas seguir a Hegel que consagra no fim de sua Introdução umas
poucas linhas ao assunto, embora insistindo no caráter exterior de
uma divisão prévia à ciência.
“O Todo da ciência é a exposição da Idéia. Sua divisão só pode
ser concebida a partir dela. Ora, como a Idéia é a razão igual a si
mesma, que, para ser para si, se opõe a si e é para si mesma um
Outro (mas nesse Outro é igual a si mesma), a Ciência se divide
em três partes que são: Ia) a Lógica — ciência da Idéia em-e-para-
-si; Z~) a Filosofia da Natureza, enquanto ciência da Idéia em seu
ser-Outro; 3a) a Filosofia do Espírito, enquanto ciência da Idéia que
de seu-outro retorna a si.”7'’ Assim, o absoluto, o Uno, enquanto
identidade da identidade e da diferença, enquanto diferenciação de
si, isto é, enquanto oposição a si, ob-jetivação e manifestação de si,
manifesta a manifestação de si que é, e por conseguinte os momen­
tos organicamente ligados dessa manifestação ou diferenciação de
si: o momento da identidade; o da diferença: e o da identidade da
identidade com a diferença. Manifesta-se em seus momentos, os
quais, por manifestarem o Uno, o Todo, são os elementos ou meios
em que sucessivamente o Todo do absoluto ou da manifestação de
si se manifesta segundo um ponto de vista absoluto particular.
O absoluto ou a idéia — identidade da identidade e da diferen­
ça — se diferencia primeiro no elemento da identidade: tal é a
Idéia Lógica, objeto da primeira parte da Enciclopédia. Depois, no
elemento da diferença: é a Idéia em seu ser-Outro, a diferença ou
Natureza, objeto da segunda parte. Enfim, no elemento da identi­
75. Hegel, Enciclopédia, 3a ed., § 15.

418
dade da identidade e da diferença — portanto num elemento ade­
quado ao que nele se manifesta, e por isso terminal: é a Idéia como
Espírito, objeto da terceira parte da Enciclopédia. O Espírito é a
unidade concreta da Lógica (do sentido) e da Natureza (do sensível);
o retorno a si mesmo do sentido a partir do (e para o) interior do
sensível — a sensibilização do sentido como sentido.
Desse modo, as três partes da Enciclopédia expõem o círculo da Idéia
em cada um dos elementos que universalizam os momentos funda­
mentais da manifestação ou diferenciação de si que é a idéia. Cada
uma dessas exposições particulares — enquanto exposição do univer­
sal concreto, do Todo, do Sistema, do círculo que é a Idéia —é por sua
vez um todo, um sistema ou um círculo. Mas cada uma dessas parti-
cularizações da Idéia enquanto universal é a idéia se particularizando,
se negando, e pelo mesmo fato — já que o universal é a potência que
dispõe do particular — negando essa negação de si, afírmando-se as­
sim concretamente. Assim, as três partes totais da Enciclopédia são
momentos particulares organicamente encadeados pela necessidade
da vida imanente da Idéia (que só é livre, absoluta e verdadeiramente
total). “Cada parte da filosofia é um Todo filosófico, um círculo que
se fecha sobre si mesmo; porém nelas a Idéia filosófica está numa
determinidade ou num elemento particular. O círculo singular, por ser
nele mesmo uma totalidade, rompe assim o limite de seu elemento e
funda uma esfera ulterior. Por conseguinte, o Todo se apresenta como
um círculo de círculos, de que cada um é um momento necessário, de
tal sorte que o sistema de seus elementos próprios constitui a Idéia
toda, que aparece igualmente em cada elemento singular.”
A Ciência da Lógica considera a Idéia ou a totalidade absoluta
enquanto se põe no elemento da identidade, da universalidade, ou
seja, da homogeneidade a si, da transparência a si, em que cada
diferença ou determinação é nela e por ela mesma, apresentação da
totalidade das determinações, da identidade concreta: em suma,
seu objeto é a idéia como sentido.
O círculo ou o Todo particular que a Lógica forma — expõe a
Idéia total ao nível de seu momento da identidade universalizada, ou
no elemento da manifestação de si que ela essencialmente é. Mas por
sua vez se articula em círculos, pois a Idéia universal, ao manifestar-
-se, manifesta os três momentos da manifestação de si: a identidade
419
universal, a diferença universal e a identidade universal da identidade
e da diferença. A Idéia universal enquanto identidade pura — relação
simples, imediata, consigo mesma — é o ser. Ora, o ser, por essa
identidade e imediatez pura, abstrata, diferente da diferença, se revela
antes (plutôt) diferente da identidade, ou seja, de si mesmo. Por isso
o ser não realiza sua identidade sem a pôr como diferente de si mesmo:
o ser do ser é pois o Outro dele; a essência, identidade diferente da
diferença que se revelou como identidade do ser. Portanto, o que é é
a diferença da identidade e da diferença (essência) e da diferença da
identidade (o ser, rebaixado a uma simples aparência...) e o sentido,
enquanto se manifesta assim no momento de sua diferença, constitui o
segundo círculo da Ciência da Lógica, o da essência. Porém a diferença
do ser e da essência — constitutiva da essência — contradiz a intenção
do ser enquanto essência — a de ser a identidade do ser. Por isso a Idéia
Lógica não pode reduzir-se nem à diferença abstrata (essência) nem
à identidade abstrata (ser); portanto se diferencia de sua diferenciação
abstrata em ser e essência, e se põe como identidade universal da
identidade e da diferença, segundo o momento de sua verdade.
A identidade concreta — de que o ser e a essência são apenas
momentos evanescentes em sua mediação — é o conceito, no qual se
perfaz a idéia universal ou o sentido. Depois de se ter posto como
identidade somente idêntica, subjetiva, da identidade e da diferença
(tal é o conceito subjetivo), depois como identidade somente diferen­
te, objetiva, da identidade e da diferença (tal é a objetividade), o
conceito se põe, e põe a Idéia lógica de que é o acabamento, como
a Idéia, que é a identidade do conceito e da objetividade, do sujei­
to e do objeto. Quando a Idéia é essa identidade sujeito-objeto sob
o duplo modo da identidade e da diferença, então é objeto (dife­
rença) onde se reconhece (identidade). E para si mesma (e nisso
está seu modo-de-ser sujeito-objeto) a identidade concreta sujeito-
-objeto que é seu ser. E para si tudo o que é: “A Idéia, enquanto
unidade da Idéia subjetiva e da Idéia objetiva, é o conceito da
Idéia, para o qual a Idéia como tal é objeto, e o objeto é ela mes­
ma”76. Trata-se da Idéia especulativa ou absoluta, a Idéia da Idéia,
que se pensa na identidade de sua identidade (imediata que é
76. Hegel, Enciclopédia, 31 ed., § 236.

420
como forma mediatizante ou método) e de sua diferença (seu con­
teúdo mediatizado enquanto sistema do lógico como tal).
No entanto, essa Idéia lógica assim acabada é ainda a Idéia con­
creta no elemento abstrato da Idéia universal ou do pensamento; é a
Idéia concreta somente em si. Porém, como “a Idéia é a razão igual a
si mesma que, para ser para si, se opõe a si e é para si mesma um
Outro”77, para ser Idéia concreta para-si — quer dizer, Espírito —
deve opor-se a si mesma, sobre o fundamento de sua pressuposição de
si lógica, a fim de poder se compor consigo e se pôr em sua verdade
como identidade concreta da identidade e da diferença. Enquanto se
põe no elemento da oposição a si, da diferença de si, da particularida­
de, a Idéia existe, no sentido próprio. Está fora de si, exterior a si
mesma: a Idéia como seu Outro é a Natureza.
A Filosofia da Natureza estuda pois a “Idéia na forma de ser
Outro”, a Idéia alienada ou naturada. A Natureza não é apenas,
como existência objetiva da Idéia, exterior à sua existência subje­
tiva, o espírito: mas é a Idéia como outro que ela, ou seja, exterio­
ridade a si mesma. E a esfera da dispersão, da contingência, da
finitude. Contudo, como essa exterioridade a si é a exterioridade a
si da Idéia — da interioridade concreta —, está de fato na natureza,
mas como um interior exterior àquilo de que é interior. Como
identidade diferente da diferença da qual é identidade, está ali sob
o modo de essência, de separação do conceito como essência da
natureza e da natureza como fenômeno do conceito. Pelo fato da
imanência da Idéia à natureza, existe uma razão na natureza; o que
permite uma ciência e uma filosofia da natureza. Essa razão, para
falar com propriedade, é apenas uma razão na Natureza, e não uma
razão da Natureza. Por outra: a razão ou a Idéia só é Natureza como
outro que ela; a razão na natureza é o entendimento do real.
A Natureza é assim, também, alienação do conceito ou da razão,
no sentido em que nela o conceito está como simples essência, e a
razão como simples entendimento; quer dizer, sob a forma de negação
de si. (A essência do conceito é não ser somente, como conceito, a
essência daquilo de que é conceito: por isso o conceito nega essa
negação de si que ele é como natureza.) A natureza é pois, por essa
77. Hegel, Enciclopédia, Ia ed., § 11.

421
negatividade, dialética: é o processo da contradição de si. Contradição
essa que não pode ser resolvida na natureza e como natureza, já que
o próprio da natureza é ser essa contradição; que portanto só pode ser
resolvida na negação da natureza. Essa autonegação da Idéia como
Natureza, a negação da unidade essencial (e, assim, afetada pela dife­
rença) do conceito e da natureza, pela unidade e como unidade conceituai
do conceito e da natureza, é a Idéia se pondo como Espírito.
A natureza como tal é incapaz de resolver a contradição que a
constitui: seu devir-espírito é o fracasso de seu processo da negação de
si da Idéia como negação de si ou manifestação de si nesse elemento
da pura diferença — quer dizer, como alienação de si. A Filosofia da
Natureza analisa esse processo da manifestação alienante de si, da
Idéia que supera sua alienação (sem o conseguir como natureza) nos
três momentos da manifestação ou diferenciação de si.
A identidade da identidade e da diferença está primeiro no ele­
mento da diferença abstrata (puramente idêntica a si enquanto di­
ferença) da exterioridade recíproca completa, da singularidade iso-
ladora infinita. No exterior dela se encontra, pois, a identidade que
é só ideal ou interior, ou que só existe como tal na interioridade de
um observador exterior à natureza: é essa a esfera da mecânica1*. A
esfera da física é aquela em que a identidade está presente no nível
da realidade diferente (conforme a relação essencial da diferença,
característica em Hegel de todas as esferas intermédias), como di­
ferença de seu aspecto diferente. Por isso tem sua verdade na
esfera orgânica, em que a identidade da identidade e da diferença
— isto é, o conceito ou a Idéia — existe numa diferença cujo con­
teúdo consiste numa diferença de identidades da identidade e da
diferença, quer dizer: uma diferença de seres vivos que integram
a diferença na identidade (é o organismo em sua totalidade) e estão
ligados por relações em que a diferença está ainda presente, en­
quanto tal, à sua natureza inorgânica e a seu gênero. A vida, en­
quanto conceito que existe como conceito naturalmente (no ele­
mento da diferença, da alteridade, portanto num elemento inade­
quado à identidade concreta que o constitui), tem pois sua verdade
no espírito, onde o conceito existe e se manifesta num elemento
78. Esta é a divisão exposta nas duas últimas edições da Enciclopédia. A primeira edição
divide de outro modo.

422
que é a própria universalização de sua essência; no elemento da
identidade da identidade e da diferença.
A existência natural da idéia enquanto tal é assim a negação da
natureza propriamente dita e a autoposição da Idéia como espírito.
No espírito, a Idéia não está fora de si, mas junto a si (chez soi):
a necessidade da diferença da identidade e da diferença a ela sub­
metida (o universal diferente do particular tem potência sobre ele
como um Outro) é superada na liberdade da identidade da identi­
dade e da diferença.
A Filosofia do Espírito é a manifestação integral da manifesta­
ção sempre mais adequada do ser que para Hegel não é outra coisa
que a manifestação ou diferenciação de si. Articula-se em filosofia
do espírito subjetivo; do espírito objetivo; e do espírito absoluto.
O Espírito subjetivo é a identificação crescente da diferença consti­
tuída pelo conteúdo natural que o espírito nele integra: a interiorização
progressiva da exterioridade do fundo natural, donde se faz surgir a
Idéia como espírito. O espírito subjetivo é, de início, a primeira nega­
ção da natureza como tal por si mesma: autonegação da natureza que
se afirma, portanto, ainda mesmo em sua negação: uma negação ainda
natural. E o “espírito-natureza” ou a alma, objeto da antropologia79. A
alma é a interioridade da exterioridade natural, que vive por si mesma.
Para identificar seu conteúdo, deve-se determinar, ou diferenciá-lo,
opondo-se. A interioridade do exterior se exterioriza em relação a si
mesma: é vivida como relação a um Outro, a um objeto. O espírito que
se ob-jetiva e aparece para si mesmo — o espírito como fenômeno da
consciência — é estudado pela Fenomenologia. Enfim, o terceiro mo­
mento do espírito subjetivo, espírito no sentido estrito — recuperação
de seu Outro, reconciliação subjetiva do sujeito e do ob-jeto, analisado
na Psicologia.
Porém a identificação, de início puramente idêntica (segundo o
momento do Eu = Eu característico da subjetividade), da diferença, a
interiorização puramente interior do exterior perdem posteriormente
sua unilateralidade ao exteriorizar-se, diferenciar-se, objetivar-se ao
nível da exterioridade ou da diferença. E o espírito objetivo ou o direito,
mundo da liberdade realizada. Por sua vez, o espírito objetivo se de­
79. Hegel, Enciclopédia, 3a ed., § 387.

423
senvolve segundo os momentos da identidade abstrata — o direito
propriamente dito —, da diferença abstrata (moralidade) e da identida­
de concreta da diferença {vida ética). Finalmente, o espírito absoluto
identifica concretamente a identidade subjetiva da diferença (o ser
que é um Si) e a diferença objetiva da identidade (o Si que é um ser).
Superando-os como seus próprios momentos no seio da figura última
da Idéia, identidade absoluta que depois de se ter posto no elemento
da identidade (a intuição da arte) e no da diferença (a representação
da religião) se põe como identidade da arte e da religião, o conceito da
filosofia, e mais exatamente a filosofia do conceito — o saber hegeliano
da Enciclopédia. Desse modo o absoluto só pode ser (isto é, não se
converter abstratamente no nada, e não cair na contradição) se é a Idéia
realizada ou o saber absoluto hegeliano.
A determinação concreta, unificando como momentos seus as de­
terminações abstratas, cuja contradição assim supera, permite a coexis­
tência dessas determinações (garantindo desse modo seu próprio con­
teúdo concreto); e lhes fornece o elemento onde possam tecer entre
si, sem desaparecer, relações de oposição e de diferenciação, pelos
quais se determinam completamente e podem ser o que são. O ser;
primeira categoria do processo enciclopédico, realiza o que o torna
possível como ser que é (que não devém um nada)\ a unidade do ser
e do nada que é o devir. Essa identidade do ser e do devir também
só é possível, em última análise, como identidade da imediatez abso­
luta e da infinita mediação do sistema hegeliano.
O absoluto só pode ser como o saber absoluto: só há ser porque
o ser é a Idéia realizada como filosofia da Idéia. Portanto, é a
filosofia do lógico que funda o lógico, a filosofia da natureza que
funda a natureza, a filosofia do espírito que funda o espírito —
como fundamento do lógico, da natureza e de si mesmo. A Enciclo­
pédia hegeliana é assim o fundamento ontológico absoluto de todo
o ser que nela se diz.
Mas essa determinação — que excede toda a determinação por
sua infinidade concreta — do ser como saber absoluto, é a posição
do saber absoluto como sendo aquilo pelo qual e como o qual o
que é pode ser; ou como fundamento do ser. Não é apenas uma
determinação exterior, como seria o saber do liame do saber abso­
luto do ser, ou seja, o saber do enciclopedista especulativo. Tal
424
pensamento não realiza adequadamente sua essência de pensa­
mento, que requer que a forma seja imanente ao conteúdo pensa­
do: aqui é exterior.
Bem diverso é o saber absoluto que constitui a determinação
final do conteúdo da Enciclopédia. Ali, o movimento do sujeito é
retomado no do objeto, para não mais aparecer senão como a últi­
ma reflexão desse em si mesmo. Nessa reflexão integra como con­
teúdo absoluto a justificação da forma que fundou o ser como saber
absoluto. O saber (hegeliano) filosófico do ser reflete-se e justifica-
-se cientificamente na posição do ser como saber (hegeliano) filo­
sófico. Saber filosófico que se reflete na sua posição como saber de
si mesmo, na posição do conteúdo em que a filosofia se acaba e
acaba a Idéia, “enquanto capta na conclusão seu próprio conceito,
isto é, só dirige o olhar para seu próprio saber”80.
A Enciclopédia se remata assim como auto-reflexão do absoluto —
do ser como saber absoluto — sobre seu próprio movimento constitu­
tivo: o de se pôr como absoluto. Reflexão sobre o universal da mani­
festação de si que ele é; sobre o método ou a mediação pelos quais se
produz como o que é. Nesta auto-reflexão, o saber absoluto se põe
como fundamento supremo do conteúdo dos momentos de seu desen­
volvimento eterno, por ser a mediação que os liga entre eles, e os
dissolve como simples momentos na identidade concreta da vida ab­
soluta — cuja auto-apresentação é a Enciclopédia.
O saber absoluto, que se acaba como razão especulativa hege­
liana, apresenta-se em si mesmo a si mesmo como o fundamento
imanente do lógico, da natureza e do espírito; determinações uni­
versais que não são justapostas hierarquicamente, nem subsistem
no absoluto como no meio indiferente de sua diferença. Ao contrá­
rio: exprimem a própria vida do espírito absoluto, a identidade de
sua identidade (universalidade ou conceito) e de sua diferença
(particularização ou “juízo”81).
Essa diferença é justamente a diferença de sua identidade (ló­
gica) e de sua diferença (natureza).
80. Hegel, Enciclopédia, 3aed., § 573.
81. Para Hegel, o juízo é a divisão, a partição, a particularização originária (Urteil — das
///sprünghiche 7>/len).

425
Agora vamos analisar brevemente o que é para si mesmo o
absoluto ou o saber absoluto.
O espírito absoluto é universal concreto: é relação de si a si
mesmo (identidade) como relação em si mesmo do lógico e da
natureza (diferença). Não é apenas relação ou reflexão recíproca,
“reflexo mútuo”82 do lógico e do natural um no outro, ou do pen­
samento e extensão. Isso seria contradizer o conteúdo mesmo do
pensamento, do sentido lógico, que é ser não como substância,
essência, mas como sujeito, como conceito. (Reflexão, relação etc.
são determinações da essência.) O Espírito absoluto de Hegel é
bem diverso da substância de Espinoza — como Hegel gosta de
repetir — pois é o conceito concreto, que enquanto singularidade
(silogismo) é identidade de sua universalidade (identidade do puro
conceito) e de sua particularidade (o juízo pelo qual se diferencia
primeiro em sua universalidade e em sua particularidade).
Assim, o espírito não é só um termo mais verdadeiro que o
lógico e a natureza: momento verdadeiro em que se poria também
um absoluto, um imediato que por sua mediação daria fundamento
ao espírito como ao lógico e à natureza. Mas também não é só um
tal fundamento, simples relação do lógico e do natural, como mo­
mentos, um do outro e um no outro. O espírito é o imediato ver­
dadeiro, que não é pura e abstratamente diferente da mediação.
Nesse caso, a diferença seria não-diferença, e estaria ele ligado à
mediação como a um simples Outro; e por conseguinte seria um
puro mediato. O espírito é também mediação — mediação do
imediato, mediação imediata, ou que se “suprime” como mediação
(abstrata) enquanto mediação consigo. Imediato que é mediação
interna entre sua imediatez e sua mediação, entre sua identidade
e sua diferença em lógica e natureza. O espírito absoluto, enquanto
mediatiza, segundo os momentos do lógico, o lógico e a natureza
— e por conseguinte também o espírito ainda natural, diferente,
finito —, faz com que os momentos sejam momentos. Enquanto
mediatiza essa mediação consigo mesmo como imediato, põe-se
(enquanto imediato, absoluto) como um momento, um mediato; e
portanto se nega em sua imediatez ou absolutez abstrata. No en­
82. Jean Hyppolite, Logique et existence. Paris, P. U. F., 1953 p. 130.

426
tanto, o espírito não é um momento como os outros: é “o momento”
pelo qual ele mesmo e os outros são momentos. Mais ainda: en­
quanto mediação de si mesmo como momento do imediato, e de
si mesmo como mediação dos outros momentos — mediação con­
sigo mesmo —, o espírito se afirma como o imediato em sua ver­
dade; a mediação que o afeta não está fora dele, mas a tem em si,
enquanto é identidade do imediato e da mediação.
O espírito absoluto é pois absoluto, não-relativo. Não é simples
momento, porque se põe e se determina — se relativiza como
momento — para poder pôr em si mesmo, por oposição, o relativo,
a mediação. E assim é o absoluto verdadeiro, identidade do abso­
luto e do relativo, do idêntico e do diferente: o fundamento absoluto.
As mediações do lógico, da natureza e do espírito finito não são a
mediação do absoluto ou a mediação absoluta. Com efeito, neles o ser
mediatizante é pura mediação ou relação. E uma mediação diferente
da imediatez, e portanto relativa. Só há mediação absoluta na identi­
dade da mediação e do imediato, na mediação de si consigo mesmo:
no imediato concreto que é a realidade da Idéia lógica, cujo sentido é
justamente ser uma tal identidade acabada constitutiva do absoluto. O
absoluto, ou espírito absoluto, é pois a Idéia; a qual se mediatiza con­
sigo mesma em sua imediatez, que é a Idéia da Idéia, o pensamento
do pensamento. Esse ser da Idéia é assim sua atualização como “Idéia
se pensando”83: Idéia realizada formalmente por essa sua atualização
como saber filosófico, e realizada em seu conteúdo na medida em que
esse pensamento real da Idéia é o pensamento da Idéia como conteú­
do real da natureza e do espírito.
A Ciência -— ou Filosofia Especulativa — é essencialmente o
saber da Idéia em sua concretização natural e espiritual; é “o lógico,
com significação de ser a universalidade verificada no conteúdo concre­
to como em sua efetividade”83. A Ciência é seu desenvolvimento pró­
prio, e portanto posição dela como posição concreta de sua pressupo­
sição abstrata enquanto Idéia lógica, como efetuação de seu fenômeno
no saber absoluto que sabe a Lógica como sua essência, ou de sua
aparição como pura essência (isto é, em e como o lógico). Mas enquan­
to for “pura” essência ainda será diferente de sua essência, que é
83. Hegel, Enciclopédia, 3a ed., § 574.

427
conceito, concretização de si. Diz Hegel num dos últimos parágrafos da
Enciclopédia'. “A Ciência retornou assim a seu começo. O lógico é
desse modo seu resultado enquanto nele o espiritual se elevou ao seu
princípio puro e ao seu elemento; a partir do ato-de-julgar subjacente,
no qual o conceito era somente em si, e o começo era um imediato; e
através da aparição que o lógico tinha nesse ato”‘s>.
O saber filosófico absoluto, que se põe na Lógica e como Ló­
gica, princípio concreto de toda a ciência, é também o princípio e
o elemento, o sujeito substancial do lógicom: o lógico realizado, quan­
to à forma e ao conteúdo, que não é mais o absoluto em seu fenô­
meno. Esse tem sua essência diferente, por sua imediatez, daquilo
de que é essência: contradiz pela forma o conteúdo que é o seu; e
que exige ser a identidade subjetivo -objetiva, ou seja, absoluta, do
sujeito e do objeto: Idéia realizada, segundo sua própria exigência,
como “puro saber” enciclopédico.
O saber absoluto, realização da Idéia, ou seja, da “forma pura
do conceito que intuiciona seu conteúdo como sendo ela mesma”s\
sabe seu conteúdo (o da Enciclopédia) como ele mesmo; isto é, como
o imediato mediatizando-se em seus momentos; como o conceito que,
por seu juízo, se põe em suas determinações ou diferenças e nessas se
encadeia consigo mesmo enquanto silogismo. E de notar, porém,
que este saber do silogismo do saber, por ser um imediato também
se mediatizando em seus momentos, apreende tal silogismo segun­
do os momentos da mediação de si do imediato: o momento do
imediato puro, o da mediação pura, e o de sua identidade concreta.
O saber de si do absoluto é um saber concreto, que inclui em sua
imediatez e repouso — imediatez ou absolutez de seu ser —, a
diferença e o movimento, a mediação ou a relação de seu próprio
devir, de seu próprio aparecer a si e em si mesmo.
O saber do silogismo do saber absoluto é por conseguinte — e
necessariamente, pois nele se acaba o universal concreto — um saber
vivo desse silogismo, ou o saber da vida interna desse silogismo.
Tem os três momentos de toda a vida: identidade, diferença, e
identidade da identidade e da diferença; de fato, é uma triplicidade
84. O “logos” em sua verdade é a Lógica, mas não o lógico, primeiro momento do Todo
enciclopédico.
85. Hegel, Enciclopédia, 3aed., § 237.

428
de silogismos. Os três silogismos que na primeira e na terceira edi­
ções da Enciclopédia encerram o discurso especulativo exprimiriam,
segundo alguns intérpretes, três figuras do conteúdo do saber ab­
soluto, ou três tipos de exposição da ciência, sendo o primeiro a En­
ciclopédia,, o segundo a Fenotnenologia do Espírito, e o terceiro, por exem­
plo, a exposição da filosofia nas diversas Lições de Hegel86. Discorda­
mos totalmente dessa interpretação, porque quebra a unidade do sa­
ber, enfraquece a afirmação repetida de Hegel, de que a Ciência é
necessariamente um Todo, e rebaixa a Enciclopédia, que se apresenta
como a auto-exposição desse Todo, a uma apreensão parcial do ser,
donde seria preciso passar a outras apreensões desse mesmo ser.
Os três silogismos se distinguem, pela diferença da posição dos
três termos da Idéia: o lógico, a natureza e o espírito. Portanto, pela
diferença de sua relação, e de sua significação. Mas, a partir daí,
supor que sua organização diversa significa a possibilidade de dar
muitos começos (e por conseguinte muitos fins) à Ciência é o mesmo
que rejeitar o hegelianismo para explicá-lo. De fato, para o próprio
Hegel, o processo do ser é necessariamente o círculo que reconduz
o “logos” a si mesmo, de seu começo abstrato, (o lógico) a seu fim
concreto (a Lógica). Os três silogismos que concluem o processo enci­
clopédico não o relativizam, colocando-o entre outros processos possí­
veis. Não indicam a possibilidade nem a necessidade de outras elabo­
rações do conteúdo do saber absoluto. Exprimem, sim, os três modos
segundo os quais o saber absoluto apreende seu próprio processo
fundador, sua própria mediação absoluta. E saber de si mesmo
como Lógica pela qual o espírito concebe a natureza, como Lógica da
Natureza se compreendendo logicamente no espírito.
O saber absoluto se sabe fundamento absoluto. Mas não sabe
imediatamente o que funda tal fundamento absoluto: explica seu poder
fundador, a mediação absoluta que é, mediatizando seus momentos de
maneira diversa, pela posição de um meio-termo diferente, e inicial­
mente diferente dele mesmo. Não se põe de início como fundamento
de seu poder fundador, como meio-termo ou mediação da mediação
absoluta que sabe que é; no começo, não aparece tal como é. Diferen­
86. É a interpretação, p. ex., de Van Der Meulen, Hegel, Die Gebrodiene Mitte, Hambur­
go, F. Meiner, 1958, p. 340.

429
ça entre aparição e essência que constitui justamente a aparição ou
fenômeno do saber de si do saber absoluto em sua absolutez. Por sua
vez, esse fenômeno se diferencia em dois fenômenos, enquanto apa­
recer implica sempre diferença (no caso, diferença entre saber-sujeito
e saber-objeto), e por isso só permite uma “unidade” diferente, unila­
teral, desses dois lados: quer a unidade objetiva da diferença sujeito-
-objeto, quer a unidade subjetiva dessa diferença.
Os dois primeiros silogismos expõem os dois modos do saber feno­
menal de si do saber absoluto em sua absolutez: constituem uma como
fenomenologia do espírito absoluto. [De fato, a Fenomenologia do Espí­
rito trata do espírito subjetivo; é a exposição do espírito em seu fenô­
meno ou aparição — do espírito como consciência. O que aqui propo­
mos chamar fenomenologia do espírito absoluto superou a diferença
ontológica constitutiva da consciência, a alteridade para o sujeito do
sujeito e do objeto, que sabe a si mesmo naquilo que sabe; mas ainda
segundo uma diferença de certa forma metodológica, que lhe permite,
para se possuir totalmente em sua verdade, deixar-se ir e captar-se
segundo seus lados abstratos, relativos, cuja insuficiência é, para o
próprio saber absoluto, a mediação do imediato assim concreto de sua
absoluta fruição de si mesmo.]87
No terceiro silogismo, o saber de si do saber absoluto se apa­
rece como superando seu aparecer. Concebe-se em sua verdade,
como sendo a verdade dos dois primeiros silogismos, os quais me-
diatiza ao mediatizar seus meios-termos fazendo deles extremos,
colocando-os como pressuposições de sua própria concretude.
O primeiro silogismo exprime o saber de si do saber absoluto
segundo um dos modos de seu aparecer a si mesmo: o objetivo, o
aparecer do saber absoluto a si mesmo enquanto esse aparecer se
perdeu em seu lado objetivo. Este saber se mediatiza inicialmente
no Ia momento, imediato, da mediação: o da identidade do ser.
Apreende então a mediação do espírito absoluto segundo o proces­
so do ser da Idéia, e a passagem do lógico à natureza e da natureza
ao espírito, tal como se dá imediatamente na aparição do saber
absoluto a si mesmo. O saber absoluto — ou a natureza compreen­
87. Inserimos aqui no texto, entre colchetes, o que em Bourgeois está em nota, no pé
da página 52 (N. do T.).

430
dida logicamente pelo espírito — é fundamento absoluto, para o saber
de si imediato desse saber, porque a natureza de que provém o espí­
rito, por sua vez, “veio-a-ser” a partir do lógico. Como o lugar do
silogismo é o saber absoluto — que é e se sabe a realização adequada
da Idéia — os termos do silogismo não são imediatos separados: só
existem por sua mediação. Mas essa é apreendida conforme a
exterioridade característica do fenômeno; e, segundo esse fenômeno,
o saber absoluto está aqui para si mesmo em sua absolutez.
“A primeira aparição é constituída pelo silogismo que tem o
lógjico por fundamento como ponto de partida, e a natureza por
meio-termo que une o espírito com aquele. O lógico devém natu­
reza e a natureza devém espírito. A natureza que se mantém entre
o espírito e sua essência não os separa contudo em extremos de
abstração finita, nem deles se separa a ponto de ser um termo
subsistente-por-si: como um Outro que faria apenas encadear Outros.
Pois o silogismo está na Idéia, e a natureza só é determinada essen­
cialmente como ponto de passagem e momento negativo. A natu­
reza, em si é a Idéia. No entanto, a mediação do conceito tem a
forma exterior da passagem, e a ciência a de um fluxo de necessi­
dade, de modo que só num dos extremos se põe a liberdade do
conceito enquanto seu encadeamento consigo mesmo.”88
Assim o Ia silogismo funda o poder fundador do saber, no con­
teúdo do saber absoluto (ou conteúdo absoluto) sobre o momento
da natureza, graças à qual o conceito pode unir-se no espírito, consigo
mesmo, elevando-se de seu fenômeno a seu princípio e elemento.
Mas então o espírito é aquilo no qual e pelo qual o lógico é com­
preendido como compreendendo a natureza. Portanto o espírito é
posto, no 1- silogismo, como o que faz a natureza ser compreendida
\ogicamente como o que mediatiza em realidade o \ógico e a natu­
reza. Essa mediação, posta como o que mediatiza para o saber
absoluto seu próprio poder fundador, seu agir mediatizante absolu­
to, constitui o conteúdo do segundo silogismo.
O 1° momento do saber de si do saber absoluto é formalmente a
relação imediata do saber do saber ao saber sabido, e, por conseguinte,
a apreensão da mediação que é este sob o aspecto da imediatez de seu
88. Hegel, Enciclopédia, 3a ed., § 575.

431
conteúdo: ver o curso aparente da Enciclopédia. Esse saber pode ser
considerado como a intuição que o saber absoluto tem de si.
O 2Ümomento do saber de si do saber absoluto é o da reflexão,
da referência do saber absoluto objetivo, que é sabido, ao sujeito
do saber: ao ato do saber que é posto, no conteúdo desse saber,
como espírito mediatizando o lógico consigo mesmo na e pela
natureza; portanto mediatizando o lógico e a natureza. E como
espírito finito, já que seu ser é precisamente mediatizar a identida­
de total do lógico e da natureza; quer dizer, tornar-se (portanto, não
ser ainda) essa identidade que, só, é o espírito absoluto existindo
como Ciência especulativa. Essa finitude do espírito se atualiza na
relação em que o saber do saber absoluto vive a si mesmo, como
saber-sujeito, como forma absoluta para a qual o conteúdo é ela
própria em sua diferença, já que o que unifica o conteúdo e lhe dá
sentido (seu meio-termo) é o saber ou o espírito finito.
O segundo silogismo constitui, pois, o saber de si do absoluto
como simples representação de si. O espírito que é posto por sua
formulação é o espírito absoluto enquanto diferença do espírito
absoluto e do espírito finito, ou seja: o espírito absoluto finitizado
pelo e no seu aparecer a si mesmo. Esse silogismo é, assim, o outro
lado do fenômeno do saber absoluto, seu aparecer a si mesmo em
seu lado subjetivo. Por esse segundo silogismo e nele, o saber
absoluto se apreende pois como o silogismo da mediação abstrata,
em que o espírito finito cognoscente se põe como o que encadeia
a natureza (que pressupõe como substrato e objeto dele), com o
lógico, com o sentido. Sentido que é também o sentido de seu
Outro, da natureza e do espírito que apresenta em seu “ser-aí”
como ciência especulativa, em seu próprio elemento universal, onde
sujeito e objeto são identificados na liberdade do conhecimento
infinito que o espírito crê mediatizar enquanto finito.
Nesse segundo silogismo, em que o absoluto se apreende como
saber de si, a aparição primeira do saber absoluto a si mesmo, seu
fenômeno inicial é superado no saber absoluto que se sabe sob o
aspecto de sua essência, isto é, como saber do saber, saber para e
pelo saber, espírito (finito). “Essa aparição no 22 silogismo é ‘supri­
mida’ enquanto este já é o ponto de vista do próprio espírito, que
é o termo mediatizante do processo, que pressupõe a natureza e a
432
encadeia com o lógico. É o silogismo da reflexão espiritual na Idéia:
a Ciência aparece como um conhecimento subjetivo, cujo fim é a
liberdade, e que é a via para sua produção.” Porém a verdade do
saber de si absoluto não é a de um saber intuitivo de si, ou de um
saber reflexivo de si: saber no modo de ser, ou no modo de essência.
Modos esses que são outras tantas formas do aparecer puro, abstrato
— mediato ou imediato — do saber absoluto a si mesmo: dupla
fenomenalidade do saber absoluto. A verdade do saber de si é ser
saber conceituai de si, ou seja, ser verdadeiramente saber de si8y.
Por isso o saber absoluto que se sabe de modo conceituai (abso­
luto) é o que funda seu poder fundador e mediador absoluto sobre ele
mesmo, que se põe e se sabe como o que funda seu saber fundador
do ser, que é para-si tal como é em si. Nesse ser em e para si cumpre
a absolutez de si mesmo como saber absoluto. Dessa forma, o saber de
si absoluto do saber absoluto rebaixa o fundamento mediatizante obje­
tivo (a natureza) e o fundamento mediatizante subjetivo (o espírito
finito) segundo os quais o saber absoluto apreende de início a media­
ção imanente a seu conteúdo, como simples momentos de si mesmo,
que mediatiza pondo-se como seu meio-termo e que o diferenciam
em si mesmo para si mesmo — enquanto deve aparecer-se concreta-
mente para se saber e realizar assim em sua absolutez.
Porém o saber conceituai de si do saber absoluto é o aparecer
de si mesmo a si mesmo, como superação da aparição, como apa­
rição se negando no saber que o saber absoluto toma de sua plena
identidade consigo de suas diferenças, em sua manifestação de si‘X).
O saber de si absoluto do saber absoluto identifica pois o funda­
mento do ser (o saber absoluto) àquilo pelo qual esse se funda
como tal fundamento (o saber absoluto); identifica o silogismo que
é esse fundamento ao meio-termo pelo qual se funda a si mesmo,
e com isso se realiza a unidade na distinção; a identidade na dife­
rença — do saber absoluto — da absolutez desse saber; e do saber
da absolutez, do saber absoluto.
89. Hegel, Enciclopédia, 31ed., § 576.
90. Hegel distingue (Encid. 3aed. § 463) Erscheinung, que traduzimos porfenômeno ou
por aparição, e manifestation (manifestação). Outros tradutores confundem, mas deve-se
distinguir a representação essencial de si, e a presença conceituai a si. Há uma essência da
aparição, mas um conceito da manifestação.

433
A Enciclopédia pode assim acabar-se no e pelo 3- silogismo, que se
supera como sendo só o 3fl silogismo, para tornar-se o silogismo total
em sua verdade, mediatizando os dois primeiros silogismos como
momentos de sua própria mediação, pondo-se assim como o imediato
verdadeiro em que a Idéia eterna se realiza e frui de si em sua vita­
lidade absoluta. A verdade da mediação imanente ao imediato absolu­
to não é pois o processo que se exprime nos dois primeiros silogismos,
onde se reflete em seu fenômeno o saber de si do saber absoluto: o
silogismo que tem por meio-termo a natureza e o que tem por meio-
-termo o espírito finito. E, sim, o processo que se exprime no silogismo
que se expõe no último parágrafo da Enciclopédia: o silogismo do es­
pírito absoluto em sua verdade última. E a “Idéia da Filosofia” que se
põe a si mesma enquanto “razão que se sabe”91 como meio-termo do
silogismo que ela é. Para o saber absoluto é a filosofia especulativa ou
a Lógica universal que mediatiza, na mediação absoluta que ele é, a
natureza e o espírito.
O saber absoluto sabe que o ser, como autofundação dele
mesmo, não é nem a natureza nem é o espírito finito, e menos
ainda o lógico como tal. E o ser como movimento absoluto da
“Idéia da filosofia”; do lógico que existe como Idéia realizada no
saber filosófico, que sabe a Lógica como seu universal essencial.
A ciência especulativa hegeliana se acaba pondo a si mesma como
determinação infinita do próprio absoluto, pois mediatiza e sabe que
mediatiza concretamente, a diferença de seu momento objetivo (a
natureza) e de seu momento subjetivo (o espírito finito); momentos
que pressupõe para se pôr em sua verdade de imediato absoluto.
Portanto, o absoluto é o saber absoluto que realiza sua absolutez na
medida em que sabe absolutamente (conceitualmente) a si mesmo,
saber absoluto, como singularidade infinita que mediatiza a natureza
(seu objeto universal) e o espírito (seu sujeito particular) pelo lógico
cumprindo sua essência como o conceito da Idéia absoluta que existe
como Ciência da Lógica, onde a Enciclopédia hegeliana tem sua alma.
“O 3a silogismo é a Idéia da Filosofia, que tem a razão que se
sabe — o absolutamente universal — por seu meio-termo: o qual se
cinde em natureza e em espírito. Faz do espírito a pressuposição —
91. Hegel, Enciclopédia, 3a ed.. § 577.

434
enquanto processo da atividade subjetiva da Idéia. Faz da natureza
o extremo universal, enquanto processo que é em-si, objetivamen­
te. 0 juízo de si, pelo qual a Idéia se divide nas duas aparições (§§
575, 576), determina a essas como manifestações suas (da razão que
se sabe). O que nelas se reúne é a natureza da Coisa — o Conceito
— que prossegue seu movimento e se desenvolve. Esse movimen­
to é a atividade do conhecimento, e é a Idéia eterna, que nele e por
ele se torna atuante, se engendra e frui de si eternamente como
Espírito Absoluto.”
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Como (Rk)Lkr a E n c ic l o p é d ia d a s C iê n c ia s F il o s ó f ic a s

A Enciclopédia das Ciências Filosóficas põe assim o espírito abso­


luto — enquanto saber absoluto do absoluto — como fundamento
de todo o edifício do ser. A condição de possibilidade real do ser
(começo do processo enciclopédico) é a filosofia especulativa, ou a
própria Enciclopédia (conteúdo da determinação última da Enciclo­
pédia). Assim, a progressão aparente, exterior, do conteúdo enciclo­
pédico é a regressão real, interior, em direção ao fundamento desse
conteúdo. Esse fundamento — o saber absoluto da filosofia espe­
culativa — é essencialmente o saber do sentido absoluto, da Idéia
lógica, cuja determinação última tem precisamente por conteúdo a
afirmação, demonstrada por todo o processo precedente, de que o
abstrato do começo — o ser — só é possível porque é pressuposi­
ção de si posta pelo concreto final que é a Idéia absoluta, a fim de
que ele se ponha em sua verdade e necessidade.
O filósofo leitor da Enciclopédia experimenta, pois, que a primeira
determinação da Ciência da Lógica se funda na última determinação
da Filosofia do Espírito — a do saber filosófico enciclopédico que
é de início o saber da Lógica. Conforme a determinação última da
Lógica — a Idéia absoluta se pondo como método imanente abso­
luto — o saber, que é o fim, é a verdade do começo; e a progressão
é na realidade uma regressão em direção ao fundamento. Assim a
compreensão da Enciclopédia exige que a posição do concreto,
mediante o movimento do abstrato, seja apreendida como a pres­
suposição abstrata de si do concreto. Essa exigência é verificada
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pela tentativa de T. Litt92, por exemplo, de apresentar o processo
enciclopédico começando pelo fim, pelo saber absoluto. Daí segue
o movimento pelo qual o concreto, para se realizar, deve pôr suas
próprias condições. A última, a condição que não é mais condicio­
nada ou determinada, é a indeterminação do ser puro que constitui
o começo da Ciência da Lógica.
Esse enfoque é uma distorção do processo dialético. Com efeito,
a posição inicial do saber absoluto, apresentada como posição da tota­
lidade concreta da determinação, da mediação infinita, devido ao ca­
ráter imediato dessa posição, a mediação infinita como tal éposta por
uma reflexão exterior; em vez de se pôr pela reflexão interna do con­
teúdo. Finitiza o que põe; contradiz o conteúdo, que diz infinito, pela
forma de fato finita de sua posição. Rebaixa a afirmação do saber
absoluto como fundamento primeiro, a uma afirmação determinada
não mediatizada, ou seja, cuja necessidade não aparece, e à qual se
pode ôpor uma outra afirmação determinada.
A posição absoluta do saber absoluto, e por conseguinte a cientifi-
cidade de toda a “démarche” que nela se apóia, só pode ser garantida
se mediatizada pelo seu próprio conteúdo, e mediatizando-se nele.
Quer dizer: em cada passagem progressiva do ponente ao posto, do
concreto ao abstrato, que condiciona o ser do primeiro, o espírito opera
uma passagem regressiva da insuficiência do posto — da contradição
da condição — à necessidade do ponente que torna a contradição
possível ao resolvê-la, ao reconciliar seus termos como momentos numa
unidade em que podem ser ligados em sua diferença. Assim, o funda­
do funda seu fundamento, como fundamento.
Isso significa que a autofundação do fundamento, que é o ser
enquanto saber absoluto, só tem lugar porque o ser (o imediato, o
idêntico) é a perfeita mediação consigo mesmo, diferenciação de si.
E também que a consciência filosófica a apreende (ou ela se apreen­
de por meio da consciência filosófica) na medida em que atualiza
e acaba em si a Idéia: é um saber que procede ao mesmo tempo
progressiva e regressivamente, sintética e analiticamente. A análise
progressiva formal da Ciência é, pois, ao mesmo tempo, progressão
real e regressão real, síntese e análise do conteúdo: “Essa progres­
92. T. Litt, Hegel — Heidelbetg, Quelle & Meyer, 1953.

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são é tanto analítica quanto sintética. Analítica, porque o que está
contido no conceito imediato é só o que é posto. Sintética, porque
a diferença ainda não está posta neste conceito”93.
A démarche do pensamento filosófico é o pensamento de si do
pensamento — o saber de si do saber do ser —, o conceito do
conceito. “O método filosófico é tanto sintético quanto analítico,
não no sentido de uma simples justaposição ou alternância desses
dois métodos da consciência finita, mas antes como uma maneira
que os contém nela como ‘suprimidos’ e por conseqüência se com­
porta em cada um desses momentos ao mesmo tempo como analí­
tica e sintética.”94 Na démarche concreta do pensamento filosófico
acabado (especulativo, infinito) a análise, em sua verdade de aná­
lise, é síntese e vice-versa: identificação é diferenciação; diferencia­
ção é identificação. A démarche dialética constitutiva da compreen­
são filosófica é identificação da identificação e da diferenciação, a
vida mesma da identidade da identidade e da diferença. E a Razão,
a própria pulsação do conceito.
Desse modo, a leitura compreensiva da Enciclopédia — como de
todas as obras de Hegel — exige do leitor arriscar-se à sua morte
enquanto ser pensante (malpensante). Em si, o pensamento é concei­
to; mas para ser conceito para si, verdadeiramente conceito, deve
necessariamente se manifestar, ob-jetivar, diferenciar: pôr sua diferen­
ça interna, e com isso se negar, pois só é como identidade de sua
diferença. Mas essa é a diferença da identidade e da diferença, do
pensamento analítico e do sintético, que, na alteridade constitutiva do
fenômeno do conceito, forma o pensamento corrente (unilateral,
unidimensional) tal como o pensamento das ciências abstratas, empíricas
ou formais: numa palavra, o pensamento de entendimento. Em espe­
cial, o pensamento matemático, que Hegel, no Prefácio ao Sistema da
Ciência, distinguia radicalmente do pensamento filosófico.
O pensamento matemático é um pensamento exterior a si
mesmo em seus momentos; o movimento da forma não é o do seu
conteúdo. Por isso, a determinação final imposta ao conteúdo pela
reflexão exterior sobre este, é exterior à determinação que recebe
93. Hegel, Enciclopédia, 3a ed., § 239, nota.
94. Hegel, Enciclopédia, 3a ed., § 238.

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inicialmente dessa reflexão — e esse começo e esse fim são aliás
relativos, arbitrários: pseudocomeço e pseudofím. Ora, essa exteriori­
dade total da matemática (que se explica por ser a exterioridade recí­
proca do espaço refletida como tal no conhecimento), essa ausência de
interioridade e de profundeza, confere-lhe uma transparência que faz
considerar a “démarche” matemática como a mais certa e garantida.
Um objeto matemático não é nada mais que o que o entendimento
nele colocou. Seu fundamento é o que lhe foi conferido. O que é
fundado, por ser resultado de um movimento de dedução, é o mesmo
que o fundamento, enquanto foi posto.
Há pois uma “chatice essencial” na matemática: é direito sem
avesso; tem um lado só. A matemática é a perfeição da unilateralidade.
O entendimento matemático é simples por abstração, ao contrário da
razão especulativa que é simples por concreção. A razão especulativa
é como conceito, seu objeto, e sabe que seu conceito é sua própria
unidade como sujeito com o conceito: unidade concreta (que integra a
diferença) do começo com o fim; do imediato e da mediação, do ser
e da sua posição, da identidade e da diferença, da análise e da síntese,
da regressão e da progressão. Desse modo, o pensamento filosófico é
identicamente progressão que compõe o sentido do Todo (concreto)
a partir dos elementos (abstratos) e regressão, que determina o sentido
dos elementos a partir do sentido do Todo.
Devido a seu caráter concreto, o pensamento especulativo se re­
vela como a verdade da vida. Seu desenvolvimento é a espiritualização
do devir orgânico, devir concreto que é também seu Outro, seu repou­
so. E tempo concreto, negação do tempo abstrato unilateral cuja ver­
dade intelectual é a “démarche” matemática. E simultaneamente eter­
nidade, como ilustra o crescimento vegetal, retorno do gérmen a si
mesmo a partir de seu desdobramento na diferença da planta. “A vida
só pode ser captada especulativamente, porque na vida precisamente
existe o especulativo.”95 Mas, inversamente, a especulação só pode ser
praticada de maneira viva. Isso exige do leitor da Enciclopédia, que
quer conceber o conceito, que atualize em sua reflexão o movimento,
um em sua dualidade, da progressão e da regressão — a contradição
superada da identificação e da diferenciação, constitutiva de toda a
95. Hegel, Encidopédia, 3a ed., § 337.

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vida. Como sublinha T. Litt, o percurso da complicação crescente é a
cada instante unido a um movimento de sentido contrário que destaca
o sentido de cada etapa, e que só o consegue analisando-o a partir da
etapa seguinte96.
Porém a unidade concreta da análise e da síntese, no seio da
“démarche” especulativa nada tem de mistura ou confusão de momen­
tos: a razão não é um entendimento hipócrita; é a unidade desses
momentos enquanto diferentes. A razão suprassume o entendimento:
conserva-o nela ao mesmo tempo que o nega. A identidade dá cabo
da diferença, levando essa ao cabo; a especulação acaba a análise e a
síntese levando a termo, totalmente, uma e outra.
No pensamento filosófico verdadeiro, que satisfaz integralmente
a ambas as exigências da análise e da síntese, o que já está presente
deve sempre ir além do apresentado (posto, expresso) de forma a
que se possa captar o sentido do que é posto — que é ser uma
determinação abstrata, isto é, falsa. O que está presente, para poder
se apresentar como verdade, ou como totalidade das determinações,
precisa, no processo que estabelece essa verdade (essa necessida­
de), estar atento estritamente ao que é posto, determinado; pois
sua finitude e insuficiência precisamente constituem a necessidade
do verdadeiro que pressupõe o abstrato para se pôr, para se saber
em sua verdade de Todo concreto. “E somente o que é posto num
conceito, que tem seu lugar na consideração que o desenvolve, que
pertence a seu conteúdo.”97
Uma leitura puramente literal do discurso filosófico não permi­
te apreender o que é dito verdadeiramente em cada momento desse
discurso; a totalidade do dito é o espírito que dá seu sentido à letra
do dito particular. Mas, inversamente, a impaciência que não se
pode ater ao que verdadeiramente é dito (que nele põe o que já é
visado mas não ainda posto) confunde as etapas da mediação e a
destrói; e com ela destrói a possibilidade de apreender a verdade
do Todo. Parece ser este o obstáculo essencial à compreensão do
pensamento hegeliano. Com efeito, nesse gigantesco esforço de
96. T. Litt, op. cit. pp. 25-27.
97. Hegel, Enciclopédia, 31ed., § 88, nota; e Wissenschaft der Logik, ed. Lasson I, F.
Meiner, Leipzig, 1934, p. 96.

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cientifícidade especulativa, o processo do que é dito em cada de­
terminação é que faz aparecer a verdade do que é dito na determi­
nação última que diz a totalidade do determinado: a verdade do
sentido que é para si mesmo o sentido de todos os sentidos.
Portanto, a antecipação, que dá sentido ao abstrato, não pode ser
a precipitação que retira sua verdade ao concreto: a compreensão
filosófica é a unidade distinta que concilia a contradição da exigên­
cia de se fixar na reflexão interior manifesta do conteúdo particu­
lar, e a exigência de refletir essa reflexão na reflexão que ainda lhe
é exterior, e de certa forma latente, que apreende o Todo. E essa
unidade que sabe possível a conciliação; e que também a justifica,
na medida em que se sabe como o saber de si da reflexão absoluta,
como reflexão recíproca do movimento da totalidade e do movi­
mento da particularidade, um no outro; como reflexão infinita, vida
da identidade da identidade e da diferença.
De fato, é essa vida — contradição superada (afirmada e nega­
da) — da “démarche” especulativa, exigida de quem quer enten­
der a especulação que a Enciclopédia apresenta, que dificulta a lei­
tura dessa obra; ou, mais exatamente, proíbe que se contente com
ler a Enciclopédia, que na verdade só pode ser relida. Uma leitura
ingênua da Enciclopédia apreende mal a necessidade dialética que
faz o ser pôr-se como saber absoluto, e o abstrato como concreto.
A descoberta e a determinação da finitude, do negativo da abstra­
ção, cuja insuficiência é identicamente a necessidade do concreto,
exige já a posse pelo espírito desse concreto positivo que dá seu
sentido a essa abstração. A apreensão da verdade do concreto —
fim do desenvolvimento enciclopédico — não é possível enquanto
o sentido do abstrato — começo desse desenvolvimento — não
está adquirido; enquanto o leitor não acabou o percurso enciclopé­
dico cujo fim somente dá sentido ao começo.
A primeira leitura da Enciclopédia falta-lhe pois, necessariamente,
o sentido e a verdade do discurso hegeliano. E preciso reler a Enciclopé­
dia; é preciso ter relido para poder lê-la, já que a progressão que funda
o fim (seu fundamento) não é clara a si mesma se não é, ao mesmo
tempo, a regressão que esclarece cada momento da fundação a partir
do horizonte do fim, e o funda verdadeiramente como fundador desse
fim. Mas é preciso reler a Enciclopédia como se fosse a primeira leitura.
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No sentido de cada momento, o que se manifesta, e cuja insuficiência,
só, é fundadora do fim necessário, impõe sua evidência à ingenuidade
voluntária da apreensão, e desse modo se distinga do latente, e por-vir
que permite esclarecer a determinação manifesta do sentido. Assim o
caráter não exclusivamente discursivo da relação entre as leituras da
Enciclopédia, que precisa ser relida para ser lida e lida para ser relida,
remete ao caráter não puramente discursivo da Enciclopédia. E esse ex­
prime, do lado do saber do saber, o caráter identicamente mediato e
imediato, discursivo e intuitivo, conforme o qual o saber sabido se põe
primeiro, e justifica sua semelhança estrutural com ele, no interior de
si mesmo, apresentando-o como sua própria reflexão (diferenciação,
manifestação de si): enquanto o saber absoluto que realiza o absoluto
como tal só é como saber de si. Em suma: o ato da compreensão da
Enciclopédia, enquanto discurso especulativo, é um ato discursivo-intui-
tivo; mediato-imediato; diferente-idêntico — é o ato total, concreto, da
razão.
Nesse ato (e por esse ato) do pensamento racional do pensamento
pensado, da leitura especulativa do Livro especulativo, o sentido de­
positado e a objetividade existente no elemento da exterioridade ofe­
rece a diferença morta de seu espírito e de sua letra, de sua essência
e de seu ser (em que se cindiu seu conceito nele alienado), à recon­
ciliação concreta que opera uma leitura viva. Tal leitura anima, por sua
discursividade e mediatez, a identidade (imediatez inerte do sentido
objetivado), unindo-lhe organicamente a diferença (mediatez fixa do
ser desse sentido), em sua presença-a-si intuitiva e por ela.
O saber absoluto constitutivo do absoluto só existe e só “é aí” (pois
o “ser aí” é um momento abstrato embora fundamental do absoluto)
em e como essa identidade da leitura e do livro: da subjetivação do
sentido e do sentido objetivado. Tal sentido, em si mesmo, ou em sua
determinação absoluta, afirma precisamente a identidade da mediação
e da imediatez, do movimento em sua máxima agilidade e do repouso
em sua extrema fixidez. O absoluto hegeliano não é nem o espírito
absoluto subjetivo que está na leitura da Enciclopédia, nem o espírito
absoluto objetivo que está no Livro Enciclopédico; mas realiza-se na
identidade concreta última da leitura desse Livro, no ato infinito da
concepção subjetiva do conceito objetivo; ali, segundo o conteúdo
mesmo desse conceito, é que o ser acaba de se realizar em sua absolutez.
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Essa identidade concreta, da subjetividade do leitor especulativo
e da objetividade do texto especulativo, impede considerar sua
relação sobre o modo de um ter — ou de posse, ausência de iden­
tidade —; ou sobre o modo de repetição, identidade morta e abstra­
ta. Fichte dizia na sua Teoria da Ciência que ela não era um saber
objetivo que se pudesse possuir e dominar como algo estranho: “A
Ciência não é de modo algum nosso objeto, mas nosso instrumen­
to, nossa mão, nosso pé, nosso olho. Nem é sequer nosso olho, mas
a clareza do olho. Quem a tem não fala mais dela, mas a vive, faz
e pratica em todo o seu ser. A rigor, não se tem, mas se /; e ninguém
a tem, antes de se ter tornado ela mesma”98.
Do mesmo modo, a compreensão do saber absoluto hegeliano
exige que o leitor se torne o movimento imanente desse saber,
reefetuando-o em si mesmo, atualizando no seu Si o ser da Enciclopé­
dia. A leitura compreensiva da Enciclopédia reclama assim um compro­
metimento pessoal com o seu conteúdo — é propriamente uma aven­
tura que concerne ao Si do leitor mesmo. N. Hartmann insistiu na
necessidade de o leitor de Hegel reefetuar nele a mediação interna do
conteúdo de sua obra, de não se contentar com sua representação
passiva (que não levaria a nada) mas sim conceber ativamente em si
mesmo. Se o leitor não toma sobre si o trabalho do conceito, apreende
diferenças abstratas ininteligíveis, mas não o processo que lhes dá
sentido, dissolvendo-as em sua identidade concreta.
“Ao pensamento preguiçoso, passivo, que não toma sobre si esse
trabalho, o conceito mostra para toda a eternidade sua face de esfinge.
Para tal pensamento, o texto dialético é uma seqüência de signos
enigmáticos, carentes de sentido. Ouve palavras bem conhecidas, mas
pressente que dizem algo de estranho; e não entende o que dizem.
Contudo, a chave do enigma não se encontra num sentido secreto dos
signos, mas no retorno a seu sentido originariamente próprio — na sua
libertação do fixismo da abstração”.99
Porém essa reefetuação não pode ser apenas uma repetição
viva; pois, se o Si do leitor deve fazer-se o conteúdo da Enciclopé­
98. Fichte, Darstellung der Wissenschafts, Lehre, 1801, SW, II, p. 10.
99. N. Hartmann, Die Philosophie des Deutschen Idealismus, II, 1929, Berlim, Walter de
Gruyter, p. 245.

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dia, a recíproca é verdadeira: o ser desse conteúdo deve ser o Si do
leitor. Quer dizer: reefetuar a Enciclopédia é refazê-la para si mesmo e
em si mesmo; ler a Enciclopédia é reescrevê-la. Nessa obra que pretende
ser uma vista de conjunto que não se prende aos detalhes, a genialidade
hegeliana, essa vitalidade prodigiosamente ágil em sua tranqüilidade,
realizou uma reflexão cujos momentos só podem ser recolhidos por
um leitor disposto a traduzi-la na paciência do entendimento que
analisa e desenvolve suas mediações. Para Hegel, mais que para
qualquer outro filósofo, vale a afirmação de que para compreender
uma obra necessita recriá-la por si mesmo.
Um comentário sério da Enciclopédia só pode ser uma recriação
laboriosa, longa e lenta, do texto hegeliano. No quadro de uma
tradução da E?iciclopédia não se trata de tal comentário, ou de um
comentário verdadeiro. No momento, não pretendemos comentar
esse texto difícil, mas sim oferecer uma tradução completa — quanto
à língua mas não quanto ao espírito. Assim, não se deve procurar
nas notas, acrescentadas ao texto traduzido, um comentário. Quise­
mos apenas, por meio delas, sobretudo no começo do texto, ajudar
um pouco o leitor que não seja muito familiar com o pensamento
de Hegel, a evitar certos contra-sensos e a fixar algumas perspec­
tivas fundamentais. Que o leitor tenha bastante força e perseveran­
ça para obrigar seu entendimento a uma permanência prolongada
e fecunda junto do negativo da razão hegeliana!

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