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ELEN DE MEDEIROS

A CONCEPÇÃO DO TRÁGICO NA OBRA DRAMÁTICA DE NELSON

RODRIGUES

Tese apresentada ao Departamento de Teoria e


História Literária do Instituto de Estudos da
Linguagem – UNICAMP – como requisito
parcial para obtenção do título de doutor em
Letras.

Orientadora: Vilma Sant’Anna Arêas

Unicamp

Instituto de Estudos da Linguagem

2010
Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca do IEL - Unicamp

Medeiros, Elen de.


M467c A concepção do trágico na obra dramática de Nelson Rodrigues /
Elen de Medeiros. -- Campinas, SP : [s.n.], 2010.

Orientador : Vilma Sant'Anna Arêas.


Tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto
de Estudos da Linguagem.

1. Rodrigues, Nelson, 1912-1980 – Crítica e interpretação. 2.


Teatro moderno. 3. Teatro brasileiro (Tragédia). I. Arêas, Vilma
Sant'Anna. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de
Estudos da Linguagem. III. Título.

tjj/iel

Título em inglês: The concept of tragic in Nelson Rodrigues' plays.

Palavras-chave em inglês (Keywords): Nelson Rodrigues; Modern theater; Brazilian theater


(Tragedy).

Área de concentração: Teoria e crítica literária.

Titulação: Doutor em Teoria e História Literária.

Banca examinadora: Profa. Dra. Vilma Sant'Anna Arêas (orientadora), Prof. Dr. Adriano de
Paula Rabelo, Profa. Dra. Cláudia de Arruda Campos, Profa. Dra. Maria Sílvia Betti, Profa.
Dra. Sílvia Fernandes da Silva Telesi. Suplentes: Profa. Dra. Orna Messer Levin, Profa.
Dra. Larissa de Oliveira Neves, Profa. Dra. Suzi Frankl Sperber.

Data da defesa: 18/06/2010.

Programa de Pós-Graduação: Programa de Pós-Graduação em Teoria e História Literária.

ii
iii
A tese é dedicada à Maria, à Ana e

ao João Gabriel.

v
Agradecimentos

Certamente, eu não teria realizado esta tese sem a ajuda de muitas pessoas. Uma
tese de doutorado não é feita por uma única força, mas em conjunto com inúmeras pessoas
que ficam anônimas ao longo da escrita e finalização do texto. Por isso, acho importante
expressar aqui os meus agradecimentos a algumas delas, mesmo que, com isso, eu incorra
na falha de deixar algum nome de fora. Perdoem-me aqueles que eventualmente eu esqueci,
mas a quem sou, sim, muito grata.
Inicialmente, agradeço à FAPESP, pela bolsa de doutorado concedida, que me
permitiu total dedicação à pesquisa. E, para a viagem à França e realização do período
sanduíche, agradeço à CAPES pela bolsa de estágio no exterior.
Agradeço também aos funcionários do IEL, especialmente ao Cláudio e à Rose, da
Secretaria de Pós-Graduação.
Minha viagem à França e o período de um ano de pesquisas em Paris não teriam
sido possíveis sem a ajuda da Profª. Drª. Inês Oseki-Dépré, que co-orientou este trabalho,
do Prof. Dr. Jean-Pierre Sarrazac, que me acolheu em seu grupo de pesquisa sobre o drama
moderno, e da Profª. Drª. Idelette Muzart-Fonseca, que – já no final de minha estadia – me
acolheu em seu grupo de pesquisas brasileiras.
Meu profundo agradecimento à Vilma, não apenas pela sábia orientação, como
também pelo exemplo de dedicação à literatura, de rara inteligência, discernimento e
sensibilidade, pela amizade e por ter reaberto as portas da Unicamp.
Agradeço também à Orna Messer Levin, pela participação na qualificação – e em
bancas mais distantes –, pela amizade e pelo carinho. Os caminhos apontados por seus
leves comentários alteraram os rumos desta tese. Agradecimento que cabe à Maria Sílvia
Betti, que igualmente aceitou participar de várias bancas e, com suas argüições, ajudou a
iluminar grande parte dos mistérios que cercam o teatro de Nelson Rodrigues.
Eu não teria chegado até aqui sem a ajuda de meus pais e de meus familiares. Sem a
força deles, eu não teria continuado meu caminho. Um muito obrigada ao meu pai, à minha
mãe, ao meu irmão, aos meus padrinhos e à tia Graça. Tampouco teria tido tranqüilidade e
vii
confiança sem a proximidade, alegria e auto-estima da família do Alexandre: muito
obrigada a todos eles.
Aos amigos eu reservo um carinho especial e um sentimento enorme de gratidão.
Aqueles que foram constantes durante o meu doutorado, aqui no Brasil: Alexandre Lara de
Moraes, Ana Cecília de Água Melo, Ana Paula Saraiva, Anaia Cappi, Dirceu Villa, Flávia
Trocoli, Giovani Klein, Giselli Milverstet, Gregório Dantas, Guilherme Nicésio, Lívia
Grotto, Mariana Beppu, Maria Rita Palmeira, Pablo Simpson, Simone Nacaguma. Aqueles
que foram imprescindíveis para uma boa estadia na França: Ana Maria Formoso, Anne-
Laure Bonvalot, Carlile Campos, Cristiane Oliveira, Cristina Marins, Elisabeth Eglem,
Gysa Hollanda, Letícia Cruz, Luiz Paganini, Philippe Roman, Priscila Silveira, Rafael
Benthien, Rhelen Piantino, Rosangela de Jesus Silva, Tadeu Taffarello, dentre tantos outros
que conheci dentro e fora da Maison du Brésil e que compartilharam comigo momentos tão
especiais.
Agradeço especialmente às minhas comadres: Anna Carla, Larissa e Luciana, que
me deram presentes tão especiais! À Lara ainda agradeço pelas conversas, trocas de leituras
e a companhia nos estudos teatrais (e as viagens aos congressos, a leitura da tese, sugestões
e tudo o mais). Também agradeço aos compadres: Marco e Rodrigo; à nossa pequena
família, cujas reuniões tornaram a vida mais leve e saborosa.
Ao Alexandre devo não somente um agradecimento mais do que especial, pelo
companheirismo diário, amor, carinho, leituras e conversas. O apoio incondicional, a força
que tem me dado, o aprendizado constante: tudo dele foi imprescindível para o
desenvolvimento desta tese. Como não poderia faltar, agradeço-o por um presente muito
mais do que carinhoso: o Haku, que torna a nossa vida mais alegre.

viii
Resumo

A obra dramática de Nelson Rodrigues está profundamente ligada a certa noção de


trágico, seja pela perspectiva pessimista com que a vida é retratada em seus textos, seja
pelo final de derrocada a que suas personagens estão sujeitas. A presente tese de doutorado
teve como objetivo principal investigar a concepção do sentido de trágico nesta obra. Para
isso, utilizei conceitos filosóficos de trágico, vinculando-os à estrutura de tragédia (clássica
ou moderna) utilizada pelo dramaturgo, em diferentes sentidos do gênero. Por outro lado,
também investiguei elementos cômicos e melodramáticos presentes e como tais recursos
auxiliam a própria formação da tragicidade em sua dramaturgia.
Das 17 peças escritas por Nelson Rodrigues, ao longo de 40 anos de produção,
foram escolhidas cinco para o desenvolvimento da tese: Álbum de família (1945), Anjo
negro (1946), Senhora dos afogados (1947), A falecida (1953) e O beijo no asfalto (1961),
por entender que nelas está representada grande parte dos elementos utilizados pelo autor
para a construção do sentido trágico, seja partindo de uma estrutura trágica, cômica ou
melodramática. Elas foram divididas em grupos, denominados tragédias, comédias
trágicas ou tragédias urbanas, cada qual com suas características genéricas. Notei, assim,
que as estruturas dramáticas se complexificam à medida que elementos e funções de cada
gênero se invertem e se misturam, evidenciando a permeabilidade deste teatro.

ix
Abstract

Nelson Rodrigues’ plays have a profound relation with a certain notion of tragic,
because of the pessimistic perspective with which life is treated, as much as the downfall
ending that his characters present. This thesis’ main aim is to investigate the sense of tragic
in this playwriting. For that purpose, I used some philosophical concepts of tragic,
connecting them with the tragedies’ form (modern or classical) employed by the author, in
different meanings of the genre. I also investigated comic and melodramatic aspects and
how this elements help to create the tragic meanings.
From all 17 plays written by Nelson Rodrigues in 40 years of work I chose five to
analyze here: Family Album (1945), Dark Angel (1946), Drowning Mistress (1847), The
deceased woman (1953) and Kiss on the asphalt (1961), because I understand that in this
plays is represented a great part of the elements used by the author to create the tragic
sense, build on a tragic, comic or melodramatic form, each with its genre features. I
observed, with the analyses, that the play’s forms become more complex with the inversion
and combination of the functions of each gender, proving the permeability of this
playwriting.

xi
Sumário

Introdução................................................................................................................. 01

Capítulo I – Imagens e leituras: a visão da crítica sobre o trágico rodriguiano 13

1.1 – Entre a convenção e o moderno... o teatro no início do século XX.......... 14

1.2 – Da crítica ligeira à formação de uma imagem........................................... 30

1.2.1 – Coup de théâtre................................................................................... 52

1.3 – Leituras posteriores: a imagem consagrada de trágico ............................. 56

Capítulo II – Trágicos e tragédias: a elaboração rodriguiana............................. 69

2.1 – Do sentimento trágico................................................................................ 72

2.2 – Considerações acerca da tragédia moderna............................................... 90

2.3 – De Senhora dos Afogados ou da construção de uma tragédia.................. 100

Capítulo III – Representações do (in)comum: comédias e melodramas............. 121

3.1 – Uma comédia com laivos trágicos............................................................ 126

3.1.1 – Quadros do quotidiano...................................................................... 137

3.2 – Melodrama ou tragédia moderna?............................................................ 145

3.2.1 – Tragédia urbana................................................................................. 153

Considerações Finais................................................................................................ 171

Referências Bibliográficas....................................................................................... 193

xiii
INTRODUÇÃO
INICIANDO A DISCUSSÃO: O DRAMA MODERNO E UM QUESTIONAMENTO
GENÉRICO

I. Sujeito e objeto na forma dramática – questão da modernidade

O texto dramático moderno, sobretudo no século XX, requer uma linguagem


própria, por buscar uma forma adequada aos anseios de representação do
homem que vive em uma sociedade em constante mudança. O surgimento de novas
ciências, filosofias e ideologias no final do século XIX exigia, de alguma maneira, uma
forma diferenciada de representação dessa nova sociedade no palco. Assim, dramaturgos de
diversas nacionalidades e contextos buscaram a particularização de seu teatro, cada qual
pensando e recriando aquilo que foi genericamente chamado de “drama moderno”1.
Muitos desses autores tentaram uma reflexão estética mais apropriada aos seus
projetos para compor uma poética teatral que a refletisse. Ibsen, Tcheckov, Maeterlinck,
Brecht, Beckett, Ionesco, todos têm suas especificidades e sua própria poética do drama.
Aliado a isso, houve conseqüentemente a remodelação dos gêneros dramáticos, justificada
pela tentativa de compreender o sentido intrínseco de cada um. Por isso, Peter Szondi não
estabelece uma poética unívoca do drama moderno, mas analisa o que cada dramaturgo
procurou construir textualmente: Maeterlinck e o “drama estático”, que representa o
homem trágico em seu quotidiano interiorizado; Beckett e o teatro do absurdo, assim como
Ionesco, que trazem à tona o cômico trágico do homem ocidental sem esperanças e sem
saída após todos os desastres do século XX. São autores que, de acordo com a perspectiva
do crítico, fundam seus preceitos estéticos e filosóficos na composição de uma poética
original.
Nelson Rodrigues também concebeu seus textos dramáticos em busca de uma
melhor representação de certo homem moderno brasileiro ao colocar uma parcela excluída
da sociedade, do subúrbio carioca, em cena. O autor não escreveu mais do que escassos
1
Utilizo a palavra “drama” no sentido de texto dramático, não de gênero surgido após o romantismo, o
“drama romântico”.
textos defendendo suas idéias teatrais, mas suas peças têm força dramática e estética
suficientes para criar o que denomino de drama rodriguiano, em sua mescla de tragédia,
entendida de forma particular, e farsa, compondo comédias trágicas e tragédias cômicas.
Cada qual será, ao longo desta tese, explicada a partir de um conceito extraído de seu
próprio teatro.
Mas o que caracterizaria o drama moderno? Segundo Peter Szondi, autor de um dos
livros mais importantes sobre o assunto2, o que o configura é justamente a adaptação de sua
forma a um conteúdo histórico, quebrando pressupostos do drama clássico, em que a forma
é a-histórica e o conteúdo, variável. Em seu formato tradicional, o drama era caracterizado
pela unidade e existência fechada, composto por três elementos imutáveis: a relação
intersubjetiva, o diálogo e o tempo presente. Fora disso, tudo lhe era estranho. Com o
advento da modernidade, autores dramáticos buscaram a representação de problemáticas
diversas que não se adaptaram àquela forma. Com isso, há uma inevitável crise interna, que
rompeu as unidades clássicas e fez surgir novas estéticas. A partir do final do século XIX, o
drama negará seu conteúdo, representado pela relação intersubjetiva. Por meio disso,
acontece uma oposição entre sujeito e objeto, o que determina novos contornos assumidos
pelo texto dramático, já que o princípio da forma dramática é a negação da separação entre
sujeito e objeto. O sujeito do drama burguês torna-se objeto no drama moderno. Ou, nas
palavras de Szondi:

Essa oposição sujeito-objeto, situada ao mesmo tempo no plano da forma e no


do conteúdo, é representada pelas situações épicas básicas (narrador épico – objeto)
que, tematicamente enquadradas, aparecem como cenas dramáticas.3

II. Heróis ou anti-heróis?

Com a quebra das formas convencionais do drama, a concepção de herói também se


altera4. Uma vez que ele é o centro da estrutura dramática, a partir do momento em que a
problemática recai sobre suas angústias, incertezas e crenças, sua configuração é

2
Refiro-me a SZONDI, Peter. Teoria do drama moderno [1880-1950]. São Paulo, Cosac & Naify, 2001.
3
Idem, p. 94.
4
Peter Szondi não comenta, em seu livro, a representação do herói.
2
modificada e se volta para si mesmo, pondo em xeque a própria definição de herói. Não
estou aqui propondo o estudo de herói como protagonista5, mas como possuidor de um
perfil de personagem que, embora proveniente do sentido clássico, sofreu transformações
significativas. Anatol Rosenfeld6, por exemplo, aponta Zé do Burro, de O pagador de
promessas, como uma personagem heróica, especialmente pelo fato de sua causa,
aparentemente pequena, adquirir relevo coletivo e pathos no decorrer da trama. A
transformação acontece principalmente pela reação do padre e pelos valores que Zé do
Burro passa a defender ao longo da ação. O crítico considera que, mesmo dentro do teatro
popular7, o herói moderno precisa defender a causa de um povo, suas preocupações e
angústias, questões que permeiam a própria objetividade desse tipo de teatro. Na
dramaturgia brasileira, também se enquadraria neste perfil a personagem Gabriel, de
Pedreira das almas, de Jorge Andrade.
A idéia que se tem comumente de herói trágico na modernidade advém ainda da
noção aristotélica. Em sua Poética, Aristóteles determina que em uma tragédia devem ser
representados homens que possuam uma situação intermediária entre a bondade extrema e a
maldade. Como exemplo máximo, ele cita os mitos sofoclianos, especialmente Édipo:

É a [situação intermediária] do homem que não se distingue muito pela virtude


e pela justiça; se cai no infortúnio, tal acontece, não porque seja vil e malvado, mas
por força de algum erro; e esse homem há de ser algum daqueles que gozam de
grande reputação e fortuna.8

Assim, o herói trágico não pode ser aquele que apenas pratica o bem, tampouco o
que age apenas maldosamente. A boa medida do herói parece imprescindível para a
composição verossímil da tragédia clássica, pois o seu infortúnio é bem justificável por um
erro fatal e inconsciente cometido em seu passado. Dessa forma, o herói é “radioso e

5
O termo “herói” é utilizado largamente como sinônimo de protagonista. Conforme PAVIS, Patrice. 2. ed.
Dicionário de teatro. São Paulo: Perspectiva, 2003.
6
ROSENFELD, Anatol. O mito e o herói no moderno teatro brasileiro. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1996.
7
Ao contrário do que se possa pensar devido ao termo “popular”, esse tipo de teatro deve ser encarregado de
tratar de questões concernentes ao povo. Rosenfeld comenta: “Um teatro, enquanto atual e popular, não pode
deixar de preocupar-se com as preocupações e angústias do povo. Deve ter, antes de tudo, o objetivo de
defender os interesses do povo e de, por conseguinte, apresentar, analisar e interpretar a realidade
criticamente, visando à conscientização do seu público”. (p. 42)
8
ARISTÓTELES. Poética. Tradução de Eudoro de Souza. Porto Alegre: Globo, 1966. XIII – 7. p. 82.
3
vencedor, mas ele se ergue diante do fundo escuro da morte certa que, também a ele,
arrancará das suas alegrias para levá-lo ao nada, ou a um lúgubre mundo de sombras, não
melhor do que o nada”9. Ainda que levado ao nada ou à morte, o herói clássico grego deve
sofrer tudo conscientemente, saber qual foi o seu erro e por que está sendo alçado à
destruição.
Knoxx, no estudo que desenvolveu sobre a tragédia sofocliana, comenta que foi esse
herói que delegou à modernidade o perfil que conhecemos. Ou melhor, a maneira como
Sófocles delineou seu herói é mantida até os tempos modernos como o grande exemplo de
personagem trágica – justamente pela “adoção” aristotélica desse tipo de personagem.

Sophocles presents us for the first time with what we recognize as a ‘tragic
hero’: one who, unsupported by the gods and in the face of human opposition,
makes a decision which springs from the deepest layer of his individual nature, his
physis, and then blindly, ferociously, heroically maintains that decision even to the
point of self-destruction.10

Essas personagens são irredutíveis em suas ações, são intransigentes, ainda que
responsáveis, mas não capazes de moderar seus gestos. Não ouvem o que o coro tem a lhes
dizer, nem seus conselhos nem seus temores. Qualquer tentativa de intervir em suas ações
provocará a cólera. A conseqüência de tanta intransigência será seu isolamento ou a sua
morte.
Essa imagem de herói trágico, reverenciada por Aristóteles, permaneceu no
imaginário literário ocidental por muito tempo, respeitando-se as devidas alterações
sofridas ao longo dos séculos e das épocas. Inclusive, a compreensão do que pode ser o
herói moderno é herança dessa configuração, mesmo que, ainda assim, não seja possível
uma definição extensiva e completa. Segundo Patrice Pavis:

9
LESKY, Albin. Tragédia grega. Tradução de J. Guinsburg, Geraldo de Souza e Alberto Guzik. 3. ed. São
Paulo: Perspectiva, 2001. p. 24.
10
KNOXX, Bernard. The heroic temper: studies in sophoclean tragedy. Berkley: University of California,
1964. p. 5. “Sófocles nos apresenta pela primeira vez o que reconhecemos como um ‘herói trágico’: alguém
que, desprezado pelos deuses e em face de uma oposição humana, toma uma decisão que emerge da mais
profunda camada de sua natureza de indivíduo, de sua physis, e que mantém essa decisão de maneira cega,
feroz e heróica a ponto de se autodestruir.”
4
Em dramaturgia, o herói é um tipo de personagem dotada de poderes fora do
comum. Suas faculdades e atributos estão acima daqueles dos simples mortais. (...)
Só existe herói, no sentido estrito, numa dramaturgia que apresenta as ações
trágicas de reis ou príncipes, de modo que a identificação do espectador se realize
em direção a um ser mítico ou inacessível. Suas ações devem ser exemplares e seu
destino livremente escolhido.11

Diante disso, de que forma se configurariam as personagens rodriguianas? Para


melhor apreender como isso acontece, tenho de levar em consideração as concepções de
Hegel acerca do drama moderno, para então delinear os traços do herói no drama
rodriguiano. Em Cursos de Estética, o filósofo afirma que o início da poesia dramática se
deu com os gregos – por isso, é lá que devemos procurar os preceitos fundamentais da arte
dramática. Ao diferenciar o antigo do moderno, afirma que “no drama, na tragédia e na
comédia antigos trata-se essencialmente do universal e do essencial da finalidade que os
indivíduos realizam”12. Ora, essa é a velha idéia de que a dramaturgia grega traduz o
universal, sem restringir-se ao individual; ao contrário, justamente, do drama moderno, que
vai individualizar os problemas tratados, trazer para a atmosfera das paixões pessoais o seu
objeto: “Na poesia moderna, romântica, ao contrário, é a paixão pessoal, cuja satisfação
apenas pode concernir a uma finalidade subjetiva, em geral o destino de um indivíduo e
caráter particulares, que fornecem o objeto privilegiado.”13 Por conseguinte, a
representação também mudará: o herói transfere o foco de constituição; se antes ele era o
representante individual das vontades universais, da essência da vida, e submisso às forças
dos deuses, a partir do romantismo (segundo a marca transitória definida por Hegel), ele
não pode mais representar um conjunto de forças, de maneira que sua presença fica
impossibilitada – inclusive porque as forças que movem as personagens são as paixões, as
ambições e até o crime. O herói, no seu sentido clássico, não é mais possível, pois, em sua
face moderna, ele é movido por vontades individualizadas.
Diante dessa impossibilidade, restaria uma opção para o drama moderno: a
representação do anti-herói. Ele se caracterizaria pela brutalidade das ações, pelo

11
PAVIS. Op. cit., 2003. p. 193.
12
HEGEL, G. W. F. Cursos de estética. vol. 4. Tradução: Marco Aurélio Werle, Oliver Tolle. São Paulo:
Edusp, 2004. p. 246.
13
Idem, ibidem. p. 246.
5
isolamento optativo, pelo individualismo, aquele que libera energias e que é destruído por
elas14. Quero dizer com isso que o maior representante das questões do homem ocidental
seria mesmo um anti-herói: preocupado com o sucesso próprio, individual, indiferente ao
que possa acontecer àqueles que estão à sua volta. Os valores, geralmente desvinculados do
geral, são aqueles que realmente vão determinar as ações da personagem na modernidade.
No caso específico de Nelson Rodrigues, o fato de ele compor seus textos com as
camadas populares é bastante significativo. Com os indivíduos da classe média baixa, em
especial a carioca, o dramaturgo não se propõe a colocar em cena personagens grandiosas,
de moral superior ou com um objetivo nobre. Ao contrário, são pessoas comuns, do
quotidiano da sociedade urbana, trabalhadores, funcionários públicos, prostitutas, bêbados.
Do mesmo modo, seus objetivos não vão além de uma realização pessoal banal, como um
enterro chique; ganhar dinheiro; conquistar mais uma mulher; realizar-se sexualmente.
Personagens banais com objetivos banais; quando não pertencem a este grupo, são
personagens às voltas com o crime: a corrupção, o assassinato, o infanticídio, o meretrício.
Esse rol de personagens não se enquadra, portanto, na definição de herói, a não ser que
sejam tratadas como sinônimo de protagonista. Posso defini-las, então, como anti-heróis.

III. Uma proposta de investigação

Acordados alguns pressupostos de investigação que serão seguidos e desenvolvidos


na tese, exponho a partir de agora a estratégia escolhida para definir o trágico rodriguiano
no conjunto de seus textos dramáticos. Antes, gostaria de esclarecer que o ponto de partida
para o presente estudo é a definição tradicional de gêneros; mas acredito que eles não
podem mais ser definidos de forma estanque, especialmente face à modernidade.15
Em se tratando daqueles gêneros comumente chamados de “maiores”, há sempre
um impasse entre os estudiosos quanto ao que seria realmente uma tragédia na
modernidade. E esse questionamento é talvez mais complexo do que acontece a respeito

14
Afirmação de Raymond Williams acerca do teatro liberal de Ibsen.
15
Segundo Anatol Rosenfeld, ainda que bravamente combatida e, até certo ponto, superficial, “o uso da
classificação literária parece ser indispensável, simplesmente pela necessidade de toda ciência de introduzir
certa ordem na multiplicidade dos fenômenos”. (In: O teatro épico. São Paulo, Perspectiva, 2004. p. 16)
6
dos aspectos da comédia moderna, uma vez que o texto cômico é mais facilmente
caracterizado e tem sofrido não muitas mudanças no decorrer dos séculos16. Não é o que
podemos constatar a respeito da tragédia, haja vista a imensidade de trabalhos
desenvolvidos nos últimos anos tentando compreendê-la; estudos que se propõem a
inspecionar textos dramáticos provenientes de uma mudança cultural mundial,
principalmente no início do século XX, e que teoricamente teriam impulsionado as
transformações genéricas e também estéticas – não só da dramaturgia, mas a respeito de
toda a literatura.
A multiplicidade de sentidos da palavra “tragédia” na modernidade propicia
inúmeros questionamentos a respeito da produção dramática e teatral que lemos e vemos.
Uma vez que não é mais possível definir gêneros isoladamente após o marco
tradicionalmente aceito do romantismo, é preciso pensar, sempre, na mistura. Mudando o
foco para o teatro brasileiro moderno, o próprio Nelson Rodrigues torna-se um dos
principais questionadores das marcas genéricas no texto dramático ao caracterizar suas
peças como “divina comédia” ou “farsa irresponsável”. Ou seja, há nessas classificações
uma “brincadeira” com os gêneros dramáticos, invertendo funções e mesclando elementos
de um gênero em outro.
Essa “brincadeira” inspirou o questionamento principal desta tese: como o texto
dramático rodriguiano pressupõe a tragédia? Há realmente elementos trágicos, ou da
tragédia clássica, que poderiam auxiliar na sua construção dramática? Como se forma a
tragédia moderna no teatro de Nelson Rodrigues? As várias hipóteses foram surgindo aos
poucos, peça a peça. Com isso, o lugar-comum de que Nelson era obsessivo e repetia
inúmeras vezes uma forma não se sustenta: justamente ao contrário, cada peça é um caso
específico de uso estrutural. Evidente que, tematicamente, o dramaturgo repete os mesmos
motes: sexo, traição, homossexualidade, pedofilia, casamento, família etc.17 No entanto,
uma vez ligados a formas diferenciadas, as peças não se repetem esteticamente.

16
Northrop Frye comenta, em Anatomia da critica (tradução Péricles Eugênio da Silva Ramos, São Paulo,
Cultrix, 1973), esse aspecto curioso da comédia: desde os tempos mais antigos, a comédia possui quase a
mesma estrutura e tipos característicos. Sua estrutura básica e amplamente conhecida é a da comédia nova
grega.
17
A “obsessão” rodriguiana também pode ser observada no diálogo que o autor faz com sua própria obra. É
interessante notar as várias relações textuais dentro de seus textos. Ou seja, é possível identificar, entre as
7
Importante observar que alguns dos temas destacados pelo autor perderam sua
contundência com o passar dos anos. Aspectos apontados, como a virgindade, a traição e a
obsessão pelo sexo, já não têm mais o mesmo apelo. Por outro lado, nota-se uma face do
dramaturgo realmente muito pertinente, pois a abordagem de alguns temas suscita ainda
hoje um interesse no público. Talvez o envelhecimento de alguns assuntos seja o principal
motivo pelo qual muitas de suas tragédias provoquem no público o riso e não o seu
contrário, o terror.
A hipótese principal, para a qual as análises convergem, é de que Nelson Rodrigues
funda seu texto trágico pela mescla com o gênero cômico. Não é simplesmente uma mescla
sem propósito. O uso de recursos tradicionais da comédia, aliado ao aspecto trágico
presente na maioria das peças, provoca uma forte oposição interna e estrutural. Nesta
oposição, os elementos que se confrontam não se anulam, ao contrário, estabelecem um
jogo estético que permeia a obra e que se torna o grande eixo de desenvolvimento da ação
central. Trata-se do que prefiro chamar de “ambivalência trágica”, de acordo com a
interpretação nietzschiana da tragédia: uma ambivalência estrutural que, por si só, é capaz
de gerar um conflito interno nas peças rodriguianas. No entanto, estabelecido esse ponto
principal, surgiram os problemas quando percebi que a estrutura não se repete, existindo
um tipo de ambivalência trágico-cômica para cada peça. Por isso, este trabalho consiste em
analisar algumas peças do dramaturgo para verificar quais são os principais recursos
trágicos utilizados por ele, aliados a outros gêneros.
Essa tendência à mistura não é novidade, vem desde a Idade Média. A respeito de
Shakespeare, por exemplo, tanto Bárbara Heliodora quanto Northrop Frye reconhecem nele
a interferência de gêneros. Considerando a crítica carioca, ela afirma que Otelo18, tida como
tragédia e largamente aceita enquanto tal, foi construída sobre as bases de uma comédia.
Heliodora afirma que Shakespeare utilizou a estrutura da commedia dell’arte não apenas

várias peças do autor, trechos de falas que praticamente se repetem. Mas não apenas entre os textos
dramáticos; nota-se essa repetição também no caminho da crônica para o teatro e vice-versa. Exemplo disso é
sua crônica “A estrela do atropelado”, do livro O óbvio ululante. Um trecho do texto, praticamente sem
alterações, se repetirá na peça Anti-Nelson Rodrigues, logo na 1ª. cena do 1º. ato: “O culpado é meu pai que
não morre! Meu pai não morre e eu tenho que roubar!”, diz Oswaldinho. Na crônica, “Meu pai não morre e eu
tenho que roubar”, diz o jovem à mãe, assim como Oswaldinho disse à mãe, Tereza.
18
HELIODORA, Bárbara. Otelo, uma tragédia construída sobre uma estrutura cômica. In: Falando de
Shakespeare. São Paulo, Perspectiva, 1998. pp. 275-285.
8
para deixar claro que o ambiente no qual a peça se passa é Veneza, mas também para
destacar a sofisticação de Desdêmona, residente da cidade. Assim, é bastante significativo o
fato de o dramaturgo inglês ter-se baseado nesse tipo de teatro para o desenvolvimento de
sua tragédia, a fim de evidenciar o conflito entre o bárbaro errante e a sofisticada
Desdêmona. Com isso, a influência da commedia dell’arte em Otelo é sentida de várias
formas.

(...) é preciso lembrar, em primeiro lugar, que de todas as tragédias Otelo é a


única que para seu desenvolvimento apóia-se em grande escala sobre uma intriga, o
que em si é mais característica de comédia do que de tragédia.19

Mas existem outras aparentes coincidências. A composição do diálogo, a


caracterização das personagens e o conflito são elementos da comédia que embasam a peça
e permitem seu desenvolvimento. Suas várias semelhanças com a commedia dell’arte têm
de ser levadas em consideração, como o diálogo entre Iago e Cássio sobre Bianca, de tal
forma que Otelo pense que estão falando de Desdêmona; as intenções de Iago; ele enquanto
personagem, um menneur-du-jeu, ou seja, o zanni; além do tema do marido traído. A peça,
afirma a crítica, só é uma tragédia com uma excepcional crueldade devido à mestria de
Shakespeare, pois, partindo da situação dramática inicial, não se espera uma tragédia, mas
uma comédia.
Northrop Frye, por sua vez, faz um comentário inverso, da comédia que poderia
tornar-se uma tragédia: O mercador de Veneza. O crítico diz que se o papel de Shylock, o
judeu mercador da peça, fosse levemente exagerado em seu tom, a peça tornar-se-ia uma
tragédia, O judeu de Veneza, com um epílogo cômico20. Ora, essas interpretações são
perfeitamente possíveis no campo da dramaturgia, em especial porque, na montagem da
peça, o diretor pode dar o tom que preferir ao texto. Desse tipo de variação, temos notícia
de que a peça O jardim das cerejeiras, de Tcheckov, foi lida e interpretada por Stanislavski
como uma tragédia, embora o autor a denominasse comédia21.

19
Idem. p. 277.
20
Considerando-se que, após a Segunda Guerra Mundial, a personagem Shylock tornou-se trágica.
21
“Esta peça não é nem comédia nem farsa, como você me escreveu; é uma tragédia, seja qual for a solução
que você possa ter encontrado para uma vida melhor no último ato.” (Martin Esslin apud ARÊAS, Vilma,
Introdução à comédia, Jorge Zahar, 1990, p. 12)
9
Mas, no campo do teatro rodriguiano, como se dá o trânsito entre um e outro
gênero? A fim de responder a esta pergunta, desenvolvo a análise das peças. Como, no
entanto, o conjunto é muito amplo, estabeleci uma estratégia de investigação que serve de
entrada para o conjunto pretendido. Assim, a obra do dramaturgo é, a priori, dividida em
duas partes principais: o grupo da tragédia rodriguiana, do qual faz parte Senhora dos
afogados e, no outro extremo, o grupo dos gêneros mistos, do qual fazem parte peças como
A falecida e O beijo no asfalto. Essas peças são analisadas com o intuito de investigar a
composição de comédias e de tragédias modernas, sempre no intuito de dialogar com o
restante da obra do autor.
Para isso, a tese está dividida em três capítulos. No primeiro, o objetivo principal é
verificar, na fortuna crítica de Nelson Rodrigues, em textos recolhidos de jornais da época22
e em livros, o sentido do trágico em sua obra: as recorrências à tragédia clássica
identificadas pelos críticos e o que é entendido por moderno no texto rodriguiano. Este
capítulo está subdividido em três partes. Na primeira, faço uma retomada do contexto
histórico-teatral do início do século XX até o momento em que Nelson Rodrigues inicia sua
produção dramática. Em seguida, apresento a recepção crítica veiculada nos jornais
contemporâneos à montagem das peças a fim de que se possa entender a imagem criada em
torno do autor e com que freqüência é feita referência à tragédia e ao trágico. Por fim, com
a imagem já consagrada do dramaturgo, verifico como a crítica tem abordado esta questão,
principalmente nos textos escritos após 1980, data da morte do autor. Foi, sobretudo, nesse
momento que Nelson Rodrigues foi alçado ao patamar de cânone dramático. As inúmeras
releituras de seu teatro, seja no meio acadêmico ou no meio teatral, reforçaram esse seu
status. Nos últimos anos, no entanto, vê-se que há um movimento de repensar essa
condição do autor.
Verificada a imagem de dramaturgo trágico e/ou tragediógrafo, no segundo capítulo
a idéia é repensar qual o uso da tragédia clássica em Nelson Rodrigues; quais as
recorrências temáticas e estéticas da tragédia aristotélica embutidas na obra do autor. Por
outro lado, não é possível deixar de verificar os usos às avessas dos elementos do gênero,

22
Esses textos utilizados, coletados em sua grande maioria do arquivo da Biblioteca Nacional, estão
agrupados na separata que acompanha a tese.
10
por exemplo, no tratamento do coro e do herói. Isso não invalida a ligação do texto
rodriguiano com o trágico, apesar de revestido pela modernidade brasileira, o que exigiu o
exame da relação do trágico com a nossa sociedade no século XX e qual o sentido que ele
adquire no convívio com a religiosidade. Devo também considerar o uso de elementos
diversos, que não são trágicos, mas que são absorvidos na dramaturgia moderna: o
grotesco, o violento, o sádico, o cômico. No final desse capítulo, procuro delinear como se
formaliza a tragédia moderna rodriguiana em Senhora dos afogados. Nesse conjunto de
textos, encontramos fortes referências psicanalíticas23. É possível perceber, no entanto, que
o autor faz uma leitura da psicanálise pela ótica do senso comum. Este é um movimento
semelhante ao que ele faz da leitura da tragédia. Ou seja, o que se vê nessa dramaturgia é a
apropriação de alguns temas e formas que se banalizaram pelo filtro popular.
Por fim, no último capítulo, dedico-me a analisar formatos nitidamente inovadores,
com forte influência do urbano. Assim, as peças A falecida e O beijo no asfalto são objetos
de análise, sendo entendidas como comédias trágicas e tragédias urbanas. Ao deixar de
lado os aspectos míticos em sua obra e ingressar no suburbano carioca, não
necessariamente o autor aboliu as referências trágicas de seus textos, mas acabou
mesclando-os à urbanidade que o acompanhará. Também não é possível afirmar que, por
estarem agrupadas sob a designação de cariocas, as oito peças que compõem essa divisão
sejam iguais ou com estruturas semelhantes. O que se vê são proximidades temáticas e
estéticas. Se a urbanidade as aproxima, as estruturas fundamentais são distintas em sua
composição, no caso dessas duas peças, alterando significativamente a caracterização.
Do conjunto de suas 17 peças, há textos que se destacam no cenário do teatro
brasileiro como verdadeiras obras-primas, pela composição dramática, modernidade do
texto e qualidade literária. Impossível não atribuir um caráter revolucionário a Vestido de
noiva e a A falecida. No entanto, creio que seja necessário ponderar a figura do dramaturgo
como cânone incondicional. Dentre todas as peças escritas, há irregularidades em sua
produção no que tange à qualidade. O que gostaria de ressaltar é que Nelson Rodrigues foi
23
Para maiores informações sobre a leitura psicanalítica do teatro rodriguiano, além dos textos de Hélio
Pellegrino, acoplados ao Teatro completo (vol. 4), ver também: MARTUSCELLO, Carmine. O teatro de Nelson
Rodrigues: uma leitura psicanalítica. São Paulo, Siciliano, 1993; SALOMÃO, Irã. Nelson, feminino e
masculino. São Paulo, 7Letras, 2000.

11
alocado ao posto de maior dramaturgo brasileiro e esse caráter pouco tem sido discutido. O
mais importante, nisso tudo, é matizar a obra de Nelson Rodrigues e não colocá-la
integralmente como genial, em uma posição desprovida de crítica. Adriana Facina, que fez
uma leitura antropológica da obra rodriguiana, também faz essa ressalva:

Porém, um aspecto empobrecedor de tal unanimidade é a transformação do


autor maldito, polêmico, em gênio inquestionável. É como se tudo o que Nelson
escreveu possuísse o timbre da genialidade, não importa que se fale de Vestido de
noiva ou dos folhetins de Suzana Flag. (...) Toda essa exaltação acrítica acaba por
produzir uma visão homogeneizadora sobre autor e obra, que encobre suas
contradições e ambigüidades. 24

24
FACINA, Adriana. Santos e canalhas: uma análise antropológica da obra de Nelson Rodrigues. Rio de
Janeiro, Civilização Brasileira, 2004, pp. 92-93.
12
CAPÍTULO I
IMAGENS E LEITURAS: A VISÃO DA CRÍTICA SOBRE O TRÁGICO RODRIGUIANO

“Eu não estaria bem em lugar nenhum, em


regime nenhum, porque eu sou um autor
inconveniente, sou um jornalista
inconveniente, um jornalista que não
interessa a ninguém.”

(Nelson Rodrigues)

N ão sem alguma discordância, o nome de Nelson Rodrigues tem se consagrado


nos últimos anos como o principal dramaturgo brasileiro do século XX,
especialmente pela marca do moderno no espaço cênico e dramático. Do mesmo modo,
suas peças têm sido largamente vinculadas à tragédia, quase sem contestação. Assim, ao
falar-se do teatro de Nelson Rodrigues, imediatamente pensamos em tragédias, mais
notadamente naquelas denominadas míticas e que estão agrupadas no segundo volume do
Teatro completo1. Quando, então, nos referimos às tragédias cariocas, pela própria
adjetivação “carioca”, pensamos em uma peça de gênero impuro, contaminado por
elementos caracterizantes do Rio de Janeiro, especialmente a linguagem popular. Por outro
lado, defrontamo-nos com cinco peças fora dessa categorização comumente considerada
aristotélica: são aquelas reunidas no primeiro volume e chamadas de psicológicas, embora
nesse volume encontremos peças bastante diferentes umas das outras, como Vestido de
noiva e Viúva, porém honesta – respectivamente uma tragédia e uma farsa irresponsável,
segundo nomenclatura do próprio Nelson.
Apesar dessa divisão, a qualificação de tragédia foi pouco questionada por alguns
estudos críticos posteriores à compilação da obra e praticamente estendida a quase todas
elas. Este foi um processo que se repetiu em várias leituras deste teatro, a princípio feitas

1
Ao longo da tese, para todas as citações, utilizo a primeira edição do Teatro completo lançado em quatro
volumes pela Nova Fronteira entre 1981 e 1990, cuja organização e introdução são de Sábato Magaldi. A
divisão foi feita da seguinte forma: 1º volume, Peças psicológicas: A mulher sem pecado, Vestido de noiva,
Valsa nº 6, Viúva, porém honesta e Anti-Nelson Rodrigues. 2º volume, Peças míticas: Álbum de família, Anjo
negro, Dorotéia e Senhora dos afogados. 3º e 4º volumes, Tragédias cariocas: A falecida, Perdoa-me por me
traíres, Os sete gatinhos, Boca de ouro, O beijo no asfalto, Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas ordinária,
Toda nudez será castigada e A serpente.
pelos críticos de jornais, depois pelos estudiosos acadêmicos, ora vinculando-o a uma
noção de tragédia clássica, ora investigando o sentido trágico latente em seus textos – o que
de fato existe e é bastante perceptível. Neste capítulo, pretendo mostrar como Nelson
Rodrigues é identificado a tais aspectos em dois momentos bem demarcados: 1) durante os
quarenta anos de sua produção dramática, quando então surgem as primeiras ligações de
sua obra à tragédia clássica; 2) após sua morte, como a academia e a produção bibliográfica
tratam essa questão, considerando como ponto de partida a introdução de Sábato Magaldi
para a primeira edição do teatro completo2. Antes, porém, para compreender a repercussão
de seus textos e a calorosa discussão em torno do gênero tragédia, julgo interessante fazer
referência ao contexto histórico-teatral até o início da carreira do dramaturgo, a fim de
compreender como foi o processo de modernização teatral e o impacto que o teatro de
Nelson Rodrigues causou no público e na crítica.

1.1 – Entre a convenção e o moderno... o teatro no início do século XX

Convencionou-se dizer que o teatro moderno brasileiro começou na década de 1940,


com o surgimento de vários grupos amadores, a inserção do diretor teatral no lugar do
simples ensaiador e uma produção dramática com inovações estéticas. Traduzindo isso em
nomes, a crítica em geral tem considerado como marco do teatro moderno a encenação de
Vestido de noiva, de Nelson Rodrigues, pelo grupo amador Os comediantes sob direção do
polonês Ziembinski. Grosso modo, até o início dos anos 40, não havia uma produção teatral
de fôlego no Brasil que estivesse à altura do nosso modernismo, surgido em 19223. Mesmo
com nomes de relevo no período, o país não possuía uma tradição dramática rica, sem
rupturas e equívocos, da qual pudesse herdar tendências e expressões estéticas. Em suma, o

2
A introdução ao teatro quase completo, de Pompeu de Souza, encaixa-se no primeiro grupo. Pretendo
contemplar neste segundo grupo textos escritos após a morte do dramaturgo, em 1980.
3
Nas palavras de Décio de Almeida Prado: “Cada arte pode alegar um ‘monstro sagrado’ que a representou
valorosamente no período heróico do movimento [do modernismo], entre a exposição estética de 22 e a crise
econômica de 29. A música possui Villa-Lobos; a pintura, Di, Tarsila, Anita Malfatti; a poesia e o romance,
Mário ou Oswald de Andrade. Só nós, dramaturgos e comediógrafos, encenadores e críticos dramáticos, não
temos nenhum ancestral modernista ilustre sob cuja sombra protetora nos abrigar. A verdade, a dura verdade,
é que não estivemos na Semana de Arte Moderna, nem presentes, nem representados por terceiros. A história
de nossa renovação, forçoso é confessá-lo, inicia-se quase duas décadas depois.” (O teatro e o modernismo in:
Peças, Pessoas, Personagens, 1993, p. 15)
14
teatro nacional ficou à deriva pelo menos por 30 anos4. O sentimento de inexistência cênica
por aqui já vinha de longe, dos próprios intelectuais do momento, como Renato Vianna e
Álvaro Lins. Ana Bernstein explicita isso claramente no primeiro capítulo do livro A crítica
cúmplice, em que faz uma retomada do momento teatral de 1930 a 1940. Diz a autora:

Da análise destes e de inúmeros outros exemplos verificamos que, quando se


trata de justificar o “anêmico”, “débil”, “inexistente”, “vago e imponderável” teatro
brasileiro ou seu atraso em relação às demais artes, alguns pontos são
reiteradamente invocados: é constante, por exemplo, a menção à ausência de uma
dramaturgia nacional bem como a recusa de gêneros considerados como formas
ligeiras de diversão (o “teatro para rir”), a crítica às montagens descuidadas e
apressadas que privilegiam sempre a vedete da companhia, e, como veremos
adiante, o “mau gosto” do público.5

É claro que não há como negligenciar autores representativos entre 1910 e 1943,
como Roberto Gomes e seu teatro simbolista; Oswald de Andrade; Mário de Andrade, que
escreveu Café, uma ópera; e a crítica modernista de Alcântara Machado. Houve também
autores menos lembrados, mas que foram representativos em sua época, como Renato
Vianna; Oduvaldo Vianna; Paulo de Magalhães e Joracy Camargo. Exceto Roberto Gomes,
os primeiros são todos personagens que figuraram no panorama literário brasileiro e se
aventuraram pelo campo teatral. Gomes, que além de dramaturgo foi também crítico teatral,
morreu em dezembro de 1922, antes mesmo de o modernismo ter produzido seus frutos por
aqui. Por assim dizer, ele representou, tardiamente, o que Szondi chama de “a crise do
drama”6. Já o segundo grupo citado, que produziu especialmente nas décadas de 20 e 30,

4
Tenho por base para essa afirmação a data de morte de Arthur Azevedo (1908), autor que viveu e lutou por
um teatro genuinamente nacional. Para maiores informações sobre o autor e sua vivência teatral, ver NEVES,
Larissa de Oliveira. As comédias de Arthur Azevedo – em busca da história. Tese de doutorado. Unicamp,
IEL, 2006. Ver também PRADO, Décio de Almeida. História concisa do teatro brasileiro. São Paulo, Edusp,
1999. No penúltimo capítulo dessa despretensiosa história, o crítico teatral dedica algumas páginas a Arthur
Azevedo e às suas burletas, principal gênero escrito por ele. “O nome de Arthur Azevedo (1855-1908) tem
surgido com freqüência nestas páginas. É que, entre 1873, quando chega ao Rio, com 18 anos, vindo do
Maranhão, e 1908, ano em que ele morre, ele foi o eixo em torno do qual girou o teatro brasileiro.” (p. 145)
Não à toa, a história do teatro escrita por Décio pára justamente no ano da morte do dramaturgo.
5
BERNSTEIN, Ana. A crítica cúmplice. Décio de Almeida Prado e a formação do teatro brasileiro moderno.
São Paulo, Instituto Moreira Salles, 2005. p. 37.
6
SZONDI, Peter. Op. cit., 2001. A crise do drama à qual Szondi se refere inicia-se no final do século XIX,
propriamente no início de sua investigação, 1880, e culmina na virada do século, quando surgem tentativas de
salvamento da estrutura dramática. É representativa dessa crise uma incongruência entre o conteúdo das peças
e sua estrutura estética – esta era incapaz de acompanhar as modificações históricas do homem e de traduzir
15
teve um projeto teatral modernista sem, no entanto, conseguir colocá-lo em prática. É neles
que eu me detenho um pouco mais a partir de agora.7
Malgrado uma situação teatral estagnada, com hábitos e concepções provenientes
ainda do século XIX, estes autores tentaram dar os primeiros passos no campo modernista.
Ou como afirma Décio de Almeida Prado:

As primeiras tentativas de renovação partiram de autores que, embora


integrados econômica e artisticamente no teatro comercial, dele vivendo e nele
tendo realizado o seu aprendizado profissional, sentiam-se tolhidos pelas limitações
da comédia de costumes. Pessoas, enfim, que, sem romper de todo com o passado,
desejavam dar um ou dois passos à frente, mais no campo da dramaturgia, em que
atuavam, que no espetáculo.8

Ainda que esses autores estivessem produzindo peças comumente levadas à cena,
não é possível dizer que o possuísse uma corrente que alavancasse a literatura dramática ao
desejado padrão moderno9. Em um primeiro momento, no início do século, as encenações
teatrais vinham de fora, de companhias européias, ou eram monopolizadas por companhias
cariocas que não se preocupavam com a mise-en-scène, com ensaios ou, minimamente, em
decorar textos. Destacam-se como exemplos de atores-empresários: Brandão, o
Popularíssimo, e Machado Careca, seguidos de Leopoldo Fróes. Na década seguinte, anos
1920, é Procópio Ferreira quem começa a dominar os palcos do Rio de Janeiro: aos 21
anos, ele já conquistara o público e, aos 25, era dono da própria companhia teatral.

Procópio teve a sorte, não concedida a muitos, de ver a sua estréia coincidir
com um período de eclosão do teatro nacional, depois de várias décadas em que
fora literalmente esmagado pela concorrência estrangeira, de atores franceses,
italianos, espanhóis e portugueses. É o instante em que triunfa no Rio no Teatro
Trianon, em que Apolônia Pinto reaparece, em que Leopoldo Fróes se firma, em

seus conflitos internos. Assim, há um rompimento com a estrutura representativa do drama, a saber: a relação
intersubjetiva, o diálogo e o tempo presente.
7
Prefiro não me expandir sobre os modernistas Oswald e Mário de Andrade por julgar que existem trabalhos
importantes sobre suas obras que abordam também a questão do teatro.
8
PRADO, Décio de Almeida. O teatro brasileiro moderno. 2ª. ed. São Paulo, Perspectiva, 2001. p. 22. No
mesmo ensaio, o crítico faz a seguinte citação: “Rir! Rir! Rir! – prometiam não só modestos espetáculos do
interior mas também a publicidade impressa nos jornais pelas companhias mais caras do país. Entre as 174
peças nacionais apresentadas no Rio de Janeiro, no triênio 1930-1932, apenas duas intitulavam-se dramas,
contra 69 revistas e 103 comédias” (OGAWA apud PRADO, p. 20)
9
Vale lembrar que neste período houve uma larga produção no campo das comédias e do teatro ligeiro.
16
que Abigail Maia passa das canções à comédia, em que emergem autores como
Viriato Corrêa e Armando Gonzaga, Gastão Tojeiro e Oduvaldo Viana.10

Com a tentativa de companhias criadas nos anos seguintes, preocupadas em pôr em


prática um novo padrão de encenação, com jovens atores e diretores interessados e
idealistas (tomemos como exemplo o TBC, fundado em 1948 em São Paulo), Procópio
Ferreira, que se impôs nos palcos do Rio de Janeiro e São Paulo até o final da década de
5011, perdeu espaço para os espetáculos surgidos com esse movimento. Havia uma corrente
tentando elevar o teatro a um patamar mais sério, movida especialmente pelos grupos
amadores no final da década de 30 e início de 40. No entanto, antes desse momento de
profissionalização teatral surgida com o TBC, Procópio Ferreira, talvez o ator mais
renomado do momento, pouco se preocupava em ensaiar ou até mesmo em decorar suas
falas, como era praxe dos denominados atores-empresários. Tudo dependia de sua
performance no palco:

Alfredo Mesquita, que teve uma comédia sua, A esperança da família,


representada por Procópio em 1936, contou mais de uma vez, por escrito e
oralmente, como se processaram os ensaios. O período de preparação não
ultrapassou os seis ou sete dias protocolares. Procópio não participou, só se
juntando aos seus companheiros de elenco na noite da primeira representação. Veio
de casa já caracterizado, com o papel sabido, e todos os efeitos cômicos bem
preparados. Passara para a sua personagem algumas das réplicas espirituosas
alheias e explicou logo por que: ditas pelos demais componentes do grupo não
despertariam riso. O problema de sua movimentação no palco, ajustando-se à dos
outros atores, resolvera-se facilmente: fora-lhe reservado, nas cenas em que estava
presente, o centro do palco. Ele funcionava assim como um eixo mais ou menos
fixo em torno do qual girava o espetáculo.12

Ou seja, o modo de representação de Procópio não diferia daquele praticado entre


nós no século anterior e, principalmente, no início do século XX. Assim, até propriamente
este momento, era evidente um descompasso entre a produção literária modernista e a
produção teatral, ainda fortemente presa às raízes do que fora outrora no século XIX. É
10
PRADO, Décio de Almeida. Procópio Ferreira (um pouco de prática e um pouco de teoria). In: Peças,
pessoas, personagens. São Paulo, Companhia das Letras, 1993. p. 50.
11
Informações sobre Procópio Ferreira e sua atuação na era modernista do teatro, ver PRADO. Idem. pp. 41-
91. Segundo o crítico, Procópio Ferreira reinou inconteste, por quase trinta anos, como o ator mais engraçado
de um teatro que se pretendia apenas cômico.
12
Idem. p. 64.
17
importante observar que nos anos 50 e seguintes tal estratégia de encenação não deixou de
existir, embora as empresas que montavam exclusivamente comédias ligeiras começassem
a disputar espaço com companhias que se preocupavam com aspectos estéticos a renovação
das peças.
Não apenas autores e companhias eram despreocupados com a qualidade estética
das montagens e dos textos, a crítica também permanecia estagnada conforme padrões já
ultrapassados. Bernstein afirma que até os anos 1940 – época em que Décio de Almeida
Prado começou a praticar a crítica teatral – ela continuava como nos anos de Artur
Azevedo:

A verdade é que, excetuando-se a atuação de Antônio de Alcântara Machado


(...) a crítica que se fazia até meados da década de 1940 não era uma crítica stricto
sensu. Quase todos os jornais possuíam um espaço destinado ao noticiário teatral,
onde vez por outra saíam as “Primeiras” (primeira – e na maioria das vezes única –
avaliação de um espetáculo), que tanto podiam ser publicadas sem assinatura, não
se distinguindo muito das demais notícias teatrais, como podiam ser identificadas
por iniciais, sendo comum ainda o uso de pseudônimos. Aos poucos, porém,
começam a ser mais freqüentes as críticas assinadas de fato.
O formato dessas críticas é tipicamente curto, de 15 a 20 linhas no máximo,
não fazendo, de hábito, nenhuma objeção ao espetáculo. Mas o que nelas chama a
atenção é o seu tom próximo à crônica social, onde os critérios mais fartamente
empregados são o bom gosto, a beleza, a correção, a elegância e a graciosidade das
atrizes, o brilho dos cenários, a comicidade do texto, a leveza da peça.13

O texto jornalístico denominado “crítica”, que estava mais próximo da crônica,


segundo a autora, continuará por muito tempo assim. Os primeiros textos de avaliação da
dramaturgia rodriguiana, no início da década de 1940, possuem exatamente tais
características. Além de tudo, somava-se a eles o caráter publicitário desse tipo de texto, do
qual inclusive Nelson Rodrigues muito irá se aproveitar.
As peças que faziam sucesso eram principalmente as comédias ligeiras, burletas,
vaudevilles e chanchadas, conforme afirma Ronaldo Lima Lins14. Foi esse tipo de teatro
que vigorou no Brasil e que sustentou gerações de artistas que vieram posteriormente.

13
BERNSTEIN, A. Op. cit., 2005. pp. 45-46.
14
LINS, Ronaldo Lima. O teatro de Nelson Rodrigues: uma realidade em agonia. Rio de Janeiro, Francisco
Alves/ MEC, 1979. Ele faz a seguinte afirmativa: “A ‘chanchada’, nome que recebeu esse gênero, absorve
18
Roberto Gomes15, um exemplo, dramaturgo que pouca atenção tem recebido nos
estudos literários, produziu basicamente na década de 1910 e, em algumas de suas peças,
pode-se estabelecer um paralelo em relação àquilo que Szondi determina como “a crise do
drama”: ele usa como objeto de conflito de suas peças angústias e desconfortos do homem
moderno, temas tabus como o incesto e a traição feminina – problemas que mais tarde
Nelson Rodrigues também tomará como ponto crucial para seu teatro –, mas em algumas
de suas peças, é perceptível uma tentativa de enquadramento de sua estrutura às três
unidades dramáticas. Em outras palavras, há uma incongruência entre forma e conteúdo,
uma vez que a estrutura fechada do drama é insuficiente para abordar temas inerentes ao
espírito do homem moderno. O homem, enquanto ser isolado e individualizado, não é
amplamente representado pela estrutura intersubjetiva e dialógica, sendo melhor transposto
para o palco se apresentado em outra estrutura, como o fizeram Maeterlinck com seu drama
estático, repleto de momentos de silêncio em oposição ao habitual diálogo dramático.
Ele talvez seja o autor dramático que mais ressalte essa característica de crise
dramática no Brasil e, dentre suas peças, uma das que mais chamam a atenção é A casa
fechada, escrita em um ato, em 191916. Neste ato, ele manifesta uma tendência em alterar a
estrutura aristotélica do início de sua carreira dramática.
Ao contrário do que podemos encontrar nas peças iniciais de sua carreira, como O
canto sem palavras (encenada em 1912), quando os bifes dos diálogos compunham grande
parte do texto, exagerando na divagação poética, A casa fechada compõe-se basicamente de
diálogos rápidos, incisivos e irônicos. Com o foco centrado muito mais na situação do que
na ação, a peça se desenvolve em uma pequena cidade interiorana, com as personagens-tipo
fofocando na porta do Correio. O fato que motivou a aglomeração das personagens e os
comentários sobre a vida alheia foi o adultério cometido por Maria das Dores, surpreendida
pelo marido na noite anterior. Na espera da adúltera sair da casa (que fica ao fundo da

inteiramente, e sem escrúpulos, aquelas formas de excesso das quais Antonio Candido julgava nossa literatura
livre antes de 22, isto é, o grotesco, o erótico, o obsceno.” (p. 50)
15
Roberto Gomes escreveu ao todo apenas nove peças. Dessas, a primeira, escrita em francês e ainda na
adolescência (Le Papillon), pode ser descartada do conjunto significativo de seu teatro. O INACEN publicou
as oito peças em um único volume. As peças são: Ao declinar do dia..., O canto sem palavras, A bela tarde, O
sonho de uma noite de luar, O jardim silencioso, Inocência, Berenice e A casa fechada.
16
Apesar de escrita em 1919, a peça só foi encenada em 21 de novembro de 1953 no Teatro Municipal do Rio
de Janeiro, durante o II Festival do Rio de Janeiro.
19
cena), aos poucos vão se juntando curiosos à espreita do que acontecerá com a protagonista.
Mistura-se o clima tenso em torno do adultério com a ironia fina em relação às atitudes
curiosas e, por vezes, maledicentes das personagens. Em uma descrição que beira o
naturalismo, ficamos sabendo que o marido espancou a esposa a noite inteira para que ela
dissesse o nome do amante, mas ela permaneceu calada. As personagens são tipos como o
pescador, o boticário, o barbeiro, a agente do correio etc. Considerada, juntamente com
Berenice, uma peça de transição17, ela aponta também para a tendência moderna por
misturar aspectos tensos com a ironia em relação à vida quotidiana, por tentar promover a
alteração da representação da dor da personagem ao colocá-la calada frente à sua desgraça
– aqui, uma nítida influência do teatro simbolista. Infelizmente, o dramaturgo não chegou a
desenvolver esses aspectos devido à sua morte prematura.

Há duas décadas, foi descoberto o ato Casa Fechada, que trai a inspiração
melodramática e o desejo de aparentar profundidade e mistério no desfecho, ao qual
serviria a frase conclusiva: há na terra dramas que escapam à razão humana e só
Deus sabe o seu fio. Não obstante essa restrição básica, a peça prende o interesse da
platéia, pela observação das personagens e do ambiente retratado. A par do
problema da “casa fechada”, apresentam-se os tipos comuns da cidade e do interior
– a mulher que não perdoa o erro alheio, a compreensiva, a mexeriqueira histérica,
o boticário, o barbeiro e tantos outros – que, em rápida caracterização, oferecem o
quadro de costumes e de sentimentos fixadores de almas tão triviais.18

Roberto Gomes mantém elementos herdados do teatro simbolista, especialmente de


Maeterlinck, e do “teatro da paixão” francês, cujos representantes seriam Henri Bataille e
Bernstein19. Estas são influências que ele manterá em toda sua obra, desde Ao declinar do
dia... até A casa fechada. Apesar de ter a intenção de elevar o teatro nacional a certo status
literário, suas peças causaram grande estranhamento ao público da época – acostumado que
estava, como vimos, com as comédias ligeiras –, justamente por causa das características de
dramas europeus que ele buscava valorizar: o conflito interiorizado e a sensibilidade do
público por meio de elementos que vão além da mera palavra, como um soluço, um suspiro,
um silêncio.
17
Para maiores detalhes, ver COSTA, Marta Morais da. Em cena, pequenas sombras frágeis. In: GOMES,
Roberto. Teatro de Roberto Gomes. Rio de Janeiro, INACEN, 1983.
18
MAGALDI, Sábato. Panorama do teatro brasileiro. 3. ed. São Paulo, Global, 1997. p. 185.
19
Informações retiradas de COSTA, M. Op. cit., 1983.
20
Algumas peças da década de 1930 também se inclinam a esta tendência, inclusive
algumas comédias, que pretendiam fugir do estereótipo das comédias ligeiras e chanchadas
que havia se formado. Neste último campo, a título de ilustração, Paulo de Magalhães
escreveu a “comédia em três atos e epílogo” Mais forte que o amor. Quase totalmente
desprovida de valor literário (e ainda menos de valor cênico), a peça está mais para um
drama pseudo-psicológico do que para a comédia. Em resumo, a história apresentada é a de
Lotário, inventor de um avião moderno, que, apaixonado por Laura, é manipulado por ela e
pelo ministro da Defesa da imaginária República da Parvônia. Lotário tem seu invento
utilizado para fins bélicos, numa guerra intencionalmente provocada a fim de
enriquecimento. Seu único filho, Raul, será recrutado para lutar na guerra e é morto em
combate. O conflito central é de Lotário, que se encontra entre o amor que sente pela
mulher manipuladora e seu idealismo de paz. A peça lança mão de frases como:

LOTÁRIO – Mentira! Tudo mentira! E o mundo desde então, acreditando nessas


mentiras iniciais, adotou um lema lamentável: – Mentir é viver. Viver é mentir.20

Ou então, em um curioso diálogo com sua consciência, Lotário faz a seguinte


exclamação:

LOTÁRIO – Preciso consultar-te. Sofro a mais torturante das tragédias íntimas!


O meu coração pede para que eu capitule ante o amor dessa mulher. O meu cérebro
exige que eu cumpra o meu ideal. A quem devo obedecer?21

Na tentativa de colocar em cena elementos psicologizantes, como este estranho


diálogo entre Lotário e sua consciência, o texto dramático recai muito mais em reflexões
filosóficas superficiais como “mentir é viver. Viver é mentir”. Superficial também em
aspectos de construção estética e ideológica, tudo no texto é explicado em pormenores,
pecando pelas repetições excessivas, além de desembocar no que há de pior do
melodramático.
Dentre os autores destacados, Joracy Camargo foi o que mais obteve sucesso na
época. Com Deus lhe pague, comédia em três atos, estreada em 1932, ele inaugura uma
20
MAGALHÃES, Paulo de. Mais forte que o amor. São Paulo, Livraria Teixeira, s.d. p. 11.
21
Idem. pp. 32-3.
21
nova fase da dramaturgia brasileira, abdicando da comédia ligeira e lançando mão de
tendências marxistas em seu diálogo, o que conferem à peça um caráter inédito. Karl Marx
era então concebido como “o grande profeta dos tempos modernos”, nas palavras de Décio
de Almeida Prado. Inicia-se, assim, a chamada fase do teatro de frases (que Oswald de
Andrade denomina, em O rei da vela, de “teatro de tese”). Deus lhe pague foi um imenso
sucesso de bilheteria tanto no Rio de Janeiro quanto em São Paulo. Procópio Ferreira
gostava de dizer que a encenou mais de três mil vezes – e, de fato, não estava exagerando.
A peça concentra-se principalmente na conversa de Mendigo com o Outro, na porta de uma
igreja, enquanto esperam que os transeuntes lhes dêem esmolas. O primeiro (auto-
denominado “filósofo”), jogado à margem da sociedade e impedido de enriquecer pelo
trabalho, tornou-se rico pela mendicância. Ele tem como amante a jovem Nancy, que por
sua vez é amante de Péricles, com quem pretende fugir. Em meio a uma disputa retórica
com Péricles, Mendigo convence, pela inteligência, Nancy a permanecer ao seu lado: é a
sabedoria sobreposta à beleza e à juventude. Segundo Décio de Almeida Prado, essa
personagem traduz-se como amável porta-voz do autor22. É o crítico quem faz uma
importante observação a respeito da peça:

Toda a originalidade da peça concentra-se no terceiro papel, o do Mendigo, ou


seja, do homem que, rejeitado pela sociedade, reduzido à mendicância, faz dela não
só uma profissão, das mais rendosas se bem exercida, mas também um posto de
observação que, por seu próprio caráter marginal, permite-lhe a isenção e o
distanciamento do verdadeiro sábio. Sentado nos degraus da igreja, confabulando
com o Outro, o seu interlocutor ideal, porque nada sabe e tudo quer saber, ele
contempla a humanidade como que do alto, acabando por compreender que é a
sociedade, não o indivíduo, a culpada pelos males econômicos do mundo moderno.
Combinando curiosamente as delícias da “conversa fiada” com o mordente das
análises marxistas (embora superficiais), ele surge ante os olhos de seus
companheiros como um miraculoso deus ex machina, divindade descida do céu das
idéias puras, onde cintila a Inteligência, para resolver os pequenos problemas em
que se debatem pessoas não mais que humanas como Nancy (a mulher) e Péricles
(o rival).23

Recheada de diálogos falsamente profundos e de tiradas socialistas e marxistas, a


peça permanecerá por muito tempo como o grande texto revolucionário da nova

22
PRADO. Op. cit., 1993.
23
Idem. p. 69.
22
dramaturgia brasileira (lembremos que O rei da vela, de Oswald de Andrade, escrita em
1933 e publicada em 1937, só foi encenada em 1967). De certa forma, esse estranho
idealismo e o superficial marxismo refletiam o sonho e o desejo de uma geração inteira.
Outras peças escritas pelo mesmo dramaturgo e também representadas por Procópio
Ferreira não chegaram a tamanho sucesso, como Maria Cachucha e Anastácio.
Em setembro do ano seguinte, Oduvaldo Vianna apresenta, pela Companhia
Dulcina-Durães-Odilon, Amor..., peça com a qual o dramaturgo também levanta uma
bandeira. Dessa vez, é em defesa do divórcio. Lainha, a protagonista da peça, desconfia
seriamente da fidelidade de seu marido, Arthur, e controla todos os seus passos. Tantas
artimanhas cria que acaba jogando-o nos braços de sua amiga Madalena. Esteticamente, a
peça inova na divisão do palco em cinco quadros, horizontais e verticais, de forma que é
possível ao espectador acompanhar duas ações simultâneas. No entanto, o maior interesse
do dramaturgo está expresso na última fala da peça, quando Pedro, depois de ouvir de
Catão as inconstâncias do casamento de Lainha e Arthur, declara:

Mundo, ouvi a minha voz! Jeová abençoa o verdadeiro amor. Que se rasgem
todas as leis hipócritas da humanidade infeliz. Que se rompam todos os
preconceitos sobre os quais se assentam as bases falsas de uma sociedade de
tartufos! Que os Catões arranquem as velhas barbas de papão. Jeová receberá os
que amam com sinceridade, com pureza, com verdade. Essa é a lei verdadeira.
Amor! Que o casamento não seja um negócio comercial, abençoado pela igreja, e,
os que vivem infelizes procurem, na sinceridade de um amor verdadeiro, a
felicidade a que têm direito os que nascem, e crescem, e vivem!...24

Apesar de ter começado a escrever ainda na década de 1920, Renato Vianna


consagrou-se na década seguinte com os dramas Sexo (1934) e Deus (1935); esta é
denominada como “o drama angustioso do século”. O idealizador de A batalha da quimera
foi considerado, por alguns, um “precursor de Nelson Rodrigues” e também do
modernismo teatral, por supostamente tratar de temas freudianos. Freud era considerado,
nestes primeiros decênios da psicanálise, um dos elementos que trariam – e explicariam – o

24
VIANNA, Oduvaldo. Amor... e Canção da felicidade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1934. pp. 114-
115.
23
mundo do inconsciente e subconsciente no palco e na literatura.25 O biógrafo de Renato
Vianna, Sebastião Milaré, em entrevista ao Jornal da Tarde em 4 de abril de 1994, comenta
o seguinte a respeito da qualidade literária de suas peças:

Os diálogos [são] secos, rápidos, cortante [sic]. Que antecipam Nelson


Rodrigues. A influência de Renato Vianna sobre Nelson para mim é clara. Mesmo
porque Roberto Rodrigues, o irmão de Nelson, foi amigo de Renato e colaborou
como ilustrador em jornais editados por ele.

Ora, deixando em suspenso essa possível influência, a ação precursora de Renato


Vianna é notável, especialmente por sua intenção de alçar o teatro à esfera modernista ao
lançar A batalha da quimera, engajado que era no movimento modernista, ao lado de
Oswald de Andrade, Álvaro Moreyra e Alcântara Machado:

Muito embora o teatro profissional tenha se mantido alheio às renovações


ocorridas mundialmente no período, uma tentativa de modernização, na esfera
amadora, deu-se com Renato Vianna que lançou, em 1922, no Rio de Janeiro, a
Batalha da Quimera, movimento que, sob a influência do Futurismo, tentava
mostrar ‘pela primeira vez no Brasil, o teatro de síntese, de aplicação da luz e do
som com valores dramáticos, da importância dos silêncios, dos planos cênicos e da
direção’ (Doria apud Guinsburg et al.)26

O movimento teve como responsáveis, além de Vianna, Villa-Lobos e Ronald de


Carvalho. No entanto, mesmo com tamanha proximidade do modernismo, suas intenções
não atingiram seus textos teatrais, que pouco têm de inovador, principalmente por sua
antiquada visão de teatro, conforme avaliação de Décio de Almeida Prado. Visão que se
traduz por tentativas inócuas de elevar a linguagem teatral a um desejado patamar literário,
mas sem conseguir se desembaraçar do conteúdo excessivamente didático e auto-
explicativo.
Com evidente influência do teatro de Roberto Gomes, o autor tenta representar a dor
e o sofrimento pelo silêncio. Mas em clara discrepância com o modelo, ele lança mão de

25
Décio de Almeida Prado comenta: “Não tardou para que a efervescência reinante no Brasil fizesse descer
sobre a nossa cena a segunda grande divindade da ciência e da arte do século XX: Freud.” (Op. cit., 2001, p.
24)
26
GUINSBURG, J. et al (coord.). Dicionário do teatro brasileiro: temas, formas e conceitos. São Paulo,
Perspectiva/ SESC SP, 2006. p. 183.
24
excessivas elucubrações filosóficas nos solilóquios de suas personagens. Em defesa de sua
tese, por exemplo, o autor coloca, em Deus, na voz do padre Leonel27, a moral cristã
anteposta ao avanço científico, privilegiando o primeiro. Vejamos o que padre Leonel fala à
jovem Sônia, moça com casamento marcado, mas com vocação religiosa podada pelo pai,
Roberto:

LEONEL – Não. Isso não é amor. É desespero. É ódio. É instinto. É paixão. O


amor é uma necessidade puramente moral e a sua duração toma o nome de amizade.
Esse é o amor humano. Ninguém pode viver sem ele. Todos necessitamos de amar e
ser amados. A causa dessa necessidade é misteriosa, inata, profunda, e a ciência o
ignora. Ignora-a porque é divina. O amor é essência religiosa, princípio e fim da
criação. Projeta, conduz e reintegra o ser. Vai da simples amizade ao amor ideal.
Mas a sua marcha é sempre ascensional até as sublimações da ordem sobrenatural e
o êxtase, que é amor puríssimo, o repouso do espírito na mansão divina. Não pode
decair nunca, sob pena de se degradar e morrer.28

As divagações dos dramas interiores das personagens não param por aí. Padre e
médico, respectivamente Leonel e Roberto, amigos de longa data, se confrontam no quarto
quadro da peça, a ponto de Leonel ser expulso da casa do amigo, acusado de formar um
conluio contra o casamento de Sônia com Otavio. Este, por sua vez, também é médico e ex-
amante de Vera, esposa de Roberto:

ROBERTO – Sim, conluio! Não lhe encontro outro nome. Conluio que vem de
antigos tempos e que eu julgara desarmado pela minha vontade. Mas a minha
ausência o favoreceu, pelo que vejo. E eu tão inocente que até fiz as pazes com a
senhora minha sogra! Estou, porém, disposto a acabar com isto de uma vez! Até
Vera, que a princípio me parecia estranha ao sindicato, sinto que se associou contra
os meus desejos. Por que Vera não fala com Otávio? E que sombras misteriosas são
estas que sinto em torno de mim?29

Do mesmo modo que Deus, Sexo também dá destaque especial à traição. Aliás,
ambas as peças possuem a mesma estrutura: personagens, tema, composição da ação,
estrutura temporal, retórica literária. Se em Deus o raisonneur é o padre Leonel, como

27
O padre Leonel (Deus) e Calazans (Sexo) são heranças do teatro realista, o raisonneur, aquele que é o
responsável por explicar o ponto de vista do autor.
28
VIANNA, Renato. Deus – o drama angustioso do século. Datilografado (Biblioteca Jenny Klabin Segall),
São Paulo, 1935. 1º. ato, 1º. quadro. p. 10.
29
Idem. 2º. ato, 4º. quadro. pp. 6-7.
25
explicitado, em Sexo é Calazans. Na história, César procura impedir o casamento de sua
filha Cecy com Roberto, jovem aprendiz de Calazans. Este, amigo da família, tenta
dissuadir César de impedir o casamento da filha. Nas duas peças, o pai é casado pela
segunda vez com uma jovem, que por sua vez possui um amante. Se estruturalmente os
textos nada têm de inovador, Sexo é, ao menos, uma denunciadora da tirania sexual
impingida às mulheres pela sociedade.
As duas peças de Vianna, representadas pelo Teatro-Escola, não se destacam das
outras apresentadas anteriormente. Todos os textos apresentam fragilidades em sua
estrutura dramática, seja pelas fortes tradições herdadas do século anterior, seja porque os
autores não conseguiram vislumbrar um conjunto texto-cena-tema que alterasse os rumos
da produção teatral. Enfim, por maior que tenham sido as tentativas de modernizar o teatro
nacional, nenhuma delas alcançou seu intento, especialmente naquilo que mais interessaria:
unir as técnicas dramáticas e cênicas, porque se deparam com uma história teatral recheada
de rompimentos e equívocos, tornando-se esses autores também figurativos de tentativas
equivocadas.
Ainda que alguns desses textos tenham ficado esquecidos na história do teatro
nacional, eles podem ter influenciado Nelson Rodrigues no início de sua carreira dramática,
pois suas marcas se fazem presentes em A mulher sem pecado, principalmente se
comparada com a peça de Oduvaldo Vianna, Amor... Seguindo o caminho de algumas
comédias e dos “dramas psicológicos” do século XX, pode-se perceber que a primeira peça
de Nelson Rodrigues assemelha-se a eles quando expõe o drama de um homem que
desconfia da fidelidade da esposa e procura uma prova cabal de sua traição.
Assim como o tema, a própria estrutura da peça aproxima-se das anteriores, mas já
com a marca que o dramaturgo desenvolverá mais tarde: a força do seu diálogo. Do mesmo
modo que esclarecem em grande parte a opção feita por Nelson Rodrigues, esses dramas
também elucidam o choque sofrido na cultura teatral brasileira quando Vestido de noiva
estreou. Essa renovação era, nos últimos 30 anos, a maior aspiração daqueles que
planejavam um modernismo teatral.
Para reconstruir o repertório teatral de 1942, no mês que antecedeu a estréia do
dramaturgo pernambucano nos palcos cariocas, basta observar algumas notas da coluna de
26
teatro do Jornal do Brasil. No teatro Recreio, lugar onde eram comumente encenadas
revistas, anunciava-se a estréia de A vitória é nossa!, de Freire Júnior, “uma revista popular,
com muita charge, com crítica aos assuntos da atualidade, com ironia e comicidade, tudo,
entrecortado apenas com um pouco de fantasia”. Prometia também uma encenação
“moderna e luxuosa”. No mesmo dia, 4 de novembro de 1942, anunciava-se no Serrador
Escândalo, de Vastzary; no João Caetano, a revista Marcha soldado, também de Freire
Júnior. Na mesma semana foi anunciado como o “maior espetáculo do ano” A dama das
camélias, de Dumas Filho, no Teatro Carlos Gomes. Na semana seguinte, em 12 de
novembro, a revista anunciada era Vitória à vista, de Correia Varela e Orrico, montada por
Beatriz Costa e Oscarito. Com tais peças em cartaz, não espanta que A mulher sem pecado
tenha sido recebida como uma comédia, como apontam suas primeiras críticas.
Sem maiores pretensões teóricas ou históricas, Ruy Castro traça um breve panorama
do que era o teatro no início da década de 40:

Em meados de 1941, quando Nelson Rodrigues escreveu sua primeira peça, “A


mulher sem pecado”, dizia-se que o teatro brasileiro ia do Rocio à Cinelândia – ou
seja, de mal a pior. O Rocio era o antigo nome da praça Tiradentes, reduto do teatro
de revista desde tempos pré-diluvianos. E a Cinelândia, que supostamente devia
abrigar o teatro “sério”, era o território de Procópio Ferreira, Jaime Costa e Dulcina
de Morais. O eixo Procópio-Jaime-Dulcina dominava o palco e a gerência. Na
qualidade de astros que arrastavam platéias, era para eles que todos os autores
queriam escrever. Como empresários e donos de seus narizes, era natural que só
escolhessem as peças de acordo com o seu estilo. E, como eram todos comediantes,
só queriam saber de comédias. A exceção, mas nem sempre, era Procópio, que se
julgava um intelectual e descobrira um filão com “dramas” pseudoprofundos como
“Deus lhe pague”, de Joracy Camargo.30

Foi nesse panorama que despontou, ainda tímido, A mulher sem pecado, drama em
três atos, escrito em 1941 e encenado no Teatro Carlos Gomes em 1942. A força do seu
diálogo, aliada a uma abordagem do tema pouco comum para as recorrentes comédias
ligeiras e chanchadas31, foi capaz de chamar a atenção de alguns intelectuais da época,

30
CASTRO, Ruy. O anjo pornográfico – a vida de Nelson Rodrigues. São Paulo, Companhia das Letras, 1992.
p. 151.
31
Estranhamente, Sábato Magaldi faz a seguinte afirmação: “Não conheço peça do repertório brasileiro,
encenada na década de trinta ou até o advento de Vestido de Noiva, que proponha questões semelhantes a A
27
como Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e Álvaro Lins. A peça inclinou-se
para um drama psicológico, ainda que a pretensão primeira do autor tivesse sido fazer uma
chanchada a fim de ganhar dinheiro:

Eu me lembro de minha primeira peça, A mulher sem pecado. Minha intenção


inicial, e estritamente mercenária, era fazer uma chanchada e, repito, uma cínica e
corajosa chanchada caça-níqueis.
Todavia, no meio do primeiro ato, começou a minha ambição literária.32

Ainda que fique evidente a chamada “ambição literária” do autor, é perceptível a


influência do equivocado teatro contemporâneo nesta sua primeira tentativa dramática: as
personagens são construídas sobre bases cômicas, especialmente o marido, falso paralítico,
que se utiliza de um disfarce – tema corriqueiro nas comédias – para verificar a fidelidade
de sua esposa, apenas invertendo os papéis do que já fizera Oduvaldo Vianna. Além disso,
a idéia de abordar o conflito psicológico do marido não era novidade alguma,
provavelmente emprestada de outra peça. Felizmente, o pendor literário expresso pelos
diálogos marcantes e precisos destacou Nelson Rodrigues daquele conjunto. Em seguida,
com a peça escrita e encenada, o autor atira-se ao desejado padrão literário com Vestido de
noiva, deixando de lado as chanchadas e qualquer influência que possa ter sofrido delas,
escrevendo o que foi tido como o divisor de águas do teatro brasileiro moderno, como bem
afirma João Roberto Faria:

A peça Vestido de Noiva passou a figurar na história do nosso teatro como uma
espécie de divisor de águas. Antes do seu aparecimento, vivíamos ainda sob a
hegemonia de uma dramaturgia enrijecida por procedimentos formais anacrônicos,
temas desgastados e uma quase absoluta falta de inventividade. Na mesma situação
encontravam-se os espetáculos teatrais das nossas companhias dramáticas
profissionais, alheias às inovações que surgiam na Europa e nos Estados Unidos,
desde o final do século XIX.33

mulher sem pecado.” (MAGALDI, S. Introdução. In: RODRIGUES, Nelson. Teatro completo. vol. 1. Rio de
Janeiro, Nova Fronteira, 1981. p. 14)
32
RODRIGUES, Nelson. A menina sem estrela. São Paulo, Companhia das Letras, 1993. p. 153.
33
FARIA, João Roberto. Nelson Rodrigues e a modernidade de Vestido de Noiva. In: O teatro na estante.
Cotia, Ateliê Cultural, 1998. p. 117.
28
Talvez a diferença de Nelson Rodrigues em relação às obras anteriores seja o
coloquialismo de seu diálogo, longe das frases forçosamente literárias, observada com
razão por Manuel Bandeira: era um diálogo sem “literatices”. Esta será sua grande marca,
ao lado dos temas polêmicos, que já se iniciam aí, pois ao contrário do repertório da época,
o conflito não se resolve, mas o marido se mata com a descoberta da traição. Com Vestido
de noiva, peça que consagra o autor, a crítica também vislumbrará em Nelson uma veia
trágica, força avassaladora que o encaminhará ao terreno confuso das peças míticas. A
respeito das quatro peças que compõem esse grupo, o dramaturgo costumava dizer que elas
são capazes de provocar o tifo e a malária na platéia34. Em seguida, com as tragédias
cariocas, seguindo o conselho de seu amigo Manuel Bandeira, volta a escrever sobre
“pessoas normais”.
Em meio às comédias escritas, encenadas e valorizadas na época, me interessa saber
como a obra de Nelson Rodrigues foi recebida, especialmente no que diz respeito ao trágico
e à tragédia, e quais são as referências mais comentadas nas críticas a respeito deste gênero.
Nas páginas precedentes, foi possível traçar um perfil dos valores teatrais vigentes até as
décadas de 40 e 50. De forma ou outra, tais valores ajudaram a criar ou questionar a
imagem de trágico do dramaturgo. Em suma, se por um lado havia várias tentativas em
alçar o teatro brasileiro ao patamar do moderno, por outro as peças que realmente
chamavam a atenção do público eram as comédias ligeiras, privilegiadas pelas críticas
jornalísticas, que a elas faziam reverências, principalmente por serem fiéis a padrões
estéticos fechados e previamente determinados.

34
Afirmação feita pelo autor no texto publicado na revista teatral Dionysos, outubro de 1949, p. 18: “Numa
palavra, estou fazendo um ‘teatro desagradável’, ‘peças desagradáveis’. No gênero destas, inclui, desde logo,
‘Álbum de Família’, ‘Anjo Negro’ e a recente ‘Senhora dos Afogados’. E porque ‘peças desagradáveis’?
Segundo já se disse, porque são obras pestilentas, fétidas, capazes, por si sós, de produzir o tifo e a malária na
platéia”.
29
1.2 – Da crítica ligeira à formação de uma imagem

Foram quatro décadas de produção


dramática, em uma época em que o teatro era
um dos pontos altos da vida cultural carioca,
atraindo a atenção de críticos, jornalistas e
pensadores. Em vários contextos, as peças de
Nelson Rodrigues chegaram a provocar
inúmeras discussões entre espectadores e especialistas. Parte das discussões girou em torno
da polêmica figura do dramaturgo, ora caracterizado como tarado, ora como moralista, ora
como subliterário35. Mas o que definitivamente me interessa neste momento é a idéia de
trágico: como sua obra foi aliada ao sentido trágico e ao gênero tragédia pela crítica.
Como já observei nas páginas precedentes, quando A mulher sem pecado surgiu em
nosso cenário teatral, em dezembro de 1942, foi recebida e avaliada como uma comédia,
especialmente por estar inserida no contexto descrito. Se for observada mais de perto sua
estrutura, tal analogia não é de todo errônea, pois a base cômica serve de pilar para o
desenvolvimento do primeiro drama rodriguiano. Certamente por isso, por não se destacar
das peças do repertório nacional, sem inovações cênicas e/ ou temáticas, ela foi
recepcionada sem alarde, alinhada à produção comumente vista nos teatros cariocas da
década de 40. O próprio autor comenta essa recepção fria da crítica: “A mulher sem pecado
não conseguiu um ruído considerável. Era imoral, sim, mas de uma imoralidade bem
comportada. Não dava para assustar ninguém.”36
De uma forma ou de outra, A mulher sem pecado e Vestido de noiva são
consideradas, nessa primeira fase da recepção crítica do autor, como as peças renovadoras
da cena brasileira. Os críticos receberam Vestido... como uma expansão das qualidades que

35
Adriana Facina, Op. cit., 2004, delineia alguns desses perfis assumidos pelo autor a partir das calorosas
discussões no meio jornalístico. Cf. o capítulo I de seu livro, Personagens à procura de um autor.
36
RODRIGUES, Nelson. Op. cit., 1949. p. 16. No texto, Nelson Rodrigues afirma que A mulher sem pecado
provocou algumas discussões entre os críticos por eles não compreenderem a figura da mulher morta que
volta para atormentar o marido, nem a senhora que fica inerte durante os três atos da trama. Ao menos nos
jornais colhidos para esta pesquisa, pôde-se constatar o contrário: a peça não provocou discussões mais
acirradas. Já em depoimento deixado para a posteridade no Museu da Imagem e do Som (MIS-RJ), ele avalia
esta primeira peça como um “semi-fracasso”.
30
Nelson demonstrou na primeira peça, dando continuidade a um processo de renovação
teatral e cênica. A primeira, mesmo que tenha causado pouco alarde, espantou alguns
espectadores, que a consideraram uma “comédia anti-convencional”.

É uma peça audaciosa na sua técnica, no seu tema e nos seus tipos; densa e
realista; de uma humanidade que mantém até o último instante, o seu interesse. O
autor soube, antes de mais nada, libertar a obra de uma série de preconceitos,
dando-lhe novos tons de expressão. É uma comédia anti-convencional, uma
comédia que rompe todos os lugares-comuns, todas as situações inumanas, todos os
efeitos de puro e inconseqüente artifício. Essa ousada sinceridade é que sustenta a
peça que lhe dá uma permanente vitalidade. (Diário de Notícias, 27 de novembro
de 1942, p. 9)

Segundo as avaliações, Umberto, o chofer que foge com Lídia, é recebido como o
“galã” (em geral representado pelo primeiro ator da companhia); em seguida, fala-se das
personagens como se fossem os tipos da comédia do momento: o marido traído, a esposa, o
galã – e chegam a tratar a esposa morta de Olegário como “a sombra”, e o coxo da
confeitaria Colombo como o “mendigo”, sempre na mesma tentativa de enquadramento da
peça conforme os padrões estéticos costumeiros37. Vejamos como se dava a formação das
companhias teatrais da época:

Os elencos deviam comportar em princípio um intérprete para cada diferente


tipo de papel. Entre os homens, por exemplo, um galã, um centro cômico, um
centro dramático, sem computar os numerosos “característicos”, encarregados de
conferir pitoresco às chamadas pontas. Entre as atrizes, no mínimo, uma ingênua,
uma dama-galã (mulher já em plena posse de sua feminilidade), uma caricata (as
solteironas espevitadas) e uma dama-central, que viveria no palco as mães
dedicadas ou as avós resmungonas e compassivas. Assim aparelhada, com atores
cobrindo todas as idades e todas as especializações interpretativas, podia a
companhia enfrentar com segurança qualquer texto, tanto mais que este também
fora concebido quase certamente obedecendo a esta mesma tipologia dramática.38

De modo geral, A mulher sem pecado obedece à mesma composição de


personagens. Na peça podemos identificar o galã (Umberto), o tipo cômico (Olegário – o

37
Essa divisão é estabelecida, inclusive, pela Comédia Brasileira (Companhia do SNT), conforme imagem
apresentada na página 30: “Principais papéis: Amélia de Oliveira (a Esposa), Teixeira Pinto (o Marido),
Rodolfo Maier (o Galã)”.
38
PRADO, Op. cit., 2001, p. 15.
31
marido traído), a dama-galã (Lígia) e a dama-central (mãe de Olegário), além do tipo
cômico feminino, a caricata (a empregada). Assim, a construção do primeiro drama
rodriguiano se baseia na estrutura de comédia então vigente. As críticas, portanto, não
estavam de todo equivocadas.
Acrescente-se a isso sua avaliação como “peça realista” (por tratar da realidade),
possuidora de “uma tese marcante”. Apesar de ter sido alinhada às produções
contemporâneas na questão do gênero dramático, A mulher sem pecado se destacava
daquele conjunto de alguma forma. De certa maneira, a peça correspondia à expectativa da
crítica tanto na sua composição central quanto na sua densidade e ousadia. Mesmo assim,
em algumas análises ela foi considerada amadora, pouco realista pelas ações de Olegário e
Umberto:

Com intuito, talvez, de impressionar mais vivamente o auditório, teatralizou o


novel autor uma psicose que como todas as psicoses nutre-se de irrealidades e
incoerências, mistura os sentimentos primários com os “complexos”, de origem
confusa e desenvolvimento sinuoso. Tornou, dessa forma, difícil à percepção das
massas e mesmo do auditório de cultura dramático-literária mediana, seu esforço
inovador; lançou a idéia, mas não soube aproveitar-se dela assegurando-lhe o
sucesso. Daí a desagradável impressão de espetáculo amador que Mulher sem
pecado injustamente nos deixa, falando do ponto de vista do público em geral.
Agravou essa impressão a presença de símbolos ou de imagens sem explicação
imediata ou remota, a velha mãe paralítica, imobilizada e muda para sempre por um
derrame cerebral e o fantasma dum mendigo, mudo por sua vez. O outro fantasma,
a primeira mulher falecida e que só o cérebro do enfermo, que é o protagonista, vê e
ouve, apresenta-se sempre estranhamente, com as cores de vida e em toilette de
noite. (...) O chauffeur, que se aproveita duma situação, não agiria na vida real pelo
modo por que [sic] o que ali se apresenta se conduz; nem a esposa diante das
amargas, ofensivas, injustas invectidas do marido daria as réplicas que a do drama
dá. (Jornal do Brasil, 11 de dezembro de 1942, p. 9)

Notam-se, neste texto, algumas preocupações correntes na época. O cronista


demonstra certa inquietação em relação à formação teatral do público ao avaliar que o
enredo da peça seria pouco compreensível às massas. Sobretudo, ele destaca certo
irrealismo, pelo fato do autor da peça colocar, no mesmo plano de tratamento, personagens
de classes diferentes, como o chauffeur e o patrão – relação impensável no Rio de Janeiro
de 1942.

32
No entanto, mesmo com estas restrições ao pouco realismo de algumas personagens,
sublinhou-se o esforço do autor em escrever algo novo para o teatro brasileiro, bem como
identificaram em seu texto influências de Pirandello, por se tratar de um drama psicológico,
que se propõe a analisar o homem “por dentro”. Para outro crítico39, Nelson almejou
escrever uma peça extraordinária, mas “o que escreveu foi uma comédia onde abundam as
inexatidões psicológicas” (Correio da Manhã, 11 de dezembro de 1942, p. 6). Os textos
que avaliam a primeira experiência teatral de Nelson não vão muito além dessas avaliações
demonstradas, considerando-o ora inovador, pirandelliano40, por vezes irreal ao pôr um
homem fingindo-se de paralítico por sete meses em uma cadeira de rodas. Nota-se nessas
críticas padrões estéticos ainda muito arraigados ao teatro ligeiro, embora em vários
momentos tenham percebido, em sua construção estética, o que se tornará o fundamento da
dramaturgia rodriguiana.
Foi no ano seguinte, com sua segunda obra teatral,
que Nelson Rodrigues causou frisson entre os
intelectuais e o público carioca. Vestido de noiva foi
recepcionada como a grande transformação do teatro
nacional há tempos almejada. No entanto, a
nomenclatura dada à peça, de tragédia, foi pouco
questionada. Em decorrência de sua inovação cênica,
os críticos voltaram seus olhares ao aspecto estético
moderno e inovador do texto, da encenação
expressionista de Ziembinski e do vanguardismo do
grupo Os comediantes. Apesar de um aparente
silêncio em relação à sua tragicidade, considerou-se como um original de “tonalidades
trágicas e transcendentes”:

39
Nessa época, era comum que as críticas não fossem assinadas.
40
A respeito dessa comparação, Nelson fez a seguinte observação: “Em 1943, ninguém sabia, aqui, da
existência de Eugene O’Neill; o único autor que se usava, com abundância, era Pirandelo. Qualquer coisa que
não fosse uma ‘chanchada’ ignominiosa era pirandeliana; qualquer autor que não fosse débil mental – virava
um Pirandelozinho indígena. Tive também, com ‘Vestido de Noiva’, a minha hora pirandeliana.” (Dionysos,
1949, p. 17)
33
“Vestido de Noiva” é, sem dúvida, um original de fôlego, assinado por um
jovem escritor que se especializa brilhantemente no ramo teatral – Nelson
Rodrigues. Deu-nos o ano passado a primeira amostra de seu talento dramático,
projetando, logo de entrada, o seu nome às altas esferas de um teatro de
preocupações filosóficas e profunda penetração nos segredos da alma humana.
(Diário de Notícias, 31 de dezembro de 1943, 2ª seção, p. 10)

Naquela temporada de 1943, Os comediantes apresentaram outras peças num


repertório que incluía tanto autores nacionais (Lúcio Cardoso) como internacionais
(Goldoni, Molière e Maeterlinck). Com as outras peças tendo pouco destaque e encenações
sem novidades, Vestido de noiva se destaca como aquela que marca “uma nova fase para o
teatro brasileiro”. Segue um texto que oferece uma boa medida do momento teatral no Rio
de Janeiro:

Há pouco menos de um ano, quando ainda era um trabalho inédito a tragédia


“Vestido de noiva”, do sr. Nelson Rodrigues, escrevi uma pequena crônica em que
me parecia que a existência deste autor obrigava com a maior urgência a presença
de “metteurs-en-scène”, cenógrafos, maquinistas, eletricistas e atores teatrais à
altura de colaborarem com a sua obra. O conhecimento da peça escrita deixava
antever a sua enorme riqueza plástica, quando cenarizada. Mas essa realização
cênica – que assumia um caráter essencial para o pleno sentimento da peça e do seu
processo artístico – era uma coisa temível nas condições do teatro brasileiro
comum. Nelson Rodrigues tivera a sua primeira peça assassinada na praça
Tiradentes no verão de 1943. E, a princípio, “Vestido de Noiva” parecia
encaminhada para o mesmo matadouro. Pouco depois de haver lido os originais,
conheci os croquis do Sr. Santa Rosa para o cenário. Estava dado um passo para a
realização cênica de “Vestido de Noiva”; mas muita coisa ainda faltava. “Vestido
de Noiva” continuava uma peça ameaçada de morte, quase tão ameaçada como a
personagem Alaíde. Tudo indicava que, unido à ousadia do autor a ousadia do
cenógrafo, cresceriam as dificuldades e os perigos em torno de “Vestido de Noiva”:
ficariam os dois, autor e cenógrafo, estranhos e desarticulados, com os seus
trabalhos submetidos à insuficiência dos recursos teatrais do Brasil.
A posterior inclusão de “Vestido de Noiva” no repertório de “Os
Comediantes” fê-la encontrar, enfim, o elemento de que carecia para possuir uma
justa montagem, integral, impecável: fê-la encontrar um “metteur-en-scène” que a
sentiu em todas as minúcias, sugestões e efeitos, e a realizou com experiência e com
gosto, afanosamente, mas com um inquebrantável entusiasmo. Está evidente que
ninguém mais no Brasil seria capaz dessa realização, fora esse extraordinário
polonês Zbigniew Ziembinski, grande intérprete e grande diretor, a quem será
eterna a nossa gratidão pelo muito que veio enriquecer a nossa mais séria tentativa
de teatro, com a sua vocação e a sua categoria de grande mestre da cena. Com a
admirável cooperação de Ziembinski, “Os Comediantes” estão criando no Brasil
uma mentalidade teatral, sem a que nunca daremos o passo de saída para o
verdadeiro teatro, para um teatro que reduza as distâncias, se articule, se integre
34
com o nosso movimento de artes plásticas, com as nossas atividades nos vários
gêneros literários, com a nossa intuição e o nosso gosto musical. (BORBA, José
Cesar, O Jornal, 9 de janeiro de 1944, 2ª seção, p. 1)

Aqui, então, as qualidades artísticas e dramáticas do autor são abertamente


reconhecidas. No entanto, apesar de seu esforço em compor uma peça grandiosa, percebe-
se a preocupação com a falta de estrutura teatral condizente ao texto. Uma vez ocorridos o
encontro de Nelson Rodrigues com Ziembinski e Santa Rosa e a inserção de Vestido de
Noiva no repertório de Os Comediantes, eles são marcados como os responsáveis pelo
teatro moderno brasileiro.
Logo após essa fase de reconhecimento, veio a execração. Neste novo momento da
crítica jornalística, o sentido de “tragédia” e “trágico” será realmente discutido e
questionado nas peças. De Álbum de família até Dorotéia, Nelson Rodrigues era trágico,
com nítida intenção de escrever tragédias. A crítica não se limitou a expor esse aspecto,
mas o analisou em pormenores e identificou suas “impurezas”. Explico: nas quatro peças,
escritas entre 1945 e 194941, apesar de reconhecidamente trágicas (inclusive Dorotéia,
mesmo que denominada farsa irresponsável), os críticos identificavam com propriedade
aspectos de outros gêneros dramáticos e, por isso, elas foram consideradas “impuras” ou
“malsucedidas”. De certa forma, essas observações serão expandidas até a próxima fase, a
partir de A falecida, com o acréscimo do uso recorrente do mau gosto e certo
sensacionalismo que a crítica atribuirá ao autor.
Em texto publicado na revista Dionysos, Nelson Rodrigues defende seu “teatro
desagradável” e demonstra uma consciência estética que é capaz de impressionar os mais
desavisados42. Ele expõe um projeto dramático que foi incompreendido pela grande maioria
dos críticos, além de defender suas opções com argumentos pautados em sua intuição

41
Seguem as datas de criação e encenação: Álbum de Família (1945 – 1967), Anjo Negro (1946 – 1948),
Senhora dos Afogados (1947 – 1954) e Dorotéia (1949 – 1950). Salvo a última, todas as outras sofreram
interdição da censura.
42
Nelson Rodrigues, enquanto figura contraditória, gostava de divulgar certa imagem sua de inculto. Por isso
propagava que havia lido, de teatro, apenas Maria Cachucha, de Joracy Camargo. Ruy Castro, em O anjo
pornográfico, desmitifica essa imagem: “De concreto mesmo, sabe-se que, entre ‘A mulher sem pecado’ e
‘Vestido de noiva’, Nelson leu peças como ‘Ricardo III’ (1592), de Shakespeare; ‘O inimigo do povo’ (1882),
de Ibsen; e ‘O luto assenta Electra’, de O’Neill – as duas últimas em espanhol, única língua, além da sua, com
a qual ele ia para a cama. (Ainda não havia O’Neill em português. O que ele leu foi a edição argentina de
1940, ‘Nueve dramas’, da Editorial Sudamerica, de Buenos Aires.)”. (p. 178)
35
dramática. Ou seja, mesmo fazendo questão de fugir da imagem de intelectual, ele
apresenta clareza em suas escolhas teatrais, sem demonstrar anacronismo ou incoerência
entre o que pretende e o que faz (ao menos teoricamente). Ao comentar as críticas feitas a
Álbum de família, ele escreve o seguinte:

Os detratores da peça se colocavam em pontos de vista curiosos.


Por exemplo: dizia-se que havia incesto demais, como se pudesse haver incesto
de menos. Esse critério numérico foi adotado por quase todo mundo. Outros
assinalavam minha “insistência na torpeza”; terceiros, arrazavam a “incapacidade
literária”; ficou patenteada também a inexistência de um “diálogo nobre”. Este
último defeito, por si só, parecia excluir “Álbum de Família” do gênero trágico.
Onde já se viu uma tragédia sem “diálogo nobre”? E não foi tudo. Houve, ainda,
acusações de morbidez, imoralidade, obcenidade, sacrilégio, etc., etc.43

Em seguida, ele defende seu texto ao afirmar que pretendeu causar um resultado
emocional pelo acúmulo, pela abundância. Mas o que realmente interessa aqui é o
questionamento do autor em relação ao uso da linguagem superior da tragédia. Segundo
ele, os críticos o expurgavam do cânone trágico por não utilizar um diálogo nobre –
observação interessante se a ligarmos a outros depoimentos do autor sobre sua obra. Em
entrevista publicada nos Cadernos brasileiros, por exemplo, ele defende o uso “não nobre”
da linguagem trágica:

Não acho que a linguagem carioca, que desenvolvo até as últimas


conseqüências, impeça-me o uso de qualquer tema. Com a linguagem carioca, sua
gíria, seus palavrões, posso fazer uma tragédia grega sem nenhum prejuízo de sua
qualidade. Por um preconceito realmente desculpável, convencionou-se que a
tragédia exige linguagem nobre. Rebelo-me com a maior veemência contra esse
ponto de vista que artisticamente não tem o menor sentido. O que caracteriza a
tragédia é um certo tipo de tensão chamado de “tensão dionisíaca”.44

Nelson repetirá essa afirmativa em muitos momentos, em defesa de sua linguagem


carioca, que se tornará depois sua grande marca. O uso da linguagem não-nobre, no
entanto, não foi o único ponto da crítica para justificar o trágico malsucedido; o fato que
realmente definirá a pecha de “impuro” foi a inserção de elementos cômicos em suas
43
RODRIGUES, Nelson. Op. cit., 1949. p. 18.
44
HELIODORA, Bárbara et al. Nelson Rodrigues: um debate. Cadernos Brasileiros. Nº. 35, maio-junho 1966.
p. 46.
36
tragédias, a presença do mau gosto e do grotesco que trariam ao texto a impureza genérica.
Exemplifico isso com uma crítica de Henrique Oscar, publicada no Diário de Notícias de 9
de agosto de 1967, acerca de Álbum de família:

Como chocar-se, escandalizar-se, horrorizar-se ou levar simplesmente a sério


essa história impagável? Ninguém, hoje, acreditamos, embarcaria na canoa de
discutir se a peça é ou não uma tragédia realmente; nem sequer, talvez, haverá mais
quem, serenamente, a considere “terrível”. Aparece, apenas, como uma
engraçadíssima comédia, que faz rir à custa de uma caricatura de horríveis
problemas de sexo e “possessos da carne” que são vistos humoristicamente. Se o
autor pretendia mesmo escrever uma obra “maldita”, como ingenuamente a censura
a considerou há vinte anos, precisava imaginar figuras e episódios que tivessem um
mínimo de plausibilidade, de verossimilhança, com um desenvolvimento e uma
estrutura que os fantoches rodriguianos aqui estão longe de ter.

O crítico ressalta, neste texto, um importante ponto a respeito da obra rodriguiana:


suas peças trágicas são excessivamente compostas de “criaturas horríveis”. O excesso e o
acúmulo não provocam, na platéia, o sentimento catártico do terror, mas o riso (evidente
que não é o mesmo riso causado pela comédia). Para complementar seu pensamento,
Henrique Oscar afirma que há certa “intenção cômica” no texto, o que provocaria a
incoerência da peça, na estrutura dos tipos, e que o autor teria acrescentado certos
pormenores de forma gratuita, com intuito sensacionalista. O aspecto de falsa tragédia, ele
afirma, também foi adotado pela encenação, que apesar da nomenclatura, inseriu elementos
cômicos, o que evidenciaria intenção humorística. Nessa observação é possível perceber
que o paradigma de avaliação estética quanto ao gênero da tragédia é ainda firmado na
tradição provinda do renascimento, em que não se admite a mistura de gêneros. Esse tipo
de comentário a respeito do texto rodriguiano acompanhará a trajetória do autor, sendo
repetido em outras críticas jornalísticas, e será utilizado para apontar a impureza como falha
estrutural, insuficiência artística e dramática.
A peça seguinte, Dorotéia, suscitou o mesmo tipo de questionamento e restrição,
com um detalhe a ser observado: o autor denominou a peça de farsa. Segundo depoimentos,
Ziembinski encenou este texto como tragédia, desrespeitando a nomenclatura original, para
desagrado do autor. Abaixo, o depoimento de um dos críticos da época, identificado apenas
por R.L.:
37
Durante a representação [de Dorotéia], via-se um público indeciso, achando
graça em certas linhas humorísticas e se sentindo autorizado a rir pois o programa
denominava a peça de “farsa”; mas, ao mesmo tempo, inibido de rir porque noutro
ponto o mesmo programa acrescentava o adjetivo “trágica” à palavra “farsa”; e, por
outro lado, não encontrava os elementos de verdadeira tragédia para lhe inspirarem
alta emoção. (Diário de Notícias, 9 de março de 1950, 1ª seção, p. 8)

Logo se vê quanto estranhamento aquela mistura de gêneros causava ao público e à


crítica, que não sabia exatamente como receber e avaliar a peça do autor: se como uma
comédia ou como uma tragédia. Também fica evidente, através da crítica, o problema da
encenação deste texto, em que lhe foi dada uma configuração diferente da imaginada pelo
autor.
A noção de que as personagens devem viver intensamente a situação trágica, causar
horror ao público para, enfim, provocar a catarse é parâmetro corriqueiro de avaliação. No
entanto, quando aquilo que deveria inspirar no público a compaixão e o horror provoca o
riso, considera-se que algo não está posto no seu devido lugar. Nesse sentido, chamo a
atenção para as palavras de Fausto Wolff, crítico da Tribuna da Imprensa, ao escrever
também sobre Álbum de família:

Como a temática envolve incesto e os personagens são conduzidos


inexoravelmente para a morte pelo autor, muitos críticos do passado e do presente
utilizaram o vocábulo tragédia para classificar a peça. Não vou entrar em matéria
tão subjetiva, ou seja, a de estabelecer premissas para explicar o que vem a ser
tragédia numa época em que a bomba paira sobre a nossa cabeça e mesmo porque
determinados conceitos sofrem mutações de acordo com a História. Não me parece,
entretanto, o caso. Parece-me, antes, um esquema psicanalítico muito bem
elaborado para a cena e – mais – altamente vanguardista para 1946, a forma de
dividir a peça através de retratos de um álbum de família. (...) Se fazer isso, apanhar
personagens e colocá-los numa trilha sem ruas laterais encaminhando-as a um
pântano é fazer tragédia, então Nelson conseguiu-o. Não sou, porém, desta opinião.
Observada através da visão de Nelson, tudo não passa de um aviso: o incesto
conduz à morte e à loucura. E daí? Louvo o estilo pessoalíssimo do autor; louvo a
sua capacidade sem igual e construtor cênico mas não gosto da peça. Faz pensar em
peça infantil diante das últimas experiências de Arrabal e Genet. Colocar os
personagens em posição trágica, não basta. É preciso fazê-los viver a tragédia.
(Tribuna da Imprensa, 11 de agosto de 1967, 2º caderno, p. 3, grifo meu)

Ainda que o crítico pressuponha, aqui, uma alteração do sentido tragédia, situando-
a num contexto recente (“a bomba que paira sobre nossa cabeça”), ele, por fim,
38
desconsidera a peça como trágica por não acreditar que seja suficiente colocar as
personagens naquilo que chama de “posição trágica”; ou seja, não é suficiente dar a elas
caráter trágico, neste caso, criar personagens que vivem às margens da loucura e
entremeadas de relações incestuosas. No mesmo caminho, Senhora dos afogados também
provocou discussões interessantes nos jornais em 1954: debates públicos a respeito do
conceito de tragédia em pleno século XX – à semelhança do que fez Fausto Wolff – e se o
texto rodriguiano é ou não trágico. Claude Vincent, da Tribuna da Imprensa, fez a seguinte
crítica:

Temos a afirmação de Nelson Rodrigues de que “Senhora dos Afogados” é


uma tragédia, inspirada pelas praias pernambucanas que foi rever, antes da guerra.
É muito possível, efetivamente, que a tristeza daquelas casas abandonadas possa
sugerir o ambiente de uma tragédia.
Mas tragédia pressupõe catharsis, e a expiação final resulta numa espécie de
paz. A Moema-Electra de Nelson Rodrigues, depois de ter conseguido tanta morte –
não por motivos justiceiros como a Electra grega, e sim por amor incestuoso pelo
pai Misael – se encontra cercada pelas Eumênides de asa preta, na casa vazia, perto
do mar. O espetáculo tinha, assim, consangüinidade maior com o melodrama, com
o “grandguignol” até, que com a tragédia. Moema tem ciúmes da Eduarda-
Clytemnestra, sua mãe, não por esta ter traído um Agamemnon ausente com um
amante, mas justamente porque compartilha a cama do marido.
(...)
O holocausto faz nascer um riso nervoso, porque a platéia não pode
compartilhar a tragédia destes personagens. Isso, apesar da existência de momentos
poéticos, nas palavras do velho Sabiá, e de falas divertidas no coro de vizinhos, que
evocam risadinhas canalhas, como o texto parece desejar. (Tribuna da Imprensa, 3
de junho de 1954, caderno 2, p. 4)

Alguns pontos ressaltados por Claude se tornarão, depois, elementos de avaliação


desta peça por outros textos críticos. Um deles é a comparação que ela faz entre o coro da
peça e as Eumênides, além da estreita relação estabelecida entre a peça rodriguiana e a
trilogia de Ésquilo45. Julgo importante ressaltar, em relação a esta crítica, a identificação de
elementos do melodrama, fato até então pouco apontado na obra do dramaturgo.

45
Não posso deixar de observar a semelhança dessa crítica com a de Sábato Magaldi, citada e comentada a
partir da terceira parte deste capítulo. Cf. nota 66.
39
A negação da categorização sugerida
pela peça se dá de várias formas, seja mostrando
as impurezas do gênero na obra, seja tentando
mostrar fragilidades da estrutura trágica e sua
impossibilidade frente às personagens e
situações montadas pelo dramaturgo. Neste
texto de Claude Vincent nota-se o mesmo
pressuposto crítico e estético de Henrique
Oscar, pois ambos descartam qualquer
adjetivação trágica às peças por não causarem
horror ao público. E o não-horror, aqui, é
oriundo do riso provocado por supostas situações cômicas, anulando qualquer possibilidade
de inter-relação entre riso e horror em um mesmo texto. Quero deixar claro, no entanto, que
também ocorreram avaliações contrárias a essas. Alguns textos críticos defendem o caráter
trágico da sua obra e vinculam cada vez mais o dramaturgo a esta imagem que, pouco a
pouco, torna-se consagrada. Alegava-se, neste caso, que as peças do dramaturgo eram
tragédias brasileiras, situadas em um contexto especificamente nacional, cuja brutalidade e
formação estética o colocariam no rol dos trágicos. Argumento, aliás, alinhado às intenções
de possuir um autor trágico nacional, que colocaria nosso teatro, enfim, em uma esfera
universalizante.

A mim, que nesta seção não passo de um interino, preocupou-me assistindo


“Anjo Negro”, sondar a sua capacidade de me comover esteticamente com os seus
terríveis dramas entrelaçados. Nele, há três infanticídios, que houvesse cem! Não
conheço nenhuma espécie de limite para a matéria da criação artística, senão a
consciência criadora do artista, seu élan vital criador. E isso é o que não falta ao Sr.
Nelson Rodrigues, que possui extraordinário talento dramático. “Anjo Negro”, com
toda sua brutalidade, verdadeiro museu de horrores da vida, é uma peça teatral
admirável. De tal forma o seu diálogo é oportuno e penetrante, que a tragédia se
comunica à nossa sensibilidade com uma facilidade extrema, ao mesmo tempo em
que situa um drama que possui o (...) mito dos grandes desesperos humanos.
(BANDEIRA, Antônio Rangel. Diário da Noite, 9 de abril de 1948, p. 8)

40
Para ressaltar a tese de que Anjo negro se constitui uma verdadeira tragédia,
Antônio Bandeira, no dia seguinte (10 de abril de 1948), além de falar do coro,
considerando-o como um “jornal militante da vida”, formula a idéia de catarse que seria
provocada pela peça:

Em “Anjo Negro”, não há nem mesmo pesadelo. Há vida, naquele sentido em


que ela tanto mais se afirma, quando mais caminha pela desgraça, pelo infortúnio,
pela tragédia. Sim, “Anjo Negro” é uma tragédia, da qual a grande figura em cena
foi Ítala Fausta, que comunicou sua rápida presença no palco de uma tensão comum
às grandes catástrofes. (...) “Anjo Negro” é mesmo assim: uma peça que se assiste
como quem assiste a um desastre, com a sensação de quem vai desmaiar de horror.
(Diário de Notícias, 10 de abril de 1948, p. 6)

Nos dois textos, o crítico ressalta a sensação de horror que a peça provoca no
público, tentando ligá-la diretamente ao pressuposto aristotélico do que a verdadeira
tragédia deve causar. Talvez fosse um argumento contra as outras críticas; talvez uma
forma de justificar a terminologia adotada pelo autor. O fato é que esse discurso foi
difundido pelo próprio dramaturgo ao longo de suas entrevistas e depoimentos, inclusive,
como se sabe, nos programas das peças, salientando um desejo seu sempre presente de ser
trágico – como, aliás, sempre houve esse desejo entre a nossa literatura dramática.
Passada essa fase de “trágico malsucedido”, inicia-se outro ciclo de recepção crítica
da obra dramática de Nelson Rodrigues, que ressaltará uma faceta nunca mais desvinculada
de seu nome. Em um primeiro momento, ele foi acusado de subliterário, para em seguida
surgirem inúmeras objeções ao autor como um sensacionalista. É então que o dramaturgo
vai às páginas de jornais brigar abertamente com a crítica. Até então, ele até de certa forma
adotava a imagem de autor maldito pelo uso exagerado de incestos, homicídios e suicídios
nas peças; no entanto, ao declararem que suas peças não passam de medíocres e
subliterárias, Nelson tem uma resposta pronta e nem sempre amigável. Como exemplo,
tomo o revide à crítica de Marques Rebelo, então crítico iniciante, a respeito de Valsa nº 6.
Rebelo escreveu o seguinte texto:

Só cabe, portanto, ao improvisado crítico aceitar em bruto o que nos oferecem


os autores de talento, pois acredita ser de má índole querer modificar as obras de

41
arte alheias, exigindo delas os elementos da nossa experiência ou da nossa
sensibilidade. E quando muito apontar alguns detalhes menos felizes, ou mais
chocantes, e que talvez pudessem ser evitados sem que isso viesse ofender a linha
criadora.
Por que, por exemplo, perturbar a marcha das já truncadas evocações com
excessivas frases musicais da valsa nº 6? Por que manchar as mutiladas lembranças
de uma alma em flor, feitas de coisas cotidianas, em linguagem quase infantil, com
tiradas sub-literárias, tais como “fímbria do desejo”, “espectro do desejo”, “lírios
cegos”? Por que tal a criatura sai do fechado mundo das suas evocações para
consultar a platéia a respeito desta ou daquela dúvida? E quando assim, por que não
manter ao menos a concordância de tratamento sempre na segunda pessoa do
plural? (Última Hora, 10 de agosto de 1951, p. 5)

De maneira alguma essa crítica é ofensiva, tampouco foi a única com restrições ao
seu teatro. Mas, seja como um momento de extravasamento, seja porque Marques Rebelo
também escrevesse teatro, ela provocou a ira do dramaturgo e já conhecido “fazedor de
frases”. Transcrevo aqui a resposta, em uma carta dirigida a Antonio Olinto e publicada em
O Globo em 22 de agosto de 1951, pois mostra sua ferocidade e ironia, além de evidenciar
sua postura, em evidente renúncia ao debate crítico:

Meu caro Antonio Olinto: Recortei o artiguete que o Sr. Marques Rebelo, novo
cronista teatral, escreveu sobre a minha peça Valsa nº. 6. É uma pequena jóia
crítica, que me envaideceu e que desejo conservar. No seu julgamento, com efeito,
o cronista se mostra gentil, do princípio ao fim. Gentilíssimo. Faz-me elogios, que
me desvanecem; admite que eu tenho talento. No Sr. Marques Rebelo, isso é muito,
isso é demais. Daí a minha gratidão. E daí, também, o meu interesse pessoal em
concordar com um cidadão que me elogia. Tudo na crônica me parece exato,
procedente, mesmo no trecho em que o Sr. Marques Rebelo indica certas passagens
subliterárias da peça. Estou de acordo com a observação, inteiramente de acordo.
Só não entendo o tom restritivo. Aliás, o uso da linguagem subliterária nunca foi
defeito no Brasil. Todos nós, aqui, praticamos a subliteratura, de vez em quando, e
com exemplar descaro. Meu próprio exemplo não vale, porque represento muito
pouco. Todavia posso citar alguém que está acima de qualquer dúvida ou sofisma,
autêntica glória oficial e estabilizada. Refiro-me ao Sr. Carlos Drummond de
Andrade que, em poema recente, falava no “barro que quer ser estátua”. Ora, “barro
que quer ser estátua” sempre foi imagem de jornal de modinha. Nesse andar, o Sr.
Carlos Drummond de Andrade acaba comparando o crepúsculo a uma apoteose de
sangue e o sol a um disco de fogo.
E para não ir mais longe: o próprio Sr. Marques Rebelo, que assume, nesta
altura, um ar modesto e contrafeito de estilista, também realiza suas incursões
furtivas na subliteratura. Tenho diante de mim a edição de sua única peça, Rua
Alegre, 12, que é, por coincidência, segundo propalam os eternos descontentes, um
oceano de bobagens. Não chego a tanto. Todavia, não resisti à tentação de
selecionar, na produção teatral do Sr. Marques Rebelo, um mínimo de 125 imagens
42
realmente definitivas. A coisa piora um pouco quando o autor se põe a pensar.
Nota-se mesmo uma certa coerência entre a poesia da peça e sua filosofia. Esta,
porém, ganha no olho mecânico. Mas vejamos alguns exemplos concretos. Eis
como deblatera o amoroso do drama: “TEU CORPO É LEITE”. Não satisfeito,
prossegue: “O LUAR NOS ABENÇOA. O PERFUME DA NOITE NOS
ENVOLVE”. Ou, então, esta outra imagem, original e revolucionária: “TEU
CORPO É LEVE E FLEXÍVEL COMO O JUNCO”. Vem a heroína e clama:
“PROTEGIDA POR TEU PEITO, RIREI DAS TEMPESTADES”. O herói
gargalha: “TEMPESTADE?”... E ele próprio responde: “VÃO TEMOR!” Tais
metáforas colocam o leitor num dilema: ele não sabe qual admirar, se o lirismo, se a
dramaticidade. E a coisa culmina, quando espouca a parte filosófica. O mocinho
proclama: “O AMOR É VERDADE”. Vai além: “FECHAR OS OLHOS PARA A
VIDA É A GRANDE RECEITA DA FELICIDADE”. E conclui: “DOS TEUS
OLHOS O MEL ESCORRE.” A heroína não fica atrás; e assaca: “TEU CORPO É
CHAMA”. E ainda, de quebra, um pensamento de insondável profundeza: “A
VIDA É LUTA!”
Veja você, meu caro Olinto. Tudo isso que eu reproduzi, textualmente, está no
nível estilístico das canções do dr. Vicente Celestino. Salvo engano, Rua Alegre, 12
não me parece superior, em bom gosto de linguagem, ao “Coração materno”, ao
“Ébrio”, ao “Rasguei teu retrato”. Julgo descobrir no Sr. Marques Rebelo uma
bossa insofismável, qual seja a de escrever textos para o Sr. Vicente Celestino
cantar. Com tudo isto, eu quero reivindicar para mim o direito de fazer
subliteratura, à semelhança de vultos mais categorizados como os dos Srs. Carlos
Drummond de Andrade e Marques Rebelo. 46

A resposta ultrajante ao crítico não foi a única nessa disputa jornalística, mas é, de
fato, a mais engraçada. Nelson utiliza a mesma estratégia de quando era tachado de
“maldito”: ele não refuta a imagem feita pelo crítico, ao contrário, adere à idéia propagada
e reafirma. No entanto, aqui ele vai além, pois se defende de seu detrator agressivamente,
desarmando-o ao utilizar como argumento a obra do outro. Essa sua postura frente aos
textos que pululavam nos jornais a cada peça estreada será, a partir de então, cada vez mais
freqüente e notável. A tal ponto ele se mantém na defensiva que, em resposta à crítica que o
difamou quando na estréia de Perdoa-me por me traíres (1957), ele escreverá Viúva, porém
honesta (1957), que será considerada uma das poucas comédias de um tragediógrafo.
A seguir, no conjunto de sua obra, creio que seja possível considerar A falecida
como outro grande marco do teatro rodriguiano. Não só porque, a partir de então, ele irá
engendrar um percurso menos sinuoso que o anterior, mas também por determinar a
configuração de outra imagem na crítica: agora, a de autor sensacionalista, à qual também

46
RODRIGUES, Nelson apud FACINA, Adriana. Op. cit., 2004. pp. 55-56.
43
será agregada à idéia, cada vez mais forte, de tarado. Paralelo a isso, a idéia de trágico
impuro se cristalizará cada vez mais. A falecida não chegou a causar tanto barulho na mídia
como outros textos, ainda que tenha suscitado alguns debates, mas a grande querela se dará
com Perdoa-me por me traíres, no ano de 1957. A respeito da primeira tragédia carioca, a
crítica foi benevolente; considerou-a uma boa peça, sem, no entanto, voltar ao patamar de
Vestido de noiva. Claude Vincent, na Tribuna da Imprensa, compara-a a Woyzeck, drama
inacabado de Büchner.

“A FALECIDA”: “WOZZECH” DISPERSIVO – Há anos, Ziembinski dirigia,


para Maria della Costa e Sandro, “Wozzech” (Lua de Sangue), de Georg Büchner.
“Que porcaria!” – gritaram os entendidos, desaconselhando a ida ao Fênix. Os
“flashes” da vida do praça transtornado que mata a mulher infiel e acaba trágico-
ridiculamente, não agradaram: mas o público aclama um “Wozzech” brasileiro,
dispersivo, de 120 anos mais tarde.
No original, todos os “flashes” têm algo que ver com o enredo central. Na
“tragédia carioca” (a definição do autor), as cenas da empresa funerária, as cômicas,
desperdiçam a trama, diluindo a nossa piedade por “Tuninho” e “Zulmira”. Saiu-se
impassível do teatro, apesar das interpretações empolgantes.
Não são o assunto trivial nem a gíria de “A vida como ela é” que criam para o
espectador essa dificuldade de compreender o intuito do autor. O seu “Tuninho”
desempregado, jogando bilhar, mal casado com a moça que o “chateia” com a sua
cartomante, interessa-se pela praia tanto quanto pelo futebol. Lava as mãos depois
de tocar Zulmira, mas é trágico diante da revelação do amante. Não vendo que ele é
o culpado, vinga-se com aquele caixão de Cr$ 400. Os quarenta contos correm-lhe
pelos dedos, para apostar no Vasco, que foi, realmente, a paixão dominante de sua
vidinha. Como ter pena desse pequeno torcedor, tão torpe?
Zulmira, sim, é assunto de tragédia. Não se compreende o seu ódio a Glorinha.
A de um seio só, afinal, não teve mais sucesso com os homens que a sonhadora do
enterro de penacho. Mas os seus fracassos, o seu sonho, mereciam uma peça mais
desenvolvida, menos forçada. (VINCENT, Claude. Tribuna da Imprensa, 10 de
junho de 1953, 2º caderno, p. 2)

Na seqüência do texto, a crítica considera que A falecida possui material suficiente


para uma tragédia que não se realizou. Os pressupostos presentes no texto: a peça, se
pretende ser trágica, não pode causar o riso e deve causar piedade nos espectadores frente
às personagens. Do mesmo modo, deveria ser dada mais atenção ao drama pessoal de
Zulmira e torná-lo mais bem desenvolvido. Ou seja, os paradigmas, aqui, continuam os
mesmos de antes, o da tragédia que não pode ser impura, heróis trágicos que não podem

44
causar o riso na platéia; as peças devem ser estruturadas conforme a chamada “peça bem
feita”. No mesmo dia, o Diário de Notícias publica um texto que corrobora o de Claude
Vincent no aspecto do não-trágico:

(...) “A falecida” é uma peça com alguma coisa triste, muita coisa de colorido
local – portanto, engraçada – e com pretensões muito altas, expressas no programa,
porém não alcançadas. (...)
Ante o esnobismo dos que acharão indispensável concordar e achar a peça
mais uma inovação no “gênero trágico”, tocada de “uma tristeza fundamental”,
declaramos não ter encontrado essas qualidades em “A falecida”. A cisma da
heroína com a prima é manifestação mórbida, teatralizada em contraponto com
detalhes pitorescos, autêntico linguajar carioca e umas breves notas trágicas que
parecem ter produzido o necessário efeito, sobretudo, graças mais a bons lances de
interpretação do que emanadas mesmo do conteúdo da peça. (Diário de Notícias, 10
de junho de 1953)

Chamo a atenção, também, para a importância dada por ambos os críticos ao


linguajar carioca utilizado na peça como fator de negação do trágico: desconsideram a
possibilidade de um texto teatral “nobre” com o uso da linguagem suburbana corrente. É a
partir desse momento que o fait divers e elementos de A vida como ela é... são integrados
ao seu teatro e Nelson Rodrigues é acusado de sensacionalismo.47
Dias antes da estréia de Perdoa-me por me traíres, os adeptos do dramaturgo
comandaram uma campanha jornalística para defender a peça, seu aspecto moralista e sua
qualidade literária. Deu-se início, então, a uma das maiores brigas jornalísticas
protagonizadas pelo dramaturgo. Em entrevistas a jornais, Nelson Rodrigues ressaltou a
característica catártica de sua nova obra, tentando aliá-la à tragédia clássica e, ao mesmo
tempo, desvencilhá-la do sensacionalismo:

Muita gente quer saber se é mais violenta que minhas obras anteriores. Sou
obrigado a admitir: — “É mais violenta”. Eu falei, acima, nos meus abismos. E que
é “Perdoa-me por me traíres” senão a peça que solta, em palco, os meus abismos, os
nossos abismos, os abismos de cada um, os abismos de todos? Perguntam-me se
47
Em depoimento (MIS-RJ), Nelson Rodrigues admite que todo seu teatro teve ampla influência de sua
experiência como repórter policial, no início de sua carreira jornalística. Ao comentar a estréia de A falecida
no Municipal, Ruy Castro descreve a surpresa da platéia ao ouvir gírias ditas pelas personagens, afinal, o
Teatro Municipal era o lugar reservado para peças “sérias”: “Nelson deixou que a cor local de ‘A vida como
ela é...’ contaminasse ‘A falecida’. A história podia ser dramática, mas alguns personagens eram mesmo
gaiatos, falavam a gíria corrente, estavam vivos.” (Op. cit., 1997, p. 247)
45
esse caráter abismal não implica em morbidez, em sensacionalismo. Não. A ficção
para ser purificadora precisa ser atroz. O personagem é vil para que não o sejamos.
Ele realiza a miséria inconfessa de cada um de nós. A partir do momento em que
Ana Karenina, ou Bovary, trai, muitas senhoras da vida real deixarão de fazê-lo. No
“Crime e Castigo”, Raskolnikoff mata a usurária e, no mesmo instante, o ódio
social que fermenta em nós estará diminuído, aplacado. Ela matou por todos. E, no
teatro, que é mais plástico, direto, e de um impacto tão mais puro, esse fenômeno de
transferência torna-se mais válido. Para salvar a platéia, é preciso encher o palco de
assassinos, de adúlteros, de insanos e, em suma, de uma rajada de monstros. São os
nossos monstros, dos quais nos libertamos eventualmente, para depois recriá-los.
(MONTALVERNE, Simão de. Última Hora, 18 de junho de 1957)

Ao ressaltar a idéia de purificação pela literatura, pelo teatro, a libertação da


monstruosidade supostamente presente em cada um, o dramaturgo procura impingir um
sentimento ao público, ligando-o à catarse aristotélica, fato que o colocaria em um patamar
deveras desejado: o de trágico. Ainda na tentativa de se legitimar como um trágico, ele usa
a comparação com outras obras literárias do cânone mundial, como as dos russos Tolstói e
Dostoiévski e a do francês Gustave Flaubert. Esse argumento de defesa será bravamente
combatido e, concomitantemente, ressaltado ao longo de algumas semanas, tempo em que a
peça permaneceu como centro das discussões críticas. Se por um lado a defesa ressalta o
que Nelson Rodrigues privilegia, o sacrifício das personagens para a purificação da
platéia48, por outro os adversários vêem isso como morbidez e marca de um grotesco e mau
gosto que são tão caros ao autor.

O que não existe realmente na peça de Nelson Rodrigues é perdão,


indulgência, clemência, amor, tolerância, remissão das culpas e dos culpados, dos
pecados e dos pecadores, das fraquezas e dos fracos, tão desgraçadas suas
personagens, tão torturadas pelas suas desventuras, pelas suas paixões mórbidas,
pelos seus instintos primitivos, que crescendo do subterrâneo da alma ao domínio
plano de todas as reações, principalmente do cérebro e do coração, tão miseráveis
são essas criaturas de corpo e espírito, que diga-se dos seus semelhantes se
preocupam um único meio de libertação – a morte por todas as formas de suicídio.
(Última Hora, 22 de junho de 1957)

48
Interessante notar pressuposto semelhante de George Lillo quando na construção de sua “tragédia
burguesa”. Segundo estudo de Peter Szondi, em Teoria do drama burguês, Lillo muda a concepção de
tragédia e de seu efeito para justificar a inserção do drama burguês. Cito Szondi: “Ao dizer que o objetivo da
tragédia é excitar as paixões, ele apela – embora não mencione o nome – a Aristóteles, mas dá à teoria
aristotélica do efeito catártico e purificador da tragédia um sentido que ela dificilmente tem neste: o da
correção ou do castigo das paixões criminosas por natureza ou por excesso.” (p. 34)
46
Em contraposição a esse tipo de argumento utilizado em defesa da peça, Henrique
Oscar escreve um texto no Diário de Notícias em 23 de junho de 1957:

Comentando a “Electra” (“La fiaccola sotto in maggior”) de D’Annunzio,


recentemente levada aqui e em São Paulo pela Cia. De Lullo-Falk-Guarnieri-Valli,
Décio de Almeida Prado observou muito acertadamente que “enquanto o mito
grego respira saúde mental e moral, mesmo ao narrar crimes espantosos, mesmo ao
retratar famílias inteiras condenadas”, o poeta italiano pinta um quadro de
desfibramento, mórbido e conseqüentemente negativo. Isso vale mil vezes mais
para o teatro de Nelson Rodrigues, que mesmo quando como nesta peça – segundo
foi propalado aos quatro ventos – quer ser intencionalmente e acima de tudo moral,
acaba sendo deprimente, mórbido, doentio e nada moral. Essa intenção, se
realmente houve, falhou de todo, pois de maneira alguma aparece e o que domina
são os aspectos francamente dúbios ou até obscenos, que se não deviam valer por si
próprios e ser apenas dados necessários de que uma demonstração, são contudo o
que prevalecem e marcam a obra.
(...)
A intenção de seriedade do autor pode também ser posta em dúvida diante de
absurdos como este: numa cena violentíssima, no auge de uma discussão entre duas
personagens, uma pede à outra um copo d’água, alegando sede; então a segunda
indaga: — “Mineral ou do filtro?”, ao que a primeira retruca: — “Mineral”. Essa
água é apenas para que uma das personagens dê de beber veneno à outra... O
ridículo é tão imediato e completo que se chega a ter o direito de indagar se não foi
intencionalmente procurado...

As discussões ficam neste patamar, sem se estenderem muito no que diz respeito à
estrutura da peça ou ao trágico. As acusações de sensacionalismo e empobrecimento
dramático continuam, enquanto outros ressaltam a gratuidade de algumas cenas e algumas
falas das personagens. Para completar o argumento de que o adjetivo “sensacionalista” foi
acoplado à imagem formada anteriormente – de “renovador”, “trágico malsucedido” e
“tarado” –, continuo a incursão pelos textos jornalísticos da época. Sobre Os sete gatinhos,
outra peça que gerou polêmicas, foram repetidos os mesmos argumentos utilizados em
defesa de Perdoa-me...: a peça é violenta, sim, mas com o intuito de expurgar da platéia os
males ali presentes.

Mas a divinha comédia de Nelson Rodrigues é, na verdade, a sua obra mais


violenta, mais sombria e, ao mesmo tempo, mais apaixonante. É uma peça que vive
dos abismos ou por outra: – uma peça que solta, no palco, os nossos abismos.

47
Declara o autor: – “Nós usamos na terra uma cara que não é a nossa”. (Última
Hora, 14 de outubro de 1958)

O argumento, aqui, é idêntico ao utilizado anteriormente. Nelson Rodrigues utilizará


discurso semelhante em entrevistas, a exemplo do que já fizera antes, sempre dias antes à
estréia da peça (com intento de atrair o público ou de provocar a crítica?):

Ainda sobre ‘Os sete gatinhos’, ele diz coisas que parecem desafiar a paciência
de muita gente: - “a minha primeira ‘divina comédia’ é uma peça extremamente
mórbida, varrida de parricidas, canalhas de ambos os sexos, adúlteras, insanos.
‘Mórbida’, disse eu. Aliás, jamais neguei ou discuto a morbidez do meu teatro.
Uma das minhas escassas contribuições para o drama brasileiro foi, justamente, a de
ter incorporado à nossa história teatral a sordidez que é inerente ao ser humano. Ai
do teatro no dia em que lhe faltar a abjeção que todos nós temos, todos! Dentro da
obra que venho realizando, a morbidez parece-me incontestável e, sobretudo,
necessária”. (Diário de Notícias, 16 de outubro de 1958)

Assim como o argumento de defesa se repete, o contrário também acontece: a crítica


se nega a levar a sério a peça de Nelson Rodrigues, considerando-a abjeta, sensacionalista e
repugnante demais:

Nelson Rodrigues, que há quinze anos surgiu como o autor que parecia ser o
renovador da dramaturgia brasileira, orientou-se depois pelo caminho barato e
sensacionalista que todos sabem. Fazendo o pior uso de suas qualidades. Agora está
em cartaz no Teatro Carlos Gomes mais uma de suas peças. ‘Os sete gatinhos’, que
se enquadra na linha de suas novas tendências, foi a pior de todas. Não acreditamos
que o autor de ‘Vestido de Noiva’ escrevesse aquilo a sério. Por isso recusamo-nos
também a levá-la a sério, acrescentando apenas que o espetáculo é tão ruim como o
texto e lamentando que o dramaturgo de quem tanto se esperava para renovação do
nosso teatro, preferisse concorrer dessa maneira para a sua desmoralização. (Diário
de Notícias, 21 de outubro de 1958)

Paschoal Carlos Magno, por exemplo, no dia da estréia da peça saiu do teatro
lamentando a imundície que vira. Quem conta o fato é Ruy Castro. Na continuação, o
biógrafo comenta: “A respeito de ‘Os sete gatinhos’, outro crítico acusou-o de ‘exploração
ignominiosa e lucrativa de crimes torpes’ e de ‘deleitar-se com a podridão’.”49 Assim, essa
imagem de torpeza está cada vez mais atrelada ao nome do dramaturgo.

49
CASTRO, Ruy. Op. cit., 1997, p. 288.
48
Em meio a essa discussão de morbidez-sensacionalismo-sordidez, as referências à
formação do trágico em sua obra continuam aparecendo, seja para defendê-lo, seja para
detratá-lo. Aldo Calvet, crítico de Última hora – jornal em que Nelson trabalhava na década
de 50 –, escreveu um texto em que avalia positivamente a mistura de trágico e cômico, num
raro momento de defesa de Os sete gatinhos:

‘Os sete gatinhos’ possui dois caracteres femininos perfeitamente distintos e


humanos. O conflito gira em torno desses dois tipos que constituem a substância
dramática da peça, dando-lhe beleza moral, poesia trágica, força emotiva. Todos os
demais são elementos circunstanciais que existem em função das trágicas paixões
de Silene e Aurora. Nelson Rodrigues, como sucede sempre em suas peças, esbanja
talento, reforçando a ação principal de episódios às vezes tão contrastantes que
chegam facilmente ao cômico irresistível. Aquele milímetro que há entre o trágico e
o cômico torna-se imperceptível pela sua exuberante imaginação e pelo seu jocoso
poder. (CALVET, Aldo. Última Hora, 23 de outubro de 1958)

Aos poucos e com certa ressalva, a mistura entre o trágico e o cômico começa a ser
aceita – não pelo público, que de certa forma já a aceitara antes, mas pela crítica, que se
mostrava tão temerosa em relação à impureza dos gêneros. A reserva que se mostrou ao
texto diz respeito à insuficiente exploração dessa mistura, deixando a cargo dos conflitos
das personagens toda a responsabilidade pela construção de um sentido trágico e, por
conseqüência, pela estrutura trágica nos textos rodriguianos:

Nelson Rodrigues conseguiu retratar a tragédia dos pequenos burgueses do


subúrbio com suas aspirações loucas, com sua falta absoluta de qualquer orientação
religiosa ou moral mais sólida capaz de determinar sua posição neste mundo; com
sua superstição, seus preconceitos; com sua vida de segunda-mão, fomentada e
guiada pelos seus desejos desenfreados pela rádio-novela, pelos cabeçalhos de
jornais e pelas vitrines das lojas americanas. Nos dois primeiros atos ele chegou a
realizar o drama desta gente, que está condenado a consumar-se com a mesma
inexorabilidade que na tragédia grega, quando os seus personagens entram em
choque com forças superiores, e a engrenagem do destino começa a movimentar-se.
(...)
A técnica da tragédia grega foi muitas vezes imitada por escritores modernos,
mas de maneira extrínseca e arbitrária. Nelson Rodrigues não imita a técnica do
teatro grego: ele chega a estabelecer as mesmas condições dramáticas, a mesma
densidade patética que caracterizam as tragédias helênicas e com isso condena os
seus personagens a sofrer sorte idêntica. O que há dois mil e quinhentos anos atrás
foi o invencível destino, na peça de Nelson Rodrigues é o não menos invencível
ambiente pequeno-burguês, sua ignorância agressiva e seu fanatismo amoral, que
49
determina as ações dos seus personagens e os destrói implacavelmente. (KELLER,
Willy. Leitura, novembro de 1958, no. 17, ano XVIII, p. 60)

Outra vez nos defrontamos com a tentativa de ligar o teatro de Nelson Rodrigues
diretamente às tragédias gregas, seja por sua estrutura, seja pela idéia de expiação das
personagens. Mas o que Willy Keller, diretor de Os sete gatinhos, comenta é a relação do
trágico em um ambiente pequeno-burguês, em que as situações extrínsecas das
personagens, como meio social e condições de vida, estariam diretamente ligadas ao
destino delas enquanto catalisador, diferentemente do que seria retratado pelos helênicos
em suas tragédias. Esse tipo de observação é algo realmente novo neste final de década,
essa releitura da estrutura da tragédia à luz de uma sociedade burguesa, ainda que os termos
não sejam efetivamente relativizados. Este foi um fator muito bem marcado, mas que
passou incólume às outras críticas do autor, que voltam a atacar a inserção de elementos
cômicos como fragilidade da estrutura trágica. Henrique Oscar é muito claro quando faz a
sua objeção à peça Boca de Ouro:

No final do 2º. vol. do “Teatro” de Nelson Rodrigues, editado pelo SNT,


encontra-se a mencionada obra e ali a vemos classificada de “Tragédia Carioca”.
José Renato tentou levá-la à cena assim e o espetáculo ainda mais que a leitura
demonstra que não se trata de um texto trágico mas altamente cômico, muito mais
de uma farsa à maneira de “A falecida” que de uma pretensa tragédia, qualquer que
seja o sentido atribuído à expressão, exceto na medida em que podem ser
considerados trágicos em suas desgraças os personagens de Molière.
As observações e as situações grotescas que dominam o texto evidenciam
tratar-se de obra nitidamente cômica, com uma excelente evocação sobre o ridículo
das aspirações da nossa pequena burguesia suburbana (“ir à Europa ver a Grace
Kelly”, “ser enterrado num caixão de ouro”). O autor parece não se ter dado conta
disso e pensou que podia dar um tom de sarcasmo ou ironia a essas observações e
situações e encaixá-las num contexto trágico. (...)
Essa indecisão do texto é seu maior defeito, mais grave, por exemplo, que
certas incoerências entre quando a peça é a narração de um personagem e quando é
a “realidade” da obra que está ocorrendo, ou a confusão que resulta da falta de
clareza sobre determinados episódios ou situações. (OSCAR, Henrique. Diário de
Notícias, 26 de janeiro de 1961)

Na continuidade do texto, Oscar afirma que a comicidade de alguns tipos anula


completamente a força trágica de algumas cenas. O raciocínio mais claro utilizado por esse
tipo de argumento é que, à medida que o trágico toma dimensões extravagantes, ele se torna

50
ridículo, o que anularia a tensão dramática que supostamente levaria à formação da
tragédia. Da mesma forma o cômico, que, se colocado no mesmo patamar da tensão, a
anularia de todo, causando o riso e não o horror, o que impossibilita a presença de qualquer
elemento da comédia num pretenso texto trágico. O mesmo tipo de ressalva se repete no
ano seguinte, na estréia de Bonitinha, mas ordinária:

O que devia ser a terrível denúncia, ou a constatação da horrível verdade falha


totalmente, porque por seu artificialismo, sua falsidade, o primarismo com que é
apresentado, tudo aquilo que devia ser chocante, revoltante, mórbido, não chega a
ser levado a sério, resultando apenas ridículo, engraçado em seu bisonho esforço
por atingir um clima a que o texto jamais chega. Ao espectador maduro e
experiente, essa tentativa bisonha de horrorizar, apenas faz rir por seu primarismo.
(...)
O acerto de certos fragmentos de diálogo, a graça de determinadas observações
e o sarcasmo de outras, além de um ou outro momento teatral, não redimem o texto
de sua deficiência estrutural, da gratuidade de tanta coisa que devia ser trágica e
resulta cômica. Aliás, a reação do público da estréia, encarando como farsa o que
devia ser uma tragédia, achando graça nos momentos mais terríveis, que não se está
mais em tempo de levar a sério, pelo menos quando mostrada com tal primarismo,
ilustra melhor do que qualquer comentário essa irrealização do texto. (OSCAR,
Henrique. Diário de Notícias, 4 de dezembro de 1962)

Uma vez que a imagem de insuficientemente trágico foi marcada, percebe-se, pouco
a pouco, o quanto a figura do dramaturgo foi-se tornando maldita, aliada ao
sensacionalismo ressaltado pelos textos jornalísticos. Além da imagem multifacetada do
teatrólogo, também é importante observar como os críticos concebiam a tragédia, enquanto
gênero dramático superior e praticamente inexistente no Brasil de então. Talvez pela
presença constante e desvalorizada da comédia no início do século, o mínimo resquício
deste gênero em uma obra dramática escrita posteriormente é motivo para sua detratação.
Por outro lado, passado o tempo de purgatório, Nelson Rodrigues é realocado ao
patamar de início de carreira: de gênio e renovador do teatro brasileiro moderno. Isso
ocorreu efetivamente após sua morte, mas iniciou no final da vida, entre o final da década
de 70 e início de 80. Vários pontos convergentes favoreceram para a fixação da imagem de
tragediógrafo: a publicação do Teatro quase completo, na década de 60, com estudo
introdutório de Pompeu de Souza; publicação do estudo mais significativo da época, Teatro
de Nelson Rodrigues – uma realidade em agonia, de Ronaldo Lima Lins; os estudos
51
psicanalíticos de Hélio Pellegrino; e, post-mortem, a compilação do Teatro completo de
Nelson Rodrigues, com introdução de Sábato Magaldi. Somado a tudo isso, sem dúvida,
uma onda de encenações de textos rodriguianos por grupos teatrais amadores ou
profissionais, que o lançaram finalmente a cânone nacional. Quanto a isso, Magaldi é
bastante claro quando diz:

Nelson Rodrigues tornou-se desde a sua morte, em 21 de dezembro de 1980,


aos 68 anos de idade, o dramaturgo brasileiro mais representado – não só o clássico
da nossa literatura teatral moderna, hoje unanimidade nacional. Enquanto a maioria
dos autores passa por uma espécie de purgatório, para renascer uma ou duas
gerações mais tarde, Nelson Rodrigues conheceu de imediato a glória do paraíso, e
como por milagre desapareceram as reservas que às vezes teimavam em
circunscrever sua obra no território do sensacionalismo, da melodramaticidade, da
morbidez ou da exploração sexual.50

1.2.1 – Coup de théâtre

Pompeu de Souza escreveu o prefácio para a compilação do Teatro quase completo


do dramaturgo pernambucano. No texto, o crítico evoca parte das principais críticas feitas
até então, inverte o processo argumentativo e elabora, com um discurso já conhecido de
todos, os pontos fortes do texto rodriguiano. Assim, a monstruosidade pela exacerbação dos
incestos, a obsessão pelo sexo e, inclusive, a deformação estética são pilares da dramaturgia
de Nelson Rodrigues, considerada não apenas a mais moderna e renovadora do teatro
brasileiro, mas elevada agora a um patamar universalizante. Interessante observar a
construção deste argumento porque, com ele, Pompeu de Souza se dedica a aproximar as
primeiras peças do autor às tragédias gregas. Além disso, vê em Álbum de família a peça-
chave para a compreensão de toda a obra, na medida em que a família ali retratada é um
microcosmo da sociedade na qual vive o homem: a família do Homem. A respeito da
obsessão pelo sexo, Pompeu escreve o seguinte:

Nenhum dos três – censura, público miúdo e intelectuais bitolados –


conformam-se jamais com sua obsessão do sexo, levada à exasperação e ao
paroxismo sem fronteiras do incesto. Não se apercebem, aqueles, de que o autor não

50
MAGALDI, Sábato. Moderna dramaturgia brasileira. São Paulo, Perspectiva, 1998, p. 23.
52
visa, nas suas peças, uma agressão moral, pois que não preconiza, mas retrata; e, ao
fazê-lo, não cuida de uma reprodução naturalística da realidade superficial, mas de
uma visão em profundidade, através de processos de análises e sínteses recriadoras
da realidade.51

Dessa forma, o crítico afirma que o teatro de Nelson Rodrigues tornar-se-ia


grandioso e profundo por não se limitar a apresentar a realidade em sua superficialidade;
através de símbolos, vai fundo em suas significações e representações, o que provocaria no
público o incômodo pela deformidade. Essa deformidade, que ocorre no campo estético, é o
meio utilizado pelo dramaturgo para elaborar seu ponto de vista a respeito do ser humano e,
ainda que descambe no mau gosto, é um meio esteticamente lícito. No campo cênico,
Nelson Rodrigues se utilizará de elementos da tragédia grega e de elementos de outras artes
mais modernas, como o cinema e o rádio, o que – de forma antagônica –, segundo Pompeu,
o faria compor uma obra teatral moderna, pura: uma tragédia.

No terreno da construção cênica de suas peças, a característica dominante do


autor é a utilização de todas as técnicas teatrais, das mais remotas – como o
tratamento coral da tragédia grega, ora através do próprio coro, ora de um corifeu –
às mais modernas, como a dos palcos móveis ou múltiplos; e, também, a
incorporação ao teatro de técnicas outras “teatralizáveis” de outras artes: o cinema,
o rádio, as artes plásticas e as musicais. Todas as técnicas, enfim, que ajudam a
compor a “ilusão teatral”, ele as aceita e incorpora, sem preconceitos de purismo,
mas tão bem as incorpora que atinge, com elas, uma pureza de expressão teatral,
creio que jamais atingida antes ou depois dele.52

Mais adiante, Pompeu se apropria de um argumento tão caro a Nelson Rodrigues: o


uso da linguagem coloquial como apropriado na construção de uma tragédia. E ainda vai
além, pois afirma que a linguagem coloquial não só pode ser utilizada na construção de
uma tragédia como, além disso, a deixaria uma forma mais “pura”:

Outro ponto que menos há que assinalar, porque mais percebido já de toda
gente, porém não menos rico para o estudo, é a sua contribuição no terreno da
composição literária, isto é, na sua linguagem. Em nenhum autor da língua
portuguesa ela terá sido jamais tanto a língua falada real quanto na sua obra teatral.
(...) Nada mais admirável do que esta pureza criadora que lhe permitiu compor
51
SOUZA, Pompeu de. Introdução. In: RODRIGUES, Nelson. Teatro Completo. vol. 4. Rio de Janeiro, Nova
Fronteira, 1990, p. 331.
52
Idem. p. 332.
53
obras tão altas, no mais nobre dos gêneros teatrais – a tragédia – com as formas
lingüísticas, muitas vezes as mais plebéias e, contudo, de uma beleza não raro
incomparável.53

Está legitimada a forma trágica nos textos de Nelson Rodrigues: temas universais e
linguagem adequada ao pressuposto da peça. No entanto, Pompeu de Souza restringe tal
concepção às peças do início da carreira dramática do autor, pois a partir de A falecida ele
considera que Nelson inclinou-se para a comédia de costumes carioca, sem se dar conta
disso, tratando-a como tragédia carioca sem o ser. “Este, porém, é todo um novo caminho
que mal se inicia na obra do Sr. Nelson Rodrigues e que poderá ainda ser-lhe tanto ou mais
fecundo que o da tragédia”54. Assim Pompeu de Souza conclui sua introdução ao Teatro
quase completo.
Em 1979, quando Nelson ainda estava vivo (e, de certa forma, produzindo – sua
última peça foi escrita em 1978, mas encenada apenas em 1980, meses antes de o
dramaturgo morrer e cuja montagem o autor acompanhou), Ronaldo Lima Lins publicou O
teatro de Nelson Rodrigues – uma realidade em agonia, tese de doutorado defendida na
França55. O autor analisa cinco peças: Vestido de noiva, A falecida, Boca de ouro, Toda
nudez será castigada e Os sete gatinhos. A particularidade desse estudo está em não
somente se adiantar criticamente em relação a esta obra, mas também em enfocá-la por um
ponto de vista que até então sempre fora bravamente criticado: o aspecto social da obra
rodriguiana. Ainda que tenha proposto uma análise bastante específica, o crítico aponta
vários momentos em que as personagens ressaltam sua virulência no modo como se
relacionam. No limite, isso pode ser identificado como o momento culminante das
situações tensas que, em seguida, se transformarão em atos trágicos. Por exemplo, a relação
doentia existente entre várias personagens (que o crítico chama de “amor doentio”), o modo
masoquista como se tratam, a insistência numa convivência solitária (mesmo entre casais).
A frieza com que as personagens se tratam não é uma presença efêmera nas peças,
tampouco uma situação sem finalidade. Ao contrário, ela salienta ainda mais a solidão em

53
Idem. p. 333.
54
Idem. p. 334.
55
A tese de doutorado foi defendida em 1975, na Sorbonne-Nouvelle (Paris III), e publicada no Brasil em
1979.
54
que vivem – e tanto a frieza quanto a solidão são contingências trágicas modernas. Essas
são características recorrentes nas peças e, eventualmente, potencializam a tendência à
tragicidade presente na obra. De outro lado, não menos importante para a formação de um
sentido trágico, Lins ressalta o aspecto moral presente em cada personagem:

Elas, em geral, representam pessoas de moral burguesa que, embora


conscientes das normas corretas de agir, não resistem a um impulso interior mais
poderoso do que suas noções puritanas e mergulham, esparramam-se em algum
comportamento tido como sujo dentro de suas próprias concepções. Quase sempre,
o fenômeno que então vemos suceder é o de uma moral extremamente puritana e
ortodoxa rasgada e corrompida por aquele que mais se deleitava em defendê-la ou
por outra pessoa ligada a este.56

Esse impulso do qual fala Lins é, em geral, o ponto de partida para ações realmente
graves no contexto social no qual as personagens vivem. Será também o responsável por
grande parte das ações funestas ou que desencadearão forças trágicas em outras
personagens. Assim, no processo inverso do que a tragédia clássica pressupunha, a tragédia
rodriguiana parte de um conflito interno das personagens e atinge o cume quando levado ao
exterior, ao questionar e abalar padrões sociais de convivência57.
Assim são as personagens das peças analisadas por Ronaldo Lima Lins: Alaíde,
Pedro e Lúcia (de Vestido de noiva), Zulmira e Tuninho (de A falecida), Boca de Ouro,
Celeste e Leleco (de Boca de ouro), Herculano e Geni (de Toda nudez será castigada) e a
família de seu Noronha (de Os sete gatinhos). Mas além dessa recorrência de enfoque dos
conflitos (existenciais? morais?) das personagens, o autor não deixa de observar alguns
aspectos estruturais das peças que, sem dúvida, auxiliam na compreensão de uma pretensa
tragédia. Ele ressalta, por exemplo, a recorrência do melodrama e da chanchada – gêneros
considerados “menores” que, de uma forma ou de outra (e em decorrência de uma herança
cultural, como apontei anteriormente), influenciaram a obra deste dramaturgo. No caso de
A falecida, Lins considera que o humor utilizado freqüentemente no desenvolvimento da
trama impede que o tom da peça caia no melodramático. Já no caso de Boca de ouro:

56
LINS, Ronaldo Lima. Op. cit., 1979. p. 72.
57
É preciso deixar claro que esses padrões de convivência em geral se dão em âmbito muito restrito, ou seja,
na família. Normalmente, não podem ser estendidos a um padrão social fora disso.
55
O tom da peça não sofre alteração. Conservará sempre as pitadas de
humorismo e o colorido das expressões de gíria, temperando os instantes de
tragédia de uma nota cômica que apenas lhes acrescenta interesse, neutralizando,
brechtianamente, os momentos de empatia.58

Isso leva Lins a afirmar que Nelson Rodrigues explora a tragédia num tom de
deboche – afirmação importante porque contraria uma tendência da crítica jornalística em
ver as peças do dramaturgo como tragédias malsucedidas. Com este ensaio, o estudioso
antecipa uma importante visão crítica e se antepõe ao que era comumente avaliado
negativamente no dramaturgo pernambucano: ele vê na mistura de gêneros das peças um
ponto de maturidade dramática, impulsionada por uma experiência pessoal. Também é a
partir do trabalho de Lins que ocorrerá uma migração importante, pois Nelson Rodrigues se
tornará objeto de estudos no meio acadêmico, o que vai impulsioná-lo cada vez mais para o
patamar canônico.
Estes dois estudos mais significativos, do período em que Nelson Rodrigues ainda
era vivo, salientam algumas noções importantes dos textos dramáticos do autor, além, é
claro, de evidenciar e enfatizar que o trágico rodriguiano de fato acontece, embora de forma
alternativa àquela que era mais convencional, a aristotélica.

1.3 - Leituras posteriores: a imagem consagrada de trágico

São muitos os trajetos até a consagração de Nelson Rodrigues como um autor


trágico. Há inclusive uma vasta dedicação ao tema em teses de mestrado e doutorado – tipo
de crítica totalmente diversa daquela abordada até aqui. Não me proponho a analisar todas
minuciosamente, mas busco ressaltar as que mais circulam no mercado editorial, que
favorecem a ligação do nome do dramaturgo à tragédia. Sem dúvida, a introdução ao
Teatro Completo realizada por Sábato Magaldi tem sido um dos textos mais citados, mais
lidos e que mais ajudam a propagar a idéia de tragédia rodriguiana. Isso se dá não somente

58
LINS, Ronaldo Lima. Op. cit., 1979. p. 119.
56
pelo valor crítico de seu estudo, mas principalmente por ser veiculado juntamente com as
peças do autor59.
O estudo desenvolvido por Magaldi especialmente para a compilação do teatro
completo tem guiado grande parte da crítica póstuma de Nelson Rodrigues: ele delimitou
diretrizes caracterizadoras, analisou aspectos psicológicos e abordou fatores ligados à vida
pessoal do autor que podem ter influenciado sua produção dramática. Por isso é
conveniente enfocar algumas questões elaboradas pelo crítico e amigo do autor, mas
limitarei tal abordagem especificamente ao que concerne ao trágico; afinal de contas, nem
todas as peças são tomadas como tal por Magaldi, embora ele ressalte que em todas há uma
visão trágica da vida, própria do dramaturgo e de seu pessimismo.
Ainda que concentre todas as forças trágicas especialmente em três peças (Álbum de
família, Anjo negro e Senhora dos afogados), a perspectiva de malogro da personagem
percorre todas as peças, inclusive a farsa Viúva, porém honesta. Até mesmo no ciclo das
tragédias cariocas, afirma o crítico, está implícito um projeto estético superior (além da
visão trágica) que apenas a tragédia poderia oferecer. Além do mais, seria forçoso aliar
qualquer peça de Nelson Rodrigues pura e simplesmente ao gênero cômico:

Como Nelson impôs sua obra, sobretudo no início, contra a dominante


comédia de costumes, não gostaria de filiar-se a uma corrente cuja ambição artística
lhe parecia em geral menor. Tanto pela fidelidade ao seu universo como a um
projeto estético superior. Nelson julgava imprescindível mover-se sempre no
território da tragédia.60

Por isso, as peças do último ciclo chamar-se-iam tragédias cariocas, com essa
adjetivação pela representação de costumes local. Mas a “acepção trágica da existência”,
nas palavras do crítico, presente nas peças não se limita às oito que integram os volumes 3 e
4 do teatro completo; ele ressalta que Vestido de noiva, Valsa nº. 6 e Anti-Nelson Rodrigues
também possuem tal característica. Na primeira, por exemplo, afirma que é a rivalidade

59
A introdução de Sábato Magaldi deixou de integrar o conjunto do teatro completo de Nelson Rodrigues
publicado pela Nova Fronteira desde a nova edição, datada de 2004. No entanto, paralelo a essa exclusão, o
texto completo foi publicado pela Editora Globo, intitulado Teatro da Obsessão: Nelson Rodrigues, 2004.
60
MAGALDI, Sábato. Introdução. In: RODRIGUES, Nelson. Teatro completo. vol. 3. Rio de Janeiro, Nova
Fronteira, 1985. p. 9.
57
entre as irmãs que desencadeará a tragédia, observando que a noção de tragédia grega não é
aplicável à peça:

Caberia discutir se é correta a atribuição do gênero trágico a Vestido de Noiva.


Há uma designação técnica, associada ao conceito grego, que sem dúvida não se
aplica à peça. Ressumados todos os princípios, a partir da Poética aristotélica, resta
a idéia de que tragédia se associa a inevitabilidade, quase sempre à luta inglória do
homem com o destino que lhe é superior, e muitas vezes o abate. Apesar da
progressiva humanização da tragédia grega, o homem nunca deixou de ver-se a
braços com a fatalidade. (...)
Talvez proceda falar numa tragédia anônima do quotidiano – fixação da vida
contemporânea, na qual o homem é peça de uma engrenagem maior, que pode a
qualquer momento, fortuitamente, esmagá-lo. De um ponto de vista acadêmico, o
acidente poderia definir-se como o fato teatral menos trágico. Alaíde é apenas
vítima de um automóvel que a colheu. Nelson cercou o acontecimento, porém, de
tamanha inevitabilidade, que ele se assemelha à catástrofe trágica.61

Não cabe a mim discutir aqui a idéia de tragédia da qual se serve Magaldi para
atribuir o sentido à peça mais famosa de Nelson Rodrigues. O que me interessa é que, a
partir de uma observação da progressão temporal de um aspecto que se firmou como
trágico (a inevitabilidade), a noção é acoplada ao texto. Em nenhum momento de sua
introdução, Sábato Magaldi reflete sobre a possibilidade de uma estrutura trágica moderna
absorvida pelo dramaturgo, mesmo refletindo vários outros aspectos, como o
expressionismo, a antecipação de noções do teatro do absurdo, usos do grotesco e do
corriqueiro. Por outro lado, tão forte foi essa especificidade atribuída ao texto rodriguiano,
que se perpetuou na crítica: de que a visão trágica de mundo basta para ligá-lo ao gênero –
e assim o dramaturgo se tornou o maior tragediógrafo brasileiro.
Aliado a essa característica, o julgamento das noções clássicas nas peças míticas
será outro forte aspecto que ligará o dramaturgo definitivamente ao rol dos trágicos. Até
mesmo Dorotéia é relacionada a eles: “fatalidade familiar, que passa de uma mulher a
outra, maldição semelhante à que marca os Átridas, por exemplo, na tragédia grega”62. O
enfoque, no entanto, se dará efetivamente nas outras três deste ciclo.

61
MAGALDI, Sábato. In: RODRIGUES, Nelson. Teatro completo. vol. 1. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1981.
p. 20.
62
Idem. vol. 2. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1981. p. 32.
58
Anjo negro alia-se ao gênero por dois principais aspectos: a fatalidade – tal qual em
tantas outras peças do dramaturgo – e o uso do coro, utilizado como nos textos gregos. No
primeiro caso, Ismael é o negro que nega a própria cor, que repudia qualquer relação com
seus semelhantes. Por isso, ele é amaldiçoado pela própria mãe, o que designaria o aspecto
trágico:

Nelson cercou os episódios de um clima trágico, armando-os com a força da


fatalidade. À semelhança de ciclos gregos, em que a maldição atinge a
descendência, a mãe de Ismael o amaldiçoa, porque ele repudiou a própria cor.63

O coro aqui é usado, ao contrário de outras tentativas, em um formato muito


próximo daquele que os antigos aparentemente o utilizavam. Essa tentativa de ligação de
Nelson Rodrigues com os clássicos fica muito evidente em todo o estudo crítico que
introduz o segundo volume do teatro completo, num evidente desígnio de dar certa
legitimidade à tragédia rodriguiana.

As pretas descalças, como indica o autor, é que formam um coro. Embora


Nelson já utilizasse figuras episódicas, em Vestido de Noiva, para comentar a ação
dos protagonistas, apenas Anjo Negro traz de volta o antigo coro, revalorizado
modernamente, na dramaturgia com a qual ele tinha afinidade, por um Eugene
O’Neill. Entre outras funções, esse coro enuncia o ponto de vista dos que estão fora
da tragédia, contrasta, pela simplicidade de suas vidas, com a existência
tempestuosa dos protagonistas, presta informações úteis à trama e provoca um
relaxamento em face da ação principal. 64

Função do coro que, segundo o crítico, se repetirá em Senhora dos afogados. A


respeito desta peça, em uma análise bastante peculiar, Magaldi sugere que ela seja uma
paráfrase de Mourning becomes Electra, de Eugene O’Neill, que, por sua vez, é uma leitura
da trilogia de Ésquilo, Oréstia. Eis a relação feita pelo crítico:

A trilogia norte-americana passa-se em treze atos, dentro da mansão dos


Mannon ou no seu exterior, com exceção de um só, na popa de um navio, onde se
consuma uma vingança. A ação de Senhora dos Afogados, em três atos e seis
quadros, transcorre na casa da família Drummond, menos num quadro, transposto

63
Idem. p. 23.
64
Idem. p. 26.
59
para o café do cais, onde se pratica ajuste de contas semelhante. A quebra da
unidade do cenário, para fins idênticos, sugeriu que se tratava de paráfrase.65

A sugestão de que, por uma coincidência estrutural, a peça rodriguiana seja uma
paráfrase da trilogia de O’Neill deixa antever uma ligação, ainda que sutil, entre o
dramaturgo brasileiro e as tragédias gregas, com uma breve “escala” no teatro moderno
norte-americano. O crítico continua sua investigação nessa linha e vai mais próximo dos
atenienses ao sugerir uma semelhança sonora entre o sobrenome da família (Drummond) e
o protagonista da primeira parte da trilogia (Agamenon). Mais adiante, ele faz a seguinte
ligação:

O crime de Misael/ Agamenon não foi ter morto uma filha, Ifigênia, fruto do
amor, mas o próprio amor, a sua natureza sentimental. Tudo o mais se explica como
conseqüência desse primeiro crime.
As relações incestuosas, à semelhança do Álbum de Família, povoam o mundo
de Senhora dos Afogados. Elas se multiplicam em vários níveis. Os mais imediatos:
a ligação afetuosa de Moema/ Electra com o pai Misael, e o ódio à mãe: e o
sentimento de Paulo/ Orestes pela mãe, toda ternura com ele, também, e sua recusa
do pai.66

Fica, então, cada vez mais evidente a tentativa de ligar essas peças às clássicas, em
especial as personagens de Nelson Rodrigues às de Ésquilo. Mas o crítico reconhece que as
relações se dão no âmbito da interpretação freudiana dos mitos gregos, o que em nada – ou
quase nada – explica a tragédia como gênero dramático. Para não deixar de lado o aspecto
estético da peça, Magaldi põe em relevo dois fatores estruturais que, teoricamente,
condizem com o pressuposto trágico aristotélico: a linguagem elevada e a recorrência do
coro.
Quanto à linguagem, ele observa que nunca, em nenhuma outra peça, Nelson lançou
mão de uma poética nos diálogos como em Senhora dos afogados. Quanto ao coro,
considera que, nesta peça, ele é utilizado à maneira do coro grego. Mais adiante, no entanto,
ainda que não explicitamente, o crítico aceita a idéia de caracterizações diversas do coro ao
mencionar certa flexibilidade em suas aparições. Por exemplo, se em uma cena o coro faz

65
Idem. p. 37.
66
Idem. p. 40. Notemos aqui a semelhança da comparação com a do texto de Claude Vincent, conforme nota
45.
60
as vezes de coro trágico ao prever o porvir, em outra é apenas um grupo de bisbilhoteiros,
observando o que aquela estranha família faz. Já em outra cena, o mesmo grupo serve como
testemunha das ações já transcorridas na peça. Tanto em Senhora dos afogados como em
outras peças, o coro é usualmente um dos elementos da tragédia que Nelson Rodrigues
mais subverte, utilizando-o às avessas, por vezes de forma irônica (ou, nas palavras de
Ronaldo Lima Lins, em tom de deboche), conforme comento com maior detalhamento no
próximo capítulo.
Aliado ao coro dos vizinhos, em Senhora dos afogados há um grupo de mulheres do
cais (prostitutas) que fica, de longe, rezando pela alma da falecida prostituta, assassinada
por Misael, patriarca da família Drummond. Sábato Magaldi escreve que o coro das
mulheres funciona como as deusas vingadoras:

Funcionam, na trama, como verdadeiras deusas vingadoras, a exigir a punição


do assassínio. Representam a consciência viva contra a impunidade, como as
Erínias em relação a Orestes ou a peste, quanto a Édipo. As prostitutas estão em
cena, no quadro do café do cais, em plena oração, que adquire uma beleza
ritualística, sublinhada pela plasticidade.67

Uma observação bastante plausível e que aproxima o dramaturgo brasileiro mais


uma vez do cânone trágico. As referências às palavras “tragédia” e “trágico” na introdução
de Sábato Magaldi não param em Senhora dos afogados. Ainda que seja a peça mais
próxima possível do gênero, o crítico faz a relação direta entre ela e outra do mesmo ciclo:
Álbum de família. Não apenas quanto à presença numerosa de incestos, evidente
semelhança entre elas, mas também pela caracterização do patriarca das duas famílias:
Jonas e Misael.

Os componentes do núcleo familiar dos Drummond têm muito em comum com


o clã de Álbum de Família. Misael é uma réplica de Jonas, herdeiro de uma tradição
de trezentos anos. Assim como o fazendeiro Jonas seria candidato ao Senado
Federal, fala-se do juiz Misael como ministro – cargo que ele não chegará a ocupar,
pelas implicações da tragédia. Se o primeiro é comparado a um varão de Plutarco, o
segundo ‘reassume o ar de estátua no respectivo momento’. O temperamento

67
Idem. p. 43. Aqui há outra forte semelhança com o texto de Claude Vincent.
61
faunesco de Jonas converteu-se na sensualidade contida de Misael e na inclinação
secreta pela prostituta, que ele negará, por meio do gesto homicida.68

Outro estudo que firmou Nelson Rodrigues no campo do trágico – mas não da
tragédia – foi o de Angela Leite Lopes, Nelson Rodrigues trágico, então moderno. A
autora, ao buscar traços do moderno na obra dramática rodriguiana, o faz pelo viés do
trágico, investigando a maneira como esse aspecto é adaptado à sua obra e a torna
eminentemente moderna. Analisa, para tanto, as peças denominadas míticas e o uso que
fazem dos elementos da tragédia clássica, como o coro e a máscara. No último capítulo do
livro, as mesmas peças são utilizadas para explorar os clichês trágicos presentes: incesto,
assassinatos, vingança, destino, fatalidade (esta sempre ligada à paixão) etc.
Ainda que o trabalho de Lopes seja destinado fundamentalmente à investigação do
moderno em Nelson Rodrigues, ela procura fazê-lo pela inserção do que chama de “idéia de
tragédia”, que inclui forma, estilo e gênero. Para a autora, a tragédia e a noção de trágico se
concentram, principalmente, no âmbito do discurso, no uso ambíguo das palavras; a
linguagem é, sobretudo, portadora da dimensão trágica. Mas essa conclusão vem a partir de
uma larga reflexão sobre a tragédia e o trágico, a estética e a idéia. A tragédia, tal qual
definida por Aristóteles, é posta em questão a partir do surgimento do romantismo alemão
e, com isso, a estética cede lugar à idéia de trágico. O idealismo romântico, diz a autora,
apresenta uma solução para o conflito trágico ao lhe conceder um fim. Assim, é decretada
sua impossibilidade – e por isso tal gênero é impossível no mundo moderno. “Cada tragédia
é em si mesma a realização da idéia do trágico, mas esta não poderia se esgotar por sua
particularização na obra.”69
Ao discutir a noção de trágico como meio para o moderno, a autora não chega a
investigar a formação da tragédia, apenas a considera em seus vários aspectos para o fim
pretendido. Para isso, considera que o uso de recursos como o coro e a máscara estão
imbricados na estética rodriguiana para mostrar que os gêneros não são mais puros no
mundo moderno e, por isso, com o questionamento do gênero trágico, a obra de Nelson

68
Idem. p. 44.
69
LOPES, Ângela Leite. Nelson Rodrigues: trágico, então moderno. Rio de Janeiro: Editora UFRJ/ Tempo
Brasileiro, 1993. p. 67.
62
Rodrigues torna-se moderna. De um lado, a autora considera que os textos rodriguianos não
são tragédias, ainda que tragam o trágico em sua visão de teatro:

O trágico aparece de maneira privilegiada no teatro de Nelson Rodrigues na


insistente utilização por parte do autor desses clichês de tragédia. O que não
significa que realize tragédias – num sentido estrito e acadêmico –, mas sim uma
obra teatral moderna que tem “o poder de criar a vida e não imitá-la.70

Ainda no campo da modernidade, mas caminhando pelas trilhas do trágico, o livro


de Victor Hugo Adler Pereira coloca o dramaturgo não apenas na esfera dos tragediógrafos,
mas o insere em um patamar universal. Em Nelson Rodrigues e a obs-cena contemporânea,
apesar de a abordagem ser, principalmente, no âmbito da visualização teatral, para poder
engendrar o tema o autor parte da discussão do aspecto moderno no teatro fin-de-siècle e
das primeiras décadas do século XX. Ele expande a discussão para Strindberg, Tcheckov e
Eugene O’Neill. A principal característica da modernização do teatro, afirma o autor, é o
olhar voltado para a subjetividade:

No processo de modernização do teatro, o palco constituiu-se em espaço


privilegiado para o debate sobre a natureza da subjetividade, suas transformações e
as mudanças em suas figurações.71

Para Victor Hugo, Nelson Rodrigues, assim como Eugene O’Neill, retomou
convenções do melodrama e adaptou seu teatro à estética modernista européia, trabalhando
principalmente com a subjetividade das personagens. Isso encaminha o estudioso à
investigação do que ele chama de “freudismo” nas peças de Eugene O’Neill.
Já em relação ao teatro rodriguiano, Victor Hugo dedica-se a examinar a peça
Dorotéia e os símbolos presentes em sua estrutura e enredo: a máscara, o jarro, as botas e o
leque. A máscara, talvez o mais significativo, além de elemento clássico, é também
freqüentemente utilizada no teatro moderno. Logo, não é um recurso exclusivo da
dramaturgia de Nelson Rodrigues tampouco uma inovação sua. No entanto, a peça inova na
maneira como a máscara é utilizada. Assim, do mesmo modo que Sábato Magaldi e Angela

70
Idem, p. 98.
71
PEREIRA, Victor Hugo Adler. Nelson Rodrigues e a obs-cena contemporânea. Rio de Janeiro: EdUEFJ,
1999. p. 14.
63
Leite Lopes, Victor Hugo também se dedica à investigação do recurso trágico em Dorotéia,
uma farsa irresponsável.

A máscara na obra de Nelson Rodrigues se torna um dos aspectos do complexo


cruzamento de referências textuais e de apropriações de clichês, através das quais se
constroem suas peças.72

A máscara, na peça, tem como principal função mostrar uma verdade soterrada sob
as convenções sociais, de forma que o teatro é o espaço privilegiado para a revelação de
uma verdade interna. Nas palavras do autor:

A sua utilização [da máscara] no teatro pauta-se pela perspectiva da revelação


ou desvelamento de alguma verdade, soterrada na experiência comunitária
cotidiana. O teatro torna-se, então, o espaço privilegiado para a denúncia da
opressão que se atribui às máscaras sociais, na melhor tradição romântica que
confrontava a possibilidade da autenticidade do indivíduo com a decadência de
valores do corpo social.73

Ao contrário de um uso ordinário da máscara, elemento carregado de simbologia,


Nelson Rodrigues a utiliza em um processo inverso: não desmascara as personagens, mas
as mascara. Em Dorotéia acontece o processo de mascaramento, o que, no final, representa
a realização do intento da protagonista: torna-se feia e, por meio da feiúra, pura
moralmente.
Outro elemento analisado em Dorotéia é o recurso dos leques. Eles, em geral, são
utilizados pelas tias como se fossem instrumentos de defesa em relação ao desejo e ao
pecado que vêm de fora. Por outro lado, também podem indicar uma alternância do que
pode ou não pode ser visto.
Em seguida, ainda no campo mítico, Victor Hugo passa a examinar Senhora dos
afogados, principalmente no que concerne à figura do mar na peça. Os espaços em que
acontecem as cenas são conotações sociais, diz o autor, paralelas às conotações míticas (no
caso não só do mar, mas também do bordel e da própria casa familiar). Nesta peça,
recheada de clichês, alguns são fartamente utilizados em outros textos do autor, como a

72
Idem. p. 101.
73
Idem. p. 95.
64
caracterização da cafetina e das prostitutas. Mas o que se torna mais destacado na
composição deste texto dramático são os clichês e enunciados ligados ao discurso
patriarcal, principal referência social da peça.
Victor Hugo Adler Pereira coloca o dramaturgo em outro patamar estético-literário,
diferente daquele apontado por Angela Leite Lopes, mas muito próximo do que faz Sábato
Magaldi, ao legitimar a obra rodriguiana como universal pelos aspectos trágicos e ao
mesmo tempo modernos.
Por fim, como uma das leituras mais recentes da obra rodriguiana em geral – não
somente a dramática –, Ismail Xavier, em O olhar e a cena, estabelece um cruzamento
entre o olhar do cinema e a obra dramática de Nelson Rodrigues74 e, com isso, lança
algumas questões bastante relevantes sobre a formação do trágico neste autor:

Sob o nome de tragédia, a modernidade supõe novas formas de se abismar


diante de contradições irresolúveis, viver a distância entre as ambições e o pífio
resultado, a auto-ilusão e as verdades humilhantes, abraçar valores irreconciliáveis e
sucumbir. (...) Em torno de Nelson Rodrigues repõe-se o problema da permanência
(ou possibilidade) da idéia e do gênero trágico na modernidade, motivo de polêmica
recorrente, seja referida ao teatro como instituição ou à própria experiência social.75

Para refletir sobre a formação das peças rodriguianas, indagar apenas sobre o trágico
não alcança a problemática, principalmente pela pluralidade de gêneros inseridos em seus
textos. Além de elementos da comédia e da tragédia – gêneros mais “clássicos” –, o
melodrama contribuiu fortemente para a construção do trágico moderno em Nelson
Rodrigues. Ademais, afirma Xavier, deve-se dar especial atenção à oscilação de tom e
paradoxos da tragicomédia. Enfim, este teatro, para o crítico, é um ponto de intersecção:
temas e formas que se referem tanto ao drama moderno quanto ao melodrama popular e
seus excessos.
É no melodrama que encontramos a chave de compreensão para a forte presença do
cristianismo nas peças do dramaturgo. Ismail Xavier tem uma boa interpretação para essa
questão, justamente pelo viés melodramático na dramaturgia: o gênero “dirigiu seus
74
Relação feita em vários capítulos do livro, mas aquele no qual me baseio aqui é o sétimo, “Nelson
Rodrigues no cinema (1952-99): anotações de um percurso”, in: XAVIER, Ismail. O olhar e a cena. São Paulo,
CosacNaify, 2003. pp. 161-222.
75
XAVIER, Ismail. Idem. pp. 162-3.
65
excessos para o sentimentalismo e a redenção, sob o primado da ‘estética providencial’, na
qual o cristianismo faz valer sua visão dos dramas humanos e da história.”76 Nelson
Rodrigues, ainda que incorpore procedimentos do gênero, expressa a crise dos valores e do
colapso do sistema religioso. É dessa exposição da derrocada religiosa que surgem os
conflitos irreconciliáveis, experiências que, ainda que se refiram ao trágico, exigem uma
outra aproximação. Ou seja, é preciso adaptar o enfoque às peças, pois para a apreciação do
teatro rodriguiano têm sido utilizados termos diversos, como drama, tragédia, melodrama.

Este [o teatro de Nelson Rodrigues] guarda uma relação com os gêneros


consolidados que exige sempre uma adaptação de enfoque, uma atualização da
grade teórica aos termos da modernidade, ou seja, a um contexto teatral (ou fílmico)
que alterou a natureza da cena visível e, portanto, os parâmetros que definem a
leitura dos textos.77

Enfim, é preciso repensar a nomenclatura habitual dada ao texto dramático


moderno, especialmente pelo enquadramento tradicional que tem se esgotado e tem sido
motivo de caricatura. Nelson Rodrigues faz uma caricatura não somente dos gêneros
(lembrando das “brincadeiras” com divina comédia, farsa trágica, farsa irresponsável etc.),
mas também dos novos valores. Esta se consolida na figura displicente e desleixada da
psicanálise. Um bom exemplo de como é feita essa caricatura é a cena VIII do terceiro ato
de Bonitinha, mas ordinária:

(Palacete da Gávea. Dr. Werneck, já bêbado, fala para os grã-finos.)


WERNECK – Bem. É o seguinte. Vamos fazer uma brincadeira. (vozes. Risos.)
Silêncio! Fontainha! Cala a boca! Uma brincadeira.
1º. GRÃ-FINO – Mas como é o negócio?
2º. GRÃ-FINO – Deixa o Werneck falar!
WERNECK – O negócio é psicanálise. Assim, olha. O divã. (Werneck vai até o
divã) O divã está aqui.
2º. GRÃ-FINO – Pra que divã?
1º. GRÃ-FINO – Você é analfabeto, hem, rapaz?
WERNECK – Mas calma! (didático) O freguês deita-se no divã. Como na
psicanálise. Eu vou bancar o Freud. Tomar notas. Num caderninho. O que está
deitado conta as próprias sujeiras.78

76
Idem. pp. 165-166.
77
Idem. p. 166.
78
RODRIGUES, Nelson. Op. cit., 1990. p. 310.
66
O que se segue é uma sessão de revelações dos desejos sexuais que foram levados
ao limite. Ana Isabel, grã-fina que faz parte da festa de Werneck, narra seus michês com
vários homens. Ao cônjuge, que presencia toda narrativa, ela atribui o adjetivo
“broxadíssimo”. Enfim, uma versão irônica de uma sessão de psicanálise, com direito à
imitação de Freud e à presença do divã – elementos do lugar-comum psicanalítico.
Ainda no âmbito do melodrama, segundo Xavier, a característica tradicional do
gênero define-se quando há um vilão externo que tenta assediar figuras de inocência
desprotegida, que encontram salvação na figura do herói virtuoso. Um exemplo de como o
texto de Nelson Rodrigues não figura como um gênero puro (nem em relação ao
melodrama), o que acontece, em geral, no interior das peças é a corrosão dos valores no
espaço doméstico, cujo centro é a figura que, teoricamente, deveria protegê-lo: o pai e/ou o
marido.

O reconhecimento da corrosão interna do espaço da casa não elimina da


dramaturgia a mesma demanda de pureza, mas essa tem de ser feita a partir de uma
suspeita sistemática dirigida aos “motivos nobres”. Resulta um teatro que não nos
ilude com cenários de redenção. Em seu terreno minado por egoísmos delirantes
predominam os disparates, as contradições e as vocações para o desastre.79

Assim, aquilo que deveria ser o pilar da vida privada, apresenta-se como um campo
minado, completo de desgraças que se desdobram em violência e crime.
Ismail Xavier questiona a posição de Nelson Rodrigues como trágico incondicional,
ou melhor, re-configura parte da obra dramática deste autor pelas várias categorias
genéricas que se apresentam mescladas, ainda que o faça para melhor analisar as
adaptações da dramaturgia no cinema nacional. Ele põe em questão a imagem criada de um
Nelson Rodrigues tragediógrafo inconteste, levanta a possibilidade – tal como Ronaldo
Lima Lins o fizera anteriormente – de “brincadeira” com os gêneros dramáticos, inclusive
com a própria tragédia clássica. Inicia-se, então, um novo ciclo, de releitura da imagem do
dramaturgo de trágico. Mas é um ciclo novo, recente demais para eu me expandir acerca
dele.

79
XAVIER, Ismail. Op. cit., 2003. p. 210.
67
Enfim, com isso é possível traçar um caminho percorrido pelos críticos, do
achincalhamento à vanglória do dramaturgo para, por fim, tentar estabelecer um meio-
termo de uma imagem que se mantém intacta. O que se percebe é um amadurecimento nas
discussões dessa obra teatral – frente às várias teorizações freqüentes –, que tende a
redimensionar o teatro nacional, em decorrência daquilo que foi produzido como arte
dramática tanto no Brasil quanto fora e que se consagrou como cânone. Paralelo a isso,
podemos perceber uma rejeição, em primeiro plano, do teatro de Nelson Rodrigues como
parte de um gênero superior, a tragédia. Como parte da supervalorização de sua obra, o
dramaturgo foi automaticamente vinculado a esse gênero, sem limites para sua
configuração. O que se percebe, mais atualmente, é o questionamento genérico da obra do
dramaturgo, a fim de repensar aspectos específicos de seu teatro enquanto catalisador de
uma cultura nacional, transpondo nomenclaturas estanques e valores pré-definidos.

68
CAPÍTULO II
TRÁGICOS E TRAGÉDIAS: A ELABORAÇÃO RODRIGUIANA

“Acho perfeitamente lícito chegar-se à tragédia


através de um copo d’água”

(Nelson Rodrigues)

S e o pressuposto de George Steiner fosse adotado conforme exposto em seu livro


A morte da tragédia1, as peças de Nelson Rodrigues – e todas aquelas que estão
fora dos períodos áureos do gênero trágico – seriam consideradas como “dramas”, sendo
que algumas se enquadrariam em sua descrição de “dramas sérios”. Suponho, no entanto,
que o mundo moderno abriu certo espaço para uma expressão dramática forte e pungente,
para a qual adotarei o termo tragédia moderna. Este gênero dramático, apesar de vinculado
de alguma forma àquilo que foi desenvolvido pelos gregos no século V a.C., mantém
atualmente poucos traços estruturais definidores e pretensões muito mais ligadas às
questões temáticas do que às estéticas. Ou seja, a tragédia moderna não é substancialmente
reconhecida por elementos formais predefinidos, uma vez que se aproveita de inúmeras
fontes. Pela amplitude do tema, dedico-me a delinear aspectos do gênero na obra dramática
de Nelson Rodrigues. Considero, principalmente, que o dramaturgo possuía um projeto
estético claro, o de escrever tragédias nacionais2, e para isso lançou mão de recursos que
por muito tempo foram incompreendidos, recursos que lhe renderam facetas diversas –
como comentei no capítulo anterior –, e que só recentemente a crítica tem se dedicado a
explorá-los como a pilares de um teatro ainda hoje considerado, no mínimo, intrigante.
Tomo como ponto de partida para a discussão uma afirmação de Hans-Thies Lehmann a
respeito desta problemática:

1
STEINER, George. A morte da tragédia. Tradução de Isa Kopelman. São Paulo, Perspectiva, 2006.
2
Ou, segundo o depoimento de Magaldi (cf. nota 59 do 1º capítulo), Nelson impôs ao seu teatro essa
tendência a um gênero esteticamente superior.
J’aimerais tout d’abord affirmer clairement que je suis convaincu qu’il y a une
véritable présence du tragique dans la répresentation artistique, et qu’il y a
également un espace (limité) pour le théâtre contemporain tragique.3

Um pouco na contramão do que afirma Steiner, categórico em dizer que a tragédia,


enquanto gênero dramático detentor de certos pressupostos estéticos e ideológicos, morreu,
Lehmann sustenta a tese de que há, no teatro moderno e contemporâneo, espaço não apenas
para o trágico, mas também para a tragédia. Isso não significa, no entanto, que este gênero
seja possível de forma idêntica à grega; seus vários conceitos e variações sofridas não
permitiriam a resistência histórica. Tampouco é possível, na era moderna, definir “tragédia”
ou “trágico” em contextos amplos, exigindo restrições que alguns críticos condenariam.
Hans-Thies Lehmann, neste texto, afirma que o sentido e o conflito trágicos são
possíveis na sociedade contemporânea em decorrência de transgressões de ordem moral e
ética, e que também o teatro contemporâneo pode ser trágico. Abordando o tema pela ótica
da ética filosófica, Lehmann defende, ainda, que a idéia do conflito contemporâneo está
especialmente ligada a esta questão, a ética, pois é sempre conseqüência de uma violação
da norma (o que chamamos de trágico é o rompimento com alguma regra, causando um
conflito político, moral ou social, geralmente, entre o indivíduo e o todo, o pessoal e o
social). É nesse âmbito que o trágico pode estar ligado a vários gêneros literários, e não
somente à dramaturgia e, mais especificamente, à tragédia4. A partir do século XX, afirma
o autor, o trágico está particularmente ligado ao absurdo e às questões grotescas – que, por
diversas vezes, fazem referência também a um ponto de vista irônico, entrando em choque
3
LEHMANN, Hans-Thies. Notes sur la tragédie, le tragique et le politique aujoud’hui. In: Berghe, Paul Venden
et. al. (direction). Oedipe contemporain? Tragédie, tragique, politique. “Antes de tudo, gostaria de afirmar
claramente que estou convencido de que há uma verdadeira presença do trágico na representação artística, e
que há igualmente um espaço (limitado) para o teatro contemporâneo trágico.”
4
« La tendance à aller vers le désastre n’est pas loin d’être non seulement un élément spécifique, mais
l’élément essentiel de la nature humaine. Si une telle dimension tragique est la marque de l’existence humaine
dans son glissement intérieur vers l’inconnu, alors elle crée immanquablement des collisions et des
transgressions, qui font que la terreur, le sacrifice et la chute sont au centre de la vie humaine. Cette notion du
tragique est représentée sans cesse dans la pensée, l’art et les pratiques culturelles. Et si elle ne l’exclut pas,
elle dépasse certainement la dimension morale et éthique et même sa dimension conceptuelle elle-même. »
(Lehmann, Op. cit. p. 228) “A tendência ao desastre não está longe de ser não apenas um elemento específico,
mas o elemento essencial da natureza humana. Se uma tal dimensão trágica é a marca da existência humana
em seu deslizamento interior para o desconhecido, nesse caso ela inevitavelmente cria colisões e
transgressões, que fazem com que o terror, o sacrifício e a queda estejam no centro da vida humana. Essa
noção do trágico é representada incessantemente no pensamento, na arte e nas práticas culturais. E se ela não
a exclui, ela certamente ultrapassa a dimensão moral e ética, e mesmo sua própria dimensão conceitual."
70
diretamente com a noção de gênero puro. Além disso, no mundo moderno, o trágico é
incompatível com uma percepção puramente estética. Assim, ao mesmo tempo em que há a
defesa da possibilidade de sua representação pela literatura moderna, há a negação de que a
representação seja unicamente formal.
Se por um lado os pressupostos de Lehmann se coadunam com os de Steiner – no
sentido de que o trágico é inegavelmente persistente na sociedade moderna e
contemporânea –, por outro as concepções estéticas entram em conflito. Steiner assume a
possibilidade de que a tragédia possa voltar a existir na nossa literatura, mas descarta sua
existência no século XX; um dos poucos autores a quem ele atribui fortes referências do
gênero é Büchner e seu Woyzeck. Lehmann, por sua vez, não descarta a existência de um
texto dramático que pertença ao gênero trágico e que tenha sido escrito na era moderna; ele,
portanto, não está tão estritamente vinculado a conceitos fechados e restritivos.
Não descarto a possibilidade da existência do gênero – aliado às noções filosóficas –
no mundo moderno, por uma reunião de características que, desmembradas, podem ser
interpretadas por diversos olhares. A tragédia moderna é possível a partir da união de
características que podem ser, eventualmente, paradoxais; e cada uma delas é repleta de
sentidos mutáveis a partir da conjunção com outras, diferentes. Seguindo essa linha – da
possibilidade desse gênero mediante conceitos diferenciados –, afirmo que diversos autores
do século XX compuseram tragédias não à luz do que se acredita que os gregos fizeram,
mas sobretudo adaptadas às concepções de mundo atuais (e é por este viés que a filosofia
do trágico cria forças). Alguns autores exaltaram a possibilidade do sentido trágico ao
exporem em suas literaturas os limites conflituosos das relações sociais e humanas; ao
desvelarem cruamente a instabilidade da vivência humana mediante as fragilidades de
crenças e noções éticas e morais; ao trazerem à tona os poderes dominadores políticos,
religiosos e familiares frente à ínfima presença do ser homem. Assim, são aspectos estéticos
aliados a um conceito de mundo bastante particularizado. E é por esse prisma que lanço um
olhar à obra rodriguiana.
Para realizar as análises, escolhi como corpus três peças: Álbum de família, Anjo
negro e Senhora dos afogados, sendo que considero esta última como a principal peça do
projeto estético rodriguiano a respeito de tragédia moderna, e é nela que a maior parte das
71
análises será embasada. Com o objetivo de alcançar uma estética idealizada, o autor centrou
em Senhora dos afogados as características concernentes ao seu projeto e produziu sua
melhor tragédia. Das três peças escolhidas como objeto de análise, o ponto de partida será
sempre Senhora...: como foram fundidos elementos da tragédia clássica com o sentido
trágico imanente à sociedade moderna; como tal conjuntura implica outra noção de
tragédia, aquela do século XX, e imbricada na sociedade brasileira especificamente.

2.1 – Do sentimento trágico

Diversos autores, estudiosos e filósofos têm negado à modernidade a possibilidade


de um texto dramático que pertença à tragédia. Refiro-me principalmente a obras como O
nascimento da tragédia, de Friedrich Nietzsche, e A morte da tragédia, de George Steiner5.
A despeito da diferença dos títulos e da distância temporal entre as obras, as duas têm,
grosso modo, o mesmo objetivo: declarar que a tragédia, enquanto gênero dramático
fechado, não existe mais após os áureos anos em que viveram Ésquilo, Sófocles e
Eurípides. Por outro lado, fica cada vez mais evidente a resistência do sentido trágico na
sociedade moderna e contemporânea, o que resulta em sua representação estética não
apenas nos textos dramáticos, mas em toda literatura. Nessa corrente, autores, entre os
quais Raymond Williams, ressaltam a existência desse sentimento e, por conseguinte, a
possibilidade de uma estrutura dramática representativa do mundo moderno e aliada a esse
sentido.
A idéia trágica da existência, e sua expressão na literatura, não foi, ao que indicam
alguns estudos, contemporânea à maturidade do gênero. Ela é basicamente moderna: surgiu
no século XVIII, no romantismo, com os filósofos alemães, especialmente Schiller e
Schlegel, seguidos por Schelling e Hegel. Foi, no entanto, mais do que o surgimento de
uma idéia antes não conceituada e modelada, mas o nascimento de uma nova teoria de

5
Segundo Terry Eagleton (em Sweet Violence: the Idea of the tragic, Malden, Blachwell Publishing, 2003),
Raymond Williams escreveu sua Tragédia moderna em resposta ao ensaio de Steiner. Já em se tratando do
filósofo alemão, Nietzsche declara ao final de sua obra que a literatura alemã contemporânea a ele estaria
fazendo esforços para que a tragédia renascesse.
72
gênero, que proporcionará à literatura um forte paradigma de compreensão do trágico na
modernidade.

Quando pensamos na “tragédia” hoje em dia, parece difícil manter questões de


conteúdo e significado que tendemos a associar à idéia de “trágico” completamente
separadas dos critérios largamente formais do tipo literário “tragédia”: o gênero
específico da “tragédia” parece estar ligado de um modo peculiar a um determinado
ethos, uma visão “trágica” do mundo, que acha sua expressão mais apropriada
naquele mesmo gênero. Em outras palavras, nós esperamos que uma “tragédia” seja
“trágica”. (...) Este ethos “trágico” é uma construção moderna, cujos laços com o
antigo gênero grego “tragédia” são muito mais tênues do que suas conexões com
desenvolvimento filosóficos e sociais dos últimos dois séculos.6

Isto é, a noção acadêmica de trágico presente hoje é resultado do que pensaram os


filósofos alemães e da corrente de pensamento fundada por eles. O século XX carregou, por
trás do uso indiscriminado das palavras “trágico” e “tragédia”, um sentido proveniente do
romantismo; sobretudo, esse sentido tornou-se, em certos casos, uma visão de mundo
traduzida em forma trágica. Não espanta, por isso, que essa estrutura moderna – que adiante
será discutida – seja objeto último de um sentimento trágico imanente à vida.
Na apresentação deste capítulo, comentei um estudo de Lehmann, no qual a idéia
central é de que o sentimento trágico é recorrente na modernidade e representado
especialmente pela idéia de conflito entre valores. Pressuposto que vai na corrente de Max
Scheler7: o filósofo afirma que o trágico só pode existir em um mundo onde existam
valores; para que o trágico possa se manifestar, é preciso que um deles seja destruído.
Nesse sentido, não é preciso que o homem propriamente dito seja aniquilado, mas é
necessário que algum valor seu o seja, isto é, um projeto, uma vontade, uma força, um bem
ou uma crença.

Tragique est le ‘conflit’ qui règne dans le domaine des valeurs positives et
entre leurs supports. L’art suprême du poète tragique consiste donc avant tout à

6
MOST, Glenn W. Da tragédia ao trágico. In: Filosofia e literatura: o trágico. Rio de Janeiro, Jorge Zahar,
2001. p. 21.
7
SCHELER, Max. Le Phénomène du tragique. In : Mort et survie. Paris, Aubier, Éd. Montaigne, 1952.
73
mettre en plein lumière les valeurs des parties en lutte, et à mettre en relief le droit
intrinsèque de chaque personnage.8

O fenômeno do trágico, afirma Scheler, não é revelado inicialmente por meio da


obra de arte, ele está antes de tudo presente no universo. Da mesma forma, um valor
isoladamente não carrega o trágico, mas é preciso que esses valores sejam inerentes a
alguma coisa, a algum fato; então ele chega à afirmação acima citada, de que é preciso que
um valor seja aniquilado para a existência do trágico. Mas não é o aniquilamento em si que
é portador do sentido, mas o fato que “les supports de valeurs positives quelconques,
inférieures ou équivalentes, mais jamais supérieures à la valeur menacée – dirigent leur
action vers cet anéantissement”9. Em resumo, onde não há conflito, não há sentido trágico;
em outras palavras, a aprovação moral da ação anula a impressão trágica.
Assim, enquanto sentido presente nas várias relações do homem com o mundo, o
trágico não existe aleatoriamente e indiscriminadamente; ele é oriundo de forças que
provocam um conflito que, em momentos diversos da história, teve sua natureza alterada.
Mesmo que o conflito seja o cerne desse sentimento tal qual entendido por Scheler e
Lehmann, ele tem origem em fontes diversas que variaram ao longo de um processo
histórico e de acordo com a ordem moral e/ou filosófica. Por isso, o conflito não é o mesmo
para Schlegel e para Nietzsche, nem para Schiller e Hegel. Cada qual o interpretou como
elemento originário do sentido trágico à sua maneira. E, enquanto objeto de investigação
literária, é isso que provoca discordâncias e divergências entre os estudos. Peter Szondi10
expõe de forma rápida e clara a perspectiva de diversos autores – dentre eles alguns do
romantismo – que se propuseram a investigar a natureza da formação do sentido trágico. A
respeito da interpretação de Scheler, Szondi analisa:

Como a fenomenologia de Scheler, por sua vez, não admite mais um valor
superior, apenas diferencia os valores positivos e negativos, superiores e inferiores,

8
Idem, pp. 114-115: “Trágico é o ‘conflito’ que reina no domínio dos valores positivos e entre seus
portadores. A arte suprema do poeta trágico consiste antes de tudo em trazer à luz os valores das partes em
luta, e em pôr em relevo o direito intrínseco de cada personagem”.
9
Idem, p. 113. “os portadores de valores positivos quaisquer, inferiores ou equivalentes, mas nunca superiores
ao valor ameaçado – dirigem sua ação para esse aniquilamento”.
10
Refiro-me aqui ao livro Ensaio sobre o trágico, publicado no Brasil pela Jorge Zahar em 2004.
74
o trágico se mostra como conflito entre valores positivos e negativos e, no caso
ideal, entre valores de grau igualmente elevado.11

Para Nietzsche, esse conflito ocorre entre o apolíneo e o dionisíaco; ou seja, entre o
belo e o demoníaco, as duas características da tragédia, que devem ter uma coexistência.
Estes são, para o filósofo alemão, os dois princípios artísticos do gênero, mas que, ao
mesmo tempo, revelam a gênese do que ele chama de “mito trágico”. Esteticamente, o
apolíneo se traduz no coro dramático, enquanto o diálogo seria a objetivação do dionisíaco
– o conflito, assim, se manifesta substancialmente na estrutura dramática da tragédia ática.
São elementos que, em sua coexistência, se contrapõem sem se anularem, formando o que
Nietzsche chama de ambivalência trágica.
Scheler, por sua vez, parece se basear na filosofia hegeliana para compor sua
própria idéia de conflito, uma vez que os pensadores se equiparam ao considerá-lo
proveniente de uma disputa de valores; enquanto Hegel denominou os valores, para ele
éticos, de legítimos, Scheler entendeu-os como positivos e negativos. A despeito de
algumas diferenças de nomenclatura, a essência da concepção é muito próxima, até mesmo
no aspecto de que, para ambos, há uma relação dialética na formação imediata do conflito
trágico:

O trágico originário consiste no fato de que no interior de tal colisão ambos os


lados da oposição, tomados por si mesmos, possuem legitimidade, ao passo que, por
outro lado, eles são capazes de impor o Conteúdo verdadeiro positivo de sua
finalidade e caráter apenas como negação e violação da outra potência igualmente
legitimada e, por isso, em sua eticidade e por meio da mesma, caem igualmente em
culpa.12

Contraposição de forças que estão em disputa e que geram certa tensão; de forma
resumida, é dessa maneira que ocorre a caracterização da noção de conflito trágico para
muitos dos autores que o discutiram. Mas o que estaria por trás de todas essas investigações
acerca de um conceito? Peter Szondi esclarece na introdução de seu livro que as definições

11
Idem, p. 74. Grifo meu.
12
HEGEL. Op. cit., 2004. p. 237. Foi Hegel quem primeiro observou a natureza dialética do conflito trágico,
seguido de outros filósofos.
75
apresentadas pelos pensadores (ao total, 12 autores investigados, cuja produção varia entre
1795 e 1915) só fazem sentido se auxiliarem na análise de tragédias; é, portanto, a tentativa
de “estabelecer um conceito universal de trágico”13. Em que medida, então, tais pontos de
vista ajudariam a recompor a estética da tragédia?
Quando a forma se torna conteúdo social precipitado, quando há uma dialética entre
os dois elementos da construção literária (e dramática), o processo de exegese do texto
literário não ocorre substancialmente pela compreensão estética. A partir de conceitos
filosóficos definidos, é possível decifrar a maneira como tais conteúdos se tornaram forma,
de modo que a investigação não será unívoca, mas também se torna dialética. Por outro
lado, não acredito que no mundo moderno haja a possibilidade de uma construção
dramática puramente estética, mas que está fortemente vinculada a um pressuposto
ideológico ou filosófico; principalmente em se tratando da evolução do gênero trágico na
modernidade, em que as concepções de mundo são muito mais amplas do que na era
clássica.
Parece-me que a idéia de trágico é, na atualidade, amplamente aceita e praticamente
indiscutível. O que ainda é posto em xeque é a noção de tragédia e sua possível existência
no mundo cristão e moderno. Como, no entanto, me proponho a investigar o trágico em
Nelson Rodrigues, parto inicialmente dessa concepção moderna para, em seguida,
estabelecer parâmetros para a avaliação do gênero dramático. Em certo aspecto, imagino
que seja possível resumir o ponto de partida deste trabalho com as palavras de Alberto Días
Tejera:

Lo trágico existe, renace porque es una constante humana. Si históricamente


renace en torno a temas griegos, cada autor descubre, dentro del concepto general
de lo trágico, un nuevo pensamiento trágico, el impuesto por su época y su propia
sensibilidad.”14

13
SZONDI, Op. cit., 2004a, p. 25.
14
Tejera, Alberto Días. Ayer y Hoy de la tragedia. Sevilla, Alfar, 1989, pp. 13-14. “O trágico existe, renasce
porque é uma constante humana. Se historicamente renasce em torno de temas gregos, cada autor descobre,
dentro do conceito geral do trágico, um novo pensamento trágico, aquele imposto por sua época e sua própria
sensibilidade”.
76
O sentimento trágico da vida15 é uma constante na obra de Nelson Rodrigues,
praticamente incontestável, embora não aconteça a mesma coisa com a noção de tragédia.
“Seu teatro (...) certamente guarda características trágicas reconhecíveis com facilidade,
com um ar de inexorabilidade no destino das personagens (...)”, afirma Luís Augusto
Fischer16. Em seu romance Minha Vida, assinado pelo pseudônimo Suzana Flag, para tomar
um exemplo, o autor descreve a vida como “feia, vil e trágica”. De uma forma ou de outra,
é essa a maneira como a vida é retratada na obra rodriguiana, às vezes beirando a obsessão,
seja no teatro, nos romances, nos contos ou nas crônicas. Essa feiúra e vileza da vida,
sempre ligada à classe média e à classe média baixa, portanto, ajudará a compor parte do
sentido trágico constante em sua obra.
A idéia rodriguiana de trágico pode ser vista sob várias perspectivas; especialmente
no teatro, é possível abordá-la pelo viés popular e corriqueiro e também pela noção
filosófica (e peculiar ao teatro) de conflito. Isso porque há, em seus textos, a noção de
desastre pessoal e urbano (um suicídio, um acidente, um assassinato – atos trágicos que
evidenciam uma vida feia) e a noção de conflito entre duas forças (entre o pessoal e o
coletivo, entre o homem e a sociedade, entre dois seres privados – conflitos trágicos que
denotam a torpeza do homem e da sociedade). Essas duas tendências se unem quando uma
leva à outra: é a partir da noção filosófica que há o trágico quotidiano representado. Assim,
é por meio do conflito entre pai e filho, entre o homem e as regras morais impostas, entre o
desejo pessoal e o dever social que as personagens rodriguianas atingem tal estado de
tensão que causa um desfecho brutal, seja de suicídio, assassinato, parricídio, infanticídio
etc.17
Essa referência a certa tragicidade da vida na obra de Nelson Rodrigues está
alinhada às temáticas modernas que enfocam os conflitos vividos pelo homem. Exemplo
disso é o estudo desenvolvido por Eudinyr Fraga, que estabelece relações entre o teatro
rodriguiano e a estética expressionista. Na introdução de seu livro, para explicar as

15
O termo é de Miguel de Unamuno.
16
FISHER, Luís Augusto. “Indivíduo contra massa: Nelson Rodrigues trágico”. In: Filosofia e literatura: o
trágico. Op. cit., 2001, p. 87.
17
Abordei essa questão do conflito das personagens rodriguianas que as leva a um desfecho trágico na
dissertação de mestrado Nelson Rodrigues e as Tragédias Cariocas: um estudo das personagens, defendida
em 2005 no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), da Unicamp.
77
tendências do movimento vanguardista (ainda em sua primeira fase), ele elenca
características que ilustram bem isso a que me refiro, do conflito imanente à literatura
rodriguiana:

A temática do conflito, colocada em situações limites, levada às últimas


conseqüências e caminhando decididamente para a ilustração de um tema
arquetípico, é lugar comum nessa dramaturgia [a expressionista], sobretudo na fase
inicial. Decorre do contraponto violento entre valores estabelecidos: o velho e o
novo, a natureza e a civilização, o homem e a máquina, as solicitações do sexo e do
espírito. Envolve antagonismos entre pai – ou mãe – e filhos (fundamental), entre
os sexos e, naturalmente, todos os dramas decorrentes: incesto, violência física,
chegando ao assassinato e suicídio, crueldade deliberada, sadismo, masoquismo,
sempre como formas disfarçadas de reajustar humilhações e repressões sociais
hipócritas (o mal-estar da civilização). Na verdade, o tema fundamental é o choque
entre a autoridade constituída (pai/mãe/marido/amante/professor/policial/pessoas
mais velhas) e aqueles que seriam as vítimas injustiçadas dessas convenções
(chamemo-las assim) do poder.18

Esses conflitos – ou antagonismos, para usar o termo de Fraga – estão presentes na


literatura (dramática ou não) de Nelson Rodrigues. Mesmo que não sejam tão bem
delineados, por vezes desarmônicos com o todo, eles estão lá, inerentes à ação. Em Senhora
dos afogados, a temática é comum às outras tragédias: o desejo sexual que conduzirá as
personagens inevitavelmente à destruição. Entre o ponto de partida (o desejo) e o fim (a
destruição), elas percorrem meandros repletos de conflitos e disputas – por vezes tácitos,
mas necessários ao desfecho trágico que as espera.
Logo no início da peça, na rubrica inicial, o autor já delineia alguns antagonismos
freqüentes. Há, em cena, duas oposições: os dois ambientes em que a ação se passa (a casa
dos Drummond e o café do cais do porto) e o jogo de sombra e luz recorrente, ocasionado
por um farol remoto. Esse movimento ambivalente na composição cênica é bastante
representativo de uma oposição ainda mais forte ao longo do texto, central na peça, entre a
boa medida moral (o casamento, a esposa, as regras sociais) e o desregramento (o sexo
transgressor, a prostituta, a fuga das leis do bom convívio). É a partir desse jogo inicial

18
FRAGA, Eudinyr. Nelson Rodrigues expressionista. Cotia, Ateliê Editorial/FAPESP, 1998. p. 35.
78
entre os dois elementos, simbolicamente representados pela esposa e pela prostituta, que
ocorrerão os conflitos conseguintes, especialmente aquele entre Misael e o Noivo.
No primeiro e em parte do segundo ato de Senhora dos afogados, o conflito
principal está centrado nas figuras dessas duas personagens. A imagem de Misael é a de um
patriarca, centralizador das vontades da família, tomando para si o poder de decisão de
todos – menos de uma pessoa, Moema. Aparentemente, ele é descrito como o herói, de
força superior àqueles que estão à sua volta, inclusive à do público: ele é “o maior dos
Drummond”. No entanto, essa força nada mais é que figurativa, aparente, pois, com o
desenrolar da peça, ele perde toda sua força e o que se apresenta perante o público é um
homem fragilizado que não resistiu às pressões externas. Essa imagem superior é nutrida e
propagada entre os membros da família e ressaltada pelas interferências dos vizinhos. Ela
se mantém até o momento do surgimento do Noivo, em que esse – de força superior à do
patriarca – opõe-se a Misael.
O conflito não acontece pelo confronto direto das duas personagens: até o final do
1º ato, eles não contracenam em nenhum momento e Misael é apontado como o centro da
tensão pelas outras personagens19. É por meio de Moema, D. Eduarda, da avó e dos
vizinhos que conhecemos a força dominadora dele, inclusive pelo seu status social, de juiz
e, especula-se, futuro ministro: “Vizinha – Mas ouvi dizer que Clarinha era a filha predileta
do Sr. Juiz?/ Moema – Ministro./ Vizinho – Já?”20 É também por meio das outras
personagens que percebemos indiretamente um iminente embate entre Misael e o Noivo,
pelas palavras proferidas por D. Eduarda e por Moema, ao se referirem ao jovem: “D.
Eduarda – Tua avó é doida. Se ao menos teu noivo estivesse aqui./ Moema – Meu noivo?/
D. Eduarda – Não veio. Sabe e não veio./ Moema – Por que falas no meu noivo?”21;
“Moema – Eu sei que odeias meu noivo. (segura a mãe pelos braços) Por que este
ódio?”22. Percebe-se, em meio a certo fascínio de D. Eduarda pelo noivo de Moema, a
possibilidade de uma ação trágica, um conflito subjacente entre a representatividade dos

19
Continuo a discutir o conflito entre Misael e o Noivo na terceira parte deste capítulo, pois creio que a
disputa entre eles será melhor compreendida pela análise estrutural da formação da tragédia.
20
RODRIGUES, Nelson. Teatro completo. vol. 2. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1981. p. 264.
21
Idem, p. 265.
22
Idem, p. 266.
79
dois pólos: aquele da família, do sexo disciplinado23, e aquele do cais do porto, da liberação
dos desejos.
Mas para que esse conflito aconteça, é preciso que outros se desenvolvam em seu
entorno. Entre os membros dos Drummond, há sempre algum tipo de enfrentamento:
Moema e D. Eduarda, a Avó e D. Eduarda, Paulo e Misael, Misael e D. Eduarda. Esses
conflitos menores, sustentáculos de um maior, embora estejam ali representando um
sentimento trágico, não são os únicos responsáveis por isso, pois não têm força suficiente
para mantê-lo. Ainda que sejam conflitos entre duas personagens, não são de grande
abrangência, são tênues, não há um confronto imediato: em todos os casos, uma das
personagens se cala, evita entrar em choque com a outra, declina de sua vontade ou de sua
opinião. O maior objetivo desses pequenos enfrentamentos é a construção e sustentação de
um muito maior.

D. EDUARDA (baixando a voz) – Disse a seu pai.


MOEMA (agressiva) – Mas a mim, não! (quase meiga) E Clarinha também
sabia que ia morrer... Esperava a morte... E se admirava que a morte custasse tanto!
D. EDUARDA (elevando a voz, mas ainda em seu desespero contido) – Mas não
adivinhei que minha filha morresse assim... Pensei que uma doença, que uma febre
a levasse, e não o suicídio...
MOEMA (brusca e definitiva) – Não foi suicídio!
(...)
D. EDUARDA - Desculpem... Eu me enganei...
MOEMA – A senhora parece louca!
D. EDUARDA (desorientada) – Eu disse “suicídio”, disse?
VIZINHOS – Disse. A senhora disse.
MOEMA (vingativa) – Está ouvindo?
D. EDUARDA (desesperada) – Foi sem querer... Eu não sei nada. Quem sabe é
Moema.24

Mãe e filha são, ao longo de toda a peça, antagonistas, seja porque Moema quer ter
Misael somente para si, seja porque D. Eduarda sente forte atração pelo noivo da filha.
Estão, nesta cena, no limiar de um conflito – que não ocorre, pois a mãe, em sua habitual
posição submissa, recua em sua opinião. Embora não tenha sido levada ao limite, a tensão

23
Termo retirado de SUSSEKIND, Maria Flora. Nelson Rodrigues e o fundo falso. Brasília, Ministério da
Educação e Cultura, 1977.
24
RODRIGUES, Nelson. Op. cit., 1981, pp. 260-261.
80
da cena auxilia a construção de outro conflito, que será central a partir do 2º ato da peça. A
partir desse momento, Misael já sucumbiu às pressões, assumiu sua derrocada e quem passa
a dominar a ação é Moema. Desde a primeira cena, quando estão no palco apenas Moema,
sua mãe, a Avó e os vizinhos, o conflito central é arquitetado e se tornará fulcral na peça
depois que Misael perde, sem qualquer resistência, seu poder. Desde então, a filha do casal
centraliza todas as atenções, disputas e ódios internos da família.
Moema tem por objetivo ser a única mulher da família Drummond para que não
tenha “nenhuma outra filha, nenhuma outra irmã” entre ela e seu pai. Para alcançá-lo, ela
não medirá esforços e se colocará contra todas as outras personagens. Sabe-se
posteriormente que ela assassinou as irmãs Dora e Clarinha, incitou a mãe a se relacionar
com seu próprio noivo, provocou conflitos entre D. Eduarda e a Avó e incentivou o irmão
Paulo a matar o amante da mãe, o Noivo. Acima de tudo, desenvolveu uma rede de intrigas
para que o pai assassinasse a mãe, último obstáculo para atingir seu objetivo. É por meio da
tensão gerada pelo conflito entre Moema e as outras personagens que, pouco a pouco, vão
acontecendo todos os atos trágicos da peça, compondo um sentimento de tragicidade
completo e inexorável à família. Nem Moema escapa ao isolamento:

VENDEDOR DE PENTES – Entregaste teu irmão ao mar...


MOEMA – Eu sei.
VENDEDOR DE PENTES – E sabes o que te espera?
MOEMA (num sopro) – Não... Não. (recua)
VENDEDOR DE PENTES (frenético) – Ela não sabe o que a espera?
(Vizinhos cochicham entre si.)
VIZINHO – Não sabe!
VIZINHO – Moema não sabe!
VENDEDOR DE PENTES (aproximando-se de Moema) – Nunca mais verás a
própria imagem... Nunca mais verás o próprio rosto... Nunca mais....
MOEMA (num sopro de voz) – Nunca mais verei minha imagem? Não verei o
meu rosto? Minha imagem, meu rosto...25

No entanto, como é comum no teatro rodriguiano, o excesso de conflitos provoca


não o sentimento catártico de terror e piedade, mas o riso. E o riso, muitas vezes, está
ligado ao melodramático, recurso recorrente mesmo entre as tragédias de Nelson

25
Idem, p. 327.
81
Rodrigues. Embora essa transição do trágico ao melodramático ocorra em vários momentos
– especialmente nas cenas finais de cada ato –, tomo apenas um exemplo da peça em
questão. No 2º quadro do 1º ato, nas cenas finais, ficam em cena apenas Misael e D.
Eduarda. O casal, que contracena pela primeira vez, permanece em constante tensão:

MISAEL – Menos você... Você não falou nunca... Vira o rosto quando surge
este assunto; ou foge... E por que você, hoje, só fala nisso? Saber por que me
acusam? Porque, dias antes do crime, me viram com essa mulher... Ela me procurou
duas ou três vezes por causa de um conflito no cais do porto... Houve o processo e
eu, como advogado, recebi a mulher, pouquíssimas vezes... (para a mulher, baixo)
Eduarda...
D. EDUARDA (gritando) – Eu sei o que vais perguntar. Mas não respondo!
MISAEL (segurando a mulher pelos dois braços) – Achas que eu sou...
D. EDUARDA (virando o rosto, num sopro de voz) – Não sei.
MISAEL – ...Achas que eu sou o assassino?
D. EDUARDA (desesperada) – Disse que não respondia!
MISAEL – Responde!
D. EDUARDA (chorando) – E te importa saber o que eu penso?
MISAEL (selvagem) – Sou o assassino?
(Pausa. Os dois se olham.)26

A cena poderia ter rendido uma continuidade igualmente conflituosa e que seria
determinante para a composição do sentido trágico na obra. No entanto, bem ao gosto
rodriguiano, a cena se encaminha para o melodramático, com um golpe de teatro,
extrapolando os limites de uma tensão séria, o que provoca no leitor/público a sensação de
excesso.

D. EDUARDA – Sou diferente. Mas uma coisa tenho das outras mulheres da
família – sou fiel... Nenhum homem me acariciou, nem meu próprio marido... Meu
próprio marido me possuiu sem me acariciar...
MISAEL (contemplando o copo) – Achas que a melhor solução é beber?
D. EDUARDA (frenética) – Me reconheces fiel?
MISAEL (sem querer ouvi-la) – ...e vou beber... (com ironia) E se eu morrer,
dirás que foi o coração... Ninguém duvidará de ti... Ninguém pensará que misturaste
veneno... Olha...
(Antes que D. Eduarda possa prever seu gesto, agarra-a pelos cabelos.)
D. EDUARDA – Não.
MISAEL (possesso) – És tu que vais beber e não eu! ...Bebe, agora! E se
morreres direi também que foi o coração... (D. Eduarda está bebendo) Tudo!
26
Idem, p. 282.
82
(D. Eduarda acaba de beber. Deixa cair o copo. Misael olha para o rosto da
mulher, esperando as reações do remédio.)27

Reações que não aparecem.


Ainda que seja possível apontar esse recurso como fragmentário de certo sentido
imanente à peça, o que causaria algum tipo de fragilidade, há de se considerar que a prática
é comum no teatro rodriguiano e até mesmo se aproxima de uma estética idealizada: o
rompimento, a quebra, a interrupção de uma cena séria por algo mais irônico e risível. Essa
estratégia se repetirá em diferentes momentos, não apenas com a inserção do
melodramático, mas também do cômico. Esquema que revela a base desse teatro: o jogo
ambivalente e conflituoso entre os recursos utilizados. Ou melhor, o antagonismo está
presente em todos os momentos da peça, desde a relação entre as personagens até sua
estruturação.
Com relação a essa transição do trágico ao cômico, Senhora dos afogados não é tão
representativa quanto outras peças do mesmo autor28, mas ainda há de se considerar sua
presença pela caracterização dos tipos, sempre estranhos à família Drummond e
pertencentes ao núcleo do cais do porto (ou seja, aquele da sexualidade exacerbada e regras
transgredidas)29. O momento mais relevante dessa contraposição está no 3º ato da peça. A
rubrica inicial diz:

(Novo ambiente – o café do cais. Quatro mulheres, as mesmas que, durante os


atos anteriores, falaram em coro. Numa cadeira de balanço, fazendo tricô, a Dona,
gorda e velha, pernas grossas, gazes manchadas enrolando as canelas. Um ancião,
de nariz adunco, está regendo com uma caneca o coro das mulheres. Em cena
também agrupados, à esquerda da platéia, D. Eduarda, o noivo e os vizinhos.
Sentado à mesa, e batendo o copo, a pretexto de acompanhamento, o vendedor de
pentes. Uma rampa, ao fundo, que conduz aos estreitos quartos de cima. Tudo
indica que se trata de um estabelecimento deficitário, que só se mantém por força
de uma tradição adquirida).30

27
Idem, p. 286.
28
Estou me referindo, aqui, às denominadas Tragédias cariocas. Esse tipo de antagonismo será estudado com
mais detalhamento no terceiro capítulo, em relação às tragédias urbanas e às comédias trágicas.
29
Lugares que não são tão fixos assim, porque como afirma Flora Sussekind, “o que Nelson procura é
justamente deslocar as ‘idéias fixas’ que mantêm os lugares privilegiados ou não (Céu/Terra;
Arquibancada/Campo; Palco/Platéia) ou os papéis de atividade (jogadores, atores, deuses) ou passividade
(torcedores, espectadores, homens).” (in: Op. cit., 1977, p. 39)
30
RODRIGUES, Nelson. Op. cit., 1981, p. 312. Grifo meu.
83
Aqui se percebe bem esse gosto pelo grotesco e pelo detalhamento do quotidiano, a
descrição em pormenor da decadência de certo tipo de personagem. Essas referências se
acentuam no desenrolar da cena, seja pelo sotaque carregado da Dona (“Não pode serr!”/
“O doutorr me ensinou uma pomada – um remédio formidável”), pelo grotesco dos
comentários de Sabiá (“A coisa que mais me invoca aqui – o senhor não faz idéia – é as
pernas dessa dona...”/ “Até causa má impressão... E lá porque a Madama tem prédios e uma
avenida...”), pela linguagem coloquial do Vendedor de Pentes (“Não me leve a mal,
companheiro”/ “Pois venho aqui, faço despesa e sou desfeitado, ora que pinóia!”) ou pela
passagem do tenso ao risível sem transição, quebrando assim um possível efeito trágico:

D. EDUARDA – ...essa ilha onde tua mãe está... Onde tua mãe vive depois de
morta...
NOIVO (acariciando-a nos cabelos) – Tu não entrarias lá, não conseguirias
entrar lá... Só elas (indica as meretrizes) podem entrar... A ilha das prostitutas
mortas...
DONA (prática) – Senhorra, não acredita na ilha... Meu neto teve convulsões
em menino... Não acredita na ilha, Senhorra...31

Nessa peça, enquanto o cômico está aliado às questões corriqueiras, em um âmbito


realista do texto, o trágico está sempre envolto em um mundo mítico, quase onírico. Mas,
de forma geral, ao longo do texto, o sentido trágico está ligado à expiação dos erros pelas
personagens. Esses erros cometidos são de aspecto moral (a idéia de crime é sempre
vinculada à moralidade, não contra a lei) – e a expiação se dá seja pela morte, seja pela
solidão (ou, em outros termos, pela derrocada). Devido a todos os conflitos se
desenvolverem na esfera da moralidade, o ideal de pureza é assunto recorrente entre as
personagens de seu teatro: homens e mulheres devem permanecer sempre castos, porque
até o amor entre marido e mulher é um crime.
Em Álbum de família há referências muito semelhantes em relação ao sentido
trágico. Jonas é o patriarca; fazendeiro do interior de Minas Gerais, mantém ao seu redor
uma legião de adoradores, que são os moradores da cidadezinha. Em troca de proteção, eles
entregam a Jonas suas jovens virgens. Para impor sua vontade aos outros membros da

31
Idem, p. 320.
84
família, ele agride e provoca uma tensão com todos aqueles que tentam se opor aos seus
desmandos. D. Senhorinha se mantém submissa ao marido – não por ela, mas pelos filhos a
quem devota um sentimento incestuoso. No entanto, seus filhos homens, Edmundo e
Guilherme, tentam criar uma força oposta à do pai; o primeiro por alimentar um amor pela
mãe e querer defendê-la, o segundo por ter o mesmo amor incestuoso, mas pela irmã,
Glorinha, a quem o pai também dedica igual sentimento. Com isso, temos ao menos dois
triângulos conflituosos na trama: o primeiro, entre Jonas, Glorinha e Guilherme; o segundo,
entre Jonas, Senhorinha e Edmundo. Por meio destas tensões, cujo núcleo é formado por
Jonas, ocorrerá uma seqüência brutal de desfechos trágicos para as personagens daquela
família: o suicídio de Edmundo, o assassinato de Glória e do próprio Jonas, o suicídio de
Guilherme e até mesmo a entrega de Senhorinha à vida selvagem. O sentimento trágico da
peça está, portanto, girando sempre em torno de Jonas, sem interrupções ou transferências –
como acontece em Senhora dos afogados. Uma fala de Edmundo apresenta a chave de
compreensão não apenas de Álbum de família, mas também das outras peças do corpus: o
mundo e seus conflitos, fechados naquele núcleo familiar, só podem acontecer entre eles,
provocando atitudes trágicas porque, encarceradas, são levadas ao limite da situação.

EDMUNDO (mudando de tom, apaixonadamente) – Mãe, às vezes eu sinto


como se o mundo estivesse vazio, e ninguém mais existisse, a não ser nós, quer
dizer, você, papai, eu e meus irmãos. Como se a nossa família fosse a única e
primeira. (numa espécie de histeria) Então, o amor e o ódio teriam de nascer entre
nós. (caindo em si) Mas não, não! (mudando de tom) – Eu acho que o homem não
devia sair nunca do útero materno. Devia ficar lá, toda a vida, encolhidinho, de
cabeça para baixo, ou para cima, de nádega, não sei.32

A exemplo do que acontece em Senhora dos afogados, em que ocorre o jogo entre
os ambientes da casa (família) e do cais do porto (prostituta), nessa peça há o contraponto
entre as páginas do álbum, representativas de uma imagem maquiada repassada ao senso
comum, e a convivência asfixiante entre os componentes da família. Assim,

Esta peça [Álbum de família] vai estar construída sobre a operação entre dois
espaços: o álbum de família (isto é, da família enquanto fotos num álbum) e o da

32
Idem, p. 102.
85
família propriamente dita (sob outro ponto de vista a oposição será entre espaço
natural/incesto realizado). No primeiro (Álbum), todos os personagens aparecem
estáticos, pousando para fotos, mudos e apenas a um personagem-voz é facultada a
possibilidade de fala. Tal fala vai estruturar-se segundo as imagens estáticas e as
cenas tradicionalmente representativas da vida familiar (o casamento, a primeira
comunhão, etc.) e é desestruturada quando tais cenas adquirem dinamismo no
segundo espaço e revelam a falsidade da família das fotos.33

Durante o seu desenvolvimento, a ação acontece na fazenda de Jonas, em S. José de


Golgonhas (cidade fictícia do interior de Minas Gerais); o universo fechado em que a
família pouco a pouco se dilacera, confrontando seus desejos e forças, deixa transparecer
no desenvolvimento do texto o sentimento de tragicidade aliado àquela família.
Constantemente eles se chocam, em cenas repletas de conflitos. D. Senhorinha, esposa de
Jonas, é uma personagem que a todo momento transparece seu sofrimento (inclusive,
indicado pelas rubricas). Aceita as agressões sofridas tanto do marido quanto da irmã mais
velha, Tia Rute, repetindo a reação submissa de D. Eduarda ao não provocar um confronto
imediato com as outras personagens.

(Com angústia, D. Senhorinha vai também espiar, enquanto Tia Rute, com
crueldade bem perceptível, continua falando.)
TIA RUTE – Eu conheço o grito dele. Aliás, não é grito, uma coisa, não sei.
Parece uivo, sei lá. Se eu fosse você, tinha vergonha!
D. SENHORINHA (com sofrimento) – Vergonha de quê?
TIA RUTE – De ter filho assim – você acha pouco?
D. SENHORINHA (com sofrimento) – Uma infelicidade, ora, como outra
qualquer!
TIA RUTE (castigando a irmã) – Imagine que enlouquece e a primeira coisa
que faz é tirar toda a roupa e viver no mato assim. Como um bicho! Você não viu,
outro dia, da janela, ele lambendo o chão? Deve ter ferido a língua!
D. SENHORINHA (dolorosa) – Às vezes, eu penso que o louco não sente dor.
TIA RUTE – Hoje, está rodando, em torno da casa, como um cavalo doido!
D. SENHORINHA – Nonô é muito mais feliz do que eu – sem comparação.
(sempre dolorosa) Às vezes, eu gostaria de estar no lugar do meu filho...
(Já saíram da janela. D. Senhorinha, triste, digna, altiva, com uma dor
bastante sóbria, procurando sempre ficar de costas para a irmã. Tia Rute com uma
crueldade que não pode esconder.)34

33
SUSSEKIND, Maria Flora. Op. cit., 1977, pp. 33-34.
34
RODRIGUES, Nelson. Op. cit., 1981, pp. 58-59.
86
Ainda que possua intrinsecamente o sentido trágico, a cena por si só não configura
um conflito. Há a representação da maldade, do desejo reprimido, da disputa de forças, mas
os confrontos estão estritamente ligados à presença do patriarca Jonas:

(Jonas aproxima-se de D. Senhorinha, que fica de perfil para ele, como se não
quisesse encará-lo.)
JONAS (surdamente) – Edmundo não me suporta...
D. SENHORINHA – Você não botou ele para fora de casa, três dias depois do
casamento?
JONAS (sem ligar à interrupção) – Nem Guilherme!... (violento, querendo
encarar D. Senhorinha) E você também! Quando está cara a cara comigo, fica de
perfil. Com esse ar de mártir, quando devia estar de joelhos, aos meus pés, beijando
meus sapatos!35

Enquanto nesse convívio em família o que se evidencia é o trágico, por meio de


seus embates diretos, o cômico fica a cargo do speaker e desse senso comum paralelo à
representação familiar posta do outro lado – e em desacordo com ela. O efeito cômico se
concretiza pelos comentários “de mau gosto” do Speaker, além de evidente tendência ao
grotesco e ao moralismo: “Uma mãe assim é um oportuno exemplo para as moças
modernas que bebem refrigerante na própria garrafinha!”.
A tópica do isolamento, presente em Álbum de família, será repetida em Anjo negro,
terceira e última peça do conjunto. Ela é expressa em uma fala de Virgínia: “Esperava
você! Só posso esperar você, sempre. Só você chega, só você parte. O mundo está reduzido
a nós dois – eu e você.”36 Esse mundo reduzido funciona como um microcosmo onde se
concentram e estão representados os sentimentos de desejo ou de ódio – e, por conseguinte,
as desgraças concernentes à exacerbação deles.
Assim como as outras duas peças, Anjo negro mantém em sua estrutura um conflito
centralizador, sustentado por outros menores, mas que o encaminharão a atitudes
inevitavelmente trágicas. Inicialmente, a tensão é silenciosa, entre Ismael e Virgínia,
marido negro e mulher branca, como um jogo ambivalente de duas forças opostas, mas
inegavelmente dependentes. Essa dependência anula a força trágica das personagens, só

35
Idem, pp. 64-65.
36
Idem, p. 132.
87
renascendo com o surgimento do terceiro elemento do triângulo. E somente com a presença
da filha branca de Virgínia com Elias, irmão de criação de Ismael, haverá uma tríade sobre
a qual se sustentará o conflito trágico da peça: Ismael, Virgínia e Ana Maria, pois assim
haverá uma disputa entre mãe e filha pelo mesmo homem.
Entre os membros da família, a morte é um desejo constante. Virgínia, ao notar que
seus filhos são negros, almeja matá-los; Ismael sonha com a morte de uma menina no dia
da primeira comunhão. A disputa de interesses e desejos velados entre as personagens,
embora permanente em toda ação, se desencadeará especialmente no terceiro ato, depois de
passados 16 anos. Ana Maria é então uma adolescente cega, apaixonada por Ismael, a quem
ela toma como pai, e o disputará com Virgínia. O conflito entre Ismael e a esposa se
transfere para mãe e filha na disputa pelo amor do médico. Esse embate não poderia
resultar senão em uma morte: dessa vez, é Ana Maria quem sucumbe ao choque das forças.
A tragicidade dos textos rodriguianos está, invariavelmente, ligada a tabus da
sociedade: incesto, assassinato, pedofilia, homossexualismo etc. Crimes contra a moral. Se
há sempre uma disputa que provoque um certo tipo de tensão (“tensão dionisíaca”, nas
palavras do autor) que emana em todo o desenrolar da ação, a efetivação da ação trágica
acontece às voltas com os temas-tabus. Em Anjo negro não é propriamente a questão do
preconceito social o tema principal – embora uma leitura nesse sentido possa ser realizada.
É sobretudo a intolerância e o ódio existente entre aquelas pessoas da mesma família,
exaltados pela repressão dos desejos; o mundo sufocante em que vivem e que despertará o
instinto (quase primitivo) de destruição do outro. O desejo incestuoso de Ana Maria
incentivará o ódio sentido pela mãe; também foi o desejo incestuoso que fez com que
Virgínia traísse Ismael com o irmão branco: para ter um filho branco a quem pudesse amar.
Com isso, aparecem as fragilidades sociais impostas por regras de conduta, as quais são
sempre questionadas pelo autor. Ou como afirma Flora Sussekind:

Quebrando com as regras de uma linguagem sexual bem comportada, o teatro


de Nelson Rodrigues põe a nu as “lepras” que esta linguagem oculta, e procura
desestruturar as próprias bases de sustentação de uma estrutura social montada peça
por peça sobre ela.37

37
SUSSEKIND, Maria Flora. Op. cit., 1977, p. 25.
88
Há, ao final da peça, a resolução (ou dissolução) do conflito, assim como nas outras
tragédias rodriguianas: Ismael e Virgínia fogem e deixam Ana Maria presa em seu caixão
de vidro para a morte. Em Álbum de família todos os membros da família se matam
catastroficamente uns aos outros, menos D. Senhorinha, que vai viver com o filho
selvagem. Em Senhora dos afogados Moema alcança seu objetivo de se tornar a única
mulher da casa; no entanto, seu pai morre e ela mesma fica condenada ao trágico fim. A
resolução dos conflitos, nessas peças, de forma alguma significa happy end, mas, mesmo
assim, sempre uma das protagonistas soluciona seu confronto com a outra parte, e isso
geralmente acontece pela morte desta. De uma forma ou de outra, ocorre o desenlace
trágico (ou seja, a catástrofe).

O que é suprimido no desenlace trágico é apenas a particularidade unilateral,


que não conseguiu se adaptar a esta harmonia e que na tragédia de seu agir, quando
não pode abandonar a si mesma e seu propósito, se vê entregue, segundo toda a sua
totalidade, ao declínio ou pelo menos se vê forçada a resignar, quando disso é
capaz, diante da realização de sua finalidade.38

Segundo Hegel, uma das forças conflituosas declina de sua vontade, se resigna;
nessas três peças, especialmente em Senhora dos afogados, ocorre semelhante processo:
uma das forças opostas sucumbe à disputa e, inevitavelmente, é carregada à morte, seja
Misael ou D. Eduarda, de Senhora dos afogados, Eduardo ou Guilherme, de Álbum de
família, e Ana Maria, de Anjo negro.
Sobretudo, são representativos na composição do sentimento trágico os dois usos
recorrentes do termo: se por um lado Nelson Rodrigues utiliza-se largamente do sentido
comum (referente a um acontecimento infeliz, uma morte, um acidente), por outro
percebemos também uma recorrência às concepções filosóficas desse sentimento. E, mais
precisamente, fica evidente o trânsito que ocorre entre um e outro sentido. Certo é que o
sentido trágico percorre todo o teatro rodriguiano, com maior ou menor intensidade.

38
HEGEL, op. cit., 2004, p. 238.
89
No conjunto dessas três peças, esse sentimento é um dos pontos responsáveis pela
concepção de tragédia, aliado também à noção de catástrofe, que está inevitavelmente
ligada ao gênero, em seu sentido clássico ou moderno:

Le mot « catastrophe », surtout employé aujourd’hui pour désigner des


événements désastreux qui surviennent dans le monde réel, est issu du vocabulaire
de la dramaturgie. Son emploi technique remonte au grec katastrophê, qui signifie à
l’origine « bouleversement » ou « renversement », et s’est tardivement spécialisé
dans le champ du théâtre avec le sens de « dénouement de l’intrigue ». La définition
moderne du mot « catastrophe » s’est ainsi construite à partir d’un sens
dramaturgique hérité de l’histoire du théâtre, en particulier de celle du genre
tragique auquel elle est originellement liée. Elle appelle aussi une réactualisation,
qui prend tout son intérêt si l’on s’attache à son sens dramaturgique en même temps
qu’à son sens courant. La catastrophe fonctionne aujourd’hui comme une marque
d’appartenance au genre de la tragédie, dont elle désigne le dénouement meurtrier,
en même temps qu’elle évoque les « désastres brusques et effroyables » qui se
produisent sur la scène de théâtre ou dans le monde réel.39

2.2 - Considerações acerca da tragédia moderna

São inúmeros os estudos clássicos dedicados ao desvendamento do que foi a


tragédia grega: sua estrutura, a composição do herói, o coro, a representação em festivais,
os concursos e outros aspectos da vida ática. Há, pelo menos, um consenso em se tratando
da estrutura inicial da tragédia ática, ainda nos tempos de Ésquilo: de um lado, o coro
entoava canções líricas; de outro, o herói trágico se manifestava por meio de versos mais

39
KUNTZ, Hélène. La catastrophe sur la scène moderne et contemporaine. Révue d’études théâtrales.
Louvain-la-Neuve, Études Théâtrales, nº 23, 2002, p. 13. “O termo «catástrofe», hoje empregado sobretudo
para designar eventos desastrosos que ocorrem no mundo real, provém do vocabulário da dramaturgia. Seu
emprego técnico remonta ao grego katastrophê, que significa, na origem, «desordenação» ou «inversão», e é
tardiamente especializado no campo do teatro com o sentido de «desfecho da intriga». A definição moderna
do termo «catástrofe» é assim construída a partir de um sentido dramatúrgico herdado da história do teatro,
em particular daquele do gênero trágico ao qual ela está originalmente ligada. Ela exige também uma
reatualização, que toma todo seu interesse se, ao mesmo tempo, mantém-se em seu sentido dramatúrgico o
seu sentido corrente. A catástrofe funciona hoje como uma marca de pertence ao gênero da tragédia, do qual
ela designa o desfecho mortal, ao mesmo tempo em que ela evoca os «desastres bruscos e terríveis» que se
produzem na cena do teatro ou no mundo real.”
90
fluentes e próximos à prosa40. Esses dois elementos serão interpretados por Nietzsche como
o elemento apolíneo, o coro, aquele da boa medida, do equilíbrio, da beleza; e o elemento
dionisíaco, o herói, do desregramento, do desequilíbrio e da destemperança. Mas a
interpretação nietzschiana não está alinhada aos estudos de J.-P. Vernant e de P. Vidal-
Naquet, que lançam um olhar muito mais estrutural ao gênero clássico e o interpretam à luz
do direito grego.

De um lado, o coro: a princípio, ao que parece, não mascarado, mas apenas


disfarçado; de outro lado, a personagem trágica, vivida por um ator profissional,
individualizada por sua máscara em relação ao grupo anônimo do coro. Essa
individualização, de forma alguma, faz do portador da máscara um sujeito
psicológico, uma “pessoa” individual. Ao contrário, a máscara integra a
personagem trágica numa categoria social e religiosa bem definida: a dos heróis.
(...) Polaridade, portanto, entre dois elementos na técnica trágica: o coro, ser
coletivo e anônimo cujo papel consiste em exprimir em seus temores, em suas
esperanças e julgamentos, os sentimentos dos espectadores que compõem a
comunidade cívica; personagem individualizada cuja ação forma o centro do drama
e tem a figura de um herói de uma outra época, a quem sempre é mais ou menos
estranha a condição normal do cidadão.41

No entanto, ao menos na concepção de uma estrutura ambivalente, de oposição


entre dois elementos, os estudiosos concordam entre si. Vernant usa a palavra polaridade
ao se referir à mesma ambivalência comentada por Nietzsche, mas ele não trata, ao menos
na mesma acepção que os filósofos alemães, do sentido trágico dos textos. Ele fala, sim, de
um sentido trágico, mas em outra concepção, quando do confronto entre as forças humanas
e as divinas, mas não na generalização de um sentimento trágico à vida. A oposição e
tensão das tragédias gregas ocorrem, para o estudioso helenista, entre os planos divino e
humano, os quais são traduzidos em sua essência estética, não filosófica.

O sentido trágico da responsabilidade surge quando a ação humana constitui o


objeto de uma reflexão, de um debate, mas ainda não adquiriu um estatuto tão
autônomo que baste plenamente a si mesma. O domínio próprio da tragédia situa-se
nessa zona fronteiriça onde os atos humanos vêm articular-se com as potências

40
Segundo VERNANT, Jean-Pierre. “O momento histórico da tragédia na Grécia: algumas considerações
sociais e psicológicas”. In: VERNANT, J.-P. e VIDAL-NAQUET, P. Mito e tragédia na Grécia Antiga. São
Paulo, Perspectiva, 2002.
41
Idem, p. 2.
91
divinas, onde revelam seu verdadeiro sentido, ignorado até por aqueles que os
praticaram e por eles são responsáveis, inserindo-se numa ordem que ultrapassa o
homem e a ele escapa.42

A ação trágica só é possível nesse limiar entre os planos descritos, em que as forças
e/ou elementos estruturais se confrontam para desenvolvê-la. Mas isso, para Vernant, não
implica a noção que os românticos desenvolveram; ele, inclusive, nega a existência de
vontade no herói clássico: se existe vontade, ela não é no sentido kantiano do termo, mas
uma vontade muito mais ligada ao temor que o divino inspira naquele herói. Para
simplificar sua definição de tragédia, podemos dizer que para além do confronto estrutural
e da não existência de uma vontade – na acepção moderna do termo –, a essência de tudo é
que o drama representado por esse gênero se passa simultaneamente em dois níveis:
primeiro, da existência cotidiana, num tempo humano; o outro, num plano divino,
onipotente, que abrange a totalidade dos acontecimentos.
Esses pressupostos da tragédia ática foram estudados sob várias perspectivas
somente na história mais recente. Até pouco tempo, a noção aristotélica de tragédia foi a
que perdurou ao longo dos séculos até que os estudiosos modernos se debruçassem para
compreender essa dramaturgia. Com base na concepção da Poética de Aristóteles,
ocorrerão, a partir do Renascimento, modificações profundas em sua estrutura. Peter
Szondi, a partir de um refinado estudo sobre o drama burguês43, identifica nesse momento,
saindo da Idade Média, a alteração do sentido aristotélico referente ao gênero trágico.
Nesse período, dramaturgos e comentaristas da Poética mudaram significativamente seu
sentido e transformaram em regra aquilo que antes, muito provavelmente, era considerado
apenas descrição de um gênero dramático representativo de uma cultura.
Com essa leitura e normatização, deu-se conseqüentemente origem às regras das
três unidades, o que gerou um estreitamento daquilo que deveria ser considerado uma
tragédia. Aristóteles, como se sabe, teve como ponto de referência para sua descrição de
tragédia Édipo Rei, de Sófocles. Já com este autor, sua estrutura se alterara, não mais
apenas tendo apenas o coro e o herói em cena, mas havia ao menos dois personagens, sem

42
Idem, p. 4.
43
Ver SZONDI, Peter. Teoria do drama burguês. São Paulo, CosacNaify, 2004b.
92
quebrar, no entanto, a noção de polaridade ou ambivalência. Nietzsche, por exemplo,
identifica em Eurípides – tragediógrafo posterior a Sófocles e contemporâneo a Sócrates – a
decadência do gênero, uma vez que ele abole o coro da estrutura trágica, sem o qual não há
o elemento de contraposição às personagens. Com essa anulação, sai de cena o elemento
apolíneo. É, portanto, nas tragédias sofoclianas que Aristóteles vislumbrou o auge da
cultura helênica e sua representação artística mais madura. Transformar a descrição em
norma dá origem àquilo que Szondi chama de drama – cuja estrutura normativa só será
alterada em profundidade no final do século XIX44.
Para dar embasamento à sua teoria, de que a mudança de enfoque da tragédia
originou o drama – e mais especificamente o drama burguês –, Szondi descreve a teoria de
alguns dramaturgos e teóricos: Lillo, Diderot, Lessing e Mercier. Vou me deter
especificamente no primeiro, a fim de mostrar como houve a alteração de enfoque, bastante
significativa para a compreensão do drama moderno. Com o intuito de justificar sua peça O
mercador de Londres, Lillo

...dá à teoria aristotélica do efeito catártico e purificador da tragédia um sentido


que ela dificilmente tem neste: o da correção ou do castigo das paixões criminosas
por natureza ou por excesso. Igualmente, as duas últimas teses de Lillo se referem a
Aristóteles, reinterpretando-o ou tratando-o com perspectiva polêmica: se para a
definição do gênero Aristóteles adotou a grandeza como característica da ação que a
tragédia imita, Lillo faz com que essa grandeza dependa da extensão do campo de
influência, do número de homens que uma tragédia é capaz de influenciar. Lillo
contradiz inteiramente o primeiro teórico da tragédia quando faz da pertença à
mesma camada social a condição para que o destino do herói trágico tenha no
espectador o efeito mencionado.45

O pressuposto de Lillo para a formação de sua tragédia renascentista, ou melhor, de


seu drama burguês, é a diminuição da distância social entre as personagens e o público;
para que a tragédia possa ter uma maior abrangência entre os espectadores, é fundamental
que as personagens sejam semelhantes a eles. Assim, a estética do efeito no século XVIII
ocorre da seguinte forma: as lágrimas não são somente das dramatis personae, são também
do espectador. Ao invés de um ato heróico, a musa de Lillo pode chorar pela dor simples,
44
SZONDI, Peter. Teoria do drama moderno [1890-1950]. São Paulo, Cosac & Naify, 2003.
45
SZONDI, Peter. Op. Cit., 2004b, p. 34.
93
algo com que os espectadores possam se identificar. É essa ampliação do domínio de uma
poesia mais séria, a tragédia, que dará origem ao drama burguês.

O que ele [Lillo] trata de mostrar não é tanto que a tragédia não deve ser um
privilégio das camadas nobres, que o burguês também tem o direito de pisar o palco
como o herói trágico, mas que a tragédia, para ter um efeito amplo, não pode se
restringir às linhagens de reis e príncipes. Não é o burguês que precisa da tragédia,
é a tragédia que precisa do burguês.46

Com isso, o foco representado já não será mais a natureza do mundo, mas a conduta
de um indivíduo. Entre os franceses, por exemplo, o gênero intermediário será denominado
de tragédie domestique et bourgeoise, assim como outro gênero igualmente intermediário,
a comédie héroïque. Nessa versão francesa, a tragédia doméstica e/ou burguesa “não expõe
conflitos de classe e sim aquela sentimentalidade pela qual os seres humanos, unidos na
pequena família burguesa, não ousam decidir seus conflitos, senão os reprimem nas
lágrimas de comoção e de lamento.”47 Essas características permanecerão presentes em
muitos gêneros dramáticos da modernidade, em alguns dramas sérios e, inclusive, em
algumas tragédias modernas.
A estrutura do drama burguês, enquanto forma surgida a partir da leitura
renascentista de tragédia – logo, dentro de uma estrutura fechada e normatizada –,
permanecerá ainda vigente até a segunda metade do século XIX, quando autores trazem à
tona elementos muito além do que a forma pressuposta pudesse suportar48. Conflitos
estruturais que originam posteriormente o que Szondi denomina de drama moderno. Esse
drama – que não necessariamente significa o gênero oposto à comédia, mas no sentido de
obra dramática – abrirá espaço para expressões estéticas diversas e não mais tão bem
distinguíveis. Dentro das possibilidades de drama na modernidade, não creio que seja
possível excluir a tentativa de recriar uma tragédia, seja ela uma releitura infrutífera da
tragédia grega, seja uma absorção de elementos clássicos ou a inversão de seus valores.

46
Idem, p. 40.
47
Idem, p. 99.
48
Idéia exposta e desenvolvida por SZONDI, Peter. Op. cit., 2001, cf. comentado na introdução.
94
E chego a um momento paradoxal, a expressão estética moderna de tragédia.
Raymond Williams49 não descarta a possibilidade de tragédias na modernidade, embora o
gênero tenha de repartir espaço com o que o senso comum imagina ser uma tragédia, no
sentido de um ato de desgraça e carregado de tristeza. Ainda que sejam noções diferentes
para a mesma palavra, ele afirma que a coexistência de sentidos é normal, da mesma forma
como é possível ver a relação entre eles e, por outro lado, também distingui-los. Do mesmo
modo, outra palavra que sofreu significativa alteração foi “catástrofe”. Segundo a Poética
de Aristóteles, catástrofe é o quarto e último elemento estético da tragédia ática. Sinônima
de desenlace da ação, ela não possuía a carga negativa que hoje o termo carrega. Na
modernidade, no entanto,

L’idée d’un désastre « brusque et effroyable » accompagne en effet la


construction de la notion dramaturgique de catastrophe. L’effet violent aristotélicien
signale la part de destruction attachée à toute catastrophe, et c’est en réponse à cette
catastrophe destructice et douloureuse que se développe la lecture hégélienne de la
tragédie, qui vise à donner sens au malheur des personnages. La castastrophe, qui
implique un modèle de conclusion, renvoie aussi à un paradigme apocalyptique qui
offre à l’écriture le modèle hyperbolique de toute destruction.50

De todo modo, é inviável delimitar características específicas da tragédia moderna,


principalmente pela contraposição de opiniões tão diversas a seu respeito51. No século XX,
para lidar com as amplas noções de trágico e tragédia, impõe-se a investigação da
desarticulação da linguagem (Teatro do Absurdo), a expressão interiorizada do homem
49
Refiro-me a Tragédia moderna. Tradução de Betina Bischof. São Paulo, Cosac & Naify, 2002.
50
KUNTZ, Hélène. Op. cit., 2002, p. 31. “A idéia de um desastre “brusco e terrível” acompanha, com efeito, a
construção da noção dramatúrgica de catástrofe. O efeito violento aristotélico assinala a parte de destruição
acoplada a toda catástrofe, e é em resposta a esta catástrofe destrutiva e dolorosa que se desenvolve a leitura
hegeliana da tragédia, que visa a dar sentido ao infortúnio das personagens. A catástrofe, que implica um
modelo de conclusão, remete também a um paradigma apocalíptico que oferece à escritura o modelo
hiperbólico de toda destruição.”
51
Em Formas e mediações do trágico moderno: uma leitura do Brasil, Unimarco, 2004, organizado por
Finazzi-Agrò, Ettore e Vecchi, Roberto, há uma reunião de vários ensaios sobre o trágico moderno e como
refletir sobre este conceito permite uma leitura do Brasil. O que salta mais aos olhos é a afirmação em relação
à impossibilidade da teorização unívoca de trágico (e eu estenderia à tragédia) em tempos modernos, feita
ainda na introdução do livro: “Para além da inviabilidade de uma teorização unívoca e de uma delimitação
epistemologicamente rígida, dentro da monumental tradição crítica sobre este tema, coexistem, como se verá,
quase em conflito entre si, várias visões hermenêuticas que até decorrem de bibliografias teóricas
heterogêneas. Mas, considerando que o assunto é o trágico, julgamos oportuno, nessa fase incipiente, que era
justamente a heterogeneidade, o contraste, que podiam contribuir, mais do que visões unidirecionadas, para
uma problematização que fosse representativa da pluralidade conflituosa das abordagens admissíveis.” (p. 6)
95
(Expressionismo), o grotesco como representativo do trágico, a integração do cômico ao
trágico (tragicomédia) e a desarticulação do herói superior. São, portanto, várias formas de
representar o trágico, propondo assim novos formatos dramáticos, alguns sugestivamente
denominados de tragédia.
Ao contrário de Steiner, como já apontei, Raymond Williams defende
veementemente a existência de tragédias modernas, mesmo que a alteração de seu sentido
tenha sido significativa ao longo da história. Para isso, ele faz uma rápida apresentação das
visões que cada época tinha em relação ao gênero, sem dissociar o nome da tradição: dos
clássicos aos modernos, passando pelo período medieval, renascimento e abordando
também a noção de tragédia para alguns filósofos. Com isso, ele não exclui a possibilidade
de tragédia quando do surgimento da filosofia do trágico (como Steiner), mas explica como
os pensadores (Hegel, Schopenhauer e Nietzsche) aliaram a filosofia do trágico à noção de
tragédia. O fato de ter surgido, a partir do romantismo, uma corrente de pensamento que
levantasse questões filosóficas acerca do sentido trágico não exclui a existência de uma
estética denominada tragédia. A partir de então, ela já não será mais exclusivamente uma
manifestação estética, mas a representação de uma ação espiritual.

A definição de tragédia [a partir de Hegel] tornou-se uma definição centrada


num tipo especial de ação espiritual, mais do que em acontecimentos específicos, e
uma metafísica da tragédia substituiu a ênfase moral, seja a crítica, seja a comum.
Essa nova ênfase sobre a tragédia como um tipo específico, até mesmo raro, de ação
e reação marca a principal emergência de idéias trágicas modernas.
O importante na tragédia, para Hegel, não é o sofrimento enquanto tal – “mero
sofrimento” – mas as suas causas.52

É, então, a partir de Schopenhauer que surge uma noção de tragédia que parece ser
dominante: a tragédia é, para ele, “a dor inexprimível, o lamento da humanidade, o triunfo
do mal, o desdenhoso domínio do acaso, a irrecuperável degradação do justo e do
inocente”53. Nessas tragédias, denominadas por Williams de “pós-liberais”, as personagens
são de moralidade comum, segundo definição de Schopenhauer; as personagens se situam
em relação ao outro de forma que a sua posição as impele umas contra as outras,

52
WILLIAMS, Raymond. Op. cit., 2002, p. 54.
53
SCHOPENHAUER apud WILLIAMS, Op. cit., 2002, p. 60.
96
conscientemente, ambas com os mesmos direitos. Elas são representações de homens muito
próximos a nós, seja por suas ações ou por seu caráter. Desse modo, “o sentido da tragédia
é esse reconhecimento da natureza da vida, e a significação do herói trágico é a sua
resignação – renúncia não apenas à vida, mas ao desejo de viver”54.
Williams defende a existência de tragédias na modernidade como uma
representação da desordem e da ordem; os sentidos trágicos são variáveis de acordo com a
cultura, mas o que é realmente geral em se tratando desse gênero é a dramatização de uma
desordem e sua conseqüente resolução (a ordem). Mesmo que a definição tenha se alterado,
há ainda um tipo de dramatização do conflito e do sofrimento, correntemente denominada
tragédia. Sobretudo, o principal cenário histórico em que elas podem ocorrer é aquele que
“procede à substancial derrocada e transformação de uma importante cultura”. Ou melhor,
não é nem nos momentos de estabilidade nem nos períodos de conflito aberto e decisivo
que esse tipo de peças surge:

A sua condição é a verdadeira tensão entre o velho e o novo: entre crenças


herdadas e incorporadas em instituições e reações, e contradições e possibilidades
vivenciadas de forma nova e viva. Se as crenças recebidas desmoronaram, ampla ou
inteiramente, a tensão, é óbvio, está ausente; na proporção em que a real presença
delas é necessária. (...) Em tais situações, o processo usual de dramatizar e resolver
a desordem e o sofrimento se intensifica até o nível que pode ser o mais
prontamente reconhecido como tragédia.55

Tanto a destruição do herói quanto a morte são elementos presentes nas tragédias,
mas não são incondicionais. É possível a existência de alguns textos sem a derrocada do
herói e, por conseguinte, sem a presença indiscutível da morte em seu fim; o vínculo com
esses dois elementos é inconstante. “O que é generalizado”, afirma ele, “é a solidão do
homem que se defronta com um destino cego, e esse é o isolamento fundamental do herói
trágico”. Williams chama a atenção para a impossibilidade do sentido universal de tragédia,
mas ressalta que é preciso fazer esforços para chegar-se a uma estrutura de tragédia
presente na nossa própria cultura. Para completar sua interpretação de que existem
tragédias na modernidade, o autor analisa alguns autores dramáticos à luz da investigação

54
WILLIAMS, Op. cit., 2002, p. 61.
55
Idem, p. 79.
97
histórica feita anteriormente. Para autores como Strindberg, O’Neill e Tennessee Williams,
por exemplo, ele denomina suas peças de “tragédias privadas”, enquanto Ibsen e Miller
escreveram “tragédias liberais” (liberal na ênfase sobre a individualidade e trágica na
derrota final ou limites que se impõem à vitória). Quanto à tragédia privada, o autor
entende que

...Há um outro tipo de tragédia, superficialmente muito parecido com esse [a


tragédia liberal], que na verdade começa com o homem nu e desamparado. Toda
energia primária centra-se nesse ser isolado que deseja, se alimenta e luta a sós. A
sociedade é, na melhor das hipóteses, uma instituição arbitrária para impedir que
essa horda de criaturas destruam umas às outras. E, quando essas pessoas isoladas
se encontram nos chamados relacionamentos, as suas trocas são, inevitavelmente,
formas de luta.56

Há, ainda, outras formas trágicas na modernidade, como a tragédia social de Tolstói
e também sua rejeição, no caso de Brecht – dentre outros autores analisados e outras formas
encontradas. Cada qual em seu contexto, com sua especificidade, sem a ambição da
generalização, Williams reconstrói, em seu livro, a evidência de um gênero já quase dado
como morto.
Apesar de reconhecer que o pensamento de Steiner teve grande repercussão, Ion
Omesco declara abertamente que “il se peut que la tragédie contemporaine soit parmi
nous”57, mesmo que não a reconheçamos, pois temos sempre o hábito de falar de tragédias
no passado. Além de Steiner, Bernard Dort também negou a sua existência: “Toute la
dramaturgie du XXe siècle a vécu dans cette vaine attente: celle de la tragédie”58. Em
contraposição a eles, Omesco é adepto de que o gênero está presente na
contemporaneidade, embora aceite a impossibilidade de defini-lo.
Chego assim a um ponto desejável de discussão: de que maneiras a tragédia se
manifesta no mundo moderno e contemporâneo? É possível aceitar sua existência sem
questionamentos? A cultura brasileira do século XX, enquanto originária de uma tradição

56
Idem, p. 143.
57
OMESCO, Ion. La métamorphose de la tragédie. Paris, Presses Universitaires de France, 1978, p. 15. “É
possível que a tragédia contemporânea esteja entre nós”.
58
DORT, Bernard apud OMESCO, Ion. Idem, ibidem. “Toda a dramaturgia do século XX viveu nesta vã espera:
a da tragédia”.
98
mista – conforme alguns, triste, e segundo outros, cordial59 –, pode ser responsável pela
formação de um texto dramático pertencente à tragédia, uma vez que o gênero é sobretudo
reflexo de uma cultura?
As reflexões guiadas por tais questionamentos se limitarão à obra do dramaturgo
Nelson Rodrigues. No entanto, antes disso, é preciso ressaltar algumas considerações
acerca do teatro moderno, enquanto forma passível de representação do sentido trágico.
Este sentido, por exemplo, aparece na dramaturgia do século XX sob várias formas
estéticas, ao passo que a personagem trágica já não se insere mais em uma esfera superior
em relação ao espectador; ao contrário, o herói agora se inscreve em um universo muito
mais particularizado, individual e solitário, o que não necessariamente nega a sua carga
trágica (embora possa negar seu caráter heróico). No caso da linguagem, instrumento de
elevação e diferenciação do gênero, no teatro moderno ela perde sua articulação, sua lógica
em cena, provoca a desconexão entre os fatos, causando eventualmente o caos, o
isolamento e a perda de sentido.
Se por um lado o cristianismo anulou aquele sentido de tragédia, quando o herói não
tinha a possibilidade do arrependimento, mas apenas de expiar sua culpa, por outro temos
de lidar com a noção paradoxal de tragédia cristã – ou, de certa forma, a tragédia moderna
que partilha espaço com a crença cristã de redenção após a morte. Pensando nesse aspecto,
é plausível a coexistência; até mesmo, arriscaria dizer, a fé cristã é mediadora de forças
capazes de estabelecer confrontos com o herói e, assim, fundar uma peça com uma ação
trágica.
Enfim, são possíveis inúmeras representações paralelas de ação trágica. Se há
diferença entre uma existência trágica e um texto literário chamado “tragédia”, há
evidentemente a diferença entre a tragédia grega e outras formas literárias igualmente
denominadas de “tragédias”. Embora ainda hoje exista forte referência à tragédia ática, é

59
Paulo Prado, em Retrato do Brasil, afirma que o povo brasileiro é essencialmente triste. Por outro lado,
Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil, define o homem brasileiro como cordial. Levanto essa
questão em virtude do texto citado anteriormente, de Eduardo Sterzi (em Formas e mediações do trágico
moderno) em que o autor desenvolve a idéia de que no Brasil há essencialmente o sentido anti-trágico porque
“Os brasileiros parecem julgar-se, mais por hábito do que por conclusão racional ou crença sincera, livres de
desastres naturais de maior impacto, eleitos por Deus como exceção feliz num universo de sofrimento
contínuo”. (p. 104) E ele mesmo cita, para embasamento, o texto de Sérgio Buarque de Holanda.
99
preciso deixar claro que esse modelo não consegue se repetir (e muito provavelmente os
autores não o querem). A tragédia moderna é originária de um longo processo histórico, de
alteração de sentidos e de referências, inserção de outros modelos e quebras de paradigmas.
Querer comparar as tragédias da modernidade com aqueles que se tornaram grandes
modelos do gênero é inócuo. Portanto, esses reconhecimentos múltiplos e ambíguos, de
formas igualmente ambíguas, é uma responsabilidade dos séculos XIX e XX.

La conception tragique de Corneille n’est pas celle de Racine, Schiller n’est


pas Beckett, le drame bourgeois à partir de Voltaire n’est pas la tragédie désespérée
de Sarah Kane. Il y a donc différentes sortes de tragédies et l’Occident n’a pas
toujours honoré les mêmes tendances : catholique et biblique, politique,
existentialiste, freudienne, féministe, postmoderne, etc. L’hypothèse de base d’un
tragique existentiel et métaphysique (et donc aussi religieux), qui témoigne de la
nature mortelle de l’homme – signe d’un tragique éternel et preuve de sa
permanence – est donc passée au prisme de centaines de réponses artistiques,
distinctes, qui s’enracinent à chaque fois dans une situation socioculturelle bien
particulière.60

2.3 - De Senhora dos afogados ou da construção de uma tragédia

O trágico é um sentimento presente na dramaturgia rodriguiana, tanto no sentido


mais popular do termo quanto em um sentido filosófico de tensão entre duas forças, sejam
elas iguais ou não. Mas as referências à tragédia clássica não são tão amplas. Eudinyr Fraga
reconhece que é inútil buscar referências da tragédia aristotélica nessas peças de Nelson
Rodrigues, pois nelas não há catarse, falha trágica ou conflito entre o homem e o divino.
Além disso, ao nomear algumas peças do autor de tragédias, estou lidando com a palavra
em seu sentido moderno e relativamente recente, assim, não pretendo amparar minhas
análises no modelo helênico.

60
DECREUS, Freddy. Le masque tragique et sa présence dans une société post-tragique. In : LAZZARINI-
DOSSIN, Muriel (direction). Théâtre, tragique et modernité en Europe (XIX et XX siècles). Bruxelles, Archives
& musée de la littérature, 2004. pp. 18-19. “A concepção trágica de Corneille não é aquela de Racine, Schiller
não é Beckett, o drama burguês a partir de Voltaire não é a tragédia desesperada de Sarah Kane. Há assim
diferentes tipos de tragédias e o Ocidente nem sempre respeitou as mesmas tendências: católica e bíblica,
política, existencialista, freudiana, feminista, pós-moderna, etc. A hipótese de base de um trágico existencial e
metafísico (e portanto também religioso), que manifesta a natureza mortal do homem – signo de um trágico
eterno e prova de sua permanência – é então passada pelo prisma de centenas de respostas artísticas, distintas,
que se enraízam cada vez em uma situação sociocultural muito particular”.
100
No entanto, em alguns textos – e mais especialmente naqueles denominados de
míticos – é recorrente o uso de certos instrumentos significativos para a composição de uma
tragédia esteticamente reconhecida. Nelson Rodrigues elaborou seu modelo de tragédia ao
qual esteve ligado em parte de sua produção dramática, com maiores ou menores
referências; esse modelo pode ser delineado a partir de Senhora dos afogados, na medida
em que nessa peça está presente grande parte dos elementos dos quais o autor lançou mão
para a realização de seu projeto estético.
Em uma perspectiva mais ampla, quase genérica para sua obra, é possível
vislumbrar um fator bastante significativo que ajuda a compor não apenas o sentimento
trágico imanente à sua dramaturgia, mas também certa referência à tragédia moderna: o
isolamento. Não somente o herói – como explicitei, é preciso trabalhar com personagens
fora do campo do heroísmo –, mas grande parte das personagens de Nelson Rodrigues vive
em isolamento, seja ele um isolamento individual ou a dois. Porque, para o dramaturgo, a
vida a dois é um tipo de vida solitária e triste. Do conjunto de peças aqui tratado, as
personagens que fazem parte desse perfil, com os quais tudo acontece, o amor e o ódio, o
desejo e a repugnância, a vida e a morte: Ismael e Virgínia, isolados em sua casa, cujos
muros foram construídos muito altos para que ninguém os visse; as famílias de Jonas e de
Misael, isoladas do mundo externo. Por isolados que estão, incondicionalmente as
conseqüências são graves, contundentes, destruidoras. Sob certo prisma, é algo muito
próximo da forma como Raymond Williams descreveu a tragédia privada:

O relacionamento é, então, por definição, destrutivo: não apenas porque seres


isolados não podem se unir, podendo apenas colidir e causar dano uns aos outros,
mas também porque as breves experiências de união física, seja no amor sexual,
seja na infância, são inevitavelmente destrutivas, fragmentando ou ameaçando o
isolamento que é tudo o que se conhece de individualidade.61

Viver em isolamento só pode provocar choque entre as pessoas daquelas famílias.


Nesse sentido, os comentários de Eduardo e de Virgínia, citados anteriormente62, são
precisos em relação à ambição trágica dos textos. Tudo o que está além daquele pequeno

61
WILLIAMS, Raymond. Op. cit., 2002, p. 150.
62
Ver notas 32 e 36 deste capítulo.
101
universo em que vivem é, incontestavelmente, estranho. Das outras peças do dramaturgo,
talvez em menor intensidade, também fazem parte da lista a família do Seu Noronha (de Os
sete gatinhos), Olegário e Lídia (de A mulher sem pecado), as primas e Dorotéia (de
Dorotéia), entre tantas outras personagens trágicas, que se fecham num cerco cuja única
saída é a recíproca destruição.
Em Senhora dos afogados, esse isolamento é expressivo nas personagens de Misael
e de D. Eduarda. A esposa do patriarca dos Drummond vive entre a família em total
isolamento: sem o amor do marido nem da filha e em constantes conflitos com a sogra. Voz
dissonante entre os seus, nem por meio do filho Paulo ela consegue quebrar essa solidão,
mantendo-se sempre à parte de tudo o que decidem. Por exemplo, se afirma que a filha se
suicidou, as outras vozes da família se rebelam contra sua opinião. Seu insulamento fica
evidente quando ela afirma:

D. EDUARDA – Se eu pudesse encheria, hoje, a casa de pessoas, mesmo de


inimigos meus... contanto que eu não ficasse sozinha, ou só com você... (soluçante)
Estar com você é a pior maneira de estar sozinha!63

Sua exclusão daquele núcleo é explícita, pois “nem noivo, nem marido, nem amante
são da família”. Moema a exclui dos fatos, das ações, da família num todo: D. Eduarda,
para Moema, pode ter a opinião que for, pois ela “é de outra terra”. Essa atitude, que no
limite é a atitude do aniquilamento, será levada ao extremo, ou seja, à morte – esta
provocada por Moema e realizada por Misael. Melhor dizendo, a morte é conseqüência,
porque Misael corta as mãos da esposa e deixa-a sangrando na praia, num momento final de
total solidão.
Além dela, Misael também é vítima dessa atitude. Se Moema pretende isolar a mãe
para tomar-lhe o lugar, ela age da mesma forma com o pai para tê-lo para si. Assim, ela
elimina uma a uma suas possíveis adversárias: as irmãs Dora e Clarinha; tendo restado, por
fim, a própria mãe. Isolado de tudo e de todos, julgado culpado, Misael não resiste às forças
externas – seu filho com a prostituta e o coro das mulheres do cais, possivelmente uma
alusão à moralidade imposta pela sociedade. Ele cai em derrocada, deixando Moema – ela
63
RODRIGUES, Nelson. Op. cit., 1981, p. 266.
102
mesma isolada em seu universo – sem ter sequer sua imagem como companhia. Nos
Drummond, os integrantes da família vivem cada um a sua própria solidão naquele meio
que os impele, cada vez mais, a uma vivência trágica e individualizada.
A peça incorpora em sua ação alguns elementos reconhecidos como de tragédias
clássicas: de Édipo e de Agamêmnon, mais especificamente. Leituras críticas apontaram
essas semelhanças, mas seria plausível aliá-las a uma perspectiva de trágico moderno e não
vê-las como uso indiscriminado de estruturas estéticas clássicas. Essa coexistência interna
de sentidos (o estético e o sentimento trágico), longe de ser pacífica, é o motivo subjacente
à ação violenta da peça, intrínseco às atitudes das principais personagens, como demonstrei
anteriormente. Não bastasse essa dualidade inerente ao texto, também fazem parte outras
referências recorrentes na obra do mesmo autor; são elas: os elementos cômicos,
melodramáticos, grotescos e aspectos cristãos inseridos ao longo da ação, como a oração, a
ladainha, a referência a Cristo, a ceia, dentre outros.
Os detalhes grotescos e cômicos são os responsáveis pelos momentos risíveis da
peça e perturbadores de uma ordem “pura” da tragédia. Embora eles ajudem a romper com
a continuidade dos momentos de tensão, não a anulam: “o riso provocado não consegue
desanuviar a tensão; ao contrário, aumenta-a, atingindo até um nível de horror, pois
estabelece o contraponto entre o que se é e o que parece ser.”64 Tais elementos são também,
por outro lado, e paradoxalmente, fundadores da estética trágica rodriguiana. Dessa forma,
nota-se que a tragédia de Nelson Rodrigues se fundamenta esteticamente na oposição entre
o sentido trágico e o sentido cômico presentes no texto. A epígrafe deste capítulo, portanto,
é bastante significativa e torna-se ponto de partida para a conceituação do trágico
rodriguiano: é plausível chegar à tragédia a partir de quaisquer recursos dos quais o autor
lance mão, desde que ajustados à intenção da peça.
Esses momentos risíveis, por vezes, são oriundos de um uso bastante peculiar de
certos conceitos cristalizados da tragédia e do sentido trágico, pois o autor apropria-se de
um lugar-comum e inverte algumas funções do gênero. O autor emprega essa estratégia em
alguns elementos componentes de seu texto dramático e ela pode ser interpretada como
uma forma de demonstrar como a estrutura, sobre a qual o homem moderno se apóia, está

64
FRAGA, Eudinyr. Op. cit., 1998, p. 78.
103
fragilizada. Segundo Flora Sussekind, no teatro de Nelson Rodrigues as fronteiras
definidoras são derrubadas. Com isso, os elementos da tragédia já não pertencem mais
àquele objetivo antes imposto; as referências são deslocadas, pois é partir disso que o autor
ressalta suas contradições: “Nelson procura, também deslocando de seu contexto próprio,
ridicularizar a figura do speaker de futebol, aquele que procura se impor como uma figura
neutra, mas é na verdade um veículo de idéias cristalizadas, tradicionais”65. Esse
deslocamento, então, pode ser estendido aos recursos clássicos utilizados (herói,
coro/speaker, reconhecimento etc.).
Um exemplo disso é a noção de homem superior do herói trágico: a figura superior
tomada por Nelson é frágil e superficial. Seu herói sucumbe perante qualquer força que
venha contra ele e que confronte seu poder patriarcal e absoluto no seio familiar. Destruída
uma de suas sustentações, as outras e o próprio (anti) herói não tardam a cair e, com ele,
aqueles que estão à sua volta. Essa queda, como já observado, é provocada grande parte das
vezes pelo processo de isolamento da personagem.
Assim, em Senhora dos afogados, há o patriarca Misael, que – em conjunto com
outros chefes de família desse corpus, como Jonas (Álbum de família) e Ismael (Anjo
negro) – possui uma aparente superioridade e força no conjunto familiar, as quais
esmorecem ao menor impacto com a realidade externa àquela do meio em que está e afirma
sua força. A figura do patriarca é posta em cena, inicialmente, como superior e,
eventualmente, profética e mística: Misael é um juiz que está prestes a ser nomeado
ministro – representação de um suposto poder político e econômico. Por outro lado, é visto
com adoração por sua filha Moema, dando-lhe certo aspecto divino. Misael, quando entra
em cena pela primeira vez, é descrito da seguinte forma: “Há nele qualquer coisa de
profético, nos olhos duros, na barba intensa e negra, nas faces profundas”66. Quando sua
força é posta em dúvida, sua autoridade é questionada e seu poder patriarcal já não existe
mais, o que o faz deixar de ser o centro familiar, aos poucos acontece a derrocada não
apenas dele, mas de todos os membros da família Drummond. O protagonista, aqui, perde
não apenas a força política ou patriarcal, mas também a mítica se degrada pouco a pouco,

65
SUSSEKIND, Flora. Op. cit., 1977, p. 11.
66
RODRIGUES, Nelson. Op. cit., 1981b, p. 274.
104
apresentando a face de um falso herói. Esse seu novo perfil aparece pouco a pouco pelas
didascálias, que indicam um Misael fraco, cansado e derrotado: “Misael senta na cama,
ofegante. É evidente que fez um enorme esforço físico.”/ “Misael (cansado e já sem
excitação)”/ “Misael (subjugado); Misael (acobardado)”67.
Tal qual o herói tradicional, o patriarca deixa-se levar pelo destino que lhe rouba a
existência digna. E, assim como o herói aristotélico, ele cria consciência daquilo que lhe
arrebata: na cena mais importante da peça, momento em que os fatos se revelam, há a
anagnorisis; o Noivo revela-se filho da prostituta assassinada e de Misael. Aliás, Nelson
Rodrigues se preocupou em construir, nesta sua tragédia, uma cena de reconhecimento à
semelhança das peças clássicas. Esse momento, mais precisamente situado no 1º quadro do
2º ato, é também o momento de tensão máxima da peça, a partir da qual os fatos
caminharão para seu desfecho:

MISAEL (retardatário) – Nunca mais me chame de Ministro... Não vou ser


Ministro... Depois do banquete, não! (muda de tom) Esse homem disse que eu tinha
visto sua mãe, mas eu?
NOIVO (exaltado) – O senhor!
MISAEL (recuando) – Eu, não é possível... Não pode ser...
(O Noivo e Misael estão agora face a face; Misael, pouco a pouco, vai-se deixando
dominar por uma cólera obtusa.)
(...)
MISAEL (avançando para o Noivo) – Essa mulher que eu vi no banquete, que
estava defronte de mim – olhando sempre para mim –, essa mulher não pode ser sua
mãe.
NOIVO – Era minha mãe!
MISAEL – Essa mulher está morta, morreu há muito tempo...
NOIVO (exultante) – Minha mãe também está morta, morreu há muito tempo...
(...)
NOIVO (agarrando D. Eduarda pelos ombros) – Seu marido foi amante de
minha mãe... Muito tempo... (vira-se, para Misael) Olhe bem para mim. Assim.
Bem no fundo dos meus olhos... Ministro...
MISAEL (subjugado) – Não sou Ministro.
NOIVO (enfurecido) – ...Ministro, reconhece este rosto? Estes olhos? (passando
a mão, com angústia, pelo próprio rosto) Reconhece a sua carne em mim?
MISAEL (acobardado) – Meu filho morreu.
NOIVO – Não. Minha mãe te disse que o filho morrera, porque eu não podia ser
um Drummond... Pareço morto? Minha mãe escreveu uma carta na véspera de

67
Idem, pp. 279, 295 e 297.
105
morrer – escreveu que tu querias matá-la... Confessa agora para mim e para tua
mulher...68

A cena é longa, tensa, entrecortada por pausas, reflexões e comentários, até atingir o
zênite do conflito da peça: o momento em que o Noivo revela sua identidade para o
patriarca dos Drummond; momento em que Misael confessa o assassinato da prostituta e
aceita seu destino trágico, de derrocada, com a total perda de seus poderes naquela família,
pois, uma vez assassino e rompendo com as regras de boa conduta da família, nenhum
respeito lhe é devotado. Em quase todas as peças do autor, as personagens agem sem terem
consciência do que as leva ao fim; ou seja, elas não passam por um momento em que se
reconhecerão como portadoras dos males:

São duas características definidoras do trágico, embora pareça que falta ao


universo trágico do dramaturgo algo que é fundamental: a consciência, o
reconhecimento, por parte das personagens, dos próprios erros, o que os conduziria
a uma reconciliação com a ordem oculta do universo.69

Nesta peça, curiosamente, há uma cena que se aproxima do que foi outrora a
anagnorisis. No entanto, o reconhecimento não transcende às questões práticas textuais:
Misael descobre que seu filho com a prostituta não morreu e que agora está ali para vingar
o assassinato da mãe. Mas me parece que o patriarca – e seus atos – não adquire real noção
daquilo, deixando-se simplesmente ser tomado pelo fracasso. No texto, portanto, essa cena
adquire muito mais importância para o desenrolar dos fatos e realizações de Moema do que
para a efetivação da consciência de seus erros e de que precisa pagar por eles. Não há, por
parte de Misael, qualquer tentativa de reconciliação.
Na continuidade da cena, com Misael já totalmente subjugado pela situação, imerso
em sua culpa de assassino, há uma repentina alteração dos rumos: Moema coloca-se como
autoridade máxima da família, centralizando todos os conflitos a partir de então.
Outro elemento estético cuja função se reverte é o coro, que também pode ser visto
como mostra de fragilidade do meio social. Com a inversão de seu papel, ou sua

68
Idem, pp. 295-297.
69
FRAGA, Eudinyr. Op. cit., 1998, p. 77.
106
camuflagem, o dramaturgo mostra quão frágeis são as bases sociais de suas personagens,
evidenciando suas lacunas, contradições e crenças como aspectos caducos de uma
sociedade senil. Em Senhora dos afogados, o coro dos vizinhos serve ora para apresentar ao
público algumas informações que o situarão na ação geral, a exemplo de uma das funções
do coro nas obras clássicas; ora servem para ironizar a situação, funcionando como um
grupo de vizinhos fofoqueiros. A peça se inicia com D. Eduarda conversando com os
vizinhos; nesse e em outros momentos, eles apresentam atitudes subservientes em relação à
mulher e a outros membros da família, de acordo com a conveniência. Em determinado
instante da conversa, enquanto Moema e D. Eduarda têm uma rápida discussão, eles
cochicham comicamente:

VIZINHO – Mas foi suicídio ou não foi?


VIZINHO – Foi, sim.
VIZINHO – Não foi.
VIZINHO – A menina se matou.
VIZINHO – Que o quê!
VIZINHO – Dou-lhe a minha palavra!70

Assim como neste, em vários outros trechos a postura dos vizinhos é de bisbilhotice,
fofoca e intriga; assim, sua atitude está muito mais ligada a uma inversão da função coral
do que propriamente a de pôr o público a par de alguma coisa passada ou oferecer
conselhos às personagens. É, enfim, uma atitude muito mais corriqueira e cômica. No
quadro seguinte, a mesma reação – de cochichos e fofocas – é causada pela entrada de
Misael:
VIZINHO (logo que Misael aparece à porta) – Olha o grande pai!
VIZINHO – O grande bêbado!
VIZINHO – Não bebe! O doutor não bebe!
VIZINHO – Bebe, sim!
VIZINHO – Não!
VIZINHO – Tem úlcera no duodeno!
VIZINHO – Mas foi ele, não foi ele?
VIZINHO – Quem?
VIZINHO – Foi ele!
VIZINHO – Quem matou aquela mulher?
(Vizinhos cochichando entre si.)
VIZINHO – Dizem que foi ele!

70
Idem, p. 261.
107
VIZINHO – Mentira!71

Curioso notar que, além do mote corriqueiro das observações, há também um certo
gosto por ressaltar o grotesco: “tem úlcera no duodeno!”. E assim como em outros
momentos em que ocorre esse tipo de interferência do coro, há um breve debate entre os
vizinhos em relação a informações desencontradas: “O doutor não bebe!”, “Bebe, sim!”. O
conjunto de características desses comentários provoca, muito provavelmente, um efeito
risível que se contrapõe aos momentos de tensão. Mas, aqui e em outros casos da
dramaturgia rodriguiana, como afirma Eudinyr Fraga, “o riso permite ao público
conscientizar-se do que se esconde atrás do ridículo, do que teria provocado o surgimento
de seres tão risíveis e situações tão tolas e constrangedoras”72.
Esse coro possui ainda outra função, dessa vez muito mais próxima àquela do coro
grego. Em certo momento, o coro se apresenta para falar com D. Eduarda e Moema e, como
em algumas tragédias áticas, um de seus componentes se destaca para se dirigir à
personagem:

(O grupo de vizinhos aproxima-se das duas. Destaca-se um dos vizinhos.)


VIZINHO (numa mesura) – Às suas ordens.
D. EDUARDA (apontando para o rosto do vizinho) – Mas este não é o teu rosto
– é tua máscara. Põe teu verdadeiro rosto.
VIZINHO – Com licença.
(O vizinho põe uma máscara hedionda que, na verdade, é a sua face
autêntica.)
D. EDUARDA – Agora fala.
(Os outros vizinhos passam a mão no rosto, como se estivessem tirando uma
máscara, e colocam máscaras ignóbeis.)
D. EDUARDA – Você que conhece todas as infâmias. Que faz o noivo da minha
filha?
VIZINHO – Passa o dia com três ou quatro mulheres...
VIZINHO (exultante) – Da vida.
VIZINHO – Mulheres da vida.
D. EDUARDA (eufórica) – Ouviste?
MOEMA (inescrutável) – Continua.
VIZINHO – Sempre bêbado.73

71
Idem, p. 274.
72
FRAGA, Eudinyr. Op. cit., 1998, p. 29.
73
RODRIGUES, Nelson. Op. cit., 1981b, p. 267.
108
Além do destaque de um dos vizinhos, ainda há uma evidente referência ao uso das
máscaras do coro grego, ligando-o ainda mais com os clássicos74. Na cena, a máscara
funciona como reveladora de uma “face autêntica” do coro: não a de vizinhos fofoqueiros,
mas de portadores de notícias, opiniões e conselhos. Assim, eles avisam Moema da vida
desregrada que o Noivo leva, com mulheres da vida e nomes tatuados por todo o corpo.
Adiante, o coro dos vizinhos aparece novamente, com uma carga mais profética e menos
debochada:

(Começa o segundo quadro e só estão em cena os vizinhos. Diligentes,


dinâmicos, preparam uma câmara ardente para um defunto que ainda não morreu.
Prevêem que a morte entrará, de novo, na casa dos Drummond. Os retratos dos
antepassados cresceram neste ato.)

VIZINHO – Depressa! Depressa!


VIZINHO – Que foi?
VIZINHO – A morte!
VIZINHO – Ninguém morreu!
VIZINHO – Ninguém morreu, mas vai...
VIZINHO – Quem?
VIZINHO – D. Eduarda.
VIZINHO – Ou Moema.
VIZINHO – Ou as duas!
VIZINHO (nervoso) – Tanto faz, a mãe ou a filha, contanto que morra alguém...

O efeito fúnebre é quebrado logo em seguida, na continuidade da cena (2º ato, 2º


quadro), em que o tom sério é invadido pela comicidade, retornando, assim, à primeira
representação:

VIZINHO – Clarinha não teve caixão.


VIZINHO – Nem lírios acesos!
VIZINHO (retificando) – Círios.
VIZINHO – Desculpe – círios...75

74
Em relação ao uso da máscara no teatro rodriguiano, Victor Hugo Adler Pereira afirma o seguinte: “A
máscara na obra de Nelson Rodrigues articula-se a um jogo textual bem mais amplo do que o observado em
Eugene O’Neill. Principalmente porque, além de um artefato cênico, ela se torna um dos aspectos do
complexo cruzamento de referências textuais e de apropriações de clichês, através dos quais se constroem
suas peças. (...) A máscara aponta para uma verdade que foi soterrada sob as convenções de várias ordens –
certamente por força de pressões sociais – o teatro será o espaço privilegiado de revelação de uma realidade
interna.” (in: Op. cit., 1999, pp. 101-102)
75
RODRIGUES, Nelson. Op. cit., 1981b, p. 301.
109
Se a cena começa sob o tom profético, com os vizinhos prevendo uma morte, como
nota a rubrica, a seqüência cômica rompe a sobriedade da cena – um tom mais propício ao
funeral que eles estão preparando. Essa seriedade não se mantém por muito tempo, como é
possível notar com a frase “Tanto faz, a mãe ou a filha, contanto que morra alguém”. O
efeito cômico corta a possível seriedade, embora um não anule o outro. Em seguida, há a
tentativa de recomposição do tom sério, quando “Os vizinhos estendem agora os panos
fúnebres”. Mas se a idéia é brincar com as variações, nada se sustenta depois da banal troca
de palavras, entre círio e lírio. Não apenas o equívoco quebra a função ordinária do coro,
mas acrescente-se aí o fato de seu colega intervir e retificá-lo no seu engano – o que, por si
só, é um elemento provocador de riso na cena.
Há, ainda, outro coro, mais terrível e “clássico” do que os vizinhos da família
Drummond; são as mulheres do cais. Elas, a priori, rezam pela alma da prostituta morta e
entoam orações fúnebres, ao mesmo tempo em que clamam por justiça. Como já assinalado
por alguns críticos76, esse coro é semelhante às Erínias da tragédia grega, deusas
vingadoras.

(Ouve-se, então, o coro das mulheres, primeiro muito tênue, depois bastante
nítido e em crescendo. As mulheres aparecem.)
MULHER – Mulheres do cais...
MULHER – Te pedimos, Senhor...
MULHER – Mulheres do cais...
MULHER – Da vida...
MULHER – Mulheres da vida...77

A exemplo do que ocorre com o coro dos vizinhos, que altera momentos de
sobriedade e comicidade, as Erínias também têm uma pequena inversão de seu papel ao
final da peça (3º ato, 1º quadro).

(Recomeça o coro das mulheres, enquanto D. Eduarda cobre o rosto com as


duas mãos e assim se conserva durante muito tempo.)
MULHER – Te pedimos, Senhor...
MULHER – Mulheres do cais,

76
Conforme textos de Claude Vincent e de Sábato Magaldi, ambos citados no primeiro capítulo da tese.
77
RODRIGUES, Op. cit., 1981, pp. 291-292.
110
MULHER – Te imploramos.
MULHER – Piedade para a que morreu,
SABIÁ (interferindo) – Piedade e misericórdia,
MULHER – Para a que morreu,
MULHER – Recebei, Senhor, em Vosso céu,
SABIÁ – ...Em Vosso Céu,
MULHER – A alma da pecadora.
MULHER – Fazei secar o sangue derramado,
MULHER – Mas recebei a alma,
MULHER – Tu que és o Protetor,
SABIÁ – Também de nós.
TODAS – Também de nós.78

A ladainha acima, declamada pelas prostitutas, passaria despercebida, sem destoar


de outros momentos de seu aparecimento, não fosse pelo ambiente em que estão, descrito
com especial sordidez e grotesco. O lugar é o café do cais, onde estão além das quatro
mulheres que compõem o coro, a Dona, mãe da prostituta assassinada e dona do prostíbulo,
descrita como “gorda e velha, [de] pernas grossas, gazes manchadas enrolando as canelas”,
e também Sabiá, um ancião de nariz adunco. Para completar o rol das grotescas
personagens, temos o vendedor de pentes, que acompanha o coro batendo um copo. Sabiá
rege o coro das prostitutas, bêbado, com uma caneca de cerveja. Ao fim da oração, o
regente lambe “os beiços, depois de beber”. O insólito da situação, em evidente contraste
com o teor solene e religioso da canção proclamada, provoca o estranhamento e a
impossibilidade de que o sentimento de trágico fique inerte à situação cômica da cena.
O jogo ambivalente entre o trágico e o cômico é evidente ao longo da peça, não
apenas na aparição de personagens que condizem mais ao grotesco, mas também pela
inversão dos elementos considerados “clássicos” em certo sentido: o coro, o herói, o
momento do reconhecimento, as Erínias etc. Para fundamentar sua tragédia moderna,
Nelson Rodrigues trabalha-a por meio de paradoxos expostos e confrontados. O fulcro da
peça, portanto, é a estrutura trágica, mas uma estrutura que se tornou lugar-comum ao
longo de inúmeras releituras e retomadas históricas. Baseado nesse pilar sustentador, o
autor desenvolve os elementos à sua maneira, trágica e comicamente, sem que um e outro
se anulem mutuamente. Assim, criam-se componentes que se confrontam ao longo da peça,

78
Idem, pp. 312-313.
111
desenvolvendo estruturalmente a coexistência simultânea de sentidos: entre o trágico e o
cômico, forma-se a tragédia rodriguiana.
Senhora dos afogados é uma peça que se estrutura sobre os elementos da tragédia
(ainda que provenientes de um senso comum), possui em si marcas fortes do sentido
trágico, mas é cortada constantemente por recursos cômicos. Fundamentais para fortalecer
o sentimento de tragicidade da peça, os instantes em que a comicidade das personagens é
ressaltada (seja pelo exagero, pelo grotesco ou pela caricatura) evidenciam uma estrutura
social estagnada, podre e muito próxima à decadência. Ou seja, ao ressaltar o lado negro
dessa estrutura social, por meio do cômico, a peça cristaliza o sentimento trágico da vida
imanente às personagens, porque entre eles, ninguém se salva, nada se resolve. A única
saída é o fim inexoravelmente trágico, sendo ele representado pela morte ou pelo
aniquilamento.
Ao expor instrumentos cômicos na composição de sua tragédia, o autor traz à tona
também detalhes corriqueiros da vida em sociedade, grotescos, feios e sórdidos. Com isso,
há um tipo de provocação de certas parcelas, que se escondem por trás de máscaras sociais.
Nelson Rodrigues faz questão de pôr em cena uma sociedade sem mascaramento,
mostrando sua pior faceta, nem que isso cause repulsa ao público. Por isso, as cafetinas são
gordas e sórdidas (muitas vezes, estrangeiras); os amantes estão na própria família, em
ocorrência freqüente de incestos; os filhos odeiam os pais e vice-versa. Por esse motivo os
heróis não são heróis em seu sentido restrito, o coro foge à regra e se torna fofoqueiro, as
mulheres mostram suas faces horrendas e vulgares: o cômico, enquanto provocador do riso,
é incômodo por mostrar a imagem crua daquelas personagens. Assim, a comicidade é
inconveniente, mas não se deixa anular pela tragicidade implícita nela mesma, pois está ali
presente para causar o riso sarcástico.
Há, ainda, de se considerar outros recursos estéticos utilizados pelo autor para
compor sua tragédia79. Como observamos no capítulo anterior, em depoimentos Nelson

79
Em seu texto Teatro desagradável, publicado na revista Dionysos, Nelson Rodrigues apresenta essa clareza
estética a qual me refiro aqui. Ele defende suas “peças desagradáveis”: Álbum de família, Anjo negro e
Senhora dos afogados ao dizer o seguinte: “Peçam tudo, menos que eu renuncie às atrocidades habituais dos
meus dramas. Considero legítimo unir elementos atrozes, fétidos, hediondos ou que seja, numa composição
estética”. E a respeito especificamente de Anjo negro, ele comenta a reação da crítica da época: “O caso de
Ismael foi interessante. Alegou-se, por exemplo, que não existia negro como Ismael. Entre parênteses, acho
112
Rodrigues deixou claro que, para a elaboração desse tipo de peça, não necessariamente o
uso da linguagem tem de ser superior, pois acredita ser possível escrever um texto com
igual teor ao se apropriar da língua corriqueira carioca. Além disso, havia em seu
pressuposto de tragédia a idéia de que a purificação da platéia ocorreria por meio de crimes
cometidos no palco pelas personagens, baseando-se em uma variação do sentido de catarse.
Por fim, para o dramaturgo, é a partir do conflito dionisíaco que acontece o tom trágico em
uma obra.
Em se tratando da linguagem, Senhora dos afogados não se aproxima tanto da
linguagem carioca popular, tentando manter-se ainda presa a uma noção de tom poético,
que será quebrada no ciclo seguinte, das tragédias cariocas. Como comentei no capítulo
anterior, Sábato Magaldi chega a considerar a linguagem desta peça poética o suficiente
para ajudar na composição do texto enquanto tragédia. Como, no entanto, esse foi um dos
aspectos mais atacados pela crítica feita ao teatro de Nelson Rodrigues, Eudinyr Fraga
comenta o seguinte:

Acusou-se o diálogo de Álbum de família, na época, de não ser nobre, partindo


da idéia preconceituosa de que a tragédia exige linguagem rebuscada e artificial,
gênero ‘teatro poético’ à la Montherland. Esquecem-se de que a tragédia é a
efetivação da atmosfera trágica, criada pela relação entre as personagens e o
espectador.80

As outras peças do corpus, à semelhança de Senhora dos afogados, tentam se


aproximar de uma concepção clássica do gênero, utilizando, para tanto, recursos estéticos e
temáticos presentes na tragédia ática em sua construção – chocando-os sempre com o seu
sentido invertido. No entanto, os elementos clássicos não são tão comuns como na primeira
peça. Na linha do herói, Jonas, de Álbum de família, pode ser visto pela mesma ótica. Seu

que existem negros e brancos piores do que Ismael. Mas admitamos que a acusação seja justa. Para mim,
tanto faz, nem me interessa. ‘Anjo negro’ jamais quis ser uma fidelíssima, uma veracíssima reportagem
policial. Ismael não existe em lugar nenhum; mas vive no palco. E o que importa é essa autenticidade teatral.”
(p. 20) O dramaturgo afirma que acha lícito utilizar-se não apenas de personagens-monstros que quebram a
moral prática e quotidiana para compor seus dramas; não importa se a personagem é canalha ou boa, importa
que ela dê bons resultados dramáticos: “E no mesmo plano de validade dramática, os loucos varridos, os
bêbedos, os criminosos de todos os matizes, os epilépticos, os santos, os futuros suicidas. A loucura daria
imagens plásticas e inesquecíveis, visões sombrias e deslumbrantes para uma transposição teatral!” (p. 21)
80
FRAGA, Eudinyr. Op. cit., 1998, p. 76.
113
poder é o pilar de sua existência e, de certa forma, também de sua família, pois é a partir do
questionamento desse poder que acontecerão todas as derrocadas. Jonas é a figura superior
por imposição, por uma hierarquia patriarcal que se mostra arbitrária e, evidentemente,
nada tem de nobre. Ao ter sua força questionada, posta em xeque pelos filhos, sua
autoridade é desestruturada e ele é assassinado pela esposa. Paralelo ao seu poder
patriarcal, há vários momentos na peça em que fica translúcido o quanto possuía um poder
político na região de sua fazenda, ao propor favores e proteção em troca de jovens meninas
virgens. Ele detém o domínio sobre todos os membros daquela família: Senhorinha, Rute,
Edmundo, Guilherme e Glória. Em relação a esta última, o poder ainda é maior porque
envolve fascinação e sentimento incestuoso; Glória vê seu pai como uma cópia terrena de
Nosso Senhor, dando-lhe, com isso, certo poder místico. Esse fascínio é exposto pela
rubrica: “em vez do rosto do Senhor, o que se vê é o rosto cruel e bestial de Jonas”,
acrescentando que o quadro corresponde “às condições psicológicas de Glória”. Adiante,
isso é verbalizado pela personagem:

GLÓRIA – Olha bem para esse quadro... Não nota nada – não acha parecido?
GUILHERME – Como parecido?
GLÓRIA – Não é o mesmo rosto de papai, a mesma expressão,
DIREITINHO?81

Por sua vez, Ismael, de Anjo negro, é descrito como “o Grande Negro”, admirado e
respeitado por alguns e temido por outros. Assim como os outros dois (anti) heróis, ele
guarda consigo traços de grandiosidade, ao menos aparente; todos são personagens criadas
sob a perspectiva aristotélica de superioridade, mas já com a intenção de reversão de seu
caráter. Ismael, apesar de provocar medo e terror (e, de certa forma, respeito) nas outras
personagens da peça, apresenta-se como inescrupuloso: para possuir Virgínia, estuprou-a
(com o consentimento da tia dela); além disso, aceita tacitamente o assassinato dos três
filhos pela esposa. Contrapondo-se a isso, o protagonista é admirado em (e por) sua
profissão, ainda que restritivamente devido à sua cor; no diálogo abaixo, a restrição é
sugestivamente evidenciada pelo “mas”:

81
RODRIGUES, Nelson. Op. cit., 1981b, p. 88.
114
CEGO – Diga – ele se chama Ismael?
PRETO – O doutor? Sim. E que médico!
CEGO – Preto, não é preto?
PRETO – Mas de muita competência! (para os outros) Minto?
PRETO – Não tem como ele!
PRETO – Viu? Doutor de mão cheia!82

O uso do coro nas outras duas peças também desperta interesse. No caso de Álbum
de família temos o speaker que, conforme rubrica, “além do mau gosto hediondo dos
comentários, prima por oferecer informações erradas sobre a família”. Sobretudo,
importante notar, ele é descrito como “uma espécie de Opinião Pública”. Ou melhor, o coro
trágico às avessas, porque também ele carrega em suas entradas o tom cômico
sobressalente. Se sua função inicial é oferecer informações sobre a família de Jonas, ao
longo da peça elas vêm todas destoantes do que as personagens realmente demonstram no
palco. Ironia fina do autor, pois a opinião pública, que olha de fora, não pode ter uma visão
real dos fatos que se passam em uma casa cujo poder centralizado do patriarca prima pelas
obsessões e ego próprios:

Desta vez [em Álbum de família] não há o habitual coro de pessoas comuns
(estilizado ou mais individualizado como nas futuras tragédias cariocas), existente
na maioria das peças. O papel é agora designado ao speaker, que descreve as sete
“páginas do álbum”, em frases carregadas de ironia dramática, já que é o
espectador, testemunha da realidade dos fatos, que se incumbe de desmontá-las. Na
verdade, as descrições ultrapassam a ironia, é sarcasmo mesmo.83

Os comentários feitos pelo speaker, além de um aglomerado de frases feitas de


extremo mau gosto, estabelecem esse contraponto entre o que é falsamente demonstrado
para a sociedade e as verdades íntimas não-expostas, sobressaltando a fragilidade de
qualquer julgamento feito. Ou, segundo Flora Sussekind, acontece a desarticulação dos
fatos narrados:

A fala do speaker, que chega a se tornar cômica, tão grande a defasagem


“família do álbum”/”família em movimento”, descreve a de um locutor, de um

82
Idem, p. 127.
83
FRAGA, Eudinyr. Op. cit., 1998, p. 72.
115
porta-voz da opinião pública. Em suma, desarticulam-se os fatos excepcionalmente
privilegiados por esta fala, e a visão e a linguagem próprias a ela, à opinião
pública.84

Anjo negro, quando encenada, causou certo desconforto na crítica e no público por
tratar de um tema-tabu na sociedade brasileira: o racismo. A peça pode ser lida como uma
denúncia ao preconceito racial. Como ele está enraizado na cultura por meio de vozes
representativas do senso comum, o coro é uma representação da dissonância que se pode
encontrar na opinião pública, sempre criticada pelo dramaturgo. No início da peça, por
exemplo, o coro das senhoras negras possui dupla função:

SENHORA (doce) – Um menino tão forte e tão lindo!


SENHORA (patética) – De repente morreu!
SENHORA (doce) – Moreninho, moreninho!
SENHORA – Moreno, não! Não era moreno!
SENHORA – Mulatinho disfarçado!
SENHORA (polêmica) – Preto!
SENHORA (polêmica) – Moreno!
SENHORA (polêmica) – Mulato!
SENHORA (em pânico) – Meu Deus do Céu, tenho medo de preto! Tenho
medo, tenho medo!
SENHORA (enamorada) – Menino tão meigo, educado, triste!
SENHORA (encantada) – Sabia que ia morrer, chamou a morte!
SENHORA (na sua dor) – É o terceiro que morre. Aqui nenhum se cria!
SENHORA (num lamento) – Nenhum menino se cria!
SENHORA – Três já morreram. Com a mesma idade. Má vontade de Deus!
SENHORA – Dos anjos, má vontade dos anjos!
SENHORA – Ou é o ventre da mãe que não presta!
SENHORA (acusadora) – Mulher branca, de útero negro!
SENHORA (num lamento) – Deus gosta de crianças. Mata as criancinhas!
Morrem tantos meninos!85

Se por um lado nota-se o tom de repulsa ao menino negro morto, em evidente


denúncia de um preconceito racial, por outro é possível observar a função ordinária do
coro, de pôr o público a par dos acontecimentos que antecederam o início da ação da peça.
Neste caso, as senhoras observam que, naquela casa, já ocorreram três mortes seguidas de

84
SUSSEKIND, Maria Flora. Op. cit., 1977, pp. 34-35.
85
RODRIGUES, Nelson. Op. cit., 1981b, pp. 125-126.
116
crianças recém-nascidas; todas elas negras e do sexo masculino. Na seqüência da cena, as
mesmas senhoras observam que o menino morreu afogado em um tanque raso o suficiente
para que ninguém morresse acidentalmente, fator que propicia a hipótese de suicídio,
automaticamente descartada, já que “criança não se mata”. Abre-se, assim, uma lacuna que
será preenchida ao longo da ação, quando é revelado que Virgínia mata todos os filhos por
nascerem negros. O coro e os negros carregadores são, nas palavras de Eudinyr Fraga,
“meros elementos corais a pontuar, a poetizar, digamos, a ação”.
Os coros de mulheres, em Senhora dos afogados e em Anjo negro, têm fortes
vínculos com a religiosidade; mais especialmente, com a religião católica ao entoarem
orações para os mortos. Como demonstrei anteriormente, as mulheres do cais rezam pela
alma da prostituta que morreu e proferem orações, sendo uma delas uma ladainha muito
semelhante à católica. Aqui, no caso de Anjo negro, as senhoras permanecem em cena
grande parte da peça rezando orações cristãs: “sentadas sem semicírculo, dez senhoras
pretas, cuja função é, por vezes, profética; têm sempre tristíssimos presságios. Rezam
muito, rezam sempre, sobretudo ‘Aves-Marias’, ‘Padres-Nossos’”, assinala a rubrica
inicial. Desta pequena citação, por exemplo, gostaria de fazer duas observações a respeito
do coro (ele mesmo, evidentemente, paradoxal): 1) as senhoras são negras e, ao mesmo
tempo, são carregadas de preconceitos contra os próprios negros, numa ironia ainda mais
contundente em relação ao racismo; 2) elas têm a clara função de pressagiar fatos que
ocorrerão na casa do Grande Negro, num evidente estreitamento com a atividade ordinária
do coro nas tragédias gregas.
Aliás, a presença de crenças, imagens e orações cristãs (sobretudo católicas)
quebrariam, teoricamente, a possibilidade de uma tragédia. A fé e a crença de redenção são
elementos que anulariam o pressuposto principal do gênero, de que não há salvação para o
erro e o herói só pode incorrer em danação. Se em grande parte da obra dramática do
dramaturgo as crenças religiosas fazem parte de uma força repressora dos instintos
humanos, nessas três peças não é o caso. Aqui, a religião – representada pelas orações e
rápidos comentários – é usada para rogar pela salvação da alma de alguém que morreu ou
para evidenciar um sentimento de culpa constante. Em Senhora dos afogados, por exemplo,
Misael fala: “E é por isso, porque eu não rezo todos os dias, todas as noites, é por isso que a
117
mulher apareceu no banquete... E que minha filha está morta...”86; ou então D. Eduarda:
“Pensa que Deus não está aqui? Nesta sala? Pensa que Deus não escuta tuas palavras?”87
No primeiro caso, é a culpa que Misael sente, mas logo esquece, pois grande parte do
cristianismo na obra do dramaturgo não passa de um protocolo a ser seguido, uma fé em
crise. Ou então, surge apenas como um comentário vazio de significado, sem profundidade
alguma naquele contexto, faltando qualquer conectividade entre a ação e o dito. De
qualquer forma, nessas peças, o veio principal não é o religioso, as suas referências são
apenas para demonstrar uma insipidez do ritual, que é meramente ilustrativo. A respeito de
Álbum de família, Eudinyr Fraga comenta:

Na verdade o pensamento nelsonrodrigueano é irreligioso não só nesta como


em outras peças. Suas personagens vivem no aqui/agora e os ecos desse mundo
religioso ou são hipócritas (como no colégio de freiras de Glória e Tereza) ou se
reduzem a frases em latim (o coro final). Como a acentuar e caracterizar o
distanciamento desse Deus que se expressa por normas litúrgicas dissociadas
totalmente da vertigem existencial que as consome.88

Creio que essas peças são exemplos de um projeto estético dramático ambicionado
por Nelson Rodrigues, que vislumbrava nas tragédias o exemplo máximo de dramaturgia. E
foi se mirando nesse exemplo que ele desenvolveu as suas próprias tragédias, rodriguianas:
a estrutura de Senhora dos afogados – e também a de Álbum de família e de Anjo negro –
se assemelha à estrutura clássica, mas é uma aproximação às avessas, com tons de
brincadeira, procurando driblar certas definições fechadas do gênero, abrindo-as à
possibilidade de adaptação à sociedade brasileira, repleta de tabus. Para isso, a partir dessa
base o dramaturgo inseriu dados de outros gêneros que também estão presentes em outras
peças suas. É nessas três que a proximidade ao gênero trágico está mais fortemente
visualizada; sendo a partir delas que se pode traduzir a tragédia projetada por Nelson
Rodrigues. Sobretudo, é preciso ressaltar que o autor não pretendeu seu teatro preso a
estéticas determinadas e nomenclaturas fechadas. Por isso ousou tanto na configuração de
suas tragédias, desenvolvendo-as em constante diálogo com outros gêneros, menos
86
Idem, p. 277.
87
Idem, p. 278.
88
FRAGA, Eudinyr. Op. cit., 1998, p. 75.
118
valorizados pela cultura teatral nacional. O importante em seu teatro é mostrar os paradoxos
e questionamentos do homem; e ele viu nessa estrutura igualmente paradoxal uma boa
maneira de expor tais questões. Por meio das contradições, dessa inconformidade em se
fixar a uma estrutura pré-definida, Nelson Rodrigues desenvolve um exemplo daquilo que
podemos denominar de tragédia moderna.

Nelson, felizmente, não se preocupou com teorias estéticas e muito menos com
leis do drama. Seu enfoque expressionista é curioso porque, na maioria dos seus
textos, nunca perdeu de vista a realidade brasileira e sempre se deixou conduzir pela
arguta visão jornalística dos fatos. Mesmo naqueles que parecem afastados dessa
realidade, existe uma atmosfera inequivocamente nacional, seja pela linguagem
saborosa, seja pela problemática subjacente (preconceitos sociais, sexuais, hábitos e
costumes).89

89
Idem, p. 203.
119
CAPÍTULO III
REPRESENTAÇÕES DO (IN)COMUM: COMÉDIAS E MELODRAMAS

“Precisando localizar-me no espaço,


conquistei um endereço, as tragédias cariocas.
Mas o endereço não é o destinatário.”
(Nelson Rodrigues)

“Talvez a fonte grega esteja jorrando mesmo na


mais carioca das minhas peças.”
(Nelson Rodrigues)

E m Nelson Rodrigues expressionista, Eudinyr Fraga analisa A falecida e O beijo


no asfalto em um mesmo capítulo1, porque “as duas peças teatralizam de
maneira brilhante o impulso espiritual da criatura humana para superar-se em relação a si
mesma e do ambiente em que foi condenada a viver”2. Ambas utilizam, além disso, um
procedimento expressionista na destruição do herói, em que ele é conduzido por uma
seqüência de quadros até sua total derrocada, conhecido como stationendrama ou drama de
estações3. Próximas em vários aspectos, essas duas peças se tornam aqui objeto de análise
sob o viés do trágico e sua concepção, que se mesclam a outros sentidos. Acopladas ao
conjunto denominado tragédias cariocas, estruturalmente as duas peças se distanciam em
sua forma, a despeito da técnica expressionista apontada. Enquanto a primeira, escrita em
1953, formula-se sobre as bases da comédia, a segunda, de 1961, é muito mais próxima da
tragédia urbana – denominações que não são adotadas em seu sentido restrito e que serão
discutidas ao longo do capítulo.
Ao ingressar no mundo urbano retratado em parte das peças de Nelson Rodrigues, é
preciso levar em consideração os deslocamentos de funções dramáticas, especialmente
aqueles ligados à construção do sentido trágico ou cômico. Quando o dramaturgo deixou

1
No restante da obra, o crítico analisa uma peça por capítulo.
2
FRAGA, Eudinyr. Op. cit., 1998, p. 167.
3
Na dissertação de mestrado Nelson Rodrigues e as Tragédias Cariocas: um estudo das personagens, faço
uma análise de Zulmira e de Arandir nesse sentido, de acompanhamento de sua via-sacra até seu total
aniquilamento.
para trás os aspectos míticos, não necessariamente aboliu de seus textos a presença dos
recursos estéticos ligados à tragédia. Ao contrário, acabou misturando-os à atmosfera
urbana de periferia e a vários elementos cômicos; desenvolveu-os também de outra
maneira, menos tensa, mas ainda com referências ao seu sentido original.
Para buscar essas referências, mais camufladas, será preciso dialogar com outros
gêneros dramáticos, menos consagrados pela crítica literária, mas que renderam ao autor
uma fase bastante profícua e diversificada. Portanto, não é possível falar de Nelson
Rodrigues sem abordar o melodrama, tampouco falar de tragédia nessa dramaturgia sem
comentar seu forte vínculo à comédia. Este capítulo é, assim, dedicado às mesclas e aos
deslocamentos.
Se o melodrama, gênero que surgiu após a Revolução Francesa (e, portanto, ligado
ao romantismo em suas origens), tem certa conotação pejorativa e é tratado com despeito
pelos críticos acadêmicos, a comédia tem recebido, recentemente, certa atenção. No Brasil,
com nossas diversas lacunas culturais e literárias, a comédia popular é considerada por
alguns o único gênero com alguma tradição4, ainda que em nossa história teatral ela
também tenha sofrido bastante com o preconceito:

(...) A comédia, aliás como sempre, não era vista com seriedade. E quando
nossos intelectuais discutiam a necessidade da criação de um teatro nacional, se
estava porventura a comédia incluída, todas as atenções voltavam-se para os
gêneros considerados sérios, isto é, as peças da escola francesa, com Alexandre
Dumas Filho e Émile Augier à frente. O próprio Martins Pena tentou driblar sua
inclinação para a comédia, esforçando-se em escrever esses dramas (um deles,
indianista), mas todos da pior qualidade, atravancados de retórica empolada,
ignorância história e inconsciência dos recursos do palco.5

4
Cf. ARÊAS, Vilma Sant’Anna. Op. cit., 1990. p. 84: “De qualquer modo, apesar dessas dificuldades, não há
dúvida de que Martins Pena fundou em nosso teatro talvez a única tradição possuidora de alguma vitalidade –
a tradição cômica popular.” Mais adiante, a autora faz uma importante observação no que tange às lacunas
culturais brasileiras: “O ponto que desejo frisar como marca de subdesenvolvimento é a impossibilidade de
criação de uma tradição nacional conseqüente, sem as grandes ilhas de ruptura a que estamos acostumados.”
(pp. 99-100)
5
Idem, p. 82. Hoje sabemos que esse movimento de negação não foi prioridade de Martins Pena nem do
Brasil. Artur Azevedo foi outro dramaturgo cujo forte pendor cômico foi tolhido para tentar ajustar-se às
pretensões de grande dramaturgo (cf. NEVES, Larissa de Oliveira. Op. cit., 2006). Nelson Rodrigues também
teve de lidar com esse preconceito, bastante comum ainda na primeira metade do século XX, pois ele
pretendeu impor ao seu teatro o qualificativo de grande tragédia, conforme comentei no primeiro capítulo.
122
O melodrama, enquanto estilo, está presente em toda a obra literária rodriguiana,
seja em seus romances, teatro ou contos. O exagero e o paródico fazem parte de seu estilo,
mas não necessariamente são suficientes para classificar algumas peças como melodramas.
No conjunto das tragédias, estudadas no capítulo anterior, a desmedida na composição do
trágico leva a cena freqüentemente ao tom melodramático, fato que é bastante corriqueiro
em toda sua literatura. De certa forma, as referências são indissociáveis: “O melodrama é a
finalização, a forma paródica sem o saber, da tragédia clássica, cujo lado heróico,
sentimental e trágico seria sublinhado ao máximo, ao multiplicar-se os golpes de teatro, os
reconhecimentos e comentários trágicos dos heróis.”6 E em relação às peças urbanas, em
que as próprias referências trágicas ficam tênues? As recorrências ao cristianismo, o fait
divers, os freqüentes golpes de teatro, o prosaico, o grotesco, tudo encaminha essas obras a
uma aproximação com o melodrama.

Tudo o que é assunto por excelência da fofoca e da curiosidade (com


freqüência, mórbida, macabra, como bem nos lembram tantos ficcionistas, de
Hitchcock a Buñuel, de Dostoiévski a Nelson Rodrigues) compõe a rede de
segredos e revelações prosaicas de que se alimenta o melodrama7.

Assim como acontece com a tragédia e com a comédia, o uso dos elementos
melodramáticos também funciona por meio de inversões e deslocamentos. O melodrama,
enquanto gênero,

(...) apresenta a luta entre o bem e o mal absolutos, busca ser ao mesmo tempo
universal e quotidiano, procurando comover o público através de uma estética
moralizante que corresponde a códigos preestabelecidos. Sua trama também é de
certa forma imutável; o vilão acaba sempre desmascarado pelo herói, o bem sempre
vence o mal, e assim a virtude é sempre premiada e o crime sempre punido.8

Em Nelson não há disputas estanques entre o bem e o mal, os vilões e os heróis


trocam de papéis constantemente e as nomenclaturas ficam obsoletas. Assim, o melodrama
aparece mais devido aos freqüentes recursos utilizados do que por uma estrutura fechada de

6
PAVIS, Patrice. Op. cit., 1999, p. 238.
7
XAVIER, Ismail. Op. cit., 2003, p. 20.
8
BRAGA, Cláudia e PENJON, Jacqueline. Apresentação. In: THOMASSEAU, J.-M. O melodrama. São Paulo,
Perspectiva, 2005, pp. 6-7.
123
heróis e vilões. Vê-se, no conjunto de suas dezessete peças, a ruptura radical dos lugares
predefinidos, da composição de personagens convencionais e da construção dos gêneros
dramáticos. Há um certo baralhamento de referências, expressionistas, naturalistas,
realistas, míticas, que embasam e dão suporte ao seu projeto estético. Esse teatro é uma
espécie de mosaico de gêneros, dos quais prevalece o sentimento de tragicidade da vida.
Pois, tanto as referências do cômico como do melodrama são realocadas, dirigidas para a
constituição do trágico rodriguiano.

O teatro de Nelson Rodrigues, ao contrário, embora incorpore procedimentos


típicos do gênero [do melodrama], expressa a crise dos valores e do colapso do
sistema religioso que sustentava o desenlace providencial em que era celebrada, no
aqui-agora, a reconciliação e a justiça. Daí porque afirma uma tônica de conflitos
irreconciliáveis, finais desafortunados, experiências que, embora possam referir-se ao
trágico, solicitam uma aproximação nova.9

Uma vez agrupadas essas variações que dirigem o aspecto principal do teatro
rodriguiano, ressaltam-se entre elas as intermitências cômicas. E é por esse sentido que se
torna possível uma leitura mais profunda da construção do trágico, uma vez que – como
afirmei no segundo capítulo – o cômico está ali presente para ressaltar uma idéia de
infelicidade e de tragicidade. A própria relação do cômico com a comédia não se realiza de
forma harmônica10, assim como acontece com o sentido trágico em relação à tragédia. No
teatro rodriguiano, as ocorrências do gênero da comédia e do cômico andam, comumente,
em descompasso. Para dar um exemplo, em Senhora dos afogados o cômico é ressaltado
pelo grotesco e pelo trágico desmedido, não por referências da comédia. Enquanto isso,
segundo Álvaro Lins11, em Álbum de família há a multiplicação de incestos ao redor do par
Jonas/Senhorinha, embora não seja possível dizer que o tom cômico prevaleça no texto.
Inicialmente, ocorre aos teóricos e críticos opor a comédia à tragédia, ainda que
essa distinção só seja possível na teoria dos gêneros. Como bem observa Arêas12, os temas,

9
XAVIER, Ismail. Op. cit., 2003, pp. 165-166.
10
Cf. ARÊAS, Vilma Sant’Anna. Op. cit., 1990. p. 24.
11
Apud ARÊAS, Vilma Sant’Anna. Idem, pp. 20-21. Segundo a autora, “A comédia normalmente se
caracteriza pela simetria de seus elementos, longe da polarização trágica. A multiplicação dos pares ou das
situações ao redor ao par ou da situação principal cabe nesse item”. Daí Álvaro Lins ter considerado Álbum de
família como uma farsa.
12
Idem.
124
quando deslocados, são neutros – e se tornarão cômicos ou trágicos quando
contextualizados. Por isso, a linha que os separa é deveras tênue: “Os dois gêneros
respondem a um mesmo questionamento humano, e a passagem do trágico ao cômico é
garantida pelo grau de investimento emocional do público”13. Ambos possuem estruturas
consagradamente diferentes e uma das principais distinções é a caracterização do herói (que
não se confunde com o protagonista). Já apontei anteriormente que no drama moderno as
formas se confundem e as personagens perdem seu formato heróico. Mesmo assim, é
necessário partir dessas classificações um tanto questionáveis para embasar as análises do
teatro moderno.
As referências à comédia na dramaturgia rodriguiana não garantem que o texto se
torne cômico, tampouco que o riso proporcionado seja o de cumplicidade ou
superioridade14. Bergson15, ao dissertar sobre o riso, desenvolve sua tese de que o cômico é
gerado pelo “du mécanique plaqué sur du vivant”16 e que toda e qualquer manifestação do
sentido será por meio de movimentos, gestos ou palavras mecanicamente ativados no
homem. Além das fórmulas e regras descritas por ele em seu célebre livro, há de se
considerar, nesta tese, que “o cômico não se limita ao gênero da comédia; é um fenômeno
que pode ser apreendido por vários ângulos e em diversos campos”17. Sobretudo, é preciso
levar em consideração o aspecto social do riso, quando por meio da ironia ele é utilizado
como arma de crítica ao meio, para suavizar a rigidez do caráter social (Bergson). Creio
que é por este viés que seja preciso olhar os elementos cômicos e da comédia em Nelson
Rodrigues. Em suma, ao abordar a questão do gênero na dramaturgia rodriguiana, é preciso
sempre ter em mente que:

Nelson Rodrigues, brincando com os gêneros teatrais, ia escrevendo as suas


“tragédias cariocas” e “tragédias de costumes” (A falecida, Boca de ouro, Beijo no
asfalto, Perdoa-me por me traíres), ligadas mais de perto à paisagem social do Rio
de Janeiro, além de esporádicas “divinas comédias” (Os sete gatinhos) e até mesmo
algumas “farsas irresponsáveis” (Dorotéia, Viúva porém honesta), o máximo de

13
PAVIS, Patrice. Op. cit., 1999, p. 53.
14
Idem.
15
BERGSON, Henri. O riso: ensaio sobre a significação do cômico. 2. ed. Rio de Janeiro, Editora Guanabara,
1987.
16
“O mecânico calcado no vivo”, na tradução da Editora Guanabara.
17
PAVIS, Patrice. Op. cit., 1999, p. 58.
125
irresponsabilidade que o palco se pode permitir, posto que a farsa, por si mesma, já
não costuma responder por nada do que faz em cena.18

3.1 – Uma comédia com laivos trágicos

Nelson Rodrigues não gostava do teatro cômico. Mesmo considerando o seu


freqüente exagero e gosto pelas polêmicas, tomemos como exemplo seu depoimento ao
Museu da Imagem e do Som (MIS-RJ), em que afirma que:

[...] o teatro para rir é tão falso, tão amoral e tão imoral como seria uma missa
cômica. Como se de repente o padre começasse a equilibrar laranja no focinho,
como se os santos começassem a virar cambalhotas, como se os coroinhas
começassem a dar bananas pra gente.19

Talvez por conta desse explícito preconceito ele tenha se permitido a assumir
apenas duas comédias em toda sua obra20: Dorotéia e Viúva, porém honesta, ambas farsas
irresponsáveis. Esta última, como já apontado, foi composta em resposta às críticas
recebidas devido a Perdoa-me por me traíres. No dia 16 de setembro de 1957, foi
publicada uma matéria no Última Hora em Tablóide, de página inteira, em que se lia:
“Assim é ‘Viúva, porém honesta’: uma gargalhada contra tudo e contra todos”. Também
interessante observar, nessa mesma página, o adjetivo acoplado à denominação de sua
comédia: “demoníaca”. Isso mostra, em uma primeira análise, o quanto o dramaturgo não
queria ver seu nome ligado às comédias ligeiras; se fosse para escrever uma peça deste
gênero, que fosse então demoníaca, um cômico não para agradar ao público, fazendo-o rir
descontraidamente, mas para provocá-lo e agredi-lo.

18
PRADO, Décio de Almeida. Op. cit., 2001, pp. 52-53.
19
Com base nessa comparação entre teatro e missa feita por Nelson, vale observar um depoimento de Louis
Jouvet: “Durante muito tempo e em todas as civilizações o palco foi um lugar sagrado. A semelhança de uma
igreja e um teatro se justifica pela confusão mesmo das construções de certas épocas. (...) Mas no dia em que
os homens separaram daí a religião e se instalaram em espaços especializados, o ator, esse antigo padre de
Eleusis que deixou o hábito, foi excomungado e o palco tornou-se um lugar de Sabbath.” (Reflexões do Ator,
in: Cadernos de teatro. nº 108. Rio de Janeiro, Secretaria d’O Tablado, jan. fev. mar., 1986. p. 6.
20
Não considero, aqui, Os sete gatinhos, sua Divina comédia, uma denominação deveras irônica, nem A
falecida, pela imprecisão de nomenclatura.
126
127
Essa noção de cômico agressivo alia-se, de certa forma, à noção bergsoniana de
riso, quando o filósofo afirma que, enquanto instrumento social, ele é utilizado para
humilhar: “O riso não pode ser absolutamente justo. Reiteremos que também ele não pode
ser bom. Ele tem por função intimidar humilhando. Não conseguiria isso se a natureza não
houvesse deixado para esse efeito, nos melhores dentre os homens, um pequeno saldo de
maldade, ou pelo menos de malícia.”21 Devo considerar que há outros tipos de riso22, não
somente o humilhante. Se Nelson Rodrigues quis se amparar nessa variação para escrever
suas farsas (ou, ao menos, Viúva, porém honesta), em outras peças o riso não ocorre
necessariamente com o mesmo intuito. Não quero, aqui, investigar as variadas formas de
cômico e de riso em Nelson Rodrigues, mas o uso desses recursos para a construção do seu
sentido de trágico.
Apesar dessa resistência e da tentativa de ligar essas suas peças a uma certa
agressividade, não são poucas as comédias, e muito menos raros são os textos com alguma
interferência cômica. Comentei, no primeiro capítulo, a peça A mulher sem pecado e a
forma como ela se embasa na estrutura da comédia ligeira vigente até a década de 40,
apesar de ter sido qualificada pelo autor como um drama. A falecida, nomeada de tragédia
carioca (a primeira de um ciclo inteiro)23, também tem sua estrutura amparada nas bases da
comédia. Além disso, os momentos cômicos protagonizados pelo casal Zulmira/Tuninho
são freqüentemente risíveis, assim como outros momentos em que se ressaltam o grotesco e
o prosaico. Essa obra pode ser um exemplo prático do que escreveu Propp: “Há casos de
obras que, apesar de cômicas pelo estilo e pelo modo como são elaboradas, são trágicas por
seu conteúdo”24.

21
BERSGON, Henri. Op. cit., 1987, p. 100.
22
Na apresentação de L’esthétique de la comédie, livro organizado a partir do congresso realizado em Reims
de 8 a 10 de outubro de 1995 sobre a comédia, Gabriel Conesa explicita isso: “Quant au rire, d’une part,
nombre de dramaturges parmi les plus grands, comme Corneille ou Marivaux, ne l’estimait pas essentiel au
genre; d’autre part, il y a rire et rire”. (p. 7. Grifo meu) “Quanto ao riso, de um lado, muitos dramaturgos,
entre os quais os maiores, como Corneille ou Marivaux, não o consideravam essencial ao gênero; por outro
lado, há risos e risos.”
23
Nas versões publicadas da peça, ela é apresentada como tragédia carioca embora, em seu programa, esteja
classificada como farsa trágica. Assim, compreende-se perfeitamente o desenvolvimento estrutural escolhido
pelo dramaturgo.
24
PROPP, Vladimir. Comicidade e riso. Tradução de Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de
Andrade. São Paulo, Ática, 1992. pp. 18-19.
128
A propósito do estruturalista russo, sua descrição de personagem cômica me parece
apropriada para a primeira abordagem acerca da peça, especialmente porque da legião de
tipos citados é possível obter caracteres que ajudem a definir aqui nosso casal e algumas
outras personagens do teatro de Nelson Rodrigues:

Cômicos podem ser os covardes na vida de cada dia (mas não na guerra), os
fanfarrões, os capachos, os bajuladores, os malandrinhos, os pedantes e os
formalistas de toda espécie, os unhas-de-fome e os enganados, os vaidosos e os
convencidos, os velhos e as velhas que pretendem passar por jovens, as esposas
despóticas e os maridos submissos etc. etc. 25

Se Zulmira é uma personagem portadora de algum sentido trágico – aquela que


percorre as etapas de sua própria destruição –, Tuninho é, como seu contraponto, uma
personagem patética e pouco trágica26. Por essa diferença entre eles, não há uma destruição
contínua e recíproca provocada por algum confronto, como nas ambivalências apontadas
nas tragédias (Jonas x Senhorinha; Virgínia x Ana Maria; Misael x Noivo). Tuninho
enquadra-se mais em algum arquétipo cômico, do marido traído e covarde perante a vida,
por exemplo.
Sábato Magaldi identifica Zulmira como uma “provável Bovary suburbana”, cujas
insatisfatórias atividades quotidianas levaram-na a recorrer ao sonho: “O desconhecido
fascina as criaturas insatisfeitas”27. Ela se ampara na primeira oportunidade surgida de
traição para dar alguma cor à sua pálida realidade de subúrbio carioca. Mas naquele mundo
raso, sem oportunidades, a vida inexoravelmente trágica a trará de volta ao seu universo,
com o acréscimo da culpa: Glorinha, sua prima, a flagrou de braços dados com o amante.
Na sua impossibilidade de realização (pessoal, amorosa, financeira) pela descoberta da
infidelidade, resolve vingar-se de todos os que estão à sua volta. Por isso, procura na morte
a realização de seu maior desejo, última satisfação diante das frustrações vividas: quer um
enterro de luxo que dê inveja à prima. Este é o caráter trágico que lhe é reservado. Depois

25
Idem, p. 135.
26
Cf. Ismail Xavier: “Zulmira viva, a alienação de Tuninho é, no fundo, mais radical do que a dela. Por isso
mesmo, ele não terá comando sobre a catástrofe que abala de vez seu pequeno mundo, assumindo uma
dimensão patética, pouco trágica, dado o acanhamento de sua figura de homem solitário que não conhece sua
condição”. (Op. cit., 2003, pp. 275-276)
27
MAGALDI, Sábato. Introdução. In: RODRIGUES, Nelson. Teatro completo. vol. 3. Rio de Janeiro, Nova
Fronteira, 1985. p. 14.
129
de percorrer quadro a quadro a maquinação de sua morte glamorosa, Zulmira tem um
“enterro de cachorro”. Esta é, pois, sua última derrota.
Nos dois primeiros atos, são as preocupações da protagonista que dão corpo à ação
da peça. Ela se inquieta, inicialmente, com o comentário da cartomante sobre uma mulher
loira. Depois que Tuninho sugere Glorinha, a prima “oxigenada, mas loura”, Zulmira lhe
atribui todas as suas mazelas: “Por essa luz que me alumia – essa gata está cavando a minha
sepultura!”28. Comentários desse tipo, que parecem despropositais e fora de contexto, vão
se ajustando à medida que o mistério envolvendo o derradeiro pedido da protagonista é
revelado, fato que acontece somente no terceiro e último ato. Essa personagem invisível,
Glorinha, cuja única representação em cena é uma música carnavalesca, é apenas o
simulacro das regras sociais a serem seguidas. Ou, em melhores termos, como Ismail
Xavier afirmou, ela é o “olhar da norma”:

O eixo da questão religiosa de Zulmira é a sexualidade, esfera central da culpa


que potencializa a programação da morte e põe a personagem sob o domínio de um
ascetismo que, na verdade, corresponde à internalização do “olhar da norma”,
encarnado na prima Glorinha.29

Sente-se um tom de inveja, rancor e despeito de Zulmira em relação a Glorinha.


Para provar que está certa – a outra não é tão virtuosa quanto parece –, ela sugere que o
marido a traia com a loura. É preciso que a prima tenha sua queda para a protagonista ter
sua salvação moral: elas estariam, enfim, equiparadas.

ZULMIRA – Não é mais séria do que ninguém. Tão cínica que diz apenas o
seguinte – vê se pode – que a mulher que beija de boca aberta é uma sem-vergonha.
Pode ser o marido, poder o raio que o parta, mas é uma sem-vergonha.30

Concomitante a essa possibilidade de rebaixamento moral da prima, Glorinha é o


grande modelo a ser seguido: Zulmira se converte à Igreja Teofilista, joga fora seu maiô,

28
RODRIGUES, Nelson. Op. cit., 1985, p. 69.
29
XAVIER, Ismail. Op. cit., 2003, p. 271.
30
RODRIGUES, Nelson. Op. cit., 1985, p. 68.
130
não vai mais a praia e não aceita beijar o marido na boca. Nessa sua tentativa de redenção, é
preciso ressaltar a pureza de seu corpo, o que tenta fazer por meio da conversão religiosa.

ZULMIRA – Tu me achas com cara de ir à praia? Agora que me converti?


TUNINHO – Será que em tudo, agora, você me contraria? Põe o maiô, anda!
ZULMIRA – Não tenho maiô.
TUNINHO – E o teu?
ZULMIRA – Joguei no lixo.
TUNINHO – Mentira!
ZULMIRA – Te juro!
TUNINHO – Que bicho te mordeu?
ZULMIRA – Não sei. Mudei muito. Sou outra.31

Evidente que essa conversão moral, por meio do ascetismo, torna-se um prato cheio
para a ironia rodriguiana, apontando aí a religião como uma máscara social, tão frágil
quanto outras. Logo essa idéia de Zulmira se enfraquece, primeiro perante sua confissão de
que está apenas imitando a prima (“Zulmira – E se eu quisesse ser cem por cento, assim,
como Glorinha? Porque eu não gosto dela, mas justiça se lhe faça: tem linha até debaixo
d’água!”32); em seguida, pela revelação de que Glorinha só é um exemplo de moral porque
teve um seio amputado devido a um câncer (“Tuninho – Porque teve câncer e tiveram que
extirpar um seio!”33). Sem motivo para imitá-la, afinal agora a prima não é mais um
exemplo por vontade própria, mas por força maior, Zulmira passa à concretização de sua
vingança.
Se no primeiro ato a protagonista tenta se igualar ao exemplo de moralidade que é a
prima, seu projeto de vingança se inicia no segundo: sabendo que a outra não tem um seio,
acredita que ela não poderá ser vista nua no momento da morte. Acha, nesse detalhe
prosaico, uma brecha que lhe dê superioridade, ainda que física, perante sua antagonista.
Aliado a isso, planeja então um enterro dispendioso para dar inveja à outra, pois acredita
que ela estará assistindo de camarote a seu velório. Arquiteta seu plano em todos os
pormenores, percorrendo lugares entre a funerária e o médico, comprando combinação
nova e, por fim, dando indicações ao marido: ir à casa de João Guimarães Pimentel e pegar

31
Idem, p. 71.
32
Idem, p. 73.
33
Idem, p. 77.
131
o dinheiro necessário para os gastos do enterro. Como último detalhe, aconselha: “E não diz
que é meu marido... Diz que é primo...”34. É a deixa para que Tuninho tome conhecimento
da traição, do ódio e do desprezo que Zulmira tinha por ele. Seria esse o derradeiro erro
trágico de Zulmira ou um ato deliberado de vingança?
Como se vê, são as angústias e desejos de Zulmira que comandam o
desenvolvimento da peça até o final do segundo ato. Apesar das tiradas irônicas e gírias
suburbanas, Zulmira tem certa complexidade trágica que não permitiria colocá-la no rol das
personagens cômicas ou tipificadas de Nelson Rodrigues. A idéia obsessiva da morte, ou
melhor, o desejo da morte para a realização de um ato de vingança, que a faz compor cada
quadro de sua triste caminhada, a aproxima mais daquele tipo de personagem que tem
como única saída na vida a sua destruição, o malogro total.
Tuninho, por sua vez, é a figura patética e, ao mesmo tempo, cômica da peça.
Cômica não apenas porque pode ser, por boa parte da ação, uma tipificação do malandro
carioca, marido traído e alienado, mas também porque a maioria das passagens cômicas
gira em torno dele. Apenas no último ato é desenvolvido um perfil psicológico mais
aprofundado da personagem, quando descobre a traição da esposa e, por fim, ao soluçar
pateticamente “como o mais solitário dos homens”. Ele é, acima de tudo, a própria imagem
da derrota, pois sem emprego, traído pela esposa, não encontra uma saída para sua situação
nem com a extorsão que faz com o ex-amante da esposa: ao chegar ao estádio de futebol,
ofender os torcedores (“Seus cabeças-de-bagre!”) e jogar todo o dinheiro extorquido para o
alto, depara-se com sua total desgraça e solidão.
Ismail Xavier compara o gesto de Tuninho de jogar as cédulas para o alto com o ato
de Edgard (Bonitinha, mas ordinária), que, para se livrar do “câncer” que é a frase do Otto
Lara Resende (“O mineiro só é solidário no câncer”), rasga o cheque suntuoso oferecido
por Werneck para que se casasse com a jovem Maria Cecília. Ou seja, o fato de ele ter
jogado o dinheiro para o alto, livrando-se das cédulas, deixa-o com uma ponta de esperança
de redenção: “Tuninho acaba jogando o dinheiro para o alto num gesto em que se livra,

34
Idem, p. 97.
132
digamos assim, do material que simboliza sua permanência no círculo do casamento
falido”35.
Durante o transcorrer dos dois primeiros atos, a única motivação na vida de Tuninho
é o futebol. Propriamente, o jogo do próximo domingo, entre Vasco e Fluminense. Desde a
primeira cena em que aparece, ele se mostra um torcedor fanático do Vasco. Cena, aliás,
imprescindível para o desfecho da peça, não só pelo fanatismo futebolístico, mas também
pela aposta que faz com Oromar, em que dá dois gols de vantagem para o Vasco, e uma
promessa:

TUNINHO – Pois se eu tivesse dinheiro, dinheiro meu, no bolso, eu, sozinho,


apostava com duzentas mil pessoas no Vasco. Havia de esfregar a gaita assim, na
cara de duzentas mil pessoas, desacatando: “Seus cabeças-de-bagre! Dois de
vantagem e sou Vasco!” 36

Na continuidade da ação, ele protagoniza a primeira de uma série de cenas em que


se sobressaem o grotesco e, por conseqüência, o cômico. Durante a conversa com Oromar,
Tuninho pára repentinamente o diálogo: “Aquele pastel que eu comi, parece que me fez
mal. Chi! Vou chispando pra casa! Bye, bye!”37. Além do uso de uma linguagem bastante
coloquial – que evidentemente deixa transparecer uma tentativa de colocar a personagem
em um patamar suburbano –, o mau gosto é ressaltado, colocando uma prosaica dor de
barriga no nosso anti-herói. E esse tipo de inserção grosseira provoca o riso:

On rit de ce qui est grossier et grotesque, avec des expressions empruntées au


corps et à ses fonctions les plus basses, en s’appropriant par l’explicitation
littéralisante de la différence et de l’exteriorité du corps, par là abolie le temps du
rire.38

35
XAVIER, Ismail. Op. cit., 2003. p. 277. Para maiores detalhes, ver o capítulo 9 do livro, “A falecida e o
realismo a contrapelo de Leon Hirszman”. pp. 255-283.
36
RODRIGUES, Nelson. Op. cit., 1985, pp. 61-62.
37
Idem, p. 62.
38
MEYER, Michel. Le comique et le tragique. Paris, PUF, 2003. p. 83. “Rimos daquilo que é grosseiro e
grotesco, com expressões que vêm tomadas do corpo e de suas funções mais baixas, apropriando-se pela
explicitação literalizante da diferença e da exterioridade do corpo, assim abolida durante o tempo do riso”.
133
O uso dessa representação grotesca dos pormenores do quotidiano, ainda que
estritamente ligado à comicidade, não deixa de ressaltar um tom trágico ao expor um meio
social disforme e caótico. Patrice Pavis, em seu dicionário de teatro, observa que o grotesco
está estreitamente associado ao tragicômico. Em seguida, faz a seguinte consideração:

Gêneros mistos, o grotesco e o tragicômico mantêm um equilíbrio instável


entre o risível e o trágico, cada gênero pressupondo seu contrário para não se
cristalizar numa atitude definitiva. No mundo atual, famoso por sua deformidade –
isto é, por sua falta de identidade e de harmonia –, o grotesco renuncia a nos
fornecer uma imagem harmoniosa da sociedade: ele reproduz “mimeticamente” o
caos em que ele está nos oferecendo sua imagem retrabalhada. 39

Bastante significativa essa ponderação acerca do grotesco, uma vez que no teatro de
Nelson Rodrigues nos deparamos com algo muito próximo a isso: a realidade, ali
transposta, não é nem harmônica, nem simétrica. Como já comentei na análise de Senhora
dos afogados, o grotesco em seu teatro deixa transparecer um lado podre da sociedade em
que as personagens estão inseridas, e que foi ali colocado para apontar qual ferida do ser
humano está mais aberta, qual é sua pior faceta.
Ao chegar em casa, saído do bar com a dor de barriga, Tuninho esbarra na porta do
banheiro, pois lá está Zulmira, “numa atitude de ‘O pensador’, de Rodin”. Depois de breve
discussão com a esposa, ele assume seu lugar, na mesma posição. Nada mais prosaico e
grotesco. Sobretudo pela própria imagem do pensador, enquanto figura representativa de
uma ação elevada e, naquele contexto, rebaixada a uma necessidade física. Esse
aviltamento iguala as personagens Zulmira e Tuninho, que estão igualmente imersos em um
espaço de limitações. É bastante significativo o fato de o dramaturgo colocá-los nessa
situação justamente no primeiro momento em que contracenam, em um instante em que
suas existências se convergem. Enfim, por meio desse pormenor o autor nos apresenta um
universo peculiar daquele casal, o da banalidade e incomunicabilidade. Ou ainda, o da
solidão a dois: mesmo convivendo em um mesmo espaço, casados, dividindo a mesma
cama, há um enorme descompasso entre eles, a total falta de interesse recíproco, cada vez
mais acentuado ao decorrer da peça.

39
PAVIS, Patrice. Op. cit., 2003, p. 188. Grifo meu.
134
(Tuninho, embalado pela voz da mulher, já adormeceu e ronca, sonoramente.
Zulmira, porém, não toma conhecimento do sono profundo do marido.)
ZULMIRA – Tu acreditas que ela seja tão séria como diz? Hem?
(Tuninho, dormindo, responde com os seus roncos.)40

Enquanto Zulmira se preocupa com a prima, Tuninho ocupa seu tempo com o
futebol. Nos momentos em que dividem a cena, o diálogo geralmente é fora de sintonia,
cada qual fechado em seu mundo particular, um sem compartilhar as angústias e apreensões
do outro. No final do segundo ato, há um novo momento de desarmonia entre o casal.
Tuninho está absorto em sua preocupação com o jogador Ademir, que sofreu uma contusão,
enquanto Zulmira se contorce cada vez mais com as tosses oriundas de sua tuberculose:

(Zulmira dobra-se, na cama, tossindo com todas as forças. Sob a obsessão


futebolística, Tuninho nem liga para a tosse da mulher.)
TUNINHO – E se ele não jogar, não sei, não. Vai ser uma tragédia em 35 atos!
Porque o Ademir, sozinho, vale meio time. Ah, vale!...
(Tuninho vem se debruçar sobre a mulher, que continua tossindo.)
(...)
(Tuninho, ao lado, já ronca. Nova golfada de Zulmira. Encosta o lenço na
ponta da língua. Olha e, patética, sacode o marido.) 41

A partir desse momento eles têm um breve instante de compreensão recíproca:


Zulmira está em seus derradeiros instantes e, como último pedido, deseja o enterro luxuoso.
Tuninho chora junto com a esposa e lhe promete que fará o possível para realizar seu
pedido. Momento breve mas importante para a transferência de Zulmira para Tuninho: a
partir de agora, é ele quem irá protagonizar a ação. A falecida reaparecerá no último ato em
flashback, mas é a consciência de Tuninho que se tornará o centro do enredo. Ele tem,
enfim, seu momento de humanização, em que deixa a comicidade para absorver seu papel
de personagem patética, cuja existência está fadada ao fracasso, sem que jamais suspeitasse
disso.

(Tuninho cobre o rosto com uma das mãos.)


TUNINHO (num soluço e dominado) – Vai.
ZULMIRA – Oh, graças! E agora jura! Jura que atenderás o meu pedido! Jura!

40
RODRIGUES, Nelson. Op. cit., 1985, p. 68.
41
Idem, p. 94.
135
TUNINHO – Juro!
(...)
TUNINHO – Meu amor, eu sei que tu mereces muito mais, não há dúvida... Mas
a questão é o seguinte: estou desempregado, sem níquel... Ainda temos, da
indenização que eu recebi, uns duzentos cruzeiros, no máximo... Onde é que eu vou
arranjar tanto dinheiro? São trinta e seis mil cruzeiros!...42

Somente a partir desta cena é possível observar Tuninho com maiores detalhes, no
espaço que se abre para suas apreensões. Pela primeira vez, desde o início da peça, a
personagem tem iniciativas e decisões, a ponto de agir com dissimulação: enfrenta Pimentel
(depois de um rápido instante de desconcerto e medo), vinga-se de Zulmira, comprando-lhe
o caixão mais barato possível, e cumpre sua promessa ao ir ver o jogo do Vasco e
Fluminense e apostar com 200 mil pessoas na vitória do seu time. O sentido aqui se
aproxima do trágico, numa forma que exteriormente é fiel à gramática trágica, mas
deslocada pelo rebaixamento. Tuninho provoca, neste final de peça, um golpe de teatro
que, aliado ao momento da morte de Zulmira, é responsável por dar ao texto um tom
melodramático, em que o trágico e o cômico se encontram e se confundem. Também neste
ato, quando toma nas mãos as rédeas da sua vida, ele se depara com sua verdadeira face, a
de um homem sem expectativas, cuja vida foi recheada de fracassos.

Nessa virada de comportamento, Tuninho desmonta o feitiço e enfrenta a


desilusão total, não apelando sequer para o entusiasmo do futebol que o cerca. Só,
ele internaliza a crise e desata no choro, conforme propõe a rubrica da peça.43

Deparar-se com sua condição solitária não significa ter consciência dela. Enquanto
homem solitário, ele não conhece sua condição humana. Ele pode ter um fim de malogro
total (e, por certa perspectiva, um final trágico), mas não é uma personagem trágica – como
bem observou Xavier, é patética. Acrescento que é uma personagem constituída pela
comicidade, ao contrário de Zulmira. Ambas as personagens, marido e mulher, no entanto,
ocupam um espaço que não escapa da esfera da morte (ou da ruína), mas é construído de
detritos, seja ele o dinheiro ou as fezes. São personagens que se equiparam pelas limitações,

42
Idem, p. 96.
43
Xavier, Ismail. Op. cit., 2003, p. 280.
136
social ou financeira, cuja ideologia e falta de possibilidades para compreender o alcance de
seus objetivos colocam-nos em uma esfera da assim considerada tragédia moderna.

3.1.1 – Quadros do quotidiano

A casa funerária “São Geraldo” tem certa autonomia na peça, especialmente no


primeiro ato. Ela surge independente do conflito Zulmira/Tuninho e projeta sobre o palco
um quadro do quotidiano urbano: três funcionários, que ganham a vida tentando vender
enterros luxuosos, em um universo sem grandes perspectivas. Pintura rápida de um mundo
repleto de interesses deslocados, cujos pormenores prosaicos Nelson Rodrigues faz questão
de sublinhar. Dentre seus funcionários, Timbira é o típico malandro e mulherengo, aquele
que é desumanizado por meio de uma caracterização mais genérica. Há na personagem
cômica, que pode escorregar para o tipo, como acontece aqui, a ausência de traços
particulares:

L’absence d’humanité constatée prend des formes diverses, mais qui ont toutes
en commun l’exaspération d’un trait de caractère qui en arrive à faire disparaître
tous les autres et à se substituer au nom du personnage comique. (...) On se trouve
en présence non plus de caracteres, mais de roles ou d’emplois.44

Em poucas linhas ficamos sabendo de seus traços fundamentais, pelas rubricas e


pelos poucos diálogos com os outros dois funcionários. Apesar do nome próprio e de certa
importância na peça, especialmente para a constituição da idéia permanente de fracasso, a
personagem não adquire complexidade.
Logo na primeira cena em que a funerária é retratada, Timbira tem seu perfil traçado
por um rápido comentário dos funcionários: “2º funcionário – Boa praça, o Timbira!/ 2º
funcionário – O que estraga é a mania de mulher!”. Essa sua característica é reforçada

44
RANGER, Jean-Claude. La comédie, ou l’esthétique de la rupture. In : CONESA, Gabriel. Op. cit., 1996, p.
262. “A ausência de humanidade constatada ganha formas diversas, mas todas têm em comum a
intensificação de um traço de caráter que chega a fazer desaparecer todos os outros e a substituir-se pelo nome
do personagem cômico. (...) Encontramo-nos na presença não mais de caracteres, mas de papéis ou de
funções”.
137
adiante, quando Zulmira vai procurá-lo para encomendar seu caixão, no segundo ato.
Interessado na protagonista, Timbira leva-a ao ponto de ônibus e tenta seduzi-la:

(Timbira olha para um lado e outro.)


TIMBIRA – Posso chamá-la de você?
ZULMIRA – Querendo.
TIMBIRA – Você me telefona?
ZULMIRA – Talvez.
TIMBIRA – Quando?
ZULMIRA – No dia de S. Nunca.45

Não seria preciso muito mais para definir a principal característica de Timbira, mas
há ainda um acréscimo, um comentário que resume o seu modo de pensar: “E comigo não
tem esse negócio de bucho, não, senhor! Sou da seguinte teoria: mulher é mulher e
pronto!”46. Essa caracterização, no entanto, serve ao dramaturgo para criar ironias que
permeiam o texto, o que enfatiza a comicidade daquele núcleo suburbano. O 1º funcionário,
sabendo dessa “mania de mulher” do colega, afirma: “Sabe que eu não tinha confiança de te
deixar, sozinho, nem com uma defunta!”47. Além de mulherengo, Timbira também é
retratado como o malandro, que faz de tudo para lucrar com suas vendas de caixões. Aliás,
malandragem e mulherengo são características complementares para Timbira. E, enquanto
parte da composição de seu caráter, sua sagacidade não o impede de também ter sido
logrado em sua empreitada, uma vez que Zulmira, morta, não tornará possível nem
conquista amorosa, nem enterro suntuoso. Ao contrário, descobre que ela o ludibriou.

O dramaturgo não admite, em nenhum campo, uma leve ilusão. Na primeira


incursão na tragédia carioca, o logro parece ser o estigma fundamental do homem.
Zulmira foi ludibriada até na morte, tendo um enterro barato, em lugar do enterro de
luxo. Tuninho descobriu que a mulher o traíra. Pimentel pagou, pela aventura quase
esquecida, um preço enorme – havia enterrado a mãe com a quarta parte do
dinheiro entregue na chantagem. E Timbira não chegou a consumar a conquista,
nem vendeu o caixão dispendioso. Une as personagens principais de A falecida a
peça que vida lhes prega.48

45
RODRIGUES, Nelson. Op. cit., 1985, p. 84.
46
Idem, ibidem.
47
Idem, p. 91.
48
MAGALDI, Sábato. Op. cit., 1985, p. 20.
138
Por fim, as outras personagens também estão muito mais próximas dos tipos
cômicos – o que não deprecia nem minimiza a complexidade do texto. Compondo-as assim,
os conflitos se centralizam na profundidade psicológica de Zulmira, feita quase que só de
ideologia, enquanto os tipos que a cercam em seu percurso servem para montar os quadros
do quotidiano pintados pelo autor.
Madame Crisálida, Pimentel, Dr. Borborema são todas personagens estereotipadas e
cômicas. A cartomante e o médico são os alvos da ironia maior do autor, traduzida pela
tipificação e pelo grotesco49. Madame surge em cena com um total desleixo: um prato e um
pano de enxugar, com um filho que não tira o dedo do nariz. Além do prosaico, que rebaixa
a personagem, há o detalhe irônico do sotaque falso, que ela perde logo após terminada a
consulta. A primeira cena da peça, a propósito, é um primor no que tange aos pormenores
do quotidiano.
Escolho alguns exemplos para ilustrar o cuidado do autor em retratar um mundo
decaído e sem oportunidades, aquele freqüentado por Zulmira. Em primeiro lugar, a
cartomante pede desculpas pela desarrumação, responsabilizando os filhos por isso: “Quem
tem criança, sabe como é! (...) E as minhas são de arder!”50. Isso enquanto ela maneja um
monte de cartas ensebadas. Em seguida, grita para dentro da casa devido à bagunça dos
filhos e ainda solicita que cuidem da panela, pois deixou o aipim no fogo. Tudo isso em
apenas três páginas de texto. Trata-se de uma pintura perfeita do dia-a-dia do subúrbio,
próxima a uma descrição naturalista, ainda que não haja indicações realistas da cena, uma
vez que não há nenhum cenário característico apontado nas rubricas. Todas as indicações
de cena são sintéticas e, por vezes, imaginárias.
Dr. Borborema está presente em apenas uma rápida cena, mas é o suficiente para o
recado que o dramaturgo nos quer dar, o mesmo aliás em toda a peça, daquele mundo
decadente. A rubrica descreve o médico como um velho de avental. Examina a protagonista

49
Os médicos, as cafetinas, os políticos, tipos herdados da tradição, são constantes alvos dessa ironia crítica
do autor, que sempre os retrata da pior forma possível, detentores de características depreciativas e reportadas
ao texto, geralmente de forma grotesca. É o caso da cafetina avó do Noivo, em Senhora dos afogados, que se
multiplicará em outras peças: Perdoa-me por me traíres, com Madame Luba, por exemplo. Nessa mesma
peça, o médico que faz o aborto em Nair, aparece em cena “chupando tangerina e expelindo os caroços”. São
apenas dois exemplos do vasto rol desse tipo de personagem rodriguiana.
50
RODRIGUES, Nelson. Op. cit., 1985, p. 58.
139
de forma muito singela, com total desinteresse pela paciente, pedindo-lhe que diga “33”
enquanto a ausculta. Diante das reclamações de Zulmira, de que sente gosto de sangue na
boca, ele sentencia: “Tudo ok! Tudo ok!”51. E termina a consulta mandando um recado para
Tuninho, com igual indiferença pela profissão: “E diz ao teu marido que, domingo, o
Fluminense vai fazer a barba e o bigode do Vasco!”52. Zulmira, aliás, reclama da consulta,
fala que Dr. Borborema é um médico do “tempo de D. João Charuto, completamente
gagá!”53 e que ele não achou nada em seu pulmão porque fez um “exame matado”.
Além dessas personagens-tipo deslizando rapidamente pela cena, Nelson Rodrigues
insere o coro no universo urbano do texto. Assim, a família de Zulmira (pai, mãe e irmãos),
a vizinha, os parceiros de Tuninho na sinuca, os funcionários da funerária, todos funcionam
como um coro às avessas, suburbano, longe de suas funções nobres de orientar o herói. Mas
esse coro está próximo de sua principal função dramática: comentar a ação, mas à custa da
fofoca. Não por acaso, os comentários feitos pelo coro são sempre sintéticos e cômicos,
como neste caso da família de Zulmira:

SOGRA – Virgem Maria!


TUNINHO – Afinal de contas, eu sou o marido. E se eu, por acaso, insisto, que
faz minha mulher? Fecha a boca!
CUNHADO – Muito curioso!
(...)
SOGRA – Ora, veja!
CUNHADO (de óculos e livro debaixo do braço) – Caso de psicanálise!
OUTRO – De quê?
CUNHADO – Psicanálise.
OUTRO (feroz e polêmico) – Freud era um vigarista!54

Ou então, os funcionários da funerária “São Geraldo”. Enquanto Zulmira negocia o


seu luxuoso caixão com Timbira, os dois ficam observando a conversa:

ZULMIRA – Mas eu prefiro assim!


TIMBIRA – Como?!
(Os dois funcionários, em face de uma cliente perdulária, aproximam-se.
Ficam roendo as unhas e ouvindo.)55

51
Idem, p. 87.
52
Idem, ibidem.
53
Idem, ibidem.
54
Idem, pp. 71-72.
140
Na mesma cena, um pouco adiante, quando Timbira vai passar os preços à
interessada:

TIMBIRA – Vinte e cinco mil cruzeiros.


(Nisto, o 1º Funcionário, que rói as unhas, dá um verdadeiro uivo.)
1º FUNCIONÁRIO – Mais!
TIMBIRA – Como?
(1º Funcionário num espasmo de ganância.)
1º FUNCIONÁRIO – Aumentou. Agora custa – 30 mil cruzeiros.56

No primeiro exemplo, o funcionário mantém uma atitude cômica muito próxima,


aliás, dos vizinhos em Senhora dos afogados, no momento em que D. Eduarda e Misael
conversam no quarto e eles, por cima de um biombo, espionam a cena. Aqui, os
funcionários também ficam à espreita do que se passa e parecem mais um complemento do
mulherengo Timbira do que propriamente personagens. No segundo exemplo, isso se
confirma, uma vez que a intervenção do funcionário é para “lembrar” Timbira do aumento
do preço, em atitude igualmente cômica. Há uma variação do coro na peça, adequada e
próxima ao universo retratado, pois não existe nenhum tipo de afastamento entre coro e
personagens; ao contrário, há a mescla desses dois elementos constituintes da tragédia. Ou
seja, encontra-se aqui outro tipo de deslocamento: não mais apenas a inversão da função do
coro, mas sua inserção em outro espaço dramático.

Na tragédia, os indivíduos se destroem por meio da unilateralidade de seu


querer e caráter consistentes, ou devem, resignados, acolher em si mesmos aquilo
contra o que eles mesmos se opuseram de modo substancial; na comédia, no riso
dos indivíduos que solucionam tudo por meio de si e em si mesmos, intuímos a
vitória de sua objetividade que, contudo, ainda se apresenta segura em si mesma.57

No conjunto de textos tratados no capítulo anterior, as tragédias, havia essa


unilateralidade e conseqüente destruição mencionada por Hegel, mesmo que adaptadas a
um universo menos nobre e repleto de inversões de valores. No caso das comédias trágicas,
as personagens destroem-se a si mesmas, trilhando um caminho tortuoso até sua queda

55
Idem, p. 80. Grifo meu.
56
Idem, p. 82. Grifo meu.
57
HEGEL, Op. cit., pp. 239-240.
141
total, o que as investe do caráter trágico. Mas são comédias, uma vez que se constroem com
base na estrutura cômica, ainda que a comicidade de suas personagens não seja objetiva e
se turva de negatividades. Quebrando paradigmas, o dramaturgo faz de suas personagens,
embora cômicas, portadoras de sinais de fracasso e desdita.
A tragicidade de A falecida fica a cargo de sua estrutura de drama de estações.
Como sua protagonista, Zulmira, apresenta-se mediante um conflito interno entre o
aparente e o revelado, carrega consigo aquela inevitabilidade das coisas, o desenlace
indubitável de derrocada: “O conflito fundamental das criaturas de Nelson é sempre o que
se trava entre aparência e realidade, o pirandelliano conflito entre forma e vida, que
resultará na fragmentação dos indivíduos”58.
Por outro lado, paralelo ao uso de personagens tipificadas, há uma recorrente
comicidade no texto. Grande parte dessas passagens é definida pela linguagem, tanto aquela
utilizada nas rubricas quanto a dos diálogos. Em sintonia com o ambiente em que a ação se
desenvolve, o subúrbio (decadente) do Rio de Janeiro, os diálogos são compostos em sua
grande maioria por gírias e falas coloquiais e ajudam a compor aquele retrato do quotidiano
ao qual me refiro. Não poderia ser diferente. Qualquer formalismo ali inserido pareceria
deslocado.

O curioso é que essa estilização, tanto no verbal como no desenho das


personagens, esteja, por obra e graça da maestria nelsonrodrigueana, em perfeita
consonância com a pintura exata e precisa do ambiente muitas vezes sórdido e
desagradável, quase naturalista, em que se passam ambas as peças [A falecida e O
beijo no asfalto].59

Algumas das gírias utilizadas ainda são correntes: “Pintam o sete!” (Madame
Crisálida); “Até aí morreu o Neves” (Tuninho); “larga-se para os cafundós do Judas”
(Tuninho) – só para citar alguns exemplos de expressões retiradas das primeiras cenas de A
falecida. Além do coloquialismo dos diálogos: “pode achar graça, achar bonito essa
papagaiada, claro” (Zulmira); “Dá uma bijuquinha, dá!” (Tuninho); “Pode morrer até o raio
que te parta que eu vou ao jogo” (1º funcionário). Esses são exemplos que, por seu uso

58
FRAGA, Eudinyr. Op. cit., 1998, p. 159.
59
Idem, p. 158.
142
bastante corriqueiro e urbano, denotam uma certa comicidade nas cenas, comicidade antes
não existente – é a partir de 1953 que Nelson Rodrigues irá acentuar a influência do urbano
e, por conseguinte, as referências do cômico, que podemos chamar de leve em suas peças.
Cômico leve porque ele é diferente daquele existente nas tragédias e também diverso do
que existe nas farsas. Uma vez que o riso é provocado pelas gírias e pelo tom urbano
presente no texto, ele está associado a algo mais corriqueiro, enquanto nas tragédias ele é
atribuído à tensão extremada e, nas farsas, ao escracho e à confusão.
Interessante observar que, além desse uso ajustado da linguagem, as rubricas são
escritas seguindo o mesmo princípio. Diversamente do que fizera em Álbum de família,
Anjo negro e Senhora dos afogados, em que procura através das rubricas manter um nível
elevado da linguagem, em A falecida o autor mantém o estilo coloquial do discurso,
aparecendo gírias às vezes também nas didascálias. Vejamos alguns exemplos. Na rubrica
inicial, que abre a peça, o dramaturgo escreve: “Entra Zulmira de guarda-chuva aberto.
Teoricamente está desabando um aguaceiro tremendo. (...) Durante toda a cena, a criança
permanece, bravamente, com o dedo no nariz”60. Ou mais adiante, mas ainda na mesma
cena: “Madame volta com o baralho, sempre seguida do piralho de dedo no nariz”61. Na
cena final do segundo ato, com Zulmira recém-falecida, dois novos personagens estão na
rua. A didascália se refere a eles: “Um deles cava, num dente, com um pau de fósforo,
numa dessas faltas de poesia absolutas”62, em um exemplar momento de mau gosto em que
transparece também a voz do autor em um texto dramático. Já no último ato, quando
Tuninho está dentro do táxi em direção à casa de João Guimarães Pimentel, diz a rubrica:
“O chofer cai das nuvens ante a pergunta do passageiro”.63 São pequenos detalhes
pitorescos que denunciam a proximidade do autor com o universo retratado e, em seu
conjunto, vão compondo na peça uma irônica visão daquela atmosfera em que as
personagens estão inseridas, trazendo à tona uma comicidade menos pesada do que aquela
das tragédias.

60
RODRIGUES, Nelson. Op. cit., 1985, p. 57. Grifo meu.
61
Idem, p. 58. Grifo meu.
62
Idem, p. 98. Grifo meu.
63
Idem, p. 101. Grifo meu.
143
A falecida é um texto que privilegia a mistura de sentidos e de gêneros,
equilibrando-se nos limites das formas e discursos. Ao propor uma peça que contém, em
sua estrutura, variados gêneros, o autor não anula um sentido em favor de outro. Assim, o
cômico é mantido em seu objetivo mais conhecido, o de fazer rir no intuito de provocar
descontração, enquanto o trágico é mantido ao longo da peça para reforçar a inevitabilidade
das situações, mesmo as corriqueiras, a que as personagens são submetidas (e que faz parte
daquela imagem de vida feia, vil e trágica referida anteriormente).
Esta peça é uma comédia trágica porque, em sua estrutura cômica (uso de tipos,
linguagem baixa e efeitos risíveis), a peça traz arraigada às suas personagens o inexorável
fim trágico e solidão total do homem. Inerente ao desenvolvimento da ação, há a idéia de
tragicidade da vida, definida pela irrealização dos sonhos e desejos das suas protagonistas,
por mais ínfimos que eles sejam. Aqui, Nelson não recorre tanto a recursos
reconhecidamente trágicos, mas abusa das referências (sub)urbanas cariocas, do linguajar
coloquial e gírias da época. A peça, assim, já não está mais inserida naquele mundo mítico
relacionado à tragédia ática, mas pertence à esfera do gênero leve com certa carga de
inevitável derrocada. Enquanto estrutura, além de estar muito mais ligado à comédia, o
texto possui fortes vínculos com o expressionismo e o seu stationendrama ou drama de
estações. Nesse aspecto, são justas as palavras do crítico Sábato Magaldi:

Independentemente das considerações teóricas, a palavra “comédia” se associa,


no sentido popular, ao riso e ao happy end. Nelson, com achados e tiradas,
introduziu nessa fase de sua obra [das tragédias cariocas], os elementos cômicos.
Mas o predomínio da acepção trágica de existência, uniforme no teatro rodrigueano
inteiro, torna difícil assimilar qualquer de seus textos à idéia pura e simples de
comédia.64

Há um ponto de intersecção entre A falecida e Boca de Ouro, particularmente


centrado na figura do protagonista e na irrealização de seus desejos. Zulmira teve seu
enterro de luxo sonegado, restando-lhe apenas um caixão de quatrocentos cruzeiros, o mais
barato da Casa Funerária “São Geraldo”. Aquele de seus sonhos, forrado de cetim com
alças de bronze, carregado por cavalos de penacho na cabeça, acaba ficando apenas no

64
MAGALDI, Sábato. Op. cit., 1985, p. 8.
144
desejo da protagonista, enquanto o marido encontra sua catarse futebolística no Maracanã.
Assim, a vingança contra a prima não se realiza, e todo o plano arquitetado volta-se contra
Zulmira. Por sua vez, Boca de Ouro, o bicheiro de Madureira, a fim de suprir a banalidade
absoluta de seu nascimento (ele nasceu, conforme comentam as personagens, em uma pia
de gafieira), deseja ser enterrado em um caixão de ouro, que está sendo confeccionado a
mando do bicheiro. Naturalmente, ao final da peça, Boca de Ouro só pode ter perdas
significativas. A primeira quando lhe arrancaram a dentadura de ouro, símbolo de sua
imponência, de poder e ascensão financeira (mas não social), e, a segunda, o caixão de
ouro, que não teve: “Sua tragédia está cristalizada, acima de tudo, nessas duas perdas no
momento da morte inesperada, que lhe sonega a ocasião da pompa: dentes de ouro
arrancados, caixão tosco de madeira.”65
Assim como Zulmira, Boca de Ouro também foi enganado em vida e depois da
morte. Ambos tiveram a tragicidade da pobreza. A desejada vitória sobre a morte,
simbolizada no enterro glamoroso, foi-lhes negada: “Ao Boca de Ouro e a Zulmira, o
destino reserva o grande logro de um miserável enterro à vista de todos, não lhes dando a
chance dessa derradeira revanche em que tanto se empenharam.”66

3.2 – Melodrama ou tragédia moderna?

Mesmo que seja possível aproximar, pelo aspecto do malogro, do grotesco e do


choque de classes sempre porosas, A falecida a Boca de Ouro, as peças não têm muito mais
em comum. No entanto, destaquei anteriormente a multiplicidade de estruturas no teatro de
Nelson Rodrigues e o quanto isso se acentua quando aliada a outros sentidos inseridos nos
textos, tornando-se um obstáculo a mais para o enquadramento de cada peça. Boca de Ouro
é diversa de A falecida em sua estrutura fundamental, pois mal se alia à comédia, estando
visceralmente ligada à tragédia urbana, assim como O beijo no asfalto. A dificuldade de
categorização desse texto se complexifica pela existência de três versões diferentes do
mesmo caso envolvendo o bicheiro Boca de Ouro. Na impossibilidade de traçar um perfil

65
XAVIER, Ismail. Op. cit., 2003, p. 232.
66
Idem, p. 255.
145
mais definido do Drácula de Madureira, como é chamado o protagonista, sabe-se, com
segurança, da sua obsessão pelo ouro e pelo enterro em um caixão de ouro. No final, ao ser
encontrado morto e desdentado em uma sarjeta, ele exemplifica dolorosamente a
negatividade em freqüência máxima. O encaminhamento da personagem à derrocada não se
aproxima da maneira como Zulmira busca sua morte, nem se iguala à construção de
personagens tipificadas. Boca de Ouro tem, enfim, uma característica trágica urbana
definida, inclusive pelo perfil de seu protagonista, que “pertence muito mais a uma
mitologia suburbana do que à realidade normal da Zona Norte”67. Ao tratar a personagem
no campo mítico, o autor automaticamente lhe atribui um caráter trágico.
Levando em consideração a proximidade com a estrutura expressionista de A
falecida e com o aspecto trágico urbano de Boca de Ouro, O beijo no asfalto pode ser o
terceiro texto dessa tríade, na obra dramática de Nelson Rodrigues, que selecionei para
objeto de comparação. Trata-se de um dos melhores textos do dramaturgo. Entendo que
nessa peça o autor demonstrou maturidade em relação ao seu projeto estético dramático,
domínio pleno de linguagem e de construção teatrais, além do manejo consciente dos
diferentes aspectos utilizados, sejam eles expressionistas, melodramáticos, trágicos ou
urbanos.
Três grupos de intersecção de personagens são representativos nessas peças:
Zulmira/Boca de Ouro, marcados pela desdita; Tuninho/Arandir, símbolos patéticos e
colhidos pelo acaso; e Zulmira/Arandir, aproximando-se de tonalidades e referências
trágicas. Como o primeiro grupo já foi comentado, detenho-me nos outros dois,
privilegiando Arandir, herói trágico moderno de O beijo no asfalto, como figura principal.
Casado com Selminha há um ano, embora a conheça desde a infância, Arandir
torna-se alvo dos inescrupulosos Amado Ribeiro, o jornalista, e Cunha, o delegado, que o
encaminharão à total solidão e descrédito perante todos os que estão à sua volta. Tal
ignomínia aconteceu, mas não sem um erro trágico cometido pelo protagonista: o beijo
dado em um homem no momento de sua morte. Ser quase angelical, ele é descrito logo no
início como “uma figura jovem, de uma sofrida simpatia que faz pensar num coração

67
RODRIGUES, Nelson. Op. cit., 1985, p. 312.
146
atormentado e puro”68. Assim como parte das personagens rodriguianas, Arandir possui
uma dualidade de sentimentos e características algo antagônicas que o colocarão em
conflito constante consigo mesmo, evidenciando um caráter trágico moderno que definirá
não apenas a personagem, mas a peça como um todo.
Como Tuninho, Arandir é uma personagem patética, na medida em que provoca no
leitor/espectador o sentimento de piedade. Ambos são enganados em sua existência, que
lhes rouba a identidade, sendo colocados à parte das decisões sobre sua própria vida.
Igualmente, eles não chegam a adquirir consciência acerca da própria privação. Tuninho
permanece nos dois primeiros atos no anonimato em relação à esposa, sem um momento de
reconhecimento como marido e companheiro. Por fim, perde-se frente às revelações do ex-
amante de Zulmira e sua única reação é a vingança, deixando-se entregar à total solidão.
Arandir não compreende o motivo pelo qual estão lhe roubando a dignidade, fica confuso
perante todas as acusações e só lhe resta tentar fugir ou morrer, igualmente solitário, mas
mantendo até o fim sua convicção. Mesmo que seja possível aproximá-los por esse prisma,
eles se distanciam em outros aspectos, uma vez que Arandir é trágico e Tuninho,
basicamente cômico.
Arandir é uma personagem com “sofrida humildade”, que não consegue reagir
perante as investidas de Amado Ribeiro. Em última análise, ele tem sua inocência punida,
fato que dá um maior realce ao seu caráter trágico. A peça em si não possui grandes
momentos de tensão, mas a caminhada do protagonista, quadro a quadro, até sua ruína,
incorpora o qualificativo ao texto. O conflito central se delineia em torno do herói e o
enfrentamento que tem com outras personagens provoca uma tensão de âmbito individual.
O confronto se dá entre sua ação, julgada como um insulto social, e a compaixão que sentiu
pelo homem atropelado, sentimento que escapa à compreensão de todos. O conflito fica
evidente nas últimas cenas da peça, quando Arandir, já abandonado, também não recebe o
apoio da esposa. Quem vai ao seu encontro é a cunhada, Dália, na esperança de conquistá-
lo em seu derradeiro momento, ainda que também ela duvide da atitude do amado. Arandir,
neste momento, confessa:

68
RODRIGUES, Nelson. Teatro completo. vol. 4. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1990, pp. 100-101. Grifo
meu.
147
Eu sei o que “eles” querem, esses cretinos! (Bate no peito com a mão aberta)
Querem que eu duvide de mim mesmo! Querem que eu duvide de um beijo que.
(...)
Diz que, em toda minha vida, a única coisa que se salva é o beijo no asfalto.
Pela primeira vez. Dália, escuta! Pela primeira vez, na vida! Por um momento, eu
me senti bom!69

Zulmira não se depara com obstáculos para alcançar seu objetivo, caminha até ele
sem grandes embates, mas encontra em seus conflitos – também ideológicos – o motivo
para agir. Já O beijo no asfalto é mais clássico nesse sentido, seguindo um certo padrão
fechado de forma dramática:

Há conflito quando um sujeito (qualquer que seja sua natureza exata), ao


perseguir um objetivo (amor, poder, ideal) é “enfrentado” em sua empreitada por
outro sujeito (uma personagem, um obstáculo psicológico ou moral).70

Ainda que Arandir tenha seu conflito interiorizado, não é o mesmo caso de Zulmira
na forma de encaminhamento das ações, desenvolvimento do conflito e posterior resolução,
embora ambos os textos tenham a tendência em focalizar a interioridade das personagens.
O que se vê é que os protagonistas se aproximam pela tragicidade que se evidencia por
meio da estrutura expressionista utilizada para o desenrolar dos quadros.
A saga de Arandir se delineia pouco a pouco, desde a primeira cena, quando Amado
Ribeiro chega à delegacia e convence Cunha a trabalhar com ele em seu plano de “sacudir”
o Rio de Janeiro com a notícia do beijo no asfalto. Sua atitude de beijar um homem
moribundo após o atropelamento tornou-se não apenas o motivo para as matérias
sensacionalista do jornalista, mas aguçou o ciúme do sogro, Aprígio, aflorou a insegurança
de Selminha e a maledicência de pessoas de sua convivência. O beijo, que desencadeou seu
martírio, é, aliás, um ponto de freqüente contradição. Arandir dá várias versões do fato, que
não coincidem com o testemunho de seu sogro. Este, por sua vez, é uma fonte pouco
confiável devido ao sentimento incestuoso que nutre pelo genro.
Inicialmente, Arandir diz que o atropelado estava vivo e que lhe pediu um beijo:

69
Idem, pp. 148-149.
70
PAVIS, Patrice. Op. cit., 2003, p. 67.
148
ARANDIR (na sua cólera, apontando para a cunhada) – Era assim que a
Polícia perguntava. Nem de vista, nem de nome? Martelavam. Mas olha! O que foi.
O rapaz estava morrendo. Morrendo junto ao meio-fio. Mas ainda teve voz para
pedir um beijo. Agonizava pedindo um beijo. Na polícia, o repórter disse que era
hora de muito movimento. Toda a cidade estava ali, espiando. E viu quando eu...71

Em nenhum momento comenta que o beijo foi na boca. Nem Aprígio, em sua
primeira aparição na casa da filha, fala do caso em detalhes. Somente na visita seguinte, o
pai dá uma versão mais completa dos fatos à filha, contrariando aquela dada por seu genro:

APRÍGIO (exultante) – O sujeito caiu de bruços, rente ao meio-fio. De bruços.


Teu marido foi lá e virou o rapaz. E deu o beijo. Na boca.72

Selminha não acredita na notícia e, com a chegada de Arandir, ela o indaga sobre as
diferentes versões, e ele lhe conta ainda uma terceira:

ARANDIR (sôfrego) – Eu te contei. Propriamente, eu não. Escuta. Quando eu


me abaixei. O rapaz me pediu um beijo. Um beijo. Quase sem voz. E passou a mão
por trás da minha cabeça, assim. Puxou. E, na agonia, ele me beijou.73

Cada vez mais fica evidente uma indefinição do caso e não é possível afirmar qual
versão da história seria a verdadeira. Aprígio volta a reforçar que o atropelado já estava
morto quando Arandir se aproximou:

APRÍGIO (desesperado) – Cala a boca! (Muda de tom e falando com súbita


ferocidade) Eu estava junto de meu genro. Quando ele se abaixou, eu estava ao
lado. Juntinho, ao lado. E vi e ouvi tudo. (Baixo e violento) Olha! Ninguém pediu
beijo! (Radiante) O rapaz já estava morto!
DÁLIA (quase sem voz e num espanto brutal) – Morto?
APRÍGIO – Morto. Meu genro te contou que. Mentira! O rapaz não disse uma
palavra. Estava morto. De olhos abertos e morto.74

Se por um lado as informações de Aprígio são duvidosas, por outro, as versões


diferentes e contraditórias de Arandir não fazem dele uma fonte segura. Essa ambigüidade

71
RODRIGUES, Nelson. Op. cit., 1990, p. 110. Grifo meu.
72
Idem, p. 121.
73
Idem, p. 128. Grifo meu.
74
Idem, p. 139. Grifo meu.
149
reforça ainda mais o conflito entre Arandir e a opinião pública que ele tem que enfrentar, dá
corpo à dúvida de Selminha e auxilia a construção das personagens, em especial do sogro e
do protagonista.
Quadro a quadro, o protagonista é pressionado pelo beijo, questionado em sua
masculinidade, transformado em assassino. Seja na delegacia, em interrogatório agressivo
promovido pelo jornalista e pelo delegado;

CUNHA – Ó rapaz! O lotação não interessa. Compreendeu? Não interessa. O


que interessa é você.75

AMADO (exaltadíssimo) – E você olha. Fazer isso em público! Tinha gente pra
burro, lá. Cinco horas da tarde. Praça da Bandeira. Assim de povo. E você dá um
show! Uma cidade inteira viu!76

Em casa, com Selminha e Dália questionando-o constantemente sobre o beijo,


incentivadas a duvidar de Arandir pelo pai e pela vizinha, D. Matilde;

APRÍGIO (com mais vivacidade do que desejaria) – E você. Conhece? Diga: –


conhece seu marido?77

APRÍGIO (incerto) – Sei. Acredito. Mas digamos que seu marido. Uma
hipótese. Que seu marido não fosse, assim, exatamente, como você pensa. Você
gosta do seu marido a ponto de aceitá-lo mesmo que. (Mais incisivo) Numa palavra:
– você é feliz?78

D. MATILDE – Claro que! Evidente! Acredito na senhora, nem se discute. Mas


interessante, D. Selminha. Sabe que. Pela fotografia do jornal, a fisionomia do
rapaz não me parece estranha (Bruscamente e com vivacidade) O morto não é um
que veio aqui, uma vez?79

Ou no trabalho, onde os colegas o ridicularizam, chamando-o de “viúvo do


atropelado”, e conseguem uma testemunha da presença do atropelado no ambiente de
trabalho de Arandir:

75
Idem, p. 103.
76
Idem, p. 104.
77
Idem, p. 98.
78
Idem, p. 99.
79
Idem, pp. 113-114.
150
WERNECK (apontando) – Viúvo do atropelado! Ou viúva! Beijou o sujeito na
boca. O sujeito morreu. É a viuvez. Batata!
(...)
WERNECK (para os outros, com uma certeza feroz) – E o morto vinha aqui!
Veio aqui!80

D. JUDITH (em brasas) – Parece um moço que esteve aqui, na semana passada.
Um moço.81

Uma vez instaurada a certeza de que Arandir era amante do atropelado ou que, ao
menos, já se conheciam, isso provoca a insegurança em seu casamento e inicia-se o
processo de destruição total do herói: Amado, não satisfeito com a manchete do beijo, cria
a notícia de que, além de amante, Arandir foi também o assassino do atropelado,
empurrando-o para baixo do lotação.

AMADO (exultante e feroz) – Aprígio, você não me compra. Pode me cantar.


Me canta! Canta! (Rindo, feliz) Eu não me vendo! (Muda de tom) Eu botei que.
Presta atenção. O negócio é bem bolado pra chuchu! Botei que teu genro esbarrou
no rapaz. (Triunfante) Mas não esbarrou! Aí é que está. Não esbarrou. (Lento e
taxativo) Teu genro empurrou o rapaz, o amante, debaixo do lotação. Assassinato.
Ou não é? (Maravilhado) Aprígio, a pederastia faz vender jornal pra burro!
Tiramos, hoje, está rodando, trezentos mil exemplares! Crime, batata!82

Agora considerado um assassino, Arandir se refugia em um hotel barato e pede à


esposa que o encontre. Selminha, no entanto, já não acredita mais nele, não quer vê-lo,
sente até certa repugnância pelo marido, especialmente depois da agressão sofrida por
Amado e Cunha em um suposto depoimento.

DÁLIA – Arandir telefonou.


SELMINHA (varada de arrepios) – Arandir.
(...)
DÁLIA (sôfrega) – Mandou dizer que.
SELMINHA (com brusca irritação) – Mas que hotel?
DÁLIA – E te espera lá. Disse que.
SELMINHA – Onde?

80
Idem, p. 116.
81
Idem, p. 117.
82
Idem, p. 143. Grifo meu.
151
DÁLIA – O endereço. Eu tomei nota. É no. (Sente-se, pouco a pouco e de uma
maneira cada vez mais nítida, que Selminha não quer ir.)83

ARANDIR (violentíssimo) – Minha mulher não vem? Não quer vir? Fala!
(Muda de tom) Olha pra mim. (Com voz súplice, entre o desespero e a esperança)
Ela não vem? Diz pra mim? Não vem?
DÁLIA (a medo) – Espera.
ARANDIR (com violência) – Dália, eu preciso de minha mulher. Preciso. O
jornal me chama de assassino. Assassino, Dália! (Com um esgar de choro) Você
acha que eu sou assassino?84

Isolado, julgado culpado, ao herói só resta a morte, que vem juntamente com uma
revelação surpreendente: Aprígio, seu sogro, aparece no hotel e lhe diz que é apaixonado
por ele, não pela filha. Um grande golpe de teatro, bem característico do melodrama, para
lhe dar o seu caráter trágico de malogro total. Além da reconhecida técnica melodramática,
a cena final ainda carrega o exagero próprio do gênero, segundo convencionou o senso
comum:

APRÍGIO (num berro) – De você! (Estrangulando a voz) Não de minha filha.


Ciúmes de você. Tenho! Sempre. Desde o teu namoro, que não digo o teu nome.
Jurei a mim mesmo que só diria teu nome a teu cadáver. Quero que você morra
sabendo. O meu ódio é amor. Por que beijaste um homem na boca? Mas eu direi o
teu nome. Direi teu nome a teu cadáver. (Aprígio atira, a primeira vez. Arandir cai
de joelhos. Na queda, puxa uma folha de jornal, que estava aberta na cama.
Torcendo-se, abre o jornal, como uma espécie de escudo ou de bandeira. Aprígio
atira, novamente, varando o papel impresso. Num espasmo de dor, Arandir rasga a
folha. E tomba, enrolando-se no jornal. Assim morre.)
APRÍGIO – Arandir! (mais forte) Arandir! (um último canto) Arandir!85

A peça, dividida em quadros, acompanha o caminhar do herói desde o início de sua


queda até o derradeiro momento, assim como acontece com Zulmira, que percorre todos os
quadros até a privação de seu enterro de luxo. Socialmente são personagens que se
diferenciam, pois Arandir não vive na mesma vida sem perspectiva de Zulmira, em termos
financeiros. Ainda assim,

83
Idem, pp. 144-145. Grifo meu.
84
Idem, p. 147.
85
Idem, pp. 152-153.
152
Ele [Arandir] e Zulmira estão anestesiados, mas a vida espreita e ronda em
torno. O conselho da cartomante vigarista e o atropelamento do rapaz darão o sinal
para que se inicie a descida vertiginosa para a destruição.86

Ambos estão inseridos em um contexto de mediocridade generalizada, em que o


senso comum não aceita qualquer desvio de norma, precisando aniquilar quem foge à regra.
O que incomoda, nessas duas peças, é a individualidade “que a conteste [a mediocridade da
maioria]. Terá que ser aniquilada, para que se apazigúem as próprias frustrações”87. Assim
funcionam Amado Ribeiro e o delegado Cunha, Aprígio, Selminha, a vizinha e os colegas
de trabalho, todos se voltam para a destruição do ser individual e são representativos da
máquina social que oprime e destrói o incomum.

3.2.1 – Tragédia urbana

A destruição do indivíduo pelo seu meio seria suficiente para a constituição de uma
tragédia social? Ou, por outro lado, deveria ser considerada uma tragédia pessoal ou
privada?88
Ao tratar da tragédia social e pessoal, o crítico Raymond Williams considera o
termo “tragédia” em sua amplitude, sem restringi-lo à dramaturgia. Assim, toma como
exemplo dois romances: Anna Karênina, de Tolstói, como uma tragédia social, e Mulheres
apaixonadas, de Lawrence, como uma tragédia pessoal. Considera-as tragédias na medida
em que “um importante relacionamento termina em tragédia, numa morte que adquire
significação a partir da ação como um todo”89. Williams considera, então, o sentido de
destruição na relação entre o meio social e o homem. Ou, em outras palavras, o
relacionamento pessoal com o todo. Portanto, a forma literária escolhida para expor esse
conflito pouco importa.
Mas me refiro à tragédia enquanto forma dramática porque Nelson assim a
denominou: tragédia carioca. Além disso, é preciso considerar que seu pessimismo

86
FRAGA, Eudinyr. Op. cit., 1998, p. 161.
87
Idem, p. 162.
88
Terminologia empregada por R. Williams.
89
WILLIAMS, Raymond. Op. cit., 2002, p. 162.
153
“inflexível, fincado na condição trágica da existência, serve de base à filosofia da quase
totalidade dos textos”90, o que, aliado à estrutura dramática, funda a sua tragédia moderna.
A noção de destruição da qual fala Williams é também um fator importante para a
composição do sentido trágico em Nelson Rodrigues.
O aspecto social abordado em O beijo no asfalto – ou em outros textos rodriguianos
– não é decisivo para a qualificação da tragédia, em especial quando se considera a
definição de social de Williams: “homens arruinados pelo poder e pela fome; uma
civilização destruída ou destruindo-se a si mesma”91. Se há a referência social na obra, ela
parte do todo para o particular, interferindo em uma vida individualizada e tornando-se
parte desse universo. O conflito que surge é proveniente do choque de forças internas e
externas, sem a pretensão de vinculá-lo a objetivos edificantes ou socialmente engajados.
Por outro lado, poderia pensar, então, na caracterização da tragédia pessoal:

Há então, igualmente, a tragédia pessoal: homens e mulheres que sofrem e que


são destruídos nos seus relacionamentos mais íntimos; o indivíduo conhecendo o
seu destino, num universo marcado pela insensibilidade, no qual a morte e um
isolamento espiritual extremo são formas alternativas do mesmo sofrimento e
heroísmo.92

No teatro de Nelson Rodrigues, o social influencia diretamente o conflito pessoal;


os relacionamentos são alterados e/ou postos em divergência pela situação social. O caso de
Arandir e Selminha é exemplar, quando a relação deles (não apenas conjugal) é minada
pela notícia do beijo e pelas opiniões das pessoas que os circundam. Como a situação se
passa em âmbito pessoal, a ação não pode ser caracterizada como social, no sentido em que
ela não representa ali um macrocosmo significativo e se distancia da conceituação de
Williams. Creio que seja possível considerá-la uma esfera mais estreita do que o conjunto
completo da sociedade93, no sentido do isolamento do herói, ainda que seu conflito esteja
aliado a esferas mais amplas socialmente. Ou melhor, a ação protagonizada por Arandir se

90
MAGALDI, Sábato. Introdução. In: RODRIGUES, Nelson. Op. cit., 1990, p. 7.
91
WILLIAMS, Raymond. Op. cit., 2002, p. 161.
92
Idem, ibidem. Grifo meu.
93
Refiro-me, aqui, à época específica em que a peça se passa, pensando que o homossexualismo na década de
60 era um tabu muito mais forte do que hoje. Falar de homossexualismo no momento em que a peça foi
escrita poderia significar para o texto uma leitura social muito mais ampla do que atualmente.
154
caracteriza pelo pessoal, mesmo que sofra fortes influências do social. O que se vê é a
pressão externa por uma suposta falha causada pelo protagonista, implicando conflitos
destrutivos em seu universo particular.
O que entendo por pessoal na dramaturgia rodriguiana se aproxima da definição de
Williams. Ao fim de sua análise da obra Mulheres apaixonadas, de Lawrence, ele expõe o
seguinte a respeito do que encara como tragédia pessoal:

O afastar-se da dimensão social é também inevitavelmente um afastamento em


relação às pessoas – uma tentativa de criar uma pessoa isolada, desvinculada de
qualquer relacionamento. Todos aqueles elementos da personalidade que existem
no relacionamento – não apenas nos relacionamentos formais da família, mas entre
quaisquer pessoas e especialmente entre um homem e uma mulher – são em última
análise subtraídos em nome de uma realização e um preenchimento pessoais.94

E termina por afirmar que a divisão entre sociedade e indivíduo ocasiona a


descrença em qualquer uma das partes, representação imediata da perda da crença na
“totalidade da experiência na vida”. Essa é, segundo o crítico, a característica mais
profunda da tragédia no século XX.
Há, em O beijo no asfalto, esse isolamento e afastamento do qual fala Williams, não
em nome de uma realização pessoal, mas impulsionados pelas contingências. Por fim,
ocorre a divisão entre a sociedade e o indivíduo, marcando na figura patética e trágica de
Arandir essa descrença em relação à sua própria existência: abandonado, ele já não acredita
em mais nada, exceto no beijo como símbolo do seu único momento de bondade na vida.
Zulmira, por sua vez, tem no seu isolamento o intuito da realização pessoal, de
forma egoísta, evidentemente. Afastar-se dos meios sociais, para Zulmira, é fechar-se
sexualmente, impedir que tenha qualquer vínculo com os prazeres carnais. Daí o
rompimento com o amante, a conversão à Igreja Teofilista e a negação do beijo ao marido.
Esse ideal de pureza é, em última análise, a busca para a realização de suas vontades
individuais, de vingança e de reconquista da honra. No entanto, esse caráter de Zulmira não
é suficiente para caracterizar a peça como tragédia, ao contrário do que acontece com O
beijo no asfalto.

94
WILLIAMS, Raymond. Op. cit., p. 181.
155
As tragédias, conjunto analisado no segundo capítulo, têm certa proximidade com a
tragédia privada conceituada por Williams, cuja máxima referência é Strindberg. Não é o
caso, pois, de O beijo no asfalto, em que a referência pessoal é muito mais forte. Além
desse aspecto, há outro fator que se sobressai e que deve ser assinalado: o urbano, que
permeia inúmeras peças do dramaturgo e que se tornou símbolo de sua obra ao longo dos
anos. Esse aspecto caracterizará o tipo de tragédia a que pertence essa peça: em substituição
ao qualificativo carioca, considero-a como urbana.
O ambiente privilegiado no texto é o Rio de Janeiro. Não o subúrbio, como em A
falecida, mas o centro da cidade. Logo na abertura, a rubrica indica: “Distrito Policial
correspondente à Praça da Bandeira”. Arandir e Selminha formam um casal de classe
média, recém-casado e residente no Grajaú, bairro de classe média e classe média alta do
Rio de Janeiro, na época. Eles estão longe de ter as privações do casal Zulmira/Tuninho (A
falecida), nem as dos casais Celeste/Leleco e Guigui/Agenor (Boca de Ouro) – todos
representativos do subúrbio carioca (Aldeia Campista e Madureira, respectivamente). Os
elementos urbanos, no entanto, são muito mais evidentes do que os denominados cariocas,
a começar pelo título “no asfalto”. A despeito da especificação da cidade em que a ação se
passa, os fatos poderiam ter acontecido em qualquer lugar fixado numa área citadina.
A ação parte de um ponto bastante específico: um beijo dado em um moribundo
atropelado na Praça da Bandeira por um lotação e testemunhado por um jornalista. Apenas
nessa curta informação, já temos as questões que acompanham a peça e todas elas se
referem a elementos urbanos, como o atropelamento em uma praça de grande
movimentação de pessoas, o transporte coletivo próprio das cidades de porte médio e
grande e o jornalismo enquanto profissão surgida com o Estado moderno e, evidentemente,
com o crescimento das cidades. Caracterizar a peça como carioca por se passar no Rio de
Janeiro pode talvez ser considerado restritivo demais para um texto que apresenta questões
concernentes a vários outros universos. Ainda assim, o autor reforça a cor local do cenário,
que não deve ser minimizada.
Nesse aspecto, a peça também se distancia de A falecida e guarda certa proximidade
com Boca de Ouro. Ainda que a primeira se passe no subúrbio carioca e apresente os
pormenores daquela vida, o ambiente em que se passa não é propriamente o urbano, mas o
156
da interioridade de Zulmira, pois são suas angústias que devem ser consideradas, embora
ligadas ao seu espaço. Entretanto, o ambiente suburbano freqüentado por Zulmira não é
definitivo para o desenrolar das ações, como a movimentação da cidade grande é para
Arandir. Em O beijo no asfalto, o beijo dado em público e testemunhado por um jornalista
é a engrenagem de tudo. Aqui, em um primeiro plano, não importam as angústias do
protagonista, mas a estrutura social e urbana desenvolvida para o seu aniquilamento, pois
interferem na ação e favorecem sua tragicidade. Nesse aspecto, possui pontos de
cruzamento com Boca de Ouro, na medida em que Madureira, bairro central do texto, é o
lugar em que o protagonista se criou e desenvolveu seu poder dominador. É igualmente o
espaço de onde os fatos são narrados e o meio de D. Guigui, que narra os acontecimentos.
O subúrbio será o ponto de contraste e conflito com o universo de Maria Luísa, a grã-fina
que o assassinou. Nesse caso, portanto, também a urbanidade será um elemento
caracterizante da peça.
Em relação a proximidades e distanciamentos, o que há de comum nas três peças é a
referência melodramática, evidenciada pelos golpes de teatro e pelos excessos.
O beijo no asfalto chama a atenção pelo uso de um recurso melodramático
marcante, principalmente porque é uma divisão de que Nelson Rodrigues não lança mão
freqüentemente: a divisão entre herói versus vilão. Se, de um lado, Arandir é o herói trágico
e patético da peça, seu antagonista e vilão da história é o jornalista Amado Ribeiro. Não à
toa o autor insere na pele de um jornalista mau-caráter a figura do vilão: além de conhecer
bem o meio, por trabalhar desde os 13 anos em redações de jornais, a personagem confere
aquele tom urbanizado a seu texto.
Desde que aparece em cena, Amado Ribeiro é descrito como um cafajeste e se
comporta como tal em todo o decorrer da ação. No início da peça, Amado surge com “a
aparência de um cafajeste dionisíaco”. Cunha, não menos mau-caráter, tem um choque ao
saber da presença do jornalista, pois ele mesmo foi ameaçado em sua posição de delegado
devido a uma reportagem sensacionalista. Depois de um primeiro contato conflituoso,
Amado e Cunha se unem em prol de interesses próprios e distintos: Amado pretende vender
jornais e Cunha quer limpar sua imagem perante o chefe:

157
AMADO (na sua euforia profissional) – Cunha, escuta. Vi um caso agora. Ali,
na Praça da Bandeira. Um caso que. Cunha, ouve. Esse caso pode ser a tua
salvação!
CUNHA (num lamento) – Estou mais sujo do que pau de galinheiro!
AMADO (incisivo e jocundo) – Porque você é uma besta, Cunha. Você é o
delegado mais burro do Rio de Janeiro. (Cunha ergue-se)95

AMADO – Não interrompe! Ou você não percebe? Escuta, rapaz! Esse caso
pode ser a tua reabilitação e olha: – eu vou vender jornal pra burro!96

Essa imagem piora ao longo dos acontecimentos. Durante o depoimento do rapaz,


na delegacia, Amado faz sugestões maliciosas sobre o casamento e a vida amorosa de
Arandir.

AMADO – Praticamente, em lua-de-mel. Em lua-de-mel! Você larga a sua


mulher. E vem beijar outro homem na boca, rapaz!
ARANDIR (atônito) – O senhor está pensando que...
(...)
AMADO (furioso) – Escuta! Se um de nós, aqui, fosse atropelado. Se o lotação
passasse por cima de um de nós. (Amado começa a rir com ferocidade) Um de nós.
O delegado. Diz pra mim? Você faria o mesmo? Você beijaria um de nós, rapaz?
(Riso abjeto. Arandir tem um repelão selvagem.)97

No velório do atropelado, chantageia a viúva e a induz a dizer que Arandir era


conhecido do morto, a fim de conseguir uma testemunha cabal do relacionamento entre o
protagonista e o atropelado.

AMADO (furioso) – Que se dane. (Para a viúva) Olha aqui. Ou a senhora diz a
verdade. A polícia não tem esse negócio de mulher, não. Mulher apanha também!
(Muda de tom) Sua burra! Põe na tua cabeça o seguinte. Você tem um amante. E
por quê, por que tem um amante? Porque seu marido, escuta, escuta! Seu marido
mantinha relações anormais. Relações anormais com um cara. Entendeu? (Melífluo)
Seu marido tinha um amigo chamado Arandir; amigo esse que a senhora está
reconhecendo pela fotografia.98

Manipulador, chantagista, traiçoeiro, maldoso, Amado Ribeiro perpetua sua imagem


como o adversário moral de Arandir, em uma separação das personagens entre boas e más

95
RODRIGUES, Nelson. Op. cit., 1990, p. 93.
96
Idem, p. 94.
97
Idem, pp. 104-105.
98
Idem, p. 124.
158
bem característica ao melodrama. Por fim, para selar a manipulação que faz dos fatos,
sugere a Aprígio que assassine Arandir. A intenção da personagem é clara:

AMADO (fazendo uma insinuação evidente de miserável) – Vem cá. Escuta


aqui. Sabe que. Sinceramente. Se eu fosse você. Um pai. Se tivesse uma filha e
minha filha casasse com um cara assim como o. Entende? Palavra de honra! Dava-
lhe um tiro na cara!
APRÍGIO – Você quer vender mais jornal?
AMADO (com a sua seriedade de bêbado) – Fora de brincadeira. Não é piada.
E olha. A absolvição seria a maior barbada. Nenhum Juiz te condenaria, nenhum!
(Caricioso) Escuta, Aprígio! O Arandir não é homem pra. Não é homem pra tua
filha. Ela é magra e tão sem. Sem barriga. Um certo histerismo na mulher. E D.
Selminha. (Enfático) Esse cara não agüenta o repuxo com tua filha.99

A insinuação ressalta esse caráter manipulador ao qual me referi e distancia Amado


ainda mais de Arandir, estabelecendo um contraponto pouco comum no teatro rodriguiano.
Heróis e vilões não são a escolha habitual do dramaturgo, mas curiosamente nessa peça a
escolha de determinar de forma estanque o caráter das personagens conduz o texto àquela
noção de trágico que se faz nítida. Não fosse Arandir ter de pagar pela sua ingenuidade ou
impulso solidário, seu tom trágico não ficaria tão evidente. Juntamente com outra
recorrência melodramática – do golpe de teatro –, essa divisão encaminha o protagonista
cada vez mais à derrocada final, estando os recursos adequados a um objetivo maior.
A cena final a que me refiro, comentada anteriormente, é aquela em que Aprígio
revela seu amor – e não seu ódio – ao genro. Para se constituir como tal, foi preciso criar na
personagem do pai de Selminha uma patente ambigüidade, que permitiria ao público pensar
que ele mantinha um sentimento incestuoso em relação à filha. No primeiro diálogo travado
entre Selminha e o pai, ela o questiona: “Uma coisa, papai. O senhor sabe que, desde o meu
namoro, o senhor nunca chamou Arandir pelo nome?”100. Questionamento que, segundo a
rubrica, deixa Aprígio desconcertado. Em seguida, Dália insinua à irmã que o pai a ama
como mulher, não como filha.

SELMINHA – Não gosta de Arandir – por quê?


DÁLIA (taxativa) – Ciúmes.

99
Idem, pp. 143-144.
100
Idem, p. 97.
159
SELMINHA (virando-se atônita) – De mim?
DÁLIA – De ti. (Selminha repete, lentamente, com espanto e uma nascente
angústia.)
SELMINHA (falando para si mesma) – Ciúmes de mim?101

São dois momentos que inspiram dúvida quanto a Aprígio, personagem que se
mostra o tempo todo dúbio. Isso se acentua ainda mais no segundo ato, em uma discussão
que tem com sua filha mais velha a respeito do gesto de Arandir. Nervoso, ele precisa saber
se o atropelado era amigo do genro, se Selminha já o tinha visto. Em resposta ao
questionamento da filha, se ele amava alguém, novamente a dubiedade, do gesto e da fala:

APRÍGIO (com o olhar perdido) – Querida, neste momento, eu... (esboça uma
carícia na cabeça da filha) eu amo alguém.102

Para criar o clímax a respeito do sentimento de Aprígio e seu posterior golpe de


teatro, Dália o enfrenta, afirmando que sabe de seu segredo. Ao tomar conhecimento de
que as filhas suspeitam que ele ama Selminha, Aprígio tem um gesto que, segundo a
rubrica, “o espectador não vai compreender”, gesto de “euforia brusca”.

APRÍGIO (começando a rir) – Amor de homem por mulher? E é esse o


segredo? (Repete, recuando o espanto para a filha) Meu segredo é esse?
DÁLIA (esganiçando a voz, num frenético desespero infantil) – Por isso o
senhor odeia Arandir!103

Assim, ao criar a ambigüidade em torno de Aprígio e deixar transparecer ao público


que ele pode ter algum sentimento incestuoso, induzindo a pensar que é para com a filha, o
autor está montando o cenário ideal para a revelação final. Esse recurso melodramático
torna o texto em certo momento risível, ainda que esta não seja a tonalidade prevalecente.
O cômico, em O beijo no asfalto, é tênue, sem a força irônica que tem em A falecida,
especialmente porque esbarra em um obstáculo bastante significativo: a compaixão que se
sente pelo herói Arandir.

101
Idem, pp. 105-106.
102
Idem, p. 122.
103
Idem, p. 140.
160
Ao nos comparar com as inconveniências (ou absurdos) que contemplamos,
nos asseguramos de nossa superioridade. O riso que nasce do cômico é, por isso,
frágil e fugaz. (...) O riso que nasce do cômico tem um grande inimigo: a
compaixão.104

Referências melodramáticas são costumeiras na dramaturgia rodriguiana, seja pelo


tom exagerado às vezes provocado, seja pelas referências sentimentais, comumente
buscando ter um impacto sobre o público. A revelação de Aprígio na cena final já foi objeto
de muitas críticas, em seu sentido negativo, acusando o autor de sensacionalista. No
entanto, a construção ambígua da personagem é feita em pormenores tão bem delineados
que o golpe não se apresenta de forma artificial, ainda que a dubiedade utilizada na sua
preparação não seja própria do melodrama105.
Em relação a outras obras, Ivete Huppes afirma que mesmo Vestido de noiva possui
recorrências melodramáticas:

Dotada de tal arcabouço [ações simultâneas em tempos diferentes] parece


difícil a aproximação com o panorama melodramático. Isto todavia acontece através
da forte motivação passional da trama que trabalha lances inesperados, golpes e
revelações sucessivas; que lança mão de pressentimentos, de promessas
inescapáveis, de amores secretos, de obsessões; que utiliza cenários de impacto,
como caixões e defuntos, círios acesos na escuridão, movimentação em escadarias;
que alterna cenas alegres e patéticas; que cultiva o exagero e o paradoxo com toda a
naturalidade.106

Sem dúvida, Nelson Rodrigues prestou tributo ao gênero romântico, seja


intencionalmente para agradar ao público (fato que, conforme descreve Ruy Castro, nem
sempre foi alcançado), seja por uma herança da história do teatro brasileiro. De uma forma
ou de outra, não é possível afirmar que seus textos dramáticos sejam melodramas
propriamente ditos, mas ele se apropria de alguns de seus recursos para a composição, nem
sempre harmônica, de suas tragédias, dramas, comédias ou farsas. No caso de O beijo no
asfalto, o uso final do melodramático serve para intensificar a desgraça do herói, pois a

104
BRUM, José Thomaz. O riso e a jubilação. In: KANGUSSU, Imaculada et al (orgs). O cômico e o trágico.
Rio de Janeiro, 7 Letras, 2008. p. 56.
105
Cf. HUPPES, Ivete. Melodrama – o gênero e sua permanência, Cotia, Ateliê Cultural, 2000. A autora
afirma que “a linguagem do melodrama, avessa a ambigüidades e torneios de estilo, reúne as condições
indispensáveis para agradar platéias desabituadas de sutilezas.” (p. 14)
106
Idem, p. 24.
161
revelação e o tiro são como um golpe de misericórdia, consagrando a Arandir a derrocada
final que ele trilha desde o início da peça.
Assim como o melodramático, não são poucas as recorrências prosaicas no teatro
rodriguiano. Comentei anteriormente a respeito da presença delas nas tragédias e que a
interferência prosaica em meio à tensão dramática provoca o riso. Em A falecida, também
ligado ao riso, o prosaico está vinculado à vida suburbana, e tem no grotesco um forte
aliado para promover a ironia na cena. Já em O beijo no asfalto, há uma terceira vertente,
também ligada ao riso, mas totalmente desvinculada do grotesco. O que se vê, na peça, é
uma constante transição do sério ao prosaico, retornando ao sério em velocidade espantosa.
Esses momentos, no entanto, estão centrados nas cenas que representam a vida doméstica.
Selminha, descrita como uma “imagem fina, frágil de uma moça, de uma intensa
feminilidade”, divide com Dália os momentos em que os comentários banais quebram com
a continuidade tensa da cena. Em sua casa, recebe o pai, que veio lhe avisar do ocorrido
com Arandir. Recentemente casada, ela se preocupa com as frivolidades do quotidiano.

APRÍGIO – Pelo seguinte. Nada demais. Teu marido assistiu um desastre. Quer
dizer, assistimos. Eu também. Um desastre horrível, na Praça da Bandeira. Vimos
um lotação passar por cima de um sujeito.
SELMINHA – Morreu?
APRÍGIO – O cara?
DÁLIA – Que coisa chata!
APRÍGIO – Na hora. Morreu. Pau pra burro. Mas enfim! É por isso que eu...
SELMINHA – Mas papai, olha. Hoje eu fiz. Escuta. Fiz aquele ensopadinho de
abóbora. Deixa eu falar. A criada está de folga e eu fui pra cozinha, papai!107

Na mesma cena, outra transição, agora com Dália protagonizando-a. Novamente há


a interrupção da notícia que Aprígio quer revelar, interrompem-no em suas inquietações e
em seus questionamentos.

APRÍGIO (sem ouvi-la e com mais vivacidade do que desejaria) – Você não
acha? Não acha que. Eu, por exemplo. Eu não faria isso. Não faria. Nem creio que
outro qualquer. Ninguém faria isso. Rezar, está bem, está certo. Mas o que me
impressiona, realmente me impressiona. É o beijo.
SELMINHA (com angústia) – Mas eu até acho bonito! (Dália entra.)

107
RODRIGUES, Nelson. O. cit., 1990, p. 96.
162
DÁLIA – Olha!
SELMINHA – O quê?
DÁLIA – Acabou o café. O pó.
SELMINHA – Mas tinha!
APRÍGIO – Não precisa!
DÁLIA – Eu me esqueci de.
SELMINHA – Pede na vizinha.
APRÍGIO – Escuta.
DÁLIA – Chamei pelo muro, mas não tinha ninguém.
SELMINHA – Dá um pulo.
APRÍGIO – Ouve Selminha. Até é bom. Não estou bem e o café.
SELMINHA (na sua agonia de dona-de-casa) – Mas tinha pó, papai. (Para a
irmã, mudando de tom) Vê lá o fogo. O bolo que eu ia fazer para o senhor. (Aprígio
está de costas para a filha e de frente para a platéia. Dália saiu.)
APRÍGIO (retomando no ponto interrompido) – Você acha bonito.108

Selminha, resguardada em seu mundo privado, parece não compreender o real


sentido das palavras proferidas pelo pai na sua inquietação pela atitude do genro. Entende o
estritamente necessário, interrompe inadvertidamente o diálogo e, na impossibilidade de
compreender além das palavras imediatas, preocupa-se com os afazeres domésticos e
frivolidades. Essa postura da esposa de Arandir esclarece sua atitude de abandonar o
marido. Em sua fragilidade, Selminha não consegue lidar com as notícias que minam sua
segurança conjugal. Suas crenças se embasam sob o signo do casamento perfeito, que inclui
uma dedicação caseira integral. Diante da dúvida e da incapacidade de manter-se fiel ao
marido sem a aura da perfeição matrimonial, não hesita em abandoná-lo em seu desespero,
colaborando para a destruição de Arandir: “Decreta-se a real solidão de Arandir quando a
mulher lhe retira o apoio e a cunhada, embora o ame, pergunta se ele amava o morto”109.
Ainda no ambiente privado da residência do casal, Dália e Selminha conversam
sobre as atitudes suspeitas do pai, mas a revelação de que Aprígio se sentiu incomodado
pelas atitudes de Arandir e Selminha são interrompidas por um detalhe:

DÁLIA – No dia em que vim para cá. Vocês tinham chegado da lua-de-mel. Eu
me lembro. Papai me trouxe e até você estava com aquele quimono, aquele, como
é?
SELMINHA – O azul?

108
Idem, pp. 97-98.
109
MAGALDI, Sábato. Op. cit., 1990, p. 11.
163
DÁLIA – Não. Aquele que a vovó te deu. Papai me trouxe. Não queria vir.
Insisti. Veio. E chegou aqui, você sentou-se no colo de Arandir. Se você visse a
cara de papai! A cara!110

Ou então, na continuidade da cena, quando Arandir chega cansado da delegacia.


Amorosas, esposa e cunhada lançam-se ao protagonista. O momento é descrito como de
“surdo sofrimento” para Arandir porque a cunhada pretende mudar-se da casa, enquanto
Selminha novamente se preocupa com o banal.

ARANDIR (com surdo sofrimento) – Dália, você tem coragem?


SELMINHA – Um momento. Meu bem, você vai comer alguma coisa.
ARANDIR – Sem fome.
SELMINHA – Uma boquinha, você faz?
ARANDIR – Nada. Mais tarde. Depois. Depois eu como. (Arandir, na sua
volubilidade febril, continua.)111

Mais do que mera descrição de pormenores risíveis, os detalhes do quotidiano


ajudam a compor um ambiente em franco declínio, detalhando a efemeridade das
preocupações da esposa e a incompatibilidade de suas aspirações com os conflitos surgidos
repentinamente. Tanto que, à medida que o cerco contra Arandir se fecha, os elementos
prosaicos diminuem, até que são totalmente extintos. O que permanece são os momentos de
tensão, enquanto as partes risíveis ficam muito mais restritas. Nesse caso, destaco a cena
em que Amado Ribeiro, bêbado, atende Aprígio:

AMADO – Estou safado da vida. Imagine que, a arrumadeira, uma preta gorda.
(Baixo e sórdido) Emprenhou. Ela faz aborto em si mesma. Com talo de mamona.
(Com fina malícia) Não deixa de ser uma solução. (Muda de tom) Mas parece que,
desta vez, houve perfuração. Perfuração. Está morre, não morre. Vai morrer.
(Pigarreando e com certo quê de culpado) Mas olha cá: – eu não tenho nada com o
peixe. O filho não é meu! (Muda de tom, um pouco perturbado) Vamos nós. Qual é
o drama?112

110
RODRIGUES, Nelson. Op. cit., 1990, p. 106.
111
Idem, p. 108.
112
Idem, p. 141. Grifo meu.
164
A sordidez da cena, que ganha tons grotescos pela intensidade, com o repórter
bêbado, falando do aborto da arrumadeira “preta gorda” e negando uma culpa evidente,
destaca o trágico cômico da personagem.
Sábato Magaldi, na introdução ao teatro completo do dramaturgo, tem restrições
quanto à qualidade literária da peça, julgando-a menor em relação ao conjunto da obra. O
motivo dessa contestação é o uso do recurso melodramático no final da ação. Diz ele:

Contrariando a norma rodrigueana dos vínculos familiares, ao fazer-se a


revelação do amor de Aprígio por Arandir, a surpresa do leitor/espectador não
remete aos cânones da melhor literatura. Dificilmente se deixa de pensar em golpe
de melodrama. Apenas em termos de estética popular, diversa do método
empregado em toda a construção da peça, se aceita o desfecho surpreendente.
(...) De fato, considero difícil aceitar O beijo no asfalto entre as obras-primas
de Nelson, em virtude da solução inconvincente.113

O crítico nega o status de “melhor literatura” ao melodrama. Por esse motivo,


também é negado à peça o estatuto de boa literatura. Creio, no entanto, que a peça mostra a
maturidade do dramaturgo ao incorporar em sua construção elementos variados: o
melodrama, o expressionismo, o urbano e o drama para a composição de sua tragédia
urbana. Sobretudo, seu final composto por um golpe de teatro é prenunciado e
esteticamente bem delineado ao criar a expectativa no leitor/espectador a respeito da
ambigüidade presente na personagem de Aprígio. Por fim, de maneira alguma o uso do
recurso melodramático empobrece o texto, ainda que o uso de seu termo para as peças
teatrais tenha sido atrelado a um sentido pejorativo ao longo da história do teatro brasileiro.
Não apenas Nelson Rodrigues, mas diversos dramaturgos recorreram ao melodrama para
incorporar um apelo dramático ao texto, a fim de garantir o sucesso entre o público114.
O atropelamento, fulcro da trama de O beijo no asfalto, significa a interrupção
brutal do quotidiano de uma cidade. Procedimento semelhante se transporta à linguagem e à
composição das cenas, em que há uma ruptura brusca do ritmo da ação. Os diálogos
sincopados, que em O beijo... adquirem relevo significativo, foram apontados como a

113
MAGALDI, Sábato. Op. cit., 1990, p. 16.
114
Ver HUPPES, Ivete. Op. cit., 2000.
165
principal contribuição rodriguiana para o teatro brasileiro115. Em A falecida, o dramaturgo
inicia seu diálogo conciso, repleto de interrupções, que dá à cena uma ligeireza ao
desenvolvimento das ações. Eudinyr Fraga nem sempre acha o recurso adequado:

Ambas as peças [A falecida e O beijo no asfalto] desenrolam-se num clima


paroxístico, que aumenta de cena para cena, com o diálogo feito de frases breves,
mais acentuado ainda em O beijo, em que a concisão se transforma quase em
maneirismo. Este recurso será mais e mais utilizado pelo dramaturgo em peças
como Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas Ordinária, e dará a sensação incômoda
de estar sendo usado sem real necessidade, apenas, porque “faz parte do meu
estilo”.
(...)
O curioso é que essa estilização, tanto no verbal como no desenho das
personagens, esteja, por obra e graça da maestria nelsonrodrigueana, em perfeita
consonância com a pintura exata e precisa do ambiente muitas vezes sórdido e
desagradável, quase naturalista, em que se passam ambas as peças.116

No caso específico de O beijo no asfalto, em que as frases sem objeto compõem


parte dos diálogos, essa forma estilística representa a ruptura brutal a que a vida, os sonhos
e os desejos são submetidos neste texto.

Você. Escuta. Você é criança. Nem deve dizer isso. Certas coisas. Sabe como é
o mundo. (Aprígio)117

Deus me livre! A senhora não entendeu. Eu não ponho em dúvida.


Absolutamente. (Repete) Em absoluto! Não ponho. Mas há uma parte no jornal. A
senhora leu tudo? (D. Matilde)118

115
Bárbara Heliodora, em entrevista concedida ao programa Roda Viva, da TV Cultura, em 26 de janeiro de
1998, comenta que a maior contribuição de Nelson Rodrigues para o teatro brasileiro foi trazer para o palco a
língua brasileira: “...o Nelson, que tinha um ouvido de repórter que era uma coisa extraordinária, trouxe para
o palco o linguajar brasileiro, e isso é uma coisa que nós todos devemos a ele”. Os diálogos sincopados
seriam, assim, mais uma forma de transpor o coloquial para o texto literário. Célia Berrettini, por sua vez,
aponta a linguagem como outro fator de renovação teatral iniciado por Nelson Rodrigues: “Essa renovação se
fez sentir, também, e sobretudo, no domínio da fala: Nelson Rodrigues criou uma nova linguagem, abrindo
caminho a não poucos dramaturgos. Se os dramaturgos da geração anterior faziam uso de um diálogo
artificial, um tanto empolado e distante da fala corrente, diária, já Nelson Rodrigues adota uma linguagem que
é o reflexo das conversas do homem comum, com sua gíria, com seus modismos, com seus defeitos de
vocabulário, com suas incorreções gramaticais, com suas interrupções, enfim com muitas das características
da linguagem coloquial”. (A linguagem coloquial de Nelson Rodrigues. In: O teatro ontem e hoje. São Paulo,
Perspectiva, 1980. p. 160.)
116
FRAGA, Eudinyr. Op. cit., 1998, pp. 157-158.
117
RODRIGUES, Nelson. Op. cit., 1990, p. 100.
118
Idem, p. 114.
166
Coração, olha. No emprego e aqui na rua. Eu sei que aqui na rua. Ninguém
acredita em mim. E, hoje, quando eu saí do emprego. Meu bem, escuta. Fiquei
andando pela cidade. (...) (Arandir)119

As ações e os pensamentos das personagens são interrompidos em sua continuidade


e são assim transportados para os diálogos, quadros e atos, que são igualmente cortados.
Seria simplesmente uma inadvertida inserção do recurso estilístico do autor ou um
maneirismo, como disse Fraga?
Adorno, em Sinais de pontuação120, compara o uso de cada sinal de pontuação a um
recurso musical ou a uma expressão corporal (uma boca aberta para os dois pontos, um
dedo em riste para o ponto de exclamação). Interessante que, ao fazer essa relação com a
música, o filósofo aponta uma cadência específica para cada sinal, revelando uma
sonoridade e a intenção do autor subjacente ao utilizar cada recurso.

A vírgula e o ponto correspondem à cadência interrompida e à cadência


autêntica. Pontos de exclamação são como silenciosos golpes de pratos, pontos de
interrogação são acentuações de frases musicais no contratempo, dois-pontos são
acordes de sétima da dominante; e a diferença entre vírgula e ponto-e-vírgula só
será sentida corretamente por quem percebe o diferente peso de um fraseado forte e
fraco na forma musical.121

Seja como expressão de autoridade, de sensibilidade ou ironia, a pontuação é um


recurso com o qual o escritor precisa ter cuidados, devido à impossibilidade de manter um
controle de seus usos. É por meio dela que se traduz uma intenção, um desleixo ou uma
vontade subjetiva. O autor não pode confiar nas regras, mas também não pode desprezá-las,
diz o filósofo.
O que se vê em O beijo no asfalto é um uso muito pessoal do ponto, com a
interrupção da cadência, nas palavras do filósofo, ou da continuidade das ações. Não é
propriamente o rompimento brutal da regra ao não colocar o objeto da frase. Antes, a
utilização ajustada à estrutura da peça, aliada ao tema – o atropelamento que dá início ao

119
Idem, p. 128.
120
In: ADORNO, Theodor W. Notas de literatura I. Tradução e apresentação de Jorge de Almeida. São Paulo,
Duas Cidades; Ed. 34, 2003.
121
Idem, p. 142.
167
infortúnio de Arandir, este também a própria interrupção de seus sonhos e desejos –, o que
ajuda a construir a própria noção de tragédia urbana.

É preciso pensar no teatro de Nelson Rodrigues como “um ponto de intersecção”122


de formas variadas, as quais Ismail Xavier identifica como o drama moderno de Strindberg
e O’Neill e o melodrama popular. O beijo no asfalto é um bom exemplo do quanto o
dramaturgo se aproveitou de referências diversificadas para a composição do seu teatro,
aliadas a uma consciência dramática oriunda, parcialmente, de sua experiência jornalística.
O teatro rodriguiano “marca a continuidade do núcleo familiar como centro do drama mas
encena o fait divers, as mazelas da vida comum burguesa e do pobre da cidade”.123 De fato,
a maior referência para o autor é a sociedade moderna, as implicações que ela pode trazer
às formas dramáticas e sua crise de valores.
Nessa dramaturgia, o sofrimento humano é inerente à existência. Ao homem,
impedido de enfrentar seu destino de malogro, nada resta senão sucumbir às forças
externas. São as contingências sociais que o derrubam, sem chance de lutar, nem de
conscientizar-se dos fatores que o levaram até aquele abismo individual. Assim, Arandir e
Zulmira são exemplos da fragilidade do homem solitário, inserido em um ambiente hostil
potencializado por forças sociais arbitrárias. Os protagonistas das duas peças se deparam
com a impossibilidade de luta, são destruídos pelas circunstâncias a que estão sujeitos e
pelas quais foram absorvidos. Deflagrada em ambos os casos por um erro trágico sui
generis – pois não se trata do erro clássico –, sua destruição revela a tragicidade presente
na obra do dramaturgo, ainda que construída de uma maneira diferenciada pelos recursos
genéricos diversos.
De todo modo, as experiências estéticas ensaiadas por Nelson Rodrigues definirão
parte do rumo tomado pela dramaturgia brasileira após a década de 50. Essa influência, ou
essa abertura, explicam o epíteto do dramaturgo de delineador dos novos caminhos na
dramaturgia moderna brasileira, mesmo que isso tenha ocorrido de forma controversa,
como demonstrei no primeiro capítulo. A mescla de gêneros, nitidamente proposital, para a

122
XAVIER, Ismail. Op. cit., 2003, p. 165
123
Idem, ibidem.
168
constituição de suas tragédias – que lhe proporcionariam um status diferenciado e buscado,
com todos os seus equívocos, desde João Caetano124 – fez dele um inovador, um ensaiador
de novas formas teatrais.

124
Cf. PRADO, Décio de Almeida. João Caetano. São Paulo, Perspectiva, 1972.
169
CONSIDERAÇÕES FINAIS
FECHANDO O CICLO: NOVOS FORMATOS DRAMÁTICOS

I. Conjuntos dramáticos

S ábato Magaldi consagrou a obra de Nelson Rodrigues ao estabelecer uma


divisão por temas: as peças psicológicas, as míticas e as tragédias cariocas. Foi,
aliás, após a edição do teatro completo com sua introdução que o dramaturgo se tornou um
cânone nacional. Não pretendo criar uma divisão genérica da obra contestando a de
Magaldi, mas sim propor uma leitura de conjuntos dramáticos a partir das aproximações de
possíveis formatos estéticos. Sobretudo, não é meu propósito classificar todas as peças do
conjunto dramático rodriguiano, apenas aproximar outros textos dos que foram analisados
nos capítulos.
Ao longo da tese, denominei os conjuntos de tragédias, farsas, comédias trágicas e
tragédias urbanas e me dediquei à análise de alguns textos que compõem esses grupos.
Assim, no primeiro, reuni as peças Álbum de família, Anjo negro e Senhora dos afogados.
A escolha do dramaturgo em isolar as famílias protagonistas desses textos, levando-os a
uma inevitável caminhada para seu destino trágico e a inexorabilidade de uma vida feia, vil
e trágica são alguns dos aspectos que as unem. Além disso, são peças que incorporam em
sua estrutura uma aproximação, embora às avessas, com os elementos da tragédia clássica,
como o coro, a máscara e o tipo do herói. Mesmo que contenham ao longo das cenas
elementos do grotesco, fortalecendo a comicidade, eles estão voltados para a construção do
sentido do trágico.

As peças que denominou de “tragédias”, escritas muitas delas em sucessão


imediata a Vestido de noiva, inspiravam-se no modelo supremo com que tantas
vezes lhe acenara a crítica – o teatro grego, nada menos que o grande teatro grego,
de Ésquilo, de Sófocles, de Eurípedes. (...) Esse [seus demônios interiores],
indubitavelmente, o alicerce de peças como Álbum de família, Anjo negro, Senhora
dos afogados, concedendo-lhes uma inconfundível semelhança com a tragédia
grega: enquanto forma, por exemplo, a divisão nítida entre os protagonistas,
portadores dos conflitos, e o coro que emoldura a ação, formada por vizinhos,
parentes, circunstantes; e enquanto conteúdo, as famílias marcadas pelo sofrimento,
designadas para o dilaceramento interior, com a maldição que as obriga ao crime e
ao castigo passando de pais a filhos.1

De condição semelhante à de Jonas, Ismael e Misael, Seu Noronha é o patriarca da


família de Os sete gatinhos. Enquanto Jonas devota um sentimento incestuoso pela filha
Glorinha, Seu Noronha dedica seus esforços para a realização de um casamento “direito”
para a filha caçula, Silene. Além de um desejo dos patriarcas por elas, as duas personagens
suportam outras aproximações: colocadas em colégio interno (para tirá-las do ambiente
dissoluto da família?), são expulsas por desvio de comportamento. Glorinha foi
surpreendida beijando outra menina, enquanto Silene matou uma gata prenha na frente de
todas as crianças do colégio. Ainda que preservadas do ambiente em decomposição em que
ambas as famílias vivem, elas não conseguem se libertar da herança à qual estão sujeitas.
Glorinha vê na figura de Cristo a imagem do pai, em explícita devoção incestuosa,
enquanto Silene mata uma gata prenha por ela mesma estar grávida, dando continuidade à
fatalidade da família, em que todas as irmãs foram prostituídas.
A família de Os sete gatinhos também tem certa proximidade com as famílias
trágicas das outras peças. Noronha erigiu sua autoridade familiar a ponto de isolá-los em
um mundo privado e autodestrutivo. Na tentativa de manter a imagem de Silene envolta em
santidade, protegendo sua virgindade, ele favorece a prostituição de todas as outras filhas
para dar um casamento digno à caçula:

“SEU” NORONHA (quase chorando) – Silene, tão menina e tão virgem! (muda
de tom) Mas eu juro! Não hei de morrer sem levar Silene, de braço, até o altar, com
véu, grinalda, tudo!
D. ARACY – Se Deus quiser!
“SEU” NORONHA (estendendo as duas mãos crispadas para as filhas) – É
preciso salvar a minha virgenzinha, que nem seios tem!2

Contínuo na Câmara dos Deputados, Noronha procura esquecer em casa a


humilhação de sua função no trabalho por meio da autoridade agressiva. É, no entanto,
mais um exemplo de autoridade inautêntica, desmantelada facilmente pelas revelações

1
PRADO, Décio de Almeida. Op. cit., 2001, pp. 51-52.
2
RODRIGUES, Nelson. Op. cit., 1985, p. 208.
172
feitas ao longo da ação: a gravidez de Silene, com a conseqüente subversão do mito de
Silene, e a prostituição das filhas pelo próprio Noronha e, por conseguinte, a ruína da
própria estrutura familiar. A fragilidade de sua suposta força fica evidente desde o início,
quando em uma reunião familiar, Arlete, uma das filhas, o confronta:

“SEU” NORONHA (iluminado) – Você! (lento) Sim, você, aqui, é a que tem
boca mais suja; e a única que não topa a minha autoridade... (crispando a mão no
seu braço) O que é que você foi fazer lá no banheiro?
(...)
ARLETE (como se cuspisse) – Contínuo!3

Aqui fica nítido o quanto sua posição social é humilhante, tanto fora do âmbito
familiar quanto entre as filhas e a esposa. Arlete vê na profissão do pai uma arma contra sua
autoridade. Moralista, Noronha não aceita as atitudes das filhas, acha-as indecentes, motivo
pelo qual elas não teriam se casado. Como em um “fundo falso”, para usar a expressão de
Flora Sussekind, esse moralismo do patriarca vai se desnudar e expor a verdade imposta
por trás de suas atitudes: é ele o responsável pela corrupção familiar.
Ao contrário de Álbum de família, Anjo negro e Senhora dos afogados, a peça Os
sete gatinhos não é ambientada em um universo mítico, mas está próxima àquele de O beijo
no asfalto. A cena se abre quando Aurora encontra Bibelot na fila de ônibus. A rubrica
inicial ressalta que eles se conheceram no dia anterior, quando “viajaram em pé [no
lotação], cada qual pendurado na sua argola”. A inversão da ambientação não abala a
estrutura de Os sete gatinhos, que está muito mais próxima à das tragédias do que do
formato das peças urbanas, porque nela há aquela inevitável destruição provocada pela
convivência fechada dos membros da família. Ressalta-se o grotesco da decomposição de
seus representantes, apontando para uma vivência deteriorada no ambiente familiar: D.
Aracy, chamada de Gorda, escreve obscenidades na parede do banheiro porque o marido
não a procura mais como mulher (“...eu não tenho marido! Há quanto tempo você não me
procura como mulher?”4), Arlete, a filha lésbica, beija mulheres na boca para se “sentir
menos prostituta” e Noronha, finalmente, é o homem que leva à perdição as mulheres da

3
Idem, p. 204.
4
Idem, p. 230.
173
família, aquele que “chora por um olho só”. A representação da vulgaridade, da perversão e
do sofrimento define a peça, ambientada em um subúrbio do Rio de Janeiro.

A valorização da vulgaridade, desde que expressiva estética ou socialmente,


como acontece nos contos de Dalton Trevisan e Rubem Fonseca, trouxe de volta o
nome de Nelson Rodrigues, um tanto obscurecido após 1964 por seu apoio
ostensivo aos governos militares no auge da repressão política. Mas o que se
distingue nele em 1980 já não é tanto o trágico de envergadura grega celebrado na
década de quarenta, nem o precursor do teatro do absurdo. Ressalta-se, de
preferência, o iconoclasta da moral burguesa (somente no que se refere ao sexo) e,
mais ainda, o retratista impiedoso de uma realidade tanto mais nacional por ser
arraigadamente carioca e suburbana. Elogiado a princípio pela grandeza universal
de seus mitos poéticos, acabou por ser admirado – ao menos provisoriamente –
pelas razões opostas, por estar tão colado, através de uma quase imperceptível
camada de ironia, a um Brasil feio, sofrido e pobre.5

Das farsas, além de Viúva, porém honesta, Nelson assim denominou Dorotéia, que
também escapa para o campo mítico, com uso de elementos simbólicos, possuindo uma
estrutura nitidamente diversa da primeira. Preferi não me deter nesse grupo por entender
que seria preciso um estudo mais detido acerca do cômico na obra dramática de Nelson
Rodrigues, enquanto o objetivo aqui é investigar o trágico. Por isso, fica apenas registrada a
existência desse grupo, pois prefiro aprofundar minhas considerações acerca dos outros
dois: a análise das comédias trágicas e das tragédias urbanas.
Devido à sua estrutura cômica, A falecida faz parte do conjunto das comédias
trágicas. Trágica porque há o malogro de todas as personagens principais ao final da peça,
seja um enterro ordinário para Zulmira, a completa solidão para Tuninho, uma conquista e
um enterro luxuoso não realizados para Timbira ou o prejuízo sofrido por Pimentel, tendo
de pagar muito caro por um caso já quase esquecido. De todo modo, A falecida é uma peça
que passa rente ao cômico, pois faz rir, brinca com as situações, com as gírias e a vida
suburbana do Rio de Janeiro. Esse espaço é utilizado para apontar as mazelas de uma vida
repleta de privações, ampliando de forma expressionística os momentos do grotesco e do
prosaico, com o intuito de impingir ao texto o caráter do mau gosto.

5
PRADO, Décio de Almeida. Op. cit., 2001, pp. 130-131.
174
Igualmente desenvolvida sobre as estruturas da comédia, mas com forte recorrência
ao sentido trágico, A mulher sem pecado se aproxima de A falecida. No primeiro texto, as
influências da comédia ligeira são evidentes, embora ele tenha tentado inserir seu texto no
conjunto dos dramas, o que o colocaria no patamar a salvo do menosprezo secular sofrido
pelo cômico por parte da crítica teatral erudita de todos os tempos e de todos os lugares.
Talvez por isso, conforme apontei no primeiro capítulo, os críticos da época reconheceram
a peça como uma comédia, acertadamente, não conseguindo perceber seu caráter trágico.
Mas é pouco provável que o dramaturgo já tivesse, em 1942, seu projeto estético bem
definido, o que contribuiu para que A mulher sem pecado permanecesse distante de algum
tipo de renovação teatral.
Vejamos: Olegário é o marido ciumento que atormenta a vida da esposa. A fim de
testar sua fidelidade, ele se finge de paraplégico e permanece seis meses em uma cadeira de
rodas. Quando, enfim, se convence de que a esposa lhe é fiel, levanta-se e, em um golpe de
teatro, descobre que ela fugiu com o motorista.

OLEGÁRIO – Foi uma experiência... Uma experiência que eu fiz com Lídia...
Precisava saber, ter uma certeza absoluta, mortal... Agora sei, agora tenho a
certeza... Há, no mundo, uma mulher fiel... É a minha... E perdão, Maurício...
Chama a tua mãe... Ela que me perdoe também... Vou-me ajoelhar diante de Lídia...
(exaltado) Milhões de homens são traídos... Poucos maridos podem dizer: “Minha
mulher”... eu posso dizer – minha! (riso soluçante) Minha mulher (corta o riso,
senta-se na cadeira) (grita) Lídia! Lídia.
(...)
VOZ DE LÍDIA (microfone) – Olegário! Parto com Umberto. Nunca mais
voltarei. Não quero seu perdão. Adeus. Lídia. Nunca mais voltarei. Nunca mais...6

O final que o aguarda é a morte, por meio do suicídio, mas seu desfecho trágico é
reconhecer que a esposa o deixou porque ele a induziu a isso. Como é próprio do herói
trágico, ele mesmo traça seu destino, inevitavelmente ligado à desdita. Aqui já estão
presentes as principais características do texto de Nelson Rodrigues, em especial essa
tendência a infligir um implacável fim às suas personagens.
Um fator sempre levantado sobre a peça é sua característica psicológica. Olegário é
um homem atormentado pelo ciúme que o atormenta. Quando ele está em cena, em
6
RODRIGUES, Nelson. Teatro completo. vol. 1. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1981. pp. 102-103.
175
momentos de maior conflito, “uma menina de dez anos, com um vestido curto, bem acima
do joelho, e sempre com as mãos cruzadas sobre o sexo” também aparece e, algumas vezes,
atravessa o palco. A rubrica ressalta que “essa é uma figura que só existe na imaginação
doentia do paralítico”7. Trata-se da imagem de Lídia aos dez anos. Esse caráter mórbido do
caráter de Olegário, que o empurra a seu destino, será aprofundado na peça seguinte,
Vestido de noiva, considerada por muitos o marco do teatro brasileiro moderno.
Importante ressaltar que A mulher sem pecado já apresenta a mescla de gêneros
comum ao dramaturgo: se a peça pode ser caracterizada como comédia trágica, não é
possível desconsiderar o fato de que estão presentes recursos melodramáticos marcantes.
No final de cada ato, por exemplo, há o suspense marcando a cena, em que o tom é aquele
reconhecidamente melodramático, cercado de exagero. No primeiro ato, apenas para dar
uma amostra curta, Olegário diz à esposa que o amante sofreu um desastre de automóvel e
ficou com as pernas esmagadas:

(O pano começa a descer lentamente.)


OLEGÁRIO (gritando) – Foi ele! Ele, o seu amante! Ficou com as duas pernas
esmagadas!
LÍDIA (num sopro de voz) – Não! Não...
OLEGÁRIO – Seu amante! Seu amante! (riso de louco)
(Lídia cai de joelhos, aos pés de Olegário, chorando como uma alucinada.)8

Somente no início do segundo ato saberemos que o desespero de Lídia é provocado


pela insistência do marido em afirmar que ela tem um amante, embora a cena termine com
a aparência de que Olegário realmente tenha descoberto algum segredo da esposa. Esse
recurso do suspense melodramático também será usado em outros textos, como em O beijo
no asfalto, cujos atos terminam de forma semelhante.
Próximas pela importância dos elementos citadinos, O beijo no asfalto e Boca de
Ouro podem ser chamadas de tragédias urbanas. O principal aspecto deste grupo não é
apenas a presença de elementos significativos do Rio de Janeiro ou do ambiente urbano,
mas eles têm função definidora para o desenvolvimento da ação, repercutem na construção
das personagens e se tornam fundamentais para o desfecho trágico da peça. Ainda que essas

7
Idem, p. 45.
8
Idem, p. 66.
176
peças tenham momentos de prosaísmo e passagens cômicas, esses recursos não alteram o
sentido geral do texto, tendendo fortemente para a representação trágica da existência.
Diferem-se das tragédias porque não têm a tendência ao isolamento, tampouco trabalham
com as grandes referências da tragédia ática; ao contrário, elas se voltam inteiramente para
uma noção de tragédia moderna ou se aproximam da tragédia pessoal definida por
Raymond Williams.
Por aproximação, Vestido de noiva também pode assim ser caracterizada. O texto
mais marcante do dramaturgo, ainda que tenha como primeiro plano as divagações
psicológicas de Alaíde, é a cidade seu ambiente consagrado. A peça inicia, por exemplo,
com o atropelamento de Alaíde: “Buzina de automóvel. Rumor de derrapagem violenta.
Som de vidraças partidas. Silêncio. Assistência. Silêncio”9. Os mesmos sons para
identificar o atropelamento serão repetidos algumas vezes. As demais referências que se
seguem também são da esfera urbana: o jornal que noticia o atropelamento de uma mulher,
os pequenos jornaleiros vendendo os exemplares diários, os médicos durante a cirurgia de
Alaíde.

PIMENTA – É o Diário?
REDATOR – É.
PIMENTA – Aqui é o Pimenta.
CARIOCA-REPÓRTER – É A Noite?
PIMENTA – Um automóvel acaba de pegar uma mulher
REDATOR D’A NOITE – O que é que há?
PIMENTA – Aqui na Glória, perto do relógio.10

MULHER – Eu moro aqui num apartamento, na Glória! Vi um desastre


horrível!
REDATOR DO DIÁRIO – Uma mulher atropelada.
MULHER – A culpa foi toda do chofer. Eles passam por aqui, o senhor não
imagina! Então, quem tem criança!...
REDATOR DO DIÁRIO – Claro!
MULHER – Quando a mulher viu, já era tarde! O Diário podia botar uma
reclamação contra o abuso dos automóveis!11

9
Idem, p. 109.
10
Idem, p. 111.
11
Idem, p. 125.
177
Não se trata, aqui, de uso semelhante ao de O beijo no asfalto, em que o jornal é o
grande vetor da história; ou como em Boca de Ouro, em que é responsável pela
investigação da vida misteriosa do bicheiro de Madureira, tornando-se o canal de desabafo
da ex-amante. O jornal, em Vestido de noiva, é o elemento do quotidiano da cidade grande,
lugar das informações, em que pese a displicência dos jornalistas. É também o lugar dos
comentários prosaicos, da vida comum, onde se centralizam os fatos concretos para a
reconstituição do que aconteceu com Alaíde. O ambiente urbanizado em que ocorreu o
acidente não é, de forma alguma, uma crítica, uma restrição ou uma denúncia. Inserir uma
leitora que liga para o jornal reclamando dos automóveis representa apenas o banal da
situação e como é tratado tanto por jornalistas quanto por leitores. Mas, por trás de um fato
banal, um atropelamento, surge concretamente o dilaceramento de uma verdade interior,
uma mente confusa e em constante decomposição. Vestido de noiva está, assim, também
muito próxima da denominada tragédia pessoal, mesmo que Nelson Rodrigues tenha se
preocupado em ajustá-la às teias urbanas cariocas.
As leituras aproximativas não têm a intenção de restringir ou enquadrar os textos.
São cadeias associativas que procuram apenas recuperar a pluralidade de formatos e de
representações do trágico rodriguiano. A constituição dessa diversidade acontece seja pela
inserção de temas próximos ao fait divers, seja pela inversão de temáticas e formatos
clássicos ou pela aproximação com o cômico. Há, em cada texto, em cada peça, a
reinvenção do sentimento trágico da vida. De toda forma, o que se vê é uma constante
quebra de formatos predefinidos.

Il y a toujours dans le rire, à quelque degré, une familiarité. Mais il n’y a


aucune familiarité possible avec les grandes figures tragiques, qui ont pour projet de
grands pouvoirs à conquérir ou à défendre, une aventure spirituelle, pour eux
question de vie ou de mort, un sacrifice qui sera « moment de la conscience
humaine ».12

12
DEGEN, Guy. Le rire de Bergson et l’esthétique de la comédie. In : CONESA, Gabriel. Op. cit., 1996, p. 148.
“Há sempre no riso, em algum grau, uma familiaridade. Mas não há nenhuma familiaridade possível com as
grandes figuras trágicas, que têm como projeto grandes poderes a conquistar ou a defender, uma aventura
espiritual, para eles uma questão de vida ou de morte, um sacrifício que será ‘momento da consciência
humana’.”
178
No teatro de Nelson Rodrigues, o riso pode ser de agonia, de desconforto, não
necessariamente de alegria e familiaridade. Por outro lado, suas figuras trágicas, como
Zulmira e Arandir, não têm grandes projetos a defender, tampouco são representações de
algo distante do público, são personagens representativas justamente do contrário, do
comum, do quotidiano, do prosaico. Mesmo assim, não lhes escapa o destino inelutável de
malogro.

II. Experiências estéticas

Vê-se então que, com relação à temática, o teatro de Nelson se encaminha


fundamentalmente em duas direções: pelo seu parentesco com o fait divers
desagrega os princípios básicos de classificação e causalidade que estruturam os
temas oficiais e além do uso de uma temática “desclassificada”, utiliza elementos
tradicionais, da dramaturgia ocidental e os transforma e inverte, tal como se
observava no caso de Hamlet e Hipólito.13

Desconstruir para depois reconstruir foi um procedimento seguido por Nelson


Rodrigues em relação ao trágico e à tragédia. Em outras palavras, o dramaturgo se apóia em
princípios básicos dos gêneros clássicos, inverte-os e camufla-os para construir sua própria
concepção de tragédia moderna ou de trágico. A partir da mescla de gêneros, surge uma
composição em mosaico a que ele denominou tragédia. Ele usa, como afirma Flora
Sussekind na citação acima, os elementos tradicionais dos gêneros mais clássicos e os alia a
temas ousadamente corriqueiros. A partir desse patchwork – termo utilizado por Sarrazac14
para definir o drama moderno –, surgem as experiências estéticas rodriguianas. Ao longo de
toda a tese, comentei essas inserções e influências entre os gêneros dramáticos nas peças.
Mas em que sentido as suas variações favoreceram a constituição de um drama moderno
brasileiro?
Comentei na introdução desta tese o livro de Peter Szondi, considerado hoje um
clássico sobre o drama moderno. Após o ápice da crise do drama, em que surgiram os

13
SUSSEKIND, Flora. Op. cit., 1977, p. 31.
14
SARRAZAC, Jean-Pierre. O futuro do drama: escritas dramáticas contemporâneas. Tradução de Alexandra
Moreira da Silva. Porto, Campo das Letras, 2002. “O autor do teatro dramático cria um mundo aparentemente
feito de uma só peça; o autor do teatro épico compõe um patchwork.” (p. 37)
179
estranhamentos quanto ao seu formato predefinido e sua incapacidade de representação das
temáticas próprias ao homem moderno, surgiram as tentativas de salvamento e,
posteriormente, as tentativas de solução15 da estrutura dramática. Na tentativa de
salvaguardar o estilo dramático tradicional, Strindberg, por exemplo, recorre ao formato
ameaçado do diálogo, uma vez que o monólogo, enquanto forma representativa do
isolamento, se tornava impossível. Nas palavras de Szondi,

A crise do drama na segunda metade do século XIX pode ser atribuída em


grande parte às forças que tiram os homens da relação intersubjetiva, empurrando-
os para o isolamento. Mas o estilo dramático, posto em questão por esse isolamento,
é capaz de sobreviver a ele quando os homens isolados, aos quais corresponderia
formalmente o silêncio ou o monólogo, são forçados por fatores externos a voltar ao
dialogismo da relação intersubjetiva. Isso acontece na situação de confinamento,
subjacente na maioria dos dramas modernos que evitaram o movimento em direção
ao épico.16

Submetidas portanto a tal confinamento social, as personagens, isoladas,


recorreriam ao monólogo como forma principal da composição dramática. No entanto, esse
mesmo confinamento “nega aos homens o espaço de que necessitariam em torno de si para
estarem a sós com seus monólogos ou em silêncio”17 e, por isso, voltam ao antigo formato,
que necessariamente será outro, com outro sentido.
No último momento, de tentativa de solução, já no século XX, as formas dramáticas
romperam totalmente com as regras do drama clássico, elaborando questionamentos
temáticos sancionados em seguida no texto e na encenação. O drama moderno, segundo
Peter Szondi, não tem, portanto, um formato único, mas múltiplo e variável conforme a
aspiração do dramaturgo ou do encenador. É o momento em que os dramaturgos
encontraram formas cênicas adequadas, assim identificadas pelo crítico: a dramaturgia do
eu (expressionismo), o teatro épico, a impossibilidade do drama, o monólogo interior e a
reminiscência.
August Strindberg criou o “drama de estação” como a representação formal do
indivíduo isolado, sendo ele ao mesmo tempo pessoal e impessoal, pois se confunde com

15
Títulos dos capítulos do livro de Szondi.
16
SZONDI, Peter. Op. cit., 2001, p. 113. Grifo meu.
17
Idem, p. 114.
180
“qualquer um”. A técnica do dramaturgo espelha então a representação entre o ser isolado,
alienado, e o mundo externo que se tornou estranho.

O expressionismo adota a técnica de estação de Strindberg como forma


dramática do indivíduo, cujo caminho por um mundo alienado ele busca configurar,
colocando-o no lugar das ações intersubjetivas.18

Embora, paradoxalmente, procure representar o indivíduo, o drama o limita e a


linguagem do subjetivismo, diz Szondi, “torna-se incapaz de enunciar algo de essencial
sobre o sujeito”19. O esvaziamento formal do eu torna-se, então, o princípio expressionista.
Ocorre, com isso, a renúncia às relações intersubjetivas e, na seqüência, a recusa da forma
dramática, considerada frágil demais.
O teatro épico de Brecht é a oposição ao drama “aristotélico”. O dramaturgo
procura problematizar as relações intersubjetivas, o que leva ao questionamento do próprio
drama. Ao invés de uma relação recíproca entre sujeito e objeto dramático, há a sua
oposição.

O processo sobre o palco já não esgota completamente a encenação, ao


contrário do que se dava no drama, em cujo seio a encenação ocupava papel
secundário. O processo é agora objeto de narrativa do teatro, que se relaciona com
ele como o narrador épico faz com o seu objeto: só da contraposição de ambos
resulta a totalidade do espetáculo.20

O isolamento e distanciamento dos elementos do drama tradicional nos convertem


em “objetos épico-cênicos”, denominados pelo dramaturgo como “efeitos de
distanciamento”. Eles são, agora, mostrados em cena. Assim, a relação intersubjetiva do
drama é tematicamente deslocada, “como que passando da falta de problematicidade da
forma para a problematicidade do conteúdo”21.

18
Idem, p. 124.
19
Idem, p. 125.
20
Idem, p. 135.
21
Idem, p. 139.
181
Pirandello, por sua vez, ao colocar em cena personagens que estão à procura de um
autor, coloca também a impossibilidade do drama em questão. Szondi considera Seis
personagens à procura de um autor como uma peça épica, não dramática.

Os pressupostos existenciais do drama quase nunca foram colocados em


questão com tal acuidade como na filosofia de vida subjetivista de Pirandello. É
sobretudo devido a este subjetivismo que o drama dos seis personagens fracassou e
é a partir dele que se entende a busca eterna e infrutífera de um autor.22

Segundo o crítico húngaro, a peça é, por excelência, uma crítica ao drama, é o


próprio drama posto em questão, transformando-se em temática. Haveria no texto de
Pirandello duas camadas: a dramática, o passado das seis personagens, e a épica, o
aparecimento das personagens na tentativa de realizar o seu drama. “Eles narram e
representam seu próprio destino, e o diretor e sua trupe formam o público”23.
Além desses novos formatos, Peter Szondi fala do monólogo interior de Eugene
O’Neill como a revelação do íntimo do homem, que não consegue comunicar a outro os
próprios pensamentos. O aparte, como é então chamado o monólogo interior, coloca-se
como um relato psicológico de um eu-épico. Por fim, o crítico ressalta a reminiscência de
Arthur Miller, também inserida em um contexto de adaptação da épica temática no interior
da forma dramática: “a preocupação do homem consigo mesmo e com a reminiscência do
passado, que só depois da supressão do princípio formal dramático pode se manifestar
como tal”24, diz a respeito de A morte do caixeiro-viajante.
A tônica do drama moderno, para Szondi é, portanto, a supressão da forma
dramática tradicional, substituída que foi pela épica; ou seja, ao contrário da conciliação
entre o sujeito e seu objeto, natural do dramático, há a cisão desses elementos, surgindo o
épico. Por isso, Bertolt Brecht seria o símbolo maior do moderno.
Jean-Pierre Sarrazac cria a imagem do escritor-rapsodo, aquele “que junta o que
previamente despedaçou e, no mesmo instante, despedaça o que acabou de unir”25 para
definir o escritor da dramaturgia pós-Brecht. Procurando dar continuidade às teorizações de
22
Idem, pp. 149-150.
23
Idem, p. 151.
24
Idem, p. 176.
25
SARRAZAC, Jean-Pierre. Op. cit., 2002, p. 37.
182
Szondi, o crítico francês substitui o termo “sujeito épico” por “autor-rapsodo” para se
referir às produções dramáticas contemporâneas na França. Nesse sentido, ele investiga
quais foram as experiências dramáticas provocadas pelos autores franceses e o que emerge
no campo do drama moderno e contemporâneo.
A inserção dos elementos do romance na estrutura dramática é, para ele, o moderno
per se. A obra híbrida, no entanto, está presente na literatura francesa desde Diderot, para
quem o romance é o estado original de uma peça.

Ao questionarmo-nos sobre o aparecimento de um teatro rapsódico, ou seja,


composto por momentos dramáticos e fragmentos narrativos, acabamos por nos
interrogar se a nossa tradição teatral não esconde há muito tempo uma parte
refractária à forma dramática, uma parte épica.26

Ao contrário de Szondi, que considera que a estrutura dramática tradicional foi


suprimida pela épica, Sarrazac vê nas obras modernas a mescla dos dois gêneros literários.
E usa como metáfora, para exemplificar o seu formato, a parábola contada por Kafka:

A parábola da obra moderna, podemos ouvi-la da boca de Kafka. É a parábola


do “Cruzamento”: “Eu tenho um estranho animal, metade gatinho, metade cordeiro.
Herdei-o do meu pai. Mas só se desenvolveu quando eu cresci; antes era mais
cordeiro do que gato. Agora tem coisas dos dois. Do gato, tem a cabeça e as garras;
do cordeiro, o tamanho e a forma; dos dois, os olhos vacilantes e selvagens, o pêlo
macio e curto, os movimentos, que tanto podem ser saltos como rastejos”.27

Esse hibridismo genérico provocou alterações em todos os elementos: no espaço, no


tempo, na linguagem, nas personagens, sem suma, na estrutura geral no drama moderno. A
linguagem é a da ruptura, quando o silêncio é, segundo Sarrazac, imposto ao diálogo –
enquanto para Szondi era o monólogo que substituía a forma dialógica. Quanto ao espaço, o
drama moderno centra-se em uma crise interior, que desune o espaço doméstico, é um
“espaço minado, ao mesmo tempo familiar e ameaçador”28. Conseqüentemente, a tendência
no teatro moderno (e contemporâneo) é a de um estreitamento do seu espaço, limitando-se

26
Idem, p. 49.
27
Idem, pp. 53-54.
28
Idem, p. 86.
183
a ambientes fechados e pequenos: um quarto, apartamento, espaços privados. Quanto às
personagens, há uma perda progressiva da identidade, ocorre sua fragmentação e/ou
anulação. Sarrazac escolhe Beckett, com Esperando Godot e Fim de partida, para
exemplificar a desconstrução da identidade da personagem moderna, do mesmo modo
como nessas peças a linguagem também é fragmentada. Sobretudo, o quanto os dois
elementos dramáticos estão interligados: “Ao desconstruir um diálogo dramático, Beckett
põe em evidência a condição do homem na linguagem”29. A condição da personagem
moderna, submissa à linguagem, é sua identidade vacilante, inserida em uma linguagem
cujo caráter também é indefinido.
Essa forma rapsódica, como a chama Sarrazac, transforma profundamente não
apenas a estrutura geral das peças, mas provoca também a mistura do cômico com o
trágico, do grotesco com o patético, enfim, dos antigos registros teatrais. “De facto, diz o
crítico, há já bastante tempo que a forma dramática, no que nela existe com vida, não está
espartilhada em géneros distintos”30. No século XX, nós, espectadores e leitores, nos
deparamos com a extinção dos gêneros teatrais, sobretudo após as décadas de 70 e 80.
Negando a possibilidade da forma trágica pura, o crítico afirma o seguinte:

Nesta época, em que o trágico se fixa no dia-a-dia, em que as nevroses


assumem, por vezes, cores políticas e os negócios de Estado aspectos burlescos,
torna-se evidente que a velha divisão aristotélica, inteiramente tributária do tema
tratado, entre o cómico e o trágico e a divisão de géneros, estão ultrapassadas.
Produtos históricos, os géneros que a tradição nos transmitiu, reflectem, para além
deles próprios, a ideologia que contribuiu para a sua formação, perdendo assim toda
a pertinência aos olhos das realidades ambivalentes do nosso tempo.31

Com o surgimento de novos formatos, mesmo que com o desencorajamento das


tentativas de classificação, há uma proposta em comum: propor desvios para apontar o
mundo em que vivemos. A partir de formas, digamos, paródicas, em que ocorre esse
chamado hibridismo genérico, há a tentativa de remontar ao realismo sem dogmatismos.

29
Idem, p. 139.
30
Idem, p. 177.
31
Idem, pp. 178-179.
184
Para sua composição híbrida do drama, Nelson Rodrigues parte sempre de uma
noção predefinida de forma, como da tragédia, inverte e confunde suas referências e
desvela conceitos e concepções muito próprias. Essa estratégia, que não se limita à
composição estética do texto, é denominada por Flora Sussekind como fundo falso:

Nelson faz uso dessas relações [interpessoais], desses mecanismos [de


articulação de conceitos] e desses temas [da dramaturgia ocidental] de uma maneira
insólita, apontando para o fundo falso que procuram encobrir. Desnudando este
fundo falso, onde se articulam conceitos, temas e relações, o teatro de Nelson
Rodrigues vai obrigar o espectador a duvidar dessas mesmas idéias e da própria
imagem construída sobre elas.32

A composição do drama moderno rodriguiano ocorre em direções opostas. O seu


ponto de partida é o “tradicional”, tanto no que tange à composição dramática quanto às
definições genéricas. Ocorre, em sua obra, uso de elementos consagrados, como a estrutura
intersubjetiva e o diálogo, assim como a quebra deles. Se em O beijo no asfalto ele opta por
construir seu texto com base em conceitos tradicionais de drama, como o uso do diálogo,
do conflito e do herói, ele os utiliza para compor uma forma inovadora e símbolo de sua
maturidade dramática. Uma via de mão dupla, tendo de um lado o consagrado e, do outro, a
renovação.
Maior representante do drama moderno brasileiro, Vestido de noiva rompe com as
estruturas normativas do drama. Quando a peça estreou, em 1943, o público brasileiro já
conhecia autores modernos da literatura dramática mundial e havia muito se tentava alçar
os primeiros vôos nesse campo cênico entre nós, todavia, sem muito sucesso. Com um
significativo salto qualitativo entre A mulher sem pecado e Vestido de noiva, o dramaturgo
se insere definitivamente nas malhas do expressionismo, do freudismo e do drama
moderno.
A habitual divisão em atos é meramente ilustrativa nessas duas primeiras peças, pois
há um estreitamento do tempo entre as divisões. Terminado um ato, o outro se inicia
exatamente no mesmo ponto, praticamente sem interrupção. Além disso, ao expor em cena
os devaneios dos protagonistas – Olegário e Alaíde –, Nelson Rodrigues rompe com a

32
SUSSEKIND, Flora. Op. cit., 1977, p. 37.
185
denominada relação intersubjetiva. No caso de Alaíde é ainda mais inovador, uma vez que
a personagem, no plano da realidade, está moribunda, em uma mesa cirúrgica após ter
sofrido um acidente. Em outros planos, da memória e da alucinação, são suas lembranças
que definem a ação da peça, passando de um a outro praticamente sem transição alguma,
até ao ponto dos planos praticamente se confundirem – em perfeita sintonia com o estado
físico e mental de Alaíde no plano da realidade. O tempo é a mescla do passado remoto
(1905), o passado recente (o casamento de Alaíde e Pedro) e o presente (o atropelamento e
a reconstituição da memória).
Quanto às cenas de Vestido de noiva, elas têm uma composição à parte. No primeiro
ato, por exemplo, poder-se-ia dizer que se trata de uma cena inteira do plano da alucinação
entrecortada por vários pequenos quadros do plano da memória e da realidade. Alaíde vai
imaginariamente à procura de Madame Clessi, em 1905, para relembrar o que aconteceu
em sua própria vida, no passado recente. Ainda que apenas uma projeção da mente em
decomposição, a prostituta do início do século ajuda a protagonista a recompor sua
memória, pouco a pouco, passando eventualmente pela confusão instituída em Alaíde
devido à sua memória em decomposição. Já no segundo ato, o plano que se sobressai é
realmente o da memória: a reconstrução das lembranças de Alaíde sobre seu casamento. No
terceiro ato, dá-se importância ao plano da realidade, sobretudo após a morte de Alaíde,
com a cena do casamento de Lúcia e Pedro. Basta essa curta exemplificação para notar que
a estrutura da peça foge completamente ao tradicional, rompendo com os pressupostos mais
comuns no que diz respeito à estética dramática.
O indivíduo, nesse caso, está em decomposição, e não apenas sua memória.
Olegário (A mulher sem pecado), Alaíde (Vestido de noiva) e Sônia (A valsa nº 6) são
personagens que se constroem ou destroem a partir de seus conflitos. Olegário se destrói,
obcecado pela angústia de “ser ou não ser traído”. Alaíde e Sônia tentam, em plena
alucinação, se reconstruírem, buscando seus segredos interiores, em uma evidente relação
intrasubjetiva. No entanto, apesar dessa tentativa de reconstrução, há o encaminhamento
para a decomposição, notadamente sublinhada pela linguagem dramática.
Na reconstrução dos fatos em Vestido de noiva, as imagens se confundem no plano
da alucinação:
186
(Apaga-se o plano da memória. Luz no plano da alucinação.)
ALAÍDE (preocupada) – Mamãe falou em Lúcia. Mas quem é Lúcia? Não sei.
Não me lembro.
MADAME CLESSI – Então vocês foram morar lá? (nostálgica) A casa deve estar
muito velha.
ALAÍDE – Estava, mas Pedro... (excitada) Agora me lembrei: Pedro. É meu
marido! Sou casada. (noutro tom) Mas essa Lúcia, meu Deus! (noutro tom) Eu acho
que estou ameaçada de morte! (assustada) Ele vem pra cá (refere-se ao homem
solitário que se aproxima).
CLESSI – Deixa.
ALAÍDE (animada) – Pedro mandou reformar tudo, pintar. Ficou nova, a casa.
(noutro tom) Ah! Eu corri ao sótão, antes que mamãe mandasse queimar tudo!33

Alaíde, cuja consciência mescla imagens da alucinação e da memória, conforme já


comentei, interrompe a narrativa e a recomeça, intercalando os momentos de lucidez e de
alucinação. Além disso, no plano da memória, as intervenções de Clessi alteram o rumo dos
fatos:

(Alaíde passa ao plano da memória que se ilumina.)


PEDRO (levantando-se naturalmente e passando também ao plano da
memória) (puxa o relógio) – Está quase na hora. Temos que andar depressa; depois
do nosso, tem outro casamento.
ALAÍDE – Quer dizer que o outro casamento vai aproveitar a nossa
ornamentação?
PEDRO – Deixa. Não tem importância.
ALAÍDE – Ah! Pedro!
PEDRO – Que foi?
ALAÍDE (numa atitude inesperada) – Me esqueci que faz mal o noivo ver a
noiva antes. Não é bom! (vira as costas)
PEDRO – Isso é criancice! Agora não adianta! Já vi!
ALAÍDE (suplicante) – Vá, Pedro, vá!
(Entra a mãe de Alaíde.)
ALAÍDE (com um ar de sonâmbula) – O bouquet, mamãe?
CLESSI – Sua mãe não pode ser.
(A mãe volta em marcha-à-ré.)34

Em meio a um momento corriqueiro, da preparação para o casamento, a intervenção


externa de Clessi faz com que a mãe volte, como uma cena de filme projetada no palco,
interrompendo imediatamente a transmissão de informações. Alaíde se confunde e é preciso

33
RODRIGUES, Nelson. Op. cit., 1981, p. 116.
34
Idem, p. 126.
187
reconstruir passo a passo os fatos, com idas e vindas, tal como uma fita que se pudesse
rebobinar.
Em Vestido de noiva, o diálogo surge, em alguns momentos, como irreal ou
desconexo, deixando entrever a mente confusa da protagonista. Mas é em Valsa nº 6 que a
fragmentação da linguagem está em perfeita sintonia com a decomposição da personagem.
A peça, um monólogo, apresenta Sônia, adolescente de 15 anos, em franca alucinação.
Outras personagens, como a mãe, o pai, Dr. Junqueira, são representadas pela jovem,
fazendo coro para si mesma, como se fosse um “coro de comadres”.

(paródia de um delirante riso infantil. Transfigura-se. Lamento)


Não sei, meu Deus!
Isto é, sei! Foi assim.
(senta-se ao piano. Breve trecho da Valsa nº 6)
Eu estava tocando a Valsa, a pedido de alguém.
(para a platéia)
Foi, não foi?
Então, esse alguém veio devagarinho, pelas costas...
(golpe no piano)
E que mais, meu Deus? Que mais?
(fremente)
Não havia mais ninguém na sala. Só nós dois...
(golpe no piano)
Mas então eu tive um pressentimento... Parei de tocar... a pessoa pediu:
CONTINUE! CONTINUE!
(toca e pára)
Gritava: MAIS! MAIS! MAIS! SEMPRE MAIS!
(toca e pára)
E depois...
(para a platéia)
Que aconteceu depois?
(espantada)
As lembranças chegam a mim aos pedaços... Ainda mais agora, eu era menina...
(muda-se em menina. Corre, pelo palco, trocando as pernas)
Onde está a Margarida, olé, oli, olá?
(põe-se de joelhos para espiar as águas de imaginário rio)
Vejo restos de memória, boiando num rio.35

Assim continuam as transições de Sônia, entre a reconstituição de seus restos de


memória, as atitudes de menina e a representação das outras personagens. O próprio fato de

35
Idem, pp. 195-196.
188
ser um monólogo já seria o suficiente para apontar a obra como moderna. Deve-se também
considerar a construção da peça, baseada sempre nos fragmentos, fazendo da história de
Sônia um mosaico de imagens simbólicas.
São apenas alguns exemplos das experiências estéticas do dramaturgo, seja na
ruptura da estrutura dramática convencional, seja na extrapolação dos conjuntos genéricos
pré-estabelecidos. Experiências que fizeram dele um renovador teatral, alguém que ousou
testar novos formatos e projetou uma estética dramática própria, incorporando aspectos do
drama moderno (o expressionismo, por exemplo) a uma configuração estrutural “clássica”,
como foi o caso de O beijo no asfalto. Ou então, brincando com o formato da tragédia ática,
adequando seus heróis, o coro e outros elementos a um objetivo próprio, atrelado à cultura
nacional. Assim, Senhora dos afogados pode ser o exemplo em que esses usos deslocados
são ajustados à sua idéia de tragédia moderna.
Sua estética, portanto, ainda que baseada no desejo brasileiro de ter uma tragédia, é
composta por mesclas genéricas, sem o apaziguamento dos contrários: a comédia e a
tragédia dividem o mesmo texto, mas ambos os recursos mantêm-se intactos, sem
provocarem a anulação de seus sentidos. Ao contrário, estabelecem um conflito estético
fundador da tragédia rodriguiana. Nesse sentido, o uso de tragédia cômica seria mais
adequado que tragicomédia, uma vez que

Segundo Hegel, comédia e tragédia se aproximam na tragicomédia e se


neutralizam reciprocamente: a subjetividade normalmente cômica é aí tratada de
modo sério; o trágico é atenuado na conciliação.36

O hibridismo a que tenho me referido é composto, igualmente, por instrumentos


dramáticos modernos. Angela Leite Lopes define o uso desses elementos como um
“estilhaçamento do sentido do palco”37, quando há não apenas o rompimento das
definições, como também um questionamento do acontecimento teatral (em Vestido de
noiva) e o questionamento da própria personagem. Em outras palavras, o estilhaçamento a
que ela se refere é a mesma idéia da decomposição.

36
PAVIS, Patrice. Op. cit., 1999, p. 420.
37
LOPES, Angela Leite. Op. cit., 1993, p. 87.
189
É muito claro que o ponto em comum da dramaturgia rodriguiana é a teatralidade.
Em prol dessa característica foram sendo adaptados os elementos dramáticos, como os
gêneros, as funções, os temas. Nelson Rodrigues se move em um terreno movediço, o do
drama moderno, e ainda se beneficia de temas polêmicos, como a vida destrutiva familiar e
o inferno pessoal de cada protagonista. Para compor suas peças, lançou mão de inúmeros
recursos.

Longe da utopia de Diderot, a vida em família é aí [no teatro de Nelson


Rodrigues] um jogo corrosivo. Seu terreno é o do excesso, do golpe de teatro, dos
dispositivos que se afinam a protocolos explorados pelo melodrama no aspecto
“culinário” do espetáculo, mas se afastam do gênero nos seus pressupostos, pois o
desastre, em Nelson Rodrigues, deriva de conflitos irreconciliáveis, longe da
dinâmica de desequilíbrios e correções apta a fazer vingar o bom sentimento e a
razão em nome do bem comum. Não se excluem de todo as vantagens materiais,
mas vale muito mais o campo das instabilidades e caprichos do desejo, o que torna
as personagens mais surpreendentes, na ciranda de falsas aparências e revelações
inusitadas.38

A tragédia e o trágico, a comédia e o cômico, o melodrama e o melodramático. Aqui


nada está em seu lugar. Tudo está no caráter movente do teatro. Na tentativa de lidar com
as variantes teatrais, o jogo entre os recursos faz com que estes escapem à sua função e
sejam adaptados a um olhar sobre certo homem moderno, possivelmente um anti-herói,
fechado em sua individualidade e cercado por valores sociais caducos. O Rio de Janeiro
pode ser o pano de fundo para algumas peças, assim como em outras as representações
espaciais são amplas, podendo acontecer “em qualquer tempo, em qualquer lugar”39 (como
em Anjo negro), ou em uma fazenda qualquer do interior de Minas Gerais (em Álbum de
família). O que importa é a clausura e a ruína. O que acontece em muitas delas é a
destruição recíproca dos seres da mesma família. Ou a autodestruição. Não há, na maioria
os casos, a utopia do viver harmoniosamente em sociedade, nem a possibilidade da
existência do homem honesto, porque “o mineiro só é solidário no câncer”40.

38
XAVIER, Ismail. Op. cit., 2003, p. 25.
39
RODRIGUES, Nelson. Op. cit., 1981, p. 122.
40
Frase que acompanha a personagem de Edgar, em Bonitinha, mas ordinária.
190
No jogo entre o olhar e a cena, Nelson Rodrigues assume a “teatralidade”. O
solo em que se move supõe a dissolução do homem honesto de Diderot. É o terreno
minado pela consciência já acumulada do lado problemático da “expressão
autêntica”, pelo senso de que o comportamento se desdobra e envolve construção
de imagem, exibicionismo, presença do teatro onde ele não pareceria estar.
Impossível trabalhar no ponto de equilíbrio exigido por um decoro correlato ao
momento de afirmação dos valores burgueses em que a família e a casa se faziam
redutos de harmonia e sinceridade. Todo um percurso do teatro moderno nos separa
de tal utopia, como bem mostram os desencantos de Ibsen, Strindberg e Tchekhov,
nos quais o espaço privado se torna o lugar da rivalidade, da humilhação e dos
jogos de poder. Em outras palavras, um inferno, como o será na cena do dramaturgo
brasileiro, ponto onde convergem influxos do teatro moderno analisado por Peter
Szondi, do melodrama e o cinema.41

Esse caráter inovador de Nelson Rodrigues – ainda que muitas vezes irregular –,
juntamente com a proposta de entrelaçamento de gêneros, ajudou na constituição do drama
moderno brasileiro. O processo de renovação teatral proporcionado por Vestido de noiva e,
em seguida, pelo uso da linguagem coloquial, faz dele não apenas um importante autor
dramático brasileiro, mas um desbravador, como assim o nomeou Sábato Magaldi.
Sabemos hoje que autores posteriores foram influenciados42 por alguns experimentos
estéticos seus e, ainda que esses dramaturgos tenham utilizado isso de forma diversa, pode-
se afirmar que Nelson Rodrigues proporcionou ao teatro brasileiro uma herança dramática
que gerou frutos capazes de fortalecer a nossa fragmentada tradição teatral.

41
XAVIER, Ismail. Op. cit., 2003, pp. 26-27.
42
Apenas para citar alguns autores mais conhecidos, Jorge Andrade, Plínio Marcos e Augusto Boal
assumiram que sofreram influências diretas do dramaturgo. Elisabeth Azevedo, estudiosa da obra de Jorge
Andrade, afirma o seguinte: “Sabe-se que Jorge Andrade reestruturou seu texto [A moratória] com base em
sua leitura [de Vestido de noiva].” (O uso da rubrica na obra de Jorge Andrade. In: Sala Preta. n. 1. ECA/
USP, 2001.) Por sua vez, Plínio Marcos, em entrevista ao Programa Roda Viva, da TV Cultura, em 15 de
fevereiro de 1988, afirma o seguinte: “Nós todos... Pode haver Plínio Marcos porque teve Nelson Rodrigues
na frente. Ele realmente... Há discordâncias, algumas pessoas dizem que é o Oswald de Andrade, que é o pai
do teatro moderno, mas não é não. É o Nelson Rodrigues. Ao Oswald de Andrade se deve muito mais o
talento do Zé Celso, e o Nelson Rodrigues não. O Nelson Rodrigues foi na frente mesmo, ele abriu o caminho
para nós, todos nós autores: o Abreu mesmo que você citou, o Leonardo que vem agora atrás de mim. Nós
devemos tudo ao Nelson Rodrigues, que ele abriu”.
191
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